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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Carolina Garcia
Imagens errantes
A comunicação nos têxteis do mercado global
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Carolina Garcia
Imagens errantes
A comunicação nos têxteis do mercado global
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica, sob orientação do Prof. Dr.
Norval Baitello Júnior.
São Paulo
2010
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Banca examinadora
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Instruções para dar corda no relógio
“Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo.
Segure o relógio em uma mão, pegue com dois dedos
o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre
outro prazo, as árvores soltam suas
folhas, os barcos correm regata, o tempo como um
leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar,
as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o
perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a
seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o
anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa
que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a
corroer as veias do relógio, gangrenando o frio
sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a
morte se não corremos, e chegamos antes e
compreendemos que já não tem importância.”
- Júlio Cortazar -
Agradeço
A Deus, que me fez acreditar e reagir quando tudo parecia impossível.
A São Jorge, meu santo de estimação, cuja coragem e astúcia me inspiram e protegem.
À CAPES e à PUC São Paulo, pelo apoio financeiro e institucional.
Ao Prof. Dr. Norval Baitello Júnior, pela orientação precisa e confiança irrestrita.
À Jeanette Garcia, pela dedicação carinhosa, fé absoluta e enorme dose de paciência.
À Patrícia Douat Garcia, pela presença indispensável e cumplicidade incondicional.
A Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia, pela força serena e amor ilimitado.
À Ana Paula de Miranda, pela parceria verdadeira e presença ativa nas horas incertas.
À Valeska Fonseca Nakad, pelo companheirismo fabuloso ao longo de muitas jornadas.
A José Alfredo Silva, por compartilharmos as estradas e bifurcações de Espanha, México e
Colômbia graças a “ un amor para toda la vida”.
A Julián Posada, pela amizade onipresente e sabedoria no momento exato.
A Thorstein, Pa Dou, Hershey, Carlota e Lurdinha, por me esperarem sempre em festa.
À minha família mexicana, Galán-Picazo-Silva, por me adotarem sem restrições.
À minha família colombiana, Posada-Jaramillo-Marquez, pela acolhida incrível.
À Profa. Dra. Malena Segura Contrera, pela generosidade alerta e vínculo fraternal.
Ao Prof. Dr. José Amálio Pinheiro, Profa. Dra. Kathia Castilho, Profa Dra. Sylvia
Demetresco, Profa Dra. Maria de Fátima Mattos, Profa. Dra. Rosa Maria Galán, Profa. Dra.
Emanuela Cappelli, Profa Dra. Regina Root, Prof. Humberto Palacios, Profa. Adriana
Bettancourt, Profa Felícia Assmar Maia, pelo suporte intelectual e contribuição constante.
À Eva Medalla, Catherine Villota, Maria Inés Strasser, Soledad Hernandez, Ana Lucia
Jaramillo, Alfredo Picazo, Montserrat Silva, Luis Giovanni Estrada, Gustavo García-Villa,
Héctor Galván, Andrea D’Andrea, Santiago Acosta, Maite Cantero, Jorge Urquijo,
Alejandro Macía, Lorenzo Marquez e Tuti Barrero por dividirem comigo tortillas, arepas e o
melhor da cultura popular latino-americana.
A Otávio Pereira Lima, Andréa Araújo Pupelis, Thiago Volpato, Lila Colzani, Amanda
Gimenez, Walter Rodrigues, Carlos Ramiro Fensterseifer, Iorrana Aguiar, Francisco
Ribeiro, Marco Túlio Zani, Hercílio Melo, Múcio Toledo, Izabel Carvalho, Tatiana Toraci,
Águeda Penna, Maria Sílvia Fantinatti, Elisabeth Leone, Sílvia Liberatore, Jorge Miklos,
Rodney Nascimento e Mindy Elgart, por me ensinarem que não há fronteiras para a amizade
verdadeira.
A Oscar Aguirre, Anna Fusoni, Rubén Diaz, Camilo Álvarez, Pepe Reblet, Carlos Alberto
Botero, Clara Henriquez, Paula Trujillo, Viviana Velasquez Toro, Martha Calad, Laura
Novik, Alex Blanch, Clarissa Guimarães, Danilo Canizares e Erika Rohes, pela cortesia
profissional durante o desenvolvimento da pesquisa.
Às equipes de Trista, Epicentric, Fashion Radicals, Huevos & Escovas, Condesa Haus e
Hostal San Lorenzo de Aná, por me fazerem sentir em casa, mesmo de seis a nove mil
quilômetros de distância.
Às populações nativas dos estados de Oaxaca, Chiapas, Hidalgo, Guerrero e Jalisco, no
México; bem como das províncias do Rajasthan e Gujarat, na Índia, pela receptividade
carinhosa.
Aos funcionários, docentes e alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelo
companheirismo em tempo integral.
A Universidade Anhembi Morumbi, Senac São Paulo, Colegiatura Colombiana, Instituto
Politécnico Nacional do México e Universidade ORT pela possibilidade de discutir idéias e
pontos de vista com colegas e alunos em cursos e conferências nessas instituições.
Ao Real Gabinete Português de Leitura, Museu do Traje de Lisboa, Museu do Traje de
Madrid, Jardins de Alhambra, Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, Biblioteca
Franz Meyer, Casa Museu Frida Kahlo, Museu Dolores Olmedo, Museu do Templo Mayor
da Cidade do México, Museu Nacional de Antropologia, Museu de Antióquia e Jardim
Botânico de Medellín, pela atenção durante a pesquisa de campo.
À Limited Brands, Strategic Patterning Services, Latin American Fashion, Inexmoda,
ColombiaModa, Colóquio Nacional de Moda, Ixel Moda, L’Officiel Brasil, Intermoda
Guadalajara, Pasarela Cibeles, Semana Internacional de Moda de Madrid, São Paulo Fashion
Week, Fashion Rio, Associação Brasileira de Estilistas (ABEST) e Assintecal By Brasil,
pelas oportunidades de intercâmbio internacional.
Dedico
Para minha família global”,
sempre à bordo dos sapatos alados de Hermes,
deus das estradas, mensageiro nômade
e padroeiro dos viajantes,
aqui e acolá...
E, muito especialmente,
para Patrícia Douat Garcia,
minha irmã de coração,
e Ana Garcia Marques (in memorian),
para sempre querida e amada.
Porque a morte pode ser a derradeira viagem,
mas o esquecimento, isso sim, seria verdadeiramente trágico.
Resumo
Com as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI, novos bitos de consumo
foram introduzidos na Europa e nas Américas, que a ampliação das rotas comerciais
intercontinentais permitiu a entrada de produtos raros nesses mercados. Dentre eles,
destacam-se tecidos de algodão ornamentados com padrões florais, conhecidos como chitas,
que neste estudo são tratados pela ótica da comunicação. Considerados bens típicos de dadas
regiões, foram muito apreciados e adquiridos pelos viajantes para confecção de roupas,
multiplicando sua presença em vários países e permitindo amplo deslocamento de imagens
estrangeiras. Se a comercialização e o uso sugerem a possibilidade de acessar significados
culturais considerados inacessíveis, ou seja, de criar um vínculo com o Outro distante,
algodões florais desses países supostamente guardariam, nas camadas de imagens errantes,
certo patrimônio simbólico.
Esta pesquisa objetiva desvendar de que maneira e em que medida as imagens-
souvenir presentes nas chitas estabelecem vínculos comunicacionais com consumidores de
distintas culturas, possibilitando uma pós-vida das imagens. Para tanto, utiliza os conceitos
de mídia primária e secundária advindos da Teoria da dia de Harry Pross, os estudos
sobre vinculação comunicativa e iconofagia de Norval Baitello Júnior, e as postulações da
Teoria da Imagem difundidas por Hans Belting e Aby Warburg.
No âmbito dos têxteis, uma aparente evolução incentiva o consumo, ou a devoração,
de uma imagem pela outra, caracterizando processos de iconofagia. Assim, o estudo
acompanha a jornada das chitas no mercado internacional, com o intuito de detectar a
presença de imagens em movimento e entender a migração simbólica na estamparia floral.
A reflexão foca-se especialmente no México, partindo das imagens presentes nos
têxteis produzidos pelos indígenas zapotecas, comumente escolhidos pela pintora Frida
Kahlo para compor sua aparência. A análise considera em que medida elas se mesclam a
outras imagens da cultura, resistindo e sobrevivendo, ainda que os intercâmbios de saberes e
técnicas artesanais entre os povos venham gerando adaptações para a produção industrial.
Ao abordar a presença de imagens errantes e mestiças no guarda-roupa da artista, o estudo
investiga os modos pelos quais a imagem pública de Frida Kahlo funciona como ponte para
alcançar significados deslocados no mercado movediço do comércio de souvenirs, que, por
sua vez, se reabasteceria com simulacros dos vínculos almejados.
A pesquisa conclui que o tecido pode ser considerado uma mídia secundária que se
soma ao corpo para expandir sua presença no mundo e vencer a morte, estabelecendo
vínculos comunicativos entre culturas e favorecendo a pós-vida das imagens.
Palavras-chave: imagens errantes - migração de símbolos iconofagia vínculos
comunicativos cultura de moda - mídia têxtil.
Abstract
The 15th and 16th centuries Great Navigations introduced new consumer habits in
Europe and the Americas, for the expansion of intercontinental commercial routes allowed
the entrance of rare products in these markets. Among those, there were cotton textiles
adorned with flower patterns, known as chintzes, which in this study are referred to under
communication optics. Considered as typical goods from certain regions, they were very
much appreciated and acquired by travellers in order to manufacture clothes, multiplying
their presence in various countries and allowing a large dislocation of foreign images. If
commerce and use suggest the possibility of reaching cultural significations previously
considered inaccessible, or even the chance of creating a bond with a distant Other, floral
cottons from these countries supposedly would keep, inside image layers, a certain symbolic
heritage.
This research aims to decipher in which way and to which extent these souvenir-
images of chintzes establish communicational bonds with consumers from various cultures,
allowing images to have a post-life. In order to do so, it uses the concepts of primary and
secondary media from Harry Pross’ Media Theory, the studies on communicational bonding
and iconophagy by Norval Baitello Júnior and the postulations on Image Theory spread by
Hans Belting and Aby Warburg.
In the scope of textiles, an apparent evolution incentives consumption, or
devouration, of one image by the other, characterizing iconophagy processes. Therefore, this
study accompanies the chintzes journey in the international market, aiming to detect the
presence of moving images and also to understand the symbolic migration in floral
printings.
The reflection focuses specially in Mexico, going from images present in textiles
produced by zapotec natives, commonly chosen by painter Frida Kahlo to organize her
looks. The analysis considers to which extent they mingle with other culture images,
resisting and surviving, no matter if the interchange of knowledge and artisan techniques
among peoples comes to produce adaptations for industrial purposes. While addressing the
presence of erratic and mongrel images in the artist’s wardrobe, the study investigates in
which ways the public image of Frida Kahlo works as a bridge to reach significations
dislocated in the moving market of souvenirs, which, in turn, would refresh itself with
simulacrums of the aimed bonds.
As a result, the research concludes that the textile can be considered a secondary
media which adds to the body so as to expand its presence in the world in order to win the
battle against death, establishing communicational bonds among cultures and favoring the
post-life of the images.
Key words: erratic images migration of symbols iconophagy communicational bonds
fashion culture textile media.
Sumário
Introdução................................................................................................................
01
Itinerário com escalas................................................................................
01
Diário de bordo..........................................................................................
05
Bagagem indispensável.............................................................................
08
Capítulo 1: Tecido como mídia...............................................................................
11
1.1 Tramando visibilidades..............................................................................
11
1.2 Tessituras em trânsito.................................................................................
23
1.3 Natureza andarilha......................................................................................
24
1.4 Chita, chitinha, chitão.................................................................................
30
1.5 A chita e as imagens da cultura..................................................................
38
1.6 Por mares nunca dantes navegados............................................................
40
1.7 Percursos de sobrevivência simbólica........................................................
46
1.8 Fluxos de renovação...................................................................................
50
1.9 Fronteiras entre presença e ausência..........................................................
52
Capítulo 2: Buquê iconofágico................................................................................
58
2.1 A inconstância das flores............................................................................
58
2.2 Movimentos do chintz................................................................................
64
2.3 Ligando os pontos.......................................................................................
68
2.4 Semeadura simbólica..................................................................................
72
2.5 Mestiçagem e iconofagia............................................................................
74
2.6 Desembarque na América...........................................................................
77
2.7 Imagens mestiças........................................................................................
80
2.8 Ressurreição imagética...............................................................................
87
2.9 Natureza errante..........................................................................................
96
2.10 Encontros extraordinários.........................................................................
99
Capítulo 3: Imagens prêt-a-porter...........................................................................
102
3.1 Contra a imaginação...................................................................................
102
3.2 Domesticação do imaginário......................................................................
104
3.3 O guarda-roupa de Frida............................................................................
108
3.4 O universo simbólico das tehuanas............................................................
114
3.5 Imagem e personificação............................................................................
118
3.6 Vidas entrelaçadas......................................................................................
120
3.7 A imagem de Frida nos tianguis.................................................................
124
3.8 Réquiem estampado....................................................................................
128
Considerações finais.................................................................................................
134
As conexões de uma jornada..................................................................
134
Imagens-souvenir....................................................................................
136
Cartão-postal...........................................................................................
137
Referências bibliográficas.......................................................................................
140
Créditos das imagens...............................................................................................
152
1
Introdução
“Caminhante, não há caminho
O caminho se faz ao andar.”
- Antônio Machado -
Itinerário com escalas
“Senhores passageiros, estamos em procedimento de descida. Queiram afivelar os
cintos de segurança, pois dentro de 15 minutos estaremos aterrissando no aeroporto
internacional Indira Gandhi, em Nova Délhi”. Era um amanhecer qualquer de abril de
2004, quando a voz metálica da aeromoça estalou nos meus ouvidos, acordando-me para
desfrutar de uma imagem quase mitológica: minhas companheiras de viagem se arrumando
para a chegada. Embora ainda não fosse a época das monções, o calor me pareceu
sufocante para que as indianas usassem as tantas camadas de tecidos estampados e
bordados com as quais o fabricados os sáris
1
. Não foi preciso sequer passar pela aduana
para que eu, contudo, também tivesse de recorrer a essas imagens para sobreviver
simbolicamente. Antes mesmo da fila de imigração, fui informada pela companhia aérea de
que minha bagagem havia sido extraviada, possivelmente durante a conexão em Frankfurt.
Como nascemos nus, mas vivemos vestidos, minha primeira providência foi localizar, no
mar de turbantes à minha frente, algo que se assemelhasse a uma loja de conveniências para
ter o que vestir. Às cinco e meia da madrugada de um domingo, percebi de imediato a
dificuldade da missão. Mas, nada como a comunicação corpo-a-corpo. dentro do táxi,
mencionei o infortúnio ao condutor, que se compadeceu de imediato e pronto ligou para sua
família, dona de um comércio de tecidos nas proximidades. No caminho do hotel, parou
diante do empório, cujo proprietário não hesitou em abrir as portas. Quando vi as pilhas de
sáris dobrados nas prateleiras atrás do balcão tão distintas das araras comumente
encontradas nas lojas ocidentais o fascínio foi imediato.
O vendedor colocou-me no centro da loja e foi desvendando um universo de
1
Sári é uma tradicional roupa feminina indiana composta de uma pequena choli (miniblusa) e sete metros de
tecido. Estes são pregueados à volta da cintura sobre uma lengha (saia do tipo anágua) e a ponta restante,
ricamente adornada com bordados, é colocada sobre o ombro da usuária. Na Índia, os mais populares são
feitos de algodão estampado, notadamente chita.
2
texturas e cores em tecidos com padrão ornamental floral, que ele insistia em chamar de
chintz. Ora, para alguém acostumado a frequentar as lojas populares do centro e da periferia
do Brasil, eu estava diante do mais brasileiro de todos os tecidos: a sorridente chita, aquele
pano ordinário de algodão usado para forrar colchões e vestir as crianças nas festas dos
santos de junho. Enquanto me servia um reconfortante chá com masala
2
, o comerciante de
chintz me fez sentar diante de uma plataforma coberta com um tecido branco perfumado
pelo incenso de jasmim. Ali, abriu um sári de chita atrás do outro para minha inspeção,
comentando as qualidades do trabalho executado em cada um deles, enquanto eu ouvia,
maravilhada, o zunir dos finíssimos algodões balançando em suas mãos. Uma vez
desdobrados, os ris eram cuidadosamente colocados em torno de meu corpo para que eu
pudesse sentir o peso ou a suavidade do tecido. A experiência não se resumia à aquisição,
mas sim à possibilidade idealizada em imagens mentais de entrar no closet de uma princesa
de um reino distante. Afinal, conforme bem coloca BELTING (2007: 83), “intercâmbio
entre experiência e lembrança é um intercâmbio entre mundo e imagem”
3
.
Segundo McLANE (2004), o uso preferencial de roupas ocidentais em ambientes
urbanos é tão confinador, hoje, quanto os espartilhos e as crinolinas das viajantes do século
XIX, época do surgimento do próprio conceito de viagem: senão para o corpo, certamente
para a imaginação. Quando retornei a São Paulo, minha adorável coleção de sáris e salwar
kameez
4
feitos de chintz hindus jamais migrou para o fundo do armário. Pelo contrário,
continuo a vesti-los no dia-a-dia, mesclando-os às peças ordinárias de meu guarda-roupa
como elo entre o passado idealizado e o hoje. A quase incompreensível rede de relações
entre lugares e imagens de lugares prossegue naquelas instâncias onde buscamos com os
olhos lugares aos quais nossos corpos não têm acesso”
5
(BELTING, op.cit.:82). A
imagem-souvenir estabeleceu um forte vínculo fraternal
6
.
2
É uma tradição no comércio indiano ofertar ao visitante uma xícara de chá com especiarias e leite,
conhecido como masala chai, antes de iniciar qualquer negociação. Este ato de boas vindas estabelece de
imediato um vínculo de aconchego, ou maternal, se usarmos a escala de Harlow (1905-1981) como
referência.
3
“El intercambio entre experiencia y recuerdo es un intercambio entre mundo e imagen”.
4
Salwar kameez, roupa típica da região do Punjab, no norte da Índia, é um conjunto de três peças (calça
folgada presa aos tornozelos, túnica e lenço) que constitui a vestimenta diária de muitas mulheres indianas.
5
“La casi inextricable red de relaciones entre lugares e imágenes de lugares prosigue en aquellas instancias
donde buscamos con los ojos lugares a los que nuestros cuerpos no tienen acceso”.
6
O sistema de vínculos, conforme entendido por Norval Baitello Júnior, será objeto de aprofundamento no
3
É fato que poucos estudiosos da comunicação se debruçam sobre o tema da mídia
primária
7
, o corpo. Menor ainda é o número de pesquisadores que se dedica à associação da
mídia primária e da mídia secundária. Tal fato motivou-nos a buscar compreender melhor o
fenômeno das imagens errantes sob a ótica da comunicação, ou seja, daquelas imagens de
lugares que vagueiam pelo mercado da comunicação globalizada, especialmente em bens
considerados típicos de certas regiões. Conforme coloca BAITELLO (2005), é uma
problemática fundamental para a comunicação humana descobrir como se desenvolve uma
cultura de imagens ao lado de uma cultura dos corpos e como se comunicam e se inter-
relacionam esses dois mundos, ou seja, que tipo de vínculo comunicativo se desenvolve
entre eles. “Se a comunicação é construção de vínculos, a cultura é o entorno e a trajetória
complexa dos vínculos, suas raízes, suas histórias, seus sonhos e suas demências, seu
lastro e sua leveza, sua determinação e sua indeterminação” (ibidem:08).
Logo, a experiência pessoal instigou-nos a observar que, assim como ocorreu
comigo na loja de sáris, os souvenirs têxteis, que neste estudo são tratados pela ótica da
comunicação, foram se acoplando aos corpos de viajantes, permitindo amplo deslocamento
de imagens estrangeiras desde as Grandes Navegações dos culos XV e XVI até nossos
dias. Isso nos faz indagar, com GRUZINSKI (2001:16), se, de fato, “acelerando as trocas
e transformando qualquer objeto em mercadoria, a economia-mundo teria acionado
circulações incessantes que alimentam um melting-pot agora planetário”. Desta feita, a
presente pesquisa objetiva desvendar de que maneira e em que medida as imagens-souvenir
incorporadas por viajantes são apropriadas e deslocadas pelo design de superfície que se
concentra em adornos florais. De que forma essas imagens estabelecem vínculos
comunicacionais com consumidores cujo deslocamento presencial e conseqüente acesso a
tais significados é mediado por corpos em constante trânsito? Como a movimentação de
têxteis no tempo e no espaço contribui para a pós-vida das imagens, ao mesmo tempo em
que acelera processos de iconofagia e estabelece vínculos comunicativos entre
consumidores no mercado global?
capítulo um deste estudo.
7
Os conceitos de mídia primária, secundária e terciária são aqui utilizados no sentido que lhes confere o
comunicólogo alemão Harry Pross em sua “Teoria da Mídia” e serão explicitados mais adiante, no capítulo
primeiro da tese.
4
O estudo considera que, graças ao fortalecimento da indústria dos transportes, da
comunicação e do entretenimento, viajantes se transformaram em outdoors ambulantes e
memória da vivência cultural do destino visitado, que passaram a difundir em fragmentos
de sua aparência, especialmente roupas e enfeites
8
. Buscamos avaliar como essa
experiência de imersão cultural a qual se expõem os viajantes, uma vez transformada em
imagens que circulam sobre seus corpos, facilita a migração de símbolos e a pós-vida das
próprias imagens. Averiguamos também em que medida tais imagens funcionam como
pontes para alcançar determinados significados, deslocados nesse mercado movediço, que,
por sua vez, se reabasteceria com simulacros dos vínculos almejados. Para tanto, partimos
do princípio de que tais viajantes associam mídia primária e secundária mediante o
consumo de lembranças do local visitado, ou souvenirs.
Mediante o uso desses bens, surge a possibilidade de acessar significados culturais
considerados inacessíveis, ou seja, de vincular-se com o Outro distante. Nota-se que não se
trata de uma apropriação dos produtos ou da aparência do viajante em si, mas sim das
imagens que neles circulam. Entretanto, se tomarmos como certa a afirmação de BELTING
(apud BAITELLO, 2004a:161) de que “observar imagens significa também animá-las”,
assim como turistas se apossam de imagens da cultura visitada, também eles têm suas
imagens endógenas (presentes nas recordações e fantasias) tanto quanto suas imagens
exógenas (elaboradas no corpo e em adornos) devoradas. Isso porque corpos e tecidos se
convertem em suportes entrelaçados para garantir a pós-vida das imagens e assim vencer
simbolicamente o esquecimento ou o desaparecimento. Ou seja, as imagens têxteis
auxiliam os humanos a suplantar o medo da morte.
Se, para tanto, o consumo e o uso sugerem a possibilidade de acessar significados
culturais considerados inacessíveis, ou seja, de vincular-se com o Outro distante, a análise
8
Segundo levantamento realizado pela Organização Mundial de Turismo, na década de 1990 o crescimento
médio do turismo internacional foi de 4,3% ao ano. Há previsões de que, em 2020, o número de pessoas que
farão viagens internacionais será de 1,6 bilhão e a receita bruta ultrapassará os dois trilhões de dólares.
Embora incentivem as exportações de produtos locais, parece-me que existe um lado sombrio nessa vitória do
deslocamento: as imagens errantes levadas pelos turistas, uma vez apropriadas por marcas, poderão se
transformar em predadoras da cultura visitada. Em 2003, por exemplo, a prefeitura de Nova Iorque incluiu em
sua administração um diretor de marketing para a cidade que, entre outras atribuições, deverá licenciar nomes
de bairros para diferentes tipos de produtos e associar nomes de empresas aos principais monumentos nova-
iorquinos.
5
enfoca os deslocamentos de imagens presentes na natureza e na cultura de países como
Brasil, Índia, Inglaterra, Espanha, Portugal e, sobretudo, México. Têxteis adornados com
flores provenientes dessas localidades, os quais adquiriram notoriedade no mercado
internacional, são esmiúçados quanto aos padrões e formas de adornos, estabelecendo
ligações com imagens arcaicas e mitológicas. A seleção desses itens em particular se dá
pela afinidade da autora com o tema, conforme já exposto acima, bem como pelo fato desse
material ser muito popular na fabricação de produtos de moda e decoração nos países
mencionados. Como tais bens são comumente adquiridos por turistas enquanto souvenirs e
mesmo presentes (as chamadas “lembrancinhas”), contribuem na construção da própria
imagem dessas nações no exterior. Com o foco nesse corpus, procuramos avaliar em que
medida o design de superfície interconecta imagens e mescla elementos de várias culturas
em produtos feitos com chitas, chitinhas e chitões, ora estampados, ora rebordados com
técnicas que lhes agregam texturas numa formidável mistura cabocla.
Diário de bordo
O primeiro capítulo expõe as razões pelas quais os têxteis podem ser considerados
mídia secundária sob o ponto de vista da comunicação, considerando as contribuições de
Harry Pross. Segundo PROSS (1971), a mídia primária não exige aparatos em seu processo
comunicativo, pois o tempo é o do presente e o espaço é tridimensional. na mídia
secundária, o emissor necessita de um suporte para a mensagem, como é o caso da escrita,
das obras de arte, da fotografia, das roupas e dos tecidos. Como o receptor não precisa de
aparato algum, trata-se de uma dia que perpetua o tempo e na qual o espaço é
bidimensional. A seguir, observando os parâmetros definidos por Hans Belting com
respeito ao conceito de imagem, este capítulo apresenta os caminhos percorridos para a
escolha do corpus, definindo a chita, pano de algodão ordinário, como médium das imagens
presentes na estamparia floral. O autor relata que imagens, em latim denominadas imago,
referem-se ao retrato de um morto, convidando os vivos à fuga do corpo, evocando os
símbolos e sua recontextualização. Ou seja, as imagens possuem um status semiótico na
segunda realidade de que nos fala BYSTRINA (1995), configurando a “presença de uma
ausência” ou a “ausência de uma presença” (WARBURG, 1995; KAMPER, 2002;
BAITELLO, 2005; FLUSSER, 2005; BELTING, 2007).
6
Todavia, as imagens precisam de um meio, ou médium, nas palavras de Belting,
para se transportarem. Para BELTING (2007), toda imagem visível está necessariamente
inscrita em médium de suporte ou de transmissão. São médium que nos permitem perceber
as imagens e, nesse caso, o corpo humano volta ao centro do debate como meio
privilegiado, visto que ele mesmo produz imagens internas em sonhos e fantasias. Neste
estudo, entendemos o design da chita como médium de imagens da cultura das localidades
onde é produzida e comercializada. Parece-nos interessante observar como se relacionam e
se inseminam mutuamente os textos da cultura no design de superfície dessas chitas,
especialmente focando nas andanças desse material com o advento das Grandes
Navegações dos séculos XV e XVI. Isso porque, se o mesmo produto está sendo oferecido
em todas as esquinas do planeta, a atmosfera de imitação gera ambiente propício à busca de
vitalidade pelas imagens entre latitudes e longitudes. Essa vitalidade se encontra, por sua
vez, na comunicação horizontal, bastante presente no vínculo fraternal, ou seja, no
compartilhar desses materiais para o (re) conhecimento do Outro mediante as imagens da
cultura. Então, buscamos contextualizar a chita no roteiro das grandes conquistas
marítimas, situando o recorte no conjunto das andanças desse material têxtil. Tais
deslocamentos têm como protagonista a busca de riquezas e o comércio de bens
estrangeiros naquele período, propiciando avaliar em que medida as chitas se colocam à
serviço da pós-vida das imagens e dos vínculos comunicativos, e considerando-as conforme
os estudos de Aby Warburg e Norval Baitello Júnior.
Se o capítulo anterior nos permitiu verificar que muitas das imagens transportadas
pelos viajantes e aventureiros compartilhavam um suporte comum, nesse momento o estudo
avalia as semelhanças e diferenças das imagens presentes em chitas oriundas de distintos
continentes e países. Particularmente, busca esmiuçar a contribuição do comércio
ultramarino não só para o desenvolvimento dos processos de tingimento, estamparia e
adornos têxteis, mas sim em torno da pós-vida das imagens presentes nas chitas.
Considerando o conceito de iconofagia de Norval Baitello Júnior, que analisa os processos
de mediação entre imagens, investigam-se os modos pelos quais essas imagens, uma vez
deslocadas, tornam-se verdadeiros arautos das descobertas e das conquistas dos
navegadores em seu retorno à Europa, tanto quanto das resistências e sobrevivências
culturais de outros povos, fazendo-as sobreviverem ao longo do tempo e através de
7
distintos espaços. Outras técnicas de adorno, como os bordados, são fabuladas em dobras e
curvas que trazem à superfície do pano uma mescla de imagens endógenas e exógenas, do
próximo e do distante, do nativo e do estrangeiro, do aqui e do lá. As mitologias hindu e
mesoamericana constituem o patamar privilegiado de acesso a esses percursos, avaliando
símbolos florais e a respectiva migração de mitos nas imagens que flutuam em panos
estampados.
Percorrendo as rotas dos grandes descobridores portugueses, dos corsários ingleses
e dos conquistadores espanhóis, observamos nos capítulos anteriores que um dos maiores
tesouros encontrados nas naus eram as imagens das conquistas presentes no algodão
estampado, muitas delas usadas para estabelecer contínuas relações de poder. No terceiro
capítulo, a pesquisa envereda pelas diferenças que a chita assume no mercado mexicano
graças à inclusão de outra imagem no processo de vinculação afetiva: a da celebridade.
Observando a inserção de adornos florais de distintas etnias no look da pintora mexicana
Frida Kahlo, vemos brotar imagens “prêt-a-porter”, ou seja, “prontas para usar”, em
souvenirs destinados ao consumo de massa. Tais souvenirs reelaboram essas imagens
errantes, particularmente em termos do conhecimento em botânica e mitologia
mesoamericana. Isso ocorre com vistas à venda nos “tianguis”, os mercados indígenas
mexicanos visitados por turistas estrangeiros, que contribuem para acelerar o deslocamento
de imagens entre culturas. Estudando como a artista construiu uma aparência pessoal
peculiar mediante o uso do padrão ornamental floral presente na indumentária típica das
“tehuanas”, como são chamadas as indígenas zapotecas do istmo de Tehuantepec,
investigam-se como se dão os processos de iconofagia e de consumo de imagens midiáticas
nesses espaços comerciais.
“O potencial construtivo ou destrutivo das intervenções sociais e culturais por meio
das imagens pode ser imenso, quando elas corporificam uma relação viva entre o homem e
suas referências, seus símbolos” (BAITELLO, op.cit.: 15). Diante do grande volume de
relações de significação articuladas quando tratamos de deslocamentos espaço-temporais,
notamos que a análise das chitas permite a exploração tanto das imagens em deslocamento
entre culturas quanto dos processos de iconofagia presentes no design de superfícies têxteis
manufaturadas em algodão e adornadas com estampas florais. As considerações finais
8
enfatizam as oscilações mestiças no repertório imagético que celebridades mitológicas,
como a pintora Frida Kahlo, fazem desse material têxtil. Nessa última etapa, o estudo
procura reoperar as relações observadas para poder traçar como as imagens endógenas e
exógenas são apropriadas, operacionalizando um sistema de vínculos comunicativos que
também apresenta aspectos sombrios.
Bagagem indispensável
Mas, de que forma a imagem se ocupa de banir o original do qual se torna sósia,
tornando-se ela própria referência para o estabelecimento de vínculos comunicacionais?
Para mergulhar na questão, o presente estudo utiliza os conceitos de mídia primária e
secundária advindos da Teoria da Mídia de Harry Pross, os estudos acerca de vinculação
comunicativa e iconofagia de Norval Baitello Júnior e as postulações da Teoria da Imagem
difundida por Hans Belting e Aby Warburg. Esta vertente da Semiótica da Cultura propõe
uma visão integradora de conceitos como imagem, mídia, cultura e comunicação, aceitando
a contribuição de diferentes áreas do conhecimento. etólogos, antropólogos, psicólogos,
filósofos, sociólogos e comunicólogos, entre outros profissionais, cujo aporte é levado em
conta para os complexos processos da comunicação cultural.
A Teoria da Imagem origina-se nos estudos de Hans Belting, historiador da arte e
estudioso da comunicação alemão. Sua obra Antropologie des images (publicada
originalmente em alemão com o título Bild-Anthropologie: entwürfe für eine
bildwissenschaft, em 2001) define conceitos e inaugura novos estudos nesse campo do
saber, os quais vêm sendo aprofundados no Brasil pelo professor Norval Baitello Júnior.
Antes dele, os estudos pioneiros do pesquisador alemão Aby Warburg (1866-1929)
consideraram a imagem como responsável pelo trânsito de mitos entre culturas,
contribuindo para a construção e divulgação de arquétipos universais. Nesse sentido, as
reflexões do filósofo alemão Dietmar Kamper (1936-2001), mestre tanto de Belting quanto
de Baitello, igualmente trazem enormes aportes para nosso estudo. Ele lecionou na
Universidade de Marburg e posteriormente na Universidade Livre de Berlim, onde
debruçou-se sobre o estudo da transformação do corpo numa imagem do corpo.
Sob este aspecto, o diálogo amplia-se com a obra do cientista da comunicação e da
9
política Harry Pross (1923-2010). Nascido em Karlsruhe, na Alemanha, Pross foi redator-
chefe da Rádio Bremen e professor emérito da Universidade Livre de Berlim. No clássico
de 1971, Medienforsghung, ele propõe uma classificação do sistema de mediação que nos
auxilia a delimitar o corpus desta pesquisa tomando os corpos de viajantes e os objetos
acrescidos a eles como médium das imagens que buscamos analisar. “Toda comunicação
humana começa na mídia primária, na qual os participantes individuais se encontram cara
a cara e imediatamente presentes com seu corpo; toda comunicação humana retornará a
este ponto” (PROSS, 1971:128). Se o homem deixa sinais para demonstrar suas crenças, as
idéias de Edgar Morin são também fundamentais para nos auxiliar a definir a cultura como
o espaço onde ocorrem os processos sociais, entendendo-a como um fenômeno
comunicacional repleto de mitos, ritos, invenções, alucinações e criações imaginárias. Para
MORIN (1990: 15), a cultura “(...) constitui um corpo complexo de normas, símbolos,
mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos,
orientam as emoções”. Enfim, nela reside toda a produção simbólica do ser humano, um
animal capaz de abstrair e sonhar acordado. Um animal apto a criar e a perceber imagens.
Além do aprofundamento da obra desses teóricos da comunicação e da mídia, a
pesquisa lastreia-se igualmente num extenso trabalho de investigação de campo com
recolhimento de dados secundários, amostras e documentação fotográfica conforme roteiro
percorrido pela chita a partir das Grandes Navegações, tendo como parâmetros as principais
rotas, a origem do produto têxtil e os mais importantes portos no roteiro dos navios.
Recortando a origem de fabricação dos têxteis, investigamos especialmente os produtos
oriundos da Índia, Portugal, Inglaterra, Espanha, França, Tanzânia, Holanda, Brasil,
Colômbia e México. Com o mesmo intuito, averiguamos os principais portos de
distribuição como vetor de confluência e trânsito de imagens, a saber: Sevilha, na Espanha;
Manila, nas Filipinas; Veracruz e Acapulco, no México; Cartagena, na Colômbia;
Salvador, no Brasil; Lisboa, em Portugal; Zanzibar, na Tanzânia; e Surat, na Índia. A partir
do recolhimento de amostras e documentos, procedeu-se a análise dos mitos que circulam
nas imagens veiculadas pelos tecidos estampados, atentando para a força da cultura e para a
elaboração de outros vínculos potenciais.
Como resultado desse percurso, apreendemos que o tecido é uma dia secundária
10
cujas imagens flutuantes no design de superfície se apropriam de épocas e lugares,
resultando num procedimento iconofágico. Ou seja, têxteis estampados e bordados devoram
com suas imagens outras imagens, de outros tempos e, sobretudo, de outros espaços,
representados por meio de imagens de viajantes, corpos-outdoor que se deslocam
perenemente a trabalho ou a lazer. “Quando portam valores, elas (as imagens) sustentam
os vínculos entre o homem e suas raízes culturais e históricas. Quando se esvaziam, trazem
à tona e demonstram o esvaziamento e a perda de um símbolo diretor” (ibidem, idem). Isso
seria um incentivo à apropriação dessas imagens, visando consolidar o procedimento
mercadológico de masstígio, ou seja, de aparente doação de prestígio para as massas,
resultando num infinito reciclar imagético. Afinal, como bem coloca BAITELLO (ibidem:
17), “o medo da morte é o que nos conduz a emprestar a vida e a longa vida aos
símbolos”.
Ora, estamos falando de comunicação verticalizada, daquela que, como assegura
PROSS (1980), divide o mundo em quadrantes (alto e baixo, direito e esquerdo) e
hemisférios (norte e sul, leste e oeste), pontuando uma provável perversidade a ser
equacionada quanto às imagens sombrias do empório global. Por questões de foco,
contudo, a pesquisa não aborda se tais vínculos seriam ou não um incentivo à apropriação
dessas imagens primeiras pela comunicação publicitária de marcas estabelecidas visando a
consolidação do procedimento mercadológico de masstígio. Tampouco se concentra nas
consequências da pós-vida das imagens para a indústria da moda e da publicidade. Nem
mesmo se dedica a esmiuçar imagens presentes no conjunto da obra da pintora mexicana
Frida Kahlo. A investigação antes propõe um mergulho no farfalhar colorido dos algodões
estampados, tanto de Frida quanto de mulheres anônimas dos países visitados, para melhor
entender a determinação humana de construir e compartilhar imagens, sempre entretecidas
nos mais belos adornos. Para BELTING, (op.cit.: 177-178), precisamente “nisso se radica
o sentido de uma antropologia das imagens que indaga nas origens buscando compreender
os mecanismos simbólicos que seguimos em nosso trato com imagens”
9
.
9
“En esto radica el sentido de una antropología de las imágenes que indaga en los orígenes buscando
comprender los mecanismos simbólicos que seguimos en nuestro trato con imágenes”.
1
Tecido como mídia
“Trago dentro do meu coração
Como num cofre que não se pode fechar de cheio
Todos os lugares onde estive
Todos os portos em que cheguei
Todas as paisagens que vi (...) sonhando
E tudo isso, que é tanto,
É pouco para o que quero”
- Fernando Pessoa
Tramando visibilidades
Descobertas em distintos sítios arqueológicos ao redor do globo terrestre apontam
que os dons de fiar e tecer são indissociáveis da vida humana desde o Paleolítico
1
.
Acompanhando o homem do nascimento à morte, trouxas de pano embalam bebês,
embrulham pertences e cobrem defuntos
2
. Os ancestrais dessas primeiras investidas no
ramo têxtil foram os entrelaçamentos de fibras vegetais e animais, originalmente focados na
fabricação de cestos. Mas a contínua experimentação de desenhos e a construção de teares
acabaram por engendrar novas texturas, permitindo a obtenção de telas flexíveis que deram
origem aos tecidos. A palavra tecido, do latim texere, era amplamente utilizada pelos
romanos para designar o ato de construir, trançar ou enredar. Graças a essas múltiplas
interpretações, o termo foi empregado para todo e qualquer invólucro capaz de expressar e
1
Segundo CORDÓN (1988:59), os hominídeos, que até então viviam em árvores suportados por pés e mãos,
transferiram seu habitat para as savanas precisamente no Paleolítico. A vida em espaços rasteiros abertos
impeliu-os a uma postura ereta e à ampliação do uso da visão. Formou-se no inconsciente o mito da queda, ou
seja, a idéia de que aquilo que está abaixo é ruim ou negativo, visto que o fato de descer das árvores gerou o
medo representado por ameaças terrestres à espreita. Nos termos da comunicação, PROSS (1980) também
considera a verticalidade, nesse sentido, como divisor de águas. Com a verticalidade, a massa encefálica e a
atividade cognitiva se desenvolveram: o ser humano passou a se confrontar com sua habilidade artística,
potencializada nas pinturas em cavernas como também no fabrico e decoração de utensílios.
2
PEZZOLO (2008:13) assinala a importância do trabalho da antropóloga Olga Soffer, professora da
Universidade de Illinois, Estados Unidos, realizado na República Tcheca. Escavações conduzidas por ela na
região de Pavlov, Morávia, incluem a descoberta de vasilhas de argila cozida com marcas deixadas por
tecidos ou cordas. Por meio do método C14, usado para datação radiativa, Soiffer constatou que o achado
teria em torno de 24 mil anos, comprovando o uso de fios e tramas têxteis já naquele período.
2
estender a presença humana no mundo: de cabanas a cestas, de tapetes a véus.
Ao desenvolver essas tramas, o homem encontrou outras formas de materializar as
paisagens de sua existência, promovendo sua capacidade comunicativa. Isso porque,
seguindo os parâmetros de PROSS (1971), podemos entender tais tessituras como mídias.
No clássico Medienforsghung
3
, o comunicólogo alemão propõe uma classificação do
sistema de mediação a partir de três grupos distintos: mídia primária, mídia secundária e
mídia terciária. O corpo humano é considerado por ele como a primeira de todas as mídias.
Centrado no presente e ocupando um espaço tridimensional, é plenamente capaz de
dispensar aparatos em seu processo comunicativo. Todavia, o desejo de vencer a morte
exige sua própria expansão além das fronteiras espaço-temporais. Para tanto, o corpo
utiliza-se de outras mídias, que Pross conceitua como secundárias e terciárias.
Na mídia secundária, o emissor necessita de um suporte para a mensagem, como é o
caso da escrita, da pintura, da fotografia e, seguramente, de qualquer material têxtil com o
qual roupas e adornos possam ser fabricados. Os fios se trançam sob bordados e estampas
registrando modos de vida, da mesma forma que o papel recebe a tinta e documenta um
momento preciso com marcas que sobrevivem mais do que o próprio autor da mensagem.
Como o receptor não precisa de aparato algum, trata-se de uma mídia que perpetua o
tempo, na qual o espaço é bidimensional. Diferentemente, na mídia terciária tanto o emissor
quanto o receptor necessitam de aparatos para o entendimento mútuo, como ocorre com os
meios dependentes da eletricidade, incluindo a televisão, a telefonia celular ou os
computadores em rede. Logo, neste estudo entendemos o tecido como mídia secundária,
pronta a atuar como suporte para o deslocamento de imagens.
É interessante notar que características como peso, flexibilidade, espessura, reação à
luz e outros elementos ambientais propiciam aspectos de mobilidade, temperatura,
envelhecimento e textura que aproximam essa mídia secundária, o têxtil, da própria mídia
primária. Há certo grau de corporeidade no tecido que altera ou enfatiza tanto a
gestualidade quanto a aparência humana. Assim, é possível perceber que o corpo representa
3
A obra de Harry Pross é continuamente apresentada pelo professor Norval Baitello Júnior em suas aulas no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. As discussões e análises desenvolvidas em classe são referência basilar nesse estudo, incluindo
3
a si mesmo ao utilizar o têxtil como mídia no intuito de permitir sua auto-expansão, ao
mesmo tempo em que reflete, com a imagem construída, percepções do seu entorno. Isso
porque, antes mesmo de serem formatados como roupa, os tecidos se diferenciam
materialmente entre si, o que também distingue a forma como suportam imagens. Veludos
invariavelmente são pesados e encorpados, algodões podem ser leves e transparentes, sedas
revelam brilho e maciez. A textura de suas fibras e fios provoca distintas sensações junto ao
corpo, como o grau de transparência ou opacidade, maciez ou aspereza, mobilidade ou
retenção, delicadeza ou resistência. Esses elementos permitem que as imagens neles
presentes produzam nuances e efeitos de sentido diferentes, revelando que a escolha de um
ou outro têxtil como suporte é relevante para a elaboração imagética. Tal situação é visível
no relato de McLANE (op.cit.: 33), jornalista especializada em turismo, quando diz que:
“Eu procuro usar a moda do lugar onde estou porque, assim como comer,
vestir as roupas dos residentes é a mais íntima e autêntica experiência de
viagem que eu possa conceber. Em trajes pouco familiares eu ando de modo
diferente. Sinto o peso e o farfalhar dos tecidos de um jeito inesperado.
Descubro novos olhos para me enxergar. eu volto para casa, desfaço as
malas cheias de roupas de seda multicolorida e despenco na depressão.
Numa paisagem de modelos sérios e tons neutros quero continuar usando
essas coisas brilhantes e bonitas que, ao se enrolarem em mim e
enveloparem meu corpo, transportam-me de volta aos lugares nos quais
estive. Mas o sári e as sandálias vão parecer ridículos enquanto eu estiver
correndo para pegar o metrô. Então eu faço uma edição rude e escolho
peças como a estola fúcsia que comprei de uma comunidade de tecelãs no
Laos capazes de cruzar as fronteiras da alfaiataria. Quando eu a jogo
sobre meu ombro e caminho por uma rua de Nova Iorque, entro num reino
atemporal, a milhas de distância de qualquer Banana Republic
4
”.
especialmente aquelas em torno de sua obra ainda inédita em português, como é o caso de Medienforsghung.
4
Rede varejista norte-americana.
4
Conforme BELTING (2008)
5
, toda imagem necessita de uma mídia para ser
transportada, senão se manteria isolada em processos mentais, ou imagens endógenas,
ligadas à fantasia e aos sonhos individuais. Reportando-se aos antigos cientistas árabes, ele
enfatiza que a imaginação ocorre dentro do corpo, para o qual a porta de entrada é o olhar,
ou seja, o despertar de memórias e recordações que engatilham percepções do mundo,
segundo observamos nas colocações de McLANE (op.cit.). De acordo com FEMENIAS
(2005: 105): “um traje bordado é um exemplar „souvenir do exótico‟ (...), pois é tanto
espécime como troféu, tanto exterior e estrangeiro como também íntimo, interior e
pessoal”
6
. É possível admitir, nesse caso, que as imagens mentais precisam do corpo,
entendido como mídia, para existir. Portanto, nesse estudo o corpo é compreendido como
uma mídia para as imagens endógenas. Igualmente, carrega em si imagens exógenas, como
é o caso dos tecidos e da moda criada a partir deles. Ainda que confeccionados em
materiais perecíveis, invariavelmente sujeitos a condições de conservação precárias e ao
uso constante, os tecidos incorporam, carregam e comunicam valores, crenças e
sentimentos, em boa parte expressos nas imagens que circulam na sua superfície, e que
sobrevivem além daqueles que as criaram. No México, os indígenas huichol
7
utilizam
imagens da natureza, incluindo plantas e animais por vezes evocados em transes induzidos,
para compor sua aparência mediante estampados, bordados e outros adornos (figura 1). Isso
ocorre inclusive quando circulam em ambientes urbanos, fora do território nativo, onde a
decoração têxtil tem a especial função de protegê-los. Como detalha ROMERO (2009:51),
“num determinado momento, o homem passa a querer escapar de sua animalidade e
acrescenta a seus movimentos corporais um significado, ele age não sobre o real, mas
também sobre o irreal”.
5
O professor Hans Belting ministrou uma aula especial para membros do CISC (Centro Interdisciplinar de
Semiótica da Cultura e da Mídia) em 31 de agosto de 2008, durante visita ao Brasil. As reflexões citadas
foram extraídas dos ensinamentos compartilhados nessa ocasião.
6
“An embroidered garment is an exemplary „souvenir of the exotic‟ (...), as it is both a specimen and a
trophy, both exterior and foreign but also intimate, interior, and personal.” A versão para o português é de
responsabilidade da autora. Doravante, quando não indicada a autoria da tradução nas referências
bibliográficas, considere-se da mesma maneira.
7
Os huichóis ou wixáritari são um grupo indígena do México central, que habita a Serra Madre Ocidental nos
estados de Nayarit, Jalisco, Zacatecas e Durango. Tradicionalmente, utilizam o cactus peyote em suas
cerimônias xamânicas para contactar com os ancestrais. Essas visões são reproduzidas em adornos e têxteis.
5
Figura 1 - Indígena da etnia huichol vestindo saia floral confeccionada por ela própria e colares inspirados
nas flores da região em que vive, com fins de proteção espiritual. Tlaquepaque, México, janeiro de 2009.
6
Na cultura zapoteca
8
, o design de estamparia também funciona como proteção
contra feitiços e mau-olhado (RODRIGUEZ, 2002: 117). Nesse sentido, seguindo os
preceitos de Pross e Belting, é possível dizer que as imagens presentes nos têxteis
constituiriam uma metáfora da própria fragilidade humana e do enfrentamento em relação
ao medo da morte. Na elaboração dessas imagens, como veremos com maior
aprofundamento no capítulo dois deste estudo, um instinto de sobrevivência simbólica,
estreitamente ligado à cultura. Estudiosos como Edgar Morin, Harry Pross, Ivan Bystrina,
Régis Debray e Vilém Flusser concebem que a cultura, nascida do temor em torno da
morte, é um universo simbólico construído, mantido e transmitido pelo homem. Para
superar o trauma da separação e insuflar a crença na imortalidade individual ou coletiva de
que nos fala MORIN (1970: 147), o ser humano transplanta para o mundo das imagens suas
memórias afetivas, suas crenças, seus valores e idéias. Inconformado com o fim
9
, cria o
símbolo, virtual possibilidade de reencontro, dando às imagens significado e presença.
“Símbolos são grandes sínteses sociais, resultantes da elaboração de grandes complexos
de imagens e vivências de todos os tipos. Por isso, as imagens evocam os símbolos e, ao
evocá-los, os ritualizam e os atualizam” (BAITELLO, 2005:17). Symbolon, do grego
symballein, significa justamente reunir, aproximar, colocar junto. Dessa feita, concordamos
com ROMERO (op.cit.) quando pondera que todas as culturas criam um universo
simbólico para preencher esse “vazio”, que Morin chama de segunda existência, e
Bystrina
10
, de segunda realidade.
8
Os zapotecas, nativos do sul do México, constituem uma das mais importantes civilizações pré-
colombianas. A cronologia arranca na pré-história, porém os zapotecas pertencem ao período clássico entre
100 a.C. e 800-900 d.C. Seu apogeu deu-se justamente no período clássico, tendo Monte Albán e Mitla como
principais centros cerimoniais. A partir do século IV ocuparam a região situada entre o istmo de Tehuantepec
e Acapulco, fixando-se posteriormente em Oaxaca. De Teótitlan Del Valle, primeira aldeia zapoteca de
vocação tecelã surgida em torno da capital, Monte Albán, expandiram-se para Macuilxochitl, Tlacolula,
Tlalixtac, Zaachila, Tlacochaguaya, Lachixolana e Gullache, compreendendo uma área territorial de 400 km2
de leste a oeste e 250 km2 de norte a sul. São contemporâneos dos maias, mixtecas e teotihuacanos (astecas
ou mexicas, a quem pagavam tributos, muitas vezes em têxteis e tinturas naturais).
9
Para MORIN (op.cit.: 21), a morte “é o traço o mais humano, o mais cultural do anthropos”. No original,
-se: la mort c´est le trait le plus humain, le plus culturel de lanthropos”.
10
O autor destaca duas „realidades‟, com respeito a algo que funciona e que está em torno de nós. A primeira
realidade é dada pela natureza, já a segunda é arquitetada pelo homem. A primeira realidade é formada pelas
dimensões biológicas e sociais da vida (não apenas humana) nas quais a comunicação é realizada pela ação
dos códigos hipolingüais (biológicos) e dos códigos linguais (sociais). A segunda realidade, a realidade da
cultura, é onde se dão os ritos, os mitos, as invenções, as alucinações, as criações imaginárias. Enfim, nela
reside toda a produção simbólica do ser humano, um animal capaz de abstrair e sonhar acordado. Um animal
apto a criar e a perceber imagens.
7
Para MORIN (op.cit: 115-116), essa intolerância à finitude faz com que o homem se
aproprie duplamente da técnica e da magia na ânsia de vencer a morte. Artesãos e indústrias
têxteis tecem imagens que vão além da existência individual ou do contexto social em que
foram produzidas. Aumentando sua durabilidade mediante certa navegação no tempo e no
espaço, impelem-nas, assim, a uma pós-vida, ou “Nachleben”
11
, para utilizar o termo
adotado por WARBURG (1995) em seu projeto Mnemosyne
12
. Warburg desenvolveu o
conceito de “Nachleben” para explicar a sobrevivência da imagem e sua habilidade em
construir pontes espaço-temporais entre culturas, uma vez que o próprio entendimento da
morte em culturas distintas pressupõe o surgimento de símbolos em contextos variáveis. Na
visão desse pesquisador, as imagens condensariam determinados valores e contextos
expressivos que, uma vez transportados e reaproveitados em outros ambientes culturais,
romperiam a continuidade histórica. Imagens formadas por motivações psíquicas,
relacionadas a dada época e lugar, seriam reorganizadas em função de novo contexto uma
vez levadas para o interior de outras culturas.
Retomando os caminhos percorridos por Warburg, também BELTING (2006)
entende que a grande questão com relação às imagens diz respeito à sua incorporação. Para
esse autor, é um tema fundamental no contexto da comunicação humana investigar os
processos pelos quais ocorre a migração e o engaste de imagens numa nova mistura, capaz
de fazê-las perdurar. Isso implica em analisar como se associam as idéias de contágio e de
contato no ressurgimento de conteúdos imaginários. Aprofundando tal percurso intelectual,
GEBAUER (2006: 25) identifica duas formas pelas quais as imagens perdurariam além do
tempo da vida humana. A primeira abrange o tempo de vida de uma imagem, cujo conteúdo
simbólico, expresso numa presença material, sobreviveria ao longo do tempo, gerando um
efeito contínuo sobre seus observadores. Nesse sentido, é notável que alguns tecelões
11
A forma como Warburg aplica a palavra alemã “Nachleben” gerou discussões em torno de seu sentido em
obras posteriores de AGAMBEN (1984), GOMBRICH (1986) e DIDI-HUBERMAN (2002). Para
GOMBRICH (1986:16) e DIDI-HUBERMAN (2002: 52), o equivalente mais próximo seria a idéia de
“sobrevivência”, embora haja controvérsias no uso desse termo em virtude de aplicações prévias pelo
etnólogo britânico Edward B. Tylor. AGAMBEN (1984:55), por sua vez, descarta essa possibilidade tanto
quanto a palavra renascimento”. Para ele, “Nachleben” implica a idéia de continuidade de certa herança
pagã, cara ao pesquisador alemão e não necessariamente presente no conceito de sobrevivência de Tylor,
como também observa o próprio Gombrich em sua biografia intelectual de Warburg.
12
O “Bilderatlas Mnemosyne” concebido por Warburg condensa visualmente os modos pelos quais certos
valores foram sendo transmitidos ao longo do tempo mediante o deslocamento de certas imagens entre
culturas. São 63 pranchas e mais de mil fotografias.
8
optem por aplicar adornos numa superfície tecida, na maioria das vezes inspirados pelo
refinamento e pelos significados da ornamentação corporal, dando origem aos estampados e
bordados multicoloridos, bem como ao uso dessa mídia como lugar de um relato coletivo.
É o caso das tehuanas, indígenas zapotecas do istmo de Oaxaca, México, que rebordam
sobre veludo ou cetim padrões florais de panos populares: copos de leite, girassóis,
gerânios, orquídeas e, especialmente, magnólias, margaridas, jasmins e rosas, sendo que
cada flor possui um significado específico
13
. Esses mesmos tecidos, por sua vez, são usados
para constituir o forro de blusas e saias destinadas às cerimônias e festas daquela
comunidade. É interessante notar que esses trajes, contudo, obedecem à lógica pica do
sistema de moda ocidental, que se baseia no consumo incessante de novidades. Uma vez
utilizadas durante determinada celebração, as saias e blusas das tehuanas são abandonadas
em prol de novos estilos. Cada peça descartada é desmanchada ou destinada à venda nos
“tianguis”, os mercados indígenas voltados ao comércio de souvenirs para turistas. O
dinheiro obtido reverte na compra de outras chitas cujos desenhos serão rebordados,
mantendo a sintonia das tehuanas com o progresso, enquanto os turistas levariam para casa
imagens de segunda mão.
Por outro lado, habitantes dos estados do México, Guerrero e Hidalgo produzem
itens exclusivos para seu uso pessoal e outros específicos para revenda, muitos dos quais
são inspirados em têxteis industrializados. Em entrevista individual
14
durante
acompanhamento de seu trabalho no mercado de Coyoacán, na cidade do México, a
indígena Filomena Mazahua, da etnia mazahua
15
, revela que produz duas variações da
mesma imagem floral nos tecidos que adorna (figura 2). Uma, exclusiva para seu uso
pessoal, inclui padronagens que evocam símbolos místicos de sua comunidade, voltados à
sua própria proteção espiritual. Nesse caso, o trabalho de desenhar e bordar flores sobre o
tecido escolhido para si pode levar até seis meses. Outra, destinada ao comércio externo, é
uma mandala simplificada do mesmo padrão floral, cujo risco é extraído de têxteis
13
O estudo detalhado do significado dos padrões florais será conduzido no capítulo dois deste estudo.
14
Entrevista não-estruturada realizada em 23 de janeiro de 2009 mediante observação participativa no
mercado de Coyoacán, Distrito Federal, México.
15
Os mazahua estão dispersos no norte, centro e região ocidental do estado do México, além de algumas vilas
na divisa com o estado de Michoacán. Como seu território é alto e gélido, com fortes chuvas, há constante
migração rumo à capital federal em busca de trabalho (como empregados domésticos, vendedores de rua ou
artesãos), expondo-os às imagens da cultura urbana. Entre os vilarejos dessa etnia com vocação têxtil destaca-
9
industrializados com o objetivo de economizar tempo: a artesã não dedica mais do que um
mês a cada peça. Essa flor é repetida inúmeras vezes para criar uma barreira protetora entre
vendedor e comprador. Assim, a cultura é apenas parcialmente involucrada no produto.
Segundo Filomena Mazahua, as flores manifestam a extrema diversidade do
universo, a profusão e a nobreza das dádivas divinas, exprimindo fases específicas das
relações entre os deuses e os homens. Logo, seu uso por indivíduo fora da comunidade
profanaria tais relações. Para migrar, as imagens precisam se disfarçar no ritmo da
repetição que estabelece uma narrativa hipnótica e dispersa o olhar daquele que é
considerado um invasor, ou seja, o estrangeiro. Essa situação é particularmente clara na
indumentária étnica e na sua absorção pela indústria da moda e do turismo. Nesse sentido, a
segunda possibilidade destacada por GEBAUER (op.cit.) considera justamente a produção
material da imagem sem se preocupar com sua origem (no exemplo anterior, o tecido
industrial), mas com o impacto de sua repetição, tanto sobre o observador quanto sobre o
criador. Com respeito a essa posição, observamos que mestres artesãos que se mostram
mais envolvidos com o efeito das técnicas de produção conforme mesclam diferentes
texturas e cores. O encantamento é ligado às variações capazes de externar imagens
particulares daquele criador. Uma vez expostas ao ambiente público, passam a compor
memórias coletivas que, por sua vez, são trasladadas a outros espaços: o corpo, a casa, o
mercado, a aldeia, a metrópole.
Quanto maior for o campo de relações, mais rica será a tessitura imagética. Desse
encontro entre imagens errantes do passado e do presente podem surgir faíscas novas, com
várias temporalidades se acotovelando em estado de fronteira e convivendo com o risco e
com a morte incessantemente. Essas imagens promovem interações com o contexto em que
são produzidas e consumidas, criando novas zonas de contato para relacionar-se com as
chamadas “séries culturais”. Nessa tessitura nenhuma das manifestações funciona
isoladamente. As imagens ganham complexidade pelo movimento, tramitando outros textos
e permitindo que a cultura se dirija contra o esquecimento. A riqueza, sem dúvida, está na
conexão entre os componentes desse mosaico e na capacidade de constituir outras texturas,
com a inquietante alusão de uma imagem à outra.
se a região de San Felipe Santiago, de onde provém Filomena Mazahua.
10
Figura 2 Filomena Mazahua bordando peça exclusiva para seu uso pessoal, cujo risco foi desenvolvido a
partir de florais estampados em algodão. Distrito Federal, México, janeiro de 2009.
11
Parecendo ecoar a posição de Filomena Mazahua, DEMARAY (2005: 148) avalia
que “têxteis elaborados para turistas raramente incluem as peças específicas dos trajes
que as mulheres tecem e usam, e eles variam largamente em cores, motivos, e fibras”
16
.
Por meio do compartilhamento de imagens há, portanto, uma relação hierarquizada e plena
de regras, onde os modos de produzir e de consumir são determinados por imagens em
movimento. FEMENIAS (op.cit.: 106) observa que “a comoditização da imagem caminha
lado a lado com a comoditização dos objetos que os estrangeiros consideram parte
dela”
17
. O fio dessa meada a medida da profusão de imagens que se deslocam entre
espaços geográficos e sociais, em especial a partir do momento em que os têxteis são
criados com vistas não só ao consumo da comunidade em que são produzidos, como
também ao comércio massivo nas grandes cidades.
O movimento das imagens é constante e também ocorre, por exemplo, com os
“huipiles”
18
e batas adornados com flores de origem maia. Produzidos na zona de Chiapas,
México, por membros da própria etnia, são revendidos em zonas turísticas da capital
federal (figura 3). É fundamental salientar o aspecto sagrado que o ato de tecer envolve nas
culturas pré-hispânicas. Por mais de três mil anos as mulheres maias da América Latina
vêm criando suas próprias roupas em teares. De acordo com a mitologia maia, Ixchel, a
deusa dos tecelões, teceu o cosmos e presenteou seu povo com o tear. “Assim, para uma
mulher maia, tecer é um ato de lembrar, que ela identifica com sua própria herança e
cultura cada vez que se ajoelha diante de seu tear”
19
(DEMARAY, op.cit.: 147). Mesmo
hoje, antes de cada nova criação, as descendentes dos maias rezam para Ixchel pelo sucesso
do empreendimento e, ao morrer, são enterradas com seu tear, o que dá a medida da
importância simbólica do ato de tecer imagens em fios. Sobretudo, imagens florais,
intimamente conectadas com os movimentos cíclicos da vida e em contínuo litígio com a
imobilidade.
16
“Textiles woven for tourists rarely include the specific pieces of „traje‟ women typically weave and wear,
and they range widely in the colors, motifs, and fibers”.
17
“The commoditization of the image goes hand-in-hand with the commoditization of objects that outsiders
consider part of it”.
18
Huipil”, que em nahuatl significa blusa ou vestido, é uma peça de tecido quadrada, costurada dos lados,
com uma abertura central para a cabeça. É usada por indígenas maias, zapotecas e de outras etnias do México,
Guatemala, Belize, El Salvador e demais países da América Central.
19
“Thus, for a Maya woman, weaving is an act of remembrance, one she identifies with her heritage and
culture each time she kneels down at her loom”.
12
Figura 3 Detalhe de bordado em bata destinada ao consumo massivo, externo à comunidade, produzido na
região de Chiapas por artesãs de etnia maia e revendido nos bazares de centros turísticos. Oaxaca, México,
outubro de 2008.
Para os maias, os conceitos de k‟in (flor) e nik (sol) estão interligados, ambos
símbolos de imortalidade, vida e poder. FERRET (2009) explica que k‟in é a variação de
um termo que originalmente significava sol nas linguagens proto-maia e maia clássica. A
palavra, usada desde os tempos da Conquista, continua presente entre os maias do Yucatán
e Chiapas, resultando num complexo semântico “sol-dia-tempo”. Além de ser sinônimo de
sol, k‟in significa dia e o completo movimento do sol durante as horas escuras em que
navega pelo inframundo, o reino dos mortos. Há muitas representações de k‟in, mas a mais
comum é a flor de cinco pétalas ou frangipani (que os astecas chamam de “cacaloxochitl”,
flor considerada símbolo divino de imortalidade, de uso exclusivo da nobreza). E por que
usar a imagem de uma flor para representar conceitos mais complexos como sol, dia e
tempo? Prestar atenção ao modo pelo qual uma flor reage ao sol vai além da observação
estética. Cada flor tem seu ciclo de vida regido pela luz solar, com as pétalas se abrindo ou
13
fechando conforme se passam os dias. Para os maias, portanto, k‟in também fala dos
movimentos cíclicos da natureza da qual os humanos fazem parte. Logo, nada mais
importante do que ter o corpo integrado ao cosmos por meio das vestes adornadas com
flores.
Tessituras em trânsito
Entender a caminhada de homens e imagens pelo mundo mediante o estudo de
tecidos pressupõe a análise dos símbolos presentes nesse suporte e dos modos pelos quais
eles se movimentam entre culturas. Logo, investigar a idéia de migração de imagens têxteis
nas ciências da comunicação requer certa reflexão sobre deslocamento e um retorno à
etimologia da palavra viagem: os vocábulos latinos “via”, ou caminho; e “viaticum”,
relativo ao dinheiro para afrontar as dificuldades da jornada. Isso porque, embora a
estrutura básica dos processos de tecelagem venha sendo preservada num longo ciclo
evolutivo em vários pontos do planeta, foi com a expansão do comércio internacional,
capitaneada pelas Grandes Navegações do século XV, que as imagens têxteis passaram a
circular amplamente pelo globo terrestre, como adjuvantes da luta pelo poder político e
econômico que caracterizou o domínio europeu. Dessa feita, a pesquisa que aqui se
apresenta busca retomar certas rotas de navegação marítima, bem como os investimentos
feitos nesses transbordos, no intuito de compreender os processos de trânsito das imagens
entre culturas.
unanimidade entre os historiadores em considerar a conquista de Ceuta pelos
portugueses, em 1415, como o início dessa aventura ultramarina. Foi o infante português
Dom Henrique quem notoriamente possibilitou avanços em instrumentos como a bússola e
o astrolábio, além de comissionar o aperfeiçoamento de mapas e cartas de navegação. Com
o estabelecimento da Escola de Sagres e a invenção das caravelas, ele incentivou a
expansão marítima européia e produziu uma mudança na idéia de viajar. Cada viagem
passou a assumir contornos bélicos e comerciais, resultando no transporte de bens e,
conseqüentemente, num intenso deslocamento de imagens. Até então, na Baixa Idade
Média, viajar era sinônimo de partir numa jornada perigosa e incerta, invariavelmente
ligada à peregrinação religiosa. Não havia qualquer segurança sobre um possível retorno e
pouca era a preocupação em transportar despojos de guerra ou objetos adquiridos em outras
14
terras, gerando trânsitos imagéticos mais lentos embora, evidentemente, eles também
existissem.
DENNY (2007: 183) relata que “alguns veludos europeus eram tão populares no
Oriente Médio no século XV que os tecelões da Anatólia na realidade produziam tapetes
ecoando seus desenhos e cores”. Esses veludos, por sua vez, incorporaram motivos de
tulipas e alcachofras da Turquia. Na verdade, Veneza era a principal porta de entrada para o
Oriente naquela época, dada sua posição geográfica e antiga tradição mercante de via
marítima. A imitação de tapetes islâmicos nos séculos XIV e XV ocorreu inicialmente na
Espanha e depois na Grã-Bretanha e França. Enquanto as sedas circularam nas duas
direções (leste-oeste e vice-versa), os tapetes iam do Oriente ao Ocidente. Roupas turcas
estavam na moda entre os doges venezianos e vice-versa. “No século XV, os venezianos
estavam à frente da produção de artigos de luxo apenas graças ao seu entendimento da
sofisticação do mundo islâmico e poucos ultrapassaram seu conhecimento, admiração e
apropriação cultural dos produtos materiais da cultura islâmica. Em nenhum outro lugar
essa combinação de culturas é mais visível que na área têxtil” (ibidem: 175). Esses fatos
históricos igualmente nos conduzem à delimitação da época dos Descobrimentos, que
coincide com a suplantação do comércio veneziano pelas potências ibéricas, como um dos
períodos adequados para empreender o estudo do movimento de imagens têxteis entre
culturas.
Natureza andarilha
Observamos que a migração da memória coletiva é chave para o entendimento da
pós-vida das imagens. Mas de que forma isso se deu posteriormente, já no contexto das
Grandes Navegações? A queda de Constantinopla nas mãos dos turcos em 1453 constituiu
uma verdadeira catástrofe econômica, que, com esse evento, fechavam-se as portas mais
próximas para o Oriente, inflacionando o preço de ervas e temperos no Velho Continente
20
.
Como um dos principais incentivos para a exploração do Atlântico e de novas rotas para
chegar ao continente asiático foi a procura por espécies vegetais úteis, incluindo as
20
Não é coincidência que, em francês, a expressão “pagar em espécie”, seja equivalente a efetuar um
pagamento em moeda corrente, visto que as especiarias eram altamente valorizadas na sociedade européia
daquele período. SOLIS (apud DEL PASO, 2008: 12) afirma que, já na Alemanha do século XIV, uma libra
15
cobiçadas especiarias, a questão está enraizada na botânica. Inicialmente, foram
marinheiros, capitães e navegadores que lançaram o aporte de conhecimento necessário
para construir a imagem da natureza selvagem, variada e luxuriante das Américas, a qual se
mostrou de importância vital para os processos de estamparia em tecidos conforme veremos
no segundo capítulo deste estudo. Os exploradores ibéricos, particularmente assombrados
com a exuberância do Novo Mundo, produziram relatos detalhados sobre a flora nativa
21
.
HEERS (1992: 315)
22
destaca as impressões de Cristóvão Colombo, extraídas de seu diário
de bordo de 21 de outubro de 1492:
“Aqui se encontram árvores de mil classes; todas dão fruto, cada uma a sua
maneira, e exalam aromas tão fortes que verdadeiramente dão prazer.
Considero-me o homem mais aflito do mundo por não poder reconhecê-los,
mas penso que são de Grande valor. Levo amostras também de todos, e
também das ervas... É uma verdadeira lástima que eu não saiba distinguir as
plantas, o que muito me entristece. Bem vejo mil espécies de árvores...
sempre verdes como na Espanha de maio a junho e mil espécies de ervas,
todas com flores.”
Embora essas descobertas precisassem ser respaldadas com provas materiais, é
óbvio que o mundo natural não pode ser facilmente extraído de seu entorno. Para traduzir a
pujança de plantas, animais e paisagens foi necessário desenvolver um sistema imagético
de representação e classificação que contou não apenas com descrições literárias, pinturas e
desenhos, mas também com amostras ilustrativas do modo de viver do Novo Mundo. O
de noz moscada custava o equivalente a sete bois.
21
DEL PASO (ibidem: 13) recorda-nos que, graças ao relato do índio Juan Badiano, tradutor para o latim do
herbário asteca conhecido como Codex Barberini, hoje conservado no Vaticano, como também às pesquisas
de Francisco Hernández, autor da Historia Plantarum Novae Hispaniae, os espanhóis tiveram acesso a mais
de dez mil espécies de plantas encontradas no México e até então desconhecidas na Europa. Entre elas, a
tecuitlaxóchitl, ou flor dourada dos entardeceres, a magnólia, a dália e o girassol. Encantados com sua beleza
desconhecida buscaram representá-las em desenhos, ao mesmo tempo em que as índias inovavam seu
vestuário cotidiano adornando suas túnicas com técnicas de bordados europeus em que as flores assumiam
protagonismo.
22
“Aquí encuentra uno árboles de mil clases; todos dan fruto, cada uno a su manera, y despiden aromas tan
fuertes que verdaderamente dan placer. Me considero el hombre más afligido del mundo al no poder
reconocerlos, pero pienso que todos son de gran valor. Llevo muestras también de todos, y también de las
hierbas… Es una verdadera lástima que no sepa yo distinguir las plantas, lo cual mucho me atrista. Bien veo
mil especies de árboles… siempre verdes como en España de mayo a junio y mil especies de hierbas,
todas con flores”.
16
pesquisador colombiano OLARTE (2008: 22)
23
observa que “o ouro e a prata foram mais
fáceis de mobilizar que as plantas e os animais, de maneira que a possessão e o controle
dos seres vivos requer formas móveis de representação”. De fato, RODRIGUEZ (op.cit.:
257) revela que o conquistador espanhol Hernán Cortez enviou ao rei Carlos V mantas de
algodão colorido com adornos, assim como camisas, almofadas e tapetes, dada a
dificuldade de descrever a qualidade do material produzido no México (figura 4).
Figura 4 Mural pintado por Diego Rivera representando a produção de têxteis produzidos na capital asteca
de Tenochtitlán. Distrito Federal, México, novembro de 2009.
Nesse sentido, cabe aqui lembrar que as representações selecionadas pelos
conquistadores nunca primaram pela fidelidade ao elemento representado. Ao contrário,
sempre foram governadas por um conjunto de regras que determinavam aquilo cuja
visibilidade é adequada ou não - aos seus propósitos. As Cartas de Relação de Cortez
(são cinco, sendo que a primeira se extraviou), por exemplo, colocam os mexicas, ou
23
“El oro y la plata fueron más fáciles de movilizar que las plantas y los animales, de manera que la posesión
y el control de los seres vivos requieren de formas móviles de representación”.
17
astecas, dentro da imagem do bom selvagem de Rousseau
24
. Elas descrevem a laboriosa
produção de têxteis organizada em Tenochtitlán, capital asteca sobre a qual hoje repousa a
Cidade do México, para enfatizar o valor das plantas e animais dos quais se podem produzir
fibras, como o algodão e o maguey, ou extrair corantes, como é o caso do pequeno inseto
denominado grana cochinilha
25
, responsável pela disseminação do uso do tom vermelho na
Europa.
A dificuldade nos processos de exportação por vezes estava ligada ao ato de
comunicar ao Velho Continente que tipo de riquezas se encontravam no reino da Nova
Espanha. Era preciso recorrer a distintos métodos, que a idéia de ilustrar conserva parte
de seu antigo significado em latim: iluminar, explicar, esclarecer. Aprender a desenhar uma
planta é, em certo sentido, aprender a vê-la. Nomeá-la, por fim, é conceder-lhe certa
familiaridade. Os naturalistas que integraram as expedições além-mar desenvolveram
descrições detalhadas fazendo uso de referentes domésticos e recorreram às analogias para
gerar vinculação com o desconhecido
26
. A presença de determinada memória comum entre
produtor e consumidor de imagens reforça a comunicação. Para LOTMAN (1997: 111),
inclusive, a ausência dessa condição faz o texto indecifrável”. Essa pode ser uma das
razões pelas quais o Códice Bórgia
27
, cujo original encontra-se na biblioteca do Vaticano,
24
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo suíço, escritor, teórico político e compositor musical
autodidata, é uma das figuras marcantes do Iluminismo francês. Coloca o problema das relações entre
natureza e cultura, sendo precursor da etnologia. Rousseau é chamado o filósofo do bom selvagem, em alusão
às qualidades superiores que, a seu ver, exibiam os indivíduos que viviam no estado de natureza.
25
A cor da cochinilha é chamada nocheztli, que significa sangue, e é extraída do inseto que se abriga sob as
folhas de cactus. Nas culturas pré-hispânicas, a cochinilha foi cultivada com fins de produzir tintura nessa
tonalidade. Esse cultivo é bastante sofisticado e tecnicamente complexo, resultando num tributo importante
para os astecas. Fray Bernardino de Sahagún documenta que dezenas de comunidades, especialmente
zapotecas e mixtecas, tinham de contribuir com cinco, vinte ou quarenta sacos de cochinilha a cada 80 dias
Em 1660, a exportação desse corante correspondia à segunda maior fonte de renda da Coroa Espanhola depois
da prata (TUROK, 2000:92).
26
Sob esse aspecto, são notórias as pinturas comissionadas por Maurício de Nassau e realizadas por Albert
Eckout em território pernambucano, analisadas por OLIVEIRA (2000:10-30) no texto “Mauritsstad e visões
Brasiliae: aos europeus, o além-mar, e aos brasileiros, uma outra história”. A autora discute, no modo de
expor a fauna nativa, a postulação de um modo de ver no qual os elementos desconhecidos são comparados a
artigos europeus de forma a propiciar a leitura plástica e permitir associações entre imagens exógenas e
endógenas.
27
Os códices (ou codex, da palavra latina que significa "tábula", "livro", "bloco de madeira") são manuscritos
gravados sobre cascas de árvores que possibilitam uma leitura não-linear e o recurso do uso de várias
linguagens. Neles, texto e desenho atuam simultaneamente sobre o leitor. Esse tipo de suporte é conhecido
pela designação em náhuatl amatl, geralmente contendo desenhos e ilustrações da vida cotidiana dos povos
mesoamericanos, bem como referências ao contexto cósmico dos deuses, permitindo compreender calendários
e rituais. Geralmente, são denominados conforme o local onde estão guardados.
18
mostra mulheres vestidas com algodão; enquanto o Códice Florentino, coleção de textos
em nahuatl e espanhol do século XVI, apresenta exemplos de grana cochinilha e estampas
florais feitas com técnica de rolo ou selo (figura 5). RODRIGUEZ (op.cit.: 116)
28
pontua
precisamente que entre as descobertas arqueológicas se encontram muitos selos ou
estampadores planos e cilíndricos que se usaram desde os tempos pré-clássicos; os mais
antigos apareceram em Tlatilco, feitos de barro cozido ou pedra. Os motivos incluem aves,
flores e animais”.
Figura 5 Selos de estampar astecas feitos de barro cozido, atualmente exibidos no Museu do Templo Maior,
incluem imagens de flores e serpentes estilizadas. Distrito Federal, México, abril de 2008.
Assim, é possível notar que, entre as principais estratégias aplicadas na tarefa de
domar esse mundo selvagem, estão não apenas a aplicação de nomes cristãos e familiares,
mas, sobretudo, a acelerada elaboração de imagens visuais em que biosfera e noosfera
dialogam. Segundo MORIN (2005), a noosfera compreende o ambiente onde o homem
28
“Entre los hallazgos arqueológicos se encuentran muchos sellos o estampadores planos y cilíndricos que
se usaran desde tiempos preclásicos; los más antiguos parecieron en Tlatilco, hechos de barro cocido o
piedra. Los motivos incluyen aves, flores y animales”.
19
trabalha suas imagens endógenas, interagindo com o inconsciente coletivo de forma a criar
pontes entre o imaginário, o mundo da vida e o mundo cultural
29
. De acordo com ele, essa
esfera que nos envolve e, ao mesmo tempo, nos constitui, é tão importante quanto a
biosfera que compõe o mundo a nossa volta. Misto de cultura e imaginário, ao mesmo
tempo em que se torna nosso canal de comunicação com o mundo, também "serve de tela
entre nós e o mundo" (ibidem: 44). A noosfera engloba o domínio da imaginação, do
homem e da criatividade: compreende o desenvolvimento de idéias consensuais e
conceituais acerca da vida adotada pela coletividade e pelo indivíduo, na qual memória e
tempo são fundamentais. Logo, é possível observar que os processos de representação da
flora e da fauna do Novo Mundo também vão se configurando nesse ambiente.
Como a noosfera presta-se a uma partilha de imagens construídas pela coletividade
ao longo da história humana, o “mito da queda” do qual nos fala CORDÓN (1988), por sua
vez, pode invocar certa distância entre o descobridor e o descoberto. SANTOS (2006: 182)
lembra que “o que é descoberto está longe, abaixo e nas margens, essa „localização‟ é a
chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta; ou
seja, o descoberto não tem saberes, ou se os têm, estes apenas têm valor enquanto
recurso”. Por tal motivo, é possível concluir que a seleção de imagens deslocadas dessas
terras longínquas passou a abarcar artigos entendidos como recursos, muitos deles voltados
ao comércio e passíveis de consumo. Dentre esses bens, contudo, os panos destacam-se
pela portabilidade, leveza e qualidade superior aos similares europeus. É notório que, no
século XV, a comercialização de tecidos tornou-se mais importante que o intercâmbio de
commodities indispensáveis, como madeira ou ferro (DENNY, op.cit.: 183), e razões
palpáveis para esse desempenho exitoso em termos da migração de imagens exógenas.
Como os xteis são feitos de fibras naturais e vegetais, trazem em seu código genético as
potencialidades naturais de seu local de origem, tal e qual ocorre com os corantes usados
nos processos de tingimento. Além disso, a documentação iconográfica da botânica dos
rincões visitados, comum na decoração dos têxteis latino-americanos, ampliou seu
potencial mercadológico nos portos de destino: a imagem seguia, por fim, ao encontro do
29
O conceito de noosfera foi desenvolvido por Edgar Morin referindo-se especialmente ao ambiente "das
coisas do espírito, saberes, crenças, mitos, lendas, idéias, onde os seres nascidos do espírito, gênios, deuses,
idéias-força, ganham vida a partir da crença e da fé” (MORIN, 2005: 44).
20
imaginário estabelecido. Nesse sentido, sob o prisma de Warburg, as imagens presentes nos
têxteis poderiam se configurar como um elemento de discussão espaço-temporal pleno de
conflitos, não uma corrente linear em que o vem depois imita ou é influenciado pelo que
está antes.
Chita, chitinha, chitão
Seguindo os parâmetros originalmente estabelecidos por Pross, observamos
anteriormente que os tecidos assumem a função de mídia secundária ao se acoplarem ao
corpo para produzir significação. Em virtude da nova forma de contato, o uso junto ao
corpo, e da complexidade dessa interação, a flora latino-americana passou a ser assimilada
pelos viajantes em têxteis adornados com estampas florais. As imagens constituem teias de
vinculação entre os seres humanos, particularmente quando a confecção à mão aporta um
sentido de identidade e pertencimento distante do mundo despersonalizado da produção em
série. Intervenções, sobreposições, recortes e acúmulos alteram a existência, forma e
qualidade dos elementos do mundo natural, criando um campo onde nossa percepção pode
reconhecer a natureza, porém em novas imagens, distintas das anteriores, ainda que ligadas
a elas.
Em 1591, num tratado intitulado Sobre os vínculos em geral, o filósofo italiano
Giordano Bruno (1548-1600) pontuava que todo vínculo também se constitui no seu
oposto, sendo que o ambiente vai favorecer a natureza da ligação entre dois ou mais
elementos. Portanto, se uma idéia de atração, nela também reside a repulsa: justamente
quando a força natural de afinidade que se constrói transforma-se numa amarra, numa
algema ou mesmo num grilhão. Esse é o lado sombrio dos vínculos comunicativos, que
conduz ao caminho da apropriação e do eventual enfraquecimento de uma das partes
envolvidas no processo. Num contexto de deslocamentos de materiais têxteis como o que se
evidencia no período das Grandes Navegações, um pano florido de algodão ordinário se
destaca nessas tramas de vinculação comunicativa, que as rotas percorridas por esse
tecido fizeram dele suporte para muitas imagens viajantes. Trata-se da chita, termo que se
refere sempre ao tecido feito com algodão, seja ele estampado de modo artesanal ou
industrial, invariavelmente com desenhos florais, que podem ou não incluir também listras,
frutas, heráldicas, animais e cestas como motivos adicionais. Os franceses chamam-na de
21
indienne ou toile peinte (tela pintada), inspirados pelo tipo de tecido usado como base para
a estamparia, muito parecido com o que denominamos de morim
30
no mercado têxtil
brasileiro. em Portugal ela foi inicialmente conhecida como “pintado” em virtude das
imagens mais parecerem manchas sobre o pano.
Originária da Índia e difundida no Brasil pelos portugueses, que a haviam herdado
das expedições de Vasco da Gama, chita quer dizer “variado”, em sânscrito. É essa
justamente sua maior qualidade, capaz de torná-la popular até mesmo na Inglaterra, onde
responde pelo nome de chintz (que vem do hindi chint e do marata chit, significando pinta
ou mancha
31
); ou na França, onde se estabeleceu na região da Provença, originando as telas
conhecidas como provençais. Talvez por assumir tantos codinomes sem grande
desassossego, esse tecido floral também está dentre os itens mais utilizados na produção de
artigos de vestuário e artesanato decorativo no Brasil (figura 6).
Particularmente, em sua versão mais exuberante, o chitão. Essa versão mais
extravagante da chita apresenta diferenciais evidentes, caracterizando-se, conforme
MELLÃO et.al. (2005: 30), “(...) pelas estampas florais bem grandes, em cores vivas, com
traços de grafite delineando contornos, e que cobrem toda a trama do tecido engomado”.
O nome surgiu nos anos 1950, possivelmente devido à largura da fazenda lançada pela
Fiação e Tecelagem São José. Incentivada pela euforia do Plano de Metas de Juscelino
Kubistchek, essa indústria mineira ousou ofertar chitas de largura maior para uso em
decoração. Naquela época, as peças tinham entre 60 e 90 centímetros de largura, limite
determinado pela dimensão dos teares existentes no Brasil
32
, mas o chitão chegou a ser
produzido com 1,90 metro para uso na forração de colchões.
30
O morim é um tecido de algodão extremamente barato, semelhante a uma tela, onde há um fio de urdume
para cada fio da trama (por isso, chama-se “um por um”). “Para se fazer o morim, monta-se no tear o que se
chama urdume, que é uma sequência de fios esticados paralelamente e presos nas duas extremidades. Esse
feixe é atravessado pelos fios enrolados na navete ou lançadeira que conduz os fios, cumprindo o mesmo
papel “condutor” que a agulha tem na costura e formando a trama”. (MELLÃO et.al., 2005: 141).
31
JENKINS (2003:01) admite que a palavra foi documentada inicialmente nos contratos comerciais da
Companhia das Índias Orientais, onde aparece como chint (singular) e chintes (plural), extraída, por sua vez,
dos termos hindus utilizados na região oriental da Índia, notadamente em Gujarat, Khandesh e Rajasthan.
Nessas localidades, referia-se, exclusivamente, a algodões impressos ou pintados à mão para uso no vestuário.
Tecnicamente, inclusive, existe uma distinção. Os tecidos impressos eram considerados comuns, enquanto os
pintados manualmente eram tidos como valiosos e especiais.
32
“Foram então cortados dois teares de noventa centímetros e remontados, para permitir tecer peças com
1,2 metros de largura” (MELLÃO et.al., ibidem: 115).
22
Figura 6 Chitas produzidas no Brasil nos anos 40 e 50, exibidas na mostra “Que Chita Bacana”. À
esquerda, vemos precursor do atual “chitão” e, à direita, versão nacional da chitinha. No meio, encontra-se a
chita inspirada nos produtos de Alcobaça. São Paulo, Brasil, maio de 2006.
Todavia, a mola propulsora para o estabelecimento da primeira tecelagem
exclusivamente dedicada à chita em escala industrial no Brasil é bastante anterior. Trata-se
da demanda por algodão norte-americano resultante da Guerra da Secessão. Em 1868, na
região de Curvelo, em Minas Gerais, os irmãos Bernardo e Caetano Mascarenhas fundaram
a primeira fábrica para produção em larga escala, a Cedro, a qual se sucedeu, cinco anos
depois, outra unidade denominada Cachoeira. A Cedro & Cachoeira expandiu-se para
outras cidades, como Caetanópolis e Pirapora. Em 1906, começou a produzir o que
chamava de um pano popular, precursor da chita, batizado de “zé do povo”. Dois anos
depois, abriu sua primeira estamparia, fabricando 92 tipos diferentes de fazendas. Com a
Primeira Guerra Mundial, entretanto, foi preciso buscar um produto apto a subsistir num
mercado em crise. A chita foi eleita e rebatizada: cedroline, a chita da Cedro, foi fabricada
23
até 1961 como produto único
33
. Muitas vezes, imitava os padrões ingleses de pequenas
flores, ampliadas ou não na versão brasileira (ibidem: 97).
Na verdade, a estamparia de flores miúdas foi inicialmente popular no Japão, onde
recebeu o nome de “sarasa”, sendo comercializada por mercadores espanhóis e holandeses
no período Edo (1603-1867). O sarasa mimetizava exemplares indianos no esquema de
cores, embora a impressão possa ser feita com técnicas diferentes: aplicação de blocos de
madeira esculpidos e recobertos de pigmento colorido sobre o pano, estencil
34
resistente à
cera ou estencil com pasta de arroz. OLARTE (op.cit.: 21) aponta que “o ato de nomear,
como o próprio batismo, é uma forma de criar um vínculo e torna possível a incorporação
do alheio num marco de referência familiar e único”
35
. Talvez por esse motivo, na
Inglaterra dos anos 1860, o comerciante Arthur Liberty desenvolveu uma versão elegante e
batizou-a com seu próprio nome. O padrão ornamental floral, contudo, ganhou mundo com
o apelido de “chitinha”
36
. “Era comum ampliar uma flor de chitinha para utilizá-la no
chitão” (MELLÃO et. al., op.cit.: 128). O aumento das estampas está ligado às demandas
de mercado tanto quanto às dificuldades técnicas em misturar mais de seis tonalidades.
Dada a falta de proteção dos direitos autorais dos estampadores e das empresas
produtoras
37
, a imagem era transferida mediante cópia desenhada em papel vegetal
quadriculado até o final dos anos 90.
Essa ampla difusão entre mercados e camadas sociais nos aponta que consumidores
menos abonados, independentemente de sua localização geográfica, buscam se apoderar
das imagens presentes na chita numa espiral rítmica de saciedade e carência amplamente
incentivada pela indústria, pelo comércio e pela comunicação de artigos de moda e
decoração. Com a sofisticação da produção, surgiram até mesmo chitões para decoração
33
Em 1973, a Cedro & Cachoeira deixou de produzir chita, dedicando-se ao fabrico de tecido cru, tingimento
e denim. Em 1983, a empresa inaugurou o Museu Décio Mascarenhas para resgatar a memória do tecido.
34
Estêncil, do inglês stencil, é uma técnica de impressão extremamente simples em que uma ilustração é
recortada em papel, papelão, metal ou outros materiais, de forma que esse molde seja recoberto de tinta para
reproduzir tal figura sobre outro suporte.
35
“El acto de nombrar, como el bautismo mismo, es una forma de crear un vínculo y hace posible la
incorporación de lo ajeno en un marco de referencia familiar y único”.
36
Nos Estados Unidos a chitinha recebe o nome de “calico”, possivelmente em virtude das primeiras chitas
terem sido encontradas na cidade indiana de Calicute.
37
MELLÃO et. al. (op.cit.: 135) atesta que “hoje, já é possível identificar um trabalho de autor, apesar da
ausência total de patente ou de dirito autoral de estampas”.
24
feitos com programas computadorizados de criação e edição. Mesmo assim, é praticamente
impossível provar que uma estampa tenha sido copiada diretamente de outra, diante das
muitas alterações sofridas nessa infinita reciclagem imagética, na qual se perdem contornos
e proporções ou mesmo o realismo dos motivos de inspiração. Como bem apura
BAITELLO (2004a:164) ao ampliar e diferenciar o conceito de antropofagia forjado por
Oswald de Andrade (1890-1954):
“a apropriação do espaço e de seus recursos, a apropriação do tempo e de
seus atributos, a apropriação das mentes e de suas imagens nem sempre
passam pela relação direta de apropriação entre dois corpos, sofrendo
nestes casos de um processo de mediação pelas imagens. Então, com isso,
temos o surgimento da iconofagia”.
Esse movimento à guisa do estabelecimento de vínculos comunicativos
eventualmente geraria mais déficits porque exige reposições exaustivas, dando origem às
plicas e apontando a existência do que BAITELLO (ibidem: 166) chama de “iconofagia
patológica”.
Mas, como esses vínculos comunicativos são elaborados? E de que forma são
apropriados e padronizados numa era em que o planeta encolhe rapidamente?
Curiosamente, vimos com BRUNO (1591) que esse não é um fenômeno recente como, a
princípio, poderíamos supor, em face da galopante globalização e da intrincada rede
política e econômica que dela advém. Ainda assim, poucos estudos dedicam-se a esse tema
do ponto de vista do design e da comunicação. O biólogo HARLOW (1958) dá uma
contribuição contundente ao entendimento da natureza indócil dos vínculos comunicativos
quando observa que essa ligação inicia-se a partir da mais tenra infância. O cientista
estudou o comportamento dos macacos Rhesus em experiências que visavam descobrir
quais as origens do amor entre mãe e filho. Suas descobertas apontam para o fato de que,
quando isolados da mãe, os filhotes não conseguiam exprimir afeto na vida adulta. A falta
do aconchego transformava-os em adultos emocionalmente deficientes. A exceção limitou-
se aqueles que foram isolados em jaulas que continham simulacros da mãe em pelúcia. Isso
provou ao biólogo que a relação primitiva entre mãe e filho não está pautada somente pela
alimentação, mas especialmente pelo aconchego, que é sentido na própria pele e
25
amplamente incentivado por imagens olfativas e táteis.
A partir dessa constatação, o cientista desenvolveu estudos acerca dos estágios de
complexidade dos vínculos. Para ele, os vínculos somam-se uns aos outros, construindo
histórias de vida. Seu sistema afetivo de base, que BAITELLO (op.cit.: 31-35) denomina
“sistema de vínculos”, inclui cinco diferentes possibilidades de ligação emocional que, de
modo geral, poderiam ser assim especificadas: maternal (aconchego doado pela mãe para a
criança); filial (reação amorosa da criança diante da mãe); fraternal (união entre irmãos ou
pessoas da mesma faixa etária e interesses); sexual (parceria de um casal); paternal (relação
baseada na autoridade e na hierarquia). Nos termos do estudo que conduzimos, podemos
relacionar processos de vinculação em diferentes situações de uso dos padrões ornamentais
florais. Por exemplo, as colchas e os lenços de chita da cidade portuguesa de Alcobaça
38
foram muito usados pelos imigrantes portugueses que chegaram ao país nas primeiras
décadas do século XX, criando entre eles um sentimento de irmandade e uma identificação
visual rápida perante seu próprio grupo social. Ao longo do tempo, a sensação de
pertencimento a uma raiz comum expressa nas imagens que flutuavam nas chitas
alcobacenses fortaleceu o vínculo fraternal. No final daquele século, lenços e colchas
feitos desse tecido foram adquiridos como antiguidades, despertando a atenção de
colecionadores. Isso ocorreu notadamente com peças dos séculos XVIII e XIX, estampadas
com motivos orientais, aves e flores.
Outro pesquisador, o etólogo holandês WAAL (1990), oportunamente observou que
nem todos os primatas buscam vincular-se da mesma maneira. Mais até: os seres humanos,
por sua vez, teriam maior capacidade de recuperação das lesões afetivas do que os demais
mamíferos superiores, desde que se vissem diante da possibilidade de recuperar esse afeto e
reverter a carência mediante o estabelecimento de vínculos de comunicação mais
complexos. Isso em parte explicaria a razão pela qual a chita brasileira, uma vez
incorporada como insumo indispensável às coleções de marcas de moda e estilistas
38
A cidade de Alcobaça situa-se entre a Serra dos Candeeiros e a costa atlântica, a 42 metros de altitude e
rodeada pelos rios de Alcoa e Baça sossegadas testemunhas da presença romana e visigótica. Nasceu de um
castelo árabe a que se juntou, pouco tempo depois, o mosteiro cristão. Hoje reúne, entre o morro do Castelo e
o Mosteiro, curioso núcleo de ruas e travessas de aspecto medieval.
26
consagrados, torna-se um sucesso comercial
39
. É justamente nesse ponto que o mercado
entra em cena com a oferta inflacionada de imagens que simulam as relações comunicativas
objetivadas mediante a articulação da mídia primária (no nosso caso, o corpo do
consumidor) associada à mídia secundária (roupas e acessórios feitos de chita) como meios
visuais, ou médium, nos quais as imagens estão encarnadas”, para usar o termo preferido
por BELTING (2007). Primos pobres da finíssima cambraia de algodão, porém mais
robustos e vistosos, a chita, a chitinha e o chitão viraram bolsa, blusinha ou minissaia
também longe das passarelas. Habitam sem distinção os guarda-roupas de patroas e
domésticas, adolescentes ou aposentadas.
Como o próprio BELTING (ibidem: 69)
40
reconhece, “(...) cada imagem, uma vez
cumprida sua função atual, conduz, em conseqüência, outra vez, a uma nova imagem”.
Hoje, as chitas são recortadas, aplicadas e rebordadas para renascerem distintas, fênix dos
templos de corte e costura que circundam as ruas de comércio popular, como a 25 de
Março, em São Paulo, o Chão da Feira, em Lisboa, o “Hueco”, em Medellín, ou a rue des
Abesses, em Paris. Não somente reafirmam certas imagens da cultura, como também
introduzem outras influências, posteriormente incorporadas à indústria têxtil
contemporânea mediante seu uso por designers de moda. Tome-se como exemplo as chitas
produzidas pela inglesa Liberty, à venda no comércio popular francês. A loja de tecidos
Reine, situada na região da estação de metrô Barbès, ponto de encontro de imigrantes
africanos em Paris, oferece o sofisticado padrão inglês Liberty da temporada anterior por
preços módicos (figura 7). “À imagem do lugar real se contrapõe a do lugar imaginário, no
qual tudo é diferente ou onde tudo havia sido bom”
41
(ibidem: 88). Nesse sentido, é
importante destacar o papel do comércio no trânsito imagético. Isso nos faz concordar com
D‟ALVIELLA (1995: 201) quando argumenta que “a migração dos símbolos ocorre
diretamente em conformidade com o que se poderia chamar de história do intercurso
comercial.”
39
É o caso das saias, blusas e vestidos criados pelo mineiro Ronaldo Fraga para a coleção Quem Matou Zuzu
Angel? (verão 2002), confeccionados em chitinha, assim como das camisas e jaquetas com estampa de chitão
desenhada com exclusividade pelo paulista Reinaldo Lourenço na coleção Café (verão 2010).
40
“Cada imagen, una vez que haya cumplido su función actual, conduce en consecuencia otra vez a una
nueva imagen”.
41
“A la imagen del lugar real se contrapone la del lugar imaginario, en el que todo era diferente o donde todo
había sido bueno”.
27
Figura 7 Padrões ornamentais florais da marca inglesa Liberty de temporadas anteriores à venda em loja
popular na capital francesa. Paris, França, agosto de 2008.
28
É interessante notar que, nessa loja, as imagens inglesas são apresentadas ao lado
dos motivos florais africanos tradicionais e dos têxteis provençais franceses. Isso possibilita
não a comparação, como a mescla de todos na confecção de novos itens, convertendo
roupas no espaço de vida das imagens coletivas. Paralelamente, a marca brasileira Ellus
Second Floor oferta o tecido em metro em sua loja do shopping Cidade Jardim, em São
Paulo, de forma a compor a decoração deste espaço comercial, no qual inclui produtos de
outras procedências que não sua própria fábrica. Como coloca BOORSTIN (1992: 06),
“eles são o mundo da nossa fabricação: o mundo da imagem”
42
. Nesse caso, as imagens
expandem-se para o ambiente da experiência de consumo, que é vivenciado também como
uma imagem.
A chita e as imagens da cultura
Para BELTING (2007), toda imagem visível está necessariamente inscrita em
médium de suporte ou de transmissão. São médium que nos permitem perceber as imagens
e, nesse caso, o corpo humano volta ao centro do debate como meio privilegiado, visto que
ele mesmo produz imagens endógenas em sonhos e fantasias. Neste estudo, entendemos o
design da chita como médium de imagens da cultura das localidades onde é produzida e
comercializada. Imagens podem também simular aquilo que nos faz falta. Segundo
FLUSSER (2005:09), “as imagens são mediações entre o homem e o mundo (...),
superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que está lá fora no
espaço e no tempo”. Como as dimensões de espaço e tempo são suprimidas, as imagens
tendem a restringir a circulação do olhar à superfície do plano. Assim, tornam-se biombos
que permitem meramente antever cenas sem recompor as dimensões abstraídas. Por outro
lado, abrem uma brecha para que essa recomposição seja realizada em outras esferas, entre
as quais o design de estamparia.
Se levarmos em consideração que os vínculos estão intrinsecamente ligados à
memória e à experiência vivida, podemos concluir que as imagens configuram-se como
vinculadoras em processos comunicativos. Com respeito às chitas, o próprio material que
suporta a produção imagética carrega em si forte carga vinculadora. Estamos falando do
42
“They are the world of our making: the world of image”.
29
algodão. O algodoeiro é uma planta da família das malváceas, do gênero Gossypium, nativa
das regiões tropicais do planeta, cujas fibras crescem aderidas às sementes. Segundo
CHATAIGNIER (2006: 39), tratam-se das fibras mais utilizadas no mundo, vestindo cerca
de ¾ da população do planeta. Elas nascem dentro de cápsulas que se abrem quando
maduras, mostrando flocos muito frágeis, que devem ser colhidos imediatamente. Isso
porque suas flores, levíssimas como uma pluma, têm vida curta: 12 horas em média. No
entanto, os elementos que as compõem celulose, água e gordura constituem fibras cuja
durabilidade muito vem impressionando os tecelões
43
. O algodão esteve presente nos
tratados comerciais da Mesoamérica
44
e até do Caribe, graças ao aumento da demanda
gerado pelo poderio asteca. Por volta de 1579, oferecia-se algodão aos deuses na região de
Oaxaca por suas qualidades de resistência, suavidade e finura
45
.
TUROK (2000: 91-92) comenta que, dado o alto valor utilitário da fibra, algumas
províncias subjugadas ao domínio asteca tinham de pagar tributo em forma de pacotes de
algodão branco (xilla em zapoteca e ichcatl em nahuatl) ou algodão amarelo (coioichcatl).
Em sua Historia General de las Cosas de Nueva España, Fray Bernardino de Sahagún
descreve esse tipo de tributo (LAVIN e BALASSA, 2001b: 87): de algodão faziam
excelentes tecidos, uns grossos e outros tão delgados e sutis como os da Holanda, que
foram justamente apreciados na Europa. (…) Teciam-nos com diferentes trabalhos e cores,
representando neles vários animais e flores”
46
. O algodão se constituia como suporte de
imagens viajantes. Para confeccionar seus têxteis, a nação zapoteca, por exemplo, era
influenciada por Teotihuacán, capital asteca, absorvendo motivos de decoração geométricos
e, especialmente, florais. A elite zapoteca preferia o algodão do que a fibra de maguey,
conhecida como ixtle, que era voltada às classes populares (RODRIGUEZ, op.cit.: 181).
Isso porque o algodão é um material extraordinário para confeccionar tecidos densos.
Paralelamente, a relação ambígua entre resistência e delicadeza permite também a
43
As fibras são classificadas conforme seu comprimento: inferiores, se menores de 22 milímetros; médias, se
medirem de 28 a 34 milímetros; longas, se tiverem mais de 34 milímetros (PERUZZOLO, op.cit.: 42).
44
Denomina-se Mesoamérica a uma extensão territorial que ocupa o que é hoje o México e a América
Central” (RODRIGUEZ, op.cit.: 25).
45
Fragmentos têxteis recuperados nas montanhas mixtecas evidenciam o uso de algodão em Oaxaca nos
períodos clássico e pós-clássico e há um exemplar de algodão tingido com azul (maxtlalt) que evidencia o
interesse comercial em produtos têxteis tingidos (TUROK, 2000: 92).
46
“De algodón hacían excelentes telas, unas gruesas y otras tan delgadas y sutiles como los de la Holanda,
que fueron justamente apreciadas en Europa. (…) Tejían esas telas con diferentes labores y colores
30
construção de panos muito finos, propiciando uma ampla variedade de usos.
Essas características, associadas ao baixo custo dos processos mecânicos e
químicos, à possibilidade de tinturas ou lavagens com pouco desgaste, à combinação
perfeita com outras fibras naturais ou sintéticas e à utilização dos resíduos para a produção
de óleo comestível e farelo para gado ampliaram muito seu emprego ao longo do tempo.
No Brasil, o algodão foi utilizado tanto em vestimentas de escravos quanto no fabrico de
têxteis para uso doméstico das classes superiores da estrutura social. Nas três primeiras
décadas do culo XIX, as indústrias têxteis algodoeiras contribuíram, inclusive, na
formação da elite empresarial paulistana
47
e nos processos de exportação de fibras para a
Inglaterra. Os britânicos ficaram atentos à eficiência da manufatura nacional, especialmente
diante do crescimento da estamparia. No início do culo XX, a cidade de São Paulo
assumiu proporções importantes na produção têxtil com o aumento das lavouras
48
, sendo
elevada à posição de maior centro manufatureiro da América do Sul (CARAMASCHI,
2008: 66). Como suporte de imagens errantes, o algodão brasileiro foi se convertendo num
elemento cuja mobilidade física e social é muito vasta, à exemplo do ocorrido com as
variantes orientais e mesoamericanas. Essa situação de contínuo deslocamento propiciou o
cenário adequado para que têxteis de algodão se convertessem em médium para as imagens
das culturas por eles visitadas.
Por mares nunca dantes navegados
Em 445 a.C., Heródoto se referia elogiosamente aos algodoeiros da Índia
49
, onde
parece ter surgido o cultivo da planta durante a Idade do Bronze. Foram os indianos que
propiciaram a propagação do uso dessa fibra têxtil, mediante sua comercialização, a partir
de 2.600 a.C. Nessa época, o algodão era trocado por lãs da Mesopotâmia. Mercadores
hindus levaram-no ao Egito e dali a fibra se espalhou para o leste do Mediterrâneo
50
.
representando en ellas varios animales y flores”.
47
CARAMASCHI (2008:63) lista como principais fabricantes a Tecelagem São Luís, a Tecelagem
Cotonifício Rodolfo Crespi e a Tecelagem e Fiação Mariângela, pertencente ao complexo industrial da família
Matarazzo.
48
Nesse período, a autora documenta que a produção chegou a 50 mil toneladas, absorvendo 40% do capital
e 23% de toda a mão-de-obra empregada na indústria nacional.
49
“Ali encontramos grandes árvores em estado selvagem cuja fruta é uma lã melhor e mais bonita que a de
carneiro. Os indianos utilizam essa lã de árvore para se vestir”. HERÓDOTO apud PEZZOLO (op.cit.: 25).
50
RODRIGUEZ (op.cit.: 73), por sua vez, relata que em Tehuacán, Puebla, foram encontradas fibras de
31
Naquele país, a arte da tecelagem é ocupação doméstica e chegou a atrair quase a metade
de sua população (PEZZOLO, 2007: 26). Assim, foi naturalmente que a Índia passou a
exportar seu algodão, constituindo-se num ponto de encontro entre comerciantes do
extremo Oriente e do Ocidente.
Antes de sua independência, em 1947, a Índia chegou a figurar como a maior
indústria têxtil do mundo, na qual o algodão ostentava status de estrela. Os portugueses
foram os primeiros a se encantar com a mescla de cores e estampas produzidas pelos hindus
em algodão, embora tenham sido os últimos a, efetivamente, instituírem o uso das técnicas
indianas de adorno em suas próprias fábricas. A chegada de Vasco da Gama à Índia, em
1498, abriu novos horizontes ao comércio algodoeiro, inspirando holandeses e ingleses a
ingressarem nesse tipo de negócio. Isso favoreceu o enriquecimento das cidades indianas,
situação que se reverteu no século XVIII, quando o tecido em estado bruto passou a ser
levado para aplicações de adornos na Europa e reenvio à Ásia para comercialização junto à
população local. Quando o navegador português desembarcou na costa asiática, suas naus
imediatamente impressionaram os calicutenses
51
, acostumados, segundo ORTIZ (2003:31),
com os pequenos barcos dos mercadores árabes, vindos majoritariamente do Egito, Ormuz
e Etiópia, com quem negociavam anos
52
. Igualmente, também os navegadores
portugueses ficaram pasmos com a aparência de boa parte dos habitantes locais:
“Os homens eram morenos, usavam grandes barbas, longos bigodes e
cabelos compridos. Outros traziam as cabeças raspadas. Das suas orelhas
pendiam enormes brincos de ouro. Nus da cintura para cima, cobriam a
parte inferior do corpo com um pano de algodão muito fino, cruzado por
entre as pernas, como uma grande fralda. As mulheres eram baixas e de
corpos pequenos, ornados com jóias de ouro e braceletes de prata. Nos
dedos dos pés usavam diversos anéis com pedras preciosas (ibidem: 33).
Mas chegar não era suficiente. MORIN (1990: 15) nos ensina que “uma cultura
algodão datadas de 7.000 a.C.
51
ORTIZ (2003: 31) relata que “na manhã de 27 de maio de 1498, após navegar por mais de dez mil
quilômetros, durante quase um ano, as três caravelas restantes da frota comandada por Vasco da Gama
aportaram no principado hindu de Calicute, na costa do Malabar, sul da Índia”.
52
A costa do Malabar já havia sido visitada por navegadores fenícios, romanos, árabes e chineses antes da
chegada dos portugueses, sendo que seus cais serviam como entrepostos comerciais para especiarias e
32
fornece pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio práticos à vida
imaginária (...)”. De fato, após passar três meses em companhia do samorim, monarca
daquele principado, Gama retorna à Lisboa com uma carga de especiarias, pedras preciosas
e tecidos estampados com métodos distintos dos acabamentos utilizados na Europa. É
importante observar que nesse período a Europa não conhecia a técnica de estamparia.
Praticava estritamente a tinturaria, que permite modificar a cor original de um tecido liso
sem adorná-lo com desenhos. Os indianos, contudo, dominavam uma substância chamada
mordente, a qual permite elaborar desenhos sem que esses se misturem ao serem tingidos,
lavados ou expostos ao sol. Os marujos da armada de Gama ficaram fascinados com a
novidade asiática e viram nela imagem apropriada para apresentar ao rei português o
poderio e a riqueza do samorim. Afinal, como bem nota BOORSTIN (1985: 158): “a retro-
alimentação dos povos da terra requeria a habilidade de retornar ao ponto de partida e de
transformar as temporadas em casa mediante as commodities e o conhecimento que os
viajantes tinham adquirido além-mar”.
O encontro fortuito dos estampados hindus com outros consumidores além-mar foi
resultado dessa aventura financiada pelo rei português. Sua visão não obedecia somente ao
desejo de buscar pujança econômica mediante o domínio do comércio marítimo, mas sim à
vontade de ampliar os horizontes reais e imaginários do homem europeu. Colchas bordadas
foram vendidas em Portugal em 1520 e roupas de chita rebordada foram incorporadas ao
guarda-roupa de membros da corte de Filipe II. Logo, os florais hindus se tornaram uma
moda reconhecida junto à nobreza ibérica (LEMIRE, 2003: 67). Portugal abriria
estamparias próprias no final do século XVIII, possivelmente devido à facilidade de
enriquecimento com o comércio ultramarino e à dependência política da Inglaterra, até
então o principal fornecedor de têxteis manufaturados. Mas os estados europeus não se
contentaram em subjugar seu desejo ao monopólio do comércio ibérico. A princípio
procuraram rotas de acesso próprio aos tecidos indianos perseguindo as imagens de riqueza
geradas em torno desses reinos distantes por amostras de chita trazidas pelos aventureiros.
Daqui decorre a organização de consórcios de mercadores portugueses com estrangeiros, ou
ainda a proeminência de cristãos-novos portugueses. Entregam-se, agora, a nichos de
mercado: miudezas de luxo como os panos, as porcelanas e o mobiliário, sobretudo desde
marfim. Calicute era o mais destacado entre eles.
33
que a Companhia Holandesa das Índias Orientais se tornou dominante no início do século
XVII, ao conquistar bases produtoras estratégicas e ao arrecadar, para si, o mercado das
especiarias. Depois disso, vários países europeus entre os quais Suíça, Alemanha,
Holanda, Inglaterra e Itália - desenvolveram manufaturas próprias, produzindo similares
nacionais das chitas indianas.
É interessante notar que as oficinas de estamparia, chamadas ateliês de indiennage,
começaram a beneficiar chitas de melhor qualidade técnica que aquelas procedentes do
Oriente. Entre 1600 e 1800 a Inglaterra foi invadida por motivos indianos de flores, aves e
folhagens: nos tecidos das cortinas, no revestimento das paredes, no estofamento dos
móveis, nos vestidos femininos e nos robes masculinos. Conforme LEMIRE (ibidem,
idem), mais de um milhão de peças foram importadas em 1684, totalizando entre 60% e
70% do total de importações do Oriente. O valor dado às estampas florais era tamanho que
os bens dessa natureza eram inclusive listados nos inventários como herança. Industriais
britânicos forçaram o parlamento a banir os algodões importados em 1721, incentivando a
produção européia. Em Marselha, Amsterdã e Londres o exótico estava sendo
domesticado, formas alienígenas estavam ganhando uma aparência familiar (...)
53
(ibidem: 78). A visão britânica dos estampados, constituída por imagens por vezes
caricaturais, era também comercializada na própria Índia. Isso porque os empresários do
setor acreditavam que quanto mais próxima do padrão indiano, maior probabilidade das
peças caírem no gosto do consumidor de além-mar.
Segundo MELLÃO et.al. (op.cit.: 52), o Brasil foi obrigado por Portugal a importar
chitas inglesas para negociar escravos africanos. Isso porque o tecido era moeda corrente
visto que interessava aos comerciantes de mão-de-obra escrava dado seu alto valor no
mercado negro
54
. Mesmo em épocas de política protecionista de Portugal a importação de
tecidos indianos foi mantida e muitos desses panos passaram pelo Brasil, tanto quanto suas
imitações inglesas. Daqui partiam com os traficantes de escravos para o continente
53
“In Marseille, Amsterdam and London the exotic was being domesticated, alien forms were given a more
familiar look”.
54
FERREIRA (2001: 10) esclarece que “o uso de chitas teve um sucesso tão grande que os tecelões ingleses
de lã e seda reagiram e pediram ao governo a proibição do uso de algodão pintado e da sua importação”.
Esse fato gerou um mercado paralelo de artigos de chita contrabandeados ou mesmo pirateados, conforme
veremos mais profundamente no capítulo dois da tese.
34
africano, onde as imagens presentes no design desses tecidos foram se mesclando àquelas
da cultura local. Assim, percebe-se que essa situação de deslocamento e engaste também
ocorre com respeito às imagens embutidas no design das chitas africanas. “Hoje, podem ser
encontradas peças de chita com estampas ligeiramente semelhantes às nossas, em outras
cores, também vibrantes, e, muitas vezes, com o brilho característico do chintz inglês”
(ibidem, idem).
A história é organizada pela memória consciente, ao passo que o imaginário não se
orienta por mapas espaço-temporais, mas sim pela pós-vida das imagens, pela memória
inconsciente. O suporte some e a as imagens permanecem mesmo sem a continuidade do
suporte. O aspecto mais sombrio resultante desse processo observa-se a partir do século
XX, quando boa parte das chitas passa a ser fabricada em países europeus, como a Holanda,
estritamente para os mercados africanos, reforçando o vínculo paternal (figura 8).
Figura 8 Chitas produzidas na Holanda com padrões africanos em que se identificam serpentes estilizadas e
jasmins estrelados, em vitrina de loja popular da capital francesa. Paris, França, agosto de 2008.
35
Esses tecidos incluem, entre as imagens florais estilizadas, palavras de ordem
política, cenas com animais da savana e outros elementos que vão ao encontro das imagens
endógenas mais comuns entre turistas. São imagens que os estrangeiros esperam encontrar
nos corpos dos nativos tanto quanto nos souvenirs que levam de suas visitas aquele país. Os
consumidores locais perdem, assim, qualquer possibilidade de ter voz ativa no mercado
global de produtos de moda. Mesmo as chitas produzidas no Quênia com o objetivo de
revenda no entreposto de Zanzibar, na Tanzânia, seguem essas diretrizes. Estampados com
visões infantilizadas ou estereotipadas da flora nativa reforçam um vínculo paternal
mediante a autoridade sufocante dos grandes centros difusores da moda internacional. A
estamparia reforça assim relações de domínio imagético colonialista, em que as flores
estilizadas substituem metonimicamente a morte simbólica do potencial criativo local, sua
conseqüência direta. Conforme BAITELLO (2005: 48): “se a motivação primeira da
produção de imagens foi a tentativa de fugir da morte, esta tentativa, repetida
exaustivamente, fez evocá-la, recordando-a não mais em espaços de cultos e rituais,
mas em todos os espaços e tempos da vida humana”.
No caso das chitas, a evolução cnica do suporte têxtil busca colonizar o
imaginário em prol de um “público” definido, seja no mercado interno, seja no âmbito da
elaboração de souvenirs para o mercado de turismo massivo. Afinal, como bem analisa
MORIN (1990: 35), “a procura de um público variado implica a procura de variedade na
informação ou no imaginário; a procura de um grande público implica a procura de um
denominador comum”. Esse mesmo denominador conferiria, segundo o autor, certa
decodificação imediata, cuja universalidade ocultaria os mais diversos conteúdos. Assim,
não raro a cultura de massa deixa vazios culturais preenchidos com estereótipos. As rotas
nunca dantes percorridas pela imensa maioria dos cidadãos africanos que consomem chita,
tanto quanto dos turistas em busca de aventuras num imaginário exótico, têm seu
significado deslocado e compartilhado mediante procedimentos de iconofagia. Ou seja,
devoração, ou consumo, de uma imagem pela outra.
No bazar global, conscientemente ou não, as empreitadas da envergadura das
Grandes Navegações (no intuito de construir o poderio do que poderíamos chamar de certa
36
“marca-país”) e o próprio comércio colonial de outrora e de hoje - também buscam
substituir relações afetivas usando imagens para embalar bens que, uma vez acessados,
permitem aos consumidores preencherem vazios emocionais e culturais. Dessa feita,
observamos que não apenas HARLOW (op. cit.) criou simulacros para corrigir lapsos de
afetividade. A imagem-souvenir estabelece vínculos baseados no desejo de sobrepujar uma
aparência considerada mais bela, mais bem sucedida ou, tão somente, mais exótica, em que
o sentido se faz pela diferença. Esse aspecto é exemplar quando falamos em chita fabricada
num país para consumo dos habitantes de outro lugar, cujo design de superfície utiliza
imagens endógenas dos membros da sociedade à qual se destina.
Percursos de sobrevivência simbólica
Para IZZO (2009: 02), “cada civilização encerra um repertório de significados
mais amplos, caros à sua existência, e que ecoam dentro de um repertório significativo
individual”, edificando sua própria representatividade imaginativa e dimensionando sua
vida mediante simbologias, visivelmente presentes nas estamparias florais das chitas.
Observamos anteriormente que, pouco a pouco, os métodos de estampar tecidos
provenientes da Ásia foram sendo incorporados e revigorados pela população européia. De
modo geral, os finos algodões indianos eram adornados com carimbos esculpidos em
madeira, os cunhos de estampar, que serviriam de modelo a ser replicado pelas primeiras
estamparias estabelecidas em Portugal por volta de 1690
55
(figura 9). D‟ALVIELLA
(op.cit.: 27) observa que, num caso de intercâmbio comercial dessa natureza, “não é
incomum descobrir as mesmas figuras simbólicas entre as raças mais afastadas”. Mas a
iniciativa não teve repercussão imediata. Em verdade, das 140 fábricas têxteis que havia no
país até 1788 apenas 11 diziam respeito especificamente ao algodão, embora 19 fossem
dedicadas à estamparia e à chita e 18 delas à tinturaria. Sendo o algodão um produto
importado sob forma de fardos de pano cru e posteriormente exportado com estampas, sua
indústria concentrou-se perto das zonas alfandegárias dos portos. Assim, as manufaturas de
chitas estabeleceram-se primordialmente no sul (Lisboa, Sintra, Azeitão, Alenquer, Setúbal
e Cascais) e apenas três no norte do país, na cidade do Porto.
55
MELLÃO et.al. (op. Cit.: 42) relatam que “os primeiros ateliês de estamparia surgiram na Holanda e na
Hungria, ainda no século XVI, mas só em 1690 teria início, na Europa, a estamparia sobre algodão”.
37
Figura 9 Artesão hindu estampando algodão manualmente com carimbo de madeira mediante processos de
encaixe dos desenhos uns nos outros (acima). Sanganer, Índia, abril de 2004. Cunho de estampar em madeira
esculpida com folhas, desenvolvido na Índia para fabricantes portugueses no século XVIII, hoje exposto no
Museu do Traje (abaixo). Lisboa, Portugal, julho de 2006.
38
É na região de Alcobaça, contudo, que o design das chitas portuguesas mescla
imagens com maior veemência. Embora seja crença generalizada que a tradição dos panos
de Alcobaça remonte ao século XV (Gil Vicente, na Farsa dos Almocreves, faz-lhes uma
referência), a primeira fábrica foi fundada em 1774 por iniciativa privada
56
. De finais do
século XVIII ao último quartel do século seguinte foram vários os projetos para a instalação
de fábricas na vila, e a criação de algumas que ora faliram, ora foram transferidas para
outras regiões, especialmente Tomar. Em 1875, foi fundada a Companhia de Fiação e
Tecidos de Alcobaça. Esta foi das mais importantes indústrias do segmento: chegou a
contar com 250 operários em 1881 e sobreviveu até meados do século XX. Em todo caso,
os algodões estampados passam a assumir um peso importante no comércio colonial
português, conforme nota ALVES (1999:32):
“Com efeito, desenvolveu-se de uma forma mais ampla em Portugal, ao
longo do último quartel do século XVIII, o segmento da estamparia, que
utilizava o pano cru importado da Índia para depois vender no mercado
interno ou exportar para o Brasil e a Espanha esses produtos novos, leves e
coloridos, substitutos populares das sedas elitistas”.
FLUSSER (op.cit.: 08) admite que “imagens são códigos que traduzem eventos em
situações, processos em cenas”. Mas, como funcionam a imitação e o contágio entre
imagens? Tendo em vista que o Mosteiro de Alcobaça
57
era um importante centro de
pesquisa de fitoterápicos destinados ao hospital estabelecido na vizinha vila de Caldas da
Rainha, os motivos hindus foram gradativamente sendo mesclados às imagens das flores e
ervas típicas dos campos ao redor da vila. Retomando as preocupações de Morin com a
apreensão do real, CONTRERA (2004:32) observa que “o grupo social estabelece
convenções, trama consensos e dissensos na busca de „um real‟. Consenso passa, então, a
ser a palavra-chave para a criação de discursos sobre o real, tão imprescindíveis na
criação de um universo comum partilhável”. Assim, alguns elementos da heráldica
portuguesa, listras e plantas campestres também foram incorporadas às estampas. Elas
incluíam ainda jarros, ânforas, frutos, figuras de animais e rosas inspirados nos motivos
56
A fábrica passou para a alçada da Junta da Administração das Fábricas do Reino em 1779.
57
O Mosteiro ou Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça foi fundado em 1178 pela Ordem de Cister em
cumprimento do voto de doação feito por D. Afonso Henriques quando da conquista de Santarém aos mouros.
39
cultuados pela vizinha Inglaterra, diferentemente de suas primas indianas, mais afeitas a
xadrezes e arabescos. Notadamente, observa-se nas chitas de Alcobaça a presença de listras
delimitando a aplicação localizada desses elementos em espaços lisos (figura 10). Segundo
PASTOREAU (1993: 72), toda listra é um ritmo por sequências alternadas, fazendo o olhar
percorrer o tecido de cima à baixo e concentrando a atenção nas imagens estampadas. Isso
nos leva a crer que as chitas alcobacenses buscam, intencionalmente, destacar as imagens
da cultura lusitana. O próprio historiador reitera que “(...) as superfícies plena e
uniformemente lisas estão longe de serem majoritárias; constituem elas uma exceção, e
respondem a intenções precisas, ligadas à valorização de um ou outro elemento da
imagem” (ibidem: 34).
Figura 10 As chitas alcobacenses caracterizam-se pela disposição vertical das estampas compondo listras.
O uso de azul é muito característico do produto português. Alcobaça, Portugal, julho de 2006.
40
Fluxos de renovação
KAMPER (2002) coloca importantes premissas em relação à imagem. Uma delas,
segundo comentamos inicialmente pela ótica de Morin, Warburg e Belting, é o medo da
morte: criamos imagens para impregnarmos nelas a imortalidade. Sob este aspecto,
observando as andanças da chita, é possível compreender como ocorre a vinculação entre
marca-país e consumidor, mediante o intercâmbio de imagens presentes no design de
superfície. ROMERO (op.cit.: 53) acrescenta que “o gesto técnico se desenvolve para
enfrentar o desafio da matéria, e o gesto poético, ou cultural, nasce para enfrentar o
desafio da morte, assim que o homem toma consciência dela”. Essa questão, delineada
anteriormente com respeito aos estampados africanos, toma contornos ainda mais claros
quando observamos a atuação de marcas lusitanas pela maneira como definem seu
relacionamento com o consumidor provendo-lhe artigos confeccionados em chita de
Alcobaça. É o caso, por exemplo, da grife portuguesa Alma Lusa.
A loja da marca, situada no coração do elegante bairro do Chiado, em Lisboa, vende
jóias, móveis, artigos de decoração e roupas em que predomina o algodão floral português.
De modo geral, esse ponto de venda seleciona produtos que compartilham imagens de
lugares portugueses - identitários, relacionais e históricos, conforme propõe AUGÉ
(1997:73). Tais produtos circulam memórias e fantasias particulares acerca da cultura
lusitana documentados em estampas que, de certa forma, os autenticam. Em Portugal, as
imagens florais convivem com suportes têxteis e arquitetônicos, notadamente a partir da
azulejaria herdada das conquistas mouras. Uma vez que o design atualiza as imagens
presentes na chita de Alcobaça dividindo-as com a clientela, logo o consumo desses
produtos media as relações entre capturados e captores, ou seja, entre vinculados e
vinculadores. “A posse de informação, passível de ser compartilhada somente com outros
detentores, é a chave que permite ao consumidor sair do limbo (...)” (GARCIA, 2006a:
25). Sob tal aspecto, as imagens não se acanham em abarcar ambigüidades instaladas no
vistoso e mesmo no alegórico para disseminar artefatos considerados preciosos, visto que
nelas uma memória impregnada de certa vivência desejável
58
. Atualmente, nota-se um
58
Desde os anos 40, em Portugal, os concursos de vestidos de chita viraram moda no verão em praias mais
selecionadas, os chamados "Baile de Chita".
41
renascer do uso da chita de Alcobaça em decoração, especialmente em antigos solares
adaptados ao turismo, e até mesmo em casas particulares. Isso nos faz concordar com
DOUGLAS e ISHERWOOD (2004:103) quando atestam que “o consumo é a própria
arena em que a cultura é objeto de lutas que lhe conferem forma”.
Figura 11 À esquerda, revisão do padrão ornamental floral das chitas de Alcobaça em blusa da marca Alma
Lusa. À direita, xale tradicional português com imagens de flores (abaixo) e lenço produzido em Alcobaça,
hoje exposto no Museu do Traje (acima). Lisboa, Portugal, julho de 2006.
Por outro lado, Alma Lusa pontua que os bens podem funcionar como um boletim
informativo dos acontecimentos (figura 11). Seus artigos feitos de chita apontam como a
troca de informações mediada pelo design é fundamental para adquirir um novo olhar sobre
o mundo que nos acolhe. Isso porque estabelecem um vínculo comunicativo entre o
viajante, a região e a cultura mediante o re-design estratégico das chitas alcobacenses.
42
HILMANN (1993: 62)
59
esclarece precisamente que “os lugares tendem a nos relembrar
histórias, diferenças étnicas e terrestres, que não podem ser homogeneizadas nessa
mesmice universal das nossas utopias contemporâneas, o lugar-nenhum de qualquer lugar
dos shopping centers e das vias que a eles nos levam e que deles nos trazem”. Ou seja, os
lugares nos falam de imagens endógenas e exógenas, sobrepostas em vasos
intercomunicantes na elaboração do imaginário.
Fronteiras entre presença e ausência
Não foi à toa que desde seus primórdios a chita cruzou oceanos carregando imagens
estrangeiras
60
. A segunda premissa apontada por KAMPER (2002) diz respeito justamente
à reprodutibilidade incessante das imagens, que se perdem e se reencontram umas nas
outras. Retomando Warburg, BAITELLO (op.cit.: 34) observa que “(...) os subterrâneos
da imagem são mais amplos que seus aspectos visíveis. Eles abrigam todo o amplo
espectro das invisibilidades constituídas pelas deposições do esquecimento, aquela parte
da memória que opta por ficar na sombra, mas que nem por isso é menos ativa”. Após sua
escala na Europa, as flores tímidas de padrões quase sempre listrados, dominadas pelos
preceitos hindus e islâmicos (que proíbem representações figurativas) encontraram na
América não algodões puros de trama ligeiramente aberta, os morins. Foi precisamente
nessas paragens que outras flores, frutas e folhagens tropicais foram nelas incorporadas e
mesclaram-se ao imaginário de muitos povos para se tornarem maiores e mais ousadas.
MORIN (1990: 26) observa que a estruturação do imaginário segundo arquétipos
possibilita que haja modelos aspiracionais exteriores aos objetos industrializados, ou seja,
que “(...) se pode reduzir os mitos a estruturas matemáticas”, aptas a serem padronizadas
pela indústria de forma a transformar os arquétipos em clichês e estereótipos. Mas, “em
determinado momento precisa-se de mais: precisa-se da invenção. É aqui que a produção
não chega a abafar a criação, que a burocracia é obrigada a procurar a invenção, que o
59
Vale salientar que o autor caracteriza e diferencia lugares de espaços, sendo os primeiros concretos,
limitados por um nome e uma habitação que nos fornecem imagens. Diferentemente, os espaços para ele são
conceitos abstratos, de representação geométrica e cartográfica, capazes de delimitar um “tipo de espírito
formal na mente” cuja alma fugidia constantemente nos escapa, a exemplo dos “não-lugares” de que nos fala
o antropólogo Marc Augé.
60
Segundo ORTIZ (op.cit.:38), “a chegada dos primeiros navios europeus ao continente asiático significava
a concretização de um sonho alimentado durante quase um século pelos portugueses”.
43
padrão se detém para ser aperfeiçoado pela originalidade” (ibidem: 26). PINTO (2005:
156) parece concordar com tal afirmação quando diz que “os chintz indianos, conhecidos
após o regresso de Vasco da Gama, vieram criar uma corrente do gosto por esses
estampados que acabam por fazer implementar as indústrias de estampagem européias e
locais, vindo a beneficiar o desenvolvimento da Revolução Industrial”. Por sua vez, a
história da chita brasileira, ou chitão, reforça esse ponto de vista. Embora acompanhe a
trajetória das Grandes Navegações, mescla-se também às produções nativas das Américas,
visto que seus povos teciam algodões estampados em tons de vermelho, amarelo, azul,
verde e preto. Paralelamente, reencontra-se com suas origens mouriscas na região Nordeste,
notadamente por intermédio dos malês (agrupados por sua identidade islâmica na Bahia), e
com eles incorpora arabescos numa intersemiose contínua
61
.
É importante observar que o próprio algodão, base de todas as chitas, era familiar
aos índios quando Cabral aportou na Bahia. Eles o teciam em teares rústicos, feitos com
galhos de árvores. Essa técnica familiar conheceu teares horizontais e técnicas de tecelagem
européias no século XVI pelas mãos dos colonizadores portugueses. Por imposição dos
jesuítas, pouco afeitos à nudez dos nativos, alguns índios aprenderam a técnica importada
da Europa, assim como, depois deles, as esposas dos donos de engenhos e as mulheres dos
colonos imigrantes. Consequentemente, “desde os primeiros tempos a noção de cópia
revelou-se extremamente elástica, variando da reprodução exata e da cópia fiel à
interpretação inventiva” (GRUZINSKI, op.cit.: 106).
Em terras brasileiras, o mimetismo aparente de chitas indianas, lusitanas, francesas e
britânicas desafia completamente a noção de réplica, visto que forma e conteúdo vão se
alterando à medida que essas imagens se entrelaçam sobre corpos caboclos em
combinações extraordinárias. Tanto é que, em 1785, a rainha Maria I chegou a proibir o
estabelecimento de fábricas no Brasil de modo a estimular a produção da metrópole e
minimizar a concorrência inglesa. Mais tarde, D. João V abriria os portos brasileiros às
nações amigas pondo fim ao monopólio português. Diluem-se as padronagens discretas de
desbotadas anilinas européias para explodirem estampas graúdas de cores vibrantes,
61
PEIXOTO (2003:12) confirma, por exemplo, que “as escravas, em geral, usavam uma saia de chita,
riscado ou zuarte (...)”.
44
tingidas com os corantes vegetais e a memória cultural dos povos autóctones. MORIN
(op.cit.: 33) observa que “a relação padronização-invenção nunca é estável nem parada,
ela se modifica a cada obra nova, segundo relações de forças singulares e detalhadas”.
Assim, o design do tecido-imigrante foi tramando um mosaico mestiço e construindo uma
imagem errante e movediça.
Sem cerimônia, a chita penetrou nos altares, mas também nas celebrações e nas
passarelas brasileiras. Estampa os Autos de Natal e o maracatu, as festas dos santos de
junho e os foliões de carnaval, as congadas e o São Paulo Fashion Week
62
, embutindo
alegria na linguagem vestimentar pela gama intensa de combinações. “(...) A chita está lá,
com maior ou menor evidência, dividindo espaço com tiras de cetim ou servindo de base
para bordados de paetês, miçangas e canutilhos” (MELLÃO et.al., op.cit.: 159). Isso nos
faz concordar com PINHEIRO (2009: 23) quando pontua que mente e imagens da vida
diária se entrelaçam numa cultura formada por “conglomerados migrantes”. Sob esse
aspecto, entre tantas e tão prodigiosas misturas caboclas, talvez a mais expressiva seja
aquela que se vê com grande freqüência nas prateleiras das lojas do interior, nos tabuleiros
dos ambulantes da metrópole e sobre os corpos que entre elas circulam: a trama brejeira do
chitão (figura 12).
Nas suas entranhas constatamos com GRUZINSKI (op.cit.: 28) que “(...) nada é
inconciliável, nada é incompatível, mesmo se a mistura é por vezes dolorosa”. As imagens
penduradas nos chitões, advindas da memória afetiva, traçam uma geopolítica que
desmascara a homogeneidade das tendências de corpos, roupas e programas de
comportamento, construídas com afinco pelas passarelas. São aquilo que GRUZINSKI
(ibidem, idem) chama de “amálgamas de aparência desconcertante” cuja legitimidade
naturalmente conquistada desloca o chitão para o terreno do mítico, tornando-o imune ao
passar do tempo e dos modismos. Isso porque tal maneira de comungar experiências de
várias gerações e culturas, ao invés de meramente reproduzir os modos de costurar
sofisticados das grifes estrangeiras divulgadas pela indústria do entretenimento, pelo
jornalismo e pela publicidade, com elas compartilha fragmentos de saberes domésticos.
62
O São Paulo Fashion Week, Calendário Oficial da Moda Brasileira, é hoje o maior evento de moda do país
e nele marcas como Zapping, Ronaldo Fraga, André Lima e Karlla Girotto, entre outros, já apresentaram
criações em chita.
45
Figura 12 Diferentemente da chita e da chitinha, o chitão brasileiro é caracterizado pelos riscos em grafite
negro formando as bordas do desenho (acima). O padrão mais comum, assim como ocorre com as chitas de
Alcobaça e o chintz inglês, é o que mimetiza rosas em vários tons (abaixo). São Paulo, Brasil, maio de 2006.
46
As camadas culturais se sobrepõem e é impraticável pensar em cercas restritivas.
PINHEIRO (1995:22) elucida muito bem essa situação quando observa que:
nossa conquista não foi realizada pelos que organizavam a Renascença e o
Iluminismo, mas pelas razões e desrazões combinadas dos nômades,
vagabundos e foras-da-lei ibérico-indígeno-mouriscos que, sob a capa da
unificação político-religiosa, praticavam, nas entradas, bandeiras e
monções, atos de reassimilação verbal/cultural migratória onde a base era a
festa erótica das permutações entre o conhecido e o desconhecido, a
descoberta das múltiplas possibilidades que não é um e tampouco dois”.
Por conseguinte, quando vemos a chita marcando os seios da Gabriela de Jorge
Amado
63
ou tremulando no varal da Clarissa de Érico Veríssimo
64
melhor mesmo é
entendê-la como uma imagem errante, mecanismo tradutório e aglutinador de tão variados
percursos. E em nenhum lugar ela se assume com tanto vigor como no meio do povo que a
transforma em saia rodada, em forro de colchão, em toalha de mesa ou em cortina da sala,
inspirados pela manequim Gisele Bundchen
65
tanto quanto pelo apresentador de televisão
Chacrinha
66
.
"Adotados ou adaptados, as técnicas, as idéias e os homens são reinventados"
(LAPLANTINE e NOUSS, 1997: 23)
67
. No design têxtil e nas muitas andanças das chitas
entrelaçam-se imagens do distante e do próximo; do estrangeiro e do nativo; do e do
aqui. Como vimos, nem sempre essas imagens estão a serviço do entendimento. Mas, feito
as flores das chitas estrangeiras que no Brasil cresceram e viraram chitões, é certo que tais
imagens em perpétuo deslocamento criam vínculos, fugidios ou não, com os elementos e as
63
Protagonista da obra Gabriela, Cravo e Canela. Crônica de uma cidade do interior (Rio de Janeiro:
Record, 1995), a sensual Gabriela é uma das personagens femininas emblemáticas da obra do escritor baiano
Jorge Amado (1912-2001), expoente da literatura brasileira.
64
Otimista e confiante, a jovem do romance homônimo Clarissa (São Paulo: Cia das Letras, 2005) tem
personalidade bem distinta da Gabriela de Jorge Amado. Através do olhar da menina o escritor gaúcho Érico
Veríssimo (1905-1975) retrata a Porto Alegre da década de 1930 e... lá também está o chitão!
65
A modelo brasileira Gisele Bundchen tornou-se famosa no mercado internacional de moda, sendo capa de
importantes publicações do segmento e contando ainda com aparições em editoriais e campanhas publicitárias
de prestígio.
66
José Abelardo Barbosa de Medeiros (1916-1988), conhecido popularmente como Chacrinha, trabalhou
quase 50 anos no rádio e na televisão brasileira. Freqüentemente usava um figurino vistoso composto de
fraque feito de chita e cartola do mesmo material.
67
"Adoptés ou adaptés, les techniques, les idées et les hommes sont réinventés".
47
pessoas das culturas que perpassam. A mídia têxtil oferta outro lugar para o relato coletivo.
Como o fio de Ariadne num labirinto de imagens, as chitas nos guiam entre as sombras da
moda, com um tempo interno que não precisa coincidir com o externo e onde todas as
imagens têm direito a uma segunda existência ou, no entender de WARBURG (1995), a
uma pós-vida.
48
Buquê iconofágico
“Se você se parece com sua foto no passaporte,
é porque sem dúvida está precisando da viagem”.
- Earl Wilson -
68
A inconstância das flores
BAITELLO (op.cit.: 73) nos ensina que “a grande importância da mídia
secundária é que ela possibilitou a ampliação de campos comunicativos (espaços, tempos,
intensidades). Em termos da pós-vida das imagens, sabemos que a indústria de estamparia
assumiu uma importante fatia das exportações portuguesas nos séculos XVIII e XIX e o
mercado brasileiro serviu de escoadouro a uma parte considerável dessa produção. Sob esse
ponto de vista, é possível notar que foram as imagens dessas chitas que desembarcaram
com empreendedores da colonização portuguesa nas terras de Vera Cruz. Nelas, conforme
veremos a seguir, ainda é plenamente possível identificar motivos orientais, ainda que
estilizados e coloridos com tons diferentes. havíamos observado, com Warburg, que as
Nachleben arquivam uma memória coletiva, onde estão inscritas vivências culturais. A
estamparia da chita nacional, por respeitável que seja, não é, portanto, exclusivamente
brasileira. Trata-se, sim, do resultado de caleidoscópios imagéticos e de processos
iconofágicos de vinculação comunicativa que trazem à tona imagens arcaicas dispostas em
camadas no suporte têxtil. Conforme argumenta o estudioso alemão, é possível acompanhar
as imagens na sua constante migração histórica e geográfica. Logo, faz-se necessário
inventariar os caminhos percorridos pelas chitas nesse deslocamento, visando compreender
suas muitas camadas imagéticas, assim como uma eventual vocação mestiça.
Pleiteamos que a chita se alimenta do deslocamento das imagens da cultura em seu
constante metamorfosear. Por exemplo, entre as imagens florais recorrentes em muitas
culturas estão as flores com miolo marcado, de quatro ou cinco pétalas arredondadas, como
é o caso da impatiens walleriana, ou beijinho. Essa flor, que aparece em produtos têxteis
68
O jornalista e crítico norte-americano Earl Wilson (1907-1987), especializado em entretenimento, ficou
conhecido por suas frases de efeito em sua coluna “It happened last night” no jornal New York Post, no qual
trabalhou por mais de 40 anos.
49
espanhóis, mexicanos e brasileiros, ganha ou perde densidade conforme o adorno se faz
plano, mediante carimbo do desenho no algodão, ou texturizado pela técnica de bordado, a
partir de um risco carimbado ou desenhado à mão livre (figura 13). Sob tal aspecto, sua
tessitura seria um fenômeno nascido de culturas híbridas, migratórias e mestiças, aberto ao
trânsito entre centro e periferia, e capaz de propiciar uma complexidade de arabescos
mediante a gestualidade, a técnica e, sobretudo, a imaginação humana.
Figura 13 Detalhe da flor impatiens walleriana, popularmente conhecida como beijinho ou maria-sem-
vergonha, bordado em xale andaluz (acima, à esquerda). Ao lado, imagem da mesma flor em vestido
mexicano da região de Oaxaca (acima, à direita). Observa-se a mesma imagem estampada em chita brasileira
(abaixo, à esquerda) e detalhe de sua versão rebordada pela grife Apoena (abaixo, à direita), estabelecida em
Brasília (coleção verão 2008-2009).
50
LAPLANTINE e NOUSS (1997) advogam precisamente que cada fenômeno de
mestiçagem é único e particular, constituindo um "mosaico movediço"
69
onde os
componentes guardam sua integridade ao mesmo tempo em que se mesclam. "A
mestiçagem não é a fusão, a coesão, a osmose, mas a confrontação, o diálogo" (ibidem:
10)
70
. E de que forma esse diálogo acontece , considerando corpo e têxtil como mídias que
atuam conjuntamente, tendo a cumulatividade como princípio fundamental?
O fenômeno da mestiçagem, conforme esses autores, floresce nos agrupamentos
urbanos. Entendendo, com BAITELLO (op.cit.: 82), a comunicação humana como um
sistema complexo, no qual “(...) o advento da dia secundária não suprime nem anula a
mídia primária, que continua existindo enquanto núcleo inicial e germinador” (ibidem,
idem), buscamos mapear, na sequência, o percurso das imagens florais nesses espaços. No
período das Grandes Navegações
71
, cidades portuárias como Surat, Sevilha, Manila, Vera
Cruz e Acapulco se converteram em importantes pontos comerciais e redes de
abastecimento, com mercados públicos e bazares de grande fluxo de indivíduos e bens.
notadamente a partir dos mercados e das praças públicas, os lugares por excelência onde
se efetuam as trocas, os lugares de aceitação ou de recusa, que não apenas as pessoas de
acotovelam, mas se reencontram e se misturam" (LAPLANTINE e NOUSS, op.cit.: 19)
72
.
Nota-se que a cumulatividade das mídias permite a constituição da memória coletiva da
qual nos fala Warburg. No caso das chitas, ela foi se reconfigurando conforme os
deslocamentos geográficos se efetuavam mediante trocas comerciais. A Nova Espanha,
território que hoje compreende o México, era o principal destino cargueiro fora da Europa e
o porto de Vera Cruz se organizava como um movimentado entreposto comercial de
corantes e têxteis, resultando num fabuloso trânsito de imagens.
69
O termo "mosaico movediço" é emprestado do prof. Dr. José Amálio Pinheiro, que utiliza a expressão
constantemente em suas aulas no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
70
"Le metisságe n'est pas la fusion, la cohésion, l'osmose, mais la confrontation, le dialogue".
71
Conforme LAPLANTINE e NOUSS (op.cit.), o fenômeno está longe de restringir-se à biologia, embora a
noção tenha originalmente sido aplicada na designação de cruzamentos genéticos e na produção de fenótipos.
Ao revés, abarca sobretudo circunstâncias sociais e culturais, que permitem e garantem a efervescência de
trocas, agrupamentos e misturas.
72
"C'est notamment à partir des marchés et des places publiques, les lieux de la acceptation ou du refus, que
non seulement des peuples se côtoient, mas se rencontrent et se mélangent."
51
“Do Oriente vieram tecidos decorados com flores, especialmente as rosas
bordadas com sedas de múltiplos tons medalhões, coroas, frutos, vegetação
e árvores como os flamboyants. Dessa forma, o gosto mexicano pelas cores
intensas e contrastantes se identificou no uso oriental das cores
complementárias em uma mesma peça têxtil, o delineado negro das figuras e
os efeitos engomados para produzir luzes e sombras em motivos florais”
73
(LAVIN e BALASSA, 2001c: 178)
Figura 14 Xales andaluzes bordados com imagens de rosas possivelmente provenientes de escalas nas
Filipinas. Ao lado, uso do produto em ocasião festiva. Madri, Espanha, janeiro de 2008.
73
“De Oriente vinieron las telas decoradas con flores, especialmente las rosas bordadas en seda de múltiplos
tonos - medallones, coronas, frutos, vegetación y árboles como los tabachinas. Asimismo el gusto mexicano
por los colores intensos y contrastantes se identifico em el uso oriental de colores complementários em uma
misma pieza têxtil, el delineado negro de las figuras y los efectos de engamados para producir luces y
sombras em motivos florales”.
52
As Filipinas abasteciam o reino com preços baixos, gerando reclamações dos
espanhóis ao rei Felipe II, que regulamentou o comércio internacional. Tudo era
inventariado e partia de Sevilha. “Apesar do empenho da coroa espanhola em proteger sua
indústria e os mercadores castelhanos, os produtos têxteis asiáticos gozavam de grande
popularidade na América”
74
(ibidem, idem). Isso inclui os xales bordados de flores
provenientes de Manila, tão populares na região da Andaluzia e parte da indumentária
flamenca (figura 14). De fato, a regulamentação espanhola provocou, como reação devida à
demanda, um intenso contrabando entre Ásia e América com intervenção da Inglaterra,
França e Holanda. Frequentemente, navios procedentes de Vera Cruz, carregados de
cochinilha, ou de Sevilha, lotados de chitas e xales, eram abordados por bucaneiros
ingleses
75
. As pilhagens piratas possibilitaram ampliar a confluência de imagens
estrangeiras nas Américas. A época entre 1519 e 1780, que ficou conhecida como a “Era de
Ouro” da pirataria, confirma a análise de BELTING (2006:04) quando reflete que “a
política das imagens reside na sua medialidade, pois a medialidade é, geralmente,
controlada por instituições e serve a interesses do poder político”. Em 1568, John
Hawkins (1532-1595) e Francis Drake (circa 1540-1596), que possuíam cartas de marca
76
do governo inglês, começaram a atacar os navios mercantes e, em 1588, derrotaram a
armada espanhola. Os bucaneiros pilhavam barcos na região caribenha, resultando em
intenso tráfego de têxteis florais asiáticos no litoral colombiano
77
. Na maioria das vezes,
parte do resultado do cerco pirata era comercializado na própria região; noutras era
transportado para países vizinhos, levando consigo imagens que se mesclavam ao
imaginário local para assediar outros tempos e espaços. LAVIN e BALASSA (2001b: 126-
128), por exemplo, documentam que roupas chinesas chegaram no Peru até 1636, quando
foi proibida a entrada pelos portos de Callao e Guayaquil.
74
“A pesar del empeño de la corona española en proteger su industria y a los mercadores castellanos, los
productos textiles asiáticos gozaban gran popularidad en América”.
75
Os bucaneiros, piratas de origem inglesa, holandesa ou francesa estabelecidos na ilha de Hispaniola, no
Caribe, são assim chamados porque conviveram com indígenas que usavam uma faca denominada "boucan”.
Essa arma tornou-se sua marca registrada, garantindo-lhes o apelido.
76
A carta de marca de governo ou carta de corso é uma declaração de intenções expedida por monarcas
europeus que atesta estarem seus possuidores agindo a serviço do reino e lutando contra inimigos como
mercenários contratados.
77
Há registros de que, quase cem anos depois, em 1698, ao capturar o navio Quedah Merchant, o Capitão
Kidd apoderou-se de uma carga que incluía chita e cujo valor total era estimado entre 200 mil e 400 mil
rúpias indianas (ZACKS, 2002).
53
Figura 15 Herança pirata: blusa de cretona vestida por indígena kuna, natural da ilha de San Blas, na
fronteira entre Colômbia e Panamá esquerda), e avental de palenquera caribenha com estampa de flores e
frutas (à direita). Cartagena, Colômbia, fevereiro de 2008.
Isso nos leva a crer que, para superar o medo da morte, as imagens se perdem em
outras imagens, reproduzindo-se incansavelmente. A herança imagética mais visível do
período localiza-se nas descendentes das chitas hindus, chamadas de “cretonas” na costa da
Colômbia e parte do Caribe (figura 15). Ainda hoje, as cretonas são usadas para costurar as
saias e turbantes das “palenqueras”, as vendedoras de frutas caribenhas. Suas imagens
também percorrem a obra de artistas plásticos como Fernando Botero e Débora Arango,
estando presentes nas roupas de tipos populares, como dançarinos e ambulantes (figura 16).
Assim, observamos com KAMPER (2002) que os homens vivem enleados nas imagens que
fizeram do mundo, dos outros e de si mesmos. Essa situação também nos permite
concordar com BELTING (2008), quando salienta que o cidadão do mundo (que não está
em casa em lugar algum em virtude do nomadismo, seja ele físico ou virtual) carrega em si
imagens às quais dá novamente um lugar e uma vida provisória: a sua própria vida.
54
Figura 16 Imagens vagueiam entre suportes: na obra “Pareja Bailando” (1982), de Fernando Botero
esquerda), observa-se que a dançarina usa vestido de cretona diminuta (à direita), similar à chitinha brasileira.
Bogotá, Colômbia, fevereiro de 2008.
Movimentos do chintz
Se, de fato, os têxteis, entendidos como mídia secundária, contam a história de
quem os fabrica tanto quanto de quem os veste, quanto mais adornados, mais imbrincadas
são as relações entre mito e realidade. A oportunidade vislumbrada pelos piratas advinha do
fato de que, até 1613, embarcações especializadas em especiarias levavam da Índia para a
Inglaterra quantidades muito pequenas de chitas obtidas nos portos do arquipélago malaio
(JERKINS, 2003: 03). Esses lotes eram incapazes de atender à demanda européia por
imagens estrangeiras. Em geral, tratava-se de sobras do mercado interno asiático, sem
qualquer cuidado com a adequação das imagens da cultura ao gosto do consumidor
ocidental. Por outro lado, desde 1573, a Nau de China fazia o transporte entre Manila e
55
Acapulco de bens têxteis provenientes da Índia cuja qualidade e variedade era muito
superior aos produtos que circulavam na costa inglesa um tremendo chamariz para os
piratas.
A produção têxtil indiana é variada e rica, remontando à civilização do vale do rio
Indus (circa 2.300 a.C), cuja população feminina fiava algodão para confeccionar as
próprias roupas. Trata-se de uma atividade antiga, ensinada no âmbito familiar, de mãe para
filha. A tradição literária hindu dos Vedas, assim como do Ramayana e Mahabharata,
descreve a ampla variedade de tecidos produzidos no país na época dessas escrituras
78
. As
imagens dos algodões indianos têm significado simbólico e auspicioso, sendo
compartilhadas em várias expressões artísticas, incluindo a arquitetura, a escultura, a
azulejaria, a pintura, a tecelagem e a estamparia (figura 17). Murais e esculturas
testemunham a preocupação com o design de estamparia mediante a seleção criteriosa de
imagens e técnicas de aplicação dos padrões no processo de tecelagem. Os motivos podem
ser reproduzidos ou reinventados, conforme a habilidade do artesão e suas crenças,
recriados em formas miméticas da realidade, estilizadas ou abstratas. Podem variar em
tamanho, sendo justapostos ou não, de maneira a estabelecer outras texturas e variações. Na
verdade, a Índia é considerada o berço da estamparia têxtil: o uso regional de blocos de
madeira para estampar data de 3000 a.C
79
. É mediante a cor, a textura, o brilho e,
sobretudo, as imagens flutuantes da estamparia que os hindus estabelecem sua exata
posição numa sociedade fragmentada pelas religiões, pelas etnias e por uma miríade de
divisões de castas. Essa linguagem não verbal é cheia de movimento e especialmente
importante para compreender o universo feminino, que as tecelãs são majoritariamente
mulheres. Seu registro é a imaginação, seu poder é emocional e sensível: elas consolidam
valores culturais através de uma comunicação verdadeiramente social.
78
O Ramayana, por exemplo, se refere à riqueza dos trajes da aristocracia e da simplicidade do vestuário das
classes mais baixas.
79
Conforme GILLOW e BARNARD (1991: 07), evidências arqueológicas de Mohenjo-Daro também
estabelecem a complexidade tecnológica dos processos de tinturaria, já que os mordentes eram conhecidos
pelos hindus desde o ano 2000 a.C.
56
Figura 17 A pintura no teto do Amber Fort, em Jaipur (acima, à esquerda), assim como a escultura na
parede do Taj Mahal, em Agra (acima, à direita), testemunham a presença das imagens florais na arte hindu.
Da mesma forma, a tecelagem manual (abaixo, à esquerda) e a estamparia (abaixo, à direita) tramitam essas
imagens na mídia secundária mediante o suporte têxtil. Jaipur, Agra e Sanganer, Índia, abril de 2004.
O mundo complexo das indianas é composto por camadas de imagens que dispõem
seus desejos, assim como sua interpretação e orientação da mitologia nos tecidos por elas
manufaturados. Assim, muitas histórias se originam do ato de fiar e tecer: os tecidos estão
ligados intimamente aos ritos de passagem e frequentemente associados aos rituais de
fertilidade femininos. “Há um evidente avanço na relação do homem consigo mesmo,
trazido pela mídia secundária, uma evidente expansão das fronteiras do seu imaginário e,
portanto, da sua cultura” (BAITELLO, op.cit.: 83). Dessa feita, é possível argumentar que
tamanha variedade simbólica facilitou a conquista de consumidores além-mar. As
exportações de têxteis hindus podem ser estabelecidas a partir dos apontamentos do
57
geógrafo grego Strabo (63 a.C. - 20 d.C.), que menciona o porto de Barygaza, na região do
Gujarat, como pólo exportador de uma variedade de têxteis. GUY (1998) observa que a
descoberta de uma arca com moedas de ouro e prata do século XIV, cunhadas pelos reis
Mamluk de Egito e Síria, sugere a compra e venda desses tecidos em troca de metais
preciosos desde o Império Romano. A cultura da corte Mughal era a mais difundida além
das fronteiras dos reinos indianos, porém o país mantinha ligações cosmopolitas com Roma
mediante os portos do sul, por onde trafegavam produtos considerados de luxo para a
época, como era o caso dos tecidos estampados
80
.
Não obstante a demanda internacional por panos hindus ter sido gerada durante o
Império Romano, os grandes importadores dos algodões indianos nesse período foram os
países do Oriente Médio e a China. No século XIII, o viajante chinês Chau Ju-kua refere-se
ao Gujarat como fonte de têxteis de algodão multicoloridos, os quais eram embarcados para
venda em países árabes. Também no século XIII, Marco Pólo registrou as exportações de
têxteis indianos para a China e sudeste asiático, provenientes da costa de Masulipattinam
(Andhra) e Coromandel (Tamil) em amplos navios. GUY (ibidem) aponta que padrões
têxteis nas esculturas de deidades indianas em localidades asiáticas muito provavelmente
também refletem a fama dos panos indianos em circulação no final do primeiro milênio. A
exportação desses tecidos denota o quanto essas imagens foram admiradas, usadas e,
posteriormente, imitadas e incorporadas por muitos povos. Tal fato amplia a influência das
imagens arcaicas hindus no sentido apontado por BAITELLO (op.cit.:83), que “com a
mídia secundária inauguram-se a permanência e a sobrevida simbólicas após a presença
do corpo”. Como o alto preço e a pretensa raridade podem ser facilmente derrubados pela
proliferação das cópias o que não ocorre com uma experiência pessoal, que é única assim
como o tempo em que foi vivida a imagem assume-se como sósia do original que acaba
por banir.
80
A balança comercial era ligeiramente favorável aos hindus. Roma supria a Índia com vinho, perfumes,
coral, papiro, cobre e pedras lapidadas em troca dos tecidos estampados, considerados um produto de inegável
excelência em comparação com a produção européia. As musselinas de algodão indiano era chamadas em
Roma de “ar tecido”. Plínio (23-79 d.C.) reclamava do custo das commodities importadas da Índia: “não se
passa um ano sem que a Índia leve 50 milhões de sestércios de Roma”.
58
Ligando os pontos
Ao longo do tempo, as imagens da mitologia e da natureza foram interpretadas
conforme especificidades regionais e mercados direcionais. No bazar global, a cultura
enquadrada em imagens para ser usada como adjetivo caracteriza um diferencial passível de
distinguir consumidores num momento em que o abismo entre classes está repleto de
pontes disseminadas pela indústria da comunicação, do entretenimento, do deslocamento e
do hedonismo. Entre os têxteis de maior prestígio comercial despontam inicialmente os
algodões estampados com brilho da região do Gujarat e da costa do Coromandel, bastante
procurados pela realeza da Malásia e pela burguesia filipina. Por intermédio dessa
preferência, tais tecidos, notadamente as chitas, eram comercializados no porto de Manila e
embarcavam nos galeões espanhóis com destino ao México, fazendo escala, por vezes, em
Sevilha. Nem todos os centros de produção têxtil hindus, contudo, estão associados às
cidades portuárias. Vários dedicavam-se ao comércio interno e se localizavam no centro da
Índia, nos reinos Rajput e Mughal, bem como no norte do país. Na região do Punjab, mais
ao norte, muitos dos estilos e modos de expressão que encantaram o consumidor europeu se
refletiram também nos bordados. A técnica de bordado denominada “phulkari”, que
significa literalmente “flor da alegria”, está até hoje presente nos trajes de uso diário, com
ricos motivos de folhagens e flores que têm um amplo espectro de significados. O termo
phulkari, atualmente restrito aos xales e lenços de cabeça com flores miúdas como as da
chitinha, por muito tempo foi sinônimo de qualquer produto têxtil, dada sua importância no
cotidiano hindu.
Os phulkaris são usados por todos os membros da comunidade e dispõem muitas
imagens florais com múltiplas camadas de significados. Todavia, apesar da variedade
imagética, a flor de lótus sempre está presente e, em geral, consiste no principal motivo.
Essa flor, que se abre todas as manhãs aos raios do sol, evocava idéias de ressurreição e de
imortalidade entre todas as antigas nações do Oriente. Contrariando todas as regras da
botânica, a flor de lótus, sagrada tanto para os hindus quanto para os egípcios e muitos
outros povos, às vezes floresce sobre a Árvore Sagrada dos fenícios, ou dos assírios, e é
arrancada ou cheirada. Portanto, quando a encontramos, temos toda a razão para acreditar
que ela representa ali uma “flora da vida”. Essa flor divina, na opinião de D‟ALVIELLA
59
(op.cit.: 126), sem dúvida figurou em mitos cujos textos não chegaram até nós, mas cuja
existência é suficientemente revelada pelos monumentos e pelos têxteis estampados e
bordados com essa imagem.
Nos phulkaris, o lótus é o único elemento centralizado, simbolizando o sol.
“Encontramos o lótus empregado para interpretar as mesmas nuanças de pensamento em
algumas implicações indiretas e suficientemente sutis do simbolismo solar” (ibidem: 37).
Genericamente, representa ainda a abertura da consciência na cultura hindu. Em alguns
phulkaris, transforma-se no “olho que tudo vê” do budismo tibetano, que, segundo essa
tradição, quando o sol brilha sobre a terra nada pode se esconder e a verdade se torna
visível. Também pode significar a habilidade feminina de dissociar-se dos arredores e olhar
para o ambiente espiritual, como se percebe na maioria dos phulkaris. Quando a dúvida
na mente se vai, paz interior. Assim como o lótus abre ao entardecer”
81
.Na verdade, a
flor de lótus é um dos mais complexos e duradouros símbolos do budismo (figura 18). Uma
lenda hindu relata que Brahma mantém-se vigilante durante seis meses do ano e descansa
numa flor de lótus os outros seis. “Resultou daí uma uma vigorosa expansão no significado
figurativo do tus. O símbolo do renascimento solar (...) tornou-se o símbolo do
renascimento humano e de uma maneira geral, da vida em sua essência eterna e
incessantemente renovada”. (ibidem, idem).
É provável que o aspecto de fecundidade do lótus, enfatizado nos ris para
casamentos, tenha tornado essa flor um símbolo de uso comum aos artesãos de toda a Índia.
A difusão da imagem, todavia, está também ligada ao nomadismo. As tribos do nordeste
hindu sempre se movimentaram em busca de água e as fronteiras estavam constantemente
mudando. Esse espírito de aventura, a habilidade de adaptação e a absorção de outras
culturas faz parte do espírito dos Punjabis. As origens da maioria da população são
nômades e foram as mulheres que deram estabilidade à família e à tribo definindo seu
território mediante a construção da aparência dos membros do grupo. Os motivos tecidos e
bordados por elas eram seus protetores e uma parte importante dos rituais e dos ritos
mágicos da tribo. Elas eram sacerdotisas que recriavam os “nakshatras”, imagens que as
81
“Bharam khoi shant. Sehej sawami. Pargas Bhaya. Koal khilai.Sundh sakhia meri nind bhali. Men apnarda
Pir milia”. Poesia recitada por Bidji Sikh, vendedor de tecidos, durante entrevista realizada no comércio
ambulante de Chaudi Chowk, na cidade de Nova Délhi, Índia, em 24 de abril de 2004.
60
protegiam. “Nada é mais contagioso que um símbolo, exceto, talvez, uma superstição; e
mais ainda quanto os símbolos estão combinados entre si, como geralmente estavam, nas
nações da Antiguidade, as quais raramente adotavam um símbolo sem lhe atribuírem um
valor de talismã”. (op.cit.: 31) Nesse contexto, percebe-se a rica cultura herdada da região
do Punjab, transmitida mediante as imagens presentes nas mídias primária e secundária.
Figura 18 A flor de lótus (acima, à esquerda) e o jasmim (abaixo, à esquerda) aparecem com frequência na
iconografia têxtil hindu, assim como buti e buta, presentes na padronagem do sári de algodão que a mulher
Punjabi veste para recitar textos do Guru Nanak Devji. Nova Délhi, Índia, abril de 2004.
61
BELTING (2006: 20) nos ensina que “hoje, é tarefa de uma nova iconologia tecer a
ligação entre arte e imagens em geral, mas também reintroduzir o corpo que tem sido tanto
marginalizado por nossa fascinação com a mídia quanto desfamiliarizado como um
estranho em nosso mundo”. Nesse sentido, é interessante observar que a tradição têxtil das
mulheres Punjabi foi forjada com base na poesia mística aplicada às atividades cotidianas.
Nanak Devji, primeiro guru dos Sikhs, foi um grande místico e seu Gurbani é uma das mais
ricas tradições dentro da cultura bhagti e sufi da época. As mulheres absorveram parte
desse conhecimento ouvindo, cantando e recitando poesia, ou seja, envolvendo seus corpos
no processo de estampar e bordar os motivos, os símbolos e os mitos aprendidos com
Nanak Devji. Esses elementos, uma vez absorvidos, tornaram-se parte de seu estilo de vida,
expresso numa linguagem têxtil colorida. Muitos dos motivos bordados constituem
imagens reflexivas de suas crenças, de sua herança compartilhada, de sua mitologia e de
seus desejos contidos.
“Mitos são narrativas que indicam caminhos, elaboram, afirmam, transmitem e
expressam a vida coletiva” (ROCHA, 2009, 167). Da mesma forma que, hoje, nos
deparamos com histórias em quadrinhos ou páginas da Internet, os hindus lêem fábulas nos
corpos, tecidos e roupas, que as imagens dos contos encontram novo suporte no algodão
adornado. Sem dúvida, estamos tratando de um rico repertório de imagens tanto quanto de
uma mídia primária ativa no seu mapeamento. Até recentemente, e mesmo nas áreas rurais,
as avós e mães criavam seus filhos na tradição do Janamsakhi do guru Nanak Devji. A
mais antiga conhecida pode ser rastreada até o século XVII, relatando as caminhadas do
místico entre as estrelas, assim como suas viagens de tapete mágico sobre os oceanos da
Ásia Ocidental
82
. As mulheres da região do Punjab mantiveram essas tradições
enriquecendo suas vidas com cânticos e expressando seu imaginário com a riqueza dos
bordados, parte dos ritos de passagem dos Phulkari, dos Bagh e dos Chope. Esses contos
mágicos foram transformados em litogravuras, estampas e bordados para comunicar
desejos, sonhos e frustrações femininas.
82
Conforme a lenda, o guru Nanak Devji visitou assim a região do Kauru-Desh, governada por mulheres
guerreiras que mantinham os homens cativos transformados em ovelhas. De acordo com o Katha, Nanak
Devji confrontou a rainha, Nur Shah, e subjugou suas sacerdotisas e feiticeiras.
62
Nesse mundo de fantasia e imaginação, percebe-se claramente que os
acontecimentos diários recriam-se sobre o algodão estampado, cuja fiação é construída a
partir de duas linhas paralelas com o objetivo de criar dupla proteção para o usuário. A
primeira é paralela à terra, enquanto a segunda corre em direção ao sol. A ordem no caos é
um fundamento do design de estamparia hindu, com a repetição, alternância, expansão e
síntese como regras na aplicação e elaboração das imagens. Mudanças de motivos, por
exemplo, indicam alterações na família e a introdução de flores cor-de-rosa marcam um
evento feliz. Quando uma noiva usa um tecido assim estampado pela família do noivo, ela
está sendo envolvida na história emocional do clã, cujas alegrias e tristezas são agora parte
de sua própria vida. “O consumo é um código que traduz muito das nossas relações sociais
e elabora diversas dimensões de nossas experiências de subjetividade” (ROCHA, op.cit.:
190). Consequentemente, é possível concluir que o ato de bordar flores provê às mulheres
hindus de regiões rurais um meio de expressão, que muitas são analfabetas: é a sua
palavra escrita com linha e agulha.
Semeadura simbólica
As imagens mais frequentes nos tecidos indianos destacam flores, frutas e árvores,
cuja inspiração provém da observação da vegetação exuberante, bem como dos preceitos
hindus e budistas. Os panos tradicionais são criados com vistas a chamar a atenção para sua
procedência e árvore genealógica, mediante o uso de símbolos específicos ligados à
mitologia étnica de cada tribo, além de refletir a destreza dos artesãos. Sua fama depende
do grau de elaboração do design de superfície. Mas, quando o motivo em si não é floral,
nomes de sementes são utilizados como referência, associando padrões geométricos à
estilização da botânica e mantendo as imagens em movimento. Por exemplo, os tecidos
quadriculados da região central de Deccan são denominados “moongi” ou “mungi”
(semente de lentilha). aqueles com pequenos pontilhados criados no leste de Madhya
Pradesh são conhecidos como “jeera” (semente de cominho) e as formas de diamante
repetidas nos sáris de Bombaim são chamadas de “dalimba” (semente de romã).
Essas pequenas formas geométricas na base têxtil incluem técnicas distintas de
tecelagem, entrelaçando motivos em forma de diamante com padrões quadriculados ou em
diagonal (chevron), muitas vezes em cores contrastantes. Cada estilo é nomeado
63
descritivamente, conforme sua inspiração provenha da natureza ou do universo mundano. O
uso de botões de flores para nomear têxteis é dos mais comuns, e inclusive a joalheria
hindu também utiliza o termo “botão de flor de jasmim para as fileiras de contas que
configuram franjas, ou “jhaalar”, nos colares
83
.
Várias das imagens hindus, símbolos de fortuna, saúde e prosperidade, são também
usadas pelos muçulmanos. Ainda que as representações islâmicas pareçam meramente
decorativas dada sua geometria, esses motivos por vezes estilizam temas naturais próprios
dos tecidos indianos. A flor do jasmim, por exemplo, tem se mostrado muito popular desde
o rei Harsha, monarca do norte da Índia no século VII. Em muitos sáris da região do
Deccan (centro-sul da Índia), listras finas de motivos circulares, genericamente chamadas
“jai-phoola” (flor de jasmin), abstraem a representação floral num padrão geométrico. Em
Orissa, flores de quatro a oito pétalas são geralmente chamadas “rui phool” (flor de
algodão). o padrão de folhas de trepadeira, com conexões islâmicas, era associado aos
têxteis hindus mais caros desde a dinastia Mughal. A íris e a papoula, por exemplo, são
exclusivas da corte Mughal, graças à influência persa, e foram posteriormente adotadas
pelos britânicos. Nos séculos XVIII e XIX, o “kalga”, buta” ou paisley
84
se tornou
outro motivo indispensável no repertório têxtil hindu, associado à corte Mughal, assim
como as folhas com formato de coração da árvore de peepal, da árvore de kadamba e da
árvore do sol. Essas imagens são consideradas auspiciosas pelos artesãos e dependem do
intricado trabalho dos desenhos, sendo utilizadas tanto no dia-a-dia quanto em cerimônias.
Buti e buta são considerados motivos florais comuns. Assim como com o phool,
entretanto, esses nomes também são atribuídos a motivos geométricos, estilizações de
83
Na Índia dravídica essa borda usualmente era referida como “mottu” ou “mokku” ( botão de flor, em tamil),
enquanto a peça de finalização se chama “reku” (punhado de grama). O “reku” é um desenho grande que
parece um templo de cabeça para baixo, usado para evitar o olho gordo. Evidências históricas mostram que
essa imagem é de origem islâmica, assim como os motivos geométricos que flutuam no tecido estilizando
formas naturais.
84
O motivo de paisley originou-se na região da Cashemira, na India. É um símbolo de fertilidade baseado no
formato de folha de palmeira e conhecido na Índia como kairy (manga) e buta (forma floral) e na Cashemira,
especialmente, como kalanga ou kalga. Esse estampado leva o nome do porto escocês de Paisley porque um
soldado natural dessa rgião, depois de viajar à Índia, regressou com vários panos desse tipo. Desde 1790 o
modelo foi copiado e logo passou a ser imitado em outros lugares da Europa. O uso do paisley em decoração
de interiores é atribuído à Imperatriz Josefina, esposa de Napoleão, que possuía trajes, camisolas, colchas e
almofadas feitas de xales. Os franceses começaram a copiar essas imagens e modificaram o design inicial,
adicionando curvas à forma básica de cone.
64
flores. O pequeno buti” é geralmente tecido em filas repetidas ao longo do tecido,
enquanto o “buta” aparece nos barrados. Embora haja um consenso entre os hindus que
buti e buta são desenhos nativos do norte indiano, as palavras usadas para descrevê-los são
de origem persa. Isso nos mostra que também os têxteis indianos foram influenciados por
outras civilizações, incluindo gregos, persas e chineses, o que ampliou o tráfego e a
devoração de imagens entre culturas. “Em tempos antigos, os soldados, marinheiros e
viajantes de todas as profissões nunca deixavam seus lares sem levar consigo, de uma
forma ou de outra, seus símbolos e deuses, difundindo assim o conhecimento destes até os
rincões mais remotos e trazendo consigo outros ao retornarem” (D‟ALVIELA, op.cit.:
30). O chintz voltado ao mercado persa, por exemplo, contém estampas distintas dos
similares produzidos com vistas ao mercado interno. Tigres, leões e águias (símbolos de
força e poder), pavões (símbolo de riqueza) e pombas (símbolo de paz) aparecem
exclusivamente no produto para exportação.
Mestiçagem e iconofagia
É possível entender essa mestiçagem imagética mediante a análise dos processos de
comunicação e vinculação gerados pelo comércio internacional. Visando ampliar os
negócios, os portugueses agiam como os persas e solicitavam alterações no design de
superfície dos têxteis, estabelecendo um vínculo paternal com os artesãos. Ao invés de
adquirir sobras de produção, comissionavam tecelões para produzir peças sob medida
combinando imagens hindus e européias. Davam preferência às colchas e panos de parede
produzidos em Satgaon, antiga capital mercantil próxima à Bengala, o que explica a
diversidade de influências hindus em distintas regiões do globo
85
. O território de Golconda
era responsável pelos sofisticados “kalamkaris”
86
(algodões cujo estampado era pintado à
85
No seu testamento de 1601, a Condessa de Shrewsbury, Bess of Hardwick, refere-se aos tecidos indianos
distribuídos em suas três mansões e estipula que nenhum deles pode ser retirado pelos herdeiros das casas,
devendo ser preservados devido ao seu valor artístico e econômico. No mínimo dois dos têxteis mencionados
são trabalhos comissionados junto aos artesãos de Satgaon, importados por comerciantes portugueses. Bess of
Hardwick viveu um período em que os têxteis eram considerados de suprema importância, por vezes
constituindo-se no único elemento de cor, textura, calor e acolhimento numa casa européia. Neles vivem
lendas de como os têxteis hindus capturaram a imaginação ocidental através das culturas e dos tempos.
86
Tecidos como os kalamkaris do sul da Índia são vistos como templos portáteis, dado seu fácil transporte.
Uma história única provém de Goa. Quando os portugueses converteram os hindus ao catolicismo, os editos
de 1560 e 1736 modificaram a vida da população completamente. Hábitos e trajes hindus foram abolidos e
trocados por tradições e roupas católicas. A única maneira das mulheres de Goa de transitarem entre os dois
mundos foi improvisar o “pano bhaju”: uma longa blusa bordada (bhaju), uma saia pregueada (pano) e uma
65
mão, ao invés de carimbado), comprados ou comissionados no porto de Masulipattinam.
Em 1550, comerciantes lusitanos começaram a vender esses tecidos ao Japão,
influenciando a produção de sarasa, a chitinha nipônica, mediante devoração iconofágica.
Figura 19 A árvore da vida é uma imagem mitológica recorrente nos têxteis, assim como na pintura e na
literatura hindus. Também aparece na mitologia mesoamericana e cristã. Nova Délhi, Índia, abril de 2004.
Nesse sentido, a natureza oferece um buquê imagético. A árvore, comumente
denominada Árvore da Vida”, destaca-se como um dos mais importantes motivos têxteis.
Literalmente, “árvore do despertar”, trata-se do lugar escolhido por Buda para alcançar a
iluminação. Assim, não apenas abre espaço para evocar imagens de inúmeras espécies
botânicas, como oferta ampla capacidade simbólica, em virtude de ser um motivo composto
por outros, com camadas e camadas imaticas. Com galhos cheios de flores e frutas, é
usada como símbolo de fertilidade, vida e proteção (figura 19). De fato, a árvore da vida
apresenta com seus ramos o intrincamento espiral sagrado, que sobe da base em direção ao
estola sobre os ombros.
66
alto, propondo o reverso do mito da queda, ou seja, a ascensão espiritual da verticalidade,
ligação entre céu e terra. “Símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão para o
céu, ela evoca todo o simbolismo da verticalidade (...). Por outro lado, serve também para
simbolizar o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração” (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 1982: 84).
Nos “palampores”, como se denominam os tecidos pintados com árvores da vida,
flores de todas as espécies comungam com aves exóticas em seus galhos, ao passo que
pequenos animais guardam sua folhagem. Trata-se de um círculo traçado pela copa da
árvore dentro do quadrado, com o amplo espectro da vida cotidiana refletindo na superfície
do suporte mediante a inclusão de elementos da flora e da fauna mitológicas dos hindus.
Esses retângulos de pano transformam-se, assim, em mandalas universais. Tal composição
sofisticada agradou ao consumidor europeu, uma vez que as imagens eram identificáveis
conforme os padrões das tapeçarias medievais de cenas campestres. Logo, os palampores
conquistaram a admiração do consumidor além-mar por aflorar o reconhecimento, nas
imagens exógenas, das imagens endógenas desse mesmo cliente europeu.
É certo que os palampores, extremamente populares nas cortes Mughal e Deccan,
eram altamente demandados. No México, suas imagens inspiraram a reprodução das
árvores da vida com elementos da fauna, flora e mitologia nativas. Contudo, foi o atrativo
da chita de produção em massa, especialmente aquela carimbada com estampas na costa de
Coromandel, que levou à formação da Companhia Britânica das Índias Orientais em 1600.
Os têxteis hindus eram tão populares que companhias de comércio exterior holandesas e
francesas foram igualmente criadas para tramitar esse tipo de negociações, especialmente
de musselinas produzidas em Bengal, Bihar e Orissa. A cidade portuária de Surat, no
Gujarat, emergiu como o maior centro distribuidor de têxteis no subcontinente indiano, e
foi muito frequentada pelos navios da Companhia Holandesa das Índias Orientais. A
compra direta na fonte permitia aos comerciantes ingleses e holandeses obter tecidos 30%
mais baratos que seus concorrentes. No final do século XVII, a demanda por chita indiana
procedente de Chittagong, Patna ou Surat era tamanha que os comerciantes ingleses e
franceses de e seda conseguiram um veto à entrada do produto nesses países, temendo a
67
concorrência
87
. Isso nos faz concordar com MORIN (1990:15) quando esclarece que a
cultura de massa, baseada na industrialização e na distribuição não seleta, também é uma
cultura, que (...) constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida
prática, imaginária, um sistema de projeções e de identificações específicas”.
Desembarque na América
A Índia foi o mais importante exportador de têxteis do mundo entre 1600 e 1800.
Paralelamente, o México assumiu a liderança na produção de um corante muito valioso na
época: o vermelho extraído de grana cochinilha, que seria utilizado para tinturaria no
mercado europeu. Observamos com esses fatos que o acréscimo da demanda por têxteis
hindus, bem como por corantes mexicanos, aqueceu o comércio intercontinental. Em torno
de 1780, havia cerca de 150 fábricas em Barcelona exportando chitas para a América via
Vera Cruz. Esse intenso movimento marítimo de bens de consumo atraiu piratas em busca
de tesouros comerciais que, vez por outra, incluíam também o tráfico de escravos
88
. Em
consequência, o tráfego de imagens endógenas e exógenas acelerou-se. Notadamente, isso
se deu com o surgimento de deres de opinião nesses meios. Dentre eles, destaca-se a
princesa Mirra
89
, filha do imperador Mughal do reino de Akbar, em Agra.
DE LA MAZA (1990) esclarece que foi Diego Carrillo de Mendoza y Pimentel,
Marquês de Gélves e Vice-Rei da Nova Espanha, quem solicitou a um navio mercante que
trouxesse um bem inusitado das Filipinas para o México: uma empregada doméstica de fino
trato, bem vestida e com boas maneiras. A moça escolhida, capturada por piratas
portugueses em Surat e levada para Cochin antes de seguir para o mercado de escravos em
Manila, era a princesa hindu Mirra. Ao desembarcar no porto de Acapulco, Mirra, já
batizada com o nome católico de Catarina de San Juan, foi vendida para outro comerciante.
87
O veto francês data de 1686, e o inglês de 1701.
88
Na obra The perfect red, GREENFIELD (2005:110) registra as intensas atividades de pirataria, incluindo o
envolvimento de notáveis, que girava em torno do comércio de corantes mexicanos.“Quando [o poeta inglês]
John Donne escreveu acerca da pirataria de cochinilha, estava falando por experiência própria” . No
original, lê-se: “when John Donne wrote about cochineal piracy, he was speaking from firsthand
experience”.
89
Mirra Catarina de San Juan, nascida na Índia em 1606 e falecida em Puebla em 1688, era filha de Mumtaz
Magal e Sha Jahan, senhores do reino de Akbar em Agra. KERNS (2003: 24) afirma que entre 1618 e 1619,
aos 12 anos, ela foi capturada por piratas portugueses e vendida como escrava em Manila, nas Filipinas, onde
embarcou na Nau de China. Chegou em Acapulco em 1621, como parte dos pertences que faziam a rota
Sevilha-Veracruz.
68
Levada à cidade de Puebla usando um sári confeccionado em chita, causou assombro pela
beleza de seus estampados, notadamente aqueles enfeitados com os desenhos das folhas da
árvore da sabedoria, boddhi ou buta, conhecidos no Ocidente como paisley. Esse motivo,
também chamado de boteh em associação com a árvore da qual pende sua ramagem, é
entendido como a convergência de uma flor estilizada com o cipreste, um símbolo zoroastra
de morte e eternidade.
Analogamente, tal simbologia se mantém na Mesoamérica com um design que a
aproxima do mundo cristão
90
. Isso porque, com o passar do tempo, os panos estampados
das roupas da princesa Mirra foram se desfazendo. Para substituí-las, ela encontrou nos
mercados mexicanos os paliacates
91
, lenços de algodão hindu com motivos de paisley.
Com eles costurou novas vestes. Na cultura hindu, elaborar a própria choli é imperativo,
que a blusa usada sob o sári é considerada reflexo da alma da usuária
92
. As imagens de
paisley presentes nos paliacates, simbolicamente associadas à árvore da vida, deram
origem a uma saia ampla, florida e rodada, que era utilizada como anágua e, por vezes,
rebordada com lantejoulas. Normalmente, era usada com uma bata branca. O visual alegre
conquistou seguidoras entre as mestiças, mulheres nascidas da união entre espanhóis e
indígenas que conheciam o significado da árvore da vida e, desde 1582, não tinham
permissão para se vestir ao estilo tradicional mesoamericano. Dessa feita, a influência de
Mirra sobre as mestiças induziu o surgimento de imagens caleidoscópicas da árvore da vida
nas saias de algodão estampado, confluências de imaginários próximos e distantes
93
. São
imagens que ofertam um universo móvel e descentrado, embora ainda harmônico, nascido
no âmbito das mesclas entre o chintz idealizado para uso da elite hindu e os algodões
90
Baseado num manuscrito mexicano disponível no Museu Britânico, em Londres, BAYLEY (1990:267)
explica que os maias e outros povos mesoamericanos desenhavam suas árvores sagradas com dois galhos
horizontais cruzando a vertical, de modo a formar uma cruz, o que impressionou os primeiros missionários
espanhóis.
91
A palavra paliacate se refere a um pedaço de pano, geralmente com estampado floral, utilizado no México
como lenço ou matéria-prima para confecção.Trata-se, curiosamente, de uma palavra mestiça entre o espanhol
e o náhuatl, onde pal significa cor e yacatl, nariz. "Pa' la yacatl", ou seja, paliacatl: "para o nariz". O
paliacate, conhecido na Índia como bandana, era utilizado no México por todas as classes sociais, a ponto de
existir um profissional chamado "paliacatero", ou seja, comerciante de paliacates.
92
Entre os ensinamentos do guru Nanak Devij, destaca-se a afirmação recolhida durante pesquisa na
Gurudwara de Nova Délhi, em 25 de abril de 2004: borde sua própria choli e use-a. Apenas assim você será
uma mulher perfeita” (“kad kashida pehran choli. Ta tun jachai nar”).
93
Nahuas, totonacas e mazahuas também têm na árvore da vida uma de suas imagens favoritas para
bordados.
69
encontrados em mercados e feiras populares pelos estratos econômicos mais baixos da
sociedade mexicana. Ambos, usando o têxtil simbolicamente para espantar a morte.
De acordo com BAITELLO (op.cit.: 54) o primeiro degrau da iconofagia localiza-
se, precisamente, no ato de devoração de imagens alheias. Mas um segundo degrau,
quando os humanos começam a consumir imagens no intuito de se apropriar tão somente de
sua epiderme. Sem penetrar nelas ou usar o que Kamper denomina “função-janela” ou
seja, a habilidade de se deslocar, por meio delas, para mais além - preferem flutuar na sua
superficialidade. É nesse momento que as imagens passam a devorar os corpos, como
ocorreu quando a lei da Nova Espanha passou a obrigar as mestiças a seguirem a moda
européia. Como não tinham condições financeiras para tanto, rapidamente adotaram as
chitas estampadas de algodão que chegavam nas naus comerciais, imitando Mirra
Catarina
94
e consumindo imagens alheias sem pestanejar. As anáguas de chita criadas pelas
mestiças se tornaram tão populares que, em 1792, havia na Nova Espanha cinco oficinas de
estamparia
95
. Nelas, os paliacates eram decorados com anil ou cochinilha em moldes de
madeira e vendidos em peças que mediam 40 varas
96
. Foi então que surgiram, na
confluência de imagens, novos motivos inspirados na botânica tanto quanto na cosmologia
mesoamericana, e um grupo urbano cujo código de vestir estampado estabelecia um
vínculo fraternal: as “chinas poblanas”, mulheres do povo de árvore genealógica mestiça.
Tais estampas se popularizavam rapidamente, ampliando o espectro do vínculo fraternal,
porque os preços eram realmente baixos para a época: seis moedas pelas pintadas com anil
e oito pelas pintadas com cochinilha, segundo o informe fiscal fazendário (KERNS, 2003).
Imagens mestiças
94
Para acompanhar a saia feita de paliacate e dar-lhe volume, as mestiças de Hidalgo, Querétaro e Puebla
também decoravam um "castor", tecido de lã branca, com a técnica chamada bandhej em Gujarat, Índia;
plangi, na Indonésia e adire na África. Essa técnica consiste em proteger ou reservar os desenhos que
aparecerão em branco por meio de alinhavos e nós antes de tingir o tecido. Mais tarde essa outra modalidade
de anágua foi feita com flanela de algodão vermelho adornada mediante desenhos recortados em papel com a
técnica de estêncil. O castor, como é comumente chamada essa saia, não será objeto de estudo de nossa parte
por ser confeccionado majoritariamente em lã.
95
Suas roupas, possivelmente, deram origem ao traje nacional mexicano. Conhecido como “china poblana,
consiste precisamente de uma saia de chita rebordada, blusa branca derivada da camisa árabe, ou shilaba, e
xale, ou rebozo, tecido com fios de algodão ou seda. Esses fios são previamente tingidos com técnicas de ikat,
provenientes da Índia e ainda muito praticadas no México em lugares como Tenancingo e Santa Maria del
Rio.
96
Vara é uma medida de comprimento utilizada no México que equivale a 83,59 centímetros.
70
MARTÍN-BARBERO (op.cit.:34) nos fala do “(...) tecido de um novo tipo de
espaço reticulado que transforma e ativa os sentidos do comunicar”. Observamos que a
circulação de homens, animais, plantas, técnicas, religiões e símbolos nos mercados das
cidades mexicanas foi tão intensa que é difícil perceber o que é influenciado pelo quê ao
longo do tempo de tantas migrações e do complexo sistema de vinculação comunicativa.
Em sua obra Cidade e Alma, HILMANN (1993: 64) sugere justamente um “imaginar de
valores da era dos lugares”, com um movimento do rápido e fácil para o devagar e
interessante. As chitas inspiradas nos modelos hindus, até hoje vendidas em lojas como
Parisina, rede de comércio de tecidos existente nas principais cidades mexicanas,
continuam exibindo os motivos florais como elemento principal e é possível perceber certa
“mestiçagem iconofágica” nas imagens eleitas, conforme veremos a seguir.
No México, o saber tecer está ligado à fecundidade e, assim como na Índia, é um
dom divino da mulher, tanto que muitas deusas do panteão mesoamericano são
representadas com ramas de algodão (RODRIGUEZ, op.cit: 64-65). Xochiquétzal para os
mexicas (Ixchel para os maias), assume simultanemente o papel de deusa das tecelãs e das
flores, cujas formas são consumidas como adorno mais cobiçado, impresso e rebordado
para agregar o valor mitológico da elaboração manual. Os têxteis tradicionais indígenas são
um componente destacado na paisagem cultural mexicana e também influenciam a
aquisição de produtos industrializados. Conforme notamos em pesquisa de campo nas
cidades de Oaxaca, León e Distrito Federal
97
, a preferência das chinas poblanas quando
saem às compras recai sobre padrões florais que aparecem depois em seus próprios
bordados, em combinações de cores como azul com fundo rosa, lilás com fundo amarelo,
amarelo com fundo vermelho ou laranja com fundo verde (figura 20). Se pensarmos, com
BELTING (2007: 75), que “nosso corpo natural representa também um corpo coletivo, e é
também nesse sentido um lugar das imagens, a partir do qual existem as culturas”
98
, essas
eleições são significativas num contexto mais amplo.
97
As investigações de campo no México foram realizadas em outubro de 2007, abril e outubro de 2008,
janeiro e novembro de 2009.
98
“Nuestro cuerpo natural representa también un cuerpo colectivo, y es también en este sentido un lugar de
las imágenes, a partir de las cuales existen las culturas”. Grifo do autor.
71
Figura 20 O paliacate de influência asteca esquerda) é costurado à chita com imagem de rosas para
produzir saia mestiça. Ao lado, trajes de china poblana à venda no Mercado da Cidadela. Distrito Federal,
México, abril de 2008.
Uma das imagens mais recorrentes é a de rosas
99
, sob forma de botões ou em pleno
florescimento. Uma vez que as rosas vicejavam nos jardins hispano-muçulmanos, Sevilha,
o maior porto andaluz e porta de entrada para o mercado da Nova Espanha, passou a
exportar essas imagens. Na Andaluzia, a presença moura garantiu a criação e manutenção
de jardins públicos, como os chamados Jardins de al-Zayyalí, em Córdoba (GREUS, 1998:
80-81). Os jardins se revelavam como o poder do homem sobre a flora domesticada,
símbolo de cultura por oposição à natureza selvagem. Como as ruas eram muito estreitas, as
famílias se reuniam sob palmeiras, limoeiros e laranjeiras e mesmo as casas mais simples
orgulhavam-se de seus quintais. Os príncipes, por sua vez, possuíam palácios e
99
De acordo com a mitologia grega, a rosa foi criada por Chloris, versão olímpica de Xochiquétzal, a partir
do corpo sem vida de uma ninfa encontrada por ela no bosque. Ela pediu o apoio de Afrodite, deusa do amor,
que deu à rosa beleza; Dionisius, deus do vinho, agregou néctar para lhe dar um aroma doce e as três graças:
charme, brilho e alegria. Apolo, o deus Sol, pôde brilhar e fazê-la florescer. É uma das flores cuja referência
remonta à Antiguidade clássica. Nabucodonosor usava-as para adornar seu palácio e, na Pérsia, onde eram
cultivadas para a produção de óleos e perfumes, suas pétalas eram usadas para encher os colchões do sultão.
72
propriedades rurais próximos às cidades, cujos jardins incluíam árvores exóticas trazidas do
Oriente e muitas variedades de rosas, como se pode verificar ainda hoje na área arborizada
do Palácio de Alhambra, em Granada. Vagarosamente, elas foram transitando sobre os
corpos femininos, os ambientes domésticos e os lugares públicos para onde se destinavam
os navios que ali passavam inclusive e, sobretudo, Vera Cruz. Como resultado, podemos
apreender que as rosas que circulam na superfície dos têxteis mexicanos formam um
caleidoscópio de imagens mestiças: católicas e pagãs; hispano-mouriscas e astecas.
Para entender seu percurso
100
é importante destacar que essa é também a flor que
ganha evidência no mito da Virgem de Guadalupe, patrona do México e denominada
“Imperatriz das Américas”. O culto à Nossa Senhora de Guadalupe, cuja basílica acolhe
centenas de fiéis diariamente
101
, está associado à prática dos missionários europeus de
contar histórias aos índios com o objetivo de convertê-los. BELTING (2006:20) observa
que a importação de imagens espanholas tornou-se uma parte importante da política de
conquista mediante a colonização do imaginário:
“Mas, para introduzir os ícones” estrangeiros nos “sonhos” dos indígenas,
uma colonização mental era necessária. Visões celestiais eram violentamente
dirigidas a astecas escolhidos para garantir a apropriação de imagens
importadas, o que significava que corpos vivos foram envolvidos na
transferência de imagens. O projeto se completou quando as imagens
importadas tomaram posse das imagens mentais dos outros.” (ibidem, idem)
Estão associadas ao excesso do Império Romano, mas também, e sobretudo, ao amor.
100
As imagens de rosas estão presentes no mundo inteiro. São associadas aos imperadores Mughal da Índia,
como os pais da princesa Mirra, que as cultivavam em jardins e enchiam os rios com elas para dar boas vindas
aos visitantes. Igualmente, estão ligadas às casas reais de York (rosa branca) e Lancaster (rosa vermelha), na
Inglaterra, desde a chamada “Guerra das Rosas” (1453-1485). Em 1803, colonos europeus encontraram uma
rosa bela e perfumada que se tornara silvestre e lhe deram o nome de Cherokee Rose. Ainda assim, ela era
originária do Sudeste da China e um desenho seu consta de uma farmacopéia chinesa do século XII. "Quando
e de que maneira chegou à América é um dos problemas ainda não resolvidos sobre a introdução de plantas
em lugares distantes" (MENZIES, 2006: 216) . O historiador conta que era costume dos marinheiros chineses,
integrantes da frota do almirante Zheng He, manter vasos de rosas, cujo aroma constituía um duradouro
lembrete do lar distante. Eles também levaram consigo plantas e sementes de outros locais.
101
A Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe tornou-se o mais visitado templo católico no mundo em
dezembro de 2009, com a presença de seis milhões de pessoas por ocasião de seu aniversário.
73
Figura 21 Imagens sincréticas: rosas e jasmins aparecem na figura de Nossa Senhora de Guadalupe,
impressa no manto do índio Quauhtlatoatzin e representada em escultura nos jardins da Basílica. Igualmente,
os jasmins surgem na fachada mudejar da igreja de La Conchita, em Coyocán, de influência moura (abaixo, à
esquerda), bem como nas paredes pré-colombianas das pirâmides e templos de Teotihuacán (abaixo, à
direita). Distrito Federal, México, janeiro de 2009.
De acordo com a tradição, a imagem de Nossa Senhora cercada de rosas surgiu
74
milagrosamente no “tilmàtl”
102
, o manto de algodão de Quauhtlatoatzin, camponês
indígena, em 12 dezembro de 1531
103
. É bom lembrar que, na tradição católica, São João da
Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma e do ramalhete a perfeição espiritual. A rosa
de ouro, outrora abençoada pelo Papa no quarto domingo da Quaresma, é um símbolo de
ressurreição e de imortalidade (CHEVALIER e GHEERBRANT, op.cit.: 788-790). Sob
esse aspecto, tal e qual a árvore da vida, é possível contemplá-la como uma mandala e
considerá-la como um centro místico. Por outro lado, em nahuatl, a palavra “xochitl”, que
significa flor, é sinônimo de rosa, afirmando sua soberania entre os astecas (figura 21).
Trata-se de um empréstimo de imagens pagãs para uso em benefício próprio. Como
as flores são igualmente sagradas para os povos mesoamericanos, a concentração delas
junto à imagem da Virgem fortalece o vínculo maternal, protetor diante do medo da morte.
Eventualmente, isso permitiria dissociar os próprios missionários do vínculo paternal
comumente ligado à Igreja Católica, em especial nesse período que coincide com a
Inquisição Espanhola. Isso se ratifica com a figura de quatro pétalas do jasmim
mexicano
104
, ou huilacapitzxochitl” (philadelphus mexicanus), que coincide com a
imagem de “nahui ollin”
105
, o sol em movimento dos astecas. Uma vez disposto sobre o
ventre da Virgem de Guadalupe
106
, associa a figura da santa à imagem da deusa asteca
Coatlicue, Senhora da Vida. O sincretismo, portanto, é uma estratégia dos conquistadores
do século XVI de atrair fiéis tanto quanto dos indígenas de seguir adorando seus deuses
disfarçadamente, inclusive no uso de adornos.
102
O ícone impresso no manto está em exibição na Basílica de Guadalupe, construída no mesmo local, e é a
mais popular imagem mexicana, gerando uma série de souvenirs, como camisetas, réplicas em gesso e
plástico, quadros, entre outros.
103
Três dias antes, Nossa Senhora havia aparecido ao índio no monte Tepeyac, próximo à Cidade do México
e pediu-lhe que dissesse ao bispo da cidade para construir uma igreja em sua honra. Batizado Juan Diego,
transmitiu o pedido e o bispo exigiu uma prova da aparição. Nossa Senhora fez crescer flores numa colina
semi-desértica em pleno inverno, as quais Juan Diego devia levar ao bispo, acondicionando-as no seu manto.
Ao abri-lo diante do bispo e de várias outras pessoas, verificaram admirados que a imagem de Nossa Senhora
estava estampada no manto com uma braçada de rosas.
104
O jasmim é por vezes confundido com a flor de frangipani, uma espécie de magnólia rara, nativa do
México (magnólia guerrerensis). Na simbologia maia,conforme discorremos no capítulo um, a frangipani,
que corresponde ao sol, simboliza a fornicação e tem cinco pétalas. Todavia, muitas vezes aparece com quatro
pétalas nos pictogramas (quatro é o numero solar, Thoh), o que pode provocar interpretações distintas.
105
CAMPBELL (1999: 402-403) coloca que “em toda esfera maia-tolteca-asteca, havia também a idéia
contida no mito, aqui mencionado, do universo posto em movimento pelo sacrifício de um deus”. Nesse
sentido, vida e morte são onipresentes nos sacrifícios humanos propostos pelos maias e astecas para manter o
sol em movimento.
75
Isso ocorre com certa frequência na liturgia católica latina, como se pode observar
com os mitos e relatos que giram em torno de outras padroeiras, como Nossa Senhora de
Nazaré, em Belém do Pará. Curiosamente, o jasmim de quatro pétalas mexicano encontra-
se entalhado nas paredes de pedra da Igreja de Santo Alexandre, em Belém, em frente à
antiga basílica de Nazaré. Ratificando a presença do emblema jesuítico e pré-colombiano
também na América do Sul, poderia sugerir a existência de uma espécie de logomarca
simbólica dessa estratégia de dominação imagética entre os jesuítas. A Virgem Amazônica
compartilha, com Nossa Senhora de Guadalupe, o enredo de que sua imagem apareceu de
forma misteriosa a um indígena, demandando a construção de um templo para sua
veneração. Também há uma flor associada a ela, que não é nem o jasmim, nem a rosa, mas
o lírio
107
. Segundo PICKLES (1989: 61), o primeiro lírio surgiu de uma lágrima de Eva
quando expulsa do paraíso. A pesquisadora inglesa confirma que é a flor dedicada à
Virgem Maria, honrando sua pureza, o que faz com que seja o lírio a prevalecer nas chitas
usadas para dançar o carimbó, música regional bailada com longas saias floridas, de modo a
manter o dualidade entre religioso e pagão.
CANCLINI (2007: 72) nos lembra que as migrações do século XIX e da primeira
metade do XX eram quase sempre definitivas e desligavam aqueles que partiam dos que
ficavam, ao passo que os deslocamentos atuais combinam traslados definitivos,
temporários, de turismo e viagens breves de trabalho”. A festa do Círio de Nazaré é, para
os paraenses, de proporções tão importantes quanto o Natal para os demais católicos, com
enorme repercurssão midiática tanto nos meios impressos quanto eletrônicos. Ora, com a
exposição à mídia de massa, a indústria do turismo e do entretenimento se beneficiam e os
viajantes que visitam ambas as basílicas “levam consigo suas imagens a outros lugares,
viajam com elas a uma nova época”
108
(BELTING, op.cit.: 75). Assim como ocorre na
igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, acelera-se, portanto, o comércio de souvenirs
florais também na região amazônica e em muitas zonas da América Latina (figura 22).
106
BAYLEY (1990: 235) observa que essa flor estrelada possivelmente recebeu seu nome, jasmim ou
jessamine, a partir da estrela da manhã, sol que nasce a cada dia: o planeta Vênus.
107
O lírio é uma das flores mais antigas que se conhece e sempre foi entendido como símbolo de pureza. Pode
ser encontrada nos templos da Grécia antiga como a flor pessoal de Hera.
108
“Llevan consigo sus imágenes a otros lugares, o viajan con ellas a una nueva época”.
76
Figura 22 Souvenirs carregam imagens sincréticas do catolicismo e das religiões mesoamericanas mediante
os adornos florais incrustrados na figura da Virgem de Guadalupe. Distrito Federal, México, janeiro de 2009.
Ressurreição imagética
77
Segundo CHEVALIER e GHEERBRANT (op.cit.: 438), “na civilização asteca, as
flores dos jardins eram não apenas um ornamento para o prazer dos deuses e dos homens
e uma fonte de inspiração para os poetas e artistas, como também caracterizavam
numerosos hieróglifos e fases da história cosmogônica”. Como vimos na figura 21, nos
templos as flores eram pintadas ou esculpidas de maneira esquemática, reduzidas a uma
estrita geometria, quer apresentadas de perfil, quer pela boca da corola. Esses autores
esclarecem que, para os astecas, as flores são uma medida das relações com o tempo e as
idades cosmogônicas. Muitas vezes, representam também as almas dos mortos, como figura
arquetípica. A deusa Xochiquetzal, como símbolo da beleza temporária das flores, também
está conectada aos grãos e à fertilidade das plantas, ao ato de renascer. Flores são ofertadas
a ela no “Dia dos Mortos”, e os tecelãos e bordadeiros a reconhecem como sua patrona.
FEMENIAS (op.cit.: 99) nos lembra que recordar os mortos é uma experiência
participativa nas comunidades da América Latina”, muito especialmente no México, onde
crer, tecer, costurar, bordar e vestir são atividades correlatas. É importante observar que as
chitas são comumente adquiridas com vistas a confeccionar trajes novos para dias de festa,
somente depois incorporados ao uso diário. Nesse sentido, a mais importante celebração
mexicana é precisamente o “Dia dos Mortos”, quando supostamente os falecidos teriam a
oportunidade de visitar seus parentes vivos, sendo recebidos com comidas, bebidas e roupas
novas. CYRULNIK (1997: 279) coloca que o homem se organiza em torno da morte,
inclusive preparando camas de flores para seus defuntos. Conforme argumenta ROCA
(2008: 93)
109
,
“num contexto onde as imagens cruas perderam, por força de serem vistas,
sua capacidade de comover, a estetização das imagens violentas consegue,
por contraste, devolver à imagem sua visibilidade. E se a imagem da morte
se estetizou, que melhor símbolo que a flor, que se associa em todas as
culturas ao belo, e em muitas delas aos rituais funerários?”
109
En un contexto en donde las imágenes crudas han perdido, a fuerza de ser vistas, su capacidad de
conmover, la estetización de las imágenes violentas logra, por contraste, devolverle a la imagen su
visibilidad. Y si la imagen de la muerte se ha estetizado, ¿qué mejor símbolo que la flor, que se asocia en
todas las culturas a lo bello, y en muchas de ellas a los ritos funerarios?”
78
Figura 23 O girassol aparece regularmente nas chitas e bordados mexicanos, dada sua conexão com o deus
Quetzacoatl, a serpente emplumada que criou os seres humanos conforme a mitologia asteca. Montezuma
recebeu Cortez efusivamente por acreditar que o espanhol era a representação humana de Quetzacoatl.
Guadalajara, México, janeiro de 2009.
79
“A vida é apenas uma máscara usada no rosto da morte” (CAMPBELL, op.cit.:
160). No caso mexicano, os têxteis são recobertos de flores para teatralizar o reencontro.
São trocas subjetivo-objetivas, “antropocosmomórficas da técnica, do símbolo, da
linguagem, do mito, da magia, [por meio das quais] o homem se constrói” (MORIN, 1970:
112). Por exemplo, a cempasuchel
110
, ou calêndula, aparece frequentemente nas chitinhas
mais baratas. Essa pequena flor amarela ou magenta, utilizada para adornar os altares no
“Dia dos Mortos”, configura a presença de uma ausência. Ou seja, visibilidade aos
mortos mediante imagens florais ligadas à vida e à ressurreição. Isso porque, com suas
vinte pétalas, cria uma imagem com muitas camadas: uma única flor pode simbolizar um
buquê de rosas, por sua vez símbolo da imortalidade. Nesse sentido, concordamos com
BAITELLO (op.cit.: 24) quando diz que “quando elas [as imagens] nos capturam,
precisamos estar bem nutridos de ilusões de bem estar e otimismo, de heroísmo e de
imagens de invencibilidade e imortalidade”.
Entre a cultura do toque e a cultura do pensamento está a cultura da conexão
simbólica. Outro detalhe importante apontado por BAYLEY (op.cit.) é precisamente a
relação sol-centro-serpente: imagens que circulam dentro da própria imagem da flor,
apontando para a existência de camadas de imagens superpostas nos têxteis florais. Diz ele:
“no centro da margarida de oito pétalas ou girassol há o que pode ser lido como a
representação da letra M de Maria, da religião cristã, ou o hieróglifo da Grande Serpente,
das antigas religiões pagãs (ibidem: 08). Isso justificaria a popularidade do motivo de
girassol entre os povos mesoamericanos e seus descendentes, que aplicam essa imagem
floral em vestimentas cotidianas (figura 23). Em sua obra Images From the Region of the
Pueblo Indians of North America, na qual estuda o povo hopi da América do Norte, Aby
M. Warburg aponta que a serpente enrolada
111
, o círculo, é o símbolo para o ritmo do
tempo, coincidindo com a visão cosmogônica asteca. Trata-se da figura do uróboro,
serpente que morde a própria cauda e simboliza um ciclo de evolução encerrado nela
mesma, o miolo da própria flor. Esse símbolo contém ao mesmo tempo as idéias de
110
Assim como se usa xochtil tanto para flor como para rosa, ambas conotam o número vinte, base da
numeração vigesimal asteca, e portanto são “cempohual-xochitl”: “uma conta”, ou “uma conta completa:
cempasuchil”.
111
Essa serpente ainda aparece na base das cerâmicas modernas exatamente como o arqueólogo Jesse Walter
Fewkes as descobriu em sítios pré-históricos: enroladas, com plumas na cabeça. (WARBURG, op.cit: 15-17).
80
movimento, de continuidade, de autofecundação e, em conseqüência, de eterno retorno.
Para CHEVALIER e GHEERBRANT (op.cit.: 922:923):
“uma outra oposição aparece numa interpretação em dois níveis. Ao
desenhar uma forma circular, a serpente que morde a própria cauda, rompe
com uma evolução linear e marca uma transformação de tal natureza que
parece emergir para um nível de ser superior, o nível do ser celeste ou
espiritualizado, simbolizado pelo círculo. Transcende assim o nível da
animalidade, para avançar no sentido do mais fundamental do impulso de
vida. Mas essa interpretação ascendente repousa apenas na simbologia do
círculo, figura de uma perfeição celeste”.
Para WARBURG (1995), a contemplação do céu é a graça e a maldição da
humanidade, pois ali estão alguns dos símbolos mais representativos nos processos de
migração das imagens. CHEVALIER e GHEERBRANT (ibidem, idem) notam que a
serpente que morde a própria cauda evoca a roda das existências, o samsara: (...)
simboliza então o perpétuo retorno, o círculo indefinido dos renascimentos, a repetição
contínua, que trai a predominância de um fundamental impulso de morte”. BAYLEY
(op.cit.: 200) adiciona que “os maias concebem o céu na forma de uma roda de oito raios,
e esta mesma „Excelente Roda da Boa Lei‟ é um símbolo venerado na Índia, China e
Japão”. Nesse sentido, o pesquisador alemão opina que a serpente recria tal ciclo de
fertilidade e vida quando desaba com a força mágica da chuva sob forma de raio. Na dança
da cobra dos hopis, segundo observa,
(...) a serpente então não é sacrificada, mas sim, através da consagração e
sugestiva dança mímica, transformada em mensagem e despachada, de
forma que, retornando às almas dos mortos, ela pode na forma de raio
produzir tempestadas vindas do paraíso. Temos então uma visão acerca da
onipresença do mito e da prática mágica na humanidade primitiva”
112
.
(WARBURG, op.cit.: 38)
112
“(…) the serpent is therefore not sacrificed but rather, through consecration and suggestive dance
mimicry, transformed into a messenger and dispatched, so that, returned to the souls of the dead, it may in the
form of lightning produce storms from the heavens. We have here un insight into the pervasiveness of myth
and magical practice among primitive humanity”.
81
Essa onipresença da qual nos fala Warburg é bastante visível na Mesoamérica.
Segundo a mitologia asteca, a serpente emplumada que mora nos céus, Quetzacoatl, deus
do vento, da criatividade e da fertilidade, foi justamente quem deu vida aos humanos
(NEUMANN, 1974: 180). CAMPBELL (op.cit. 151) explica que, no calendário asteca,
Quetzacoatl rege o quinto ciclo, mas está presente em todos eles. O mitólogo comenta que
o primeiro, conhecido como “4 Jaguar”, representa o elemento terra e está associado ao
norte e às cores preto e vermelho. Esse período durou 676 anos e terminou quando
Quetzacoatl venceu Tezcatlipoca, o portador do sol. O segundo ciclo de mesma duração,
chamado de “4 Vento”, iniciou-se quando Quetzacoatl tornou-se portador do sol e terminou
quando foi vencido por Tezcatlipoca e transformado em furacão. O quadrante associado a
esse período é o leste, o elemento é o ar e a cor o amarelo da aurora.
A era seguinte, denominada “4 Chuva”, durou 364 anos e parece se relacionar ainda
mais estreitamente com as observações de Warburg quanto aos hopis. Isso porque terminou
quando Quetzacoatl venceu Tlaloc, deus da chuva, com uma tempestade de fogo. Aqui,
portanto, o elemento é o fogo, como no relâmpago dos hopis. O quadrante designado do
mundo para essa era é o sul e a cor é o branco do dia.
“Verificou-se, para além de toda possibilidade de dúvida futura, que a Cruz
da América pré-colombiana é uma espécie de rosa-dos-ventos, que
representa os quatro quadrantes de onde vem a chuva, ou melhor, os quatro
principais ventos que trazem a chuva, tornando-se dessa forma o símbolo de
Tlaloc, o dispersador das águas celestes e, posteriormente, do personagem
mítico conhecido pelo nome de Quetzacoatl”.
(D‟ALVIELA, op.cit..: 28)
Não nos parece coincidência, portanto, o trânsito imagético que aponta
CAMPBELL (op.cit.: 154): “o glifo na Pedra Calendário mostra a cabeça de Tlaloc
composta de formas de serpentes e de chuva”. Na sequência, Quetzacoatl nomeou a esposa
de Tlaloc, Chalchiuhtlicue, deusa das águas correntes, portadora do sol. Assim surgiu a
idade seguinte, “4 Água”, que durou 312 anos e representa a água, o oeste e o azul
esverdeado. Essa era terminou com um dilúvio. “Assim, o poder protetor de cada um dos
quatro quadrantes do mundo adquiriu sucessivamente a posse do sol, para depois
82
sucumbir ao poder oposto” (ibidem: 156).
Após essas tempestades e inundações, que se prolongaram de tal forma que os céus
desmoronaram, o mundo asteca precisava ser recriado e mantido à custa de sacrifícios
constantes. Quetzacoatl, portanto, desceu ao outro mundo, Mictlan, e enfrentou
Mictlantecuhtli, Senhor da Morte. Voltando com um pacote de ossos humanos, ele os
presenteou à Coatlicue, Senhora da Saia de Serpentes, a Deusa-Mãe que abrange tudo do
universo
113
. Ela os moeu e com o sangue de Quetzacoatl fez nascer um novo povo. Mas,
“para manter o sol em movimento, sacrifícios contínuos eram necessários, e, com esse
objetivo, a sagrada instituição da guerra foi instaurada a fim de se conseguir vítimas,
cujos corações, arrancados ainda pulsando dos peitos abertos, eram lançados como flores
de gratidão ao Doador da Vida” (ibidem: 159). No calendário asteca, assim como no
cotidiano dessa civilização, notamos que a dualidade constante entre vida e morte se reveste
com a simbologia do sol, estrela que faz nascer as flores e o dia. Quetzacoatl tem como
símbolo celestial o planeta Vênus. Conforme argumentamos anteriormente com BAYLEY
(op.cit.), Vênus, estrela matutina e vespertina, foi precisamente o elemento que deu nome
ao jasmim mexicano
114
. Símbolo da passagem do tempo, o jasmim representa os quatro
pontos cardeais astecas e, em seu miolo, o inframundo visitado por Quetzacoatl, a serpente
emplumada que une céus e terras como um raio. Não por acaso, Xochipili, o deus da Festa
das Flores, também ostenta plumas do pássaro quetzalcoxcoxtli na aparência. Essas
intersecções retomam as relações entre sol e flor como adjuvantes das conexões entre
pássaro e cobra, céu e terra, homem e divindade: todas expressas nos têxteis florais.
Estudando a mitologia hindu nos quadrinhos, ALMEIDA (1999:78) nota que,
embora répteis e aves sejam totalmente distintos, ambos se originam do ovo como unidade
básica. Subjacente a esta imagem mitológica, corre o princípio filosófico,
caracteristicamente hindu (e, ao que nos parece pelos exemplos hopi e asteca, também
americano), da unidade na diversidade, das formas transitórias e impermanentes, divinas,
humanas ou animais, ocultando um princípio único” (ibidem, idem). Trata-se da
simbologia da renovação e renascimento, em síntese: da imortalidade e preservação, que
113
No panteão católico, Coatlicue pode ser associada à imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, que,
conforme já dito, ostenta o jasmim mexicano em seu traje.
114
Vide nota de rodapé nas páginas 84-85 deste estudo.
83
perpassa as imagens estampadas com flores, da Índia ao México.
Assim, analisando as idéias simbólicas ligadas à serpente e à flor que a contém é
possível observar suas conexões com o sol, o tempo e as benesses da natureza mediante a
atenção com as divindades. “O mito é um dos fluxos centrais do imaginário coletivo e o
ritual algo estabilizador do conjunto de regras que a cultura instala” (ROCHA, op.cit.:
166). Nas velhas religiões, os sacerdotes tinham ritos para animar as imagens e as tecelãs
viviam em recintos sagrados. No Peru, onde a devoção ao sol durou até a conquista
espanhola, as virgens consagradas ao templo usavam coroas de girassóis em ouro puro e,
durante as cerimônias, carregavam as mesmas preciosas flores em suas mãos (ALMEIDA,
op.cit.: 202- 204). BELTING (op.cit.: 08) explica:
“Algumas culturas antigas cultivavam a prática de consagração de suas
imagens de culto antes de utilizá-las em rituais. Naquele tempo, a
consagração era necessária para transformar objetos em imagens. Sem
ritual de consagração, imagens eram meros objetos e, portanto,
consideradas inanimadas. Somente através da animação sacra estas imagens
podiam exercer poder e sua substância tornar-se mídia. A criação de tais
imagens era, num primeiro ato, realizada por um escultor enquanto, em um
segundo ato, era confiada a um sacerdote. Este procedimento, que se parece
com mágica ultrapassada, implicava uma distinção entre imagem e mídia
e requeria a um sacerdote a transformação de um mero objeto em mídia. Isto
também significava que imagens sempre implicavam vida (de fato é nossa
própria vida que é nelas projetada), enquanto objetos eram considerados
como algo morto)”.
Os rituais se modificam mas, conforme defendia Pross, percebe-se que os
símbolos perduram além da vida humana. É interessante notar que esse gênero de imagem
floral com pétalas soltas prevalece, nos anos 2000, nos bordados dos povos autóctones
mesoamericanos, por vezes associado às espirais, ou serpentinas. A serpente, com sua troca
de pele, simboliza a renovação da vida. GIMBUTAS (1989: 121) salienta que, na
iconografia européia arcaica, uma serpente na vertical manifestava a força de vida em
ascensão, sendo vista como um símbolo intercambiável com a árvore da vida.
“Combinados com plantas mágicas, os poderes da serpente eram potentes na cura e na
84
criação de nova vida” (ibidem, idem)
115
. Isso nos leva a crer que as serpentinas bordadas
representam a subida e a descida do sol, ou seja, vida e morte: nahui ollin”, o sol em
movimento asteca. “Não é o corpo da cobra que era sagrado, mas a energia exalada por
essa criatura espiralada ou enrodilhada que transcende suas fronteiras e influencia o
mundo ao redor” (ibidem, idem)
116
.
Ao mesmo tempo, nos termos da noosfera, as serpentinas reforçam a idéia de
continuidade entre gerações, com a arte do bordado passando de mãe para filha. Parte da
conformação da alma de uma pessoa é seu duplo com um animal, dito tona na região de
Oaxaca. A grega em forma de “z‟, que se assemelha ao rastejar da serpente, é chamada em
chinanteco de “flor quebrada” ou “víbora enroscada”. Margaridas, gérberas e beijinhos,
entremeadas a elas, estão muito presentes nas túnicas e vestidos do tipo San Antônio,
produzidos em Oaxaca, sul do México (figura 24). Em geral, os bordados recobrem
ombros, colo, seios e ventre, regiões do corpo associadas à feminilidade. Paralelamente, as
chitas brasileiras também enfatizam tais motivos, que ganham força nos vestidos e saias
para ocasiões festivas. BELTING (op.cit.) nos lembra que (...) relacionamos intimamente
as imagens às nossas próprias vidas esperando que elas interajam com nossos corpos, com
os quais as percebemos, imaginamos e sonhamos”. O sol, portanto, continua expressando
através de flores e serpentes estilizadas a força da criação, da fertilidade e da vida. Assim
como acontece com a flor de lótus na cultura hindu, a frangipani e o jasmim mexicano são
símbolos solares para as culturas mesoamericanas, indicando a universalidade da relação
flor-sol-vida
117
. Isso nos leva a crer que, nessas e em outras plantas como a margarida, o
girassol e a gérbera, as pétalas alongadas e soltas compartilham o simbolismo dos raios
solares que fazem a existência humana vibrar ao longo dos tempos e espaços geográficos.
Mudanças ocorrem, paisagens se alteram, mas, enquanto uma mulher continuar a fiar o
algodão em sua roca, a mídia secundária se constituinum espaço para que a memória
coletiva vença o esquecimento e a morte. A cultura certamente fermenta novas conexões
(BELTING, 2007: 75).
115
“Combined with magic plants, the snake‟s powers were potent in healing and creating life anew”.
116
“It is not the body of the snake that was sacred, but the energy exuded but this spiralling or coiling
creature which transcends its boundaries and influences the surrounding world.”
117
Há também um testemunho europeu com respeito à universalidade da imagem da serpente. De acordo com
85
Figura 24 Exemplos de vestidos San Antônio onde predominam gérberas bordadas (acima). Guadalajara,
México, janeiro de 2009. Na amostra de chita brasileira (abaixo, à direita), além da gérbera (abaixo, à
esquerda), notam-se referências à flor de lótus e ao hibisco, numa confluência imagética. São Paulo, Brasil,
maio de 2006.
GIMBUTAS (ibidem: 124), figuras de cobras eram recorrentes em bolas de pedra escocesas e irlandesas do
período Neolítico que, aparentemente, eram usadas como amuletos com o propósito de garantir a fertilidade.
86
Natureza errante
Flores sempre foram cultivadas no mundo inteiro uma vez que, como pondera
OLIVEIRA (1997:26), lugares de convivência comunitária são carregados de valores dos
quais os freqüentadores procuram se apossar. HILLMAN (op.cit.: 54), ao explorar os
jardins europeus iluministas do século XVIII, nos lembra precisamente que “(...) era
essencial que olhos e pés ficassem satisfeitos: os olhos para ver; os pés para atravessar; os
olhos para abarcar e conhecer o todo; os pés para permanecer nele e vivenciá-lo”. A
afirmação é especialmente válida para a Grã-Bretanha, onde a jardinagem é uma atividade
marcante: nos quintais ingleses, recursos de sedução vão sendo orquestrados para que a
parte valha pelo todo e, mediante o consumo metonímico, sejam outorgadas identidades.
Em 1875, quase trezentos anos depois das padronagens florais orientais invadirem o
mercado inglês de forma massiva, Arthur Lasenby Liberty abriu uma espécie de bazar na
Regent Street, em Londres. Ali era possível encontrar grande variedade de tecidos florais
provenientes de importações legalizadas do Japão, Turquia, China e, especialmente, da
Índia. O diferencial estava na delicadeza das imagens circulantes nos tecidos à venda.
Imagens mestiças dos luxuriantes jardins orientais e dos cultivados quintais ingleses,
obtidas graças às encomendas junto aos fabricantes hindus, seguindo os exemplos dos
antigos comerciantes persas e portugueses. BHABHA (2003:85), ao referir-se ao conceito
de imagem, esclarece que “sua representação é sempre espacialmente fendida ela torna
presente algo que está ausente e temporalmente adiada: é a representação de um tempo
que está sempre em outro lugar, uma repetição”. Com estampados essencialmente
inspirados nos motivos orientais das primeiras sedas e algodões importados, o comerciante
adaptou imagens estrangeiras ao gosto inglês. Isso ocorreu mediante o empalidecer das
cores (rosa, chá, verde jade, areia e azul claro) e a diminuição dos padrões florais, com
aplicação de elementos dos jardins britânicos associados aos motivos hindus.
Imbuído pelo espírito orientalista
118
, no qual imagens superpostas explicitavam, em
certa medida, o domínio colonial do Império Britânico, em seguida Liberty tratou de
118
O uso do termo é polivalente, turvando fronteiras geográficas e posturas intelectuais com a publicação, em
1978, das reflexões de Edward Said, acadêmico palestino radicado nos Estados Unidos. Na obra
Orientalismo, ele amplia o significado e o uso da noção de Orientalismo partindo da literatura comparada para
um contexto político transnacional e mesmo pós-colonial. A palavra e as idéias em torno das quais gravita
assumem então outros contornos.
87
transferir a fabricação de seus têxteis para a própria Grã-Bretanha. Começou com uma
mistura eclética de estilos populares, mas logo desenvolveu uma diferença fundamental na
estamparia por promover uma ligação direta com o movimento estético Art Nouveau
119
nos
anos de 1890, assim como com a filosofia do movimento Arts and Crafts. A companhia
tornou-se sinônimo dessa nova padronagem a tal ponto que, na Itália, o Art Nouveau é
conhecido como Liberty Style, ligando-o diretamente à loja inglesa. Os motivos de flor de
lótus, íris e jasmim, inicialmente desenhados no estilo do artista William Morris
120
,
passaram a adquirir um tom bucólico e uma ingenuidade infantil a partir de 1890, com a
incorporação de imagens dos jardins ingleses: pássaros, flores silvestres, papoulas e
margaridas. A fabricação da imagem de uma Inglaterra bucólica, civilizada e doce foi
alicerçada em flores miúdas, de tons pastéis, que assumiam um ponto de vista ambivalente
em contraponto com as estampas orientais grandes e em cores vibrantes. Isso porque
descreviam o Outro de um lugar onde ele não está, orientando o consumidor a adquirir
imagens desse Outro. Representações construídas e ofertadas no ambiente comercial pelo
próprio colonizador. Essa situação nos faz afirmar com MACKENZIE (ibidem: 35) que “o
espaço metropolitano torna-se uma metáfora para o poder global: relações sociais e
conflitos representam contatos raciais mais amplos”.
Os tecidos à venda na matriz inglesa foram amplamente imitados no mercado de rua
de Portobello Road, inclusive migrando tais imagens para a estamparia de porcelana (figura
25). As chitinhas rapidamente se transformaram em souvenirs de viagem, de forma que as
imagens dos jardins ingleses idealizados por Liberty correram mundo. Chegou a ser
vendida por atacado no exterior, inclusive na própria Índia e no Brasil. Todavia, tamanho
119
Art Nouveau é um movimento estético ligado ao design e à arquitetura que também influenciou o mundo
das artes plásticas durante a Belle Époque, nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século
XX. Caracteriza-se pelas formas orgânicas, escapismo para a Natureza, valorização do trabalho artesanal,
entre outros. Os movimentos Simbolista e Arts and Crafts também influenciaram o Art Nouveau. Recebeu
nomes diversos dependendo do país em que se encontrava: Flower Art na Inglaterra, “Modern Style”,
Liberty” ou estilo Floreale na Itália. Os alemães criam sua própria vertente de Art Nouveau chamada
Jugendstil. No Brasil, o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo destacou-se pela sua integração ao
movimento, assim como o artista Eliseu Visconti.
120
Fortemente influenciado pelo escritor John Ruskin, William Morris (1834-1896) foi um dos principais
fundadores do Arts and Crafts (Movimento das Artes e Ofícios) britânico, que teve grande impacto na
produção de estamparia (RUTHSCHILLING, 2009: 20). Pintor de papéis de parede, tecidos padronizados e
livros, Morris conduziu o movimento artístico Irmandade Pré-Rafaelita, que evitava a manufatura industrial
barata de artes decorativas e valorizava o papel do artesão.
88
sucesso não impediu a proliferação de cópias diluídas das imagens transportadas, das quais
as brasileiras rapidamente se tornaram célebres. Em 1911, conforme documentam
MELLÃO e IMBROISI (op.cit: 102), o cônsul britânico em Pernambuco alertou que a
eficiência da produção brasileira ameaçava seriamente a competitividade dos artigos
produzidos em Manchester. “Excelente material é empregado e os últimos modelos e
desenhos ingleses são cuidadosamente copiados” (ibidem, idem). De fato, no Museu Têxtil
Décio Mascarenhas, da empresa mineira Cedro & Cachoeira, amostras de tecido dos
primeiros anos do século XX com florais miúdos eventualmente inspirados na produção da
Liberty, a qual, conforme argumentamos, também devia inspiração aos padrões hindus,
traçando um longo percurso imagético.
Figura 25 Bules recobertos com tecido Liberty pela própria marca esquerda) e porcelana inglesa à venda
em Portobello Road com estamparia floral no padrão Liberty direita), mostrando a migração de imagens
entre suportes. Londres, Inglaterra, dezembro de 2006.
89
Encontros extraordinários
WARBURG (1995, 1999) nos ensina a importância de uma arqueologia das
imagens para os estudos da comunicação. Se, na Inglaterra,paisagens imaginárias de
locais exóticos se tornaram a inspiração para um redesenho personalizado usando os
têxteis pintados ou estampados da Índia”
121
(LEMIRE, op.cit.: 65), podemos considerar
que tais imagens aportaram no Brasil apresentando intervenções e acréscimos costurados
pelo design de Liberty. Faz-se necessário inventariar, portanto, as imagens que as
precederam para melhor compreender esse percurso. Nas chitinhas brasileiras, não obstante
a semelhança com os produtos colombianos e mexicanos, as versões voltadas ao mercado
inglês foram ainda invadidas por um fluxo luxuriante de imagens barroco-mestiças. Nas
chitas nacionais, predominam flores com miolo delicado e pétalas em número ímpar,
geralmente arredondadas, lembrando espécimes comuns da Mata Atlântica, como a
impatiens walleriana, beijinho ou maria-sem-vergonha, ou o hibiscus rosa simensis, o
hibisco tropical. Paralelamente, nos chitões também são comuns as flores solares de pétalas
longas, com miolo protuberante e bem marcado, como é o caso das margaridas, girassóis,
crisântemos e gérberas (figura 26). Percebe-se seu uso especialmente nas celebrações
nacionais, como os folguedos juninos e o carnaval. Também estão presentes em atividades
regionais, como a dança do carimbó do Pará ou a brincadeira de boi-de-mamão de Santa
Catarina.
Como diz PINHEIRO (2009: 12), “o caráter multiplicante, ramificante e
fragmentário da cultura se dá aqui por uma proliferação dos processos civilizatórios
fronteiriços junto a um grande enfraquecimento das noções binárias de centro e periferia
(...)”. Assim, algumas imagens de ascendência hindu, que haviam adentrado diretamente a
parte norte da América mediante o comércio regular com a Espanha e a pirataria, estão
ainda mais soterradas por outras camadas imagéticas nos tecidos brasileiros. Podem ser
entendidas, no Brasil, como de segunda ou mesmo terceira mão, já que aportam no país por
meio de Portugal e Inglaterra, e aqui se enrodilham, ladinas, em outras espécies botânicas
abundantes na América do Sul. Nessas imagens, nota-se um intenso dinamismo entre a
121
“Imagined landscapes of exotic locales became the inspiration for a redesign of personal settings using
the painted, printed textiles from India”.
90
contração e a expansão dos objetos da comunicação e da cultura, por vezes tradutórios,
noutras contraditórios.
Figura 26 Sombrinhas confeccionadas com chitão em que predominam flores solares, usadas para dançar
frevo no carnaval pernambucano. Olinda, Brasil, fevereiro de 2009.
De toda forma, é certo que as aparições das chitas são associadas às ocasiões de
alegria e fé na vida. Envolvem diretamente a mídia primária, dada a gestualidade necessária
para vivenciar tal experiência coletiva, tanto quanto a mídia secundária, que expande essa
presença no mundo, situando-a no tempo mágico dos mitos e dos rituais sagrados da
cultura. Assim, tais imagens, independentemente do contexto cultural em que estejam
transitando em dado momento, parecem evocar um significado comum na América,
também compartilhado com a Ásia: a ligação com o sol, a vida e o tempo, como já
pregavam os maias com as frangipanis, os astecas com os jasmins e os hindus com a flor de
lótus. Nesse sentido, as percepções de BAITELLO (op.cit.: 90-97) acerca da iconofagia,
perceptíveis nas análises das imagens florais, reforçam o ponto de vista de BELTING
91
(op.cit.: 18) quando ele conclui que “as imagens não ocidentais já deixaram seus traços na
cultura ocidental um longo tempo”. Todavia, como nos lembra a figura 27 e a fala de
CANCLINI (op.cit.: 81), “não foi um encontro, como se duas sociedades se reunissem no
meio do Atlântico para uma amável feira de intercâmbios, e sim uma história de combates
e (a nosso ver, por vezes) de imposições”.
Figura 27 Indígena huichol perambula pelo comércio de Coyoacán usando traje típico e mochila da marca
Adidas. Ao lado, detalhes aproximados do bordado, feito por sua esposa, onde se vêem flores, cruzes e
pássaros. Distrito Federal, México, abril de 2008.
92
Imagens prêt-a-porter
“Para fazer a campina
Junto uma vespa e uma flor
Vespa, flor e fantasia
Ou apenas fantasia
Se faltarem a vespa e a flor”.
- Emily Dickinson -
Contra a imaginação
BAITELLO (2000: 10) nos ensina que os caminhos, por terra ou por mar, sempre
foram povoados por imagens (...) o encanto das viagens não reside em outro lugar que não
seja o da busca de imagens (visuais, acústicas, olfativas, gustativas, táteis ou vivenciais)”.
De fato, ao mapear as andanças da estamparia floral no segundo capítulo deste estudo,
observamos que os tecidos vão estabelecendo vínculos comunicativos entre as rias
culturas e os viajantes que nelas circulam, mediante a construção de imagens dessas
localidades que vão se mesclando, fundindo e acumulando uma vez impressas no design
têxtil. A memória dilui abismos temporais sem impedir modificações, pois, em termos
plásticos, o que é transmitido vai se alterando pouco a pouco, ao mesmo tempo em que
concede às imagens grande espessura histórico-cultural. Assim, pode-se dizer que as
imagens encerram descobertas e possibilitam, com a “função-janela” da qual nos fala
KAMPER (1994), o transporte para além delas mesmas, num tempo sagrado, mítico e fora
do ritmo da existência comum. Em 1801, durante suas expedições botânicas na América do
Sul, o célebre aventureiro Alexander von Humboldt exemplificou a questão anotando suas
razões para viajar: “eu era instigado por um vago anseio de ser transportado de uma vida
diária entediante para um mundo maravilhoso” (apud BOTTON, 2000: 267), ou seja, para
o universo das imagens.
Segundo Kamper, quando adequadamente empregada, a função-janela permite ao
homem o acesso à visibilidade das coisas além de sistemas fechados, no qual ele inclui o
próprio imaginário. “O imaginário aqui é a palavra genérica para os sonhos mortos da
93
humanidade, para os artefatos substitutivos da força de imaginação, para os restos de tudo
aquilo que se imaginou (...)” (KAMPER, op.cit: 51). BAITELLO (2005:92), estendendo as
idéias de Kamper, compreende que o imaginário se torna assim uma “órbita fechada,
impedindo e impossibilitando todo exercício da imaginação”, ou seja, negando às imagens
um momento criativo de rebelião, que seria configurado pelas “imagens em ação”. Essa
observação nos parece especialmente perceptível no uso que o homem faz do vestuário,
apontando para um aspecto sombrio no consumo imagético: justamente a perda da “função-
janela”, ou seja, a cegueira causada pela avalanche de imagens. LESHKOWITCH e JONES
(2003:48) parecem comungar dessa idéia quando apresentam práticas de estilistas da
Indonésia e do Vietnã que “(...) usam seu conhecimento das tendências asiático-chiques
globais para confeccionar e comercializar novas versões de roupas supostamente
tradicionais (...)”. O estudo realizado pelas pesquisadoras apresenta o caso da designer
Josephine Komara, mais conhecida como Obin, que nos anos 90 exotizou estampas
próprias da indumentária típica da Indonésia em sua boutique em Jacarta, ignorando ou
reavivando imagens, a princípio para vender aos turistas.
BELTING (op.cit.: 72) nota que “as imagens em nossa recordação corporal estão
ligadas a uma experiência de vida pela qual passamos no tempo e no espaço”
122
. No caso,
como os riscos da imaginação são assegurados por um imaginário previamente editado por
Obin, a experiência de ir até o lugar e as memórias trazidas de são, portanto, pré-
fabricadas. Mediante o uso indiscriminado de imagens estereotipadas e
descontextualizadas, Obin homogeneiza a experiência local, condensando-a num mundo de
imagens “prêt-a-porter” ou “prontas para usar”, que não requerem e muito menos
incentivam o uso da função-janela. Nesse caso, o imaginário se opõe à imaginação. Se
outrora a idéia de viajar e coletar imagens envolvia planejamento, tempo e recursos, como
advoga BOORSTIN (1992: 84), esse neo-nomadismo é sedentário e asséptico. O viajante
ativo se converte em turista passivo, isolado das paisagens que atravessa (figura 28).
Somos assombrados não pela realidade, mas por aquelas imagens que colocamos no
lugar da realidade”
123
(ibidem: 06).
122
“Las imagines en nuestro recuerdo corporal están ligadas a una experiencia de vida que hemos hecho en
el tiempo y en el espacio”.
123
“We are haunted, not by reality, but by those images that we have put in place of reality”.
94
Figura 28 Vestidos confeccionados em chita e chitinha, destinados ao consumo de turistas, à venda no
mercado San Juan de Dios. Guadalajara, México, janeiro de 2009.
Domesticação do imaginário
Inicialmente voltando sua produção aos expatriados americanos e europeus, ávidos
pela experiência do “consumo do autêntico”, Obin logo expandiu sua base de clientes para
a elite local. Assim, o imaginário coletivo foi alterando sua própria visão acerca das
mesmas imagens (BELTING, 2007; WARBURG, 1995). Graças ao escambo imagético, a
imagem do “turista chique” virou ideal de consumo dos indonésios. ROCHA (2004: 09)
esclarece que “o consumo de produtos e serviços este complexo mundo dos bens é
público e, portanto, retira sua significação, elabora sua ideologia e realiza seu destino na
esfera coletiva, existindo como tal por ser algo culturalmente compartilhado”. Assumindo-
se como produto raro, essa imagem a ser consumida e mimetizada é alçada à categoria de
objeto de luxo pela suposta escassez e pretenso refinamento.
95
No trabalho de Obin, há um exemplo claro de duas dimensões distintas que a
imagem permite ao marketing de marca retocar de modo amplamente ficcional: o
deslocamento do espaço (a Jacarta “misteriosa” para os ocidentais) e do tempo (o “passado
glorioso” para os próprios consumidores indonésios). As imagens flutuantes pontuam que
os bens destinam-se aqueles que desejam, acima de tudo, vincular-se a outros com
conhecimentos particulares. BOORSTIN (op.cit: 116) acrescenta que “(...) não testamos a
imagem a partir da realidade, mas sim testamos a realidade a partir da imagem”. Se a
ausência de vínculos isola consumidores não qualificados, é nas imagens-souvenir de dado
destino e não propriamente na preciosidade material do artigo ou em sua longevidade que
aparentemente reside a supremacia de valor ofertado por Obin aos seus clientes em sua
estratégia de vinculação. O consumo de imagens media as relações entre capturados e
captores, ou seja, entre vinculados e vinculadores. Afinal, “a pertença cria o mundo em que
podemos existir, forma às nossas percepções e nos oferece os locais onde podemos
desenvolver nossas competências” (CYRULNIK, 1995: 76).
Embora o compartilhamento aponte para um vínculo de caráter fraternal, parece-nos
que, ao entrar no perímetro de resiliência, ou seja, da capacidade de recuperação das lesões
afetivas do consumidor, a grife instaura uma configuração em que a proximidade é de fato
apenas aparente. Com a função-janela embotada por imagens prêt-a-porter, a comunicação
na vertical se estabelece mediante um sistema de hierarquia em que a marca dita as regras
que o consumidor deve obedecer, substituindo a voz do pai, da autoridade, do Estado com a
elaboração de novos mitos. A figura do pai é o grande representante da cultura. Daquilo
que é ou não aceito. É também referência de distância, de dominância, de segurança, de
organização do mercado mediante a interferência nos sistemas de vinculação.
Se, como afirma McCRACKEN (2003: 139), “em algum lugar do continuum do
espaço existe um „outro‟ perfeito em termos do qual os ideais localmente inalcançáveis
podem ser formulados”, podemos acrescentar que imagens de marca como as de Obin,
mediante a apropriação desse „outro‟ reconhecível na memória do consumidor, motiva-lo-
iam a se vincular. E o que é estar suficientemente animado para optar pela vinculação
mediante certo modo de consumir? A situação nos leva a crer que, efetivamente,
consumidores de classes intermediárias vinculam-se com imagens porque elas lhes dão a
96
sensação de aproximação com o que consideram próprio do universo dos abonados, como
certa onipresença global seguida por um passado imponente. A idéia explicaria o interesse
de produtores tradicionais de bens voltados às classes superiores da estrutura social em
torno da fabricação de produtos e processos comunicativos que forneçam “prestígio para as
massas”, como é o caso dos souvenirs de viagens, que atestam a potencialidade econômica
do usuário, uma vez associados ao cosmopolitismo e ao verniz cultural supostamente
adquiridos em momentos de prazer e diversão. Trata-se do fenômeno apelidado de
“masstígio”
124
, pelo qual uma ou mais marcas originalmente destinadas à elite (incluindo
destinos turísticos e países como grifes) lançam subprodutos oriundos da significação
erigida pelo produto principal, com a qual tais artigos pretensamente comungam nas
imagens das campanhas publicitárias.
Ao refletir sobre as belas paisagens que se descortinam diante dos viajantes,
BOTTON (op.cit.: 230) observa justamente que o fascínio das imagens produz nos seres
humanos um desejo incontrolável de fazer com que elas permaneçam. Sua beleza,
entretanto, é fugidia. Como possuí-las? Para o autor, a máquina fotográfica fornece uma
opção: não só de eternizar imagens, como de se incluir nelas, tornando-as ainda mais
presentes em nós por nos tornarmos presentes nelas. “Um passo mais modesto poderia
consistir em comprar um objeto uma tigela, uma caixa laqueada ou um par de sandálias
(Flaubert adquiriu três tapetes no Cairo) para servirem de lembrança do que foi perdido,
como uma madeixa que cortamos da cabeleira de uma amante que parte.” (ibidem: 231).
Adquirir lembranças é uma forma de se manter vinculado às imagens que encantam,
evitando que desvaneçam e se percam no emaranhado de outras imagens da vida diária.
Conforme BOORSTIN (op.cit.: 92), comprar passa a ser uma das poucas atividades
remanescentes para o turista, expectador de imagens que desfilam em incansável “city-
tour”. Trata-se de uma tentativa desesperada de manter a função-janela ativa e a morte
distante. Afinal, a palavra tour, derivada do latim tornus que, por sua vez, veio da palavra
124
Michael Silverstein e Neil Fiske, do The Boston Consulting Group (BCG), estudam esse mercado desde
1998, tendo publicado um relatório intitulado “Opportunities for Action in Consumer Markets Trading Up:
The New Luxury and Why We Need It”. Sob seu ponto de vista, o “masstige” (ou “masstígio”, numa versão
para o português) inclui mercadorias ou serviços que ocupam uma posição intermediária entre o mercado de
massa e o mercado elitista. São bens que aparentemente ofertam um diferencial qualitativo sobre aqueles
considerados convencionais, contudo não estão localizados no topo de sua categoria em termos de preço (o
investimento é inferior se comparado ao feito em exclusivos de luxo, mas de três a cinco vezes mais elevado
97
grega utilizada para descrever um círculo, representa precisamente um movimento
contínuo, mas sem saída (ibidem, idem): urobórico. Isso levaria os produtores de
commodities têxteis a buscar nas imagens errantes certa identidade coletiva, para ser
incorporada e comercializada como souvenir. As imagens ganham assim outros suportes.
Figura 29 Indígena da etnia huichol vestindo traje confeccionado em chitão revende peças de sua autoria no
comércio ambulante. Tlaquepaque, México, janeiro de 2009.
Mas, na verdade, esses subprodutos também são imagens desbotadas, como vemos
na figura 28. Isso porque não observam de modo integral a facção manual (parte da
produção é industrializada), os insumos de melhor qualidade (utilizam-se eventualmente
elementos de disponibilidade reconhecida no mercado, o que projeta custo inferior no
produto final) e a distribuição exclusiva (que é seletiva, mas não limitada), o que a rigor
produz efeitos de sentido distintos. A vantagem óbvia para os produtores é a possibilidade
de reprodução desses bens em volumes significativos e a manutenção parcial de qualidades
do que aquele dirigido aos produtos de massa).
98
simbólicas conferidas pela boa “linhagem” da imagem de marca. Trata-se de um labirinto
de imagens convertido em armadilha comercial. Uma vez compartilhada nos souvenirs,
essa imagem vira memória para os turistas, que seguirão buscando outras imagens “prêt-a-
porter” para devorar, como é o caso das chitas usadas no dia-a-dia pelos indígenas huichóis
(figura 29). Dessa feita, os horizontes do consumo e da iconofagia vão se alargando nas
sociedades ocidentais. Mas os benefícios da mundialização da cultura por certo não advirão
da habilidade de transformar um processo vivo a comunicação mediantedia primária e
mídia secundária - numa outra trincheira para imagens sombrias.
O guarda-roupa de Frida
Observamos anteriormente que as imagens estabelecem um vínculo comunicativo
entre os turistas e as culturas que perpassam, sendo que os souvenirs materializam
presenças e ausências. BOTTON (op.cit.: 86) complementa essa idéia quando nota que “na
associação mais impalpável, mais trivial da palavra exótico, o encantamento de um local
estrangeiro deriva da simples idéia de novidade e mudança (...)”. O mesmo autor explica
que pode haver um prazer ainda mais profundo, pois podemos valorizar imagens
estrangeiras porque parecem se harmonizar com nossa identidade e com nossos
envolvimentos de modo mais fiel do que qualquer coisa que nossa terra natal possa
oferecer. Ao investigar as razões que levariam um comensal a taxar de exótico determinado
alimento, DEL PASO (1991: 11) observa que nada poderia ser mais estranho que comer um
prato de espaguete, pasta de origem chinesa, regado a molho de tomate, fruto de origem
mexicana, e jurar que se trata da mais pura tradição italiana. Nessas tessituras imagéticas,
diluem-se as fronteiras entre o próprio e o alheio. “O que se considera exótico no
estrangeiro pode ser aquilo pelo qual se anseia em vão em nosso próprio país” (BOTTON,
op.cit.: 87).
Essa questão toma contornos mais claros quando observamos a apropriação da
imagem pessoal da pintora Frida Kahlo (1907-1958) nos produtos têxteis à venda nos
tianguis mexicanos. sacolas, blusas, saias, jóias e coleções inteiras dedicadas ao mito
da pintora. Militante, comunista e agitadora cultural, a artista mais polêmica do México
usou tintas fortes para estampar em suas telas, na maioria auto-retratos, uma vida
99
tumultuada por dores físicas e dramas emocionais
125
. Filha de um fotógrafo alemão e de
uma mexicana, foi casada com o pintor Diego Rivera e dedicava a ele seu figurino
colorido por muitas imagens florais. Ela própria comenta (KAHLO apud CONDE, 2007:
33):
“em outra época me vesti de rapaz, calça, botas, jaqueta... Mas quando fui
ver Diego coloquei o traje de tehuana. Nunca fui a Tehuantepec, nem
Diego quiz me levar. Não tenho relação com as pessoas de lá, mas, de
todos os vestidos mexicanos, o de tehuana é o que mais gosto e por isso me
visto como tehuana”
126
Frida construiu para si uma imagem fabulosa: meio mulher, meio planta, (...) que
desempenhou seu papel, vestida de flores, como uma deusa da fertilidade, ela que no
plano biológico era infértil”
127
(ANDRADE, 2000: 49). Ao contrário da elite de sua
época, gostava de mesclar referências mesoamericanas: imagens mestiças das roupas
indígenas, asiáticas e européias, dos objetos de devoção a santos populares, dos mercados
de rua abarrotados e das comidas apimentadas com distintos chillis. “Só Frida insistiu no
público e no privado em usar indumentária regional, castiça, estilizadamente antiquada
ou encantadora, com especial predileção pelas saias e huipiles de tehuana”
128
(CONDE,
op.cit.: 36). Mostrando seu espírito nacionalista mediante seu modo de vestir, a artista
também acreditava e expressava visualmente as idéias revolucionárias de 1910
129
. É fato
125
Na infância, uma poliomielite encurtou sua perna direita. Aos 16 anos, quebrou a coluna em um acidente
de ônibus. Amargou muitas amantes do marido, mas também viveu romances paralelos com mulheres e
homens, o mais famoso com o revolucionário russo Leon Trotski. Esse enredo novelesco virou filme duas
vezes. A primeira, em 1983, com “Frida, Natureza Viva”, de Paul Leduc, e a segunda com “Frida”, de 2003,
dirigido por Julie Taymor.
126
“En otra época me vestía de muchacho, pantalones, botas, chamarra... Pero cuando fui a ver Diego me
puse traje de tehuana. Nunca he ido a Tehuantepec, ni Diego ha querido llevarme. No tengo relación con la
gente de allá, pero de todos los vestidos mexicanos, el de tehuana es el que más me gusta y por eso me visto
como tehuana”.
127
“(...) que desempeñó su papel, vestida de flores, cual una diosa de la fertilidad, ella que en el plano
biológico era infértil”.
128
“Sólo Frida insistió en público y en privado en usar atuendo regional, vernáculo, estilizadamente
anticuado o hechizo, con especial predilección por las faldas y huipiles de tehuana”.
129
Frida Kahlo dizia-se filha da Revolução e até alterava sua data de nascimento para o ano em que se iniciou.
Na verdade, a Revolução Mexicana foi um processo longo e complexo que mudou o país e impulsionou o
México moderno. Começou como uma reforma política de caráter democrático, transformando-se depois n
um conflito de características sociais. Durante a guerra civil de 1913-16, as forças conservadoras do
presidente Victoriano Hortaenfrentaram as forças revolucionárias encarnadas em Emiliano Zapata, líder dos
camponeses indígenas, no sul; e Pancho Vila, Álvaro Obregón e Venustiano Carranza, no norte. O triunfo dos
revolucionários sobre Horta foi só o inicio de uma nova guerra civil, desta vez entre os próprios dirigentes
100
que os pintores muralistas investigaram a essência da arte mexicana rural e indígena para
plasmá-la em suas obras, levando tanto Diego quanto Frida a colecionar objetos de
decoração regionais (TUROK, 2007: 51). Se, na época, Frida era considerada exótica,
hoje, sua presença está pulverizada em souvenirs por toda a Cidade do México (figura
30). Isso graças às saias rodadas, aos penteados caprichosos e aos xales bordados
inspirados nas índias e chinas poblanas, que ainda se vestem assim.
Figura 30 Bonecas de pano representando Frida Kahlo e Diego Rivera, à venda no Bazar del Sábado,
mercado de artesanato estabelecido em San Angel, bairro de elite da capital mexicana. A saia de Frida ostenta
estampados de paisley hindus. Distrito Federal, México, janeiro de 2009.
As imagens de Frida permanecem como tensão energética, aquilo que Warburg
considera “vida em movimento”, cujos traços significantes estão marcados na memória
coletiva. Essas imagens evidenciam as linhas tênues entre passado e presente,
revolucionários, que terminou com a vitória militar de Obregón e Carranza sobre Zapata e Pancho Vila. No
final da segunda década do século XX, a Revolução conseguiu se consolidar com a promulgação da
Constituição de 1917, ainda vigente, e a chegada ao poder de Obregón e seus apoiadores.
101
destacando-a como precursora da chamada moda étnica”, que reinvindica para si
imagens da cultura popular, inspirando muitos criadores
130
. Sabemos que os povos pré-
colombianos alcançaram um elevado grau de desenvolvimento econômico, social e
cultural e que, a partir do final do século XV, com a chegada dos europeus à América, os
saberes maias e astecas mesclaram-se aos conhecimentos ibéricos
131
. Na bagagem, o
conquistador Hernán Cortez trouxe um tear de pedal que, imediatamente, os nativos
aprenderam a usar, incorporando cnicas de bordado européias para elaborar motivos
mesoamericanos em seus têxteis, antes produzidos exclusivamente em teares de cintura.
São essas incorporações e mestiçagens imaticas que vão tornar a aparência de Frida
Kahlo única.
Desde o princípio, os conquistadores reconheceram a habilidade manual dos
índios, ainda que exótica para eles
132
. De acordo com GRUZINSKI (op.cit.), para evitar
serem assimilados ou reabsorvidos, os mexicanos tiveram de aprender a “sobreviver a
uma cultura de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações e
evitando a hispanização pura e simples. Não obstante, as famílias crioulas e mestiças
ricas copiavam as roupas da corte. No século XVII, as mulheres ainda levavam pendentes
na cintura dois relógios: um que marcava a hora na Espanha e outro no México. As ruas
mais concorridas da Cidade do México eram Plateros e Tacuba. Ali, exclusivas lojas
mostravam em aparadores os trajes e as jóias importados da Europa, ainda que, em
caixotes escondidos perto das ruas do Palácio, fossem vendidos tecidos de todos os tipos
e de todas as qualidades, incluindo as chitas estampadas
133
. No Baratillo, era possível
130
O estilista mexicano Louis Verdad inspirou-se em Frida Kahlo em sua coleção outono/inverno 2005,
apostando em flores vermelhas nos cabelos, brilho e renda. Gucci e Prada nos mostram ícones das tradições
mexicanas nas coleções dessas marcas para o verão de 2007: grandes flores em cores fortes, vestidos
bordados e acessórios em ouro que remetem ao México rural e indígena. Na mesma temporada, a coleção do
italiano Roberto Cavalli reinterpreta, em seda e tafetá, os vestidos da região de Tehuantepec imortalizados por
Frida Kahlo. As criações do francês Jean Paul Gaultier para a primavera de 1998, por sua vez, foram
inteiramente dedicadas à pintora, com sua imagem exaltada em cores vibrantes, como turquesa e laranja.
131
Em 1521, Hernán Cortez tomou o poder na capital Tenochtitlán, hoje Cidade do México, e pouco depois
converteu a civilização asteca em reinado espanhol por três séculos.
132
No século XIX, impactados pelo “exótico” mundo que descreviam o Barão Alexander von Humboldt,
William Bullock e Joel R. Poinsett, viajantes ilustres desembarcaram no México. Entre eles, a Marquesa
Calderón de la Barca, Linati, Egerton, Nevel, Pingret e Rugendas que, junto aos mexicanos Arrieta, Serrano,
Castro, Cordero, Icaza e Alfaro, fabularam imagens do país.
133
Durante o século XIX, a indústria têxtil mexicana centrava sua produção nos tecidos de algodão. Os
camponeses indígenas vestiam a inconfundível camisa e calça branca de manta. Daí a crescente produção
de mantas de algodão, das quais surgiram muitas fábricas no final do século XIX.
102
inclusive conseguir produtos de segunda mão por preços inferiores. Para D‟ALVIELLA
(op.cit.: 201),
“qualquer que seja a semelhança de forma, e até mesmo de significado, que
possa haver entre duas figuras simbólicas de diferentes origens, é
conveniente, antes que se afirme a existência de uma relação entre elas,
mostrar a probabilidade, ou pelo menos a possibilidade, de relações
internacionais que teriam servido como veículo de transporte. Uma vez
estabelecido esse ponto, resta descobrir quem foi o doador e quem foi o
recebedor” .
Os europeus ditavam a moda, mas as influências asiáticas e nativas também
geravam produtos excepcionais. Como vimos no capítulo dois, os xales bordados de
Manila cativavam por igual os residentes da Nova Espanha, que recriavam esses
desenhos em suas saias e blusas. SIERRA (2000: 25) salienta que “o exotismo, o espaço
do „outro‟, se distingue nesse país como o não estritamente europeu”
134
. Foram essas
imagens caleidoscópicas que seduziram Frida Kahlo, provocando um efeito dominó que
até hoje impacta a moda e os modos de vestir, no México e no exterior.
Conforme SERRES (1995: 104), “os Anjos bons passam em silêncio e nós os
esquecemos; os outros aparecem e tornam-se nossos deuses”. De fato, as celebridades
morrem rápido e tendem a ser ainda mais rapidamente substituídas
135
(BOORSTIN,
op.cit., 66). Esse, contudo, não é o caso de Frida, que hibridiza e liquidifica imagens para
tornar a sua própria imagem ainda mais sólida. Como bem observa GRUZINSKI (op.cit),
as possibilidades que uma mistura pode alcançar são ilimitadas e ela pode adquirir uma
autonomia imprevista. Nos anos 40 e 50, e a Europa e os Estados Unidos tinham como
referência de beleza feminina celebridades como Grace Kelly, Rita Hayworth, Marilyn
Monroe e Brigitte Bardot. Na Europa, a alta costura vivia seu apogeu com as criações de
Cristobal Balenciaga, Hubert de Givenchy e Christian Dior. Vestir-se na última moda era,
portanto, submeter-se ao vínculo patriarcal presente no discurso das celebridades, fossem
elas atrizes ou estilistas.
134
“El exotismo, ese espacio del „otro‟, se distingue en este país como lo no estrictamente europeo”.
135
“Celebrities die quickly but they are still more quickly replaced”.
103
Figura 31 Quadros com imagens de Frida reeditadas como souvenirs, à venda no Bazar del Sábado, em San
Ángel. Distrito Federal, México, outubro de 2007.
No contra-fluxo dessa moda importada estava Frida Kahlo, que tinha consciência
do impacto causado por seu estilo e se desvinculava do contexto da moda feminina
internacional. “Nos tempos em que Frida começou a vestir roupa regional, a
glamurização teve efetivamente uma meta nacionalista, mas ao mesmo tempo
internacional, do que nos conta novamente o cinema”
136
(CONDE, op.cit: 29). Frida
adorava cinema e era amiga pessoal da atriz Dolores del Río, que personificava o ideal de
beleza mexicana da época. CONDE (ibidem: 30) relata inclusive que uma fotografia
do alemão Fritz Henle
137
em que a artista aparece vestida com a cabeça coberta por um
rebozo no estilo “María Candelaria”, personagem vivida por Dolores del Río no drama
rural María Candelaria, dirigido por Emilio Fernandez em 1943. Dessa feita, podemos
136
“En los tiempos en que Frida empezó a vestir ropa regional, la glamorización tuvo efectivamente una
meta nacionalista, pero a la vez internacional, de lo que da cuenta nuevamente el cine”.
137
Fritz Henle foi um afamado fotógrafo de moda, cujo trabalho aparece em revistas importantes do
segmento, tais como Harper‟s Bazaar e Town and Country.
104
observar que a pintora estampa um elemento potente no design de moda: a imagem do
herói, que circula na imaginação, em contraponto às imagens de celebridades,
encarceradas no imaginário (figura 31). “O herói se distinguia pelas suas conquistas; a
celebridade por sua imagem ou marca registrada. O herói criava a si mesmo; a
celebridade é criada pela mídia. O herói era um grande homem; a celebridade é um
grande nome”
138
(BOORSTIN, op.cit: 61).
O universo simbólico das tehuanas
Frida reforça sua consistência mitológica de heroína nacional, imune ao tempo e
aos modismos, a medida que brinca com a imaginação mediante mestiçagens inspiradas
na imagem das tehuanas, na religião politeísta da Mesoamérica e nas influências
católicas. “O mito é uma narrativa, um discurso, uma maneira privilegiada da sociedade
exprimir seu modo de ser. Assim, é uma das principais formas pelas quais uma cultura
elabora suas contradições, exprime seus paradoxos, dúvidas e inquietações (ROCHA,
2009: 166). No princípio de sua carreira, a artista vestia roupas masculinas (calças
longas, usadas com camisas de mangas largas e paletó), adquirindo o aspecto de uma
mulher invulgar e independente. Uma vez casada, passou a usar saias e huipiles próprios
do istmo de Tehuantepec, localizado no sudoeste do México, onde as tradições
matriarcais ainda estão vivas e a estrutura econômica reflete o papel predominante da
mulher zapoteca. ANDRADE (op.cit.) acredita que os vestidos de Tehuantepec foram
copiados de trajes usados por santas espanholas, principalmente pela auréola que
circundava o rosto dessas santas, outorgando-lhe uma dimensão diferente da cotidiana.
Por outro lado, a seleção de imagens florais remete à Xochiquetzal, deusa das tecelãs e
das flores, especialmente quando retratadas ao lado do beija-flor, pássaro que representa
Huitzilopochtli, o deus-sol, na iconografia mesoamericana. Dessa feita, opinamos com
SIERRA (op.cit.) que “emular o indígena, reinventá-lo simbolicamente, é uma operação
de resistência contra a homogeneidade na direção externa, mas na direção interna opera
ao revés”
139
.
138
“The hero was distinguished by his achievement; the celebrity by his image or trademark. The hero
created himself; the celebrity is created by the media. The hero was a big man; the celebrity is a big name”.
139
“Emular lo indígena, reinventarlo simbólicamente, es hacia afuera una resistencia a la homogeneidad,
105
Figura 32 Traje completo de tehuana exposto no Museu Nacional de Antropologia esquerda); huipiles
usados à venda em tiangui e riscos de bordados florais em álbum de figurinhas para meninas direita).
Distrito Federal, México, outubro de 2007.
Para ROCHA (op.cit.: 189), o consumo é um sistema simbólico que inscreve os
significados e, assim, classifica identidades e bens, pessoas e coisas, grupos e gostos que
se traduz, em última instância, em distinções que experimentamos na vida social
contemporânea” (figura 32). A preferência de Frida pelos trajes de Tehuantepec parece
pero hacia adentro opera a la inversa”.
106
estar igualmente balizada por seu tipo físico e pelo fato de que as roupas cobriam suas
pernas, ponto débil de sua anatomia, dando-lhe ampla mobilidade, apesar do uso do corpete
que lhe era imposto por motivos médicos. CYRULNIK (1995) confirma que todo corpo usa
da fabulação de imagens, que ele considera artifícios, para negociar com a auto-estima. Não
resta dúvida de que as tehuanas zapotecas valorizam a diferença
140
. Logo, não à toa, em
muitos auto-retratos, assim como na vida pública, Frida aparece vestida como as habitantes
do istmo. Enquanto as flores bordadas dos huipiles elevavam o olhar de seus interlocutores
da cintura para cima, as saias volumosas tinham a função de disfarçar sua deformação na
perna direita. TUROK (op.cit: 55) sinaliza que “esse estilo lhe serviu inclusive para criar
vários conjuntos e modelos com suas costureiras”
141
. Completava-os com maquiagem bem
marcada, jóias pré-colombianas, muitos anéis e unhas pintadas de diferentes cores:
vermelho, laranja ou verde, dependendo do dia. Seu corpo ferido e torturado, como de um
Cristo barroco ou das vítimas dos deuses pré-colombianos, uma vez recoberto de imagens
florais alegres e coloridas, alicerça um outro personagem e o transforma, por fim, em
imagem pública. ANDRADE (op.cit.: 47) observa que o traje típico se converte numa
maneira de proteger sua intimidade, ao mesmo tempo em que, constantemente, a exibe sem
pudor. Cria-se um personagem, para melhor dissimular seu próprio ser e manter sua
essência inequívoca”
142
.
O impacto público dessa imagem foi enorme. A própria artista se auto-retratou
como tehuana
143
(figura 33), refutando, mesmo quando esteve em Paris, as roupas
expostas nas butiques francesas
144
. Não tenho que comprar vestidos ou coisas como
essas, porque sendo tehuana não uso calças nem meias-calças”, escreve ao fotógrafo
Nickolas Muray, autor de algumas de suas mais memoráveis imagens, em 27 de fevereiro
de 1939 (KAHLO apud CONDE, op.cit.: 45). Além disso, nos 1585 metros de murais
que Diego Rivera pintou para a Secretaria de Educação Pública a partir de 1923, onde há
140
Durante os anos de 1930 e 1940, antes de Frida assumir essa aparência pública, a imagem das tehuanas
simbolizava uma visão romântica do México, eternizada por um episódio da série Que viva México!, filmada
por Serge Eisenstein em 1932.
141
“Dicho estilo le sirvió incluso para crear varios conjuntos y modelos con sus costureras”.
142
El traje típico se convierte en una manera de proteger su intimidad, al tiempo que, constantemente, la
exhibe sin pudor. Se crea un personaje, para mejor disimular su proprio ser y mantener su esencia
equívoca”.
143
Entre as obras de destaque podemos mencionar Mi vestido cuelga allí (1933) e Memoria (1937).
144
No guarda-roupa de Frida, poucas peças contêm etiquetas de fabricantes massivos europeus e norte-
107
diversas representações de tehuanas, sempre que incluiu Frida em algum painel, vestiu-a
de tehuana. Isso ocorre no afresco Sueño de una tarde dominical en la Alameda,
atualmente exposto no Museu Mural Diego Rivera, assim como no mural realizado pelo
artista para a Golden Gate International Exhibition de 1940, atualmente alocado no City
College de San Francisco, nos Estados Unidos. É interessante notar que boa parte da
indumentária representada no trabalho artístico de ambos pode ser localizada no guarda-
roupa da própria Frida, sendo a maioria realizada por costureiras.
Figura 33 “Autorretrato con resplandor, obra pintada por Frida em 1948 esquerda), ladeada por
fotografia do bida ni quichi (huipil com touca) e desenho representando a indumentária de gala do istmo.
americanos (TUROK, op.cit.: 52), o que ratifica a preferência dela por produtos feitos à mão.
108
Imagem e personificação
Para Diego, Frida “personifica a união cultural das Américas do Sul
145
(CONDE, op.cit.: 32). De fato, no México, as mulheres do povo - sejam elas camponesas
ou vendedoras de hortaliças, de flores, de frutas e de tortillas - sempre vestiram huipiles e
anáguas de algodão de diversas cores. Algumas usavam enredo peça retangular tecida
em tear presa na cintura , outras preferiam a saia reta de manta ou sarja feita à mão,
combinada à bata de decote redondo e manga franzida ou bufante (“de globo”). Em
algumas regiões (como mixteca, maia, otomí, zapoteca) ainda se confeccionam roupas da
época pré-hispânica (SAYER, 1990: 18). Para certas ocasiões, como festas religiosas,
cívicas e sociais, usam-se peças feitas à mão, de complexa elaboração, que são parte do
artesanato popular e constituem um motivo de orgulho. Frida mescla esses elementos
entre si e constrói uma imagem mitológica, assemelhando-se a uma deusa asteca. Isso
ocorre, muito especialmente, mediante a inclusão de imagens florais cujo simbolismo é
muito potente: rosas, copos de leite, jasmins, gérberas, margaridas, frangipanis (figura
34).
As flores são uma constante na vida e na obra de Frida Kahlo. Estão
presentes em numerosas fotografias, nos adornos e, sobretudo, em quadros
de temáticas muito diferentes. Essa presença é tão forte que, em várias de
suas telas, a flor, representada às vezes arcimbolescamente, se impregna de
arrebatos eróticos”
146
.
(CAÑIZAL, 2004: 49)
Por outro lado, na vida diária a artista raramente vestia o traje de tehuana dito
completo, preferindo mesclas de itens que caracterizaram um ecletismo capaz de realçar a
importância simbólica de suas escolhas. Frida não se apresenta como um ser banal, mas sim
como mescla de deusa pagã e virgem católica mediante um caleidoscópio de imagens
enrodilhadas. No Autorretrato como tehuana (1943), assume com o manto que rodeia seu
145
“(…) personifica la unión cultural de las Américas del Sur”.
146
Las flores son constantes en la vida y en la obra de Frida Kahlo. Están presentes en numerosas
fotografías, en los adornos y, sobre todo, en cuadros de temáticas muy diferentes. Esa presencia es tan fuerte
que en varias de sus telas, la flor, representada a veces arcimbolescamente, se impregna de arrebatos
eróticos”.
109
rosto uma aura divina, da qual partem flores sobre seu cabelo e, delas, raízes,
assemelhando-a tanto à deidade arcaica quanto à santa cristã. ROCHA (op.cit.: 189) adverte
que o consumo é um sistema de significação e a principal necessidade que supre é a
necessidade simbólica”. Isso nos leva a crer que “o traje de tehuana se converteu para
Frida num novo corpo, na possibilidade de sentir-se desejada como mulher, venerada
como deusa pré-colombiana. Ela, em retribuição, o deu a conhecer a todo o mundo”
147
(ANDRADE, op.cit.: 44). De fato, as imagens movediças produzidas nessas mesclas
confirmam o posicionamento mitológico da artista, que se transporta para o tempo e o
espaço do sagrado mediante sua aparência. “A vida cotidiana do istmo não é o único
tema relacionado com a mulher zapoteca, pois agora, como símbolo, pode pertencer a
outra ordem também simbólica: a do individual”
148
(SIERRA, op.cit.).
Figura 34 A frangipani, flor que simboliza o sol para as civilizações mesoamericanas, também está
presente na floral tropical brasileira. Manaus, Brasil, março de 2010.
147
“El vestido de tehuana se convirtió para Frida en un nuevo cuerpo, en la posibilidad de sentirse deseada
como mujer, venerada como una diosa precolombina. Ella, en retribución, lo dio a conocer en todo el
mundo”.
148
“La vida cotidiana del Istmo ya no es el único tema relacionado con la mujer zapoteca, pues ahora, como
símbolo, puede pertenecer a otro orden también simbólico: el de lo individual.”
110
Argumentamos no capítulo anterior que as imagens florais trazem à tona a relação
sol-vida-tempo. Quando posta em relação com tais estampas de flores, a presença do colibri
parece ratificar tal significado para Frida. Na mitologia mesoamericana, o beija-flor
simboliza a presença do deus-sol, Huitzilopochtl. Baseado nas metáforas do jogo poético
das imagens criadas pela pintora, CAÑIZAL (ibidem: 51) observa que, em suas obras, o
brilho do sol (Huitzilopochtl), associado à preciosidade da flor (Xochiquetzal), se
equivalem e reafirmam
149
. “Enquanto um animal evoca, acima de tudo, idéias complexas
de movimento, energia e paixão, as funções da planta estão concentradas, por assim dizer,
na vida” (D‟ALVIELLA, op.cit.: 136). Assim, para o semioticista, Frida encarna, com sua
imagem florida, o mito de Xochiquetzal, e se coloca num tempo particular, cíclico e mais
que histórico, ligado ao funcionamento da memória cultural e às sobrevivências primitivas.
“Cada elemento contribui para construir sua imagem, abre uma via de identidade entre
ela e um universo mitológico, e que se pode reconhecer no mundo mexicano: esse universo
é o panteão pré-colombiano”
150
(ANDRADE, op.cit.: 48).
Vidas entrelaçadas
Segundo BAITELLO (op.cit.: 97), “alimentar-se de imagens significa alimentar
imagens, conferindo-lhes substância, emprestando-lhes os corpos”. Nesse sentido, é
preciso salientar que, além de Diego Rivera, muitos estrangeiros também passaram pelo
território zapoteca. Espanhóis, franceses, americanos, irlandeses, chineses e negros
cruzaram o istmo deixando traços de sua cultura que resultaram na fabulosa e imponente
mescla de flores bordadas nas saias e huipiles das tehuanas (figura 35).
“O conhecimento dessas migrações lança, por sua vez, uma luz
completamente nova não apenas sobre a presença dos mesmos emblemas
entre nações que nunca professaram o mesmo credo, mas também sobre a
formação de certas imagens complexas que não podem ser explicadas a não
ser como resultado de uma ação recíproca entre símbolos (...).
(D‟ALVIELLA, op.cit.: 203)
149
Conforme o estudioso Hayden Herrera, obras como Xóchlitl, flor de la vida (1938), La flor de la vida
(1944) e El sol y la vida (1947) apresentam uma obsessão de Frida com a fertilidade das flores, cujas imagens
assemelham-se a genitais femininos ou masculinos (HERRERA apud CAÑIZAL,op.cit.: 49).
111
Figura 35 Cartões postais mostram as tehuanas em duas ocasiões: com roupa estampada em chita para o
trabalho nos mercados (acima) e vestidas para festa em traje de gala (abaixo).
150
“Cada elemento contribuye a construir su imagen, abre una vía de identidad entre ella y un universo
mitológico, y que se puede reconocer en el mundo mexicano: este universo es el panteón precolombino”.
112
Essas referências compuseram o traje regional mais popular do México, embora seja
difícil acreditar que as indígenas de uma região tão remota se preocupem com sua própria
moda. As tehuanas são famosas pela paixão por objetos de valor e tecidos multicoloridos.
Em suas comunidades rurais e tradicionalistas, trabalham com afinco para investir o lucro
na compra de algodões, veludos, rendas e chitas. Labutam meses para poder confeccionar
com suas próprias mãos seus trajes, que também são adornados por elas. Os bordados
florais delicados remetem às filigranas espanholas e são feitos com ponto corrente, usando
agulha ou gancho para tecer. As chitas das saias aposentadas do ano anterior, muitas das
quais inspiram os motivos florais dos bordados, migram para o forro. Ali, por vezes,
funcionam como risco para adornos que serão aplicados na superfície do pano. Outros
motivos, os florais graúdos para dias de festa, são extraídos dos xales de Manila e bordados
à máquina com fios de seda sobre veludo de algodão. Ganham então elementos da flora
tropical nativa, que se somam às rosas da Andaluzia e de Yucatán. Comparando os
zapotecas com seus vizinhos huaves, mixes, zoques e chontales, COVARRUBIAS (2000) e
TUROK (2007) notam que essa etnia parece ser a que melhor conseguiu mesclar a cultura
indígena com a hispânica mediante a mescla suave de contrastes violentos nos adornos.
BAITELLO (op.cit.: 95) avalia precisamente que a força de uma imagem provém
de seu lastro de referências a outras tantas imagens”. Esses produtos, que inspiraram a
criação dos célebres “rebozos”
151
mexicanos ao desembarcarem em Vera Cruz na segunda
metade do século XVI, corroboram a importância do comércio de têxteis na região para o
intercâmbio de imagens da cultura. Por exemplo, muitas das saias e blusas até hoje usadas
pelas habitantes de Juchitán, feitas de veludo de algodão roxo, vermelho, verde ou negro,
são ricamente bordadas com imagens florais copiadas e adaptadas dos xales de seda vindos
de Manila nos galeões espanhóis (figura 36). Trata-se de um procedimento iconofágico que
requer reposição constante de novas imagens, que o mundo das imagens exógenas
sobrevive e se mantém se for alimentado por espelhamento” (ibidem: 56).
151
Inicialmente, o rebozo era um pedaço de pano de origem pré-hispânica chamado ayate, que depois, com
a a introdução de têxteis orientais no mercado mexicano, foi transformado num xale tecido, por vezes
decorado. As franjas do rebozo, por exemplo, vão se tornar similares às dos xales de Manila, com nós
sofisticados feitos à mão (TINAJERO, 2005: 71). Só se viam os olhos, como as mulheres árabes.
113
Figura 36 Huipil juchiteco de algodão bordado à mão e anágua do istmo bordada com técnica de três
golpes, ambos atualmente parte do acervo do Museu Frida Kahlo.
114
A imagem de Frida nos tianguis
É importante salientar que as zapotecas do istmo se dividem em dois grupos: as
vilas afins a Tehuantepec (politicamente mais conservadoras) e as partidárias de Juchitlán
(vistas como mais liberais), cujas mulheres se distinguem coloquialmente como “tehuanas”
e “tecas”. Do lado juchiteco encontram-se os povoados de Espinal, Ixtaltepec, Ixtepec,
Ixhuatán e La Ventosa. Já do lado tehuano estão as aldeias de San Blas e Santa Rosa, onde
vivem as bordadeiras ditas mais habilidosas. Remetendo-se aos estudos de Covarrubias,
TUROK (op.cit.: 54) refere-se à certa rivalidade, observando que diferenças de moda
entre essas duas regiões: “(...) aquilo que parece lei em cores e estilos em Juchitán é tabu
em Tehuantepec e vice-versa. As tecas medem a largura do tecido franzido das tehuanas,
que mede oito polegadas, e fazem o seu de modo que meça dezesseis polegadas de largura.
Para as tehuanas, essa é uma prova de mal gosto das tecas.”
152
É inadmissível para uma zapoteca de Tehuantepec usar um modelo do ano anterior,
que não distingue sua portadora como pessoa elegante na comunidade. (COVARRUBIAS,
2000: 26-37). Mesmo que ganhem apenas centavos vendendo queijos, chocolates, flores e
frutas nos tianguis, adquirir algodões estampados com motivos da botânica tropical é
prioridade para as tehuanas. RODRIGUEZ (2008: 86) aponta uma importante razão para
isso:
“a capacidade de observação da natureza e seus processos é muito
desenvolvida entre os indígenas, que desde pequenos aprendem a olhar no
emaranhado de copas entrecruzadas à fauna de cima macacos e aves, bem
como à oferta de flores e frutas. Da mesma maneira se observam os troncos
das árvores com suas formas, texturas e cores, de modo que o
reconhecimento das espécies individuais tem muitas entradas e
aproximações”
153
.
152
(…) lo que suele ser ley en los colores y estilos de Juchitán suele ser tabú en Tehuantepec y vice-versa.
Las tecas miden el ancho del volante fruncido de las tehuanas que mide ocho pulgadas y hacen el suyo de
modo que mida dieciséis pulgadas de ancho. Para las tehuanas, ésta es una prueba del mal gusto de las
tecas”.
153
“La capacidad de observación del bosque y sus procesos está muy desarrollada entre los indígenas,
quienes desde pequeños aprenden a mirar entre la maraña de copas entrecruzadas a la fauna de arriba,
micos y aves, la oferta de flores, frutos y bejucos. De igual manera se observan los troncos de los árboles con
115
Frida possui peças das duas zonas. Na obra Diego en mi pensamiento (1943) veste
o bida ni quichi de Juchitán; enquanto em Autorretrato (1948) porta o bida ni quichi de
Tehuantepec, reproduzindo em detalhes os florais desses trajes. É importante notar que
muitos huipiles refletem uma metalinguagem em que se cruzam símbolos astrais e
cósmicos com mitos da criação. “Em muitos casos, a decoração ao redor do pescoço
emula raios solares (a serpente) ou plantas sagradas (as flores) localizando a mulher no
centro do universo, como transmissora da história e emblema da fertilidade”
154
(ibidem:
101). Nas figuras 36 e 37, notamos que Frida ostenta ao largo do decote do huipil juchiteco
precisamente um buquê de frangipanis solares, enquanto sua saia é adornada com
serpentinas, para reiterar a relação flor-serpente-sol-vida. também um perfume
nacionalista, que (...) a contenda entre o céu, ou o sol, e as nuvens é frequentemente
representada pela luta entre uma águia e uma serpente (...). Os primeiros conquistadores
do México viram nisso um sinal de futura grandeza e até hoje esse emblema figura nas
armas da capital” (D‟ALVIELA, op.cit.:30).
Figura 37 Frida se deixa fotografar por Nicholas Muray vestindo o traje típico zapoteca da figura 36 no
pátio da Casa Azul, em 1948.
sus formas, texturas y colores, por lo cual el reconocimiento de las especies individuales tiene muchas
entradas y aproximaciones”.
154
“En muchos casos, la decoración alrededor del cuello emula rayos solares o plantas sagradas, ubicando
a la mujer en el centro del universo, como transmisora de la historia y emblema de fertilidad”. As inclusões
entre paréntesis são comentarios de nossa autoria.
116
ROCHA (op.cit.: 184) salienta o quanto o consumo é complexo e revela
ideologias, representações, valores, desejos, estilos e práticas que espelham nossa cultura
e nos levam a conviver com coisas estranhas e coisas banais”. Essa situação parece
explicar porque as chitas que originalmente provinham das fábricas de Manchester, na
Inglaterra, eram vendidas exclusivamente no istmo, onde desfrutavam de enorme sucesso.
Hoje, os fabricantes mexicanos monopolizam o mercado, embora os têxteis ingleses ainda
sejam muito desejados, assim como os tecidos tingidos à mão com caracol púrpura. Duas
vezes ao ano, por exemplo, indígenas chontales buscam esses caracóis em certas fases da
lua para tingir fios de algodão visando o mercado zapoteca. As trocas de insumos ocorrem
nos espaços dos tianguis, onde o vaivém de tecidos, armarinhos e roupas é sinuoso e
deslumbrante, enchendo as ruas empoeiradas de energia simbólica mediante imagens em
deslocamento (figura 38). Nos mercados nativos mexicanos, portanto, é impossível separar
as séries culturais: utensílios domésticos, artesanato e vestuário se misturam num convívio
estreito com os povos, os objetos e os materiais do continente americano. No mundo
indígena as plantas se humanizam, correspondem a categorias sociais e de certa maneira
se assimilam às pessoas”
155
(RODRIGUEZ, 2008: 84).
A aglutinação quantitativa de diferenças não necessariamente gera relações, que
acontecem quando os fragmentos de fato interagem no mosaico imagético. Na mestiçagem,
o que existe é a manutenção da tensão entre esses elementos, não a fossilização de
componentes imagéticos isolados. Os tianguis indígenas são feitos de um vaivém de
imagens para sentir com os olhos, o olfato, o tato e o paladar. neles uma profusão de
cores, texturas, sabores e aromas bons e ruins, conhecidos e estranhos, nativos e
estrangeiros nos quais a população roça constantemente. Assim, quanto mais próxima a
comunicação entre corpos, mais próximo o vínculo, através do contato direto que nos
remete ao toque materno. Entre os tianguis mexicanos de maior apreço no mercado
turístico, sem dúvida está aquele que se instala à sombra do mercado de Coyoacán, o antigo
pueblo onde viveu Frida Kahlo.
155
“En el mundo indígena las plantas se humanizan, corresponden a categorías sociales y de cierta manera
se asimilan a gente”.
117
Figura 38 Cartão-postal mostra tehuana em traje de gala durante festividade em Oaxaca esquerda). Ao
lado, detalhes dos bordados florais típicos da região à venda nos mercados de segunda mão após a festa.
Abaixo, rosas vendidas no mercado ao lado de riscos para bordar. Oaxaca, México, outubro de 2008.
118
Réquiem estampado
Não à toa, a construção que se ergue quase na esquina da rua Londres, ao sul da
Cidade do México, foi carinhosamente apelidada de Casa Azul. Azul royal, amarelo gema,
laranja elétrico e rosa mexicano se engalfinham, emaranhados, pela atenção dos passantes.
É fácil conquistá-la, como se constata nas enormes filas que se fazem diante do Museu
Frida Kahlo. Qualquer transeunte é invadido sem pelas cores que saltam da fachada,
espiando pelas frestas das janelas numa abusada mistura mestiça. A exuberante Casa Azul,
lugar onde nasceu e morreu a artista, está localizada a alguns quarteirões do mercado de
Coyocán, antigo vilarejo onde vivia La Malinche, a amante indígena do conquistador
Hernan Cortez. Coyoacán, literalmente “terra de coiotes”, foi aos poucos incorporado à
capital mexicana como bairro boêmio, reduto de artistas e viajantes. O tiangui que se ergue
na praça central atrai artesãos de todo o país, ávidos por venderem seus bordados étnicos
aos turistas que visitam a casa da artista, atualmente transformada em museu. Após o
vislumbre da vida da pintora no city-tour por seu antigo lar, os estrangeiros disparam
ávidos por réplicas do guarda-roupa de Frida, encontrando-as, precisamente, no local onde
trabalham artesãos como Filomena Mazahua, citada no capítulo um. É ali que compram
seus souvenirs, usualmente réplicas de huipiles de valor simbólico original discutível do
ponto de vista das etnias, uma vez que, como vimos anteriormente, os próprios indígenas
admitem não produzir peças autorais para consumo externo à comunidade.
No interior da casa, um jardim interno mostra o apreço de Frida pelas flores, que se
esparramam em abundância ao lado de réplicas de templos dedicados aos antigos deuses
pré-colombianos. Bastam alguns passos para esbarrar em sua cozinha aconchegante e
majestosa, onde traços de Diego apresentam o carinho com as ervas e plantas medicinais
usadas nas receitas que compartilhavam com convivas do mundo inteiro. Mas é subindo à
escada, logo após a passagem por sua diminuta cama onde repousam uma colcha e algumas
almofadas bordadas, que foi descoberto um verdadeiro tesouro. Em abril de 2004, o diretor
geral do Museu Frida Kahlo, Carlos Phillips Olmedo, e o ComiTécnico del Fideicomiso
Diego Rivera-Frida Kahlo del Banco de México, tomaram a decisão de reabrir o antigo
banheiro pessoal de Frida, que esteve fechado desde sua morte por decisão de Diego. Num
nicho ao lado da porta, em frente à banheira, pesquisadores encontraram a maior parte das
119
roupas dela, protegidas da luz e da poeira. As mesmas cores esfuziantes mesclavam-se em
infinitas estampas e bordados, com destaque para os huipiles e saias de tehuanas. Quase
300 peças foram fotografadas e restauradas à sua condição original, permitindo que se
observe com maior rigor seu conteúdo simbólico e o apreço de Frida pelas imagens
flutuantes e barrocas de um México absolutamente mestiço. Esses itens, que somam a
produção indígena e a moda entre os anos 1930 e 1954, denotam que Frida construiu sua
imagem mediante compras pessoais de lembranças em viagens, tanto quanto a partir de
presentes e encomendas feitas a amigos que conheciam seu gosto, bem como artesãos
qualificados. Há imagens florais provenientes do labor manual de diversas etnias, incluindo
zapotecas, yucatecos, amuzgos, triques, mixtecos, chinantecos, além de chineses e
guatemaltecos, bem como itens confeccionados com chitas de algodão com estampas
industriais (figura 39).
Figura 39 Peças integrantes do acervo da Casa Azul, incluindo blusa confeccionada em chita industrial
esquerda) e huipil com bordado floral sobre o peito (à direita).
120
Neste estudo nos concentramos nos trajes produzidos no istmo, visto que, segundo
atestam fotografias, pinturas e documentos de época, foram essas roupas que conformaram
a preferência de Frida. TUROK (op.cit.: 55) destaca que entre os elementos distintivos de
um traje do istmo está o uso dos tecidos: um como forro no interior, que sempre é de
algodão de baixo custo, e outro no exterior, de maior valia. O bordado, independente da
técnica, se realiza com bastidores colocando o forro sob o tecido externo, mas aquele feito à
mão realça as qualidades mais apuradas das zapotecas. Por influência cigana e andaluz, as
peônias, flores de lótus e crisântemos vistos nos xales de Manila se converteram em rosas
pelas mãos zapotecas, normalmente confeccionadas em cinco matizes de cores em tons
degradê, tanto na flor quanto nas folhas. Essa estratégia cria sombreados no desenho,
dando-lhe perspectiva.
A moda no istmo joga com o tamanho do padrão floral: por vezes diminuto, quase
uma chitinha, noutras agigantado, lembrando os chitões brasileiros. Na década de 1930 a
escala era pequena, seguida por flores maiores nos anos 1940, o que permite datar o visual
de Frida. Há em seu guarda-roupa cerca de 20 huipiles e 20 anáguas correspondentes a essa
região, todos de diversos estilos, combinando flores (motivos realistas) a serpentes
(motivos abstratos). Isso porque, com a chegada da máquina de costura, as tehuanas
desenvolveram a técnica de “correntinha”, que consiste em serpentinas rebordadas umas
sobre as outras, formando motivos geométricos em que predomina a serpente, enrodilhada
ou pronta para dar o bote. Os nomes dos desenhos variam, ainda que, além da serpente, essa
técnica ressalte também estrelas, jaguares ou magueys. Cada unidade do desenho no
bordado de correntinha se chama “golpe”. Os huipiles e anáguas levam de um a três golpes
(ibidem: 56). Para um resultado de maior valor, alternam-se o bordado de correntinha com
o ponto agulha feito à mão.
Entre as peças de Frida, 13 huipiles e dez anáguas foram considerados autênticos, os
demais correspondem a roupas criadas no estilo do istmo, possivelmente pela engenhosa
habilidade da própria artista junto a suas costureiras (ibidem: 58). A coleção inclui peças
com tiras de bordados aplicadas sobre veludo de algodão ou seda, o que nos faz concluir
que a própria artista consumia itens de segunda mão, a exemplo dos turistas de hoje,
apropriando-se deles na concepção de uma outra imagem. Um dos huipiles apresenta tiras
121
com flores bordadas à mão em vermelho, amarelo e branco sem sombreado, o que é
incomum no istmo: essa é a chave para perceber a reelaboração das imagens da cultura. O
outro modelo ostenta tiras de bordado industrial em serpentinas. O padrão se repete na
anágua, porém a costureira brinca com a idéia de imitação dispondo as imagens da blusa na
vertical e da saia na horizontal, novamente apresentando um elemento de distinção que
permite observar o mesmo comportamento. Nota-se assim que as roupas de Frida nos
levam a um mundo de texturas, ofícios e existências que se transformam em imagens
errantes, cuja pós-vida, volátil, é entretecida nos fios para sobreviver além de seus autores.
Figura 40 Frida ostenta o huipil longo com bordado floral sobre o peito exibido na figura 39: o wo é
identificável como figura central da peça esquerda). Ao lado, exemplares bordados de imagens florais
solares, usualmente presentes no wo: margaridas, girassóis, gérberas.
122
É importante observar a localização dos bordados sobre o peito nos huipiles de
Frida (figura 40). Segundo Irma García Isidro, tecedora chinanteca da região de San Felipe
Usila, entrevistada pelo antropólogo Alejandro Ávila,
“os huipiles levam uma figura especial na altura do peito que se chama
„wo‟. Esse nome não tem significado na língua atual, porém provavelmente
em sua origem seja „amanhecer‟. O „wo‟é a figura de diamante, no centro se
encontra um caracol (a flor ou círculo urobórico) que simboliza o sol:
representa a força da vida, através desse caracol a alma tem saída para voar
para o sol em seu último suspiro”
156
.
(ÁVILA, 2000:40)
Ao longo de sua obra, BELTING (op.cit.: 177-178) se pergunta qual papel
desempenhou a morte na determinação humana de construir de imagens. Ele postula que
“(...) se rastreamos o suficiente na história da produção das imagens, estas nos hão de
conduzir até a a grande ausência que é a morte. A contradição entre presença e ausência,
que ainda hoje se manifesta nas imagens, tem suas raízes na experiência da morte de
outros”
157
(ibidem, idem). O wo, diz outra tecelã, Maria del Socorro Agustín Garcia, é
como uma porta, está fechada para proteger a alma da escapada final. “Quando alguém
morre, a porta se abre e a alma sai por ali
158
(ÁVILA, op.cit). Logo, desafiando a morte
com imagens simbólicas que estreitam o contato entre céu e terra, os têxteis florais
contribuem fortemente para povoar a imaginação e a cultura.
No entanto, o espírito de Frida não parece ter escapado pelos bordados de seus
huipiles. Ao contrário, sua imagem se integra a eles num carrossel colorido que atravessa as
fronteiras de tianguis e aduanas num eterno revolver de imagens migrantes, convertidas em
memórias. Como diz BELTING (op.cit.: 123), “o que se é uma imagem e o que não se
é um cadáver. O corpo natural, mortal, cedeu a representação a um corpo em imagem
156
“Los huipiles llevan una figura especial a la altura del pecho que se llama „wo‟. Ese nombre no tiene
significado en la lengua actual, pero probablemente su origen sea „amanecer‟. El „wo‟ es la figura de rombo,
al centro se encuentro un caracol que simboliza el sol: representa la fuerza de la vida, a través de ese caracol
el alma tiene salida para volar al sol en el último suspiro”.
157
“(…) si rastreamos lo suficiente en la historia de la producción de imágenes, éstas nos han de conducir
hasta la gran ausencia que es la muerte. La contradicción entre presencia y ausencia, que aún hoy se
manifiesta en las imágenes, tiene sus raíces en la experiencia de la muerte de otros”.
158
“Cuando uno muere, la puerta se abre y el alma sale por allí”.
123
(...)
159
”. Mídia primária e mídia secundária, juntas, expandem assim os vínculos
comunicativos ou, como diria PROSS (1980: 47), é verdade que ele mesmo (o corpo) não
está corporalmente onde está o símbolo, mas relaciona-se ao símbolo com sua presença,
de maneira que está simbolicamente ali onde não está na realidade”
160
. Presença e
ausência são os dois lados da mesma moeda imagética. Afinal, embora todos queiram “ir
para o céu”, ninguém quer morrer.
159
“Lo que se veía era una imagen, y lo que no se veía era un cadáver. El cuerpo natural, mortal, cedió la
representación a un cuerpo en imagen (…)”
160
“Es verdad que él mismo no está corporalmente donde está el símbolo, pero relaciona al símbolo con su
presencia, de manera que está simbólicamente allí donde él no está en realidad”.
124
Considerações finais
“Duas trilhas bifurcaram num bosque, e Eu –
Escolhi a menos viajada,
E isso fez toda a diferença
- Robert Frost -
As conexões da jornada
“Os esforços que fazemos para juntar os fragmentos que nos chegam ininterruptamente
de todos os cantos do globo tornou-se um exercício planetário” (GRUZINSKI, op.cit.: 90).
Acompanhando as peregrinações dos têxteis estampados na aldeia global, podemos reconhecer
a pós-vida das imagens nesses deslocamentos entre culturas. Se, conforme propõe WARBURG
(1999), é possível seguir as imagens da Antiguidade na sua migração incessante entre obras de
arte, também resulta plenamente viável notar a “vida em movimento” (bewegtes Leben) nos
têxteis florais. Soterrados por uma avalanche de imagens superpostas, mitos e ritos acabam por
ligar chitas, chitinhas e chitões ao projeto Mnemosyne. Para entender esse percurso imagético
dos panos estampados, buscamos justamente unir as pontas soltas de fios que deram a volta ao
mundo, ora a bordo de naus e caravelas, ora em jatos intercontinentais, mas sempre nos sapatos
alados de Hermes, o deus patrono dos viajantes. Nos tecidos estampados, mapeamos o ciclo de
vida das imagens botânicas e identificamos distintos suportes de veiculação entre culturas,
assim como recolhemos estilhaços simbólicos emaranhados pela astúcia de artesãos que
mobilizam e reinventam suas capacidades intelectuais e criativas no dia-a-dia.
Apuramos que imagens errantes de lugares tão distantes entre si quanto a Índia e o
México se entrelaçam na natureza luxuriante das estampas e bordados florais, configurando o
tecido como mídia secundária capaz de ampliar vínculos comunicativos e fazer com que o
homem, ainda que simbolicamente, vença a morte. “Uma imagem requer o tempo lento, como
uma escrita requer o tempo lento, no qual não existe a morte” (BAITELLO, op.cit.: 33). Nos
espaços exuberantes da cultura, essas imagens em trânsito se misturam ininterruptamente,
reativando mitos e intensificando sua energia simbólica. Mais até: proliferam, ladinas, em
camadas muitas vezes ocultas sob tecidos multicoloridos. Confirmamos nos capítulos anteriores
125
que isso se deu fartamente nos deslocamentos geográficos de produtos têxteis a partir das
Grandes Navegações, ampliando-se com a explosão da indústria do turismo, da moda e do
consumo de souvenirs por parte dos viajantes. Para BELTING (op.cit.:80), “o mundo se
transforma em imagens que podem ser unidas pelo indivíduo. Na aldeia global encontramos
habitantes que, como viajantes e tradutores de tradições, são ao mesmo tempo partidários de
recordações locais que de outro modo se perderiam no vazio”
161
. Isso nos permite assumir que,
assim como as imagens nativas, também aquelas ditas “estrangeiras” podem ser utilizadas como
ingrediente na (re)construção de imagens da cultura de dada região, renovando-as perante o
olhar do Outro distante em produtos de moda e decoração. Vimos essa situação nas elaborações
de Arthur Liberty com respeito às chitinhas inglesas, tanto quanto nos esforços da marca Alma
Lusa na revisão do imaginário português em produtos confeccionados com chitas de Alcobaça.
Dessa feita, observamos que o culto às imagens se acelera a medida que elas se deslocam nos
artigos dispostos sobre os corpos, tanto na diacronia quanto na sincronia, mesclando-se às
culturas que visitam no que PINHEIRO (2009) chama de “mosaico movediço”.
Estudando as imagens florais e suas relações com as mitologias hindu e mesoamericana,
percebemos que o padrão ornamental floral presente na estamparia têxtil caracteriza, em
verdade, processos de iconofagia mestiça, visto que tais imagens coletam arquétipos,
fragmentos e memórias, que são revolvidos à exaustão. Com eles concebem um caleidoscópio
no qual as referências permanecem perenemente em movimento, gerando constante impressão
de novidade. Essa sensação ilusória ofertada pelo mundo das imagens produz benefícios para a
cadeia têxtil, cujo intuito é manter-se, bem como aos seus consumidores, na chamada “sintonia
com o progresso”. Ou seja, em permanente desasossego para substituir imagens desbotadas por
novas misturas imagéticas (GARCIA e MIRANDA, 2005). Ao comentar a crise da competência
simbólica nas dias massivas, CONTRERA (op.cit: 41) observa precisamente que estamos
participando de uma mega-operação de consumo das imagens e das informações, literalizadas
como produtos e tornadas devoráveis”. A nosso ver, essa situação se verifica de modo
exemplar no enorme impacto gerado pelas imagens dos tecidos rebordados à exaustão pelas
vistosas tehuanas e, posteriormente, trasladados à aparência de Frida Kahlo e aos souvenirs
161
“El mundo se transforma en imágenes que ya sólo pueden ser unidas por el individuo. En la aldea global
encontramos habitantes que, como viajeros y traductores de tradiciones, son al mismo tiempo partisanos de
recuerdos locales que de otro modo se perderían en el vacío”.
126
inspirados nela.
Vimos que, para as tehuanas zapotecas, certos rituais específicos (o casamento, o luto, a
festa, a procissão e a cerimônia religiosa), assim como o clima e a presença de forasteiros,
influenciam na escolha de motivos para a construção imagética. Os fortes ventos do istmo de
Tehuantepec favorecem o uso do huipil curto e ajustado de um só lenço (bida ni wi‟ni),
acompanhado de saia larga, uma evolução do traje pré-hispânico composto de enredo preso com
faixa (bisu‟ di renda). Todavia, a partir desses mesmos elementos, é certo que as tehuanas
fabulam imagens cujo significado lhes a grandeza capaz de fazê-las perdurar muito além do
tempo da vida humana. Continuamente refazendo sua aparência pelo coser e adornar, elas
costuram novos vínculos e mantêm as imagens flutuando sobre seus corpos e corpos alheios,
especialmente nos ambientes de troca dos tianguis. Elegem tecidos e técnicas de ornamentação
para criar buquês iconofágicos de frangipanis, girassóis ou rosas, de forma que seu conceito de
moda não é apenas um elemento de identificação do local de origem, como também reflexo
imagético de compromissos sociais e entrelaçamentos culturais. Assim, caracterizam, no âmbito
da comunicação, uma aparente evolução que incentiva o consumo, ou a devoração, de uma
imagem pela outra, cuja potência reside precisamente na incessante repetição ritual, formando
um conjunto jamais fechado em si mesmo. Ao provocar processos iconofágicos, as tehuanas
convertem-se em memória coletiva ou imagem-souvenir. Para essa comunidade, como para
tantas outras, se comunicar é criar e manter vínculos, moda é comunicação (GARCIA e
MIRANDA, op.cit.).
Imagens-souvenir
“A evocação de um paraíso florido, repleto de plantas e flores mexicanas, recria para
os índios uma imageria familiar, mas de conotações pagãs que supostamente deveriam ter
desaparecido, pois foram absorvidas numa ortodoxia cristã inequívoca” (GRUZINSKI, op.cit.:
285). Assim como Nossa Senhora de Guadalupe, cujo manto é recoberto de rosas e jasmins
mexicanos, Frida Kahlo subverte tais conceitos ao mesmo tempo em que os reforça, quando
(re)constrói, sobre seu corpo torturado, a imagem vitoriosa e tica da deusa Xochiquetzal,
mesclada às visões de santos católicos e aos ramalhetes mestiços das tehuanas. Esse
caleidoscópio de imagens navega em sua imagem pessoal mediante a aparição em tecidos
ordinários, como o algodão adornado com flores que ela cartografa e empresta das tehuanas
127
para depois enrodilhar em composições mestiças.
“Flora necrológica, taxonomia social, botânica política. Diante da magnitude dos atos
de barbárie, somente a imagem mais estetizante parece ser capaz de recobrar, por oposição,
um sentido crítico”
162
(ROCA, op.cit.: 93). Mediante a refacção dessas figuras míticas numa
outra imagem divina, a pintora transfere para a coluna vertebral o espaço da vertical, que os
huipiles e rebozos adornados de flores garantem-lhe uma figura ereta, uma “árvore da vida” que
lhe autoriza a ingressar no espaço mitológico. Afinal, “não é a natureza que nos desafia. A
vida humana é igualmente massacrante(...)” (BOTTON, op.cit: 191). Ao derrubar o “mito da
queda” e ascender ao patamar de divindade usando tecidos como mídia, a própria Frida, por sua
vez, passa a ter sua imagem venerada e idolatrada tanto pelo apreço estético quanto pela
capacidade heróica de romper barreiras impensáveis. Simultaneamente deusa e santa, ela se
catapulta ao patamar de detentora da habilidade de circular em esferas opostas e
complementares sem ser nem uma, nem outra. Essa estratégia mestiça posiciona a artista, como
nos coloca PROSS (op.cit.: 47), “(...) ao mesmo tempo aqui e ali, isto é, na possibilidade do
impossível”
163
. Concluímos que, ao incentivar o estabelecimento de vínculos comunicativos
entre fabricantes e consumidores no mercado global, as imagens simbólicas presentes nos
tecidos e trajes eleitos por Frida navegam entre culturas sem se fixar em nenhuma delas,
vencendo continuamente o desaparecimento e a morte. Exemplos dessa natureza caracterizam a
mídia têxtil como suporte de relações multiculturais, “(...) com enraizamentos históricos e
geográficos que traçam um interessante e peculiar mapa-múndi” (CHATAIGNIER, op.cit.:
94).
Cartão-postal
Quando a pintora se converte, ela própria, em imagem flutuante, vai muito além de si.
Sob as múltiplas camadas imagéticas da artista, seu corpo se fragmenta e se expande, como
corpo-imagem, para simbolizar, ainda que parcialmente, a essência mitológica da nação
mexicana. Transformada em “estampa étnica”, ela se integra, assim, às malas dos viajantes,
enfeitando outros lares e outros corpos com sua figura mítica disposta em bolsas, sacolas de
162
“Flora necrológica, taxonomía social, botánica política. Ante la magnitud de los actos de barbarie sólo la
imagen más estetizante parece ser capaz de recobrar, por oposición, un sentido crítico”.
163163
“(…) al mismo tiempo, aquí y allí, esto es, en la posibilidad de lo imposible”.
128
feira, blusas, camisetas, jóias, xales e vestidos. MIRANDA (2008: 46) pontua que o indivíduo,
ao manifestar-se no ato de consumo, imita, representa e cria mecanismos simbólicos para
instaurar a comunicação, abrindo assim, o diálogo com o mundo”. Muitos deles, portanto, são
consumidos até mesmo mediante compras pela Internet
164
. Constituem lembranças adquiridas
de segunda mão, motivadas pelo desejo de integrar o imaginário alheio. Pela capacidade de
apalpar sutilezas e convertê-las simbolicamente, as imagens têxteis dispostas na aparência de
Frida criam, portanto, enormes campos relacionais (embora também existam invasões postiças)
e comunicacionais, dilatando as zonas de contato e gerando amplos espaços de deslocamento.
Trata-se de um contínuo entrelaçar entre natureza e cultura, corpo e mito, biosfera e noosfera,
permanentemente em trânsito, com escalas e conexões nas mídias.
“As terras mestiças são imensas e convidam a novas explorações. Exigem longas
viagens através das fontes e das disciplinas, dos passados e dos continentes” (GRUZINSKI,
op.cit.: 319). Com a mescla de multicontribuições, a proliferação de desvios aumenta e uma
erupção barroca de excessos. A aproximação do díspar, o gigantismo, o grotesco e os vários
mecanismos da hipérbole recolhem os paradoxos em configurações curvilíneas onde o que vale
é a extraordinária combinatória. As flores presentes nos trajes típicos pintados e usados por
Frida são, portanto, a própria mestiçagem, condensando tradições estrangeiras e
mesoamericanas num eterno ir e vir, especialmente à medida que se integram à bagagem dos
turistas no seu retorno à terra natal sob forma de souvenirs.
Num mundo de distâncias cada vez menores, dado o contínuo progresso tecnológico dos
transportes e dos meios de comunicação de massa, apuramos que os tecidos e,
consequentemente, os produtos de moda fabricados com eles, podem funcionar como suporte de
pós-vida das imagens. Ou, conforme o entender de BELTING (op.cit: 77), possibilitam “visitar
os lugares em imagem”
165
. Isso nos permite assumir, com TUROK (op.cit. 54-55), que a
imagem têxtil é um testemunho cultural capaz de transmitir códigos que o “leitor” iniciado pode
164
O endereço eletrônico Nosotros amamos los vestidos mexicanos (http://vestidosmexicanos.blogspot.com/)
comercializa vestidos San Antonio da região de Oaxaca, distribuindo-os em todas as partes do Brasil pelos
correios. Alguns deles foram exibidos na mídia eletrônica por atrizes como Carolina Dieckmann, Julia
Lemmertz e Cláudia Abreu. O mesmo endereço de comércio eletrônico forneceu-os como figurino para a
“festa mexicana” do reality show Big Brother Brasil 10, exibido pela Rede Globo de Televisão. Nesse
programa, os vestidos tradicionais foram recortados e reconstruídos sob forma de minissaias e blusas curtas,
disseminando-os como modismo.
165
“visitar los lugares en imagen”.
129
interpretar, conhecendo aspectos de uma pessoa sem sequer falar com ela. Sem dúvida,
podemos considerar, conforme os parâmetros de Pross, o têxtil como mídia secundária; ou, no
entender de Belting, como um medium para o trânsito de imagens da cultura, tão preciso quanto
a escrita ou a fotografia na batalha humana contra o esvanecimento.
Nesse sentido, concluímos, com WAAL (2002: 36), queproduzimos cultura e somos
produzidos por ela, até o ponto que não se encontra em nenhum outro animal”. Antes de
decolar para hemisférios distantes, talvez devêssemos, de fato, utilizar a função-janela de que
nos fala KAMPER (1994) para observar o que vimos tantas vezes e ultrapassar a aridez do
imaginário. Colocando tais “imagens em ação”, deixando-as espiar pelas frestas cativeiras do
imaginário rumo a um universo móvel, descentrado e mestiço, seguramente seremos mais
capazes de desvendar simbolismos soterrados pela poeira das commodities e das imagens prêt-
a-porter. Talvez possamos, inclusive, estabelecer vínculos mais honestos com nossa própria
imagem no espelho.
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13
Crédito das imagens
Figura 01 foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 02 foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 03 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 04 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 05 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 06 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 07 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 08 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 09 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 10 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 11 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 12 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 13 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 14 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 15 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 16 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 17 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 18 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 19 - foto: Maria Carolina Garcia.
14
Figura 20 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 21 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 22 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 23 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 24 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 25 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 26 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 27 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 28 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 29 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 30 - fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 31 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 32 - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 33 à esquerda: Frida Kahlo, Autorretrato con resplandor, 1948. Óleo sobre
masonite, 48 x 39.5 cm, coleção Gelman foto sem crédito. ROSENWEIG,
Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de Frida. Metepec:
Zweig Editoras, p. 84.
à direita, acima: huipil tehuano “de carita” realizado em renda foto sem
crédito.
ROSENWEIG, Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de
Frida. Metepec: Zweig Editoras, p. 126.
à direita, abaixo - foto: Maria Carolina Garcia.
Figura 34 - foto: Maria Carolina Garcia.
15
Figura 35 - cartões-postais fotos sem crédito.
Figura 36 foto sem crédito.
ROSENWEIG, Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de
Frida. Metepec: Zweig Editoras, p. 76.
Figura 37 foto: Nickolas Muray, 1948.
ROSENWEIG, Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de
Frida. Metepec: Zweig Editoras, p. 77.
Figura 38 - à esquerda, acima: foto sem crédito.
à esquerda, abaixo, e à direita fotos: Maria Carolina Garcia.
Figura 39 à esquerda: foto sem crédito.
ROSENWEIG, Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de
Frida. Metepec: Zweig Editoras, p. 127.
à direita: foto sem crédito.
ROSENWEIG, Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de
Frida. Metepec: Zweig Editoras, p. 141.
Figura 40 - à direita fotos: Maria Carolina Garcia.
à esquerda - foto: Berenice Kolko, 1952.
ROSENWEIG, Denise; ROSENWEIG, Magdalena (2007). El ropero de
Frida. Metepec: Zweig Editoras, p. 126.
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