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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Giuliano Souza Andreoli
REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES
NA DANÇA CONTEMPORÂNEA
Porto Alegre
2010
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2
Giuliano Souza Andreoli
REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES
NA DANÇA CONTEMPORÂNEA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul como requisito para a obtenção do título
de Mestre em Educação.
Orientador:
Prof. Dr. Luís Henrique Sacchi dos Santos
Linha de Pesquisa: Educação, Sexualidade e
Relações de Gênero
Porto Alegre
2010
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3
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
___________________________________________________________________________
A559r Andreoli, Giuliano Souza
Representações de masculinidade na dança contemporânea / Giuliano Souza
Andreoli; Orientador: Luís Henrique Sacchi dos Santos. Porto Alegre, 2010.
137 f. + Anexos.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade
de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2010, Porto Alegre, BR-
RS.
1. Dança. 2. Corpo. 3. Gênero. 4. Sexualidade. 5. Masculinidade. 6. Estudos
Culturais. I. Santos, Luís Henrique Sacchi dos. II. Título.
CDU: 396:793.3
_________________________________________________________________________
Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes CRB 10/939 [email protected]
4
Giuliano Souza Andreoli
REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES NA DANÇA
CONTEMPORÂNEA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como requisito para
a obtenção do título de Mestre em Educação.
Aprovada em 16 mar. 2010.
________________________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Henrique Sacchi dos Santos Orientador
________________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Seffner UFRGS
________________________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Grupelli Loponte UFRGS
________________________________________________________________________
Profa. Dr. Mônica Dantas UFRGS
________________________________________________________________________
Prof. Dr. Airton Tomazzoni dos Santos UERGS
________________________________________________________________________
5
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, à Faculdade de Educação e ao
Programa de Pós-Graduação em Educação, por seu ensino público e de qualidade.
Ao meu orientador, o prof. Dr. Luís Henrique Sacchi dos Santos, que me
possibilitou encontrar o percurso para essa caminhada.
À banca examinadora: professores Monica Dantas e Fernando Seffner, por
suas valiosas e pertinentes colocações para o projeto desta Dissertação, e aos
professores Luciana Grupelli Loponte e Airton Tomazzoni dos Santos, presentes na
banca de defesa final.
A/aos demais professoras/es da linha de pesquisa de gênero: Dagmar Meyer,
Guacira Louro e Fernando Seffner. Também às professores Rosa Maria Bueno
Fischer e Maria Lucia Castagna Wortmann.
Às/aos colegas Andréa Bittencourt de Souza, Tatiana Mielczarski dos Santos
e Éderson Costa dos Santos, cujas pesquisas precederam a minha.
Aos meus pais, Izaura e Dejalme Andreoli, que sempre desejaram me ver
aqui, nesse “lugar” onde agora me posiciono.
À minha companheira, Luciane Prestes, por me apoiar.
A todos os bailarinos que se propuseram a ser entrevistados.
Às colegas Tatiana Rosa, e Flávia Pilla do Valle, pelas nossas conversas.
6
O homem deve ser inventado a cada dia.
(Jean Paul Sartre)
7
RESUMO
O presente estudo objetivou discutir as noções de corpo e gênero na dança, tendo como
foco os processos de construção das identidades masculinas de bailarinos de dança
contemporânea. A investigação está situada no campo da perspectiva pós-estruturalista
dos Estudos Culturais, e seus desdobramentos nos estudos pós-estruturalistas de gênero
e de sexualidade. O estudo considerou a dança como uma prática corporal produzida na
cultura, constituída por discursos e representações culturais, e como um campo de luta
por significações. A partir daí, visualizei a existência de um conjunto de representações
culturais hegemônicas de dança contemporânea ligadas a noções tais como: ruptura,
transgressão, liberdade, essencialismo. Com esse foco, eu me interessei em analisar as
tensões entre essas representações culturais de dança contemporânea e as representações
culturais de gênero e de sexualidade.
Através de uma análise cultural, examinei um conjunto de narrativas de bailarinos do
mundo da dança contemporânea porto-alegrense, as quais foram obtidas a partir de
entrevistas gravadas e, posteriormente, transcritas. As reflexões centraram-se em: como
esses homens chegam a dançar em uma cultura onde a dança é hegemonicamente
significada como uma prática o-masculina, e como se estruturam suas estratégias e
negociações na produção, criação e manutenção da identidade masculina?
A partir das análises realizadas, foi possível observar algumas recorrências. Os homens
que dançam têm um início quase sempre bem tardio nessa prática, pois necessitam
superar as representações culturais de dança que funcionam como “barreiras” sociais.
Uma das formas como eles procuram superar tais barreiras é justamente exibindo alguns
dos traços que têm sido característicos do modelo hegemônico de masculinidade dos
últimos dois séculos: o modelo do self-made-man. Assim, o bailarino self-made é aquele
que deve tornar-se um estudioso dedicado da arte da dança, por seus próprios meios e
recursos, e que necessita “provar” sua masculinidade por meio do talento, ou ocupando
posições de poder (professor, coreógrafo, etc.), demonstrando sucesso econômico,
espírito de independência e eficiência.
Palavras-chave: Dança; Corpo; Gênero e Sexualidade; Masculinidade; Estudos
Culturais.
_________________________________________________________________________________________
ANDREOLI, Giuliano Souza. Representações de Masculinidade na Dança Contemporânea. Porto Alegre,
2010. 137 + Anexos. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de s-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
8
ABSTRACT
The current study had as objective discuss the notions of gender and body in dance,
focusing on the process of construction of identity in the contemporary male dancers.
The investigation is situated in the fields of the theoretical perspective of the Cultural
Studies, and its follow-ups in the post-structuralist Gender and Sexuality Studies. The
sutdy considered the dance as a body practice produced in culture, shaped by discourses
and cultural representations, and as a field of signification struggle. This has allowed me
to visualize the existence of a set of contemporary dance hegemonic cultural
representation, linked to notions like: rupture, trespass, freedom, essentialism. With this
focus, I am interested in to analyse the tensions between these contemporary dance
cultural representations and the gender and sexuality cultural representations.
I have provided a cultural analysis to examine a set of dancers' narratives in the
contemporary world dance in Porto Alegre, which were obtained from recorded
interviews and, later, transcribed. The central reflections are about: how these men
become dancers inside a culture where the dance is hegemonic meant as a non-male
practice, and how they structure the negotiations and strategies on the production,
creation and maintenance of male identity?
Based on the realized analysis, was possible visualize some appeals. The men who dance
have a beginning always much late in this practice, because they have to overcome the
cultural representations of dance which work as social “barriers”. One of the ways how
them try to transpose this “barriers is just performing some of the qualities
characteristic of the hegemonic model of masculinity in the last two centuries: the model
of self-made man. Thus, the man who dance have to become a devotated student of this
kind of art at your cost, in itself, having to “prove” your masculinity with your talent, or
occupaying Power positions (teacher, choreographer, etc.), showing economic success,
independence spirit and efficiency.
Keywords: Dance; Body; Gender and Sexuality; Masculinity; Cultural Studies.
_________________________________________________________________________________________
ANDREOLI, Giuliano Souza. Representações de Masculinidade na Dança Contemporânea. Porto Alegre,
2010. 137 + Anexos. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de s-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
9
SUMÁRIO
PEQUENO PREÂMBULO AOS MOVIMENTOS DESTE TRABALHO................10
1 PRIMEIRO MOVIMENTO: situando o cenário da pesquisa.....................................13
1.1 MINHA APROXIMAÇÃO COM O TEMA..................................................................13
1.2 ESCOLHAS REALIZADAS: caminhos metodológicos................................................20
1.3 IMPLICAÇÕES COM O CAMPO................................................................................22
1.4 METODOLOGIA DA PESQUISA................................................................................26
1.5 O CAMPO DE PESQUISA............................................................................................30
2 SEGUNDO MOVIMENTO: o que é dança contemporânea?.....................................36
2.1 BREVE HISTÓRIA DA DANÇA NO SÉCULO XX...................................................37
2.2 DANÇA CONTEMPORÂNEA E HIBRIDAÇÃO........................................................40
2.3 A INVENÇÃO DA DANÇA CONTEMPORÂNEA.....................................................46
2.4 DE NIETZSCHE A ISADORA DUNCAN: a dança como transgressão.......................47
2.5 A DANÇA CONTEMPORÂNEA E A RETÓRICA DA LIBERDADE.......................54
3 TERCEIRO MOVIMENTO: ferramentas conceituais................................................62
3.1 DANÇA, CORPO E CULTURA....................................................................................62
3.2 DISCURSO E REPRESENTAÇÕES CULTURAIS......................................................67
3.3 SOBRE O CONCEITO DE GÊNERO...........................................................................69
3.4 A CONSTRUÇÃO CULTURAL DAS MASCULINIDADES HEGEMÔNICAS........74
3.5 MASCULINIDADES E DANÇA: CONSTRUINDO UMA ARTICULAÇÃO...........76
4 QUARTO MOVIMENTO: dança contemporânea e masculinidades........................82
4.1 NARRATIVAS DO MASCULINO NA DANÇA........................................................84
4.2 O BAILARINO SELF MADE........................................................................................92
4.3 O INÍCIO PRÉVIO EM OUTRAS PRÁTICAS CORPORAIS...................................100
4.4 DANÇA E HOMOSSEXUALIDADE........................................................................107
4.5 A POLARIDADE MASCULINO-FEMININO e A DANÇA CONTEMPORÂNEA.121
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................131
REFERÊNCIAS................................................................................................................137
ANEXOS............................................................................................................................154
ANEXO A Primeiro Roteiro de Entrevista.....................................................................154
ANEXO B Segundo Roteiro de Entrevista......................................................................155
ANEXO C Termo de Consentimento Livre e Esclarecido..............................................158
10
Pequeno preâmbulo aos movimentos deste trabalho:
No século XX ocorreram profundas transformações culturais e sociais na civilização
ocidental. Paralelamente, ocorreram transformações nos distintos campos das artes. Na
dança, por exemplo, instauraram-se novos referenciais relacionados ao corpo e ao
movimento, permitindo uma série de reinvenções estéticas e de pesquisas coreográficas em
dança que, através de um caminho bastante diverso e múltiplo e muitas vezes divergente ou
contraditório, constituiu o que hoje chamamos de dança contemporânea
1
.
Sob tal classificação, compreendo, aqui, diferentes fenômenos no campo da dança
cênica que atualmente têm tentado sintetizar modelos artísticos anteriores e ao mesmo
tempo modificá-los, de forma a tentar construir continuamente novos modelos. Assim, por
exemplo, buscando elementos do balé clássico, do teatro, do circo, da yoga, das artes
marciais, da pintura e de inúmeras outras artes e técnicas, a dança contemporânea propõe-se
a reinventar-se continuamente, a mostrar “novos corpos”, em cena. Ela anuncia-se, em
última análise, como uma instância privilegiada na tarefa de expressar novos valores sociais
e construir novos conteúdos simbólicos, através de movimentos e gestos dançados.
Esta dissertação tem por finalidade discutir noções de corpo e gênero na dança
contemporânea, tendo como foco o masculino na dança, ou os processos culturais de
construção de masculinidades
2
. Parto da noção de que a „masculinidade‟ é uma construção
cultural, que se dá no âmbito de práticas sociais. Para isso, utilizo o conceito de gênero, que
refere as formas culturais como são construídas e valoradas hierarquicamente as diferenças
entre as identidades masculinas e femininas dos sujeitos.
A dança contemporânea, que é a grande área temática, ou, melhor dizendo, o grande
campo de agenciamentos em que esse trabalho se desenvolve, é aqui analisada como uma
prática social e artística estreitamente relacionada com o investimento de discursos e
representações culturais sobre os corpos. Conduzo-me, assim, na direção de pensar os
1
Este não é um trabalho sobre todas as modalidades de danças praticadas na contemporaneidade, mas sim
sobre um campo circunscrito delas, que chamarei aqui de “dança contemporânea”. Esta questão será melhor
delineada e aprofundada no capítulo 2.
2
O uso do termo no plural masculinidades deve-se ao rompimento deflagrado pelos estudos de nero
com a ideia da divisão biológica da humanidade entre macho e fêmea que no permitiu pensar que existe mais
de uma maneira de ser masculino e feminino.
11
processos singulares de investimento da cultura, no que diz respeito à construção social
diferenciada de gêneros masculinos e femininos.
A produção dos materiais de análise se deu, inicialmente, a partir da adoção de uma
abordagem de inspiração etnográfica, através da qual mapeei diferentes grupos de dança
contemporânea da cidade de Porto Alegre. Esse mapeamento inicial do campo contou com
a minha presença esporádica em aulas, ensaios, espetáculos e atividades de criação
coreográfica. As questões levantadas se deram a partir dos dados encontrados nesse
mapeamento. O estudo, no entanto, centrou-se no uso de entrevistas semi-estruturadas,
realizadas junto a coreógrafos e bailarinos de dança contemporânea. Foram feitas 3
entrevistas com coreógrafos no ano de 2008, que, somando às entrevistas feitas com 7
bailarinos/as em 2009 perfazem o total de dez narrativas analisadas.
Paralelamente, empreendi uma revisão bibliográfica e pesquisei a produção de
autores relacionados com a temática da dança contemporânea. Optei por trabalhar com uma
estratégia que permita o trânsito entre diferentes campos discursivos. Em alguns momentos,
faço incursões em outras áreas do conhecimento, como História ou Filosofia, com o intuito
de colocar em evidência certas práticas discursivas constitutivas do meu objeto de pesquisa.
Os movimentos do meu pensamento, que serão o fio condutor desta escrita, serão
tomados por diversos atravessamentos. Os Estudos Culturais perpassam a sua trajetória,
uma vez que deles advém meu referencial teórico enquanto pesquisador. Além disso, o
próprio fato de eu ser um homem pesquisando homens, constitui outro importante
atravessamento: o de gênero. E, por fim, como o ato de dançar não me é estranho, tudo
aquilo que em minha experiência de vida me proporcionou a vivência com a dança também
encontra-se aqui tensionado como um atravessamento ao estudo e como constitutivo do
próprio objeto desse estudo.
Assim, é na confluência de tais encontros que se põe em processo este trabalho
sobre homens na dança, que põe a si mesmo o desafio de dançar através dos movimentos da
sua escrita. Como um bailarino, tento aqui me movimentar por entre distintos campos
discursivos, inventando novos movimentos, convidando os/as leitores/as a produzirem
novos conhecimentos que, quiçá, possibilitem o entrelaçamento de saberes da produção
atual sobre a dança com o campo de estudos de gênero e educação.
12
Esse pequeno preâmbulo, que marca a apresentação dessa dissertação, localiza o
assunto, a temática e apresenta as considerações iniciais ao estudo. A partir dele, me
preparo parar iniciar os movimentos teóricos e analíticos.
No primeiro capítulo, chamado Primeiro movimento: Situando o cenário da
pesquisa”, abordo minha trajetória em direção ao problema de pesquisa e minhas
implicações com ele, as principais decisões, ferramentas e escolhas metodológicas. Discuto,
de modo breve, a inspiração em métodos etnográficos para o mapeamento inicial do campo,
e a escolha pelo uso de entrevistas como o método de pesquisa, como forma de analisar a
constituição de narrativas acerca das masculinidades na dança contemporânea.
O segundo capítulo, “Segundo movimento: O que é dança contemporânea?”, é
onde busco delimitar o campo específico dessa pesquisa, ou seja, a dança contemporânea,
enquanto campo possível de análise entre todas as demais danças da contemporaneidade.
Aqui não pretendo fechar um conceito sobre o que é dança contemporânea, mas sim
posicionar-me e caracterizar como produtiva a distinção entre essa dança e as demais.
No terceiro capítulo intitulado “Terceiro movimento: Ferramentas conceituais”,
apresento o campo conceitual que constitui o processo de escrita desta dissertação,
delimitando os conceitos de cultura, de linguagem, de discurso e de representação.
Apresento o conceito de gênero, enfocando as masculinidades, e faço uma revisão dos
conceitos de heteronormatividade e de masculinidade hegemônica, refletindo sobre a sua
relação com a dança. Analiso algumas pesquisas recentes sobre o gênero na dança para,
logo a seguir situá-lo como ferramenta que organiza e constitui esta proposta..
No quarto capítulo, intitulado “Quarto Movimento: Dança e masculinidades”,
Aqui, efetuo a análise das “falas” dos bailarinos entrevistados e analiso aspectos das suas
narrativas e trajetórias, para então dissertar sobre a ocorrência das representações de gênero
e sexualidade entre homens que praticam dança contemporânea.
No último capítulo, “Considerações Finais”, realizo um apanhado das idéias principais
e encerro as minhas análises, erguendo considerações provisórias sobre a temática do
homem na dança, que compreendo ainda ter muito o que ser estudada.
13
1. Primeiro Movimento: Situando o cenário da pesquisa
Porque estudar sobre representações de masculinidades entre bailarinos de dança
contemporânea? Qual a pertinência de um estudo como esse para o campo da educação?
Nesse capítulo, procuro apontar os caminhos que trilhei até chegar ao problema de
pesquisa, bem como minhas opções metodológicas e minhas implicações com o campo.
1.1. Minha aproximação com o tema
Segundo Dagmar Meyer, gênero atravessa e constrói todas as instituições, todo o
modo de pensar e todas as práticas sociais e culturais (MEYER, 2003). Estudar sobre
gênero
3
é, portanto, sempre estudar algo sobre nós mesmos. Se existimos enquanto seres
humanos vivendo em sociedade, existimos enquanto homens ou mulheres, sendo, de uma
forma ou de outra, posicionados dentro de modelos de masculinidade ou feminilidade.
Assim, ao fazer reflexões sobre gênero masculino na dança, as experiências pessoais de
vida e a teoria não se dissociam completamente.
Além disso, esse é um trabalho cujo campo de análise é a dança contemporânea. Em
minha trajetória pessoal de vida, eu estive envolvido com essa prática, bem como com
outras variedades de dança. Essas experiências produziram, e ainda produzem, em mim
seus efeitos de poder. Constituíram-me e ainda constituem-me. Despertaram e ainda
despertam em mim afetos, sensações, emoções, pensamentos, pertencimentos, paixão.
Levando em conta tais questões, e em conformidade com o que as implicações que
isso tem na pesquisa, a partir do que os pressupostos teóricos da perspectiva pós-
estruturalista dos Estudos Culturais preconiza, nesse capítulo, procurarei apresentar aos
leitores e leitoras, quem sou e a partir de onde eu penso e falo. Procurarei evidenciar, assim,
o quanto me aproximo e me distancio da temática escolhida, referindo que falo de um
determinado lugar, à medida que vou significando a temática escolhida e constituindo os
movimentos iniciais daquilo que constituiu essa pesquisa.
Como em todas as narrativas que construímos sobre nós mesmos, buscarei aqui
situar num passado longínquo, a primeira cena do espetáculo em que transformo minha
3
O conceito de gênero, central para esse trabalho, será melhor aprofundado no capítulo 3.
14
vida ao narrá-la. Mais especificamente, na minha infância, na escola. E a imagem que aqui
me aparece é a de um universo pouco atraente: as aulas de Educação Física.
Na cultura escolar onde cresci, somente os meninos que demonstrassem ser bons
desportistas, principalmente se fosse bom jogador de futebol, eram valorizados como
autenticamente “masculinos”. Por não gostar nem de futebol nem dos demais esportes
coletivos ministrados nessas aulas, eu não me encontrava totalmente enquadrado. Como
resultado disso, nessas aulas eu tinha uma participação pouco significativa.
Sigamos para uma cena seguinte. Alguns anos se passaram. Estou em minha
graduação. Optei pelo curso de Educação Física. E eis que isso se constituiu em surpresa
para muitos daqueles que me conheciam dos tempos de escola, que haviam sido meus
colegas e que tinham de mim a imagem de um péssimo aluno. Neste ponto da história,
contudo, diversas outras experiências corporais haviam me constituído. Eu continuava
avesso às quadras, às bolas e aos esportes coletivos, mas havia desenvolvido um gosto
por atividades físicas individuais, algumas mais ligadas ao terreno da expressão artística e
outras mais ao desporto: natação, capoeira, boxe chinês, wushu
4
e, por fim (no momento
em que ingressei na faculdade), ginástica artística
5
.
Até então, dançar me parecia algo muito distante. Algo ligado ao universo feminino,
isto é, apenas como “coisa para meninas”. Em outras palavras, a dança, nessa época de
minha vida, ainda não me atraía, ainda não me interpelava significativamente.
Essa situação viria a modificar-se ao longo do curso de Educação Física. A partir de
algumas aulas, leituras, professores/as e discussões, despertou-me o interesse pela
dimensão sócio-cultural ligada às práticas corporais. Em decorrência desses interesses
passei a prestar atenção aos discursos das ciências humanas, utilizando-os como
ferramentas para a reflexão sobre a prática pedagógica e sobre os significados das diversas
artes corporais nas quais o professor de educação física fundamenta o seu trabalho.
Através da reflexão sobre a construção cultural do gênero, lancei um novo olhar
para o meu passado. Disso resultou uma reinterpretação de minha inadequação aos padrões
de masculinidade tanto nas aulas de Educação Física, em que era obrigado a jogar futebol -
4
Termo chinês que significa literalmente “arte marcial” (o que no ocidente se passou a chamar erroneamente
de “kung fu”). Aqui, o termo é utilizado no sentido de um esporte moderno, com foco no alto rendimento, e
de caráter artístico, que foi criado nos anos 1950 (também chamado de wushu moderno).
5
Antigamente chamada de ginástica olímpica.
15
por que era menino e meninos tinham que gostar de futebol quanto nas minhas práticas
corporais individuais. Revi os meus dias de treinamento de ginástica artística, quando
convivia diariamente com dúvidas a respeito da minha heterossexualidade. Revi meus dias
de treinamento de artes marciais: um ímpeto por talvez reafirmar, naquele espaço, uma
forma de masculinidade que fosse “aceitável” para a sociedade? Compreendi, então, a
existência de todo um aparato cultural disposto a continuamente fiscalizar quando minhas
normas e condutas sociais estavam ou não em conformidade com expectativas sobre minha
identidade de gênero.
Paralelamente às reflexões trazidas por esta nova perspectiva teórica, tive também a
oportunidade de vivenciar, em algumas disciplinas desse mesmo curso, algumas aulas de
dança. Em rios momentos colidiam a ainda insistente associação entre a dança como
“coisa de meninas” com o recém descoberto gosto por essa práticas, que, afinal de contas,
eu descobri que me atraía. E tanto me atraiu, que depois de terminadas as duas disciplinas
de dança do curso de Educação Física, comecei a procurar por aulas de modalidades
específicas de dança em academias e escolas de Porto Alegre.
Inicialmente, de forma ainda hesitante, fiz minhas primeiras incursões em aulas de
dança contemporânea, depois em aulas de jazz e, por fim, de balé
6
. E, então, novamente
voltei a fazer aulas de dança contemporânea... Com o passar do tempo, meu contato com o
universo da dança contemporânea se aprofundou
7
.
Ao longo desta caminhada de vida, envolvido com dança, tomei conhecimento de
estudos (SOUZA, 1994; GOELLNER, 2001; SARAIVA-KUNZ, 2003; OLIVEIRA, 2005;
DEVIDE, 2005; SARAIVA, 2008) que demonstraram haver, em nosso país, uma gica
cultural ainda muito forte, que concebe a dança como uma prática exclusiva para mulheres,
dificultando o ingresso dos homens na dança ou em quaisquer atividades rítmicas ou
expressivas. Por outro lado, a prática de certos esportes, em especial o futebol e as lutas,
parecem ser culturalmente consideradas mais próprias para os sujeitos masculinos.
6
Opto pela denominação em língua portuguesa do termo original ballet, embora ambos os termos sejam
encontrados em diferentes produções acadêmicas sobre dança.
7
Em 2006, trabalhei em um espetáculo na Companhia Joca Vergo de Dança Contemporânea, em Porto
Alegre. Em 2007, trabalhei no Circo Internacional Espanhol, com um número de dança aérea. No início de
2008, tentei uma audição na Companhia Municipal de Dança Contemporânea de Caxias do Sul, sendo um dos
dois selecionados para vivenciar a rotina diária de treinamento da companhia durante uma semana.
16
A compreensão das discussões trazidas por essas análises me fez entender que
minha história de vida não era única. E que, por exemplo, as dificuldades iniciais em
assumir que eu gostava de dança, minha resistência em alguns momentos ao interesse que
essa prática em mim despertou, ou mesmo o fato de eu não ter praticado dança desde muito
cedo (como acontece com a maioria das mulheres que dançam, por exemplo), não eram
dificuldades somente minhas. Elas tinham muito de socialmente construídas. Elas eram
parte de um contexto cultural maior.
Assim, posso dizer que tanto a escolha do campo de pesquisa da dança quanto a
opção pela linha de pesquisa na perspectiva de estudos pós-estruturalistas de gênero não
foram nada casuais
8
. Os questionamentos que aqui sistematizo, como questões de pesquisa,
foram perguntas que muitas vezes me fiz, de maneira mais informal, ao longo de minha
vida. Eles fazem parte daquela narrativa que me constituiu, que norteou minhas escolhas de
vida, definiu meus caminhos.
Pesquisar sobre o gênero masculino na dança me ocorreu, se tornou possível,
de certa forma, por causa de minha trajetória pessoal, enquanto homem, envolvido com
essa arte. Ao enfocar homens que praticam dança, tentei compreender um universo ao qual
eu mesmo pertenço, um processo pelo qual eu mesmo passei e um conjunto de coisas que
me constituíram e me constituem.
A questão do homem na dança é um dos “enigmas” sobre o qual me debrucei
durante bom tempo de minha vida e sobre o qual ainda ergo perguntas: que prática corporal
é essa que interpela um homem (como eu) de tal forma? Ou: que prática é essa que produz
em mim certa paixão, mas em outros homens não? Porque alguns homens se “atrevem” a
praticar dança e outros não? Como esses homens (como eu) chegam a dançar? E por que
outros tantos homens não se permitem, ou não conseguem, dançar?
Parti dessas inquietações iniciais para começar a construir o problema de pesquisa.
Tomando como caixa de ferramentas o aporte teórico dos estudos pós-estruturalistas de
gênero (MEYER, 2003; LOURO, 2004), comecei assumindo alguns pressupostos. O
primeiro deles é o de que se a grande maioria dos homens experimenta, como eu
experimentei, durante certo tempo, um receio ou uma resistência em dançar, isso se
devido à existência de normas culturais e sociais de gênero e também de sexualidade, que
8
É, portanto, como um conhecimento politicamente interessado que problematizo o masculino da dança.
17
normatizam e ensinam para os homens certos comportamentos, gostos, desejos, modos de
estar no mundo, etc. O segundo é que existe, em nossa cultura, um modelo hegemônico de
masculinidade, a partir do qual a dança parece ser algo que “ameaça” a virilidade. Em
outras palavras, a prática da dança, por parte de homens, está em desacordo, ou vai na
contramão dessa representação cultural dominante acerca do que é ser um “homem”.
O conceito de masculinidade hegemônica (CONNELL, 1997; KIMMEL, 1998;
SEFFNER, 2003), será melhor abordado no capítulo 4, mas introduzirei aqui uma
explanação inicial. Ele refere-se a um determinado modelo cultural que é literalmente
imposto a todos os sujeitos. A partir de um conjunto de normas sociais, essa forma de
masculinidade se anuncia como sendo o jeito mais autêntico, genuíno e verdadeiro de “ser
homem”. Quaisquer outros jeitos são desqualificados e os indivíduos são desencorajados a
adotá-los. Esse modelo cultural de masculino é marcadamente heterossexual, razão pela
qual se diz que a masculinidade hegemônica articula-se com a heteronormatividade
9
.
O sujeito masculino que dança é um sujeito posicionado de uma forma, ou em um
lugar, que foge a esse conjunto de normas culturais que nos dizem que homens devemos
ser. Conseqüentemente, se ele é um sujeito que se distancia da norma, ele muitas vezes não
é considerado “homem de verdade”. E como é também característico da representação de
masculinidade hegemônica desqualificar todas as formas de sexualidade diferentes da
heterossexual, o homem que dança é freqüentemente associado à homossexualidade.
A partir dessa compreensão, comecei a olhar para trás e a ver com cada vez maior
estranhamento aquele outro “eu” que, um dia, não se atrevia ainda a dançar. E à medida em
que fui desenvolvendo essa pesquisa, fui em alguns momentos conversando com esse outro
“eu”, o “eu” de um tempo passado, mas de certa forma ainda inteiramente presente,
tentando talvez mostrar-lhe o quanto seus receios eram, ou ainda o, aprendidos,
incorporados, regulados, normatizados e imposto pela cultura.
Comecei, então, a reformular a pergunta da pesquisa: o que significa para um
homem praticar e produzir dança contemporânea em Porto Alegre, hoje, em uma cultura
em que as normas sociais hegemônicas, de nero e sexualidade, relacionam
freqüentemente a dança à feminilidade e à homossexualidade? Como e através de que
9
O conceito de heteronormatividade, ou seja, a noção de que a nossa cultura institui que a identidade
heterossexual é a única identidade sexual normal e que, para ela se constituir, precisa necessariamente negar
todas as outras formas de sexualidade, consideradas “anormais”, será abordado no capítulo 3.
18
caminhos, esses homens chegam a dançar? Como eles são convocados a praticar essa
dança? De que forma essa dança lhes interpela, lhes produz identidade e pertencimento?
A partir daí, procurei pensar em produzir uma análise que me permitisse uma leitura
acerca de como ocorre a fabricação” da masculinidade entre esses bailarinos.
Considerando a diversidade de formas possíveis de tornar-se homem. No entanto, percebi a
necessidade de delimitar um campo específico para o estudo. A análise da dança num
sentido geral, incluindo-se todos os tipos e modalidades de dança da contemporaneidade,
havia sido feita anteriormente, no contexto cultural da cidade de Porto Alegre, por
Andréa Bittencourt de Souza (2007). Faltava ao campo de estudo, no entanto, análises que
enfocassem as representações de masculinidade na dança em Porto Alegre em suas
modalidades específicas. O estudo de Éderson dos Santos (2009) sobre o hip-hop, por
exemplo, me levou ao entendimento dessa necessidade. Sob meu ponto de vista, ele
demonstrou que as representações de masculinidade poderiam assumir matizes ou
características bem específicas de acordo com o tipo de dança que se dançava. Da mesma
maneira, o estudo de Tatiana dos Santos (2009), enfocando as feminilidades dentro do
universo do balé , mostrou-se um recorte bastante produtivo.
Dessa forma, em consonância com esses pesquisadores e seguindo as orientações de
Corazza (2002), procurei delimitar como campo de pesquisa o que “mais se estudou, viveu,
preocupou, pensou, praticou” (p. 361). Tendo sido, durante certo período de minha vida,
um bailarino de dança contemporânea, optei por enfocar, nesse estudo, bailarinos de dança
contemporânea. Ou seja, recortei aquela modalidade com a qual havia tido, em minha
trajetória pessoal, um maior envolvimento.
Precisei partir de determinados pressupostos ontológicos a fim de delimitar esse
campo específico, dentro do campo maior da dança, que nomeio “dança contemporânea”.
Um desses pressupostos é o de que tal denominação represente um conjunto muito
heterogêneo de práticas corporais e artísticas que, colocadas em discurso, partilhem todas
de uma certa homogeneidade no âmbito da representação cultural da dança. Em outras
palavras, “dança contemporânea” designa nesse trabalho um conjunto de práticas artísticas
diversas que se agrupam todas em torno de certos enunciados de verdade, que parecem
instituir sentido à prática dos artistas que as praticam, independente do grupo ou da variante
de dança contemporânea que se esteja falando.
19
Uma dessas asserções de verdade, por exemplo, é a de que tal dança é capaz de
romper com todos os padrões e normas que a cultura ou a sociedade impõe sobre os corpos
do sujeitos. Tomarei essa idéia, ou noção, como algo que é produzido discursivamente e
que gera uma potente representação acerca do que a dança contemporânea é. Em síntese,
que ela é sempre aquilo que rompe. Na mesma direção, ela é também a dança que aceita
tudo o que é diverso e diferente e, portanto, ela está sempre a favor da liberdade
10
.
Mas se a dança contemporânea tem essa retórica da liberdade, da transgressão, da
livre invenção, será que essa proposta de romper e de trazer o novo pode ser pensada em
termos de gênero? O que isso nos diz sobre o gênero masculino? Os homens que hoje se
constituem como bailarinos de dança contemporânea são sujeitos que transgridem os
modelos culturais hegemônicos instaurados, pela cultura, para o masculino? Ao adotarem
ou seguirem os enunciados de verdade da dança contemporânea, eles questionam, em
alguma medida, as representações hegemônicas de masculinidade?
A partir desses questionamentos e reflexões, organizei a seguinte pergunta, que
coloco aqui como sendo a pergunta central de toda a pesquisa: quais são as articulações
entre esse discurso ou retórica da ordem da ruptura e da libertação do corpo,
característicos da dança contemporânea, e as representações de masculinidade?
Obviamente que não tenho a pretensão de, apenas com essa pesquisa, produzir uma
resposta universal para esse tipo de pergunta. Importa aqui, mapear em um lugar específico,
muito bem situado e, portanto, limitado ao contexto porto-alegrense, as formas como
bailarinos de dança contemporânea representam certas questões de gênero, a forma como
significam suas trajetórias de vida, as opiniões que expressam a partir de representações
culturais que, como outras vozes (as vozes da cultura), falam através deles, ou ainda, de que
forma eles dialogam e/ou negociam com as representações de masculinidades hegemônicas.
Assim, a partir dessa pergunta central, desdobrei duas grandes questões:
a) Como esses homens, bailarinos de dança contemporânea, chegam a dançar?
b) E ao dançarem, como eles respondem à lógica cultural hegemônica de gênero?
Em relação à primeira questão, procurarei mapear o contexto específico da dança
contemporânea. O objetivo é analisar se, nessa dança, outros arranjos e possibilidades são
disponibilizados para que os indivíduos cheguem a dançar, se comparada, por exemplo, aos
10
Explicarei esse posicionamento no capítulo seguinte.
20
tipos de dança analisadas em outros trabalhos (SOUZA, 2007; SANTOS, 2009a,
SANTOS, 2009b). Aqui, tomando como ferramenta principal as análises das entrevistas
com os bailarinos, procurei problematizar questões como, por exemplo, o entorno social ao
sujeito (família, amigos/amigas, companheiros/companheiras). Que obstáculos aparecem,
nesse entorno, para que esses sujeitos cheguem a dançar? Porque, quando aparecem,
esses obstáculos? E, considerando que trabalharei com homens que superaram em algum
nível esses obstáculos ou seja, que “ousaram” dançar – como isso ocorre? Procurei
problematizar também: quais são as estratégias que esses sujeitos utilizam para se
aproximar de uma prática como a dança, que culturalmente não é considerada apropriada
para homens? Que justificativas eles criam para os outros e para si mesmos para o fato de
começarem a praticar uma atividade que anteriormente não praticavam?
Em relação à segunda questão, procurarei, basicamente, mapear quais são as
representações de gênero que emergem de suas falas e como, nessas mesmas falas, eles
respondem a essa lógica cultural que estou problematizando aqui e nomeando como
representações hegemônicas de masculinidade. Essas falas relativizam essas representações
hegemônicas (Onde? Quando? Como?)? Elas as reforçam (Onde? Quando? Como?)? São
marcadas hierarquias entre homens e mulheres, ou entre as diferentes representações de
masculinidade? Essas falas articulam gênero com outras categorias identitárias fundantes de
diferenciação social (sexualidade, idade, etnia, religião, etc...)?
Para dar conta dessas indagações, propus-me a realizar uma análise cultural.
1.2. Escolhas realizadas: caminhos metodológicos
Para os Estudos Culturais, todas as práticas sociais são consideradas como culturais
(HALL, 1997). Assim, todas as formas de produção cultural precisam ser estudadas em
relação a outras práticas culturais e a práticas sociais e históricas, incluindo-se o estudo
“de todas as artes, crenças, instituições e práticas comunicativas de uma sociedade”.
(NELSON, 1995, p.26) Portanto, analisar a dança contemporânea a partir da perspectiva
dos Estudos Culturais implica em perceber como essa prática que é artística, corporal e
também social e cultural, se articula com outras práticas culturais.
21
Como observa Wortmann (2005), os Estudos Culturais constituem-se em um campo
interdisciplinar e polimorfo, que em articulação com a Educação, tem permitido o uso de
uma gama variada de metodologias qualitativas, muitas vezes oriundas de diferentes
disciplinas e teorias acadêmicas. Nessa perspectiva, segundo Veiga-Neto (2002, p.33) “não
um porto seguro, onde possamos ancorar nossa perspectiva de análise para, a partir daí,
conhecer a realidade”. A produção de uma metodologia ou trajeto de pesquisa e a
construção e problematização do material empírico revela-se, portanto, como um desafio e
como um risco. Sua dificuldade pode ser comparada à preparação ou montagem de um
espetáculo ou performance de dança contemporânea. Como não existe um modelo fechado
e bem delimitado para ser seguido, corre-se o risco de muito facilmente perder-se o rigor e
a qualidade. Assim, é necessário, como diz Sampaio (2005, p.16) especificar muito bem “o
que”, “como”, “quando” e “onde” se vai investigar.
Nesse trabalho, interessei-me em pensar a respeito das articulações e/ou tensões
existentes entre as representações culturais que constituem a dança contemporânea e as
representações que nomeiam, descrevem, promovem e constituem o gênero dos sujeitos
identificados como masculinos. O que pretendi, tomando as palavras de Gottschalk (1998),
foi fazer o mapeamento de um território cultural. Para isso, nesse trabalho utilizei como
estratégia para a produção das informações empíricas a entrevista narrativa, com roteiros
semi-estruturados (ANEXOS A e B), da forma como essa vem sendo utilizada em algumas
pesquisas em educação, especialmente nas investigações que se apóiam nos Estudos
Culturais (ALVARENGA, 2006; SOUZA, 2007; PEREIRA, 2008; SANTOS, 2009a;
SANTOS, 2009b).
George Gaskell (2002) nos diz que a entrevista qualitativa semi-estruturada tem por
objetivo [...] uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em
relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos” (GASKELL,
2002 p.65). Esse tipo de entrevista se distingue, por exemplo, da entrevista estruturada,
onde as questões são pré-determinadas e da conversação continuada, onde a ênfase é em
longos períodos de tempo em contato com a cultura local, a fim de se absorvê-la”. Nessa
pesquisa, me interessei por um roteiro de perguntas mais abertas que permitiram a
elaboração de novas perguntas e o surgimento de novos olhares sobre o tema abordado, ao
longo do processo, e não me interessei por uma longa imersão no campo.
22
Fiz a opção pelo uso desse tipo de entrevistas narrativas na perspectiva de tensionar
representações culturais do campo da dança contemporânea. O objetivo é analisar, a partir
das narrativas das vivências dos entrevistados, como suas experiências e a forma como elas
são significadas articulam-se com estruturas socioculturais e linguísticas dentro das quais o
informante vai se tornando o que é. A partir daí, procuro problematizar questões de gênero
que historicamente têm atravessado as representações culturais de dança, nos processos de
formação e de atuação desses homens como bailarinos, acentuando a importância dos
modos pelos quais os atores sociais se posicionam dentro de representações culturais de
gênero em contextos situados. Procuro então interpretar os nexos ou as articulações entre o
contexto específico da dança contemporânea e a construção cultural das masculinidades.
1.3. Implicações com o campo
Aqui cabe referir que alguns antropólogos contemporâneos (GEERTZ, 1997;
GOTSCHALK, 1998; CLIFFORD, 2002) têm rompido com certas posturas imóveis,
características de abordagens mais tradicionais, em relação a conceitos como “etnografia”.
Embora eu não tenha realizado um estudo etnográfico, tais colocações são pertinentes para
balizar minha aproximação ao campo de pesquisa, bem como para a reflexão acerca dos
dados produzidos, a partir dos textos resultantes das transcrições das entrevistas.
Para esses autores, a etnografia é uma prática iminentemente interpretativa que, por
meio de uma „descrição densa‟ (GEERTZ, 1997), oferece uma das muitas leituras possíveis
da realidade e não a reconstituição completa e fiel das situações e pessoas analisadas. Esses
autores enfatizam também a transitoriedade do texto etnográfico, por dizer respeito a uma
realidade multifacetada e complexa, e refletem sobre o posicionamento e a subjetividade do
autor, que não pode ser suprimida nem na realização do trabalho de campo nem na escrita
em estudos etnográficos.
Para a perspectiva epistemológica pós-estruturalista (HALL, 1997), a linguagem
constitui e faz circular os significados. Esses significados não surgem das coisas em si, da
“realidade”, mas a partir dos jogos da linguagem e dos sistemas de classificação que a
linguagem faz operar. Assim, o próprio ato de pesquisar significa nomear, a partir de
23
alguma ordem de discurso científica, a realidade e ao mesmo tempo constituí-la, a partir de
significados que são atribuídos a eventos, a objetos, a sentimentos e a falas de pessoas.
Esse entendimento traz implicações à própria noção de conhecimento e de produção
de material empírico em uma pesquisa. Ele nos leva à compreensão de que a escolha do
campo, a vinculação teórica e a própria forma metodológica de produzir a pesquisa estão
implicadas em escolhas que constituem uma realidade, ou seja, delimitam um „real‟,
acarretando na negação de outras possibilidades desse „real‟ ser constituído.
Nesse tipo de perspectiva, portanto, o olhar do pesquisador está atravessado pela
perspectiva teórica, pelas suas opções metodológicas, pelas suas opções políticas, etc. E
esse olhar também atravessa e constitui a forma como ele irá trabalhar com o material
empírico, fazer suas análises, etc. Os Estudos Culturais consideram, assim, que todas as
investigações possuem um caráter produtivo, além do descritivo. O pesquisador, a escrita
da investigação, os métodos da pesquisa e todas as outras „escolhas‟ que fazemos
constroem o objeto de pesquisa do qual pretendemos falar, constroem a leitura e a
interpretação que acabamos por dar àquilo que nomeamos como „real‟.
Para além das interpretações exageradamente relativistas que tal discussão possa
levar, no âmbito epistemológico, que têm rendido nas últimas décadas algumas críticas a
campos como o dos Estudos Culturais, importa pensar aqui na impossibilidade de um
objetivismo igualmente exagerado, no âmbito de uma pesquisa qualitativa desse tipo. Penso
que autores como Denzin e Lincoln (2006) discutem isso com precisão quando dizem que
atualmente, se questiona se o pesquisador qualitativo pode captar a experiência vivida
diretamente. Segundo esses pesquisadores, hoje acredita-se cada vez mais que essa
experiência é “[...] criada no texto social escrito pelo pesquisador (DENZIN E LINCOLN,
2006, p. 31). Os autores afirmam que na análise de grupos sociais “[...] não existe nenhuma
janela transparente de acesso à vida íntima de um indivíduo. Qualquer olhar sempre será
filtrado pelas lentes da linguagem, do gênero, da classe social, da raça e etnicidade”. Pois,
“não existem observações objetivas, apenas observações que se situam socialmente nos
mundos do observador e do observado e entre esses mundos.” (op cit, p. 33).
Assim, a absoluta imparcialidade objetiva e a pretensão de uma total neutralidade
não é possível, e nem sequer desejável. Como observa Mato (2005), os Estudos Culturais
compõem-se de uma perspectiva transdisciplinar que procura ensaiar maneiras de articular
24
e integrar cultura, política e sociedade. Segundo ele, tal perspectiva implica em analisar de
maneira combinada os aspectos culturais (simbólico-sociais) e os aspectos políticos (ou de
relações de poder) dos processos sociais que são estudados. Assim, pelo contrário, ao invés
de exigirem uma imparcialidade e neutralidade, os Estudos Culturais apostam na própria
implicação do pesquisador como elemento político fundamental para a criação e análise dos
problemas discutidos de uma forma crítica e com a devida qualidade.
De forma similar, dentro do campo teórico da dança, alguns autores têm defendido
posições semelhantes. Cito aqui, por exemplo, Mônica Dantas (2007) que, em seu artigo
intitulado “a pesquisa em dança não deve afastar o pesquisador da experiência em dança”,
defende que a própria informação cinestésica, relacionada com as vivências corporais do
pesquisador, pode ser tomada como um dado etnográfico. Assim, a experiência corporal a
longo prazo do próprio pesquisador com a dança o ajuda a compreender melhor aspectos
dessa prática social que, de outra forma, ele não poderia fazer. Na perspectiva aqui adotada,
o termo experiência é tomado no sentido não de algo inteiramente individual, mas a partir
da noção de processo que constitui um sujeito ou que é constituído numa realidade social.
Da mesma forma, as epistemologias feministas pós-estruturalistas, que
fundamentam a vertente dos estudos de gênero aqui utilizada, questionam o pressuposto de
neutralidade na produção científica sobre o gênero. Como observa Sandra Harding:
Presumia-se que o método das ciências modernas ocidentais gerasse fatos
objetivos, de valor neutro, ou seja, fatos desinteressados sobre a ordem da
natureza. Entretanto, as análises feministas mostraram como esses métodos e
fatos têm sido permeados por valores e interesses marcados pelo gênero. (...)
maneiras padronizadas de conceituar e praticar o método científico não tem
tornado a pesquisa capaz de atingir neutralidade cultural, em seus princípios, e
não somente na prática. (...) análises de gênero m mostrado como em alguns
contextos de pesquisa a neutralidade é indesejável. (HARDING, 2003, p.1).
Assim, como afirma Corazza (2002, p. 367), em face da arbitrariedade inerente à
pesquisa, “cada um deve avaliar onde, em que porção do território, problemática, temática
educacional, pode se autorizar a pesquisar. Onde pode se movimentar, com mais facilidade,
buscar as obras mais significativas, traçar conceitos, ter insights e justificá-los, etc.”
Ao focar meu objeto de pesquisa (homens que praticam dança contemporânea), eu,
homem, branco, heterossexual, de classe média, de mais de trinta anos, que teve uma
certa experiência com dança contemporânea, proponho-me a investigar, problematizar e
25
tensionar uma prática que me constituiu, em determinado momento, como sujeito. Aposto,
portanto, na minha própria implicação com o objeto de pesquisa. Assumo essa opção por
me posicionar dentro da perspectiva epistemológica pós-estruturalista, que não compreende
ser possível outro tipo de postura com os objetos que nos propomos a pesquisar.
No entanto, esse tipo de investigação, como observa Gustavo Bandeira (2009),
apresenta o risco de tomar algumas práticas como óbvias ou dadas. Nesse caso, a
proximidade pode tornar-se um obstáculo. Portanto, embora o pesquisador deva procurar
aqueles temas e objetos com os quais está implicado, apenas a experiência com o campo
não é suficiente para autorizá-lo a pesquisar. É preciso ter um certo rigor na análise.
Velho (2003, p. 15) chama esse obstáculo de “[...] o desafio da proximidade”. Ele
afirma que o pesquisador deve ser capaz de desnaturalizar noções, impressões e categorias
que constituem a sua visão pessoal de mundo. Ou seja, é preciso conseguir estranhar aquilo
que lhe é familiar. Nem sempre esse pode ser um empreendimento bem-sucedido. Assim,
ele recomenda que se tente armar estratégias e planos de investigação que evitem
esquematismos empobrecedores decorrentes do grande grau de proximidade e identificação
entre pesquisador e objeto de pesquisa. Pode-se também referir a isso a partir de
Bromberguer (2008, p.243), quando ele afirma: “a distância é necessária para se
surpreender com o que parece evidente”.
Tendo eu um envolvimento com o universo que me proponho a investigar, terei
que realizar, portanto, esse difícil e cuidadoso movimento. Esta não será, reconheço, uma
tarefa fácil. Ela implica em riscos. Pois a experiência com a dança contemporânea produziu
e ainda produz, em minha vida, seus efeitos de poder. Ela é parte da intricada rede que
constituiu minhas experiências de vida e que constitui até hoje minha identidade. Despertou
e ainda desperta em mim afetos, sensações, emoções, pensamentos, identidade,
pertencimento. Constituiu-me e ainda constitui-me enquanto sujeito.
Assim, partindo de um posicionamento epistemológico que permite ao pesquisador
ser também sujeito da pesquisa, procurarei aqui abrir possibilidades para as vozes dos
sujeitos bailarinos. Mas, considerarei que elas também são as minhas vozes, pois é através
dos meus modos de olhar e de estar no campo que me será permitido ver, ouvir, sentir,
descrever algumas coisas e não outras, avaliar, analisar, refletir, etc. Nesse percurso, me
esforçarei por tentar desnaturalizar e desfamiliarizar em mim aquilo que já está naturalizado
26
e familiarizado, através de, como propõe Gotschalk (1998), um movimento constante de
auto-reflexão.
1.4. Metodologia da pesquisa
A escolha dos sujeitos a serem entrevistados seguiu uma metodologia do tipo “snow
ball”, através da qual mapeei uma rede de contatos entre artistas praticantes de dança
contemporânea da cidade de Porto Alegre, a partir de um grupo inicial de três coreógrafos
reconhecidos no meio. Num primeiro momento, centrei minhas entrevistas nos coreógrafos.
Utilizando um roteiro exploratório de entrevista com perguntas semi-estruturadas (ANEXO
A), com questões mais amplas, de caráter mais introdutório, direcionado para homens e
mulheres reconhecidos/as na dança contemporânea em Porto Alegre, ou envolvidas na
produção dessa dança (professores/as, coreógrafos/as, produtores/as), procurei mapear o
que se diz sobre essa dança a partir de indivíduos situados na posição de sujeito coreógrafo.
Quando submeti minha proposta à qualificação, já havia realizado as três entrevistas
com os coreógrafos. Foi-me, então, sugerido pela banca que eu prosseguisse entrevistando
de seis a dez bailarinos. Assim, num segundo momento da minha pesquisa, procurei
priorizar as falas de bailarinos em detrimento daquelas dos coreógrafos. A sugestão da
banca, de focar a parte principal da pesquisa apenas em bailarinos e não em coreógrafos,
foi-me apresentada a partir da constatação de que as vozes desses sujeitos são, geralmente
pouco privilegiadas em pesquisas acadêmicas. Procurei assim, “trazer as vozes” dos
bailarinos para dentro da dissertação.
Utilizei para isso um roteiro exploratório de entrevista com um conjunto de 43
questões (ANEXO B), mais específicas, centradas na análise sobre masculinidades e
direcionado, dessa vez, apenas para homens. Aqui, a ideia foi mapear as representações de
gênero, especialmente aquelas referentes à construção cultural da masculinidade, a fim de
procurar refletir acerca de como se constroem as identidades masculinas de bailarinos de
dança contemporânea.
Considero importante frisar que, na perspectiva aqui adotada, não se procurou
encontrar a verdade em suas falas, tampouco interpretá-las. Ao contrário, procurei mapear
“aquilo que se diz” sobre a dança contemporânea e sobre o gênero na dança
27
contemporânea, considerando que existe uma rede de possibilidades discursivas na qual
esses sujeitos estão imersos e que torna possível que eles falem o que falam. Observei,
portanto, a materialidade das representações culturais, a partir dos significados atribuídos à
masculinidade na dança contemporânea. Esse posicionamento aponta para um
entendimento importante da análise de entrevistas, dentro da perspectiva aqui adotada, bem
definida nas palavras de Rosa Fischer, qual seja:
[...] ao analisar um discurso mesmo que o documento considerado seja a
reprodução de um simples ato de fala individual - , não estamos diante da
manifestação de um sujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua
dispersão e de sua descontinuidade, já que o sujeito da linguagem não é um
sujeito em si, idealizado, essencial, origem inarredável do sentido: ele é, ao
mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros ditos se dizem.
(FISCHER, 2001, p.207)
Assim, nesse caso, olhar para o que é dito sobre dança contemporânea, por esses
bailarinos e coreógrafos, implica em tentar mapear a ordem discursiva na qual eles se
inserem. Quando falam sobre dança contemporânea, eles falam a partir de uma determinada
posição de sujeito. Nesse caso, como afirma Foucault (2006), falar é entrar numa ordem
discursiva. E “[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer certas exigências
ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2006, p.37).
No caso dos coreógrafos, estando mais diretamente implicados em enunciar o que a
dança contemporânea é e o que ela não é, considerei que eles estão conseqüentemente mais
implicados com a produção de um regime de verdades sobre a dança contemporânea, ou
seja, com um conjunto de enunciações que fundam determinadas verdades sobre essa
prática. Procurei portanto mapear, nas falas desses produtores, as representações culturais
que mais circulam entre eles sobre a dança contemporânea.
No caso dos bailarinos, procurei utilizar suas falas para tentar compreender como
eles narram suas vidas, considerando que as falas produzidas por esses indivíduos, dentro
de contextos sociais específicos, operam sempre dentro de um sistema de representações
culturais mais amplo
11
. No contexto desse trabalho, isso significa que as narrativas que os
bailarinos de dança contemporânea constroem sobre sua prática artística e sobre si mesmos
estão atravessadas por representações culturais. Estas relacionam-se com os processos
11
Tal como irei referir no capítulo 3, na seção 3.2.
28
hegemônicos de identificação e de pertencimento a uma comunidade (imaginada), que é o
universo dos praticantes de dança contemporânea, dentro do qual eles se constituem como
sujeitos. Mas relacionam-se também com as representações hegemônicas de masculinidade,
que interpelam esses bailarinos das mais variadas formas.
A articulação
12
entre a construção das identidades singulares desses bailarinos e o
plano cultural mais amplo, principalmente na forma como a cultura contribui de forma a
constituí-los como sujeitos, remete à noção de identidade adotada pela perspectiva pelos
Estudos Culturais. Compreendendo a identidade como uma construção que tem lugar nas
interações sociais, os Estudos Culturais consideram que:
[...] devemos pensar nossas identidades sociais como construídas no interior da
representação, através da cultura, não fora delas. Elas são o resultado de um
processo de identificação que permite que nos posicionemos no interior das
definições que os discursos culturais fornecem [...] (HALL, 1997. p. 6)
Nessa pesquisa, procuro problematizar quais são essas “definições” que a cultura
nos fornece quando a questão a ser pensada são as identidades de gênero masculinas, ou
masculinidades. Parto do pressuposto de que, para alguém se considerar masculino dentro
da cultura, precisa enquadrar-se dentro de discursos culturais, necessitando portanto rejeitar
ou assumir certas representações culturais de gênero.
Não se trata, aqui, de buscar interpretar ou decifrar aquilo que os bailarinos pensam
de si mesmos e da dança, ou o que querem dizer. Trata-se apenas de mapear, em suas falas,
os mecanismos, dispositivos ou modos como eles narram a si mesmos enquanto sujeitos,
com a finalidade de encontrar recorrências que nos permitam pensar as representações
culturais de masculinidades que mais circulam hoje em dia no âmbito da cultura, no
contexto da dança contemporânea. Assim, ao utilizar fragmentos de falas e depoimentos,
opto por um trabalho de confrontação entre diferentes narrativas, aproximado os relatos de
diferentes bailarinos, de forma a estabelecer relações e articulações entre as diferentes
representações que aparecem neles.
12
Para os Estudos Culturais, a articulação é um conceito importante que permite entender a hegemonia não
como uma forma unilateral de dominação, mas como uma relação entre níveis macro e micro, entre contextos
global e local, e entre interesses hegemônicos e contra-hegemônicos. A articulação, assim, está relacionada
com a compreensão das dinâmicas e movimentos de embates sociais, dos discursos hegemônicos e de como
penetram ou não nos diferentes formatos de senso-comum.
29
A primeira etapa das entrevistas, de caráter mais introdutórias e esplanatórias, com
os coreógrafos, foi realizada no primeiro semestre de 2009. Fiz no total três entrevistas com
coreógrafos considerados importantes e com certo “destaque” no meio artístico porto
alegrense. Não senti muita dificuldade ou constrangimento em me autorizar para marcar o
horário e o lugar das entrevistas. Todos se mostraram muito prestativos e interessados em
auxiliar o bailarino que outrora dançava e que agora estava realizando uma pesquisa sobre
dança. A sensação, durante vários momentos, era a de pertencimento àquele meio que não
me era estranho.
A experiência com as entrevistas, contudo, me fez repensar muitas afirmações que
eu costumava ouvir, no meu dia a dia de aulas e ensaios, mas que não dava a dimensão e a
importância que depois de realizar essas entrevistas eu passei a dar. Alguns dos resultados
dessas reflexões, dessas novas interpretações a partir do que eu analisei sobre o que alguns
coreógrafos de Porto Alegre falam sobre a dança contemporânea, se encontra delineado ao
longo do capítulo 2.
A segunda etapa das entrevistas, num total de sete, enfocando bailarinos, foram
realizadas entre os meses de outubro e novembro de 2009. Como critérios de escolha aqui
foram: a) ser bailarino de dança contemporânea, independente de também praticar ou não
alguma outra dança (quase todos praticavam balé, por exemplo); b) ser homem,
(independente da orientação sexual, idade, etnia, classe social, etc); c) ter um envolvimento
significativo com a dança (estabeleci como critério, aqui, o sujeito já estar praticando dança
a mais de um ano e estar envolvido em algum tipo de produção artística, espetacular ou
performática, além do mero treinamento corporal cotidiano nas aulas).
Uma das vantagens em focalizar minhas atenções em bailarinos não-coreógrafos e
não diretores de grupos e companhias, na análise específica sobre as representações de
gênero é que foi possível situar o contexto de sujeitos que não estão tão diretamente
implicados com uma vontade de enunciar o que a dança contemporânea é. Embora as
representações culturais sobre dança contemporânea subjetivem também esses indivíduos,
julguei ser possível, através deles, responder às questões de pesquisa muito mais a partir de
valores e de sentidos vividos a partir da experiência corporal com a dança contemporânea.
Partindo da questão central da pesquisa (quais são as articulações entre a retórica da
ruptura e libertação do corpo, característica da dança contemporânea, e as representações de
30
masculinidade?) e do seu desdobramento nas duas questões secundárias (Como esses
homens, bailarinos de dança contemporânea, chegam a dançar? E ao dançarem, como eles
respondem à lógica cultural hegemônica de gênero?) organizei dois grandes grupos de
perguntas. O primeiro grupo, focado na questão do “como eles chegam a dançar?” incluiu
uma série de perguntas em torno da forma como eles narravam a sua história ou trajetória
de vida. Essas foram agrupadas nos blocos 1 e 2 (ver: ANEXO B). O segundo grupo,
focado na questão “como eles respondem à lógica cultural hegemônica de gênero?”, incluiu
perguntas de opinião sobre assuntos relacionados a concepções de gênero e de sexualidade
e foram agrupadas nos blocos 3 e 4. O bloco 5 foi destinado a perguntas gerais sobre dança,
similares às perguntas feitas ao primeiro grupo de entrevistados (os coreógrafos).
Evidentemente, que nesta dissertação não pretendo esgotar todas as respostas
possíveis para essas questões e para as perguntas utilizadas. Compreendo que o que aqui
analiso é apenas aquilo que meu “olhar” de investigador me permite captar no momento e
no local da minha pesquisa, a partir de um número bastante restrito de pessoas
entrevistadas. Portanto, é distante de uma ambição universalizante que procurei a resposta
para essas questões. Tomo-as mais como perguntas norteadoras para as reflexões bastante
contingentes e provisórias que procurarei fazer sobre essa temática.
1.5. O campo de pesquisa
Ao entrar no ambiente, sente-se geralmente o cheiro de algum incenso espalhado
pelo ar. Não espelhos, nem tampouco barras, como haveria em uma aula de balé
clássico Ao invés disto, no canto de uma das paredes estão dependuradas máscaras
teatrais.
O diretor do centro de arte onde tal cena se desenrola, um bailarino e diretor de um
grupo de dança contemporânea, conduz a atividade do dia. Os alunos possuem idades
muito variadas, havendo desde os jovens até os mais idosos. A música ao fundo começa e
não será mais interrompida até que termine a sessão daquele dia. Os alunos estão todos
deitados em decúbito dorsal, espalhados pelo solo da sala, orientados para respirar
profundamente. Entre eles objetos espalhados, são caixas de papelão. Um ajudante
31
prepara-se para gravar, com uma câmara de vídeo, tudo o que está prestes a se desenrolar
dentro daquelas quatro paredes.
O professor começa a dizer para os alunos imaginarem que estão despertando
muito lentamente de um longo sono, de uma hibernação. O corpo deve ir assim começando
a se mover muito vagarosamente, primeiro concentrando-se somente nas pontas dos dedos.
Em seguida nos pés e nos tornozelos e assim por diante.
“Agora vocês começam a movimentar a coluna de vocês”, diz o facilitador da
atividade. “Esta coluna está inicialmente muito pesada, porque vocês estavam dormindo
há séculos. Mas ela vai começando a despertar agora e a se mover cada vez mais[...]!”
As orientações continuam sendo dadas para que os participantes da sessão sigam
um lento conjunto de movimentos corporais realizados de forma crescente, ao ritmo da
música; isso se até que eles comecem a mover partes inteiras do corpo deles. então
eles são orientados para abrirem os olhos e imaginarem que estão no fundo do mar. Eles
devem perceber o espaço quido que ao seu redor. Os objetos dispostos ao seu redor
(as caixas de papelão) neste momento começam, então, a ser percebidos por eles. Tem
início a principal proposta temática do dia: o processo de criação de movimentos
corporais livres, a partir do estímulo sonoro da música, que contenham algum tipo de
interação com objetos cênicos.
Dali a algum tempo o ambiente todo se modifica. Há corpos dispostos pela sala das
mais diversas formas: corpos deitados no chão, cobertos com pedaços de papelão que
foram rasgados das caixas; corpos de pé, movimentando no ar pedaços de papelão ou
caixas ainda inteiras; corpos sentados movendo também pedaços de papelão. Os objetos
cênicos se transformam nas mãos dos participantes. Adquirem vida. Tornam-se junto com
os corpos deles algo além de meras caixas. A música nunca pára e os corpos nunca cessam
o movimento. O papelão das caixas e os corpos se fundem em uma dança contínua, cujos
movimentos são caóticos, no sentido de não possuírem uma marcação coreográfica lógica.
Os movimentos são fluxos diversos, de todos os tipos. Pode-se dizer que „secretas histórias‟
começam a acontecer na relação de cada corpo com cada objeto cênico. Os códigos da
linguagem dessas histórias talvez não sejam tão claramente inteligíveis para um
observador externo, pois eles não visam construir narrativas muito nítidas e inteligíveis
32
nem para si mesmos, nem para os outros. O momento é definido como sendo de
experimentação livre para cada corpo.
O facilitador em determinado momento começa a interferir na atividade de
improvisação e de criação de movimentos dos participantes. Um deles pega uma fita
adesiva e começa a pregar em partes diversas dos corpos os pedaços de papelão das
caixas que foram desmontadas: a cabeça de um, o do outro, o braço de outro. As
histórias que cada um até então estava criando adquirem outros matizes, seguem em
outras direções.
Às vezes esses corpos se encontram e as histórias tornam-se coletivas, noutras
vezes, são apenas histórias individuais. Às vezes o papelão parece prendê-los e seus corpos
dizem isso por meio de movimentos. Às vezes eles saltam no ar, rolam no chão, e o papelão
não parece mais aprisioná-los. Alguns descrevem movimentos robóticos, mecânicos, como
se as partes presas do corpo tornassem rígidas todas as outras. Às vezes, os movimentos
são frenéticos, soltos, apesar das partes do corpo que estão presas.
É através das emoções desencadeadas pela música, pelo ambiente (e o ambiente é
todo preparado para ter um clima que gere certas emoções, com incensos, velas, etc), por
aquilo que o facilitador vai falando, pelos objetos cênicos (papelão) que se manifestam os
movimentos em cada corpo. Esses movimentos vão gerar impressões e emoções também
nos outros corpos. E quando outro corpo percebe esses movimentos, os seus próprios
movimentos se transformam. Mesmo quando cada indivíduo fecha os olhos e se volta
somente para si mesmo, para seu próprio corpo, a presença de outros indivíduos ali o
influencia: ele sabe que poderá ser visto por eles.
No final deste dia, todos os participantes da atividade sentam-se em círculo para
falar e conversar sobre o que foi experimentado. De forma opcional, eles são estimulados
a falar sobre o que sentiram, sobre o que acharam e o que experimentaram ao longo
daquelas duas horas de atividade. Alguns detalhes das significações de cada história
individual criadas ao longo do processo de vivência artística são comentadas por cada um
dos bailarinos. Alguns confessam as dificuldades de alguns momentos. Outros falam do
que acharam mais produtivo, do que mais gostaram nas suas produções e na dos outros.
Este momento se revela como aquele em que os participantes se expõem. Nem todos ali são
bailarinos experientes, mas alguns já tem alguma vivência com dança contemporânea.
33
Essa é a descrição de uma atividade que ocorre todos os sábados, à tarde, em um
centro de dança contemporânea em Porto Alegre. Esta atividade, chamada de “Laboratório”
consiste em trabalhar a partir da idéia de que é possível uma invenção livre de movimentos
corporais, através de um processo dirigido de criação e de experimentação. A partir dessa
descrição
13
, realizada como parte de meu movimentos na direção de constituir um campo
de pesquisa, gostaria de situar meu cenário escolhido: a cidade de Porto Alegre.
Tal escolha relaciona-se ao fato observado por Siqueira (2006), de a dança
contemporânea ser estreitamente ligada à vida cotidiana urbana. Segundo a autora, é na
multiplicidade de movimentos corporais, estéticos e culturais da cidade que os artistas
levam a cabo esta manifestação cultural marcada por intercâmbios com outras artes (como
o teatro, o circo, etc.), com a mídia e a ciência, e pela pluralidade de formatos e conteúdos
simbólicos. É, portanto, nas grandes cidades e centros urbanos que eles encontram material
para seu trabalho: temáticas, questões, recursos, espaços cênicos, escolas formadoras de
novos intérpretes e criadores, onde grupos de artistas se reúnem em interessantes
experiências coletivas em espaços públicos. Pensar a dança contemporânea implica
portanto em tematizar sobre uma multiplicidade de movimentos que se estendem para além
do palco, se prolongando pelo espaço urbano de grandes cidades.
Como observa Valle (2009), a história da dança cênica em Porto Alegre, de vertente
espetacular
14
, tem raízes bastante recentes. Suas primeiras manifestações datam da década
de 1920, quando Mina Black e Nenê Dreher Bercht fundam o Instituto de Cultura Física,
onde é ensinado uma dança culta apenas para mulheres. Lya Bastian Meyer, em 1932, e
Tony Petzhold, em 1937, fundam as primeiras escolas de balé. Ao longo dos anos 1930 a
1960, Porto Alegre sustenta uma “tradição” em balé. Os anos 1970 foram marcados pela
tradição do Jazz Dance, em parte por causa da influência do cinema internacional, com
filmes como “All that Jazz” (1979) ou “Chorus Line” (1985).
Alguns elementos de dança contemporânea se manifestavam em paralelo ao Jazz
no final dos anos de 1970, a partir de coreógrafas como Eva Schul, Cecy Franck. A partir
13
O local descrito é apenas um dos inúmeros centros de arte de dança contemporânea da cidade e o modelo de
aula descrito está longe de ser um padrão seguido por todos os que se dizem praticantes dessa dança.
14
Estou desconsiderando aqui as danças sociais, danças de escravos africanos e danças indígenas, por
exemplo, que figuram ao longo da história do Rio Grande do Sul.
34
dos anos de 1980, um expressivo número de professores e coreógrafos com tendências
vanguardistas começam a definir suas linhas de trabalho como „dança contemporânea‟,
inspirados pelos espetáculos coreográficos de grupos que visitaram o estado, como o
“Cisne Negro”, o “Grupo Corpo” e o “Ballet Stagium”, e pela visita de bailarinas
representantes da dança-teatro alemã, como Pina Bausch, Suzanne Link e Christine Brunel.
Surgem grupos importantes, tais como o “Ballet Phoenix (fundado em 1981), o “Terra
Companhia de Dança do Rio Grande do Sul” (1982), o “Choreo” (1982), o “Balleto
15
(1987) e o “Terpsi” (1990) (CUNHA E FRANCK, 1988).
A produção dança contemporânea em Porto Alegre conta, portanto, com uma
tradição bastante recente, de aproximadamente 30 anos
16
. De fronteiras esmaecidas e
fluidas, ela é atualmente produzida e praticada por diversos grupos, com estéticas artísticas
e concepções muito diferentes. Os espetáculos profissionais englobam trabalhos das mais
distintas características: executados em silêncio ou acompanhados de falas, de ritmo lento
ou acelerado, quase sem movimentos, com ou sem emprego de imagens ou outras mídias.
Sob a denominação de „dança contemporânea‟ revela-se, portanto, um universo cultural
plural e complexo que reflete diferentes correntes e técnicas que inclui disputas de sentidos
entre grupos, professores e bailarinos em torno da luta pela definição e pela
conceitualização acerca do que é ou o que não é essa forma de dança.
O espetáculo de dança ou a dança cênica constitui-se em apenas um dos modos de
manifestação da prática da dança contemporânea. A produção dessa dança ocorre também
através de diversos eventos que ocorrem periodicamente na cidade e em cidades próximas,
como festivais, cursos, simpósios, mostras, etc. Em meu recorte analítico, optei por não
adentrar o universo específico dos festivais
17
que, divididos em categorias de diversos tipos
(entre as quais a categoria “dança contemporânea”), oferecem um espaço de constituição
para essa dança. Compreendo que esse não é um contexto significativo para essa pesquisa,
embora ele tenha a sua importância, visto haver um grande número de pessoas envolvidas
com a produção de espetáculos e outras práticas, que não participam desses festivais.
15
Primeira companhia cênica de dança no Rio Grande do Sul exclusivamente masculina.
16
Ressalta-se, entretanto, que alguns elementos da dança-teatro e a dança expressionista alemã integravam
espetáculos de balé como o “Joana D‟Arc” (1948) e “Sonho de uma Noite de Verão” (1954), de autoria do
coreógrafo e bailarino João Luiz Rolla, denotando ousadia em suas propostas para os moldes da época.
(CUNHA; FRANCK, 1998).
17
Refiro-me aqui a eventos tais como o “Porto Alegre em Dança”, o “Bento em Dança”, etc.
35
Procurei priorizar aqui a rotina de alguns dos grandes centros de arte contemporânea
da cidade e o contexto de suas aulas de dança. Locais, esses, onde os bailarinos investem na
produção de um corpo artístico ou espetacular a partir do aprendizado de técnicas e de
vivências de dança contemporânea. Tal aprendizado e vivência se dá nesses lugares a partir
da figura do coreógrafo
18
, que é sempre um bailarino mais experiente e antigo no meio, a
partir do qual comumente se define uma linha de dança contemporânea específica.
Elegi, assim, como foco de meus investimentos na direção da constituição de um
corpus de pesquisa, observar uma escola de arte de Porto Alegre onde se realizam aulas de
dança contemporânea, teatro e outras atividades artísticas. Nesse lugar, além da prática
cotidiana de aulas, se desenvolvem as atividades expressivas de caráter menos organizado
do que os espetáculos cênicos ou os festivais, como por exemplo, os Laboratórios, as Jam
Sessions
19
ou os Happenings e as Performances. Acompanhei também o cotidiano e as
falas de bailarinos de duas companhias de dança contemporânea que se encontrava em fase
final de preparação de espetáculos, cujos ensaios realizavam-se na Companhia de Arte de
Porto Alegre. Considerei esses três grupos significativos para mapear o contexto do
aprendizado e da transmissão de técnicas e de estéticas corporais daquilo que em Porto
Alegre se considera como dança contemporânea.
Minha experiência como bailarino me auxiliou nos contatos iniciais com as pessoas
“chave” desse universo, tendo optado por esses dois locais porque sabia serem lugares onde
se encontrava em processo algum tipo de produção artística. No caso do Centro de Arte, no
período observado se encontravam em curso os Laboratórios, atividades que ocorriam todos
os sábados à tarde com o intuito de proporcionar a criação e a invenção coreográficas. Esse
espaço era freqüentado por três bailarinos assíduos. No caso das duas companhias de dança
citadas, se encontravam em curso, como observei, os ensaios para a preparação de dois
espetáculos. Ao optar por esses, obviamente deixei de fora muitos outros grupos da cidade,
bem como muitos outros espaços.
18
Alguns desses coreógrafos de Porto Alegre envolvidos na produção das diversas linhas ou escolas de dança
contemporânea estão, também, envolvidos na produção acadêmica sobre dança. São, portanto, sujeitos que
articulam suas práticas artísticas com a enunciação de verdades sobre a dança.
19
As jam´s sessions são encontros realizados geralmente em uma sala de dança em que pessoas, bailarinos ou
não, se encontram para praticar o improviso na dança. Este termo é emprestado da música.
36
2. Segundo movimento: O que é Dança Contemporânea?
O título deste capítulo coloca uma pergunta que de início pretendo deixar bem
claro não tenho a intenção de dar nenhuma resposta definitiva. Antes disto, procurei
trazê-la, aqui, a fim de deixar em evidência, para os/as leitores/as, uma pergunta que é
muito comum aos sujeitos do meu campo de pesquisa, no cenário da cidade de Porto
Alegre. Essa pergunta está presente em congressos de dança, em festivais, no dia-a-dia dos
bailarinos, nos debates acadêmicos e até entre o público que assiste a espetáculos desta
forma arte: mas, afinal, o que é a dança contemporânea?
Santos (2005, p.2), diz a esse respeito:
A idéia de dança contemporânea não consolidou uma referência para a maioria do
público, e este tem dificuldades para compreender a sua linguagem. Mesmo para
a comunidade de dança. Basta ver a confusão em tantos festivais competitivos
[...] O território da dança contemporânea é um vale-tudo. Passos de jazz com
música experimental. Neoclássico ao som do diálogo dos bailarinos. Dança de
rua com um toque de vanguarda. E a obra, nesta lógica estapafúrdia, é avaliada
por especialistas de toda ordem, menos de dança contemporânea.
Mas o que seriam especialistas em dança contemporânea? É possível delimitar o
que é a dança contemporânea? As respostas para estas perguntas vêm suscitando diferentes
tipos de respostas entre coreógrafos e bailarinos, e variam de acordo com a elaboração
artística de cada grupo ou companhia. Tais diferentes respostas, por sua vez, tem gerado
diferentes tipos de produções estéticas, ou eleito diferentes formas de trabalho corporal.
Assim, é possível dizer que a pergunta colocada no título desse capítulo é uma pergunta que
em si é constitutiva do próprio campo da minha pesquisa, uma vez que ela institui a
constante busca por uma resposta através da criação de formulações estéticas.
Por outro lado, essa também tem sido uma das mais interessantes e prolíficas
questões dos teóricos da dança na atualidade, tendo gerado interessantes discussões.
Faro (1986, p.124), por exemplo, em seu “Pequena História da Dança” escreve:
[...] dança contemporânea é tudo aquilo que se faz hoje dentro dessa arte
[referindo-se à arte da dança num sentido geral]. Não importa o estilo, a
procedência, os objetivos nem a sua forma. É tudo aquilo que é feito em nosso
tempo, por artistas que nele vivem.
37
Assumpção (2002, p. 4) diz que [...] todas as danças realizadas atualmente por
artistas ou não-artistas pertencem à contemporaneidade, porém não são necessariamente
dança contemporânea”. E Siqueira (2006, p.107), concordando com Assumpção, diz-nos
que “[...] a dança contemporânea é hoje uma construção estética consistente, embora difícil
de conceituar [...]”, por que ela é uma manifestação cênica de limites pouco definidos.
Concordo com Assumpção (2004) e Siqueira (2006), e discordo de Faro.
Compreendo que, como afirma Dantas (2005, p.32), “[...] não existe consenso para uma
definição de dança contemporânea e o termo pode revestir inúmeras formas de dança.” No
entanto, meu posicionamento é o de que é possível sim identificar, dentro desta
heterogeneidade, uma homogeneidade que delimite um universo de práticas artísticas e
corporais em separado de outras modalidades de dança da contemporaneidade. Assumo que
é no âmbito do discurso, e das representações que esse engendra sobre os corpos, que é
possível situar a dança contemporânea como um campo de pesquisa específico.
Nesse capítulo, apresento aqui um rápido recorte da história das danças moderna,
pós-moderna e contemporânea no Ocidente, numa tentativa de situar essa problemática. A
seguir, analiso como a dificuldade em definir a dança contemporânea como uma técnica ou
um projeto estético unificado, hoje em dia, se dá em virtude do lugar brido em que se
encontra o corpo do bailarino. Para além disso, procurarei problematizar a emergência de
um determinada representação hegemônica de dança contemporânea, ou seja, a “invenção”
de uma dança contemporânea, e como ela tem sido colocada em discurso atualmente,
fazendo com que se constitua assim um campo específico dentro do campo maior da dança.
2.1. Breve história da dança no século XX
Reconheço que as análises históricas panorâmicas, por mais minuciosas e rigorosas
que tentem ser, arquem sempre com o risco de constituírem visões generalizantes, e
invariavelmente são limitadas e incompletas. Não tenho, nessa sessão, portanto, a pretensão
de “dar conta” de todo o processo histórico da dança no século XX Ocidente. Procuro situar
aqui apenas um rápido recorte e, consequentemente, ao fazer isso, reconheço que construo
uma narrativa sobre essa história, assumindo os problemas que possam advir disto.
38
Na passagem do século XIX para o XX, a História da Arte no Ocidente assiste a
profundas modificações e rupturas. Os modelos que vinham sendo valorizados desde a
época do Renascimento Italiano, pelas academias, começam a ser questionados. Os artistas,
acompanhando as profundas mudanças sociais, econômicas, políticas e filosóficas do
mundo, passam a desejar novas expressões artísticas. É o período das chamadas
vanguardas. Na dança, aparece a chamada Dança Moderna
20
. Seus principais representantes
são Isadora Duncan, Loie Füller, Ruth St. Denis, Martha Graham, Doris Humphrey,
Charles Weidman, Mary Wigman, Ted Shaw, Rudolf Von Laban, José Limón e Kurt Joss.
Para os historiadores Bourcier (1987) e Banes (1980), é num contexto
principalmente de reação à estética romântica e ao código gestual e corporal do balé
clássico que se instaura esse movimento artístico. Já para Wheeler (1986), para além da
ruptura com o balé clássico, é preciso ver também na dança moderna o produto de um
processo de orientalismo, ou seja, da apropriação de pensamentos e de técnicas corporais
orientais. É perceptível, por exemplo, a busca por uma nova visão religiosa de corpo
(FÁTIMA, 2001). Sobretudo na chamada “dança expressionista”, das décadas de 1920 e
1930, os movimentos coreográficos buscam a expressão da “alma” dos indivíduos, através
da intensa dramatização de suas experiências emocionais e do uso de técnicas respiratórias.
A década de 1940, segundo Silva (2005), é período do “deserto”: o expressionismo
e a dramaticidade da dança moderna parecem gastos e seu conteúdo artístico ultrapassado.
Merce Cunningham
21
começa a trabalhar com manipulações dos movimentos sem o
compromisso do enredo ou da caracterização dos personagens, defendendo a idéia de uma
forma de dança definida por estratégias de maior indeterminismo e acaso. Em paralelo a
essa abertura dada por Cunningham, os anos 1960 caracterizaram-se por extensa
experimentação na busca por uma movimentação não baseada na representação, por causa
de todo um contexto artístico, social, político e econômico. É a época da efervescência
20
Embora, no séc. XVIIII, Jean-Georges Noverre tivesse já efetuado reformas estéticas significativas no balé,
impulsionando de alguma forma um pensamento mais moderno para a dança, sendo acompanhado por Jean
Dauberval, Salvatore Vigano, Mikhail Fokine e Serge Diaghilev.
21
Bailarino e coreógrafo norte-americano. Preconizava uma dança sem finalidade específica, em que não se
buscava um encadeamento lógico de movimentos, mas sim o acaso, contentando-se em indicar aos bailarinos
as direções dos deslocamentos e os tempos das paradas. A música representava apenas uma acompanhamento
sonoro, não tendo sido elaborada ou selecionada em função de uma harmonia com os movimentos dos
bailarinos. Tal formulação coreográfica era o chamado EVENT. Cunningham inspirou duas tendências da
dança moderna norte-americana: a NOUVELLE DANSE e o POST MODERN DANCE.
39
cultural dos movimentos de contracultura, e da convivência de expressões artísticas
díspares, como a performance art
22
, a minimal art
23
, a conceptual art
24
e o movimento
Fluxus
25
. Steve Paxton, discípulo de Merce Cunningham, inicia o movimento da Judson
Church
26
, onde tem início a chamada dança pós-moderna
27
. A fragmentação dos gestos, a
desconstrução de seqüências coreográficas, a apropriação de movimentos banais (do
cotidiano), além da subversão das estruturas narrativas, estabeleceu o padrão (ou anti-
padrão) mundial neste conceito artístico.
No movimento da dança pós-moderna, os corpos à mostra nos palcos, e em
movimento, passam a desafiar e contestar antigas representações culturais de corpo e de
dança, assim como a produzir novas. Os cenários e a coreografia passaram a procurar
expressar confrontos e problemas da sociedade, refletindo a vida em seus matizes mais
diversos e não mais expressando idealizações ou uma suposta interioridade do indivíduo. O
foco passa a ser a prática dos princípios do movimento do corpo humano observando suas
infinitas variações. Essa forma de dança/performance/happening utiliza novos espaços
alternativos (museus, edifícios, praças públicas, quadras de esportes, etc...). A fragmentação
dos gestos, a desconstrução de seqüências coreográficas, a apropriação de movimentos do
cotidiano, e a subversão das estruturas narrativas são o padrão desse conceito artístico.
Segundo Silva (2005), nos anos 1970, houve um rápido retorno a alguns aspectos da
dança moderna. Na década de 1980 buscou-se novamente pelos aspectos da dança pós-
22
O surgimento da „performance art‟ remete ao cenário das artes plásticas e às mudanças culturais ocorridas
na Europa, Japão e Estados Unidos, nos anos de 1960. Ricas em metáfora e simbolismo, tiraram as artes
plásticas do ambiente acadêmico tradicional, levando-a para uma discussão pública.
23
Tendência das artes visuais que, como reação ao expressionismo abstrato, recusava acentos metafóricos e
se opunha à noção de essência do objeto artístico. Sua intenção era relocar as origens do significado de uma
escultura para o exterior, não mais modelando sua estrutura na privacidade do espaço psicológico, mas sim na
natureza convencional, pública, do que poderíamos denominar espaço cultural. (KRAUSS, 1998).
24
A Arte conceitual define-se como o movimento artístico moderno ou contemporâneo que, em reação ao
formalismo, defendia a superioridade das idéias veiculadas pela obra de arte, deixando os meios usados para a
criar em lugar secundário. Teve seu início na década de 60, sistematizada por Clement Greenberg, mas suas
idéias fundamentais já apareciam no início do séc.XX na obra de Marcel Duchamp.
25
Movimento musical dos anos de 1960 que, motivado pelos trabalhos de Duchamp e pelo Dadaísmo, buscou
recuperar o espírito de anti-arte dos anos de 1920 e preconizar a fusão de todos os meios e disciplinas
artísticas: arte visuais, música, literatura, etc. Desenvolveu atuação política radical, contestando o sistema
museológico através de performances, filmes e publicações.
26
Segundo Cristiane Wosniak (2004, p. 09): “a Judson Church era um local (porão de uma igreja) onde um
grupo de artistas multidisciplinares (coreógrafos, bailarinos, vídeo-makers, compositores, performers, atores,
artistas plásticos) se reunia em Nova York com o objetivo de pesquisar novas linguagens de movimento.”
27
São representantes deste movimento, além de Merce Cunningham e Steve Paxton: Trisha Brown, Twila
Tharp, Yvonne Rainer, Lucinda Childs e Deborah Hay.
40
moderna. Já o período atual, pode ser definido por uma recombinação dos aspectos de todos
esses períodos anteriores e que busca diminuir as barreiras entre estes. Novamente se abre
espaço para a narrativa, para a elaboração sobre temáticas, para a busca por movimentos
tecnicamente elaborados, bem como simbioses (ou relações de interdisciplinaridade): com
outras áreas artísticas: teatro, circo, artes marciais, cinema, etc.
No Brasil, todas estas influências se manifestam, pois artistas brasileiros trouxeram
do exterior as propostas estéticas de cada uma destas linhas. Assim, [...] a dança chega na
contemporaneidade tendo atravessado cinco décadas experimentando tendências
interessantes e, por vezes, até opostas [...]” (SILVA, 2005).
2.2. Dança contemporânea e hibridação
Segundo Louppe, até início dos anos 80, conseguia-se identificar um bailarino por
sua técnica. Paralelamente à estruturação da “ideologia” que estava por trás das correntes
de dança moderna, ocorreu a sistematização de técnicas que formavam os corpos de acordo
com a requisição dos projetos coreográficos:
Essas linhagens foram, até então, formadas através de uma corrente, ligando de
maneira contínua a elaboração de um estado de corpo com o conjunto de
princípios estéticos e filosóficos de um grande criador não apenas criador de
espetáculos, mas também criador de corpos.(…) O bailarino se construía de
maneira coerente e pertinente através de uma prática, uma visão, em que ele
podia encontrar a constelação de referenciais simbólicos dos quais o seu corpo
era portador. (LOUPPE, 2000, p.31)
Então, a partir da década de 1980, aconteceu o que a autora chama perda das
linhagens”. O corpo do bailarino contemporâneo passa a refletir não mais uma técnica,
mas é regido pelo princípio da experimentação, o qual procura a eficiência que vai dar
conta de uma estética do momento. Este é o corpo plural, que se caracteriza pelo
hibridismo, ou hibridação.
A hibridação é, hoje em dia, o destino do corpo que dança, um resultado tanto das
exigências da criação coreográfica, como da elaboração de sua própria formação.
A elaboração das zonas reconhecíveis da experiência corporal, a construção do
sujeito através de uma determinada prática corporal torna-se, então, quase
impossível. (LOUPPE, 2000, p.31)
41
De acordo com Canclini (2003) o termo hibridismo refere-se aos processos sócio-
culturais nos quais estruturas ou práticas não-puras, existentes de forma separada, se
combinam para formar novas estruturas, objetos e práticas. Os processos de hibridação
abrangem, assim, várias mesclas interculturais, e sempre existiram ao longo da história,
tendo se intensificado, no entanto, a partir da globalização.
Seguindo em uma mesma direção, Burke (2004) afirma que é característica da
época contemporânea a tendência global para a mistura e a hibridização, pois vivemos em
um período marcado por encontros culturais cada vez mais freqüentes. Exemplos de
hibridismo cultural podem ser encontrados em toda parte hoje, em todos os domínios da
cultura (religiões, línguas, culinárias, literatura, música, arquiteturas, esportes, etc.).
Portanto, não é de causar espanto que ao longo do século XX a dança tenha sofrido tantas
transformações, e que continue sofrendo, numa troca contínua de técnicas, inclusive
envolvendo outros campos da arte. Também não é de se estranhar que tenha emergido um
certo campo ou tipo específico de dança, que se convencionou chamar de “contemporânea”,
cuja proposta estética é justamente apostar na hibridação de elementos artísticos diversos.
A hibridação é um fenômeno presente em todas as danças da atualidade. E não só da
atualidade, uma vez que no passado também as danças surgiam de processos de trocas
culturais. Por exemplo, o próprio balé nasce de uma hibridação entre diferentes danças da
corte. No entanto, a maioria das danças é e sempre foi acompanhada por discursos que
tentam “apagar” essas marcas híbridas, e fundar a idéia de uma tradição”, marcando uma
técnica onde possa situar-se a sua origem, uma essência, uma raiz. na dança
contemporânea, por ter historicamente se fundado a partir de proposições estéticas que
privilegiavam a busca pelas misturas, pelas mestiçagens, pelos sincretismos de todo o tipo,
é assumido o hibridismo. Não ele é assumido, como ele é desejado, buscado. A dança
contemporânea tem como diferencial em seu discurso, no que diz respeito a todas as outras
formas de dança, perseguir como condição essa pluralidade de referenciais.
Por causa disso, como eu vinha analisando no início desse capítulo, o termo “dança
contemporânea” não designa hoje uma escola, um tipo de técnica de dança específica, ou
um projeto estético delimitado, mas sim uma diversidade de modos de usos do corpo e
42
lógicas culturais da arte na contemporaneidade
28
. Dança contemporânea parece ser um
conceito do tipo “guarda-chuva”, que abarca construções coreográficas diversas, de
variados locais e culturas ao redor do mundo.
Hoje em dia diz-se que se faz dança contemporânea tanto no Brasil quanto no Japão,
nos Estados Unidos, em Taiwan, na França, na Alemanha, na Holanda, na Bélgica, etc. Mas
em cada um destes países coreógrafos de características distintas, que produzem obras
com estéticas por vezes completamente diferentes, todas nomeadas como dança
contemporânea. A formação de cada um destes bailarinos e coreógrafos reúne, geralmente,
várias experiências corporais diferentes, como artes marciais, esportes e danças variadas. A
pluralidade de estilos, de linguagens e de temas, permite que se aceite tanto propostas do
movimento pelo movimento quanto pesquisas conceituadas de escolas clássicas e
modernas. Forjada por múltiplos artistas do mundo, ela utiliza-se de elementos de várias
construções estéticas anteriores, ora transgredindo-os, ora acatando-os.
Entretanto, Burke (2004), nos alerta para não assumirmos que todas as trocas
culturais se dão de forma harmoniosa e isentas de relações de poder. Ele ressalta que no
fenômeno da globalização existe sempre uma dimensão de tensão e de conflito, e que ela
articula processos políticos geradores de desigualdade social. As trocas mais intensas,
resultantes de encontros culturais mais intensos na contemporaneidade, o são totalmente
“livres”, mas são muitas vezes submetidas a processos de homogeneização cultural. O autor
cita o exemplo da perda de tradições locais, e do fenômeno frequentemente nomeado como
“americanização” da cultura.
Nesse trabalho, considero que a hibridação que ocorre nos corpos dos bailarinos
contemporâneos, quando eles se propõem a criar os artefatos culturais que são as suas
coreografias, é algo constrito a processos culturais de tendência à homogeneização. Um
exemplo muito significativo é que, como analisa Andréa Souza (2007), o balé clássico é
hoje em dia uma espécie de “norma” que dita para todas as outras o que a dança é. Nas
palavras da autora [...] para poder falar ou fazer qualquer coisa na área da dança, é preciso
ter passado pelo crivo do balé” (SOUZA 2007, p. 81). A autora problematiza essa
hegemonia que a estética corporal do balé ainda tem sobre todas as linhas de dança na
28
Dentro da dança contemporânea se costuma dizer que diferentes “abordagens”: Dança Pós-Moderna,
Dança-Teatro, Dança-Tecnológica, etc. Entretanto, mesmo dentro dessas categorias existe heterogeneidade.
43
atualidade afirmando a existência de um imperativo que, a partir do balé clássico, “dita” os
modos de representação da dança como um todo.
Em minha pesquisa em Porto Alegre, constatei que essa noção do balé como uma
referência estética é, muito significativa entre os praticantes de dança contemporânea.
Portanto, apesar da dança contemporânea apostar intensamente na hibridação, no que diz
respeito à pesquisa das técnicas e à exploração de novos movimentos corporais,
simultaneamente é ainda no balé que os sujeitos vão buscar o seu status para legitimar-se
como bailarinos. Essa hegemonia estética do balé no campo da dança contemporânea
aponta para a existência de uma certa tendência à homogeneização dos usos cênicos dos
corpos, em detrimento das particularidades de cada corpo, em cada local, em cada região e
em cada cultura, que tende a regular os processo de hibridação.
Paixão (2009) afirma que embora muitos artistas na história da dança tenham se
pautado pela negação de uma tradição em busca de uma singularidade, a lógica de
codificação corporal implementada no balé entre o século XVII e o século XVIII continua
sendo ainda hoje a lógica dominante. Para esse autor, essa retórica da ruptura encontrada
em todas as correntes da historia da dança no século XX tende sempre a ressaltar o aspecto
singular de cada projeto, deixando de lado as semelhanças com os demais. O autor chama
esse mecanismo de o “dispositivo da novidade”, e afirma que ele constitui uma armadilha
no discurso dos paradigmas estéticos da dança. Ele diz que as danças moderna, pós-
moderna e contemporânea não trazem significativas rupturas com nenhuma tradição, pois,
todos as formas de dança, desde o balé clássico manejariam, para a criação de suas danças,
noções caracterizadas conceitualmente como: passo, coreografia e coreógrafo.
Ao longo do século XX, na verdade, houveram muitas tentativas de rupturas com
idéias de coreografia e passo na improvisação, bem como a idéia de coreógrafo, a partir de
processos de co-criação, colaboração, etc. E também verdade que há, hoje em dia,
muitas produções de dança contemporânea ao nível nacional que inovam e não se baseiam
no balé
29
. No entanto, também é verdade que muitas vezes essa afirmação de uma ruptura
com o balé permaneça apenas ao nível da afirmação retórica, não se revelando na prática.
29
Como por exemplo, o programa Rumos Dança, do Itaú Cultural, que financia obras de dança
contemporânea. Das 21 premiadas na edição 2009/2010, nenhuma tem o balé como base e muitas vem sendo
reconhecidas pela crítica e muito bem aceitas em festivais como Bienal de Dança de Fortaleza, Panorama de
Dança, e mesmo por eventos internacionais.
44
Muitas companhias brasileiras de dança contemporânea ainda continuam buscando no balé
o seu método de condicionamento físico ideal, e a postura em cena “alongada” (típica do
balé) ainda continua sendo considerada cenicamente a mais bela, por exemplo. E no que diz
respeito ao contexto analisado nesse trabalho, a grande maioria dos bailarinos por mim
entrevistados pareceu reforçar e corroborar as afirmativas de Paulo Paixão.
O autor acrescenta ainda que é importante considerar que “existe um mercado da
dança muito bem estruturado em parte contingente, em parte historicamente construído, e
que ele está organizado para atender determinados interesses políticos e econômicos que
põem em evidência determinados procedimentos e modelos estéticos como alvo de
consumo, o qual pode ser em dois níveis relacionados: a venda do próprio objeto de arte
(espetáculo de dança) para os teatros, festivais e conseqüentemente seus públicos, ou a
venda de um modo de fazer, para outros artistas do mesmo campo que reproduzirão este
modelo.” (PAIXÃO, 2009. p.6). Num sentido similar, Marquié afirma que
[...] no que diz respeito ao domínio artístico, de um lado o que a artista quer,
pode e finalmente consegue fazer, sua maneira singular de compreender e
resolver, talvez, os paradoxos; mas de outro, a recepção de sua obra, na qual
sua margem de trabalho e de influência é ainda muito limitada. (MARQUIÈ,
2003, p. 3).
Esses autores evidenciam uma dimensão importante, em suas reflexões sobre a
dança contemporânea, que é a dimensão do poder. Interessa para essa dissertação ressaltar
que todas as práticas culturais, corporais e artísticas são o tempo todo atravessadas por
relações de poder, pois estão situadas num contexto que é histórico, social e também
político. No âmbito da perspectiva pós-estruturalista, a partir da noção de discurso, ou da
pressuposição da existência dessa colocação da dança contemporânea em discurso, importa
considerá-la como um campo ou objeto de disputas pela imposição de diferentes sentidos.
Sentidos esses que se manifestam enquanto proposições estéticas que ganham visibilidade
não apenas na cena preparada para ser apresentada ao público, mas que também instaura
discursividades sobre ela e, em decorrência, sobre os sujeitos que dançam.
O foco da minha pesquisa não é a análise do discurso, mas sim as representações
culturais. Dessa forma, não procurarei responder aqui se ou não um regime de discurso
totalmente constituído, em nossa época, sobre a dança contemporânea, o que seria questão
45
para uma outra pesquisa. Ao invés disso, procurarei “pinçar” algumas questões que se
atravessam dentro nesta problemática. Tal incursão tem a intenção de levar o/a leitor/a a
aventurar-se em certas leituras que hoje em dia se fazem sobre a dança, dentre outras
possíveis, com o intuito de se formular um entendimento singular do que me proponho a
problematizar: o que se diz sobre dança contemporânea. Tentarei organizar todas estas
questões em torno do fio condutor único: as representações culturais.
Como uma manifestação artística que aposta na hibridação constante, a dança
contemporânea assume, hoje em dia, uma ampla variedade de estéticas e comportamentos
espetaculares nos palcos. Delimitá-la como um campo específico de análise implica em
delimitar um campo que é necessariamente, plural. No entanto, ao mesmo tempo, há
sempre um processo cultural que tende a homogeneizar essas produções estéticas diversas
dentro de um único registro, e que de fato, instituem determinadas verdades que se tornam
hegemônicas dentro do conjunto de representações culturais sobre a dança contemporânea.
Assim, se hoje as técnicas e os movimentos corporais da dança contemporânea são
constituídos pela apropriação de movimentos e técnicas de toda as outras danças, como
fruto da rede de influência e de contágios múltiplos característicos dos fenômenos de
intensa hibridação, elementos nessa prática que definitivamente não são os mesmos da
dança de salão, por exemplo, ou do balé clássico, ou do jazz, ou do flamenco, etc. Um
desses elementos é o que Paixão (2009) chama o “dispositivo da novidade”: uma
determinada crença (ou talvez poder-se-ia dizer um certo “mito”) que apresenta a dança
contemporânea como aquilo que é sempre capaz de trazer o novo, de romper com as
propostas estéticas anteriores. E mais do que isso, de acordo com o que eu pude concluir a
partir da minha análise desse campo durante essa dissertação, a dança contemporânea é
apresentada como um sinônimo de eterna liberdade para os corpos.
Em outras palavras, eu diria que apesar de a dança contemporânea revelar-se um
campo de disputas entre diferentes vontades de defini-la, através de uma diversidade de
enunciados que fundam sentidos tão heterogêneos sobre o que ela é, sustenta-se atualmente,
em torno do nome „dança contemporânea‟ uma representação cultural hegemônica,
fundamentada na noção de ruptura, capaz de sustentar uma prática social consistente. Na
próxima sessão, situarei alguns dos elementos que entendo estarem atravessados nessa
representação cultural de dança contemporânea como aquilo que rompe.
46
2.3. A invenção da dança contemporânea
Gostaria de problematizar nesse capítulo alguns fatos históricos que remetem a um
certo imaginário contestador que parece constituir as representações hegemônicas de dança
contemporânea na atualidade. Anteriormente, falei que a configuração histórica que
permitiu a constituição da dança contemporânea privilegiou essa busca pela hibridação,
muito mais do que em outras danças. Esse tipo de afirmação deve ser tomada com um certo
cuidado. Como observam Albuquerque (2007) e Veyne (2008), a história é sempre a forma
como optamos por ver o passado. O presente, ao observar os fatos históricos de certa
maneira sempre “inventa” um passado.
É possível enxergar a história da dança no século XX a partir de um olhar
evolucionista: tendo sua origem no balé clássico do final do século XIX, essa dança teria
“evoluído” através de diferentes estágios denominados dança moderna, dança pós-moderna
aperfeiçoando-se até chegar no estágio final, a dança contemporânea, derradeiro momento
do progresso das técnicas coreográficas corporais rumo à libertação dos corpos dos sujeitos.
Não é essa a visão que procuro apresentar aqui, mas é uma visão que a perspectiva êmica
dos sujeitos do meu campo de pesquisa parecem partilhar.
Nesse sentido, o que nomeio nesse trabalho como representação hegemônica de
dança contemporânea está articulado com a invenção
30
, a partir de uma determinada forma
de dotar de sentido os acontecimentos da história da dança do século XX, de um discurso
que nessa história uma evolução contínua das possibilidades de um corpo produzir
rupturas estéticas e “libertar-se” cada vez mais. Minha hipótese é a de que o que hoje se
denomina “dança contemporânea” parece ter tido sua invenção para não falar em origem
a partir da constituição de uma rede de representações, que toma como referência as
figuras exponenciais da chamada dança moderna, do início do século XX, como Ruth Saint
Dennis, Martha Graham, Merce Cunnigham e, especialmente, Isadora Duncan
31
.
30
Utilizo aqui o termo “invenção” no sentido definido por Arno Wehling (Apud ALBUQUERQUE, 2007,
p.21), como “o processo através do qual a vida social foi cristalizada num discurso e as razões que existiram
para isso”. Para a perspectiva cultural, aqui adotada, a história é sempre percebida, construída, lida e escrita
através de processos de dotação de sentido, que é articulado com as formas de representação cultural.
31
Nome artístico de Dora Ângela Duncanon (1877-1927), bailarina norte-americana, considerada a grande
pioneira tanto da dança moderna quanto na dança contemporânea.
47
Os sujeitos do meu universo de pesquisa falam muito, por exemplo, na existência de
uma “filosofia da dança contemporânea”. Não utilizarei este termo, “filosofia”, aplicado
aqui no sentido do senso-comum. Tomá-lo-ei aqui como uma produção discursiva sobre a
dança contemporânea, empenhada em fundar suas verdades, em dizer o que a dança
contemporânea é ou não é e que possui as suas vozes consideradas como autoridades. Uma
dessas vozes é, por exemplo, a do filósofo Friedrich Nietzsche
32
, a partir da recepção ou da
leitura que a bailarina Isadora Duncan faz desse filósofo.
2.4. De Nietzsche a Isadora Duncan: a invenção da dança como transgressão
De acordo com Badiou (2001), Platão, o criador da metafísica filosófica ocidental,
instaurou uma relação de poder da Filosofia sobre a Arte que teria definido o destino de
toda a cultura Ocidental. Para Platão (1999), a arte é incapaz de verdade. Toda verdade lhe
é exterior. Somente graças a uma educação inspirada pela Filosofia seria possível realizar a
justiça, tanto no plano do indivíduo (no governo de sua alma) quanto no nível da cidade.
Isso pressupõe que à arte deveria caber um uso apenas didático, ou seja, como um
instrumento da Filosofia, com a função meramente instrumental, de no máximo expressar
valores morais ou inspirar a busca pelo Belo, pelo Bom e pela Verdade.
Além disso, como observa Grosz (1994), a tradição filosófica metafísica perpetuou
uma autêntica “somatofobia”: o corpo é visto como algo que necessita ser governado pela
mente. Platão é o maior proponente desse dualismo, mas é Descartes quem melhor o
teoriza: ao distinguir consciência de mundo natural, ele considera a subjetividade uma
função única e exclusiva da mente, bem distante portanto da consciência corporal.
De acordo com Louro (1995), para o pós-estruturalismo, e em especial para o
pensamento de Jacques Derrida, o pensamento metafísico ocidental sempre operou sobre a
base de princípios fundantes expressos pela hierarquização de pares opostos: bom/mau,
presença/ausência, unidade/diversidade, etc. Todos os dualismos e oposições hierárquicas
Filosofia/Arte, mente/corpo, razão/emoção, etc. construídas na história do Ocidente,
32
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão do século XIX. Propunha a superação da
lógica essencialista, metafísica e moralista da modernidade. Na esteira de sua filosofia seguiram importantes
pensadores do séc. XX, como Michel Foucault, Jacques Derrida, Martin Heideger e Gilles Deleuze.
48
estariam todas inter-relacionadas entre si. Para Louro (op cit), a oposição entre masculino e
feminino deve ser compreendida como mais uma dessas dicotomias.
Grosz (1994) sugere que a oposição hierárquica masculino/feminino estaria na base
de todas essas outras oposições. Levando em conta o fato de que os homens por muito
tempo ocuparam instâncias mais privilegiadas que as mulheres na organização da sociedade
e cultura, segundo a leitura cultural (masculina) que se fez ao longo da história do ato da
reprodução, teria se gerado a idéia de que o corpo feminino é feito apenas para prestar o
serviço de perpetuar a espécie. E junto com essa idéia, foi necessário que a mulher fosse
representada como mais ligada à natureza, ao corpo, ao instintivo, estando muito mais
próxima do coração (sendo portanto caracterizada como mais emotiva, mais sensível),
estando o homem, em contrapartida, mais ligado ao intelecto. A mulher foi portanto
apontada como mais ligada ao artístico, à natureza, ao corpo e ao sensível. O homem,
paralelamente, sempre foi apontado como mais adaptado à política, à ciência, à Filosofia, à
cultura etc. Portanto, essa tradição de pensamento teria perpetuado uma desvalorização de
tudo o que foi historicamente sendo associado ao feminino (Arte, corpo, emoção) e uma
maior valorização de tudo o que foi historicamente sendo associado ao masculino
(Filosofia, mente, razão, etc.).
Albright (1997) é de opinião que, pelo fato de a dança colocar o corpo no centro das
suas representações artísticas, ela sempre foi uma arte muito mais marginalizada do que
todas as outras artes. Assim, a relação de poder da Filosofia sobre a Arte, da qual fala
Badiou (2001), teria assumido, no caso específico da dança, uma expressão ainda mais
significativa. Farguell (2001) afirma que a dança esteve muito mais afastada do que outras
artes de conceituações teóricas e filosóficas em geral, ao longo de quase toda a história da
civilização ocidental. E que a sua própria configuração como campo artístico ocorreu em
paralelo ao seu isolamento do cânon estético das artes.
Estando ou não relacionadas todos esses elementos, da forma como apontam tais
autores, o fato é que parte do sólido edifício da tradição de pensamento metafísica
começaria a sofrer seus primeiros abalos sísmicos no final do século XIX, a partir da
filosofia de Friedrich Nietzsche. Para esse filósofo, o pensamento lógico dialético
socrático-platônico, matriz da racionalidade ocidental, representou uma decadência da
civilização. Em lugar da vida e do pensamento afirmativo dos filósofos trágicos pré-
49
socráticos, criadores de novos valores, teria surgido o filósofo metafísico, que faz da vida
aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o
Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem.
Para Nietzsche, deveríamos ser um pouco mais trágicos (ou seja, como na arte
trágica grega: um pouco mais apolíneo-dionisíacos, ao invés de sermos apenas apolíneos
33
).
Nietzsche propõe uma inversão da hierarquia de valores: a arte deve ser considerada mais
importante do que a Filosofia. Dessa forma, ele convoca os homens do conhecimento (os
filósofos) a aprenderem com os artistas. Ele não se restringe a uma apologia da arte como
uma atividade específica, mas convoca seus leitores a assumirem uma postura artística
diante da vida: sermos poetas-autores de nossas vidas (NIETZSCHE, 2001, p.202).
Defende, portanto, que os filósofos não mais procurem o ideal de um conhecimento
verdadeiro, mas sim pensem a vida, a ciência e a existência como um fenômeno estético.
A partir de Nietzsche, começa a se questionar a racionalidade metafísica do modelo
socrático-platônico. Começa-se a questionar, assim, a própria pretensão de colocar a mente
como única definidora do sujeito, negando-se para isso o seu corpo. De certa forma, se
questiona aquilo que Grosz (1994) chama a “somatofobia” da cultura ocidental. A partir
daí, se percebe porque esse filósofo se torna importante, no século XX, para muitos artistas
que tentam inaugurar um novo modo de pensar o mundo, o ser humano e a vida, através de
uma revalorização do corpo, contexto esse do qual nos interessa aqui recortar para
problematizar o caso específico da dança, dentro do campo das artes.
A dança, enquanto movimento, cadência, leveza, alegria, é usada por Nietzsche
como símbolo de um novo modo de conduzir o fluxo do pensamento, tomando-a como
aliada metafórica no combate à metafísica filosófica clássica e aos valores morais
tradicionais. No livro “Assim falou Zaratustra” (1994), por duas vezes, o personagem
central, uma espécie de alter-ego de Nietzsche, entoa um “canto de dança”, em sua busca
pelo “além-do-humano”
34
, isto é, em seu constante entregar-se às potências produtivas da
33
Nietzsche interpreta a cultura clássica grega como um embate entre dois impulsos contrários: o dionisíaco,
ligado à exarcebação dos sentidos, à embriaguez mística e à supremacia amoral dos instintos (cuja figura é
Dionísio, deus do vinho, da dança e da música); e o apolíneo, face ligada à perfeição, à medida das formas e
das ações, à palavra e ao pensamento humanos (representada pelo deus Apolo).
34
O termo Übermensch é de origem medieval, calcado sobre o adjetivo übermenchliles (sobre-humano): ser
humano, que transpõe os limites do humano. Não tem equivalente adequado em português, razão pela qual
sua tradução tem gerado polêmica. Segundo Rubens Rodrigues Torres-Filho é o além do homem”, para
Roberto Machado e outros é o super-homem”. Mas para Flávio R. Kothe a melhor tradução seria ser-
50
vida e não ao ideal de sujeito moral. A dança aqui simboliza uma certa estética do
pensamento, de todo aquele pensamento que, como o de Nietzsche, se proponha a ser
produtivo, a trazer ideias novas, a produzir novos sentidos, diferentes daqueles do ideal de
sujeito moral-racional e dos ideais da metafísica filosófica clássica.
[...] e eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um
bom bailarino. Pois a dança é o seu ideal, e é também a sua arte, e afinal sua única devoção
[...] (NIETZSCHE, 2001, p. 286 )
Como afirma Badiou (2002), aquilo que Nietzsche elegeu como a maior
abominação, foi o espírito da gravidade, o passo obediente daquele que marcha numa
estrita obediência de impulsos e ordens superiores. Trata-se da antítese simultânea da
dança, da leveza e da inteligência. A dança é, pois, a antítese deste movimento impulsivo e
obediente, a dança é a força duma retenção e a negação de um impulso. Em Nietzsche, a
dança é a metáfora do que foge ao modelo lógico-lingüístico (platônico) que busca a
constituição da verdade a partir daquilo que toma como essência do real. Ela representa o
combate às ideias e valores da filosofia ocidental (platônica), que impõem ao indivíduo a
noção de alma, ou seja, de essência, e não de construção e de processo.
Nietzsche não era um bailarino. Portanto, quando fez esta associação, quando
afirmou que todo o pensar deveria ser como um tipo de dança, quando relacionou a imagem
do bailarino com o pensamento inovador de seu projeto, estava utilizando-a em sentido
inteiramente metafórico. Ele concebia a dança como metáfora do pensar produtivo, do
pensar que combate idéias e valores arraigados e pré-estabelecidos, que se proponha a
produzir o novo, a produzir novos sentidos. A dança como símbolo do devir filosófico.
No entanto, Isadora Duncan apropria-se da filosofia de Nietzsche e passa, a partir da
sua leitura dela, a pensar a dança não em seu sentido meramente metafórico, mas como um
atividade específica. Em Duncan, a relação que se estabelece entre dança e a tentativa de
transvaloração ou transgressão não é mais meramente simbólica. A partir do contexto
acima-do-humano”, uma vez que tem-se Mensch‟ e não Mann‟ (que seria a palavra alemã para homem), o
que significa que não se trata de uma divisão entre masculino e feminino e que o termo pode ser aplicado
igualmente com a mesma força lingüística tanto para os homens quanto para as mulheres.
51
histórico feminista
35
onde vivia, em que se questionavam os modelos culturais românticos
de representação do corpo da mulher - e entre eles, a bailarina clássica: uma mulher casta,
envolta em branco, coroada de flores, uma representação do ideal romântico, do inacessível
adorado pelos homens (OSSONA, 1998) Isadora Duncan busca pontos inspiradores para
o desenvolvimento de sua nova concepção artística. Ela faz, talvez pela primeira vez, uma
tentativa de entrelaçamento entre a Dança e a Filosofia, através da obra de Nietzsche.
Poder-se-ia então afirmar que, seja através da dança do pensamento, como pretendia
Nietzsche (esta caótica irrisão de enunciados que se dizem, contradizem e desdizem, mas
que buscam enfim sempre instaurar uma nova estética para a existência do leitor), seja
através da dança propriamente dita (essa caótica profusão de signos imagéticos que
procuram sempre, direta ou indiretamente, se manifestar no corpo e através do corpo) , é
possível produzir verdades? Mais do que isso: é possível, através da dança, criar algum
tipo de ato de resistência contra representações culturais hegemônicas, assim como produzir
novos valores culturais? Essa parecia ser a direção para onde apontavam as propostas
estéticas e os ideais e o imaginário presentes nas concepções de Isadora Duncan.
Ela defendeu, assim, a dança como dotada de um potencial tão ou mais eficiente do
que a palavra ou escrita na tarefa de produzir novos sentidos, de elidir padrões culturais
arraigados, constituir novas representações de corpo e de vida. Nomeou a existência de uma
dança “dionisíaca”, opondo uma estética nova, como ato de resistência contra os códigos
corporais convencionais e rígidos representados até então principalmente pelo balé clássico.
Contudo, como era próprio do período da arte moderna, sua recepção de Nietzsche
estava repleta de esoterismo
36
religioso. É sua, por exemplo, a expressão: “Vim à Europa
para trazer um renascimento da religião através da dança, para revelar a beleza e a
santidade do corpo humano pela expressão de seus movimentos...” (DUNCAN, apud
GARAUDY 1980, p. 62). Com ares proféticos, ela afirmava também que a sua nova dança
proporcionaria “a realização da unidade da vida interior e da vida exterior integradas numa
35
Isadora viveu na época da “primeira onda” do feminismo, o movimento sufragista. No entanto, por suas
idéias foi considerada uma precursora das discussões do feminismo da “segunda onda”.
36
Esoterismo
é o conjunto de princípios de uma doutrina esotérica (ler: FAIVRE, 1995). Os esoterismos
caracterizam-se pelo sincretismo entre religião, ciência, filosofia, etc. na busca por um modelo explicativo
único. A palavra pode ser entendida, aqui, no sentido de uma “Weltanschauung”, termo alemão para uma
concepção de universo e de vida. No sentido foucaultiano, pode ser tomada como uma episteme.
52
ação única. Assim chegaria ao fim a era das pedagogias baseadas no dualismo, sobretudo o
do corpo e da alma” (op cit, p.130).
Quase toda a arte moderna teve relações com o esoterismo, como m demonstrado
alguns trabalhos recentes (FRÓIS, 2006, BEZERRA, 2007). Bezerra (2007) traça um
paralelo entre o pensamento místico medieval, particularmente a obra de Juan de la Cruz, e
a arte abstrata moderna, tomando como ponto de partida Kandinsky, um dos expoentes da
arte moderna. Já Fróis (2006), analisa a apropriação pelos artistas modernistas Malevich,
Kandinsky e Mondrian de teorias neo-esotéricas
37
. Esses expoentes da arte moderna tinham
como intenção lançar, por meio de suas obras, a possibilidade de um novo homem e de um
novo mundo, livre de imperfeições e regido por uma nova ordem espiritual e social, na qual
reinasse harmonia ideal, em moldes similares à “República” platônica.
Também na maior parte dos expoentes da chamada “dança moderna”, como Marta
Graham, Rudolf Laban, Mary Wigman e outros, é possível ver este elemento metafísico. A
mística de Ted Shawn, também um dos pioneiros, surge na sua afirmação de que “através
da dança não se diz, mas se é... e a dança é a mais alta expressão do ser (...) aquele que
conhece o poder da dança, conhece o poder de Deus” (GARAUDY,1980, p. 73). Tanto
Ruth Saint-Dennis quanto Ted Shaw, acreditam na essência religiosa da dança, não
existindo a divisão entre corpo e espírito, arte e religião. Marta Graham (1993), expressa
claramente a mesma concepção, ao dizer que: “a dança é a linguagem escondida da alma”.
Contraditoriamente, portanto, é através de um tipo de concepção de mundo e de
vida bastante metafísico, que ocorre a recepção da filosofia de Nietzsche por Isadora
Duncan. Em seus escritos, é visível a necessidade de produzir uma nova dança dentro de
uma concepção idealista. A única diferença é que tal idealismo não mais se baseia no uso
da razão instrumental: ele trilha outros caminhos, nos quais o corpo é que adquire caráter
sagrado. Assim, Isadora não rompe com o essencialismo e a busca por um absoluto, por um
ideal, que era o que Nietzsche combatia. O que aparece em sua nova proposta estética
parece ser apenas uma virada no interior da mesma representação.
Por outro lado, Isadora Duncan rompe com uma representação cultural do feminino
na dança, que era muito ligada à noção romântica de feminino. Como observa Marquiè
37
No caso de Malevich, a Teosofia de Helena Petróvna Blavatsky. Em Kandinsky, tanto a Teosofia quanto a
Antroposofia de Rudolf Steiner. No caso de Mondrian, inicialmente inclinado à Teosofia, o Neoplatonismo.
53
(2003), ela rompeu com o estereótipo da dançarina desencarnada, que “[...] não era uma
mulher [...] ”, mas uma “[...] pura metáfora [...] ”, como queria Mallarmé
38
. Ela retirou a
nudez feminina do registro exclusivo do erotismo, em sua versão androcêntrica e sexista.
No entanto, ela conservava ainda uma visão essencialista das mulheres.
Que relação há entre todos esses elementos e a dança contemporânea?
Em minha experiência como bailarino entre praticantes de dança contemporânea no
cenário cultural de porto Alegre, encontrei repetidamente manifestada a idéia de que a
dança é a “expressão da alma”. Também observei que em muitos casos o terreno das
crenças religiosas pessoais ligadas, de alguma forma, a concepções esotéricas de corpo, é
bastante significativo. Espiritualidade ou desempenham um jogo importante nas falas de
muitas pessoas que se baseiam neste tipo de noção de dança contemporânea, permeando o
discurso que constitui grande parte daquilo que os sujeitos que entrevistei chamam de uma
“filosofia da dança contemporânea”. E, por último, tenho observado também que,
articulado a tudo isso, uma valorização de Nietzsche, posicionando esse filósofo como
alguém que é capaz de dar a isso que se tem nomeado como uma “filosofia da dança
contemporânea” alguma fundamentação ou legitimação.
Existe, nesse âmbito, um conjunto de questões ainda pouco mapeadas, ainda pouco
analisadas e teorizadas academicamente. Perceber a forma como todas essas coisas estão
articuladas não é o enfoque nem o recorte dessa pesquisa, o que mereceria uma análise
específica, tarefa para pesquisas futuras. No entanto, a partir de uma análise bastante
incipiente, centrada muito mais verdade) na minha experiência pessoal auto-etnográfica,
percebo que existe entre muitos praticantes e coreógrafos de dança contemporânea uma
noção muito viva de uma dança como ato de resistência estético-político, por meio do
questionamento de valores culturais hegemônicos que estão inscritos nos corpos. Mas
também, simultaneamente, de uma dança como “algo que vem de dentro”, que é pura
expressão e liberação de alguma essência interior. E parece haver uma relação entre a
forma como Isadora Duncan fez, em sua época, uma determinada leitura ou recepção da
filosofia de Nietzsche e a forma como, nos dias de hoje, essa mesma filosofia é hoje
recebida e lida por bailarinos de dança contemporânea.
38
MALLARME, 1997, p. 192-193.
54
Desde que Isadora Duncan propôs novos modelos estéticos e uma tentativa de
romper com a estética romântica do balé clássico, passou-se a afirmar ser possível, através
da dança, produzir na vida e no corpo dos seres humanos uma espécie de eterna ruptura.
Alguma coisa da ordem da transgressão, da ruptura, do combate a valores e conceitos (ou
pré-conceitos) enraizados na cultura e nos corpos, através da produção de novos sentidos,
parece ter se “colado”, desde então, à idéia de dança.
Constituiu-se, assim, uma noção de libertação do corpo por meio da dança
contemporânea. Ou ainda: uma representação da dança contemporânea como uma potência
para a transgressão do corpo e, consequentemente, de libertação do sujeito. Entende-
se,dentro dessa noção, que essa dança para além do mero espetáculo cênico poderia
conter em sua prática experiências somáticas capazes de tornarem os indivíduos melhores,
mais donos de si, enfim, mais livres. Essa representação articula elementos tão díspares
como: a) a filosofia de Friedrich Nietzsche; b) o esoterismo e o misticismo religioso dos
fundadores da dança moderna; c) o movimento de artistas gerados em torno da Judson
Church, na década de 1960, em Nova York (dança pós-moderna).
Dessa forma, essa noção de dança como uma potência de transgressão parece vir
quase sempre acompanhada por vozes proféticas que remetem à promessa de uma
libertação do corpo, através da possibilidade da expressão total dele, bem como de uma re-
ligação entre esse corpo e uma certa essência universal dos sujeitos, através da pura
expressão de uma essência interior do ser humano. Facilmente cola-se” algo da ordem
da revelação da verdade sobre o corpo e a promessa da suprema felicidade individual.
2.5. A dança contemporânea e a retórica da liberdade
A definição “dança contemporânea”, problematizada no início desse capítulo, não
se refere nesse trabalho a nenhuma técnica corporal ou artística em específico. Como toda a
arte contemporânea, essa forma de dança assim nomeada revela-se como um campo muito
heterogêneo e complexo para que se conta dele em uma única dissertação. Logo, utilizo
esse conceito como algo “em aberto”, no sentido de que não quero pressupor aqui nenhuma
unidade absoluta em cima do uso da terminologia dança contemporânea.
55
Pelo contrário, considero que existem, hoje em dia, diversos enunciados e diversas
representações culturais colocadas sobre a prática da dança contemporânea. Minha
intenção, nesse capítulo, é refletir somente sobre uma dessas muitas representações
culturais, problematizando-a em específico.
Meu pressuposto, portanto, é o de que existe atualmente uma representação de
dança contemporânea muito recorrente que funciona como uma vontade de verdade
interessada em fundar a noção de que a dança contemporânea é sempre aquilo que traz a
ruptura com o que lhe é anterior (ou exterior). Que ela é capaz de sempre inovar, de
instaurar sentidos sempre novos para o corpo, opondo-se assim às outras danças. Ora, esse
afirmação funda como verdade que é impossível definir o que a dança contemporânea é,
mas é possível definir o que ela não é: ela não é balé, ela não é dança de salão, ela não é
jazz, ela não é hip hop, etc. E essa noção articula a noção de ruptura com: transgressão,
liberdade, essencialismo e uma certa visão esotérica da realidade.
Essa análise que aqui faço sobre as relações entre dança, ruptura, transgressão,
liberdade, essencialismo e esoterismo não devem ser tomadas como representativas de todo
o universo da dança contemporânea. Há, com certeza, hoje, outros modelos. Mas, a maioria
das vezes, os praticantes dessa modalidade de dança são bastante confusos com relação a
essas questões, e tendem a misturar esse modelo por mim aqui apresentado com outros,
com uma facilidade surpreendente. Daí o caráter abrangente dessas questões por mim
levantadas, a partir de apenas alguns dos muitos sujeitos dentre os grupos de dança
contemporânea que entrevistei na cidade de Porto Alegre.
Na seção anterior, analisei essas relações no âmbito da invenção de uma noção de
dança a partir de uma certa maneira de olhar para a sua história. Mas também é possível
compreender essa questão dentro de uma perspectiva mais antropológica: como uma
perspectiva êmica, um sentimento estético, um ponto de vista sobre o mundo, que funda
relações do sujeito bailarino com esse mundo e consigo mesmo a partir da dinâmica da
representação cultural. Dentro desse tipo de análise, é possível considerar que essa
representação de dança contemporânea funcione como um sistema simbólico que, através
da invenção daquilo que Balakrishnan (2008) chama de “ficções regulatórias”, age na
direção de padronizar as relações sociais dos indivíduos.
56
Segundo Balakrishnan (op cit), todos estamos sempre procurando lugares de
pertencimento, lugares onde poderemos ocupar posições de sujeito. Ele refere-se ao
nacionalismo, à religião, as etnias, o gênero, e outras categorias. Mas aqui pode-se incluir
também a prática de uma determinada modalidade artística, como uma prática que é social,
e que portanto, está relacionada diretamente com processos de formação de identidade entre
os grupos sociais. Em outras palavras, pode-se considerar a representação de dança
contemporânea problematizada nesse capítulo como em estreita articulação com questões
de construção da identidade social e de pertencimento.
Em Porto Alegre, mesmo dentro da grande heterogeneidade de produções artísticas
classificadas como “dança contemporânea”, percebi uma forte recorrência desses elementos
entre todas essas vozes dissonantes e contrárias. Isso permite, segundo entendo, uma certa
homogeneidade que torna possível falar nesse trabalho em “dança contemporânea” como
um recorte bastante diferente de outras danças dançadas na contemporaneidade.
Abaixo, relaciono falas de alguns bailarinos que foram por mim entrevistados
39
:
Eduardo:
A dança contemporânea é muito expressiva. Toda a dança é
expressiva, mas (...) a dança contemporânea quer passar mais do que
dança (...) É diferente do balé clássico. (...) na dança contemporânea tu é
mais livre. Ela te permite criar mais. Se expressar.
Ricardo:
Dança contemporânea te possibilita ter várias emoções (...) Tu
pode, assim por exemplo, no teatro, até te emocionar fazendo um papel,
mas tu não pode te emocionar muito, porque senão tu sai fora da
história, tu te perde. (...) O teatro te permite viajar até certo ponto. Se tu
passar daquilo é complicado. Tu te perde. Tu transforma a idéia. (...) E
na dança contemporânea, a dança deixa tu ir.
39
Que se encontram listados no início do capítulo 4 dessa dissertação.
57
José:
O que mais me chama a atenção na dança contemporânea é a
liberdade. [...]A dança contemporânea... ela aceita, ela é aberta. [...] Para
mim, eu sinto que eu sou a dança contemporânea e a dança
contemporânea sou eu. Eu sinto que é uma extensão de mim... essa
dança que agente não sabe nem o que é... se a gente precisa chamar de
dança contemporânea... Mas a princípio, essa dança que eu faço, ela
enquadrada em “dança contemporânea”. Ela é uma dança que sai de
dentro de ti. Porque tu é uma pessoa que precisa se expressar. E ela sai
de dentro de ti. E está categorizada como “dança contemporânea”.
Abaixo, trago um excerto da fala de alguns dos coreógrafos que entrevistei em
minhas incursões preliminares ao campo:
[...] é um rompimento, é uma transgressão... é uma forma de
buscar outras formas, outras vias, outras possibilidades do movimento.
Isto é a dança contemporânea. [...] A história é construída por pessoas
que transgrediram. E é que o papel fundamental da transgressão na
arte contemporânea. [...] A arte é uma maneira que o ser humano tem de
gritar, de estravasar, de colocar para fora toda a sua necessidade de
protesto, de... não necessariamente de protestar, mas de falar, de se
comunicar... Quando tu consegue transgredir, tu consegue romper coisas
que te escravizam...
A ideia de que a dança contemporânea é a expressão de uma essência interior do ser
humano e, conseqüentemente, uma potência de libertação para essa essência é, nesses
trechos, evidenciada entre os sujeitos por mim entrevistados.
58
No terreno da produção acadêmica brasileira em dança existe, também, algumas
vezes, colocada em discurso uma retórica da ordem da ruptura, da liberdade e da redenção.
Por exemplo, é comum a ideia de uma dança que “emana da alma”, capaz de expressar, de
forma mais direta e íntegra, a essência mais recôndita do interior do ser humano. Tais
representações aparecem nesse caso entrelaçadas, articuladas, sustentadas ou legitimadas,
em maior ou menor grau, com conceitos, crenças e discursos científicos, e/ou filosóficos.
Esse tipo de proposição encontra terreno na produção, por exemplo, de alguns
autores fundamentados na perspectiva semiótica (GREINER, 2000; SANTANA, 2003;
KATZ, 2003), que definem o corpo como um suporte comunicativo autônomo, sendo a
dança concebida como um “pensamento do corpo”. Embora esta pareça ser uma proposição
inversa do platonismo, uma vez que considera o gesto corporal, e não a fala, a forma de
linguagem privilegiada para dar uma mensagem o mais próxima da essência do real, ela
opera com a mesma noção metafísica de uma essência capaz de ser descrita de forma
perfeita por uma linguagem nesse caso, a linguagem corporal.
A mesma noção idealizada de corpo e de dança aparece em autores como Vargas,
por exemplo, quando afirma que a dança “pode tudo expressar” (VARGAS, 2007, p.13) ou
que “o movimento nunca mente” (op cit, p. 70). Em paralelo a isso, a apropriação de alguns
autores pós-estruturalistas
40
tem parecido gerar alguns enunciados que colocam a dança
nesse lugar idealizado, atribuindo-lhe um lugar privilegiado no sentido de combater valores
e conceitos enraizados na cultura, instaurando assim novos sentidos estéticos e éticos.
Para José Gil (2001), por exemplo, a experiência do corpo na dança oferece uma
dinâmica de tomada da consciência pelo corpo, de uma adesão do pensamento ao corpo. O
autor fala do corpo como devir, apropriando-se do conceito de “corpo sem órgãos”
41
.
Comentando essas reflexões, Nízia Villaça (2004, p.8) refere que:
[...] a dança, entre as artes, talvez seja a que melhor possibilite a circulação das
intensidades e afetos que efetivamente instalam o novo. É uma espécie de
inconsciência consciente, uma velocidade que não permite a formação de
conceitos. Movimento sem início ou fim, energia, eletricidade, transformadora de
contextos, atualização e novas virtualidades. Escrita em série.
40
Vale ressaltar, no entanto, que pós-estruturalismo é um termo bastante amplo e problemático, que costuma
não distinguir as diferenças entre as teorias dos diversos autores que procura agrupar sob esse mesmo rótulo.
41
O conceito de “corpo sem órgãos”, citado aqui é de Gilles Deleuze (1995), um autor que comumente é
classificado como pós-estruturalista.
59
Os imensos problemas que essa perspectiva de assumir a dança como a mais
privilegiada dentre as artes na potência de instaurar o novo, de transformar, deixam-se
imaginar facilmente: isso não seria colocá-la também como uma referência, como uma
nova norma, ou mesmo outra perspectiva dominante? Lembrando que Foucault (1996)
analisa o corpo como um campo de luta ambíguo e indefinido entre o controle. Segundo
ele, a resistência ao controle é freqüentemente ambígua, marcada por contradições:
Como sempre, nas relações de poder, nos deparamos com fenômenos complexos
[...] O corpo se tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos e os pais,
entre a criança e as instâncias de controle. A revolta do corpo sexual é o contra-
efeito desta ofensiva. Como é que o poder responde? Através de uma explosão
econômica (e talvez ideológica) da erotização, desde os produtos para bronzear
até os filmes pornográficos... Em resposta à revolta do corpo, encontramos um
novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de
controle-estimulação: „Fique nu....mas seja magro, bonito, bronzeado!‟ A cada
movimento de um dos adversários corresponde o movimento do outro. É preciso
aceitar o indefinido da luta (FOUCAULT,1996, p. 146-147)
Para Foucault, está um exemplo de como a ideia de uma libertação definitiva do
corpo, dos mecanismos de controle que operam sobre ele, é impossível, ou de como o
poder, em seus desenvolvimentos estratégicos, aprimora-se e passa investir no corpo de
formas variadas em cada momento. O mesmo corpo nu que outrora era escondido e negado
pelas normais morais rígidas da sexualidade, hoje é exaustivamente exibido e
espetacularizado, sendo dele exigido que se enquadre em um padrão de beleza, ou seja, em
uma nova norma.
Diz-se muito, hoje em dia, que a dança contemporânea (e toda a arte contemporânea
em geral) tem o poder de transformar aqueles que dela fazem a sua prática e também todos
aqueles que se posicionam como espectadores da sua experiência estética. Fala-se em
tomada de consciência e em auto-conhecimento para os indivíduos praticantes desta arte,
em transformações culturais e, é claro, sociais, para o público desta arte. Seria possível pôr
em dúvida afirmativas deste tipo a fim de perguntar: será que é possível afirmar, assim com
tanta certeza, a existência de uma potência transgressiva ou inovadora na estética da dança?
Seria preciso pensar na relação, por exemplo, da dança contemporânea com o
contexto da sociedade capitalista em que vivemos, bem como nas formas complexas como
a cultura tem funcionado contemporaneamente no sentido de fazer funcionar seus
60
mecanismos de poder. Neste sentido, não existiria um não-lugar, fora do poder, onde
qualquer prática corporal ou artística pudesse estar situada. A questão, tal como anunciada,
é bastante profunda e não tenho a pretensão também de aqui me deter em sua problemática.
Assim, ao introduzir tais discussões, meu intuito é de que se leve em conta aqui
aquilo que estou denominando como uma “vontade de ruptura” relacionada à prática dessa
dança, buscando pinçar alguns elementos de ordem discursiva que nele se atravessam. Essa
vontade de ruptura se propõem, entre outras coisas, a desafiar as representações de corpo
presentes em outras danças. Tal preocupação com a negação às “outras” danças é um ideal
perseguido por muitos dos profissionais que desenvolvem linhas de trabalho coreográficas
que são nomeadas como “dança contemporânea”, sendo constitutiva da própria identidade
desse campo. Em outras palavras, o balé clássico, o jazz, a dança de salão, a dança do
ventre, a dança moderna, as danças tradicionalistas, etc. constituem muitas vezes o “outro”
da dança contemporânea, o seu exterior constitutivo. Ou seja, constituem aquilo que certas
vertentes
42
da dança contemporânea necessitam afirmar como o seu contraponto para poder
se constituir enquanto tal.
A partir das noções que serão abordadas no capítulo 3, procurarei problematizar
como a dança contemporânea pode revelar-se como um campo de análises produtivo em
discussões sobre as representações culturais, a construção cultural de identidades e a
inscrição de discursos sobre os corpos. Através dessa perspectiva, proponho uma
abordagem que deixe de conceber o movimento corporal na dança em um sentido
meramente abstrato ou idealizado, como a expressão de uma potência a-histórica (uma
alma? um corpo?) que deseja ser livre. Também deixa de ser visto como tendo um papel
privilegiado na tarefa de modificação das dinâmicas culturais.
Nessa perspectiva, é produtivo interrogar quais lógicas culturais, jogos de poder,
desejos ou interesses atravessam e constituem a dança contemporânea. Ou ainda: como
encontram-se articuladas, nesses processos híbridos de constituição cultural da dança
contemporânea, as representações culturais de gênero?
Com relação ao nero, especificamente proponho-me a pensar a produção e
manutenção de formas de viver o masculino, suas tensões, lutas, resistências e
42
Vale ressaltar que nem todos os coreógrafos atuais de dança contemporânea fundamentam seu trabalho
nessa idéia de negação a outras danças. Cito aqui dois exemplos: o coreógrafo brasileiro Ângelo Madureira,
que faz uma pesquisa em cima do frevo e Bruno Beltrão, que se utiliza da dança de rua.
61
investimentos para apropriação desse lugar que é a dança contemporânea. Ou ainda,
perceber quais são os jogos de verdades que são postos em um determinado momento, em
um determinado lugar para a produção de quem é representado como bailarino.
A problemática que essa pesquisa vem então a delinear diz respeito às implicações
disso que procurei delimitar aqui como um conjunto de representações que funda a idéia de
„dança contemporânea‟ como transgressão, ruptura, liberdade e essencialismo. Assim, a
pergunta colocada nessa pesquisa
43
procura problematizar as articulações que este discurso
da ordem da ruptura ou da revolução essa “vontade de ruptura”, como nomeio aqui, ou o
“dispositivo da novidade” definido por Paixão (2009) , característico da dança
contemporânea, joga com as representações de gênero na produção cultural dos corpos
masculinos. Como esta proposta “filosófica” (uso êmico do termo), que se propõe a ser
inovadora, tem manifestado seus efeitos sobre os sujeitos que praticam essa modalidade de
dança atualmente? Será que ela tem instaurado novas formas de sermos homens e
mulheres? Melhor seria perguntar: estando a dança contemporânea inscrita nesse tipo de
perspectiva da ordem da transgressão, da intenção de revolucionar elementos da cultura,
uma construção transgressora e revolucionária de representações de masculinidade?
Na busca por essas respostas, observo em primeiro lugar a necessidade de analisar a
trajetória da construção da masculinidade dos sujeitos praticantes desta(s) modalidade(s).
Em segundo lugar, identificar as representações de gênero presentes dentro deste universo e
as representações culturais que podem ser ali percebidas.
43
Ver p.19.
62
3. Terceiro movimento: Ferramentas conceituais
Ao longo deste capítulo, irei situando a perspectiva teórica pós-estruturalista, a fim de ir
organizando e construindo as assertivas conceituais que eu assumirei neste trabalho.
3.1. Dança, corpo e cultura
Ao longo da história da Antropologia, muitos autores procuraram refletir sobre a
dança em suas relações com a cultura e a sociedade. Merriam apud Royce (1977, p.13), por
exemplo, considera que “dança é cultura e cultura é dança (...) assim, a entidade da dança
não é separável do conceito de cultura”. Hanna (1999, p.14) diz que [...] as danças são
atos sociais que contribuem para o contínuo surgimento da cultura”
Essa mesma autora define a dança como um comportamento humano composto por:
1) ser proposicional, 2) ser intencionalmente rítmico, 3) ter seqüências padronizadas
culturalmente, 4) ter outras atividades motoras que não as cotidianas, 5) ter movimentos
com valores estéticos e inerentes (HANNA, 1979). De uma forma similar, a etnocenologia
(PRADIER, 1998), define a dança como um comportamento extra-cotidiano que inclui uma
intenção de espetacularidade, que portanto engloba não apenas o atuante (o dançarino), mas
também aquele que o vê (o espectador), a partir de uma articulação social.
Estas são reflexões de abordagens com viés mais antropológico, que num sentido
mais geral, são concordantes com a perspectiva que procurarei adotar nesse trabalho. Em
um sentido mais circunscrito, no entanto, faz-se necessária uma melhor delimitação das
noções de cultura, linguagem, corpo e sociedade, uma vez que constituem ferramentas
conceituais com significados amplamente disputados, apresentadas muitas vezes a partir de
compreensões bastante diferentes, dependendo da teoria ou do referencial utilizado.
A linguagem, dentro da perspectiva pós-estruturalista, não é um simples
instrumento de comunicação ou de transmissão de informação. Ela é vista como repositória
chave de valores e de digos que constroem as formas como as pessoas compreendem a si
próprias e aos outros e as formas como descrevem e interpretam o mundo. Ela tem uma
importância muito grande no processo da construção, regulação e classificação de
significados e, através dos jogos de sentido que ela faz operar, atua na constituição de toda
63
a vida social. Somente quando algo é significado através da linguagem é que adquire
existência dentro da cultura.
No entendimento de um de seus principais teóricos dos Estudos Culturais, Stuart
Hall, a cultura “[...] não é nada mais do que a soma de diferentes sistemas de classificação e
diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às
coisas” (HALL, 1997, p.12). A cultura não é vista aqui como uma entidade monolítica ou
homogênea, mas sim como um campo que se manifesta de maneira diferenciada de acordo
com a formação social ou com a época histórica. Ela também é entendida como “[...] o
terreno real, sólido, das práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade
histórica, bem como as formas contraditórias de „senso comum‟ que se enraízam na vida
popular e ajudam a moldá-la” (HALL, 1997, p.15). Ela é constituída por idéias, atitudes,
sentimentos, proposições morais, relações e desejos (CORAZZA, 2001).
A cultura também não significa simplesmente sabedoria recebida ou experiência
passiva, mas sim um grande número de intervenções ativas que visam constituir sujeitos e
práticas sociais. É nas relações sociais, atravessadas por inúmeros símbolos, discursos,
representações e práticas culturais, que as subjetividades humanas vão sendo constituídas,
arranjando e desarranjando suas formas de se situarem no mundo. Dentro dessa perspectiva,
o sujeito
44
está constituído, é formado e regulado pelos discursos
45
da cultura, pela ordem,
pelas posições e diferenças que esses discursos estabelecem. Não há um indivíduo autor por
trás da linguagem, sempre o exterior discursivo que o constitui, ou seja, a cultura onde
esse indivíduo vive e onde é convocado a tornar-se sujeito.
Em virtude desse caráter de investimento político que age na direção de configurar
socialmente determinados tipos de sujeitos, a produção, distribuição e recepção cultural
está intimamente relacionadas às disputas pelo direito de instituir sentidos. A cultura é vista
assim não como uma forma de vida global, mas como um enfrentamento entre modos de
vida diferentes. Canclini (2005) ao invés de definir a cultura como um sistema de
44
O conceito de sujeito é o de Michel Foucault, que significa uma posição criada pelo discurso no interior da
linguagem. Ele não será aqui abordado, visto não se tratar de um conceito central para esse trabalho e pelo
fato de mais adiante eu optar pelo uso do conceito de identidade.
45
O conceito de discurso que estou utilizando aqui também é o de Michel Foucault (2006). Trata-se de um
conceito complexo, que abordo aqui apenas num sentido muito geral, quase como sinônimo de linguagem. Na
próxima sessão, ele será melhor aprofundado.
64
significados partilhados
46
, propõe falar mais em “cultural” e menos em “cultura”, isso é,
“adjetivizá-la”, como forma de se referir a uma dimensão de conflitos, disputas, diferenças
e não a algo apropriado tranqüilamente por todos os indivíduos.
De acordo com essa perspectiva, compreendo que a dança é uma prática social
constituída por linguagens. Ela não é, em si, uma linguagem, como sugerem por exemplo
algumas teorias sobre dança marcadas por tendências exageradamente comunicacionais
47
.
Mas ela é atravessada e construída por linguagens. Examinar a dança sob essa perspectiva
implica em ver muito mais, por exemplo, na aparente inocência das técnicas e dos gestos
corporais do dançarino, do que uma mera “expressão” individual de emoções, ou mera
manifestação de uma intencionalidade livremente comunicativa, noções estas que aparecem
em muitos dos conceitos êmicos sobre a dança que emergiram do meu estudo do campo.
Os sentidos e os símbolos produzidos no corpo a partir da dança são sempre
constituídos a partir das condições de possibilidade históricas dadas pela linguagem e pela
cultura. Portanto, todo o potencial comunicativo do corpo na dança é uma produção
cultural. Os seus processos simbólicos artísticos, corporificados em coreografias, são
articulados continuamente a processos de sistemas simbólicos culturais extra-artísticos e
encontram-se ligados a estes. Ou seja, não é possível analisar a dança sem levar em conta
questões culturais mais amplas relacionadas ao contexto onde ela é produzida.
Podemos compreender a dança tal como a define Hanna (1979), como um
“comportamento propositado”, ou, como define Pradier (1998), como um “comportamento
espetacular”,uma vez que o dançarino executa toda uma preparação prévia ao ritual ou
performance de dança e, quando dança, não está realizando movimentos cotidianos, mas
sim movimentos extra-cotidianos, tendo como intenção gerar um espetáculo artístico. Nessa
perspectiva, não significa ver essa intencionalidade a partir de uma noção de sujeito auto-
centrado, isto é, de uma vontade individual totalmente autônoma. Pelo contrário,
justamente por ser um comportamento espetacular, por implicar sempre em um “dar-se a
ver” a algum público, a dança tem um aspecto de articulação social. Esse aspecto assume
46
Definição dada, por exemplo, por Geertz (1989, p. 15)
47
Helena Katz, por exemplo, define a dança como “informação” (KATZ, 2003, p.261). É em grande parte
nesse tipo de perspectiva reduzida apenas à análise do processo de comunicação, no qual os aspectos políticos
(das relações de poder) dos processos culturais são omitidos, que a dança foi, por muito tempo, compreendida
na produção acadêmica no Brasil (AQUINO, 2000; GREINER, 2002; KATZ, 2003).
65
aqui uma dimensão tão importante que, mais do que um comportamento ou ato de criação
individual, importa pensar a dança como uma prática cultural.
A perspectiva aqui adotada é a do chamado construcionismo social, termo que,
segundo Schillingh (1993, p.72) “[...] abarca todas aquelas visões que sugerem que o corpo
é de alguma forma modelado, construído e até inventado pela sociedade.”
A postura básica dessa perspectiva é negar conceitos universalizantes, essencialistas
e a naturalização dos fenômenos sociais, porque compreende serem esses respostas muito
simplistas para problemas complexos. O ser humano deve ser pensado como um ser em
interação e segundo o construcionismo, a mais importante manifestação interacional é a
linguagem. Assim, o construcionismo entende que a realidade dos sujeitos deve ser
concebida numa visão sistêmica e dinâmica. A dicotomia “mundo interno/ mundo externo”
é então abolida (BERGER; LUCKMANN, 1995).
O construcionismo entende que os seres humanos são discursivamente construídos
nas práticas cotidianas. Práticas estas efetivadas numa realidade fragmentada, difusa e
complexa (LYE, 1997). Portanto, “questionando os pressupostos do essencialismo, a teoria
construcionista social deslocou o foco da atenção da pessoa para o domínio social”
(NOGUEIRA, 2001, p. 146), pela observação e análise da realidade a partir de uma visão
sócio-histórica, e enfatizando que os sujeitos e as práticas são produzidos na e pela cultura.
Como observa Goellner (2003, p. 29):
[...] mais do que um dado natural cuja materialidade nos presentifica no mundo, o
corpo é uma construção sobre a qual são conferidas diferentes marcas em
diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, etc.
[...] . Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações,
o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele
se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os
sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam, os vestígios que
nele se exibem, a educação de seus gestos [...] enfim, é um sem limite de
possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas.
Sigo nesse trabalho a idéia de corpo cultural, no sentido em que aqui é adotada por
Goellner. Em outras palavras, entendo o corpo como um lugar de construção e de inscrição
de significados pela cultura. Mais do que isso, compreenderei o corpo como um local onde
a cultura opera um intenso investimento político, onde muitos dispositivos ligados a certas
vontades e efeitos de poder podem estar instalados. Nesse sentido, trago aqui as palavras de
66
Butler (2002) observa que [...] os discursos
48
habitam os corpos. Eles se acomodam em
corpos; os corpos carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode
sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso.” (BUTLER, 2002, p.163).
Nessa perspectiva, cada corpo já carrega em si certas narrativas em forma de
discursos. Portanto, o corpo do bailarino já carrega narrativas de ordem social anteriores à
sua experiência artística com a dança. Dizendo de outra forma: esse corpo é impregnado
por significados sociais que moldarão os modos de comunicar, de perceber, de sentir e de
produzir dança. Ou seja, o corpo que dança também é um corpo que é dançado, pois através
dele falam as vozes, os símbolos, as crenças, as condutas corporais e os significados que
nele são inscritos pela cultura.
Na perspectiva dos estudos pedagógicos fundamentados na noção construcionista
dos Estudos Culturais, tem-se procurado evidenciar os mecanismos ou os caminhos através
dos quais a cultura inscreve seus significados nos corpos e produz sujeitos. Tem-se
considerado então que a cultura faz funcionar autênticas pedagogias culturais,
49
que criam,
instituem, inventam modos das pessoas serem e de estarem no mundo e que produzem
desejos, fantasias, emoções, etc.
Nesse contexto, a dança, ao produzir suas obras de arte (espetáculos cênicos,
coreografias, performances, comportamentos espetaculares, etc) constrói continuamente
artefatos culturais, que estão também na posição de atribuir sentidos ao mundo. Assim, a
dança pode ser compreendida como uma instância, ao mesmo tempo em que é produzida e
inventada na e pela cultura, simultaneamente produz cultura. Em outras palavras, ela pode
funcionar como uma forma de pedagogia
50
capaz de por em circulação e em funcionamento
certos discursos culturais, representações, etc. Portanto, a dança é uma construção cultural,
mas em uma operação inversa, também pode-se considerar que as outras instâncias da
cultura são constituídas por representações perpetuadas pela dança.
48
A autora segue a teorização do filósofo Michel Foucault, que procurou em suas obras especialmente em
„Vigiar e Punir‟ (1989) analisar as maneiras como o corpo veio sendo, ao longo da história, se constituindo
como objeto de investimento de relações de poder, através da produção de discursos voltados à produção de
verdades sobre esse corpo.
49
Segundo Henry Giroux (1995), toda a cultura, através de um amplo aparato de artefatos culturais, atua em
nós como uma forma de pedagogia. Isso ocorre “em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a
experiência e construir verdades.” (GIROUX, 1995, p144).
50
Voltarei a essa questão mais adiante, onde procurarei evidenciar a dança como uma pedagogia de gênero.
67
3.2. Discurso e representações culturais
Ao conceituar linguagem, referi-me rapidamente a discursos e representações
culturais. Nessa sessão, apresento brevemente esses conceitos, buscando diferenciá-los e
apontar qual deles elegerei como principal ferramenta de análise neste trabalho.
O conceito de discurso aqui utilizado é o de Michel Foucault. Segundo esse autor, o
discurso [...] não é um conjunto de signos, mas uma prática que sistematicamente forma os
objetos de que fala”. (FOUCAULT, 1995, p.50). Portanto, como observa Rosa Fischer
(2003, p.85), [...] o discurso, nessa acepção, o se confunde com fala, oratória, frases,
enunciações, como acontece ao usarmos essa palavra no cotidiano”. O discurso “constitui
nossas práticas e é constituído no interior dessas mesmas práticas.” (FISCHER, 2003, p.
85). Ele é uma forma de produzir um tipo particular de verdade. (FISCHER, 1995).
Como observa Fairclough (2001), o discurso, para Foucault, sempre opera a partir
de uma formação discursiva, que é o conjunto de regras referentes à sua formação. Nessa
concepção, os discursos são uma dispersão, ou seja, são formados por elementos que não
estão ligados por nenhum princípio de unidade a priori, e que a formação discursiva
correlaciona, ordena, posiciona, possibilitando assim a passagem da dispersão para a
regularidade. Em Foucault, as regras que determinam uma formação discursiva apresentam-
se como um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias.
Os discursos se manifestam ou operam através das distintas formas de linguagem
que constituem a cultura (textos, falas, imagens, elementos arquitetônicos, usos do espaço,
atitudes, maneiras de ser, esquemas de comportamento, gestos ou movimentos corporais,
etc). Tais formas de linguagem são exemplos de enunciações ou de representações sobre
determinados objetos de um discurso. São elas que organizam os sistemas de relações que
compõem as regras das formações discursivas.
Neste trabalho, procuro enfocar as representações culturais, e não os discursos. A
representação cultural refere-se a uma das instâncias da produção discursiva de significados
através da linguagem. Ela é um dos processos pelos quais os significados culturais são
produzidos discursivamente. Ela implica em modos de representar, em modos de usar
signos diversos, que se referem a objetos, pessoas, sentimentos, fantasias, sonhos e desejos.
68
Assim, enquanto o discurso refere-se a um conceito mais abrangente, que diz
respeito a um campo de saberes muito bem articulado entre si, a representação cultural
refere-se a um dos componentes que tece o discurso. Segundo Fischer (2003), o conceito de
discurso inclui o conceito de representação
51
. Na medida em que se identificam
representações culturais, se identifica um dos elementos dos discursos.
A representação cultural difere da representação social, utilizada por exemplo em
outras vertentes teóricas, como a Filosofia e a Psicologia Social, tal como observa Silva
(2000). Na representação cultural, considera-se que a representação é ligada sempre a
cadeias de outras representações culturais, tornando-se visível na materialidade dos
artefatos culturais (ao invés de emanar do interior dos indivíduos), e sendo constitutivas dos
próprios sujeitos. A representação cultural também implica sempre e necessariamente em
relações de poder, visto que esta produção de significados e de sujeitos através da
linguagem não se de forma tranqüila. por isto os chamados regimes dominantes ou
hegemônicos de representação cultural: os “sistemas de significação cuja pretensão consiste
em expressar o humano em sua totalidade” (SILVA, 1999 p. 33).
As representações culturais são produzidas e consumidas a partir de diferentes
instâncias e estão submetidas a processos de regulação social (ou seja, relações de poder).
Isso está relacionado à construção de valores, à cristalização de conceitos e preconceitos, à
formação do senso comum, à constituição de identidades sociais (de gênero, étnicas, etc.),
sexuais, políticas e também à constituição de subjetividades. (FISCHER, 2003).
Neste trabalho, abordo as representações culturais sobre dança e examino que papel
elas jogam com as representações culturais de gênero. Embora não esteja analisando o
discurso, em alguns momentos, falarei da existência de uma produção discursiva sobre a
dança. No que tange ao conceito de representação, sempre uma produção de sentidos
que é discursiva. O objetivo deste trabalho, no entanto, será efetuar uma análise, a partir de
excertos de entrevistas, de representações culturais.
Retomando, portanto, o que eu já abordei até aqui, podemos concluir que: a) a dança
é uma construção cultural. Ela se constitui de diferentes formas, como um espaço que se
modifica de acordo com a cultura de cada época e com a organização da sociedade. A cada
momento histórico, aparecem condições de possibilidade que fazem com que a prática da
51
Assim como também inclui outros conceitos, como o de ideologia. (Fischer, 2003. p 90)
69
dança se manifeste de maneiras diferentes. b) a existência de uma produção cultural sobre a
dança não pode ser analisada de forma independente das realidades sociais concretas dentro
das quais existem e a partir das quais essa produção se manifesta. Analisar as práticas
sociais em torno da dança implica em analisá-la como uma prática que é constituída,
atravessada e regulada por representações culturais mas que também funda sentidos, cria
símbolos, e portanto, põe em circulação representações culturais e faz operar mecanismos
pedagógicos de constituição dos sujeitos. c) a partir da noção de cultura utilizada neste
trabalho, é possível conceber que a construção cultural de uma prática artística como a
dança implique em um processo inevitavelmente político, ou seja, de lutas por imposição
de diferentes sentidos dentro da cultura.
Nesse sentido, eu diria que a dança funciona como um dispositivo transitivo de
mediação nos mecanismos de reprodução das relações de poder da cultura. À medida em
que ela simultaneamente é constituída por representações culturais e as constitui, ela
também é simultaneamente produto de relações de poder e as põe em funcionamento. Nela
estão atravessadas as diferentes lutas e disputas em torno do(s) significado(s) do corpo, do
sujeito, da arte contemporânea, da construção social das identidades dos sujeitos, etc.
Assim, ela pode servir de suporte para a ação de mecanismos sociais de poder que
permitem fundar, dar sentido, incluir, marginalizar ou excluir.
É possível analisar as representações culturais que circulam entre os praticantes de
dança a partir de vários enfoques que priorizem as relações de poder. Ou seja, é possível
analisar aquilo que institui nesses sujeitos certas formas de dançar, que regulam a
configuração dos seus corpos e a maneira de usá-los, através de processos de tensões e de
negociações. Um destes enfoques é o que articula a dança com o gênero.
3.3. Sobre o conceito de gênero
Joan Scott (1995, p.86) define o gênero como o [...] elemento constitutivo das
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas culturalmente entre os sexos”. Para
essa autora, gênero indica construções de idéias e representações sobre os comportamentos
e as características adequadas às identidades subjetivas de homens e mulheres. Gênero é,
assim, uma [...] categoria social imposta sobre corpos sexuados” (SCOTT, 1995, p. 75).
70
Em outras palavras, gênero seria o processo pelo qual as diferenças dos corpos humanos
são trazidos para dentro das práticas sociais, de forma a adquirirem significados culturais.
Nicholson (2000) aprofunda o conceito de gênero. Ela rejeita a ideia de que a
construção cultural das diferenças entre homens e mulheres, ou seja, a construção do
gênero, ocorra com base em qualquer diferença biológica. Ela defende que o próprio sexo
(as diferenças sexuais), só têm existência para nós depois de complexos processos de
significação através da linguagem. Portanto, tanto o sexo como o nero devem ser
tomados como categorias culturais de construção do mundo. (NICHOLSON, 2000).
Butler (2003) segue na mesma direção ao afirmar que o gênero se produz por um
processo performático
52
. O gênero começa a ser regulado, por exemplo, desde que se
anuncia que um bebê é menino” ou “menina”. Esse anúncio determina uma cadeia de atos
de linguagem, criando um discurso coercitivo em relação ao gênero que visa a moldar o
gênero e a forma como o indivíduo viverá: por exemplo, o controle sobre o tipo de roupas
que a criança poderá usar, as cores, os brinquedos, etc. Assim, para Butler, o sujeito de
gênero é considerado o sujeito de uma performatividade
53
, pelo fato de ser um efeito
produzido ou gerado através de uma encenação, um jogo de interpretações do corpo, a
partir de um roteiro pré-estabelecido de atos correspondentes com normas sociais.
Para Butler afirmar que o gênero é performativo significa dizer que o gênero não é
fundado com base em nenhuma essência biológica, mas que é constituído por um jogo de
práticas que produzem o efeito ou a ilusão dessa essência. A noção de gênero como
construído com base em um substrato biológico e como a garantia de identidade de um
sujeito é uma ilusão mantida para os propósitos da regulação da sexualidade dentro do
marco obrigatório da sexualidade reprodutiva. Assim entendido, o gênero é entendido como
52
A partir da noção foucaultiana de que os discursos são formadores de subjetividades e também da teoria
dos atos de fala de John Austin, - especificamente da leitura que Jacques Derrida faz de Austin - Judith Butler
propõe considerar o gênero como “performático” (Butler, 2003).
53
Não confundir com o conceito de “performance”, que em Antropologia por exemplo, Turner (1981) e
Goffmam (1989) - também se utilizam da metáfora da vida social como um palco onde desencadeiam-se
cenas em que as pessoas estão sempre assumindo papéis para representar. Mas se, por exemplo, para Turner,
as performances revelam “o caráter profundo, genuíno e individual de uma cultura” (Turner, 1982 apud
Taylor, 2003, p. 19), pelo contrário, para Judith Butler (2003), o caráter performático do gênero significa não
o “real genuíno”, mas exatamente o seu oposto: a artificialidade e a encenação. Butler enfatiza, portanto, a
noção de processo e de construção singular de cada sujeito, dentro de um campo situado de possibilidades que
é reafirmado ou renegociado através de práticas concretas, através das quais os sujeitos se constituem.
71
uma ficção regulatória, que encarna uma “performatividade” através da repetição de
normas que dissimulam suas próprias convenções.
Scott também define gênero como uma “forma primária de dar significado às
relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Ou seja, gênero, na medida em que constitui a
organização concreta e simbólica de toda a vida social, revela-se como um campo no
interior e por meio do qual as relações de poder que constituem as relações sociais se
articulam. Assim como a etnia, a classe ou outros marcadores simbólicos que constituem
diferenças, gênero é sempre uma construção política, ou seja, envolvida com jogos, lutas e
disputas em torno do direito da significação e dos sentidos.
Para desenvolver a relação entre gênero e poder Scott (1995) recorre à noção de
poder de Foucault, tal como é utilizada também nos Estudo Culturais. Como observa
Marshall (1994), Foucault, na sua análise do poder, o relaciona com formas de "governo",
entendendo esta palavra não no sentido de estruturas estatais, mas sim da forma pela qual a
conduta dos indivíduos ou grupos podem ser dirigidas. Por "governo", Foucault quer dizer:
[...] a forma de atividade dirigida a produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou a afetar
a conduta das pessoas de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo (...)
a formar as próprias identidades das pessoas de maneira que elas possam ou
devam ser sujeitos. (MARSHALL, 1994).
Num sentido inteiramente foucaultiano, Hall (2000) afirma que a cultura atua de tal
modo na formação da vida social, por meio da intensificação dos meios de regulação e de
vigilância da conduta dos sujeitos, que nela atua um autêntico [...] governo da cultura”.
(HALL, 2000, p. 120). No que diz respeito às nossas masculinidades e feminilidades, por
exemplo, essa perspectiva implica em ressaltar o caráter de produção cultural dos gêneros
(seu caráter performático) e investir na análise e na reflexão das formas de regulação, ou
seja, nos mecanismos através dos quais a cultura nos “governa” enquanto sujeitos de
gênero, por meio de certas lógicas, estratégias, técnicas e modos de funcionamentos.
Para Foucault (2003, p.89) [...] o poder não é uma instituição e nem uma estrutura,
não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada. O poder não tem uma matriz
específica. Pode-se localizar somente os pontos ou os locais de aplicação ou manifestação
dos seus efeitos, mas nunca a sua origem. Assim, o poder pode ser exercido, praticado,
72
mas jamais possuído e apropriado. O poder é uma correlação de forças múltiplas, que se
formam e que atuam em todo o conjunto do corpo social.
Não existe, nessa perspectiva, a tradicional dualidade opressor/oprimido, isto é, a
oposição binária entre dominadores e dominados, ou entre aqueles que detêm o poder e
aqueles que sofrem seus efeitos. Não existem posições fora do poder, seja como sua fonte
geradora, seja em oposição a ele. Todos são invariavelmente por ele influenciados e
também todos o produzem. Não existe um único poder, mas sim “estados de poder”:
múltiplos efeitos ou situações criadas a partir das relações de desigualdade e desequilíbrio
na interação das múltiplas correlações de forças, localizadas e instáveis, nas relações
“micro”, no cotidiano, nas relações, nas pequenas organizações e práticas socio-culturais.
Os estudos pós-estruturalistas de gênero (SCOTT, 1995; BUTLER, 2003; LOURO,
2008) tem procurado pensar as formas de poder implícitas nas relações de gênero na
condição de superar alternativas de análise que aprisionem essas relações em oposições
binárias entre dominadores e dominados. Nesse sentido, esses estudos rejeitam a noção de
uma “dominação masculina”, isto é, a idéia de que os homens tenham sido por muito tempo
detentores do poder, tal como é defendida por algumas teorias sociológias
54
.
A partir da noção foucaultiana de poder, entende-se que o gênero pode legitimar
relações de desigualdade ou até mesmo de violência (concreta ou simbólica), por meio da
construção de parâmetros culturais de superioridade de um grupo social sobre o outro. Mas
essas relações de poder são muito mais complexas, e não podem ser reduzidas à supremacia
de homens sobre mulheres. Elas incluem também o consentimento e adesão das mulheres,
ou a coerção daqueles homens que não se incluem no padrão cultural de masculinidade
55
. A
desigualdade é entendida aqui como um processo relacional, isto é, como uma relação que
surge a partir da construção cultural das representações de masculinidades e feminilidades.
No contexto desses estudos, tem-se falado em representações hegemônicas de
gênero. Connell (1997) explica, por exemplo, que na concepção cultural hegemônica
moderna (européia/americana), a masculinidade só existe em contraste com a feminilidade.
E que as mulheres e os homens são freqüentemente tratados como portadores de tipos de
54
Godelier (1982), Singly (1987, 1993, 1996, etc.), Bozon (1998), Bourdieu (1990, 1998) e Comaille (1992).
55
Por exemplo, o caso dos homens que dançam, conforme probelamatizo nesse trabalho.
73
caráter polarizados. As representações hegemônicas reforçam, assim, a continuidade de
relações de poder desiguais, fundantes de desigualdades sociais.
Por outro lado, a desigualdade de gênero está sempre articulada com outros tipos de
desigualdades. Por exemplo, em nossa cultura ocidental moderna, as representações
hegemônicas de gênero tem historicamente se articulado com representações hegemônicas
de sexualidade. Dessa forma, os modelos dominantes de masculinidade e de feminilidade
foram sendo construídos em cima da noção de que a heterossexualidade é a forma de
sexualidade mais “correta”, mais “normal” e mais desejável para a identidade de gênero.
Por isso o/a homossexual é freqüentemente aquele/a que não é considerado um homem ou
mulher autêntico/s.
No contexto dos estudos de gênero aqui referenciados, se diz que a nossa cultura é
marcadamente heteronormativa
56
. A heteronormatividade, segundo Butler (2003), é um
dispositivo cultural de poder, que age através do gênero, com o objetivo de produzir corpos
heterossexuais. Butler (2003, p.198) afirma a esse respeito que
[...] é crucial manter uma relação não casual e não redutiva entre gênero e sexualidade.
Exatamente devido ao fato de a homofobia operar muitas vezes através da atribuição aos
homossexuais de um gênero defeituoso, de um gênero falho ou mesmo abjeto, é que se
chama os homens gay de “femininos” ou se chama as mulheres lésbicas de “masculinas”.
Para Scott (1995,p.77), [...] ainda que as relações sexuais sejam definidas como
sociais, não nada, salvo a desigualdade inerente à relação em si mesma, que possa
explicar porque o sistema funciona assim”. Isto permite analisar a heterossexualidade não
apenas como uma prática sexual mas também como um regime político de verdade, cujos
efeitos de poder servem para construir processos de diferenciação produtores de
desigualdade social. Este tipo de proposição permite também conceber que as identidades
de gênero não apenas expressam as concepções próprias de uma cultura e de uma época
sobre os homens e as mulheres, mas também atuam como legitimadoras de relações sociais
de poder, ou seja, instituem, fabricam, constroem essas concepções.
56
Na opinião de Deborah Britzman, a heteronormatividade é “a obsessão com a sexualidade normalizante,
através de discursos que descrevem a situação homossexual como desviante”. (BRITZMAN, 1996, p. 79).
Essa pressuposição de que a sexualidade heterossexual é a “normal”, sendo qualquer outro tipo de
sexualidade diferente dela uma “anormalidade”, é um dos mecanismos da regulação dos gêneros.
74
A perspectiva pós-estruturalista assume não a construção cultural do gênero e da
sexualidade, mas enfatiza também a centralidade que a linguagem assume nos processos de
constituição de sujeitos femininos ou masculinos. Nessa direção, Connel (1987) e Louro
(2008) observam que o gênero deve ser entendido como algo que vai muito além da idéia
de meros “papéis sexuais”
57
, pela forma complexa como se articula com as relações de
poder dentro da cultura. Entende-se aqui que a cultura e a sociedade são constituídas por
representações - múltiplas, provisórias e contingentes - de gênero e sexualidade e, ao
mesmo tempo, produzem e/ou ressignificam essas representações (MEYER, 2004).
3.4. A construção cultural das masculinidades hegemônicas
Os estudiosos de gênero empregam dois termos para designar as masculinidades
ocidentais: hegemônica (ou dominante) e subalterna (ou marginal). O primeiro termo
refere-se ao padrão de masculinidade ocidental: um homem jovem, casado, branco, urbano,
heterossexual, pai, com educação superior, cristão, com algum recorde esportivo recente e
bem empregado (KIMMEL,1998). O segundo refere-se a todos os indivíduos do sexo
masculino que não se alinham às normas da masculinidade hegemônica (CONNEL,1997).
Como observa Connell (1997), a masculinidade hegemônica é a modalidade cultural
que aparece como a mais correta e a mais bem sucedida. Ela é reforçada continuamente,
nas diversas instituições sociais (locais de trabalho, universidades, serviço público, forças
armadas, mídia, família, etc.), por um conjunto de privilégios que dão aos indivíduos que a
ela aderem ou não, maiores ou menores chances de sucesso na vida. Seffner (2003) define,
assim, a masculinidade hegemônica como “[...] o modo de viver masculino que desfruta da
maior concentração de privilégios, num dado sistema de relações de gênero.” (p.125). Essa
noção de masculinidade hegemônica não deve, no entanto, ser utilizada como uma
categoria fixa. Deve levar em conta que a masculinidade:
não é uma propriedade de algum tipo de essência eterna, nem mítica, tampouco
biológica. Elas (1) variam de cultura a cultura, (2) variam em qualquer cultura no
transcorrer de um certo período de tempo, (3) variam em qualquer cultura através
de um conjunto de outras variáveis, ou lugares potenciais de identidade e (4)
57
A teoria dos papéis sexuais, utilizada por muitos antropólogos e sociólogos, não vai muito além da esfera
de vida da família e das relações sociais, ignorando o espectro mais amplo das relações de poder da cultura.
75
variam no decorrer da vida de qualquer homem individual. (KIMMEL,1998,
p.105).
Em cada sociedade, a todo momento, sempre múltiplos sentidos acerca do que
significa “ser homem” sendo continuamente construídos. A hegemonia
58
de um modelo
sobre os outros ocorre na medida em que consegue articular essas múltiplas e diferentes
concepções de forma que seja neutralizado o seu potencial antagonismo. Tal articulação é
estrategicamente forjada, no âmbito do discurso e da representação, a fim de criar a ilusão
de uma uniformidade, de um modelo único. Assim, em cada contexto cultural específico, as
representações de masculinidade hegemônicas tendem sempre a subordinar as outras
representações de masculinidade. Essa subordinação ocorre com a demarcação daquilo que
não é masculino.
Como observa Louro:
a masculinidade hegemônica constrói-se não apenas em oposição à feminilidade,
mas também em oposição a outras formas de masculinidade. Tornar-se masculino
pode implicar na combinação de uma heterossexualidade compulsória associada à
homofobia e à misoginia. (LOURO, 2000, p.70)
A lógica heteronormativa está presente nas construções culturais hegemônicas tanto
do masculino quanto do feminino. Mas é no masculino que ela parece ter maior força, ou
receber maior investimento. A esse respeito Weeks (2000, p.67) observa:
[...] a transformação na vida familiar, a partir do século XVIII, e as marcadas
distinções de papéis sociais e sexuais masculinos e femininos associadas com isso
tiveram o efeito de aumentar a estigmatização dos homens que não se
conformassem prontamente aos papéis sociais e sexuais deles esperados. Aqueles
que rompessem com as expectativas sociais do que era considerado ser um
homem eram categorizados como não sendo homens de verdade. [...] As atitudes
em relação às mulheres eram significativamente diferentes, refletindo a sua
58
A hegemonia é a capacidade revelada por um ou mais grupos sociais de dirigir outros grupos sociais
através do consentimento. O conceito foi originalmente criado por Antonio Gramsci, em oposição à noção de
anta-gonismo total presente nos conceitos marxistas de base e super-estrutura. Foi posteriormente retomado
por Louis Althusser. No âmbito dos estudos da cultura, Williams (1977 e 1983), Said (1994), Hall (2003) e
outros investigaram as possibilidades de seu uso. Assim, por exemplo, para Hall, a hegemonia é um processo
de “coordenaçãoentre os interesses de um grupo dominante e os interesses dos demais grupos sociais e o
Estado. Tal “coordenação” constituiria a “hegemonia de um bloco histórico particular” (HALL, 2003, p. 311).
Para Slack (1996, p114), hegemonia é o “processo de criar e manter consenso ou de coordenar interesses”,
dentre um conjunto de crenças e práticas.
76
subordinação social e sexual e a expectativa de que elas não poderiam ser
autonomamente sexuais. (WEEKS, 2000. p.67)
Como observa ainda Almeida (1995, p. 17), a masculinidade hegemônica é um “[...]
modelo cultural ideal que, não sendo atingível por praticamente nenhum homem, exerce
sobre todos os homens um efeito controlador.”.
Scott (1995) observa que os homens e as mulheres reais nem sempre cumprem
rigorosamente as prescrições de sua sociedade. Por isso, é preciso examinar as formas pelas
quais as identidades generificadas são construídas e relacionar seus achados com toda uma
série de atividades, organizações e representações sociais historicamente específicas, a fim
de pensarmos em diferentes possibilidades ou modos de subjetivação e singularização
vivenciados por homens e mulheres. Como observa também Connel (1995. p. 189) “[...]
diferentes masculinidades são produzidas no mesmo contexto social.” É preciso, pois,
analisar as masculinidades em seus contextos específicos.
3.5. Masculinidades e dança: construindo uma articulação
Gênero, a partir da perspectiva aqui abordada, está relacionado com toda a
organização de uma sociedade, com as instituições sociais (a educação, o sistema político,
etc.), com os conceitos normativos sobre o masculino e o feminino, com os símbolos
culturalmente disponíveis, a economia, o Estado, etc. (CONNEL, 1995; SCOTT 1995).
Esta perspectiva considera, em suma, que discursos e representações que
contextualizam as significações de ser homem ou mulher são postos em ação em variados
espaços e circunstâncias sociais. Aponta assim para a importância de pensarmos nas formas
como aprendemos, no cenário da cultura, modos de sermos homens e mulheres, através dos
símbolos, das instituições, dos conhecimentos, das normas e das práticas sociais.
Como observa Meyer (2001, p.17):
[...] Inscreve-se, nesse pressuposto, uma articulação intrínseca entre gênero e
educação uma vez que esta posição teórica amplia a noção de educativo para
além dos processos familiares e/ou escolares, ao enfatizar que educar engloba um
complexo de forças e de processos (que inclui, na contemporaneidade, instâncias
como os meios de comunicação de massa, os brinquedos, a literatura, o cinema, a
77
música) no interior dos quais indivíduos são transformados em e aprendem a se
reconhecer como homens e mulheres, no âmbito das sociedades e grupos a que
pertencem. Argumenta-se, ainda, que esses processos educativos envolvem
estratégias sutis e refinadas de naturalização que precisam ser reconhecidas e
problematizadas.
Segundo Louro (2004), definir alguém como homem ou mulher significa nomear,
classificar ou “marcar” o seu corpo no interior da cultura. Para que isso ocorra, é necessário
que normas regulatórias de gênero e de sexualidade sejam continuamente reiteradas e
refeitas. Essas normas, como quaisquer outras, são invenções sociais. A partir delas, os
corpos são “datados”, fazendo-se históricos, situados e recebendo um valor social que lhes
uma legitimidade como sujeitos. (LOURO, 2004). Através deste processo se instituem
as desigualdades, os ordenamentos e as hierarquias. E ele está, sem dúvida, estreitamente
imbricado com as redes de poder que circulam numa sociedade.
Connel (1995), da mesma maneira, afirma que o gênero é uma prática social que se
dirige fundamentalmente aos corpos. O processo de educação de homens e mulheres supõe
uma construção social e corporal dos sujeitos, o que implica - no processo
ensino/aprendizagem de valores - conhecimentos, posturas e movimentos corporais
considerados masculinos ou femininos. Assim, um jeito corporal de ser masculino e um
jeito corporal de ser feminino, com atitudes e movimentos corporais socialmente
entendidos como naturais para cada sexo. Ele o exemplo das masculinidades e diz que
nós a vivenciamos “[...] como certas tensões musculares, posturas, habilidades físicas,
formas de nos movimentar, e assim por diante” (CONNEL, 1995, p.189). No mesmo
sentido, Judith Butler (2003, p.199), afirma que o gênero “é um estilo corporal, um ato”.
Todos esses estudos têm apontado significativamente para o entendimento e a
problematização de que relações de poder socialmente construídas, por exemplo, através de
categorias como gênero, dependem da ritualização de gestos corporais e da padronização de
certos usos do corpo. A partir disso, pode-se perguntar: o que é a dança senão uma
ritualização do gesto? De onde parte a dança senão desses corpos que, antes de dançarem,
já carregam em si todos os discursos e representações da cultura?
Assim, é produtivo tomar o conceito de gênero como uma ferramenta para analisar
o que a dança nos diz acerca dos mecanismos de disciplinamento e regulação dos corpos,
ou seja, das normas de gênero que operam dentro da nossa cultura. Isto é, analisar a forma
78
como os corpos são produzidos, dentro desta prática social que é a dança, que é
inevitavelmente constituída por representações de gênero e também de sexualidade, tendo
como foco os jogos de poder que estão incluídos, perguntando-nos o quanto essa prática
é constituída por discursos machistas, homofóbicos, heterossexistas ou heteronormativos.
Compreendo, nesse trabalho, portanto, que a dança é uma instância, um espaço ou
um campo de práticas culturais, dentre tantos outros, que é “generificado”. Em outras
palavras, a dança “fabrica” homens e mulheres de determinado tipo. Tomo como exemplo a
pesquisa de Santos (2009b) que analisa as trajetórias percorridas por crianças envolvidas
com a prática do balé clássico, e observa como essa prática artística estiliza o corpo,
repercute na aparência e no comportamento social, produzindo maneiras específicas de
viver a masculinidade e a feminilidade. Segundo a pesquisadora, para as meninas, o
aprendizado do balé significa dar-se a ver de uma maneira bela e feminina, e está
relacionado simultaneamente com o aprendizado das técnicas e com o aprendizado de
modos de ser mulher em nossa cultura (educada, civilizada, elegante, graciosa).
Em concordância com isso, Stinson (1998, p. 57) afirma que “[...] as lições sobre
feminilidade freqüentemente aprendidas na dança ser silenciosa, obediente, graciosa e
bonita são as mesmas que as meninas aprendem em outros lugares” e que “um
treinamento como esse reforça as expectativas da sociedade com relação às mulheres.”
Ao longo da história o balé ou dança clássica foi muito associado à representação
tradicional de uma feminilidade naturalmente ligada à graça, beleza, leveza e delicadeza de
movimentos. Mesmo que sempre tenha havido homens bailarinos, o balé parece sempre ter
operado com grande eficiência uma pedagogia da feminilidade ou, em outras palavras,
parece ter sido historicamente a prática corporal por excelência mais eficaz para “formar”
mulheres isto é, para generificar corpos femininos. Por ser um estilo de dança que
prioriza sempre os movimentos leves, suaves e delicados e não os movimentos vigorosos e
fortes, à delicadeza do gesto, ao andar suave e ereto, esta relação entre o ato de dançar e a
representação de feminilidade adquire um estatuto muito importante no balé clássico. Tal
relação determinou, de acordo com Hanna (1999), que geralmente se associasse o homem
que dança profissionalmente o balé à idéia de efeminação, de homossexualidade e de falta
de gênero (falta de masculinidade).
79
O estudo de Souza (2007) com bailarinos em Porto Alegre conclui que a dança em
nossa cultura, é uma atividade relacionada principalmente à figura feminina, vista como
“coisa de mulher”, articulando-se com processos de degradação da sexualidade masculina
(no caso dos homens que praticam dança). Em grande parte, tal representação parece estar
associada a esta significação do balé clássico como signo da feminilidade, ao seu estatuto
como arte mais importante (arte mais “nobre”).
Uma aula de balé clássico é marcada pela intensa disciplina, pois a execução da sua
técnica é difícil. O tipo de performatividade que é exigida de cada gênero implica, portanto,
na busca por um ideal de perfeição corporal bastante difícil de ser alcançado. Como afirma
Bourcier (1987, p. 117), tudo deve "[...] ser concebido logicamente para dar a impressão de
leveza, o que faz a beleza do gesto."
No balé, os gestos são distintos para ambos os gêneros, nos pequenos detalhes: as
mulheres andam na ponta dos pés, os homens não; as mulheres exibem uma postura de
mãos mais delicada, os homens uma postura mais firme. Aos homens cabe em vários
momentos sustentar e/ou conduzir a mulher, ou mesmo erguê-la (portagem), relacionando-
se assim a técnica corporal dos homens mais diretamente com os elementos culturalmente
considerados como masculinos, como a virilidade, a força, os excessos, a dominação. Já as
mulheres devem exibir a beleza, até mesmo no semblante, sendo que o ato de sorrir lhes é
cobrado pela professora, mesmo quando estão executando uma posição difícil que implique
em dor, como se ele fosse parte da técnica.
Segundo Santos (2009b), o exercício contínuo de seus gestos e posturas diz respeito
não apenas ao comportamento espetacular, mas ele adorna e remodela os corpos ao ponto
de algumas característica tornarem-se parte do movimento cotidiano. A conseqüência da
pedagogia do balé tem efeitos não apenas na aprendizagem motora de suas ténicas, mas é
também baseada na internalização de protocolos de valores que podem ser leva os para
outros contextos, na vida social dos sujeitos.
Pode-se dizer que o balé e suas representações de corpo constituem ainda na
contemporaneidade uma das formas de investimento que, juntamente com outras instâncias
culturais, produzem diferentes corpos para homens e mulheres. O balé imprime marcas
nesses corpos, as quais permitem distinguir os homens das mulheres, com a suposta
intenção de torná-los mais “belos” enquanto dançam. Tais “marcas” determinam ou
80
instituem que existem tipos de posturas, movimentos e gestos prioritariamente masculinos e
outros adequadamente femininos. O trabalho de construção das „corretas‟ identidades de
gênero dependem também da „correta‟ inserção de mulheres e homens nessas posturas e
gestos. Assim, o balé é um exemplo de prática corporal que busca garantir a continuidade
de categorias generificadas para a vivência corporal. Ele funciona como um espaço
estrategicamente fabricado num sistema complexo imerso nas relações de poder.
Tomei aqui o balé como exemplo significativo para ilustrar a relação entre a dança e
as representações culturais de gênero nos corpos. No entanto, não apenas o balé, mas toda a
dança num sentido geral, tem se constituído ao longo dos séculos num espaço privilegiado
para a corporificação de representações de gênero. O gênero atravessa incorporado e
mobilizado) e constitui as danças que, articuladas com representações culturais, definem e
regulam o que se entende por desempenho corporal adequado aos homens e às mulheres.
Cada estilo de dança, com sua cultura corporal específica, funciona como um mecanismo
cultural que produz tipos específicos de políticas de masculinidade e de feminilidade.
Como observa Connel (1995), as masculinidades estão constantemente mudando
através da história, assim como também as condições sob as quais a hegemonia pode ser
sustentada. Desse modo, ele observa que sempre há diferentes “políticas de masculinidade”,
constantemente disputando significados entre si. Ou, como observa Cecchetto (2004), são
diferentes „estilos de masculinidade‟, nos quais o uso do corpo desempenha um papel
fundamental. Esses diferentes “estilos”, que poderíamos considerar aqui como diferentes
investimentos sobre os corpos, estão em constante tensão, mas em alguns espaços ou
momentos podem entrar em conexão. Esses diversos estilos masculinos, que implicam em
diferentes cultivos corporais em diversas danças, no entanto, estão freqüentemente
subordinados a um conjunto de representações de gênero pouco variável.
Souza (1994, p.147) por exemplo, nos diz que as danças folclóricas intensificam
“[...] a adoção de gestos entendidos como viris, necessários à afirmação da imagem de um
homem forte e audacioso”. Da mesma maneira, Santos (2009a) afirma que o hip hop
carrega uma noção de afirmação de uma masculinidade por meio da destreza corporal, isto
é, por meio da exibição de um domínio de técnicas cuja execução é muito difícil (as
acrobacias, ou b-boy), e de um conjunto de outros símbolos (roupas, atitudes no palco, etc.)
que remetem à ideia de virilidade. Por causa disso, o hip hop se constitui como sendo uma
81
prática corporal hegemonicamente praticada por homens nos espaço artístico da dança na
contemporaneidade.
Assim, mesmo que em um sentido muito geral se possa dizer que a representação
cultural proporcionada por qualquer dança é a princípio considerada a mais própria de uma
suposta essência natural (mais sensível, mais delicada, etc) da mulher e, portanto,
imprópria para um projeto de aquisição de masculinidade no caso do hip hop, ou de
danças folclóricas, ou ainda de danças de salão (ALVES, 2004) os homens que praticam
essas danças dançam estão de alguma forma reafirmando valores como virilidade, força,
destreza, heroísmo, etc. entre eles a construção de um „ethos‟ heróico, uma noção de
enfrentamento e desafio aos preconceitos culturais que permeiam as representações em
torno da dança, e que dizem que dançar é mais próprio para as mulheres. Mas, ao mesmo
tempo, há uma reafirmação das noções de masculinidade tradicionais.
Essa lógica parece permanecer até os dias de hoje em muitos estilos de dança, onde
os movimentos coreográficos, e a própria expressão do ato de dançar o é construída da
mesma maneira para os homens e para as mulheres. Nem os movimento corporais são os
mesmos, nem a intensidade deles, nem os elementos ligados à iniciativa na interação entre
um par (como pode ser observado no caso do comando ou condução, na dança de salão),
nem os elementos ligados ao uso da força muscular (como é o caso da portagem, no balé,
ou da acrobacia no hip hop), e assim por diante.
Historicamente, foi partindo de uma vontade de ruptura com esses “modelos” de
corpo dos/as bailarinos/as de outras danças, com as representações culturais que carregam,
a esses corpos subordinados a toda uma pedagogia dos gestos, é que as danças moderna e
contemporânea constituíram suas proposições estéticas. Foi especialmente com relação ao
corpo do balé e das danças tradicionais que o corpo do bailarino moderno e do
contemporâneo se propuseram a opor-se, a romper. Nesse trabalho, interessa analisar se
essa vontade de oposição e de ruptura constitui entre nós, hoje, algum campo de
possibilidades para transgressões de gênero. Especificamente, estou interessado em pensar
na forma como os homens que são constituídos dentro de uma prática artística que é tão
caracterizada por discursos da transgressão e de ruptura, constroem suas masculinidades.
82
4. Quarto movimento: Dança Contemporânea e masculinidades
O grupo de bailarinos entrevistados que compõe a parte principal do corpus
analítico dessa dissertação foi composto por sete bailarinos de dança contemporânea da
cidade de Porto Alegre, que se encontravam durante o período dessa pesquisa ativos na
produção artística dessa modalidade de dança. A todos eles foram esclarecidos os
princípios da pesquisa e apresentados o termo de consentimento livre e esclarecido
(ANEXO C), sendo previamente assinados pelos próprios entrevistados.
Algumas das entrevistas foram realizadas nas próprias casas dos bailarinos e outras
em locais públicos, como bares ou cafés, de acordo com a preferência dos entrevistados. As
entrevistas seguiram um roteiro (ANEXO B) composto por quatro blocos de perguntas, a
fim de constituírem uma aproximação com o tema em estudo. Com o intuito de manter
fidedigna as garantias de anonimato presentes no termo de consentimento, utilizei nomes
fictícios para cada um dos participantes. A partir desses nomes fictícios, listo-os abaixo, e
apresento um breve resumo de suas aproximações com a dança:
Tiago - Tem 31 anos. Teve suas primeiras experiências com arte aos 19 anos, tendo
trabalhado profissionalmente com teatro e depois com circo. Aos 23 anos, tomou contato
pela primeira vez com a dança. Atualmente, cursa faculdade de dança, participa de duas
importantes companhias de dança contemporânea em Porto Alegre. Dá aulas, obtendo daí a
sua fonte de renda e sustento. Recentemente, começou a coreografar.
Ricardo - Tem 30 anos. Mora em outra cidade, mas dentro da região vizinha de
Porto Alegre. Começou a dançar a pouco mais de um ano. Anteriormente fazia teatro.
Teve alguma vivência também com dança de salão. A partir do seu trabalho como ator, foi
chamado para participar de um espetáculo de dança contemporânea. Desde então, passou a
interessar-se por essa modalidade de dança e em seguida, também, pelo balé. Atualmente,
ajuda a produzir um espetáculo de um conhecido grupo de dança contemporânea de Porto
Alegre. Obtém seu sustento do trabalho em uma empresa. Mora com a família.
José - Trinta anos. Começou a dançar aos 24 anos de idade. Anteriormente, teve
experiências somente com o teatro. Atualmente, está terminando a faculdade de teatro.
Trabalha com elaboração executiva de projetos de espetáculos de arte em geral, de dança e
83
de teatro. Recentemente dirigiu um espetáculo de dança contemporânea e performance
plástica no qual fazia uma participação também como bailarino e ator.
Paulo - Tem 27 anos. Trabalha em uma empresa, não obtendo sustento a partir da
dança, embora obtenha recursos financeiros esporádicos (cachês artísticos). Teve suas
primeiras experiências com dança aos nove anos de idade, ingressando na dança
contemporânea, balé e jazz por volta dos 15 anos. Aos 18, assumiu a prática do balé como
sua prioridade, mas se manteve sempre envolvido com dança contemporânea. Atualmente,
participa de uma importante companhia de dança contemporânea de Porto Alegre.
Renato - Tem 30 anos, atualmente é professor de dança (contemporânea, balé e
jazz) em Porto Alegre. Tem formação em balé clássico. Foi atleta (dos 9 aos 18 anos) de
ginástica artística, tendo depois abandonado esse esporte e começado na dança.
João - Tem 21 anos. Atualmente, faz faculdade de teatro. Não obtém nenhum tipo
de recurso financeiro com a arte, tendo ainda vínculo com a família. Faz dança desde a
infância (7 anos), tendo praticado sapateado, balé, jazz e contemporâneo. Também foi
atleta de ginástica artística (desde os 4 anos), durante muito tempo.
Eduardo - Tem 22 anos. É formado em Educação Física. Trabalha com danças
circulares sagradas. Há apenas dois anos, começou a interessar-se por dança contemporânea
e também por teatro. Recentemente estreou em um espetáculo de dança contemporânea.
Esse grupo foi eleito a partir da metodologia apontada no capítulo 1. A partir de
uma observação geral, seria possível apontar algumas particularidades presentes nesses
sujeitos eleitos para a entrevista, no que diz respeito a concepções de dança contemporânea.
Por exemplo, todos esses sujeitos praticantes de dança contemporânea que entrevistei são
também praticantes de balé. Muitos deles não costumam se apresentar cenicamente em
espetáculos de balé, mas fazem aulas de balé, porque, seus entendimentos são de que isso é
imprescindível para um bailarino de dança contemporânea manter-se “em forma”.
O fato de eles praticarem balé gera entre seus conhecidos, familiares, amigos, um
determinado efeito que não pode ser desprezado. Assim, quando problematizo entre eles,
por exemplo, as representações em torno do homem que dança perante à sociedade e o
meio onde eles vivem, a dança contemporânea e o balé clássico aparecem em certo sentido
imbricados, não sendo possível dissociá-los por completo. Essa articulação entre dança
84
contemporânea e balé, ao nível da representação, é muito significativa com respeito à
articulação entre dança masculina e homossexualidade, conforme abordarei mais adiante.
Esta pesquisa vem a reforçar a constatação de Souza (2007), de que no contexto
da dança porto alegrense, o balé atua como uma forma privilegiada de dança. Não
concordo, no entanto, que isso se deva a um “[...] modo feminino de pensar e fazer a dança
em Porto Alegre [...](SOUZA, 2007, p. 119), o qual os homens, como supõe a autora,
procurariam contestar. A supremacia do balé e a sua colocação no lugar de referência para a
dança não parece ser explicável a partir da existência de uma representação que articule o
balé à feminilidade. Pois, no que diz respeito ao contexto porto alegrense, essa noção de
que o balé é a referência estética para a dança revelou-se hegemônica entre os homens que
entrevistei. Ela está, sim, relacionada a outros fatores, já problematizados no capítulo 2
59
.
A partir do domínio da dança e de situações concretas, proponho tratar algumas
questões com as quais nos confrontamos enquanto artistas e/ pesquisadores/as, mais
geralmente enquanto indivíduo categorizado “homem”. Problematizo, portanto, as
representações culturais que posicionam a dança contemporânea na atualidade no que diz
respeito à sua articulação com a masculinidade e os esforços, acordos e negociações feitas
pelos homens que a praticam para serem significados como masculinos. A partir disso,
proponho-me pensar como a dança contemporânea, em nosso tempo, articula-se com as
formas de se pensar o gênero e a sexualidade.
4.1. Narrativas do masculino na dança
Em sua dissertação de mestrado, Souza (2007) observou como os homens, no
contexto porto alegrense, precisam driblar um conjunto de representações culturais que
funcionam como “barreiras” para que a prática da dança seja vivenciada por eles. Na
análise da autora, a dança é problematizada num sentido geral (contemporânea, balé, jazz,
dança de salão, etc.). Assim, os homens que praticam dança são aqueles que se atrevem,
59
Refiro-me aqui, principalmente, às tendências homogeneizantes presentes nos processos culturais gerados
pela globalização, conforme problematizado na p.42.
85
que se arriscam e que ousam romper com esses padrões culturais. Tais “obstáculos” à
prática são apontados como referentes ao contexto social, uma vez que [...] ser aceito
socialmente é uma condição para o masculino vir a dançar” (SOUZA, 2007, p.74).
Um fato bem marcante, como é observado por essa pesquisadora, é o de que quase
todos os homens se iniciam tardiamente nessa prática, ao contrário das mulheres, para
quem o contexto social e cultural estimularia a prática da dança desde muito cedo. Aqui é
importante considerar os diferentes investimentos que a cultura faz sobre os gêneros, no
sentido de as mulheres receberem muito mais estímulo, apoio e investimento social para se
tornarem bailarinas do que os homens.
Da mesma forma, entre os bailarinos aqui entrevistados, quase todos começaram a
ter algum contato com dança, ou com qualquer prática artística e corporal, bem tardiamente
em suas vidas. Com exceção de João e de Paulo, todos os outros tomaram contato com
dança com mais de vinte anos de idade.
João, a respeito de sua história de vida singular, relata:
[...] era eu de homem na escola inteira. E daí um ano ou mais depois
entrou um outro menino, mas bem mais velho. Na época, ele devia ser uns seis
anos mais velho do que eu. E hoje ele é professor de sapateado, até... Mas enfim,
era eu e ele na escola inteira, né.
Geralmente, os bailarinos que iniciaram tardiamente atribuem sentido para a sua
prática atual a partir da construção de uma narrativa do passado, na qual procuram situar na
sua infância a “origem” da sua vontade de dançar. Assim, o gosto pela dança aparece como
algo que sempre existiu, mas que eles só tomaram conhecimento tardiamente, pela força de
circunstâncias sociais e culturais. A família e os amigos aparecem como os obstáculos mais
citados pelos bailarinos. Através de uma forte regulação das condutas desses sujeitos, eles
parecem atuar, ao longo de sua vida, como um elemento muito marcante, e figuram, em
suas narrativas, como a causa para o fato de a dança não ter sido vivenciada mais cedo.
86
A família é uma das instâncias por meio das quais as representações culturais de
gênero atuam, e onde as pedagogias culturais de gênero são postas em ação. Outras
instâncias de regulação seriam: a dia, a escola, as ciências, a economia, as instituições
políticas, as religiões, as práticas corporais (esportes, dança, etc). Portanto, enfoco a família
aqui, não no sentido de que ela seja a única instância, ou a mais privilegiada, na
constituição das masculinidades, mas apenas no sentido de apontar que ela tem o seu papel.
Família e amigos são tomados, na análise desse trabalho, como o contexto social em
torno do sujeito. São considerados portanto, dentro da perspectiva aqui adotada, enquanto
instâncias que são constituídas por representações culturais de gênero. E, simultaneamente,
são também instâncias que produzem e reproduzem essas representações, ajudando, dessa
forma, a normatizar, a instituir e regular os modos de ser masculino de um sujeito, tal como
a cultura enuncia serem os modos mais verdadeiros, autênticos e legítimos.
Isso aparece claramente na fala de Tiago:
Desde pequeno, eu sempre tive vontade de dançar. O primeiro momento
que eu me lembro de ter tido vontade de dançar foi aos onze anos de idade, mas
não tinha coragem de... falar para a minha mãe, de pedir apoio, né,...familiar. E
também não me via dançando e... hã, convivendo com meus amigos. Assim, não
me via tendo essa... uma convivência tranquila... pelo fato de ser homem e
dançando. Por causa de toda a questão que gira em torno dos bailarinos, que
bailarino é gay.
O obstáculo familiar aparece frequentemente atrelado a essa associação entre dança
e homossexualidade, num sentido negativo, ou seja, dentro de um registro simbólico de
heteronormatividade
60
e de homofobia. Essa é a representação mais recorrente em todas as
entrevistas, remetendo à articulação entre gênero e sexualidade, da qual tratarei mais
adiante, neste capítulo. Isso parece ser muito significativo para o fato de muitos homens
terem um início tardio na dança. Em especial, para aqueles que se auto-identificam como
60
Esse conceito foi devidamente abordado no capítulo 3 (p. 73).
87
heterossexuais, uma vez que o medo da perda da identidade, articulado com o medo da
homossexualidade (homofobia social) ou da feminilidade, é elemento marcante na
construção das identidades heterossexuais. Em outras palavras, em nossa cultura, para se
constituir como um sujeito heterossexual um indivíduo é estimulado e obrigado a negar
tudo aquilo que possa o mais vagamente possível ser associado à homossexualidade.
A figura do pai como o que mais se opõe, o que mais inibe e o que não estimula o
acesso do filho homem à dança aparece em todas as narrativas, tanto entre bailarinos que
tiveram seu início tardio quanto nos poucos que começaram a dançar cedo. O pai é aquele
que parece mais regular, normativizar a construção de gênero masculina dos filhos homens.
Devemos lembrar aqui que gênero possui uma articulação intrínseca com as pedagogias
culturais, e que através delas ele atua na organização de todo o tecido social. Assim
devemos compreender que o pai, essa figura representante da masculinidade dentro do
modelo de família heterossexual, é uma posição de sujeito que a cultura oferece para alguns
indivíduos ocuparem dentro da sociedade. Essa posição de sujeito está articulada com um
conjunto de significados culturais.
A partir dos valores culturais hegemônicos de masculinidade, o indivíduo que ocupa
a posição de sujeito pai, ocupa a posição que a cultura mais autoriza a aplicar certas
intervenções pedagógicas sobre a masculinidade do(s) filho(s). Nesse modelo, o pai deve
sempre ter a preocupação em corrigir os “desvios” dos seus filhos, encaminhando-os
sempre na direção de um projeto de aquisição de masculinidade que esteja de acordo com
esses valores hegemônicos. Decorre disso que, de acordo com as representações de gênero
hegemônicas, os pais tenham que ser contra seus filhos (homens) praticarem dança.
Assim por exemplo, Paulo relata:
Meu pai sempre foi contra, né. (de o filho dançar). Por causa dessa
questão do preconceito, do “cara” virar homossexual, assim... o cara que fizer
dança. E ele sempre deixou claro que não queria ter um filho „fresco‟.
E também João:
88
Em sua história de vida, pelo fato de ele ter sido educado pela mãe e não pelo pai,
João observa que isso parece ter constituído o diferencial que justamente permitiu que ele
começasse a dançar cedo, como explica nessa fala:
No caso de Paulo, que foi o único outro bailarino que também começou a dançar
bem cedo, igualmente, isso foi possível porque ele obteve algum grau de aceitação por
parte da sua mãe, enquanto que o seu pai, invariavelmente, se opôs.
O fato de ter algum membro da família envolvido com alguma modalidade de arte
foi apontado como bastante significativo para José não sofrer grande oposição familiar:
Meu pai teve uma vivência com o teatro, então, ele não teve grande
problema de eu me inserir no meio artístico (...)
89
Isso parece, num primeiro momento, apontar para o fato de que a experiência ou
vivência com arte seja capaz de trazer para um indivíduo que ocupe a posição de sujeito pai
outras representações, e assim configurar uma outra ordem de valores, que não associe a
prática artística a algo negativo e indesejável para um homem. Seria possível assim afirmar
que, não obstante a posição de sujeito pai seja uma posição marcada, dentro dos registros
da representação cultural hegemônica de masculinidade, pela obrigação de reforçar a
masculinidade hegemônica, em alguns momentos, outras representações podem a ela se
atravessar, e com isso enfraquecer essa representação hegemônica. E um desses elementos
capaz de trazer outras representações pode ser o envolvimento do pais com a arte.
No entanto, acho importante ressaltar que José foi um dos sujeitos que teve um
início bem tardio na dança. Ele começou a dançar quando tinha 24 anos, e portanto,
era maior de idade. Assim, o fato de seu pai ter tido um envolvimento com arte não parece
ter sido o único fator responsável por uma maior aceitação. Mais adiante, problematizarei o
quanto essa questão do início tardio na dança tem a ver com a imposição de um certo
modelo hegemônico de masculinidade, a partir de certas expectativas sociais associadas ao
masculino que são diferentes das associadas, por exemplo, ao feminino.
No que diz respeito à oposição familiar, acho também importante ressaltar que em
poucas entrevistas apareceu a associação entre a dança e a feminilidade. Quando essa
resistência aparece, traz na maioria dos casos uma acepção de verdade que poderia ser
traduzida por algo mais ou menos assim: “dança é coisa de gay e, portanto, meninos não
devem dançar”. Por outro lado, o seu equivalente com relação ao feminino, que seria
“dança é coisa de mulher e, portanto, meninos não devem dançar”, não é tão frequente.
Isso talvez aponte para o fato de hoje haver mais homens praticando dança em Porto
Alegre parece estar possibilitando enfraquecer a ideia, corrente até algum tempo atrás, de
que a dança era uma prática somente feminina. Paulo nos sugere essa pista, quando diz:
Quando eu comecei a fazer dança, havia bailarinos, tinha contato
com homens... E, claro, toda vez que eu fazia aula, até hoje, sempre o número de
mulheres é maior do que o número de homens. Normalmente, tem aulas que
tem eu de homem... Mas eu sempre tive contato com bailarinos homens. Então,
90
eu nunca vi por esse lado, assim, de a dança ser uma prática feminina.
E também Renato, quando diz:
Isso (a ideia de que a dança é uma prática apenas feminina) hoje em dia
não está mais tão forte. Apesar de a gente ainda ver nas turmas, nas escolas,
muito mais mulheres fazendo aulas do que homens.
E Ricardo:
Eu acho que hoje não. Eu acho que teve uma época que a coisa era assim:
“dança é para mulher”. Mas acho que hoje a coisa um pouco diferente. Acho
que hoje é mais aceitável o homem na dança...
No entanto, é possível observar, nesse excertos, que a dança ainda hoje é uma
prática em que a maioria das/os praticantes é de mulheres. Assim, é válido considerar que,
embora bastante enfraquecida, a associação entre dança e feminino é ainda recorrente, na
direção de que a cultura ainda opera no sentido de constituir as feminilidades e as
masculinidades de forma bem diferente no que diz respeito ao gosto, ao estimulo e às
possibilidades de acesso a uma prática artística e corporal como a dança.
Interessante notar que, nos três excertos acima, tratam-se de sujeitos que durante as
entrevistas fizeram questão de se identificarem como sujeitos heterossexuais. Assim, talvez
o fato de eles falarem que a dança para eles nunca foi associada à feminilidade esteja
relacionado à sua necessidade de afirmarem suas identidades masculinas heterossexuais, e
com isso validar sua masculinidade. A negação à homossexualidade, que pode ser pensada
como próxima à de feminilidade dentro do registro hegemônico da cultura, como uma
forma degradada de ser masculino ou como uma masculinidade desviada, apesar de não ser
91
citada, estaria presente assim em suas falas, de forma indireta, na forma de negação ao fato
de que a dança está mais relacionada ao feminino em nossa cultura.
A partir dos elementos narrados nas entrevistas, o obstáculo familiar aparece, de
qualquer forma, muito mais atrelado à questão regulação da sexualidade. Ela aparece
também atrelada a uma questão econômica, como abordarei logo a seguir. E, em terceiro
lugar, me pareceu interessante evidenciar, para uma análise das masculinidades, que a
oposição familiar não se limita à dança, mas refere-se ao campo das artes corporais.
Aponto os três recortes de fala abaixo, de Ricardo, José e Tiago:
Como o teatro eles (a família) tiveram uma certa resistência. Eles
travaram o um pouquinho. Porque a fama do teatro não é muito boa. [...] A
preocupação que eles (a família) tinham era por causa da estabilidade. Porque tu
fala “ah, quero fazer teatro”. E daí o que eles pensam? Ah, que eu vou largar o
trabalho, vou largar o estudo, vou querer viver só do teatro e o teatro não
grana, e eu já tô com uma certa idade... [...] Mas depois que eu criei um
pouquinho de confiança com a família e eles me liberaram para fazer o teatro,
eu acho que a dança foi um pouco mais aceita, já foi bem melhor aceita. Mas
claro que sempre tem aquelas coisas de família, tipo assim “ah, meu filho,
dança é coisa de bichinha”.
Ninguém na minha família, em nenhum momento, tentou me tirar da
dança, nem me aconselhou a não dançar. Mas, na verdade, eles também não
deram tanto apoio. Eles não vêem de um mau jeito, mas também não vêem de
um bom jeito. Porque, primeiro, tem a condição de artista. Sempre que a pessoa
diz que vai ser artista, isso quer dizer que economicamente ela vai ir muito mal.
E o segundo aspecto é achar que o cara é homossexual porque dança.
Quando eu tinha 18-19 anos eu comecei a fazer teatro e eu vi que a
minha mãe não gostava muito. Mas eu acho que ela não gostava era do contexto
92
geral. Não era do teatro propriamente dito. Eu tinha 19 anos, tinha acabado o
colégio, feito um vestibular e não tinha passado, não tava trabalhando... e tava
num estereótipo meio hippie, assim, queria viver uma coisa meio anos 60.
Então, eu tinha cabelo comprido, fazia artesanato... Não tava seguindo o
caminho convencional que a maioria da sociedade segue, assim. Então eu acho
que era esse conjunto que estava descontentando a minha mãe.
Parece produtivo interpretar o termo “a maioria da sociedade”, utilizado por Tiago,
como “a maioria dos homens em nossa sociedade” e pensar que o sujeito entrevistado está
nos fornecendo uma importante pista a respeito do “caminho convencional” para a
masculinidade em nossa cultura. Esse caminho mais convencional para um menino “virar”
homem não passa pela prática de artes como dança, teatro ou circo. Essa desvalorização das
profissões artísticas está também relacionada, conforme aprofundarei mais adiante, com a
imposição de um certo modelo hegemônico para o masculino.
4.2. O bailarino self-made
Cecchetto (2004), observa que diversos estudos etnográficos narram a ocorrência,
em variadas sociedades, de uma espécie de característica „intrínseca‟ à aquisição de
identidade masculina: algo a ser conquistado por meio de competições e provas. Com a
cautela de não cair em pretensões generalizantes e universais, é possível dizer que uma
tendência geral dos modelos culturais hegemônicos ocidentais de masculinidade orientado
neste sentido. Dentro dessa lógica cultural, a identidade masculina deve ser constantemente
“provada” pela filiação do indivíduo a determinados valores e condutas considerados
masculinos (GILMORE, apud CECCHETTO, 2004). Tais “provas” podem incluir exibição
da violência ou da força física ou, então, uma personalidade extremamente competitiva e
tenaz ou, ainda, a posse de riquezas e um alto posicionamento na hierarquia social. Todas
essas proezas são tidas como espécies de “antídotos” contra a feminização, capazes de
fabricar uma “verdadeira masculinidade”.
93
As representações culturais que cercam o uso do corpo dentro dos mais diversos
estilos de dança remetem a noções tais como a expressão de sentimentos, a sensibilização e
o dar-se a ver como belo, e não à violência, à competição, à racionalidade ou objetividade.
Neste sentido, o homem que pratica dança não se insere nessa representação mais geral
postulada como o verdadeiro comportamento dos homens. Assim, é no interesse em
sustentar esse modelo hegemônico de masculinidade que surgem representações que
afirmam uma ligação direta entre o ato de dançar e a feminilidade, de onde decorre a ideia
de que homens que se aproximam da dança não são totalmente homens.
Em um primeiro âmbito, de uma maneira muito geral, o tipo de proposta de trabalho
corporal proporcionado por qualquer trabalho artístico corporal parece opor-se, em certa
medida, à essa representação cultural acerca do que é ser um “homem de verdade”. Assim,
profissões como dança, teatro ou circo não são as mais esperadas para um projeto de vida
de aquisição de uma masculinidade bem sucedida. Aqui pode-se levar em conta a existência
de um conjunto de valores culturais hegemônicos que, como analisei no capítulo 2, pode ser
nomeada como uma perspectiva metafísica, e que permitiu que se desse pouca importância
à arte, à sensibilidade e ao corpo, privilegiando, em sociedades menos complexas, os
atributos guerreiros da violência, e em sociedades mais complexas, a razão e o intelecto.
Essa própria configuração cultural está também ligada à questão da desvalorização
econômica das artes, e em especial das artes corporais, enquanto profissões. No que diz
respeito à sua articulação com a construção cultural do masculino na atualidade, essa
questão econômica parece ser a mais significativa. Pelo fato de que tais práticas não são
valorizadas como profissões muito rentáveis em nossa sociedade
61
, as representações
hegemônicas de masculinidade parecem ditar outros tipos de profissões, que seriam as
consideradas mais apropriadas ao gênero masculino (SOUZA, 2007).
Como observa Kimmel (1998), na primeira metade do século XIX, emergiu nos
Estados Unidos e na Europa um modelo cultural de masculinidade que ele chama de self-
made-man (homens-que-se-fizeram). O self-made-man representa o empresário urbano,
61
No Brasil, como observa Joanna Carvalho (2006, p.16), existem poucas companhias de dança contemporânea que
assalariam os bailarino/as, como acontece por exemplo com os músicos de orquestras, sendo que estes casos existem mais
nas grandes capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte.
94
devotado ao seu trabalho, extremamente competitivo e ansioso, um modelo de homem que
requer provas constantes de sua masculinidade, sendo a aquisição palpável de bens
materiais uma evidência de seu sucesso (KIMMEL, 1998). Em suma, uma representação
cultural hegemônica de masculinidade que dá muita importância à questão do sucesso
econômico, que adquire e demonstra o seu valor por competir com outras masculinidades
no mercado, superando-as economicamente.
Aqui, penso também ser possível considerar que tal representação em torno do
“caminho convencional que a maioria da sociedade segue” associe uma questão de
interesse de classe (a preocupação dos pais quanto à possibilidade do filho descender na
escala econômica, ou seja, mudar de classe social) no que diz respeito à sua articulação
com a masculinidade hegemônica. A profissão dança parece, portanto, apresentar um risco
bastante concreto, o de, pelo fato de não ser uma profissão altamente geradora de renda, o
indivíduo ter um empobrecimento econômico, o que é evidenciado como um grande
problema dentro das famílias que educam seus filhos dentro da nossa cultura.
Em estreita articulação com isso, a pesquisa apontou uma outra recorrência, que
havia sido apontada por Souza (2007) em sua pesquisa com bailarinos em porto Alegre.
Esses sujeitos não apenas iniciam tardiamente na dança, como também, o que em muitas
falas é enfatizado, só começaram a fazer aulas de dança sistematicamente depois que já têm
certa autonomia financeira com relação à família.
Essa questão aparece bem evidenciada na seguinte fala, de Tiago:
Esse elemento parece apontar para o fato de que muitos desses sujeitos rompem
com os obstáculos culturais, ou seja, assumem completamente uma prática que não é a
mais esperada profissionalmente para o masculino, quando não têm mais que prestar contas
às suas famílias. O sujeito que assume a posição de dedicar-se à dança tem que, portanto,
provar de alguma forma sua capacidade para auto-gerir-se. Tem que assumir um lugar de
95
quem consegue tornar-se um bailarino auto-sustentável. Em suma, para o homem ser um
bailarino, ele tem que ser um bailarino self-made, exibindo assim alguns dos traços que têm
sido característicos, nos últimos dois séculos, das representações hegemônicas de
masculinidade: sucesso econômico, eficiência, espírito de independência e de autonomia.
Estamos, em um primeiro âmbito, pensando, aqui, em uma das formas como os
homens que chegam a se tornar bailarinos driblam os obstáculos familiares. No entanto, é
importante considerar que aquilo que nomeio como “familiar” aqui, deve sempre ser
entendido num sentido de inserção mais amplo, que é o contexto cultural, e não como um
microcosmo. Deve-se lembrar que, para Foucault (1989), a família ao lado da escola, da
igreja, do hospital, etc. é uma das instituições em que ocorre o exercício de poder na
sociedade capitalista. Além disso, deve-se considerar que no âmbito dos estudos de gênero
(SCOTT, 1995; LOURO, 2008), o gênero é entendido como uma categoria que configura
todas as instituições sociais, dentre elas a família.
Aprofundando essa noção, eu diria que as representações culturais de gênero são
mecanismos de poder que constroem relações familiares desse ou daquele tipo, instituindo
modos de ser homem ou mulher dentro de determinadas narrativas que são apontadas como
os percursos mais desejáveis ou, pelo menos mais esperados nas escolhas de vida dos filhos
dos sujeitos. Assim, mais do que uma forma de driblar os obstáculos trazidos pela
representação cultural de masculino no meio familiar, em um segundo âmbito, pode-se
ainda considerar que esses homens estão prestando contas a uma sociedade que os constitui
e que constitui essa família.
Como observa Lipovetzsky (2000, p.291), na sociedade contemporânea, os homens
e mulheres “[...] não o igualmente encorajados a lançar-se na corrida aos tulos e às
posições sociais [...]”, e “[...] as competições pelo prestígio não se beneficiam de uma
mesma imagem no masculino e no feminino.” Isso se pela existência de normas e as
sociais e identitárias diferenciais para o masculino e para o feminino.
Consideradas mais vulneráveis e mais frágeis que os meninos, as meninas são
mais protegidas e vigiadas do que eles. Os meninos recebem mais punições e são
mais criticados; diante de uma tarefa difícil, recebem menos frequentemente que
as meninas a ajuda dos pais. Simultaneamente, eles são autorizados mais cedo a
locomover-se livremente a um perímetro mais amplo que o das meninas [...] A
essa lógica que impele os meninos à independência superpõe-se uma socialização
e um funcionamento psicológico masculinos voltados para a competição, a
96
agressividade, a auto-afirmação no desafio e no confronto com os outros. [...] Das
brincadeiras agressivas à cultura esportiva, das rixas às imagens viris veiculadas
pela mídia, das proezas sexuais reinvindicadas às conquistas amorosas exibidas,
tudo indica a importância dos valores competitivos e de concorrência na
construção da identidade masculina. Ganhar, ser o mais forte, superar os outros
está no centro do ideal viril. (LIPOVETSKY, 2000, p.301-302)
O autor observa como os modelos de socialização, em nossa sociedade, orientam
ainda preferencialmente o feminino para o relacional e o íntimo, e o masculino para a
independência, a “[...] instrumentalidade [...]e a eficácia social (LIPOVETSKY, 2000, p.
303). Sendo assim, o espírito de autonomia e de sucesso são mais estimulados pela
educação dos homens do que pela das mulheres. Isso possui uma estreita ligação com
aquilo que Kimmel (1998) nomeia como o modelo hegemônico de masculinidade na nossa
época: o self made man.
O bailarino do tipo self-made é aquele que se torna estudioso dedicado e praticante
das técnicas e da arte da dança por seus próprios meios e recursos, pois tem que prestar
contas pelo fato de ter escolhido ser bailarino à sua cultura. A partir do momento em que
ele opta por ser artista, por trabalhar o seu corpo dentro de uma tradição artística, a cultura
inteira o com suspeita, fazendo com que ele necessite driblar essa barreira de alguma
forma. Uma dessas formas pode ser, paradoxalmente, legitimando sua identidade masculina
a partir da adoção de algumas características do próprio modo dominante de ser masculino.
Assim, é como se fosse possível a um menino aventurar-se pelos caminhos incomuns da
dança quando ele já é um “homem” completo, no sentido de autonomia econômica.
João, em sua narrativa, traz essa questão da necessidade do sucesso de uma outra
forma. Isso se pelo fato de que em sua vida ele teve uma trajetória marcada por uma
condição singular: ele não foi criado pelo pai, mas sim pela sua mãe, que lhe deu todo o
apoio para dançar. Assim, em sua narrativa sobre a sua experiência de vida, aparecem
questões com uma configuração um pouco diferente se comparada às narrativas dos outros
bailarinos entrevistados.
Para João, também é significativa a desvalorização da prática da dança por parte da
figura paterna. No entanto, como o pai não estava em posição de censurá-lo, desmotivá-lo
ou desencorajá-lo, dado fato de que ele vivia com a mãe, foi possível para João, no seu
entendimento, entrar no mundo da dança muito cedo.
97
Sua valorização como homem, perante o pai, no entanto, aparece ligada ao talento
dentro da própria prática da arte:
Meu pai, por exemplo, que é um delegado de polícia federal aposentado...
eu sinto que, em última análise, não era a coisa que ele desejava para eu fazer...
mas quando ele com os amigos dele ele fala “ah, o meu filho é bailarino e ele
vai concorrer ao prêmio-não-sei-o-quê” ou “tá em cartaz com várias peças”... Eu
acho que quando tem um destaque ou... quando se mostra ser muito bom na
coisa, é que se consegue ter um pouco menos de preconceito e alguma
valorização...
Relacionado ainda à questão do sucesso, está uma outra característica muito
frequente em homens que praticam dança em Porto Alegre, qual seja, a intensa dedicação e
a rápida ascensão na dança. Souza (2007) observa que muitas vezes pelo fato de terem um
início tardio os homens que se envolvem com dança acabam procurando compensar o
tempo perdido, dedicando-se muito, de forma a evoluírem nas técnicas mais rapidamente
do que as mulheres. A dança adquire uma centralidade tão grande em suas vidas que eles
acabam por assumir várias funções (trabalhos) relacionados à prática (produzir espetáculos,
dar aulas, coreografar, etc.), simultaneamente. Isso aparece nas narrativas de Tiago e de
Renato de forma muito significativa. Apresento aqui um excerto da fala de Tiago:
Esse ano eu comecei a coreografar. E eu comecei a ter mais contato com
coreografias de espetáculos teatrais. Porque daí tu entra numa coisa tipo assim:
primeiro eu não era bailarino, eu passei a ser bailarino; depois eu não era
professor, e eu passei a ser professor; dentro da sala de aula eu já começava
a coreografar, e daí agora eu aceito o desafio de coreografar para fora. Então,
o caminho é num crescente assim. (...) Tu começa a dançar, e daí “como é que
é?”, “tu vai ganhar grana dançando?”. Não. E “tu topa dar aula?”. Topo! “Tu
consegue ganhar grana dando aula?” Sim. Então tá, legal. Vamos unir o útil ao
agradável. Mas daí vem um desafio maior. Tu começa a cansar de só dar aula, só
dar aula... Vamos experimentar... eu to sentindo vontade de dançar... e teus
98
alunos tão ali também com vontade de dançar... E vem a vontade de montar
um grupo e ver no que é que vai dar. Entendeu?
Nesta pesquisa, procurei privilegiar bailarinos, e não coreógrafos consagrados de
grandes grupos ou companhias. Mesmo assim, no caso de Tiago, a necessidade de um
intenso envolvimento de uma forma ou de outra em atividades ligadas à dança, para além
do simples fato de dançar, o levou a começar a coreografar no período em que eu
desenvolvia as entrevistas. Isso parece reiterar as questões da centralidade que a dança
ocupa na vida desses homens e da rápida ascensão do masculino na dança. No caso dos
outros entrevistados, mesmo que não estivessem, como Tiago, começando a ocupar a
posição de coreógrafo no período em que realizei as entrevistas, as características
relacionadas à centralidade da dança em suas vidas foi perceptível pela intensa dedicação
que eles apresentavam a essa arte, e pela grande vontade de dançarem muito bem.
Renato uma justificativa de natureza biológica para o fato de os homens terem
uma ascensão mais rápida do que as mulheres na dança, mesmo começando mais tarde:
Acho que os homens evoluem muito mais rápido do que as mulheres, sim.
Porque a musculatura do homem tem mais facilidade. A musculatura do homem
é mais forte... embora a musculatura das mulheres tenha a vantagem de permitir
uma maior flexibilidade. Mas para saltar, para fazer movimentos explosivos, para
sustentar as posturas, o organismo do homem é mais preparado.
A opinião acima expressa, muito recorrente entre o saber de senso-comum e as
concepções êmicas sobre as diferenças entre homens e mulheres, mereceria ser interrogada
à luz dos atuais estudos na área do treinamento desportivo em Educação Física, correndo o
sério risco de ser derrubada. No entanto, não interessa, para essa pesquisa, discutir a ação
de fatores outros que não os sociais na constituição dos diferentes percursos de vida de
gênero. Nessa situação, tal como sugere Lipovetsky (2000), opto por colocar “entre
parênteses” as eventuais variáveis biológicas envolvidas na discussão, não por considerar
99
que sejam menos importantes, mas por uma simples questão de coerência e método, uma
vez que estou buscando fazer uma análise cultural.
62
Assim, partindo do pressuposto de que a subjetividade é uma construção, fruto de
um processo conjugado de introjeção dos códigos sociais, procuro aqui sublinhar a
importância da dimensão sócio-cultural que levaria os homens a evoluírem mais
rapidamente do que as mulheres na dança. Ressalto que as representações culturais de
masculinidade educam os sujeitos masculinos de uma forma diferente, levando-os,
portanto, a terem uma experiência diferente da experiência que as mulheres têm com a
dança. Nas mulheres, como afirma Lipovetsky (ibid), a socialização ocorrer com uma
dominância mais “privada”, dirigida para os valores relacionais e afetivos, priorizando mais
o enriquecimento relacional, a qualidade de vida no trabalho. Os homens, ao contrário, são
mais estimulados a serem bem sucedidos em tudo, dotando-os de um “espírito empresarial”
relacionado com audácia, aventura, desejo por sucesso, glória, renome.
Importa aqui também levar em conta o quanto o biológico assume uma dimensão de
justificativa, na fala desse bailarino. Vale ressaltar que historicamente, esse tipo de lógica,
construída sobre a funcionalidade do corpo e sua correlata associação aos processos de
socialização, serviu por muito tempo para legitimar processos de desigualdades de gênero,
como por exemplo a exclusão das mulheres da prática de vários esportes.
63
Como eu vinha argumentando até aqui, é característica da construção hegemônica
da masculinidade em nossa cultura, de acordo com muitos autores (KLEIN, 1993;
CONNEL, 1995; KIMMEL, 1998; SEFFNER, 2003; CECCHETTO, 2004), a necessidade
de um homem ter que “provar” que é produtivo e eficiente, enfim, que é “bom” em tudo o
que faz, e a ocupar sempre os lugares de destaque na sociedade, para que possa, dessa
forma, constituir e legitimar sua identidade masculina. Nesse sentido, os modelos de
socialização hegemônicos privilegiam atitudes e estados de espírito que tenderiam a
facilitar a intensa dedicação necessária quando se inicia tardiamente na prática da dança.
As recorrências encontradas entre os sujeitos que entrevistei parecem apontar para o
fato de que, se o homem prova que é muito bom na execução das técnicas de dança, se ele
62
Também para evitar as infindáveis polêmicas em torno dos limites entre a natureza e a cultura, que
frequentemente resvalam para dicotomias bastante improdutivas.
63
Destaco aqui alguns estudiosos brasileiros entre outros: Goellner (2003), Oliveira (2005), Devide (2005).
100
exibe talento ou obtém sucesso, então parece se tornar mais fácil obter alguma aceitação e
valorização social. Em outras palavras, é como se a cultura nos interpelasse no sentido de
nos dizer “homens, a princípio, não dançam, mas se algum homem, mesmo assim, optar por
dançar, que pelo menos demonstre e comprove que, apesar disso, ainda é um homem,
dançando excepcionalmente bem”.
O que se espera de um homem na dança, a parir da representação hegemônica de
masculino aqui apontada (a do self-made man), não é o mesmo que se espera das mulheres,
a partir das concepções hegemônicas de feminino
64
. Isso tem a ver com a construção de um
jeito dos homens de se aproximarem da dança, instaurado em nossa cultura, que é diferente
do jeito das mulheres. O próprio início tardio, característica da maioria dos bailarinos,
parece ser assim explicável pelo fato de que o homem procuraria na dança algo diferente do
que procuram as mulheres. O homem, assim, começaria a dançar mais tarde porque para ele
a dança adquiriria significado muito mais em termos de investimento profissional, do que
como algo decorativo ou para aprender boas maneiras, como é para muitas mulheres.
4.3. O início prévio em outras técnicas corporais
Articulado de certa forma a isso tudo que venho problematizando até aqui, aparece
um outro elemento muito recorrente nas falas dos entrevistados. Nenhum deles, à exceção
de Paulo, teve na dança a sua primeira atividade corporal. Para quase todos, portanto, a
experiência com a dança foi possível por causa da iniciação prévia em outras artes
corporais. Eduardo relata que, tendo começado a se interessar bem tardiamente por dança,
passou primeiro pelo aprendizado das danças circulares sagradas. Explica que tais danças
possuem um caráter terapêutico, e o espetacular ou performático. Somente depois de
alguns anos praticando essa atividade ele chegou a interessar-se por dança contemporânea.
Mas que antes das danças circulares sagradas, durante toda a sua infância e adolescência,
ele havia praticado esportes coletivos e artes marciais. João e Renato foram atletas de
ginástica artística durante anos. Tiago trabalhou muitos anos como artista circense, fazendo
números de acrobacias. Comparando suas narrativas de vida com a minha, encontro
semelhanças. Também fiz meu caminho primeiramente pelos esportes até chegar à dança.
64
Como demonstra, por exemplo, o trabalho de Santos (2009b).
101
A associação entre masculinidade e esportes remete a um aspecto bastante
significativo da construção cultural hegemônica de masculinidade. Como observa Guacira
Louro (2001), cultuar o corpo através de atividades esportivas e/ou afins, assim
como procurar ser bom em alguma coisa, é uma prática legitimada para o masculino no
âmbito da cultura e poderá ser um caminho para que um garoto se torne um adulto bem-
sucedido. Os esportes, normalmente, são atividades consideradas como [...] obrigatórias
[...] para os meninos, que precisam ser, pelo menos, [...] muito bons [...] em alguma
área, quando não os melhores em todas (LOURO, 2001, p. 23). Já Souza (2007), ressalta
que a prática de esportes diversos, antes de começar a dançar, é comum na narrativa de vida
de muitos bailarinos.
Hanna (1999) observa que na segunda metade do século XX, durante a década de
80, ocorreu um movimento significativo dentro da dança ocidental em reação à atitude
negativa da sociedade para com homens que dançavam. Essa tentativa de um ressurgimento
dos homens na dança foi acompanhada por uma vontade de promover a dança como um
esporte, como uma prática atlética. Quando as grandes redes de televisão e as grandes
revistas norte-americanas exploravam a vidas dos bailarinos que despontavam nessa época,
eles frequentemente eram comparados ou apresentados nas reportagens e programas junto a
atletas. Muitas vezes, eles eram mesmo chamados de “atletas”.
Além disso, Hanna observa que quando esses bailarinos tinham altas rendas, essas
eram frequentemente mencionadas. (HANNA, 1999, p. 214-217). Ou seja, em paralelo a
essa tentativa de valorizar o bailarino considerando-o como um “atleta”, se invocava com
frequência o sucesso econômico dos sujeitos, também como uma forma de valorização
dessa prática social. Isso é significativo para apontar para o fato de que essas coisas todas
se articulam, dentro do conjunto de símbolos valorativos da masculinidade eleitos pelas
representações hegemônicas de masculino que circulam no terreno da cultura.
A relação entre esporte e dança parece permitir aos homens pensar a dança em
termos mais profissionais, como uma carreira, do que em termos mais artísticos, ligados ao
desenvolvimento da expressividade ou da sensibilidade. Frente à representação hegemônica
de masculinidade problematizada na sessão anterior (a do self-made-man), essa associação
da dança com esportes tenderia portanto a tornar a prática da dança mais confortável para
os homens que são por ela interpelados.
102
Dentre os bailarinos por mim entrevistados, João e Renato relataram que, antes de
dançarem, passaram pela prática desportiva da ginástica artística
65
:
[...] Depois de eu ter entrado na ginástica artística. Treinei um tempão,
assim. Entrei com quatro anos e parei com nove. Daí, eu fazia ginástica artística
e, no meio dessas “paradas” todas, eu comecei a fazer teatro com crianças. Um
dia minha mãe disse “ah, tem uma escola aqui que tem sapateado”, e então eu e
ela entramos. Fomos os primeiros dois alunos dessa professora com quem eu
treino até hoje. Daí ela começou a dar jazz e alguma coisa de balé e a gente
frequentava aula direto. E aí, enfim, comecei a dançar assim.
Eu fui atleta de ginástica desde pequeno... eu treinei até os 18 anos.
Quando eu cheguei aos 19, 20, eu resolvi largar a ginástica e me interessei pela
dança. Foi num dia que eu assisti a uma aula de balé da minha irmã... E daí, toda
aquela experiência, toda aquela coordenação motora que eu tinha da ginástica,
tudo aquilo eu levei para a dança e foi o que me permitiu conseguir dominar as
técnicas da dança.
Ambos afirmam que terem sido atletas nesse esporte, quando crianças, facilitou
muito o seu interesse e o seu ingresso na dança. Essa facilitação é apontada tanto pela
questão da proximidade estética quanto pelo preparo prévio, no sentido de coordenação
motora, que a ginástica lhes deu para aprenderem com mais facilidade as técnicas da dança.
No entanto, nem todos os sujeitos por mim entrevistados poderiam ser, por assim
dizer, enquadrados dentro desse registro hegemônico de masculinidade. Ricardo, José e
Paulo, por exemplo, não tiveram experiências anteriores com esportes, mas apenas com
dança e/ou teatro. Paulo, que além disso narra ter tido contato com a dança muito cedo, e
não um início tardio, como a maioria dos homens, assim relata:
pelos sete, oito, nove anos eu comecei a participar de um grupo de
música (...), que era um projeto de música e dança com crianças. Os professores
65
Ver nota da página 12.
103
utilizam na escola, para trabalhar ritmo com as crianças. A gente gravou um
disco e se apresentava em várias cidades com essas músicas. No início era
coral, mas depois o pessoal que participava achou melhor ter coreografias. Daí a
gente começou a trabalhar o físico, né, a fazer trabalho corporal. eu comecei a
fazer aula de dança criativa (...) Mas daí depois eu me desliguei desse projeto. E
eu só continuei fazendo aula de dança lá pela minha adolescência.
Ricardo e José falam que só chegaram até a dança por causa do teatro:
Eu sempre fui meio “duro para dançar”. Não dizia “puxa como gosto de
dançar”. Foi por trabalho. É que eu fazia teatro, né. Então, eu tomei contato com
(...) um espetáculo de dança contemporânea (...) Eu entrei (nesse espetáculo)
como ator (...) Eu dava o texto numa cena (...) A partir daí que eu comecei a
ver a necessidade de o corpo ser trabalhado (...) Daí uma coisa foi levando á
outra (...) O teatro foi uma “porta” para a dança. Se eu não tivesse começado no
teatro eu não teria chegado na dança.
Foi através da experiência com o teatro, com o trabalho corporal do
teatro, na faculdade de teatro, que eu comecei a me interessar por dança.
De uma maneira geral, é possível perceber que o início prévio em outras práticas
corporais artísticas é muito marcante na trajetória de vida de muitos bailarinos. O esporte,
pela posição que ocupa, ao nível da representação cultural hegemônica de masculino, como
um elemento fortemente relacionado e tido como ligado à masculinidade, é apresentado
pelo cenário da cultura como a prática mais privilegiada. Em outras palavras, o esporte e a
aproximação da dança com o universo dos esportes servem para os homens que se
enquadram dentro da representação hegemônica irem legitimando, pouco a pouco, o fato de
gostarem de dançar, diante de uma cultura que lhes diz o tempo todo que o homem não
deve dançar ou que o homem na dança está fora do seu lugar.
Mas alguns dos sujeitos entrevistados não relataram ter tido experiências anteriores
com esportes. Isso aponta para a existência de determinadas resistências por parte de alguns
104
indivíduos aos elementos que são impostos pela cultura como o único caminho de vida
aceitável para um homem. Em especial, com relação à prática do teatro.
Embora essa pesquisa não tenha enfocado o campo das práticas artísticas do teatro,
vale a pena registrar aqui que ao teatro não é atribuído, como nas práticas desportivas e/ou
acrobáticas, um status de cumplicidade para com as representações hegemônicas de
masculinidade. Pelo contrário, meus entrevistados foram unânimes em afirmar que o
homem que pratica o teatro é, assim como na dança, muitas vezes depreciado. Essa
depreciação ocorre por que ao teatro se “cola” também a representação de uma prática
ligada a um certo desenvolvimento de um modo de ser sensível, emotivo e expressivo que é
rapidamente relacionado com a homossexualidade. Além do mais o teatro goza, assim
como a dança, do status de ser profissão sem garantias de se ter boa remuneração.
Resumindo, o homem no teatro parece estar tão fora do seu lugar quanto na dança.
No caso específico da dança contemporânea, notei uma importância muito
significativa do teatro como atividade privilegiada em assumir esse papel mediador, isto é,
de prática corporal que tornou possível ao homem se aproximar da dança. Isso é facilmente
compreensível, se lembrarmos que historicamente, desde meados do século XX, a proposta
estética de diversas linhas de dança contemporânea tem procurado construir e até
enfatizado uma aproximação com o teatro, muito mais do que qualquer outra modalidade
de dança da contemporaneidade. Dentro da dança contemporânea existe até mesmo uma
vertente ou denominação estética que se intitula “dança-teatro”. Além disso, o próprio
teatro, na contemporaneidade, tem se aproximado muito da dança contemporânea, a partir,
por exemplo, dos exercícios do chamado teatro físico.
Tiago relata que passou tanto pelo teatro quanto pelo circo
66
:
[...] Quando eu tinha 18-19 anos e eu comecei a fazer teatro [...] Com uns
21-22 anos, eu comecei a ter contato com arte circense. Fazia um pouco de cada
coisa. Fazia perna-de-pau, malabares, acrobacia de solo e acrobacia rea.
66
Vale aqui ressaltar que essas áreas artísticas apresentam-se contemporaneamente como áreas de muita
confluência e de muita integração com a dança. Esteticamente falando, o circo contemporâneo se misturou
muito com a dança e o teatro contemporâneo também, não sendo possível, em muitos espetáculos de arte
contemporânea, distinguir, em cena, onde começa um e onde termina o outro.
105
Comecei a me identificar muito com a acrobacia aérea, no caso o trapézio e o
tecido, no qual se tratava.... no qual se trata de uma coisa bem corpórea, assim.
Movimentação... pura movimentação. E eu vi que a dança me ajudaria muito
nisso. A partir desse instante, então, (...) eu tomei a decisão de começar a
frequentar aulas de dança. E ao mesmo tempo também meio escondido atrás da
questão de ah, o meu trabalho é o circo. E para me ajudar no circo eu vou fazer
aula de dança.” Eu tinha um preconceito dentro de mim também, né?
Especialmente nesse último fragmento da fala, de Tiago, é possível perceber que,
com o início prévio nessa outra arte corporal, esse sujeito não está apenas legitimando algo
para os outros, mas também e talvez muito mais para si mesmo. No momento crucial
em que Tiago começa a frequentar aulas de dança, ele mantém para si mesmo a seguinte
justificativa: é para ajudar no seu trabalho no circo. Ou seja, ele responde à demanda
cultural que lhe diz que dança não é profissão nem atividade de homem, se colocando no
lugar de artista de circo, que seria uma profissão que a cultura acha um pouco menos
inaceitável para o masculino. É uma maneira de ele significar o fato de começar a praticar
uma arte como a dança, que anteriormente ele o praticava e para a qual nunca foi
incentivado a praticar. E como ele mesmo afirma, é uma estratégia que usa para esconder
de si mesmo e dos outros que ele simplesmente sente prazer e gosta de dançar.
Em outro momento de sua fala, quando narra sua experiência na primeira
companhia de dança contemporânea profissional, Tiago explica:
Lá, ele me viam muito assim como “o menino do circo que dança”.
Tinha uma dificuldade de...acho que até minha mesmo... de dizer “não, ok, eu
sou um bailarino”, né? E o pessoal sempre falava, “ah, o menino do circo”, “o
menino do circo”... E eu queria romper com isso, assim, né...
Na dança contemporânea, como ocorre com o balé, o caminho para que um homem
torne-se um bailarino parece também ser na maioria das vezes um caminho de aproximação
muito gradual com essa forma de arte. Ele passa por outras práticas corporais diversas,
antes de chegar a assumir esse lugar. Ou seja, ele vai assumindo “aos poucos” o lugar de
106
bailarino, sendo que o caminho para chegar a assumir esse lugar passa quase sempre pela
prática de outras atividades físicas artísticas.
Vale ressaltar que mesmo eu, antes de praticar dança, pratiquei outras práticas
corporais, em especial (como os meus sujeitos entrevistados) a ginástica artística e o circo,
mas também as artes marciais
67
. Assim, hoje em dia, me vejo como alguém que, desde
certo momento da minha trajetória de vida, fui constituído pelas representações de corpo
ligadas à dança, mas que, além disso, também fui constituído por outras.
Atualmente, no universo da dança contemporânea, como observa Louppe (2000), a
construção do corpo do bailarino é marcada por uma intensa hibridação cultural. Assim, a
construção corporal de um bailarino contemporâneo torna-se inviável através de uma única
técnica. Muitos praticantes de dança contemporânea passam por diversas experiências
artísticas, por vários estilos de dança, por várias práticas corporais. Transitar por todas essas
diferentes linguagens é freqüente nessa prática.
Assim, parece-me que essa condição híbrida da dança contemporânea, que a
aproxima de tantas áreas diferentes (teatro, circo, outras modalidades de dança, yoga, artes
marciais, performances em artes plásticas, etc.), funciona como um facilitador para que
homens se aproximem gradualmente dessa arte, muito mais do que, por exemplo, no balé
ou em outras modalidades de dança, nas quais essa hibridação cultural não é tão enfatizada.
O hibridismo com técnicas de acrobacia, por exemplo, aparece como um importante
facilitador na narrativa das experiência de vida de alguns dos bailarinos entrevistados. Isso
aparece em alguns fragmentos narrativos, como nesse trecho, no qual o entrevistado conta
sobre seus primeiros contatos com aulas de dança contemporânea:
[…] quando comecei a fazer aulas com o “fulano”
68
, me identifiquei
bastante porque ele tinha uma linguagem acrobática, que me interessava e eu
tinha facilidade de responder a esse procedimento assim de aula.
67
Nesse aspecto, sinto-me como que um pouco diferenciado, ou singularizado, no contexto de Porto Alegre.
Bailarinos e artistas cênicos em geral, não costumam gostar de artes marciais, por considerarem estas
demasiado “agressivas”, num sentido negativo. Praticantes de artes marciais, por outro lado, costumam se
referir em um tom depreciativo à dança. Apesar de as duas áreas possuírem um trabalho corporal bastante
semelhante, no sentido por exemplo biomecânico ou cognitivo, parece ser no significado que as permeia e, em
especial, nas representações de gênero nelas coladas, que se estabelece uma linha divisória.
68
Em virtude do comprometimento ético em não identificar os sujeitos que entrevistei, conforme descrito no
termo de consentimento livre e esclarecido, optei por não citar aqui no nome do referido professor.
107
Segundo Klein e Gay apud Cecchetto (2004), as atividades que envolvem proezas
musculares são consideradas geralmente atividades másculas e o desafio que elas trazem
são considerados em nossa cultura como provas de virilidade. Connel (1997) aponta uma
das definições mais comuns de masculinidade como relacionada à atividade, à força física,
à coragem, à decisão, etc. O elemento acrobático, pela sua dificuldade, pelo seu risco, pelo
fato de exigir um intenso trabalho muscular, de força explosiva, associa-se facilmente,
portanto, à idéia de virilidade. Tomo como exemplo o hip hop, um tipo de dança marcada
pelo uso de elementos acrobáticos em suas coreografias e, que, paralelamente, se revela
como uma dança bastante valorizada, como um modo de dançar masculino e, portanto,
como um espaço de exibição dos atributos culturais hegemônicos de masculinidade
(SANTOS, 2009).
Também a prática da ginástica artística e do circo são caracterizadas como
acrobáticas, são bastante recorrentes nas vidas de muitos homens que chegam a se tornar
bailarinos, para quem a dança contemporânea adquire centralidade. A existência de linhas
de trabalhos que se valem extensamente de elementos acrobáticos em algumas escolas de
dança contemporânea talvez possibilite uma aproximação inicial do homem com a dança
dentro de um modelo o mais próximo possível da ginástica artística, do circo, etc. Tais
práticas, por sua vez, são em si mais “aceitáveis” dentro da sociedade justamente por serem
práticas acrobáticas, isso é, que incluem o elemento risco e, portanto, necessitam que o
praticante demonstre ou exiba coragem. E a coragem, junto com a decisão, força moral,
força física, etc., dentro da representação hegemônica de masculinidade, é tida como um
dos atributos essenciais do masculino. (SEFFNER, 2003).
4.4. Dança e homossexualidade
A associação da dança com a homossexualidade é, como observei no início desse
capítulo, um elemento marcante na fala de todos os entrevistados. Ela é sempre apontada
como sendo um obstáculo social, pelo fato de a orientação de vida homossexual não estar
enquadrada dentro daquilo que as representações culturais hegemônicas de masculino
108
(heteronormativas) ditam para os homens. Além disso, a associação da dança com a
homossexualidade é muito mais forte no que diz respeito ao balé clássico do que na dança
contemporânea, conforme informam os entrevistados:
A questão do homossexual eu acho que muito vinculado ao balé
clássico. Até na dança contemporânea não tem muito esse estigma, assim,
quebra um pouco isso.
Desde a sua “invenção” até o século XVIII (até o fim do período do reinado de Luís
XVII, o “Rei Sol”), o balé era predominantemente masculino. Ele estava associado, nessa
época a um modelo de masculinidade hegemônico que Kimmel (1998) nomeia como o
modelo do “patriarcal gentil”. Um modelo bastante aristocrático e refinado, com seus
modos e gestos suaves e delicados, representante da nobreza européia. As mulheres, como
observa Hanna (1999), não podiam dançar. Por causa disso, muitas vezes os homens
executavam no palco papéis femininos, como travestis (op cit).
No final do século XVIIII e início do século XIX, essa situação toda se modifica.
Como observa Kimmel (1998), emerge um novo modelo de masculinidade que, para se
instaurar, precisou negar os modelos de masculinidade anteriores. Um desses modelos que
ele procura negar é o do aristocrata europeu. Assim, “[...] o verdadeiro homem americano
(o novo modelo) era vigoroso, másculo e direto, não era afetado e corrupto como os
europeus.” (KIMMEL, 1998, p. 113). o modelo anterior foi, então, definido como “[...]
um pavão europeu afetado, uma „bichinha‟.” (KIMMEL, 1998, p. 113).
É importante considerar que nessa mesma época, no século XIX, as próprias noções
de heterossexualidade e homossexualidade são inventadas. Assim, é um período em que
novas normas são estabelecidas para o gênero e sexualidade masculinas. Como foi
devidamente abordado no capítulo 3, trata-se de uma representação cultural
heteronormativa. A homossexualidade é tida como a negação da heterossexualidade, como
um desvio da normalidade. Por isso, ela é considerada uma sexualidade degradada. E, em
paralelo, ela é também signo de um gênero degradado. No caso dos homens, ela aparece
associada ou como sinônimo de falta de virilidade e de masculinidade.
109
A emergência desse novo modelo de masculinidade aparece também articulada com
o surgimento das sociedades burguesas no século XIX, como observa Hanna (1999), neste
contexto, o que passa a ser cobrado dos homens é a produção, a eficiência, a racionalidade,
a produtividade e não mais o refinamento estético aristocrata. Assim é que o balé clássico,
com a sua estética artística originária de um modo corporal de se movimentar e de dançar
da nobreza do culo XVIII e, portanto, de um modo de existência, passa a ser um dos
símbolos desse modelo de masculinidade que se procura justamente negar. A entrada da
mulher em cena está ligada ao fato da desvalorização da dança como uma atividade
masculina, bem como à emergência da estética romântica na dança
69
. Mesmo após o
surgimento da vertente russa do balé, por exemplo, na qual a figura do homem em cena é
revalorizada, a ideia de uma dança que evoca um certo ideal corporal de “não-
masculinidade” permanece “colada” a essa dança até os dias de hoje e não apenas a essa
dança, mas a todas que a ela são pelo menos próximas (como é o caso de algumas linhas de
dança contemporânea, do jazz e da dança moderna).
Até hoje, persiste essa forte representação cultural ocidental que associa o balé
clássico e todas as danças assemelhadas à homossexualidade. Nessa fala de João, por
exemplo, ele explica que essa representação cultural em torno do homem no balé tem seus
efeitos sobre a representação de dança contemporânea:
Se tu diz hoje “sou bailarino” está acabado... a homossexualidade...
não interessa se tu dança balé ou dança contemporânea. Porque as pessoas... o
leigo não sabe a diferença entre o contemporâneo e o balé. Então “bailarino”
remete ao “cisne”(...) isso tem a ver com esse preconceito contra o balé, com
essa forma de corpo leve, com um nariz mais empinado, caminhar com os pés
esticados...
Essa confusão que João afirma que as pessoas fazem entre as danças remete às
questões abordadas no capítulo 2, sobre a predominância do balé na formação de quase
69
O romantismo na dança promove uma valorização da mulher em cena como uma representação de um
ideal-mulher inacessível: uma imagem do ideal sonhado pelos homens. Seu marco principal foi com a obra
„La Sylphide‟, de Marie Taglioni, na cada de 1830. Como afirma Judith Hanna (op cit, p.188), Taglioni
“sintetizou a fantasiosa e etérea peça central da era romântica, em La Sylphide”.
110
todos os bailarinos mesmo os de dança contemporânea na atualidade. Nas narrativas de
todos os entrevistados essa construção cultural é recorrente.
Tiago relata que essa associação entre dança e homossexualidade serviu como
inibidor para que ele começasse a praticar a dança mais cedo em sua vida:
[…] Pelo fato de eu ser homossexual, eu queria esconder isso. Porque
naquela época não tinha como eu... eu não lidava bem com isso, né? Então eu
queria esconder. Eu não queria me unir a coisas que viessem a me dar mais
evidências da minha homossexualidade.
Aqui o “obstáculo” está associado também ao fato de Tiago, em certo momento de
sua vida, não desejar assumir uma certa orientação de sexualidade que viria a adotar mais
tarde, a sexualidade o-heterossexual e que perante as normas culturais hegemônicas
heteronormativas é apontada como um modelo de masculinidade menos valorizado. os
indivíduos que se auto-identificaram ao longo de toda a sua vida e que ainda se identificam
como heterossexuais
70
, também narram essa associação da dança com homossexualidade
como um inibidor, mas num sentido diferente.
Paulo relata como isso, no seu ponto de vista, é problemático, da seguinte forma:
[…] Antigamente, eu ficava indignado. Hã, às vezes, ? Porque as
pessoas achavam que... se tinham alguns que eram... E realmente tem, né? Tem
vários que são, na verdade. A maioria, às vezes, é homossexual, ? Mas...
porque se tinha vários, porque que todos teriam que ser? A gente sabe que não é
assim. […] isso faz muitas pessoas desistirem da dança, né? Muitos guris bons...
desistem da da dança […] muitos guris que poderiam ser ótimos bailarinos,
desistem por causa desse preconceito. E o principal motivo do porque para mim
isso foi um problema é porque isso acaba te tirando, às vezes, a vontade de
dançar, de tu te apresentar, porque as pessoas nunca vão ver aquilo como uma
coisa bacana, assim. Vêem aquilo sempre pelo lado pejorativo, né.
70
Vale ressaltar que no questionário, não perguntei, em nenhum momento sobre a orientação sexual de
ninguém. Mas tanto os indivíduos que se auto-identificam como heterossexuais quanto os que se auto-
identificam como homossexuais fizeram questão de deixar sua identidade bem marcada.
111
Tal fala, e também a anterior, devem ser situadas no contexto de uma cultura que
historicamente sempre produziu representações de masculinidades homofóbicas.
A esse respeito, Butler (1990, p. 8) diz-nos que, em nossa cultura, “[...] a
sexualidade é regulada pela degradação do gênero.” Ou seja, a construção da identidade de
gênero do homem se não apenas pela repetição da diferença entre mulheres e homens,
ou pela constante instauração performática, nos corpos, da masculinidade. Mas essa
construção se também pela constante afirmação da oposição hierárquica entre
masculinidade e falta de masculinidade. Assim, o oposto da masculinidade não é a
feminilidade, mas sim a falta de masculinidade. Essa noção funciona como um mecanismo
de regulação da sexualidade por meio do gênero. O homem, para ser considerado
masculino, precisa negar a menor possibilidade de homossexualidade. Se ele não negar a
homossexualidade, ele será considerado um homem menos masculino, um homem cujo
gênero está degradado. Assim, a homofobia articula-se como elementos constitutivos da
construção hegemônica da masculinidade.
Nesse sentido, Paulo relata ainda:
[…] às vezes ficava complicado... eu dizia que ia... ao invés de dizer
que eu ia num jogo de futebol, com os amigos, eu dizer que ia para uma aula de
balé... Isso era visto como um motivo de gozação.
Aqui, o mesmo sujeito heterossexual relata sobre suas inibições ao longo da
juventude a partir de elementos da sua socialização. E ele faz referência a duas práticas
corporais bem distintas, relacionadas à representações de masculinidade e feminilidade, e
também a noções de maior ou menor virilidade. O futebol, segundo Bandeira (2009) traz
em nossa cultura brasileira fortes representações de masculinidade intensamente viril e
heterossexual. Já o balé clássico, segundo Santos (2009b), é vista como uma prática
relacionada às mulheres, ou a homens efeminados.
A partir de colocações como estas é possível compreender porque, para sujeitos
heterossexuais, o contexto social realize tanta pressão. Ou porque isso será apontado por
tantos deles como um problema, no sentido de ser uma desmotivação à prática, bem como
um dos prováveis motivos do porque sempre menos homens do que mulheres na dança.
112
A cultura regula e normatiza suas escolhas por meio de representações de masculinidade. É
através de negociações com essas representações, em meio a tensões constantes, que esses
sujeitos masculinos precisam ir constituindo suas experiências com o mundo da dança.
Entretanto, na história de vida desses homens por mim entrevistados, o contexto
social não parece ter produzido tanta pressão, ou pressão o suficiente, para que eles
negassem definitivamente, qualquer experiência com o mundo da dança. Em muitas falas, é
perceptível que tais obstáculos ou barreiras sociais, geradores de inibição, não eram tão
fortes, como, por exemplo, nessa fala de Paulo:
Meu pai não foi muito a favor. […] Mas aí eu acabei que... hoje em dia...
Isso não foi um empecilho para eu continuar dançando. Porque daí ele... ele não
gostava, mas como a minha mãe aceita ele não batia de frente, assim, não
chegava ao ponto de dizer “não, ou tu pára de dançar ou tu não dorme mais aqui
em casa”. Só ele não me apoiava.
A relação com a homossexualidade, vista como uma forma degradada de ser
masculino, existe na história de vida de todos os sujeitos que eu entrevistei, sem exceção.
Ela foi uma questão que eles trouxeram em suas falas antes mesmo de eu perguntar
qualquer coisa a esse respeito. Quando a pergunta era simplesmente “como sua família viu
e seu envolvimento com a dança? ou “como seus amigos vêem ou viram seu
envolvimento com a dança?”, essa questão invariavelmente era trazida.
Esta pesquisa vem a reforçar, portanto, a noção defendida por muitos autores
(HANNA, 1999; SOUZA, 2007), de que a associação entre dança masculina e
homossexualidade é muito mais forte no balé clássico do que em qualquer outra dança e de
que ela paira como um “fantasma” diante das escolhas de vida de todos os homens. Mesmo
que os sujeitos demonstrem que houve um certo grau de aceitação, entre a família e entre os
amigos principalmente, diante do fato deles dançarem, essa relação entre dança e
homossexualidade, construída como algo negativo e pejorativo, não está totalmente
ausente. Ela opera como uma lógica cultural maior à qual eles têm que dar constantemente
alguma resposta.
113
Os amigos, eles brincam um pouco. Eles até acham meio estranho. Eles
demoram para se acostumar. Mas acabam entendendo que tu não muda porque
tu tá dançando. Que tu não muda a tua opção sexual porque tu tá dançando.
Aqui, Paulo demonstra uma das diferentes respostas possíveis que os sujeitos são
impelidos a dar à cultura através da qual são constituídos. Em outras palavras, como eles
colocam-se em um lugar de ter que validar a sua opção pela dança, marcando a sua opção
de masculinidade. Por vezes, essa marcação ocorre pela afirmação da heterossexualidade,
deixando bem claro que “não se muda a opção sexual dançando”. Aqui, se está tentando
contrapor-se à representação cultural que diz que todo bailarino é homossexual.
Esse lugar de masculinidade heterossexual é reafirmado em vários momentos,
tornando-se uma questão fundamental na fala de muitos entrevistados. Essa afirmação
aparece através de argumentos que funcionam como mecanismos ou estratégias para
posicionar o sujeito dentro de um registro bem específico. Assim, por exemplo, José fala:
Eu tive um pouco de constrangimento por causa disso [pelo fato de a
dança ser relacionada com a homossexualidade]. Mas hoje em dia eu não tenho a
menor preocupação. Porque eu tenho namorada. Sempre tive namorada. Nunca
passei um largo tempo solteiro. E sempre as minhas companheiras entenderam
que eu não era homossexual por fazer dança. Deu fiquei sem dar satisfação
para ninguém.
Aqui, o fato de ter namorada aparece claramente como um instrumento de validação
da masculinidade, forte o suficiente para suplantar qualquer proposição de ordem cultural
que afirme que a dança é apenas para homossexuais. E não apenas o fato de ter namorada,
mas também o fato de -las com frequência, como é dado a entender quando o sujeito
acrescenta, logo a seguir que “sempre” teve e que nunca passou “um largo tempo solteiro”.
A validade do masculino parece ser chancelada e aprovada pelo ato da conquista amorosa,
dentro de um registro heterossexual.
Nesse sentido, como observam vários estudos (SILVEIRA, 1999; SEFFNER, 2003;
NASCIMENTO, 2004), a virilidade, tema bastante comum nas construções hegemônicas
de masculinidade, aparece muitas vezes associada à atividade sexual. A atividade sexual é
114
com frequência significada como uma “[...] prova de performance [...](NASCIMENTO,
2004, p. 108), através da qual uma marca da masculinidade hegemônica é reafirmada.
Em outros momentos das entrevistas, no entanto, essa masculinidade é afirmada não
no sentido de uma marcação da virilidade, mas no sentido de uma maneira socialmente
correta de comportar-se, de viver, e talvez de servir de exemplo:
Eu sempre deixei pros meus amigos bem claro o que eu queria com o
teatro [...] eu no teatro porque eu gosto do teatro e eu to na dança porque eu
gosto de dança. Porque eu quero dançar e porque eu quero atuar. O que conta é
o que tu passa para as pessoas. Eu sempre passei para as pessoas uma imagem
positiva, assim, no meu ponto de vista.
Aqui, a marcação vai no sentido de “passar uma imagem positiva” diante da
sociedade, o que permite ler a existência de uma imagem negativa do indivíduo masculino
que pratica dança. Em outras falas, esse tipo de representação traz elementos morais:
É um meio bem complicado, o meio artístico. Teatro, Tv, dança... É um
meio que as pessoas são mais livres. Fazem o que querem. Tem pessoas que se
aproveitam dessa liberdade e vão para o teatro ou para a dança para se libertar
mesmo, para se afundar. (...) Tem as drogas, mas também tem a liberdade
sexual... Tipo assim, tem muitos caras que falam “ah, o teatro tem mulher.
Então, se eu quero pegar mulher, eu vou para o teatro”. Ou tem cara que é meio
afeminado, e que quer se libertar, então entra para o teatro para se libertar.
Assim, é possível perceber que essa validação da escolha pela dança, perante a
sociedade e perante si mesmo, passa muitas vezes por uma validação num registro cultural
que institui uma regulação da sexualidade dos indivíduos por meio de fortes proposições
morais. Aqui, o jeito “bom” de ser masculino, o jeito que é aceitável, é um jeito bem
regulado, bem disciplinado, que deve saber admnistrar e gerir sua “liberdade”. Ele funda-se
no seu oposto, que não é enunciado, mas que se deixa imaginar facilmente como um jeito
ruim de ser masculino: o que abusa da liberdade, o que se utiliza da arte para propósitos de
interesse sexual, enfim, o que termina por “se afundar”.
115
Duas representações diferentes de masculinidade na dança contemporânea aparecem
aqui: a do bailarino que demonstra ser capaz de conquistar mulheres e a do bailarino que se
mostra capaz de ter um comportamento sexual moralmente correto. Assim, ambos validam
outras formas de ser masculino, mas ainda assim com direito de ser considerada masculina,
mesmo dentro do registro maior da cultura que associa a dança à falta de masculinidade.
No primeiro caso, em que o sujeito busca legitimar sua masculinidade por meio de
uma afirmação da sua heterossexualidade, conquistar mulheres heterossexuais desempenha
um papel de validação muito importante. Esse papel é tão importante que, na sua relação
com os outros homens e também com mulheres, apenas isso basta. Aqui, não se mostra
necessário exibir outros atributos frequentemente relacionados ao masculino, tais como
força física, agressividade e outros que em contextos sociais desportivos, por exemplo,
mostram-se tão importantes.
No segundo caso, o que parece ter mais peso é a exibição, como observei, de um
tipo de comportamento moralmente exemplar diante das mulheres e dos outros homens.
Aqui, a identidade parece estar muito mais fundamentada em princípios que criam arranjos
de posicionamento social que regulam a sexualidade, do que na exibição da sua potência
por meio da capacidade de sedução.
Pensando na observação feita por Kimmel (1998), de que as masculinidades são
produzidas sempre através de duas formas de relações sociais, as relações estabelecidas
com as mulheres e as relações estabelecidas com outros homens, notei também que entre os
indivíduos auto-identificados como heterossexuais que entrevistei, a relação com as
mulheres parece ser mais marcante do que com os homens, no que diz respeito às inibições
fora do âmbito familiar. Muitos desses sujeitos relataram que a resistência mais forte para o
fato de eles escolherem dançar não vinha, por exemplo, dos amigos, mas sim de muitas
daquelas mulheres em quem eles tinham interesses sexuais, em muitas de suas namoradas,
companheiras, etc. Alguns dos bailarinos heterossexuais entrevistados relatam, por
exemplo, sobre o seu maior constrangimento com relação à associação que é feita entre
dança e homossexualidade, ou a feminino, da seguinte forma:
Ah, isso é geralmente assim... De tu te apresentar como bailarino para
116
uma moça que tu conhecendo numa festa. a moça vai embora, porque ela
acha que tu é homossexual.
Acho que as mulheres vêem com preconceito isso mais ainda do que os
homens. Eu tenho essa impressão. Porque, as minhas ex-namoradas que o
dançavam, várias me disseram que me achavam muito feminino. E tinham uma
certa aversão à minha figura em cena. Não gostavam de eu dançar. Não é uma
coisa que elas achavam muito bacana. E isso eu noto nas outras mulheres, que
não são da dança. Que elas o vêem isso como uma figura de status na
sociedade, assim, tu ser bailarino. A não ser que seja hip hop, e olhe lá... Na
dança de salão até é bem valorizado. Ou na dança tradicionalista gaúcha. Mas
dança contemporânea, balé, jazz...
Eu comecei a dançar há um ano. Antes eu fazia teatro. E a minha atual
namorada, que tá comigo mais de um ano, ela estranhou muito no começo.
E daí eu tive que ir fazendo ela entender aos poucos... Mas hoje ela até aceita
bem... sem problemas...
José, Paulo e Ricardo, nessa falas, apontam para o fato de que, para os homens que
se auto-identificam como heterossexuais, a cônjuge ou candidata a cônjuge traz muito mais
barreiras e obstáculos do que o círculo de amigos masculinos, muito embora também desses
se perceba alguma resistência. Com relação às mulheres, a regulação e a vigilância,
portanto, é muito mais intensa do que com relação aos homens.
A associação da dança com a homossexualidade é, ainda hoje, um elemento
constituidor dos mais diversos tipos de resistência da parte do meio ou entorno social aos
sujeitos heterossexuais. Família, amigos, cônjuges, parecem frequentemente inibir a prática
da dança por parte de homens cujas identidades individuais estejam orientadas no sentido
da obtenção de uma “autêntica” heterossexualidade. Por outro lado, essa mesma associação
entre dança e homossexualidade pode servir, nos casos de sujeitos que não se considerem
ou se auto-identifiquem como heterossexuais, e que, portanto, não estejam empenhados em
um projeto de aquisição, perante à sociedade, de uma heterossexualidade, como um
estímulo e até como um incentivo. Isso se torna bem claro na fala de João:
117
Pessoas que convivem mais com o fazer artístico profissionalmente, são
todas rotuladas como gays. Não que isso seja errado. Porque se for pegar em
última análise, 90% das pessoas que estão envolvidas com arte são mesmo gays
e afins... Se essas coisas estão relacionadas de alguma maneira eu não sei, mas
que tem uma ligação entre o sensível e essa coisa de sexualidade, eu acho que
tem. Então, eu acho que a coisa é real, assim. É assim. Essa energia de estar fora
do lugar comum, de vestir uma camisa, de ter a força de dizer “ah, é isso o que
eu quero fazer, e que se dane a sociedade”... Eu acho que se reflete em outras
atitudes, em outras vontades, dentro desse ser complexo que nós somos... Uma
decisão certamente tá ligada com outras... Ser homem e bailarino é estar fora do
lugar comum. Mas ser gay também é.
Na história de vida de João, ele relata que a prática da dança (desde a infância)
esteve de alguma forma ligada à sua opção por não seguir uma orientação heterossexual.
Ele não diz, em nenhum momento, que uma coisa determinou a outra. Não se trata aqui de
uma relação de causa e efeito. No entanto, ele diz que essas duas atitudes de vida, assumir-
se como homossexual e praticar dança, estão de certa forma relacionadas, articuladas.
Sua definição acerca de assumir uma identidade gay é a de “estar fora do lugar
comum”, bem como a sua definição acerca de ser bailarino. Ele justifica essa relação
através da afirmação de que a dança está ligada a uma “sensibilidade”, que estaria de
alguma forma ligada à opção de vida não-heterossexual. Dança, compreendida como algo
ligado ao sensível, parece operar aqui como um elemento que aproxima essa prática
corporal e artística de um projeto de aquisição de uma identidade gay.
João afirma que é preciso a mesma “energia”, ou seja, a mesma atitude capaz de
romper com padrões culturais, tanto para que um homem assuma a sua homossexualidade
quanto para que um homem dance. E ele exemplifica melhor isso, dizendo que tanto para
quanto para outro caso e preciso ter uma “personalidade forte”:
Geralmente atores e artistas têm uma personalidade muito forte em
última análise, de dizer Ah, eu quero isso. Vou fazer isso, e que se dane o que
118
a sociedade vai pensar”. os poucos que têm essa personalidade forte acabam
persistindo e por isso quem fazendo é porque quer muito, assim... Por isso os
bailarinos, os atores, são pessoas mais convictas do que em qualquer outras
profissões...
Num sentido similar, Tiago, que também teve que driblar ao longo de sua vida os
preconceitos culturais relacionados à orientação homossexual, afirma:
Quem ali fazendo aula de dança muito convicto. Então não tem
inibições não. Na verdade [...] eu posso contar nos dedos o número de meninos.
É pouquinho. Então, a gama maior é de mulheres. Quem ali, dos homens,
muito convicto.
O atravessamento de fronteiras de gênero pede novos comportamentos, e esses têm
que muitas vezes enfrentar muitas resistências, romper barreiras. Assim como os
entrevistados afirmam que um homem que assume sua identidade gay ou um homem que
dança são muito convictos”, também poder-se-ia dizer, no caso das mulheres, que são
“convictas” aquelas que, por exemplo, escolhem ser gerentes de banco, presidentes,
empresárias, atletas de luta, etc. Há, de fato, todo um conjunto de expectativas sociais que
funcionam como barreiras a serem transpostas, em todos esses casos.
Vale ressaltar que, até aqui, ainda estamos operando sobre o plano da representação
de dança em um sentido geral, e não sobre alguma especificidade que remeta ao universo
da dança contemporânea, em particular. João fala da dança num sentido geral, assim como
também do teatro. Mais adiante, em suas falas, ele reforça que essa relação que ele faz entre
dança e homossexualidade é, na verdade, muito referente ainda ao balé clássico.
Ressalto, também, como retornam aqui os temas bastante essencialistas de uma
dança ligada a uma certa sensibilidade, a um universo mais emotivo, em suma, a um
conjunto de símbolos que dentro da cultura androcêntrica sempre foram relacionados ao
feminino. Em articulação com isso, retorna a idéia de uma opção pela homossexualidade
119
como algo também direta e necessariamente subordinado a esse tipo de característica. Ou
seja, a orientação homossexual como ligada a algum tipo de “energia” ou de essência
feminina e, por causa disso, ou em consequência disso, como ligada à dança.
Nesse sentido, trago aqui a fala de Tiago:
A questão do homossexual eu acho que tá muito vinculado ao balé
clássico [...] por ser uma dança mais sutil, mais delicada, mais pelo encanto,
mas pela beleza. Porque o homem veste malha, porque o homem estica o pé.
[...] Eu acho que vai pela questão do... como é que eu vou falar isso... do íntimo,
né? A sensibilidade [...] é uma característica mais encontrada nos homens
homossexuais do que nos homens heterossexuais. A gente vive diferente. A
gente percebe e a gente se relaciona diferente dos heterossexuais. E a dança tem
isso, assim.
Dança como expressão da alma, ou dança como desvelamento de algo interior,
como abordei no capítulo 2, parecem ser representações muito próprias do universo da
dança contemporânea. Esse tipo de noção tem implicações muito problemáticas no que diz
respeito ao gênero, pois tende sempre a engessar e cristalizar as noções de “masculino” e
“feminino”, e reforçam as dicotomias e a polarização binária que historicamente os
discursos reducionistas e biologicistas sempre construíram sobre o gênero. Além disso, a
essas noções essencialistas pode colar-se, muito facilmente, a idéia de norma. Ou seja, a
partir da idéia da existência de uma essência, institui-se a formulação de uma verdade sobre
o ser humano, e a partir daí, parâmetros de regulação.
A sexualidade, articulada com o gênero, parece estabelecer determinadas relações
que posicionam o sujeito em lugares específicos. E a dança surge como o tipo de atividade
mais apropriada, ou que mais combina, com esse tipo de lugar onde ele procura se situar.
Tiago é da opinião de que essas coisas possam vir a mudar, e que os homens,
mesmo os heterossexuais, estejam se sensibilizando um pouco mais, atualmente. Com
isso, esse homens estariam se aproximando mais do terreno da dança e de outras artes. Ele
pensa que essa associação que é feita entre dança, especialmente o balé clássico, e
homossexualidade, possa vir a deixar de existir algum dia. Já João expressa uma percepção
bastante diferente, quando diz:
120
Um gay muito afetado, assim, dançar balé clássico tradicional não é um
problema. Porque o balé clássico pede uma postura mais feminina da parte do
homem, um tônus mais leve...Todos os homens que dançam balé parecem
bichas... se tu for ver... (...) O balé é, de fato, gay. Qualquer homem, seja hetero
ou seja homossexual, quando dança balé, sempre parecerá gay.
Essa fala é significativa para pensar como, mesmo para muitos bailarinos de dança
contemporânea na atualidade, é difícil destacar-se de um modo de narrativa sobre os corpos
na dança que não façam referências a representações culturais hegemônicas. Aqui, refiro-
me mais especificamente a certa representação cultural de dança que parece associar a
postura corporal mais alongada, os gestos suaves ou delicados, e outros elementos presentes
na estética corporal da técnica do balé com um certo modo corporal que um indivíduo
homossexual utiliza para se portar em sociedade.
Retomando minha próprias experiências pessoais com a dança, mas também com as
práticas corporais com as quais estive envolvido ao longo de minha vida, percebi como a
postura corporal alongada é, de fato, bastante significada como ligada à homossexualidade.
Um detalhe muito simples como estender o pé, mantendo-o alongado, ou “em ponta”, como
se costuma fazer na ginástica artística, nas técnicas circenses ou no wushu, pode acionar,
em muitos contextos, reações de rejeição ou desaprovação no que diz respeito ao que se
espera do comportamento corporal de uma verdadeira masculinidade.
71
Esse tipo de associação entre postura corporal alongada e homossexualidade parece,
ao se articular com outras associações entre corpo e identidade subjetiva, ser muito
importante para a existência do preconceito ou resistência cultural com relação ao homem
na dança. A partir do momento em que compreendemos que a masculinidade, em nossa
cultura, é regulada pela heteronormatividade, o preconceito contra o homem na dança pode
ser visto, na verdade, muito mais como um preconceito contra a homossexualidade, bem
71
Em uma aula de técnicas circenses no Trapézio, que eu ministrava em uma escola estadual, no ano de
2009, percebi como rapidamente os meninos perdiam o interesse pela aula quando a posição que eu
demonstrava executada com os pés estendidos. Quando a mesma posição era demonstrada com os pés em sua
posição natural, o mesmo não se sucedia. Com relação às meninas, executar as posturas com ou sem ponta de
pé não gerava nenhuma significativa diferença.
121
como contra tudo aquilo que a ela se associe simbolicamente. Assim, todo gesto ou
movimento corporal que se relacione com determinados símbolos corporais que a cultura
associa tradicionalmente à feminilidade, no corpo de um homem, é automaticamente lido
como falta de masculinidade, e portanto, como efeminação ou homossexualidade.
4.5. A polaridade masculino-feminino e a dança contemporânea
Até aqui percebi que uma dificuldade, da parte de alguns sujeitos que atualmente
praticam dança contemporânea, em se posicionarem com relação a essa associação entre
dança e homossexualidade sem buscarem se fundamentar em certas noções essencialistas
de gênero e de sexualidade. Retomando esse aspecto da análise, nessa seção, analiso a
forma como os sujeitos entrevistados lidam com representações culturais de gênero, a partir
dos tipos de enunciações das quais eles se utilizam para organizar suas falas.
Como observa Souza (2009b), o discurso do balé sempre endossou esse tipo de
lógica ou representação baseada na clássica oposição binária masculino-feminino. A autora
cita alguns exemplos, como o da bailarina Marie Camargo (1710-1770), que exibia grande
velocidade, um estilo vigoroso e uma capacidade de realizar passos complexos e piruetas de
grande dificuldade. Como essas habilidades eram consideradas impróprias para as
mulheres, dizia-se, na época, que Marie Camargo dançava como um homem
72
. Outro
exemplo: o poeta romântico Gautier (1811-1872) afirmava que devia haver diferenças entre
o papel do homem e da mulher na dança: a participação masculina nas partes das ações
(como na pantomima) era aceitável, mas na dança pura, tornava-se inapropriado, [...]
porque os homens efeminados caem naquela graça especiosa, naqueles ambíguos,
revoltantes e moderados trejeitos que enojam o público (GUATIER apud SANTOS, 2009,
p. 51). Segundo o poeta, a força e a ação é que pertenciam ao domínio masculino.
Da mesma maneira, o bailarino Igor Youskevitch, na segunda metade do século XX,
argumentou que para os homens, o lado técnico ou atlético da dança se constituiria como
um desafio racional, assim, quando um bailarino domina a técnica, ele ganharia a
oportunidade de demonstrar sua força, habilidade e resistência, bem como os meios e o
72
Santos (2009, p.49) ressalta, no entanto, que haviam determinados passos considerados impróprios para
mulheres que ela não realizava, o que, na opinião da autora, demonstra que ela havia internalizado um certo
grau da feminilidade convencionada.
122
vocabulário para chegar à criatividade. Então, a masculinidade não se constituiria pela mera
aparência. A masculinidade seria a força criadora. (SOUZA, 2009, p.49-50).
Tais proposições fazem menção a um modelo dicotômico de pensamento, como
abordei no capítulo 2 que tem configurado ao longo da história da cultura Ocidental as
representações de masculino e feminino. A esse respeito, Louro (1995, p. 114) afirma que
na oposição entre os gêneros, um pólo deriva o seu sentido do outro. Mais do que isso, a
autora afirma que “[...] um pólo não apenas depende do outro, mas, em certa medida,
também contém o outro, de modo reprimido, desviado, procrastinado.” Assim, quando
opomos homem e mulher, lidando com essas categorias como essencializadas e ignorando
as profundas distinções que existem entre homens e mulheres, estamos reprimindo em um
gênero aquelas características que são consideradas do outro. Em outras palavras, a
dicotomia é uma operação de poder que tem por função negar nos homens tudo aquilo que
remeta ao feminino e nas mulheres tudo aquilo que remeta ao masculino.
Os discursos de verdade que ao longo da história do balé clássico procuraram
sempre e repetidamente instaurar um determinado modo culturalmente aceitável para os
corpos dançarem atestam como o balé sempre se articulou a esse modo de pensar
dicotômico. Em outras palavras, as representações culturais hegemônicas de gênero,
fundantes da rígida polarização ou dicotomia entre os gêneros, parece ter encontrado no
balé clássico uma eficiente ferramenta pedagógica. Quando um Igor Youskevitch ou um
Gautier, distantes por um século, afirmam coisas muito semelhantes, e tentam delimitar
traços essenciais da masculinidade e da feminilidade na dança, o que está em jogo é a
dimensão pedagógica que a dança pode adquirir, como um instrumento na perpetuação dos
valores e das representações hegemônicas de gênero. um investimento nessa dança, no
sentido de que ela se torne uma ferramenta capaz de produzir um determinado modo de ser
masculino, tendo para isso que negar tudo o que possa remeter ao feminino.
Como observa Hanna (1999) até a metade do século XX ainda havia na dança
contemporânea uma preocupação em se coreografar de forma diferente para corpos
femininos e masculinos, assim como no balé. A partir as décadas de 1950 e 1960, no
entanto, passou-se a priorizar elementos unissex. Também Marquié (2003) observa como,
principalmente nos Estados Unidos, nos anos 1970 a chamada “dança pós-moderna”
esforçou-se para atingir esta “neutralidade”, para fazer desaparecer toda marca de sexo e de
123
gênero dos corpos e de fundar, em cena, até mesmo uma “androginia”. Albrigth (1997)
afirma que a dança contemporânea revelou, nesse período, uma série de questionamentos
das imagens idealizadas (de feminilidade, de amor, de beleza, de família, de saúde, etc) e
narrativas tradicionais , conscientemente tentando chamar a atenção do público para a
alteridade dos corpos. Segundo Marquiè, no contexto atual a dança contemporânea quer-se
estreitamente ligada à subversão, devido aos projetos levados a cabo nessas épocas. A
autora afirma que hoje “[...] fala-se muito de corpos subversivos, reinventando ou re-
explorando as experiências dos anos 70.” (MARQUIÉ, 2003, p. 5)
Em muitos casos ao longo da sua história, a dança contemporânea transgrediu com
representações culturais de gênero, no âmbito do espetáculo cênico ou das propostas
coreográficas. Essa potência da dança contemporânea permitiu ao longo da história que, em
muitas obras artísticas, por exemplo, uma mulher pudesse apropriar-se de uma
movimentação comumente tida como mais masculina (“força”, “explosão”, etc.)
73
, ou um
homem pudesse apropriar-se de um gestual ou de uma movimentação comumente tida
como mais feminina (mas “leve”, mais “delicada”).
No entanto, mesmo que a dança contemporânea traga no bojo de sua história essa
possibilidade de permitir a transgressão da rígida polaridade imposta pela cultura aos
gêneros em cena, quando falam de suas vidas pessoais, de suas experiências, percepções,
concepções, os bailarinos não apresentam uma concepção transgressora.
Ricardo, por exemplo, bailarino de dança contemporânea e também freqüentador de
aulas de balé clássico, afirma:
Quanto mais o bailarino tiver os movimentos másculos fica mais bonito
ainda. Porque às vezes tu vês bailarinos que são mais femininos do que as
bailarinas... [...] O que eu i de balé clássico, geralmente os bailarinos são
afeminados. Não afeminados. Mas femininos demais. Seria essa a palavra. Toda
vez que eu vi espetáculos de balé onde o homem tem movimentos não muito
femininos, mais másculos assim, eu achei até mais interessante, justamente para
dar o contraste com a bailarina. O homem não precisa ter tanta leveza quanto a
bailarina. Claro, ele precisa executar bem os movimentos. Tem que ter bastante
73
Um exemplo disso é a emblemática Loiuse Lecavallier, bailarina da companhia La La La Human Steps,de
Édouard Lock, que em seus espetáculos, durante os anos de 1980 e 1990, fazia a portagem (a sustentação) de
homens e executava saltos e movimentos muito acrobáticos, com grande velocidade e explosão muscular.
124
precisão técnica, elasticidade, e tal. Mas não precisa ser tão leve. Não precisa
disputar com a bailarina [grifo meu]. O legal é o contraste. O contraste entre o
bruto e o leve.
Sua fala instaura uma clara polarização entre feminino e masculino, a partir de um
conjunto de representações simbólicas que reforçam a fixação de características
praticamente obrigatórias, na estética artística da dança, para homens e para mulheres.
Dentro dessas representações simbólicas, o masculino é relacionado ao “bruto”, e o
feminino ao “leve”. As características que são consideradas como mais apropriadas para os
homens são “técnica”, “elasticidade”, “precisão”. É dito que ele deve saber “executar bem
os movimentos”, mas que “não precisa ser tão leve” quanto uma mulher.
Na fala de Ricardo, como vimos anteriormente, todas essas representações binárias
de gênero, que ao longo da história sempre atravessaram, e até hoje atravessam, o balé
clássico, são reforçadas e reafirmadas. Justamente a oposição binária, a polarização entre
esses os dois extremos opostos, o masculino e o feminino, é valorizada esteticamente como
o mais desejável, como mais “interessante”. O legal”, afirma ele, é o “contraste entre o
bruto e o leve”. Qualquer coisa que fuja desse contraste é considerada esteticamente
indesejável. Quando, por exemplo, o homem é muito leve, considera-se que ele é “feminino
demais”. Em outras palavras, o homem deve reprimir em si a possibilidade, a vontade ou a
tendência de dançar muito leve, para não ser considerado feminino.
A expressão utilizada por Ricardo para nomear a atuação artística indevida de um
homem, nesse caso, é “disputa”. Considera-se que um homem que dança muito leve está
disputando com a bailarina. Em certo sentido, é como se ele tentasse ser uma mulher. O que
remete ao que Tatiana Souza (2009b) afirma sobre o balé:
o problema da participação do homem na dança clássica estaria localizado nos
momentos em que ele não age, ou seja, não suporte ou manipula a bailarina, e
não interpreta seu teatro gestual: são as ocasiões da dança pura, abstrata que
seriam impróprias para eles. Por quê? Sem a necessidade de agir, ao homem
restaria a execução de passos e movimentos, gestos e posturas que o colocariam
na posição de objeto a ser admirado, contemplado, e escrutinado pelo olhar do
espectador. Na perspectiva tradicional da diferença dos gêneros, esse não seria o
lugar esperado de um homem. (SOUZA, 2009, p.51)
Além de Ricardo, também José reforça a dicotomia quando afirma:
125
Tem danças que são muito fortes, que precisam de um impacto muscular,
que precisam de uma gravidade, que são qualidades masculinas. Daí pode ser que
uma mulher consiga fazer essa dança, sem problema nenhum. Mas, hã... é um
papel que os homens, assim, representam melhor, muito bem, assim. As vezes a
dança tem muito impacto, de se jogar no chão, ela tem saltos, então tem que ter
uma força muscular que é uma força diferente que a mulher não tem. Mulher tem
mais elasticidade, mais delicadeza, tem outras qualidades.
Aqui aparece novamente justificações da ordem do reducionismo biológico, como
na fala de Renato, trazida na primeira sessão deste capítulo, que invisibilizam a construção
cultural de uma certa noção de “feminino” e de “masculino” que orienta os corpos dos
indivíduos a diferentes destinos. Valências físicas como “força” e “elasticidade”, que
dependem de treinamento físico para serem desenvolvidas e otimizadas, são colocadas ao
lado de características totalmente subjetivas ou comportamentais, referentes ao tipo de
personalidade do indivíduo, como por exemplo “delicadeza”. Outro termo que também
parece atravessar-se é “representação”, entendido aqui como a capacidade de um artista
produzir um determinado comportamento espetacular em cena. Ele também aparece ao lado
das valências físicas citadas, de forma indiferenciada, como se fossem a mesma coisa.
Se considerarmos que o feminino e o masculino não se definem biologicamente,
mas são construções culturais, históricas e sociais, podemos afirmar ainda que estes se
definem de forma relacional. É nas relações de semelhança e de diferenciação que as
noções dominantes do que seja cada um destes lugares de identidade de gênero se
constituem. Neste item procuro perceber, nas falas de nossos entrevistados, as imagens do
feminino e do masculino que as representações de gênero que circulam entre os praticantes
de dança contemporânea põem em circulação, e de que forma elas articulam com as
próprias representações de dança.
Esses sujeitos entrevistados compreendem que na dança contemporânea não há uma
distinção entre masculino e feminino dentro da construção coreográfica dos movimentos.
Nesse tipo de dança, ao contrário do balé clássico, por exemplo, não se encenam tipos de
movimentos considerados próprios para os homens, e outros tipos de movimentos
considerados próprios para as mulheres. Mesmo assim, ainda persiste entre esses sujeitos
126
essa noção, característica do balé clássico e de muitas outras danças de que existam
movimentos que são mais próprios para o corpo masculino e movimentos que são mais
próprios para o corpo feminino. Isso está ligado à noção de uma essência masculina e de
uma essência feminina, que produz uma expressão diferenciada de gestos e movimentos
produzidos nas coreografias assexuadas e desgenerificadas de dança contemporânea.
Mais do que isso, muitas das falas parecem insistir em reforçar que é profundamente
desejável que os bailarinos se expressem de uma forma que não fuja a essa essência. Para
eles o feminino e o masculino são dois mundos naturalmente divididos, que não podem ser
modificados. Para que cenicamente, ou esteticamente, a sua dança fique mais interessante,
o bailarino não pode fugir muito daquilo que é esperado de um homem, e a bailarina não
pode fugir muito daquilo que é esperado de uma mulher.
Mesmo que nos espetáculos de dança contemporânea não haja a determinação, a
partir do coreógrafo, de movimentos ou posturas próprias para o masculino ou para o
feminino, ainda assim, persiste nas falas e compreensões dos bailarinos de dança
contemporânea a ideia de que o movimento suave e delicado seja um movimento mais
“feminino” e que um movimento mais brusco, forte, firme, é mais “masculino”. Continua-
se acreditando que exista uma “energia” (uma intencionalidade própria para os homens e
para as mulheres) e que a perfeita expressão dessa configuração ajuda a tornar um
espetáculo cênico mais interessante. Assim, apesar de muitos espetáculos de dança
contemporânea investirem em uma encenação bastante desgenerificada no que diz respeito
aos movimentos, gestos e posturas das coreografias, o dualismo e a polaridade masculino-
feminino, no que diz respeito à forma de execução desses gestos, não parecem ser
abandonados por esses sujeitos que praticam esse tipo de dança.
Trago aqui, por exemplo, a fala de João:
Os homens e mulheres são extremamente diferentes e quando colocados
em cena essas diferenças se tornam maiores. Não pela força maior que os
homens têm e pelo fato de as mulheres terem mais flexibilidade, mas também... A
musculatura do homem é geralmente mais explosiva, né? Mas também essa
própria energia de se mexer. Por mais que um homem esteja dançando uma dança
muito delicada, e tal, os movimentos dele serão mais intensos do que o mesmo
127
movimento sendo realizado por uma bailarina de técnica igual.
E aqui a fala de Eduardo, enfatiza a diferença de “expressão”:
Porque assim ó, eu acho que a princípio assim, no corpo, pode ser que não
seja nem tu que escolhe, possa ser que seja o teu coreógrafo. Que vai escolher
qual movimentação que o teu corpo vai exibir. Só que... O que é que tu passa... o
que é que tu transmite pelo olhar? Como que tu sente aquilo ali? Se tu vai sentir
de uma forma mais masculina ou de uma forma mais feminina mesmo, aquele
movimento. Um mesmo movimento pode ser passado para um homem, para uma
mulher, e ambos farão o mesmo movimento, mas cada um tem a sua forma de
interpretar. Então, na realidade, o homossexual também tem isso... Como é que
ele vai interpretar?
A partir da constatação de que homens e mulheres apresentam no palco certas
diferenças ao dançar, a maioria desses bailarinos parece dar para esse fato uma explicação
essencialista. Ou seja, eles parecem considerar que homens e mulheres são essencialmente
diferentes. Eles também entrecruzam gênero e sexualidade, como é possível perceber nessa
última fala, onde a mulher e o homem homossexual são vistos como tendo uma mesma
característica de expressão” dos movimentos em cena. Em nenhum momento é discutido
que as pessoas dançam diferente por causa de diferentes processos culturais de socialização
das condutas corporais. Da mesma forma, em nenhum momento é dito que através da dança
contemporânea essas coisas poderiam ser modificadas, postas em cena de outra forma.
Com relação à performance cênica, muitos dos entrevistados deram a entender que a
confusão de fronteiras ou a adoção de modos de gesticular e de se mover hegemonicamente
instituídos para cada gênero na cultura não são bem-vindos em cena
Apresento aqui um trecho da fala de Eduardo:
Tu quando o cara ta ali no palco e é uma “flor”, né? E para mim,
profissionalmente falando, é um aspecto bem negativo, assim. Para bailarinos e
128
atores... Tu ver um ator em cena e quando começa a gesticular e falar, e deixar
transparecer a sua orientação sexual. Para bailarino também é uma característica
não boa. Quando tu ta em cena tu tem que encenar um papel, ser uma coisa que tu
não é no cotidiano. Então, é ruim isso, quando não tem nada a ver com a
história... daí, tipo o cara é uma “flor” e a menina “anda de botas”.
José, apresentando um ponto de vista parecido, quando afirma:
O bailarino deve saber dançar de todas as formas. Assim como um ator
deve saber representar de todas as formas. O que ele não pode é ter um certo
vício. Porque isso vai limitar ele. Se ele tem assim sempre uma maneira muito
máscula, uma cara assim fechada, sempre dança assim parece que emburrado.
Isso vai ser ruim para ele. Agora se ele é afeminado. Ele consegue dançar
assim, como se fosse uma moça dançando, [grifo meu], se ele tem muitos
trejeitos. Isso vai prejudicar ele. Eu conheço bailarinos que são homossexuais e
que dançam... E não tem como dizer se ele é homossexual ou não. Porque na
verdade não nada a ver isso. Agora se o cara é um afet... que ele tem um
afetamento, que mostra que ele é feminino que ele é muito delicado, que ele
parece uma moça dançando, eu acho que isso é prejudicial para ele.
José, diferente de Eduardo, chega a afirmar que um homem que dança sempre de
maneira muito “máscula” também seria tão problemático quanto um homem que dança
sempre de forma “afeminada”. No entanto, dentro de sua fala e também das falas de muitos
outros entrevistados, o que é tomado como problemático é muito mais o segundo caso do
que o primeiro. Em sua fala, ele compreende que dançar com movimentos muito leves, de
forma delicada ou suave remete a um modo de dançar feminino. Assim, quando um homem
leva esse tipo de expressão para a cena, considera-se que ele está dançando “como se fosse
uma moça”. Outras expressões utilizadas são “afeminado” e “afetado”. Aqui ele está
nomeando o modo de dançar suave e delicado a algo que foge da normalidade para um
homem e que, portanto, esteja do outro lado de uma fronteira classificatória de gênero.
129
Assim, mesmo que no palco a dança contemporânea diferencie-se das demais
danças, instituindo coreografias indiferenciadas para ambos os gêneros, e permitindo uma
liberdade maior do que em outras danças, normas regulatórias que policiam as condutas de
gênero estão o tempo todo atravessando essa prática. E não apenas atravessando-a, como
parecem ser constitutivas dos próprios critérios estéticos que legitimam esse tipo de arte
dentro do meio artístico, por exemplo. Muitas vezes é através dos referenciais de uma
cultura heteronormativa que se estabelece critérios para o que é considerado “bonito” ou
“feio”, ou interessante ou desinteressante.
Além do mais, em nenhum dos entrevistados eu percebi um interesse em buscar
uma “androginia” no que diz respeito à construção dos espetáculos e obras coreográficas.
Em outras palavras, a dança contemporânea em nenhum momento foi considerada como
um potencial modificador nos padrões e referenciais instaurados na cultura como um todo e
nos distintos campos da arte. A transgressão com questões de gênero, dentro do modo de
vida desses bailarinos que foram por mim entrevistados, não parece significativa.
João, a respeito da questão da transgressão, diz:
Ser gay já é um tipo de transgressão. E a maioria dos bailarinos são gays
mesmo, de fato. Não sei se isso vai mudar se tiver mais héteros praticando
dança contemporânea... Mas daí se tu é gay, que é uma transgressão, tu te
identifica com a dança, quando tu decide ser bailarino.
Tiago, por outro lado, até chega a questionar em certo sentido as representações
hegemônicas de gênero, ao enfatizar a existência de diferentes sensibilidades ou modos de
se expressar na arte entre indivíduos de orientação hetero ou homossexual:
Um homossexual é mais relaxado... eu sei que não é uma regra, né? Mas
um homossexual em geral se expressa mais corporalmente do que um
heterossexual. O heterossexual é contido, ele é mais tenso, ele é mais durão. Ele
tem uma necessidade de impor uma postura, entendeu, para provar que ele é
“macho”. E eu nem sei porque é que ele tem que provar alguma coisa, porque se
ele é macho ele não precisa provar alguma coisa, já tá instaurado nele aquilo ali.
E o gay é mais relax... [...]
130
Tiago questiona a necessidade de um homem que se considera masculino (“macho”)
ter a necessidade de provar isso, através do que aqui podemos compreender como a
performatividade corporal masculina, definida pelas palavras “contido”, “tenso” e “durão”.
No entanto, até mesmo essa sua contestação à intensa regulação que a cultura opera sobre
os processos de construção das identidades de homens bailarinos se a partir de uma
noção de masculinidade como uma essência desses homens, inerente às suas naturezas, à
qual esses homens procuram dar conteúdos de extrema virilidade.
131
5. Considerações finais
Nessa dissertação, problematizei os entrelaçamentos entre dança contemporânea,
corpo e gênero, mantendo o foco na análise da produção cultural das masculinidades.
Analisei representações culturais de dança contemporânea que circulam hoje em dia e que a
significam como práticas de permanente transgressão e liberação do corpo dentro da cena
da cultura. Procurei problematizar alguns aspectos relacionados a essa noção, questionando
o que nomeio aqui como “vontade de ruptura”. Em contraposição a isso, procurei efetuar
uma análise a partir da perspectiva construcionista, indagando acerca das articulações entre
essa retórica da eterna ruptura e a construção cultural das masculinidades.
Desdobrei a pergunta em duas questões: como esses homens chegam a dançar? E
como eles respondem à lógica hegemônica de gênero?
Com relação à primeira questão: os excertos das entrevistas selecionados para
análise apontam para o quanto o gênero atua como um organizador social da cultura e como
constitutivo de práticas culturais, entre as quais a dança, delimitando as trajetórias e opções
de vida dos sujeitos dentro de um campo de possibilidades. Através desses excertos, foi
possível analisar alguns dos aspectos da trajetória social de vida dos bailarinos,
problematizando a forma como eles chegam a dançar.
Com relação à trajetória dos bailarinos, quase todos os bailarinos entrevistados
narraram ter tido um começo muito tardio na dança, por não terem se sentido identificados
com essa prática cultural na infância. Todos, sem exceção, falam de obstáculos familiares
enfrentados em maior ou menor grau até chegarem a dançar. Todos parecem apontar
predominantemente para a figura do pai, como aquele que está na posição de vigiar e
regular a formação da masculinidade do filho, embora algumas vezes apareça, porém com
menor força, na figura da mãe. Os amigos, e as cônjuges (no caso dos sujeitos auto-
identificados como heterossexuais) também são frequentemente citados como obstáculos.
A relação entre dança e homossexualidade foi muito recorrente, e hegemonicamente
relacionada ao balé clássico. Em torno dessa questão, procurei analisar como o balé
clássico teve a sua construção histórica dentro de um modo de ser corporal de um modelo
de masculinidade aristocrática que, a partir do século XIX, passou a ser negado pela
representação de masculinidade hegemônica (a do self-made-man). Desde então, a estética
132
corporal do balé passou a ser desvalorizada diante daquilo que se esperava de um homem
verdadeiro, viril e masculino, e em articulação com isso, foi associada à homossexualidade.
Essas questões permeiam todas as danças em geral, inclusive a dança contemporânea, dado
que o balé, muito ligado às noções de feminilidade e homossexualidade, configura-se como
um cânone estético para todo o universo da dança.
Além da representação cultural da dança como algo associado à homossexualidade,
os obstáculos culturais narrados pelos entrevistados no que diz respeito à sua
aproximação coma dança, parecem também dizer respeito a uma condição de “artista”
como indesejável. Isso está muito ligado ao fato de a profissão de artista não ser bem
remunerada, e não garantir a certeza de um sucesso econômico, uma característica que a
cultura frequentemente cobra” do masculino, qual seja, a de que ele seja economicamente
bem-sucedido na vida. Assim, o campo artístico em geral, e não somente a dança, parece
ser representado como algo que no “contexto maior da cultura” geralmente não é bem visto
para um projeto de vida bem sucedido de aquisição da masculinidade.
No entanto, justamente entre esses homens que chegaram a se aproximar da arte, a
proximidade de alguns familiares com o campo artístico foi um dos fatores mais apontados
como facilitadores. Pelo fato de terem vindo de famílias em que esse preconceito cultural
com relação à arte no geral não era tão vivo, que eles encontraram meios ou é que eles
situaram um dos motivos para terem chegado a dançar.
De qualquer forma, essa aceitação necessitou de algumas estratégias, tais como:
começar a fazer aula somente quando se tinha condições de pagá-las por conta própria
(autonomia financeira); e/ou demonstrar que é capaz de ser muito bom, de ter grande
destaque, ou seja, de ser bem sucedido e talentoso na dança. Ressalto aqui que aparece uma
outra característica do self-made-man, além daquela de exibir um corpo não marcado por
gestos refinados e aristocráticos (refiro-me aqui à representação cultural em torno do balé),
que é a de ser compelido a dedicar-se intensamente em tudo o que se faz na vida, dentro de
uma lógica de competição social que valoriza a vitória e a condição de “ser bem-sucedido”.
Resulta disso que, mesmo apesar do início tardio, os homens que dançam têm uma rápida
ascensão no domínio das técnicas, e muitas vezes a dança começa a adquirir uma grande
centralidade em suas vidas, ao ponto de assumirem várias funções (bailarino, professor,
coreógrafo, produtor técnico).
133
Outras estratégias apontadas pelos entrevistados como caminhos para a validação da
sua masculinidade em suas trajetórias de vida foram a vinculação a outras práticas
corporais, além da dança. Para muitos, o início prévio em outras artes corporais foi o que
lhes possibilitou ir aproximando-se lentamente da dança, e legitimando pouco a pouco seu
interesse por uma prática que culturalmente não é tida como própria do masculino. O
caráter intensamente híbrido da dança contemporânea parece facilitar essa aproximação a
partir de outras práticas. Em alguns casos, a vinculação da dança contemporânea com as
práticas acrobáticas (o circo, a ginástica artística), por exemplo, é significativo. Em outros,
foi a hibridação entre essa dança e o teatro que permitiu essa aproximação.
Através das entrevistas, foi também possível problematizar como esses sujeitos,
enquanto bailarinos de dança contemporânea, lidam com algumas das questões referentes
às representações culturais hegemônicas de gênero e de sexualidade. Procurei assim,
responder a segunda das duas perguntas que desdobrei da questão de pesquisa: como eles
respondem à lógica cultural hegemônica de gênero?
Diferentes representações de masculinidade heterossexual são apontadas como
estratégicas para legitimar a prática da dança. Dois modelos possíveis foram apontados pelo
trabalho. Algumas representações de heterossexualidade por exemplo aparecem mais
ligadas ao plano da afirmação de sua masculinidade através da adoção de uma postura de
vida correta do ponto de vista moral. Outras parecem mais ligadas à afirmação de uma
heterossexualidade por meio da comprovação da conquista amorosa.
Com relação à homossexualidade, a prática da dança parece articular-se com a
afirmação de um identidade gay, o que viria a reforçar e sublinhar a representação cultural
que nos diz que a dança é uma prática ligada à homossexualidade. Tal relação entre dança e
homossexualidade é de certa forma vista como positiva, por apresentar a prática da dança
por homens como a adoção de um estilo de vida transgressivo sendo, nesse sentido,
equivalente à adição de um estilo de vida de orientação não-heterossexual.
Considero importante observar o quanto as noções estéticas de corpos em algumas
das falas dos bailarinos entrevistados apareceram muito marcadas pelos referenciais
hegemônicos de gênero e sexualidade. Num sentido geral, ainda predomina nas falas desses
entrevistados a naturalização e a dicotomia entre dois pólos muito bem delimitados e fixos:
o masculino e o feminino. Também as diferentes orientações sexuais são tratadas como
134
categorias fixas e essenciais. Eles não questionam ou modificam a dinâmica cultural
hegemônica. Nesse sentido, a suposta potência transgressora que a dança contemporânea
aciona ao nível do discurso parece encontrar pouco eco nas estratégias de vida que esses
bailarinos procuram adotar, e a partir dos quais procuram viver em sociedade.
A partir dessa pesquisa, aponto portanto as seguintes conclusões principais:
A pesquisa aponta para articulações entre a representação cultural hegemônica de
dança contemporânea aqui problematizada e as representações hegemônicas de gênero e de
sexualidade, no âmbito das noções que fundam a ideia de essência dos seres humanos, a
partir do momento em que percebemos a permanência da atribuição de certas características
fixas para o masculino e para o feminino em paralelo a toda uma retórica da transgressão.
Ela também evidencia o caráter totalizante e generalista da estética de representação
artística do balé, que parece continuar legitimando ainda uma autoridade discursiva
eminentemente apropriativa, que tende a suprimir a alteridade, isto é, continua tendendo a
ser intolerante com relação a estéticas artísticas dissimiles. Essa estética referenciada no
balé clássico, bastante representativa entre os sujeitos entrevistados, articula representações
hegemônicas de feminilidade e de homossexualidade com a representação hegemônica da
dança, levando “para dentro” das práticas sociais de todas as demais danças (inclusive da
dança contemporânea) a introjeção de valores e condutas nada transgressores no que diz
respeito à lógica cultural dominante em nossa cultura. O balé se configura, assim, como um
cânone estético tanto para a dança quanto para as representações de gênero e sexualidade.
A pesquisa demonstra o quanto existe pouca apropriação, por parte dos bailarinos de
dança contemporânea, de um “discurso” mais consistente sobre suas práticas. Assim,
mesmo quando falam de dança contemporânea, falam de uma dança que fazem, mas com
conceitos de outras experiências dançantes, como o balé, o jazz ou mesmo de experiências
corporais esportivas. Embora a dança contemporânea não tenha o gênero, por exemplo,
como organizador (como o balé, a dança de salão ou certos esportes), e proponha-se a
abolir distinções de nero em cena, muitas vezes criando figuras que não propõe-se a
assumir uma posição masculina ou feminina, essa transgressão não parece migrar para as
concepções de gênero de muitos dos sujeitos praticantes dessa modalidade de dança. Isso
tanto no que diz respeito às posições de gênero que eles procuram adotar para si, em suas
vidas, quanto para as suas concepções estéticas sobre o que é belo.
135
Portanto, a representação cultural hegemônica de dança contemporânea, como
aquilo que sempre transgride e que sempre rompe com todas as barreiras que a cultura
impõe sobre os corpos parece, não parece condizer com a materialidade dos fatos, no que
diz respeito às questões de gênero e sexualidade. A visão idealizada de um corpo
transgressor e capaz de romper com todos os condicionamentos sociais, tal como é
acionada em alguns enunciados da dança contemporânea é, para muitos bailarinos, pouco
relacionada com rupturas ao nível das representações culturais de gênero e de sexualidade.
Eu arriscaria dizer, fazendo uma colocação aqui provisória, que o caráter “encenado” ou
“espetacular” dessa transgressão ou dessa ruptura, parece funcionar até como uma forma de
afirmar e até reforçar a existência de uma fronteira de gênero, em alguns casos.
Os homens que hoje se constituem como bailarinos de dança contemporânea em
Porto Alegre, parecem superar as “barreiras” e obstáculos impostos pela cultura de diversas
formas. Ressalto, no entanto, que algumas delas consistem justamente em exibir alguns dos
traços que têm sido característicos do modelo hegemônico de masculinidade dos últimos
dois séculos, o modelo do self-made-man: sucesso econômico, espírito de independência,
eficiência, etc. Quando isso acontece, a dicotomia que determina a existência de universos e
trajetórias de vida bem diferenciadas e bem determinadas para homens e para mulheres não
parece ser questionada, transgredida, nem quebrada. E a noção de dança contemporânea
como retórica da liberdade, como uma dança capaz de romper, de trazer algo novo, parece
apresentar pouca ou nenhuma articulação com a construção do gênero masculino.
Inúmeras outras considerações poderiam ser tecidas com relação ao assunto
abordado nessa pesquisa, através de muitos outros caminhos, por meio talvez do uso de
outras ferramentas metodológicas. Traçando as linhas finais dessa dissertação, gostaria de
apontar, assim, para seus limites e para as possíveis novas possibilidades que ela abre.
Em primeiro lugar, por tratar-se de uma dissertação cuja metodologia é centrada no
uso de entrevistas, portanto, na expressão verbal dos bailarinos, ela deixa de aprofundar-se
no campo das descrições mais “morfológicas”, não priorizando questões como por
exemplo: o que os corpos desses homens revelam dessas representações hegemônicas de
gênero aqui problematizadas enquanto dançam e fazem aula? Ou: como a dança
contemporânea constrói os corpos desses bailarinos e como essa “fabricação” e seus
“resultados” se aproximam ou se afastam de modelos hegemônicos de masculinidade? A
136
presente pesquisa está muito mais centrada no campo discursivo, e portanto, do conjunto de
noções, ideias, sentimentos ou desejos que passam pelo nível da consciência dos sujeitos, e
não teve como intuito abordar questões referentes ao nível não-discursivo, ou mesmo em
questões de ordem ainda discursiva mas referentes unicamente à produção dos corpos.
Tal opção deve-se ao fato de eu ter procurado justamente ressaltar a existência de
um aspecto que geralmente é pouco problematizado em teorizações sobre dança, que é
justamente o campo da representação cultural e do discurso. Através da comparação entre
aquilo que se diz sobre dança contemporânea e aquilo que se diz sobre gênero procuro,
assim, evidenciar a existência de uma distância entre ambos os campos enunciativos e de
uma contradição ao nível da sua articulação. Evidencio o campo da fala como forma de
situar as relações sociais de poder que permeiam os significados culturais que constituem
os sujeitos, que a maioria das produções atuais acadêmicas sobre dança, ao evidenciar
apenas a potência positiva e inventiva presente na dança, parecem deixar de lado.
Em segundo lugar, acredito ser também importante comentar que este é um estudo
situado no contexto de Porto Alegre, e que esse, como foi comentado por alguns
estudiosos (SOUZA, 2007; SANTOS, 2009a), possui características regionais bastante
peculiares. Como observa Luis Antunes, a cultura gaúcha é atravessada por um certo
pressuposto do que vem a ser um “verdadeiro” homem gaúcho (forte, viril, heterossexual,
guerreiro...), algo que é/foi amplamente difundido, mantido, reforçado (e inventado) no
contexto do tradicionalismo (ANTUNES, 2003). Contudo, embora seja um estudo situado,
procurei problematizar questões que extrapolam os limites geográficos, tentando contribuir
para discussões mais abrangentes sobre a temática levantada.
Espero, assim, com esse trabalho, poder ter contribuído tanto para a área da dança,
ao, quanto para a área dos estudos de gênero, ao analisar as recorrências que problematizam
as categorias analíticas aqui utilizadas dentro de um contexto específico. E espero que tenha
contribuído também para a área da Educação, como forma de reflexão crítica em torno da
necessidade que temos, hoje, de desconstruir as representações hegemônicas de gênero na
dança, e também além dela.
137
REFERÊNCIAS
ALBRIGHT, Ann Cooper. Choreographing Difference: the body and Identity in
contemporary dance. Hanover: University Press. 1997.
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval M. História: a arte de inventar o passado. Bauru:
Edusc, 2007.
ALVARENGA, Luiz F. Flores de Plástico não Morrem?: educação, saúde e
envelhecimento na perspectiva de gênero. Porto Alegre, 2006. Dissertação (Mestrado em
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W.J.T. Mitchell (Org.). On Narrative. Chigaco: University of Chicago Press, 1981. p.
137-164.
TURNER, V.; BRUNER, Edward M. (Ed.). The Anthropology of Experience. Urbana
and Chicago, University of Illinois Press,1986.
VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares. In: COSTA, Marisa V. (org.). Caminhos Investigativos
I: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. P. 23-38.
VELHO, Gilberto. O Desafio da Proximidade. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina
(Orgs.). Pesquisas Urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de janeiro. 2003.
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História: Foucault revoluciona a história. 4. ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília. . 2008.
153
VIEIRA, Jorge de A. Rudolf Laban e as Modernas Idéias Científicas da Complexidade.
Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, n. 2, p. 17-30, fev. 1999.
VILLAÇA, Nízia. O Corpo Dançado: Billy Eliot. Revista LOGOS, v. 11, n. 20, 2004.
Disponível em: <http://www2.uerj.br/fcs/publicacoes/Logos20online_integra.pdf. acesso
em 24/out/2008>. Acesso em: 20 ago. 2007.
WEEKS, Jeffrey. - O Corpo e a Sexualidade. In: LOURO, G. L. (Org.). O Corpo
Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, Ed. Autentica. 2000. .37-82.
WHEELER, Mark Frederick. Surface to Essence: the appropriation of the orient by
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WORTMANN, Maria. L.C. Algumas considerações sobre a articulação entre Estudos
Culturais e Educação (e sobre algumas outras mais). In: SILVEIRA, Rosa M. H. Cultura,
Poder e Educação: um debate sobre estudos culturais e educação. Canoas, ULBRA, 2005.
P. 17.
WORTMANN, Maria. L.C. Análises Culturais: um modo de lidar com histórias que
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p.73-92.
WOSNIAK, Cristiane. Dança e Anti-Dança Contemporânea. Jornal Quixote, Curitiba, n.
15 p. 9-10, maio 2004.
154
ANEXO A
1° ROTEIRO DE ENTREVISTA
1. O que é, para você, dança contemporânea?
2. Como é seu processo de criação na dança?
3. O que você pretende com a sua dança?
4. Como você se forma, enquanto bailarino, e/ou como procura formar seus
bailarinos?
5. Qual a relação entre dança contemporânea, masculinidade e feminilidade?
6. Como a dança que você cria se relaciona com isso?
155
ANEXO B
2 °ROTEIRO DE ENTREVISTA
BLOCO 1: DADOS GERAIS
7. Qual é o seu nome? (Lembrar que será anônimo)
8. Qual é a sua idade?
9. Você mora em porto Alegre?
10. Trabalha? Com o que?
11. Mora sozinho ou com família?
12. Qual é a sua formação (escolaridade)?
13. Trabalha com dança?
14. Obtém recursos (financeiros) da dança?
15. Além de dança, faz outras atividades artísticas?
16. Além da dança, faz outras atividades corporais?
BLOCO 2: Trajetória de vida do entrevistado em relação com a dança
17. Quando você começou a dançar?
18. O que ou quem incentivou você a começar a dançar?
19. Onde/ com quem já dançou?
20. Atualmente, participa de alguma companhia / grupo de dança contemporânea?
21. Já praticou algum outro tipo de dança? Quais?
22. Se não: porque? Tem curiosidade de fazer outras modalidades de dança?
23. Conhece outras modalidades de dança contemporânea?
24. Se sim, quais lhe chamam a atenção? Porque?
25. O que mais lhe chama a atenção nesse tipo de dança (contemporânea)?
26. Como se sente praticando esse tipo de dança?
27. Você pretende seguir dançando? Ou a dança contemporânea é algo provavelmente
passageiro em sua vida?
28. E a dança em um sentido geral? Como você a vê daqui em diante?
156
BLOCO 3: Relação da prática da dança com gênero
29. Como sua família vê / viu seu envolvimento com a dança?
30. Como seus amigos vêem seu envolvimento com a dança?
31. Existe ou existiu alguém em seu círculo de convivência que é ou foi contra você
dançar?
32. Se sim: porque? Quais são os motivos alegados?
33. O que você acha da freqüente associação da dança como algo feminino?
34. Você vê isso como um problema? Sim? Não? Por que?
35. Você acha que há alguma diferença entre os modos como dançam homens e
mulheres? Se sim: quais? Porque?
36. E entre os homens que praticam dança contemporânea, há diferenças? Se há: quais?
(de sexualidade? de idade? de formação?)
37. Como você acha que é, em geral, a relação entre os homens que praticam dança
contemporânea?
38. Como é o relacionamento entre homens que praticam dança contemporânea e
homens que praticam outro tipo de dança?
39. E entre os homens que praticam dança contemporânea e os homens que não
praticam nenhuma dança?
40. E entre os homens e as mulheres que praticam dança contemporânea? Ou entre os
homens que praticam dança e mulheres que não praticam nenhuma modalidade de dança?
BLOCO 4: Relação da prática da dança com sexualidade:
41. O que você acha da associação que é feita entre a dança e a homossexualidade?
42. Você vê isso na sua vida como um problema? Sim? Não? Porque?
43. Você acha que há alguma diferença entre os modos como dançam homens que se
declaram como heterossexuais e homens que se declaram como homossexuais?
44. Como é a relação entre homens declaradamente homossexuais que dançam e
homens que se declaram como homossexuais e não dançam?
157
45. E como é a relação entre homens declaradamente heterossexuais que dançam e as
mulheres declaradamente heterossexuais (que dançam ou que não dançam)?
BLOCO 5: Questões finais e gerais sobre a dança contemporânea
46. Considerando tudo aquilo que você refletiu até aqui, qual você acha que as
especificidades da dança contemporânea permitem que se pense algo que possa ser
considerado próprio para o corpo masculino que dança e próprio para o corpo feminino que
dança? Nesses aspectos ela é igual a todas as outras formas de dança?
47. Ao longo de sua trajetória de vida envolvido com dança contemporânea, houve
alguma situação ou momento em que você percebeu algo que possa ser considerado
transgressivo com relação a modelos e padrões de masculinidade e feminilidade?
48. Você acredita que a dança contemporânea tem a potencialidade de transgredir essas
representações de corpo ligadas a modelos culturais de masculino e feminino “marcadas”
por outros tipos de dança, por exemplo? E com relação às formas dos seres humanos
viverem a sua sexualidade, a dança contemporânea traz rupturas significativas se em
comparação com outras danças?
158
ANEXO C
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa que tem por objetivo a
coleta de dados etnográficos junto a população de Porto Alegre. A coleta de dados se dará
através da realização de entrevistas, com praticantes de dança contemporânea, que serão
gravadas e posteriormente transcritas. Essas informações servirão de base para a produção
da dissertação de mestrado “Representações de corpo e masculinidade na dança
contemporânea” junto ao programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Prof. Dr. Luís Henrique Sacchi dos
Santos. O pesquisador responsável é Giuliano Souza Andreoli.
As falas registradas serão utilizadas sob sigilo ético, não sendo mencionados os
nomes dos participantes em nenhuma apresentação oral ou trabalho escrito que venha a ser
posteriormente publicado. Para isso, os sujeitos entrevistados serão citados com nomes
fictícios, e a divulgação dos resultados será feita de forma anônima. Sua participação nesse
estudo é completamente voluntária. Ao assinar esse termo de consentimento, você não abre
mão de nenhum dos seus direitos legais. Caso tenha perguntas adicionais, o pesquisador
tentará responder da melhor forma possível. Informações também podem ser obtidas junto
à FACED/UFRGS, com o professor Luís Henrique Sacchi dos Santos (F:(051)33083428).
Pelo presente termo de consentimento declaro que fui informado dos objetivos, da
justificativa para a realização desta pesquisa, bem como dos procedimentos nos quais
estarei envolvido/a, e eu tive minhas dúvidas esclarecidas, de forma clara e detalhada, pelo
pesquisador Giuliano Souza Andreoli. Declaro estar ciente da garantia de receber resposta
ou esclarecimento sobre a pesquisa a ser realizada, da liberdade de não participar do estudo,
da segurança, do sigilo, do anonimato e do caráter confidencial das informações.
_________________________ ______________________
Nome do participante Assinatura do participante
Data: ___/___/_______
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