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Marina Ambrozio Galindo Rolim
“SOB O SÓRDIDO DESARRUMO”:
A FEIÚRA EM “A BENFAZEJA”
Londrina
2010
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Marina Ambrozio Galindo Rolim
“SOB O SÓRDIDO DESARRUMO”:
A FEIÚRA EM “A BENFAZEJA”
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Estadual
de Londrina como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre
em Letras, área de concentração:
Estudos Literários
Orientadora: Profa. Dra. Adelaide
Caramuru Cézar
Londrina
2010
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Marina Ambrozio Galindo Rolim
“SOB O SÓRDIDO DESARRUMO”:
A FEIÚRA EM “A BENFAZEJA”
COMISSÃO EXAMINADORA
__________________________________
Profa. Dra. Adelaide Caramuru Cézar
Universidade Estadual de Londrina
__________________________________
Profa. Dra.
Marta Dantas da Silva
Universidade Estadual de Londrina
__________________________________
Prof. Dr. Aécio Flávio de Carvalho
Universidade Estadual de Maringá
Londrina, _____de ___________de _____.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos que vasculham, na arte e
na vida, a beleza inclusa na fealdade.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Adelaide Caramuru Cézar, pela constante dedicação à nossa
literatura e pelos conselhos sinceros que se estendem da pesquisa à vida.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras, ao Prof. Dr. Volnei
Edson dos Santos, pelo exemplo intelectual a ser seguido.
Ao Anderson, amigo-marido, que me amou e apoiou em todos os extensos
instantes dos quais este trabalho se fez.
À família, mãe, Bruno, Teresa Maria, Jecy, Rolim e Kelly, porque sem vocês, nada
seria.
Ao meu pai, cuja falta me ensina a ter força e ir mais além.
Aos verdadeiros amigos, compadres e comadres, por estarem aqui, sempre por
perto.
À CAPES, pelo suporte financeiro.
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor
sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim
ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o
branco, que o feio fique bem apartado do bonito e
a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos
demarcados... Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas
transtraz a esperança mesmo do meio do fel do
desespero. Ao que, este mundo é muito
misturado...
Riobaldo
A feiúra é fundamental, ao menos para o entendimento
desta história.
Moacyr Scliar
ROLIM, Marina Ambrozio Galindo. “Sob o sórdido desarrumo”: a feiúra em “A
benfazeja”, 2009. 132p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2009.
RESUMO
Este trabalho objetiva a análise do conto “A benfazeja”, de João Guimarães Rosa,
publicado em Primeiras Estórias. Em sentido mais estrito, evidencia a tentativa do
narrador em dissociar a feiúra da Mula-Marmela da maldade que lhe é atribuída
pela pequena comunidade onde se desenvolvem os fatos. Deste modo,
inicialmente, constitui referencial teórico específico acerca da feiúra, indicando a
volubilidade como seu caráter essencial. A seguir, apresenta modelos históricos,
artísticos e filosóficos em torno do tema. Do mesmo modo, propõe um recorte
histórico que visa compreender com quais elementos a feiúra, que é desarmônica,
imperfeita e repugnante, se torna um atrativo para a Arte e nela se realiza. Noutro
momento, o trabalho se dedica à observação do feio na obra de Guimarães Rosa,
inventariando suas ocorrências, desde Sagarana até Tutaméia, e ratificando a
importância deste elemento para a completude das narrativas do escritor mineiro.
Por fim, analisa o conto em questão, demonstrando um processo pelo qual se
intenta provar que a existência da Marmela foi indispensável para a harmonia
daquela comunidade, ratificando que, em sentido mais amplo, as coisas mais
feias, aparentemente desprezíveis, possuem grande valor para o conjunto em que
se inserem.
Palavras-chave: João Guimarães Rosa, A benfazeja, conto, feiúra.
ROLIM, Marina Ambrozio Galindo. “Sob o sórdido desarrumo”: a feiúra em “A
benfazeja”, 2009. 132p. Dissertation (Master Degree in Liberal Arts)
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009.
ABSTRACT
This work aims at the analysis of the short story “A benfazeja”, by João Guimarães
Rosa, published in Primeiras Estórias. In strict sense, shows the attempt of the
narrator to decouple the ugliness of Mula-Marmela from the evilness which is
attributed to her by the people from the community where the facts take place. In
this way, at the start, it builds the theoretical reference about the ugliness,
indicating the fickleness as its main character. As it follows, shows the historic,
artistic and philosophical models of its theme. In the same way, proposes a
historical cut which intends to comprehend whit which elements the ugliness - not
harmonic, not perfect and repulsive - becomes attractive to art and in it can exists.
In other moment, this work observes the ugly in the works of Guimarães Rosa,
inventorying its occurrences, since Sagarana until Tutaméia, and ratifies the
importance of this element to the totality of the narratives by the Brazilian author. In
the end, analyses the short story, demonstrating a process which wants to prove
that the existence of Marmela was essential to the harmony of that place,
reaffirming that, in a wider way, the ugly things, which are apparently despicable,
has a great value for the entire object as its component.
Keywords: João Guimarães Rosa, A benfazeja, short story, ugliness.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................7
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES SOBRE A FEIÚRA ....................................... 12
1.1 foeteo, foedus, feio.......................................................................................... 12
1.2 Formas do feio................................................................................................. 15
1.3 Breve parêntese sobre o grotesco .................................................................. 39
1.4 A vitória do feio ............................................................................................... 43
CAPÍTULO II – A FEIÚRA NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA ........................... 61
2.1 Uma grande estréia ........................................................................................ 61
2.2 “feio o acontecido, feio o narrado”: obras de 56.............................................. 63
2.3 A feiúra nos “vastos espaços” das narrativas curtas ...................................... 69
CAPÍTULO III – A FEIÚRA EM “A BENFAZEJA” ................................................. 76
3.1 O “sereno nosso lugar” de “A benfazeja” ........................................................ 76
3.2 “A gente não revê os que não valem a pena”: a visão da comunidade .......... 77
3.3 “Cada qual com sua baixeza; cada um com sua altura”: a visão do narrador..88
3.4 “Nos domínios do demasiado”: marcas do trágico no discurso do narrador ...93
3.5 “Pensem, meditem nela, entanto”: a moral da história ................................... 98
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 101
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 107
ANEXOS ............................................................................................................. 116
INTRODUÇÃO
A feiúra está em toda parte. Tudo quanto é deformado,
desproporcional, abjeto, fétido, asqueroso, dissonante, desigual, corrompido é
considerado feio. A feiúra está, sobretudo, na imperfeição dos padrões estéticos e
éticos.
O feio é o avesso do belo, é sua seqüela e sua negação. Em
todos os segmentos da vida, onde a beleza, reside também a feiúra, sua
antonímia perfeita. Nas coisas criadas pelo homem ou na natureza, a feiúra é
como o verso da medalha que se opõe ao anverso mas, ao mesmo tempo, torna a
medalha completa. Cada pequena coisa, por mais feia e desprezível que aparente
ser, contribui para a perfeição de algo maior e por isso não deve ser rejeitada.
O feio nasce do belo na medida em que é sua negação. Sendo
assim, o feio só pode existir onde deveria existir o belo, pois senão não haveria a
quem negar. Neste sentido, a feiúra não está totalmente à parte da beleza e por
vezes chega a confundir-se com ela. Por ser inversa à beleza, é que a feiúra a
completa, criando um jogo de contrastes em que ambas as partes possuem
valores equivalentes. Se a beleza cria, por um lado, a harmonia e a perfeição, por
outro lado o feio cria o defeito, o dissabor e o erro, dos quais não podemos nos
desviar no curso da vida.
Todavia, a feiúra é pouco freqüentemente valorizada como um
elemento dotado de significado próprio. O feio é aquilo que não possui beleza e
isto parece satisfazer a indagação sobre sua existência.
Noutra mão, ao tentar definir o feio a partir de seus elementos
intrínsecos, superando o mero antagonismo a fim de conhecer sua esncia,
evidencia-se, sempre, sua denotação pejorativa. Afinal, o feio é sempre o que não
é belo, toda a sua existência provém da total negação da beleza e, portanto, sua
natureza é inteiramente negativa. Neste sentido, o feio relaciona-se com o mal do
mesmo modo que o belo relaciona-se com o bem, mas possui, assim como o belo,
um significado que transcende as formas de sua manifestação.
Por sua vez, o conceito do belo foi discutido por filósofos que, ao
longo dos séculos, buscaram conhecer sua essência e definir sua natureza. Na
Antigüidade, o significado do belo possuía fortes implicações morais que
influenciaram na elaboração da acepção estética que se aprimorou mais tarde,
principalmente com o Renascimento.
Primeiramente, a idéia de Belo estava inserida no debate sobre o
Bem, a Virtude, e a Justiça. A beleza, em seu sentido moral, encontrava-se
relacionada à bondade e à moderação da alma. Ou seja, a verdadeira beleza era
aquela encontrada pela alma equilibrada, centrada em si mesma, sem inclinações
demasiadas para os vícios ou para as virtudes. A beleza, sobretudo, era a medida,
o equilíbrio e a harmonia.
o significado estético do belo, para os gregos, ligava-se
principalmente aos conceitos de proporção e harmonia que as formas deveriam
expressar. Na explicação de Benedito Nunes,
No sentido estético, o Belo é a qualidade de certos elementos em
estado de pureza, como sons e cores agradáveis, das figuras
geométricas regulares, das formas abstratas, como a simetria e
as proporções definidas, a qualidade, enfim, de toda espécie de
relação harmoniosa. A Beleza dos elementos puros repousa na
sua adequação aos sentidos, sobretudo à vista e ao ouvido,
enquanto que a das coisas que se compõem de partes pode ser,
em geral, reduzida a dois princípios, o equilíbrio e a unidade na
variedade, princípios clássicos, que a filosofia antiga legou-nos
(NUNES, 2003, p.18).
Assim, nota-se a distinção entre uma beleza espiritual e moral,
que diz respeito às virtudes da alma, e uma beleza estética que está sujeita aos
aspectos formais da matéria. Estas, entretanto, não são espécies distintas de
belezas. Ao contrário, quanto maior for a proximidade do belo estético com as
virtudes morais, mais perfeito ele será.
Neste sentido, a Arte deve assentar-se na beleza estética,
expressa através da simetria, da proporção e da perfeição das partes que compõe
o todo. E, deste modo, a imitação, que para os antigos explica a natureza da Arte,
possui um valor estético e um valor moral, pois deve conduzir a alma à imitação
da beleza representada. Por este motivo,
Em geral, devem as artes representar o que é belo, tanto no
sentido estético quanto no moral os belos corpos e as belas
ações para que o espírito, estimulado pelo prazer derivado da
contemplação do que é perfeito e excelente, sinta-se inclinado à
prática das virtudes e ao conhecimento da verdade (NUNES,
2003, p.21).
De acordo com estes ideais, defendidos por Platão (427 347
a.C) no diálogo A República, a Arte deveria preocupar-se em representar a beleza
encontrada nas formas e nas ões que estavam de acordo com o que fosse
considerado correto e desejável. Porém, a beleza da boa índole e das belas
figuras perdura até o momento em que o filósofo Aristóteles (384 322 a.C.)
ocupa-se em debater a comédia, que provoca o riso através da imitação de ões
e sujeitos deturpados, e não descarta a imitação do que é considerado feio,
afirmando que a Arte é capaz de amenizar a feiúra real através da beleza que nela
está contida e da maestria do imitador. Assim, “A imitação, no sentido aristotélico,
estende-se mesmo àquelas coisas desagradáveis à vista, repelentes porque
ameaçadoras, feias porque inermes e sem vida” (NUNES, 2003, p.29).
Desde Aristóteles até os dias contemporâneos, a questão da
fealdade encontrada na natureza, no homem e nas representações foi discutida
por filósofos e teóricos de arte. Entretanto, poucas vezes o feio foi valorizado
como um elemento significativo e dotado de certa autonomia. Geralmente, sua
interpretação segue o curso depreciativo da negação do belo. Em grande parte
dos estudos teóricos, a feiúra constitui um parêntese no debate estético e parece
surgir somente diante da necessidade de se reconhecer o antônimo da beleza.
Todavia, se teoricamente o feio parece não despertar grande
interesse, na arte ele revela-se um campo fértil. Diversos artistas escolheram a
deformidade, a desproporção e as criaturas monstruosas como temas para suas
obras, rejeitando as clássicas prescrições da arte bela. É feio o que vemos em
certos momentos de Hieronymous Bosch, Francisco de Goya, Tarsila do Amaral,
ou ainda em Dante Alighieri e em Augusto dos Anjos, que através da utilização de
formas deformadas construíram autênticas obras de arte que, como tal, são belas.
Do mesmo modo, na literatura de João Guimarães Rosa (1908-
1967) a feiúra é um elemento constante. Neste sertão ficcional, ela promove
inúmeros encontros do leitor com as deformidades físicas e morais do homem. Em
alguns casos, a aparência feia de uma personagem externa sua índole cruel,
enquanto em outros, as feias feições são apenas características que diferenciam a
personagem das demais. E há, ainda, as histórias em que a feiúra toma conta de
toda a cena, penetra todo o enredo e constitui, portanto, seu elemento principal. O
feio, em Guimarães Rosa, é uma aparição recorrente.
Neste cenário de fealdades, as personagens femininas atuam
com notável persistência. São diversas mulheres de aparência desgostosa que
perambulam pelo sertão rosiano promovendo inúmeros espetáculos da feiúra.
Dentre estes casos específicos, evidencia-se a sertaneja Mula-Marmela,
protagonista de “A benfazeja”, conto integrante da coletânea Primeiras Estórias.
A escolha do conto a ser analisado partiu da constatação da
feiúra como elemento central da narrativa, e não como algo marginal. Nesta
história, a feiúra está representada principalmente na personagem principal e
perpassa todo o enredo.
Neste sentido, o escopo deste trabalho, primeiramente, é analisar
o conto “A benfazeja” a partir da observação do feio e sua importância para esta
narrativa e, em segundo lugar, contribuir para a fortuna crítica rosiana,
evidenciando o valor do conto para a compreensão ampla da obra de João
Guimarães Rosa. Enfim, deseja-se, sobretudo, compreender o universo literário de
Rosa por meio da análise da fealdade.
Para dar conta desta tarefa, o procedimento metodológico do
presente trabalho compreende, inicialmente, a investigação do conceito de belo, a
fim de buscar uma definição do feio que corrobore para com a análise posterior.
Deste modo, introduz-se pela avaliação de textos teóricos acerca do universo, da
essência e da importância da feiúra.
Neste intuito, a obra História da feiúra, organizada por Umberto
Eco, se destaca. Lançado após a História da beleza, o livro realiza uma viagem
pelos caminhos escuros por onde espreita o feio, conduzida através de textos
históricos, filosóficos e literários e de inúmeras reproduções iconográficas.
Por meio das duas Histórias organizadas por Eco, foi possível
entrar em contato com o arcabouço teórico e artístico que se construiu, desde os
tempos antigos até os dias contemporâneos, sobre beleza e feiúra no pensamento
ocidental. Ali, alinham-se os estudos filosóficos de Platão, Aristóteles, Plotino e
Santo Agostinho, dentre outros que realizaram incursões no terreno da feiúra e,
por isso, constituem instrumento necessário para posterior análise literária.
Num segundo momento, realizar-se-á a análise do conto
mencionado, partindo da observação da feiúra representada através de sua
personagem feminina. Para tanto, o trabalho ratifica a importância da feiúra como
elemento essencial para a manutenção da ordem, da harmonia do contexto em
que se insere.
Espera-se, com esta pesquisa, aprofundar o conhecimento nos
estudos de João Guimarães Rosa propondo uma revisão da fortuna crítica deste
autor e observando a feiúra com a intenção de compreender qual a sua
importância na composição deste universo ficcional.
Em um sentido mais abrangente, esta análise espera promover
um novo olhar sob as deformidades e sob a feiúra tanto do contexto observado,
quanto do homem e das imperfeições do homem.
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES SOBRE A FEIÚRA
1.1 foeteo, foedus, feio
A beleza está presente em todas as instâncias da vida e
ultrapassa os limites da esfera estética. Assim, na medida em que são agradáveis,
diferentes coisas, como um automóvel, uma peça de vestuário, uma pedra
preciosa, um edifício, um dia ensolarado, uma paisagem, uma sinfonia, uma
pessoa, uma recordação, uma obra de arte ou uma atitude exemplar, podem ser
qualificadas como belas.
Na infância, durante os primeiros ensinamentos, se estabelece
a relação entre belo e bem. Tudo o que estiver fora desta classificação passa a
ser considerado feio. Sendo assim, belo e feio se relacionam a valores éticos, que
pautam a conduta social do indivíduo em formação. Por conseguinte, uma ação
e fora da conduta ética da sociedade se torna uma ação feia, assim como a
pessoa que a pratica.
Entretanto, esses conceitos não o estanques e podem sofrer
modificações na medida em que a experiência vivida se desenrola e novos valores
são internalizados.
Disso, decorre que a arte, tecida da própria experiência humana,
reproduz este processo, refletindo a transitoriedade destes conceitos. Por este
motivo, o feio instiga e confunde o pesquisador que sobre ele se debruça. Ao
mesmo tempo em que oferece grande variedade de formas a serem exploradas,
sua natureza volátil impede a apreensão de um conceito que fixe suas
características.
Num primeiro momento, o que parece definir o feio é o
sentimento de desagrado que ele causa. O dissabor da fealdade se revela na
etimologia da palavra. Conforme se encontra no Dicionário Latino-português, o
significado original do vocábulo foedus
1
está associado a fétido, repugnante ao
olfato, foeteo. Assim sendo, a feiúra encontra-se intimamente vinculada ao que é
repulsivo.
Na acepção atual da palavra, o caráter sensível se mantém. De
tal modo, o feio é:
1.De aspecto desagradável; que fere a vista ou a estética. 2.Que
causa mal-estar ou sofrimento; ameaçador. 3.Indecoroso, torpe,
vil. 4.Difícil, insuportável, insofrível. 5.Desventuroso, triste, escuro.
6.Diz-se do tempo mau, chuvoso ou ventoso; fechado. 7.Coisa
feia. 8.Situação desairosa; posição moral. 9.Indivíduo feio.
10.Pop. V. diabo 11.De modo feio, desairoso; feiamente
(FERREIRA, 1999, p. 890).
Logo, o feio é aquilo que causa desagrado porque o se
harmoniza com a inteligência e com os sentidos do homem. Portanto, ele é o que
escapa à harmonia do belo, é o excesso, ou a carência, ou a deformidade das
partes que compõem um organismo.
Neste sentido, a feiúra corrompe a matéria, apresenta-a com uma
forma diferente daquela que se pretende encontrar e retira o espectador da
observação passiva consentida pela beleza. Portanto, a feiúra possui uma espécie
de violência dinâmica, que agride o espectador, porque é desagradável, ao
mesmo tempo em que requer sua interpretação, porque ser desagradável é
possível perante alguém.
Destarte, é mister dizer que as definições para o feio são tantas,
porque sua natureza é tão hesitante quanto o gosto humano. Assim como o belo,
é um conceito que deve ser avaliado segundo o contexto em que é produzido, pois
seu significado pode ser alterado pela ação do tempo e pelas mudanças sociais,
culturais e individuais que dela decorrem.
1
FOEDUS, 1.horrível; horroroso; hediondo; repelente. 2.que desfeia; que desfigura.
3.repugnante (ao gosto ou ao olfato). 4.sujo; imundo. 5.Vergonhoso; indigno; criminoso
(obs. talvez o sentido primitivo tenha sido ‘fétido, repugnante ao olfato, e, nesse caso,
relaciona-se com foeteo) (TORRINHA, 1945, p.342).
Conforme o Dicionário Filosófico do francês André Comte-
Sponville,
toda feiúra é relativa, como também toda beleza. Não feiúra
em si, nem feiúra objetiva: ser feio é desagradar, dizia eu, e é
possível desagradar a um sujeito. Isso não torna a feiúra menos
injusta, ou antes, é o que torna sua injustiça mais cruel: porque
parece repelir o amor, e até a simpatia, e de fato repele, pelo
menos por certo tempo pois que ela não é nada mais que essa
repulsão que ela mesma suscita e pela qual a reconhecemos. Na
arte, é possível jogar com ela, até levá-la à beleza (...) Mas e na
vida? Na vida, também é preciso arte, e um pouco de talento -
inclusive por parte do espectador (COMTE-SPONVILLE, 2003, p.
242).
Sendo assim, esse caráter relativo do feio sobressai na medida
em que sua natureza é, essencialmente, a negação de um princípio positivo, o
belo. A feiúra, esta repulsa de que fala Comte-Sponville, pode ser convertida em
beleza de acordo com a disposição do espectador que, ao invés de valorizar
apenas o feio, enxerga com maior acuidade o conjunto no qual ele está inserido.
Assim, através das definições apresentadas, evidencia-se a
relatividade do feio. Ratificando este sentido, Umberto Eco, em História da feiúra
2
,
acrescenta que “Dizer que belo e feio são relativos aos tempos e às culturas (ou
até mesmo aos planetas) não significa, porém, que não se tentou, desde sempre,
vê-los como padrões definidos em relação a um modelo estável” (ECO, 2007, p.
15).
Deste modo, na arte, a variação do “modelo estável” em cada
momento da História implica na mudança das concepções de belo e feio, bem
como das formas que eles assumem. E, portanto, não se pretende realizar nesta
parte inicial um levantamento fechado e completo da feiúra, tampouco se busca
um significado estanque, que comporte toda a abrangência do feio.
2
O livro História da feiúra, de organização do pensador italiano Umberto Eco, foi lançado
em Portugal, em 2007, pela Editora Bompiani, e no mesmo ano no Brasil, pela Editora
Record. A obra dá seqüência à História da beleza, lançada em 2004, também organizada
por Eco.
Noutro sentido, este capítulo propõe um recorte histórico que visa
compreender com quais elementos a feiúra, que é desarmônica, imperfeita e
repugnante, se torna um atrativo para a arte e nela se realiza. Com isso, não se
ambiciona rotular as obras citadas como feias, negando-lhes a beleza que é
própria da arte, como fruto da intenção criadora do artista. Na verdade, o
movimento tem sentido oposto: ao fazer referência às obras canonizadas,
intenciona-se evidenciar o mérito da feiúra como parte elementar da composição
artística.
Para tanto, não se pressupõe que a obra de Arte reflita sempre o
gosto e o juízo estético da maioria. Alguns dos exemplos aqui citados são
exceções no que diz respeito aos padrões artísticos de seu período. Ademais, a
observação da Arte pela ótica da feiúra abre uma nova perspectiva na análise
subseqüente do objeto literário.
Neste caminho, indicado por Karl Rosenkranz (1805-1879)
3
,
O inferno não é apenas ético e religioso, é também inferno
estético. Estamos mergulhados no mal e no pecado, mas também
no feio. O terror do informe e da deformidade, da vulgaridade e da
atrocidade nos circunda em inumeráveis figuras, desde os
pigmeus até aquelas deformidades gigantescas cuja maldade nos
olha rangendo os dentes. É a esse inferno que queremos descer
(ROSENKRANZ apud ECO, 2004, p. 135).
1.2 Formas do feio
É lugar-comum dizer que o feio é o oposto do belo e que,
portanto, nasce do próprio belo, e não ao contrário. Todavia, importa ressaltar que,
nesta relação, o significado do feio é geralmente presumido através da mera
oposição ao belo. Assim, na maioria das vezes, a reflexão sobre a feiúra ocupa
espaços breves nos debates sobre a beleza.
3
Filósofo alemão autor de Estética do feio, publicado em 1853.
Por conseguinte, é necessário observar o feio por sua própria
perspectiva e, neste sentido, valorizar os elementos deste fenômeno que existe
em face do belo o somente como seu lado oposto, mas como complemento
para sua existência. Contudo, ainda é preciso recorrer às teorias acerca do belo
para investigar o feio sem, entretanto, reduzir sua natureza a um jogo de
antagonismos.
Como nos apresenta a História, desde a Antiguidade, a beleza é
investigada por filósofos que buscam compreender a sua natureza. É Platão (427-
347 a.C) quem inicia, declaradamente, a discussão acerca do tema. Para ele, no
entanto, a preocupação é outra que não a estética. O que tem em vista é a
implicação moral e espiritual do significado do Belo. Conseqüentemente, neste
contexto, a Beleza encontra-se numa esfera superior, no mundo das Idéias, e se
dissipa na matéria sensível, tornando-a bela.
A Beleza, segundo o ateniense, divide-se em duas espécies. Por
um lado, a Beleza universal que é imutável e eterna, e constitui uma essência.
Por outro, há a beleza que se atribui às coisas, como valor estético, que advém do
primeiro tipo e se revela na matéria. Segundo este modelo platônico, “as coisas
são belas, portanto, na medida em que participam da beleza transcendente, que
não nasce nem morre, e que é aquele aspecto do Ser que, esplendendo na
matéria, fala à inteligência através dos sentidos” (NUNES, 2003, p. 23).
Disso decorre que o feio somente existe no mundo sensível
devido ao caráter corruptível da matéria. A feiúra é o erro e a imperfeição que,
deterioradas, fogem daquilo que é Ideal. No diálogo Parmênides, fica evidente que
a perfeição do mundo inteligível não permite a existência do feio:
- Supões, por exemplo, uma forma em si do justo e do belo, do
bom e assim por diante?
- Sim, respondeu.
- E supões igualmente uma forma do homem, independente de
nós e de todos aqueles que são como nós, uma forma em si de
homem de fogo ou de água?
- Sobre estas coisas, Parmênides (...) muitas vezes duvidei se
deveríamos considerá-las como as precedentes ou não.
- Então, Sócrates, não tens certeza a respeito dessas coisas, que
podem até parecer ridículas, como cabelo, lama, lixo ou qualquer
outra coisa desprovida de importância e valor, ou seja, se é
preciso, ou não, admitir que existe para cada uma delas uma
forma separada que é, por sua vez, diversa daquilo que tocamos
com as mãos?
- Oh, não... creio que tais coisas, assim como as vemos, assim
elas são. Acreditar que existe uma forma separada de cada uma
delas seria, eu temo, demasiado absurdo (PLATÃO apud ECO,
2007, p. 26).
Deste modo, a restrição da feiúra ao mundo sensível implica, por
sua vez, na interdição da representação artística da matéria corrompida. Para
Platão, a arte desempenha papel fundamental na educação dos jovens e, por isso,
não se deve imitar aquilo que é feio, “para que por meio da imitação não venham a
encontrar prazer na realidade” (PLATÃO apud DUARTE, 1997, p. 13).
Noutro sentido, para Aristóteles (384-322 a.C), a arte perde seu
caráter transcendente e não se restringe à imitação das coisas belas. Aqui, não
existe a separação entre mundo sensível e mundo da Idéias. Sendo assim, o feio
não é mais o erro que precisa ser evitado.
Ao contrário do que pensava Platão, a arte pode tornar as coisas
feias em motivos de contemplação: “Prova disso é o que ocorre na realidade:
temos prazer em contemplar imagens perfeitas de coisas cuja visão nos repugna,
como [as figuras dos] animais ferozes e dos cadáveres (ARISTÓTELES apud
ECO, 2007, p. 33).
Assim sendo, a beleza na Arte não residiria somente naquilo que
é imitado, mas também no modo como se imita. Porquanto, Aristóteles identifica a
Beleza com a medida da composição que, para ser bela, deve ter as partes
harmonizadas, seja representando coisas belas ou feias. Conseqüentemente,
o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo
vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é
confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e
também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do
conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a
totalidade) (ARISTÓTELES, 2004, cap. VII).
Destarte, Aristóteles defende a imitação do que é feio, mas não o
considera uma categoria digna de valor em si. Isto se evidencia quando, ao tratar
da comédia, o feio surge como recurso didático que indica uma realidade
pejorativa e caricata, a qual o público não deve imitar, a fim de não se tornar,
também, ridículo. Neste sentido, a representação ordenada de ações feias indica,
pela simples oposição, o caminho para as ações belas e grandiosas, conforme se
lê na seguinte afirmação:
A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não,
todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas quanto aquela
parte do torpe que é ridículo. O ridículo é apenas certo defeito,
torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a
máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão
de dor (ARISTÓTELES apud DUARTE, 1997, p. 30).
Deste modo, ainda que exista grande preocupação filosófica com
o conhecimento da beleza, a representação artística na Antiguidade
invariavelmente servia-se da feiúra. Exemplo disto são as figuras híbridas da
mitologia grega encontradas na Odisséia, Ilíada ou Eneida: Sereias, Harpias,
Cérbero e Quimera povoavam o imaginário dos antigos.
Dado o fim deste período, após a queda do império romano do
ocidente, estas mesmas figuras mitológicas são atacadas pela igreja católica,
reforçando a dogmática cristã em favor da fé. Neste contexto, importa realçar a
figura de Santo Agostinho (354-430). Sua filosofia, em parte influenciada pelo
neoplatonismo de Plotino
4
, encontra a conciliação entre os pensamentos grego e
cristão acerca da criação do universo, do belo, do bem e, principalmente, da
existência do mal
5
na obra divina. Diferentemente do que se encontra na
Patrística
6
, em que os Santos Padres da Igreja serviam-se da filosofia para
4
Plotino (205-270) desenvolveu a teoria das três hipóstases ou das três substâncias -
Uno, Inteligência e Alma - atualizando o pensamento platônico.
5
O mal, neste contexto, é compreendido como a matéria corrompida e a deformidade e,
não obrigatoriamente, como uma disposição moral.
6
Filosofia cristã estabelecida durante o início do cristianismo, pautada, principalmente,
pelo platonismo e pelo aristotelismo.
enaltecer a doutrina cristã, Agostinho entendia o conhecimento racional como um
auxílio na busca pela beatitude e pela felicidade.
Para ele, Deus é o Bem e a Verdade, é a Beleza suprema. Por
conta de sua bondade infinita, Deus criou todo o universo e dele provêm todas as
coisas. Neste sentido, o filósofo admite que existam diferentes graus de perfeição
na matéria de acordo com sua proximidade ou seu distanciamento da divina
perfeição.
Entretanto, a matéria, cujo grau de perfeição é reduzido, não é
concebida como um erro por se encontrar demasiado afastada de Deus. Em suas
Confissões, livro escrito entre os anos 397 e 398, o bispo de Hipona afirma que
mesmo a matéria que se deteriorou faz parte da perfeição:
Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas:
não se poderiam corromper se fossem sumariamente boas, nem
se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se
fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não
tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse
(AGOSTINHO, 1999, p. 187).
Portanto, se a Beleza se encontra na harmonia, na ordem que
impera em toda a criação, então mesmo a matéria disforme é bela, pois age em
favor da consonância do seu conjunto. Se, isoladamente, determinada parte de
um organismo parece feia, ao se harmonizar com outras, torna-se bela. Sob este
ponto de vista, algumas coisas podem parecer feias para o homem porque sua
visão, ofuscada pelo pecado, é incapaz de perceber o universo em toda a sua
completude e vê suas partes separadamente.
Por conseguinte, enxerga a beleza por completo aquele
homem que experimenta a verdade através do homem exterior, que é o corpo,
mas somente a conhece através o homem interior, que é a alma:
Mas não se manifesta esta beleza a todos os que possuem
sentidos perfeitos? Por que não fala a todos do mesmo modo? Os
animais, pequenos ou grandes, vêem a beleza, mas não a podem
interrogar. o lhes foi dada a razão juiz que julga o que os
sentidos lhe anunciam. Os homens, pelo contrário, podem-na
interrogar, para verem as perfeições invisíveis de Deus,
considerando-as nas obras criadas. Submetem-se, todavia, a
estas pelo amor, e, assim, não as podem julgar. Nem a todos
os que as interrogam respondem as criaturas, mas aos que as
julgam. Não mudam a voz, isto é, a beleza, se um a
simplesmente, enquanto outro a vê e a interroga. Não aparecem a
um de uma maneira e a outro de outra... Mas, aparecendo a
ambos do mesmo modo, para um é muda e para outro fala. Ou
antes, fala a todos, mas somente a entendem aqueles que
comparam a voz vinda de fora com a verdade interior
(AGOSTINHO, 1999, p. 265).
Disto se depreende o pensamento antimanequeísta de
Agostinho, segundo o qual não existem o feio e o mal na realidade das coisas,
nesse universo criado por Deus, pois tais conceitos existem como frutos do
julgamento e dos interesses do homem. Dessa forma, todas as coisas são boas e
belas em si. Nas palavras do filósofo cristão:
Em absoluto, o mal não existe nem para Vós nem para as vossas
criaturas, pois nenhuma coisa fora de Vós que se revolte ou
que desmanche a ordem que lhe estabelecestes. Mas porque, em
algumas partes, certos elementos não se harmonizam com
outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com
outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em si mesmos
(AGOSTINHO, 1999, p. 188).
Como resultado, a visão de conjunto é o que possibilita
apreender a beleza que habita em todos os seres. A ordem faz com que as partes
de um organismo existam harmonicamente entre si e com o todo. A harmonia dos
seres, da matéria experimentada pelo homem, tem a função de conduzir o homem
à harmonia divina. Não é a matéria, e sim a ordem que conduz o homem a Deus,
porque ele é a sua fonte.
Por isso, “Ordem é aquilo que, se conservarmos na vida, nos
conduzirá a Deus; e não chegaremos a Deus a não ser que a conservemos na
vida” (AGOSTINHO, 2000, p. 127), pois que “A ordem é aquilo pelo qual são
conduzidas todas as coisas” (AGOSTINHO, 2000, p. 129). Além disso, Deus, “não
conduz todas as coisas mas também é conduzido pela ordem” (AGOSTINHO,
2000, p. 129). Por conseqüência, Agostinho esclarece que, embora Deus não ame
o mal, a ordem torna sua existência indispensável:
Assim, não estão fora da ordem os males, que Deus não ama e,
todavia, Ele ama a própria ordem. Com efeito, Ele ama isso
mesmo: amar os bens e não amar os males, o que é de uma
grande ordem e de disposição divina. Esta ordem e disposição,
porque conserva a congruência do conjunto pela própria distinção,
torna necessário que também existam os males. Assim, é como
se fosse de algum modo a partir de antíteses, que nos agradam
até no discurso, a partir dos contrários, que se configura, a um
tempo, a beleza de todas as coisas (AGOSTINHO, 2000, p. 113).
Em síntese, é a partir da existência essencialmente contrastante
dos seres que a beleza existe em completude. Por isso, a feiúra está anexa à
própria beleza.
Do legado deixado por Agostinho e pelos pais da igreja, surgiu a
doutrina escolástica. Neste cenário, Tomás de Aquino (1225-1274) se destaca na
medida em que identifica o belo com a bondade e, como na filosofia agostiniana,
com Deus. Entretanto, diferentemente de Agostinho, Aquino aceita que os
sentidos são capazes de influenciar a alma na construção do conhecimento.
Portanto, para a filosofia tomista, o belo é um conceito universal, relacionado ao
fim específico de cada objeto, natural ou artificial. E, quando este fim se realiza, o
objeto é belo. Neste sentido, o que existe sem realizar sua finalidade é feio. Assim,
deve-se dizer que o belo é idêntico ao bem mas possui uma
diferença de razão. De fato, sendo o bem o que todos desejam, é
de sua razão acalmar o apetite. Ao passo que é da razão do belo
acalmar o apetite com sua vista ou conhecimento. Por isso
referem-se principalmente ao belo os sentidos mais cognoscitivos,
a saber, a vista e o ouvido, que servem à razão. Assim, dizemos,
belas vistas e belos sons ao contrario, com respeito aos sensíveis
dos outros sentidos não usamos a palavra beleza, pois não
dizemos belos sabores, nem belos odores. Fica claro, pois, que o
belo acrescenta ao bem uma certa ordem à potência cognoscitiva,
de modo que o bem se chama o que agrada de modo absoluto ao
apetite, e belo aquilo cuja apreensão agrada (AQUINO, 2003, p.
344).
Desta maneira, o pensamento grego, e o conceito de feio que
dele advém, sobrevive à Idade Média, sujeito às interpretações religiosas e
fragmentado pelo tempo. No entanto, a feiúra, neste contexto, participa da ordem
de todas as coisas e a ela está integrada, diferentemente do que se pode observar
no platonismo.
O longo período abrangido pela Idade Média é considerado um
período de trevas, devido às guerras e invasões mas, também, aos problemas
sanitários, especialmente a propagação da lepra e da peste negra na Europa.
Freqüentemente, estes eventos eram compreendidos como a punição divina pela
conduta dos homens. Para Santo Agostinho, o saque de Roma e a queda do
Império Romano do Ocidente “não era um desastre; era apenas a mão de Deus
castigando os homens da cidade terrena e anunciando o triunfo do cristianismo”
(AGOSTINHO, 1999, p. 22).
Do mesmo modo, as doenças eram compreendidas como castigo
de Deus para os homens impuros. Portanto, os hábitos precários de higiene
pessoal, como a escassez de banho, de limpeza dos dentes e das vestimentas,
somado às más condições das ruas, onde eram depositados o lixo e os
excrementos e por onde perambulavam animais de criação, como porcos e bois,
além de animais atraídos pela sujeira, como roedores e pulgas, não eram tão
nocivos ao corpo quanto era o pecado. Assim, a deterioração do corpo por conta
das enfermidades nada mais era do que a exteriorização de seu interior nefando.
Portanto,
o leproso é assim um pecador que busca libertar sua alma e seu
corpo de suas imundícies, em particular da luxúria. O corpo
sofredor do leproso é a lepra da alma (...) Propriamente falando, a
lepra é o produto do pecado, e do pior deles: o pecado sexual (LE
GOFF, 2006, p. 107).
Por sua vez, a peste negra, que hoje se acredita ter sido a peste
bubônica, espalhou-se pela Europa no século XIV a partir das rotas comerciais
originárias da China. A doença manifestava-se rapidamente através de erupções
negras na pele e em pouco tempo levava o enfermo a óbito. Esta epidemia foi
responsável por dizimar aldeias inteiras e reduzir a população de algumas cidades
em até 40%, aproximando, cotidianamente, os vivos dos mortos. Neste sentido,
As relações entre a comunidade dos vivos e dos defuntos ficaram
transtornadas. Os cortejos e as cerimônias tradicionais tiveram de
ser proibidos em numerosas cidades. Os mortos eram empilhados
diante das portas das casas (LE GOFF, 2006, p. 106).
Neste ambiente empestado, cresce o fervor religioso e a busca
pelo consolo divino, alcançado, acreditava-se, através das flagelações e das
penitências destinadas à purificação do corpo e à aproximação com Deus. Deste
modo, a consciência da finitude da vida, bem como do poder igualitário da morte,
inspira artistas que retratam a atmosfera de medo que envolvia aquele período.
Exemplo disso é a pintura gótica do artista desconhecido, denominado Mestre das
Horas de Rohan, O morto ante seu Juiz (1418 1425)
7
. Neste quadro, a
infalibilidade da morte é patente e a feiúra destaca-se no corpo purulento do
defunto. Deste modo, “O horror de tal morte intensifica-se pela maneira com que o
cadáver bexiguento e putrefato preenche a página, dando a impressão de estar
próximo a nós e incutindo uma reverência religiosa até no observador mais casual”
(BECKETT, 2006, p. 58). Nesta obra do Mestre de Rohan, o pensamento que
subordinava as doenças sicas às mãos divinas aparece na frase, em francês, do
Supremo Juiz: “Deves cumprir penitência por teus pecados. No dia do Juízo,
estarás comigo” (BECKETT, 2006, p. 58).
Isto evidencia que:
Para o homem da Idade Média, tanto nas civilizações cristãs
quanto no mundo islâmico, não era possível separar os
7
ANEXO 1
acontecimentos corporais de sua significação espiritual.
Concebia-se a relação entre a alma e o corpo de uma maneira tão
estreita e imbricada que a doença era necessariamente uma
entidade psicossomática. Por essa razão, a maior parte dos
milagres atribuídos aos santos são milagres de cura (LE GOFF,
2006, p. 108).
O estilo gótico desenvolveu-se durante a Idade Média, sobretudo
nos três últimos séculos, sendo que seu início se deu com a arquitetura do século
XII, na região de Île-de-France, Paris. Estendendo-se por mais de duzentos anos e
alcançando toda a Europa, “O gótico era essencialmente uma arte urbana,
centrada nas grandes catedrais, e apoiava-se não no mecenato monástico - como
no caso da arte românica - mas nas cortes e nas guildas citadinas” (LOYN, 1997,
p. 169).
Este período assinala um momento em que o cristianismo
entrava numa fase triunfante de sua história e, devido a isso, muitas catedrais
góticas foram construídas, expressando, em sua grandiosidade, a crença na
existência de um Deus que vive num plano superior. Nestas construções, tudo
está voltado para o alto, projetado verticalmente para o céu. Segundo Beckett, as
catedrais góticas diferem-se das igrejas românicas por um motivo em especial, a
abóboda emoldurada:
Com esse reforço estrutural, as paredes de sustentação não
precisavam mais ser tão maciças (...) Essas, portanto, podiam ser
mais finas, e grandes superfícies verticais foram ocupadas por
vidro, permitindo maior entrada da luz (...) Em todas, fazia-se
sensacional e revolucionário uso dos vitrais: uma luz colorida
inundava os interiores, criando uma atmosfera nova e celestial
(BECKETT, 2006, p. 40).
Deste modo, a arquitetura gótica buscava aproximar a terra do
céu e conduzir o homem até Deus. Esta atmosfera celeste e divinal do interior das
catedrais góticas contrasta com seu lado externo, em cujas torres habitam
criaturas monstruosas. As gárgulas são um tipo de recurso arquitetônico utilizado
para escoar a água das chuvas, impedindo vazamentos e infiltrações nas paredes
das igrejas. Nas construções góticas, as gárgulas eram adornadas por monstros,
criaturas animalescas ou humanas, geralmente alados e com características
demoníacas como chifres, rabo, garras ou bicos
8
. As gárgulas estão muito
presentes nas catedrais e outros estabelecimentos eclesiásticos e, acreditava-se,
possuíam a função de proteger os templos sendo que, para isso, ganhavam vida
durante a noite. Assim, monumentos como a Catedral de Notre Dame e a Catedral
de Chartres, construídas entre os séculos XII e XIII, estão repletas destes
monstros que têm a função, arquitetônica ou mitológica, de proteger os templos.
Deste modo, a feiúra se faz presente tanto no imaginário, quanto
no cotidiano do período medieval, acompanhada, na maior parte do tempo, pelos
preceitos religiosos. Aqui, o feio parece ser a regra, não a exceção.
Ainda no contexto da Idade Média, cabe citar a obra de Dante
Alighieri (1265-1321), A Divina Comédia. Concluído poucos meses antes da morte
de seu autor, o poema épico narra uma viagem ao além-mundo. A obra, de acordo
com a trajetória do poeta, apresenta-se dividida em três partes, “Inferno”,
“Purgatório” e “Paraíso”, acentuando seu viés teológico.
Quanto à representação da feiúra, avulta-se a primeira parte do
poema, o “Inferno”, configurado, por Umberto Eco, como:
Texto capital para a história de qualquer fealdade, repertório de
deformidades (Minos, as Fúrias, as Erínias, Gerião, Lúcifer, com
uma cabeça de três faces e seis enormes asas de morcego) e
coletânea de torturas desmedidas dos preguiçosos que correm
nus mordidos por vespas e marimbondos aos gulosos flagelados
pela chuva e esquartejados por Cérbero, dos hereges cujas
tumbas ardem em chamas aos violentos lançados em um rio de
sangue fervente, dos blasfemadores, sodomitas e usurários
atormentados por chuvas de fogo aos aduladores mergulhados no
esterco, dos simoníacos cravados de cabeça para baixo com os
pés em chamas aos vigaristas mergulhados em piche fervente e
espetados pelos diabos, dos hipócritas cobertos por capas de
chumbo aos ladrões transformados em répteis aos falsários
8
ANEXO 2
contaminados pela sarna e pela lepra e aos traidores imersos em
gelo... (ECO, 2007, p.82).
Aqui, tudo é feio, desde o padecimento dos pecadores e os seres
monstruosos retirados da mitologia grega, até a criação de uma topografia infernal
e as figurações do diabo. No canto XXXIV, quando o poeta se encontra na
Judeca, a parte mais baixa do último círculo do Inferno onde estão depositados os
que traíram seus benfeitores, depara-se com a fealdade demoníaca de Satanás:
Do aflito reino o imperador eu via:
Do gelo acima o seio levantava.
30 A um gigante igualar eu poderia,
Se um gigante a um seu braço eu comparava!
Do todo vede a proporção qual fora,
33 Quando tão vasta a parte se ostentava!
Quem foi tão belo, quanto é feio agora,
Contra o seu criador a fronte alçando
36 Vera causa é do mal, que o mundo chora.
Qual meu espanto há sido em contemplando
Três faces na estranhíssima figura!
39 Rubra cor na da frente está mostrando;
Das outras cada qual, da pádua escura
Surdindo, às mais ajunta-se e se ajeita
42 Sobre o crânio da infanda criatura (ALIGHIERI, 1957, p. 174).
Nestes versos, a grandeza e a feiúra da descrição do Diabo
divulgam sua maldade. Lúcifer está no centro do Inferno e tem três faces, que se
opõem à Trindade Divina. Além disso, o mesmo contraste se evidencia na antítese
entre belo e feio, encontrada no verso de número trinta e quatro.
Destarte, por mais recorrentes e pungentes que sejam as
manifestações da feiúra neste contexto, ela ainda se encontra essencialmente
presa ao mal. Aqui, ela está impregnada de preceitos morais e cristãos e
dissemina o medo das profundezas subterrâneas onde são depositadas as almas
dos homens que sucumbiram ao pecado. Portanto, seu emprego visa, sobretudo,
o efeito didático da obra.
Percebe-se, portanto, que, pouco a pouco, a feiúra vai adquirindo
novos significados, não necessariamente positivos e autônomos, mas que
constituirão a base para a revolução estética a ser realizada posteriormente pelo
romantismo.
Por sua vez, o desenvolvimento científico promovido pelo
Renascimento possibilitou novas interpretações da feiúra encontrada na natureza
e no homem. Por um lado, os animais exóticos encontrados nos continentes
descobertos e as pessoas com anomalias, que os povos antigos interpretavam
como sinal de pecado e de desgraças vindouras, passam a ser alvos de
investigações rigorosas e objetivas que buscam compreender e explicar as causas
destas naturezas disformes. Para tanto, diversos livros foram produzidos no intuito
de, através de textos e ilustrações, dar à feiúra uma explicação natural e racional.
Como exemplo destas publicações, Umberto Eco destaca: Des montres et
prodiges (1573) de Ambroise Paré, Monstrorum historia (1642) de Ulisses
Aldrovandi e Physica curiosa (1662) de Caspar Schott
9
.
Por outro lado, desenvolveu-se, neste mesmo período, a
fisiognomonia, ciência que interpreta os traços físicos humanos comparando-os
aos dos animais a fim de explicar o seu bom ou mau caráter. Eco qualifica este
conjunto de conhecimentos como uma “pseudociência”, devido ao caráter
duvidoso e pouco rigoroso com que julga as aparências e relaciona a deformidade
com uma essência indecorosa e maligna
10
.
A fisiognomonia obteve grande força no período renascentista e
culminou, no século XIX, nos estudos de Cesare Lombroso (1835-1909). Estas
teorias importam, aqui, na medida em que ajudam a compreender certa visão
preconceituosa da fealdade como denúncia das más disposições morais de um
indivíduo. Por mais absurdas que possam parecer, elas perduram até hoje em
discursos que acreditam que “a virtude embeleza, enquanto o vício enfeia” (ECO,
2007, p. 257).
Sendo assim, durante o Renascimento, o feio é observado sob
duas perspectivas distintas: numa mão, perde uma parte do conteúdo místico que
9
ANEXO 3
10
ANEXO 4
o associava a seres de outros mundos, ou então, ao prenúncio de tragédias.
Noutra mão, convenciona-se dizer que as deformidades físicas indicam alguma
deficiência moral.
Portanto, inicia-se um processo de humanização do feio, em que
ele não se restringe mais à representação de seres imaginários, mas, noutra via,
se torna indício das imperfeições e dos vícios humanos.
Neste âmbito, encontra-se Gargântua e Pantagruel de François
Rabelais (1483-1553). Aqui, a obscenidade e a desfaçatez não caracterizam
apenas o homem da plebe, como era de costume na época. Em Rabelais,
conforme aponta Umberto Eco, estes elementos o convertidos em linguagem e
comportamento de uma corte real” (ECO, 2007, p. 142).
Mas com o peido que deu a terra tremeu em um raio de nove
léguas, e com o ar que escapou engendrou mais de cinqüenta e
três homenzinhos, anões e disformes; e de uma ventosidade que
se seguiu, engendrou outras tantas mulherezinhas agachadas,
como se vêem em vários lugares, que não crescem senão como o
rabo das vacas, para baixo, ou então como os rábanos de
Limosin, em volta. ‘E por que, disse Panúrgio, os vossos peidos
são tão frutuosos? Por Deus, eis uma bela penca de mulheres; é
preciso acasalá-los, vão gerar moscardos’ (RABELAIS apud ECO,
2007, p. 142).
A obra de Rabelais foi analisada por Mikhail Bakhtin (1895-1975),
em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais (1941), que aponta para a realização artística de imagens literárias
inspiradas pelo grotesco. Para o teórico russo, o grotesco é
a expressão na literatura do espírito do carnaval. Ele incorpora o
que são, a seu ver, os valores primordiais: incompletude, vir-a-ser,
ambigüidade, indefinibilidade e não-canonicalismo - na verdade
tudo o que salta de nossas expectativas normais e complacência
epistemológica (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 326).
E, sendo deste modo, conforme acrescenta Irene Machado,
A literatura grotesca, tal como foi praticada pela cultura medieval,
foi entendida por Bakhtin como uma manifestação de
rebaixamento dos valores da cultura oficial e religiosa, que
processa imagens distorcidas do mundo, em que o homem e suas
ações aparecem deformados, em toda sua monstruosidade,
ambivalência e inacabamento. Por isso as imagens grotescas são
produzidas diretamente pela ótica do rebaixamento: tudo que é
elevado, espiritual, ideal, sublime, é transferido para o plano
material e corporal (M. Bakhtin, 1987:16). Na imagem grotesca,
nada é definido, mas tudo aparece em constante transformação
(MACHADO, 1995, p. 184).
Portanto, as obscenidades, as excrescências, as flatulências e as
deformidades são, em Rabelais, a afirmação do corpo em prevalência ao espírito,
ou seja, o rebaixamento, que é característico da imagem grotesca.
Outro exemplo do feio na representação artística do
Renascimento é o que se encontra na obra de Pieter Bruegel, o Velho (1525-
1569). Em alguns de seus quadros, em que retrata a vida dos aldeões, a fealdade
está na rudeza dos indivíduos e dos costumes, bem como na indigência do
ambiente. Assim, O combate do Carnaval e da Quaresma (1559)
11
representa
uma cena cotidiana em que as tarefas diárias são realizadas em meio a
excrementos e corpos humanos em estado de decomposição. A feiúra, portanto,
possui caráter denunciativo, pois ressalta a condição miserável em que viviam
aquelas pessoas.
Ainda em Bruegel, a feiúra se evidencia nas representações do
apocalipse e do inferno. Fortemente inspiradas por H. Bosch (1450-1516), elas
exploram um universo sobrenatural, povoado por criaturas monstruosas, que
protagonizam numerosas cenas de terror, como em O triunfo da morte (1562)
12
.
Neste contexto, a fealdade se divulga em cada pequeno espaço e “a busca
clássica da forma ideal não tem lugar em sua obra” (BECKETT, 2006, p. 168).
Por outro viés, o Maneirismo do século XVI recorre ao feio como
um recurso para a representação da natureza e do homem. Aqui, os artistas se
11
ANEXO 5
12
ANEXO 6
voltam para o que é expressivo e não necessariamente para o que é belo, dando
lugar ao subjetivismo, ao irreal e ao extravagante. Portanto, a arte maneirista não
está presa ao cânone da beleza que se pretende sempre harmônica, proporcional
e com uma clareza adequada e moderada. O feio, como opção estética, adentra
os domínios da obra de arte e a desproporção e a deformidade dão contornos
novos ao significado do belo.
Neste sentido, vale citar a pintura de Giuseppe Arcimboldo (1530-
1593)
13
. Sua obra marca um momento em que a arte recorre ao exagero e à
deformação para representar a natureza e não para denunciar alguma essência
maligna. Assim, as faces humanas de Arcimboldo, compostas de numerosas
formas vegetais e animais, importam na medida em que, nestas representações,
Cai a distinção entre proporção e desproporção, entre forma e
informe, visível e invisível: a representação do informe, do
invisível e do vago transcende as oposições entre belo e feio,
verdadeiro e falso. A representação da Beleza cresce em
complexidade, remete-se à imaginação, mais que ao intelecto,
criando regras novas para si mesma (ECO, 2004, p. 221).
Deste modo, a estética maneirista amplia as vias de acesso do
feio à arte e, no período Barroco, tais vias dilatam-se ainda mais. Intimamente
comprometida com a igreja católica, a Arte deste período buscava comover
intensamente o espectador retratando, muitas vezes, o lado mais tenebroso da
realidade. Assim, “Com maior propriedade, o gosto pelo extraordinário, pelo que
pode despertar assombro e maravilha aprofunda-se no Barroco e neste ambiente
cultural são explorados os mundos da violência, da morte ou do horror” (ECO,
2007, p. 169).
Neste ponto, destaca-se o pintor holandês Rembrandt van Rijn
(1606 1669). Pertencente a uma família de classe média, Rembrandt teve a
oportunidade de cursar o ensino superior, mas abandonou os estudos para se
tornar aprendiz no ateliê de um pintor de sua cidade, aos quinze anos de idade.
13
ANEXO 7
Iniciou seus trabalhos com pinturas realistas, bastante solicitadas durante o século
XVII, que retratavam as pessoas, os afazeres, a paisagem e a vida local. Neste
cenário, Rembrandt tornou-se um pintor reconhecido. Certamente, estes trabalhos
contribuíram para a formação e o aprimoramento do artista, mas é noutra direção
que a feiúra se encontra.
Em certos quadros, o jogo de luz e sombra, assim como a
explosão das cores exprimem algo mais profundo do que a mera representação
de passagens bíblicas ou de cenas do cotidiano. Nestes, o corpo é um modelo
para representar o universo caótico que configura o interior do homem. Assim, a
inquietação do artista maduro com os meandros da alma humana reflete-se em
cenas violentas e cheias de feiúra que buscam comover o espectador.
Nesta esteira, encontra-se a pintura narrativa A captura de
Sansão (1636)
14
, de tema bíblico, na qual a pungente maestria do artista é capaz
de aproximar o observador da dolorosa cena. Diante de tal quadro,
“involuntariamente, encolhemo-nos ante a sinistra espada que, em silhueta, está
prestes a cravar-se no olho indefeso, e trememos com a violência tumultuada que
se desencadeia no espaço escuro e claustrofóbico” (BECKETT, 2006, p. 200).
Aqui, a feiúra está sob o foco da luz que adentra a caverna onde a cena acontece,
situando-se em primeiro plano. Sendo assim, ao observar o quadro, a primeira
coisa que se vê, é a imagem de Sansão, cujo corpo se contorce ao sofrer o golpe
do filisteu que lhe perfura o olho direito, enquanto outro espera para fazer o
mesmo com o esquerdo. A feiúra não se esconde na escuridão. Ao contrário, a
escuridão evidencia a feiúra.
Noutra obra, O boi esquartejado (1655)
15
, a feiúra é, igualmente,
explícita e chocante, todavia, aqui, ela toma a cena por completo. A luz que incide
no centro do quadro destaca o boi abatido, dependurado pelas patas traseiras, o
ventre todo aberto, o interior inteiro exposto, carne, ossos e pele. O jogo cromático
de vermelho, preto e branco descola a carcaça exposta do fundo negro e escuro.
14
ANEXO 8
15
ANEXO 9
Quase não se nota a presença discreta de uma mulher espreitando em uma porta,
no canto direito superior. A atenção, aqui, volta-se completamente para as fibras,
os músculos, a carne, os ossos, a morte do animal. Mesmo incomodado, o olhar é
atraído pela curiosidade e fixa-se na carcaça, examinando-a meticulosamente.
Neste sentido,
se vê claramente quanto a volúpia e curiosidade agem em nós
pelos sentidos: o prazer corre atrás do belo, do harmonioso, do
suave, do saboroso, do brando; a curiosidade, porém, gosta às
vezes de experimentar o contrário dessas sensações, não para se
sujeitar a enfados dolorosos, mas para satisfazer a paixão de tudo
examinar e conhecer (AGOSTINHO, 1999, p. 297).
Por sua vez, no século XVII, a feiúra desponta nas primeiras
experiências literárias, historicamente marcadas pelos parâmetros estéticos do
Barroco europeu, que ocorriam em solo brasileiro. Neste contexto, Gregório de
Matos e Guerra (1636-1696) é protagonista com uma produção poética
notabilizada, sobretudo, por sua veia satírica. Em seus poemas, a feiúra está na
descrição dos costumes e das pessoas, nas obscenidades e no vocabulário de
baixo calão. Censurando o governador Antonio Luiz e seu criado, Luiz Ferreyra de
Noronha, vitupera:
Sal, cal, e alho
caiam no teu maldito caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e de Gomorra
em cinza te reduzam essa porra. Amém
Tudo em fogo arda,
Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda (MATOS, 1986, p. 60).
Nestes versos, marcados pelo escárnio, as palavras torpes
ridicularizam alguém notório. Este contraste se acentua na relação entre forma e
conteúdo, pois enquanto imita a configuração geral de uma oração religiosa, que
se reforça pelo uso do vocábulo “Amém”, o poema espanta pela violência com que
trata seu interlocutor. Aqui, a feiúra, essencialmente moral, salientada pela
referência à Sodoma e Gomorra, reverbera numa sátira exaltada.
Na crítica do “Boca do Inferno”, o feio predomina na elaboração
de uma linguagem simbólica capaz de construir imagens nítidas das torturas
desejadas ao governador. Aqui, a expressão é tão desagradável quanto o seu
significado, as palavras tão torpes e graves quanto o conteúdo do desabafo e a
feiúra, neste sentido, desvela grande importância. Os versos não possuiriam
tamanha intensidade caso não remetessem a tamanhas grosserias.
Noutra direção, o período que compreende o Neoclassicismo e,
no Brasil, o Arcadismo, é fortemente marcado pelos ideais de exaltação da
natureza e retorno aos modelos gregos, dominados pela claridade e pela simetria.
Na poesia arcádica, a elaboração formal deveria corresponder às normas de
organização e composição herdadas dos antigos. Assim,
As regras da retórica e da poética limitavam o indivíduo em
benefício da norma, curvando-o à razão natural, banindo as
temeridades do engenho, podando na fantasia o estranho e o
excêntrico, que se sobrepõem à ordem racional da natureza em
vez de espelhá-la (CANDIDO, 1964, vol. I, p. 57).
A paisagem bucólica, os temas pastoris, bem como a busca pelo
locus amoenus, adquirem grande força significativa na poesia deste período.
Deste modo, as liras de Tomás Antonio Gonzaga (1744 - 1810) representam as
aspirações poéticas dos árcades, conforme se nota em Marília de Dirceu:
Lira I
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado:
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela! (GONZAGA, s.d., p.13).
A paisagem bucólica, bem como a volta aos modelos clássicos
greco-latinos da Antiguidade, assinalam um momento em que pouco espaço resta
para a feiúra. Aqui,
O mundo exterior se adapta, inteiro, aos padrões requeridos pelo
estoque limitado da imaginação clássica e pela suprema regra do
decoro.
Na imitação da vida interior, este leva ao mesmo senso de
moderação, restringindo a literatura à superfície da alma e
tolerando mal os desvios. Mais do que nunca, é o tempo da
psicologia do adulto, branco, civilizado e normal (CANDIDO, 1964,
vol. I, p. 58).
Todavia, é neste mesmo século, que se encontra, na Espanha, a
produção artística de Francisco José de Goya y Lucientes (1746 1828), autor,
dentre muitas obras, das “Pinturas Negras”. Os quadros que compõem esta série
foram pintados, entre 1820 e 1823, com a técnica de óleo al secco nas paredes da
última casa de Goya, a Quinta Del Sordo, em Madri. O nome “Pinturas Negras” foi
atribuído, posteriormente, por Antonio Brugada, um amigo do pintor que realizou a
catalogação das obras, em 1828. Tal alcunha se deve, sobretudo, aos tons
escuros e à predominância da cor preta em todos os catorze quadros, além da
atmosfera sombria e ameaçadora que os envolve. As “Pinturas Negras”, ainda que
produzidas durante a velhice, demonstram bem o tom geral e original da obra de
Goya, artista que “recusa o desvio pela Antiguidade de que quase todos os seus
contemporâneos fazem a condição necessária da busca do belo” (STAROBINSKI,
1988, p.128).
Uma das “Pinturas Negras” é Saturno devorando um filho
16
.
Neste quadro, a feiúra é gigantesca, violenta e aterrorizante. Primeiramente,
porque Saturno, a criatura desproporcional e decrépita que preenche quase toda a
tela parece ter saído de algum pesadelo. É uma criatura sombria, monstruosa,
cujo tamanho excessivo e os olhos esbugalhados amedrontam o observador.
Além disso, a cena retrata o momento exato em que Saturno
devora um de seus filhos, alertado pelo oráculo de que seria destronado por um
de seus descendentes. Neste sentido, a reprodução de Goya utiliza a feiúra
necessária para que seja captado todo o horror do acontecimento.
Por fim, no centro do quadro, está o pequeno corpo segurado
violentamente pelas mãos da figura monstruosa. Apesar do tamanho reduzido,
especialmente pequeno se comparado ao deus gigante, a corpo do filho está,
igualmente, repleto de feiúra. Nota-se que Saturno está cravando suas unhas no
pequeno tronco sem cabeça enquanto devora um de seus braços, sendo que o
outro fora arrancado. O fundo escuro contrasta com a claridade que incide no
corpo dilacerado, destacando-o.
O feio, portanto, não é camuflado, nem tampouco repelido da
obra de Goya. Aqui, a feiúra não se relaciona apenas com o onírico, o grotesco e
o extraordinário. Sua grande força está em algo de maligno, de deformado, de
violento e de monstruoso que existe tanto na arte, quanto na vida. Neste sentido, a
obra de Goya é um universo completo, “e sabemos que em um universo completo
o mal e o sofrimento devem ter seu lugar” (STAROBINSKI, 1988, p.124).
Sendo assim, em face do idealismo desenfreado do
neoclassicismo, na pintura de Goya “o inconsciente parece levar a melhor. O
espectador, à primeira vista, pode acreditar que um sonho amargo e grotesco
apoderou-se da alma do pintor, graças a uma desordem profunda (STAROBINSKI,
1988, p.125). Destarte, “Há em Goya uma treva, uma ira, uma ferocidade que
16
ANEXO 10
representam alguma coisa dentro de nossos corações, por mais reprimida que
seja. Essa fúria irracional da imaginação, prefigurando os românticos” (BECKETT,
2006, p. 252).
Nesta esteira, o Romantismo consolida a aceitação do feio
promovida por duas vias paralelas. A primeira, teórica, realiza diversos estudos
em defesa da fealdade como recurso estético e, a segunda, revela-se na produção
artística dedicada à representação contrastante de bem e mal, de belo e feio, de
grotesco e sublime.
Neste contexto, a referência ao Prefácio de Victor Hugo (1802-
1885) para sua peça Cromwell (1827) é indispensável. Neste manifesto romântico,
o escritor francês assume declaradamente o gosto pela fealdade em oposição à
monotonia da beleza clássica. Para ele, o feio é um elemento pluriforme ao qual a
Arte não deve se furtar em recorrer para representar a realidade em toda a sua
completude. Advogando em favor da nova estética, Hugo declara:
O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para
falar humanamente, não é senão a forma considerada na sua
mais simples relação, na sua mais absoluta simetria, na sua mais
íntima harmonia com nossa organização. Portanto, oferece-nos
sempre um conjunto completo, mas restrito como nós. O que
chamamos o feio, ao contrário, é um pormenor de um grande
conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o
homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos
apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos
(HUGO, 2004, p.36).
Aqui, a argumentação em favor da feiúra como elemento artístico
acontece por meio da visão totalizante da natureza, ou seja, a percepção de que
nem todas as coisas são belas. Esta visão contextual permite compreender o feio
como aquilo que não está em harmonia com o homem, mas com todo o universo.
Deste modo, ele faz parte da criação, faz parte do conjunto e faz parte do belo
pois, “Onde se viu medalha que não tenha seu reverso?” (HUGO, 2004, p. 98).
Sendo assim, é evidente que o olhar de Hugo está intimamente
relacionado ao ideário romântico de renúncia aos códigos éticos, estéticos e
intelectuais herdados da Antiguidade. Sua postura é, sobretudo, de recusa às
antigas regras em favor do gênio moderno que, iluminado pelo cristianismo,
Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco
ao lado do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz.
Perguntar-se-á (...) se uma natureza mutilada será mais bela; se a
arte possui o direito de desdobrar, por assim dizer, o homem, a
vida, a criação; se cada coisa andará melhor quando lhe for tirado
o músculo e a mola; se, enfim, o meio de ser harmonioso é ser
incompleto (HUGO, 2004, p. 26).
Agora, a arte contempla a beleza dos contrastes e a harmonia da
forma imperfeita, inacabada, sempre em movimento de transformação. Portanto,
ela retira “o músculo e a mola” da beleza estática, das formas sublimes e
idealizadas, e consolida, definitivamente, a utilização do feio como um recurso
estético.
Os tempos modernos, que para Hugo são a terceira idade da
poesia, identificam-se com o drama, cujo veio principal é a realidade
17
. Neste
sentido, vislumbra-se na categoria do grotesco o novo modelo para a estética que
surge com os tempos modernos: o grotesco é um tempo de parada, um termo de
comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma
percepção mais excitada” (HUGO, 2004, p. 33).
O grotesco é o reverso do sublime e nele as normas da
proporção e da simetria, da ordem e da beleza são alteradas através de
elementos do feio e do cômico, como as deformidades e a caricatura.
Por um lado, o sublime se configura como aquilo que é elevado,
grandiloqüente, digno e capaz de despertar emoções nobres. no século I, o
filósofo Pseudo-Longino inaugurou as discussões acerca do conceito de sublime.
17
Diz Hugo: “a poesia tem três idades, das quais cada uma corresponde a uma época da
sociedade: a ode, a epopéia, o drama. Os tempos primitivos são líricos, os tempos antigos
são épicos, os tempos modernos são dramáticos. A ode canta a eternidade, a epopéia
soleniza a história, o drama pinta a vida. O caráter da primeira é a ingenuidade, o caráter
da segunda é a simplicidade, o caráter da terceira, a verdade” (HUGO, 2004, p. 40).
Em seu tratado, Do Sublime, define que o sublime é o ponto mais alto e a
excelência, por assim dizer, do discurso” (LONGINO apud MOISES, 1976, p. 436).
Neste contexto, o sublime se refere ao estilo artístico e ao discurso, funcionando
mais como instrumento de eloqüência, do que como um evento natural. Neste
sentido, o sublime é o “procedimento retórico apropriado aos argumentos heróicos
e expresso através de uma linguagem elevada, capaz de fazer com que se
experimentem nobres paixões” (ECO, 2004, p. 278). Os textos de Longino foram
recuperados, no século XVII, pela tradução de Boileau para o francês. Com isto, o
debate do sublime como estilo se mantém até a segunda metade do século
posterior.
Neste momento, o significado atribuído ao termo relaciona-se à
experiência natural, e não necessariamente à arte. Para os pensadores do século
XVIII, o sentimento do sublime encontrava-se atrelado à experiência do
assustador, do tempestuoso, do sombrio, do inquietante, do exótico. A atitude
contemplativa diante dos grandiosos eventos da natureza revela a pequenez da
existência humana, despertando certo sentimento catártico de purificação.
na segunda metade deste século, o gosto pela arquitetura
gótica reafirma a atração exercida pelo gigantesco e pelo irregular. Diferentemente
do que ocorria no neoclassicismo, quando se buscava resgatar e reinventar as
ruínas da antiguidade, o que a arte deste período aprecia e valoriza é justamente
a incompletude da ruína, valorizando, com isso, os sinais do tempo, ao invés de
buscar corrigi-los. Neste sentido, a apreciação do gótico, tanto na arquitetura,
quanto na literatura, prepara os caminhos para o esforço romântico de unir
sublime e grotesco.
O grotesco, por outro lado, configura-se como o rebaixamento, o
extravagante, o inverossímil e o ridículo: o grotesco é o belo de cabeça para
baixo” (SODRÉ, 2002, p. 28). Por conta destas características, o grotesco foi, em
certos momentos, repelido pela arte que buscava conservar-se nos domínios do
belo. Em outros, todavia, ele se torna a opção estética mais adequada ao espírito
dos homens.
O grotesco, muitas vezes, mescla-se ao sublime e deste
amálgama nascem personagens que seriam inconcebíveis sem um ou sem outro
elemento. É desta união que surge, por exemplo, o Carlitos, personagem de
Charles Chaplin, que abriga no corpo do vagabundo os modos refinados de um
cavalheiro. Escondidas no chapéu-coco e no fraque esfarrapado, estão as
características de um autêntico gentleman.
Com isto, compreende-se que, apesar de antagônicas, grotesco e
sublime não são categorias completamente apartadas. Ao contrário, elas devem
somar-se para compor, assim, uma representação mais completa e verossímil do
mundo. Neste sentido, enquanto o sublime possui os elementos do belo, o
grotesco serve-se do feio e, portanto,
É ele que semeia, a mancheias, no ar, na água, na terra, no fogo,
estas miríades de seres intermediários que encontramos bem
vivos nas tradições populares da Idade Média; é ele quem faz
girar na sombra a ronda pavorosa do sabá, ele ainda que a
Satã os cornos, os pés de bode, as asas de morcego. É ele,
sempre ele, que ora lança no inferno cristão estas horrendas
figuras que evocará o áspero gênio de Dante e de Milton, ora o
povoa com estas formas ridículas no meio das quais se divertirá
Callot, o Michelangelo burlesco. Se passa do mundo ideal ao
mundo real, aqui desenvolve inesgotáveis paródias da
humanidade (HUGO, 2004, p. 31).
Para o pensamento moderno, o grotesco adquire características
mais humanas e não se restringe à representação de um mundo onírico. Neste
momento, a percepção e, por conseguinte, a utilização do grotesco é diversa
daquela explorada quando o novo estilo ornamental fora descoberto, e que
associava o grotesco essencialmente à fantasia e ao impossível.
1.3 Breve parêntese sobre o grotesco
Conforme estudo de Wolfgang Kayser (1906-1960), intitulado O
Grotesco: configuração na pintura e na literatura (1957), o vocábulo tem origem
italiana, la grottesca e grottesco, e deriva de grotta, que significa gruta.
Originalmente, o adjetivo era utilizado para designar uma espécie de
ornamentação antiga, na qual se reuniam formas humanas, animais e vegetais
confundidas entre si, descoberta em escavações realizadas na Itália, no século
XV.
Sobre isso, Mary Russo afirma que este esforço histórico
representou um dos mais importantes e controvertidos resgates
da cultura romana na Itália renascentista porque o que ali se
encontrou era quase irreconhecível: uma série de estranhos e
misteriosos desenhos, em que vegetais e partes do corpo humano
e de animais se combinam em formas intrincadas, mescladas e
fantásticas (RUSSO, 2000, p. 15).
Diante disto, alguns artistas do século XVI, como Giorgio Vasari
(1511-1574), resgataram as palavras de Vitrúvio em cuja obra De Architectura,
redigida no século I a.C., combatia este estilo de decoração em defesa da
solidez da realidade. Nas palavras do arquiteto romano:
aos retratos do mundo real, prefere-se agora pintar monstros nas
paredes. Em vez das colunas, pintam-se talos canelados, com
folhas crespas, e volutas em vez da ornamentação dos tímpanos,
bem como candelabros, que apresentam edículas pintadas. Nos
seus tímpanos, brotam das raízes flores delicadas que se enrolam
e desenrolam, sobre as quais se assentam figurinhas sem o
menor sentido. Finalmente, os pedúnculos sustentam meias
figuras, umas com cabeça de homem, outras com cabeça de
animal. Tais coisas, porém, não existem, nunca existirão
tampouco existiram.
Pois como pode, na realidade, um talo suportar um telhado ou um
candelabro, o adorno de um tímpano, e uma frágil e delicada
trepadeira carregar sobre si uma figura sentada, e como podem
nascer de raízes e trepadeiras seres que são metade flor, metade
figura humana? (VITRÚVIO apud KAYSER, 2003, p. 18).
Assim, a preocupação de Vitrúvio, que vinculava o estilo clássico
à verdade natural, assinalava no grotesco o aspecto artificial daqueles
amontoados de imagens volúveis e impossíveis. Ainda que essa crítica reverbere
durante o período do Renascimento, o novo estilo prolifera nos domínios da
ornamentação.
Exemplos disso são os trabalhos do pintor italiano Rafael (1483-
1520) que, em 1515, utilizava-se sutilmente dos motivos grotescos para decorar
as colunas das Loggie no Vaticano. O grotesco, por estas vias, adentra igrejas,
bibliotecas e outras instituições e amplia o caminho de acesso do feio até a Arte.
Todavia, o motivo ornamental romano era apenas uma parte do amplo universo do
grotesco que existiu em todas as etapas da Antiguidade e perdurou durante a
Idade Média e o Renascimento.
No entanto, para alguns artistas do Renascimento, o significado
do grotesco não se restringia às representações da natureza e da mescla de seus
elementos. As deformidades, as assimetrias, o amálgama animal e vegetal e a
quebra das regras estáticas faziam brotar algo de sinistro e de monstruoso, que a
Arte optara por repelir.
Neste contexto, abrem-se as portas de um mundo onírico de
onde escapam uma série de corpos disformes, que povoam diferentes formas
artísticas no decorrer do século XVI. Por conta disso, o grotesco recebeu a
alcunha de sogni dei pittori
18
, ou seja, sonhos dos pintores. Esta tendência salienta
o elemento imaginário, porém nada inocente, ao qual o espírito do artista se
entregava.
Diante disto, Kayser ressalta que, embora o estilo grotesco tenha
sido herdado da Antiguidade, “havia para a Renascença não apenas algo lúdico e
alegre, leve e fantasioso, mas, concomitantemente, algo angustiante e sinistro em
face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam
suspensas” (KAYSER, 2003, p. 20). Adiante, no século XVIII, a tentativa de
definir o grotesco como uma categoria estética passa pela discussão acerca da
18
Conforme expressão de Wolfgang Kayser (KAYSER, 2003, p. 20).
caricatura. Esta forma de representação, que consiste no exagero dos traços
físicos de um indivíduo, ganha consistência neste período, embora tivesse sido
experimentada por artistas de períodos anteriores, como Leonardo Da Vinci (1452-
1519)
19
e Jacques Callot (1592-1635)
20
. Todavia, neste momento a reflexão
teórica avista que:
a caricatura poderia chegar a ser fonte de uma arte significativa, e
altamente substanciosa, e que não era possível liquidá-la como
brincadeira sem importância. Se é certo que a caricatura, com sua
reprodução de uma realidade disforme e, em todo caso, nada
bonita, inclusive com sua intensificação da desproporção,
constituía uma autêntica força plasmadora da arte, neste caso
começava a abalar-se o princípio que a reflexão sobre a arte
reconhecera até então como base fundamental: o da arte como
reprodução da bela natureza, ou seja, sua elevação idealizante
(KAYSER, 2003, p. 30).
Portanto, a caricatura aproxima-se do grotesco na medida em
que ela desfaz as ordenações naturais do corpo, excede as normas de harmonia e
proporção e sua principal característica consiste na deformação da realidade.
Assim associado, o significado do grotesco torna-se mais amplo, servindo também
para designar o que possui caráter cômico e, em sentido mais superficial, ridículo
e extravagante.
Neste sentido, Kayser esclarece que,
no tocante à essência do grotesco, não se trata de um domínio
próprio, sem outros compromissos, e de um fantasiar totalmente
livre (que não existe). O mundo do grotesco é o nosso mundo – e
não o é. O horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento
justamente na experiência de que nosso mundo confiável e
aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a
irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas
formas e se dissolve em suas ordenações (KAYSER, 2003, p. 40).
19
ANEXO 11
20
ANEXO 12
Todavia, a despeito da valorização do grotesco no contexto
renascentista, é somente durante o Romantismo que o grotesco passa a ser
aceito como uma categoria estética, propriamente dita. Com o manifesto de Victor
Hugo, o grotesco será convertido em um tipo de imitação e o feio em um elemento
da Arte. Assim, a busca por uma poesia completa, que represente a realidade com
a totalidade e a complexidade que lhes são próprias, impulsiona Victor Hugo a ir
contra as teorias e as poéticas clássicas. E, neste sentido, o grotesco é o
elemento que completa o sublime, o feio é o que completa o belo.
Sendo assim, é preciso considerar a questão levantada por
Kayser no que diz respeito ao caráter contextual do grotesco. Segundo ele,
É possível rotular de grotesco uma figura individual, vista
isoladamente, como, digamos, um anão e pode-se fazer o mesmo
com um objeto individual, como, por exemplo, uma gárgula
gótica? Será suficiente a inequívoca forma exterior do disforme,
do feio? Se assim fosse, o grotesco achar-se-ia ao nível dos
conceitos de forma externa (...) Somente nesta conexão, como
parte de uma estrutura e portadora de um conteúdo, tal forma
individual adquire valor expressivo e se enquadra no ‘grotesco’
(KAYSER, 2003, p. 60).
Portanto, de acordo com estas considerações, o grotesco se
encontra intimamente relacionado com a existência de um contexto. E, neste
sentido, o disforme, o monstruoso, o imperfeito e o feio são elementos do grotesco
que, por sua vez, constitui um conjunto maior em que essas diferentes feiúras se
entrelaçam.
1.4 A vitória do feio
É somente no Romantismo que o grotesco se torna uma
categoria estética e, neste contexto, produz diversas imagens onde a feiúra
prevalece. Nesta galeria, um personagem que se destaca é o Quasímodo, de
Notre Dame de Paris, romance de Victor Hugo, publicado em 1831. Nesta obra, o
homem feio e deformado, um corcunda que vive na Catedral de Paris, é a maior
vítima de sua excessiva fealdade. A respeito da imagem grotesca configurada no
Quasímodo, diz Umberto Eco:
Não tentaremos dar ao leitor uma idéia do nariz tetraédrico, da
boca curvada em ferradura, do olho esquerdo mirrado e obstruído
pela sobrancelha ruiva arrepiada em tufos, enquanto o direito
desaparecia completamente sob uma enorme verruga, dos dentes
desordenados, com brechas e como seteiras num forte, do
lábio caloso sobre o qual um desses dentes avançava como a
presa de um elefante, do queixo fendido, mas sobretudo da
expressão que se espalhava sobre tudo isso, daquela mistura de
malícia, de espanto e de tristeza (...) Uma cabeça imensa eriçada
de cabelos ruivos (...) pés grandes, mãos monstruosas; e com
toda esta deformidade, não sei que ar temível de vigor, agilidade
e coragem; estranha exceção à eterna regra que diz que a força,
como a beleza, resulta da harmonia. Tal era o papa que os loucos
acabavam de eleger (HUGO apud ECO, 2007, p. 294).
A feiúra, neste contexto, está ligada a qualidades positivas.
Assim, o contraste entre aparência e essência, entre belo e feio, é evidente na
passagem do romance de Hugo que apresenta, num corpo desarmônico, boas
disposições morais, além dos atributos heróicos: “vigor, agilidade e coragem”
(HUGO apud ECO, 2007, p. 294).
Durante o Romantismo brasileiro, o caso de Manuel Antônio
Álvares de Azevedo (1831-1852) é exemplar. Representante da segunda geração,
ultra-romântica, sua produção reflete os anseios do byronismo inglês, ao mesmo
tempo em que se aproxima do ideal de poesia totalizante defendido por Victor
Hugo. No Prefácio à Segunda Parte de Lira dos Vinte Anos (1853), em tom de
advertência, profere:
uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia
cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e caiu do céu
sentindo exaustas as suas asas de oiro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem, Homo sum,
como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais,
sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem
nervos, tem fibra e tem artérias isto é, antes e depois de ser um
ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem,
sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito
prosaicos, não há poesia (AZEVEDO, s.d., p. 86).
Para Álvares de Azevedo, portanto, a poesia deve abarcar
aspectos distintos da realidade sem privilegiar o seu lado sublime, sem amenizar
as deformidades de sua materialidade. Disso, resulta que também versará sobre
nervos, fibras e artérias:
Sinto que não nasci para coveiro.
Contudo, no domingo, à meia noite...
Pela forca passei, vi nas alturas,
Do luar sem vapor à luz formosa,
Um vilão pendurado. Era tão feio!
A língua um palmo fora, sobre o peito,
Os olhos espantados, boca lívida,
Sobre a cabeça dele estava um corvo...
O morto estava nu, pois o carrasco
Despindo os mortos dá vestido aos filhos
E deixa à noite o padecente à fresca (AZEVEDO, s.d., p. 114).
Como se nota em “Boêmios: ato de uma comédia não escrita”, a
descrição do cadáver nu e ainda enforcado faz contraste à “luz formosa”, assim
como a nudez do executado é capaz de fazer bem aos filhos do executor,
vestindo-os. Neste sentido, o pensamento do escritor brasileiro está alinhado com
o de Victor Hugo não pelo apontamento teórico acerca do ideal literário,
observado nos prefácios de ambos os autores, mas também pela realização
poética que não se esquiva da existência do feio em face do belo. Sobre esta
relação, Luiz Roncari assinala:
Tanto Victor Hugo como Álvares de Azevedo, apesar das
diferenças de contexto e perspectiva, ampliam o campo de visão
da poesia. Para os dois, esta não deve procurar o belo, o
sublime e o elevado, com vistas a corrigir a natureza e ajustá-la
às medidas e ao sistema de proporções clássicos. Tudo deve
estar aberto à poesia, não o ideal e o espiritualizado, como
também o feio, o anormal, o doentio, o disforme, o grotesco, o
corporal e, talvez isto seja o mais importante, a realidade próxima
e pequena da vida do dia-a-dia (RONCARI, 2002, p. 434).
Portanto, a partir destes dois exemplos, podemos perceber o
valor estético que determinada tendência romântica atribui ao feio. Isto se por
duas vias: por um lado, a feiúra adquire um caráter corpóreo e mais realista que
se associa, por outro lado, a um caráter espiritual, relacionado à humanização dos
caracteres sentimentais. Diante disso, avulta-se a importância da discussão
romântica sobre a feiúra e sua representação na obra de Arte.
Nesta mesma época, porém afastando-se do espírito romântico e
inaugurando o Simbolismo, Charles Baudelaire (1821 1867) descreve, no
epílogo para a segunda edição das Flores do mal, publicada em 1861, a
realização artística ideal para a modernidade:
Oh! vós, sede testemunha de que cumpri meu dever
Como um químico perfeito e como uma alma santa.
Pois de cada coisa extraí a quintessência,
Tu me deste tua lama e eu a transformei em ouro (BAUDELAIRE
apud COLI, p. 293)
O último verso, carregado de significado, expressa a visão que
Baudelaire tem do artista e, portanto, de si próprio, que é tido como um alquimista
capaz de recolher da matéria mais hedionda o mais alto grau de sua essência e
transformá-la em obra de arte. Aqui, a imundície é transformada em poesia, a
fealdade é transfigurada em beleza.
No texto “O pintor da vida moderna”, escrito em 1859 e publicado
em 1863, o escritor francês reafirma sua posição a respeito do artista que deve
possuir: “a coragem e o espírito de colher a nobreza em toda parte, mesmo na
lama” (BAUDELAIRE, 1996, p. 65). Novamente, ao artista é dado o poder de
recriar, a partir da lama, da podridão e da feiúra, uma realidade paralela, a arte e a
beleza. Neste sentido, Baudelaire percebe a pluralidade do belo e sua existência
no lodo civilizatório, extraindo, da lama e do caos, a sublimidade estética.
Por sua vez, o Naturalismo francês e seus adeptos brasileiros
adotam o princípio da representação contrastante da realidade. Assim, pautados
pela tese determinista de que o homem é fruto do meio em que vive, criam
bêbados, prostitutas, assassinos e malandros que invadem as narrativas. Aqui, a
crítica à degradação humana em face ao capital faz com que convivam diferentes
classes sociais, dando relevo à vida comum, ao erotismo e à animalização do ser
humano.
No Brasil, o caso de Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo
(1857-1913) ganha destaque. O cortiço, publicado em 1890, retrata o Rio de
Janeiro do fim do século XIX, descortinando o drama vivido pelas camadas mais
pobres da população. É aqui que a feiúra se manifesta como elemento
fundamental da realidade, como por exemplo, na descrição de Paula, uma
lavadeira a iniciar seu trabalho:
uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas
virtudes de que ela dispunha para benzer erisipelas e cortar
febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia,
grossa, triste, com olhos desvairados, dentes cortados à navalha,
formando ponta, como dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e
ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe ‘Bruxa
(AZEVEDO, s.d., p. 39).
A precisão com que os detalhes da velha são especificados
reafirma o valor dado à feiúra neste contexto. E, ainda, mostra que a feiúra não é
elemento de exclusão, mas ao contrário, é inerente à própria vida do cortiço. Ela é
parte integrante do cotidiano daquela comunidade, do mesmo modo que o
casarão do português Miranda também o é, pois
Se na descrição dos amores de Estela, a mulher fogosa do barão,
ou no estudo do meio em que vive o comerciante, Aluísio se
mostra quase discreto, atardando-se apenas em algumas cenas
mais escabrosas, na análise da vida do cortiço, desce a todos os
pormenores, esmiúça o cotidiano, descreve brigas, serões, diz-
que-diz-que. Uma verdadeira cena realista à maneira de Brueghel
é posta diante dos olhos do leitor, com uma força expressiva, um
dom de observação, uma capacidade selecionadora da minúcia
pitoresca e característica, até então desconhecidos no romance
nacional (MILLIET, s.d., p. 6).
Neste mesmo sentido, Alfredo Bosi aponta para os pontos de
contato e distanciamento entre Romantismo e Naturalismo naquilo que concerne à
representação do feio. Para ele,
A procura do típico leva, às vezes, o romancista ao caso e, daí, ao
patológico. Haverá um resíduo romântico nesse vezo de
perscrutar o excepcional, o feio, o grotesco, e é mesmo lugar-
comum apontar o romantismo latente em Zola, que sobreviveria
nas cruezas intencionais do Surrealismo e do Expressionismo (...)
O escritor romântico eleva a fealdade à altura da beleza
excepcional (Victor Hugo); o naturalista julga interessante” o
patológico, porque prova a dependência do homem em relação à
fatalidade das leis naturais. Mais uma vez, a regra de ouro é a
atenção ao contexto, que impede aqui de nos perdermos na
sedução anti-histórica dos arquétipos (BOSI, 1993, p. 191).
No Brasil, a transição do século XIX para o XX foi marcada, na
produção poética, pelo Parnasianismo e pelo Simbolismo, notáveis pelo culto à
forma. Assim, a recuperação do modelo clássico nessas duas vertentes da poesia
também indicará dois caminhos: no caso do Parnasianismo, recai-se para um
conteúdo vazio, apoiado na descrição. No caso do Simbolismo, volta-se para a
matéria sinestésica e nebulosa, marcada pelo significado místico da natureza.
Deste modo,
Diante da opressividade do mundo industrial, das metrópoles
percorridas por multidões imensas e anônimas, da insurgência de
um movimento operário organizado e do florescimento de uma
forma de jornalismo que, publicando novelas populares em
capítulos, dá início àquilo que hoje chamamos de cultura de
massa, o artista ameaçados os seus ideais, percebe as idéias
democráticas como inimigas, resolve ser “diferente”,
marginalizado, aristocrático ou “maldito” e retira-se para a torre de
marfim da Arte pela Arte (...) Assim, a época do triunfo da
máquina e do culto positivista da ciência é também a do
Decadentismo. Ganha forma uma religião estética segundo a qual
a Beleza é o único valor que deve ser realizado, e para um dandy
a própria vida deve ser vivida como obra de arte (ECO, 2007, p.
350).
Todavia, no contexto brasileiro, que se fazer uma ressalva. O
caso de Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914), comumente
considerado um poeta simbolista, é notável. Sua produção poética alia a intenção
simbolista ao vocabulário científico e é marcada, muitas vezes, por versos que
causam repulsa.
O conflito na classificação de sua produção poética deve-se ao
fato desta conter elementos de diferentes escolas literárias, como romantismo,
parnasianismo e simbolismo. E, além disso, por associar elementos das correntes
de pensamento do período, especialmente, o cientificismo.
Assim, a formalidade estrutural destoa em face à decomposição
da matéria orgânica que assinala seus versos, como no soneto “O Deus-verme”:
Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção! (ANJOS, 1963, p. 66).
Destarte, a feiúra do verme e da função biológica que ele
desempenha compõe o eixo temático sob o qual o soneto se desenvolve. Neste
sentido, o vocabulário do poema coopera na construção de imagens repulsivas:
miséria, morte, bactéria, podridão, vísceras, defuntos e carne podre.
Assim, é mister dizer que toda produção poética do autor, reunida
num único livro, Eu, publicado em 1912, é marcada pela recorrência à realidade
orgânica e putrescível da existência humana. Destino comum de todo ser vivo, a
morte permeia a obra de Augusto dos Anjos, preenchendo-a com figuras
horrendas.
Há, ainda, aqueles que consideram, e seria mais correto fazê-lo,
o poeta paraibano como exemplo do pré-modernismo no Brasil, pois se a sua
poesia não representa o homem das classes menos abastadas, também não sofre
dos vícios heróicos do romantismo, nem tampouco padece da insensibilidade
parnasiana. Noutro sentido, visa à aproximação da poesia à ciência, notadamente
pautada pela modernidade.
O início do século XX é marcado por grandes transformações,
políticas, econômicas e artísticas. Neste contexto, as vanguardas condenavam o
passado, rejeitavam os conceitos clássicos de harmonia e bom gosto e
declaravam-se contra as realizações naturalistas de seu tempo.
Assim, no Manifesto Futurista de Tommaso Marinetti (1876-
1944), publicado em fevereiro de 1909, a velocidade da modernidade era
celebrada juntamente com a luta, com a rebelião, com as bofetadas e com o
caráter agressivo da obra de Arte.
No mesmo caminho, o Cubismo inspira-se nas máscaras e nos
rituais africanos para criar obras em que a deformidade é quem estabelece as
normas. Aqui, é imprescindível citar nomes como o de Pablo Picasso (1881-
1973)
21
e o de Georges Braque (1882-1963).
No entanto, é no Dadaísmo que a feiúra atinge seu maior
momento. Este é o movimento da negação total. Nega-se o lógico, luta-se pelo
caos, rejeita-se a pureza da harmonia e celebra-se a sujeira da desordem. O
Manifesto dadá (1918), escrito por Tristan Tzara (1896-1963), caracteriza a
21
ANEXO 13
natureza deste movimento: “Liberdade: DADÁ DADÁ DADÁ, grito das dores
crispadas, entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos
grotescos, das inconseqüências: A VIDA” (TZARA apud ECO, 2007, p. 374).
Os dadaístas defendiam a idéia da Arte como o resultado da
seleção e combinação casual de seus elementos e, para isso, ela deveria ser solta
das amarras racionalistas, para valorizar o automatismo psíquico. O movimento
estava profundamente vinculado ao sentimento de sua época. Neste sentido, os
jovens expressavam sua revolta com os horrores da Primeira Guerra Mundial
através de obras que desafiam a bela arte convencional, privilegiando o exagero e
o imaginário. O dadá começa a perder sua força com os prenúncios do
surrealismo.
Com a publicação do Manifesto Surrealista (1924), por André
Breton (1896-1966), a Arte mostra-se especialmente propensa aos fenômenos do
subconsciente, conturbado e, por vezes, monstruoso:
Surrealismo, s.m.: Automatismo psíquico puro por meio do qual
nos propomos a exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja
de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento.
Ditado pelo pensamento, na ausência de qualquer controle
exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou
moral (BRETON apud ECO, 2007, p. 380).
Neste sentido, a natureza é transfigurada para representar o
mundo dos pesadelos e os cenários deformados que apresentam toda sorte de
criatura onírica. Segundo Beckett,
Os artistas do surrealismo davam grande valor aos desenhos
feitos por crianças, à arte dos doentes mentais, às pinturas de
amadores cuja obra surgia do puro impulso criativo, livre de
convenções e regras estéticas. Em geral, o surrealismo assumia a
forma de imagens fantásticas, absurdas ou carregadas de poesia
(BECKETT, 2006, p. 363).
Portanto, a beleza surrealista está justamente na violação dos
cânones conservados até o momento. “A beleza será convulsiva, ou não será”:
(BRETON, 1987, p. 182) este é o ideal da arte surrealista, assim como de toda
arte de vanguarda. Sendo assim,
Beleza convulsiva conota choque, sugerindo que o maravilhoso
implica uma experiência traumática, também presente na histeria
(...) Essa beleza é como a petite mort, na qual o sujeito, por um
choque, é liberado de sua identidade - numa experiência de gozo
que também prenuncia a morte. Uma estética que - não só reforça
o informe e evoca o irrepresentável, mas também mistura prazer e
dor - tem menos a ver com belo do que com o sublime (PEIXOTO,
2004, p. 88).
Aqui, portanto, belo e feio estão amalgamados de modo que a
própria beleza é composta pela fealdade. A máscara maniqueísta que reduz a
questão estética e artística em dois aspectos opostos e incompatíveis, belo e feio,
cai por terra neste momento em que o disforme e o caos emergem com grande
força valorizando um tipo de beleza provocativa e desconcertante.
Neste sentido, privilegiando o universo onírico sem, entretanto,
entregar-se completamente a ele, Salvador Dalí (1904-1989)
22
é exemplo da
pintura surrealista, na medida em que “criou imagens profundamente
desagradáveis, mas ainda assim surpreendentes, daquela irrealidade em que ele
sentia-se à vontade”
(BECKETT, 2006, p. 364).
Diante disso tudo, a respeito destas vanguardas é possível dizer
que sua intenção não é a realização da harmonia e, portanto, do belo
convencional. Ao contrário, seus idealizadores ansiavam a ruptura da ordem
estabelecida, a desmistificação da Arte e sua aproximação com o público
consumidor. Conforme Theodor Adorno, a Arte destas correntes pretendia “fazer
exatamente aquilo que é banido como feio, não para integrá-lo, para mitigá-lo ou
para tornar sua existência aceitável (...) mas para denunciar, no feio, o mundo que
o cria e o reproduz segundo a própria imagem” (ADORNO apud ECO, 2007, p.
379).
22
ANEXO 14
A estética defendida pelas vanguardas históricas não raro era
recebida com grande repulsa e recriminações moralistas, tanto pelo público
consumidor, quanto também pela crítica. Isto se deve ao grave tom provocativo, à
perseguição do inconsciente e da matéria bruta, à recusa de toda ordem
convencionalmente estabelecida, à denúncia da alienação social, ou seja, à nova
beleza, chocante e inquieta, que a arte das vanguardas praticava.
Neste sentido, na Alemanha nazista, todo tipo de arte que não
defendia e representava os ideais nazistas era denominado Arte degenerada,
especialmente a arte das vanguardas. Assim, foi inaugurada em Munique, em
1937, a mostra de Arte degenerada que apresentava cerca de seiscentas e
cinqüenta obras, produzidas por cento e doze artistas, dispostas sem molduras,
aleatoriamente, com desenhos e imagens de deficientes mentais. Entre as obras
expostas estavam representações dos movimentos dadaísta, expressionista e dos
professores da Bauhaus: Georg Gosz, Piet Mondrian, Wassily Kandinsky, Marx
Ernst, Jean Metzinger, Marc Chagall, Karl Schmidt-Rottluff, Otto Dix entre outros
23
.
Com isso, a exposição de Arte degenerada pretendia ridicularizar os modernistas,
considerando sua arte como uma arte doentia que buscava conduzir a sociedade
aos caos e à debilidade. Sendo assim,
A 'degeneração cultural' associada à arte moderna era vista como
uma ameaça - e desta forma com as suas perspectivas limitadas,
a arte de vanguarda para os nazistas era um presságio do
destino; o caos que estas obras mostravam era de uma evidente
depravação espiritual e intelectual.
Para Hitler, a arte era um reflexo da saúde racial - logo, as obras
mais exaltadas pelo regime foram aquelas da Antiguidade e do
Renascimento, as que possuíam valores adequados à cultura
germânica. Desta forma, a ofensiva contra a arte moderna
possuía um caráter higiênico, pois tais obras mostravam sinais da
23
Sobre as obras confiscadas pelo nazismo, Vanessa Bortulucce acresce que: “A
exposição foi apenas parte de um grande número de cerca de 20 mil obras de arte
moderna confiscadas dos museus alemães por ordem de Joseph Goebbel, com a
orientação de um pintor acadêmico de nus, Adolf Ziegler. Parte deste acervo foi vendida
no exterior dois anos depois para financiar os preparativos de guerra; as obras restantes
foram queimadas” (BORTULUCCE, 2008, p.65).
evidente doença mental de seus criadores (BORTULUCCE, 2008,
p.66).
Por mais intolerante que possa parecer, este exemplo mostra que
a vitória do feio acontece geralmente no plano da representação e não,
necessariamente, no plano da recepção artística. Neste sentido, o discurso das
vanguardas modernistas não reflete um pensamento hegemônico acerca da
beleza, da feiúra e da obra de arte, entrando em conflito com as normas estéticas
vigentes. Deste modo, é possível admitir que a vitória do feio está na
inexorabilidade do tempo, que pode tornar o feio e o inaceitável de ontem no belo
e admirável de hoje, ou de amanhã.
Por sua vez, no Brasil, a Arte modernista ganha força a partir de
1922. A Semana de Arte realizada em São Paulo escancarou um novo padrão
estético, pautado pela liberdade de pesquisa, em oposição ao uso cristalizado de
modelos artísticos preestabelecidos.
Paradoxalmente, influenciada pelas vanguardas européias, a
primeira geração do Modernismo no Brasil criou obras em que a feiúra é opção
estética vigente. E, em obras como A boba (1915) de Anita Malfatti (1889-1964)
24
ou a Cabeça de Cristo (1920) de Victor Brecheret (1894-1955)
25
, isto se torna
evidente. Na literatura, a cena em que se descreve o nascimento de Macunaíma é
exemplar:
No fundo do mato-virgem, nasceu Macunaíma, herói de nossa
gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um
momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo
do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia.
Essa criança é que chamaram Macunaíma (ANDRADE, 1979, p.
9).
Ainda assim, vale ressaltar que o Modernismo é um momento de
ruptura e, portanto, suas manifestações muitas vezes são de contestação estética.
24
ANEXO 15
25
ANEXO 16
Por isso, a crítica via-se dividida entre a aceitação e o repúdio violento ao novo
padrão que surgia em prol de um nacionalismo artístico.
O caso mais famoso fica para os antecedentes da Semana de
Arte Moderna. Em 1917, depois de uma temporada como estudante nos Estados
Unidos, Anita Malfatti realiza exposição de suas obras e de alguns de seus
contemporâneos. Todavia, a exposição não ficou famosa pelas obras
apresentadas. Foi a crítica ferina de Monteiro Lobato (1882-1948) publicada três
dias depois, no jornal O Estado de São Paulo, que deu notoriedade ao evento. Em
“Paranóia ou mistificação?”, Lobato afirma que aquele tipo de Arte
é formada dos que m anormalmente a natureza e a interpretam
à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas
rebeldes, surgidas e como furúnculos da cultura excessiva.
São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de
decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao
nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das
vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do
esquecimento (LOBATO, 1957, p. 59).
Assim, a feiúra que ele combate na atitude estética de alguns
modernistas irrompe em sua crítica, através de expressões de degradação como:
“dos que vêm anormalmente a natureza”, “sugestão estrábica de escolas
rebeldes”, “furúnculos da cultura excessiva”, “frutos de fim de estação, bichados
ao nascedouro”.
Adiante, o crítico aproxima a Arte modernista àquela produzida
por deficientes mentais, salientando que
A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é
sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais
estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas
zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo
público que compra, não sinceridade nenhuma, nem nenhuma
lógica, sendo tudo mistificação pura (LOBATO, 1957, p. 60).
A analogia entre loucos e artistas é pautada pelo nível de
alienação da realidade, no primeiro caso infringido pela doença, no segundo caso
pela falsidade explícita que engana o público consumidor. Neste sentido, somente
por dois motivos a Arte moderna pode fazer sentido: ou porque as ordens da
natureza e da realidade estão completamente alteradas, ou porque é fruto da
produção e da percepção de mentes insanas.
A certa altura, o tom agressivo do discurso atenua-se em defesa
da qualidade artística de Anita Malfatti, e deixa claro à qual tendência ele se
refere:
Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas
vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam
tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se, de
qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é
independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau
possui umas tantas qualidades inatas, das mais fecundas na
construção duma sólida individualidade artística.
Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte
moderna, penetrou nos domínios de um impressionismo
discutibilíssimo, e pôs todo o seu talento a serviço duma nova
espécie de caricatura (LOBATO, 1957, p. 61).
Ao mesmo tempo em que julga com depreciação a opção estética
da artista, Lobato afiança seus predicados mais positivos: independência e
originalidade. Neste sentido, a crítica de Monteiro Lobato volta-se mais para os
aspectos formais, do que propriamente conteudísticos.
A feiúra da qual ele reclama é resultado do aspecto
deliberadamente experimental que a Arte assume durante o Modernismo, pois
“Picasso & Cia”, incluindo artistas brasileiros, deformavam a natureza e homem,
através da geometrização e da distorção de seus elementos.
Todavia, a crítica teve efeito inverso. Em defesa de Anita, formou-
se a aliança que realizaria, em 1922, a Semana de Arte Moderna, mais
precisamente, Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945),
Menotti Del Picchia (1892-1988) e Tarsila do Amaral (1886-1973): o Grupo dos
Cinco.
A Semana teve papel fundamental na divulgação dos ideais
modernistas no Brasil. A partir deste ponto, o modernismo garante, pouco a
pouco, amplitude na Arte nacional. Os mesmos jovens vaiados durante o célebre
evento seriam, anos depois, aplaudidos pela crítica e pelo público. Essa é a vitória
da feiúra.
No “Prefácio Interessantíssimo”, Mário de Andrade mostra como
a eleição do feio é arbitrária. Para ele, a grande Arte, mesmo que
involuntariamente, deforma a natureza:
raciocinou sobre o chamado belo horrível’? É pena. O belo
horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de
certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os
tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o
artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de
belo o que é feio, horrível, porque está expressado com
grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito
da beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me
outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda
não leu Emilio Bayard: ‘O fim lógico dum quadro é ser agradável
de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular
encanto da feiúra. O artista sublima tudo’ .
Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de
moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural tem a
eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir
natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora
consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da
Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora
inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da
natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais
artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo
natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa
(ANDRADE, 1922, p. 18).
Sendo assim, o autor de Macunaíma não valor ao uso do feio
pelo feio simplesmente. Para ele, isso não constitui a beleza artística. Entretanto,
assume a atração que a feiúra exerce no artista, citando o exemplo de Anita
Malfatti. Contrapõe-se a isso, a divisão entre beleza natural e artística. Para a
primeira, a perenidade do tempo. Para a segunda, o gosto do contexto variável. E,
neste sentido, o distanciamento do belo natural é artifício que valida e valoriza a
produção artística, que não está mais atada à representação mimética da
realidade.
Por sua vez, a segunda geração modernista mantém as
conquistas da geração heróica, entretanto abranda-se o ideal de ruptura com o
passado. Há, na prosa, um retorno intencionado à representação objetiva da
realidade, compondo uma espécie de neo-realismo. Destes, destacam-se O
quinze (1930) de Rachel de Queiroz (1910-2003) e Vidas Secas (1938) de
Graciliano Ramos (1892-1953). Nestes casos, a feiúra é evidente na extrema
pobreza, como também nas seqüelas da fome e na violenta opressão sofrida por
seus protagonistas.
Na obra de Rachel de Queiroz, a feiúra se revela na brutalidade
que domina o cotidiano de seus personagens. Quando Chico Bento mata uma
cabra para alimentar sua família, é surpreendido pelo dono da criação e, após
discussão violenta, leva consigo apenas as vísceras do animal:
E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe
deixaram na boca um gosto amargo de vida.
Cordulina acordou de seu letargo e voltou-se espantada para o
filho, que vinha com aquelas tripas na mão. Que é isso, menino?
É a tripa de uma criação... o papai matou, mas veio o dono tomar,
e por milagre ainda deu o fato...
A mãe se levantou do assento, e, trôpega ainda, tomou na mão as
vísceras que sangravam (...)
E num foguinho de garranchos, arranjado por Cordulina com um
dos últimos fósforos que trazia no cós da saia, assaram e
comeram as tripas, insossas, sujas, apenas escorridas nas mãos
(QUEIROZ, 1967, p. 75).
Do mesmo modo desumano, no romance de Graciliano, Fabiano
é feio e bruto” (RAMOS, 1994, p. 68) e “medonho, mais feio que um focinho”
(RAMOS, 1994, p. 101). Na descrição do personagem, a feiúra é acentuada
através da animalização de seus traços:
Vivia longe dos homens, se dava bem com animais. Os seus
pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da
terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E
falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o
companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para
um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. As vezes
utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que
se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias (RAMOS,
1994, p. 19).
Enfim, o Modernismo de segunda geração usa a fealdade como
instrumento de denúncia dos problemas sociais que, nos exemplos citados, são
agravados pela seca. A realidade distante dos centros urbanos revela sujeitos
embrutecidos pela condição subumana em que vivem.
De acordo com Walnice Nogueira Galvão, a partir deste
momento, configuram-se duas vertentes na Literatura Brasileira. A primeira,
notadamente regionalista, que atualiza a tradição desenvolvida desde o
romantismo, volta-se para a representação do povo e de lugares apartados da
urbanização. A segunda, marcada pela espiritualidade e pelo subjetivo, afasta-se
dos problemas sociais que assinalam o período e adentram o universo caótico e
íntimo da consciência. Assim,
É nesse panorama literário, basicamente bipartido, que
Guimarães Rosa vai fazer sua aparição, operando como que uma
síntese das características definidoras de ambas as vertentes:
algo assim como um regionalismo com introspecção, um
espiritualismo em roupagens sertanejas (GALVÃO, 2000, p. 26).
Portanto, por um lado, situa-se o sertão de Minas Gerais, através
de minuciosas descrições da geografia, do povo e dos costumes regionais. Por
outro lado, apresenta-se a temática universal, o sertão metafísico, que representa,
através do homem do sertão, os problemas existenciais do homem.
Todavia, estas vertentes não estão apartadas, divididas em
momentos desiguais. Ao contrário, elas se combinam, unidas pelo fio que
trespassa toda a obra do escritor mineiro: o homem em sua sempiterna travessia
pelo sertão, pois que “O sertão está em toda a parte” (ROSA, 1967, p. 9).
Sendo assim, convém dizer que é no mundo misturado de João
Guimarães Rosa (Cordisburgo, 27 de junho de 1908 - Rio de Janeiro, 19 de
novembro de 1967) que se pretende observar a feiúra considerando, sempre, o
caráter volúvel e pouco palpável de suas manifestações.
CAPÍTULO II – A FEIÚRA NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA
A obra de João Guimarães Rosa contempla as mais diversas
manifestações da feiúra. Desde Sagarana (1946) até Tutaméia (Terceiras
Estórias) (1967), é bastante recorrente o uso do vocábulo feio, bem como de seus
derivados e de expressões do mesmo campo semântico. Adaptando-se aos
diferentes contextos narrativos, a feiúra plasma um cenário que abrange
violências, xingamentos, intempéries, uivos de sofrimento e indivíduos
desprovidos de beleza física e moral.
2.1 Uma grande estréia
26
No volume de estréia, Sagarana, o vocábulo feio é corriqueiro. O
emprego que dele se faz varia de acordo com a necessidade da narrativa em
caracterizar determinados elementos, na construção de personagens, cenários
e/ou situações.
Em “O burrinho pedrês”, designa um linguajar ofensivo: “xingando
todo nome feio que tem” (p. 29)
27
, “bradou nomes feios” (p. 68); situações
desairosas: “Está feio” (p. 30), “as vacas de leite começaram a berrar feio” (p. 44),
“Noite feia” (p. 67), “o gado ia ficando desinquieto, desistindo de querer pastar,
todos se mexendo e fazendo redemoinho e berrando feio” (p. 56); características
de personagens, “para não ficar feio eu, como ajudante do senhor, o povo me ver
amontado neste burro esmoralizado...” (p. 38), “A pois, o tal pretinho era magrelo,
com uns olhos graúdos, com o branco feio de tão branco (p. 55); e nas
características dos animais, “só bicho mazelento e feioso” (p. 53), “um gado feio
correndo” (p. 57).
26
LINS, 1963, p.258
27
Todos os exemplos em: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio, 1979.
Em “A volta do marido pródigo”, as andanças de Laio e suas
atitudes constituem, nas palavras do Major Anacleto, “uma história feia” (p. 112).
Em “Minha gente”, “o pessoal xinga nome feio” (p. 183) e, na fala
da personagem José Malvino, até mesmo os carcarás possuem feiúra: “− Se o
senhor doutor está achando alguma boniteza nesses pássaros, eu é que não
vou dizer que êles são feios... Mas, p’ra mim, seu doutor não leve a mal, p’ra mim,
coisa que não presta não pode ter nenhuma beleza...” (p. 177).
No conto “São Marcos”, a feiúra manifesta-se nos traços físicos:
“mulher feiosa” (p. 224), “mulherzinha do Timbó, criatura feia e sem graça em si
como nenhuma...” (p. 233), “negro feio...” (p. 254), “Prêto; pixaim alto, branco-
amarelado; banguela; horrendo” (p. 229).
Em “Corpo fechado”, a feiúra é também a marca de uma
personagem, o valentão Targino, “magro, feio, de cara esverdeada” (p. 263), “feio
como um defunto vivo (p. 279). Ainda aqui, aparece o “riso feio” (p. 281) do
Manuel Fulô, os versos de Manuel Baptista, “É tão feio se assigná/ Manuel Batista,
sem P!...” (p. 261), e um cavalo que, “Na andadura, era aquela feieza” (p. 272).
Em “Conversa de bois”, o feio destaca-se “em volta da altura e da
feiúra do Soronho” (p. 290), no nome de um boi, “o boi-grande-que-berra-feio-e-
carrega-uma-cabaça-na-cacunda...” (p. 293), na descrição do lugar, “o caminho é
feio, mas é firme”, “rolando poeira feia” (p. 312), e repete-se como o indicador de
algo perigoso em “Ficou feio, seu Soronho! Ficou feio” (p. 314).
Por fim, em “A hora e vez de Augusto Matraga”, a feiúra está
novamente associada ao palavreado injurioso: “E garrou a gritar as palavras feias
tôdas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência” (p. 368).
Diante da verificação da feiúra em Sagarana, fica evidente sua
relação com os elementos da natureza e com situações de risco. São poucas as
referências da feiúra em relação à aparência das personagens. Isto se na
medida em que, nesta obra, o autor ocupa-se tanto mais com a construção de
uma geografia que identifique o interior do Brasil, especialmente de Minas Gerais,
do que com as experiências lingüísticas aprofundadas em obras posteriores.
Como afirma José Carlos Garbuglio,
De fato, seu primeiro livro, Sagarana (1946), ainda não apresenta
a força e a grandeza dos seguintes: Corpo de baile (1946);
Grande sertão: veredas (1956), para falar apenas dos mais
importantes e significativos. Sagarana, no entanto, representa a
fundamental importância de encerrar, em germe, todos os
desenvolvimentos posteriores do escritor, quer em nível temático,
quer em nível lingüístico (GARBUBGLIO, 2008, p.264).
Neste sentido, no que diz respeito à representação do feio,
Sagarana é basilar. O uso da feiúra que nele se faz, se repete, intensificando-se,
nos demais livros do escritor.
2.2 “feio o acontecido, feio o narrado”: obras de 56
Corpo de Baile foi publicado em janeiro 1956 com sete novelas
organizadas em dois grandes volumes e um índice em cada um deles. No
primeiro, as narrativas são denominadas “OS POEMAS” e dispostas conforme a
seqüência dos livros. no segundo, colocado no final no volume, as narrativas
são divididas em “I. ‘GERAIS’ (os romances)” e “II. Parábase (os contos)”.
Posteriormente, na terceira edição, a obra foi dividida em três volumes: Manuelzão
e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão.
No primeiro volume, a feiúra se revela na novela “Campo geral”:
na paisagem do Mutúm, “um lugar bonito e um lugar feio” (p. 13)
28
, “um lugar
bonito ou feioso?” (p. 14), “Aquele lugar do Mutúm era triste, era feio” (p. 57), no
vento forte “feio que chega, vai derrubar o mato...” (p. 27), em um céu chuvo, dia
feio, bronho” (p. 75); no sabor desgostoso dos medicamentos, Tivesse outras
qualidades de remédios que fossem muito feios, amargosos, ruins” (p. 42); no
som produzido por diferentes animais, “Lobo uivava feio, mais horroroso mais
28
Todos os exemplos em: ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
triste do que cachorro” (p. 32), “Berrú-berro feio” (p. 51); na descrição de um boi
bravo, “Touro em turvo, feio, a cara burra, tão de ruim (p. 62), de uma
personagem, “Todo tão feio, seo Deográcias” (p. 41); na injúria, “xingava nome
feio” (p. 50); em críticas ao comportamento, “‘Larga de mania feia!’” (p. 54), “só no
meio do dormir dava um grito repetido, feio, sem acordo de si” (p. 99); e numa
lembrança do menino Miguilim, “Patorí falava que podia ensinar muitas coisas,
que o homem fazia com mulher, de tão feio tudo era bonito” (p. 56).
Em “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, o feio
caracteriza: uma imagem sacra, “uma Nossa Senhora feia” (p. 135); personagens,
“um rapagão cabeludo, escurado, às vezes feio até” (p. 143), “uma chapadeira
percebida feiosa” (p. 178); uma peça de vestuário, “um capote feio de baeta” (p.
153); uma condição social, “feio vazio, a pobreza” (p. 196); uma pequena
narrativa, “aquilo era uma estória feia” (p. 214); e o barulho dos bois, “A feio o
berro do gado é na estrada” (p. 218).
“A estória de Lélio e Lina” divulga a feiúra em: uma ação desleal,
“ele não ia delatar, por fazendo feio, nem que visse coisa, de jeito nenhum” (p.
262); um presságio de morte, “aquilo toava agouro feio de luto” (p. 268); uma
reação violenta, “armou briga feia” (p. 274); uma oração religiosa, “Era a reza feia
do J’sé-Jórjo” (p. 293); uma paisagem, “tudo está feio e pardo” (p. 328); um
impropério, “cascou para o Pernambo feio o gesto” (p. 295); uma briga, “um tinha
pragavado feio o ferrão na barriga do outro” (p. 358); intensas tempestades, “As
asas de um fogo feio, morte, a claridade triste, aqueles coriscões” (p. 315), “o
tempo estava feio” (p.361); aspectos físicos de personagens, “malcastrado, feioso,
nunca nem teve mãe nem pai (p. 284), “mesmo não feia” (p.299), “era mais
pobrezinha e feiosa” (p. 334).
No segundo volume, a novela O recado do morro” apresenta a
fealdade: na feição de personagens, “feioso e lero, focinhudo como um coatí” (p.
398), “velho grimo
29
, esquisito” (p. 399), “cavanhaque em feio começo” (p. 414); na
29
Em uma carta para o tradutor italiano de sua obra, datada em 18 de novembro de 1963,
Guimarães Rosa esclarece: “‘grimo’: de uma feiúra sério-cômica, parecendo com as
descrição da paisagem local, “ponto mais brenhoso e feio da serra grande” (p.
404), “Aquele lugar era muito feio” (p. 432); num juramento, “não casar com
mulher feiosa” (p. 418); e num som agudo, “um feio meio-guincho” (p. 425).
Em meio a tantas feiúras, o narrador reproduz a fala de uma
personagem: kalòs kàgathós (p. 461). Esta sentença remete, diretamente, ao
conceito grego kallokagathia que, numa interpretação ao rés do chão, significa o
que é belo e bom. Conforme explica Umberto Eco,
O ideal grego da perfeição era representado pela kallokagathia,
termo que nasce da união de kallós (genericamente traduzido
como ‘belo’) e agathós (termo usualmente traduzido como ‘bom’,
mas que cobre toda uma série de valores positivos). Observou-se
que a virtude de ser kalos e agathos definia genericamente aquilo
que corresponderia, no mundo anglo-saxônico, à noção
aristocrática de gentleman, pessoa de aspecto digno, de coragem,
estilo, habilidade e conclamadas virtudes esportivas, militares e
morais (ECO, 2007, p.23).
Em “Dão-Lalalão (O devente)”, o feio está na caracterização: da
paisagem natural, águas quase assim, deitadas em feio como um veneno” (p.
473), “Lugar feio” (p. 500), “um lugar sem recurso nenhum, muito distante, feio” (p.
546); das personagens, “vinham feios” (p. 498), “ela não ficara feia” (p. 543); e da
nostalgia, “aquela saudade sem peso, precisão de achar o poder de um direito
bonito no avesso das coisas mais feias” (p. 509).
Na estória de “Cara-de-bronze”, a fealdade é atribuída: a uma
condição climática, “Um dia em feio assim, com carregume, malino o chuvisco,
rabisco de raios” (p. 561); às infecções causadas pela lepra, “feridas feias
brotadas no rosto” (p. 589); a um lugar, “um chapadão feio enorme” (p. 602); a um
momento de conflito, “aí, que viu o caso feio” (p. 597); e à aparência da
personagem Grivo, “Feio feito peruzinho saído do ovo...” (p. 595).
figuras dos velhos livros de estórias; feiocarateante; de rosto engelhado, rugoso. (Cf. em
italiano: grimoso = Vecchio grinzoso) Em inglês: grim = carrancudo, severo, feio,
horrendo, sombrio, etc. Em alemão: grimm = furioso, sanhoso. Em dinamarquês: grimme
= feio. Em português: grima = raiva, ódio; grimaça = careta. Eu quis captar o quid,
universal, desse radical” (ROSA, 2003, p.69).
Na novela “Buriti”, a feiúra atua com insistência na descrição de
mulheres e homens: “tisna, encorujada, com a feiíce de uma antiguidade” (p. 642),
“triste e maligna por motivo de ser feia” (p. 642), “E a mulher, se era feia, se era
bonita, sua imagem calcava na lembrança de nhô Gaspar” (p. 671), “estava em
feiosa, sem os encantos do tempo” (p. 672), “Sua falta de beleza apartava-a das
pessôas” (p. 690), “feia, sem nem um singelo atrativo” (p.733), “mais calada de
feia” (p. 764), “vaqueiro feio” (p. 752), “aquele homem palerma, caricato de feio”
(p. 760), “a pobre pessoa de nhô Gual torpe ou grotesco” (p. 776), “mais feio do
que o vaqueiro Leobéu...” (p. 795), “Às vezes ele não é feio... é rústico..” (p.
817). Aparece, também, nas descrições: de um bezerro, “feioso, magro, tolhido
pelo endurecimento das juntas” (p. 650); do barulho dos animais, “O feio grito das
garças” (p. 663), “Lobo um grito feio” (p.668); do sertão, “as estrelas
procuravam seu ponto. Elas eram belas, sobre o sertão feio, tristonho(p. 666); e
na conclusão de uma lembrança, “Todo retrato enfeia...” (p. 720).
Conforme se pode observar em Corpo de Baile, a feiúra é mais
individualizada do que em Sagarana. Por conseguinte, se reflete em um número
maior de personagens, atribuindo humanidade ao termo. Segundo Paulo Rónai,
em todos esses ‘romances’ uma incontável população de
comparsas, figuras excêntricas, esquisitões, perfeitamente
individualizados (...) e que dão ao livro o colorido, o movimento e
a graça grotesca de quadros de Bruegel e de Cranach (RÓNAI,
2006, p. 25).
No Grande Sertão: Veredas, romance de 1956, as lembranças de
Riobaldo trazem à tona um imenso repertório de fealdade, designando alguns
pormenores da natureza: “Eh, o senhor viu, por ver, a feiura de ódio franzido,
carantonho, nas faces duma cobra cascavel?” (p. 27)
30
, “Jacaré choca – olhalhão,
crespido do lamal, feio mirando na gente” (p. 47), “Boi brabreza pode surgir do
caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube vem feio pior que onça”
30
Todos os exemplos em: ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
(p. 61), “Mas, qual, se viu um bicho brusca, feiosa” (p. 78), “A feiura com que
o São Francisco puxa, se moendo todo barrento, vermelho” (p. 120), “fomos para
a baixa dos Umbùzeiros, lugar feio, com os gravatás poeirentos e uns levantados
de pedra” (p. 266), “Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios” (p.
325), “o touro sozinho berra feio” (p. 326), “Estes gerais enormes, em ventos,
danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças” (p. 329), “E por fim
viemos esbarrar em lugar de algum cômodo, mas feio, como feio não se vê” (p.
417), “O Liso do Sussuarão? era um feio mundo, por si, exagerado” (p. 524), “A
parede da Serra do Tamaduá-tão, feia, com barrancos escalavrados” (p. 563), e
“Ah, e, vai, um feio dia” (p. 311). Esta última sentença possibilita uma
interpretação dupla para “feio dia”, pois além de se referir a um dia muito chuvoso,
trata-se do momento em que Riobaldo tomou conhecimento da morte do chefe
Joca Ramiro. Neste sentido, o feio tanto se aplica ao clima, quanto ao sofrimento
causado pela notícia que acabara de chegar: “Aí estralasse tudo no meio ouvi
um uivo dôido de Diadorim –: todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei,
feras!” (p. 313).
No sertão, o feio é intrínseco à violência e às batalhas: “o Pindó e
a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando
nisso um prazer feio de diversão” (p. 30), “Mas só do modo, desses, por feio
instrumento, foi que a jagunçada se findou” (p. 35), “Ah, mas, com ele, até o feio
da guerra podia dar alguma alegria” (p. 93), “o fogo feio começava, por todas as
partes” (p. 224), “fogo feio – dois mortos, dos titão-passos, companheiros bons” (p.
243), “Ou então – eu quis – ou, então, que se armasse ali mesmo rixa feia: metade
do povo para lá, metade para cá, uns punindo pelo bem da justiça, os outros nas
voltas da cauda do demo!” (p. 288), “tudo foram as feiezas” (p. 319), “um Vital
deu ataque: o qual era um acesso sacramentado de feioso” (p. 369), “Reformaram
feia nuvem” (p. 571), “Perdiam sem valia aquele feio calor, que podia ter sido a
vida de uma pessoa” (p. 605).
Ainda no romance, a feiúra se revela: nos modos e nas feições
sertanejos, “acham que traje de gibão é feio e capiau” (p. 42), “Arre vai, o canoeiro
cantou, feio, moda de copla que gente barranqueira usa” (p.123), “O outro, um
tribufú” (p. 175), “medo do Hermógenes remedou, de feias caretas” (p. 280),
“Comparsa urucuiano dos olhos verdes, homem muito feioso” (p. 361), “Zé Bebelo
mandava, ele tinha os feios olhos de todo pensar” (p. 380), O quanto feioso, de
dar pena, constado chato o fôrmo do nariz, estragada a boca grande demais, em
três” (p. 400), “mulher feiosa, muito mãe-de-família (p. 540), “feio, feito negro que
embala clavinote” (p. 607); nas feições do diabo, “mais feio no demônio é o nariz e
os beiços...” (p. 588); no linguajar ofensivo, “Pensei um nome feio” (p. 97),
“Repostei um feio xingo” (p. 582); e na aparência dos enfermos,
os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis
formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos
acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que
fediam (...) E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita,
rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem
virtude requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum.
Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o
que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam
bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares (p.
75).
Por fim, a feiúra aparece na fala do compadre meu Quelemém
reproduzida por Riobaldo, “que, por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que
todos os feios passados se exalaram de não ser” (p. 38), e nas reflexões e
recordações do narrador-protagonista, “E eu mal de não me consentir em
nenhum afirmar das docemente coisas que são feias eu me esquecia de tudo,
num espairecer de contentamento, deixava de pensar” (p. 45), “O que demasia na
gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente” (p. 150),
“Cismei que maldavam, desconfiassem de ser feio pegadio” (p. 185), “Que isso foi
o que sempre me invocou, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o
feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!” (p. 237), “Afiguro,
bem que criei suspeitas: aonde Diadorim não teria andado ido, e que feia ação
para aprontar, com parte na fingida estória?” (p. 254), “Ah, e feio ri; porque estava
com vontade” (p. 351), “aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo: que nele
não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo
só para os braços da maior bondade” (p. 406).
Em linhas gerais, pode-se afirmar que, em Grande Sertão:
Veredas, a recordação do passado empreendida por Riobaldo encadeia
sucessivas cenas de feiúra que se organizam de acordo com a necessidade do
discurso. Assim, nas palavras do narrador protagonista: “feio o acontecido, feio o
narrado” (p. 531).
2.3 A feiúra nos “vastos espaços” das narrativas curtas
31
Primeiras Estórias foi lançado em 1962. Ilustrado por Luís Jardim,
o volume é uma compilação de contos curtos, sendo que alguns foram publicados
anteriormente em jornais
32
. Segundo a opinião de Rosa, Primeiras Estórias “Ficou
um livrinho lindo, é o amarelinho” (ROSA apud COSTA, 2006, p. 44).
Assim como Corpo de Baile, tem dois índices seqüenciais.
Entretanto, ao segundo índice somam-se pequenas ilustrações acerca do enredo
desenvolvido para cada uma das estórias.
Além disso, o tamanho diminuto das narrativas chama a atenção,
quando comparadas à produção anterior de Rosa. Nenhuma das estórias atinge
quinze páginas. A extensão dos contos, entretanto, não compromete a capacidade
criativa do autor. Segundo Alfredo Bosi,
a narrativa curta condensa e potencia no seu espaço todas as
possibilidades da ficção. E mais, o mesmo modo breve de ser
compele o escritor de uma luta mais intensa com as técnicas de
invenção, de sintaxe compositiva, de elocução (BOSI, 1977, p. 7).
31
RONAI, 2001, p.14.
32
Dos vinte e um contos que compõem as Primeiras Estórias, quinze foram publicados
anteriormente em periódicos (O Globo, 1961; Senhor, 1962; Comentário, 1962) e seis
eram inéditos (“Fatalidade”, “O espelho”, “Nada e a nossa condição”, “Luas-de-mel”,
“Darandina” e “Os cimos”) (COSTA, 2006, p. 44).
Neste volume, a feiúra aparece pela primeira vez no sexto conto,
“A terceira margem do rio”, onde é associada a uma enfermidade, “nosso pai,
quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se
desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele” (p. 80)
33
.
Por sua vez, o décimo primeiro conto, “O espelho”, traz uma
importante consideração sobre a aparência humana:
Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo,
de um ou mais falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade
feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por
provisoriamente discrepantes de um ideal estético aceito. Sou
claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um
modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante
sucessivas novas capas de ilusão (p. 122).
Em “O cavalo que bebia cerveja”, décimo terceiro conto, a feiúra
tem relação com o italiano seo Giovânio que possui “feia fala” (p. 142). E, noutro
momento, o narrador descreve a cena que presenciou na casa do estrangeiro,
quando este revela o cadáver de seu irmão Josepe:
Mas, aí, se viu o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o
morto não tinha cara, a bem dizer – um buracão, enorme,
cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces – a gente
devassava alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, golas
(p. 147).
Mais a frente, no décimo sexto conto, “Partida do audaz
navegante”, a feiúra aparece caracterizando “uma briguinha grande e feia” (p.
167). Por último, o feio aparece nos três contos que se seguem: em “Darandina”,
‘O feio está ficando coisa... ” (p. 195), em “Substância”, “o polvilho, ali, na
Samburá, era muito caprichado, justo, um dom de branco, por isso para a Fábrica
valia mais caro, que os outros, por aí, feiosos, meio tostados...” (p. 208), e em “–
33
Todos os exemplos em: ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001.
Tarantão, meu patrão...”, “pensava que era capaz, contra o sobrinho, o doutor
médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal! – feio, fulo!” (p. 216).
Em Primeiras Estórias, a feiúra aparece em menor número se
comparada à Sagarana, Corpo de baile e Grande Sertão: Veredas, o que soa
óbvio devido à quantidade de páginas de cada livro. Todavia, é curioso que,
mesmo sendo menos usado, o vocábulo repita os significados apontados nas
narrativas mais longas. Ou seja, a recorrência da feiúra nas estórias desta obra
ratifica a complexidade do volume e a maestria do autor em trabalhar com a
pluralidade significativa de uma mesma palavra. Em uma carta endereçada ao seu
tradutor francês, Jean Jacques Villard, datada em 14 de outubro de 1963,
Guimarães Rosa atenta para a relevância de cada expressão e a atenção
redobrada que o livro requer:
Vi que já notou a dificuldade dele. É que, sendo pequeno, de
estórias tão curtas, exige uma tradução muito meticulosamente
afinada, capaz de transmitir também um interesse em cada frase,
em cada linha, quase que em cada palavra. aparente e
enganosamente é que ele se finge de simples, de livrinho singelo.
Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o ‘Primeiras
Estórias’ é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma
série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume
pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual,
filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético,
anti-racionalista e anti-realista. Há pouco, com poucos dias de
diferença, um crítico, aqui, aludiu, ao que há nele, como sendo um
‘transrealismo’, e outro crítico dava à coisa a denominação,
aparentada, de ‘realismo cósmico’. É um livro contra a lógica
comum, e tudo nele parte disso. Só se apóia na lógica para
transcendê-la, para destruí-la (REINALDO, 2005, p.207).
A novidade das Primeiras Estórias preparou o leitor de
Guimarães Rosa para sua última obra, publicada poucos meses antes de sua
morte, Tutaméia (Terceiras Estórias). No derradeiro livro, Rosa leva a cabo a
diminuição das narrativas e apresenta quarenta estórias curtas que, quando muito,
preenchem cinco páginas cada. Aparentemente, a breve extensão se deve ao
limite imposto pela revista Pulso, onde foram publicadas originalmente. Apenas os
quatro prefácios, e um livro com quatro prefácios é instigante per se, possuem
maior extensão, podendo chegar a vinte e uma páginas.
No corpo do livro, os prefácios estão distribuídos em meio aos
contos, conforme se encontra no “Sumário” que o encabeça. Todavia, o “Índice de
releitura”, inserido ao final do volume, distingue os “Prefácios” e “Os Contos”, além
de apresentar o título do livro invertido, Terceiras Estórias (Tutaméia).
Ambos os índices dispõem os contos em ordem alfabética,
exceto por “Grande Gedeão” e “Reminisção” que vêm logo abaixo de “João
Porém, o criador de perus”, formando o acróstico JGR que remete diretamente a
João Guimarães Rosa. Depois disso, a ordem anterior é retomada.
Estas peculiaridades somam-se, ainda, a um glossário inserido
no último prefácio onde se encontra a seguinte definição para o título do livro:
tutaméia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-
meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia (p. 233).
Diante disso, Tutaméia denota grande originalidade, prontamente
reconhecida pela crítica, capaz de surpreender o leitor em cada releitura. De
acordo com João Alexandre Barbosa, apesar da simplicidade que aparenta,
a última obra de João Guimarães Rosa não pode ser lida como
diluição da obra-prima de 1956 mas como fragmento de uma
totalidade de que, também aquela, faz parte. E esta totalidade, no
limite, chama-se linguagem da ficção de tal modo trabalhada que
redunda em seu correlato essencial: a ficionalização da linguagem
(BARBOSA, 1989, p.16).
Em Tutaméia, a feiúra se revela no primeiro prefácio, Aletria e
hermenêutica”, em uma reflexão do narrador/autor:
Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco,
até levá-los ao sublime; seja daí que seu entre-limite é tão tênue.
E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se
alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve
um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao
excelso (p. 39)
34
.
No segundo conto, “Antiperipléia”, a fealdade está na aparência
de duas personagens, o anão Prudencinhano, que se descreve como “defeituoso
feioso” (p. 42), e a Sa Justa que era “a diversa, muito fulana: feia, feia apesar dos
poderes de Deus” (p. 42) e possuía “porvindas belezas” (p. 43).
Num momento decisivo da trama, o narrador diz: “Delírios, de
paixão, cobiçação, por querer demais, avistar a mulher – os traços – aquela
formosura que, nós três, no desafeio, a gente tinha tanto inventado(p. 44). Nesta
sentença, chama a atenção o neologismo “desafeio”, construído pelo acréscimo
do prefixo des- à palavra feio, constituindo sua negação.
Em “Arroio-das-Antas”, a feiúra es logo na primeira frase:
“Aonde o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão onde
podia haver assombros?” (p. 46).
Em “Como ataca a sucuri”, o sétimo conto, a feiúra pertence a um
utensílio: “Ladino, avançou, quase quadrumanamente, desembainhando o facão,
feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze” (p. 66).
A feiúra volta a aparecer no décimo oitavo conto, João Porém, o
criador de perus”. No parágrafo inicial, o narrador apresenta a personagem
protagonista que não é feia, mas também o é bela: “sensato, vesgo, não feio,
algo gago, saudoso, semi-surdo; moço” (p. 118).
Em “Reminisção”, a fealdade está sempre associada à
personagem Drá, assim descrita logo de início: “cor de folha seca escura,
estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeava; primeiro
sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio fora-da-
lei. Medonha e má; não enganava pela cara” (p. 126). Aqui, destaca-se a relação
que geralmente se estabelece entre feiúra e maldade, pois ela é “Medonha e má”.
Em seguida, o narrador diz que a Dsofria “Da dor de feiúra, de partir espelho”
34
Todos os exemplos em: ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras Estórias). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
(p. 127) e, por fim, que a “Drá voltou, empeçonhada, trombuda, feia como os
trovões da montanha” (p. 129).
No conto seguinte, “Lá, nas campinas”, outra mulher marcada
pela fealdade: a “Sobrinha do Padre: parda magra, releixa para segar, feia de
sorte” (p. 133).
Em “Mécheu”, o protagonista da estória que é “feiancho, mais feio
ficava” (p. 136) quando enfurecido e em “Melim-Meloso”, “a mulher do Nhô
Tampado notava-se como a feia das feias” (p. 142).
“No prosseguir” apresenta uma personagem marcada por ter uma
cicatriz “feiosa, olho esvaziado” (p. 148).
No terceiro prefácio, Nós, os temulentos”, a feiúra aparece na
fala do bêbado que afronta uma mulher: “– ‘Feia! o Chico disse; fora-se-lhe a
galanteria” (p. 152).
Em “O outro ou o outro”, a feiúra aparece logo de início na
caracterização do cigano Prebixim: “Moço não feioso, ao grau do gasto” (p. 156).
Na estória “Orientação”, as feições da Rita Rola são
marcadamente feias. Ela é: “Feia, de se ter pena de seu espelho. Tão feia, com
fossas nasais” (p. 161).
em “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram
um boi”, a mulher de Jerevo é “de simpatia e singeleza sem beleza” (p. 166).
Na primeira frase de “Ripuária”, a feiúra está na descrição do
espaço: “Seja por que, o rio ali se opõe largo e feio, ninguém o passava” (p. 194).
Em “Seu eu seria personagem”, a fala de Titolívio Sérvulo
descreve a personagem Orlanda: “– ‘Feia, frívola, antipática...’” (p. 199).
No quarto prefácio, Sobre a escova e a dúvida”, aparece Cabia
de ir descascando o feio mundo morrinhento(p. 230) e, em “Sota e barla”, Feio
é, todo modo, passar-se do sertão uma boiada, estorvos e perigos dos dois lados,
por espaço de setenta léguas” (p. 234).
Tanto em “Tapiiraiauara”, quanto em “Tresaventura”, a feiúra se
revela nos pormenores da natureza. No primeiro, uma anta “ia desastrar-se com
os cães, feia a sungar a afilada cabeça, sua cara aguda, aventando-lhe o
assomar” (p. 240) e, no segundo, “‘A água é feia, quente, choca, febre, com
lodo de meio palmo...’” (p. 245).
No conto Vida ensinada”, uma situação conflituosa é feia,
“Aquilo? feio começo, se dera por si, ainda às tortas” (p. 527).
Por fim, em “Zingarêsca”, a feiúra corresponde a uma
personagem, “menino corcunda, feio como um caju e sua castanha” (p. 263), e a
um ato de Zepaz, um “feio gesticulejo” (p. 264).
Diante deste catálogo de fealdades, cabe dizer que a
representação da feiúra na obra de João Guimarães Rosa divide o tema em
subgrupos que se alternam em diferentes contextos sem jamais esgotá-lo. Na
composição do espaço, na caracterização das personagens, no desenrolar das
ações, a feiúra se propaga no sertão.
Disto, não se pode supor que é o uso recorrente que torna a
feiúra um aspecto importante da obra de Rosa. Noutro modo, a feiúra contribui
para a elaboração do universo ficcional rosiano, na medida em que reforça a
verossimilhança ao mostrar as muitas possibilidades de se enxergar o mundo, o
sertão e o homem.
No que diz respeito à feiúra como atributo físico, em Guimarães
Rosa ela direciona-se, de modo especial, à figura feminina. São diversas mulheres
cuja fealdade é o atributo principal que, por vezes, está associado à presença do
mal, enquanto, por outras, mascara a existência do bem. Neste sentido, avulta-se
“A benfazeja” por apresentar a feiúra no cerne da narrativa, como elemento chave
para sua compreensão.
CAPÍTULO III – A FEIÚRA EM “A BENFAZEJA”
3.1 O “sereno nosso lugar” de “A benfazeja”
“A benfazeja” é o décimo sétimo conto de Primeiras Estórias. Foi
publicado originalmente no jornal O Globo, em 05 de agosto de 1961, e reunido,
posteriormente, às outras vinte narrativas que compõem “o amarelinho” (ROSA
apud COSTA, 2006, p. 44).
Este conto apresenta, em onze páginas, a trajetória da Mula-
Marmela, uma mulher detestada pela comunidade onde vive. Demasiadamente
feia, ela perambula pelo lugarejo guiando seu enteado, o cego Retrupé.
Condenada pelo assassinato do marido, o Mumbungo, e acusada de cegar e
estrangular o enteado até a morte, a Mula-Marmela é expulsa do lugar sem direito
a julgamento justo e sem chance de defesa.
A história se passa em um lugar desconhecido, ainda que
freqüentemente encontrado na obra rosiana. Não topônimo ou elementos que
caracterizem um lugar específico. Sabe-se somente que a estória é narrada em
tempo ulterior aos fatos e no mesmo lugar em que se sucederam. Não obstante,
algumas marcas textuais revelam um lugar pequeno, parcamente habitado,
tranqüilo e afastado dos grandes centros urbanos. Por conta disso, mostra-se um
“sereno nosso lugar” (p. 181), típico na obra de Guimarães Rosa, característico
por possuir poucas ruas e muitos botequins.
Os membros da comunidade também não são nomeados,
tampouco individualizados. Deste modo, constituem uma personagem coletiva,
cuja voz é suprimida pelo narrador. Destes, restam apenas intervenções indiretas.
Por sua vez, o narrador, também anônimo, se destaca por
possuir outra origem. Conforme declara, “Sou de fora” (p. 179). Disso decorre que
ele possua uma formação intelectual distinta das pessoas daquele lugar. Sendo
assim, coloca-se diante da comunidade com um conhecimento de mundo capaz
de contestar o pensamento provinciano vigente. Além disso, possui o
distanciamento necessário para analisar os fatos sem ser corrompido pelos
valores sentimentais e históricos autóctones.
Toda a ação se desenvolve no passado e se torna presente
através da enunciação. Assim, o plano do enunciado se constrói de momentos
distintos do tempo: a morte de Mumbungo, a deficiência e a morte de Retrupé e,
por fim, o exílio da Mula-Marmela.
Deste modo, o narrador escuta a comunidade e observa o lugar,
com vistas à revisão do discurso coletivo. Neste momento, confronta o que sabe
com o que a comunidade julga saber e, ao final, atribui novo significado à estória.
E é justamente este embate de conhecimentos que motiva e conduz a narração.
3.2 “A gente não revê os que não valem a pena”: a visão da comunidade
A perspectiva da coletividade destaca somente os aspectos
negativos da Mula-Marmela. Segundo a visão autóctone, a mulher é feia e má,
todos “Dizem-na maldita
35
” (p. 182).
Isto porque, num passado distante, tirou a vida de seu marido, o
Mumbungo, que era “cruel e iníquo, muito criminoso, homem de gostar do sabor
de sangue, monstro de perversias” (p. 178). O Mumbungo, há muito, amedrontava
os habitantes daquele lugar, “emprestava ao diabo a alma dos outros. Matava,
afligia, matava” (p. 178). A forma verbal no pretérito mais-que-perfeito,
“assassinara” (p. 178), indica um tempo remoto, distanciando a morte de
Mumbungo dos fatos mais recentes.
35
“maldito. [Do lat. Maledictu.] Adj. 1. Diz-se daquele ou daquilo a que se lançou
maldição; condenado 2. Pernicioso, execrando, funesto 3. Muito mau; perverso, malvado,
maligno 4. Molesto, enfadonho” (HOLANDA, 1999, p. 1260) (grifo meu).
Com a morte de seu esposo, a Marmela passou a cuidar do
enteado. O Retrupé, “homem maligno, com cara de matador de gente” (p. 178),
era “o filho tal-pai-tal; o cão, também, na prática verdade” (p. 179) e, portanto, tão
propenso à malvadez quanto o pai um dia foi.
Todavia, logo que o Mumbungo morreu, a raiva do Retrupé foi
estancada por uma cegueira que, repentinamente, o acometeu. Mais uma vez, a
culpa recaiu sobre a mulher que, utilizando-se de certas plantas, teria retirado a
visão do rapaz.
Por conta disso, Mula-Marmela está associada a uma feiticeira,
conforme apontado por Walnice Nogueira Galvão em brevíssimo tópico
36
. Isto
porque, no terceiro parágrafo do conto, os modos de Marmela são descritos
como “modos, contidos, de ensalmeira” (p. 177), relacionando a personagem à
prática de ensalmos, ou seja, de orações que têm o poder de curar, de benzer.
Noutro momento, quando é culpada pela cegueira do Retrupé,
Marmela é acusada da prática de feitiçaria, pois, naquela ocasião, teria feito uso
de “leites e pós, de plantas, venenos que ocultamente retiram, retomam a visão,
de olhos que não devem ver” (p. 182). Nos dois casos, Marmela é comparada às
feiticeiras e às bruxas, mulheres dotadas de poderes mágicos e sortilégios que,
geralmente, são perseguidas e afastadas, pelo exílio ou pela morte, dos lugares
em que vivem.
A prática da feitiçaria e da bruxaria existe desde tempos remotos.
O termo feitiçaria, segundo aponta Carlos Roberto Nogueira, está associado ao
significado de fatum, que significa destino, e a feiticeira, já na Antiguidade, estava
relacionada principalmente à magia erótica e à intervenção em casos amorosos.
Para isso, a feiticeira agia como “envenenadora e perfumista, atividades
estreitamente ligadas a esta personagem mágica e que podem ser detectadas a
partir da Roma Imperial” (NOGUEIRA, 1991, P. 26).
Na mitologia grega, um exemplo desta presença é o mito de
Medéia, mulher que se utiliza de táticas e magias para subverter a ordem da
36
GALVÃO, 1998, p. 35.
subordinação feminina, em busca de realização passional e vingança. Deste
modo, Medéia representa a existência e a força da feiticeira nesta sociedade,
sendo que, aqui,
O mundo da feitiçaria é o mundo do desejo, do desejo
eminentemente passional, que a tudo se sobrepõe para conseguir
uma resposta para uma paixão não correspondida ou proibida.
Suas atividades trazem consigo a utilização de ervas e
ungüentos, dos quais resultam conhecimentos positivos, que se
transmitem da feitiçaria greco-romana à sua correspondente
imediata (...) a feiticeira medieval (NOGUEIRA, 1991, p. 26).
Posteriormente, no território europeu abrangido pelo Sacro
Império Romano, bruxas e feiticeiras foram perseguidas, capturadas, torturadas e
assassinadas pela Santa Inquisição, que julgava e punia severamente crimes de
heresia. Neste contexto, um grande número de mulheres foi condenado por
dominar conhecimentos e desempenhar funções na sociedade que, conforme se
acreditava, possuíam natureza maligna. Isto porque,
até o século XVIII a medicina esteve, em parte, nas mãos das
mulheres, uma vez que, até então, os médicos dedicavam-se
sobretudo à etiologia das doenças, relegando a prática da
medicina às curandeiras e a arte obstetrícia às parteiras. Dadas
as condições precárias da época, não era raro que um doente
morresse ao longo do tratamento, ficando a curandeira, ou a
parteira, no caso de um natimorto, automaticamente suspeita de
bruxaria (COSTA e MACHADO, 1991, p. 67).
Conseqüentemente, durante o século XV, a Inquisição
despendeu de muitas forças na perseguição às bruxas e às feiticeiras. No século
XIII, o papa Gregório IX havia autorizado a morte de algumas bruxas, todavia é
em 1484, com a bula escrita pelo papa Inocêncio III, que a caça a estas mulheres
agigantou-se, fugindo um pouco às rédeas da Igreja.
Assim como a bula de Inocêncio, foram escritos diversos tratados
que instruíam os inquisidores a capturar as bruxas e fazê-las confessar seu pacto
com satanás. Textos como o Malleus Maleficarum, escrito pelos inquisidores
dominicanos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, no século XV, ajudaram a
divulgar a caçada a estas mulheres:
Antes de tudo, falaremos de como agem com os homens, depois
com os animais, e, enfim, com os frutos da terra. No que concerne
aos homens, interessa sobretudo saber como são capazes de
impedir com bruxarias a potência generativa ou o ato venéreo,
para que a mulher não possa conceber e o homem não tenha
condições de completar o ato. Em segundo lugar, como o ato é,
às vezes, obstruído com uma mulher, mas não com outra.
Terceiro, de que modo os membros viris são arrancados, como se
fossem inteiramente separados do corpo. Quarto, como é possível
discernir quando uma coisa provém unicamente da potência do
diabo, que age sozinho, sem uma bruxa. Quanto, de que modo as
bruxas são capazes de transformar em Bestas pessoas de um e
de outro sexo com a arte dos malefícios. Sexto, como as bruxas
parteiras matam de diversas maneiras os fetos ainda no ventre na
mãe ou, quando não o fazem, como oferecem as crianças aos
demônios (...) Em conclusão, todas essas coisas provêm da
concupiscência carnal que nelas é insaciável (...) Não é de
espantar que entre os infectados pela heresia das bruxas existam
mais mulheres do que homens (SPRENGER e KRAMER apud
ECO, 2007, p. 208).
Estes tratados se disseminam entre os séculos XVI e XVIII,
incentivando a perseguição às praticantes de magia e aumentando o medo e o
desprezo por estas mulheres. Com isso, muitas delas foram conduzidas à morte, à
forca ou à fogueira, por se enquadrarem nas prescrições das bulas eclesiásticas.
Nesta altura, uma pergunta parece pertinente: porque as
mulheres eram perseguidas e não os homens? Afinal, é sabido que havia homens
praticantes de magias, mesmo curandeiros, mas em número muito inferior ao de
mulheres neste meio. A perseguição às mulheres, conforme responde Nogueira, é
uma questão histórica, anterior à caça às bruxas:
O medo à mulher tem uma longa tradição que remonta aos
hebraicos e à Antiguidade clássica. Para os gregos, foi Pandora, o
presente dado aos homens por Zeus, ‘um mal em que todos, no
fundo do coração, se deleitarão em rodear de amor sua própria
desgraça’, foi a responsável pela introdução de todos os males do
mundo (NOGUEIRA, 1991, p. 104).
Igualmente, as referências bíblicas às mulheres remetem ao mal
e sua entrada no mundo. O corpo da mulher é lascivo e um convite ao pecado.
Neste sentido, Tomás de Aquino, na Suma Teológica, adverte sobre a corrupção
da mulher e sua índole maligna:
Verdadeiramente, não existe mais que um sexo, o masculino. A
Fêmea é um macho deficiente. Não é então surpreendente que
este débil ser, marcado pela imbecilitas de sua natureza, a
mulher, ceda às tentações do tentador, devendo ficar sob tutela
(AQUINO apud NOGUEIRA, 1991, p. 106).
Por sua vez, o documento Malleus Malleficarum atribui a prática
de magias e feitiçoes ao apetite sexual que, na mulher, é insaciável:
Toda perversidade é não obstante pequena para a perversidade
de uma mulher. O que é a mulher além de um inimigo da
amizade, uma punição inescapável, um mal necessário, uma
tentação natural, uma calamidade apetecível, um perigo
doméstico, um delicioso dano, um mal da natureza pintado com
belas cores ! (KREMER e SPRENGER apud NOGUEIRA, 1991,
p. 106).
Apesar de reafirmar a inferioridade e a imperfeição da mulher, as
palavras dos dominicanos admitem que ela é um mal necessário, que precisa ser
domado e vigiado, como um animal selvagem, ou como um demônio angelical.
Portanto, a mulher é o amargo remédio para o desejo sexual do homem que, sem
ela, cederia à fornicação e à corrupção de seu corpo. O papel da esposa, neste
sentido, é servir ao marido de modo que este não venha a cometer os pecados da
carne
37
. No livro Confissões, Agostinho admite, a respeito do matrimônio, que “O
que em grande parte e com violência me prendia e torturava era o hábito de saciar
a insaciável concupiscência” (AGOSTINHO, 1999, p. 164).
37
São Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, adverte: “Penso que seria bom ao
homem não tocar mulher alguma. Todavia, considerando o perigo da incontinência, cada
um tenha sua mulher, e cada mulher tenha seu marido” (BÍBLIA, 2004, p. 1464).
Destarte, a natureza da mulher está diretamente relacionada ao
mal e ao pecado, diferentemente do homem visto como o gênero superior,
descendente direto de Cristo. Soma-se a isto, o ofício de parteira realizado pelas
mulheres que, por conta das mortes e deformações físicas decorrentes da
precariedade deste serviço, eram associadas ao pacto demoníaco e à bruxaria.
Diante disso tudo, é possível compreender que as bruxas e as
feiticeiras tornaram-se alvos da perseguição à mulher por conta da essência
devassa que se revela em sua aparência desgostosa. Por conta de sua natureza
nefasta, as mulheres acusadas de bruxaria eram, em sua grande maioria, velhas e
feias, viúvas ou solteironas, que não encontraram no casamento uma vida
próspera.
Neste contexto, a fealdade da aparência é interpretada
justamente como marca da iniqüidade das servas de satã. Conforme aponta Nubia
Hanciau,
a figura da feiticeira é ao mesmo tempo real - sua história remonta
à Idade Média - e simbólica, daí a fascinação que exerce. No
imaginário masculino tradicional, sobretudo do na Igreja, ela é
possuída pelo diabo e duplamente maldita; por acreditar-se que
com ele fornica, ela encarna o pecado e o mal. Por extensão o
termo bruxa designa toda mulher feia ou má, vestida de forma
bizarra (HANCIAU apud
BARBOSA, 2003,
p. 57).
Ainda hoje, salvo as exceções em que apresentam um aspecto
belo e sedutor para aliciar suas vítimas, as bruxas são lembradas como mulheres
horrendas e muito feias de tal modo que a palavra se tornou sinônimo para
designar a fealdade feminina. Conforme acepção dicionarizada,
bruxa. [De or. Pré-romana, poss.] s.f. 1. Mulher que faz
bruxarias; feiticeira, maga, mágica. 2. P.ext. Mulher feia e/ou
rabugenta; bruaca, canhão, carcaça, coruja, cuca, jabiraca,
medusa, megera, muxiba, seresma, serpe, serpente,
urucaca, xaveco (FERREIRA, 1999, p.337) (grifo meu).
Sendo assim, vítimas de um ensinamento moral que relaciona
aparência e essência, beleza e bondade, feiúra e maldade, as bruxas são
hostilizadas, desde tempos remotos, por manterem um pacto demoníaco e, por
isso, são perseguidas e punidas. Segundo Umberto Eco,
na maior parte dos casos as vítimas de tantas fogueiras foram
acusadas de feitiçaria porque eram feias. E a respeito de sua
feiúra, inventou-se que nos sabás infernais elas poderiam se
transformar em criaturas de formas atraentes, mas sempre
marcadas por traços ambíguos que revelariam sua feiúra interior
(ECO, 2007, p.212).
No conto de Rosa, Mula-Marmela está associada a esta imagem
da mulher maligna, da feiticeira que utiliza sortilégios e conhecimentos
sobrenaturais para dar cabo de seu destino, fatum, para cumprir sua função. Além
disso, ela é uma mulher feia, velha, soturna, que vive escondida, esmolambada e
mal-cheirosa e que lembra, por conta destes atributos, o perfil de uma bruxa.
Assim como esta personagem histórica e mitológica, Marmela é
odiada pela sociedade que a acusa de cometer crimes de sangue, contra seus
próprios familiares, provavelmente movida por seus impulsos malignos, e por
conta disso é condenada à morte. Todavia, a morte de Marmela não é física, é
uma morte simbólica, uma morte social
38
na medida em que ela é privada
completamente de seu convívio através do exílio. Todavia, a morte social de
Marmela havia sido decretada antes mesmo de sua expulsão, pois ninguém
nunca se interessou por ela, nunca os moradores se aproximaram da mulher,
“vocês não podem gostar dela, nem sequer sua proximidade tolerem” (p. 181).
Portanto, o isolamento e a impossibilidade de comunicação são impostos pela
38
Morte Social: total isolamento é a completa ausência de relacionamentos interpessoais;
e a impossibilidade ou a perda da capacidade de estabelecer relações significativas com
outras pessoas. Isto acarreta isolamento e solidão (RODRIGUES; TERRA, 2006, p. 35).
comunidade e, neste sentido, o agente da morte social não é o sujeito envelhecido
e, sim, o desprezo que impede à sociedade de interessar-se por este sujeito
39
.
Adair de Aguiar Neitzel, em sua análise das personagens
femininas do Grande Sertão: Veredas, destaca um grupo de mulheres “de aspecto
intrigante, simulacros de esfinges que produzem enigmas e ocupam o espaço da
esposa fiel ou da prostituta dadivosa” (NEITZEL, 2004, p.93)
40
. Em oposição às
mulheres dedicadas ao amor e ao cumprimento de seu papel de mãe e de fêmea,
estas outras mulheres estão relacionadas à morte, à esterilidade, e, neste sentido,
“são donas de um caráter e de uma força imbatíveis, por vezes castrador,
distanciando-se da natureza erótica e fecunda, da positividade’, comumente
encontrada na mulher rosiana” (NEITZEL, 2004, p.93).
Considerando-se esta divisão, pode-se acrescentar ao segundo
grupo, numa abordagem mais ampla, a Mula-Marmela. Ela não possui a beleza ou
a sensualidade femininas, é constantemente associada à imagem e à prática do
mal, além de ser muito feia. Por tudo isso, Marmela é alvo da intransigência da
comunidade que age unicamente em favor de sua proteção, e isto significa livrar-
se de todo mal, expurgá-lo do lugar. Neste sentido, Marmela representa uma
longa tradição de profanações e violências destinadas ao corpo feminino e se
enquadra no que Anne-Marie Dardigna chama de “metafísica da carne”. Segundo
ela,
39
A morte social é a última conseqüência do envelhecimento social, “um processo lento
que leva à progressiva perda de contatos sociais gratificantes. É um processo que se
inicia em algum momento da vida de um ser humano, acentua-se em diferentes ocasiões
e, através de avanços e recuos nem sempre muito precisos, pode levar à chamada morte
social” (RODRIGUES; TERRA, 2006, p. 35).
40
Neitzel identifica dois grupos de mulheres na obra rosiana, um relacionado a Eros
(amor) e o outro a Tanatos (morte): Os grupos femininos são, assim, antagônicos: um
lado positivo, vitalizante do qual fazem parte Nhorinhá, Otacília, Diadorim, Rosa’uarda,
Miosótis, Hortência e Maria-da-Luz contrabalançando por um lado que se afasta da
sensualidade, do erotismo, aproximando-se muitas vezes do mortífero, destruidor
representado por Maria Mutema, a Mulher do Hermógenes, Ana Duzuza, e/ou
sobrenatural – representado por Izina Calanga e Maria Leôncia” (NEITZEL, 2004, p.114).
O lugar privilegiado dessa subversão, dessas destruições
sacrílegas e profanatórias é o corpo das mulheres, ‘território
fechado e mundo suportando o arbitrário do poder masculino’.
Toda a violência do erotismo se concretizaria, de forma
sacrificatória, no corpo feminino, exposto como objeto de ataque,
como a vítima expiatória dos sacrifícios primitivos (Dardigna apud
BRANDÃO, 1993, p. 237).
Sendo assim, a personagem de Guimarães Rosa remete às
crenças e aos rituais encontrados desde as origens do pensamento ocidental.
Associada às bruxas e feiticeiras, a Mula-Marmela é uma mulher que comporta,
em seu corpo envelhecido e feio, muitas histórias, de inúmeras mulheres, que
foram vitimadas por uma visão maligna da feminilidade. Soma-se a isto, com
agravo, a suposição de que ela roubava o dinheiro que o cego esmolava e que os
dois, madrasta e enteado, praticariam atos libidinosos.
Portanto, ela é uma destas personagens, sempre presentes, que
existem nas brechas do belo e cuja participação é indispensável para a formação
daquilo que é moralmente aceitável e socialmente desejável. Conforme Nogueira,
A uma crença oficial é de vital importância o papel desempenhado
pelo demônio e seus agentes, cuja participação configura os
comportamentos divergentes, e auxilia a coletividade no
reconhecimento e repúdio das mesmas. Era necessário para o
mental coletivo a existência da encarnação do Mal. Era preciso
que fosse visto, tateado, tocado, para que o Bem surgisse como
graça suprema o Belo e Divino, em oposição ao Horrífico e
Demoníaco (NOGUEIRA, 1991, p. 165).
Não obstante, outro crime também foi imputado à Mula-Marmela.
Após um ataque de fúria do cego, a mulher o teria asfixiado até a morte, na calada
da noite. As pessoas asseguram que, “a Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi
quem esganou estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos
pescoços; no cujo, no corpo do defunto, após, se viram marcas de suas unhas e
dedos, craváveis” (p. 186).
Na perspectiva de seus concidadãos, Marmela foi a assassina de
seu próprio filho. Ainda que não se trate de um filho biológico, Marmela é a única
mãe de Retrupé. Ela sempre tomou conta dele, porque ele, cego e odiado por
todos, precisava dela, “como os pobres precisam uns dos outros” (p. 179). A
Mula
41
não tem filhos, é estéril, e reconhece no enteado o filho que ela não pode
ter: “Diz-se que ela teria lágrimas nos olhos; que falou, soturna de ternuras
terríveis: Meu filho...’” (p. 186).
Neste sentido, a história de Marmela se identifica, novamente,
com o mito de Medéia. Conforme encontrada na tragédia de Eurípides, Medéia
não se enquadra nos padrões comportamentais de uma mulher pertencente a uma
sociedade patriarcal. Ela se rebela contra as regras da submissão e faz uso de
magias para realizar seus desejos, mesmo que para isso precise se tornar uma
assassina. O ato extremo de Medéia é o homicídio dos próprios filhos para cumprir
a vingança contra Jasão, o marido adúltero, que vocifera:
Maldita! Abominável! Odiada pelos deuses, por mim e por toda a
raça dos seres humanos. Execrada como jamais o foi outra
qualquer mulher. Tua crueldade penetrou com a espada o corpo
dos seres que geraste, assim me destruindo e me deixando sem
prole. E ainda ousas fitar a Terra e o Sol depois desse ato ímpio e
sangrento. Maldição sobre ti! Todas as maldiçoes sobre ti! Tens
que desaparecer da face do mundo. Agora percebo a extensão de
meu erro no malsinado dia em que te trouxe de tua terra bárbara
para esta terra grega, tu que traíste o pai que te gerou e a pátria
que te alimentou. Os deuses te lançaram contra mim como uma
maldição, demônio maligno sedento de sangue. Em teu próprio lar
tinhas matado teu irmão ara poderes subir na Argo, minha bela
nau de bela proa. começou tua vida de crimes. Casa então
comigo, geraste dois filhos apenas para aplacar tua desmedida
lascívia. Filhos que agora destróis sem piedade por ciúme de
leito. Nenhuma mulher grega ousaria tal feito, e, contudo, eu,
insensato, te preferi a ela numa união odiosa e funesta. Tu, não
mulher, leoa de natureza, mais feroz do que a tirrena Cila, sei que
nem mil maldições abalarão tua natureza de granito. Mas eu te
maldigo: que sejas danada para sempre, ser hediondo, feiticeira,
assassina de teus filhos. A mim me resta curvar-me ao meu
destino, sem nem poder desfrutar minhas novas núpcias. Nem
aos filhos que gerei e criei poderei dirigir a última palavra, o último
adeus. Eu perdi tudo (EURÍPIDES, 2004, p.82).
41
“Assim, todo aquele que sabe que toda mula é estéril, sabe que este animal é estéril, se
sabe que é mula” (AQUINO, 2005, p. 382).
Medéia é ultrajada por agir contra o marido através do
assassinato dos filhos. Conduzida pelo ódio e pelo desejo de vingança, ela
representa a realidade de muitos indivíduos marginalizados que, rejeitados por
suas sociedades por serem considerados inferiores, se tornam alvos de violências
e humilhações.
Marmela mata seu filho, mas não por ciúme. Ela matou o Retru
porque precisava matar. O impulso que moveu Marmela a cometer os crimes é
diferente do impulso passional que conduziu a heroína da tragédia clássica a
matar os filhos. Em “A benfazeja”, a protagonista é movida pela mola do destino
mas não age em benefício próprio, visto que todos os seus esforços estão
voltados para o bem e a proteção da comunidade. Ela não cometeu os crimes
porque desejava prejudicar alguma pessoa o Mumbungo e o Retrupé como
reparação dos danos causados por elas, nem tampouco fora estimulada a matar
por sentir ciúme ou ódio: “Não, não ódio; engano. Ela, não” (p.182). A Mula-
Marmela matou porque foi incumbida de matar, “de cortar, com um ato de não’,
sua existência doidamente celerada” (p. 179), tanto o marido, quanto o enteado.
Tantos indícios, a ligação parental com Mumbungo e Retrupé e a
lista de maldades praticadas por Marmela, fazem com que a comunidade
enxergue somente feiúra na mulher e lhe atribua a mesma essência maligna dos
outros dois. Deste modo, sendo ela tão assassina e cruel quanto eles eram, deve
ser igualmente eliminada do convívio social. Assim, a mulher feia e criminosa é
exilada da comunidade.
Neste âmbito, mal e feio se (con)fundem: “A mulher – malandraja,
a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime
não arrependida e guia de um cego” (p. 176). Portanto, na visão das pessoas
que julgam Marmela, não há distinção entre a essência e a aparência dos fatos
e/ou da mulher.
A voz desta personagem coletiva é composta por várias vozes
não individualizadas, que “criam em torno da mulher excluída pelo grupo um
mythos em que não é possível distinguir testemunho de efabulação” (PACHECO,
2006, p.126). Neste ponto, o pensamento da comunidade reproduz outro, mais ou
menos uniformizador, que postula a equivalência entre feio e mau, entre feiúra e
disposição moral. Deste modo, na medida em que cometer um crime é feio, o
seu agente também o é, sem distinção entre moral e estética.
Sendo assim, o fato de a Marmela ser feia corrobora para o pré-
julgamento que a coletividade, conduzida pelos sinais da intervenção divina e pelo
valor da expurgação do mal, faz dela. Aos moldes das sociedades que
perseguiam e matavam as mulheres acusadas de bruxaria que o consideravam
a diferença entre a aparência disforme e a natureza maligna, o lugarejo vê na
figura da Marmela, a mula, a portadora de todo o mal.
3.3 “Cada qual com sua baixeza; cada um com sua altura”: a visão do
narrador
Diante deste mythos elaborado em torno de Marmela, o narrador,
ao compor seu relato, posiciona-se dentro e fora da comunidade, alternando
constantemente a perspectiva dos fatos narrados.
Por um lado, ele se coloca como parte da comunidade,
aproximando-se do interlocutor e, em favor de sua argumentação, fala na primeira
pessoa: “a gente podia viver o sossego” (p. 180), “os moradores deste sereno
nosso lugar” (p. 181) e “tranqüilos estamos” (p. 185). Neste sentido, pode-se inferir
que “o narrador esalgum tempo no lugar, o que se nota pela familiaridade
que tem com os moradores e com as versões da história de Mula-Marmela, bem
como por expressões que indicam permanência” (PACHECO, 2006, p. 126).
No momento da enunciação, Retrupé está morto e Mula-Marmela
exilada. Todavia, quando o narrador chegou ao povoado e tomou conhecimento
da história da Mula, ainda pôde observá-los perambulando pelas sombras do
lugar, a mulher e o cego, os dois, assassinos. Deste modo, seu testemunho é
resultado do confronto entre a visão autóctone e a experiência da sua observação:
E outra vez vejo que vêm, pela indiferente rua, e passam, em
esmolambos, os dois, tão fora da vida exemplar de todos, dos que
são os moradores deste sereno nosso lugar. O cego Retrupé
avança, fingindo-se de seguro, não dá à Mula-Marmela a ponta do
bordão para segurar, ela o guia apenas com sua dianteira
presença, ele segue-a pelo jeito, pelo se deslocar do ar como
em trasvôo se vão os pássaros (p. 181).
Porém, o narrador não se contenta com a aparência dos fatos e
pretende averiguá-los. Neste intuito, ele entra em contato com a Mula-Marmela e,
no momento da enunciação, reproduz de modo indireto a “antiqüíssima
linguagem” (p. 183) da mulher, destacando dois vocábulos de seu léxico primitivo:
gasalhado e emparo(p. 183). Isto assinala o interesse do forasteiro em apurar o
que motiva a repulsa sentida pela comunidade em relação à Marmela. Neste
sentido, encadeia em seu discurso uma série de expressões que apontam para a
tênue fronteira existente entre aquilo que é e aquilo que parece ser: “Sei que” (p.
176), “Soubessem-lhe” (p. 176), “E nem desconfiaram” (p. 177), “vocês nunca
desconfiaram” (p. 178), Sei que” (p. 178), “Vocês sabem” (p. 178), “todos sabem”
(p. 179), “sem que se saiba” (p. 180), “sei e pensam” (p. 180), “Parece que” (p.
185) e “vocês crêem saber” (p. 186).
Por outro lado, o narrador se posiciona fora da comunidade,
distanciando-se do interlocutor. Isto permite que ele questione os acontecimentos
sem comprometer-se com eles, “Mas, eu, indaguei. Sou de fora” (p. 179).
Por ser forasteiro, o narrador, antes de construir seu relato,
precisa ouvir o que contam as pessoas daquele lugar. E, por se tratar de um lugar
muito pequeno, é de se supor que a história da Marmela seja transmitida entre os
moradores.
Destarte, o narrador confronta o relato oral recolhido com o
exame in loco por ele empreendido. Disto resulta que seu discurso apresente
muitos verbos elocutivos que reproduzem, de maneira indireta, a fala da
comunidade, assim como: “diziam” (p. 176), “Dizem que” (p. 178), “Dizem-se” (p.
179), Diziam que” (p. 184), “Conta-se-me” (p. 185) e “Diz-se que” (p. 186). Neste
sentido, dirige seu discurso à comunidade, em tom de exortação, e instaura um
diálogo.
Todavia, neste diálogo a voz do interlocutor aparece somente de
forma indireta, reproduzida pelo narrador que, por vezes, parece responder a
possíveis interrupções dos moradores, como em “Seu antigo crime?” (p. 177).
Aqui, observa-se um expediente semelhante ao de Grande Sertão: Veredas, em
que a voz do ouvinte
é patente apenas pelo reflexo no relato de Riobaldo, única voz do
livro. Poderíamos falar, então, em diálogo, pela metade, ou
diálogo visto por uma face. De qualquer modo, trata-se de um
monólogo inserto em situação dialógica (SCHWARZ, 1991, p.
378).
Diferentemente do que acontece no romance, a voz
predominante no conto é a do forasteiro, do homem da cidade. Neste mesmo
sentido, “A benfazeja” se distingue também de outros contos do escritor, como
“Meu tio o Iauaretê”, “Antiperipléia” e “– Uai, eu?”, em que sobressai a voz local,
do sertanejo. Na história da Mula-Marmela, a matéria está no sertão, mas quem
articula a fala é o indivíduo citadino, culto e letrado. Em sua fala, portanto, estão
amalgamadas as vozes da coletividade e, principalmente, a voz a mulher excluída
que não tem voz social e não pode falar por si. O narrador, portanto, expressa a
voz feminina abafada pela sociedade e, devido a isso,
sugere uma recriação da figura do coro grego clássico, na sua
função não de exprimir, em temores e esperanças, os
sentimentos dos espectadores que compunham a comunidade
cívica, mas, também, comentar e refletir a relação ‘entre o
indivíduo e as forças cósmicas’ (FIGUEIREDO, 2008).
Neste sentido, o narrador elabora um discurso argüidor e
persuasivo. Assim, ao mesmo tempo em que aponta para o julgamento precipitado
daquele grupo, busca convencê-lo a mudar o foco de sua visão, clarificando as
ações da Mula-Marmela. Assim sendo, a retórica do narrador consiste em escutar
e reproduzir o pensamento coletivo e, em seguida, contestá-lo com argumentos
externos ao conhecimento local que ajudam a esclarecer os acontecimentos e
desmistificar a existência da Marmela, da feiúra e da maldade.
Com a intenção de aproximar-se do seu interlocutor e ganhar-lhe
simpatia e confiança necessárias para que seu discurso seja eficaz, o narrador
inicia seu relato mostrando-se tolerante com a atitude da comunidade em relação
à Marmela:
Sei que não atentaram na mulher; nem fosse possível. Vive-se
perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz
ao devagar das pessoas. A gente não revê os que não valem a
pena (p. 176).
Com isto, o narrador declara ter ciência do desprezo em relação
à Mula-Marmela, mas compreende que a proximidade com o sujeito observado
ofusca a visão do observador, induzindo-o a possíveis erros. Deste modo, ele
entende ser necessário certo afastamento, para que o foco seja ajustado e o
sujeito observado seja clarificado e melhor compreendido. A proximidade que os
moradores têm com Marmela, e, igualmente, com o Mumbungo e o Retrupé, ainda
que eles sejam marginalizados e apartados do seu convívio, atrapalha o juízo que
se faz deles. Agindo assim, com condescendência, ainda que esta esteja munida
de certa ironia, o narrador estabelece um nculo amigável com o seu ouvinte e
denota empatia inserindo-se no discurso.
A partir disto, é capaz de desvelar o que a comunidade não
conseguia e nem podia enxergar:
Nem fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de
desencobrir-lhe as feições, de sob o sórdido desarrumo, do sarro
e crasso; e desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade, senão
de crispa expressão (p. 177).
Neste sentido, não só o Retrupé, mas também a comunidade
sofre de uma severa deficiência visual, pois não consegue enxergar o que se
configura como diferente, ou mesmo avesso aos padrões estéticos e éticos
estabelecidos por ela. Assim, enquanto, numa mão, o discurso coletivo enfatiza a
fealdade e a crueza da mulher, aproximando-se do estado de cegueira do
Retrupé, noutra o, o discurso do narrador articula um pensamento que busca
rever aqueles que, segundo ele, valem a pena. Sendo assim,
Uma expressiva rede especular vai criando identidades e
diferenças, literalmente cego, Retrupé espelha a simbólica
cegueira do vilarejo, enquanto sua guia reflete o olhar diverso do
narrador. Cada qual à sua maneira, ambos protegem e contestam
a comunidade, escapando a suas regras e nela introduzindo um
intrigante exterioridade; Mula, ‘tão fora da vida exemplar de
todos’, coíbe as transgressões dos companheiros e, como alguém
de fora, o narrador alerta para a visão turva de seus
interlocutores, impedidos de vislumbrarem a melhor e inusitada
face da protagonista (PASSOS, 2000, p.107).
Sendo assim, o narrador é capaz perceber a essência benfazeja
da mulher, o que motiva a construção de uma fala que promove a defesa daquela
que não pode falar por si. Neste sentido, o discurso empreendido pelo narrador
visa uma mudança de perspectiva da comunidade em relação à Marmela.
Segundo Ana Paula Pacheco,
No centro de um discurso que revê os julgamentos ali
determinados, a voz local é posta como narrador não confiável,
que diz sem ter visto e como lhe convém. A fala do homem de
fora surge então como demarcadora, mostrando que a da
coletividade conta a história de uma exclusão da perspectiva de
seus agentes, convencidos do bom fundamento da violência que
praticaram. Mostrando, simetricamente, um ‘bom fundamento
para a violência de Mula-Marmela, propõe a reflexão, clarificando
alguns fatos, indicando a fronteira escorregadia entre o
acontecido e o narrado (PACHECO, 2006, p.128).
Por conseguinte, evidencia-se que a visão privilegiada do
narrador advém de uma formação intelectual diversa dos membros daquela
comunidade. Assim sendo, ele pode estabelecer a relação entre os
acontecimentos e a tragédia grega, atuando com sabedoria necessária para
melhor interpretá-los. Neste esforço, elabora seus argumentos pautado pelos
valores éticos e morais deliberados pela tradição ocidental. Deste ângulo, é capaz
de compreender os motivos que conduziram, ou obrigaram, a Marmela a matar o
Mumbungo, cegar e estrangular o Retrupé.
3.4 “Nos domínios do demasiado”: marcas do trágico no discurso do
narrador
Em “A benfazeja”, o discurso do narrador é marcado pelo
conhecimento erudito que alia o sertão ao mundo, o regional ao universal, o conto
de Rosa à tragédia grega.
Logo no título do conto, fica evidente um dos elos existentes
entre a literatura de Rosa e a mitologia dos povos antigos, pois alude diretamente
à Eumênides, última peça da trilogia Oréstia, de Ésquilo (525 456 a.C.), que
encerra a trajetória de Orestes, com o seu julgamento. Nela, Erínias são entidades
ctônicas descritas como filhas da noite, responsáveis pela punição dos crimes de
sangue. Na mitologia grega, as Erínias são divindades familiares, antigas, que
acompanham os criminosos consangüíneos desde sempre, retidas em sua mente,
guardadas em seu peito, sufocadas em seu sofrimento” (BARBOSA, 2007, p. 37).
As Erínias perseguem Orestes porque ele matou a mãe,
assassina do pai. Todavia, ao chegarem a Delfos, onde acontece o julgamento no
palácio de Apolo, são confrontadas pelos deuses mais novos, pois querem aplicar
uma lei antiga contrária àquela que se instaurava. Elas buscam justiça que,
entretanto, não é concretizada, pois Orestes é absolvido. Em função disso,
amaldiçoam a cidade com promessas de destruição.
Buscando amenizar a ira da Erínias, a deusa Atena propõe que
elas se tornem protetoras da cidade e recebam, em recompensa, sacrifícios em
seus nomes. Assim, as Erínias se tornam Eumênides, que significa bondosas,
benfazejas. Neste ponto, a tragédia encontra o conto.
A Mula-Marmela é “velha e feia” (p. 176), as Erínias são
“mulheres de aspecto estranho (...) tenebroso e repelente” (ÉSQUILO, 1999, p.
145) e “filhas antiqüíssimas de um passado remoto” (ÉSQUILO, 1999, p. 145). A
Marmela vive na escuridão, “embrenhada, mesmo quando ao claro, na rua” (p.
176), as Erínias são tristes descendentes da negra Noite” (ÉSQUILO, 1999, p.
160). Marmela é mula, estéril, “não pariu nem parirá, nunca” (p. 183), as Erínias
são “virgens malditas (...) nunca as possuíram quaisquer dos deuses, homens e
nem mesmo feras” (ÉSQUILO, 1999, p. 145). A Mula-Marmela tem o cheiro de
loba, o “lobum
42
”, as Erínias perseguem Orestes como “um cão de caça”
(ÉSQUILO, 1999, p. 153). Além de loba e mula, a Marmela anda “em sestro de
égua solitária” (p. 177) e possui “selvagem compostura” (p. 187), as Erínias
possuem aparência que “em nada se assemelha a criatura alguma (os deuses não
vos contam entre os numes celestes e vossas feições em nada lembram as dos
homens e mulheres)” (ÉSQUILO, 1999, p. 160).
Além dos pontos de contato evidenciados acima, ainda outras
marcas da tragédia no conto. Logo no primeiro parágrafo, o narrador divulga que a
Mula-Marmela pertence aos “domínios do demasiado” (p. 176), ou seja, da
desmedida, do descomedimento típico do herói trágico. Sendo assim, o narrador
insere a Mula-Marmela:
na ordem antiga das personagens que crêem em seus valores e
por eles lutam incondicionalmente, sem recorrem nunca a
qualquer espécie de negociação que lhes propiciem a fuga do
destino. Antígona, Édipo, Ájax, Agamêmnon, entre muitos outros
heróis gregos, caracterizam-se pela hybris, pela desmedida,
sendo, por causa de tal especificidade, eliminados da comunidade
grega, ainda que com muita dignidade (CEZAR, 2001, p.1).
Ratificando este sentido, o principal argumento do narrador
consiste em atribuir as atitudes de Marmela ao destino. Assim, aproxima a
42
Em carta ao tradutor alemão, o autor explica: O LOBUM =: o cheiro do loboWolfsgestank ou
Wolfsstinkerei (Deve haver uma palavra alemã para isso, na rica linguagem dos caçadores.) (Cf.:
bodum (= cheiro de Ziegenbock), fartum =: mau cheiro) Em Sagarana, fiz ‘boium’, para cheiro de
boi. Assim, lobum: = catinga de lobo” (ROSA, 2003, p. 341).
personagem rosiana ao herói trágico que, aos moldes de Édipo, depara-se com
um futuro inexorável. Entretanto, ao contrário do rei tebano, a resignação marca a
conduta da sertaneja, pois Marmela não se esquiva de sua sina, mesmo que isso
signifique matar os seus:
A mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o
necessário bem de todos, ela mesma poderia ser a executora
da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que,
em seus escondidos corações, imploravam. Só ela mesma, a
Marmela, que viera ao mundo com a sina presa de amar aquele
homem, e de ser amada dele; e, juntos, enviados (...) Se ela
poderia matar o homem que era o seu, ela teria de matá-lo (p.
181).
Deste modo, a Marmela não poderia fugir de seu destino.
Ninguém poderia tomar o seu lugar na tarefa de proteger o povoado e purgá-lo de
todo mal. Portanto, ela não deve ser desprezada pelos crimes cometidos, na
medida em que, para o contexto, era necessário que ela agisse de tal modo. A
Marmela é conduzida por uma “sina forçosa demais” (p. 181), do mesmo modo
com que “a tragédia clássica pressupunha a luta do herói contra a inexorabilidade
do Destino (fatum ou anankê), determinado pelos deuses” (MOISES, 2004, p.
449).
Contudo, diferentemente do que ocorre com as tragédias, o final
de Marmela não é digno. Ela é expulsa do lugar, sem homenagens, sem consolo,
humilhada. Ela atua como bode expiatório que, exilada, leva consigo toda
impureza.
Segundo o Dicionário de termos literários de Massaud Moisés, o
termo tragédia significa “canto de bode” (MOISES, 2004, p. 448) e deriva do grego
tragoidia (tragos, bode, e oide, canção, ode). Sua origem está relacionada aos
rituais de homenagem ao deus Baco, onde cantores vestiam-se de bodes
compondo um “simples ‘coro de bodes’” (MOISES, 2004, p. 448).
Em “A benfazeja”, as marcas do trágico conduzem para o
desfecho dramático, quando a Marmela deixa a comunidade: “vocês a viram partir:
o que figurava a expedição do bode seu expiar” (p. 186). Com isso, o narrador
evidencia o significado benfazejo da Marmela descrevendo o seu derradeiro
sacrifício como a “expedição do bode”, pois aproxima Marmela do pharmakós
grego, que se sacrificava para expurgar o mal, para purificar a cidade.
Na tradição cristã, o bode é o animal eleito nos rituais de
expiação, onde o animal era escolhido como símbolo da purificação dos males
que acometiam a sociedade. Análogo a isto, nas cidades gregas, o pharmakós
também constituía práticas de purificação, quando alguma calamidade se abatia
sobre a cidade.
No conto de Guimarães Rosa, a comunidade se distingue de
Marmela atribuindo somente a ela toda a essência maligna que antes se aplicava
também ao Mumbungo e ao Retrupé. Deste modo, o mal está simbolizado em
alguns indivíduos eleitos que devem ser expulsos do lugar. Quando os dois
homens morrem, toda a idéia que se faz do mal, nesta comunidade, é direcionada
para Marmela, que figura como bode expiatório.
O bode expiatório remete aos rituais de sacrifício que aconteciam
na antiguidade grega, antes da instituição do direito. Nos rituais do pharmakós, o
bode expiatório era escolhido deliberadamente entre os marginalizados,
deficientes, miseráveis, doentes ou criminosos. Deste modo,
Se uma calamidade se abatia sobre a cidade, exprimindo a cólera
de deus fome, peste ou qualquer outra catástrofe –, o homem
mais feio de todos era conduzido como que a um sacrifício como
forma de purificação e remédio para os sofrimentos da cidade
(DERRIDA, 2005, p.80).
Neste sentido, a fealdade está associada a uma prática sacrifical
que visa instaurar a paz e a ordem. A feiúra, portanto, pende para um significado
benigno que a relaciona a algo positivo para a sociedade.
No caso de Marmela, os mesmos atos a tornam boa e má, na
medida em que para proteger a comunidade do mal, ela precisa se tornar a
assassina do marido e do enteado. Ela faz o mal para o Mumbungo, matando-o, e
para o Retrupé porque o deixa cego e, supostamente, também o mata. Noutro
sentido, ela protege o lugarejo com estes e outros atos, como recolher cacos de
vidro do chão e levar embora o corpo podre de um cachorro morto. Desse modo,
Trata-se de trazer à tona a antinomia: os mesmos atos tornam
Mula-Marmela maléfica e benfazeja, pois matar é livrar a
comunidade, cegar é afastar a ameaça proveniente da ‘maligna
estirpe’ da Mumbungo. Vale lembrar as sombrias vingadoras,
Erínias ou Fúrias, cujo nome não se podia pronunciar sob pena de
invocá-las, e que eram também (e para proteção) chamadas de
Eumênides, benfeitoras, pelos gregos antigos (PACHECO, 2006,
p.134).
Diante disso, destaca-se a intenção do narrador em transformar o
juízo que se faz da mulher. Através de seu discurso, aponta para uma versão da
estória ainda desconhecida pela comunidade, a bondade da Mula-Marmela e a
necessidade de sua existência naquele contexto. Agindo deste modo, o narrador
desempenha função semelhante à de Palas Atena na peça ática. Através da
palavra, ele tenta mudar a maneira como a comunidade a mulher, assim como
a deusa grega em relação fúrias. Conforme Tereza Barbosa,
A metamorfose das Erínias em Eumênides ou Benfazejas dar-se-
á por uma retórica bastante eficaz. A palavra da deusa que nasce
da cabeça de Zeus tem, portanto, poder extraordinário. A
novidade de Ésquilo reside na sua abordagem do problema da
prática de justiça. Em lugar da profusão multiplicadora de seres
vingadores, defendendo a honra de um indivíduo assassinado, o
poeta mostra que o impasse pode ser solucionado a partir de uma
estratégia relativamente simples: troca-se o nome das entidades,
que passam a ser Benfeitoras, que zelam pelo bem-estar coletivo
dos vivos (BARBOSA, 2007, p. 38).
Assim sendo, fica evidente que somente o narrador culto poderia
ser capaz de ver, além da feiúra e dos crimes, a riqueza de Mula-Marmela, “Rica,
outromodo, sim, pelo que do destino, o terrível” (p. 177). Ele compreende a
utilidade da mulher naquela comunidade e mostra, através do seu discurso
inquiridor, que ela é cura para o mal que rondava o lugar. De acordo com carta de
Guimarães Rosa ao tradutor alemão,
‘Mula’, na região minha, é qualquer bloco, limpo, de quartzo,
cristal-de-rocha; sempre se guarda em casa um pedaço de cristal,
desses, para aplicar, terapeuticamente, em casos de contusões,
etc., como acontece na novela. Faz efeito, por resfriar a parte do
corpo inflamada ou contusa (ROSA, 2003, p. 206).
Dito isto, fica patente o caráter benéfico da protagonista. Ela é a
responsável por conter a sede de sangue do Mumbungo, por isso precisa matá-lo.
Do mesmo modo, é designada para tomar conta do Retrupé e impedir que a
herança maligna do enteado se realize. E, nestas tarefas, ninguém poderia
substituí-la, “só ela mesmo poderia ser a executora − da obra altíssima” (p. 180).
Contudo, diferentemente do que ocorre com as Erínias na
tragédia, no conto, a mudança de perspectiva se restringe ao discurso do
narrador, é apenas nele que a Mula-Marmela se transforma em benfazeja, pois a
visão de mundo da comunidade não se altera. Por conta disso, o narrador encerra
sua fala com uma sentença imperativa: “E, nunca se esqueçam, tomem na
lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o que vocês viram com
seus olhos terrivorosos, e não souberam impedir, nem compreender, nem
agraciar” (p. 187).
3.5 “Pensem, meditem nela, entanto”: a moral da história
O relato do narrador tem um curto período de tempo. Não se
pode precisar a duração, todavia pode-se supor que a história é contada de uma
única vez, sem pausa, sem quebras, a não ser as exigidas pela própria diegese.
Sendo assim, o narrador passa pouco tempo com seu interlocutor. Todavia, isto
não implica no fim da reflexão que articula em seu discurso. Em suas últimas
palavras, deixa uma tarefa para o interlocutor: “Pensem, meditem nela, entanto
(p. 187).
Esta sentença dirige-se à comunidade, mas não se restringe a
ela. Através do uso freqüente do vocativo “vocês”, o leitor também é inserido
naquele contexto e igualmente convidado a reavaliar suas convicções sobre
aparência e essência, sobre beleza e feiúra.
Isto ocorre porque ao leitor é dado observar o contexto em sua
completude. Guiado pelo narrador, ele refaz a trajetória da Marmela e compreende
os acontecimentos em seu conjunto, arrematando-os com a linha do destino que
conduz a mulher. Neste sentido, pode perceber que a existência da Marmela foi
indispensável para que a harmonia daquela comunidade fosse estabelecida. E,
em um sentido mais amplo, pode entender que mesmo as coisas mais feias,
aparentemente desprezíveis, possuem grande valor para o conjunto em que se
inserem.
Conforme postula Santo Agostinho, tudo faz parte da ordem e
cada elemento de um conjunto contribui para sua harmonia. Para tanto, o filósofo
exemplifica:
Poder-se-á falar de algo mais sórdido, de mais indecoroso e mais
cheio de disformidade do que as meretrizes, proxenetas e todo
este gênero de flagelos? Retira as meretrizes da vida humana e
terás perturbado tudo pelas paixões: coloca-as no lugar das mães
e tornarás tudo desonesto pela corrupção e pela indignidade
(AGOSTINHO, 2000, p. 167).
Portanto, o papel desempenhando pela Mula-Marmela naquele
contexto era indispensável e, sendo assim, ela se torna insubstituível. O narrador
aponta para o erro da comunidade, “Feia, furtiva, lupina, tão magra. Vocês, de
seus decretantes corações, a expulsavam” (p. 186), como uma advertência de
que, se ela falhou, o leitor não deve falhar.
Esta recomendação final ainda remete ao universo das fábulas
infantis que se encerram com uma moral da história. Nestes textos, tudo se
direciona para um conhecimento específico que deve ser transmitido. Para isso,
são criadas metáforas que expliquem a realidade às crianças, de modo a conduzi-
las a prática das boas ações. Assim como a tragédia grega, o texto tem uma
finalidade didática, que deve se reproduzir numa boa conduta social daqueles que
possuem esse conhecimento.
Enfim, o narrador de “A benfazeja” promove uma revisão dos
fatos, mostrando que apesar de a mulher ser feia e ter um passado criminoso, ela
é a realizadora de uma obra admirável, por conta das belas ações que praticou,
abnegando de si em favor dos outros. E, desta forma, ensina à comunidade e ao
leitor a enxergar que as pessoas não são completamente feias, nem belas ou
boas. Conforme adverte o narrador: Cada qual com sua baixeza; cada um com
sua altura” (p. 184).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante disso tudo, convém reafirmar o caráter subjetivo da feiúra,
ou seja, a importância fundamental que possui o sujeito observador para sua
existência. Conforme dito anteriormente, a feiúra tem sua origem no sentimento de
desagrado estético que certa coisa desperta em alguém. Sendo assim, seu
significado pode variar de acordo com cada pessoa e, ainda, de acordo com a
mudança de perspectiva de uma mesma pessoa. Disso decorre que existam
diferentes tipos de feiúra e, ainda, que a feiúra possa ser convertida em beleza, e
vice-versa.
Sendo de tal modo, a feiúra possui uma natureza volúvel à qual
não se podem fixar normas gidas e tampouco determinar um significado que
comporte toda a sua abrangência. E nisto, justamente, reside o grande fascínio
que ela desperta. A feiúra, apesar do primeiro impacto causado por suas
manifestações, inquieta o espectador e o convida a olhar novamente, a reavaliar
suas convicções, a rever o seu conceito de beleza. Ela retira o sujeito da
contemplação passiva ao contestar a hegemonia da simetria, da proporção, da
satisfação encontrada prontamente diante de algo belo. Ainda que não cause
deleite num primeiro momento, a feiúra desperta, na maioria das vezes, grande
curiosidade, pois sempre trata do inusitado, do incomum, do exacerbo. De acordo
com o que aponta Santo Agostinho, até mesmo as coisas feias exercem forte
atração no homem. Assim,
Que gosto em ver um cadáver dilacerado, a que se tem
horror? Apesar disso, onde quer que esteja, toda a gente
acorre, ainda que, vendo-o, se entristeça e empalideça. Depois,
até em sonhos temem vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado
a ir examiná-lo, quando estavam acordados, ou como se qualquer
anúncio de beleza os tivesse persuadido a lá irem (AGOSTINHO,
1999, p.297).
Neste sentido, através da curiosidade que atrai o olhar, a feiúra
dá vazão a diferentes sensações, que vão desde o desagrado e o desconforto, até
a compaixão. E, diante disso, “Compreendemos (...) porque a arte de vários
séculos tem voltado com tanta insistência a representar o feio. Por mais marginal
que seja, sua voz tenta recordar que neste mundo algo de irredutível e
maligno” (ECO, 2007, p.437).
Sendo deste modo, a arte encontra na feiúra uma opção diferente
para representar a realidade ou, ainda, uma forma para escapar dela. Por um
lado, em algumas obras, a feiúra se torna o meio mais adequado para a denúncia
das mazelas que corrompem a sociedade e o homem. Noutras, ainda, ela serve
como recurso argumentativo em uma preleção, indicando tudo o que deve ser
enjeitado pelos homens virtuosos. Em casos como estes, a feiúra está
intimamente relacionada à presença do mal, como metáfora do erro e do
execrável.
Por outro lado, há obras em que a feiúra se torna a opção
estética, propriamente dita, por oferecer elementos diversos dos ditames da arte
bela e ideal. Aqui, a feiúra não está obrigatoriamente relacionada ao mal, ou presa
à imitação da realidade tal qual ela se apresenta. Destarte, o feio é a deformidade,
a imperfeição e a assimetria existentes tanto no caos do cotidiano quanto na
imaginação do artista.
Por estas vias, a feiúra adentra os domínios da obra artística e
povoa uma imensa galeria com monstros, bruxas, corcundas, misérias,
miseráveis, cadáveres, diabos, atrocidades, mortes, a morte, escuridões,
podridões, medos, seres desconhecidos e deformidades que se encontram em
qualquer tempo e em todo lugar. De modo especial, a pintura e a literatura
promovem novas formas de se observar a feiúra.
Neste movimento, a ação interpretativa de um espectador é o que
possibilita ao feio tornar-se estimável e, até mesmo, belo. Assim, uma obra de
arte, mesmo que contenha elementos próprios do feio, poderá ser considerada,
por muitos apreciadores, uma obra bela, digna de muito valor. Noutro sentido, uma
obra qualificada como bela em um determinado contexto, por conter formas
simétricas e devidamente organizadas, pode se tornar feia quando inserida em
contexto dessemelhante. Em ambos os casos, a mudança ocorre na parte
subjetiva da feiúra, ou seja, na parte que diz respeito ao julgamento que se faz de
alguma coisa, e não à coisa em si. Assim sendo, o que sofre alteração é a
maneira com que se olha para algo, e não as formas com que ele se apresenta.
Portanto, conforme a fala das bruxas de Macbeth mencionada por Umberto Eco,
“‘Belo é feio, feio é belo...’” (ECO, 2007, p. 20).
Nesta mesma linhagem, situamos o conto “A benfazeja”. Na
história de Guimarães Rosa, a feiúra atua com grande importância na medida em
que se encontra no centro da narrativa, encarnada na formas desagradáveis da
Mula-Marmela, e constitui um dos pontos colocados em questão pelo discurso do
narrador. Como num quadro de Goya ou Rembrandt, aqui a feiúra está no centro
mais iluminado e privilegiado da representação, e tudo gira em torno dela. Ainda
que viva escondida nas sombras, é para Marmela que voltamos nosso olhar,
completamente.
A fealdade da Mula-Marmela é patente em suas descrições.
Assim, ela é velha, tonta, esfarrapada, anda sempre curvada e freqüentemente
sua imagem é associada aos animais. A mulher, que possui um passado
criminoso e vive se escondendo na escuridão, é alvo do pré-conceito que se
estabelece sobre a feiúra, associando-a a uma índole maligna.
A Marmela, para a população escassa do lugarejo em que vive,
não é mais do que uma mendiga, assassina e feia. Neste sentido, a aparência
desagradável que possui torna mais intensa a sua essência desumana. No
discurso da coletividade, portanto, ressoa o lugar-comum que vitupera a feiúra,
negando-lhe qualquer aspecto positivo e até mesmo utilitário.
Noutro sentido, o narrador forasteiro, oriundo da cidade e,
portanto, intelectualizado, chama a atenção dos moradores para o que realmente
importava na mulher e que fora, por todo o tempo, ignorado. Deste modo,
apresenta a eles, e por conseguinte ao leitor, a face bondosa da Mula-Marmela.
Seu discurso, notadamente culto, é pautado pelos elementos da
tragédia grega e, por conta das associações que realiza, possibilita uma nova
interpretação dos fatos narrados. Segundo a sua versão, a Marmela estava
destinada a cuidar daquela comunidade e, portanto, os crimes que foram
imputados às suas mãos foram executados porque ela tinha que cumprir o seu
destino. A mulher feia, neste sentido, é como o bode expiatório, eleito para
expurgar o lugarejo do mal que por muito tempo o acometera, pois de acordo com
os antigos ritos de purificação, as pessoas feias, deformadas, doentes e pobres
eram escolhidas como vítimas do sacrifício. Portanto, a feiúra de Mula-Marmela,
assim como o ferido de Édipo, ratifica a força do destino, sob o qual gravitam
todos os elementos do texto.
Sendo assim, o narrador realiza uma revisão dos fatos a partir do
questionamento do que parece ser em busca por aquilo que é, de fato. Isto é
possível porque ele possui o distanciamento necessário para enxergar o contexto
em toda a sua completude. Desta perspectiva, o narrador é capaz de perceber a
harmonia que rege todo o conjunto, compreendendo que a deformidade de um
único elemento não age desfavoravelmente a ela, mas, ao contrário, contribui
para sua existência.
Deste modo, o narrador se distancia do senso-comum vigente
naquela comunidade, situando, de um lado, o discurso em favor da Mula-Marmela
e, de outro lado, a voz das demais pessoas que
Não sendo capazes de considerar e contemplar a concordância
universal das coisas (...) se alguma coisa os choca porque é difícil
para o seu conhecimento, pensam que inere nas coisas uma
grande disformidade (AGOSTINHO, 2000, p. 89).
Com tudo isso, chega-se ao doutrinamento veiculado pelo
discurso que o narrador dirige à comunidade e, igualmente, ao leitor. O que ele
propõe ao seu interlocutor é uma forma mais justa de se enxergar a imperfeição
da Mula-Marmela e, de modo mais amplo, de quaisquer elementos da vida em que
o feio se manifeste. O que ele realiza é um desmascaramento da realidade,
mostrando que ela não precisa ser bela para ser agradável. E, neste sentido, a
feiúra da Marmela é essencial, pois ratifica o pensamento do narrador que
dissocia o feio do mal.
Sendo assim, o ensinamento do narrador se estende do conto à
vida, pois demonstra a necessidade de se avaliar cada coisa em seu conjunto,
buscando enxergar aquilo que se esconde por detrás das máscaras da aparência
e, assim, atingir a natureza íntima de cada coisa, de modo a perceber a beleza
que habita em tudo, inclusive na imperfeição e na feiúra.
Portanto, conclui-se que, o conto de João Guimarães Rosa
realiza uma atualização da tragédia clássica, pois mesmo fincada na problemática
regional, tem profundidade suficiente para tratar deste tema literário tão perene,
tão presente: o destino.
Neste sentido, o “sórdido desarrumo” em que Marmela vive
mascara a sua face benfazeja. O aspecto repugnante não deixa que as pessoas
vejam que ela é boa, situando-a no plano da desordem, da anormalidade e do
desarrumo. E, contrapondo este discurso, e inserindo a Mula-Marmela na ordem,
o narrador mostra “como da imundície e da podridão brotam, por vezes, as mais
lindas e viçosas plantas” (GUIMARÃES, 1955, p. 57).
De acordo com a metáfora de Victor Hugo, mesmo a feiúra
desempenha uma função singular:
O carvalho tem o porte bizarro, os ramos nodosos, a folhagem
sombria, a casca áspera e dura; mas é o carvalho.
E é por causa disso que ele é o carvalho. Se querem um tronco
liso, ramos direitos, folhas de cetim, dirijam-se à pálida tula, ao
sabugueiro oco, ao salgueiro chorão; mas deixem em paz o
grande carvalho. Não apedrejem quem lhes sombra (HUGO,
2004, p. 99)
Finalmente, a Mula-Marmela simboliza tudo aquilo que,
negligenciado pelo pelos sentidos, encontra-se apartado da beleza, mas ao
mesmo tempo situa-se na ordem natural do mundo, onde coexistem feiúra e
beleza, cumprindo cada qual a sua função em favor da harmonia do conjunto.
Assim, no sertão-mundo de Rosa a beleza existe na harmonia dos contrastes,
onde, por fim, “Tudo se compensa” (p.177).
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TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino-português. Porto: Marânus, 1945.
VERNANT,Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Murachco. 2ª.
ed. São Paulo: Editora de Universidade de São Paulo, 2002.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução e notas de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, 1967.
VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. São Paulo: Atena , 1959.
ANEXOS
ANEXO 1
Mestre das horas de Rohan,
O morto ante seu Juiz, 1418 - 1425
ANEXO 2
Gárgulas da Catedral de Notre Dame, Paris
ANEXO 3
Caspar Schott,
página de Physica curiosa, 1662,
Würzburg, Endter.
ANEXO 4
Giovan Battista Della Porta,
De humana physiognomonia, 1586,
Vico Equense, Cacchio.
ANEXO 5
Pieter Bruegel, o Velho,
O combate do Carnaval e da Quaresma, 1559,
Kunsthistorisches Museum, Vienna.
ANEXO 6
Pieter Bruegel, o Velho,
O triunfo da morte, 1562,
Museo del Prado, Madrid.
ANEXO 7
Giuseppe Arcimboldo,
Inverno, 1563,
Kunsthistorisches Museum, Vienna.
ANEXO 8
Rembrandt van Rijn
A captura de Sansão,
1636
Städelsches Kunstinstitut, Frankfurt
ANEXO 9
Rembrandt van Rijn
O boi esquartejado, 1655
Musée du Louvre, Paris
ANEXO 10
Goya
Saturno devorando um filho
Museo del Prado, Madrid
ANEXO 11
Leonardo da Vinci,
Confronto de dois perfis grotescos (detalhe), 1485-1490,
Hamburgo, Kunsthalle.
ANEXO 12
Jacques Callot,
Varie figure gobbi, 1616.
ANEXO 13
Pablo Picasso,
O Beijo, 1969,
Musée Picasso, Paris.
ANEXO 14
Salvador Dalí,
Construção mole com feijões cozidos.
Premonição da guerra civil, 1936,
Philadelphia Museum of Art, Philadelphia.
ANEXO 15
Anita Malfatti,
A boba, 1915,
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
ANEXO 16
Victor Brecheret,
Cabeça de Cristo,1920,
Coleção IEB – USP.
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