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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
MESTRADO EM LETRAS
FRANCISCA SOLANGE MENDES DA ROCHA
AS RELAÇÕES FAMILIARES E A ESFERA DA INTIMIDADE EM
O CORTIÇO DE ALUÍSIO AZEVEDO
FORTALEZA
2009
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AS RELAÇÕES FAMILIARES E A ESFERA DA INTIMIDADE EM “O
CORTIÇO” DE ALUÍSIO AZEVEDO
Dissertação submetida à Coordenação do Curso
de Mestrado em Literatura, da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial da
obtenção do título de Mestre em Literatura
Brasileira.
Área de concentração: Literatura e História
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fernanda Maria Abreu
Coutinho
FORTALEZA
2009
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FRANCISCA SOLANGE MENDES DA ROCHA
AS RELAÇÕES FAMILIARES E A ESFERA DA INTIMIDADE EM “O
CORTIÇO” DE ALUÍSIO AZEVEDO
Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Mestrado em Literatura,
da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Literatura Brasileira. Área de concentração em
Literatura e História.
Aprovada em __________/__________/_________
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Fernanda Maria Abreu Coutinho(Orientadora)
Universidade Federal do Ceará
________________________________________
Prof. Dr. Francisco Tarcísio Cavalcante (1º examinador)
Universidade Estadual do Ceará
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Neuma Barreto Cavalcante (2º examinador)
Universidade Federal do Ceará
AGRADECIMENTOS
A Deus, por minha existência.
À prof.ª Dr.ª Fernanda Maria de Abreu Coutinho, pelas preciosas
sugestões e pela paciência a mim dispensada.
À prof.ª Dr.ª Maria Neuma Barreto Cavalcante, pela expressiva
contribuição no exame de qualificação.
Ao prof. Dr. Francisco Tarcísio Cavalcante pela leitura atenta desta
dissertação.
Aos meus familiares, especialmente a minha mãe, pelo carinho e
dedicação.
A todos os colegas do mestrado, pelo compartilhamento de
experiências durante o curso.
SUMÁRIO
1. Introdução.............................................................................................................09
2. O Naturalismo e Aluísio Azevedo...........................................................................16
2.1. Aluísio e a crítica.........................................................................................19
2.2. O romancista Aluísio Azevedo...................................................................23
2.3. Os cortiços e O Cortiço................................................................................29
3. O Cortiço: a família e as relações familiares entre os personagens..........................38
3.1. A representação da família.............................................................................39
3.2. As relações familiares.....................................................................................42
3.3. As relações sociais..........................................................................................55
4. As relações afetivas e a esfera da intimidade entre os personagens..........................66
4.1. As uniões formais: o casamento......................................................................78
4.2. As uniões informais: o concubinato.................................................................83
4.3. A esfera da intimidade: o adultério..................................................................90
4.4. Outro caminho: a prostituição..........................................................................97
5. Considerações finais...............................................................................................104
6. Referências bibliográficas......................................................................................110
7. Anexos....................................................................................................................114
.
“A obra é um mundo, e que convém antes
de tudo pesquisar nela mesma as razões que
a sustêm como tal.”
Antonio Candido
RESUMO
O presente trabalho ressalta as valiosas contribuições do romance O Cortiço, de Aluísio
Azevedo para a compreensão do contexto social fluminense de final de século XIX. O
Cortiço é um painel em que se vislumbram vários tipos representativos da época. A
obra narra o cotidiano, em Botafogo, dos habitantes de uma estalagem e de um sobrado
a ela vizinho, sendo um rico apanhado de flagrantes das realidades afetivas
experimentadas pelos personagens. As relações familiares e suas conseqüências
tematizam o assunto aqui tratado. São postas em evidência as diversas formas de
interação entre os personagens do romance, inclusive as que envolvem o adultério e a
prostituição. Através de uma análise do comportamento dos personagens, a pesquisa
busca comprovar as teses do determinismo social e genético defendidas pelo autor.
Utilizando o método investigativo hermenêutico, o estudo partiu do texto literário para a
análise do tema proposto, analisando a concretização verbal obtida por Aluísio
Azevedo, nesse particular, e valendo-se ainda do aporte teórico de textos ligados à
Sociologia e à História.
Palavras-chave: O Cortiço – Século XIX – Família – Afetividade – Intimidade
ABSTRACT
This study highlights the valuable contributions of the novel O Cortiço of Aluísio
Azevedo for understanding the social context of Rio de Janeiro at the end of the
nineteenth century. O Cortiço is a panel that comes out several representative types of
the time. The book recounts the everyday, of an inn house in Botafogo. The residents of
her neighbor, and a rich collection of blatant emotional realities experienced by the
characters. Family relationships and their consequences guide the subject matter hereof.
They are drawn to the various forms of interaction between the characters in the novel,
including those involving adultery and prostitution. Through an analysis of the behavior
of the characters, the research aims at the thesis of social and genetic determinism
advocated by the author. Using the investigative method of interpretation, the study
came from literary text to the analysis of the subject, the verbal context obtained by
Aluísio Azevedo, and the advantage of the theoretical texts related to sociology and
history.
Keywords: O Cortiço – XIX century – Family – Affection – Intimacy
9
INTRODUÇÃO
A literatura entrou em minha vida quando iniciei o ensino médio. Até então não
tivera um contato intensivo com as obras literárias brasileiras, mas os primeiros livros
com que convivi apresentavam uma prosa agradável e solta, em textos de fácil leitura
como as crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Rubem
Braga e Fernando Sabino, na bem conhecida série lançada pela Editora Ática: “Para
gostar de ler”. Tempos depois, tomei conhecimento de outros gêneros, tais como o
romance e a poesia, e li avidamente os nossos autores, descobrindo, por assim dizer,
junto com meu professor de literatura, o estimulante mundo da criação literária.
Quanto ao romance, eu, como toda adolescente de minha geração, principiei a
leitura pelos românticos, e, de acordo com o programa das aulas de literatura, passei, em
seguida, aos romances da fase realista-naturalista, dos quais A Carne, O Cortiço e D.
Casmurro eram os meus favoritos. A Carne era um livro cheio de imagens as quais,
nascidas a partir dos fatos narrados em suas páginas, ora se casavam ora se
distanciavam das construídas em meu imaginário, o que representava um estímulo a
mais à minha curiosidade leitora. Mas, para mim, O Cortiço foi o de leitura mais
sedutora, pela forma como retratava situações que, à época, eram consideradas tabus, e
que, interditas aos não adultos, aguçavam a curiosidade típica da adolescência.
Mais tarde, já no curso de Letras, adentrei, efetivamente, no universo literário e
me aprofundei na leitura dos autores brasileiros. Não tinha ainda um autor que eu
pudesse chamar de preferido, uma vez que lia tudo o que me caísse às mãos. Foi
somente no exercício do magistério que pude ter um contato mais direto com a
literatura, e, por esse tempo, descobri que ministrar aulas dessa disciplina me dava
prazer, podendo, verificar ainda que discutir com os alunos acerca dos livros me
deixava extremamente satisfeita.
10
Dentre os romances que costumo sugerir como leitura extraclasse, está sempre
presente na lista O Cortiço, que é lido por meus alunos com bastante interesse, muito
embora sem a avidez com que eu o lera há quase trinta anos.
A escolha do autor e do romance a serem analisados nesta dissertação deveu-se,
portanto, em primeiro lugar, à empatia sentida, desde os tempos da adolescente-leitora,
quando o universo ficcional representado por Aluísio Azevedo e seu O Cortiço me
fascinou. Além disso, a leitura fácil e acessível, delineada por um enredo provocante,
entrecortado de dramas pessoais e coletivos, fazem de O Cortiço um romance
atemporal, pois, embora escrito em 1890, consegue tratar, na realidade, de assuntos que
perpassam a linha do tempo. Por sua diversidade temática e pelo apuro analítico,
permite possibilidades de pesquisas e diferentes abordagens de leituras.
O trabalho se filia ao projeto de pesquisa O imaginário dos afetos na Literatura
Brasileira, do Programa de Pós-Graduação em Letras, com área de concentração em
Literatura Brasileira. A pesquisa é coordenada pelas professoras doutoras Fernanda
Maria Abreu Coutinho e Vera Lúcia Albuquerque de Moraes.
O Cortiço é um romance complexo e abrangente, sendo o corpus da pesquisa e
meu atual livro de cabeceira, pois, a cada releitura, surgem descobertas e acrescento
elementos novos ao meu trabalho. Assim, ler um romance como O Cortiço não é
simplesmente uma atividade de lazer e entretenimento, é, sobretudo um exercício de
reflexão sobre questões que envolvem a sociedade brasileira, em meio a tensões e
contradições que fizeram parte de seu passado e que se perlongam na nossa
contemporaneidade. Sua escolha deveu-se ao fato de a obra mostrar-se fértil na pintura
de quadros que reproduzem flagrantes de realidades afetivas experimentados pelos
personagens e também o fato de ser um romance que possibilita múltiplas abordagens,
configurando o quadro perfeito para a pintura de uma realidade palpável. Além disso, o
romance prefigura modelos familiares que, somente no século XX, estarão na ordem do
dia, haja vista os lares chefiados por mulheres e o concubinato como modelo de
constituição familiar, dentre outros aspectos. Em suma, através de Aluísio Azevedo, o
Rio de Janeiro dos oitocentos pode valer como um norte na compreensão do Rio de
Janeiro de nossos dias.
Do ponto de vista do meu interesse acadêmico, o trabalho se justifica pela
carência de ensaios sobre a obra no âmbito dos estudos literários, pois a maioria dos
11
textos, que toma O Cortiço como reflexão, trata de aspectos sociológicos, históricos ou
mesmo psicológicos da obra. Dentre esses estudos podem ser citados Cortiço x
sobradode Alessandra Queiroz, ensaio de sociologia, que enfoca o contraste entre os
espaços do cortiço e do sobrado; João Romão, Jerônimo e Miranda, amostras de uma
identidade nacional”, de Denise de Quadros e A representação da identidade nacional
em figuras femininas de Aluísio Azevedo”, de Graciela Dreschi, cujas autoras procuram
discutir a busca da construção da identidade nacional através de alguns personagens do
romance. A este rol pode ainda ser acrescentado O Cortiço: higienização das casas e
formação de almas”, de Daniela Soares dos Santos, que também se relaciona à
identidade nacional, a partir agora, porém, do enfoque da análise de aspectos mais
pontuais como higiene e habitação. Em relação às questões de gênero e raça,
encontramos Da mulher submissa à rebeldia, em O Cortiço: Bertoleza e Rita Baiana”,
escrito por Marília Alves; O paraíso das mulatasde Jean-Marcel Carvalho, A fêmea
seletiva”, de Ricardo Waizbort; “A tal e qual, representações racializadas da mulher na
literatura brasileira”, da autoria de Ricardo Miskolci e “Mulheres n’O Cortiço: a
segregação feminina na obra de Aluísio Azevedo” de Aline de Lima. Todos esses são
ensaios e artigos que refletem sobre aspectos pontuais da obra.
Trazer o escritor novamente à cena, não significa dizer que Aluísio Azevedo não
seja um autor reconhecido, bastando assinalar sua presença na historiografia literária
brasileira – tanto com relação a seus contemporâneos como Araripe Júnior e José
Veríssimo, quanto a estudiosos da atualidade, a exemplo de Afrânio Coutinho e
Massaud Moisés, bem como Antonio Candido e Alfredo Bosi.
Na catalogação de estudos de teor literário, destacar-se-iam os nomes de Sônia
Brayner, em A metáfora do corpo no romance naturalista: estudos sobre O Cortiço;
Josué Montello, em Aluísio Azevedo; Alcides Maya, com Romantismo e Naturalismo na
obra de Aluísio Azevedo e Raimundo de Menezes, com Aluísio Azevedo: uma vida de
romance. Interessa observar que a fortuna crítica do autor vem aumentando, nos últimos
tempos, principalmente em função dos trabalhos acadêmicos, tais como dissertações e
teses. A exemplo disso pode ser mencionada a tese de Leonardo Mendes, O retrato do
imperador: negociação, sexualidade e romance naturalista no Brasil, editada pela
EDIPUCRS e a de Ângela Fanini, Os romances-folhetins de Aluísio Azevedo:
aventuras periféricas. Como prova da longevidade literária do romancista, cabe lembrar
12
ainda o número expressivo de reedições de O Cortiço, tendo sido lançada, pela Editora
Nova Aguillar, em 2005, sua ficção completa em dois volumes, organizada por Orna
Messer Levin.
Bertoleza e João Romão, Rita Baiana e Firmo, Piedade e Jerônimo, Estela e
Miranda, Pombinha e Léonie são pares reconhecíveis para uma imensa gama de leitores,
no entanto, um dado curioso é não haver estudos que envolvam a dimensão familiar e
afetiva neste romance de tão grande apelo erótico.
Daí o presente trabalho propor como questionamento os seguintes problemas:
Quais as representações de família existentes em O Cortiço? Até que ponto essas
representações são resultantes do determinismo social e genético, corrente cientificista
em voga na época do romance? Quais os códigos de criação verbal utilizados pelo autor
para expressar esse pensamento então vigente?
Na tentativa de colocá-los em discussão, tomarei como base a própria imagem
do cortiço, como uma estrutura ruidosa, em constante movimento, levantando a hipótese
de que o romance se funda numa idéia particular de mutação: a metamorfose, uma vez
que os grupos familiares vão se alterando à medida em que ocorre a modificação de
lugares afetivos e sociais.
Mas por que estudar Aluísio Azevedo hoje, particularmente em O Cortiço?
A partir de O Cortiço pode-se pensar a gênese das favelas no Rio de Janeiro e
refletir acerca dos problemas decorrentes do processo de urbanização no Brasil; isso
sem falar que a transumância, a exclusão social, as relações e conflitos étnicos são
alguns dos pontos colocados em evidência nesta obra do escritor maranhense. No
romance, muitas das dificuldades sofridas por personagens de fins do século XIX, estão
ainda presentes em nossos dias e são dificuldades reais para pessoas da vida real: a
informalidade nas relações de trabalho, a premente necessidade de solidariedade nas
relações cotidianas, a violência que se exacerba em locais de onde o Estado se ausenta,
o preconceito existente para com a mulher, todos estes elementos tão importantes
quanto atuais, estão vigorosamente presentes neste romance naturalista.
O meu objeto de estudo é uma análise das relações afetivas entre os personagens
de O Cortiço, sob diferentes óticas. A pesquisa procura investigar as causas e efeitos
dessas relações, em busca de explicações para os comportamentos dos personagens
dentro do Determinismo que permeia o Naturalismo. As representações da feminilidade
13
e da masculinidade no que diz respeito aos papéis sociais reproduzidos em O Cortiço
não podem ser esquecidas nesta análise. Tendo em vista o papel vicário dos personagens
de ficção, no sentido de representar o papel dos indivíduos, fica evidente o propósito de
tomar o texto literário como um espaço preferencial da encenação dos sentimentos.
Por ser O Cortiço uma obra doutrinária, advogando os princípios do Naturalismo
e Aluísio Azevedo um nome de relevo no movimento, optei metodologicamente por
iniciar o trabalho enfocando o autor em sua circunstância de vida e produção literária,
bem como julguei pertinente estudar os preceitos do Naturalismo. Assim, embasei
melhor a discussão sobre o autor, sua época, sua obra e a estética à qual se filia.
No primeiro capítulo encontra-se o contexto histórico-literário em que o autor
se insere, bem como o panorama do Realismo-Naturalismo brasileiro e o registro da
importância de Aluísio Azevedo para a literatura brasileira como iniciador da corrente
entre nós. Para compreender o período da pesquisa, primeiramente, fiz a opção pela
leitura dos críticos e historiadores literários. Utilizei como aporte teórico os estudos de
José Veríssimo, Araripe Júnior, Ronald de Carvalho, Lúcia Miguel-Pereira, Afrânio
Coutinho, Nélson Werneck Sodré, Antonio Candido, José Aderaldo Castello e Massaud
Moisés, bem como Alfredo Bosi e José Guilherme Merquior. A ficção completa de
Aluísio Azevedo, organizada por Orna Messer Levin, também foi de extrema
importância na elaboração deste estudo. Neste capítulo também um paralelo entre a
descrição dos cortiços existentes no Rio de Janeiro de final do culo XIX e O Cortiço
de Aluísio Azevedo, verificando-se o quanto de verossimilhança da descrição dos
primeiros podemos encontrar no segundo. Nesse aspecto, o livro de Sidney Chaloub,
Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial, foi de extrema importância.
No segundo capítulo são postas em evidência a origem e a formação da família e
as relações familiares dos personagens em estudo, considerando-se também o papel da
maternidade e da paternidade. Utilizei como aporte teórico A origem da família, da
propriedade privada e do estado, de Friedrich Engels; bem como A família - origem e
evolução, de Claude Lévi-Strauss; A família, de William J. Goode; A família brasileira,
de Eni de Mesquita Samara e A família em desordem, de Elisabeth Roudinesco. Essas
obras foram usadas a fim de entender o conceito de família e compreender os processos
de formação desta instituição desde os tempos mais remotos à contemporaneidade.
14
Ao investigar no romance as relações familiares, percebi uma expressiva
interação entre realidade social e realidade ficcional. Para esquadrinhar a questão,
utilizei como subsídios teóricos livros e ensaios que remontam à vida em sociedade no
século XIX, tais como, História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del
Priore; Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
Belle Époque, de Martha de Abreu Esteves; A condição feminina no Rio de Janeiro:
século XIX, de Miriam Moreira Leite; Condição feminina e formas de violência, de
Rachel Soihet, dentre outros. Desta forma, tive a possibilidade de um melhor
embasamento na construção dos argumentos a serem explorados mais adiante.
No terceiro capítulo, que se refere ao relacionamento conjugal e extraconjugal,
fiz uma análise das uniões formais e informais dos personagens. Em relação às questões
ligadas à temática do casamento e do concubinato, procurei verificar também as causas
do adultério feminino, despontando entre elas o casamento por conveniência, a carência
afetiva e o relacionamento familiar insatisfatório. Ao considerar a definição dos papéis
sociais dentro da família, avaliei as relações de gênero que aparecem de forma tão
significativa ao longo do romance. Ainda neste capítulo, uma abordagem sobre o
exercício da prostituição caminho percorrido por duas das personagens do romance
com uma análise dos fatores que levaram tais personagens a ter essa atividade como
opção de vida. Nas questões discutidas que envolvem a afetividade, utilizei os estudos
realizados por Elisabeth Badinter, Erich Fromm, Peter Gay e Anthony Giddens.
Utilizando o método investigativo hermenêutico, parti do texto literário para a
análise do tema proposto. A abordagem não dependeu unicamente de fatos literários,
mas também de fatos de ordem sócio-cultural, uma vez que se trata de uma obra
naturalista; assim vê-se o texto literário como questionamento de um tempo e de uma
cultura. Em muitos momentos, durante a pesquisa, foi necessário tratar não do
literário, mas também do aspecto social; nesse sentido, enveredei, em alguns pontos,
pelo campo da sociologia ou mesmo da história, como coadjuvantes na comprovação do
ponto de vista defendido, uma vez que a literatura brasileira ajuda a representar
“ficcionalmente” o universo social, político e econômico do país. O texto literário,
assim como o texto histórico, expressa as escolhas, seleções, recortes, visões de seu
criador, pois muitas vezes o autor – principalmente o naturalista – cerca-se de elementos
do real para construir sua narrativa, pois como sentencia Zola, “a imaginação já não é
mais a qualidade mestra do romancista” e sim o senso do real. No entender de Álvaro
15
Lins, os sociólogos e os historiadores encontraram em Aluísio Azevedo um documento
para estudar e definir a sociedade provinciana e metropolitana do Segundo Reinado e
que ninguém o ultrapassaria na descrição de certos grupos sociais. Gilberto Freyre, por
sua vez, assinala que "O Cortiço é um retrato disfarçado em romance que é menos
ficção literária que documentação sociológica de uma fase e de um aspecto
característicos da formação brasileira.” (1998: p.607)
A minha intenção é realizar uma exposição clara, sem o hermetismo que
dificulte a interpretação do texto. A pesquisa permite uma panorâmica abrangência do
imaginário afetivo na constituição do tema na prosa naturalista, e que pode ajudar na
reflexão dos diversos códigos de sentimentos e emoções presentes em obras literárias
em que se busca investigar o domínio das emoções humanas. Os questionamentos aqui
elencados servirão de auxílio para posteriores estudos a respeito dos sentimentos
humanos dentro da esfera literária.
16
1. O NATURALISMO E ALUÍSIO AZEVEDO
A visão de mundo do homem do século XIX foi muito guiada pelo forte
cientificismo então em voga. O determinismo e o darwinismo social foram influências
diretas para as teorias defendidas por sociólogos e antropólogos do período. O
determinismo afirma serem todos os acontecimentos – inclusive vontade e escolhas
humanas causados por acontecimentos anteriores: o indivíduo faz exatamente aquilo
que tinha que fazer e não poderia fazer outra coisa, a determinação de seus atos
pertencem a forças de certas causas, internas ou externas. o
darwinismo social, decorrente das teorias evolucionistas de Darwin e de Spencer,
considera que o conflito e a seleção natural dos mais aptos são condições da progressão
social. Trata-se de aplicar ao mundo social os princípios de luta pela vida e pela
sobrevivência dos melhores das sociedades animais, defendidos pela corrente
evolucionista. A competição relativa à luta das espécies prolonga-se, assim, na vida
social, explicando a mudança e a evolução das próprias sociedades.
Tal contexto ecoou no âmbito literário, como seria de se esperar, fazendo com
que diversos escritores se tornassem representantes dessas correntes cientificistas e
expusessem em suas páginas personagens e situações que exemplificassem e
comprovassem as idéias de maior prestígio do referido período. Assim o cenário
literário viu a ascensão do Naturalismo.
Como se sabe, o Naturalismo floresceu primeiramente na França, na segunda
metade do século XIX, mas teve repercussão também em outros países europeus, nos
Estados Unidos e no Brasil. Seguindo os princípios cientificistas que lhe deram origem,
o movimento tem como base a filosofia de que as leis da natureza são válidas para
explicar o mundo e a interpretação de que o comportamento do homem está sujeito a
um condicionamento puramente biológico e social. As obras naturalistas retratam a
realidade de forma ainda mais objetiva e fiel do que seu contemporâneo, o Realismo.
Deve-se observar, no entanto, que a estética naturalista apresenta sutilezas quanto aos
variados modos de delinear a realidade. Nas Artes Plásticas, por exemplo, o movimento
não tem o engajamento ideológico tão explícito do Realismo, uma vez que apenas fazia
17
a representação pictórica ou imagética do real; mas na Literatura e no Teatro
1
o
Naturalismo mantém a temática dos problemas sociais, com um caráter mais objetivo,
universalista, preocupado em focalizar criticamente variados aspectos do mundo social.
Influenciados pelo Positivismo de Auguste Comte e pela Teoria da Evolução das
espécies de Darwin, os naturalistas enxergam e reproduzem a realidade sob uma ótica
totalmente científica. Sua visão de mundo é conduzida por princípios como
objetividade, imparcialidade, materialismo e determinismo. Émile Zola, intelectual líder
do movimento naturalista, assinala que “o autor tem de fazer mover personagens reais
em um meio real, dar ao leitor um fragmento da vida humana” e ainda que “o senso do
real é sentir a natureza e representá-la como ela é.” (ZOLA: 1995, p. 26) O ano de 1880
foi um marco para o movimento, pois foi o ano em que o escritor publicou O romance
experimental e o Naturalismo no teatro, onde define os princípios básicos do
movimento. Segundo Afrânio Coutinho,
A palavra Naturalismo é formada de natural+ismo e significa, em
filosofia, a doutrina para a qual na realidade nada tem um significado
super-natural, e, portanto, as leis científicas, e não as concepções
teológicas da natureza, é que possuem explicações válidas; em
literatura é a teoria de que a arte deve conformar-se com a natureza,
utilizando-se dos métodos científicos de observação e experimentação
no tratamento dos fatos e das personagens” (COUTINHO:2004,
p.188)
Na literatura naturalista, a linguagem empregada nos romances é, em geral,
coloquial, simples e direta. Muitas vezes, para descrever vícios e mazelas humanas, são
empregadas expressões vulgares. Temas do cotidiano urbano, como crimes, miséria e
intrigas são uma constante. O estudo dos desvios do comportamento humano, marcado
pela influência exercida pelas noções de “raça” e “meio”, foi uma das mais importantes
características do Naturalismo literário. Fiel a essa tônica, Émile Zola escreveu o ciclo
dos Rougon-Macquart, onde se encontram Nana, Germinal e A Taverna, defendendo o
princípio de que o romancista deveria ser estritamente científico, ou seja, observar os
fenômenos com imparcialidade e extrair deles conclusões inquestionáveis.
Entre as idéias modernas vindas da Europa, destacam-se as doutrinas positivistas
e deterministas que deram fundamento à literatura pós-romântica. Sendo o Brasil do
1
Alguns romances naturalistas de Émile Zola foram adaptados para o teatro e representados tanto em
Paris quanto no Rio de Janeiro. No Brasil, Thérèse Raquin, estreou no Teatro Lucinda no dia 26 de junho
de 1880; L’Assomoir (A
Taberna), em 28 de abril de 1881, no Teatro São Luís e Nana teve sua estréia
no Teatro Recreio, em 19 de novembro do mesmo ano.
18
século XIX um pólo receptor do pensamento da França, seria apenas uma questão de
tempo para que as idéias naturalistas fossem incorporadas ao ideário cultural brasileiro.
No plano da ficção, os autores deixaram de lado o amor romântico e os mitos
idealizantes para se relacionarem, de modo diferente, com a matéria de sua obra.
Iniciou-se um processo de crítica na literatura e a busca da objetividade e da
impessoalidade correspondia aos métodos experimentais postos em evidência pelas
ciências naturais. Os romances não eram mais vistos como entretenimento, mas sim
como meios de combate e censura às instituições sociais decadentes. A classe burguesa,
cujos valores eram enaltecidos pelos autores românticos, era analisada criticamente
pelos realistas- naturalistas, que denunciavam a hipocrisia e a corrupção de suas
instituições, a exemplo da Igreja, chegando a atingir práticas seculares como o
casamento.
No Brasil do Segundo Reinado (1840-1889), enquanto D Pedro II escolhe o
senador ou o deputado para o cargo de primeiro-ministro, com a conivência tanto do
partido Liberal, quanto do Conservador, numa espécie de parlamentarismo às avessas, a
população ignora essas decisões governamentais, preocupando-se com a sobrevivência
imediata do dia a dia. Daí a comentada “tranqüilidade política” do período: liberais e
conservadores, habilmente conduzidos pelo imperador, revezam-se no poder, sempre de
acordo com os interesses da oligarquia agrária. Do ponto de vista econômico, o Brasil,
ao longo da segunda metade do século XIX, mantém uma estrutura sócio-econômica
baseada no latifúndio, na monocultura de exportação, a esta altura voltada para a
produção do café, e na mão-de-obra escrava. Assim, é a oligarquia agrária quem dá as
cartas na economia e na política do país, embora as pressões internacionais, visando ao
desenvolvimento do capitalismo industrial, encaminhem-se no sentido da modernização
do país, a qual, porém, faz-se com acentuada lentidão.
Nas últimas décadas do século XIX, quando Aluísio Azevedo passa a escrever ,
acirram-se as contradições sociais que vão desembocar na Abolição da Escravatura e na
Proclamação da República, modificando-se o panorama sócio-político. Os vários
conflitos e disputas sociais entre idéias e práticas políticas díspares refletem-se na
linguagem e na produção cultural. Essa época de transição, em que se agudizam as
diferenças entre as classes sociais e se recompõem as elites no poder, afeta a linguagem
literária, que vai refletir e retratar esse contexto atribulado entre passado e futuro.
19
2.1. ALUÍSIO AZEVEDO E A CRÍTICA
Inserida em um cenário histórico traumatizado por inquietações políticas, sociais
e econômicas, a produção literária atingiu o ponto da maturidade nas últimas décadas do
século XIX. Através da intensificação da vida literária e da densidade das obras escritas,
pode-se dizer que a literatura brasileira iniciou a caminhada para alcançar a sua plena
identidade e o nível de literatura potente e autônoma. Essa literatura realizou-se
distintamente em cada uma das chamadas Escolas Realistas, que se bifurcaram nas
vertentes realistas e naturalistas, “tendo de permeio o afluente representado pelo estilo
impressionista”. (MOISÉS:2001)
Sodré (2004) observa que, no Brasil, o Naturalismo não correspondia à
espontânea solicitação do meio que não se achava preparado para receber e
compreender as manifestações da nova escola, principalmente as mais próximas dos
moldes franceses. Uma vez que “as condições que haviam gerado o Naturalismo, na
Europa, não eram, evidentemente, aquelas existentes no Brasil”; o quadro brasileiro
“estava longe de assemelhar-se àquele em que a Europa denunciava a extensa e
profunda luta entre a burguesia e o proletariado.” (2004:p.429) Aqui, o Naturalismo não
refletiria a realidade do meio, mas sim “formulações distanciadas de tudo aquilo que o
Brasil apresentava como peculiar.” José Veríssimo (1998) diz que o Naturalismo
brasileiro já era “moribundo em França quando aqui nascia”.
A discussão sobre formas importadas e realidade local permeia boa parte da obra
crítica de Antonio Candido. Para ele, a literatura brasileira é vista como um discurso
interessado e empenhado em dizer a realidade local. As experiências estéticas
importadas da Europa passam por uma “adaptação” no solo brasileiro porque o escritor,
além de literato, é também um historiador, um sociólogo, um psicólogo social que toma
para si o papel de definir e criar o caráter brasileiro via discurso literário. (CANDIDO:
1987) Entre as formas literárias advindas da Europa e o objeto o homem social,
universal, ocidental interpõe-se o meio local. Esse mediador funciona como elemento
de diferenciação da literatura brasileira. Era presumível que essas formas sofressem
20
alterações – por que não dizer profundas ao adentrar em solo brasileiro. Com o
Naturalismo não foi diferente.
Antonio Candido retoma a obra de Aluísio Azevedo a partir da perspectiva
literária do Naturalismo. Ele é um dos poucos a estudar as intenções naturalistas de
Aluísio à luz da matriz européia que o norteava, para transcendê-la numa dimensão
social que devassa a natureza econômica das relações de trabalho e contribui para fixar,
num retrato tão autêntico quanto inovador, o significado profundo da coexistência social
e humana entre exploradores e explorados na faina semi-escravista do Brasil daquele
tempo.
Em relação a Aluísio Azevedo, muitos críticos dividem a sua obra em duas
partes: a dos romances-folhetins, considerada como de menor valor e de caráter
mercadológico e a dos romances literários e de qualidade estética superior – neste
segundo grupo se inserem os romances que formam a trilogia azevediana O Mulato,
Casa de Pensão e O Cortiço. Massaud Moisés afirma que os romances-folhetins de
Aluisio Azevedo acusam o mesmo apelo à intriga pela intriga, ao inverossímil, por
vezes descambando no fantástico, ao escapismo, ao melodramático, à superficialidade
dos caracteres e à estereotipia das situações. Tudo isso porque o autor tinha o intuito de
sobreviver da pena. (2001, p.28) O crítico ainda afirma que Aluísio Azevedo, em razões
de fatores circunstanciais, cultivou simultaneamente e não em fases sucessivas os
dois gêneros: o autor publicou Uma lágrima de mulher em 1880 e O Mulato em 1881.
Mas alguns livros permanecem no limbo, pois são considerados por muitos críticos e
historiadores como ruins ou bons. Pertencentes a essa categoria são as seguintes obras:
O Homem, O Coruja e O Livro de uma Sogra. Para Nélson Werneck Sodré se salva
O Coruja, estando no mesmo patamar de Casa de Pensão. José Veríssimo põe O
Homem ao nível da trilogia azevediana. Para ele, O livro de uma sogra também é uma
obra de “mérito e influência consideráveis” qual dos romances citados; José Aderaldo
Castello inclui O Coruja; Alfredo Bosi considera digna do talento de Aluísio
Azevedo sua trilogia; Álvaro Lins considera os três O Homem, O Coruja e O livro de
uma sogra livros de tentativas: tentativa de romances psicológico, cientifico e
moralista respectivamente; José Guilherme Merquior acusa O Coruja de ter como herói
uma versão do Quasímodo, de Victor Hugo; e por último, Massaud Moisés afiança que
nem o esboço da história do internato presente em O Coruja o salva do limbo.
21
Embora não sendo um entusiasta da obra de Aluísio Azevedo, José Veríssimo
lhe atribui certo valor, no sentido de o romancista ter se afastado dos exageros da
linguagem da estética anterior. Veríssimo valoriza-lhe o comedimento, o equilíbrio e o
senso de realidade de seus romances. Segundo o crítico, Aluísio Azevedo, mesmo se
lançando na estética naturalista, tinha “ressaibos” do romantismo encontrado em José de
Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Bernardo Guimarães. (VERÍSSIMO:1998,
p.369)
Araripe Júnior celebra o escritor pela modernidade e brasilidade da linguagem,
pela documentação precisa e rica do meio nacional, pela denúncia social e precisão
quanto à pintura das classes populares. Mas, apesar de enaltecer Aluísio Azevedo,
vendo-o como um dos grandes nomes na literatura brasileira, também faz críticas à
produção folhetinesca do escritor, percebendo nela a influência dos folhetinistas
franceses e também o gosto pelo macabro e pelo extraordinário:
Depois da brilhante estréia d’O Mulato (1881-1882), o autor andou a
satisfazer a avidez dos leitores de rodapé, escrevendo as Memórias de
Um Condenado e Os Mistérios da Tijuca, vazando-os, embora com
muitas restrições, nos moldes de X. de Montépin e de Ponson du
Terrail. Durante esse período, perguntei-lhe por mais de uma vez, se
lhe aprazia assanhar essa fera chamada público atirando-lhes
pedaços de carne crua e ensangüentada, como costumam fazer os
domadores, para mostrar mais realçadas as suas qualidades
dominadoras. A resposta a estas e outras injunções foi o aparecimento
de Casa de Pensão. (apud BOSI:1978, p.137)
Em relação aos críticos do século XX, encontramos Nelson Werneck Sodré
enfatizando o hibridismo de Aluísio Azevedo, dividindo-lhe a obra em romances mais
apegados ao realismo e romances-folhetins sem nenhum mérito literário:
Transferindo-se para a Corte, Aluísio Azevedo elabora seus romances
em pouco mais de um decênio, e elabora-os sobre a pressão da
necessidade, passando do folhetim romântico mais vadio aos livros em
que capricha na feitura do que realiza. Confessa, em documentos
íntimos, o drama de subsistência que o força a compor Mistérios da
Tijuca, quando desejaria escrever os grandes romances do tipo de O
Cortiço, mas, quando encontra solução prática para o problema,
abandona a pena e, vivendo no estrangeiro, nem faz folhetins nem
escreve literatura autêntica. O traço não estava, pelo menos de
maneira fundamental, ligado, pois, à questão de poder viver; estava
ligado a outros motivos.
[...]
Aluísio é um exemplo, no Naturalismo brasileiro, do escritor que
trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o desregramento
22
romântico, a que se submete demasiado facilmente, embora
lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa peado, a que
obedece a contragosto. Não poderia haver contenção absoluta na
obediência, daí a mistura de elementos românticos, quando a
vigilância afrouxa, e de elementos simpáticos ao autor, quando os
costumes aparecem e ele os faz desfilar. (SODRÉ: 2002, p. 440/441)
Na historiografia literária, o romance O Mulato, de Aluísio Azevedo, é
considerado o marco inicial do Naturalismo no país
2
, publicado em 1881, juntamente
com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, introdutor do Realismo.
De acordo com Orna Messer Levin, com esse livro inaugural, Aluísio Azevedo
“conseguia conquistar a simpatia de leitores atentos para os quais os escritos realistas
não eram propriamente uma novidade(LEVIN: 2005, p.19). O romance uma boa
visão do meio maranhense da época, mas, segundo Alfredo Bosi, não cumpre uma das
exigências de Zola, que é pintar como se comporta uma paixão. Segundo o crítico, o
autor, ao tentar provar o preconceito existente nas famílias brancas e a oscilação
psicológica das personagens mulheres, “desfigura o pai amoroso, emboneca o
protagonista e deixa o leitor no escuro quanto a um possível ‘caso de temperamento’”
que, segundo ele, “nas mãos de Émile Zola poderia render a figura de Ana Rosa”
(BOSI: 2006, p.109). Orna Messer Levin afiança que O Mulato, com seu discurso
positivista e republicano e seu caráter antiescravista, ganhou a simpatia da crítica a
ponto de garantir acolhimento e notoriedade a Aluísio Azevedo. Em contrapartida,
Merquior registra que “O Mulato é uma investida dramalhônica contra o escravismo, no
bojo da campanha escravagista” com um enredo que acusa o sub-romantismo pulsante
por baixo dos relatos naturalistas. (MERQUIOR: 1977, p. 115)
Em Casa de pensão, tem relevância a vida desregrada que o protagonista leva no
Rio de Janeiro, o ambiente pegajoso da pensão onde se instala e o caso escandaloso em
que se envolve. Para Bosi, as fraquezas de Amâncio são atribuídas desde a primeira
página à herança de sangue; para Lúcia Miguel-Pereira, Amâncio é a pior personagem
do romance, pois é a que mais sofre do determinismo exagerado. No entanto, para Orna
Messer Levin Casa de Pensão “desenvolve um estudo de temperamentos em que os
dados psicológicos, fisiológicos e sociológicos se combinam, conferindo maior
2
Alguns historiadores reclamam a primazia para Inglês e Sousa, cujo O Coronel Sangrado data de 1877.
Dentre estes, José Guilherme Merchior, ao afirmar que “se possuísse os traços ecianos d’O Mulato (o
anticlericarismo, antiburguesismo de caricatura) O Coronel Sangrado teria sido o detonador de nossa
ficção naturalista”(p. 115). Lucia Miguel-Pereira assinala que o título e a glória pertenceriam mais a
Inglês e Sousa do que a Aluísio Azevedo.
23
densidade às figuras humanas.”(LEVIN: 2005, p. 23) Mais uma vez, José Guilherme
Merquior contraria os demais afirmando que nesse romance, “o zolaísmo, quer dizer, a
tara biológica vem aliar-se à crítica social.”, pois, para ele o que comanda
“mecanicamente” os reflexos dos personagens são “a sífilis, o crime e a cupidez”.
(MERCHIOR: 1977, p. 115)
A redenção de Aluísio vem com O Cortiço, uma vez que o autor atinou de fato
com a fórmula que se ajustava ao seu talento e “retoma com maestria o romance de
caracteres múltiplos, de destino coletivo” (MERQUIOR: 1977, p.115). Para Alfredo
Bosi, ao desistir “de montar um enredo em função de pessoas,” Aluísio Azevedo “ateve-
se à seqüência de descrições muito precisas onde cenas coletivas e tipos
psicologicamente primários fazem [...] do cortiço a personagem mais convincente do
nosso romance naturalista.” (BOSI: 2006, p.190); enquanto Miguel-Pereira diz que “a
visão panorâmica parece ser a grande qualidade de Aluísio Azevedo como romancista”,
pois “o poder de fixar as coletividades representa a sua maior contribuição para o nosso
romance.”(MIGUEL-PEREIRA:1900, p. 151) A esse pensamento vem juntar-se Álvaro
Lins, ao defender o ponto de vista de que “o principal personagem é o cortiço, que
aparece documentadamente em toda a sua história: nos seus princípios, na sua plenitude
e na sua decadência.” (LINS:1963, p.214) Aluísio Azevedo, sendo o iniciador, foi o
também o maior dos naturalistas brasileiros, e O Cortiço é, sem dúvida, o grande livro
que a escola nos deixou.
2.2. O ROMANCISTA ALUÍSIO AZEVEDO
Figurativamente, é possível dizer que a sete de setembro de 1881, Aluísio se fez
romancista. No vapor “Espírito Santo”, deixava a sua cidade natal. Quando o vapor
transpôs a Ponta d’Areia, saudado pelo troar do canhão do velho forte, começavam as
comemorações oficiais em regozijo da Independência do Brasil. O grande autor fora
renegado em seu próprio torrão natal, de onde saíra odiado e amaldiçoado, a tal ponto
que as beatas se persignavam ante sua passagem. Diferentemente da corte, onde fora
24
recebido muito bem pela crítica
3
, O Mulato não tivera boa repercussão em São Luís,
pelo fato de ser um apanhado muito vivo e fiel da vida provinciana da cidade, pois
muita gente se sentiu logo desenhada no livro. Padres e leigos, comerciantes e doutores
reviram-se, encolerizados, nos capítulos empolgantes do romance. A história era
bastante conhecida por lá, uma vez que o caso de fato acontecera. Apenas o romancista
dera ao episódio um sentido mais dramático.
Pela forte repercussão negativa é que Aluísio Azevedo decide retornar ao Rio de
Janeiro, uma vez que a província, com os seus preconceitos e a miséria moral de seus
homens, não mais seria ambiente compatível com as inquietações e as rebeldias do
moço escritor. A Corte o chama, aclamando, pela pena de seus jornalistas mais ilustres,
o talento do romancista maranhense. O artista achara afinal, para a conquista da glória,
o caminho tantas vezes sonhado. Caminho esse que perceberia não ser o ideal, alguns
anos depois.
Aluísio era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D.
Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão caçula do comediógrafo Arthur Azevedo.
Sua mãe casara aos 17 anos com um rico, porém ríspido comerciante português. O
temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em
casa de amigos, até conhecer o jovem viúvo David. Os dois passaram a morar juntos
sem contrair segundas pcias, o que era considerado um escândalo na preconceituosa
sociedade maranhense da época.
Forçado pela necessidade de ganhar dinheiro, Aluísio Azevedo escrevia
romances folhetinescos, que ele intitulava de “comerciais”. Ao tentar profissionalizar-se
como escritor, acabou produzindo uma obra diversificada e de qualidade desigual. Ao
lado dos aludidos romances escritos para agradar o público que segundo Aluísio
Azevedo, estava ainda em 1820, em pleno romantismo havia os romances
naturalistas, que ele chamara de “artísticos”. Ao primeiro grupo, pertencem Mistérios da
Tijuca (1882), intitulado Girândola dos Amores a partir da segunda edição (1900);
Filomena Gomes (1884); Memórias de um condenado (1886), que também mudou de
nome, a partir da segunda edição, passando a ter como título A condessa Vésper (1901)
e A mortalha de Alzira (1893). São romances bastante inferiores, escritos “ao correr da
3
Aluísio Azevedo, no prefácio à edição de O Mulato, em 1889, lembra a receptividade que encontrou
em críticos respeitados no mundo literário como Sílvio Romero, Araripe Jr., Clóvis Bevilácqua e
Capistrano de Abreu.
25
pena”
4
, como se falava na época, mas bem aceitos pelos leitores de então. Um pouco
acima destes se encontram os romances O Homem (1887) e O Livro de uma sogra
(1895), mas nada que se compare aos pertencentes ao segundo grupo: O Mulato (1881);
Casa de pensão (1884) e O Cortiço (1890). José Aderaldo Castello afirma que, dentre
os romances de teor naturalista, apenas O Coruja” (1887) possui páginas bem
realizadas e personagens dignos da obra maior de Aluísio Azevedo.
Em 1884, três anos após o lançamento de O Mulato, Aluísio escreve a Afonso
Celso pedindo-lhe um emprego; isso reforça a afirmativa de que o ofício de escritor não
lhe pagava as contas, como afirmara Valentim Magalhães
5
. Pede ele um cargo “seja
o que for, tudo serve” para que possa escrever Casa de pensão e não ter mais de
fabricar Mistérios da Tijuca. Mesmo achando feio e ridículo o que está a fazer, reforça o
pedido por se encontrar em uma situação desesperadora.
De 1882 a 1895 escreve sem interrupção romances, contos e crônicas, além
de peças de teatro, em colaboração com Artur Azevedo e Emílio Rouède
6
. Segundo
Orna Messer Levin, “Aluísio Azevedo assumiu o compromisso com o ofício literário
como uma espécie de obsessão profissional”. (2005, p.26) Alguns críticos entendem
que Aluísio Azevedo jamais realizou a obra sonhada, que o autor teria consumido
toda a imaginação nos folhetins. Apenas teria legado para a posteridade três romances
de peso: O Mulato, Casa de Pensão e O Cortiço. O último faria parte de um grande
ciclo imaginado à maneira de uma comédia humana ‘científica’, no espírito da série Les
Rougon-Macquart
7
, de Émile Zola; a história natural e social de uma família no
Segundo Reinado, em alguns volumes. Não teve tempo, contudo: morreu de infarto em
4
Refere-se à expressão latina currente calamo, que significa escrever às pressas, sem preocupações com
o estilo, num tom corriqueiro e leve. A expressão “ao correr da pena” era o título da coluna de José de
Alencar, no Correio Mercantil, no Rio de Janeiro; nela o autor tecia comentários sobre assuntos gerais, e
hoje é uma referência direta a Alencar; não na maneira de escrever, mas na leveza dos assuntos, uma vez
que o folhetim era o principal meio de circulação da prosa ficcional durante o segundo quadrante do
século XIX.
5
Valentim Magalhães (Antônio Valentim da Costa Magalhães – Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1859 —
Rio de Janeiro, 17 de maio de 1903) foi um jornalista e escritor brasileiro e um dos fundadores
da Academia Brasileira de Letras. Afirmava ele que Aluisio Azevedo era no Brasil talvez o único escritor
que ganhava o pão; as letras no Brasil ainda não davam para a manteiga.
6
Emílio Rouède nasceu em Avignon, França, em 1848. Chegou ao Brasil em 1880 e, na XXVI Exposição
Geral de Belas Artes, em 1884, expôs as obras Saco de Alferes e Naufrágio de Montserrat, dos irmãos
Artur e Aluísio Azevedo. Entre este e Emílio Rouède cedo despontou uma amizade, tendo os dois escrito,
em parceria, cinco comédias, todas elas encenadas com êxito: Venenos que Curam, O Caboclo,Um Caso
de Adultério, Lições para Maridos e Em Flagrante Delito.
7
A série Les Rougon-Macquart consiste em um relato da decadência de uma família em conseqüência da
hereditariedade e do ambiente, com particular ênfase sobre questões como alcoolismo, doença e
degeneração moral. Os livros mais famosos da série são A Taverna sobre os operários de Paris e
Germinal, um romance proletário que aborda a mineração de carvão no norte da França.
26
1913, aos 55 anos, em Buenos Aires, onde era adido comercial. Devido as suas
obrigações diplomáticas ou por desejo próprio – não se sabe ao certo o motivo passou
seus últimos 18 anos sem escrever ficção. Talvez por causa do projeto literário
abandonado, os críticos o tenham visto erroneamente como um fracasso total.
Aluísio Azevedo, o romancista, nascera a sete de setembro de 1881. Mas sua
morte como autor, segundo Coelho Neto, o amigo que com ele dividira uma casa na
Rua Formosa, na cidade do Rio de Janeiro, o autor Aluísio Azevedo morrera
8
quando
fora nomeado cônsul. Coelho Neto, ao felicitá-lo pelo cargo, felicitou também as letras,
pois achava que “a sua pena correria desembaraçada e ligeira”, agora que a sua vida
também correria mansa, ao que Aluísio retruca com azedume:
– Que! romances, contos?... Estás doido? Vou ser cônsul, e nada mais.
De literatura estou farto. Achas que sofri pouco? Vou viver um
bocado, gozar a vida a relógio, almoçando e jantando a horas certas e
dormindo sem a preocupação do credor. Romances e contos?... se
eu tivesse a sorte grande da Espanha. Ainda assim... não sei.
Pois sim! retruquei-lhe incrédulo. E despedimo-nos. Ele foi para o
seu consulado. Passaram-se anos.
9
Tempos depois, ao reencontrar Aluísio recém-chegado de Gênova, Coelho Neto
retoma a conversa interrompida na Rua do Ouvidor e lhe agradece pelo “método”
literário. Mais uma vez o cético Aluísio Azevedo retruca, de jeito contundente e
desabusado: Que diabo é autor de livros? É pouco, meu velho. Livros entre nós, os
de cheques.” Então Coelho Neto, refletindo em suas palavras, tem
a impressão de que aquele homem não era Aluísio, o meu
companheiro na casa da rua Formosa. Não era. Voltei-me no bonde:
Ele ainda estava à porta da Brahma, com o charuto empinado, os
olhos piscos, indiferente a tudo que o cercava. Não... Aquele não era
Aluísio... E, durante toda a viagem, fui pensando no romancista de O
Coruja, tão diferente daquele homem que eu deixara à porta da
Brahma com um grande charuto nos dentes e... sei ! Mas onde e de
que teria morrido o grande escritor?
O Naturalismo, no Brasil, começa com a publicação em 1881 do romance O
Mulato, de Aluísio Azevedo. No Naturalismo, personagens e enredos submetem-se ao
destino cego das "leis naturais" que a ciência da época julgava ter codificado. Entre
essas leis naturais encontram-se aquelas oriundas do darwinismo e de outros tipos de
evolucionismo. De acordo com Massaud Moisés, “Aluísio produziu o melhor do seu
8
Merquior concorda com Coelho Neto ao afirmar que a veia do ficcionista Aluísio secou quando ele
alcançou o conforto do emprego no exterior.
9
Mas onde e de que teria morrido o grande escritor? Coelho Neto: Guesa Errante, 19 de outubro de
2007. Disponível em http://www.guesaerrante.com.br Acesso em 10/10/2008
27
talento quando enveredou por um Naturalismo equilibrado, patente na obra com que
inaugurou a nova época [...] e primeiro da tríade romanesca que lhe deu renome”
(MERCHIOR: 2001:p. 34) O Mulato, Casa de Pensão e O Cortiço. Segundo o autor,
embora não obedeça a um plano consciente de estruturação, a trilogia ostenta
características afins, que permitem supor um nexo subterrâneo. Para muitos críticos
10
,
essas três obras bastaram para assegurar a Aluísio Azevedo uma presença inapagável na
Literatura Brasileira.
No Brasil, pode-se considerar Aluísio Azevedo como um dos responsáveis pela
inclusão da prosa de ficção no clima de hostilidades e de provocações desencadeadas no
instante em que a literatura passou a captar as novas aspirações da elite ilustrada.
(LEVIN, 2005). O autor utiliza a literatura para abrir um canal de circulação de
protestos e de idéias sociais reformadoras. Através do romance o gênero preferido da
burguesia em formação Aluísio passou a denunciar os preconceitos e os vícios da
classe dominante, além de divulgar os problemas diagnosticados no Brasil dos
oitocentos, sem que isso significasse a defesa de uma solução transformadora.
Como foi observado anteriormente, Aluísio Azevedo tencionava, como Émile
Zola, escrever uma espécie de história social e natural de brasileiros antigos e modernos
ao longo de cinco romances, na qual fosse registrada a vida na Corte desde 1820. O
Cortiço fazia parte desse projeto de descrição da sociedade brasileira que o autor
apresentou em um número da revista carioca A semana, de outubro de 1885. A obra
ou retrato a ser publicada em cinco romances, abarcaria a sociedade desde o império
até sua ruína, que Aluísio Azevedo julgava próxima e teria os seguintes títulos: O
Cortiço, A família brasileira, A Loureira, O felizardo e A bola preta. A ação
principiaria no tempo da independência e acabaria pelos meados de 1886 ou 1887. A
obra abrangeria cinco épocas distintas, durante as quais o Brasil se vai transformando
até chegar, ou a um completo desmoronamento político e social, ou a uma completa
regeneração de costumes imposta pela revolução:
O primeiro romance, O Cortiço, faz-nos ver um colono
analfabeto que de Portugal vem com a mulher trabalhar no Brasil,
trazendo consigo uma filhinha de dois anos. Essa criança viria a
10
Lúcia Miguel-Pereira, Afrânio Coutinho, Nélson Werneck Sodré, Álvaro Lins e Alfredo Bosi
comungam com esse pensamento. José Veríssimo acrescenta ainda O Homem. Segundo ele, esses
romances trouxeram para a ficção brasileira da época um sentimento mais justo da realidade,
acrescentando-lhe uma visão mais nítida dos problemas sociais e da alma individual.
28
ser a menina do cortiço. [...] O colono deixa a mulher por uma
mulatinha, e deste novo enlace surgem o Felizardo e a Loureira.
Participa deste grupo o tipo de capadócio, o pai avô do capoeira,
que mais tarde é chefe de malta e força ativa nas eleições. Ligado a
este chefe de malta está um tipo que contrasta com ele: é o antigo
conselheiro do estado, político formado durante a menoridade do
Sr. D. Pedro II e graduado pelos seus serviços à causa da
revolução mineira. Do conselheiro nasce a família brasileira,
composta por quatro figuras, a saber: O chefe, Conselheiro, de
cinqüenta e tantos anos, conservador e lírico; a esposa deste,
senhora de quarenta anos muito apaixonada pela História dos
Girondinos de Lamartine, sonhando reformas e lamentando não
ser homem para desenvolver o que ela julga possuir de ambição
política em seu espírito; a filha, moça de vinte anos, prática e
interesseira, vendo as coisas sempre pelo prisma das comodidades
e das conveniências sociais; e o filho, rapaz de dezesseis anos,
presumido filósofo e muito convencido de que está senhor de toda
a ciência de Augusto Comte.
É sobre essa família que tem de agir o Felizardo e a Loureira:
é nesta família que a Loureira vai buscar o amante, o filósofo de
dezesseis anos, a quem não valerá toda a teoria científica de Comte
e Spencer e que dará um dos bilontras da Bola Preta; enquanto que
o Felizardo, conseguindo casar com a filha do Conselheiro, e
conseguindo, uma vez rico, fazer carreira política, vai influenciar
nos destinos do Brasil e comprometer a situação do monarca com
se verá no último livro.
11
Mas o escritor ficou apenas nos planos e Aluísio Azevedo concretizou o
primeiro romance. De acordo com José Aderaldo Castello, o romancista, além de não
executar seu projeto, não realizou convincentemente o romance naturalista, uma vez que
“Deu-se ao realismo de observação direta visando à reprodução fiel da realidade”, e
apesar de ter enfatizado a importância condicionadora do momento junto com o meio,
as relações conflitivas da ascensão social e de ter dado certo valor às etnias, não teve
condições de “desenvolver a análise dos efeitos da herança biológica no comportamento
humano sob a dupla interferência do meio e do momento” (CASTELLO: 2004, p.395),
conforme pregava o fundamento de Émile Zola.
Passa-se o enredo de O Cortiço no Rio de Janeiro e diferentemente das outras
obras de Aluísio Azevedo, não uma descrição da aristocracia fluminense, mas do
povo como personagem. O cortiço do português João Romão é um organismo vivo, que
nasce com algumas tábuas roubadas, e morre num incêndio. Nesse meio tempo, João
Romão enriquece – explorando os miseráveis, que moram ali e compram em sua venda,
e também a negra Bertoleza, sua companheira – e passa a sonhar com a ascensão social.
Livra-se de Bertoleza, casa-se com a filha de Miranda um comerciante português que
11
In BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. p.191-192.
29
se faz barão e tenciona tornar-se visconde, apagando seu passado. O livro não se
reduz, é claro, a essa trama. Nele se desenvolve um discussão acerca da constituição da
nação brasileira, através da miscigenação racial e cultural. Ao longo do romance, eivado
dos preconceitos da época, vão aparecendo os diferentes modos de adaptação do
português ao Brasil, além da luta dos negros e, especialmente, dos mestiços pela
sobrevivência. Desse convívio de tipos vai se fazendo o romance, como ia se fazendo a
nação.
2.3. OS CORTIÇOS E O CORTIÇO
À época da publicação do romance, os cortiços eram a habitação da grande
maioria do operariado carioca, sendo o resultado direto do desenvolvimento
desordenado da cidade, associados à chegada massiva de imigrantes e migrantes. Isso
preocupava os contemporâneos de Aluísio Azevedo, pertencentes à elite intelectual,
pois o crescimento dessas habitações populares ia de encontro aos planos modernizantes
da nova engenharia urbanística. Este quadro sintetizava as mudanças ocorridas nos
últimos anos do século XIX no Rio de Janeiro.
Aluísio Azevedo tomou conhecimento da realidade dos cortiços em sua primeira
estada no Rio de Janeiro, sobretudo por meio dos jornais. Essas moradias coletivas eram
apontadas como a origem de todos os males da urbe, sendo essa a opinião da elite em
geral e da imprensa. Eram comuns as campanhas contra esse tipo de habitação popular
e, como caricaturista do jornal O Fígaro, o futuro escritor delas participou naquela
época. O que impressionava os que chegavam à cidade era a ganância dos donos dos
cortiços em explorar a miséria dos que neles moravam. O exemplo de Miranda,
personagem de Aluisio Azevedo, espelha a inquietação dessa nova elite frente ao
crescimento desordenado deste fenômeno habitacional:
O Miranda rebentava de raiva. – Um cortiço! exclamava possesso.
Maldito seja aquele vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um
cortiço debaixo das janelas!... Estragou-me a casa, o malvado. [...] E
durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando
forças, socando-se de gente, E ao lado o Miranda assustava-se,
30
inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte
daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por
debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que
serpentes, minavam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em
torno dela, rachando o solo e abalando tudo. (Cap.1, p.451)
Intelectual engajado, crente como seus pares de sua condição de portador
dos códigos de acesso para a formação de idéias, Aluísio Azevedo tomou para si a
responsabilidade de educar a pátria em seus usos e costumes, os quais estudou
minuciosamente, e deu-lhes vida através de seus personagens, sendo alguns deles,
formas físicas constitutivas da cidade a ser reformada e educada, como os cortiços e
pensões.
Em 1850, houve uma epidemia de febre amarela e em 1855, uma de cólera, no
Rio de Janeiro. Além de terem contribuído para a elevação das taxas de mortalidade,
essas epidemias levantaram uma polêmica em torno das condições sanitárias da cidade,
e, sobretudo, das habitações coletivas. Cômodos pequenos, insalubres e sem ventilação
eram a porta de entrada para moléstias. A falta de observância às regras higiênicas dos
moradores aumentava as chances de proliferação de doenças. No trecho em que fala do
despertar no cortiço, a referência direta a essa falta de higiene dos habitantes devido
à precariedade das instalações sanitárias. Eram noventa e cinco casinhas e um número
insignificante de torneiras, banheiros e latrinas, cujas portas não descansavam, “era um
abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam
dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias”, (cap. 3, p. 461) porque o
número de pessoas era enorme e mal dava tempo de um recompor-se até um outro
entrar. Por não haver instalações sanitárias suficientes, as crianças não se davam o
trabalho de usar as latrinas, e “despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por
detrás da estalagem ou no recanto das hortas.” (cap. 3, p. 461), o que se constituía em
fonte de contaminação do solo e, por conseguinte, das hortaliças que seriam consumidas
pelos moradores. Depois da segunda reforma, na qual João Romão tencionava construir
de quatrocentos a quinhentos cômodos, “fizeram-se seis latrinas, seis torneiras de
água e três banheiros”. (cap.20, p. 680) É a metamorfose do cortiço: as primeiras
noventa e cinco casinhas representariam a larva; os incêndios seriam a fase de
transformação e a Avenida João Romão passaria a ser a crisálida.
No cortiço de João Romão, as vítimas da febre amarela foram os italianos
Delporto e Pompeu, que morreram da doença, sem falar que “três outros italianos
31
estiveram em risco de vida.” (cap.13, p.558), além da suspeita levantada por Piedade de
Jerônimo ter contraído a doença, da primeira vez que ficou acamado: “Pois um homem
rijo, que nunca caía doente? Seria a febre amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que
nem pensar nisso era bom! Credo!” (cap. 8, p.500-grifo do autor) Os surtos epidêmicos
eram utilizados por políticos e intelectuais para justificar suas incursões aos cortiços e o
combate às moradias populares. Os “saberes médicos”
12
, investidos de plenos poderes
pelos governantes, ordenaram a destruição de vários cortiços, mas a exemplo do que
acontecia com as casas de cômodos, a cada estalagem destruída, aumentava-se o
número de moradores em outras, que tinham diminuídas suas condições higiênicas e,
portanto, de habitabilidade. João Romão, antes da construção da estalagem, pressentira
a escassez de moradias e o seu empreendimento estaria destinado “a matar toda aquela
miuçalha de cortiços que alastravam por Botafogo”. (Cap.1, p. 449) O romance de
Aluisio Azevedo mostra o argumento do adensamento populacional dos cortiços ser
decorrente, em parte, das necessidades de proximidade do trabalho:
Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se
atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas
secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor
ponto para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam
todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação. (Cap.1,
p.451)
As relações de sociabilidade que se estabelecem nesse espaço, embora bastante
distinta em seu aspecto observável, reproduz metonímica, metafórica e alegoricamente o
espaço social da corte carioca da segunda metade dos XIX, em uma instância mais
imediata; e, em sentido mais amplo, o próprio caráter da estrutura societária brasileira
do mesmo período. O espaço em que se constrói a hospedaria popular de João Romão
se situa no bairro de Botafogo e, aparentemente, Aluísio Azevedo idealizou um cortiço
um pouco maior do que os que são vistos em fotos e gravuras da época. (Ver gravuras
nº 3, 4 e 5)
Os cortiços cariocas eram bem conhecidos, havendo inclusive a suspeita de que
membros respeitados da burguesia fossem seus verdadeiros proprietários. A narrativa
em foco faz referência direta a essas suspeitas:
Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o Cabeça-
de-Gato”. Figurava como seu dono um português que também tinha
venda, mas o legítimo proprietário era um abastado conselheiro,
12
Formavam os saberes médicos os médicos higienistas, os juristas e a própria polícia, que era a
responsável pela fiscalização das “normas higiênicas” das famílias.
32
homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social,
aparecer em semelhantes especulações. (cap. 13, p. 558)
Esse cortiço, que florescia no bairro de Botafogo era o “Cabeça-de-Porco”, cujo
proprietário diziam ser o Conde D’Eu. É assim que Aluísio Azevedo critica a ganância
de alguns, no caso, de pessoas diretamente ligadas ao Imperador Pedro II, ao explorar os
menos favorecidos através do aluguel desse tipo de habitação popular. O fato é que as
estalagens da época não seguiam os padrões físicos do cortiço ficcional de Azevedo;
enquanto o Cabeça-de-Porco e a maioria dos cortiços eram construções verticais, o
cortiço de João Romão era horizontal, com as casinhas que se estendiam unidas,
avançando sobre o quintal do Miranda como “serpente de pedra e cal”. A utilização da
imagem da serpente, arrastando-se, insinuando-se, reforça a iminente invasão do cortiço
nos domínios territoriais do Miranda. Segundo Antonio Candido, o cortiço representado
por Aluísio é horizontal, “ao modo de uma senzala,” e quando o proprietário progride,
“adquire um perfil mais urbano e um mínimo de verticalização nos dois andares de uma
parte da vila nova”. (CANDIDO:1998, p.134) Portanto, a criação ficcional de uma
habitação popular ao ar livre e às vistas de todos aponta para uma assunção do
conhecimento do tipo de relações humanas que se davam dentro de suas cercas. Sendo o
cortiço horizontal, era muito mais fácil ter-se conhecimento de todas as mazelas dos
moradores, uma vez que as casas eram contíguas, permitindo uma melhor visualização
dos problemas de seus habitantes.
O Cabeça-de-Porco
13
foi um dos cortiços demolidos pela pressão dos higienistas,
sob a alegação de que habitações como essa eram lugares propícios à proliferação de
epidemias. Este cortiço chegou a abrigar cerca de duas mil pessoas segundo jornais
locais e teria servido de inspiração para a criação do romance de Aluísio Azevedo. A
estalagem ficou tão conhecida que atualmente o termo cabeça-de-porco é encontrado
nos dicionários como sinônimo de cortiço.
Em O Cortiço, há a interação dialética conduzida pelo contraponto de duas
camadas sociais. No desenrolar da narrativa, o romancista procede por contraste,
13
O Cabeça-de-Porco foi demolido em 26 de janeiro de 1893. No ano anterior, o cortiço havia sido
interditado pela Inspetoria Geral de Higiene. Três dias antes da data da demolição, os proprietários do
cortiço receberam uma intimação da Intendência Municipal para que providenciassem o despejo dos
moradores seguido da demolição imediata de todas as casinhas, o que não foi cumprido, resultando em
uma verdadeira operação de guerra que culminou na derrubada à força da estalagem, às sete horas e trinta
minutos da noite. CHALOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
33
confrontando as duas camadas sociais que se encontram sempre em posições
antagônicas, em todos os aspectos, como no tocante às relações familiares, ao amor, à
moradia, às práticas quotidianas, ao trabalho e ao lazer. O conflito entre ambas eclode e
se reforça porque os dois grupos são vizinhos no novo bairro de Botafogo, que está em
via de urbanização, sendo separados apenas por um muro, o qual situa de um lado o
sobrado da abastada e pretensiosa família Miranda, e, de outro, o cortiço, capitaneado
pelo vendeiro português João Romão.
O romance é, portanto, um recorte sociológico representando as relações entre o
elemento português, que, em sua ânsia de enriquecimento, explora o Brasil e o elemento
brasileiro, apresentado como inferior e vilmente explorado pelo luso; além de uma
grande variedade de tipos humanos, de todas as nacionalidades, raças e feitios. Lúcia
Miguel-Pereira sublinha que o “Rio popular do tempo da capoeiragem está todo aí,
nessa mistura de negros, mulatos e imigrantes portugueses, nesse amálgama de
exploradores e explorados.” (MIGUEL-PEREIRA: 1988, p. 152) De acordo com
Antonio Candido,
Em nenhum outro romance do Brasil tinha aparecido semelhante
coexistência de todos os nossos tipos raciais, justificada na medida em
que assim eram os cortiços e assim era o nosso povo, é claro que visto
numa perspectiva pessimista, como a dos naturalistas em geral e a de
Aluísio em particular. Deste modo o cortiço ganha significado
diferente do que tinha em Zola, pois em vez de representar apenas o
modo de vida do operário, passa a representar, através dele, aspectos
que definem o país todo. E como solução literária foi excelente,
porque graças a ele o coletivo exprime a generalidade do social.
(CANDIDO: 1998, p. 138)
A presença dessa grande variedade de raças reforça a tese de que o Brasil é um
país formado por todas as etnias, fenômeno observado pelo autor à época. Aluísio
Azevedo critica essa miscigenação ao estereotipar alguns personagens, muito deles
através de aspectos negativos, como é o caso da maioria dos estrangeiros haja vista a
barulheira e o mau cheiro do corpo; outros, por meio do que pode ser tomado como
idiossincrasias sociais, a exemplo da avidez do judeu ou a sujeira e a algazarra dos
italianos que moravam no cortiço. Verifica-se assim a xenofobia reinante no século
XIX, que culpava os imigrantes por roubarem os empregos dos brasileiros. Magali
Engel afirma que era comum encontrar nos segmentos dominantes e nos populares a
crença, segundo a qual, a imigração seria a principal causa do desemprego na cidade do
Rio de Janeiro. Ainda hoje, a cidade atrai estrangeiros à procura de oportunidades, o que
34
se a perceber pelo número crescente de imigrantes que ali chegam, tanto como
empreendedores, quanto como trabalhadores.
Jerônimo, personagem do romance, viera ao Brasil à procura de melhores
condições de vida e foi trabalhar numa fazenda como colono, a exemplo dos imigrantes
que vinham para reforçar a mão-de-obra nas lavouras, logo após a abolição da
escravatura. Os trabalhadores que chegavam, emparelhavam-se aos negros, pois viviam
com eles no mesmo meio degradante, encurralados como bestas, sem aspirações, nem
futuro. Por isso, o português resolvera
abandonar de vez semelhante estupor de vida e atirar-se para a Corte,
onde, diziam-lhe patrícios, todo o homem bem disposto encontrava
furo. E, com efeito, mal chegou, devorado de necessidades e
privações, mete-se a quebrar pedra em uma pedreira, mediante um
miserável salário. A sua existência continuava dura e precária; a
mulher já então lavava e engomava, mas com pequena freguesia e mal
paga. [...] Jerônimo porém era perseverante, observador e dotado de
certa habilidade. Em poucos meses se apoderava de seu novo ofício e,
de quebrador de pedra, passou logo a fazer paralelepípedos; e depois
foi-se ajeitando com o prumo e com a esquadria e meteu-se a fazer
lajedos; e finalmente, à força de dedicação pelo serviço, tornou-se tão
bom como os melhores trabalhadores da pedreira e a ter salário igual
ao deles. Dentre de dois anos, distinguia-se tanto entre os
companheiros, que o patrão o converteu numa espécie de contra-
mestre e elevou-lhe o ordenado a setenta mil réis. (cap.4, p. 478)
Segundo Antonio Candido,
a redução biológica do Naturalismo todos, brancos e negros, como
animais. E sobretudo que a descrição das relações de trabalho revela
um nível mais grave de animalização, que transcende essa redução
naturalista, pois é a própria redução do homem à condição de besta de
carga, explorada para formar o capital dos outros.(CANDIDO:1998, p.
134)
O romance de Aluísio Azevedo é o primeiro texto literário em que aparece a
figura do imigrante italiano no Brasil. É também o primeiro que focaliza empregados e
trabalhadores sob o ponto de vista da relação trabalhista. João Romão, quando da
contratação de Jerônimo para o serviço na pedreira, trava um diálogo em que se percebe
a negociação direta entre patrão-empregado:
- Estava empregado em outra pedreira?
- Estava e estou na de São Diogo, mas desgostei-me dela e quero
passar adiante.
- Quanto lhe dão lá?
- Setenta mil-réis.
- Oh! Isso é um disparate!
35
- Não trabalho por menos...
- Eu, o maior ordenado que faço é de cinqüenta.
- Cinqüenta ganha um macaqueiro.
- Ora, tenho aí trabalhadores de lajedo por esse preço!
- Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não
encontra por cinqüenta mil-réis quem dirija a broca, pese a lvora e
lasque fogo, sem lhe estragar a pedra e em fazer desastres!
- Sim, mas setenta mil-réis é um ordenado impossível!
- Nesse caso vou como vim... Fica o dito por não dito!
- Setenta mil-réis é muito dinheiro!...
- por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco por um
trabalhador bom, do que estar a sofrer desastres, como o que sofreu
sua pedreira semana passada! Não falando do pobre de Cristo que
ficou debaixo da pedra!
[...]
- Mas setenta mil-réis é impossível. Desça um pouco!
- Por menos não me serve. E escusamos de gastar palavras. (cap. 4, p.
470/471)
Percebe-se no diálogo acima que Jerônimo tinha consciência do seu valor como
trabalhador que buscou uma especialização e que merece ser remunerado de acordo com
seu esforço. Ele não abre mão do salário desejado e justifica a aquisição com
argumentos convincentes a fim de que João Romão contrate um empregado qualificado
para o serviço. Apesar de todas as exigências impostas à sua contratação, sugerindo que
o personagem terá um futuro promissor na pedreira de seu conterrâneo, Jerônimo é o
que mais sofre com as influências mesológicas, pois ao contrário de João Romão, que
tem uma linha ascendente, ele segue uma linha decrescente, em um processo
transformativo que o leva à
degenerescência moral, enquanto o comerciante atinge seu
objetivo financeiro e social. (SANT’ANNA: 1993)
O romance é também o primeiro que assinala a presença da capoeira, luta cujos
praticantes se reuniam em maltas. Segundo Magali Engel, muitos escritores e
publicistas registraram a presença significativa destes segmentos sociais no Rio de
Janeiro através de uma linguagem que os qualificava como indesejáveis e perigosos.
14
A
capoeira foi considerada crime, pois estaria ligada a grupos políticos oposicionistas que
14
O artigo 402, incluído no digo Penal de 1890 que versa sobre os vadios e capoeiras, considerava
criminoso: fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela
denominação de capoeiragem; andar em correrias com armas ou instrumentos capazes de produzir uma
lesão corporal provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor
ou algum mal.
36
a polícia era incumbida de combater. Em épocas eleitorais, utilizavam sua perícia para
garantir a vitória de seus protetores e, em outros momentos, executavam múltiplas e
diversas funções em benefício das forças poderosas que os instrumentalizavam.
(SOIHET:1989) Firmo, o amigo de Rita Baiana,
militara dos doze ao vinte anos em diversas maltas de capoeiras;
chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto. Deixou
nome em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e palavras
de gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso
a sua época de paixão política; mas depois desgostou-se com o
sistema de governo e renunciou às lutas eleitorais, pois não
conseguira nunca o lugar de contínuo numa repartição pública o
seu ideal! (cap.6, p. 488).
Magali Engel denomina os capoeiras de “firmos”, moradores dos inúmeros
cortiços que vinham se disseminando pela cidade e que se enquadravam na
denominação de vadios. Ainda de acordo com a autora, no cortiço fictício de Aluísio
Azevedo coabitavam num mesmo espaço o bem e o mal, o trabalho e a vadiagem,
“indivíduos como Jerônimo e indivíduos como Firmo, que, aliás, através do contato
contaminavam os jerônimos.” (ENGEL:1989, p.33)
Nessa perspectiva, O Cortiço apresenta algumas características valiosas para a
análise do contexto social fluminense, no século XIX. Azevedo narra o cotidiano de
personagens anônimas e marginalizadas da sociedade carioca, uma vez que o livro
comporta uma imensa galeria de personagens, gente com os mais variados matizes de
cor da pele, desde os migrantes internos, provenientes do nordeste do país como a
sensual mulata Rita Baiana ou do interior do estado – todos atraídos pelas possibilidades
da embrionária metrópole até os imigrantes europeus, como os trabalhadores
portugueses, italianos e judeus que moram na estalagem. O livro funciona como um
tabuleiro social em que esses variados tipos se relacionam. Essa rica caracterização de
personagens possibilita ao pesquisador literário uma reflexão, a partir da construção de
estereótipos de brasileiros ou estrangeiros.
No romance, há uma severa crítica aos imigrantes portugueses que, à época,
monopolizavam o comércio e a locação de imóveis, principalmente na figura de João
Romão, comerciante do ramo de secos e molhados e dono do cortiço. Miranda também
era comerciante do ramo de tecidos e não escondia a forma como fizera fortuna,
casando-se com Estela apenas porque a sua casa comercial garantia-se com o dote que
ela trouxera” não escondendo, também, que a ela se prendia por não poder comprometer
37
o que lá estava enterrado. Esse sentimento antilusitano está presente em toda a obra, em
referência a esses dois portugueses. Botelho também aparece como um personagem que,
apesar de viver às custas de um deles o comerciante Miranda tinha uma visão
xenófoba, ao lembrar que o Brasil só servia para enriquecer os portugueses, deixando a
ele, um brasileiro, na penúria.
No cortiço, os conflitos dos moradores estão condicionados, na maior parte, ao
fato de serem explorados pelo homem que possui dinheiro e, portanto, as casas de
aluguel. Defrontam-se, desse modo, duas classes, uma movida pela ganância de João
Romão e a outra pelo ódio dos habitantes. Massaud Moisés afiança que, em sua
patente predileção pelos humildes, talvez influência de Zola, Aluísio Azevedo não
propôs, idealisticamente, “soluções utópicas para o impasse social”, pois o autor
deteve-se na análise dos dramas coletivos, “centrados na exploração do homem pelo
homem, mas não aventura uma fórmula de resolvê-los, como pedia o decálogo
naturalista, de base positiva, científica e socialista.”(MOISÉS: 2000, p.40) Segundo
Olívio Montenegro,
O forte de Aluísio Azevedo não foi a análise psicológica, e antes a
vida exterior dos seus personagens; não foi o caráter íntimo, mas o
caráter convencional que tinham. Daí as figuras não fazerem nunca o
efeito de uma descoberta, não impressionarem com surpresa; são
figuras quase todas como de sujeitos nossos conhecidos, que nos
lembramos de ter visto já, mas que não ligamos o nome à pessoa. Elas
não m nem esse interesse nem essa profundeza psicológica. Tudo o
que possuem de interior reponta logo na fisionomia e no gesto. Os
romances dessas figuras são sempre os mais populares. Eles não
exigem esforço do leitor; o leitor está neles como na rua inteiramente
à vontade.(MONTENEGRO: 1953)
Um dos maiores valores literários de Aluísio Azevedo, observáveis em O
Cortiço, é a sua facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos
sociais, que esses tipos manifestam-se unicamente como “uma conseqüência” do
meio, pois o grande personagem na verdade é mesmo o cortiço. Os personagens
modificam-se por influência do ambiente, ratificando assim a teoria determinista. A
utilização de palavras e expressões que sugerem gênese, aglomeração, crescimento e
transformação do cortiço reforçam essas teorias:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e
lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer um mundo, uma
coisa viva, uma geração que parecia brotar espontânea ali mesmo,
daquele lameiro,e multiplicar-se como larvas no esterco.(cap.2, p.452)
38
Com toda essa documentação, o autor criou o enredo em torno de um problema
social que se tornava mais e mais grave, com a formação de grandes massas urbanas
proletárias, constituídas por operários dos primórdios da industrialização do país.
3
.
O CORTIÇO: A FAMÍLIA E AS RELAÇÕES FAMILIARES ENTRE OS
PERSONAGENS
Ambientado no Rio de Janeiro de final do século XIX, O Cortiço encerra uma
variedade de tipos sociais representativos da época, uma vez que retrata a classe pobre
da sociedade, com suas mazelas, seus desvios de comportamentos, suas desavenças e
problemas; dessa forma o romance serve como referência para caracterizar a realidade
urbana do Rio de Janeiro. O Cortiço consolidou-se plenamente por retratar a vida
contemporânea de final do século XIX dogma absoluto do Realismo/Naturalismo
que transcorre normalmente no instante mesmo da vida em desenvolvimento: homens,
mulheres, crianças, emoções, temperamentos, sucessos, fracassos, alegrias, morte, enfim
toda a gama da existência em efervescência.
Dentre os mais variados tipos retratados no romance encontramos a moça
casadoira (Zulmira) e a prostituta de casa aberta (Léonie); a mulata fogosa e livre (Rita
Baiana) e as esposas adúlteras (Estela e Leocádia). Encontram-se também o amante
ciumento e possessivo (Firmo), o marido dedicado e amoroso (Alexandre) e o português
enamorado por uma mulata brasileira (Jerônimo). As relações marido-mulher, pai-mãe-
filhos, amásio-amante e os conseqüentes papéis sociais fazem parte do universo
retratado no romance.
Esses diferentes tipos sociais estão agrupados em núcleos familiares bastante
diversos, apresentando-se sob diferentes aspectos: vão da família nuclear Alexandre e
Augusta Carne-mole; famílias cujas mulheres assumiram sozinhas a responsabilidade da
casa e a criação dos filhos D. Isabel, Leandra e Marciana; famílias burguesas
desestruturadas – Miranda e Estela; e famílias cuja estrutura a priori sólida, fora abalada
pela interferência de uma terceira pessoa; nesse caso, a família de Jerônimo e Piedade,
ou mesmo a de Pombinha e Costa.
39
Dessa forma, a obra fornece representações relevantes da constituição familiar
dos populares em fins do século XIX. Embora a existência da família no seio dos
segmentos populares seja anterior ao surgimento do capitalismo, esta, a partir do seu
advento, adquire um novo significado e objetivo. É através dela que surgem novos tipos
de relações homem-mulher no seio do tecido social – relações bem diferentes das
encontradas dentro da família burguesa representativa da época. O Cortiço é,
indubitavelmente, um dos grandes retratos da sociedade fluminense de fins do século
XIX e um dos maiores romance naturalistas.
3.1. A REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA
“A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada”
Elisabeth Roudinesco
Friedrich Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado, adverte que no estágio primitivo das civilizações, o grupo familiar não se
assentava em relações individuais. As relações sexuais se davam entre todos os
integrantes da tribo. Em conseqüência, conhecia-se sempre a mãe, mas nunca o pai, o
que faculta a constatação de que a família teve início a partir de um caráter matriarcal.
Com as guerras e a carência de mulheres, os homens passaram a buscar relações com
mulheres de outras tribos. Com o passar do tempo, o homem marchou para relações
individuais, com caráter de exclusividade. E assim se deu a organização moderna de
inspiração monogâmica.
Em uma perspectiva católica, a família é o reflexo e a encarnação da
comunidade trinitária, sendo assim engendrada como uma comunidade. Por ser o
homem a mais perfeita expressão da constituição divina, tendo sido criado à imagem e
semelhança de Deus, ele também é ser pessoal e comunitário. A família, por intermédio
desse pensamento, nasce da união interpretativa do amor divino, e é proposta como
pequena comunidade de vida e amor. A família nuclear pai, mãe e filho remete à
sagrada família, símbolo máximo da união e amor familiar.
40
Não se pode, portanto, teorizar sobre a família na sociedade contemporânea sem
ter em conta as profundas transformações por que passou a instituição, a ponto de
guardar remota identidade com seus antecedentes históricos. A substituição, de um lado,
da “grande família”, que compreendia a própria linha dos escravos, pela “família
nuclear”, centrada na tríade “pai-mãe-filho”, operada nos séculos XIX e XX, e
sobretudo o aprofundamento afetivo no interior do grupo deu-lhe um novo rosto. De
unidade proposta a fins econômicos, políticos, culturais e religiosos, a família passou a
significar um grupo de companheirismo e lugar de afetividade.
Há, portanto, “uma solidez muito maior dos laços conjugais que não podem
ser rompidos por vontade de qualquer uma das partes”. (ENGELS: 1991, p. 66) Em um
outro momento, a família passa a ser construída como fruto de um amor romântico.
Nessa nova família, o pai vai, aos poucos, sendo destituído de autoridade e começa
então a surgir a figura feminina. O pai não é mais visto como o único responsável pela
formação familiar; a mãe assume, a partir de agora, responsabilidades nessa tarefa.
Inicia-se, assim, a feminilização da sociedade.
No tocante a essa nova constituição familiar brasileira, face ao Realismo
brasileiro, Nélson Werneck Sodré considera que:
A família brasileira atravessa, na segunda metade do século XIX, e
particularmente no seu final, uma transformação a que os escritores se
adaptaram, conscientes ou inconscientemente. O grande tema, o tema
por excelência, o do amor a que a família, desde o início da
colonização, fornecia um regido e estrito molde – já não poderia
receber o tratamento antigo, uma vez que, na realidade, as coisas não
se passavam da mesma maneira do que dantes. (...) Tudo denunciava
as mudanças que, na intimidade social, vinham sofrendo um rápido
processo, deteriorando-se relações antigas, ao mesmo tempo que
irrompiam relações novas, a que o ambiente urbano fornecia a
moldura natural.(...) A literatura não poderia ficar imune a alterações
tão importantes. (SODRÉ: 2004, p. 398)
Essas transformações às quais Sodré se refere são, principalmente, a
transformação da família extensa em família nuclear, e a função do casamento como
aliança comercial, para uma união em que os laços afetivos eram mais importantes.
Uma das mais relevantes análises se faz a partir da constituição familiar dos menos
favorecidos socialmente, procurando-se verificar de que forma esses grupos
chamaremos aqui de grupos populares constituíam-se. Um estudo mais profundo vai
mostrar que esses grupos tinham uma formação diferenciada, bem mais parecida com a
que temos atualmente. Estabelece-se a família fundada na afetividade, em que não
41
mais a necessidade de um vínculo presente no papel; ou seja, o casamento não é mais a
base única dessa família; questiona-se, assim, a idéia de família exclusivamente
matrimonial; da família extensa, patriarcal, passou-se à família nuclear. Para Lobo Neto,
A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no
mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da
afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo
que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou mãe e
seus filhos. A comunhão de afeto é incompatível com o modelo
único, matrimonializado, que a experiência constitucional
brasileira consagrou, de 1824 até 1988. A afetividade, cuidada
inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos
psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações
dos juristas, que buscam explicar as relações familiares
contemporâneas.
No romance analisado, os casais se uniam por interesses afetivos ou não, de
maneira livre e descompromissada, como é o caso de Rita Baiana e Firmo, João Romão
e Bertoleza; ou pelo casamento formal, como o dos portugueses Jerônimo e Piedade,
Miranda e Estela, Alexandre e Augusta Carne-Mole estes últimos geradores de uma
numerosa prole. Essas uniões também se desfazem e se refazem, como ocorreu com
Jerônimo e Piedade, Rita e Firmo, que passaram a constituir um novo par Jerônimo e
Rita. Serve também como exemplo da mesma situação o casal Bruno e Leocádia.
O modelo de família nuclear burguês foi difícil de ser implantado nas camadas
mais pobres da sociedade. Há, nessas camadas, o surgimento de uma nova classe com
suas próprias formas de organização social, pois esse grupo seguiu uma linha de
evolução diferente. Constatam-se semelhanças entre o comportamento familiar de
nossos personagens com o das populações contemporâneas de fins do século XIX. Pois,
assim como os pertencentes às camadas populares brasileiras de então, nossos
personagens juntavam-se sem casar, pariam filhos dos quais não providenciavam a
certidão de nascimento e separavam-se sem fazer divórcio.
Segundo Rachel Soihet, a organização familiar dos populares assumia uma
multiplicidade de formas, sendo uma delas a de famílias chefiadas por mulheres sós.
Isso se devia não apenas às dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e
valores diversos, próprios da cultura popular. A implantação dos moldes da família
burguesa entre os trabalhadores era encarada como essencial, visto que no regime
capitalista, que então se instaurava, com a supressão do escravismo, o custo de
42
reprodução do trabalho era calculado considerando como certa a contribuição invisível,
não remunerada, do trabalho doméstico das mulheres. (STOLKE, apud SOIHET: 1989)
É sob essa ótica que se fundamentam as famílias no romance em questão, em
que outros valores se sobrepõem. No caso da obra literária de Aluísio Azevedo
procurou-se isolar no texto o desencadeamento do amor, dos tipos de família e das
relações advindas dessa instituição relações internas ou externas apresentadas em
inúmeros segmentos e aspectos. Essa fragmentação do conteúdo o ignora o poder
literário dos escritos, detendo-se, contudo, nos problemas de verossimilhança, ou seja,
em que medida a forma escolhida corresponde a condições vividas ou testemunhadas e
de quais recursos de linguagem o autor se utilizou para representar essas
verossimilhanças. Procura-se dessa forma, mostrar a correspondência entre ficção e
realidade, buscando sempre que possível um confronto entre ambas. Segundo Martha
Esteves,
Levar em conta apenas a existência de uma família “normal” não foi
privilégio das teorias da “cultura da pobreza”, ou da “patologia
social”. Muitos estudos no Brasil conceituaram “família” como se
houvesse um único padrão de desenvolvimento, formulado a partir do
modelo familiar das elites – da família patriarcal à família nuclear, sua
única descendente. Os outros modelos de organização apareceram
como subsidiários ou de uma forma inexpressiva. Esses estudos são
influenciados pela chamada teoria da modernização, que defende a
evolução histórica da família através do número de membros. De
extensas, teriam atingido a forma nuclear a partir das irresistíveis
pressões da industrialização e modernização. Não perdem de vista
também as transformações, influenciadas pela chamada modernização
dos papéis familiares, das relações entre pais e filhos, da estabilidade
conjugal e da importância do parentesco. (ESTEVES: 1989, p. 122)
3.2. AS RELAÇÕES FAMILIARES
A instituição familiar, desde meados do século XIX até os nossos dias,
apresenta-se organizada de modo nuclear, restrita a um número reduzido de pessoas,
mesmo porque a tendência é a busca progressivamente maior da privacidade. A família
extensa foi definitivamente suplantada pela família nuclear, máxime nas grandes
cidades do país. Essa nova organização familiar, segundo Elisabeth Roudinesco,
sustenta-se em três pilares: a relação da afetividade, que exige cada vez mais que o
43
casamento burguês seja associado ao amor e ao desabrochar da sexualidade feminina
no romance, temos Pombinha, cuja mãe não queria que o casamento se realizasse antes
de a garota “ser mulher”, pois a mesma ainda não tinha “pago à natureza seu cruento
tributo da puberdade”; não sendo, assim, decente dar a um homem uma moça que ainda
não fora visitada pelas “regras” (cap.1, p.465) o lugar preponderante concedido ao
filho, que tem como efeito materializar a célula familiar; e o terceiro, que seria a prática
sistemática de uma contracepção espontânea, dissociando o desejo sexual da procriação.
Segundo Bittar Filho:
Com a Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX, o
trabalho da mulher em bricas e, posteriormente, em outras
atividades econômicas deflagrou o processo crescente de
desagregação familiar, acelerado com o êxodo rural que se lhe seguiu.
A Revolução Tecnológica de nosso século, os movimentos de
igualização da mulher e, mais recentemente, a denominada Revolução
etária, com a liberação dos jovens, acabaram por conferir à idéia de
família a sua visão atual, de caráter nuclear, restrita a certo número de
pessoas.
Uma das formas de desagregação familiar, que Carmelita Hitchinson (apud
GOODE) descreve como uma variante da família nuclear, faz-se muito presente em O
Cortiço. É uma nova formação da família, sem a presença masculina. Essa variante da
família nuclear é denominada de família parcial: chefiada por mulheres, muitas vezes
uma mulher idosa junto com uma ou duas filhas e os filhos destas, mas sem a presença
ou a residência permanente de um homem, esposo ou companheiro. Nessa família todo
o poder e a responsabilidade econômica e moral recaem sobre a mulher. Grande parte
das famílias da estalagem é chefiada por mulheres sós, geralmente viúvas ou descasadas
e que assumiram para si a responsabilidade de criar e educar seus filhos. Marciana e sua
filha Florinda; a Machona que ninguém sabia ao certo “se era viúva ou desquitada” e
cujos “filhos não se pareciam uns com os outros” Agostinho, Nenen e Ana das Dores
sobre esta última “afirmavam que fora casada e que largara o marido para meter-se
com um homem do comércio”; e ainda D. Isabel, viúva, que cuidava sozinha da
educação da filha, Pombinha.
A vida familiar destinava-se, especialmente, às mulheres das camadas mais
elevadas da sociedade, para as quais se fomentavam as aspirações ao casamento e
filhos, cabendo-lhes desempenhar um papel tradicional e restrito: o da educação dos
filhos e o da organização da casa. Todos os arranjos do sobrado do Miranda eram
acompanhados de perto por Estela; esta, mesmo não tendo o zelo natural das mães, ao
44
ver se aproximando a idade de a filha casar-se, aceita como pretendente à mão de
Zulmira seu “odiado” vizinho, sendo ela a responsável pelos preparativos do casamento,
cabendo-lhe, inclusive, a função de marcar a data da cerimônia. Miranda, por sua vez,
ratifica a opinião da esposa e aceita João Romão como genro, consentindo o casamento
deste com sua filha. Nesse caso específico, uma crítica aos casamentos arranjados
pelos pais, pois Zulmira nada mais faz que aceitar passivamente João Romão como
futuro marido, o que pode ser confirmado pelo comentário de Botelho quando afirma
que “uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais, sabe o que é não querer?
(cap.13, p. 561)
Segundo Elisabeth Roudinesco, a família “tradicional”, submetida ao poder
paterno manteve-se por séculos; mas esse modelo familiar desmorona definitivamente
no final do século XIX. As mulheres passam a exercer um poder e uma presença muito
mais forte na sociedade e na família, principalmente as mulheres das classes populares,
ocasionando uma “maternização” da família. O casamento como contrato livremente
consentido ameaça o patriarcado. No romance em exame, ao acordar o casamento de
Zulmira com João Romão, percebe-se que a última palavra é dada por Estela, mãe da
noiva. O Miranda, mesmo sabendo da estranha situação conjugal de João Romão,
consente no casamento; a moça “o aceitara para marido”, mas Botelho assegura que
a única pessoa que pode “estragar” o negócio é D. Estela, que torcia o nariz para a
inusitada situação conjugal de João Romão, apesar de estar muito aquiescente com o
vizinho de sobrado. A figura de Estela mostra algumas divergências no que concerne ao
comportamento da mulher de classe alta daquele tempo, para quem o casamento era o
único caminho viável. Miranda não parece estar, de maneira nenhuma, em posição de
superioridade no casamento; ao contrário, até reconhece que se fizera “escravo de uma
brasileira mal-educada e sem escrúpulos de virtude” (cap.1, p.453)
Até no modo de andarem na rua fica evidente a predominância da autoridade
feminina na família do Miranda: “Mas a família do Barão surgiu afinal. Zulmira vinha
na frente, [...] logo depois D. Estela, [...] o Miranda acompanhava-as de sobrecasaca.”
(cap. 23, p.629), ou seja, as mulheres vinham à frente, invertendo a ordem da família
patriarcal em que o chefe encabeçava a fila, seguido pela mulher, filhos e criados. (Ver
gravura nº 7)
Era comum que a escolha dos nubentes fosse feita por parentes que tinham como
objetivo preservar a fortuna da família. E, mesmo nas famílias mais humildes, ou de
45
pessoas provenientes de uniões ilegítimas, o casamento que se fazia de modo menos
rigoroso seguia a tradição de se escolher um bom partido para seus filhos, como D.
Isabel. Pertencente, quando casada, a uma outra camada social, ela sonhava com
casamento da filha Pombinha, sendo esta a única maneira de sair do cortiço, pois
daquele casamento dependia a felicidade de ambas, porque o Costa,
bem empregado como se achava em casa de um tio seu, de quem mais
tarde havia de ser sócio, tencionava, logo que mudasse de estado,
restituí-las ao seu primitivo círculo social
.
(cap.3, p. 465)
Para D. Isabel e Pombinha, o casamento constituía-se em uma maneira de
retornar à vida social que tinham antes. Confirma-se, assim, a necessidade de a mulher
se casar para ter um marido que lhe assegure uma posição social, e, por conseguinte,
escapar da situação socialmente insustentável de mulher solteira. Para Pombinha, esse
casamento era “o seu sonho dourado”, não diferindo dos casamentos burgueses, em que
se fazia uma aliança comercial, em que outros valores entravam em questão. Nesse
caso, Pombinha entraria como elemento de troca para um retorno da mãe à sociedade.
Dessa forma resolver-se-iam dois problemas: o retorno da mãe ao antigo nível social e a
retirada da filha daquele “inferno” que era o cortiço, resguardando-se a honra de
Pombinha. Rachel Soihet ressalta que a honra da mulher constituía-se em um conceito
sexualmente localizado, do qual o legitimador era o homem, uma vez que essa honra era
atribuída pela ausência dele, através da virgindade, ou pela presença masculina no
casamento.
As mulheres dos segmentos menos favorecidos mestiças, negras e mesmo
brancas viviam menos protegidas e sujeitas à exploração sexual, uma vez que não
tinham esse “legitimador da honra”. Nenen escapava como enguia dos rapazes que a
queriam para diversão; Leonor sempre estava constantemente “a fugir dos punhos
calosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarrá-la” e Isaura “via-se tonta
com os apalpões que lhe davam”; as duas últimas, criadas de Miranda, ainda corriam o
risco de servir de objeto de sua satisfação carnal, uma vez que, estando afastado do leito
da mulher, buscava nas criadas da casa aliviar o seu desejo: “Uma bela noite porém,
Miranda [...] sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde e não havia em
casa alguma criada que lhe pudesse valer...” (cap.1, p.445)
Percebe-se, assim, que estava implícita a prestação de serviços sexuais das que
exerciam os serviços domésticos, sendo essa idéia uma herança da escravidão, em que
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os senhores se aproveitavam de sua superioridade e faziam de suas escravas objetos de
suas descargas sexuais. A mulata Florinda era assediada até por João Romão, “que a
desejava apanhar, a troco de pequenas concessões na medida e no peso das compras”.
(cap.3, p. 464) O narrador destaca dessa forma a dificuldade para mulher jovem, bonita,
pobre e sem a tutela oficial masculina pai, marido ou irmão se manter dentro dos
padrões morais vigentes
15
e não cair na prostituição ou na mancebia, caminhos trilhados
por duas das personagens do livro. Parece consenso que a moça sozinha não é capaz de
afastar os perigos morais, como a perda da virgindade antes do casamento; portanto, ela
deve ser constantemente vigiada. A questão da vigilância valorizava o pai de família,
persistindo a idéia de que a presença paterna era essencial para salvaguardar a pureza
das filhas.
Sem homem na casa, quem poderia “botar respeito”? Cada família teria de
acionar suas próprias estratégias de proteção, garantindo a seus membros um mínimo de
segurança contra os predadores sexuais. E uma dessas estratégias era a de vigiar as
filhas para que estas não fossem assediadas e perdessem a virgindade antes do
casamento. Depreende-se que, numa sociedade em que a virgindade representava fator
do mais alto conceito para a mulher, o desrespeito a essa norma por muitos homens
constituía atitude corriqueira, uma vez que estes não sofriam nenhum tipo de punição ao
infringirem tal norma. Depois de desvirginada, a garota arcava quase que sozinha com
as conseqüências de sua “culpa”, perdendo o direito a qualquer tipo de consideração,
sendo indigitada como a principal responsável pelo ato. Foi o que aconteceu a Florinda
que, ao final de tudo, ficou sendo a única prejudicada no episódio de seu defloramento,
que Domingos empreendera fuga sob a proteção de João Romão, livrando-se, dessa
forma, de assumir a responsabilidade de seu delito.
A rua simbolizava o espaço do desvio, das tentações, e era por isso que as moças
de família viviam no recato do lar, sob intensa vigilância materna, como Zulmira e
Pombinha, que nunca saíam sozinhas, sempre eram acompanhadas aos passeios por suas
respectivas mães. Deviam, então, as mães pobres exercer constante controle sobre suas
filhas, assim como as mães burguesas. Segundo Rachel Soihet, nos novos tempos de
preocupação com a moralidade, como indicação de progresso e civilização, essa
exigência afigurava-se impossível de ser cumprida pelas mulheres pobres que
15
Os valores vigentes difundidos pela Justiça no século XIX perpassavam os valores das mulheres e
homens pobres. Os significados da virgindade (física e moral), do casamento e da honestidade poderiam
ser diferentes, pois, segundo Soihet, essa camada da sociedade tinha valores não tão rígidos de conduta.
47
precisavam trabalhar e que para isso deviam sair à rua à procura de possibilidades de
sobrevivência.
Se a incorporação de novos padrões culturais já ameaçava as famílias das elites,
entre as classes populares, devido às contradições e às necessidades econômicas geradas
pela ordem capitalista, a “morte” da família podia ser considerada um fato. Nesse novo
molde de representação social, a “morte” da família entre os populares ocorria a partir
da impossibilidade de o marido manter a esposa sob sua tutela, e da incapacidade do
casal ou da mãe sozinha educar suas filhas dentro dos padrões da moral vigente à
época. A garota, ao sair acompanhada à rua, reforçava a imagem de mulher tutelada. Ser
vista desacompanhada, e o mais grave, em horários e locais considerados inapropriados,
transformava-se num dado de inadequação, elemento indicativo de mulher vadia,
oriunda de meios sociais e famílias viciadas.
Idealizava-se, para os populares, uma mudança nos hábitos de sair só, e apenas
em determinados horários e a determinados lugares; contudo, “esquecia-se” de que se
incluía dentre as condições de sobrevivência da mulher pobre o fato incontestável de a
rua ser também o seu local de trabalho no caso das moradoras do cortiço, como
lavadeiras, precisavam sair para entregar a roupa limpa. Como seria possível às mães
que necessitavam trabalhar acompanhar suas filhas ao trabalho e mesmo ao lazer?
Marciana não pôde vigiar a filha exatamente por esse motivo, como mulher, mãe
e, ainda por cima sozinha, deveria prover o sustento da casa e para isso precisava sair à
rua, além de ser a vigilante da filha. Ela, apesar de todo o cuidado com Florinda, não
evitou que a mesma embuchasse”. A mãe “já andava desconfiada com a pequena,
porque o fluxo se desregrara havia três meses” e suspeitou da gravidez durante um
almoço, quando “Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para o quarto [...]
vomitar num bacio” (cap.9, p. 515). A Bruxa fora chamada, já que Marciana não
conseguira nenhum resultado em suas diligências, e friamente disse que Florinda estava
de barriga. Como se percebe, a mãe, como responsável pela vigilância da filha e
mantenedora de sua honra, não impediu que alguém lhe enchesse o “bandulho”, pois
“para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se
matando, como sucede sempre que um pouco mais de serviço e é necessário puxar
pelo corpo!” (cap.9, p. 517)
Esta classe a de mulheres que assumiam sozinhas o sustento do lar era
marginalizada, e tendia a se desenvolver dentro de um outro padrão de moralidade que,
48
relacionado principalmente às dificuldades econômicas e de raça, contrapunha-se ao
ideal de castidade. Esse comportamento, no entanto, não chegava a transformar a
maneira pela qual a cultura dominante encarava a questão da virgindade, nem a posição
privilegiada do sexo oposto. Florinda, aos quinze anos estava “a pedir homem”, mas
sustentou sua virgindade, mesmo sendo assediada pelos caixeiros da venda e pelo
próprio João Romão embora depois tenha sido deflorada exatamente por um desses
caixeiros. Marta Esteves realça que, embora os valores da “honra” não fizessem muito
sentido para muitas garotas da época, todas certamente os conheciam, mas o que a
autora questiona é se esses valores coincidem com os dos juristas ou com os das jovens
de outros segmentos sociais. O fato de Florinda ter continuado virgem, apesar de toda
ela estar a “pedir homem”, reforça a tese de que ela tinha o conhecimento de que o
preceito da virgindade e a valorização do casamento oficial estavam enraizados em
todas as camadas sociais. Embora as relações ilegítimas fossem freqüentes entre as
camadas populares, ainda era o casamento a relação amorosa mais respeitada, desejada
e bem aceita pela comunidade.
As mulheres das camadas populares possuíam seus próprios conceitos de honra
vinculados à virgindade e ao casamento regular. Nenen, filha da Machona, que
ostentava “uma proazinha de orgulho da sua virgindade” e fugia “dos rapazes que a
queriam sem ser pra casar”(cap.3, p.463), tinha o casamento como meta e manter-se
virgem era questão de princípios, pois o seu maior medo era o de ficar solteira. Ela sabia
que a garantia da virgindade de uma moça possibilitava um casamento com alguém de
melhor situação econômica e por isso uma jovem devia defendê-la a todo custo. A
personagem, depois de algum tempo, ‘‘se mirrava de tanto esperar a seco por
marido,” mesmo assim, não cedeu aos desejos da carne e muito menos se deixou
seduzir como Florinda. A honra, no caso da mulher, aparece intimamente associada à
manutenção da virgindade até o casamento, pois a virgindade sexual estava atrelada à
virgindade moral, ou seja, para a coexistência de valores de virgindade e casamento, era
necessária a prática de determinados comportamentos.
Infere-se no texto, que, além de Nenen, Zulmira e Pombinha também se
mantiveram virgens até o matrimônio, uma vez que de acordo com as normas higiênicas
que então se instalavam, o exercício da sexualidade era permitido dentro do
casamento:
49
.... [João Romão] respirava ainda os perfumes de menina, suaves,
escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos
grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da
tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos
prazeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os
cabelos. (cap. 21, p.616)
[...]
E [Pombinha] pegou de novo na costura, deixando que o pensamento
vadiasse à solta, enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as
rendas naquela almofada, em que a sua cabeça teria de repousar para
receber o primeiro beijo genital. (cap. 12, p.556)
A sociedade impõe ao corpo feminino um controle rigoroso da
expansibilidade, ao mesmo tempo que permite ao corpo masculino funcionar como um
espaço de transgressão. Henrique, o hóspede de Miranda, para dar vazão a sua
sexualidade, envolvia-se com quem aparecesse: fora pego com Estela, ficava à janela do
sobrado namoriscando Pombinha e fazia gestos obscenos para Leocádia a fim de ter
com ela relações sexuais, o que conseguiu em troca de um coelhinho:
E quando a pilhava sozinha, fazia sinais brejeiros, piscava-lhe o
olho, batendo com a mão direita aberta sobre a esquerda fechada.
Ela respondia, indicando com o dedo polegar o interior do sobrado
como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa.
Naquele dia, porém, o estudante apareceu à janela, trazendo nos
braços um coelhinho todo branco, que ele na véspera arrematara
num leilão de festa. Leocádia cobiçou o bichinho e, correndo, [...]
pediu com muito empenho ao Henrique que lho desse. Este,
sempre com seu sistema de conversar por mímica, declarou com
um gesto qual era a condição da dádiva.
Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o
esperasse detrás do cortiço, no capinzal dos fundos. (cap.8, p. 504)
Percebe-se, nesse trecho, como a moral vigente estimulava o livre exercício da
sexualidade pelo homem
16
, que a desenvolve em qualquer circunstância, enquanto na
mulher tal atitude é condenada, cabendo-lhe reprimir os desejos e impulsos dessa
natureza. Como tal, Henrique confirma a tese da transgressão permitida ao sexo
masculino no que diz respeito à vida erótica.
Ao flagrar Henrique com Estela, Botelho faz-lhe a seguinte advertência: “Não se
meta com donzelas, entende? ... São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em
apuros! Agora, quanto às outras, papo com elas! E mais à frente continua, ao se referir
à Estela ... não com ela, mas com todas as que lhe caírem debaixo da asa!
16
Ao costume social que permite muita liberdade ao homem e nenhuma liberdade à mulher dá-se o nome
de padrão de dupla moral ou padrão moral social duplo. (SOIHET: 1989)
50
passando! Menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das moléstias; nem
tampouco donzelas! Não se meta com a Zulmira!” (cap.2, p.460) Ressalta-se aqui o
pensamento machista reinante na época. Henrique deveria aproveitar todas as
oportunidades, estando livres de seu assédio apenas as prostitutas e as donzelas não
sendo excluídas do rol das aventuras sexuais do rapaz mulheres casadas, como Estela e
Leocádia. Mas as recomendações de Botelho não foram levadas muito a sério, pois,
assim que Pombinha tornou-se “mulher de casa aberta”, ele passou a ser seu cliente e a
viver “à solta com outros da mesma idade”, pagando ao Rio de Janeiro “o seu tributo de
rapazola rico.” (cap.23, p.631)
Quanto às donzelas, havia o perigo de as famílias das jovens defloradas irem
sempre dar queixa do acontecido e os causadores de tal delito ficarem “em apuros”,
pois, segundo o Código Civil do período, era considerado estupro a cópula ilícita com
mulheres virgens, entre doze e dezessete anos. Leonor, apesar de conhecer “de orelha a
vasta tecnologia da obscenidade”, sabia que, caso isso lhe acontecesse, ela iria se
queixar “ao juiz de orfe
17
.” Ou seja, além de saber as obscenidades, sabia também onde
denunciá-las.
Marciana e Florinda, no entanto, não conseguiram denunciar Domingos no caso
do defloramento, pois o caixeiro fugira durante a madrugada. Na delegacia, disseram-
lhe que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse o delinqüente. As duas passaram
todo “o sábado na rua, da secretaria e das estações de polícia para o escritório de
advogados, que, um por um lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o
processo”. (cap.10, p.527) Mesmo que mãe e filha conseguissem dar queixa contra
Domingos, dificilmente resultaria em punição para o acusado, pois em muitos casos a
vítima passava à ré, pelo simples fato de ter saído à rua desacompanhada e de ter
permitido a sedução. Antes da “perda”, sua proteção é vista como a responsabilidade de
outras pessoas – no caso de Florinda, da mãe Marciana. Zelar pela virgindade das moças
era um argumento a ser acionado na justiça e foi exatamente isso que Marciana tinha
tentado fazer, mas não conseguira.
Em O Cortiço, o único exemplo de família burguesa é a de Miranda, um típico
representante dessa classe. Sua família compunha-se dele, da esposa Estela, da filha
17
O juiz dos órfãos, no século XIX, era um cargo de provimento Real. Suas atribuições eram cuidar dos
órfãos, de seus bens e suas rendas. Cabia-lhes também a entrega dos órfãos menores e desamparados a
pessoas responsáveis.
51
Zulmira e do moleque Valentim, filho de uma escrava alforriada por Estela. Havia
ainda sob o teto de Miranda dois agregados: Henrique, filho de um comerciante de
Minas e Botelho, qualificado como “parasita.” Além desses havia a criadagem,
composta pelas mulatas Isaura e Leonor. Nenhum outro núcleo familiar do romance é
tão numeroso quanto o de Miranda.
Em relação a Miranda e Estela, convém ressaltar o comportamento de ambos,
quanto aos papéis sociais de pai e e. O sentimento de paternidade e maternidade
inexiste no casal: para Miranda, Zulmira “representava o documento vivo do ludíbrio
materno” e o mesmo “estendia até a inocentezinha o ódio que sustentava contra a
esposa”, detestando Zulmira “porque tinha convicção de não ser seu pai”. Quanto à
Estela, amava sua filha menos “do que lhe pedia o instinto materno”, comprovando,
assim, que este sentimento inexistia em relação à filha pelo simples fato de “supô-la
filha do marido”, ou seja, ela não tem certeza da paternidade da filha. Mas mesmo que
não fosse filha de Miranda, Zulmira é filha de Estela, que não tem outros filhos. O
vínculo natural mãe-filho rompeu-se e o incondicional amor materno não sobreviveu.
De acordo com Erich Fromm, “Por sua própria natureza, o amor materno é
incondicional, a mãe ama a criança recém-nascida porque é seu filho, e não porque o
filho tenha preenchido qualquer condição específica ou correspondido a qualquer
expectativa específica.” (FROMM:1992, p.66) Entretanto, ela direciona o sentimento de
maternidade e de proteção, que deveriam ser para Zulmira, ao moleque Valentim:
A mulher do Miranda tinha por este moleque uma afeição sem limites:
dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o consigo a
passeio, trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ciúmes à
filha, de tão solícita que se mostrava com ele. Pois se a caprichosa
senhora ralhava com Zulmira por causa do negrinho! Pois se quando
se queixavam os dois, um contra o outro, ela nunca dava razão à filha!
Pois se o que havia de melhor na casa era para o Valentim! (cap.2,
p.456)
Os sentimentos do pai, que detesta a filha – e o da mãe, que a ama menos do que
lhe pedia o instinto materno são condicionados. Para ambos, a afeição ou a desafeição
pela filha estão vinculados ao fato de ela ser fruto do casamento no caso de Estela
ou do adultério, no caso de Miranda.
Por sua infidelidade, Estela apenas supõe que Zulmira seja filha de Miranda.
Uma esposa fiel pode ter certeza de quem é o pai e, nesse caso, Zulmira poderia ser
filha de um dos caixeiros do comerciante. Por outro lado, a convicção, jamais testada
52
por Miranda de que Zulmira não era sua filha, sobretudo por causa dos antecedentes
adúlteros de sua esposa, faz com ele também o se sinta pai da garota, uma vez que
“na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem sequer gozava
o prazer de ser pai”. Em contrapartida, se Zulmira fosse “uma enjeitadinha recolhida
por ele”, Miranda a amaria. Ao contrário de Estela, ele não tem para quem direcionar o
afeto paterno e este sentimento parece lhe fazer falta, segundo palavras do próprio
Miranda, ele não tinha “família a quem amar”. Para Erich Fromm, o amor paterno é
condicional, já que seu princípio é “amo-te porque preenches minhas expectativas,
porque cumpres o teu dever, porque és como eu”. (FROMM: 1992). Como Zulmira não
preenchia as expectativas paternas de Miranda que consistiriam em inequivocamente
ter o seu sangue e ser como ele – não mereceria o seu amor de pai.
Zulmira crescia no meio dessa guerra de egos e talvez até se sentisse culpada por
ter nascido, uma vez que seu nascimento viera agravar ainda mais a situação familiar.
Não conseguiu, como criança e filha única, unir os dois, sendo, portanto, mais um
“isolador que se estabeleceu entre eles.” Ela não conseguia ser amada pelo que é filha
de Estela nem pelo que poderia ser filha de Miranda. Ainda de acordo com Erich
Fromm, a felicidade de uma criança consiste em receber o amor dos pais. Talvez por
não receber amor de nenhum deles é que Zulmira tivesse aquele ar anêmico e aspecto
deslavado, uma vez que não tinha o afeto do pai e muito menos o amor da mãe. Fromm
ainda analisa que “há um lado negativo na qualidade incondicional do amor materno.
Não só ele não precisa ser merecido; não pode, igualmente ser adquirido.[...] Se existe,
é como uma bênção; se não existe, é como se desaparecesse da vida toda a beleza.”
(p.64 - grifo do autor). Segundo Elisabeth Badinter, a mãe tinha mais uma função
biológica que afetiva, ficando as crianças ao cargo de amas-de-leite, que lhes garantiam
a sobrevivência física, o suporte emocional e humanização. De acordo com a autora,
todo afeto para se dar precisa de proximidade física e emocional e deve ser conquistado
com e na convivência. É na intimidade das relações construídas no cotidiano que
germina, cresce e frutifica. E Estela não pode vivenciar esse amor, uma vez que ela,
assim como Miranda, por divergirem quanto à paternidade da menina, não usufruíram
dessa intimidade com a filha.
Jerônimo e Piedade formam o segundo núcleo familiar em análise. Sendo um
homem “metódico e trabalhador”, o cavouqueiro vivia para a casa e o trabalho, não
tendo vícios. Era o típico representante do chefe de família, responsável pelo sustento
53
do lar, bom pai e bom marido. Piedade, por sua vez, era uma mulher “muito diligente,
sadia, honesta, forte, [...] dando sempre tão boas contas da obrigação, que os seus
fregueses de roupa, apesar daquela mudança para Botafogo, não a deixaram quase
todos.” (cap. 9, p.479) Uma família simples, que conservava os hábitos trazidos da terra
natal:
Era homem de uma honestidade a toda prova e de uma primitiva
simplicidade no seu modo de viver. Saía de casa para o serviço e do
serviço para casa, onde nunca ninguém o vira com a mulher senão em
boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada. (...) Aos
domingos, iam às vezes à missa ou à tarde, ao Passeio Público; nessas
ocasiões, ele punha uma camisa engomada, calçava sapatos e enfiava
um paletó; ela, o seu vestido de ver a Deus, os seus ouros trazidos da
terra... (cap. 4, p.479)
A vida corria mansa e o ambiente familiar, calmo, sem brigas, nem discussões.
O assunto preferido nos serões familiares era o futuro de Marianita, a filha pequena.
Logo que ele “principiara a ganhar melhor, [...] meteu a filha em um colégio interno,
que ‘a queria com outro saber que não ele, a quem os pais não mandaram ensinar
nada’”. (cap.9, p. 479) Ou seja, Jerônimo e Piedade eram tidos como pais responsáveis,
exercendo os seus papéis sociais dentro da família. O amor materno e paterno estão
presentes neste primeiro estágio do casal, em que ambos se revezavam nos cuidados
com Marianita, pois dividiam a responsabilidade de zelar pelo bem de sua filha. Ambos
têm uma sensibilidade amorosa e sabem das regras do amor materno e paterno. A
intenção de colocar a menina em um internato
18
não era uma demonstração de falta de
afeto, mas sim a maneira encontrada de mostrar todo o amor ao dar-lhe uma educação
diferente da que ele teve, além de mantê-la longe do lugar em que eles viviam, evitando
assim que ela fosse influenciada pelos maus hábitos dos moradores do cortiço. D. Isabel
também tinha esse pensamento, tudo o que ela desejava era afastar Pombinha da má
influência do local onde moravam, que considerava inconveniente para a filha.
Para as camadas populares, a exclusividade amorosa no tocante à posse dos
filhos não é essencial
19
, uma vez que era comum a internação das filhas em asilos e
18
Para os higienistas da época, os colégios não deveriam ser unicamente “os jardins da inteligência”; os
bons costumes deviam ser neles cultivados ao mesmo tempo que as ciências e as artes, sendo as escolas
também transmissoras da moral e (dos bons costumes) e das regras de civilidade.
19
De acordo com Cláudia Fonseca, a idéia do amor materno e paterno diz respeito à importância do
sustento e de uma boa educação, mesmo que o filho esteja longe da mãe. Essa assertiva vai contra as
idéias de Elisabeth Badinter que afirma ser o amor materno um sentimento que pode ser adquirido ao
longo dos dias passados ao lado do filho, o que, por sua vez, contraria a idéia de amor inato, defendida
por Erich Fromm.
54
orfanatos religiosos ou a entrega dos filhos a terceiros, mas mantendo-se uma constante
vigilância dos cuidados que estas instituições ou pessoas tinham com as crianças.
Alexandre e Augusta deixaram uma de suas filhas com a madrinha, a Léonie, “que
trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada” (cap.9, p.521). Apesar da vida
que Léonie levava, ninguém no cortiço sequer sugeria que o ambiente em que Juju
estava sendo criada fosse prejudicial à formação da menina. Ao contrário, Alexandre e a
mulher “adoravam-na, achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda em
suas roupas de espavento”(cap.9, p.521). Para ele, os céus haviam lhe enviado “o ideal
de madrinha” e tinham um “profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus
dera à filha”, pois assim o futuro da menina estaria garantido. Seria uma atitude
parecida com a de Jerônimo, pois ambos eram da opinião que sua responsabilidade era
zelar pelo bem dos filhos, e não necessariamente conviver com eles.
Jerônimo e Piedade, Alexandre e Augusta simplesmente pautavam uma visão
particular da responsabilidade paterna e materna. Para eles, a afeição baseava-se no
sentido de acompanhamento pessoal e íntimo das filhas, entregues a terceiros. O
reconhecimento da filiação parecia definir-se através do compadrio, ampliando assim as
relações da responsabilidade para além do casal.
De acordo com Cláudia Fonseca (apud DEL PRIORE), “apesar de a lei atribuir a
prioridade de pátrio poder aos genitores, outros membros da família consideravam-se
também com direitos.”(DEL PRIORE: 2004, p.537) Era prática corrente nas famílias
populares batizar os filhos duas ou três vezes, dando a eles dois ou três padrinhos,
criando-se uma coletivização” da responsabilidade pela criança. Percebe-se que havia
uma circulação das crianças entre vários adultos, sendo, de todos, a responsabilidade de
educá-las e criá-las. Segundo a autora, esse caráter quase imutável da identidade
familiar, sem dúvida, repercutia no comportamento materno e explica, em parte, a
tendência para colocar filhos com criadeiras, avós, madrinhas e pais de criação.
Jerônimo, que a princípio achara conveniente pôr a filha em um colégio interno,
muda completamente de opinião ao “abrasileirar-se”. Ele que queria ver “sua
morgadinha” longe das más influências do cortiço, pois naquele ambiente “corria o
risco de perder-se”, passa depois a achar que a filha já não precisava de colégio.
Piedade, que antes comungava com as idéias do marido, também não mal algum
que Marianita ao cortiço aos finais de semana, pois segundo ela, “só se perdia quem
55
mesmo já nascera para a perdição!” e citava como exemplo Pombinha, que apesar de ter
morado em um cortiço, achara noivo e vivia dignamente com o marido.
O pai amoroso e responsável, o homem sério, de bom caráter e puro,
transforma-se em um pai ausente e irresponsável, em um homem preguiçoso e amante
da bebida e do fumo, a ponto de trocar o amor da filha pelo amor de uma mulher; ele
que se tornara ausente, silencioso, despojado de todas as suas antigas prerrogativas, é
uma imagem caricatural da decadência paterna. A mãe dedicada e amorosa, por sua vez,
também se transforma em uma mulher “andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria”,
abandonando a filha à própria sorte. Ambos poderiam ser considerados pais indignos
por seu comportamento, uma vez que sua má conduta habitual e a embriaguez de ambas
as partes comprometeram a educação, a saúde e a moral da filha, que, desamparada,
certamente irá trilhar o caminho da prostituição.
3.3. AS RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE OS PERSONAGENS
No romance, a família restringe-se à mulher, marido e filhos. O triângulo
amoroso e, conseqüentemente, o adultério concentraram as tensões, simplificando a
trama para dar destaque à análise patológica das personagens. A hipocrisia, o cinismo e
a crueldade fazem parte do destino: a convivência educada vai ganhando dimensões de
falsidade e de sobrevivência individual, como é o caso de Miranda e Estela. A gratidão
dá lugar ao oportunismo e a uma ética dos mais espertos, como João Romão em relação
à Bertoleza. O amor deixou de estar sufocado na alcova e o casamento é ainda uma
escolha conveniente e passou a ser intencionalmente usado como degrau de ascensão
social Miranda/Estela, Pombinha/Costa, João Romão/Zulmira. As relações de favor,
que antes o impediam, agora são manipuladas para favorecê-lo. Exemplo concreto
dessas relações de favor diz respeito ao arranjo feito por Botelho para o casamento de
João Romão com Zulmira.
Entre as camadas pobres, a divisão dos papéis sociais obedeceu mais à
necessidade econômica do que ao preconceito sexual na distribuição de tarefas, ou seja,
56
não havia tarefas masculinas ou femininas, ambos revezavam-se nas atividades devido
às dificuldades pelas quais passavam. A transferência da chefia dos domicílios para a
mulher nos núcleos familiares simples tornou a atuação feminina tão mais importante
quanto mais íntima era a associação entre vida doméstica e trabalho produtivo.
Alexandre trabalhava e quando se encontrava em casa, ajudava a mulher no cuidado
com os filhos “... à noite, via-se o Alexandre, sempre muito circunspecto, a passear ao
comprido da varanda, acalentando uma criança, enquanto a mulher dentro de casa
cuidava das outras.” (cap.19, p.609) Apesar de ser um militar, ele não tinha uma atitude
machista, tão comum à classe; ao contrário, revezava-se com a mulher nos cuidados
com os filhos pequenos.
A situação de desamparo em que viviam muitas mães e filhos tinha, entre suas
causas, a ausência da figura do pai. As mulheres sofreram o maior ônus, que
realizavam seus afazeres na própria moradia, agora mais cara e com cômodos reduzidos.
desempenhavam os desvalorizados trabalhos domésticos, fundamentais na reposição
diária da força de trabalho de seus companheiros e filhos; bem como produziam para o
mercado, exercendo tarefas como lavadeiras, engomadeiras, amas de leite, doceiras,
bordadeiras, etc. Nessas moradias desenvolviam redes de solidariedade que garantiam a
sobrevivência de seus familiares. No cortiço, essa ajuda mútua era comum, seja na
lavagem das roupas ou nos arranjos da casa: “Não parou o trabalho. Pedi a Leocádia que
me esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco o que fazer ...” (cap.8, p.501) “E daí a
pouco apareciam ajudantes gratuitos para os arranjos do jantar, tanto do lado da das
Dores, como do lado da Rita.” (cap.7, p. 486); “De vez em quando, da janela de uma
das casas aparecia uma das moradoras, chamando a vizinha, para entregar um prato
cheio, permutando as duas entre si os quitutes e as petisqueiras em que eram mais
peritas.” (cap.7, p. 489)
A representatividade do trabalho feminino como única fonte de sustento é muito
presente no romance, uma vez que no Rio de Janeiro do século XIX, mulheres livres e
pobres lutavam para sobreviver. A maioria buscava uma complementação no orçamento
doméstico com algum tipo de trabalho. As lavadeiras do cortiço são o claro exemplo
desse universo feminino. Praticamente todas as moradoras exerciam essa atividade: “As
moradoras do cortiço tinham preferência; e não pagavam nada para lavar.” (cap.1, p.
452), sendo quase uma exigência sine qua non para morar na estalagem. Uma outra
forma de trabalho era o doméstico. Florinda e Leocádia passaram a trabalhar em casa de
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família, a primeira oferecendo-se de porta em porta para alugar-se de criada e, a
segunda, a se alugar como ama-seca.
As mulheres do cortiço, no entanto, embora exercendo a profissão de lavadeiras
com destreza e seriedade, não escapam das malhas deterministas da época. Algumas
delas não obtêm sucesso, tendo sua vida completamente virada ao avesso, como é o
caso da velha Marciana, que, ao ser abandonada pela filha, enlouquece e acaba
morrendo num hospício. Piedade, vista como uma pessoa que talvez não se deixasse
influenciar pela nova terra, tem sua vida completamente mudada, após ser abandonada
por Jerônimo, tornando-se alcoólatra e servindo de objeto sexual de muitos moradores
da estalagem:
Pobre mulher! Chegara ao extremo dos extremos. Coitada! Já não
causava dó, causava repugnância e nojo. Apagaram-se-lhe os
últimos vestígio do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e
sempre ébria, dessa embriaguez sombria e mórbida que se não
dissipa nunca. O seu quarto era o mais imundo e o pior de toda a
estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez,
aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz.
Agora, o menor trago de aguardente a punha logo pronta; acordava
todas as manhãs apatetada, muito triste, sem ânimo para viver esse
dia, mas era correr à garrafa e voltam-lhe as risadas frouxas, de
boca que já não se governa. (cap.22, p.628)
Segundo o narrador, o trabalho honesto e digno não dignifica tanto assim. Ele
não é suficiente para alçar as camadas populares a uma situação confortável. O que se
é justamente o contrário: a ascensão e a riqueza à custa de desonestidade e da
exploração dos mais humildes na figura de João Romão, numa clara alusão ao fato de
que somente os espertos se dão bem.
Pombinha, que das jovens do cortiço parece ser a única que recebeu uma
educação diferenciada, não voltada para o trabalho, é a mulher letrada que escreve
cartas e para os analfabetos, faz-lhe as contas, mas não aufere salários dessa prática,
exercendo-a mais como uma atitude solidária, fraterna, antes maternal do que
profissional:
Numa pequena mesa, [...] a menina escrevia, enquanto o dono
ou dona da carta ditava em voz alta o que queria mandar dizer
à família ou a algum mau devedor de roupa lavada. E ia
lançando tudo no papel, apenas com algumas ligeiras
modificações, para melhor exprimir a idéia. Pronta uma carta,
sobrescritava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro,
ficando a sós com um de cada vez, pois que nenhum deles
queria dar o seu recado em presença de mais ninguém senão de
Pombinha. De sorte que a pobre rapariga ia acumulando no seu
58
coração de donzela toda a súmula daquelas paixões e daqueles
ressentimentos, às vezes mais fétidos do que a evaporação de
um lameiro em dia de grande calor. (cap.6, p.486)
Esse ofício permitiu-lhe tomar contato com todas as dores de amor sofridas
pelos moradores da estalagem. Assim tornava-se ela detentora de todos os segredos e
principalmente das fraquezas masculinas, porque
depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas
entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve
olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas
davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal
como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de
súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava
e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como
que naquele instante o mundo inteiro se despia a sua vista, de
improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das
paixões. (cap.11, p. 555)
Essa personagem está representando a formação de uma classe intermediária em
uma sociedade escravista em que o trabalho, para o elemento branco, pobre e livre é
ainda muito precário. O trabalho e o saber intelectuais ainda não têm um valor preciso
no mercado, porque este ainda é incipiente, visto que poucos trabalhadores formais
livres e muitos escravos. Já a elite tinha acesso ao saber intelectual dentro dos
internatos, nas universidades européias e nas faculdades brasileiras, como é o caso de
Henrique, que viera fazer os cursos preparatórios para o ingresso na Faculdade de
Medicina, e de Zulmira, que recebera uma “educação de princesa”, pois tocava piano,
cantava, desenhava, falava francês e era muito boa mão de agulha – na verdade, Zulmira
estava sendo preparada para ser esposa, mãe e dama da sociedade, uma vez que reunia
todas as características inerentes à mulher honesta.
Apesar de algumas semelhanças entre as mulheres de classes sociais diferentes,
as mais pobres possuíam características próprias, com padrões específicos, ligados às
suas condições concretas de existência. Como era grande sua participação no “mercado”
de trabalho, embora mantidas numa posição subalterna, essas mulheres, na sua grande
maioria, não se adaptavam às características dadas como universais ao sexo feminino:
submissão, recato, delicadeza, fragilidade. Eram mulheres que trabalhavam bastante,
não eram casadas formalmente, brigavam na rua e falavam palavrões, fugindo, assim,
ao estereótipo de sexo frágil. O Código Penal, o complexo judiciário e a ação policial
eram os recursos utilizados pelo sistema de então para disciplinar, controlar e
estabelecer normas para as mulheres dos segmentos populares. Nesse sentido, tal ação
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procurava se fazer sentir na moderação da linguagem dessas mulheres, estimulando seus
“hábitos sadios” e as “boas maneiras”, reprimindo seus excessos verbais.
Mas os excessos dessas mulheres não se restringiam apenas ao vocabulário
muito mais solto do que o de suas contemporâneas burguesas e sim em todo o seu
comportamento, diverso dos valores higiênicos: tinham relações sexuais sem passarem
por um longo namoro e/ou noivado, saíam sós e voltavam tarde, não renunciavam ao
lazer nas ruas, não trocavam um amasiamento amoroso por um casamento formal.
As mulheres do cortiço enquadram-se nesse perfil, além de a maioria ter certa
liberdade de ações, pois eram livres de quaisquer normas comportamentais, amasiadas,
amantes das festas e pândegas. Na estalagem ocorriam várias discussões e brigas entre
elas. As pequenas rezingas entre as lavadeiras dos dois cortiços por questões de
freguesia de roupa também acirravam os ânimos dessas mulheres. Até mesmo a
portuguesa Piedade, sempre cordata e quieta, ao perceber que fora abandonada por
Jerônimo, decidiu “tomar satisfações” com a rival e vê-se envolvida em uma briga com
Rita Baiana, num típico “arranca-rabo” feminino, em que os palavrões e as ofensas
pessoais estão presentes:
- Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora
carregaste-me com ele! Que a coisa te saiba, cabra do inferno! Mas
deixa está que hás de amargar o que o diabo não quis! Quem to jura sou
eu!
- Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz!
[...]
Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos
seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a
pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a adversária
uma formidável pancada na cabeça.
E pegaram-se logo a unhas e dentes.
Por algum tempo lutaram de pé, engalfinhadas no meio da grande
algazarra dos circunstantes. João Romão acudiu e quis separá-las; todos
protestaram. [...] ... e estas, sem se desunharem, tinham já arranhões e
mordeduras por todo o busto.
Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se
Piedade de bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as
suas largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos,
desgrenhada, rota, ofegante, os cabelos caídos sobre a cara, gritando
vitoriosa, com a boca correndo sangue:
- Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te
meteres comigo! Toma, baiacu da praia! (cap.16, p. 588- grifos meus)
60
Rita chama Piedade de “baiacu da praia”, em referência a sua aparência, pois era
mulher de “largas ancas”, assemelhando-se a um baiacu, que infla quando se sente
ameaçado; denomina-a também de galinha podre” e “perua choca”, talvez pelo cheiro
azedo que exala de seu corpo. Piedade, por sua vez, chama Rita de “cabra do inferno”,
pois a mesma afirma que a mulata “maleficiou” o seu homem e o levou embora. Cabra,
aqui, tem a conotação de mulher lasciva, devassa, sendo também uma denominação de
prostituta e uma referência também à figura da mulher diabólica, que gosta de seduzir.
Segundo Sonia Brayner, essa conotação pejorativa dos animais referente ao sexo
feminino, nesse caso, perua ou galinha, representa índices de promiscuidade sexual e
rejeição comunitária. (1973: p.104)
Elas discutem e se agridem por vários motivos e entram também em conflito
com os companheiros e ex-companheiros, por insistirem que estes assumam uma atitude
responsável em relação à manutenção da família. Piedade novamente serve de
ilustração, uma vez que fora procurar o ex-marido para que este continuasse a pagar o
colégio da filha:
Tempos depois Senhorinha entregou à mãe uma conta de seis meses
da pensão do colégio, com uma carta em que a diretora negava-se a
conservar a menina, no caso que não liquidassem prontamente a
dívida. Piedade levou as mãos à cabeça: “pois o homem nem o
ensino da pequena queria dar?! Que lhe valesse Deus! Onde iria ela
fazer dinheiro para educar a filha?!”
Foi à procura do marido; sabia onde ele morava. Jerônimo recusou-
se, por vexame, mandou dizer que não estava em casa. Ela insistiu;
declarou que não arredaria dali sem lhe falar; disse em voz bem alta
que não ia lá por ele, mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa
do colégio; ia para saber que destino lhe havia de dar, porque agora a
pequena estava muito taluda para ser enjeitada na roda. (cap.19,
p.603)
As mulheres brigam, xingam, discutem. Ao contrário do que querem lhes
impingir, não são vadias, nem prostitutas; são donas de casa e es de família
trabalhadoras que se entregavam à defesa do que consideravam seus direitos, não
hesitando em assumir atitudes que se contraponham frontalmente aos estereótipos
previstos para o sexo feminino, que se pretendia imprimir também às mulheres das
classes populares. A partir desses exemplos, torna-se difícil sustentar para a mulher
características como recato e submissão, em decorrência de uma suposta “natureza
feminina”. Como se percebe, o comportamento das habitantes dos cortiços diferia muito
do esperado e era visto como desordeiro pelos juristas da época. Seus hábitos eram
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marginalizados, discriminados, punidos ou até mesmo tomados como patológicos, uma
vez que a mulher, segundo os médicos desse tempo, estaria mais próxima da loucura
que o homem.
Lombroso e Ferrero
20
afirmavam que as mulheres apresentariam manifestações
de degenerescência, isso como conseqüência de um defeito atávico imanente à natureza
de certas criaturas, o que as levaria à infringência da lei penal. Eles partiam das
características das mulheres que consideravam normais para analisar aquelas dadas
como desviantes e neste grupo se encaixavam as mulheres das classes populares,
confirmando a visão preconceituosa com que estas eram tradicionalmente focalizadas.
Sob a ótica desses autores, Rita Baiana seria uma representante de mulher
desviante, devido a sua tendência à vida aventureira, dissipada e ociosa, além de seu
exagerado erotismo. Para eles, mulheres dotadas de uma sensualidade intensa, com
sensibilidade sexual superior à das mulheres normais e dotadas de forte inteligência,
revelavam-se extremamente perigosas. Exemplo de mulher normal, para ambos, seria
Augusta Carne-Mole, sempre fecunda, e “de uma honestidade proverbial,” com sua
sexualidade atrelada à maternidade. A noção de mulher honesta estava vinculada à
noção de mãe ideal, ligada primordialmente à família. Frente a ela, as outras aparecem
como a desordem, aquelas que não realizam o ideal sexual do amor matrimonial e da
maternidade: as solteiras, as descasadas, as libertinas, as adúlteras, as prostitutas e as
apaixonadas – todas essas, cuja sexualidade não é direcionada para gerar filhos no
interior da família institucional. E, nesse rol, incluem-se, além de Rita, Estela, Florinda,
Leocádia, Léonie e Pombinha.
Ainda segundo os mesmos autores, as mulheres se adaptariam à poligamia
masculina por esse caráter de recato e submissão e, sendo assim, também seriam, por
extensão, monogâmicas, por não terem uma sexualidade tão intensa quanto à masculina.
Elas eram mães, eles machos. Dessa forma, as leis contra o adultério atingiriam a
mulher por esta ser natural e organicamente monógama e frígida, e o que se constituía
numa contravenção para o homem, tornar-se-ia para a mulher um crime muito grave
20
Cesare Lombroso, médico de formação, dedicou-se aos estudos sobre criminalidade, elaborando uma
teoria sobre a questão de grande influência, a partir dos últimos anos do século XIX e início do século
XX. Com relação à mulher, elaborou, com a colaboração de Guglielmo Ferrero, a obra La femme
criminelle et la prostituée, sobre a mulher criminosa e a prostituta na qual afirmam que as mulheres
evoluíram menos que os homens, sendo organicamente mais passivas e conservadoras devido à
imobilidade do óvulo comparada à mobilidade do espermatozóide. Explicavam assim sua menor
tendência ao crime sem levar em consideração as razões culturais. Citados por Rachel Soihet em
Condição feminina e formas de violência.
62
(SOIHET:1989) – ou seja, elas deveriam aceitar o adultério dos maridos, mas não
poderiam de maneira nenhuma incorrer na mesma falta. Esses argumentos só ratificam a
visão misógina e preconceituosa dos médicos e juristas de então.
A vizinhança e a parentela exerciam influência na vida das pessoas e impunham
certos tipos de comportamentos. O momento de um conflito por crime de defloramento
era a ocasião de mostrar aos demais grandes qualidades morais. Domingos, caixeiro de
João Romão, fora o protagonista de um fato que causou um grande alvoroço no cortiço:
o defloramento de Florinda. Por causa disso, toda a estalagem fora tomar satisfações
com o autor do delito:
Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que
a seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta
lateral da venda, berrou:
- Ó seu João Romão!
[...]
- Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar
conta dela!
[...]
- Foi o Domingos, disseram muitas vozes.
[..]
- Que fez você com esta pequena?
- Não fiz nada não, senhor!...
- Foi ele sim, desmentiu-o Florinda. O caixeiro desviou os olhos, para
a não encarar. Um dia, de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal,
debaixo das mangueiras...
[...]
- Então? Perguntou-lhe. O que tenciona fazer?
[...]
- Ora lixe-se! Resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera.
- Lixe-se não! ... Mais devagar com o andor! Vode casar: ela é
menor.
Essa frase provocou o efeito de um grito de guerra entre as lavadeiras,
que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação.
- Como não casa?
[...]
- Então ninguém pode mais contar com a honra de sua filha?
- Se não queria casar pra que fez mal? (cap.9, p. 517 a 519)
63
Percebe-se aqui que todo o cortiço tomou as dores de Marciana e Florinda, em
um exemplo claro da solidariedade entre vizinhos. Os conflitos tinham uma gica
própria de acordo com as regras que se estabeleciam no processo de tornar possível a
árdua luta pela sobrevivência. No caso de conflitos sexuais populares – defloramento ou
adultério a divulgação do primeiro, além de ser necessária para a apresentação de
testemunhas, fazia parte de uma politização do cotidiano manifestada de duas formas:
os indivíduos afetados prestavam conta à comunidade ou se posicionavam uns frente
aos outros em relação aos valores que permeavam a mesma comunidade.
As casas de cômodos abarrotadas e as pequenas casas das vilas permitiam que os
mínimos detalhes da vida alheia fossem partilhados. Ao ter confirmada, através de
Paula, a gravidez da filha, “Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou
a chave no seio e furiosa, caiu aos murros em cima da filha,” enquanto “o populacho,
curioso e alvoroçado, precipitou-se para o número 12, batendo na porta e ameaçando
entrar pela janela.” (cap.9, p.516) A impressão que se tem é a de que eles viviam em um
mundo, onde o outro era parte integrante do dia-a-dia e a privacidade não tinha muito
significado.
Nos casos ocorridos no romance o defloramento de Florinda e o flagrante de
adultério de Leocádia os fatos foram divulgados, talvez para conseguir alguma
legitimidade política ou pelo simples costume de lançar ao mundo seus problemas
íntimos. No caso de Florinda, mesmo empenhada na reparação, como a Machona, ou
indignada com o fato, como D. Isabel, o certo é que, passado o conflito, todos voltavam
a viver normalmente ou até que um novo conflito rebentasse. Pois, no dia seguinte, elas
já não se “mostravam tão indignadas como na véspera; umanoite rolada por cima do
escândalo bastava para tirar-lhe o mérito da novidade.” (cap.10, p.527)
No caso do flagrante de adultério de Leocádia, toda a vizinhança tomou
conhecimento do acontecido, uma vez que Bruno não fez questão de esconder o fato de
ter sido traído, como fizera Miranda, pois “fora direto ao cortiço narrar, a quem quisesse
ouvir, o que se acabava de dar.” (cap.8, p.507) Até os acontecimentos mais íntimos
eram também levados ao conhecimento de todos, como a menarca de Pombinha, em que
sua mãe “saiu ao pátio, apregoando aos quatro ventos a linda notícia”, e se não fosse
pela intervenção da filha, “teria passeado em triunfo a camisa ensangüentada para que
todos a vissem bem”. O cortiço compartilhou a alegria de D. Isabel e foi-lhe solidário:
“O fato abalou o coração do cortiço e as duas receberam parabéns e felicitações”. (cap.
64
11, p. 551) Esse fato, o da participação da vida íntima dos personagens, funciona como
determinismo, ou seja, uma força vigilante e envolvente, que toma conta de tudo.
O que se pode perceber é que o privado tornava-se público na estalagem. A
invasão da privacidade de todos, sem exceção, conferia aos moradores uma autoridade
sobre a vida de cada um, a ponto de todos considerarem-se um só. Em muitos
momentos, eles esqueciam suas desavenças particulares e formavam um todo coeso para
a defesa de um bem comum: “Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa
solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali
pela primeira vez” (cap. 10, p. 539) Os conflitos eram resolvidos dentro dos limites da
estalagem, não se permitindo a entrada de ninguém alheio à “comunidade”,
principalmente a polícia, pois
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que
penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício: à capa de
evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos,
quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma
questão de ódio velho. (cap.10, p. 539)
Convém lembrar que esse “ódio velho” se referia à instituição, não à figura do
policial, haja vista que no cortiço morava um, o “circunspecto” Alexandre, sendo ele
uma pessoa respeitada e muito querida por todos da estalagem. No dia seguinte à briga
entre Jerônimo e Firmo e a conseqüente invasão do cortiço pelos praças, João Romão
“teve de comparecer à presença do subdelegado na Secretaria de Polícia”. Fora
acompanhado de muitos moradores da estalagem, “quer por espírito de camaradagem,
quer por simples curiosidade”. (cap.11, p. 542) Apesar de o interrogatório ser dirigido a
João Romão, era respondido por todos. “Nenhum deles esclarecia e todos se queixavam
da polícia, exagerando as perdas recebidas na véspera.” (cap.11, p. 542)
Observe que o termo “terror” a medida do modus operandi da polícia junto
ao povo e a conseqüente reação deste mesmo povo. Este “terror” e as célebres “batidas”
têm sido uma tradição, cujos resultados sempre foram desastrosos. Esses são os motivos
que levaram os moradores da estalagem a evitar e até a repudiar a força policial.
Criou-se um código dentro do cortiço e por ele se morre, para não violá-lo: ninguém
apela à polícia, ninguém delata e aquele que o fizer ficará sujeito ao corredor da morte
ou ao banimento definitivo, uma vez que
“Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que
nenhum deles, e muito menos a vítima, seria capaz de apontar o
65
criminoso; tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia,
desceu da casa do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não
conseguiu arrancar deste o menor esclarecimento sobre o motivo da
navalhada. ‘Não fora nada! ... Não fora de propósito! ... Estavam a
brincar e sucedera aquilo!...Ninguém tivera a menor intenção de fazer-
lhe mossa!...’” (cap.11, p. 542)
A polícia demonstrava preocupação com os cortiços, considerando-os um mal
para a ordem pública, cenário de crimes e agitações, santuário de criminosos e escravos.
Possivelmente por este motivo, a presença dos policiais nesses lugares era considerada
uma desonra para os moradores. A instituição que deveria zelar pela ordem e proteger a
população representava a mais terrível ameaça. Nenhum respeito era devido à
inviolabilidade de suas moradias, que a qualquer momento e sob quaisquer pretextos,
podiam ser invadidas por “representantes” da ordem e da lei.
Apesar de haver divergências pessoais dentro dos muros da estalagem, fora dele,
todos eram um. Nas duas grandes brigas que aconteceram, as contendas deram lugar à
solidariedade: “Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito!
[...] Mas agora tratava de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar
por alguém ou alguma coisa querida” (cap.10, p. 539); no primeiro momento fora a
briga entre Jerônimo e Firmo, que resultou na navalhada no português, desferida por seu
desafeto e, em um segundo momento, a briga de Rita Baiana e Piedade, que fez o
cortiço dividir-se em duas facções os portugueses a favor de Piedade e os brasileiros
torcendo por Rita. Ao final não eram mais as duas que brigavam, mas “uns quarenta e
tantos homens de pulso.” A contenda foi interrompida pela chegada dos moradores do
cortiço rival:
E no melhor da luta, ouvia-se na rua um coro de vozes que se
aproximavam das bandas do ‘Cabeça-de-Gato’. Era o canto de guerra
dos capoeiras do outro cortiço que vinham dar batalha aos carapicus,
pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe da malta.
Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de
alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso,
sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente,
em busca de ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para
matar. Um só impulso os impelia a todos; não havia ali brasileiros e
portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido
contrário; os que se batiam ainda pouco emprestavam armas uns
aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas.”
(cap16, p. 599)
66
Em ambos os episódios, a alma coletiva falou mais alto que os interesses
individuais e as diferenças. E, a qualquer tentativa de intervenção policial, os moradores
deixavam de lado suas rezingas para se unirem contra o “inimigo” comum: a força
policial ou os moradores do cortiço vizinho. Defender o coletivo, nos dois
acontecimentos, era bem mais importante que defender a honra dos habitantes em
particular.
4. AS RELAÇÕES AFETIVAS E A ESFERA DA INTIMIDADE ENTRE OS
PERSONAGENS
A sedução representa o domínio do universo simbólico, ao passo que
o poder representa apenas o domínio do universo real.
Jean Baudrillard
Aluísio Azevedo trata das relações de afeto entre as personagens de forma
peculiar, sem deformar, mas anulando quaisquer sentimentos. O que em relação ao
amor é a materialização, sem complexidade psicológica. A união dos seres se pela
atração dos corpos, pela ganância ou por instintos patológicos. Segundo Sonia Brayner,
o que mantém o interesse do leitor são as relações emocionais contidas na obra e
despertadas pelas ações dos personagens da estalagem.
Por retratar outras relações e outros problemas além do erótico, O Cortiço
ganhou destaque entre os romances naturalistas. Falar de amor na obra de Aluísio
Azevedo aponta-nos a ambição, a escalada por posições sociais – como é o caso de João
Romão e do próprio Miranda e, principalmente, o envolvimento com a questão do
erotismo. Em se tratando de uma coletividade, a relação entre os casais, movida ora pelo
desejo, ora pela ambição, é indispensável para o desenvolvimento do romance e das
teses naturalistas apresentadas. No universo de O Cortiço, o egoísmo e o interesse
também aparecem como forças determinantes, chegando mesmo a subjugar as relações
afetivas.
67
Encontra-se, no romance, o amor/atração física, que é de acordo com a visão
naturalista um dos fenômenos inerentes ao homem. E o que importa é procurar ou
demonstrar a causa que determina o seu desenvolvimento; dessa forma estão
completamente abolidos o idealismo e a casualidade comuns dos românticos. O desejo e
a sensualidade que cercam os brasileiros tropicais Rita Baiana e Firmo são um dos
elementos desestruturadores do enredo. Ambos viviam uma relação entre idas e vindas,
em que o desejo desenfreado coexistia com a violência dos sentimentos de posse e
ciúme. Era uma união orgíaca, segundo Fromm, em que as paixões são violentas,
intensas e transitórias:
Aquela amigação com a Rita Baiana era coisa muito complicada e
vinha de longe.[...] ...ele tinha ‘paixa’ pela Rita, e ela, apesar de
volúvel como toda mestiça, não podia esquecê-lo por uma vez;
metia-se com outros, é certo, de quando em quando, e o Firmo então
pitava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-a de bofetadas,
mas, afinal, ia procurá-la, ou ela a ele, e ferravam-se de novo, cada
vez mais ardentes, como se aquelas rusgas constantes reforçassem o
combustível dos seus amores.(cap. 7, p.488)
A relação entre os dois, conforme Leonardo Mendes, é um bom exemplo da
franqueza e do despudor com que Aluísio Azevedo aborda a sexualidade no romance.
Firmo declara seus princípios: “...afogava-se uma boa pândega com a Rita Baiana. A
Rita ou outra. ‘O que o faltava por eram saias para ajudar um homem a cuspir o
cobre na boca do diabo!’” (cap.7, p. 488) Reforço da liberdade masculina, do direito de
trair e de envolver-se com mais de uma mulher ao mesmo tempo, sem contudo firmar
compromisso com nenhuma.
Firmo era muito ciumento, possessivo e não admitia traição por parte de Rita,
mesmo que ele se envolvesse com outras, Rita não poderia fazer o mesmo, estando
“amigada” com ele. Suas desconfianças nasceram no dia em que, após gazear o
trabalho, “foi -la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar com o
português”(cap.9, p. 515). A partir desse momento, Rita, percebendo a desconfiança do
amante, deliberou a prevenir Jerônimo, pois ela sabia do que Firmo era capaz sob a
influência do ciúme. Firmo e Rita viviam um amor confluente, não necessariamente
monogâmico no sentido da exclusividade sexual. Segundo Giddens (1992), o que
mantém o relacionamento nesse tipo de amor é a aceitação, por parte dos parceiros, de
que cada um obtenha da relação benefício suficiente que justifique a continuidade. A
exclusividade sexual tem um papel no relacionamento até o ponto em que os dois a
68
considerem desejável ou essencial. Sendo um amor forte, ativo e contingente, entra em
choque com as categorias do “para sempre” e “único”.
A união de Firmo e Rita é o oposto da união baseada na conformidade com o
grupo, seus costumes, práticas e crenças. (FROMM:1991), que correspondia à união de
Jerônimo e Piedade – calma, ditada pela rotina. É um amor ascético, sem paixão, gerado
na confiança e respeito mútuo, sem novidades, sobressaltos ou ironia, Nela, até os
sentimentos são prescritos: cordialidade, tolerância, lealdade, ambição e capacidade de
conviver com todos sem atritos. Uma união em que tudo é rotinizado – o passeio
dominical, as conversas, a música:
Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã, fazia antes
dos outros a sua lavagem à bacia do pátio, socava-se depois com uma
boa palangana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e
em mangas de camisa de riscado, [...] seguia para a pedreira.
[...] Jerônimo voltava à casa ao descair da tarde, morto de fome e
fadiga. A mulher preparava-lhes sempre para o jantar alguma comida
da terra deles. E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde,
gozavam os dois, ao lado um do outro, a paz felizes dos simples [...] E
defronte do candeeiro de querosene, conversavam sobre a sua vida e
sobre a sua Marianita.
[...] Depois, até as horas de dormir, que nunca passava das nove, ele
tomava a sua guitarra e ia pra defronte da porta, junto com a mulher,
dedilhar os fados de sua terra. (cap. 5, p.480/481 - grifos meus)
Jerônimo e sua mulher foram convidados para ambas as mesas, mas
não aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao
lado um do outro, tranquilamente como sempre, comendo em boa paz
o seu cozido à moda da terra e bebendo seu quartilho de verde pela
mesma infusa. (cap.5, p. 489 - grifos meus)
O uso da locução adverbial todos os dias, dos advérbios sempre e nunca e do
adjetivo mesma reforçam a tese defendida por Erich Fromm da união baseada na
conformidade.
21
Nada de mudanças, nada de novidades ou de sobressaltos em sua
vidinha monótona e simples. Piedade tinha por seu marido um amor irracional, como o
de um cão para com seu dono, de uma fidelidade cega. Em alguns trechos do romance o
narrador faz a comparação da portuguesa com esse animal:
Ela, porém, coitada! Fora assentar-se à beira da cama, humilde e
solícita, a suspirar, vivendo naquele instante, pura e exclusivamente,
para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade
21
Fromm questiona “Como poderia um homem apanhado nessa rede de rotina deixar de esquecer que é
um homem, um indivíduo único, alguém a quem só é dada esta oportunidade única de viver, com
esperanças e decepções, com tristezas e temores, com a ânsia de amar e o horror ao nada e à separação?
69
própria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta,
que nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as
intenções. (cap.8, p. 501)
E Piedade, assentada à soleira de sua porta, paciente e ululante como
um cão que espera pelo dono... (cap.16, p.585- grifos meus)
Piedade servia ao marido como uma escrava, pois vivia a vida dele. Observa-se
isso no uso dos adjetivos ratificadores desse amor canino. Como um o, humilde e
solícita, paciente e ululante ela recebia as migalhas de amor que o marido lhe dava. O
termo ululante reforça ainda mais a dor sentida pela portuguesa no tocante a esse
sentimento. Afirmava que, se o perdesse, não saberia o que fazer de sua vida, já que
viva a obedecer-lhe, pois qualquer desejo do marido, ela satisfazia, mesmo se o desejo
fosse algo feito pelas mãos da rival: O que me saberia bem agora era uma xicrinha de
café, mas queria-o bom como faz a Rita... Olha! Pede-lhe que o arranje” (cap.14, p.567)
O café da outra era bom, enquanto o da mulher não servia.
É a metamorfose do português, trocando os hábitos lusitanos pelos brasileiros.
De acordo com Leonardo Mendes, é o sol o responsável por toda essa transformação de
Jerônimo, assim como ele transforma a crisálida em borboleta, o astro rei lhe impõe,
através de um processo de sedução, um novo modo de vida: o futuro não importa mais;
o que vale é viver o presente, descobrir emoções novas, imprevistas e sedutoras. As
felicidades picantes e violentas que ele agora almeja são as alegrias do sexo, da bebida e
da comida. É uma nova vida, “vida de borboleta, frouxa, macunaímica, de pouco
trabalho e muito lazer.” (MENDES: 2000, p. 61) E como os hábitos alimentares são as
últimas barreiras das resistências culturais, quando Jerônimo reforma a mesa é que
ele se transforma por inteiro:
A revolução afinal foi completa: a aguardente de cana substituiu o
vinho; a farinha de mandioca sucedeu à broa; a carne seca e o feijão
preto ao bacalhau com batatas e cebolas cozidas; a pimenta malagueta
e a pimenta de cheiro invadiram vitoriosamente a sua mesa; o caldo
verde, a açorda e o caldo de unto foram repelidos pelos ruivos e
gostosos quitutes baianos, pela moqueca, pelo vatapá e pelo caruru; a
couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão de fubá ao
pão de rala e, desde que o café entrou a casa com seu aroma quente,
Jerônimo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a
fumar também com os amigos. (cap. 9, p. 511)
E Piedade, como mulher, pressentia que Jerônimo iria reformar a cama assim
como reformou a mesa, pois ele não a procurava mais para o matrimônio, e sim era ela a
70
provocá-lo quando sentia necessidade do marido. Ou seja, Jerônimo não a desejava, e
não pagava mais o “débito matrimonial”, chegando mesmo a dizer que a mulher exalava
mau cheiro: “Não te queria falar, mas... sabes? Deves tomar banho todos os dias e...
mudar de roupa... [...] É preciso trazer o corpo sempre lavado, que, ao senão, cheira-se
mal!” (cap.9, p.513)
A redução ao aspecto físico e a reiteração obsessiva do sexo substituem o
sentimento amoroso. Transformação essa que se devido à preocupação científica, ao
empirismo materialista e ao determinismo causal, herdados do estilo francês. Dessa
forma, verifica-se que o amor materialista é tão artificial quanto o romântico, uma vez
que segue prescrições ao substituir os sentimentos por instintos. Segundo Sonia
Brayner, a área semântica do sexo acha-se imagisticamente representada pelo signo
cobra, que através dos sentidos, principalmente da audição e visão, alerta para a tese do
determinismo ambiental. Rita é o termo de comparação, aparecendo como símbolo
sexual envolvente, sinuoso por natureza. “Veneno e prazer, voluptuosidade e morte são
constantes dessa simbologia”. (BRAYNER: 1973, p. 102) Lúcia Miguel-Pereira, em
relação à disparidade das abordagens das relações amorosas, em que figura mais o
campo sexual do que o sentimental, afirma que o
sexo, que dantes fora banido das narrativas, entrou a ocupar uma
posição exagerada, refletindo talvez uma mudança do ponto de vista
em relação às mulheres. O determinismo biológico então em voga e as
lições de Charcot sobre a histeria transformaram, efetivamente, em
fêmeas, os antigos anjos. Os estudos de temperamento desbancaram
os casos puramente sentimentais. Ao mesmo tempo em que penetrava
na fisiologia com Aluísio Azevedo e seus companheiros, e na
psicologia com Machado de Assis. (MIGUEL-PEREIRA: 1988)
A afetividade dos personagens é identificada às reações animais, de uma forma
indeterminada e a referência ao sexo/luxúria faz-se através de uma série de imagens
constantes. Animais como macaco, bode, égua, bestas e besta-fera fazem parte desse
imaginário descritivo:
A filha tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços
sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca.
(cap.3, p.464-
grifos meus)
[...]
...dir-se-ia que não era contra o marido que se revoltava, mas sim [...]
contra aquele sol crapuloso que fazia ferver no corpo luxúrias de
bode. (cap.16, p.585-grifos meus)
[...]
Ao passo que a outra [...] revoluteava, em corcovos de égua, bufando
e relinchando... (cap.11, p. 546-grifo meu)
[...]
... e trabalhadores de toda a espécie, um exército de bestas sensuais...
71
(cap.12, p. 556-grifos meus)
[...]
E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando.
(cap.15, p.581-grifo meu)
Em relação à animalização, Antonio Candido afirma que ela aparece como
redução voluntária natural, que nivela o homem ao bicho, enquanto organismos sujeitos
às leis decorrentes da sua estrutura. Segundo ele, “essa animalização efetuada
sistematicamente pelo narrador acarreta o uso de verbos que eram brutais para as
normas do tempo”, como o verbo emprenhar, empregado para designar a gravidez de
Florinda, ou mesmo as comparações que manifestam o intuito de rebaixamento, como o
pranto de Piedade, representado pelo “mugido gebre” de “uma vaca chamando ao
longe”. Seria a animalidade geral, que todos os habitantes do cortiço eram vistos
como “machos e fêmeas”, manifestando “o prazer animal de existir”. (CANDIDO:
1998, p.145)
Aluísio Azevedo sabe que esta é uma fórmula eficaz de manter o leitor atento: é
necessário despertar emoções que o puro discurso científico não despertaria. O eixo da
ligação amorosa está, na verdade, na relação entre Jerônimo/Rita e Rita/Firmo. O
português, quando do enamoramento por Rita, não demonstrava interesse algum por
sua mulher, “Coitada, resmungou depois, muito boa criatura mas...[...]... confesso não
encontro nela umas tantas coisas que desejava...” (cap.14, p.568) e Firmo, na verdade,
exerce sobre Rita um domínio de medo e de sensualidade, mas não propriamente amor.
A mulata, “no íntimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amara-o a princípio por
afinidade de temperamento, pela irresistível conexão do instinto luxurioso e canalha que
predominava em ambos...” (cap.14,p.568) momentos em que todos,
indiscriminadamente, são arrastados pelos impulsos, agindo de forma passional.
Veja o que ocorre entre Estela e Miranda: sabe-se que os dois se odeiam, bem
como o motivo do ódio, razão pela qual dormem separados. Miranda, que era um
“homem de sangue esperto”, uma noite, tomado por instintos sexuais mais fortes que
ele, foi ter ao quarto da esposa, “pé ante pé” como se fosse um ladrão. Estela percebe e
finge dormir, recebe-o, entrega-se “dormindo”. E o ato, que deveria ser de amor ou
paixão, aparece como um ato automatizado, transformando o casal em objeto mecânico
qualquer, e a mulher movimentando-se “sem a menor consciência de tudo aquilo”.
O sexo é resumido na mais sórdida e degradante ironia através do anafórico
“aquilo”, o homem a torpe ser e a mulher num simples depósito sexual. Miranda dizia
72
que se servia da mulher com se serve de uma escarradeira e Estela, por sua vez, sabia
que “o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia mais cedo ou
mais tarde, de procurá-la de novo”, (cap.1,p.446) pois ela conhecendo-lhe o
temperamento, sabia que Miranda era “forte para desejar e fraco para resistir ao desejo”.
Daí a um mês, acometido de um novo acesso de luxúria, Miranda procura pela esposa e
o resultado não poderia ser pior:
“Estela recebeu-o desta vez como da primeira fingindo que não
acordava; na ocasião, porém, em que ele se apoderava dela
febrilmente, a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra
o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O pobre diabo
desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se brusco, num
estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência. A mulher
percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir-lhe; passou-lhe
rápido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com
uma metralhada de beijos.”(cap.1, p. 447)
Estabeleceu-se entre eles o que se poderia chamar de “felicidade sexual” e
“durante dez anos viveram muito bem casados”. De acordo com o narrador, se estavam
bem sexualmente, estavam “bem casados”; reforçando a idéia de que o sexo era muito
importante em uma união. O ato acanalhava a ambos, pelas circunstâncias em que
acontecia e pelos sentimentos que os (des)unia: ódio, ressentimento, repugnância moral
e um profundo desprezo.
Mas tanto tempo depois da primeira infidelidade conjugal, Estela “parecia
disposta a reincidir a culpa, dando corda aos caixeiros do marido” (cap.1, p.447). O
narrador ressalta que Miranda já não era mais acometido tão freqüentemente por aquelas
crises que o levavam fora de hora ao dormitório da esposa, sugerindo que esse seria o
principal motivo de Estela trair o marido: a falta de sexo. Essa tese é ratificada pela voz
de Botelho, quando sugere a Henrique que “escove” muito bem a mulher do
comerciante, pois
...no fim das contas, nas circunstâncias em que se encontrava D.
Estela, era até um grande serviço o que ele lhe fazia. Quando uma
mulher passou dos trinta e pilha de jeito um rapazito de sua idade, é
como se descobrisse ouro em pó! Sobe-lhe as gaitas! Fique então
sabendo que não é a ela que você faz o obséquio, mas também ao
marido: quanto mais escovar-lhe a mulher, melhor ela ficará de nio,
e por conseguinte, melhor será para o pobre homem, coitado! [...]
Escove-a, escove-a! Que a porá macia que nem veludo! (cap.2, p. 460)
A referência à histeria feminina aparece aqui na figura de Estela. As
“circunstâncias” de que Botelho fala é a falta de sexo por causa do marido, o que a
punha nervosa, pois, de acordo com os médicos da época, o mal histérico se
73
circunscrevia predominantemente ao âmbito da ausência de relações sexuais ou à
prática delas sem a finalidade procriadora, os chamados “desvios sexuais”. Eles
atribuíam a sua causa à continência ou à retenção da matéria espermática sem que
houvesse a efetivação da fecundação. (ENGEL, In DEL PRIORE: 2004) Sem sexo em
casa, Estela buscá-lo-ia fora dos seus aposentos, primeiro com os caixeiros, depois com
Henrique.
Segundo Friedrich Engels, o adultério é o embrião do amor sexual, que este
não respeita os limites impostos pela sociedade. Ele diferencia o amor sexual do desejo
sexual, a que denomina o eros dos antigos”. O amor sexual representava para ele a
reciprocidade do amor por parte do ser amado, pondo em partes iguais a mulher e o
homem. No eros, entretanto, a mulher raramente era consultada; segundo, “porque o
amor sexual atinge um grau de intensidade e de duração que transforma em grande
infelicidade, para os amantes, a falta de relações íntimas ou a separação”, uma vez que
“para se entregarem mutuamente, não recuam diante de coisa alguma e arriscam até as
próprias vidas.”(ENGELS:1991, p.83) Rita e Jerônimo vivenciam este amor sexual,
pois
Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional
e empírico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o trágico
incidente da luta, em que o português fora vítima. Jerônimo aureolou-
se aos olhos dela com uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que
ama; cresceu com aquela navalhada; iluminou-se com o seu próprio
sangue derramado e depois, a ausência no hospital veio a completar a
cristalização do seu prestígio, como se o cavouqueiro houvera baixado
à sepultura, arrastando atrás de si a saudade dos que choravam.
Entretanto o mesmo fenômeno se operava no espírito de Jerônimo
com relação a Rita; arriscar espontaneamente a vida por alguém é
aceitar um compromisso de ternura, em que empenhamos alma e
coração; a mulher por quem fazemos tamanho sacrifício ; seja ela
quem for, assume um vôo em nossa fantasia as proporções de um
ideal.
[...]
A mulata bem que o compreendeu, mas não teve ânimo de confessar-
lhe que também morria de amores por ele; receou prejudicá-lo. Agora,
com aquela loucura de faltar à entrevista justamente no dia em que
Jerônimo voltava à estalagem, a situação parecia muito melindrosa.
Firmo, desesperado com a ausência dela, embebedava-se naturalmente
e vinha ao cortiço provocar o cavouqueiro; a briga rebentaria de novo,
fatal para um dos dois, se é que não seria para ambos. (cap.15,
p.578/579)
74
O amor de Jerônimo pela mulata nasce de uma contemplação: bastou vê-la
dançar para que o português a desejasse para si. Quando a viu, Jerônimo intimamente
sentiu que a mulata era “a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida
que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos,
acordando-lhe as fibras embambecidas...”(cap.7, p. 498) Mais uma vez a imagem da
cobra aparece como sinônimo de feitiço, encantamento; já a lagarta é viscosa, gruda na
pele, enquanto a muriçoca doida atiça-lhe os desejos. No dia seguinte à dança de Rita,
Jerônimo caiu doente e a mulata, benfazeja e solícita, veio ajudá-lo a se curar com uma
“fumegante palangana de café com parati”, líquidos que fizeram uma verdadeira
revolução no corpo e no coração do português, despertando-lhe os sentidos.
Convém ressaltar que o café misturado à cachaça se apresenta como um signo
duplo de brasilidade, equiparando duas bebidas historicamente associadas ao Brasil. A
mistura dessas duas bebidas em contraste com o chá preto que Rita denominou de
“água morna” representaria também a insípida e morna relação de Jerônimo e
Piedade, cujo “cheiro azedo do corpo” ele nota pela primeira vez, em oposição aos
“eflúvios de manjerona” e cheiro de almíscar exalados pelo corpo da mulata.
Dessa forma, “... um desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desensofrida
de senhorear-se no mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira, devorá-la num
hausto de luxúria, trincá-la como um caju.” (cap.8, p.504). Percebe-se que todos os
sentidos de Jerônimo estão acesos: visão, audição, tato, olfato e paladar. Rita, por sua
vez, ciente de sua sensualidade e do impacto que causara em Jerônimo, não perdia a
oportunidade de seduzi-lo, atiçando o desejo do português, a desconfiança em Piedade e
o ciúme em Firmo:
Mas não era a portuguesa quem se mordia com o descaimento do
Jerônimo para a mulata, era também o Firmo, havia muito que este
andava com a pulga atrás da orelha e quando, passava perto do
cavouqueiro, olhava-o atravessado. (cap.9, p.515)
[...]
Mas pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de
derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo,
requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte
dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido.
Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual.
[...] E no meio da grande roda, iluminados amplamente pelo capitoso
luar de abril, os dois homens perfilados, defronte um do outro,
olhavam-se em desafio. (cap.10, p.536)
75
Esse tipo de amor, também analisado por Anthony Giddens, é denominado de
amour-passion
22
, que é expressão de uma conexão genérica entre o amor e a ligação
sexual. Ele arranca o indivíduo das atividades mundanas e gera uma propensão às
opções radicais e aos sacrifícios. Foi o que ocorreu com Jerônimo em relação à Rita,
uma vez que o amor da mulata exigiu provas e sacrifícios. O cavouqueiro teve de
enfrentar o rival e por extensão a morte para que Rita ficasse enternecida. A mulata
olhava a briga a certa distância, de braços cruzados, medindo o tamanho da coragem do
português, e conseqüentemente, o amor que ele sentia por ela. Para Firmo, o que estava
posto em questão era sua honra, não o amor de Rita: para o português, era o amor da
mulata que estava em jogo. Ela parecia indiferente à contenda, pois tinha um ligeiro
sorriso nos lábios e parecia gostar de ver dois homens digladiarem-se por sua causa.
Pode-se aqui comparar Rita Baiana a Salomé, uma vez que ambas exibem o poder
diabólico da sedução feminina através da dança. Elas mostram encanto e graça como as
piores armadilhas do demônio. Ao enfeitiçar Jerônimo com sua dança luxuriosa,
mostra-lhe primeiro o caminho da perdição e em seguida a escalada ao céu, pois pela
mulata, Jerônimo daria “uma perna ao demo”. O ligeiro sorriso encrespando-lhe os
lábios é a confirmação de seu sadismo erótico, que ela era “feita toda de pecado e
toda de paraíso” antítese que reforça a volubilidade de Rita.
Durante a disputa, ao contrário dos demais, ela não se mostrava assustada, mas
sim cativa “a semelhante dedicação ensangüentada e dolorosa”. Após a briga, ao
contrário de Piedade que só chorava, Rita
mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi ela
quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao médico
e quem serviu de enfermeira ao doente. [...] Desde que Jerônimo se
achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade,
aflita e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se.
A mulata, esta não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda
expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se
àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele
Hércules tranqüilo que mataria o Firmo com uma punhalada, mas que,
na sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. (cap.11, p.543)
De acordo com Leonardo Mendes, ao se referir ao amante como facínora, Rita
estava fazendo sua opção: estava trocando de companheiro porque assim desejavam
seu coração e seu corpo, o que confirmaria o seu estado de mulher independente, adepta
22
O termo é de Sthendal, utilizado por Antony Giddens em seu livro A transformação da intimidade.
76
ao amor livre. Para ela, ninguém é obrigado a ficar com ninguém, pois no amor não
deve haver amarras.
A atração do português pela mulata, a tendência para o adultério, a sensualidade,
tudo é causado pela tropicalidade brasileira. Aluísio Azevedo segue a cosmovisão
determinista de Hippolyte Taine. O envolvimento crescente de Jerônimo por Rita
significa para a economia da obra o determinismo do meio tropical sobre a frieza do
europeu, a adaptação deste à nova cultura, o seu “abrasileiramento”. Rita é o elemento
desagregador entre Jerônimo e Piedade e é a metáfora do país que seduz com seus
perfumes e seus mistérios. A impregnação tropical da mulata origina o desenvolvimento
do processo de adaptação do português imigrante à cultura brasileira. As características
dominantes do personagem são superadas pela força do ambiente. (BRAYNER:1973)
De acordo com a estética naturalista, o amor espiritual existe quando ele se
reduz a uma expressão violenta dos instintos. Não individualidade no Naturalismo:
as emoções e reações da coletividade são fruto da fraqueza humana em geral, e não de
encantamentos particulares. Para representar tais emoções são criados “tipos”, evitando
assim que se caia em qualquer visão particularizante, entrando em cena a mulata
sensual, a moça ingênua que se transforma em prostituta, o português inescrupuloso e
ambicioso, a esposa infiel e, claro, o marido traído.
Diferentemente do Romantismo, cuja visão do amor tem um caráter de redenção,
percebe-se que, mesmo imbuído de um caráter vital, o “amor” naturalista não é
redentor. Pelo contrário, levou Jerônimo a arriscar sua vida ao envolver-se em uma
briga e a transformá-lo em um assassino, preguiçoso e descumpridor de suas
obrigações; quanto à Piedade, levou-a a desvios de conduta, como a leviandade, o
desmazelo e o alcoolismo. Teorias como a do filósofo francês Hippolyte Taine segundo
a qual o homem é produto da raça, do meio e do momento, estavam em voga no século
XIX, gerando uma visão mecanicista das leis físicas e morais do universo. A decadência
social e afetiva de Jerônimo e Piedade é enquadrada nesses princípios. Toda a honradez
e a dignidade que trouxeram, perderam-se por força de convivência no cortiço. Tanto
Jerônimo quanto Piedade desistiram de seus princípios e de seu caráter ele por amor
de uma mulher; ela pela ausência do amor de um homem.
Quanto ao casal João Romão e Bertoleza, encontramos um acordo comercial ao
invés de uma relação afetiva. Em nenhum momento ela aparece como objeto de desejo
ou veículo de sensualidade. A relação entre ambos foge a qualquer classificação
77
sentimental/amorosa. Entre João Romão e Bertoleza, o exercício sexual dá-se por pura
necessidade e não instituição que una as duas personagens: trata-se apenas de
exploração. A união dos dois representa a lógica capitalista, que a cafuza serviu a ele
como degrau na fase em que São Romão ainda era o cortiço. Ao saber das pretensões de
João Romão de casar-se com a filha do Miranda, Bertoleza reivindica seus direitos:
- Mas afinal que diabos queres tu?
- Ora essa, quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois
ganhamos juntos! Quero a minha parte no que fizemos com o nosso
trabalho. Quero o meu regalo, como você quer o seu!
- Mas não vês que isso é um disparate? ...Tu não te conheces? ...Eu te
estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras!
Descansa que nada te de faltar!... Tinha graça, com efeito, que
ficássemos vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento!
- Ah, agora não me enxergo! Agora eu não presto pra nada! Porém,
quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu
corpo e agüentar a sua casa com o meu trabalho! (cap.21, p.622)
Com a ascensão da estalagem para a avenida e o já certo casamento com
Zulmira, o papel da negra foi dispensado, assim como as primitivas noventa e cinco
casinhas.” Aqui, o egoísmo aparece como um elemento que anula qualquer
sentimentalismo. João Romão se preocupa com sua ascensão social e a sua união
com Bertoleza tem sentido enquanto ela serve de instrumento à realização de seus
objetivos. Ao representar “ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada
e de amante” (cap.1, p.443), ela era utilizada como força de trabalho e válvula de
escape para seus instintos sexuais. Pouco a pouco, deixou de ser amante para ser apenas
sua escrava, e, quando passou de auxílio a empecilho, ele a descartou, deixando-a
“abandonada como a uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a
viagem.” (cap. 13, p.560)
o desejo de João Romão de se casar com a filha do Miranda é oriundo apenas
da ambição de galgar a uma classe social superior à sua e aumentar ainda mais sua
fortuna:
Mas, com lembrar-se da sua união com aquela brasileirinha fina e
aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava-se defronte da
desensofrida avidez da sua vaidade. Em primeiro lugar fazia-se
membro de uma família tradicionalmente orgulhosa, como era, dito
por todos, a de Dona Estela; em segundo lugar aumentava
consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que era rica, e
em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o que o Miranda
78
possuía, realizando-se deste modo um velho sonho que o vendeiro
afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez que de
dentro, associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como
quem não quer a coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o
lugar e fazer de si um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no
Brasil; depois quando o barco estivesse navegando ao largo a todo
pano tome lá uns pares de contos de réis e passe-me para o título
de Visconde!
Sim, sim, Visconde! Por que não? E mais tarde, com certeza, Conde!
Eram favas contadas! (cap. 21, p. 615)
Percebe-se, portanto, que, tanto na união informal com Bertoleza, quanto na
perspectiva de casar-se com a filha do Miranda, João Romão, como personagem
tipicamente naturalista, exclui qualquer relação afetiva, visando apenas enriquecer, no
primeiro caso, e ascender socialmente, no segundo.
4.1. AS UNIÕES FORMAIS: O CASAMENTO
Na época vitoriana, o casamento passou por várias transformações, e por que
não dizer, adaptações culturais, “deixando de ser visto como remédio à concupiscência,
alternativa à danação para os incontinentes, única forma de conjugação adequada a fim
de conter a volúpia e, com esta última, a desordem,” (VAINFAS:1977, p.25) para
tornar-se uma prática com a valorização do vínculo conjugal, onde o ato sexual só será
aceito quando estiver livre do prazer. Assim, a única relação suscetível de escapar ao
pecado é aquela em que os cônjuges empreendem e conduzem a uma boa finalidade
procriadora.
Como em muitas culturas ocidentais, não era o amor principalmente uma
experiência pessoal, espontânea, que a seguir pudesse levar ao casamento. Ao contrário,
o casamento se contratava por convenção ou pelas famílias respectivas, ou por um
agente matrimonial, ou sem o auxílio desses intermediários. Consumava-se na base das
considerações sociais e julgava-se que o amor se desenvolveria depois de consumado o
casamento.
79
A escolha social do cônjuge constituiu também o objeto de estratégia que
ocupava o centro das atenções das famílias, uma vez que o casamento era uma
negociação, conduzida pelos parentes, pelos amigos, pelos próximos. A homogamia e
até a endogamia eram tendências consolidadas em todos os meios regionais e sociais,
explicadas pelas formas de sociabilidade: a pessoa se casava com alguém semelhante a
ela, e também pelo fato de conhecer e conviver principalmente com indivíduos
parecidos com ela mesma. Nos meios burgueses, a homogamia era praxe, pois o
casamento era ditado por interesses familiares e de empresas. Havia um verdadeiro
cruzamento de sobrenomes consangüíneos, que a circulação de bens devia ocorrer
numa mesma família: era a chamada economia de “troca”. Com o desenvolvimento das
cidades, os casamentos realizados fora das quatro paredes aumentaram de forma
considerável, pois o convívio com pessoas diferentes rompeu com as regras dos
costumes.
Desde o fim do século XVIII, o casamento por inclinação não cessou de ganhar
terreno até se tornar uma das mais comuns motivações do casamento do século XX.
Pouco a pouco, os pais foram excluídos das escolhas matrimoniais. O novo modelo de
casamento erigiu como dogma a autonomia do casal. Qualquer tentativa de ingerência
era considerada como um atentado à liberdade individual.
No seu percurso de adaptação social, o matrimônio viveu entre os séculos XIX e
XX um processo de reestruturação dos direitos concedidos ao esposo. É, por assim
dizer, que o contrato de casamento, enquanto código de escravidão da mulher de todas
as cores, remodelou-se a partir de uma nova dimensão dada ao papel da mulher dentro
da sociedade. Assim, seguindo uma influência mecânica dos preceitos capitalistas, esta
mesma sociedade emancipou o casamento para um contrato de trabalho conjugal,
submetendo, diferentemente, a mulher, à condição de escravo civil, isto é, lavar, passar,
cozinhar, cuidar dos filhos, da casa e do marido, se dar, mesmo sem ter nada a receber,
viver quase que num sistema de aviamento, acumulando uma conta de juros altíssimos
que jamais se pagaria. Logo, mesmo concebendo a existência de um novo quadro
conjugal e social, que se dizer, que as relações de poder entre os cônjuges tiveram
pouca alternância e minimização, continuando a descrever durante o século XX a
mesma assimetria de outrora: dominação x subordinação.
80
Entre as elites brancas, no Brasil de oitocentos, os matrimônios eram, sobretudo,
atos sociais de grande importância. Comerciantes portugueses passam a ter acesso às
famílias tradicionais através do matrimônio, o que lhes “propiciava uma rápida
integração na família da noiva e também na esfera de influência política e econômica do
sogro”. (SAMARA: 1983, p.44) Foi através do casamento com Estela que Miranda
conseguiu montar sua casa comercial com o dote que a mulher trouxera e começou a
fazer parte da sociedade fluminense, e posteriormente comprar um título de barão, pois
Dona Estela tinha “fumaças de nobreza”, além de que “uma mulher naquelas condições
[...] representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente
despreza”. (cap.2, p.458)
Ambos viviam um casamento de aparências, pois a união deles dera-se seguindo
as regras do mercantilismo, que, de acordo com Goode (1970), “o processo de
escolha do cônjuge funcionava basicamente como um sistema de mercado”. Ele acentua
que “todos os sistemas de seleção do cônjuge tendem a realizar casamentos
homogâmicos como resultado do processo de barganha.” (p. 86) Seria também por esse
motivo o casamento de Zulmira e João Romão. Além do mais, a moral burguesa vigente
na época não via com bons olhos uma mulher solteira ou descasada, e o casamento era a
única forma de impor respeito na sociedade e Estela tinha consciência desse fato:
- Voquer saber? Afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste
do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me como a
primeira camisa que vesti! Desgraçadamente, para nós, mulheres da
sociedade, não podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de
forma que tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele
quer não goste. (cap. 2, p.458)
Mesmo não suportando o “traste” do marido, Estela aturava-o, confessando,
ainda, que sabe o quanto ele a detesta; e isso para ela não faz a mínima importância.
Percebe-se na fala da personagem, que ela não tivera outra opção, e que o casamento era
uma loteria, pois ter marido bom ou ruim era uma questão de sorte.
A difusão do amor romântico foi um fator que tendeu a libertar o vínculo
conjugal de laços de parentesco mais amplos e proporcionou-lhe um significado
especial. Maridos e esposas eram vistos cada vez mais como “colaboradores em um
empreendimento emocional conjunto”, este tendo primazia até mesmo sobre suas
obrigações com os filhos. Quase todas as uniões presentes no romance advêm de um
compromisso maior, resultantes de afetos entre os pares, tendo como exceções os casais
81
Miranda /Estela, João Romão/Bertoleza e posteriormente, João Romão/Zulmira, cujas
uniões aconteceram por outros interesses que não os afetivos.
Em relação aos casamentos formais, apenas a referência ao de Miranda e
Estela, cuja união se dera à base das relações comercias; Augusta Carne-Mole e o
circunspecto Alexandre, que segundo Augusta, casaram por amor; os pares Jerônimo e
Piedade e por fim, Pombinha e Costa. De todos os casais cujas uniões foram formais,
apenas o casal Augusta e Alexandre levava uma vida em comum respeitosa e calma. Os
demais tinham sérios problemas de relacionamento. O casamento de Miranda e Estela
era uma farsa, pois ambos odiavam-se, estavam juntos apenas pelas aparências, uma vez
que o Miranda “prezava, acima de tudo, sua posição social” (cap.1, p.445) e Estela, por
sua vez, sabia da importância do casamento em uma sociedade cujos valores eram
medidos pelo estado civil. O casal Jerônimo e Piedade, ambos portugueses, também
eram casados, mas Piedade fora abandonada pelo marido quando Rita entrou na vida do
português e passou a ser uma mulher em que “se apagara os últimos vestígios de brio.”
(cap. 22, p.628) Pombinha tentou manter-se honesta, mas não suportando o marido,
resolve levar outra vida. Percebe-se, portanto, uma crítica ao casamento formal,
pressupondo-se que, para ser feliz em uma união, não havia a necessidade de a mesma
ser sacramentada pela Igreja, pois o que contava mesmo eram os interesses em comum.
O casamento de Pombinha, o único que ocorre dentro do enredo, aconteceu
poucos dias após sua menarca, e toda a estalagem estava em rebuliço naquele dia, e a
cerimônia aconteceria ao meio-dia, na Igreja de São João Batista. Foi um casamento
tradicional, com rosas, cortejo, vestido branco, véu e grinalda de flores de laranjeira:
“Toda esta formalidade embatucava os circunstantes, que se alinhavam imóveis
defronte ao número 15, com as mãos cruzadas atrás.” (cap. 12, p.557) Pombinha surgiu
à porta de casa, “de véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda”. Estava pronta para
desferir o grande vôo, de pomba tornar-se-ia, dois anos depois uma ave de rapina.
Abençoada por todos, que sorriam felizes “por vê-la feliz e em um caminho da posição
que lhe cometia na sociedade”. (cap. 12, p.557) Caminho esse que fora trilhado através
dos requisitos do namoro burguês. Assim como Zulmira, Pombinha não fora criada para
o trabalho, e sim para o matrimônio. Seu noivo, o Costa, a “conhecia desde pequenita” e
freqüentava a casa de D. Isabel algum tempo, tendo firmado um compromisso de
casamento com a menina. Após sua primeira menstruação, Pombinha estava enfim
pronta para as núpcias e
82
O noivo ia agora visitá-la, invariavelmente, todas, todas as noites;
chegava sempre às sete horas e demorava-se ate às dez; davam-lhe
café numa xícara especial, de porcelana; às vezes jogavam a bisca, e
ele mandava buscar de sua algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e
ficavam a conversar os três, casa qual defronte do seu copo, a respeito
os projetos de felicidade comum.[...] Fixado o dia do casamento, o
assunto inalterável da conversa era o enxoval da noiva e a casinha que
o Costa preparava para a lua-de-mel. Iriam os três morar juntos;
teriam uma cozinheira e uma criada que lavasse e engomasse. (cap.12,
p. 553/554)
Aluísio Azevedo faz uma alusão ao namoro burguês; vigiados de perto pela mãe
da noiva, que “ao lado deles, toscanejava do meio para o fim da visita, traçando cruzes
na boca e afugentando os bocejos...”. (cap.12, p.557) Pombinha e o noivo apenas
conversavam na sala, nunca ficavam a sós. O Costa era “muito respeitador” e “muito
bom rapaz”, e não iria macular a honra da noiva, uma vez que ele deixava-se cair numa
pasmaceira, a olhá-la embevecido. Passavam o tempo a jogar, a conversar e a fazer
planos. As tristezas e as dificuldades ficariam no passado, pois com o casamento de
Pombinha, D. Isabel retornaria à vida que tinha antes de o marido suicidar-se. Teria,
afinal, uma casa decente e criados para os arranjos domésticos. Na opinião de Engels,
nove de dez casos de adultério feminino devia-se ao noivado prolongado; sendo isso,
segundo o autor, uma escola preparatória para a infidelidade conjugal e esta regra se
aplicou à Pombinha.
Zulmira, antes do compromisso acordado entre sua família e João Romão,
tinha namoros de janela, como afiançaram os moradores do cortiço. “O namoro de
Zulmira era com um rapazola magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe
rondava a casa à noite e às vezes de madrugada” (cap.12, p.495) e que, segundo
Alexandre, “a coisa não passava de namorico de janela pra rua”; que o rapaz fala muito
em casamento e a pequena o quer. Porém ele critica o fato de o rapaz não entrar no
sobrado, pois, para ele, se o rapaz queria “casar com a menina, devia entender com a
família e não estar agora daqui debaixo a fazer-lhe fosquinha.” (cap.12, p.495) o
namoro de Zulmira com João Romão seguiu todos os passos do namoro da elite, com
várias fases e gradações, que iam da troca dos primeiros sinais de interesse mútuo até o
pedido formal de casamento. Botelho, em conversa com João Romão segreda-lhe que
percebeu o interesse do português pela menina, sendo esta a primeira fase; em seguida,
passou-se à exploração das possibilidades de aproximação através de um intermediário,
o que é realizado pelo próprio Botelho; depois à associação deliberada ou namoro em
83
sentido exato, quando João Romão começa a freqüentar o sobrado do Miranda para
cortejar Zulmira, e por fim, o compromisso formal com o pedido de noivado e a
confirmação do casamento, dada pelos pais de Zulmira.
Além da crítica ao namoro burguês, ainda a crítica ao casamento arranjado,
uma forma de união muito comum na sociedade burguesa da época. Para os moradores,
casamento com amor. Esse discurso é reforçado nas vozes de Augusta e Ana das
Dores que criticam as uniões estabelecidas à revelia dos nubentes. Augusta assevera que
filha sua “só se casará com quem ela bem quiser; que isto de casamentos empurrados à
força acabam sempre desgraçando tanto a mulher quanto ao homem!” (cap.6, p.484),
conclui dizendo que seu marido é negro e pobre, mas que é feliz, porque casou por
amor. Ana das Dores, por ter sofrido violência doméstica por parte de seu marido,
largara-o para viver com outro. Ao presenciar Bruno estapeando a mulher, Ana das
Dores lembra que o marido de Leocádia é tão brutal como o dela o fora.
Os higienistas
23
e juristas do século XIX procuram demonstrar a “missão
sagrada” atribuída à mulher e sua vocação natural de procriação. Através de argumentos
os mais variados, mas especialmente de cunho moral, este discurso pretende fundar um
novo modelo normativo de feminilidade e convencer a mulher de que deve corresponder
a ele. Tudo o que ela tem de fazer é compreender a importância de sua missão,
encarnando o papel sagrado de esposa/mãe. Se a mulher não conseguisse realizar a
tempo o “seu destino biológico”, que era o de casar e o de ter filhos, era considerada
uma mulher deficiente.
4.2. AS UNIÕES INFORMAIS: O CONCUBINATO
No século XIX, uma grande parcela da população aderia às uniões ilegítimas,
apresentando certa resistência aos apelos da Igreja em sacramentar essas relações. Isso
23
Segundo os higienistas, definindo o amor como paixão, pretendia-se reduzi-lo a um fenômeno
manipulável pelas técnicas médicas. O amor higiênico era aquele formalizado no casamento, tendo como
objetivo a procriação e conseqüente criação dos filhos. FREIRE, Jurandir Costa. In Ordem médica e
norma familiar, p. 65.
84
acontecia principalmente nas camadas mais pobres, em que a escolha do cônjuge
obedecia a critérios bem menos seletivos e preconceituosos. Os concubinatos, como
opções reais da vida conjunta, não exigiam a virgindade como condição fundamental.
Para os populares do Rio de Janeiro, isso não era considerado imoral. As moças
brancas, mas pobres, sem dotes e sem casamento, abandonavam os sobrenomes de
família para viver em concubinatos discretos, usando apenas os primeiros nomes.
Assim, concubinas, mães solteiras ou filhas ilegítimas viviam em sua maioria no
anonimato. No cortiço, a maioria das mulheres vivia dessa forma: Ana das Dores “fora
casada e largara o marido para meter-se com um homem do comércio; e que este,
retirando-se para a terra e não querendo soltá-la ao desamparo, deixara o sócio em seu
lugar.’’ (cap.3 ,p.463) Rita também era amigada com Firmo e adepta do amor livre, sua
concepção de casamento fica claro neste trecho
- Mas por que não te metes tu logo por uma vez com o Firmo? Por que
não te casas com ele?
- Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai. Casar?
Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior do que o
diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre!
Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu! (cap.6,
p.484)
[...]
Rita fingia não ligar importância ao fato e continuava a lavar à sua
tina: “não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que agüentassem!
Ela estava bem livre de sofrer uma daquelas”. (cap.8, p.508)
Para Rita, casar era transformar-se em escrava, pois casada, a mulher passava a
“pertencer” ao marido e a ele só. Qualquer interpretação equivocada de conduta real
ou suposta era severamente punida. Para ela, amasiar-se era bem mais cômodo, uma
vez que estaria livre para deixar a pessoa quando a paixão arrefecesse. E foi o que fez,
quando percebeu que não tinha tanto “amor” por Firmo. Sem coragem para dizer a
verdade ao capoeira, Rita começou a mudar o seu comportamento. A mulata já não era a
mesma para ele, pois “apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente” Nos
encontros com o amante, chegava sempre atrasada “e sua primeira frase era pra dizer
que tinha pressa e não podia demorar-se.”(cap.14, p.565) Dessa forma “azedavam-se
[...] as suas entrevistas e as poucas horas que os dois tinham para o amor” (cap.14,
p.567) Essa transformação da amante acendeu as dúvidas e reacendeu os ciúmes em
Firmo e ele jurou vingar-se dela e do Jerônimo, pois tempos que sentia Rita de
“vento mudado.”
85
Florinda, por sua vez, para escapar da violência da mãe, depois do escândalo de
seu defloramento, resolve fugir de casa. Sua vida, a partir desse fato, constituiu-se numa
série de amigamentos:
- Como vais tu, Florinda?
[...]
- Ah! Disse o Pataca, estás amigada? Bom...
- Sempre estive!
E ela então, muito expansiva com sua folga daquele domingo e com o
seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugiu da estalagem,
ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em construção na
Travessa da Passagem, e que no seguinte oferecendo-se de porta em
porta, para alugar-se de criada ou de ama-seca, encontrou um velho
solteiro e agimbado que a tomou ao seu serviço e mete-se com ela.
(...) Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a chamá-
la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara do velho.
- Estás agora com o da venda?
Não. O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento
marceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo
trouxera da casa do outro e deixando-a com a roupa do corpo e
ainda doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera
com semelhante peste. O Bento tomara-a então à sua conta e ela,
graças a Deus, por enquanto não tinha razões de queixa. (c\p.15,
p.574)
[...]
Florinda, metida agora com um despachante de estrada de ferro,
voltara para São Romão e trazia a sua casinha em muito bonito de
limpeza e arranjo. (cap.22, p.635- grifos meus)
Convém ressaltar aqui que Florinda também era mulata, e, assim como Rita,
trazia no sangue a propalada volubilidade da raça mestiça. Então seria de se esperar que
ela, igual a sua amiga, não se sujeitasse a maus tratos e trocasse de parceiros da mesma
maneira. Ela “puxara os feitios da Rita Baiana” nos pagodes e na inconstância de seus
amores.
Já em relação à Rita, sua liberdade advém de sua sensualidade, de saber explorar
para manter cativos os homens, evitando cair na armadilha do casamento. O estereótipo
da libertinagem da mestiça, de seus amores cálidos, ardentes, serve ao escritor para
mostrar que a mulher de cor desempenha um papel importante na aculturação do
imigrante, no caso o português. Rita também é estranha ao padrão de comportamento
feminino do século XIX; além de toda sensualidade, certa promiscuidade, tanto são
os amantes que a mulata coleciona no decorrer de sua vida. “Paixões de Rita! Uma por
ano, não contando as miúdas!” (cap.6, p.484) Parece ser um tipo de mulher à parte na
86
sociedade, pois é independente e amoral, não sendo condenada por isso; ao contrário, é
muito querida por todos da estalagem que buscam justificativas para seu
comportamento boêmio:
Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a
respeito da Rita Baiana.
- É doida mesmo!... censurava Augusta. Meter-se na pândega sem dar
conta da roupa que lhe entregaram... Assim de ficar sem um
freguês...
- Aquela não endireita mais!...Cada vez fica até mais assanhada!...
Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver,
aparecendo pagode, vai tudo pro lado! Olhe o que saiu o ano passado
com a festa da Penha!...
[...]
Ainda assim não é má criatura... Tirante o defeito da vadiagem...
Bom coração ela tem, até demais, que não guarda um vintém pro dia
de amanhã. (cap. 3, p.468)
Rita é a representação de uma mulher à frente de suas contemporâneas, pois é
adepta do amor livre, descompromissado, sem amarras civis, apenas afetivas. Mesmo
quando estava com Jerônimo, ela dissera que se ele “quisesse voltar para junto da
mulher, que voltasse!” que “ela não o prenderia, porque amor não era obrigado.” (cap.
19, p. 607) Para ela, somente é válida uma união conjugal que se estabelece livremente,
independente dos interesses econômicos ou das obrigações sociais. É pela voz de Rita
que Aluísio Azevedo critica o casamento. Segundo o autor, amor livre é a plena
liberdade de amar e não a forma hipócrita da união em que o homem e a mulher ligados
indissoluvelmente pelo casamento são obrigados pelo preconceito a suportarem-se com
enjôo, como é o caso de Miranda e Estela, em que “cada qual sentia pelo outro um
profundo desprezo, que pouco a pouco foi se transformando em repugnância completa.”
(cap.1, p.445)
Rita escolhia seus parceiros, e como ela mesma dizia, era fiel àqueles que
escolhia, pois quando estava com um, não olhava para outro. Aluísio Azevedo retrata a
mulata como uma mulher volúvel, e isso é confirmado com a rapidez com ela muda de
discurso e mesmo “amigada” com Firmo, insinua-se para Jerônimo: “E ela, consciente
do feitiço, que lhe punha, ainda mais se requebrava, dando-lhe embigadas ou fingindo
que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia.” (cap. 12, p. 514) De acordo
com Roger Bastide, a mulata guarda as características da mulher branca, “com o
acréscimo desta pontinha de fogo, dessa lascívia atraente que lhe o sangue negro”.
87
No meio caminho cromático entre a branca e a negra, a mulata concentra o exotismo das
negras sem carregar as desvantagens estéticas atribuídas às brancas. A cor da pele serve
para despertar a sensualidade, sugerindo atrativos que seriam inacessíveis às mulheres
brancas.
Atribui-se à mulata uma “superexcitação sexual”, que faria dela uma anormal.
Gilberto Freyre defende a idéia de que “o senso popular continua acreditando na mulata
diabólica, super-excitada por natureza e não pelas circunstâncias sociais que quase
sempre a rodeiam, estimulando-a às aventuras do amor físico como a nenhuma mulher
de raça pura” (FREYRE:1998, p.602) Desse modo, ela é procurada pelos que desejam
colher do amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum:
O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas,
enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata
era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões
americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e
onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes. (cap. 15, p. 578)
Não diferindo de outros autores, Aluísio Azevedo confere à mulher mestiça – no
caso a mulata – a sensualidade e a lascividade. Na definição de Florinda, Aluísio
enfatiza essas características, pois a garota, aos quinze anos, tinha “a pele de um
moreno trigueiro, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca.” (cap.3,
p.464.) No próprio biotipo, a mulher mulata ou mestiça era apontada como sedutora.
As mulheres brasileiras, por causa do clima quente, estavam sujeitas a uma depravação
física e moral, que não se encontrava nos países europeus. Gilberto Freyre ratifica a tese
das “imposições mesológicas”, como as “do ar mole, grosso, morno, que cedo nos
parece dispor aos chamegos de todo esforço persistente. Impossível negar-se a ação do
clima sobre a moral sexual das sociedades”, (FREYRE:1964, p.565) e Jerônimo foi sua
principal vítima, uma vez que “adquiria desejos, tomava gosto pelos prazeres, e volvia-
se preguiçoso...”(cap.9, p.511)
A liberdade sexual das mulheres populares parece confirmar a idéia de que o
controle intenso da sexualidade feminina estava vinculado ao regime de propriedade
privada. Ainda era corrente o pensamento de que a mulher era um patrimônio masculino
e que ele podia dispor dela como quisesse. No Brasil do século XIX, o casamento era
boa opção para uma parcela ínfima da população que procurava unir os interesses da
elite branca e era para a classe dominante, a única via legitimada de união entre um
88
homem e uma mulher, e esta preocupação com o casamento crescia na proporção dos
interesses patrimoniais a zelar.
As camadas populares tinham o seu próprio modo de vida familiar. A Igreja
tentava combater as uniões consensuais por admitir que o casamento era o único lugar
da concupiscência, onde o desejo e a carne poderiam viver devidamente domesticados
pela finalidade suprema da propagação da espécie. Para a Igreja, o vínculo conjugal, sua
indissolubilidade e estabilidade afastariam a luxúria dos casais, vivendo estas relações
de obrigação recíproca de uma sexualidade disciplinada sob a vigilância da ordem cristã
e dos padres, através dos confessionários.
O alto custo das despesas matrimoniais era um dos fatores que levavam as
camadas mais pobres da população a preferirem as uniões livres ao casamento, que no
século XIX era dispendioso devido à burocracia. O fato é que no seio dos populares o
casamento formal não era preponderante. Cláudia Fonseca constata que as pesquisas da
época mostram que a união livre e a figura da mulher como chefe de família não eram
de forma alguma privilégio exclusivo de escravos e seus descendentes. Na sociedade
brasileira, especialmente no século XIX, eram os matrimônios, e não a concubinagem,
que se realizavam num círculo limitado. Desse modo, multiplicavam-se as relações
livres e consensuais à margem do controle da Igreja, e o concubinato
24
se constituiu na
relação familiar típica das camadas populares, sendo esse o “sacramento" dos pobres, a
forma de união conjugal própria aos desfavorecidos, constituindo-se até, de certa forma,
uma resistência à Igreja e ao casamento oficial distante do amor e próximos dos
interesses patrimoniais familiares. À mulher pobre caberiam então duas alternativas: a
transgressão declarada concubinato ou prostituição ou o aquartelamento na prisão
construída pelo projeto moralizador: o casamento. Ela seria “domada” pelo casamento
ou prostituída pela ordem social e pela sanção popular negativa.
A homogamia e a endogamia estão presentes no romance analisado. Jerônimo e
Piedade, unidos pelo sagrado matrimônio são exemplo de homogamia, que ambos
eram portugueses, pertencentes à mesma “raça”. João Romão, quando passou a almejar
um casamento, buscou alguém da mesma classe social, uma brasileira branca e
aristocrática, a pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados” que
drasticamente contrastava com a crioula “feia, gasta, imunda, repugnante, com o
24
Por concubinato entende-se todo o amplo conjunto de relações conjugais estabelecidas à margem do
sacramento do matrimônio. No período colonial era também chamado de mancebia ou amancebamento.
89
coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz.” Miranda, que
antes odiava João Romão por ser um tipo miserável, um sujo que “não pusera nunca um
paletó”, agora era um homem digno de ser seu futuro genro, transformando “a primitiva
inveja” em “um entusiasmo ilimitado e cego”; isso confirma a tese de Gilberto Freyre
de que “os pais nobres, no maior número dos casos, não queriam saber de casamento
senão entre iguais étnica, social e economicamente.” (FREYRE: 1971) Nesta mudança
de opinião a respeito de João Romão, Miranda demonstra quão fúteis e falsas são as
relações pessoais, e como o jogo de aparências e interesses fala mais alto do que
quaisquer diferenças raciais.
A exogamia se verifica com as uniões de Jerônimo e Rita Baiana ele branco
europeu, ela mulata brasileira e João Romão e Bertoleza outro europeu e uma
escrava cafuza. Segundo a teoria determinista em vigor por esse tempo, essas uniões
representariam a busca de uma raça superior. Rita preferiu o português ao mulato
brasileiro, pois “desde que Jerônimo propendeu para ela, [...] o sangue de mestiça
reclamou seus direitos de apuração de raça superior.” (cap.14, p.578); da mesma forma
agiu Bertoleza quando João Romão propôs “morarem juntos, ela concordou de braços
abertos, feliz em meter-se de novo com um português”; porque, como toda cafuza, ela
“não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça
superior à sua.” (cap. 1, p. 442)
Aluísio Azevedo e vários outros escritores e críticos que faziam parte da elite
intelectual brasileira no século XIX aceitavam como verdadeiras as teorias européias
que pregavam a superioridade racial dos brancos. Acreditavam ainda que a população
negra era responsável pelo atraso do país. A preocupação maior, assim, girava em torno
de uma possível solução para o problema da predominância do sangue africano e da
miscigenação em território brasileiro. Os evolucionistas, por sua vez, consideravam a
raça fator primordial de desenvolvimento e não hesitaram em concluir que a população
negra e mista estava condenando o Brasil ao subdesenvolvimento. A única saída seria
purificar a população com o branqueamento.
Em relação às uniões entre homens brancos e mulheres negras, percebe-se que se
tornava muito mais fácil para o homem branco, senão mais econômico, aproveitar-se
das mulheres que não podiam exigir dele compromissos formais, mas lhe ofereciam os
mesmos “serviços” que uma esposa branca e de família. João Romão e Bertoleza,
“quando deram fé estavam amigados.” No caso em que alguma das ligações entre
90
homem branco e escrava, que era comum no século XIX, se prolongasse e o senhor, ao
atingir idade mais avançada e haver consolidado sua situação econômica, não saísse em
busca de uma esposa branca e jovem, os filhos mulatos seriam os seus únicos herdeiros.
João Romão tinha ciência desse fato e se alegrava por não ter tido filhos com a cafuza,
pois eles seriam mais um entrave ao seu projeto de casamento: “Ainda bem que não
tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera a Bertoleza nas duas vezes em que
esta se sentiu grávida! (cap.13, p. 565). Era um problema a menos, uma vez que o
proprietário do cortiço não tinha ânimo para dividir o que era seu, nem mesmo tomando
esposa e fazendo família.
O concubinato, portanto, seria no século XIX, uma relação estável semelhante
ao casamento, pela durabilidade, pela presença dos filhos, pelo respeito mútuo e pela
manutenção dos papéis sociais de marido/esposa e pai/mãe. Casamento e concubinato
eram, à época, faces da mesma moeda. Não é possível compreender as diversas formas
de amasiamento praticadas no Brasil sem antes atentar para o valor social que o
casamento tinha naquela sociedade.
4.3. A ESFERA DA INTIMIDADE: O ADULTÉRIO
A literatura, como forma de representação de uma época, permite examinar
discursos que exprimem redes de relações, maneiras como se entretecem e, em alguns
casos, compreender por que e como estas redes se formaram. Admite, assim, uma
interpretação proveniente de uma justaposição de dados, de uma equiparação de saberes
e julgamentos sobre a família do século XIX como um núcleo de tendência
monogâmica, conjugal, contendo sexualidades múltiplas e móveis, dirigidas para seu
interior e, muitas vezes, seu exterior.
Contemporaneamente, o amor à família é considerado como sentimento
incorporado a uma instituição social, tanto nas relações do casal formador, como nas
relações entre gerações. Contudo, as representações do século XIX, tomadas da
literatura de Aluísio Azevedo põem em dúvida ou confirmam em muitos casos a
impossibilidade de lidar em conjunto com o amor e a família. O sentimento amoroso
nos é apresentado como variável e indefinido, não servindo para alicerce de um grupo
91
de longa duração como a família. Sendo assim, não se encontram na obra indícios
suficientes para a recuperação dos sentimentos subjacentes à sua formação, manutenção
e dissolução.
Pouco mudava o destino de um casal o fato de ser casado ou não. Apesar de a
grande maioria das mulheres do cortiço não contrair casamento formal, ele se afigurava
como um valor. crítica às mulheres que possuem determinados comportamentos,
como o de trair o marido. Augusta recriminava o comportamento de Leocádia, “sem
conceber como havia mulheres que procuravam homem tendo um que lhes pertencia.”
(cap. 8, p. 507). Encontramos ainda mulheres casadas que abandonaram o lar e caíram
em franca e aberta prostituição como Pombinha e outras que, mesmo não sendo
casadas, viviam honestamente com o amásio, como Ana das Dores. Rita, por sua vez,
colecionava amantes, transitava entre um romance e outro, já que para ela, amor não era
uma obrigação.
Na ausência de bens materiais a serem partilhados, pode-se inferir que nas
camadas populares, carinho e amor são aspectos relevantes nas uniões. Os padrões de
moralidade eram mais flexíveis e havia pouco ou quase nada a dividir. Entre ricos, a
condição a que estava sujeita a mulher, com estreitas oportunidades de vida social,
dificultava a participação na escolha do par. Se uma mulher não conseguisse realizar a
tempo o seu “destino biológico’’, que era o de casar e ter filhos, recebia o estigma de
“solteirona”, sendo considerada uma mulher deficiente. Foi assim com Estela e agora
com Zulmira cujo casamento fora intermediado pelo Botelho. O alvo das críticas do
autor não é o casamento em si, mas as armações por trás deste: a conveniência, a
ascendência social, a caça de dotes, os adultérios frutos, quase sempre, da infelicidade
ocasionada por esses arranjos” matrimoniais e a conivência da Igreja, que a despeito
de todas estas evidências, pregava o “até que a morte os separe.” Essa crítica velada
aparece em rios trechos do romance, na voz de personagens femininas, como Rita
Baiana que pregava o amor livre Ana das Dores e Augusta, que acreditavam em
uniões baseadas no amor.
É difícil falar em amor quando a personagem é multidão, coletividade. Dessa
forma, o sentimental, o psicológico e o individual perdem terreno para o sociológico, o
coletivo. O Cortiço é, das obras naturalistas brasileiras, uma das que menos tende a
centralizar-se nos casos patológicos limitados à alcova. Neste romance os
temperamentos doentios não estão condicionados apenas pelo sexo, mas também pela
92
ambição desmedida que não reconhece qualquer barreira ética. Diferente de outros em
que os instintos sexuais depravados tornam-se o tema único e obsessivo das obras,
como A carne, de Júlio Ribeiro e O mulato, do próprio Aluísio Azevedo.
O desmoronamento do amor é a tendência dominante do Naturalismo. Se no
romantismo casavam-se as almas, no Naturalismo casam-se os corpos, havendo a fusão
material em contraposição à fusão espiritual. Os anjos transformam-se em fêmeas. A
união dos seres se pela atração dos corpos, pela ganância ou por instintos
patológicos.
Modernamente define-se o adultério como a conjunção carnal do homem com
uma mulher, implicando violação da conjugal por parte de qualquer um deles, ou de
ambos. Entretanto, é interessante considerar a visão de alguns teóricos, a maioria
atribuindo o delito ao sexo feminino, excluindo quase por completo qualquer
movimento de culpa relacionado ao sexo masculino. Entra-se, então, na questão da
desigualdade de condições entre os sexos. Como se pode observar, ao marido ficava
resguardado um poder, capaz de oprimir e castrar os desejos da mulher. Enquanto o
homem possui todos os direitos de viver irrestritamente a sua sexualidade podendo
desfrutar de várias relações ilícitas fora de seu casamento, à mulher cabia somente
obedecer ao seu amo e senhor.
O tema da traição, tão caro à literatura romântica e às narrativas
machadianas, mostra-se importante também no desenvolvimento do enredo de O
Cortiço e na pretensão do autor de comprovar as teses científicas da época através deste
mundo narrado que é sua obra. Em se tratando de relacionamentos extraconjugais,
salientam-se as personagens Estela, Leocádia e Pombinha. Todas foram flagradas em
adultério por seus maridos, mas somente a primeira continuou casada, pois Miranda
mostrou-se covarde diante da infidelidade da esposa temendo um escândalo. Nesse caso
o que ele temia era chegar aos ouvidos da sociedade o motivo da separação, pois era
muito vergonhoso para um homem ser passado para trás. A mulher, se praticasse o
adultério, dava ao marido sanções públicas para sua expulsão de casa, bem como para a
extinção de suas obrigações contratuais, isto é, dava-lhe o direito de requerer e obter a
dissolução do matrimônio. Na verdade, esta era uma das formas mais comuns de
obtenção do divórcio naquele período. Como ele mesmo dissera, o seu desejo era de
“mandá-la para o diabo junto com o cúmplice, mas a sua casa comercial garantia-se
93
com o dote que ela trouxera.”(cap. 1, p. 445), ou seja, era o dinheiro de Estela que o
mantinha unido a ela, e não qualquer afeto.
o ferreiro Bruno, no flagrante delito do adultério da esposa, tratou logo de
resolver a questão através das ofensas acompanhadas de violência física:
- Com quem te esfregavas tu, sua vaca? Bradou ele, a botar os bofes
pela boca.
E antes que ela respondesse, já uma formidável punhalada a fazia
rolar por terra.
Leocádia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de
bofetadas e pontapés que acabou de amarrar as saias.
- Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia!
[...]
E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu
desarmara num fecha-fecha.
[...]
- Pois você não esta galinha, que apanhei hoje com a boca na
botija, não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?! (cap. 8, p.507/
509-grifos meus)
O termo biraia, pejorativo para prostituta, mostra muito bem o conceito que
Bruno tinha da esposa no momento do flagrante, já que ela o chama de “corno”.
O flagrante de adultério era previsto por alguns moradores da estalagem, pois
Leocádia, além de ter uma “fama terrível de leviana entre suas vizinhas”, já dera
indícios de que iria, mais cedo, ou mais tarde, praticar tal ato. Um dos comentários era o
de que “aquilo tinha de acontecer mais hoje mais amanhã!”, que um belo dia a casa
vinha abaixo, pois a Leocádia parecia não desejar senão isso mesmo!” De
comportamento repreensível para uma mulher casada, um dia antes do flagrante, na casa
de Rita, Leocádia, “lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés sobre os de
Porfiro, roçando as pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capadócio,”
depois, aproveitando que o marido “roncava no lugar em que tinha jantado, [...] passara
livremente a perna para cima do Porfiro, que a abraçava, bebendo parati aos
cálices.”(cap. 5, p. 490)
Leocádia, mesmo sendo flagrada por Bruno, à frente dos vizinhos, nega o fato e
diz que ele quer apenas um motivo para pedir a separação: “É mentira! Repetiu
Leocádia, agora sucumbida por uma reação de lágrimas. Há muito tempo que este
malvado anda caçando pretexto para romper comigo e como não lho dou...” (cap.8, p.
510), pois dentre os motivos arrolados para a separação entre os casais estava – e ainda
94
está o adultério, que este opunha-se às noções de fidelidade, de coabitação e de
ajuda mútua, princípios reguladores do casamento e do equilíbrio do ambiente familiar
interno, uma vez que o homem ou a mulher, quando adúlteros, rompiam o equilíbrio e
violavam a honra conjugal.
O comportamento adúltero era tido como uma doença ou uma manifestação
maléfica. Para os dicos de então, havia uma ligação entre a doença e as qualidades
naturais da mulher: sensibilidade, emocionalidade e sentimentalismo. Aquelas que não
se encaixassem nesses parâmetros teriam grandes chances de tornarem-se histéricas.
Mulheres que, como Leocádia, manifestavam um comportamento ativo, expressando
sua sexualidade e seu desejo com todas as letras, que tinham paixão por outros homens
que não o marido ou seja o adultério eram consideradas anormais pela medicina e
portanto, mais propensas ao histerismo. Augusta achava que o assanhamento de
Leocádia por homem não era maldade dela, “mas sim praga de algum boca do diabo que
a quis e a pobrezinha o deixou.” (cap. 19, p. 609) Depois que ela pediu a um padre
um pouco de água benta e se benzeu em certos lugares, o fogo havia desaparecido e
vivia ela direita e séria com Bruno. Segundo Del Priore
Num cenário em que a doença e culpa se misturavam, o corpo
feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja católica quanto por
médicos, como um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo
se digladiavam. Qualquer doença, qualquer mazela que atacasse uma
mulher, era interpretada como um indício da ira celestial contra
pecados cometidos, ou então era diagnosticada como sinal demoníaco
ou feitiço diabólico. (PRIORE: 2004, p.78)
Bruno e Leocádia reconciliaram-se, chorando ambos e ela decidiu retornar à
estalagem para morar com o marido e agora fazia-se muito séria e ameaçava com
pancada a quem lhe propunha brejeirices” (cap. 9, p. 609) Mas sabia-se que Leocádia,
mesmo depois de perdoada e recebida de volta por Bruno, “dava ainda muito o que
fazer ao corpo sem o concurso do marido”, (cap. 9, p. 609) no entanto agora estava mais
discreta e ambos viviam na santa paz.
Pombinha, como as demais, também fora flagrada em adultério por seu marido,
mas diferente de Miranda, que não quis separar-se da esposa por temer um escândalo e
de Bruno, que fez um escândalo da traição de Leocádia – estapeou-a, mandou-a embora
e depois pediu que ela voltasse a viver com ele Costa, apesar de ainda amar muito
Pombinha, quando “teve a dura certeza de que era traído pela esposa”, rompeu com ela,
95
entregou-a à e e fugiu para São Paulo, fugindo também de uma possível recaída,
como aconteceu com Miranda e Bruno. Preferiu ficar longe da esposa a sofrer com sua
infidelidade. Pombinha bem que tentara manter-se honesta no casamento, mas ao “fim
dos seus primeiros dois anos de casada não podia suportar o marido”. Fora buscar
fora do casamento um homem que fosse completamente diferente do Costa, “um
boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira”, e depois um artista dramático,
que muitas vezes arrancara do marido “sinceras lágrimas de comoção, declamando no
teatro em honra da moral triunfante e estigmatizando o adultério com a retórica mais
veemente e ajuizada.” (cap. 22, p. 626) O comportamento adúltero de Pombinha não era
novidade para sua e, pois D. Isabel “sabia não desta última falcatrua da filha, mas
das outras primeiras” e tentou em vão convencer Pombinha a arrepender-se e a mudar
de conduta, chegando a interceder pela filha junto ao genro, pedindo-lhe que
“esquecesse o passado e voltasse para junto de sua mulher”, apelo que não foi atendido.
(cap.22, p.626)
Pombinha sabia que seu casamento estaria fadado ao fracasso, e não
dissolveu o ajuste por causa de sua mãe, pois às vésperas da cerimônia, ela sentia
repugnância em dar-se ao noivo. Pombinha amava o luxo e as artes; tinha afeição por
tudo que era grande, belo e arrojado. Para ela, era um sacrifício fingir interesse pelo que
o marido fazia e dizia, por sua vida estreita de comerciante rotineiro. Ela desejava
alargar-se e mesmo antes do casamento, “pressentiu que nunca daria de si ao marido
que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que nunca o respeitaria
sinceramente [...] que nunca lhe devotaria entusiasmo e por conseguinte nunca lhe teria
amor” (cap. 11, p. 556) Para Pombinha,
Costa era como os outros, passivo e resignado, aceitando a existência
que lhe impunham as circunstâncias, sem ideais próprios, sem
temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambição sem vícios
trágicos, sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal que
viera ao mundo para propagar a espécie; um pobre-diabo enfim que
a adorava cegamente e que mais tarde, com ou sem razão, derramaria
aquelas mesmas lágrimas, ridículas e vergonhosas...(cap. 11, p. 556)
As lágrimas a que Pombinha se referia eram as derramadas por Bruno, que
apesar da traição da esposa, pedia para que ela voltasse, esquecendo tudo e perdoando-a.
A partir desse fato, encarando as lágrimas do ferreiro, Pombinha “compreendeu e
avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, [...] mas que se
deixam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea.” (cap.
96
11, p. 555) Percebera que a mulher era muito superior ao homem, compreendeu que ela
exercia um estranho poder sobre eles, que se julgavam senhores e que, no entanto,
foram postos no mundo simplesmente para servir ao feminino. Dessa forma infere-se
que jazia em Pombinha a mulher adúltera e, por extensão, a prostituta.
Para a mulher burguesa, a manifestação dos instintos sexuais desemboca
inevitavelmente no adultério símbolo da desobediência aos códigos morais. Como
reação ao idealismo romântico, em que a concretização do sentimento amoroso ocorre
apenas no casamento, o tratamento do sexo em termos fisiológicos reforça o amor
carnal como um sinal dos instintos naturais que a educação burguesa não pode evitar. É
nesse sentido que o adultério substitui o casamento, exibido em sua mesquinhez. O
casamento mostra-se como um estado real e não como possibilidade de evasão e
felicidade. O amor burguês se traduz numa rotina conjugal insípida, da qual os homens
tentam se evadir por intermédio de aventuras sexuais com prostitutas estrangeiras,
enquanto as mulheres encontraram no adultério uma saída furtiva. Exemplos nesse
sentido são Estela, empurrada para um casamento imposto pela sociedade e Pombinha,
também levada a unir-se a um homem a quem não amava. Já Leocádia tinha outra
motivação para trair o marido.
O único personagem masculino que comete adultério é Jerônimo, e mesmo
assim, abandona a esposa e une-se a Rita, sendo esta união posterior à separação.
Talvez por ser um discurso masculino, é o adultério feminino que tenha maior
representatividade na obra. A culpa de Jerônimo é minimizada pelo narrador, pois o
português ao procurar Rita e dizer-lhe que queria ficar com a mulata, afiança-lhe que
sabe que não devia abandonar a mulher, mas que se Rita não quisesse ir com ele,
Jerônimo não voltaria para a esposa, pois não a suporta mais. Além disso, enviaria uma
carta à mulher “dizendo com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que
nenhuma criatura está livre, deixava de viver em companhia dela, mas que lhe
conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o colégio da filha”. (cap.16, p. 580),
coisas que não fez, nem lhe enviou a carta, muito menos continuou a pagar o colégio de
Senhorinha.
A organização familiar que se forma a partir do casamento monogâmico legal
gera seu oposto: a prostituição. O amor não é objeto de comércio? No sistema
capitalista, a família se funda sobre as relações de interesse que pretende manter unidas
pessoas cujos desejos são divergentes, cujas ligações são artificiais, pessoas que se
97
ofendem, que se violentam ou que se odeiam. Segundo Friedrich Engels, o modelo de
casamento monogâmico trouxe consigo o adultério e a prostituição, complementos
inerentes a uma relação que corresponde ao terceiro estágio da evolução humana a
civilização.
Se a monogamia foi, no entanto, de todas as formas de família conhecidas, a
única em que se pôde desenvolver o amor sexual moderno, isso não significa, de modo
algum, que ele se tenha desenvolvido de maneira exclusiva ou ainda predominante, sob
forma de amor mútuo dos cônjuges. A própria natureza da monogamia, solidamente
baseada na supremacia do homem, exclui essa possibilidade. O desmoronamento do
amor é a tendência dominante no Naturalismo, e essa redução do seu papel na narrativa
fica mais evidente por suceder a inequívoca idealização no Romantismo. Não é,
portanto, a ausência do sentimento amoroso, mas a negação da visão romântica do
amor. O anti-romantismo é assíduo em Aluísio Azevedo e ele ratifica essa atitude cética
ante o sentimento amoroso ao operar uma desmitificação desse sentimento que permeou
todo o período anterior.
4.4. OUTRO CAMINHO: A PROSTITUIÇÃO
A prostituição constitui-se num fenômeno urbano, inscrito em uma economia do
desejo, característica de uma sociedade em que predominam as relações de troca e em
que todo um sistema de codificações morais – que valoriza a união sexual monogâmica,
a família nuclear, a virgindade e a fidelidade feminina destina um lugar específico às
sexualidades insubmissas.
A prostituição foi vivenciada como linha de fuga da constelação familiar da
disciplina do trabalho e dos códigos normativos convencionais: lugar de constituição de
novos territórios do desejo. Nesses territórios vivenciam-se possibilidades de perda da
identidade na relação sexual, ao inverterem-se papéis e dramatizarem-se situações,
abrindo-se espaços à manifestação de “pulsões irreprimíveis”, que não se podem
realizar na relação conjugal normatizada.
Em busca de novos territórios, muitas mulheres buscam, além do adultério, a
prostituição. Pombinha, por exemplo, buscou alternativas para sua insossa vida conjugal
98
no adultério e depois na prostituição explorando, assim, novas possibilidades: na
primeira, o prazer e na segunda, o prazer associado ao dinheiro.
Rachel Soihet enumera algumas causas para o aparecimento da prostituição no
Rio de Janeiro em finais do século XIX: uma delas seria o excesso de riqueza e pobreza.
Afiança ela que a desigualdade tinha um lado positivo e um negativo, pois ao suscitar a
emulação, que levaria ao desenvolvimento, por outro produziria em muitas mulheres a
inveja, a ambição e as vaidades. A falta de trabalho e a pobreza levariam as mulheres a
buscar a prostituição como meio de vida. A autora acrescenta ainda que o celibato e a
ociosidade dos rapazes descendentes de famílias ricas também ajudaram no
fortalecimento da prostituição, uma vez que não podendo “exercitar” a sexualidade com
moças de família, descarregavam sua libido nas prostitutas. Dessa forma o exercício do
meretrício era encarado como um mal necessário
25
.
A esses vêm juntar-se o fato de a cidade possuir um ardoroso clima, o que
causava um rápido desenvolvimento da puberdade. A localização privilegiada também
auxiliava, pois o Rio era uma cidade aonde chegavam estrangeiros de nações e costumes
diversos, muitos em buscas de aventuras amorosas com as “cálidas” mulheres
brasileiras.
As condições de sobrevivência constituem-se, portanto, num fator primordial
para compreendermos a prática da prostituição na cidade do Rio de Janeiro no século
XIX. Mas outros elementos determinantes, não menos importantes, devem também ser
levados em consideração. Dentre estes, destacam-se os padrões, as normas de
comportamento e os valores morais então vigentes, tão discutidos neste trabalho a
valorização da virgindade da mulher, a monogamia e o patriarcalismo que conferiam
ao homem uma liberdade sexual justificada e aceita socialmente. “O descompasso entre
a moralidade oficial agia ainda de outra forma para fazer vítimas entre mulheres pobres:
promovia, entre as mais ingênuas, a convicção de que se não podiam ser santas, lhe
restavam ser putas.” (FONSECA, in DEL PRIORE: 2004, p. 532)
Um aspecto que interessa, e que deve ser considerado, é o fato de que o
prostituir-se pode representar uma escolha como é o caso de Léonie e Pombinha na
medida em que, em termos econômicos, emocionais e sexuais, o exercício da
prostituição viabilizaria a vivência de uma condição independente e autônoma o caso
25
Alguns médicos, movidos por interesses científicos, pretendiam fazer uma radiografia da prostituição
na cidade. Compartilhando a opinião de que a prostituição era um mal necessário, nenhum estudo
propunha a extinção do meretrício, contentando-se, assim, em sugerir estratégias de regulamentação e
contenção.(SOIHET: 1989, p.205)
99
de Léonie. Nesse ponto, a prostituição deve ser encarada como uma espécie de
resistência ao ideal de mulher frágil e submissa – tudo o que Pombinha não queria ser.
Segundo Sonia Brayner, Léonie e Pombinha instalam-se na prostituição como
capitalistas esclarecidos: é das ruas que lhes vem o movimento financeiro e seus corpos
são a forma de investimento que lhes traz renda garantida. Desprovidas de quaisquer
mistérios, banais, viciosas, sem o prestígio do inexplicável que as envolvia no
romantismo, são explorações financeiras para a alta burguesia. (BRAYNER: 1973, p.
63) A prostituição permanecia, assim, uma alternativa importante de sobrevivência para
algumas mulheres, oferecendo possibilidades de ganhos mais expressivos e uma
independência numa cidade repleta de homens de todas as espécies. Isso indica ainda
que essas mulheres não eram desprezadas por seus contemporâneos, pois inspiravam
algumas vezes reações extremadas e até passionais – como acontecia com Léonie.
“Prostituta de casa aberta”, Léonie era muito amiga e querida por todos os
moradores da estalagem. Não se registra por parte deles, nenhuma palavra de
reprovação à vida que ela levava. A cocote era dotada inclusive de autoridade moral,
pois “discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões
de pessoa prática e ajuizada, condenando maus hábitos e desvarios, aplaudindo a
virtude”. (cap.9, p.521) Ela comandava uma audiência silenciosa e submissa, pois as
mulheres não riam, nem levantavam a voz, conversando a medo, tolhidas de respeito
pela loureira.
Esse respeito chegava à idolatria: as mulheres examinavam-na, olhavam
embevecidas para ela, “com exclamações de assombro a vista de tanto luxo de rendas e
bordados.” (cap.9, p.522) Até mesmo Piedade, a seriíssima mulher de Jerônimo,
chegou a cometer uma heresia ao comentar que “a roupa branca da madama era rica
nem como a da Nossa Senhora da Penha”. Nenen chegou a dizer que “a invejava do
fundo do coração.” A das Dores sentia-se orgulhosa apenas pelo fato de Léonie
pousar-lhe a mão no ombro; o Albino contemplava-a extasiado. A única que não se
iludia com a posição da loureira era Rita Baiana, “mas dava-lhe apreço porque a achava
deveras bonita.(cap.9, p.522) Dessa forma, Léonie se redimia de sua vida devassa de
prostituta alimentando seu ego com essa admiração simples, pois sentia-se bem entre as
pessoas, “nos instantes em que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a
matariam de ridículo em qualquer outro lugar”(cap.9, p.521). A sua afilhada, a Juju,
“era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa de sua vida de cansaços depravados; era
100
o que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções do ofício.” (cap.9, p.521)
Observe-se que essa afirmação é do narrador, não dos moradores do cortiço.
Leonardo Mendes assinala que esse domínio se estabeleceu a partir da
independência financeira e da liberdade que as lavadeiras sabiam serem as marcas da
vida da cocote. Não surpreende que seja Rita Baiana a que verbaliza o apreço que essas
mulheres sentiam pela prostituta. A Rita é a mulher que mais se aproxima dessa posição
de autonomia e por isso sabe avaliar suas vantagens:
Ora! Era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim
da pele dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de
roupa dentro e fora!
[...] ...seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem
de boca e nada lhe falta. Sua boa casa; seu bom carro para passear à
tarde; teatro toda noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas,
regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à
farta. Enfim, o que afianço é que esta não está sujeita, como a
Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É
dona de suas ações! Livre como o lindo amor! Senhora do seu
corpinho, que ela entrega a quem muito bem lhe der na veneta!
(cap. 9, p. 523)
As reflexões da mulata apontam para uma visão bastante positiva da prostituição
e chega a ponto de celebrá-la como um caminho de libertação feminina. A comparação
com a Leocádia, que fora flagrada se entregando ao Henrique em troca de um coelho
sugere que o casamento, às vezes, não passa de uma modalidade de escravidão para a
mulher e que a prostituta, ao contrário, tem total controle sobre sua vida, tanto social
como sexual.
A receptividade de Rita Baiana ao estilo de vida de Léonie deve ser, então, fruto
de uma postura geral pouco rígida no que diz respeito à domesticação da prostituição e
da sexualidade. No romance, a cocote, popular e independente, representa a
possibilidade de prostituir-se por escolha e não por necessidade. No processo, a
personagem constitui o meretrício como um espaço efetivo da resistência ao ideal de
fragilidade e submissão da mulher, pois era fiel às vertentes contemporâneas que
atribuíam às prostitutas características de independência, liberdade e poder. Ela,
portanto, representaria a mais liberada das mulheres, cuja sexualidade não pertence a
ninguém.
Léonie era de procedência francesa. Mas ser francesa não significava
necessariamente ter nascido na França mas freqüentar espaços e ter clientes ricos.
Estas se exibiam em jóias e presentes que valorizavam a generosidade de seus amantes e
101
protetores. A francesa vive em casa própria, tem carros e criados e era renomada por
introduzir adolescentes nas sutilezas do amor e por revelar delicadezas eróticas aos
homens maduros
26
. Foi Léonie quem seduziu Pombinha e quem a fez perceber que a
mulher tem um poder imenso. Depois de sua primeira experiência sexual, por sinal
homossexual a garota é dominada pela promiscuidade que viceja a seu redor e
prontamente se torna parte daquele mundo. Poupada pela mãe de todas as tarefas
domésticas, acostumada com uma educação que não se equiparava a seu nível de vida,
Pombinha, quando adulta, deixaria o marido medíocre para ganhar dinheiro fácil a partir
de sua associação com Leónie, a prostituta que tempos antes, a havia violentado.
Tornaram-se amigas inseparáveis, como cobras de duas cabeças, e dominavam o
alto e o baixo Rio de Janeiro, por onde eram vistas, em passeios à tarde em companhia
de Juju, atravessando o Catete em carro descoberto. À noite, encontravam-se no teatro,
onde “chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos de
sensações extremas”. Ambas “arrastavam para os gabinetes particulares dos hotéis os
sensuais e gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto produto das
safras do ano”. (cap. 22, p. 627) Seguindo os passos da mestra,
Pombinha, com três meses de cama franca, fizera-se tão perita no ofício
como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da
estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo
fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela
vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber,
gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vitima
pudesse dar de si. (cap. 22, p. 627)
A afirmação de que os lábios de Pombinha não sabiam tocar em ninguém sem
tirar sangue, bebendo gota a gota através dos beijos todo o dinheiro que um homem, por
mais avarento, pudesse lhe dar, remete à figura do vampiro. Um vampiro macho
continua sendo um vampiro, um ser sobrenatural que se alimenta de sangue humano e
que apenas uma estaca de madeira enterrada no coração pode eliminar. Esse termo,
porém, se aplicado à mulher, torna-se tão amplo como banal: pode designar qualquer
mulher real, se for considerada perigosa para o homem perigosa para sua fortuna, sua
saúde, sua honra, sua alma. É nesse ponto que a imagem do vampiro se funde com a da
mulher fatal e que o vampirismo pode ser sentido no final do século XIX, como uma
26
Foi no meado do século XIX que se acentuou, no meio brasileiro, sob a forma da atriz ou cômica de
teatro, em geral italiana, espanhola ou francesa, a figura da prostituta de luxo. Algumas residindo em
“casas isoladas”, outras em hotéis caros, passaram a rodar pelas ruas em “luzidios trens”: carros de capota
arriada com cocheiro e lacaio, onde ostentavam vestidos, chapéus e sapatos de última moda.
(FREYRE,Gilberto. Sobrados e Mocambos, p. 297)
102
especialidade eminentemente feminina. Designaria, então, entre outros fenômenos, a
prostituição, para todos aqueles que viam nela o mal feminino absoluto: vampirismo
sexual e vampirismo financeiro. O que faz a prostituta, senão sugar todas as energias e
todas as economias de um homem? (DOTTIN-ORSINI:1996)
Segundo Sonia Brayner, Pombinha é a personagem de maior representatividade
como estereótipos, pois encarna a “menina do cortiço”. Segundo a autora, o tema da
erotização cada vez torna mais próximo à conseqüência implícita, a prostituição. Pois
“Entretanto, seu nome, a sensibilidade e finura dos gestos, a educação constituem uma
falsa motivação para o leitor supor uma possibilidade de salvação naquela alma
pestilenta.”(BRAYNER:1973,p.86) Chamavam-lhe Pombinha e era a flor do cortiço.
Flor essa que “ um estrume forte demais” a fez transformar-se em planta carnívora.
Apesar de todos os cuidados maternos – a e não lhe permitia lavar nem
engomar e de toda sua religiosidade, nada afastou Pombinha do iminente perigo que
estava a sua volta o tempo todo: o determinismo do meio em que vivia. havia na
moça a predisposição para o adultério e a prostituição, uma vez que, ao se lembrar do
encontro com Léonie, “toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delícias que
seriam reservadas para mais tarde,” pois “dentro dela balbuciavam desejos, até aí
mudos e adormecidos; e mistérios desvendavam-se no segredo de seu corpo, enchendo-
a de surpresa e mergulhando-a em concentrações de êxtase.”(cap. 11, p. 549) De acordo
com Sonia Brayner, Pombinha é marcada inicialmente pela imagem sexual da interdição
em que a repressão dos instintos e a virgindade estão mais intensamente codificados. A
ausência da menstruação é a oposição básica à promiscuidade do conjunto. O contato
com o mal Léonie, a cena do lesbianismo e conseqüente menstruação liberam-na
para a participação até então proibida: casamento, adultério e prostituição. A
personagem encarna o tema romântico da prostituta, simplesmente invertendo-lhe os
dados: o romantismo é desafiado em sua idealização, apresentando ao leitor um
personagem bom que apodrece sem remissão. E para isso o autor se mune de um arsenal
de razões fisiológicas e deduções empíricas.(BRAYNER:1973, p.86)
O narrador descreve o verdadeiro “talento” de Pombinha para a profissão e o
modo como sua fortuna era apreciada no cortiço. Durante suas visitas as ruas enchiam-
se de gente que a abençoava “[...] com seu estúpido sorriso de pobreza hereditária e
humilde.” (cap. 22, p. 627) O determinismo do autor que caracteriza a própria condição
do pobre como hereditária não pára por aí: sugere a manutenção da condição do cortiço
enquanto fornecedor de prostitutas.
103
Quando Pombinha deixou a estalagem, por ocasião de seu casamento com o
Costa, a comunidade elegeu outra menina para adorar: Marianita, e “crismaram-na logo
com o cognome de ‘Senhorinha’”. O narrador afirma que, naqueles moradores antigos
como ocorrera com Pombinha “havia uma necessidade de eleger para mimo da sua
ternura um entezinho delicado e superior, a que eles privilegiavam respeitosamente,
como súditos a um príncipe.” (cap. 19, p. 603) A afetividade dos habitantes do cortiço
está expressa no sufixo -inho acrescido ao elemento simbólico da adoração
sacralização do nome pomba, que na tradição judaico-cristã representa o Espírito Santo,
ou seja, a pureza e a simplicidade, características iniciais da menina. E em relação à
filha de Jerônimo e Piedade, Nossa Senhora, mãe de Jesus, adorada e venerada por
muitos.
A filha de Jerônimo, desde que o pai abandonara o lar, era ajudada por
Pombinha, que lhe tinha uma especial afeição, semelhante à que Leónie tinha por esta
outros tempos. “A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço
estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia
mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria”. (cap. 22, p. 627)
O autor parece querer realçar que o destino do pobre era determinado pelo
sistema social e econômico no qual vivia, mostrando que o caso de Pombinha não se
constituía em uma exceção, mas em regra. Aluísio Azevedo também chama atenção
para o fato de a decomposição familiar e de a vida em comum, levada nos cortiços,
fornecerem condições propícias à procura pela prostituição como meio de vida.
Encontramos assim, duas causas levantadas por Rago e Soihet (1985;1989) para o
exercício da prostituição em meados do século XIX: a riqueza e a pobreza. No caso de
Pombinha, a ostentação da riqueza de Léonie atraiu-a para esse caminho, associada ao
seu temperamento erótico. De que maneira ela uniria luxo, prazer e dinheiro fácil se não
através da prostituição? Quanto a Senhorinha, trilharia os mesmos caminhos das duas
cocotes, simplesmente pela pobreza extrema em que então viva, a miséria financeira a
levaria ao mesmo destino: a prostituição.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura é um oceano de possibilidades e a surpresa que ela promove em
tempos monótonos é a inovação necessária para não cair em estagnação. No limiar do
século XIX, enquanto os literatos se fartavam do Romantismo, um autor preparava um
rumo distinto na narrativa, com um desvio do movimento Realista que então se
anunciava no Brasil e que era conhecido na França desde 1857. Esse desvio era o
Naturalismo e o autor era Aluísio Azevedo.
Sob essa ótica o homem passou a ser enfocado a partir de uma perspectiva
biológica, destacando-se seu lado instintivo. Imbuído de uma visão determinista,
observando o homem como um animal, uma presa de forças fatais, Aluisio Azevedo
retratou, em O Cortiço, atritos, dramas provenientes do sexo e do dinheiro. Insinuou do
princípio ao fim o percurso trágico de seus personagens, deixando transparecer através
de sua linguagem o destino que estava reservado a cada um.
Aluísio Azevedo “pintava” a sociedade brasileira. O romance analisado é
atemporal e sempre atual, de suma importância para se entender o funcionamento da
sociedade do segundo quadrante do século XIX, retratando o contexto social da época.
O autor conduz sua trama sem a figura convencional do protagonista: ao invés de um
personagem central, o verdadeiro núcleo da narrativa é o próprio cortiço, que representa
um microcosmo da sociedade brasileira de então. Aluísio Azevedo retratou, com uma
linguagem minuciosa, a sociedade de final do século XIX com sua gente, seus costumes
e seus problemas. Conseguiu plasmar, no romance, uma configuração social específica,
a da cena social brasileira de sua época.
O Cortiço revela-se como um testemunho curioso de um período em que a
literatura pretendeu dominar a sociedade de seu tempo, “fotografando-a” através da
pena de seus escritores. Por trás da pretensão de objetividade presente no romance
revela-se um olhar muito próprio sobre o corpo social, que sesempre o de seu autor,
sujeito histórico e intelectual engajado, que dialoga com as questões de seu entorno e
com o pensamento vigente, e que pretende com sua obra intervir socialmente. O escritor
Aluísio Azevedo assumiu, assim, uma postura crítica e combativa no que toca à
105
corrupção moral e à hipocrisia da burguesia, chamando a atenção para os problemas
sociais de uma parcela da população até então esquecida por seus contemporâneos.
Em O Cortiço, Aluisio Azevedo traça o perfil de uma sociedade até então
excluída, montando o enredo em torno de uma habitação coletiva plena de tipos
humanos jamais vistos em nenhum outro romance. Os ambientes físico e social
misturam-se, sendo a estalagem a força geratriz do romance, onde tudo acontece. É na
horizontalidade do cortiço que se visualiza o dia-a-dia de seus moradores. Em O
Cortiço se pode observar a face mais elaborada do Naturalismo. Nesse livro, o autor
não está mais tão preocupado com as personagens; concentra-se em demonstrar a tese
de que o ser humano é fruto do meio em que vive. No romance, a descrição do cortiço é
minuciosa: vemo-lo nascer, crescer e transformar-se em avenida ao longo da trama. Os
personagens, em alguns momentos, perdem sua identidade, sendo descritos como parte
da vida comum que tem lugar no “Cortiço de São Romão”. Por meio da superposição de
imagens, sons e sentidos próprios do naturalismo o autor parece dar idéia de que o
cortiço tem vida própria.
O próprio cortiço adquire, assim, a condição de uma personagem, que vai se
expandindo e se multiplicando a cada dia. A obra revela a aceitação de idéias filosóficas
e científicas do tempo, pois aparecem diluídas, no livro, noções de determinismo e
evolucionismo. É nesse cenário promíscuo e insalubre que se testemunha o cruzamento
das raças, a explosão da sexualidade, a violência e a exploração do ser humano, bem ao
gosto da estética naturalista.
A construção do discurso literário advém do contexto em que insere a sociedade
brasileira oitocentista, sendo recriado pelo autor esse meio social dinâmico entre os
homens que vivem, trabalham, divertem-se e se relacionam entre si. Pode-se asseverar
que, assim, discurso e contexto social se revelam e se constroem mutuamente. Em O
Cortiço a linguagem tem uma grande importância, pois é através dela que os leitores
passam a perceber as nuances do enredo. trechos, como o que inicia o capítulo três,
referente ao acordar do cortiço, em que seria possível, além de ver, até ouvir os sons da
estalagem e sentir o cheiro bom de café recém-coado. É uma narrativa vigorosa, em que
as metáforas, as comparações e principalmente as sinestesias são as responsáveis pelas
percepções das ações e sentimentos dos personagens. A utilização de verbos e
expressões que chocaram os leitores acostumados às descrições e adjetivações
106
“lânguidas” da estética anterior e palavras de uso corrente, expressões vulgares e que
não entravam no vocabulário da maioria dos pertencentes à classe burguesa, os que
tinham poder aquisitivo para a compra dos livros e jornais, fizeram de Aluísio um
inovador no que diz respeito ao linguajar literário. A constante comparação dos
personagens com animais que permeia todo o romance reforça as influências das teses
deterministas e evolucionistas-naturalistas do autor.
Representados no romance através de dois núcleos, o da família do Miranda
comerciante português que morava num sobrado vizinho ao cortiço e o dos habitantes
do cortiço, burgueses e populares vivem no romance um estado permanente de disputa e
agressão simbolizado na oposição “sobrado versus cortiço”. O romance, embora
composto por personagens individualizados, cada um com sua história e seu drama
particular, sobrepõe-se à individualidade para ser a comuna, tornando-se assim um
personagem coletivo, resultante da mistura orgânica. Tudo aquilo que se pode contrastar
na sociedade brasileira, Aluísio Azevedo soube fazê-lo com minudência crua. O seu
objetivo foi apontar o lado negativo de ambos os campos sociais a abastança,
representada pelo sobrado do Miranda e a penúria – retratada nos moradores do cortiço.
Os personagens teriam suas ações na trama sempre motivadas por impulsos
animais, influência do clima tórrido tropical e da degeneração produzida na população
brasileira pela prática da mestiçagem. Aluísio Azevedo foi exímio construtor de vastos
painéis humanos e urbanos, cujos personagens movimentam-se com vivacidade e
revelam os jogos escusos em que se enredam na busca do poder e da consolidação da
riqueza. Painéis esses que podem ser observados tanto de um quanto do outro lado do
muro que separa as duas “comunidades”. Dentro dos casulos do cortiço ou dos
aposentos do sobrado, vivenciam-se dramas, caem-se máscaras, negocia-se, ama-se,
odeia-se.
Vê-se, na obra analisada, o nascimento, o desenvolvimento e a transformação do
cortiço, que de “Estalagem São Romão” passa a chamar-se “Avenida São Romão”, e no
decorrer do romance, todos os moradores também sofrem modificações oriundas do
meio em que vivem, confirmando as teorias deterministas vigentes à época. Em O
Cortiço temos a rede de relações familiares e sociais de duas camadas da população da
Corte nos fins do século XIX. Encontramos nas duas classes a burguesa e a proletária
– a dissolução da família, os conflitos individuais e a redução do homem ao animal num
107
processo de zoomorfização. Verificou-se que a desagregação da família pode ser
ocasionada por alguns fatores – como o abandono do lar, exemplificado no romance por
Jerônimo, cujas conseqüências foram tanto a separação, como também a
degenerescência moral do português e de sua mulher, além de criar os meios propícios
para que Marianita, sua filha, trilhasse o caminho da prostituição levada pelas mãos de
Léonie e Pombinha.
Jerônimo, influenciado pela tropicalidade brasileira, torna-se um homem
desprovido de todas as suas características morais. Foi o personagem em que mais se
comprova a tese naturalista, uma vez que se transformou completamente. O amor pela
mulata fê-lo mudar de hábitos e de opinião, abrasileirando-se. Sua mulher também
passou pelo mesmo processo. O abandono do marido transformara Piedade em uma
mulher andrajosa e ébria, descumpridora de seu papel de mãe e trabalhadora. O suicídio
do marido de D. Isabel causou a decadência social da família, obrigando mãe e filha a se
mudarem para um cortiço. A convivência, não com os moradores do cortiço, mas com a
amiga e cocote Léonie, fez com que a moça enfermiça e nervosa se transformasse em
uma esposa adúltera e posteriormente escolhesse a prostituição como forma de
exteriorizar os desejos latentes desde a adolescência. A determinação de enriquecer a
todo custo, passando por cima de quem se opusesse transformou João Romão de
vendeiro sem educação em um rico comerciante. São agentes determinadores, uma
força externa influenciando e modificando o comportamento dos personagens do
romance, comprovando as determinações já definidas a partir de aspectos étnicos (raça),
sociais (meio) e históricos (momento), como dogmaticamente defendem os naturalistas.
Os personagens no romance de Aluísio deixam de ser idealizados e são
apresentados de modo real, trabalhados psicológica e patologicamente, a fim de explicar
seus comportamentos. Desse modo passam a ser agentes, e não pacientes, da realidade
representada. As mulheres são sensuais, sedutoras e, por que não? – dissimuladas.
Características não condizentes com as personagens românticas, mas completamente
adequadas às naturalistas. Os homens passam de heróis fortes a seres frágeis e fracos,
sucumbindo às imposições mesológicas, sendo devorados pelo meio em que vivem.
A pluralidade de organização familiar também é muito forte em O Cortiço, uma
vez que há, no romance, casais que se uniram por interesses diversos: financeiro
(Miranda e Estela, João Romão e Zulmira), afetivo (Rita e Firmo, Jerônimo e Rita,
108
Alexandre e Augusta) e por conveniência (Pombinha e Costa). Esses pares formaram
núcleos familiares distintos, mas que eram os encontrados nas camadas sociais daquele
tempo. Há a ocorrência da família burguesa, oriunda do sistema patriarcalista, e a
nuclear, além de dois tipos de união: o casamento, única forma de união aceita pela
sociedade e o concubinato, sendo este a escolha da maioria dos casais que moravam na
estalagem.
Imagens bem mais realistas do comportamento e do modo de vida da população
também são evidenciadas no romance. A divergência entre o comportamento das
mulheres das classes populares e a maneira de agir das representantes da classe
burguesa é muito grande. A oposição dessas imagens é evidente de um lado a moral
vigente ditando normas de comportamentos e do outro a necessidade de as mulheres
saírem às ruas. A honra das mulheres passava pelo corpo e pelas atitudes, sob a forma
da virgindade física e moral, uma vez que a sociedade e a família exerciam poderes
sobre o corpo feminino, considerado um espaço transgressor por excelência.
No romance verificou-se também que o casamento corresponderia à
possibilidade de ascensão social ou de se tornar uma prisão em que a mulher era a
prisioneira. O dever da fidelidade recaía apenas para a esposa – sendo mais uma
imposição que não chegava aos homens, pois estes tinham, através do casamento, todo
o direito sobre a moral e a virtude de suas mulheres. Em relação ao adultério, pôde-se
observar que, para o autor, não tinha muita importância o fato de o casal ser ou não
casado para ter uma vida conjugal tranqüila. Os casos de adultério feminino
aconteceram justamente com pares que eram unidos pelo sagrado laço do matrimônio.
A alusão de que alguns fatores foram decisivos para a infidelidade da esposa foram
sugeridos pelo autor, como casamentos por conveniência ou o desinteresse sexual do
parceiro. Em nenhum dos três casos de flagrantes de adultério houve o deslize feminino
por amor, mas sim por razões puramente instintivas. Levanta-se, dessa forma, a
possibilidade de a causa da infidelidade feminina estar ligada a questões de ordem
médica, pois, para muitos médicos da época, as mulheres estariam mais suscetíveis a
essa prática por serem organicamente mais frágeis que os homens e aquelas que não
fossem destinadas ao exercício da maternidade e não tivessem a sexualidade atrelada à
procriação, seriam consideradas mulheres desviantes.
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Quanto à prostituição, verificou-se que o exercício do meretrício por uma das
personagens do romance deveu-se às influências internas e externas, que fremia no
corpo de Pombinha a prostituta. O que Léonie fez com suas cores, suas roupas de
espavento, seus luxos e com seu discurso sedutor foi apenas despertar a meretriz latente
na “flor do cortiço”. Sendo assim, a prostituição constituía-se para ambas uma escolha,
em que se associariam prazer e dinheiro fácil.
Em Aluisio Azevedo se digladiaram dois escritores: o folhetinista fantasioso de
Uma Lágrima de Mulher e de A Mortalha de Alzira e o narrador vigoroso de O Mulato,
Casa de Pensão e O Cortiço. Em um primeiro momento, o da escritura dos folhetins
com fins mercadológicos, Aluísio Azevedo faz concessões ao público-leitor,
oferecendo-lhe o romantismo, o sentimentalismo, o rocambolesco, o inverossímil; mas
ao mesmo tempo tenta manipular esse mesmo público-leitor, influenciando-o,
ordenando-o, quando do lançamento de seus livros considerados pela crítica como
literários e esteticamente válidos. E, em relação a essa opinião, a voz uníssona em
qualidade estética, sobressaindo-se mesmo como a obra inaugural da estética naturalista
entre nós, é O Cortiço. Por todas as contradições presentes em seu seio e por significar
uma espécie de síntese dos antagonismos da sociedade carioca do fim do século XIX, O
Cortiço é a obra maior do nosso naturalismo.
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ZOLA, Émile. Do romance: Stendhal, Flaubert e os Gouncourt. Tradução Plínio
Augusto Coelho, São Paulo: Editora Imaginário-EDUSP, 1995.
114
ANEXO 1: GRAVURAS
1.
Auto-caricatura de Aluísio Azevedo
sendo apresentado aos leitores do
Rio de Janeiro, para onde se mudara
após o escândalo causado pela
publicação de O Mulato.
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2.
Casa da família Azevedo, em São Luís.
No mirante, Aluísio escreveu O Mulato.
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3
.
Com o crescimento urbano da antiga capital
federal, milhares de pessoas passaram a viver
em cortiços no centro da cidade do rio de
Janeiro.
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4.
Típico cortiço do Rio de Janeiro,
no final do século XIX.
Fonte: www.guesaerrante.com.br
115
5.
Moradores em frente a um cortiço no Rio de
Janeiro, no século XIX.
Fonte: www.guesaerrante.com.br
6.
Aluísio quando a literatura deixa de
interessá-lo, já na maturidade
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7.
Debret – Viagem pitoresca e histórica do
Brasil. Representando a imagem da família
patriarcal brasileira.
8.
Aluisio Azevedo
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9.
Auto-retrato de Aluísio Azevedo publicado em
A comédia popular
Fonte: www.clickeducacao.com.br
10.
Caricatura de Aluisio Azevedo publicada em O
mequetrefe.
Fonte:
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11.
Fac simile
da capa do romance
1881.
Fonte:
www.cliceducacao.com.br
12.
Apresentação dos romances
Casa de Pensão
O Cortiço por Aluisio Azevedo.
Fonte.
www.clickeducacao.com.br
da capa do romance
O mulato, cuja
primeira publicação ocorreu em setembro de
www.cliceducacao.com.br
Casa de Pensão
e
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13.
Caricatura d
os irmãos Aluísio (à esquerda)
Arthur Azevedo, publicada na revista
no Rio de Janeiro.
Fonte:
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116
os irmãos Aluísio (à esquerda)
e
Arthur Azevedo, publicada na revista
Frotzmac,
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