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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Carlos Roberto da Silveira
O humanismo personalista de Emmanuel Mounier
e a repercussão no Brasil
DOUTORADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Carlos Roberto da Silveira
O humanismo personalista de Emmanuel Mounier
e a repercussão no Brasil
DOUTORADO EM FILOSOFIA
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para a obtenção do
título de Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Carlos Arthur
Ribeiro do Nascimento.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
DEDICATÓRIA
Aos meus pais queridos, Ana e José, gratidão
eterna.
À minha esposa Maria Imaculada
companheira de todos os momentos, aos
meus filhos queridos, Larissa e Carlos
Alexandre, sobretudo pelo respeito, pela
compreensão, força e confiança que
transferem.
A todos aqueles que despertaram e
imprimiram primaveras em tempos sombrios.
AGRADECIMENTOS
Ao amigo Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento pela sua orientação,
dedicação, atenção e sabedoria.
Aos membros das bancas de qualificação e defesa.
Aos Professores Doutores que me acolheram com carinho e disponibilizaram-
se através das entrevistas, e-mails, cartas e materiais, o que muito contribuiu
para o enriquecimento desta pesquisa. Foram eles: Antonio Joaquim Severino,
João de Scantimburgo, Luiz Alberto Gómez de Souza, Balduíno Antonio
Andreola e João Batista Libânio.
À Mestra, Ernestina Remusat Rennó, Irmã do Convento da Providência de
GAP, pela gentileza e colaboração.
À Professora Grafira pelo inestimável auxílio.
Ao José Carlos (Zeca), pela ajuda precisa.
À Edith e Marcílio pela cooperação.
Ao pessoal da secretaria, biblioteca, docentes e demais funcionários da PUC-
SP.
À Paulene, minha sobrinha pela sua disponibilidade solidária.
Ao Paulo, pelo empréstimo dos valiosos livros da Biblioteca Alcântara Silveira.
A todos da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FACAPA), em especial à
Lucilene, à Meire e à Dona Ivone, por me deixarem acampar na biblioteca.
À CAPES, cuja bolsa de estudos contribuiu significativamente para realização
dessa pesquisa.
Enfim, agradecimentos a toda minha família e em especial à amiga e esposa
Maria Imaculada Pereira da Silveira, pelo carinho e incentivo.
Não se trata de conservar o passado, mas de resgatar as
esperanças do passado.
Adorno/Horkheimer
Mounier matou-se de trabalho e de preocupações. A
pequena felicidade tão íntima, tão tocante, que era
entrevista naquele lar, onde a presença feminina e a graça
da infância eram o bálsamo do drama viril daquela
consciência de filósofo, dissipara-se como uma névoa em
uma noite de inverno. 1950 era marcado por uma ausência
a mais, na hora em que mais necessária se tornava a
presença de um espírito como desse defensor da Pessoa
Humana, contra os perigos que cada dia mais a ameaçam.
E o visitante de algumas horas trazia, para outras margens
do Atlântico, por onde Mounier só em projeto ou sonho
navegara, a imagem fugaz de um lar desfeito, de uma
felicidade esvanecida, de um
parque antigo mergulhado na
chuva...
Alceu Amoroso Lima
Importa, a todo custo, que façamos alguma coisa de nossa
vida. Não o que os outros admiram, mas esse impulso que
consiste em imprimir-lhe o Infinito.
Emmanuel Mounier
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AC - Ação Católica
ACB - Ação Católica Brasileira
ACI - ão Católica Independente
ACJF - Ação Católica da Juventude
Francesa
ACO - Ação Católica Operária
ADP - Ação Democrática
Parlamentar
AEC - Associação dos Educadores
Católicos
AIB - ão Integralista Brasileira
AP - Ação Popular
AUC - Associação dos
Universitários Católicos
BAEM - Bulletin des Amis
d’Emmanuel Mounier
BEM - Bibliothèque Emmanuel
Mounier
CEPAL - Comissão Econômica para
a América Latina
CLT - Consolidação das Leis do
Trabalho
CIDOC - Centro Internacional de
Documentação em Cuernavaca
(México)
CNBB - Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil
CONSEA - Conselho de Segurança
Alimentar e Nutricional Sustentável
CONTAG - Confederação dos
Trabalhadores na Agricultura
CPC - Centro Popular de Cultura
CPI - Comissão Parlamentar de
Inquérito
DCE-PUC- RJ - Diretório Central
dos Estudantes da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de
Janeiro
DB - Documento-Base (AP)
DN - Diário de Notícias (Rio de
janeiro)
FAO - Organização das Nações
Unidas para Agricultura e
Alimentação
HAC - Homens da Ação Católica
IBAD - Instituto Brasileiro de Ação
Democrática
IEM - Instituto Emmanuel Mounier
IPES - Instituto de Pesquisas
Sociais
ISEB - Instituto Superior de Estudos
Brasileiros
IBRADES - Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Social
JAC - Juventude Agrária Católica
JC - Jornal do Comércio (Rio de
Janeiro)
JCB - Juventude Católica Brasileira
JEC - Juventude Estudantil Católica
JECF - Juventude Estudantil
Católica Feminina
JFC - Juventude Feminina Católica
JICF - Juventude Independente
Católica Feminina
JIC - Juventude Internacional
Católica
JOC - Juventude Operária Católica
JOCF - Juventude Operária Católica
Feminina
JUC - Juventude Universitária
Católica
LCs - Ligas Camponesas
LEC - Liga Eleitoral Católica
LFAC - Liga Feminina da Ação
Católica
LIC - Liga Independente Católica
LOC - Liga Operária Católica
MCP - Movimento de Cultura
Popular
MEC - Ministério da Educação e
Cultura
MDCE-PUC-RJ - Manifesto
Diretório Central dos Estudantes da
Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro
MIRAD - Ministério da Reforma e
Desenvolvimento Agrário
PCB - Partido Comunista Brasileiro
PSD - Partido Social Democrático
PUC - Pontifícia Universidade
Católica
PUC-SP - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
SNI - Serviço Nacional de
Informações
UBES - União Brasileira dos
Estudantes Secundaristas
UFMG - Universidade Federal de
Minas Gerais
UFPA - Universidade Federal do
Pará
UFRJ - Universidade Federal do Rio
de Janeiro
UNE - União Nacional dos
Estudantes
USP - Universidade de São Paulo
RESUMO
O personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) surgiu diante de
uma condição histórica permeada por grandes desordens. Dentro do contexto
de humanidade em crise, Mounier promoveu sempre a pessoa. Defendeu uma
retomada dos inalienáveis direitos humanos, abriu vias para o universo ético da
pessoa em seu tempo e lugar. Propôs um despertar, um desabrochar de
existência verdadeiramente humana feita de imanência e transcendência.
Assim desperta, a pessoa, ser-no-mundo e com-o-mundo, assume a
humanidade, recusa a passividade e o conformismo diante das ameaças
alienantes de qualquer natureza. Elegendo-se, compromete-se numa luta
permanente para humanizar a humanidade. Sua filosofia, que une reflexão e
ação, chegou às “outras margens do Atlântico” e teve progressivamente
repercussão no Brasil a partir da década de 50. Momentos de grande produção
intelectual, cultural, filosófica, política e social foram vividos como jamais visto
na História do Brasil. Tudo foi interrompido pelo “Golpe Militar” de 1964:
chegava ao fim a primavera dos tempos de libertação, de educação e de
cultura centrada na dignidade da pessoa humana. Ao furtar a lógica das
estações, iniciava-se um longo período de inverno sombrio. Período que jamais
pode ser esquecido, embora atualmente, tudo se faça para rejeitar este
passado vergonhoso. Ainda que sob o punho de ferro da ordem totalitária
(desordem estabelecida), o personalismo no Brasil na década de 70 conseguiu
manter a centelha acessa, através de uma incoativa trincheira de um pensar
mais especificamente filosófico. Com o passar do tempo, ao sintonizar os dias
atuais, nota-se que novos episódios contra a dignidade humana ocorrem
diariamente. Não é estranho pensar que, aludindo no início do culo XXI ao
enfoque defendido por Mounier, venha-se a redescobrir que a idéia de pessoa
pode contribuir muito para o nosso tempo. O pensamento de Mounier sobre a
pessoa pode fornecer subsídios para um despertar pessoal que abarque os
outros, promova uma ética de responsabilidade e traga consigo, nas estruturas
de seu universo pessoal, a novidade, tão necessária a uma comunidade
(comum-unidade) que precisa urgentemente entender-se como planetária.
Palavras-chave: Emmanuel Mounier, Personalismo, Pessoa, Novidade,
Atualidade, Brasil.
ABSTRACT
The personalism of Emmanuel Mounier (1905-1950) came up during a
historical situation permeated by great disorder. Within the context of mankind
in crisis, Mounier always promoted the person. He defended the recovery of
inalienable human rights, and paved the way for the ethical universe of the
person in his time and place. He proposed an awakening, a bloom of the true
human existence made of immanence and transcendence. Thus awakened, the
person, being-in-the-world and with-the-world, takes hold of his humanity,
refuses passivity and conformism when faced with alienating threats of any
nature. His philosophy, which unites reflection and action, reached “the other
shores of the Atlantic” and had an improving repercussion in Brazil from the
fifity’s. Times of great intellectual, cultural, philosophical, political, and social
production were lived as never before in the history of Brazil. Everything was
interrupted by the “Military Coupof 1964: came to an end the spring of the
times for liberty, education and a culture centralized in the dignity of the human
person. Not following the logic of the seasons, it was starting a long time of
somber winter. A time that can be never forgotten, even though nowadays
everything is being done to reject this shamefull past. Anyway, even under the
iron fist of the totalitarian order (established disorder), the personalism in Brazil
during the 1970’s managed to maintain the spark lighted through a starting
trench of thinking, specifically more philosophical. Time going, attending to
nowadays time, it is noticed that new incidents against human dignity do occur
daily. It is not an odd thing to think that, referring at the beginning of the 21
st
century to the view uphold by Mounier, one comes to rediscover that the idea of
the person can contribute much to our time. Mounier’s thought about the
person can provide help for a personal awakening that enclose each other,
promoting a responsibility ethics , and bringing with it, in the structures of its
personal universe, something new, so much needed by a community (common-
unity), that urgently must be understood as planetary.
Key Words: Emmanuel Mounier, Personalism, Person, Novelty, Present time,
Brazil.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................01
I - AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA A AÇÃO: EMMANUEL
MOUNIER (1905-1950) E O PERSONALISMO.....................................05
1. Mounier, existência e compromisso.............................................07
1.1 Do pessimismo cristão ao otimismo trágico............................21
2. Fontes de inspiração....................................................................33
3. Fundamentação teórica, metodológica e histórica do
personalismo................................................................................46
4. Desordem estabelecida................................................................55
4.1 Capitalismo e individualismo....................................................56
4.2 Cristandade desvitalizada........................................................62
4.3 Totalitarismos...........................................................................68
II - A EMERGÊNCIA DA PESSOA..............................................................70
1. Do termo pessoa, à pessoa no pensamento de
Emmanuel Mounier.....................................................................72
2. Estruturas do universo pessoal....................................................82
2.1 Unidade entre existência e encarnação.................................82
2.2 Transcendência da pessoa e sua eminente dignidade..........86
2.3 Comunicação, aprendizagem interpessoal.............................88
2.4 Recolhimento como meio de exteriorização...........................93
2.5 Afrontamento e sua dinâmica.................................................96
2.6 Liberdade com condições.......................................................98
2.7 Compromisso, exigência da ação.........................................102
3. O personalismo a serviço da pessoa..........................................108
3.1 Revolução personalista e comunitária..................................111
3.1.1 Revolução pessoal............................................................112
3.2 Prioridade aos meios materiais............................................114
3.3 Comunidade personalista.....................................................117
3.4 Educação personalista.........................................................119
III - O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER NO BRASIL............123
1. Ação histórica: um desafio no Brasil após a Segunda
Grande Guerra............................................................................123
1.1 Ação Católica no Brasil e os campos de atuação.................128
1.2 O despertar de inspiração libertária......................................133
2. Exigências de um novo pensamento humanista para o
momento histórico concreto brasileiro.......................................138
2.1 O Ideal Histórico...................................................................141
2.2 Inspirações no pensamento personalista de Mounier
e a Consciência Histórica.....................................................148
2.3 A repressão: reflexão e militância em tempos
sombrios...............................................................................177
3. O Personalismo de Mounier a partir de 1970 no Brasil..............186
IV - O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER: LEGADO E
NOVIDADE...........................................................................................193
1. O legado....................................................................................193
2. Novidade do pós-personalismo.................................................198
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................212
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................219
INTRODUÇÃO
“As posições que nestas páginas esboçamos são discutíveis e
estão sujeitas a revisões. Pelo menos, têm a liberdade de não
terem sido pensadas na aplicação de ideologias recebidas,
mas terem sido descobertas progressivamente, com a condição
do homem do nosso tempo. Qualquer personalista não pode
deixar de desejar que elas sigam a linha dessa descoberta e
que a palavra ‘personalismo’ seja um dia esquecida, um dia em
que já não for preciso atrair as atenções sobre aquilo que devia
ser a própria banalidade do homem”. (Emmanuel Mounier)
Com frequência a “pessoaesteve sob debate na história da filosofia.
Mas esta adquiriu enorme relevância principalmente no século XX, na década
de 30, com a filosofia personalista francesa e, em especial, com Emmanuel
Mounier (intelectual francês, cristão, filósofo e fundador da revista Esprit, ainda
hoje sendo editada). Mounier retomou a noção de pessoa e fez desta o porto
de partida para uma nova navegação filosófica: pensamento compromissado,
otimista, aliado à exigência da ação frente à “desordem estabelecida”. Trata-se
de uma “filosofia da ação”, em resposta aos problemas concretos dos homens
no seu mundo e situados no tempo e no espaço.
Este trabalho sobre o personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950)
nasceu com a proposta de compreender o porquê de sua filosofia, da
elaboração do personalismo, da fundação da revista Esprit, da importância
destes no contexto histórico europeu; enfim, de seu compromisso com a
humanidade e testemunho como homem de pensamento e ação. Isso levou a
2
uma pergunta particular: teria o humanismo personalista de Emmanuel Mounier
provocado alguma repercussão no Brasil?
Emmanuel Mounier vivenciou em sua época a crise espiritual, material,
política, econômica, teológica, filosófica, científica que resultou no aviltamento
de valores, manifestado ao extremo nas duas Grandes Guerras, nos campos
de concentração, nos holocaustos e totalitarismos. Na procura por todas as
formas de defender a pessoa humana, Mounier refletiu sobre seu tempo
histórico, conheceu-o, contestou-o e o afrontou. Autor de vastíssima obra,
marcada pela preocupação com a dignidade da pessoa humana, sua maior
obra foi, no entanto, ter dedicado toda sua existência em prol do despertar de
um mundo mais humano. Daí, estarem certos os estudiosos que afirmam ter
Mounier construído sua vida em paralelo a seu pensamento, o personalismo.
Portanto, para que se possa entender a filosofia de Mounier, é preciso
conhecer a trajetória de sua vida, seu tempo histórico, suas fontes de
inspiração (neotomismo articulado ao pensamento cristão, existencialismo,
marxismo, fenomenologia existencial), as fundamentações (teórica,
metodológica, histórica) e o que se entende por “desordem estabelecida”
(capitalismo e individualismo, cristandade desvitalizada, totalitarismos). Assim,
será possível compreender a condição histórica na qual brota tal filosofia, bem
como a exigência do pensamento ser aliado à ação, aos quais Mounier se
entregou de corpo e alma. É o que, espera-se, permitirá situar a real dimensão
da filosofia de Mounier. Esses aspectos são tratados no Capítulo I – “As
condições históricas para a ação: Emmanuel Mounier (1905-1950) e o
personalismo”.
No Capítulo II, “A emergência da pessoa”, apresenta-se um breve
apanhado da compreensão do termo “pessoa” ase chegar a Mounier, que
não a define sistematicamente, por acreditar ser esta “não inventariável”, não
se tratando de objeto passível de observação e delimitação. Para ele, a pessoa
é mistério, novidade, transcendência espiritual e experiência de vida. Não se vê
em Mounier a pretensão de definir o que seja a pessoa. Ele acredita que a
pessoa seja um universo dinâmico e aponta que as “estruturas do universo
pessoal” podem revelá-la parcialmente e que ela sirva como “centro de
reorientação”. Assim, a pessoa pode despertar de sua dormência de seu
3
mundo inautêntico e viver plenamente sua grandeza humana. Para Mounier,
este seria o mais belo presente do mundo. Diante disso, pode-se compreender
a missão do personalismo de se manter aberto ao diálogo, de se propor
descobrir-se “progressivamente, com a condição do homem”, promovendo uma
revolução pessoal, comunitária, ética e pedagógica.
Quanto à pergunta particular deste trabalho, é o Capítulo III - “O
personalismo de Emmanuel Mounier no Brasil” - que a visa em última instância.
são identificadas as sementes do personalismo que para aqui são
transplantadas e vingam, bem cultivadas na terra Brasilis. Trata-se do
nascimento da ACB e seus movimentos, da contribuição do “ideal histórico” de
Jacques Maritain, das exigências de um novo pensamento humanista, diante
de uma nova condição histórica e concreta, inspirado em Emmanuel Mounier.
Despertados de uma dormência coletiva, militantes, jovens e intelectuais,
dentre outros, acreditaram que a única alternativa era agir sobre a “desordem
estabelecida”. Foram anos de grande ebulição teórico/prática, de libertação, de
educação, de preocupação com o outro, enfim, com a pessoa. Destaque
especial é dado a Henrique Claudio de Lima Vaz, estudioso das obras de
Mounier, que inspirado por ele, põe em relevo o conceito de “consciência
histórica”, que orientará os principais movimentos de engagement no Brasil. Tal
exigência, tal produção intelectual e prática, será ceifada pelo “Golpe de 1964”;
“A repressão: reflexão e militância em tempos sombrios”. O personalismo
retorna, porém, na década de 70 por outro viés: mais especificamente
filosófico.
O Capítulo IV é dedicado ao legado de Emmanuel Mounier e sua
novidade, por meio do qual se afirma que seu pensamento relativo à pessoa
continua atual, vivo e seria urgente a ele recorrer frente às vicissitudes da
condição humana no momento histórico presente.
Assim, neste novo milênio, poderia ainda ouvir-se o eco personalista
pela pessoa podendo ele penetrar ainda muito bem em nossos ouvidos.
Certamente é urgente o projetar-se a “pessoa”, pois jamais em toda a história
da humanidade se ouviu falar tanto em princípios éticos, desde o âmbito das
organizações governamentais ou não, até as escolas primárias. Vozes se
erguem nos debates na mídia, movimentos e mais movimentos se agregam em
4
prol da dignidade humana, mas paira uma ganância contínua aviltando
espíritos; o individualismo egoísta prepondera e a “desordem estabelecida”
vagueia por todos os cantos do globo terrestre. A humanidade carece de novos
olhares para os novos problemas, agora de ordem mundial. Fazem-se
totalmente necessárias grandes mudanças e atitudes decisivas, pois, se o ser
humano não despertar a sua “pessoa”, se não afrontar e der direção às suas
ações, talvez esteja caminhando para a total inviabilidade de sobrevivência, o
que “infelizmente”, hoje, mais do que nunca, “atrai nossas atenções”.
5
Capítulo I
AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA A AÇÃO: EMMANUEL
MOUNIER (1905-1950) E O PERSONALISMO
A história da pessoa será assim paralela à
história do personalismo. Não se desenvolverá
somente no plano da consciência, mas, em
toda a sua grandeza, no plano do esforço
humano para humanizar a humanidade
(Mounier, 1950, p.10).
Emmanuel Mounier dizia que a pessoa não é como uma forma, um
molde em que se imprimem ideias, instruções e convicções. Ao contrário, se
constitui de puro movimento dialético que a perpassa. É pensamento implícito
que filtra as vontades obscuras percorrendo o caminho do pensamento
refletido. No final deste percurso, como complemento da existência, surge a
ação, o refino apurado, a vontade da ação seguida do apelo à ordem e mesmo
ao transcendente. Com isso, o pensamento se faz carne, “carne de existência”
e em cada existente, “carne de sua existência”. Logo, faz-se mister insistir em
um pedido: a pessoa não deve encolher-se nos abrigos e nem fugir dos
problemas (Mounier, 1947, p.18).
Mounier insistia veementemente sobre a necessidade da reflexão
seguida da ação, este movimento contínuo de criação em que a pessoa
imprime a cada instante a sua presença (novidade absoluta) na história
(fidelidade histórica) e no infinito (história progressiva).
1
Ele declara:
1
Veja abaixo, p. 67.
6
O personalismo, a partir de hoje, deve tomar consciência de sua missão
histórica decisiva. (...) congrega hoje vontades em número suficiente, elucidou
suficientemente os seus princípios de base e os seus próximos deveres para
poder trazer à plena luz a sua possibilidade específica, que é a possibilidade do
homem, frente ao mundo burguês, ao marxismo e aos fascismos. Inspirando
também ele, uma concepção total da civilização, ligada ao destino mais
profundo do homem real, não tem de mendigar um lugar em qualquer
fatalidade histórica, ainda menos em qualquer barafunda política; deve
doravante, com a simplicidade e o desinteresse daqueles que servem o
homem, assumir, nos países que para tal estejam preparados, a iniciativa da
história (Mounier, 1967, p.124, 125).
Se a história em sua etimologia, expressão grega (historía) significa, de
forma geral, “pesquisa”, Coulanges (1971, p.8) analisa que, através desta,
“felizmente o passado nunca morre completamente para o homem. O homem
pode esquecê-lo, mas deste passado guardará sempre a recordação”. Paul
Ricoeur (1913-2005) afirma que a história contém em seu núcleo um desejo de
encontro juntamente com um desejo de explicação: “Preciso da história para
sair de minha subjetividade privada e experimentar em mim mesmo e para
além de mim mesmo o ser-homem, o Menschsein (1968, p.37). Parece que
aqui se unem nas dimensões do tempo, o passado, o presente e o futuro diante
de uma determinada “condição histórica” que formará a história. Ricoeur (Ibid.,
p.27) dirá que a “condição histórica” é “uma resposta pela escolha da história,
pela escolha de um certo conhecimento, duma vontade de [compreendê-la]
racionalmente”. Ao compartilhar pensamentos, ao perscrutar o passado e
principalmente o presente dos homens, parece que Mounier “precisou da
história” e precisou da história de sua época, vivendo-a objetivamente
(diferentemente do historiador que considera a história à distância). Nela, ele
viu a crise da civilização (desordem estabelecida), a crise da própria pessoa e,
por isso, adentrou a história dos homens, o conhecimento objetivo histórico e
acima de tudo o conhecimento filosófico. Pode-se usar a expressão de Ricoeur
(Ibid., p.24), o que chama de “subjetividade de reflexão”, para nomear essas
etapas sequenciais do conhecimento refletido. Mounier ultrapassou, porém,
estas etapas e ousou, para chegar ao centro do personalismo, fazer-se “carne”
de sua existência. Enfatizou o valor absoluto da pessoa, a necessidade de um
novo olhar sobre o homem em sua realidade presente e futura e com as
7
“estruturas do universo pessoal” (Cf. abaixo, Cap. II Seção 2) proclamou a
luta permanente da pessoa para “humanizar a humanidade”, pela qual doou-se
com testemunho exigente e combatente.
Ricoeur (1968, p.12), ao recordar as homenagens outrora prestadas
pelos companheiros de Esprit ao “filósofo da ação” Emmanuel Mounier, resgata
desse passado um artigo seu no qual filtra e reescreve uma nova homenagem,
que revela seu apreço e sua dívida para com o “grande amigo”:
Esta homenagem, recolocada em novo contexto torna-se a confissão de minha
dívida. Essa maneira de vincular a reflexão filosófica aparentemente mais
apartada da atualidade dos problemas vivos de nosso tempo, esta recusa em
dissociar uma criteriologia da verdade de uma pedagogia política, este gosto de
não separar o “despertar da pessoa” da “revolução comunitária”, esta recusa
em cair no preconceito antitecnicista a pretexto de interioridade, essa
desconfiança em face do “purismo” e do catastrofismo, esse “otimismo trágico”
enfim, tudo isto considero minha dívida a Emmanuel Mounier.
1. Mounier, existência e compromisso
Emmanuel Mounier nasceu em primeiro de abril de 1905, na cidade de
Grenoble, sudeste da França. Tímido, integrante de uma família modesta, viveu
a infância e adolescência cercado pela afeição de seus pais, da irmã mais
velha e dos avós, que conservavam firme a fé cristã católica. Do ambiente em
que fora criado, guardou a visão do homem do campo como um exemplo a ser
seguido: sinceridade, espontaneidade, amizade eram a mistura perfeita da
comunhão entre os homens. Quando homem formado, estudante universitário,
encontrando-se diante da artificialidade do espírito intelectual predominante na
Sorbonne, sempre se lembrava de sua infância e dela extraía recordações de
sua família, de toda sua comunidade e de sua vida de montanhês:
“... muitas vezes eu me volto com reconhecimento para os meus quatro avós
camponeses, verdadeiros todos os quatro. (...) eu sinto um avô reagir em mim,
sua saúde a correr nas veias, o ar dos campos a purificar meus pulmões...”
(Mounier, 1963, t. IV, p.413).
8
Do ambiente bucólico, preservava a meditação e a introspecção, em que
buscava aprofundar seu intelecto. De criança, apesar da acentuada timidez,
logo conquistava a afeição e a amizade. Em sua adolescência, busca afrontar a
vida e se arriscar; “Encontrar pessoas era tudo o que esperava da vida, e eu
sentia que isto queria dizer encontrar sofrimento. (...) parecia-me não poder
imaginar a alegria senão através da partilha do sofrimento” (Mounier, 1963, t.
IV, p.415).
Na juventude, sofre dois acidentes que o levam a perder uma vista e um
ouvido, o que significou para o jovem um sintoma da fragilidade humana.
Muito ligado ao ambiente e aos valores familiares, filho atencioso e
moderado, os pais, retardaram-lhe os estudos, esperando conservar ao
máximo seu convívio tão natural, sutil e harmonioso. Interferiram inclusive em
sua carreira estudantil, pois o orientam para a medicina, acreditando que a
praticidade desta seria um complemento compensatório para o seu forte lado
meditativo. Atendendo seus pais, Mounier inscreve-se na Faculdade de
Ciências, embora sentisse uma particular inclinação pelas Letras. Mais tarde,
num retiro espiritual realizado pela ACJF (Ação Católica da Juventude
Francesa), Mounier definirá sua vida:
Li então em letras de fogo, a necessidade de bifurcar meu retiro foi uma
revelação não da vida interior, que graças a Deus, a tive abundante em toda
a minha adolescência, mas da verdadeira humildade que eu ignorava e de
minha vocação da qual duvidava (Ibid., p.417).
Desta forma, buscou apoio familiar. Seu pai, sem contestação,
apresentou-o ao discípulo e amigo de Bergson, Jacques Chevalier, em
Grenoble, dando início a uma grande amizade e estudos, visando ao
apostolado religioso. Mounier se esforça, propõe discussões, temas de debate,
redige o curso que seu mestre ministrou sobre Bergson; chama atenção. Em
1925, funda um grupo de estudos; em 1926 dirige reuniões semanais de um
grupo chamado Platonizantes, sendo também membro da Conferência São
Vicente de Paulo. Por intermédio de Mons. Guerry, vigário do bairro mais pobre
de Grenoble, tem contato com a miséria, seu “batismo de fogo”, algo que
marcará sua iniciação.
9
Em junho de 1927, defende seu trabalho acadêmico voltado para a
filosofia humanista, cujo tema, O conflito do antropocentrismo e do
teocentrismo na filosofia de Descartes,
2
mostra uma preocupação com os
problemas da atualidade juntamente com a vida interior. Este tema, com que
conclui o curso superior, lembra que tal filosofia visa ao apostolado e está
moldado na tríade, pensamento, ação e compromisso, que marca o autor
profundamente e passa a ser sua bandeira. Com 22 anos de idade, parte para
Paris com intuito de ingressar no curso oficial para o magistério.
Por intermédio de Jacques Chevalier tem contato com o Pe. Pouget,
lazarista, octogenário e cego, que lhe confere até 1933 (ano de sua morte) uma
sólida formação teológica. Em 5 de janeiro de 1928 perde seu único amigo
íntimo Georges Barthélémy, colega de classe em filosofia. Este fato lhe
provoca enorme tristeza.
Completa o curso de licenciamento em 1928. Obtém o segundo lugar no
concours d’agrégation
3
e recebe uma bolsa por três anos para ingresso no
curso de doutorado. Resiste, pois para ele havia uma atitude intelectual muito
idealista e abstrata na Sorbonne, o que o afastava completamente da
dramaticidade pela qual passava a comunidade humana. Hesita também com
Jacques Chevalier, que lhe expõe a necessidade de uma técnica a ser
implementada: “Sei que isto é preciso, no entanto odeio estas prisões...”
(Mounier, 1963, t. IV, p. 439). Então, Mounier escreve a Jacques Chevalier:
Decididamente, sou incapaz da atitude objetiva daqueles jovens que se
colocam diante dos problemas como diante de uma peça de anatomia, e diante
da própria carreira como diante de um mecanismo a montar-se metodicamente
até o ponto fixado. (...) esta gente me desgostou de seu método e me teriam,
resumindo tudo, desgostado da filosofia, se não fosse o senhor, o meu
2
Barlow (Cf. 1975, p. 18) diz que com este trabalho, Mounier parece antecipar em dez
anos a análise de Jacques Maritain, em seu Humanismo integral, sobre o humanismo
teocêntrico e o humanismo antropocêntrico.
3
Bem lembrou Villela-Petit (Cf. 2005, p.149-150), quando escreve o artigo celebrando o
centenário de nascimento de quatro intelectuais do meio filosófico francês: Emmanuel Mounier
(1905-1950); Paul Nizan (1905-1940); Raymond Aron (1905-1983); Jean-Paul Sartre (1905-
1980). Estes quatros jovens prestaram o mesmo concurso. Os três últimos foram alunos da
École Normale Supérieure. Mounier, após completar seus estudos em Grenoble, foi para Paris
prestar o referido exame e se classificou em segundo lugar, precedido por Raymond Aron.
Jean-Paul Sartre também concorreu, mas foi reprovado. No ano seguinte (1929), em sua
segunda tentativa, ele foi aprovado em primeiro lugar e Paul Nizan em quinto.
10
passado e a verdadeira filosofia que disso não é responsável (Mounier, 1963, t.
IV, p. 433-434).
Disposto a prosseguir os estudos, defronta-se com vários temas e
finalmente decide estudar a visão de Henri Delacroix referente ao problema da
personalidade, assunto de que se ocupa longamente nas obras O
Personalismo e Tratado do Caráter. Mas antes de escrever seu trabalho, um
grande acontecimento marca-lhe por completo a vida. Escreve e publica um
livro sobre O pensamento de Charles Péguy, com a colaboração de Georges
Izard e Marcel Péguy. Tal envolvimento o faz descobrir novos caminhos em
seu pensamento e obra. Vale citar que este livro foi dedicado ao amigo
Barthélémy. Através do estudo de Péguy, afirma ter conseguido salvar-se da
crise de angústia que tanto o afligia, e ao redescobrir-se neste autor, Mounier
admira-o profundamente. Seu trabalho fê-lo ter contato com Henri Bergson e
também com Jacques Maritain, que aconselhava, na produção da obra, os três
jovens autores; Mounier, Izard e Marcel Péguy.
4
O estudo sobre Péguy propiciou a Mounier numerosas conferências, o
que o tornou mais seguro e confiante. Inicia também seus primeiros ensaios
como escritor no movimento dos Davidées,
5
cujas revistas eram publicadas
pela sua fundadora Mlle. Silve e por Jean Guitton. Assim, sente aproximar-se
da ação e escreve a sua irmã Madeleine:
não poderias acreditar na alegria com a qual me encontro em tal meio. Quantas
vezes estive eu dolorosamente dilacerado entre estas duas perspectivas:
permanecer um homem de gabinete, cuja obra não ultrapassa o papel, onde se
4
Os três jovens receberam informações diretamente de fontes vividas. Para Mounier, em
especial, o contato com Maritain irá cristalizar a formação de seu pensamento personalista,
pois, através de seu mestre, aproxima-se de outras pessoas e pensamentos que o marcarão
profundamente. Basta atentarmos para esta simples retratação. Entre os anos de 1900-1901,
Maritain relaciona-se com Charles Péguy e se tornam amigos. Em 1903, Péguy leva o casal de
amigos (Raíssa e Jacques) ao curso que Bergson ministrava no Collège de France. O jovem
casal encontra em Bergson a luz e o caminho para o espiritualismo. Na famosa autobiografia
do casal Maritain (As grandes amizades), estes expressam, como sendo uma época do grande
renascimento espiritual para eles. Em 1905, o grande encontro com Leon Bloy e o cristianismo.
Raíssa e Jacques Maritain em 1906 recebem o batismo no catolicismo e Péguy os segue na
mesma fé. (Cf. Pussoli; Lima, 1995, p.129-168).
5
Os Davidées eram um grupo de professores cristãos que surgiu em 1916 e que se
reunia para discutir os problemas pelos quais toda a França passava. Publicavam seus
pensamentos de apelo coletivo contra as desordens através da revista Les Davidées. Tal nome
tinha relação com a obra Davidée Birot, nome do personagem central do romance de Nicolas
Marie François René Bazin (1853-1932), produzida em 1912. Jean Guitton escreveu uma obra
sobre este movimento: GUITTON, Jean. Les Davidées. Histoire d’un mouvement d’apostolat
laïc, 1916-1966. Paris: Casterman, 1967.
11
imprime, ou então, agir, preso, porém, em quadros ou partidos, onde é
necessário mentir e sacrificar o recolhimento à agitação e à eloquência. Eis
aqui um primeiro plano, em que vejo a ação se oferecer a mim sem causar
detrimento (Mounier, 1963, t. IV, p. 444).
De 1931 a 1932, participou, em Meudon, das reuniões mensais de
intelectuais católicos, protestantes e ortodoxos, coordenadas por Jacques
Maritain.
Nestas reuniões, passa a ter contato mais profundo com os problemas
europeus.
6
Inicia seu professorado em 1929, no Colégio Santa Maria de Neuilly. De
1931 a 32, leciona filosofia no Liceu de Saint-Omer. Deste período magisterial,
inúmeros testemunhos de alunos, colegas de estudo e amigos apontam as
tendências de Mounier em não medir esforços para transmitir um ensino
objetivo e transparente. Além disso, diziam ser ele dotado de um enorme senso
de humildade e carisma, como nas palavras de Moix: “um despertador de
almas” e nas de Jean Guitton (1928, apud Moix, 1968, p.13): “Sois destes
seres privilegiados que herdaram a simplicidade... basta que apareçais, e logo
todos se agrupam em torno de vós”.
O clima de instabilidade social e política, assim como a crise econômica
de 1929 se alastram na Europa. A insegurança e a opreso tornam-se o cotidiano.
6
Eram realizadas no apartamento dos Maritain, em Meudon, as reuniões mensais. Estas
reuniões se tornaram célebres frente aos grandes problemas da cultura. Eram inúmeros os
participantes, dentre eles temos: Georges Rouault, Henri Ghéon, Henri Massis, Stanilas Fumet,
François Mauriac, Jacques Madaule, Jean Pierre Altermann, René Schwob, Pe. Garrigou-
Lagrange, Pe. Michel Riquet, Georges Auric, Nicolai Berdiaef, Charles Du Bos, Gino Severini, o
príncipe Vladimir Ghika (que depois se tornou padre), Charles Journet (depois se tornou
cardeal), Louis Massignon, Jean Cocteau, Jacques Froissard (o futuro Pe. Bruno de Etudes
carmélitaines), Gabriel Marcel, Marc Chagall, Jean Hugo, Igor Stravinski, Pierre Reverdy, Julien
Green, Raíssa, Emmanuel Mounier, dentre outros. Importante lembrar que tais encontros não
tinham apenas a finalidade cultural. Seus membros viveram momentos de tensão, de crise,
principalmente com a condenação pela Igreja da Action française (1926). Foi também durante
este período de permanência dos Maritain em Meudon que Jacques publicou muitas obras,
dentre as quais citamos: Primado do Espiritual (1927), Religião e Cultura (1930), Distinguir para
unir ou Os graus do saber (1932) - a sua obra mestra -, Humanismo Integral (1936) - a obra
mais conhecida -, Situação da poesia (1938) - juntamente com Raíssa. Attilio Danese mostra
em seu artigo que “Com os amigos de Maritain que se reuniam em Meudon, Mounier havia
colaborado na dissertação do texto Pour le bien commun onde persistia a duplicada recusa do
comunismo e do fascismo, em favor de uma ‘terceira força’, que seria assumida nas
responsabilidades do bem comum”. Mounier procurava instrumentos para modificar a
democracia burguesa. Juntamente a ele, pensavam Sturzo, Ignazio Silone e Simone Weil, que
temiam uma democracia orientada para o individualismo burguês. O documento citado por
Danese refere-se ao manifesto publicado em 19 de abril de 1931: Pour le Bien Commun, Les
responsabilités du chrétien et le moment présent. Paris: Desclée de Brouwer, 1934 (Cf.
Danese, 2007, p.37).
12
Quanto mais Mounier se aprofundava nos estudos, mais expandia sua
consciência. Percebeu a necessidade de combater as desordens do mundo
contemporâneo frente aos novos valores que afloravam com os
acontecimentos. Algo deveria ser feito para o despertar da dormência medíocre
diante da desordem. Inspirado por Péguy, Mounier pensa em criar uma revista
com o teor das grandes tradições revolucionárias francesas ligadas às
tradições espirituais. Era preciso, portanto, uma necessidade ativa, uma
vocação, um compromisso a ser implantado. Dessa ideia, nasce a revista
Esprit, sob a aprovação de Maritain. Mounier, ao mergulhar em suas reflexões,
viu também a necessidade de despojar-se de sua vida cotidiana, pois o novo
trabalho enfocaria o agir, o combater e sérias consequências certamente
adviriam: “Nosso caminho seuma marcha de solidão” (1963, t. IV, p. 479).
Dá-se então sua despedida da Universidade, amigos e colegas, tornando-se
um homem público aos 27 anos.
Em 1932 foi editado o primeiro número da revista. Mounier sabia que, a
partir deste momento, haveria de encontrar várias tribulações em seu percurso:
questões financeiras, desaprovações, ataques violentos, problemas de equipe
e principalmente, de sua parte, o quase rompimento com seu mestre Jacques
Chevalier, que desaprovava a postura da revista Esprit. Mounier se defende
dizendo querer repetir a experiência de Charles Péguy e dizendo tentar
alcançar, de alguma forma, possibilidades de ajudar, mediante métodos
eficazes, um agir sobre a crise, pois a revista era um grito inconformado com
as mazelas da época, um movimento de contestação, de busca e atitude de
uma geração estagnada. Este veículo, em defesa da pessoa, inserido na
situação histórica, denunciava os doutrinários, os moralistas e os
espiritualistas, que projetavam construções lógicas, longe da realidade
humana:
Foi nesta época que se cristalizou em mim um tríplice sentimento: 1. O
sentimento (...) de que um ciclo de criação francesa estava fechado, que havia
coisas a pensar que não se podiam escrever em parte alguma: que para nós,
pianistas de vinte e cinco anos, faltava um piano. 2. O sofrimento de ver, cada
vez mais, nosso cristianismo solidarizado com o que chamarei mais tarde de a
desordem estabelecida, e a vontade de fazer a ruptura. 3. A percepção, sob a
crise econômica, de uma crise total da civilização (Ibid., p. 476, 477).
13
Juntamente com a revista surge outro movimento de ação política, La
Troisième Force, com Georges Izard em sua diretoria. Izard, amigo de Mounier,
mantinha contatos estreitos com o movimento Esprit, mas logo surgem
problemas. Mounier tenta de todas as formas evitar a cisão entre os dois
movimentos. Segundo ele, “A Terceira Força” perdia a pureza, pois
desperdiçava os valores espirituais seculares. Para ele, a ação poderia tornar-
se impura, quando não alimentada pela meditação de uma vida interior. Se
direcionada somente em prol de medidas táticas, correria sérios riscos de levar
à mentira, aos “desvios da ação” (Cf. abaixo, Cap. II - subseção 2.7; Cap.III -
Subseção 3.1.1). Para Mounier, a verdade deveria ser o valor universal, não se
podendo abrir mão de sua lucidez. Enfim, ocorre a separação: “A Terceira
Força” funde-se ao “Fronte Comum”, formando um novo movimento chamado
“Fronte Social”.
Ao fundar a revista, Mounier acreditava na possibilidade de um acordo
entre o pensamento e a ação política. Mas, Esprit não era de caráter político,
sendo, no entanto, de “compromisso”, não somente de pensamento. Porém, o
“compromisso”, sabia ele, poderia estabelecer contatos com as impurezas da
ação. Mounier era um homem voltado ao diálogo, à conversação; não era um
político. Sua missão constituía-se em dar testemunho (pensamento
combatente) antes de tudo. O movimento Esprit, ao dar testemunho, veio a
sofrer ameaças de descontentes por serem molestados em sua comodidade
burguesa.
A instabilidade na Europa aumenta, vive-se o momento das guerras da
Etiópia pelos italianos (1935), da Espanha (1936-39), a invasão alemã da
Áustria no início de 1938 e os problemas com o “Fronte Popular”.
Mounier posiciona-se com firmeza contra o nazismo e torna-se um
crítico ferrenho ao denunciar o “Acordo de Munique” - a traição dos pacifistas a
qualquer preço -, o que veio a lhe causar muitas inimizades e crise interna no
movimento Esprit com a saída de vários membros importantes da equipe. Logo
uma campanha se ergue promovida pelos nostálgicos da Action Française,
7
e
7
Havia se passado vinte e quatro anos da derrota da Guerra Franco-Prussiana para os
alemães, e vivia-se na França um momento de prosperidade. Mas tal clima, logo é invadido por
um período do medo de uma nova guerra. Acreditava-se que as Forças Armadas fossem a
14
rumores surgiram de que o Vaticano condenaria a revista e o movimento Esprit,
por “conluio comunista”. Mounier rapidamente escreve um resumo completo
sobre as origens, os fins e as posturas do movimento, dirigindo-se ao arcebispo
de Paris. Jacques Chevalier o previne sobre as “más companhias” e Mounier
responde, mas o rompimento entre os dois foi inevitável:
Por favor, caro amigo, não me construa à distância uma fisionomia artificial. O
senhor sabe muito bem como é difícil conhecer um homem, um pensamento,
uma vida. Não me fale de meus “novos amigos”. Eu não frequento mais
homens de esquerda do que antigamente, eu detesto o espírito partidário de
direita. Eu sou... sem ambiguidade possível, antimarxista. Não confunda as
coisas (Mounier, 1963, t. IV, p.598).
Em 1935, Mounier casa-se com Paulette Leclerq e fixa residência em
Bruxelas, lecionando no Liceu Francês. Teve três filhas, sendo a primeira
acometida de encefalia aos sete meses de idade, vítima de uma vacina
antivariólica. Torna-se a perda da filha a imensa prova cristã para a família, que
em Françoise, “mergulhada em uma misteriosa noite do espírito”, a dor dos
homens; reafirmando-lhes ainda mais a fé, oferecendo-a em nome de Cristo e
em nome de todos os que sofrem o dilaceramento humano. Mounier jamais
esqueceu a presença de Françoise.
garantia da Segurança Nacional, até que em 1894, o capitão de Artilharia Alfred Dreyfus (Caso
Dreyfus) foi sentenciado à prisão perpétua, acusado de vender preciosas informações secretas
aos alemães. Tudo não passou de uma fraude para encobrir um segredo maior. Algumas
personalidades ilustres denunciam as irregularidades do processo. Dentre elas: o poeta
Charles Péguy, os escritores Émile Zola e Anatole France, e os compositores Alfred Bruneau e
Albéric Magnard. Em 1906 Dreyfus tem sua inocência reconhecida e a opinião pública francesa
se divide entre esquerda e direita: “despertou logo, nas consciências mais apuradas para as
necessidades vitais da França, o desejo de uma organização que militasse na defesa dos
valores e ideais ameaçados. Com esse ânimo formou-se uma efêmera Liga da Pátria
Francesa, da qual permaneceram dois grupos: os ‘Patriotas’ guiados por Paulo Deroulède e
Maurice Barrès e a ‘Action Française’ fundada por Charles Maurras e Henri Vaugeois. Com a
morte de Vaugeois, ficou Charles Maurras na direção do movimento e do jornal L’action
Française. Começa na França, quase imperceptivelmente, o jogo de esquerda e direita, como
uma espécie de guerra civil latente, mas logo marcada com sangue. Em setembro de 1923, a
anarquista Germaine Berton, com a intenção de matar Maurras, entra na redação do jornal e
atira em Marius Plateau, que cai mortalmente ferido”. No mesmo dia do enterro, os dois
movimentos se fundiram em um, na Action Française. Maurras assume por completo a
liderança e recebe apoio dos principais intelectuais da França: Léon Daudet, Jacques Bainville,
Henri Massis, George Bernanos, Jacques Maritain. Maurras (nascido em 1868) foi um
nacionalista de direita que defendia os interesses da França em suas relações com outros
países. Defendeu a monarquia. Escritor teórico e político, anti-semita e anti-republicano foi
condenado pelo Vaticano em 1926. Ingressou na Academia Francesa em 1938. Apoiou o
governo de Vichy. Após a vitória das tropas aliadas em 1945, foi condenado à prisão perpétua.
Faleceu em 16 de novembro de 1952 numa clínica em Tours. (Cf. CORÇÃO, s.d, p.163-205).
15
A Europa se vê frente aos totalitarismos (Fascismo, Nazismo) e de
ameaças, tendo início a Segunda Grande Guerra. Mounier aos 34 anos presta
serviço ao exército na função de secretário no setor administrativo, não muito
longe de sua cidade natal. Feito prisioneiro das forças alemãs foi libertado e
desmobilizado em julho de 1940.
Mounier reencontra-se com a família, instalam-se em Lyon e aguarda
obter autorização do governo francês para reiniciar a publicação, então
paralisada, da revista Esprit. Com a pobreza material pela qual são acometidos
e os fortes invernos de 40 e 41, Mounier passa a ministrar aulas particulares na
casa dos lazaristas de Lyon, na escola Ruobin, Dauphiné e em Vienne, para
que a família possa sobreviver. Sua preocupação latente continuava.
Desenvolvia atividades sob o governo de Vichy,
8
sempre com a intenção de um
esclarecimento e declara “... guerra sem tréguas ao regime totalitário, busca de
toda ação, mesmo incoativa, mesmo truncada, forçando no sentido de derrota
do nazismo” (Mounier, 1963, t.IV, p.293). Com isso, organizava discussões,
debates e reuniões em torno dos pensamentos de Jean Lacroix, Gabriel
Marcel, Maurice Noël, Robert d’Harcourt, dentre outros.
O movimento Esprit reaparece em “zona livre” (território não ocupado
pelas forças alemãs), em novembro de 1940. É acolhido com alegria, mas logo
recebe restrições e começam os debates censurados. Os assuntos, devido à
censura, pareciam não propor a “guerra sem tréguas” contra o Nazismo e “a
desordem estabelecida” (le désordre établi). Uma neutralidade aparente era
necessária, por isso, o movimento perdia colaboradores, a ponto de o
contestarem como sendo uma traição. Momentos difíceis: “Já o participamos
de uma guerra de fuzis, mas também não assinamos armistício com a guerra
espiritual começada por nós em 1932” (Ibid., p. 289). Segundo Mounier, tais
ações eram, ainda, muito mais importantes nesse período. Passa a trabalhar
em numerosos movimentos de juventude que surgem, além das conferências,
palestras e debates na Escola de Uriage, onde é admitido em 1940. Em seu
8
Em 5 de julho de 1940, as tropas alemãs invadiram o norte da França eliminando os
exércitos franceses. Os sobreviventes se refugiaram na parte centro-sul do país. Após dez
dias, as tropas alemãs tomaram Paris. Em 22 de junho, a França assina o armistício com a
Alemanha de Hitler; a costa do Atlântico e o norte ficariam ocupados pelas tropas alemãs
(França ocupada); no sul e sudeste (França o-ocupada), o governo devia lealdade à
Alemanha e Vichy torna-se a capital da França.
16
trabalho mostrava as debilidades dos dirigentes de Vichy e fomentava a luta
contra as influências da ideologia nazista.
Em julho de 1941, perde sua posição de professor na Ecole de Cadres
d’Uriage, instituição escolar que mais o marcou, pois consistia num centro de
resistência à ocupação alemã. Esta assumia por missão formar novos
dirigentes - imbuídos de princípios de responsabilidade ética para dirigirem a
França - através de uma pedagogia diferente da visão tradicionalista existente,
pois se acreditava que a crise provinha da condução de seus dirigentes.
Através de um novo pensar, a Escola estimulava a participação do aluno, a
autonomia, responsabilidade e liberdade. Havia conferências, seminários e as
aulas; estas funcionavam como discussões e introduções às temáticas
chamadas de “espírito de Uriage”.
Balduíno Antonio Andreola (Apud Andreola, 1985, p. 136) cita R. Josse,
ao afirmar que o Personalismo foi a doutrina de referência mais frequente nesta
escola. Isto provocou incômodos aos governantes, que não tardaram a enviar
ordem para o afastamento de Mounier em 1941 e decretar a dissolução da
Escola no final de 1942.
Como a qualquer grande educador, esta experiência o havia encantado,
pois era libertária, compromissada, crítica, já que tratava dos problemas atuais,
fugia do autoritarismo e pedantismo. Essa escola foi para Mounier o símbolo da
prática pedagógica em sala de aula.
Em agosto de 1941, Esprit é interditada devido ao sucesso, pois,
segundo Mounier, o movimento havia alcançado duas metas propostas:
difundir as ideias da revista entre a nova geração e impedir o processo de
expansão totalitária. Portanto, o movimento estava mais vivo. Vale salientar
que o trabalho desenvolvido por seu fundador jamais fora de envolvimento
político, mas sim de expansão espiritual e cultural, busca consciente da
dignidade humana; jamais ligado a organizações clandestinas, mas sim
afrontamento aos totalitarismos e privações que impedem o crescimento
humano.
Em 15 de janeiro 1942 Mounier foi feito prisioneiro, suspeito de
pertencer ao movimento Combat. Neste período, os trabalhos de Esprit
17
estavam suspensos e ele foi encarregado de organizar estudos sobre a
“resistência ideológica”, em particular a “Declaração dos Direitos do Homem”,
que em dezembro 1944 foi reproduzida na íntegra na revista Esprit, com
grande circulação. Em meio a estas turbulências, seu nome foi encontrado em
papéis com um dos membros do Combat, sendo então acusado de ser um dos
chefes do movimento clandestino que tinha por finalidade, em primeiro lugar,
lutar contra a propaganda e a dominação alemã. Preso, logo trata de promover
reuniões, sessões de estudo, gerando harmonia e tornando a prisão algo muito
diferente, algo como uma comunidade. Um dos detentos (Henri Colin) escreve
sobre sua presença: “Posso dizer que Emmanuel Mounier era um raio de sol
da cela, tinha sempre uma palavra amável para acalmar um enervamento
momentâneo, transmitindo aos que o cercavam a paz de seu espírito” (1950,
Esprit, p.1032). No cárcere, dá início ao Tratado do Caráter. Em 21 de fevereiro
sai da prisão, mas devendo permanecer em residência vigiada em Clermont-
Ferrand. Em 14 de março, recebe liberdade provisória em Lyon, porém em 29
de abril, sem nenhuma explicação de Vichy, é posto em internamento
administrativo, sendo conduzido para Vals-les-Bains, em 2 de maio. A 19 de
julho, em contestação, inicia uma greve de fome, juntamente com seus colegas
de internamento. Trâmites ocorreram entre Mounier e Vichy e somente em 30
de junho - décimo segundo dia de greve, com o crescente envolvimento da
população, que acompanhava as notícias através da Rádio de Londres, as
conversações do Governo Vichy, o envolvimento do Cardeal, dos universitários
e do ministro da Suíça - tiveram resultado: é declarada a revogação do decreto
de internamento. Mas, a liberdade esperada por Mounier e seus colegas, ao
recobrarem a saúde pós-internamento no hospital de Aubenas, é trocada pela
prisão política em 7 de julho, sendo então transferidos para o presídio de Saint
Paul em Lyon.
Mounier continua inabalado em sua fé e compromisso. Na cela prepara
sua defesa e dos companheiros, estuda muito. Reinicia a redação do Tratado
do Caráter e persiste sempre com os debates a respeito da filosofia
personalista, assuntos políticos, econômicos, nacionais e internacionais, além
de retomar assuntos sobre Péguy, Maritain e Bergson, oferecendo sempre
diálogo e um pouco mais de conforto em momentos miseráveis. No dia 30 de
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outubro conclui-se a defesa deste processo e Mounier vê-se às voltas com a
liberdade. Com o avanço das forças alemãs sobre as “zonas livres” e a saúde
abalada, busca asilo com sua família em Drôme e Dieulefit, permanecendo aí
até a libertação, com outro sobrenome, o da esposa. Neste ínterim, termina o
Tratado do Caráter e o Afrontamento Cristão. Estuda literatura, filosofia,
questões históricas do cristianismo, investiga profundamente as obras de
Friedrich Wilhelm Nietzsche, Soren Kierkegaard, Charles Maurras, Pierre-
Joseph Proudhon, Georges Sorel e Charles Forbes Montalembert. Deste último
publica uma antologia; estuda com muito interesse L’être et le néant de Sartre,
que pouco havia sido editado; descobre em Albert Camus uma espécie de
reflexão sobre o absurdo; não perde de vista os acontecimentos internacionais.
No final de setembro de 1944, os Mounier voltam a Paris e novamente a
pobreza os avassala, a situação material é extremamente precária, sendo
ainda mais agravada com o frio de 1944 e 1945, mas continuam firmes eme
vontade, contando com a generosa ajuda de amigos para sobreviverem.
Mounier chega a conseguir prestígio e a revista Esprit volta aos leitores
em dezembro de 1944 com um teor mais instigante e repleto de ânsia libertária,
consciente do pós-guerra, das atrocidades cometidas pelos totalitarismos,
abrindo espaço aos assuntos que emergiam, devido ao grande genocídio. Há,
portanto, predominância do debate de tais questões, sempre com enfoque
filosófico, expondo os temas ligados ao marxismo, existencialismo, resistência,
revolução, democracia, medicina, literatura, enfim, tudo em prol de um espírito
muito mais amplo. Tal empreendimento se abre para a universalidade e foi
considerado a “segunda geração” Esprit, tendo por integrantes Jean Lacroix,
Henri Marrou, François Goguel, Paul Fraisse, Jean-Marie Domenach, Bertrand
D’Astorg, AndBazin, Albert Béguin, Mikel Dufrenne, André Dumas, Pierre-
Aaimé Touchard, Paul Ricouer, dentre outros. A missão do movimento, nesta
fase de pós-guerra, é de contribuir para reestruturar política e espiritualmente
as sociedades dominadas pelo pessimismo por toda Europa. Para se ter uma
ideia, o próprio Mounier concordava que entre os anos de 1932 e 1939, Esprit
era animado por uma atitude mais crítica do que construtiva, uma mentalidade
meio anarquista, normal aos jovens da época e que alguns definiam como
“proudhoniana” e aos poucos se desfez. Quanto à revista, esta tinha uma
19
penetração profunda, mas limitada, em torno de 3 a 4.000 exemplares. em
1944, quando a revista reaparece, produziram-se de 12 a 15.000 exemplares,
com um efetivo de 40 a 50.000 leitores (Cf. Lacroix, 1969, p.36).
A partir deste momento, Mounier parece ter duplicado suas forças.
Passa a viajar constantemente para o exterior, fortalecendo movimentos,
pronunciando palestras, participando de reportagens, ou seja, dedicando-se à
comunicação, sua maior aliada, e ao diálogo, seu mais coerente instrumento de
unificação humana. Publica em 1946 Liberté sous conditions e Introduction aux
existentialismes; em 1947 Qu’est-ce que le personnalisme?; em 1948 L’éveil de
Afrique noire e La petite peur du XXème siècle. Sua última obra em vida é Le
personnalisme de 1949.
Em nenhum momento, Mounier fraquejara: as prisões, a doença da filha,
as privações diversas, rupturas, o rcere, a morte de amigos, as guerras,
nada o abalou a ponto de desanimar-se. Manteve-se sempre firme, um homem
fervoroso, um cristão dedicado à causa humana. Mas todo corpo carrega em si
as marcas do sofrimento, e em 1949 é acometido de uma crise cardíaca, que
acreditava ser apenas cansaço. Em fevereiro de 1950 sofre novamente outra
crise e, em março, no dia 22, vem a falecer.
Os jornais noticiaram que a multidão, que acompanhou o corpo de
Mounier, contava, entre os presentes, seus grandes inimigos, o que era um dos
maiores elogios:
Quando os inimigos de um homem esquecem-se por momentos dos ataques
que a ele dirigiam, revelam respeito pelo adversário e reconhecem que o
contentor embora na trincheira oposta era um batalhador de fibra, valor e
coragem, um lutador com quem era possível a luta de peito aberto, eis que dele
não era preciso temer o golpe baixo, a deslealdade ou a traição. (...) Mounier
conduzia o debate para um plano elevado e profundo que os adversários nem
sempre podiam alcançar. Daí os ataques de ordem pessoal, os manejos
mesquinhos que são o espernear dos que percebem falsear a tábua em que
apoiam... Desaparecido o adversário, porém, todos tiraram o chapéu em sua
homenagem (Silveira, 1967, p.16).
Alcântara Silveira declara que o maior número de acompanhantes do
corpo de Mounier era de seus amigos, que espiritualmente viviam à sua
sombra, seguiam seus passos, tinham-no como um guia, embora ele nunca
20
impusesse nada e nem pretendesse criar discípulos. Entusiastas o rodeavam:
“Dono de uma simpatia cativante, conhecedor dos homens, cil lhe foi
organizar uma equipe por entre os que caminham desorientados à procura de
solução, sabendo como lhes mostrar o caminho, que ele julgava certo”
(Silveira,1967, p.17).
Seu legado é fruto de sua filosofia, um personalismo que expressou o
valor intocável e inquestionável da pessoa. Algo que mais se aproximou
quantitativa e qualitativamente da proposta da palavra grega πρόσωπoν”, pois
projetou seu olhar para frente e afrontou,
9
não havendo nunca de ser de outra
forma. Como dizia Lucien Guissard (1969, p. 47):
Ele não pertence à categoria dos escritores e pensadores que, conhecidos
como católicos, colocam entre parênteses suas convicções íntimas no
exercício de sua própria disciplina. Menos ainda à categoria daqueles que se
satisfazem com a simplória e não se preocupam em dar testemunho através
de obra do espírito. Ele é do tipo do cristão que não se sentia realmente vivo,
sem uma ação sobre sua época.
Não ambicionava fama ou brilho. Sua filosofia era a honestidade do
espírito em acolhida à dignidade humana e, neste sentido, verdadeiro. Candide
Moix foi feliz ao reutilizar o que o próprio Mounier escreveu em sua tese a
respeito de Maine de Biran, A lição de uma vida. Tal texto encaixa-se também
mais que perfeitamente na própria pessoa de Emmanuel Mounier (1927, apud
Moix, 1968, p. 44):
O que faz o valor inapreciável de sua filosofia é que ela se confunde com sua
vida interior. Não se organiza em sistema, mas desenvolve-se na duração,
seguindo uma pista hesitante, sinuosa, mas de direção perseverante. Seu livro
mais belo, seu único livro, é sua vida: os outros não passam de estacas
demarcadoras de etapas.
9
Alude-se aqui à ideia latina de que “pessoa” refere-se a “o que se expressa a si mesmo
por suas próprias operações, tornando presente uma propriedade que o distingue de outras de
sua natureza...”. (MORA, 2001, p. 2262-2263).
21
1.1 Do pessimismo cristão ao otimismo trágico
Em um ensaio publicado em 1949 Perspectivas existencialistas e
perspectivas cristãs, no livro Esperança dos desesperados, Mounier diz que foi
solicitado a pronunciar um julgamento, em nome do pensamento cristão, face
ao desespero do mundo moderno. Mas afirma não saber o que seja
“pensamento cristão”: “Não existe uma filosofia cristã, assim como o existe
uma doutrina social cristã, ou uma política cristã” (Mounier, 1972, p.113).
Acredita Mounier, que exista uma inspiração cristã que perpassa a história e da
qual chegam a s apenas as premissas das diversas filosofias. Para ele, “há
dados cristãos, em que o pensamento filosófico se abebera, mas tratam-se de
dados suprafilosóficos, e os filósofos cristãos não estão ainda muito de acordo
em relação aos caminhos que os ligam à filosofia” (Ibid., p.113). Pergunta,
então: “Quem, diante de Sartre, representará o cristianismo? Santo Agostinho,
ou Santo Tomás? Pascal, o trágico, ou Leibniz, o negociador? Kierkegaard ou
Maritain? O cristianismo é um Evangelho de vida, não é uma filosofia” (Ibid.,
p.113). Portanto, cuidados devem ser tomados. Inicialmente pede-se para o
confundir “moda existencialista - uma pequena febre de cafés” -, conversas de
“apaziguados em seus plácidos espíritos”, com o sério “esforço monumental de
Sartre”. Convém lembrar, aos menos avisados, que o existencialismo advém
de uma longa galeria de antepassados (Cf. abaixo, p.42-43). Outra atenção,
segundo Mounier (1972, p.114), deve ser dada ao erro de “confrontar
cristianismo e existencialismo, como dois conteúdos dos quais se estabelece o
balanço e os relacionamentos entre si. Será a maneira mais deplorável de se
alinhar naquilo que o existencialismo chama, acertadamente, o pensamento
inautêntico”. Para Mounier (Ibid., p.115), o cristianismo, por pouco que seja
compreendido,
arrisca-se a encorajar uma espécie de fatalismo devoto, degradação da idéia
da providência, uma espécie de masoquismo beato, degradação da virtude da
humildade, uma disposição crédula, degradação do espírito de fé, um bom
humor satisfeito, degradação da esperança, um sentimentalismo invertebrado,
degradação da caridade.
22
Essa imagem do cristianismo será encontrada em muitos cristãos.
Mounier se abstém desse cristianismo desvitalizado e aponta que mesmo o
gênio de Nietzsche julgava o cristianismo nesta ótica. Crê Mounier que o
cristão autêntico, recusa esse subproduto mais vivamente que seus
adversários.
Acredita este que o cristianismo e o existencialismo (Sartre) têm em
comum uma exigência, a da autenticidade. nos dois, que a verdade se
descobre nos diálogos sobre o terreno comum e na vigilância constante da
fé. Eis aqui um dos paradoxos do existencialismo que se diz ateu, “e mesmo,
como Sartre o escreveu sem evasivas, como um ateísmo que se pensa mais
total e mais coerente que qualquer outro” (Mounier, 1972, p.116). Mounier
utiliza o pensamento de Sartre (Apud. Mounier, p. 116) que diz:
Não sou uma coisa, um ser objetivo que se conhece, colocando, como uma
peça de anatomia, sobre a mesa de observação, um móvel impessoal
transportado pelo rio da natureza e determinado em seu trajeto por uma
fatalidade. Sou um existente, a saber, um ser que surge na ordem determinada
das coisas como uma novidade absoluta, um centro de iniciativa, de afirmação,
de liberdade. Um ser é certo, que não é ausente ou separado do mundo, que
não vive mesmo, e nem se encontra senão no e pelo mundo, mas que
transcende o mundo por sua potência criadora e deve, constantemente,
arrancar-se à viscosidade das coisas para conservar a leveza elástica de sua
existência primeira. Em um sentido, eu sou mesmo aquele por quem o mundo
existe, porque tudo o que tomba no pesado ser do mundo, o passado, o hábito,
a afirmação por demais insistente, talvez mesmo a morte, eu posso revivificar,
retomando-o em minha liberdade, hominizando assim o mundo. O que importa
para um existente, não é o jogo estético da cintilação das coisas, a simples
organização da utilidade do mundo, mas é a vida autêntica, a perpétua
libertação de minha liberdade, o perpétuo arrancar-se à inércia das coisas, da
vida e do pensamento, sempre em vias de cair sobre mim como um frio, ou
uma rigidez de morte.
Mas qual é o núcleo do protesto existencialista de Sartre? Mounier (Ibid.,
p.117) pensa que é “essa transcendência da existência humana em relação à
vida e à matéria, esse caráter rebelde da afirmação espiritual a respeito de toda
explicação que se pretende exaustiva”, pela ordem, pelo sistema de ideias,
pelo élan vital, essa liberdade criadora (que às vezes faz do homem uma
espécie de deus), essa ligação íntima do homem à matéria. Entretanto essa
23
ameaça que ele encontra nela, parece, segundo Mounier (1972, p.117), colocar
este homem em “pleno universo cristão”.
Pode-se dizer que, cada vez que o élan cristão tendia a decair, um despertar
existencialista devolveu-lhe sua força de vida: é São Bernardo restabelecendo
o primado da salvação contra o racionalismo de Abelardo, l’Imitation erguendo
a contra os tortuosos raciocínios da escolástica decadente, São Francisco
sublevando o cristianismo ocidental contra as opressões da apropriação,
Pascal lembrando a angústia cristã a um século de conformismo devoto e de
acomodações galantes, Kierkegaard impelindo o paradoxo da contra a
arquitetura filosófica de Hegel, tão total que nada mais, secreto ou inquietante,
ficava aí esquecido (Ibid., p.117).
Do legado eufórico da filosofia e da economia do século XIX, os
existencialismos acusam uma época das “mais pobres espiritualidades da
história”, uma vasta mistificação da felicidade, fragilidade e abandono do
homem, impotência da razão e a iminência da morte sobre a vida. “Um retorno
do sentido trágico da existência”. Mounier não concorda com um termo que
usualmente utilizavam em sua época: “pessimismo cristão”. Para ele, melhor
seria “trágico cristão”, pois em definitivo, para o verdadeiro cristão, este pode
ser o tempo de seu triunfo. “O cristianismo tem seu ponto de partida no
momento em que um anjo diz aos apóstolos, que se conservam de nariz
levantado para a montanha onde o Cristo acaba de desaparecer: ‘Por que
estais a olhar para o ar? Vossa tarefa, doravante, está a vossos pés’” (Ibid.,
p.118,119). Mounier tece relações entre momentos distintos da história do
cristianismo ao lembrar que a Igreja primitiva rechaçou os gnósticos, como
heréticos, quando manteve o cristianismo presente ao mundo material e
histórico, opondo-se a tomá-lo como uma evasão mística; Santo Agostinho fala
da cidade de Deus e da cidade dos homens, inextrincavelmente mescladas; os
monges assumem o trabalho manual e as orações. Mounier acredita que o
cristianismo autêntico se desenvolve desta maneira. Portanto, diante da
pobreza espiritual, cabe resgatá-la urgentemente, antes que se afogue na
inexistência, “na inércia” e no “frio rígido da morte”.
Emmanuel Mounier viveu entre os anos de 1905 a 1950. Sua vida
decorreu, portanto, durante as duas grandes guerras de 1914 e 1939 e no
entremeio destas. No seu Manifeste au service du personnalisme, na primeira
24
parte do livro, o autor discorre sobre O mundo moderno contra a pessoa, e seu
pensamento retrata uma crise generalizada. Mounier chega a utilizar a
expressão “desordem estabelecida” para traduzir a desordem da civilização
ocidental. Assinala que o principal aspecto desta desordem é a miséria,
resultado das desordens de ordem econômica, política, religiosa e moral que
levam o homem rumo ao individualismo e ao surgimento de regimes totalitários.
Para Mounier era o fim, o término da euforia otimista, que predominara
nos anos de 1920. Atento, percebeu que pouquíssimas pessoas estavam
despertas diante de tais acontecimentos. Não havia dúvida: chegava ao fim, a
fase do surrealismo, dos poetas e literatos cintilantes como Jean Cocteau,
André-Paul-Guillaume Gide, Henry de Montherlant e Marcel Proust. Candide
Moix (1968, p.58) retrata esta época na visão de Mounier: “A geração da
década de 20 fora uma geração de jovens deuses, meninos insuportáveis,
poetas cintilantes. A geração dos anos 30 ia ser uma geração séria, grave,
ocupada com os problemas, inquieta com o futuro”.
Em uma entrevista concedida por Jean-Marie Domenach (sucessor de
Mounier na direção da revista Esprit), aos redatores da equipe Frères du
Monde
10
sobre o pensamento de Mounier, vê-se a preocupação de Domenach
ao pedir muita atenção, para não separá-lo da ação e torná-lo em pensamento
comum, mais simpático, em arranjos para manuais de filosofia, o que seria um
grande erro:
O pensamento de Mounier desenvolveu-se dentro de um contexto histórico
agitado; não cessou de combater; tirado de profundas fontes fora do tempo, ele
é, no seu enunciado, continuamente histórico, no corpo a corpo com os
homens, com os acontecimentos. Retirado do ambiente de seu tempo ele
perde grande parte de sua força de choque. Hoje em dia parece muito natural
ter estado contra Munique, contra a aliança entre o espiritual e o reacionário,
pela reconciliação da Igreja com os valores autênticos do mundo moderno: a
libertação da França e o Concílio consagraram semelhantes atitudes. Mas os
que viveram estes momentos se recordam de que não eram senão um
punhado de homens (raros homens) e que tinham, contra eles, tanto o povo
como os poderosos (Domenach, 1969, p.10).
10
Material extraído do título original francês Présence de Mounier Doss 27 da
revista Frères du Monde, Bordeaux. Tradução brasileira: DOMENACH, Jean-Marie (Org).
Presença de Mounier. Trad. Maria Lúcia Moreira. São Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 9-22.
25
Domenach acredita que a verdadeira fidelidade não é seguir Mounier
teoricamente, mas praticar o que ele iniciou. É preciso fidelidade, que, para
Mounier, era a presença ativa aos acontecimentos, uma posição de
“acolhimento e combate” (afrontamento) a tudo que tornasse as liberdades
confortáveis:
O mundo no qual vivemos é cada vez mais tolerante com as ideias, e cada vez
o é menos, com os comportamentos. Temos o direito de dizer não importa o
que, contanto que nos conduzamos como todo mundo. Eis o que devemos
recusar: a odiosa polidez deste mundo, que coage a viver no seu ritmo e
segundo suas leis, mediante o que de permissão, à noite, que se desligue a
televisão e se leia Marx ou Mounier, como bem aprouver. Vivei de outro modo,
falai aos homens e recusai obedecer cada vez que vos ordenarem agir contra a
justiça e a verdade. Vereis o que acontecerá. Eis o que chamo a fidelidade de
Mounier. É um risco (Domenach, 1969, p.11).
Para Mounier, estar disposto a agir e a enfrentar riscos é o que faz o
homem estar presente no mundo e na história. Deixa claro: não nos limitarmos
a uma visão simplista precedida de impulsos, e sim buscarmos ações que
“modifiquem a realidade exterior, que nos formem, que nos aproximem dos
homens, que enriqueçam o nosso universo de valores” (Mounier, 1950, p.105).
Mounier pertenceu à “geração séria dos anos 30” e a intenção de seu
movimento foi recusar a passividade e o conformismo diante de uma “Europa
friorenta dos conjurados do medo”. Apontou um caminho: a valorização da
pessoa, à qual se dedicou de corpo e alma, pensamento e ação, sendo sua
vida construída “paralela à história do personalismo” num contexto trágico, em
tempos de agitações, mas acima de tudo, de esperanças.
Foi durante a Resistência, quando preso em Lyon, que Mounier
trabalhou em seu livro: Afrontamento Cristão (1944). Estudou profundamente
as obras de Nietzsche e redigiu respostas a certas acusações manifestas
deste, mostrando que o cristianismo não era uma religião dos fracos, covardes
e conformistas, mas opção dos corajosos, daqueles prontos a enfrentar as
desordens que se estabeleciam. Por outro lado, faz coro com Nietzsche e
critica impiedosamente a cristandade decadente burguesa, com seus logros e
confortos.
26
Em se falando de “trágico cristão”, Ricoeur lembra que o livro
Afrontamento Cristão se desenvolveu no inverno de 1943-1944 (inverno em
muitos sentidos). Nesta época, Mounier estava preso, afastado da família e da
pequenina Françoise. Troca correspondência com a esposa Paulette na busca
de encontrar forças frente a tantos mistérios:
Que sentido teria tudo isto, se nossa pequenina fosse apenas um pedaço de
carne danificado não sabemos onde, um pouco de vida acidentada, e não esta
pequena hóstia branca que nos ultrapassa, uma infinidade de mistério e de
amor que nos cegaria, se o víssemos face a face: se cada golpe mais duro não
fosse uma nova elevação que, cada vez, quando nosso coração começa a se
adaptar, a se habituar ao último golpe, é uma nova exigência de amor. Tu
ouves esta pobre vozinha suplicante de todas as crianças mártires no mundo e
este pesar de ter perdido sua infância no coração de milhões de homens que
nos perguntam, como um mendigo à beira do caminho: dizei-me, vós que
tendes amor, as mãos cheias de luz, quereis dar-nos isto também?”. “Se nós
sofrermos apenas – sofrer, aguentar, suportar nós nada teremos e não
atenderemos ao que nos é solicitado. Da manhã à noite não devemos pensar
neste mal como em algo que nos é tirado, mas como em alguma coisa que
damos, a fim de não perder o mérito deste pequeno Cristo que está no meio de
nós, de não o deixar só, ele que deve nos arrastar, de não o deixar trabalhar
sozinho com o Cristo (Apud Guissard, 1969, p.55).
Ricoeur, amigo íntimo de Mounier, entende que este difícil momento
transpareceu em seu Afrontamento Cristão. As entrelinhas exalam e deixam
perceber o momento vivido e afrontado por Mounier. Ricoeur (1968, p.153) vê
no conteúdo das páginas a “condição histórica” e a opção combatente do autor
no alto de sua tragédia, em um livro que se configura como: “... símbolo de
tanta pobreza material e de ascese interior. (...) livro o duro para o cristão
ordinário, tão exigente em suas incidências filosóficas. Pode-se dizer que ele,
por inteiro é uma meditação da força, da qual tratou São Tomás depois dos
Padres”.
11
De certa forma, toda a vida de Mounier constituiu uma extrema
superação humana, “de triunfos” (tempos difíceis, tempos de medo), pois era
preciso transbordar otimismo em oposição ao desespero e transformar o
11
Ver, São Tomás de Aquino, Suma de Teologia, VII – II Seção da Parte II, q. 123-140.
27
trágico em exigência profundamente cristã. Ricoeur (1968, p.152) assim se
refere a esse “otimismo trágico”:
o tom que Mounier designa pelo nome de otimismo trágico” é algo mais
complexo do que poderia parecer à primeira vista: traz no bojo duas tendências
prestes a se dissociarem; uma, que permanece em primeiro plano, tende para
o otimismo como resultante final do drama; a outra, mais discreta, tende para o
sentimento de ambiguidade da história, em cujo seio se digladiam o melhor e o
pior. Emmanuel Mounier pôs sem dúvida em cena um debate de interesse de
historiadores, sociólogos, filósofos, teólogos; a questão que deixa em aberto é
a interseção duma teologia bíblica e duma filosofia profana da história, na
encruzilhada do otimismo como balanço positivo, face aos olhos humanos, e da
esperança como firme certeza de um sentido oculto.
Paul Ricoeur termina por ressaltar que Mounier, mais uma vez,
cumprindo muito bem seu papel, põe todos os envolvidos de sobreaviso contra
a ineficácia de uma abordagem especulativa do problema, quando
desvinculada da crítica do mundo em que se vive.
A análise de Ricoeur sobre o “otimismo trágico” de Mounier aponta duas
tendências que, ao primeiro olhar, estão prestes a se dissociar: 1ª) de sentido
otimista quanto ao caráter final do drama; 2ª) um sentimento de ambiguidade
da história, na qual encerra-se a luta entre o melhor e o pior. Ricoeur sustenta
que a questão é deixada em aberto e relembra o sobreaviso lançado por
Mounier.
Cabe aqui a tentativa de sondar mais em profundidade a expressão
“otimismo trágico”, lançada por Mounier. Para isso, serão reunidas algumas
referências, com as quais espera-se aproximar-se mais do sentido desta
expressão. Recordemos primeiro um estudo de Vernant, em que este,
parafraseando Walter Nestle, diz que a tragédia grega nasce “quando se
começa a olhar o mito com olhos de cidadão”; continua ele, ainda, dizendo que
não é somente o universo mítico que perde sua consistência e se dissolve,
mas, simultaneamente, o mundo da cidade fica também submetido ao
questionamento e debate de seus mais altos valores:
A tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela
fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos
políticos e judiciários. Instaurando sob a autoridade do arconte epônimo, no
28
mesmo espaço urbano e segundo as mesmas normas institucionais que regem
as assembléias ou os tribunais populares, um espaço aberto a todos os
cidadãos, dirigido, desempenhado, julgado por representantes qualificados das
diversas tribos, a cidade se faz teatro; ela se toma, de certo modo, como objeto
de representação e se desempenha a si própria diante do público. Mas se a
tragédia parece assim, mais que outro gênero qualquer, enraizada na realidade
social, isso não significa que seja um reflexo dela. Não reflete essa realidade,
questiona-a (Vernant, 2005, p.10).
Diante do passado mítico (dos heróis), junto às novas formas de
pensamento jurídico e político, conflitos de valor são dolorosamente sentidos;
daí o trágico, a angústia, as contradições e confrontações do cidadão grego.
Percebe-se que as cenas interpretadas no teatro (trágico grego) trazem
agregadas em si uma íntima ligação com o questionar a Cidade, no sentido da
construção de uma reflexão política comunitária.
Entende-se que a “primeira tendência", de que falava Ricoeur sobre o
sentido otimista do caráter final do drama, encontra-se aqui. Ao questionar a
Cidade, a tragédia finaliza num certo “triunfo”, o otimismo catártico, a
purificação. Por outro lado, este otimismo provoca, incita o cidadão e apela a
ele por sua parcela, sua contribuição, seu compromisso para construção de
novos valores (morais), no sentido de promover a “vida boa”. Por isso, a
tragédia, mesmo não tratando da realidade social da época, tinha o afã de
questioná-la.
Olivier Mongin (1997, p.70), ao comentar Ricoeur, no trágico o
questionar, mas o questionamento tende a ultrapassar sua própria visão e põe
a “nu a dimensão aporética da práxis”. As aporias, das quais a filosofia é
inseparável, saem do cleo da tragédia questionadora e se transfiguram num
caráter aporético do agir. Para Ricoeur (1995, p.161), estamos diante da
primazia da ética sempre viva (sentido de intenção de uma vida realizada sob o
signo das ações consideradas boas) sobre a moral (lado das normas,
obrigações, interdições).
Trata-se da ética efetiva cumprindo sua missão, afrontando e
ultrapassando o crivo das normas que se cristalizam e sempre carecem de
mudanças engendradas que advêm da “sabedoria prática”, que é a intenção
ética atenta à singularidade das situações.
29
A “sabedoria prática” envolve a vida real, o real trágico. Nasce diante
das situações concretas em que a pessoa é posta a prova. Por isso, retoma-se
o que se disse antes: ficar de “sobreaviso contra a ineficácia de uma
abordagem especulativa do problema, quando desvinculada da crítica do
mundo em que se vive”, “da realidade social”, como diz Vernant. Na tragédia
grega, em particular, depois da Antígona de Sófocles, sabe-se que nascem os
conflitos exatamente quando:
pessoas obstinadas e íntegras identificam-se tão completamente com uma
regra particular que se tornam cegas com relação a todas as outras; assim
ocorre com Antígona, para quem o dever de sepultar um irmão se sobrepõe à
classificação do irmão como inimigo pela razão do Estado; igualmente com
Creonte, para quem o serviço da Cidade implica a subordinação da relação
familiar à distinção entre amigos e inimigos (Ricoeur, 1995, p.169-170).
A peça trágica de Sófocles (Antígona), obra “demasiado humana”, faz
alvorecer o trágico da ação, da guerra de valores ou dos comprometimentos
fanáticos. Pouco importam os lados que se “digladiam”
(melhor ou pior –
Antígona ou Creonte), pois em ambos se configuram os conflitos de deveres. É
nesse ponto que se requer a presença da “sabedoria prática”. Ela se liga à
situação do juízo moral e tem por necessidade a “convicção”, que possui força
mais decisiva que a regra. A “convicção” o é arbitrária, isso quando recorre
às fontes do sentido originário ético, que não passaram pela norma. Ricoeur
elabora e desenvolve a “estrutura ternária” que compõe o sentido ético: “estima
de si” (momento reflexivo do desejo da “vida boa” sujeito responsável, capaz
de mudar os acontecimentos do mundo), “solicitude” (movimento de si em
direção ao outro exigência ética da reciprocidade amizade) e, terceira,
depois do viver bem, das relações interpessoais, Ricoeur entende que é
preciso viver o sentido de justiça (igualdade e distribuição justa).
12
A tragédia grega, adentrando o movimento catártico, desorienta o
homem, condena-o à práxis e o re-orienta. Por isso, Antígona em sua tragédia
chama tanto a atenção. Ricoeur dirá que ela, ao reorientar-se, assume para si
todo o risco, “no sentido de uma ‘sageza prática’ em situação que melhor
responda à sabedoria trágica. Esta resposta diferida pela contemplação festiva
12
Para maiores detalhes, Cf. abaixo, p.206-211.
30
do espetáculo faz da ‘convicção o além da catarsis’” (Apud., Mongin, 1997,
p.69).
A filha de Édipo, com seu agir, promove um retorno às raízes primevas
do herói grego que, ao transgredir as leis, atrai as desgraças, as tormentas,
para si, mas estabelece sua vontade contra o destino marcado pelos deuses e
pelos homens. Um dado importante: Antígona não defende sua Pátria, seu
Estado (a exemplo da Areté definida dos grandes heróis gregos), defende o
irmão (inimigo do Estado), as leis da família, as leis divinas não escritas.
Portanto, está contra as leis mantidas por seu tio Creonte, que usurpou o trono
de Édipo (pai de Antígona), promoveu a morte de seus irmãos (Polinice e
Etéocles) e, pela sua lei, aterrorizou e esmoreceu sua irmã Ismênia. Esta,
diante do trágico, encolheu, escolheu o caminho da facilidade, embora mais
tarde reconheça isto. Sendo assim, no momento mais preciso, Ismênia não
cumpriu o papel da personagem trágica, cabendo-lhe angústia maior, o
remorso e, o pior, o “pessimismo”.
Mongin (1997, p.70) faz uma pergunta importante: “Como é que esta
‘sageza prática’ indissociável de um pensamento sobre o caráter aporético da
ação se manifesta na obra de Ricoeur?” Aponta, primeiro, uma implicação na
vida da Cidade, ao suscitar compromissos e tomadas de decisões. Para ele,
Ricoeur jamais cedeu ao imperativo político, viveu em campo de prisioneiros,
foi “estimulado pelas reflexões do personalismo de Mounier e de Paul-Louis
Landsberg, o trágico da época não é estranho a Ricoeur, e não surpreende que
este tema intervenha igualmente, o sob a forma de um debate sobre a
tragédia e o caráter aporético do agir, mas de uma angústia perante a história”
(Ibid., p. 70). A resposta de Mongin é clara e pode estender-se também à
história de vida de Mounier, a seu compromisso com a Cidade e, acima de
tudo, com o cristianismo vivo, combatente contra as morais cristalizadas,
totalitárias, que impedem a pessoa humana de se desenvolver plenamente.
Além do “otimismo”, do refletir a tragédia, do “caráter aporético do agir”,
do trágico e suas mazelas, não se pode esquecer de outro termo importante
que se afigura em tempos de desespero: a esperança.
Hesíodo, em Os trabalhos e os dias, trata em seus versos do presente
de Zeus a Prometeu e aos homens. Para Lafer (2006, p.53), a temática de
31
“Prometeu e Pandora é o relato central dos Erga”, sobre os fundamentos da
condição humana que se estabelece na Antiguidade grega.
Pandora, aquela que recebeu todos os dons, assume para si o ato
punitivo de Zeus para com os homens. A punição, os males (kaká), está
contida no jarro (thos). Pandora executa o ato punitivo (porque ela é a própria
punição) ao retirar a tampa do jarro, deixando escapar as doenças (nóusoi), os
pesares (dea), as dores, a fadiga, enfim, os males da punição, que
constituem o mundo dos humanos. Conta-se, porém, que “Pandora deixou
sozinha, dentro do jarro, a Elpís (esperança, pré-ciência, expectação, espera)
depois de todos os males terem saído e de ela ter recolocado sua tampa
(Lafer, 2006, p.72).
A Elpís é ambígua. Está ligada a Prometeu em sua pré-ciência e à
irreflexão de seu irmão Epimeteu. Ela é espera e esperança, ilusão necessária,
simultaneamente pode ser o bem e pode ser o mal, confiança ou desilusão.
Pandora é o fluxo da condição humana. É a um tempo, o belo e o
mal, o prazer e a dor, a vida e a morte, o nascer e o perecer. Mas ela traz
consigo a originalidade ao inaugurar a raça das mulheres, a fala (Pho) que
servirá de comunicação entre os homens, tanto para o bem como para o mal
(Ibid., p.91). Portanto, traz um dos elementos mais importantes da constituição
humana, o poder da comunicação como fundamento primeiro de uma raça
pensante. Diante dos dons divinos recebidos, cabe ao homem, ciente de um
fim comum, de “angústia perante a história”, ser otimista, fazer uso sempre do
diálogo reflexivo. Caso se estabeleça a desordem, eis o compromisso consigo,
com o bem comum, com a vida boa. Eis também o trágico seguido do “caráter
aporético do agir”. Ao final de um “otimismo trágico” resta mesmo a esperança,
a boa Elpís.
Retornando a Mounier, ao usar o termo “otimismo trágico”, dirige-se ao
cristão. Cobra deste, na ação, o sentimento vivo do cristianismo. Pede que a
“pessoa” represente seu papel diante da vida, do “trágico cristão”, da história,
questionando a realidade, agindo sobre esta e assumindo todos os riscos. Este
“otimismo trágico” é, pois, a própria condição do cristão. É ambiente de luta, de
não aceitação da comodidade, do estático, daquilo que o priva do crescimento
humano. Tal termo traz consigo o compromisso ético diante da onda do
32
absurdo, do extremamente trágico, do desespero, da comodidade que assolava
os homens de sua época. Mesmo diante da crise, da tragicidade da vida,
deveria o cristão cumprir sua missão. Lucien Guissard (Apud, 1969, p.50-51)
transcreve o que Emmanuel Mounier havia dito:
Quem escolheu o partido da inteligência, não escolheu um caminho fácil. Dever
de testemunhar uma verdade transcendente, no caminho da qual deverá
combater os limites e as paixões de seus próprios amigos, dever de se engajar
numa ação que a cada passo ferirá as mais caras fidelidades, o podendo
recusar nem a um nem a outro, nem concilia-los jamais em harmonia perfeita.
Deve perpetuamente correr de um a outro, acusado aqui de trair a disciplina de
combate, de ferir a verdade, dilacerado na sua própria consciência e em
cada uma de suas decisões. Mas, infatigavelmente, deve segurar as duas
extremidades da corrente: de um lado, lembrar, sem ceder, as exigências da
verdade, lutando com todas as forças contra a mentira e a exploração dos
valores espirituais; salvar, salvar e salvar ainda quando o combate deseja
confundir, odiar e destruir; ao mesmo tempo escolher é sacrificar. Libertar-se e
engajar-se perpetuamente para edificar ao mesmo tempo, uma outra, uma
apesar da outra, a liberdade e a eficácia do espírito.
Este caminho é árduo, este agir político implica uma dimensão histórica
e espiritual. A pessoa é transcendência e opção, pode participar do plano de
sua salvação cristã, desabrochando no encontro consigo, ou perder-se em si
na ambivalência de sua Elpís.
Havia em Emmanuel Mounier a vontade e a força, como disse Ricoeur,
havia a crença no mistério e na esperança. Paulo Freire, combatente, dizia que
a esperança, no sentido de sua ambiguidade, poderia ser passiva
(simplesmente uma espera) ou ativa. Portanto, para a segunda opção era
preciso inventar o verbo “esperançar”, ou quem sabe, poderíamos tomar
emprestado o termo “otimismo trágico” de Mounier. Na obra Pedagogia da
Esperança Freire (1997, p. 5,6) escreve:
Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal
ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no
pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar
o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura
cientificidade, é frívola ilusão. Prescindir da esperança que se funda também
na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus
suportes fundamentais. O essencial (...) é que ela, enquanto necessidade
33
ontológica precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica
a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso
que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se
espera na espera pura, que vira assim espera vã. Sem um mínimo de
esperança não podemos sequer começar o embate, mas sem o embate, a
esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se
torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a
precisão de uma certa importância em nossa existência, individual e social, que
não devemos experimentá-la de forma errada, deixando que ela resvale para a
desesperança e o desespero. Desesperança e desespero, consequência e
razão de ser da inação ou do imobilismo.
Ricoeur, ao lembrar a obra Afrontamento Cristão, afirma que só o cristão
assaz, forte e duro é que poderia retrucar a Nietzsche. Pouquíssimos tiveram a
coragem de criticar a cristandade (Finada cristandade) e apontar caminhos,
acima de tudo, trilhando-os. Por isso, Lucien Guissard (1969, p.56) acredita
que a transparência de Mounier não é mostrada nos artigos e nem em seus
livros, mas diante de sua fidelidade cristã.
Mounier foi homem livre e altivo que não desanimou frente ao “trágico
cristão”, afrontou, “esperançou” e só se curvou diante de Deus.
2. Fontes de inspiração
Para Mounier conduzir-se às fontes inspiradoras por onde o
personalismo se abeberou, foram de suma importância os contatos e as
orientações de seus mestres; inicialmente o ajudaram a conhecer e a
perscrutar certas premissas fundamentais, que lhe serviram de base para a
construção de seu pensamento humanista.
Viu-se anteriormente que Mounier adentra a filosofia através de seu
apostolado, tendo por primeiro mestre Jacques Chevalier, que, em suas
conferências, introduz o discípulo ao pensamento de Henri-Louis Bergson. Este
pretendeu escapar do reducionismo impositivo sobre as dimensões humanas
subjetivas, do reducionismo da interioridade da consciência, da liberdade, dos
direitos inalienáveis da pessoa, ou seja, era necessária uma nova metafísica
34
que ultrapassasse os simbolismos da linguagem e que na intimidade do real
concreto, no reino da duração pura, comunicasse com o “eu profundo”, pois
se encontra “uma ocupação séria do espírito”. No Personalismo de Mounier,
encontram-se os principais aportes do espiritualismo bergsoniano, como a
renúncia a um sistema de pensamento acabado, os esforços para unir razão e
realidade, uma concepção de consciência como memória e história, e a
necessidade de um novo método filosófico diante da crise da civilização.
Chevalier, ao ter contato com Mounier, logo percebe a capacidade, o
empenho, o interesse de seu discípulo; dessa forma se estabelece mútua
confiança. Travavam numerosas conversas, tanto referentes a assuntos
pessoais, quanto aos estudos, debates, conferências e cursos. Chevalier
(1926, apud Moix, 1968, p.6) anota em seu diário a respeito do aluno:
Alma dócil, ardorosa, transparente é a de Mounier. Escapa ao duplo perigo da
dispersão e do ascetismo. (...) e sobretudo dessa terrível segurança, que se
tem aos vinte anos, de ter feito uma volta completa em torno dos problemas, de
tudo ter visto, tudo compreendido e tudo acabado.
Chevalier preocupa-se, num primeiro momento, em oferecer ao aluno
um método rigoroso e seguro. Candide de Moix chega a dizer que talvez
venham daí as preocupações com uma objetividade voltada para o sentido da
reflexão profunda inevitavelmente acompanhada do compromisso da ação,
tanto cobrado por Mounier.
13
Não se deve pensar que o aluno recebia tudo passivamente, pois era de
personalidade forte. Mas sendo maleável, tudo o que recebia, assumia para si
e o transformava. Um dia após a morte de Mounier, Chevalier testemunhou:
forneci-lhe um viático duplo e único: - antes de tudo, princípios firmes e
inconcussos e uma orientação bastante precisa desde o início, para um fim,
mais espiritual que intelectual; um sentido no qual crer e amar com toda a alma;
- como instrumentos intelectuais, não lhe dei fórmulas, conceitos nem
palavras, em que se exprimiam meu modo de ver e traduzir a verdade; ele
devia forjar seus próprios instrumentos; o verdadeiro discípulo não é o que
13
Severino (1983, p. XI, XII) diz que para Mounier: “filosofar não é criar um sistema
objetivado de conhecimentos, mas assumir uma atitude reflexiva diante da existência. É tomar
uma posição intelectual diante do ser da existencialidade total, numa tentativa de interrogá-la,
apreendê-la, compreendê-la, interpretá-la e até mesmo de orientá-la”.
35
repete as fórmulas, mas o que propaga um movimento recebido (1950, apud
Martins, 1997, p.42).
Apesar da ruptura com seu mestre, exatamente por pensar e agir com
independência, o discípulo foi fiel até o fim no que se refere ao testemunho
acima; quando escreveu seu primeiro artigo, este dedicado a Jacques
Chevalier, declarando-o mestre de “espírito eminentemente católico, ou seja,
humano e universal” (Mounier, 1963, t.IV, p.420-421).
No período compreendido de 1927 a 1933, encaminhado por Chevalier,
Mounier esteve aos cuidados do padre Pouget, sob sua direção e assistência.
Encontravam-se duas vezes por semana e debatiam temas diversos sobre
mística, a Bíblia, os santos, história das religiões, meditação e ação. Daí a
aquisição de sua sólida formação teológica, que Mounier não esqueceu, e que,
para ele, foi uma revelação. Em uma carta a Jacques Chevalier escreve:
“Jamais lhe poderei agradecer suficientemente o fato de me haver dado a
oportunidade de conhecer o Pe. Pouget. Quando me acho em sua presença,
parece-me estar em face da verdade” (Ibid., p.428).
Nas férias de 1928 a 1929, Mounier aprofunda os estudos sobre Charles
Péguy. Juntamente com dois colegas (Marcel Péguy e Georges Izard), passa a
ter apoio e incentivo de Jacques Maritain. Nas palavras de Moix (1968, p.10):
“Quando se conhece Péguy, vai-se direto a Bergson”. -se então, encontro
pessoal com Bergson. A obra sobre Péguy é editada em 1931.
14
De 1931 a
1932, Mounier é solicitado por Maritain a participar, em sua casa em Meudon,
nas reuniões mensais de intelectuais católicos, protestantes e ortodoxos.
Nota-se claramente em Mounier a influência de Charles Péguy. O jovem
discípulo o como exemplo a ser seguido, um homem que pensa e age, que
reuniu em torno de si livres pensadores, católicos e protestantes, que não se
entregavam às trapaças, e isto é comprovado por Mounier, quando se refere ao
caráter de seus orientadores (Maritain e Bergson).
15
Péguy era um homem do
14
A publicação do livro sobre Péguy fez parte de uma das coleções Le Roseau d’or, que
era dirigida por Jacques Maritain.
15
Mounier procura seguir as linhas de pensamento de seus mestres e daqueles que os
rodeiam. Importante lembrar que Jacques Maritain é muito próximo de Bergson e também de
Léon Bloy (escritor profeta, crítico ferrenho do espírito burguês) que também inspira
profundamente Mounier. Bloy escreve sobre Maritain: Grande sucesso do meu querido
afilhado. Não sei - Deus o sabe - se Jacques é capaz de um movimento de gênio. Mas,
certamente tem todos os dons de um homem superior. Suas conferências de pura filosofia são
36
povo que passa a ser seu norte, guia, alma de fiel testemunho, comprometido,
espírito cristão em revolução contínua. Candide de Moix (1968, p.14) escreve:
“O exemplo de Péguy e a amizade benevolente de Maritain serão dois sólidos
apoios para Esprit”.
16
Mounier, a exemplo de guy, funda em outubro 1932 a revista Esprit,
que passa a ser o veículo, o órgão oficial do personalismo. Esta assume, diante
deste movimento, o sentido da experiência dialógica, a posição de porta-voz do
projeto de renovação política e espiritual frente à crise generalizada.
Cogitou-se que Mounier imitou Péguy. Quando entrevistado por
Dominique Auvergne em 1938, Mounier confirma-o como um guia. No entanto,
afirmou que jamais quis ressuscitar os Cahiers de la Quinzaine,
17
anexar Péguy
ou continuá-lo, pois Péguy estava além dele. Para Candide de Moix (1968,
p.12), Péguy e Mounier são
homens bem diferentes, e um paralelo entre suas obras seria muito difícil de
estabelecer e mais ainda, pouco convincente. Parentes próximos pelas suas
atitudes em face da vida, é sobretudo na crítica da “Desordem Estabelecida”
que eles se encontram. Apesar de tudo, Péguy permanece sendo um homem
do século XIX. Mounier, ao mesmo tempo em que combate as desordens do
mundo moderno, abre-se aos valores novos. Assim tem ele razão de dizer que
não imitou Péguy. Este, nele influiu pelo melhor de si mesmo, pela sua
universalidade. Apontou-lhe a direção geral.
Mounier ao ter contato com as obras de Péguy sente-se embriagado, no
que se refere ao Mystère de L’esperance (Cf.1963, t. IV, p. 446).
Depois de
Péguy, confessa viver possuído por Joana d’Arc. De seu mestre, mantém-se o
espírito cristão e a necessidade de revolução contínua. Em um texto de
radiodifusão (1945) escreve:
Posso dar o testemunho pessoal de que a descoberta de Péguy, lá por volta de
nossos vinte anos, contou muito com a decisão que nos levou a buscar em
torno da revista Esprit o laço entre as tradições revolucionárias francesas e
suas grandes tradições espirituais (Mounier, apud Moix, 1968, p.11).
de uma admirável clareza, com achados os mais brilhantes.” - Conferências de Jacques
Maritain sobre Bergson, (Apud Faria,1968, p. 205).
16
Cf. p. 10, acima.
17
Trata-se de uma revista fundada por Charles Péguy em 1900, que reuniu livres
pensadores, agnósticos e judeus revolucionários, com grande repercussão no meio intelectual
francês com o propósito de denunciar e agir sobre as desordens de sua época.
37
No encontro com seus mestres, com a filosofia, a teologia, com o
espírito do cristão revolucionário, Mounier aprofunda seu conhecimento diante
das exigências do mundo, cobra de si um movimento, uma ação pessoal que
imprima sua marca diante da história. Cristão convicto e fervoroso acreditou no
cristianismo vivo. Pierre Ganne (1971, p.11), ao prefaciar a obra O
compromisso da , escreve: “Outra o é esta fonte senão sua cristã e a
fidelidade secretamente heróica que ele viveu dia-a-dia até sua morte”.
No rastro de Péguy, Mounier critica o espiritualismo, o idealismo e o
intelectualismo desencarnado. Questiona a concepção pessimista da pessoa
humana (desprezo do mundo e pela vida material), a dependência da
dignidade diante da graça (pela graça de Deus é que o homem desenvolve sua
condição de criatura livre).
Ao retomar o tomismo, Mounier desenvolve em sua Estrutura do
Universo Pessoal, o pensamento sobre a Existência Encarnada que transcende
a natureza, que se abre ao diálogo, à liberdade e supera a dicotomia corpo-
alma da filosofia antiga e medieval. Mounier redimensiona o problema do livre-
arbítrio, ao considerar o homem como uma unidade corpo-espírito, homem ser-
no-mundo, e pensa
que o cristianismo, interessando o mundo todo pela história do Verbo e da
Cruz, estabeleceu uma amizade entre o homem e a natureza. O mundo
sensível irradia a mesma luz que penetra o coração do homem e sustenta sua
vida. É-lhe isto necessário para exercitar sua inteligência e remontar a seu
Deus (Mounier, 1971, p.26).
Para ele, o homem encarnado no mundo precisa entender que está
tomado em um corpo, em um determinado tempo histórico e lugar. Mas não é
situado, “prisioneiro”, como imaginavam os “pessimistas” da carne, “desde
Platão até esse jansenismo” (Ibid., p.29). Sendo o homem, indivisivelmente,
corpo e espírito - Mounier cita São Francisco ao referir-se à frase “Meu irmão
corpo”, mostrando a relação de fraternidade, o corpo como “meu primeiro
próximo”. Para Mounier, posso arrastar meu “corpo próximo” às atividades de
minha pessoa para cooperar na obra da Redenção, ou trair o universo inteiro
ao mover-me por leis mecânicas de um espetáculo objetivo e indiferente.
“Muitos cristãos se tornaram insensíveis a essa traição, de tal modo são dóceis
38
com a sensibilidade moderna, à influência do objetivismo científico e do
idealismo” (Mounier, 1971, p.30).
Por isso, Mounier aproxima-se de outra fonte de inspiração para propor
ações para o problema: o marxismo. O homem, para ele, é pessoa mergulhada
na natureza, mas ao mesmo tempo, o homem é corpo e é integralmente
espírito. Dos seus mais primários instintos, como comer, reproduzir-se, ele é
capaz de passar às artes subtis, como da culinária à arte de amar (Cf. Id.,
1950, p. 19,20). Porém, em sua existência, diante da multiplicidade de fatores -
como o geográfico, climático, econômico, político, cultural, situações incidentes
na estrutura existencial e face às contingências da vida -, o homem pode
alienar-se. Frente a um capitalismo burguês, Mounier (Ibid., p.21) afirma que a
miséria, assim como a “abundância, esmaga-nos. o marxismo pensa bem
quando diz que o fim da miséria material é o fim de uma alienação, é etapa
necessária para o desenvolvimento da humanidade”. Complementa dizendo
não ser neste ponto que terminam as alienações, nem mesmo num plano
natural.
Não é somente pela denúncia e crítica, mas pela práxis, que o
personalismo aproxima-se de Marx. Tal relação é notada pela dificuldade de
discernir nas obras de Mounier os conteúdos exclusivamente teóricos do
marxismo, pois, para ele, teoria e prática devem converter-se em ação. Por
isso, Mounier proclama o homem, não como um espectador da vida, mas como
ator crítico, cabendo a ele pressionar a história sempre em um contexto de
pensamento e ação, devendo ser um criador a todo o momento. Diz ele:
“Importa, a todo custo, que façamos alguma coisa de nossa vida. Não o que os
outros admiram, mas esse impulso que consiste em imprimir-lhe o Infinito”
(1963, t.IV, p.430).
Mounier tinha compreensão da força das ideias marxistas e jamais
subestimou sua importância, mas travou vários debates com o marxismo: “O
personalismo é o único terreno onde um combate honesto e eficaz pode ser
travado com o marxismo” (1961, t.I, p.508). Sabia de sua extensão e dizia ser o
marxismo mais que um método, ambicionava ser uma explicação do homem,
pretendia ser um humanismo e, diante de tanta desordem, vinha oferecer
esperança a um povo exaurido:
39
Por toda parte onde lhe é possível exprimir-se, tem o marxismo a confiança do
mundo da miséria. Por pouco profundas que sejam as suas raízes certas
reviravoltas bem o mostraram ele simboliza para esse mundo, atualmente, a
libertação; às mais legítimas reivindicações, a maior riqueza humana deste
tempo, uma forma que julga solidária de suas esperanças. o se pode
contestar, aliás, que os partidos marxistas, por muitos danos capitais que lhes
tenha de imputar, não hajam grandemente contribuído para a inteligência e o
progresso da organização social (Mounier, 1961, t.I, p.509).
Para os marxistas, afirma Mounier, a vida espiritual advém das
condições sociais e econômicas, portanto rejeita o cristianismo e qualquer
forma de realismo espiritual, pois não espaço algum na sua visão ou na sua
organização do mundo para uma forma última da existência espiritual, que é a
pessoa e seus valores próprios: a liberdade e o amor. Portanto, a pessoa nesta
perspectiva não é de uma realidade existencial primeira, mas um instrumento
voltado ao serviço das forças coletivas. O marxismo prepara o homem de duas
formas: pelo ateísmo, recusando as evasões espiritualistas, e pelo trabalho,
fortemente firmado pelas razões científicas e industriais. Mas o sentido desta
libertação e o instrumento da transformação dependeriam dos proletários que
deveriam ser conscientes da sua missão. Porém, por o estarem plenamente
conscientes, o partido representa seus interesses e os dirige. Mounier diz
tratar-se de uma doutrina materialista ateia, mas alerta para não mergulharmos
na simplicidade de tal ideia, e frisa que não é tão simples afirmá-lo, pois seu
nascimento advém de uma época em que o espírito fora traído e o
materialismo exprimia, em seu primeiro ato, apenas “um desejo de viver um
realismo plenamente humano”.
18
Com toda razão, afirma o primado econômico:
Geralmente desprezam o econômico aqueles que deixaram de ser
perseguidos pela neurose da falta do pão cotidiano. Em vez de argumentos,
um passeio pelos subúrbios talvez fosse preferível para nos convencer. Na
ainda tão primária fase da história em que vivemos, as necessidades, os
hábitos, os interesses e preocupações econômicas determinam massivamente
os comportamentos e opiniões dos homens. Daí não resulta que os valores
econômicos sejam exclusivos ou superiores aos outros: o primado do
econômico é uma desordem histórica de que precisamos nos libertar (Mounier,
1950, p. 119).
18
Texto de radiodifusão - 20 de agosto de 1945 (Cf. Moix, 1968, p. 243).
40
Quanto ao materialismo, diz pensar de uma forma mais radical do que
este, que designa uma filosofia que, insistindo exatamente sobre um
humanismo do trabalho e da função produtora, considera como ilusórias outras
dimensões não menos essenciais do homem; notadamente a interioridade e
transcendência (Mounier, 1962, t.III, p.14). Novamente procura reter a atenção
e alerta para que não confundamos o materialismo de Marx com o de seus
discípulos marxistas.
19
Mounier expressava simpatia pela concepção marxista e a via como
uma doutrina econômica e política que, ao invés de ser tratada como estranha
nas faculdades, deveria ser olhada como aliada nas instituições de ensino.
Quanto às críticas voltadas à pessoa, afirma que a falha essencial do
“marxismo é ter ignorado a realidade íntima do homem, a da vida pessoal. No
mundo dos determinismos técnicos como no mundo das ideias claras, a
Pessoa não tem lugar” (1961, t.I, p.519).
Segundo Mounier, o pensamento de Marx parece ter se aproximado da
dialética personalista na crítica da alienação, exatamente quando chega a
retratar quimeras humanas: “Alienação do operário diante do trabalho que lhe é
estranho, do burguês nas posses que o possuem, o do utente num mundo de
mercadorias desumanizadas pela avaliação comercial...” (Ibid., p.519). Em
sequência, complementa com uma visão personalista e declara tratar-se “de
uma despersonalização, quer dizer, de uma desespiritualização progressiva
que substitui um mundo de liberdades vivas por um mundo de objetos” (Ibid.,
p.519). Neste ponto, o autor acredita estar definida a oposição ao marxismo,
pois, diferente do fascismo, o marxismo prega o otimismo do homem coletivo,
ocultando o pessimismo radical da pessoa. O marxismo presume ser o indiví-
duo incapaz de se transformar por conta própria, mas a massa, esta se torna
criadora, portanto é capaz de dirigir e conduzir sob suas estruturas o indivíduo.
19
Moix (1968, p.243) relata: Marx diz numa carta que ele quase falou em ‘realismo
dialético’ em referência ao termo materialismo. Tal ‘materialismo’ se aproximaria da perspectiva
cristã que condena tão severamente quanto Marx, o falso espiritualismo. Nota-se de passagem
que foi lá pela década de 30 que foram publicados na França os escritos de juventude de Marx,
muito menos materialista que o marxismo corrente. Tais escritos exerceram grande influência
sobre os espíritos ciosos de voltarem às fontes do ‘materialismo’. Quantas vezes não chamou a
atenção Mounier para o que Marx diz de seu humanismo, que ‘difere do idealismo tanto quanto
do materialismo e é, ao mesmo tempo a verdade que nos une a ambos’. – O marxismo
denuncia certo idealismo e certo espiritualismo burguês. Mas o cristianismo o faz também,
apesar de ser em nome de outros princípios”.
41
Para tal concepção, numa ótica personalista, a massa é um instrumento
de formação da pessoa e a ideologia um instrumento de formação de massa; a
pessoa torna-se aquilo a quem é imposta uma ideologia: “A ditadura marxista
não pode deixar de ser uma ditadura racionalista, pois ela só conhece a
adesão que está no termo da formação e desconhece a colaboração radical da
pessoa, o valor da prova” (Mounier, 1961, t.I, p.520).
Na visão de Mounier, somente a pessoa é responsável pela sua
salvação, somente a ela cabe a missão de levar o espírito aonde este tenha
desaparecido. Então, conclui que o marxismo aproxima-se da visão persona-
lista, pois, quando uma espiritualidade encarnada é ameaçada, deve primeiro
se libertar e libertar os homens da civilização que os oprime, não se refugiando
em medos, remorsos ou exortações. Além de que, não civilização e cultura
humana que não sejam metafisicamente orientadas:
um trabalho que vise para além do esforço e da produção, uma ciência que
vise para além da utilidade, uma arte que vise para além da aceitação, e,
finalmente, uma vida pessoal em que cada um se devote a uma realidade
espiritual que o transporte para cima de si mesmo são capazes de sacudir o
peso de um passado morto e criar uma ordem verdadeiramente (Ibid., p.486).
Mounier reconheceu o trabalho de Marx e formulou várias críticas em
debates sobre todos os âmbitos da estrutura da revolução marxista. Só para se
ter como ideia, na revista Esprit (n° 145, 1948, p.705-1015), foram abordados
os desvios ideológicos e doutrinários na interpretação do projeto e da doutrina
comunista com ênfase nas respostas de Marx. Portanto, sempre assumiu uma
postura construtiva, num diálogo firme e honesto, revelando o seu sentimento
personalista cristão ao dizer: “Temos nossa maneira própria de ser marxista”.
Isto, porque a revolução marxista, segundo Mounier, desconhecia a vasta
realidade do “Universo pessoal, interpessoal e a Transcendência”. Para este, o
“realismo cristão” seria o único a garantir esta nica. Com referência à relação
homem-natureza, concebida pelos marxistas como a relação de senhor para
escravo, de dominação para o “realismo cristão”, situar-se-ia de outro modo: o
homem o foi criado para dominar as coisas, mas para um efetivo diálogo
com elas, pois as coisas não são objeto de desprezo (idealismo) nem somente
de exploração (materialismo grosseiro), mas um “sacramento natural” pelo qual
o homem volta-se para Deus (Cf. Moix, 1968, p.249).
42
Reafirma que a massa contribui para a existência, mas não para
movimentos criadores; os valores que dela advêm, partem das pessoas que a
compõem, ao passo que o marxismo afirma que a revolução de massa é
criadora dos valores revolucionários. Mounier (1961, t.I, p.520) acrescenta que
não é “individualizando os dados de uma ciência abrandada que se passará
das condições de existência a este centro inacessível da Pessoa de onde todo
procedimento recebe significação e responsabilidade”. Para ele, a pessoa é
quem imprime a marca do homem a “todos os ardis da sua mão ou do
cérebro”.
O personalismo interagiu com a contribuição crítica do marxismo, mas
propôs ir além, ou seja, imprimir a presença da pessoa, um homem encarnado
na história, voltado para os valores que transcendem a história sob a
percepção do que chamou “presença real do ser dos seres, desta presença
que é o mistério, o mais emocionante da vida, todo o destino do humanismo, e
da humanidade com ele, será decidido em torno de sua restauração ou de sua
recusa definitiva” (Moix, 1968, p.255).
Outra fonte inspiradora, o existencialismo, deixou marcas profundas no
pensamento de Mounier. Relembra este que o existencialismo, apesar de ser
tão atual, advém de uma longa galeria de antepassados,
20
ressurgiu como fruto
da crise contemporânea, em que, por entre as cinzas do holocausto, dos
campos de concentração, do aviltamento das almas, os homens se lançam ao
desespero, por entre gritos dos existencialistas ateus pós-Nietzsche que dizem:
Deus está morto! Há, contudo, os existencialistas cristãos que se empenham
na tentativa de fazer renascer o cristianismo autêntico, que se perdera nos
caminhos do comodismo e dos valores inconsistentes da burguesia.
20
Mounier (1947, p.7-14), ao retratar os existencialismos em suas raízes, menciona o
apelo socrático em oposição às divagações cosmogônicas dos físicos da Jônia, com o
imperativo interior “conhece-te a ti mesmo”; a interpelação dos estóicos ao autodomínio; a não
sistematização da de São Bernardo contra Abelardo; os temas sobre a vida e a morte de
Pascal; Kierkegaard contra o sistema, a sistematização do sistema a que se opõe a Existência
Absoluta; com destino semelhante, Maine de Biran que travou combate com as filosofias
sensualistas do século XVIII. Até aqui, chegou-se ao tronco da árvore, a galeria dos
antepassados. Depois a árvore se divide em duas ramificações fenomenológicas: de um lado o
existencialismo ateu que vai de Heidegger a Sartre e Nietzsche que surge como outra corrente,
“Simétrico de João Batista, quis ressoar o fim da era evangélica, anunciando a morte de Deus
aos homens que, após o terem assassinado, não ousavam assumir”. Do outro lado do ramo,
temos Péguy, Blondel, La Berthonnière, Bergson, Marcel, Jaspers, Landsberg, Scheler, Barth,
Buber, Berdiaeff, Chestov, Soloviev e o personalismo.
43
Inaugura-se assim, algo a que a filosofia clássica não dava importância e
a que a filosofia da existência abriu as portas: a problematização do outro,
colocando em foco a crítica da alienação. Mounier concorda que personalismo
e existencialismo são duas filosofias existenciais e convergem em um ponto
fundamental: lutar contra o sistema. Ressalta por variadas vezes a riquíssima
atuação do existencialismo ao opor-se à alienação sob todas as formas, do
divertissement de Pascal à má-fé de Sartre. Afirma que o personalismo é uma
filosofia da existência, antes de ser uma filosofia da essência. Personalismo e
existencialismo não iniciam pela teoria do conhecimento, pelos sistemas de
pura essência, o que torna o homem impessoal. É preciso existir plenamente
antes de tudo. Daí a necessidade de uma fenomenologia da existência para se
chegar ao compromisso, para se entender que corpo e alma interagem com a
história, com os homens e transformam o mundo.
Ao se reparar na “árvore existencialista” nas primeiras páginas da obra
Introduction aux existentialismes (1947, p.10-11), observa-se que Mounier
insere o personalismo entremeio a Gabriel Marcel e Jaspers, indicando haver
comunicações estreitas entre eles, ao passo que, apesar de estarem na
mesma árvore, nutrindo-se da mesma seiva, o personalismo de Mounier difere
do de Sartre. Não somente por se tratar, no caso de Sartre, de um
existencialismo ateu, mas também pela visão do “absurdo”, um prazer do
“nada”, e naquilo que afirma Cousso (1969, p.86): “Ao contrário, ele (Mounier)
pensa, como Gabriel Marcel, que a esperança é um componente essencial do
estatuto ontológico do homem”.
Mounier faz referência ao “trágico” na vida pessoal, admitindo sua
existência, o que, no entanto, difere do “pessimismo” (Cf. Cap. I - Subseção
1.1), isto é, “o fato”, aquilo que Heidegger e Sartre chamaram de “facticidade”.
Pensa Mounier que o homem deve perceber que ele é obra do ato de amor de
Deus, que não o fez ser pronto e acabado, mas ser em construção, que
depende do próprio homem. Candide de Moix (1968, p.201) complementa que
o homem encontra-se dilacerado entre um absoluto e sua realidade miserável
“pela provação imediata de sua situação concreta, não pode ele deixar de
receber primeiramente o choque transtornante de seu absurdo aparente, de
sua solidão frágil e da incoerência das suas descobertas”. No entanto, sempre
44
caminhando em paralelo com o mistério provocador, o cristão “crê que todo
existente é um sinal da superabundância do amor de Deus”. Quanto ao
existencialismo ateu, este mergulha na facticidade do homem. “Aí está o ser,
sem razão, estupidamente, para nada” (Moix, 1968, p.201).
No quesito relacionamento humano, forte oposição entre Mounier e
Sartre. Para Sartre, esta relação é sempre realizada no conflito; o olhar do
outro é sempre hostil, é a mortificação: “cada um de nós é, necessariamente,
ou um tirano, ou um escravo”. O outro, com seu olhar rouba o meu universo.
Diante dos outros, minha liberdade é prisioneira, a escolha do outro me
paralisa, e o amor é uma doença (Mounier, 1950, p.35). Mounier diz ser inútil
indignar-se, visto que negar tal quadro seria falho, uma vez “que o mundo dos
outros não é um jardim de delícias” (Ibid., p.60), mas de provocação à luta, à
adaptação, ao risco, ao sofrimento, diante dos quais o instinto de autodefesa
reage, ora afastando-se dos contatos, ora tornando os outros, objetos. Então, o
alter torna-se alienus, estranho a mim próprio, alienado. Mas, diante dessa
visão, é possível e necessária a comunicação e a comunhão autênticas entre
os homens. A anulação da pessoa nos aprisiona. Quanto a Sartre, no que se
refere à questão do olhar, Mounier (1947, p.100,101) diz que este não
aprofundou muito tal assunto, pois o olhar é “a janela mais direta, aberta para o
ser pessoal, o caminho central para a invocação de pessoa para a pessoa.
Executor de obras vis, o olhar imobiliza e se apossa. Mensageiro do interior
soberano, ele chama e oferece”.
Jean Lacroix, por sua vez, reafirma a visão existencialista em que, na
ótica de Sartre, homens solitários, com suas liberdades incomunicáveis, lutam
em um mundo desprovido de qualquer tipo de finalidade ou racionalidade, não
havendo uma filosofia da história. A cada instante tudo é inteiramente reposto à
prova. O mundo não tem outro sentido a não ser o que cada indivíduo a si
mesmo a cada momento com seu projeto temporal (Lacroix, 1972, p.54). Na
medida em que Sartre acredita que o homem é apenas aquilo em que se faz e
seus fins não são guiados de fora, sendo ele mesmo que os determina, quer
dizer que o homem é liberdade total e o outro é para ele um inferno. Alino
Lorenzon acompanha Mounier e diz:
45
A Identidade e a alteridade pessoais se constroem no afrontamento e na
experiência do outro. “O melhor espelho para o olhar do homem é o olhar de
um outro homem (...). Um ser entra no campo imediato de minha vida e tudo é
posto em questão unicamente por essa presença”. O outro vem desinstalar
meus hábitos e minhas convicções. Meu equilíbrio interior não é mais o mesmo
de antes. O outro é uma interrogação no meio do caminho. Eu preciso ser
questionado pelo outro. Eu preciso ser interrogado por uma liberdade diferente
da minha, a fim de (re) descobrir minha liberdade. As perguntas que me são
dirigidas pelo outro, por suas palavras ou pelo seu olhar, são diferentes
daquelas levantadas pelo mundo dos objetos. É que o outro é mais do que uma
simples natureza. (...) A presença do outro, contrariamente ao pensamento
sartriano, não agride minha liberdade, mas é uma janela para o mundo e um
convite ao despertar de minha consciência
(Lorenzon, 1996, p.30,31).
Nas palavras de Candide Moix, as duas filosofias diferem de forma
profunda no que diz respeito ao trágico e o desespero. No fracasso total da
comunicação, na impossibilidade de fundar uma comunidade, volta Sartre ao
individualismo, à negação da natureza humana, à negação da história, à ideia
de uma liberdade sem limites e, por vezes, sem finalidade, à dissolução da
verdade na subjetividade, à desconfiança excessiva da razão, ao niilismo
filosófico, e, sobretudo, à recusa sistemática da objetividade, que termina na
recusa das mediações, da ciência, da técnica, da organização e marca uma
volta ao idealismo (Moix, 1968, p.222).
Mounier, sempre procurou trilhar caminhos com a intenção de uma nova
civilização, uma sociedade de homens livres, dentro de um pluralismo, sempre
baseado no diálogo e na comunicação; por isso simpatizava com o marxismo e
o existencialismo. Pelo primeiro dizia ele, é vencida a alienação material
colocando o homem no centro da história e pelo segundo, a alienação
espiritual. O personalismo procurava assimilar as suas dimensões humanistas,
cristãs, que se efetuam no conceito de compromisso, e que consistia em uma
constante dialética, encarnação e transcendência, constituindo a natureza da
pessoa que é ser-que-está-no-mundo e ao mesmo tempo é ser-para-além-do-
mundo, criando simultaneamente uma consciência crítica. Para Mounier, o
marxismo era mais um humanismo do que um naturalismo; o existencialismo
contemporâneo era indiferente com a integração da existência objetiva. Dizia:
“O destino dos anos próximos é, sem dúvida, o de reconciliar Marx e
46
Kierkegaard” (Mounier, 1947, p.90). O personalismo assume como missão esta
reconciliação, uma revolução social e interior, ocorrendo no exato momento em
que se firma a pessoa, em seu compromisso.
3. Fundamentação teórica, metodológica e histórica do personalismo
Mounier tem seu pensamento norteado pela perspectiva fenomenológica
aliada ao contexto histórico. Sempre tentou afastar-se dos possíveis erros de
adequação entre o personalismo e o sistema. Ao apresentar o Programa do
movimento Esprit para 1933, alerta sobre o perigo das construções ideais e da
crítica fragmentária, salienta ser preciso evitar dois erros fundamentais: o dos
belos sistemas distanciados da realidade e dos acontecimentos, assim como o
da crítica superficial e sem eficácia. Ao retratar a vida de Mounier (Cf. acima, p.
9-11), verificamos sua posição em referência a sua experiência universitária na
Sorbonne, quando desistiu dos estudos porque se sentia afastado dos
problemas de ordem humana; para ele, a postura fundamental era mais
humana do que propriamente intelectual. Via, desta forma, na vida acadêmica
uma atitude intelectual abstrata e idealista, que não era portadora dos
acontecimentos e dramas pelos quais passava toda a Europa.
Vale lembrar, para não nos envolvermos em considerações
rudimentares e simplistas, porque Mounier não descartava de forma alguma a
questão da fundamentação teórica, como se comprova através das palavras de
Alino Lorenzon (1993, p.18): “A novidade de seu método reside, por
conseguinte, nesse realismo humano, o único que pode estabelecer a ponte
entre a pessoa e o mundo”. Recusava, sim, o método dedutivo dos
dogmatismos e o empirismo dos realistas, assim como as construções lógicas,
longe da realidade humana lançadas pelos moralistas, doutrinários e
espiritualistas. Para ele, o personalismo não tratava apenas de analisar ou de
criar uma estrutura, mas sim de exercer mudança da realidade:
O personalismo não é um sistema. O personalismo é uma filosofia, não é
apenas uma atitude. É uma filosofia, não é um sistema. Não foge à
sistematização. Portanto, o pensamento necessita de ordem: conceito, lógica,
esquemas unificantes não servem apenas para fixar e comunicar um
47
pensamento, que sem eles se diluiria em instituições opacas e solitárias;
servem também para perscrutar essas instituições em toda a sua profundidade;
são, simultaneamente, instrumentos de descoberta e de exposição (Mounier,
1950, p.6).
Antonio Joaquim Severino (1983, p.22) indica o que de mais forte
nesta afirmação; o que mais convenceé a presença significativa de uma
metafísica coerente em sua evolução desde os primeiros escritos até os seus
últimos livros”. Sempre houve por parte de Mounier, a resistência em tornar o
personalismo um sistema fechado. Jean Lacroix (1972, p.74) compartilha tal
pensamento, ao dizer também não deixar de lado os sistemas, assim como
“nem justapor sistemas diferentes, nem adotar um sistema fechado e definitivo.
Todo sistema é verdadeiro enquanto concebido como uma visão do real e falso
na medida em que essa visão pretende ser total”. Mounier adotava, portanto,
uma ótica kierkegaardiana, não aceitando o enfoque gico-idealista hegeliano,
criticando a epistemologia racionalista, que se pretendia objetiva, universal e
impessoal, sendo para ele, uma corrente oposta à existência pessoal. Criticou
também a redução da pessoa, proposta pelo marxismo, ao seu ser-em-
situação numa natureza pré-humana, que se lançava numa visão naturalista.
Severino expressa-se, com justeza, quando aponta que o personalismo
deve ser encarado não como um sistema filosófico, mas como uma atitude
autenticamente filosófica. Isto se deu, no momento em que houve, para
Mounier, a necessidade de compreendê-la para empreendê-la, pois, de início,
tratava-se de algo implícito: “só mais tarde, o Personalismo se afirmou como
atitude filosófica explícita e como esboço de uma filosofia estruturada,
coroando a obra de engajamento histórico do movimento que inspirava” (1983,
p.128). Nos termos de Paul Ricoeur, o cogito inicial da filosofia de Mounier era
a natureza-existencial, um projeto em elevada instância, civilizador e sua
intenção o era somente a de “analisar uma noção, descrever uma estrutura,
mas pressionar a história através de um certo tipo de pensamento combatente”
(Lorenzon, 1996, p.18). Não esqueçamos que sua emergência se deve à crise
de civilização e que ele ousou visar a algo além da escola filosófica.
Jean Lacroix (1966, p.3), ao prefaciar uma obra de Mounier
(
Communisme, anarchie et personnalisme)
frisa: “É verdade que o diretor
48
do Esprit construiu sua filosofia pouco a pouco, no contato com o
acontecimento...”, acontecimentos estes colhidos do cotidiano em nome da
pessoa, o que exigiria, portanto, uma investigação complexa, que métodos
racionalistas iriam limitar em sua dimensão filosófica. Desta forma, Severino
pode afirmar haver Mounier intuído uma nova versão da filosofia, inserida pela
necessidade dialogal no confronto com o homem, os acontecimentos, e sua
existência concreta no mundo. Então, careceu da exigência de uma
reformulação epistemológica:
Esta reformulação da epistemologia é exigida pela condição especial do objeto
da reflexão filosófica: a pessoa humana. Sendo esta simultaneamente
imanente e transcendente no seu modo de ser, ela se constitui, até certo ponto,
como um mistério, pouco transparente aos olhares da razão. A condição
existencial da pessoa desnorteia, pois não oferece ao filósofo uma totalidade
sistematizável no nível da evidência lógica, mesmo de uma lógica dialética
(Severino, 1983, p.129).
Portanto, para Mounier, não se pode explicar a pessoa na sua
totalidade, pois é um ser não acessível, diferente dos objetos que se põem à
prova através da ciência positiva e a filosofia racionalista. Logo, encontra-se a
necessidade da reformulação do pensamento filosófico, “o filosofar, não é tido
como um conhecer, mas como um despertar para a existência autêntica” (Ibid.,
p.133), pois essa antropologia exige uma nova metodologia, embasada em
uma experiência vivencial da própria existência pessoal.
Acompanhando ainda Severino, este evidencia que Mounier empreende
um novo projeto de revolução personalista e comunitária, mas o sentido da
perspectiva epistemológica da pessoa, bem como questões de metodologia
filosófica, não era o ponto de vista de Mounier, porém esta atitude
fenomenológica, que não se explica em termos de definição gnoseológica, é
que na obra O Personalismo, seu autor sintetiza uma antropologia de um ponto
de vista metafísico, daí o desnorteamento filosófico a que se alude. Por outro
lado, no Tratado do Caráter a concepção da ideia de pessoa é abordada em
contraposição à psicologia, o que vem a desnortear o cientista: “talvez Mounier
respondesse que esta omissão é intencional e adotada justamente por causa
do verdadeiro rigor filosófico” (Severino, 1983, p.133).
49
Mounier partilha também seu pensamento com Gabriel Marcel, um dos
representantes do existencialismo católico, que contribuiu significativamente
para a concepção metodológica na abordagem da pessoa humana. Para ele,
esta não é um problema, mas um “mistério”, não devendo ser estudada com os
instrumentos da ciência em uma investigação objetiva, o que reduziria um Ele a
um objeto ou coisa. Por isso, sua compreensão deve ser buscada na
interrogação metafísica, respeitando sua originalidade, tratando-a como
pessoa, aproximando-se dela como de um Tu, ou seja, sempre no diálogo e no
amor. Participa também quanto à definição do homem encarnado, não se
referindo a uma alma, um espírito encarnado em um corpo, mas à pessoa
humana encarnada no agir. Para Gabriel Marcel e Mounier, o Eu torna-se
pessoa somente na medida em que se dedica à ação, assumindo a
responsabilidade dos seus próprios atos (Cf. Mondin, 1983, p.290).
Daí a ética da responsabilidade individual, que reverte depois para outra
dimensão: a comunitária. Mounier pretendia conferir significado ao
personalismo como uma fenomenologia existencial que se situava entre o
radicalismo objetivo da ciência e o subjetivismo da metafísica:
“ou seja, a tentativa de descrição da existência da pessoa e do mundo, sem se
vincular a nenhum critério ordenador de natureza epistemológica, nem mesmo
às exigências redutoras da fenomenologia husserliana” (Severino, 1983,
p.145). Tratava-se de reflexões seguidas de praticidade, um projeto concreto
de renovação social. Mounier sabia de sua dificuldade e, ao preocupar-se em
se situar contra as pretensões de uma razão idealista e positiva, aproximava-se
de Kierkegaard e Bergson e das perspectivas do existencialismo, criando-se
então uma nova necessidade para o pensamento. Para além de todo o
contexto pré-existente, talvez se encontre o verdadeiro rigor filosófico.
Mounier conhecia os limites da abordagem racional, mas jamais propôs o
delírio em sua substituição:
Apenas quis eliminar do papel da razão, a má-fé em querer esquematizar,
estruturar e fixar em moldes geométricos, o que é essencialmente vida,
duração, descontinuidade e heterogeneidade. Apesar disso, a consciência,
contando com a razão, devia buscar compreensão desta plenitude existencial
da pessoa, embora a explicação radical parecesse inacessível. Por isso,
Mounier reflete sobre o homem servindo-se de uma fenomenologia que, aliás,
50
permitirá acesso a uma ontologia. Acaba indo muito além do que lhe
possibilitam escrúpulos metodológicos e epistemológicos explícitos (Severino,
1983, p.146).
Mounier sempre foi voltado à meditação e à reflexão, mas também
voltado, ao movimento e à ação. o se entendeu com a filosofia de sua
época; contudo não ficaria imóvel diante da grave crise pela qual passava a
civilização ocidental. Sua vida metódica era de caráter histórico e cultural,
uma busca por um movimento civilizador, resultado de seu estilo reflexivo, cuja
novidade de método consistia nesse “realismo” como meio de estabelecer
contato entre a pessoa e o mundo. Este contato, nos primeiros anos do
movimento, foi de confronto e, por assim dizer, considerado o menos filosófico
possível; mas viria a se explicitar numa reflexão profunda com o desenrolar dos
acontecimentos, pois os últimos dias de Mounier foram dedicados à mais
profunda reflexão, sempre à luz de uma metafísica completa e que,
infelizmente, foi interrompida por sua morte (Ibid., p.24). O método, porém,
era aplicado em todas suas obras anteriores. Ele dizia que, antes de nos
lançarmos à busca do verdadeiro, há a necessidade preliminar de uma regra
de higiene, ou seja, uma renúncia a tudo que nos impeça a aproximação de
nosso espírito com a verdade, cabendo nos afastar dos processos prontos e
formulados como resposta. Nota-se, deste modo, que na criação do movimento
Esprit, este deveria ser considerado sob o título de “engajamento reconhecedor
e histórico”, pois retratava os problemas em sua dimensão própria, sem tolher a
história na pretensão de segurança e absolutidade, buscando a luz de valores
e princípios. Vale citar Ricoeur (1968, p.137):
Sua grande força é a de ter, em 1932, vinculado originariamente sua maneira
de filosofar ao afloramento ao nível de consciência de uma crise de civilização
e de ter tido a ousadia de visar, para além de qualquer escola filosófica, a uma
nova civilização em sua totalidade.
Assim sendo, o trabalho desenvolvido pelo movimento era filosófico e
também pedagógico, com intuito de despertar consciências. Mounier dizia que
jamais o “filósofo deve trair a luz da verdade que o real revelar”, pois o espírito
filosófico é uma ética da inteligência.
Para a reformulação da epistemologia, surgiu, então, a necessidade da
elaboração de uma fenomenologia da existência, que encontrasse seu caminho
51
entre o objetivismo radical da ciência e o subjetivismo da metafísica. Para
Mounier o personalismo não podia se assentar em uma psicologia cientificista,
pois se trataria então de uma manipulação e não do homem integral, visto que
o método analítico e objetivista impediria a apreensão da subjetividade. Quanto
à metafísica essencialista, havia nela um comprometimento com o radicalismo
subjetivo estimulado pelas ideias puras, o que a afastava da experiência
concreta de uma vida pessoal, pois, tal metafísica, havia criado seus próprios
instrumentos lógicos, esquecendo-se dos mistérios do ser, sobretudo do ser do
homem. Como sintetiza Severino (1983, p.131): “A noção de natureza ou
essência humana torna-se um esquema fácil, mas infiel se desligada da
condição existencial do homem”. Daí um salto para um território, cujas
fronteiras se estabelecem além das estruturações elaboradas, uma nova
busca de compreensão do ser da pessoa e uma nova visão metodológica do
conhecimento. O método fenomenológico, nesta perspectiva, nasce da
exigência e da busca fiel da experiência existencial do homem. Para Severino,
a significação filosófica última do “Personalismo” encontra-se numa metafísica
fundamental da pessoa como ser imanente-transcendente, dialeticamente
constituído em sua natureza e agir, o que se transforma em uma antropologia
realista, que se volta para uma ética da responsabilidade e que se forma
através do engajamento que perpassa do individual ao comunitário.
Para Mounier (1961, t.I, p.547) este engajamento está intimamente
ligado à história:
O sentido do homem pessoal envolve o sentido da existência e o sentido da
história. Isto equivale a dizer que o ideal personalista é um ideal histórico
concreto, que jamais concilia com o mal ou com o erro, mas se conduz com a
realidade histórica sempre impura em que as pessoas vivas estão inseridas,
para dela extrair de cada vez, segundo as épocas e os lugares, o máximo de
realização.
Portanto, o homem situa-se como agente inovador e transformador da
história; é a sua ação que transforma, conferindo reorientação à história e
consequentemente à humanidade. Não se ocioso lembrar o contexto
inumano e catastrófico em que os homens estavam inseridos neste período, e
que tal momento histórico era ao extremo vivido e vivenciado pelo autor.
52
Nem sempre o homem pensou na sua história, ignorava, então, sua
existência. Somente a partir do século XIX, e principalmente do século XX, que
o homem descobre sua real importância na história, vindo a se contrapor às
ideias existentes, os sistemas, as verdades eternas que o haviam fixado em um
absoluto intemporal. Mas a reação contra o imobilismo corria o risco de
culminar em um relativismo total, que é também a negação da história. Mounier
afirmou que era um risco, mas necessário, pois de uma forma ou de outra,
ocorreria o despertar, era o momento de o homem esclarecer as confusões
entre eternidade e intemporalidade.
Os meios cristãos, acreditando ser a história um grande perigo para a
verdade, enrijeceram-se em suas respostas, polemizando falsamente,
desconhecendo, ao mesmo tempo, as origens da noção de história e as
estruturas fundamentais da cristã. Moix relata parecer estranho que a ideia
de história não seja uma evidência do espírito humano, e que Mounier mostrou
ser totalmente ausente do pensamento antigo, para o qual, a verdade era a
imobilidade, e o tempo ocorria dentro de um circuito fechado, voltado sempre
para si mesmo; exceto para o povo judeu, que crê que o mundo tem uma
história, e ao mesmo tempo professa o monoteísmo absoluto. Quanto ao
cristianismo, diz ele ser herança da visão judaica, elevando-a a um caráter
sobrenatural do Reino de Deus e, então, “Enxertando a história humana na do
Cristo, soldou as três unidades teológicas: unidade de Deus, unidade da
história, unidade do gênero humano” (Moix, 1968, p.350).
Como cristão, Mounier acredita (Cf. abaixo, p.67-68) que a história e a
humanidade são únicas, a história profana e a sagrada são uma só.
21
O
homem compromissado e o mundo participam da mesma aventura, uma
corrente de personalização sempre disponível e aberta aos acontecimentos.
Henrique Claudio de Lima Vaz (1998, p.100-121), em seu estudo
“Pessoa e Sociedade: o ensinamento de João XXIII”, faz uso de três
concepções antropológicas elaboradas pela civilização ocidental: a clássica, a
moderna e a planetária e juntamente a estas, sempre presente a exigência
21
Mounier em sua obra A esperança dos desesperados, dedica-se ao assunto, com o
tema Um sobrenaturalismo histórico aliado ao pensamento de Georges Bernanos, fazendo uso
de suas obras literárias, principalmente de Sob o sol de Satã.
53
cristã, exigência a que faz referência recorrendo ao termo de Nédoncelle, que
ele nomeou de “pulsão personalista”. Propõe que o homem inserido na cultura
planetária é o agente transformador das estruturas do mundo; na sociedade ele
interage, sob os quadros cnicos e profissionais; na economia insere-se na
produção planificada; na política tem-se o Estado. As mencionadas imagens do
homem (clássica, moderna e planetária) estão presentes em outros tantos
ciclos históricos que nelas se fundamentam e por elas se caracterizam, indo
desde as criações culturais às ideologias. Jamais se deve pensar em cortes
históricos que as separem no tempo, pois as novas concepções, diante de
novos problemas, integram traços do homem antigo. Então é que se define
uma idade de conflito e crise em todas as camadas da cultura.
As novas concepções do homem tanto significam envolvimento com a
crise, estabelecendo-se o conflito nas estruturas dos planos acima
mencionados (cultura, sociedade, economia e política), como o aparecimento
de um novo tipo de homem torna lento e difícil integrar valores historicamente
provados. Lima Vaz (1998, p.104) especifica: “A ordem clássica e o
individualismo moderno chocam-se antes de se comporem numa ordem que
resulte das liberdades convergentes”. Esta nova ordem passa a ser exigência
de um desenlace histórico para a solução dos problemas que marcam o
desenlace da idade do individualismo. Neste ponto, o personalismo cristão
busca introduzir no homem planetário o sentido do realismo existencial, pulsão
personalista da exigência cristã sobre os direitos inalienáveis da pessoa e da
sociedade, tais direitos exprimindo a própria possibilidade histórica de ser da
humanidade. É lógico, isto se realizará sempre sob a dimensão do conflito,
portanto, caberá a este “novo tipo de homem”, o homem novo, afrontar e viver
seu “otimismo trágico”, pois a liberdade não é gratuita, deve ser compreendida
e assumida com responsabilidade.
No período conturbado vivido por Mounier, na Europa, porque não dizer
no planeta, diante da guerra nuclear e iminentes desavenças, uma nuvem
negra pairava sobre os homens e os inundava com profecias catastróficas,
levando a um estágio de angústia e desespero. Neste momento histórico,
54
nasce uma literatura específica voltada para o “absurdo”
22
. A burguesia em
ascensão insistia em um otimismo ingênuo, os burgueses decadentes em um
irracionalismo cético (pessimismo reacionário), os marxistas em um otimismo
progressista. Surgem muitas vertentes de pessimismo, como o fascismo, o
absurdismo ateu, o catastrofismo cristão, enfim, uma enxurrada de variantes e
variáveis. Mounier rebate-as veementemente, pois, segundo ele, existe a
esperança e a felicidade a nos abarcar e jamais entregar a existência humana
nas mãos da catástrofe e do absurdo.
Rejeita todas essas vertentes, porque sua visão da história é a de um
“otimismo trágico”: “Entre o otimismo impaciente da ilusão liberal ou
revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o caminho próprio do
homem está neste ‘otimismo trágico’ que encontra a sua justa medida num
clima de grandeza e de luta” (Mounier, 1950, p.33,34). Mounier jamais tentou
excluir o trágico da história, pois excluiria, então, o cristianismo, e, por outro
lado, o mundo tem uma história e um sentido:
Está assinalado de uma obscura vocação para a grandeza humana e sobre-
humana, mas através de uma história dramática feita de irrupções e de quedas,
de iluminações e de solidões, cuja unidade ainda desconhecida se elabora
pelo dilaceramento e pela luta, ad augusta per angusta (1948, Esprit 150,
p.705).
Se percebermos o trajeto da história, saberemos que ela se faz pela
ação humana e conheceremos momentos de glória e seu revés. quem se
entregue ao medo, ao comodismo, outros se refugiam num espírito de
catástrofe (Mounier, 1950, p.117).
23
No entanto, há esperança, resta uma única
saída: “afrontar, inventar, investir, a única que, desde as origens da vida, pode
22
Mounier reúne em seu livro, A Esperança dos desesperados, quatro ensaios que foram
publicados de janeiro de 1948 a janeiro de 1950, em revista. Os ensaios são críticas literárias
buscando sempre diálogo orgânico entre Malraux, Sartre, Camus e Bernanos que já havia
falecido.
23
Nesta mesma obra, em “O personalismo e a revolução do século XX”, Mounier alude
às posições ou manifestações sobre o nihilismo: “Uns entregam-se ao medo e seus habituais
reflexos: um conservador debruçar-se-á sobre as ideias adquiridas e os poderes estabelecidos.
– Outros se refugiam num espírito de catástrofe. Tocam a trombeta do Apocalipse e desprezam
qualquer esforço progressivo, a pretexto de considerarem somente a escatologia digna de suas
nobres almas; vociferam contra as desgraças de seu tempo, pelo menos contra aquelas que
confirmam seus preconceitos. Clássica neurose de tempos de crise, em que aumentam as
mistificações”.
55
sempre triunfar sobre as crises” (Mounier, 1950, p.117). Ser situado é conferir
sua existência, sua liberdade e responsabilidade perante os homens e a
história, que não é nada mais que a própria humanidade. Mounier (1962,
t.III,p.192) sintetiza seus pensamentos relacionados à pessoa encarnada frente
à história, da seguinte forma “... eu sou um eu-aqui-agora; talvez fosse preciso
tornar ainda mais denso e dizer um eu-aqui-agora-desse-jeito-por entre esses
homens-com-esse-passado”.
4. Desordem Estabelecida
A filosofia grega teve seu alvorecer com a curiosidade em conhecer.
“Obra do desejo” (epithymiás), dirá Platão no Fédon. Para Aristóteles é a archê
da filosofia. No Teeteto, Sócrates afirma a Teodoro que o filósofo possui um
páthos, uma sensibilidade, uma capacidade de admirar, de contemplar e torna-
se afetado pelo espanto. Espantar (tò páthos) é o princípio primeiro da filosofia,
é o envolvimento, é ocupar-se com o objeto do espanto, o objeto admirado
(thaumázein). Esta palavra advém do verbo thaumázô que tem sentido
equivalente ao espanto, ao maravilhar-se. Sua raiz agrega o verbo theáomai,
no sentido de ver, de contemplar, de elucubrar sobre o objeto observado.
Afirma Spinelli (2006, p. 79) que o verbo thaumázô apresenta-se, sobretudo,
com o “sentido ativo e não passivo: designa uma reação humana (de
admiração e espanto) perante o que ou observa e que, instantaneamente,
provoca um páthos, ou seja, desperta uma paixão (que por sua vez pede para
que seja disposta ou arranjada de alguma maneira).
Mounier tem por objeto, de pensamento e ação, a “desordem
estabelecida”; utiliza esta expressão para se referir às desordens da civilização
ocidental. Era preciso conhecer este objeto e agir em suas estruturas. Assinala
que o principal aspecto revelador da desordem, causa de “espanto”, é a
“miséria”. Esta é o resultado de uma série de causas conjugadas que
caracterizam as desordens, como a econômica, a política e a moral. Segundo
Mounier, a miséria é a causa do aviltamento dos valores espirituais, que leva o
homem a um profundo individualismo e ao surgimento de regimes totalitários.
56
4.1 Capitalismo e individualismo
A crise de 1929 põe fim à felicidade europeia. Alguns buscavam
respostas supondo que o mal advinha da questão econômica e outros
apontavam para a questão moral. Surge então a “geração da inquietude”, séria
e preocupada com o futuro. Esta juventude sentiu a presença da desordem
imediatamente ao pós-guerra de 1914 a 1918, e depois, com o abalo
econômico influenciado pela quebra de Wall Street, a miséria se alastra. A
geração de Esprit, considerada geração do compromisso, conseguiu desvelar o
momento histórico, pondo-se à luta, tendo como ponto de partida a presença
da miséria. Mas, não se tratava somente de uma desordem econômica, em que
uma determinada parcela da população vegetava, também política, em que o
dinheiro corrompia os governos e tudo não passava de jogo de interesses.
Conjuntamente, outro tema de grande importância era o “aviltamento
dos valores espirituais”, em prol de outros supostos valores, acobertando a
desordem. Os idealistas, com desprezo ao bem material, apoiavam-se em
princípios espirituais, “engenhosa arquitetura para esconder as nossas
angústias” (Mounier, 1950, p.116). Os materialistas tomavam uma via
metafísica inaceitável. Mas para Mounier, a crise do homem do século XX é a
crise da civilização ocidental, sendo a desordem antes de tudo espiritual e o
individualismo, nascido com o mundo burguês a sua raiz. Então, o homem teve
as suas certezas abaladas, na racionalidade, nas ciências, na cristã, no
aparecimento de estados policiais, nas duas grandes guerras. Parecia que a
humanidade não havia conseguido domesticar sua animalidade, não tinha
trazido a felicidade, nem neutralizado suas paixões. Nas palavras de Mounier
(Ibid., p.116):
para das harmonias econômicas, Marx revela a luta sem tréguas de
profundas forças sociais; para da harmonia psicológica, Freud descobre o
turbilhão dos instintos; finalmente, Nietzsche anuncia o nihilismo europeu antes
de passar a palavra a Dostoievsky.
Os valores do culo XIX balançaram diante dos desconstrutores da
ética (Marx, Nietzsche, Freud), chamados de “mestres da suspeita”, por Paul
Ricoeur (Cf. Lima Vaz, 2002, p.409). O trio, embora proponha análises
57
completamente diferentes, buscava uma estratégia teórica de interpretação
sobre a razão ética, os princípios, conceitos e normas, para legitimar e justificar
as necessidades da sociedade, as pulsões e as tendências voltadas para a
origem da natureza humana (Cf. Lima Vaz, 2002, p.407-418). O primeiro volta-
se para a atividade econômica, o segundo para a criação cultural e o terceiro
para a estrutura do psiquismo, sendo os três os que mais influíram sobre o
pensamento ético do século XX. Para Mounier, estes pensadores
influenciaram, e muito, o pensamento e a ação do personalismo.
Ao retratar o capitalismo, Mounier chega mesmo a sustentar que em
toda a história jamais houve um tirano que repousasse tanta “ordem” sobre
uma desordem: “jamais tirano algum dispôs de poder tão universal de esmagar
homens, pela miséria ou pela guerra, de um ponto a outro da terra, e nenhum
tirano acumulou no silêncio da normalidade tantas ruínas e injustiças” (Mounier,
1961, t.I, p.386). Reduziu massas à miséria, aviltando almas, seu mal mais
pernicioso. O capitalismo tem por alicerce o princípio metafísico do otimismo
liberal, caracterizando-se pelo primado da produção (o homem a serviço da
economia), pelo primado do dinheiro (primado do capital sobre a produção e o
reino da especulação), pelo primado do lucro, urgindo então um mecanismo de
opressão: concentração de poderes nas mãos de poucos, dirigida por
interesses privados.
Mounier atém-se à desordem espiritual provocada pelo capitalismo, que
consagra a destruição de todos os “outros reinos do espírito livre”, do trabalho
honesto e alegre, da ação desinteressada; torna o dinheiro o maior valor, pois
consagra o homem pela medida de quanto ele tem. O egoísmo se instala no
coração humano, devido ao capitalismo burguês, individualista, responsável
por lutas intermináveis das classes.
A burguesia francesa em 1789 era revolucionária, lutou contra a nobreza
carregou a bandeira da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, condenou a
tirania, a opressão e o imobilismo social, favoreceu o surgimento dos
enciclopedistas, dos filósofos, dos escritores, conduziu o povo à tomada da
Bastilha, tornando-se vitoriosa. Vitoriosa, a ponto de poder lutar contra o que
pregava, combatendo a própria mobilidade do povo. Mounier alerta sobre a
falsa pretensão de restabelecer a ordem, o repouso e a tranquilidade, custe o
58
que custar: certas forças podem se transformar em forças totalitárias, exemplo
do fascismo. Superada a crise, emerge tal acomodação e otimismo rbido,
que dizia tratar-se de um velho hábito de tranquilidade burguesa, fazendo a
pessoa e a comunidade acreditar na ordem cada vez que o repouso se
estabelece. “A desordem dos períodos de estagnação é o mais pernicioso
porque inaparente, o mais odioso porque mascarado, eis o inimigo hereditário”
(Mounier, 1961, t.I, p.138,139).
O movimento Esprit constatou as discrepâncias de sua época. O
capitalismo oferecia o reino da riqueza, mas também, de forma
desproporcional, a miséria, o egoísmo, a luta de classe. Nesse momento vale
ressaltar a crítica de Mounier com relação ao mundo do trabalho, inserido
nesse contexto capitalista, que transformou o trabalho em mercadoria, apenas
um serviço de troca e, por outro lado, retirou toda sua beleza e plenitude,
sufocando o homem, tornando-o próximo a uma máquina. Em sua visão, os
extremos devem ser evitados. Os espiritualistas veem no trabalho a
degradação do homem; os materialistas exaltam o trabalho como atividade
suprema do homem. Mounier buscou o sentido do trabalho através de um
equilíbrio, pelo qual, o trabalho tenha um sentido “cósmico”, ou seja, o homem
transforma a natureza bruta e ao mesmo tempo a humaniza, dando-lhe uma
nova dimensão, atribuindo-lhe novos valores. Não se tratando da degradação,
num progresso desordenado, volta-se o olhar para um valor personalista e
antropológico e também religioso. Além desta visão, ele próprio, reforça a
tríplice finalidade do trabalho: 1- Antes de tudo é o meio para cada um
assegurar o mínimo de subsistência e a subsistência daqueles que estão
naturalmente sob sua responsabilidade, devendo o trabalho oferecer ao
homem condições de uma vida plenamente humana com um salário digno
(Ibid., p.280). 2- O trabalho é a extensão criadora do homem, é onde este se
concretiza, o indivíduo sai de si mesmo: “a obra de fazer é a primeira escola da
abnegação e, quem sabe, a condição de duração de todo o amor. Abnegação
criadora, evidentemente, que só deve fazer o indivíduo perder-se para afirmar a
pessoa” (Mounier, 1961, t.I, p.280). 3- O trabalho estabelece, por excelência,
contatos humanos: “num estado econômico onde ele ocupa a maior parte das
59
obras do homem, é uma das fontes principais da camaradagem que prepara as
comunidades mais profundas” (Mounier, 1961, t.I, p.280).
Daí a necessidade de se tomar uma outra via, oposta ao capitalismo,
pois este renega esses princípios, massacra os homens, meras mercadorias,
esmagados, nas palavras de Candide Moix, pelo “poder dos senhores ocultos
do capital”, o que Mounier expressa como um grito que ecoa com esta tomada
de consciência:
Despojado de tudo o que faz o homem, e especialmente o homem possuidor,
exaurido por um trabalho que não tem mais razão de amar porque nele tudo
lhe é hostil ou estranho, como não esperar que este proletário se entregue à
revolta e a este materialismo de que o acusam tantas vezes aqueles mesmos
que o lançaram nessa situação (Ibid., p. 469)?
Sob essa relação, o capitalismo exerce todo o seu poder sobre o mundo,
sobre a natureza e a natureza humana, sendo lógico, que crie uma pequena
casta privilegiada, detentora do poder, dizendo ser defensora da propriedade
privada. Mounier retruca: “propriedade da qual privamos os outros”; desta
forma, torna-se uma inimiga direta dos valores dos quais diz ser tutora, como a
liberdade, a cultura, os valores religiosos, enfim:
Do direito à responsabilidade, o capitalismo fez um direito ao lucro e à
impunidade. Pretende defender a pessoa e a esmaga sob o mecanismo
anônimo do dinheiro; a liberdade, ele abafa debaixo da guerra econômica, da
exploração social e das oligarquias; pretende defender a iniciativa, mas
concede-a somente àqueles que no regime já são senhores; do risco, ele
também se defende, mas o faz através de uma solidariedade de gangsters em
que começam a entrar os Estados. Critica-se a confusão, o capitalismo dele tira
os argumentos para rejeitar a organização coletiva: mas onde está o regime em
que qualquer um, indistintamente, ocupa-se de qualquer coisa a não ser nos
conselhos de administração e nos seus governos? As críticas das quais nos
tornamos porta-vozes, contra um certo comunismo da irresponsabilidade,
atingem, em cheio, o capitalismo atual, que é um comunismo bastardo e
mascarado em proveito de uma minoria (Id., 1946, p.122).
Como recusa ao capitalismo, surgiu o anticapitalismo, que exerceu forte
pressão na década de 30, que sob certas formas o recusava, mas, por outro
lado, também era de interesse mútuo soerguê-lo, um capitalismo disfarçado.
Tratava-se então, do anticapitalismo dos pequenos capitalistas contra os
60
maiores (pequenos comerciantes, industriais e rendeiros); o anticapitalismo dos
capitalistas organizados (capitalistas de poupança) contra o capitalismo
aventureiro (capitalismo de especulação); o anticapitalismo dos industriais
contra o capitalismo financeiro. Este outro sentido do capitalismo como diretriz
também era recusado por Mounier, pois, de tal semente, sua própria resultante
eram os interesses que tinham por meta “a generalização do conforto”, da
riqueza, da segurança e do prestígio. Ele não criticou apenas o capitalismo,
mas aprofundou-se na teoria de que este visava a subordinar a atividade
econômica a uma ética das necessidades, expondo princípios de uma
economia humana na qual o primado do trabalho prevalecesse sobre o capital,
a responsabilidade pessoal sobre o anonimato, o serviço social sobre o lucro,
os organismos sobre os mecanismos. Enfim, permaneceu firme em seu
propósito, opondo-se também ao espírito individualista, “espírito burguês”, que
nascera de uma classe e encontrara seu habitat principalmente no seio da
burguesia francesa, que inclusive, em uma determinada época, prestara
valiosos serviços ao cristianismo, por sua integridade e esforços, mas perdeu a
razão, tendo iniciado seu individualismo na Renascença. A burguesia
proclamou o primado do dinheiro sobre o trabalho, no século XVII; no século
XVIII, como consequência, a religião declina. Com a revolução de 1789, um
movimento burguês, e com a declaração dos direitos, consagra-se o
individualismo, oferecendo o progresso, o conforto e a garantia contra riscos,
encontrando-se sua “nova religião, o voltairianismo”. No entanto, com as
crescentes perturbações populares, restaura-se a Igreja como meio de atenuar
as agravantes, apenas com intuito de garantir a segurança, acalmando o povo,
teve maior oportunidade de difundir a “mística do conforto”.
Neste momento reverte-se ao ter, asfixiando o ser; passa-se a uma
busca humana da felicidade medíocre, da tranquilidade, do conforto para si. A
Renascença torna-se uma libertária, propondo liberar o homem de sua
opressão social, e este, impulsionado pelo desejo de liberdade, se revolta
contra tudo o que o pressiona. Nas palavras de Mounier isto teria seu lado
positivo, mas continha o germe de toda sua contaminação: “Nela fremiam
exigências legítimas da pessoa”, mas logo se perdeu, quando se desviou para
uma concepção estreita do indivíduo, princípio de decadência que a
61
Renascença trazia em si desde o início (1961, t.I, p.491, 492). O burguês
isolava-se em seu reinado, o pequeno-burguês que não era rico tinha em mãos
o desejo de tornar-se, através da avareza, sempre ávido pelo dinheiro, a todo
custo. Enfim, Mounier decretava que o mal do pequeno-burguês é o câncer de
toda a Europa ocidental. Entre o espírito burguês, satisfeito com sua
segurança, e o espírito do pequeno-burguês, inquieto por adquiri-la, não
diferença de natureza, mas de escala e de meios:
Os valores do pequeno-burguês são os do rico, definhados pela indigência e
pela inveja. Corroído, até na sua vida privada, pela preocupação da promoção
social como o burguês é roído pela preocupação da consideração, só tem um
pensamento: chegar. E, para chegar, um meio erige em valor supremo:
economia; o a economia do pobre, fraca garantia contra um mundo onde
tudo é infelicidade para ele, mas a economia avara, cautelosa, de uma
segurança que avança passo a passo, economia exercida sobre a alegria,
sobre a generosidade, sobre a fantasia, sobre a bondade, a lamentável
avareza da vida enfadonha e vazia (Ibid., p.494).
O burguês ao perder o sentido do ser, desfigura o sentido do senso
divino, da gratuidade, do amor. Acredita encontrar em seu ter as respostas da
sua liberdade, mantendo o outro a certa distância e a religião, com a intenção
de assegurar ordem social, assim como a caridade e o amor passam a ser
meras ferramentas morais, “código de tranquilidade social”. Dessa forma,
quanto mais se infiltrava o espírito burguês nas camadas sociais, mais se
tornava um humanismo burguês, auxiliado pelo cristianismo que, aos poucos,
ia formando uma moral burguesa. Nasce o cristianismo deformado e Mounier
reprova as ações burguesas, pelo fato de traírem a missão do homem, assim
como reduzir as verdades eternas e fazer de seus valores as verdades cristãs.
Ele lutou incansavelmente contra o idealismo burguês, pois remontava ao
dualismo cartesiano entre espírito e matéria, negando o sentido da
Encarnação, e criava, ao mesmo tempo, uma cultura de aparência.
Com o avanço da guerra, o personalista esperava que este espírito
burguês se rompesse, e que os homens saíssem da letargia pela qual estavam
acometidos, mas a derrota francesa parecia não ter surtido o resultado
esperado, pois eles, que em nada acreditavam, jamais morreriam por qualquer
causa: “nem por Deus, nem pela revolução, nem pela França, nem pelos seus
62
amigos”. Eram por demais egoístas e aviltados. Para Mounier, a burguesia
havia falhado e, portanto, não deveria mais deter o poder: era o momento de
uma “renovação francesa”.
Por seus méritos procurava despertar consciências, recriminando
sempre o espírito burguês e sabendo que a batalha do movimento Esprit
levaria muito mais tempo; seria necessário uma revolução, uma revolução
personalista e comunitária.
4.2 Cristandade desvitalizada
Inicialmente mal compreendido, Mounier depois de alguns anos obteve
grande influência para a renovação da Igreja Católica em todo o mundo, pois
estava entre os intelectuais católicos que buscaram criar um pensamento
próprio, articulado sobre a ideia tradicional da pessoa, visto que o clero, diante
da crise da humanidade, culpava a modernidade pelos problemas políticos e
sociais e alguns insistiam na adaptação do tomismo às novas circunstâncias. O
personalismo teve irradiação intelectual na França e Europa do pós-guerra,
tendo seus temas sido retomados nas encíclicas sociais de João XXIII e de
Paulo VI - Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), bem como no
Concílio do Vaticano II (1962-1965). Inspirou o sindicalismo, movimentos
sociais de origem cristã e ainda movimentos de atuação dos leigos, como a
Ação Católica Operária (ACO), a Juventude Operária Católica (JOC), a
Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Agrária Católica (JAC), a
Juventude Universitária Católica (JUC) e outros.
Anterior a estes legados, o diálogo aberto de Mounier com todas as
vertentes e movimentos, lhe trouxe diversas inimizades. Como dissemos antes,
ele era do tipo de pessoa que não se sentia viva se não pensasse e agisse
sobre o seu tempo. Cristão de imensa fidelidade, assume o partido dos pobres
e oprimidos, volta-se para as vítimas da injustiça, da desigualdade,
independente de credos e outras particularidades. Paul Ricoeur aponta
Mounier como o oposto do filósofo universitário, do filósofo professor, “que
possui a preocupação, senão o escrúpulo, de permanecer à margem da vida e
63
da história, e com a maior razão da paixão política que lhe parece, por
essência, indigna do filósofo” (Cousso, 1969, p.83). Seu ideal era ficar acima
da discussão, diante do mundo e “não no mundo” para atuar
compromissadamente. Depierre, o padre-operário de Montreuil, grande amigo
de Mounier e também de Esprit, fala da vocação deste combatente:
Não sei quando Mounier percebeu que a fidelidade a sua vocação pessoal
tinha raízes profundas na fidelidade à causa dos oprimidos. Como disse muitas
vezes, ele recusava por sua fé, sua oração, pelo engajamento de sua vida
familiar cristã, a abstração do ponto de vista dos pobres. Eles, eles, eram a
medida de sua fé e de sua perseverança cristã. Porque os pobres são realistas,
porque é do pão cotidiano que eles necessitam, porque é um raio de sol para
seus filhos que eles desejam; porque os pobres nos obrigam a ter uma fé
tecida de caridade prática, de caridade consequente, de caridade clarividente.
Como o próprio Cristo, no seu anúncio do juízo final, Mounier queria provar sua
na terra e, como Paris era “seu próximo”, na terra de Paris com seus
subúrbios vermelhos e cinzentos (...). Mounier acreditava em uma “boa nova”
presente nas usinas, nos campos, nos hotéis, nos sindicatos, nas aldeias, nas
Câmaras, como esteve presente aos pastores de Belém, a Pôncio Pilatos, o
ocupante romano, a Herodes, o rei Gozador. Boa nova” terrestre como
vontade de Deus, carnal como salvação prometida, cotidiana como o pão do
pater (Depierre, apud Guissard, 1969, p.53).
Lucien Pelissier escreve que Mounier, sem contestação, foi um homem
de esquerda, devido a sua vocação e aspiração por justiça social. Ele sempre
se recusou a se identificar com qualquer força política, mas este homem de
ação foi mal compreendido e visto por outro ângulo:
Isso pode ser evidente hoje, mas em sua época, as forças espirituais, devido a
uma grosseira confusão, na maioria das vezes pareciam fazer causa comum
com o mundo reacionário. Tudo que pudesse nascer da esquerda era a priori
suspeito e considerado sem maior exame como indo contra ao espírito. A
defesa de valores “espirituais” (propriedade, família, pátria, religião)
transformava-se volens nolens em defesa da propriedade capitalista, do
egoísmo familiar e do nacionalismo, sob o branco manto do farisaísmo religioso
(Pelissier, 1969, p. 124).
Ao contrário, para Mounier (1961, t.I, p.140), a esquerda
passava a maior parte das forças novas, todo progresso social, e quase toda a
riqueza de coisas novas da arte e na literatura, e mais do que tudo isso, o
64
imenso fluxo do desejo de justiça conservado sem compromissos, quase sem
eloquência, no coração das massas trabalhadoras.
As palavras soaram como complacência ao marxismo e várias
acusações lhe foram dirigidas. Dentre elas, a de Jacques Chevalier que o
criticou sobre suas “más companhias”. Ou mesmo, a polêmica com o Pe.
Fessard que admitia a boa deste cristão e ao mesmo tempo o acusava de
servir objetivamente o comunismo. Mounier responde às críticas e aponta que
o Pe. Fessard ignorou um texto da revista Esprit de Julho de 1947 “Os cristãos
Progressistas”. Alega que a omissão é lamentável e poderia ter evitado
desordens sérias. Mounier, em março de 1948, escreve a Pe. Fessard e
declara que tem muito a dizer sobre a comunicação dele. Ele, inclusive, fica
espantado ao ver seu pensamento totalmente transformado no sentido
contrário ao da orientação seguida por Esprit.
24
Diante de tantas polêmicas, sempre se prestou ao diálogo, e com os
cristãos teve a coragem de também anunciar a agonia do cristianismo:
O cristianismo foi evacuado com as honras oficiais para instalar sob o mesmo
nome e, a despeito dos tolos, uma religião utilitária mais ou menos dependente
da polícia das sociedades. A fé, a esperança e a caridade cedem o passo, no
coração do praticante-traficante, ao gosto da segurança, da economia, da vida-
pequena, da imobilidade social (Mounier, 1971, p.150).
Mounier diferencia cristianismo de cristandade. O primeiro possui uma
realidade sobrenatural, ou seja, está neste mundo, sem ser do mundo, não
como ser julgado, é transcendente. Ao passo que a cristandade é designada
por uma sociedade de tradição e maioria cristã, envolta em um tempo e lugar,
sujeita aos movimentos de cada época. Não se deve esquecer que a história
vive um dos períodos mais horrendos da civilização humana, deveras o
cristianismo é, um tempo, encarnado e transcendente. Para o autor, aí está
o problema: “Ele situa o cristão num clima totalmente diferente do da
desenvoltura” (1946, Esprit-25, p.189). Por isso, para Mounier, a cristandade
histórica não encontra em seu seio uma representação do cristianismo na sua
24
Cf. a obra Quando a cristandade morre de Mounier; nesta encontram-se o artigo “Os
cristãos progressistas”, duas cartas respostas endereçadas ao Pe. Fessard e também um
artigo com referência a esta polêmica, p.129-152. Sobre o termo “progressista”, veja abaixo,
nota n° 73.
65
totalidade, e a conveniência pode torná-la condizente com a “desordem
estabelecida”.
Em seu artigo sobre a “Agonia do Cristianismo?”,
25
Mounier denuncia a
cristandade ao declarar que esta havia se degenerado e integrado os valores
de uma classe social burguesa. Nas palavras de Michel Richard (1978, p.119),
“Por isso os católicos viveram a solidariedade entre o poder espiritual e o poder
temporal e confundiram a defesa do espiritual com os interesses morais,
políticos e econômicos da classe dominante”. Para Mounier, em sua obra
L’affrontement chrétien, o cristianismo (desvitalizado) perdera sua dimensão
aos apelos de sua e fez da sua religião “qualquer coisa de confortável que
lhe assegure a segurança na terra e a promessa do além. Reduziu a sua
religião às dimensões de um universo pessoal encolhido, mesquinho. Tornou-
se frágil e medroso”, escreve Richard (Ibid., p.119).
Sendo Mounier (1972, p.3) um cristão convicto, sempre em defesa da
pessoa, tinha plena consciência dos problemas e dizia: “Na verdade, na agonia
eterna do cristianismo, erguer-se hoje uma ameaça de agonia mais clara e
mais angustiante. Os cristãos mal têm consciência dela no todo”. Para ele, os
cristãos dormiam na ilusão de sua força, como a França dormia em 1939,
achando-se segura através de seu exército e de seu passado de glórias.
Passou a alertar incessantemente os cristãos, referindo-se a que estavam se
distraindo muito com obras, movimentos insignificantes, partidos, e dizia que
alguma Sedan
26
espiritual lhes abriria os olhos até que “uma agonia da
cristandade em que vivemos há séculos os force a não mais camuflar a
extensão da crise e a preparar nos estertores uma ressurreição da qual não
souberam reconhecer a urgência nas épocas das certezas enganosas” (Ibid.,
p.4).
Apontando fatos, mostrou a fraqueza dos cristãos, seus
contemporâneos, com relação às guerras que se preparavam em Viena e
Madrid, a ascensão do fascismo nos países católicos, e questiona sua força
quando diz que, se houvesse união em prol da pessoa, da humanidade
25
Artigo escrito em maio de 1946. Encontra-se na obra: Emmanuel MOUNIER, Quando a
cristandade morre, p. 3-17.
26
Batalha dramática em que a França teve de capitular diante dos alemães em 1º
setembro 1870.
66
“Setecentos milhões de cristãos resolvidos a liquidar a plutocracia, anarquia, os
fascismos e a guerra, solidariamente: se imaginou que força?” (Mounier,
1963, t.IV, p.207).
Segundo Mounier, a cristandade moderna continuava a preparar-se para
a sua morte, juntamente com a Europa, pois eram frutos da mesma desordem;
dizia que a morte se aproximava, não a morte do cristianismo, mas da
cristandade ocidental, feudal e burguesa: “Uma cristandade nova nasceno
futuro, de novas camadas sociais, cedo ou tarde, e de novos enxertos extra-
europeus. É preciso que não a sufoquemos com o cadáver da outra” (Id.,1972,
p.17). Afirmava que deveria morrer, porque o próprio sistema que a mantinha
era um sistema político-social que vinha definhando aos poucos, e a missão
maior da Igreja, em seu pensamento, era restabelecer a sua profunda tradição
espiritual, restabelecer a vida, a verdade, a dignidade e o amor.
Insiste-se que Mounier sempre esteve do lado dos fracos e oprimidos: o
que realmente desejava era que a Igreja fizesse sua parte com referência à
evangelização, trabalho com as comunidades, com as questões sociais, que
não se entrevasse pelo politicismo, não confundindo ordem religiosa com
política. Como cristão, em sua luta pela pessoa, viveu humildemente, amava os
pobres, afrontava e debatia com os cristãos sobre sua missão e arriscava tudo.
É o que registra Moix (1968, p.264) com as seguintes palavras:
Ninguém conhece nada de Emmanuel Mounier, escreve o padre André
Depierre numa bela homenagem a ele prestada, se a respeito dele ignora,
antes de mais nada, o seguinte: que quis e pretendeu ser, com tenacidade,
com teimosia, apenas um operário na construção no meio de outros operários.
Mounier se agarrava com as próprias mãos à barca de todos os reprovados do
mundo, havia recusado a segurança e fora armar sua tenda em outras bandas.
Acreditando na falência da cristandade ocidental, feudal e burguesa,
estabelecida por quatro séculos, esperava que surgisse de suas cinzas, um
cristianismo de massas populares e que tratava como sendo um “cristianismo
ao ar livre”, uma teologia comunitária. Portanto, acreditava ser a doutrina cristã
superabundante e inesgotável, mas cabia ao mundo cristão inseri-la neste
momento histórico. Para isso travou diálogos constantes com incrédulos e
cristãos, frisou que as denúncias de Nietzsche eram pertinentes e traziam
importantes contribuições para a reflexão filosófica.
67
Nesta época foram feitas pesquisas sociológicas na França que tiveram
como resposta algo desolador para o meio cristão: estava generalizado o
ateísmo prático. Em sua obra Afrontamento Cristão, Mounier visou analisar o
cristianismo católico como instituição e como prática social, apresentando uma
análise crítica das infra-estruturas ético-religiosas, denunciando condiciona-
mentos conduzidos pelo medo, pelo conforto material ou espiritual ao estilo
burguês, e, então, estabeleceu um problema e uma questão básica. Dirige-se
aos ditos cristãos: “Temos nós guardado vivo, em nossa cristandade do
ocidente, o sentido profético do homem novo?” (Mounier, 1962, t.III, p.10). Em
sua Confissão para nós cristãos, escreve:
Dois homens, apenas dois em cinquenta anos, foram os únicos que tiveram a
coragem de denunciar especificadamente o burguês que se fantasia de
religião: Péguy e Léon de Bloy. Um vinha de fora e, na sua revolta contra o
burguês, reconheceu o ardor cristão. O outro vinha de dentro, e em seu fervor
cristão forjou sua cólera contra o burguês. Hoje o estamos sozinhos. A vida
que nos arrebatou na tormenta nos deu um gosto de pureza e de
despojamento. Pessoa, família, pátria, liberdade, assumimos todos os nossos
valores. Mas, é preciso primeiro arrancá-los dos falsários (Id., 1971, p.148).
27
Emmanuel Mounier quis ajustar seu pensamento às novas exigências do
cristianismo da época, pois quando fala da crise do cristianismo ocidental, está
se referindo sempre às do mundo cristão. Para ele, cada época é sempre uma
“novidade inesgotável e contínua” e o personalismo é um método dialético que
combina a “fidelidade histórica a um certo absoluto humano” com uma
experiência histórica progressiva. O mundo e o homem encontram-se numa
mesma aventura, pois o cristianismo herdou da visão judaica o caráter
sobrenatural, que Mounier chamou de sobrenaturalismo histórico; uma junção
da história humana à do Cristo que abarca três unidades teológicas: unidade
de Deus, unidade da história e unidade do gênero humano. Em uma
conferência pronunciada na Semana dos Intelectuais Católicos de Paris em
1949, sob o título de “Fé cristã e civilização”, apresenta seu trabalho sobre A
Finada Cristandade (Cf. Mounier, 1972, p.194-227). Mounier diz que não existe
27
Gustavo Corção, em sua obra (O Século do Nada), alude que nas décadas de 1940 e
1950, surgem movimentos e contestações da cristandade, como: Jeunesse de l’Eglise
(movimento do Padre Montuclard), La France, pays de mission? (obra do Padre Godin), Essor
ou déclin de l’Église (Carta pastoral do Cardeal Suhard), Économie et Humanisme (Padre
Lebret) e o movimento dos Padres Operários (Padre Loew). (Cf. Corção, s.d.,p.367-408).
68
uma história sagrada e outra profana, não duas histórias estranhas uma à
outra, existe a história da humanidade, o cristão habita duas cidades, uma
natural, a outra sobrenatural, que se desabrocham e “Tanto mais a Igreja
recusa a separação desses dois mundos, tanto mais afirma sua vigorosa
distinção. Deve-se continuamente esclarecer uma e outra, e as manter juntas”
(Mounier, 1972, p. 215).
Para Mounier, a Igreja não está encarregada de organizar o mundo,
repartir os bens, “produzir a maior felicidade para todos”, pois se trata de uma
comunidade de vida em Cristo. Deve se ater em manter a vida, aperfeiçoar o
homem para uma humanidade. Não se trata de propiciar riquezas, ser guardiã
da sociedade, “... menos ainda força ou academia. - Durante os dois primeiros
séculos, a Igreja consagrou-se direta e plenamente à evangelização (...). Tão
logo ocupada em organizar-se, ela deixa a tarefa a quem incumbe” (Ibid.,
p.215).
Segundo Mounier, o ateísmo, assim com pensadores “polêmicos”,
prestava um enorme serviço à comunidade dos cristãos, visto que punha à
prova a fé, forçando os cristãos à inquietude e à luta. Por isso recorria sempre
aos pensadores como Marx, Nietzsche, Freud, Sartre, Camus e ao romancista
católico Bernanos, buscando formular novas interrogações, expondo e
provocando revisões da fé, da prática religiosa e moral, pois, como foi dito, era
urgente repensar a missão dos cristãos para revitalizar o novo papel da Igreja.
4.3 Totalitarismos
No pós-primeira guerra, as mortes coletivas, a crise econômica, a
proletarização das classes sociais, o desemprego em massa, as falências,
levam as populações a desarranjos de ordem material e psicológica; neste
exato momento surgem os ideais totalitários, como promovedores de instalação
da ordem, do soerguimento do orgulho. Inicialmente, as primeiras adesões ao
nazismo e ao fascismo tendem a pronunciar-se como anti-capitalistas, reagem
contra os desvios do nacionalismo, liberalismo e individualismo, possuindo um
caráter revolucionário que trouxe um novo vigor, provocando admiração e
69
fazendo apelo aos jovens para o heroísmo. Por algum tempo fez-se justiça,
mas logo é notória a mentira, pois existiam reações de forças conservadoras
aliadas a grupos que, à custa de privilégios, mantinham-se por meio de tarifas
de proteção, obtendo o Estado, em troca, financiamento para a manutenção da
ordem pública, em vista de combater o comunismo e as ações sindicais.
O fascismo teve força na Itália por volta de 1922, mas repercutiu por
vários países. Na França, um despertar nacional e uma exaltação à pátria
edificaram-se entre os homens. Mounier rapidamente condena tal agitação.
Critica este nacionalismo, pois em nome da pátria, homens estão sendo
esmagados através de métodos de escravidão:
Recusamos reconhecê-la nesta nação abstrata que se fortifica de sua
soberania como um burguês se fortifica com sua vida privada, sem saber
compreender que o rosto mais belo é aquele que é o mais aberto. Recusamos
reconhecê-la neste Estado Policial que se chama totalitário, no sentido de que
este é a verdadeira realidade do indivíduo e que para ele tudo está no Estado,
e nada de humano ou de espiritual existe, e, a fortiori, não tem valor, fora do
Estado. (Mounier, 1961, t.I, p.225,226).
Não se tratava de uma verdadeira comunidade de pessoas livres,
responsáveis, mas sim dominadas pelo terror, pelo medo. Segundo Candide
Moix (1968, p.231), “As bases de sua grandeza, quais o elas? O culto da
raça, da nação, do Estado, da vontade de poder, da disciplina anônima, do
chefe, dos triunfos esportivos, das conquistas econômicas. O superior se
sujeita ao inferior: novo materialismo”. Mounier, por inúmeras vezes, mesmo
antes da guerra, alertava sobre o totalitarismo, e o personalismo condenava
severamente os métodos policiais do fascismo que chegou a criar este
universo concentracionista. Diz ele: “A pessoa é espoliada; o era na
desordem, o é agora por uma ordem imposta; mudou-se de estilo, mas não de
plano” (1961, t.I, p.506).
70
Capítulo II
EMERGÊNCIA DA PESSOA
Mounier extraiu do pensamento heideggeriano a visão do “mundo do
man
28
e fez deste o representante direto, o alerta para o mundo cristão que
presenciava: “O primeiro passo da vida cristã é, em nós, a redução daquela
zona que Heidegger chama o mundo do Se” (Mounier, 1946, p.26). Era neste
mundo impessoal, mundo da irresponsabilidade, que a grande maioria dos
cristãos havia se escondido. Por isso, cobrou desses homens de fé uma atitude
ativa perante a vida, pois os via despersonalizados, alienados em suas rotinas
e confortos. Utilizou a linguagem cristã e tratou o assunto como sendo um
pecado contra a pessoa. Candide de Moix utiliza as palavras de Péguy, ao
mencionar tal acomodação, uma evasão idealista de cristãos em demasia, que
fogem do mundo que não compreendem, sobretudo nos períodos de violência
e medo:
Os católicos são realmente insuportáveis na sua segurança mística. Imaginam
para si mesmos que o estado natural do cristão é a paz, paz pela inteligência.
Quando ao contrário, é próprio do místico uma invencível inquietude. Se
acreditam que os santos eram senhores tranquilos, estão muito enganados
(Moix, 1968, p.299).
28
Mounier em suas obras escreve monde de I’On, ou seja, o mundo do “se”. A língua
alemã dispõe de dois pronomes para indicar a ação impessoal de um verbo: es e man. O
primeiro aponta uma impessoalidade indiferenciada, pelo qual, o sujeito da ão pode ser uma
coisa, uma situação ou uma pessoa. o segundo, possui caráter impessoal, mas se
diferencia, por tratar de despersonalização da pessoa que corresponde a um mero “se”, “a
gente”, para a língua portuguesa (Cf. Heidegger, 2001, § 27).
71
Este abandono foi visto por Mounier como sendo a própria perda do tu.
Pensava como Gabriel Marcel, ao afirmar que a religião começa onde eu
transformo um ele em um tu.
Se a suprema vocação da pessoa é divinizar-se divinizando o mundo,
personalizar-se sobrenaturalmente personalizando o mundo, seu Pão cotidiano
não é mais sofrer ou divertir-se, ou acumular bens, mas, hora a hora, criar o
próximo em seu redor. Sua cotidianidade jamais tomará, neste momento, o
rosto da recusa, da amargura, da reivindicação, da hostilidade ou
simplesmente da frieza e do fechamento, mas será disponibilidade,
acolhimento, presença, resposta, compreensão, felicidade dos encontros
(Mounier, 1946, p.64).
Portanto, peca-se contra a pessoa, quando contribuímos para que esta
se entregue aos ditames do anonimato e da omissão; quando esta pessoa é
forçada a identificar-se com suas funções, reduzindo-se a uma coisa
manipulada; quando em nome da boa consciência social encobrem-se as
injustiças; quando se reduz a mulher à sua função doméstica, erótica e à mais
alta função, a materna, acima dos cuidados e seduções. Mounier (Ibid., p.27)
pede ao cristão para perceber-se como tal: “... eu peco contra a pessoa, todas
as vezes que ajo como se desesperasse do homem, quer porque, sem nenhum
mandato, eu o excomungo das mais altas virtualidades do homem, quer porque
eu o reduzo à condição de um objeto ou instrumento”.
Para o personalismo, a pessoa é um absoluto, pelo fato de que ela é
modelo e perfeição ontológica com um chamado a se realizar plenamente além
do tempo e a sobrelevar-se ao infinito. Diante de tal pensamento, coube ao
movimento personalista, o trabalho de aflorar a tomada de consciência de um
universo cada vez mais impessoal nas relações entre os homens e a
sociedade, cuja despersonalização tornava o homem objeto, estranho ao outro
e a si mesmo. Por isso, Mounier imprimiu um sentido diferente à maneira de
filosofar, partiu da pessoa para chegar ao personalismo. Teve por norte os
problemas suscitados pela pessoa, em sua existência individual, relacional,
para depois abarcar a comunidade de homens livres e responsáveis. É da
noção tão antiga e profunda de pessoa, a reflexão jurídica e a teológica, que
Mounier vivência, aprofunda e cria a sua concepção, ou seja, herda-a em
grande parte, numa ligação vital de pensamento e ação.
72
1. Do termo pessoa, à pessoa no pensamento de Emmanuel Mounier
Entender o homem como pessoa é semente de onde brota o
personalismo; cabe indicar como se dá esta gênese. Segundo Mounier, o
termo foi utilizado por Charles Renouvier (1815-1903) em 1903 para classificar
sua própria filosofia, também por Walt Whitman (1819-1892) em suas
Democratic Vistas
29
em 1871, seguidos por vários autores americanos.
Novamente veio a ser utilizado na França por volta de 1930 com outro enfoque,
tendo como instrumento de divulgação o movimento Esprit e também alguns
grupos inconformados com as crises que se alastravam pela Europa:
“A história da pessoa será assim paralela à história do personalismo. Não se
desenvolverá somente no plano da consciência, mas, em toda a sua grandeza,
no plano do esforço humano para humanizar a humanidade” (Mounier, 1950,
p.10).
Na Breve história da noção de pessoa e de condição pessoal (Cf. 1950,
p10-11), Mounier retraça o percurso dessas noções, verificando que da
Antiguidade até os alvores do cristianismo, o sentido da noção de pessoa se
manteve embrionário. A questão da pessoa, o teria sido perscrutada pelos
filósofos pré-socráticos, pois havia uma preocupação específica em desvendar
o cosmos, através de princípios racionais, sendo a grande questão, a
constituição do universo.
Sabe-se o termo “pessoa”, no latim persona”, significa máscara e tem o
mesmo sentido do vocábulo grego πρόσωπoν”. A máscara está intimamente
ligada ao personagem do teatro trágico grego. O ator mascarado é o dramatis
persona. A sua fala é dirigida ao público: por vezes se faz derivar do termo
persona, do verbo persono (infinitivo: personare), “soar através de algo”, que
neste caso, é a máscara. Portanto, o ator é um personatus (Cf. Mora, 2001,
29
Obra de Walt Whitman (um dos mais importantes poetas dos EUA foi pioneiro do verso
livre, do tratamento poético cotidiano, difusor da abolição da escravatura, dos direitos da
mulher, do amor livre e do desenvolvimento tecnológico). Democratic vistas é um ensaio que
questiona a corrupção social e política do governo norte americano. Esta obra pertence a um
contexto ímpar, pois em 1871 ocorre a Exposição Internacional de Nova Iorque, onde Whitman
declama alguns de seus poemas inéditos. Publica a quinta edição de Leaves of grass e
também neste mesmo ano, o Democratic vistas. Tal ano é importante, pois é o período da
emancipação do negro e da emenda à constituição que garante o direito de voto do mesmo.
73
p.2262). Além disso, Jean-Pierre Vernant, em um artigo intitulado O momento
histórico da Tragédia na Grécia: Algumas condições sociais e psicológicas,
aponta um dado importante sobre a “origem” da máscara. Prefere falar de
“antecedentes” ao invés de “origem”, para que não haja o equívoco de se tratar
de um falso problema. Portanto, nos enganaríamos se pensássemos na
máscara da tragédia, como máscaras de rituais primitivos, ou seja, como
transvestimento religioso (apesar de haver parentesco). “É uma máscara
humana, não um disfarce animal”. Seu papel é estético, diferente do ritual,
mas, por outro lado, mantém viva a religião cívica do culto aos heróis. A
máscara serve também para distanciar e diferenciar os coristas, ou melhor, o
coro (no sentido de um personagem coletivo, encarnado por um colégio de
cidadãos), do personagem trágico, aquele que, sob uma máscara individual,
representa o herói (Cf. Vernant, 2005, p.1-2). O personagem, o herói (Héros),
representa todos os cidadãos diante dos erros. Importante lembrar que o teatro
trágico tinha por finalidade promover a catarse purgatória dos erros (hamartía)
da comunidade, de toda a pólis, e não somente do indivíduo em particular.
O erro sendo, no entanto, sempre comunitário, proveniente do modelo de
identidade que cada homem tem e que emana da própria comunidade, está
dependente – para ser dito um erro – do modo de valorar do conjunto. A
identidade de cada um é a do todo, de modo que o erro cometido não é
responsabilidade de um homem, mas é previsível por todos, aceito e
expurgado conjuntamente, apesar de praticado por alguns (Gazolla, 2001,
p.27).
Para Mounier, quando Sócrates colocou o conhecimento à prova no
“Conhece-te a ti mesmo”, ele se tornou o mentor de uma nova perspectiva, da
primeira grande revolução personalista conhecida: a necessidade de saber,
de conhecer quem é o homem, de preferência à pretensão de conhecer o
universo.
Platão prosseguiria com o trabalho de Sócrates culminando na ideia do
homem dual, corpo e alma, uma diretriz de sua filosofia e de onde partiria a
consideração da alma como a responsável pelos processos cognitivos e as
virtudes, sendo, portanto, a que detém a primazia. O corpo era apenas sua
morada temporária que a mantinha presa ao mundo das aparências. O objetivo
da alma seria superar os erros, preservar as virtudes, aprimorar-se, atingindo o
74
inteligível. Para Aristóteles, a alma ainda continua sendo a diretriz que se
desmembra em duas dimensões, a racional e a política, que, através da pólis e
da aspiração pelo saber, tornavam-se condições mestras para a felicidade do
homem.
A questão da pessoa adquire relevância a partir do advento do
cristianismo, quando o valor absoluto do ser humano passa a ser considerado
um elemento da revelação cristã, não voltada ao gênero humano de modo
abstrato, mas voltada aos homens enquanto sendo filhos de Deus e
constituindo um povo, o novo Israel. No cristianismo, a pessoa foi visualizada
não apenas como simples elemento de fé. Tanto na patrística como na
escolástica, o tema da pessoa suscitou profundas reflexões culminando em
elaborações cnicas que visavam ao entendimento da fé (Zilles, 1993,
passim). Foi o Bispo de Hipona, com pensamento filosófico de influência
platônica, que se enveredou a desvendar e explicar a “Trindade Divina”,
deparando-se com um dilema: como conferir a um Deus esta tríade, sem
lhes furtar a integridade e a singularidade? Tinha em mãos os termos gregos,
essência e ente, mas não lhe ofereciam respaldo, pois a verdade, nestas
palavras, era considerada no sentido de adequar-se como intenção. Diante do
problema, a solução estaria na palavra grega hipóstase, ou seja, substância
primeira e que vem a derivar na palavra “pessoa”. Desta forma consegue
fundamentar sua argumentação, conferindo a cada pessoa da Trindade sua
singularidade e completude. Mas, Agostinho deparou-se com outra questão,
quando, ao se tratar de reflexões de um ente diante de si, este passava a ser
objeto de suas próprias preocupações, deparando-se com o “eu”, denominado
por ele “existente real”, que se confrontava com o mundo interior.
Urbano Zilles descreve que o reconhecimento do desenvolvimento do
“eu” e da “pessoa” aparece com a definição de Boécio, para quem, a pessoa
era uma “substância individual de natureza racional” (eu), concluindo que o
homem é uma entidade subsistente e completa (auto-suficiente). o Tomás
de Aquino amplia o universo do conceito “vida”, e lhe confere o atributo da
incomunicabilidade, o que significava que cada homem possuía o seu status
ontológico, sendo inviolável, insubstituível, único, dissociado de “outro”, ou,
sendo mais exato, tornava-se “pessoa”. Vale citar que Boécio possui fortes
75
ligações com Aristóteles, mas diferem nesta questão, em que o primeiro situa-
se num contexto teológico no qual a pessoa encontra a felicidade suprema com
o encontro com Deus. Imagem Deste no homem, como sendo o ideal ético
cristão, ao passo que Aristóteles resume seu ideal de felicidade em duas
palavras: sophia e phrónesis, a sabedoria teórica e prática, ou seja, o estado
mais elevado de felicidade encontra-se na contemplação superior da alma e
consequentemente, no bem viver na pólis.
Com René Descartes, surge um novo conceito de pessoa, relacionado
com a autoconsciência, não mais definida com relação à autonomia do ser; o
“eu” consiste nesta “consciência”, pois pensa a si mesmo. Mounier procura pôr
em evidência a contribuição própria de Descartes:
É costume relacionar com Descartes o racionalismo e o idealismo modernos,
que dissolveram na ideia a existência concreta. Esquece-se assim o caráter
decisivo e a complexa riqueza do cogito. Ato de um sujeito, tanto como intuição
de uma inteligência, é afirmação de um ser que rompe com os intermináveis
cursos da ideia e se assume como autoridade na existência. O voluntarismo,
de Ockam a Lutero, tinha preparado esses caminhos. Daí para adiante a
filosofia deixa de ser uma lição que se aprende, como era costume na
escolástica decadente, para ser uma meditação pessoal, e a cada um é pedido
que, por sua conta, a refaça (Mounier, 1950, p.13).
Tratar-se-ia, de acordo com Mounier, de uma conversão, como a do
pensamento socrático voltado a uma conversão à existência, mas exatamente
neste momento, a jovem burguesia se revolta contra a estrutura feudal e, em
sua reação, exalta o individualismo econômico e espiritual. Da mesma forma,
Mounier salienta que o cogito de Descartes, apesar de seu valor, abala o
personalismo clássico, de Leibniz aos kantianos, devido aos “germes do
idealismo e solipsismo metafísicos” nele contidos.
Quanto a Hegel, Mounier mostra sua oposição ao dizer que este trata de
dissolver todas as coisas, todos os seres de acordo com sua representação:
“não foi por acaso que ele veio defender a total submissão do indivíduo ao
Estado” (Ibid., p.13). Prossegue dizendo que o personalismo não deve se
esquecer da história de Leibniz a Kant, e a dialética da pessoa de todo esforço
de reflexão do pensamento idealista.
76
Kierkegaard, em paralelo com Marx, também questiona Hegel por
referir-se ao espírito abstrato e não ao homem concreto, sujeito criador de sua
história.
Vale lembrar que o personalismo de Mounier tem como precursor, o
francês Maine de Biran; salienta ter este penetrado no âmago da raiz da
pessoa e em sua zona de emergência.
A interrogação sobre a “pessoa” vem a adquirir uma importância total,
em relação à singularidade e complexidade de seu ser, a partir do século XX,
com os filósofos Charles Renouvier, Martin Buber, Max Scheler, Gabriel
Marcel, Maurice Nédoncelle, Romano Guardini, Paul Ricoeur, Martin
Heidegger, Edgar Sheffield Brightman, sem falar do próprio Mounier. Autores
que dizem ser a pessoa constituída não de espírito, mas também de
matéria; não alma, mas também corpo; não apenas de pensamento, mas
perpassa este. Pertencentes a correntes filosóficas diversas, os pensadores
mencionados, buscavam superar a visão intelectualista que prevalecera
durante a época moderna a partir de Descartes, uma visão reducionista da
realidade humana ao pensamento que, com o idealismo, havia sacrificado
novamente, como ocorrera na filosofia grega, o singular ao universal.
A fenomenologia existencial veio oferecer a visão do homem concreto e
criador de sua existência, enquadrando-o como pessoa singular, superando a
visão negativista do humano, estigmatizada por séculos.
Renouvier, ao publicar sua obra de título O Personalismo, propõe
fundamentos de toda investigação filosófica no universo do homem em sua
concreção e individualidade. Para ele, o caráter específico da pessoa humana
seria o conhecimento, mas diferente do conhecimento dos idealistas, com
referência ao criativo e também ao caráter fenomênico como afirmava Kant.
Seu pensamento possuiria, assim, abertura para o mundo e para o absoluto, o
que levaria o homem a reconhecer a existência de uma pessoa primeira e
criadora. Ao reconhecer sua existência, impõe-se, por harmonia das leis que
regulam os entendimentos dos seres inteligentes, uma representação: “A
hipótese de um mundo existente por si, eterno, não é mais de um mundo que
possa dar razão a si mesmo da sua existência” (Mondin, 1983, p.288).
77
Sob o impulso de Renouvier, emergem os personalistas franceses,
dentre eles Mounier, que busca no personalismo uma concepção de pessoa
humana dotada de movimento progressivo de personalização. É através do
corpo que nos relacionamos com o mundo, pois a pessoa não é um objeto que
se fragmente ou separe, mas uma reorientação do universo, que por ela se
edificou buscando-a: “... iluminar nos seus diversos planos as estruturas, sendo
preciso não esquecer que esses planos não são mais do que incidências
diferentes sobre a mesma realidade” (Mounier, 1950, p.17). A pessoa, nesta
visão de Mounier, como diz Alino Lorenzon (1996, p.7), apresenta-se com a
característica de
comportar-se face à história e ao acontecimento, não como simples
espectador, mas como um ator. Não se tratava simplesmente de criticar a
história, ainda que da maneira mais objetiva, mas de pressioná-la, tendo
sempre o cuidado de não separar o pensamento da ação. No centro dessa
dialética é que deverá colocar sempre a pessoa, isto é, pessoa concreta e
histórica. Estudar os problemas humanos, sim, mas simultaneamente lutar pelo
homem no processo de personalização individual e comunitária.
A dicotomia corpo-alma é refeita através da existência encarnada, dando
nova dimensão ao livre-arbítrio, pois o homem é uma unidade de corpo e alma
e numa visão personalista - principalmente para o cristão, aquele que fala com
desprezo do corpo, da matéria - trai a mais central tradição, pois o homem é
um ser natural e seu corpo faz parte da natureza. Então, ao tomar consciência
de si, o homem real ultrapassa as teorias; no exercício de sua vida,
principalmente em períodos de decadência humana, como as guerras, campos
de concentração e miséria em todos os âmbitos, a presença da pessoa sempre
se fará de forma conflitante, pois reflexão e ação exigem movimento, atitude
pessoal, compromisso, cuja abrangência comunitária, ética e social são
abarcadas.
Diante do que foi exposto, ainda resta uma pergunta: O que é a pessoa
para o personalismo de Mounier? Mounier, ao referir-se à pessoa em sua obra
Manifeste au service du personnalisme (Principes d’une civilisation
personnaliste - 1936), apresenta esta questão. Em resposta, ele inicia dizendo
o que não é a pessoa: não é indivíduo, pois este é egocêntrico (impessoal),
avaro e singular; não é consciência que alguém tem de si mesmo, pois para
78
ele, cada homem pode criar várias representações de si. A pessoa é um
absoluto, vale por si mesma. Ela é dotada de dignidade intrínseca (dignidade
humana). A pessoa jamais poderá ser um meio, terá que ser sempre um fim
(Peixoto, 2001, p.105). Tal pensamento conduz Mounier à elaboração de cinco
aspectos fundamentais para diferenciar a “pessoa” do “indivíduo”.
Primeiro, para ele não existe a experiência imediata da pessoa. Quando
esta tenta apreender-se, aparecem-lhe as multiplicidades que a dispersam.
Tudo a princípio é difuso, fuga de si e excitação, espécie de fantasia interior:
“dissolução de minha pessoa na matéria” (Mounier, 1961, t.I p.525). Movido por
estas influências, aí se encontra “indivíduo”. Porém, a individualidade não é
simples entrega passiva às percepções, às emoções e reações. A
individualidade abriga uma exigência mordaz, um instinto de “propriedade”. É
através deste instinto que o homem inveja, apossa, reivindica e depois firma na
propriedade as suas defesas: “Dispersão, avareza, eis as duas marcas da
individualidade. A pessoa é domínio e escolha, é generosidade. Ela é, portanto,
na sua orientação íntima polarizada, justamente o contrário do indivíduo” (Ibid.,
p.525).
O personalismo repudia todo tipo de extremismo, como o espiritualismo
do espírito impessoal ou o racionalismo da ideia pura que desconhece a
pessoa. Para Mounier, existe na pessoa a substância da encarnação, que é a
tensão dinâmica bipolar de dispersão e concentração, em que corpo e alma
transcendem (transcendimento Cf. nota 31) ao m esmo tempo. Mas, para
energizar estes polos, antes carece suprir a exigência do atendimento material,
atender às necessidades mínimas de bem-estar e segurança, para depois
despertar a vida pessoal.
O indivíduo encarnado apresenta o lado irracional da pessoa. A pessoa
é polarizada por estar em sentido contrário ao da individualidade. Nessa tênue
linha que percorre a pessoa em sua transformação pela personalização,
emerge o segundo aspecto, o da consciência, que é um avanço para além da
dispersão da individualidade. Mounier os trata como esboços sobrepostos da
personalidade:
Personagens que eu represento, nascidas da aliança do meu temperamento
com o meu capricho, que frequentemente se mantêm ou reaparecem por
79
surpresa; personagens que fui e que sobrevivem por inércia, ou por covardia;
personagens que eu creio ser, porque as invejo, ou porque as recito, ou porque
deixo que imprimam em mim a moda; personagens que eu desejaria ser, e que
me garantem uma boa consciência porque acredito sê-las
(Mounier, 1961, t.I,
p.527).
Ao se aprofundar um pouco mais, para além dos personagens, chega-se
aos desejos, às vontades e esperanças. Estes apelos obstinados aparecem
rapidamente, são “estreitos contra a vida” e juntamente com as ações, julgam
apreender a pessoa. Desses resultados, muitos estão contaminados de vários
tipos de retórica, e as melhores, infelizmente são estranhas.
Por iniciativa, numa ordem mais íntima, mesmo que ainda à deriva, a
pessoa caminha para uma orientação profunda, uma unificação da descoberta
progressiva de um princípio espiritual, ou seja, sua “vocação”.
30
Cabe à
pessoa, somente a ela, descobrir sua vocação que será unificante, pois o seu
fim é de alguma forma o modo interior que a aproxima da humanidade e ao
mesmo tempo a torna singular.
Não se experimenta diretamente a realidade completa da vocação, pois
o conhecimento e a realização da pessoa é sempre simbólico e incompleto: “A
minha pessoa não é a consciência que eu tenho dela” (Ibid., p.529). Nesta
fase, o esforço pessoal ainda se confunde com a dispersão do indivíduo e as
representações dos personagens. Para se chegar à pessoa (terceiro aspecto),
é preciso um esforço constante de superação (dépassement) e despojamento
(dépouillement), ou seja, de renúncia, de privação e espiritualização, uma
situação limite de sacrifício e dor. Mounier acompanha o pensamento de
Nikolai Aleksandrovich Berdiaeff (1874-1948): “... viver como uma pessoa é
passar continuamente da zona em que a vida espiritual é objetivada,
naturalizada à realidade existencial do sujeito”.
31
A pessoa é “mistério”, é
30
A palavra vocação está gasta pelo uso que fazem dela, escreve Mounier. Confundem-
na com a vocação profissional, temperamento, aptidões, caráter, componentes de constituição
psíquica. A vocação transcende a existência. Vincula-se ao mistério da liberdade. É ruptura
quanto a tudo que abafa a voz ou desvia o sentido da autenticidade, portanto, ela exige
proteção e vigilância, uma virtude natural e sobrenatural de silêncio, afim de que, passo a
passo, caminhe rumo ao íntimo, intimius intimo meo. Assim, a pessoa será preenchida não
somente pela imagem e semelhança de Deus, mas será inundada pela vida íntima de Deus,
por prestar a Ele, a confirmação de seus pedidos (Cf. Mounier, 1961, t.I, p.750, 751).
31
O sujeito aqui mencionado possui um caráter, um modo de ser espiritual, um apelo à
intimidade do ser, uma capacidade de transcendimento (esforço constante de superação e
despojamento). Não se trata do sujeito biológico, social, psicológico ou o sujeito do
80
protesto contra a superficialidade, esforço que diferencia um homem de outro,
pela singularidade, vocação e, acima de tudo, qualidade interior.
Ao desenvolver o quarto aspecto, Mounier falará da liberdade espiritual
e solicita atenção, para não a confundir com a liberdade do liberalismo
burguês, que é vazia de toda a fé. A liberdade da pessoa é a própria procura e
descoberta de sua vocação, são os meios para se realizar a liberdade de
assunção, de adesão e compromisso renovado com o espírito libertador.
É dever de todo regime institucional favorecer as pessoas, as vias do
encontro libertário, a ele cabe: 1) não aceitar qualquer forma de opressão; 2)
estabelecer margens de independência diante das pressões sociais; 3)
organizar todo aparelho social sobre o princípio da responsabilidade pessoal,
oferecendo maior liberdade de escolha (Mounier, 1961, t.I, p.534).
Para o último aspecto, alude-se à “comunhão” entre a pessoa e a
comunidade. No percurso do individualismo à personalização, a pessoa
atravessa momentos do mais baixo estado de tensão e agressividade, ao mais
alto, assim, como o herói, “termo supremo”. Mounier cita algumas vias do
heroísmo, como as do estóico, do nietzscheano e do fascista. Porém dá norte a
uma via que leva a pessoa ao caminho autêntico, que conduz aos mistérios do
ser, caminho do santo, misto de heroísmo e violência espiritual, mas que se
transfigura: “é a vida de todo aquele que avalia um homem, antes de tudo, pelo
seu sentido das presenças reais, pela sua capacidade de acolhimento e de
dom” (Ibid., p.534). Aqui emerge o cerne do “paradoxo da pessoa”, lugar de
tensão e calma, centro do movimento, ponto em que o ter comunica ao ser, e
este se abre inundando de acolhimento e doação.
Ao término dos aspectos para diferenciar a pessoa do indivíduo, não
vemos nas palavras de Mounier a pretensão de definir propriamente o que seja
a pessoa. Certamente estaria fora do propósito personalista, mas, a priori,
descreve uma possível designação de cunho religioso:
Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por um modo de
subsistência em seu ser; ela alimenta essa subsistência por uma adesão a uma
hierarquia de valores livremente adotados, assimilados e vividos por um
racionalismo, que durante muito tempo empregou a palavra no sentido de irrealidade (Cf.
Mounier, 1961, t.I, p.529).
81
compromisso responsável e uma constante conversão; deste modo ela unifica
toda a sua atividade na liberdade e desenvolve, por acréscimo, mediante atos
criadores, a singularidade de sua vocação (Mounier, 1961, t.I, p.523).
Por outro lado, aponta que a definição acima não pode ser verdadeira,
porque a pessoa é indefinível de acordo com os rigores da sistematização, pois
não se trata da arquitetura de um objeto, mas sim, de uma experiência de vida,
iniciativa, vida espiritual e responsabilidade:
Sendo a pessoa, com efeito, a própria presença do homem, a sua
característica última, ela não é susceptível de definição rigorosa. Ela não é
objeto de uma experiência espiritual pura, desapegada de todo o trabalho da
razão e de todos os dados sensíveis. Entretanto, revela-se, através de uma
experiência decisiva, proposta à liberdade de cada um, não da experiência
imediata da substância, mas da experiência progressiva de vida, a vida
pessoal. (...) a vida pessoal é, com efeito, uma conquista oferecida a todos, e
não uma experiência privilegiada, ao menos acima de um certo nível de miséria
(Ibid., p.524).
Sobre esta exigência de uma experiência fundamental, o personalismo
agrega um juízo de valor, um ato de fé: o absoluto da pessoa humana não será
comparável com quaisquer realidades materiais, sociais ou com outra pessoa
humana. Para ele, mesmo Deus na doutrina cristã, respeita a liberdade, pois
dessa forma a pessoa se aproxima, vivifica e busca afirmação de valor em sua
crença de que somos sua imagem e semelhança. Suspeitou-se que Mounier,
por defender a pessoa, quisesse re-introduzir o individualismo. Mas seus
pensamentos percorreram caminhos opostos. Preocupou-se muito com tal
problema e relatava que, se não se colocar todo o diálogo referente à pessoa
nesta área abismal da existência e se também se limitar às reivindicações das
liberdades públicas e dos direitos da fantasia, isto poderia levar o homem a se
adaptar e se acomodar numa posição sem resistência profunda; então,
“... correremos o risco de defender apenas os privilégios do indivíduo e é
verdade que estes privilégios devem ceder em várias circunstâncias a uma
certa organização da ordem coletiva”
(Ibid., p.524, 525).
32
Diante da não definição sistêmica do que seja a pessoa, tanto nas
32
Veja abaixo, Capítulo II, Subseção 3.3.
82
palavras de Gabriel Marcel, por ser esta “não inventariável”, como nas de
Mounier, de que não se trata de um objeto passível de separação e
observação, mas de um “centro de reorientação” do universo objetivo, importa
então, adentrar o universo da pessoa, a fim de conhecer suas estruturas, os
pilares que revelam parcialmente o mistério da pessoa, que, para Mounier, era
o que haveria de mais belo presente neste mundo.
2. Estruturas do Universo Pessoal
A “ideia de pessoa”, para Mounier, é compreendida como um universo
dinâmico sempre em prova, num movimento contínuo de personalização de si
e do mundo, mas sujeita à despersonalização pelas ameaças alienantes. No
entanto, existir significa eleger-se, comprometer-se, conquistar incessante-
mente seu universo, não desenvolvendo apenas o plano da consciência, mas
toda sua grandeza, numa luta permanente para humanizar a humanidade.
2.1 Unidade entre existência e encarnação
Mounier, inicialmente, ao retratar o “universo pessoal”, reconhece que há
no ser uma estrutura psico-físiológica do homem, chamada por ele de
existência incorporada, evidenciando a existência de uma unidade entre o
sujeito e o corpo, que confere aos dois uma única e mesma experiência, uma
existência corporificada.
O homem é corpo e espírito; mergulhado na natureza, é um ser natural;
seu corpo é parte da natureza e o segue por onde for.
33
O homem, por outro
lado, transcende a natureza, pois é um “ser natural humano” capaz de romper
33
Na visão de Mounier (1950, p.21), a natureza é entendida como todos os elementos
que condicionam a natureza exterior, anterior ao homem, inconsciente psicológico,
participações sociais não-personalizadas que confinam a existência. A encarnação não é uma
queda. Mas exatamente porque é a situação do impessoal e do objetivo, é permanente ocasião
de alienação”.
83
com a natureza e transformar-se, não é encerrado no seu destino pelo
determinismo: “Se nos mantemos concretamente ligados a numerosos e
estreitos determinismos, cada novo determinismo que os sábios descobrem é
mais uma nota na gama da nossa liberdade” (Mounier, 1950, p.23).
Ciente de sua existência, a pessoa caminha rumo à liberdade sempre e
continuadamente. Esta ascensão da pessoa criadora pode acompanhar a
história do mundo, tratando-se de uma luta entre o movimento de
“despersonalização” e o movimento de “personalização”. O primeiro aniquila a
vida social e espiritual através da abstenção como pessoa responsável e
autêntica. Quanto ao segundo, Mounier faz referência a Teilhard de Chardin,
ao concordar que este movimento começa com o homem ao longo de toda a
história do universo, e então, “a imergência do universo pessoal não vem deter
a história da natureza, antes a compromete na história do homem sem
inteiramente a submeter” (Ibid., p.25).
Mounier observa que o materialismo, quando histórico e localizado, tem
razão no que se refere ao comportamento dominado pela situação biológica e
econômica, pois no decorrer da história, o homem vive entremeio aos instintos,
paixões e interesses. Por outro lado, o espiritualismo e o moralismo tornam-se
impotentes diante do jugo biológico e econômico, exatamente por desprezarem
tais concepções. Por isso, Marx tratará o espiritualismo e o moralismo como
abstratos. O personalismo comunga com o pensamento de Marx e opõe-se
também ao idealismo, quando este reduz a matéria e o corpo através de uma
atividade puramente ideal, ou quando reduz o sujeito pessoal acomodando-o
sob seus resultados objetivos. A proposta personalista é de um “realismo
integral”, estando longe de ser um espiritualismo: “Pertence-lhe, em toda a
latitude da humanidade concreta, qualquer problema humano, desde a mais
humilde condição material, às mais elevadas possibilidades espirituais” (Ibid.,
p.26). Mas, o espiritual também é uma infra-estrutura do homem e as
desordens, tanto psicológicas como espirituais, ligadas a uma desordem
econômica, podem contaminar as soluções adquiridas no campo da economia,
pois, desprezando as exigências fundamentais da pessoa, já traz dentro de si a
própria ruína. Alino Lorenzon resume: “Há entre esses dois elementos
essenciais uma estreita interdependência e reciprocidade que nenhuma ética
84
pode ignorar sem cair num falso materialismo ou num falso espiritualismo
(Lorenzon, 1996, p.70).
O pensamento de Mounier parece avançar com base no argumento de
São Tomás e seus seguidores no que se refere ao reconhecimento da
autonomia da alma quanto ao ser, pela presença do homem sob certas
atividades absolutamente espirituais. Por outro lado, sente-se o
constrangimento, ao negar a identificação da alma com a totalidade do homem;
porque esta não se encontra em condições de realizar sozinha certas
atividades concernentes ao homem, como trabalhar, sentir, comunicar-se e
mesmo suas atividades puramente espirituais como conhecer intelectualmente
e exercer a capacidade de escolha livre, em sua condição encarnada.
34
Daí,
Mounier afirma que a união da alma e do corpo é algo indissolúvel, é uma
unidade, que o se submete a uma hierarquia de autonomia. A obra, Tratado
do caráter descreve o espiritual como em si, carnal e caminhando, ao mesmo
tempo, sob as influências do meio social, dos momentos políticos, históricos,
educacionais, religiosos; enfim, como não escapando às raízes lançadas pela
humanidade no material e, portanto, a pessoa está encarnada em um tempo e
lugar e por entre outros homens. Conclui-se que existe uma teia interligando
tudo e todos, sendo merecedora de uma profunda atenção em toda sua
dimensionalidade.
Sendo, portanto, a pessoa corpo e alma ao mesmo tempo, “existir
subjetivamente, existir corporalmente” o uma única e mesma experiência.
Pode-se reforçar: tudo o que se lança contra a matéria ou o espírito conduz a
graves erros, e para Mounier, eram inconsistentes o espiritualismo do espírito
impessoal e o racionalismo da ideia pura, que jamais interessariam para o
destino do homem. Já, os horizontes elucidados por Freud sobre os instintos e
por Marx sobre a economia, ele os descreve como aproximações dos
problemas humanos, mas de forma fragmentária; por outro lado, o
espiritualismo e o moralismo tornaram-se impotentes, pois rejeitaram por
completo as ideias de Marx e Freud. Portanto, uma posição se faz necessária
para o problema prático, ou seja, assegurar a solução nos planos das infra-
34
A respeito, ver Tomás de Aquino, Suma teológica, primeira parte, questões 75-89; no
que se refere ao conhecimento, especialmente, questão 84, artigos 6-8.
85
estruturas biológica, econômica e espiritual. Por mais racional que uma
estrutura econômica possa ser considerada, recorde-se que, se desprezar as
exigências fundamentais da pessoa, trará incluída em si a própria ruína
(Mounier, 1950, p.27).
Nota-se, assim, que o homem está mergulhado na matéria, mas não é
servo dos mecanismos e condicionantes. Ele tem por finalidade conquistar o
seu universo pessoal, uma existência corporal, uma consciência pessoal.
Empreende, portanto, uma personalização da natureza, que confere a vocação
de resgatar pelo trabalho, resgatando-se a natureza. Com o passar do tempo, o
homem foi se afastando pela técnica da relação dialética entre a pessoa e a
natureza; com isso, foi se despersonalizando. Torna-se, então, preciso resgatar
o primado humano, pois a produção não tem valor se não visar ao seu mais
alto fim, a prosperidade do mundo de pessoas. Portanto, não é o personalismo,
nas palavras de Maurice Nédoncelle, “Uma filosofia de domingo à tarde”, pois
sempre que a liberdade alça voo, a natureza a prende, ameaça; a insegurança
e as preocupações são de nosso quinhão:
A perfeição do universo pessoal encarnado o é, pois, a perfeição de uma
ordem, como pretendem todas as filosofias (e todas as políticas) que pensam
que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo. É perfeição de
uma liberdade que combate, e que combate duramente
(
Ibid., p.33).
Existe neste ser dual uma ética cristã da encarnação, em que a pessoa,
ciente de que seu corpo e espírito constituem uma única substância, integrada
e completa, passa a ter consciência de si, não desprezando nem um nem
outro. O desprezo pela matéria converteu-se em apreço pela matéria
alcançando de forma coerente o seu devido espaço, atingindo o horizonte
cósmico da evolução do homem e do mundo nos estudos de Teilhard de
Chardin e na poesia de Paul Louis Charles Claudel. Daí ser o homem
responsável por si e pelo mundo, personalizando-se em reciprocidade com a
natureza, humanizando e transformando-a, dando um movimento à história,
numa universalização progressiva dos grupos em comunidade, uma outra via
dual, um pensamento focado na natureza e na coletividade.
Para Mounier, a história do universo é também a história do homem. A
evolução biológica tende à formação de pessoas autônomas, dotadas de um
86
poder de escolha, revestidas da “dignidade de causalidade” (Cf. Pascal, a.VII,
fr.513), encarnação eterna do Verbo. A pessoa espiritual é o auge da
transcendência da evolução vital, trajetória progressiva que caminha para o
sentido de uma libertação espiritual.
2.2 Transcendência da pessoa e sua eminente dignidade
O homem vai além, ultrapassa, transcende a natureza, e sua
transcendência manifesta-se a partir de atividades produtoras. Portanto:
“realizar e, realizando, realizarmo-nos, nada mais sendo do que o que
realizamos” (Mounier, 1950, p.84). Mounier se recusa a se entregar
completamente a este pensamento sartriano de encerrar o todo do homem,
num pensamento quase marxista, na atividade de produção. Ora, esta
atividade não se restringe a uma operante solidão.
A pessoa, para ele, vai muito além do que e o que produz. Afirma
também, que os melhores atos humanos, nem sempre são os voluntários.
Mounier pede para que não se confunda isto com a agitação do élan vital, um
“viver a todo custo”, pois é o contrário. Como para Gabriel Marcel, ao tomar
consciência de que “sou mais do que minha vida”, diz Mounier, encontro este
paradoxo de que alguém não se encontra (no plano pessoal) senão quando se
perde (no plano biológico). “Gosto, diz Nietzsche, das pessoas que não
pretendem conservar e é com todo meu coração que amo os que soçobram,
porque passaram para o outro lado” (Ibid., p.84,85). Não se trata também de
um élan social, que, segundo a demonstração de Bergson
35
, tende a se
renegar em sociedades fechadas, onde o eu se enrijece em um egocentrismo
maior.
Sustenta Mounier (Ibid., p.85) que a aspiração transcendente da pessoa
não é agitação, mas trata-se de uma negação de nós próprios, num mundo
fechado e isolado. A pessoa “... não é o ser, é movimento do ser para o ser, e
não é consciente senão no ser a que visa. Sem esta aspiração, dispersar-se-ia
35
Cf. Henri BERGSON, As duas fontes da moral e da religião. Trad. Nathanael C.
Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
87
(Müller-Freienfels) em sujeitos momentâneos”.
36
Michel Richard (1978, p.120),
por seu lado, resume apropriadamente:
Ser transcendente não significa que o homem esteja cortado da realidade, quer
dizer que há no homem uma qualidade de ser para fazer progredir. Ser pessoal
quer dizer uma tensão de si a si, um movimento íntimo de natureza espiritual
pelo qual o homem se ultrapassa constantemente para si e para outrem. A
transcendência é a riqueza produtora de um si em constante tensão consigo
mesmo e em perpétua confrontação com outrem e com a realidade social.
Mas, quais os caminhos a seguir? Em primeiro lugar uma experiência da
superação em que o transcendente é apreendido pela existência e, em
segundo lugar, o transbordamento, onde o ser ultrapassa mais do que tudo o
que faz, muito além de sua vida. Dessa forma, poderá culminar em um
movimento transpessoal, combatente, conferido pela experiência da comunhão
e valorização, cujo resultado inclui, como processo de personalização, valores
como a felicidade, a ciência, a verdade, os valores morais, a arte, a história, os
valores religiosos, enfim, trata-se de relações estreitas. É necessariamente um
movimento combativo, diante da infinidade de obstáculos. Candide Moix
recorda que a dignidade da pessoa não corre o risco de ser esmagada pelas
forças exteriores da opressão, podendo até degradar-se no íntimo, pela falta da
própria pessoa. Por isso, na visão de Mounier (1950, p.90), aderir aos valores
pode “exigir o sacrifício da vida: existimos definitivamente a partir do
momento em que constituímos um bloco interior de valores ou de
devotamentos. E sabemos que a própria ameaça de morte não prevalecerá
contra ele”.
36
Pensamos ser importante descrever brevemente algumas passagens da biografia de
Richard Müller-Freienfels (1882-1949). Nascido em Bad Sem, foi professor da Academia
Pedagógica de Stettin, da Escola Superior de Comércio de Berlim e da Universidade de Berlim.
Interessou-se pela psicologia da arte, recusando as orientações positivistas e sensualistas.
Tratou-a de “psicologia vital”, encontrando apoio nos pensamentos de Nietzsche e Ludwig
Klages, bem como, orientações pragmáticas como a de Willian James. Tal norte conduziu-o a
uma teoria do conhecimento baseada na ideia de que, a chamada “objetivação” é, no máximo,
um momento derivado de uma “posição do real” efetuada pelo sujeito. Para ele, o
conhecimento do real é determinado por uma série de intenções. As intenções são as
expressões do “sujeito total”. (Cf. Mora, 2001, p. 2023).
88
2.3 Comunicação, aprendizagem interpessoal
Viver a experiência da comunicação é de fundamental importância para
a pessoa encarnada, pois esta se direciona aos outros e ao mundo. Mounier
lembra que na infância, a primeira experiência da criança se dá quando, ao sair
da vida vegetativa, ela descobre o outro, aprende com as atitudes de quem lhe
ensina, ou seja, vive a experiência primitiva da pessoa, que é a experiência da
segunda pessoa: “O tu e, adentro dele, o nós, precede o eu, ou pelo menos o
acompanha” (Mounier, 1950, p.38). Acentua-se que é pela natureza material
que a exclusão ocorre (dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço), mas,
na comunicação, é neste mesmo movimento que a pessoa se torna ser e se
expõe. Aí está sua natureza comunicável.
Sabe-se demasiadamente que o mundo do outro é bem diferente, mas
Mounier contesta o pensamento existencialista de Heidegger e Sartre em que:
A comunicação está envolvida pelo desejo de possuir e de submeter. Cada um
de nós é, necessariamente, ou um tirano, ou um escravo. O olhar dos outros
rouba o meu universo, a presença dos outros detém a minha liberdade, a sua
escolha paralisa-me. O amor é uma infecção mútua, um inferno (Ibid., p.35).
Recorre à história, que permite perceber que tal pensamento advém do
instinto de autodefesa, que surgiu com o individualismo ideológico burguês
ocidental do século XVIII e XIX, permitindo a formação de um homem abstrato
sem comunidades naturais, calculista, voltado somente para o lucro, reduzindo
os outros a meros espelhos; este seria o período mais pobre que a
humanidade conheceu, o que favoreceu, posteriormente, a realidade e ideia
existencialista.
A questão personalista é tornar frutífera a comunicação, “comunicação
como fato primitivo” descentrando o indivíduo, tornando-o disponível,
transparente a si próprio e ao outro. É, portanto, o personalismo abordado
como filosofia da segunda pessoa, “tu e “eu”, formando o “nós, uma
comunidade.
Nota-se que, quando a comunicação enfraquece ou se corrompe, a
pessoa se perde a si própria, e todas as loucuras “são uma falha nas relações
com os outros o alter torna-se alienus, torno-me também estranho a mim
89
próprio, alienado existo na medida em que existo para os outros, ou na
frase limite: ser é amar” (Mounier, 1950, p.39).
Daí ser a ética de inspiração personalista fundamentada em um esforço
constante, ininterrupto, de superação de si e do material, uma sucessiva
afirmação e negação de nós próprios. Ao tratar deste assunto, Mounier
enumera um conjunto de atos originais para a criação de uma sociedade de
pessoas:
1- Sair de nós própriosA pessoa é uma existência capaz de se libertar de si,
tornar-se aberta ao outro. Deve romper o invólucro, estilhaçar a proteção
moldada e acomodada do egocentrismo, narcisismo, descentrando-se,
invocando um encontro, ou seja, a ascese do despojamento é a ascese central
da vida pessoal, pois só liberta o mundo e os homens, aquele que já se
libertou.
2- Compreender Abrir-se à visão do outro, princípio de alteridade, de
acolhimento do outro.
3- Tomar sobre si a alegria, o sentimento e a angústia dos outros.
4- Doação A força do impulso pessoal não está na reivindicação
(individualismo pequeno burguês), nem na luta de morte (existencialismo), mas
na generosidade e no ato gratuito, na dádiva sem medida e sem esperança de
recompensa.
37
5- Fidelidade As dedicações pessoais, como amizade, amor, somente serão
perfeitas na continuidade, numa fidelidade criadora na aventura interpessoal,
numa contínua renovação, pois é assim que aumenta e confirma em nós o
nosso próprio ser.
Certamente existem muitas variantes, algo que foge ao esforço da
comunicação, um esforço de reciprocidade; “até a nossa existência é como que
inerente a uma opacidade irredutível, a uma indiscrição que é a barreira à livre
comunicação” (Ibid., p.42). Por isso, a nossa ausência, mas “o olhar do outro
não é apenas um olhar que fixa e enrijece como pretende Sartre: ele é
37
Convém observar que a generosidade (sublinhado no texto de Mounier) é a paixão e
virtude fundamental e central de Descartes, equivalente, de acordo com este, à
magnanimidade dos escolásticos. Cf. Tratado das paixões, art. 161. Ver: Tomás de Aquino,
Suma teológica, II-II, questões 129-133 (magnanimidade) e questões 134-135 (magnificência);
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro IV, cap. 2-4; R. A. Gauthier, La magnanimité: l’ideal de la
grandeur dans la philosohie painne et dans la théologie chrétienne. Paris: J. Vrin, 1951.
90
também o mais seguro revelador de mim mesmo” (Severino, 1983, p.83).
Para
Mounier, a pessoa cresce em contato com pessoas e somente se realiza
relacionando-se com os outros; seria impossível atingir a comunidade
esquivando-se da pessoa; na medida em que se torna constitutivamente
pessoa, poderá haver comunidade:
O nós segue o eu, ou, mais precisamente não poderia precedê-lo. O
contrário, isto é, a comunidade como anterior à pessoa, é uma aparência. O
nós orgânico, o nós realidade espiritual consecutiva ao eu, não nasce de um
apagamento das pessoas, mas de sua realização (Severino, 1983, p.85).
Aristóteles dizia ser o homem um animal racional, Teilhard complementa
que, além de racional, é reflexivo, ou seja, dotado de personalização.
38
Consequentemente, a comunicação é um elemento de uma ética de
responsabilidade, é o canal livre para qualquer entendimento entre seres
reflexivos, pois
A forma mais baixa que podemos conceber de um universo de homens é
aquela a que Heidegger chamou o mundo do man (a gente), mundo em que
nos deixamos aglomerar quando renunciamos a ser pessoas lúcidas e
responsáveis; mundo da consciência sonolenta, dos instintos anônimos, das
opiniões vagas, dos respeitos humanos, das relações mundanas, do diz que
diz cotidiano, do conformismo social ou político, da mediocridade moral, da
multidão, das massas anônimas, das organizações irresponsáveis. Mundo sem
vitalidade e desolado, onde cada pessoa renunciou provisoriamente a sê-lo,
para se transformar num qualquer, não interessa quem, de qualquer forma. O
mundo do man não constitui, nem um nós, nem um todo. Não está ligado a
esta ou aquela forma social, antes é em todas elas uma maneira de ser. O
primeiro ato de uma vida pessoal é a tomada de consciência dessa vida
anônima e a revolta contra a degradação que representa (Mounier, 1950,
p.45).
39
Lembremos que o Personalismo assim como o Movimento Esprit sempre
estiveram em permanente diálogo com várias correntes de pensamento e ação;
buscavam assim, através da comunicação entre pessoas, ampliar encontros e
debates com outros credos, ordens políticas, filosóficas, religiosas.
38
Cf. Teilhard de Chardin, O fenômeno humano, parte III (O pensamento), Cap. I-
(Nascimento do pensamento).
39
Na obra original encontramos o termo grifado: monde de l’On. Preferimos a expressão
alemã mundo do man. (Cf. nota n° 28).
91
Estudiosos definem o personalismo como sendo uma “Filosofia
Dialógica” (Lorenzon, 1996, p.42)
40
, em que o termo “adversário” passa a ter
uma conotação de pôr em evidências as minhas certezas, incertezas e
contradições, sendo o outro de extrema importância para que sua inteligência
não fique estagnada na introversão intelectual ou nas ideias fixas. Assim, o
pensamento dialógico, possui dois momentos: o primeiro é o da oposição. Por
duvidar com maior ou menor intensidade, dependendo da realidade, este ato
libera o homem para a busca da verdade, questionando as forças que o fazem
jazer no imobilismo e no conformismo. O segundo momento do pensamento
dialógico é o da comunicação ou da expansão, ou seja, o amor à verdade; não
uma simples confrontação, mas um compromisso em que as respostas se
refletem na ação transformadora, para a pessoa e a comunidade.
Diante de sua época, retornando ao mundo man, Mounier aponta que
jamais houve tantas “sociedades vitais”
41
e menos comunidades (comum-
unidades), pois, o se trata de agrupar pessoas, é preciso ver que existe a
pessoa, não uma despersonalização para a massa, um mundo da indiferença,
composto de anônimos, como se disse acima (Cf. p.86-87). Chega a dizer que
há momentos em que a “sociedade vital” antepara-se com uma “sociedade-em-
nós”
42
, como o nós proletários, nós jovens, nós-outros. Enfim, são mostras de
que a indiferença mutila, e, infelizmente, muitas pessoas também caem
novamente na despersonalização.
Tentou-se edificar uma sociedade racional no século XVIII, com apoio
dos juristas e filósofos. Primeiro, através da instrução obrigatória, da
organização industrial e pelo direito, procurando-se fundar uma sociedade
jurídica por contrato, baseada na convenção e na associação. Pensava-se,
40
Veja o artigo (Lorenzon, 1996, p.35-46), “O diálogo”, adaptado do capítulo 11, primeira
parte, da tese de doutorado em Filosofia, intitulada Personne et communauté; essai sur
l’oeuvre d’Emmanuel Mounier. Paris: Université de Paris-X, 1972. 385p.
41
Moix (1968, p.151) diz: “Mas o que é uma sociedade vital? Chamaremos de sociedade
vital toda a sociedade cujo laço se constitui do fato de viver em comum certo fluxo vital, a um
tempo biológico e humano, e de se organizar para vivê-lo da melhor maneira possível. São, em
suma, as associações de interesse em que as funções se distribuem, individualizam, mas não
personalizam, onde os indivíduos são permutáveis sendo assim a sociedade econômica.
Muitos casais, muitas famílias, são meras associações, e não verdadeiras comunidades
espirituais. – Seria falso acreditar que a organização sabiamente estudada das estruturas
econômicas e políticas basta para criar uma comunidade”.
42
Prosseguindo com Moix (1968, p.151): “O melhor exemplo das sociedades-em-nós é
dado pelo fascismo. É significativo que nasçam habitualmente nas democracias em que a
despersonalização atingiu um estágio avançado”.
92
assim, fundar uma sociedade em que houvesse acordo dos espíritos, baseado
em um pensamento impessoal, e acordo dos comportamentos, baseado numa
ordem jurídica formal. Tudo foi por terra, a paz desejada não vingou, o solo
pareceu estéril:
A experiência iria demonstrar que o saber não agita paixões, que o direito
formal pode sufocar desordens persistentes, que a organização e a ideologia,
quando desprezam o absoluto pessoal, levam, tal como as paixões, à polícia, à
crueldade e à guerra. Numa palavra, que não se pode estabelecer a
universalidade esquecendo a pessoa (Mounier, 1950, p.46).
Trata-se da “descoberta do outro”: “A aprendizagem da comunidade é,
pois, a aprendizagem do próximo como pessoa em sua relação com a minha
pessoa, o que se chamou de modo feliz, aprendizado do tu” (Severino, 1983,
p.85).
43
Lima Vaz, em “Nota histórica sobre o problema filosófico do outro”,
aponta que “é o pensamento de Emmanuel Mounier que dá a verdadeira
dimensão ao personalismo francês” (2001, p.209). Lima Vaz escolhe vários
textos mais significativos de Mounier a respeito do problema do outro e
identifica-os em nota de rodapé que, sem sombra de dúvida, foram depois
utilizados em sua antropologia filosófica referente à categoria da pessoa (Cf.
Ibid., 240).
Severino reforça a recomendação de Mounier para que o personalismo
não seja tratado com ligeireza e, portanto, visto de forma equivocada, como
um avatar do individualismo, pois, se o nós é anterior ao eu, se a vida pessoal
não é volta sobre si, mas movimento para e com o outro, para e sobre o mundo
natural, para um acima e um além do adquirido, o fundamentalmente como é
recolhimento e interioridade, o Personalismo situa-se nos antípodas do
narcisismo, do individualismo, do culto egocêntrico (1983, p.89).
Em suma, para o personalismo a comunicação é o elo vital da
humanização, da relação entre nós, da comunidade, de uma aprendizagem do
próximo como pessoa, ou seja, a aprendizagem do tu.
43
Permitimo-nos apropriar do título do conhecido livro de CORÇÃO, Gustavo. A
descoberta do outro. 5 ed., Rio de Janeiro: Agir, 1955.
93
2.4 Recolhimento como meio de exteriorização
Nas palavras de Mounier, se a pessoa é movimento para o outro, a
interiorização, o recolhimento, a conversão íntima é o seu complemento. A
pessoa é recolhimento e, ao mesmo tempo, acolhimento: é uma correlação
comunicativa interior. o se trata de um movimento fugidio, mas de uma
busca pelo silêncio e retiro, uma organização de si mesmo, pois as distrações
da atual civilização “destroem o sentido do tempo livre, o gosto pelo tempo que
corre, a paciência da obra que amadurece e vão dispersando as vozes
interiores que, dentro de pouco tempo, apenas o poeta e o homem religioso
escutarão” (Mounier, 1950, p.52).
Diante da diversidade, da multiplicidade dos eventos, o homem passa a
não possuir sua própria vida; vive a dos sistemas, como um autômato, regido
pelas ideologias ou dogmas e se perde por entre as turbas:
O homem do divertimento vive como que expulso de si, confundido com o
tumulto exterior: assim o homem prisioneiro de seus apetites, de suas funções,
de seus hábitos, de suas relações, de um mundo que o distrai. Vida imediata,
sem memória, sem projetos, sem domínio, que é a própria definição de
exterioridade, ou, à escala humana, de vulgaridade. A vida pessoal começa
com a capacidade de romper contatos com o meio, de retomar, de
reaperceber... (Ibid., p.52)
44
O recolhimento (le sur soi) vem a ser retomar, re-aperceber; daí a
necessidade de um movimento para a meditação, de um aprofundamento
pessoal para concentrar todas as forças, com o objetivo de estabelecer o seu
centro unificador, as energias espirituais da pessoa. No recolhimento, a pessoa
pode assumir a postura silenciosa do retiro através do segredo (len soi),
reserva pessoal que deve ser respeitada, mas que também possui seus limites.
O recolhimento não abarca somente as ruminações e segredos, pois um ato
lhe dá início e um ato o conclui. Assim, é preciso também sair da interioridade
para sustentar e nutrir a interioridade; “É a própria estrutura da vida pessoal
que a isso nos obriga: a reflexão não é somente um olhar interior lançado sobre
44
Para Mounier, este homem expulso de si, apresenta-se no aspecto de uma demissão,
como o divertissement de Pascal, o estágio estético de Kierkegaard, a vida inautêntica de
Heidegger, a alienação de Marx ou a má-fé de Sartre.
94
mim e minhas imagens; é também intenção, projeto de s próprios” (Mounier,
1950, p.55,56).
A discrição de certos segredos é salutar, pois a reserva é manifestação
de respeito da pessoa à sua vida pessoal, ou seja, a intimidade (le privé). Ora,
pessoas que se exibem não percebem a densidade do segredo e logo se
esvaziam. Mesmo na comunicação, esta não ocorre completamente de forma
direta, mas através de meios indiretos como o humor, a ironia, o mito, os
símbolos, dentre outros (Ibid., p.53,54).
Estas formas de comunicação, para
Mounier, se abrigam no não inventariável, que se liga a certo segredo, uma
espécie de pudor contraditório.
No personalismo, a temática sobre o pudor possui grande importância:
“O pudor é o sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas
expressões, nem ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria sua
existência, uma vez que esta se manifestasse totalmente” (Ibid., p.54).
Para o personalista, entre a vida privada e a vida blica um marco
onde se estabelece a paz das profundidades, a intimidade comunicada; lá onde
se encontra o pudor que resguarda a pessoa, significando que ela é muito mais
do que o próprio sentimento e corpo analisado. Ao passo que, a vulgaridade
oferece aparência imediata, quando exibida aos olhares públicos. É preciso, no
entanto, destruir os falsos pudores e um sentido mórbido do segredo. É na
intimidade (o privado), no recolhimento, que se pode encontrar uma espécie de
plenitude, um encontro com as fontes interiores. Mas, todo cuidado deve ser
tomado para não se entorpecer neste retiro, preferindo uma vida vegetativa,
fechada, protegida, uma prática burguesa da vida privada com seus pseudo-
segredos (dos negócios, da casa etc.). Mounier alerta para não se pensar
como puros espíritos, devendo ficar vigilantes para que a paz vegetal não
abafe a espiritual, tornando a vida fechada e exclusiva, quando o pudor vira
excessiva prudência e se degrada. Os regimes totalitários basearam-se nesta
degradação para eliminar de modo radical a esfera do privado. Talvez temam,
não apenas as deturpações do privado, mas, sobretudo, seus verdadeiros e
profundos recursos (Ibid., p.55).
A abertura para a intimidade exige do homem uma sucessiva afirmação
e negação de si mesmo, uma angústia essencial, ligada à existência pessoal e
95
ao mistério da liberdade. Para tal, torna-se necessário um movimento
constante de apropriação e desapropriação, negação e afirmação de si mesmo.
É pelo desapego que o homem se permite realizar a verdadeira comunhão. Eis
a distinção central entre o “ter” e o “ser” para Mounier:
Não é possível ser sem ter, embora nosso ser seja infinita capacidade de ter,
jamais esgotável pelo que tem e ultrapasse em muito o ter pelo seu significado.
Sem ter a existência não se afirma, perde-se nos objetos. Além do mais,
possuir é entrar em contato, renunciar à solidão, à passividade: há falsas
pobrezas que não são mais do que escapatórias. O idealismo moral é muitas
vezes a procura de uma existência que nada mais pesaria: existência contra a
natureza, que leva à falha ou à inumanidade (Mounier, 1950, p.57):
Nesta ótica, a propriedade, assim como a intimidade, é exigência
concreta da pessoa. Não deve ser excluída desta individualidade das pessoas,
pois o “ter” é atitude do espírito e seria utópico excluir o sentido da propriedade.
O maior complicador é o problema da possessão humana que tende à
alienação, à degradação do ser nos objetos, à submissão, exaltando a posse,
como se ela fosse por si própria a libertação. Por isso, os problemas das
responsabilidades éticas frente à utilização dos bens. Usufruir da propriedade é
um direito humano, exigência do ser temporal e espiritual. Mas no regime de
bens proposto pela sociedade burguesa, “... não há somente uma alienação
histórica contingente (...). no centro de toda possessão humana uma
alienação do trabalho sempre renovada” (Ibid., p.58). O mal da posse e da
propriedade se manifesta quando o comportamento possessivo reverte em
anomalias psíquicas, éticas, sociais, que derivam em crimes, guerras e outras
infelicidades.
É aí, que se encontra a grande superação, a conversão, onde a
“dialética personalista do ter é menos triunfante, pois se deve originar de uma
entropia ou de uma involução do “ter”. O desenvolvimento humano implica um
despojamento de seus bens e de si, e consequentemente se despolariza do
egocentrismo.
Enfim, Mounier salienta que a vida interior mantém no homem certo
“segredo”, sua “intimidade”, uma personalidade. Ao contrário, os que se
exibem, não passam de um livro aberto que logo se esgota. O recolhimento
não é demissão do mundo, nem uma paz vegetativa. Interioridade e
96
exterioridade são movimentos essenciais da existência pessoal, do homem
total: espiritual e carnal. Ser é expandir-se: “É preciso que não desprezemos
tanto a vida exterior: sem ela, a vida interior tornar-se-ia incoerente, tal como,
sem vida interior, aquela não seria mais que delírio” (Mounier, 1950, p.62).
2.5 Afrontamento e sua dinâmica
A palavra grega que foi traduzida por pessoa é o termo prósopon”, olhar
para frente e afrontar. A conversão pela interioridade e a luta pela exterioridade
faz a pessoa preparar-se para uma existência autêntica. Mounier gostava muito
da palavra “afrontamento” e não queria que se colocasse sob ela qualquer
conteúdo, pois o afrontamento da pessoa não se confunde com sua
singularidade. Suas palavras são recordadas (Mounier, apud Moix, 1968,
p.163): “Se é verdade que toda pessoa é única, não se deduz que a
originalidade é marcada por excelência. - somos típicos na medida em que
nos falta ser plenamente pessoais”.
A originalidade aparece como forma secundária ou um subproduto da
vida pessoal; o que caracteriza o cume da existência pessoal são antes, as
virtudes da pessoa despojada de glória e afetação. Mounier cita alguns
exemplos, como: o herói no auge da batalha; o amante que se entrega; o
criador em êxtase diante da sua obra e o santo no encontro com Deus. Estas
pessoas vivem momentos em que, ao atingirem a plenitude da vida pessoal,
não se diferenciam, nem se singularizam. Também, não estão voltadas para
essa, ou outras formas de ação, estão lançadas integralmente para fora de si
próprias, totalmente entregues ao que são para pensar como são (Mounier,
1950, p.64).
Não devemos pensar que tais pessoas são exceções. Como disse
Kierkegaard: “O homem verdadeiramente fora do comum é o homem
verdadeiramente comum”, e Mounier afirma que o personalismo não é uma
“ética dos grandes homens”, nem tampouco de uma aristocracia, dos
prestigiosos sucessos psicológicos e espirituais, característica dos altivos
chefes à moda Nietzsche. A pessoa é existir, aceitar, dizer sim, mas muitas
97
vezes é dizer não, protestar, desligar-se, é romper. São as reviravoltas,
exigências essenciais da vida pessoal, existência e ação, uma constante
tensão entre o sim e o não, compromisso (engagement)
45
e descompromisso
uma “difícil presença no mundo”.
A recusa significa opor-se a algo; fazer oposição é ter ciência da
responsabilidade, é também fazer uso da força, não da força bruta, do poder,
da agressividade, mas da força tal como a moral cristã a viu, força humana
interior e espiritual que se manifestou como em Gandhi:
Onde só nos resta escolher entre a covardia e a violência, aconselharei a
violência... Se amamos a paz só pelo simples medo das baionetas, prefiro que
nos degolemos mutuamente entre nós mesmos. Prefiro ainda ver a violência
exteriorizar-se a vê-la refreada pelo medo (Mounier, apud Moix, 1968,
p.117).
Mounier (1950, p.67) complementa as palavras do apóstolo moderno da
não violência, “O amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é
luta contra a inércia material e o sono vital. A pessoa toma consciência de si
própria, não no êxtase, mas em uma luta de força. A força é um dos seus
principais atributos.” Denunciou os erros do “pacifismo dos fracos”, pediu para
que não fugissem da força, mas impedissem a violência. Tratava-se de uma
revolta contra a domesticação, a opressão, o aviltamento humano, a
depreciação dos direitos inalienáveis da pessoa.
A força do personalismo, ao afrontar a sua época, denunciou várias
formas de tirania, e em tal momento, diante das atrocidades, era necessário
romper, defender a dignidade, e, se preciso fosse, com a própria vida, pois:
“... o protesto e a recusa não são valores supremos da pessoa. São atitudes e
gestos necessários para a saúde da vida pessoal e coletiva” (Lorenzon, 1996,
p.56).
45
Mounier foi o primeiro a empregar o termo na França. Tal palavra provém de Scheler e
Jasper. Segundo Candide de Moix, muitos acreditam que a própria exigência do engajamento e
a própria palavra advenham do pós-guerra, mais precisamente, através da equipe
existencialista de Temps Modernes. Mas Moix retifica e conclui que foi através da revista e do
movimento Esprit, principalmente a partir de 1936, que a palavra engajamento foi
extensamente empregada na França. Daí sua imensa repercussão (Cf. Moix, 1968, p.191).
Bom lembrar, que Sartre fica conhecido pelo seu engajamento (combate social e político), mais
tardio que se imagina. A revista Les Temps Modernes foi fundada em 1945, enquanto que a
Esprit, de Mounier, em 1932.
98
Em suma, ser é amar, é recusar, mas também é afirmar-se. Mounier
recorre a Bernanos, que fala do homem que tem a capacidade de impor a “si
próprio uma disciplina, mas que não a aceita cegamente de ninguém”. Pessoa
de testemunho vivo, “que se ou se recusa, mas que nunca e a nada se
presta”. Espécie rara de homem acrescenta Mounier (1950, p.71), pois a
grande maioria dos homens “prefere a escravidão na segurança, ao risco na
independência, a vida material e vegetativa à aventura humana”. Por isso, a
recusa da domesticação e da opressão é uma dimensão da pessoa, “seu
último recurso quando o mundo se levanta contra o seu reino” (Ibid., p.71).
2.6 Liberdade com condições
A liberdade é outra dimensão essencial da pessoa. Segundo Mounier,
liberais, marxistas, existencialistas e cristãos a colocam no centro de suas
perspectivas. Como suas concepções a respeito são discordantes, resultou daí,
uma grande confusão, pelo fato de se separar a liberdade da estrutura total da
pessoa. Ora, “a liberdade é afirmação da pessoa, vive-se, o se vê” (Mounier,
1950, p.72). A liberdade não é uma coisa. Ela não se prova como prova um
teorema. O homem tenta conhecê-la, enquadrando-a como ausência de causa
ou lacuna no determinismo. O que temos então? Para Mounier, seriam formas
mal definidas de liberdade, como indiferença e indeterminismo. A indiferença é
a liberdade de nada ser, de nada fazer ou desejar. É o não se comprometer, o
não afrontar, que é pura negação de si. A outra é o indeterminismo dos físicos
modernos, que desconstrói apenas as pretensões positivistas: “A liberdade não
se ganha contra os determinismos naturais, conquista-se por cima deles, mas
com eles” (Ibid., p.73).
O avanço da ciência moderna ampliou os conhecimentos de tal forma,
que se tentou também identificar a liberdade. No próprio nível da natureza,
Mounier salienta que o indeterminismo das partículas não é a liberdade, mas
tal fenômeno propõe uma estrutura não rígida do mundo, o que pode ser
considerado uma das condições da liberdade. A molécula viva não é também a
liberdade, mas tal acumulação de energia pode ser tida como orientada para
multiplicar possibilidades e preparar centros de escolha. A autonomia
99
psicológica que permite ao indivíduo animal regular sua nutrição, temperatura,
locomoção e permutas com o ambiente e outros indivíduos não é ainda a
liberdade. Prepara, porém, a autonomia corporal que serve de base à
autonomia espiritual da liberdade (Mounier, 1950, p.73-74).
a pessoa, esta se faz livre a partir do momento em que se propõe ser
livre; a liberdade não é constituída, é operada, supõe coragem e combate
permanente. No mundo das forças naturais, cabe à pessoa, somente a ela,
reconhecer os aliados da liberdade e comprometer-se em ser livre, porque,
“Em parte nenhuma encontrará a liberdade dada e constituída. Nada no mundo
lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da
liberdade” (Ibid., p.74).
46
É preciso, portanto, compreendê-la como conquista, pois não se trata de
manifestação espontânea, não é uma coisa dada de uma vez; ela é renovada,
autocriadora, manifestação original. Trata-se de uma autoconsciência, principal
causa eficiente da personalidade (Copleston, 1959, p.163-194). Entretanto, não
quer dizer sem limites à moda dos liberais puros e alguns existencialistas, bem
como, alguns cristãos que acreditam que “Deus se basta a si mesmo porque
Deus é o Ser” e ignoram a condição humana. Para esta, “liberdade absoluta é
uma farsa”, conclui Mounier. Porque o somos somente o que fazemos e
tampouco, somente o que queremos; existem condições e limites. Absoluta, a
liberdade humana seria amorfa, lançando o indivíduo em movimentos de
revolta, delírio e desumanidade, pois se sentiria condenado a sua própria
liberdade, absurda e ilimitada; liberdade sem objetivo, puro ímpeto.
A liberdade de que fala Mounier é a verdade viva do ser; não num ato
rebelde de espontaneidade, mas da pessoa situada, aquela que constitui a si
mesma, no mundo e perante os valores. Ser livre é então em primeiro lugar
aceitar sua condição e a partir dela, avançar. Nem tudo é possível em todos os
momentos, pois a liberdade, tal como o corpo, cresce com os obstáculos,
opções e sacrifícios. Na visão de Mounier, a ideia de gratuidade é uma ideia de
existência rica e, em certa condição, profundamente insuportável. A liberdade é
46
Seria interessante aproximar esta visão de liberdade, passando pelas etapas do
indeterminismo físico e da autonomia animal, do processo de interiorização da geração descrita
por Tomás de Aquino na Suma contra os gentios, Livro IV, cap. 9. Ver também os graus de
independência de ação das formas (Suma teológica, I, q.76, a.1).
100
mais do que dizia Marx: “a consciência de uma necessidade”. É um princípio,
porque a consciência é promessa e iniciativa de libertação. Aquele que não
enxerga a sua escravidão é escravo, mesmo permanecendo feliz na sua
condição (Mounier, 1950, p.77). Condição indigna. Portanto, o basta,
inscrever a liberdade nas constituições ou elogiá-la em discursos inflamados. É
preciso assegurar as condições comuns de liberdade, isto é, as liberdades
biológicas, econômicas, sociais, políticas. Num sentido histórico, estas
liberdades oscilam: as liberdades de ontem são abaladas pela liberdade de
amanhã, como as da nobreza foram abaladas pelas da burguesia; as desta
pelas populares. A liberdade de todos pode comprometer a de alguns.
Declarações, estatutos e outras diretrizes legais são necessários para
salvaguardar as condições comuns de liberdade acima mencionadas. No
entanto, infelizmente, sua generalidade inevitável pode encobrir justamente a
liberdade (os interesses) de alguns.
A liberdade, para Mounier, não é somente manifestação de
espontaneidade, ela é invocação. Não somos livres porque exercemos apenas
a espontaneidade. Seremos livres se esta espontaneidade tiver o sentido de
uma libertação, de uma personalização do mundo e de mim próprio. A evasão
do espírito desvia das tarefas árduas, mas, diante das vicissitudes, dos
problemas que se supõem serem fatalidades, o homem corre o risco de
“vender sua liberdade por um mínimo de segurança, não é menos urgente
denunciarmos o espírito de escravidão e suas forças escondidas” (Ibid., p.80).
A irrefletida aceitação dos sistemas pode conferir apenas passividade, o
conforto, tornando as massas dóceis e desorientadas. É por isso que Mounier
contesta o gosto passivo da autoridade e a cega adesão às diretrizes dos
partidos, o que ele nomeia de “indiferença dócil das massas desorientadas”.
Urge, portanto, despertar:
A liberdade é operária, mas é também divina. (...) É verdade que a liberdade
não deve fazer esquecer as liberdades. Mas, quando os homens não sonham
mais com catedrais, o sabem mais construir belas mansardas. Quando
perdem a paixão da liberdade, não sabem edificar liberdades. Não se a
liberdade aos homens, do exterior, com facilidades de vida ou com
constituições; adormecem nas suas liberdades e acordam escravos (Ibid.,
p.80).
101
Portanto, as liberdades nada mais são que possibilidades conferidas ao
espírito de liberdade, que têm por finalidade destruir minhas alienações, pelas
quais eu me torno objeto em certas situações, quando entregue às forças
impessoais (Mounier, 1950, p.80). Situações estas que o marxismo expôs em
boa parte. Resta acrescentar algo que lhe escapa inteiramente: a condição
humana ao aspirar à autonomia, está sempre colocada frente às sujeições de
onde provém uma alienação difusa irredutível. Notamos que mesmo as
alienações determinadas e históricas, que se mantêm por tempo determinado,
se caem por terra, surgem outras e novas batalhas principiam pela liberdade.
Para Kierkegaard, cada fase deste combate é marcada pelo que ele
chama de o “batismo da escolha”. Esta aparece primeiramente como opção
daquele que opta, por isto ou aquilo, e ao fazê-lo se edifica. Mas, deve-se
tomar cuidado com a miopia filosófica, quando esta desvia o centro de
gravidade da liberdade, ou seja, opta pela opção. Concentra-se então a
liberdade somente sobre o poder de opção; a consequência é fazer com que a
liberdade venha a perder o seu ímpeto. Por falta de energia, até a própria
opção pode esgotar-se. Para Mounier, este é o mal espiritual da inteligência
contemporânea. Acentua-se, assim, exclusivamente a conquista da autonomia
o que pode tornar o homem crispado sobre si mesmo, isto é, “opaco e
indisponível” (Ibid., p.82).
Liberdade é responsabilidade, é devoção, ela unifica. Através dela é que
o homem se situa, sendo interrogado pelo mundo e responde, personalizando-
se. Na acepção da palavra, liberdade é o religar entre condição e pessoa, entre
pessoa e humanidade.
102
2.7 Compromisso, exigência da ação
Liberdade supõe ação; a existência é ação, portanto o compromisso é o
capítulo central do personalismo.
47
As estruturas anteriormente apresentadas
constituem a totalidade ontológica da vida pessoal, não podendo seguir um
curso fragmentário. É pela ação que modificamos, que enriquecemos nosso
universo de valores. Não se trata de impulso utilitário, pois a ação abarca a
pessoa na sua integridade. O compromisso é a essência da vida pessoal,
responsabilidade que oscila entre a repetição ética e o mistério religioso, entre
o tempo e a eternidade, estando no mundo, nunca sendo plenamente do
mundo (Mounier,1962, t.III, p.186).
Mounier está alerta ao denunciar o que chama de “desvios da ação”.
48
Uns se deixam guiar pelas diretrizes do determinismo absoluto; uma negação
da ação, que abafa a liberdade. Ele descreve que o marxismo compreendeu a
tempo o perigo que implicava a ambiguidade de seu materialismo, assumindo
assim, a responsabilidade de todos os recursos da práxis (1950, p.103). Outros
acreditam na fatalidade, donde a necessidade de se adaptar: “Uma concepção
praticamente fatalista do sentido da história ou do progresso justificaria todos
os conformismos atuais” (Ibid., p.103). Todos os partidos sofrem de uma crise
de incertezas sobre a relação entre a objetividade e a responsabilidade
pessoal, ou seja, sobre a relação da estratégia e do militante. Frente a estas
demissões, há, pois, urgência em restituir o sentido da pessoa responsável,
confiante de si própria.
Recorde-se também que a pessoa não é isolada. Quando reunidas e
unidas as pessoas, multiplicam-se as consciências, personalizando e
47
Mounier declara que o personalismo deve muito a Maurice Blondel (1861-1949), à sua
extensa elaboração de ideias sobre a filosofia da ação e práxis (Cf. Mounier, 1950, p.102).
48
Mounier afirma que em sua época, algumas correntes de pensamento espiritualista e
materialista ainda continham certa repugnância quanto à introdução da ação no pensamento e
na mais alta vida espiritual (Cf. Mounier, 1950, p.102). João de Scantimburgo, em sua obra
sobre a filosofia blondeliana, escreve que Blondel, ao elaborar a tese sobre a ão, sabia que
iria enfrentar preconceitos, indiferenças e relutâncias. Sendo ele original, “inovou no que já fora
meditado séculos. A valorização da ação era um conceito inadmitido na filosofia do século
XIX, ao menos no sentido estudado pelo filósofo, ou seja, demonstrando-se que ação e
contemplação se completam. Ao mesmo tempo, uma iluminação interior nos aproxima do
mistério que somos nós, os seres humanos, marcados com um destino e um sentido de vida”
(Scantimburgo,1995, p.147).
103
assegurando à quantidade o sentido humano, com uma referência: a
cooperação das liberdades e das qualidades que controla os delírios e as
mistificações, que se separados, indubitavelmente arrastam o indivíduo (Cf.
Mounier, 1950, p.103).
A ação terá validade, ou sentido, se imbuída de uma consciência
amadurecida de sua época e do drama integral desta, num refletir sobre o seu
compromisso pessoal a partir da historicidade da existência humana.
Paul-Louis Landsberg
49
, em seu relatório apresentado ao congresso de
Esprit de 26 de julho de 1938, intitulado O sentido da ação, desenvolve a
temática mostrando o valor e o sentido do compromisso (engagement).
Inevitavelmente, muitas das vezes a pessoa tem que agir moralmente e quase
que fisicamente, mesmo parecendo ser inadmissível do ponto de vista das
doutrinas dos ideais de perfeição e pureza. Em sua análise aponta que muitas
doutrinas tornam-se cristalizadas opondo-se ao “dever vívido da solidariedade
humana” e aos verdadeiros valores “das probabilidades de vitória ou derrota da
ação”.
Landsberg numa alusão à ação, ao agir, utiliza uma passagem retirada
dos versos do Bhagavad Gita, quando Arjuna, o grande guerreiro, pede a seu
escudeiro para que o leve ao campo, onde seu exército e o adversário
encontravam-se prontos para um grande combate. Sua estratégia tinha por
finalidade medir suas forças e as do inimigo. Assim que viu os dois lados, seu
coração tremeu, pois ambos os exércitos continham pessoas de sua família,
tios, primos, irmãos, sobrinhos e amigos. Neste momento crítico, seu espírito
foi apossado pela dúvida, pelo desânimo e, indeciso, não sabia se deveria
começar a batalha de Kurukshetra, nem sabia qual seria sua dharma (conduta
correta). O escudeiro, diante da imensa angústia de Arjuna, transmite-lhe
coragem, naquela que seria considerada a maior batalha da Índia. Tais
49
Amigo de Emmanuel Mounier, Paul-Louis Landsberg (1901-1944) foi um filósofo
[personalista] alemão que, como muitos opositores do nazismo, deixou seu país. Em 1933, foi
para a Espanha onde ensinou filosofia na Universidade de Barcelona. Também deixou este
país, expulso em 1936, quando eclodiu a guerra civil. Foi para a França e, por intermédio de
Pierre Klossowski, conheceu alguns membros do comitê da Esprit, entre eles estavam Jean
Lacroix e Emmanuel Mounier. Landsberg foi discípulo de Max Scheler. Influenciou
existencialistas e principalmente personalistas no que se refere à teoria do compromisso
(engajamento) e seus valores (Cf. Esprit, 2002, p. 12). Sua vida foi prematuramente
interrompida no campo de deportação de Orianenburgo (Cf. Mounier, 1947, p.10).
104
palavras receberam o nome de Bhagavad Gita (Canção do Bem-Aventurado
Senhor), pois, seu escudeiro era o deus Krishna que estava disfarçado e disse:
Aja, levante-se para a batalha, não busque refúgio na inação. Ninguém pode
ficar um instante inativo; cumpra o ato prescrito; a ação vale mais que a
inação; a vida orgânica cessaria se você o agisse; nenhum ser corpóreo
pode abster-se completamente da ação (Apud Landsberg,1968, p.84).
Estas exortações, não tratam de questionar a santidade buscada pelo
eremita na União mística com o Todo, numa anulação progressiva da vida,
numa nulidade da individualidade, da coletividade, de seu ser corpóreo e de
toda entrega à ação. O que se pretende é mostrar que a corporeidade
comporta a ação, e esta a impureza, pois o crime aparente pode ser um dever.
Então, o cavaleiro deve aceitar e mesmo escolher as consequências, saber o
que se é, pois hesitar é não realizar nada, é preciso tomar decisão (Karma)
50
.
Os problemas existenciais nascem com as crises humanas. Em
especial, Landsberg refere-se aos do cristão, no confronto entre a aspiração da
pessoa por um ideal religioso de “absoluta pureza do ser” e o engajamento no
mundo histórico social que o rodeia:
O homem quer salvar sua alma; quer enfrentar a morte e o juízo final livre de
todo o pecado; mas, ao mesmo tempo, não pode esquecer que Deus o situou
dentro de uma comunidade e o fez nascer num instante definido do tempo
histórico (Landsberg,1968, p.85).
Cabe ao homem, somente a ele, inserido em seu tempo e lugar, optar no
conflito entre a vontade pessoal de valor e o egoísmo individual ou coletivo,
bem como, na situação de escolha entre a salvação e o egoísmo:
Encontrar a medida exata do dever do agir e o ponto preciso em que o
sacrifício da integridade pessoal se transforma em pecado contra a própria
salvação do homem, é isto que tem importância para o cristão. Para ele o
conflito entre a pureza moral e as condições de uma ação pode assumir o
aspecto de uma crise radicalmente séria e aparentemente insolúvel (Ibid., p.86,
87).
50
Em sânscrito, Karma significa trabalho, ação e compromisso. Podemos dizer
responsabilidade e engajamento. Em muitas das vezes é confundida com uma lei física de
simples causa e efeito conforme conceitos da lei da inércia. No Bhagavad Gita, por todo o
poema é notório que as exortações a Arjuna, tratam da necessidade de se livrar do egoísmo e
ater-se ao compromisso humano. Isto, através das ões conscientes, voltadas à humanidade,
permanecendo sempre ligado ao absoluto, ao supremo Krishna.
105
Para Mounier, o cristão diante de sua responsabilidade, deve afrontar,
comprometer-se (engajar-se) e jamais recuar; do contrário, trata-se de uma boa
consciência do fariseu que demarca e marca, com sua demissão, as fronteiras
entre o humano e desumano. Para ele, não engajamento verdadeiro sem a
referência do absoluto, pois o homem está além de sua própria ação.
Considerou que, em sua geração, era esta a maior vocação.
Por outra ótica, quando se fala em ação, em primeiro lugar, nos vem a
ideia exclusivamente política. Importa saber, que o movimento Esprit não se
voltava diretamente para este polo. Seu fundador salientava que o
engajamento é comprometimento e envolvimento, portanto, valoriza a presença
histórica e direciona as luzes sobre as estruturas de toda existência humana; o
personalismo traz, mesmo para a análise política, uma contribuição direta às
exigências humanas (Moix, 1968, p.177).
O que se espera dessa ação? Dirá o pensamento personalista: que
modifique a realidade exterior, que ela nos forme (nos modifique), que nos
aproxime dos homens, enriquecendo nosso universo de valores. Esclarece
quatro formas ou dimensões da ação, que se tornam exigências.
1) Fazer (poiein); a ação tem como fim, dominar e organizar a matéria
exterior e será chamada de Econômica: Ação do homem sobre as coisas,
ação do homem sobre o homem no plano das forças naturais ou produtivas,
até mesmo em matéria de cultura ou religião; por ela o homem desmonta,
ilumina ou gerencia determinismos” (Mounier,1950, p.105). É a ciência aplicada
aos negócios humanos, é a indústria em sentido amplo, é a produção e
organização de modo geral, tendo como fim a eficácia. Mas, somente a
utilidade, fabricação e organização não esgotam as necessidades humanas,
como as de dignidade e fraternidade. A economia não responde à totalidade
dos problemas de ordem humana; tem de fazer apelo à esfera política e esta
se insere na ética. Assim, caberia à política unir o rigor da ética ao da técnica.
É neste nível que ocorre a “personalização do econômico e a instituciona-
lização do pessoal”. Qualquer apoliticismo que fuja desta área vital da ação,
quer a pura técnica, quer a pura meditação voltada somente para o interior, não
passará de uma deserção espiritual (Ibid., p.106).
106
2) Agir (prassein); sua finalidade principal, não é a construção de uma
obra exterior, mas a formação de quem executa, através de sua capacidade,
suas virtudes, ou seja, sua unidade pessoal. Daí ser uma dimensão da ação
ética voltada para a autenticidade; tema muito aludido pelos existencialistas.
Numa ordem econômica, cabe à ação ética fundar suas raízes, porque
as relações humanas jamais se reduzem às questões puramente técnicas.
Mesmo os meios materiais, em interação com o homem, tornam-se meios
humanos. Ou seja, os meios materiais transformados modificam também os
homens num mesmo processo. Mas, se os que agem se aviltam, os resultados
poderão ser comprometidos. Por isso, a ética duma revolução ou regime é, do
ponto de vista dos seus resultados, tão importante quanto os cálculos de força.
Para Mounier, a cnica e a ética são “... os dois polos da inseparável
cooperação da presença e da operação de um ser que não age senão em
proporção com o que é, e que não é senão na medida em que se faz”
(Mounier,1950, p.107).
3) Contemplar (teorein) está intimamente ligado ao homem integral,
tendo um fim que se reveste de perfeição e universalidade, através de uma
obra “finita e ação singular”. Embora possuindo como principal preocupação a
experiência de valores, a “ação contemplativa” pode ser conservada como
tradução clássica do grego teorein, contanto que não seja tida apenas como
obra da inteligência, mas do homem inteiro. Seu fim, sendo a perfeição e
universalidade, pode atuar no que é de caráter prático, exercer uma ação do
tipo profético; esta seria ligação entre o contemplativo e o prático (ético +
econômico). Cabe-lhe o testemunho (polo profético), que atinge sua meta, pela
palavra, pela escrita ou atos, quando se perde o sentido do absoluto pelo peso
dos compromissos. Muitas pessoas ultrapassam o testemunho pela palavra
(escrita ou falada) e passam ao ato e até se tornam executantes. Destacam-se,
neste sentido, Abraão pela sua e obediência; Gandhi, pelas greves de fome
como protesto; Joana d’Arc, que começa dando testemunho de suas vozes e
depois assume o comando dos exércitos. São estas pessoas que pressionam
determinadas situações, não fazendo cálculos à maneira técnica, pois sua
atitude provém antes de tudo da na eficácia transcendente do absoluto;
ultrapassam, portanto, tudo, sendo elas próprias a força viva da humanidade.
107
4) Dimensão coletiva da ação é a comunidade do trabalho, do destino,
da comunhão espiritual indispensáveis à sua humanização integral. Não basta,
portanto, uma teoria, é necessária a ação e a conexão entre elas. Mas o
somos tudo ao mesmo tempo: non omnia possumus omnes. No entanto, o
homem de ação realizado é aquele que vive em seu interior uma dupla
polaridade (do polo político ao profético) percorre agitando-se o caminho que
vai de um ao outro, sempre com um compromisso combatente de assegurar a
autonomia de cada um, regular sua força respectiva e encontrar as
comunicações entre um e outro.
O ser engajado é ser compromissado, recusar o compromisso é negar a
condição humana. Porém, entre a pureza e a impureza da ação, existe o risco
que assumimos diante da parcial obscuridade de nossas opções, colocando-
nos em um estado de despojamento e insegurança. Mas é neste estágio que
emerge o momento propício para as grandes ações (Mounier,1950, p.113).
Assumida a trágica estrutura da ação, não se pode mais confundir
“comprometer-se e aventurar-se”. Apesar de não ser nada fácil, se revela o
valor moral personalista do ser-situado, exatamente quando a coragem assume
esta trágica situação e renuncia aos débeis planos do ecletismo, do idealismo e
oportunismo. Portanto, “uma ação não mutilada é sempre dialética” (Ibid.,
p.113).
Ponto de vista compartilhado por Paul L. Landsberg, companheiro de
movimento de Mounier, ao afirmar que ao se engajar, assumem-se riscos e a
responsabilidade de uma obra futura (tal qual Arjuna), fruto de uma formação
humana, que, consequentemente, realiza a história da humanidade e seu
progresso. Bem lembrou Landsberg sobre a consciência mítica dos gregos,
quando Prometeu, o culpado, fez de sua ação um grande benefício aos
homens. Ele, que prevê, atinge sua grandeza, com sua aventura sagrada; seu
ato significa aos gregos a fatalidade que governa o mundo, o trágico, o herói
que se destrói afirmando e superando os limites da própria humanidade:
Sua culpabilidade e sua nobreza se prolongam numa teimosia justa, que ele
contrapõe à punição; a hybris heroica fracassa, mas ao fracassar, ela tem
ainda razão, contra a fatalidade e os deuses; o herói tem razões para querer o
que quer e ser o que é; face ao destino cego e contra os deuses imortais, o
homem pode estar errado do ponto de vista pragmático, mas não do ponto de
108
vista do valor; ele se justifica por sua coragem, que o eleva realmente acima da
humanidade; sua culpabilidade nada tem de mal absoluto; ele pode escolhê-la
quando tem vocação de herói (Landsberg, 1968, p.87).
3. Personalismo a serviço da pessoa
Em uma carta a Jean-Marie Domenach, Mounier escreve: “O
acontecimento será nosso mestre interior” (1963, t.IV, p.817). Ora, dirá
Mounier, se o acontecimento fosse acolhido, ele precisamente revelaria tudo o
que é estranho da natureza dos homens e para além deles. O acontecimento
demarca e marca o encontro do universo com o meu universo, minha
individuação e personagens (Id.,1971, p.69).
51
Decidido na sua vocação, sabia
que a peregrinação não seria fácil e a conversão haveria de ser integral. Não
queria somente tratar do homem, também lutar objetivamente pelo homem,
“mas como é de costume disfarçar sua opinião preconcebida sob a roupagem
científica, nós preferimos declarar de cabeça erguida que nossa ciência, para
ser uma ciência honesta, deve ser uma ciência combatente” (Id., 1961, t.II, p.7).
Jean Lacroix (1969, p.23), em seu artigo intitulado Emmanuel Mounier
um testemunho e um guia, salienta que o jovem pensador, à sua maneira de
filosofar, exigiu de si certo tipo de pensamento combatente influenciado pela
dupla reflexão, antiga e profunda, sobre a noção da pessoa; a reflexão jurídica
e principalmente a reflexão teológica. Dessa união, constituída em grande parte
pelos eventos diários, surgiu a ligação vital entre pensamento e ação na
promoção da pessoa. Com isso, Mounier não apenas renovou tal noção, mas
inovou a ideia de pessoa tornando-a presente, situada e concreta. Nascia,
então, uma nova concepção ética herdada da trajetória de sua vida e de sua
vocação que aos poucos transformavam “temas mais ou menos tradicionais em
elementos de cultura e civilização, retirados do acontecimento histórico ou
cotidiano” (Ibid., p.24). Para Lacroix, ele foi exemplo vívido de testemunho, um
guia, um educador do homem no século XX, ou seja, educou a humanidade do
homem colocando-o em pé (1950, Esprit, p.839).
51
Cf. acima, p. 78-82.
109
João Bénard da Costa, ao prefaciar o livro O Personalismo, afirma que a
filosofia de Mounier não contém algo de novo, ela é mesmo algo de novo,
novidade que se sustenta pela temporalidade, o corpo-alma, o ser encarnado,
compromissado com a História e com a humanidade.
A grande contribuição de Mounier ao pensamento contemporâneo foi a
de ultrapassar a problemática filosófica nas “questões relativas a pontos de
partida, de método e de ordeme de oferecer aos “filósofos de profissão” uma
Matriz filosófica. Esta é a expressão usada por Ricoeur (1968, p.138) ao dirigir-
se às primeiras obras de Mounier. Colaborador do Esprit e amigo de Mounier,
Ricoeur explica que a atitude combatente advinha do nível de afloramento de
uma profunda consciência frente à crise, aos acontecimentos, e que ele ousou,
pregou uma “conversão”, “uma pedagogia”, afrontou as ordens cristalizadas,
inclusive o “veneno sorboniano”.
Obras como as de Bergson, de Brunschvicg, de Blondel, de Maritain,
contemporâneas dos primórdios da revista Esprit, realizam, por todo o seu
estilo o gênero didático, que se adapta a um público de estudiosos, de
professores, e para além destes, de adultos que se instruem. A filosofia
francesa participava de modo claro, até o período imediatamente anterior à
guerra, da tarefa docente em sua acepção mais geral. Essa função docente
explica bastante a força e a fraqueza da filosofia universitária: fraqueza, em sua
tendência em situar os problemas à margem da vida, da história, e a
proporcionar-se uma vida e uma história que, nos casos-limite, são de todo
irreais; mas força, em seu gosto pelas questões metodológicas, pela busca do
“ponto de partida” da “verdade primeira” e pelo ordenado processo discursivo
(Ibid., p.136).
Com seu projeto, Mounier pretendia a aventura de uma filosofia extra-
universidade
52
, por isso afrontou as ordens ultrapassando o “despertar das
consciências”. Ricoeur declara que a consciência da crise estava distante de se
constituir num núcleo do pensamento representativo da França em 1932. Da
mesma forma encontrava-se a filosofia universitária que não desempenhava
qualquer papel decisivo, achando-se incapacitada “a orientar de maneira mais
radical uma vocação filosófica. É portanto uma dúvida metódica de caráter
52
Mounier, ao desistir de seu curso de doutorado, escreve a respeito de sua tese: “Estou
deixando-a amadurecer, pois uma tese, a meus olhos, é mais uma obra humana que uma obra
intelectual” (Mounier, 1963, t.IV. p. 442).
110
histórico e cultural que estimula todas as reflexões de Emmanuel Mounier”
(Ricoeur, 1968, p.137). Era preciso ir além, era urgente revolver, mover, revisar
valores e não inquietar-se com os graus do ser.
A questão é de saber se o reconhecimento dos graus do ser tem afastado
essas infelicidades. Contudo, diante dos desvios do pensamento, sejamos
sensíveis à força dessa contestação. Cita-se Marx. Aristóteles escrevia: se
vale mais filosofar ou ganhar dinheiro; para quem está na necessidade, o
melhor é ainda ganhar dinheiro. E o rigor de nossa época faz com que os
problemas temporais se coloquem no primeiro plano (...). O mundo está em
pane; somente o espírito pode restabelecer a máquina em andamento: trai-se a
si mesmo se disto desinteresse. É por isso que nossa vontade se estende
até a ação. É por isso que nós pedimos aos que são mais filósofos entre nós,
àqueles mesmos que precisam de recuo e de solidão, que saibam descer,
demoradamente no meio dos homens, que se acostumem a isso (...). Salvos
da complacência por meio do vigor da doutrina, evitarão a evasão pela sua
presença no drama universal. Mais do que nunca, devemos consentir nesta
gravidade (Mounier, 1961, t.I, p.150, 151).
Importava realmente empreender uma grande transformação. O primeiro
ato revolucionário inicia-se com a tomada de consciência e ruptura com a
“desordem estabelecida”, considerada por Mounier, a filha do espírito burguês
e do individualismo, nutrida e ninada pelo capitalismo. Essa desordem
promovia a perda do sentido do ser, a perda do outro, transformando pessoas
em seres indiferentes, mesquinhos e acomodados num mundo de segurança e
conforto. Tudo isso colaborava definitivamente com as crises de ordem
econômica e moral. Então, foram tecidos diagnósticos. Para os marxistas, a
crise advinha da economia clássica, problemas em suas estruturas. Pensando
assim, esqueciam as dimensões da interioridade e transcendência. os
moralistas, opunham-se ao dizer que a crise era dos homens, dos valores e
costumes corrompidos (Cf. acima, Cap. I, Subseção 4.1). Estas avaliações
encobriam a verdadeira realidade da condição humana, da necessidade
econômica e de uma revolução espiritual. O erro consistia, de acordo com
Mounier, na separação entre corpo e alma, entre pensamento e ação, uma
herança do passado, resquício de um cartesianismo duvidoso.
Para Mounier (1950, p.116-117) a crise era moral, econômica, estrutural
e também do homem; “A crise espiritual é a crise do homem clássico europeu,
111
nascido com o mundo burguês. (...) A crise das estruturas mistura-se com a
crise espiritual”. Como resultado: uma economia sem sentido aliada à ciência; o
capitalismo burguês segue um curso impassível; as classes sociais
desagregam-se; as classes dirigentes caem na incompetência; o Estado vê-se
envolto em tumultos e por fim, a preparação para a guerra. Diante da desordem
total, Mounier retoma as palavras de Péguy, reaviva-as em tom de
compromisso: “A revolução moral será econômica, ou não será revolução. A
revolução econômica será moral, ou não será nada” (Mounier, 1961, t.I, p.849).
Mounier, como nenhum outro, foi aquele que teve em torno de si, o
sentido pluridimensional do tema da pessoa, escreve Ricoeur. Ele realmente
dedicou-se e colocou o personalismo a serviço da pessoa e reuniu
companheiros na difícil batalha contra os sistemas. Ricoeur (1968, p.165)
declara:
A mim me parece que o que mais nos atraiu para ele é algo de mais secreto
que um tema de muitas faces a rara concordância entre duas tonalidades do
pensamento e da vida: a que ele próprio chamava de “força”, na esteira dos
antigos moralistas cristãos, ou ainda a virtude do nos pormos “frente a frente”
e a “generosidade” ou “abundância” do coração, que corrige a crispação da
virtude da força por algo de agraciado e delicado; é a sutil aliança de uma bela
virtude “ética” com uma bela virtude “poética” que fazia de Emmanuel Mounier
esse homem ao mesmo tempo irredutível e que se dava.
3.1 Revolução personalista e comunitária
Uma despersonalização do mundo moderno e a decadência da ideia
comunitária eram para Mounier uma mesma coisa. Por quatro séculos de
individualismo, conclui ele, o homem perdeu o bito de pensar sua vida e
seus atos no aspecto da comunidade. Então, tem-se um mundo regido por
ideias gerais, opiniões vagas, indivíduos neutros e sem rostos que se
aglomeram no anonimato em comunidades exteriores, jurídicas, artificiais e
moralistas.
Assim, a desordem assumia rapidamente uma proporção generalizada,
por isso, haveria de ser erradicada através de uma mudança radical, a
112
revolução. Mounier confirma que a palavra “revolução”, à primeira vista, parece
muito forte, invoca violência e terror, mas salienta que, no simbolismo mais
profundo e puro da palavra, esta contém uma prece imbuída do compromisso
com a causa dignamente humana. Para ele, o termo “revolução” contém o
antídoto contra o comodismo e a injustiça. Por isso, convoca a todos para
marcar presença diante da gravidade que dilacera os homens, através dos
regimes que se tornam anêmicos por meio de “milhões de seres e milhões de
misérias”.
3.1.1 Revolução pessoal
A consciência da crise e a sinceridade meio despertas, não bastam.
Importa à pessoa, ultrapassar as ideias, pois é necessário “... assumir o
máximo de responsabilidade e transformar o máximo de realidade, à luz das
verdades que tivermos reconhecido” (Mounier, 1961, t.I, p.637). Eis, portanto, a
dual missão compromissada que se afirma duplamente revolucionária em
nome do espírito, pois o espiritual é também carnal, ou seja, “revolução
espiritual integral”.
O primeiro ato de uma revolução pessoal, depois da tomada de
consciência da indiferença, é a tomada de consciência da outra face: a
“instintiva” ou “interessada”, consciência da adesão e repugnância pela qual
não se percebe. Homens aderem a esta consciência por “entusiasmo”, mas
logo se ocupam das aparências, cuja densidade sufoca a vida pessoal no
convívio com as agitações fúteis. São as traições do espiritualismo. Para
Mounier, é preciso “ser” antes de “fazer”:
Chamamos revolução pessoal esta atitude que nasce a cada instante de uma
tomada de consciência revolucionária, de uma revolta dirigida, em primeiro
lugar, por cada um contra si mesmo, sobre a sua própria participação ou sobre
a sua própria complacência com a desordem estabelecida, sobre o
distanciamento tolerado entre aquilo a que ele serve e o que diz servir, e que
se expande, no segundo tempo numa conversão contínua de toda pessoa
solidária, palavras, gestos, princípios, na unidade de um mesmo engajamento.
(Ibid., p.328).
113
Ao compromissado, cabe-lhe como a primeira missão, o combate
permanente contra a “má consciência revolucionária”. Depois, na continuidade
de sua tarefa, deve este, expandir outras consciências, pois não “puros”,
todos pecam uns com os outros, sendo preciso extirpar o mal.
O segundo ato é o rompimento com certas “matrizes” (matriz de direita e
esquerda, matrizes coletivas e individuais) que são as mentiras, as ideologias
contidas no interior dos homens e dos partidos que transformam as ilusões em
valores sagrados. Submetidos a essas matrizes, os cristãos individualistas
ignoraram o destino comunitário do cristianismo, a mística e a teologia. Os
reacionários de esquerda confundiram sua ação com o espiritual.
53
Os
intelectuais, para Mounier, na sua maioria estavam “apodrecidos pelo falso
liberalismo”, portanto, covardes. Não preservaram a pessoa, mas apenas a sua
“pequena preciosa personalidade, afastada das grandes correntes humanas e
voltada à própria adoração ou às suas caras ocupações” (Mounier, 1961, t.I,
p.647).
o pequeno burguês ou o burguês, quando se refere à pessoa, “...
pensa na liberdade de se enriquecer e na manutenção da sua autoridade
privilegiada na vida econômica” (Ibid., p.647).
Na esfera política, as coisas não caminhavam diferentes. Corrompida,
devido à corrida para o poder, esta se transformava em meios para impor
individualidades formando “cartéis de conquistadores e autoritários”. Por isso,
importava a todo custo, como terceiro ato, o urgente dever de estar presente no
mundo, afirmando que uma pessoa se prova pelo engagement, pelo
testemunho e ruptura, cabendo às pessoas se unirem e digladiarem contra as
desordens. Para isso, um quarto ato revolucionário era necessário, para que
não fosse apenas agitação, precisava-se conhecer antes de agir.
Diante de tanta farsa, era extremamente necessária uma revolução que
se orientasse para o “testemunho e ruptura” com os sistemas viciados.
Contudo, uma lida base “técnica dos meios espirituais”
54
colaboraria para a
53
Mounier entende que a Terceira Força declarou sua morte, devido à impaciência de
seus militantes, bem como, o despreparo para uma revolução. (Cf. acima, p. 9).
54
A técnica, segundo Mounier, poderá empregar meios que promovam a harmonia
com a pessoa. Lei fundamental do espírito que se divide em dois planos: 1) Técnica dos meios
espirituais individuais, ou ascese da ão, que tem como base as exigências primeiras da
pessoa, com sentido de mediação e retirada, com o intuito de libertar a ação da agitação. O
despojamento é o sentido da ascese contra os ídolos, adesões superficiais, hábitos, tiranias,
114
descoberta dos valores autênticos de uma fecundação orgânica e comunitária
entre os homens, colocando a inteligência a serviço da ação numa “cruzada
contra a confusão”:
Cruzada contra os blocos, que cimentam erros contraditórios e erguem uma
barreira, diante da realidade e diante dos homens. Cruzadas contra as uniões
sagradas que mascaram as desordens profundas sob reconciliações
interessadas. Cruzada contra os conformismos, parasitas do pensamento e do
caráter. (...) O ódio faz-se virtuoso, puritano. (...) o ódio é outra forma de
confusão (Mounier, 1961, t.I, p.641).
Portanto, “nem doutrinários nem moralistas”, dirá Mounier em seu
Manifesto ao serviço do personalismo, mas compromisso com a realidade, com
a justiça, uma revolução personalista e comunitária aberta a todos os homens.
Quanto aos cristãos, “só pedimos que sejam eles mesmos. É verdade que esta
é sem dúvida, a Revolução” (Ibid., p.857).
55
3.2 Prioridade aos meios materiais
Mounier, jamais aceitaria que o problema da miséria fosse tratado com
naturalidade. Afirmou que todo aquele que não sentisse a miséria como uma
queimadura em si mesmo, faria objeções levianas levantando falsas
polêmicas.
56
pseudo-sinceridades, dentre outros. 2) No sentido de retirada e despojamento, poderá o
militante procurar uma pureza estéril, que rapidamente diluiria todo o compromisso. Cabe,
então, lembrar que o individual sempre deverá caminhar para uma técnica personalista de
meios coletivos, que será posta em prática, num sentido de fermentar as comunidades
orgânicas. O personalismo exercerá a ação progressiva de correção interior, bem como, no
preparo de reagrupamentos e no apoio a diversos segmentos como os sindicatos,
cooperativas, dentre outros (Cf. Mounier, 1961, t.I, p.644-646).
55
Mounier acreditava que a revolução ocorreria através de duas frentes de combate. A
primeira, reduzida, constituída de uma minoria de intelectuais e de burgueses que, despertos
profundamente com a causa, aderiram aos valores da pessoa, seguido de cristãos que
retomaram a “consciência das exigências heróicas de sua fé” diante da desordem e
mediocridade de sua vida e coletividade. A outra, da qual ele afirma sua importância, é a do
povo, que, “moldado pelo trabalho e pelo risco vital, guardou o sentido direto do homem, e
salvou o melhor de si da deformação política” (Cf. Mounier, 1961, t.I, p.648, 649).
56
Sobre este assunto, em “O ponto de vista de um cristão”, Mounier escreve sobre a
miséria e sua urgência: “Milhares de homens morrem de fome por causa de um regime
econômico imoral e superado. Milhões de homens se desumanizam sob o esmagamento dessa
miséria. Aquele que tem fome, diz São Tomás, é preciso alimentá-lo antes de fazer-lhe
sermões (II-II, q.32, a.3, no fim do corpo do artigo). Isso não é fazer o material passar à frente
115
Diante dessa enfermidade social, seria necessário priorizar os meios
materiais, ou seja, a questão econômica, primum vivere, deinde philosophare.
57
Se o homem não possuir o mínimo de bem-estar e segurança necessária à sua
sobrevivência, torna-se inútil promover a revolução espiritual. “O personalismo
reencontra a encarnação da pessoa e o sentido de suas servidões materiais,
sem, no entanto, negar a sua transcendência ao indivíduo e à matéria”
(Mounier, 1961, t.I, p.526,527).
Portanto, a revolução espiritual não pode resolver-se separadamente da
economia e da política (mesmo que estas sejam subordinadas ao espiritual).
Mounier pede muita atenção sobre a questão. Relembra que o espiritual, para
o movimento personalista, “não é uma máscara ou escapatória. Tem-se certo
número de debates fundamentais a regular com todo o mundo. Mas antes
disto, pão, trabalho, dignidade para aqueles que não a têm (1936, Esprit,
p.444).
Ao propor a revolução material, Mounier acreditava em um novo regime
social e econômico atribuído às necessidades da pessoa humana, o que ele
chamou de “revolução da pobreza”. Promoveu embates contra as instituições
capitalistas e percebeu que a revolução sobreviveria se estivesse apoiada nos
pilares políticos, mas estes, também careciam de transformações. Era
prioridade emergir um novo regime pluralista democrático, de amplitude social
e ética voltada para uma comunidade de pessoas (Mounier, 1961, t.I, p.611-
626).
Mounier revela preocupações quanto à conquista da aquisição dos bens
materiais. A revolução material pode propiciar o desenvolvimento de valor
espiritual, mas pode também, desenvolver o lado desumano. Eis, portanto, a
primazia do espiritual. Se a miséria degrada, a abundância pode levar à
acomodação. Tem-se, então, uma felicidade calculada aos modos de Bentham,
“Usufruir da paz e da calma chã”, pela qual o homem não vive sua
autenticidade e nem seu esforço criador. Mounier declara: “Não queremos um
do espiritual, mas é garantir ao espiritual as condições materiais indispensáveis para que se
possa estabelecer” (Mounier, 1971, p.52).
57
Provérbio latino: primeiro viver, depois filosofar”. Na ausência de determinadas
condições sociais, econômicas e políticas, torna-se impossível qualquer especulação, filosófica,
cultural ou espiritual.
116
mundo de felicidade, queremos um mundo humano. E é humano o mundo
que garantir suas possibilidades às exigências essenciais do homem” (Mounier,
apud Moix, 1968, p.91).
O assunto é de grande profundidade, pertence ao universo da justiça
social e não a uma felicidade sob acumulação de bens e segurança que
abafam o crescimento da liberdade espiritual. Quando os espiritualistas
bradaram que o homem se salvaria pela pobreza, Mounier interveio dizendo
que o personalismo o pretendia hipocritamente perpetuar a miséria, mas
pretendia, uma vez vencida a miséria, que cada pessoa se tornasse livre e
desimpedida dos apegos e tranquilidade. Ele afirmava que cada ser conheceria
sua força e sua própria medida: “não opomos revolução espiritual a revolução
material. Afirmamos somente que não revolução material sem estar
enraizada e orientada espiritualmente” (Mounier, apud Moix, 1968, p.94).
Tal revolução se estrutura e interliga a três dimensões: a espiritual, a
política e a histórica. Se houver negação de qualquer uma destas dimensões,
certamente destruirão as vias para se chegar à pessoa; qualquer reforma social
que não apoie a plena realização da pessoa (realismo integral), logo se
desgasta no oportunismo.
Mounier, apesar de não ser um político, sabia da importância da
participação dessa dimensão no plano da encarnação. Por isso, afrontou e
criticou os valores carcomidos do sistema político. Acreditava que os fatos
sociais o eram apenas fatos físicos particulares. Via a dimensão política
contida na dimensão histórica que, por sua vez, contemplava a dimensão
espiritual. Como cristão, afirmou que o político deveria estar subordinado ao
moral, o moral ao metafísico e este ao sobrenatural, e o espírito comandaria o
político e o econômico. Então, para assegurar a revolução, devia-se contar com
o apoio da força política para efetuar a passagem da revolução aos fatos; em
seguida, nutrir-se da ajuda de outro grande aliado, o povo. Para Mounier, o
povo não poderia ser compreendido como na visão de Marx, num messianismo
do proletário, numa ideia de classe oprimida que deteria o poder. Para ele, não
se tratava de classe, nem de considerações sociológicas abstratas que
definiriam o componente essencial da História.
117
Mounier então observa Maritain, ao descrever que para conhecer o
povo, não basta agir para o povo, deve-se ser com, existir com, sofrer com o
povo, comungar com o seu destino, presenciando vividamente a sua
comunidade. Bernanos sentia no povo, os últimos recursos da honra e Mounier
a esperança de uma revolução (Moix, 1968, p.100-102).
3.3 Comunidade personalista
O fim último da revolução era promover a comunidade de pessoas, um
personalismo comunitário, um “novo socialismo”, diferente do conhecido no
século XIX.
58
Assim, sendo a bandeira do personalismo a pessoa, Mounier
pretendia que este novo socialismo preparasse as indispensáveis bases
espirituais, atendo-se também, às condições materiais e necessidades
coletivas, para que se formasse uma promissora estrutura de reorganização
social:
abolição da condição proletária; substituição da economia anárquica, fundada
no lucro, por uma economia organizada em ordem às perspectivas totais da
pessoa; socialização sem estatização dos setores da produção que alimentam
a alienação econômica; desenvolvimento da vida sindical; reabilitação do
trabalho; promoção, contra o compromisso paternalista, da pessoa do operário;
primado do trabalho sobre o capital; abolição das classes formadas na divisão
do trabalho ou de fortuna; primado da responsabilidade pessoal sobre as
estruturas anônimas (Mounier, 1950, p.120).
O personalismo, ao se colocar a serviço de tal missão, pretendia
encontrar os valores comprometidos, estabelecer um governo democrático e
58
Moix (1968, p.103) descreve: “A ameaça principal do socialismo nascente era o
individualismo, com todas as suas consequências na ordem social. Tal ameaça ainda existe,
mas outra muito maior ainda: o totalitarismo, inimigo mortal da pessoa humana; ‘Em 1930 o
século XX era candidato a se tornar a era totalitária’. O personalismo nascente achou-se
perante temíveis forças de opressão: trustes capitalistas, delírios fascista, mal totalitário do
comunismo russo. Estavam ameaçadas as aspirações mais fundamentais da pessoa humana.
Daí, ao mesmo tempo em que combatia o individualismo, o personalismo foi levado a acentuar
os direitos inalienáveis da pessoa. Há, porém, outra diferença e esta é capital entre o
primeiro socialismo e o de Mounier. O da primeira época faz profissão de materialismo.
Introduziu o ateísmo na sua bandeira. Se sua reação contra uma época em que se falava muito
em espírito, sem assegurar as condições materiais do homem, é compreensível, não é menos
verdade que tal socialismo mutilou o homem. Não se ateve senão à edificação das estruturas
econômicas”.
118
uma economia socialista. Foi confundido com a pretensão de criar um novo
individualismo: “quando falamos em defender a pessoa, suspeitam muitas
vezes de que queremos restaurar, sob uma forma mida, o velho
individualismo” (Mounier, 1961, t.I, p.525). Mounier contesta prontamente as
acusações, chega a “dizer que há pleonasmo quando se designa a civilização a
que ele visa por personalista e comunitária” (Mounier 1950, p.39). Enfatiza que
a dimensão individual está interligada com a dimensão comunitária. Portanto,
em cada comunidade, cada pessoa é reconhecida como pessoa, ser integral,
compósito de espírito e matéria numa aventura humana que participa de uma
obra comum.
A pessoa se realiza na comunidade: isso não quer dizer que ela o tenha
alguma chance de fazê-lo perdendo-se no anonimato (lon). o existe
comunidade verdadeira a não ser uma comunidade de pessoas. Todas as
outras não passam de uma forma do anonimato tirânico (Id., 1961, t.I, p.182).
Os pilares do “universo pessoal” proposto por Mounier auxiliam nesta
promoção. Sabe-se que em comunidades de pessoas as ações estão
interligadas; certas opções e atitudes podem afetar outras pessoas; há,
portanto, condições e princípios de convivência. O personalismo defende a
comunidade de pessoas ao afirmar que, em seu interior, esta traz consigo uma
ética da pessoa. Não se trata de mais um movimento filosófico especulativo,
mas sim de uma ética de ação situada que possui alcance ético-político.
Contudo, Mounier, ao elaborar a fundamentação metafísica de seu projeto
civilizador, adentrou o espaço das implicações antropológicas para justificar as
exigências da ação.
A partir de então, o engajamento da pessoa passou a ser considerado como
uma tomada de posição da pessoa em relação aos elementos de sua situação.
E é a própria condição ontológica da pessoa uma transcendência imersa numa
imanência, é sua própria condição estrutural, essencialmente dinâmica, que
dará ao agir humano seu caráter intencional. O agir é, com efeito, a própria via
de personalização. Será pela ação que a pessoa manifestará o seu ser e criá-
lo-á, enriquecendo-o na temporalidade de sua existência (Severino, 1983,
p.140).
Mas, paralela a este equilíbrio harmonioso, paira uma imensa
fragilidade, a despersonalização que pode lançar o homem no mundo da
comodidade e alienação (mundo man). Noutro lado, a eficácia da
119
personalização efetua-se com a reflexão que revela os valores pessoais. Estes
valores culminam em responsabilidade que, em conjunto com a práxis,
complementam-se. Temos uma constante estrutura trágica, pela qual a pessoa
está intimamente posta à prova; direcionada a uma “proximidade”; a um
encontro com outras pessoas na promoção da solidariedade, da justiça e
comunhão entre os homens.
Enrique Domingos Dussel, ao tratar deste termo, assim se expressa: “Há
práxis, então, na atualização da proximidade, da experiência de ser próximo
para o próximo, de construir o outro como pessoa, como fim de minha ação e
não como meio: respeito infinito” (1987, p.19). Para Dussel, a práxis significa
encurtar distância, um agir para o outro como outro, que se une à proximidade
na promoção do encontro face-a-face, sempre em sentido à sua anterioridade,
ou seja, a pessoa. Adverso, tem-se a proxemia, a despersonalização, que é a
aproximação indiferente, interessada, como se houvesse aproximação de
qualquer objeto ou coisa.
O personalismo afirma que o caminho da práxis é de difícil percurso,
pois se situa entre os extremos: condicionantes e criação de valores fecundos.
A liberdade humana é o guia que ajuda a percorrer o entremeio destes
extremos, perfazendo o mundo do ser e seu destino, pessoa e comunidade,
conquista ética e política. Caminho árduo, envolto de fraquezas e limitações,
mas jamais se elimina a participação da liberdade humana, é o risco humano
necessário; “entre as exigências da transcendência humana, significada pelos
valores, e as imposições da imanência, transcritas nos determinismos
concretos das situações” (Severino, 1983, p.142),
é que nasce a pessoa (ser
situado Cf. acima, p. 55), cuja existência encarnada abarcará a comunidade
de pessoas, “... uma perspectiva estritamente ética e uma perspectiva política”
(Ibid., p.142),
para realização de um humanismo integral.
3.4 Educação personalista
Mounier dedicou-se, em certo momento de sua vida, à carreira de
professor (Cf. acima, p.15-16). Podemos dizer que, quando demitido da
120
profissão docente, não se demitiu da vocação e transformou o seu movimento
personalista em extensão de seu magistério. Lacroix o chamará de “educador”,
outros de “pedagogo da encarnação social”
59
e Domenach parece concordar
com Mounier (Cf. acima, p. 108) sobre a “ciência combatente”:
O personalismo é antes de tudo uma pedagogia: uma filosofia de serviço e não
de dominação. Seu sucesso não é avaliado pelo poder nem pelo número, mas
pela transformação dos espíritos e dos relacionamentos humanos, pelo nascer
de uma inquietação, pela consciência de uma responsabilidade (Domenach,
1969, p.12).
Acreditava Mounier que o personalismo tinha por missão imprimir às
instituições as orientações sobre a realização da pessoa, e este trabalho
haveria de começar pelas instituições mais próximas da pessoa, como os
estabelecimentos educacionais. Preocupado, discordava da educação de seu
tempo. Acreditava ser esta, em larga escala, um “massacre de crianças”.
60
Então questiona: “Porque se educa a criança? Tal pergunta depende de outra:
qual é o fim dessa educação?”
(Mounier, 1950, p.129).
Para ele, uma cidade
que queira favorecer a evolução da pessoa deve esforçar-se em despertar a
criança desde a infância, para que possa formar a pessoa encarnada no
homem, e este, para as exigências do universo pessoal e coletivo.
se encontra o homem, um ser-no-mundo e com-o-mundo. Mundo
entendido numa ótica fenomenológica, não se tratando de matéria, nem
tampouco como consciência, mas de uma unidade existencial dialética, focada
na “estrutura do universo pessoal”, presença humana no mundo. Importa,
portanto, ao homem cultivar e dar sentido à sua presença, de forma autêntica,
jamais se entregando às relações de indiferença e dormência. Pertence às
instituições educativas a missão pedagógica desse despertar.
Sendo a pessoa “permanência aberta”, esta se suscita por apelos, e a
educação não pode render-se à domesticação, cerceando a pessoa em seu
“transcendimento”, de pertença a si própria. A criança não é uma res societatis,
res familiae e nem também um sujeito puro e isolado (Ibid., p.129), ela está
59
Cf. Equipe Frères du Monde, Presença de Mounier, p. 18. Veja também, outras
opiniões, como as de Jean Guiton e Candide de Moix (Cap. I, Seção 1, p.7) neste trabalho.
60
Mounier (1950, p.129) refere-se a este massacre quando se desconhece a
personalidade da criança, impondo-lhe as perspectivas do adulto, destruindo o discernimento
das vocações pelo formalismo do saber autoritário.
121
inserida num meio, numa família, numa nação e a escola é mais um
instrumento educador. Para Mounier, a instituição escolar (de seu tempo), ao
cumprir sua tarefa, atende às necessidades da nação, como formadora de
agentes de produção e cidadãos; pertence, portanto, a um quadro do direito
natural educativo. O erro dessa instituição é a pretensão de querer sustentar-se
como a célula central irradiadora da vida educacional da pessoa. Também se
esquece que, enquanto a pessoa não atingir sua maioridade, ela está sob a
tutela das comunidades naturais, como a família, autoridade espiritual
reconhecida pela família e, na falta destas, o corpo educativo (Mounier, 1961,
t.I, p.553,554).
Ciente de que é parte de um sistema educacional, a “educação não tem
por fim formar a criança no conformismo de um meio familiar, social ou
estatal...” (Id., 1950, p.129). Bem como, não é de sua atribuição, adaptar a
criança à função que futuramente lhe caberá na vida adulta. Tal proximidade,
leva ao pensamento de Paulo Freire sobre a “educação bancária”, aquela que
se preocupa apenas com créditos e depósitos do conhecimento, de gravações,
de extratos, de treinamentos e competições engendradas por uma educação
domesticadora e opressora (Cf. Freire, 1987, cap. II).
A educação deve abarcar o tempo, fazer história, possuir memória; é,
portanto, abrigo de informações vivas, que tem por missão fazer desabrochar
seres numa existência verdadeiramente humana de imanência e transcen-
dência. Deve, também, auxiliá-los na ciência de que a pessoa não pertence a
ninguém, a não ser a si própria.
Importa à escola, ainda, preparar as pessoas para a profissão,
preparação técnica e funcional. Mas esta deve esclarecer sobre a necessidade
da liberdade material, sem a qual a vida pessoal, se asfixia. No entanto, é
primordial que esta instrução, seja compreendida como complemento, parte da
liberdade. Se o homem se constrói como pessoa através deste processo
pedagógico, este deverá ser transparente, sério, pois lhe servirá de guia inicial
para alçar voos em sua trajetória, com liberdade para percorrer seus próprios
caminhos na busca de sua emancipação pessoal, e, o melhor, ciente dos
sistemas que o abarcam.
122
Uma educação voltada à pessoa é completamente diferenciada em
relação à educação livresca, que confunde cultura com acumulação de saber.
A educação personalista tem de se firmar através da expressão da vida, da
aprendizagem da liberdade, e a escola não pode ignorá-la. O saber dissociado
da realidade transforma-se num saber abstrato, num formalismo que abafa a
criatividade, e a escola não pode ser mais um dentre tantos outros
instrumentos contra a pessoa.
Já a cultura possui uma função globalizante na vida pessoal, seja na vida
profissional, privada, religiosa, educacional, familiar; enfim, ela é liberdade e
transposição, uma profunda transformação da pessoa. Na visão de Mounier
(1950, p.131) a “cultura é transcendência a ultrapassar”, se estagnada,
transforma-se em “incultura”: academismo, pedantismo e se cristaliza em forma
de sistemas.
Mounier declara que a civilização ocidental nega a dimensão humana
tanto na base informal quanto formal, portanto gera desumanização,
individualismo, competição e autoritarismo. Homem, desperta! Dizia Mounier.
Tal despertar é o cerne da educação, uma constante atuação pedagógica que
deve suscitar no educando não apenas os conhecimentos, mas também o
compromisso. Quanto ao educador, neste deve permanecer vivo, latente, em
seu coração, o compromisso de despertar almas. Ele deve ficar vigilante ao
surgimento de mecanismos geradores e anuladores da liberdade humana.
São grandes os desafios do educador, por isso, Mounier indaga: Por que
educar a criança? Esta pergunta leva a outra: Qual é o fim dessa educação?
Ele responde: “Esta não consiste em fazer, mas em despertar pessoas” (Ibid.,
p.129).
123
Capítulo III
O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER NO BRASIL
1. Ação histórica: um desafio no Brasil após a Segunda Grande Guerra
No final da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava perplexo diante de
tantas atrocidades, o medo e o receio ainda persistiam frente a uma iminente e
peculiar Terceira Guerra Mundial. Foi neste contexto que o cenário
internacional mergulhou num clima de “Guerra Fria” entre duas grandes
potências, os EUA e a URSS. Por cerca de quarenta anos uma frenética
corrida armamentista se sucedeu no Ocidente, “gerações inteiras se criaram à
sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam
estourar a cada momento, e devastar a humanidade” (Hobsbawm, 2000,
p.224). Neste período, o medo da “destruição mútua inevitável” (Mutually
Assured Destruction), sigla inglesa muito bem expressa por MAD”, perpassou
décadas, e, felizmente, a própria suposição da destruição em massa serviu de
base, de acordo mútuo, para que esses países não cometessem tamanha
loucura contra a humanidade.
Contudo, num estado de paz, mesmo que “paz fria”, a situação mundial
depois da Segunda Grande Guerra tornou-se estável até os meados da década
de 1970. Nesses anos, foram registrados momentos de grande progresso por
quase todo o planeta, através de uma economia mundial capitalista que se
tornava multinacional.
No Brasil, em 10 de novembro 1937, Getúlio Dornelles Vargas instaura o
124
“Estado Novo” com a outorga da Constituição de Francisco Campos.
Praticamente, quase todo o ministério apoia o golpe. As forças do Exército
fecham o Congresso, o governo dissolve os partidos, intervém em todos os
Estados, com exceção de Minas Gerais, e cancela a eleição presidencial.
Inspirada na Carta polonesa de 23 de abril 1935, a Constituição é totalmente
descumprida diante de um pretexto: o estado de guerra. Vargas passa a
governar por decreto, com poderes ilimitados num ciclo de sete anos de
totalitarismo (1937-1945). Sua imagem neste período torna-se o estandarte do
regime. Ele concentra todos os poderes, indica todas as autoridades, encarna e
simboliza o Estado Novo. Toda a quina estatal cultua seu nome em
comícios, desfiles, cartilhas, cartazes, livros e músicas. Seu aniversário torna-
se festa nacional, comemorada e chamada de “Dia do Presidente”. Nas escolas
primárias os alunos entoam o hino de louvor: “Salve Getúlio Vargas/O Brasil
deposita sua fé/sua esperança/e seu orgulho/no chefe da nação” (Isto é, “Brasil
500 anos”, 1998, p.135). Deposto e com o fim do Estado Novo, ocorre a
primeira eleição em 10 anos (02/12/45), que deu a vitória ao general Eurico
Gaspar Dutra,
61
graças ao apoio do PSD (Partido Social Democrático criado
e dirigido por Vargas), do próprio Vargas, da máquina estatal e da participação
e influência da Igreja.
Frei Oscar de Figueiredo Lustosa lembra que a Igreja e o Estado,
instituição eclesiástica e instituição civil, comunidade religiosa e comunidade
política, bem como, o poder espiritual e o poder temporal, são termos
binomiais, e que através dos séculos “vem desafiando, em seu relacionamento,
fórmulas e receitas pré-fabricadas e mecanicamente aplicadas” (1991, p.7).
Porém, quando se refere ao período totalitário getulista, lança uma pergunta:
“Como a Igreja-Hierarquia procedeu durante este período?” Acredita que a
resposta não seja clara, pois foram confusas as situações vividas pelos
católicos no envolvimento com o Integralismo,
62
juntamente com o medo do
61
Juntamente com o novo presidente, nasce a Assembleia de caráter congressual com o
dever de substituir a Constituição de 37. Importante lembrar que, cinco anos depois, Getúlio
Vargas é reeleito e assume novamente o cargo de presidente do Brasil.
62
Movimento fascista brasileiro durante a segunda metade dos anos 30 comandado por
Plínio Salgado, que, ao encontrar com Mussolini, deu início ao seu apostolado. O integralismo
combateu o socialismo e a liberal-democracia em nome da tríade “Deus, Pátria e Família”. Em
1932 surge a AIB (Ação Integralista Brasileira). Em 1935, segundo Salgado, a AIB tem 1123
núcleos e 400 mil adeptos. Entre eles, figuras exponenciais como: Miguel Reale, Alfredo
125
comunismo. Mas a Igreja, em seu relacionamento com o poder do Estado
desde 1930,
63
não dará uma palavra a respeito do Estado Novo e,
tampouco, sobre a constituição de 1934. De forma geral, segundo Lustosa, a
maioria do episcopado não via tal governo com “maus olhos”, pois a civilização
cristã recebia proteção contra os perigos e ameaças do comunismo. Com isso,
a Igreja fez
coro com a repressão das forças de segurança, fechando a boca e os olhos
diante das atrocidades inomináveis da polícia contra os presos políticos. E
quando em 1937, Pio XI promulga a encíclica Divini Redemptoris, o episcopado
a divulga no Brasil, respaldada por uma Carta pastoral, como se a palavra do
papa viesse a talho para canonizar a conjuntura do regime brasileiro em face
dos comunistas, subvertedores da ordem social cristã. Eis o que afirma a
hierarquia depois de lembrar dos horrores das perseguições aos católicos na
Rússia, Espanha e México e o silêncio da imprensa sobre o comunismo de
Moscou: “Deve-se em parte tal silêncio a razões de uma política menos
previdente, favorecida por várias forças ocultas que, há muito, procuraram
destruir a ordem social cristã” (Lustosa, 1991, p.57,58).
64
De certa forma, com o final da guerra as pressões internas e externas ao
regime aumentaram, e isso favoreceu a passagem para o processo
democrático de 1945. A questão social descortinou novos horizontes, os
operários se uniram, os sindicatos se fortaleceram abrangendo o espaço rural e
foram ao encontro do homem do campo.
65
Logo, não tardou para que
Buzaid, Mourão Filho, Raimundo Padilha, Godofredo da Silva Telles, Hélder Câmara e Alceu
de Amoroso Lima (Cf. Isto é, “Brasil 500 anos”,1998, p.132).
63
Veja (Lustosa, 1991, p,48-59) sobre: A aliança implícita acordo das lideranças: D.
Sebastião Leme e Getúlio Vargas (1930-1945)”.
64
O texto entre aspas, de acordo com o autor, está contido no texto: “Carta pastoral do
Episcopado brasileiro e a encíclica Divini Redemptoris de S. S. Pio XI sobre o Comunismo
ateu”. Rio de Janeiro, Tip. do Jornal do Comércio, 1937, p.12.
65
Convém lembrar que, antes da passagem do processo democrático de 1945, entre os
anos de 1922 a 1926, quase a totalidade do período governamental do presidente da
República Artur da Silva Bernardes passou sob estado de sítio. Nesses anos, viveu-se uma
ebulição revolucionária política através de certos movimentos como a Semana de Arte
Moderna, o Levante dos 18 do Forte, o Movimento Tenentista, a formação do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), a Coluna Prestes e, de extrema relevância, os movimentos
sindicais marcados por grandes manifestações e greves dos operários. Por isso, uma acirrada
“repressão bernardista” caiu sobre os tenentes, os anarquistas, os comunistas, os sindicalistas,
os simpatizantes e suspeitos. No governo de Washington Luís Pereira de Souza (1926-1930),
ocorreu o arrefecimento revolucionário. Ele libertou todos os presos políticos e outros, ditos,
aprisionados injustamente. Dias antes do término de seu mandato, Washington Luís foi
deposto pelo golpe militar que abriu um caminho para Getúlio Vargas (1930-1945). Vargas,
mesmo em sua campanha para a presidência da República, assumiu a concessão de algumas
reivindicações como a da condição de trabalho, dos salários e do direito previdenciário. Isso lhe
coube, futuramente, o sentimental título de “pai dos pobres” e o reconhecimento fundamental
126
surgissem propostas a respeito da Reforma Agrária, no que concerne à posse
de terras.
Em 1950, o bispo da Campanha, cidade do Sul das Minas Gerais, D.
Inocêncio Engelke, ligado à Juventude Agrária Católica (JAC), anuncia sua
Carta-pastoral dando todo apoio e ênfase à reforma (Gómez de Souza, 2004,
p.27). Em resposta, são realizadas as Semanas Ruralistas de Campanha (MG
em 1950) e também de Natal (RN em 1951), com o apoio da Ação Católica
(AC).
Frei Lustosa acredita que se tratava de um novo tempo, em que os
dirigentes da Igreja estavam sensibilizados e conscientes da necessidade do
reformismo rural. Portanto caminhavam lado a lado com a gente da igreja e a
gente do governo, nos diversos quadros da questão social, “ora aplaudindo ora
questionando, ora se dividindo internamente em posições ideológicas
diferenciadas em face às medidas oficiais decretadas” (1991, p.69).
Foi neste período que as ideias de Marx, Sartre, Chardin, Mounier,
Jasper, Marcel, Blondel, Simone Weil, dentre outros, fomentaram e
fermentaram debates entre estudantes e professores brasileiros, o que influiu
na ordem do pensamento e da ação quanto ao que toca ao político,
pedagógico, econômico e cultural. Por este rastro, as camadas populares
também começaram a se estruturar, isso já na segunda metade dos anos 1950
e início de 1960. Com a pretensão de se construir uma nova humanidade,
vários projetos surgiram para sua viabilização. Os jovens invocaram a
liberdade, o fim das discriminações, exigiram compromissos, pregaram o amor
e a solidariedade. Viveu-se um período de pretensões reformistas, lutas por
independência nas colônias do Terceiro Mundo, melhores condições de
que o ajudou a promover a harmonia entre as classes, a aproximação do sindicato ao Estado e
o apoio de parte do operariado contra alguns segmentos rebeldes” oriundos dos próprios
operários. Em 26 de novembro de 1930, foi criado o Ministério do Trabalho. Com o decreto
19.770 de 19 de março de 1931, o sindicato foi incorporado ao “Estado e às Leis”, portanto,
subordinado ao Ministério do Trabalho. Em 10 de maio de 1943, entrou em vigor a CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho), com seus 922 artigos sobre a organização sindical, a
previdência, as relações trabalhistas e a justiça do trabalho. Durante o período do Estado
Novo, a intervenção do Estado sobre o sindicato foi severa. Com o sindicato oprimido, o Estado
arrogou o privilégio exclusivo de falar em nome dos trabalhadores e, com isso, desenvolveu
uma intensa propaganda de proteção ao assalariado, como o “salário mínimo”. Para a grande
maioria de trabalhadores, aplausos à Getúlio (pai dos pobres), para outros poucos indignados
(rebeldes), cabia ao presidente o título de “mãe dos ricos (Cf. Isto é, “Brasil 500 anos”, 1998,
p. 111-128).
127
trabalho, emancipação feminina.
Suas reivindicações se refletiram nas inquietações dos estudantes e acabaram
ancorando muito de seus sonhos idealistas ao chão concreto da restauração
de uma sociedade que pedia o reconhecimento da dignidade e os direitos de
todos os despossuídos. As atenções dos jovens mais politizados voltavam-se
para as lutas dos trabalhadores e de suas organizações, enquanto cresciam as
preocupações das classes dominantes pelos levantes que multiplicavam-se por
toda a parte (Semeraro, 1994, p.21).
Foram anos de grande ebulição principalmente nas universidades
católicas em que os estudantes reivindicavam transparência ética, dignidade e
liberdade. Através dos movimentos de esquerda, os universitários e trabalha-
dores pretendiam mudar o curso da história do Brasil, e o pensamento de
Emmanuel Mounier atravessou fronteiras; nele os jovens encontraram
respostas aos seus maiores anseios. Com isso, revoluções insurgiram-se
contra poderes ditatoriais, pois se havia percebido um outro viés:
As ameaças maiores à humanidade não surgiam tanto dos conflitos armados, e
sim das diversas opressões, da dependência dos povos, do conformismo, da
alienação, da manipulação das massas. Como pregava[m] a[s] filosofia[s]
existencialista[s], era preciso voltar-se para o compromisso político, para o
“engajamento” na “situação” promovendo a vida “autêntica”, a vivência da
liberdade e da consciência responsável (Ibid., p.20).
66
Constança Marcondes César lembra que, “Em 1950 floresce o
personalismo de Mounier. É sob o impacto de sua filosofia que a Ação Católica
vai trabalhar e em 1960, principalmente, sua obra será muito difundida nas
Universidades Católicas” (1988, p.60).
67
1.1 Ação Católica no Brasil e os campos de atuação
66
Optamos por “as filosofias existencialistas” no plural, por concordar com Mounier
quanto a sua posição de que o existencialismo possui raízes mais antigas, mas aparece
normalmente ligado a uma corrente precisa do pensamento moderno, no sentido de que, trata-
se de “uma reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das ideias e da filosofia
das coisas.” Neste sentido, referindo-se à Árvore existencialista”, com suas várias
ramificações, preferimos falar de existencialismos (Cf. Mounier, 1947, p.7-14).
67
Quando de minha defesa de dissertação (“A pessoa como desafio na sociedade
globalizada e a atualidade do pensamento ético personalista de Emmanuel Mounier”) para os
componentes da banca de mestrado na PUC-CAMP (2003), tive o prazer de contar com a
presença da Profa. Constança, que revelou seu apreço pelo personalismo de Emmanuel
128
A Ação Católica foi idealizada com a pretensão de estabelecer a
presença da Igreja na sociedade, reconquistando a elite intelectual, as massas,
em especial os jovens e a classe trabalhadora atraída por movimentos de
inspirações anarquistas, fascistas e comunistas. A Ação Católica propagou-se
na Itália durante o pontificado de Pio XI (1922-1939), quando este a estruturou
e a definiu como um movimento organizado de participação de católicos leigos
no apostolado hierárquico da Igreja. Tal ideia de “participação” provocou
reações, visto que significava “a entrada de não-cléricos no preservado espaço
que parecia exclusivo dos sacerdotes” (Gómez de Souza, 2004, p.63). Foi com
Pio XII que o termo “participação” foi trocado por “colaboração”, atrelado ao
que se chamou de “Mandato”, que significava o “laço formal que liga um
Movimento da Ação Católica à Igreja hierárquica, de quem recebe os direitos e
garantias” (Garrone, 1960, p.64).
No Brasil, D. Sebastião Leme de Silveira Cintra, arcebispo do Rio de
Janeiro, em 1923 promoveu a Ação Católica, tendo por ponto de partida as
elites.
68
Em 1929, o arcebispo de Porto Alegre, D. João Becker publicou uma
Carta-pastoral, espelhando-se na Ação Católica italiana, que consistia de
quatro setores específicos de atuações voltadas para os homens (Homens da
Ação Católica - HAC), para as mulheres (Liga Feminina da Ação Católica -
LFAC), para os jovens (Juventude Católica Brasileira - JCB Masculina) e para
as moças (Juventude Feminina Católica - JFC) (Beozzo, 1984, p.30). em
meados de 1930, chegou ao Brasil o modelo de um movimento criado na
Bélgica, em 1923, pelo Padre Joseph Cardjin (filho de operários), denominado
Mounier. Ela disse: “Naqueles tempos, fui uma militante apaixonada pelo pensamento
personalista”.
68
Cf. Carta apostólica Quamvis Nostra, Documentos Pontifícios, 42, Petrópolis:
Vozes,1950. Veja o Sítio: http://www.vatican.valholy_father/pius_xi/letters/documents/hf_p-
xi_lett_19351027_Quanvis-nostra_it.html (acessado em 06/07/2009, Libreria Editrice Vaticana).
Alceu Amoroso Lima afirmava que o propósito da A.C. era de influir em três meios sociais,
entre os operários, entre os estudantes e entre os intelectuais. Para ele, estes últimos de modo
particular haviam provocado o sofrimento da sociedade moderna, pois separaram o
pensamento da realidade e as ideias da realização: “A espiritualização dos meios intelectuais
brasileiros, primeiro dos nossos propósitos, o é, pois uma obra de alheamento social ou de
simples culto da cultura, como se faz nos meios intelectuais agnósticos, e sim uma empresa de
incalculável alcance, tanto para o enriquecimento da própria inteligência, como para sua
irradiação moral e social. Por isso tanto nos esforçamos na promoção de uma cultura superior
inspirados nos princípios mais sadios da Razão e da Fé. E daí nossa atuação nos meios
intelectuais” (1935, p.17).
129
Juventude Operária Católica (JOC), cujos núcleos floresceram nas cidades de
São Paulo e Rio Grande do Sul, e que mais tarde recebeu o nome de
“especializado”.
69
Em seguida, surgiu a Juventude Universitária Católica (JUC),
precedida pela Associação dos Universitários Católicos (AUC).
Dom Sebastião Leme, com seu plano de mobilização e organização
social e política dos católicos, contou com um quadro de líderes leigos de
grande influência no meio social e cultural, como a da figura marcante de Alceu
Amoroso Lima, conhecido pelo pseudônimo “Tristão de Athayde”, que tinha se
convertido ao catolicismo em 1928 e que havia, segundo ele, encontrado na
obra Humanisme intégral (1936), de Maritain, as respostas às indagações
acerca dos dramas sociais da época. Contou também com a presença do
intelectual, ex-militante anarquista, católico convertido, Jackson de Figueiredo
Martins. Jackson foi responsável pela criação da revista “A Ordem” e do
“Centro Dom Vital” no Rio de Janeiro.
A revista foi criada em 1921 por um pequeno grupo de católicos. O
Centro em 1922 e passou a funcionar como uma associação civil católica,
ligada à Igreja, com o papel de a auxiliar na tarefa de reconquista dos fiéis e
também na difusão do cristianismo entre os intelectuais e a elite. Assim,
“A Ordem absorveu a maior parte dos intelectuais católicos em seu círculo,
ofereceu cursos laterais de Teologia, Filosofia e História, seguiu voltada para o
estudo e a discussão do pensamento católico, bem como incentivou o
apostolado católico de seus membros” (Busetto, 2002, p.48,49).
70
Com a morte prematura de Jackson em 1928, por afogamento, Alceu
Amoroso Lima assume a direção dos dois órgãos (A Ordem e o Centro Dom
Vital), até o ano de 1968, a pedido de Dom Sebastião Leme (Lima, 1971, p.12).
69
Mesmo antes de instituir o modelo italiano no Brasil, havia núcleos espalhados pelo
país. “Quase sempre isto sucede em torno de sacerdotes seculares e religiosos que haviam
conhecido, por ocasião de seus estudos em Roma, a Ação Católica Italiana, fortemente
incrementada pelo papa, e procuravam, de algum modo imitá-la. Ou, também, pelo influxo da
Juventude Operária Católica (JOC) da Bélgica, vitoriosa graças ao Pe. Cardjin e de um grupo
de trabalhadores. As publicações e notícias de tal organização suscitaram o interesse de
alguns sacerdotes e leigos entre nós” (Dale, 1985, p.14).
70
Para Luiz Alberto, o fato de a revista ser denominada “A Ordem” não possui nenhuma
alusão ao lema positivista da bandeira nacional; pretendia enfrentar a desordem social, sendo
uma reação ao mundo moderno, pois “Jackson declarava-se convictamente reacionário, na
linha do francês Louis Veulliot, ou de Joseph de Maistre, que lutaram para restaurar o ancien
régime” (Gómez de Souza, 2004, p.189).
130
Inicialmente continua o trabalho deixado por Jackson, porém com menos
energia quanto à imediatez das questões políticas, mesmo que contando com a
maioria de seus membros ligados ao Integralismo.
Durante os anos 30, Amoroso Lima, em consonância com o pensamento
católico conservador e simpático aos princípios políticos do corporativistimo
autoritário, passou a repelir qualquer idéia de modernização social e, atuando
como íntimo colaborador de Dom Leme, contribuiu na criação da Ação
Universitária Católica (AUC), da Liga Eleitoral Católica (LEC) e da (ACB) Ação
Católica Brasileira (Busetto, 2002, p.49).
71
mais tarde, Amoroso Lima adotou o pensamento católico
democrático e reformista de Jacques Maritain, pensamento muito criticado e
atacado pelos setores tradicionais.
Em 1934, Amoroso Lima foi nomeado primeiro presidente nacional da
Ação Católica Brasileira, permanecendo até 1945 (Lima, 1971, p.13). Diante de
suas atividades na ACB, no Centro e na Revista, tornou-se um dos maiores
divulgadores do pensamento de Maritain nos círculos católicos no Brasil e um
expressivo intelectual.
No outro lado da ACB, na cidade de São Paulo, em contraposição ao
pensamento de Alceu, encontrava-se o dirigente leigo Plínio Correia de
Oliveira, apoiado pelo vigário-geral da arquidiocese, Pe. Castro Mayer. Em
1943, Plínio escreveu um livro (Em defesa da Ação Católica) opondo-se a
Amoroso Lima, que havia escrito em 1938 Elementos da Ação Católica. Surgia
71
Foi na AUC, que os estudos de religião e filosofia permearam a vida dos jovens
militantes. Em 1932, através da energia de Alceu, nasce também o Instituto Católico de
Estudos Superiores, sob a direção de Sobral Pinto. Os estudantes acolhidos chegavam de
diversas faculdades, como as de Direito, Medicina e Politécnica. Detalhe importante é que
certos jovens se despertaram em suas vocações religiosas. Dentre muitos, vejamos alguns:
“No primeiro grupo encontram-se: Dom Basílio Penido, O.S.B., que vinha do noviciado da
Companhia de Jesus e estudava medicina. Jovino Irineu Joffily, da Paraíba, estudante de
química industrial, um ‘líder formidável’ que arrastou vários outros para os dominicanos;
Clemente Isnard, O.S.B., estudante de direito e hoje bispo de Nova Friburgo (RJ); Sebastião
Hasselman, O.P., que, com Romeu Dale, O.P., e Joffily, O.P., fez seu noviciado na França. Frei
Romeu Dale, O.P., será durante 12 anos (1949-1961) o assistente nacional da JUC; Dom Leão
Almeida Matos, O.S.B., médico também” (Cf. Beozzo, 1984, p.24-29).
Importante também lembrar a criação da LEC. Jackson, anos antes da Revolução de 1930,
percebeu a necessidade de novos ajustes com o universo da política e propôs a D. Leme a
criação de um partido católico. D. Leme se opôs ao partido, mas concordou na criação da Liga
Eleitoral Católica, uma “espécie de tribunal privado eclesiástico, para julgar os candidatos a
postos políticos, em função de seu alinhamento diante dos interesses corporativos da Igreja:
ensino religioso, indissolubilidade do casamento etc. Uma vez mais, o dirigente seria Alceu,
comandante em tantas frentes” (Cf. Gómez de Souza, 2004, p.190).
131
um conflito irreconciliável entre as partes. De um lado, um esforço para
repensar o problema da atualidade quanto à liberdade, a democracia, a
participação social; do outro, tudo que fosse considerado moderno e
incomodasse o tradicional era qualificado como anticristão. Segundo Gómez de
Souza (2004, p.64) “O modelo de referência destes últimos era a velha
cristandade medieval, sobre a qual Correia de Oliveira ensinava na
universidade. Fazendo frente a ela, Maritain, em seu livro Humanismo Integral,
de 1936, falava da Nova Cristandade, numa sociedade pluralista”.
Em 1943, morre o arcebispo de São Paulo D. José Gaspar d’Afonseca e
Silva, sendo nomeado D. Carlos Carmello de Vasconcelos Mota. Cessa a
influência de Castro Mayer, que logo foi nomeado bispo de Campos. Durante
este período de mudanças, São Paulo recebe a presença de três sacerdotes
canadenses da Congregação de Santa Cruz, que traziam consigo uma vasta
experiência em Ação Católica Especializada. Neste ínterim, chegaram também
dois dominicanos que regressavam de seus estudos na França, Frei Rosário
Joffily e Frei Romeu Dale, este assumiria por muitos anos a função de
assistente nacional da JUC.
72
As mudanças não param. Quase que ao mesmo
tempo, morre D. Sebastião Leme. Para sua posição, foi nomeado D. Jayme de
Barros mara, que não comungava as ideias de Amoroso Lima. Por isso,
Amoroso Lima logo se afastou da ACB.
Nos anos seguintes, os dirigentes da Ação Católica se voltaram para a
reorganização institucional interna. Os mais tradicionais foram se desligando do
movimento. Luiz Alberto Gómez de Souza lembra que a ACB, além do
integrismo radical, fora também influenciada em alguns setores pelo
integralismo de Plínio Salgado,
calcado no pensamento corporativo, com fortes influências do salazarismo
português. O próprio Amoroso Lima, sem nunca ter pertencido a essa corrente,
chegara a recomendar aos católicos uma possível adesão ao integralismo.
Logo depois tomava distâncias dessa organização, assim como o Pe. Hélder
Câmara, que fora em 1932 um importante líder integralista em Fortaleza. Até
1950, em alguns poucos centros (Porto Alegre foi um deles), se podiam
72
Importante lembrar que a AUC, nascida a partir do Centro Dom Vital, integrou-se e se
transformou em 1937 na JUC, que já havia sido criada em 1935.
132
encontrar certas simpatias pelo integralismo, que logo iriam desaparecendo
(Gómez de Souza, 2004, p.65).
A ACB, com a saída de Alceu Amoroso Lima, perdia um grande líder,
mas ao mesmo tempo arejava-se por receber novas ideias que a fizeram
distanciar-se do modelo centralizado italiano. Ascendeu à presidência, o padre
cearense Hélder Câmara que ocupou posição de destaque entre os anos de
1947 a 1964. Sensibilizado pelo problema social, ele se tornou o símbolo do
chamado “Clero Progressista”:
Ao buscar aprimorar a Igreja, Dom Hélder ajudou a alterar o rumo de uma das
instituições mais antigas e importantes da América Latina. (...) nos anos 60 e
70, a Igreja passou a se ocupar de modo crescente de questões ligadas à
desigualdade social e à necessidade de uma maior participação da sociedade
dentro do processo político. Dom Hélder simbolizou tais transformações, e
juntamente com um número de outros bispos progressistas, lutou por uma
alteração radical das estruturas sociais e pelo estabelecimento de um
socialismo humanista de gênero Latino-americano (Serbin, 2009).
73
Em 1950, houve grande movimentação no que se refere à organização
dos movimentos de leigos existentes no Brasil. Os modelos importados, fosse o
italiano, o canadense ou o francês, foram muito questionados, e a pergunta em
pauta era: qual o modelo a se seguir?
... a pressão de alguns assistentes eclesiásticos, dirigentes leigos e a influência
marcante dos padres Hélder Câmara e José da Távora (futuros bispos
auxiliares do Rio de Janeiro) levaram à transformação total, em 1950, para o
modelo especializado, com os movimento masculinos e femininos de jovens da
área rural (JAC), estudantes secundários (JEC e JECF), de setores da classe
média e urbana (JICF, Juventude independente), operários (JOC e JOCF) e
universitários (JUC). A eles corresponderiam, teoricamente, organizações
73
Para Lima Vaz é importante observar que, tanto para os integristas” como para os
“progressistas”, o passado possui grande importância. Os primeiros buscam no passado a
imagem ideal tornando-o o paradigma definitivo da cultura cristã que precisa ser restaurada. Os
segundos buscam na raiz do cristianismo as virtualidades primeiras que precisam ser
transplantadas neste novo tempo. “Dois termos, característicos de duas épocas do catolicismo
francês, exprimem significativamente essa dupla visualização do passado: restauration é um
termo “integrista”, ressourcement, expressão criada por Péguy num outro contexto, passa a
fazer parte do vocabulário “progressista”. Aos primeiros importa fixar o segmento do passado
em que a Igreja dominou as instituições, as ideias, e toda a vida dos homens: são os cultores
de uma Idade Média muitas vezes idealizada. Os segundos remontam à simplicidade das
origens para tentar fixar os princípios que permanecem, para além das formas históricas
transitórias: são os que interrogam o Novo Testamento sobre a “essência do cristianismo”, ou
se voltam para um cristianismo primitivo, também frequentes vezes idealizado” (1998, p.142-
143).
133
adultas, ditas ligas, que tiveram vida efêmera, umas poucas, LIC e LOC, seriam
origem das futuras ACI e ACO (Gómez de Souza, 2004, p.63,64).
74
Com a decisão de se especializar, de acordo com o meio no qual
trabalhava, a Ação Católica Brasileira adota o “modelo especializado” a partir
de 1950 e terá por norte o pensamento de Jacques Maritain (em especial, o
Humanismo integral), principalmente no meio universitário, pelo que a JUC
ocupará posição de destaque, sendo considerada o setor mais importante da
ACB.
1.2 O despertar de inspiração libertária
Dentre os Movimentos da ACB, a JOC não fora muito dinâmica durante
os anos de 1935 a 1948. Os líderes da ACB o acreditavam na necessidade
de despender maiores envolvimentos, articulações e forças em um movimento
constituído de operários, mesmo sabendo que o pensamento marxista possuía
força neste meio e oferecia resposta às inquietações da época. Durante este
período, a JOC sobreviveria graças a esforços isolados de alguns sacerdotes e
bispos, que se preocupavam com a classe operária.
Mesmo com dificuldade, a estrutura da JOC no contexto nacional foi
adquirindo, com o passar do tempo, uma forma organizacional valiosa à
medida que conhecia seus próprios limites e problemas de várias ordens. Esta
experiência fê-la reconhecer, num breve prazo, sua real missão e compromisso
com o trabalhador urbano. Sua estrutura tornou-se composta de Seções
Locais, Federações, Confederações, Comitê Nacional; oferecendo Serviços
Jocistas e Campanhas de acordo com os Estatutos. Cada Seção Local tinha
por finalidade resgatar os jovens operários afastados da Igreja, fazendo-os
participar das atividades recreativas, da discussão dos problemas trabalhistas,
dos cursos de alfabetização e dos “Círculos de Estudos”. A Seção se
compunha de uma equipe de militantes que recebia instruções e orientações
74
Significado de algumas siglas ainda não descritas: JEC (Juventude Estudantil
Católica); JECF (Juventude Estudantil Católica Feminina); JICF (Juventude Independente
Católica Feminina); JOCF (Juventude Operária Católica Feminina); LIC (Liga Independente
Católica); LOC (Liga Operária Católica); ACI (Ação Católica Independente); ACO (Ação
Católica Operária).
134
através do “Boletim do Militante”, com uma agenda de reuniões programadas
pela Equipe Nacional da JOC.
Do conjunto de seções de uma determinada diocese, formava-se a
Federação, que era organizada como um comitê composto por três dirigentes e
um assistente eclesiástico. Os dirigentes também eram intermediários entre as
seções e o Comitê Nacional. as muitas Federações reunidas, formavam o
Conselho Nacional, que elaborava o caminho (Programa Nacional) a ser
palmilhado pelo Movimento. Devido à extensão do território brasileiro, criaram-
se as Confederações ou Regiões Jocistas, o que facilitou o conhecimento dos
problemas regionais.
Na composição do quadro de pessoal, foi importante o trabalho dos
primeiros jovens com dedicação exclusiva, os chamados “propagandistas”, que
tinham a missão de difundir o Movimento por toda a região. Não tardou para
que surgisse também o “Encontro Anual Nacional” dos dirigentes das
confederações, visando uniformizar as atividades e adotar ideias comuns por
todo o país. Outro elemento importante foi a criação do jornal a “Juventude
Trabalhadora”, de tiragem mensal, que pretendia ser um veículo de formação e
informação.
De certa forma, todas estas articulações foram muito importantes no
sentido de fortalecer a presença do Movimento em muitas regiões do Brasil,
pois se constatou que “em 1956 funcionavam 424 Seções, dez mil membros
eram atuantes, atingindo mais de cem mil jovens operários. Era inegável a
eficiência organizacional jocista, considerando que a JOC fora oficializada há
alguns anos apenas” (Muraro, 1985, p.43).
Reconhecida oficialmente pelo clero brasileiro em 1948, a JOC
encontrou o terreno propício para seu desenvolvimento graças ao novo
ambiente industrial do pós-guerra, da injeção de capital estrangeiro no país, do
número crescente de operários e dos sonhos libertários da juventude. Para
isso, os militantes jocistas esforçaram-se muito em que a JOC se tornasse
conhecida. Empreenderam grandes concentrações pelo Brasil, através de
passeatas, de peregrinações, como a dirigida a Aparecida do Norte em 1953, e
a participação no congresso Eucarístico no Rio de Janeiro em 1955. Através
desses eventos, despertaram jovens para a vocação cristã, para a importância
135
da família, para o lazer e a cultura. Nestes primeiros anos como Movimento
oficial, pode se afirmar que “a JOC era caracterizada mais como um movimento
religioso do que como uma organização de trabalhadores. A harmonia com o
Estado e com a hierarquia eclesiástica também era evidente” (Muraro, 1985,
p.50).
Entre os anos de 1956 a 1961, o Brasil vivia em um clima de euforia
durante o governo de Juscelino Kubitschek, com um crescimento econômico
real. Seu slogan “cinquenta anos de progresso em cinco de governo” parecia
realizar-se. Brasília tomava forma em concreto armado, a autosuficiência de
bens de consumo, o “Programa das Metas”, os grandes investimentos, as
pesquisas encorajadas pelo governo, no que se refere aos problemas de
desenvolvimento do Brasil, através do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB)
75
, despertavam otimismo e um nacionalismo ímpar.
Somente em 1958, a JOC parece ter compreendido o porquê de sua
existência. A partir daí, voltou-se para o jovem operário, o abandonado, quando
transpassou os núcleos paroquiais e chegou até as fábricas, às oficinas,
adentrou os ambientes dos sindicatos, dos clubes e dos bairros. Foi a partir do
início da década de 1960 que os jocistas se envolveram concretamente na
defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e políticos do mundo
operário. Isso, muito se deve, à aproximação com os militantes mais radicais
de esquerda, a chamada “esquerda católica” constituída inicialmente por
membros da JUC e da JEC e, posteriormente, formando uma importante tríade,
a própria JOC.
75
Criado como órgão do Ministério da Educação e Cultura (MEC) em 14/07/1955, o ISEB
tinha por meta elaborar uma ideologia com o intuito de compreender a realidade brasileira e
promover o desenvolvimento nacional, que ficou conhecida como “nacional desenvolvimen-
tismo”. Apesar de criado no governo de Café Filho, inicia suas atividades quando Juscelino
Kubitschek assumiu a presidência do país. O ISEB reuniu nomes reconhecidos no meio
intelectual, como Sérgio Buarque de Holanda, Miguel Reale, lio Jaguaribe, Roland Corbisier,
Cândido Mendes, Alberto Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Álvaro Vieira Pinto, dentre
outros. Em 1958, uma crise interna divide o Instituto. De um lado, o grupo de Hélio Jaguaribe
se opõe à corrente de que fazia parte Guerreiro Ramos e Corbisier, que exigia uma atuação
mais compromissada e menos acadêmica. Com o “golpe militar de 31 de março de 1964”; o
presidente da república João Goulard foi deposto, em 13 de abril de 1964 o ISEB foi extinto e
instaurado um inquérito policial-militar (IPM) para apurar as atividades dos isebianos. Muitos
foram exilados (Cf. Fundação Getúlio Vargas - Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil - FGV-CPDOC).
136
Da mesma forma que a JOC, a JUC levou também certo tempo para
entrar em sua fase mais produtiva. Como movimento especializado, nasce
oficialmente e adquire relevância a partir de 1950. Após esta data, houve uma
aproximação com as esquerdas políticas do país. É este o período em que se
inicia o envolvimento dos jovens universitários não só com as preocupações de
ordem religiosa, doutrinária e cultural, mas também as ultrapassando no
sentido de críticas e lutas por reformas do sistema educativo e envolvimentos
com os problemas sociais, políticos e econômicos.
76
Ciente da diversidade regional do Brasil, a Coordenação Nacional, em
1950, decide realizar anualmente o congresso do Conselho Nacional da JUC,
com o intuito de reunir dirigentes jucistas de todo o país para debates e
decisões. Passagem crucial na vida da JUC foi a da insatisfação entre os
grupos de liderança do movimento a partir de 1956, quando se percebeu a
grande quantidade de debates, em especial nos conselhos nacionais, e que
muito pouco se fazia para o movimento em si: “A causa da ineficácia da JUC foi
encontrada na ‘falta de vida do movimento’, em suas discussões e orientações
teóricas excessivamente abstratas, na falta de engajamento na realidade
concreta” (Kadt, 2007, p.85).
Algumas alterações começam a surgir. A JUC de Pernambuco adota
uma orientação mais prática e compromissada socialmente seguindo a JUC de
Recife, que nos anos de 1957 e 1958, focou temas como universidade e
sociedade, saúde, miséria, fome. no ano de 1958, estes jucistas agiam nas
favelas seguindo suas idéias e descobriam a realidade brasileira.
No IX Conselho Nacional, em julho de 1959, vários temas foram
abordados, e exigências apontadas para uma nova consciência, como a
“Missão da Igreja”, “A Igreja e o Temporal”, “Condições do engajamento cristão
no Temporal”, além de seminários para preparar os assistentes da JUC. Muitos
destes assuntos foram tratados pelas comissões. É neste evento que se inicia
uma nova etapa da JUC, aquela que se preocupa com a educação, com o
76
Beozzo (Cf. 1984, p.35) opta por uma certa divisão quanto à história da JUC. Divide-a
em três etapas: Etapa preparatória (1943-1950); Etapa de organização, expansão e
consolidação (1950-1960); Etapa de engajamento no temporal e crise com a hierarquia (1960-
1967).
137
engajamento temporal e que tem por forte marca, o início da crise com a
Hierarquia.
A JUC na época (1959-1964) torna-se o mais proeminente movimento
especializado dos setores da Igreja. No decurso da década de 1950, o
Movimento foi aos poucos se sensibilizando com os problemas nacionais e, a
cada Conselho, os debates tornavam-se mais tensos e exigentes quanto à
ação. Por isso, ao assumir posições inovadoras e muito questionadoras, logo
suscitou preocupações e fortes reações:
os jovens da JUC passaram a questionar aspectos das ideias dominantes na
Igreja, como a passividade política diante da ordem estabelecida, num contexto
de convivência universitária com outras correntes de pensamento,
especialmente as socialistas e comunistas, às quais precisavam fazer frente.
Eles eram influenciados pela discussão teórica no interior da própria Igreja, em
particular pelas obras de Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Pierre
Teilhard de Chardin; ficaram marcados pelo pontificado progressista do Papa
João XXIII a partir de 1958; além de confrontar-se com as desigualdades
gritantes da sociedade brasileira e com o ascenso na mobilização política de
trabalhadores urbanos e rurais, numa dada evolução da conjuntura política
nacional nos anos liberais do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960)
e internacional, notadamente com a vitória da Revolução Cubana de 1959
(Ridenti, 2002, p.213,282).
De uma forma ampla, o mundo vivia um novo contexto histórico,
permeado por revoluções de libertação nacional amparados por ideais
socialistas, como a revolução de Cuba, a da Argélia, as lutas anticolônias na
África, na Ásia, entre outras. O modelo soviético de socialismo passou a ser
contestado, considerado burocrático, conformado e acomodado à ordem
internacional estabelecida pela guerra fria. Por isso, surgiam novas referências
na esquerda constituída na maioria de católicos, bem como de protestantes.
Em 1960 a JUC estava presente em 52 cidades brasileiras, em locais
nos quais funcionavam universidades ou faculdades, em especial Faculdades
de Filosofia. Importa lembrar que, até 1959 em São Paulo, havia um grupo que
ocupava a posição de liderança nacional constituída por alguns dirigentes
como Luiz Eduardo Wanderley, Plínio Arruda Sampaio, Paulo Gaudêncio,
Celso Lamparelli, Francisco Withacker Ferreira e o assistente Monsenhor Enzo
138
Gusso. Nos anos seguintes (1959-1964), será o grupo de Belo Horizonte - MG
que irá assumir o centro de maior representatividade do Movimento nacional.
2. Exigências de um novo pensamento humanista para o contexto
histórico concreto brasileiro
Na circular de preparação para o III Conselho Nacional em Salvador
(Bahia), em janeiro de 1953, foi solicitada pela equipe nacional da JUC, aos
participantes, a leitura das obras Religião e Cultura, O Homem e o Estado de
Jacques Maritain, Les hommes contre l’Homme, La Mission de l’intellectuel de
Gabriel Marcel e As fronteiras da Técnica de Gustavo Corção. Estiveram
presentes 56 dirigentes de 16 cidades universitárias, que representavam
jucistas de 105 faculdades com 415 militantes e 260 simpatizantes.
Participaram também 8 assistentes (padres encarregados do movimento, no
sentido espiritual) e a equipe nacional. Estes, preocupados com a organização
dos Conselhos futuros, decidiram promover um encontro nacional preparatório
de 6 a 12 julho (Encontro Nacional de Assistentes da JUC). Para o próximo
Conselho (1954), o tema escolhido centrou-se na questão social e nesse ano,
oficialmente, ocorreu o I Encontro Nacional de Assistentes da JUC.
José Oscar Beozzo (Cf. 1984, p.56,57) esclarece que, nos anos
seguintes, nas leituras solicitadas ao Movimento aparecem frequentemente as
obras de Congar, de Lubac, Daniélou, Perrin, Voillaume, Suhard, Thils e no
plano social e filosófico, ao lado de Maritain, lia-se Lebret, Mounier, Calvez e
Karl Rahner.
Porém, no VIII Conselho/V Encontro, realizado em Campinas em 1958,
surgiram pesadas críticas ao Movimento e uma cobrança exigente quanto ao
comprometimento jucista no temporal. Em 1959, no IX Conselho/VI Encontro
em Belo Horizonte, inicia-se a nova etapa do Movimento em torno “Da
Necessidade de um Ideal Histórico” (Bezerra, 1979)
77
para a JUC, apresentado
77
Almery Bezerra fará uso do livro de Jacques Maritain, Humanisme Intégral, para
utilizar a expressão ideal histórico”. No Brasil, a obra de Maritain foi traduzida por Afrânio
Coutinho, Companhia Editora Nacional,1945.
139
em um texto pelo assistente da JUC de Recife, padre Almery Bezerra. O padre
Bezerra desperta os jovens e encontra apoio fundamental do grupo mineiro
integrado pelo assistente padre Luiz Viegas, Herbert José de Souza (Betinho),
Antônio Otávio Cintra, Henrique Novaes, Paulo Haddad, Vinícius Caldeira
Brant, dentre outros.
Para Luiz Alberto Gómez, por trás da busca de um ideal histórico, o que
realmente se pretendia era afirmar um programa que servisse de guia para
inserir os cristãos no seio da sociedade. Os motivos seriam a ausência de um
pensamento democrata-cristão significativo, a falta de reflexão madura sobre o
cristianismo e sobre a realidade brasileira. Diferentemente, os países vizinhos,
como o Chile e a Venezuela, através dos movimentos social-cristãos e os
partidos democrata-cristãos, encontravam-se profundamente inspirados em
Maritain (Cf. Gómez de Souza, 2004, p.71).
Beozzo lembra que é exatamente neste momento que o grupo mineiro
se sobressai, inaugurando uma nova etapa da JUC. “Será a equipe de Belo
Horizonte que, pela primeira vez, levantará a reforma das estruturas em toda
sua acuidade, auxiliada, sem dúvida, pela presença de um importante grupo de
jucistas da Faculdade de Ciências Econômicas” (1984, p.59). Neste sentido,
Beozzo diz que foi na tentativa de concretização das premissas teóricas que a
equipe de Belo Horizonte, na maioria estudantes de ciências sociais da UFMG,
se destacou, pois, ao perscrutar o problema do “desenvolvimento” e do
“nacionalismo”, a equipe procurou “elaborar um ideal histórico para o Brasil,
dentro de uma linha socialista” (Ibid., p.59).
Ainda segundo Beozzo, a liderança central do Movimento deslocou-se
gradualmente de São Paulo para Belo Horizonte. Dentro da perspectiva de
comprometimento acentuado no temporal, a equipe de Belo Horizonte, através
do Ideal Histórico, propôs mudanças profundas das estruturas econômicas,
políticas e culturais da sociedade. Enquanto São Paulo passava por enormes
transformações do “gigantismo urbanono que se refere à elevada produção
industrial, o crescimento das grandes correntes migratórias (internas e
externas) –, ao mesmo tempo ocorria a quebra do tradicionalismo, o aumento
dos movimentos de esquerda junto às classes operárias, ocorrendo também
que, aos poucos, a Igreja perdia espaço para muitas outras vertentes religiosas
140
que cresciam juntamente com a população. Mesmo a Universidade Católica de
São Paulo no plano científico e cultural não poderia concorrer, nem de longe,
com a Universidade de São Paulo. Diferentemente da capital paulista, a jovem
e moderna Belo Horizonte conservava sua tradição religiosa, não estando as
escolas e as universidades articuladas com o esmagador aparelho industrial.
Então, “Uma presença importante da JUC na Faculdade de Ciências
Econômicas facilitaria a elaboração deste projeto de reforma econômica e
social da sociedade, animada diretamente por uma motivação religiosa”
(Beozzo, 1984, p.85).
Importante ainda lembrar que, nessa época, todo o meio universitário
encontrava-se muito politizado, o que era considerado uma atividade normal e
necessária à JUC. Os militantes participavam dos assuntos e debates sobre a
reforma universitária, a política estudantil, os diretórios acadêmicos, as uniões
estaduais e como candidatos na União Nacional dos Estudantes (UNE).
No X Conselho Nacional/VII Encontro realizado na cidade do Rio de
Janeiro (1960), comemoraram-se os dez anos da JUC e contou-se com a
presença de 500 militantes de vinte diferentes Estados, além de representantes
jucistas da Argentina, Colômbia e Uruguai.
O Movimento alcançara uma repercussão surpreendente, sobretudo nos
anos sessenta. A mudança de orientação, a radicalidade evangélica, o
compromisso combatente, penetraram nos anseios dos jovens sedentos por
mudanças; dia após dia, somava-se maior número de militantes à JUC atraídos
pelos primeiros sucessos. Com o aumento extraordinário de universitários que
queriam integrar a JUC, os critérios de admissão foram modificados:
Se antes exigia-se uma vida de fé vivida a um nível mais intenso e autêntico,
agora requeriam-se qualidades de liderança em seu meio e a concordância
com as linhas do Ideal Histórico; a filiação à Igreja através de sinais visíveis,
como a oração e os sacramentos, passam a ser desvalorizados em proveito da
participação na construção de uma ordem temporal que encarnasse
concretamente os princípios evangélicos (Ibid., p.91).
Outra consequência importante, infeliz, no decorrer da história da JUC,
“certamente não desejada pelos militantes, e que fora depois objeto de
reflexão e lamentada pelos jucistas, referiu-se ao compromisso político, que se
141
deixou levar por conchavos e manipulações para eleger este ou outro
candidato. Para aqueles que o partilhavam de tais métodos e opções
ideológicas, ficou insustentável a convivência no Movimento.
78
Inevitavelmente
surgiram muitas controvérsias, ataques internos e externos que acompanharam
os novos passos da JUC.
2.1 O Ideal Histórico
Nos anos de 1959 e 1960, entre os jovens cristãos, constatava-se a
carência de um instrumental filosófico que sustentasse a proposta de um
compromisso concreto com a realidade brasileira. Padre Almery Bezerra, ao
viver o problema com os jovens, buscou em Jacques Maritain a resposta.
Bezerra pretendia trazer alguma luz ao problema enfrentado pelo Movimento:
“... não basta[va] saber que se tem uma tarefa a cumprir no mundo, não
basta[va] conhecer as teses de uma teologia cósmica ou ser posto dentro de
uma perspectiva de encarnação...”(Bezerra, 1979, p.79), mas era preciso saber
como executá-la; proclama aos militantes a necessidade do agir no “sentido
atual da história no momento exato em que vós sois chamados a fazê-la; para
que venhais a conhecer a maneira concreta e devida segundo a qual se deve
encarnar o vosso cristianismo” (Ibid., p.79).
Em Maritain, os argumentos para tal mudança significavam a hora de
“recristianizar”, momento de urgência para uma “nova cristandade”, um
“... regime temporal ou uma era de civilização cuja forma animadora seria cristã
e corresponderia ao clima histórico dos tempos em que entramos” (Maritain,
1945, p.128).
Maritain, ao apresentar o “ideal histórico de uma nova cristandade”,
indica que o Ideal Histórico é “uma imagem prospectiva, que significa o tipo
particular, o tipo específico de uma civilização, ao qual se tende em certa era
histórica” (Ibid., p.123). Para ele, um Tomás Morus, um Fénelon, um Saint
78
Vimos que Mounier alerta sobre desvios, impurezas da ação e os cuidados com a ação
mutilada. Veja o Cap. II, subseção 2.7; Cap. III, Subseção 3.1.1.
142
Simon, ou um Fourier construíram uma “Utopia”, pela qual um “ser de razão” se
constituía isolado de toda existência datada e distante do clima histórico em
particular. Certamente, foram expressões máximas absolutas de uma perfeição
social, política “... e da arquitetura na qual a minúcia imaginária é levada tão
longe quanto possível; por isto que se trata de um modelo fictício proposto ao
espírito no lugar da realidade” (Maritain, 1945, p.124).
O “ideal histórico concreto” de Maritain não se referia a um “ser de
razão”, e sim, a uma essência ideal realizável (dentro das dificuldades e
imperfeições); não era uma obra feita, mas em permanente confecção; uma
“essência capaz de existência”, inserida num dado clima histórico,
correspondendo, por consequência, a um “máximo relativo” (ao clima histórico)
de perfeição social e política, no qual tudo implica, em uma ordem efetiva, a
existência concreta. Maritain afirma não desconhecer a importância do papel
histórico das utopias e, em especial, a fase chamada utópica do socialismo em
seu desenvolvimento ulterior. Mas pensa que o “ideal histórico concreto e um
justo uso dessa noção permitiriam, a uma filosofia cristã da cultura, preparar
realizações temporais futuras dispensando-a de passar por uma tal fase e de
recorrer a qualquer utopia” (Ibid., p.124).
Pretendia ele, para uma “cidade temporal”, um regime orgânico com
caracteres de uma civilização “comunitária, personalista e peregrinal”, com
alguns traços típicos para o clima histórico de então (Ibid., p.128). O primeiro
aspecto referia-se a um fim próprio, o bem comum que ultrapassa a simples
soma dos bens individuais e interesses pessoais, inserindo o indivíduo como
“parte do todo social”, encaminhando-o para um outro bem, o intemporal, para
conquistar a perfeição e sua liberdade espiritual. O segundo, o bem comum
temporal, deve estar a serviço dos fins sobrenaturais da pessoa humana. O
bem comum temporal é um fim “intermediário ou infravalente
79
, tem
especificação própria e se distingue do fim último e dos interesses eternos da
pessoa humana. Mas sua própria especificação o envolve numa subordinação
79
Maritain (Cf. 1945, p.129) entende que, precisamente, pode-se dizer “o bem da vida
civil” é um fim último em uma determinada ordem (finis ultimus secundum quid), sendo ele
próprio relativo e subordinado (por isso, intermediário ou infravalente) ao fim último absoluto
(finis ultimus simpliciter). A respeito, ver Tomás de Aquino. Suma Teológica, I,II, questão 65,
artigo 2.
143
a este fim, de onde recebe suas medidas dirigentes. Portanto, possui
consistência e bondade própria e condição de reconhecimento; estando,
porém, subordinado, não se torna um bem absoluto. “O absoluto centro de
fixação ao qual se refere não está nele, mas fora dele, e lhe é, pois, essencial
sofrer a atração de uma ordem de vida superior...” (Maritain, 1945, p.129). O
terceiro aspecto, a cidade terrestre com caráter de “momento terrestre”, refere-
se a uma sociedade de pessoas no sentido de que são viajantes. Estas
pessoas não se estabelecem em moradas definitivas, pois são peregrinos à
procura da felicidade terrestre. Para isso, carecem transpor o “vale de lágrimas”
através da multidão reunida, da existência do todo, do estado de justiça, da
amizade, da prosperidade e precisam, acima de tudo, que se ultrapassem, para
que possam influir na vida da alma e no destino espiritual da pessoa (Ibid.,
p.133).
Na cristandade
80
medieval, o ideal histórico era comandado por duas
dominantes: a da ideia da força a serviço de Deus e, a outra, o fato concreto de
que a civilização temporal estava de alguma maneira ligada ao sagrado e
implicava a unidade da religião: “Corresponde o ideal histórico concreto da
Idade Média, o mito ou símbolo do Santo-Império, ao que se pode chamar uma
concepção cristã sacral do temporal” (Ibid., p.141).
81
Na opinião de Maritain, essa concepção possui cinco “notas típicas”. 1)
Tendência a uma unidade orgânica de máxima qualidade com o intuito de
unificar temporalmente o mundo sob o Imperador, bem como, espiritualmente
sob o Papa. 2) Predomínio efetivo do papel ministerial do temporal, como
“causa instrumental” em relação ao espiritual. Como exemplo, as Cruzadas. 3)
Emprego do aparelho temporal para fins espirituais. Daqui procede a coerção
física, os abusos intoleráveis, a condenação à morte por heresia, a punição do
80
Sob a palavra cristandade, Maritain (1945, p.128) “designa certo regime comum
temporal cujas estruturas denotam, em graus e segundo modos de resto muito variáveis, a
marca da concepção cristã da vida. existe uma verdade religiosa integral; só uma Igreja
católica; pode haver várias civilizações cristãs, cristandades diversas”.
81
Entende-se que numa “civilização de tipo sacral, o auxílio em questão (do temporal ao
espiritual) é de ordem instrumental; nesta medida põe o braço secular sua espada a serviço do
espiritual. É normal então que a força de coação do Estado entre em jogo para proteger a fé da
comunidade contra as influências dissolventes; ninguém se espanta quando a consciência da
comunidade é vitalmente impregnada das mesmas certezas unânimes: pode-se dar mesmo,
como aconteceu na Idade Média, que a intervenção do Estado nestas matérias modere e
refreie os excessos das reações populares espontâneas. É tão natural à multidão linchar o
herege!” (Maritain, 1945, p.172).
144
corpo por preocupação com as almas. 4) Diversidade de “raças sociais”.
Disparidade de categorias sociais hereditárias compostas por hierarquias das
funções sociais e de relações de autoridade através de uma inferioridade
natural apoiada na ideia romana do paterfamilias, que advém do PaterDivinus.
5) Um Império de Cristo a edificar. Uma obra comum com a missão de
restabelecer a estrutura social e política a serviço do Redentor, através da
força do homem e da política batizada (Cf. Maritain, 1945, p.141-148).
Ao contrário, o “ideal histórico de uma nova cristandade”, embora
fundado nos princípios de uma cristandade medieval, irá diferir quando da
opção por outro caminho, o da concepção “profana cristã”
82
e não o da
concepção “sacral cristã” do temporal.
Fora do contexto da marcha para a unidade típica da Idade Média e da
dispersão espiritual mecânica da unidade pública, importa o retorno de uma
estrutura orgânica pluralista mais avançada, que trate com esmero as
estruturas econômicas, jurídicas e institucionais. Maritain a compreende como
uma sociedade não somente de indivíduos, mas uma cidade pluralista, que
reconhece nas “sociedades particulares uma autonomia tão alta quanto
possível e diversifica sua própria estrutura interna segundo conveniências
típicas de sua natureza” (Ibid., p.158).
Surgem dessa compreensão, cinco “notações” que, embora possuam
correlações, são opostas às “notas típicas”. A primeira, “o pluralismo” se
estende para as esferas da estrutura da cidade, da economia e da ordem
jurídica. A unidade temporal o seria mais a dos moldes da unidade sacral da
Idade Média, uma “unidade máxima”,
83
mas uma “unidade mínima”, que
consiste em uma organicidade superior, firmada nos pilares da liberdade, da
tolerância civil e da amizade pressuposta pelos princípios éticos primeiros. A
82
No caso da civilização profana, esta se caracteriza pela procura “do seu fim próprio
(infravalente), e é a tulo de agente principal (infraposto) que a cidade temporal cris
desempenha seu dever para com a Igreja”. A Igreja integra de forma pluralista as atividades
cristãs na própria obra temporal, conseguindo, com isso, agentes autônomos de acordo com a
ordem mais elevada. A cidade auxilia a efetivar sua missão própria, através das atividades
morais e espirituais (Cf. Maritain, 1945, p.173).
83
A unidade temporal vista na Idade Média possuía um sentido máximo exigente e
altamente monárquico. O centro de formação situava-se muito alto na vida da pessoa, acima
do temporal, situada nos corações e elucidada pelas estruturas políticas nacionais, imperiais e
centros de estudo, diante de uma dada unidade doutrinal, teológica e filosófica (Cf. Maritain,
1945, p.141-143).
145
segunda é a afirmação da “autonomia do temporal”, não mais instrumental, e
sim como um fim intermediário ou infravalente. A terceira nota trata da
“liberdade das pessoas”, adquirida pelas conquistas e realizações. É o
contrário do imposto pelo ideal medieval e liberal. Ela é fundada na ética da
pessoa, no amor e na liberdade. A seguinte, “a unidade de raça social”
pretende a igualdade, a condição comum entre os homens: “Oposição
simultânea à falsa concepção liberal dos tempos modernos e ao ideal sacral da
Idade Média” (Maritain, 1945, p.193). O caminho é a democracia personalista,
que exige muito empenho para não reduzir a liberdade aos aspectos
meramente formais e jurídicos. A última notação é sobre “a obra comum: uma
comunidade fraternal a realizar” na cidade temporal.
Para uma civilização cristã que não pode mais ser ingênua, não apareceria
mais a obra comum como uma obra divina a realizar na terra pelo homem,
porém antes como uma obra humana a realizar na terra pela passagem de algo
divino, que é o amor, nos meios humanos e no próprio trabalho humano (Ibid.,
p.195).
O princípio dinâmico não seria mais a ideia medieval de um “Império de
Deus” a ser edificado, muito menos, a ideologia da Classe, da Raça, da Nação
ou do Estado. É uma ideia não estóica, nem kantiana, e sim evangélica, de
dignidade da pessoa humana, de sua vocação espiritual e de seu amor
fraternal. Diante da vida profana e temporal, seria, porém, absurdo esperar que
todos os homens se tornassem bons. Por isso, são de suma importância, na
realização social-temporal, as verdades evangélicas de uma obra comum
profana cristã, para que as comunidades religiosas vivam fraternalmente. Mas
ainda é preciso um minimum doutrinal comum entre os crentes e os
descrentes, para que sirva de base de uma ação comum, em que cada um
comprometa-se ao maximum. É uma obra prática comum, profana cristã e não
sacral cristã, que compreende a plenitude e a perfeição das verdades. Isso
pode comprometer todo o cristianismo, a dogmática e a ética cristã, mas é
somente no mistério da Encarnação Redentora que o cristão percebe a
dignidade da pessoa humana. Portanto, é profana, pois não exigência de
uma obra comum “absolutamente de cada qual, como entrada, a profissão de
todo o cristianismo. Ao contrário, ela comporta em seus traços característicos
146
um pluralismo que torna possível o convivium de cristãos e não-cristãos na
cidade temporal” (Maritain, 1945, p.198).
Maritain acreditava que o “ideal histórico concreto” de uma “nova
cristandade” se tornaria límpido, e as verdades do cristianismo seriam salvas e
transmitidas “ao futuro purificando-as dos erros mortais em que estavam
comprometidas as verdades em prol das quais se esforçou a era moderna na
ordem cultural” (Maritain, 1945, p.199).
No texto de Almery Bezerra, encontramos inspirações e citações
retiradas diretamente do pensamento de Maritain. De acordo com uma
entrevista com um assistente da JUC em 1978, soube-se que Bezerra escolheu
Maritain, não por fidelidade ao neotomismo, pois ele nem se considerava
“maritaineano” no sentido em que esta palavra possuía na época (Gómez de
Souza, 1984, p.158). Escolheu-o, porque Maritain empreendera um enorme
esforço para abrir o pensamento da Igreja ao mundo contemporâneo que, aos
poucos, perdia o sentido do sagrado. Suas ideias sobre as categorias de
análise propunham avanços nas discussões em torno dos valores. No entanto,
é sabido que estas categorias foram utilizadas num determinado momento
ideológico, quando da construção de uma “nova cristandade” e de programas
reformistas da democracia cristã. Ora, tais categorias poderiam ser úteis diante
do problema da JUC naquele momento, mas se fossem empregadas de
maneira mais “flexíveis” (Ibid., p.158).
De certa forma, com o ideal histórico de Maritain, pretendia-se ocupar
um ponto intermediário entre as reflexões teológicas e a doutrina social da
Igreja. Doutrina que oferecia os primeiros princípios de ação na ordem do
conhecimento “... por essência especulativo e muito longe da ordem prática e
aos teóricos oferecidos pelos sociólogos, economistas, planificadores e
homens políticos, por natureza fragmentários, isolados e uma ordem e
conhecimento filosófico autêntico e teológico” (Libânio, 1982, p.288).
Na
realidade, tal ideal histórico cristão, elaborado por Almery Bezerra, possuía um
modelo fixo e fechado, propondo o que tange aos “princípios médios”.
No decorrer do texto, Bezerra salienta a necessidade do conhecimento
da realidade histórica através do estudo das ciências sociais, políticas,
econômicas, históricas, dentre outras, bem como, o conhecimento dos
147
princípios universais cristãos, através dos ensinamentos do magistério
eclesiástico, dos doutores católicos (teólogos e filósofos cristãos) e do
aprofundamento da própria vida cristã. De posse desses conhecimentos,
colhem-se os “princípios médios que exprimirão o ideal histórico concreto”,
marcados pela universalidade e que participam da ordem do conhecimento
prático. Daí, uma essência capaz de existir num dado momento histórico,
relativo, de perfeição social e política. Esta tarefa pertence “não à hierarquia,
mas às elites católicas, e supõe e aproveita o trabalho e a contribuição de
todos” (Bezerra, 1979, p.82).
Segundo o mesmo autor, a JUC teria importante papel na tomada de
consciência deste ideal histórico concreto quando: estendesse para os
militantes o alcance dos estudos quanto às vocações e futuras profissões;
promovesse a profunda busca por conhecimentos vívidos do Evangelho, da
doutrina da Igreja, dos problemas da época; tentasse com toda humildade
intelectual, com a máxima fidelidade e competência, delinear hipóteses de
trabalho intelectual e de ação (Ibid., p.83).
Feito o pedido através de seu texto (Da necessidade de um Ideal
histórico), Almery Bezerra obteve a resposta, que foi anunciada em 1960 no
Congresso dos dez anos da JUC no Rio de Janeiro. Os jucistas de Belo
Horizonte (Regional Centro-Oeste) apresentaram um documento público de
cunho católico (Algumas diretrizes de um ideal histórico cristão para o povo
brasileiro), no qual, pela primeira vez, criticou-se duramente o capitalismo e
apresentaram-se algumas análises (flexíveis), numa junção de pensamentos
ligados às ideias de Marx e Maritain, complementando-as ao mesmo tempo,
com as de Emmanuel Mounier. As orientações pretendiam concreção, através
da primazia do trabalho sobre o capital; da substituição da propriedade privada
por efetivo instrumento de personalização para todos os brasileiros; da
“substituição da economia anárquica fundada no lucro, por uma economia
organizada dentro das perspectivas totais da pessoa” pensamento de
Mounier (Veja acima, Cap. II, Subseções 3.2 e 3.3) –; da eliminação do
anonimato da propriedade capitalista; da orientação das forças nacionais no
sentido da real satisfação das necessidades do povo brasileiro e da abolição da
condição proletária. No plano político havia uma exigência quanto à
148
radicalidade evangélica. Pedia-se a participação concreta aos partidos
“realmente comprometidos”, cujos interesses voltavam-se para os “interesses
das classes menos favorecidas” (os oprimidos, os operários e os camponeses),
guiados por planos de ação e métodos democráticos, imbuídos do ideal de
justiça distributiva. No plano que se refere ao governo, este deveria ser capaz
de alterar a ordem capitalista, numa promoção qualitativa de justiça e
cooperação entre os homens. No âmbito internacional, era pedida à sociedade
brasileira uma posição de independência ante os dois blocos hegemônicos da
liderança mundial (Cf. JUC: Equipe Regional Centro-Oeste, 1979, p.84-97).
Delineava-se aí um novo caminho, que apresentava um percurso
renovador, audacioso e perigoso aos olhos dos tradicionalistas, principalmente,
porque se construía dentro de um movimento oficial da Igreja e adentrava um
terreno prático demais, muito concreto, além de falar em desenvolvimento
socialista.
Sob as asas do Ideal Histórico, tal movimento ganhou impulso pelo
dinamismo e pela força empreendedora dos jovens. Mas, este Ideal Histórico,
adaptado à realidade brasileira através dos “princípios médios”, põe os
militantes em contato com o concreto, em seus aspectos econômicos, sociais,
culturais e políticos. Isso os leva à necessidade de mudança das estruturas
nestes campos. Por consequência, emerge um confronto ideológico, que brota
da atuação política, de manifestos mais exigentes quanto ao compromisso da
intervenção nos problemas brasileiros.
Bem lembrou Gómez de Souza (1984, p.159) que, se for feita uma
análise linguística desde o primeiro texto de Bezerra até aos que o seguiram,
notar-se-á um distanciamento progressivo de Humanisme Intégral, com o
completo desaparecimento deste em 1962.
2.2 Inspirações no pensamento personalista de Mounier e a Consciência
Histórica
Alceu Amoroso Lima em suas Memórias Improvisadas declara que
depois de Jacques Maritain, pelo menos quatro outros pensadores católicos
149
influíram no arranjo de suas ideias. Foram eles, Thomas Merton, Gabriel
Marcel, Emmanuel Mounier e Teilhard de Chardin. Amoroso Lima (
2000, p.265)
escreve:
Conheci Mounier em Paris, quinze dias antes de sua morte. Fomos
apresentados por Albert Béguin. Não nos recebeu na redação do Esprit, mas
em sua casa de campo, casa de campo rústica, com móveis reduzidos.
Pareceu-me cansado. Homem de hábitos severos ouvia mais que falava.
Estava então muito preocupado com os acontecimentos europeus, pois havia
no ar uma atmosfera de apreensão em face dos rumores que ocorriam sobre
os riscos de uma terceira guerra mundial. Guardo desse encontro uma
lembrança inesquecível. Já conhecia sua obra e o trabalho que desenvolvia em
meio de dificuldades e incompreensões. Pois bem, sinto-me hoje muito mais
próximo dele, em matéria social, que de Maritain, que depois do Humanismo
Integral voltou praticamente as costas para problemas dessa ordem.
84
Amoroso Lima afirma que a ausência de Maritain nos assuntos de ordem
política e social,
85
fora preenchida por Mounier e Thomas Merton. Por exemplo,
Mounier compreendeu mais profundamente o problema do comunismo,
percebendo no marxismo “certos aspectos que haviam escapado à filosofia
tradicional, exageradamente abstrata e transcendentalista” (Lima, 2000, p.272).
Por isso, de acordo com Amoroso Lima, Mounier havia enveredado através do
ponto positivo do marxismo, no sentido prático, na exaltação da pessoa
humana, no personalismo como instrumento de composição, ao contrário de
oposição radical. Declara que católicos acreditaram erroneamente que ele
pretendia fundir catolicismo e comunismo. o entenderam que sua vontade
era tornar viável a convivência de homens com ideais diferentes, pois sempre
privilegiou o diálogo com o intento de alcançar um ponto de equilíbrio.
86
84
Na obra Europa de Hoje, Amoroso Lima conta sua visita às redações da Seuil e da
Esprit localizadas à Rue Jacob, 28. Narra que neste dia não se encontrou com Mounier, mas foi
convidado para um almoço em sua casa de Châtenay-Malabry, arrabalde de Paris. Amoroso
Lima, descreve com detalhe este dia em que tem contato com Mounier e sua família (Cf. Lima,
1951, p.189-194).
85
Segundo Amoroso Lima (Cf. 2000, p.265), Maritain havia dado as costas para os
problemas de ordem política e social. Depois da morte de Raíssa (1960), ele se mostrou
exclusivamente preocupado com o problema filosófico, mais explicitamente religioso, com a
vida transcendente, com a vida após a morte.
86
O diálogo de Mounier aberto às diferentes vertentes de pensamento e ideologia o
colocou em situações polêmicas e penosas, devido aos preconceitos, às inverdades e análises
contraditórias que lançavam contra sua pessoa. Em 1982, no “Cinquentenário da Revista
Esprit”, ocorreu um seminário comemorativo em Doudan, cidade periférica de Paris, onde
infelizmente, ainda se constatou tal incompreensão. Em entrevista (16/11/2009), Antonio
Balduíno Andreola (ouvinte neste Seminário) conta que estavam presentes vários dos
150
As preocupações de Mounier quanto aos assuntos de ordem social,
política, existencial e cristã ressoaram e passaram a fazer sentido para outros,
que perceberam a “desordem estabelecida” nas “outras margens do atlântico” e
pretenderam agir contra ela.
Luiz Alberto Gómez (2003, p.176) escreve: “Pertenço a uma geração
que, sendo universitária nos anos cinquenta, pensava com muita esperança em
novos projetos para o Brasil. Tínhamos um amplo horizonte de futuro pela
frente”.
Em um Boletim Nacional da JUC de 1953 (nº 2, p.29) um assistente
nacional confessava que a leitura de Feu la Chrétienté
87
de Mounier havia sido
uma revelação para ele e como certas prevenções a seu respeito tinham
desaparecido. No mesmo ano do Conselho de Belo Horizonte (1959), outro
Boletim (nº 5, p. 20) publicou extratos do mesmo livro, acentuando que Mounier
era o autor que mais influía no pensamento da Juventude Católica da França,
do Canadá e da Bélgica. O título escolhido para o boletim foi: “O temporal,
sacramento do Reino de Deus” (Gómez de Souza, 2003, p.156). Trata-se de
um texto com a preocupação de não cair no dualismo espiritual-temporal.
Este assunto foi abordado por Mounier em uma Conferência
pronunciada em 1949, intitulada a Finada Cristandade. Nessa conferência, ao
se referir ao espiritual-temporal, Mounier diz não existir uma história sagrada e
outra profana. Alega que a Igreja insiste na separação desses mundos, nessa
vaga de “deixar ir os fenômenos” que é grega e não cristã, em oposição ao
primeiros companheiros de Mounier. Sua esposa Madame Mounier, Paul Fraisse, Paul Ricoeur,
Jean Lacroix, Denis Rougemont, Jean-Marie Domenach, dentre outros. O fato foi que John
Hellman, professor de História em Montréal/Canadá, autor do livro (Emmanuel Mounier. And
the New Catholic Left, 1930-1950. Toronto University Press, 1981), apresentou em sua palestra
o tema “Personnalisme et fascisme”, no qual defendia que Mounier havia se comprometido com
o nazismo. Em resposta, Paul Ricoeur, cavalheirescamente se limitou a observar que às vezes,
não se conta com fontes suficientes. Jean-Marie Domenach não abrandou e disse-lhe: “Por que
o senhor não procurou falar conosco? Poderíamos fornecer-lhe fontes melhores para sua
pesquisa!”. Madame Mounier tomou a palavra e explicou que Mounier esteve na Alemanha
porque, como seu marido, ele a havia acompanhado a um congresso, do qual ela participou
representando o Museu de História da Arte de Bruxelas, como diretora dessa Instituição.
Certamente, esclareceu ela, que ele aproveitou a viagem e conversou com muitas pessoas,
inclusive as ligadas ao regime nazista, o que não significava nenhuma ligação com qualquer
regime nazi-fascista, de que foi crítico veemente por toda sua vida. As palestras foram
publicadas no Le personnalisme d’Emmanuel Mounier. Hier et demain: Pour un cinquantenaire.
Paris: Seuil, 1985.
87
Obra de 1950 somente traduzida no Brasil em 1972, pela Editora Paz e Terra, com o
título: “Quando a cristandade morre”.
151
espiritual-temporal. É, com rigor, a presença, na vida do cristão, do espiritual e
da vida eterna “em oposição a nossas atividades naturais”. Mas esta vida
eterna é também carnal e se oferece através das atividades naturais. Se a
Encarnação não fizer parte, porém, de um mesmo mundo, a noção do espiritual
se contamina
com a noção eclética e frouxa de um idealismo em que o “espiritual”, “moral”
significa o espírito sem corpo, o sopro da vida sem vida, a boa vontade sem
boa vontade, a cultura sem terra. Pensando que o cristão deva viver no
espiritual, envia-se-o sob esta campanha pneumática, e quando por sorte acha
ali o ar rarefeito, dizem-lhe que deve “empenhar-se” no temporal, como se “o
espiritual” fosse separado do “temporal”, e o temporal destituído de
espiritualidade. o temos que trazer o espiritual ao temporal, pois que nele já
está. Nosso papel é o de descobri-lo e de fazê-lo viver, de comunicá-lo
apropriadamente. O temporal é completamente o sacramento do Reino de
Deus (Mounier, 1972, p.204).
88
Segundo o Gênesis, o homem foi criado, ut operaretur terram, para que
explorasse a terra, através do trabalho, com o suor de seu corpo. Nota-se,
amiúde, uma redução do sofrimento da humanidade pecadora pelo próprio
trabalho e, se deixássemos nossos espíritos voarem para maiores altitudes,
longe dessas conjecturas, perceber-se-ia que um “princípio pelo menos será
certo: religião da universal imitação do Cristo encarnado, o cristianismo pede
ao homem uma presença ativa a todo temporal” (Mounier, 1972, p.205).
Se Maritain havia inspirado movimentos em países como o Chile, a
Venezuela e mesmo a seção paulista do PDC, a ação dos militantes da JUC,
principalmente em Belo Horizonte e São Paulo, irá recorrer ao pensamento de
Mounier. Um compromisso que, aos poucos, foi se revelando como
personalista e socialista.
Henrique Claudio de Lima Vaz, em sua bio-bibliografia, confessa que,
após escrever o seu primeiro artigo “O existencialismo” (publicado na revista
Verbum - março de 1948), sofreu um choque intelectual ao mergulhar em
alguns textos das obras de Sartre; isso nos anos do pós-guerra, numa fase de
crises profundas e decisivas. Lima Vaz (1982, p.418,419), menciona também
outra descoberta capital dessa época no que se refere às dimensões e às
88
Veja acima, Capítulo II, Subseção 2.1.
152
direções das referidas crises, a obra de Emmanuel Mounier e a leitura “mês
após mês, da revista Esprit”:
O personalismo foi, para mim, o primeiro instrumento de leitura do mundo
moderno nos seus aspectos políticos e sociais, que nossa formação
escolástica desconhecera soberanamente (O próprio Pe. Lustosa, não obstante
sua aguda sensibilidade histórica, ficara preso à miragem de um corporativismo
anacrônico, que seduzira os “católicos sociais” entre a Rerum Novarume a
Quadragesimo Anno”) e que a obra de Maritain dos anos 30 começara a
revelar-nos.
Estaria, assim, longe de ter pouca importância este “batismo
personalista” em seus primeiros passos direcionados a uma reflexão social e
política, bem como, às descobertas e experiências que não o deixarão mais, e
que o levarão a ter o primeiro contato com o marxismo: “Só bem mais tarde irei
ao estudo direto de Marx, mas devo reconhecer que a marca personalista
estará doravante indelevelmente presente na minha leitura e na minha crítica
– do marxismo” (Lima Vaz, 1982, p.419).
Quando entrevistado, Lima Vaz disse que os livros de Mounier eram
leitura quase que obrigatória e sua presença, um modelo, pois este “soube unir
reflexão e ação sob a inspiração de uma doutrina ao mesmo tempo comunitária
e personalista” (Nobre; Rego, 2000, p.34), o que exerceu grande atração sobre
a juventude universitária cristã.
Pode ser considerada como sintomática a apresentação da tradução
brasileira de Sombras de medo sobre o século XX: “É este o primeiro livro de
Mounier traduzido no Brasil; o pensamento vigoroso de Mounier dez anos
atrás, tem para nós hoje uma atualidade surpreendente”. Continua:
Transcende os acontecimentos de momento que o estimularam para propor-
nos uma linha de pensamento, uma visão de história e uma maneira de situar-
nos diante das ideologias e problemas da nossa época: o medo, a máquina, o
progresso; pensamento moderno que alia, surpreendentemente, a solidez da
tradição cristã bebida nas suas fontes mais autênticas, à audácia de assimilar
uma época revolucionária no seu espírito, nas suas descobertas, no seu
conteúdo político.
89
89
Veja “orelha do livro”: MOUNIER, Emmanuel. Sombras de medo sobre o século XX.
Trad. Salústio de Figueiredo, Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1958.
153
Gómez de Souza lembra também que em 1959 os universitários
seguiam realmente as sugestões de Jacques Maritain, mas, logo no começo da
década seguinte, o personalismo de Mounier é que servia de inspiração:
queríamos deixar-nos penetrar pelas aspirações de uma nova consciência
histórica e apostávamos, com Emmanuel Mounier, num socialismo personalista
e comunitário; denunciavam-se o sistema capitalista desigual e o
subdesenvolvimento, dependente e associado, como se diria um pouco mais
adiante; reformas de base, pediam dirigentes estudantis e sindicais; começava
a descoberta da cultura popular: Paulo Freire, conscientização, MEB, MCP de
Recife, CPC da UNE; valorizavam-se o saber do povo e seu processo
pedagógico, da consciência mágica à consciência crítica (2003, p.176).
Em julho de 1960, quase que ao mesmo tempo da realização do
Conselho da JUC na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas em Nova Friburgo
(Rio de Janeiro), ocorreu uma reunião onde estavam presentes o Dominicano
francês Thomas Cardonnel, o Jesuíta e professor dessa faculdade Lima Vaz,
alguns jucistas de Belo Horizonte e alguns estudantes da Universidade Católica
do Rio. Na reunião, ventilou-se a possibilidade da criação de um grupo no
gênero de Esprit com sua própria revista. A iniciativa não prosseguiu, mas era
urgente tomar alguma atitude. Então, os estudantes cariocas e o Pe. Lima Vaz,
em março de 1961, reencontram-se no Rio de Janeiro por ocasião de uma
“Semana Social na Pontifícia Universidade Católica (PUC)” tendo por
convidados Cândido Mendes e Hélio Jaguaribe. “O Diretório Central dos
Estudantes da PUC, presidido pelo jucista Aldo Arantes, aproveitou a ocasião
para elaborar um manifesto, publicado em julho” (Gómez de Souza, 1984,
175).
90
Convém lembrar que o frei Cardonnel, que viveu no Brasil por alguns
meses apenas, produziu artigos que causaram grande impacto e o autor foi
muito importante para os estudantes universitários da época, pois “apareceu
entre nós como alguém que traz uma palavra nova e forte. Com seu estilo e,
principalmente, com seu testemunho, provocou imediata reação” (Souza;
Gómez de Souza, 1962, p.21).
91
90
Veja abaixo, p. 158-160.
91
A referida citação está contida na obra:
SOUZA, Herbert de; GÓMEZ DE SOUZA, Luiz
Alberto. Cristianismo hoje. ed., Rio de Janeiro: Editora Universitária da UNE, 1962
.
Em um
artigo recente, Gómez de Souza (2007, p.54) escreve: “Eu fiz a Introdução e Betinho a
154
Compartilhando o pensamento de Mounier, numa reportagem publicada
em O Metropolitano, sob o título: “Deus não é mentiroso com certa paz social”,
Cardonnel criticou inconformadamente aqueles que usavam o Cristo para sua
comodidade. Em seu testemunho enfoca vários assuntos. 1) A condição da
comunicação para a coexistência dos povos. Estava convicto em preconizar o
estabelecimento de conversações; não mais as de cúpula entre diplomatas e
governos, mas sim a da base entre os povos. “O verdadeiro diálogo, conduzido
rigorosamente, com a eliminação da força, do preconceito e da sedução é
princípio não de separação, mas de convergência” (Cardonnel, 1962, p.24). 2)
A dinâmica dos subdesenvolvidos. Quando os povos reivindicam o direito ao
pão, não basta responder-lhes através de um plano econômico. “Sua fome
manifesta uma necessidade de consideração e de dignidade. É preciso agir
não somente por eles, mas com eles” (Ibid., p.25). Virtudes existem nos
homens, não nos sistemas. Deus não é falso nem mentiroso com certa paz
social, “feita do consentimento dado por todos à injustiça antinatural” (Ibid.,
p.25). A manutenção de uma falsa ordem é o que conhecemos por “desordem
estabelecida”. 3) O perigo idealista. O perigo de dominação cristã é a
reconquista pelo idealismo, pelo espiritualismo e pelo deísmo. “O Cristianismo
não é uma contemplação de uma verdade intemporal, mas a história de um
Deus que ensina a viver como homens para despertar nos homens o gosto de
uma vida de deuses” (Ibid., p.26). 4) O primeiro problema: deve-se falar do
homem em sua vida concreta, existente e encarnado, e o problema mais
urgente é o da luta contra a miséria, tema central da “desordem estabelecida”
em Mounier. “Contestar a legitimidade de uma luta pelos homens, a partir de
sua iniciativa, e isto em nome do perigo comunista, parece-me ser a pior das
imposturas” (Ibid., p.27), pois quando se ajuda os homens a se tornarem
humanos, o totalitarismo é evitado. Por isso, o povo brasileiro deve despertar
“para sua alma, para a originalidade de sua vida comum, tal é hoje, para nós, o
grande trabalho a realizar” (Ibid., p.27). 5) O papel dos Cristãos. Os
verdadeiros cristãos precisam transformar a vida de forma consciente para que
nasça uma comunidade humana (Ibid., p.27).
Conclusão. A edição se esgotou e a edição praticamente desapareceu quando a UNE foi
incendiada, no dia 1º de abril de 1964”.
155
O resultado deste artigo foi imediato. Acusaram-no de herege e
marxista, mas o foi o bastante para silenciá-lo. Logo, anunciou seu segundo
testemunho, “A Verdade não se contempla, mas se faz”. Neste texto aponta
que “nossa cultura é fragmentária” e satisfaz-se com o esfacelamento e
atomização do homem e dos homens. O ensino universitário isola a função
intelectual da vida de outras formas de existência. Os sábios, detendo as
chaves do saber, saboreiam os refinados frutos do conhecimento e jogam as
migalhas às massas. “Mas o pretenso saber dos sábios, que se acomodam
com essa espécie de ignorância das multidões, não é, segundo a palavra do
Eclesiástico, senão vaidade e perseguição do vento” (Cardonnel, 1962. p. 29).
Com a forma liberal-capitalista, o mundo contemporâneo havia
transformado o domínio do saber em um império, e a existência econômica e
política no reino do poder. A apatia reinava, e ele se queixava da “falta cruel de
homens radicais”. Cardonnel (Ibid., p.30) convoca para a vida os homens sem
preconceitos, para que pensem e vivam a radicalidade através da “força de
pensamento, da capacidade de amar, de querer e realizar”. Por isso, a verdade
não se contempla, ela se realiza nos homens que a vivem. Dirá: “Confesso ter
ficado imensamente satisfeito com a paixão de totalidade, com a extraordinária
capacidade de adesão que venho incessantemente encontrando na juventude
brasileira” (Ibid., p. 32).
Quando se refere ao compromisso dos jovens brasileiros, exprime sua
imensa confiança por exigirem uma verdade, por buscarem uma transformação
radical do mundo. Ele pensava que talvez fôssemos o único povo internacional
constituído de representantes de várias raças e de nações tão diversas, e que
caberia a nós realizar uma síntese de uma única pátria humana.
Ao término de seu testemunho lemos: “Quis eu aqui apenas indicar as
consequências, as implicações do fato cristão para o Brasil-1960, de tal forma
é verdade que ser cristão não significa outra coisa senão ser totalmente
humano” (Ibid., p.34).
Novamente as acusações se acumularam ainda mais. Isto o levou a
escrever, “O Deus de Jesus Cristo” (Cf. Cardonnel, 1962, p. 35-56) que revela
a extensão, a profundidade de seu pensamento imbuído de Cristo e de sua
força redentora. Mas, diante de tantas intrigas, conchavos e traições, este
156
homem radical e de testemunho deixa o Brasil, despedindo-se com o seguinte
bilhete: “Meu coração se identifica doravante com uma saudade de todos vós,
meus amigos definitivos – provas vivas da necessidade de um encontro eterno”
(Cardonnel, apud, Gómez de Souza, 1962, p.21).
Assim como Mounier, Cardonnel também havia despertado os jovens
dos movimentos estudantis da Ação Católica, que de um ideal histórico,
lançavam-se à procura de um instrumental filosófico de engajamento concreto.
José Luiz Sigrist (1982, p.24) relatou que o Ideal Histórico, ao poucos,
torna-se uma ideologia, que não pode resistir ao impacto da realidade histórica
frente às outras ideologias nascentes, que se lhe opunham. Internamente na
JUC, o Ideal Histórico começa a ser criticado “nos seus aspectos ideológicos.
Não se trata de implantar uma nova ‘cristandade’, uma vez que a cristandade é
a própria negação do cristianismo”.
Não se estudará mais Jacques Maritain com seu “Ideal Histórico”.
Prefere-se Pierre Teilhard de Chardin e Emmanuel Mounier. Mounier pela
“dimensão cristã do seu existencialismo frente a outros não cristãos” (Ibid.,
p.24) e por sua abordagem do problema da existência concreta diante da
“desordem estabelecida”.
Herbert de Souza (Betinho), em “Um depoimento pessoal”, dirá que o
contato com o Tomismo, através do convento dos Dominicanos em Belo
Horizonte e nas noites de estudo com o casal Laterza foram um importante
“exercício de pensar”. Este contato não havia passado de um encontro com a
lógica e com a ideia rigorosa e científica de pensar: “Descobrimos que havia
formas de pensar corretas (os silogismos perfeitos) e incorretas (os sofismas) e
que o conhecimento do real exigia um método científico” (Souza, 1982, p.18).
Portanto, a filosofia era ciência. Mas vivendo em um tempo de novas
exigências, perceberam que seus conhecimentos quanto à gica e ao
Tomismo não respondiam a essas exigências. Por isso,
mais do que Maritain foi Mounier, com o Personalismo, que nos deu essa
sensação de encontro com a filosofia do homem, da história e da ação; foi com
esse espírito que lemos Lebret e nos confraternizamos com Frei Cardonnel em
sua rápida e fecunda passagem pelo Brasil (Ibid., p.18).
157
Betinho declara que foi o pensamento de Mounier que atendeu à
necessidade de se fixar um norte para uma busca aqui e agora:
Mounier fazia a ligação entre o Evangelho, que havíamos lido e praticado
através dos dominicanos, e a realidade, entre o pensamento e a humanidade,
entre a teoria e a prática, o estar no Brasil e intervir na história; Mounier foi,
portanto, o elemento de ruptura com o nosso primeiro e precário aprendizado
da filosofia e a abertura para uma nova etapa de busca (Souza, 1982, p.18).
92
Pode-se dizer que a força dessa nova etapa se manifesta a partir do
Congresso dos dez anos de JUC. Os jucistas viverão um período de crises com
o episcopado e com a opinião pública. Com rapidez, os inimigos conclamados
e “patentes da Igreja tornaram-se defensores obstinados de sua ortodoxia em
uma luta contra a JUC, pressionando bispos em nome de textos e encíclicas e
exigindo a condenação da ‘ala comunista’ da Igreja” (Beozzo, 1984, p.92).
93
Os artigos de Cardonnel haviam irritado profundamente Gustavo
Corção que “lançou contra o dominicano francês a carga de suas rabugices,
em seu estilo ustico, mas ainda bem cuidado” (Gómez de Souza, 1984,
p.174). Foi nesse clima tenso de acusações contra a JUC, feitas na nunciatura
apostólica e nas cúrias episcopais, contra os assistentes e contra o frade
dominicano, que o Cardeal do Rio de Janeiro pediu a Cardonnel que
abandonasse o país.
Era sabido, segundo Beozzo, que os mais conscientes haviam percebido
que o Congresso era parte dos problemas que a JUC enfrentaria brevemente,
devido ao engajamento político e consequentemente por concretizar-se numa
opção de esquerda, ao estilo de Mounier, o que inevitavelmente provocaria o
desacordo entre o Movimento e a Hierarquia. Até mesmo o vocabulário da JUC
foi suficiente para provocar choques devido a palavras como: alienação,
revolução brasileira, consciência histórica, socialismo, engajamento etc. (Cf.
Lima Vaz, 1962, p.61-62). Os estudantes, a esta altura, sabiam dos
92
Betinho quando se refere ao termo “precário” escreve que não faltava contato com a
filosofia, faltava uma relação entre a filosofia e a prática para sua época, para o contexto
histórico. Foi um período marcado pelo autodidatismo e pelo anseio por resposta aos
problemas que se revelavam; “não nos faltava vontade de estudá-la e essa foi uma
característica da geração que conheci e que me chama a atenção quando retomo hoje a
lembrança daquele tempo” (1982, p.17).
93
Segundo Beozzo (1984, p.92), um dos campeões de campanha contra a JUC foi o
jornal Estado de São Paulo.
158
problemas que assumiam ao pertencer ao quadro da JUC, devido ao
engajamento político em razão do qual deviam tomar posições.
Em fevereiro de 1961, a JUC organizou o primeiro Seminário Nacional
de Estudos em Santos (SP), quando se discutiu a necessidade de um
“movimento político de inspiração personalista”. Entre os integrantes estavam
Lima Vaz, ndido Mendes de Almeida e o dominicano frei Carlos Josaphat
94
,
que criaria, dois anos mais tarde, o semanário Brasil Urgente “espécie de
testemunho cristão, em nível mais popular e mais radical, ao mesmo tempo”
(Beozzo, 1984, p.47).
Foi em março de 1961 que veio à tona o Manifesto do DCE da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
95
Tratava-se de um manifesto
composto por estudantes que, diante da nua realidade brasileira, descobrem as
desordens e anunciam a missão do cristão, agir sobre as seguintes estruturas:
1) Do subdesenvolvimento. Aos militantes “... cabe-nos denunciar uma
estrutura liberal-burguesa, pressionando até as últimas consequências seus
dirigentes e responsáveis” (MDCE-PUC, 1979, p.101). 2) Do analfabetismo. “A
simples constatação de que 52% de brasileiros analfabetos não participam da
escolha eleitoral, é o bastante para retratar a falsidade de uma situação” (Ibid.,
p.102). 3) Do problema da propriedade capitalista. Deve-se provocar o advento
da “propriedade humana” elucidada por Mounier. “Situar a produção dos bens
na linha de uma propriedade participada, em escala sempre mais vasta, por
todo o corpo social, é imperativo que se imponha para a livre sobrevivência da
nação” (Ibid., p.103). 4) Do nacionalismo imperial. Dos países ricos emana um
nacionalismo egoísta que arquiteta projetos colonizadores como instrumento de
ampliação de seus mercados externos. Por outro lado, não deixa de existir o
nacionalismo dos países colonizados. É justo que estes lutem pela conquista
de um estatuto histórico de dignidade humana. Quanto aos discursos
internacionais, “monólogos do mais duro egoísmo”, os jovens categoricamente
94
Veja a obra: BETTO, Frei; MENEZES, Adélia de; JENSEN, Thomaz. Utopia urgente:
escritos em homenagem a Frei Carlos Josaphat nos seus 80 anos. São Paulo: Casa Amarela;
Educ, 2002.
95
Manifesto do Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica. In:
Luiz Gonzaga de SOUZA LIMA, Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses
para uma interpretação. Rio de Janeiro, Editora Vozes Ltda, 1979, p. 98-107. Utilizaremos a
abreviatura MDCE-PUC quando mencionarmos este Manifesto.
159
anunciam: “Nós denunciamos em termos de nacionalismo militante e,
primariamente, na luta contra os imperialismos econômicos enquanto,
precisamente, aspiramos ao diálogo dos povos” (MDCE-PUC, 1979, p.103).
O Manifesto, em toda sua extensão, mostra a latente preocupação com
a promoção humana, com os imperativos sociais, com a educação, com a
obrigação moral e com a tão discutida “reforma agrária”, que naquela época
era considerada pelos jovens de “inadiável urgência”, para que se pudesse
restituir ao homem do campo, a sua dignidade.
Temos consciência de que a promoção das classes operárias-urbanas e
campesinas-rurais se coloca neste momento, dentro da perspectiva cristã,
como o passo mais largo que a história exige das vanguardas atuantes no
sentido da humanização do mundo. Nesta promoção a educação das massas é
uma tarefa de primeira hora. Conservar a educação como instrumento cultural
de dominação das classes privilegiadas é servir à opressão dos humildes.
Somente através da democratização da nossa educação poderemos chegar à
consciência cultural global que exprimirá num projeto novo as aspirações da
nossa hora histórica (Ibid., p.103).
Ao término do documento, o apelo ao compromisso pessoal do
universitário, para não fugir à responsabilidade da tarefa de lutar pela
participação histórica, quando se assume “a bandeira do homem”.
Rapidamente surgem acusações através da imprensa
96
que ataca o
Manifesto dos universitários, bem como o trabalho do professor Lima Vaz, que
havia feito a revisão do texto. Com efeito, ocorre um debate na própria PUC-
Rio. Alguns (professores tomistas)
97
da Universidade Católica do Rio de
Janeiro, atacaram o MDCE-PUC-RJ considerando-o hegeliano-marxista, além
de uma forte reação do Centro Dom Vital (isenta-se Alceu Amoroso Lima), na
pessoa de Gustavo Corção que atacou o manifesto dos estudantes e com
“excesso de imaginação e zelo, descobriria nele um bocado de inspiração
espinosista, panteísta e hegeliana” (Gómez de Souza, 1984, p.176).
96
Tratava-se do editorial de MEIRELLES, T. Jornal do Comércio (JC) - 17/06/61 e do de
CORÇÃO, G. Diário de Notícias (DN) - 18/06/1961.
97
Pe. Francisco Leme Lopes, S.J. (professor de Introdução à Filosofia e de Filosofia
Geral), Pe. Pedro Cerrutti, S.J., César Parente, Tarcísio Meirelles Padilha (professor de História
da Filosofia)
160
O professor Lima Vaz irrita-se com as acusações dirigidas aos
estudantes e a ele; escreve um artigo-resposta no jornal “Metropolitano”:
Jovens Cristãos em luta por uma história sem servidões (1962, p.59-73).
Nessa resposta,
98
ao contrário do que escreveu o jornalista do DN, que o
manifesto era “uma algaravia”, um documento “inanalisável em seu conteúdo”,
Lima Vaz afirma que esta sim é uma análise errada e arbitrária. Segundo ele, o
estilo textual resulta da pluralidade de autores e o manifesto possui nítida
estrutura e conteúdo: “Abra-se uma página de Mounier, de Chenu, de Henri de
Lubac, de Friedrich Herr e logo se encontrará o clima familiar dos autores do
manifesto” (Ibid., p.61). No que se refere às coordenadas filosóficas, não se
trata de armações com “tecnicismos filosóficos”, inspirações espinosistas,
panteístas e hegelianas, conforme haviam acusado. Trata-se de uma “filosofia
cristã da história”, do homem livre em cooperação com Deus, história como
libertação, encontro com a paz divina. É “puro Evangelho” e também “pura
doutrina da Providência” que se define como manifestação da razão divina
enquanto ordena a história a um fim. A filosofia é a do realismo cristão, a do
pensamento de Mounier (Cf. acima, Cap. II, Seção 2) refletido num contexto
histórico. Lima Vaz indica com clareza para aqueles que não compreenderam o
texto, algumas fontes imediatas, como: “... o capítulo de Mounier, O
Cristianismo e a noção de progresso em Sombras de medo sobre o século XX
e o de Henri de Lubac, La recherche d’un homme nouveau em Affrontements
mystiques” (Lima Vaz, 1962, p.67).
Frei Carlos Josaphat em Evangelho e revolução social evidencia que o
“Evangelho prega e a consciência cristã reclama uma submissão ao poder
legitimamente constituído e uma colaboração eficiente para manutenção e
aperfeiçoamento de estruturas legais adaptadas ao Bem Comum...” (1963,
p.87), para uma sociedade em um determinado momento histórico. Portanto,
se os interesses servirem somente às classes privilegiadas, aos regimes
dominantes, à “desordem estabelecida”, “a posição cristã será de
inconformismo e de repúdio” (Ibid., p.87). Se beneficiar as instituições, como
também as atividades religiosas, uma dupla traição ao Evangelho, pois
98
Retratamos aqui alguns comentários. Para sua totalidade, veja o artigo-resposta (Lima
Vaz, 1962, p.59-73).
161
compromete a religião da verdade e a liga a mecanismos de iniquidade.
Portanto “a exigência cristã” advém das armas cristãs: a verdade, a bondade e
o amor. Deve-se tentar todos os meio de convicção, de persuasão, crendo na
palavra, no diálogo e no desenvolvimento da equidade cristã. Além disso, o
realismo cristão também não desconhece o mundo do econômico e sabe que
este condiciona o comportamento moral e pode dificultar a vida dos homens
em seu desenvolvimento espiritual (Josaphat, 1963, p.92-97). Ora, se “armas
cristãs” se emperram, quer por ditaduras, tiranias disfarçadas, ou seja, quando
a desordem se estabelece e resiste ao máximo, pede-se que “o cristianismo
não venha a se confundir com a timidez social, com a hesitação e o temor
velado do povo, eis o que não permitiremos jamais” (Mounier, 1972, p.5).
Portanto, para que não se chegue a um extremo (Revolução), devem os
cristãos empenhar-se ao máximo, por todos os meios ao seu alcance, para
que, de forma pacífica e democrática, possam mudar os rumos da iniquidade,
da desordem e da injustiça, para que não se tornem cúmplices do mal.
a inércia, a omissão e a demorada cumplicidade dos cristãos dentro de
regimes injustos e opressores podem levar a esses extremos da Revolução
Armada. Então, se os cristãos forem omissos e ineficientes quando menos
difícil e menos heróica se apresenta a sua resistência, como poderão dominar
o processo violento da convulsão social? Quase sempre outras forças
revolucionárias mais aguerridas e mais preparadas passarão a conduzir a
Revolução, iniciada, quem sabe, sob os aplausos e com a participação de
todas as correntes sadias da nacionalidade (Oliveira, 1963, p.96,97).
Para o professor Lima Vaz, os contraditores queriam que o estudante
fosse o real “universitário cristão” que se dedicasse aos estudos e à escolha da
boa profissão, ou seja, estudioso preocupado com o futuro, “já bem adestrado
desde a mocidade” numa providência burguesa, distante do “realismo cristão”.
Mas acontece que essa perspectiva não seduz os autores do Manifesto do
DCE da PUC. Nem, estou certo, a imensa maioria dos universitários brasileiros.
O futuro que os preocupa, em primeiro lugar não é o seu. É o dos irmãos que
sofrem. É o daqueles cujo presente não promete senão um futuro de miséria
maior, de desesperança mais profunda, do abandono total e do sofrimento sem
nome. É o daqueles cujo presente desamparado e inerme é utilizado como
coisa sem direito e instrumento sem dignidade pelos que travam a luta pela
dominação mundial na mais cruel e cínica das guerras, a guerra fria. Ora, é
162
este presente que os universitários cristãos “assumindo a crítica da própria
situação privilegiada”, querem viver na sua carne, denunciar pela sua
consciência, transformar pela sua ação. Para que as dores de hoje engendrem
amanhã um futuro mais digno das imagens vivas de Deus que são nossos
irmãos, os homens (Lima Vaz, 1962, p.72).
Certamente, devido a essa dissensão, uma divisão ocorre entre os
Jesuítas e os estudantes diante dos acontecimentos. Preocupados, os
universitários promovem um debate público no DCE-PUC-RJ convidando os
estudantes, os professores “tomistas” da Universidade e o professor Lima Vaz.
O debate ocorre, mas sem a presença dos professores Jesuítas, bem como a
de Lima Vaz, pois foram impedidos de participar por ordem do reitor da PUC-
RJ.
Dois anos após o Manifesto, Vaz dirá que este documento possuía
inspiração de pensadores como os padres Congar, Chenu, de Lubac, assim
como Teilhard de Chardin e, sobretudo, de Emmanuel Mounier, considerado no
momento o mestre mais seguido pela juventude católica brasileira (Id., 1963,
p.288).
Em Salvador, no mês de maio entre os dias 20 e 27, num clima de
tensão, realiza-se o I Seminário da Reforma Universitária organizado pela UNE
e que termina por uma declaração sobre o projeto de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Para os estudantes, o projeto possuía como eixo central
uma concepção liberal-burguesa; destoante, portanto, da verdadeira educação.
Em O Metropolitano de 4 de junho de 1961, a juventude brasileira exige a
rejeição total e o veto do projeto. A situação em relação à Hierarquia fica mais
complicada, diante da recusa, pois as autoridades da Igreja, juntamente com a
Associação dos Educadores Católicos (AEC), apoiavam as grandes linhas
desse projeto.
Em julho de 1961 realizou-se em Natal o XI Conselho Nacional da JUC/
VIII Encontro Nacional dos Assistentes da JUC com o tema: O Evangelho fonte
de revolução brasileira. Esse documento provocou mal-entendidos quanto à
redação, à precisão teológica e aos planos, muito aquém dos apresentados no
163
Rio de Janeiro.
99
Assuntos como socialismo e luta armada foram
contemplados. Um padre convidado, o Jesuíta Pedro Caldeirón Beltrão,
enfurecido, redige um relatório de extrema violência contra o movimento e o
envia a vários membros do episcopado. D. Eugênio de Araújo Salles,
Administrador Apostólico de Natal, resolve desligar a seção local da JUC da
organização do Movimento Nacional. No mesmo período do Conselho/Encontro
foi publicada a Encíclica Mater et Magistra que fermentou ainda mais o
discutido assunto da “socialização”.
Ainda em julho deste mesmo ano, Aldo Arantes, líder jucista, vence a
eleição para a presidência da UNE. D. Jayme Câmara, Cardeal do Rio de
Janeiro, expulsa-o do Movimento, o que causará uma ferida, que levará anos
para cicatrizar. Gómez de Souza (1984, p.188) lembra que D. Cândido Padim,
tempos depois (1965), numa reunião de bispos em Roma, comentou:
Vejo um paradoxo no fato, de um lado, de se exigir a sacralização do temporal
e, doutro lado, de se impedir aos leigos esta tarefa. [E concluiu:] Não vejo, pois,
possibilidade de uma linha certa da AC, se os bispos pretendem que os
membros da AC se abstenham de uma atuação na ordem temporal.
Em 5 de outubro de 1961, a Comissão Central da CNBB emite um
documento (confidencial)
100
endereçado à JUC e aos bispos: Diretrizes da
Comissão Episcopal da ACB e do Apostolado dos Leigos para a JUC. O
documento dava atenção a vários assuntos; dentre eles, que a partir de 1962
nenhum dirigente jucista poderia concorrer a cargos eletivos em organizações
político-estudantis, nacionais ou internacionais, sem deixar o cargo de direção
na JUC. Outro importante assunto, visto como retrocesso, refere-se ao retorno
à “sacralização das estruturas temporais”, uso da autoridade, que mostra
“profundamente não a arbitrariedade da distinção, mas, sobretudo, a
sobrevivência de categorias dos tempos de cristandade, que não estão mortas,
como desejaria Mounier, na mentalidade de muitas autoridades eclesiásticas”
(Gómez de Souza, 1984, p.189).
99
Luiz Alberto Gómez de Souza (Cf. 1984, p.181,182) afirma, a partir de entrevistas
realizadas, ter constatado que a redação do documento ficou a cargo de apenas uma pessoa
da equipe nacional, a qual não consultou outros membros. Na véspera do Conselho, a própria
equipe discutiu sobre sua apresentação.
100
Uma cópia desse documento chegou ao domínio público, o que permitiu maiores
ataques contra a JUC dentro e fora da Igreja.
164
Entre os anos de 1961 e 1962 houve um crescimento enorme quanto à
consciência política e a JUC, aos poucos, se envolveu mais profundamente
com a UNE, com os programas de educação popular e as mobilizações
camponesas. Sua presença na década de 1960 adentrou várias organizações
que também marcaram o tempo, como o Movimento de Educação de Base
(MEB – criado pela CNBB), o Movimento de Cultura Popular (MCP), os Centros
Populares de Cultura (CPCs), as Ligas Camponesas (LCs), o Programa de
Alfabetização Paulo Freire, além da atuação na Frente Nacionalista e nas
eleições, ao lado de marxistas, na Confederação dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG).
Entre o final 1960 e início de 1961, viveu-se o fim do governo Juscelino
Kubitschek e a posse de Jânio Quadros. Os sinais de esgotamento do modelo
desenvolvimentista já se manifestavam, e Jânio prometia restabelecer a ordem:
renuncia seis meses depois. A burguesia do país, aliada à burguesia
internacional, vivia o medo do crescimento dos movimentos populares e sentia-
se em pânico. Tensão de maior proporção era nítida na classe média, que
ainda vivia as expectativas do desenvolvimento e, ao mesmo tempo, os
problemas econômicos, como o desemprego e a inflação, que ajudavam a
corroer tais sonhos.
... os membros da JUC com origem principalmente nas classes médias entram
em conflito intenso com estas e vão, aos poucos, descobrindo o movimento
popular, através de centros de cultura, do trabalho, alfabetização etc. Mas volta
sempre o candente problema colocado por Frei Romeu a D. Helder: poderá a
JUC dar resposta a todas essas necessidades? Um movimento “oficial” e
“mandatado” pode tratar de construir relações orgânicas com setores
emergentes, quando a Igreja no seu conjunto estava em posição mais tímida e
moderada? Haveria necessidade de um movimento político distinto?
(Gómez
de Souza, 1984, p.197).
Devido ao documento emitido pelos bispos, criou-se um espírito de
oposição sistemática contra a Igreja e, em particular, a Hierarquia. Grupos se
reuniam em torno de um “messianismo coletivo”. De um lado marxistas,
maçons, capitalistas militantes, no sentido de um materialismo; do outro,
progressistas, vanguardistas, reformistas, numa linha de libertação do homem
através da “revolução brasileira” advinda do Evangelho. No horizonte da Igreja,
165
frei Romeu Dale deixa seu posto nacional de assistente ocupado por doze
anos, o que trará problemas que contribuirão como fato propulsor da criação de
“novo movimento”, pois com sua saída em 1961, não haverá mais Conselhos
Nacionais e nem Boletins. A vaga será ocupada por Dom Cândido Padim em
25 de junho de 1962, que será nomeado bispo em 5 de agosto (primeiro bispo
a assumir a responsabilidade de um movimento especializado da ACB).
Em fevereiro de 1962 ocorre o primeiro encontro que redundou neste
“novo movimento”
101
, o qual terá em breve um nome: Ação Popular (AP).
Reuniram-se em Belo Horizonte no Convento dos Dominicanos, estudantes e
profissionais provenientes do jornal Ação Popular de BH, o grupo do Rio de
Janeiro com o Pe. Lima Vaz, o grupo da UNE de Aldo Arantes, jucistas do
Recife, os padres Henrique Laje, Alípio Freitas, Almery Bezerra e uma centena
de outras pessoas que pensavam em um movimento comum (Beozzo, 1984,
p.113). A ideia norteadora foi a da “consciência histórica” (MDCE-PUC-RJ), e
os artigos de Lima Vaz sobre o assunto. O texto núcleo foi apresentado em
junho de 1962 no Esboço do Estatuto ideológico.
Mesmo sendo a maior parte desse grupo constituída de membros
cristãos, “o movimento não se apresentava como confessional, nem de
ideologia cristã ou restrito aos cristãos. Superava-se a ideia de uma ‘esquerda
cristã’, ao mesmo tempo em que se explicitava uma opção socialista” (Gómez
de Souza, 1984, p.199).
Como em 1962 não havia ocorrido o Conselho Nacional da JUC, esse se
realiza em Aracaju, em janeiro de 1963. Nesse evento, o movimento se
reanima, principalmente com o auxílio de Dom Padim, que “torna-se o
advogado e defensor do movimento, acatado junto ao episcopado. Mesmo não
se podendo dissipar todas as reservas e temores, a situação torna-se menos
tensa” (Beozzo, 1984, p.47).
Ainda em janeiro de 1963, foi de suma importância a semana de estudos
coordenada por Lima Vaz, que esclareceu e estabeleceu distinções entre
consciência cristã e ideologia, discutindo os seguintes temas: Cristianismo e
101
O primeiro encontro, que fora o passo inicial de coordenação de um movimento ainda
sem nome, e que a imprensa chamou de “grupão”, foi alvo de novos ataques de Gustavo
Corção em artigos no Diário de Notícias.
166
consciência histórica; Consciência histórica e Cultura; Cultura, Ideologia e
Cristianismo; A Cultura Moderna e suas manifestações ideológicas;
Polarizações ideológicas no mundo da cultura contemporânea; Opção cristã no
universo da cultura contemporânea.
Resumindo, o ideal histórico de Maritain, aos poucos, deixou de
responder aos problemas suscitados pela realidade brasileira
.
em seguida
uma proposta orientadora prefixada sobre os “princípios médios”, inspirada na
teologia, como “princípios primeiros”, como também na Doutrina Social da
Igreja e no conhecimento da realidade histórica brasileira através das ciências
sociais, políticas, econômicas, históricas etc. Esse caminho “flexível” era
incompatível com as raízes do “ideal histórico” de Maritain e com a vigente
ideologia da ACB (Cf. acima, Cap. III, Subseção 2.1). Viveram-se momentos de
grande ebulição filosófica,
102
devida principalmente às inspirações
personalistas de Emmanuel Mounier que, mais tarde, somar-se-iam às de
Marx; o que veio a exigir profunda reflexão para penetrar no universo da
“consciência histórica”. Lima Vaz escreve que o pensamento de Mounier,
orientava-se no sentido de vincular a “afirmação da pessoa ao social e ao
histórico, a situá-la, assim, no terreno do concreto da relação com o outro, da
dialética do nós”. Ele se dirigia pela visão da história, da pessoa e da
comunidade, que seriam polos dinâmicos capazes de orientar os homens à
“grande mutação histórica de nossos dias, que é a planetização do homem”.
Mas, infelizmente, a morte prematura de Mounier interrompeu a última fase de
seu pensamento, período de diálogo permanente com o existencialismo do
pós-guerra e principalmente com o marxismo (Lima Vaz, 2002, p.239,240).
Betinho lembra que os jovens de sua época viviam constantemente em
processo de novas descobertas e de buscas filosóficas que os orientassem.
Sua geração lia e se apropriava de livros de vários autores (Heidegger,
Kierkegaard, Léon Bloy, Gabriel Marcel, Berdiaeff, Lebret, Sartre, Chardin);
após Mounier, leu-se Marx através de Yves Calvez (La Pensée de Karl Marx), o
Marx da ideologia e da alienação. Essa leitura significava discutir idealismo e
102
Revela-se na pesquisa de Emanuel de Kadt (Cf. 2007, p.312) que os autores mais
citados no início dos anos de 1960 entre os cristãos de esquerda eram: Lebret (84%); Mounier
(52%); Lima Vaz (52%); Teilhard de Chardin (45%); Marx (34%); Sartre (27%).
167
materialismo e se debater na contradição entre o materialismo histórico e a
filosofia cristã. Quanto à alienação, não se pretendia resolver nem o problema
filosófico nem os problemas particulares dos estudantes, pois com Mounier,
estes “já haviam descido no terreno dos homens concretos, da história da
economia e da política” (Souza, 1982, p.19). Foi neste contexto de
engajamento e militância cristã da JEC e da JUC, que Marx apareceu como
desafio e problema. Betinho (Ibid., p.19) escreve:
participávamos da política movidos pelas exigências da fé cristã; por que então
deixar a fé – que nos levava à política – para poder encontrar Marx na política?
Através da fé não havíamos chegado à política? Por que aceitar o dilema
entre fé (cristã) e política (marxista)?
Entrar em tal terreno de engajamento político era um inevitável encontro
com Marx, seguido de problemas com a hierarquia e pesadas acusações
quanto à militância. Foi nesse momento que os jovens encontraram a força do
pensamento de Lima Vaz, que elaborou um tipo de conhecimento que
responderia aos problemas do engajamento político social. “O Pe. Vaz nos
introduziu no terreno deste desafio através da dialética que estava na origem
do próprio Marx. Pe. Vaz pensava a dialética a partir de Hegel, porém em outra
versão” (Souza, 1982, p.20).
Com o pensamento personalista de Mounier e a “versão” da
“consciência histórica” de Lima Vaz, forma-se um instrumental de reflexão e
práxis, o qual motivará profundamente o pensamento dos jovens cristãos
brasileiros de esquerda no que se refere à “desordem estabelecida”, às tarefas
históricas do cristão, à dignidade da pessoa humana, ao compromisso, ao
diálogo, à encarnação, à dinâmica do homem. Enfim, Fernando de Bastos Ávila
(1982, p.15,16) em seu Depoimento de um irmão, dedicado a Lima Vaz,
sintetiza:
O Pe. Vaz procurou oferecer àqueles jovens novos parâmetros, novas
categorias de análise, iniciando-os na temática da consciência histórica e numa
crítica inteligente do marxismo; seu esforço foi incompreendido, não pelos
jovens, mas pelos que não compreendiam o drama dos jovens e não
compreendiam a radicalidade dos questionamentos com que se defrontavam;
os jovens o compreenderam e fizeram suas opções conscientes, pelas quais
pagaram com a dor a fidelidade a seus compromissos, num dos períodos mais
168
tenebrosos de nossa história cultural e política; por coincidência, aqueles que
não compreendiam então nem o mestre nem os alunos, situavam-se no
segmento, que uma analogia geométrica denominava de extrema direita;
exigiam do Pe. Vaz uma condenação de seus discípulos, exigiam que ele os
renegasse, num momento em que tal gesto seria sentido como uma traição; o
Pe. Vaz sempre se negou a isto; sofreu com eles, com eles foi vítima da
repressão, foi reduzido à condição de um homiziado da cultura, ao ostracismo
intelectual.
103
É assim que Lima Vaz caminha ao encontro dos anseios do jovens
universitários. Para uma compreensão dos parâmetros e análises sobre a
“consciência histórica”, Vaz esclarece que prefere não falar em “ideal histórico
concreto”, expressão empregada por Maritain, mas em “consciência histórica”.
O “ideal histórico concreto” apresenta-se como a essência realizável de uma
certa civilização específica a que tende determinada idade histórica, que, neste
sentido, se distingue da utopia. Mas os ideais históricos, quer sejam ideologias
ou utopias, não recebem significação senão como extensões da consciência
histórica da época. Por isso, podem ser índices, que apenas elucidam as
formas da consciência histórica e que correm o risco de se tornarem em
essências puras, podendo representar uma fuga sutil da história real. Portanto:
A consciência histórica de uma determinada época não suscita seus ideais
históricos como “essências realizáveis”, mas como imagens e modelos de sua
essência efetiva, das suas contradições reais, do seu desdobramento concreto;
(...) o ideal torna-se alienante quando sua função heurística cede lugar à rigidez
das ideologias; falo, assim, de “consciência histórica” dos tempos modernos e
tento descrever a sucessão de formas em que se exprime seu movimento
efetivo; o cristianismo, precisamente, não propõe um “ideal histórico” ele o
se deixa degradar nunca em ideologia... ele é uma “consciência histórica” e sua
originalidade reside precisamente nas razões últimas do prodigioso dinamismo
histórico... (Lima Vaz, 1962, p.77).
Para Vaz, a noção de “consciência histórica” nasce quando a
“subjetividade” dissolve a imagem de cosmos natural do homem antigo,
juntamente com a nova construção da forma do universo científico-técnico,
provocada pela revolução científica. Nasce quando o mundo é experimentado
pelo sujeito e submetido às leis empíricas constituídas de rigor matemático.
Diferentemente da premissa fixista milenar do cosmo platônico (salvar os
103
Veja abaixo, p. 180,181.
169
fenômenos) que se divinizou e cristalizou, o homem moderno o mundo por
um novo ângulo, e cabe-lhe des-divinizar, conhecer geometricamente as
coisas, pois o mundo é concreto e mutável: “De Descarte à Ilustração, de Kant
a Hegel e Marx, do historicismo e da fenomenologia aos existencialismos, das
filosofias científicas do culo XIX a Teilhard de Chardin, tal a questão
fundamental que define a trajetória da consciência histórica dos tempos
modernos” (Lima Vaz, 1962,
p.78,79).
Essa concepção antropológica em contraposição à cosmológica criou
uma consciência, no sentido de que o homem, a partir deste momento,
ativamente transcendeu “sobre o mundo, revelando-se na interpretação
científica do universo ‘natural’ e em sua transformação em universo ‘técnico’”
(Id., 2001, p.189). Já a “subjetividade”, no sentido estrito de “interioridade”
dessa nova consciência, é oposta à “exterioridade do mundo” e se revela,
enquanto tal, quando o sujeito das significações e dos valores compreende o
mundo. Para Lima Vaz (Ibid., p.166), trata-se de uma “consciência histórica” e
não da história:
A história-ciência não se constitui, entretanto, senão a partir da dimensão
histórica da consciência, de sua distensão interior sua memória que torna
possível a recuperação do ser na forma do passado e sua projeção simétrica
no espaço hipotético do futuro.
É que se encontra a originalidade da “historicidade da consciência”,
abertura para o ser-no-tempo, quando este se projeta num sentido histórico ou
numa inteligibilidade histórica de uma experiência temporal-do-ser.
No sentido de uma consciência antropológica-cultural, ou seja, o homem
como elemento estrutural de uma consciência histórica (consciência moderna),
Lima Vaz faz referência ao ser ativo e criador de um universo cultural em
específico.
Se se pensar na Grécia Clássica, é costume dizer que o senso histórico
seria estranho aos helenos ou desconhecido devido à doutrina do “eterno-
retorno”, à imagem de “tempo circular”, pode-se, no entanto, dizer que, de certa
forma, não passou despercebido a Tucídides, com a “ciência da história” e,
além disso, já foi também assinalado “que o problema da significação do
processo histórico está no centro da reflexão filosófica grega” (Ibid., p.168).
170
Notadamente, verifica-se que na história da humanidade, esta consciência
surge em tempos de crise:
Tucídides inicia sua obra na clara consciência de se encontrar diante do “mais
vasto abalo que sacudiu a Grécia, o mundo bárbaro e, de certo modo, a
humanidade inteira”. (...) O pensamento histórico de Agostinho é também
uma meditação sobre a queda de Roma, a crise e seu desenlace da
civilização antiga. que o providencialismo agostiniano é uma teologia
cristã da história, e sua resposta à crise é um julgamento transcendente sobre
a história e a afirmação de uma esperança escatológica (Lima Vaz, 2001,
p.170).
Em relação à consciência histórica moderna, quais traços ela acentua
caracteristicamente na cultura ocidental? Uma primeira característica pode ser
apontada em Giovanni Battista Vico (1668-1744) que, ao se libertar dos
preconceitos de seu tempo, dos métodos racionalistas e abstratos, propõe
concentrar-se nos “aspectos mais concretos da história a fim de conhecer
verdadeiramente o homem e seus produtos” (Grandes Filósofos, 2005, p.155).
Dessa forma, tem-se uma “filosofia da história” em que esta se apresenta como
orientada para um fim. Vaz acrescenta a esta visão e a complementa com o
pensamento de Karl with, que se refere à dimensão “futurista” da história.
Segundo Löwith seria a transposição de aspectos fundamentais de uma
“teologia da história” bíblico-cristã formulada em termos profanos; uma
“mundanização” da “história da salvação” em “história universal” (Lima Vaz,
2001, p.170).
Uma segunda característica é a descoberta do tempo histórico como
uma realidade empírica, conhecida pela técnica, pelos métodos da pesquisa
científica; uma revolução que rompeu com a tradição de quase dois milênios e
criou um novo conceito de razão, de natureza, de experiência e de lei natural:
é claro que a adoção de um novo quadro do Universo nasceu com base numa
atitude nova, diante da realidade, que a “transformação dos quadros da
inteligência” e a “modificação profunda da mentalidade científica” foram
possíveis por um novo modo de entender o homem e o seu lugar na natureza,
por uma concepção nova da história (Rossi, 1992, p.34)
.
Em sua trajetória a “consciência histórica”, para Hegel e Marx, permeia
os extremos da consciência e do mundo, consciência como movimento
171
concreto do próprio auto-reconhecimento e o mundo como correlato dialético
do próprio movimento da consciência. Mas o sentido do movimento dialético
entre estes dois polos é diametralmente oposto nos dois pensadores. Para
Hegel, o “Espírito é o Absoluto” (origem) e a história é epifania (sua
exteriorização). Assim, a “consciência histórica” é “reflexão sobre a história”,
“compreensão do passado”, sua eternização no Espírito que nele se
reconhece. É a justificação da história vivida, edificação, pelo processo
dialético, de uma interioridade ideal, “paz do cismo especulativo” (expressão de
Vaz), para que o espírito se recolha depois de um duro trabalho na história.
Para Marx, a “consciência histórica” deve interpretar o passado, transformar o
presente (práxis revolucionária) e criar o futuro. o é a ideia e sim a práxis
que surge diante de uma realidade concreta, histórica do homem; espoliado em
seu trabalho, é em suas “carências sensíveis” (expressão de Marx) que se
encontram as posições reais do mundo.
Encerrando a história numa totalidade ideal dada, a filosofia hegeliana vai
tornar-se o instrumento de justificação de todos os ócios históricos, de todas as
diversões idealistas. No momento em que o problema é colocado no plano da
história real, ou seja, do trabalho dos homens reais, ela fica definitivamente
ultrapassada. (...) problema indissoluvelmente teórico e prático que define a
direção da marcha da “consciência histórica” dos tempos modernos (Lima Vaz,
1962, p.81).
Estes “tempos modernos” criaram novas consciências. Da produção
artesanal à industrial, do eletromagnetismo à física nuclear, da relatividade ao
“princípio das incertezas”, tudo isso, somado a muitas outras descobertas,
promoveu uma enorme evolução, e o pensamento de Marx colaborou também
para modificar a imagem de mundo dos tempos galileanos. A humanidade
descobre uma nova percepção da natureza e da história, pois o “tempo do
mundo e o tempo do homem” é “uma dialética da transposição” (Ibid., p.82). É
o que Romano Guardini chamava de advento do “reino do homem”, quando
este surge como um novo homem que, de certa forma, tem em suas mãos o
domínio sobre a natureza que envolve todo o planeta. Eis que surge o
problema quanto ao poder, o problema do homem enquanto ser social. O
trabalho dialético da consciência histórica, no que se refere à consciência
social, vai adentrar a vida do homem que passa, agora, a sofrer as pressões
172
dos interesses e das necessidades práticas de uma revolução industrial. Marx,
em seu “Manifesto”, elucida o domínio da natureza, a especulação, os homens
explorados e a necessidade de produção para fortalecer a burguesia:
Cada [indivíduo] trata de criar uma força essencial estranha sobre o outro, para
encontrar assim satisfação para seu próprio carecimento egoísta. Com a massa
de objetos cresce, pois, o reino dos seres alheios aos quais o homem está
submetido e cada novo produto é uma potência do engano recíproco e da
pilhagem recíproca. O homem torna-se cada vez mais pobre enquanto homem,
precisa cada vez mais de dinheiro para apossar-se do inimigo (...). A ausência
de medida e a desmedida passam a ser sua verdadeira medida. Inclusive
subjetivamente isto se mostra, em parte, no fato de que o aumento da
produção e das necessidades se converte no escravo engenhoso e sempre
calculador de apetites desumanos, refinados, antinaturais e imaginários (Marx,
1987, p.182).
Nessa dramática aventura de se transformar o mundo, devemos
recordar que Mounier apreciava certas ideias de Marx, mas a revolução
marxista, segundo Mounier, desconheceu a imensa realidade do “Universo
pessoal, interpessoal e a Transcendência” (Cf. acima, Cap. II, Seção 2). Para
Mounier o realismo cristão seria o único a garantir esta dimensão. Recorde-se,
também, o contexto divergente no que se refere à relação homem-natureza
(concepção marxista de senhor/escravo), pois para o “realismo cristão”, o
homem o foi criado para dominar as coisas, mas para um efetivo diálogo
para com elas; as coisas não são objeto de desprezo (idealismo) nem somente
de exploração (materialismo grosseiro), mas um sacramento natural pelo qual o
homem volta-se para Deus. São, portanto, dimensões humanistas da dialética
constante entre o ser encarnado e a transcendência, ser-que-está-no-mundo e,
ao mesmo tempo, é ser-para-além-do-mundo, aquele que cria, ao mesmo
tempo, a consciência crítica (Cf. acima, p. 45).
Lima Vaz vai a essa fonte e propõe a afirmação radical da
transcendência do homem sobre a natureza, embasada na mensagem cristã,
no “compromisso” (Cf. acima, Cap. II, Subseção 2.7), na responsabilidade de
sua “encarnação como evento e como sentido”, como dignidade de um
173
kairós
104
supremo. Trata-se do tempo em que a pessoa transcende,
consciência cristã de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Essa
“imagem” é diferente de uma cópia que reflete imperfeitamente um paradigma
perfeito, mas sim, a do “caráter concreto e dinâmico de uma espécie de
‘situação’ ontológica original e única do homem em face ao mundo...” (Lima
Vaz, 2001, p.197). É uma dialética histórica de transformação, de humanização
da natureza e do homem: “Em concreto, a responsabilidade histórica que
decorre das estruturas mais profundas da consciência cristã que conduz o
cristão à fronteira mais avançada das lutas históricas em que o homem se
empenha na conquista de um mundo mais humano, do universo das liberdades
reais” (Id., 1962, p.91).
Lima Vaz no final de seu artigo Consciência cristã e responsabilidade
histórica “evoca Mounier” e o acompanha rumo “à rota da mais alta estrela”, ao
exigir do homem a “coragem lúcida e generosa de seu compromisso,
alertando o cristão do pecado, ou seja, o pecado da omissão histórica, da
despersonalização de si, do outro e do mundo (Cf. acima, p. 70,71). Então,
Lima Vaz (1962, p.92) faz suas as palavras de Mounier, para despertar o
cristão:
O pequeno e encolhido medo abriga-se no ancoradouro das tranquilas
enseadas do passado, onde os mastros vegetam na calmaria de todos os
conformismos. A coragem lúcida e generosa eleva o gesto largo ao vento dos
grandes espaços livres, abrindo no grande mastro a grande vela para a rota da
mais alta estrela!
De acordo com Betinho, o desenvolvimento da “Consciência histórica”
contribuiu muito para sua geração, foi fundamental para se compreender o
momento vivido, afirmar a missão do cristão no terreno dos homens concretos
e erguer a base do engajamento político, pois era preciso pensar e atuar
historicamente. Em seu depoimento, Betinho (Souza, 1982, p.20) esclarece
que Lima Vaz, com seu pensamento, contribuiu com a parte filosófica de um
importante documento referente ao engajamento especificamente histórico na
104
Termo grego que significa “tempo oportuno”, “tempo de decisão”. Para a concepção
bíblico-cristã, refere-se a um momento decisivo no tempo, acontecimento marcante na história
cristã, cujo núcleo será a Existência e a Ação de Cristo (Cf. Lima Vaz, 2001, p.204).
174
política (Souza, 1982, p.20).
105
O Documento-base (DB) foi apresentado em
março de 1963 aos integrantes do “novo movimento” (Cf. acima, p. 165);
quando estes se reuniram em Salvador aprovaram o DB e identificaram o
movimento com o nome de Ação Popular (AP).
Este movimento iniciou-se informalmente no final de 1961 (Cf. acima,
nota 101). Com o Esboço do Estatuto Ideológico de junho de 1962, firmou-
se como movimento político. Com a legitimação do DB, a AP ficou
nacionalmente conhecida. Luiz Alberto Gómez Souza (2003, p.43) lembra:
“entre os anos 1962 e 1963, com os companheiros de geração, Betinho à
frente, criamos um movimento político, a Ação Popular, com uma opção
socialista, personalista-comunitária...”. Dos seus fundadores, muitos eram
militantes radicais da JUC, JEC e JOC (Betinho foi o primeiro coordenador
nacional da AP), além disso, o movimento rapidamente abriu-se aos círculos
estudantis e “mais tarde, a AP atraiu seguidores entre os trabalhadores e
camponeses politicamente mais avançados...” (Kadt, 2007, p.107).
Desde o princípio de sua história, os responsáveis pela AP tomaram
certos cuidados para que o movimento não tivesse nenhuma ligação com o
sentido confessional cristão. Isso se explica, pois, embora a maioria dos
militantes tivesse formação religiosa e fosse oriunda dos movimentos da ACB,
já haviam experimentado dificuldades com a hierarquia católica.
Compromissado “com o homem brasileiro antes de tudo” e com os
ânimos em ebulição no decorrer de sua existência, a AP passou a ser vista
como “paracristã”, ao declarar guerra a organizações mais acomodadas,
reformistas ou que mantinham ligações formais com a Igreja. De certa forma,
os responsáveis pela Comissão Central da CNBB mantiveram-se neutros em
relação ao movimento, pois, no ano de 1963, ainda estavam “sob o encanto
que a encíclica do Papa João XXIII, Pacem in Terris” proporcionava. Mesmo
105
Sobre este assunto, Betinho diz: “O Pe. Vaz no entanto nunca foi um ator de nossa
política, nem definiu os cenários de nosso engajamento. Ele simplesmente definiu o
fundamento filosófico de nossa opção naquele momento. E tão discretamente quanto havia
entrado, como filósofo, no nosso texto, se manteve afastado do cenário de nossa prática. Não
que dela discordasse e me refiro especificadamente à prática até 1964, mas simplesmente
porque não pensava ser esta sua tarefa de padre. Como pensador nos proporcionou a
dialética, que fundamentava nossa análise e prática política, como padre não via na prática
política o seu campo de atuação” (1982, p. 20,21).
175
antes dessa publicação papal, os bispos foram persuadidos a emitir uma
declaração afirmando a necessidade de mudanças urgentes e radicais no país.
Eles referiam-se às aspirações do povo, à participação das massas no
processo histórico brasileiro, à reforma agrária, à reforma nas empresas
industriais através da participação em sua propriedade e lucros, à reforma
eleitoral e à reforma no sistema educacional. Mas a relação de neutralidade
com a AP cessou no decorrer do ano de 1963, devido à ideologia e,
principalmente, às atividades empreendidas por este; tudo passou a ser motivo
de suspeita e hostilidade. Em dezembro de 1963, uma carta pastoral foi
enviada aos responsáveis da ACB chamando-lhes a atenção para certas
correntes ideológicas que eram incompatíveis com os ideais da Ação Católica.
Quanto à presença da AP, pediu-se extrema cautela e proibiu-se aos
“militantes católicos de compor ‘frentes únicas’ com marxistas” (Kadt, 2007,
p.109-111). Caso entrassem para a AP, que buscassem modificar sua
essência, no sentido da autenticidade cristã.
106
Cândido Mendes (1966, p.70) a viu por uma outra ótica. Acreditou que a
AP era expressão dos “católicos de esquerda”, que desenvolveram um
humanismo concreto de militância prática, fundada “nos princípios gerais do
personalismo e de uma preocupação genérica com os valores da cultura, para
o da descoberta, partindo do engajamento, das tarefas da chamada
conscientização...”. Para ele, a Ação Popular trazia a marca do catolicismo
progressista, tendo por impulso a visão cristã compromissada que levou certas
técnicas de ação (como a alfabetização em massa) a terem um sentido mais
amplo e profundo. Isto até o golpe militar de abril de 1964. Deve-se, portanto,
compreender que o movimento AP, embora significasse um
abandono da perspectiva católica geral, que a então indicava uma
contaminação mais ou menos acusada pela ótica da Ordem”, sobrelevasse o
aspecto de opção pura que tinha a sua militância, eximindo-se a toda retomada
da investigação ou análise das teses de desenvolvimento, tal não lhe retirou,
106
A AP recebeu militantes de todo o país, principalmente da JUC e da JEC. Por isso, foi
assegurada à AP a hegemonia e direção do movimento universitário e grande participação no
movimento dos estudantes do ensino médio, o que se prolongou mesmo depois de 1964. Em
outros setores, como a “pequena e média burguesia”, a AP não foi desconhecida,
principalmente entre profissionais como os professores, os bancários. Em muitas localidades
espalhadas pelo país, a presença da AP esteve representada pelos movimentos sindicais (Cf.
Souza Lima, 1979, p.44).
176
entretanto, a sua riqueza específica, que foi a de ter, ao crivo de uma
participação autêntica, incorporado determinados temas de uma cogitação
cristã geral à problemática de hoje; de se falar, nesse sentido, em
contribuição legitimamente praxísta daquele movimento para o processo
nacional; dele pôde a ação da esquerda católica retirar a sua primeira
manifestação de efetiva originalidade (Mendes, 1966, p.69).
O “aspecto da opção”, chamado por Kierkegaard de batismo de escolha,
é aquele que edifica o ser. Como foi visto, Mounier preocupava-se com a
liberdade de “opção”, quando se referia ao sentido superficial da escolha. Pelo
que mostra a AP, não se tratou apenas de conquista da autonomia, mas sim de
liberdades edificantes ao participar na história (Cf. acima, Cap. II, Subseção
2.6).
A originalidade, segundo Cândido Mendes, surgiu a partir de temáticas
cristãs que foram inseridas em determinados comportamentos políticos e
sociais e assumidas na prática. Ele faz menção explícita aos “movimentos de
alfabetização, de educação de adultos, de sindicalização rural”, desenvolvidos
pelos integrantes da AP. O aspecto mais importante para ele, “foi o da
anexação que lograram, do tema da cultura popular, ao desenvolvimento
nacional” (Ibid., p. 69,70).
Para uma rápida compreensão desse compromisso, é na introdução do
Documento-base (1963) que se encontra formulada a missão da AP ao se
traduzir como a ação revolucionária, expressão de uma geração, que assumiu
a responsabilidade de uma transformação radical, para estabelecer a
autenticidade humana, “como resposta ao desafio de nossa realidade e como
decorrência de uma análise realista do processo social brasileiro na hora
histórica em que nos é dado viver” (Ação Popular: Documento-base, 1979,
p.118).
O DB, além da introdução, possui quatro capítulos. O primeiro aborda a
“perspectiva histórica mundial e latino-americana”. O segundo trata da
“perspectiva filosófica quanto à “consciência e o mundo”, “história e cultura” e
“consciência histórica”. O terceiro aborda a história do “socialismo” e suas
“consequências político-ideológicas”. Por último, “a evolução da realidade
brasileira” (Ibid., 118-144). Em suma, o DB direciona a AP ao optar
177
por uma política de preparação revolucionária, consistindo numa mobilização
do povo, na base de desenvolvimento de seus níveis de consciência e
organização, firmando esta mobilização numa luta contra a dupla dominação
capitalista (internacional e nacional) e feudal. Fortalecendo progressivamente
seus quadros, a AP desempenhará cada vez mais o papel de promover e
orientar cada mobilização apoiando-a em intervenções diretas e pela atuação
coordenada de seus militantes dentro das estruturas atuais do poder. Ela se
propõe a tarefa de elaborar com o povo, na base da contribuição deste, a nova
sociedade (Ação Popular: Documento-base, 1979, 142).
Aqui se encontra o marco divisório, entre o pensamento e a ação. A
“consciência histórica” permeou as diretrizes da JUC depois de Aracaju e da
AP de 1962 a 1964. O que se percebe é que a JUC, entre 1960 a 1962, teve
sua fase de crescimento, mas logo após, começou a perder militantes que
migravam para a Ação Popular. O fato foi que, enquanto a JUC recuperava o
papel de movimento da Igreja, a AP assumia toda a responsabilidade nas lutas
sociais e políticas, tornando-se um movimento de “ação revolucionária”. Como
observa Luiz Alberto Gómez de Souza (1984, p.207),
se frequentemente houve dupla militância e se vários dirigentes da AP eram
ex-jucistas, os caminhos se vão separando aos poucos – a primeira [JUC]
tratando de desempenhar seu papel de movimento da Igreja, a segunda [AP]
num compromisso cada vez mais concreto durante o “pacto populista” e, mais
tarde, na experiência da clandestinidade.
2.3 A repressão: reflexão e militância em tempos sombrios
Na realidade, a AP tornou-se um movimento político com diretrizes de
pensamento cristão revolucionário e com matrizes de personalismo socialista.
Foi o “primeiro movimento de participação concreta, no processo nacional por
uma nova geração católica” (Mendes, 1966, p.50). Aliando o pensamento
político cristão de Mounier e as indagações de Lima Vaz, a AP cobrava de seus
militantes a “luta sem tréguas contra a desordem estabelecida” embasada na
consciência do engajamento radical. Independentemente de que caminhos
tenha tomado posteriormente depois de abril de 1964, Cândido Mendes
assinala:
178
O significativo está em que a derivação da AP para, inclusive, um ativismo-
limite, não representou uma satelização por movimentos de esquerda radical
confessos. Constitui o ideário daquele movimento, então, o esforço de situar,
jure proprio, aquela posição, a partir de um engajamento que se pretendia
intensamente cristão e apoiava os seus fundamentos num ethos próprio e
novo, de participação
(Mendes, 1966, p.24).
No mesmo clima de engajamento, entre os dias 16 a 21 de setembro de
1963, ocorre em Salvador uma reunião dos assistentes da JUC para discutir a
noção de consciência histórica e o método de atuação dos jucistas. Os
assistentes de Belo Horizonte apresentaram um esquema para analisar o
compromisso do cristão frente à realidade brasileira, esta considerada como
composta de um conjunto de setores estruturais (ligados às áreas política,
econômica e social), de ideologias (as visões de mundo) e de movimentos
(sindicatos, partidos e outros), numa dialética entre si; os militantes presentes
nestes conjuntos deveriam vivenciar a realidade, dando testemunho.
Por seu lado, os militantes vão se comprometendo sempre mais nos programas
de educação popular e de mobilização camponesa, seja no Movimento de
Educação de Base (MEB), criado pelos bispos, nos Centros Populares de
Cultura (CPC) estudantis, seja no Movimento de Cultura Popular do Recife
(MCP), ou nos programas ligados às experiências de Paulo Freire no Recife,
no Rio Grande do Norte (Angicos), e logo depois por todo o país (Gómez de
Souza, 1984, p.208).
O MCP adota o lema de Miguel Arrais (Educar para Libertar) e com isso
desenvolve o programa de alfabetização de adultos, na esteira do método de
Paulo Freire.
107
O CPC, projeto político-cultural criado pela UNE, teve por
fundadores Arnaldo Jabor, Carlos Lyra e Oduvaldo Viana Filho; incorpora
depois, Astrojildo Pereira, Rui Facó, Ferreira Gullar, Dias Gomes. Divulga
talentos populares como Kéti, Cartola, Nelson do Cavaquinho, dentre
107
Que consistia basicamente na ideia de que a educação deve tornar o homem
consciente de sua liberdade no mundo. Em seu método estimulava a atitude crítica diante da
realidade do mundo. Diferentemente das escolas tradicionais, havia os “círculos de cultura”, em
lugar de professores, os colaboradores. Palavras do cotidiano, como favelas, fome, trabalho,
etc. (condições existenciais), deveriam ser discutidas no processo de aprendizagem, para na
sequência, se pensar em transformações. Para maiores detalhes, confira o tema central deste
assunto na obra: FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1967.
179
outros; lança o filme Cinco vezes favela; a Coleção de livros Cadernos do Povo
Brasileiro; o disco Subdesenvolvido e peças teatrais.
108
Vivia-se uma efervescência sem igual. No campo, as Ligas Camponesas
(LCs), especialmente as do Nordeste, multiplicavam-se. O sindicalismo rural
seguia a mesma proporção. Como exemplo, no período compreendido entre os
anos 1955-1957 existiam apenas 3 sindicatos rurais; chegaram a 300 em julho
de 1963 e a cerca de 1500 em março de 1964. As LCs, em Pernambuco,
chegaram à marca de 64 e se estenderam para vinte estados brasileiros, sendo
registradas 218 organizações (Cf. Semeraro, 1994, p.28-29).
Os movimentos estudantis, encabeçados pela União Nacional dos
Estudantes (UNE) e pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
(UBES), reivindicaram a democratização do ensino e também apoiaram a luta
das massas populares contra as classes dominantes.
Pela primeira vez, na história brasileira, as massas populares, apoiadas por
intelectuais e partidos de esquerda, aparecem no cenário político e ameaçam
seriamente as classes dominantes que viam fracassar as diversas tentativas de
contemporizar pela via das reformas populistas. Não era mais possível conter o
crescente volume de forças populares que, desenganadas pelo esquema da
aliança policlassista, insistiam por mudanças na própria estrutura da sociedade
(Semeraro, 1994, p.32).
No bojo das mudanças, greves começaram a acontecer nos meios mais
industrializados no eixo Rio-São Paulo. Atingiram várias categorias de
profissionais como os ferroviários, estivadores, funcionários de banco,
previdência, departamento de estrada de rodagem, empresas de luz e água, e
assalariados em geral.
Importante lembrar que em 1961, antes da posse de João Goulart na
Presidência da República, estabeleceu-se uma crise institucional e militar
quanto à passagem do cargo a João Goulart (Jango). Mesmo assim, Goulart
toma posse em 07/09/1961. No Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais,
em Belo Horizonte, no dia 15 de novembro deste mesmo ano, Goulart marca
presença ao dar apoio à reforma rural. Ele também, restabelece as relações
108
O movimento foi fechado pelo golpe militar e teve seu acervo destruído (Isto é, Brasil
500 anos,1998, p.175).
180
diplomáticas com URSS, que haviam sido rompidas em outubro de 1947 e
anuncia as “Reformas de Base” (agrária, urbana, bancária, educacional). Com
isso, seus rivais ficam mais enfurecidos, incomodados e descontentes. Civis e
militares mobilizam-se rapidamente.
Na sede do IBAD
109
, empresários contrários a João Goulart, criam o
Instituto de Pesquisas Sociais (IPES). O general Golberi do Couto e Silva,
conspirador dos anos de 1954, 55 e 61, deixa seu posto para dedicar-se ao
IPES. Nasce o Instituto com verbas dos conservadores, dos empresários do
Rio de Janeiro e de São Paulo. O Instituto influenciou por meio da doutrinação
as áreas militares e patronais, com o intuito de preparar o golpe de 1964.
Este órgão, com seus cinco grupos, divulga relatórios semanais entre oficiais,
grampeia telefones e prepara o futuro nascimento do Serviço Nacional de
Informações (SNI), que integrará a máquina de repressão. Juntamente ao SNI,
os EUA darão seu apoio para o golpe, inclusive com auxílio militar na chamada
Operação Brother Sam (Cf. Isto é: Brasil 500 anos, 1998, p. 173-179).
Estavam abertos os porões da ditadura e iniciavam-se os tempos difíceis
da reflexão militante. Em 1° de abril de 1964, a UN E e a UBES têm suas sedes
no Rio de Janeiro saqueadas e incendiadas. O jornal Brasil Urgente também foi
saqueado. Ocorrem prisões e perseguição de grande número dos militantes da
JUC, MEB, AP e de outros movimentos da Igreja. Surgem denúncias na
imprensa contra a AC e a JUC.
Em Belo Horizonte, a sede da JUC foi invadida e desaparecem
documentos dos arquivos. Na AP, líderes e militantes foram presos. Herbert
José de Souza, Vinícius Caldeira Brant e outros partem para o exílio. Lima Vaz
deixa o Rio de Janeiro e segue para a sede da província jesuítica em Belo
Horizonte à qual pertencia. Foi acolhido na UFMG pelo então diretor, professor
Arthur Versiani Velloso. Lima Vaz, em depoimento, dirá que o professor
109
Instituto Brasileiro de Ação Democrática, foi criado por 59 empresários, porta-vozes
do capital estrangeiro, intelectuais e políticos de direita. Em 1960, ajuda Jânio a criar a Ação
Democrática Parlamentar (ADP). O IBAD encerrou suas atividades em 20/12/1963 por ação
ilícita, ao receber verbas estrangeiras e financiar candidatos conservadores na eleição de
1962. Foram beneficiados: 8 candidatos a governador, 15 a senador, 250 deputados estaduais,
elege Lacerda e Ademar, 110 deputados federais. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
do IBAD, formada em 1963, apurou que, nesta aliança, 152 empresas estrangeiras financiaram
o Instituto. Eis algumas: Texaco, Esso, Shell, Coca-Cola, GE, Ciba, Bayer, IBM (Cf. Isto é,
Brasil 500 anos,1998, p.167).
181
Velloso, “homem independente e acima das conveniências políticas do
momento, (...) recebeu-me não obstante as suspeitas que cercavam meu
nome” (Nobre, 2000, p.30). Ele afirma que, durante 22 anos na UFMG, o
recebeu nenhuma restrição, e sim estímulos para que desenvolvesse sua
tarefa de professor. Declara que durante os primeiros anos teve que
comparecer ao Departamento de Obra Política e Social (DOPS), ao Comando
da Polícia Federal e Militar. Lima Vaz em entrevista diz:
As vicissitudes de minha peregrinação a partir da década de 70 foram
tranquilas. Meu problema com os órgãos de segurança estava resolvido com o
hábeas corpus que havia recebido do Superior Tribunal Militar em 1968. Em
1975 fui para o Rio, chamado a ensinar novamente na Faculdade de Filosofia
dos Jesuítas, que para ali se transferira. Continuei no entanto meu magistério
na UFMG, vindo todos os mês a Belo Horizonte para dar minhas aulas. Na
UFMG permaneci até me aposentar, em 1987 (Nobre, 2000, p.30).
No dia 17 de abril, o governador Carlos Lacerda denuncia os órgãos da
AC como sendo locais de reagrupamento de comunistas. D. Cândido Padim,
Assistente-Geral da AC declara, imediatamente, em nota pública, que não pode
deixar de protestar contra tais acusações levianas. Assistentes eclesiásticos
saem do país. Inquéritos Policial-Militar (IPM) procuram os chamados
“subversivos” (militantes e ex-militantes). Em julho membros da JEC e da JUC
são detidos em seus apartamentos e liberados com a intervenção do
Assistente Geral da AC. (Cf. Gómez de Souza, 1984, p. 213).
Em Belo Horizonte, ocorrem nas ruas choques entre a Ação Católica e
grupos de católicos integristas. Grupos das Congregações Marianas invadem o
Convento dos Dominicanos e denunciam à polícia os ditos “comunistas
infiltrados nos movimentos da Igreja”.
As Faculdades de Filosofia da UFRJ e USP o metralhadas. A
intelectualidade é reprimida com a demissão de centenas de professores
universitários; entre eles, Oscar Niemeyer, Josué de Castro, Celso Furtado,
Anísio Teixeira e Paulo Freire. A Universidade de Brasília é invadida pela
Polícia Militar em 18/10/1965 e perde 210 professores. Começam as torturas
182
seguidas de algumas vítimas fatais, nesta primeira fase da repressão militar
(1964-1968).
110
O golpe de 1964 despedaçou os projetos da Ação Popular, que
evidentemente parecia “constituir-se em um canal privilegiado de participação
política e de militância orientada ao humanismo cristão e visando a construção
de um socialismo, como também estaria destinado a ter papel importante na
política brasileira” (Souza Lima, 1979, p.46). Esta possibilidade histórica não se
confirmou.
Com o golpe de Estado, ocorre inicialmente a paralisação da
participação governamental, que fora importante no Ministério da Educação, no
setor de alfabetização de adultos, na cultura popular e na aplicação do método
Paulo Freire. Com o isso, o movimento sente-se desarticulado e traça uma
nova linha política com as seguintes etapas principais:
a) definição do caráter da Revolução Brasileira como socialista e de libertação
nacional; b) escolha da alternativa da luta armada; c) transformação da AP em
uma organização marxista-leninista; d) adesão ao maoísmo e à teoria chinesa;
e) sua virtual extinção com a confluência da maioria de seus quadros em outras
organizações políticas clandestinas (Ibid., p.46-47).
Diante da repressão continuada, a AP, em cada etapa que pretendia
desenvolver, reduzia suas bases sociais (compostas por cristãos progressistas)
e também, no geral, o quadro de pessoal esvaziava-se. Aos poucos, a AP
transformou-se em um pequeno grupo de militantes que abandonam as raízes
sociais do humanismo personalista cristão; o que restou foi “uma organização
pequena e impaciente, que disputava verbalmente com outras organizações
clandestinas a hegemonia da direção da classe operária e da Revolução
Brasileira (Ibid., p. 47).
110
Pode-se dizer que o regime militar (1964-1985) no Brasil atravessou três fases
distintas. A primeira inicia com o Golpe Militar de Estado. Considera-se a segunda fase, o
período a partir de dezembro de 1968, com a promulgação do AI5 (Ato Institucional 5). Os anos
de 1969 a 1973 são considerados os anos de chumbo da mais virulenta ditadura. Tempos de
tortura, violência sem limites, mortes, desaparecimentos e prisões que poderiam superar 10 mil
em um dia. A terceira fase começa com a posse do general Ernesto Geisel em 1974, ano
em que paradoxalmente, o desaparecimento dos opositores se torna rotina, iniciando-se então
uma lenta política [de distensão] que iria até o fim do período de exceção”. Tancredo Neves é
eleito Presidente da República e sua posse estava marcada para 15/03/1985. (Cf. BRASIL.
SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2007, p.21).
183
Enfim, as diretrizes do DB da AP foram abafadas pelas forças da
repressão, “a proposta, a tarefa de elaborar com o povo, na base da
contribuição deste, a nova sociedade” (Ação Popular: Documento-base, 1979,
p.142), tombou por terra e uma nova experiência seria lançada, a da
clandestinidade.
A evolução da AP seria condicionada, logo depois, pelo golpe militar de 1964 e
por sua vida na clandestinidade. Tendo surgido como um movimento aberto a
uma elaboração teórica criativa, na linha do personalismo comunitário de
Mounier, mais adiante, a partir da influência do pensamento de Althusser em
1966 e, logo depois, do maoísmo, transformou-se numa rígida organização
marxista-leninista dogmática e sem originalidade na qual não houve mais lugar
para os cristãos (Gómez de Souza, 2004, p.76).
Diante do período repressivo ditatorial, mudanças também ocorreram na
cúpula da Igreja. D. lder não será reconduzido à secretaria-geral da CNBB.
Confrontos surgem entre a JUC e D. Vicente Scherer (eleito responsável pela
Comissão de Apostolado dos Leigos) no que se refere à continuação de D.
Padim na AC, e ao desmembramento da AC, estendendo-se até o conflito final
com a Hierarquia.
Enquanto ocorriam embates sobre o destino da AC e os novos rumos da
JUC, realizou-se em Campinas o XIII Conselho da JUC no período de 19 a 28
de fevereiro de 1965. Uma circular é dirigida aos centros regionais e locais com
uma nova orientação: “não mais de militância e engajamento”, mas “militante-
pessoa engajada”, “ser situado”, universitário em seu meio universitário. Eis o
novo percurso da JUC, os limites da nova política nacional e da pastoral
universitária. Caso contrário: a prática concreta na clandestinidade. Gómez de
Souza (1984, p.220) nessa perspectiva que a “trajetória se parece a uma
grande elipse em que, saindo do interior da Igreja, depois de uma abertura à
realidade brasileira e seus conflitos, a JUC volta aos problemas intra-
eclesiais...”.
Neste ínterim, trâmites ocorrem repetidas vezes em Roma, sobre o
destino da AC. O resultado final (nov. 1965) foi a ideia de uma descentralização
da AC, fortalecimento das estruturas regionais e redução das equipes
nacionais às tarefas de coordenação. D. Vicente Scherer pede sugestões. Em
184
julho de 1966, em reunião, tem-se um clima tenso e um diálogo impossível
entre o bispo e os movimentos do “a, e, i, o, u” (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC).
A CNBB, em reunião no dia 15 de junho de 1966, aprova a
descentralização da ACB. Neste clima, realiza-se o XIV Conselho Nacional da
JUC entre os dias 18 e 28 de junho em Antônio Carlos (MG). Para estes dias,
também está previsto o XXVIII Congresso da UNE em Belo Horizonte. O
evento foi proibido pela Polícia Militar (PM). Mesmo assim este acontece às
escondidas numa igreja dos padres franciscanos.
Diante do fato dos tratamentos diferenciados, os membros da JUC
protestam, pois se entendem como ligados à Igreja. Em uma Circular da
Equipe Nacional do dia 11 de agosto (1966, apud Gómez de Souza, 1979,
p.229) os militantes declaram:
Consequentemente, não nos reconhecemos como Ação Católica ou qualquer
forma de organização que se defina como extensão do Apostolado Hierárquico,
mas nos propomos a assumir nossa missão de cristãos, homens do mundo,
engajados e comprometidos numa vivência teologal, e é em função desta
missão que o movimento se organiza. Dentro da diversidade de funções,
permanecemos unidos à Hierarquia na comunhão eclesial.
No dia 17 de agosto, D. Vicente Scherer envia uma carta à Equipe
Nacional dizendo que não caberia a ela decidir se será ou não uma
organização da AC. Na carta, ele cita partes de textos de Pio XI de 1934 e
1935, cuja orientação é de que aqueles que não concordarem com os
princípios da Igreja, devem se retirar. Por outro lado, pede à Equipe Nacional
que avalie as decisões (Ibid., p.229-230).
No dia 07 de novembro a Equipe Nacional dirige-se a CNBB, em um
documento, como “ex-JUC”. Analisa o significado da posição radical do
movimento universitário, o compromisso, a fidelidade ao real, a personalização
e seus instrumentos. Demonstra os conhecimentos adquiridos sobre os
problemas da realidade brasileira e finaliza dizendo o que esperava da CNBB
“um diálogo mais profundo com os bispos”:
Ora o meio universitário constitui-se em um dos poucos, senão o único grupo
dentro da sociedade global que tem condições, hoje, de globalizar e enfrentar
uma situação de opressão ou de injustiça, pelo fato de não estar ainda
185
comprometido com o status quo, e ter instrumentos de análise e possibilidade
de organização (1966, apud Gómez de Souza, 1979, p.230).
O assunto foi discutido na reunião com os bispos no dia 08 de novembro
no Rio de Janeiro, e a CNBB torna público que o Secretariado Nacional do
Apostolado dos Leigos declara a dissolução das Equipes da JEC, JIC e JUC
por assumirem posturas semelhantes. D. Vicente é criticado no encontro dos
assistentes da AC em Porto Alegre: “os assistentes exigem um tempo de
reflexão antes de interpretar os textos do Concílio e de fixá-los em estatutos.
(...) eles pedem também uma definição, mais clara, do conceito de
evangelização” (Ibid., p. 232).
Mesmo assim, sem a ajuda e proteção da CNBB, a Equipe Nacional
planeja continuar a luta, mas as dificuldades tendem a aumentar diante dos
problemas internos de redução de quadro do pessoal (coordenadores e
militantes). Em 22 de abril de 1968, ocorre um pequeno Encontro Nacional
onde se reflete a debilidade do movimento. Um documento de 2 de junho de
1968 constata que: “O que vemos surgir hoje, nos meios cristãos, não é mais
movimento, mas uma série de pequenos grupos, que aspiram a uma
comunicação maior e reflexão comum” (apud, Ibid., p. 236).
Dirá mez de Souza que o fim da JUC irá coincidir com o início da
rebelião utópica de “maio de 1968
111
dos jovens de muitos países, incluindo
manifestações universitárias. No Brasil, com o AI5, as atividades militantes
tornaram-se praticamente impossíveis (Ibid., p. 236).
Em carta de 15/05/2003, Luiz Alberto Gómez de Souza responde a uma
pergunta sobre se ainda haveria vestígios das ideias personalistas de Mounier
face às inquietações da atualidade:
Prezado Amigo
Obrigado por sua carta. Na verdade, o pensamento de Mounier não está
presente na França. Fico triste ao ler Esprit em sua nova orientação. Madame
Mounier, quando esteve no Brasil, faz alguns anos, também tomava suas
111
Na França os estudantes e operários paralisam o país no Maio de 68, sob o lema
libertário “É proibido proibir”. Nos EUA, jovens contestam a guerra do Vietnã, o que leva à
desobediência civil de massa, os Panteras Negras radicalizam a luta contra o racismo. A onda
avança pela Alemanha, Itália, Japão, Polônia, Tchecoslováquia, Brasil, México, Argentina,
Uruguai, Chile, Peru, entre outros países.
186
distâncias da publicação e refluía na Associação dos Amigos de Mounier.
espaços personalistas, como na Itália, bem acompanhados pelo Alino
Lorenzon, onde publicam uma revista. No Brasil somos uns poucos para os
quais Mounier segue sendo atual. O fato de Leopold Senghor, no Senegal, e
o presidente Diem, no Vietnam, se declararem personalistas em nada adiantou.
- Que eu saiba, não nada semelhante à sua presença na JUC. Não o sinto
na pastoral universitária nem na pastoral de juventude. Mas o personalismo,
como dizes, é uma perspectiva, uma maneira de olhar o mundo...
112
3. O Personalismo de Mounier a partir de 1970 no Brasil
Na década de 1960 viveu-se o início de grandes transformações,
“período dos laboratórios mais férteis de criatividade”. Segundo Luiz Alberto
Gómez de Souza (2004, p.76), Gustavo Gutiérrez por várias vezes lhe disse
que nesse momento surgiram os primeiros sinais que se configurariam dez
anos mais tarde na Teologia da Libertação. Gutiérrez quando redigia sua
“Teologia da Libertação” interrompeu a redação e veio ao Brasil entrevistar os
envolvidos na JUC, dirigentes e assistentes eclesiásticos. Gómez de Souza
registra também que Pablo Richards afirmava que o Brasil vivia
antecipadamente a efervescência do “cristianismo revolucionário”, que outros
países como a Argentina, o Uruguai e a Colômbia viriam a conhecer depois,
entre os anos de 1968-1970; cita também Charles Antoine ao dizer que a JUC
era um laboratório de pesquisas das novas relações entre “Fé e Política”; para
Ralph della Cava, um “símbolo na vida católica brasileira”; aos olhos de
Michael wy tratava-se de um movimento pioneiro, de surpreendente
criatividade intelectual e política e que, mesmo diante da derrota pela a
“desordem estabelecida”, espalhou sementes por toda a América Latina (Cf.
Ibid., p.76).
Giovanni Semeraro lembra que numa avaliação “sumária e
pretensamente científica”, as propostas e as atuações dos jovens pré-64 têm
sido consideradas “ingênuas e românticas”. Sabe-se das falhas e das
limitações próprias daquele tempo, mas é preciso reconhecer e registrar o que
112
Carta recebida em 15 de maio de 2003, durante a realização de pesquisa, no curso
de mestrado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMP).
187
foi deixado por esta geração de jovens quanto à valorização da subjetividade, à
construção de uma consciência crítica, à vida participativa na sociedade e à
concepção de um socialismo humanista democrático personalista.
Dentro da difícil tarefa, hoje em curso, de reinventar os caminhos de uma nova
síntese sócio-político-cultural mais coerente com os anseios contemporâneos,
a reavaliação das propostas dos jovens católicos dos anos 60 poderá ajudar a
reconhecer a criatividade dos grupos diferentes na sociedade, a força das
configurações religiosas, a pluralidade dos movimentos sociais, o protagonismo
histórico dos novos sujeitos populares e, acima de tudo, o poder transfigurador
de uma juventude generosa (Semeraro, 1994, p.15).
Mesmo que fechados os porões da ditadura, passa ainda por suas
frestas, um ar úmido e podre que se cristaliza nas lembranças, nas feridas
ainda não cicatrizadas. Muitos assuntos desse passado, pendentes e carentes
de justiça, voltam ao cotidiano presente, com o necessário e justo propósito de
resgatar a verdade de uma época vergonhosa e desumana de poder
totalitário.
113
Diante da crise do século XX, buscou-se uma nova imagem do homem,
os “neo-humanismos” empenharam-se na confecção de uma nova antropologia
voltada para a existência do homem contemporâneo. Abalados pelos “mestres
da suspeita” e insatisfeitos com os modelos antropológicos clássicos tanto
naturalista como idealista, a filosofia se volta para a relação da reflexão unida à
experiência existencial com o enfoque ético-antropológico.
113
Para maiores detalhes veja: Sítio na Internet Direitos Humanos; Ação movida pelo
Ministério Público Federal (MPF) no dia 26 de novembro de 2009 na Justiça Federal para
responsabilizar pessoalmente as autoridades, os agentes públicos e civis, da União, do Estado
e Município de São Paulo. Os réus são acusados por ocultações de cadáveres de militantes
(1500 ossadas foram desenterradas em Perus em 1990) que foram executados por discordar
da Ditadura Militar (1964-1985). As ossadas foram encontradas em valas comuns, clandestinas
(para que não fossem identificadas) nos cemitérios da capital de São Paulo (Vila Formosa e
Perus). Para ver na integra o documento de 56 páginas cf. sítio da Procuradoria da República
de São Paulo. Ligado também a este assunto cf. Frei Betto, Batismo de Sangue. Obra
importante é o “Livro-relatório” Direito à memória e à verdade da Comissão Especial sobre
Mortos e desaparecidos políticos, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República de 2007, instituída pela Lei 9.140/95. Importante também é o livro do Projeto
Brasil: nunca mais, onde se pesquisou mais de um milhão de páginas em cinco anos. Produziu-
se um relatório (Projeto A) com aproximadamente cinco mil páginas referentes a mais de 700
processos políticos que tramitavam no Superior Tribunal Militar, “apenas” no período de 1964 a
1979. São relatos vivos das barbáries, torturas e assassinatos de um Brasil nunca mais”. D.
Paulo Evaristo Arns, Cardeal, prefaciou esta obra. Em 2009, já na 37ª edição, este livro,
infelizmente, marca sua importância.
188
Ainda que possam, eventualmente, levantar questões epistemológicas, isto é
feito incidentalmente, em decorrência mais de eventuais vinculações filosóficas.
Seu objetivo fundamental continua sendo o da compreensão do sentido do
concreto. Os humanismos contemporâneos esforçaram-se então para superar
uma visão puramente abstrata do homem, tentando dar conta de todos os
aspectos complexos da realidade histórica enfrentada pela humanidade que
nem sempre estiveram presentes na reflexão filosófica dos períodos anteriores
(Severino, 1999, p.127).
No Brasil, como foi visto (Exigências de um novo pensamento humanista
para o contexto histórico concreto brasileiro - Cap. III, Seção 2), o neo-
humanismo (os existencialismos, o personalismo) adentrou principalmente os
meios universitários, os movimentos da ACB, da AP, exigindo mudanças para a
construção de uma história efetivamente humana (homem concreto). Através
do personalismo de Emmanuel Mounier, foi posto em prática o compromisso, o
testemunho, enfim a visão do homem responsável pela sua ação. Foi a época
do engagement, da consciência histórica, momento de uma nova fase na
educação e na cultura, violentamente barrada pela repressão militar.
Ainda, em meio às tormentas deste período da história do Brasil,
Severino aponta que o personalismo, nos anos 70, adquire outra dimensão
através de uma sistematização mais aprofundada do pensamento de
Emmanuel Mounier, “quando o personalismo passa a ser estudado na sua
dimensão mais especificamente filosófica” (1999, p.133).
114
Por sua vez, verificar o que escreve Alino Lorenzon, em seu artigo -
publicado na Revista Filosófica Brasileira em número consagrado ao 40º
aniversário da morte de Mounier (1990) - “Influência do personalismo de
Emmanuel Mounier no Brasil: subsídios para estudos posteriores”, parece
indicar algo um pouco distinto: “A influência de Mounier é ignorada e
114
Em entrevista, Severino, relembrou que no período de 1960 a 1962 fez seu curso de
graduação em filosofia na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. De 1962 a 1964 fazia
seu mestrado nesta mesma universidade e obteve o título, com a dissertação La critique de la
notion de démocratie chez Emmanuel Mounier. Durante este período fora do Brasil, mesmo à
distância, tentava acompanhar a movimentação no país, às vezes por intermédio do jornal
“Brasil Urgente”. Já no Brasil, no período de 1967 a 1972, conclui seu doutorado em filosofia na
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Bento, PUC-SP, orientado por André Franco
Montoro. Sua defesa de doutoramento ocorreu a portas fechadas e com o título diferente do
original (Pessoa e existência: os princípios ontológicos do personalismo de Emmanuel
Mounier), pois vivia-se ainda o momento da repressão militar, e tratar de algo relacionado a
Mounier era estar contra o sistema estabelecido, era tornar-se subversivo e comunista.
Entrevista realizada no campus da USP no dia 23 de abril de 2008 em vista da presente tese.
189
desconhecida, mesmo dentro dos Departamentos de Filosofia. No entanto, ela
tem sido muito importante em setores como a educação, o serviço social e no
campo político-social” (Lorenzon, 1996, p.107). A razão ou, pelo menos, uma
das razões seria, porque a filosofia de Mounier aflorou fora dos muros da
universidade, como já vimos (Cf. acima, p. 109-110).
Diante disso, poderíamos talvez dizer que, a partir da cada de 70,
ainda no regime de Ditadura Militar, uma segunda fase parece surgir no Brasil,
no que se refere à presença de Mounier. Uma outra perspectiva, um olhar
sobre o personalismo de Mounier mais especificamente com o teor
teórico/filosófico de um compromisso refletido; sem as exigências do
engagement radical firmou-se nas áreas da Antropologia Filosófica, da
Educação, da Ética, da Filosofia Política e Social e da Religião com vistas à
realidade ética e política. Assim atestariam alguns estudos.
Antonio Joaquim Severino em sua tese de “filosofia” (Cf. acima, nota
114) desenvolve um estudo sobre A antropologia personalista de Emmanuel
Mounier (este é o título de sua tese quando publicada). Neste estudo, Severino
recorre ao compromisso da pessoa e à significação filosófica do personalismo
para chegar à metafísica da pessoa e da comunidade humana. Sua pesquisa
percorre as noções de natureza humana, experiência existencial, perpassa as
estruturas do universo pessoal, rumo à pessoa (categoria fundante), que se
envolve numa ética do compromisso de si e da responsabilidade comunitária e
a desenvolve.
Balduíno Antonio Andreola, no campo das Ciências da Educação,
produz sua tese em torno de uma pedagogia política da libertação com o título:
Emmanuel Mounier et Paulo Freire: une pédagogie de la personne et de la
communauté (Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, Bélgica, 1985). A
ideia central desta tese nasce do princípio de que Mounier e Freire partiram de
uma intuição idêntica, ou seja, da convicção de que era preciso fazer algo
diante da crise. As formas da denúncia e a mudança radical são aproximações
apresentadas pelo autor, que as colhe da fonte do personalismo e leva-as ao
encontro com a “pedagogia do oprimido”, mostrando as convergências entre o
personalismo de Mounier e o projeto de Freire.
190
Alino Lorenzon produziu estudos para “fundamentar a ética e a
educação na antropologia personalista”. Investigou as relações entre pessoa e
comunidade, tendo em mira propostas político-educacionais no cotidiano de
sua prática docente. Lorenzon (1996, p.123) escreve:
Ao tomar contato com alguns escritos de Mounier, nos anos 60, impressionou-
me a clarividência como tentativa de descobrir, compreender e enfrentar as
intuições de pensadores do porte de Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, Sartre
e outros. Ao mesmo tempo, ia despertando em minha consciência a
necessidade de uma reflexão comprometida com os desafios do momento, a
crise de toda a civilização. E um dos diagnósticos efetuados por Mounier a
respeito da crise de civilização consistia em denunciar o desrespeito pela
pessoa humana e o individualismo reinante.
Ao se deparar com as afirmações de Mounier sobre a pessoa e a
comunidade, Lorenzon elabora sua tese tendo em conta três eixos de reflexão:
a pessoa como relação; a promoção das pessoas na e pela comunidade; o
papel das mediações na reciprocidade das consciências. A tese tem por título:
Personne et communauté; essai sur loeuvre d’Emmanuel Mounier
(Universidade de Paris-X, França,1972).
Um dos grandes responsáveis no Brasil pelo desenvolvimento e
memória do pensamento de Emmanuel Mounier é Luiz Alberto Gómez de
Souza.
115
Para Leonardo Boff, “Luiz Alberto é um dos herdeiros intelectuais e
morais de Alceu Amoroso Lima, o intelectual cristão mais fino e fecundo que a
Igreja Católica produziu no século XX” (Gómez de Souza, 2003. p. 10).
115
Natural de Lavras do Sul - RS fez seu doutorado em sociologia na Universidade de
Paris. Foi dirigente nacional da Juventude Universitária Católica (JUC), secretário geral da
Juventude Estudantil Católica (JEC Internacional) e um dos fundadores da AP. Junto a D.
Hélder Câmara, colaborou na preparação do Concílio Vaticano II e com Ivan Illich do Centro
Internacional de Documentação em Cuernavaca - xico (CIDOC). Em 1963 foi assessor do
Ministro da Educação, pesquisador do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social
(IBRADES), assessor de pastorais e movimentos sociais. Foi funcionário das Nações Unidas
pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e também pela Organização para
Agricultura e Alimentação (FAO), no Chile, no México e na Itália. Foi professor em
universidades do Rio de Janeiro. Escreveu várias obras, inúmeros artigos em revistas
nacionais e internacionais. Trabalhou como Diretor Executivo do Centro de Estatística Religiosa
e Investigações Sociais (CERIS), criado em 1962 pela Conferência dos Bispos do Brasil
(CNBB) e dos religiosos do Brasil (CRB). Atualmente ocupa o cargo de Diretor do Programa de
Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes (UCAM-RJ).
191
Ele desenvolveu sua tese (que muito ajudou em nosso trabalho) em
sociologia com o título A JUC: os estudantes católicos e a política
(Universidade de Paris, França, publicada em 1985).
Lorenzon faz menção, em seu artigo, a Luiz Eduardo Wanderley no que
se refere ao MEB e à influência personalista na tese de doutorado deste, com o
título Educar para transformar: educação popular, a Igreja Católica no
Movimento de Educação de Base, publicada em 1984. Há, além disso, vários
outros trabalhos mencionados por Lorenzon.
116
Nas observações finais de seu artigo, Lorenzon (1996, p.124) enfatiza
que o seu texto constitui-se de apontamentos em vista de um trabalho a ser
desenvolvido, convidando o leitor interessado a prosseguir a caminhada.
Esperamos que este trabalho (face ao convite) deixe pelo menos alguma
marca; abra mais uma trilha rumo ao pensamento de Emmanuel Mounier.
Esperamos também, devido às desordens que ainda atingem a pessoa, que tal
pensamento esteja presente em várias áreas do conhecimento humano e,
principalmente, seja considerado nos cursos de filosofia.
116
Lorenzon (1996, p.10-123) cita também: Odaléa Cleide Alves Ramos, Les éléments
psychologiques et philosophiques de la notion de personne dans l’oeuvre d’Emmanuel Mounier
(Tese de doutorado em filosofia na Universidade de Paris-X-Nanterre, França, 1970); Dagmar
Haj Musi, com a dissertação de mestrado, Exigência da educação num mundo em mudanças:
atualidade do pensamento de Mounier (Universidade Federal do Paraná, Brasil, 1987); Nelson
de Figueiredo Ribeiro, ligado à esquerda católica, ex-ministro do Ministério da Reforma e
Desenvolvimento Agrário (MIRAD), publicou uma obra no campo da ética e da filosofia política
social usando os princípios ético-político e filosófico das obras de Mounier, intitulada
Caminhada e esperança da reforma agrária (1987); José Rafael Menezes, que escreveu um
livro intitulado Psicologia social personalista (1970); Vamireh Chacon autora de O poço do
passado (1984). No campo religioso, Pe. Pascoal Rangel se inspira em Mounier e escreve
Emmanuel Mounier: um pensamento dentro da vida (1976). No campo do Serviço Social, o
personalismo está presente nas obras de Anna Augusta de Almeida, Possibilidades e limites da
teoria do Serviço Social (1978); Safira Bezerra Amman, Ideologia do desenvolvimento de
comunidade no Brasil (1980); Maria Ângela de Albuquerque, na Escola do Serviço Social
disserta sobre a Contribuição de alguns pressupostos do personalismo à compreensão da
pessoa deficiente mental: análise de uma experiência com os grupos em Serviço Social (UFRJ,
Brasil, 1985); Aloisio Ruedell, no campo político-social, desenvolve a dissertação de mestrado
sobre Lições políticas para a América Latina (Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Brasil,1985). Enfim, complementando com alguns dados mais recentes, em 1998, na USP,
Adão José Peixoto defendeu sua tese no campo da Educação, com o título O papel do
educador na perspectiva da filosofia personalista de Emmanuel Mounier. Em 2008, na área das
Ciências Sociais, na UFPA, Verônica do Couto Abreu defendeu sua tese intitulada, A
contribuição do pensamento de Emmanuel Mounier para a reflexão ético-cristã-personalista da
pessoa na contemporaneidade. Em 2009, Daniel da Costa defendeu sua dissertação de
mestrado na USP (Departamento de Filosofia), com o título A emergência e a insurgência da
pessoa humana na história: ensaio sobre a construção do conceito de dignidade humana no
personalismo de Emmanuel Mounier.
192
Enfim, poderíamos dizer que mesmo em um país “por onde Mounier
em projeto ou sonho navegara”, isso foi o bastante para marcar uma época.
Seu exemplo de vida fez também nascer, “por outras margens do Atlântico”,
lutadores e combatentes que assumiram o testemunho radical, doando a
própria vida contra toda “desordem estabelecida”. Talvez de uma outra forma,
sua memória nos cobre, mesmo nos dias atuais, uma pura e simples exigência
de que as “banalidades do homem” lhe sejam conferidas (Cf. abaixo, p. 199).
193
Capítulo IV
O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER: LEGADO E NOVIDADE
1. O legado
Infelizmente devido sua morte precoce, Emmanuel Mounier não chegou
a presenciar boa parte da colheita dos frutos, cujas sementes foram plantadas
e cultivadas por suas mãos, e que para nós continua viva. Como foi dito
anteriormente em rápida passagem (Cf. acima, p. 62), o personalismo obteve
irradiação intelectual na França e Europa do pós-guerra, como também foi
decisivo na elaboração da “Comunidade Europeia”, que aproveitou os
pressupostos personalistas sobre a economia, a comunidade, a cultura, a
democracia e a pluralidade, dentre outros.
“Na Itália o ‘Movimento Comunidade’ lançado por Adrien Olivetti (1901-
1960) era muitíssimo inspirado nos princípios do personalismo, e tentava
encontrar um equilíbrio entre o mundo técnico e a responsabilidade das
pessoas” (Lorenzon, 1996, p.15).
Na França, sobretudo com a “Vida Nova” (Vie Nouvelle 1954-1971),
através de Jean Lestavel nascido em 1930, fundou-se o movimento de
formação e educação comunitária. Para isso, o pensamento de Mounier foi
fundamental. Conclui Lorenzon (1996, p.15): “Sem estar oficialmente ligado a
Esprit, o movimento ‘Vida Nova’ sempre se referiu à obra de Mounier. Se
compararmos a filosofia e os meios desse movimento com os do personalismo
constataremos uma grande convergência”.
194
Movimentos ligados ao pensamento de Mounier surgiram, para além da
Europa, em alguns países da África, dos Estados Unidos, da América Latina,
dentre outros que assumiram para si o personalismo comunitário (Lorenzon,
1996, p.15).
A revista Esprit criada por Mounier continua sendo impressa até os dias
atuais. O Bulletin des Amis d’Emmanuel Mounier (BAEM) com regularidade
circula desde 1952 fazendo um trabalho sério e meticuloso aliado à
Bibliothèque Emmanuel Mounier de l’Association des Amis dE. Mounier (BEM),
onde se conservam os manuscritos, os dossiês, o grande acervo documental
da vida, obra e memória do movimento personalista.
Na Espanha, criou-se em 1984 o “Instituto Emmanuel Mounier” (IEM) e,
posteriormente, outras sedes autônomas foram criadas na Argentina, México e
Paraguai. Publicam-se as obras de Mounier, os “Cadernos de formação”, as
obras clássicas do personalismo, a “Coleção Esprit”, além de jornais e revistas.
Vários grupos, por boa parte do globo terrestre, divulgam o pensamento de
Mounier através da www (World Wide Web Rede de Alcance Mundial) em
vários sítios.
117
No Brasil e na América Latina, o personalismo inspirou o sindicalismo,
movimentos sociais de origem cristã, movimentos de atuação dos leigos,
movimentos de educação, ação e cultura popular (Cf. acima, Capítulo III).
Em abril de 1947, foi editado na revista Esprit, o pedido de Mounier
(1971, p.105-124): “O que nossa época pede ao Papa, chefe dos cristãos, é
que seja um santo engajado (compromissado) e, no mesmo movimento, um
político independente”.
118
Ele lembra as palavras do Padre Congar de que a
117
Veja alguns sítios importantes: Association des Amis d’Emmanuel Mounier
Chatenay Malabry Paris (AAEM); Asociación Española de personalismo (AEP); Centre d’Action
pour un Personnalisme Pluraliste – Louvain, Bélgica; Centro Ricerche Personaliste di Teramo –
Itália; Instituto Emmanuel Mounier Argentina (IEM); Instituto Emmanuel Mounier Espanha
(IEM); Instituto Emmanuel Mounier França (IEM); Instituto Psicopedagógico Emmanuel
Mounier Bogotá, Colômbia; La Vie Nouvelle Pour Une Alternative Personnaliste et
Citoyenne – Movimento de educação popular na França; L’Institut Emmanuel Mounier de
Catalunya; The personalist Forum di Buffalo, New York, USA; The personalist Forum
Southern Illinois University Carbondale, USA; Revue Esprit França. Acessos de confirmação
dos sítios realizados no dia 18/05/2009. Para acessar os endereços eletrônicos dos referidos
sítios, veja abaixo referências bibliográficas, p. 231-232 ).
118
O pedido de Mounier foi feito ao Papa Pio XII, em maio de 1939, quando questionou o
silêncio da Igreja diante da agressão italiana à Albânia.
195
Igreja é incessante circulação de vida entre uma jurisdição e uma comunidade.
Para Mounier, o lado jurídico preserva os princípios e o comunitário; é papel da
Igreja preparar a mistura da carne e do sangue do mundo. No plano da vida
cristã ela deve ver as incidências, as consequências, pois a vida total da Igreja
é feita das informações de uns e de outros: “em marcha com a humanidade, a
Igreja está entre o ‘dado’ e o ainda ‘esperado’ junto com o ‘ainda a fazer’, e
esta dialética define sua verdadeira posição na história” (Mounier, 1971,
p.225).
Como se sabe, Mounier e o Movimento Esprit receberam
condenações do Estado, da Igreja e também de amigos e parceiros (Cf. acima
Cap. I, Subseção 1). O que fora tão cobrado por Mounier, com referência aos
rumos da Igreja (daí as condenações), foi retomado na Carta Encíclica do Papa
João XXIII, Mater et Magistra (15/05/1961)
119
, “Evolução da questão social à
luz da doutrina cristã”. Esta carta foi um marco importante, e também rica de
ideias personalistas, pois, ultrapassou as críticas e percorreu o universo das
exigências do pensamento, do compromisso e da ação. Foi esta encíclica uma
atualização das orientações anteriores: da Rerum Novarum (15/05/1891), de
Leão XIII, sobre a condição operária no auge do capitalismo individualista; da
Quadragesimo Anno (15/05/1931), publicada num momento conturbado, numa
atmosfera contaminada pelo nazismo, fascismo e comunismo, em meio à qual,
Pio XI retrata o ensinamento sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem
social em conformidade com a lei evangélica; e por último, da Rádiomensagem
(01/06/1941) de Pio XII, sobre o direito de propriedade dos bens como direito
natural estabelecido por Deus, os limites de acordo com os princípios de justiça
e caridade, além das relações do trabalho, assuntos sobre a família e a
imigração. Com isso, na encíclica Mater et Magistra, encontram-se respostas a
certas questões cogitadas pelo personalismo, como a do dever da Igreja em
restabelecer o trabalho missionário do cristianismo
120
, a da preocupação com a
dualidade do ser integral, a da missão de elevar as almas e, ao mesmo tempo,
119
A encíclica foi publicada em 15 de julho de 1961, a data foi modificada para coincidir
com a da Rerum Novarum, comemorando seu septuagésimo ano (Cf. Camacho, 1995, p. 186).
Cf. Ildefonso CAMACHO, Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica. Trad. J.A. Ceschin,
São Paulo: Edições Loyola, 1995.
120
Veja Mounier, 1972, capítulos: Agonia do cristianismo?; Breve tratado do catolicismo
inconstante; Responsabilidades do pensamento cristão e a Finada cristandade.
196
de se preocupar com a existência cotidiana da pessoa, da liberdade e da
responsabilidade. Lembra Mounier (1962, t.III, p.694): “Não temos que trazer o
espiritual ao temporal: ele está; nossa tarefa é de o descobrir e de fazê-
lo aí viver, propriamente de comungar com ele. O temporal todo inteiro é o
sacramento de Deus”. A encíclica termina com um apelo, um pedido para que
todos colaborem no estudo, na ação, no compromisso para que se realize uma
ordem social onde haja o amor, a verdade, a justiça e a liberdade (De
Sanctis,1972, p.224).
As temáticas de Mounier, também foram acolhidas na Encíclica do Papa
João XXIII, Pacem in Terris (11/04/1963), sobre a paz entre todos os povos
fundamentada na verdade, na justiça, no amor e na liberdade a todos os
homens de boa vontade. De uma maneira mais direta, no curto período de dois
anos que a separa da Mater et Magistra, esta encíclica vai de encontro à
realidade política, uma opção a favor das democracias contando com um apoio
importante da “Declaração Universal dos Direitos Humanos, que fora aprovada
em dezembro de 1948. Seguem alguns parágrafos; o que fora tão afirmado por
Mounier agora presente nesta encíclica. Como exemplo, a I parte, “Ordem
entre os seres humanos”. “Todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e
deveres”, § 9:
Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o
princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de
inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e
deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza.
Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e
inalienáveis (Documentos de João XXIII, 1998, p.324).
Sobre o “Direito à existência e a um digno padrão de vida”, Parte I-
“Direitos”, § 11:
... o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos
correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o
alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços
sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser
amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de
desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de
sustento por circunstâncias independentes de sua vontade (Ibid., p.324, 325).
197
No § 13, Parte I, Direitos, “Direitos que se referem aos valores morais e
culturais”, lemos:
Deriva também da natureza humana o direito de participar dos bens da cultura
e, portanto, o direito a uma instrução de base e a uma formação técnica e
profissional, conforme ao grau de desenvolvimento cultural da respectiva
coletividade. É preciso esforçar-se por garantir àqueles, cuja capacidade o
permita, o acesso aos estudos superiores, de sorte que, na medida do
possível, subam na vida social a cargos e responsabilidades adequados ao
próprio talento e à perícia adquirida (Documentos de João XXIII, 1998, p. 325).
Como último exemplo, citamos o § 138, parte 4, “Relações entre os
seres humanos e as comunidades políticas com a comunidade mundial” - “O
bem comum universal e os direitos da pessoa humana”:
Como o bem comum de cada comunidade política, assim também, o bem
comum universal o pode ser determinado senão tendo em conta a pessoa
humana. Por isso, com maior razão, devem os poderes públicos da
comunidade mundial, considerar objetivo fundamental o reconhecimento, o
respeito, a tutela e a promoção dos diretos da pessoa humana, com ação
direta, quando for o caso, ou criando, no plano mundial, condições em que se
torne mais viável aos poderes públicos de cada comunidade política exercer as
próprias funções específicas (Ibid., p.363, 364).
no Concílio do Vaticano II (1959-1965),
121
basta ler algumas
“Declarações e Decretos” para perceber certos reclamos de Mounier, antes
rechaçados, agora aceitos com louvor e celebrados pela Igreja. Como exemplo,
na Constituição pastoral Gaudium et Spes, promulgada em 7 de dezembro de
1965, a Igreja busca interpretar os problemas do mundo.
122
121
O Papa João XXIII anuncia em 25 de janeiro de 1959 a decisão de convocar um novo
concílio geral para toda a Igreja e um sínodo diocesano para a Cidade de Roma. Esta dupla
celebração consistiria, de maneira feliz, uma condução à atualização do Código do Direito
Canônico. A data fixada para o início do concílio foi 11 de outubro de 1962 e a celebração final,
com a leitura das “Mensagens para a humanidade, data de 8 de dezembro de 1965. Bom
lembrar que João XXIII falece em 3 de julho de 1963. Então, foi eleito, o papa Paulo VI em 21
de junho de 1963, que deu continuidade ao concílio (Cf. Alberigo, 2006, p.17).
122
Constituíram temas abordados na referida Constituição: Primeira parte: Cap. I, A
dignidade da pessoa humana”; Cap. II, “A comunidade humana”; Cap. III “A atividade humana
no mundo”; Cap. IV, “O papel da Igreja no mundo contemporâneo”. Segunda parte: Cap. I, “A
promoção da dignidade do matrimônio e da família”; Cap. II, A conveniente promoção do
progresso cultural” - na seção 1, “Situação da cultura no mundo atual”, seção 2, “Alguns
princípios para conveniente promoção da cultura”, seção 3, “Alguns deveres mais urgentes dos
cristãos com relação à cultura” -; Cap. III, “A vida econômico-social” - seção 1, “O
desenvolvimento econômico”, seção 2, “Alguns princípios diretores de toda a vida econômico-
social” -; Cap. IV, “A vida da comunidade Política”; Cap. V, “Promoção da paz e da comunidade
198
2. Novidade do pós-personalismo
Mounier, no prefácio do Manifeste au service du personnalisme, escrito
em outubro de 1936, pede desculpas aos leitores pelo uso da palavra
“Manifesto” e os previne contra os perigos do “personalismo” (1961, t.I, p.481).
Alega que este título, dado a suas primeiras pesquisas, fez alguns acreditarem
numa pretensão deslocada, e outros críticos num novo conformismo. Mas, no
decorrer de quatro anos de movimento, isso fora vencido. Então, uma chama
viva, um compromisso impregnava a cada dia os colaboradores do movimento
de uma forma independente, pois estavam sempre preocupados com a
situação histórica, com a historicidade humana, com a afirmação da pessoa e o
bem comum.
Afirma, então, que se poderia chamar de personalista, toda doutrina que
atendesse ao primado da pessoa sobre as necessidades materiais e coletivas.
Mas previu e advertiu que o personalismo podia esconder sob uma designação
coletiva, o comodismo de muitas doutrinas. Daí, as muitas denúncias de
Mounier sobre a ambiguidade e a estagnação que parasitariam a fórmula
personalista através do individualismo e do totalitarismo. Jamais o caminho
assumido por ele seria linear, estava adiante dos ideais fascistas, comunistas e
da burguesia decadente, pois, além de um acordo sobre as condições
elementares, físicas e metafísicas, o personalismo era o necessário
testemunho de “convergência de vontades”, ao serviço das quais se colocava,
para que incidisse com eficácia na história em vista de uma civilização
dedicada à pessoa humana.
Em 1949, no último trimestre, foi publicado O Personalismo, cerca de
três meses antes da morte do autor. No final do livro, Mounier, sempre aberto
internacional” - seção 1, “Evitar a guerra”, seção 2, “Construção da comunidade internacional”
(Cf. De Sanctis, 1972, p.295-438). Em uma citação, Alino Lorenzon indica: “Mounier é
considerado um dos precursores leigos do Concílio do Vaticano II. Entre as muitas pessoas
que o afirmam, podemos lembrar do Padre Chenu, o Padre Ganne e o Padre M. Vincent, que
apresentou em 1977, na Universidade Católica de Louvaina, uma tese de doutorado em
Teologia tendo por título As orientações personalistas da Gaudium et Spes’. O padre Chenu
sublinha a importância de Mounier sobretudo para as relações com os não cristãos, a abertura
da Igreja para o mundo, o acontecimento, como sinal dos tempos, e a laicidade, como
presença atuante dos cristãos no mundo” (Lorenzon, 1996, p.120).
199
ao diálogo, expressa seu maior desejo: que a palavra personalismo seja um dia
esquecida.
As posições esboçadas nestas páginas são discutíveis e estão sujeitas a
revisões. Estas têm a liberdade de o terem sido pensadas na aplicação de
ideologias recebidas, mas foram descobertas progressivamente, com a
condição do homem do nosso tempo. Todo personalista pode desejar que
elas acompanhem o progresso dessa descoberta e que a palavra
“personalismo” seja um dia esquecida, porque não haverá mais a necessidade
de atrair as atenções sobre aquilo que deveria ser a própria banalidade do
homem (Mounier, 1950, p.133).
O “personalismo” foi sem dúvidas um movimento que, em determinada
época (de 1932 a 1950), avançou à frente, lançando-se a favor dos direitos
humanos inalienáveis na busca por um despertar diante das “desordens esta-
belecidas”. Mounier, até seus últimos dias, conseguiu agregar valores e sua
vida tornou-se um marco no registro histórico em defesa da pessoa humana.
Balduíno Antonio Andreola (2000, p.16), na “Carta-prefácio a Paulo
Freire”, relata a conversa emocionante com Paul Ricoeur quando fora vizinho
dele em 1983, durante o seu estágio de um s na Biblioteca Mounier em
Châtenay-Malabry, próxima de Paris. Falando de Mounier e de seu
falecimento, Ricoeur lhe disse: “O lado mais cruel da morte é que a gente faz
perguntas ao amigo, e ele não responde mais”. Andreola (2000, p.16) escreve
na sequência: “Lembro que a emoção lhe embargou a voz, e ele ficou olhando
longamente para o chão, em silêncio. Impressionou-me constatar que ele
estava repetindo, trinta e três anos depois, o que escrevera em 1950, para o
número especial da revista Esprit dedicado à memória de Mounier”. Nesta
ocasião escrevia Paul Ricoeur (1968, p.135):
Nosso amigo Emmanuel Mounier não mais responderá às nossas perguntas:
uma das crueldades da morte é mudar radicalmente o sentido de uma obra
literária que ainda se constrói: nãoela não mais continuará, como também é
subtraída a esse movimento de intercâmbio, de interrogações e respostas, que
situava esse autor entre os vivos. Torna-se para sempre obra escrita, e apenas
escrita; consuma-se a ruptura com seu autor, cuja obra entra doravante no
campo da única história possível, a dos leitores, a dos homens vivos que ela
alimenta. Em certo sentido, uma obra atinge a verdade da sua existência
literária quando morre seu autor; toda publicação, toda edição inaugura a
200
impiedosa relação dos homens vivos com o livro de um homem virtualmente
morto. Os vivos menos preparados a participar de tal relação são, sem dúvida,
aqueles que conheceram e amaram o homem, aquele que viveu... e cada
leitura renova neles e consagra de certo modo a morte do amigo.
Logo em seguida, Ricoeur reitera que não foi capaz de reler os livros de
Mounier como deveriam ser lidos, como se fossem livros de um morto. Tentava
portanto, passar da leitura para o diálogo interrompido, o “diálogo impossível”
que se tornava mais cruel a cada leitura.
No campo da história possível, “a dos leitores”, retomam-se as obras de
Mounier com o intuito de colher seus pensamentos, e perscrutar as possibili-
dades destes para o aqui-agora, pois a humanidade ainda está carente de
diálogos compromissados, uma vez que o homem continua espoliado,
maltratado em suas dimensões espiritual e material. Apenas um exemplo. Em
05/09/2008 Jacques Diouf, Diretor Geral da Organização das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação (FAO), ao celebrar o centenário de nascimento
de Josué de Castro, refez o pedido deste quanto à ações mais profundas de
dimensão política e social com relação à “Fome no Brasil e no Mundo”. Diouf
(2008, CONSEA) assim se pronunciou:
em 2006 o mundo gastou 1 trilhão e 200 bilhões de dólares em armas.
Enquanto isso, temos dificuldade em conseguir os 30 bilhões de dólares anuais
que permitiriam relançar a produção agrícola, alimentar os 826 milhões de
famintos no mundo e assegurar a segurança alimentar mundial.
Nos dias 17 e 18/12/2009, em Roma, Diouf anunciou que a humanidade
chegou a uma terrível marca, um bilhão de pessoas estão desnutridas em
nosso planeta. A cada seis segundos uma criança morre de fome (Cf.
Documento - FAO).
Hannah Arendt fornece uma formulação reforçadora da atitude diante da
desordem e inapetência política. foi referido anteriormente, o thaumázein
(Cf. acima, p.55), o espanto necessário ao filósofo. Hannah Arendt retoma de
Platão o termo doxadzéin. Este possui um significado contrário ao thaumázein,
ou seja, pertence à esfera da opinião (doxa), na qual o homem nega o páthos e
dele foge recusando-se conhecer a “novidade” que o “espanto” confere
provocando a busca do conhecimento. O espanto advém do novo, do que a
novidade traz consigo. No universo da filosofia política, Arendt fala do “agir”
201
tendo por base duas palavras gregas archein (começar, conduzir, governar) e
prattein (prosseguir, ir até o fim). Correspondentes a estas palavras, tem-se as
palavras latinas agere (por em movimento) e gerere (continuação dos atos e
eventos históricos). Para ambas as palavras, o initium dá-se com o nascimento,
com a novidade. A natalidade e não a mortalidade deveria ser a categoria
central do pensamento político. Fala-se neste ponto, da natividade, da criança
que vem ao mundo, ou que deveria vir. Arendt (2009-a, p.190) cita Agostino:
‘Initium’ ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus fuit”.
123
Não se trata
do início de alguma coisa, do mundo, mas de alguém que é; trata-se da pessoa
com as “estruturas do universo pessoal”. Eis aqui, portanto, uma proposta que
acompanha Mounier, pois a pessoa não pode ser sistematizada, moldada,
traduzida completamente em conceitos, quaisquer que sejam. Por isso,
Mounier relutava e via na pessoa a novidade que chega ao mundo e traz em
seu ser o mistério, o “não inventariável”, o milagre (Cf. acima Cap.II).
Para Arendt (2009-a, p.191), “o novo sempre acontece à revelia da força
esmagadora das leis estatísticas e da probabilidade que, para fins práticos
cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do
milagre”, pelo fato de que, ele é o inesperado, o singular. Portanto, cada
nascimento vindo ao mundo é o singularmente novo.
Diante de sistemas totalitários (talvez seja um pleonasmo), Arendt
aponta que a necessidade do terror nasce do medo de que a cada nascimento
humano, a cada milagre, um novo começo se erga e faça ouvir sua voz no
mundo. Eis o problema para o sistema, pois este detesta o mistério, o não
inventariável, a novidade. Repugna a incerteza, adora o estável, o projeto, o
planejamento e a fabricação do futuro que se assenta numa plataforma rígida,
engessada na totalidade sistêmica. São frutos de sua história, o nazismo, o
fascismo, o estalinismo, um Admirável mundo novo
124
que não suporta a
novidade.
Jorge Larrosa (1998, p.73) em um artigo intitulado O enigma da infância
ou o que vai do impossível ao verdadeiro, concorda que a “criança é algo
123
“Portanto, o homem foi criado para que houvesse um começo, e antes dele ninguém
existia”.
124
Título da conhecida obra de Aldous Huxley de 1932; é possível não lembrar também
de 1984 de George Orwell, 1949.
202
absolutamente novo, que dissolve a solidez do mundo e suspende a certeza
que temos de nós mesmos”. Não é o começo de um processo que se antecipa,
mas um verdadeiro início. o se trata de relação, de continuidade conosco e
com nosso mundo (para que se converta em um de s), mas “[d]o instante da
absoluta descontinuidade, da possibilidade enigmática de que algo que não
sabemos e que não nos pertence inaugure um novo início” (Larrosa, 1998,
p.73).
Dussel, por sua vez, sustenta que, quando a criança vem ao mundo, no
calor da “proximidade originária”, a “proximidade primeira, a imediatez anterior
a toda imediatez, ocorre com o mamar.
Boca e mamilo formam a proximidade que alimenta, acalenta, protege. As
mãos da criança que tocam a mãe ainda não brincam e não trabalham. A
mesma boca que suga não lançou discursos, insultos ou bênçãos; não mordeu
a quem odeia, não beijou sua amada ou amado. É imediatez anterior a toda
distância, a toda cultura, a todo trabalho; é a proximidade anterior à econômica;
é já a erótica, a pedagógica e a política. Toda proximidade do mamar é
escatológica; projeta-se no futuro como no passado ancestral; chama como o
fim e a origem. Contudo, é somente o começo pessoal, singular de cada um
(Dussel, 1977, p.24).
Na imediatez do filho para com a mãe, a criança também se encontra
em um tempo histórico, numa cultura, na qual, como pessoa, deverá se
desenvolver. De um nível de reflexão (proximidade) para um outro (momento
metafísico), Dussel menciona o momento político, uma proximidade que não é
mais de mãe-filho, mas relação irmão-irmão, ou política.
125
A palavra “política”
é, para ele, ampla e não restrita. Não se trata somente da ação do político, mas
de “toda ação humana social prática”. É responsabilidade de todos, “tanto o
governante como o governado, o nível internacional, nacional, de grupos ou
classes sociais e seus modos de produção etc.” (Ibid., p.77). Que não se
promova, portanto, o fratricídio ao eliminar a novidade. Enquanto “situação
metafísica” (que não é ontologia e exige a práxis revolucionária da
libertação)
126
, Dussel elucida um outro momento, a situação “pedagógica”,
125
Sobre o assunto, veja Dussel, 1977, p.22-112: os seis níveis de reflexão
(proximidade, totalidade, exterioridade, alienação e libertação); Quatro situações metafísicas
(política, erótica, pedagógica e anti-fetichista).
126
Veja Dussel, 1977, p.54,55.
203
como proximidade “pai-filhos, mestre-discípulo onde converge a ‘política’...”. A
situação “pedagógica” ocupa-se da educação da criança, do novo, e deve
preocupar-se para não promover o filicídio, mas libertar, respeitar sua novidade
e exterioridade.
Arendt alerta, ainda, os adultos sobre a criança: “a criança é nova em
relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e
no qual transcorrerá sua vida” (2009-b, p.235). Por isso, a criança recém-
chegada, em estado de vir-a-ser, é de inteira responsabilidade de todos os
homens. Quanto à sua educação são precisas mudanças urgentes:
Exatamente em beneficio daquilo que é novo e revolucionário em cada criança
é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade
e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais
revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da
geração seguinte, obsoleto e rente à destruição (Arendt, 2009-b, p.243).
De uma maneira geral, “a essência da educação é a natalidade, o fato
de que constantemente nascem seres humanos no mundo” (Ibid., p.223). Isso
significa que, a todo o momento, deve-se estar aberto ao novo, quer dizer, o
ser humano “está aberto ao novo”, mas, eis aí a “banalidade humana” ainda em
discussão.
Em se pensando em educação, no sentido escolar, não se estaria
reduzindo a novidade da infância às condições, “no sentido de que a reconduz
e a torna dedutível do que existia” (Larrosa, 1998, p.76)? Larrosa utiliza a
propósito uma expressão intrigante e provocadora de Juan Mariena, que retrata
a revolução do novo, quando um ser recém-chegado desequilibra o sistema
envelhecido e surge, então, “um pedagogo que se chamava Herodes” (Ibid.,
p.77).
O rosto de Herodes não se deixa ver apenas nos sistemas totalitários do
século passado. Ele pode perfeitamente ter muitas outras faces, como a da
competitividade, do mercado, da economia, dentre outras. Não implica,
necessariamente, a destruição física da novidade, mas sua conversão em
instrumento para a produção totalitária, pragmática, administrada de “um
admirável mundo novo”. Escreve Larrosa:
204
Todas as formas de totalitarismo, todos os rostos de Herodes têm uma coisa
em comum: afogar o enigma ontológico do novo que vem ao mundo, ocultar a
inquietude que todo nascimento traz, eliminar a incerteza de um porvir aberto e
indefinido, submeter a alteridade da infância à lógica implacável de nosso
mundo, converter as crianças em uma projeção de nossos desejos, de nossas
ideias e de nossos projetos
(Larrosa, p.78,79).
Daí, concordar-se com Severino, para quem o pensamento de Mounier
continua atual e pode contribuir de forma significativa para a “demanda de uma
nova civilização”. Lembra ele que
as razões pelas quais Mounier pleiteava, na primeira metade do século XX, um
novo renascimento continuam presentes no contexto da sociedade
contemporânea, em que pesem as mudanças em algumas de suas
configurações. A pretensa nova ordem mundial continua sendo uma “desordem
estabelecida” (2007, p.26).
Com efeito, de Attilio Danese (2007, p.31) constata-se que as diferenças
são poucas quando se tenta relacionar o período dos anos trinta do século
passado e o início do terceiro milênio: “após os acontecimentos de 11 de
setembro de 2001, 11 de março de 2004 e 07 de julho de 2005, talvez o mundo
nunca tenha sido o semelhante e próximo às crises da civilização econômica
de 1929, que geraram a Segunda Guerra Mundial”.
127
em relação à pessoa, o abandono, a privação e desrespeito que
atraem e chamam a atenção sobre o que deveria ser “a própria banalidade do
homem”. Estando o homem de hoje ainda distante de se livrar do banal, em
sentido contrário é conveniente recorrer à história, ou seja, voltar ao que
passou para coletar e “resgatar as esperanças do passado”, em vista do
presente-futuro de uma distante, ainda desconhecida, comunidade global que
precisa ainda ser “dialogada”.
Ricoeur, em um ensaio considerado por ele próprio como provocador,
publicado na revista Esprit de janeiro de 1983, arrisca a seguinte rmula:
127
11/09/2001 - Quatro aviões de passageiros foram sequestrados e tornaram-se armas
de ataques contra certos alvos nos EUA. Dois aviões foram lançados contra o Word Trade
Center, outro colidiu contra o Pentágono e o quarto, que atingiria o Capitólio, destroços deste,
foram encontrados na Pensilvânia. Morreram no ataque 3.234 pessoas e mais de 6.291 ficaram
feridas. 11/03/2004 Ataques ocorridos em Madrid (Espanha). Dez bombas explodem nas
estações e em um veículo da rede ferroviária. Morreram 191 pessoas e outras 1700 ficaram
feridas. 07//07/2005 Uma série de explosões atingiu o metrô de Londres e um ônibus no
centro. Morreram 52 pessoas e 700 ficaram feridas.
205
Morre o personalismo, volta a pessoa... Isso se deve, diz ele, à “preocupação
em compreender as reservas e, às vezes, a repugnância das gerações mais
novas do que a minha em usar o termo personalismo, mesmo preservando a
fidelidade crítica à obra de Emmanuel Mounier” (Ricoeur,1996, p.155).
Ricoeur reconhece que o personalismo se embrenhou por uma
“constelação de ismos” melhor articulados “conceitualmente“, mas que se
tornaram “fantasmas conceituais” das gerações mais novas. Considera que o
personalismo, assim como as outras correntes dessa constelação, sentiram o
impacto de uma nova estrela, o estruturalismo que brilhou nos anos sessenta.
Além disso, com a morte de Mounier, o personalismo perdia sua força, e com o
advento dos estruturalismos que pensavam com a ideia de sistema, deixava-se
para trás a ideia de um tempo cultural e filosófico tratado por Mounier. Mas, o
que “parece reprovação, possui um conteúdo novo”, diz Ricoeur; por isso, que
morra o personalismo e volte a pessoa.
O “conteúdo novo” encontra-se em um outro ensaio sobre o
personalismo (Abordagens da pessoa, 1990). Ricoeur (1996, p.163) afirma que
“a pessoa era, e ainda hoje é o termo mais apropriado para cristalizar
pesquisas”. Dessa forma, pergunta: “Como falar da pessoa sem passar pelo
personalismo?” Diante dessa interrogação, desenvolve sua tese eximindo-se
das questões políticas, econômicas e sociais da ideia de pessoa; direcionando-
se para o problema referente à defesa dos “direitos humanos” e concentrando-
se no argumento filosófico. Mas, para Ricoeur, se se volta à “pessoa” é porque
esta palavra continua sendo o melhor candidato para “sustentar os combates
jurídicos, políticos, econômicos e sociais”, ao passo que outros conceitos como
o de “sujeito”, “consciência” e “eu”, não se prestariam tão bem a este papel.
“Consciência”? Como se crê ainda na ilusão de transparência que se liga a
esse termo, depois de Freud e da psicanálise? “Sujeito”? Como se nutriria
ainda a ilusão de uma fundação última nalgum sujeito transcendental, depois
da crítica da ideologia de Frankfurt? O “eu”? Quem não sente a impotência do
pensamento para sair do solipsismo teórico, a não ser que ele parta, como em
Emmanuel Lévinas, do rosto do outro, eventualmente numa ética sem
206
ontologia? Prefiro dizer “pessoa” em vez de “consciência”, “sujeito”, “eu”
(Ricoeur, 1996, p.158).
128
Concorde, assim, com Mounier, Paul Ricoeur a pessoa como atitude,
compromisso e convicção. Diante das pesquisas concernentes à linguagem, à
ação e à narrativa, propõe um prolongamento sobre a ideia de pessoa,
comparável com o que fez Mounier em seu Tratado do caráter. Acredita, pois,
que pode contribuir na constituição de uma fenomenologia hermenêutica da
pessoa. Para isso, formula um plano que se divide em quatro partes: a
linguagem (o homem falante); a ação (o homem que age e sofre); a narrativa (o
homem narrador) e a vida ética (o homem responsável). Começando pelo
“homem responsável”, fará uso de uma “estrutura ternária”. Entende por esta
expressão que, se se quiser distinguir a ética da moral, esta última, se referirá
à ordem dos imperativos, às normas e proibições. Então, “descobre-se uma
ética mais radical do ethos, suscetível de fornecer um fio condutor na
exploração das outras camadas da constituição da pessoa”
(Ricoeur, 1996,
p.164). Por ethos Ricoeur compreende a “aspiração a uma vida realizada” “com
e para os outros”, em “instituições justas”. Três tópicos importantes para a
constituição da ética da pessoa.
O primeiro tópico, “aspiração a uma vida realizada”, traz em sua raiz,
uma ética anterior a todo imperativo, um elemento ético desejado, que é a
noção de “estima de si; não se tratando de redução a um “eu”, aquele
centrado sobre si mesmo, mas do sujeito responsável, aquele que age
intencionalmente estimando a si mesmo, jamais egocêntrico, sendo capaz de
modificar a ordem das intenções e acontecimentos do mundo.
Em relação ao segundo tópico, “com e para os outros, Ricoeur sugere a
palavra “solicitude” que é o movimento de si em direção ao outro, interpelação
e proximidade: “eu-no-meio-dos-outros, em relação aos outros e os outros em
relação a mim” (Mounier, 1961, t.II, p.469). Uma exigência ética profunda de
“reciprocidade”. “Um outro semelhante a mim, este é o voto da ética no que diz
respeito à relação entre a estima de si e a solicitude(Ricoeur, 1996, p.165). É
pela amizade que a similitude e o reconhecimento se aproximam da igualdade.
128
Artigo intitulado “Morre o personalismo, volta a pessoa...”, publicado na revista Esprit
em janeiro 1983, quando do quinquagésimo aniversário da revista.
207
Mas, se a solicitude for marcada por forte desigualdade inicial, a capacidade de
“reconhecimento” terá o trabalho de restabelecer a solicitude. Como exemplo, a
relação do mestre com o aluno, na qual a superioridade intelectual, do primeiro,
se distingue pela capacidade de reconhecimento de superioridade, e que se
iguala na relação de instrução ou de ensino. Ao contrário, quando a solicitude
parte do mais forte para o mais fraco, como na compaixão, é ainda a recipro-
cidade da troca, que faz o forte receber do fraco o reconhecimento, “alma
secreta da compaixão do forte”. É, então, possível afirmar que a reciprocidade
vista na amizade, é a essência “oculta das formas desiguais da solicitude”.
Quanto ao terceiro tópico, as pessoas pretendem viver em “instituições
justas”. Ao falar de instituição, introduz-se a pessoa na relação com o outro,
agora fora do contexto de uma amizade, mas num espaço em que cada pessoa
deve viver uma distribuição justa. Ricoeur menciona, então, a “justiça distri-
butiva”: não se trata somente de bens e mercadorias, mas de direitos e
deveres, responsabilidades, vantagens e desvantagens. Aí, depara-se com um
grande problema ético: o outro está face a face, mas não tem rosto para a insti-
tuição. Esta categoria não pertence, digamos, ao mundo man, pois cada um é
pessoa distinta. Mas, cada um se relaciona com o outro através da instituição.
De Aristóteles, passando pelos medievais, Ricoeur desenvolve a
consideração desta forma mais notável de justiça. Sua caminhada chega até a
obra de John Rawls (Uma teoria da justiça).
129
Esta teoria ofereceria o melhor
modelo para mediar as estruturas de distribuição na busca de uma
proporcionalidade digna de se chamar equitativa. Ricoeur aproveita uma via
que Rawls sugere, diferentemente do utilitarismo anglo-saxão, segundo a qual,
129
John Bordley Rawls (1921-2002) ficou conhecido como o Rousseau de Harvard,
sendo considerado um dos mais importantes filósofos contemporâneos da filosofia política e
moral. Sua obra prima A theory of Justice (1971), foi traduzida para o alemão (1975), para o
francês (1987) e depois para 25 países, tornando-se o maior best-seller filosófico das últimas
décadas. Constituiu-se de vinte anos de trabalho investigativo e mais 30 anos de revisão,
devido às interlocuções com muitos estudiosos. Proferiu várias palestras, conferências e
debates com os maiores especialistas de diversas áreas interdisciplinares. Só quanto a Teoria
da Justiça, várias pessoas inspiradas por Rawls receberam mais tarde, o Prêmio Nobel, como
os economistas Amartya Sem, James Tobin, John Forbes Nash Jr., John Charles Harsanyi,
Kenneth Joseph Arrow, dentre outros. Sua obra influência trabalhos de filosofia política através
das contribuições das ciências jurídicas (Herbert Lionel Adolphus Hart, Ronald Dworkin,
Thomas Nagel), sociais (Brian Barry, Judith Nisse Shklar, Robert Alan Dahl), do
comportamento (Lawrence Kohlberg) e da economia. Em relação próxima com a filosofia moral,
foi reintroduzida no pensamento do utilitarismo britânico. Cf. Nythamar de OLIVEIRA. Rawls.
Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
208
ao invés da justiça buscar vantagem máxima para maior número, deve, nas
repartições desiguais, definir-se pela maximização da parte mais fraca, o que
mostra uma preocupação com o mais desfavorecido. Isso equivale à busca do
“reconhecimento” no “plano da amizade e das relações interpessoais”. Lógico
que os envolvidos neste caso se encontram numa relação distante de parecer
com uma relação entre amigos, mas a “grandeza ética de cada um é
indiscernível da grandeza ética da justiça, segundo uma rmula romana bem
conhecida: atribuir a cada um, o que lhe é devido” (Ricoeur, 1996, p.167).
Ao lançar a tríade, “estima de si, solicitude e instituições justas”, Ricoeur
diz complementar a duplicidade dialética entre a pessoa e a comunidade
tratada por Mounier na revolução personalista e comunitária, pois, segundo ele,
aqui se distinguem as relações interpessoais, que têm por bandeira a amizade,
das instituições, que trazem em seu bojo a justiça. Acredita ser isto benéfico
para o personalismo, pois, não exclui a amizade, mas sim, distingue
claramente as relações interpessoais e institucionais, abrindo precedente para
a justiça, para a dimensão política do ethos. No mesmo sentido, firma-se a
ideia comunitária, pois o outro se funde na amizade e na justiça e “ao mesmo
tempo não as separamos, na medida em que pertence à ideia de ethos abarcar
numa única fórmula bem articulada o cuidar de si, o cuidar de outrem e o cuidar
da instituição” (Ibid., p.168).
Pensando no aspecto da linguagem, Ricoeur está convencido de que
uma retomada contemporânea da “ideia de pessoa” pode tirar muito proveito
do chamado linguistic turn na filosofia. Percebe que a semântica pode oferecer
um primeiro esboço da “pessoa” enquanto singularidade, ao passo que a identi-
ficação permitirá destinguir uma pessoa da outra. na pragmática, mais do
que na semântica, é que a contribuição linguística para a filosofia da pessoa é
mais decisiva: “Entendo por pragmática o estudo da linguagem em situações
de discurso em que o significado de uma proposição depende do contexto de
interlocução” (Ibid., p.170). Neste contexto, o eu e o tu envolvem-se em um
processo de interpelação e interlocução, em que a linguagem garante algo,
como “eu prometo”, que se referirá ao “compromisso” (engagement muito
209
bem sustentado nos atos do discurso) consigo e consequentemente com o
outro.
130
É claro que, a pessoa, ao cumprir sua promessa, preserva em si mesma
sua identidade, ou seja, a manutenção da estima de si. Em outros termos, a
promessa é também uma obrigação, e nisso preservar-se-á a instituição da
linguagem através de uma estrutura fiduciária, que estará envolta de confiança.
Por outro lado, a linguagem ultrapassará a instituição, o que a torna uma
distribuidora da palavra. Portanto, a promessa é o resultado da tríade
linguística (locução, interlocução e linguagem) junto com a tríade ética (estima
de si, solicitude e instituições justas).
Quanto à ação, Ricoeur preocupa-se com o “agente da ação”, no sentido
das proposições que se relacionam com as ações humanas. A investigação
semântica respondeà questão: “quê”. Outro campo de investigação é o da
motivação da ação: “por quê”. Uma ação é intencional, na medida em que
responde através da razão. Outra questão é a da pessoa que se identifica no
campo da ação, com o problema: “quem” (Quem fez o quê? Por quê?). Sobre o
“quem”, Ricoeur recorre a dois componentes éticos da estima de si: a
capacidade de agir e a capacidade de produzir mudanças eficazes no curso
das coisas, uma interação, uma práxis. Como terceiro componente, os
“aferidores de excelência”, são os preceitos, as normas, as técnicas, que
definem o ethos da ação, cabendo às instituições (sentido de teleologia
reguladora) a aferição das ações. Como resultado final, os componentes da
correlação, teoria da ação e teoria da ética, unem-se totalmente num ritmo do
cuidado e do sucesso.
o “homem narrador”, como mediador, intercala-se entre o nível práxis
e ético (ternário). Ricoeur aponta um problema da ordem narrativa, ligada ao
tempo, referindo-se à constituição da pessoa, ou seja, ao fato de que a pessoa
130
Importante destacar uma ideia (somente quanto à interpelação) da tese de Enrique
Domingos Dussel, resultado de um seminário no México ocorrido em março de 1991, em que
ele encontrou com Karl-Otto Apel e a partir desse encontro, escreveu: “A razão do outro: A
interpelação enquanto ato-de-fala”. Dussel, partindo do pensamento de Lévinas, no Outro
(Autrui) a fonte de qualquer discurso ético possível, a partir da exterioridade, ou seja, da
irrupção do Outro, no caso daquele que clama por justiça, que interpela. Afirma Dussel, que a
linguística, neste momento, é a mediação, o encontro de caráter corpóreo, face a face
(Lévinas) na proximidade. O interpelar (ato-de-fala speech act) possui uma exigência;
210
existe sob o regime de uma vida, do nascimento até a morte. Em termos
filosóficos, encontra-se na esfera da identidade, precisamente: “quem”.
A identidade é compreendida por ele sob duas formas. A “mesmidade”
(identidade idem), permanência de uma substância imutável, à qual o tempo
não afeta. A outra é a que o pressupõe imutabilidade, implica manutenção
de si (promessa), uma (identidade ipse) “ipseidade” (conceito talvez excessivo,
dirá Ricoeur). Esta dialética das duas formas da identidade é, de certo modo,
interna à constituição ontológica da pessoa, pois estão envolvidas em
perguntas interiores sobre “quem” sou e, inevitavelmente, incidem sobre o
“que” sou.
É, então, na história contada que a dialética mesmidade e ipseidade tece
a trama da vida através dos acontecimentos. É a somatória das ações reunidas
às narrativas dos personagens dessas ações que produz a história contada e
suas identidades. Para Ricoeur, o conceito de “identidade narrativa”
corresponde à estima de si, pois esta se designa no tempo, como fonte
narrativa da vida. Ela medeia e reflete; é, pois, a filosofia da pessoa. Ricoeur
também encontra na solicitude (alteridade) uma identidade narrativa dividida de
três maneiras: uma unidade narrativa da vida que integra a dispersão, a
alteridade sendo marcada pelo acontecimento contingente e aleatório; outra
unidade integra cada história de vida ligada às outras histórias de vidas, onde a
ação e a interação formam uma única história; por fim, a alteridade está ligada
à constituição de nossa própria identidade.
Por fim, Ricoeur sustenta que a identidade das instituições (além das
pessoas individualmente ou quando em interação) pode ser narrativa. Por
isso, ele insiste no tema das instituições precisamente quando se aplica a regra
da justiça. Alerta sobre os riscos de confundi-la e falseá-la em sua identidade
única, aquela que convém às pessoas e às comunidades, ou seja, o sentido da
identidade narrativa aliada à dialética de mudança incorporada na promessa,
constante manutenção de si.
Sabe-se dos desafios da sociedade globalizada na busca por uma
emergência ética em nível planetário, mas nota-se, sem sombra de dúvida, a
interpellare, é um “chamar” (apellare) que estabelece um relacionamento, o “inter”, então, é
interpelar, exigência e reparação (Cf. DUSSEL, 1995, p.43-78).
211
necessária urgência da retomada da ideia de pessoa humana, pessoa
entendida como “novidade absoluta”.
No desenvolver deste trabalho, neste contato com as obras de Mounier,
quando faltam menos de três meses (hoje, 25/12/2009) para completar os
sessenta anos de sua morte, ele se faz sentir vivo entre nós, pois seus pensa-
mentos pulsam em “potência ativa” e vibram agora neste novo milênio. Nós,
quem sabe, estamos “mais preparados” para consagrar sua vida, pois “não
participamos de tal relação” direta com o autor; infelizmente poderíamos dizer a
este amigo, que não foi conhecido por nós, que o personalismo não poderá,
ainda, ser esquecido, pois os pressupostos que envolvem a dignidade da
pessoa humana deixam ainda a desejar e carecem de seu pensamento vivo.
Por outro lado, desejamos e fazemos eco com Ricoeur para que morra o
personalismo, que morra mesmo, que nos sirva apenas de memória relativa a
certa fase da história. Mesmo em um “diálogo impossível”, convém recordar
Emmanuel Mounier com o seu testemunho combatente, com seu projeto que
preza a dignidade da pessoa humana, a esperança, os mistérios, “as estruturas
do universo pessoal” e, diante disso, frente a uma nova “condição histórica”,
pedir: que volte a “pessoa” e com ela todo o mistério da “novidade”.
212
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma estabilidade política e a crença no progresso, advinda do Século
XIX, avança sobre o novo século XX que se inicia, mas de repente, atônita, a
humanidade se surpreende. As certezas tornam-se incertezas, coisas
concretas passam a um relativismo, valores esmaecem, alteram-se as rotas
das crenças perante a ciência, a e a racionalidade, e dá-se início a um
período dos mais sombrios da História. Neste ínterim, ocorrem as duas
Grandes Guerras Mundiais, os regimes totalitários, os campos de
concentração, holocaustos, bombas atômicas e os projetos de engenharia
social mais terríveis, jamais vistos pela humanidade, em que milhões de vidas
sucumbiram. Momentos de crises de dimensão econômica, política, social,
religiosa, moral, filosófica que reduzem o ser humano e, consequentemente, a
humanidade ao nada.
É neste ambiente conturbado e hostil que aflorou e se desenvolveu na
França, o personalismo de Emmanuel Mounier. Ele, ao analisar esta crise da
civilização, deparou-se com a crise da pessoa. Assim, toda a sua filosofia veio
a se formar entremeio às crises e reflexões, às articulações com a vida, por
entre os desafios dos acontecimentos, dos dramas da humanidade e da
cultura. Junto ao movimento Esprit, Mounier empreendeu uma nova filosofia,
diferente dos moldes acadêmicos de sua época. Em contato direto com os
problemas do homem, o personalismo tornou-se singular ao extrair do
pensamento filosófico as respostas que auxiliassem o empreendimento de
ações concretas. Sempre compromissado com a causa humana, Mounier
sofreu variadas privações e censuras. Passou pelo cárcere, sofreu a pobreza
material e, apesar de muitos pesares, com muita esperança, sua ação
personalista se expandiu. Propôs debates, somou vitórias, denunciou as
213
construções lógicas dos moralistas, doutrinários e espiritualistas que se
afastavam da realidade humana. Confrontou os grandes poderes (sistemas
totalitários, capitalismo burguês, a cristandade desvitalizada) que camuflavam,
sob as vestes da ordem, as desordens que se estabeleciam no seio da
sociedade. Enfim, o personalismo pretendido por Mounier não se apresentava
como, e nem tinha a pretensão de ser, mais uma filosofia, e sim, uma filosofia
que despertasse as consciências adormecidas. Despertas, as pessoas
poderiam optar pela via do compromisso, do testemunho, da responsabilidade,
o que, para Mounier, seria o complemento da grandeza humana, que não se
deixaria reduzir-se às meras coisas. Eis a missão: acordar os homens do sono
dogmático, preparando-os a se engajarem numa pulsão de vida, ser-situado,
responsável por si e por outrem, não aceitando o comodismo e a passividade.
Assim, a pessoa imprimiria implicitamente na História uma ética de
responsabilidade individual e comunitária, uma personalização a favor da
pessoa humana, uma revolução que simultaneamente teria abrangências ética,
moral, espiritual, social, econômica e política.
Devido a sua morte precoce, Emmanuel Mounier não chegou a
presenciar os efeitos de seu hercúleo trabalho. Mal compreendido,
passados alguns anos de sua morte, foi reconhecido. A Igreja Católica retomou
seus temas nas encíclicas de João XXIII e Paulo VI – Mater et Magistra, Pacem
in Terris. Foi considerado um dos precursores leigos do Concílio Vaticano II, e,
na Constituição da Pastoral Gaudium Spes, podem-se perceber, em seu
conteúdo, as orientações personalistas. Inspirou a “Comunidade Europeia”, os
“Movimentos Comunidades” na França, Itália, África, Estados Unidos, América
Latina. Inspirou sindicalismos, movimentos culturais, movimentos operários,
estudantis, as Ligas Camponesas e principalmente os movimentos
especializados da Ação Católica (Cf. acima, p. 123-197).
Os primeiros capítulos deste trabalho buscaram justamente
compreender o que foi o personalismo de Emmanuel Mounier. Neles
perscrutou-se a gênese, as fontes originárias de inspiração, as fundamen-
tações do personalismo, as condições históricas de seu nascimento, as
estruturas fundamentais do universo pessoal, os meios para se chegar à
pessoa, o legado do personalismo e sua atualidade. Resta, porém, mencionar
214
o ponto de chegada ou a meta principal desta pesquisa, seu objetivo
específico, que foi o motor deste trabalho, isto é, saber se o pensamento de
Mounier teve alguma repercussão importante em nosso país.
Trata-se de recuperar ou tentar recuperar algo sobre o qual as fontes
existentes o são muitas, além de esparsas, fragmentadas e principalmente
esquecidas. Como disse o Prof. Severino, “são depoimentos e testemunhos
que se encontram relegados à poeira do tempo”. Algumas, não se tornaram
fontes escritas, como disse Luiz Alberto Gómez de Souza ao se referir a AP:
“Fui expurgado em 1967 e Betinho saiu no começo dos 1970. Propus a ele,
escrever um livro que nunca produzimos...” (2007, p.54). Outras são como
relíquias preciosas produzidas nestes momentos duros, sombrios e que
escaparam da destruição imposta pelo “Golpe de 1964” (UNE, UBES,
saqueadas e incendiadas; JUC-BH, saqueada; Jornal Brasil Urgente, invadido).
De todo modo, estavam formuladas as perguntas: teria o personalismo
de Mounier penetrado em nossa cultura em algum momento? Se sim, de que
forma chegou anós? Como se difundiu? Quem foram seus propagadores?
Teve uma fase áurea? Esta, quando termina? Por quê? Qual a contribuição do
personalismo para a cultura e a filosofia no Brasil?
Com o final da Segunda Guerra Mundial e com a queda do “Estado
Novo”, o Brasil entrou no processo de democratização. A questão social ficou
na ordem do dia; idéias como as de Karl Marx, Jean-Paul Sartre, Maurice
Blondel, Karl Jarpers, Simone Weil e Emmanuel Mounier fermentaram debates
no meio universitário, que logo se estenderam a outros meios, nos quais se
agitava a bandeira da justiça, da liberdade e da dignidade humana.
Foi através da Ação Católica Brasileira, com a adoção do modelo
especializado, que a partir de 1950 os movimentos desta irão se sensibilizar
com os problemas concretos nacionais. Nos anos de 1956 a 1961 viveu-se um
clima de euforia durante o governo de Juscelino Kubitschek (Programa de
Metas: “50 anos em 5”).
Época em que eram lidas as obras de Lebret, Congar, Maritain, Calvez,
Rahner e Mounier. Assim, começava uma exigência mais profunda
(principalmente para os jucistas) quanto ao compromisso no temporal. Em
215
1956, os militantes da JUC insistiram em um engajamento na realidade
concreta. Já em 1957 a JUC de Pernambuco adota uma orientação mais
prática de atuação nas favelas. Os universitários em contato com a miséria
descobrem a realidade brasileira: “Batismo de fogo”, na expressão de Mounier.
Foi em 1959, em Belo Horizonte, que se iniciou uma nova fase da JUC
em torno da “Necessidade de um Ideal Histórico”, apresentado pelo padre
Almery Bezerra inspirado em Jacques Maritain. Encontrou apoio no grupo
mineiro que reunia Padre Luiz Viegas, Betinho, Antonio Otávio Cintra, Henrique
Novaes, Paulo Haddad, Vinícius Caldeira Brant e outros. Mas o “Ideal
Histórico” não correspondeu às expectativas.
Numa rápida passagem pelo Brasil, Frei Cardonnel, em uma reunião no
Rio de Janeiro, da qual participavam Lima Vaz, jucistas de Belo Horizonte e
alguns estudantes da Universidade Católica do Rio, levantou a possibilidade de
se criar uma revista do gênero Esprit, pois era necessário promover mudanças
urgentes. Frei Cardonnel foi fundamental no despertar dos militantes da ACB
(principalmente os jucistas). Buscaram, ele e Lima Vaz, ambos inspirados em
Mounier, no existencialismo realista cristão deste uma “história sem servidões”
e uma “verdade [que] não se contempla, mas se faz”. Desperto, com o
pensamento personalista de Emmanuel Mounier, o “Ideal histórico”
“essências realizáveis” - passa a não responder mais às expectativas da
época. É neste contexto que Lima Vaz recorre à “consciência histórica”,
implicando esta o dinamismo e a afirmação da pessoa no social, no mundo
histórico e concreto e a relação dialética do nós.
Entre os anos de 1961 e 1962 a consciência política no país cresceu e
se aprofundou. A JUC e a UNE aliaram-se nos programas de educação
popular, alfabetização, mobilização camponesa, centros populares.
Tendo nculos com o pensamento político cristão de Mounier, nas
formulações de Lima Vaz, nasce a AP, com uma postura engajada e radical,
propondo-se seus militantes a uma “luta sem tréguas contra a desordem
estabelecida”.
A juventude ansiando participar da vida política transpôs os muros das
universidades, dos colégios e se envolveu com os sindicatos, com as ligas
216
camponesas, promoveu greves e paralisações, procurando acelerar o processo
do programa de reforma agrária, numa efervescência jamais vista. Isso causou
enormes polêmicas, crises dos movimentos com a hierarquia da Igreja e com a
elite da sociedade, essa amedrontada e surpresa diante do novo que se
descobria. Algo inédito acontecia na história brasileira: massas populares com
o apoio de intelectuais, estudantes e partidos de esquerda mobilizavam o país
ao confrontar as classes dominantes.
Vivia-se o período do governo do Presidente da República João Goulart,
cujas bases vinham sendo corroídas por adversários (civis e militares)
enfurecidos com seu governo. Através do IBAD, nasceu o IPES, o qual
influenciou a doutrinação dos militares e dos meios patronais, que prepararam
o “Golpe de 1964”. Surgiu o SNI, e os EUA apoiaram o golpe de Estado.
Abrem-se, então, os porões da ditadura.
A AP passou a atuar na clandestinidade. Muitos militantes se exilaram,
outros ainda estão desaparecidos até hoje e outros morreram física e psicolo-
gicamente. Um dos mais importantes movimentos brasileiros, em que houve a
presença do personalismo transformou-se em um pequeno grupo, maltratado,
sem forças e sem apoio diante da repressão militar. Era o fim de uma época de
sonhos, de compromissos com a sociedade e com o outro. Entrava-se no
período sombrio, nos tempos difíceis, de jardins desfeitos, de primaveras
interrompidas.
Apesar de tudo, a partir de 1970, a filosofia personalista de Mounier, tal
brasa aparentemente apagada pelo peso da cinza espessa da opressão
(desordem estabelecida), recebeu sobre si insistentes ventos que a reacende-
ram, passando a ser estudada numa dimensão mais especificamente filosófica.
Enfim, para além do legado mencionado, acredita-se que Mounier
continua atual. Seu pensamento exigente está vivo. Pode atender a nossa
sociedade carente, à pessoa ainda vilipendiada em sua dignidade pessoal. De
seu passado, sua filosofia da ação em torno da pessoa é algo novo. Por isso,
pensa-se ser importante retomar tal passado, resgatar sua memória, as
esperanças vivas daquele momento para um aqui-agora, como fonte de
reflexão, inspiração e orientação. É aqui de suma importância o que diz Eric
Hobsbawm, em a Era dos extremos O breve culo XX, 1914-1991, onde
217
avalia um fato perturbador ao dizer que a memória histórica não está viva. Com
efeito, a destruição do passado, “ou melhor, dos mecanismos sociais que
vinculam nossa experiência pessoal a gerações passadas é um dos fenôme-
nos mais característicos e lúgubres” do final do Século XX (Hobsbawm, 1999,
p.13). O diagnóstico valeria também para o início deste culo XXI, pois é
visível uma “espécie de presente contínuo”, sem nenhuma relação orgânica
com o passado público da época em que se vive. Hobsbawm lembra com
razão que o ofício do historiador seria o de fazer com que a história seja
lembrada.
Quanto ao personalismo, a missão histórica está no seu próprio cerne, já
que a pessoa é um ser-histórico (Cf. acima, p.5): “a pessoa imprime a cada
instante a sua presença (novidade absoluta) na História (fidelidade histórica) e
no infinito (história progressiva)”. A pessoa é ser encarnado, e encarnação não
é exterior à História e nem ao Mistério que a transcende; ela se desenvolve em
plena história: “A encarnação não é uma data, um ponto, mas um foco da
história do mundo, sem limite no espaço e no tempo” (Mounier, 1971, p.84).
Retornar ao passado significa comentar, ampliar e corrigir nossas
próprias memórias. Somos atores dos dramas da história humana; “por mais
insignificantes que sejam nossos papéis”, “ela é parte de nós” (Hobsbawm,
1999, p.13).
Mounier pensava que a humanidade “deve” ser una, solidária, detentora
da memória, pois esta se move em um tempo que tem sentido, que constitui
uma única história, e não se pode incorrer nos erros do passado, para que
fatos e sentimentos da miséria humana não retornem por descuido e
negligência.
Permitimo-nos evocar um exemplo ilustrativo: a visita inesperada de
François Mitterrand, então presidente da França, ao epicentro da guerra
balcânica (campos de Sarajevo), em 28 de junho de 1992. Essa visita suscitou
polêmica. Seria um ato político? Certamente excluía-se essa possibilidade, pois
poderia causar incidentes internacionais. As notícias correram o mundo e
acreditou-se que fora apenas um ato humanitário, pois, a mando do presidente
francês, foram enviados também, dois aviões carregados de medicamentos.
Sobre este ato, Eric Hobsbawm escreve que “quase ninguém captou a alusão,
218
exceto uns poucos historiadores profissionais e cidadãos muito idosos”, pois “a
memória histórica não estava tão viva” (Hobsbawm, 1993, p.13). O dia 28 de
junho é a data do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria-
Hungria que ocorreu em 1914, em Sarajevo. Eis a ligação com a data, o
lugar e a evocação de uma memória que, preservada, vinha a público mostrar
a falha “precipitada por erro político e de cálculo” que poucas semanas depois
deste incidente, produziria a Primeira Guerra Mundial. Não é, pois, descabida a
ênfase de Hobsbawm, ao afirmar a necessidade viva da História. Se isso fosse
levado em consideração, em 1989 todos os governos do planeta, todos os
ministérios do exterior do mundo “ter-se-iam beneficiado de um seminário
sobre os acordos de paz firmados após as duas guerras mundiais, que a
maioria deles aparentemente havia esquecido” (Ibid., p.13). No ano de 1989,
operações militares se intensificam em muitas partes da Europa, Ásia e África
como nunca visto, embora nem todas fossem oficialmente registradas como
guerras, “... muitas vezes o era claro quem combatia quem e por que nas
cada vez mais frequentes situações de colapso e desintegração nacionais,
essas atividades, na verdade, não se encaixavam em nenhuma das classifica-
ções clássicas de ‘guerra’, internacional e civil” (Hobsbawm, 1993, p.539).
Como se viu, no decorrer do ano da visita de Mitterrand, a guerra em Sarajevo
ceifou cerca de 150 mil vidas.
Em se falando de memória histórica, pensou-se ser importante reunir,
dentro do possível, fontes “relegadas à poeira do tempo”, “comentar, ampliar”
e, quem sabe, “corrigir nossas próprias memórias”. Estão elas articuladas com
o personalismo de Emmanuel Mounier; o que traz para o momento presente, a
memória de um tempo que não deveria ser esquecido e no qual, em todo caso,
carece insistir para existir sua novidade.
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