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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIU
ARNALDO EUGÊNIO NETO DA SILVA
A BRUXA MÁ DE TERESINA:
Um estudo do estigma sobre a Vila Irmã Dulce
como um “lugar violento” (1998 - 2005)
TERESINA - PIAUÍ
2005
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1
ARNALDO EUGÊNIO NETO DA SILVA
A BRUXA DE TERESINA:
Um estudo do estigma sobre a Vila Irmã Dulce
como um “lugar violento” (1998 - 2005)
Dissertação apresentada ao programa
de Pós-Graduação em Políticas blicas
da Universidade Federal do Pia para a
obtenção do título de Mestre em
Políticas Públicas.
Orientadora: Profª Drª Maria D‟Alva Ferreira de Macedo
Co-Orientador: Profº Dr. Fabiano de Souza Gontijo,
TERESINA - PIA
2005
DEDICATÓRIA
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2
À minha Mãe uma Maria da Silva - que, mesmo sem compreender
Muito bem porque tamanha solidão
E distanciamento familiar
Para conclusão
Do trabalho,
Não abandonou a sua cria
E de acreditar no meu potencial.
Aos meus irmãos Haroldo e Alexssandro,
Que por amor fraternal suportaram
O meu
isolamento.
Às minhas irmãs Ana Cristina e Ana Célia,
Que entenderem que, muitas vezes,
É em se perdendo um pouco do contato
Que se ganha mais do querer bem.
Ao meu pai um Raimundo da Silva que deu a própria vida,
Para me permitir os livros,
a comida, a água de beber...
Mesmo com o medo do medo de estar só,
Mesmo com o frio das noites de chuva,
Mesmo com a pobreza batendo á porta
Querendo devorar a esperança
Que pulsava dentro
em nós.
3
AGRADECIMENTOS
Ao finalizar este trabalho, além da sensação de que muito mais poderia
ser dito, visto e ouvido sobre os sujeitos pesquisados e a sua realidade, fica a
obrigação de resgatar uma dívida solidária com todos aqueles que, direta e
indiretamente, foram, com generosidade imensurável, cúmplices para a realização
deste empreendimento intelectual. Durante as idas e vindas, os encontros e
desencontros, as certezas e as dúvidas, nas missas e nas mesas de bares, alguns
ficaram pelo meio do caminho, mas muitos outros resistiram às ciladas da vida
cotidiana. Contudo, faz-se aqui uma menção especial a algumas dessas ilustres
figuras humanas e instituições que colaboraram durante o percurso.
Aos moradores da Vila Irmã Dulce, em especial aos sujeitos entrevistados,
que me recepcionaram com um carinho e distinção que não se mede com fita
métrica, contribuindo com suas narrativas, memórias e histórias que fundamentam
este trabalho. A amizade e o respeito consolidados são mútuos.
Ao corpo técnico e alunos da Escola Municipal Dom Hélder Câmara pela
solicitude, apreço e apoio que dispensaram ao meu trabalho.
A Guiomar Passos e Jesuíta Lima pela distinção com que me trataram
quando as dúvidas e incertezas teóricas ameaçavam ruir meu ideal; quando precisei
de uma crítica ou de uma palavra amiga para confortar a angústia.
Ao amigo de sempre, Antonio Leandro pelo companherismo e pelo
conforto espiritual que, de certa forma, me protegeram na efervescência da solidão e
do medo de ser vitimado pelas armadilhas do caminho escolhido.
À D‟Alva Macedo, orientadora, que, além de disponibilizar os seus
conhecimentos e experiências, soube conviver com respeito e afetividade às nossas
diferenças. Mas que isso, uma fonte inesgotável de gentileza.
A Fabiano Gontijo, co-orientador, pela delicadeza, a atenção, as
considerações críticas e as sugestões no trato com a riqueza do material empírico,
além da amizade sincera construída ao longo da caminhada.
Aos professores(as) do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Piauí, pela contribuição no meu processo de lapidação na
graduação.
4
Ao Mestrado em Políticas Públicas pela oportunidade de disciplinar e
enriquecer o meu potencial intelectual.
As companheiras (os) da Turma do Mestrado em Políticas Públicas
pelos momentos de discussões, debates e encontros informais, onde, de certa
forma, buscávamos extrair da experiência do outro algo de positivo para nós. “O
amor é bom/ Não quer o mal/ Não sento inveja/ Se envaidece....”.
Aos professores (as) Benedito, Façanha, Said, Lídia, Alcides, Dione,
Fonseca, Maria do Carmo Bérdard, Maria do Carmo Veloso, Rose, Alecxis, e
Lucineide pela confiança que depositaram na minha capacidade intelectual.
Ao corpo funcional dos jornais Meio Norte, O Dia e Diário do Povo pelas
fotos e noticiários que ajudaram enriquecer este trabalho.
A Paulo Lopes da Superintendência de Desenvolvimento Urbano/Sul da
Prefeitura de Teresina pelos mapas e outros dados.
Ao CEPAC e a COMFISPA por permitirem, à contra-gosto, o meu
afastamento das atividades no momento em que mais precisavam do meu esforço.
Aos meus alunos(as) da graduação e outros informantes espontâneos que
me enviaram informações diversas e mensagens virtuais e viva voz de apoio.
Por fim, gostaria de agradecer aos meus familiares e amigos,
especialmente a minha mãe fonte de carinho e até de recursos financeiros -, os
meus irmãos(ãs), cunhados(as) e sobrinhos(as), que souberam compreender e
respeitar os meus momentos de solidão, irritação, antipatia e afastamento de seus
convívios.
5
LISTA DE MAPAS E QUADROS
QUADRO 01 Dados percentuais comparativos dos números de homicídios em
Teresina 1999/2004.
QUADRO 02 meros de homicídios registrados nas delegacias de Teresina
1999/2004.
MAPA 01 Mapa de Teresina/ Zona Urbana
MAPA 02 Mapa de Teresina/ Zona Sul - 2004
MAPA 03 Mapa da Vila Irmã Dulce - 2004
LISTA DE ILUSTRAÇOES
ILUSTRAÇÃO 01 As primeiras moradias da Vila Eletrificada com gambiarras
ILUSTRAÇÃO 02 Visão Panorâmica da Vila Irmã Dulce a partir do Morro do
Chacal -2004.
ILUSTRAÇÃO 03 Visão Interna da Vila Irmã Dulce com as suas primeiras ruas
2000.
ILUSTRAÇÃO 04 Visão interna no trecho asfaltado da Av. Francisco de Assis
Garcia - 2005.
ILUSTRAÇÃO 05 Vista interna da Vila Irmã Dulce 2004.
6
RESUMO
Esta pesquisa foi realizada com o intuito responder a questão central:
como os moradores da Vila Irmã Dulce se vêem estigmatizados pelo discurso oficial
midiatizado como lugar violento”, logo de “gente perigosa”. Cujo objeto de estudo é
o estigma de “lugar violento” sobre a comunidade da Vila Irmã Dulce. Portanto, não
tem por finalidade e estudo do banditismo local. É um estudo de caso, no recorte
histórico de 1998 a 2005. O título “A Bruxa de Teresina é uma expressão de
efeito, tomada de empréstimo da narrativa de um dos sujeitos entrevistados. A
fundamentação teórica se baseou nas concepções e percepções conceituais de
violência desenvolvidas por alguns teóricos e nos discursos oficial e midiático sobre
a violência em Teresina, que localiza, geograficamente, a vioncia uma
territorialização da violência e criminaliza e estigmatiza determinados grupos
sociais. São autores que discutem a violência em diferentes contextos, conjunturas e
estruturas, servindo como “pano de fundo” na discussão, já que trazem para o
debate as dimensões culturais, históricas e institucionais subjacentes à violência.
Para a concepção metodológica, foi importante perceber a Vila Irmã Dulce o com
a pré-noção de um lugar de violência”, mas, sobretudo, como um lugar que
representa a diversidade dos espaços geográficos teresinenses que produzem
diferentes práticas de convivência. Os dados foram colhidos de documentos,
matérias de jornais, entrevistas abertas e semi-estruturadas com os moradores,
visitas sistemáticas à localidade, além da realização de um extenso registro
fotográfico. Tendo como “fio condutor da pesquisa as narrativas, memórias e
práticas de sociabilidade daquela “gente perigosa” naquele “lugar violento”.
Como resultado, a análise traz evidências que descaracterizam e
desconstróem o estigma sobre a Vila Irmã Dulce, que impregna o imaginário social
dos teresinenses com a idéia de que na localidade se vivia de e em função da
violência. As interpretações sobre as relações sociais estabelecidas pela
comunidade e a constatação da existência de redes de solidariedade e de
reciprocidade, demonstram que a localidade não é um “lugar violento”, ou de
“incivilizados”, ou onde a violência é uma marca identitária, já que o seu convívio
social não é, essencialmente, estabelecido em função da violência.
Palavras-chave: violência, pobreza e estigma.
7
ABSTRACT
This research was accomplished with the intention to answer the central subject:
as the residents of the Vila IrDulce see each other stigmatized by the speech " violent "
place, soon of " dangerous " people. Whose study object is the stigma official midiatizado of "
violent " place on the community of the Vila Irmã Dulce. He/she doesn't have for purpose and
study of the local banditismo. It is a case study, in the historical cutting from 1998 to 2005.
The title " the Bad Witch from Teresina " is an effect expression, electric outlet of loan of the
narrative of one of the subjects interviewees. The theoretical fundamentazation based on the
conceptions and conceptual perceptions of violence developed by some theoretical ones and
in the speeches official and midiático on the violence in Teresina, that locates,
geographically, the violence - a territorialization of the violence - and criminaliza and it
stigmatizes certain social groups. They are authors that discuss the violence in different
contexts, conjunctures and structures, serving as " backdrop " in the discussion, since they
bring for the debate the dimensions cultural, historical and institutional underlying to the
violence. For the methodological conception, it was important to notice the Vila Irmã Dulce
not with the pré-notion of a " violence " place, but, above all, as a place that represents the
diversity of the spaces geographical teresinenses that you/they produce different coexistence
practices. The data were picked of documents, matters of newspapers, open interviews and
semi-structured with the residents, systematic visits to the place, besides the
accomplishment of an extensive photographic registration. Tends as " conductive " thread of
the research the narratives, memoirs and practices of that " dangerous " people's sociability
in that " violent " place. As result, the analysis brings evidences that descaracterizam and
desconstróem the stigma on the Vila Irmã Dulce, that impregnates the imaginary social of the
teresinenses with the idea that in the place lived her of and in function of the violence. The
interpretations about the social relationships established by the community and the
verification of the existence of solidarity nets and of reciprocity, they demonstrate that the
place is not a " violent " place, or of " uncivilized ", or where the violence is a mark identitary,
since your social conviviality is not, essentially, established in function of the violence.
Word-key: violence, poverty and stigma.
8
SUMÁRIO
LISTA DE MAPAS E QUADROS
LISTA DE ILUSTRAÇÔES
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I VIOLÊNCIA E ESTIGMATIZAÇÃO.................................................. 16
1.1. A discussão sócio-histórica do conceito de violência ........................... 17
1.2. Os discursos sobre a violência em Teresina........................................ 29
1.3. O estigma oficial de “lugar violento” sobre a Vila Irmã Dulce ............... 45
CAPÍTULO II A VILA IRMÃ DULCE E O CONTEXTO URBANO DE
TERESINA .............................................................................................................. 52
2.1. Alguns aspectos da urbanização de Teresina ..................................... 53
2.2. A invenção social da Vila Irmã Dulce .................................................. 62
2.3. O processo de ocupação da área ........................................................ 65
2.4. Vila Irmã Dulce e o contexto da violência.............................................73
CAPÍTULO III UMA ANÁLISE DA BRUXA MÁ DE TERESINA ........................... 81
3.1. A luta e a conquista da moradia .......................................................... 83
3.2. A relação da comunidade com o Poder Público .................................. 91
3.3. A relação da comunidade com a polícia .............................................. 97
3.4. A relação da comunidade com a imprensa ......................................... 105
3.5. A comunidade e o estigma oficial de “lugar violento” .......................... 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 122
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ............................................................................. 131
ANEXOS ................................................................................................................. 136
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho de pesquisa foi realizado com o intuito responder a questão
central: como os moradores da Vila Irmã Dulce se vêem estigmatizados pelo
discurso oficial midiatizado como “lugar violento”, logo de “gente perigosa”. Cujo
objeto de estudo é o estigma de lugar violento” sobre a comunidade da Vila Irmã
Dulce. Portanto, não tem por finalidade e estudo do banditismo local.
É um estudo de caso
1
no recorte histórico de 1998 a 2005
2
que, dentre
outros aspectos, possibilitou a compreensão das dificuldades no processo de
formação/construção da Vila Irmã Dulce, o entendimento das relações sociais da
comunidade com a vizinhança, a polícia e a imprensa e, principalmente, demonstrar
que a comunidade, de fato, não faz jus ao estigma oficial midiatizado de “lugar
violento”. Para tanto, teve como “fio condutor” da pesquisa as narrativas, memórias e
práticas de sociabilidade daquela “gente perigosa” naquele “lugar violento”.
O título de “Bruxa Má de Teresina” é uma expressão de efeito, tomada de
empréstimo da narrativa de um dos sujeitos entrevistados, que, de certa forma,
recorrendo à imagem de um personagem do universo das historinhas infantis,
“brinca” como o estigma imposto à localidade em que mora.
A fundamentação teórica se baseou nas concepções e percepções
conceituais de violência desenvolvidas por alguns teóricos e nos discursos oficial e
midiático sobre a violência em Teresina, que localiza, geograficamente, a violência
uma territorialização da violência e criminaliza e estigmatiza determinados grupos
sociais. São autores que discutem a violência em diferentes contextos, conjunturas e
estruturas, servindo como pano de fundo” na discussão temática, que trazem
para o debate as dimensões culturais, históricas e institucionais subjacentes à
violência.
1
Segundo Gil (1991, pp. 58-59),o estudo de caso é caracterizado pelo estudo profundo e exaustivo de um ou de
poucos objetos (...). Por sua flexibilidade, é recomendável nas fases iniciais de uma investigação sobre temas
complexos, para a construção de hipóteses ou reformulação do problema”. As principais vantagens do estudo de
caso são o estímulo a novas descobertas, a ênfase na totalidade e a simplicidade dos procedimentos. Dentre as
limitações, a mais significativa refere-se à dificuldade de generalização dos resultados obtidos (GIL, 1991, p.59-
60).
2
A análise começa com a ocupação da área , em 03 de junho 1998 e se estende até agosto de 2005, em função do
prazo para conclusão da pesquisa.
10
Nesta pesquisa, não se partiu com a p-noção de que a violência é um
produto da manifestação de forças impulsivas que surgem das profundezas
maléficas da natureza humana, já que o próprio termo “violência”, essencialmente, é
uma qualidade atribuída pelos homens aos fenômenos naturais ou humanos,
baseada nas diferenças culturais e históricas de cada grupo social. Portanto, as
ações violentas fazem parte da história social dos homens e não da natureza
humana.
Nesse sentido, pensar a inserção da Vila Irmã Dulce no contexto da
violência urbana em Teresina, partindo dos discursos oficial e midiático, mas
utilizando como filtro de pesquisa” a representação de violência construída pela
própria comunidade tida como violenta, foi, de certa forma, trilhar por um caminho
desconhecido, que, metodologicamente, pretendeu-se elaborar um estudo que
evitasse a preocupação excessiva como os limites reconhecíveis, as identidades
claras e as lógicas fechadas”, para não enfatizar, reificar e essencializar diferenças
nem dicotomizar mundos o civilizado e o incivilizado, o marginal (ilegal) e o legal, o
excluído e o incluído (Zaluar, 1999, p.21). Pois, conforme Zaluar (2000, p. 58),
permanecer apontando a pobreza como explicação para o crime “significa tamm
reforçar a opção preferencial pelos pobres que a polícia e a justiça brasileiras
fizeram há séculos”.
Do ponto de vista da concepção metodológica, na condição de
pesquisador e de “sempre-estranho na realidade local, foi importante perceber a
Vila Irmã Dulce não com a pré-noção de um “lugar de violência” como aparece no
discurso oficial midiatizado, mas, sobretudo, como um lugar que representa a
diversidade dos espaços geográficos teresinenses que produzem diferentes práticas
de convivência, dentre elas, as práticas conflituosas. Nesse sentido, considerando a
complexidade do tema, o pouco tempo para concluir a pesquisa (24 meses) e a
necessidade de aproximação com a realidade cotidiana experimentada pela
comunidade, optou-se por fazer 12 entrevistas abertas e semi-estruturadas, sendo
que 07 foram inseridas diretamente como parte da análise da pesquisa e as outras
05 serviram de suporte elementar para a descrição do contexto histórico do local.
Os motivos para a adoção dessa postura diante das narrativas dos
sujeitos pesquisados foram os seguintes: 1) depois de agendadas e gravadas as
entrevistas, num esforço meticuloso se certificar da participação direta e efetiva na
11
ocupação, descobriu-se que cinco dos entrevistados, de fato, estavam no dia em
que ocorreu a ocupação, mas não ficaram, ininterruptamente, no local e 2) os outros
sete entrevistados não lideraram a ocupação como permanecem no local até
hoje. Nesse sentido, as sete narrativas receberam maior destaque, principalmente,
porque estas trazem consigo uma memória ininterrupta da “experiência-próxima” de
dentro da luta pela conquista do lugar.
Por isso, mesmo sem desconsiderar a importância das narrativas dos
outros cinco sujeitos pesquisados, entendeu-se que as narrativas dos sete dariam
uma maior riqueza informacional para os fins da pesquisa. De modo que todas as
narrativas, de uma forma ou de outra, foram utilizadas em todo o corpo do trabalho,
já que as entrevistas objetivavam captar as lembranças, a afetividade, as vivências,
as trajetórias de vida e do imaginário social construído coletivamente. As entrevistas
formais registravam a suas falas e as anotações no caderno de campo, as ações, os
gestos, as intenções. Enfim, a atmosfera das entrevistas.
A coleta dos dados foi feita através de documentos, matérias de jornais,
entrevistas abertas e semi-estruturadas com moradores da comunidade que
participaram do processo de ocupação, visitas sistemáticas à comunidade, além da
realização de um extenso registro fotográfico compartilhado com eles, que será
apresentado em apêndice num caderno de fotos, como forma de facilitar a
familiaridade do leitor com a realidade urbana e social da localidade. As observações
sempre foram realizadas a partir de incursões no cotidiano do lugar de pesquisa, por
vezes em turnos alternados, extraindo informações das narrativas e memória sobre
as práticas de convivência, já que se pretendia dar espaço para a fala daqueles que
são estigmatizados. A análise e a interpretação dos dados foram feitas através das
categorias analíticas: violência, pobreza e estigma.
É importante salientar que, durante as visitas à Vila Irmã Dulce, foram
realizados diversos encontros, trocas simbólicas, participações em festividades,
conversas e discussões como os grupos organizados (Grêmio Comunitário, Agentes
Comunitários de Saúde, Grupo de Mães, Grupo de Jovens, Professores e Alunos da
Escola Municipal Dom Hélder Câmara) sempre tentando estabelecer uma ponte de
diálogo” com as perspectivas teóricas que fundamentam a pesquisa.
Desses contatos férteis, conseguiu-se acumular um vasto material de tipo
diferente ao longo da pesquisa, dentre os quais destacamos 51 trabalhos de redão
12
e 11 desenhos feitos por alunos dae séries, resgatando do imaginário infantil a
imagem construída sobre o lugar onde moram. Além de 03 mapas feitos à mão, que
mostravam a posição dos poços, o início da ocupação e o arruamento inicial do lugar.
Contudo, em meio à riqueza dos “textos”, nunca é demais estar ciente de
que “o distanciamento do pesquisador é o caminho para evitar que se caia no
relativismo absoluto ou no historicismo radical em que tudo é particular, circunstancial
e subjetivo” (Zaluar, 1985, p. 59). De certo modo, essa postura metodológica ajudou
a reforçar no pesquisador a intenção inicial de não construir mais um discurso
populista de salvação para os pobres estigmatizados e criminalizados, mas de
compreender a realidade local da forma como os próprios moradores a definem.
De certo, a tensão entre a objetividade e a subjetividade, o olhado e o
visto, o dado e o apreendido, a ciência e a ideologia, o ouvido e o escutado, os
vacilos cnicos e o rigor interpretativo, o dito e o implicado, o pesquisador e o
homem, a desconfiança e o método, o medo e a autoconfiança, as dúvidas e os
riscos, as incertezas e o prazer, a motivação e a condição, o ineditismo e a
obviedade, o querer e o teu, o senso comum e a crítica, se revela como um elemento
fundamental que perpassa toda a construção deste trabalho, para mostrar, sem
subterfúgios ou escamoteamentos de humildade, que o mesmo, definitivamente, “não
foi imparcial, nem neutro, nem objetivo totalmente” (Zaluar, 1985, p. 59).
É, antes de tudo, um texto que quer ser científico, produzido por um
“aprendiz de pesquisador” que buscou exigir de si mesmo uma disciplina de trabalho,
nem sempre compatível com a necessidade acadêmica, porém, não menos válida.
Por isso, passível de interpretações favoráveis e desfavoráveis, críticas positivas ou
negativas, ser visto como algo relevante ou como um modelo de como não se fazer
pesquisa, mas, acima de tudo, sem nunca “perder de vista o contexto das condições
sociais de sua produção” (Zaluar, 1985, p. 59).
Como resultado, esta reflexão, procurando se distanciar das versões
oficiais que explicam a violência no contexto de Teresina através de interpretações
causais, traz evidências que descaracterizam e desconstróem o discurso
estigmatizante de criminalização sobre a Vila irmã Dulce e os seus moradores, que
havia impregnado o imaginário social dos teresinenses com a iia de que na
localidade se vivia de e em função da violência.
13
Mas, as interpretações sobre as relações sociais estabelecidas pela
comunidade, a luta pela moradia, a capacidade de articulação e de mobilização, a
rede de solidariedade e de reciprocidade, demonstraram que a Vila Irmã Dulce não é
um “lugar violento”, ou de incivilizados, ou onde a violência é uma marca identitária,
na medida em que o seu convívio social não é, essencialmente, estabelecido por e
em função de práticas de sociabilidade violentas como aparece, explicitamente, no
discurso oficial que reverbera no imaginário social através do discurso midiático.
Didaticamente, o primeiro capítulo, retoma, objetivamente, a história social
brasileira, abordando alguns aspectos discursivos para a explicação conceitual de
violência no Brasil, além de abordar os discursos sobre a violência em Teresina e a
estigmatização oficial midiatizada de “lugar violento” sobre a Vila Irmã Dulce, cujo
objetivo é contextualizar, histórico e conceitualmente, o objeto deste estudo.
O segundo capítulo, apresenta alguns aspectos contextuais sobre a
urbanização de Teresina, dando ênfase àquelas mudanças ocorridas,
principalmente, a partir da segunda metade da década de 1990 e a invenção social
da Vila Irmã Dulce, tendo como objetivo mostrar os condicionantes estruturais e
conjunturais, que, de certo modo, caracteriza a construção de um momento político
significativo para as práticas de ocupações e o desencadeamento simultâneo dos
processos, dinâmicos e distintos, de favelização e de verticalização, como as marcas
mais visíveis na expansão urbana de Teresina, cuja Vila Irmã Dulce aparece como
uma localidade
3
ou “lugar de violência”
4
, logo de “pessoas perigosas”.
O terceiro capítulo, mostra os resultados alcançados a partir da análise
das principais dificuldades na conquista da moradia pelos sem teto e as relações
3
Aqui, o sentido de localidade tem relação com aquele adotado por Marcos Alvito, em A Honra de Acari
(2000). Ou seja, “um agregado de casas e pessoas que mantém entre si uma rede complexa de relações e vínculos
de caráter pessoal, face a face, como laços de parentesco, amizade,parentela ritual” (“compadrio”), por
exemplo, vizinhança, os grupos informais e pequenas organizações. Essa imensa rede de relações de
reciprocidade é facilitada pela concentração populacional” (Alvito, 2000, p. 148).
4
Esta especificação de “lugar de violência” atribdo pelos discursos institucional, midiático e do senso comum
à área onde se encontra a comunidade da Vila Irmã Dulce, nos remete, mesmo que não literalmente, à iia de
“lugares” e “não-lugares”, em Marc Auge (1994). “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e
histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico
definirá um não-lugar” (Augé, 1994, p. 73). Nesse sentido, as percepções e discursos que apontam a Vila Irmã
Dulce como um lugar de violência, em função das práticas de violência que naquele lugar ocorreram - ou ainda
ocorrem -, na verdade, estão caracterizando como violento o o espaço urbano, mas, também, toda a
população reside. Pois, da forma como é disseminada tal estigmatização, a violência é entendida,
simultaneamente, como um elemento da identidade dos moradores, a base das relações sociais estabelecidas e a
marca temporal do lugar.O problema é que ser propagado como um “lugar de violência”, implica, também, a
nunca ser completamente apagado com o tempo.
14
sociais estabelecidas pelos ocupantes
5
da Vila Irmã Dulce, objetivando
descaracterizar e desconstruir o estigma oficial criminalizante, midiaticamente,
difundido, sobre a localidade - de “lugar violento” - e os seus moradores - de “gente
perigosa”.
5
Nesse capítulo, utilizaremos as expressões: “sem teto” para se referir à situação inicial das famílias com relação
à chegada na área; “ocupantes pare se referir à situação de conflito instaurada com a ocupação da terra; e
“moradorespara se referir à situação em que havia a consolidação das moradias das famílias na localidade.
Pretende-se, com isso, demarcar, historicamente, a situação das famílias no processo de luta pela moradia,
evitando-se possíveis especulações sobre ambigüidades nominais e/ou distinções diferenciadas para um mesmo
grupo de pessoas. Em ntese, as denominações pretendem ajudar na compreensão da situação das famílias e
não de uma pessoa - em cada momento do processo de ocupação.
15
CAPÍTULO I - VIOLÊNCIA E ESTIGMATIZAÇÂO
Este capítulo, retoma, objetivamente, a história social brasileira,
abordando alguns aspectos discursivos para a explicação conceitual de violência no
Brasil, além de abordar os discursos sobre a violência em Teresina e a
estigmatização oficial midiatizada de “lugar violento” sobre a Vila Irmã Dulce, cujo
objetivo é contextualizar, histórico e conceitualmente, o objeto deste estudo.
Além do conceito de estigma em Erving Goffman (1988), utilizou-se
tamm as lógicas de análises de alguns autores para auxiliar na percepção dos
diferentes sentidos de violência no Brasil que são construídos numa diversidade de
discursos: Alba Zaluar (1985; 1994; 1996; 1998; 1999; 2000), sobre violência,
pobreza, favela e criminalidade; Michel Maffesoli (1987), sobre a violência
institucional; Sonia Lobo (2003), sobre a história de violência no Brasil; Hannah
Arendt (1985), sobre os instrumentos da violência; Darcy Ribeiro (1999), sobre
violência e colonização; Müller Costa (2003), sobre o caráter violento de uma ação;
José Vicente Tavares dos Santos (1999), sobre as práticas violentas como produto
da exclusão social e econômica, estabelecidas em múltiplas dimensões da violência
social e política contemporânea. São contribuições heterogêneas, que procuram
analisar, historiar e expressar as diferentes práticas e conceitos fixos de violência, ou
culturalizar e naturalizar a violência como parte constitutiva da sociedade.
Na primeira parte, faz-se uma discussão conceitual sobre violência e os
seus sentidos ou representações, mostrando a dificuldade dos contornos semânticos
do termo nas interpretações já elaboradas sobre a temática.
Na segunda parte, trata-se dos discursos sobre a violência em Teresina,
evidenciando o medo social, a austeridade das autoridades de segurança pública e
o alarmismo provocado pela espetacularização midiática.
16
Na terceira parte, apresenta-se a discussão sobre a origem e os principais
fatores e conseqüências em torno do estigma oficial de “lugar violento” - logo de
“pessoas perigosas” - sobre a Vila Irmã Dulce.
1.1. A DISCUSSÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO CONCEITUAL DE VIOLÊNCIA
Uma visão panorâmica sobre a história da sociedade brasileira mostra a
constituição de práticas de violência oriundas de relações sociais, políticas,
econômicas e culturais, sendo conformadas dentro de uma perspectiva de violência
permeada de expressões e sentidos diversos conforme a época, o lugar, a moral, a
ética, os dilemas e os interesses. A formação do povo brasileiro um povo-nação
produzido pela miscigenação das matrizes culturais indígenas, negras e européias
sempre foi marcada por diversas práticas de sociabilidade, inclusive as violentas,
como resultado dos conflitos de natureza étnica, social, religiosa, política, econômica
e racial, que continuam emergindo com as características próprias de cada época.
Entretanto, entende-se que a violência o é produto da índole ou da natureza deste
povo.
Historicamente, a discussão sobre a temática da violência na perspectiva
cultural, adquiriu maior notoriedade do que as outras dimensões da vida social,
sugerindo como inequívoca, a partir da colonização européia, a solidificação na
sociedade brasileira de um tipo de comportamento social determinante que se
expressa numa relação de dominação exercida por alguém que veio de fora e se
colocou à força como um saber diferente, impondo aos nativos a incorporação de
uma forma cultural estranha que o era a sua. Na verdade, trata-se de
essencializar uma postura culturalista para explicar a construção de concepções e
discursos sobre a violência no Brasil.
Conforme observa Lobo (2003, p. 8),
Na história brasileira, de pouco mais de meio milênio, a violência
sempre existiu. (...) Uma violência institucionalizada pelos
colonizadores sobre os colonizados e da elite sobre os
desfavorecidos. Outras formas de violência aconteceram no
coronelismo, no cangaço, nas revoluções internas, nas guerras
externas e nas ditaduras. Apenas muda a forma como se mostra a
violência.
Por sua vez, não podemos nem devemos afirmar que a nossa
violência é mais violenta (...).
17
No entanto, neste trabalho, não se procura uma ancoragem teórica em
uma definição única, ampla e fixa do que seja a violência, já que esta não é uma
tarefa das mais simples, a começar pela dificuldade com relação aos pprios
contornos semânticos do termo
6
.
Uma das principais dificuldades de se construir uma definição referencial
de violência é que o sentido dado às práticas tidas como violentas é definido e re-
definido pelos grupos sociais conforme os interesses, os confrontos e os conflitos em
um determinado contexto social e histórico. Geralmente, os discursos sobre violência
no Brasil, que optam por uma abordagem a partir da noção de direitos humanos, têm
por base o paradigma iluminista que afirma que a nossa civilização, depois de
alcaar a maturidade, se decidiu por revolver de forma pacífica os seus conflitos,
tendo como instrumentos para a mobilização das negociações democráticas, dos
compromissos e dos acordos: o Estado, a democracia e o monopólio estatal da
força.
Existem, tamm, aquelas interpretações que partem do princípio
hobbesiano que definiria o estado de natureza do homem a guerra de todos contra
todos ou o homem é o lobo do homem para construírem uma noção do que seja
violência, apontando a combinação entre o insaciável desejo dos homens por bens
ou objetos capazes de satisfazê-los e a raridade ou o estoque finito destes, como o
fator gerador de tantos conflitos entre os homens. De outra forma, o que o senso
comum
7
chama de violência tem uma certa aproximação com as práticas culturais
8
6
O termo “violência” oriundo do latim violentia, vis (a força, o vigor, a impetuosidade do vento, o ardor do
sol, o arrebatamento, o caráter violento, a ferocidade, a sanha, o rigor, a severidade, o furor) entrou em nossa
língua a partir do século XIV com a conotação de ação contrária à ordem natural e, posteriormente, como ação
contrária à ordem moral, jurídica ou política, abrangendo as discussões psicológica e simbólica que permitiram a
utilização do mesmo numa linguagem mais subjetiva. Contudo, o caráter polifônico e polissêmico do termo
“violência”, desde a sua etimologia, sempre dificultou “na definição do que é violência e de que violência se
fala” (Zaluar, 1999, p. 28). Geralmente, os dicionários se referem mais ao aspecto físico; ou ao uso da força
física para constranger a conduta de outrem; ou fornecem uma definição legal e jurídica. Ressalta-se que, não
aqui qualquer possibilidade de se estar trazendo, mesmo que implicitamente, uma definição de violência,
que a complexidade desse fenômeno social não permite uma teorização única capaz de servir de referencial para
qualquer análise. a expressão “práticas de sociabilidade violentas” tem a ver com aquelas ações sociais
agressivas de caráter físico e/ou moral de um indivíduo ou grupos de indivíduos contra outrem, caracterizando
aquilo que legalmente se estabeleceu na sociedade brasileira como crime. A criminalidade aparece nas
sociedades modernas com a invenção do Estado-Nação. Portanto, a “violência” é o fenômeno social em sua
totalidade, enquanto as práticas de violência seriam o produto desse fenômeno social reconhecido, legal ou
culturalmente, por um determinado grupo humano.
7
O “senso comum” é uma forma de conhecimento acrítico, cujas opines são “resgatadas diretamente da
experiência e não um resultado de reflexões deliberadas sobre esta” (Geertz, 2002, p. 114).
8
No caso brasileiro, trata-se de uma prática cultural que vai se constituindo e re-constutuindo no próprio
processo de relações sociais estabelecidas, inicialmente, durante a invasão das terras do que é hoje chamado
Brasil.
18
que vão se estabelecendo, historicamente, através do processo de relações sociais
dentro de um determinado grupo.Todavia, essa construção conceitual de violência
tamm não deixa de ser perpassada por práticas políticas e econômicas, que o
configurando e re-configurando os contatos e as interações sociais, produzindo
distintas relações de forças interpessoais e intergrupais.
No Brasil, por exemplo, ainda é comum aparecer no debate sobre a
compreensão da violência discussões que tratam sobre uma possível índole pacífica
ou disposição violenta do brasileiro, cuja fundamentação vem do fato de que haveria
entre nós - os brasileiros - um descaso em relação à vida humana que se expressa
como um traço típico do caráter nacional, induzindo, por um lado, a opinião pública a
acreditar que a atual onda de violência tem a ver com essa suposta característica
inata e, por outro lado, tende a deslocar tais discussões do contexto institucional e
histórico onde se realizam as manifestações de violência.
Entretanto, deve-se ressaltar que a denominação de violência que hoje se
dar a algumas práticas de sociabilidade que se manifestaram durante o período da
colonização, vem do fato de que, no presente, já se construiu um sentido
diferenciado das relações estabelecidas entre os invasores e os povos nativos no
passado, ou seja, já se sabe quem são eles, como se instalaram aqui, qual os seus
interesses etc. Evidentemente, os grupos invasores, ou que se colocaram como
civilizadores, para imporem a sua vontade sobre os povos nativos tiveram que usar a
força, mas uma força no sentido da lógica de quem estava definindo o que era e o
que não era crime, ou o que deveria ou não ser punido com castigo, que,
necessariamente, não era a mesma lógica para quem estava sendo incriminado ou
castigado, já que para estes não havia tais noções ou linguagens de violência.
Mas, essa imposição da vontade dos civilizadores não possibilitou apenas
uma transformação civilizaria, mas, tamm, uma relação de dominação política e
econômica que veio com a incorporação da cultura. Nos primeiros séculos, que
correspondem à chegada do invasor europeu e o período colonial no Brasil, a
violência no processo de formação da sociedade brasileira caracterizou-se por
“desindinizar os índios, desafricanizar os negros e deseuropizar o europeu para nos
fazermos” (Ribeiro, 1999, p. 205). O problema é que a historiografia brasileira
construiu o mito da conquista da terra sem donos, ou de ninguém, ou do ninguém.
Tal visão aprofundou-se e criou raízes no imaginário histórico nacional, perdurando
até hoje. Sobre isso, diz Guimarães (1981, p. 111):
19
Pena que a nossa historiografia, de ordinário tão empenhada em
tornar expcitos os vários fatos econômicos, no que fazia bem, tenha
cuidado tão escassamente dos fatos extra-econômicos, de tamanha
importância em nossa sociedade para a elucidação dos freqüentes
apelos à violência que foram à linha dominante do comportamento
de nossas oligarquias rurais.
Todavia, o que pode se concluir como ponto em comum entre a maioria
das abordagens sócio-históricas da violência é, primeiro, a confirmação da
impossibilidade de existência de uma teoria da violência que permita uma apreensão
da totalidade de um fenômeno social tão complexo, e, segundo, a crença na idéia de
pacificação como fundamentação filosófica do mito
9
moderno da violência. De certo
modo, a constante tendência à banalização do mal e a disseminação da indiferença
diante da dor e da angústia entre os homens têm contribuído tanto para expor o mito
quanto para revelar a improbabilidade de realização da pacificação. Além disso, a
tendência em concentrar e racionalizar o monopólio legítimo da violência unicamente
dentro do aparelho estatal, é produto da necessidade imperiosa do discurso
dominante em assegurar a condição para a “desprivatização da violência”,
objetivando a eficiência no controle social
10
.
É um fato que, no Brasil e tamm no mundo, historicamente, diversas
práticas de violência foram empregadas pelo aparato estatal como uma maneira de
impor o consenso a ferro ou fogo, para assegurar uma determinada ordem social e
garantir a qualquer custo a unidade ou a totalidade, em detrimento das forças de
resisncia e das diferenças queo, simultaneamente, a base da vida social e fonte
inesgotável de tensões e conflitos dentro das sociedades humanas. Na prática, a
violência conservadora por parte do Estado (ou violência institucional, ou mesmo
totalitária), tem servido, basicamente, como um instrumento imprescindível para
assegurar a sua própria sobrevivência e reivindicar para si o monopólio legítimo da
violência. O que vem a confirmar que “a violência é o alicerce supremo de qualquer
ordem política” (Berger, 1996, p. 82).
9
Aqui, tomou-se “a noção de mito no sentido antropológico de solução imaginária para tensões, conflitos e
contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no plano simbólico e muito menos no plano
real” (Chauí, 1998, p. 5).
10
O sentido sociológico da expressão “controle social” adotado aqui é o dado por Peter Berger (1996, p. 81), isto
é, “refere-se aos vários meios usados por uma sociedade para „enquadrar‟ seus membros recalcitrantes”. Toda
sociedade, portanto, têm instrumentos e mecanismos de controle social imprescindível que variam culturalmente
conforme a finalidade.
20
Conforme observa Maffesoli (2001, p. 17):
A violência mais perigosa é a das instituições e do Estado que lhes
sustentação. De tanto investir na assepsia, eliminam-se as
capacidades de resistência de um corpo social. Assim, as forças de
vitalidade, tão repentinas quanto explosivas, podem deixar
desamparados os responsáveis e os moralistas de todos os tipos,
ignorantes do que é, na efervescência em que uma comunidade
fortalece o sentimento de si mesma.
Para Zaluar (2000, p. 50), no caso do Brasil, a condição social, política,
econômica e cultural são fatores importantes que perpassam a sociedade, cuja
análise pode possibilitar uma compreensão da violência,
(...) a hierarquia é negada pela comensalidade freqüente, pelo
convívio cotidiano nos espaços públicos, pelos casamentos inter-
raciais e interclasses, e afirmada pela diferença de trajes e hábitos,
pelos círculos sociais fechados, pelas escolas freqüentadas por
privilegiados, pelos diferentes tratamentos obtidos na polícia e na
justiça que negam a cidadania ou os direitos universais. Desde já,
portanto, fica evidente que nossas ambivalências, no que diz
respeito aos valores de democracia, são desvendadas quando
consideramos o cultural articulado ao institucional.
Zaluar (1998, p. 42) definiu a violência como o o reconhecimento do
outro; a anulação ou a cisão do outro (1998, 1989, 1993a, 1994d); a ausência de
compaixão (1994). Essas definições e as que se aproximam delas, direta ou
indiretamente, buscam chamar a atenção para o constante apelo à exibição da força
física entre os humanos em detrimento de um maior espaço para o diálogo e o
contorno dos conflitos de forma democrática. De certo modo, as práticas violentas,
em suas mais variadas modulações, podem se manifestar de forma ocasional, ou
espontânea, ou planejada, ou instrumental, ou passional, e são, freqüentemente,
imprevisíveis e desproporcionais àquilo que lhe deu origem. A autora, com base no
paradigma da filósofa alemã Hannah Arendt (1985) - segundo o qual os
instrumentos da violência são mudos -, afirma que a violência tem a ver com aquelas
ações humanas que podem ser exercidas mediante o excesso ou descontrole no
uso da força sica (ou dos seus inúmeros instrumentos) para manifestar uma força
vital nas interações sociais, passíveis de controle democrático (1998, p. 35).
21
Entretanto, se para Zaluar (1999), a violência é, de certo modo, produto de
uma prática cultural, para Michel Maffesoli (1987)
11
, a violência que vai se
estruturando na sociedade é vista através de uma perspectiva totalitária, isto é, não
existiria um lugar nas sociedades atuais sem manifestações de violência, que
esta seria onipresente e teria uma forma envolvente com suas modulações
perpassadas por especificidades. Nessa concepção, é como se respirássemos,
ininterruptamente, violência em todas as sociedades, funcionando como “uma
estrutura constante do fenômeno humano que, em última análise, não deixa de
representar um certo papel na vida em sociedade” (Maffesoli, 1987, p. 13).
O sentido da teoria maffesoliana ajuda a pensar que nas sociedades
atuais existem, de fato, algumas relações sociais que se expressam por meio de
práticas violentas, na medida em que essas práticas sociais vão contribuindo para
estruturar no pensamento social as relações de foa de dominação distintas de um
grupo sobre outro mais fragilizado, como forma de justificar a ordem do discurso
estatal que, simultaneamente, fomentam as práticas de violência e criminalizam
determinados setores da sociedade por exemplo, os pobres da Vila Irmã Dulce -
que utilizam a luta social ou de classe como uma forma de resistência. A mítica
desse tipo de violência emana do Direito e do próprio Estado, na medida em que
qualquer movimento de resistência vindo da sociedade que se constitua numa
ameaça ao monopólio legítimo da violência estatal, será sempre combatido por ser
considerado pelo Estado como uma prática de violência ilegítima.
Para Arendt (1985, p. 3), o progresso técnico dos instrumentos da
violência atingiu um estágio onde nenhum objetivo político poderia corresponder ao
seu potencial de destruição ou justificar o seu emprego real em conflitos armados.
Isto é, experimenta-se um momento histórico cujos instrumentos e estratégias para
exercer a violência estão sendo cada vez mais aperfeiçoados, a ponto do Estado e
as suas instituições encarregadas de garantirem a segurança para a sociedade não
11
A concepção de violência em Michel Maffesoli é importante porque aguça a nossa percepção para entender
que há na teia social um sentido de violência que vai se estruturando e se re-estruturando nela própria. Com isso,
Maffesoli tenta desconstruir a história da violência vinculada às classes sociais, ou seja, ele mostra que não
existe uma classe vítima de violência ou autora de violência, mas que uma teia social que suporte e
sentido à violência que passa a ser tida como natural. A naturalização vem justamente do fato de se reconhecer
(ou legitimar) que o Estado é que deverá controlar e dar segurança para a população, isto é, há uma compreensão
de que deve sempre existir um Estado forte para conter a violência dentro da sociedade. Maffesoli (2001), se
prendeu à violência institucional para mostrar que o Estado foi se estruturando numa gica dada pela própria
sociedade. É um fato real que, quando a sociedade discute a segurança pública sempre pensa em aparelhamento
(ou equipamentos), ou seja, ela sempre exige um Estado cada vez mais forte, reforçando a ideologia de um
Estado totalitário que vai se estruturando na teia social não por classe social, mas na sociedade como um todo.
22
conseguirem estabelecer meios e mecanismos de controle social, minimamente,
democráticos e capazes de frear o crescimento da violência sob as suas mais
diversas formas de manifestação, instaurando o medo social que é, midiaticamente,
coletivizado e espetacularizado para a opinião pública.
Na verdade, essas concepções são importantes porque mostram o quanto
à apreensão do fenômeno social da violência é complexa pois, sendo um produto de
diversas dimensões estruturais e conjunturais de uma sociedade, a sua
dinamicidade segue o ritmo das mudanças na vida social. Por isso que, para
conhecer e interpretar a complexidade de um fenômeno social dessa magnitude, é
inevitável depender de critérios e pontos de vista.
O caráter de violência de uma ão, mesmo da mais explícita, como
o assassinato de pessoas depende dos sentidos culturalmente
atribuídos. Matar em defesa da honra pode converter-se num ato
normal, senão moral, de preservação de valores julgados acima da
vida humana. Desse modo, atos violentos são encobertos em face
do horizonte cultural onde se inserem enquanto outros são
descortinados (Müller Costa, 2003, p. 74).
Em outras palavras, as classes de homens diferentes observam as
práticas sociais e as registram de modos, também, bastante diferentes; de acordo
com os seus interesses e motivações; conforme aquilo que julgam pertinente para
assimilão do seu grupo social. Contudo, vale ressaltar que a violência,
historicamente, não se constituiu no único meio de comunicação e de negociação
dos conflitos nas sociedades humanas.
Então, nem sempre o que a nossa razão identifica como sendo violência,
pode ser, indistintamente, generalizada para toda a sociedade, ou para uma
comunidade específica, ou para uma determinada classe social. Pois, segundo
Zaluar (1998, p. 28),
Além de polifônica no significado, ela é também múltipla nas suas
manifestações. Do mesmo modo, o mal a ela associado, que delimita
o que de ser combatido, tampouco tem definição unívoca e clara.
Não é possível, portanto, de antemão, definir substancialmente a
violência como positiva e boa, ou como destrutiva e má.
23
É bem verdade que o medo social causado pelas ações tidas como
violentas tem relação com as multidimensões estruturais e conjunturais que
perpassam as suas manifestações, provocando, dentre outros problemas, um
desarranjo social nas redes de solidariedade, de reciprocidade e de alteridade em
qualquer sociedade por maior ou menor que seja a sua organização. O medo em si
não é uma mera reação natural no homem, mas, socioculturalmente, apreendido e
condicionado. Nesse sentido, o medo social da forma como é coletivizado pelos
meios de comunicação, através da comoção blica, na tentativa de moldarem a
informação para o receptor e amortizar a sua perplexidade diante das dores, das
angústias e do trágico, termina por estimular na população constantes apelos às
ações preventivas e repressivas por parte do Estado em nome de um totalitarismo
do Direito, da Ordem Social e do Progresso da Nação.
Por outro lado, na contramão de uma tendência determinista ou do
hobbesianismo social, entende-se que, do ponto de vista biossocial, todo homem,
enquanto uma espécie animal da natureza, é portador de um fator de agressividade
do qual pode lançar mão diante das circunstâncias desfavoráveis, para garantir a
sua sobrevivência material e a defesa de sua própria vida. Na vida social urbana, em
função da complexidade inerente às relações sociais, os homens estão cada vez
mais expostos a experimentarem uma atmosfera social constituída de confrontos e
conflitos produzidos nas interações sociais como parte da lógica competitiva
capitalista vigente.
As sociedades capitalistas apresentam atualmente o aspecto de uma
sociedade disciplinar na qual as atividades humanas são
programadas no tempo e no espaço, incidindo as relações de
dominação até mesmo sobre o corpo do homem. O modo de
produção da exclusão reproduz-se pelas altas taxas de desemprego,
pelo aumento da pobreza, expressa no denominado “quarto mundo”,
e na proliferação de comportamentos racistas. As sociedades
capitalistas periféricas na América Latina ou na África mostram
um quadro no qual a violência difusa, presente nas cidades e nos
campos, expressa uma tecnologia de poder para a reprodão da
desigualdade social e da exclusão (Tavares dos Santos, 1999, p.14-
15).
Portanto, sob essas condições sociais todo homem em sociedade poderá
ser submetido a estímulos externos favoráveis, independentemente de sua vontade
e motivação, ao desencadeamento da sua potência agressiva contra outrem numa
24
associão estímulo-resposta, cujos seus atos poderão ser objetos de uma
representação que os caracterize como expressões de violência.
O objeto de uma representação faz parte de um contexto ativo e
concebido, pelo menos parcialmente, pela pessoa ou pelo grupo,
enquanto prolongamento do seu comportamento. O estímulo e a
resposta são, nessa ótica, indissociáveis: eles se formam ao mesmo
tempo. Uma resposta não é estritamente uma reação a um estímulo.
De certa forma, a resposta está na origem do estímulo, o que
significa que este último é determinado em grande parte pela própria
resposta. (...) O objeto é constituído de tal forma que seja consistente
com o sistema de avaliação utilizado pelo indivíduo (Domingos
Sobrinho, 1998, p. 118).
Desse modo, a interpretação que se faz de uma ação social
12
, em uma
determinada época e lugar, que, comumente, denominamos de violência e lhes
damos um sentido próprio conforme o contexto sócio-histórico no qual estamos
inseridos, é uma representação social. Com isso, descarta-se que haja a
possibilidade de qualquer reconhecimento científico de um gene determinante da
violência no homem. Do contrário, todas as análises sobre a temática,
obrigatoriamente, partiriam de uma fundamentação com base no determinismo
biológico. Ou seja, a violência, enquanto um objeto de representação de uma
pessoa ou grupo de pessoas, é um fenômeno complexo que perpassa todo e
qualquer convívio social e é apreendido e elaborado conforme as dimensões
contextuais de cada sociedade.
A forma como se experimenta, se discute e se interpreta a violência
depende, portanto, da classe social a que se pertence, das fontes de informações
que se recorre, da imagem que se faz de si mesmo e dos outros, bem como se ver e
como vêem o lugar onde se mora, que tais percepções influem diretamente na
maneira de se conceber e se apreender os sentidos ou representações das práticas
violentas. Quando se representa uma determinada prática social como violenta,
trata-se, na verdade, de uma percepção de mundo elaborada dentro de uma lógica
racional coletivizada, cuja realidade empírica experimentada e apreendida em um
12
Aqui, a expressão “ação social” vem da teoria weberiana, segundo a qual a ação é toda conduta humana (ato,
omissão, permissão) permeada por um significado subjetivo atribuído por quem a executa e que orienta essa
ação. Quando tal orientação tem como referência à ação - passada, presente ou futura de outro(s) agente(s) que
pode(m) ser “individualizadas e conhecidos ou uma pluralidade de indivíduos indeterminados e completamente
desconhecidos” o público, a audiência de um programa, a família do agente etc. a ação passa a ser definida
com social (Weber, 1969, p. 18).
25
determinado contexto serve de suporte interpretativo para a construção do sentido
da violência.
Nesse sentido, pensar em um conceito totalizante ou globalizante de
violência, que seja capaz de dar conta de qualquer contexto social no qual se
circunscreva, é uma tarefa intelectualmente inatingível, na medida em que são os
sentidos ou representações de violência que assumem freqüentemente a forma
inquietante de uma comoção blica, ou de uma guerra (in)justificada, ou ainda de
um discurso de ordem estatal, ou de uma forma de resistência. Além disso, os
sentidos ou representações de violência são, simultaneamente, perpassados por
vários fatores estruturais e conjunturais que servem para estimular o medo social e
justificar a utilização de instrumentos e mecanismos de controle social por parte do
aparelho estatal, no intuito de assegurar-lhe o monopólio legítimo da violência
Sem dúvidas, nos dias atuais, a sociedade brasileira tem experimentado
uma sensação amedrontadora de que a violência teria se instaurado,
simultaneamente, em tudo e em todos ao nosso redor uma espécie de
generalização da violência produzindo, invariavelmente, um medo social que
acompanha cada indivíduo em qualquer lugar. A questão é que a publicização de
percepções e discursos diferenciados sobre a violência para a opinião pública, sem
a preocupação em contextualizar crítica e historicamente a análise, de certo modo,
tem contribuído mais para aumentar a disseminação do temor interpessoal no tecido
social do que para atenuar a atmosfera de insegurança na sociedade, cuja suspeita
ou desconfiança passou a ser o elemento básico para olhar o outro nas interações
sociais no nosso cotidiano.
Nesse sentido, “os medos de ontem parecem abrigar, embrionariamente,
os progressos de amanhã...” (Duby, 1998, p. 46), dando a entender que, de algum
modo, experimenta-se um momento de banalização da violência, ou que,
supostamente, estaríamos retornando a selvageria ou barbárie, numa espécie de
involução cultural produzida no presente.
A questão de fundo no debate atual sobre a temática não é saber se existe
uma forma elementar de violência a ser descoberta entre os humanos, ou se a
violência é uma questão de polícia ou de classe social, ou se efetivamente é
possível falar de uma índole violenta inata aos homens, ou se a condição social é
motivação para a violência, ou se o culto ao medo é mesmo” uma ideologia, ou se
existe a possibilidade de comprovação de uma determinação biológica da violência.
26
Trata-se, isto sim, de saber até que ponto, entre os homens, os aspectos da
violência foram sistematizados, ou ainda, até que ponto os sentidos ou as
representações de violência apresentam marcas claras de vizinhanças nas diversas
sociedades em determinadas épocas e circunstâncias.
Portanto, buscar a compreensão dos sentidos ou representações da
violência que vão surgindo nos diferentes discursos e disseminados na opinião
pública como produto das diversas formas de relações sociais, estabelecidas nas
interações interpessoais e intergrupais, é uma tentativa mais promissora do que
construir uma definição essencialista ou culturalista para explicar a violência e
depois investigar se esta existe nas interações humanas em sociedade.
Invariavelmente, é fato que, todo conceito de violência sempre tra consigo
ambigüidades e contradições de seus autores, relacionando-a quase sempre,
sinonimicamente falando, a agressividade ou a criminalidade; ou unicamente ao uso
da força sica, cuja origem é, em geral, vinculada a conflitos de interesses, ou a
frustração, ou a coação exercida sobre outrem.
Mas a violência em si não é a expressão essencial das relações sociais,
isto é, não são as práticas de sociabilidade violenta ou a genética humana que
determinam o sentido de violência, e sim, a maneira como cada grupo social
experimenta e apreende a realidade social em que se expressam as suas próprias
práticas de sociabilidade.
Conceitualmente, as práticas de sociabilidade violenta o aquelas ações
ou atos de agressividade humana que se constituem em uma modalidade particular
do comportamento social uma espécie de habitus
13
de um determinado grupo na
sociedade, que se manifestam na multiplicidade de dimensões da violência social e
política da contemporaneidade, cujas formas mais visíveis estão presentes no uso
13
O sentido dado, neste trabalho, a habitus (ou ethos de posição), é o elaborado pelo sociólogo francês Pierre
Bourdieu (1983, p. 61), ou seja, “sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionar como estruturas estruturastes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das
representações que podem ser objetivamente reguladas‟ e „regulares‟ sem ser o produto da obediência a regras,
obviamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações
necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente”.
Para o autor, “as práticas que o habitus produz (enquanto princípio gerador de estratégias que permitem fazer
face a situações imprevisíveis e sem cessar renovadas) são determinadas pela antecipação implícita de suas
conseqüências, isto é, pelas condições passadas da produção de seu princípio de produção de modo que elas
tendem a reproduzir as estruturas objetivas das quais elas são, em última análise, o produto. Isto implica em dizer
que, o habitus funda-se no princípio de encadeamento das ações”, objetivamente, organizadas como estragias
não sendo mais uma estratégia dentre outras -, portanto, sem ser o produto de uma evidente interação
estratégica.
27
deliberado de uma ação física ou moral com força desproporcional e destruidora de
um indivíduo ou grupos de indiduos contra outrem, provocando a ruptura de
possíveis limites de sociabilidade estabelecidos e o aparecimento de estímulos de
negação da alteridade e das redes de solidariedade e de reciprocidade produzidos
nas relações interpessoais ou intergrupais.
Porém, as práticas de sociabilidade violenta não são ações ou atos
naturais dos homens e generalizados na sociedade pois, de fato, o produtos da
mutabilidade dos “processos simultâneos de integração comuniria e de
fragmentação social, de massificação e de individualização, de ocidentalização e de
desterritorialização” (Tavares dos Santos, 1999, p. 18) que constituem as novas
relações de sociabilidade, cuja exclusão social e econômica é uma marca identitária
das sociedades contemporâneas.
A multidimensionalidade, a imprevisibilidade e a pluricausalidade que
perpassam o fenômeno da violência, associados à conotação negativa dada ao
termo, têm, de certo modo, contribuído para a construção de reflexões e sentidos de
violência que, geralmente, enfatizam “a preocupação excessiva como os limites
reconhecíveis, as identidades claras e as lógicas fechadas”, redundando quase
sempre em apontar males a serem combatidos; ou em reificações e
essencializações de diferenças; ou em dicotomização de mundos o civilizado e o
incivilizado, o marginal (ilegal) e o legal, o excluído e o incluído (Zaluar, 1998, p.21).
Conforme observa Müller Costa (2003, p. 69):
(...) todas as sociedades humanas sustentam, em conformidade com
a época e as circunstâncias, modalidades de agressividade, as quais
são recompensadas e legalizadas consagradas em leis ou
banidas e depreciadas de acordo com as vantagens e desvantagens
atribuídas e os hábitos sociais prevalecentes.
Com base na discussão sócio-histórica do conceito de violência exposto
até aqui, conclui-se que o que se denomina comumente de violência pode ser
caracterizada como sendo um fenômeno social complexo e universal que, perpassa,
historicamente, todas as sociedades humanas, na medida em que sempre se fez
presente na vida cotidiana dos homens, representado pela capacidade de agressão
e de destruição da espécie Homo sapiens sapiens nas relações de sociabilidade
com seus semelhantes.
28
A complexidade desse fenômeno social, portanto, relaciona-se tanto com
os seus contornos polissêmicos ou seja, o sentido que as práticas de sociabilidade
violenta assumem em determinada época e lugar - quanto com as suas modulações
isto é, as formas de manifestações, que o difundidas, histórica e culturalmente,
nas sociedades humanas em função das ressingnificações e/ou as extinções dos
mecanismos de controle rituais, informais e pessoais para o bem ou para o mal -
que exerciam o impedimento à prática de uma sociabilidade violenta entre os
homens.
Em síntese, o sentido que se ao fenômeno da violência tem a ver com
a dinamicidade própria dos interesses, os valores, os bitos, os costumes, as
crenças, a ética, a moral, os confrontos e os conflitos de um determinado grupo
social em sua época. Além disso, o sentido de violência pode ser institucionalizado
ou elaborado e difundido na sociedade como forma de negar a alteridade, a ruptura
de redes de solidariedade e a afirmação da opressão, a exclusão, a segregação e a
dominação através da força corporal, ou armada, ou simbólica em detrimento de um
espaço público para a negociação democrática dos conflitos interpessoais e/ou
intergrupais, não implicando tão somente em um caráter instrumental mas, tamm,
uma racionalidade política específica.
Com base nas afirmações acima, refoa-se a idéia de se construir, neste
trabalho, uma conceituação de violência a partir da experiência dos próprios
entrevistados, e não em um ou outro autor, que as perspectivas citadas discutem
a violência em contextos, conjunturas e estruturas diferenciadas e, portanto, não
podem ser vistos como definidores de conceitos sobre a violência que contemple,
simultaneamente, a complexidade e as especificidades da realidade experimentada
pelos moradores da Vila Irmã Dulce.
1. 2 OS DISCURSOS SOBRE A VIOLÊNCIA EM TERESINA
No item anterior, fez-se uma discussão conceitual sobre violência e os
sentidos ou representações sociais construídas, para mostrar a dificuldade dos
contornos semânticos do termo nas interpretações elaboradas sobre a temática,
bem como contextualizar, histórico e conceitualmente, o objeto deste estudo. Com
isso, foi possível tirar algumas conclusões importantes que serviram de norteadores
29
para o restante do trabalho: 1) não há uma definição única, ampla e fixa sobre o que
é a violência; 2) como uma conseqüência da anterior, todo conceito de violência é
sempre permeado de ambigüidades e contradições, trata-se de uma percepção de
mundo elaborada dentro de uma lógica racional coletivizada, cuja realidade empírica
experimentada e apreendida em um determinado contexto serve de suporte
interpretativo para a construção do sentido da violência; 3) na atualidade, o que tem
causado indignação na sociedade diante das formas de violência, não é,
necessariamente, a força desproporcional e a constância de uma ação violenta em si
mesma, mas a força disseminatória do sentido que é dado a ela em função do
contexto sócio-histórico no qual se dar a sua manifestação; 4) a publicização de
percepções diferenciadas sobre a violência, sem uma contextualização sócio-
histórica, tem contribuído mais para tornar o debate mais difuso do que para atenuar
a atmosfera de insegurança na sociedade.
este item, trata dos discursos sobre a violência em Teresina
especificamente, as diferentes representações de violência elaboradas pelas
autoridades policiais (discurso oficial) e pela imprensa (discurso midiático ou
jornalístico) -, evidenciando o medo da violência na sociedade teresinense, a
austeridade das autoridades policiais contra os atos criminosos como forma de
alcaarem o reconhecimento popular e o alarmismo provocado pela
espetacularização midiática. A análise desses três aspectos serve para mostrar o fim
do mito de cidade pacata Teresina há tempos recebeu essa denominação por
causa do seu aspecto bucólico de cidade interiorana -; a prática da catarse política
por parte de algumas autoridades policiais e a pouca profundidade reflexiva no
discurso midiático que trata da violência urbana
14
.
Empiricamente, tem se constatado que a partir da década de 1990, as
ações ou atos considerados violentos e/ou criminosos aqueles tipificados em lei
como roubo, estupro, assalto, latrocínio, seqüestro, homicídios - passaram a “encher
de sangueas páginas policiais dos jornais impressos de Teresina (“Agora”, Meio
Norte”, “Diário do Povo” e O Dia”). Em meados da década de 2000, as ocorrências
policiais isoladas e corriqueiras eram transformadas em notícia-show nos
programas policiais do tipo “Ronda Policial”, na Tv Meio Norte, e “Comando 10”, na
Tv Antena 10, exibidas como um espetáculo nosso de cada dia. As supostas
14
Esta expressão é “uma categoria do entendimento do senso comum construída a partir da perspectiva de crime
comum” (Machado da Silva, 2003, p.12).
30
“gangues” de jovens na periferia de Teresina viraram um foco nas discussões sobre
a violência, sendo mapeadas e responsabilizadas pela polícia, como um dos
principais fatores da violência que levaria a população da cidade “de volta à
barbárie”.
Demonstrando certa preocupação com a situação alarmada, a partir de
meados da década de 1990, semestralmente, a Secretaria da Segurança Pública do
Piauí SSP-PI e o Sindicato dos Policiais Civis, Agentes Penitenciários e Servidores
da Secretaria de Justiça do Pia SINPOLJUSPI, começaram a apresentar
levantamentos sobre a criminalidade em Teresina
15
. De um lado, a Secretaria da
Segurança Pública mostra os números de diversas ocorrências criminosas , dentre
elas, os homicídios dolosos registrados nos Distritos Policiais de Teresina, com a
intenção mais de justificar a repressão policial em determinados setores da
sociedade do que compreender a violência em si. De outro, o SINPOLJUSPI revela
os meros de homicídios dolosos ocorridos no Piauí, com ênfase aos dados de
Teresina, cuja preocupação, aparentemente, é esboçar um perfil desse tipo de
crime, porém, tais relatórios, muitas vezes, têm servido de suporte cio-político
para referendar a luta da classe contra a resistência do Estado em aceitar as
reivindicações dos trabalhadores em segurança pública. Observe o quadro 01
abaixo:
QUADRO 01: NÚMEROS DE HOMICÍDIOS REGISTRADOS NAS DELEGACIAS DE
TERESINA 1999/2004.
ANO
INSTITUIÇÃO
SINPOLJUSPI
SSP-PI
1999
92
-
2000
133
126
2001
131
125
15
A apresentação desses dados, no recorte histórico de 1999 a 2004, tem por objetivo contextualizar o peodo
em que a Vila Irmã Dulce mais apareceu nos noticiários jornalísticos de caráter policial como um dos lugares
mais perigosos de Teresina. Obviamente que, somente a quantificação de homicídios não justifica o surgimento
do estigma, e, talvez, não tenha nenhuma relação com o mesmo, mas mostra um aspecto da violência em
Teresina. Nos quadros apresentados, a ausência de dados referentes ao ano citado deve-se ao fato da não
disponibilidade dos mesmos quando de sua coleta, porém, este fato não muda o sentido da análise comparativa
que se faz entre os relatórios.
31
2002
196
145
2003
176
168
2004
-
138
Fonte: Relatórios semestrais elaborados pelo SINPOLJUSPI e
Secretaria da Segurança Pública do Piauí SSP-PI.
Em síntese, o perfil dos homicídios dolosos em Teresina se apresentou
com certas variações ano-a-ano nos aspectos quantitativos investigados, exercendo
uma determinada especificidade no processo de vitimização. Todavia, mesmo
reconhecendo a importância desses dados, acredita-se que somente o levantamento
do número de homicídios dolosos por exemplo, a quantificação de cadáveres - é
insuficiente para fundamentar a compreensão da violência em Teresina enquanto
um fenômeno social complexo de implicações complicadas e manifestações
variadas. Os relatórios das duas instituições revelam, dentre outros aspectos que,
em geral, as vítimas foram mortas por armas de fogo e faca ou facão, tendo uma
faixa etária entre 22 e 45 anos, a maioria absoluta do sexo masculino.
Contudo, uma rápida comparação entre os números apresentados revela
um aspecto intrigante: uma tendência contraditória para o aumento (ou diminuição)
de homicídios dolosos em Teresina, em conseqüência de uma diferença numérica e
percentual entre os dados apresentados pelo SINPOLJUSPI e a Secretaria de
Segurança Pública, é um fato preocupante, já que os dados foram colhidos,
praticamente, nas mesmas fontes. Da forma como são apresentados, não
contribuem para perceber os fatores implicantes, na medida em que somente a
quantificação imprecisa de homicídios, e ainda descontextualizada dos aspectos que
envolveram cada homicídio, diz muito pouco sobre a realidade, mesmo
considerando a quantificação de vítimas como um ponto de partida.
Nos dois relarios, negligencia-se o fato de que o significado das
interações sociais, incluído os conflitos violentos, na vida cotidiana revela-se sempre
discreto e raro nas quantificações sobre a realidade, portanto, os números
escondem uma infinidade de aspectos relevantes que constituem a dinâmica da
realidade e exigem uma interpretação mais apurada dos fatos. Mesmo assim, m
32
sido usados constantemente para argumentar os contornos da “insegurança”,
conseqüentemente, reforçando o discurso no campo mais repressivo das instituições
estatais apropriadas para a segurança da sociedade.
Essa quantificação de cadáveres, mesmo considerando tamm que essa
forma de ver a violência adquiriu uma certa importância no âmbito político-
administrativo, tem servido para legitimar na sociedade as ações repressivas da
polícia. Além de se revelar pouco confiável, tem em comum a preocupação de
mostrar o perfil dos homicídios como forma de inferir, estatisticamente, sobre o
aumento ou a diminuição da violência e da criminalidade em Teresina, mas, não diz
muito sobre a real situação da violência na cidade. Sobre esse tipo de método
quantitativo, vale ressaltar que “as leis da estatística são válidas somente quando se
lida com grandes números e longos períodos de tempo, e os atos ou eventos
podem ser vistos estatisticamente como desvios ou flutuações” (Arendt, 2001, p. 52).
No caso do SINPOLJUSPI, são dados registrados em delegacias e
colhidos em jornais de Teresina, cuja interpretação aparece no movimento de uma
categoria policial, servindo, socialmente, como justificativa para o medo social e,
politicamente, como um instrumento de pressão para fortalecer a luta da classe dos
policiais e agentes penitenciários diante da resistência do Estado em conceder
melhores condições de trabalho e de salários. Isto é, ao apresentarem os seus
dados, a categoria policial além de informar quantitativamente sobre um possível
aumento (ou diminuição) no número de homicídios dolosos em Teresina, utilizam
tamm esses dados como um instrumento de pressão contra o Estado para forçá-lo
a reconhecer que, de fato, aquela classe de trabalhadores tem razões
pretensamente científicas para reivindicar por melhores salários e condições de
trabalho, na medida em que os mesmos estariam cada vez mais expostos a um
mundo inseguro e violento.
Ao alimentar o medo social com seus dados, o SINPOLJUSPI não
encontra apoio na sociedade para as suas reivindicações como “joga” com o Estado
a iia de que policiais bem remunerados e com as devidas condições de trabalho
estão imunes à corrupção e a sociedade seria defendida com mais empenho.
Obviamente, que não qualquer evidência desse tipo de relação pois a má
remuneração dos policiais e as poucas condições de trabalho são elementos
secundários em se tratando da compreensão do fenômeno social complexo da
33
violência em Teresina. Além disso, afirmar através de dados quantitativos que a
criminalidade está transformando Teresina numa cidade violenta é, no mínimo, uma
precipitação de análise, já que somente a quantificação de cadáveres não dar
elementos suficientes para tal conclusão. Observe o quadro 02 abaixo:
QUADRO 02:
ANO
INSTITUIÇÃO
SINPOLJUSPI (%)
SSP-PI (%)
1999/2000
aumento de 37,65%
-
2000/2001
aumento de 7,70%
redução de 0,79%
2001/2002
aumento de 14,64%
aumento de13,79%
2002/2003
redução de 7,62%
aumento de13,69%
2003/2004
-
-
Fonte: Relatórios semestrais elaborados pelo SINPOLJUSPI e
Secretaria da Segurança Pública do Piauí SSP-PI.
Mais uma vez, constata-se que os dados estatísticos deixam a desejar
pois o permitem compreender por que de um ano para o outro, por exemplo, em
um relatório houve um aumento de 7, 70% no número de homicídios dolosos e no
outro houve uma redução de 0,79%; ou ainda uma redução de 7,62% para um
relatório e um aumento de 13.69% para o outro. Nesse sentido, fica difícil saber ao
certo quais as razões para que houvesse um aumento ou uma redução, dificultando
uma interpretação mais consistente sobre o nível de “insegurança” em Teresina,
principalmente porque o homicídio doloso é uma forma, dentre tantas outras, de
manifestação da violência.
Os dados apresentados pela Secretaria de Segurança Pública servem
tanto para mostrar à sociedade a falsa imagem de que o Estado, de certo modo, tem
controle sobre a criminalidade violenta quanto para reforçar o discurso oficial que
estigmatiza determinados lugares e grupos da sociedade teresinense como “lugar
34
violento”, ou seja, de “pessoas perigosas”
16
, principalmente, as favelas e a
juventude (pobre) o mito do adolescente infrator sem punição -, suscitando
propostas para a segurança por parte das mais diversas autoridades, em geral,
pedindo por mais militarização, a redução da maioridade penal e uma política pública
de segurança eficaz (anexo 01), corroborando o discurso oficial e satisfazendo o
discurso do senso comum na questão da “insegurança” na cidade (anexo 02).
Dentro desse contexto, a Vila Irmã Dulce apareceu em um “mapeamento
de gangues” (anexo 03) como tendo uma gangue de jovens mesmo a comunidade
não reconhecendo a sua existência - enquanto que em outros espaços geográficos
da cidade, aparecem bairros com duas ou mais gangues (Cidade Satélite, Promorar,
São Pedro, Primavera I, Real Compagri, Santa Maria da CODIPI e outros), nem por
isso são tidos pela polícia e difundidos pela imprensa - como é a Vila Irmã Dulce -
como um dos lugares mais violentos de Teresina (anexo 04).
Trata-se de um discurso oficial midiatizado ou seja, consiste na
divulgação pela imprensa da representação de violência da autoridade policial -
sobre a violência local, que localiza, geograficamente, a violência uma
territorialização da violência e estigmatiza uma população. Isto é, constrói-se um
rótulo social negativo sobre o lugar, identificando aquelas pessoas como desviantes,
não porque seu comportamento viole normas socialmente estabelecidas, mas
porque elas, supostamente, têm características pessoais e/ou sociais que levam
outras pessoas a excluí-las.
O problema é que, através do discurso midiática ou seja, uma
representação social elaborada por jornalistas sobre a violência e disseminado
através das rádios, dos jornais impressos e das televisões locais -, sem
fundamentação consistente, deduziu-se que são os jovens, direta ou indiretamente,
os principais causadores da violência em Teresina o mito do adolescente infrator
sem punição -, que estes se fazem presentes em muitas das ocorrências
registradas. A disseminação do discurso midiático sobre “a juventude violenta sem
punição (anexo 05), tentou-se generalizar a idéia de uma suposta “involução
humana”, cujos jovens pobres teresinenses da periferia seriam a comprovação
factual na medida em que teriam elegido a banalização da morte como elemento
emblemático do seu próprio cotidiano. Para as autoridades de segurança o Estatuto
16
A questão do estigma será tratada mais especificamente no próximo item.
35
da Criança e do Adolescente não protege o adulto do menor infrator nem protege o
menor, por isso, a polícia precisaria ter “poderes facultados para tirar esses
menores das ruas uma higienização social para evitar uma banalização de seus
atos infracionais e a “volta à era da barbárie”
17
.
Do ponto de vista da forma de organização de Teresina cujo processo
de metropolização se iniciou recentemente, em comparação a outras capitais do
Brasil, no início da década de 1980 -, os atos considerados violentos o têm nada
de fato recente, sempre existiram em maior ou menor escala, mesmo considerando
a impossibilidade da existência de um instrumento confiável de medição do medo
social para comparar o que se tinha antes com o que se mostra hoje. Com isso, não
se pretende afirmar a priori que Teresina é ou sempre foi uma cidade violenta, a
porque a questão central não é esta, e sim, interpretar o contexto dos discursos da
violência na cidade, para compreender como os moradores da Vila Irmã Dulce se
vêem estigmatizados pelo discurso oficial midiatizado como “lugar violento” de
“pessoas perigosas”.
Nesse sentido, é importante reconhecer a fortificação da cidade de
Teresina, que se revela através dos novos modelos de casas e apartamentos
cercados com muros altos, cercas eletrificadas, vigilância noturna, cães-de-guarda,
grades nas portas e janelas que isolam as pessoas em “presídios particulares de
segurança máxima” (anexo 06); no aumento no número de empresas de segurança
particular e patrimonial; na intensa propaganda de equipamentos e serviços de
segurança; no surgimento de programas na imprensa, especializados em aproximar
o blico dos fatos violentos cotidianos; no aumento da ofertar de condomínios
fechados que privilegiam como primeiro item de qualidade a segurança dos
condôminos. Na verdade, o fatos evidentes para se constatar que o medo social é
um elemento ressignificado entre os teresinenses.
Hoje, os fatos violentos em Teresina que aparecem nas manchetes dos
noticiários policiais vão se constituindo no imaginário social como um “grande
monstro do mal” que encurta vidas, revela a omissão do Estado e da sociedade,
17
A idéia de “barbárie” se fundamenta numa perspectiva tradicional sobre a evolução cultural do homem, isto é,
que durante o processo de evolução da espécie humana, o homem teria passado por três estágios evolutivos:
selvagem, bárbaro e civilizado. Nesse sentido, a barbárie seria parte de um processo cíclico de involução” pelo
qual os homens estariam passando no final do século XX uma mística de final de século.
36
amedronta os ricos e criminaliza os pobres na periferia. Nesse contexto, onde o
medo social é coletivizado ininterruptamente, tende-se a formar ou a admitir uma
cultura do medo, onde as ações consideradas violentas o representadas
coletivamente como sendo a manifestação demoníaca de forças incontroláveis e
incompreensíveis que emergem das profundezas da malévola natureza humana,
sem intencionalidade e, portanto, carregada de irracionalidade, cujos pobres nas
periferias continuam sendo o objeto preferencial desse tipo de discurso.
Jornalisticamente, já se fala até em “guetização da violência em Teresina”.
É fato, portanto, que a representação ou sentido de violência oficial que é
transformada pela imprensa em informação jornalística, para publicizar os atos tidos
como violentos a espetacularização midiática - tem ocupado cada vez mais
espaços com o caráter de prioridade informacional em programas televisivos, em
jornais impressos e em noticiários de rádios. Não raro, encontrar cada emissora de
rádio, televisão e jornais com espaços dedicados, unicamente, aos fatos violentos no
Brasil, e no mundo. Em Teresina, essa espetacularização midiática, de certa forma,
encontra respaldo nas constantes manifestações de preocupação da população e
das autoridades policiais com os freqüentes registros de práticas tidas violentas.
tempos, as autoridades policiais tentavam minimizar ou deixar velado o
temor instaurado pela violência na população. Valendo-se, por um lado, do discurso
de retórica de que “Teresina é uma cidade pacata”, sugerindo que a onda recente de
violência se mostra como um fato novo na sociedade teresinense, e, por outro lado,
contraditoriamente, apelando-se para a militarização como forma de combater o “fato
novo”. Para o discurso policial, Teresina é “uma cidade de povo pacato e ordeiro”
um discurso da índole pacífica do teresinense -, portanto, as recentes práticas de
sociabilidade violenta que, supostamente, estão aparecendo no nosso cotidiano são
elementos que fazem parte de algo recente na história de alguns lugares e pessoas;
são práticas de sociabilidade que não perpassam a lógica de urbanização da cidade;
são fatos cotidianos que adquiriram maior notoriedade devido ao avanço das
tecnologias de informação, por isso, não poderia ser vistas com um produto nas
relações sociais dos teresinenses.
Contudo, o insistente clamor da população por mais segurança que não
é de hoje -, por si só, já contraria todo o discurso oficial, desfazendo o mito de cidade
pacata. Obviamente, que o aumento da concentração populacional, as
37
desigualdades de classes, as segregações, o avanço das tecnologias de
informação, a ausência de espaço democrático para a resolução de conflitos, as
criminalizações sem a pretensão de estabelecer qualquer determinismo -, podem
estar contribuindo, de alguma forma, para a dinâmica dos atos violentos em
Teresina.
Do ponto de vista político, é interessante perceber que a maioria dos
secretários de segurança, e alguns membros vinculados à Justiça, a Polícia Militar e
Civil, sempre tentaram sair de seus cargos públicos, mediante uma catarse política
Isto é, transportar-se dos seus cargos públicos, através do voto popular, para a
condição de representantes políticos -, direto para a Câmara Municipal, ou a
Assembléia Legislativa, ou a Câmara dos Deputados, ou ao Senado Federal
18
, no
intuito, segundo eles, de melhor trabalharem a questão da (in)segurança pública em
Teresina e no Estado. Para tanto, se apresentam, estrategicamente, nos noticiários
jornalísticos, fazendo discursos agressivos onde se posicionando contra os atos
criminosos, corroborando a perspectiva institucional que, geralmente, exalta e
personifica o controle do Estado sobre a violência na figura austera do Secretário de
Segurança ou do policial destemido como forma de inibir a ação dos “criminosos”.
Dessa forma, a prática discursiva policial, especificamente, termina por
disseminar no imaginário social a iia de que um bom Secretário de Segurança
Pública ou policial respeitável é aquele homem a hoje, nenhuma mulher foi
indicada para o cargo de secretário da segurança - destemido e heroicizado que
sabe incorporar, caricaturalmente, a figura do “xerife” de filme americano, ou seja,
um sujeito linha dura, com voz firme, de ações espetaculosas, com cara de mau,
implacável e inflexível na negociação com os “criminosos”, cujo slogan emblemático
que carregam consigo é: “bandido bom é bandido morto”
19
.
18
Dentre os que logram e os que não lograram êxitos nas últimas eleições municipais (2004) e estaduais (2002),
estão: JacintoTeles, Agente Penitenciário/Vereador eleito; R. Silva, Sargento de Polícia Militar/Vereador eleito;
Robert Rios Magalhães, delegado da Polícia Federal e atual Secretário de Segurança/Suplente de Deputado
Federal; Airton Franco, delegado da Polícia Federal e ex-Secretário de Segurança/candidatoo eleito a
Deputado Estadual; Carlos Lobo, ex-Secretário de Segurança/candidato não eleito a Senador; Afonso Gil Castelo
Branco, Promotor de Justiça/Deputado Federal (já morto); Ademar Canabrava, delegado de Polícia
Civil/candidato não eleito a Vereador; Eduardo Ferreira, delegado de polícia civil e da Comissão Contra o Crime
Organizado/candidato não eleito a Vereador.
19
Em julho de 2000, por exemplo, foram espalhados vários painéis de propaganda em Teresina com a frase de
efeito moral que dizia que “No Piauí tem segurança”, trazendo ao lado a imagem do então Secretário de
Segurança, Carlos Lobo que não se elegeu Senador da República pelo Piauí, em 2002 -, fazendo a entrega de
armamentos e viaturas caracterizadas às Polícias Militar e Civil. No mesmo período, houve um desfile pelas
principais avenidas e bairros de Teresina com todas as viaturas adquiridas através de recursos do Plano Nacional
de Segurança. Tratava-se, na verdade, de uma estratégia governista de cunho populista do então Governador do
38
Em geral, o exibicionismo das autoridades policiais tem a intenção de
inibir, se não na prática pelo menos psicologicamente, as ações violentas, e, de
certo modo, mascarar a tentativa constante em assegurarem para o Estado o
monopólio legítimo da violência, que, para essas autoridades, o Estado não pode
permitir que haja uma privatização da violência por grupos particulares da sociedade
nem prescindir do seu direito de violentar para controlar. Mesmo que para justificar
essa posição tenha que, tamm, criminalizar a população, principalmente, das
classes populares.
No Brasil, muitas vezes, um determinado setor da população em condição
de pobreza é criminalizado, através de um discurso policial midiatizado que,
necessariamente, pretende dar maior visibilidade à violência que se pratica e
legitimar o Estado para o exercício do controle social, mesmo que pela foa das
armas. Nesse caso, a criminalização (ou violência) institucional é utilizada mais para
validar as ações policiais repressivas dentro das comunidades de populações
pobres, do que para revelar a contradição com relação às condições sociais a que
estas são, diariamente, submetidas; ou reconhecer as demandas sociais básicas
que lhes são negadas pelo Poder Público.
Entretanto, é importante salientar que, uma determinada condição social
por exemplo, a pobreza não é motivação suficientemente determinante para que
um indivíduo possa optar por uma convivência violenta nas suas relações
interpessoais. Pensar desse modo, é, no mínimo, um equívoco de perspectiva
analítica, já que no campo específico das práticas de atos de violência, ter a
condição para não é o mesmo que ter a motivação para, isto é, “a mesma coisa não
é coisa mesma”
20
. A não ser que se pretenda, deliberadamente, criminalizar e
estigmatizar determinados setores da sociedade: os negros, os desempregados, a
juventude, os desviantes. Nesse aspecto, os meios de comunicação, através dos
programas policiais, podem servir, conscientes ou inconscientemente, como um forte
Estado Francisco de Assis Moraes Sousa, o “Mão Santa”, para afugentar os criminosos, sem, no entanto,
favorecer em nada a reflexão crítica sobre a violência no cotidiano de Teresina, que esta postura estava
fundamentada na lógica tradicionalista de que „violência se combate é com mais violência” - no caso, com a
violência policial -; ou ainda, que “é eliminando o criminoso que se acaba com o crime”. Contraditoriamente, no
final do segundo semestre de 2001, o Governador Mão Santa” foi cassado pelo Supremo Tribunal Federal por
improbidade administrativa.
20
Esta expressão trata-se de um raikai um poema curto não publicado, do poeta e músico piauiense ga
Oliveira.
39
aliado para a consolidação dos estigmas sobre determinadas populações ou
comunidades.
Do ponto de vista discursivo, as interpretações dos atos violentos
cotidianos, em Teresina, têm ocupado mais espaços nas discussões sociais,
principalmente, nas percepções jornalísticas, com isso, tem-se provocado o
surgimento de muitas propostas, através de representantes tanto das instituições
sociais quanto do Estado, sobre prováveis soluções para diminuir a violência e o
medo social. Em geral, reivindicam por políticas públicas de atendimento às
demandas sociais mais urgentes, mas, principalmente, por militarização e
aparelhamento das polícias militar e civil. Para ilustrar como são construídas
algumas interpretações, destacou-se um trecho de uma matéria jornalística local
premiada, à época, como destaque da imprensa escrita. Diz o texto:
A violência assume uma forma epidêmica em Teresina. Ela vai
significando o retorno ao estado de natureza do homem, onde
prevalece a lei do mais forte contra o fraco. Homens e mulheres de
bem são assassinados da forma mais perversa nos bairros pobres.
As gangues derramam medo, terror e morte entre os integrantes de
seus grupos e à sociedade, desafiam o governo e transformam
bairros e vilas em guetos. Uma questão de auto-afirmação (ALVES,
2000, p.3).
Numa breve análise desse discurso (ou linguagem) jornalístico, é possível
perceber três aspectos relevantes que perpassam à construção da representação
social ou sentido de violência exposta: 1) a iia de evolucionismo cultural do
homem bárbaro/selvagem/civilizado; 2) a espacialização e estigmatização pela
violência; e 3) a tentativa de negação do sentido das práticas de sociabilidade da
juventude.
Primeiro aspecto: afirmar que as atuais práticas de violência significam “o
retorno ao estado de natureza do homem”, é uma forma precipitada de reconhecer
que os homens nascem violentos determinismo biológico - e de negar que as
práticas de sociabilidade são construídas dentro de uma temporalidade e
espacialidade, em função das estruturas e conjunturas sociais experimentadas por
um determinado grupo de indivíduos. Portanto, não há qualquer fundamentação
teórica para sustentar a afirmação de que o estado de natureza do homem é a
violência e que, de certo modo cíclico, sempre haverá um retorno a tal estágio.
40
Além disso, esquece-se de que o potencial latente de agressividade do
“animal-homem é parte dele e que, justamente, são as formas de manifestação
dessa agressividade que se diferenciam conforme a dinâmica dos conflitos
estabelecidos entre os homens humanizados. Do ponto de vista cultural, nenhum
animal da espécie Homo sapiens sapiens nasce humano, mas dotado de uma
capacidade de sociabilidade para responder a estímulos, não-biológicos, construídos
dentro do processo de socialização no qual está inserido, sendo que este processo é
produto do conflito entre os interesses interpessoais e/ou intergrupais; das
definições dos códigos e valores legitimados pela sociedade; das culturas.
Dessa forma, compreende-se que as práticas de sociabilidade violenta
não são inatas no homem. Na verdade, elas são produto das manifestações de
expressões sociais que causam conflitos com os interesses de determinados
indivíduos ou grupos dentro daquilo que consideram, socialmente, “normais”. Por
sua vez, tais manifestações podem ser determinadas por questões interacionais que
vão emergindo nas estruturas e conjunturas sociais na contemporaneidade.
Portanto, as pticas de sociabilidade violenta, de fato, não são da natureza
humana, ou seja, não qualquer determinismo biológico quanto à existência da
violência
21
.
Segundo aspecto: estigmatizar, diretamente, determinados lugares e,
indiretamente, os seus próprios moradores em geral, pobres, negros,
desempregados ou subempregados - como locus da criminalidade e pessoas de
práticas de sociabilidade violenta” é um equívoco pois a questão não é de classe
social mas de estrutura e/ou conjuntura social. Desse modo, a disseminação dessa
linguagem de violência, colabora para consolidar no imaginário social além do
autoritarismo policial na concepção tradicional que trata a violência unicamente
como caso de polícia - uma suposta violência generalizada, que, por meio de um
certo alarmismo político e midiático, relacionam-na com “lugares perigosos”,
“pessoas pobres” e “práticas sociais criminosas”.
21
Pelo fato de sempre ter existido em todo tempo e lugar, a violência não pode ser considerada inerente ou parte
natural do homem, já que, histórico e socialmente, ela vai se dando um nome ou um sentido. A naturalização do
sentido da violência não é o mesmo que dizer que ela é natural no homem. Por exemplo, se todos
compreendessem que a guerra é violência, ela deixaria de existir. Pois a idéia de guerra que é passada para a
humanidade é a de defesa dos territórios, do país etc, não passa como sendo, inclusive, a usurpação do direito
humano como se ver claramente nas discuses mais abertas sobre o tema o caso da invasão americana com
aliados ao Iraque, a guerra na Bósnia e tantas outras.
41
Nessa concepção jornalística é possível perceber a reificação da
criminalização da pobreza, a segregação social e a espacialização da violência em
certas áreas de Teresina principalmente de classes populares, onde o
desemprego, o desarranjo familiar, os baixos níveis de escolaridade, a falta de
perspectivas e as precárias condições de habitabilidade são marcas visíveis da falta
de assistência do Estado, e não características essenciais da natureza humana.
Segundo Soares (2004, p. 94), no Brasil:
O desemprego é um fator-chave, sim, mas se converte em
variável significativa no aumento de crimes letais quando se combina
com a degradação da auto-estima, a ruína afetiva, a precariedade do
acolhimento familiar, a debilidade dos vínculos com a escola, a
fragilidade do reconhecimento comunitário, o embotamento da
consciência moral e o esvaziamento subjetivo da adesão aos valores
republicanos da cultura cívica.
Zaluar (1994, p. 59), ao se referir, criticamente, àquelas concepções que
criminalizam os pobres e que, de alguma forma, são absorvidas e difundidas pelo
discurso jornalístico, enfatiza que:
As explicações deterministas e reducionistas vêem nos pobres
sistematicamente os mais afeitos à criminalidade ou ao uso da
violência. Se for inegável que crises econômicas e sociais podem ser
associadas ao aumento de certos tipos de crime, a equação não se
explica pela relação direta e imediata entre a baixa renda e a
criminalidade.
Terceiro aspecto: a maneira como o discurso jornalístico trata sobre as
gangues de jovens que desafiam o governo” (rever anexo 04), é uma forma de
negar o sentido de outras expressões de práticas de sociabilidade da juventude que
possa existir. Além disso, trata-se de um reforço discursivo que aponta para a idéia
de homogeneização da violência entre os jovens da periferia de Teresina, evitando a
compreensão, por parte da sociedade, a respeito do real sentido da existência
dessas práticas.
A questão de fundo sobre a “violência juvenil” não é saber se as gangues
de jovens se matam, ou roubam, ou se drogam, ou se concordamos ou não com as
suas práticas, mas, isto sim, saber qual é o sentido dessas práticas de sociabilidade
42
entre os jovens; ou por que elas passaram a existir em Teresina. Essas percepções
ou representações sociais jornalísticas que disseminam uma visão discriminatória
sobre o comportamento juvenil, terminam por criar uma estética da violência (ou da
barbárie)
22
que, segundo Costa (2002, p. 134, grifos meus), está entranhada na
natureza dos meios de comunicação de massa como uma condição inerente (...)”.
Evidentemente, percebe-se que o discurso oficial espetacularizado,
generalizante e aterrorizante sobre a violência em Teresina ou seja, aquele
discurso que as autoridades policiais constrói sobre os atos tidos por estas como
violentos e que são representados socialmente pelos jornalistas na construção da
notícia -, é, fundamentalmente, parte dos códigos midiáticos que os meios de
comunicação operam para estimular a indiferença diante da dor, da guerra e da
miséria, assegurando um distanciamento “das massas diante da condição humana
globalizada” (Costa, 2002, p. 135).
Desta forma, tende-se a reforçar a idéia de passividade plena no processo
de recepção por parte da população. O que não deixa de ser um equívoco, já que tal
passividade não é possível devido à “mediação da linguagem, o contexto histórico-
social e político e da experiência individual e coletiva” (Costa, 2002, p. 141).
Na verdade, o discurso jornalístico (ou midiático) é uma forma de
representação social que, dentre outras implicações, reforça a idéia discriminatória
de que nos locais onde existem vilas e favelas são espaços, potencialmente
preparados, para o desencadeamento das mais diversas práticas de sociabilidade
violenta. Quando, na verdade, as vilas e favelas, historicamente, são produtos de um
processo de desigualdade social, que revela, tamm, uma desigualdade de classe
em geral, quem mora em vilas, guetos, cortiços e favelas o pessoas da classe
baixa. Dessa forma, o discurso jornalístico es (de)formando a opiniãoblica, para
que esta, predominantemente, defenda e fortaleça a idéia de dominação que se
estabeleceu e continua prevalecendo - através da segregação social e espacial
sobre os pobres no Brasil.
Segundo Dias (1996, p. 171):
22
Segundo Costa (2002, p. 132), “a definição de estética da barbárie, perseguindo a gica de que a forma da
produção jornalística está presente no conteúdo do fato noticioso, em muito se firma em subverter a ordem
cronológica e tornar o que imediatamente está sendo exposto como informação necessária para a audiência”.
Cuja finalidade é comprometer a formação da sensibilidade do receptor, já que à medida que este é exposto de
forma crescente e cumulativa, “deixa de ser capaz de se sensibilizar quanto ao trágico, à miséria, à dor, A
repetição continuada da violência amortiza a indignação e age no sentido de sua banalização” (Costa, 2002, p.
134).
43
Em certos momentos, talvez seja a força desse discurso, hiperbólico
por natureza, uma das maneiras mais eficientes de expressar os atos
e estados violentos. Mormente quando se trata de levar a notícia ao
encontro dos modelos de violência que os leitores, pela vivência e
pelo contexto social, já construíram e interiorizaram. E, geralmente, o
fizeram por meio de veículos de comunicação muito mais eficientes e
de ação constante com a TV e o rádio.
A autora ainda enfatiza que,
(...) esse discurso assim construído tem, é certa, sua dose de risco:
freqüentemente ele pode levar ao sensacionalismo e daí à sua
conseqüência mais danosa, ou seja, a banalização da imagem da
violência, integrando-a no dia-a-dia da vida urbana, não raro até pelo
recurso da malícia e do humor (Dias, 1996, p. 172).
Evidentemente, tanto o discurso oficial elaborado pelas autoridades
policiais - quanto o midiático ou jornalístico elaborado por jornalistas e
disseminado pela imprensa , que são dois tipos distintos de representação social
sobre o mesmo fenômeno ou mesmo o discurso oficial midiatizado ou
espetaculariado - elaborado pela autoridade policial e transmitido pela imprensa na
forma de um espetáculo do cotidiano - têm sido pouco críticos, na medida em que
impregna o imaginário dos receptores com uma superficialidade analítica do sentido
da violência nos nossos dias, promovendo a re-definição de conceitos e a
eliminação de valores que, de certa forma, estavam, socialmente, integrados e
interagindo.
Nos lugares onde as pessoas tinham o hábito de conversarem sentadas
nas calçadas da vizinhança, sob o pôr-do-sol ou sob as noites estreladas, ao
absorverem tais discursos, da forma alarmista como são repassados, mesmo
admitindo a real existência de diversas práticas de violência, especificamente, no
espaço urbano , passam a mudar de comportamento e de atitude diante dos outros,
se isolando cada vez mais entre muros e perdendo o sentido de solidariedade e de
reciprocidade que, de alguma forma, proporcionava o reconhecimento comunitário
entre os moradores de um mesmo lugar.
O medo e a insegurança são comportamentos construídos socialmente
que se revelam através da atitude cada vez mais freqüente das pessoas em
44
buscarem ou construírem moradias com muros altos e cercas eletrificadas. A
população parece respirar violência, com isso, dissemina-se uma cultura de medo
que se generaliza em todos os segmentos sociais. A violência, enquanto um
fenômeno social complexo, assusta, principalmente, porque não exclui nem pobres
nem ricos. Nesse sentido, há a construção de um olhar diferente sobre as estruturas
que vão justificar o retorno à suposta natureza violenta do homem, fazendo com que
se neguem os sujeitos ou atores das ações de violência pois não há mais lugar para
o homem social, que este aparecerá com outro nome e destituídos de identidade
social, política e cultural. Como, por exemplo, o “bandido”, ou o “marginal”, ou o
“mendigo”, ou o “trombadinha”, ou o “ladrão”, ou o “drogado” .
As discussões sobre a violência em Teresina, portanto, passa por inserção
na compreensão dos processos simultâneos de integração comunitária e de
fragmentação social, de massificação e de individualização” que, de alguma forma,
se apresentam nos diversos grupos sociais urbanos modernos (Tavares dos Santos,
1999, p. 18). Segundo o autor, a violência - como norma social particular de muitos
grupos sociais - é produto da exclusão social e econômica, estabelecidas em
“múltiplas dimensões da violência social e política contemporânea”. Por isso, para
além do viés economicista e reducionista, convém perceber que todos os fatores que
permeiam as práticas tidas violentas são perpassados, também, pelas dimensões
política, social, cultural, religiosa e pelas intersubjetividades que compõem o modo
próprio” pelo qual cada indivíduo e grupos sociais experimentam as dificuldades
cotidianas, negociam as diferenças e resolvem os mais diversos conflitos
interpessoais e intergrupais.
1.3. O ESTIGMA OFICIAL DE “LUGAR VIOLENTO” SOBRE A VILA IRMÃ
DULCE
No item anterior, se tratou dos discursos sobre a violência em Teresina,
especificamente, sobre as diferentes representações sociais de violência elaboradas
pelas autoridades policiais o discurso oficial - e pela imprensa o discurso
midiático ou jornalístico.
A análise se centrou na interpretação dos dados numéricos da violência;
do medo da violência na sociedade teresinense; da austeridade das autoridades
45
policiais; do alarmismo provocado pela espetacularização midiática. Para mostrar,
dentre outros aspectos, a tendência contraditória no aumento (ou diminuição) dos
homicídios dolosos em Teresina nos dados apresentados pelo SINPOLJUSPI e a
Secretaria de Segurança Pública; o fim do mito de cidade pacata, quando se
compara o discurso oficial com o clamor social por segurança; a tentativa de catarse
política por parte de algumas autoridades da segurança pública, que comumente se
lançam na carreira política; as percepções do discurso midiático que disseminam
uma visão discriminatória sobre o comportamento juvenil; a criminalização de
determinados lugares e grupos sociais teresinenses pelo discurso policial; a pouca
consistência crítica do discurso oficial midiatizado (ou espetacularizado) sobre a
realidade da violência em Teresina.
Desse modo, tais constatações não permitem concluir a priori se Teresina
é ou não uma cidade violenta. Mas, uma coisa é certa, a cidade em si o violenta
ninguém e os discursos sobre a violência em Teresina carecem de uma vio mais
crítica da realidade e dos comportamentos dos sujeitos sociais.
Neste item, faz-se, objetivamente, uma discussão sobre a origem e as
conseqüências em torno do estigma oficial midiatizado de “lugar violento” - logo de
“pessoas perigosas” - sobre a Vila Irmã Dulce, a partir das contribuições teóricas de
Erving Goffman (1988) sobre o estgma, cujo objetivo é contextualizar minimamente a
discussão.
Segundo Goffman (1988, p. 11),
os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais,
criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os
quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau
sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos
com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um
escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente
poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos.
Existem três tipos de estigmas diferentes: 1) as abominações do corpo
as várias deformações físicas; 2) “as culpas de caráter individual, percebidas
como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas,
desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por
exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego,
tentativas de suicídio e comportamento político radical”; 3) “há os estigmas tribais de
46
raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar
por igual todos os membros de uma família” (Goffman, 1988, p. 14).
No caso da Vila Irmã Dulce, o estigma de lugar violento”, logo de
“pessoas perigosas se encaixaria melhor no segundo tipo no aspecto das
“crenças falsas e rígidas”. De fato, não qualquer evidência de que as relações
sociais dentro daquela comunidade sejam em função, exclusivamente, da violência.
Foi o discurso oficial que fez reverberar na sociedade teresinense uma imagem
negativa do lugar através da imprensa, estigmatizando o lugar, invariavelmente se
estigmatizou a população local pois sem a mesma o lugar não seria uma localidade.
Mas especificamente, a origem do estigma de lugar violento” logo de
“pessoas perigosas” sobre a Vila Irmã Dulce, deu-se a partir da divulgação em
jornais locais do mapeamento de gangues em Teresina feito pela polícia em 1999
(rever anexo 04). Desde então, a localidade passou ser vista com restrições pela
população teresinense, principalmente a vizinhança local, e pela polícia que
considerou a área como uma das mais violentas de Teresina.
A imprensa começou a divulgar com mais freqüência em seus noticiários
os atos considerados violentos pela polícia que aconteciam na localidade, até
mesmo, transformando conflitos rotineiros e isolados em espetáculo midiatico, como
se a violência fosse a marca mais visível daquela localidade, ou mesmo como se
tudo começasse e terminasse em violência. Por exemplo, a luta dos moradores para
a implantação do sistema de abastecimento d‟água apareceu na manchete de um
jornal local como sinônimo de “confusão”, “briga”, “tumulto”, fazendo com que o leitor
assimilasse a notícia e imediatamente associasse a idéia de violência à comunidade
como um todo (anexo 07).
As preocupações com a “identidade social” de um indivíduo ou grupo de
indivíduos - nos permite transformar determinadas atribuições, como “honestidade”,
ou estruturas, como “ocupação” , em expectativas normativas, em exigências
apresentadas de modo rigoroso” (Goffman, 1988, p. 12). No caso da Vila Irmã Dulce,
durante muito tempo pois, hoje, é menor a força do estigma - a sua “identidade
social” de “lugar violento, logo de “pessoas perigosas”, era uma expectativa exigida
extravila.
O relato de um diálogo que será analisado com mais profundidade no
capítulo III - entre um dos entrevistados e uma funcionária pública é um exemplo
oportuno para perceber como o estigma de lugar violento” sobre a Vila Irmã Dulce
47
criou expectativas normativas nas pessoas que não eram da comunidade sobre as
pessoas que são da comunidade:
Eu lembro é que uma vez, eu estava procurando emprego no SINE.
Aí, aquela mulher do SINE me perguntou:
- Você mora onde?”. Eu disse:
- Moro na Vila Irmã Dulce.
- Vixe, tu mora na Vila Irmã Dulce?”.
Eu perguntei para ela:
- Porque você pergunta assim?. E ela disse:
- Vixe, o lugar „véi‟ mais perigoso do mundo”.
Pois, eu moro e nunca aconteceu nada comigo, graças a Deus,
até o momento.
(...) Até, eu falei assim:
- Minha senhora, para fazer a minha ficha? Se não der, não tem
problema, não. Eu moro na Vila Irmã Dulce, mas não tem bicho,
não. Somos gente do mesmo jeito dos outros.
(...) Eu me chateie no momento, mas, depois, fui pensar no caso e,
sabe de uma coisa, deixa pra lá, né? Quem sabe, hoje, ela está
nesse local e, amanhã, pode não está.
O diálogo revela ainda a força do discurso oficial midiatizado para
consolidar a esttigmatização sobre a localidade como um dos lugares mais violentos
de Teresina, contribuindo para impregnar o imaginário social e reforçar uma suposta
especificidade da violência intrínseca à vida social da comunidade. No diálogo, a
funcionária blica falava até em “o lugar mais perigoso do mundo”, logo as
pessoas que moram na localidade são vistas por ela como “as mais perigosas do
mundo”, ou mesmoas mais perigosas por natureza”. Ou seja, o estigma é, de certa
forma, uma maneira de desumanizar um indivíduo.
Quando normais e estigmatizados realmente se encontra na
presença imediata uns dos outros, especialmente quando tentam
manter uma conversação, ocorre uma das cenas fundamentais da
sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles
em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos
do estigma.
O indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em
relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão
(Goffman, 1988, p.23).
Sem exagero, em alguns casos por exemplo, no “caso Buiú”, em 2005,
um morador da localidade acusado pela polícia como suposto autor de mais de sete
estupros em Teresina o estigma sobre a Vila Irmã Dulce tem servido até de
especulação para se comprovar a natureza violenta das pessoas do lugar, ou como
48
possíveis portadores de uma prática de sociabilidade violenta que os torna
diferentes do restante dos teresinenses. No “caso Buiú” a polícia fez uma caçada
durante cerca de 15 dias ininterruptos, enquanto os programas policiais faziam a
espetacularização do fato, mostrando algumas invertidas da polícia e
desqualificando o acusado de qualquer característica humana.
Ao ser preso pela polícia, Buiú foi, cruelmente, espancado por policiais e
exposto pela imprensa como o “monstro da Vila Irmã Dulce”, um desumano que não
mereceria mais viver entre os normais”. Talvez por causa do estigma e da
espetacularização midiática que impregnou a sociedade teresinense à época, já
rumores na comunidade de que o “monstro da Vila Irmã Dulce” já teria sido vítima de
um estupro dentro do presídio com uma barra de ferro uma espécie de “código de
honra dos presos” que condena da mesma forma aqueles que praticam crimes
hediondos, principalmente, contra crianças, mulheres e idosos.
Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estgma não
seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos
de descriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes
sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma
teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e
dar conta do perigo que representa, racionalizando algumas vezes
uma animalidade baseada em outras diferenças, tais como as de
classe social (Goffman, 1988, p. 15).
Sem dúvida, o estigma de “lugar violento” sobre a Vila Irmã Dulce é
perpassado pela condição social de seus moradores, que para boa parte da
ideologia policial associa crime à pobreza. A discriminação e a desqualificação social
de seus moradores talvez seja o maior castigo imposto pelo estigma sobre a
comunidade. Entretanto, cabe ressaltar que, primeiro, o lugar em si não violenta
ninguém e, segundo, admitir que a totalidade dos moradores da Vila Irmã Dulce são
“pessoas perigosas”, ou “desumanas”, ou “incivilizadas”, não seria mais só um
estigma, mas um determinismo biológico.
Conforme observa Goffman (1988, p. 13):
O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo
profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é
uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que
estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem,
portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso.
49
Sociologicamente, portanto, o estigma é uma categorização de atributos
considerados como comuns e naturais, construído pela sociedade para
rotular/caracterizar um indivíduo, ou grupos de indivíduos, como um ser inabilitado
para a aceitação social plena uma espécie de “identidade social” ou marca
identitária. Um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre
atributo e esteriótipo” (Goffman, 1988, p. 13), que, no caso da Vila Irmã Dulce, a
polícia construiu o atributo, a imprensa deu o esteriótipo, e ambos, cada qual com o
seu modo discursivo, disseminaram a relação entre o atributo e o esteriótipo na
sociedade teresinense.
Na verdade, os atos tidos violentos pelos discursos oficial e midiático, seja
com relação à Vila Irmã Dulce ou qualquer outra localidade, se constituem em fato
social
23
que não pode ser visto como definidor de uma marca identitária nas relações
sociais cotidianas em um determinado grupo. Até porque, nenhuma sociedade ou
grupo social no qual a prática de atos violentos seja constante nas interações sociais
resistiria por muito tempo. Portanto, é impossível se estabelecer um convívio social,
unicamente, de e para a violência.
O sentido das diferentes manifestações ou tipos de violência
institucional, ou doméstica, ou estrutural - é produto histórico das próprias
sociedades, isto é, o grau de visibilidade ou invisibilidade de um determinado tipo de
violência em um determinado grupo social depende de cada sociedade concreta. É
por isso que, antes de se admitir uma suposta generalização da violência na Vila
Irmã Dulce, em função das percepções e dos discursos que tendem a estigmatiza-la,
convém estar atento à ampla acepção das relações sociais subjacentes à
comunidade.
Nunca é demais repetir que o sentido de violência é dado, interpretado e
incorporado pelos grupos sociais, mediante a dinâmica das relações de dominação
cultural, política, econômica, social ou religiosa que vão se constituindo e se re-
constituindo no tempo e no espaço da sociedade.
Portanto, o estigma de lugar violento logo de “pessoas perigosas”
sobre a Vila Irmã Dulce foi construído pela representação social de violência da
23
O conceito de fato social adotado aqui vem da perspectiva sociológica durkheimiana. Ou seja, o fato social é
toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então,
que é geral no âmbito de uma dada sociedade sendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das
suas manifestações individuais” (Durkheim, 2001, p. 40). Nesse sentido, todo fato social é produto da
experiência humana, portanto, não se realiza sem a participação imprescindível dos homens.
50
polícia e disseminado pela representação social de violência da imprensa. Ou seja, o
sentido de violência da polícia absorveu a comunidade da Vila Irmã Dulce como
bode expiatório do seu discurso, enquanto que a imprensa fez reverberar no
imaginário social a imagem negativa sobre a localidade, através do discurso
midiático que negligencia outros aspectos que envolvem as relações sociais na
comunidade que não são, necessariamente, produto da violência, tais como a rede
de solidariedade, os vínculos vicinais, a força de organização.
51
CAPÍTULO II : A VILA IRMÃ DULCE E O CONTEXTO
URBANO DE TERESINA
O capítulo anterior, fez-se uma abordagem das concepções e percepções
conceituais de violência e dos discursos sobre a violência em Teresina, bem como a
conceituação do termo estigma, para contextualizar a discussão, favorecendo a
compreensão da linha de raciocínio deste estudo. Com isso, pretendeu-se tornar
clara as dificuldades teóricas e as especificidades da realidade que envolve a
problemática em questão, já que tais aspectos são fundamentais, não somente para
demonstrar a relencia da discussão, mas, principalmente, para norteá-la.
Neste capítulo, apresenta-se alguns aspectos contextuais sobre a
urbanização de Teresina, dando ênfase àquelas mudanças ocorridas,
principalmente, a partir da segunda metade da década de 1990 e a invenção social
da Vila Irmã Dulce, desde a ocupação da área até sua inserção no contexto da
violência em Teresina. O objetivo é mostrar os condicionantes estruturais e
conjunturais, que, de certo modo, caracteriza a construção de um momento político
significativo para as práticas de ocupações e o desencadeamento simultâneo dos
processos, dinâmicos e distintos, de favelização e de verticalização, como as marcas
mais visíveis na expansão urbana de Teresina, cuja Vila Irmã Dulce aparece como
uma localidade ou “lugar de violência”, logo de “pessoas perigosas”.
Porém, cabe advertir que, não há, aqui, a intenção de insinuar qualquer
relação direta de causalidade entre o processo de urbanização de Teresina com um
possível aumento ou diminuição da violência, mas, isto sim, procura-se situar o
contexto urbano da cidade, para compreender a relação estabelecida entre os
52
sujeitos da pesquisa os moradores da Vila Irmã Dulce - e o objeto de estudo o
estigma de lugar violento” , dentro do contexto sócio-histórico no qual a dinâmica
da violência se efetiva e fomenta, nos discursos e percepções diferenciadas, a
construção de representações sociais ou sentidos. Haja vista, que os processos
pelos quais os sujeitos representam tais práticas são, extremamente, dinâmicos e
exteriores aos mesmos; onde estímulos e respostas, indissociavelmente, se formam.
É fato que, paralelamente, à aceleração do processo de urbanização de
Teresina, tem se constatado um aumento populacional significativo, deixando as
pessoas mais próximas uma das outras, permitindo mais confrontos e possibilitando
a existência de diversos conflitos entre os indivíduos ou grupos de indivíduos, em
função de seus interesses. Muitas deles, resolvidos de forma violenta.
2.1. ALGUNS ASPECTOS DA URBANIZAÇÃO DE TERESINA
Nesta análise, parte-se do entendimento de que todo processo de
urbanização inclusive, o de Teresina -, não se trata somente do movimento
demográfico de aglomerados humanos ou do movimento econômico de
concentração de riquezas. Bem como, o compreende, também, somente as
formas concretas que expressam ou definem esses movimentos, mas,
principalmente, pelo seu conteúdo social e cultural, já que tais movimentos também
têm a ver com os comportamentos políticos e migratórios dos grupos sociais em
cada época e lugar.
Para Corrêa (2000, p. 09), o espaço urbano é fragmentado e articulado,
além de reflexo e condicionante social. Em outras palavras, é um complexo conjunto
de símbolos e campo de disputas de interesses, muitas vezes, divergentes, que
mesmo sob constantes modificações nos seus arranjos organizacionais, este se
mantém, simultaneamente, fragmentado e articulado; como reflexo e condicionante
social, independentemente de possíveis alterações ocorridas nas suas formas e em
suas funções. Desse modo, a desigualdade sócio-espacial se constrói e se expressa
dentro da dinâmica urbana, já que “o equilíbrio social e da organização espacial não
passa de um discurso tecnocrático, impregnado de ideologia”.
53
Segundo Santos (1993, p. 9 -10),
(...) a grande cidade, mais do que antes, é um lo da pobreza (a
periferia no pólo...), o lugar com mais força e capacidade de atrair e
manter gente pobre, ainda que muitas vezes em condições sub-
humanas. A grande cidade se torna o lugar de todos os capitais e
todos os trabalhos, isto é, o teatro de numerosas atividades
“marginais” do ponto de vista tecnológico, organizacional, financeiro,
previdenciário e fiscal. Um gasto público crescentemente orientado à
renovação e à reviabilização urbana e que sobretudo interessa aos
agentes socioeconômicos hegemônicos, engendra a crise fiscal da
cidade; e o fato de que a população o tem acesso aos empregos
necessários, nem aos bens e serviços essenciais, fomenta a
expansão da crise urbana. Algumas atividades continuam a crescer,
ao passo que a população se empobrece e observa a degradação de
suas condições de existência.
A urbanização de Teresina é parte significativa de uma nova dinâmica no
processo de urbanização do Piauí, desencadeado a partir de 1950 com a crise da
economia extrativa e a inserção do Estado na política desenvolvimentista nacional,
que visava a estruturação e a aceleração do processo de industrialização no Brasil
24
.
Desde então, Teresina sofreu e continua sofrendo profundas transformações na
configuração do seu espaço urbano, exibindo problemas sociais graves, cujo sentido
é perpassado pelas dimensões política, cultural, social, econômica, temporal e
espacial, que compõem a lógica capitalista de modernização das metrópoles.
As décadas de 1950, 1960 e 1970, marcam um período importante para a
construção estrutural da cidade, cujo centro permaneceu com o traçado original em
xadrez uma tendência padronizada de planejamento urbano ocidental,
característico da Renascença.
Entre as décadas de 1970 e 1980, o processo de urbanização de Teresina
foi sendo intensificado pelos investimentos estatais governos federal, estadual e
municipal -, em infra-estrutura no espaço urbano, atraindo mais migrantes
intermunicipais e interestaduais em busca de serviços e atividades diversas,
fomentando a ocupação da cidade. Em conseqüência desse fluxo migratório,
visivelmente, descontrolado, houve um adensamento populacional em Teresina,
provocando a incorporação de zonas agrícolas afastadas do centro.
24
Segundo Façanha (1998, p. 63), “a conjuntura nacional e regional, que estava se implantando naquele
momento, iria contribuir para que ocorresse o „desenvolvimento do estado‟, consolidando a cidade de Teresina
como a principal do estado”.
54
No final da década de 1980, percebe-se, claramente, que a cidade
cresce, redefine-se, reconfigurando-se e conferindo um sentido diferenciado à vida
de seus habitantes” (Lima, 1999, p. 26), com isso, novas demandas sociais foram
surgindo para o Estado. Segundo Lima (1999, p. 25), pouco a pouco o drama
cotidiano dos teresinenses foi sendo complexificado pelo agravamento dos
problemas sociais que iam surgindo sob uma atmosfera de “olhares
desesperançados, realidades sombrias, referências e identidades abaladas”.
Nesse contexto, torna-se evidente a conjugação de uma lógica
reprodutiva, cada vez mais visível, qualificada pela valorização do
capital e a institucionalização da ação do poder público, com um
cenário menos encantador, menos risível e mais perturbador: a
espetacularização da pobreza (Lima, 1999, p. 25).
A percepção crítica de Lima (1999), que descreve a Teresina do final da
década de 1980, de certo modo, se conjuga com as idéias de Santos (1993), sobre a
relação da cidade com as necessidades emergentes dos seus habitantes.
A cidade em si, como relação social e como materialidade, torna-se
criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico de que é o
suporte como por sua estrutura física, que faz dos habitantes das
periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não
é apenas o fato do modelo socioeconômico vigente, mas, também,
do modelo espacial (Santos, 1993, p.10).
Atualmente, o perfil da sociedade teresinense tem uma acentuada
predominância da cidade sobre o campo por conta do processo de metropolização.
As zonas rurais, e a as cidades próximas, estão sendo incorporadas cada vez mais
ao tipo de vida cotidiana de Teresina. Muitas pessoas, trabalham em Teresina
durante o dia, ou toda a semana, e, quando podem, retornam para os seus lugares
de origem à noite, ou no final de semana.
Esse ritmo de vida tem exigindo dos pobres rurais e intracidades
desenraizados a necessidade de construírem novos vínculos de sobrevivência e de
interação social, especialmente com os pobres urbanos locais, capazes de permitir-
lhes superar os baixos níveis de qualidade de vida e os constantes deslocamentos
intrabairro e intracidade, com o objetivo de viabilizarem uma vivência, humanamente,
digna em um cenário, cujo drama social aumenta de intensidade, continuamente,
55
sob uma atmosfera de realidades que se exibe conflitante, violenta e desigual. Por
conta dessas condições, muitos trabalhadores acabam trazendo suas famílias para
morarem em Teresina, inicialmente, nas casas de parentes ou alugadas, e depois,
realizando ocupações na periferia como forma de diminuírem gastos e
reconstituírem os laços afetivos familiares.
MAPA I: Mapa de Teresina/Zona Urbana
FONTE: SDU / SUL Prefeitura Municipal de Teresina (2005).
56
E foi justamente através das ocupações de terras na periferia, que o
movimento dos sem teto (ou de luta pela moradia em Teresina) começou a demarcar
o seu espaço na organização urbana da cidade, forçando o poder público municipal,
e depois o estadual, a reconhecer a sua legitimidade e representatividade na
reivindicação do direito à moradia, e, tamm, à cidadania para os pobres. Esse tipo
de movimento deu início a uma nova ptica social no espaço urbano de Teresina
que, cotidianamente, tem perturbado a classe político-administrativa, principalmente,
porque vai de encontro “a concepção dominante de cidade que procura conservar a
pobreza nos subterrâneos da sociedade” (Lima, 1999, p. 25) e, de certa maneira,
tem uma relação direta com dois processos urbanos simultâneos, dinâmicos e
distintos: a favelização e a verticalização.
No primeiro processo a favelização
25
-, têm-se basicamente as
ocupações por parte dos sem teto de áreas periféricas, públicas e privadas, com
pouca ou sem nenhuma infra-estrutura, servindo como delimitação dos espaços
diferenciais das classes sociais teresinenses, principalmente, entre os anos de 1991
e 1993 e, um pouco menos em 1996. o segundo processo - a verticalização
26
-, é
favorecido através do beneficiamento infra-estrutural de uma parte da cidade pelo
Poder Público, para que os setores de alta renda construam mansões e edificações
condominiais de apartamentos, principalmente às margens do Rio Poti. Na
realidade, esse processo se iniciou em meados da década de 1980, com o
aparecimento dos primeiros edifícios de apartamentos residenciais de luxo em
bairros próximos do centro da cidade, restringindo a posse do espaço urbano a
poucos, em valor de uso e valor de troca.
Mesmo assim, em função da irregularidade no modo de expansão urbana
de Teresina, ainda hoje, é possível encontrar áreas de interstícios, isto é, pequenos
intervalos que separam determinada área da cidade com moradias de classes
populares localizadas entre as casas e os prédios de apartamentos de luxo
25
Segundo Santos (1993, p. 30-1), “é na produção da favela, em terrenos públicos ou privados invadidos, que os
grupos sociais excluídos tornam-se, efetivamente, agentes modeladores, produzindo seu próprio espaço, na
maioria dos casos independentemente e a despeito dos outros agentes. A produção desse espaço é antes de tudo,
uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, uma estratégia de sobrevivência”. (...). “No plano imediato, a
favela corresponde a uma solução de um duplo problema, o da habitação e de acesso ao local de trabalho”.
26
Segundo Façanha (1998, p. 210), “a verticalização é um símbolo de uma geografia dos espaços
metropolitanos, o qual representa o surgimento de edifícios em uma determinada área da cidade, implicando
alterações na propriedade e no uso do solo urbano”.
57
ocupados pela classe alta (p.ex. na zona leste) e a situação contrária (p.ex. na zona
sul)
27
Subjacente à ação estatal está a classe dominante ou algumas de
suas frações. Sua atuação se faz, de um lado, através da auto-
segregação na medida em que ela pode efetivamente selecionar
para si as melhores áreas, excluindo-as do restante da população:
irá habitar onde desejar. A expressão desta segregação da classe
dominante é a existência de bairros suntuosos e, mais recentemente,
dos condomínios exclusivos e com muros e sistemas próprio de
vigilância, dispondo de áreas de lazer e certos serviços de escolas
públicas eficientes.
A classe dominante ou uma de suas frações, por outro lado, segrega
os outros grupos sociais na medida em que controla o mercado de
terras, a incorporação imobiliária e a construção, direcionando
seletivamente a localização dos demais grupos sociais no espaço
urbano. Indiretamente a tua através do Estado (Corrêa, 2003, p. 63-
64).
Nos últimos anos, a urbanização verticalizada de Teresina tem avançado
velozmente, fomentando a especulação imobiliária como uma forma direta de expor
a segregação espacial e social através dos condomínios residenciais fechados com
cercas eletrificadas e controle de acesso/saída que zela pela segurança dos
moradores, significando, explicitamente, um “filtro” de controle das trocas daquele
lugar com o exterior. Percebe-se, tamm, que, cada vez mais tem aumentado a
“fortificação de Teresina” como uma das formas mais recorrentes dos moradores
com melhores condições financeiras de externarem as suas preocupações com a
freqüente violência no cotidiano que, supostamente, estariam se instaurando e se
generalizando endemicamente em todo o espaço urbano, em virtude da comoção
pública.
27
Provavelmente, pudesse se imaginar que a segregação social e espacial em Teresina seria de tal maneira que
não permitisse a possibilidade de existência de interstícios. Contudo, se percorrermos a zona leste da cidade -
teoricamente, uma área de especulação imobiliária para a classe alta - iremos encontrar diversos aglomerados de
classes populares entre mansões e condomínios fechados. Por exemplo, a Vila do Arame que forma um
interstício entre as mansões do Planalto Ininga e do Jóquei Clube. Na zona sul uma área que, devido à distância
para o centro da cidade, começou a ser povoada a partir da década de 1970, depois da inauguração do
conjunto habitacional Parque Piauí, em 1968 é visível a presença de mansões e condomínios fechados de
apartamentos cercados por casas de classes populares. Por exemplo, dentro do bairro Lourival Parente e entre os
bairros Santo Antonio e Santa Clara, na BR-316.
58
MAPA II: Mapa de Teresina/Zona Sul - 2004
FONTE: SDU / SUL Prefeitura Municipal de Teresina (2005).
Com essas distintas práticas de ocupação do solo urbano a favelização
e a verticalização -, fica evidente a existência de territórios diferenciais, onde cada
teresinense, conforme a sua condição social, conhece seu lugar e se sente um
estranho nos demais, dinamizando, simultaneamente, o movimento de separação
entre as classes sociais a segregação social - e de funções no espaço urbano a
59
segregação espacial. É como se a cidade estivesse fragmentada com demarcações
de cercas e fronteiras imaginárias, que redefinem o lugar de cada função/atividade e
de cada habitante por nível de renda.
Através dessa perspectiva de modernização da cidade, fica ainda mais
explícito que, quanto mais fragmentado for o espaço urbano de Teresina, mais
visível e inconfundível será a diferença social e, conseqüentemente, mais acirrados
poderão se tornar os confrontos e conflitos. Nesse contexto, as práticas de
sociabilidade violentas cotidianas surgem como um dos principais elementos
perturbadores da sociedade, que perpassam a nova forma de sociabilidade que a
urbanização imprime aos teresinenses.
A ação do Estado na organização de Teresina como uma nova forma de
exercício do poder no urbano, através de intervenções e de investimentos
infraestruturais no espaço da cidade produz e fomenta a segregação, na medida
em que, nas “áreas nobres”, equipa o espaço com o que há de essencial em
serviços públicos, enquanto nas “áreas pobres”, investe - quando isso acontece, é,
geralmente, em período de campanha eleitoral -, abaixo do mínimo necessário na
implantação destes mesmos serviços, como se tratasse de um mero favor, e não
como um direito a esse setor da população
28
.
Corrêa (2000), referindo-se a fragmentação e ao caráter social do espaço
urbano, enfatiza que:
(...) o espaço urbano, especialmente o da cidade capitalista, é
profundamente desigual: a desigualdade constitui-se em
característica própria do espaço urbano capitalista, bem como
sendo reflexo social e porque a sociedade tem dinâmica
própria, o espaço urbano é também mutável, dispondo de uma
mutabilidade que é completa, com ritmos e natureza
diferenciados (Corrêa, 2000, p. 08).
No final da década de 1990, o aprofundamento dos problemas sociais,
econômicos, políticos e culturais nas interações sociais de caráter interpessoais e
intergrupais, em parte, foi provocado pela falta da implementação de uma política
28
Um exemplo dessa forma de atuação do Poder Público pode ser visto numa comparação entre a construção da
avenida Raul Lopes, na zona leste, e da avenida Francisco de Assis Garcia, na Vila Irmã Dulce. Na zona leste, a
Prefeitura Municipal comprou parte dos terrenos de particulares e concluiu a obra em menos de um ano. Na zona
sul, o Governo do Estado, na campanha eleitoral de 2002, e Prefeitura Municipal, na campanha eleitoral de 2004,
juntos, asfaltaram a metade da avenida, deixando a outra metade para a segunda visita do Presidente Ls Inácio
Lula da Silva, em 02 de agosto de 2005, a primeira foi em 10 de janeiro de 2003.
60
pública de urbanização de Teresina, que minimamente e/ou estrategicamente
estabelecesse a necessidade de alguma forma de normatização e regulação
internas compatíveis com a nossa realidade.
Do ponto de vista cultural, houve a fuo e difusão de hábitos e costumes
locais com aqueles que foram trazidos de outros lugares, passando a ser
incorporados ao modo de vida urbana no cotidiano de Teresina. Nesse mesmo
período, a destruição da ilusão dos pobres de um dia prosperarem em Teresina se
transformou numa realidade urbana bastante complexa, cuja crise habitacional
persistente aparece como um dos graves reflexos, acompanhado pelo processo de
não incorporação, por parte do Estado, de milhares de pessoas em condição de
pobreza e destituídos de direito à cidadania no planejamento econômico e social.
Em meados da década de 1990, o Poder blico Municipal e depois, o
Poder Estadual, com recursos Federais -, como parte de um novo processo de
organização política, realizou pequenas melhorias na infra-estrutura das áreas
ocupadas, principalmente, como forma de revitalizar Teresina e não se distanciar,
eleitoralmente, das classes populares. Dessa forma, a intervenção do poder público
no campo das políticas blicas de atendimento básico contribuiu, paradoxalmente,
mais para aumentar a desarticulação interna entre os moradores das localidades e
as suas lideranças do que, propriamente, para responder às suas necessidades.
Pois ao prestar atendimento a certas demandas sociais estratégicas para o
desenvolvimento das localidades (posto de saúde, escola, creche, horta
comunitária), desmobilizou os moradores da luta coletiva para assegurarem outros
direitos sociais, tornando-os alvos fáceis para a realização de catarse política nos
períodos eleitorais, mediante a cooptação das lideranças comunitárias por
candidatos indistintamente, de direita e de esquerda.
Todavia, contrariando a lógica, aparentemente, impermeável da dinâmica
desse processo de re-organização da cidade, em 1998, por conta de um
planejamento estratégico do Movimento Nacional de Luta Pela Moradia, para
realizarem ocupações simultâneas pelo Brasil, a FAMCC Federação de
Associações de Moradores e Conselhos Comunitários do Piauí -, enquanto entidade
do movimento popular de sustentação e organização política dos sem teto, planejou,
61
organizou e executou a mais expressiva ocupação urbana de Teresina na década de
1990 : a Vila Irmã Dulce
29
.
2.2. A INVENÇÃO SOCIAL DA VILA IRMÃ DULCE
A invenção social da Vila Irmã Dulce
30
é produto de um processo mais
amplo de ocupações urbanas no Brasil, ocorridas durante a segunda metade da
década de 1990, que foram impulsionadas, duplamente, pela crise habitacional nos
grandes centros urbanos e pela falta de programas sociais ou políticas públicas
capazes de garantir o direito à moradia, e, também, à cidadania, aos pobres
urbanos.
Através de uma deliberação do movimento nacional de luta pela moradia,
se estabeleceu, a partir de 1998, um conjunto de ocupações organizadas,
simultaneamente, em todo o Brasil.
MAPA III: Mapa da Vila Irmã Dulce - 2004
FONTE: SDU / SUL Prefeitura Municipal de Teresina (2005).
29
O nome de Vila Irmã Dulce dado para a área ocupada foi uma homenagem à brasileira e missionária católica,
Dulce Lopes Pontes (1914 1992), que iniciou os primeiros movimentos sociais de atendimento aos pobres em
Salvador-BA, sugerido pelo Pe. Brasil raco da Igreja do Residencial Porto Alegre - e aprovado em plebiscito
informal pelos ocupantes.
30
A utilização do termo “invenção social” refere-se ao fato de que foi uma ocupação planejada e organizada
pela FAMCC juntamente com as famílias sem teto em uma área de mata fechada sem nenhuma infraetrutura,
como forma de assegurar o direito à morada junto ao Poder Público.
62
No Piauí, a FAMCC, entidade estadual representativa dos interesses dos
sem teto, se encarregou de articular outras entidades e mobilizar famílias para
realizarem as ocupações, como forma de pressionar o Poder Público, para
implementar uma política de habitação que levasse em consideração o direito dos
pobres à moradia. A área ocupada foi 50 hectares de mata fechada hoje, a Vila
Irmã Dulce ocupa cerca de 160 hectares -, abrigando, inicialmente, cerca de 4.500
famílias de sem teto hoje, a Vila Irmã Dulce tem, aproximadamente, 8.500 famílias
e uma populão estimada em 35.000 pessoas
31
. A área de ocupação tinha uma
finalidade especulativa, já que, depois da conclusão da primeira etapa do
Residencial Esplanada, ela estava sendo mantida sob proteção particular
32
para a
especulação imobiliária, e se destinava a priori para a construção da segunda etapa
do Conjunto Residencial Esplanada, aguardando apenas uma maior valorização
monetária das terras.
Dentre os principais critérios para a escolha dessa área estavam o acesso
fácil ao transporte coletivo e a proximidade com uma rede de abastecimento d‟água
e de energia elétrica - no caso, do residencial Esplanada, que, à época, tinha muitas
casas fechadas ou abandonadas pelos seus inquilinos, devido à grande distância
para o centro de Teresina, cerca de 15 quilômetros. As famílias foram identificadas e
cadastradas
33
pelas associações de moradores, parceiras da FAMCC, entre pobres,
desempregados intermunicipais e interestaduais desprovidos de qualquer proteção
social por parte do Estado e, tamm, por pessoas que moravam em barracos
pagando aluguéis. Assim, unidas pela necessidade de moradia, com uma estratégia
de ocupação e consciência política, poderiam fazer frente à negligência do Poder
Público quanto à proposição de uma política de habitação para os pobres urbanos
teresinenses.
31
Esses dados foram colhidos junto ao Grêmio Comunitário de Luta Pela Vila Irmã Dulce. Entidade responsável
pela implementação do Programa de Subsídio Habitacional PSH, com recursos do Governo Federal, através da
construção de 1.133 casas populares com custo médio/unidade de 5.700,00 (cinco mil e setecentos reais). A
Entidade está concorrendo com outras, de todo o Brasil, ao prêmio de Modelo em Gestão Popular de Recursos
Públicos.
32
Os proprietários eram a Construtora CIPREMO, a THE Construções Ltda e o empresário Júlio Soares
Nascimento.
33
3
As famílias foram selecionadas com base em alguns critérios: sem teto, idosos, pobres, desempregados, mães
solteiras, recém-casados, famílias morando de aluguel ou de favor.
63
ILUSTRAÇÃO 01
FONTE: DIÁRIO DO POVO - As primeiras moradias da Vila eletrificadas com
gambiarras - 1999
A invenção social da Vila Irmã Dulce se deu justamente num momento,
historicamente, estratégico pois o movimento pela moradia em Teresina apresentava
uma discreta desarticulação institucional com a substituição de lideranças no
comando da FAMCC, o que, de certa forma, proporcionava um problema de solução
de continuidade. Além disso, um outro fator importante tinha a ver com o mero
reduzido de quadros técnicos qualificados para prestar em assessoria às lideranças
comunitárias dentro de suas localidades, como forma de aproximar a FAMCC das
comunidades, possibilitando o desenvolvimento uma consciência política nos
moradores.
A luta popular parecia estar sob o controle do Poder Público Municipal,
através de suas pulverizadas intervenções na infra-estrutura e na organização
interna das comunidades pobres, estabelecendo uma “encenação ideológica” de que
64
a questão habitacional de Teresina, principalmente, para os sem teto, estava,
definitivamente, controlada e sendo encaminhada institucionalmente.
Na realidade, tratava-se de mais uma manobra política perpetrada pelo
Poder Público Municipal na tentativa de cooptar as lideranças comunitárias, para
depois utilizá-las numa catarse política. É comum se encontrar em muitas
localidades pobres de Teresina lideranças comunitárias de associações diversas
como representantes locais de Vereadores e grupos políticos ligados ao Poder
Executivo.
ILUSTRAÇÃO 02
FONTE: DIÁRIO DO POVO - Visão panorâmica da Vila irmã Dulce a partir do
Morro do Chacal 2004
2.3. O PROCESSO DE OCUPAÇÃO DA ÁREA
Segundo relatos obtidos com várias lideranças comunitárias e
representantes institucionais, que participaram da organização dos sem teto vindos
de diversas partes de Teresina, o planejamento para a ocupação do terreno onde
65
hoje é a Vila Irmã Dulce
34
durou cerca de quatro meses ininterruptos de fevereiro a
maio de 1998 -, sob a coordenação e execução da FAMCC em parceria com a Igreja
Católica, sindicatos, Cáritas Brasileira, Partidos Políticos (de esquerda), movimento
hip hop, movimento anarquista, Organizações Não-Governamentais, dentre outros.
Durante os quatro meses de preparação para a ocupação, a FAMCC
articulou parcerias, cadastrou as possíveis famílias de ocupantes, organizou e
promoveu reuniões com as famílias selecionadas para discutirem a questão social
da pobreza, a conjuntura organizacional de Teresina, as dimensões práticas de seus
direitos e deveres como membros de uma sociedade e futuros ocupantes, bem como
a concepção conceitual de ocupação e de invasão
35
que adotariam,
consensualmente, a partir daquele momento.
Essa estratégia foi utilizada para, inicialmente, despertar uma consciência
política nos sem teto, fortalecendo-os e capacitando-os para a luta que viria logo
após a ocupação, a legalização do novo lugar de morar. Para a ocupação, foram
organizados grupos de 50 famílias por zonas de Teresina (norte, sul, leste e
sudeste) que ocuparia determinados setores da área
36
, previamente, divididos pela
organização e coordenados por lideranças comunitárias indicadas pela FAMCC em
comum acordo com os ocupantes.
Um aspecto interessante na formação dos grupos familiares, é que os
organizadores tiveram o cuidado em preservar os vínculos comunitários entre os
ocupantes dos diversos lugares, como forma de assegurar minimamente a rede de
solidariedade e de reciprocidade que existente entre elas. Para assentar cada
grupo familiar por setor definido da ocupação, os organizadores adotaram o critério
da proximidade por vizinhanças de origem em alguns casos, como eram
esperados, houve coincidência, tamm, de proximidade por parentescos.
34
A ocupação da área começou pelo lado do Residencial Esplanada e foi adentrando a mata no local. Hoje a
extensão da localidade faz como limites, no sentido leste/oeste, o bairro Angelim e, no sentido oeste/leste, o
Residencial Esplanada.
35
De forma simplificada, o termo ocupação foi trabalhado com os sem teto no sentido de ser o ato de estar de
posse de uma determinada área que não esteja cumprindo qualquer função social e o termo invasão como sendo
o ato de tomar posse de uma determinada área que estava sendo adequadamente utilizada com função social
definida - por seu proprierio.
36
Hoje, esses setores servem de referencial para localização dentro da Vila Irmã Dulce:de Pequi, Morro dos
Cegos, Palitolândia, Morro do Chacal, Morro Peito de Moça e Trincheira que já não existe mais. Esses nomes
foram dados com base no nome das lideranças de referência em cada setor, ou por um acidente geográfico, ou
por uma árvore típica do lugar.
66
ILUSTRAÇÃO 03
FONTE: DIÁRIO DO POVO - Visão interna da Vila irmã Dulce com as suas primeiras
ruas - 2000
Depois desse período embrionário, tanto a coordenação da ocupação
quanto os futuros ocupantes se sentiam prontos para o tão sonhado momento em
que, enfim, seria os “donos da terra”. Contudo, faltava definir o instante exato para a
ocupação, tendo como referência o plano estratégico de ocupações simultâneas em
todo o Brasil, elaborado pelo movimento nacional de luta pela moradia para 1998.
Coincidentemente, no início de junho daquele ano ocorreria, um importante evento
religioso da Igreja Católica uma parceira estratégica na organização da ocupação
que, obviamente, tinha o seu interesse religioso de arrebanhar os sem tetos dentro
da “terra prometida” – que poderia servir de suporte estratégico para desviar a
atenção das autoridades, principalmente, da polícia.
Exatamente, no dia 02 de junho de 1998, o Pe. Antonio Cruz, da Paróquia
da cidade de Santa Cruz dos Milagres-PI, trouxe para Teresina a imagem da Divina
Santa Cruz dos Milagres para adoração e renovação de pelos católicos. No
67
entardecer, a imagem santa foi recepcionada por uma multidão de fiéis no balão
viário que acesso aos conjuntos residenciais, Porto Alegre e Esplanada, na zona
sul de Teresina.
Conforme o planejado, previamente, pelas entidades organizadoras tanto
da ocupação quanto da peregrinação religiosa, enquanto o cortejo religioso rumava
para o pátio da Igreja do bairro Porto Alegre, sob cânticos e orações de louvor, os
sem teto que, até aquele momento, não sabiam onde ficava a “terra prometida”,
por medida de segurança foram se concentrando em uma área de mata fechada
nas proximidades do local onde ocorreria a louvação à imagem da Divina Santa Cruz
dos Milagres.
Todas as famílias estavam prontas e equipadas com facas, facões,
foices, machados, enxadas, pás e picaretas para realizarem uma ocupação
espetacular, rápida e definitiva. Naquele momento, todo cuidado era pouco, já que o
setor de inteligência da polícia militar havia sido alertado para proteger de uma
possível invasão as terras de um grande empresário da cidade localizadas naquele
conglomerado urbano. Durante a celebração católica, um grande número de policiais
observava a multidão sem, no entanto, se darem conta do planejado. O final da
celebração era o sinal para os sem teto de que chegara o momento de conhecerem
a terra prometida”. As expectativas foram despertadas e um misto de alegria e
ansiedade formava a atmosfera. Depois da organização checar todos os detalhes,
por volta de meia-noite os ocupantes começaram a marchar rumo à área de
ocupação. No início da madrugada de 03 de junho de 1998
7
, os ocupantes eufóricos
já desmatavam, destocavam e mediam seus lotes
8
na área ocupada.
Ao amanhecer, sob a proteção simbólica do manto da Divina Santa Cruz
dos Milagres, os ocupantes começaram a enfrentar as primeiras reações adversas,
de um lado, a polícia tentava reprimi-los e expulsá-los da área, de outro, parte
significativa de moradores do residencial Esplanada hostilizavam os sem teto,
chamando-os, pejorativamente, de “desocupados”, “vagabundos”, “marginais”,
“ciganos”, “bandidos” etc. Principalmente, quando ateavam fogo no mata cortado,
7
O dia 03 de junho é tido pelo movimento de luta pela moradia como o Dia Nacional de Ocupação.
8
Durante o desmatamento da área ainda não havia a delimitação dos lotes para cada família, posteriormente, a
organização da ocupação, auxiliada pelas famílias, promoveu a divisão da área em pequenos lotes de 10 por 30
metros. Mas depois, a medição dos lotes teve por base a normatização contida no Código de Postura do
Município, 10 por 20.
68
provocando a formação de uma imensa nuvem de fumaça com cinzas que cobriam
as casas da região e era possível ser vista a quilômetros de distância.
Curiosamente, foi com a invenção da Vila Irmã Dulce que a área do residencial
Esplanada passou a ter visibilidade pública.
Sob a coordenação da FAMCC, aos poucos os ocupantes foram
recebendo os seus lotes através de senhas e sorteios para erguerem as suas
próprias moradias de taipa. À medida que os dias foram passando, várias
estratégias eram usadas pelo Poder Público, instigado pelos proprietários do terreno,
para retirá-los da área, mas a união e a determinação dos sem teto suportavam os
ataques, as prisões, as humilhações, as perseguições, as privações, a falta d‟água,
as pressões, as discriminações etc. A fala de uma das lideranças reflete bem essa
disposição dos ocupantes para a luta pela moradia, diz ela: “a ira deles os
poderosos é porque nós somos é guerreiros”.
Depois de enfrentarem as ordens de despejo e a força do Poder Público,
cerca de quarenta dias depois da ocupação, a Prefeitura de Teresina admitiu que
não iria mais tentar desapropriar a área. A partir de então, mais e mais moradores
alguns no intuito de realizarem a especulação imobiliária foram chegando à Vila
Irmã Dulce e, entre 2000 - 2001, a ocupação já estava consolidada, mas a luta por
melhorias na infra-estrutura básica estava apenas começando
37
.
Nos primeiros meses de ocupação, como tinham que proteger a área, as
famílias de ocupantes foram obrigadas a improvisarem, até que construíssem as
suas casas, um local para dormirem. Segundo o relato de uma liderança
comunitária, quando caia a noite, os ocupantes colocavam uma carcaça de cabeça
de gado, recolhida num matadouro próximo, para cozer em água
38
com sal e depois
comiam acompanhada de cachaça para saciar a fome e se protegerem do frio da
madrugada. Quando amanhecia, o trabalho era retomado numa breve reunião com
os organizadores da ocupação à sombra de uma árvore de pequizeiro, um lugar de
referência para todos.
Hoje, o lugar onde se encontra a árvore há um consenso informal que
proíbe a sua derrubada -, na avenida Francisco de Assis Garcia, é conhecido,
37
Mesmo depois de sete anos de formação da comunidade da Vila Irmã Dulce, nenhuma rua possui calçamento
nem qualquer tipo de saneamento básico. Atualmente, o Governo Federal com contrapartidas do Governo
Estadual desenvolve um trabalho para instalação de fossas sépticas em todas as casas.
38
A água era retirada de poços artesanais, sem qualquer tratamento, que foram perfurados durante a ocupação da
área.
69
popularmente, como o setor do “Pé-de-Pequi” e é um dos lugares de maior
referência dentro e fora da comunidade. Para os moradores, é um lugar marcante da
ocupação e, para quem é de fora, é o símbolo da imagem negativa construída sobre
a Vila Irmã Dulce como umlugar violento”.
Um fato curioso é que, quando a coordenação da ocupação precisava
reunir todos os ocupantes, eram soltos fogos de artifício como sinalizadores do local
da reunião. Em geral, à noite, estrategicamente, não se soltavam fogos,a não ser
para avisar que a polícia estava chegando na área. Nesse caso excepcional, todos
os ocupantes deveriam se dirigir até a praça do conjunto residencial Esplanada, para
estarem juntos e, de certa forma, se protegerem.
Hoje, segundo relatos de alguns entrevistados, os fogos de artifícios são
utilizados como sinalizadores por alguns traficantes para avisarem aos usuários da
chegada de maconha na “boca de fumo”. Contudo, quando das visitas à localidade
não foi constatado tal fato, mas, nem por isso, pode-se fazer qualquer inferência
sobre a veracidade ou não dos relatos feitos fora da entrevista gravada.
ILUSTRAÇÃO 04
FONTE: DIÁRIO DO POVO - Visão interna no trecho asfaltado da Av.
Francisco de Assis Garcia - 2005
De certa forma, houve uma preocupação da FAMCC em manter a coesão
dos grupos familiares como forma de prevenir os conflitos indesejáveis, ao tempo em
70
que tentava evitar, inutilmente, a infiltração de aproveitadores que viessem fomentar
a especulação imobiliária na área. Nos dias de hoje, não é difícil encontrar placas de
“vende-se” e de “aluga-se penduradas em casas e terrenos dentro da ocupação. A
especulação imobiliária é um fato real que foge ao controle das lideranças
comunitárias pois muitas famílias residentes em outras áreas, que não fizeram parte
dos primeiros grupos familiares para a ocupação, alugaram ou venderam as suas
casas e foram para a Vila irmã Dulce
39
.
Segundo o Censo de Vilas e Favelas de Teresina 1999, feito pela
Prefeitura Municipal, a Vila Irmã Dulce, à época possuía cerca de 3.047
domicílios, sendo 1.734 com eletrificação por gambiarras, 1.336 com abastecimento
d‟água através de canos quebrados e poços perfurados e 2.528 despejam os
dejetos a céu aberto; a população total era de 3.019 famílias, com 4.774 homens e
4.983 mulheres. Em 2005, segundo estimativas do Grêmio Comunitário de Luta Pela
Vila Irmã Dulce, responsável pela construção de 1.133 casas populares e 1.900
unidades sanitárias com recursos federais, haveria na localidade cerca de 7.200
domicílios e 30.000 habitantes.
Atualmente, a localidade possui duas linhas de ônibus coletivos da
Empresa Transcol Vila Irmã Dulce/Centro/Vila Irmã Dulce -, com dois ônibus via
avenida Barão de Gurguéia e dois via avenida Miguel Rosa, mas o ponto final é no
conjunto residencial Porto Alegre
40
- aproximadamente, um quilômetro da Vila; 01
posto de saúde; 01 horta comunitária; muitos barzinhos e pequenos comércios; 01
escola pública (19 salas de aula, dois conjuntos de banheiros masculinos e
femininos separados para estudantes e funcionários, 01 cantina, 01 biblioteca, 02
bebedouros 01 com água natural e 01 com água gelada -, 01 sala para reuniões
de professores(as).
39
Mesmo assim, ainda é comum encontrar numa mesma área da Vila Irmã Dulce várias famílias vindas de um
mesmo lugar de origem em Teresina. A forma de organização por vizinhança de origem tinha a intenção de
facilitar a atuação das lideranças setoriais sobre os grupos familiares, já que o se desfazendo os vínculos de
amizade, de confiabilidade, de vizinhança e de organicidade comunitária seria menos trabalhoso para estimular
os grupos a permanecerem unidos numa cumplicidade coletiva capaz de resistir diante das dificuldades para
consolidar o espaço urbano ocupado.
40
A empresa alega que é por motivo comercial pois, assim, poderia alcançar um maior número de passageiro
pelo trajeto. Mas, em um ano e meio de vistas à Vila Irmã Dulce, sempre indo de ônibus coletivo, foi possível
perceber, tanto por conversas informais quanto pelo comportamento observado dos motoristas e cobradores, que
a imagem da localidade como “lugar violento”, ainda é muito presente no imaginário destes. Portanto, deduz-se
que, de fato, a medida não é, meramente, comercial, mas uma forma de previr possíveis ataques daquela “gente
perigosa”.
71
ILUSTRAÇÃO 05
FONTE: DIÁRIO DO POVO Vista interna da Vila Irmã Dulce, 2004
Além disso, apresenta 17 templos religiosos de diferentes Igrejas
41
; 01
Centro integrado de Segurança (23º Distrito Policial); vários pequenos salões de
manicure, pedicure e corte de cabelo; 05 pontos de moto-taxi; 01 creche municipal;
01 ginásio poliesportivo única área de lazer; 02 escolinhas de futebol; 01 grupo de
danças afro e 02 de hip hop; nenhuma praça; nem mercado público; nem feira livre;
nem saneamento básico; 01 locadora de vídeo; a maioria das casas é constrda
com telhas e tijolos, mas ainda muitas outras de barro e palha; a maioria das
moradias possui energia elétrica (com ou sem gambiarras), televisão, geladeira,
fogão a gás e de barro; 04 casas com antena parabólica; 03 casas com forno de
micro-ondas e computador; o lixo é, diariamente, recolhido por carroças; há alguns
pontos de encontro para prostituição 02 com piscinas
42
; a droga ilícita mais
41
Igreja Pentecostal Deus é Amor; Igreja Pentecostal Deus é Amor do Monte das Oliveiras; Universal do Reino
de Deus; Brasil Para Cristo; Adventista do timo Dia; Comunidade a Sóis Com Deus; Igreja Batista; Igreja do
Evangelho Quadrangular; Congregação Assembléia de Deus; 02 Congregação Assembléia de Deus do Brasil;
Centro Espírita Segundo Allan Cardec; Centro de Umbanda Maria Leite e as Igrejas Católicas Nossa senhora dos
Migrantes; Sagrado Corão de Jesus; Santa Rita; Santa Ana
42
A quantidade e a localização exata desses pontos, por questão de confiabilidade (entrevistador e entrevistados)
e de segurança, permanecerão no anonimato. Durante as visitas foram encontradas muitas mulheres
72
consumida é a maconha; não reconhecimento popular de nenhuma “gangue” de
jovens; existe um Grêmio comunitário que dem a representatividade dos
moradores da localidade; trabalhadores(as) de vários tipos de serviços e
atividades; 01 clube de mães; 02 churrascarias de pequeno porte.
2.4. VILA IRMÃ DULCE E O CONTEXTO DA VIOLÊNCIA
O mapeamento das chamadas “gangues”
43
, feito pela Secretaria de
Segurança Pública e divulgado pelos meios de comunicação, aponta a existência de
turmas de jovens por localidade e as colocam como um dos principais fatores da
desordem social na periferia, servindo, basicamente, como referência para o
planejamento de ações táticas de prevenção - por exemplo, os arrastões e o toque
de recolher nas vilas e favelas de Teresina - por parte da Polícia Militar.
A medida em que as autoridades vão definindo certos lugares com sendo
violentos, ao mesmo tempo, promovem a criminalização não da juventude local,
mas, também, de toda a comunidade e introduz na discussão a espacialização da
criminalidade em Teresina, cujo padrão determinista estabelecido é o de “lugar
violento” para aquelas localidades que apresentam altos índices de criminalidade e
de “lugar não-violento” para aquelas outras localidades com baixos índices de
criminalidade. Os dados mostrados nos quadros 01 e 02, servem de referência para
a construção do mapeamento da criminalidade por área de Teresina.
Na verdade, quando da construção desse “mapeamento das gangues de
Teresina”, fica evidente que o serviço de inteligência das polícias militar e civil
procurou identificar, essencialmente, aquelas moradias conhecidas no jargão
adolescentes, a maioria é moradora da Vila Irmã Dulce. A existência de prostituição infantil na localidade é
confirmada pelos sujeitos entrevistados.
43
Essa denominação de gangues para as turmas de jovens que se juntam na periferia de Teresina para praticarem
diversos delitos é, de certa forma, desproporcional àquilo que, de fato, elas representam em sua essência.
Diferentemente da concepção das gangues norte-americanas, as turmas de jovens em Teresina que são
identificadas pela polícia e reconhecidas (ou o) pela comunidade local, o apresentam qualquer tipo de
organização interna, planejamento estratégico de ação ou hierarquização. Em geral, esses jovens se encontram
ocasionalmente para participarem de bailes noturnos e/ou para consumirem drogas como eles mesmo dizem,
“só para curtir” . Muitas vezes, por várias razões interrrelacionais, algumas turmas entram em confrontos e
promovem distúrbios que, em alguns casos, têm levado à morte um certo número de jovens integrantes.
73
policial como “bocas-de-fumo”
44
e, a partir desse levantamento, foram associando
cada uma delas a uma turma de jovens em determinada localidade de Teresina.
Entretanto, não foi observado pela análise policial que cada uma das tais
bocas-de-fumo se constituem, tanto para os traficantes quanto para os
consumidores de drogas, em um território particular que, geralmente, aglomera um
certo número de usuários das proximidades. Dessa forma, aqueles que se
identificam com um determinado território se sentem na obrigação de defende-lo
para garantirem a boca-de-fumo, o que, em muitos casos, acaba gerando
confrontos com membros de outros territórios divididos.
Nas metrópoles modernas, em menor escala, encontra-se o domínio
do território nas turmas de rua, nas gangues de bairro e nas
quadrilhas de criminosos profissionais, que passam a ocupa-lo e se
sentir “donos da rua”. Suas lutas constantes, suas guerras
intermináveis devem-se a esse extremo zelo em afirmar um controle
fictício do ponto de vista legal, pois o território defendido tão
ferozmente é, na verdade, público, ou seja, de todos. No entanto, a
defesa do local passa a ter grande importância na afirmação da
identidade masculina dos jovens do lugar (Zaluar, 1996,p.21).
Portanto, a identificação dos traficantes e dos consumidores com um
determinado território ou boca-de-fumo se constrói através de uma noção de
pertencimento, mesmo desprovida de uma consciência política, ou seja, na medida
em que estes estabelecem um “ponto” como referência para a comercialização e o
consumo de drogas, implicitamente, aderem a um pacto informal de
“companheirismo” na defesa de seu território, nem que para tanto tenham que
matar alguns rivais de outro território.
A partir desse contexto, se percebe os primeiros sinais da segregação
social e espacial
45
por parte das instituições sociais sobre os pobres urbanos,
disseminadas através do discurso policial que criminaliza a juventude e a
pobreza
46
. Atualmente, na grande periferia de Teresina, ainda é exercida uma
política discriminatória por parte do Poder blico um dos elementos
44
A expressão boca-de-fumo faz parte da terminologia policial para identificar determinadas moradias que,
também, servem para a comercialização de drogas, principalmente a maconha, entre traficantes e consumidores.
45
Historicamente, sabe-se que a segregação espacial tem relação com o enclausuramento da família nos limites
do lar e, conseqüentemente, com a finitude do espaço da rua como lugar de trocas cotidianas, ou mesmo de
socialização.
46
Sobre a pobreza em Teresina, ver LIMA (1999).
74
estruturantes e produtores da segregação -, onde fica claro que estes muros
visíveis e invisíveis que dividem a cidade são essenciais na própria lógica de
organização do espaço urbano contemporâneo ou da cidade moderna.
Observa-se que, durante as últimas duas décadas, os atos de revolta das
classes populares para com a norma perversa de humilhação m sido
transformados, institucionalmente, em práticas de sociabilidade violentas, para
interferir no discernimento da opinião pública através do discurso jornalístico e
justificar que ali onde moram aqueles pobres é, supostamente, um lugar de gente
perigosa” e, por isso, precisaria ser, socialmente, higienizado. A Vila irmã Dulce,
mesmo sendo tida pelos seus moradores com uma legítima ocupação de terra
ociosa, para o Poder Público, trata-se de uma forma violenta de adquirir o direito à
moradia e à cidadania a invasão -, que não pode ser mais tolerada de maneira
alguma
47
. A prática oficial mais comum para estigmatizar os pobres se dá pela
criminalização do lugar onde estes moram pois, assim, se justificaria, plenamente,
para o restante da população a necessidade de um tratamento mais coercitivo sobre
aquela “gente perigosa”.
Por exemplo, em muitos casos, alguns crimes, geograficamente,
aconteceram nas proximidades daqueles supostos lugares de gente perigosa”, mas
pelo simples fato de um dos envolvidos vítima, ou acusado, ou suspeito ter
qualquer ligação territorial, ou familiar, ou de vizinhança, ou de amizade com
pessoas da localidade, é motivo suficiente para a polícia discriminar toda a
comunidade como uma forma de legitimar o seu controle social pela repressão
daquela “gente perigosa” naquele “lugar violento
48
, na medida em que todos
passam ser suspeitos do crime. Trata-se, tamm, de uma das conseqüências da
espacialização da criminalidade sobre determinados setores de Teresina, onde,
preferencialmente, existem pobres.
47
O atual Prefeito de Teresina, Sílvio Mendes, anunciou no início de 2005, depois de um confronto com um
grupo de sem teto acampado durante dias em frente ao Palácio da Cidade, que iria enviar um projeto de lei à
Câamara Municipal regulamentando as “invasões” de terras em Teresina.
48
Muitas das pessoas envolvidas em práticas criminosas ou em conflito com a Lei preferem se refugiar em Vilas
e Favelas de Teresina, devido ao difícil acesso para as viaturas policiais e ao aglomerado de casas sem
delimitações de vizinhança ou de área própria, o que dificulta muito a localização dos acusados. Por isso, muitas
vezes, ocorrem, p. ex. homicídios dolosos aqueles cujos autores tinham a intenção deliberada de matar em
determinadas áreas de Teresina, mas nem as vítimas nem os autores são moradores ou mantêm qualquer vínculo
com a comunidade. Todavia, ao serem noticiados pela imprensa, se dá mais evidência ao local onde aconteceu o
fato criminoso do que aos envolvidos, estigmatizando toda a comunidade como violenta, simplesmente, pelo
infortúnio do fato ter se dado em sua área geográfica.
75
É evidente que Teresina tem apresentado um quadro de acirramento de
conflitos e tensões nas questões urbanas, acompanhadas pela construção de novas
teias interacionais com estratégias e práticas sociais de diferentes sujeitos, que faz
imprimir sentidos múltiplos no modo de viver e agir na zona urbana da cidade,
gerando especulações sobre uma possível propagação de uma “cultura do medo”,
ou mesmo de uma violência generalizada entre os teresinenses. Com isso, os
moradores de Teresina se re-arranjam numa outra perspectiva espacial, territorial,
legal e identitária, reivindicando por direitos sociais negados pelo Estado,
principalmente, a segurança pública .
Objetivamente, como base no contexto até aqui explorado, a inserção da
Vila irmã Dulce no contexto da violência em Teresina pode ser caracterizada por
dois momentos históricos, que aparecem com freqüência nas falas dos sujeitos
entrevistados e nas reportagens jornalísticas: o tratamento dado pelo Poder Público
entre 1998 e 2000 - a violência institucional - e a espetacularização da violência
local pelos meios de comunicação, a partir da segunda metade de 2000 a violência
midiática.
No primeiro momento, da ocupação em 1998 até a consolidação em 2000
-, o aspecto mais visível sobre a Vila irmã Dulce foi à violência institucional por parte
do Poder Público - tanto estadual quanto municipal - que, através dos seus
mecanismos e instrumentos de coerção social, tentaram, sem sucesso, minar de
diversas formas, inclusive com prisões e agressões físicas, a resistência dos sem
teto na luta pela terra ocupada. Para tanto, negaram-lhes, até 2003 quando da
primeira visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva , o reconhecimento e a
legalização da terra ocupada e o atendimento às suas demandas sociais, forçando
os ocupantes a buscarem uma negociação nem sempre pacífica nas mesas da
Prefeitura Municipal e do Governo do Estado.
Segundo relatos dos sujeitos entrevistados, ininterruptamente, durante os
anos de 1998 e 2000, as cerca de 4.500 famílias de sem teto foram submetidas a
uma forte pressão política, principalmente, por parte do Poder Público Municipal
49
que, insistentemente, era forçado pelos proprietários da terra que pretendiam reavê-
la o mais rápido possível, Mas, independentemente, de qualquer tentativa de acordo
com os ocupantes, mediados ou não pelo Poder Público Municipal, os proprietários
49
Simbolizada pela figura do então Secretário de Habitação e Urbanismo da Prefeitura de Teresina, Kleber
Montezuma.
76
da área insistiam em alegar que a questão era de polícia, exigindo, por isso, o uso
da força policial de qualquer maneira para expulsar os sem teto.
Através de mandatos de reintegração de posse a força policial esteve por
várias vezes no local para expulsar os ocupantes, mas quando não era barrada pela
resisncia popular foram registrados à época várias confrontos entre as partes -,
os organizadores conseguiam liminares que impediam a ação policial. Por isso, o
porque da comunidade ser penalizada pelo Poder Público, por quase dois anos, sem
obter qualquer atendimento de suas reivindicações por melhorias nas condições de
habitabilidade no lugar. Somente depois de organizarem grandes manifestações
populares é que os ocupantes conseguiram romper com o descaso do Poder
Público, principalmente quanto à água, a energia elétrica e a escola para a
comunidade.
Tal postura terminou gerando um conflito, praticamente, indissolúvel entre
os sem teto e aqueles que reivindicavam a reintegração de posse da terra. Durante o
período de litígio, os proprietários sempre exigiram uma atuação mais enérgica da
polícia militar que fosse capaz de devolver-lhes a terra, porém, a intervenção de
políticos, religiosos, entidades do movimento popular e social, serviram de escudo
político de proteção para os ocupantes. Do contrário, provavelmente, os proprietários
teriam se articulado de tal forma que seria inevitável permanecer na área ocupada.
Enquanto o Poder Público e os proprietários da terra provocavam a Justiça
para retirar os sem teto da área, os ocupantes revidavam com gigantescas
passeatas, ocupação de prédios públicos, protestos em frente ao Palácio da Cidade
e Fóruns Judiciários, audiências públicas etc. Era um período p-eleitoral para a
escolha de Deputados e Governador e, estrategicamente, os ocupantes
conseguiram envolver no seu conflito de terra os três poderes: Executivo, Legislativo
e Judiciário. Com isso, conseguiram transformar a situação de questão de polícia
para uma questão social.
O segundo, começa a partir da consolidação da ocupação, quando a
violência institucional através do discurso policial - passa a ser reforçada por uma
outra forma de violência, a midiática.
O jornalismo trabalha sempre com representações que, porém, não
revela como tais. Faz-nos crer na portagem de fatos reais. Apaga-se
o caráter mediado: o leitor sente-se em contato com o real, sem
dispensar o mamão, o o com queijo e o café. Esta ilusão permite
77
que com a notícia nos sejam servidas interpretações, interesses,
ideologias.
O jornal exerce, portanto, uma função mediadora entre o leitor e a
realidade. O reconhecimento desta mediação, sua transparência e
manejo pelo leitor, estão diretamente ligadas às possibilidades de
autonomia do sujeito com relação ás informações e notícias que lhe
chegam. Não se trata, é bom insistir, de uma questão adjetiva ou de
somenos importância, visto que a cultura mediática exerce um papel
central senão hegemônico na formação do homem contemporâneo
(Goergen apud Costa, 2002,p. 2).
À medida que o discurso da polícia apontava a localidade como uma das
mais violentas de Teresina, os meios de comunicação disseminavam no imaginário
social uma imagem aterrorizante sobre o local e a sua população. A associação
dessas duas formas de violência, ao longo dos sete anos de existência da Vila Irmã
Dulce, contribuiu, decisivamente, para a formação e disseminação de uma imagem
negativa sobre a comunidade.
Esses dados, além de serem pouco confiáveis, alimentam as
especulações estatísticas sobre um possível aumento ou diminuição da violência.
Todavia, o significado e a utilização desses dados, muitas vezes, dependem dos
interesses estratégicos em cada momento político
50
. Am disso, são esses mesmos
dados que servem de base de justificação para o Estado responder a violência com
mais violência força contra força -, através do discurso policial que apela para o
reforço na militarização, representado pelo aumento do efetivo policial, armamentos,
viaturas, blitz e outros instrumentos e/ou mecanismos de repressão como, por
exemplo, o toque de recolher e o policiamento ostensivo nos chamados “lugares
violentos” p. ex. a Vila irmã Dulce - para inibir a violência e a criminalidade.
Curiosamente, observa-se que as manchetes dos jornais, principalmente,
entre 1998 e 2000, que tratam sobre os problemas sociais na Vila Ir Dulce,
50
É fato, que a partir da criação de Fundo de Segurança Pública (1998), os índices de criminalidade (p.ex.
homicídio doloso) apresentados nos relatórios distanciavam um do outro quanto ao aumento ou não da violência
no Piauí, principalmente em Teresina.Talvez porque, para o governo principalmente durante os últimos anos
do segundo governo de “Mão Santa” -, o aumento nesses índices favoreceria um aumento no volume de
recursos destinados ao estado do Piauí pois este era um dos critérios para o envio de recursos financeiros para a
Segurança Pública. Para o sindicato, de certo modo, a questão ganhava contornos políticos pois visava a
utilização desses dados, não para co-substanciar, ou fomentar, ou fundamentar as discussões sobre o tema, mas
para induzir a opinião pública e, assim, faze-la apoiar a luta classista. Nas eleições de 2000, elegeram como
suplente de vereador um representante classista, que depois veio a assumir a vereança. Em 2004, o reelegeram ao
cargo, usando como bandeira de luta a criação da Guarda Civil Comuniria de Teresina, respaldando-se nos
relatórios feitos pelo sindicato e em experncias, principalmente, do estado de São Paulo.
78
sempre se referem à comunidade com termos que sugerem a violência ou à
possibilidade desta existir: “confusão”, “briga”, “tumulto”, “gangue”, “pobreza”,
“drogas. Nesse tipo de discurso, os conflitos dentro da localidade aparecem como
uma característica intrínseca de violência e não como um elemento social que, em
função, também, do seu caráter de imprevisibilidade, pode se manifestar em
qualquer espaço ou classe sociais.
É importante observar que a estigmatização e o discurso policial sobre
uma suposta índole violenta dos pobres associada a dicotomização de Teresina,
representada pela segregação espacial associada à segregação social, não é
recente na história da cidade. Segundo Nascimento (2002, p. 20), ao tratar do
silêncio criminoso da elite política sobre os incêndios das casas de palhas” de
moradores pobres do centro de Teresina, na primeira metade da década de 1940, a
“violência a fogo” sobre os pobres teresinenses é parte significativa e reveladora do
segregador processo de modernização da capital do Piauí. Cuja característica
principal dessa modernização repousa no seu caráter eminentemente autoritário,
que beneficiava as autoridades e os especuladores, na medida em que, junto com a
queima de suas casas de palhas, os moradores foram sendo expulsos para áreas
menos visíveis da cidade e sem nenhuma infra-estrutura por parte do poder público.
A leitura de um jornal é a leitura de uma leitura. A realidade, os
acontecimentos nos são apresentados previamente selecionados,
lidos, interpretados. Algo é retirado de um determinado contexto,
moldado e transferido para um outro, no qual ganha novos sentidos e
relevâncias que lhe são imputados desde uma tela imperceptível de
interesses. Mesmo que se trate da reprodão do real, trata-se
sempre de uma reprodução, uma vez que o fato (transmitido pela
letra ou pela imagem) foi retirado do ambiente original e inserido num
novo espaço (Goergen apud costa, 2002,p. 2).
Segundo Dias (1996, p. 108), o discurso da violência na imprensa,
especialmente em suas manchetes, que se apóia nos coloquialismos da linguagem,
busca uma identificação com o leitor (ou telespectador) popular para atender as suas
expectativas. Mas é justamente com essa busca de satisfazer a expectativa
comunicativa do leitor (ou telespectador) em relação à análise de práticas de
violência, com frases feitas e expressões populares, que tamm se constrói a
imagem negativa de um lugar ou de uma comunidade; que se criminaliza e se
79
condena publicamente um acusado; que se propaga uma representação de violência
que negligencia a complexidade do fenômeno social. Nesse sentido, a forma
espetacularizada como as práticas de sociabilidade violentas ocorridas na Vila Irmã
Dulce são expostas ao público, contribui para se reforçar no imaginário social uma
representação negativa supervalorizada tanto do lugar quanto da comunidade em si.
Trata-se, portanto, de uma violência midiática que estigmatiza o lugar e criminaliza
os seus moradores, impregnando, negativamente, o imaginário social.
Para atrair a atenção, facilitar a interação com o público receptor e
alcaarem pontos altos de audiência, muitos discursos jornalísticos constroem suas
manchetes utilizando-se de um estilo hiperbólico de exagerar os fatos, trabalhando a
língua oral popular para convencer com facilidade sem estimular a reflexão do
receptor da notícia. Segundo Costa (2002, p. 6):
A estética da barbárie, exteriorizada nas manchetes e nostulos
bombásticos, na exclusão de temas socialmente necessários, na
exploração do grotesco e do incomum, próprios da cobertura
jornalística, difunde-se imperceptivelmente nas cnicas de produção
da notícia, em sua conformação aos meios de comunicação e suas
linguagens.
Dessa forma, os jornais foram formando uma imagem negativa da Vila
irmã Dulce, apontando para a suposta existência de um misto de incivilidade e de
barbárie. Absurdamente, era como se a população da localidade não tivesse
qualquer apreço por viver em harmonia uns com os outros e, por isso, utilizava a
violência para mediar todos os seus contatos sociais.
80
CAPÍTULO III UMA ANÁLISE DA BRUXA MÁ DE TERESINA
O truque é não se deixar envolver por
nenhum tipo de empatia espiritual interna com
seus informantes.
Clifford Geertz (2002)
Neste capítulo final, aprofunda-se na análise das principais dificuldades na
conquista da moradia pelos sem teto e as relações sociais estabelecidas pelos
ocupantes
51
da Vila Irmã Dulce, objetivando captar da extraordinária elaboração
subjetiva dos sujeitos entrevistados
52
o modo próprio com que assimilam e
vivenciam, internamente, as suas práticas de sociabilidade dentro da naturalidade,
da universalidade e da constância de suas condições de vida, de habitabilidade e de
visibilidade social, para fazer frente ao estigma oficial criminalizante, midiaticamente,
difundido, sobre a localidade - de “lugar violento” - e os seus moradores - de “gente
perigosa”.
Os moradores da Vila irmã Dulce - igualmente a todos os indivíduos
humanos em sociedade -, pela própria dinâmica da condição humana desejam e
almejam por reconhecimento, valorização, acolhimento, visibilidade, significado,
distinção e poder que revigorem a sua auto-estima e permita-lhes alcançarem
acessibilidade em um grupo social com identidade e apreço próprios, tendo na
51
Nesse capítulo, utilizaremos as expressões: sem teto” para se referir à situação inicial das famílias com
relação à chegada na área; “ocupantes” pare se referir à situação de conflito instaurada com a ocupação da terra;
e “moradores” para se referir à situação em que já havia a consolidação das moradias das famílias na localidade.
Pretende-se, com isso, demarcar, historicamente, a situação das famílias no processo de luta pela moradia,
evitando-se possíveis especulações sobre ambigüidades nominais e/ou distinções diferenciadas para um mesmo
grupo de pessoas. Em ntese, as denominações pretendem ajudar na compreensão da situação das famílias e
não de uma pessoa - em cada momento do processo de ocupação.
52
Entende-se que os entrevistados se constituem em sujeitos da pesquisa, na medida em que são “portadores e
ser portado” de práticas, de significados e de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado. Neste
trabalho, por motivo de segurança, de privacidade e possíveis problemas com direitos autorais, não se utilizará,
explicitamente, o nome de nenhum dos sujeitos entrevistados, mas uma identificação através da palavra
“entrevistado(a)” associado a um algarismo romana(I, II, III...) que indica a ordem de entrevista.
81
resisncia um fator primordial para desencadear o processo de mudança e na
consciência política da força coletividade o elemento essencial para articular uma
organização comunitária capaz de superar os desafios postos pelas discriminações,
os preconceitos de classe, as exclusões, as intolerâncias, a violência e a condição
de pobreza.
Durante as idas e vidas à Vila Irmã Dulce, em mais de um ano e meio de
pesquisa de campo, foi possível perceber que as formas de manifestar os
sentimentos, ainda se expressam livremente, fomentando os desejos e as
expectativas de alcançarem uma visibilidade social diferente da projetada pelo
discurso oficial criminalizante e midiatizado. Trazendo à tona as suas experiências
de vida e as suas visões de mundo, por um lado, revelam a consciência de que a
violência, enquanto um fenômeno social e universal, se apresenta em todo lugar
inclusive, no lugar onde moram -, e, por outro lado, expressam uma certa indignação
com o estigma oficial de “lugar violento” e, conseqüentemente, de “gente perigosa”.
A rede de solidariedade entre a vizinhança ainda é muito presente nas
relações interpessoais, porque através da troca de pequenos favores e de
gentilezas, seja dividindo alimentos com os mais carentes, ou ajudando nos
problemas de saúde, ou no emprestar do carvão ou do gás, ou compartilhando
roupas usadas, ou cuidando das crianças dos vizinhos que trabalham fora, ou de
outras diferentes formas de ajuda mútua, preservam entre si a vontade persistente
de superarem as dificuldades de forma conjunta, participativa, coesa e dignificante.
Não raro, encontrar iniciativas populares locais de ajuda mútua a outros moradores
em situações de extrema dificuldade.
Diante do estigma de “lugar violento”, ou de “gente perigosa”, a construção
do seu auto-reconhecimento como pobres iguais a tantos outros, em Teresina,
destituídos de riqueza, de prestígio e de poder, se processa através da necessidade
de “construir-se em um lugar onde é possível uma mistura de interpretações mais ou
menos corretas do mundo, do país e do próprio lugar (Santos, 2004, p. 60). Ser um
morador na Vila irmã Dulce significa em tornar-se um “guerreiro” como eles
mesmos se auto-intitulam - contra as pressões matérias e sociais que recaem sobre
as famílias em função dos baixos níveis de instrução, de riqueza e de entendimento,
mas que não os impedem de questionar e desejar a ultrapassagem por essa
situão. “Isto, sem dúvida, pode se manifestar pela violência. Mas a violência
tamm é uma forma de discurso” (Santos, 2004, p. 60).
82
Em face desse contexto, poderiam até especular sobre uma possível
influência da desorganização familiar
53
na explicação das altas taxas de práticas de
sociabilidade violentas dentro das comunidades pobres teresinenses. Todavia, no
caso específico da Vila irmã Dulce, essa especulação explicativa não se confirma
como um fator determinante de criminalidade suficiente para reforçar o estigma
oficial de “lugar violento” ou de “gente perigosa”. Na verdade, os pobres, no Brasil,
nunca foram tidos como parte importante na transformação social, ao contrário,
sempre foram criminalizados como determinantes da violência.
Ao refletirem sobre as circunstâncias que os envolveram desde a invenção
social da localidade até os dias atuais e o impacto do estigma oficial de “lugar
violento” e/ou gente perigosa sobre a organização e a imagem da comunidade,
expõem com clareza, a luta dos pobres para realizarem o sonho da moradia própria
com forma de se fazerem parte visível da cidade, os confrontos interpessoais e os
conflitos interativos, produzidos nas relões com o Poder Público, a imprensa, a
polícia e o estigma que os acompanha até hoje.
3.1. A LUTA E A CONQUISTA DA MORADIA
No início da década de 1980, os pobres rurais desenraizados e recém-
chegados a Teresina como o novo lugar de trabalho e, tamm, o novo lugar de
morar -, foram forçados pelas circunsncias a comporem um novo aglomerado de
pobres urbanos periféricos. Dentre as diversas formas de conseguirem a moradia e
de se fazerem parte visível na cidade, passam a ser organizados por agentes do
movimento social e popular para fazerem ocupações
54
de terras ociosas tanto
públicas como privadas, para construírem moradias, em geral, de estrutura precária
em áreas cada vez mais distantes do centro da cidade
55
.
53
Desorganização familiar se entende como a inexistência ou os baixos percentuais de famílias nucleares
completas - um casal mais seus filhos (Zaluar, 1985, p.96).
54
Em ntese, as ocupações em Teresina surgiram a partir de meados da década de 70, quando a questão
habitacional, progressivamente, passou a adquirir maior visibilidade nas discussões sobre as demandas sociais
mais urgentes. Na década de 1980, houve a consolidação do processo de favelização e de organização das
ocupações articuladas pelas forças populares no contexto da cidade. Mas, principalmente a partir da década de
1990, a Prefeitura Municipal passou a interferir, diretamente, na estrutura e, indiretamente, na organização
interna de Vilas, Favelas e Parques Residências principais locais de moradia das classes populares -, em grande
parte, originados de ocupações de sem teto. Para saber mais sobre ocupações em Teresina, ver Viana (1999).
55
Esse processo de afastamento de moradores pobres do centro para a periferia de Teresina, se iniciou na
primeira metade da década de 1940, no governo do então Interventor Federal Lnidas de Castro Melo. Era
83
A partir de meados de 1999, a Vila irmã Dulce enquanto um aglomerado
urbano surgido da mediação entre as forças de resistência da sociedade civil e do
Estado adquiriu uma visibilidade negativa na dinâmica de reorganização espacial e
social, ao ser vista pelo Poder Público como uma invasão e não uma ocupação de
terras.
(...) muita gente chama “invasão”. Mas isso não é invasão. Isso
significa uma ocupação, porque no meu conhecimento invasão é
quando uma pessoa está todos dias com aquela terra certa e chega
outra e toma. Então, isso é invasão. Para nós não, pois ocupamos
porque a terra estava toda ilegal (Entrevistada III).
Essa reorganização foi introduzida pela necessidade da segregação na
“Teresina moderna”, que se sustenta, simultaneamente, numa fundamentação de
ordem econômica e política. Do ponto de vista econômico, vincula-se, diretamente, a
mercantilização ou monetarização dos bens necessários para a produção da vida
cotidiana dos teresinenses. Ou seja, aqueles que detêm renda alta se apoderam de
grandes espaços da cidade com infra-estrutura feita pelo Poder Público e
possibilidades de constituir um sistema particular de segurança, aqueles com
renda baixa são forçados a dividir espaços pequenos com muitos e com precárias
garantias de segurança pública. Do ponto de vista político, a segregação é,
simultaneamente, produto e fator de conflito social. As vilas e favelas de Teresina há
tempos têm servido de suporte para a efetivação de catarse política de direita e de
esquerda - em períodos eleitorais. Por isso, tamm, se justifica a necessidade da
lógica separacionista da mistura entre ricos e pobres para conter o conflito, ou
mesmo negar a sua existência.
Nesse contexto, a formação da Vila irmã Dulce é, de certa forma, uma
resposta estratégica dos pobres à condição política de segregação social e espacial
que lhes foi imposta pelo próprio Estado, “mas ela tamm aponta para uma vontade
de entendimento e de superação. (...) uma demanda por uma outra política”
(Santos, 2004, p. 60-61).
justificado como sendo parte essencial da “urbanização modernapor que passava a cidade, com tal discurso
mascarava-se agica desse rearranjo urbano ao não explicitar a segregação tanto espacial quanto social
implementada pelas elites dominantes e especuladores imobiliários contra os pobres. Pois, na verdade, eram uma
espécie de higienização da cidade para beneficiar as autoridades que compactuavam com os especuladores e
detestavam os pobres. Para saber mais sobre a expulsão dos pobres do centro de Teresina, ver Nascimento
(2002).
84
Tudo começou com a Federação de Associações de Moradores e
Conselhos Comunitários do Piauí - FAMCC -, por falta de um
interesse do Poder público em tentar resolver a questão do déficit
habitacional na cidade de Teresina. (...) então, se resolveu procurar
uma alternativa. E a única alternativa que se entendia, à época, e
como hoje ainda se é entendida, era ocupar terras devolutas
(Entrevistado I).
A invenção social da localidade, em função das dificuldades para a
efetivação de uma política blica de habitação e o grande número de sem teto,
exigiu planejamento e organização por parte da coordenação da FAMCC e das
lideranças comunitárias para selecionarem e fortalecerem os sem teto para a luta
pela moradia. Conforme esclarece o Entrevistado VI,
Essa ocupação procedeu de forma planejada. Nós, juntamente, com
a FAMCC-PI, começamos a discutir e planejar a chegada aqui, onde
hoje é a Vila Irmã Dulce. Deu-se nos meses de março, abril e maio
de 1998. Discutir isso com o povo, em cada bairro que tinha
reuniões, aque chegamos aqui, no dia 02 para 03 de junho de
1998. Eles vieram de vários bairros de Teresina e outros do interior
do estado, e até de outros estados. Isso porque os sem teto daqui da
capital tinham parentes nos municípios de outros estados. Eles
participaram dessas reuniões e, hoje, estão juntos conosco,
formando essa grande comunidade.
A medida em que a notícia da ocupação se espalhava por Teresina, mais
famílias se deslocavam para a área. Por um lado, favorecia a ocupação pois
aumentava o mero de famílias na luta pela moradia, mas, por outro lado,
contribuía para fragmentar o controle das lideranças sobre a totalidade das famílias
que se aglomerava no local, que, preferencialmente, deveriam ser assentadas
com prioridade aquelas famílias que participaram das reuniões de planejamento e
organização, em relação às que iam chegando depois. A Entrevista III, confirma a
situão à época:
Nós queríamos que viessem mais gente para a ocupar. Para nós, o
negócio era ocupar. E aí, você sabe, que nesses lugares te muito
especuladores, mas para nós era ocupar. (...) Ninguém escolhia o
lote (...) foi na base do sorteio (...). Muitos se aproveitaram para
especular (...). São os especuladores que entraram aqui naquela
época e... ficaram até um certo tempo.
85
Ao chegarem à “terra prometida”, todas as famílias deveriam se empenhar
para que as ações estratégicas planejadas nas reuniões que antecederam a
ocupação, tais como, a agilidade no desmatamento, a proximidade entre os grupos
familiares e a permanência incondicional na área, pudessem ter êxito. Evitar o
máximo de tempo possível que a polícia intervisse na ocupação era uma outra
estratégia que ajudaria os sem teto na conquista daquele local, possibilitando as
condições práticas para desmatarem uma área cada vez maior por dia e,
conseqüentemente, um maior número de famílias poderiam ser assentadas em um
curto espaço de tempo.
(...) quando a gente chegou aqui, todo mundo roçando mata e tudo.
Ia logo tratando de tocar fogo nos matos para não ficar na escuridão.
E aí, roçando, roçando, roçando... até que, no dia seguinte, quando
tava tudo roçado, a gente foi chamar a companheirada com o carro
de som para começar a lotear. E , para o se criar um tumulto, a
gente tinha comunicado às pessoas que nós iríamos... quando
chegássemos aqui, ia roçar o mato. Quando roçasse o mato, a
gente ia medindo lote por lote; ia pegar as pessoas com as senhas e
ia distribuindo. E aí, cada pessoa que tinha uma senha pertencia a
um grupo.
(...) os moradores... eles se instalavam nos seus lotes, faziam umas
barraquinhas de palha e tudo, e se instalavam nos seus lotes. Nós
da coordenação, fazia as refeições no residencial Esplanada, mas
passava maior parte do tempo aqui dentro, dormindo também junto
com os moradores. A gente ia para cima - para o Esplanada -
mesmo à noite, para fazer as reuniões e depois descia também aqui
para baixo. Ficavam dois ou três lá para... olhando as coisas mesmo.
A gente ficava maior parte do tempo aqui. A as pessoas morando...
Iam construindo suas casas. Ajudava a construir. E, assim, ia
seguindo a ocupação (Entrevistado I).
O sonho da moradia sempre foi a motivação mais forte para os sem tetos.
Conforme externa a Entrevistada III: “o meu sonho era o de arrumar uma local
para eu fazer um barraquinho, para ficar debaixo com minha filha”. As condições
inexistentes de habitabilidade do local eram um dos primeiros obstáculos a serem
superados. Todos deveriam se ajudar para realizarem com rapidez o desmatamento
da área pois, dessa forma, poderiam levantar os seus barracos e instalar as suas
famílias, desenvolvendo a ocupação da terra e dificultando a efetivação de qualquer
ação de despejo por parte do Poder Público. O Entrevistado VI, externou: “não
tenho nenhuma dúvida, quanto mais fraco, menor é o poder do povo”.
Sobre a situação encontrada à época, a Entrevistada III revela que:
86
Aqui não tinha rua certa. Era cheio de toco. O pessoal ainda juntando
aqueles gravetos para poder fazer um barraco. Os barracos todos de
papelão, lona... Eu mesma quando cheguei era um barraquinho
pequeno, para poder entrar de baixo tinha que entrar abaixada com a
minha bebezinha de seis meses.
As dificuldades, enfrentadas e superadas nos primeiros meses de
ocupação, são marcas permanentes no imaginário e no sentimento dos sem tetos,
que, de certa forma, os faz sentir-se um grupo, socialmente, forte e capaz de se
impôs para assegurar a sua legitimidade pela demanda social de morada e
cidadania. A luta pela sobrevivência e a falta de assistência estatal os obrigaram a
criar, em termos de padrões culturais de relacionamento, um vínculo estratégico de
proximidade doméstica, onde a amizade ainda hoje - é o ponto de confluência
entre os ocupantes, e uma rede de solidariedade vicinal que se fortalecia sempre
que o grupo era ameaçado de despejo ou que as condições de sobrevivência de
uma família se agravava. De forma emocionada, o Entrevistado IV relembra a
atmosfera daqueles dias:
(...) foi muito pesado para nós. Nós viemos para cá e não tinha água.
Eu passei dois anos carregando água no balde para casa. Indo
trabalhar... chegava em casa e não tinha água para banhar. Cansei
de dormir sujo e ir trabalhar. A água dava para fazer o consumo
da comida.
(...) Era um matagal. Era um sofrimento. (...) A gente via aquelas
“lâmpadazinhas” no fundo. A gente era na base do grito (...). Tudo no
escuro.
(...) Cansei de comer, mais os meus companheiros, cabeça de boi
cozida. Às vezes, a gente botava (...) só gordura e aquele corante
muito pouco! em uma lata. Aí, todo mundo se ajuntava. Aqueles
companheiros que moravam perto um do outro a gente chamava.
Todo mundo comia. Às vezes, um não tinha farinha, o outro não
tinha nada, eu não tinha o arroz, mas a gente se ajudava (...). A
gente tinha diálogo com os vizinhos; com os que estavam perto da
gente. Era mais amizade; era mais união. Quando a gente está
habitando um local, a amizade é outra. (...) Eu acho que a gente sem
amizade não é ninguém.
O individualismo era o sentimento mais rejeitado pelo grupo, que as
necessidades de sobrevivência, de moradia e de reconhecimento social,
invariavelmente, atingiam a todos e exigiam o máximo de cooperação coletiva para
permanecerem coesos na luta. A fome , a sede, as noites mal dormidas, o cansaço e
as discriminações se misturavam, dia e noite, ao sonho da moradia, ao sentimento
87
de pertencimento, à força da amizade, à esperança de conquista da terra, à vontade
de lutar e de se organizar como comunidade. Entre os sem teto, não havia qualquer
medo de que a ocupação fracassasse e a terra tivesse que ser desocupada à força
pelo Poder Público. Pois, para eles, só o fato de já estarem na área era uma
motivação a mais para manterem a determinação e superarem a situação. Conforme
enfatiza o Entrevistado VI: “nós não tivemos medo e estamos aqui, hoje, com essa
grande comunidade”.
Nesse sentido, a única certeza que pairava sobre as cabeças dos
organizadores e dos ocupantes era que, invariavelmente, teriam que o ter
forças para lutarem, mas, também, para reconstruírem os seus modos de vida
familiar e vicinal dentro de uma nova composição coletiva de pessoas, com origens e
histórias de vida tão diferentes, bem como, primordialmente, assegurarem um
espaço para a construção de suas moradias. Muitos “só com a cara e a coragem”,
“sem emprego fixo”, “sem trabalho”, “sem instrução escolar”, sem nenhuma
perspectiva de vida”, “cheios de sonhos e fé”, mas que, ao olharem a si e a seus
iguais em condição de pobreza, se transformaram em “guerreiros” pela
sobrevivência de todos naquela “terra prometida”.
Obstinados pela realização do sonho da casa própria, numa realidade
habitacional apreendida como inexorável, resistiram à fome, à sede, ao frio da
madrugada, a intransigência do Poder Público e às invertidas policiais, através de
um modo peculiar de articulação grupal, de sobrevivência no mato e de
relacionamentos amigáveis e íntimos fortuitos segundo relatos, não registrados em
gravação, algumas mulheres engravidaram á época. A narrativa do Entrevistado - II,
descreve em detalhes esse cenário:
À noite, a gente fazia um bocado de coisa. Um bocado de coisa que
se a gente for levar em consideração os diversos grupos... Tinha o
pessoal do GEA (Grupo de Estudos Anarquistas) que gostava de se
reunir da forma deles anarquistas -, de tocar, de conversar, de
discutir sobre o movimento. Tinha outros grupos que gostavam de
tomar uma caninha; comer uma cabeça de boi que eles iam buscar
no matadouro, durante o dia, e, à noite, ficavam tirando gosto com
aquilo dali até altas horas da madrugada. Outros iam procurar
enlaces amorosos. (...) Era muito engraçado, a gente dormia debaixo
de lona ou armava uma rede de uma árvore para outra, ou em
colchões jogados no chão, perto de uma fogueira. Era assim, que a
gente dormia. (...) algumas mães, deixavam os seus filhos com
vizinhos ou com outras pessoas, mas não deixavam de ir lá, à noite,
uma olhada. Mas, a maioria dos casos mesmo, foi pouco tempo.
88
O pessoal veio mesmo foi „de mala e cuia‟. Havia sim, confusões,
mas coisa mesmo corriqueira de bêbados que se estranhavam. Um
lance de ciumeira... briguinhas mesmo assim, por causa da
aglomeração de gente, mas nunca se registrou casos absurdos.
Uma outra dificuldade enfrentada pelos ocupantes foi quanto à rejeição
que tiveram por parte dos moradores do residencial Esplanada. A discriminação pela
condição de pobreza dos sem teto fez dos futuros vizinhos mais um obstáculo a ser
superado na conquista pela terra. Segundo relata o Entrevistado VI:
A relação foi muito péssima. Onde eles, também, não gostavam que
nós tivéssemos aqui. Isso porque eles se achavam afrontados e
intimidados. Porque, no entendimento deles, s se tratava de
vagabundos, de vândalos... É o raciocínio deles e, praticamente, de
toda a sociedade. Quando, na verdade, não se trata desse tipo de
coisa. Existem vândalos? Existe, como existe em toda a sociedade.
Mas o que, realmente, existe são pessoas necessitadas e que, hoje,
têm seu espaço, sua casa para morar.
Para os entrevistados, o principal fator de tanta discriminação era a sua
condição de pobreza, que fazia com que os moradores do residencial Esplanada
criassem rótulos estigmatizantes sobre os sem tetos. A forma como eram vistos
tinha a ver, tamm, com as próprias condições de habitabilidade e de higienização
do lugar. Como a maioria dos ocupantes tinha que permanecer na área ocupada a
maior parte do dia sem qualquer tipo de asseio corporal - principalmente por falta
d‟água - e andava sempre em grupos como forma de se protegerem de possíveis
invertidas tanto da polícia quanto dos capangas dos “donos da terra”, eram sempre
vistos como uma ameaça potencial à tranqüilidade dos moradores daquela região.
(...) a nossa relação não era boa, não. As pessoas do Esplanada
tinham aquele sentimento de serem classe média e eles, quase
sempre, ficavam retaliando a gente. Dizendo que a gente era um
bando de desocupados e tudo... mas só que a gente conseguiu
superar tudo isso pela organização à época. A nossa organização
era muito forte... era tão forte que chegava até a intimida-los. Não,
assim, por dizer, eu vou lhe agredir. o por ameaça. Pela força
mesmo. Eles sentiam que a “coisa” era tão organizada que eles
ficavam com medo.
(...) Eles não tinham medo. Eles tinham, assim, uma espécie de
repúdio. Repudiavam tanto o movimento que o queriam nem
olhar... pela cultura deles de quererem ser classe média... esse tipo
de coisa...discriminavam.... (Entrevistado I).
89
Devido à situação, alguns moradores do residencial Esplanada venderam
suas casas ou se mudaram para outros bairros de Teresina, os que
permaneceram em suas casas usavam a discriminação e a repudia para afugentar
os seus novos vizinhos. A intolerância era tão explícita e tão extrema, que chagavam
a negar até um pedido de um copo com água aos ocupantes. Além disso, aqueles
ocupantes que tinham que usar o transporte coletivo que fazia a linha para o
conjunto residencial Esplanada eram destratados pelos outros usuários, que evitam
sentar-se junto àqueles “sujos”. O Entrevistado – IV, enfatiza:
Eles chateavam muito da gente. Eles chamavam de os “sem
futuro”... Lá, porque é mais visto, tinha calçamento, água, luz... Eles
nos chamam quase assim ... como uns hereges; uns maus
elementos. Quando eles viam a gente em qualquer lugar, diziam: -
vixe, é da Irmã Dulce”. Querendo, assim, desqualificar a nossa
pessoa. Mas, às vezes, nós nos sentimos até mais limpos do que o
pessoal do Esplanada.
(...) Eles diziam que o pessoal da Irmã Dulce cobrava pedágio. (...)
ninguém podia descer do ônibus (...) só chamavam a gente de
ladrão. (...) Tudo isso existiu aqui, mas, graças a Deus, acabou.
O termo limpos”, que aparece na fala anterior, tem um sentido ligado à
questão da higiene corporal dos ocupantes, já que o Entrevistado IV está se
referindo àqueles primeiros dias de ocupação, quando alguns dos seus
companheiros de luta principalmente homens -, depois de uma intensa jornada de
trabalho braçal no desmatamento da área não tinham acesso à água para o banho
e, ainda sujos e suados, eram obrigados a pegarem o ônibus coletivo juntamente
com os moradores do residencial Esplanada, para visitarem as famílias deixadas em
algum outro local de Teresina. Por isso, a rejeição, e até a indignação, dos
moradores do residencial Esplanada por terem que conviver com essa situação.
Mas, o mesmo termo aparece na fala de outros Entrevistados com um sentido gírico,
para se referir a uma situação de inexistência de conflito pessoal com a polícia.
Hoje, depois de superada a dificuldade de relacionamento, os moradores
do residencial Esplanada e da Vila Irmã Dulce conseguiram estabelecer e manter
uma convivência respeitosa entre si. Pois à medida em que a Vila Irmã Dulce foi
sendo povoada e beneficiada com pequenas obras públicas de infra-estrutura,
algumas atividades e serviços, principalmente o comércio local, também, foram
sendo impulsionados, exigindo mais investimentos públicos e privados para
atendimento das necessidades sicas dos consumidores. Além disso, um
90
contínuo fluxo de novos moradores vindos de bairros bem mais estruturados como o
Saci, Promorar, Parque Piauí, Dirceu Arcoverde e, também, de cidades do interior
próximas de Teresina
56
.
Conforme o relato do Entrevistado VI, foi como consumidores de bens e
serviços, que os moradores da Vila Irmã Dulce desenvolveram um estilo próprio de
vida e conseguiram transformar, para melhor, a relação de convivência com a
vizinhança:
Se eles pudessem, teria transformado o Esplanada em Vila Irmã
Dulce e estariam todos aqui. Essa é a pura realidade. em lhe
dizer que a Vila IrDulce se tornou fonte de alimentação não
para o Esplanada, mas, também, para o Porto Alegre, o Angelin. Ela
se transformou numa fonte de riqueza. Veja que no Angelin não tinha
praticamente nada. No Esplanada, à época, das 525 casas, existia
mais da metade vazia. E, hoje, você chega no Esplanada ou no
Angelin, quase você não ver diferença dessas comunidades para a
Vila Irmã Dulce. Porque a Vila Irmã Dulce trouxe força,
principalmente, para o comércio. Então, eles se sentem assim, se
pudessem está aqui dentro dessa comunidade e tem muitos deles
aqui -, eles não faziam tudo aquilo que... toda aquela restrição que
eles tiveram lá no início.
Através das falas dos Entrevistados, foi possível perceber que a
organização da ocupação não espera reações adversas da vizinhança como,
tamm, sempre teve a preocupação transmitir aos ocupantes a necessidade de se
negociar as dificuldades interpessoais de forma dialogada, para evitar que as
divergências se transformassem em um fator de instabilidade e de desarticulação do
grupo, já que era fundamental o fortalecimento da convivência pacífica, para a
construção e consolidação de uma identidade coletiva dos sem teto naquele local.
3.2. A RELAÇÃO DA COMUNIDADE COM O PODER PÚBLICO
No Brasil, os pobres sempre foram vistos com desafeição e como
sinônimo de violência. Para os defensores desse tipo de discurso, são os “malditos
pobres”, com suas irremediáveis e incivilizadas práticas de sociabilidade que
56
Para se ter uma idéia do avanço imobiliário do local, na Vila Irmã Dulce, existem prédios tipo sobrados e
casas à venda no valor de até R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Algo inimaginável tanto para aqueles que não
conhecem o local quanto, até cinco anos atrás, para os ocupantes. Obviamente, que se trata já de um processo de
especulação imobiliária, dinamizado pelo efeito positivo da visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à
localidade, em 10 de janeiro de 2003.
91
propagam a violência nas sociedades urbanas contemporâneas. Todavia, a rede de
solidariedade construída, especificamente, entre os pobres da Vila Irmã Dulce
mostra que, para além das práticas de sociabilidade violentas que independem de
classe social e lugar -, existem outras formas de sociabilidade que são
negligenciadas na análise dessa população, tais como: as comemorações na escola,
as crianças e as suas brincadeiras de rua em meio à intensa poeira, os jogos
futebolísticos no campinho de areia, as atividades de lazer na quadra poliesportiva, a
formação de grupos de dança e capoeira, as festas de casamentos, batizados e de
aniversários etc.
Nas comunidades pobres, a condição de habitabilidade, a luta pela
sobrevivência e a ausência de assistência estatal os força, tamm, a refletirem
sobre a sua própria condição de vida e de representatividade social. Isso
independente da origem de cada uma das famílias, “a vizinhança obriga as pessoas
a se compararem e a se perguntarem sobre as suas diferenças, seja ela próxima ou
distante. Essa é uma indagação de natureza política” (Santos, 2004, p. 60). O
relato da Entrevistada V, enfatiza um pouco a percepção que fazem de si diante
dos outros teresinenses:
Quando você diz assim: - eu moro na Vila Irmã Dulce. As pessoas já
tratam de outra forma. Tem o preconceito, querendo ou não. Tem o
preconceito contra a gente, porque eles imaginam assim: - “Ah, eles
moram na Vila Ir Dulce, eles não têm educação. São
marginais”. (...) Eu sinto a discriminação, que é aquela questão:
se você se sentir discriminado e não vai tentar lutar pelos seus
ideais, tu vais continuar discriminado sempre. Nem que para aqui
venham os melhores projetos do Brasil. (...) Vovai continuar se
achando discriminado, se você não tiver auto-estima.
Os pobres da Vila irmã Dulce, contrariando as ilações dos menos críticos,
têm consciência da sua condição de não serem vistos como parte importante na
renovação e na transformão da sociedade teresinense, não medida em que
sempre são mostrados como “incivilizados”, “violentos” ou “bandidos”. Sabem
reconhecer, se não todos mas pelo menos uma grande parte, que existem
mecanismos sociais que criam obstáculos para assegurarem o direito tanto a
moradia quanto à cidadania. Dentre as estratégias de superação, muitas famílias
construíram inúmeros arranjos internos à unidade doméstica para assegurarem um
padrão de vida que separe a miséria da pobreza e afaste o espectro da fome,
92
ampliando o esforço para a geração de renda na estrutura familiar e de auxílio aos
parentes nas questões de sobrevivência mais urgentes.
Nesse aspecto, os entrevistados apontam o Poder Público com o maior
empecilho para as suas conquistas sociais, econômicas e políticas. Para eles, o
Estado é visto não como o principal responsável pela situação de pobreza na
medida em que não reconhece os direitos dos pobres ao atendimento de suas
demandas sociais, mas, também, como um árbitro que tem a força para fazer uma
justiça social através de uma redistribuição de riqueza e de trabalho entre as
classes. Entre as reivindicações cruciais estão: a criação de empregos para os pais
de famílias, a construção de escolas e áreas de lazer para os jovens, a melhoria das
condições de habitabilidade e a execução de programas sociais diferentes das
práticas assistencialistas de distribuição de donativos que contribuísse na geração
de renda.
Antigamente, nós não tínhamos conflito... o nosso algoz estava
definido, que era o Estado. O Poder Público. E tudo que vinha dele
era o nosso inimigo, pela questão de não atender às nossas
necessidades. Isso aí, nós conseguimos canalizar muito bem na
época do movimento...por não aceitar que nós tivéssemos a
propriedade como todo mundo tem. Todo mundo tem uma
propriedade, nós queríamos ter uma propriedade e o Poder Público
se omitia disso. Então, nós conseguimos colocar isso na cabeça das
pessoas à época (Entrevistado I).
Segundo os entrevistados, durante a ocupação da área, onde hoje é a Vila
Irmã Dulce, os governos municipal e estadual foram intransigentes no atendimento
de suas reivindicações, a ponto dos sem teto ocuparem o Palácio da Cidade e do
Karnac para forçarem a instalação de uma mesa de negociação. Àquela época,
tanto o Prefeito quanto o Governador se posicionaram, terminantemente, contra
qualquer possibilidade de reconhecimento daquela ocupão pois, para ambos os
Poderes, tratava-se de uma invasão de propriedade privada.
O posicionamento inflexível de resistência à ocupação, por parte do Poder
Público, criou marcas profundas de rivalidade entre as lideranças que participaram
da organização da ocupação e os representantes públicos à época, tanto que, ainda
hoje, são relembradas como motivos suficientes para repudiar, nas urnas ou
publicamente, qualquer tentativa de aproximação entre a comunidade e tais
representantes políticos.
93
Por exemplo, na segunda visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à
Vila Irmã Dulce, no dia 03 de agosto de 2005 a primeira visita foi em 10 de janeiro
de 2003 -, o Prefeito de Teresina, Sílvio Mendes, eleito através do apoio de Firmino
Filho, foi vaiado durante todo o seu discurso por cerca de dez mil pessoas.
O relato do Entrevistado VI, sobre a resistência que tiveram que
enfrentar contra a ocupação, é um dos mais representativos, na medida em que este
foi - e ainda o é - uma das lideranças mais visadas tanto pelo Poder Público quanto
pelos donos da terra, durante o processo de ocupação e de legalização da área. Ele
esclarece:
(...) tivemos resistências de vários setores do Poder Público... Eles
tentaram mas não conseguiram. Nós tivemos resistências por parte
do Governador “Mão Santa” e do Prefeito Firmino Filho. Tivemos até
que ocupar o Palácio de Karnac e o Palácio da Cidade, e isso no
mesmo dia para que eles tivessem conhecimento do que estava
acontecendo aqui. A ocupação se deu em 20 de julho de 1998. E
sim, tivemos a visita de um juiz de um dos fóruns da cidade e
tivemos, também, a visita do próprio Governador e do Prefeito...
diminuindo um pouco essa resistência. Mas, tivemos também uma
discussão com aqueles que se diziam os donos da terra, no caso, o
seu Júlio Soares, o João de Deus da THE Construções, o Ciro
Nogueira, o Edvaldo Lira e outros. Essa foi uma questão que pesou
muito e que tivemos que entrar com uma ação na justiça pedindo
que a prefeitura decretasse área social.
Durante todo o processo litigioso, os representantes do Poder Público
ficaram sob constante pressão tanto por parte dos sem teto quanto por parte dos
que se diziam os donos da terra. Por um lado, politicamente, tinha a reivindicação
legítima por atendimento estatal à necessidade de moradia que impulsionava os
pobres para a luta, por outro lado, financeiramente, tinha uma real ameaça ao capital
especulativo dos “donos da terra que esperavam ser protegidos pelo Estado. O
tempo urgia tanto para um quanto para outro e era preciso negociar a posse da
terra, de tal forma que nenhum dos lados saísse prejudicado nem os governantes
mostrassem fragilidade.
Dentro desse contexto, o príncipe estatal e/ou municipal -, estava diante
de um conflito fundamental da sociedade em que tomaria parte como mediador: o
conflito político entre os ricos (a nobreza) e os pobres (o povo). Os pobres
representados pelos sem teto - desejavam não serem dirigidos nem oprimidos pela
94
vontade dos ricos, e os ricos representados pelos “donos da terra” queriam, sob
a sua vontade, dirigir e oprimir os pobres.
O litígio se arrastou por meses sem qualquer definição. O Estado,
estrategicamente, tentou frear a ação dos sem teto via judiciário, sem, no entanto,
expor sua aversão às lideranças do movimento de ocupação, para não ter que
enfrentar uma revolta popular desgastante e desnecessária para o governo populista
de “Mão Santa”, já que a questão, do ponto de vista administrativo e urbana de
Teresina, se concentrava mais nas atribuições do executivo municipal e, do ponto de
vista político-eleitoral, o então Prefeito Firmino Filho era um forte opositor e virtual
candidato ao governo do estado.
Anos depois, as marcas do encontro entre as forças de resistência do
Poder Público e dos sem teto, bem como os personagens mais ativos no confronto,
permanecem na memória dos primeiros moradores que constituíram a Vila Irmã
Dulce. O Entrevistado VI, relembra a força de resistência imposta pelo Poder
Público contra a ocupação:
A que foi mais dura... foi a resistência da Prefeitura, não querendo
que aqui se formasse essa comunidade. Na oportunidade, o
secretário de habitação Kleber Montezuma - essa foi uma resistência
muito nociva -, tivemos que dizer para ele, em 20 de dezembro de
1998, no Palácio da Cidade, onde participávamos de uma audiência
pública, que o local escolhido por nós foi esse aqui e nós não
arredaríamos o pé. Ele, zangado, se retirou da reunião. Naquele
momento, se pôs um final e ficamos aqui. E aqui é o nosso lugar.
Eles o Poder Público - não admitem. Nem estadual nem
municipal... eles não fazem nem admitem que o povo, principalmente
a população pobre, se reúna e procure o seu espaço.
(...) Nós nos reunimos e escolhemos esse local para termos a nossa
casa. E, justamente, a Prefeitura apesar de ser o secretário de
habitação não admitiu que a gente ficasse aqui. Eles procuram
adotar um método potico: pegavam poucas famílias e colocavam no
local para dizer depois que era um assentamento deles.
Segundo relatos dos entrevistados, o governo do estado chegou a
oferecer uma outra área na zona norte de Teresina que foi recusada pelos
organizadores, para evitarem uma desarticulação no movimento de ocupação. Na
verdade, tratava-se de uma manobra do Poder Público para enfraquecer a
organização dos sem teto, já que não se tinha nenhuma garantia de concessão legal
da terra nem das condições mínimas de habitabilidade. O certo é que, com a
95
desocupação da área, por um lado, o Poder Público estaria garantindo o direito de
propriedade para os “donos da terra” e, por outro lado, protelaria o quanto pudesse o
atendimento à demanda por moradia para os pobres.
A Prefeitura, sem qualquer política pública de habitação ou normatização
regulatória de ocupações por parte dos sem teto, resolveu medir forças com o
movimento de luta pela moradia sem antes elaborar uma estratégia de negociação,
o que, de certa forma, gerou um conflito violento, com ameaças e agressões físicas
e verbais de ambos os lados a cada encontro no Palácio da Cidade ou na área
ocupada. Entre o Prefeito e as lideranças dos ocupantes, politicamente, produziu-se
uma indisfarçável ojeriza e entre o secretário de habitação Kleber Montezuma e
algumas das lideranças, restou uma inimizade que, ainda hoje, perdura no
sentimento dos dois lados. O Entrevistado I, enfatiza um pouco desse sentimento
quando relata:
(...) a única resistência que nós tivemos, no primeiro dia logo, no dia
03 de junho o dia nacional de ocupação de terra -, nós tivemos
logo a resistência do hoje Secretário de Educação Municipal, Kleber
Montezuma, que era, à época, o secretário de habitação e urbanismo
da Prefeitura, que veio agredindo logo. Veio para brigar, procurando
tumulto. Veio de komb com o pessoal que faz a guarda do Palácio da
Cidade. Criou-se aquele tumulto, aquele conflito. Aí, à época, tinha
aquele programa Ronda Policial, do Silas Freire. E eles vieram dar
cobertura, e começaram a deturpar a ocupação. E aí, a gente com
nervo mesmo, consciente do que eles vieram fazer, a gente
conseguiu (...) superar o que tava acontecendo.
(...) A gente acha que o mais duro mesmo foi só o Prefeito Firmino.
Esse aí, foi duro mesmo. Porque ele era muito influenciado, à época,
pelo Kleber Montezuma. Ele foi duro. O homem não queria
conversar, não aceitava diálogo, tava levando a coisa para o lado
pessoal.
Contudo, o resultado final desse quadro de confrontos entre as forças de
resisncias e a falta de assistência estatal foi à criação de um vínculo de
solidariedade entre as famílias (pobres) ocupantes que, provavelmente, seja
desconhecida em outras ocupações e, até mesmo, em outras classes sociais. Não é
raro, tamm, encontrar formas de tratamento que fazem reverência e acentue o
grau de respeitabilidade para com as pessoas que estiveram à frente na
organização da ocupação e que depois, legitimamente, se tornaram lideranças
comunitárias na Vila Irmã Dulce. Muitos são chamados de “compadre” ou “comadre”
96
e são reconhecidos, publicamente, tanto interna quanto externamente, como os(as)
moradores(as) de maior representatividade dentro da comunidade.
Durante as festividades em comemoração à formação da localidade, estes
“símbolos comunitários” o sempre homenageados, como forma de agradecimento
e retribuição pela conquista alcançada na luta que garantiu a milhares de famílias o
direito à moradia. Em todas as visitas à comunidade, pode-se constatar a
intensidade da força de mobilização e de articulação que essas lideranças foram
capazes de gerar. Suas casas sempre são freqüentadas, diariamente, por vários
moradores da comunidade em busca de orientação ou solução para os mais
diversos problemas. Obviamente que, considerando as divisões e clivagens de
grupos, não se nega, com tais aspectos de sociabilidade na comunidade, a
existência de indivíduos com seus interesses particulares.
3.3. A RELAÇÃO DA COMUNIDADE COM A POLÍCIA
Trazendo à tona as suas experiências de vida e as suas visões de mundo,
os moradores da Vila Irmã Dulce revelam, por um lado, a consciência de que a
violência, enquanto um fenômeno social e universal, se apresenta em todo tempo e
lugar inclusive, onde moram -, e, por outro lado, os conflitos e as contradições na
sua relação com a polícia.
Em geral, a violência ainda é vista pela maioria dos moradores pobres
através do sentido que a representação policial cristalizou no senso comum, ou seja,
como um caso de polícia, que a divulgação midiática desse discurso de retórica
policial, que faz a vinculação, principalmente, entre pobreza e violência, ainda
penetra facilmente no imaginário social de muitos teresinenses, configurando-se
como uma justificativa razoável para o aumento da violência. Não raro, portanto, a
construção de uma dedução óbvia no imaginário do senso comum: pobre, logo
violento.
O procedimento metodológico que fundamenta o discurso institucional
midiatizado sobre as possíveis causas determinantes da violência na periferia de
Teresina especificamente, no caso da Vila Irmã Dulce -, tem um baixo grau de
confiabilidade pois desconsidera a complexidade desse fenômeno social, na medida
97
em que, simplesmente, associa os moradores do “lugar violento” geralmente, da
classe baixa - à marginalidade e os do “lugar não-violento” – comumente, das
classes média e alta - à civilidade, dificultando a compreensão da opinião pública
sobre a real complexidade que envolve o problema. Cotidianamente, disseminam
uma concepção conceitual de violência como sendo, única e exclusivamente, um
sinônimo de criminalidade
57
.
Objetivamente, a relação entre a polícia e a comunidade da Vila Irmã
Dulce, pode ser analisada através de três momentos contextuais: 1º) a polícia como
instrumento de repressão do Estado (1998-1999); 2º) policiais com moradores da
localidade (2000-2001); e 3º) a polícia como agente do Estado no combate as
práticas de sociabilidade violentas dentro da comunidade (2002- 2005). O recorte
histórico se fundamenta nos relatos dos entrevistados e na instalação do Pelotão
Ostensivo de Policiamento - PPO dentro da Vila Irmã Dulce, cujo objetivo é
contextualizar a discussão deste item.
Primeiro momento (1998-1999). Como instrumento de repressão do
Estado, no amanhecer do dia 03 de junho de 1998, a polícia militar havia sido
convocada, a pedido dos “donos da terra” e com autorização do Estado, para
expulsar os sem teto da terra ocupada. Ao chegarem à área, os policiais perceberam
que não se tratava de uma ocupação qualquer, mas uma mega-ocupação” com
cerca de 4.000 mil famílias. Um número de pessoas muito expressivo para o
contingente de policiais disponíveis para aquela operação. A principio, enquanto
órgão repressor do Estado, a polícia tentou impor a ordem à força sobre os sem teto,
o que gerou confrontos e ameaças de prisões. “A polícia sempre reagiu com
brutalidade. Muito brutal... muito violenta” (Entrevistado IV).
Durante mais de um ano de ocupação, entre o dia da ocupação e o final
de 1999, a polícia sempre se fazia presente no local como forma de ameaça
potencial ao sonho de conquista da moradia e como uma força estatal intimidatória
contra a qual os sem teto teriam que lutar sem ter medo. Afinal, já sabiam desde as
reuniões de planejamento da ocupação que a conquista da terra para a moradia
exigiria deles uma força coletiva inabalável. O Entrevistado VII, enfatiza bem essa
disposição do grupo:
57
Nem toda forma de violência, em qualquer lugar, pode ser tida como crime pois o que define um ato violento
como crime são os valores morais, éticos, políticos, religiosos e culturais de uma determinada sociedade em um
determinado tempo hisrico. Contudo, todo crime é uma forma de violência, independentemente dos
instrumentos ou mecanismos utilizados para a sua efetivação; ou de um conceito institucionalizado.
98
Nós não tínhamos medo. Até porque nós éramos um grupo muito
bem organizado. Um grupo que sempre fazia as reuniões todos os
dias. E, para isso, nós tínhamos tudo bem preparado. Então, nós
viemos para uma ocupação sem um pequeno medo. s não
tínhamos medo... A gente estava sabendo que ia receber algumas
pressões como a gente recebeu! (...) mas, para isso, a gente
estava prevenido para dialogar com eles e saber explicar alguma
coisa e ouvir deles, também, o que eles tinham a dizer. Teve umas
“pressãozinhas”...
O Entrevistado II, complementa o relato acima, explicitando um pouco
das estratégias de combate, previamente, elaboradas, para fazerem frente á força
policial, mostrando que, caso tivesse acontecido alguma manifestação precipitada
por parte da polícia, a história dessa ocupão poderia ter tomado outros rumos bem
menos pacíficos.
Ela não batia porque não tinha um número maior do que a gente.
Porque naquele eventual momento, se triscasse a o em um de
nós, viraríamos até um carro. Porque, na verdade, naquela época, a
gente estava determinado para isso. Cada um, se caso a polícia
viesse, assim, com essa reação, eles poderiam atirar em um, dois ou
três, mas não dava conta de manter o grupo. A gente era centrado
nessa idéia. Nós tínhamos, assim, toda uma idéia de como
combater, de reagir... Quando, na verdade, se tira pelo nosso lema:
“resistir para morar”.
Portanto, no primeiro momento, a polícia aparece no imaginário dos
ocupantes com um inimigo potencial, na medida em que esta representava ali o
instrumento letimo de repressão do Estado que, para os organizadores, era o
principal culpado pela situação de negação ao direito de moradia, e também de
cidadania, para os pobres. Nesse sentido, resistir à polícia seria um ponto crucial
para o sucesso da ocupação, por isso, o destemor era o sentimento de ordem
comum para todos os “companheiros” naqueles primeiros meses de luta, fazendo jus
ao lema “resistir para morar”. “Nós temos conhecimento dos nossos direitos e que,
principalmente, unidos e organizados, vamos busca-los. Nós não temos nenhuma
dúvida” (Entrevistado – VI).
Contudo, a organização dos sem teto tinha plena consciência de que
sozinhos não teriam um grande poder de resistência frente ao aparato policial, por
isso, se não transformasse, urgentemente, a ocupação de uma questão de polícia
99
para uma questão social, o despejo seria inevitável e de forma truculenta. Para
tanto, estrategicamente, arregimentaram forças políticas de esquerda na Câmara
Municipal e na Assembléia Legislativa, através, respectivamente, da Vereadora
Francisca Trindade e do Deputado Estadual Wellington Dias, além de contar com
entidades do movimento social e popular e a pressão que conseguiram exercer
sobre o judiciário através da parceria com promotores ligados à causa da moradia e
cidadania para os pobres.
Segundo momento (2000-2001). estabelecido o processo de
consolidação da ocupação, a comunidade observou, com surpresa e uma
indisfarçável desconfiança, a presença de policiais morando dentro da Vila irmã
Dulce. Para alguns moradores, como a Entrevistada III, o sentimento de surpresa e
desconfiança foi imediato, reativando a memória tanto dos episódios que se
sucederam entre a polícia e os sem teto quanto pela imagem de “bandidos” que a
própria polícia fez destes a partir dali:
Eu mesma, sou uma das moradoras que quando vi o primeiro
policial, aqui dentro da Vila Irmã Dulce, já fiquei assim... Eu conheço
ele da época dos... deles que são da época da briga que vinham
para botar a gente para correr. Conheço! E quando eu vi ele, eu
disse: - Não, mas ele não está morando aqui. Não acredito. E aí, o
que eu fiz, parece assim coisa de... digamos, até mesmo de bandido:
Não, vamos ver onde é que ele está morando. Eu fiz isso. Fiz isso
porque eu queria saber se, realmente, ele estava morando aqui no
meio dos “bandidos”, como eles diziam: (...) “vocês são invasores de
terra. Ficam tomando as terras alheias, invadindo... bando de
vagabundos”. Eram essas coisas. E aí, eu sai... um dia eu
descubro... Foi quando eu descobri que, realmente, ele estava
morando aqui. Eu disse: - Um dia s se topa, nós dois... E um dia,
na parada de ônibus, eu, como quem não quer mas querendo, disse:
Me diz uma coisa, você está morando aqui? Qual é a rua que você
está morando? Eu sabia onde era. Ele olhou para mim e baixou a
cabeça, porque ele se lembrava da época em que ele foi aum dos
que, quando a gente ia fazer uma manifestação... que eles
chegavam dizendo que iam fazer o despejo da gente e tudo...
Nesse contexto, é, perfeitamente, compreensivo o sentimento que os
alguns moradores da Vila Irmã Dulce guardavam em relação à figura do policial
militar, ainda que não admitissem que, naquele episódio, a posição deste último era
a de um instrumento legítimo para o exercício do mecanismo de controle estatal.
Entre os moradores, talvez houvesse o consenso de que, enquanto cidadão comum,
um policial poderia habitar em qualquer lugar de Teresina, mas desde que não fosse
100
na Vila Irmã Dulce. Obviamente, a propagação dessa posição é inconseqüente, e
até discriminatória, que durante a ocupação o policial militar estava no
cumprimento do seu dever funcional, independentemente, de quem estava do lado
dos sem teto.
Contudo, em um relato sobre o diálogo direto que teve com o “policial-
morador”, a Entrevistada III enfatiza bem o sentimento um tanto rancoroso por que
foi tomada devido ao fato de ter como membro da suacomunidade, alguém que
outrora esteve para impedi-los de construir suas moradias. O relato, na verdade,
adquire contornos de um diálogo fantástico porque, anos depois da ocupação, põe
frente a frente, sem a mediação da ameaça ou da violência física, um representante
da instituição estatal de repressão e um representante dos ocupantes, onde cada
um revela a força que estimulava as suas posições durante o conflito que marcou a
história da luta pela moradia em Teresina. De um lado, a entrevistada - III desabafa,
enquanto que, do outro lado, o “policial-morador, faz uma justificada espécie de
meia-culpa:
Você pode ase zangar comigo, mas eu vou lhe dizer. Pode se
zangar comigo ou pode chamar os seus companheiros para me
prender... Porque você se lembra daquele dia que nos chamava de
“invasores”... que nós éramos um ”bando de ladrões”. Foi isso que
você disse! ... que nós estávamos “roubando as terras alheias”. E,
hoje, você está no meio dos “ladrões”. Mas é muito bom isso, né?
Ao, ele sorriu e disse:”- Não, é porque nós somos “pau mandado”...
se o chefe da equipe mandar destino, a gente vai fazer aquilo... a
gente tem que fazer porque ali é o nosso emprego”. Foi isso que ele
respondeu para mim. Eu disse: É, mas isso é assim mesmo. O
pessoal tem um dizer que é certo: “a gente nunca deve cuspir para
cima que pode cair em cima da cara”. Então, foi o que aconteceu
com você. Tanto é que você xingou a gente; chamou de “ladrão”, de
“invasor”... Hoje, você está no meio dos “invasores”.
No final do diálogo, a Entrevistada III, num exercício de conscientização
política para com o “policial-morador” - pela qual ela havia passado durante as
reuniões que antecederam a ocupação -, arremata com a firmeza que o lema
“resistir para morar” exigia: Mas, eu quero lhe dizer uma coisa: - você não é um
“invasor”. Você é um ocupante. Ocupou um lugar que estava vazio”. Nesse período,
a ocupação já estava no processo de consolidação e era comum que outras famílias
sem teto, famílias com casas em outras partes de Teresina inclusive, os
especuladores imobiliários que se aproveitaram da situação para negociar imóveis -,
101
se sentissem atraídos pela localidade, já que muitos lotes não estavam sendo
habitados e outros estavam à venda por preços muito abaixo do mercado imobiliário.
O que atraiu, tamm, muitas famílias de policiais
58
, principalmente militares, cuja
renda salarial não lhes permitia a aquisição de uma moradia de melhor padrão de
habitabilidade.
Tem alguns policiais que moram na Vila irmã Dulce. (...) hoje, ela tem
uma camada social muito diversificada, sabe. Eu acho que aqui,
como no caso de alguns comerciantes, têm pessoas que o ricas,
entende? Que com a pobreza de alguns, eles enriqueceram.
Comerciantes que são bem sucedidos dentro da comunidade
(Entrevistada V).
Hoje, ao que parece, nessa mistura de diferentes níveis econômicos entre
os moradores da Vila Irmã Dulce e os complexos problemas de ordem social e
política, os “policiais-moradores” não são mais vistos, tão explicitamente, como
“velhos inimigos” da comunidade, participando, inclusive, na organização de torneios
de futebol e outras atividades comunitárias em que são inseridos. Para além disso,
foram obtidos relatos informais, não contestados pelos entrevistados, de que existe
um determinado policial militar na comunidade que detém mais de uma dezena de
casas na forma de especulação imobiliária, através de aluguéis.
Todavia, como moradores na defesa de seus interesses, os “policiais-
moradores”, também, não estão imunes de uma vez ou outra tomarem parte em
atritos de vizinhaa ou em querelas envolvendo alguns moradores da localidade
que têm algum tipo de conflito com a Lei ou não. Por exemplo, no dia 18 de
dezembro de 2004, às 19:00 horas, um policial militar, fardado, não morador da
localidade e em aparente estado de embriaguez, foi encontrado sangrando em um
comércio, ao lado da Escola Municipal Dom Hélder, vítima de um esfaqueamento na
58
Durante as visitas de campo, foi possível estabelecer contatos com vários policiais militares que moram na
Vila Irmã Dulce. Contudo, o foi realizada nenhuma entrevista com os mesmos por dois motivos imperativos:
1º) os policiais militares tinham medo que suas declarações, de algum modo, fizessem com que algum tipo de
retaliação viesse por parte da sua instituição ou por parte da comunidade, mesmo o entrevistador/pesquisador
tendo lhes assegurado o direito ao anonimato e 2º) mesmo reconhecendo a importância dos seus relatos pois
fizeram parte do processo de ocupação e, hoje, o moradores de uma localidade tida no discurso oficial como
um “lugar violento”, a fala dos policiais militares não tinha prioridade na estruturação básica desta pesquisa
uma questão de coerência e fidelidade ao projeto.
102
perna direita. Segundo relatos de populares que se encontravam no local, a
agressão física teria sido perpetrada por familiares de uma criança de cinco anos de
idade, moradora da localidade, que, supostamente, foi agredida, fisicamente, pelo
policial por motivo torpe. Logo uma multidão se formou ao redor do policial vitimado.
Depois de um certo tempo, chegou uma viatura da polícia militar com quatro
soldados, ao se depararem com o colega ferido, um policial, mostrando-se indignado
pela “lei do silêncio” entre os populares, externou com veemência: “Todo mundo
sabe quem foi, mas não diz nada. Amanhã, quando a gente sair metendo bala para
todo lado, aí vão dizer”.
As circunstâncias que motivaram o esfaqueamento e o tom autoritário na
fala do policial militar, são fatos emblemáticos pois reforçam, dentre outros aspectos,
a imagem que a polícia faz dos moradores da comunidade, a relação conflituosa que
ainda existe entre a polícia e a comunidade, bem como a forma truculenta com que a
polícia tenta solucionar os crimes. Por isso, a utilização da expressão ao que
parece, em dois parágrafos atrás.
Terceiro momento (2002-2005). Em 2002, consolidada a ocupação,
houve um aumento significativo no mero de moradores na localidade, com isso,
passaram a ser registrados uma freqüência maior de conflitos internos, o que fez
crescer os apelos populares por uma demanda maior em segurança. No final de
2002, o então Governador Hugo Napoleão instalou na Vila Irmã Dulce um Pelotão
de Policiamento Ostensivo PPO da polícia militar. Na verdade, a instalão do
PPO foi motivada pela solicitação popular que reivindicava a presença de agentes
de segurança do Estado para combater as práticas de sociabilidade violentas dentro
da comunidade. De início, a comunidade acreditava que somente a instalação do
PPO para receber os seus reclamos, seria o suficiente para reestabelecer a paz
entre os conflitantes.
De certo modo, a presença de viaturas da polícia militar, pelo menos uma
vez ao dia, trafegando pela rua principal da comunidade que grande parte da
localidade não possuía aruamento - deu a sensação de segurança para a
população. Com a presença policial, os moradores se sentiam mais protegidos em
deixar as suas casas fechadas enquanto iam trabalhar fora durante o dia pois, o
roubo de casas era o crime mais comum. Nesse período, a polícia era tida pela
comunidade com uma aliada indispensável no combate à violência.
103
Todavia, para aumentar a preocupação dos moradores, os problemas com
a segurança pública dentro da Vila Irmã Dulce aumentavam à medida que o número
da população local se expandia. Nesses últimos três anos, a visibilidade dada pelos
meios de comunicação aos fatos violentos ocorridos na Vila Irmã Dulce foi tamanha,
que a localidade passou a ser considerada pela polícia como um dos lugares mais
violentos de Teresina. A imagem negativa do lugar atravessou fronteiras, a ponto do
Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva visitar a localidade, em 10 de
janeiro de 2003. Em 01 de agosto de 2005, o Governador Wellington Dias
transformou o PPO em Centro Integrado de Segurança, o objetivo foi o de fixar em
um único lugar as Polícias Militar e Civil e servir de espaço de convivência para os
grupos organizados da comunidade. Contudo, devido à força da imagem negativa
sobre o lugar, alguns policiais civis indicados pela Secretaria de Segurança Pública
se recusaram a prestar serviço na Vila Irmã Dulce, gerando reclamações por parte
da população.
Na verdade, mesmo instalando um distrito policial (23º DP) dentro da
comunidade, a intenção do governo era o de não deixar transparecer que estava
reforçando a imagem de “lugar violento”, para não causar nenhum tipo de mal estar
à população que ele mesmo quando era Deputado Estadual ajudou para
realização da ocupação. Mas, para o Entrevistado VI, ao criticar as ações da
polícia somente dentro de vilas e favelas, é necessário que o Estado implemente,
tamm, as mesmas ações policiais nas localidades de concentração das classes
média e alta, em Teresina. Para ele, fazer arrastões e batidas policiais somente nas
localidades onde vivem os pobres, em nada contribui para a desconstrução da
imagem negativa que se faz destes.
Nós até aplaudimos essa atuação do Governo do Estado, através da
Secretaria de Segurança. (...) no Estado do Pia, estava precisando
de atuação, como vem acontecendo. Agora, nós vamos aplaudir
mesmo quando essas ações acontecerem lá no quei Clube, no
São Cristóvão, no Planalto Ininga, na Morada do Sol, porque
sabemos e entendemos que o governo é de todos. Então, ele tem
que atuar em todos as comunidades, e ao, nós vamos bater palmas,
com certeza.
Precisamos ver mais ações da Secretaria de Segurança para a gente
poder avaliar melhor. Mas, pelo menos começou. Embora saibamos
que esses acontecimentos são em bairros ou favelas pobres. Então,
esperamos que venham a acontecer, também, nos bairros de classe
média, de classe alta, para que a gente possa fazer uma avaliação
com mais profundidade (Entrevistado VI).
104
Apesar de todas dificuldades na relação entre a polícia e a comunidade
em geral, foi possível perceber que o atual comandante do Batalhão da Polícia
Militar - responsável pelo policiamento ostensivo da área -, mostrando-se
preocupado com a imagem negativa que fizeram da localidade tem buscado dialogar
com as lideranças comunitárias, para tentarem encontrar soluções práticas que
possam ser somadas às estratégias de ação da polícia no combate à criminalidade.
Em geral, a população não rejeita a presença da polícia dentro da Vila Irmã Dulce,
desde que esta não ultrapasse as suas prerrogativas institucionais. Para os
moradores, a polícia tem que atuar de forma eficiente para garantir a segurança na
comunidade, mas deve evitar a trucuncia nas suas abordagens pois somente
assim a comunidade terá com esta uma boa convivência. Como dizem: “Quem não
deve não teme”.
3.4. A RELAÇÃO DA COMUNIDADE COM A IMPRENSA
O fato da organização, juntamente com as suas parcerias, ter conseguido
transformar a ocupação da área de questão policial para questão social é um
elemento histórico importante para se perceber como a comunidade da Vila Irmã
Dulce foi sendo inserida dentro do contexto da violência em Teresina,
especificamente, na zona sul. Conforme esclarece o Entrevistado I, a propagação
de uma imagem negativa sobre a localidade se deu ainda no início da ocupação:
“(...) à época, tinha aquele programa Ronda Policial, do Silas Freire. Eles vieram dar
cobertura e começaram a deturpar a ocupação. E aí, a gente com nervo mesmo,
consciente do que eles vieram fazer, a gente conseguiu... superar o que tava
acontecendo”.
Em pouco tempo, se construiu uma imagem extremamente negativa do
lugar um “ligar violentoe, em conseqüência, dos seus moradores uma “gente
perigosa”. Fazendo um levantamento empírico através de conversas informais com
pessoas de fora da localidade, inclusive com aquelas que nunca estiveram na Vila
Irmã Dulce, não foi difícil constatar a força de propagação dessa imagem negativa
que o discurso policial midiatizado criou em torno do lugar e de seus moradores. Em
2000, ano em que se iniciou o processo de consolidação da ocupação, coincide
105
com o começo da divulgação de matérias jornalísticas sobre diversas práticas de
sociabilidade violentas atribuídas aos moradores da Vila Irmã Dulce, dessa forma os
meios de comunicação locais contribuíam para reforçar o discurso policial de
estigmatização da população local. Sobre a situação, o Entrevistado VI, pondera
que “a violência existe na Irmã Dulce, como existe em todas as comunidades”.
No entanto, a Entrevistada V faz uma análise com profundidade e
indignação sobre o comportamento da mídia com relação a seus reclamos:
Eu acho, assim, que aqui não é tão violento como o povo pinta. (...)
eu não estou dizendo que a mídia mostra a imagem da violência.
Ela não mostra o que existe dentro da Vila irmã Dulce, tentando tirar
a violência. Um dia, nós fizemos um projeto bem aqui... a gente
chamou para vim cobrir, com 300 crianças fazendo uma redação e
desenhando cartaz sobre a água: “mais água mais vida”. A mídia não
veio porque não tem tempo para cobrir um projeto social. Agora, se
dissesse assim: Êh, eu estou chamando bem aqui porque mataram
dois e esfaquearam um. A mídia mostra tragédia. O que dar ibope é
a violência; é a tragédia. Então, a mídia mostra o que eles
querem, o que é ruim.
Ela observa, tamm, com clareza a forma como a mídia age frente às
diversas situações conflituosas, levando em consideração os fatos de repercussão
social desde que não firam os interesses privados de alguns setores da população:
(...) Porque, aqui, é uma favela. A questão é essa. Porque, aqui,
mora um povo de poder aquisitivo menor. Porque não é interessante
mostrar para a população uma briga de um casal que tem dinheiro...
que o homem deu na mulher, botou ela dentro do carro e levou para
um hospital particular. Onde é que a mídia está? A mídia... você não
encontra a mídia na porta de um advogado rico, mas você não
encontra a mídia no Hospital são Marcos... a não ser quando tem
algum político internado lá. Você encontra a mídia na porta de
uma delegacia de preferência, da zona sul, e no Getúlio Vargas,
porque é para onde o povo vai... porque a zona sul é a mais pobre
de Teresina, não é nem só a vila irmã Dulce, não...
De fato, já foram registrados vários tipos de crimes, como homicídios,
roubos, furtos, uso de drogas e assaltos na Vila Irmã Dulce, cujos acusados, na
maioria, são jovens desocupados que moram na localidade ou nas proximidades.
Mas, tais fatos ocorrem na Vila Irmã Dulce tanto quanto, ou até mais, em qualquer
outro lugar, até porque a violência não é privilégio de uma única parte da população
106
de Teresina. E nem por isso, outras localidades da cidade, inclusive na zona leste
conhecida como a “zona nobre” da cidade -, ficaram tão estigmatizadas como
“lugares violentos” e de “pessoas perigosas” como se fez com a Vila Irmã Dulce. A
interpretação que se faz de uma ação social
59
, em uma determinada época e lugar,
que, comumente, denominamos de violência e lhe damos um sentido próprio
conforme o contexto sócio-histórico no qual estamos inseridos, é uma representação
social. Com isso, descarta-se que haja a possibilidade de qualquer reconhecimento
científico de um gene determinante da violência no homem. Do contrário, todas as
análises sobre a temática, já partiriam desse pressuposto.
Eu acho que a Vila Irmã Dulce é um bairro como outro qualquer. A
questão, aqui, é potica. Eu acho que tudo que a imprensa lança
hoje dentro da Vila Irmã Dulce é uma questão dos moradores... de a
gente ter um povo mais ou menos conscientizado. Um povo de
chegar, assim, para uma autoridade e dizer: - Ó cara, tu fazendo
uma coisa errada por isso e por isso... porque o teu papel esse e
esse... E isso desperta muito a atenção das pessoas,
principalmente, aquelas pessoas que querem deturpar... Incomoda.
Eles dizem: - Ó, aquele povo da Vila Irmã Dulce é perigoso, é
brigam, é zangado. Mas, quando uma pessoa chega aqui,
automaticamente, ver que as pessoas estão lutando pelo espo
delas; pelos direitos delas que é, supostamente, adquirido. (...)
Alguns fatos acontecem, mas a Vila Irmã Dulce não tem a mesma
densidade criminal de um Jóquei daquele, onde os maiores ladrões
do Estado moram ; os maiores latifundiários moram; “os caras” que
mais oprimem os trabalhadores moram lá; os juízes mais
sanguinários que fizeram os despejos das pessoas moram lá. É
que, na verdade, é o coito da bandidagem... (Entrevistado I).
Para os entrevistados, a imprensa poderia ter um outro papel social mais
importante, que seria o de mostrar as necessidades e as dificuldades enfrentadas,
diariamente, pela comunidade, não na questão da segurança pública, mas,
tamm, na observância de outras formas de violência de que são vítimas.
fui discriminado por aquelas brincadeirinhas que dizem: “não, a
Vila Irmã Dulce é perigosa e tal...”
Eu levo na esportiva, já que é aquela questão de entender por que a
pessoa está fazendo aquilo dali. Aí, quando eu penso assim: rapaz,
59
Aqui, a expressão “ação social” vem da teoria weberiana, segundo a qual a ação é toda conduta humana (ato,
omissão, permissão) permeada por um significado subjetivo atribuído por quem a executa e que orienta essa
ação. Quando tal orientação tem como referência à ação - passada, presente ou futura de outro(s) agente(s) que
pode(m) ser “individualizadas e conhecidos ou uma pluralidade de indivíduos indeterminados e completamente
desconhecidos” o público, a audiência de um programa, a família do agente etc. a ação passa a ser definida
com social (Weber, 1969, p. 18).
107
por que é que ele esta falando isso aí? Aí, eu volto atrás... é por que
os jornais falaram isso... porque... e o jornal falou isso porque o
repórter trabalha para o patrão e, na verdade, a gente pode ter
ocupado uma terra de um amigo do patrão ou dele mesmo. Aí, o
patrão mandou o repórter falar isso... aí, o cara ler o jornal ou viu
entrevista está falando isso, entendeu?. Na verdade, eu penso na
coisa toda para... aí, a pessoa entende... sabe o finalmente...
(Entrevsitado I).
Geralmente, a forma espetacularizada com que são exibidas as matérias
jornalísticas, bem como são feitos os comentários jornalísticos, principalmente, nos
programas policiais, sobre a localidade e seus moradores, não têm contribuído para
desmitificar no senso comum a idéia de que na Vila Irmã Dulce não haveria qualquer
tipo de sociabilidade civilizada, ou rede de solidariedade, ou manifestações de
apreço à vida, ou vínculos vicinais e familiais consolidados.
Agora, a violência maior que acontece aqui é a falta de assistência
do Poder Público para com essa comunidade. Então, essa é a
violência maior. Até teve um certo Procurador do Estado que, em
uma entrevista, falou que as vilas e favelas o formadas por
„bandidos‟, por „ladrões‟, por „vândalos‟, por „vagabundos‟. E aí, eu
quero dizer que as vilas e favelas, principalmente a Vila Irmã Dulce,
são formadas por pessoas de bem. Aqui existem marginais?
Existem... mas, o maior mero de pessoas daqui é marginalizado
por esses que são os poderosos. Essa é que a realidade
(...) pessoas humildes como s, são „fuziladas‟ todos os dias por
eles, por conta da falta de saneamento; por contada falta de
educação, que é uma obrigação, mas eles não fazem; por conta da
falta de saúde; por conta da falta de formação de cada um e de cada
uma que habita nessa comunidade (Entrevistado VI).
Mesmo não negando a existência de atos ou ações de violência dentro da
comunidade, as lideranças locais o aceitam estigma de “lugar violento”, logo de
“gente perigosa”, como marca identitária e de incivilidade que os diferenciaria do
restante dos moradores de Teresina. Para elas, a comunidade é vitimizada todos os
dias pela falta de assistência por parte do Estado e a imprensa não noticia tal fato
com sendo, também, uma forma de violência. Na narrativa acima evidente que a
representação social ou o sentido de violência que os oradores da Vila Irmã Dulce
expressam, tem a mais a ver com a conflituosa relação com o Estado no que se
refere ao atendimento de suas demandas por políticas públicas do que com os atos
e as ações de caráter violento em si.
108
Portanto, o referencial de violência para a construção discurso extravila
que estigmatiza a população como violenta não tem consonância com o referencial
do qual parte a interpretação de violência da comunidade.
De fato, a prática estatal de negligenciar as demandas sociais mais
urgentes para os pobres é uma violência silenciosa que mata crianças e adultos de
doenças básicas, de fome, de sujeira, de anti-cidadania, de humilhação, e ainda
empurra parte da juventude sem escola para as drogas, e daí para a criminalidade
(roubo, furto, assalto, tráfico, homicídio) o caminho é mais curto do que se imagina.
Talvez a imprensa teresinense não esteja atenta a essas outras formas de
violência, até certo ponto, sutis que atinge os pobres de Teresina de forma
impiedosa e aniquiladora.
A violência mais perigosa é a das instituições e do Estado que lhes
sustentação. De tanto investir na assepsia, eliminam-se as
capacidades de resistência de um corpo social. Assim, as forças de
vitalidade, tão repentinas quanto explosivas, podem deixar
desamparados os responsáveis e os moralistas de todos os tipos,
ignorantes do que é, na efervescência em que uma comunidade
fortalece o sentimento de si mesma (Maffesoli, 2001, p. 17).
Desse modo, é perfeitamente compreensivo que as classes de homens
diferentes os jornalistas, os policiais, os professores, os estudantes, os pobres, os
médicos, os advogados, os juízes, as prostitutas - observem as práticas violentas e
as registrem de modos, também, bastante diferentes; de acordo com os seus
interesses e motivações; conforme aquilo que julgam pertinente para assimilação do
seu grupo social. Então, nem sempre o que a nossa razão - jornalística ou não -
identifica como sendo violência, pode ser, indistintamente, generalizada para toda a
sociedade, ou mesmo para uma determinada comunidade. Até porque,
especificamente no caso das matérias jornalísticas sobre as práticas de
sociabilidade violentas na Vila irmã Dulce, uma notícia é uma representação de uma
representação.
Além de polifônica no significado, ela é também múltipla nas suas
manifestações. Do mesmo modo, o mal a ela associado, que delimita
o que de ser combatido, tampouco tem definição unívoca e clara.
Não é possível, portanto, de antemão, definir substancialmente a
violência como positiva e boa, ou como destrutiva e má (Zaluar,
1998, p. 28).
109
Portanto, desde a ocupação até os dias de hoje, a relação entre a
comunidade da Vila Irmã Dulce e a imprensa teresinense, tem sido mediada,
principalmente, do lado da imprensa, através do registro de criminalidade na área.
Ou seja, sempre que a Vila Irmã Dulce aparece nas manchetes jornalísticas é
através de fatos criminosos ou de outros conflitos de natureza semelhante,
negligenciando outras formas de sociabilidade existentes dentro da comunidade. A
questão observada é que, ao serem noticiados tais fatos, sejam pela imprensa ou
pela polícia, é dada mais ênfase, no caso da Vila Irmã Dulce, ao lugar da ocorrência
do que ao fato em si, contribuindo para disseminar uma imagem negativa e a
discriminação sobre os seus moradores. O efeito é imediato, justamente, porque as
notícias são representações construídas em função das representações que os
jornalistas fazem dos fatos, das circunstâncias e até dos lugares onde estes
ocorrem.
No fundo, esse tipo de discurso jornalístico é uma forma de reforçar a idéia
discriminatória de que nos locais onde existem vilas e favelas são espaços,
potencialmente preparados, para o desencadeamento das mais diversas práticas de
sociabilidade violentas. Quando, na verdade, as vilas e favelas, historicamente, são
produtos de um processo de desigualdade social, que revela, também, uma
desigualdade de classe em geral, quem mora em vilas, guetos e favelas são
pessoas da classe baixa. Dessa forma, o discurso jornalístico está (de)formando a
opinião pública, para que esta, predominantemente, defenda e fortaleça a iia de
dominação que se estabeleceu e continua prevalecendo - através da segregação
social e espacial sobre os pobres.
Aqui, não há a intenção de discutir se a violência veiculada pela imprensa
tem ou não influência sobre o aumento ou a diminuição da violência ou na
agressividade, ou na audiência televisiva em Teresina. Não estamos tratando de
violência na mídia teresinense, mas tentando mostrar como as imagens da violência,
dado o grau de recorrência, contribui para criminalizar a comunidade e os moradores
da Vila Irmã Dulce. As práticas violentas que ocorrem na localidade são mostradas
de forma noticiosa e, normalmente, integradas ao cotidiano da comunidade.
Talvez, em função da propagação dessa forma única de se mostrar uma
realidade, para opinião pública não reste outra forma de olhar aquela localidade se
110
não com a lente do estigma da violência, mesmo que ele ou ela nunca tenha indo ou
sequer saiba onde se localiza a Vila Irmã Dulce. Obviamente, o medo daquele
“lugar violento será visto sempre como uma reação normal, comum e até banal, em
se tratando de qualquer possibilidade de relação com aquela “gente perigosa”.
Ao tempo em que faz um convite ou uma provocação? -, o Entrevistado
VI, deixa extravasar, movido por uma emoção contagiante, o seu sentimento de
pertencimento à comunidade, como que entrasse em êxtase todas as vezes que
retorna, através da memória dos fatos, ao dia da ocupação:
Que nos visitem! Porque uma coisa é você ouvir falar; ouvir dizer. A
outra coisa pe você vivenciar; você participar. Então, que nos
visitem! Estamos aqui de braços abertos para sair com qualquer uma
dessas pessoas e mostrar o que é a realidade da nossa comunidade.
Aqui, a violência maior é essa que eu lhe falei. Nós somos
violentados todos os dias e todas as horas pela falta de compromisso
do Poder Público.
(...) Eu não tenho a coragem de sair daqui. Eu quero é ficar aqui,
junto com esse povo... e, principalmente, com esse povo que
aprendeu a amar essa comunidade e a lutar por ela.
Todo dia eu estou vivendo o dia 03 de junho de 1998.
A sensação é aquela... sensação de conquista. É um orgulho muito
grande, embora saibamos que ainda falta muito, mas aquilo que nós
pudemos fazer, fez-se.
Para além da visão unilateral e estigmatizante de “lugar violento” e de
“gente perigosa, elaborado pelo discurso oficial e propagado na opinião através das
manchetes jornalísticas nos meios de comunicação, o Entrevistado VI nos faz
navegar por um mundo de lembranças, onde o que menos aparece, como marca
afetiva da luta pela moradia é a violência. Ele, de olhos marejados, relata:
(...) é uma emoção muito grande... a gente lembra; a gente sonha...
tudo aquilo que a gente passou; tudo aquilo que a gente viveu... eu
lembro o que éramos em 1998, 1999, 2000... E hoje, ainda com
tantas dificuldades, nós nos sentimos com uma certa segurança.
Essa segurança de você ter em uma casa. Olha, quando eu cheguei
aqui, eu vinha da casa da minha sogra. Eu não tinha casa nem
aqui nem em lugar nenhum. em adquirir o meu espaço; meu
pedacinho de terra de 10m X 20m... já foi uma conquista muito
grande... isso nos enche de orgulho. Não tem como a gente não se
emocionar.
Nós não queremos voltar nunca mais para a lata d‟água; para a
lamparina; para os dedos roxos de tocos. Isso nós não queremos
que aconteça nunca mais.
111
Se tivesse que começar a Vila Ir Dulce hoje, eu estava pronto
como estive lá, no dia 03 de junho de 1998.
3.5. A COMUNIDADE E O ESTIGMA OFICIAL DE “LUGAR VIOLENTO”
O sentido da teoria maffesoliana ajuda a pensar que nas sociedades
atuais existem, de fato, algumas relações sociais que se expressam por meio da
violência, na medida em que essas práticas sociais vão contribuindo para estruturar
no pensamento social uma relação de força de dominação distinta de um grupo
sobre outro mais fragilizado, como forma de justificar a ordem do discurso estatal
que, simultaneamente, fomentam as práticas de sociabilidade violentas e
criminalizam determinados setores da sociedade que utilizam a luta social (ou de
classe) como uma forma de resistência. A mítica desse tipo de violência emana do
Direito e do próprio Estado, na medida em que qualquer movimento de resistência
vindo da sociedade que se constitua numa ameaça ao monopólio legítimo da
violência estatal, será sempre combatido por ser considerado, pelo Estado, uma
prática de violência ilegítima.
De certa forma, os entrevistados expressam em suas narrativas uma certa
indignação com o estigma oficial de lugar violento” e, conseqüentemente, de gente
perigosa. Durante as visitas de campo, sempre que se tocava no assunto, o
interlocutor retrucava de imediato. Ora dizendo que se tratava de uma forma do
Estado de denegrir e ofuscar para população em geral, a imagem dos moradores da
Vila Irmã Dulce com os conquistadores da terra que o Estado não queria dar direito.
Ora, como vítimas do discurso espetacularizado da violência que é mostrada na
mídia. Conforme enfatiza o Entrevistado - I , “a Vila Irmã Dulce, hoje, é uma espécie
de vitrine para o Brasil; para o mundo todo....
Na realidade, a Vila Irmã Dulce, desde a sua formação, sempre foi vista
como uma vitrine de alguma mazela social ou de programas estatais.
Historicamente, a visibilidade da comunidade divide-se em dois momentos: 1º) de
1998 até 2002, a comunidade era uma vitrine da pobreza, do medo e da violência,
para Teresina, e o 2º) a partir de 2003, a comunidade passou a ser uma vitrine das
ações conjuntas dos governos estadual e federal, “para o Brasil; para o mundo”.
112
Primeiro momento. Provavelmente, esse estigma tenha começado a ser
construído a partir do momento em que os organizadores da ocupação conseguiram
se impor diante da força de resistência do Estado, que, não tendo outra forma de
fazer frente no confronto com os pobres, propagou uma rotulação da localidade
destes com uma imagem negativa de “lugar violento”, para justificar as ações
policiais dentro da comunidade e contra os moradores. Mais uma vez, parece
evidente que, ao transformarem a luta pela área de uma questão policial para uma
questão social, os sem teto conseguiram a base de sustentação de que precisavam
para a consolidação da ocupação.
Contudo, de quebra, provocaram a ira do Poder Público contra os pobres,
midiatizando o seu discurso de criminalização disseminou na opinião pública a
imagem de um lugar onde a prática de sociabilidade mais comum entre os
moradores seria a violência. Construí-se uma máxima no senso comum de que, na
Vila Irmã Dulce, tudo é violência, pobreza e medo. De fato, a pobreza é um elemento
forte dentro da comunidade, mas daí, criar uma suposição baseada numa
perspectiva tradicional de violência de que pobre é sinônimo de violência e ainda
divulgar para a opinião pública, é, antes de tudo, um ato de irresponsabilidade.
Não é justo, portanto, que o Estado, por perder a luta na sua defesa da
propriedade privada, estigmatize como sendo violenta toda uma comunidade,
esquecendo-se de que o próprio Poder Público é parte importante, tanto para gerar
quanto para propor solução, no processo da crise habitacional, em Teresina, que se
arrasta desde os idos de 1980.
Olha, só para você ter uma idéia, para nós conquistarmos uma
escola, aqui, na comunidade, nós tivemos que construir uma casa de
taipa para dar conhecimento a eles da nossa necessidade. Das
necessidades das nossas crianças, dos nossos adolescentes de
estudarem. Mesmo assim, tivemos que ter a participação de uma
Promotora... Ela teve uma participação muito assídua nesse aspecto,
onde nós fomos obrigados comunidade e Promotora a entrar com
uma ação obrigando a Prefeitura a construir a, hoje, escola Dom
Hélder Câmara. No entanto, tivemos que sair daqui a pés para o
centro da cidade porque a polícia não nos deixava sair nos carros,
então, tivemos que sair a pé para o prédio onde funciona o Ministério
Público, para entrar com essa ação. E, a Prefeitura construiu a
escola, obrigada por força de uma ação.
113
Sobre as ações repressivas da polícia e dos “donos da terra” para impedi-
los de ocuparem a terra durante os primeiros meses de luta, o Entrevistado VI
observa:
Tentaram várias vezes e de várias formas, que nós tivemos bem
articulados nesse sentido. O objetivo sempre foi o nosso espaço; o
nosso pedaço de chão para, hoje, termos a nossa casa. Houve
várias investidas por parte daqueles que se diziam os “donos da
terra”, colocando pessoas, e até policiais, para intimidar.
Infelizmente, essa estigmatização faz com que se esqueçam que na Vila
Irmã Dulce convive uma população economicamente ativa em diversos ramos de
atividades desenvolvidos em Teresina, estudantes universitários, trabalhadores na
formalidade e na informalidade, biscateiros, pequenos comerciantes, portanto, não
se trata de uma comunidade composta por marginais, mas de pessoas humanas que
buscam manter-se integradas regularmente na vida social da cidade.
Eles diziam, assim, que o pessoal da Vila Irmã Dulce, aqui, cobrava
pedágio... só chamavam a gente era de ladrão.
(...) realmente, falavam isso aí mesmo, mas não está sendo, não.
Têm lugares muito mais próximos do centro que são mais violentos
do que aqui.(...) É problema de ser vila. O povo só quer saber porque
querem nos classificar como pessoas que moram em vila, né? Aí,
essa é a mentalidade deles, dizer que tem mais gente ruim do que
boa... Porque são pobres! Porque a gente é pobre, , querem
desqualificar, às vezes, a pessoa (Entrevistado IV).
Um dos efeitos mais perversos dessa imagem negativa sobre a população
da Vila Irmã Dulce, aparece, claramente, nas narrativas de interlocutores informais
que moram na localidade. Segundo estes, até 2004, quando saiam em busca de
trabalho, muitas vezes, a pés ou de bicicleta, ao encontrarem uma vaga, ficavam
com receio de dizerem onde moravam, já que a localidade foi caracterizada, policial
e midiaticamente, como um lugar violento” e, indiretamente, os seus moradores,
como “gente perigosa”, caracterização que aparece fácil nas narrativas do senso
comum. Um diálogo narrado pelo Entrevistado IV, entre ele e uma atendente do
Sistema Nacional de Empregos SINE, ilustra bem a situação:
Eu lembro é que uma vez, eu estava procurando emprego no SINE.
Aí, aquela mulher do SINE me perguntou:
- Você mora onde?”. Eu disse:
114
- Moro na Vila Irmã Dulce.
- Vixe, tu mora na Vila Irmã Dulce?”.
Eu perguntei para ela:
- Porque você pergunta assim?. E ela disse:
- Vixe, o lugar „véoi‟ mais perigoso do mundo”.
Pois, eu moro e nunca aconteceu nada comigo, graças a Deus,
até o momento.
(...) Até, eu falei assim:
- Minha senhora, para fazer a minha ficha? Se o der, não tem
problema, não. Eu moro na Vila Irmã Dulce, mas não tem bicho,
não. Somos gente do mesmo jeito dos outros.
(...) Eu me chateie no momento, mas, depois, fui pensar no caso e,
sabe de uma coisa, deixa pra lá, né? Quem sabe, hoje, ela está
nesse local e, amanhã, pode na está.
Essa narrativa é, sem dúvidas, a expressão mais significativa dos efeitos
de estar sob um estigma. Percebe-se que o Entrevistado IV tenta esboçar uma
reação de defesa, mas a convicção da atendente sobre o lugar onde ele mora é
mais forte. Sociologicamente, é um momento extraordinário pois estão frente a frente
o estigmatizado e o estigmatizador, o diálogo é rápido e direto. De um lado, o
estigmatizado tenta enfrentar o estigma que lhe foi posto sem a sua autorização e
contra o qual terá que lutar mesmo que não queira. De outro lado, o estigmatizador é
enfático e seguro de que o estigma sobre a Vila Irmã Dulce e as pessoas que moram
na localidade é uma verdade inconteste e inelutável, que foi construída no
imaginário teresinense. Para o estigmatizado, ele é uma pessoa humanamente
normal, mas, para o estigmatizador, ele é uma espécie de “quase-bicho” ou “quase-
monstro”, cuja presença é uma constante ameaça de violência.
Portanto, ao estigmatizar a localidade como um espaço de violência
“lugar violento” de “pessoas perigosas”, os discursos oficial e midiático contribuíram,
decisivamente, para a construção de representações ou imagens extremamente
negativas que, ainda hoje, se faz sobre a comunidade. Através de conversas
informais, não raro, é encontrar um morador em Teresina que não possua no seu
imaginário uma imagem negativa sobre a Vila Irmã Dulce. Sempre vinculando a
localidade e, conseqüentemente, a comunidade, às mais diversas práticas de
sociabilidade violentas.
Um reflexo emblemático do estigma sobre a localidade pode ser visto
através do surpreendente comportamento dos cobradores no interior dos ônibus que
fazem a linha do centro para o bairro em função da quantidade de famílias e o
nível de organização habitacional, desde 2003, a Vila irmã Dulce é considerada
115
como mais um bairro de Teresina. Não se sabe se por ordem da empresa ou o,
geralmente, quando os ônibus se aproximam da Vila Irmã Dulce, durante a viagem
de volta do centro de Teresina, os cobradores guardam num cofre de ferro lacrado
que fica próximo a sua cadeira, todos os vales transportes e parte do dinheiro
recolhido dos passageiros. É um comportamento pico que ainda se percebe - de
quem não confia na população, que, por sua vez, sente-se humilhada por uma
desconfiança generalizada, que coloca todos, sem exceção, sob um único tulo
estigmatizante: “lugar violento” de “gente perigosa”.
A vioncia como uma centralidade subterrânea” - em suas mais
diversas manifestações, é uma herança comum a todo e qualquer conjunto
civilizacional que, apesar de um certo alarmismo jornalístico e político, é importante
que saibamos compreender esse fenômeno com o máximo de serenidade possível”
(Maffesoli, 1987, p. 13). Historicamente, a violência sempre existiu em todas as
sociedades e em todas as épocas, independentemente de quaisquer determinismos,
não sendo, portanto, um privilégio histórico ou cultural de nenhum grupo social em
particular.
Para o Entrevistado I, os mesmos fatos criminosos que se constatam em
outras localidades (nobres) de Teresina não têm a mesma visibilidade
espetacularizada, por parte dos meios de comunicação, de quando eles acontecem
na Vila Irmã Dulce: - Tráfico existe. Como existe, tamm, no Jóquei. Mas que,
aqui, é a maconha barata, lá, é a coca, o craque...”. Ele observa que, a Vila Irmã
Dulce é vitimizada porque a sua comunidade de pobres tem uma consciência de
classe na verdade, o sentido de classe elaborado pelo entrevistado vem do fato de
assumirem a sua condição de pobreza, o que não significa em dizer que os pobres
da Vila Irmã Dulce têm uma ideologia elaborada e disseminada pela comunidade:
Eu acredito que eles criam esse véu que é para as pessoas
pensarem não ali é muito escuro e eu não vou entrar”. Mas, na
verdade, quando se entra ver uma outra coisa totalmente diferente e
terminam ficando por aqui.
(...) Eles criaram esse véu de “bruxa má” para a Vila Irmã Dulce,
porque nós fomos umas das primeiras comunidades a ter um início
da consciência de classe. Que, isso aí, muita gente tem medo. Ser
classista: “Ó, meu irmão, eu sou pobre e moro na Vila Irmã Dulce. E
acabou-se... lá é nós e pronto”.
Isso aí,vai empolgando outras pessoas, e outras, e outras... e, na
real, mesmo, eu acredito que a gente foi exemplo para várias outras
116
associações de Teresina. Vários outros movimentos... muitos se
inspiram na gente para tomarem as suas decisões.
Sobre a existência de um PPO dentro da Vila Irmã Dulce, a violência e a
visão da polícia sobre a comunidade, o Entrevistado I faz a seguinte análise:
Essa questão da inserção do Estado... Quando ele começa a se
inserir, as pessoas vão ficando individualizadas... eles têm essa
ficção de que a polícia vai proteger eles. , essa coisa vai gerando,
gerando, gerando... termina a polícia se instalando aqui dentro,
assim, do dia para a noite.
Na verdade, nós, do início, se preocupavam era com a água, com a
escola, com a horta, com um espaço para ter cultura e esporte... Nós
sempre víamos a segurança como uma coisa, assim, por última. (...)
A gente via essa questão do ser humano se manter num local
adequado para se viver. A gente nunca entendeu que polícia era
solução para resolver o problema da violência. O problema da
violência era questão da estrutura das pessoas. Se eles tivessem
água, luz, emprego e tivessem cultura, acho que não precisaria de
polícia. Precisaria de polícia para cumprir a função dela mesma...
algum bêbado que fique violento... algum desentendimento...
Para eles, no meu entendimento, acham que a comunidade é uma
força adversa. Todo muito é suspeito; a qualquer momento, é
passível de cometer um crime.
(...) Eu nunca presenciei discriminação da pocia contra a
comunidade, não. Mas, muitas pessoas já me falaram...
Eu conheço algumas desavenças da moçada do morro com
algumas pessoas daqui debaixo. Mas, gangue mesmo, aqui, na Vila
Irmã Dulce, não existe não.
(...) E eu ando a qualquer hora aqui, na Vila Irmã Dulce, tenho
tranqüilidade...
Um outro reflexo visível dessa espécie de cultura do medo midiatizada
sobre a Vila Irmã Dulce, se mostra através de alguns poucos comércios dentro da
própria comunidade, que possuem gradeados nas portas com apenas uma pequena
abertura para o atendimento dos fregueses. Para os Entrevistados, é uma atitude
desproporcional à realidade interna da comunidade, que, portanto, além de não se
justificar, ainda contribui para refoar o estigma sobre a localidade. Em geral, esses
comerciantes não fazem parte daquelas famílias que iniciaram a ocupação, portanto,
já chegaram ali, provavelmente, com aquela imagem negativa sobre o lugar. Em
conversas informais com alguns deles, até admitem que “as coisas mudaram muito
nos últimos anos, principalmente, depois da visita do Presidente Lula”.
Segundo momento. Em parte a narrativa anterior tem o seu sentido de
ser. De fato, depois que o Governador Wellington Dias fez o café da manhã de pose,
117
em 01 de janeiro de 2003, e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 10 de janeiro
de 2003, esteve na comunidade, a localidade passou a ser vista não mais como o
“point da violência em Teresina”, que, a partir dali, se tornara uma vitrine das
ações conjuntas dos governos estadual e federal, “para o Brasil; para o mundo”. A
partir de 2003, o foco de referência da Vila Irmã Dulce, nos meios de comunicação,
deixou de ser a violência e passou a ser as obras de infra-estrutura dos governos
estadual e federal. Nesse aspecto, o Entrevistado I, faz uma narrativa significativa
sobre o “poder e o prestígio político” que as presenças do governado e o Presidente
lhes concederam:
Eu acho que isso foi uma vitória muito grande para quem
entendeu aquele momento. Principalmente, pelo Presidente. Porque
isso é que é importante, as pessoas têm que entender isso aí. A
questão do prestígio, do poder de barganha... eu acho que eles
chegaram para a gente que não tinha nada no jogo, e aí, eles
chegaram lá e entregaram um ás pra gente. -Toma aí, esse ás que
é para você entrarem no jogo”.
(...) O Governador jogou o ás e o Presidente...”pronto, que vocês
têm um ás, mas não tem um cacife para entrar no jogo, está aqui o
cacife de vocês...”.
De fato, ao se tornar um lugar de referência nos planos de investimentos
dos dois governos, os fatos sociais da Vila IrDulce que agora mais interessavam
aos meios de comunicação, mesmo os relacionados às questões da segurança
pública, eram aqueles que tinham a possibilidade de agregar uma conotação política
a favor ou contra às políticas sociais dos dois governos. A questão midiática não era
mais saber se a Vila Irmã Dulce era ou não um “lugar violento” de “gente perigosa”,
já que as ações dos governos focalizavam mais na questão do atendimento básico
às necessidades sociais que resgatasse a população da localidade da condição de
pobreza.
As construções das casas residenciais pelo governo federal e da adutora
d‟água pelo governo estadual, ocuparam mais espaço no noticiário do que as
práticas criminosas ocorridas dentro da comunidade. Sem dúvidas, tais visitas foram
muito importantes para resgatar a auto-estima da comunidade, melhorar as
condições de habitabilidade do lugar e diminuir a força do estigma de lugar violento”
e “gente perigoso”. “Todo ano a minha casa caia. E, hoje em dia não. Pode chover,
que a minha casa não vai cair, não. Então, a minha auto-estima, claro, melhorou”
(Entrevistada V).
118
A presença de um Representante de Estado em uma comunidade com a
Vila irmã Dulce, que, num estado democrático de direito, deveria ser um ato comum
entre os representantes políticos brasileiros, para o Entrevistado IV é motivo de
felicidade sem tamanho. Ao narrar sobre a atmosfera daquele dia e às
características meteorológicas, a visita do Presidente Lula o “homem- lhe parece
mais como uma bênção divinal que veio para a localidade:
O momento mais feliz que eu via aqui, na Vila irDulce, desde a
época que eu estou aqui. É... como se diz?
Foi uma visita muito feliz. (...) Eu fiquei muito feliz (...) veio gente de
muitos lugares para cá.
(...) eu achei interessante... é que o dia amanheceu e não estava
bonito para chover. Quando foi dando a hora do “homem” chegar,
ficou assim, como se diz... parece que foi uma frente fria que
mandaram... chovendo, e aquele serenozinho... e o pessoal tudo
vibrando para ver o “homem”. Muita gente!
Nunca pensei dele passar aqui...
Acho que gente que não era daqui ficou com inveja. Uma outra
pessoa disse assim: “- Mas, o Presidente, veio para a Vila ir
Dulce. Por que ele veio para a Vila Irmã Dulce?”
Eu não sei os motivos por que ele veio...
Deixaram de chamar a Vila de lugar violento... mais pessoas vieram
morar aqui.
Portanto, esse segundo momento foi fundamental para que a comunidade
da Vila Irmã Dulce, de certa forma, conseguisse tirar das suas costas o peso do
estigma de “lugar violento” e de “gente perigosa”, para focalizar a atenção em outros
aspectos da vida cotidiana. Sem desmerecer os atos criminosos que por ventura
ainda acontecem na localidade, aquela população tenta se fortalecer através das
ações comunitárias, para superar os obstáculos que dificultam a convivência
pacífica. Acreditam, tamm, que é ampliando a rede de solidariedade dentro da
comunidade que os conflitos mais acirrados poderão ser solucionados sem o uso da
ameaça ou da violência.
Hoje, já tendo tido a segunda visita do Presidente Lula, reconhecem que a
realidade experimentada é outra inteiramente diferente, mas não menos complexa. A
população da localidade aumentou, com ela os problemas; muitas conquistas foram
alcaadas, mas ainda falta muito; o estigma vem perdendo força ao logo dos anos;
a comunidade ganhou um ginásio poliesportivo que fica aberta, até quase meia
noite, todos os dias; os torneios de futebol masculino e feminino, no campinho de
119
areia, aproximam a juventude; os grupos de dança ensaiam e sonham com uma
chance; a capoeira segue arregimentando mais crianças e jovens para a prática
esportiva. Sabem reconhecer os seus problemas internos e a sua condição de
pobreza, mas, mais ainda, a sua condição de “guerreiros” na luta pela sobrevivência
com um mínimo de dignidade humana.
(...) a grande necessidade da vila, hoje, é implantar mais moradia
digna para o povo; terminar o asfalto; dar encaminhamento ao
saneamento em todas as suas vias; e ampliar o sistema que a gente
tem de saúde, de educação, a segurança em si... eu digo a
segurança naquela coisa de a gente ter uma policia que entre em
todas as ruas...
(...) os problemas que a vila m não necessidade de um
batalhão... (Entrevistado II).
Finalmente, a narrativa da Entrevistada V, além de confirmar a atual
realidade, revela, também, as contradições econômicas entre os moradores e o lado
sombrio da especulação imobiliária feita por alguns dos ocupantes da época,
segundo ela, com a conivência do Poder Público. De certa forma, a Entrevistada V
mostra-se consciente sobre a realidade do povo pobre, a negligência do Poder
Público com essa parcela da população e com a utilização da condição de pobreza
de muitos dos seus iguais para sustentar a condição de riqueza de alguns poucos:
(...) Para te falar a verdade, acho que aqui não tem 50% dos
primeiros ocupantes. Eu acho que a maioria está pegando essa
questão de “invasão”, assim, tipo um meio de vida. Eu não concordo
com isso e acho, também, que esse é mais um problema da “nossa
colega” Prefeitura, entendeu?. Porque não tem um controle de quem
tem terra e de quem não tem terra. Do Governo do Estado e da
Prefeitura pois já dava para eles terem feito esse controle.
(...) que eu acho que não é interessante para o Poder Público ir
atrás desses problemas, porque se fosse, eles tinham ido. Eu
costumo sempre dizer que: “a desgraça do povo pobre é a alegria do
povo rico”.
A narrativa acima, mostra que o sujeito entrevistado assim comi os
demais - apresentam uma certa consciência política sobre o papel do Estado, ao
tempo em que percebem que a negligência estatal no atendimento de suas
demandas por políticas públicas pode ter uma relação direta com a sua condição de
pobreza. Ou seja, nessa perspectiva de análise, o Estado não aparece como um
120
mediador neutro e justo dos conflitos sociais, mas, isto sim, com uma clara
preferência tendenciosa para o atendimento das demandas sociais da classe
detentora do poder, prestígio e privilégio a classe alta.
Pelas narrativas dos entrevistados, na Vila Irmã Dulce, a inoperância e a
incapacidade do Estado, para resolver os conflitos, parece ser a forma de violência
com a qual os moradores da localidade mais têm se defrontado, na medida em que
o aumenta na fragmentação das condições de habitabilidade e sobrevivência tende
a possibilitar o estabelecimento de confrontos e conflitos e a construção de
representações ou sentidos de violência que, na melhor das hipóteses, serve para
reforçar o estigma de “lugar violento” e “pessoas perigosas”.
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a elaboração deste estudo sobre a violência em Teresina, através
do estudo de caso da Vila Irmã Dulce, buscou-se compreender nas narrativas e nas
práticas de sociabilidade dos seus moradores como estes se vêem estigmatizados
como um “lugar violento de gente perigosa” no discurso oficial midiatizado. Para
tanto, fez-se uma discussão sobre as dificuldades em trabalhar os conceitos de
violência; os discurso de violência em Teresina; a conceituação de estigma; o
contexto urbano de Teresina e a violência.
No intuito de se aproximar da realidade a ser estudada, fez-se um
resgate na trajetória da busca dos sujeitos entrevistados, através de suas narrativas
e do registro da memória, aprofundando, em suas subjetividades e
intersubjetividades, os sentimentos que se escondem por trás dos gestos e das
atitudes convencionais que perpassam um mundo de diversidade, de
conflituosidade, de contraditoriedade e de contraposições no universo simbólico e
nas práticas de sociabilidade experimentadas pelos moradores da Vila irmã Dulce.
No constante treinamento do “olhar de aprendiz de pesquisador”, além do
ver ou do agir da visão, foi sempre tentado trabalhar a capacidade de retirar da
frente os objetos que bloqueavam a luz, para se compreender a configuração
complexa e enganosa daquele universo tido como assustador. A incorporação
de um pseudopersonagem de “nativo do lugar”, durante a pesquisa de campo - para
se sentir um deles sem, no entanto, se confundir com os mesmos nem narrar com
discurso de autoridade -, foi importante para fazer a leitura daquele mundo, até
então, totalmente estranho.
Em outras palavras, para entender como os moradores da Vila Irmã
Dulce passam de uma linguagem sobre os moradores para uma linguagem a partir
dos moradores, foi fundamental a interpretação dos seus modos de conhecimento
sobre a trama das inter-relações, do sentido das práticas e dos processos
observáveis dentro da localidade.
122
Nesse esforço de compreender as multifaces não expostas,
objetivamente, as experiências narradas pelos moradores da Vila Irmã Dulce foram
substanciais para possibilitar o lançamento de um “olhar curioso” sobre os
fragmentos de suas histórias, mergulhando num universo entrecortado por
humilhações, angústias, medos, revoltas, desencontros, lembranças dolorosas do
passado, fome, deseperanças, perdas familiares, discriminações, mas, tamm, por
sonhos de moradia, projetos de vida ainda por realizarem, uma força de resistência,
uma rede de solidariedade, encontros fraternais e um sentimento de pertencimento
comunitário inabalável.
O estudo deu visibilidade às narrativas de pessoas que, mesmo sob o
efeito de estigmas, vivem e interpretam a experiência de conquista da terra para a
construção de suas moradias como uma “batalha social” que os transformaram em
“guerreiros” da resistência popular contra o Estado. No seu cotidiano, em constantes
rearranjos, a dignidade e a identidade o ameaçadas de cisão, forçando-os a se
manterem vigilantes, internamente, com o reforço na rede de solidariedade.
Contudo, as suas lutas nunca cessam.
Dia após dia e alheios a seu cansaço, novos desafios são postos, ao
tempo em que tentam retomar suas trajetórias, ressignificando as relações e os
vínculos familiais e vicinais, reconstruindo os sonhos de uma vida com mais respeito
e tolerância às diferenças, rompendo com os estigmas e as discriminações que, por
um lado, negligenciam as suas condições de habitabilidade e as suas
especificidades de sociabilidade e, por outro lado, ferem a sua moralidade e
maculam a sua imagem com se fossem os novos “incivilizados”, ou “bárbaros”, ou
“selvagens”.
Nesse mergulho intravila”, constatou-se que a história dos pobres em
Teresina, no caso específico da Vila Irmã Dulce, é constituída de trajetórias incertas,
onde a intensa mobilidade espacial, ao que parece, encontrou o improvável refúgio
numa área urbana que eles mesmos tiveram que inventar, para, somente assim,
superarem a longa experiência de negação do direito à moradia e à cidadania por
parte do Estado. No contexto da reconfiguração urbana de Teresina, entre a
verticalização e a favelização, a Vila Irmã Dulce surgiu como parte de uma forma de
organização territorial dos pobres as ocupações coletivas de terras- em resposta à
segregação espacial e social que a lógica do progresso os impeliu, forçando o
123
Estado a definir um re-ordenamento urbano que estabeleça um controle sobre as
formas de utilização do solo urbano.
As suas formas de habitabilidade e a rede de solidariedade anunciavam
que, por um lado, mesmo sob condições adversas era importante ter um lugar
próprio para re-aproximar o núcleo familiar e, por outro lado, o “resistir para morar”
era a fonte que alimentaria a vontade mútua de se fazer parte visível de Teresina.
Como parte dos problemas urbanos, a ocupação da Vila Irmã Dulce trouxe para o
debate da moradia, principalmente para os pobres, a questão da legalidade versus
ilegalidade, forjando novas relações entre o Poder Público e a Sociedade Civil para
solucionarem a crise habitacional teresinense que teve início na década de 1980. Os
pobres que compõem a localidade, sem terem assegurado o direito à moradia e o
atendimento às demais demandas sociais, protagonizaram na luta a sua própria
história, ao obrigarem o Estado a atualizar as suas ações frente aos novos conflitos
urbanos.
Antes de formarem a Vila Irmã Dulce, os pobres, conscientes do restrito
espaço que lhes cabe na estruturação social e da impossibilidade de consumir
outros lugares com infra-estrutura completa, experimentavam, cotidianamente, a
ameaça de perda da moradia ao mesmo tempo em que tinham que lutar pelo
trabalho que lhes garantiriam a sobrevivência material. A efetivação de sua
territorialização, mesmo carregada de transtornos e discriminações, é
supervalorizada pela comunidade, enriquecendo as suas experiências e re-
alimentando a vontade de ter a pose da terra.
Para os Entrevistados, a luta por uma vida mais digna e com cidadania
passa, irremediavelmente, pela conquista do “lugar de morar”, rompendo com as
relações “marginais” e provisórias, bem como, com a sina do nomadismo, que lhe
imprimiram como marca identitária.
O estigma de “lugar violento (de “gente perigosa”), imposto pelo discurso
oficial midiatizado, obrigou os moradores da Vila Irmã Dulce a lutarem no seu
cotidiano contra a imagem de “incivilizados”, reconstruíndo seus vínculos familiais e
vicinais naquele novo e definitivo lugar de morar, simultaneamente, reforçavam a
rede de solidariedade que lhe daria a base de sustentação para reverterem a
situão e fortalecer a articulação comunitária. A tarefa não foi fácil pois o discurso
oficial se propagava na opinião pública com uma forte intensidade, devido à
124
tecnologia de informação utilizada no processo de midiatização pelos meios de
comunicação.
Entre os anos de 1999 e 2002, a localidade sempre apareceu nos
noticiários jornalísticos como um foco destacado da violência em Teresina e,
obviamente, a população era associada à “gente perigosa” que merecia um
tratamento mais severo por parte do aparelho policial. O mito de lugar violento
passou a povoar o imaginário do teresinense, repercutindo negativamente nas
relações interpessoais, profissionais e institucionais em que os moradores da
localidade tomavam parte.
A indiferença associada à discriminação formou uma espécie de “lente
social teresinense” pela qual a comunidade era vista, analisada, julgada e,
automaticamente, condenada, sem direito à defesa. Preferencialmente, as suas
práticas de sociabilidade de maior visibilidade social eram aquelas que tinham uma
caracterização tipificada com sendo violenta por parte do discurso oficial.
Nesse período, existiam espaços em todos os meios de comunicação para
o noticiário policial, onde a espetacularização da violência transformava,
midiaticamente, simples fatos corriqueiros numa estética da violência na realidade
cotidiana de Teresina. As práticas sociais comuns na Vila irmã Dulce possíveis de
serem encontradas, também, em outras comunidades -, como desentendimentos por
bebedeira, brigas por uma lata d‟água, revoltas por falta de assistência estatal,
discussões fúteis etc, recebiam um tratamento jornalístico espetacularizado e eram
divulgadas para a opinião pública, acompanhadas de textos noticiosos que, quase
sempre, esboçavam uma representação da representação que o jornalista fazia dos
fatos noticiados. A localidade era mostrada como um lugar onde a violência era a
prática de sociabilidade mais expressiva entre os moradores.
De certo modo, quando se representa uma determinada prática social
como violenta, trata-se, na verdade, de uma percepção de mundo elaborada dentro
de uma lógica racional coletivizada, cuja realidade empírica experimentada e
apreendida em um determinado contexto serve de suporte interpretativo para a
construção do sentido da violência. Em outros termos, o que, hoje, nos causa
indignação, na maioria das formas de violência nossa de cada dia, não é,
necessariamente, a força desproporcional e a constância de uma ação violenta em si
mesma, mas a força disseminatória do sentido que é dado a ela em função do
125
contexto cio-histórico no qual se dar a sua manifestação e em que nós estamos
inseridos.
Nesse sentido, a comunidade da Vila Irmã Dulce estar sendo rotulada
como “lugar violento (de gente perigosa”), simplesmente, porque os pobres que
habitam aquela localidade m algumas práticas conflituosas comum a qualquer
conjunto civilizacional - que adquiriram notoriedade midiática em detrimento de
outras formas, com a ajuda mútua, a força de articulação e a capacidade de
organização que compõem uma rede de solidariedade desconhecida da maioria dos
teresinenses.
Em consonância com os objetivos propostos e a hipótese levantada,
conclui-se que esse estigma de “lugar violento” e pessoas perigosas” o faz jus a
uma comunidade que lutou contra os seus próprios medos e os seus limites de
sobrevivência, para enfrenta a resistência do Estado em negar o direito à moradia
aos pobres. A convivência social na localidade não se expressa somente em função
da violência, como induz o discurso oficial que impregnou o imaginário teresinense.
Contudo, não se considera a consolidação da Vila Irmã Dulce como um produto dos
movimentos sociais, na medida em que a articulação destes gera muito mais
processos do que produtos.
A pesquisa evidenciou, como marcas identitárias dos moradores, uma
rede de solidariedade e um sentimento de pertencimento que atravessam as suas
trajetórias, suas práticas e seus sonhos de melhorar de vida com a conquista de um
lugar definitivo para morarem. Essas marcas se refletiram nos momentos em que
exigiam dos ocupantes a mobilização e a articulação coletiva para superarem os
medos, a fome, o cansaço, as ameaças de despejos, as discriminações da
vizinhança e as investidas do aparato policial, ou dos “capangas” dos “donos da
terra”. A sensibilização dos ocupantes, por parte das lideranças, em focalizarem
todas as suas forças na luta para assegurarem a terra que estava ocupada foi o
estímulo crucial para a efetivação do pacto comunirio de “resistir para morar”.
Ao mergulharem em suas memórias, de dias longos e de noites mal
dormidas, os sujeitos entrevistados trazem à tona o estonteante sentimento de
felicidade que os envolviam a cada dia resistido, já que isso significava a conquista
da terra e a realização, antes inexorável, do direito à moradia, pondo fim ao
nomadismo e a “mobilidade errante”.
126
Durante esses sete anos de formação da comunidade, o discurso estatal
foi um fator crucial para que se criasse uma imagem negativa do lugar, bem como de
seus moradores, em detrimento de suas condições de vida, da falta de trabalho, da
falta de assistência estatal às suas necessidades básicas etc. Os noticiários
jornalísticos sempre negligenciaram em dar visibilidade a nuances diferenciadoras
daquela comunidade em contraposição às práticas de sociabilidade violentas, tais
como os gestos de companherismo na construção das casas, as ações coletivas de
ajuda mútua para a sobrevivência, a intensa força de mobilização e de articulação
para consolidação da ocupação, as atitudes da juventude em se organizarem em
atividades esportivas e culturais para evitarem o mundo das drogas e do crime, as
manifestações de gratidão aos líderes da ocupação etc.
A consolidação da Vila Irmã Dulce, propiciou a seus moradores a
estabilidade para instituir direitos, a motivação para remontar experiências, a
possibilidade de reavivar o sentimento de se fazerem parte visíveis em uma
sociedade capaz de partilhar com estes os valores, os hábitos, os costumes e os
ritos, visando a construção de uma convivência mais humana, justa e democrática,
onde a solão de conflitos pela violência e a disseminação de estigmas
aniquiladores sobre os pobres sejam abolidas em favor do rompimento da antinomia
pobreza/cidadania.
Mesmo ainda sofrendo com a condição social de pobreza, lutam para que
as desigualdades e os estigmas não sejam internalizados como obstáculos
intransponíveis para a superação do sofrimento moral e material a que foram
submetidos durante anos. Para eles, o limite entre a negação do direito à cidadania
e a inserção no mundo social se solidifica sempre que deixam fragmentar a auto-
estima e a capacidade coletiva de construírem experiências, realizarem sonhos e
fomentarem desejos. Tecendo suas redes de solidariedade e reforçando o
sentimento de pertencimento comunitário, os moradores da Vila Irmã Dulce
experimentam modos de vida, criam identidades e ressignificam um mundo que os
discriminam como pobres” e os estigmatizam como “gente perigosa” em um “lugar
violento”.
A pesquisa revelou-nos que o mundo vivenciado pelos moradores da Vila
Irmã Dulce constitui-se de realidades distintas, de experiências singulares, de
dramas pessoais e coletivos, de contradições econômicas que dividem o espaço
local entre uma pequena parte de “pobres”, mas com acesso ao atendimento de
127
demandas sociais básicas e uma maioria de “pobres-pobres” que sobrevivem
através de ajudas e favores de vizinhos ou de estranhos. A religiosidade serve de
mecanismo para as mediações simbólicas entre o mundo do “não-poder-ter” e o
mundo do “querer-viver”, celebrando a mística espiritual do “estar-junto” como forma
de constituírem uma identidade social perpassada pelos códigos de reciprocidades e
de complementaridades que aproximam as suas experiências.
Os valores morais o cultuados como mbolos dignificantes que lhes
permitem estabelecer, a despeito dos estigmas, relações de convivência nos núcleos
intrafamiliares e vínculos de pertencimento que facilitam a interação com os outros
seus iguais e os não iguais. A família, orientada por regras de obediência e
obrigação com base na tradição patriarcal, é representada como uma condição de
autopreservação diante dos efeitos perversos da estigmatização de “lugar violento”
(de “gente perigosa”) e princípio de ordenamento da conduta de seus de membros
no processo de sociabilidade.
As narrativas dos entrevistados não permitiram construir um modelo de
referência local, mas “lógicas internas” distintas que apontam a existência de uma
violência cotidiana com formas variadas. Uma vioncia comum e ininterrupta que
cria uma tensão entre a vontade coletiva de romper com o estigma criminalizante da
comunidade e a improbabilidade de reduzir as suas manifestações somente a um
dos seus múltiplos aspectos. Na sua ambigüidade, a violência se manifestou em
pequenas situações cotidianas como forma de resistência não a favor da violência,
mas no uso desta, desvelando o confronto entre a força representada pelas
“autoridades” garantidoras do “dever-ser” e a potência dos moradores que, de
forma leve ou explosiva, tentam resistir às suas imposições para garantirem o seu
“querer-viver”.
Contudo, é um equívoco deduzir a priori que a Vila Irmã Dulce parece
estar minada por uma inevitável reversibilidade da violência. Como se, de um lado,
tivesse a violência legítima do Estado, estritamente, para manter a ordem e
assegurar o controle social e a adaptação dos pobres e, de outro lado, as reações
brutais de resistência ativa que subvertem a ordem, confrontando-a se medo.
O estigma de “lugar violento” (de “gente perigosa”) deixou marcas
profundas na imagem da localidade e de seus moradores que o tempo,
provavelmente, venha a reservar um lugar de destaque na história das humilhações
dos pobres em Teresina”. Sem dúvidas, foram momentos difíceis, de revolta, de
128
indignação, de privação, de sofrimento, de angústias, de ameaças e de
vulnerabilidades, que a memória dos entrevistados insiste em fazê-los lembrar
sempre que o passado se sobrepõe, momentaneamente, ao passado.
Todavia, ainda é possível construir uma forma positiva de vê-los,
reconhecendo a sua forma de resistir e a condição de pobreza não como fatores
determinantes para reforçar a disseminação de uma imagem negativa, mas, como
elementos que entrecortam várias dimensões da vida social, permitindo-lhes,
efetivamente, acesso aos direitos sociais para que possam consolidar as suas
estruturas identitárias, seus papéis sociais e, principalmente, se afirmarem como
sujeitos merecedores de um lugar letimo dentro da sociedade teresinense.
Esta pesquisa mesmo sendo um produto de um “olhar de aprendiz de
pesquisador” -, resgatou a trajetória da busca dos sujeitos entrevistados, dando-lhes
espaço para a livre expressão de suas narrativas, gestos, sentimentos, atitudes e do
registro da memória, possibilitando a projeção, para além dos limites da localidade,
dos seus sonhos e desejos de superarem com lutas cotidianas os estigmas e as
discriminações, numa obstinada busca por um futuro diferente, cuja rede de
solidariedade, o sentimento de pertencimento comunitário e os mecanismos de
reciprocidade e de alteridade se inscrevam em todas as esferas da vida social em
Teresina.
Mesmo não esquecendo que, de fato, a eficiência e amplitude da
divulgação jornalística de fatos tidos como violentos, jurídica ou culturalmente, é
muito importante para chamar a atenção da sociedade para as formas de
sociabilidade que vão se estabelecendo no convívio social, porém, quando tratados
de forma superficial, alarmista e estigmatizante, contribui mais para a
espetacularização da violência do que para provocar uma reflexão acerca de um
fenômeno social tão complexo, fazendo com que a população se sinta cada vez
mais como refém dessas práticas no nosso dia-a-dia e passe a exigir
constantemente o uso da força preventiva e repressiva do Estado contra a força da
criminalidade força versus força. O que se justifica, na medida em que ela acredita
que somente castigando, maltratando e penalizando os corpos dos indivíduos tidos
criminosos, se conseguirá ter um controle social mais eficaz do crime e, assim,
domar a potência de agressividade dos homens. Coisa do tipo, a certeza de ser
punido é que deve desviar o homem do crime” (Foucault, 2001, p. 13).
129
Atualmente, se experimenta um convívio social em que a estruturação
predominante de uma linguagem formal, lógica e racional do direito de propriedade
que favorece a incorporação de novos valores, constituindo um processo natural de
conflito nas sociedades modernas, que tudo está em torno do desenvolvimento,
do progresso, da modernização e da capacidade humana de produzir. Esse
processo instaura uma contrariedade em muitos daqueles que não conseguem ser
incluídos na lógica dessa realidade.
Assim, o sentido de violência para os excluídos desse processo de
modernização passa pela noção de incapacidade, ou seja, eles não têm a
consciência de que são violentados quando não têm “capacidade” de se encontrar
dentro desse processo de civilização que as sociedades atuais exigem. Não há entre
eles a consciência de que a sociedade moderna criou um estatuto de civilização no
qual todos têm que se encontrarem e se organizarem, por isso, quando não vão
conseguindo enquadrar-se nessa lógica, surgem os conflitos que, algumas vezes,
são expressos de forma violenta.
Nesse sentido, parece ser óbvia e justificada a suposição que perpassa o
senso comum de que a força agressiva do animal-homem somente será contida
dentro de limites aceitáveis, no caso de existir um Estado fortíssimo, ou mesmo,
necessariamente, autoritário ou despótico, e seja, minimamente, repressor. É como
se quisessem tornar verdadeiro o discurso apelativo de que violência se combate
com mais violência - um caso, exclusivamente, de polícia.
Final, vale ressaltar que este trabalho é um olhar sobre essa realidade
e não tem a pretensão de ser único. Este é o começo...
130
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