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UFC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
Departamento de Literatura
Programa de Pós-Graduação em Letras
MESTRADO EM LITERATURA
ELISABETE SAMPAIO ALENCAR LIMA
A CASA: ARQUITETURA DO TEXTO
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A ORIGEM DO ROMANCE DE NATÉRCIA CAMPOS
FORTALEZA
2009
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2
ELISABETE SAMPAIO ALENCAR LIMA
A CASA: ARQUITETURA DO TEXTO
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A ORIGEM DO ROMANCE DE NATÉRCIA CAMPOS
Dissertação submetida à Coordenação do Curso
de Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Letras.
Área de concentração: Literatura
Orientadora: Profª. Drª. Maria Neuma Barreto
Cavalcante
FORTALEZA
2009
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“Lecturis salutem”
Ficha Catalográfica elaborada por
Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593
Biblioteca de Ciências Humanas – UFC
L697c Lima, Elisabete Sampaio Alencar.
A casa [manuscrito] : arquitetura do texto uma investigação sobre a
origem do romance de Natércia Campos / por Elisabete Sampaio Alencar
Lima. – 2009.
183f. : il. ; 31 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará,Centro de
Humanidades,Programa de Pós-Graduação em Letras, Fortaleza(CE),
19/05/2009.
Orientação: Profª. Drª. Maria Neuma Barreto Cavalcante.
Inclui bibliografia.
1-CAMPOS,NATÉRCIA,1938-2004 .A CASA – CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO.
2-CRÍTICA GENÉTICA.3-CRÍTICA TEXTUAL.4-CRIAÇÃO(LITERÁRIA, ARTÍSTICA,
ETC).5-ÁGUA NA LITERATURA.I- Cavalcante, Maria Neuma Barreto, orientador.
II-Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Letras. III-Título.
CDD(22ª ed.) B869.34
42/09
3
ELISABETE SAMPAIO ALENCAR LIMA
A CASA: ARQUITETURA DO TEXTO
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A ORIGEM DO ROMANCE DE NATÉRCIA CAMPOS
Dissertação submetida à Coordenação do curso de Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras. Área de
Concentração: Literatura.
Aprovada em _______/_______/_______.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Profª. Drª. Maria Neuma Barreto Cavalcante
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________
Profª. Drª. Elza Assumpção Miné
Universidade de São Paulo (USP)
_______________________________________
Profª. Drª. Vera Lúcia Albuquerque de Moraes
Universidade Federal do Ceará (UFC)
4
A Deus
A minha família
Aos meus amigos
Aos professores
A todos aqueles que me fizeram
acreditar que seria possível chegar ao dia de hoje.
5
AGRADECIMENTOS
À professora e amiga Neuma Cavalcante pela preciosa orientação e dedicação;
Às professoras Vera Moraes e Elza Miné;
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará;
Aos meus professores e colegas de curso;
À família Campos pela generosidade e confiança;
À Neide Lopes, Eugênia Queiroz, Regina Fiúza, Carolina Campos, Margarita
Solari, Helena Lutéscia e ao Sânzio de Azevedo;
Aos funcionários da biblioteca do Centro de Humanidades, em especial Ana
Elizabeth,Telma, Neuma, Pedro, pela colaboração;
À FUNCAP, pelo apoio financeiro com a manutenção da bolsa auxílio;
À minha família pelo apoio incondicional e extrema compreensão;
Ao Pedro Luz pelo incentivo e apoio;
Ao professor Eduardo Luz pela leitura.
6
“3:40hs da madrugada. Os lobisomens já voltaram a sua primitiva forma.
Hoje é 9 de setembro de 1998. Ouço música. Acabo de escrever a última
palavra no meu romance!
Meu romance! Nunca pensei que o escrevesse!
Será ele do meu pai! Dei a ele na madrugada de 23 de Agosto de 1998,
quando senti emocionada, chorando que eu gostaria que ele lesse e ele
iria apreciar o que eu escrevera. Estou feliz. Muito. Este mês faço
“Setembro o maio do outono”... Dia 30 de Setembro dia de São
Jerônimo. 60 anos. Neste ano três livros meus virão a lume. “Jamais deux
sans trois”... A última palavra que no meu romance escrevi foi tempo
quando coloquei o provérbio “ninguém pode por rédeas no tempo”
Natércia Campos
Acho que o escrevi em um mês e meio. Fora o capitulo este foi escrito
há uns três anos!
Estou louca para comer uma maçã; mas o medo é grande! Principalmente
agora que terminei estas páginas onde falo de assombros...
Estou amando esta madrugada
Abri a janela do meu quarto para ver o mar, o céu, as luzes. Minhas filhas
e o meu filho dormem e eu os abençôo.”
(Natércia Campos)
7
RESUMO
Esta pesquisa procura entender os processos de criação do romance A Casa
(1999), de Natércia Campos, e apresentar os resultados obtidos com o estudo dos manuscritos
e da documentação paratextual encontrados no acervo pessoal da escritora. Tem como
hipótese que três textos, “O espelho”, “Infância no Minho” e “O Rasto” - com estruturas
diferentes e escritos, provavelmente, em épocas diferentes - teriam contribuído para a criação
do romance. Essa hipótese apontou uma nova direção ao nosso trabalho: não mais a proposta
inicial do estudo genético do romance A Casa, observando seu processo escritural, e não mais
o emprego da mesma metodologia num tema do livro. Aplica alguns pressupostos da Crítica
Genética - cujo objeto é o manuscrito literário e o objetivo é levantar hipóteses sobre o
processo de criação do escritor, a partir das marcas deixadas por ele no caminho da sua
escritura - para possibilitar a leitura, transcrição e interpretação dos documentos formadores
do corpus. Apresenta os resultados obtidos.
Palavras-chave: Natércia Campos, Acervo de Escritores, A Casa, Crítica Genética.
8
ABSTRACT
This research aims to understand the creation process of the novel A Casa (1999),
by Natércia Campos, and present the results of the study of manuscripts and paratextual
documents found in the writer’s collection. It assumes that three texts, "O espelho", "Infância
no Minho" and "O Rastro" with different structures and, probably, written at different times
- contributed to the creation of the novel. This hypothesis gave a new direction to our work:
no longer the original proposal of the genetic study of the novel A Casa, neither observing its
writing process nor using the same methodology in book’s a theme. It applies some
assumptions of Genetic criticism – whose object is the manuscript book and the aim is to raise
hypotheses about the writer’s creation process, using the marks left in the writing path - for
reading, transcription and interpretation of the documents that form the corpus . It presents the
results.
Keywords: Natércia Campos, Writers’ Collection, A Casa, Genetic Criticism.
.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1 NOS ESPAÇOS DA CRÍTICA GENÉTICA .................................................................... 13
1.1
Como surgiu a Crítica Genética ................................................................................. 13
1.1.1 “O brasileiro não tem memória” ...................................................................................... 19
1.1.2 Natércia Campos e Literatura Cearense .......................................................................... 21
1.1.3 3x4 e Poesia Plural..........................................................................................................23
1.1.4 O acervo de Natércia Campos ......................................................................................... 25
2 OS CAMINHOS DA CRIAÇÃO ....................................................................................... 29
2.1 O que narra A Casa .......................................................................................................... 29
2.1.1 As águas ........................................................................................................................... 36
2.1.2 Novas descobertas ........................................................................................................... 38
2.1.3 “O espelho” ..................................................................................................................... 53
2.1.4 As versões de “Infancia no Minho” e “O Rasto” ............................................................ 55
3 O SURGIMENTO DO ROMANCE A CASA ................................................................... 66
3.1 O corpus ............................................................................................................................ 66
3.1.1 “Infância no Minho” e “O Rasto” ................................................................................... 68
CONCLUSÃO.......................................................................................................................119
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 122
ANEXOS .............................................................................................................................. 127
10
INTRODUÇÃO
A criação do primeiro Arquivo-Museu de Escritores Cearenses (AMEC),
atualmente sediado no segundo andar da biblioteca do Centro de Humanidades, nasceu da
iniciativa da Profª Drª Neuma Cavalcante ao escolher como objeto de pesquisa, no concurso
para professora visitante da Universidade Federal do Ceará (UFC), a organização do acervo
de um escritor cearense sob o título O Arquivo Pessoal de José Maria Moreira Campos:
memória de uma vida criativa”. Esse projeto visava a organizar e indexar os documentos
pessoais do titular. Como resultado, mostraria as possibilidades de pesquisa que tais
documentos oferecem e a necessidade de se incentivar a preservação de acervos particulares.
O projeto recebeu apoio do ICA (Instituto de Cultura e Arte), então dirigido pela Profª Drª
Angela Gutiérrez, que, também preocupada com questões relacionadas à preservação da
memória, definira como uma das metas para a Casa de José de Alencar – sob a administração
do ICA torná-la um centro de referência para a pesquisa e a documentação da cultura
cearense.
O Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFC, também reconhecendo a
atualidade dessas iniciativas, abriu uma linha de pesquisa direcionada à organização,
exploração e divulgação de acervos de escritores. A UFC coloca-se, assim, em consonância
com outras Instituições voltadas à aquisição e preservação de fontes primárias que permitem
aos estudiosos e pesquisadores debruçarem-se sobre esses documentos para analisá-los,
decifrá-los e interpretá-los.
Ainda no início do arrolamento dos documentos do acervo de Moreira Campos, a
filha, Natércia Campos, faleceu, e suas filhas solicitaram à Professora que incluísse seu
acervo no projeto. Formou-se, então, uma equipe para realizar esse trabalho.
Natércia Campos, escritora premiada, foi funcionária da Secretaria de Cultura e do
Desporto do Estado do Ceará. Iniciou-se na literatura com o conto “A Escada” e, desde então,
não parou de escrever, lançando: Iluminuras (1988), Por terras de Camões e Cervantes
(1998), Noite das Fogueiras (1998), A Casa (1999) e Caminho das Águas (2001). Mais
considerações sobre a autora serão feitas no primeiro capítulo, “Nos Espaços da Crítica
Genética”.
11
Como integrante da equipe encarregada da organização do acervo dos Campos,
desde 2005 trabalhamos na higienização, catalogação e indexação de documentos
pertencentes a Natércia Campos, mais especificamente na então classificada série Material
Extraído de Periódicos. Durante esse período, lemos também sua correspondência e
manuscritos; dentre estes, os originais do romance A Casa, livro publicado em 1999,
premiado e indicado na lista do vestibular da Universidade Federal do Ceará em 2004.
Antes mesmo de elaborarmos um projeto para ingresso no programa de mestrado
da Universidade Federal do Ceará, a organização do Acervo dava seus frutos, pois
trabalhamos na montagem de exposições, para dar ao público uma amostra do trabalho então
realizado; fazíamos palestras sobre o método empregado, a fim de divulgar essa nova
modalidade de pesquisa no Ceará. Com o mesmo objetivo, como mestranda, participamos
de congressos, encontros e seminários, com apresentação de resultados parciais da pesquisa.
Para melhor desempenho na organização do material, doado pela família Campos,
era preciso conhecermos as técnicas arquivísticas; assim formamos o grupo de estudos “Da
raiz à flor”, coordenado pela professora Neuma Cavalcante e composto por mim, por Isabel
Gouveia e Terezinha Melo; amos e discutíamos obras de Segismundo Spina, Luis Fagundes
Duarte e Pierre-Marc de Biasi. Participamos também da oficina “Normas de Preservação de
Documentos Públicos”, organizado pelo Arquivo Público do Estado do Ceará e Arquivo
Nacional. Iniciamos ainda uma oficina de encadernação com o técnico da Biblioteca do
Centro de Humanidades, Pedro Alves.
À medida que fomos criando intimidade com o Acervo, percebemos a riqueza de
possibilidades que oferece e, entre tantas, optamos pelo trabalho com os manuscritos.
Decidimos, então, apresentar um projeto de pesquisa para concorrer a uma vaga no Programa
de Mestrado em Literatura Brasileira da UFC. Como somente Ítalo Gurgel, aqui no Ceará,
havia trabalhado com manuscritos em sua dissertação “Uma leitura íntima de Dôra,
Doralina: A lição dos manuscritos” (2001), não existia uma linha de pesquisa específica nesse
campo; e nosso projeto “A Casa: arquitetura do texto” vinculou-se à linha “Literatura e
História”. No ano seguinte, 2007, o Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira
implantou a linha de pesquisa “Arquivo de escritores: organização, preservação, exploração e
divulgação.”
A documentação relacionada ao romance de Natércia Campos é muito extensa:
abrange cartas, rascunhos, pesquisas e manuscritos da obra em várias fases de elaboração; um
exemplar em brochura, enviado para o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura e a primeira
12
edição de 1999; disquetes, material extraído de periódicos, quatro versões completas digitadas
e uma incompleta, cujo volume foi desmembrado e o verso da folha utilizado como rascunho.
A extensão desse conjunto documental e a visibilidade da obra, em parte devido
ao vestibular, despertaram nosso interesse e foram decisivos na escolha do objeto de pesquisa.
A par disso, notamos a escassez de trabalhos sobre o livro de Natércia. Fora um pequeno
número direcionado aos vestibulandos, nem todas as críticas endereçadas à autora tiveram
divulgação pública, permanecendo guardadas em seu acervo.
Quanto à metodologia a ser utilizada no desenvolvimento de nossa pesquisa, a que
mais atendia às necessidades do projeto eram os pressupostos teóricos da Crítica Genética.
Dentre vários teóricos da Crítica Genética, optamos metodologicamente pelas
obras de Almuth Grésillon e Pierre-Marc de Biasi, que respondem com maior pertinência ao
tipo de material do qual nos ocupamos. Com relação à obra de Grésillon, utilizamos suas
informações sobre objeto e objetivo da Crítica Genética. A autora não apresenta de forma
didática as fases do processo criativo, no entanto nos leva a reflexões sobre a teoria. Já a obra
de Pierre-Marc de Biasi normatiza a classificação e as etapas do processo de criação,
sugerindo a abordagem crítica dos manuscritos. Por tal motivo, elegemos a obra desses
teóricos como suportes fundamentais. Ao longo da dissertação, a apresentação da metodologia
será desenvolvida e explicitada na análise dos manuscritos.
Organizamos a dissertação em três capítulos: o primeiro, “Nos espaços da Crítica
Genética”, procura mostrar o surgimento dessa técnica e os métodos por ela utilizados para o
tratamento do manuscrito moderno e destaca tanto a importância da criação do AMEC para a
preservação da cultura quanto a relevância de Natércia Campos na Literatura Cearense. O
segundo, “Os caminhos da Criação”, apresenta o dossiê de três textos: “O Espelho”, “O
Rasto” e “Infância no Minho”. O terceiro, “O surgimento do romance A Casa”, destaca a
participação desses textos na gênese do romance. Por fim, a conclusão traz reflexões sobre o
processo de criação da escritora. A bibliografia elenca obras ligadas diretamente à pesquisa:
obras de Natércia Campos; trabalhos sobre Natércia; discurso de posse na Academia Cearense
de Letras, obras teóricas sobre Crítica Genética e Crítica Textual, dicionários e obras de
Teoria Literária.
Anexas estão as entrevistas realizadas com familiares e amigos de Natércia
Campos e a cópia do Termo de Cessão do seu acervo à Universidade Federal do Ceará.
13
1 NOS ESPAÇOS DA CRÍTICA GENÉTICA
1.1 Como surgiu a Crítica Genética
Ao analisarmos um texto literário, podemos enfatizar o autor, a recepção da obra
ou o leitor, mas tendo sempre como pontos de partida o tripé composto de autor, obra e leitor,
como nos ensina Antonio Candido
1
, em Formação da Literatura Brasileira:
Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos vários
níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em
primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na
designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem
que a intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, o
texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que transcendem e não
se deixam reduzir a eles.
A Crítica Genética, tendo como objeto o manuscrito moderno, representa um
apoio confiável ao crítico literário, fornecendo-lhe dados sobre o texto, tais como a datação, o
contexto em que foi escrito, a dinâmica da escritura, o movimento das variantes que podem
esclarecer o texto final. O manuscrito moderno, segundo Almuth Grésillon
2
, opõe-se ao
manuscrito antigo em todos os aspectos:
O primeiro é um manuscrito de ‘autor’, o segundo, em sua grande maioria, um
manuscrito feito pelo copista. O primeiro é um documento particular, no qual o
autor consigna para si mesmo os estados sucessivos de um texto em elaboração, o
segundo é um documento feito para ser publicado, uma vez que, até a invenção da
imprensa (e ainda bastante tempo depois), o livro era manuscrito e somente esse
manuscrito tinha a função de garantir a circulação dos textos. O primeiro é um
documento de criação, o segundo, um documento de reprodução e de transmissão
resultando disto que a crítica genética não é possível no sentido estrito senão a partir
dos manuscritos modernos.
Vale lembrar que consideramos manuscritos também os textos impressos ou
datilografados, mas que tenham anotações autógrafas ou colagens.
A técnica para estudo do manuscrito moderno foi desenvolvida na França, nos
anos 60, (Centre National de la Recherche ScientifiqueCNRS, 2004), quando uma pequena
1
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. p.33. vol. I
2
GRÉSILLON, Almuth. Elementos de Crítica Genética: ler os manuscritos genéticos. Tradução de Cristina de
Campos Velho Birck...[et al]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. p.110 e 111.
14
equipe de pesquisadores encarregou-se de organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich
Heine, que haviam sido comprados pela Bibliothèque Nationale de Paris. Esses manuscritos
foram encontrados às margens do rio Sena, onde o poeta viveu durante vinte e cinco anos,
após ter fugido da Alemanha durante o governo de Metternich.
Embora os manuscritos já fizessem parte de acervos de bibliotecas, não havia sido
consolidada uma metodologia específica para seu tratamento e exploração, e pela primeira vez
eram vistos como objetos de estudo e não apenas como patrimônio cultural. Mas ainda não se
dispunha de experiências anteriores para o trato desse tipo de material (cartas, manuscritos,
anotações, etc). Nas palavras de Almuth Grésillon (2007, p 7-18)
3
:
Os melhores dentre eles eram especialistas em Heine, mas nenhum tinha em sua
bagagem qualquer teoria da escrita literária, nem uma experiência prática do
manuscrito. O que os reunia era um desejo comum de aprender na prática para
responder ao desafio, e apreender a materialidade dos rascunhos para classificar,
datar, transcrever e editar a coleção de Heine.
Foi um período rico de discussões motivadas pela inquietação sobre o tratamento
a ser dispensado ao manuscrito moderno. O resultado dos estudos apresentados em Simpósios
e divulgados em revistas foi a normatização de uma técnica a que chamaram Crítica Genética.
Herdeira da experiência da Filologia
4
, com manuscritos e edições para
estabelecimento do texto crítico, a Crítica Genética fornece mecanismos para a interpretação
da evolução do processo criativo, tendo como base os manuscritos modernos, qualquer que
seja sua extensão (fragmentos, esboços, esquemas, textos incompletos), formas (manuscritos,
datiloscritos, impressos, colagem) e suporte (folhas avulsas, cadernos, cadernetas, recortes).
Utiliza também paratextos (cartas, entrevistas) que possam iluminar a trajetória do texto.
Aceitando a posição dos que consideram que a Crítica Genética beneficiou-se da
tradição filológica e dos passos por ela definidos recensio, estemática, collatio bem como
de outros campos de decifração da escrita, como a Codicologia para conhecimento do
3
GRÉSILLON, Almuth. Alguns pontos sobre a História da Crítica Genética.Revista do Instituto de Estudos
Avançados.v.11. n. 11. p.7-18. abril 1991.
4
Essa filiação não é aceita unanimemente pelos teóricos da Crítica Genética; por exemplo, Grésillon diz: “Os
inícios reais da crítica genética atual fizeram-se, pois, é importante frisar, fora de qualquer ambição teórica e
mesmo desconectados de qualquer tradição filológica, principalmente de uma certa tradição francesa, indo de
Lanson a J. Pommier, passando por Albalat, Rudler, Audiat e alguns outros. Também é absurdo declarar hoje
que o ponto de partida das pesquisas atuais teria sido fornecido pela contestação’ dessa tradição (Falconer
1988, p.279). Esta tradição não foi nem contestada nem esquecida nem desprezada, muito simplesmente ela
não estava na ordem do dia quando, em 1968, foi necessário realizar o mais urgente para que alguns
germanistas viessem decifrar a escritura gótica, instruir-se com seus colegas dos manuscritos antigos, a fim de
aprender o bê-a-bá da codicologia e inspirar-se nas grandes empresas editoriais alemãs, para saber como
descrever e representar variantes.”
15
material utilizado na produção do manuscrito - não poderíamos deixar de estudar e citar
alguns filólogos, como Segismundo Spina
5
, que diz:
A Filologia concentra-se no texto, para explicá-lo, restituí-lo à sua genuinidade e
prepará-lo para ser publicado. A explicação do texto, tornando-o inteligível em toda
a sua extensão e em todos os seus pormenores, apela evidentemente para disciplinas
auxiliares (a literatura, a métrica, a mitologia, a história, a gramática, a geografia, a
arqueologia etc.), a fim de elucidar todos os pontos obscuros do próprio texto. Esse
conjunto de conhecimentos complicados, dando a impressão de verdadeira cultura
enciclopédica de quem os pratica, constituindo o caráter erudito da Filologia. Aliás,
[...] nasceu assim a filologia alexandrina. A restauração do texto, numa tentativa de
restituir-lhe a genuinidade, envolve um conjunto de operações muito complexas,
mas hoje estabelecidas com relativa precisão: é a crítica textual, que também foi
conhecida e praticada pelos filólogos alexandrinos; a preparação do texto, para
editá-lo na sua forma canônica, definitiva, também apela para um conjunto de
normas técnicas, hoje também sistematizadas e mais ou menos universalmente
respeitadas. A explicação do texto, a sua restituição à forma original através dos
princípios da crítica textual, constituem aquilo que podemos chamar de função
substantiva da Filologia; a Edótica compreende essa operação da crítica textual e a
organização material e formal do texto com vistas à publicação.
Além de Spina, citamos Giuseppe Tavani e Luiz Fagundes Duarte, que se
permitem transitar entre os conceitos de Filologia e Crítica Genética. A leitura dos seus textos
nos mostrou que, em nosso trabalho, teríamos que ampliar o diálogo e solicitar o concurso de
outras disciplinas. Cada caso traz consigo suas especificidades, o que nos leva à flexibilização
das normas. Segundo Tavani (1988), “[n]ota-se uma como que não perfeita correspondência
entre a teoria e a práxis, no sentido de que a teoria se revela demasiado abstrata para que seja
diretamente transponível na prática, e a práxis se manifesta sempre ou frequentemente -
muito menos convincente que a teoria”. em Luiz Duarte, colhemos os fundamentos para a
descrição dos suportes e os tipos de interferências no manuscrito estudado, fases também
necessárias na aplicação da crítica genética. Usamos como guia seu livro A Fábrica dos
Textos (1993) e A Capital! Começos duma carreira (1992) seu estudo filológico à edição
crítica da obra de Eça de Queirós.
No entanto, Crítica Genética, a nosso ver, distingue-se da Crítica Textual e da
Edótica, por não visar a um fim, isto é, não cabe a ela escolher o melhor texto ou o mais
original, seu objetivo é avaliar a criação do autor e os diversos momentos da criação, é
observar a obra enquanto ela se faz, analisar a trajetória percorrida desde os primeiros esboços
até mesmo de uma idéia comunicada em carta a um amigo caso o texto venha a ser
5
SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica: Crítica Textual. 2ª edição. São Paulo; Ars Poética: Editora da
Universidade de São Paulo, 1994. p. 82.
16
publicado, e, mesmo se ficar inacabado: por morte do autor, por desvio dele para outros
interesses, enfim, por motivos que só irão participar do processo perifericamente.
Gustavo Lanson, Daniel Mornet, Gustave Rudler e Pierre Audiat estão entre os
teóricos que estabeleceram alguns princípios nos quais a Crítica Genética iria apoiar- se.
Lanson, nos Essais de méthode de critique et d’histoire littéraire (1910), relata o
trabalho que o crítico tem para buscar as informações sobre o autor e a obra em livrarias,
bibliotecas, diários particulares, correspondência; procurar traçar paralelos entre elementos
afins das obras e agrupar as que se assemelham. Como observa Jean-Yves Tadié
6
, algumas
análises de Lanson não são finalistas, não admitem que o último texto seja o melhor ou
definitivo. Na verdade, a Crítica Genética não busca um texto final, mas sim o processo.
Daniel Mornet utilizou os catálogos de bibliotecas como fonte para seus estudos.
Foi o pioneiro nesta nova abordagem e lançou uma pergunta básica, anunciada por tantos
outros estudiosos: o que liam esses homens? A partir daí, a busca de novas abordagens tem-se
ampliado significativamente.
7
Grandes ou pequenos conjuntos de livros, com proprietários
sistemáticos ou diletantes, passaram a ser vasculhados através de fontes cartoriais e trouxeram
novos subsídios para os historiadores que privilegiavam também o contexto social do período
investigado.
8
Gustave Rudler, professor em Oxford, publicou Techniques de La critique et de
l’historie littéraire (1923), em que se a evolução do processo mental da escrita. Segundo
Ítalo Gurgel
9
“Sua teoria visava determinar a ‘fórmula total’ do escritor, pressupondo ele que
os manuscritos deveriam reconstituir sua fisionomia sentimental, ideológica e sensorial.”
Audiat, em sua tese La biographie de l’oeuvre littéraire, busca a “idéia geradora”
de uma obra. Nas palavras de Tadié, “ele propõe ‘desdobrar a obra anteriormente dobrada’,
imitando ‘o ato pelo qual a obra foi criada’, ‘reconstituindo e revivendo a vida mental de um
escritor em determinado período’. então o crítico torna-se realmente escritor e essas duas
6
TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica Literária no Século XX. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1992.
p.288.
7
Ver Michel Marion. Recherches sur les bibliothèques privés à Paris au milieu du XVIIIª siecle (1750-1759).
Paris: Bibliotheque Nationale, 1978. p. 45-8; Robert Darnton. Boemia literária e Revolução. O submundo das
letras no Antigo Regime. Trad. de Luis Carlos Borges. o Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 168-79.
Esses dois autores enfatizam a importância pioneira dos trabalhos de Mornet. Ler também Daniel Mornet,
Comment étudier un auteur de troisième ou de quatrième ordre. Romanic Review, XVIII [1936], p. 204-16 e
Histoire de la Littérature française classique, 1660-1700. Paris, 1947
8
http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&client=firefox-a&rls=org.mozilla:pt-
BR:official&hs=Com&q=daniel+mornet&start=10&sa=N
9
GURGEL, Ítalo. Uma leitura íntima de Dôra, Doralina: a lição dos manuscritos. Fortaleza: Casa José de
Alencar, 1997. p.58.
17
categorias de homens das letras param de se opor.”
10
Com essa forma de pensar, introduziu
na crítica a noção de tempo, distinguindo as etapas da criação.
Beneficiária de todas essas reflexões do estudo do manuscrito moderno, bem
como do legado da filologia, a técnica que seria chamada Crítica Genética realiza a
normatização dessas preocupações sobre a obra “in fieri”.
Quando nos remetemos ao momento em que surge a Crítica Genética - fim dos
anos 60 e início dos 70 - devemos lembrar que o Estruturalismo estava em voga. E a nova
técnica se volta contra essa corrente, mas ao mesmo tempo usa o rigor investigativo
empregado por ela.
Almuth Grésillon (1991, p.7-18) descreve com precisão a identificação e a
dissociação entre Critica Genética e Estruturalismo:
Herdando dessa corrente o rigor metodológico, a crítica genética, embora fazendo
romper o fechamento do texto, foi utilizada para isolar e descrever as diferentes
fases dos antetextos (notas documentárias, pesquisas, menções epistolares, notas de
trabalho, roteiros, planos, resumos, primeiro esboço redacional, rascunhos
elaborados, passagens a limpo, cópias, provas corrigidas); e estabelecer, em função
dos hábitos variáveis dos escritores, tipologias antetextuais. Com o mesmo rigor, a
análise material do manuscrito, que acrescenta ao antigo exame filológico as
vantagens da informática e da análise do papel, mas que é uma coisa bem diferente
do "positivismo com lente" (M. Crouzet 1989, p. 12), chega a classificações
genéticas de muito grande precisão.
O percurso da Crítica Genética até a atualidade organiza-se, ainda segundo
Grésillon, em três momentos: o primeiro, “germânico-ascético” (1968-75), fase inicial em que
os pesquisadores do CNRS procuravam aprender como tratar os manuscritos. No segundo,
“momento associativo-expansivo” (1975-1985), os estudos passam a ser mais gerais, não
apenas se concentrando na decifração da escrita de Heine, mas estendendo-se a Proust, Zola,
Valéry e Flaubert. Foi nesse período que outros países, como o Brasil, passaram a valorizar o
patrimônio literário e buscaram a ajuda na experiência francesa. O terceiro, mais
amadurecido, é o “momento justificativo-reflexivo”, vivido na atualidade, estágio de novos
questionamentos sobre os limites da Crítica Genética e a tentativa de consolidá-la como
ciência.
No Brasil, essa técnica foi introduzida por Philippe Willemart, Professor - Titular
de Literatura Francesa da Universidade de São Paulo, ao organizar o I Colóquio de Crítica
Textual - O manuscrito Moderno e as Edições. Nessa mesma ocasião, foi fundada a
10
TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica Literária no Século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1992. p.292
18
Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), que organizou diversos
congressos (1988, 1991, 1994, 1997, 2000, 2003, 2006, 2009). Tem como principal órgão de
divulgação a revista Manuscrítica, fundada em 1990. Atualmente essa associação tornou-se
mais abrangente e modificou seu nome para Associação de Pesquisadores de Crítica Genética
(APCG), por aplicar essa técnica a diversos campos da arte e não apenas à Literatura.
Seguindo os passos indicados por Pierre-Marc de Biasi, veremos que a análise de
um manuscrito passa por fases que permitem identificar a cronologia da gênese de uma obra.
O estabelecimento dos documentos procurando sempre confirmar a
autenticidade dos documentos, o crítico deve fazer o inventário de todos os testemunhos da
obra escolhida para análise, daí resultando o “dossiê genético”. Essa primeira fase da pesquisa
pode demorar anos.
Especificação das peças consiste em separar cada documento de acordo com a
fase de elaboração;
Classificação genética - procura identificar os rascunhos e esboços tendo como
critério a similaridade, no eixo paradigmático, e uma sequência cronológica, num eixo
sintagmático.
Decifração e transcrição para classificar os documentos, na maioria das vezes,
é necessário um trabalho de decifração da escrita e transcrição rigorosa de cada rasura,
mancha ou anotações encontradas no fólio.
Uma das fases mais complexas de uma análise genética é a identificação da ordem
cronológica dos testemunhos. No nosso caso, por exemplo, apenas dois manuscritos estão
datados.
Para estabelecer a cronologia dos manuscritos, fazemos uso da Codicologia, que,
como vimos em Spina e agora reiteramos nas palavras de Biasi, é a “ciência dos suportes
materiais da escrita: tintas, lápis, papéis, filigranas, etc. A composição química de uma tinta, a
presença de um tipo particular de filigranas (todos os papéis continham até o século XX) no
papel utilizado pelo autor, a própria natureza desse papel (espessura, cor, dimensão, etc.)
podem tornar-se indícios particularmente preciosos para classificar e datar documentos
problemáticos.”
11
Conseguimos datar alguns manuscritos, no acervo de Natércia Campos,
analisando seus elementos externos: cor e tamanho da folha, se estavam datilografados ou
digitados no computador.
11
BIASI, Pierre-Marc. In: Métodos críticos para a análise literária. Vários autores. São Paulo: Martins Fontes,
1997. p. 27.
19
A Crítica Genética busca sua consolidação através da delimitação bem definida de
“seu objeto: os manuscritos literários, na medida em que portam o traço de uma dinâmica, a
do texto em criação. Seu método: o desnudamento do corpo e do processo da escrita,
acompanhado da construção de uma série de hipóteses sobre as operações escriturais. Sua
intenção: a literatura como um fazer, como atividade, como movimento.”
12
Esses três
elementos norteadores da Crítica Genética oferecem ao crítico um subsídio seguro para a
formulação de uma opinião, livrando-o de incertezas e divagações.
Os estudos genéticos da obra de arte vêm se desenvolvendo e despertando
interesse. Isso é comprovado pela produção acadêmica, que tem ampliado a investigação de
manuscritos brasileiros em diferentes regiões do País, como na Universidade de São Paulo,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Universidade Federal do Espírito Santo, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade
Federal da Bahia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal Fluminense e, mais
recentemente, Universidade Federal do Ceará.
1.1.1 “O brasileiro não tem memória”
Ao longo da vida, acumulamos papéis, objetos, cartas, fotografias, agendas,
diários e outros materiais que, se isolados do conjunto, poderiam não ter sentido. Por
exemplo: coleções de chaveiros, folhas secas dentro de um livro, tampas de vinho...
Compõem o que Philipe Artières chama de “arquivamento do eu” e responde a uma exigência
social, ou intenção autobiográfica. Os documentos de identificação: certidões, diplomas,
registros, documentos de identidade, vida escolar, fotografias, têm função prática, pois com
esses papéis monta-se o curriculum vitae. Mas, além desse aspecto circunstancial, também é
possível extrair deles “lições do passado, para preparar o futuro, mas, sobretudo para existir
no cotidiano.”
13
Não é diferente com pessoas que possuem um destaque social, político ou cultural
- músicos, escritores, artistas. Todos formam seus acervos e felizmente alguns deles
encontram-se dispostos a cuidar desses documentos e torná-los disponíveis para estudiosos e
12
GRÉSILLON, Almuth. Elementos de Crítica Genética: ler os manuscritos modernos. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2007. p.19.
13
ARTIÈRES, Philippe. “Arquivar a própria vida”. In Estudos Históricos: arquivos pessoais. Rio de Janeiro:
CPDOC/FGV,v. 11, n. 21, p.9-32, 1998.
20
pesquisadores. As cartas e fotografias, por exemplo, contam muito sobre o momento histórico
e a vida do titular. Observando sua biblioteca, acompanhamos seus interesses de leituras, o
gosto pessoal e também as tendências e o desenvolvimento editorial de uma época.
Procedimentos de escritura nos serão mostrados pelos seus manuscritos e rascunhos. O
conjunto desses documentos contribui para que entendamos melhor a memória individual do
titular e o contexto em que viveu. Essas memórias individuais irão conformar a memória
nacional.
A preservação do legado de artistas e escritores é um ato responsável, que tem
levado instituições a investirem na formação de pesquisadores e na aquisição de técnicas
específicas. Famílias de escritores já confiam que o legado cultural herdado estará seguro e
constituirá um verdadeiro celeiro de pesquisas, que permite ver na obra além do que foi
publicado.
Cada acervo contém a sua especificidade e demanda uma forma diferenciada de
tratamento. Mas, para todos, um procedimento comum: organizar, preservar, explorar e
divulgar o conteúdo existente em todos eles.
Concordamos com Maria Zilda Cury
14
quando diz que “[a] organização de
acervos e a abertura de suas portas a um público mais amplo, além do mais, indicam uma
visão mais democrática das possibilidades de acesso à cultura e para uma tentativa de
retomada da memória no seu aspecto efetivamente coletivo, comunitário”.
No Brasil equipamentos culturais de iniciativa pública e privada - dedicam-se à
aquisição e manutenção de acervos. As instituições privadas são geralmente motivadas pelo
interesse da família: Fundação Casa de Jorge Amado (BA), Casa de Juvenal Galeno (CE),
Casa de Gilberto Freire (PE), Casa de José Américo (PB), Arquivo de Érico Veríssimo (RS),
Fundação Câmara Cascudo (RN). Instituições públicas que também abrigam esse tipo de
material são, por exemplo: Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-SP), Acervo de Escritores
Mineiros, Centro de Estudos Literários (UFMG), Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ),
Biblioteca blica do Rio de Janeiro, Centro de Estudos Murilo Mendes (UFJF), Centro de
Pesquisas Literárias da PUCRGS (RS), Instituto Moreira Salles (SP), esta uma empresa mista.
Uma das funções de Instituições culturais, como as Universidades, é a divulgação
e preservação da cultura, cumprindo o papel que lhe cabe perante a sociedade. Esse é o
objetivo da Universidade Federal do Ceará, que busca aprimorá-lo e ampliá-lo desde sua
14
CURY,
Maria Zilda. “Acervos: nese de uma nova crítica”. In: A trama do arquivo. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 1995.
21
instalação.
15
Para tanto, incorpora à sua administração o MAUC (Museu de Arte da UFC), As
Casas de Cultura Estrangeira, A Casa de José de Alencar, entre outros.
Procurando, mais uma vez, colocar-se em consonância com sua época e ciosa de
sua responsabilidade na preservação da memória nacional, a Universidade Federal do Ceará
apóia a proposta de criação do primeiro Arquivo-Museu de Escritores Cearenses.
A concretização dessa iniciativa foi possível através do ato responsável da
família Campos, ao confiar na UFC como a instituição tutelar e propagadora do legado de
Moreira Campos e Natércia Campos, que tanto contribuíram para que a literatura local se
destacasse e agora, aceitando a doação dos acervos de ambos, assume a responsabilidade de
criar condições para manutenção, preservação e divulgação desse novo bem patrimoniado.
1.1.2 Natércia Campos e a Literatura Cearense
Natércia Maria Alcides Campos, filha de José Maria Moreira Campos, professor
da UFC, crítico literário e escritor, e Maria José Alcides Campos, era funcionária da
Secretaria dos Negócios do Interior e da Justiça do Ceará. Nasceu em Fortaleza, Praia de
Iracema, em 30 de setembro de 1938. Na infância gostava de ouvir as histórias contadas pelo
pai e de ler Monteiro Lobato, irmãos Grimm, Andersen e Perrault. Com apenas 17 anos,
casou-se com José Emanuel Pápi Saboya, filho de Nadir Roquelina Pápi de Saboya, primeira
dama do teatro cearense e filha do segundo casamento do escritor Antônio Pápi Junior. Da
união de Natércia e José Emanuel nasceram seis filhos, Caterina, José Thomé, Clarissa,
Rodrigo, Emmanuela e Carolina. Durante os seus 65 anos de vida, Natércia fez várias viagens
e algumas delas ficaram registradas em suas obras, como é o caso da viagem feita a Portugal e
Espanha, que inspirou o Por Terras de Camões e Cervantes e A noite das fogueiras. O
cruzeiro pela região Norte do Brasil gerou o Caminho das Águas. Sua mais longa e produtiva
viagem, porém, foi aquela realizada ao sertão nordestino, conduzida pelas obras de Câmara
Cascudo, Oswaldo Lamartine e Gustavo Barroso, e que marcou o seu único romance, A Casa.
15
Art. 4º. - A Universidade tem por objetivo preservar, elaborar, desenvolver e transmitir o Saber em suas várias
formas de conhecimento, puro e aplicado, propondo-se para tanto:
a) ministrar o ensino para formação de quadros destinados às atividades técnicas e aos trabalhos da cultura;
b) realizar pesquisas e estimular criações que enriqueçam o acervo de conhecimentos e técnicas nos setores
abrangidos;
c) estender à comunidade o exercício das atividades de ensino e pesquisa.
http://www.ufc.br/portal/images/stories/_files/auniversidade/estatuto/estatuto_ufc.pdf
(horário 16:09) dia
11/03/09.
22
Sua amiga Eugênia Queiroz relembra, em entrevista que nos concedeu, o deslumbramento de
Natércia pelo Sertão: A Natércia nasceu na praia de Iracema, nunca morou no sertão,
porém tinha uma verdadeira fascinação e falava no Sertão como se lá tivesse vivido.
16
Em 2 de junho de 2004, a escritora faleceu vítima de câncer.
Natércia Campos estreou como escritora nas ginas do suplemento literário de
“O Povo”
17
, jornal de Fortaleza. Sua carreira inicia-se com o conto “A Escada”, que escreveu
na Espanha, quando fora visitar seu primeiro neto, no ano de 1984. Foi publicado na coletânea
Quem Conta um Conto (editora Expressão - SP, 1987), na Revista de Letras, v. I, Fortaleza
(Edições UFC, 1988) e no Almanaque de Contos Cearenses (editora Bagaço, 1997). Este seria
apenas o começo de uma brilhante trajetória que nos traria outras histórias, como Iluminuras
(1988), livro dedicado a seu mestre Câmara Cascudo
18
; Por Terras de Camões e Cervantes
(1998) que, segundo Regina Fiúza, amiga da escritora, era, a princípio, uma carta destinada ao
poeta Jorge Medauar e que depois de muita insistência por parte de Regina, transformou-se no
livro; A noite das fogueiras (1998), que teve como título inicial A noite das bruxas; A Casa,
lançado em 4 de agosto de 1999 e Caminho das Águas, um relato de viagem, em 2001.
Escreveu ainda um poema intitulado “Nada mais efêmero e eterno”, publicado no jornal O
Povo em 11 de novembro de 1991
19
. Publicou na coletânea 3 x 4, organizada por Margarita
Solari e lançada no dia 15 de maço de 1991, um texto sem tulo
20
, em 18 Posters-Poemas,
lançado em outubro de 1991, outro texto sem título. Em dezembro de 1991 poema
“Alvíssaras” em Poesia Plural 2, coletânea também organizada por Margarita Solari.
Organizou os dois volumes de contos Obra Completa de Moreira Campos (1996) e Em
alpendres d'Acauã (2001), de Oswaldo Lamartine.
Teve participação nas antologias O
Talento Cearense em Contos, - com “Penitentes” (1996)- Antologia do Conto Cearense, com
"O Jardim" (1990) e em Letras ao Sol - Antologia da Literatura Cearense, com o conto
“Eles”, organizada por Oswald Barroso e Alexandre Barbalho (edições Fundação Demócrito
Rocha, 1998). O ensaio “A alma bíblica do sertão encourado” foi publicado no livro
Estandartes das Tribos de Israel (Banco Safra, 2001).
Recebeu vários prêmios, o primeiro deles no Concurso Literário do Banco
Sudameris, em nível nacional, que lhe foi outorgado pela Academia Botucatuense de Letras
16
Eugênia Queiroz, amiga de Natércia Campos, trabalhou com ela na Secretaria da Cultura e Desporto do
Estado.
17
Informação encontrada no Currículo de Natércia Campos sem data e sem título da colaboração.
18
Discurso de posse de Natércia Campos, na Academia Cearense de Letras. “Para o Mestre Luís da Câmara
Cascudo, minha magia e meu real”
19
Esta relação poderá sofrer alteração após a organização completa do Acervo
.
20
Textos integrais de 3x4, Poesia Plural e Poesia Plural 2 anexo.
23
pelo conto “A Escada”, em 1987. Seu segundo prêmio veio no ano seguinte, na categoria
Conto, na IV Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, com o livro Iluminuras. Foi agraciada, em
1998, com o prêmio Osmundo Pontes de Literatura pelo livro A Casa. Após essa premiação,
Natércia pediu à amiga Regina Fiúza que fizesse a revisão do texto para a primeira edição. “O
sonho dela era publicar por alguma editora do Rio de Janeiro ou de São Paulo (...) Na época
Natércia tentou conseguir a publicação por uma editora do Rio. Todos gostaram muito, mas
infelizmente não saiu a edição tão esperada.”
21
(2008). O quarto prêmio foi no ano de 1999,
na categoria Crônicas, Prêmio Ideal Clube de Literatura, por “Vôos”.
Foi membro da Academia Cearense de Letras, eleita por unanimidade, em 2002.
Em sua posse, foi recebida pelo poeta Artur Eduardo Benevides, passando a ocupar a cadeira
número 6, cujo patrono é Antônio Pompeu de Sousa Brasil.
Participou também da Academia Fortalezense de Letras e integrou a Sociedade
Amigas do Livro. Em 2004 seu romance A Casa, foi selecionado para integrar a lista do
vestibular da Universidade Federal do Ceará - UFC. Com essa inclusão, a autora, que até
então era conhecida pelos seus contos, passou a assumir um lugar de destaque também como
romancista.
Exerceu cargo público na Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, no
setor de editoração, e coordenou o stand do escritor cearense, desde a primeira Feira do Livro,
em 1996. Exerceu seu último cargo blico no Conselho Estadual de Preservação do
Patrimônio Cultural do Estado do Ceará. Vale a pena lembrar que Natércia, ao concordar com
a doação do acervo de seu pai à UFC, mostrou seu zelo pela preservação da memória cultural,
função que já exercia na Secretaria.
1.1.3 3x4 e Poesia Plural
Em 15 de maço de 1991, na galeria Ignez Fiúza, Natércia Campos, Margarita
Solari, Helena Lutéscia e Arlene Holanda lançaram cartões poemas na coletânea intitulada
3x4. Os cartões eram ilustrados por Pablo Manyé e Tarcísio Garcia.
No final do ano de 1991 surgiu no Ceará o grupo “Poesia Plural”, formado por 18
autores cearenses que cansados da falta de apoio oficial à literatura formaram a cooperativa.
21
Entrevista de Regina Fiúza, Diretora Administrativa da Academia Cearense de Letras e amiga de Natércia
Campos.
24
Margarita Solari descreve como nasceu o grupo:
Um grupo poético formado na minha casa nos começos do ano 1991,onde nos
reuníamos uma vez por semana todas as quartas feiras o horário? Qualquer. A
minha casa estava aberta o dia todo para os amigos e a poesia. Tinha almoço,
merenda o que quiseram simples e todo ao estilo nordestino. Os poetas
participantes Airton Monte e Arlene de Holanda ela além de poeta, foi a
responsável por toda a parte gráfica da edição e a grande amiga cheia de energia
para levar adiante este projeto cultural: Barros Pinho, Batista de Lima, Dimas
Macedo, Diogo Fontenelle, Fernando Neri, Glícia Rodríguez, Gilmar Chaves,
Helena Lutéscia, João Dummar, Jorge Piero, Juarez Leitão, Lindacy Gondim,
Luciano Maia, Lucíola, Andrade Maia, Margarita Solari, Natércia Campos
Embora Natércia não tivesse poemas entrou sem problema, pois sua prosa poética
encaixava perfeitamente em nossa linguagem poética.
O lançamento da primeira coletânea de posters-poemas, em 29 de outubro de
1991, reuniu o trabalho de Airton Monte, Arlene Holanda, Barros Pinho, Batista de Lima,
Dimas Macedo, Diogo Fontenele, Fernando Néri, Glicia Rodrigues, Gilmar Chaves, Helena
Lutéscia, João Dummar, Jorge Pieiro
22
, Juarez Leitão, Lindacy Gondim, Luciano Maia,
Luciola Andrade Maia, Margarita Solari e Natércia Campos. Cada autor participava com um
poema, devidamente ilustrado pelos artistas plásticos Eurico Bivar, Otto Cavalcantti, Ana
Beatriz, Pablo Mayé e Tarcísio Garcia e pelos fotógrafos Marcos Guilherme e Tibico Brasil.
Foi sobre a noite do lançamento dos posters-poemas a crônica “Porta de
Academia”, de Moreira Campos, do dia 30 de outubro.
Foi uma bela noite de arte o lançamento de Poesia Plural no Ideal Clube. São
dezoito posters-poemas de poetas nossos contemporâneos, atuais, atuando. O título
não poderia ser mais feliz: Poesia Plural. A poesia em bloco, em conjunto. Traz
assim a oportunidade de apresentar-nos, de uma vez, um grupo de poetas
conscientes de sua missão. fizéramos experiência semelhante quando o
lançamento de postais-poemas, ao tempo de Pedro Lira, mas sem êxito, o triunfo,
alcançado desta vez. É esta ainda uma maneira de vencer a crise editorial que
vivemos.
Estão ali os seguintes e respeitáveis nomes, por ordem alfabética:
Airton Monte,
Arlene Holanda, Barros Pinho, Batista de Lima, Dimas Macedo, Diogo Fontenele,
Fernando Néri, Glicia Rodrigues, Gilmar Chaves, Helena Lutéscia, João Dummar,
Jorge Pieiro, Juarez Leitão, Lindacy Gondim, Luciano Maia, Luciola Andrade
Maia, Margarita Solari e Natércia Campos.
Na impossibilidade de falar individualmente sobre cada um deles, por falta de
espaço, meço todos pela mesma grandeza, muitos fortemente experimentados no
fenômeno, no fazer poético. Descobridores do mistério, decifradores da Esfinge,
sabido que a Poesia é um instante, um momento, uma visita, “a alegria de um barco
voltando”. É tudo isso e a vida.
22
Agradecemos ao escritor Jorge Pieiro pela preciosa colaboração.
25
Sei que foi uma noite encantadora, de convívio, de intimidade, animada por aquela
força que está sempre presente ao espírito do homem, a poesia, que todos eles tanto
souberam enriquecer.
Eu os chamaria de “dezoito da Fortaleza poética”.
Em dezembro de 1991, ocorreu o lançamento de Poesia Plural 2, além dos
autores citados participou também o poeta Adriano Espínola. Moreira Campos comenta a
publicação com o texto “Poucas Palavras e Muita Poesia”:
Mais uma vez aqui está, em parte ponderável, aquele talentoso Grupo que nos deu
POESIA PLURAL e ao qual chamarei de “Fortaleza Poética”. Nesta publicação,
com a mesma denominação, dando assim continuidade ao projeto.
Poesia e prosa poética é a mensagem deste elenco de jovens e contemporâneos,
muitos deles largamente donos do ofício, do fazer poético, do seu mistério e
revelação. Mais do que nunca, precisamos da presença da Poesia, neste mundo de
violências, técnicas e perplexidades. Apenas pela voz desta, resgata-se o ser. De
resto, é resposta eloquente aos que afirmam a sua morte, quando, bem ao contrário,
o homem, sem o seu exercício, se esvazia. Somente ela é capaz de resgatá-lo. Mora
na sensibilidade e percepção de cada um de nós, embora a sua revelação caiba aos
eleitos, como no caso.
Ao grupo desejo, merecidamente, todo êxito possível e deixo aqui a expressão do
meu respeito e aplauso.
Em setembro de 1992, ocorreu a segunda exposição dos posters-poemas. Nessa
ocasião o evento foi no shopping Iguatemi e a mostra permaneceu por uma semana.
Com a ida de Margarita Solari para Espanha (1996) o grupo perdeu força e os
participantes foram construindo carreiras independentes.
1.1.4 O acervo de Natércia Campos
O acervo de Natércia Campos começou a ser organizado em agosto de 2004, em
sua residência na Rua Nunes Valente 240 apt. 402 - Meireles. O material reunido pela família
estava acondicionado em caixas e pastas numeradas. O primeiro contato com a documentação
foi realizado por Isabel Gouveia e Terezinha Melo sob a coordenação da professora Drª
Neuma Cavalcante. Após o levantamento de todos os itens, no período de agosto a setembro
de 2004, os documentos foram trazidos para uma sala no andar da Biblioteca do Centro de
Humanidades.
23
De janeiro a março de 2005 o material passou pela fase da higienização, mas
23
Agradecemos ao professor Francisco Jonatan Soares - diretor das bibliotecas da UFC - e a Ana Elizabeth
Albuquerque - chefe da Biblioteca do Centro de Humanidades - a gentileza de abrigar o Acervo no espaço
destinado a coleções especiais.
26
com o recebimento de outros volumes entregues pela Drª Carolina Campos, a equipe precisou
parar a higienização e catalogar a nova remessa, essa fase durou de março a maio de 2005.
Terminado o inventário prévio, tínhamos uma lista para o primeiro momento
(agosto/setembro) e outra para o segundo (março/maio) e uma terceira que reuniu as duas
anteriores, seguindo o critério de classificação tipológico. A partir de julho do mesmo ano,
passei a integrar a equipe e a ajudar na higienização dos documentos.
Paralelamente, era feito o Inventário do Acervo de Moreira Campos que,
juntamente com o de Natércia Campos, foi enviado aos familiares. Estes, cientes do conteúdo
do espólio, elaboraram um termo cessão em sistema de comodato, assinado por todos os
filhos. No dia 2 de outubro de 2007, os dois acervos foram oficialmente entregues à
Universidade Federal do Ceará, que promoveu uma solenidade no auditório de sua Reitoria.
Estiveram presentes os filhos, amigos e familiares de Natércia Campos e Moreira Campos. A
mesa foi composta pelo Magnífico Reitor professor Ícaro de Sousa Moreira, pelas professoras
Angela Gutiérrez, Vera Moraes e Neuma Cavalcante e pela filha de Natércia, Drª Carolina
Campos. O termo de cessão à UFC foi assinado pelo Magnífico Reitor Ícaro Moreira, a
curadora Neuma Cavalcante e as testemunhas Elisabete Sampaio, Isabel Gouveia e Terezinha
Melo. Ainda durante a cerimônia foi lançado o livro Tributo a Moreira Campos e Natércia
Campos, organizado pelas professoras do Departamento de Literatura da UFC e então
diretoras da Casa de José de Alencar, Angela Gutiérrez e Vera Moraes que, desde o início
reconheceram o valor da proposta e incentivaram o trabalho fornecendo material de consumo
e divulgando essa iniciativa através da imprensa. Após a assinatura do termo, foi aberta a
exposição “Acervos Culturais do Nordeste”, na sala de convivência da reitoria, com uma
mostra dos Acervos (correspondências, fotografias, cadernetas, manuscritos, tapetes, prêmios)
de Moreira e Natércia Campos.
Ao longo de sua vida, Natércia foi formando um acervo que reúne os mais
diversos tipos de documentos textuais, além de objetos e peças de bordados, principalmente
em ponto cruz, que cobrem um extenso período de 1946 (revista Clã, dez de 1946) a 2004
(Revista SAL, abril de 2004), ano de sua morte. O Inventário Prévio permitiu uma
classificação do material em séries e subséries, atendendo ao tipo de documento e de suporte:
Documentação Pessoal: documentos referentes à vida da escritora, por exemplo:
passagens aéreas, certidão de casamento, comprovantes de pagamentos bancários. Esses
documentos são indispensáveis para exposições e documentários e fonte segura para seus
biógrafos, fornecendo-lhes dados precisos e até corrigindo algumas informações veiculadas
erroneamente pela internet e por outros meios de comunicação. Essa série é muito reduzida,
27
pois documentos importantes, como identidade, passaportes, vida escolar, etc, encontram-se
ainda com a família.
Correspondência: de familiares, de amigos, de trabalho e de terceiros: tanto ativa
quanto passiva, esta fotocopiada. As cartas - passivas ou ativas - de um acervo nos dão uma
visão das relações afetivas e intelectuais do escritor e, como consequência, da vida cultural da
cidade. Essa série nos ajuda também para apreensão da recepção das obras. Muitas vezes,
nessas correspondências, são discutidos assuntos de cunho literário, a opinião de outro autor
sobre o texto a ser publicado e até correções que devem ser feitas. Esses comentários são
preciosos na elaboração de textos acadêmicos e de biografias. Mostram-nos também a
personalidade do escritor. Uma particularidade do Acervo de Natércia Campos são as
fotocópias já citadas. A escritora tinha o hábito de guardar a cópia das cartas enviadas por ela.
Este hábito possibilitará estabelecer o diálogo entre os correspondentes.
Material áudio - visual: constituído por disquetes, fitas de vídeo, fita cassete,
esta série nos permite saber mais sobre os gostos da escritora, conhecer os momentos que
mereceram sua atenção e foram registrados. Fotografias de festas, prêmios, reuniões com
amigos, familiares e registro de viagens marcam uma época e podem indicar as amizades e
como eram as reuniões de família ou servir como registro de viagens. Serão utilizadas em
exposições, documentários e publicações. Retratam os costumes, a moda, os acontecimentos
sociais. Podem ser fonte para biografias de outras personalidades que aparecem nessas
fotografias, filmes ou vídeos.
Material Extraído de Periódicos: recortes, geralmente, sobre a escritora
celebrando algum lançamento ou premiação de livro, ou matérias de terceiros, sobre diversos
assuntos. Alguns deles, segundo nossa pesquisa, serviram de informação para o livro A Casa.
Esta série, além de nos revelar o momento histórico e a recepção da obra, pode ser útil para
datação de textos e, provavelmente, para organizar a trajetória da escritora. no acervo de
Natércia reportagem sobre uma casa mal-assombrada que, segundo observamos, trouxe-lhe
informações arquiteturais para a construção d’A Casa.
Biblioteca: formada de livros que trazem colaboração da autora e de terceiros
com e sem dedicatória, e revistas (tanto de literatura como sobre a confecção de tapetes).
Muitas vezes a documentação bibliográfica nos orienta sobre a preferência do proprietário e
as influências sofridas por ele. No caso de Natércia, a sua obra deixa transparecer a leitura dos
livros de Câmara Cascudo e Oswaldo Lamartine. Grande leitora que era, esperávamos uma
razoável quantidade de livros, mas, para nosso pesar, quase todos foram doados a Escolas
Públicas e à Academia Cearense de Letras. Não duvidamos de que serão bem cuidados e que
28
teremos acesso a eles. Mas, ao serem tombados como parte do acervo geral, a história do
objeto livro e as marcas deixadas nele pelo leitor/escritor serão praticamente apagadas, uma
vez que se misturarão às marcas de outros leitores que frequentam a biblioteca. As marcas
deixadas pelo leitor - interrogações, expressões, frases, comentários transformam-se
algumas vezes num conjunto de informações que poderão ser usadas na elaboração de outros
textos.
Manuscritos de obras: esta série abriga os originais de obras publicadas e
inéditas, manuscritas, datilografadas, impressas, com ou sem correções de terceiros, ou
interferências autógrafas.
Esta última série gerou a subsérie Manuscritos - estudos e rascunhos: anotações
de pesquisa, transcrições de leituras, rascunhos, esboço de textos em suportes variados, desde
cadernos, cadernetas, versos de folhas utilizadas até fragmentos de papéis. Esta subsérie
nos possibilita desvelar os segredos do processo de criação de obras. Segundo Louis Hay, o
manuscrito é o coração da gênese literária. Do seu estudo poderão surgir edições genéticas,
edições comentadas, ensaios, o que dará à critica literária elementos seguros para análise da
obra. O acervo de Natércia reúne uma grande quantidade de manuscritos, pois a escritora
reformulava diversas vezes seu texto. Em entrevista, ao comentar sobre a escritura de Noite
das Fogueiras, Neide Lopes
24
(2008) diz:
Ela escreveu a historinha original e depois foi ampliando, com pesquisas sobre as
lendas e mitos dos países, quer dizer, era dessa forma que ela escrevia: fazia a
estrutura, aquele início, e ia acrescentando informações, complementando e era tudo
a mão, gostava de escrever com lápis, porque ela apagava, riscava, recortava,
juntava, era uma construção. E eram sempre recheados de informações e conteúdos
que resultavam de pesquisas e do seu conhecimento universal.
Outros: reunião de objetos feitos por Natércia ou recebidos por ela, como quadro
de bruxa, caixa de madeira, bonecas de panos, bordados, tapetes.
A exploração e a divulgação de todos esses materiais deverão estar, obviamente,
de acordo com as cláusulas estabelecidas no termo de cessão.
25
No capítulo que segue, trabalharemos com a formação do dossiê e resumo de A
Casa e das três narrativas, “O espelho”, Infância no Minho” e “O Rasto”, com presença no
romance.
24
Neide Lopes, amiga de Natércia e funcionária da Secretaria da Cultura e Desporto do Estado.
25
Ver reprodução anexa.
29
2 OS CAMINHOS DA CRIAÇÃO
2.1 O que narra A Casa
Após a classificação do material em séries escolhemos trabalhar com os
manuscritos de obras, mais especificamente os testemunhos da elaboração do livro A Casa.
A Casa, narradora em primeira pessoa do romance, fala sobre a trajetória de sua
construção no sertão do Nordeste e das várias gerações que nela habitaram. Com o primeiro
dono, o minhoto Francisco José Gonçalves Campos, veio o conhecimento sobre a cultura
portuguesa, através dele, acompanhamos a forma como, aos poucos, essa cultura se enraizou e
misturou-se ao costume do sertanejo.
A saga dos moradores da casa é vivida intensamente pela narradora, que assiste
aos nascimentos e às mortes: “Lembro-me da primeira vez e havia de ser nas trindades,
quando Ela aqui chegara em missão”(CAMPOS, 1999). As mortes somam-se à vinda de
outros viventes, que unem suas memórias à da Casa: “Nascimentos foram tantos por mim
vivenciados que suas repetições me fizeram confundir as mães.”
26
Com o passar dos anos, muitas mudanças ocorreram em sua estrutura, à medida
que mudavam também os costumes sertanejos. O progresso levaria a casa a ficar submersa
nas águas de uma bacia hidráulica.
Para escrever esse romance, como dissemos, Natércia fez pesquisas, estudos,
leituras, consultas a amigos, anotando, rascunhando, passando a limpo várias vezes. Esse
caminho foi documentado e guardado em gavetas, pastas, cadernos.
Ao elegermos como tema de nossa pesquisa o processo de construção d’A Casa,
tratamos de reunir todo material encontrado cartas, rascunhos, pesquisas e manuscritos em
diversas fases de elaboração – e formamos seu dossiê:
-três cadernos 14 x 20 cm, com aproximadamente 50 folhas e três 20 x 30 cm, com
aproximadamente 96 folhas;
-quatro disquetes;
-dez recortes extraídos de periódicos (O Povo e Diário do Nordeste, jornais de
Fortaleza);
26
CAMPOS, Natércia. A Casa.
Fortaleza; Imprensa Universitária. 1999. p. 27
30
- quatro versões completas digitadas em folha de papel sulfite, em bom estado de
conservação;
- uma versão digitada incompleta, em folha de papel sulfite;
- três exemplares em brochura enviados para o concurso Prêmio Osmundo Pontes
de Literatura, com anotações autógrafas;
- edição de 1999 (Fortaleza: Imprensa Universitária) com anotações autógrafas (o
que chamamos de exemplar de trabalho) e uma cópia da edição de 1999, sem
anotações;
- edição de 2004 (Fortaleza: Imprensa Universitária).
Computando as versões digitadas, teríamos 1.658 páginas, sem contarmos os
documentos pré-redacionais, todos a serem organizados cronologicamente, descritos e
cotejados para levantamento das variantes. A complexidade da descrição e transcrição dessa
quantidade de manuscritos num período de dois anos mostrava-se inviável, por isso
consideramos mais realista reduzirmos o corpus e determo-nos num dos temas recorrentes do
romance.
31
Exemplar do romance enviado para o Concurso Osmundo Pontes de Literatura, 1998.
Anotação manuscrita: É igual ao que dei ao Oswaldo
Apagado 68/93/95
90 – Ana
127- “
meu
32
Exemplar da edição (1999), com anotações autógrafas (o que chamamos de exemplar
de trabalho).
33
4ª capa.
34
Edição de 2004, publicada pela CCV, UFC.
35
4ª capa.
36
2.1.1 As águas
Mesmo numa leitura descomprometida, salta aos olhos a importância do elemento
água na narrativa, sob as diversas formas que ela assume: mar, açude, rio, chuva. Seu
primeiro dono, vindo de Portugal, cruzou o “mar oceano” e, depois de várias gerações, a
casa foi submersa pelas águas de uma bacia hidráulica, fechando um ciclo. A história da água
é impregnada de lendas, contos, tragédias, que destacam seu poder vital e, no Nordeste do
Brasil, carrega-se de simbologia, sua força revelando-se até quando ausente, recebendo o
epíteto fatídico: flagelo da seca. Câmara Cascudo, pesquisador sempre citado por Natércia
Campos em suas obras, registra no conto popular “A Causa da Seca no Ceará”
27
que narra a
origem da estiagem.
Em priscas eras, os cearenses malquistaram-se com o Bom Jesus. Resolveram então
expulsá-lo do Ceará. Para esse fim, prepararam uma jangada e nela puseram o Santo
com os mantimentos que julgaram necessário para a longa travessia que, a seu juízo,
ia mesmo empreender. Desfraldaram a vela da embarcação e impeliram o Santo de
mar a fora, rumo a Portugal donde procedera.
O Bom Jesus, na agoniada viagem, muito distante das praias cearenses, ‘entre o
mar e o céu’, sentiu sede. Por esquecimento, ou mui propositadamente, os seus
perseguidores não haviam acondicionado água na jangada. Nem uma gota sequer
existia do precioso líquido...
Nesse transe doloroso, sedento de sede, o Bom Jesus proferiu então estas palavras:
“Sim cearenses ingratos e maus; vocês também não terão água quando tiverem
sede.”
O Vento Leste, que passava, acolheu as palavras do aflito Santo e, varrendo do céu
todas as nuvens, trouxe para o Ceará a primeira seca.
Em A Casa, a narradora atribui aos índios cariris a criação da Seca.
Meus alicerces foram feitos muito depois que a lagoa de águas salinas se evaporou.
A causa foi o aprisionamento da fonte por gigantesca pedra ali colocada com magia
e silêncio pelos índios Cariris que fixaram com cera de abelha e miolo de braúna
para que nenhum filete d’água viesse a escorrer. Havia sido esta raça dizimada pelos
invasores brancos, e os que se salvaram, antes de serem expulsos de seus vales de
intensos verdes, fecharam a grande nascente e o enfeitiçaram em Sertão.
28
Optamos, então, por trabalhar com a elaboração tema água e sua presença -quase
personagem - no romance. Para esse recorte selecionamos a documentação referente e
montamos novo dossiê.
27
CASCUDO,Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 286
28
CAMPOS, Natércia. A Casa. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1999. p. 21.
37
Vivemos, na prática, a pena de Sísifo, mito ao qual se recorre para representar o
eterno recomeçar, e que simboliza o trabalho do cientista, do pesquisador.
Terminada a recolha, percebemos que ainda tínhamos um “dossiê” muito extenso
e a complexidade da descrição do corpus significativa, já que quase todos os testemunhos
estavam escritos em fragmentos de papéis sem pauta, sem data e a mão.
- 588 manuscritos em várias fases de elaboração;
- três com medidas 14 x 20 cm, com aproximadamente 50 folhas;
e três 20 x 30 cm, de 96 folhas;
- 137 impressos;
- 8 recortes de jornais (O Povo e Diário do Nordeste);
- os quatro exemplares de A Casa, digitados, completos;
- uma versão digitada, faltando algumas páginas;
- três exemplares de A Casa, enviados para o concurso Osmundo Pontes (estes
exemplares foram devolvidos à autora após o concurso);
- 1ª edição1999 (Fortaleza: Imprensa Universitária);
- edição não numerada, para o vestibular (Fortaleza: Imprensa Universitária,
2004).
Após a análise desse dossiê resolvemos não trabalhar com a edição enviada para o
prêmio Osmundo Pontes, pois a autora retrabalhou o texto para a edição de 1999.
Excluímos também a edição de 2004 que, embora tenha acatado as mudanças indicadas,
realizou outras não autorizadas, por exemplo, retirada das epígrafes e dos espaços entre os
parágrafos finais. Em entrevista que nos concedeu, Sânzio de Azevedo
29
(2008) diz:
Quanto à publicação do livro, eu já disse em alto e bom som em todas as reuniões
que a Natércia morreu com desgosto com essa mania do vestibular de tirar as
introduções, as epígrafes. Eles tiraram as epígrafes, isso é um absurdo, porque elas
são parte integrante do livro. Logo se que quem determinou isso não entende
nada de literatura. [...] Ela ficou com mais desgosto porque tiraram a dedicatória ao
pai e deixaram uma epígrafe do Câmara Cascudo.
Para complementar nosso trabalho de pesquisa, fazíamos, paralelamente,
entrevistas com familiares e amigos, a fim de colhermos mais dados sobre a escritora e seu
29
Rafael Sânzio de Azevedo, amigo de Natércia Campos, por ela sempre consultado, é poeta, ficcionista e,
especialmente, ensaísta brasileiro. Filho do poeta e pintor Otacílio de Azevedo, foi desenhista de rótulos de
aguardente, foi revisor no jornal O Estado de S. Paulo, cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará
(UECE) e atualmente é professor do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Membro da Academia
Cearense de Letras desde 1973, vem desempenhando um papel importantíssimo como pesquisador,
especialmente no que diz respeito às letras do Ceará.
38
legado. Através dessas entrevistas e com a pesquisa no acervo, para coletarmos os
testemunhos do processo de criação do novo tema escolhido, descobrimos informações
relevantes para a criação do romance e que não eram do conhecimento do público, mesmo o
acadêmico. Diante dessas preciosas informações, decidimos, outra vez, mudar nosso objeto
de estudo, não mais discussões em torno do tema da água e de seu processo criativo, mas uma
questão muito anterior: o surgimento, propriamente dito, do romance.
2.1.2 Novas descobertas
O encontro e a leitura de três manuscritos nos sugeriram novos e mais ousados
caminhos. No primeiro momento, veio-nos a idéia de que esses três manuscritos, sob os
títulos “O espelho”, “Infância no Minho” e “O Rasto” com estruturas diferentes e escritos,
provavelmente, em épocas diferentes - teriam contribuído para a criação do romance. Essa
hipótese apontou uma direção diferente ao nosso trabalho: não mais o estudo genético do
romance A Casa, observando seu processo escritural, e não mais o emprego da mesma técnica
num tema do livro. Estávamos diante do texto d’ A Casa no seu nascedouro. A pedra de Sísifo
rolou novamente ladeira abaixo e tivemos que pegá-la para levá-la ao alto da montanha.
Iríamos em busca da origem do romance, onde nasceu, para depois, em trabalhos futuros,
seguirmos os passos de sua escritura.
“O espelho” conta a trajetória de um espelho centenário, vindo de além-mar. O
narrador-personagem acompanha os episódios ocorridos na vida de uma jovem de cabelos
ruivos, a primeira figura que ele refletira. Observa sua vida, volta aos momentos importantes
vivenciados por ela: o casamento, os saraus que ocorriam no salão, a sua infidelidade e a
perda do filho mais velho. O espelho acompanhou alguns fatos históricos, como a Primeira
Guerra Mundial, a criação da luz elétrica, e a narrativa se encerra com a lembrança desses
acontecimentos. Encontramos três momentos escriturais dessa narrativa:
- um conjunto de folhas amareladas grampeadas e colocadas com fita adesiva,
formando um bloco intitulado My (note)book of Literature 5/05/85, manuscrito a
tinta azul e preta;
- dois cadernos de espiral 14 x 20 cm, folhas pautadas e amareladas, ambos em
bom estado de conservação, contendo os rascunhos de “O espelho”, mas sem
título;
39
- alguns fragmentos de folha de papel sulfite, contendo pesquisas sobre espelho e
art-nouveau.
A Infância no Minho” são registros autobiográficos de lembranças, histórias, de
tradições e lendas portuguesas que foram contadas à escritora pela sua contadora de histórias.
Desses relatos, organizados em um texto, constam no acervo os seguintes
testemunhos:
- duas versões datilografadas, fotocópia, em folha de papel sulfite, amarelada
(versão I, 23 x 33 cm, 15 páginas, versão II, 21,5 x 31,5 cm, 15 páginas);
- uma versão digitada, em bom estado de conservação, com anotações manuscritas
a grafite (versão III, 21,5 x 39,5 cm, 20 páginas).
“O Rasto”, narrativa em terceira pessoa, conta a história de um garoto que, ao
andar, mal deixava o rasto no chão. Essa característica fizera dele um bom caçador. Ele e sua
mãe abandonada pelo marido, um cigano - tiravam da caça o sustento e temiam apenas as
cobras. Certo dia, o cigano volta; não aceitando sua presença, o menino sai sem rumo, com a
“espingarda, o badaneco, a quicé e o fumo”. Depois de muito caminhar, chega a um povoado,
seguindo um rasto de . “Naquele lugar, onde o algodão espalhava suas raízes a invadir a
várzea e as caatingas, ele ficou a tirar seu sustento no rastejo e morte às cobras, a serviço dos
donos das terras.” Passado muito tempo, o menino, agora adulto, sentiu saudades da mãe e
quis voltar, mas antes iria cumprir sua última empreitada com o dono da terra. Nesse tempo
ele não mais rezava a oração de São Bento, que a mãe lhe ensinara. “O rasto da velha cobra
com seu chocalho era um fio ante seus olhos a desenrolar-se, seguindo para o distante grotão.
Devia estar a esperá-lo, enrodilhada. Era encontrá-la.” No dia seguinte, os almocreves
avistaram as pegadas do rastejador de cobra e as seguiram, chegando ao grotão onde ele havia
se refugiado após receber o bote mortal. “Benzeram-se e um dos homens varreu o chão,
apagando o rasto. Costume dos antigos, disse ele, a fim de dificultar aos mortos o regresso à
aldeia.”
30
O tema deste texto está presente no folclore brasileiro e português. O rasto,
segundo Câmara Cascudo,
31
alude à despedida: “E de mim se esqueça logo... Meu rasto
varram no chão. Apagar ou varrer o rasto era semelhante a apagar ou raspar o nome, símbolo
terrível do olvido.” O rasto de serve para indicar o caminho para se chegar a um povoado.
Natércia Campos utilizou essas informações em seu texto, demonstrando a seriedade e
30
Os trechos entre aspas são da versão digitada da narrativa.
31
CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6ª ed. Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1988. p.664.
40
compromisso em seguir a voz de uma autoridade. Citando um trecho da entrevista de Neide
Lopes (2008), temos um exemplo deste trabalho:
Mesmo tendo pesquisado em Câmara Cascudo ela gostava de interrogar, comparar,
até pra ver se havia diferença na forma de fazer de cada localidade. Ela tinha um
conhecimento muito grande dos mitos, das lendas, da história dos santos, do modo
de viver do povo sertanejo. Amava mara Cascudo e leu toda a sua obra, sabia
tudo de Sertão. Eu realmente conhecia, mas sem essa preocupação de prestar
atenção no “como fazer” e então, quando ela me interrogava sobre algo, a minha
informação era baseada na memória da minha infância no interior.
Recolhendo os documentos relativos a essa narrativa, obtivemos o terceiro dossiê:
- uma versão datiloscrita em folha de papel sulfite, amarelada, com anotações
manuscritas a grafite (versão I 35, 5 x 25,5 cm, 14 páginas);
- três versões digitadas, em folha de papel sulfite, todas com anotações autógrafas,
em bom estado de conservação (versão II 21 x 29 cm, 11 ginas, versão III 21 x
29 cm, 14 páginas, versão IV 22 x 32 cm, 18 páginas.).
Recorremos à Codicologia, observando as dimensões e a cor da folha de papel e o
instrumento utilizado, como descrito no dossiê, para identificar a cronologia das versões.
Dos três dossiês deveríamos escolher, de cada narrativa, a versão (ou lição) cuja
elaboração estivesse mais desenvolvida para cotejá-la com a versão de A Casa publicada em
1999.
41
Capa do bloco “My (note)Book of Literature”.
42
Manuscrito de “O espelho”, bloco “My (note)book of Literature”.
43
Manuscrito de “O espelho”, caderno.
44
Manuscrito de “O espelho”, caderno.
45
Manuscrito de “O espelho”, caderno.
46
Manuscrito de “Infância no Minho”, versão I.
47
Manuscrito de “Infância no Minho”, versão II.
48
“Infância no Minho”, versão III digitada.
49
Manuscrito “O Rasto”, versão I.
50
Manuscrito “O Rasto”, versão II.
51
Manuscrito “O Rasto”, versão III.
52
Manuscrito “O Rasto”, versão IV.
53
2.1.3 “O espelho”
Demos ao texto “O espelho” um tratamento diferenciado, isto é, não fizemos
cotejo entre suas três versões para escolher aquela de nível mais elaborado, pois não era
relevante para o nosso objetivo, uma vez que, de todas as suas versões, apenas o objeto
espelho e sua origem foram conservados no romance. Para apresentar os trechos que
permaneceram, fizemos a transcrição convencionando a utilização dos seguintes sinais:
[*] rasura
[] entrelinha superior
Negrito: destaque nosso para facilitar a leitura
a) Manuscrito (ver imagens a seguir):
[...] como é belo na [*sua] [*seu] forma[*com][emoldurado com tanta arte
por] [*estão moldura preciosa com] [*ouro com]querubins, laços, flores e
filigranas em ouro (...)
Há um século cheguei de uma longa viagem por mar (...),
Esta magia me fora dada pelo artesão Laurentis o Veneziano, Mago dos
espelhos;
b) Livro A Casa, 1999:
(...) o belo espelho oval, emoldurado por querubins, laços e folhas de acanto
de madeira. (p.48),
Viera de longa viagem. O Bisneto que o trouxera contara que o espelho fora
feito pelo artesão Laurentis, O Veneziano, de alcunha “o mago dos espelhos”
(...).(p. 48).
O espelho terá no romance um papel testemunhal com grande carga simbólica, e
aqui, retornamos ao estudo de Jack Tresidder
32
: “Em quase toda parte, os espelhos têm sido
32
TRESIDDER, Jack. O Grande Livro dos Símbolos/ Jack Tresidder : tradução de Ricardo Inojosa- Rio de
Janeiro: Ediouro, 2003. p. 131.
54
associados à magia e, sobretudo a adivinhações por poderem refletir acontecimentos passados
ou futuros, assim como os do presente.”
Nossa cultura conserva, até hoje, a presença muito forte dessa crença, desde os
nossos índios da era cabralina, que ficavam fascinados pelos espelhos, mas os temiam porque
lhes roubavam a alma e a aprisionavam. Natércia Campos, nesse entremear de lendas,
histórias, causos da cultura, principalmente, nordestina, que é o seu livro A Casa, não poderia
marginalizar um objeto/signo que se liga à eterna procura do homem pelo “outro”.
Natércia não mostrou o espelho como um mero objeto refletor e de visão limitada;
em três momentos da narrativa é possível notar que o espelho estava diretamente relacionado
à figura da morte. O primeiro momento acontece quando o artesão Laurentis não seu
reflexo. No segundo, a Casa lembra: “Presenciei durante rias gerações a chegada Dela
abrindo portas, refletindo-se no grande espelho ao invadir meus espaços e muito aprendi sobre
suas metamorfoses e disfarces.”
33
E o terceiro quando o Bisneto a morte chegar: “Ele a viu
chegar pelo espelho. Seus olhos a fixaram levemente surpresos. Enfrentou-a sem medo. O
espelho trincou de alto a baixo e notaram quando mais velas foram acesas naquela sala
onde o velaram.”
34
Aqui praticamente a lâmina de cristal se personifica, preferindo não mais
enxergar.
Nas gerações seguintes o preceito de derramar água foi sendo esquecido e outros
costumes surgiram, entre eles, os cantos entoados nos velórios diante do morto, as
excelências, e o de cobrirem com crepes na primeira semana dos lutos e nas noites
de trovoadas e relâmpagos o belo espelho oval, emoldurado por querubins, laços e
folhas de acanto de madeira. Viera de longa viagem. O Bisneto que o trouxera
contara que o espelho fora feito pelo artesão Laurentis, o Veneziano, de alcunha “o
mago dos espelhos” e que o homem não vira o reflexo de sua imagem ao terminar de
polir a película metálica. Certeza teve de que a ausência de seu “duplo”não
reproduzida, era sinal de que a morte dele se aproximava. A mercê desta crença,
invadiu-lhe a tristeza que o levou a adoecer vindo a finar-se. Três razões, dissera o
Bisneto, o fizeram desejar possuí-lo: ao mirar sua figura que o espelho lhe devolvera
nítida, cristalina, por não existir um espelho na Trindades e pelo mistério que o
cercava.
35
Encontramos nessa última citação do romance A Casa a retificação do verbete do
dicionário de símbolos de Tresidder: “A superstição muito difundida de que partir um espelho
traz sorte se liga às noções primitivas de que o reflexo de uma pessoa contém parte da
força de sua vida, ou uma ‘alma’ gêmea”.
33
Campos, Natércia. A Casa. Imprensa Universitária - UFC, 1999. p27.
34
Ibid, 1999. p 121.
35
Ibid, 1999. p. 48.
55
2.1.4 As versões de “Infância no Minho” e “O Rasto”
Utilizamos o critério de cores para melhor visualização - e sinais gráficos para
identificação das variantes.
< > acréscimos;
< > supressões;
< > substituição;
< > interferência do pesquisador;
<*> rasura;
<> entrelinha superior;
<>sobreposição;
[ ] observações paratextuais feitas pela autora.
As células que estão em branco têm o texto igual ao da célula da esquerda,
imediatamente anterior.
Numeramos com algarismos romanos (I, II, III) as versões de Infância no
Minho”. Como observamos, apenas a versão I não possui título.
<I> <II> <III>
ver “A noite das
Fogueiras?? <Ms.
margem superior
esquerda>
Infância no Minho
< manuscrito a grafite>
Infância no Minho, <Ms. margem
superior centralizado>
(L.4/5) encantamento. O
poder
(L.4-5) encantamento. < §> O
poder
(L.6/7) sonhos. Hoje (L. 6/7) sonhos. < §> Hoje
(L.8/9) “escutam”. Nasci
(L.8/9) “escutam”. < §> Nasci
(L.11/2) sertão. Estas (L. 11/2) sertão. < §> Estas
(L. 13/4) do Tempo.
Talvez
(L. 13/4) do <t>empo. Talvez
(L.15/6)
Talvez...Certeza
(L.15/6) Talvez... < §> Certeza
(L.19/20) livros. Assim (L.18/19) livros. < §> Assim
(L.57/8) os San do (L.57/8) os San[tos] do (L.55) os San<tos> do
(L.58) do sol-pôsto e de (L. 55/6) do sol-po<^>sto e de
(L.63/4) das adivinhas,
das
(L.60) das ad<i>vinhas, das
(L.68/9) Névoa. Perdura
(L.65/6) Névoa. < §> Perdura
(L.85) Sinto o gôsto do (L.79) Sinto o go<^ >sto do
(L.89/0) ceia. [ou cheiro
do fogo!] Vejo
(L.89/0) ceia. Vejo (L.82/3) ceia.< §> Vejo
56
(L.106/7) sepulturas.
Assim
(L.99/00) sepulturas. <§> Assim
(L.119/20) dormir”.
“Fora em
(L.109/10) dormir”. < “ >Fora em
(L.139/40) No retôrno
para
(L. 129) No reto<^>rno para
(L.140/41) pois, o deus
do
(L. 130) pois, o <D>eus do
(L.153/54) má-tenção.
Certa
(L.140/41) má-tenção.< §> Certa
(L.160/162) corredia.
[Havia a quadrinha:]
<Ms. Margem esquerda,
a grafite> “Todas
(L. 147- 149) <Havia a
quadrinha:> “Todas
(L.166/167) Precursor,
[mandrágora] <Ms.
Margem
esquerda>floresce
(L.166/167)
Precursor,<mandrágora>
floresce
(L.226) podiam serem
doadas
(L.226) podiam ser[*em]
doadas
(L.208) podiam ser<em> doadas
(L.228) aflorando quan-
assim
Aflorando quan-[do]
<Ms. Na linha> assim
Aflorando quan<do> assim
(L.260-262) roda: prata,
descubra o rosto que
queremos ver sua cara” e
(L.240-242) roda:
prata,/ descubra o seu rosto/ que
queremos ver a cara”
36
(L.277) parenta aparecia (L.277) parenta
[Portuguesa Contadora
de Historias do Minho]
aparecia
(L.258) parenta<Portuguesa
Contadora de Historias do Minho>
aparecia
(L. 282) Jorge. Ela (L.282) Jorge[” ]. Ela
[ ?/] < Ms. margem
esquerda>
(L.262) Jorge<” >. Ela
(L.283) dizer uma
estâncias
(L.262/3) dizer uma<s> estâncias
(L. 293-299) “A bruxa
nasce- A feiticeira faz-
se.”/ [ “Noite das
Fogueiras”? ]< margem
esquerda> “As bruxas
cumprem um fado que
Deus lhes deu./ As
feiticeiras agem por arte
do Demônio./ As bruxas
tornam-se invisíveis./ As
feiticeiras têm o poder
de fazer feitiços em
questões/ de amor e são
adivinhadeiras. As
(L. 293-299) “A bruxa
nasce- A feiticeira faz-
se.”/ “As bruxas
cumprem um fado que
Deus lhes deu./ As
feiticeiras agem por arte
do Demônio./ As bruxas
tornam-se invisíveis./ As
feiticeiras têm o poder de
fazer feitiços em
questões/ de amor e são
adivinhadeiras. As
bruxas
(L. 273-279) “A bruxa nasce- A
feiticeira faz-se.”/ “As bruxas
cumprem um fado que Deus lhes
deu./ As feiticeiras agem por arte
do Demônio./ As bruxas tornam-se
invisíveis./ As feiticeiras têm o
poder de fazer feitiços em
questões/ de amor e são
adivinhadeiras. < §> As bruxas
36
Nos manuscritos I e II o texto é corrigido; no Ms III tem estrutura de quadrinha.
57
bruxas
(L.302-304) As Meigas
da Galiza vestem-se de
branco e confundem-se
com os mortais e com as
nuvens. Fôra
(L.302-304) [*As
Meigas] [As bruxas]
da Galiza[chamam-se
Meigas, elas] vestem-se
de branco e confundem-
se com os mortais e com
as nuvens.<seta ligando
nuvens a Fora, anot. A
grafite> Fôra
(L. 282/3) <As bruxas da Galiza
chamam-se Meigas, elas> vestem-
se de branco e confundem-se com
as nuvens. Fôra
(L.315) de líquens e
verdes
(L.293) de li< ´ >quens e verdes
(L.365) vezes,
sobrevoam
(L.337) vezes< , > sobrevoam
(L.373/374) reino. < §>
A primavera
(L.344) reino< §> A primavera
(L.392) de Castela eram (L.360) de <c>astela eram
(L.407) quase nú, a
limpar as estrebaria
(L. 373/4) quase nu<´ >, a limpar
estrebarias
(L.414) irmãos, a côrte (L.414) irmãos, a[`?]
côrte
(L.379) irmãos, < ` >a côrte
(L.426) levou a loucura (L. 390) levou < ` >a loucura
(L. 437/8) atemorizadas.
Mas
(L. 399/0) atemorizadas. <§> Mas
(L.440/1) O Profeta
Elias
(L.402) O <p>rofeta Elias
(L. 442) O Profeta lhe (L.403) O <p>rofeta lhe
(L.457) o [o]imperador
escutou
(L.417) o imperador escutou
(L.458) clementes
sôpros de
(L.418) clementes so< ^ >pros de
(L.476) os Pesadelos.”
Aconselhava-me
(L.436) os <p>esadelos.”
Aconselhava-me
(L.483) tua casa.” E (L. 443) tua casa. < ” > E
(L.538) uma quinta,
árvore
(L.497) uma <Q>uinta, árvore
(L.540/1) li:
<parágrafo>“Diz-se
(L.500) li: < §> “Diz-se
(L.5435/44) meio-dia
“quando s anjos
(L.5435/44) meio-dia
“quando
[o]<manuscrito>s anjos
(L.502/503) meio-dia <”>quando
<o>s anjos
(L.565/6) mansietude.
Meus
(L.524/5) mansietude. < §> Meus
(L.588-590) [“O rumor
antigo conta”
Camões
Natércia Campos]
(L.542-544) <“O rumor antigo
conta.”
Camões
Natércia> <Campos>
58
<manuscrito: margem
inferior>
Ao analisar a tabela, é possível notar que as alterações feitas estão relacionadas a
correções de: acentuação, pontuação e uso da letra maiúscula e minúscula. Entre parênteses
informamos o número da linha do manuscrito e entre colchetes o mero da página da
dissertação. Seguem os exemplos, marcados em negrito para destacar o texto de Natércia
Campos:
(L.293, [p. 57]) de li< ´ >quens e verdes;
(L. 390, [p. 57]) levou < ` >a loucura;
(L.418, [p. 57]) clementes so< ^ >pros de;
(L.337, [p. 57]) vezes< , > sobrevoam;
(L.403, [p. 57]) O <p>rofeta Elias;
(L.497, [p. 57]) uma <Q>uinta, árvore.
Os acréscimos são, em sua maioria, de parágrafos:
(L.82/3, [p.56]) ceia.< §> Vejo;
(L. 399/0, [p. 57]) atemorizadas. <§> Mas;
(L.524/5, [p.55]) mansietude. < §> Meus.
Não há mudanças referentes ao conteúdo do texto, apenas a escrita usada passou a
ser a da norma padrão. Elegemos a versão III como texto base para realizar o cotejo com o
texto de A Casa (1999).
Utilizamos a mesma legenda de cores da tabela anterior.
< > acréscimos;
< > supressões;
< > substituição;
< > interferência do pesquisador;
<*> rasura;
<> entrelinha superior;
<
>sobreposição;
[ ] observações paratextuais feitas pela autora.
59
As células que estão em branco têm o texto igual ao da célula da esquerda,
imediatamente anterior.
Também numeramos a tabela comparativa de “O Rasto”, com algarismos
romanos (I,II, III, IV).
O Rasto <I> O Rasto <II> O Rasto < III> < IV>
“E como
encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei!”
“E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei! “
<Sem anotações
manuscritas>
<Anotações
manuscritas a
grafite:>
[Rasto velho com
histórias demais!]
<Anotações
manuscritas a grafite:>
[Espaço 1/1/5]
<Anotações
manuscritas a
grafite:>
[Tirar da “Casa”]
Tirei [título, o
Boitatá pg5, pg 2-
dez reis, pg 8 raspa
de Juá, pg 12-
Boitatá. Pg 11 fami
pg 14 mudar p/
chocalhos
Espaço 2
Eu guardo
certissimo]
<Anotações
manuscritas tinta
vermelha:>
III
<manuscrito a
grafite> [corrigir
pg 1
Ageitar pg 14]
(L.5) escarpadas do
Cerro Corá, ele
nascera. A mãe
(L.5) escarpadas de
<Acauã>, ele nascera.
A mãe
(L. 10) algodão mocó
ou pena de pássaro.
(L. 6) algodão
[*mocó] ou pena
de pássaro.
(L.36) um côco. No (L.36) um co<^>co. No
(L.45) nas moedas de
dez-réis, que
(L. 38) nas moedas de
dez-réis, que
(L.34) nas moedas
de [*dez-réis], que
(L. 45)nas
<moedas>, que
(L. 51-56) desgraça.
<§>Aprendera que as
adivinhas corujas e o
gavião de vôo alto
assistiam, durante o
tempo em que, na
terra, os animais
dormiam, os ocultos
assombros. Eram eles
adivinhadores de
perigos e o menino,
ao ver distanciar-se
nos céus o gavião,
pressentia que algum
(L. 43/4) desgraça. <§>
<Aprendera que as
adivinhas corujas e o
gavião de vôo alto
assistiam, durante o
tempo em que, na terra,
os animais dormiam, os
ocultos assombros.
Eram eles
adivinhadores de
perigos e o menino, ao
ver distanciar-se nos
céus o gavião,
pressentia que algum
60
malefício estava
prestes a acontecer.
<§>Tinha
malefício estava prestes
a acontecer.> <§>
Tinha
(L.66/7)
calor.< §> Ao
(L.51) calor. < §> Ao
(L. 69-74) fogo. <§>
Sabia que só os
cachorros percebiam
estes longos assobios,
e que teimassem em
acuar a caça, a
caipora os açoitaria
até uivarem de dor,
com sua chibata-cipó,
da espinhosa
japecanga. Na
(L. 54/5) fogo.< §>
<Sabia que só os
cachorros percebiam
estes longos assobios, e
que teimassem em
acuar a caça, a caipora
os açoitaria até uivarem
de dor, com sua
chibata-cipó, da
espinhosa japecanga.>
Na
(L.77- 89) mãe
cortava a maniçoba
(L. 58-69) mãe
<cortara> a maniçoba
( L.90/1) pegajoso.
<§> A mãe
(L.68) pegajoso. <§>
A mãe
(L. 100-105) limites.
<§>Ela criara em
cega obediência, a
pisar no rasto,
seguindo-lhe fiel a
trilha. O menino ao
acordar, estendia-lhe
a mão pedindo a
bênção e, à noite, era
também este seu
último gesto antes de
adormecer. <§> Com
(L.77/8) Limites.
<§>Ela criara em cega
obediência, a pisar no
rasto, seguindo-lhe fiel
a trilha. O menino ao
acordar, estendia-lhe a
mão pedindo a bênção
e, à noite, era também
este seu último gesto
antes de adormecer.
<§> Com
(L. 122/130) valor. O
bando de porcos do
mato, montaria da
caipora, os queixadas
e caititus, comedores
de raízes, eram vistos
a correr com rapidez
nas brenhas
emaranhadas. Tinham
eles ataque repentino
(L 92/3) valor. <O
bando de porcos do
mato, montaria da
caipora, os queixadas e
caititus, comedores de
raízes, eram vistos a
correr com rapidez nas
brenhas emaranhadas.
Tinham eles ataque
repentino e feroz e seus
61
e feroz e seus fojos, a
mãe e o menino os
armavam em
profundas covas, que
cavavam e depois
vedavam disfarçados
por feixes de ramos,
garranchos e terra.
A mãe ensinara-o a
barrar as trilhas com
espinhosos cardeiros
e pedregulhos para
forçar a caça a
percorrer a senda
onde estavam
armados os fojos
cobertos pela
folhagens.
<§>Menino
fojos, a mãe e o menino
os armavam em
profundas covas, que
cavavam e depois
vedavam disfarçados
por feixes de ramos,
garranchos e terra.
A mãe ensinara-o a
barrar as trilhas com
espinhosos cardeiros e
pedregulhos para forçar
a caça a percorrer a
senda onde estavam
armados os fojos
cobertos pela
folhagens.>
<§>Menino
(L.152) ao
perspassarem
vagarosas
(L.122) ao
pe[*r]spassarem
vagarosas
(L. 155) avistar a
cobra-de-fogo, o
Boitatá, que
(L.102) avistar a
cobra-de-fogo, o
[*Boitatá], que
(L.125) avistar a
cobra-de-fogo,
<Boitatá>, que
(L.196- 218) dali.
Uma curiosa princesa
o libertou e, desde
então, tornou-se
cativa numa distante
floresta. Certa vez,
um príncipe caçador,
avistou a solitária
princesa e ao ouvir
sua história ensinou-
lhe a descobrir com
cautela e agrado onde
estava guardada a
vida da fera. Foi no
pendor do sol que a
princesa chamou o
Bicho Manjaléu para
recostar-se no seu
colo, começando a
pôr cafunés na sua
cabeça. Ele amansou-
se, sonolento, e ela
baixinho perguntou-
lhe onde estava presa
sua alma, a sua vida,
(L. 149/0) dali <:> <
Uma curiosa princesa o
libertou e, desde então,
tornou-se cativa numa
distante floresta. Certa
vez, um príncipe
caçador, avistou a
solitária princesa e ao
ouvir sua história
ensinou-lhe a descobrir
com cautela e agrado
onde estava guardada a
vida da fera. Foi no
pendor do sol que a
princesa chamou o
Bicho Manjaléu para
recostar-se no seu colo,
começando a pôr
cafunés na sua cabeça.
Ele amansou-se,
sonolento, e ela
baixinho perguntou-lhe
onde estava presa sua
alma, a sua vida, e o
Bicho Manjaléu,
62
e o Bicho Manjaléu,
rendido, foi devagar
lhe revelando;
“Minha
rendido, foi devagar lhe
revelando;>
“Minha
(L. 211- 219)
morrerei”.
O príncipe ao saber
do segredo logo
caçou o porco-
espinho e o Bicho
Manjaléu começou a
adoecer murmurando:
“Minha bela, estou
me sentindo doente/
alguém está mexendo
na minha vida”
No dia em que
conseguiram apagar a
chama da vela o
Bicho Manjaléu
morreu, quebrando-se
para sempre o
encanto, e, a princesa
livre retornou com o
príncipe ao reino de
Castela”. O sono
(L.156/7)
morrerei”. <O príncipe
ao saber do segredo
logo caçou o porco-
espinho e o Bicho
Manjaléu começou a
adoecer murmurando:
“Minha bela, estou me
sentindo doente/
alguém está mexendo
na minha vida”
No dia em que
conseguiram apagar a
chama da vela o Bicho
Manjaléu morreu,
quebrando-se para
sempre o encanto, e, a
princesa livre retornou
com o príncipe ao reino
de Castela”.> O sono
(L. 224/5) guia-de-
caça.
<§> Evitava
(L. 161) guia-de-caça.
<§> Evitava
(L.245-250)
tontos. A mãe, na
hora dele se deitar
pesado de sono,
advertia: -“menino
não deve dormir sem
rezar, senão na hora
de visagem desce o
morcego da escuridão
para chupar sangue e,
desde daí, ele vira
lobisomem”.
<§> A noite
(L. 179/0)
tontos. <A mãe, na
hora dele se deitar
pesado de sono,
advertia: -“menino não
deve dormir sem rezar,
senão na hora de
visagem desce o
morcego da escuridão
para chupar sangue e,
desde daí, ele vira
lobisomem”> <§> A
noite
(L. 253) raspas da
árvore dos juás,
escutara
(L. 166) raspas [*da
árvore dos juás]
[do juá], escutara
(L. 201) raspas da
árvore <dos juás>,
escutara
(L.287) varas com as
peles para
(L. 212) varas com<a>
as peles para
(L. 234) varas
com<a> as peles
para
63
(L.320 – 326)
espinhosos e nas
cercas de avelós. O
homem
(L. 267 – 273)
espinhosos [ da
jurema] [*e nas
cercas de avelós.]
O homem
(L.323/4)
em rama que se
libertava dos fardos
que o prendiam. O
algodão
(L.270/1)
em rama que se
libertava dos
[*fardos] [sacos]
[disformes das
cangalhas] que o
prendiam. O
algodão
(L.325)
estreitas trilhas,
parecendo
(L. 272)
estreitas [*trilhas]
[veredas],
parecendo
(L.331/2) As cobras
venenosas, as de
sangue frio,
traiçoeiras, ele as
matava.
(L. 228) As cobras
venenosas, [*as]
[as mais famintas.]
de sangue frio[, e]
traiçoeiras, ele as
matava.
(L. 278, 279) As
cobras venenosas,
<as mais
famintas,> de
sangue frio e
traiçoeiras, ele as
matava.
(L. 347- 352) Cobra-
Grande, a Boiúna e a
(L.240-249) Cobra-
Grande, a [*Boiúna]
e a
(L. 296) Cobra-
Grande, <a
Boiúna>e a
(L. 352-363)
missão.<§> Falaram-
lhe que muito longe,
numa gruta, existiria
a Serpente do Tempo
Antigo- a Encantada
– que era uma moura
guardiã de tesouros.
Ela vivia condenada
naquele corpo de
serpente, a espera do
dia que houvesse
sacrifício com sangue
humano de algum
cristão para
desencantá-la.
<§> A Boiúna,
contaram-lhe, tinha
(L.269)
missão. A Boiúna,
contaram-lhe, tinha
(L.241)
missão. A
[*Boiúna],
contaram-lhe, tinha
(L.300)
missão. <§>
Falaram-lhe que
muito longe, numa
gruta, existiria a
Serpente do
Tempo Antigo- a
Encantada – que
era uma moura
guardiã de
tesouros. Ela vivia
condenada naquele
corpo de serpente,
a espera do dia que
houvesse sacrifício
com sangue
humano de algum
cristão para
desencantá-la.
64
<§> A Boiúna,
contaram-lhe,
tinha
(L. 411)
seus cincerros,
avistaram
(L. 286) seus
cincerros
[chocalhos],
avistaram
(L. 349) seus
<cincerros>
<chocalhos>,
avistaram
Os parágrafos suprimidos têm como tema as superstições e lendas:
(L. 43/4, [p. 59])
<Aprendera que as adivinhas corujas e o gavião de vôo alto assistiam, durante o tempo
em que, na terra, os animais dormiam, os ocultos assombros. Eram eles adivinhadores
de perigos e o menino, ao ver distanciar-se nos céus o gavião, pressentia que algum
malefício estava prestes a acontecer.>
(L. 149/0, [p.61])
< Uma curiosa princesa o libertou e, desde então, tornou-se cativa numa distante
floresta. Certa vez, um príncipe caçador, avistou a solitária princesa e ao ouvir sua
história ensinou-lhe a descobrir com cautela e agrado onde estava guardada a vida da
fera. Foi no pendor do sol que a princesa chamou o Bicho Manjaléu para recostar-se no
seu colo, começando a pôr cafunés na sua cabeça. Ele amansou-se, sonolento, e ela
baixinho perguntou-lhe onde estava presa sua alma, a sua vida, e o Bicho Manjaléu,
rendido, foi devagar lhe revelando;>
(L.300, [p.63])
<§> Falaram-lhe que muito longe, numa gruta, existiria a Serpente do Tempo Antigo- a
Encantada – que era uma moura guardiã de tesouros. Ela vivia condenada naquele
corpo de serpente, a espera do dia que houvesse sacrifício com sangue humano de algum
cristão para desencantá-la.
<§> A Boiúna,
Elegemos a versão IV para servir como texto base para o cotejo com a edição de
1999, pois as supressões e os acréscimos feitos nas versões I, II e III foram incorporados ao
texto da versão IV.
É notável, que as modificações em “O Rasto” não seguiram a mesma tendência da
tabela de Infância no Minho”, pois naquele temos a supressão de parágrafos, nas versões II e
IV, fato significativo para o conteúdo da história.
65
No próximo capítulo, “O surgimento do romance A Casa”, apresentaremos
através de tabelas o cotejo entre as versões desses textos definidas como base e o romance
publicado em 1999.
66
3 O SURGIMENTO DO ROMANCE A CASA
3.1 O corpus
Após a delimitação do objeto de estudo, definimos a metodologia para o cotejo
entre os manuscritos das narrativas e a edição do romance, 1999. Formulamos as seguintes
etapas:
a) foi escolhida a versão das narrativas com nível mais alto de elaboração, como
vimos nas tabelas apresentadas;
b) outras tabelas mostrarão os trechos dos manuscritos que permaneceram, com
ou sem alteração, no romance A Casa (1999).
A partir da hipótese de que as três narrativas O espelho”, Infância no Minho”
e “O Rasto” - estão na base de A Casa, era necessário comprovar que foram escritas antes do
romance, mas Natércia não datou quase nenhum manuscrito e deixou poucas pistas para
estabelecer-se uma cronologia daqueles com os quais vamos trabalhar.
Recorremos, então, à documentação paratextual que nos mostrou a provável linha
do tempo dos manuscritos “O espelho”, Infância no Minho” e “O Rasto”, como tentaremos
evidenciar nos passos seguintes.
No arquivo, um bloco de anotações intitulado My(note)book of Literature e a
data de 5/08/85. Nele se encontram o esboço do seu primeiro conto, “A Escada”, ainda sem
título, e também o rascunho do conto “O espelho”, também sem título. Podemos considerar
esse documento como comprovação da anterioridade de “O espelho” em relação às outras
duas narrativas.
“Infância no Minho” é um texto memorialístico, sem data, mas encontramos
trechos dessa narrativa no texto em prosa poética publicado em 1991 em 3x4.
Localizamos uma correspondência (em anexo) de Oswaldo Lamartine, etnógrafo e
amigo da escritora, datada de 10 de maio de 1995, em que ele esclarece dúvidas,
provavelmente levantadas por Natércia, sobre dados pontuais do seu conto “O Rasto”.
Citamos um trecho:
Não me pergunte sobre o rastejar literário do seu rasto. Não faço literatura nem
tenho esteira no suador-da-sela para tanto. A minha leviandade foi brotar no papel
alguns momentos do viver sertanejo. E até isso esbarrei de fazer. É por essa brecha q
os amigos, talvez para me encabular dizem ser etnografia q vou espiar seu rasto
.
Vamos lá: 1ª- Sei do município de Cerro Corá na Serra de Sant’Ana/RN divisa do
Seridó. Mas aquilo é nome ‘estrangeiro’ – bajulação de feitos da guerra do Paraguai.
67
Mesmo pq ‘cerro’ é nomenclatura geográfica salina – equivalente parecido com
nosso ‘serrote’. Pq não Rajada, Acauã, Coité, Trincheiras, do Chapéu, etc nomes
da gente (PP.1,5,8) (...) Sem querer meter minha colher de pau na estória do
Bicho Manjaléu (p.7) pq não porco caitetu em vez de porco-espinho, estrangeiro
naqueles sertões (?).
Além disso, a história do Bicho Manjaléu que está contada no “O Rasto” também
foi citada no poema-posters de 1991.
Tendo estabelecido a possível cronologia entre as três narrativas, procuramos
provas que nos levassem a inferir que eram anteriores à publicação do romance A Casa, de
1999.
Com relação a O espelho”, do qual, como vimos no capítulo anterior,
permaneceram apenas a referência ao objeto e ao seu criador, ele foi, no entanto, segundo nos
disse Carolina Campos, filha da escritora, a idéia inicial do texto:
Elisabete Sampaio (E.S.). Quando Natércia começou a escrever A Casa, em que
ano?
Carolina Campos (C.C.). A Casa é um projeto muito antigo. [...] mas antes de
escrever A Casa a mamãe queria escrever “O espelho”.
E.S. Sim, eu já vi muitas pesquisas sobre espelho.
C.C. “O espelho” é o embrião d’ A Casa, que depois era melhor que o narrador
fosse a casa porque um espelho fica preso numa parede e a casa vê tudo mesmo.
Quanto à Infância no Minho”, como dissemos, é anterior a 1998. Descobrimos
que além de em 3x4, a reelaboração de alguns trechos da narrativa na obra Por Terras de
Camões e Cervantes, como mostraremos a seguir:
a) De “Infância no Minho”:
Assim vejo-me além-mar, ibérica, em busca de Novo Mundo, “Ultra
aequinoetialem non peccatur” e sob a proteção do Cruzeiro do Sul.
Nasci e vivi em praia, na nossa praia de Iracema. No entanto a infância que
eu acalento dentro do meu imaginário são dois mundos entrelaçados: o de “Entre -
Douro - e - Minho” e o do nosso sertão.
Estas infâncias a mim legadas hibernam como as estrelas extintas, que
continuam a enviar seu rastro de luz através do tempo.
68
B) A obra Por Terras de Camões e Cervantes:
Meu avô Francisco José Gonçalves Campos estudou no Porto, (...) e veio, sob
a proteção da mais bela cruz dos céus - a do Cruzeiro do Sul, para o Brasil. Ultra
Aequinoetialem Nom Peccatur. (p.14).
Certeza tenho que nestes dois mundos foi minha infância embalada.(p.16)
“O Rasto”, como vimos na carta de Oswaldo Lamartine, é anterior ao livro, pois
estamos cientes de que a data do término do livro é 1998. Numa folha avulsa, papel sulfite,
uma anotação autógrafa nos informa: 3: 40hs da madrugada. Os lobisomens voltaram a
sua primitiva forma. Hoje é 9 de setembro de 1998. Ouço música. Acabo de escrever a última
palavra do meu romance!
37
.
Com esses dados, voltamo-nos para o objetivo mais específico da pesquisa:
investigar se, e em que medida, essas narrativas participam do processo de criação do
romance. Elaboramos duas tabelas, destacando as semelhanças entre as versões selecionadas
dos manuscritos e o romance A Casa. Lembramos que para os manuscritos de “O espelho”
não fizemos uma tabela comparativa, como salientamos em “Os caminhos da Criação”.
3.1.1 “Infância no Minho” e “O Rasto”
Como a participação de “Infância no Minho” e “O Rasto” no romance A Casa é
significativa, construímos tabelas comparativas para registrar os trechos que foram
reelaborados no romance A Casa.
Descreveremos as explicações de Luiz Fagundes Duarte
38
sobre as recombinações
ou marcas deixadas pelo escritor em seu texto:
Substituição - “Trata-se de um processo de substituição de palavras, expressões,
frases ou fragmentos de palavras ou frases [...]”
Acréscimo - “[...] consiste, na prática, numa série de inserções de palavras,
expressões e frases no discurso já fixado pela escrita. De um modo geral, pode dizer-se que se
37
Manuscrito encontrado do acervo da Autora.
38
DUARTE, Luiz Fagundes. A Fábrica dos Textos. Ensaios de Crítica Textual acerca de Eça de Queirós.
Lisboa: Edições Cosmos, 1993 p.19 e 20.
69
trata de algo de pensado, intencionalmente estilístico, com a finalidade (bem definida) de
completar e otimizar a representação do real.
Deslocamento - “[...] um elemento significante é transferido de um lugar do
enunciado para outro, por avanço ou recuo.”
Supressão - “Espectralmente, a supressão representa o ‘negativo’ do acréscimo, é
o elemento neutralizador, a força centrípeta redutora que contrabalança com a força centrífuga
constituída pelo acréscimo enquanto tendência para a expansão de um núcleo frásico em
novos significados e valores.”
No nosso trabalho, indicamos esses processos de reescrita através de cores, uma
vez que a escritora utilizou em seus manuscritos sinais gráficos, como parênteses, colchetes,
asteriscos e chaves.
Fazemos um parêntese para destacar a praticidade provida pela informática, que
possibilita o uso de recursos visuais, como o colorido das tabelas, facilitando o trabalho de
leitura e transcrição dos textos. Ao contrário do senso comum, que acredita no fim da teoria
da crítica genética pelo uso da tecnologia informática, esta pode ser uma aliada ao criar
softwares que realizam “edições automáticas”, “dicionários de substituição” e permite
identificar o que foi apagado em um texto.
A seguir, analisaremos a tabela de cotejo entre “Infância no Minho” e A Casa.
Utilizamos a mesma legenda de cores da tabela anterior para indicar os processos de
acréscimos, supressões, substituições e deslocamentos. Ressaltamos que, na coluna ocupada
pelo texto de A Casa (1999), são reproduzidos apenas os trechos que já estavam presentes em
“Infância no Minho”. A autora não utilizou colchetes nesses manuscritos, por esse motivo não
usamos < > e destacamos as modificações com aqueles.
Legenda:
[ ] trechos semelhantes (alguns com pequenas mudanças);
[ ] acréscimo;
[ ] deslocamento;
[ ]substituição;
[ ] supressão;
[...] continuação do trecho.
70
Infância no Minho
Quase sempre são as mulheres,
contadoras de histórias, a perpetuarem nas
longas noites, sob a proteção e vigília de alguma
luz, a historia sem fim, como fizeram Scherezade
das “Mil e Uma Noites” e nossas velhas tias e
amas pretas, envolvendo-nos de encantamento.
O poder da palavra atravessa o silêncio,
evoca todo o mundo da fantasia, do
extraordinário, das regiões enevoadas dos
sonhos.
Hoje conto a vocês, por palavras escritas,
cuja ressonância desejo que soe como
murmúrios d’água de uma nascente nas almas
dos que me “escutam.”
Nasci e vivi em praia, na nossa praia de
Iracema. No entanto a infância que eu acalento
dentro do meu imaginário são dois mundos
entrelaçados: o de “Entre – Douro - e – Minho” e
o do nosso sertão.
Estas infâncias a mim legadas hibernam
como as estrelas extintas, que continuam a
enviar seu rastro de luz através do tempo.
Talvez esta saudade que eu tenha de
coisas que não vivi seja um eco de velhas
histórias contadas à luz das lamparinas. Talvez...
Certeza tenho que estes dois berços,
plenos de profundo misticismo, rezas, agouros,
meizinhas, viventes, cheiros, canções, lugares,
superstições e crendices foram também
embalados pelas sagas e epopéias de
enfeitiçantes livros.
Assim vejo-me além-mar, ibérica [, em
A Casa (1999)
262) Sabiam eles que meu construtor e
primeiro dono havia sido um português de
[“]Entre-Douro-e-Minho[”] de nome José
Gonçalves Campos.
34) Recordava que viera de longe [sob a
proteção do Cruzeiro do Sul], a mais bela
71
busca de Novo Mundo, “Ultra aequinoetialem
non peccatur”] e sob a proteção do Cruzeiro do
Sul.
É pois, envolta em mística cautela que
procuro penetrar neste mundo de antanho.
Mundo cravado onde me amparo. Lateja
inconsciente as fagulhas de luz das lembranças
de um tempo, remoto, arcano, acasalado na
memória pedindo ressurreição.
“Mulheres no mercado da montanha,
Campos abertos, pálido trigal,
E o mar gemendo numa dor estranha,
Bicho vencido, aos pés do pinheiral,
E o casarão do amigo em meio à serra,
E os rios a descer entre vinhedos
Sobre o sangue dos rios e da terra,
Vilas, barcos, touradas, arvoredos,
O pão-de-ló na quinta, o arroz-de-pato
Que mãos amadas sabem preparar...
Mas onde me perdi? Este retrato
Dói de escrever? Dói mais de recordar.
Sangram nele sobreiros mutilados
Na desordem dos sonhos acordados.”
Odylo Costa, filho.
Diz-nos o mestre Luís da Câmara
Cascudo:
“O Homem transplanta vísceras, pisa os
granitos lunares, liberta a força atômica, mas não
atina com os segredos ltiplos da
Reminiscência, o Mundo que vive em nós
obscuro e palpitante.”
...E volto, no tempo, ao Minho dos meus
avós a trazer lembranças e, com elas, o
cruz do céu[, em busca de um Novo Mundo.
“Ultra Equinoccialem, non peccatur”.]
72
encantamento das lendas da vizinha Galiza
quando éramos uma terra, sem fronteira, na
época dos Celtas e de outras remotas
civilizações.
“Todo este tempo não tirei os olhos
Do meu sonho longínquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infância ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto,
Dando para o rio de noite
E paz do luar esparso nas águas.”
Fernando Pessoa
Lembro-me que alguém cedinho, lia em
voz alta [o Lunário Perpétuo] e eu espreguiçava-
me, friorenta, perdida nos velos das mantas,
ouvindo na penumbra aquela voz rouca, que me
dizia sobre os Santos do dia, sobre a neve ou
verão, do sol-posto e das geadas, das estrelas em
fuga, da peregrinação lunar, dos quatro ventos,
dos eclipses, de remédios universais de
velhíssimas fórmulas, de ser época das florações,
de sanchar a horta, de messe, de se fazer geléias
e serões, dos lutos e penitências da Quaresma,
das festas de fogueira, do advento com o cepo de
carvalho do Natal posto ao lume, das advinhas,
[das citações em latim] :
- Astra Movent Hominis,
Sed Deus Astra Movet,”
das forças da natureza e da sabedoria popular.
[E, sobretudo, me ensinava a viver.]
[Tudo tão longe.] Esbatido. Névoa.
[Perdura em mim a voz.]
Ela ressoa como se fosse o eco vindo das
34) Trouxera de Portugal um relógio de
sol em madeira, nele havia a palavra
Meridiana talhada em letras góticas e [o
Lunário Perpétuo] lido por ele em voz alta
para os da casa, cujos ensinamentos eram de
mais serventia para a sua terra do que para
este sertão.
(§ 33) Gostava meu dono [das citações em
latim] [:] [“]Astra movent hominis, sed
Deus astra movet”, “Arbor bona bonos
fructus facit, et mala malos.”
36) [Sobretudo, ensinava a viver. Tudo
tão longe.] Esbatido [,] [n]évoa. [Perdura
dentro de mim a voz.]
73
mouras encantadas, que se ouve em certos
outeiros, vales e das profundezas das mágicas
salamancas. Os cheiros deste tempo ficaram em
mim enraizados como o restolho das ceifas. O
doce rosmaninho, das aromáticas giestas dos
prados, dos verdes e misteriosos soutos, das
resinas dos pinheirais, das rasteiras macegas, do
gado, dos vinhedos, das águas das sangas, da
caleira, dos junquilhos e talhões das alfaces, das
hortaliças, dos regatos e fontes. Da barrela onde
estava a roupa a branquear, do [pão preto de
aveia e centeio que assava fechado no forno, em
cuja porta havia o desenho de uma cruz igual à
feita na massa para ela crescer.] Das anchas
acessas do lume. Das especiarias...
Havia o estrilar insistente dos grilos nas
pilheiras da cozinha anunciando fortuna para a
casa, afastando a infelicidade. Durante o dia o
queixume da nora tirando a água do poço e [o
casquinar dos ratos na despensa] já noite velha.
Sinto o gosto do bolo de pão de milho,
broas com azeite, dos confeitos, [do funcho
usado nos defumados, dos chouriços, do alho
afugentador dos malefícios, das] castanhas, [da
açorda com coentro, do vinho] da casa [, do
picante mosto dos lagares, da canela no arroz
doce] e da fumaça da lenha na papa da ceia.
Vejo [a pedra quadrada, o lar], que havia
de proteger [o fogão onde ao redor aconteciam
conversas], comidas, [a doméstica vida] [das
herdades,] quintas, [casas com a Graça de Deus].
Alguém dizia: - “Nosso Senhor nos dê
muito e nos sustente com pouco” na mesa longa
31) [Da casa velha, vinha-lhe] [da
barrela] [,] [onde estava a] [a branquear
roupas] [,] [o cheiro das cinzas, do
fragrante] [do] [pão preto de aveia e centeio
que assava fechado no forno, em cuja porta
havia o desenho de uma cruz igual à feita na
massa para ela crescer.]
[...]
[Durante o dia] [escutava-se] [o queixume
da nora tirando a água do poço] [, o ruído
das pás do moinho,] [havia] [o estrilar
insistente dos grilos nas pilheiras da
cozinha] [,] [anúncio] [certo de] [fortuna
para a casa,] [e ao cair da noite, a tristeza
dos aboios tangendo o moroso gado e muito
tarde] [e] [o casquinar dos ratos na] [s]
[despensa] [s]. [já noite velha]
[...]
[Sentia] [o gosto do bolo de pão de
milho,] [broas com azeite] [, dos confeitos,]
[a falta] [do funcho usado nos defumados,
dos chouriços, do alho afugentador das
doenças e malefícios, das] [nozes], [da
açorda com coentro, do vinho] [da casa] [,
do picante mosto dos lagares, da canela no
arroz doce] [e da fumaça da lenha na papa
da ceia.] [,] [das] [broas com azeite] [.]
32) [Era, contava] [ele,] [a pedra
quadrada, o lar] [,que havia de] [protetor]
[d] [o fogão onde ao redor aconteciam
conversas] [,comidas,] [d] [a doméstica vida
das herdades,] [quintas,] [das casas com a
Graça de Deus] [.] [que na época do
74
da sala de teto baixo onde odores demoravam a
acompanhar o vento que, acriançado, corria pela
casa adentro, trazendo com ele o perfume das
brancas amendoeiras no final de janeiro.
Previam o tempo indo [no Dia de São
Vicente espreitar os ventos] com a lumeeira de
palha acesa e se eles vinham de cima a inclinar o
facho era sinal de fartura.
Na festa da [Senhora das Candeias,] da
Candelária dizia-se:
“Se a Senhora da Luz chorar
Está o inverno acabar.
Se a Senhora da Luz rir,
Está o inverno para vir.”
E, neste [dia], 02 de fevereiro, os
nascidos mortos eram simbolicamente batizados
pelos seus padrinhos a despejarem [água] sobre
[as sepulturas.]
Assim como os hábitos de vida,
mudavam nos solstícios, na época das “loas” das
lapinhas, na Semana Santa com jejuns e seus
santos envultados de roxo, acontecia a “mudança
de habitação” nas necessidades da pastagem, nas
migrações sazonais e então parecíamos com os
nômades ciganos. Certo ano, no Dia de Páscoa,
houve a chuva anunciadeira de que não haveria
nozes.
“Quando em março arrulha a perdiz – ano
feliz.”
Levava-se para o pároco um garrafão de vinho,
pão-de-ló e moedas de prata.
“Abril frio e molhado, enche o celeiro e
farta o gado”, inicia-se com o “Dia das Petas” e
advento punham no lume o cepo do
carvalho.]
39) [Os homens subiram em um platô]
[Previam o tempo indo] [no dia de São
Vicente para espreitar os ventos] [com a
lumeeira de palha acesa e se eles vinham de
cima a inclinar o facho era sinal de fartura.]
[, atearam fogo em gravetos sem deixar que
chamejassem e a fumaça subiu linheira em
vez de espalhar-se como as águas.]
[Desceram acabrunhados e esperaram o dia
de Nossa Senhora da Purificação,] [Na festa
da] [Nossa] [Senhora das Candeias,] [da
Candelária dizia-se: “Se a Senhora da Luz
chorar/Está o inverno acabar./Se a Senhora
da Luz rir,/Está o inverno para vir.”] para à
noite acenderem suas velas e rogarem
mudanças no tempo. [E, neste] [Nesse] [dia]
[batizaram os que nasceram mortos] [e os
pagãos] [pelos seus padrinhos a]
[despejando] [água] [nas su] [as sepulturas]
[, nas porteiras dos currais e nos caminhos
em cruz.]
75
arreliavam as crianças para irem amarrar com
cordas o vento.
[“Manhãs de abril boas de andar e
doces de dormir.”]
“Fora em um domingo, cinco de abril, que
ressuscitou o Redentor da vida entre os mortos e
em tal dia se acabará o mundo.”
E o que vi e o meu imaginário criou
embaralharam-se. Não sei se presenciei, se me
contaram, se li ou sonhei... quando ainda
“moira”, sem batismo, a minha avó preocupada
com medo que as bruxas me levassem, colocava
na cabeceira do berço arruda e embaixo do
colchão uma tesoura aberta para elas se
afastarem, e me ninava:
“Embala, berço, embala
Com pauzinho de oliveira,
Embala-me esta menina
Que a quero meter freira.”
[O menino] pagão havia de ter um nome
–Inácio ou [Custódio] para que o Diabo não se
apossasse de sua alma antes de ser batizado, e
eles não podiam pedir a bênção nem fazer o sinal
da cruz. Existia um protetor adágio: “Adotar
crianças não batizadas dá sorte em casa.”
O medo sempre. Palpável. Das maleitas,
das forças da natureza, dos bruxedos, dos
desígnios.
À sombra do narcótico trovisco, usado
nas pescarias, alguém jogava ofertas de fios,
palha, migalhas de pão, um pouco de vinho,
dizia três ensalmos e tudo se enredava e
enganadas as maleitas ficavam. No retorno para
32) Das gas, sempre a procura dos
brilhos, reflexos para seus ninhos e dos
tordos a lembrar os sabiás desta sua nova
habitação. [Das] [“manhãs de Abril,] [–]
[boas de andar e doces de dormir.”]
96) [O menino] [pagão havia de ter um
nome –Inácio ou] [demorara a ser batizado
e ficou sendo chamado de [Custódio] [, esse
era o costume. ]
[– para que o Diabo não se apossasse de sua
alma antes de ser batizado, e eles não
podiam pedir a bênção nem fazer o sinal da
cruz.]
76
casa ouvia:
“Sem nunca olhar para trás, menina, pois, o Deus
do [Medo], assalta pelas costas e nunca pelo
peito.” Obedecendo, não virei-me para trás,
naquela tarde, em que regressava com minha tia,
a chorar, do velório de uma velha amiga. Havia
assistido ela curvar-se e falar baixinho com a
morta, coberta por um véu, entre uma cruz
formada por quatro velas acesas. Sabia que ela
estava a mandar um recado para a alminha do
seu irmão mais querido afogado no mar. Ela me
dissera que o mar precisa todos os dias de um
fôlego vivo. E fora seu irmão o escolhido
naquele dia de pesca na ilha de São Miguel.
Minha tia fizera para mim um rosário do
“sempre verde”, o sabugueiro, e eu trazia no
pescoço para não ser embruxada. Contaram-me
que era o “sempre verde” venerado, porque na
campa do Senhor fora achado. Usava arruda com
seus poderes mágicos, para afugentar os espíritos
e a má-tenção.
Certa vez vieram buscá-la para ir curar um
doente e eu acompanhei. Ela pusera a arder em
braseiro, alecrim, mostarda em grão, raminhos
de oliveira e com o fumegante braseiro fez uma
cruz no alto por cima do doente e pronunciou
este ensalmo: “Assim como Nossa Senhora
passou pelo alecrim e o abençoou, assim eu te
defumo para te desligar de todo o mal que no teu
corpo entrou.” Depois ela mesma jogou as
cinzas, na água corredia.
Havia a quadrinha
“[Todas as ervas são bentas
86) A marcha do meu cavalo-de-campo
ampliava-se e o meu rafeiro, pezunho,
ficava acuado. Pressentindo. “Quem olha
para trás s’assombra”. O [Medo] sobe à
garupa da montaria e lhe acompanha na
jornada. Não voltava-se para olhar, mesmo
que ouvisse relinchos, assovios agudos,
sons de cincerros de uma burra-madrinha na
guia de comboio, estralar de fogaréu em
coivara ou acelero de casco de boi
tresmalhado. Era olhar para trás e veria
rastos às avessas, trazendo com eles inverso
das coisas, o oposto, os contrários.
35) A peregrinação lunar e a variedade
de suas mudanças, os eclipses a privar de
luz a Terra [...] da festa das fogueiras e da
quadrinha sobre o dia do santo Precursor
[“][Todas as ervas são bentas
77
Na manhã de São João
Só o trevo, coitadinho
Fica de rastos no chão.]”
De sete em sete anos, a valeriana, na
manhã do Santo Purificador, floresce em talismã
e as verbenas se usam para saber dos bons
augúrios, dos auspícios. No Dia de São João e no
de Todos os Santos, faziam-se magustos nos
bosques e montes. O fogo ardia como as das
antigas [almenaras]cujo clarão era uma “fogueira
de guia” para os que vinham, caminhavam, pela
solidão dos [ermos], das landas.
“Pelo São João lavra e terás palha e pão.”
Na véspera da noite de vinte e quatro de junho,
eram atirados, no campo, três pitadas de sal e
pedia-se ao Santo que assistisse ao renovo das
plantações.
“Os sete-estrelos vão altos
Menina, vá-se deitar:
Que eu também farei o mesmo,
Que tenho de madrugar.”
Colhia-se a água de sete fontes, antes de
nascer o sol, pois ela continha virtudes:
Ó meu São João
Eu já me lavei,
E minhas mazelas
No rio deixei.
Banho sagrado,
Purificador,
Lavando os pecados,
Limpando o passado.”
Na época das sementeiras, diziam esta
fórmula para afugentar as aves:
na manhã de São João
só o trevo, coitadinho
fica de rastros no chão.][”]
19) Época em que, ao cair da noite,
acendia-se a [almenara], assim era por ele
chamada, os fachos acesos, no pátio da
fazenda, a fogueira de guia, orientando os
viajantes vindos por estes [ermos]
despovoados [...] acelerando o medo nos
viventes.
78
“Passarinhos deixai meu painço
Que tem fel!
Ide para o monte
Que tem mel! ”
Faziam-se monos de palha, espantalhos e
homens e meninos postavam-se em vigia
abrigados nas eiras pelas crianças de palha. Nos
campos, existiam, fincados em um mastro, um
chifre de boi para afastar, das plantas e
pimenteiras o mau-olhado. Contavam, que
[o]s[ Bento]s [dotado] s [de poderes de cura,
assim afortunados porque choraram no ventre
materno] , escutam dos sobreiros os seus agudos
gritos de apelo quando são desnudados de cima a
baixo aos nove anos. E que invisíveis, os seres
encantados são percebidos somente pelas
crianças, pelos cavalos e cachorros.
Falavam das mudanças atmosféricas:
“Quando as andorinhas voam por cima das
águas, e quase as tocam com as asas é sinal de
tempestade de águas e vento.”
“Vento Suão
Cria palha e grão.”
Vejo pastos de infindos verdes, encostas
onde os socalcos cobrem-se de vinhas e, longe,
muito longe dali entre vertentes, vi a ria, contida
e dócil nos seus veios d’água e nos alagadiços as
ervas tenras, o arrozal.
Quando o vento brincava de corrupio nas
folhas soltas avizinhava-se o bom tempo:
calmaria na terra bonança no mar. Por vezes, o
vento chegava das suas cavernas num cicio a
segredar nas palhas, nos juncos, choupos,
23) [Contavam, que só] [Dias antes,
chegara] [o] [s] [Bento][s] [,] [dotado][s] [
de poderes de cura, assim afortunado, por
ter chorado no ventre materno] [.] [,
escutam dos sobreiros os seus agudos gritos
de apelo quando são desnudados de cima a
baixo aos nove anos.]
79
castanheiros e pinheirais mas o zumbido dos
insetos, dos bichinhos alados, a sonoridade dos
córregos e levadas não me deixavam escutar suas
confidencias. Distante, nas vessadas, nos campos
ouvia o cantado aboio, o latir dos rafeiros
tangendo o moroso gado para a velha abegoaria.
No outono, época das folhas voarem e
pousarem douradas na terra, diziam que El- Rei
[D. Sebastião,] o Esperado, viria da Ilha
Encoberta, [em um dia de] cerração [,] montado
[no seu cavalo branco]. Muito antes de d’El –Rei
encantar-se em Alcácer-Quibír, um grande
cometa havia iluminado os céus. Prenúncio e
vaticínio de sangue, de morte, de guerras vindas
de novos reinos. Na trilha do cometa extinguiu-
se a dinastia Avis.
Contavam sobre ilhas encantadas, ilhas
brancas, irreais, à merde certos dias de bruma
e que podiam ser doadas aos reis portugueses.
Uma delas próxima a Ilha de São Tiago coube a
infanta D. Beatriz e muitos dias se passavam sem
que ela surgisse aos olhos humanos, só aflorando
quando assim desejavam e dispersavam-se as
névoas.
Havia eu de ter sonhos e estes logo
decifrados: caindo em um abismo sem fim era
devido a fase de crescimento. Acordando de
pesadelo onde havia cobras, serpentes, era aviso
de dinheiro enterrado, que elas são
enfeitiçadas e guardiães de tesouros.
Minha tia-avó, pusera certo dia, na viga
mestra da cozinha a folha dura da babosa, e
(§ 48) [No outono, época das folhas voarem
e pousarem douradas na terra, diziam que
El- Rei] [Foi tia Alma de quem ouvi sobre
[...] ] [Dom Sebastião] [,] [o Esperado, viria
lá] [ mas este, tinha ele fé, que] [em um dia
de] [bruma] [,] chegaria [montado] [no seu
cavalo branco] vindo [da] [sua] [Ilha]
[Encantada] [.]
80
enquanto esta permanecesse verde era sinal de
que o filho que emigrara para o Brasil, estava
bem, com saúde. Ressoava o provérbio de
conformação: “Ninguém pode fugir a sua sina.”
Assisto as tecedeiras, ao acabarem o
serão, moverem o caneleiro do tear para
espantarem o Tatro, o Bárbaro, o terror, o
espírito vindo do nevoeiro. O medo da Coca,
uma figura que não se sabia se de homem ou de
mulher, com um grande capuz enterrado na
cabeça, que surge com seus olhos em brasa,
quando se deixa a lareira apagar por não arderem
os raizeiros, a carqueja. A luz sempre acesa, em
vigília contra as coisas malévolas, que andam
noite a fora, na hora do sono, quando ficamos à
mercê delas. O [sétimo filho], o “Corredor”, cujo
fadário é transformar-se em um esponjadouro,
também teme a luz, por isso passa longe das
aldeias, mas voltará a forma humana se for
varado por um chuço de ponta de bronze.
E a canção que me fazia fechar os olhos e
adormecer:
“Ó Papão, vai-te embora
Que a menina não está cá:
Foi para a casa da avó
Sabe Deus quando virá.”
Aprendo [a destravar a língua:]
“[Pardal pardo, porque palras?
Eu palro e palrarei
Porque sou pardal pardo,
Sou palrador de El-Rei.]”
Distraio-me com o jogo do mal-me-quer,
bem-me-quer, o jogo do anel, [as cantigas de
19) Época em que ao cair da noite,
acendia-se a almenara [...] orientando os
viajantes vindos por estes ermos
despovoados, por onde então corria,
como o vento do desespero, o macilento e
lendário lobisomem, [o] [sétimo-filho]
chegando dos espo[n]jadouro[s] e das sete
partidas do mundo, acelerando o medo nos
viventes.
(§ 144/5) Custódio dizia que criava quatro
meninas ao vê-las [aprenderem] [com
Eugênia] [a destravar a língua:]
[ “]Pardal pardo, porque palras?
Eu palro e palrarei
Porque sou o pardal pardo,
Sou o palrador de El-Rei.[”]
141) [Distraio-me com o jogo do mal-
me-quer, bem-me-quer, o jogo do anel,]
[Giram ainda nas salas e alpendre] [as
81
roda]:
“Senhora Dona Sancha,
Coberta de ouro e prata,
Descubra o seu rosto
Que queremos ver a cara”
E contam-me que ela era filha de D.
Sancho I, “O Povoador” e que passou sua vida
coberta por vestes, véus e seguidoras a
acompanharam no recolhimento, recato,
devoção, cilícios e jejuns, emparedadas em um
convento de altos muros em Alenquer. Dessa
Infanta-Santa, além da canção, restam relíquias
em um túmulo de ouro e prata, no mosteiro de
Lorvão.
Certa noite, em que avistei o campo de
estrelas no céu, ensinaram-me esta alvíssara:
“Sant’Iago de Galiza
É um cavaleiro forte
Quem lá não for em vida
Há de ir lá depois da morte.”
Os nossos mortos, qual brancas ovelhas,
vão rumo ao aprisco pelo caminho sacrossanto
das almas e nós mortais em peregrinação, pelas
estradas da terra.
Uma velha parenta aparecia, sempre na
época dos estios, com seus livros, suas histórias,
seu [relógio de sol] de nome [Meridiana], suas
citações. “Minha Lisboa menina, foi fundada por
Ulisses, o herói navegador amigo do Rei dos
Ventos e nós, os Lusos, descendemos do Deus
do Vinho e por D. João I, pai de D. Henrique, o
navegador, o nosso Reino foi consagrado a São
Jorge.” Ela costumava dizer umas estâncias, que
cantigas de roda] [.] [“Senhora Dona
Sancha”] [/Coberta de ouro e
prata,/Descubra o seu rosto/Que queremos
ver a cara”]
[... Escuto o grito perguntador: -Sapatinho
de judeu? Mão de baixo quero eu! Mão
de cima não dou eu! [...] Frio de quem está
longe.]
34) [Trouxera de Portugal um] [relógio
de sol] [em madeira, nele havia a palavra]
[Meridiana] [talhada em letras góticas e o
Lunário Perpétuo lido por ele em voz alta
para os de casa, cujos ensinamentos eram de
mais serventia para a sua terra do que para
este sertão.]
82
naquele tempo eu não as entendi, as decorei.
Hoje, no entanto, soam tão claras:
“Tudo passei, mas tenho tão presente,
A grande dor das cousas que passaram
Que já as freqüências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.”
Sentava-se ela no arredondado mocho,
sem encosto e contavam-me, que nas lagoas da
serra, nos rios, as bruxas transformavam-se em
patas e roubavam águas da rega; Certas risadas
ouvidas à noite, repentinas, são elas a petiscar
lume. Revelaram-me que lera em um alfarrábio:
“A bruxa nasce – Feiticeira faz-se.”
“As bruxas cumprem um fado que Deus
lhe deu.
As feiticeiras agem por arte do Demônio.
As bruxas sofrem metamorfose, tornam-
se invisíveis.
As feiticeiras têm o poder de fazer
feitiços em questão de amor e são
adivinhadeiras.”
As bruxas da Galiza chamam-se Meigas,
elas vestem-se de branco e confundem-se com os
mortais e com as nuvens. Fora lá, à margem de
um rio, que a Virgem deixara suas pegadas assim
como os rastros dos Santos-Homens em romaria
de ensinamentos de fé e amor pelo mundo, muito
antes do tempo em que Santo Agostinho
confessava: “...Ó Deus, tão oculto e tão
presente...”
A velha gostava de pedras. Dizia que as
pedras sem nomes, imensas, velhíssimas, a tudo
haviam presenciado desde o Gênesis daí terem
31) [Falava ele das lendas da vizinha [As
bruxas da [Galícia] chamam-se Meigas, elas
vestem-se de branco e confundem-se com
os mortais e com as nuvens. Fora lá,]
próxima do seu Minho, onde] [a Virgem
deixara nas pedras à margem de um rio suas
santas pegadas ][ assim como os rastros dos
Santos-Homens em romaria de
ensinamentos de e amor pelo mundo,
muito antes do tempo em que Santo
Agostinho confessava: “...Ó Deus, tão
oculto e tão presente...”]
[; do caminho sacrossanto de Sant’Iago;
das “mudanças de habitação” das
83
emudecido e não mais poderem chorar.
Vivências. Estas pedras pararam e deixaram de
se encontrar. Tornaram-se marcos desnudados e
escarpados, fragas no rumo dos céus, tal qual os
marcos deixados pelos descobridores quando
chegavam em novas terras e ali erigiam um
padrão de pedra com armas de Portugal. Outras
metamorfosearam-se em vegetal cobrindo-se de
liquens e verdes musgos, umas em rochas com
feitios de gigantes, aves, frades, pirâmides,
outras preferiram viver submersas no mundo
glauco e silencioso das águas, algumas
fragmentaram-se pelos caminhos da terra e dos
rios e foram chamadas de seixos, pedregulhos,
sílex, calhaus. A pedra tem seus fadários e
quando lançamos uma pedrinha ao pé de uma
cruz a beira dos caminhos nas estradas, a marcar
o lugar onde alguém pereceu as transformamos
em oração, a perenizar o nosso sentimento de
piedade pelos solitários mortos. dos espaços
desciam a pedra-de-raio e o granizo traídos pelas
trovoadas, pelas chuvas e ela afirmava que os
deuses trouxeram à Terra os megálitos, os
menires, os dólmens, assim também os penedos
e o granito para Portugal. Certas pedras tiveram
logo nomes como as gemas, as pedras preciosas,
que o gelo petrificado, transformara-se no cristal
de rocha, e nele os magos vêem nas esféricas,
bolas de cristal, a imagem, o reflexo do destino e
o caminho de certos homens.
Mas a história da linda moça vinda da
Galiza, no séqüito de uma Infanta prometida a
um príncipe-herdeiro, era a que eu mais gostava
necessidades de pastagens [...] dos sonoros
ribeiros e das lagoas das serras onde as
patas podiam ser velhas bruxas assim
transformadas, para roubarem águas da
rega. ]
84
de ouvir. Antes dela iniciar a narrativa citava:
“Oh! Caminho de vida nunca certo,
Que a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!”
Contava que este príncipe, D. Pedro, neto de D.
Dinis o maior trovador do seu tempo, foi tomado
de amor não pela prometida, D. Constança, e
sim, rendido, apaixonado, pela sua bela dama de
nome Inês de Castro. Foi, no entanto, com D.
Constança, que o príncipe português casou-se. D.
Inês tornou-se comadre do casal envolta assim
em um laço de confiança e sagrada intimidade
que foi a causa da negativa, do impedimento
canônico, alegado pelo papa Inocêncio VI para
não autorizar depois de alguns anos o casamento
entre os dois enamorados. Antes da infeliz Inês
ser assassinada pela trama dos conselheiros do
Rei contava que os dois arrostaram o preceito e
casaram-se na Igreja de São Vicente. Mas, o que
importa foi o amor que os uniu perenizado, por
sua história a espera do fim-do-mundo, quando
novamente se encontrarão no Dia do Juízo Final.
Citava:
“Onde quer que eu viver,
Com fama e glória,
Viverão teus louvores em memória.”
Havia, muitos e muitos anos, um
capitão do mar, que se apaixonara pela ninfa das
águas e por ela fora enganado. Sem esperança,
transformara-se em um gigante de nome
Adamastor, a guardar as águas, a desafiar os
navegadores com bramidos de voz vindos do
mar arcano do Tormentória. Ocultava-se nas
85
brumas e espumas por castigo de ter sido crédulo
e confiante no seu amor. “(Que é grande dos
amantes e cegueira)”. Tornou-se insano e
vingativo a provocar tormentas, naufrágios aos
que ousavam aventurar-se a devassar o
longínquo mar de breu, o recife igual a um
penedo gigantesco de seis léguas além do cabo
Borjador, do temido refrão: “Quem passar o
cabo Não, voltará ou não.” Mas o gigante fora
mais uma vez logrado, subjugado, domado e
suas mágoas afogaram-se no Tempo. No lugar
onde ele atemorizava: O vento dorme, o mar e
as ondas jazem.” Por vezes sobrevoavam
avezinhas de tristíssimos pios, as “almas de
mestre”, que alertam aos capitães de navios
sobre tocaias das tormentas e da tromba marinha.
Mas nem de tristes amores
“temperados com árduo sofrimento” ela sabia.
Contava-me sobre o poderio e fausto mulçumano
quando um poderoso califa mandara fazer para
sua amada uma tapeçaria, que afastasse dos seus
sentidos, os rigores do inverno, do frio vento que
descia das faldas das montanhas, da neve que
cobria aquele distante reino. A primavera
brotava na tapeçaria pelas flores, frutas e
folhagens tecidas com incrustações de rubis,
safiras, jade, topázios, esmeraldas. Haviam
passeios em filigranas, riachos em pérolas, céus
de lápis-lazúli a espreitar-se em arco-íris de
opalinas e a noite, os diamantes engastados
brilhavam como estrelas. Em volta da tapeçaria
havia iluminuras bordadas e tecidas em ouro e
prata com poemas de amor de Antar, o poeta
86
árabe, lendário, anterior ao Islamismo, que
revelava: “Quando Allah quer bem a um de seus
seguidores, abre para ele as portas da
Inspiração.”
Narrava sobre um rei português, o
Conquistador, avô da infanta-santa, D.Sancha,
que em guerra com os Sarracenos, em 1139, fez
um contrito apelo que atravessa os séculos, para
que Cristo surgisse e evitasse o morticínio
daquelas cento e cincoenta mil almas, prostradas,
em Ourique: “Aos infiéis, Senhor, aos Infiéis. E
não a mim que creio o que podeis.”
Dos milagres do Menino Jesus e da
Virgem que deram aos portugueses vitórias
contra a côrte espanhola nas batalhas em
Miranda do Douro onde o próprio Menino
apareceu incutindo-lhes coragem, e em
Aljubarrota foi um pedido, um rogo feito por D.
João, Mestre de Avis à Virgem, que os
soldados de castela eram em número muitas
vezes maior. Contava-me sobre o infante D.
Fernando, irmão de D. Henrique, o navegador,
quando ambos partiram para a conquista de
Tanger e foi seu exército derrotado pelos
mouros. Estes então resolveram que um dos dois
príncipes ali ficasse como refém-prisioneiro até
Portugal entregar novamente ao domínio
sarraceno, o antigo território deles, a cidade
Ceuta. Os irmãos sabiam que isto jamais
aconteceria pois os soberanos da Europa não
deixariam que assim agisse Portugal. D.
Fernando persuadiu D. Henrique a partir
dizendo-lhe da sua importância para os
87
portugueses no seu devotamento às descobertas
marítimas. E ficou o moço D. Fernando, naquele
deserto, sabendo os irmãos ao se despedirem do
tristíssimo sacrifício que ao Infante se impunha.
Ao passar dias depois, acorrentado pelos
povoados árabes de Tânger a Fez, D. Fernando,
era alvo de escárnio, pedradas, execrado com
palavras e muitos queriam matá-lo, ele
representava Portugal, o invasor. Viveu a sua
vida carregado de ferros, todo ferido, açoitado,
quase nu, a limpar estrebarias do sultão até ser
encerrado e martirizado quinze meses em um
escuro e imundo cárcere, quase sempre
ajoelhado pedindo a Deus misericórdia. Já
calejado os joelhos, deformado, foi por fim
escutado em suas preces. Depois de morto
tiraram suas vísceras, o penduraram pelos pés
nas ameias dos muros para ainda ser execrado.
Houve festa de quatro dias em regozijo. E esta
foi a triste história que o frei João Álvares, ao
voltar resgatado, para Portugal, relatou aos
irmãos, à corte, sobre o que padeceu o Infante
Santo D. Fernando, assim mais tarde conhecido
por todo o reino. Já seu irmão, D. Henrique
protegido por sua boa-estrela fazia partir de
Sagres, suas caravelas em descobertas épicas e
as Plêiades foram as estrelas de seus
navegadores.
Minha contadora de histórias baixava o
tom de voz ao me falar sobre a mística chama
azulada, o Fogo de Sant’Elmo, que descia dos
céus nas tempestades ao pairar no mais alto dos
mastros protegia homens e naus dos naufrágios.
88
Lembro-me da emoção e fascínio que ela
transmitia, ao me contar sobre Rolando, o mais
querido dos Paladinos dos Francos, cujo amor
por uma bela princesa pagã, de Catai, o levou à
loucura. Possuía ela um anel que a tornava
invisível e possuía o segredo do poder de cura
das ervas. Rolando descobriu que a princesa
amava outro homem quando ao atravessar uma
floresta viu escrito no tronco de uma faia, o
nome dela, e o sarraceno Medoro, e em árabe
poemas de amor da princesa para seu escolhido
gravados nas pedras. Por este amor não
correspondido, Rolando esqueceu seus deveres
para com Deus e seu tio, o rei Carlos Magno. O
céu o castigou privando-o da razão. Seu fado era
por onde passava, furioso, matar homem e
animais. Os cavalos sucumbiam por ele os fazer
correr dia e noite e sua força era redobrada por
estar insano. Nas aldeias, tocavam a rebate os
sinos das igrejas e as pessoas assim avisadas
recuavam atemorizadas.
Mas na Abissínia, o reino de Preste João,
Astolfo amigo de Rolando ao livrar da corte o
assalto das harpias, tangendo-as para as
profundezas de uma caverna que levava ao
interior da Terra, encontrou-se com o profeta
Elias e sobre o fadário de Rolando conversaram.
O profeta lhe revelou: “Quando alguém na Terra
perde o juízo este sobe para a região da Lua em
forma de fino nevoeiro. Ali fica guardado em
frasco, vasos, as malogradas inteligências dos
Homens, até que chegue o dia de ser restituído,
mas as mais das vezes fica ali, até que o dono
89
esteja morto.” Soube Astolfo que na Lua estava
tudo que na Terra se tinha desperdiçado: “as
horas perdidas, as ocasiões desaproveitadas, os
votos quebrados, as orações não oferecidas a
Deus.” Por especial mercê, Astolfo recuperou
para Rolando sua Razão e bastou que este
aspirasse profundamente o jarro onde estava seu
nome, para seu juízo, sua inteligência tornar.
Rolando desde então esqueceu todo o amor pela
princesa e retornou a corte de seu imperador
Carlos Magno, onde continuou a ser o mais
corajoso dos pares do reino. Em sua batalha,
Rolando sentindo que fora ferido de morte
deitou-se por cima de sua espada “Durindana”,
de inesquecíveis conquistas, para ninguém dela
se apossar e levou a boca seu olifante de marfim
enchendo o ar com seu clamor... Muito longe, o
imperador escutou os clementes sopros de
socorro. Foram em vão estes apelos, pois
Rolando neste último esforço morreu engolfado
no seu próprio sangue. Sua Durindana encontra-
se guardada nas ruínas de uma igreja portuguesa.
Recordo-me dela me alertar sobre as
“[horas-abertas]” do meio-dia, meia-noite, pelas
Trindades. Horas em que as pedras se deslocam,
os doentes pioram, horas das miragens. Hora dos
“demônios meridianos”, [em que Pã] repousava
e calava sua seringue e até o vento era tão leve
que fazia os caniços e juncos emudecerem.
“Nem de noite, nem de dia,
Nem ao pino do meio-dia.”
“O sol, quando nasce, é rei.
Ao meio-dia, é morgado.
(§ 5) Meu dono falou aos homens sobre esta
[“] [hora aberta] [”], a meridiana, hora sem
defesa em que os demônios do meio-dia
libertam-se. Hora grave de ameaças que
pragas e rogos são atendidos pelos céus.
Nesta sexta-hora, lenta em que pedras
deslocam-se, acontecem as contendas entre
os ventos, os remoinhos que bruscos
arrebatam folhas e poeira elevando-os em
espiral detendo-se diante das soleiras das
casas. [Há de se fazer sesta nesta] hora [dos
“demônios meridianos”,] [em que Pã]
90
De tarde está doente
A noite está sepultado.”
Admoestava: “Menina, não durma de barriga
para o ar pois Fradinho da Mão Furada com sua
carapuça encarnada que o faz invisível, entra
pelo buraco da fechadura dos quartos nas altas
horas da noite. Ele tem mão pesada e põe por
cima do nosso coração, nos impedindo de gritar
e nos trazendo então os pesadelos.”
Aconselhava-me: Tenha cuidado com você, pois
a vida é uma chama. Não entregue ela a
ninguém. Deixe-a ficar em local recôndito,
secreto.
A minha vida está protegida na Pedra Amarela
onde o sol a faz dourada para portugueses e
espanhóis, à margem do Douro. Quando
entregamos a nossa vida a alguém, pode-nos
acontecer de nos finar em melancolia.
Se queres um dia ter filhos não toques na sagrada
e estéril pedra d’ara.
Não deixes que desalojem os pombos de tua
casa.
E, com estas advertências, se punha em
busca dos caminhos, com seu xale trançado,
levando seus pensamentos qual poalha de luz a
me envolver de fábulas, lendas, mitos e fatos
reais, estes bem mais singulares e mágicos que
os criados pelo imaginário. Ela me fazia sentir
que o pensamento era alado.
E chega Agosto, de céu escampo e do
mais belo luar. Dia 24 de agosto, aziago: “Em
dia de São Bartolomeu tem o demo uma hora de
seu.” Dias depois predizia-se: [“Chuva fina por
adormecia [,] [e calava sua seringue e até o
vento era tão leve que fazia os caniços e
juncos emudecerem.] [silenciavam as
avenas e os deuses silvestres repousavam
das fadigas da caça.]
4) [Na soleira, como na] pedra d[e] ara
[Se queres um dia ter filhos não toques na
sagrada e] [dos altares, as mulheres não
deveriam tocar para não secarem a madre,
tornarem-se] [estéreis.]
132) O Bisneto dissera ao abraçar a
prima, mãe do viúvo: [“Chuva fina por
Santo Agostinho, é como se chovesse
91
Santo Agostinho, é como se chovesse vinho.”]
Surge agora a lua nova a carregar o fado
de jamais trazer com ela os raios de luar. A ela
se mostra dinheiro em prata e se diz três vezes:
“Deus te salve, lua nova
Clara e resplandecente,
Quando vieres de outra vez,
Traze-me desta semente.”
Aprendi que a lua exercia domínio sobre as aves
brancas, as águas, a prata e por ser feminina tem
mudanças de fases. Todas as vezes que as pontas
da lua estiverem para onde o sol nasce será lua
nova (crescente), se estiverem para onde o sol se
põe será lua velha (minguante).
“Lua crescente pontas ao oriente
Lua minguante pontas adiante.”
“E que toda cousa, que se houver de
colher para guardar, tosquiar ou castrar, cortar,
podar ou roçar se deve fazer no minguante da
lua.”
Em “Setembro o Maio do outono,” vejo-
me debruçada em uma massa de toalha branca
com açafates de flores. Depois, em um quarto
com nichos e oratórios com o Senhor da Cinco
Chagas, santos, cachos de cabelo, relíquias,
ramos secos, fitas. Ouço a salmodia das
mulheres em orações. Persiste o cheiro do
incenso e dos tocos das velas com a sua luz
mortiça.
Na casa da minha madrinha, aprendi a
por na roca para fiar a porção de linho, a estriga,
e a puxá-la fazendo o fuso pular à luz da candeia
pendurada, que dançava com o vento,
vinho”] [, e ambos sorriram no longo
abraço, [...] conversaram longamente.]
55/6) [Tia Alma ensinara aos sobrinhos e
92
assombrando as paredes de pedra. Depois que eu
rezava para dormir: “Com Deus me deito, com
Deus me levanto,” minha madrinha dizia-me
com voz branda:
“Quem esta oração disser
Quando se for deitar
E quando se alevantar
Ainda que os pecados sejam tantos
Como as ervinhas dos campos
Como as areias do mar,
O Senhor há-de perdoar.”
No teto de despensa, pendurada, havia
uma pele de lobo a lembrar-me inverno, noite e
pastores, estes com seus pífanos, a venerarem
São João Batista e a dizerem na sua festa de
nascimento, com devoção:
“São João, chora, chora
Lágrimas de prata fina,
Por lhe fugir o cordeiro
Por aquela serra acima.”
Em uma noite estrelada, escuto o canto
do melro. Em um dia de sol, ouço a calhandra
tão doce e assustadiça. Vejo as pêgas sempre a
procura de brilhos, reflexos para seus ninhos, os
tordos com suas ruças manchas. E assim arrodeei
penedos, vi o milhafre de nome minhoto,
charruas com seu sonido metálico, as parelhas de
bois jungidos, ermidas desgarradas cobertas de
heras, um velho chafariz à beira da estrada real
a chorar “as lágrimas das coisas.”
Perto de uma Quinta, árvores mal-
assombradas, como a figueira, mudam-se de
lugar no meio da noite e ao alvorecer, voltam
afilhados a oração que aprendera menina
com sua mãe:] [Depois que eu rezava para
dormir: “Com Deus me deito, com Deus me
levanto,” minha madrinha dizia-me com
voz branda:]
[“]Quem esta oração disser
Quando se for deitar
E quando se alevantar
Ainda que os pecados sejam tantos
Como as ervinhas dos campos
Como as areias do mar,
O Senhor tudo há-de perdoar. [”]
93
sem que se perceba, para o lugar de origem. Vejo
os extensos pinheiros e lembro-me do que li:
“Diz-se que o El-Rei D. Dinis, também
conhecido como “O Lavrador”, mandara plantar
o pinheiral de Leiria para a mastreação das
futuras caravelas.”
Assisti a rosemunhos de vento, trazendo
no bojo, ao meio-dia, quando os anjos cantam
hosanas, um ar-ruim com seus desmandos.
Gritava-se: “aqui tem Maria” e o vento rodador
dispersava-se e sumia. Aconselham-me que
nesta hora não é bom ficar debaixo da figueira,
pode vir um arejo sem cura, um ramo estupor.
De cor sei a oração popular:
“Borborinho do pecado
Vai-te com Santiago
Borborinho do Demônio
Vai-te com Sant’antonho.”
Havia época em que o rio tinha sono e
dormia, gelado, parado, sem correr, sem cantar.
Não se bebia água dos córregos, dos ribeiros,
antes do nascer do sol, sem antes atirar pedrinhas
para acordar a água. Quando o rio despertava no
verão, eu via pescarem, com a chumbeira de
malha fina, a lembrar uma saia rodada cosida na
cintura e nela ficavam presos os peixinhos de
prata. Temia-se o tabu do reflexo: “Não se deve
mirar o espelho das águas para a alma não ser
transportada. Muitos anos depois, um mago
escritor, um “prestidigitador da palavra”
transportou-me: “Os homens nunca sabem para
que nascem. Os rios, como os homens, perto
do fim, vêm a saber para que nasceram.”
94
Lembro-me do silêncio da espera do
pouso dos passarinhos na varinha de choupo,
coberta de visco e grãos, do instante de ele bicar,
e trêmulo na chave da minha mão, com asas
grudadas, sem poder mais voar, e sua assustada
mansietude.
Meus passos se amortecem. Caminho
sobre folhedos. Vem-me a cantiga triste da
menina:
“Se passares pelo adro
no dia do meu enterro
dize à terra que não coma
as tranças do meu cabelo.”
Havia de se fazer “As Têmporas de santa
Luzia,” em dezembro, e neste jejum se sabia o
prognóstico, a confirmação do tempo do ano
vindouro.
Minha primeira sensação de estranho
alvoroço, na festa com gaitas, danças. As Maias,
com seu mastro enfeitado de grinaldas, fitas e
oferendas de flores e frutas. Luzes. Sou vestida
de anjo com coroa de rosas no cabelo e asas de
giestas.
Bons fados... Havia em torno de mim
tepidez e aconchego de ninho. Mas... cresci,
viajei pelas 7 partidas do mundo, passei pelos 7
adros, 7 vilas acasteladas, 7 outeiros, 7 montes, 7
encruzilhadas e tantos foram os caminhos
trilhados, que nem eu mesma sei hoje por onde
andei ou pousei. Talvez por ter-me banhado no
Rio Lima, do Minho, que produz o
esquecimento.
A única coisa que despertaria este meu
52/3) [Dizia que este mister aprendera
menina, na sua terra de flores e frios, onde
cantava baixinho para sua mãe não se
entristecer e mandá-la calar-se:] [Vem-me a
cantiga triste da menina:]
[“]Se passares pelo adro
no dia do meu enterro
dize à terra que não coma
as tranças de meu cabelo. [”]
(§ 22) Mais tarde correu em fuga [a] [s]
[estrela] [s] [cadente] [s] [,] de ninguém
95
encanto seria novamente escutar o som daquela
voz. A mesma, que lia o Lunário Perpétuo, a
pedir a São Jerônimo e Santa Bárbara que nos
protegessem das trovoadas, e dizia Deus te
guie”, quando as estrelas cadentes, [as lágrimas
de São Lourenço,] desciam dos céus.
“O rumor antigo conta”
Camões
Natércia
escutei e vi o [“Deus te guie”] e o sinal da
cruz, antes dela pegar de vez seu rastro de
luz ao se exalar no infinito.
34) Aprendíamos com ele por suas
histórias sobre os Santos do Dia, das
estrelas cadentes que eram [as lágrimas de
São Lourenço,] morto em braseiro de fogo
ardente.
Constatamos, com essa tabela, que a autora não utilizou no romance vários
trechos contidos em “Infância no Minho”, e praticamente todos aqueles que permaneceram
sofreram alguma alteração: acréscimos, mudança na ordem do período ou supressão. Seguem
os exemplos:
48, [p. 79]) [No outono, época das folhas voarem e pousarem douradas na terra,
diziam que El- Rei] [Foi tia Alma de quem ouvi sobre [...] ] [Dom Sebastião] [,] [o
Esperado, viria lá] [ mas este, tinha ele fé, que] [em um dia de] [bruma] [,] chegaria
[montado] [no seu cavalo branco] vindo [da] [sua] [Ilha] [Encantada] [.]
(§ 5, p. [89/0]) [Há de se fazer sesta nesta] hora [dos demônios meridianos”,] [em que
Pã] adormecia [,] [e calava sua seringue e até o vento era tão leve que fazia os caniços e
juncos emudecerem.] [silenciavam as avenas e os deuses silvestres repousavam das
fadigas da caça.]
Notamos que os acréscimos ocorreram em maior número e trouxeram uma
característica particularizadora do discurso da autora; as explicações sobre os fatos ocorridos
na narrativa, fator que nos remete à busca pela veracidade do texto.
(§ 39, [p.74]) [Os homens subiram em um platô] [Previam o tempo indo] [no dia de São
Vicente para espreitar os ventos] [com a lumeeira de palha acesa e se eles vinham de
cima a inclinar o facho era sinal de fartura.]
96
[, atearam fogo em gravetos sem deixar que chamejassem e a fumaça subiu linheira em
vez de espalhar-se como as águas.] [Desceram acabrunhados e esperaram o dia de Nossa
Senhora da Purificação,] [Na festa da] [Nossa] [Senhora das Candeias,] [da Candelária
dizia-se: “Se a Senhora da Luz chorar/Está o inverno acabar./Se a Senhora da Luz
rir,/Está o inverno para vir.”] para à noite acenderem suas velas e rogarem mudanças
no tempo. [E, neste] [Nesse] [dia] [batizaram os que nasceram mortos] [e os pagãos]
[pelos seus padrinhos a] [despejando] [água] [nas su] [as sepulturas] [, nas porteiras dos
currais e nos caminhos em cruz.]
52/3, [p. 94]) [Dizia que este mister aprendera menina, na sua terra de flores e frios,
onde cantava baixinho para sua mãe não se entristecer e mandá-la calar-se:] [Vem-me a
cantiga triste da menina:]
[“]Se passares pelo adro
no dia do meu enterro
dize à terra que não coma
as tranças de meu cabelo. [”]
Com a leitura dos dois textos, concluímos que a redução da temática da cultura
portuguesa cede lugar à exploração da cultura sertaneja. Com isso, Natércia necessita criar um
texto mais explicativo para enfatizar o surgimento e o enraizamento dos costumes.
Outro fato importante é a mudança de focalização da narrativa, como no exemplo
abaixo:
[p.80] [Aprendo] [a destravar a língua:]
[“]Pardal pardo, porque palras?
Eu palro e palrarei
Porque sou pardal pardo,
Sou palrador de El-Rei.[”]
(§.144/5, [p.80]) Custódio dizia que criava quatro meninas ao vê-las
[aprenderem] [com Eugênia] [a destravar a língua:]
[ “]Pardal pardo, porque palras?
Eu palro e palrarei
Porque sou o pardal pardo,
Sou o palrador de El-Rei.[”]
97
O discurso em primeira pessoa tornava o texto pessoal, biográfico. Para sua
recriação no romance a narrativa passou por um distanciamento, prova disso é a mudança de
foco narrativo, o discurso surge agora em terceira pessoa.
As mudanças verbais ocorreram em virtude da modificação de foco, e as inversões
de períodos foram feitas para adaptar o texto aos acréscimos e às supressões.
Depois da comparação entre os textos, podemos concluir que a criação do
romance ocorreu através do aprimoramento das leituras, principalmente das obras de Câmara
Cascudo
39
e Oswaldo Lamartine.
As pesquisas e explicações, para buscar um registro preciso das tradições
sertanejas e da colonização cearense, não caberiam em um texto tão condensado como eram
os das três narrativas. Como resultado dessa série de transformações em todos os níveis da
estrutura textual, tivemos a criação de um romance premiado e reconhecido pelo público.
Passaremos à análise da tabela que coteja “O Rasto” com o romance A Casa.
Utilizaremos a legenda de cores para indicar os processos de:
[ ] acréscimo;
[ ] supressão;
[ ] substituição;
[*] rasura;
[] acréscimo na entrelinha superior.
Como os textos são praticamente idênticos, não grifamos de azul as semelhanças,
pois iria prejudicar o destaque das outras cores.
A versão IV, escolhida por ser a mais elaborada, não contém título, portanto é
identificada, pela autora, como III (manuscrito a tinta vermelha).
39
Dicionário do Folclore Brasileiro e Civilização e Cultura.
98
III
para os confins do Reino-das-
Pedras, escondido pelas furnas escarpadas de
Acauã, ele nascera. A mãe notara que o
menino, desde os primeiros passos, pisava
tão leve a causar-lhe sempre susto, quando
sua sombra dela se acercava. Costumava
dizer que ele não deixava rasto no chão,
como se seus pés fossem forrados de algodão
[*mocó] ou pena de pássaro.
Não deixava vestígio nem direção do
rumo. Lembrava o pai, cigano, que com ela
vivera pouco, o tempo para resguardar-se
de algo que o perseguia. Tinha aquele
intuições estranhas, vivendo sempre alerta ao
menor rumor.
Havia sumido em direção às distantes
rochas no bafo morno de certa tarde,
deixando nela um filho e histórias de bichos,
de bruxedos e de outros reinos.
O menino crescera, aprendendo com
ela a viver do mato e trouxera de nascença o
dom e a experiência de um rastejador.
Arrancava o seu sustento da caça miúda, que
ele desentocava onde ela se escondesse,
dentro dos grotões, dos cerrados, das moitas
do úmido olheiro, dos lajedos, das gargantas
A Casa (1999)
[III]
[Novamente ouvi à luz de
lamparinas, agora na voz suave de uma
mulher, na noite em que o Bisneto deitado na
sua rede branca no alpendre, fitava o
firmamento:]
[-] para os confins do Reino-das-
Pedras, escondido pelas furnas escarpadas de
Acauã, ele nascera. A mãe notara que o
menino, desde os primeiros passos, pisava
tão leve a causar-lhe sempre susto, quando
sua sombra dela se acercava. Costumava
dizer que ele [mal] deixava rasto no chão,
como se seus pés fossem forrados de algodão
[*mocó] ou pena de pássaro. [§] Não
deixava vestígio nem direção do rumo.
Lembrava o pai, cigano, que com ela vivera
pouco, só o tempo para resguardar-se de algo
que o perseguia. Tinha aquele intuições
estranhas, vivendo sempre alerta ao menor
rumor.
Havia sumido em direção às distantes
rochas no bafo morno de certa tarde,
deixando nela um filho e histórias de bichos,
de bruxedos e de outros reinos.
O menino crescera, aprendendo com
ela a viver do mato e trouxera de nascença o
dom e a experiência de um rastejador.
Arrancava o seu sustento da caça miúda, que
ele desentocava onde ela se escondesse,
dentro dos grotões, dos cerrados, das moitas
do úmido olheiro, dos lajedos, das gargantas
99
de serra alcantilada e das lapas de pedra.
Era capaz de tirar um rasto de bicho
de pisada leve, ao esmiuçar a terra
ressequida, as folhas secas, a tora carcomida
de árvore, gravetos partidos e, nos ramos
altos, quando a caça era graúda, ele
levantava o rosto, a rastejar no ar.
O menino, só de olhar as apagadas
depressões do chão sabia qual o roedor que
ali passara. Conhecia pelas pequenas
pegadas que a cotia deixara o oco do pau,
a procura das sementes e frutos caídos das
árvores. Seguia as veredas e, nas folhas
amassadas, nos talos verdes esfregados,
descobria a presença do tatu-bola ali perto
em algum buraco no chão. Surpreendia-lhe a
defesa do bicho quando o agarrava e este se
embolava semelhando um coco.
No prenúncio de alguma chuva, o
tejuaçu desentocava-se e, nas ramagens por
onde passava arisco, ao pressentir o menino,
deixava marcas com o chicotear brusco da
cuada, a correr desabalado na hora aberta do
sol a pino. Às vezes, pensava que aqueles
bichos já o esperavam inteiriçados de medo.
Os pezinhos dos calangos deixavam,
na areia, um rasto igualzinho à marca em
cruz de Santo André, também existente nas
moedas, que a mãe possuía.
As aves canoras, ele as protegia e
nunca as matava nem as prendia. Não
possuía nem um arremedo de nambu,
caçava bicho do chão.
de serra alcantilada e das lapas de pedra. [§]
Era capaz de tirar um rasto de bicho de
pisada leve, ao esmiuçar a terra ressequida,
as folhas secas, a tora carcomida de árvore,
gravetos partidos e, nos ramos altos, quando
a caça era graúda, ele levantava o rosto, a
rastejar no ar.
O menino, só de olhar as apagadas
depressões do chão sabia qual o roedor que
ali passara. Conhecia pelas pequenas
pegadas que a cotia deixara o oco do pau,
a[`] procura das sementes e frutos caídos das
árvores. Seguia as veredas e, nas folhas
amassadas, nos talos verdes esfregados,
descobria a presença do tatu-bola ali perto
em algum buraco no chão. Surpreendia-lhe a
defesa do bicho quando o agarrava e este se
embolava semelhando um co[^]co.
No prenúncio de alguma chuva, o
tejuaçu desentocava-se e, [no chão] por onde
passava arisco, ao pressentir o menino,
deixava marcas com o chicotear brusco da
cuada, a correr desabalado na hora aberta do
sol a pino. Às vezes, pensava que aqueles
bichos o esperavam inteiriçados de medo.
[§] Os pezinhos dos [lagartos] deixavam, na
areia, um rasto igualzinho à marca em cruz
de Santo André, também existente nas
moedas, que a mãe possuía. [§] As aves
canoras, ele as protegia e nunca as matava
nem as prendia. Não possuía nem um
arremedo de nambu, só caçava bicho do
chão.
100
Receava o pássaro-preto, a quem “a
morte confia segredo”... assim lhe dissera
sua mãe e sabia, ao escutar o canto do anum,
ser anúncio de seca e desgraça.
Tinha o menino medo das aves
agoureiras e gritonas, que se lamentavam de
dor, solitárias e tristes em noites escuras.
Aquele canto monótono, a trespassar o
negrume das hora mortas, sempre o
desnorteava, pois jamais encontrara seus
ninhos e pousos.
Não gostava quando via desbastarem
a mata, no preparo do aceiro, sinal de que
iam atear o fogo, afugentador da caça com
sua quentura, fumaça e cinzas. Ouvia de
longe, na fornalha das coivaras, os guinchos
e assobios finos dos sonhins, comedores de
resina de angico, que endoideciam com o
calor. Aos escutá-los, imaginava que talvez a
caipora, guia-da-caça, soltasse também seus
assobios agudos, enfurecida com os homens
e suas labaredas de fogo.
Na queima da mata, crestavam-se,
dentro dos velhos ocos de paus, os favos de
mel das abelhas jandaíra e tubiba, de que ele
e a mãe se regalavam até se enjoarem.
Mãe e filho possuíam, como vigia
e alertador, um papagaio, a se esganiçar
estridente ao perceber algum desconhecido
se aproximar da lomba do cerro, onde se
equilibrava a casa de duas águas. O menino
recordava-se do dia, em que a mãe cortara a
maniçoba, de onde escorrera o leite
Receava o pássaro-preto, a quem “a
morte confia segredo”... assim lhe dissera
sua mãe e sabia, ao escutar o canto do anum,
ser anúncio de seca e desgraça. [§] Tinha o
menino medo das aves agoureiras e gritonas,
que se lamentavam de dor, solitárias e tristes
em noites escuras. Aquele canto monótono, a
trespassar o negrume das hora[s] mortas,
sempre o desnorteava, pois jamais
encontrara seus ninhos e pousos.
Não gostava quando via [derrubarem]
a mata, no preparo do aceiro, sinal de que
iam atear o fogo, afugentador da caça com
sua quentura, fumaça e cinzas. Ouvia de
longe, na fornalha das coivaras, os guinchos
[do pequeno pixuna] e assobios finos dos
sonhins, comedores de resina de angico, que
endoideciam com o calor. Aos escutá-los,
imaginava que talvez a caipora, guia-da-
caça, soltasse também seus assobios agudos,
enfurecida com os homens e suas labaredas
de fogo. [§] Na queima da mata, crestavam-
se, dentro dos velhos ocos de paus, os favos
de mel das abelhas jandaíra, [cupira, moça
branca] e tubiba, de que ele e a mãe se
regalavam até se enjoarem.
Mãe e filho possuíam, como vigia
e alertador, um papagaio, a se esganiçar
estridente ao perceber algum desconhecido
se aproximar [do alto] [do cerro], onde se
equilibrava a casa de duas águas. O menino
recordava-se do dia, em que a mãe cortara a
maniçoba, de onde escorrera o leite
101
visguento que ela aquecera no fogo e
espalhara em finas varinhas. Os dois
entraram no interior da mata e a mãe
espalhara as varinhas perto dos troncos no
mormaço da tarde, melhor hora de livrarem-
se do ataque das abelhas arapuá e ali ficaram
de atalaias. Lembrava-se ainda do instante
em que o pequeno e arisco papagaio se
aproximara, pisando no visgo e do seu
debater-se aflito ao sentir-se preso. Cada vez
que o bichinho procurava soltar-se, fazendo
tenção de voar, mais suas asas grudavam-se
no leite pegajoso. A mãe não o criara em
cativeiro e sim solto pelo terreiro, de asas
sempre aparadas, como ela fazia com os
cabelos do filho.
O menino crescera desbotado,
terroso, a camuflar-se por entre as fendas e
pedras confundindo a caça. Tinha astúcia e
guardava grandes silêncios, assemelhando-se
aos bichos, que rastejavam naquele carrascal
de piçarra.
No trato com outros viventes, era
como animal esquivo, guardava-se,
desconfiado, semicerrando ainda mais a
fresta dos olhos apagando-se. No entanto, a
sós com a mãe, dava descanso ao alerta dos
sentidos e unicamente a ela franqueava seu
mundo de cautelosos limites.
Com a mãe, saía no amiudar do galo
pelas sendas e picadas das capoeiras, na
tocaia de algum bicho bom de carne e de
couro. Levavam eles fumo de rolo, a faca de
visguento que ela aquecera no fogo e
espalhara em finas varinhas. Os dois
entraram no interior da mata e a mãe
espalhara as varinhas perto dos troncos no
mormaço da tarde, melhor hora de livrarem-
se do ataque das abelhas arapuá e ali ficaram
de atalaias. Lembrava-se ainda do instante
em que o pequeno e arisco papagaio se
aproximara, pisando no visgo e do seu
debater-se aflito ao sentir-se preso. Cada vez
que o bichinho procurava soltar-se, fazendo
tenção de voar, mais suas asas grudavam-se
no leite pegajoso. A mãe não o criara em
cativeiro e sim[,] solto pelo terreiro, de asas
sempre aparadas, como ela fazia com os
cabelos do filho.
O menino crescera desbotado,
terroso, a camuflar-se por entre as fendas e
pedras confundindo a caça. Tinha astúcia e
guardava grandes silêncios, assemelhando-se
aos bichos, que rastejavam naquele carrascal
de piçarra. [§] No trato com outros viventes,
era como animal esquivo, guardava-se,
desconfiado, semicerrando ainda mais a
fresta dos olhos apagando-se. No entanto, a
sós com a mãe, dava descanso ao alerta dos
sentidos e unicamente a ela franqueava seu
mundo de cautelosos limites.
Com a mãe, saía no amiudar do galo
pelas sendas e picadas das capoeiras, na
tocaia de algum bicho bom de carne e de
couro. Levavam eles fumo de rolo, a faca de
ponta, o “artifício” para provocar a faísca e
102
ponta, o “artifício” para provocar a faísca e
acender o fogo, o de café, a rapadura e a
água na cabaça de colo, de “gogó” alto, onde
era amarrada a embira para melhor carregá-
la.
Era a mãe que trazia, pendurada no
ombro, a espingarda “de carregar pela boca”
e, no badaneco de couro, os apetrechos das
arma.
Quando o sol principiava a clarear,
esquentando as pedras, eles haviam
vistoriado as armadilhas nas capoeiras.
Encontravam, nos quixós enterrados na terra,
os assustadiços preás, os mocós e as cutias
de unhas cortantes e duras como cascos.
No laço do relho, atado à vara
reforçada e curvada, às vezes, amanhecia
preso pelo pescoço, o gato-do-mato.
Não usava mundéus, pois a laje
pesada, ao desabar, esmagava a caça
inutilizando as peles, que perdiam muito do
seu valor.
Menino, ouvira dela a recomendação
de que, ao se deparar com alguma cobra,
invocasse São Bento e esta ficaria presa,
paralisada, mesmo que instigada pela
maldade estivesse enrodilhada e de bote
armado.
Mãe e filho compartilhavam do
mesmo temor pelas cobras e o pernoite no
matagal, forrado de folhas secas e cipoal
fechado ou próximo à pedras do cerro, os
fazia apurar na escuta do chocalho da
acender o fogo, o de café, a rapadura e a
água na cabaça de colo, de “gogó” alto, onde
era amarrada a embira para melhor carregá-
la. [§]Era a mãe que trazia, pendurada no
ombro, a espingarda “de carregar pela boca”
e, no badaneco de couro, os apetrechos das
arma.
Quando o sol principiava a clarear,
esquentando as pedras, eles haviam
vistoriado as armadilhas nas capoeiras.
Encontravam, nos quixós enterrados na terra,
os assustadiços preás, os mocós e as cutias
de unhas cortantes e duras como cascos.
No laço do relho, atado à vara
reforçada e curvada, às vezes, amanhecia
preso pelo pescoço, o gato-do-mato.
Não usava mundéus, pois a laje
pesada, ao desabar, esmagava a caça
inutilizando as peles, que perdiam muito do
seu valor.
Menino, ouvira dela a recomendação
de que, ao se deparar com alguma cobra,
invocasse São Bento e esta ficaria presa,
paralisada, mesmo que instigada pela
maldade estivesse enrodilhada e de bote
armado.
Mãe e filho compartilhavam do
mesmo temor pelas cobras e o pernoite no
matagal, forrado de folhas secas e cipoal
fechado ou próximo à[s] pedras do
[serrotes], os fazia apurar na escuta do
chocalho da cascavel, anúncio certo de
morte, a rastejar sinuosa pela terra.
103
cascavel, anuncio certo de morte, a rastejar
sinuosa pela terra.
A mãe dissera-lhe que as cobras
velhas possuíam vários guizos a se
denunciarem de longe, trazendo terror aos
homens e bichos, pois, quando não os
matava, os deixava cegos ou aleijados.
Contara-lhe que as cobras quando iam beber
água, deixavam o veneno oculto para não se
envenenarem e isto causava-lhes sempre
sobrosso, ao aproximarem-se d’água nas
locas e de folhas amontoadas, lugares certos
das cobras esconderem sua peçonha. Viam
as cobras-cipós finas, verdes e longas
confundindo-se com a parreira-brava que
pendia das árvores.
Assombravam-se quando avistavam
cobras enroscadas nos altos ramos, a
desenrolarem-se lentas, coleantes, pelas
árvores, fazendo o galho criar vida ao
per[*s]passarem vagarosas e pardacentas.
Em fúria, a caninana era vista a devorar ovos
nos altos ninhos, dando imensos saltos,
parecendo voar nas ramagens.
O menino alimentava o mesmo terror
de sua mãe ao avistar a cobra-de-fogo, que
surgia da terra a ondular seu facho azulado,
como se o vento a atiçasse e a perseguisse. O
menino a vira uma vez, fugidia e inquieta, a
corcovear pelo antigo cemitério, quando
voltava com a mãe de feira do distante
arruado.
Estacara e fechara os olhos, dando
A mãe dissera-lhe que as velhas
[cascavéis] possuíam vários guizos a se
denunciarem de longe, trazendo terror aos
homens e bichos, pois, quando não os
matava, os deixava cegos ou aleijados.
Contara-lhe que as cobras quando iam beber
água, deixavam o veneno oculto para não se
envenenarem e isto causava-lhes sempre
sobrosso, ao aproximarem-se d’água nas
locas e de folhas amontoadas, lugares certos
das cobras esconderem sua peçonha. Viam
as cobras-cipós finas, [esverdeadas] e longas
confundindo-se com a parreira-brava que
pendia das árvores.
Assombravam-se quando avistavam
cobras enroscadas nos altos ramos, a
desenrolarem-se lentas, coleantes, pelas
árvores, fazendo o galho criar vida ao
perpassarem vagarosas e pardacentas. Em
fúria, a caninana era vista a devorar ovos nos
altos ninhos, dando imensos saltos,
parecendo voar nas ramagens.
O menino alimentava o mesmo terror
de sua mãe ao avistar a cobra-de-fogo, que
surgia da terra a ondular seu facho azulado,
como se o vento a atiçasse e a perseguisse. O
menino a vira uma vez, fugidia e inquieta, a
corcovear pelo antigo cemitério, quando
voltava com a mãe de feira do distante
arruado. [§] Estacara e fechara os olhos,
dando tempo para que a errante cobra-de-
fogo esmorecesse, desaparecendo na
escuridão como as almas penadas. [§]
104
tempo para que a errante cobra-de-fogo
esmorecesse, desaparecendo na escuridão
como as almas penadas.
Naquela noite, todo o longo caminho,
mãe e filho o fizeram de mãos dadas a
ampararem-se, tomados pelo medo de que o
“fogo corredor” retornasse com seu rasto
alucinado de luz.
Do que o menino mais se agradava
era ficar com a mãe, nas longas esperas,
silenciosos, aguardando a caça nos seus
lugares de hábito, onde dormiam ou bebiam,
como na aguada próxima da velha cacimba.
Na tocaia, os dois se entendiam pelos olhos e
sinais que trocavam ao sentirem o cheiro no
ar na direção do vento ou cauteloso
aproximar-se dos bichos de chão. Às vezes,
o menino fazia arremedos, a imitar sons e
grunhidos do bicho acuado ou de algum
animal que o assustasse, fazendo
movimentar-se, revelando aos dois seu
esconderijo.
Assistia a mãe esfolar os bichos de
pele, pois este mister ela praticava.
Cortava a caça, focinho abaixo, e, com os
dedos vergados, ia apartando a pele do corpo
com extremo cuidado e paciência. Saía
inteiriço o couro e, desde as miúdas orelhas
até o rejeito das canelas, não se via nenhum
furo ou esgarçamento. Ao notar que a mãe
findava o trabalho, o menino acendia o fogo
na raspa do mororó, atirando no braseiro
uma pedra dura, do tamanho de um ovo de
Naquela noite, todo o longo caminho, mãe e
filho o fizeram de mãos dadas a ampararem-
se, tomados pelo medo de que o [fogo
corredor] retornasse com seu rasto alucinado
de luz.
Do que o menino mais se agradava
era ficar com a mãe, nas longas esperas,
silenciosos, aguardando a caça nos seus
lugares de hábito, onde dormiam ou bebiam,
como na aguada próxima da velha cacimba.
Na tocaia, os dois se entendiam pelos olhos e
sinais que trocavam ao sentirem o cheiro no
ar na direção do vento ou cauteloso
aproximar-se dos bichos de chão. Às vezes,
o menino fazia arremedos, a imitar sons e
grunhidos do bicho acuado ou de algum
animal que o assustasse, fazendo
movimentar-se, revelando aos dois seu
esconderijo.
Assistia a mãe esfolar os bichos de
pele, pois este mister ela praticava.
Cortava [a caça] focinho abaixo, [pela linha
da barriga], e, com os dedos vergados, ia
apartando a pele do corpo com extremo
cuidado e paciência. Saía inteiriço o couro e,
desde as miúdas orelhas até o rejeito das
canelas, não se via nenhum furo ou
esgarçamento. Ao notar que a mãe findava o
trabalho, o menino acendia o fogo na raspa
do mororó, atirando no braseiro uma pedra
[lisa], do tamanho de um ovo de galinha. Na
vasilha, ele colocava água e o de café e
quando a pedra abrasava ele jogava dentro
105
galinha. Na vasilha, ele colocava água e o pó
de café e quando a pedra abrasava ele jogava
dentro da água, fazendo o café levantar a
fervura. Salpicava água fria para assentar
o pó, e os dois, ali acocorados, bebiam em
goles demorados. a manhã se tornara
tarde. A mãe, em sossego, picava o fumo
com a pequena e afiada quicé e ele ia limpar
a carne do bicho esfolado, para comerem
mais tarde em casa.
No calor mormacento da viração da
tarde, os dois se refugiavam na sombra da
espinhosa quixabeira. Ele se deitava com a
cabeça no colo da mãe, à espera de estalados
cafunés e da história, que ele mais gostava
de ouvir, a do Bicho Manjaléu, que vivia
preso em um palácio do reino de Castela e
que ninguém conseguia matar, pois a sua
vida não estava em seu corpo e sim
escondida muito longe dali:
[“]Minha vida está dentro do porco
espinho dentro dele há uma caixa dentro da
caixa há uma rolinha dentro da rolinha há
um ovo dentro do ovo há uma vela acesa e é
na chama que está a minha vida, se ela
apagar um dia, morrerei.[”]
O sono do menino chegava de
manso, entremeado pela voz da mãe, os seus
dedos a afagar-lhe os cabelos.
Nos finais de tarde, antes de
voltarem, a mãe o mandava entrar na mata e
colocar fumo no oco de uma árvore, para ele
se livrar dos falsos sinais e dos desmandos
da água, fazendo o café levantar a fervura.
Salpicava água fria para assentar o pó, e
os dois, ali acocorados, bebiam em goles
demorados. Já a manhã se tornara tarde. A
mãe, em sossego, picava o fumo com [a
pequena] [sua] afiada quicé e ele ia limpar a
carne do bicho esfolado, para comerem mais
tarde em casa.
No calor mormacento da viração da
tarde, os dois se refugiavam na sombra da
espinhosa quixabeira. Ele se deitava com a
cabeça no colo da mãe, à espera de estalados
cafunés e da história, que ele mais gostava
de ouvir, a do Bicho Manjaléu, que vivia
preso em um palácio do reino de Castela e
que ninguém conseguia matar, pois a sua
vida não estava em seu corpo e sim
escondida muito longe dali:
[“]Minha vida está dentro do porco
espinho dentro dele há uma caixa dentro da
caixa há uma rolinha dentro da rolinha há
um ovo dentro do ovo há uma vela acesa e é
na chama que está a minha vida, se ela
apagar um dia, morrerei. [”]
O sono do menino chegava de
manso, entremeado pela voz da mãe, os seus
dedos a afagar-lhe os cabelos.
Nos finais de tarde, antes de
voltarem, a mãe o mandava entrar na mata e
colocar fumo no oco de uma árvore, para ele
se livrar dos falsos sinais e dos desmandos
da caipora, guia-de-caça. Evitava assim que
a mãe-do-mato o enganasse, ressuscitando os
106
da caipora, guia-de-caça. Evitava assim que
a mãe-do-mato o enganasse, ressuscitando os
bichos mortos e esfolados pelo menino, sem
o seu consentimento.
O que primeiro ele avistava na porta
da casa de taipa, ao regressarem, era a estrela
de seis raios, o Sino-Salamão, feito, das
palhas bentas que a mãe recebera no
Domingo de Ramos. Ela as tecera e ali as
colocara a fim de afugentar as alucinações
das coisas sorrateiras e invisíveis, que vagam
silenciosas pelos chapadões e sítios
sombrios. A mãe dissera que o lobisomem,
na sua sina, não ousaria passar perto dali, a
assombrar com seu tropel o chão pedregoso
dos caminhos a desoras, nas noites de
quinta-feira, vindo das sete partidas do
mundo e das encruzilhadas.
Às vezes, o menino tinha vontade de
possuir um cachorro pezunho, de unha torta
e rascante, pois a e dissera-lhe ser este o
único bicho capaz de farejar e acuar
lobisomem.
O menino via, então, o papagaio, que
se aproximava com seu andar vagaroso e
balançando, parecendo querer voar.
Mãe e filho terminavam de estrepar
os couros nas varas cruzadas, fincadas no
chão do terreiro, já na hora do sol se pôr
anunciada pelos morcegos, os passarinhos
pretos do diabo, ao voarem tontos.
A noite descia, envolta no vento
amornado pelo calor das pedras, encontrando
bichos mortos e esfolados [pelo menino],sem
o seu consentimento.
O que primeiro ele avistava na porta
da casa de taipa, ao regressarem, era a estrela
de seis raios, o Sino-Sal[o]mão, feito, das
palhas bentas que a mãe recebera no
Domingo de Ramos. Ela as tecera e ali as
colocara a fim de afugentar as alucinações
das coisas sorrateiras e invisíveis, que vagam
silenciosas pelos chapadões e sítios
sombrios. A mãe dissera que o lobisomem,
na sua sina, não ousaria passar perto dali, a
assombrar com seu tropel o chão pedregoso
dos caminhos a desoras, nas noites de
quinta-feira, vindo das sete partidas do
mundo e das encruzilhadas.
Às vezes, o menino tinha vontade de
possuir um cachorro pezunho [de unha torta
e rascante], pois a mãe dissera-lhe ser este o
único bicho capaz de farejar e acuar
lobisomem.
O menino via, então, o papagaio, que
se aproximava com seu andar vagaroso e
balançando, parecendo querer voar.
Mãe e filho terminavam de estrepar
os couros nas varas cruzadas, fincadas [nas
sombras frescas do terreiro, no morrer do dia
quando os] morcegos, os passarinhos pretos
do diabo, ao voarem tontos.
A noite descia, envolta no vento
amornado pelo calor das pedras, encontrando
mãe e filho adormecidos na mesma rede.
Certo dia, em que a mãe, com zelo,
107
mãe e filho adormecidos na mesma rede.
Certo dia, em que a mãe, com zelo,
lavava seus cabelos esfregando-os com
raspas da árvore dos juás, escutara ela rir,
dizendo: - “Pra eu lavar sua cabeça se
acocore perto da cacimba, pois você
esticou a crescer que nem couro curtido em
vara”.
crescido na força de homem, era
capaz de varar certas noites de lua cheia a
procurar veio nas rochas, atrás de estranhas
pedras, que ele dizia existirem cravadas
naqueles cerros. Conhecia aquele mundo
acinzentado, onde as pedras afloravam das
entranhas do chão junto à vegetação
retorcida e crestada.
Certa noite, vira a estrela rastejar no
céu, a Zelação, e escutou a voz da mãe:
- “Deus te guie”. Aprendera, desde menino,
que uma estrela correndo em fuga, riscando
a noite de luz é sinal de que uma alma
entrara no céu. Mais tarde, o sono dele
demorou a chegar, sentia-se sufocar como se
estivesse com febre terçã. Nas horas tardias,
levantou-se, deitando-se no chão de terra
batida, perto da rede da mãe. Não dormiu. A
insônia o perseguia e ele velou, em estranho
desassossego, o sereno sono dela, a desejar,
no entanto, que o dia não varasse a
escuridão.
Na época em que o enxu e as abelhas
se esconderam nas solidões das brenhas
devido à seca, viu um rasto desconhecido. A
lavava seus cabelos esfregando-os com
raspas da árvore dos juás, escutara ela rir,
dizendo: - “Pra eu lavar sua cabeça se
acocore perto da cacimba, pois você
esticou a crescer que nem couro curtido em
vara”.
crescido na força de homem [era
capaz de varar], [§] certa[s] noite[s], [ de
lua cheia a procurar veio nas rochas, atrás de
estranhas pedras, que ele dizia existirem
cravadas naqueles cerros.] [Conhecia aquele
mundo acinzentado, onde as pedras
afloravam das entranhas do chão junto à
vegetação retorcida e crestada] vira a estrela
rastejar no céu, a Zelação, e escutou a voz da
mãe: - [“]Deus te guie[”]. Aprendera, desde
[muito tempo], que uma estrela correndo em
fuga, riscando a noite de luz é sinal de que
uma alma entrara no céu. Mais tarde, o sono
dele demorou a chegar, sentia-se sufocar
como se estivesse com febre terçã. Nas horas
tardias, levantou-se, deitando-se no chão de
terra batida, perto da rede da e. Não
dormiu. A insônia o perseguia e ele velou,
em estranho desassossego, o sereno sono
dela, a desejar, no entanto, que o dia não
varasse a escuridão.
Na época em que o enxu e as abelhas
se esconderam nas solidões das brenhas
devido à seca, viu um rasto desconhecido. A
pisada do homem era tão leve que mal
deixava vestígios no chão. Nítido era o rasto-
fêmea da cabra que o acompanhava. Seguiu
108
pisada do homem era tão leve que mal
deixava vestígios no chão. Nítido era o rasto-
fêmea da cabra que o acompanhava. Seguiu
aquele casco fendido pelas pedras e caatinga
com tanta cautela, que nem davam os
bichos de pena. No chão duro e seco e nos
lajedos, era difícil divisar o rasto do homem
e, pela primeira vez, desnorteou-se. Teve um
pressentimento de que precisava voltar para
casa, ver a mãe.
Notou de longe, o papagaio inquieto
naquele balanço sem fim a espichar o corpo.
Ao pisar no terreiro, viu o rasto leve,
parecendo que o vento o desfizera. Entrara
na casa, sentindo, antes de ver o
desconhecido, cheiro de homem. Fitou a mãe
e soube que o cigano voltara. Nesta noite
saíra sem rumo, andara até a lua ficar tão alta
que aquelas escarpas banharam-se de
sombras. Voltara o dia amanhecido e
esperara o vulto da mãe sair de casa. Ela
apareceu trazendo as varas com as peles para
o terreiro e ele se acercou dela, assustando-a.
Sentiu-a apreensiva. A mãe o mandou
esperar, entrando na casa e trazendo-lhe água
que ele bebeu, então, percebendo sua
desesperada sede. Avistou a cabra na
pedreira, remoendo os juás e falou à mãe que
ia embora. Ficaram os dois de olhos no chão,
intimidados. Agarrou-se a ela num repente,
sacudindo-se em soluços secos.
Apartaram-se e ela soube que nada o
faria ficar. A mãe foi buscar na casa suas
aquele casco fendido pelas pedras e caatinga
com tanta cautela, que nem davam os
bichos de pena. No chão duro e seco e nos
lajedos, era difícil divisar o rasto do homem
e, pela primeira vez, desnorteou-se. Teve um
pressentimento de que precisava voltar para
casa, ver a mãe.
Notou de longe, o papagaio inquieto
naquele balanço sem fim a espichar o corpo.
Ao pisar no terreiro, viu o rasto leve,
parecendo que o vento o desfizera. Entrara
na casa, sentindo, antes de ver o
desconhecido, cheiro de homem. Fitou a mãe
e soube que o cigano voltara. Nesta noite
saíra sem rumo, andara até a lua ficar tão alta
que aquelas escarpas banharam-se de
sombras. Voltara o dia amanhecido e
esperara o vulto da mãe sair de casa. Ela
apareceu trazendo as varas [com as peles] [e
couros] para o terreiro e ele se acercou dela,
assustando-a. Sentiu-a apreensiva. A mãe o
mandou esperar, entrando na casa e
trazendo-lhe água que ele bebeu, então,
percebendo sua desesperada sede. Avistou a
cabra na pedreira, remoendo os juás e falou à
mãe que ia embora. Ficaram os dois de olhos
no chão, intimidados. Agarrou-se a ela num
repente, sacudindo-se em soluços secos.
Apartaram-se e ela soube que nada o
faria ficar. A mãe foi buscar na casa suas
coisas de caça e deu-lhe de vez, a
espingarda, o badaneco, a [pequena] quicé e
o fumo. Ele lhe pediu a bênção e então
109
coisas de caça e deu-lhe de vez, a
espingarda, o badaneco, a pequena quicé e o
fumo. Ele lhe pediu a bênção e então
partiu sem voltar-se nem uma vez para trás,
mesmo a sentir que alguém dentro de casa o
olhava, até vê-lo desaparecer na descida do
caminho.
Enfrentou nesta andança seca
demorada, desentocara os bichos mais
teimosos, os bebedores de pouca água para
viver. O chão cozido do sol quase não
deixava aflorar as marcas da caça miúda para
abatê-la. Os carrapichos, onde os pelos dos
bichos ficavam presos aos espinhos, é que
davam a ele indícios de suas passagens atrás
de refúgio. apelava para os cardeiros, a
cabeça-de-frade, o xique-xique de vagens de
sementes barulhentas como o chocalho-de-
cascavel. Nos lugares mais secos encontrava
disfarçada nos galhos terrosos as cobras que
matavam por asfixia lagartos e roedores.
Quando a água rareou de vez e a
fome o entonteceu, recorreu às raízes do
umbuzeiro, onde chupou a cunca, e das
pontas aparadas do galho-cavaleiro da
mucunã tomou a água que escorreu.
Foi uma longa travessia por aquele
sertão abrasado, onde vento e nuvem passam
de relance, etéreos, como visagem nos ermos
de mal assombro. Lembrara-se do que lhe
contaram sobre o rasto deixado numa laje da
distante Ibiapaba, pelo “Pai-das-chuvas”, um
bem-aventurado peregrino, que viera de
partiu sem voltar-se nem uma vez para trás,
mesmo a sentir que alguém dentro de casa o
olhava, até vê-lo desaparecer na descida do
caminho.
Enfrentou nesta andança seca
demorada, desentocara os bichos mais
teimosos, os bebedores de pouca água para
viver. O chão cozido do sol quase não
deixava aflorar as marcas da caça miúda para
abatê-la. Os carrapichos, onde os pelos dos
bichos ficavam presos aos espinhos, é que
davam a ele indícios de suas passagens atrás
de refúgio. apelava para os cardeiros, a
cabeça-de-frade, o xique-xique de vagens de
sementes barulhentas como o chocalho-de-
cascavel. Nos lugares mais secos encontrava
disfarçada nos galhos terrosos as cobras que
matavam por asfixia lagartos e roedores.
Quando a água rareou de vez e a
fome o entonteceu, recorreu às raízes do
umbuzeiro, onde chupou a cunca, e das
pontas aparadas do galho-cavaleiro da
mucunã tomou a água que escorreu.
Foi uma longa travessia por aquele
sertão abrasado, onde vento e nuvem passam
de relance, etéreos, como visagem nos ermos
de mal assombro. Lembrara-se do que lhe
contaram sobre o rasto deixado numa laje da
distante Ibiapaba, pelo “Pai-das-chuvas”, um
bem-aventurado peregrino, que viera de
muito longe. Agora, nesta travessia, ele
chegara a pensar que as águas também
haviam partido, andarilhas, para bem longe.
110
muito longe. Agora, nesta travessia, ele
chegara a pensar que as águas também
haviam partido, andarilhas, para bem longe.
Conseguira chegar ao povoado,
seguindo uma esteira branca de fios,
enganchados nos ramos espinhosos [da
jurema] [*nas cercas de avelós.] O homem
que o arranchou lhe explicou que ele seguira
o “rasto de lã” [feito pelo] algodão em rama
que se libertava dos [sacos] [*fardos]
[disformes das cangalha] que os prendiam.
O algodão solto era levado pelo vento,
embranquecendo os ramos e galhos das
estreitas [veredas] [*trilhas], parecendo até
querer voltar aos capulhos.
Naquele lugar, onde o algodão
espalhava suas raízes a invadir várzeas e
caatingas, ele ficou a tirar seu sustento no
rastejo e morte às cobras, a serviço dos
donos das terras. Conhecia todas pelo rasto.
deixava escapar as de sangue quente, as
inocentes. As cobras venenosas, as mais
famintas, de sangue frio e traiçoeiras, ele as
matava.
Rastejava incansável, a esmiuçar as
cercas de pedras e, de rastos, vivia pelos
matos, até desentocá-las das lajes onde se
escondiam perigosas e alertas. As cobras
mudavam de pele, deixando para trás, em
abandono seu formato, mas sem nenhum
vestígio de cor pois suas nódoas e listas
continuavam tatuadas em volta do seu corpo.
Ele as seguia mesmo sabendo que após esta
Conseguira chegar ao povoado,
seguindo uma [trilha] branca de fios,
enganchados nos ramos espinhosos das [*nas
cercas de avelós.] [juremas.] O homem que o
arranchou lhe explicou que ele seguira o
[rasto de ] [do] algodão em rama que se
libertava dos sacos disformes das
cangalha[s] que o prendiam. O algodão solto
era levado pelo vento, embranquecendo os
ramos e galhos das estreitas [veredas]
[*trilhas], parecendo até querer voltar aos
capulhos.
Naquele lugar, onde o algodão
espalhava suas raízes a invadir várzeas e
caatingas, ele ficou a tirar seu sustento no
rastejo e morte às cobras, a serviço dos
donos das terras. Conhecia todas pelo rasto.
deixava escapar as de sangue quente, as
inocentes. As cobras venenosas, as mais
famintas, de sangue frio e traiçoeiras, ele as
matava.
Rastejava incansável, a esmiuçar as
cercas de pedras e, de rastos, vivia pelos
matos, até desentocá-las das lajes onde se
escondiam perigosas e alertas. As cobras
mudavam de pele, deixando para trás, em
abandono seu formato, mas sem nenhum
vestígio de cor pois suas nódoas e listas
continuavam tatuadas em volta do seu corpo.
Ele as seguia mesmo sabendo que após esta
ressurreição, elas retornavam mais iradas e
famintas no seu constante renovo.
Aprendera que as mais venenosas
111
ressurreição, elas retornavam mais iradas e
famintas no seu constante renovo.
Aprendera que as mais venenosas
eram lentas e por vezes tão imóveis,
parecendo-lhe mortas. Nesta época o tempo
girava infindo como os círculos negros que
as envolviam e marcavam sua pele, e, ele
naquela espera sentia ampliar sua solidão.
Nem sabia porque resolvera viver
rastejando a morte, ele que desde menino as
temera, e nem porque não mais dizia o
ensalmo, valendo-se de São Bento.
Os homens que socavam o algodão
nos fardos o preveniram contra a Cobra-
Grande, e a ameaça da cobra-mandada que
chegava de longe decretada para matar o
vivente, a mando de algum malino. Era ela
capaz de atravessar um ajuntamento de gente
e seguir coleante na direção daquele que
mataria, cumprindo sua enfeitiçada missão.
Contaram-lhe que tinha seu reino abaixo das
águas dos distantes rios daquele sertão. Seus
olhos alumiavam-se, ao surgir das águas
como os fachos de fogo da embiriba, que se
leva à noite, para afastar os espantos e
perigos e clarear os caminhos mal abertos e
despovoados. Esta mãe-de-rio atraía,
enlaçando e sufocando, os que se
aventurassem a entrar na voragem das suas
águas e na cova em roda dos seus
redemoinhos encantados.
Ouvindo estes casos, temeu sua sorte,
ali largado, longe do mundo onde se criara e
eram lentas e por vezes tão imóveis,
parecendo-lhe mortas. Nesta época o tempo
girava infindo como os círculos negros que
as envolviam e marcavam sua pele, e ele [,]
naquela espera [,] sentia ampliar sua solidão.
[No final de cada semana recebia o ganho
pela quantidade de maracás de cascavéis e
cabeças de jararacas que apresentava numa
fieira à moda rosário.]
Nem sabia porque[^] resolvera viver
rastejando a morte, ele que desde menino as
temera, e nem porque não mais dizia o
ensalmo, valendo-se de São Bento.
Os homens que socavam o algodão
nos fardos o preveniram contra a Cobra-
Grande, e a ameaça da cobra-mandada que
chegava de longe decretada para matar o
vivente, a mando de algum malino. Era ela
capaz de atravessar um ajuntamento de gente
e seguir coleante na direção daquele que
mataria, cumprindo sua enfeitiçada missão.
Contaram-lhe que tinha seu reino abaixo das
águas dos distantes rios daquele sertão. Seus
olhos alumiavam-se, ao surgir das águas
como os [tições] de fogo d[o facheiro], que
se leva à noite, para afastar os espantos e
perigos e clarear os caminhos mal abertos e
despovoados. Esta mãe-de-rio atraía,
enlaçando e sufocando, os que se
aventurassem a entrar na voragem das suas
águas e na cova em roda dos seus
redemoinhos encantados.
Ouvindo estes casos, temeu sua sorte,
112
aprendera a lidar e a se defender das coisas
que via e das ameaças invisíveis, de que
sempre o guardara a estrela de palhas bentas,
tecidas por ela.
Na sua serventia de rastejador,
avistara, certa vez, o “Sino-Salamão”
escavado em uma pedra a proteger um
túmulo. Desde aí, só teve sossego quando
mandou fazer pelo ferreiro do povoado esta
estrela vigia, que amparava os vivos e
guardava os mortos, levando-a sempre com
ele. Nas noites de quinta-feira, quando ficava
na emboscada das cobras, jamais se apartava
do espeto agudo do mororó, de miolo duro
como pedra, única arma capaz de
desencantar lobisomem.
Parecia-lhe, por vezes, que tinha
perdido o rasto de casa. Sentia-se
desorientado , perdido. Um dia, vira pegada
miúda, de mulher. Semelhava-se à da mãe.
Assomado, apagou a marca gravada na areia,
a fim de esquecê-la, afugentando a visão.
Desde aí, não dormia, inquieto, sem ar.
Tinha calafrios como se tivesse malsão. Dera
para sentir um aperto no peito, como um
arrocho que o deixava aflito, sem respirar.
Certas noites, quando a chama da candeia
tremia no bafejo do vento, um frio
esmorecedor lhe invadia a alma. Lembrava-
se do Bicho Manjaléu cuja vida era uma
chama e estas noites estendiam-se longas, o
sol tardava, demorando a quebrar a barra do
dia. Cismava agora que sua vida estava
ali largado, longe do mundo onde se criara e
aprendera a lidar e a se defender das coisas
que via e das ameaças invisíveis, de que
sempre o guardara a estrela de palhas bentas,
tecidas por ela.
Na sua serventia de rastejador,
avistara, certa vez, o [“][s]ino-[s]al[o]mão]
[”] escavado em uma pedra a proteger um
túmulo. Desde aí, só teve sossego quando
mandou fazer pelo ferreiro do povoado esta
estrela vigia, que amparava os vivos e
guardava os mortos, levando-a sempre com
ele. Nas noites de quinta-feira, quando ficava
na emboscada das cobras, jamais se apartava
do espeto agudo do mororó, de miolo duro
como pedra, única arma capaz de
desencantar lobisomem.
Parecia-lhe, por vezes, que tinha
perdido o rasto de casa. Sentia-se
desorientado [, perdido]. Um dia, vira
pegada miúda, de mulher. Semelhava-se à da
mãe. Assomado, apagou a marca gravada na
areia, a fim de esquecê-la, afugentando a
visão. Desde aí, não dormia, inquieto, sem
ar. Tinha calafrios como se tivesse malsão.
Dera para sentir um aperto no peito, como
um arrocho que o deixava aflito, sem
respirar. Certas noites, quando a chama da
candeia tremia no bafejo do vento, um frio
esmorecedor lhe invadia a alma. Lembrava-
se do Bicho Manjaléu cuja vida era uma
chama e estas noites estendiam-se longas, o
sol tardava, demorando a quebrar a barra do
113
encravada nos veios e pedras das furnas
escarpadas de Acauã. Precisava ir ao seu
encalço pisando forte, encalçando de vez
este seu magoado desalento.
Tempos depois, certa noite, saiu para
encerrar de vez a empreitada feita com o
dono das terras. Livre do ajuste, retornaria,
para os confins do reino-das-pedras, sem
deixar pra trás vestígios nem direção do seu
rumo.
O rasto da velha cobra com seus
vários chocalhos era como um fio ante seus
olhos a desenrolar-se, seguindo para o
distante grotão. Devia estar a esperá-lo,
inteiriçada. Era encontrá-la. No alto, a lua
cheia vinha em seu auxílio, iluminando os
caminhos e veredas.
Um estranho vento frio desceu de
repente. Lembrou-se de certos fins de tarde
quando o sono chegava de mando envolto
pela voz de sua mãe, contando-lhe a história
que ele mais gostava de ouvir. Notou que a
lua apagava-se coberta pelas nuvens,
sopradas pelo vento. As sombras, se
acercavam dele lentamente.
Os homens, que tangiam o comboio
de animais a clarear o começo do dia com
seus chocalhos, avistaram um rasto de
homem, de pisada forte, de alguém
desconhecido do lugar. Esmiuçaram o chão
seguindo as pegadas, que os levavam ao
grotão onde os passos do rastejador de cobra
haviam se refugiado, após receber o bote
dia. Cismava agora que sua vida estava
encravada nos veios e pedras das furnas
escarpadas de Acauã. Precisava ir ao seu
encalço pisando forte, encalçando de vez
este seu magoado desalento.
Tempos depois, certa noite, saiu para
encerrar [,] de vez [,] a empreitada feita com
o dono das terras. Livre do ajuste, retornaria,
para os confins do reino-das-pedras, sem
deixar pra trás vestígios nem direção do seu
rumo.
O rasto da velha cobra com seu[s]
[vários] chocalho[s] era como um fio ante
seus olhos a desenrolar-se, seguindo para o
distante grotão. Devia estar a esperá-lo,
[enroladinha]. Era encontrá-la. No alto, a
lua cheia vinha em seu auxílio, iluminando
os caminhos e veredas.
Um estranho vento frio desceu de
repente. Lembrou-se de certos fins de tarde
quando o sono chegava de mando envolto
pela voz de sua mãe, contando-lhe a história
que ele mais gostava de ouvir. Notou que a
lua apagava-se coberta pelas nuvens,
sopradas pelo vento. As sombras, se
acercavam dele lentamente.
Os [almocreves], que tangiam o
comboio de animais a clarear o começo do
dia com seus chocalhos, avistaram um rasto
de homem, de pisada forte, de alguém
desconhecido do lugar. Esmiuçaram o chão
seguindo as pegadas, que os levavam ao
grotão onde os passos do rastejador de cobra
114
mortal. Benzeram-se e um dos homens
varreu o chão, apagando o rasto. Costume
dos antigos, disse ele, a fim de dificultar aos
mortos o regresso à aldeia.
haviam se refugiado, após receber o bote
mortal. Benzeram-se e um dos homens
varreu o chão, apagando o rasto. Costume
dos antigos, disse ele, a fim de dificultar aos
mortos o regresso à aldeia.
A supressão de parágrafos contribui para agilidade do texto e aproximação da
oralidade,como veremos nos parágrafos a seguir:
[p. 100] Receava o pássaro-preto, a quem “a morte confia segredo”... assim
lhe dissera sua mãe e sabia, ao escutar o canto do anum, ser anúncio de seca e desgraça.
[§] Tinha o menino medo das aves agoureiras e gritonas, que se lamentavam de dor,
solitárias e tristes em noites escuras. Aquele canto monótono, a trespassar o negrume
das hora[s] mortas, sempre o desnorteava, pois jamais encontrara seus ninhos e pousos.
[p. 103] O menino alimentava o mesmo terror de sua mãe ao avistar a cobra-
de-fogo, que surgia da terra a ondular seu facho azulado, como se o vento a atiçasse e a
perseguisse. O menino a vira uma vez, fugidia e inquieta, a corcovear pelo antigo
cemitério, quando voltava com a mãe de feira do distante arruado. [§] Estacara e
fechara os olhos, dando tempo para que a errante cobra-de-fogo esmorecesse,
desaparecendo na escuridão como as almas penadas. [§] Naquela noite, todo o longo
caminho, mãe e filho o fizeram de mãos dadas a ampararem-se, tomados pelo medo de
que o fogo corredor retornasse com seu rasto alucinado de luz.
A supressão de palavras tem como efeito evitar a redundância:
[p.108] pequena quicé => quicé;
[p.106] pezunho de unha torta e rascante => pezunho.
A substituição de palavras é motivada pela busca da proximidade com a oralidade.
Por exemplo:
[p.110] esteira => trilha;
115
[p.100] desbastar => derrubarem;
[p.111] facho de fogo => tição;
[p.103] cobras=> cascavéis;
[p.102] cerro => serrote.
A pontuação na coluna da direita mostra a separação das circunstancias, por
vírgulas, revelando uma escrita que obedece a padrões da norma culta:
[p.113] Tempos depois, certa noite, saiu para encerrar [,] de vez [,] a
empreitada feita com o dono das terras.
[p.111] [...] Nesta época o tempo girava infindo como os círculos negros que as
envolviam e marcavam sua pele, e ele [,] naquela espera [,] sentia ampliar sua solidão.
Outra marca importante é o acréscimo do travessão, costurando a narrativa ao
texto do romance:
[p.98] [Novamente ouvi à luz de lamparinas, agora na voz suave de uma
mulher, na noite em que o Bisneto deitado na sua rede branca no alpendre, fitava o
firmamento:]
[p.98] [-] para os confins do Reino-das-Pedras, escondido pelas furnas
escarpadas de Acauã, ele nascera.
O acréscimo de o pequeno pixuna, cupira e moça branca, pela linha da
barriga, demonstra as pesquisas sobre o sertão e, principalmente, a leitura de A Caça nos
Sertões de Seridó,de Oswaldo Lamartine.
Ao cotejar as duas tabelas, identificamos uma característica importante para gerar
o tema trabalhado no romance, o regional. Em “Infância no Minho” tínhamos as
características do povo português e suas tradições, inseridas através das histórias de Inês de
Castro, Dom Sebastião, infante D. Fernando e outras. Natércia Campos manteve apenas a
idéia da imigração portuguesa e a disseminação dos costumes lusitanos no Brasil.
Devemos ainda dizer que Natércia não foi a única a utilizar como matriz de
romance uma narrativa mais curta, que outros romances, também aclamados pela crítica,
surgiram de textos mais concisos. O trabalho com acervos de grandes escritores, como
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Eça de Queirós, confirma a transformação de cartas em
crônicas, contos em romances ou frases ouvidas em diálogos, de personagens. Depois o fato
tornou-se comum, sobretudo com a crise dos gêneros.
116
Clara Ramos, no seu livro biográfico Mestre Graciliano: confirmação humana de
uma obra, relata o nascimento do romance Vidas Secas, citando trecho de um artigo de
Rubem Braga
40
, que foi companheiro de pensão do escritor, no Catete.
Eu conheço o quarto em que o Graciliano Ramos escreveu o romance
Vidas secas, e sei mais ou menos a situação em que ele escreveu. Essa situação
determinou a própria estrutura do romance. Tem, portanto, a sua importância para o
público.
Quem pega no romance logo repara. Cada capítulo desse pequeno livro dispõe de
uma certa autonomia e é capaz de viver por si mesmo. Pode ser lido em separado. É
um conto. Esses contos se juntam e formam um romance. Graciliano não fez assim
por recreação literária. Fez por necessidade financeira. Ia escrevendo e vendendo o
romance a prestação. Vendeu vários contos. Alguns capítulos ele fez de maneira a
poder rachar no meio. Foi colocando aquilo a varejo em nosso pobre mercado
literário. Depois vendeu tudo por atacado, com o nome do romance.
Quase tão pobre como Fabiano, o autor fez assim uma nova técnica de romance no
Brasil. O romance desmontável.
Em cartas de Graciliano Ramos à esposa Heloísa de Medeiros (7 de maio de
1937)
41
lemos outras informações sobre a escritura do conto:
Escrevi um conto sobre a morte de uma cachorra, um troço difícil como
você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma de uma cachorra. Será que
mesmo alma em cachorro?
É a quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento,
indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de
bípedes nem por isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior de
uma cachorra é realmente uma dificuldade tão grande como sondar o espírito de um
literato alagoano
.
Ainda sobre a gênese do livro, Graciliano comenta em uma crônica intitulada
“Alguns tipos sem importância” (1939)
42
:
Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal
.
Essas coisas
foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olympio me pedisse
um livro para o começo do ano passado, arranjei outras narrações, que tanto podem
ser contos como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois
filhos e a cachorra Baleia.
O manuscrito da obra encontra-se no Fundo Graciliano Ramos do Arquivo do
IEB/USP
43
e nos mostra que as narrativas publicadas como capítulos na obra Vida Secas não
40
In: Manchete, “Graciliano Ramos concretista”, 23 de outubro de 1965; Diário de Notícias,1938.
41
RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1979, p. 124/5.
42
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas: obra póstuma. 9.ed Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1981,p. 196.
43
As indicações das fontes documentais que nos contam sobre a gênese de Vidas Secas foram dadas pela Profa.
Yêdda Dias Lima (IEB/USP), a quem agradecemos. Segundo consta no Catálogo de Manuscritos do Arquivo
117
foram escritas na mesma ordem em que aparecem no livro e uma delas – “Fabiano” –
publicada em O Cruzeiro (29/01/1938), traz a legenda “conto de Graciliano Ramos”.
Antonio Candido diz que o romance Vida Secas, de Graciliano Ramos, é uma
“construção por fragmentos, quadros destacados, onde os fatos se arranjam sem se integrarem
uns com os outros aparentemente, sugerindo um mundo que não se compreende e se capta
apenas por manifestações isoladas”.
44
Para José Aderaldo Castello são “narrativas, dizendo que o uso do plural é
intencional. São ‘quadros de uma exposição’, comparando-as à ‘suíte para piano de
Moussorgsky’ ” .
45
Vidas Secas é um romance construído com essas narrativas, mas nem por isso
concordamos com os que a consideram “romance desmontável”, pois, ao estruturá-lo tal como
o conhecemos, o autor torna o livro, nas palavras de Castello, ‘um todo unificado’ e o
autor poderia lhe dar uma outra ‘montagem’, se assim o quisesse”.
Outro exemplo de romance que tem como origem um conto é Grande sertão:
veredas. Embora não se tenha ainda encontrado no acervo do escritor João Guimarães Rosa
(IEB/USP) documentos que o comprovem
46
, há referências paratextuais que indiciam tal
procedência. Em carta ao pai, Florduardo Rosa -12/07/1954 - o escritor diz: “Eu estou
trabalhando ‘burramente’, dia e noite, para terminar os livros que estou escrevendo – pois, em
vez de um, como comecei, a coisa virou dois...” Num manuscrito de Aracy, viúva de
Guimarães Rosa, ela diz que quando o autor começou a escrever Corpo de Baile, ela lhe
perguntou: ‘Joãozinho, esse conto “Grande sertão” está ficando maior que os outros?E ele
respondeu: ‘Ara, eu me dei conta, mas não posso parar, é estranho, parece que estou
escrevendo em transe. E assim foi que nasceu o Grande Sertão - Veredas!’
47
Graciliano Ramos (coord. Yêdda Dias Lima e Zenir Campos Reis). o Paulo: Edusp, 1992, as narrativas todas
eram numeradas com data ao final, não necessariamente correspondendo à data de publicação. A primeira
narrativa a ser publicada foi “Baleia” em O Jornal, do Rio de Janeiro, em 23/05/1937, seguida de “Mudança”,
em 19/12/1937 no mesmo jornal; “Cadeia’ foi publicada no Diário de Notícias, RJ, em 5/12/1937, sob o título
“Pedaço de romance” e em O Cruzeiro, 26/03/1938, com o título “Cadeia”; “O menino mais novo’ , sob o título
“Travessura”, foram publicados onze parágrafos no Diário de Notícias, RJ, 23/01/1938; Inverno foi publicada
sob o título “Serão(8 parágrafos) na Folha de Minas, BH, em 16/03/1938, republicado no Diário de Notícias,
RJ, 1/04/1938 “com a indicação final: ‘Do romance inédito Baleia’ ; Fabiano publicado em O Cruzeiro, RJ,
29/01/1938; “com a indicação ‘Fabiano’ conto inédito de Graciliano Ramos (inédito para O Cruzeiro)”. A
última narrativa a ser publicada foi “Fuga”, no Diário de Notícias, RJ, 17/04/1938, sob o título “Viagem” (nove
parágrafos. Das narrativas que constam como capítulos da obra Vidas Secas, “Sinhá Victória” (18/06/1937), “O
menino mais velho” (08/07/1937), “Festa’, (22/07/1937), “Contas” (29/07/1937), “O mundo coberto de penas”
(27/08/1937) e “O soldado amarelo” (06/09/1937) não tiveram veiculação em periódicos.
44
ANTONIO CANDIDO. Tese e antítese. 2 ed. (revista) São Paulo: Ed. Nacional, 1971.
45
CASTELLO, José Aderaldo. A Literatura Brasileira – origens e unidade, v. II. São Paulo: Edusp, 1999.
46
Segundo pesquisas realizadas pela Professora Neuma Cavalcante.
47
Manuscrito constante do Arquivo Pessoal de Aracy Carvalho Guimarães Rosa, pertencente ao IEB/USP.
Segundo a Professora Neuma Cavalcante, Aracy cometeu um engano quanto ao título do livro, porque no
118
Citamos também como exemplo de mudança estrutural de gênero a obra de Eça de
Queirós, que publicou textos independentes na imprensa e depois esses textos, com algumas
modificações adaptativas, foram entregues ao público em forma de cartas.
Elza Miné assinala em Páginas Flutuantes: Eça de Queirós e o jornalismo no
século XIX, mais precisamente em “ ‘Fradiquices’ Brasileiras”, a transmutação dos textos.
Trata-se das “Cartas XII e XIV, a Mme. De Jouarre”, da “Carta a Bento de S.” e da
“Carta a Manuel”, esta última publicada apenas em Cartas Inéditas de Fradique
Mendes. Estas quatro “fradiquices” têm em comum o fato de terem constituído,
antes, textos de imprensa independentes, enviados por Eça de Queirós para a Gazeta
de Notícias do Rio de Janeiro. Trata-se, respectivamente, de dois textos de 1892,
um, publicado no “Suplemento Literário” da Gazeta, de que Eça é o responsável,
“Padre Salgueiro” (13 de junho), e outros, “Quinta de Frades” (27 de julho); trata-se,
ainda, de dois outros de 1894: “Tema para Versos I”, publicado a 2 de abril desse
ano, que virá a constituir a Carta a Manuel”
48
e de “carta a Bento de S.”, cuja
primeira versão se encontra em matéria enviada por Eça em abril de 1894 (dia 26), a
que Luís de Magalhães deu o subtítulo de “O Sr. Brunetière e a Imprensa”, em Ecos
de Paris.
49
primeiro rascunho do romance consta "Veredas Mortas", só a partir do segundo rascunho aparece o título
definitivo.
48
“tema para Versos II” corresponde ao texto publicado no volume Contos, organizado por Luís de Magalhães,
com o título “A Aia”.
49
“ ‘Fradiquices’ Brasileiras” In: MINÉ, Elza Assumpção. Páginas Flutuantes: Eça de Queirós e o jornalismo
no século XIX. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. ps.119-137.
119
CONCLUSÃO
Estudar o processo de criação de uma obra literária, de certa forma, é desmistificar
um pensamento aceito pelo senso comum, que acredita ser necessária a inspiração divina para
escrever um texto literário. Essa crença fundamenta-se na prática clássica, segundo a qual o
poeta deveria pedir inspiração aos deuses para iniciar uma obra. Tal atitude demonstrava uma
falsa humildade do poeta.
A análise dos manuscritos do premiado romance de Natércia Campos, sob os
olhares da crítica genética, nos permitiu a descoberta de uma escritora-pesquisadora,
incansável, que reescrevia e pesquisava sobre diversos assuntos. Esse interesse em aprender e
repassar os conhecimentos enriqueceram suas obras e demonstram compromisso com o leitor.
Acreditamos que o desvendar da trama escritural de A Casa trará uma base segura
para análises posteriores, sejam elas apoiadas pela crítica psicanalítica, sociocrítica, ou
qualquer outra linha. Garante a veracidade dos fatos, livrando o crítico de divagações e
incertezas.
No primeiro capítulo, “Nos espaços da Crítica Genética”, fizemos a explanação da
teoria utilizada, tendo como suporte as obras de Almuth Grésillon e Pierre-Marc de Biasi. Por
aceitarmos que a crítica genética teve a Filologia como norteadora, citamos os filólogos
Segismundo Spina, Giuseppe Tavani e Luiz Fagundes Duarte.
A obra de Spina nos ajudou a entender o histórico da crítica genética, ou seja,
como a Filologia contribuiu para a normatização dessa jovem técnica.
Como dissemos, as idéias de Tavani nos permitiram a flexibilização da
aplicação daqueles pressupostos, pois não fizemos uma análise especificamente
50
genética do
romance, mas sim uma investigação de como ele surgiu.
A análise crítica de Duarte serviu como base para a interpretação das
modificações feitas por Natércia em suas narrativas.
Os pressupostos da crítica genética nos iluminaram ao mostrar como deveríamos
tratar o manuscrito moderno. Seguimos os passos indicados por Grésillon para a organização
do dossiê e depois passamos a procurar as fases de elaboração dos manuscritos, a fim de
encontrar sua possível cronologia. Serviu-nos também como suporte a Codicologia.
Ainda no primeiro capítulo registramos a biografia de Natércia Campos,
considerando a contribuição deixada por ela na Literatura Cearense. Ressaltamos que, além de
50
Análise dos manuscritos através das marcas deixadas pelo escritor e seu percurso do primeiro esboço ou
rascunho até a fase chamada por Biasi de pré-editorial.
120
suas obras publicadas, Natércia nos deixou como legado seu acervo, cedido generosamente
pela família Campos.
Fizemos no segundo capítulo, “Os caminhos da Criação”, uma retrospectiva da
escolha do objeto de estudos. A impossibilidade de trabalhar com o primeiro dossiê, como
dissemos, nos fez escolher o tema “água”- elemento de grande importância para o romance - e
buscamos entender como ocorreu a inserção desse elemento na obra. Já iniciado o processo de
descrição do corpus, tivemos acesso à informação que o romance partiu, como idéia inicial,
de uma narrativa intitulada “O espelho”, então fomos ao acervo procurar esse documento.
Descobrimos, nessa investigação, outras duas narrativas Infância no Minho” e “O Rasto”,
que, conforme observamos, também participaram da construção de A Casa. Pela relevância
desses achados, optamos por desvendar os caminhos dos primeiros escritos do romance.
Descrevemos o dossiê formado pelos testemunhos e documentos paratextuais referentes a
essas narrativas; salientamos os critérios para a definição da versão mais elaborada para cotejo
com a publicação de A Casa (1999) e apresentamos em tabelas a comparação entre as versões.
Em “O surgimento do romance A Casa”, definimos o corpus as três narrativas e
a edição de 1999 de A Casa - e procuramos comprovar que essas narrativas eram anteriores ao
texto do romance. Para tanto, nos valemos de cartas e trechos retrabalhados em prosas
poéticas e informações corroboradas por entrevistas, pois apenas um dos manuscritos estava
datado. Confirmado tal fato, analisamos, através de tabelas comparativas, em que medida
essas três narrativas estavam presentes no romance.
Explicamos os processos de reescrita e interpretamos quais as mudanças ocorridas
no texto. Finalizado esse processo, constatamos que Natércia utilizou de formas diferentes
essas três narrativas para criar A Casa.
De “O espelho” ela manteve apenas a referência ao criador e a descrição do
objeto, destacando a sua carga simbólica. Ressaltamos que o espelho está presente em
diversas narrativas literárias, algumas vezes como confidente, outras como objeto mágico
revelador da verdade. É objeto mágico na literatura infantil Branca de Neve, dos Irmãos
Grimm, Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll e “Narizinho Arrebitado”, de Monteiro
Lobato. E como forma de introspecção no conto “O espelho”, de Guimarães Rosa, no conto
de mesmo título de Machado de Assis e na crônica “Os espelhos” de Clarice Lispector.
“Infância no Minho” comparece com muitas alterações e alguns trechos foram
costurados ao texto do romance pela ação de alguns personagens de A Casa, como vimos.
121
Relembramos que de “O Rasto” praticamente a narrativa de forma integral foi
inserida no romance, através da lembrança de Eugênia, que ouviu essa história contada pelo
passador de gado, quando ela ainda era criança.
Ainda no terceiro capítulo, mostramos procedimento semelhante em autores como
Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa e Eça de Queiroz.
Com esse estudo, acompanhamos o processo de transformação pelo qual passou o
texto de Natércia Campos para chegar à publicação. O seu, não é um procedimento inusitado.
Alguns escritores também modificaram a estrutura arquitextual de suas obras, como
lembramos anteriormente: cartas que passaram a ser crônicas e contos que passaram a ser
romances.
Vemos que a mudança de gêneros textuais é, de certa forma, recorrente durante o
processo de escritura; em alguns casos, como explanamos, até depois da publicação. Esse
fato revela a mestria dos escritores em trabalhar com diferentes gêneros e trazer para o leitor
textos que nos parecem completamente inéditos. E realmente o são, na forma como nos
chegam.
A constante mudança de delimitação do corpus aponta-nos um manancial de
possibilidades de novos estudos, uma vez que reunimos, em cada dossiê, uma quantidade
considerável de documentos. Estes poderão ser analisados visando o processo criativo do
texto o que, como procuramos deixar claro, não foi o objetivo desta dissertação, voltada
primordialmente para a investigação da origem do romance A Casa.
122
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127
ANEXO A – entrevistas
Transcrição da Entrevista com Regina Fiúza, diretora Administrativa da Academia
Cearense de Letras e amiga de Natércia Campos, entrevista realizada em junho de 2008.
Elisabete Sampaio – Como surgiu o convite para a revisão do livro A Casa?
Regina Fiúza algum tempo. Eu já conhecia o livro, de vez em quando ela me chamava
na casa dela para ler alguns trechos para mim. Em 1998 ela se inscreveu para o Prêmio
Osmundo Pontes de Literatura. Neste ano foi a maior coincidência e uma grande surpresa, as
categorias eram romance e ensaio. Natércia ganhou com o romance A Casa e a filha dela
Caterina com o ensaio, Fortaleza, Velhos Carnavais. Então ela me pediu para fazer a primeira
revisão do livro, que foi lançado em 1999. Seu sonho era publicar por alguma editora do Rio
de Janeiro ou de São Paulo. Logo depois eu fui ao Rio de Janeiro com o meu tio, Artur
Eduardo Benevides, na época presidente da Academia Cearense de Letras, e em visita à
Academia Brasileira de Letras fomos recebidos pelos acadêmicos, Tarcísio Padilha, então
presidente, Antônio Olinto e Carlos Nejar. Eu havia levado alguns exemplares de A Casa e os
dei de presente aos referidos acadêmicos. Antônio Olinto leu, ficou encantado e escreveu um
artigo sobre o livro, que foi publicado em revistas literárias. Na época, a Natércia tentou
conseguir a publicação por editors do Rio. Todos gostaram muito, mas infelizmente não saiu a
edição tão esperada.
E.S - Eu até mandei uns livros para uma professora do Rio que veio para e estuda as
mulheres escritoras, então eu dei o Iluminuras e A Casa de presente. Depois ela escreveu
dizendo que tinha adorado. Isso foi no fim do ano passado.
R.F- Todo mundo gostava, nós mandamos para várias editoras do Sul.
E.S- Esse que a senhora mandou é um da capa branca ou um da capa marrom?
R.F- É o primeiro, o da capa marrom tem ele e esse (apontando para a edição publicada
pela UFC)
E.S - É porque lá no Acervo temos três capas, por isso que eu estou perguntando
R.F - No Acervo?
E.S - É, no acervo da Natércia. Tem um branco com uma casinha, que ela fez até uma
correção, eu acho que o que veio logo depois dele é um marrom com uma casa.
R.F - O marrom é o que foi publicado pelo prêmio Osmundo Pontes, não houve publicação
anterior a essa, eu desconheço essa capinha branca.
E.S -Eu acho até que como saiu um erro ela...
128
R.F -Ah, talvez tenha sido isso. Mas não houve lançamento, porque o oficial mesmo foi esse
do prêmio Osmundo Pontes, que ela fez lá na UFC, na Imprensa Universitária.
E.S - Os comentários que ela fazia sobre a publicação eram todos antes de sair a primeira
edição? Quando ela lhe chamava.
R.F- É, comigo foi antes, eu fiz a revisão só da parte de ortografia.
E.S-E ela aceitou as correções?
R.F -Tudo.
E.S - Eram correções gramaticais?
R.F- Eram, eu não mexi em nada, pois o livro era perfeito.
E.S - É engraçado a gente fica analisando os manuscritos e o quanto ela pesquisou para
escrever. Você olha e pode achar que são cem páginas e ela não deve ter pesquisado tanto,
mas eu já achei umas 16 versões.
R.F- É e ela ia mudando, desde a primeira versão até a publicação.
E.S - A senhora lembra mais ou menos qual era o ano?
R.F- Não lembro, só se eu pesquisar depois, mas agora eu não estou me lembrando.
E.S - É, são muitas datas.
Porque eu já achei vários manuscritos em folhas soltas, pedacinhos de papel, às vezes
anotações no calendário, parece que ela gostava de anotar nos calendários.
R.F - Como eu lhe disse as nossas famílias sempre foram muito ligadas, muito amigas. Eu
morei 18 anos fora, quando voltei para morar aqui, logo depois eu fui eleita para a Sociedade
Amigas do Livro e ela já fazia parte da SAL, então nos encontrávamos pelo menos todo mês e
fomos estreitando a amizade. Nesse espaço de tempo em que eu morei fora, muita coisa
aconteceu em sua vida. Eu soube porque ela me contou. Ficamos realmente muito próximas e
às vezes ela estava em algum lugar e lembrava de algumas anotações, pois sempre andava
com papel.
E.S - São interessantes os papéis que ela anotava, qualquer pedacinho de papel servia para
escrever.
R.F É, pedaço de papel, guardanapo. Um dia desses eu achei uns guardanapos escritos por
ela, quando nós íamos para as reuniões da Sociedade Amigas do Livro, ela escrevia uns
comentários sobre a palestra ou sobre alguma coisa que ela queria me dizer. Às vezes
desenhava, para explicar melhor, usando umas setas.
E.S - Essas setas aparecem sempre.
R.F – É, eram ótimos bilhetes, alguns eu nem posso divulgar porque há comentários pessoais.
E.S - Eu sei.
129
Infelizmente, nós não temos todos os livros da biblioteca dela, porque ela sempre citava que
lia Câmara Cascudo, inclusive no discurso de posse, e eu encontro muitas anotações, ver
livro, página tal, tanto o livro do Oswaldo Lamartine, que era muito amigo dela, quanto os do
Câmara Cascudo.
R.F – Talvez tenham sido divididos com as filhas.
E.S - Elas tinham dito que iriam doar para uma escola pública, mas eu não sei se doaram.
R.F - Eu acho que não. A Carol hoje é a mais fácil de conseguirmos qualquer informação, a
mais disponível, porque a Caterina é muito ocupada e as outras duas moram em Brasília.
E.S - A Emanuella e a Clarissa.
E depois que saiu a primeira edição ela fez algum comentário de como tinha sido a recepção
da obra?
R.F - Não, não precisava fazer porque eu andava junto com ela e nós víamos. Uma vez ela
veio para cá, para a ACL e nós pegamos uns livros e mandamos para várias editoras, eu
participei desse processo junto com ela. Botávamos no envelope e mandávamos para as
editoras, com uma carta, do Artur Eduardo Benevides indicando o livro. Ela esperava que
saísse uma publicação através do Antonio Olinto. Quando ela recebia qualquer opinião sobre
o livro ligava para mim. Havia uma pasta só com essas cartas, com esses comentários.
E.S - Nós temos no Acervo algumas cartas, mas como eu estou trabalhando só com os
manuscritos d’A Casa deixei as cartas de lado, porque é muito material.
R.F - também aquelas cartas do Jorge Medauar e dela para ele. São dez anos de
correspondência. Muita coisa, muita coisa boa mesmo. Mas essas cartas que eu falo eram de
pessoas que escreviam depois que liam A Casa e enviavam para ela, escritores daqui e de
fora. Alguma coisa eu ainda tenho cópias, porque ela sempre me dava umas cópias.
E.S - Ela sempre tirava cópia das cartas que mandava.
R.F – Quase sempre.
E.S - Interessante porque nem todos os escritores trabalham assim.
R.F - É, não. Eu tenho alguma coisa, preciso até parar para juntar as coisas da Natércia. Tenho
todos os livros dela oferecidos a mim, com dedicatórias maravilhosas, edição, edição.
Tudo o que foi publicado dela eu tenho.
E.S - Porque no Acervo tem poucos exemplares, o que tem em grande quantidade é o
Iluminuras.
R.F - O da 2ª edição.
130
E.S - As outras são mais raras. Os manuscritos e as versões digitadas temos todas. Por isso
que eu perguntei se alguém digitava, porque às vezes ela pode ter modificado alguma coisa ou
a digitadora pode ter cometido um erro, isso é importante saber.
R.F - Não, mas todos os erros que a digitadora fazia eram corrigidos por ela. Ela quando ia
levar para a publicação já estava tudo corrigido.
E.S - A senhora não lembra o nome dessa pessoa que digitava?
R.F Não, se eu perguntar à Carol. Era uma moça, dessas que vão em casa digitar, tipo
uma professora de informática.
Às vezes, ela me ligava: “Ei quando você sair daí da ACL passa aqui para tomar um café”.
Ela adorava capuccino, tomávamos um capuccino, nos sentávamos na varanda ou ficávamos
dentro do quarto dela.
E.S - A senhora tinha falado sobre alguns comentários que ela fazia no momento em que
estava escrevendo.
R.F- Ela às vezes me chamava na casa dela para mostrar alguma coisa que ela havia
acrescentado, ou tirado.
E.S - A senhora lembra de alguma dessas modificações?
R.F – É difícil lembrar porque já faz tanto tempo!
E.S - Porque eu notei que ela retirou muita coisa, até tem um comentário que ela escreve
“retirar o rastro de plumas da Casaeu não sei se ela já tinha escrito no livro ou se ela pensou
em colocar e desistiu da idéia antes mesmo de digitar.
R.F - Não sei detalhes assim, porque tirou isso, porque tirou aquilo. Ela às vezes comentava
alguma coisa, mas realmente fica difícil de lembrar.
Quando ela já estava doente e a UFC publicou a segunda edição para vestibular ela viu e ficou
triste porque tinham tirado as epígrafes.
E.S - Inclusive eles nem citam que é a segunda edição, se você não conhece pode achar que é
a primeira. Eles modificaram até os espaços que na primeira edição ela deixava maior.
R.F- Foram eles que retiraram todos aqueles espaços que eram bastante significativos, aquilo
foi outra coisa a entristeceu, tiraram os espaços todos, as epígrafes e a apresentação feita por
ela, tudo isso fazia parte integrante e imprescindível do Romance.
E.S- Eles não comentaram com ela, não chamaram para ela ver?
R.F- Não, quando ela reclamou eles deram a desculpa de que as epígrafes podiam influenciar
o leitor.
131
E.S- Eu acho também, que é porque todos os livros dessa coleção são mais ou menos do
mesmo tamanho, o mesmo número de páginas e é uma pena porque é o livro mais barato e
que o público tem mais acesso.
R.F- E o outro está esgotado, todos os livros dela estão esgotados, menos a reedição de
Iluminuras.
E.S- É, só se for em sebo.
R.F- Agora a história do Por Terras de Camões e Cervantes é que tenho assim um orgulho
muito grande porque fui eu que a incentivei. Sempre que ela viajava, fazia as anotações dela.
Então esse texto era uma carta que ela ia mandar para o Medauar, falando sobre a última
viagem a Portugal e Espanha. Quando ela chegou me chamou para almoçar com ela em um
restaurante na Vila Pita.
E.S - Era um de saladas? Bem na esquina?
R.F - Era, bem na esquina, mas acho que o de saladas já foi depois, foi o primeiro que teve lá.
Ela era muito entusiasmada. Levou uma pasta enorme, cheia de coisas, cartões postais. Ela
adorava cartão postal, por onde passava pegava um cartão, um folheto e então leu para mim
essa carta contando a viagem. Eu achei tão lindos, que sugeri a ela que lesse a carta na
próxima reunião da Sociedade Amigas do Livro. Tínhamos que valorizar a prata da casa. Ela
fez a reunião, leu a carta e foi um sucesso, todo mundo adorou. Eu falei que ela devia
publicar. Ela conversou com o Jesuíno, que era o então diretor da Imprensa Universitária e foi
feita aquela edição. Todo mundo gostou. Ela deu para várias pessoas, não teve nem um
lançamento e depois ela resolveu fazer a segunda edição. Um ano antes a Salma Machado,
nossa amiga da Sociedade Amigas do Livro resolveu reeditar o Iluminuras, e houve então um
lançamento. Em seguida ela resolveu relançar o Por Terras de Camões, que, aliás, ficou
belíssima essa edição.
E.S - Aqui o Por Terras de Camões vem em 1998 e A Casa em 1999, mas quando eu estava
olhando tem manuscritos de oitenta e pouco, já tem coisa sobre “A Casa”.
R.F- É, muito anterior, Iluminuras ganhou o Prêmio Nestlé de Contos.
E.S- Foi quando o primeiro neto dela nasceu. Ela comenta que fez o conto e começou a
escrever com o nascimento do primeiro neto.
R.F - É e foi o filho dela quem incentivou. O primeiro prêmio que ela ganhou foi ele que
enviou o conto e morreu antes dela receber a premiação.
E.S - O José Thomé. Eu nunca pude conversar com ela a vi naquele dia por acaso (numa
palestra na ACL) e também não participei do primeiro ano do Acervo, entrei no ano seguinte.
132
R.F - Era uma coisa muito difícil para ela falar da morte do filho. Eu nunca perguntei nada
sobre ele, nada do Zé! Um belo dia ela me contou como ele tinha morrido. Ela era assim
dependendo da situação, ou do ambiente, ela falava, às vezes íamos ao cinema juntas, ou
tomar lanche. Às vezes ela se abria mais, contava alguma coisa, soltava assim uns “flashes”,
acho que era muito difícil para ela falar. Eu morava fora na época, sabia que ele tinha
morrido, mas não sabia a causa da morte. Quando ele a inscreveu nesse concurso do
Sudameris, parece que um mês depois ele morreu e logo em seguida ela foi comunicada de
que havia tirado o primeiro lugar, com o conto “A Escada”. Por causa disso, ela resolveu
continuar escrevendo. Ela fez o Iluminuras e mandou para o prêmio Bienal Nestlé de
Literatura. A respeito do prêmio, tem uma coisa interessante nesse ano, ela participou e o
Artur Eduardo Benevides também mandou um livro de poesia. Eles ganharam, ela em conto e
o Artur em poesia. Não é engraçado dois ganhadores cearenses, nas duas categorias? Ela foi
receber o prêmio, viajou para São Paulo, conheceu pessoalmente o Medauar e a esposa
dele. O marido dela a acompanhou e o Medauar ofereceu um jantar para eles lá. Ele tinha
bastante idade.
E.S - Algumas pessoas me perguntaram se ela pensava em primeiro escrever vários contos
ou se ela tinha em mente que ia escrever o Romance A Casa.
R.F - O Romance acho que é bem antigo, eu tenho vidas se primeiro foi o conto A
escada”... Tu podes olhar lá nos primeiros manuscritos dela qual foi o ano.
E.S - Ela não anotava. Esse vai ser um grande trabalho, eu vou ter que ver a cronologia, de
acordo com o que ela tirou ou acrescentou, esse está diferente deste, mas qual veio primeiro?
R.F - É porque nunca imaginamos que possa acontecer uma coisa dessas com uma amiga da
gente. Ela deu aqueles livros do Moreira Campos para a Academia Cearense de Letras e
quando ela morreu, nós fizemos o cantinho da família com o quadro da irmã Badida e os
livros dela e do Moreira, os troféus e fotos, na sala Moreira Campos.
E.S - Porque no começo a Neuma fez o projeto para professora da UFC com o Acervo do
Moreira Campos e ela conversou com a Natércia, que gostou da idéia, mas quando o Acervo
foi doado para a UFC a Natércia já tinha falecido, então a família doou também o Acervo
dela.
R.F - Mas os livros que vieram para foram da coleção de Literatura Brasileira e Cearense,
dele Moreira, grande parte. A Natércia ficou com alguma coisa para ela e o resto veio para cá.
E.S - Tem alguns livros dele, inclusive os livros com os quais ele dava aula. Agora os livros
dela eu não tenho e isso é uma pena porque provavelmente ela fazia algum comentário
durante a leitura.
133
R.F - Ela escrevia, eu também escrevo, eu grifo, grifo mais do que escrevo, mas ela escrevia e
também grifava.
E.S - Pois é, e essa parte da pesquisa vai ficar um vazio, porque eu também não tenho contato
para pedir emprestado os livros e eu nem sei onde estão.
R.F - E você e Neuma trabalham no Acervo?
E.S - Eu, a Neuma, a Isabel, a Terezinha e a Joyce. É difícil achar pessoas que queiram
trabalhar com isso, por incrível que pareça.
Eu estou pensando em fazer a dissertação por tema, espero que certo. Escolher um tema e
trabalhar todos os trechos que falem sobre isso, foi a única maneira que nós pensamos que
poderia dar certo.
R.F - Mas vai dar muito trabalho, não?
E.S- Todas as formas que eu escolher vão dar trabalho, mas eu tinha pensado nesse tema da
água porque ela pesquisou muito e é recorrente no livro desde a primeira página até o final.
R.F - Muito. Até foi o que eu disse no final daquele meu texto sobre ela, tudo foi nas águas, o
filho morreu nas águas.
E.S - O livro seguinte foi o Caminho das Águas.
R.F - E havia uma ligação forte dela com a água.
E.S - Ela tem uma coisa com gnomos.
R.F É, com feiticeiras também, eu tenho uma feiticeira bordada por ela, num quadrinho,
tenho também uma tábua de cortar queijo que é em forma de rato com queijinho furadinho na
ponta do rabo. Essa eu botei pregado, na parede, na mesa da cozinha e toda hora eu fico
olhando para ele.
Ela era uma pessoa extremamente agradável e amiga mesmo, eu me lembro que dez anos,
eu fiz uma histerectomia e eu devia ficar de repouso. Natércia passava em casa todo dia,
levando bolos, revistas, livros, todo dia ela deixava uma coisinha, um mimo para mim. Ela era
desse jeito, atenciosíssima.
E.S - Todas as pessoas comentam que ela era muito humana, muito amiga.
R.F - Muito, eu a chamava de Neguinha. E ela sempre tinha uma coisinha para agradar a
gente, me chamava de Minha Linda.
E.S - Eu queria tê-la conhecido, iria me ajudar muito. Esse ano era para ela completar 70
anos.
Pergunto sobre o João Soares Neto.
R.F - Ela tinha muito carinho por ele, talvez fossemos as pessoas mais próximas dela, antes de
sua morte, nós, e principalmente a Neide Cordeiro.
134
R.F – Você já conversou com a Neide Cordeiro? Elas trabalhavam juntas na SECULT e eram
muito amigas. Ela deve ter muitas informações que possam te ajudar.
E.S - Obrigada.
135
136
Transcrição da Entrevista com Sânzio de Azevedo, professor do curso de Letras da
Universidade Federal do Ceará e amigo de Natércia Campos, entrevista realizada em
julho de 2008.
Elisabete Sampaio- Como era a sua amizade com Natércia? Como a conheceu?
Sânzio de Azevedo- Eu conhecia o pai dela Moreira Campos quando Natércia Campos
publicou com o nome Natércia Campos de Saboya o primeiro livro dela, Iluminuras, e o
Moreira a trouxe para fazer uma palestra aqui no auditório José Albano. Então o Moreira
me apresentou a ela e ela olhou para o outro lado. Eu achei a Natércia tão antipática.
Porque ela tinha ganho o prêmio Nestlé e eu a achei muito ensimesmada. Ave Maria, o
Moreira Campos humilde e a filha tão arrogante, não tomou conhecimento de mim.
Depois, com o tempo, é que eu iria descobrir que ela era mesmo era desligada. Quando
nos aproximamos eu fiquei gostando tanto dela. Dizia para ela Natércia: eu achava que
você era antipática “Que é isso meu bichinho?” Ela publicou vários livros, gostava muito
de perguntar. Quando ela publicou A Casa, a primeira edição, escaparam algumas coisas e
ela pretendia tirar uma segunda edição e nunca tirou. Porque a edição da UFC, do
vestibular, foi um desgosto para ela, por isso ela pediu para eu fazer uma revisão.
Qualquer coisa eu a consultava e ela dizia “Meu bichinho, faça como quiser.” Encontrei
vários anacolutos, ela escreve muito bem, mas sem muito cuidado, às vezes vinham uns
anacolutos. Sabe o que é anacoluto? Aquela frase que tem dois sujeitos, vai falar uma
coisa e depois o sujeito é outro. Eu ligava para ela e dizia: Natércia e essa frase? Lia
para ela e dizia que isso deve ter sido um erro de digitação e ela falava “Não meu bichinho
é burrice mesmo.” Ela era maravilhosa. Eu fiz a revisão e ela queria pôr meu nome:
revisão de Sânzio de Azevedo e eu disse que não, porque na primeira edição tem o nome
de uma amiga minha e não é nada ético eu fazer isso. Dá a impressão que eu fiz a correção
do trabalho anterior e eu pedi para ela não colocar e ela não colocou. Agora, quanto à
publicação do livro, eu disse em alto e bom som em todas as reuniões que a Natércia
morreu com desgosto com essa mania do vestibular de tirar as introduções, as epígrafes.
Eles tiraram as epígrafes, isso é um absurdo, porque elas são parte integrante do livro.
Logo se que quem determinou isso não entende nada de literatura. Desculpe eu estar
falando de mim, mas organizei a Antologia do Parnasianismo, da Global, na série Roteiro
da Poesia Brasileira da Edla Van Steen: em cada soneto de autor que tinha epígrafe eu
coloquei todas. Ninguém mexe em epígrafe não.
E.S.- E a justificativa é pior ainda.
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S.A.- É para os alunos não entrarem na justiça.
E.S.- Até os espaços entre os parágrafos eles tiraram.
S.A.- Acabou o aspecto semiótico. Ela ficou com mais desgosto porque tiraram a
dedicatória ao pai e deixaram uma epígrafe do Câmara Cascudo.
E.S.- E ainda não consultaram a autora.
S.A. O Falcão, diretor da imprensa, depois da morte dela disse para mim “É, no fim ela
aceitou” E eu disse: aceitou não, porque eu falei com ela até quase na véspera da morte e
ela nunca aceitou e nem as filhas aceitaram, aquilo foi uma aberração. O Murilo Martins
entendeu de ressuscitar a coleção Alagadiço Novo, do pai dele, e me chamou para ser
presidente e eu passei a presidência para o João Soares Neto, porque eu não quero ser
presidente de nada. Numa das reuniões ele me apresentou ao Falcão e eu escrachei nessa
reunião. Quando foi um belo dia eu me lembrei de um Haicai meu, que faz parte do livro
Lanternas Cor de Aurora, mas estava em Cantos da Antevéspera. É esse aqui
“Assombração” Noite escura e morta./ O vento é triste lamento/ nas frinchas da porta. Ela
disse “Meu bichinho isso certinho com o meu livro, eu vou botar nas epígrafes na
segunda edição”. Porque ela fala muito no vento. Quando eu me lembrei disso me deu um
frio na espinha, porque eles iriam pensar que eu estava fazendo essa zoada toda para
aparecer, eu me calei, nunca mais falei nisso. Falei com a Angela Gutiérrez que um belo
dia nós vamos fazer essa segunda edição que a Natércia queria.
E.S. -Então o convite para a revisão surgiu dessa forma inesperada.
S.A.- É, ela disse que queria uma segunda edição e eu comentei que tinhas uns errinhos,
tinha uns erros, inclusive tipográficos, graves. Como eu fui revisor durante muito tempo
até do O Estado, de S. Paulo, ela me pediu. Inclusive o Moreira Campos pediu uma vez
para eu fazer a revisão de um dos livros dele, não me lembro mais qual foi, ele fez questão
de pagar e eu disse não, pelo amor de Deus, e ele disse “Se você não aceitar eu vou ficar
chateado”. Eu aceitei, ele era muito correto. Depois disso nós dois (eu e Natércia)
organizamos as Obras Completas de Moreira Campos. Eu pensando em fazer um giro fiz
um giral. Ela ia colocar o meu nome e o dela e eu disse que já ia assinar a introdução e ela
deixasse o dela. Eu fiz foi uma maldade porque a Natércia ficou sendo responsável por
tudo, inclusive as pessoas que não foram incluídas na bibliografia chiaram e reclamaram
dela. E eu não devia ter feito isso porque pelo menos a gente dividia, como eu fiz com a
Angela no Iracema: eu aceitei aparecer como coordenador com a Angela, eu trabalhei
muito no estabelecimento do texto, mas o resto não, como organizador não. Como eu
138
trabalhei ela queria que eu aparecesse, eu aceitei, mas tinha que ser na ordem alfabética,
porque o nome dela viria primeiro.
E.S.- Além desse livro o senhor corrigiu outros textos da Natércia?
S.A.- Que eu me lembre, ela publicou um livro de viagens e parece que ela pediu para eu
dar uma olhada.
E.S.- O Caminho das águas?
S.A.-É um de Portugal e Espanha?
E.S. -Não, esse é o Por Terras de Camões e Cervantes.
S.A.- Foi nesse que eu dei uma olhada.
E.S.- O Caminho das águas também é de viagens, mas ao norte do Brasil.
S.A.- Não estou bem lembrado desse livro. Esse eu não corrigi.
E.S.- Foi o último livro dela. As correções eram mais gramaticais ou eram sobre o
conteúdo do texto?
S.A.- Era correção de revisão de ortografia e de gramática, como eu lhe falei, os
anacolutos.
E.S.- Ela aceitou?
S.A.- Ela aceitava tudo.
E.S.- O senhor sabe dizer se ela pediu ao Moreira Campos para ler ou corrigir A Casa?
S.A.- O livro foi publicado antes ou depois de o Moreira morrer?
E.S.- Foi publicado em 98, depois da morte dele, mas ela começou a escrever bem antes.
S.A.- Tudo indica que o Moreira estava doente, porque ele poderia ter feito uma bela
revisão. Porque eu freqüentei a casa dele até quase os últimos dias e tive uma surpresa,
isso eu digo até com certo orgulho e admirado do fato. Quando ele morreu a D. Zezé me
chamava meu amigo. Eu perguntei como vai e ela disse “Sânzio você sabe que você foi o
único amigo dele que o visitou até o último mês de vida dele?” Eu fiquei pasmo, porque
ele sempre almoçava com os amigos e tinha amigo que não acabava mais e na hora da
doença mesmo sumiu todo mundo e eu nem sabia. Uma das últimas vezes que eu fui lá,
até falei isso no programa sobre ele na televisão, levei uma foto que tinha o Xisto Bivar e
uma do Nogueira; e o Xisto Bivar matou o Nogueira e este era primo da D. Zezé e
isso foi motivo para um conto “Velha História ou a Serpente” e eu identifiquei o fato no
conto e disse ao Cruz Filho, que era poeta, nasceu em 1884, eu tive a honra de tê-lo como
amigo e falecido 1974 e o Cruz disse ao Moreira. Aliás nós até ficamos amigos por isso e
ele disse Sânzio, como é que você identificou uma coisa acontecida no ano em que eu
139
nasci?” O crime do Xisto matando o Nogueira foi em 1914, no ano do nascimento do
Moreira, e eu disse que meus pais falavam muito nesse crime.
E.S.- O senhor sabe de mais alguém que tenha corrigido A Casa?
S.A.- Até agora eu só sabia dessa pessoa que corrigiu primeiro e eu.
E.S. O senhor já ouviu falar de um conto intitulado “O espelho” da Natércia?
S.A.- Não está em livro nenhum? Não conheço.
E.S.- Em entrevista com a Carolina Saboya ela comentou que esse conto seria o começo
d’A Casa. Por isso eu pergunto, já achei muitas pesquisas sobre espelhos e ainda segundo
a Carolina ela teria inserido esse espelho como um objeto da casa. O espelho veneziano
que foi dado ao bisneto.
S.A.- Esse conto nunca foi publicado?
E.S.- Não.
S.A.- Tem manuscritos dele?
E.S.- Já encontrei alguns.
S.A. O conto dela mais conhecido é aquele “A escada”, até foi premiado.
E.S. O senhor corrigiu o livro depois da primeira edição? Antes disso ela não mostrava
os manuscritos.
S.A.- Ela deu um exemplar para mim e a Fernanda e nós lemos, gostamos muito da
história. Eu comentei com a Natércia que era muito bom, pena que tivessem saído alguns
errinhos e ela comentou que queria fazer uma segunda edição e pediu para eu corrigir.
E.S.- Esse exemplar que o senhor tem é um da capa marrom? Porque tem no acervo três
exemplares com a capa branca e que ninguém conhece.
S.A.- É o da capa marrom desenhada pelo Jesuíno. Esse branco foi publicado?
E.S.- Acredito que não. Acho que eram as provas.
S.A.- Por isso não, eu tenho o livro Novos Ensaios da Literatura Cearense, publicado em
92, pelo Dr. Martins e a capa dele é verde e eu tenho um exemplar bordô. Porque era para
sair bordô, mas depois ele quis verde.
E.S.- Ela falou sobre projetos de outros livros?
S.A. Acho que o livro em que ela acreditava mais era A Casa, porque ela até enviou para o
Antonio Olinto um exemplar tentando uma segunda edição. Tentou também com o primo
Adriano Espínola e não conseguiu. Eu fiquei muito triste quando ela não conseguiu
publicar no Rio de Janeiro e essa história do vestibular. Foi uma frustração para ela,
morreu com essa mágoa. Eu descanso no dia que eu puder publicar essa segunda
edição, porque valia a pena publicar uma edição como ela queria com as epígrafes e tudo.
140
E.S.- Tem mais alguma coisa que o senhor queira acrescentar sobre ela?
S.A.- A Natércia era uma amiga tão extraordinária e maravilhosa que no discurso de posse
dela na Academia Cearense de Letras eu estava em Paris e depois quando ela me enviou o
discurso eu vi que ela encerrou com um poema meu; eu fiquei comovido, naturalmente
que desagradou a muito poeta oficial da terra. O maior contraste que achei no meu
conhecimento com a Natércia foi ter achado que ela era tão esnobe e ela era mesmo
desligada. Uma coisa extremamente triste que eu acho foi depois que ela estava doente e
eu dizia que estava rezando por ela e ela agradecia. Eu estava lá na Livro Técnico da Dom
Luis, com a Fernanda e eu vi duas pessoas chegando uma com um turbante e olhou para
mim e eu não reconheci; a outra passou perto de mim era uma pessoa muito amiga dela,
que eu agora esqueci o nome.
E.S.- A Neide?
S.A.- Acho que era. Quando elas duas entraram eu pensei que era a Natércia. O que ela
deve ter sentido olhando para mim e eu não falei com ela porque não reconheci, mas ela
nunca comentou e nem eu. Depois ela me contou, por telefone, que encontrou o Alberto
da Costa e Silva, que foi presidente da Academia Brasileira de Letras, que é filho do
grande poeta da Costa e Silva, do Piauí. Ela falou com ele e disse “O senhor não está me
reconhecendo?” ele respondeu “Bom, com esse pano na cabeça realmente” Porque um
turbante deixa uma pessoa muito diferente. Acho que foi a última vez que eu encontrei
com ela, porque ela estava doente. Foi horrível, mas nós tivemos a delicadeza de não
tocar no assunto. Eu fui à missa da Natércia e a D. Zezé chorava muito e eu cheguei perto
dela e ela não estava ouvindo e nem enxergando bem e a Carol disse: é o Sânzio. Ela me
abraçou chorando e disse “Ô Sânzio você não sabe, aliás sabe sim.” Ela perdeu o marido e
em pouco tempo a filha. Eu e a Natércia conversamos muito por telefone, mas poucas
vezes pessoalmente. Ela foi em casa, andava no fusca que era do Moreira, ela ficou
em baixo e desci e ficamos conversando ela até disse que viveu 20 anos com o marido e se
separou e eu também me separei depois de 20 anos de casado. A gente conversava sobre
Literatura e ela tinha muita admiração pelo pai. Ela fazia tudo pelo Moreira, até louvável
isso. Batizaram até o bosque Moreira Campos. Foi até numa reunião de tudo quanto era
contista do Ceará e o Pedro Salgueiro me convidou porque eu escrevi uns contos numa
revista, mas não pretendo nunca publicar em livro. Vieram até a Natércia e a D. Zezé e
depois teve a história do Bosque Moreira Campos e eu disse: isso é uma Universidade
Federal, não podemos batizar nada, eu sou um professor e fica chato para mim. Vamos
falar com o chefe do departamento que era o Carlos d’Alge e ele não estava. Falamos com
141
a Maria Elias e ela aceitou e teve até uma inauguração, isso eu digo para mostrar o amor
dela. Alguém do grupo disse que tinha sido idéia dela e as pessoas acharam que tinha sido
do grupo. O departamento fez uma sala Moreira Campos, acho justo, mas o Milton Dias
nunca foi lembrado em nada. É isso.
E.S. -Muito obrigada.
142
143
Transcrição da Entrevista com Neide Lopes, funcionária da Secretaria da Cultura e
Desporto do Estado e amiga de Natércia Campos, entrevista realizada em agosto de
2008.
Elisabete Sampaio - Como era a sua amizade com Natércia? Como você a conheceu?
Neide Lopes- Era uma amizade muito bonita, de irmã. O interessante é que eu conhecia
seus pais o Prof: Moreira Campos e Dona Zezé e Cid, seu irmão. Tínhamos casa no Icaraí e
minhas meninas eram amigas das suas sobrinhas, filhas do Cid. Nossas casas eram bem
próximas e passávamos todas asrias lá, então eu conhecia a Natércia e Mariza pelo que a
D.Zezé falava. Eles a chamavam de Techinha e de Badida à Mariza que morava fora e
conheci bem depois da Natércia.
Eu trabalho na Secretaria de Cultura e estava coordenando a Assessoria de Planejamento e
Coordenação - APC da Secult, no governo Ciro Gomes, quando ela foi convidada a prestar
assessoramento ao governo e a lotaram na APC. Foi cil reconhecer nela o que D. Zezé
falava e daí começamos o companheirismo e a amizade que foi construída dia a dia, no
trabalho que passamos juntas a realizar. Ela veio para acrescentar à nossa equipe na
Secretaria da Cultura. Ela tinha um jeito muito espontâneo, era sempre muito atenciosa,
educada e fina. Uma memória fantástica! Nessa época nós estávamos terminando de
preparar a publicação de uma pesquisa, iniciada na gestão anterior da D. Violeta, o
levantamento de todo os bens culturais do Estado do Ceará, dos artistas e grupos e ela nos
deu uma contribuição fantástica nessa finalização principalmente, na confecção dos textos.
Ela era a nossa escrivã da história. Nosso relacionamento começou aí.
Era interessante porque ela tinha muito conhecimento sobre Literatura, mas na parte
burocrática do serviço público, tinha algumas dificuldades e nós fomos trocando
informações, saberes, quando percebemos era uma amizade muito sólida, muito bonita.
A Natércia importava-se muito com as pessoas e estava sempre disponível para ajudar. Eu
cresci muito com esse relacionamento e todas as pessoas que trabalhavam na APC, eram
unânimes em dizer: Nós todos crescemos com a amizade da Natércia, a Assessoria de
Planejamento melhorou muito com a chegada dela. Ela era uma pessoa muito iluminada,
muito inteligente, prestativa e fez muita falta para a cultura do Ceará e principalmente para
nós.
E.S.- Durante o tempo em que vocês trabalharam juntas ela comentava que estava
escrevendo um livro?
144
N.L.- Sim. Natércia chegou premiada na Secretaria de Cultura, pelo Bamerindus com o
conto “A escada”. Foi o seu filho José Thomé que a inscreveu nesse concurso e pouco
tempo depois desse prêmio, como dizia ela, “encantou-se” (faleceu em um acidente com 27
anos.). Depois o Prêmio Nestlé em 1988.
A noite das fogueiras, foi um livro que ela escreveu no tempo em que estava com a
gente. Se eu não me engano, começou como uma historinha que ela criou para a Carolina
ainda pequena, naqueles momentos de acalantos. Ela escreveu a historinha original e depois
foi ampliando, com pesquisas sobre as lendas e mitos dos países, quer dizer, era dessa
forma que ela escrevia: fazia a estrutura, aquele início e ia acrescendo informações,
complementando e era tudo a mão, gostava de escrever com lápis, porque ela apagava,
riscava, recortava, juntava, era uma construção.E eram sempre recheados de informações e
conteúdos que resultavam das pesquisas e do seu conhecimento universal. Eram didáticos
sem ser chatos porque ela sempre teve um modo muito leve e interessante de narrar. Você
então que teve acesso aos manuscritos dela deve ter visto a forma de escrever.e de colocar
os adendos. Era uma pessoa muito disciplinada que não esquecia um compromisso, uma
reunião, fosse social ou de trabalho. Tinha uma agenda sui generis. Ela anotava, de lápis, os
compromissos em um pequeno cartão e logo que realizava apagava, para reutilizá-lo,
colocando novos compromissos e datas... Cada dia ela programava sua agenda e anotava
tudo nesse papel. Às vezes colocava junto ao cartão pequenos lembretes ou convites que
recebia e, guardava todos juntos dentro de um saco de plástico em sua bolsa. Era uma
agenda muito prática e fácil de consultar. Tinha uma memória como eu nunca vi. Os livros
que leu eram todos guardados em sua memória. Qualquer assunto que você falasse ela
sempre sabia além e sempre ilustrava com exemplos ou com informações sobre os autores,
etc. Como ela gostava de dizer: “tinha sido criada no meio dos livros”. Comentou certa vez
que desde pequena era louca por leitura e gostava quando tinha visita em casa que ela
ficava mais livre e pegava um livro e ia ler em baixo da mesa. Lembrava de todos os livros
que leu na adolescência e gravava tudo o que lia. No tempo em que trabalhávamos juntas,
só voltávamos à tarde para casa, então o almoço, sempre fazíamos por perto da Secretaria e,
nesses intervalos, tínhamos nossas horas de lazer e conversávamos muito. Falávamos sobre
os projetos, a vida, fazíamos confidências, trocávamos conselhos. E fazíamos muitas coisas
juntas. A noite das fogueiras que ela terminou de organizar e juntar tudo que ela tinha
anotado para levar para publicar na gráfica do Jornal O Povo, é um exemplo. Eu
acompanhei tudo, toda vez que ela ia deixar algo ou ver uma prova da capa ou de texto. Ela
tinha o fusca verde que foi do professor. Às vezes íamos em seu fusca com ela dirigindo
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outras era no meu carro e no final você não encontrava uma sem a outra. Lançamento de
livro íamos juntas, uma era companhia para a outra. Acho que juntou a fome com a vontade
e comer. Eu nasci no interior e não tenho o conhecimento, o hábito de leitura ou história
literária. Na nossa amizade uma enriquecia o conhecimento da outra, embora eu creia que
fui mais aquinhoada do que ela. Eu mais com a prática da vida e do trabalho, do serviço
público e ela com tudo, porque tinha uma grande bagagem. Escreveu A Casa sem nunca ter
ido ao Sertão. Quanto à pergunta que vo me fez sobre um desenho que encontrou no
Arquivo e no qual ela escreveu “desenho da Neide”, não lembro mais a que propósito fiz tal
desenho, mas creio que era sobre os armadores, sua colocação, a altura e eu desenhei para
dizer como eram nas casas do interior, a parede grossa, os armadores, os alpendres. Mesmo
tendo pesquisado em Câmara Cascudo ela gostava de interrogar, comparar, até pra ver se
havia diferença na forma de fazer de cada localidade. Ela tinha um conhecimento muito
grande dos mitos, das lendas, da história dos Santos, do modo de viver do povo sertanejo.
Amava o Câmara Cascudo e leu toda a sua obra, sabia tudo de Sertão. Eu, realmente
conhecia, mas sem essa preocupação de prestar atenção no como fazer” e, então quando
ela me interrogava sobre algo a minha informação era baseada mais na memória da minha
infância no interior pois, adolescente sai para vir estudar, embora voltasse nas férias.
Foram quase quinze anos de convivência diária. Eu participei de todas as suas vitórias e de
todos os seus projetos e ações, de toda a sua luta vencida da doença, de tudo.
A história d’A Casa, não sei se Carolina lhe falou que ela desejava inscrever no Prêmio
Osmundo Pontes. Estávamos conversando certo dia, era fevereiro e ela disse “Se eu tivesse
terminado o meu romance A Casa, eu o inscreveria no “prêmio” deste ano que é na
categoria Romance”. Perguntei quando se encerravam as inscrições e o que faltava para
terminar. Faltava dar ao texto a forma e era em junho. - Você tem três meses, tempo!.
Neidinha, você está ficando doida, não está vendo que não tempo. A história não já
está pronta? Não sabe tudo o que você quer contar? É escrever. Escreva que eu digito,
achando eu que dava conta, debulhando milho no computador. Você me ajuda? –Ajudo.
Vamos ganhar esse prêmio? Vamos. No dia seguinte ela me trouxe seis páginas
manuscritas e eu comecei a digitar. Só dei conta até a página 41 quando termina a descrição
da construção da casa. Não lembro agora se era 41 do computador ou do manuscrito, sei
que gravei esse número. Então ela me trouxe uma quantidade enorme de páginas e, com o
trabalho da Secretaria, no final do dia ela me cobrou. Eu disse:não estou dando conta. Foi
quando entrou a Lilá na história, ela trabalhava conosco exatamente na digitação. A
Natércia disse que tinha que conseguir alguém e a Lilá se prontificou também, então ela ia,
146
nos finais de semana para a casa da Natércia e levava para casa e foi assim que foi
construída A Casa. No prazo certo foi inscrita para concorrer ao Prêmio Osmundo Pontes.
E.S.- Então ela começou a escrever o livro no mesmo ano da publicação. Em três meses.
N.L.- Sim, disso fomos testemunhas. Foram quase quatro meses, era final de fevereiro.
E.S.- A senhora já ouviu falar que o começo d’A Casa seria um conto intitulado “O
espelho”?
N.L.- Não, eu tive conhecimento do texto do espelho na casa. É possível que ela o tenha
feito como conto e depois tido a percepção de que o assunto daria mais do que um conto.
Os contos dela não eram curtos e pode realmente ser verdade, ela sentir que aquela história
caberia dentro de uma coisa maior. Se ela comentou, eu não lembro. sobre “O Rasto”
que também está dentro da casa, sim. É um caso que no romance foi contado pelo
“passador de gado”, esse eu sei que era um conto pronto. A amizade com o Oswaldo
Lamartine de Faria, escritor e etnógrafo do Rio Grande do Norte, estudioso dos costumes
do sertão, discípulo de Câmara Cascudo, deu-se por causa desse conto. Ela o teria mandado
para o Oswaldo solicitando a sua opinião. Ela queria confirmação se determinada
informação que ela colocara no conto estava correta. A ficção dela era baseada na verdade.
O Oswaldo respondeu, elogiando o seu conhecimento. Você percebe o universo que é
aquela história do “Rasto”?
E.S.- Estou lembrando exatamente desse manuscrito que está a lápis e eu pensei muito,
porque ele não foi publicado como um conto e está no livro.
N.L.- Não, ele não foi publicado e eu acho que ela estaria preparando outro livro de contos,
não foi só “O Rasto”, houve mais.
E.S.- Encontrei uma anotação “para o final do meu pele de asno”.
N.L.- Mas às vezes ela escrevia uma coisa para lembrar-se de outra, por exemplo, ela leu
alguma coisa da história infantil e queria terminar o romance dentro da mesma forma
literária. Não lembro que ela tenha escrito alguma coisa sobre isso mas podia muito bem ter
pensado em escrever e fez a anotação para desenvolver depois.
E.S.- Encontrei outros títulos “O Rasto” e “O espelho” e “O empalhado”. Poderiam ser
contos?
N.L.- Sim, ela os havia escrito como contos dentro da mesma temática da Casa. Não posso
afirmar porque nunca falamos sobre o assunto, no entanto, acho que ela temia não chegar a
escrever o romance e publicaria aquele material como um livro de contos. Essa
preocupação de não chegar a realizar a sua vontade de escrever o romance, ela tinha! Então,
quando tomou a decisão do romance ela foi trazendo para A Casa as várias histórias,
147
porque da forma como foi escrita tudo se encaixou. Uma seqüência de vivências e histórias
que aconteceram num determinado espaço e tempo, ou que de alguma maneira alguém
pudesse ter trazido para os seus domínios, da forma como foram contadas, foi magistral.
Como quando ela resolveu que a casa seria a narradora e contaria tudo, as mazelas e as
coisas boas, tudo tinha um objetivo, um sentido. Ela tinha todos os apontamentos separados
por temas ou épocas, em envelopes ou sacos plásticos e todos em um envelope maior, uma
vez que ela não se incomodava em recortar, colar, acrescentar e juntar e, guardar tudo que
dizia respeito àquele projeto, por exemplo, o que se referia à Casa era em pacote.
Quando queria rever qualquer coisa, sabia exatamente onde encontrar porque eram
separados e guardados por assunto. Quando anotava em sua “agenda: levar o artigo tal para
fulano de tal” e ela tinha tudo guardado, os recortes e os artigos, sabia exatamente onde
estava e prontamente atendia a quem a procurasse.
Natércia manteve por muito tempo uma correspondência com o poeta e crítico literário
Jorge Medauar. Começou antes de ser premiada pela Nestlé. Ela queria ter a opinião de um
crítico literário que não conhecesse a sua filiação e, sem se identificar, usando pseudônimo,
enviou uma carta com um conto pedindo a opinião dele. . Medauar respondeu elogiando o
conto e disse: que aqui no Ceará morava o Professor Moreira Campos, o mestre do conto, e
ela deveria procurá-lo para mostrar seus trabalhos que, esse sim, teria respaldo suficiente
para julgar a obra dela. Na carta seguinte ela escreveu: “Dizia meu pai, o professor Moreira
Campos”... O Medauar responde e diz que a sua escrita é como “nodoa de caju”... e assim
iniciou-se mais de quinze anos de correspondência.
Ela era essa pessoa simples, mas muito consciente daquilo que estava fazendo e por ser
filha do Moreira Campos queria ser reconhecida por ela mesma pelo seu trabalho. Então
teve esse cuidado sempre de verificar se aquela ficção estava em cima de bases reais como
também se tinha algum valor literário. Os elogios nessas cartas eu cheguei a ver, a Carolina
as tem. O maior desejo da Natércia era publicá-las. Mas existe um empecilho. Ele já faleceu
e tem a família que precisaria autorizar porque são cartas dela e dele. Ela estava preparando
essa publicação quando a doença a pegou..., as cartas foram digitadas com um tipo de letra
diferente para as cartas dele e as dela, acho que o título seria Cartas de Fim de Século.
Certa vez me levou até a sua casa e disse: “olha já está tudo revisado e eu quero lhe mostrar
aonde eu as guardo porque se acontecer alguma coisa comigo nessa viagem eu quero que
você e a Carolina tomem conta dessas cartas”.
E.S.- Voltando um pouco para a questão dA Casa, a senhora acha que ela não chegou a
mostrar ao Moreira nada do livro, já que ela escreveu então no mesmo ano da premiação?
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N.L.- O romance escrito como foi publicado, pronto, não. Ela o dedicou a ele como está na
página 14, na “Madrugada de 23 de agosto de 1998”. Eles conversavam muito, tinham
muita afinidade. Ela lhe falou da idéia e mostrou o esboço e ouviu dele: “Você tem fôlego
para escrever um romance, eu não.” Ele a incentivava muito, porque sabia da sua facilidade
de escrever e reconhecia o seu estilo diverso do dele.
E.S.- Então ela teria começado a escrever esse romance antes de 94, que o Moreira
faleceu nesse ano.
N.L.- Com certeza, essa idéia e a pesquisa são bem antigas. Você pode olhar nos
manuscritos que devem ter a data.
E.S.- Encontrei apenas um manuscrito datado.
N.L.- Isso até me causa admiração porque a Natércia era muito cuidadosa em datar e anotar
os textos. Você está vendo aquele ninho no canto da prateleira, é do Pantanal. Ela
colecionava os ninhos que caíam das árvores na Secretaria. Seu Dedé, juntava para ela.
Tinha uma prateleira no seu gabinete de ninhos abandonados por seus donos. Eu fazia
um passeio de barco no Pantanal e recolhi para lhe dar esse ninho caído. Ela fotografou e
escreveu no verso: “O ninho da Jupiara é suspenso e fechado para evitar que os ovos sejam
bebidos ou os filhos devorados. As margens do rio Pichaim, afluente do Cuiabá, que
deságua no Paraguai, principal rio do sistema Pantaneiro. Mato Grosso - Pantanal.
16/10/2000. Neide trouxe um ninho de presente.”
N.L.- Ela fazia isso, documentava tudo. Ela tinha visão de futuro, de preservar. Quando o
Professor se foi ela preocupou-se com o acervo. A D.Zezé era muito cuidadosa à sua
maneira, não tinha a nítida noção do valor literário daquela obra dele, como tinha a
Natércia. D. Zezé fazia os álbuns, tinha muito amor por tudo mas era um tratamento
afetivo, mais doméstico e a Natércia tinha uma visão de mundo, do que valia.
E.S.- Quanto á Eugênia...
N.L.- Eugênia é uma moça muito bonita e talentosa, funcionária da Secult. Foi quem
coordenou a pesquisa do mapeamento cultural que resultou na publicação do Censo
Cultural o Ceará dos Anos 90 e Natércia estava sempre ao lado dela cooperando e
enriquecendo o trabalho. Foi um relacionamento profissional e afetivo muito saudável.
Creio que Natércia espelhou-se nela para a construção da personagem, a segunda Eugênia
do livro e, lhe deu seu nome. Também penso que essa Eugênia, numa projeção, seria ela
Natércia se tivesse continuado os estudos e terminando o curso em lugar de casar tão cedo.
E.S.- Ela mostrava o que estava escrevendo?
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N.L.- Mostrava. Embora os textos fossem sempre muito bem estruturados ela era muito
aberta e deu sempre liberdade, até de opinar. Quando o que se dizia procedia, ela acatava.
“Sabe que eu vou dar uma olhada, ver direito.” Quando não, tinha a delicadeza de justificar
e aí ganhávamos uma verdadeira aula.
E.S.- A senhora lembra mais ou menos em que ano ela passou a mostrar esses manuscritos?
N.L.- D’A Casa conhecemos quando ela começou a preparar o livro. Ela o fazia em casa
mas algumas vezes trouxe os próprios manuscritos intercalados com trechos recortados, ou
na íntegra, da forma como haviam sido escritos, para a Lilá digitar. Anteriormente,
tivemos conhecimento do material que ela tinha, para o livro A Noite das Fogueiras e
depois nos mostrou um sobre a viagem a Portugal, esse também comentou e narrou
momentos importantes sobre essa viagem; Já o Caminho das Águas eu também fiz a
viagem com ela e Carolina, passamos o reveillon do milênio às margens do rio Solimões, o
grande Amazonas. Quando retornamos pouco tempo depois ela já estava com o texto
pronto. Ela tinha uma facilidade enorme para escrever, para contar suas histórias.
Brincávamos às vezes: Parece que baixou o Santo”. E, ela resolveu escrever do mesmo
jeito que escreveu o da viagem a Portugal e Espanha. Durante a viagem, no navio ou em
terra, ela fazia as anotações. Quando chegou, acho que, o Caminho das Águas foi
praticamente de uma sentada, modo de dizer, mas logo, logo ficou pronto e ela levou para
publicação. A Natércia era incansável, quando tinha algo para fazer não sossegava
enquanto não terminasse. Não deixava nada para a última hora Os presentes de aniversário,
comprava todos com antecedência e, não esquecia aniversário de ninguém, data nenhuma,
nada. Chegava o mês do aniversário de uma filha ela já começava a adquirir, se via algo
que podia agradar àquela filha, comprava e colocava ali junto com os outros, não dava
um presente para uma filha. Para as duas que moram em Brasília, ela me avisava que
estava juntando as coisas e como tenho facilidade para organizar pacotes, ela dizia assim:
“Quando você vai lá em casa arrumar a caixa da Clarissa? Ou da Emmanuela?” Era muito
atenta, no ar 24 horas! Tinha muito cuidado com os Pais, com os irmãos e filhos. Era muito
organizada, decidida e muito cumpridora das obrigações. Eu tive o privilégio de participar
de tudo na vida dela, momentos sociais e pessoais.
E.S.- A mesa em que ela escrevia está aqui?
N.L.- Está comigo mas não aqui que não coube no meu apartamento. Essa mesa era uma
espécie de escrivaninha que ela mandou fazer para organizar seu material de trabalho e era
onde ela escrevia. Foi projetada para um espaço grande que pegava toda uma parede do seu
quarto, tinha muitas gavetas e para combinar com os móveis que existiam que eram no
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estilo antigo. Era um móvel muito comprido, enorme e quando ela faleceu os filhos dela me
presentearam, mas aqui não tinha um espaço adequado para colocar e eu levei para uma
casa que nós temos no interior.
Agora, esse móvel aqui (na minha sala) é da Carolina, como não coube no seu apartamento,
está comigo. Nele, guardo também, as minhas lembranças dela. Os textos da coleção 3x4
que eu coloquei nesses quadros, aqui os livros, todos com dedicatórias: A noite das
fogueiras, Por Terras de Camões e Cervantes, Iluminuras, O Caminho das Águas, a
segunda edição de Iluminuras com a capa da Arlene Holanda e A Casa. Recortes de Jornal
e fotografias, também guardo aqui.
E.S.- A senhora já viu um exemplar d’A Casa que tem a capa branca?
N.L.- Já! Foi o que Jesuíno preparou, antes da publicação definitiva do livro, porque ela
precisava inscrevê-lo no concurso? Então, o livro estava entregue a ele e estava impresso
mas faltava a última correção e o trabalho de arte da capa. A pedido dela ele fez esses três
exemplares, com capa branca, que são muito importantes pois foram anteriores ao livro e
foi o material para a inscrição no Prêmio Osmundo Pontes. Ganhou o prêmio e tinha agora
a publicação definitiva com data para a solenidade.
Ela entregou ao Jesuíno a arte da capa e sugeriu que ele lesse o texto que descrevia a casa,
como ela idealizava que fosse. Ele foi muito receptivo e tentou realizar como ela tinha
pedido. Já tinham conversado, diante de alguns esboços que não estavam como ela pensava
que devia ser. No dia que fomos ver esta capa, o Jesuíno a chamou muito empolgado e
feliz achando que tinha conseguido, ela olhou e falou: “vamos publicar desse jeito” e
aprovou. Quando entrou no carro comentou: ”Ele tentou, mas...não era desse jeito, a minha
casa não era assim”. Ela queria que o desenho fosse maior, mostrando mais a casa num
remanso da serra, do jeito que ela descreveu. Eu ponderei porque então ela não tinha
falado? O Jesuíno era excelente profissional, capaz e se ela mostrasse, ele faria. “Não,
Neidinha vai retardar mais ainda a publicação, está bom. Você lembra quando eu dizia
assim: leia o texto que você vai ter a visão do que vai desenhar”. Por conta da necessidade
de terminar no prazo ele deve ter aproveitado um trabalho dele que existia. Ela queria
que ele tivesse criado, a partir do que ela descrevia, assim seria a casa que ela desejava,
desenhada por ele na capa do seu livro.
Acho que terminamos.
E.S.- Sim, obrigada.
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Transcrição da Entrevista com Eugênia Queiroz, funcionária da Secretaria da Cultura e
Desporto do Estado e amiga de Natércia Campos, realizada em agosto de 2008.
Elisabete Sampaio- Como era sua amizade com Natércia? Como a conheceu?
Eugênia Queiroz- Conheci a Natércia quando ela veio trabalhar na Secretaria e Cultura em
1991. Trabalhávamos juntas na correção de um livro, para o qual tínhamos feito uma longa
pesquisa de campo, O Ceará dos Anos 90 Censo Cultural. Na ocasião estávamos fazendo a
correção dos textos. Como essas pesquisas foram feitas no interior do estado eu gostava de
comentar sobre os lugares onde tinha ido e as coisas ocorridas principalmente no Sertão. A
Natércia nasceu na praia de Iracema, nunca morou no sertão, porém, tinha uma verdadeira
fascinação e falava no Sertão como se tivesse vivido. Durante o trabalho eu falava nas
histórias ouvidas pelos lugares onde viajei durante as pesquisas, fatos da minha vida, pois
vivi muito tempo no interior e contava coisas da fazenda de minha avó. Então começamos a
ter uma amizade muito grande, apesar da diferença de idade. Nessa época ela já era avó.
Ela era uma pessoa muito sensível, engraçada, brincalhona, de uma inteligência fina, um
humor refinado, era uma pessoa maravilhosa. Tinha muita compaixão das pessoas que tinham
dificuldades e limitações, principalmente das pessoas doentes. No entanto ela não tinha a
menor compaixão com pessoas chatas, burras, grosseiras, mal-educadas. Não as tratava com
grosseria, mas as ignorava.
Quando eu a conheci ela já era escritora, premiada no concurso Nestlé de Contos, e tinha
feito vários contos. Era uma pessoa do meio literário, até mesmo por causa do pai dela.
Com relação ao livro A Casa, Neide deve ter falado mais de como ela escreveu porque nessa
época eu já não estava na Secretaria, realmente não participei desse momento. Sobre a
personagem ela me disse: “Minha filha eu gosto muito de você e acho lindo o seu nome. Vou
botar o nome da minha protagonista Eugênia.” Para mim foi uma grande homenagem e uma
grande honra fiquei profundamente emocionada. Até hoje.
E.S.- Quando ela falou sobre o nome da personagem comentou algo mais?
E.Q.- Não, só disse isso.
E.S.- Você lembra em que ano ela começou a falar sobre o livro que estava escrevendo?
E.Q.- Ela tinha feito a pesquisa e fez o livro praticamente em quatro meses, foi
extremamente rápido porque ela tinha que inscrever o livro no concurso de Literatura
Osmundo Pontes. Além disso, ela dizia que tinha muita vontade de escrever um romance pois
tinha escrito vários contos, A Noite das Fogueiras, que é um livro infanto-juvenil, mas
queria escrever um romance mais profundo.. Nessa época ela ainda não estava doente.
153
Lembro que ela lamentava muito o fato do pai não estar vivo porque queria demais saber a
opinião dele sobre o livro.
Ela pensava em publicar outro livro, não sei se você ouviu falar, que eram cartas escritas
durante mais de 20 anos entre ela e o escritor baiano Jorge Medauar; inclusive um grande
amigo dela fez uma edição dessas cartas para ela, como um presente, mas não foi publicado.
E.S.- Você lembra quem era?
E.Q.- João Soares Neto.
E.S.- Ele chegou a distribuir para a família?
E. Não, eu acredito que para ela. Até me mostrou em uma das vezes que a visitei quando já
estava doente. Ele era um profundo admirador dela. Sobre A Casa, eu acredito que ela tenha
colocado nos personagens muitas pessoas que passaram por sua vida. Ela sempre comentava
comigo sobre as pessoas interessantes com as quais conviveu e eu identifiquei muitas delas
(no livro), porém não conheci nenhuma delas. Quando conversava comigo falava de traços
bem específicos dessas pessoas, gente do tempo em que ela era casada ainda. Repito, não
posso dizer quem são porque não conhecia nenhuma, mas pelo que conversávamos, ela
escreveu muita coisa sobre o universo em que vivia, até sobre ela mesma. Para mim aquele
livro é uma espécie de inventário de sua vida.
E.S.- Sobre a vida dela?
E.Q.- Sim, sobre a vida dela.
Ela tentou publicar A Casa pela Companhia das Letras, mas não deu certo. Ela teve então que
terminar o livro rapidamente, pois como disse anteriormente, queria inscrevê-lo no Prêmio
Osmundo Pontes. Para agilizar levou uma moça que trabalhava conosco para digitar em sua
própria casa. A Natércia tinha uma outra idéia para o desenho da capa, porém adotou aquele
que conhecemos por conta da exiguidade do tempo e pelo fato de já estar pronto.
E.S.- Você chegou a ver um exemplar de capa branca?
E.Q.- Não, a Neide até me disse que este foi feito exclusivamente para a inscrição. Eles
fizeram tudo rápido, mas esse exemplar não foi o que lançaram oficialmente.
Sobre Natércia, posso falar mais sobre ela. Era uma pessoa única, as coisas que ela tinha em
casa não havia em lugar nenhum, eram coisas dela, não tinha igual. Muito mística, adorava
tudo que fosse mágico; é tanto que na Literatura dela você o mundo das lendas, da magia,
do fantástico. O quarto dela era cheio de bruxas as mais variadas. Bruxas voando, bruxas
velhas e novas, de todo jeito. Tinha uma fascinação muito grande por esse mundo e também
pela morte; falava muito na morte. Não como algo ruim. A morte estava sempre nos contos
dela e do pai. Ela via a morte como uma companheira que estava sempre ali espreitando.
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A Natércia era uma pessoa comum, alegre e sedutora. Seduzia qualquer um que ficasse perto
dela, gente de qualquer idade. Ela tinha esse poder incrível. Uma vez, estávamos num
restaurante e ela começou a conversar exatamente sobre isso: o mito. Alguém perguntou
alguma coisa e ela começou a falar, o restaurante era pequeno e quando vimos todos estavam
todos olhando-a falar, escutando o que dizia.
E.S.- Você lembra onde ficava esse restaurante?
E.Q.- Não. Ela gostava muito do Good Salads e do Ideal, acho que foi nesse último, mas já
faz muito tempo não lembro. Gostava muito do café que tinha no Dragão do Mar ( hoje é
outro). O L’Escale não gostava muito. Natércia tinha um gosto muito refinado, não
freqüentava qualquer lugar. O que gostava muito era de conversar, contar histórias. Adorava
quando ia visitá-la, pois ficava perguntando sobre a minha vida.
Em 1996 foi ao meu casamento, no sítio de minha avó, em Beberibe. Casei na Capela do sítio,
às cinco da tarde (Neide e Carolina também foram). Ela adorou e contou a história desse
casamento em uma das cartas que escreveu ao Medauar, mas não está nessa publicação feita
pelo João. A casa da minha avó era mais ou menos como essa Casa que ela publicou, e ela
comentava: “Você também tem uma casa como a minha.”
Ela tinha um jeito irônico e às vezes engraçado de encarar a vida. Por exemplo, gostava de
falar frases do gênero: “Mãe é aquela que passa nove meses aleijada e o resto da vida doida.”.
Estava sempre a favor das mulheres. Acho que pelo fato de ter casado muito nova, numa
época em que os homens eram mais dominadores e machistas. Era contra qualquer homem
que maltratasse a mulher. “Os filhos são das mulheres” ela costumava dizer. Todas as dores
são delas, o peso maior fica sempre para elas.
Alucinada pelo pai. Comentou que escreveu certa vez para o Jorge Medauar, com o
pseudônimo Ibérica, mostrando um conto que escreveu e pedindo a opinião dele. Nessa
ocasião ainda era casada com o Emanuel. A resposta que recebeu dizia que procurasse o
maior contista do Brasil, que estava aqui no Ceará, o Professor Moreira Campos. Foi então
que ela se identificou e a partir deles ficaram se correspondendo. As cartas eram lindas,
você as leu?
E.S.- Não, a Carolina está com elas.
E.Q.- Não li todas, ela só mostrou algumas, inclusive essa sobre o meu casamento.
Certa vez ela me disse que iria falar sobre Contos no Colégio Cearense. No dia anterior ela
me perguntou: Minha bichinha como é que eu vou falar para quinhentos alunos,
adolescentes, sobre o conto? Eles vão achar a coisa mais chata do mundo.”
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Quando retornou da palestra disse: “Minha filha quando eu entrei no auditório recebi aquelas
palmas tão exageradas que eram quase um protesto. Eu disse: vou falar a vocês sobre a
imagem, mas antes falarei sobre o mestre da imagem, Steven Spielberg.”. Então começou a
falar a linguagem deles: o Spielberg e a imagens que ele criou, daí passou para o conto, para a
obra de Moreira Campos, mitologia, lendas.
“Minha filha, ela falou, quando terminei aqueles meninos estavam me rodeando. Querendo
saber sobre o livro que eu tinha escrito, sobre tudo enfim que eu havia falado.”
Ela era mais ou menos assim. Sabia muito da solidão humana, das falhas Ela nunca apontou
falha de ninguém, não julgava. Costumava dizer: “Isso é tão humano.”
Natércia indicava os livros que eu devia ler, como se fosse minha mentora.. Quando eu
viajava para o interior, ou para Alemanha (porque meu marido é alemão) ela dizia: “Leia esse
livro aqui.” e mandava um bilhetinho “leia nas férias.” às vezes falava: Passe aqui e pegue
tal livro e leia.” Um amigo meu certa vez disse: “Você tem muita sorte em ter uma amiga
assim.”
O último que ela me indicou, nessa época estava doente, não consegui encontrar em lugar
nenhum e mandei copiar é Mulheres de Olhos Grandes, Angeles Masttreta, uma mexicana.
Ela falou: ”Minha filhinha leia esse livro porque você é uma mulher de olhos grandes.” São
vários contos que falam da vida cotidiana de várias mulheres e a visão delas em relação à vida
era mais ou menos a visão que a Natércia tinha das coisas. O que elas faziam Natércia dava
gargalhadas. Procurei esse livro em Brasília, no Rio de Janeiro e não achei, aqui em Fortaleza
também não tem.
E.S.- Aqui é o fim do mundo.
E.Q.- Ela dizia isso também: “Minha filhinha esse lugar aqui é o fim do mundo, é lugar de
calango. É tão quente que deveria fechar. Tem lugar no Sertão que não para morar gente,
só dá para morar calango.”
Algum tempo depois do lançamento do A Casa, Rachel de Queiroz escreveu em sua coluna,
na Revista Veja, recomendando. Natércia disse: “Minha filha no outro dia choveu de e-mail
do Brasil inteiro atrás de saber do livro.”
Por isso, acho, ela falava que aqui era o fim do mundo, pois o reconhecimento nacional viria
através de uma revista editada no sul do país
Era isso o que eu queria falar sobre ela.
E.S.- Obrigada.
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Transcrição da Entrevista com Carolina Campos, filha de Natércia Campos,
entrevista realizada em julho de 2008.
Elisabete Sampaio- Como era a Natércia mãe?
Carolina Campos- A Mamãe era muito presente. Eu me lembro que, quando a gente ia
fazer um festival de dança, se fossem três dias, quatro dias ela ia os quatro, muito
presente, muito prestativa, muito alto-astral. Também às vezes era zangada, na hora da
disciplina. Mas, enfim, era fantástica.
E.S.- Lia histórias para os filhos?
C.C.- Eu não me lembro da Mamãe lendo histórias para mim. Lembro muito dela
mandando eu ler, antes de dormir. A gente tinha muito horário em casa. A gente podia
assistir até o Jornal Nacional, eu sempre gostei de política. Eu ia para a cama e tinha que
ficar lendo, o que eu escolhesse, eu adorava. Enquanto durava a novela, eu podia ficar
lendo, Júlio Verne, Monteiro Lobato, o que escolhesse, dependendo da idade. A gente
começa com Monteiro depois passa para Júlio Verne. Quando acabava a novela, tinha que
apagar a luz e ir dormir porque a gente acordava bem cedinho para ir ao colégio.
Eu lembro que a Mamãe, quando eu acabava de ler um Monteiro Lobato, ela sabia
seqüência e dizia está aqui, você acabou esse pode ler esse.” Quando a gente é
pequena, o tempo passa mais devagar, então eu achava que teria Monteiro Lobato para ler
o resto da vida, porque era uma prateleira bem grande, mas um dia acabou. Eu tenho
saudade, acho que um dia vou me dar esse recreio de voltar para o Monteiro Lobato e ler,
adulta, porque eu acho que é tão divertido. Na minha infância, era aquela coleção da capa
dura vermelha, com as letras douradas. A História do Mundo para Crianças, que eu li,
uma antiga, era dela porque a nossa da capa vermelha estava faltando uma página e eu
disse “Mãe, como eu vou continuar se está faltando!” E ela disse: “espere que eu tenho
outro” e eu achei incrível como ela tinha dois livros, coisas de criança que fica
impressionada. Porque ela sabia que eu era cuidadosa e não riscava, ave maria, riscar livro
lá em casa era o fim.
O que eu me lembro dela lendo para mim, foi inesquecível, eu aprendi a gostar do
Saramago através dela, porque eu não entendia a prosódia do Saramago. Comecei a ler O
Memorial do Convento e achei difícil, eu devia ter uns quinze ou dezesseis anos e a
Mamãe disse: “É porque ele escreve como se pensa” e ela começou a ler. Eu tenho a
memória auditiva muito boa e se eu começar a ler a primeira, a segunda e a terceira página
d’O Memorial do Convento, eu escuto com a voz da Mamãe, porque ela leu para mim.
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Isso eu adolescente, ela me ajudou, porque eu tinha dificuldade no começo, depois eu li
vários livros dele.
E.S.- Gostava de quadrinhos?
Adorava, quando ela era pequena, o Vovô e a Vovó não tinham condição financeira muito
boa, então o que elas ganhavam de Natal eram gibis, na época chamavam de gibi. Ela
tinha a coleção inteira de gibis, adorava Os aristocratas, a família Buscapé, quando ela era
pequena, ela gostava.
Tipos de revista que ela gostava?
Revista? Eu nunca vi a Mamãe com revista de moda. Ela assinava, O continente, uma
revista de Literatura muito boa, ela adorava. Mas, isso recente, depois de escritora,
nessa última fase, porque eu estou falando de várias Mamães. Sou bem heraclitiana, o
Vovô também adorava isso de que um homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio.
E a Mamãe também dizia muito, citando Rui Barbosa: “Um homem é um livro com várias
edições.” Então, nessa última versão da Mamãe, na literatura, nesses últimos anos, ela
assinava essa revista. Fora O Continente, eu não me lembro da Mamãe com revistas de
moda, Nova, Capricho, nem as nossas ela pegava.
E.S.- Alguma de bordado?
C.C.- Bordado ela tinha muitas, gostava de ponto de cruz, essas coisas. Mas também foi
uma fase porque havia época que ela tinha que pesquisar muito o Cascudo e ficava lendo,
então não bordava. Bordava muito quando estava perto de chegar um bebê na família ou
no tempo que a Caterina morava fora e ela fez um pulôver para o Júnior, marido dela,
essas coisas de tricô. Quando o Thiago e a Natércia estavam perto de nascer fez sapatinho
de tricô e muita tapeçaria, isso eu me lembro, eu era pequena. É porque eu não estou te
dando uma faixa cronológica linear. Vamos organizar pelas casas, que a gente esta
falando d’ A Casa. Eu não me lembro da casa da Tibúrcio Cavalcante, onde eu nasci, era
lindíssima, um casarão, aqui na Aldeota. Ela fica na Tibúrcio Cavalcante com
Desembargador Leite Albuquerque. Hoje em dia é um prédio, era uma casa linda que
tinha ali. Depois, por problemas financeiros, a gente foi para a Pajuçara, que era nosso
sítio. Eu vou me lembrar da vida a partir de Pajuçara, porque tinha perdido a casa.
Nesse tempo de primeira infância, eu não me lembro da Mamãe contando história. Minhas
lembranças tinham muito a ver com fantasias de São João que a gente ia comprar ou
coisas de colégio, a Mamãe sempre muito presente ou ela com raiva porque eu era
horrível para comer, essas coisas. Preocupada com minha bóia para eu não morrer afogada
na piscina. Mas não tinha muita história que interesse literariamente.
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A minha primeira memória de parte artística é a tapeçaria que a tia Badida, que é pintora,
pintava e ela bordava ou quando era geométrica ela tirava dos mosaicos e fazia tapeçaria.
Ela fez muito, gigantescas, no tempo em que as casas eram imensas, dava para andar de
bicicleta dentro e as pessoas tinham seis filhos, dez. Ela até chegou a exportar para os
Estados Unidos e começou a negociar com a Ethel, mas não foi para frente. A mamãe
vendeu, fazia exposições. Era ela e a irmã dela porque a tia Badida tinha o traço, era
pintora e a Mamãe bordava e tinha até uma tapeceira que a ajudava, a Salete. Ela parecia
uma índia, bonita, cabelo bem comprido preto, liso, as maçãs salientes, lembro muito dela.
Eu aperreava e às vezes me davam uma linha, porque eu ficava pertinho. Essa é a imagem
que eu tenho muito marcada da Mamãe fazendo tapeçaria na minha primeira infância no
Sítio Botija.
A Mamãe fala muito da Praia de Iracema e do Benfica, mas, na verdade, não foi maior
parte de sua vida, como eu tinha lido no seu texto. Foi uma época muito marcante da vida
dela, porque a Praia de Iracema foi o começo de tudo, quando ela era pequena.
E.S.- A casa dos avós
A casa dos avós era quase vizinha, ela não morava com eles. Era assim: a casa do Vovô e
da Vovó, a três ou quatro casas para cá, e na esquina era a do avô e da avó dela que ela
adorava, às vezes dormia lá. Era na Rua dos Tabajaras que é a da Praia de Iracema. Nisso,
o Vovô já estava construindo, porque foi ele que construiu a casa do Benfica.
E.S.- Era Tabajara ou Potiguara?
C.C.- Não sei, sempre faço confusão.
E.S.- Acho que é Potiguara
C.C.- Mas eu sei qual é a casa, acho que ainda está em pé, graças a Deus! Bem bonitinha,
acho que era uma pousada, na esquina. Depois, ela foi para essa do Benfica, que era do
vovô e que agora é um estacionamento. Casou nessa casa, noivou, são daí as fotos dela de
noivado. A Mamãe casou menina, com dezessete anos. Logo em seguida, vamos supor
que ela casou em 29 e em 30 ela fez dezoito, acho que foi na véspera dos dezoito, se não
me falha a memória, mas eu tenho todos os documentos. Nisso, depois do casamento, ela
foi morar voltou um tempo para Praia de Iracema, você tem razão, sabe onde naqueles
primeiros prédios da cidade de três andares, perto do Ideal, atrás de onde era a Kibon.
E.S.- Na diagonal do Ideal?
C.C.- É um de três andares que hoje tem até o CaCastangno, era por ali. Depois eu não
sei mais, porque eu só vou aparecer no final de 74. A gente já estava na Tibúrcio
Cavalcante, antes ela morou ali perto da Balu, que a gente chamava de Vovó Angelita,
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nossa vizinha e depois fomos para a Tibúrcio. Quando eu completei três anos, fomos para
o sítio da Pajuçara e de para a Marcos Macedo, no coração da Aldeota, Marcos Macedo
com Professor Dias da Rocha, onde depois abriram um restaurante La Nuit, não sei.
Depois, fomos para o Papicu passamos um ano e voltamos para o Benfica, oito anos de
Benfica. Depois que o Vovô faleceu, a mamãe quis ficar mais perto da Vovó, o Benfica
era muito longe, porque a voestava no Dionísio Torres, e, então a Mamãe vai para o
Meireles. Ela ficou lá até o fim da vida, gostava muito. Era Nunes Valente 240,
apartamento 401. Depois que ela faleceu, foi vendido para a nossa vizinha.
E.S.- A Socorro?
C.C.- A Socorro é filha da Dona Ledinha.
No Sítio me marcou muito essa parte da tapeceira. No Papicu, ela continuava na tapeçaria.
Na Marcos Macedo, talvez tenha sido o primeiro passo dela escrevendo, porque ela
mandava muitas cartas para a minha irmã que morava fora, a Caterina. Era caudalosa a
produção de cartas e encomendas, porque esta morava nos Estados Unidos. No Papicu, eu
não me lembro dela bordando tanto, era mais coisas para os netos mesmo. Lá ela começou
a escrever, porque uma vez nós fomos passar um final de semana maravilhoso em
Tianguá, na Serra Grande, na casa do Chicão Neves. Fomos eu, a Mamãe, a minha irmã
Emmanuela, a minha avó por parte de pai, a Voca. Na descida, a gente estava na
caminhonete, a Emmanuela dormiu, porque ela fica enjoada com o sobe e desce e eu
nunca consegui dormir em nada que se mexe avião, carro, não consigo. Eu, muito
manhosa, a caçula, pedi para a Mamãe contar uma história e ela começou a contar a
história que é o cerne da A Noite das Fogueiras, que durante muito tempo teve como
primeiro título A Noite das Bruxas. Nesse tempo, o ainda era vivo, ela começou a
escrever aí. Eu até falei, “Mãe, você deveria publicar isso. Que história linda!”, que é o
começo da Noite das Fogueiras. Porque é o seguinte a Noite das Fogueiras é imenso
porque ele é enciclopédico, é cheio de pesquisa, mas se você for sugar a história ela
contou toda do Tianguá descendo a serra até Fortaleza, até chegarmos em casa, no Papicu.
Depois, ela foi para Barcelona, porque o Thiago nasceu, o primeiro neto dela, ela escreveu
lá no inverno, que tem um clima diferente, ela chegou, sentou e escreveu A Casa.
E.S.- A Casa?
C.C.- Não, “A Escada”. Eu brinco digo que ela começou com “A Escada” e terminou com
A Casa. “A Escada” foi o primeiro conto dela e uma das primeiras pessoas - olha como o
mundo é pequeno - a quem ela mostrou foi ao que é hoje meu namorado, o Pablo, que ele
mora em Barcelona. Ele ficou impressionado.
161
E.S. É o filho da Margarita?
C.C.- É o filho da Margarita.
“A Escada” é o meu preferido. Ela ficou muito amiga da Margarita, mas eu acho que ela
estava aqui no Brasil quando a Mamãe estava lá. Elas se encontraram aqui pela primeira
vez, vou até perguntar para ter certeza. A Margarita sabe muito da Mamãe, eram
amicíssimas.
Quando o faleceu, a gente tinha ido embora do Papicu e estava no Benfica que era a
casa que foi do vovô e depois da mamãe. Na verdade sempre foi do vovô ele cedeu para a
Mamãe morar - Juvenal Galeno 494 - que hoje, como já disse, é um estacionamento.
Quando o Zé veio a falecer em 87, há 21 anos, foi dia 4 de abril de 87, eu tinha doze anos.
O prêmio Sudameris veio no final de 87. Em agosto, a gente foi para São Paulo, foi uma
viagem boa. A gente foi para São Paulo, até Botucatu, onde recebeu o prêmio, era frio
gostoso, foi o meu primeiro contato com o frio, 11graus em São Paulo, achei que estava
no gelo. Ela fez um discurso lindo de agradecimento, não estava nem no protocolo, mas
ela quis discursar, foi ótimo. De Botucatu, passamos uma semana no Rio e fomos embora,
foi maravilhoso.
Ela continuou escrevendo. Depois teve outros prêmios, como o Prêmio Nestlé.
E.S.- Ela sempre ia receber os prêmios?
C.C.- Ela sempre ia receber, só teve uma vez que eu fui receber. Foi um prêmio aqui.
E.S.- O do Ideal?
C.C.- Não. O do Ideal ela foi. A todos ela foi, só teve um que não.
Eu tenho uma idéia muito plástica da mamãe, rodeada de arte. As tapeçarias da Mamãe
eram gigantescas, lindas. Ela ficava ali rodeada por aquele artesanato tão lindo e depois
quando começou a escrever, ela nunca se deu muito bem com o computador, o nosso
“copiar-e-colar”, “control v, control c”, ela fazia assim, você deve ter visto: pegava o
papel e, vamos supor, entre esse primeiro parágrafo e esse segundo que ela começou a
escrever - ela escrevia a mão - ela cortava e colava com durex onde queria que ficasse.
Tinha uns papéis com metros ou um metro e meio de papel pregado. Porque ela ia
juntando. Ela pesquisava e escrevia e depois dizia “eu tenho que colocar isso aqui” e
colava. Tem gente que escreve grande e vai cortando e ela, pelo contrário, ia enxertando
as pesquisas dela. Escrevia a história e enxertava os dados, porque quando escrevia,
mesmo a parte ficcional, era de roldão. Era fluida, fluente, mas quando ia encaixar as
pesquisas enxertava os pedaços com durex. Eu até falava, ave maria, Mamãe isso parece
um papiro que a gente vai desenrolando e fica um papel bem comprido.
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Eu tenho muito a imagem da mamãe cercada de arte, no caso da tapeçaria, um artesanato
muito apurado. E tem até uma parte de criação, porque a minha tia criava mesmo, era
pintora e criava. A Mamãe inventava certos pontos e por isso algumas tapeçarias dela são
uma preciosidade. Ela nunca patenteou, mas era impressionante como fazia bem e tem até
uma parte de arte de descoberta e de novas técnicas.
E.S.- Nos momentos vagos o que ela gostava de ler? O que fazia para descansar?
C.C.- Ela gostava de olhar o mar, da varanda. Gostava de ouvir música, no radinho de
pilhas, aonde ela ia, levava. Gostava de ler de tudo. Sempre lia, tinha livros na cabeceira.
E.S.- Como foi a morte de José Thomé para a família? Caso você não queria comentar
pode ficar a vontade.
C.C.- Muito triste, um horror. É triste, mas a vida é cheia disso. Eu tinha doze anos, como
disse. Foi uma estupidez, essas coisas brutais. Ele tinha 27 anos e saiu para passar um
final de semana e ele não morava com a gente, e sim com o Agostinho. Acho que a gente
precisa falar nele, porque para mim é a figura de tio, de amigo, pessoa doce da minha
infância, muito marcante. Ele foi namorado da minha avó paterna, essa do teatro, com
quem minha mãe se dava muito bem, era sogra dela, um amor, a Nadir. Eu a chamava de
Voca, não podia chamar de vovó porque ela não gostava. Eram duas antíteses de avó,
porque a vovó Zezé é aquela de conto, coque branco e que ensinava a fazer crochê e a
Voca usava as roupas de malha da Benetton e os olhos bem pintados. Ela se pintava bem
por causa do teatro e o cabelo pintado curto, fumando e indo ao teatro. Mas a Vovó Zezé
também rompeu muita coisa ela teve três filhos numa época em que não se falava em
controle de natalidade, trabalhava fora, numa época em que era até vergonhoso uma
mulher trabalhar fora. Como? uma mulher servidora pública? Ela também foi para frente,
mas o jeito das duas era diferente, mas se davam muito bem. O Vovô Maria era muito
amigo da Voca, eles conversavam muito, discutiam Guimarães Rosa. Lembro deles
debatendo na varanda desse sítio, onde a gente morou e os dois eram fumantes, mas o teor
da conversa eu não me lembro, era muito pequena.
O Zé. Eu conto, é verdade, mas parece que é mentira, a última frase que ele me disse foi
“Vou-me embora pra Pasárgada” Ele era muito brincalhão. E nessa história eu perguntei
“Zé para onde você vai? Ele respondeu batendo o portão “Vou-me embora pra
Pasárgada”. Foi a última frase do meu irmão. No caminho entre Beberibe e Cascavel tem
um rio que deveria ter uma placa avisando que é perigoso, é enganador, porque na frente
parece um remanso, um rio calmo, mas por baixo é cheio de redemoinho por causa da
barragem. Ele foi andar em cima da barragem, porque as meninas foram trocar de biquíni
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dentro do carro. Pararam o carro para elas se trocarem e o não ia ficar dentro do carro.
Ele começou a andar e resolveu andar em cima da barragem como se fosse uma ponte,
mas tinha lodo e ele escorregou. Ele nadava como um peixe e ninguém nunca esperou que
o se fosse afogado. Isso é até uma marca muito triste da família porque o foi
afogado, meu avô foi com enfisema e a mamãe começou a sufocar porque o dreno não
estava mais dando conta, ela estava cheia de água, sempre com problema de fôlego. Com
sufocamento, asfixia. O escorregou e bateu a cabeça, então morreu por afogamento. E
foi muito triste para a gente, porque foi ao meio-dia do dia 4 e a notícia chegou em
casa à noite alta. Eu me lembro dessa noite, eu estava assistindo o concurso para Miss
Brasil, então era bem tarde e Mamãe tinha isso, ela nunca dava notícia ruim à noite.
Disseram para a gente que estavam numa reunião de família, achei estranho porque
vieram até os irmãos do meu pai, com quem a gente não tinha contato. Ficaram no jardim
e a gente não podia passar porque estavam em reunião de família. A mamãe não ia contar
para a gente não perder a noite, era uma coisa muito dela. Ela esperava a gente acordar de
manhã cedo para dar uma notícia ruim. De manhã, ela disse que o Zé estava desaparecido,
porque não encontraram o corpo, se tivessem avisado na hora podiam ter começado no
mesmo dia as buscas, mas como avisaram à noite não tinha como o Corpo de
Bombeiros ir. De manhã bem cedo, começaram as buscas e encontraram o na curva de
um rio. E, por incrível que pareça, isso aconteceu depois que a Mamãe tinha escrito “O
rio”, que conta a morte de um rapaz que fica na curva do rio. Mamãe escreveu “O rio”
antes do se ir, encantar-se como ela dizia. A Mamãe era muito forte, não me lembro
dela chorando, puxando os cabelos, gritando, dando ataque, por tristeza não. Ela sabia que
menino às vezes tem uma vida mais danada, de viajar com os amigos. Esses carros, esse
trânsito, a gente sabe que pode acontecer, não é? Mas uma mãe nunca espera, nunca quer.
E eu me lembro de uma marca da não aceitação da Mamãe foi que o caixão foi fechado,
apesar de poder ser de caixão aberto, foi fechado, ninguém via o José morto. Ela estava
como se fosse em estado de choque, ela não chorou, decidiu tudo, o caixão. Ela disse “Eu
não escolhi o berço? Escolho o caixão.” Ela decidiu tudo. Lembro muito do barulho da
aliança na mão da mamãe no caixão, porque todo caixão é trabalhado, cheio de relevo e
ela ficou alisando como quem alisa um bebê ou um bercinho mesmo, passando a mão de
cima para baixo, como quem está alisando um rosto, consolando. Ela ficou ali em
olhando como quem está divagando e passando a mão. Uma coisa que ela fincou o é
que o caixão não se abria, vieram minha tia e minha prima de Recife, que gostavam muito
dele. A Ticiana (prima) pediu para ver o rosto do e a Mamãe não deixou, ela não
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queria que ninguém visse o Zé morto. Foi muito triste, chorei muito, lembro do Agostinho
me consolando, era uma pessoa que eu queria muito bem e que já se foi também.
Quando a Mamãe soube da doença dela, eu estava no consultório e comecei a chorar e ela
disse “Minha filha eu já vivi minha vida e seu irmão?”
A gente vai ficando mais pobre, as pessoas vão indo. Quando se juntavam para conversar
a Mãe, o Agostinho e a Voca nunca era uma coisa óbvia, tinha uma coisa inusitada, que
podia lhe surpreender, sempre valia à pena, não era algo clonado, que parece produção em
série. Outra visão, outra maneira de ser, não era essa vidinha de granja, tudo igual, ter que
trabalhar, fazer isso e aquilo. Se bem que a Mamãe dava muito incentivo para a gente
nessa parte profissional. Ela sempre dizia que queria que suas filhas só se casassem depois
de formadas, fossem donas do nariz, independentes, sempre bateu nessa tecla. Ela não
pôde terminar nem o colégio e sempre dizia que a foto mais bonita das filhas dela não era
de noiva, casava se quisesse, mas era a de formada, na formatura.
E.S.- Ele (Zé) incentivava Natércia a escrever?
Isso de o Zé incentivar a Mamãe a escrever, eu tenho na minha cabeça a Mamãe falando
que ela leu um conto para ele e ele disse “Mãe você deve publicar, está muito bonito,
muito bom.” Eu acho que eu me lembro disso sim. Agora, como uma coisa que ele
dissesse sempre... Faz tanto tempo, eu tinha doze anos eu acho que ela realmente disse
isso.
E.S.- Quais as sua lembranças dela escrevendo?
C.C.- Lembranças da Mamãe escrevendo, eu acho que já disse. Era bem fluente e ela fazia
muita pesquisa. Ela puxava de fatos para escrever. Fazia uma ciranda, enchia de livros ao
redor dela e puxava. Tinha que ter perto o Dicionário do Cascudo e várias referências.
Você vê como ela escreve e coloca epígrafes.
E.S.- Ela lia para você o que estava escrevendo?
C.C.- Ela lia o tempo todo, quando eu queria e quando eu não queria e ai de mim se eu
dissesse que não queria. Lia o que estava escrevendo e pedia para eu corrigir e pedia para
mil pessoas lerem, era uma confusão. Porque a gente começava a corrigir e vinha outro
com outra correção e ela escolhia a que ela achava a melhor e todo mundo corrigia e
depois ela achava que ia fazer do jeito dela mesmo, era uma confusão. Quem tinha moral
com ela era o Sânzio.
E.S.- Ela gostava de inventar histórias ou contava as dos livros?
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C.C.- As dos livros eram para nós lermos mesmo, teve essa que ela inventou, e leu para
mim a do Saramago. em casa tinha livros e era uma coisa que a gente sabia que tinha
que se servir.
E.S.- Como ela gostava de escrever? Com música, televisão, em silêncio? Tinha uma
caneta ou lápis da preferência?
C.C.- Sentada de um jeito que uma pessoa que tem aquela coluna privilegiada por
Deus, porque a Mamãe nunca soube o que era dor de cabeça nem dor nas costas. Ela
escrevia toda torta, pegava o banco do bar que era alto e botava o Aurélio, ela dizia que
era o pai dos burros, uma edição antiga que era do Vovô e ela adorava. Abria o dicionário
do Cascudo e colocava na mesinha e tinha também várias folhas que tinham sido
impressas e ela aproveitava as costas. E nesse corta e cola com durex. Ela não escrevia
numa mesa, escrevia numa bancada em baixo da janela e depois até mandou fazer uns
buracos por dentro da bancada e que eram do alicerce, da estrutura do prédio, então a
janela ficava aqui e ela escrevia com o rosto de lado para a bancada, porque não tinha
como colocar as pernas. Ela escrevia de lado ou com o papel no colo. Era nessa bancada e
dava para ver o mar, hoje em dia não mais. Depois, ela mandou fazer uma mesa
grande, dupla. Acho que está com a Neidinha.
O quarto dela, apesar de ser muito grande, tinha uma cama onde cabia todo mundo, depois
do almoço de domingo, ela achava isso animado, engraçado, mas ela fez isso depois que
se separou. Então, mesmo para colocar uma mesinha ficava apertado. Eu lembro que
coube a Emanuella, o meu cunhado e os dois meninos. Cabiam quatro ou cinco pessoas.
Ela adorava escrever com música, porque a música inspirava, puxava como se puxasse um
tema dela. Ela era louca pelo concerto de Aranjuez. Adorava uma fita cassete que eu
gravei Em algum lugar do passado, que tem a Rapsódia sobre o tema de Paganini, do
Rachimaninov. Clair de Lune e também a música The man I Love, eu até gravei na frente
de um cassete inteiro que era para ela não precisar voltar, ela tinha em todas as versões. O
último presente que eu dei para ela, no dia as es, foi o CD do Caetano, porque tinha
essa música. Para escrever, ouvia sempre sem letra, era música, não era canção, quando
era canção ela ouvia Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo. Ela gostava tanto com música
quanto às vezes em silêncio, mas tinha que ser silêncio total. Com televisão não. Ela
nunca foi de televisão porque dormia. Algumas vezes escutava o Jornal Nacional e na
novela já estava dormindo.
Ela tinha uma caneta pilot que adorava, uma branca que tem no fundo uma bolinha com a
cor da tinta, porosa. Ela tinha na bolsa sempre um papelzinho, não usava agenda, e um
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lápis com uma borracha na ponta. Era essa a preferência, mas ela usava tudo. Às vezes ela
queria fazer um coração escolhia a vermelha. Engraçado, apesar dela ter irmã pintora, ela,
para desenho, era uma negação. Os corações eram tortinhos. Escrevia em verso de
convite, qualquer papel que fosse um pouco rígido, que desse para apagar várias vezes.
Apagava os aniversários, as listinhas, os afazeres, quando ia cumprindo e reescrevia.
E.S.- Quanto às críticas sobre suas obras, como ela as recebia? Ficava ansiosa ou não
tinha importância?
C.C.- Bem. Ela nunca recebeu crítica ruim, não me lembro que alguém tenha falado mal
da obra dela, uma crítica ruim que tenha saído.
Ela não ficava ansiosa, porque sabia que havia feito uma obra boa. Era uma coisa que a
Mamãe tinha e eu fico muito feliz. Ela sabia que tinha feito um grande livro, A Casa, ela
possuía essa segurança da qualidade. Eu me lembro dela ficar sem jeito de mostrar ao pai.
Para o Vovô, ela mostrou depois de mostrar para Medauar, que foi aquela história
engraçadíssima da carta, eu não preciso te contar, não é?
E.S.- Não, eu sei qual é.
C.C.- Que ele falou - Por que você não procura o mestre do conto, Moreira Campos?
“- Porque eu sou filha dele.” Foi o começo da correspondência dela com o Medauar.
E.S. Ela convidada escritores, intelectuais para a sua casa ou ia à casa deles?
C.C.- Sempre tinha escritores, intelectuais que iam muito lá, o Boris Schnaiderman, a
Côca, a Mamãe gostava muito dela, a artista plástica; a Maria Inês Figueiredo. Quando ela
morava aqui elas viviam se visitando, eram irmãs, amicíssima, ela e a Margarita, mãe do
Pablo e elas tinham uma turma. A Margarita tem liderança e chamava os intelectuais e a
Mamãe ia. A Marga arregimentou dois grupos de poetas, que publicaram e intitularam
suas obras coletivas assim: Poesia Plural e 3x4 (a mamãe publicou em ambas). Depois, na
casa da Mamãe, havia as presenças também do Virgílio e do João Soares.
E.S.- A amizade e confiança no Sânzio foi herdada do Moreira?
C.C.- Essa foi uma herança maravilhosa do Vovô, eu também adoro o Sânzio e fui colega
do Lívio, filho dele, no Colégio Batista. Ele, o Sânzio, é fora de série, o grande revisor dos
textos da Mamãe. Ela depositava confiança absoluta, admiração intelectual pela
capacidade dele, pela sensibilidade. Porque, além dele ser excelente na técnica, é
amabilíssimo. Era amiga da Fernanda também, esposa dele, que depois ela conheceu. Ela
era fã dele.
E.S.- Até agora descobri quatro pessoas que corrigiram A Casa: Moreira, Oswaldo,
Regina e Sânzio, havia mais alguém?
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C.C.- Foi uma construção coletiva, não da parte ficcional e nem de pesquisa, apenas de
gramática, mas os textos da Mamãe passavam por muita gente. Aquele A Noite das
Fogueiras eu corrigi muitas vezes. Foi mandado para a Caterina e para o Vovô corrigirem.
Eu também brigava, porque eu dizia que ela precisava de vírgula e o Vovô dizia que ela
precisava de ponto. Ela dizia assim “Meu pai diz que eu careço de ponto, você diz que eu
preciso de vírgula”. Eu dizia: “Mãe, eu acho que você precisa de ponto, mas como você
gosta de frase longa, é da sua prosódia, vamos pelo menos negociar e colocar uma vírgula,
porque três linhas sem uma vírgula, tem dó. Isso está ambíguo.” Mas ela não gostava
muito não. Ela queria ir pela música e não pela cnica de uma menina de dezessete anos,
que estava estudando para o vestibular e tinha que fazer tudo certo. Na Literatura, uma
ambiguidade também é interessante.
O Vovô corrigindo A Casa? Eu não me lembro. Nos “alfarrábios” não tem a correção com
a letra dele?
E.S.- Ainda não encontrei, mas já vi com a letra do Oswaldo Lamartine.
E.S.- Quando Natércia começou a escrever A Casa, em que ano?
C.C.- A Casa é um projeto muito antigo. A Casa não dá para entender assim, porque antes
de escrever A Casa a mamãe queria escrever “O espelho”.
E.S.- Sim, eu já vi muitas pesquisas sobre espelho.
C.C.- “O espelho” é o embrião d’ A Casa, que depois era melhor ser a casa porque um
espelho fica preso numa parede e a casa vê tudo mesmo.
Sabe o diabo, o Asmodeu que ela fala. O Jadeilson se inspirou nisso quando ele foi montar
A Casa. A Casa é um pouco o demônio Asmodeu, pode ver mais, mas no começo era para
ser o espelho veneziano e depois ele volta para casa sendo o espelho veneziano. Eu acho
que tudo convergiu para que virasse A Casa, tudo é muito simbólico, a mamãe começou
com “A Escada” que é uma parte de casa. Depois eu acho que você nota que tudo está
dentro da casa, o jardim está dentro da casa. No começo a gente não sabe para quê que
veio, mas no fim das contas, o Saramago fala isso. E A Casa é muito ela, muitas vezes a
mãe vê o sofrimento do seu filho, mas não pode evitar.
E.S.- Eu já li ensaios que diziam que Eugênia era Natércia.
C.C.- Não é que seja. É a mesma coisa do Madame Bovary c’est moi, do Flaubert. A
Eugênia tem muito, mas o nome de Eugênia veio de uma colega dela do trabalho e ela era
muito forte e bonita, existe sim. Mas tem muita coisa da Mamãe: de casar menina, essa
alegria e beleza, ela era linda quando nova.
E.S.- A Regina também comentou que ela mostrou A Casa para o Moreira Campos.
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C.C.- A Casa para o Vovô? Não sabia disso. Porque ele morreu há 13 anos e eu não sei se
já tinha projeto d’ A Casa, talvez d’ “ O espelho”.
E.S.- Natércia comenta que mostrou para a D. Zezé.
C.C.- A Vovó se foi depois da Mamãe. Eu sei que “O espelho” era um conto longo e
quem disse para ela que achava que a escolha pelo conto era influência do Vovô, mas que
a vocação dela era mais extensa, para o romance, foi a Raquel de Queiroz. Elas eram
muito amigas, até a Rachel brincava dizendo que a Mamãe poderia ser filha dela. Ela
perdeu uma filha que era alguns meses ou anos mais velha que a Mamãe. Além disso,
tinha sido amiga do Vovô no tempo do colégio.
A Rachel incentivou demais a Mamãe, ela dizia “minha filha escreva como uma
condenada. Escreva de madrugada.” Era uma dificuldade para a mamãe fazer isso, porque
ela tinha muito sono, entre 21 e 21:30 h ela estava com as pálpebras pesadas, dormia na
novela das oito. Ela acabou o livro de madrugada mesmo, obedeceu. Sentou, começou a
escrever e saiu A Casa.
Às vezes na produção artística as coisas não são muito organizadas, por exemplo, “O
espelho” não vou mais escrever, vai virar A Casa, mas eu acho que nesse caso foi.
Sinceramente, nesse caso eu dou fé que foi.
E.S.-Você já viu um exemplar de A Casa que tem a capa branca?
C.C.- Acho que eram as prévias. A Mamãe deixava os editores doidos porque ela mudava
de idéia no meio.
E.S.- Ela ia lá corrigir?
C.C.- Mandavam para ela e ela mandava de volta
E.S.- Quem digitava o livro para ela? Como ela escolheu essa pessoa?
C.C.- Era uma menina bem boazinha, Lilá. A Mamãe pagava e ela ia digitar. Digitava
as cartas do Medauar. Ela tinha tanto ciúmes dessas cartas que não deixava Lilá levar para
casa. A Lilá almoçava, lanchava lá em casa e a Mamãe lia, ficava vendo ela digitar e
depois dizia o que era para corrigir, na hora. Era com a Mamãe a correção, mas ela não
tinha era jeito para digitar.
Ela escolheu porque trabalhava na Secult, foi através do trabalho.
E.S.- Encontrei no inventário prévio um livro intitulado Alvíssaras e uma peça de teatro,
você já ouviu falar deles?
C.C.- Alvíssaras? Um livro inteiro? Essa peça não era uma publicada na Poesia Plural, da
Cecília? Do Fernando?
E.S.- Eu acho que não porque eu já vi também uma poesia que ela publicou no jornal.
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C.C.- A Mamãe não escreveu poesia. Ela escrevia prosa poética, tem uma prosódia única,
um embalo, uma cadência que eleva à poesia.
E.S.- Ela tinha projetos para outros livros? Encontrei muitas pesquisas sobre dança e
minerais brasileiros.
C.C.- Minerais. Era porque ela teve um namorado José Edísio, que morava nos Estados
Unidos, e tinha uma mineradora. Então, ela, que se interessava por tudo, e até mesmo para
conversar com ele sobre os minerais. A Dança era por conta do Antônio Nóbrega de quem
ela gostava.
E.S.- Regina me falou que o livro Por Terras de Camões e Cervantes era inicialmente
uma carta para Jorge Medauar, ela comentou sobre isso alguma vez?
C.C.- Sem dúvida.
E.S.- A Casa era a princípio um conto ou sempre foi um romance?
C.C.- Com isso ela não se preocupa, mas queria mesmo escrever esse romance e foi
incentivado pela Rachel. Foi um esforço literário.
E.S.- Sobre o texto “Pele de Asno” e “Infância no Minho” você leu ou ouviu falar
alguma vez?
C.C.- “Infância no Minho” foi a do Vovô, deve ser falando nele, pois o pai dele era
português. “Pele de Asno” ela contava para a gente quando éramos pequenas.
E.S.- Quem recebeu Natércia na Academia Cearense de Letras?
C.C.- Não sei.
E.S. Quando Natércia começou a bordar, havia um motivo?
C.C.- Ela era bem pequena. Eu tenho uns panos de prato e outras coisas lindas que ela
bordou com seis anos de idade, a avó dela que ensinou. Não havia um motivo, todas as
moças bordavam e ela também fazia essas coisas.
E.S. Como era a relação dela com Nadir Saboya?
C.C.- Era de ótima amizade, admiração mútua. A Mamãe queria muito bem a ela e ela a
Mamãe, era xodó.
E.S.- Natércia retirou do Iluminuras uma dedicatória para o El, qual motivo?
C.C.- Porque ela se separou do meu pai, Emanuel Saboya. E ficava complicado manter
seu El, tão carinhoso e não foi uma separação fácil, não existe separação fácil. Avalie 33
anos de casada, ela casou menina.
E.S.- Obrigada pela entrevista.
C.C.- Qualquer coisa estou aqui para ajudar.
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ANEXO B – Termo de Cessão
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ANEXO C- 3x4
Agora, chegou o vento sacudindo a acácia e
uma chuva de flores amarelinhas voou e pousou na grama.
“Chuva de ouro de Zeus sobre Danae”.
Lembrou-me de campos verdes pintados de
Pequenas giestas amarelas onde se ouvia
vindo de longe os sons dos pífanos dos
pastores. Pois. Deu-me agora vontade de
tomar caldo e vinho verde ... com você.
(Natércia Campos)
E volto no tempo.
Lembro-me que alguém, cedinho, lia em
voz alta o Lunário Perpétuo e eu
espreguiçava-me, friorenta, ouvindo na
penumbra aquela voz rouca, que me dizia sobre os Santos do dia, sobre a neve ou
verão, de sol-posto e de geadas, das estrelas
em fuga, da peregrinação, das messes, de se fazer
geléias e serões, dos lutos e penitências da
Quaresma, das festas de fogueiras, cepo
do Natal posto ao lume, das adivinhas, das citações em latim: “Astra movent
hominis, sed deus Astra movet”. E sobretudo me
ensinava a viver. Tudo tão longe . esbatido.
Névoa. Perdura em mim a voz.
(Natércia Campos)
Que este imaginário tenha de vocês a
bênção e seja como a zelação (as estrelas
cadentes), que, ao correr nos céus da minha
terra, sertão-mar, nos causa por instante
supresa e mistério, embroa tudo longo se
aquiete, perdurando, no entanto, em que a
vê, seu rastro de magia ouro e luz.
180
ANEXO D -Poema- pôster de Natércia Campos
Quando menina escutei a história
Mais difundida no mundo inteiro,
Que chegou ao nosso sertão, a do
“Bicho Manjaléu”, cuja alma era guardada
Fora do seu corpo. Tive medo de que
Também minha vida, ou melhor, minha
“chama” não me pertencesse. Hoje não
Temo que isso assim seja. Acho até apaziguador
Pensar que minha alma está talvez
Guardada numa ave como a do Mago
Punchkin da lenda hindu, ou em uma flor
De cedro ou de acácia como a de Batau, do
Conto egípcio, como a de Meliágro,
Príncipe eólio que teve ao nascer a vida ligada a uma acha que
ardia numa lareira.
Em um lugar externo mágico, recôndito,
Secreto, imagino que ali estou mais segura
Do que dentro de mim mesma... que sabe
Num peixe, num delfim, já que nasci numa
Praia, ou em uma andorinha-do-mar, numa
Fonte, numa árvore...O importante é não
Deixar que o desalento se infiltre. Temos
De pensar sempre que tudo conosco vai
bem, já que não sabemos nem o paradeiro
da nossa luz. Ela às vezes é quase
palpável, outras, invisível e transparente
como os ventos estivais...
(Natércia Campos)
181
ANEXO E- texto publicado em Poesia Plural 2
182
ANEXO F- Carta de Oswaldo Lamartine para Natércia
183
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