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O narrador afirma, na página 35 da referida obra (reforçando tal afirmação a
probabilidade de certeza tida com relação à ocorrência nesse trabalho garrettiano do
fenômeno romântico da fuga da realidade):
Sou sujeito a estas distrações, a este sonhar acordado. Que lhe hei de eu fazer? Andando, escrevendo:
sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de sonâmbulo, de soníloquo, de...
Não, fica melhor com seu ar de grego (hoje tenho a bossa helênica num estado de tumescência pasmosa!);
digamos sonílogo, sonígrafo...
Joaninha, uma das personagens que moravam nesse vale, representaria, pois, o
lado sonhador e sentimental da alma do narrador (ou seja, o lado Dom Quixote deste) e,
conforme já dito, representaria, juntamente a frei Dinis, o seu lado solidário.
No final da história, ela morre, e o narrador afirma, em diversos trechos do
romance, que a vida dele, com o progredir da idade, tornou-se cheia de sentimentos
amargos, em decorrência da supressão em sua alma desse lado sonhador e sentimental
(supressão representada, por conseguinte, pela morte de Joaninha).
Exemplificando essa afirmação — a de que o narrador tinha sentimentos
amargos —, está transcrito a seguir um enunciado em que o viajante, ao ver a beleza do
vale de Santarém, diz que os dissabores de sua vida, com essa vista, seriam esquecidos
(eles, portanto, fugiriam): ―(...) As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares
e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe‖.
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Carlos, por seu turno, representaria o lado materialista do narrador (ou seja, o
lado Sancho Pança deste) e, apesar disso, representaria também o lado
sentimentalmente volúvel desse narrador. Essa personagem, ao final da história, tornou-
se um barão com pretensões políticas e, ademais, não conseguiu o rapaz, a um tempo,
amar apenas uma mulher: ao soldado, não teve acaso importância a profundidade
sentimental numa relação amorosa, pois, do contrário, ele teria se interessado, de cada
vez, por apenas uma mulher.
Dona Francisca, a avó de Carlos e Joaninha, poderia representar na alma desse
narrador uma força que fosse o resultado negativo do contraste e do atrito entre essas
duas outras, ou seja, entre a força sonhadora de Joaninha (ou, possivelmente, a de um
Dom Quixote), e a força um tanto racional, embora volúvel, de Carlos (ou,
possivelmente, a de um Sancho Pança). Como preponderou no romance esta última
(pois, na história, Joaninha morre, e Carlos firma-se socialmente) — o narrador,
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Idem, Ibidem, p. 49.