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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
AURORA AMÉLIA BRITO DE MIRANDA
DE ARRENDATÁRIOS A PROPRIETÁRIOS: a sociabilidade
no Assentamento Brejo de São Félix.
SÃO LUIS
2007
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2
AURORA AMÉLIA BRITO DE MIRANDA
DE ARRENDATÁRIOS A PROPRIETÁRIOS: A sociabilidade no
Assentamento Brejo de São Félix
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas da
Universidade Federal do Maranhão como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Políticas Públicas.
Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Maria
Beserra Coelho
SÃO LUIS
2007
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3
Miranda, Aurora Amélia Brito de
De arrendatários a proprietários: a sociabilidade no assentamento
Brejo de São Félix / Aurora Amélia Brito de Miranda. – São Luís, 2007.
204 f.
Orientador: Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho.
Tese (Doutorado em Políticas Públicas) – Universidade Federal do
Maranhão. 2007.
1. Reforma agrária – Assentamento rural I. Título
CDU 332 (812.1)
4
AURORA AMÉLIA BRITO DE MIRANDA
DE ARRENDATÁRIOS A PROPRIETÁRIOS: A sociabilidade no assentamento
Brejo de São Félix.
Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da
Universidade Federal do Maranhão como requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Políticas Públicas.
Aprovada em ___ / ____ / ____ .
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho (Orientadora)
Universidade Federal do Maranhão
_________________________________________________
Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho
Universidade Federal do Ceará
_________________________________________________
Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’ Ana Júnior
Universidade Federal do Maranhão
_________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima da Costa Gonçalves
Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Sampaio Carneiro
Universidade Federal do Maranhão
5
Aos assentados do P.A Brejo de São Félix,
em especial às famílias das irmãs Nega e
Deusimar, à Lúcia, Décio, Paulo (estrela), Zé
Aderson, Maria Zuleide, Zé Cacheiro,
Mariazinha, pelo apoio, acolhida e carinho
dispensados, nas diversas vezes em que
estive no assentamento, facilitando a
realização da pesquisa.
À minha família por toda paciência e por
suportarem minhas ausências decorrentes do
trabalho de pesquisa.
6
AGRADECIMENTOS
A elaboração de uma Tese é um trabalho de grande fôlego, mas não é
somente o resultado de um esforço individual. Apesar de, em muitos momentos, ser
solitário, ele representa o apoio de muitas forças: amizades, companheirismo, amor
e profissionalismo.
Como afirma Bourdieu (1998, p. 27), a construção de um objeto de estudo se
realiza “[...] pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de
correções, de emendas”. Neste sentido agradeço imensamente a Professora Dra.
Elizabeth Maria Beserra Coelho (Beta) pelo aprendizado proporcionado, e pela
desconstrução da ilusão dominante da impotência, mostrando-me o verdadeiro
papel de um professor. Sua acolhida, seus ensinamentos me proporcionaram um
crescimento pessoal e profissional, sem os quais esta Tese não teria se
concretizado. Porém, atribuo exclusivamente a mim, os eventuais equívocos e
lacunas;
Aos professores Dr. Marcelo Sampaio Carneiro Dr. Horácio Antunes pelas
contribuições por ocasião do exame de qualificação da Tese;
Às professoras Dra. Alba Carvalho e Dra. Maria de Fátima Costa Gonçalves,
pelas valiosas contribuições em sala de aula;
À professora Silvane Magalli pelo apoio, amizade e solidariedade em mais
esta etapa;
À CAPES, pela concessão da bolsa de estudo;
A todos os professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas, não poderia deixar de destacar o apoio e a amizade de Liberata
Coímbra, Katiane Ribeiro, Annova Carneiro, Marli Alcântara, Juarez, Carlos Augusto,
Augustinho, Zayra, Valdira, pela oportunidade do convívio. Em particular, Socorro
Alves, Katiane Ribeiro e Marly Dias pela amizade e incentivo. À Marli Alcântara pelos
anos de amizade e convivência, da especialização até esta etapa.
A uma força superior que me acompanha e me faz acreditar que é possível
continuar a lutar por um mundo melhor: Deus;
À minha mãe Maria Brígida e ao meu pai José Pereira de Miranda (in
memoriam), que sempre me apoiaram na busca de conhecimento;
7
Ao Arthur Vinícius, meu filho, que teve maturidade para compreender mais
esse processo e mais uma vez suportou minhas ausências para campo e
impaciência pelo stress da realização da tese.
Ao meu companheiro Carlos Augusto de Oliveira Furtado, presente em mais
este momento da minha vida. Obrigada pela força e especialmente pela ajuda com
as tabelas e com o manuseio do computador.
Às irmãs Valéria e Márcia Carvalho, pela amizade e o apoio de sempre;
Aos companheiros da COOSERT, em especial a atual diretoria, pelo convívio
e pelo apoio dado a esta pesquisa;
Às equipes do Programa de ATES, em especial o Núcleo Operacional
Parnarama/ Matões, por me acolherem, dividirem comigo o espaço, fornecerem
informações e propiciarem discussões e momentos de lazer, que foram valiosos
para a conclusão deste trabalho.
Á Dona Isabel Sardinha, pelo carinho e disponibilidade às solicitações sempre
que possível, no PPGPP/UFMA;
8
O acesso à terra é, portanto, a concretização do
direito ao trabalho, mas não qualquer tipo de
ocupação (trabalho assalariado, por exemplo). A
terra significa mais do que um emprego ou
ocupação porque possibilita o “trabalhar para si”,
portanto uma condição de liberdade e “fartura”
(produção para garantir o sustento da família), ou
seja, um trabalho sem os “mandos de um patrão”
e uma realidade ausente de privações materiais.
Sérgio Sauer
9
RESUMO
Análise da sociabilidade no assentamento Brejo de São Félix, situado no município
de Parnarama, estado do Maranhão. Busca compreender como os grupos foram se
constituindo, como os assentados interagem construindo os laços que os articulam,
numa perspectiva histórica, destacando as novas relações que se constituem na
condição de assentados, assim como os novos mediadores com os quais passam a
se relacionar. Discute as seguintes questões: o que significa assentamento? Em que
medida os assentados conquistam a propriedade e o controle sobre a terra? Toma
como referência a noção de sociabilidade desenvolvida por Velho (2001) para
compreender como distintas sociabilidades vão construindo simbolicamente os
diferentes espaços deste assentamento, destacando novas e velhas formas de
gestão do território e de clientelismo que se efetivam a partir das relações com as
instituições que nele atuam.
Palavras Chave: Reforma Agrária; Assentamento Rural; Sociabilidade, Mediação.
10
ABSTRACT
It analyses the sociability´s´ on Brejo nesting from São Félix, situated in Parnarama
city, Maranhão State. It searchs understand how the groups has been becoming the
bows that articulate them, how the seated ones interact building the bows that
articulate them, in a historical perspective, detaching new relations in a seated
condition, as well the new mediators which they pass to relationate. It argues the
following questions: what does it means nesting? In which measure the seated ones
conquests the property and the land´s control? It takes as reference the sociability
notion developed by Velho(2001) to understand how diferents sociabilities build
symbolic the different spaces from this nesting, detaching news and old
management´s forms of the territory and clientelism that has been accomplished from
the relations with the institutions that acts in it.
Key Word: The Agrarian Reformation; Agricultural Nesting; Sociability, Mediation.
11
LISTA DE SIGLAS
APPR – Associação dos Pequenos Produtores Rurais
ASSEMA – Associação em Áreas de Assentamentos no Estado do Maranhão
ATAM – Associação dos Trabalhadores Agrícolas do Maranhão
CENTRU – Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
COLONE – Companhia de Colonização do Nordeste
COMARCO – Companhia Maranhense de Colonização
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CUT - Central Única dos Trabalhadores
EMAPA – Empresa Maranhense de Pesquisa Agropecuária
EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FETAEMA – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNRURAL – Fundação de Previdência e Assistência ao Trabalhador Rural
GETAT- Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins
GEBAM – Grupo Executivo do Baixo Amazonas
GTDN – Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
GETSOP – Grupo Executivo de Terras do Sudeste do Paraná
Ha – hectares
IBAMA – Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ITERMA – Instituto de Terras do Maranhão
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MSTR – Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais
MEB – Movimento de Educação de Base
12
ONG`S – Organizações Não Governamentais
PC do B – Partido Comunista do Brasil
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PSP – Partido Social Progressista
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
PPGPP - Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
PIN – Programa de Integração Nacional
PROCERA – Programa Especial de Crédito para Reforma Agrária
PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
STTR – Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
SIPRA – Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária
SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
UDR – União Democrática Rural
UDN – União Democrática nacional
ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas
UFMA – Universidade Federal de Maranhão
13
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS..............................................................................................
1. INTRODUÇÃO................................................................................................
1.1 Objetivo Métodos........................................................................................
2. REFORMA AGRÁRIA: solução para a questão agrária ou (en)cenação de
reforma agrária.............................................................................................
2.1 A política agrária e o regime militar.........................................................
2.2 Entra (en) cena a reforma agrária.............................................................
2.3 As transformações recentes na agricultura maranhense: a luta pela
construção de um patrimônio familiar...........................................................
2.4 De novo (e) cena a reforma agrária..........................................................
3. A POLÍTICA DE ASSENTAMENTO RURAL.................................................
3.1 O que significa assentar? .........................................................................
3.2 Assessoria x assistência...........................................................................
3.2.1 A assistência técnica como estratégia nacional...................................
3.2.2 O assentados como protagonistas da reforma agrária? .....................
3.2.3 Assessoria aos assentados no Maranhão............................................
4. O ASSENTAMENTO BREJO DE SÃO FÉLIX...............................................
4.1 A vida como arrendatário..........................................................................
4.2 O patrão e seus clientes.............................................................................
4.3 “Nos aqui era tudo unido” .........................................................................
4.4 A quem se deve a desapropriação? ........................................................
5. A (RE) CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO.....................................................
5.1 Novas formas de gestão do território.......................................................
5.2 “Deixamos de ser aquela cativo, aquela pessoa privatizada” ...............
5.3 A Sociabilidade na produção....................................................................
5.3.1 Sistema de cultivo...................................................................................
5.3.2 Sistema de criação..................................................................................
5.3.3 A Agricultura familiar e o PRONAF em Brejo de São Félix: rumo ao
agronegócio? ...................................................................................................
5.4 Gestão, organização e novas formas de sociabilidade...........................
5.5 A rede de controle social...........................................................................
5.6 Solidariedade e ajuda mútua.....................................................................
11
15
28
40
44
55
63
79
84
86
91
92
94
105
108
109
114
123
131
134
138
139
145
147
150
150
156
164
168
14
5.7 A sociabilidade no lazer............................................................................
5.7.1 “Sob o pé de tamarindo: a festa do lavrador”.......................................
5.7.2 As demais festas.....................................................................................
5.7.3 Outras formas de lazer...........................................................................
5.8 Conflitos internos e heterogeneidade dos assentados...........................
6. CONCLUSÃO.................................................................................................
REFERÊNCIAS.............................................................................................
ANEXOS........................................................................................................
170
170
174
175
176
190
194
202
1. INTRODUÇÃO
Esta tese aborda as relações de sociabilidade no assentamento
1
Brejo de São
Félix, situado no município de Parnarama, estado do Maranhão. Busca compreender
as relações sociais e de poder local nas dimensões sociais, econômicas e políticas.
Ou seja, busca compreender como os grupos foram se constituindo, como os
assentados interagem, construindo os laços que os articulam.
Ao longo do percurso da pesquisa, a partir do contato com a história e o
cotidiano das pessoas do assentamento, fui percebendo regularidades em suas
trajetórias de vida. Percebi que a partir dessas trajetórias formavam grupos segundo
interesses específicos.
Procurei descrever as formas pelas quais distintas sociabilidades (VELHO,
2001) vão construindo simbolicamente os diferentes espaços deste assentamento.
Pude observar momentos de intensa interação social, como a festa do lavrador
realizada no mês de julho, quando se registram “[...] formas lúdicas de sociação”,
(SIMMEL 1983:168), a “[...] interação entre iguais”, revelando jogos e conversas
animadas. Como diz este autor, “[...] de fato, entre todos os fenômenos sociológicos,
com a possível exceção de ‘olhar um para o outro’, a conversa é a forma mais pura
e elevada de reciprocidade” (1983, p.177).
Assim, várias expressões de sociabilidade (VELHO, 2001) foram
descortinadas no decorrer da pesquisa de campo, que se expressavam na forma de:
cooperação, conflito e controle.
Velho (2001) define sociabilidade como as interações, as redes de interações,
as situações interacionais dos mais diferentes tipos. Está relacionada ao cotidiano, à
microssociologia, ao dia-a-dia, ao convívio, aos encontros e desencontros, à
negociação da realidade e à definição de situações.
Pude perceber as diferentes interações que no assentamento estudado
asseguram a existência do grupo, seja mediando conflitos, fortalecendo lutas por
objetivos comuns ou assegurando a sobrevivência.
Estive voltada para o que Simmel (1983) denominou sociação, ou seja:
A sociação é a forma (realizada de incontáveis maneiras diferentes) pela
qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus
1
Essa categoria será discutida ao longo desta introdução, apontado como uma categoria oficial que
vai se tornando categoria de identificação por parte dos assentados.
16
interesses. Esses interesses, quer sejam sensuais ou ideais, temporários ou
duradouros, conscientes ou inconscientes, causais ou teleológicos, formam
a base das sociedades humanas (1983, p. 166).
A partir desta noção de sociação, definida como o modo pelo qual os
indivíduos se aproximam em núcleos de satisfação de seus interesses, Simmel
(1983) considera que o conteúdo de uma sociação é o que está presente no
indivíduo, como: impulsos, interesses, inclinações e propósitos, estado psíquico,
movimento, ou seja, tudo que está presente neles de maneira a engendrar ou
mediar influências sobre os outros, ou que receba tais influências, o autor designa
como conteúdo, matéria da sociação.
Para Simmel (1983, p.168) “[...] “sociedade” propriamente dita é o estar com
um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou
dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou
individuais”.
Assim, busquei perceber os espaços sociais e as redes de sociabilidade que
se formam no assentamento Brejo de São Félix.
Meu interesse em analisar as relações sociais em um assentamento decorreu
de minha experiência de pesquisa durante o curso de mestrado, quando investiguei
o processo de luta pela terra no Maranhão. Naquela ocasião, procurava conhecer as
estratégias de luta empreendidas pelos trabalhadores rurais para conquistar a terra.
Essa busca despertou meu interesse em conhecer o que ocorria após a conquista
da terra, ou seja, como os assentados (re) construíam suas vidas na nova condição.
Interessa-me agora analisar a modalidade de assentamento decorrente
desses processos, tendo em vista as relações sociais que se estabelecem num
contexto de assentamento rural.
Inicialmente, selecionei como campo empírico o Projeto de Assentamento-
P.A.- Entroncamento, por ser um assentamento antigo, criado em 1986, no contexto
da implementação do I Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República, no
município de Itapecuru-Mirim. O fato de estar situado apenas a 108 km de São Luís,
também favoreceu a escolha. Porém, embora tenha feito contatos iniciais com
lideranças de 04 dentre as 09 comunidades que compõem esse P.A, com
trabalhadores e lideranças do Sindicato de Trabalhadoras Rurais- STTR de
Itapecuru-Mirim, e com os técnicos do Programa de ATES do assentamento, não foi
possível dar continuidade a pesquisa. Os assentados e as lideranças procuradas
17
estavam sempre em São Luis, o STTR não se dispôs a dar informações sobre o
assentamento e observei que as comunidades eram dispersas o que dificultava o
trabalho inicial da pesquisa.
Como faço parte de uma Cooperativa de Serviços Técnicos – COOSERT
2
, em
2005 passei a coordenar o Programa de Assessoria Técnica Social e Ambiental
(ATES)
3
, criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
em parceria com a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na
Agricultura do Maranhão (FETTAEMA) e com a COOSERT. Esta inserção
descortinou novas possibilidades na seleção do campo empírico da pesquisa.
A cooperativa ficou responsável por realizar a assessoria técnica de cinco
Núcleos Operacionais, distribuídos nos assentamentos dos municípios de Pio XII /
Vitorino Freire, Coroatá / Codó, Caxias / Timon, São João do Sóter e Parnarama /
Matões. A partir de então, passei a acompanhar os trabalhos nesses cinco Núcleos
Operacionais, tendo conhecido o Assentamento Brejo de São Félix.
A relação com os assentados estreitou-se a partir da elaboração do Plano de
Desenvolvimento deste Assentamento – PDA
4
. Passei a conviver com o cotidiano
das três comunidades que constituem este assentamento, Brejo de São Félix,
Canafístula e Baixão Grande, e percebi que poderia ser o meu campo empírico. Em
discussão com minha orientadora, decidimos que a mudança não implicaria em
nenhum problema para a pesquisa. Em qualquer assentamento, constituído em
condições semelhantes, seria possível refletir sobre as questões que minha
pesquisa colocava.
Esta relação de trabalho, se por um lado favoreceu meu acesso ao campo,
por outro lado interferiu na representação que os trabalhadores fizeram da minha
pessoa e, conseqüentemente, nas informações que me concederam. Embora eu
tenha informado que estava realizando uma pesquisa para Universidade, minha
pessoa estava sempre associada a primeira referência como coordenadora do
Programa de ATES na área.
2
Esta cooperativa realiza Planos de Desenvolvimento, programas e projetos com os trabalhadores
rurais desde 1997.
3
No item 3.1 desta tese analiso o Programa ATES.
4
De acordo com o “Manual Operacional de ATES”, aprovado em meados de 2004 (INCRA, 2004), o
PDA é considerado como “ações permanentes, a envolverem, desde o processo de planejamento da
ocupação e utilização racional de áreas de assentamento, no âmbito de cada território, até seu pleno
desenvolvimento, através da efetiva garantia dos serviços básicos de infra-estrutura física e social.”.
18
O Projeto de assentamento Brejo de São Félix está situado no Município de
Parnarama/MA, que fica localizado às margens esquerda do Rio Parnaíba e direita
do Rio Itapecuru, pertencendo à Região dos Cocais, composta por 12 (doze)
Municípios, integrantes das Mesorregiões Centro (Fortuna) e Leste Maranhense
(Afonso Cunha, Aldeias Altas, Buriti Bravo, Caxias, Coelho Neto, Duque Bacelar,
Lagoa do Mato, Matões, Parnarama, São João do Soter e Timon). A região dos
Cocais é cortada pelos rios Itapecuru, Parnaíba e Munim, o que favoreceu o seu
povoamento no século XVII, cujas bacias eram apropriadas para o transporte fluvial.
Parnarama está localizada a 533 km de distância da capital maranhense, em
termos populacionais, área, e densidade demográfica, o município apresenta
respectivamente, de acordo com os dados do IBGE / 2000, uma população de
32.469 habitantes, numa área de 3.487,1 km², o que equivale à densidade
demográfica de 9, 30 Hab / Km².
Parnarama, inicialmente, pertencia ao município de São José dos Matões,
cidade situada á cerca de 20 km de distância do rio Parnaíba. De acordo com Silva
(2005), pessoas influentes como o prefeito de São José dos Matões, na época
(1948), Lauro Barbosa Ribeiro, seu irmão Joel Barbosa Ribeiro (deputado estadual),
José Torres de Assunção, Bernadino “Nôga Silva, conseguiram através da lei nº
128 de 17 de setembro de 1948, a transferência da sede do município para ás
margens do rio Parnaíba. Conforme Silva (2005, p.29),
São José dos Matões não tinha a mínima estrutura para sediar um governo
municipal. A transferência iria trazer maior vantagem de mudança, ou seja,
mudaria os rumos da economia e das relações políticas, pois mais próximo
do Rio Parnaíba, poderia assim servir melhor ao desenvolvimento e gozar o
município de grandes facilidades.
Ainda de acordo com Silva (2005), “Parnarama: cidade projetada e
construída”, a transferência da sede do município se realizou em 10 de abril de
1949, para uma área de terra doada pelo Sr. José Torres de Assunção, com a
denominação de Parnarama, nome formado da língua Tupi – Guarani, que significa:
rio da região, ou rio regional, Parná = rio, Rama = região. Assim, Parnarama significa
terra do grande rio.
Os moradores de São José dos Matões conseguiram na Assembléia
Estadual, anos mais tarde, que fosse votada uma lei que dividiu o município
restaurando o nome do atual município de Matões.
Parnarama faz limites com os seguintes municípios:
19
Norte: Matões – MA
Sul: Lagoa do Mato e São Francisco – MA
Leste: Estado do Piauí
Oeste: Buriti Bravo, Fortuna, Senador Alexandre Costa e Caxias –MA.
A principal via de acesso ao assentamento Brejo de São Félix é feita pela BR
– 316, até a cidade de Caxias, quando se toma a MA - 034 de Caxias a Buriti Bravo,
estando a comunidade Brejo de São Félix situada na altura do km 74 .
O PA fica a 50 km da sede do município de Parnarama. Este assentamento é
resultado de um processo de desapropriação, concluído em 24 de março de 1995.
Possui uma área de 6.657,400 ha. De acordo com os critérios técnicos do INCRA /
MA, essa área teria capacidade para 266 famílias, mas existem atualmente, em
torno de 280 famílias.
A forma de ocupação privilegiada pela tese configura o que se tem
denominado como assentamento, termo que costuma ser utilizado de forma
genérica no que se refere à questão fundiária no Brasil, o que faz parecer que sua
utilização se dá como se fosse sinônimo de reforma agrária e, mais que isso, de um
único modelo de reforma agrária.
Busco analisar formas de ocupação da terra que são denominadas de
assentamentos rurais, na perspectiva de Leite et al (2004). O que tem determinado a
criação dos assentamentos, segundo o autor, são iniciativas múltiplas e variáveis
dos trabalhadores rurais e seus movimentos. Em muitos casos, formas diferentes
são combinadas, intencionalmente ou por força da dinâmica da luta. Em outros
momentos e lugares, uma determinada forma de luta pode atingir uma hegemonia
quase absoluta. Outras vezes, num mesmo local há mudanças bruscas das formas
de lutas acionadas ao longo do tempo.
Leite et al (2004) consideram problemático classificar de modo conciso as
formas de lutas existentes. Mesmo assim definem algumas categorias como:
ocupação
5
, ocupação paulatina
6
, resistência na terra
7
, mista
8
e outras
9
.
5
Refere-se às ocupações massivas e públicas da terra, que se tornaram freqüentes e consolidaram
sua denominação nos últimos 15 anos, a partir de um estímulo do MST – Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (em geral atribuída a ele), mas que no entanto se ampliaram para
outros movimentos de luta pela terra ou mesmo o movimento sindical, que em algumas regiões tem
uma presença mais importante que o MST.
6
São ocupações silenciosas, via de regra em pequenos grupos de posseiros que querem criar
benfeitorias e ter, dentro de certo tempo, seu direito de posse reconhecido. Nesses casos, os
conflitos eclodem apenas quando a ocupação é “descoberta”.
20
O P.A Brejo de São Félix, poderia ser classificado como uma situação de
“resistência na terra”, para conquistar o direito de nela permanecer. Tratou-se de
assentar famílias já viviam na área por várias gerações.
O impacto dos assentamentos, principalmente os que foram implantados nos
últimos 25 anos, como considera Leite et al (2004), já se faz sentir em termos
econômicos, sociais e políticos em certas regiões do país.
Conforme Leite (1997, p.168), os assentamentos
[...] não só geram empregos e, de alguma maneira, aumentam o nível das
famílias assentadas, com reflexos na economia municipal e regional, como
também transformam em maior ou menor medidas as relações de poder
local.
O estudo de Leite et al (2004, p.13) afirma que “[...] os assentamentos
constituem-se de fato, e apesar das dificuldades, em espaços produtivos e de
garantia da segurança alimentar e nutricional”. Isso ainda não pode ser observado
em todos os assentamentos, principalmente no Nordeste e, em particular, no
Maranhão. Depois de 11 anos de existência, no assentamento Brejo de São Félix os
moradores ainda reivindicam sistema de abastecimento d’água, eletrificação rural,
escolas, acesso à saúde, melhores estradas para escoar a produção, questões que
comprometem o principal meio de sustento das famílias: a agricultura. Desta forma,
torna-se evidente que não basta distribuir terra, alterando a estrutura fundiária. Com
a posse da terra, emerge uma série de questões que exigem a implementação de
uma política agrícola, que possa possibilitar uma melhor qualidade de vida aos
assentados.
O termo assentamento tem significações diversas. Andrade et al (1998),
afirmam que o termo assentado é utilizado como uma categoria oficial externa no
sentido de alocar, fixar, assentar em áreas previamente selecionadas, analisadas e
preparadas para tal, grupos previamente selecionados. Seria então uma “[...]
categoria produzida de fora, resultado da ação oficial, só teria existência, portanto,
7
Inclui todos os casos de luta de trabalhadores rurais (moradores, parceiros, arrendatários,
posseiros) para permanecer na terra onde trabalhavam e /ou moravam, contra a vontade do
proprietário ou pretenso proprietário.
8
Combinação de duas ou mais formas anteriores, sem que haja dominância muito nítida de uma
delas.
9
Abarca ações de trabalhadores e movimentos que nos pareceram não enquadrar nas categorias
anteriores, bem como os casos em que a iniciativa não pertenceu aos trabalhadores e seus
movimentos.
21
após atos jurídicos que permitissem aos órgãos oficiais administrar as áreas em
questão” (ANDRADE et al, 1998, p. 48).
Conforme esses autores, no caso dos chamados assentamentos do
Maranhão, nada indica ter se desenvolvido aqui qualquer ação planificada. Não
houve um momento em que o Estado, após identificar e preparar áreas tenha ali
alocado, fixado, assentado trabalhadores. Os chamados “assentamentos” são, em
sua maioria, resultado da ação dos próprios posseiros, pequenos arrendatários,
foreiros, que lutaram para permanecer na terra tendo, muitos deles, sido
assassinados em decorrência dessa luta.
Assim, apesar do termo assentado ter sido construído inicialmente como uma
categoria oficial (ANDRADE ett al, 1998), ao longo do tempo foi sendo apropriado
pelos trabalhadores rurais como categoria de identificação, assim como tem sido
resignificado pela academia.
Duas perspectivas teóricas e empíricas podem ser percebidas nos estudos
sobre assentamentos. Uma que enfatiza o assentamento como espaço de uma nova
organização social (MARTINS 2000; CARVALHO, 1999) e outra que destaca as
continuidades que se dão no âmbito da sociabilidade nos assentamentos (NEVES,
1997). O primeiro posicionamento remete especialmente para assentamentos
decorrentes de situações de ocupação (LEITE et al, 2004), marcadas por
deslocamentos físicos. O outro posicionamento constrói-se com base nas situações
empíricas de resistência na terra (LEITE et al, 2004), comuns no Maranhão.
Se o entendimento do termo assentar significa enraizar, fixar, Neves (1997)
chama a atenção para o seu oposto, o desenraizamento. Esta autora, analisando o
processo de mudança da posição social dos trabalhadores rurais assalariados de
uma usina, para a condição de assentados, via processo de desapropriação de
reforma agrária, afirma que, para se entender um processo de mudança social em
curso, é necessário ter por referência não só as descontinuidades, mas também, as
continuidades. Coloca, ainda, que tanto os mediadores da aplicação dessa Política
Pública como os assentados, exacerbaram socialmente a descontinuidade para
construir o suposto desenraizamento. “A incorporação e a recriação de novas
condições de vida vêm sendo estruturadas a partir da reelaboração ou da
reorganização das condições sociais vigentes no passado” (NEVES, 1997, p.21).
22
Conforme a autora, ainda é necessário compreender os termos em que este
desenraizamento e este reinraizamento foram politicamente construídos e não
esquecer de que o processo de “desenraizamento” não implicou deslocamento
físico, mas deslocamento social para a maioria dos assentados. O grupo de ex-
trabalhadores da usina passou a afirmar seus valores fundamentais pela referência
a uma realidade social “reinventada”, isto é, reelaborada. Especificamente neste
caso, os beneficiários do processo se deslocaram da condição de ex-trabalhadores
da usina (ou ex-morador) para a condição de assentado, posição que passa a ser
tutelada pelo Estado. Dessa forma, a análise deve libertar-se dos riscos da
exacerbação do peso de ações externas e da subtração da importância da dinâmica
interna de suas reelaborações e reapropriações.
No caso do Projeto de Assentamento Brejo de São Félix, ocorreu uma
situação semelhante. Não houve um deslocamento físico, ou seja, uma ruptura
brusca da condição de sem terra, por exemplo, para outra, (assentado), mas a
incorporação de “novas” relações sociais que passaram a ser mediadas pelo Estado,
a partir da condição de assentado da reforma agrária, construindo seus valores
tomando como referência uma situação social, reelaborada pela condição de
assentado.
Neves (1997) conceitua o processo de assentamento, como o conjunto de
ações pelas quais os indivíduos vão incorporando recursos materiais, sociais e
simbólicos, que possibilitem a aquisição da nova posição denominada de
assentamento.
Leite et al (2004), chamam a atenção para o fato de que a condição de “ser
assentado” requer uma determinada relação com o Estado, mediada pelas
experiências anteriores, implicando resultados aparentemente contraditórios. Essa
contradição se expressa através de:
Burocratização do processo de criação do assentamento;
Orientações rígidas dos técnicos e suas instituições/sem autonomia para os
assentados realizarem as próprias escolhas;
Unificação de práticas coletivas;
Disputas pelo controle de recursos e das demandas a serem implementadas.
Estes autores apresentam os assentamentos a partir de dois pontos de vista.
Primeiro, como ponto de chegada, ou seja, uma entre outras possibilidades de
23
mobilidade e integração social na qual se empenharam os diversos movimentos
sociais no processo de luta pela terra. O impacto proporcionado nos parece
importante pela possibilidade de transformação de um amplo setor de “excluídos”
em sujeitos políticos, novos atores em cena. Segundo, como ponto de partida, ou
seja, a situação a partir da qual o produtor beneficiário busca – já num patamar
diferenciado – implementar projetos tecno-produtivos, praticar uma nova
sociabilidade interna aos núcleos de reforma agrária e inserir-se num jogo de
disputas políticas visando a sua reprodução (sobretudo na sua relação com o
Estado).
Pereira (2004) analisa os assentamentos como um processo, ou melhor,
como um processo ritual resultante da reforma agrária. Considera assentamento
como um espaço territorial delimitado juridicamente pelo Estado, resultante, na
maioria dos casos, de desapropriação para fins de reforma agrária. Ao ser
assentado determinado número de famílias estabelece-se um novo espaço de
socialização e produção integrado ao conjunto da sociedade maior e, portanto, um
local onde, simbolicamente, são estabelecidas novas relações, uma nova linguagem,
espaço possível de criação de novos valores.
Nessa “nova fase”, a terra passa a ser o local de pertencimento da família,
onde terá continuidade seu patrimônio para as futuras gerações. Inicia-se então um
novo processo de estruturação da família na relação com a terra e de socialização
com o grupo de assentado.
Martins (2000, p.46), ao analisar os assentamentos resultantes de formas de
ocupação, considera-os como “[...] uma verdadeira reinvenção da sociedade” como
“[...] uma clara reação aos efeitos perversos do desenvolvimento excludente e da
própria modernidade”. Ainda segundo o autor, o processo de re-ssocialização
modernizadora nos acampamentos resulta que, nos assentamentos:
[...] a sociedade é literalmente reinventada, abrindo-se para concepções
mais largas de sociabilidade e, ao mesmo tempo, fortalecendo as
concepções ordenadoras da vida social provenientes de familismo antigo
(MARTINS, 2000, p. 47).
Martins refere-se aos assentamentos decorrentes de etapas de
acampamento, situação distinta dos processos que ocorrem no Maranhão e,
consequentemente, em Brejo de São Félix. No entanto, embora não vivenciando a
fase do acampamento, a luta com “resistência na terra”, como já apontou Neves
24
(1997), implica numa ressocialização dada pelas novas condições postas pela
condição de assentado. Nesse momento, conforme Martins (2000, p.47), há um “[...]
alargamento de horizontes e de convivência”.
Para Carvalho (1999), o temo assentamento expressa, no momento de sua
criação, um ponto de inflexão histórica entre dois processos políticos e sociais, e,
portanto, uma transição histórica mais complexa do que o mero ato administrativo de
sua criação formal. O assentamento encerra um determinado processo político-
social onde o monopólio da terra e o conflito social localizado pela posse da terra
são superados e inicia-se um outro: a constituição de uma nova organização
econômica, política, social e ambiental naquela área, com a posse da terra por um
contingente heterogêneo de famílias de trabalhadores rurais sem terra. Nesse
espaço físico, uma parcela do território rural, será formada uma nova organização
social.
Carvalho (1999) refere-se, como Martins (2000), aos processos de
assentamento decorrentes de ocupação. Nesses casos, aponta Carvalho (1999) a
transição do processo desapropriatório ao chamado assentamento das famílias de
trabalhadores rurais sem terra deveria implicar na construção da infraestrutura física
que contemple o parcelamento da terra (ou não, dependendo das circunstâncias), a
construção de estradas, a seleção dos locais para a edificação das casas, a
perfuração dos poços de captação de água, a eletrificação rural, a destinação de
áreas para o uso social comum e de trabalho, a liberação de créditos para produção,
a construção ou adaptação de obras físicas para a produção, como as cercas,
estábulos, paióis, currais, etc, e daquelas para o uso social como escolas, postos de
saúde, igrejas, áreas de lazer; a compra de animais, de implementos agrícolas, o
início do plantio, as criações. Porém, essa não é a realidade da maioria dos
assentamentos de reforma agrária no estado do Maranhão, que se constituem com
base na resistência na terra. No entanto, pode-se observar que em ambas as
situações a sociabilidade instaurada nos assentamentos é permeada pela
constituição de associações, cooperativas e pela mediação das instituições
governamentais e não governamentais que trabalham com a reforma agrária.
Essas relações poderão ser ora de consenso, ora de dissenso. Instalam-se,
criam-se e recriam-se disputas de poder, de prestígio pessoal, de idéias.
Estabelecem-se novas relações formais e informais com o poder público local, com
25
os movimentos sociais, os sindicatos dos trabalhadores rurais e o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Enfim, centenas de pessoas estão face a
face num determinado momento da história das suas vidas, e em determinado
espaço físico, necessitando fazer dele um espaço econômico, político, social e
ambiental onde possam reproduzir seus meios de vida e de trabalho (CARVALHO,
1999).
De qualquer forma, os assentamentos, sob gestão do Estado, passam a ser
alvo privilegiado de políticas públicas às quais os assentados não tinham acesso
anteriormente.
No diálogo que estabelecem com o Estado, os assentados, passam a se
deparar com um conjunto bastante amplo de instituições governamentais (INCRA,
prefeituras, secretarias de agricultura estaduais e municipais, bancos, organizações
de assistência técnica, IBAMA), ONGs (voltadas para o apoio e assessoria às
demandas dos trabalhadores, ou especializados na elaboração de projetos de
“desenvolvimento”), entidades vinculadas às igrejas, entidades locais ou regionais
de representação (movimento de luta pela terra, STTR, FETAEMA, CONTAG, MST,
associação de produtores, cooperativas, entidades patronais, entre outras).
Dessa forma, há uma multiplicidade de relações sociais em que a negociação
e a disputa são virtualidades presentes, em que trajetórias diferenciadas implicam
resultados diversos, impedindo qualquer procedimento apressado de generalização.
Concordo com Carvalho (1999, p.8) quando afirma existir:
[...] uma tendência por parte das burocracias estatais e até mesmo da
sociedade civil de ignorarem as diferenças, essa heterogeneidade social de
que é portadora a população dos assentamentos. Essa tendência a uma
visão homogeneizadora é sintetizada na expressão “o assentado”, uma
identidade social atribuída de fora para dentro, e na maior parte das vezes,
seja por alienação seja por conveniência, assumida pelos trabalhadores
rurais. Essa percepção que não identifica as diferenças, que rejeita
subconscientemente essa heterogeneidade, impede o estabelecimento de
interações sociais de reciprocidade, de compartilhamento, que estejam
abertas à construção de novas tipificações, entre os de fora e os de dentro
do assentamento, capazes de proporcionarem, num determinado plano
social, novas identidades sociais.
O autor ressalta, ainda, que a tendência é de se manter interações sociais de
estranhamento entre os de fora e os de dentro.
Assim, de acordo com Carvalho (1999), nos chamados assentamentos não
estão presentes os assentados, mas pessoas diferentes entre si, portadoras de
26
biografias diversas e de conhecimentos proporcionados pelo estilo de vida de cada
um na sua relação com o mundo, que influenciam suas vidas no assentamento.
São pessoas que, consoante Martins (1994, p.159):
Ao romperem, num contexto de conflito social, o curso de suas vidas
passadas, em grande parte determinadas pelas relações sociais de
produção nas quais estavam inseridas, desejam ser reconhecidas como
sujeitos de seu próprio destino e de um destino próprio, diferente se
necessário.
O denominado assentamento, enquanto espaço social em reconstrução, é o
local onde as pessoas, com diferentes histórias de vida, começam a atuar umas
sobre as outras. Essas diferentes personalidades interagem no cotidiano,
possibilitando novas tipificações recíprocas de ações habituais. A interação que
passa a ocorrer num “assentamento” realiza-se numa condição que, em princípio,
não foi institucionalmente definida por nenhum dos assentados. Posteriormente,
uma multiplicidade de planos sociais de interações deverá ocorrer, neles aflorando
estranhamentos e identificações.
Nesses espaços atuam, direta ou indiretamente, vários agentes, defendendo
os mais diferentes interesses, embora, se apresentem imediatamente identificados
com a “defesa de uma vida melhor para os assentados”, preocupados na viabilidade
dos assentamentos rurais como garantia de melhor desenvolvimento para o País.
Assim, longe de ser apenas questão de nomenclatura, os vários embates
conceituais decorrentes do termo assentamento têm como suporte conotações
político–ideológicas sobre as concepções de Reforma Agrária, sobre o direito à
propriedade da terra, a intervenção do Estado (especialmente o INCRA) e de outros
agentes, como o MST a Comissão Pastoral da Terra - CPT, o movimento sindical e
outros.
O assentamento que tomo como objeto de análise tem vivenciado essas
transformações, muito embora não tenha passado por um processo de
deslocamento físico dos moradores de uma área para outra, como acontece na
maioria dos assentamentos, principalmente na região sul e sudeste. Tem vivenciado
deslocamentos sociais que foram objeto privilegiado da investigação que subsidia
essa tese.
Assim, entendo, que mesmo que as condições sociais de vida dos atuais
assentados no P.A Brejo de São Félix estejam sendo profundamente alteradas num
27
período de tempo relativamente curto, tais transformações conforme Neves (1997, p.
23), “[...] não podem ser estudadas a partir de uma situação estática ou de um ponto
zero onde todos os deslocamentos se iniciaram”.
Além do mais, no assentamento Brejo de São Félix não houve uma
mobilização por parte de todos os trabalhadores que viviam na terra e nem a
iniciativa dos movimentos de representação dos trabalhadores rurais. Houve o que
Leite et al (2004), denominam “resistência na terra”. Inclusive, o proprietário não se
opôs à desapropriação, que atendeu, também, ao seu interesse.
Os assentamentos criados nas denominadas áreas de ocupação antiga do
Maranhão surgiram a partir desta luta secular, que é a resistência na terra. Almeida
e Mourão (1976) classificam o Estado do Maranhão em duas grandes áreas: de
ocupação antiga e de ocupação mais recente. Fazem essa classificação a partir dos
critérios propostos por Mário Leal em “Novo Zoneamento do Estado do Maranhão”
para definir uma relação de 20 municípios para as áreas de colonização mais
antiga
10
.
Essa divisão entre ocupação antiga
11
e recente
12
é marcada pela forma de
apropriação e uso da terra.
Mesmo que apresentando algumas variações locais, nas áreas de povoação
antiga, o grande proprietário volta-se, basicamente, para pecuária extensiva, tirando
o restante de sua renda do aforamento da terra ao agricultor familiar e da
comercialização do babaçu, coletado pela unidade familiar. Dessa forma, tem-se um
modelo de relação de produção:
[...] no qual o campesinato se encontra na situação de mão-de-obra
imobilizada pelo latifúndio, produzindo enquanto unidades familiares
submetidas ao aforamento e ao controle da comercialização, pelo grande
proprietário. (ALMEIDA E MOURÃO. 1976, p.10)
10
Na Baixada identificam Pinheiro, Santa Helena, Penalva, Viana, Vitória do Mearim, São Vicente de
Ferrer, Arari, Bequimão e Alcântara. No Litoral, Santa Rita; Chapadões: Colinas e São João dos
Patos. No Planalto: Balsas; Cerrado: Coroatá, Presidente Dutra, Caxias, Codó, Itapecuru Mirim, Brejo
e Chapadinha. E um total de 18 municípios localizados em áreas ocupadas recentemente, a partir da
expansão da frente agrícola, como: Cocais: Bacabal, Vitorino Freire, Lago do Junco, Olho D’ Água
das Cunhãs, D. Pedro, Gonçalves Dias, Governador Archer, São Domingos e Joselândia; Pré
Amazônia: Monção, Lago da Pedra, Pindaré-Mirim, Santa Luzia, Santa Inês, Turiaçu, Cândido
Mendes, Carutapera e Imperatriz.
11
Conforme Almeida e Mourão (1976), a região de povoamento antigo se distingue pela pecuária
extensiva, associada ao cultivo de alguns produtos comerciais, onde se realiza o pagamento de foro
em regime de parceria.
12
Ainda conforme estes autores, a região de povoamento recente foi ocupada espontaneamente, por
migrantes expropriados de suas terras e que praticavam uma agricultura itinerante.
28
Nessas áreas antigas predominavam as ocupações paulatinas (LEITE et al,
2004), que se caracterizam por não haver uma ação coordenada e orientada
politicamente, seja pelos movimentos ou pelo Estado. A iniciativa parte dos
trabalhadores que motivados pela necessidade de sobrevivência, buscam identificar
as áreas “livres” (com mata virgem, portanto, não trabalhada), e entram
individualmente, ou em pequenos grupos, delimitando as posses individuais e
iniciando o trabalho de derrubada e plantio. Em não havendo repressão, toda a
família se estabelece de imediato na área.
O apoio dos mediadores (STTR, Igreja, CPT) era buscado apenas quando
surgiam represálias como (ameaças, prisões, violências etc.).
1.1 Objetivos e Métodos
O objetivo da tese é a análise das relações sociais construídas no
assentamento Brejo de São Félix/MA. Busco contribuir com a discussão sobre as
formas de interação em assentamento de reforma agrária.
Os assentamentos rurais são considerados como expressão de uma política
pública que não representa apenas uma resposta imediata aos trabalhadores rurais,
nem uma resposta às exigências do capital, mas sim, a unidade contraditória destas
necessidades e exigências.
A análise de políticas públicas concretizadas num programa de governo nos
remete ao entendimento de Estado,
[...] como uma amálgama de interesses, constitutiva do bloco no poder, e
suas relações com os interesses dos setores subalternos, onde pode ser
detectada a possibilidade de o próprio aparelho de Estado
viabilizar/obstaculizar o encaminhamento da política de assentamentos.
(BARBOSA e LEITE, 1991, p. 40).
Portanto, esta ambigüidade internalizada no seio do Estado descarta uma
“[...] abordagem monolítica da sua atuação, resguardada através da manutenção de
uma autonomia relativa que assumem os interesses de frações de classe presentes
no bloco do poder” (BARBOSA E LEITE, 1991, p.59).
29
A reconstrução do espaço social das relações de produção vigentes nos
assentamentos não é aqui interpretada tendo em vista apenas os aspectos
econômicos. Estamos diante de um processo histórico complexo, no qual formas
alternativas de sobrevivência são buscadas, num movimento dialético que escapa às
análises baseadas na razão dualista que separa rural e urbano, natureza e cultura.
Ou seja, os assentados são protagonistas de um movimento que desafia esquemas
preestabelecidos.
Nesse sentido, na busca de noções conceituais que possam respaldar nosso
estudo, tomo como pressuposto metodológico que o conhecimento:
[...] não é um dado a priori, naturalmente dado, por assim dizer, que fale por
si e que exista espontaneamente. Nesse sentido, o primeiro obstáculo a ser
superado é a noção primeira da evidência do objeto de estudo, ou seja, o
conhecimento é uma resposta a uma questão, a uma pergunta
(BACHELARD, 1996).
Algumas categorias são acionadas no decorrer deste texto. Uma delas,
Agricultura familiar, não é uma categoria social recente nem a ela corresponde uma
categoria analítica nova na Sociologia Rural. A utilização, significado e a
abrangência, atribuída a esta categoria nos últimos anos, no Brasil, é que, conforme
Wanderley (1996), se colocou como novidade. Fala-se de uma agricultor familiar
como um novo personagem, diferente, portanto, do camponês tradicional, que teria
assumido sua condição de produtor moderno. Com esse fim, propõem-se políticas
para estimulá-lo, fundadas em tipologias que se baseiam em sua viabilidade
econômica e social diferenciada.
Considero que a concepção de agricultura tal como proposta por Wanderley
(1996) é um instrumento útil para pensar o assentamento Brejo de São Félix.
Wanderley (1996, p.01) propõe os seguintes eixos para nortear a compreensão da
categoria agricultura familiar.
a) - a agricultura familiar como um conceito genérico, incorporando uma
diversidade de situações específicas e particulares e o campesinato correspondendo
a uma destas formas, que se constitui enquanto um modo específico de produzir e
de viver em sociedade;
b) - a agricultura familiar adaptando-se a um contexto sócio-econômico
próprio das sociedades modernas, realizando modificações em sua forma de
30
produzir e em sua vida social tradicionais que não produzem uma ruptura total e
definitiva com as formas “anteriores”.
c) - as transformações do chamado agricultor familiar moderno, não
produzem uma ruptura total e definitiva com as formas “antetiores”, gestanto, antes,
um agricultor portador de uma tradição camponesa, que lhe permite, adaptar-se às
novas exigências da sociedade.
d) o campesinato brasileiro tem características particulares - em relação ao
conceito clássico de camponês - que são o resultado do enfrentamento de situações
próprias da História social brasileira e servem assim, de fundamento a este
“patrimônio sócio-cultural”.
Parto do princípio de que o conceito de agricultura familiar deve ser entendido
como aquele em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de
produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Wanderley (1996),
chama atenção para que este caráter familiar não seja um mero detalhe superficial e
descritivo, pois “[...] o fato de uma estrutura produtiva associar familia-produção-
trabalho tem consequências fundamentais para a forma como ela age econômica e
socialmente” (1996, p. 2).
Assim, a categoria agricultura familiar, é necessariamente ampla, pois parte
de uma combinação entre propriedade e trabalho que assume, no tempo e no
espaço, uma grande diversidade de formas sociais. A partir da relação acima
indicada, entendo que a agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das
formas sociais de agricultura familiar, pois ela se funda também na relação
propriedade, trabalho e família. Porém, tem particularidades que a especificam no
interior do conjunto maior da agricultura familiar e que dizem respeito aos objetivos
da atividade econômica, às experiências de sociabilidade e à forma de sua inserção
na sociedade global.
A associação entre família, produção e trabalho tem como objetivo que o
investimento em recursos materiais e de trabalho despendido na unidade de
produção, pela geração atual, possa vir a ser transmitido à geração seguinte,
garantindo a esta as condições de sua sobrevivência, confirmando a tese de
Wanderley (1996), de que no interior da família camponesa, há um projeto para o
futuro. Assim, conforme a autora:
[...] as estratégias da família em relação à constituição do patrimônio
fundiário, à alocação dos seus diversos membros no interior do
31
estabelecimento ou fora dele, a intensidade do trabalho, as associações
informais entre parentes e vizinhos, etc, são fortemente orientadas por este
objetivo a médio ou longo prazo, da sucessão entre gerações. Combinando
os recursos que dispõe na unidade de produção com aqueles a que pode
ter acesso fora do estabelecimento - em geral, atividades complementares,
temporárias e intermitentes - a família define estratégias que visam, ao
mesmo tempo, assegurar sua sobrevivência imediata e garantir a
reprodução das gerações subsequentes (WANDERLEY, 1996, p. 3).
Com vistas a enfrentar o presente e preparar o futuro, o agricultor recorre ao
passado, que lhe permite construir um saber tradicional, transmissível aos filhos e
justificar as decisões referentes à alocação dos recursos, especialmente do trabalho
familiar, bem como a maneira como deverá modificar-se, no tempo, o consumo da
família. O campesinato tem, pois, uma cultura própria, que se refere a uma tradição,
inspiradora, entre outras, pelas regras de parentesco, de herança e das formas de
vida local etc.
Entretanto, mesmo nas sociedades rurais tradicionais, a autonomia é sempre
relativa. A necessidade de reservar parte de seus recursos para as trocas com o
conjunto da sociedade, e para atender a suas imposições terminam por introduzir no
interior do próprio modo de funcionamento do campesinato, certos elementos que
lhe são, originalmente, externos.
O sistema de policultura-pequena criação é concebido como um todo,
estruturado de forma a garantir a subsistência dos trabalhadores rurais. Porém,
conforme Wanderley (1996, p.5),
[...] ele não elimina a fragilidade da agricultura camponesa, nem impede a
emergência das situações de miséria e de grandes crises: seus resultados
dependem de causas aleatórias, de origem natural - os efeitos das
intempéries - ou das implicações das relações político-sociais dominantes,
especialmente a extração da renda da terra.
De acordo com a perspectiva adotada pela autora, a agricultura familiar não
se identifica simplesmente a uma agricultura de subsistência, mas esta última seria
uma forma particular da agricultura familiar. “Há situações em que, por razões
históricas e sociais diferentes, agricultores podem organizar sua produção, visando a
sobrevivência imediata, sem vincular suas estratégias produtivas ao projeto do
futuro da família” (WANDERLEY, 1996, p. 5).
Outra categoria utilizada nesta tese é trabalhador rural. Optei por utilizar esta
categoria ao invés de camponês, por entender que este último é um termo importado
e que não se adequa a nossa realidade. As palavras camponês e campesinato são
32
recentes no vocabulário brasileiro. Conforme Martins (1981), foram as “[...]
esquerdas que introduziram em definitivo estes vocábulos procurando dar conta das
lutas dos trabalhadores do campo que irromperam em vários pontos do país nos
anos 50” (1981, p. 21).
Porém, eram mais que meras palavras. Traziam consigo toda uma visão da
natureza das relações sociais no campo e do papel político que estava reservado ao
campesinato naquela etapa da revolução “democrática-burguesa”. Tendo como
referência o processo ocorrido em alguns países da Europa, ao “campesinato”
brasileiro parecia estar reservado o destino histórico de, em aliança com outras
forças progressistas da sociedade, destruir o latifúndio improdutivo que representava
um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo, caminho necessário para chegar à
“etapa socialista”.
Esta era a concepção dominante no Partido Comunista. A categoria
campesinato foi usada também, pela Igreja Católica, que através de documentos
eclesiais, que nos anos de 1950, se manifestou publicamente sobre a questão
agrária. A categoria campesinato chegou por outro lado, a ser usada por
proprietários de terra e empresários que, devido a sua posição e interesses de
classe, se opunham às reivindicações expressas pelos trabalhadores. Ou seja, a
partir de determinado momento, a designação passou a ser usada indistintamente
pelos mais diversos personagens que influíram, ou tentaram influir, no campo
político, transpondo os limites restritos do debate acadêmico e da concepção do
Partido Comunista.
Desta maneira, ainda que importados e resultantes de uma transposição
mecânica de conceitos relativos a outras realidades sociais, os termos camponês e
campesinato ganharam existência social através da circulação de idéias políticas e,
sobretudo, através das associações de trabalhadores agrícolas que se organizaram
no Nordeste.
Tornando-se parte integrante do vocabulário político, o termo camponês
favoreceu um processo de unificação política em nível estadual, regional e nacional.
O termo camponês – enfeixando termos de circulação restrita (morador, colono,
matuto, cabloco, lavrador, etc.) – passou a fazer parte do cenário político nacional e,
particularmente no Nordeste, foi apropriado para nomear e distinguir os
trabalhadores rurais engajados na luta política.
33
Por outro lado, o termo trabalhador rural passa a ser utilizado nos anos de
1970, quando o governo, através do FUNRURAL (Fundo de Assistência e
Previdência do Trabalhador Rural), delegou aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais
/STR’s a função de administrar, através de convênios, a previdência social no
campo.
Ao preservar o sindicalismo rural, mesmo buscando direcioná-lo para o
assistencialismo, o governo, querendo ou não, preservou também a possibilidade de
reordenação das relações de poder no campo. E, ao preservar os sindicatos, as
Federações estaduais e a Confederação Nacional, preservou, também, a
possibilidade de construção, entre os associados, de uma identidade a ser
nacionalmente costurada: a de trabalhador rural. O sindicalismo no campo passa,
então, a ser conhecido como movimento sindical dos trabalhadores rurais.
Inspirada na “teoria da ação” proposta por Feldman-Bianco (1987), que
enfatiza a observação do comportamento concreto e a análise de representações
fundadas em indagações verbais que têm como objetivo reconstruir “visões de
mundo”, conduzi a pesquisa fazendo uso da observação do comportamento
concreto dos assentados associada aos diálogos que com eles estabelecia.
Assim, combinei dados provenientes da observação e da indagação, a partir
de seqüências de eventos que focalizam, de acordo com Feldman-Bianco (1987. p,
11), “[...] gente, tempo e lugar”. Realizei análises que levam conjuntamente em
consideração ação e representação, num contexto de circunstâncias específicas que
se desenvolvem através do tempo.
Privilegiei a observação das ações, interações e estratégias dos assentados
em contextos específicos. A observação direta e uma vivência mais prolongada com
os assentados possibilitou a compreensão de seus costumes, valores e normas
sociais.
Procurei realizar a abordagem metodológica sugerida por Vincent (Apud
Feldman-Bianco, 1987), que combina dados antropológicos e material histórico. O
autor enfatiza a necessidade de se combinar a observação intensiva (baseada na
análise da interação de um agregado de indivíduos de um lugar específico, no
delineamento das relações estruturais e na explanação de eventos) com a análise
de campos de atividade e o emprego rigoroso de material histórico.
34
Vincent (Apud Feldman-Bianco 1987, p.35) propõe a análise de uma unidade
analítica que não é somente composta por indivíduos e suas estratégias (conforme
sugerido pelos teóricos da ação), mas também “[...] de homens em movimento e de
ações e empreendimentos que são dependentes para o seu sucesso de operações
atravessando o espaço e consideráveis períodos de tempo”.
De acordo com Vincent (Apud FELDMAN-BIANCO, 1987, p.36):
[...] uma investigação que se inicia com a observação de um número restrito
de indivíduos de uma pequena unidade espacial arbitrariamente delimitada,
mas que se centraliza no movimento de indivíduos [...] e nas relações que
se estabelecem em função de sua interdependência econômica, permite
estruturar padrões de carreira individual, que se entremeiam dentro e fora
da vida rural, local e regional, para dentro das periferias e bairros urbanos.
Paradoxalmente, este focus em indivíduos, e não nas relações entre
homem e terra que é tão familiar na literatura, incita a um exame mais
detido da essência supostamente estável dessas relações, permitindo-nos
perceber mudanças e avaliar a ilusória aparência da estabilidade estrutural,
enquanto o conteúdo está em fluxo.
Este tipo de investigação, conforme Geertz (Apud FELDMAN-BIANCO, 1987,
p.36), fornece o instrumental para realizar, “[...] interpretações mais amplas [...] a
partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos”,
que ocorrem através do tempo e do espaço. Resgata-se o caráter microscópico da
antropologia e a sua especialidade peculiar em estudar os “interstícios sociais”, a
partir de um enfoque que integra a história e dados documentais à análise de
processos sociais. Este enfoque, de acordo com Feldman-Bianco (1987, p.36), torna
a análise antropológica mais próxima da vida das pessoas e, ao mesmo tempo, abre
novas perspectivas para estudos que pretendam trazer à tona as complexidades
sociais, como também, contribui para “[...] desvendar costumes e culturas
aparentemente exóticas, bem como para problematizar o que poderia ser à primeira
vista familiar e passível de simples explanações”.
Ao se pretender dar ênfase na ação – não na representação – esta
perspectiva metodológica pode oferecer pistas para se investigar os sistemas
simbólicos como parte constituinte da análise de processos sociais. Pois como
afirma Geertz (Apud FELDMAN-BIANCO,1987, p.38),
[...] deve se atentar para o comportamento e com exatidão, pois é através
do fluxo do comportamento – ou mais precisamente da ação social – que as
formas culturais encontram articulação [....]. Quaisquer que sejam, ou onde
quer que estejam esses sistemas de símbolos “em seus próprios termos”,
35
ganhamos acesso empírico a eles inspecionando os acontecimentos e não
arrumando entidades abstratas em padrões unificados.
Ao se estudar o desenvolvimento das relações sociais sob situação de conflito
e diversidade, é importante analisar as representações vistas num processo
dinâmico, expressas no cotidiano, assim como o processo de criação de novos
grupos e relações.
A categorização estabelecidos e outsiders desenvolvida por Elias e Scotson
(2000) foi fundamental para compreender as diferentes posições que os moradores /
assentados ocupam em seus espaços sociais. A divisão proposta por Elias e
Scotson (2000) entre “nós” e “eles”, permitiu a percepção das formas pelas quais um
morador se percebe num dado grupo e exclui a presença de outro.
Busquei, especificamente, investigar os comportamentos que se encontram
nos denominados interstícios das relações estabelecidas nos assentamentos rurais.
Dessa forma são privilegiadas as relações concretas entre os atores, procurando
perceber os conflitos, assim como as alianças presentes no jogo de relação entre os
grupos.
O que me interessa é compreender como as categorias são construídas,
como são definidos os espaços territoriais, que argumentos são utilizados, quem são
os atores e como se representam. Busquei também, compreender os elementos que
consubstanciam o processo de luta pela terra, inspirada em Swartz, Turner &Tuden,
(Apud COELHO, 2002, p.46), quando sugerem que:
[...] sendo a política a compreensão de certos tipos de processos é
essencial neles centrar a atenção mais do que nos grupos ou campos nos
quais eles ocorrem. O estudo do político deveria seguir o desenvolvimento
dos conflitos pelo poder, mais do que examinar tais grupos como linhagens,
vilas ou países, para, só posteriormente determinar que processos eles
podem conter. No processo, cada unidade deve ser considerada quanto a
seus objetivos independentes, sem perder de vista a situação como um
todo, na qual as ações interdependentes ocorrem.
Afirmam, ainda, que para compreender o comportamento político, é
necessário conhecer como as unidades políticas se relacionam e afirmam-se com
relação aos objetivos que geram ou confrontam.
O fundamental, conforme Coelho (2002, p.47), é perceber que:
[...] os fenômenos políticos são móveis, estabelecidos empiricamente em
cada caso, e não dado por atributos essenciais. È importante perceber o
36
significado da compreensão das estruturas dos grupos envolvidos nas
atividades políticas, assim como as posições estruturais dos atores
principais.
O estudo do político é o estudo dos processos que constituem a determinação
e implementação dos objetivos políticos e o acesso e uso diferenciado de poder
pelos membros do grupo relacionado a esses objetivos. A análise se realiza nos
processos. Os grupos dentro dos quais esses processos ocorrem são importantes
porque constituem o campo da atividade política, mas esta atividade desloca-se
transcendendo às fronteiras do grupo. O campo político contrai-se e expande-se. O
estudo do político segue o desenvolvimento do conflito de poder.
No caso da minha investigação, a unidade espacial não é um assentamento isolado,
mas um campo político, definido por Swart, Turner & Tuden (Apud COELHO,2002,
p.47) como continuum espaço temporal. O que denominam campo político não é
necessariamente um sistema fechado e integrado, mas um continuum espaço-
temporal, com algumas características sistemáticas. As partes desta unidade, em
condições específicas, podem apresentar variados tipos e graus de
interdependência, institucionalizada e acidental.
A sociabilidade construída nos assentamentos transcende as relações entre
os assentados, envolvendo os agentes externos, na forma de gestores de órgãos
públicos, funcionários de ONG, membros do MST, movimento sindical, instituições
religiosas, etc.
A unidade de tempo não se refere a um tempo estrutural, mas a um tempo
histórico. O campo político, de acordo com Swart, Turner &Tuden (Apud COELHO,
2002), é um campo de tensão, composto por antagonistas inteligentes,
individualmente e coorporados, motivados pela ambição, pelo altruísmo, auto-
interesse, pelo interesse em bens públicos, que em várias situações ligam-se a
outros por auto-interesse ou idealismo - e separam-se ou opõem-se pelos mesmos
motivos.
Os recursos utilizados para compreensão das relações de sociabilidade
(VELHO, 2001) exigiram-me uma presença regular no assentamento, vivenciando
uma relação com os assentados. Observava suas atividades de trabalho nas roças,
nos quintais e nos projetos produtivos, (avicultura). Acompanhava atividades de
lazer (festa do lavrador, baiões), religiosas (rezar o terço nas casas), reuniões e
37
demais atividades coletivas (chamada do mutirão para a limpeza do pátio e do
cemitério) e, principalmente, observava como o grupo se relacionava com o espaço
público e privado através dos conflitos e também das relações de poder e de
produção de bens. “Espaços” compreendidos como produto da ação humana.
Numa ocasião em que me encontrava no assentamento, fui convidada a
participar da festa do lavrador
13
em Brejo de São Félix. A seguir veio o convite para
dançar um Baião na comunidade de Canafístula e vários almoços na casa de Nega
e Deusa, quando passávamos a tarde conversando sobre as histórias do
Assentamento. Nega e Deusa são filhas do Sr José Batista, um dos primeiros
moradores da comunidade de Baixão Grande. A primeira é uma liderança
comunitária, já foi presidente da associação da comunidade de Baixão Grande. A
segunda foi delegada sindical e atualmente é Agente de Saúde e professora na
comunidade de Baixão Grande. Ambas participaram ativamente do processo de
desapropriação da área.
Passei manhãs e tardes inteiras conversando sobre as relações no
assentamento, enquanto saboreava um café com beiju feito na hora, sucos,
biscoitos, bolos ou provava favos de mel fresco. Ou ainda, enquanto caminhávamos
pelas roças, quintais, onde os assentados e assentadas me mostravam com orgulho
a produção, as plantações, os pequenos animais; ou às vezes reclamavam do
inverno fraco como o de 2006, lamentando a perda da produção que se antecipava,
e a falta de apoio do governo para a compra de novas sementes para o replantio.
Muitos plantaram cedo e a falta de chuvas havia prejudicado a roça.
Acompanhei a implantação dos projetos do Programa de Fortalecimento da
Agricultura Familiar / PRONAF
14
(avicultura) das comunidades de Brejo de São Félix
e de Canafístula, e um pouco da discussão da implantação do projeto de
bovinocultura da comunidade de Baixão Grande, ainda em andamento.
Participei por dois anos seguidos da “Festa do lavrador” da comunidade de
Brejo de São Félix. No primeiro ano apenas observei, já no segundo ano, consegui
adentrar a cozinha e ajudei a cortar os bolos junto com a criançada para serem
servidos no dia seguinte, no café da manhã. Também, fui “puchada” para roda na
dança do lili, quase no fim da festa.
13
Esta festa será analisada na última parte deste trabalho.
14
Este Programa será denominado a partir de agora de PRONAF.
38
Coincidentemente, presenciei dois casamentos na comunidade de
Canafistula, um no ano de 2006 e outro em 2007. O primeiro de uma jovem que já
tinha uma experiência amorosa anterior e estava se casando pela segunda vez com
um jovem de outro assentamento próximo. O segundo de um jovem casal, da
própria comunidade, ela com treze e ele com 14 anos
15
. Soube mais tarde que o
rapaz tinha “carregado“
16
a futura esposa para uma casa abandonada, na entrada da
comunidade, tendo em vista, que as duas famílias moravam “porta com porta”.
Segredos como estes foram contados, algumas vezes com meu estimulo,
outras de forma espontânea. Em ocasiões como essas, “descomprometidas” e
“desinteressadas” sentados esperando o almoço a sombras das mangueiras, foram
relatadas estórias do cotidiano da comunidade: o relacionamento dos jovens, que
começam a vida sexual muito cedo, a baixa expectativa com o trabalho na roça, as
dificuldades com a escola; as dificuldades enfrentadas na época que a terra era “de
dono”, etc.
Portanto, foi em encontros como este que passei a conhecer as histórias, as
especificidades, os moradores, a cultura, os problemas, as relações estabelecidas
com o INCRA, com a prefeitura, com o Sindicato, com o filho do antigo proprietário,
que continua na área, com a CPT- Comissão Pastoral da Terra de Caxias, assim
como as relações das comunidades entre si.
O recorte temporal do trabalho de campo cobre os anos de 2005 a 2007.
Registrei relatos orais das principais lideranças da área, de funcionários do INCRA,
e membros da CPT e do STTR de Matões. Consultei documentos, como os
denominados Planos de Desenvolvimento Simplificado/PDS, documentos
relacionados ao processo de desapropriação da área, atas de reuniões, livros caixa,
correspondências, ofícios das associações, etc,
Foram realizadas entrevistas com pessoas consideradas chaves para a
compreensão dos processos. Assim, entrevistei pessoas das três
associações/comunidades do assentamento Brejo de São Félix, agentes
comunitários de saúde das três comunidades que moram no assentamento. A
técnica da entrevista gravada seguiu o padrão “semi-orientada”, conforme
15
Fui convidada, na condição de coordenadora da equipe de ATES, que estava visitando a
comunidade, para recepcionar os noivos que estavam chegando de Matões, onde foram oficializar o
casamento,
16
Carregar é tirar a jovem da casa dos pais, na cultura local na maioria das vezes significa ter que
casar.
39
sistematização feita por Pereira de Queiroz (1991), em que o pesquisado fala mais
que o pesquisador, porém este domina indiretamente e orienta o diálogo. Utilizei
também a técnica da entrevista livre.
Como o meu interesse era enfocar os fatos marcantes do processo de luta
pela terra, os conflitos vivenciados, os problemas e possibilidades de vida no
assentamento – a coleta de “depoimento pessoal” foi técnica utilizada. Durante a
realização das entrevistas, as intervenções ocorreram para solicitar esclarecimento
de algumas passagens e para recolocar o fio condutor de análise.
2. REFORMA AGRÁRIA: solução para a questão agrária ou (en)cenação de
reforma agrária?
A questão agrária no Brasil passa a ser tema nacional quando se inicia o
processo de desenvolvimento capitalista no campo, e passam a ser exigido, por
exemplo, padrões qualitativos e quantitativos de abastecimento interno.
40
Porém, concordo com Alentejano (2002), quando este afirma que o poder
público no Brasil não tem e nunca teve uma política de reforma agrária de
abrangência nacional que alterasse significativamente a estrutura fundiária do país.
Tem se realizado no Brasil, principalmente nas três últimas décadas, uma política
compensatória de assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra, ou seja, ações
que são significativas do ponto de vista do acesso á terra, mas que são pontuais,
realizadas em área de conflitos, a partir da organização dos movimentos sociais do
campo e, portanto, não podem ser confundidas com reforma agrária.
Entendo que a luta pela terra é uma luta por um lugar de trabalho, de
moradia, de vida. Neste sentido, a democratização do acesso à propriedade da terra
– mais do que uma simples política compensatória de assentamentos rurais e de
combate á pobreza rural, deve representar a possibilidade da construção de
identidades e cidadania no meio rural. Porém não foi o que se viu nas ultimas
décadas.
Em geral, é consensual entre os autores que a questão agrária no Brasil
passou pelas seguintes fases:
1) Surgimento da questão agrária, 1930-1945, condicionado pelas
transformações internacionais do capitalismo, marcado pelos projetos de
colonização;
2) A questão agrária como óbice ao desenvolvimento, 1945-1964/65, marcada
pela chamada “substituição de importações”, que criou ilhas de desenvolvimento;
3) A denominada modernização autoritária, 1966-1990, marcada pela
despolitização do campo, que introduz padrões técnicos de produção e
produtividade.
Havia, ainda, a concepção defendida por autores ligados, principalmente, ao
Partido Comunista, de que os trabalhadores rurais, no Brasil, estavam formando um
verdadeiro proletariado na década de 1970, com uma proposição leninista
(transformar os trabalhadores rurais em operários industriais). Essa tese de
transformar os trabalhadores rurais em operários, não se confirmou, haja vista, na
década seguinte, a grande demanda de terra, os trabalhadores rurais sem-terra
reivindicando a reforma agrária.
Na década de 1980, surgiu o MST como movimento aglutinador das forças
em defesa da reforma agrária no Brasil. Stédile (1999, p.160) propunha:
41
Considerar que o Brasil enfrenta um grave problema agrário que é a
concentração da propriedade da terra e que, portanto, para resolver esse
problema, é necessário realizar um amplo programa de desapropriação de
terra, de forma rápida, regionalizada, e distribuí-la a todas as famílias sem
– terra, que são 4,5 milhões em todo o Brasil.
De acordo com esse autor, a reforma agrária do MST seria mais ampla
porque pretende eliminar a pobreza e as desigualdades sociais.
A reforma agrária, historicamente, foi apresentada por diversos autores e
movimentos sociais como um meio de mudança na estrutura agrária em larga
escala, para permitir que os trabalhadores sem-terra, pequenos proprietários,
meeiros e outros tivessem acesso a terra, a insumos, mercados, créditos e à
assistência técnica, o que causaria impactos no âmbito político, econômico e técnico
produtivo.
O conceito de reforma agrária, definido pelo Estatuto da Terra
17
, é “[...] o
conjunto de medidas que visam a promover a melhor distribuição da terra, mediante
modificações no regime da sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de
justiça social e ao aumento da produtividade”. No artigo 16 da mesma lei (4.504) é
apresentado o seu objetivo:
A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o
homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça
social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento
econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio
(BRASIL,1964).
Pereira (2004), analisando a interpretação da reforma agrária realizada nos
anos de 1980 e 1990, por autores que trataram dessa temática no Brasil, apresenta
a concepção proposta por Moacir Palmeira e Sérgio Leite Lopes dentro do contexto
das transformações do campo. Esses autores distinguem dois movimentos
relativamente autônomos e contraditórios. Conforme Pereira (2004, p.215), por um
lado,
[...] a manifestação de conflitos não se resume apenas à terra, mas adquire
amplitude (como obras públicas, meio ambiente, saúde, educação, etc), ao
se quebrarem as formas tradicionais de dominação e ao se estabelecer um
continuum rural/urbano; por outro, criou-se uma coalizão de interesses em
torno do negócio com a terra, assegurada pela política de modernização do
17
O Estatuto da Terra foi aprovado em novembro de 1964, oito meses após o golpe militar, criou as
condições institucionais que possibilitavam a desapropriação por interesse social. No entanto, no
rearranjo de forças políticas que se seguiu ao golpe, a possibilidade de uma reforma agrária tal qual
preconiza o Estatuto foi posta de lado, em favor de um modelo fundado no apoio à modernização
tecnológica (MEDEIROS, 2003).
42
Estado, que provocou aumento significativo do peso político dos
proprietários de terra, tanto os modernos quanto os tradicionais.
A tendência predominante no debate acadêmico e estatal em torno da
reforma agrária brasileira, nos anos 1980 e 1990 era o seu caráter social. A reforma
agrária era analisada como uma demanda socialmente imposta que não podia ser
ignorada.
Silva (1988) concebia que a reforma agrária no Brasil dos anos 1990 devia
incorporar sua dimensão social, tendo como público-alvo o “lupensnsinato”, que não
encontrava ocupação no setor urbano.
No final do século XX a nossa reforma agrária não precisa mais ter um
caráter estritamente agrícola, dado que os problemas fundamentais da
produção e dos preços podem ser resolvidos pelos nossos complexos
agroindustriais. É preciso hoje uma reforma agrária para ajudar a
equacionar a questão do nosso excedente populacional, até que se
complete a nossa “transição democrática“ recém-iniciada. (...) Por que não
um assentamento que, além de arroz e feijão, produzisse também casas
populares? (...) Ou guardas ecológicos (...). Ou de caseiros de “chácaras
de recreio” com acesso às terras garantido por regime de comodato?
(SILVA, 1998, p.84).
Para Martins (1979), a questão agrária é uma questão essencialmente
política, em qualquer país, sendo uma característica do mundo contemporâneo.
Para esse autor, “[...] a nossa modernização tem um estilo próprio: ocorre
intensamente na área econômica, inclusive no campo, sem significativas
repercussões no âmbito social e, sobretudo, político” (MARTINS, 1979, p.21). Por
essa razão, considera que a reforma agrária, aparentemente, é irrelevante para o
funcionamento do sistema econômico, porque não mais o obstrui, como obstruía em
1964.
Dessa forma, a reforma agrária torna-se um problema social como outro
qualquer, como por exemplo, o problema da pobreza. O autor critica ainda a posição
de muitas políticas e de técnicos e intelectuais, por não compreenderem os
significados da reforma agrária.
[...] há quem fale numa espécie de auxílio estatal à pobreza que
dispensaria a reforma agrária, custosa, e asseguraria a sobrevivência dos
pobres em condições mínimas sem necessidade de pagar o custo de
grandes transformações econômicas e sociais, como a reforma agrária
(MARTINS, 2000, p.91).
Este é o ponto de vista de Graziano Neto (1996), que já foi presidente do
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária:
43
[...] nada comprova que dar um pedaço de terra para essas famílias
marginalizadas seja a única, nem a melhor solução, do ponto de vista do
interesse público. Talvez um bom emprego seja preferível ao
assentamento. Ou então, tratá-las como mecanismo de política social,
assistindo-as devidamente, garantindo-lhes alimentação e saúde
(GRAZIANO NETO, 1996, p.19).
Ou seja, é enfatizada por este autor, apenas a dimensão social da reforma
agrária, como uma política compensatória de combate á pobreza rural.
Em contrapartida, Martins (2000), considera que Graziano Neto esquece,
[...] como é comum entre os que se preocupam com a questão social do
campo de um ponto de vista meramente econômico, que a luta pela terra,
da qual deriva a luta pela reforma agrária, é também uma luta pela
inclusão, pela inserção social ativa, produtiva, participante e criativa, na
sociedade; é luta por dignidade e respeito e não por aquilo que na
consciência popular é tido como esmola (2000, p.92).
Para Martins (1979, p. 45), “[...] mesmo que a reforma agrária não aumente a
produtividade agrícola, deve ser feita, porque ela resolve uma questão social e não
uma questão econômica”. Porém, adverte:
[...] que se evite esse território gelatinoso do conflito de opiniões e dos
antagonismos partidários e, freqüentemente, eleitorais, para considerar o
tema tendo como referência não o governo e menos ainda o governante ou
o ministro, mas o Estado. [...] O tempo da questão agrária é o tempo longo
dos bloqueios, dificuldades e possibilidades que o Estado faça uma revisão
agrária de alcance histórico e estrutural, mais contida ou mais ousada.
(MARTINS, 2000, p.92).
Concordo com Martins (2000), no sentido de que a questão agrária é,
também, uma questão estrutural maior que transcende as questões econômicas, a
questão da pobreza e a questão das injustiças sociais.
De outro modo, há autores que consideram a reforma agrária como uma
saída para a geração de emprego, renda e produção, preconizando a transformação
da pequena produção mercantil simples em pequena produção capitalizada, como
Abromovay (1992).
Há, ainda, autores que ressaltam a importância econômica da reforma agrária
ao levar em conta esses aspectos. Outros buscam no padrão tecnológico e mesmo
no ecológico, a justificativa econômica, como é o caso do estudo de Romeiro (1994),
segundo o qual uma estrutura menos concentrada abre possibilidades para o
desenvolvimento de modernas técnicas agrícolas de alto rendimento que melhoram
e conservam, em longo prazo, o ecossistema agrícola.
44
2.1 A política agrária e o regime militar.
Nesta parte do trabalho, busco analisar o período em que aconteceram as
transformações decorrentes da implementação de uma política agrária pelos
governos militares, entre 1965 e 1985. Com referência a esse contexto, enfatizo a
questão da propriedade da terra e dos conflitos fundiários.
A propriedade da terra é para Martins (1995, p.169), concebida como uma
relação social, tendo em vista que no capitalismo ela significa, “[...] um processo que
envolve trocas, mediações, contradições, articulações, conflitos, movimento,
transformação”. A apropriação da propriedade, seu controle e, particularmente, sua
concentração por uma determinada classe, pode e quase sempre significa o domínio
político-econômico de um determinado lugar, região, e de pessoas.
Entretanto, esta não é a única forma de reprodução ampliada do capital. As
relações de parceria, arrendamento, não pagamento dos dias de serviço trabalhado
complementam a reprodução do capital. O trabalho escravo por dívida se constitui
numa reprodução contemporânea do capital, mostrando como o capitalista pode
subordinar as relações de produção no campo.
O problema da terra no Brasil não passa simplesmente pela distribuição de
terra. O que o Estado tem procurado evitar, ao desarticular e destruir as formas de
organização dos trabalhadores rurais, conforme Martins (1986, p.61) “[...] é que o
problema da terra constitua mediações políticas que envolvam necessariamente
uma redefinição do pacto político que sustenta o Estado”.
A partir do Golpe de Estado de março de 1964, foi desencadeado um
processo de desarticulação do movimento organizado dos camponeses
18
, processo
feito através da repressão oficial, da intervenção nos sindicatos e da violência
privada dos latifundiários.
No Maranhão, a repressão atingiu a então recém-fundada Federação dos
Trabalhadores Rurais do Maranhão (criada em fevereiro de 1964, sucessora da
Associação dos Trabalhadores Agrícolas do Maranhão/ATAM), que teve seus
18
Na minha dissertação de Mestrado tratei do processo organizativo dos trabalhadores rurais no
Maranhão (MIRANDA, 2003).
45
principais líderes presos e foi fechada, assim como inúmeros sindicatos. (ALMEIDA,
1981)
19
.
Com o regime militar impuseram ao movimento sindical rural duas
modificações: a primeira foi o estabelecimento do "Sindicato Único de Base
Municipal que passou a congregar os assalariados e os pequenos produtores
(rendeiros, parceiros, posseiros e pequenos proprietários)", com uma denominação
uniformizada nacionalmente, de "Sindicato de Trabalhadores Rurais/STR”. A
segunda modificação foi a criação, em 1971, do Programa de Assistência ao
Trabalhador Rural (PRORURAL, mais conhecido como FUNRURAL, que
representou a extensão da legislação trabalhista, dos trabalhadores urbanos aos
trabalhadores rurais). A forma assistencialista e clientelista passou a ser a
característica da maioria dos sindicatos dos trabalhadores rurais. O assistencialismo
perdura, em muitos sindicatos, até hoje, transformando-os em balcões para a busca
de serviços de aposentadoria, pensões, auxílio-funeral, serviços de saúde e outros.
A CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, por
exemplo, utiliza este instrumento como estratégia para expandir o movimento
sindical no campo. Os sindicatos assistencialistas constituem-se sua principal base
de sustentação. No Maranhão, a CONTAG se faz presente a partir de 1967, através
de uma delegacia encarregada do trabalho de reconhecimento dos sindicatos pelo
Ministério do Trabalho. Esta delegacia, no entanto, deixou de funcionar em 1972,
quando foi criada a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do
Maranhão (FETAEMA), a partir dos doze sindicatos então existentes no estado
(ALMEIDA, 1981, p. 66).
A política implementada pelos militares teve dois objetivos: primeiro, isolar o
poder dos coronéis latifundiários e, segundo, conforme visto no item anterior, impedir
o crescimento da luta dos trabalhadores rurais, que iniciavam todo um processo de
organização, sobretudo a partir dos anos 1950.
A política agrária da ditadura militar contava com um projeto denominado
Estatuto da Terra, que havia sido definido pouco antes do golpe, pelo grupo do
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e pelo Instituto Brasileiro de Ação
19
Uma das poucas, senão a única, experiência de organização sindical autônoma dos trabalhadores
rurais do Estado, criada no final da década de 1960, ocorreu no Vale do Pindaré, onde foram
constituídos os denominados "Sindicatos Clandestinos", destacando-se a liderança do camponês
Manoel da Conceição. Essa experiência foi duramente reprimida pelos organismos policiais do
Estado. Maiores informações ver Almeida (1981, p. 63-6).
46
Democrática (IBAD). Esses grupos eram compostos por intelectuais e membros da
sociedade civil organizada e tinham como objetivos, conforme Panini (1990, p.68),
[...] se contrapor à ação política do governo Goulart e às mobilizações dos
grupos populares. Esta elite, com capacidade de organizar seus próprios
interesses e os da sociedade consegue infiltrar-se com sua doutrina
ideológica em todas as camadas sociais. A ação ideológica é assumida
pelo complexo IPES/IBAD, que se vale de todos os meios de persuasão
disponíveis: cursos, palestras, seminários, simpósios, filmes, teatros,
propaganda, rádio, televisão, revistas, jornais, livros e panfletos, além da
distribuição gratuita de alimentos (provenientes da “Aliança para o
Progresso” celebrado entre o Brasil e os Estados Unidos).
Mesmo tendo a instrumentalização legal necessária, o Estatuto da Terra seria
implantado em parte, pois, para ser viabilizado plenamente o Estado precisava
manter a questão agrária sob o controle do poder central, de forma que o Estatuto
da Terra impedisse o acesso à terra aos agricultores familiares, permitindo apenas
aos interessados em desenvolver o capitalismo no campo.
Nessa condição, o Estatuto da Terra revelou-se um instrumento estratégico e
contraditório no controle das lutas sociais, desarticulando os conflitos pela terra.
Com efeito, as poucas desapropriações efetuadas foram exclusivamente para
reduzir o conflito ou deslocá-lo através dos projetos de colonização para regiões de
fronteiras, numa tentativa de solucionar a problemática. No período de 1965 a 1981,
foram realizados, em média, oito decretos de desapropriação por ano contra pelo
menos setenta conflitos por terra ao ano.
Com o objetivo de administrar o conflito da terra sem tocar no direito de
propriedade, os militares no governo de Costa e Silva pretendiam resolver o
problema da terra, principalmente na Amazônia, como se fosse um problema militar.
Neste sentido, o representante do Ministério do Interior ocupado pelo General
Albuquerque Lima, um nacionalista, identificado com o pensamento da Escola
Superior de Guerra, definiu, como objetivo nacional prioritário, a política de
integração da Amazônia, reduzindo a questão a termos simples. Conforme Martins
(1984, p.41),
[...] os problemas de pressão social e fundiária do Nordeste poderiam ser
resolvidos na Amazônia, mediante o desenvolvimento de projetos de
ocupação de ‘espaços vazios’, criação de pólos de desenvolvimento, com
envolvimento decisivo das Forças Armadas.
Para executar seu plano, o governo militar criou o discurso dos espaços
vazios do território brasileiro. Esse discurso, utilizado atualmente pelos organismos
47
multilaterais, como o Banco Mundial, para implementar seus programas e projetos,
desconhecia e ignorava os processos sociais em curso no campo, ou seja,
simplesmente ignorava os trabalhadores rurais, seus valores e crenças. A suposição
da existência dos vazios demográficos servia para justificar a idéia de que os
conflitos eram desnecessários. No entanto, exatamente por haver população
camponesa residindo e desenvolvendo suas atividades naquelas áreas os conflitos
existiam.
O lema do governo militar: “integrar para não entregar” as terras da Amazônia
sem homens e que deveriam ser destinadas para os homens sem terra, não
funcionou. Na prática, as terras foram entregues às grandes empresas, beneficiadas
pela política de incentivos fiscais.
Os governos militares utilizaram a bandeira da reforma agrária através dos
projetos de colonização, na promessa de solucionar os conflitos sociais no campo,
mas atenderam prioritariamente aos interesses do empresariado nacional e
internacional. Como o objetivo era colonizar para não reformar, o problema da terra
jamais seria resolvido com os projetos de colonização na Amazônia, pois o que
estava por trás desse processo era uma estratégia geopolítica de exploração total
dos recursos naturais pelos grandes grupos nacionais/internacionais. Assim, o
envolvimento das Forças Armadas, do Estado autoritário, garantiu apenas aos
grandes grupos econômicos a exploração da região Amazônica, onde praticaram
grandes mudanças no campo sem modificar o regime de propriedade da terra.
No Maranhão, a partir da década de 1950 e 1960, a região oeste foi
considerada, pelo Estado, como ilegalmente ocupada. Assim, o Estado passou a
controlar a propriedade fundiária, em local privilegiado para investimentos do grande
capital. A partir de então, uma nova frente se construiu através do açambarcamento
de grandes extensões territoriais, antes ocupadas por posseiros e pequenos
proprietários camponeses, então efetivados por grandes grupos capitalistas,
nacionais e estrangeiros – a “frente de expansão monopolista”.
O processo de apoderamento das terras efetivou-se em grande escala. Foram
utilizados vários expedientes, muitas vezes ilícitos, como a compra de terras
devolutas do Estado e a grilagem, com a conivência (quando não com o próprio
impulso) da maioria dos cartórios, do poder público, de políticos municipais e das
48
polícias militar e privada (jagunços), aliciados por políticos estaduais ou federais,
fazendeiros e empresários.
A situação da região do Vale do Pindaré se tornou caótica. Títulos de
propriedade se sobrepuseram a antigos direitos de posse, títulos esses que foram
forjados pela arte da grilagem
20
, cancelando os títulos legítimos e os direitos dos
posseiros.
O decreto – lei nº 1767, de 1º de fevereiro de 1980 criou o GETAT (Grupo
Executivo das Terras do Araguaia Tocantins) com o objetivo de apressar a
regularização das terras da área e a recuperação social e econômica das mesmas.
Porém, em lugar de repartir as terras e distribuí-las para os posseiros, o GETAT
legalizou a grilagem. As terras legalizadas representavam, portanto, para o governo,
apenas reserva de valor (com fins especulativos, à espera de oportunidades
melhores de venda) ou para serem incorporadas aos grandes projetos e suas
políticas de incentivos fiscais.
A primeira forma de expressão concreta do capitalismo monopolista no campo
maranhense foi a dinamização do setor pecuário, onde se destacaram os incentivos
fiscais distribuídos pelas agências regionais de desenvolvimento: SUDAM e
SUDENE.
A segunda forma foi o desenvolvimento de uma agricultura em bases
capitalistas, inicialmente no sul do Estado, com a produção em larga escala de arroz
e da soja e mais recentemente, a partir da década de 70, no Oeste e no Baixo
Parnaíba, com a produção da monocultura do eucalipto e produção de papel e
celulose. A particularidade desta segunda forma consiste conforme Andrade (1982,
p.74), em que:
[...] ao contrário do que se passa em regiões de fronteira agrícola, o que
distingue a expansão do capitalismo nesta região é sua racionalidade, no
sentido de que não está baseada explicitamente sobre a violência, sobre
conflitos agudos em torno da posse da terra. Tanto é assim, que a entrada
dos chamados gaúchos na área passa pela compra de terras.
Além destes projetos, têm-se, ainda, a instalação de grandes empresas
madeireiras na região do Pindaré e do Tocantins, adentrando a região do Gurupi, até
20
O grileiro é uma espécie de alquimista que envelhece papeis, inventa guias de impostos, falsifica
títulos, cria genealogias “embaça juízes, suborna escrivão”. Para mais detalhes ver (ASSELIN: 1982 e
SADER: 1986).
49
chegar ao litoral de Turiaçu, com a implantação dos grandes projetos (ALUMAR,
CVRD, etc).
A aceleração da propriedade privada da terra, juntamente com o aumento do
grau de concentração e a tendência ao estabelecimento do trabalho assalariado,
causaram profundas transformações no campo maranhense. Um exemplo disso foi a
formação de uma reserva de força de trabalho barata para o capital, composta pelos
trabalhadores rurais expulsos de suas terras. Esse fato impulsionou a chamada
“acumulação primitiva” do capital, na qual os produtores diretos são separados dos
meios de produção. Esse processo concentra a propriedade dos meios de produção
de um lado, e libera a mão-de-obra, de outro, diferentemente da economia
camponesa mercantil, vista anteriormente.
O processo de concentração fundiária no Maranhão foi agravado com a Lei
Estadual de Terras nº 2.979, de 17 de julho de 1969, criada pelo então governador
José Sarney, visando o denominado, reordenamento do espaço físico do Estado
com, “[...] a ocupação racional das terras livres”. Conforme Feitosa e Brito (1991,
p.16), “[...] o Estado, ao promover a venda de terras públicas para grandes grupos
empresariais, por preços questionáveis, tem contribuído para o estabelecimento de
condições reais e objetivas para a penetração do capital no campo maranhense”.
Com a criação da Lei de Terras e das delegacias de terras, primeiramente em
Imperatriz (1968), e posteriormente em Santa Luzia, a Procuradoria Geral do Estado
(órgão de maior autoridade em matéria fundiária na esfera estadual) visava de modo
geral, disciplinar a ocupação e titular as áreas, transferindo-as do domínio público
para o domínio privado.
A partir desse processo, iniciou-se de forma violenta a problemática da
grilagem no Maranhão, que “se legalizou”, com o propósito de entregar o território
maranhense às empresas e fazendeiros de outros Estados, mediante a criação das
sociedades anônimas, sem número limitado de sócios. A estas sociedades eram
facultadas as vendas das terras devolutas sem licitação, podendo requerer cada um
dos sócios até três mil ha de terras.
Com o asfaltamento da Belém-Brasília, iniciou-se também o processo de
exploração da indústria madeireira por empresas que vieram do Paraná, Santa
Catarina, São Paulo e Minas Gerais, substituindo no Maranhão, o ciclo do arroz pela
madeira e pecuária. Foi se consolidando o poder dos industriais, relegando os
50
usineiros ao segundo plano. Afluíram para a região Oeste do Estado muitas
serrarias. Ocorreu uma corrida desenfreada para a região do Pindaré e Tocantins
para desmatar e plantar capim. Foi nesse contexto, no final da década de 1960, que
surgiu o maior grilo do Estado, o “grilo Pindaré”
21
.
No final dessa década e início da década seguinte, a questão da terra se
acirrou ainda mais no Estado do Maranhão, na medida em que o confronto com o
campesinato (posseiros) pôs em jogo as forças institucionais manipuladas para a
efetivação da política agrária do Estado. Na verdade, esses impasses são
originados, conforme Almeida e Mourão (1976, p.22) nas:
[...] contradições entre a implantação de um tipo de estrutura fundiária
voltada primordialmente para os interesses da ”ocupação racional das
terras devolutas” (pelas grandes empresas), aos quais a política oficial
subordina a questão da “ordenação da ocupação espontânea” (pelo
campesinato), definindo a partir dos interesses das grandes empresas as
regras institucionais criadas para dar conta das tensões em torno da terra.
Na verdade, todo o suporte institucional (Plano de Governo 1971/74) que foi,
a princípio, pensado como instrumento de racionalização e harmonização dos
conflitos no campo maranhense, revelou-se, na prática, como instrumento de reforço
à expropriação dos trabalhadores rurais. A meta do governo era transformar a região
de fronteira agrícola em áreas de grandes aplicações de capital. Submetendo a
pequena produção ao processo geral de expropriação. Esse processo foi
impulsionado pela entrada de novos grupos interessados na terra, expressando-se
nas relações entre o trabalhador rural e o latifundiário ou entre aquele e o
comerciante ou ainda entre o trabalhador rural e o grande empresário, dependendo
das condições locais.
As áreas mais antigas, que ficaram à margem do fluxo migratório (Litoral e
Baixada), vêm recentemente sendo incluídas nas transformações do mercado de
terras e no incentivo à modernização das grandes unidades de exploração. A prática
de regulamentação da propriedade fundiária não é voltada somente para as terras
do patrimônio estadual. Tem-se, na verdade, um impacto mais abrangente sobre a
reorganização do mercado de terras, gerando, nas áreas de ocupação antiga
possibilidades atuais ou potenciais de regulamentação da situação jurídica dos
moradores, visando, a curto ou longo prazo, a expulsão dos camponeses.
21
De acordo com Asselin (1982), o montante de área pretendida variava de 10 mil há a 1. 694.000
há, conforme uma das escrituras falsificadas, as terras abrangiam integralmente os municípios de
Imperatriz, João Lisboa, Santa Luzia e Amarante.
51
Considerando esta a situação mais geral do latifúndio no Maranhão, observa-
se a expropriação do trabalhador rural expressa no nível das relações de produção
na agricultura e na pecuária. Esta tendência se manifesta pela intensificação dos
conflitos “roça x gado”, que assumem um caráter cada vez mais violento,
significando a eliminação, de fato e de direito, do cultivo, revelando um tipo de
resistência camponesa à expropriação das suas condições materiais de existência.
Entre os anos de 1968 e 1970, os militares, para continuar viabilizando sua
política agrária, fundiram e acabaram com o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
(IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA), e criaram o
Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Era o início das campanhas do Projeto Rondon: ‘Integrar para não entregar’,
período em que a sociedade foi massacrada pela propaganda feita pelos veículos de
comunicação de massa: TV, rádio, jornais, revistas, etc. As propagandas eram
veiculadas de modo a encobrir a intenção do governo, que era a de não impedir o
processo de aquisição de terras por estrangeiros, ao contrário, alimentá-lo via
política dos projetos agropecuários. Estes projetos, aprovados pela
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia/SUDAM, passavam a interessar
ao desenvolvimento econômico nacional e, portanto, não precisariam enquadrar-se
na nova legislação sobre a venda de terras a estrangeiros. Dessa forma, os grupos
estrangeiros poderiam adquirir quanta terra desejassem
22
.
A forma ideal encontrada, no Maranhão, para satisfazer o volume de
especulação fundiária foi criar, em 1971, a COMARCO – Companhia Maranhense
de Colonização, posteriormente alterada pela lei 3.237, de 31 de outubro de 1972,
no Governo de Pedro Neiva de Santana, que a estruturou sob a forma de sociedade
anônima de economia mista.
O Estado incorporou ao patrimônio desta companhia grande volume de terras:
uma área de 1.700.000 ha localizadas no Centro-Oeste do Maranhão, englobando
parte dos municípios de Grajaú, Lago da Pedra, Vitorino Freire, Pindaré Mirim, Santa
Luzia e Amarante e outra, de 400 mil hectares, na região de Maracaçumé atingindo,
principalmente o município de Turiaçu, limitando-se com as terras da COLONE –
22
Veja-se, por exemplo, a Suiá-Missu (em São Félix do Araguaia – MT) vendida para o grupo
Liquifarm, com seus 450.000 ha. oficialmente registrados no INCRA, sendo que outras fontes falam
em sua superfície de 670.000 ha. Outro exemplo é a Cia. Vale do Rio Cristalino, pertencente a
Volkswagen, com mais de 140.000 ha.
52
Companhia de Colonização do Nordeste. Além destas, foram incorporados outros 46
requerimentos já existentes na área. Estes “outros requerimentos” pertenciam aos
grupos e sociedades anônimas já existentes na área, como os grupos políticos
sulistas e maranhenses.
Em 1973, em forma de resolução de nº. 75, o Senado Federal autorizou o
Estado do Maranhão a alienar terras a COMARCO e a promover a venda de áreas
de até 24 mil hectares. Essa resolução reafirmou o interesse da União pela grande
empresa, mesmo que limitando a área máxima dos projetos, que até então era de 66
mil hectares. Visando burlar esse limite, as empresas criaram diversas sociedades
anônimas. Cada área grilada de 25 mil ha correspondia a uma sociedade anônima,
podendo as grandes empresas constituir três ou quatro sociedades com os mesmos
sócios.
Os programas instaurados nos governos ditatoriais intensificaram o processo
histórico de concentração fundiária no Brasil. A estrutura agrária concentradora,
viciosa, vigente desde o tempo das capitanias hereditárias, passando pelas
ordenações do Reino, pela Lei das Sesmarias, pela Lei de terras de 1850, até hoje,
foi sempre conservada e agravada, chegando ao máximo nos últimos 20 anos.
Para os militares era fundamental desmobilizar toda e qualquer forma de
organização política dos trabalhadores rurais, favorecendo assim um vazio político
necessário para viabilizar seus projetos de reforma no campo. Este foi um fator
estratégico para elaboração e aplicação do Estatuto da Terra. O Estatuto da Terra,
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, aprovado pelo governo Castelo Branco
era a alternativa para solucionar o problema agrário. Pelo Artigo 97 desta lei, que
diz: “Todo o trabalhador agrícola que, à data da presente lei, tiver ocupado por um
ano, terras devolutas, terá preferência para adquirir um lote, da dimensão do módulo
da propriedade da terra”. Parecia que o governo promoveria a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade para todos. Entretanto, a realidade foi outra. As
ações discriminatórias do Governo Federal e dos Governos Estaduais para declarar
de quem era a terra não ocorreram.
Inicia-se a instauração de projetos agropecuários por grandes empresas na
Amazônia. No Centro-Sul e no Nordeste, desenvolve-se uma rápida industrialização
da agricultura. A política de privilegiamento do capital monopolista, em diferentes
53
setores da agricultura, acentua a concentração de terras, a expropriação e a
exploração. Com isso, conseqüentemente, os conflitos por terra se multiplicaram.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) cadastrou, em 1979, o total de 715
conflitos, sendo que 88,1% iniciaram-se com mais freqüência a partir de 1973. Essas
lutas pela terra, porém, estavam ocorrendo em todo o País, e não só nas regiões
pioneiras como afirmavam alguns autores, confirmando a tese de Martins de que “a
luta pela terra está na estrutura da sociedade brasileira”. (1986, p. 66).
De acordo com o Relatório – sobre os aspectos dos direitos humanos nos
conflitos de terra no Estado do Maranhão e na região do “Bico do Papagaio”, de
Ermacora e Nowak (1986?), um quarto dos assassinatos ocorreu no Estado do
Pará; em seguida estão a Bahia e o Maranhão. Enquanto para todo o Brasil, a média
anual de mortes ocorridas nos anos 1960 estava em 7, 5, nos anos de 1970 já era
de 34 e, nos anos de 1980 subiu para mais de 120. Só no ano de 1985, foram
registradas 222 mortes, das quais 59 no Pará, 46 no Mato Grosso, 31 em São
Paulo, 22 no Maranhão e 14 em Goiás. O próprio Ministério da Reforma Agrária e do
Desenvolvimento Agrário também publicou, no começo do ano de 1986, um
documento contendo 135 páginas sobre conflitos de terra em 1985. O número de
mortes nesse ano é de 261, das quais 140 no Pará e Maranhão. Depois desses
Estados, as principais zonas de conflito eram as regiões junto ao rio Xingu, no
sudoeste do Pará, e junto ao rio Araguaia (limite do Bico do Papagaio), assim como
no Vale do Pindaré e do Mearim, no oeste do Maranhão.
Conforme Fernandes (1999), a aliança governo militar/empresários precisava
de sustentação do poder local para a realização de sua estratégia geopolítica de
controle do território. A aliança aliou e cooptou os agentes do poder tradicional, na
repressão contra as formas de organização dos trabalhadores rurais que ressurgia
por meio da ação sindical e da ação pastoral da igreja Católica. A manutenção de
um vazio político no campo era a condição necessária para que a aliança pudesse
desenvolver seu projeto econômico. Assim, também, segundo Martins (1986), havia
toda uma organização e esforço feito pelo Estado, no sentido de evitar que a
questão agrária se transformasse efetivamente numa questão política, o que
implicaria numa redefinição política do próprio Estado. Vivenciava-se então, um
processo de militarização da questão agrária, cujos indicadores foram a criação dos
grupos de terras e a criação do Ministério de Assuntos Fundiários (dirigido por um
54
general que era também, Secretário do Conselho de Segurança Nacional), além da
criação de instituições controladas pelo poder central e manipuladas pelos militares
(como é o caso da Ação Cívico-Social (ACISO), criada na época do combate à
guerrilha), da Operação Rondon (criada pelos militares por intermédio do Ministério
do Interior) e do MOBRAL (projeto que tinha como objetivo a alfabetização de jovens
e adultos, e que indiretamente buscava controlar as comunidades rurais).
Dessa forma, os militares realizaram seus objetivos com relação à política
agrária, promovendo a modernização técnica no campo sem mexer na propriedade
fundiária, valorizando as terras apropriadas pela burguesia agrária e criando uma
reserva de força de trabalho. Por fim, com os projetos de colonização, transferiram
parte da população expropriada para Amazônia, pois era preciso levar trabalhadores
para implementar os planos da ‘Operação Amazônia’, uma vez que de nada
adiantariam grandes projetos agrominerais e agropecuários em uma região onde
faltava força de trabalho.
Os empresários, para alcançar seus objetivos contaram, portanto, com o aval
do Estado, que não poupou medidas violentas contra os posseiros e índios que
resistiam a essa política. Com a garantia das Forças Armadas e com o
consentimento do Estado, os grandes grupos econômicos contratavam pistoleiros
para expulsar índios e posseiros. Neste período, houve muitos assassinatos e
genocídios que foram registrados por diversos trabalhos que denunciavam essa
violência
23
.
A implantação dessa política agrária resultou na manutenção dos latifúndios
existentes e na criação de tantos outros, especialmente na Amazônia. A lógica da
militarização da questão agrária era manter o controle do Estado sobre as disputas
por terra e sobre as terras devolutas. Para realizar essa estratégia, o poder central
manteve a federalização dessas terras e do problema fundiário. Com essa lógica, o
governo militar criou, em 1982, o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários
(MEAF), com um general em seu comando.
Portanto, enquanto estiveram no poder, os governos militares garantiram a
apropriação de imensas áreas de terra e também o aumento do número e extensão
dos latifúndios. Ou seja, se por um lado financiaram as mudanças na base técnica
23
Entre outros ver: Trabalhos da CPT (que publica anualmente os números da violência no campo); publicação
do MST, São Paulo, 1986; Anistia Internacional. Brasil: violência autorizada nas áreas rurais. Publicação da
Anistia Internacional. Londres, 1988; Mirad/CCA. Conflitos de terra. Brasília, 1986.
55
de produção, a partir da política de incentivos e créditos subsidiados,
proporcionando, a modernização da agricultura e a territorialização do capital no
campo, do outro lado, reprimiram toda e qualquer luta de resistência a essa política.
Com esse tipo de política, que favoreceu a alteração e intensificação da
concentração de terras, a estrutura fundiária sofreu modificações profundas, no
sentido de uma intensa concentração.
2.2 Entra (en) cena a reforma agraria
As diversas formas de luta pela propriedade da terra, outro tipo de
propriedade que não seja a capitalista, marcaram a resistência, construída no dia a
dia dos trabalhadores rurais. Alterar o ordenamento jurídico no que se refere ao
direito de propriedade implica necessariamente mudança de poder. Esta é a
essência da questão, porque conforme Martins (1984, p.17),
[...] a racionalidade econômica e política dominante correspondem, no
Brasil, a um verdadeiro pacto de classes que exclui da cena política os
trabalhadores rurais, como meio de protelar uma transformação no direito
de propriedade, que alteraria na raiz as bases de sustentação dos grandes
latifundiários, das classes dominantes e da forma brutal que a exploração
do trabalho e a acumulação do capital assumem em nosso país.
Com as mudanças políticas ocorridas no início da década de oitenta, como
resultado da ação da sociedade em diversos movimentos políticos contra a ditadura
militar, lutando pela instauração da democracia no Brasil, na cidade e no campo,
cresceram as organizações de trabalhadores conquistando novos espaços. Neste
novo” momento da História do Brasil, o Movimento dos Sem Terra (MST), a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a Central
Única dos Trabalhadores (CUT), a Igreja Católica, vários partidos políticos,
principalmente de oposição e numerosas entidades pró-reforma agrária articularam-
se para exigir do primeiro governo da nova república – um projeto de reforma
agrária.
No ano de 1985, no início da “Nova República”, com o falecimento do
Presidente Tancredo Neves, eleito por via indireta, assumiu a Presidência da
República, o vice-presidente, José Sarney.
56
O governo da “Nova República” colocou como uma de suas prioridades a
reforma agrária. Para ocupar a superintendência do Ministério da Reforma e do
Desenvolvimento Agrário (MIRAD), antigo MEAF foi nomeado, ainda por Tancredo
Neves, o advogado paraense Nelson Ribeiro e, para ocupar a presidência do
INCRA, o engenheiro - agrônomo José Graziano Gomes da Silva, antigo defensor
da reforma agrária no Brasil, que já havia vivido longa experiências nesta área.
Começaram então as articulações para a elaboração de um Plano Nacional
de Reforma Agrária. No final de maio desse mesmo ano, o grupo coordenado por
José Gomes da Silva entregou uma proposta de reforma agrária às lideranças
políticas, que foi completamente desfigurada, com inúmeras alterações em relação à
versão original, considerada progressista. Em 10 de outubro de 1985, o Presidente
Sarney assinava o Decreto nº. 91.766 aprovando o I Plano Nacional de Reforma
Agrária – PNRA.
Nesse mesmo ano, surgiu, também, a União Democrática Ruralista (UDR)
24
,
com o objetivo de, entre outras coisas, mobilizar os fazendeiros para pressionar o
governo a não realizar o I PNRA. Mesmo com este Plano Nacional de Reforma
Agrária, o latifúndio e o grande capital continuaram a se disseminar pelo país, então
com característica de exércitos particulares, via UDR.
A partir de 1986, os sindicatos de trabalhadores rurais, a CPT e o MST,
tiveram de enfrentar o contra poder da UDR - o poder do latifúndio, que se estendia
pelo país e que teve seu braço no Maranhão, nos municípios de Bacabal, Caxias,
Imperatriz, Lago da Pedra, Arame, Chapadinha, Codó, Pedreiras, Porção de Pedra,
Presidente Dutra, e Santa Inês.
Os limites impostos à reforma agrária pelo pacto da Nova República ficaram
expostos pelos recuos que o PNRA sofreu durante sua elaboração. Foram doze
versões alterando a proposta do então presidente do INCRA. Isso tornou inviável o
projeto, representando assim, a vitória das forças políticas contra a reforma agrária,
como a UDR, por exemplo. A perspectiva de elaboração de um projeto de reforma
agrária era, na verdade, uma condição para a criação de um novo pacto político,
24
A União Democrática Ruralista – UDR – nasceu em agosto de 1985 quando da realização, em
Goiânia, de um leilão de bois, para arrecadar fundos que se destinavam à luta contra a reforma
agrária. Esta organização constituía-se no braço armado do latifúndio. Seu crescimento político
culminou em 1989, com a candidatura do presidente e principal liderança, Ronaldo Caiado, à
presidência da República na sucessão de José Sarney, quando foi derrotado.
57
para a sustentação do governo que assumia o poder, de acordo com Martins (1986,
p.15),
[...] por ter percebido a sua própria falta de legitimidade, o novo regime
político tenta impor às diferentes classes fora do poder, aos trabalhadores,
o seu pacto social. Pede uma trégua e promete reformas sociais. A mais
importante, a reforma agrária, vem se arrastando em meio a obstáculos de
circo, sabotada por seus próprios promotores. Uma composição política
conservadora na escala e na profundidade em que é proposta e exigida
pela realidade social dos trabalhadores rurais. Algumas desapropriações e
muita publicidade não são suficientes para convencer o trabalhador do
acampamento, das ocupações de terra e das áreas de conflito de que a
reforma será feita pelos fazendeiros que estão no governo. Convence este
ou aquele grupo beneficiado por uma desapropriação. E só.
Dessa forma, no final do governo Sarney, e considerando a participação dos
movimentos sociais na luta pela reforma agrária, somente 6% do PNRA havia sido
executado, ou seja, foram assentadas 84.852 famílias das 1,4 milhões de previstas.
O modelo de reforma agrária proposto por este Plano previa um conjunto de
relações em sistemas, cujos elementos constitutivos dependiam da agregação de
múltiplas instituições supostamente comprometidas com a política fundiária. Essa
política não se limitava à redistribuição da terra, mas também, a oferta de serviços
totalizantes que assegurassem o pleno bem - estar físico e social aos seus
“beneficiários”.
Na prática, os conflitos deflagrados pelos trabalhadores rurais foram
fundamentais para que algumas metas do Plano fossem implantadas, principalmente
no que se refere à localização ou a redefinição de áreas e a função social da terra.
Segundo o PNRA, a desapropriação por interesse social aparecia como instrumento
principal a ser usado no processo de reforma agrária, embora tal conquista
demandasse um longo processo de luta. Envolvia o deslocamento do debate para o
Congresso Nacional em torno da redefinição da Constituição brasileira. Foi previsto
na Constituição de 1988 o direito de o Estado desapropriar terras que não
estivessem cumprindo a sua função social (o valor da terra deveria ser indenizado
por Títulos de Dívida Agrária e o das benfeitorias em dinheiro). Essa reivindicação
vinha sendo realizada desde o debate sobre a reforma agrária, desenvolvida no
contexto da reordenação do jogo de forças, cujo desfecho foi o golpe militar de 1964.
A execução do Plano Nacional de Reforma Agrária foi atribuída inicialmente
ao MIRAD (Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento) e posteriormente
ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), através das
58
Superintendências Regionais – SRs. Cabia, portanto, a estas Superintendências nos
estados a obtenção de áreas e o assentamento de famílias de trabalhadores rurais,
através de recursos humanos e financeiros que lhes foram atribuídos ou por ela
articulados.
Mas a grande derrota da luta pela reforma agrária aconteceu durante a
elaboração da Constituição de 1988, quando o capítulo referente a esta matéria
sofreu um enorme retrocesso, se comparado com o Estatuto da Terra.
As forças conservadoras representadas pela UDR conseguiram aprovar um
dispositivo genérico, tornando a propriedade produtiva intocável. Estrategicamente,
a definição do conceito de propriedade produtiva ficou a cargo da legislação
complementar. Dessa forma, a viabilização da reforma agrária ficou condicionada à
aprovação de uma lei regulamentando os artigos da Constituição relacionados a
questão fundiária e de Lei Complementar definindo o Rito Sumário das
desapropriações.
Com a derrota sofrida na Constituição, diversas entidades pró-reforma agrária
iniciaram ações que resultaram, em 1989, na elaboração de uma proposta de Lei
Agrária e outra de Rito Sumário apresentadas pelo Deputado Antônio Marangon,
PT-RS, na forma de projetos de lei.
No governo Collor (1990-1992), a reforma agrária novamente não aconteceu.
Durante a campanha, o candidato prometeu assentar 500 mil famílias, sem
especificar como e onde. A meta mais uma vez não foi atingida, pois apenas 9. 381
famílias foram assentadas, a metade na região Norte. Os poucos assentamentos
efetivados resultaram de projetos iniciados no governo anterior.
O recrudescimento da luta pela terra com o aumento da violência no campo
resultou na realização de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da
“pistolagem”. Fruto das pressões, em um acordo feito pelas lideranças do PT e de
partidos de centro-esquerda como o PSDB e o PMDB, foi possível votar e aprovar
em julho de 1992 uma Lei Agrária. No início de fevereiro, a Coordenação Nacional
do MST, composta por vinte e dois dirigentes representando quase todos os estados
onde o movimento era organizado, realizaram uma audiência com o Presidente. Era
a primeira vez que um presidente recebia o MST. Nessa ocasião, a Coordenação
apresentou um documento contendo propostas de medidas emergenciais para a
reforma agrária e, entre estas, os vetos de artigos, incisos e parágrafos da Lei
59
Agrária que impediam a efetivação das reformas. Por exemplo, um dos artigos se
referia às terras adquiridas por via judicial, impedindo o acesso direto dos
trabalhadores rurais. Outro artigo colocava como condição que, enquanto existissem
grandes latifúndios na Amazônia, não poderiam ser desapropriados latifúndios
menores em outras regiões do país.
Com a existência de uma lei de reforma agrária, a luta que se travou no
Congresso Nacional foi pela aprovação da Lei de Rito Sumário (Projeto de Lei
número 67 – 1992b- Complementar número 71/89). Em sua tramitação, o Projeto de
Lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 30 de junho de 1992 e enviado
para o Senado, onde foi aprovado no início de 1993, retornando à casa de origem
para ser votado por meio de acordo entre as lideranças e sancionado sem vetos,
pela Presidência da República, em julho de 1993 (Lei Complementar nº. 76, de 6 de
julho de 1993). Assim, diversos artigos dessa lei, passaram a ser objeto de
contestação durante as desapropriações.
Por esta razão os movimentos sociais afirmavam que, embora já existissem
dispositivos legais, a reforma agrária só aconteceria na prática com a intensificação
da luta pela terra. Diante dessa condição, o número de ocupações cresceu. Em
1993, foram realizadas mais de setenta ocupações com aproximadamente 20.000
famílias acampadas (MST, 1993, p.6). Em 1994, aconteceram 119 ocupações, com
20.116 famílias (INCRA, 1995).
Durante os governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso não
houve grandes ações nessa área. No governo deste último, a meta para o programa
de assentamentos rurais era de duzentas e oitenta mil famílias no período de
1995/98, o que significa uma redução brutal com relação ao I PNRA. Contudo, as
metas se limitavam a uma política compensatória que não alteraram a correlação de
forças políticas e sociais no campo.
Não contente com isso, o governo anunciou o programa ‘Nova Reforma
Agrária’ tendo por base o conteúdo do texto: “Agricultura Familiar, Reforma Agrária e
Desenvolvimento Local para um Novo Mundo Rural”
25
, que trata da reformulação de
política de Reforma Agrária para o país. O documento tem como principais pontos a
integração das linhas de créditos PROCERA (Programa de Créditos Especiais para
25
Para informações detalhadas sobre esse programa, consultar o documento A Nova Reforma
Agrária. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, de 28 de abril de 1999.
60
Reforma Agrária) e PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar), a descentralização da Reforma Agrária com atribuição de funções para os
Estados e municípios e, por último, mudanças na forma de acesso a terra.
A intenção principal do governo Federal em todo o documento é desonerar
sua responsabilidade com a política de reforma agrária, na medida em que transfere
para os Municípios e Estados, através dos Conselhos Municipais e Estaduais de
Desenvolvimento Rural, a responsabilidade política e financeira com a questão
agrária.
Compreendo que os conselhos são ou deveriam ser instrumentos de controle
das políticas por parte da sociedade. Porém, a grande maioria ainda não a
representa efetivamente. É notória a manipulação de muitos conselhos pelo poder
político local ligado às oligarquias rurais. Estas características colocam, de antemão,
as dificuldades com as quais os movimentos da sociedade civil organizada deverão
se defrontar para a implementação dos processos de reforma agrária no país. O
governo preocupa-se menos com a viabilização dessa questão, e mais com a
diminuição dos “custos” que estas ações podem demandar aos cofres públicos.
No final dos anos 1990, o governo FHC colocou em prática a reforma agrária
de mercado. Esse enfoque respaldaria a decisão política do governo federal pela
descentralização do programa de reforma agrária, entendida não como busca das
necessárias parcerias dos municípios e dos estados para execução do programa,
mas como tática para a transferência dos custos políticos e financeiros da execução
do programa para essas esferas da federação.
A estratégia de municipalização de decisões sobre a "reforma agrária"
tenderia à desarticulação das organizações dos trabalhadores, em especial do MST,
já que as demandas pela reforma agrária, e pelo próprio crédito à agricultura
familiar, passariam para a esfera local.
Nos anos 1990 inaugura-se um novo contexto das lutas sociais no campo,
dado especialmente pela ação do MST. Este foi o responsável, no início de 1997
(um ano após o bárbaro massacre e morte de muitos trabalhadores sem-terra
ocorrido no Pará), pelo mais importante ato popular de oposição ao governo de
Fernando Henrique Cardoso. A marcha para Brasília, realizada através de
passeatas que saíram de várias regiões do país, passando por várias cidades, onde
com grande apoio popular realizavam atos, culminou em Brasília, onde obrigaram o
61
governo a recebê-los, em meio a uma grande manifestação social e política de
massa.
Assim, o MST emergiu como o mais importante movimento social e político do
Brasil na contemporaneidade, fazendo ressurgir a luta dos trabalhadores do campo
e convertendo-a no centro da luta política brasileira. Nesse sentido, é o Movimento
mais significativo da força e da necessidade da retomada, em bases novas, da
centralidade das lutas sociais no Brasil.
Durante séculos, os movimentos sociais do campo tentaram romper com essa
estrutura de poder, por meio da luta pela terra. Por ser uma questão perdurável, a
questão agrária alimenta-se dos variados conflitos, assumindo diferentes feições,
sem modificar sua estrutura. A questão agrária hoje já não coloca mais a pergunta:
quem é contra ou a favor da reforma agrária? A sociedade em geral é favorável à
sua efetivação. A questão é: como será feita a reforma agrária? O que está em
questão é a fundamental participação política dos trabalhadores. Porque, por outro
lado, o poder e a astúcia dos ruralistas e o papel do Poder Judiciário em defesa dos
interesses e privilégios dos latifundiários e grileiros têm um resultado perverso para
os trabalhadores rurais. Atualmente, as áreas em desapropriação estão sendo
supervalorizadas pela perícia e pelo Judiciário, tornando as indenizações
impraticáveis. Essas ações inescrupulosas são utilizadas para convencer a
sociedade de que o melhor para o Brasil é a mercantilização da terra, por meio da
venda direta do latifundiário aos sem - terra.
No início da década de 1990, observa-se uma mudança no perfil da
agricultura maranhense na região sul do Estado, a partir da adoção de grandes
incentivos fiscais por parte do governo, traduzidos na forma de redução fiscal
(redução de 6,5% do ICMS sobre o faturamento) e na criação de infra-estrutura com
recursos provenientes do setor público. Esses incentivos têm beneficiado,
sobretudo, a monocultura de soja, e do eucalipto que vem se expandindo de forma
grandiosa.
A economia maranhense, historicamente baseada na agricultura familiar,
passa por todo um esforço para a sua modernização, através de grandes
investimentos, especificamente, na produção de soja e de outros produtos
destinados à exportação, inclusive, com subsídios fiscais que o Governo do Estado
vem proporcionando aos imigrantes que se instalam ao sul do Estado. Aliada a essa
62
modernização, houve uma significativa alteração do perfil da produção industrial,
que tem como maior expressão o complexo mínero-metalúrgico da Companhia Vale
do Rio Doce, a ALUMAR e os Projetos Celulose, Eucalipto e soja, na região do
Baixo Parnaíba, dentre outros. Entretanto, a todo esse crescimento não
correspondem mudanças significativas nas condições de vida da maioria da
população. Conforme Almeida (1990, p.51), os imóveis classificados como
latifúndios, por exploração e dimensão, cresceram em número e tamanho médio,
apresentando,
[...] baixo percentual de utilização da terra (menos de 20% da área
aproveitável total). Os classificados como latifúndio por exploração detêm
79% da área total cadastrada e representam 39% do total de imóveis.[...]
Os efeitos dessa situação fazem-se visíveis na exacerbação das tensões,
registrando-se, em 1985, mais de 100 conflitos que envolveram,
aproximadamente, 15.000 lavradores, num território estimado em mais de
dois milhões de hectares.
Mas, a questão é perceber como se colocou, nos últimos anos, a estrutura de
acesso a terra no Maranhão. Conforme Carneiro (1999, p.15),
[...] pelos dados do Censo 1995 / 96 podemos concluir que houve uma
recuperação das chamadas pequenas e médias propriedades – situadas
no estrato de 10 a menos de 100 hectares-, fruto do amplo processo de
ocupação de terras iniciado a partir da metade da década de 80, cujo
marco foi a ocupação da Fazenda Capoema, em Santa Luzia.
QUADRO 01 - Distribuição percentual do número de estabelecimentos e área ocupada
(1970/1995).
ESTABELECIMENTOS ÁREA
GRUPOS DE ÁREA TOTAL
1970 1995 1970 1995
Menos de 10 ha 87,6 76,9 5,6 3,1
10 a menos de 100 7,8 16,8 10,2 19,1
100 a menos de 1000 4,1 5,9 42,4 41,4
1.000 a menos de 10.000 0,5 0,4 37,5 27,9
10.000 e mais 0,0 0,0 4,3 8,5
Fonte: Censo Agropecuário, IBGE (p.33) (com modificações na tabela original, extraído de Carneiro (1999).
63
Quanto ao crescimento das áreas com mais de 10 mil hectares, estas estão
localizadas, com maior incidência, nas regiões oeste e sul maranhense, áreas onde
os plantios da soja e do eucalipto foram incentivados, confirmando a tese de Wagner
(1987) da emergência de um novo gênero de grande propriedade que estaria se
estabelecendo no Maranhão: o latifúndio industrial.
Quanto maior é o estabelecimento, menor é a proporção das terras utilizadas
para agricultura familiar. Em contraste com os pequenos estabelecimentos, os
grandes constituem o reino das pastagens, do eucalipto e das terras ociosas. Assim,
a permanente “divisão do trabalho" no campo maranhense é mais uma vez
confirmada pelo Censo. Por outro lado, o crédito rural subsidiado para a pequena
produção decresceu, a assistência técnica oficial à pequena produção agrícola foi
desmantelada e sucateada, a exemplo do que aconteceu com a EMATER e
SAGRIMA.
2.3 As transformações recentes na agricultura maranhense: a luta pela
construção de um patrimônio familiar.
O processo de acumulação primitiva estrutural manifestou-se em sua
expressão mais acentuada e característica no Estado do Maranhão, que resultou na
integração das áreas novas da região da Pré-Amazônia maranhense ao mercado
nacional e da penetração do grande capital na região.
Trata-se do intervalo que se inicia na década de 1950 do século XX, indo até
os acontecimentos sócio-econômicos mais recentes, quando o Maranhão atravessa
nova fase, com a implantação dos chamados grandes projetos. No Sul do estado a
expansão da soja, no Oeste maranhense as empresas de ferro – gusa e
monocultura do eucalipto, no Baixo Parnaíba as empresas de papel e celulose, e
atualmente, também a soja, que têm como conseqüência mais imediata o controle
sobre a mão-de-obra desqualificada do pequeno trabalhador rural.
Conforme Arcangeli (1987), a chamada “inserção na divisão nacional do
trabalho”, iniciou-se nos anos 40, e consolidou-se nos anos 50, para evoluir até as
transformações recentes. Os principais fatos desta fase revelam o processo de
64
integração (ou reintegração) do Maranhão ao sistema de acumulação capitalista,
tanto no que se refere ao processo de circulação como de produção. O autor
sintetiza estes fatos da seguinte forma:
a) decadência e crise da indústria têxtil;
b) surgimento da indústria de extração e refinamento do óleo babaçu
c) estabilização da atividade extrativa do coco babaçu;
d) avanço das áreas de lavoura temporária, produtoras de alimento para o
mercado nacional;
e) ocupação do oeste do Estado, antes vazio, a partir da intensificação dos
fluxos migratórios provenientes da corrente nordestina;
f) avanço da pecuária, antes na retaguarda das áreas de lavoura e,
recentemente, sobre as mesmas.
O desenvolvimento da pequena produção agrícola no Estado do Maranhão
efetivou-se a partir do período colonial.
Conforme Andrade (1984, p.37), um século após a conquista, o povoamento
do Estado do Maranhão se estendia:
[...] apenas em torno das baías de São Marco e de São José, ocupando a
ilha do Maranhão, espraiando-se pelo continente ao Nordeste, onde situava
a vila de Alcântara, nos baixos cursos do Grajaú, do Pindaré e do Mearim,
onde havia fazendas de gado, e ainda nas várzeas da baixada do Itapecuru
e Munim, em cuja foz se erguia a Vila Icatu. Era um modesto povoamento
para um século de colonização.
Neste período, consoante o autor, entre as principais atividades econômicas
destacavam-se a cultura de cana destinada à fabricação do açúcar e de aguardente.
Havia na Capitania cerca de vinte engenhos, com destaque para o vale do Itapecuru
e a região de Alcântara como principais centros produtores.
Posteriormente, no final do período colonial, o aumento da produção do
algodão e do arroz favoreceu o povoamento. Conforme Andrade (1984, p.40),
[...] a área de povoamento se expandia alcançando o alto Itapecuru, onde o
povoamento do Norte alcançou o do Sul, oriundo da Bahia, o baixo Pindaré,
onde se fundaram duas vilas – Viana e Monção – enquanto no litoral
surgiam vilas como Guimarães.
Ainda conforme Andrade (1984), a economia maranhense se manteve até à
primeira metade do século XVIII dedicada ao auto-abastecimento, com uma quase
inexistência de moeda. A partir deste período, ou seja, na segunda metade deste
século, direcionou-se para o mercado externo, com as exportações de algodão e de
65
arroz. O açúcar só seria exportado após a independência, sobretudo com a
instalação de engenhos a vapor no vale do Pindaré, como o Engenho Central
(ANDRADE, 1984).
Com a decadência deste sistema, em fins do século XIX e início do século
XX, tem-se um campesinato gerado pela libertação dos escravos e pelos
trabalhadores rurais do Nordeste (Pernambuco, Piauí e Ceará) expulsos pela crise
da “plantation” açucareira de 1929 e pelas sucessivas secas, como a de 1957.
Conquistando áreas despovoadas e desbravando a “terra livre”, os
nordestinos formaram as chamadas “frentes de expansão”
26
, que se dirigiram para
os vales dos rios Pindaré, Mearim, Grajaú e Gurupi, atingindo também Imperatriz. As
“frentes de expansão” criaram as condições para o crescimento da “economia
camponesa” já existente no Estado. Esta economia seria, conforme Arcangeli (1987,
p, 112), “uma economia pequeno – mercantil, cujo cálculo econômico não é
capitalista, mas que se articula e se integra à frente pioneira, de lógica capitalista,
através do mercado”.
A importância dos migrantes efetivou-se pela formação de uma “Frente
Pioneira Agrícola”, nas áreas controladas ou parcialmente ocupadas pelo processo
anterior de colonização (região do Médio-Mearim, Cocais e Pré-Amazônia), que
coincidiu exatamente com a decadência da monocultura do algodão da região de
Itapecuru e o processo de abertura de estradas, principalmente a Belém-Brasília.
Com isso, essas áreas receberem um contingente de trabalhadores rurais,
provocando um desequilíbrio parcial do modelo vigente até então, pelo aumento da
demanda por terras, que elevou o preço do aforamento e gerou maior poder de
barganha para o latifúndio. A continuidade do fluxo nordestino levou à migração
destes trabalhadores que, junto com os outros nordestinos, começaram a adentrar
em direção à Amazônia. Por volta de 1960, começaram a chegar à região de
Imperatriz, onde se unificaram num único fluxo. Ao penetrarem no Pará, foram
chamados de “maranhenses”.
26
A frente de expansão constitui-se conforme Martins (1987, p.107), numa “[...] faixa (povoada,
mesmo que com baixa densidade) que não se constitui uma frente pioneira uma vez que, sua vida
econômica não está estruturada primordialmente a partir das relações com o mercado”. É importante
considerar também de acordo com Coelho (2002, p.27), que as frentes de expansão, ocupavam
áreas que eram habitadas por diferentes populações indígenas e, que as frentes, ainda que tenham o
mesmo caráter econômico, seja pastoril, extrativista ou agrícola, constroem relações diferenciadas,
que dependem do grupo indígena com o qual entram em contato e de fatores como valor da terra na
região, contacto com o mercado e o grau de incorporação da mão - de - obra indígena nas atividades
desenvolvidas.
66
Os trabalhadores rurais que se deslocaram com suas famílias pela região do
Pindaré buscavam terra. Uma “terra livre”, “devoluta”, da qual, no futuro, poderiam se
tornar legalmente proprietários ou perdê-la, devido a mudanças sociais, o que
aconteceu, transformando-os em posseiros
27
, foreiros, meeiros e até assalariados.
A história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro das
lutas para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade. Ou seja, esta
situação, reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais, da própria
história da agricultura brasileira, como o colonialismo que se perpetuou como uma
herança, mesmo após a independência; a dominação econômica, social e política da
grande propriedade; a escravidão, e a existência de fronteira de terras livres ou
passíveis de serem ocupadas pela simples ocupação e posse.
Conforme afirma Wanderley (1996, p.8), no Brasil a grande propriedade,
[...] dominante em toda a sua História, se impôs como modelo socialmente
reconhecido. Foi ela quem recebeu aqui o estímulo social expresso na
polìtica agrícola, que procurou moderniza-la e assegurar sua reprodução.
Neste contexto, a agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e
subalterno na sociedade brasileira. Quando comparado ao campesinato de
outros paises, foi historicamente um setor "bloqueado", impossibilitado de
desenvolver suas potencialidades enquanto forma social especifica de
produção.
Aqui, houve dificuldade para a implantação de um sistema produtivo
diversificado. Embora o consumo de proteínas na alimentação humana pudesse ser
assegurado, nos níveis mínimos, através das atividades de caça e pesca, a
ausência da criação animal afetava diretamente, as possibilidades de fertilização
natural, só compensada pelo constante deslocamento das áreas de culturas.
Neste nível de precariedade, certamente não há muito como construir um
patrimônio familiar. Parto, no entanto, da hipótese de que, no caso dos nordestinos,
por muito tempo, o projeto para o futuro, pelo qual as gerações atuais se
27
Aldighieri (1993) apresenta uma classificação muito mais ampla que considera camponês aquele
que tem uma relação de trabalho, vida e cultura com a terra, (camponês lato sensu). Nesta definição,
entrariam todos os que trabalham com a terra, sejam como proprietários, meeiros, posseiros ou
assalariados rurais (os chamados ‘bóias frias); a segunda classificação é a do camponês stricto
sensu, definido como aquele que explora uma parcela da terra por conta própria, com a participação
de seus familiares no trabalho e eventual ajuda de outros companheiros, produzindo, sobretudo para
a subsistência sua e da família. Entre os camponeses (stricto sensu) está o posseiro, aquele que,
expulso da terra, luta em busca de uma nova posse. Porém, este termo tem sido muito utilizado para
classificar indistintamente todos aqueles que possuem um terreno sem seu título legal. Estariam
nesta classificação fazendeiros e grileiros. Entretanto, o termo posseiro não pode ser indistintamente
aplicado. A mesma lei agrária exige que seja considerado posseiro só aquele que mora e trabalha na
terra ocupada. É a partir deste conceito que o presente trabalho considera o termo posseiro. Ver
também Moura (1986).
67
comprometem com as gerações que as sucedem, pôde ser assegurado, graças às
possibilidades de mobilidade espacial abertas pela prática da agricultura itinerante
e, sobretudo, pelo sistema de posse precária da terra. De uma certa forma, segundo
Wanderley (1996), “[...] o patrimônio transmitido era o próprio modo de vida.”
Esta situação limite não é generalizável, para todo o campesinato brasileiro,
em seus diversos momentos e em todo o território nacional
28
. Conforme Lamarche
(1993, p.185), na região nordestina, no cariri e no semi-árido:
A pequena produção ocupa muitas vezes um espaço exíguo entre os
“latifundios” e permanece a serviço dos grandes proprietários. Estes
acumulam, na maior parte do tempo, atividaes comerciais, industriais ou
liberais e, muitas vezes, estendem ainda seu controle até a esfera política,
manupulando assim, o aparelho do Estado em benefício próprio.
Trabalhadores deslocaram-se dos Estados nordestinos de Pernambuco,
Paraíba, Ceará e Piauí, em razão das constantes secas ou da expulsão das terras
pelos grandes proprietários. Este segmento adentrou no Maranhão, primeiro pelo
Vale do Mearim (Bacabal); depois, pelo Vale do Pindaré, e, sobretudo, pelos
municípios de Santa Luzia e Bom Jardim. De lá, “forçados” pelos fazendeiros e pelas
grandes empresas, se deslocaram mais uma vez, até à chamada região do Bico do
Papagaio
29
, já nos anos de 1970.
A dinâmica da estrutura social na primitiva região “terras livres”, tornada zona
de expulsão de pequenos produtores, deu-se por dois fatores. Um desses fatores foi
a própria existência de terras que, embora já ocupadas pelos trabalhadores que
compunham a frente agrícola, se apresentavam para a sociedade como um todo,
como terras “livres”, devido a não formalização da posse do ponto de vista jurídico,
pois o interesse destes, para com a terra é o trabalho e não o negócio. Essa é uma
das razões para não se preocuparem com o título da terra, só que nessa situação a
terra se apresenta como objeto de apropriação para a pecuária e para a
especulação (grileiros), culminando com a limitação e o controle progressivo da
ocupação. O outro fator foi o desenvolvimento do sistema rodoviário e ferroviário
(ferrovia Carajás), que atraiu novos grupos e serviu tanto para o escoamento da
28
Para maiores informações sobre a diversidade da agricultura familiar no Brasil, ver a pesquisa de
Lamarche (1993) .
29
Região do extremo norte do Estado de Tocantins, na confluência dos rios Tocantins e Araguaia, em
que a linha divisória entre os Estados de Tocantins, Maranhão e Pará forma um desenho que lembra
um bico de papagaio, daí o nome da região.
68
produção (atingindo toda a rede de comercialização), como para a divulgação da
ocorrência de supostas terras livres na Pré-Amazônia maranhense.
Conforme Arcangeli (1987), a forma de relação dos trabalhadores rurais com
a terra não é homogênea, registrando-se a existência de:
a) pequenos produtores proprietários que adquiriram título de propriedade da
pequena gleba que trabalham;
b) pequenos produtores arrendatários (ou “foreiros”), em que trabalham em
terra alheia, de terceiros, aos quais pagam a renda fundiária, ou em dinheiro, ou em
produto, ou em trabalho;
c) pequenos produtores posseiros, que ocupam terras devolutas, livres e que,
em sua atividade produtiva apresentam grande mobilidade espacial.
Em geral, as três categorias estão presentes em todo o Estado do Maranhão.
Porém, a segunda localiza-se preponderantemente na frente pioneira, que
corresponde às áreas de ocupação mais antiga. A terceira é, no entanto, a que mais
exprime a atividade produtiva da frente de expansão, ou seja, das áreas de
ocupação mais recente.
A heterogeneidade da pequena produção mercantil, não impede, porém, uma
caracterização mais geral, ou seja, há nesta produção aspectos e especificidades
que são gerais e que se aplicam mais ou menos às três categorias de produtores
descritos acima, pelo menos no seu aspecto essencial. Em relação à esfera
produtiva, uma primeira característica reporta-se à união existente entre o produtor
direto e os meios de produção, isto é, o agente da pequena produção mercantil não
está dissociado dos meios de produção. Estes meios são a terra, os insumos e os
instrumentos de trabalho. No caso dos arrendatários ou foreiros, a não dissociação
somente se refere aos insumos e aos instrumentos de trabalho. Além do mais, os
foreiros estão mais subordinados ao capital não só devido ao mercado, mas
principalmente ao próprio âmbito da produção, uma vez que o meio de produção
terra já é objeto de monopólio privado, que utiliza a renda fundiária
30
.
30
Conforme Marx (1968, p.710), a propriedade fundiária que o capitalismo no início encontra não
corresponde, desta forma, um obstáculo à ação do capital na agricultura. “A condição prévia do modo
capitalista de produção, portanto, é esta: os agricultores efetivos são trabalhadores agrícolas,
empregados por um capitalista, o arrendatário, que explora a agricultura como campo particular de
aplicação do capital, como investimento de seu capital numa esfera particular de produção. Este
capitalista arrendatário paga ao proprietário das terras, ao do solo que explora, em prazos fixados,
digamos por um ano, quantia contratualmente estipulada (como o prestatário de capital-dinheiro para
determinado juro) pelo consentimento de empregar o seu capital nesse campo especial de produção.
69
O que é mais importante reter desta discussão é que, em geral, neste tipo de
economia, o domínio total ou parcial sobre os meios de produção permite aos
agentes econômicos da pequena produção mercantil um controle completo do
processo de trabalho. Pois, deter os meios de produção e comandar o processo
produtivo, possibilita aos produtores independentes da pequena produção mercantil
uma apropriação direta dos resultados do seu trabalho. A decisão do “que produzir”
e “quando produzir”, por parte dos camponeses, não leva em conta as “perspectivas
do mercado”, e sim as necessidades básicas para reprodução das famílias dos
produtores.
Diante da necessidade de consumo para a própria reprodução dos meios de
produção e da força de trabalho da unidade produtiva familiar, há uma parcela do
produto que não sai da esfera produtiva, fica para o consumo da unidade.
Entretanto, outra parcela alcança o mercado em função da inevitável dependência
que os produtores agrícolas têm em relação aos demais produtores do sistema,
independentes ou vendedores da força de trabalho. Portanto, esta segunda parcela
do produto camponês, ao contrário da primeira que tem valor de uso, passa a ter
valor de troca, independentemente das condições de produção em que foi trocada.
Conforme Arcangeli (1987, p.117) esta segunda parcela “[...] possibilitou e possibilita
a articulação da frente de expansão com a frente pioneira pela troca de produtos e
que se define como o excedente da produção camponesa, dando-lhe o caráter
mercantil”. Ainda de acordo com o autor, é esta segunda parcela que também,
possibilitou e ainda possibilita o abastecimento alimentar das cidades. E que, a
inserção do Maranhão na divisão nacional do trabalho, se fez, portanto, a partir da
produção deste excedente da pequena produção mercantil, obtido ao menor custo.
Entendo que as formas de precariedade são diferenciadas. Os agricultores
tiveram, de uma maneira ou de outra, que abrir caminho entre as alternativas que
encontravam: submeter-se à grande propriedade ou isolar-se em áreas mais
distantes; depender exclusivamente dos insuficientes resultados do trabalho no sítio
ou completar a renda, trabalhando no eito de propriedades alheias; migrar
temporária ou definitivamente.
Chama-se esta quantia de renda fundiária [...] Esse pagamento se efetua durante todo o período em
que o proprietário contratualmente emprestou, alugou o solo ao arrendatário. Assim, a renda fundiária
é a forma em que se realiza economicamente, se valoriza a propriedade fundiária”.
70
Além dessa situação de precariedade, esse segmento tem sido
profundamente marcado pela instabilidade das situações vividas. Dessa forma, são
diversos os estudos que indicam a luta dos agricultores para ter acesso ao mercado,
como também são inúmeras as referências às suas derrotas neste campo de ação.
Longe, porém, de propor uma direção unívoca, resultando na dissolução do setor,
estes embates dão conta de processos complexos que construíram trajetórias
diferenciadas nos diversos momentos e em diversos espaços do território
brasileiro
31
.
A descampesinização é o processo brutal, pelo qual o Estado e os
latifundiários desestruturaram a economia e as formas sociais de “cultivadores
pobres livres” no Nordeste, que partiram em busca de novas terras, a exemplo das
“frentes de migração” vindas desta região para os chamados “vales úmidos” do
Maranhão. Reinstalaram-se em novas condições, as comunidades de base familiar,
num claro mecanismo de recampesinização.
Acredito que este tenha sido o caso de parte daqueles hoje assentados do
P.A Brejo de São Félix. Como moradores, trabalhando na fazenda, tentavam
assegurar as condições mínimas de uma atividade produtiva familiar no interior da
grande propriedade onde reside. Como o afirma Moacir Palmeira(1977, p.106),
[...] não há dúvida que a concessão de sítios representa o mais importante
dos “prêmios” que o senhor de engenho atribui ao morador, pois significa
para o morador poder plantar, além do seu roçado, árvores e, portanto,
ligar-se permanentemente à propriedade (e aqui o tempo de permanência
passa a ser um elemento importante.
A relação de parceria, conforme Antônio Cândido (1964, p.150), permite uma
certa forma de recampesinização:
[...é possível dizer que o incremento extraordinário da parceria pode
significar verdadeira capitulação do latifúndio, que permite refazerem-se no
seu território agrupamentos de lavradores em condições parecidas, muitas
vezes, como a de pequenos sitiantes integrados em bairro, praticando, em
pequena escala, agricultura de subsistência.
Como vencedores ou perdedores no processo de luta, ontem ou hoje, os
trabalhadores rurais lutam visando o acesso a atividades estáveis e rentáveis. É este
objetivo que norteia suas estratégias econômicas que se articulam em dois níveis
31
Wanderley (1996), denomina essas trajetórias como processos de “campesinização”,
“descampesinização” e “recampesinização” .
71
complementares: por um lado, o acesso a uma atividade mercantil e por outro lado,
o autoconsumo. Esta dupla preocupacão - a integração ao mercado e a garantia do
consumo - é fundamental para a constituição do que Wanderley (1996) denomina
“patrimônio sócio-cultural”, do campesinato brasileiro. Portanto, a referência a uma
“agricultura de subsistência”, tão frequente na literatura especializada, pode
esconder os propósitos mais profundos dos agricultores. Pois conforme Wanderley
(1996, p.10),
[...] nada indica que o campesinato brasileiro se restrinja, em seus
objetivos, à simples obtenção direta da alimentação familiar, o que só
acontece quando as portas do mercado estão efetivamente fechadas para
eles. Pelo contrário, a experiência do envolvimento nesta dupla face da
atividade produtiva gerou um saber específico, que pôde ser transmitido
através das gerações sucessivas e que serviu de base para o
enfrentamento - vitorioso ou não - da precariedade e da instabilidade.
(1996, p. 10).
É este saber que fundamenta a complementação e a articulação entre a
atividade mercantil e a de subsistência, efetuada sobre a base de uma divisão do
trabalho interna à família, conforme Garcia Jr. (1990).
O esforço de constituir um “território” familiar, um lugar de vida e de trabalho,
capaz de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações
posteriores, é uma das dimensões mais importantes das lutas dos trabalhadores
rurais brasileiros. Paradoxalmente, a perseguição deste objetivo supõe, muito
frequentemente, a extrema mobilidade do agricultor, que se submete a longos,
constantes e sucessivos deslocamentos espaciais.
A partir desta questão, conforme Wanderley (1996, p.11), é possível
considerar duas situações distintas:
Em primeiro lugar, a mobilidade resultante da pressão direta da grande
propriedade. Diante da necessidade de escapar da submissão ao
latifúndio, a alternativa possível consistiu, ao longo da história do
campesinato brasileiro, especialmente, em algumas regiões, na migração
para o interior do País.
Em segundo lugar, a migração para a fronteira se inscreve também na
lógica interna da reprodução da agricultura camponesa, particularmente,
do Sul do País.
O que chama a atenção, continua a autora, “[...] é o fato de que a reprodução social
da família no Brasil muito frequentemente gera a expectativa da instalação de cada
filho em um novo estabelecimento”. Ou seja, na maioria das vezes, o agricultor tem
apenas sua terra para oferecer qualquer futuro para os filhos.
72
A migração tem aqui duas faces: a esperança e o fracasso. A existência de
uma fronteira agrícola, no interior do país, foi a condição que permitiu a estes
camponeses garantir a autonomia do seu modo de vida, especialmente, pelo fato da
existência de terras livres, acessíveis através do sistema de posses.
Por outro lado, o risco desse deslocamento sempre foi intenso e constante.
Nesta trajetória em busca de novas terras, além de ter que enfrentar as dificuldades
inerentes ao próprio deslocamento e à instalação em um local desconhecido, o
grande desafio consistia em vencer as mesmas condições das quais se tentava
escapar.
No caso do sertão nordestino, a estas dificuldades acrescenta-se o
enfrentamento das secas. Como afirma Celso Furtado (1964), se torna um
“problema social”, a partir, precisamente da intensificação da migração.
Essa combinação, aparentemente, tão feliz, da pecuária com o algodão
arbóreo, modificou as bases da economia sertaneja e transformou as secas
em um problema social de grandes dimensões. A população que acorria
ao sertão, em busca das vantagens que apresentava a cultura do algodão
e seduzida pela abundância de alimentos que ali florescem nos “bons”
invernos, estava, em realidade, sendo atraída para uma armadilha infernal.
O trabalhador que se fixava no latifúndio sertanejo devia plantar algodão
em regime de meação com o dono, que financiava o plantio, adiantando
sementes e o necessário para custear a produção.” (1964, p. 166).
Porém, a própria existência da fronteira dá sentido à intensa mobilização. Isto
é, o deslocamento, uma vez que existam terras livres, se inscreve no projeto de vida
familiar como uma continuidade.
Pode-se propor a hipótese que este processo não é exclusivo dos
agricultores nordestinos, mas pode ser observado como um traço comum em todos
os agricultores brasileiros. O que parece a primeira vista como ausência de vínculo
com o território familiar e comunitário de origem, significa, na verdade, a
possibilidade de constituição - ou reconstituição - do patrimônio familiar, mesmo
que seja em um local distante. Nisto, os brasileiros diferem profundamente dos
franceses e mesmo dos canadenses, instalados e enraizados há séculos em seus
locais de origem.
A existência da fronteira funcionou também, como uma válvula de escape
para tensões sociais. Porém, ali também o controle da grande propriedade acabou
por subordiná-los, fazendo dessas regiões o cenário de uma verdadeira “guerra de
extermínio” que opõe os pequenos “posseiros” aos grandes empreendimentos
agrícolas ou de criação de gado que promovem a especulação da terra.
73
O assentamento Brejo de São Félix está situado na região dos cocais. Nesta
região fica também o município de Caxias. De acordo com May (1990), os latifúndios
ocupam a maior parte das terras e fornecem moradia e trabalho para a maioria dos
trabalhadores sem terra da região. As relações de produção nestes
estabelecimentos, de acordo com o autor, são paternalistas, suas atividades
produtivas diversificadas e o fraco intercâmbio com a economia de mercado os
tornam resistentes às mudanças. A rigidez dos padrões de arrendamento e a
interdependência entre o proprietário de terra e os moradores têm caracterizado o
domínio dos latifúndios na região.
De acordo com May (1990), a principal mudança ocorrida entre os Censos de
1960 e 1980, nas características das propriedades agrícolas em Caxias, foi a
redução em quase metade da proporção da terra agrícolas nas mãos dos posseiros
de (12,3% a 6,6%) e um declínio ainda mais agudo de (43,6% a 16,3%) na
proporção dos produtores classificados como posseiros. Para onde foram os
posseiros, questiona o autor. A resposta é que alguns se tornaram proprietários
com títulos, pois o número de pequenas propriedades quase dobrou em Caxias
entre 1960 e 1980, tendo sido acompanhado por uma redução de quase dois terços
no tamanho médio da propriedade. Ainda de acordo com May (1990), as terras nas
quais eles produziam passaram a pertencer legalmente a outros, porém, os antigos
posseiros geralmente permaneciam na propriedade na condição de moradores ou
foram forçados a procurar outra propriedade na qual pudessem morar e trabalhar
como arrendatários. ‘empurrando’ para frente a fronteira amazônica da zona do
babaçu. O número de produtores nesta categoria segundo o autor, quase
quadruplicou entre os censos de 1960 e 1980, como resultado da migração de
novos arrendatários e do crescimento natural da população.
O autor, analisando os dados de uma pesquisa realizada em Caxias no
período de 1963 a 1973, constata que as fazendas de Caxias pareciam estar
isoladas das mudanças que Nicholls e Paiva (1979) constataram na agricultura
brasileira como um todo. A área de Caxias foi à única das sete áreas pesquisadas
onde o uso do trabalho nas propriedades visitadas pela segunda vez tinha,
aparentemente, aumentado. Enquanto que em Caxias ocorreu um aumento de 9%
no número de famílias residentes por unidade de terra, nas outras áreas, houve um
decréscimo de 27%. Conforme May (1990, p.100):
74
O total de homens-ano de trabalho por unidade de terra também aumentou
em Caxias em proporção semelhante, enquanto que no resto do País, até
mesmo em outras partes ‘retrógradas’ do Nordeste que haviam sido
pesquisadas, o uso total do trabalho declinou substancialmente e a
quantidade de trabalho temporário ficou estável ou aumentou.
A resposta para esta diferença, em parte está, segundo May (1990), nos
dados discutidos acima, ou seja, no desaparecimento gradual de uma fronteira
agrícola em Caxias que acarretou o aumento da mão-de-obra residente dentro das
propriedades existentes. Novas unidades de produção foram formadas,
incorporando alguns dos posseiros forçados a abandonar as terras devolutas.
Embora parte desse crescimento tenha se alastrado através de migração rural –
urbana e de migrações em direção ao Oeste, a população remanescente nas
propriedades rurais de Caxias era bastante numerosa.
Esses latifúndios, em alguns casos, poderiam ser descritos de acordo com
May (1990, p.101) em:
[...] verdadeiras comunidades, com escolas, capelas, campo de futebol e
pequenas indústrias de processamento. Seu isolamento com relação à
sede municipal reforçava seu caráter de unidade de produção e consumo
semi-autônomas.
No que se refere aos dados mais recentes em relação à Estrutura Fundiária
do Território dos Cocais, percebi que no ano de 1998 foram cadastrados 4.106
imóveis rurais, que ocupam 932.469,4 ha. Considerando que a superfície do
Território dos Cocais totaliza 20.920 km² (2.092.000 ha), segundo o cadastro do
INCRA/1998, essa área corresponde a 45% da superfície total . No cadastro de
2005, foram computados 6.015 imóveis rurais, ocupando uma área de 1.291.296,5
há. Neste período houve um acréscimo de 1.909 imóveis que corresponde a
ocupação de mais 358.827,1 há e 62% da área total da região.
A distribuição do tipo de estabelecimento observada na região foi a mesma
ocorrida no restante do Estado do Maranhão, ou seja, a metade dos imóveis
corresponde a minifúndios e a grande propriedade continua a ocupar metade de
toda a área cadastrada do Estado. Muito pouco se fez em termos de ações da
Reforma Agrária, conforme pode ser visto no Quadro 02.
75
A Grande Propriedade
32
que representava 4,26% do total dos imóveis rurais
(175) diminuiu para 4,14% (249) no intervalo de 1998 a 2005
33
. Essa categoria de
imóvel, em 1998, ocupava 50,56% do total da área cadastrada (471.476,5 ha) e
passou a ocupar 49,09% (633.902,0 ha). Já a relação imóvel / área, em 1998 era de
2.694 ha, passou a 2.545 ha em 2005. Ou seja, mesmo havendo no período
considerado uma queda na participação percentual da categoria sobre o total do
imóvel, em termos absolutos, houve acréscimo tanto no número de imóveis (74)
como na área ocupada,162.425,5 ha. Portanto, ao contrario do ocorrido para o
conjunto do Estado, no território observa-se uma queda na média de área ocupada
pela Grande Propriedade.
QUADRO 02 - Evolução da Estrutura Fundiária do Território dos Cocais -
INCRA: 1998/2005
N° IMÓVEL ÁREA (há) CATEGORIA DE
IMÓVEL RURAL
1998 % 2005 % 1998 % 2005 %
Não Classificada 4 0,10 122 2,03 6.291,3 0,67 2.122,0 0,16
Minifúndio 1.963 47,81 2.806 46,65 58.386,6 6,26 80.620,6 6,24
Pequena
Propriedade
1.392 33,90 2.000 33,25 166.759,0 17,88 231.304,2 17,91
Média Propriedade 572 13,93 838 13,93 229.556,0 24,62 343.347,7 26,59
Grande
Propriedade
175 4,26 249 4,14 471.476,5 50,56 633.902,0 49,09
TOTAIS 4.106 100,00 6.015 100,00 932.469,4 100,00 1.291.296,5 100,00
Fonte: INCRA / CADASTRO RURAL / ESTATÍSTICAS CADASTRAIS MUNICIPAIS Abril de 1998/Dezembro de
2005.
Já os minifúndios
34
que representavam 47,81% dos imóveis (1.963) em 1998,
reduziram-se para 46,65% (2.806) em 2005. O total da área cadastrada no território
que era de 6,26 % em 1998 (58.386,6 ha) passou para 6,24% em 2005 (80.620,6
ha). Assim, a relação imóvel/área não se alterou, ficando em média 30 ha.
Portanto, apesar das ações implementadas em termos de Reforma Agrária
em todo o Território, 46,65% dos imóveis ainda são minifúndios (2.806) e 49,09% de
toda a área cadastrada pertence à categoria de Grande Propriedade. É o que ilustra
os Gráficos 3 e Gráfico 4, abaixo.
32
A Lei nº 6.746/1980, vinculada ao Imposto Territorial Rural / ITR, o módulo rural passou a ser o módulo fiscal,
que é a área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, define a grande propriedade como o imóvel
rural de área superior a 15 (quinze)módulos fiscais.
33
A variação dos imóveis no período deve-se em parte, ao fato de que em 1998, não foram incluídos no
Território os dados referentes aos municípios de São João do Sóter (desmembrado de Caxias em 10/11/1994) e
Lagoa do Mato (desmembrado de Passagem Franca em 01/01/1997).
34
Ainda de acordo com a Lei nº 6.746/1980, o minifúndio é o imóvel rural com dimensão inferior a 1(um) módulo
fiscal.
76
A Pequena
35
e a média propriedade
36
não apresentaram significativas
evoluções.
Assim, no Gráfico 01, do ponto de vista da variação percentual do número de
imóveis rurais, sobressai-se o minifúndio. No Gráfico 02, variação percentual da área
dos imóveis, destaca-se a grande propriedade.
GRÁFICO 01 – Variação Percentual do Número de Imóveis Rurais.
TERRITÓRIO DOS COCAIS / MA: 1998 a 2005
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
40,00
45,00
50,00
VARIAÇÃO
PERCENTUAL
Minifúndio Pequena
Propriedade
dia
Propriedade
Grande
Propriedade
CATEGORIA DE IMÓVEL RURAL
1998
2005
GRÁFICO 02 – Variação Percentual da Área dos Imóveis Rurais.
TERRITÓRIO DOS COCAIS / MA: 1998 a 2005
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
VARIAÇÃO PERCENTUA
L
Minifúndio Pequena
Propriedade
Média
Propriedade
Grande
Propriedade
CATEGORIA DE IVEL RURAL
1998
2005
35
Imóvel rural de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais.
36
Imóvel rural de área superior 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais.
77
Observa-se no Território dos Cocais a manutenção da concentração fundiária,
seguindo a tendência do ocorrido para todo o Estado.
Tomando como referência o Município de Parnarama, cuja superfície
territorial é de 3.487 km², observa-se que em 1998 apenas 50% de sua superfície
total encontrava-se cadastrada, ou seja, 1.755 km² (175.533,3 ha). Em 2005, esse
percentual atinge 66%, ou seja, 2.298 km² (229.806,0 ha).
Nesse mesmo período, houve um acréscimo de 137 imóveis cadastrados
(454 em 1998 para 591 em 2005) e de 54.272,7 ha (175.533,3 ha em 1998 para
229.806,0 ha em 2005). Conforme ressaltado acima, essa variação deve-se ao fato
do Recadastramento qüinqüenal de imóveis rurais, iniciado em 1997, nos termos da
Lei 5.868/72 e do Decreto 72.106/73.
Da mesma forma que ocorreu no Estado, pouco se fez em termos de ações
da Reforma Agrária
37
, como pode ser observado no quadro a seguir.
A Grande Propriedade concentra mais da metade da área do município,
embora seus estabelecimentos sejam em menor número. Em 1998 representava
8,59% do total dos imóveis rurais (39) e passou a representar 8,63% (51) em 2005,
tendo sido acrescidos o total de 12 imóveis no período. Essa categoria de imóvel,
em 1998 ocupava 61,49% do total da área (107.929,2 ha) e passou a ocupar
64,35% (147.886,0 ha), havendo, portanto, um acréscimo de área cadastrada de
39.956,8 há. A criação de três Projetos de Assentamento do INCRA no período,
sendo um deles objeto deste estudo, apesar de ter aumentado o percentual de
pequena propriedade, não reduziu o percentual de área ocupada pela grande
propriedade, cuja relação imóvel / área salta de 2.767 ha em 1998 para 2.900 ha em
2005.
Quadro 03 - Evolução da Estrutura Fundiária do Município de Parnarama/MA
INCRA:1998/2005
N° IMÓVEL ÁREA (há) CATEGORIA DE
IMÓVEL RURAL
1998 % 2005 % 1998 % 2005 %
Não Classificada 2 0,44 20 3,38 1.885,0 1,07 300,0 0,13
Minifúndio 90 19,82 131 22,17 3.663,7 2,09 4.953,7 2,16
Pequena
Propriedade
229 50,44 268 45,35 26.254,8 14,96 28.848,8 12,55
Média Propriedade 94 20,70 121 20,47 35.800,6 20,40 47.817,5 20,81
Grande Propriedade 39 8,59 51 8,63 107.929,2 61,49 147.886,0 64,35
TOTAIS 454 100,00 591 100,00 175.533,3 100,00 229.806,0 100,00
Fonte: INCRA / CADASTRO RURAL / ESTATÍSTICAS CADASTRAIS MUNICIPAIS Abril de
1998/Dezembro de 2005.
37
No ano de 2001, foram criados 03 (três) PA’S no Município, com capacidade para 605 famílias, tendo sido
distribuído 14.737,0 ha. Os PA’s foram reconhecidos em Set / 2001.
78
Os Minifúndios que representavam 19,82% dos imóveis (90) em 1998
apresentam um acréscimo na sua participação sobre o total de imóveis para 22,17%
(131) em 2005, com 41 novos imóveis rurais cadastrados no período considerado.
Quanto à área ocupada, também é acrescida na participação sobre o total de área
cadastrada, passando de 2,09% (3.663,7 ha) em 1998 para 2,16% (4.953,7 ha) em
2005, sendo acrescido em 1.290 ha para essa categoria. A relação imóvel / área cai
de 41 há, em 1998, para 38 ha em 2005.
Diferentemente da situação do Estado e do Território, onde predomina a
categoria de Minifúndios, no Município de Parnarama predomina a categoria de
Pequena Propriedade, que corresponde a 45,35% dos imóveis (268), ocupando
12,55% do total da área (28.848,8 ha) em 2005.
A Estrutura Fundiária do Município de Parnarama expressa a concentração
fundiária, seguindo a tendência do ocorrido para todo o Estado e o Território dos
Cocais. Cabe destacar uma particularidade quanto à distribuição do espaço fundiário
no município, a elevação da relação imóvel/área na grande e média propriedade, em
detrimento da mesma relação para os minifúndios e a pequena propriedade.
Nos Gráficos 03 e 04 a seguir, ilustramos a variação no número dos imóveis e
na área ocupada, para o Município de Parnarama.
GRÁFICO 03 – Variação Percentual do Número de Imóveis Rurais.
PARNARAMA/MA: 1998 a 2005
0
50
100
150
200
250
300
VARIAÇÃO PERCENTUA
L
Minifúndio Pequena
Propriedade
Média
Propriedade
Grande
Propriedade
CATEGORIA DE IMÓVEL RURAL
1998
2005
79
GRÁFICO 4 – Variação Percentual da Área dos Imóveis Rurais.
PARNARAMA/MA: 1998 a 2005
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
70,00
VARIAÇÃO PERCENTUA
L
Minifúndio Pequena
Propriedade
dia
Propriedade
Grande
Propriedade
CATEGORIA DE IMÓVEL RURAL
1998
2005
O assentamento objeto deste estudo está situado nesse município. Seus
moradores hoje vivenciam uma situação de agricultura familiar, estando alguns
inseridos no Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar/ PRONAF- A.
2.4 De novo (en) cena a reforma agrária
Com a vitória de Luis Inácio da Silva, em 2003 renovaram-se as esperanças
na realização de uma efetiva reforma agrária no país, mas, ao mesmo tempo, esta
bandeira, que integra as prioridades do governo, passa também a ser um dos seus
grandes desafios.
Os trabalhadores em geral e principalmente os do campo, esperavam muito
mais deste governo do que de governos anteriores, principalmente em razão da
trajetória histórica e participação nos movimentos sociais do seu titular. A não
realização da reforma agrária prometida significou decepção maior do que aquelas
que os trabalhadores já haviam experimentado repetidas vezes.
Logo no primeiro ano do governo, ocorreram as primeiras decepções: a
lentidão na composição da equipe do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do
INCRA e no cumprimento do anunciado plano de emergência em termos de reforma
80
agrária, ou seja, o assentamento de 60 mil famílias de trabalhadores rurais
acampados nas margens de rodovias pelo país afora.
No ano de 2003, houve um debate junto aos movimentos sociais, organizados
no Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo, e nos fóruns estaduais,
acerca da elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária. Para elaborar o
referido Plano, o governo nomeou uma equipe composta por intelectuais como o
professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira e tanto outros conhecedores da
problemática agrária, sob a coordenação do Professor, dirigente da ABRA
(Associação Brasileira de Reforma Agrária) e Ex-Deputado Federal Plínio de Arruda
Sampaio.
Esta equipe trabalhou com algumas premissas importantes, como o caráter
massivo de qualquer programa de reforma agrária efetivamente capaz de mexer na
estrutura fundiária do país, desconcentrando a terra. Ao mesmo tempo, ressaltou a
necessária qualidade do programa e dos resultados almejados. Assim, a
desconcentração da terra resultaria na multiplicação de produtores, no aumento da
oferta de produtos agrícolas, aumento do consumo e circulação de riqueza no
comércio local e regional, entre outras vantagens, garantindo melhor distribuição de
renda e avanços em termos de justiça social.
O Plano analisa, ainda, as condições necessárias para uma agricultura
sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental. Demonstra que o
padrão tecnológico dominante é excludente, conduz à perda da propriedade por
parte dos pequenos, para os quais a tecnologia de ponta é inadequada, reduz a
biodiversidade, contamina os rios e o meio ambiente em geral pelo uso
indiscriminado de agrotóxicos, tratando-se, portanto, de um modelo insustentável.
Justifica, ainda, a necessidade da agricultura familiar, para aqueles que insistem em
ressaltar a ineficiência e a inviabilidade desta, afirmando o seu contrário, ou seja,
que a agricultura familiar produz, emprega e responde às políticas públicas.
Os dados do último senso agropecuário do IBGE indicam que a agricultura
familiar emprega 77% da mão-de-obra do campo e é responsável, junto com os
assentamentos, por 38% do valor bruto da produção agropecuária e pela produção
dos principais alimentos que compõem a dieta da população. O II PNRA demonstra,
ainda, vantagens da agricultura familiar na geração de empregos, em razão do custo
menor em comparação com o agronegócio.
81
A proposta contida no plano trabalha com um público potencial da reforma
agrária, que gira em torno de seis milhões de famílias rurais, englobando pequenos
agricultores, proprietários com área insuficiente para o seu sustento e o
desenvolvimento sócio-econômico, além dos assalariados rurais e os
desempregados do meio rural.
Entre este público potencial, incluem-se, também, os trabalhadores que se
cadastraram nos correios com o objetivo de serem contemplados, conforme
promessa do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, o que alcançou a
cifra de 839.715 cadastrados. Contudo, este público não inclui significativo número
de acampados, já que em muitos estados os movimentos sociais se opuseram à
inscrição via correios, em razão de seu objetivo claramente desmobilizador das
organizações dos trabalhadores do campo.
A proposta do Plano considera, ainda, a existência de uma demanda
emergencial de beneficiários, que seriam os trabalhadores acampados pelo país
afora, cujos dados de outubro de 2.003 totalizavam 171.288 famílias.
Como se pode verificar, as justificativas para a reforma agrária e as metas
estabelecidas, visando a sua efetiva realização, estão embasadas em dados quanto
aos excluídos do campo, cujos números variam de 3,3 milhões, estes em situação
de pobreza extrema, a 6,1 milhões de possíveis beneficiários de um processo de
reforma agrária.
Quanto às metas, a proposta inicial do Plano era similar ao fixado no I PNRA,
realizado pelo governo Sarney, em 1985, que propunha o assentamento de um
milhão de famílias em 4 anos.
Entretanto, quando no final de 2003, o governo apresentou o II Plano
Nacional de Reforma Agrária, denominado de “Paz, Produção e Qualidade de Vida”,
poucas contribuições do plano elaborado pelo grupo permaneceram no texto oficial,
ocasionando assim, a dissolução do grupo. As metas propostas pela equipe de
elaboração do II PNRA não chegaram a ser divulgada, pois não foram assumidas
pelo governo como um todo. Foram efetuados ajustes e cortes, com o objetivo de
adequar a proposta às possibilidades econômicas do país e, principalmente,
acomodar os interesses das forças políticas de composição do governo.
82
As metas reduziram-se para assentar somente 400 mil famílias nos três anos
restantes do governo Lula (2004-2007), sendo 115 mil famílias nos anos de 2004 e
2005, 140 mil famílias no ano de 2006 e 120 mil famílias no ano de 2007.
O governo, através do MDA/INCRA, afirmou que o Brasil havia superado a
meta de assentamentos prevista no II PNRA... “O melhor desempenho da reforma
agrária em toda a nossa história”( O GLOBO, de 20/01/2006).
De acordo com José Juliano de Carvalho Filho da FEA – USP e da
Associação Brasileira de Reforma Agrária / ABRA, das 127,5 mil famílias
consideradas assentadas em 2005, apenas 45,7% o foram em áreas de reforma
agrária. O restante, 54,3%, refere-se a assentamentos ou reordenação de
assentamentos em terras públicas. Mostra ainda que grande parte dos
assentamentos ocorre em áreas de fronteiras agrícolas, igualmente como faziam os
governos anteriores (O GLOBO, de 20/01/2006).
No Maranhão, a reforma agrária também não tem se efetivado. Há uma
espécie de “manipulação” dos números, de forma a favorecer o cumprimento das
metas pelo INCRA/MA. E assim, são apresentados dados de famílias que já
estavam em suas áreas e que tiveram apenas a regularização fundiária. Esse é o
exemplo do antigo Projeto de Colonização do Alto Turi, conhecido como COLONE,
que o INCRA contabiliza como famílias assentadas neste governo.
Conforme dados do INCRA/MA, em 2006 só foram desapropriadas 17 áreas,
conforme quadro 04, a seguir:
QUADRO 04 - IMÓVEIS RURAIS DESAPROPRIADOS PELO INCRA/MA EM
2006.
Desapropriação Denominação do imóvel Município Área (há)
Data DOU
01 S. Ben/ Riachão/ Juçara Itapecuru-Mirim 4.728,5290 04.01.06 01.06
02 Faz. Estrela da Serra João Lisboa 638,7093 20.03.06 21.03.06
03 São Josezinho / Amapá Nina Rodrigues 2.008,52 12.04.06 13.04.06
04 N. Sen. Aparec./Sta Teresa Brejo 492,7620 12.04.06 13.04.06
05 Faz. Baixão Grande Graj 1.615,1500 18.05.06 19.05.06
06 Gleba Primavera Urbano Santos 1.642,1156 18.05.06 09.05.06
07 Fazenda Canto Bom Colinas 1.080,0000 19.06.06 20.06.06
08 S. Benedito dos Afonsos Codó 2.122,9600 05.07.06 06.07.06
09 São Tiago e Gleba 02 S.B. do Rio Preto 2.300,1400 06.07.06 07.07.06
10 Fazenda Dalban Gov.Nunes Freire 2.551,0000 06.07.06 07.07.06
11 Retiro Velho São Mateus/ MA 951,0000 27.09.06 28.09.06
12 Fazenda Renascer Rosário 1.286,0000 03.10.06 04.10.06
Denominação do imóvel Município Área (há) Desapropr
iação
13 Lagoa da Ffloresta Barra do Corda 2.360,5316 03.10.06 04.10.06
14 Santa Ana e Manolo Santa Luzia 208,4755 03.10.06 04.10.06
15 Fazenda Dalban III Gov.Nunes Freire 1.476,0000 01.11.06 03.11.06
16 Faz. Ouro Azul (Pai Mané) São Mateus/MA 1.400,0000 26.12.06 27.12.06
17 Bacuri Penalva 1.300,0000 26.12.06 27.12.06
FONTE/ INCRA/ MA (Setembro de 2007)
Em 2007, conforme informação do INCRA/MA, só foi desapropriado um
imóvel de 2.758,4423 há, até início de setembro, no Município de Itapecuru – Mirim
(Fazendas Formigas, Cigana de Baixo, São Sebastião, Santa Izabel do Iipiranga,
Bacuri e Mirinzal), no dia 11.02.07 e publicado no Diário Oficial da União no dia
02.02.07. Dessa forma, pela “velocidade“ das desapropriações no estado do
Maranhão, dificilmente será cumprida a meta de 150 mil famílias assentadas em
2007.
Assim, mesmo com a multiplicação das ocupações, o crescimento da luta
pela terra e a implantação de alguns assentamentos, ainda, não foram suficientes
para causar alguma mudança na estrutura fundiária, por menor que seja.
3. A POLÍTICA DE ASSENTAMENTO RURAL.
84
Nesta parte do trabalho busco entender a especificidade institucional que dita
regras e saberes que são referências para a objetivação do processo de reforma
agrária. Entendo que a análise da prática dos técnicos do INCRA que atuam
diretamente com os assentados estaria incompleta se não incorporasse o
entendimento das formas como são propostas as regras de convivência e trabalho.
No Projeto de assentamento Brejo de São Félix, por exemplo, as intenções
dos técnicos do INCRA, na maioria das vezes não correspondem aos interesses dos
assentados. O INCRA procura atuar através de modelos genéricos que devem ser
aplicados a todos os assentados. No entanto, o órgão não consegue impor de forma
absoluta suas regras, pois no embate com os assentados, novas estratégias
acabam por se colocar.
A intenção nesta parte do trabalho é compreender a política de assentamento,
no contexto da dinâmica de sua efetivação, para perceber como nesse contexto os
assentados reorientam suas vidas. Conforme Neves (1997, p.66-67),
Se das regras elaboradas pelas instituições estatais devem esperar
definições que enquadrem seu futuro, porque destas emanam os direitos e
a autoridade política que reconhece a nova ordem social, na prática as
desconhecem ou conhecem referencias nebulosas, acentuando as
incertezas e as dúvidas. Por mais que seja imposto o desconhecimento –
em face da ausência dos representantes institucionais no campo ou da
opacidade de suas ações centralizadas e autoreferenciadas, do
distanciamento que colabora na constituição da autoridade -, os efeitos de
sentido das formas de atuação desses órgãos operam no reconhecimento
do direito do assentado e nas possibilidades e alternativas para concepção
de planos de reprodução social.
Faço esta análise a partir de fontes secundárias, isto é, da documentação
produzida pelos técnicos das instituições que participam da elaboração de modelos
de assentamento: processos, convênios, planos, e normas, como instrumentos cujos
efeitos têm importância para os assentados e que refletem a dinâmica do campo de
concorrência e interdependência ao qual os titulares institucionais se afiliam.
Analisei documentos do INCRA relacionados aos assentamentos como a
cartilha sobre assentamentos (INCRA, 1987), o Manual Operacional ATES (INCRA,
2004), o Plano Preliminar de constituição do Assentamento Brejo de São Félix
(INCRA 1996), a Norma de Execução nº 39 (INCRA), o Convênio nº 004/2005
85
celebrado entre o INCRA e a FETAEMA (INCRA, 2005), e o Processo de
Desapropriação de Área (INCRA, 1988/89).
Concordo com Neves (1997) quando afirma que esses documentos são
instrumentos que dissimulam a aparente neutralidade coextensiva dos modos de
existência do Estado e que explicitam os modos de ação e gestão ou a
multiplicidade e a interdependência de meios com os quais os diversos organismos
pretendem administrar o bem público.
Priorizei a análise das proposições, dos objetivos e das intenções das
políticas neles explicitadas, mas também dos efeitos e das ações decorrentes
dessas intenções, dos mecanismos que viabilizam o processo da sua efetivação.
Entretanto, entendo que o uso desses documentos impõe limites à
compreensão das práticas institucionais e das modalidades de gestão operadas pelo
Estado. Afinal, são discursos que no exercício de sua concretização são alterados
por diferentes contextos e pelo embate com o público alvo dos seus objetivos. Por
outro lado, como situa Neves (1997, p.68), “Desvelam aspectos pontuais da
aplicação da política de reforma agrária. Tendo finalidades restritas, revelam
espaços e modos de ação fragmentados”.
Os convênios, por exemplo, favorecem a compreensão das articulações e das
regras de convivência institucionais. Constituem um dos modos de
institucionalização, uma das estratégias de viabilização e reprodução da
interdependência e da divisão de funções e papéis, múltiplos, e por vezes
divergentes. Eles expressam as posições a partir das quais os titulares institucionais
definem os modos de reconhecimento que pressupõem as atribuições, as sanções,
os limites, metas e demarcações.
Por se constituírem em instrumentos de prova de força, sua análise permite
entender as condutas dos técnicos em grande parte resultantes desse modo de ser
interinstitucional e destes constrangimentos. Permite entender os encontros entre o
poder estatal e o poder local, isto é, as múltiplas modalidades de expressão do
político nas diversas dimensões do social.
Dessa forma, os convênios, projetos, planos e processos, elaborados por
técnicos de instituições são discursos retóricos e prescritivos que diagnosticam as
causas de um problema, ou elaboram uma questão como problema e definem o que
86
fazer, a regra e o direito. Neles está em jogo a intenção de fazer cumprir as
responsabilidades estipuladas.
Os documentos procuram destacar a forma como os objetivos serão
alcançados e desconsideram as práticas e os interesses daqueles sobre os quais as
ações devem incidir, os assentados ou os titulares técnicos das instituições que
ocupam posições de intermediação direta. Na situação de campo, estabelece-se
uma hierarquia segundo a qual a última palavra é sempre dada pelos funcionários
do quadro do INCRA.
A análise dos relatórios e projetos permite uma compreensão mais clara do
que se pretende construir como um mundo social para os assentados que, conforme
Neves (1997, p.71), é:
[...] fruto das representações sociais dos técnicos, elaborados para eles
mesmos e para legitimar a intervenção. Contudo um campo de importância
fundamental, porque nos textos estão relativamente expressas as
intenções que visam modelar, educar, domesticar, enraizar o assentado.
Conforme o documento do INCRA (MIRAD/INCRA, 1987, p.6-7), o Programa
de Reforma Agrária tem como objetivo:
[...] estabelecer uma melhor distribuição de terras por meio da modificação
do regime de posse e uso, para promover a incorporação de famílias de
agricultores sem-terra ao sistema econômico-social, em condições de
produtividade e bem-estar satisfatórias, mediante a exploração racional de
unidades agrícolas.
O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de novembro de 1964), ainda é um dos
principais instrumentos legais em que se baseia o Programa de Reforma Agrária.
3.1 O que significa assentar?
A operacionalização da política agrária está definida pelos Programas de
Assentamento (PA). Assentar é, para o INCRA, a estratégia por excelência de
efetivar a chamada reforma agrária, isto é, colocar em prática mecanismos de apoio
à produção e à organização dos assentados mediante definição de linha
metodológica, ou melhor dizendo, as ações dos técnicos devem se pautar em
determinados princípios e critérios formalmente definidos.
87
De acordo com a cartilha do INCRA (cf. MIRAD/INCRA, 1987, p.7-8), os
princípios que orientam a prática dos técnicos vinculados aos processos de
assentamento são: racionalidade
38
, objetividade
39
e participação
40
.
No I Plano Nacional de Reforma Agrária-PNRA, a política de apoio é
concebida pela articulação de instrumentos, recursos ou estratégias, como a
organização em torno de associações, difusão de tecnologia agropecuária e a oferta
de recursos financeiros através do crédito rural, serviços oferecidos mediante a
complementaridade institucional dos órgãos do aparato estatal.
Segundo a Cartilha de orientação dos técnicos do INCRA (MIRAD/INCRA,
1987), os recursos necessários à constituição e à execução de um Projeto de
Assentamento são: a terra, os beneficiários e as instituições de ação complementar.
Neste sentido, o termo recursos necessários, equipara todos os elementos
envolvidos no processo, que passam a ser tratado como objeto, incluindo ai os
beneficiários.
As instituições de ação complementar podem ser de natureza pública ou
privada e de nível federal, estadual ou municipal, como: instituições de crédito rural,
extensão rural, saúde, educação e prefeitura. Estas instituições prestam serviços de
assistência técnica e de infra-estrutura social e produtiva nos assentamentos, por
meio de convênios com o INCRA.
Conforme argumenta Neves (1997), o projeto de reforma agrária elaborado
pelos titulares do Estado se baseia numa idealização sustentada em múltiplas
reificações, que se traduz numa inabalável e inquestionável eficácia do saber
técnico, originado de uma divisão do trabalho intelectual que segmenta as ações,
pulveriza os resultados, introduz interesses espúrios, próprios de cada instituição
incorporada.
38
Por racionalidade, a cartilha (MIRAD/INCRA, 1987) entende programar e utilizar recursos materiais,
humanos e financeiros com adequação e parcimônia, visando a obtenção do máximo de proveito.
39
Objetividade, segundo o mesmo documento é respeitar as indicações da realidade; beneficiários e
instituições – agentes de promoção do assentamento – devem orientar suas ações considerando as
condições objetivas do País e, ao mesmo tempo, da comunidade assentada e suas unidades
produtivas.
40
E por último, participação refere-se a soma dos esforços institucionais, associados aos interesses e
desejos dos parceleiros, deve conjugar-se na idealização e construção da unidade comunitária do
assentamento. Desde as primeiras ações de assentamento, os parceleiros devem ser chamados a
participar das decisões e da execução das atividades destes decorrentes, de forma organizada e
responsável, assegurando-lhes a experiência do esforço cooperativo aplicado à solução de suas
dificuldades.
88
A reificação do saber técnico reproduz a do saber científico. O prestígio da
ciência justificando as ações e as intervenções, a prescrição e a conversão
sustentam-se no pressuposto de uma racionalidade econômica-administrativa que
justifica os meios e os fins valorizados. Baseia-se na suposição de que os resultados
obtidos em cada assentamento possam ser nesse nível geral planejados e
obedeçam apenas a uma intenção da instituição. Com isso faz de conta que não
aparecem os efeitos inesperados diante dos fins desejados, e não sendo possível
negar esses efeitos, justifica-os como desvios criados pela inadequação dos sujeitos
incorporados nessa transição. Enfim, baseia-se, conforme Neves (1977, p. 82), “[...]
numa idealização das práticas associativistas, na crença num altruísmo coletivista e
na construção social de unidades homogêneas: o Assentamento, a comunidade”.
Os técnicos estatais, na visão dessa autora, imaginam sua intervenção a
partir de um mundo idealizado de problemas e de resoluções, realidade perfeita,
onde haverá o encontro de possibilidades objetivas e favoráveis. Por esta razão os
técnicos se comportam a partir da crença numa história intencional e se referem aos
assentados como reificações ou beneficiários inintencionais.
O programa de assentamentos se baseia numa concepção de mudança de
comportamento dos supostos beneficiários ou na construção orientada dos
assentados, conforme Neves (1997, p.74).
Seja pela alteração nos padrões de sociabilidade e de formas de
organização política, em que o associativismo aparece como um fim em si
mesmo ou como forma privilegiada, seja pela substituição dos paradigmas
do saber prático e incorporação de técnicas viabilizadas em parte pelo uso
do crédito subsidiado, o assentado é pensado como agente em mutação
que deve encontrar novos parâmetros de estruturação social.
Este modelo idealizado de processo de assentamento se respalda, ainda, na
explicitação escrita dos princípios de conduta dos seus agentes.
A política de reforma agrária baseia-se num modelo técnico-burocrático, que
privilegia a racionalização tecnológica e a busca da eficácia material, admitindo a
escassez de recursos e sua maximização. O assentamento é pensado como um
espaço de moldagem do assentado, segundo o modelo proposto pelo INCRA que
envolve afiliação a associações e novas formas de produção. Com relação a essa
perspectiva, Neves (1997, p.75) enfatiza o caráter geral dessa modelagem:
89
Os próprios termos assentar, que designa a ação dos técnicos, ou
assentado, que designa o beneficiário, o programado ou o apassivado, são
reveladores dos princípios que orientam a política institucional do INCRA.
O assentado socialmente é concebido como um sem raiz, ser ambíguo,
que se socializa num mundo em transformação ou de conversão, cujas
marcas mais deléveis derivam dos objetivos do processo e da legislação.
Por ser uma construção intelectual qualificada pela modelagem e
ressocialização, o assentado é forjado como um modo geral de ser. Sua
participação no processo é formal, qualificando a demonstração de
princípio. Sua identidade corresponde ao da representatividade formal,
mediada pelo associativismo, ou irmanação em torno de atribuídos
interesses comuns.
Dessa forma, ainda de acordo com a autora, a participação associativista
desempenha um papel de resolução lógica da contradição inerente à idealização de
um processo de mudança que pressupõe o modelado, isto é, aquele que em
princípio deve receber as marcas que lhe são atribuídas. E os que resistem, ou os
efeitos indesejados, são considerados como produto da defasagem cultural
(desinteresse pela terra, analfabetismo, pobreza e falta de recurso financeiro mínimo
para se integrar ao projeto, inexperiência na atividade agrícola, sedução pelas
vantagens da vida urbana, esperteza pela transferência da posse da terra e
comercialização das “benfeitorias”).
Conforme a cartilha MIRAD/INCRA (1987), as instituições parceiras do INCRA
para aplicação do programa de assentamento englobam ações vinculadas ao crédito
rural, à assistência técnica, médica e educacional. Segundo a referida cartilha “[...] o
crédito rural é o instrumento essencial para a habilitação da terra e a estruturação do
aparelho de produção dos empreendimentos” (INCRA, 1987, p. 8-9). Atualmente
cabe ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF
desempenhar o papel de repassar meios creditícios aos assentamentos.
A distribuição dos recursos, crédito rural, por exemplo, é feita somente para
aqueles que são considerados “beneficiários” e depois de avaliada suas
possibilidades de ressarcimento da dívida.
A extensão rural, termo que era utilizado pelo INCRA para referir-se ao que
hoje é denominado assessoria técnica, assim é definida na cartilha já citada:
[...] trabalho prioritário que deve atuar junto ao agricultor e seus familiares,
levando-lhes conhecimentos e informações tecnológicas e de bem – estar,
de forma educativa, servindo-se de métodos e meios pedagógicos, que
facilitam a incorporação dos conhecimentos e desenvolvimento de
habilidades (INCRA 1987, p.9).
90
Pode-se observar no trecho destacado a percepção do agricultor como
alguém destituído de conhecimentos e estratégias tecnológicas, a quem tudo deve
ser ensinado. A cartilha refere-se a “incorporação dos conhecimentos e
desenvolvimento de habilidades”. O que isso sugere? Que o agricultor assentado é
ignorante e inábil. Esta percepção vai se refletir na efetivação da política de
assentamento, quando observamos que os assentados são desconsiderados por
ocasião da definição das ações, conforme trataremos adiante.
Uma das estratégias de formação dos assentados é via capacitação que se
dará através dos Planos de Desenvolvimento.
No que se refere às ações de saúde e educação, estas são previstas para
serem efetivadas através de parcerias a serem realizadas com a prefeitura
municipal, visando à construção de obras de infra-estrutura e o fornecimento dos
serviços.
A distância e o afastamento dos técnicos do assentamento, a falta de
recursos financeiros ou seu repasse em momentos que não são compatíveis com as
demandas e o tempo dos assentados, a morosidade nas soluções burocráticas e as
contradições decorrentes do papel de coordenador ou o denominado empreendedor,
tornam o INCRA uma instituição ausente. No entanto, a influência do órgão se faz
presente através do contato que é mantido pelos representantes das associações
dos assentamentos. Esse contato acaba por orientar as estratégias e ações dos
assentados e demais mediadores no processo de assentamento.
No entanto, a participação do órgão é imprescindível no reconhecimento
social e jurídico dos novos proprietários da terra; ou no acatamento da legalização
do processo de apropriação da área fundiária.
Neste caso específico, o assentamento Brejo de São Félix é exemplar, pois
mesmo após a desapropriação em 1995, o antigo proprietário, só deixou sua
residência na área, quando os técnicos do Programa de ATES chegaram em abril de
2005, ou seja, 10 anos após a desapropriação da área. Um dos seus filhos está
construindo uma residência no local, cedido pela comunidade, com o consentimento
do INCRA, além de ter conseguido uma área de 1000 ha, neste mesmo P.A.
Os principais instrumentos em que se baseia o Programa de Reforma Agrária
constituem um conjunto de ações que vão desde a obtenção dos recursos materiais,
91
financeiros e humanos necessários ao processo, até a execução de Projetos de
Assentamento.
O assentamento Brejo de São Félix, apesar de desapropriado em 1995, não
teve ainda o Crédito Instalação
41
totalmente implantado, faltando a complementação
do crédito para moradia e apoio inicial para algumas famílias.
Antes da desapropriação, poucas instituições atuavam no local. A CPT –
Comissão Pastoral da Terra executava alguns trabalhos de capacitação, mas de
forma esporádica, na comunidade de Baixão Grande. Havia também o Sindicato dos
trabalhadores rurais de Matões e as prefeituras de Matões e Parnarama, que
continuam atuando no assentamento. Pois, embora o assentamento hoje esteja na
área do município de Parnarama, mantêm vínculos com Matões, especialmente pela
proximidade geográfica maior com este município.
3.2 Assessoria x assistência
O INCRA, visando efetivar seus planos de reforma agrária, instituiu
programas que inicialmente eram definidos como de assistência técnica e,
posteriormente como assessoria técnica. A mudança de nomenclatura implica na
intenção de trazer novo significado ao que vinha sendo denominado assistência
. A
idéia de assessoria pretende incluir maior protagonismo dos assentados no
processo de definição e execução das ações no assentamento.
41
De acordo com a página do INCRA (2007), o Crédito Instalação permite o suporte inicial aos
assentados do Programa de Reforma Agrária nos Projetos de Assentamentos criados ou
reconhecidos pelo INCRA. O benefício deve garantir a segurança alimentar das famílias assentadas,
pela compra de alimentos e aquisição de insumos agrícolas; a construção e recuperação de
moradias; a segurança hídrica aos projetos localizados no semi-árido brasileiro, com a construção de
pequenos sistemas de captação, armazenamento e distribuição de água; a aplicação em bens de
produção (sementes, mudas, matrizes animais, etc.) para a geração de renda.
92
3.2.1. A assistência técnica como estratégia nacional.
Os serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural - ATER caracterizam-
se, predominante, pela ênfase do trabalho numa dimensão produtiva da promoção
do desenvolvimento, marcada pela atuação de extensionistas, formados no marco
do incentivo aos processos de modernização da agricultura.
No contexto político do primeiro governo Lula, gerou-se uma expectativa de
reestruturação do sistema nacional de ATER. No início de 2003, no âmbito do MDA,
um grupo de trabalho formado por especialistas em extensão rural elaborou um
documento denominado “Marco de Referência para uma Política Nacional de
ATER”
42
.
Esse documento propõe uma ampla reformulação dos serviços de ATER no
país, reforça seu caráter público e gratuito aos trabalhadores e agricultores
familiares, estabelece uma nova institucionalidade de gestão do sistema nacional de
ATER e sugere a revisão do papel profissional dos extensionistas. E, além do mais,
elege a agroecologia como “eixo orientador das ações”.
O mesmo documento propõe a substituição dos referenciais teóricos que
tradicionalmente vinham informando a prática extensionista, ou seja, a superação do
modelo de difusão de tecnologias; a adoção de metodologias participativas e de
diagnóstico da realidade nos processos de intervenção, a revisão da postura
profissional diante dos trabalhadores rurais; a adoção de um “papel educativo” e
outro compromisso “[...] com seus beneficiários e com os resultados econômicos e
socioambientais de sua intervenção” (BRASIL, 2003, p. 6).
Fundamentando essas propostas, há várias citações ao longo do texto que
remetem aos “ideais do desenvolvimento sustentável”, embora essa categoria não
seja explicitada ou definida. Tanto o “desenvolvimento sustentável” como
“agroecologia “ aparecem como noções consensuais ao longo do texto.
Quanto à natureza, formação institucional e modelo de gestão a serem
assumidos, a PNATER propõe que os serviços de ATER devem ser públicos,
gratuitos e direcionados exclusivamente aos agricultores familiares. Como diretriz
42
Esse documento foi resultado dos seminários regionais e do seminário nacional em Brasília e da
elaboração do Grupo de Trabalho criado para coordenar a construção da nova política, apresentada
como a nova PNATER (BRASIL, 2004).
93
política, deve-se privilegiar a “gestão compartilhada” do sistema, “[...] de modo a
fortalecer a participação dos beneficiários e de representantes da sociedade civil na
qualificação das atividades de assistência técnica e extensão rural” (BRASIL,
2004.p. 7).
Essa participação seria possibilitada pelo estabelecimento de Conselhos
gestores em nível nacional, estadual e municipal, cada qual com responsabilidades
e atribuições específicas. Em âmbito nacional, o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável articulará a implementação da política.
A proposta abre para diversas entidades a possibilidade de participação no
“Sistema Nacional de ATER”, desde as instituições públicas estaduais de extensão
rural, passando pelas ONGs, até os estabelecimentos de ensino que tenham
práticas de ATER dirigidas à agricultura familiar. A exigência é que atendam aos
requisitos estabelecidos pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão
Rural da Secretaria de Agricultura Familiar do MDA (DATER/SAF).
Entre os requisitos estabelecidos, exige-se que a entidade possua uma “[...]
base territorial e abrangência geográfica definidas” (BRASIL, 2004.p. 19), corpo
técnico multidisciplinar e credenciamento nos Conselhos Estaduais e Nacional. O
compromisso da proposta é claro e direcionado à agricultura familiar, assumindo que
ela engloba uma diversidade de tipos de agricultor. Assim, no campo do discurso e
da intencionalidade, o documento ressalta que a concepção da Política Nacional de
ATER está comprometida,
[...] com o desenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar, em todo
o território nacional”. Incluindo-se sob este termo “as populações de
produtores familiares tradicionais, assentados por programas de reforma
agrária, extrativistas, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, pescadores
artesanais e aqüiculturas, povos da floresta, seringueiros e outros públicos
definidos, como beneficiários dos programas do MDA /SAF (BRASIL, 2004,
p. 4).
O sistema nacional de ATER amplia sua área de atuação incluindo as
populações de produtores familiares tradicionais, assentados por programas de
reforma agrária, extrativistas, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, pescadores
artesanais e aqüiculturas, povos da floresta, seringueiros e outros públicos definidos,
como beneficiários dos programas do MDA. Por outro lado, amplia a rede de
parceiros que poderão ser acionados para a execução de projetos de assistência
técnica.
94
3.2.2 Os assentados como protagonistas da reforma agrária?
Programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária
(ATES), criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
em 2004, foi implantado no Maranhão em 2005. Este Programa constitui o carro
chefe no serviço de apoio à reforma agrária, na atualidade. Compõe o II Plano
Nacional de Reforma Agrária do governo Lula, que tem como pressuposto o
reconhecimento da:
[...] diversidade social e cultural da população rural e as especificidades
vinculadas às relações de gênero, geração e etnia, que exigem abordagens
próprias para a superação de toda forma de desigualdade. Reconhece os
direitos territoriais das comunidades rurais, suas características
econômicas e culturais, valorizando seu conhecimento e os saberes
tradicionais na promoção do etnodesenvolvimento (BRASIL. 2003, p. 5).
Como se pode observar, o discurso da cartilha IINCRA/MIRAD (1987) difere
significativamente do que está posto no II PNRA. Este último propõe a valorização
do conhecimento e os saberes tradicionais dos assentados, enquanto a referida
cartilha percebe o assentado como destituído de qualquer tipo de saber.
O Programa ATES surge como uma forma de apoio técnico aos assentados,
para condução e desenvolvimento de “seus” projetos produtivos e demais atividades
como infra-estrutura, organização e meio ambiente. Tem como referência a Norma
de Execução do INCRA
43
e o Manual Operacional, que estabelecem os
procedimentos técnicos e administrativos para a implementação do serviço.
Antes de analisar o Programa ATES, apresento, brevemente, dados
conjunturais que permitem compreender a importância do serviço de assistência
técnica e extensão rural (ATER, no qual a ATES está inserida) para os
assentamentos de reforma agrária. Procuro destacar o contexto político em que
surge esta política, identificando alguns de seus referenciais teóricos, assim como
discutir sua efetivação.
43
Norma de Execução nº. 39 do Incra, de 30 de março de 2004. Publicado no Diário Oficial da União,
edição de 08/05/2004, Seção 1, pág.53.
95
Como definido na Introdução desta tese, o termo assentamento apresenta
uma diversidade de situações, conforme Leite et al (2004), com origens e
características que variam de acordo com o contexto histórico em que se insere
essa unidade de produção.
O estabelecimento de um assentamento rural gera, entre os atores envolvidos
neste processo, a expectativa de que ele se torne social e economicamente viável,
de modo que os trabalhadores assentados consigam viver e produzir após o
processo de luta pelo direito de acesso à terra de moradia e trabalho. Naturalmente,
essa expectativa se revela de modos diversos, de acordo com o perfil dos sujeitos
envolvidos. Entre os agentes estatais que formulam e executam as políticas
públicas, sobressai, na maioria das vezes, a intenção de que o trabalhador
assentado integre-se, o mais breve possível, como agricultor familiar, ao mercado
produtivo.
É essa intenção que orienta as propostas que visam uma rápida consolidação
e emancipação dos assentamentos
44
. Percebo nesta intenção uma visão linear e
evolutiva do processo de mudança social ao qual o assentado é submetido como
beneficiário de uma política pública. Como afirma Wanderley (2003, p.45), o
processo de mudança é equivocadamente compreendido “[...] como a passagem de
uma situação de isolamento social e de exclusão do mercado para outra de
integração social e econômica no conjunto da sociedade”. Assim, a integração
econômica torna-se o objetivo principal da intervenção estatal.
Para compreender a predominância desta ênfase, é importante ter claro a
concepção sobre a agricultura familiar nesse contexto. A partir dos anos de 1990, o
paradigma do desenvolvimento do capitalismo agrário é questionado no Brasil,
principalmente pelo trabalho de Abramovay (1992). O autor aponta o esgotamento
do paradigma do desenvolvimento do capitalismo na agricultura baseado nos
trabalhos de Lênin (1988) e Kaustsky ( 1986).
De acordo com Abramovay (1992), a agricultura familiar, fenômeno forte nos
países capitalistas avançados, não pode ser explicado pela herança histórica
camponesa porque é determinada pelo Estado. Faz ainda a distinção entre o
44
A emancipação do Projeto de Assentamento se efetiva quando este passa a não ter mais vínculos
com os programas, projetos ou ações de intervenção fundiária do Estado. A consolidação é uma
etapa anterior à emancipação, quando de acordo com o INCRA, o assentamento já tiver concluído os
serviços de topografia, habitação, infra-estrutura básica.
96
camponês e o agricultor familiar, colocando este como uma nova categoria social.
Conforme esse autor:
[...] uma agricultura familiar altamente integrada ao mercado, capaz de
incorporar os principais avanços técnicos e de responder às políticas
governamentais não pode ser nem de longe caracterizada como
camponesa (ABROMOVAY, 1992, p. 22).
O conceito de agricultura familiar, tal como proposto por Abromovay (1992)
passa a ser nomenclatura oficial nos documentos e “sites” do Ministério do
Desenvolvimento Agrário/MDA a partir dos anos de 1990, e, exemplo disso é a
criação do Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF), em 1996,
considerado por autores de várias matizes teóricas como um avanço do governo
federal no sentido de não direcionar o apoio exclusivamente a agricultura rentista
capitalista.
Abramovay (1992) atribui um aspecto “empreendedor” ao sujeito “agricultor
familiar” europeu e estado-unidense, para mostrar que não é o antigo camponês e,
assim, concebe-o, somente a partir de características econômicas, como
“competitividade”, “dinamismo técnico”, “capacidade de inovação” e “completa
integração ao mercado” que não condiz com a realidade por mim estudada.
Nas políticas públicas dos anos 1990, ocorre uma valorização da agricultura
familiar e de sua integração às redes de agronegócios, a partir da ênfase na
necessidade de tornar economicamente eficientes seus processos produtivos. Como
argumenta Alentejano (2000),
[...] a capacidade de competição no mercado é colocada no centro das
preocupações, o que se reflete nas proposições de modernização técnica e
de desenvolvimento da capacidade de gestão como aspectos mais
enfatizados (2000, p. 3).
Porém, no que se refere às políticas públicas dirigidas especificamente aos
assentamentos de reforma agrária, a maioria delas operacionalizadas por meio dos
aparatos públicos de extensão, foram sistematicamente desmanteladas, juntamente
com a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMBRATER),
ou manteve-se o viés produtivista dos processos de desenvolvimento. Na outra
etapa da modernização, ao se enfatizar a agricultura familiar como público
preferencial da ação estatal, não se abriu mão do objetivo de fomentar o incremento
dos índices de produção e produtividade. Dessa forma, continua-se a afirmar a
imagem de “agricultor moderno”, construída durante o processo de modernização
97
conservadora da agricultura nos anos de 1970. Essa imagem de “agricultor
moderno” corresponde aquele que possui maior potencial para integrar, social e
economicamente, as teias dos mercados modernos ou do agronegócio.
Essa mesma imagem é projetada aos assentados, visando sua modernização
e a ampliação dos seus conhecimentos e habilidades para além dos seus
conhecimentos tradicionais. Por esta razão, a necessidade do apoio técnico
especializado é vista como fundamental.
Como argumentam Leite et al (2004, p.65),
[...] ao criar um assentamento, o Estado assume a responsabilidade de
viabilizá-lo. Queira o Estado (na pessoa daqueles que o fazem existir) ou
não, o desempenho de um assentamento é o desempenho do Estado.
Desse modo, nos assentamentos, a presença ou a omissão do Estado na
oferta de condições de produção é decisiva, muito mais do que no caso do amplo e
difuso conjunto dos agricultores que são aglutinados pela categoria de “familiares”.
Embora haja uma considerável diversidade de situações concretas, a ênfase
da intervenção extensionista nos assentamentos rurais tem sido, historicamente, o
fomento à produção agrícola, que se viabiliza principalmente por meio da elaboração
e acompanhamento de projetos técnicos a serem financiados por programas de
crédito. Na maioria das vezes, a consolidação e emancipação dos assentamentos
dependem essencialmente da elaboração de planos de desenvolvimento e de
projetos técnicos a serem financiados por programas de crédito, como o extinto
Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (PROCERA) e atualmente o
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), em sua
linha de crédito “A”, dirigida especificamente aos assentados
45
.
Porém, de um modo geral, prevalece um tipo de ação extensionista
descontínua, pontual, pouco participativa e direcionada à viabilização dos projetos
técnicos. Guanziroli et al (2003), inspiram-se na concepção de inovação tecnológica
e na relação entre técnicos e agricultores que desconsidera as trajetórias,
experiência e conhecimento destes, tornando absoluto o conhecimento científico e
tecnológico na busca por resultados produtivos para os recursos aplicados. Esse
45
Crédito e assistência técnica são dois fatores intimamente relacionados à viabilização social e
econômica dos assentamentos e à sua futura emancipação. No caso dos assentamentos, a presença
dos extensionistas é condição necessária ao acesso às políticas públicas de crédito, principalmente
do PRONAF.
98
fato se desdobra na desconsideração da especificidade das demandas dos
assentados e na ausência de relativização do conhecimento técnico.
Entretanto, esse enfoque produtivista vem sendo questionado por diversas
visões que constroem críticas alternativas ao modelo predominante da agricultura
moderna. Outras compreensões sobre os processos de promoção do
desenvolvimento rural vêm sendo construídas, desde os anos de 1970, a partir da
análise dos impactos e dos resultados alcançados pelos processos de modernização
e de conseqüente integração da agricultura às dinâmicas da produção industrial.
Esses questionamentos e críticas dialogam com estudos acadêmicos, com as
reivindicações e propostas dos movimentos sociais dos trabalhados rurais e com as
diversas experiências alternativas de promoção do desenvolvimento rural,
conduzidas principalmente por organizações não-governamentais.
Como afirma Wanderley (2003), uma parte desses questionamentos é dirigida
à visão que considera a agricultura familiar como mero campo de investimento de
capital, enfatizando, por isso, a quantidade produzida e a rentabilidade dos fatores
de produção. A modernização da agricultura reforçou mais ainda este quadro, ao
aprofundar a dependência da agricultura aos insumos industriais e ao associá-la
cada vez mais aos mercados consumidores urbanos internos e externos.
Conseqüentemente, as políticas públicas produtivas, tinham e têm como
prioridade o aumento da eficiência que se expressa na implantação do modelo
produtivista da modernização agrícola, cuja base é adoção de sistemas intensivos
de produção e a crescente integração à economia de mercado. A partir desse
enfoque, tem-se uma simplificação das compreensões e das políticas de
desenvolvimento, quase sempre reduzidas às demandas econômicas mais
imediatas.
Como argumentam Sousa Santos e Rodríguez (2002, p.54), o
desenvolvimento entendido como realização de potenciais, como passagem a um
estado diferente e melhor, está longe da idéia do desenvolvimento como
crescimento, como incremento. As atividades econômicas podem, nesse sentido,
desenvolver-se sem crescer.
E, muito menos é posta em questionamento a noção de desenvolvimento,
como propõe Escobar (1996). Esse autor chama atenção para as noções que vêm
associadas ao desenvolvimento: crescimento, especialização, industrialização,
99
urbanização, acumulação de capital, planejamento, modernização e ajuda externa.
Argumenta que, para justificar a expansão dessa economia de desenvolvimento pelo
mundo, construiu-se a noção de subdesenvolvimento e de Terceiro Mundo e se
criou todo um aparato institucional/financeiro (Banco mundial, FMI OMC) e
profissional (burocratas e consultores especialistas) para disseminar a sua ideologia
e implementar os mecanismos e programas capazes de “resgatar” os pobres e
subdesenvolvidos do planeta.
Percebo que há uma considerável diversidade de arranjos institucionais por
meio dos quais as propostas desenvolvimentistas interagem, ganham novos
significados, e influenciam a elaboração de políticas públicas buscando se
transformar em ações concretas. Também, é possível perceber que nessas
propostas há uma valorização generalizada da idéia de participação dos
beneficiários na execução dos programas e projetos, embora historicamente os
trabalhadores rurais tradicionalmente tenham sido tratados como objetos e não
protagonistas da intervenção pública, que se operacionaliza por meio de ações de
promoção do desenvolvimento (NEVES, 1987).
Entendo, também, que esta categorização dos papéis atribuídos aos
extensionistas é esquemática e, na prática, os papéis assumidos são bem mais
diversos ou complexos. Esse é apenas um panorama para pensar sobre a
complexidade dos desafios que se colocam para a proposta de extensão rural a
trabalhadores rurais e assentados, como é o caso do programa de ATES.
Antes do Programa ATES, houve o Projeto Lumiar, criado pelo INCRA, no
período 1997 a 2000. Tenho o entendimento que estes programas partem de um
triplo diagnóstico: a falta de capacidade operacional do INCRA para dar conta da
diversidade de atividades que demanda o processo de assentamento, necessitando
terceirizar os serviços; a insuficiência ou inadequação dos serviços oferecidos pelas
empresas estaduais de extensão rural (Emater e similares, pois a sua maioria foi
desativada nos anos 1990) e, por último, a necessidade de um serviço de
assistência técnica e extensão rural específico aos assentados que dê suporte à
execução dos projetos técnicos financiados com recursos públicos.
A análise da Norma de Execução nº. 39, do INCRA, que criou o Programa
ATES, permite perceber a intenção política de regulamentar o processo de
100
prestação de serviços de assessoria técnica de modo a conferir um maior poder
decisório às associações e entidades de representação dos trabalhadores rurais.
Embora prevista formalmente, essa participação tem sido dificultada pela
forma de atuação de alguns técnicos do INCRA, que insistem em manter na maioria
das vezes, uma postura de superioridade e autoridade diante dos assentados. No
entanto, os assentados conseguem articular suas formas de participação, mesmo
que se expressem através da negação em participar. Isso ocorreu no assentamento
Brejo de São Félix, quando os trabalhadores se recusaram a levar adiante o campo
agrícola idealizado pelo INCRA.
No geral, essas associações e entidades têm poucas possibilidades de opinar
ou interferir no processo de definição dos prestadores de serviços e assistência
técnica. Essa intenção é relacionada, de acordo com a norma, à construção de um
processo que possibilite maior controle social das políticas públicas. Isso não tem
sido possível porque os trabalhadores rurais não têm acesso aos mecanismos de
gestão dessas políticas.
Tanto o antigo projeto Lumiar quanto o atual serviço de ATES representam
mecanismos administrativos de descentralização da gestão dos recursos públicos
destinados às políticas sociais. A descentralização supõe uma relativa transferência
de autoridade e de poder decisório para instâncias administrativas menores,
territorialmente mais próximas ao contexto de execução das iniciativas. Trata-se de
um processo que busca, por sua vez, aumentar a eficiência do gasto público ao
aproximar fisicamente o problema dos mecanismos de gestão e substituir (ou
terceirizar), como é o caso da ATES, determinados serviços que o Estado
diagnostica que podem ser melhor executados por outras entidades (DRAIBE,
1990).
O contexto político da questão agrária, em 2003, parecia indicar alguns fatos
importantes, gerados pelo início do governo Lula, que propiciou, inicialmente, um
clima social para o surgimento de propostas alternativas, como a do programa
ATES, para os assentados de reforma agrária: a) o gradual aumento da tensão
social entre proprietários rurais e trabalhadores sem terra, diante da expectativa de
realização de um processo amplo de reforma agrária com a chegada do Partido dos
Trabalhadores – PT ao Governo Federal; b) a frustração crescente gerada pela
excessiva morosidade governamental no que diz respeito à execução das políticas
101
de reforma agrária; c) a contínua projeção do agronegócio à condição de ”setor
dinâmico” da economia (que só aumentou com a recente proposta do Governo em
investir na monocultura da cana-de-açúcar para a produção de Etanol), legitimando
suas propostas; d) o contexto político administrativo criado no início do governo,
quando simpatizantes ou parceiros do MST e da CONTAG assumiram postos na
administração, especificamente no INCRA e no Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA), estabelecendo disputas políticas configurando outros
desdobramentos; e) a retomada das mobilizações e ocupações, com o rompimento
da “trégua” entre o governo e o MST, deflagrado pelo evento denominado pelo
Movimento de “Abril Vermelho”.
Com o desmonte do aparato nacional de ATER, cujo marco seria a perda de
fôlego do processo de modernização da agricultura, no final de 1970
46
, as diversas
empresas de extensão rural passaram a depender dos governos estaduais. A partir
de meados dos anos 1990, passaram a depender dos recursos obtidos pelo
PRONAF, em convênios firmados com o INCRA para prestação de assistência
técnica para desenvolver projetos técnicos nos assentamentos. Desse contexto,
resultou uma enorme diversidade de situações dos serviços de ATER pelo país
(ABROMOVAY, 1998). Nos estados com agricultura familiar mais forte, como é o
caso dos estados da Região Sul, e naqueles em que os recursos e os interesses dos
governos estaduais possibilitaram apoio aos serviços de ATER, as empresas
estaduais mantiveram-se relativamente estruturadas. Nos demais estados, houve
uma crescente precarização dos serviços.
No Maranhão, nos anos de 1990, no governo de Roseana Sarney, a
assistência técnica oficial aos trabalhadores rurais foi desmantelada e sucateada,
como ocorreu com a EMATER e a SAGRIMA, restando apenas empresas
particulares e entidades não-governamentais que executam capacitação e
assistência técnica de forma fragmentada e descontínua.
A outra proposta implementada pelo Governo Federal é o Programa de
Assessoria
Técnica, Social e Ambiental/ATES, pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário/MDA. Neste programa, instituições não governamentais, governamentais,
cooperativas de técnicos podem se credenciar a prestar assessoria técnica aos
46
Esse processo culminou com o fim da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
(EMBRATER), no governo Collor de Mello (1990 -1992).
102
assentamentos de reforma agrária no Brasil. A Norma de Execução nº 39 estabelece
os critérios e procedimentos de um sistema nacional de prestação de serviços de
extensão rural específico para os assentados. Nesta norma a ATES é definida como:
(...) o conjunto de técnicas e métodos, constitutivos de um processo
educativo, de natureza solidária, permanente, pública e gratuita, voltado
para a construção de conhecimentos e das ações direcionadas à melhoria
da qualidade de vida das comunidades residentes nos projetos de
assentamento, tomando por base a qualificação das pessoas, das
comunidades e de suas organizações, visando a sua promoção em termos
ambientais, econômicos, sociais, culturais, no âmbito local, territorial e
regional, dentro do que enseja o conceito de desenvolvimento rural
sustentável (INCRA, 2004).
Chama atenção o fato da denominação dada a este serviço substituir o termo
“assistência técnica” por “assessoria técnica” e sugerir ir além da preocupação com
os processos produtivos, englobando em sua designação o “social” e o “ambiental”.
Os documentos Norma de Execução 39 e Manual Operacional de ATES não
sugerem as razões da opção por esta denominação. Penso que seus formuladores
incorporaram a percepção de que a assessoria é um processo muito mais complexo
de que a assistência técnica, requerendo um maior envolvimento entre técnicos e
assentados. No âmbito de um processo que vem enfatizando a necessidade da
participação, o termo assessoria sugere que a condução seja dos trabalhadores e os
técnicos se coloquem apenas como “assessores”. Este maior envolvimento se
deveria, conforme Dias (2004, p.523), aos seguintes fatores:
a) A superação do caráter pontual ou fragmentado do processo de
intervenção social característico da assistência técnica, demandando ao
contrário, a construção de procedimentos mais duradouros e contínuos de
interação entre técnicos e agricultores; b) a necessidade de
estabelecimento de relações de confiança mútua, por isso mais horizontais
e menos hierárquicas, entre os atores e os tipos de conhecimentos
envolvidos; c) uma visão mais holística ou integral do processo de
intervenção social que cria demandas que vão além do processo agrícola
da produção.
Diante das intenções sugeridas pela nova denominação e pelos anseios dos
envolvidos na proposta, há enormes expectativas sobre a atuação dos
extensionistas ou técnicos de campo que prestam tal assessoria. Conforme Furtado
e Furtado (2000, p.38), esta outra visão do processo de assistência técnica e
extensão rural passa a demandar um tipo de profissional “[...] que se caracteriza
como um educador para o desenvolvimento, um sujeito reflexivo e interativo”. Diante
103
da situação da maioria das entidades prestadoras de serviços de ATER, há,
portanto, um longo caminho a percorrer para se aproximar deste ideal.
Assim, como no caso da PNATER, a Norma de Execução que cria o
Programa de ATES apresenta várias categorias e conceitos sem que haja uma
maior precisão a respeito dos seus significados. O que é grave, principalmente em
se tratando de um instrumento de normatização. Os conceitos ou referenciais não
são claros, possibilitando gerar confusão quanto aos objetivos a serem perseguidos.
Há a prevalência de conceitos e referenciais que já vêm sendo costumeiramente
usados, dificultando a possibilidade de construção de novas percepções. Assim,
temos, como exemplo: desenvolvimento sustentável; segurança alimentar; enfoques
metodológicos participativos; programa de capacitação participativo; inserção
qualitativa das mulheres.
Essas noções são polêmicas e, algumas, objeto de disputas acadêmicas e
políticas sobre seu significado. Implementá-las sem considerar que são relativas e
podem ter vários significados, variáveis de acordo com quem as utilize e com que
propósitos, compromete a tentativa de que se tornem operacionais nos contextos de
intervenção.
Institucionalmente, os serviços de ATES estão subordinados às diretrizes da
PNATER. Uma das competências da Coordenação Nacional de ATES é justamente
“compatibilizar e integrar os serviços de ATES do INCRA direcionados às suas áreas
de jurisdição, às ações correlatas a serem desenvolvidas pelo DATER/SAF/MDA”.
Administrativamente, a sua gestão seria compartida por quatro unidades
básicas: a Coordenação Nacional, a Coordenação Estadual, a Equipe de Articulação
dos Núcleos de serviços de ATES e os Núcleos Operacionais dos serviços de ATES.
Cada instância tem sua composição, competências e atribuições extensamente
descritas na Norma de Execução que regulamenta o serviço. No Maranhão, a
equipe de Articulação, que era realizada pelo o Instituto de Capacitação Comunitária
– ICC rescindiu o contrato com o INCRA no final de 2006, e o órgão não mais
contratou outra empresa.
Embora haja participação de representantes governamentais e dos
trabalhadores rurais em ambas coordenações, cabe ao INCRA, nos dois casos, a
coordenação geral dos trabalhos. Os recursos financeiros para a execução dos
serviços de ATES são descentralizados às Superintendências Regionais do INCRA,
104
sendo que os critérios para a sua alocação são definidos pela Coordenação
Nacional.
Os serviços de ATES são concebidos de modo a dar suporte à
implementação de projetos e planos que orientam e organizam os investimentos
públicos a serem feitos por meio de créditos subsidiados aos assentados. É função
dos Núcleos Operacionais elaborar e acompanhar a implementação do Projeto de
Exploração Anual (PEA), do Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA) e
do Plano de Recuperação do Assentamento (PRA).
A proposta é que após elaboração do diagnóstico local, o trabalho ocorra a
partir da demanda dos assentados, “louvando-se das tradições, costumes e
conhecimentos endógenos de que são dotadas as famílias de beneficiários das
ações de reforma agrária”, para estabelecer, de modo participativo, o tipo de sistema
de produção a ser implementado. Essa premissa supõe a importância das
aspirações e projetos que os próprios assentados têm em relação à terra. Desse fato
depreende-se que os assessores não estarão apenas executando as políticas
preestabelecidas para os assentamentos, mas sim relativizando-as diante do
conhecimento e análise das propostas dos próprios assentados.
O “Roteiro básico para o Projeto de exploração Anual (PEA)”, anexo a Norma
de Execução que regulamenta o serviço de ATES recomenda que:
O projeto de Exploração Anual (PEA) será o orientador da aplicação do
Crédito Instalação e deve ser direcionado para a diversificação da
produção, o incentivo ao trabalho coletivo, o fortalecimento da agricultura
familiar e práticas agroecológicas, a promoção de uma alimentação
diversificada voltada para o autoconsumo e a garantia de um excedente de
produção visando à geração de renda através da vinculação ao Programa
de Aquisição de Alimentos do governo federal (Lei n. 10.696/03) e outras
linhas de crédito que possam ser utilizadas para sua implementação
(INCRA, 2004).
A proposta do serviço de ATES é exclusivamente direcionada aos
assentamentos de reforma agrária e, mais especificamente, ao subsídio à
implementação de projetos de financiamento, tanto por meio do PRONAF A
47
,
47
O PRONAF é a linha de crédito do Programa destinado aos assentados em projetos de reforma
agrária. De acordo com as informações divulgadas na página do Ministério do Desenvolvimento
Agrário / MDA na Internet (htpp://.www.mda.gov.br). O PRONAF possui cinco grupos de
enquadramento de agricultores potenciais beneficiários de financiamento, que vai do grupo A ao
grupo E. Os critérios de enquadramento baseiam-se em faixas de renda bruta anual.
105
quanto por intermédio de outras modalidades de crédito que venham a ser
instituídas em benefício dos trabalhadores assentados.
3.2.3 Assessoria aos assentados no Maranhão
O Programa ATES passou a ser efetivado no Maranhão a partir de abril de
2005, para um período de 40 meses, através de Convênio entre o INCRA e as
seguintes entidades: AESCA –Cooperativa ligada ao MST, Associação das Áreas de
Assentamentos do Estado do Maranhão – ASSEMA, Federação dos Trabalhadores
Rurais na Agricultura do Maranhão – FETAEMA, Sociedade de Direitos Humanos,
Associação Agroecológica Tijupá, Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Coco Babaçu - MIQCB, Centro de Treinamento e Desenvolvimento Educação e
Cultura – CENTRU de Imperatriz e o Instituto de Capacitação Comunitária – ICC.
Estas entidades atendem 30.068 famílias em 225 Projetos de Assentamentos.
Conforme informações obtidas no INCRA / MA (setembro de 2007), existem
atualmente 573 Projetos de Assentamentos criados por este órgão e 352
assentamentos de responsabilidade do Governo do Estado, via Compra da terra,
através do Programa Crédito Fundiário, o que totaliza 925 Projetos de
Assentamentos em todo Estado do Maranhão. Como o Programa de ATES só
atende 225 P.A’s, este se constitui como mais um Programa focalizado e
descontínuo.
Para executar o Programa de ATES, a FETAEMA fez uma licitação pública e
contratou as seguintes entidades: a Cooperativa de Serviços Técnicos / COOSERT,
a Cooperativa de Pesquisa Serviços e Assessoria Técnica – COOSPAT, a RD
Planejamentos e a Planeja Assessoria.
A cooperativa de Serviços Técnicos – COOSERT, a qual sou associada
desde 1997, ficou responsável por (34) trinta e quatro assentamentos, divididos em
05 (cinco) Núcleos Operacionais: o Núcleo de Vitorino Freire/Pio XII, o de
Coroatá/Codó, Caxias/Timon, São João do Sóter e o de Parnarama/Matões
48
.
48
Através da COOSERT, coordenei o Programa de ATES até abril de 2007.
106
O P.A Brejo de São Félix está inserido no Núcleo Operacional de
Parnarama/Matões. Conforme o Manual do referido Programa, os Núcleos
Operacionais do Programa devem ser compostos por equipes técnicas de caráter
multidisciplinar.
Assim, o Projeto de Assentamento Brejo de São Félix, passou a ser atendido
por uma equipe de profissionais composta por uma Engenheira Agrônoma, uma
Assistente Social, um Zootecnista e mais dois técnicos agrícolas. O escritório da
equipe inicialmente funcionou na cidade de Matões.
Devido às distâncias e as péssimas condições das estradas, a equipe
resolveu se instalar no próprio assentamento Brejo de São Félix, pois ficaria mais
próxima das demais comunidades e dos outros três assentamentos atendidos.
Inicialmente a equipe morou no “casarão”, nome dado pelos moradores de Brejo de
São Félix à casa e ao comércio anexo do antigo proprietário. A equipe estranhou
que os móveis e demais objetos pertencentes ao antigo proprietário continuassem
na residência, sendo seu uso autorizado pelo seu filho, José Henrique.
Os pertences do antigo dono encontravam-se na casa porque lá continuava
vivendo, retirando-se somente após a chegada da equipe de ATES, ou seja, o
Senhor Nilson Silveira continuava morando no “casarão”. Inclusive, fui informada de
que este senhor havia ficado aborrecido com a presidente da associação, na época
Dona Maria Zuleide, por ter permitido que a equipe ocupasse o “casarão”. Esse fato
só foi exposto durante a pesquisa de campo. Até então a equipe não sabia do
acontecido. Isso significa que dez anos após a desapropriação, ocorrida em 1995, o
antigo proprietário continuava a ter influência na área.
Essa influência tem continuidade através do seu filho, José Henrique, o atual
Secretário de Saúde do Município de Parnarama, que está construindo uma
residência numa área próxima ao “casarão”, onde morava com sua família. Este
senhor, acaba por assumir o papel de “delegado” da prefeitura municipal para
assuntos relacionados ao assentamento.
Quando indaguei quem havia autorizado a construção da casa, o atual
presidente da associação de Brejo de São Félix informou que o INCRA havia dito
que a comunidade decidiria. Sem consultar as demais associações do
assentamento, os representantes dessa comunidade consentiram, sem que fosse
feita nenhuma assembléia para discutir o caso.
107
Na viagem que fiz recentemente ao assentamento (julho de 2007), observei
que a casa já está construída e o futuro “dono” prestes a ocupá-la. Escutei muitas
reclamações por parte dos moradores das três comunidades, relativas a esse fato,
inclusive moradores de Brejo de São Félix. Os representantes das comunidades de
Canafístula e Baixão Grande informaram que nunca haviam sido consultados sobre
a construção dessa residência e manifestaram discordância com relação a decisão.
Segundo o presidente da associação de Canafistula: “há em Brejo de São Félix
muitas pessoas que dependem de José Henrique, são pessoas que estão
trabalhando na escola, no posto de saúde, colocadas por ele. Muitos dependem
dele”.
108
4. O ASSENTAMENTO BREJO DE SÃO FÉLIX
O assentamento Brejo de São Félix, situado no município de Parnarama
(Figura 01), possui em média 280 famílias, que estão distribuídas em 03
comunidades (Quadro 05): Brejo de São Félix (140 famílias), a mais antiga, onde os
moradores são descendentes de escravos e onde vivia o antigo proprietário da terra;
a comunidade de Canafístula (55 famílias) e a comunidade de Baixão Grande (85
famílias), cujas famílias chegaram nesta área no final dos anos cinqüenta. Eram
famílias do próprio Estado do Maranhão, como também do Piauí.
FIGURA 01 - Localização do município de Parnarama.
Quadro 05 - Dados populacionais por famílias do P.A Brejo de São Félix
0 – 6 7-14 15-20 21-30 31 – 40 41 - 60 + de 60
POVOADO
F M F M F M F M F M F M F M
Total
Brejo de São
Félix
81 52 71 71 43 49 45 57 39 33 69 57 28 29 724
Canafístula 45 33 31 38 28 28 23 31 11 12 24 23 14 14 355
Baixão
Grande
31 27 41 38 24 32 33 37 13 16 26 27 11 12 368
Total 157 112 143 147 95 109 101 125 63 61 119 107 53 55 1.447
Fonte: Diagnóstico Rápido Participativo (Julho / 06)
109
A Fazenda Brejo de São Félix era, de acordo com o registro de imóveis do
Cartório de 1º Ofício da Comarca de Parnarama/ MA, parte do espólio de João
Rodrigues da Silveira e de Nilson da Silveira. Esta fazenda foi desapropriada pelo
decreto de desapropriação nº s/nº de 24 de março de 1995
49
, com a data da imissão
na posse no dia 12/09/1996. Porém, essa imissão só existe formalmente, pois de
fato os assentados sempre moraram na área.
O Projeto de Assentamento (P.A) foi criado em 30 de agosto de 1996, com
uma área de 6.657,400 há. Após estes trâmites burocráticos, que são
desconhecidos dos moradores, os funcionários do INCRA foram à área, realizar o
cadastramento das famílias a serem assentadas.
4. 1 A vida como arrendatários
A constituição desse assentamento ocorreu da mesma forma que a maioria
dos assentamentos no Maranhão, ou seja, os assentados já viviam no local e, no
caso específico, há cerca de meio século. Há informações de que a comunidade
Brejo de São Félix se constituiu a partir de 1805. Silva (2005, p. 58) afirma que em
1805 chegou ao Maranhão o mineiro João Rodrigues da Silveira, acompanhado de
sua esposa Maria das Mercês da Conceição. Conhecido como Coronel Flor, era
natural de São João Del Rei, nascido em 1778. Teriam se instalado a oito léguas a
oeste de São José
50
, onde havia um Brejo. O rico mineiro construiu no lugar “uma
bela e ampla mansão”. O antigo brejo recebeu o nome de Brejo de São Félix,
tornando-se um dos maiores impérios agropastoris do sertão maranhense.
A memória dos atuais moradores remonta apenas a Nilson da Silveira, por
eles identificado como o proprietário da área, que residia numa casa, denominada
pelos assentados de “casarão”, situada na comunidade de Brejo de São Félix.
Informam os moradores que este senhor anteriormente vivia com sua família,
em Monte Alegre, uma área próxima, onde hoje só existem duas palmeiras imperiais
e as ruínas da antiga casa. A vinda da família para Brejo de São Félix teria ocorrido
49
Conforme Portaria INCRA / SR (12) nº 86, de 26 de setembro de 1996.
50
Antigo nome do atual município de Matões.
110
quando a casa de Alto Alegre desmoronou e os padres cederam cerca de 600 ha de
terra, próximo a Igreja de “Menino Deus”, onde hoje está situado o “casarão”. Neste
local estava a casa de morada, como também, o comércio. Inclusive, na época, era
o único da região, de acordo com Paulo, um dos organizadores de atividades
culturais, da festa do lavrador e funcionário do posto de saúde da comunidade de
Brejo de São Félix. O casarão conforme lhe relatou sua mãe, foi construído pelos
escravos:
A madeira era trazida nas costa, os madeirames do casarão foi carregado
pelos escravos; depois veio o carro de boi. Todo o coco arrecadado da
região era levado em animais para o “casarão” nos finais de semana
(Entrevista realizada no dia 18/11/2006).
O casarão atualmente está abandonado (Figura 02), mas, conforme já afirmei,
serviu de residência para os técnicos do Programa de Assessoria Técnica Social e
Ambiental ATES/ INCRA, como também, serve esporadicamente de morada
temporária para trabalhadores que fazem serviços de infra-estrutura na comunidade
Brejo de São Félix.
FIGURA 02 – Casarão do antigo proprietário.
Existem divergências sobre a forma como se davam às relações dos
moradores com a família Silveira. Os moradores da comunidade Baixão Grande
111
afirmam que viviam uma condição de arrendatários, tendo que pagar metade da
produção aos donos da terra. Essa situação de pagamento da renda é negada por
alguns moradores do Brejo de São Félix. No entanto, estes admitem que realizavam
um tipo de pagamento, através da prestação de serviços, como limpeza do pátio,
cuidado com gado. Insistem, de toda forma, que não se tratava de uma imposição.
A principal produção da área era arroz e milho. O pagamento da renda
51
era
feito com arroz, e devia ocorrer mesmo quando tivessem pouca produção, como na
época da seca, ou quando a safra era perdida. A renda era calculada por tarefa,
(que corresponde a 01 linha) sendo estipulado 50 kilos de arroz por tarefa.
Após um tempo de maior convívio no assentamento, fui percebendo novas
questões relativas ao pagamento da renda pelos moradores do assentamento Brejo
de São Félix. Conversei com pessoas que trabalharam no comércio do Sr. Nilson
Silveira, e encarregados como o Sr. Zé Caixeiro, Zé Manuel, que era o vaqueiro, e
com outros moradores da comunidade, e fui percebendo as contradições.
Quando questionei Paulo sobre o pagamento da renda dos moradores da
comunidade de Brejo de São Félix, ele afirmou: “No tempo dele, a gente pagava
renda sim. Quem não pagava era porque não tinha coragem de botar roça, mas
mesmo assim ia descarregar o carro dele” (Entrevista realizada no dia 18/11/2006).
Paulo ainda contou a história de sua tia, Comadre Dona, que tinha relação de
compadrio com o Sr. Nilson, e havia colocado uma roça e se negado a pagar a
respectiva renda. Um dia, quando o Sr. Nilson encontrou-a no meio da rua, no
finalzinho da tarde, começaram uma discussão que Paulo assim descreve:
Ele disse que ia botar os homens para bater
52
o arroz na casa dela”. “Ela
disse que não ia dar certo”, acabaram brigando, chegando até ter tapa, ela
se escondeu num banheiro, colocaram os homens atrás, ela foi embora e
nunca mais veio para cá. “ [...] isso ficou feio, pois o casarão estava cheio
de gente de fora (Entrevista realizada no dia 18/11/2006).
51
Conforme May (1990), os arranjos que exigiam dos camponeses a comercialização dos seus
excedentes através do dono da terra foram substituídos pela cobrança de renda em espécie. Uma
das razões para essa mudança foi a abertura de vias de transporte, o que tornou possível aos
pequenos produtores vender nos mercados locais. Para garantir seus retornos, os donos de terra
gradualmente aumentaram a exigência do pagamento da renda fixa. No início da década de 1970 e
durante a década de 1980, essa renda dobrou, passando de aproximadamente 106 kg. para 211 kg.
de arroz em casca por hectare cultivado. Além disso, os moradores ainda tinham que vender as
amêndoas do babaçu através do proprietário da terra, que ficava com até 50% do valor da amêndoa
obtido no mercado urbano. Os bens trocados pelas amêndoas do babaçu nas quitandas das
fazendas também davam lucro aos proprietários, assim como o crédito informal, concedido aos
moradores. (1990, p. 99-100).
52
A expressão bater o arroz significa pegar o arroz, ou seja, no caso, a renda que era o fruto da
colheita que se encontrava na casa de Comadre Dona.
112
Hoje, esta senhora mora na cidade de Matões. Pude ouvir esse relato mais de
uma vez, por distintos autores.
Já Zé Manuel, que era o vaqueiro de Sr. Nilson e recebia as rendas,
inicialmente afirmou: “Nunca um morador pagou uma renda completa”. Em seguida,
acrescentou: “[...] o povo já não queria pagar renda de jeito nenhum. Você acredita
que tinha gente que botava 02 latas de arroz, e a maior parte era de terra?”
(Entrevista realizada no dia 19/11/2006).
Depois quando questionei sobre o pagamento da renda do pessoal de Baixão
Grande afirmou: “Sim, recebia a renda daqui (se referindo a Brejo de São Félix); não
recebia de Baixão Grande”. Mas, logo depois diz: “Não pagava renda de jeito
nenhum” e depois: “Muitos pagavam, outros não pagavam de jeito nenhum” [...]
“Muitos davam pela metade” (Entrevista realizada no dia 19/11/2006).
A situação no que se refere ao pagamento da renda era conflituosa e os
moradores buscavam formas de burlar essa obrigação.
Além do pagamento da renda, os moradores relatam que havia outro
compromisso com o proprietário: o coco babaçu que era extraído não podia ser
vendido fora, ou seja, em outro local que não fosse o seu armazém. Havia os
encarregados, denominados agentes, que tinham a função de medir as roças,
receber o babaçu, dar recados, etc. O coco era trocado por querosene, fumo, café,
açúcar, sal e outros bens que não podiam produzir. Nessa forma de escambo não
circulava dinheiro. Caso não houvesse a necessidade de alguma mercadoria, ou não
existisse a mercadoria demandada, o pagamento era feito através de um vale que
assegurava a posterior retirada da mercadoria no próprio armazém do Sr. Nilson.
A utilização do vale impossibilitava o morador de ter acesso ao dinheiro e,
conseqüentemente, não havia autonomia para utilizá-lo. Percebi nas falas dos
assentados das três comunidades, que esta situação era causa de muita revolta. Os
relatos eram feitos com muito ressentimento.
Dona Dalva de Lima Cruz, 52 anos, 7 filhos, assentada da comunidade de
Canafístula reforçou a dependência a que se submetiam sob e o sistema do vale:
“[...] só tinha o vale, se perdesse, estava perdido a semana toda”.
“Só dava vale – só valia aqui mesmo, só tinha que comprar lá no armazém
dele”, afirma outra moradora de Brejo de São Félix, Maria do inhô “Era só papel,
113
aqui não se comprava nada, todo mundo vivia era nú, pois não tinha dinheiro para
comprar nada”. Continua dona Maria:
Viver trabalhando, viver trabalhando só para os outros, e não ter resultado
de nada, não tinha direito de comprar uma muda de roupa do nosso
trabalho. Não, porque não dava. [...]. Pagava a renda e ficava um pouco, só
para comer, ou se vestia ou ficava com fome
53
.
Ainda, neste sentido afirma dona Maria Francisca Vieira da Costa, conhecida
por Nega, liderança comunitária, ex presidente da associação da comunidade de
Baixão Grande:
Havia produção, mas não se podia vender, não se podia fazer uma casa
melhor. Não podia, o dono não deixava, até a cerca não se podia fazer
uma cerca de arame, era só de talo. (entrevista realizada 17/062006).
Na busca de obter dinheiro para utilizar em outras necessidades,
principalmente nos casos de doenças, os moradores utilizavam várias estratégias,
como vender o coco fora, fazer o azeite de coco para vender escondido, pois eram
vigiados por capangas: “O Sr. Nilson não deixava nem tirar o azeite, mas muitos
levavam o coco e o azeite escondido para vender em Matões”. (Entrevista realizada
dona Dalva, assentada da comunidade de Canafistula:14/07/2007).
Dona Dalva relembra que quando seu marido ficou doente, ela mesma teve
que fazer isso, pois precisava de dinheiro e sua transgressão chegou ao
conhecimento do senhor Nilson. Segundo seu depoimento, feito com muito orgulho,
na ocasião explicou a situação e fez questão de afirmar diante do senhor Nilson:
“Nunca vi uma viola marcada nas palmeiras” (Entrevista realizada em 19/11/2006).
Esclareceu que a viola era a marca que o Sr. Nilson utilizava para identificar seu
gado.
O senhor Zé Beor, atualmente com 80 anos, avô de 70 netos, agente
54
do
senhor Nilson na comunidade de Canafistula, relatou um posicionamento
semelhante de enfrentamento do senhor Nilson, quando este ameaçou colocar um
dos seus filhos para fora da área, sob a acusação de estar roubando coco:
54
‘Agente’ eram homens que ficavam nas áreas mais distantes como Canafístula, e depois Baixão
Grande, encarregados pelo fazendeiro de comprar e receber o coco, “manobrar a comunidade” como
colocou o senhor Zé Beor. Recebiam o coco e levavam para a quitanda, onde hoje fica o “casarão”.
Cada povoado tinha um agente.
114
Eu nunca vi o senhor aguando nenhuma palmeira, o coco é da nação. O
caso dele era ver a gente no cativeiro, no cativo (Entrevista realizada em
18/06/2006).
Estes relatos demonstram que havia tentativas, embora individuais e não
explícitas de ruptura da relação de patronagem.
4.2 O patrão e seus clientes
Parto do pressuposto que os moradores da comunidade Brejo de São Félix
viviam numa relação estabelecida há muitos anos com o patrão, marcadas por
“compromissos” característicos da relação patrão-cliente.
Conforme os depoimentos relatados, havia posicionamentos individuais no
sentido de romper essa relação, que ocorriam nos momentos de maiores
dificuldades financeiras. Negavam-se a pagar a renda ou buscavam vender o coco
fora do comércio do proprietário.
Os moradores da comunidade de Baixão Grande, que se instalaram na área
depois, não desenvolveram essa relação de compromisso clientelista com o
proprietário. Portanto, sentiam-se mais livres para romper com as regras
estabelecidas, inclusive a obrigação de vender o coco no armazém do Senhor
Nilson.
O grupo de “famílias antigas” da comunidade Brejo de São Félix tinha um
passado comum. Os que vieram depois, como os da comunidade de Baixão Grande,
não. Elias e Scotson (2000), ao analisarem uma cidade do interior da Inglaterra,
observaram entre seus diferentes bairros uma relação de hierarquização que se
dava nos seguintes moldes:
O grupo estabelecido de antigos residentes compunha-se de famílias que
haviam morado naquela região por duas ou três gerações. Elas haviam
atravessado juntas um processo grupal – do passado para o futuro através
do presente – que lhes dera um estoque de lembrança, apegos e aversões
comuns. (...) Por terem vivido juntas bastante tempo, as famílias antigas
possuíam uma coesão, como grupo, que faltava aos recém-chegados.
(2000, p. 38).
115
Elias e Scotson, (2000) denominaram estabelecidos os que constituíam o
grupo coeso, em oposição aos outsiders, os recém-chegados.
No assentamento Brejo de São Félix pude observar um cenário semelhante
no que se refere às estratégias de hierarquização. Foi possível perceber a coesão
das “famílias antigas”, onde se pode incluir, também, a família do patrão /
proprietário. Inspirada em Elias e Scotson (2000), denomino esse grupo
estabelecidos.
Os assentados da comunidade de Brejo de São Félix se referem aos
assentados de Baixão Grande como os “forasteiros” ou “baderneiros”. O primeiro
adjetivo refere-se ao fato de terem chegado, na sua maioria, depois. O segundo, aos
conflitos provocados pela recusa em manter a exclusividade da venda do coco
babaçu ao armazém do proprietário. Essa recusa é apontada como o elemento
deflagrador do processo de luta pela terra.
Portanto, ainda hoje se mantém o estigma de baderneiros em relação aos
assentados da comunidade de Baixão Grande. Mas reconhecem, no entanto, que se
não fossem eles não teria havido a desapropriação da área, como afirmou dona
Maria do Inhô, casada com um assentado da comunidade Brejo de São Félix: “Ah,
se não fosse o pessoal do Baixão Grande, nós estava na mesma miséria”. Dona
Maria informa ainda que o INCRA desapropriou a terra e os moradores não foram
informados, continuaram pagando renda:
Nós não tivemos informações, de ontem para cá, que eu vim acreditar que
aqui era do INCRA. Venderam, desapropriaram e não disseram....
continuamos pagando renda, continuamos no cabresto” (Conversa informal
no final de tarde na porta da casa de dona Mariazinha, Agente de Saúde da
comunidade de Baixão Grande, participou da conversa também o senhor
Luiz, no dia 18/11/2006).
Manuel, da comunidade de Canafístula, confirma que pagaram renda durante
dois anos: “pagamos renda, sendo já do INCRA, porque não tinha conhecimento, no
terceiro ano foi que paramos” (Entrevista realizada em 14/07/2007).
A relação de patronagem, como lhe é peculiar, é marcada, também, pelo
reconhecimento, por parte dos clientes, do que percebem como a bondade do
patrão.
Dona Lindor, dona da uma espécie de hotel e venda de comida da
comunidade de Brejo de São Félix, afirmou:
116
Agradeço a minha vida ao Senhor Nilson, se não fosse ele tinha morrido de
parto, à míngua num hospital de Caxias. Foi ele que cuidou de mim, porque
me jogaram num canto e deixaram lá, quando ele soube foi ao hospital, ai
que foram cuidar, você acredita? (Conversa informal enquanto jantava na
casa de Lindor, em julho de 2006).
Estas relações configuram o que (LANDÉ apud CARNEIRO 2004), denomina
patronagem, apresentando como características essenciais: uma posição
assimétrica entre patrões e clientes; e a manutenção de compromissos diferenciais
de reciprocidade entre os pólos da relação. A natureza assimétrica se efetiva
conforme Carneiro (2004, p. 100), pelo “[...] acesso ao recurso básico de sua
reprodução econômico-social: a terra. E pela obrigação do pagamento de rendas ao
patrão”. Por outro lado, coloca-se o desempenho do patrão de um ethos exigido pela
posição, ou seja, participando de um sistema de troca de bens simbólicos com seus
clientes/agregados. Exatamente, nos momentos mais difíceis de precisão e
doenças.
Por outro lado, a faceta dominadora do patrão é também lembrada. Segundo
Paulo, quando algum morador saía do controle, Sr. Nilson mandava prendê-lo no
que chamam de “caxuxa”, uma espécie de cadeia que existia próxima à casa
grande: “Zé Aristide, que era o irmão dele, era o “delegado” mandava prender,
quando as pessoas bebiam, queriam bagunçar, prendiam, no outro dia era solto, era
só para dar o exemplo”.
Agora como assentados da reforma agrária continuam convivendo com a
família do antigo dono, na área. Um dos seus filhos, o atual Secretário de Saúde do
Município de Paranarama, reproduz, com outras nuances, a dominação exercida por
seu pai. Já obteve a permissão dos assentados para construir sua residência no
povoado Brejo de São Félix, próximo ao antigo casarão onde viviam.
Assim, a presença dos Silveira continua, seja através da residência na área,
da presença na “festa do lavrador” como o maior patrocinador ou, ainda, nas ações
da secretaria de saúde, da qual é titular.
Dessa forma, a libertação do pagamento da renda da terra, a tão sonhada
liberdade do jugo do patrão e a conquista da terra com a desapropriação convivem
com uma relação de dominação e dependência. Na atualidade essa dependência
assume as características de uma política assistencialista-paternalista e clientelista,
que se efetiva através da máquina administrativa local. O antigo patrão é substituído
117
pelo chefe político local que, no caso do P. A Brejo de São Félix, é o filho do antigo
patrão.
Foram socializados por relações de dominação/ paternalistas, onde a lei era a
lei do patrão, ora opressiva (proibições), ora “generosa” (quando liberava o
pagamento de renda para alguns, socorria nos momento de doença). Em todo caso,
sempre arbitrária, colocando os assentados numa situação de submissão.
A condição de subalternização se reproduz, também, na relação que o INCRA
e outros agentes vêm mantendo com os assentados. São coagidos à obediência de
regras definidas a sua revelia, que muitas vezes não condizem com seus próprios
interesses. Os técnicos do INCRA e outros tendem a se comportar de forma
autoritária, comprometendo, inclusive, a eficiência do trabalho na associação e,
conseqüentemente, os projetos em desenvolvimento. Isso se traduz pelo estado de
abandono em que estão as infra-estruturas produtivas, principalmente da
comunidade de Brejo de São Félix. Configuram-se relações patrono-cliente, de
dominação tradicional e clientelismo no Projeto de Assentamento Brejo de São Félix.
Historicamente, em Brejo de São Félix, construíram-se relações que se
assemelham ao que Barreira (1992) definiu como contexto de exclusão do
campesinato como sujeito político, no qual o coronel desempenha papel de principal
e único mediador entre o campesinato e o Estado.
O Coronel – proprietário de terra é o “protetor”, “orientador” e “prestador de
serviços”. Configura, portanto, uma espécie de dominação patrimonial, que se torna
"natural, familiar e eterna", envolvendo uma boa dose de mistério e
desconhecimento.
Para Faoro, a origem do poder do coronel, “[...] mais do que a situação
econômica, deriva do prestígio, da honra social, tradicionalmente reconhecido”
(1989, p. 636). Compartilhando dessa idéia, Barreira (1992), considera que a
dominação política do coronel no Sertão “[...] não necessita e nem se impõe só pela
força, mas pela aceitação e reconhecimento, através de mecanismos ideológicos
que tornam a realidade não perceptível por parte dos dominados”
(1992, p. 18).
Weber (1999) afirma que a “dominação” é a probabilidade de encontrar
obediência para ordem específica (ou todas) dentro de determinado grupo de
pessoas. Em outras palavras, são estratégias que os dominantes utilizam para
assegurar sua dominação, usam para isso a crença ou a legitimidade para que os
118
dominados aceitem a sua submissão. Toda dominação, ou seja, a probabilidade em
encontrar obediência de forma direta ou através de um “quadro” administrativo, pode
obedecer aos mais diversos motivos de submissão: desde o hábito inconsciente de
lealdade a quem dispõe dos meios de coação; em obediência a normas e regras
imemoriais ou, em obediência a um carisma pessoal que se coloca como portador
de uma missão de salvação.
Assim, nenhuma dominação contenta-se voluntariamente com motivos
puramente materiais ou afetivos ou racionalmente referentes a valores como
possibilidade de sua persistência – todos procuram despertar e cultivar a crença em
sua legitimidade. A legitimidade de uma dominação deve ser considerada apenas
probabilidade de ser reconhecida como tal. Nem de longe ocorre que toda
obediência a uma dominação esteja orientada sempre por essa crença.
A “obediência” significa, que a ação de quem obedece ocorre
substancialmente como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela
a máxima de sua conduta, e isso unicamente em virtude da relação formal de
obediência, sem tomar em consideração a opinião própria sobre o valor ou desvalor
da ordem como tal.
A adesão e o consentimento foram imprescindíveis para as relações entre
proprietários e moradores. No entanto, a internalização da dominação não é fruto de
uma “natureza” submissa dos dominados. Constrói - se na vida cotidiana, legitima-se
entre feixes de relações sociais, baseadas em um sistema de prestações e
contraprestações assimétricas.
As relações entre os grandes proprietários e os trabalhadores rurais
(moradores) se inserem em um sistema onde as partes efetuam uma troca desigual,
em que um dos pólos - aquele que monopoliza a terra - determina as regras e faz a
“lei”. No caso específico, uma das “leis” era não vender o coco fora e só no armazém
do proprietário/patrão, o Senhor Nilson Silveira.
Certamente, elementos ideológicos e culturais, também socialmente
produzidos, são fundamentais para a legitimação dos sistemas de reciprocidade que
reproduzem a desigualdade.
Conforme Novaes (1977), entre os “homens livres” o compadrio estabeleceu
relações. O privilégio de alguns moradores se tornarem compadres de senhores de
engenho revela a existência de uma hierarquia que destacava os “homens de
119
confiança”, de comprovada lealdade. Enfim, o batismo e o compadrio, sob a égide
da Igreja católica, assim como as rezas e as festas religiosas, constituíram-se em
aspectos e momentos de reforço das relações pessoais entre escravos e moradores
com seus senhores e patrões, compondo a face humanitária cristã da sociedade
escravocrata.
De acordo com Weber (1999), A dominação tradicional se dá em virtude da
crença em poderes senhoriais existentes desde longa dada ou na santidade das
ordenações estatuídas fundadas na tradição. A dominação patriarcal constitui a base
da dominação patrimonial em Weber. Esta oscila entre dois pólos: por um lado, a
área dominada pela tradição, pelo sagrado, pelo estatuto válido “desde épocas
imemoriais”; de outro lado, pela existência da área de arbítrio do senhor, em que
este age conforme o prazer, sua simpatia ou antipatia.
A relação de trabalho na grande propriedade é composta de “servidores”,
constituída de dependentes pessoais do patrão, de seus familiares, são os
servidores domésticos mais próximos, favoritos, vassalos, vinculados ao senhor por
uma relação de fidelidade pessoal. Não se obedece a estatutos, mas a pessoas
indicadas pela tradição ou pelo senhor tradicionalmente determinado. Quem manda
é o ”senhor” e quem obedece são os “súditos”. As relações são estabelecidas em
razão da fidelidade, cuja quebra constitui uma injúria. Ou conforme Barreira (1992,
p.19):
[...] “Traição” é o termo mais empregado pelos proprietários rurais, quando
surge problema ou discordância entre eles e os camponeses. Ferir a
“lealdade”, romper o “compromisso moral”, ou incorrer em “ingratidão” são
comportamentos abominados pelos proprietários e pelos próprios
camponeses.
Barreira (1992) considera a propriedade da terra como um elemento
significativo na determinação do poder político do coronel, mas considera também,
outros elementos determinando esse poder, como o “prestígio” e a “honra social”.
A contínua ausência ou a insuficiência do Estado na prestação de políticas
públicas aos assentados faz com que estes, na maioria das vezes, só tenham o
chefe e /ou chefes para recorrer nos seus “apertos”. Nesse caso, o chefe local
assume as atribuições do Estado. A esse respeito Barreira (1992. p. 19-20) afirma:
[...] esse espaço de mistério e de desconhecido em que se reproduz o
poder moderador do proprietário é decorrente da ausência do estado e da
dependência dos camponeses do sertão aos proprietários. O estado
delega, informalmente, várias de suas funções aos coronéis-proprietários,
cujo poder não decorre simplesmente de sua situação econômica, mas sim
120
do ‘prestígio’ e da ‘honra social’ tradicionalmente reconhecidos pelos
próprios dominados, o que lhe confere ‘aceitação social.
No P. A Brejo de São Félix a relação de trabalho predominante, antes da
desapropriação, baseava-se na relação “morador-parceiro”, situação definida por
Barreira como a que “o camponês morava dentro da grande propriedade e pagava
uma renda em produção ou mesmo em dinheiro pelo uso da terra. Mantinha,
portanto, uma dupla relação com o dono da terra: a de moradia e de parceria” (1992,
p. 20).
Na passagem da escravidão para o sistema de morada, encobre-se
efetivamente o lado compulsório da dominação. Exacerba-se a lógica da
reciprocidade: aos dons concedidos pelo senhor o morador deve fazer juz e,
voluntariamente retribuir. Entre os dons oferecidos pelos proprietários destacam-se:
a casa, o trabalho e o acesso à terra para roçado (plantação de mandioca e outras
culturas alimentares), direito de criar pequenos animais, acesso à água, à lenha e ao
mel do engenho, acesso ao barracão. Juntam –se a proteção e o auxílio financeiro
em momento de precisão, na doença, no parto, e na morte. A contrapartida a tais
concessões pode ser resumida através de uma palavra utilizada pelos próprios
moradores: a sujeição. A relação de sujeição implica na disponibilidade do tempo do
morador para seu patrão (Garcia Jr. 1983). Desta forma, são construídas a lógica e
as regras de reciprocidade entre moradores e patrão.
Os consensos construídos permitiam que a força, a violência, a chibata, só
fossem utilizadas em determinadas ocasiões nas quais houvesse transgressões às
regras socialmente aceitas. Este aspecto permitia que a força do patrão se
acumulasse e fosse cada vez mais respeitada, justamente por não ser
constantemente utilizada, reforçando a tese de Bourdieu (1989), da violência
simbólica, de uma força cada vez mais respeitada, justamente por não ser
constantemente utilizada.
Assim, conforme Novaes (1997, p.15),
[...] “bom patrão” era aquele que, contando com a lealdade ilimitada de
seus moradores, poucas vezes precisava utilizar de violência prevista. Em
seus domínios, somente o “morador ingrato”, “cabra safado”, era castigado,
entrava na “peia”, na “chibata”. O “bom morador” era justamente aquele
que internalizava mais completamente as “regras da morada”, dando vigor
especial á dominação.
121
É, portanto, a partir dessa relação, que emerge e é reforçado o “compromisso
moral“. E assim, o patrão se torna “homem bom” que “dá a terra para ser plantada”.
Este “dar a terra” reproduz o outro lado da relação que é o “morador de favor”.
Portanto, a dependência, pilar da dominação tradicional no rural, tem sua
base no direito de trabalhar e morar em uma terra que não lhe pertence e receber
fornecimento ou adiantamento para cultivar e manter a sua família.
Conforme Wolf (2003, p.108):
[...] quando a amizade instrumental atinge um ponto máximo de
desequilíbrio, de sorte que um dos parceiros está claramente em uma
posição superior quanto à sua capacidade de conceder bens e serviços,
aproximamo-nos do ponto em que a amizade cede lugar à relação patrono-
cliente.
Neste tipo de relação, conforme o autor, é mínima a carga de afetividade
envolvida na formação de uma confiança que subscreva a promessa de futuro apoio
mútuo.
A patronagem é definida por intermédio da falta, ou na insuficiente presença
do poder estatal, na fragilidade das relações centro-periferia, na pouca coesão
interna a determinados segmentos sociais ou na insipiência de relações de mercado,
em uma comunidade ou em um setor da sociedade. Dessa forma, o patrão preenche
funções que deveriam ser cumpridas pelo Estado ou disponibilizadas por um
mercado.
No que se refere às trocas, de acordo com Wolf (2003, p. 109), os parceiros
do contrato patrono-cliente não trocam mais serviços e bens equivalentes. O patrono
oferece bens imediatamente tangíveis: ele fornece “ajuda econômica e proteção
contra as exações – tanto as legais quanto as ilegais - das autoridades. O cliente,
por sua vez, retribui em recursos mais intangíveis”.
Ainda conforme o autor, nos momentos de “crises” são revelados claramente
os protestos de lealdade e apoio e mostram de maneira substancial os alinhamentos
de diferentes forças patronais.
O sistema de patronagem só se sustenta onde o acesso direto a recursos
sofre limitações severas. É nesse sentido que uma "burocracia" mais efetiva
constituiria o remédio eficaz de extirpação do mal ao qual se opõe por definição.
Vejo o poder político do patrono sendo determinado historicamente por um
conjunto de elementos que interagem mutuamente, assumindo na
122
contemporaneidade as características de uma política assistencialista-paternalista e
clientelista que se desenvolve, principalmente, no âmbito da máquina administrativa
local. Em função dessa política, o patrão passa a ser substituído pelo chefe político
local, sendo identificado como os “pai da pobreza”; os “mais bondosos, generosos e
caridosos”; “os mais sábios” e “mais preparados para governarem a localidade”.
Assim, os chefes, fazendo uso da máquina política municipal e da influência das
esferas estadual e federal, fortalecem e até desenvolvem seus dotes e qualidades
pessoais e expandem as relações de compadrio.
Assim, o poder dos chefes políticos passa a ser fortalecido também em
função da liberalização desses recursos. Conforme Avelino Filho (1994, p.227),
[...] a política clientelista ‘moderna’ é mais competitiva que sua antecessora
e suas relações tendem a ser muito mais frágeis, já que mais
‘instrumentais’. Ela sobrevive a partir da sua capacidade de substituir os
antigos laços de lealdade pessoal pela oferta de benefícios materiais, os
mais individuais possíveis, de maneira a evitar conflitos e maximizar o seu
arco de influência eleitoral. O patrono moderno é o broker. E seu poder
depende das suas habilidades em operar como intermediário entre sua
clientela e os recursos públicos. (grifo do autor).
Mais uma vez, é a ausência do setor público na prestação serviços
essenciais, ou de políticas públicas nas comunidades e hoje assentamentos rurais,
que faz com que estes continuem a necessitar da figura do chefe e/ou chefes nos
seus “apertos”. Nesse caso, o chefe local assume as atribuições do Estado ou se
confunde como ele.
Assim, a ausência ou ineficiência, corrupção em torno das políticas públicas
(ou sua gestão) de saúde, educação, moradia e assistência social, agrária e agrícola
favorece a dependência e subordinação das comunidades e assentamentos rurais
aos chefes locais.
A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, trouxe
inovações no que se refere à descentralização político-administrativa, alterando
normas e regras centralizadoras e distribuindo melhor as competências entre o
Poder Central e os poderes regionais e locais (CNAS, 1995, p.19).
A bandeira da descentralização foi uma proposta dos movimentos sociais,
pelo entendimento de que haveria uma maior participação das “coletividades locais”
no processo de controle social. Esse argumento na prática não se efetivou, pois os
municípios, em sua maioria, continuam sendo controlados pelos chefes políticos,
123
que dividem o poder político local com parentes e amigos, e excluem as
“coletividades locais” de participar desse poder.
A descentralização está favorecendo aos chefes locais, a quem cabe o
controle sobre os recursos e a execução de obras públicas, que utiliza como moeda
de troca, sob a forma de favor. A comunidade compreende como sendo “bondade” e
“generosidade” dos chefes. A marca dessa política é centrada na equação favor,
proteção e gratidão. Assim, a relação patrono-cliente persiste adaptando-se às
transformações ocorridas no assentamento Brejo de São Félix.
4.3 “Nós era aqui tudo unido”: a resistência na terra.
Conforme já informei, Inicialmente só havia moradores na comunidade Brejo
de São Félix, onde morava o antigo proprietário e sua família, e na comunidade de
Canafístula. A área de Baixão Grande era utilizada como centro
55
para fazer as
roças, ou seja, as pessoas não moravam lá.
Alguns aspectos são apontados pelos moradores como deflagradores dos
conflitos que de forma direta ou indireta conduziram ao processo de desapropriação
da área. A chegada dos outsiders é sugerida como o elemento novo que pôs em
questão a ordem até então estabelecida.
O Início dos anos de 1960 foi marcado por uma grande crise: inverno ruim,
pouca produção. Nesse período, muitas famílias migraram do Ceará e do Piauí e se
fixaram nas terras do Sr. Nilson da Silveira, principalmente na comunidade de
Baixão Grande.
Segundo o Senhor Zé Beor, a comunidade de Baixão Grande, foi inicialmente
habitada pelo lavrador José Batista de Almeida, que veio do Piauí, e se instalou no
dia 10 de julho de 1959.
Chegou sexta, sábado fomos onde estava o homem, olha seu Nilson,
esses homens aqui, vieram do Piauí, estão procurando para morar aqui, –
Ele disse: “Você é quem sabe se coloca os homens”. Vieram muitos do
Piauí, vinha um parente visitar e avisava para os outros do local, caçar
morada. Vinha visitar, mandava recado, passava por aqui, dizendo que
vinha caçar morada.
55
Centro significa local de produção.
124
O senhor José Batista e seus companheiros fizeram muitos benefícios no
local tais como: os primeiros caminhos de acesso, poço, muitos plantios (laranja), etc
Nessa época o comércio era feito em sua maioria com a capital do Piauí –
Teresina, a pé ou em lombo de animais, sendo necessários até 06 dias para realizar
o trajeto de ida e volta.
Durante a crise, o babaçu colocava-se como única fonte de sustento. Os
moradores, atrelados ao armazém do Sr. Nilson para a venda do côco, logo
buscaram estratégias para vender o babaçu fora da comunidade, pois o estoque
disponível no armazém do proprietário era insuficiente para atender a demanda.
Esse novo fato gerou o conflito na área, tendo se iniciado um processo de
intimidação dos moradores, protagonizado por homens armados, contratados pelo
proprietário.
No ano de 1970, foi instalado na comunidade de Brejo de São Félix, um posto
fiscal na fronteira entre o Maranhão e Piauí, com a respectiva colocação de balança
para pesagem dos produtos e uma corrente que impedia o fluxo livre.
A comunidade de Baixão Grande abriu uma estrada vicinal ligando essa
comunidade à estrada que liga o Baú/Matões, visando, a partir daí, escoar a
produção para os municípios vizinhos como Matões, Caxias Parnarama, sem passar
pelo posto fiscal de Brejo de São Félix.
Essa estrada era o sonho de realização do senhor José Batista, um dos
primeiro moradores e “agente” na comunidade de Baixão Grande. Seu sonho foi
realizado por seu irmão, João Batista de Almeida Neto e os outros moradores.
Quando o senhor Nilson tomou conhecimento da abertura da estrada,
mandou interditá-la para que não houvesse outro caminho para Matões. Levou o
caso para justiça, que intimou 09 trabalhadores. Houve, também, a expulsão de
duas famílias da área. Criou-se um clima de ameaça às famílias de Baixão Grande.
Com a interdição da estrada, os moradores de Baixão Grande teriam que passar por
Brejo de São Félix para ter acesso à estrada que liga Matões a Baú: “Ele queria que
todos os moradores ficassem presos no local. Não fizesse estradas de rodagens”,
afirmou Deusimar, filha do falecido João Batista. Era uma forma também de controlar
o fluxo comercial dos moradores de Baixão Grande.
Esse fato desencadeou o conflito, pois a partir deste episódio, os moradores
se revoltaram e fecharam o caminho que ligava Baixão a Brejo de São Félix, que
125
também havia sido feito por eles. O carro do senhor Nilson ficou preso entre as duas
estradas interrompidas. Com isso, o Sr. Nilson, fez uma denúncia contra os
moradores na delegacia de Parnarama. Alguns dias depois veio o chamado para
todos os moradores de Baixão Grande compareceram à delegacia, onde foram
ameaçados de prisão. Na ocasião, afirmaram que se algum deles fosse preso, todos
iriam juntos.
A partir deste episódio, segundo a senhora Deusimar:
O senhor Nilson falou de correr com os moradores, mas estes não saíram.
Então ficou confusão de vez em quando. Até que disseram que venderam
para os pernambucanos. Os moradores com isso ficaram desesperados.
Achando que os pernambucanos fossem lançar todos fora, e estavam sem
saber o que fazer para evitar tal tragédia (Entrevista realizada em
20/11/2006).
No dia 25 de março de 1985, João Batista teve uma idéia de escrever uma
carta para o presidente da República, José Sarney, expondo a situação da área. No
mês seguinte, veio o comunicado de que a carta tinha sido protocolada sob o nº.
00137 no Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, para os exames e as
providências cabíveis. Foram orientados a aguardar o posicionamento do referido
órgão.
Os moradores relatam que logo após a resposta do Ministério, esteve uma
viatura na área que não sabem informar se era do Ministério da Reforma e do
Desenvolvimento Agrário - MIRAD ou do INCRA
56
. Supõem que vieram fazer algum
levantamento da área.
Isto demonstra como os órgãos públicos, no caso o INCRA, tratam os
trabalhadores rurais assentados, como coisas, objetos. Ao chegarem na área não se
identificam, executam sua tarefa e vão embora. Os ocupantes do carro, segundo os
moradores:
Fizeram um novo transo. Baixão Grande ficou circulado, transo dos quatro
lados, isto é ficou desmembrado da terra dos pernambucanos e do Sr.
Nilson (Continuação da entrevista realizada em 20/11/2006).
Pelo que entendi “transo” refere-se a traçado. Um novo desenho da área teria
sido feito.
56
MIRAD é o atual Ministério do Desenvolvimento Agrário/ MDA.
126
Após este episódio, no ano de 1985, uma comissão de moradores foi procurar
o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais para maiores esclarecimentos,
mas este nada soube informar. Então, resolveram procurar, também, o prefeito de
Matões. De acordo com os moradores, o prefeito teria feito a sugestão de que
incendiassem algumas casas na comunidade de Baixão Grande, para chamar a
atenção dos órgãos, principalmente do INCRA. Como não aceitaram esta proposta,
os moradores resolveram pedir ajuda ao Padre Otacílio Laurindo dos Santos, na
igreja de Matões, que os orientou a procurar a Comissão Pastoral da Terra – CPT de
Caxias, que poderia ajudar-lhes.
Na CPT, contaram a história para uma advogada que disse já saber das
informações de conflito “numa terra de santo denominada Menino Deus”
57
: “na CPT
contamos a nossa história e eles nos deram apoio e direito”.
Conforme Deusimar, na época delegada do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais e sobrinha do Sr. João Batista de Almeida, “tomou a liderança do trabalho
porque o tio ficou doente”, ou seja, assumiu a organização dos moradores pela
permanência na terra:
“[...] ficou tranqüilo por um longo tempo, até que um dia, o Dr. Manuel e o
Dr. José Henrique Silveira (filhos do Sr. Nilson da Silveira) pediram para
formar uma breve reunião, pressionando os moradores a pagarem renda”.
Relata Deusimar, que de acordo com os filhos do proprietário: o IBAMA
estava chegando para obrigar os trabalhadores a pagar multa, caso não houvesse
licença do órgão para botar roça”. Tudo indica que se tratava de uma forma de
pressionar os moradores a pagar a renda.
Os moradores pediram um tempo para se pronunciar e nesse intervalo
procuraram novamente a CPT, que os orientou que fizessem uma comissão para ir a
São Luís, no INCRA, expor a situação. Conforme Deusimar, que fazia parte da
comissão:
A viagem aconteceu no dia 23 de setembro de 1991. Ao chegar no INCRA,
o Dr. Lucílio nos informou que o IBAMA não tinha nada a ver com o
problema e que os moradores poderia botar fogo nas roças que não
57
Menino Deus é o padroeiro Igreja construída pelos padres na comunidade de Brejo de São Félix,
que foi reformada pela família Silveira. Ainda hoje os assentados seguem a tradição de comemorar o
dia 23 de dezembro como o dia de “Menino Deus”. Esta denominação, referida pela advogada da
CPT, aponta para a possibilidade dessa área ter sido terra de santo, porém, conversei com Luis dos
Santos Borges da CPT, que não confirmou esta informação.
127
aconteceria nada, informou nos mais, que só pagaria renda ao dono da
terra se caso nós quiséssemos . Procuramos como estava o processo de
desapropriação e ele nos informou que tinha voltado de Brasília, mas que
não ficássemos tristes, pois o motivo foi só porque o processo caducou, o
INCRA teria que voltar para fazer nova vistoria na terra. E que o processo
não terá quem desmanche, só basta termos paciência que tudo será
resolvido, foi o que nos informou (Continuação da entrevista realizada a
20/11/2006).
A promessa de dar uma resposta sobre o pagamento da renda não foi
cumprida. Alguns dias depois, Deusimar, por volta das 23h30m, recebeu a visita de
José Henrique, um dos filhos do Senhor Nilson Silveira. Na ocasião, encontrava-se
só com os filhos, seu marido estava trabalhando fora:
José Henrique chega em casa, só mais um homem. Segundo me disseram,
era um pistoleiro, eu estava lendo romance com a luz do lampião. Chegou
me xingando de todo nome, irresponsável, vocês disseram que iam dar
resposta e até hoje; esculhambou mesmo, Eu disse: você está nervoso,
entre vamos conversar. Ele entrou, mas estava zangado, parecia um peru,
vermelhinho. Eu disse: olhe vocês tem direito por ser o dono da terra e nós
temos direito por ter apropriado a terra, vocês tinham ela nua. Quando meu
pai chegou aqui, não tinha um pau cortado, imagine habitado, era apenas
mata e animal feroz. E quem começou a confusão não foi nós não. Foi teu
pai por ter entupido a estrada, não foi? E começou o problema, Se não
fosse isso, nada estava acontecendo, a culpa foi teu pai que entupiu a
estrada e ainda levou muita gente detido para delegacia. (continuação da
entrevista realizada a 20/11/2006).
Ainda de acordo com Deusimar:
[...] pedi que ele voltasse no outro dia, mas ele disse que não voltava não e
que queria decidir era hoje. Falei que ia perguntar meus companheiros, se
eles iam dar a resposta hoje. Ele falou, tu vai acordar alguém essa hora?
Eu disse talvez já estejam todos aqui. Sai na porta com a lamparina e
iluminei. Mas dona Aurora, tinha tanta gente, tanta gente na porta, tudinho
de cócara, caladinho, que não se sabia que tinha alguém. Quando ele
passou lá na primeira casa, viram que eram o carro dele, acompanharam,
acordando todo mundo. Era assim, aqui era lindo, ninguém tocava em
ninguém não, nós era aqui tudo unido. (rindo). Ele disse: é casa de
maribondo? Ai ele perguntou, o que vocês acham de eu voltar amanhã 7
hs? Quando foi no outro dia, 6 hs ele chegou em casa. Já estava todo
mundo avisado. Abri a reunião e o Valdo
58
continuou: Ele saiu com a vela
na mão, iluminando a cara de cada um, como é tu paga ou não paga a
renda do homem? Todos disseram: pago não. Só dois que falou que
pagava. Foi o dia que José Henrique ficou mais controlado (Continuação
da entrevista realizada a 20/11/2006).
Conforme Deusimar “[...] por causa desses dois que falaram que pagavam a
renda quase sai briga”.
58
Valdo é o atual Presidente da Associação de Baixão Grande.
128
No dia 17 de janeiro de 1993, tiveram uma reunião e, segundo a informante,
foi uma reunião muito importante. Convidaram Borges e o Padre Jean
59
. Estava
também o secretário geral do STR de Matões, Elias Chaves, o Prefeito de Matões,
na época, Rúbens Pereira, o vereador De Assis, o ex – prefeito José João e José
Henrique Silveira. O prefeito informou que compraria 1.000 (hum mil) ha de terra
para doar aos moradores em associação. Os moradores aceitaram essa proposta
com a condição de que, caso os 1.000 ha não fossem suficientes para incluir todas
as casas da comunidade, inclusive a do Mundico, o último morador, o proprietário
teria que vender mais 500 ha a serem adquiridos pelos moradores. A proposta foi
aceita.
Algum tempo depois, no dia 26 de março de 1993, os moradores foram
chamados a comparecer a câmara dos vereadores de Matões. Tratava-se de uma
reunião para incentivar os vereadores a assinar o projeto de compra da terra.
Apesar de haver vereadores que não concordavam com a compra, a maioria decidiu
apoiá-la. Porém, o tempo passava e a compra não era efetivada.
A partir da intervenção de Luís dos Santos Borges da CPT, os 1000 ha foram
demarcados, ficando 20 famílias fora da área. Com isso, resolveram parar o
trabalho. Informaram ao filho do proprietário, José Henrique Silveira, que a área não
dava para todos. Na ocasião ele afirmou que só poderia fazer o segundo negócio
(aumento dos 500 ha) depois que terminasse o primeiro. Porém, o vereador De
Assis autorizou os moradores a continuarem a demarcação incluindo os 500 ha de
terra.
Quando José Henrique soube, “ficou furioso!”, e perguntou:
Com qual autorização nós tínhamos feito aquela invasão? Eu falei que não
era invasão, só tínhamos terminado o trabalho para aproveitar o
agrimensor que estava presente. E que só ultrapassamos das 1000 ha,
462 ou 465 ha. E que nós tínhamos feito o trabalho, mas com a intenção de
pagar os hectares que passasse da compra do prefeito. Ele falou que
deveria ter trago a polícia de Parnarama para receber os direitos dele
(Continuação da entrevista realizada a 20/11/2006).
Após esse episódio, o INCRA apareceu na área avisando que a terra já era
do estado e que o prefeito não deveria ter comprado os 1000 há. Afirmou, ainda que
teria que ser feita nova vistoria.
59
Borges e Padre Jean são da CPT da cidade de Caxias/ MA
129
Constatei que a venda dos 1000 ha nunca foi efetivada. O INCRA, antes de
realizar a desapropriação da área, solicitou informações à prefeitura e ao cartório de
Parnarama sobre a suposta transação de venda e compra entre o Sr. José Nilson
Silveira proprietário e o prefeito municipal de Matões/MA Rubens Pereira. Recebeu
como resposta (Ver Anexo A) que não havia sido encontrado nenhum registro em
cartório que comprovasse tal transação.
O processo de desapropriação foi iniciado com uma solicitação de vistoria,
assinada pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Matões, pelo
Padre Otacílio Laurindo dos Santos e por Nair Ferreira da Cruz Braz, da paróquia de
Matões. Esse documento, datado do dia 1º de julho de 1988, declara aos órgãos
competentes do Estado e da Nação o que vinha ocorrendo com os moradores do
povoado Baixão–Grande, município de Matões-MA.
O ofício solicitando a vistoria informa “tratar-se de uma área de terra, onde
vive e trabalha uma população de 273 famílias, cultivando 285 linhas de roças, todos
com mais de 21 anos de trabalho na área”. Informa ainda que, “ultimamente os
lavradores de Baixão Grande, vêm sendo ameaçados pelo cidadão José Nilson da
Silveira, que se diz dono da referida área de terra”.
No processo, encontrei uma correspondência que indica o interesse de
desapropriação da área por parte do Senhor José Nilson Silveira. A
correspondência, assinada por este senhor, tem o seguinte teor:
Venho através deste documento, colocar à disposição do MIRAD, uma
área de terras no Município de Parnarama, Estado do Maranhão ao preço
de Cz$ 8.000,00 (oito mil cruzados) por hectare, preço condizente com o
da região para terra nua. Esta área viria completar o Projeto Fundiário em
implantação naquele Município, porém em dificuldades para conclusão.
No processo nº. 00171/88 consta a resposta do INCRA: “o referido imóvel não
foi eleito nem tampouco catalogado no rol da PO/88, objetivando a viabilização de
sua expropriação“.
No entanto, as duas áreas previstas para desapropriação no Município de
Parnarama, as glebas “CRIMÉIA e OLHO D’ÁGUA”, conforme levantamentos
técnicos e jurídicos ”in loco”, foram dadas como inviabilizadas para medida
expropriatória, em função da grande incidência de benfeitorias e culturas, que as
130
caracterizavam como verdadeiros complexos “agropecuários”, inclusive com projetos
aprovados pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE.
Diante disso, o INCRA resolveu, como alternativa para solucionar o problema,
conforme afirma o referido processo “aproveitar a oportunidade para, através de
levantamento técnico jurídico, buscar viabilizar a medida expropriatória em torno do
imóvel denominado “CANAFÍSTULA – FAZENDA SÃO FÉLIX”, com 6.567,40 ha. A
substituição das duas áreas programadas pela não programada, aceitando a
proposta do próprio detentor do título do domínio da gleba “CANAFÌSTULA –
FAZENDA SÃO FÉLIX, veio solucionar o problema do proprietário e o do INCRA.
Assim, o processo de desapropriação por interesse social foi proposto,
inclusive foram elaboradas as minutas de exposição de motivos e do decreto
expropriatório (fls. 91/94). Porém, não chegou a ser concretizado, em razão de
orientação da Divisão Fundiária, que entendia que a desapropriação “[...] seria
compulsória e não amigável como primitivamente se propugnava”.
A partir desse entendimento, o processo, em 14.12.1990, que se encontrava
na Divisão de Bacabal, passou para Divisão Operacional de São Luís para uma
nova vistoria, objetivando obter dados sobre ocupação, aspectos agronômicos e
produtividade e sobre a possibilidade de desapropriação.
Conforme consta no processo, esta nova vistoria só aconteceu no dia
17.10.1994. (conforme folha 106). Da folha 107 a 117 do processo de
desapropriação são feitas considerações sobre o caráter técnico agronômico da
área e apontadas
[...] as precárias condições de existência das 176 famílias que lá estão
sujeitas a toda espécie de desmando por seu proprietário, o qual
através de atitudes autoritárias de cunho tipicamente feudal, violenta
os mais comezinhos princípios da dignidade humana. (grifo nosso).
Na folha 142, o INCRA opina em favor da desapropriação, considerando esta
medida a mais adequada e que melhor atendia aos anseios dos que ali viviam. Sua
efetivação permitiria a criação de um Projeto de Assentamento “[...] o que abrirá
novos horizontes àqueles marginalizados do processo social”. (grifo nosso).
A procuradoria Jurídica Regional do INCRA manifestou-se também pela
desapropriação e seu pronunciamento confirma a iniciativa do proprietário em
oferecer a área para desapropriação:
131
a única ressalva que fazemos é quanto a inexistência, da cópia do AR
comunicando o proprietário das alterações cadastrais verificadas pela SR-
12/C, comprovando a recepção da “DP ex-oficio”. No entanto, salientamos
olhares em tempos idos, era o próprio proprietário quem ofereceu o
imóvel à venda ao INCRA,
e da primeira vistoria efetivada (1988), também,
quanto a ela e da “DP” á época que pela SR-12/C lhe foi enviada, não
interpôs qualquer recursos administrativo, aceitando, portanto, inerte, o que
pela Sr-12/C foi alterado (fls. 67). Tudo indica que em idêntica atitude ainda
se mantém. (INCRA, 1988). (grifo nosso).
Diante do interesse do proprietário em vender a área ao INCRA, uma equipe
do órgão foi designada para fazer o cadastramento dos moradores em 16 de maio
de 1996. Esta comissão era composta por José Augusto Monteiro, José Carlos
Vieira Coelho, José Raimundo Teles, José Raimundo Matos Filho. Há referência a
outra comissão que teria comparecido na área no dia 06 de dezembro de 1996,
composta por Aldenora Martins Leite, Antonio José Sousa Serrão, Luis Carlos Silva
Aranha e Antonio Carlos Trinta Abreu, solicitando assinaturas para o contrato de
assentamento.
Os moradores não têm conhecimento dessa versão da história,
principalmente, do interesse do proprietário em vender o imóvel ao INCRA. A
desapropriação é por eles representada como decorrente da pressão que
exerceram, principalmente os moradores da comunidade de Baixão Grande.
Outro fato que desconhecem, principalmente os moradores de Baixão
Grande, é que nunca se efetivou a compra dos 1000 ha da área, pela prefeitura de
Matões, na administração do Senhor Rubéns Pereira. Por esta suposta compra, até
hoje, os moradores têm uma dívida de “gratidão” com este senhor.
4.4. A quem se deve a desapropriação?
O processo de desapropriação da área em apreço foi se configurando, ao que
tudo indica, a partir de ações pontuais que foram inviabilizando a ordem que havia
sido estabelecida pelo proprietário em prol de seus interesses. Com a chegada dos
outsiders na comunidade de Baixão Grande, os conflitos individuais com o patrão
foram se tornando coletivos e passaram a ter visibilidade através da CPT e do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Matões.
132
A recusa no pagamento da renda da terra por parte dos moradores favoreceu
a ação do proprietário no sentido de buscar uma alternativa economicamente mais
interessante, que seria a venda da terra.
Dois movimentos configuram-se concomitantemente: a luta dos moradores
pela desapropriação da área e a do proprietário pela venda.
O Quadro 06 apresenta uma cronologia dos eventos que culminaram no
processo de desapropriação que possibilitou o assentamento Brejo de São Félix.
QUADRO 06 - Principais eventos do processo de desapropriação da
fazenda “CANAFÍSTULA – FAZENDA SÃO FÉLIX.
Data Evento
07/1959 Chegada do Primeiro morador à comunidade de Baixão Grande.
1970 Instalação do Posto Fiscal na comunidade Brejo de São Félix
1976
Interdição da estrada que liga a comunidade de Baixão Grande à
estrada que dá acesso ao Povoado Baú/Matões.
25/03/1985
Envio de carta, pelo morador João Batista de Almeida, ao Presidente
José Sarney, relatando a situação na área.
1985 Presença do MIRAD/ Hoje MDA na área.
07/1988
Encaminhamento de ofício pelo STR de Matões/MA, juntamente com o
padre da paróquia de Matões, ao INCRA, denunciando a atitude de
José Nilson da Silveira de obrigar os trabalhadores a “pagar renda por
bem ou por mal”.
1988
Encaminhamento de oficio, sem data, do proprietário José Nilson
Silveira, colocando à disposição do órgão a propriedade situada às
margens da estrada Caxias – Buriti Bravo. (folha 08 do Processo de
desapropriação INCRA/ SR (12) 1988
1988
Resposta do INCRA, ao proprietário, informando que o imóvel não
constava do rol da PO/88, para expropriação. (processo nº. 00171/88)
1988
Suspensão do processo de desapropriação da fazenda “CANAFÍSTULA
– FAZENDA SÃO FÉLIX”, com 6.567,40 há, em razão de orientação da
Divisão Fundiária, que entendia que a desapropriação “seria
compulsória e não amigável como primitivamente se propugnava”. (fls.
91/94).
14/12/1990
Transferência do processo de desapropriação da Divisão de Bacabal
para a Divisão Operacional de São Luís.
17/10/1994
Vistoria na área, conforme folha 106 do processo.
25/03/1995
Publicação do decreto de desapropriação no Diário Oficial da União.
16/05/1996
Cadastramento dos moradores.
Fonte: Processo nº. 00171/88 INCRA SR (12) e informações orais dos assentados do P.A
Brejo de São Félix.
133
O processo ocorrido na área estudada, que culminou com a desapropriação
da terra, configurou-se como um “esvaziamento da relação de patronagem, que até
então organizava a vida social” na comunidade de Baixão Grande. Situação
semelhante foi analisada por Carneiro (2004), no povoado Leite, em Itapecuru-Mirim.
No caso do Assentamento Brejo de São Félix o processo transcorreu de
forma “pacífica”, lenta. Talvez a dificuldade dos moradores em acionar recursos
financeiros e políticos, aliada a falta de informação tenha dificultado o processo de
desapropriação. Por fim, houve a “colaboração” do patrão para a desapropriação da
área, caracterizando um tipo de situação em que conforme Carneiro (2004, p.102),
[...] os patrões se acham diante de uma conjuntura na qual os recursos a
serem acessados não são fixos, de forma que o “fraco e o poderoso
podem jogar para a obtenção da máxima vantagem”, em que ambos ou
diríamos nós, apenas um dos participantes da relação, “podem ter
estratégias alternativas para desprezar suas ligações de patronagem”.
O fato é que houve uma relação de ruptura das relações de patronagem, em
dois sentidos. Por parte do patrão, ao oferecer a propriedade para desapropriação, e
por parte dos trabalhadores rurais, ao romperem o compromisso de pagamento da
renda e buscar acionar, em meio a diversas dificuldades, as agências de apoio,
como Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Matões e a Comissão Pastoral da
Terra, em Caxias.
134
5. A (RE) CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO
A desapropriação da área e a conseqüente instalação do assentamento
provocou a construção de novas formas de sociabilidade, que estou analisando no
contexto do que chamo a (re) construção do território.
A noção de território aqui utilizada busca incorporar a dimensão cultural,
objetivando perceber o significado da terra para os assentados.
Essa perspectiva difere daquela desenvolvida por Fernandes (1996; 1999),
que por muito tempo ocupou lugar de referência na discussão sobre territorialização
do MST. Seus trabalhos possibilitaram a apropriação das categorias territorialização
e espacialização da luta pelo MST.
Fernandes (1996) compreende como territorialização a efetivação da
conquista do território, via ocupação e, posteriormente, desapropriação. A
territorialização corresponderia às frações de território que o MST ocupa do território
do capital. A espacialização do Movimento seria a ação de reprodução das
experiências de luta, a reconstrução da socialização política. Conforme esse autor, a
espacialização da luta representa uma “ampliação da consciência social” da
necessidade da conquista de terra, é o registro no espaço social do processo da
luta. O fato do MST ter como objetivos a territorialização e a espacialização da luta
pela terra é o que o diferencia dos demais movimentos sociais isolados
(FERNANDES, 1996: 135-8).
Procuro deslocar-me da dicotomia construída por Fernandes (1999), entre
território camponês versus território do capital.
Oliveira (1997) pondo em questão a idéia de territorialização proposta por
Fernandes (1996), coloca que não basta afirmar que a desapropriação implica na
formação de um território não-capitalista. Seria necessário construir neste local
formas de gestão democrática da vida pública, gestão essa, passível de
aprendizado.
Ao discutir a categoria territorialidade, Oliveira (1997) ressalta principalmente
que não procede a oposição entre território camponês e território do capital. Propõe
que seja estabelecida a distinção entre território e espaço, entendendo que o
primeiro é uma propriedade do segundo. Em sua concepção, ao possibilitar o
135
assentamento, o movimento de luta pela terra territorializa-se, o que abre a
possibilidade para o território da liberdade e dos sonhos. De acordo com o autor:
Desvendar o território pode e deve ser uma perspectiva científica para a
geografia. Por isso insistimos: temos que aprofundar a diferença que nos
move frente a essa luta de cunho teórico, e por isso reafirmamos que o
território não pode ser entendido como equivalente, como igual ao espaço,
como propõem muitos geógrafos. Nesse caminho, torna-se fundamental
compreender que o espaço é uma propriedade que o território possui e
desenvolve. Por isso, é anterior ao território. O território, por sua vez, é um
espaço transformado pelo trabalho, é, portanto, uma produção humana,
logo espaço de luta, de luta de classes ou frações de classes (OLIVEIRA,
1997, p. 9).
Neste sentido, o assentamento Brejo de São Félix, já se constituía um
território, antes da desapropriação. Pois já era um espaço transformado pelo
trabalho, pela produção humana. A desapropriação da terra coloca-se como um
processo social de reforço de vínculos locais e de relações de pertencimento a um
determinado lugar, constituindo-se então, em um processo de (re) territorialização
que situa as pessoas em um espaço geograficamente bem delimitado,o
assentamento, caracterizado por limites e fronteiras, resultado de conflitos e lutas
sociais que dão identidade e sentimentos de familiaridade aos seus moradores.
Assim, a luta pela ou para permanecer na terra, é uma luta por trabalho,
moradia, cidadania e vida. Pois, mesmo com as dificuldades e problemas, os
assentamentos –- são resultado de conflitos sociais e disputas políticas, que se
constituem pela identidade, pela história de cada um e do lugar onde vão
desenhando as relações de sociabilidade.
Observei que boa parte da vida social e econômica dos assentados do P.A
Brejo de São Félix é organizada pelos princípios da reciprocidade e da ajuda
mútua
60
. O assentamento se constitui um território de reciprocidade porque é o
espaço das trocas – materiais e simbólicas – de bens e serviços, por meio das quais
se escolhem aliados e se realizam alianças.
60
Maria Sylvia de Carvalho Franco mostra na sua obra “Homens Livres na ordem escravocrata”, que a ajuda
mútua, baseada no princípio de solidariedade nas comunidades pequenas, “possibilita a complementaridade de
seus membros, mediante relações de contraprestação que se estendem a todas as áreas da vida social”.
Contudo, a comunidade não forma um todo harmônico, não é uma contraposição radical de luta. As tensões,
imersas na corrente do cotidiano, associadas às relações de vizinhança, na cooperação e parentesco também
estão presentes na comunidade. A luta, segundo a autora, aparece como “ingente na relação comunitária”
(Franco, 1997, p. 23-26).
136
De acordo com Tedesco (1999, p. 90),
A comunidade é um local de multissigni-ficados e funções; é o espaço do
jogo das trocas que, através de acordos e conflitos, tecem a convivência de
uma lógica de integração que passa pela participação, pelo afeto,
conhecimento mútuo, vizinhança, mutirões, lazer, equipes, relações de
direitos e deveres, partilha, experiência coletiva na individualidade,
delimitação de espaços, símbolos de identidade de gênero e de idade, etc.
Assim, compreendo a comunidade como um espaço cultural e social mais do
que econômico, onde formas tradicionais de cooperação vicinal e solidariedade são
acionadas pelos indivíduos de acordo com as necessidades de sobrevivência, como
a precisão, a reprodução do grupo doméstico e da própria comunidade. Tais
necessidades são, quase sempre, expressas pela baixa pressão demográfica da
família nuclear ou em momentos da produção que exigem um maior número de
força de trabalho na unidade camponesa, como na preparação da roça e na colheita.
Estas formas de cooperação estão baseadas em princípios de reciprocidade e
ajuda mútua, por isso muitas vezes o assentado que não seguir as regras de dívida
social da comunidade será marginalizado, podendo ficar em situação de hostilidade
e ter dificuldades em receber ajuda comunitária quando necessitar.
Conforme Woortmann, K., (1990, p.67), “a reciprocidade é o contrato social do
camponês hierárquico no interior do todo que é a comunidade”. O contrato passa a
ser feito não só entre pessoas morais, entre famílias, como afirma o autor, mas
também, entre os indivíduos. Exemplo disso pode ser identificado no regimento
interno da associação da comunidade Canafístula, que estabelece o trabalho
coletivo, de roço de variante e estradas, comor uma norma a ser cumprida, conforme
o artigo 11º. do Regimento Interno da associação:
Parágrafo 1º: - Se o associado (a) não participar das atividades coletivas, terá
que justificar sua ausência por escrito;
Parágrafo 2 º. - Caso não exista justificativa o mesmo pagará multa de meia
diária e se continuar se ausentando das atividades coletivas por mais de 03 (três)
vezes, a associação solicitará a exclusão do Cadastro de Beneficiário da Reforma
Agrária junto ao INCRA.
Almeida (1988) afirma que há situações nas quais o controle da terra não é
exercido livre e individualmente por um grupo doméstico determinado, mas sim
conforme o autor:
137
[...] através de normas específicas instituídas para além do código vigente
e acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais
estabelecidas entre vários grupos familiares de pequenos produtores
diretos, que compõem uma unidade familiar (Almeida, 1988, p.43).
Essas regras, de acordo com o autor, se atualizam sobre uma base física
“[...] comum, essencial e inalienável” – um território.
No mundo rural brasileiro encontramos várias configurações de apossamento
dos recursos naturais combinados à propriedade familiar: individual e comum.
No assentamento Brejo de São Félix a forma de apossamento tem sido
realizada através do exercício de normas específicas estabelecidas e acatadas de
forma consensuada. Pois são as relações sociais estabelecidas pelos grupos é que
dão força à identidade territorial.
A festa do lavrador e outras iniciativas de solidariedade mútua, como a prática
de oferecer cesta básica às famílias mais necessitadas, no momento que os
assentados denominam de “precisão”
61
, são expressões dessas normas que vão se
construindo num modelo de reciprocidade, na forma descrita por. Mauss, (1974).
Martins (2002), revela que “os teóricos antiutilitaristas insistem no fato de que
a obrigação mútua gerada pelos movimentos da dádiva (dar, receber e retribuir)
constitui não apenas um fenômeno sociológico das sociedades tradicionais, mas
também das sociedades modernas, e que esta é a condição primeira da existência
do vínculo social. Ou seja, de acordo com o autor:
[...] a perspectiva do 'paradigma do dom' é de que as regras de fundação
de uma sociedade são essencialmente paradoxais e interdisciplinares.
Assim, existem regras próprias à economia, à política e ao social, mas a
sociedade apenas resulta do modo ambivalente como essas diferentes
lógicas, irredutíveis entre si, participam na montagem do jogo social, tendo,
porém, a dádiva como sistema primeiro e anterior aos demais (o que faz
dela o ponto de referência de um 'paradigma da dádiva'). A sociedade se
funda, sobretudo, na ambivalência da reciprocidade: existe o interesse,
mas também o desinteresse, o contrato e o vínculo espontâneo, o pago e o
gratuito. Pelo interesse utilitarista, dizem os maussianos, funda-se uma
empresa comercial, mas não o vínculo social. E, no sentido contrário, pelo
desinteresse espontâneo se fazem amigos, casamentos, etc., mas não a
economia de mercado ou o Estado (MARTINS, 2002, p. 12).
61
Segundo Paulo, da comunidade de Brejo de São Félix, essa prática é realizada desde a época do
senhor Nilson e permanece ainda hoje como parte das atividades da associação.
138
Os Programas sociais do Estado não podem ser percebidos a partir do
paradigma da dádiva: não funcionam a partir dos princípios mistos, de interesse e
desinteresse, que caracterizam a dádiva. O Estado do bem-estar social nunca será
um sistema de dádiva, pois a verdadeira dádiva não pode ser imposta. Conforme
Mota (2002), a dádiva não comunga das mesmas pretensões das teorias totalizantes
da era moderna, sua missão, consiste “primordialmente, em forçar as ciências
sociais a olhar para além do utilitarismo, buscando fundamentar uma teoria plural da
realidade social que incentive a solidariedade entre os homens”. (2002, p. 113).
5.1 Novas formas de gestão do território
A partir do ano de 1999, começou a ser (re) construído o patrimônio do P. A
Brejo de São Félix. As relações institucionais passaram a se constituir, inicialmente,
com a formação das associações e a presença de algumas instituições. O INCRA,
mesmo que de forma esporádica, a prefeitura de Parnarama, através principalmente
do sistema de ensino, a CPT do município de Matões, através da Pastoral da
Criança e o Sindicato dos Tabalhadores Rurais de Matões. Dessas entidades
permanecem atuando no assentamento o INCRA, mas ainda de forma esporádica, a
Prefeitura de Parnarama expandiu um pouco mais suas de ações, através do
funcionamento do Posto de Saúde – com o Programa Saúde da Família na
comunidade Brejo de São Félix e outras iniciativas pontuais de iniciativa do
Secretário de Saúde do município, filho do antigo proprietário.
Com o Programa ATES e o PRONAF, vem se estabelecendo uma relação
com o Banco do Nordeste, via grupos de produção, como também, com as
prefeituras de Matões e Parnarama para a compra da produção local, que se
constituem como novas relações de sociabilidade. Através ainda do Programa de
ATES se estabeleceu a relação com a COOSERT e a FETTAEMA.
Questionados sobre o que havia modificado nestes 11 anos, após a
desapropriação, os moradores afirmaram ter havido melhorias, como o fato de não
pagarem mais renda, o acesso ao crédito instalação e o crédito habitação. Citaram
ainda o Programa ATES, o PRONAF e a própria conquista da terra.
139
O Senhor Zé Aderson, um dos filhos do Senhor Zé Beor, atual presidente da
associação da comunidade de Canafístula, apontou como mudança: “Não viver
obrigado, viver debaixo de ordem, dizendo onde roçar. Botava 20 linhas de roça,
1000 kg de arroz ia para o seu Nilson. Hoje tem transporte para todo lado, tudo ficou
mais fácil”.
No que se refere à presença da equipe de ATES no assentamento,
principalmente na comunidade de Brejo de São Félix, reproduzo uma fala do senhor
Zé Cacheiro, ex- agente do senhor Nilson e responsável pela brincadeira de boi na
comunidade:
Aqui era uma propriedade privada, tinha um proprietário, um dono, até
antes da equipe chegar, aqui ainda tinha pessoas que tinham a norma de
obedecer ao patrão..... Esta equipe trouxe conhecimento. E que até o ex
dono para construir uma casa, teve de pedir. Por exemplo em vez de nós
pedir para ele como era de costume, ele que veio nos pedir para fazer uma
casa, e a comunidade concordou.. Então deixamos de ser aquele cativo,
aquela pessoa privatizada. Vocês sabem muito bem quem era o dono, tudo
que dependia aqui, nós tinha que consultar, chamava-se José Nilson da
Silveira e o Vereador na época Zé Henrique. E hoje ele é que quem pede
para vocês que são os assentados, a comunidade, como se diz..
O senhor Zé Cacheiro, falou isto numa reunião com a presença de quase 70
pessoas da comunidade e não houve quem discordasse dele. A fala pode remeter a
várias interpretações, mas gostaria de consoante Leite (1997), já colocado na
introdução deste trabalho, afirmar que os assentamentos quando assistidos, podem
“também transformar em maior ou menor medidas as relações de poder local”.
(1997, p.168). É evidente que isto requer um processo em longo prazo.
Creio que a presença da equipe de ATES, e principalmente pelo fato da
equipe ter ido morar
62
no assentamento, na comunidade Brejo de São Félix, já por
quase dois anos e meio, vem modificando as relações no assentamento.
5.2 “Deixamos de ser aquele cativo, aquela pessoa privatizada”
O comentário acima, feito pelo senhor Zé Cacheiro, expressa o sentimento de
liberdade que a desapropriação da área trouxe aos moradores. No entanto, as
relações que foram se constituindo após a instalação do assentamento sugerem o
62
O escritório da equipe funciona numa casa alugada que serve também de moradia para os técnicos.
140
seguinte questionamento: os moradores não teriam se submetido a novas formas de
“cativeiro”? Refiro-me a dependência que pude observar com relação aos programas
de crédito e ao INCRA de modo geral.
O crédito instalação permite o suporte inicial aos assentados dos Projetos de
Assentamento do INCRA. Visa à garantia da segurança alimentar das famílias
assentadas, pela compra de alimentos e aquisição de insumos agrícolas; a
construção e recuperação de moradias; a segurança hídrica aos projetos localizados
no semi-árido brasileiro, com a construção de pequenos sistemas de captação,
armazenamento e distribuição de água; e a aplicação em bens de produção
(sementes, mudas, matrizes animais, etc) para a geração de renda. Seus valores e
modalidades vêm sendo adequados ao longo dos anos de modo a propiciar
condições dignas de ocupação, de produção e manutenção das famílias na parcela
rural.
Desde 2005, são cinco as modalidades de crédito instalação e os valores
correspondentes instituídos, conforme quadro abaixo:
QUADRO 07 - Modalidades de crédito instalação
Modalidade de apoio Montante em R$ por
família
Apoio Inicial 2,4 mil
Aquisição de Materiais de Construção 5 mil
Fomento 2,4 mil
Adicional do Semi-Árido 1,5 mil
Recuperação de Materiais de Construção Até R$ 3 mil
FONTE: http://.www.incra.gov.br
Esse crédito atua através de técnicos do INCRA. A aplicação dos recursos é
realizada com a participação das Associações ou representantes dos assentados,
orientadas pela Assessoria Técnica na escolha e no recebimento dos produtos.
Estes são pagos diretamente ao fornecedor – mercados locais, lojas de material de
construção e de implementos agrícolas. O programa também faz parcerias com
instituições financeiras governamentais (Banco do Brasil e Caixa Econômica
Federal) para a construção das moradias.
Esta modalidade de crédito começou a ser repassada no ano de 1999, para
cada uma das 239 famílias das três comunidades: Brejo de São Félix, Canafístula e
Baixão Grande.
141
Inicialmente o valor foi de R$ 1.400,00 (hum mil e quatrocentos reais), sendo
R$ 1.000,00 (um mil reais) destinados ao investimento e R$ 400,00 (quatrocentos
reais) a alimentação.
Em 2003, outras 45 famílias receberam essa mesma modalidade de crédito,
já com acréscimo. O novo valor foi de 2.400,00 (dois mil e quatrocentos), sendo
1.900.000 para investimento e 500,00 para alimentação. O recurso total destinado
ao investimento foi utilizado para a construção de campos agrícolas na comunidade
de Baixão Grande e Canafistula, que foram desativados. Foi utilizado, também, para
concluir o sistema de eletrificação rural desta comunidade, construir três casas de
farinha (Baixão Grande, Canafístula e Brejo de São Félix), e usinas de
beneficiamento de arroz nas comunidades de Baixão Grande e Brejo de São Félix.
Por último, foram construídos dois poços artesianos, um na comunidade de Baixão
Grande e outro na comunidade de Brejo de São Félix.
Cabe um esclarecimento sobre a realização dos campos agrícolas e sua
desativação. Embora não tenha acompanhado esse processo, e os assentados não
gostem de falar sobre esse assunto, percebo que foram induzidos pelos técnicos
que atuavam na época, de que seria uma solução para o aumento da produtividade
e, conseqüentemente, maior inserção no mercado. No entanto, quando perceberam
que o campo requer o trabalho de forma coletiva, que não corresponde a forma
cotidiana de produção, acabaram abandonando a atividade.
Quadro 08 - Infra-estrutura existente no PA BREJO DE SÃO FELIX
ATIVIDADES COMUNIDADE QUANTI-DADE SITUAÇÃO DATA/ÓRGÃO
FINANCIADOR
Poço Brejo de S. Felix 01 funcionando 1998 INCRA
Estrada vicinal Brejo de S. Felix,
Canafistula, Baixão
Grande
60 km Péssimo estado
de conservação
2000 /
Comunidade Viva
Poço Canafístula 01 funcionando 1998 INCRA
Energia
monofásica
Brejo de São Félix e
Canafistula
funcionando 2000 /
Comunidade Viva
Poço Baixão Grande 01 Não funciona 1999 /Caixa
/INCRA/Prefeitura
Energia
monofásica.
Baixão Grande Atende apenas
parte dos
assentados
2004 INCRA
Fonte: Dados obtidos por ocasião do Diagnóstico do PDA do Projeto de Assentamento Brejo de São
Félix, julho de 2006.
142
Em 2005, 259 famílias obtiveram o crédito habitação. Algumas receberam o
valor de 2.500,00, porque estavam na demanda do ano anterior e não haviam sido
contempladas, e outras o valor de 5.000,00, atualizados pela nova tabela. As
residências foram construídas por uma construtora da região, em alvenaria, com
telhas de barro. Geralmente, nas três comunidades, estão dispostas em fileiras
paralelas, sob mangueiras de várias espécies e outras plantas ornamentais e
frutíferas.
Verifiquei que existe nas comunidades de Canafístula e Brejo de São Félix,
grupos de parentesco morando relativamente próximo um dos outros, deste da
época em que eram apenas moradores.
Das 259 residências, 115 não possuem instalações sanitárias. A maioria não
possui sistema hidráulico. Ainda falta construir 17 casas pelo crédito habitação do
INCRA.
As casas no geral são bem conservadas, pintadas. Algumas famílias
modificaram a planta original, aumentando-as, procedendo a uma espécie de
extensão, normalmente localizada nos fundos, com paredes de taipa cobertas de
palha ou telha, ou fazendo apenas o teto, sem levantar paredes laterais.
Além das casas residenciais, existem outras edificações no assentamento: na
comunidade Brejo de São Félix, existe uma casa-de-farinha
63
, que não está em
funcionamento, a igreja católica de Menino Deus, a escola que atende ao ensino
fundamental I e II, o posto de saúde
64
e uma usina de beneficiamento de arroz, que
voltou a funcionar recentemente, a partir dos encaminhamentos do PDA.
Na comunidade Canafístula, não existe prédio escolar, as crianças de
primeira à quarta série têm aulas num barracão de festa. Existe ainda uma casa de
farinha, uma mini-usina de arroz, o salão de reunião da associação e uma igrejinha,
construída por uma família da própria comunidade.
Em Baixão Grande, a escola que atende ao ensino fundamental I, funciona
em duas salas de aula na sede da associação, que também, foi construída com o
63
Uma casa de farinha contém os equipamentos para o beneficiamento de mandioca e arroz,
chamada de agroindústria comunitária, adquirida pela comunidade mediante o recebimento de
recursos do crédito instalação, foi toda construída em alvenaria.
64
O posto de saúde foi construído pelo INCRA, porém, até a chegada da equipe de ATES ao
assentamento, o posto de saúde não funcionava, passou a funcionar com a mediação da equipe junto
à Prefeitura Municipal de Parnarama.
143
recurso do crédito implantação. Existem ainda duas igrejas (católica e evangélica),
construídas pela comunidade.
Em geral a paisagem pouco mudou nas três comunidades, pois as casas do
crédito habitação foram construídas, em sua maioria, próximas às antigas casas de
palha e taipa. Muitas destas ainda permanecem de pé (Figura 03), sendo utilizadas
para guardar materiais, e demais utensílios domésticos, como também, como
cozinhas. Muitas famílias continuam dormindo nas antigas residências. Por isso,
todos os anos trocam a palha e o reboco. Esse hábito sugere a inadequação das
casas de alvenaria ao clima da região, quente, e expressa a implantação de políticas
que desconsideram as particularidades locais e pautam-se em modelos de
desenvolvimento que seguem uma única ordem, designada por Castro-Gomez
(2005) como a ordem possível.
FIGURA 3: Casas de taipa e palha conservadas junto às de alvenaria.
Os moradores possuem uma explicação para a conservação da casa de
“taipa e palha” ao lado da nova casa construída. A presença das duas casas é um
marco importante da experiência familiar. São as lembranças do passado, dos
primeiros momentos em que eram os “moradores” do Sr. Nilson da Silveira. Em
torno daquelas casas desenvolveu-se o trabalho familiar, a indústria doméstica, a
144
sociabilidade erigida sobre as representações da terra enquanto geradora dos meios
de sobrevivência, não só física, como também a realização de um projeto de vida.
Foram imprimindo uma nova feição ao lugar, transformando-o em nosso lugar,
nossa terra, nossa morada.
Conforme Silva (2004, p.120),
Estes registros imagéticos constituem-se em ferramentas importantes para
o processo de identidade social e também para os projetos de vida das
futuras gerações, na medida em que eles representam o elo entre os
diferentes espaços-tempos. Presente, passado e futuro são entrelaçados
na memória pelo fio condutor das distintas experiências vividas.
A conservação das “casas de taipa e palha” revela a forma de pertencimento
a um lugar, de recriação da história familiar e social. A necessidade de deixar
marcas e conforme Simone Weil (1979, p.56), “ [...] uma raiz pela sua participação
real, ativa e natural na existência de uma coletividade, que conserva vivos certos
tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”.
Além das residências antigas, permanecem na paisagem árvores frutíferas,
como mangueira, pitombeira, buritizeiro e todos ajudam a conservar o velho pé de
tamarindo no centro da comunidade de Brejo de São Félix, como símbolo dos
“tempos de antigamente” e se orgulham disso.
Os quintais em geral, são bem cuidados, com fruteiras e outras espécies
nativas. Há abundância de buriti, piqui, bacuri e juçara. No período da safra as
mulheres fazem doces para complementar a alimentação.
A equipe de ATES, através do zootecnista, está acompanhando os
denominados agros quintais, com objetivo de “melhorá-los” e implantar a criação
racional de abelhas nativas. Atualmente estão sendo monitorados três agros quintais
com criação racional de abelhas sem ferrão: dois na comunidade de Baixão Grande
e um em Brejo de São Félix.
O objetivo dessas ações é a divulgação das vantagens desta atividade do
ponto de vista da segurança alimentar, por permitir às famílias o consumo de
alimentos com alto poder nutritivo e terapêutico, além de aumentar a renda familiar
com a venda de excedentes. Esta ação de incentivo à criação racional de abelhas
tem promovido o interesse de outros produtores rurais nesta atividade, criando uma
demanda por capacitações para o desenvolvimento da meliponicultura, nome dado à
criação destas abelhas.
145
5.3 A sociabilidade na Produção
A área do P.A Brejo de São Félix, está inserida numa região que apresenta
uma cobertura vegetal composta pela floresta subcaducifólia de dicótilo-palmácea
(babaçual) e/ou floresta subcaducifólia/caducifólia com babaçu e ou floresta
subcaducifólia/cerrado com babaçu, havendo também culturas como: milho, arroz,
mandioca, abóbora, feijão, batata doce. Essa produção proporciona a cobertura de
solo durante boa parte do ano, facilitando, em parte, a tradição da agricultura no
sistema corte, queima e pousio. Porém, esse sistema de cultivo, segundo a
engenheira agrônoma, já devastou 60 % da área.
Havia uma vegetação nativa constituída por plantas como: pau-terra,
sucupira, pequi, jenipapo, murici, cajui, pau-d’arco, axixá, mangaba, babaçu,
sapucaia, maçaranduba, jatobá, anjico e candeia. A introdução da prática de corte e
queima, fez com que algumas comunidades perdessem as matas nativas.
Existem alguns assentados que vêm se preocupando com o desmatamento,
chegando a proibir a retirada de madeiras pertencentes à sua comunidade. Essa
posição. No entanto, não é apoiada pela maioria que continua extraindo espécies
madeireiras como: pau–d’arco, axixá, cedro, maçaranduba, sapucaia, jatobá, angico
e jacarandá, para utilizar na construção de suas casas, nas cercas para seus
quintais e para venda de forma ilegal.
Porém, é preciso afirmar que a devastação da área, não é causada apenas
pelos motivos já referidos, pois antes da desapropriação, o antigo proprietário já
havia retirado muita madeira da área.
A coleta do coco babaçu constitui uma atividade extrativista executada
durante todo o ano, exercida principalmente pelas mulheres (esposas, companheiras
e filhas mais velhas). A produção média mensal, por família, é de 196 Kg de
amêndoas, pois algumas mulheres chegam a quebrar 20 kg por dia, no período da
safra (Outubro, Novembro e Dezembro).
Esta é uma atividade diária, consistindo na coleta do fruto no chão, retirada da
casca e limpeza das amêndoas. Como instrumentos utilizam o machado e côfo
65
. A
65
Uma espécie de cesto feito de palha do babaçu, que as mulheres utilizam neste caso para guardar
as amêndoas.
146
coleta do coco realiza-se de diferentes formas. Por vezes as mulheres formam
grupos de três a cinco e vão coletar o coco na mata, fazendo a quebra no próprio
local onde realizam a extração. Mas, também, ocorre à coleta individual, sendo esta
modalidade menos freqüente.
Em geral o deslocamento ocorre em torno das 9 horas da manhã, após a
realização das tarefas domésticas e o retorno só é feito ao final do dia, quando o
coco já é trazido quebrado, nos cofos. Ou então, quando saem mais cedo, retornam
no início da tarde, para fazerem o almoço e os outros afazeres.
A venda da amêndoa é realizada no próprio assentamento, a R$ 0, 90
centavos o quilo (julho de 2007). Uma das conquistas dos trabalhadores assentados
foi a liberdade de vender o coco para quem lhes aprouver. Atualmente, o coco
babaçu é vendido para alguns moradores que pagam em dinheiro ou em gêneros
alimentícios (nas quitandas) e repassam o coco através os atravessadores para
Caxias e outros municípios. Do babaçu, as famílias utilizam para alimentação, o
leite e o azeite. O carvão, feito das cascas, é usado para o cozimento dos alimentos.
Também revendem os subprodutos do coco babaçu, tais como o coco velho e as
cascas para as siderúrgicas.
O coco constitui uma das principais fontes de renda familiar. O resultado
desta produção permite a compra de roupas, remédios e outros gêneros alimentícios
da cesta básica. Além do coco babaçu outros frutos nativos são coletados, como:
buriti, sapucaia e pitomba, que existem em abundância em toda a extensão do
assentamento.
A área do P.A não é cortada por nenhum rio, sendo os recursos hídricos
oriundos das lagoas, de aproximadamente 03 km de extensão. Infelizmente
verifiquei desmatamento nas margens de algumas lagoas. Os assentados utilizam
água de cacimbões e poços artesianos para consumo humano e animal. A
qualidade da água não é tão boa, devido a pouca profundidade destes. No período
de agosto a dezembro, essas lagoas e cacimbões secam em sua maioria,
dificultando o acesso das comunidades a esse recurso.
No que se refere à fauna, é bastante diversificada, ocorrendo populações de
tatu, paca, macacos de várias espécies, jabuti, iúma, cascavel, tucanos e araras,
etc.
147
Anteriormente, havia grandes populações faunísticas, mas devido aos
impactos ocasionados pelo homem, parte desse ecossistema, tem diminuído. Pois,
a caça também se constitui de uma das suas atividades de subsistência e fonte de
proteína.
5.3.1 Sistema de Cultivo.
Os trabalhadores assentados praticam uma agricultura itinerante, através do
sistema de corte, queima e pousio. Utilizam o sistema de consórcio de culturas
alimentares como: arroz, milho e mandioca, plantados nos meses de dezembro e
janeiro. A área de cultivo se divide entre os baixões e as partes altas. Há o cultivo de
feijão, maxixe, quiabo, melancia, abóbora e pepino, que serve para o autoconsumo,
e algumas famílias cultivam cebolinha e coentro plantados em canteiros.
Por não utilizarem a técnica dos aceiros adequadamente, muitas vezes o fogo
se espalha de forma não planejada e incontrolável por todas as áreas circunvizinhas.
Os assentados, em sua maioria, se organizam e plantam em áreas próximas,
mas o cultivo é feito de forma separada, por família. A escolha da área de roça está
sujeita às normas construídas pelos próprios assentados. Explicam que as áreas de
relevo baixo são destinadas para o plantio de arroz, enquanto aquelas de relevo
mais alto e de estrutura arenosa são destinadas ao plantio da mandioca.
As regras para definição do local das roças, em geral, obedecem critérios tais
como proximidade entre roça e moradia e esta é uma ação definida após um acordo.
Porém, o Presidente da comunidade de Canafístula informou que está havendo
escassez de terra para o plantio no assentamento como um todo. Isto está levando
alguns trabalhadores desrespeitarem as regras de decisão conjunta e se
apropriarem, individualmente, de quintas para seus plantação e pasto dos seus
animais.
De acordo com este presidente, está sendo gestada a idéia de separação ou
demarcação de limites entre uma comunidade e outra. As áreas de mata que se
situam entre as comunidades estão sendo apropriadas de forma indisciplinada.
148
Informou, ainda, que o acesso à comunidade Canafístula está sendo
apropriado individualmente por pessoas da comunidade de Brejo de São Félix, para
roça e plantio de capim para o gado. Confirmando esta informação, o senhor Luis,
da comunidade de Brejo de São Félix, participante do projeto de avicultura, 52 anos,
07 filhos, diz:
[...] não tem mais mato apropriado para fazer roça, na comunidade, por
esta razão o pessoal está entrando na área de roça da comunidade de
Canafístula (Conversa informal realizada no final da tarde do dia
19/07/2007).
Os assentados denominam de trabalho comunitário aquele que é exercido em
grupo, nas várias etapas exigidas para a feitura das roças como: roçagem, coivara,
capina, colheita, etc. Costumavam realizar a chamada “troca de dias de trabalho”
66
,
entre as famílias mais próximas.
Antonio Candido (1987, p. 68) em seu estudo sobre o caipira, aponta que a
necessidade de ajuda imposta pela técnica agrícola e a sua retribuição automática
determinavam a formação de uma rede ampla de relação:
[...] ligando uns aos outros, os habitantes do grupo de vizinhança e
contribuindo para a sua unidade estrutural e funcional”. O mutirão era um
dos momentos em que este caráter, “por assim dizer, inevitável” da
solidariedade apresenta-se mais claramente.
Neste sentido, Dona Antonia, da comunidade de Brejo de São Félix afirma:
[...] antes era tudo roçado através do mutirão, no final do inverno. Ficava
tudo limpo; hoje esta tudo diferente, o povo diz: Eu mesmo não vou roçar
porta de ninguém. Não é roçar porta. É roçar o pátio. Esta desunião, antes
o povo era mais unido”.
Neste sentido o Senhor Luiz afirma:
Antes havia mais troca de dias, hoje é menos, é cada um por si, antes era
só marcar, se chegava na roça, tinha 20/30 homens. Um serviço que era
para terminar em 05 dias terminava em 02 ou 03 dias. Hoje, que era para
ser mais unido, não é”. É o tempo, o tempo vai e vem, hoje o tempo está
para cada um cuidar do que é seu (Conversa informal realizada no final da
tarde do dia 19/07/2007).
Existem, embora em número reduzido, aquelas famílias, que contratam mão-
de-obra sazonalmente mediante o pagamento monetário.
66
A expressão significa a combinação que os trabalhadores fazem de trabalharem conjuntamente, de
forma alternada, na roça de um e de outro, conforme a necessidade.
149
De acordo com a equipe de ATES, estão sendo realizadas capacitações e
informações sobre as técnicas de plantios, (fileiras entre plantas, espaçamento,
consórcio e quebra ventos), visando o melhor aproveitamento das áreas e
conseqüentemente uma maior produtividade das culturas.
No entanto, conforme a engenheira agrônoma da equipe ATES:
[...] ainda é evidente a resistência cultural por parte de algumas famílias
quanto à implantação dessas técnicas, sinalizando a necessidade de
continuidade de um trabalho sócio - educativo, uma vez que temos o
entendimento que este processo é lento e gradativo.
Os assentados costumam fazer suas roças por família, conforme já foi dito. A
administração das etapas da produção e a destinação dos seus resultados ficam
subordinadas às necessidades de cada família, assim como a divisão das tarefas
está sujeita aos ditames das regras familiares e aos papéis que assume dentro dela
cada membro.
A equipe técnica do Programa ATES está buscando implantar um trabalho
produtivo nas roças de forma individual, através de um sistema regenerativo, que
consiste em criar, junto ao sistema natural, as condições de tempo e espaço físico
para o desenvolvimento das espécies cultivadas no local, como as sementes
crioulas ou de espécies nativas, já existentes no assentamento, cujo manejo, será
feito de modo a não comprometer a biodiversidade.
O calendário agrícola do assentamento Brejo de São Félix, mostra maior
intensidade de mão de obra nos meses de preparo da área e plantio, adotando o
consórcio de arroz, milho e mandioca nos meses outubro, novembro e dezembro.
Capinam em janeiro e fevereiro, e colhem em maio e junho. Portanto, os meses de
menor intensidade de trabalho são março, abril, julho, agosto e setembro como
apresenta a tabela abaixo.
QUADRO 07 - Calendário Sazonal
Corte Queima Plantio Trato culturais Colheita
Culturas
Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Dez
Arroz
x X x
X X X x x x x x x
Milho X X X x x
Feijão X X X x x
Mandioca X X X x
Melancia e
outras
X X X x x
FONTE: Dados obtidos por ocasião do Diagnóstico do PDA do Projeto de Assentamento Brejo de
São Félix, julho de 2006.
150
5.3.2 Sistema de criação
No P. A Brejo de São Félix, algumas famílias praticam a criação de gado,
havendo também, a criação de suínos e aves (galinhas).
A bovinocultura mista (corte e leite) é explorada apenas por 15 famílias, com
aproximadamente 300 cabeças de gado. Utilizam no manejo a aplicação de vacinas
e medicamentos, fornecimento de sal mineral e pastagens.
A maioria dos animais foi adquirida com recurso próprio. Vale ressaltar que os
animais ficam presos nos pastos em pequenas áreas, no interior do assentamento,
uma vez que foi decidido, em consenso, não criá-los soltos.
O rebanho de suinocultura está distribuído nas três comunidades. Em torno
de 5% dos assentados, exercem essa atividade de forma semi – extensiva. São,
também, criados presos, em respeito à regra do assentamento de não permitir a
criação de animais soltos. Esta atividade é realizada com objetivo de engorda e
descarte (venda).
Há, ainda, a criação de galinha caipira nas comunidades. Esta ocorre no
sistema extensivo, ficando as galinhas soltas na área, comendo restos de alimentos,
insetos e o milho produzido pelos próprios criadores para este fim. Esta criação é
feita visando principalmente o consumo interno das famílias, só comercializam
quando há necessidades mais urgentes.
5.3.3 A Agricultura familiar e o PRONAF em Brejo de São Félix: rumo ao
agronegócio?
Em 2005, 34 famílias das três comunidades do P. A acessaram o PRONAF A,
linha de crédito específica para os assentamentos rurais, num valor total de
540.213,74, via Banco do Nordeste, agência de Caxias/MA. É importante registrar
que a maioria das famílias, no início, ficou receosa de acessar esse crédito, uma vez
que não acreditavam que a equipe efetivasse os projetos, tendo em vista, que outras
151
empresas, o próprio Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Matões, já haviam
prometido a elaborar os projetos e não haviam conseguido aprová-los.
A equipe de ATES, em 2005, era recente no assentamento, não tendo ainda
estabelecido uma relação de confiança. Os assentados no início não estavam
interessados em trabalhar com este tipo de atividade, que envolve financiamento
bancário e certa burocracia. Atualmente, percebo que há maior interesse em
acessar esta linha de crédito.
De acordo com informações da equipe de ATES, há 49 (quarenta e nove)
proponentes para novas propostas de PRONAF A, nas atividades de bovinocultura,
suinocultura e avicultura. Os projetos financiados estão em final de implantação.
QUADRO 09 - Projetos implantados pelo PRONAF A 2006/2007
COMUNIDADES ATIVIDADES VALOR DO
PROJETO
Nº DE FAMÍLIAS
BENEFICIADAS
Brejo de S. Félix Avicultura caipira + culturas
alimentares + horticultura
140.481, 09 09
Canafístula Avicultura caipira
/caprinocultura
156.090, 10
78, 622, 75
10
05
Baixão Grande Bovinocultura de corte +
culturas alimentares
+horticultura
165. 019, 80 10
Total 540.213, 74 34
FONTE: Dados obtidos por ocasião do Diagnóstico do PDA do Projeto de Assentamento Brejo de
São Félix, julho de 2006.
As famílias das comunidades de Canafístula e Brejo de São Félix já estão
comercializando os frangos na própria comunidade e na sede dos municípios de
Matões e Parnarama. Em conversa com essas famílias, logo no início do projeto,
percebi seu entusiasmo. Algumas já fizeram a aquisição do segundo lote de pintos,
comprados com recursos da venda do primeiro lote. Duas famílias já compraram
moto para transportar os frangos abatidos para a sede do município.
Na última vez que estive no assentamento, informaram-me que estavam em
processo de mudança da atividade de criação de aves caipira para avicultura de
corte (galeto). Justificaram que a demanda por este tipo de frango é maior do que o
caipira, como também o tempo de criação para a venda é menor. Informaram,
também, que havia um gasto com ração muito grande. Assim, preferiram investir na
avicultura de corte que o retorno seria mais rápido. Havia segurança na informação
152
e a responsável técnica do projeto, a engenheira agrônoma do Programa de ATES,
se pronunciou da seguinte forma:
Estamos acompanhando o processo de forma bastante atenta, porém
imparcial, buscando preservar e estimular a auto-gestão, uma vez que a
iniciativa partiu dos próprios produtores, alegando dificuldade em vender o
frango caipira, pois o preço pago aos produtores é o mesmo do galeto,
foram informados das dificuldades de manejo dessa outra atividade, mas
eles resolveram arriscar.
A fala da engenheira agrônoma nesse caso, dar a entender de que há uma
autonomia, liberdade para os assentados definirem a melhor forma de produção.
Em conversa recente com a equipe ATES, fui informada que, após terem
efetuado a mudança do frango caipira para o frango de corte, a dificuldade de
comercialização persistiu sob novo ângulo, desta feita o tempo para
comercialização, uma vez que este produto necessita ser comercializado no máximo
com até 50 (cinqüenta) dias. Conforme a engenheira agrônoma da equipe:
Verifica-se que está havendo morosidade na saída do produto, trazendo
desta forma prejuízo aos criadores, sendo que esta situação é reforçada
pelo elevado preço da ração. Os compradores são poucos para absorver a
quantidade da produção, não havendo também iniciativa por parte dos
beneficiários para ampliar o mercado.
Ainda de acordo com a engenheira agrônoma, “[...] visando minimizar as
perdas, resolvemos parar com a criação para continuarmos só após a produção de
milho e mandioca, em julho, com o intuito de que os próprios criadores fabriquem
suas rações, visando assim, amenizar os custos da atividade”.
De acordo com a equipe, já tinha sido previsto e discutido com o grupo a
dificuldade que estes teriam na comercialização, uma vez que os custos da ração
elevam o valor do produto a ser comercializado. Por outro lado, a nova atividade
exige do criador uma postura mais dinâmica na busca de mercado. No entanto, a
equipe tem o entendimento de que este processo não é fácil para o agricultor nesta
fase de transição da agricultura tradicional para o agronegócio.
A Engenheira Agrônoma informou que discutiu com o grupo de produtores do
projeto de avicultura das duas comunidades a utilização do recurso restante do
projeto para a compra de equipamento (forrageira) e insumo para a fabricação de
ração, que deve ser produzida localmente, reduzindo a dependência de insumos
externos. Dessa forma, ficou acordado entre a equipe e os produtores, a utilização
153
do recurso, sendo beneficiados cada produtor com o valor de R$ 1.492,00 (hum mil
quatrocentos e noventa e dois reais).
Ainda segundo a Agrônoma, a compra das forrageiras já havia sido feita. Foi
também realizado um dia de treinamento, denominado dia de campo, sobre manejo
de instalações sanitárias e demonstração prática sobre fabricação de ração e
utilização de matérias-primas produzidas localmente, a exemplo da parte aérea da
mandioca e raiz, como também o milho. Foram destacadas as substâncias
presentes em cada ingrediente, a importância de uma ração equilibrada para o bom
crescimento das aves. E deu-se início do processo de fabricação de ração, onde
juntamente com os produtores foram trituradas as raízes de mandioca e em seguida
colocados para secar ao sol.
Quando estive no Assentamento entre os dias 19 e 23 de julho, encontrei os
produtores animados com a continuidade dos projetos. Neste sentido, afirmou seu
Luiz, da comunidade de Brejo de São Félix: “Aprendi a fazer a ração na oficina do
dia de campo. O problema é o milho que não está tendo, pois o inverno foi pouco,
mas estou dando um jeito”. Acrescentou também,que vai produzir ovos, como faz
Mariazinha, agente de saúde, que já está vendendo ovos na própria comunidade de
Brejo de São Félix.
Quem também se mostrou cheia de projetos foi Lúcia Pereira de Souza, 42
anos, 02 filhas, da comunidade de Canafístula. Além de estar criando suínos, tem
uma horta em casa e agora também vai produzir ovos. Já vendeu frangos na cidade
de Matões, para onde se deslocava a cada três dias e gastava quase R$ 100,00 por
mês. Mas, afirmou: “[...] o pessoal está vindo aqui procurar o frango, eu sei que vai
melhorar”.
Assim, percebi que há iniciativas de algumas famílias envolvidas nos projetos
de avicultura, no sentido de melhor aproveitamento dos resíduos como a cama, ou
seja, o material utilizado para forrar o galpão (casca do arroz), vísceras e outros, que
são reaproveitados e utilizados na implantação de pequenas hortas e na criação de
suínos. Há, por outro lado à iniciativa de produção de ovos por algumas famílias.
Percebi que, embora de forma reduzida, e sem apoio do poder público
municipal ou de outras entidades no processo de comercialização, os projetos
acabam contribuindo com a geração de renda e trabalho para outras famílias, que
não estão no projeto. Lúcia, de Canafístula, por exemplo, informou que chama os
154
vizinhos ou parentes para ajudá-la no abate dos frangos para a venda. E paga aos
ajudantes uma diária
67
e assim, fazem os demais produtores, ou seja, os projetos se
bem acompanhados podem ser viáveis na geração de trabalho e renda para as
demais famílias que não estão no projeto.
As famílias de Baixão Grande e Canafístula, que acessaram o crédito para
bovinocultura e caprinocultura respectivamente, estão em fase de construção de
apriscos e currais, como também em processo de formação de pastagem. Está
sendo construída, na comunidade Canafístula, através do projeto de caprinocultura,
uma cisterna de placas para armazenagem de águas pluviais, para os animais,
tendo em vista o local inadequado para escavação de açude e a distância de fontes
de água no local.
No Projeto de bovinocultura de Baixão Grande está previsto um curral, 01 ha
de plantio de mandioca em sistema de aléia (leguminosas que objetivam a
recuperação do solo) para cada produtor; ½ ha para a campineira e um poço
artesiano.
Conforme a Agrônoma da equipe ATES, no mês de julho foi feita a aquisição
dos animais do projeto de bovinocultura, da comunidade de Baixão Grande, embora
tenham ocorrido inúmeras dificuldades durante o processo de implantação deste
projeto. Porém, de acordo com a Agrônoma:
Com a conclusão de atividades em atraso, como a construção de 05
currais e divisão de pastagem, foi viabilizada a compra de 06(seis) matrizes
por projeto, sendo este momento acompanhado pela equipe, uma vez que
entendemos a importância deste momento para o êxito dos 10 (dez)
projetos. As famílias foram orientadas no processo de seleção de cada
animal, onde podemos constatar que estas adquiriram as 06(seis) matrizes
previstas no projeto, ficando pendente só a compra dos reprodutores, para
o mês que vem.
No que se refere à execução dos projetos, a Agrônoma, considera um
trabalho difícil. Costuma ouvir os trabalhadores comentarem entre si: “Não vai pela
cabeça de técnico”. Então utiliza a seguinte estratégia:
Só libero a parcela do recurso, após a verificação da execução da atividade
no local. Mesmo assim, alguns trabalhadores ainda têm justificativa para
dizer porque não foi realizada a atividade. Eu não abro mão, porque senão
eles utilizam o recurso e não fazem atividade, depois querem o dinheiro.
67
Diária se refere ao pagamento por dia de serviço, neste assentamento a diária estava a R$ 10,00.
155
Neste projeto vem ocorrendo da parte da equipe de ATES a insistência para
que as famílias trabalhem de forma coletiva. Isso tem constituído novas formas de
conflito no assentamento, que serão discutidas posteriormente.
Observei que tem ocorrido um aumento na produção em conseqüência do
subsídio do PRONAF. No entanto, têm se colocado dificuldades para sua
comercialização. A relação desses assentados com o mercado é ainda incipiente e
começa a ocorrer de forma mais sistemática em função da produção subsidiada pelo
PRONAF A, especificamente os produtores do projeto de avicultura caipira.
Não percebi no assentamento a predominância de relações que possam ser
consideradas de trabalho assalariado. Muito menos uma integração completa ao
mercado, conforme sugere Abromovay (1992), quando se refere à agricultura
familiar como subordinada ao “movimento do capital”.
Como coloca Soares (1981) a “especificidade do campesinato” está numa
independência relativa da unidade familiar de produção em relação ao mercado.
Pelo controle que o mercado exerce sobre os meios de produção e sobre o processo
de trabalho, os agricultores têm uma capacidade de se ligar mais ou menos ao
mercado, dependendo das circunstâncias. Pois numa situação de retração do
mercado, a produção para autoconsumo pode até ser mais prolongada.
Os assentados do P. A Brejo de São Félix estão em meio a um jogo difícil que
não oferece igualdade de oportunidades para todos. A transformação de excedentes
da produção em mercadoria tem se colocado como necessária para sua reprodução
como agricultores. No entanto, como esse ainda é um movimento recente no
assentamento, não foi possível avaliar como está se dando essa inserção.
Os prognósticos não parecem bons, considerando o que está posto no
Relatório da FAO, elaborado por Guanziroli (1994). A tabela 23 deste relatório
aponta a precariedade da comercialização dos produtos dos assentamentos em
relação aos preços médios obtidos pelos demais produtores rurais.
Em termos globais, de acordo com essa pesquisa, a perda é da ordem de
58,76%, sendo maior na região Nordeste, com 97,71% de perda. Ainda afirma a
pesquisa, que nesta região, 55,23% da venda dos assentados são realizados via
intermediários.
A principal razão da fragilidade da comercialização no P.A Brejo de São Félix,
é a reduzida política pública para o setor, além das condições de infra-estrutura
156
local, do custo do deslocamento da produção, que é encarecido pelas péssimas
condições das estradas que levam ao mercado consumidor, seja no município de
Caxias, ou na sede dos municípios de Matões e Parnarama/MA.
5. 4 Gestão, organização e novas formas de sociabilidade.
As comunidades do P. A Brejo de São Félix, não tinham experiência com
associação anteriormente. Os trabalhadores rurais, hoje assentados construíram, ao
longo da história, seus códigos de conduta, através dos seus processos interativos
permeados pela linguagem e outras práticas.
A permanência na terra toma como referência valores, crenças e costumes,
frutos das vivências cotidianas do passado (antes da conquista da terra) os
mutirões, a solidariedade nos momentos difíceis, na morte, a recriação das danças e
de outras formas de manifestações culturais.
Agora, como assentados da reforma agrária, novas relações se fazem
presentes. Em conseqüência das estratégias impostas pelas entidades que passam
a atuar no assentamento, colocaram-se novas regras de convivência. A principal foi
a imposição do modelo de organização política através de associação.
Neste contexto, a associação é torna-se fundamental para o assentamento, já
que figura como um dispositivo no controle e acesso aos benefícios de infra-
estrutura produtiva e social e aos financiamentos agrícolas. Constitui-se como um
mecanismo de controle e, também, como um importante espaço de socialização dos
assentados (sejam filiados ou não).
Como já foi colocado antes, para ser beneficiário é preciso ser associado. A
associação, através de sua diretoria, passa a implementar regras para o controle e
fiscalização dos moradores, registrando quem participa ou não dos mutirões, quem
participa ou não das reuniões. Fiscalizam a obediência ao regimento interno e outras
normas colocadas pelos funcionários do INCRA e equipe de ATES.
A associação da comunidade de Baixão Grande foi criada em setembro de
1994 com ajuda da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Borges, que na época era
da CPT de Caxias, confirmou que a entidade contribuiu no processo, inclusive com a
constituição da associação e na produção do campo agrícola. Nesta época só se
157
encontravam mulheres, idosos e crianças na comunidade. Os homens estavam, em
sua maioria, trabalhando fora, na Usina hidrelétrica de Tucuruí. Conforme Luís dos
Santos Borges
68
:
Trabalhei muito, eu e o Pe. Jean, a comunidade estava indo bem, mas
quando chegou os homens e os crentes acabou tudo. É assim, nós
ajudamos na desapropriação, preparamos a comunidade, quando tem
dinheiro os crentes chegam e acabam tudo (Entrevista realizada em
17/07/2007).
O discurso de Borges insinua a disputa que permanece na comunidade entre
católicos e protestantes pela direção da associação, que será aprofundada adiante.
Após a desapropriação os homens voltaram e formaram uma associação só
de homens. Divididos entre crentes e católicos, passaram a disputar a direção da
associação.
69
Esta foi uma das razões da CPT se afastar da comunidade.
As outras associações, de Brejo de São Félix e de Canafístula, foram criadas,
segundo informações dos assentados, por orientação e indicação do filho do
proprietário, José Henrique Silveira. Inclusive, há informações de que dona Darcy,
esposa do Sr. Nilson teria sido a primeira presidente da associação de Brejo de São
Félix. Dessa forma, o processo de criação das associações, com exceção da de
Baixão Grande, se deu através de um processo de imposição de “fora para dentro”.
Carvalho (1998) mostra que as induções de fora para dentro de formas de
associativismo ou são desprezadas ou são reelaboradas pelos grupos sociais. O
autor mostra que há dois processos na relação de tutela (via dispositivos legais)
sobre os assentados: o primeiro em que as organizações são “consensuadas”, em
que os envolvidos são sujeitos do processo; e o segundo, em que as organizações
são “constrangidas” ficando os envolvidos em posição de subalternidade ou sem
possibilidades de negar a indução para se associar.
No assentamento Brejo de São Félix, observa-se uma tensão entre os dois
processos: alternam movimentos de submissão, quando por exemplo submetem-se
a implantação do campo agrícola, com movimentos de recusa a regras pré-
estabelecidas, ou estabelecidas de “fora para dentro”.
Como a associação de Baixão Grande foi a primeira a ser criada, e sua
direção era mais atuante no sentido de reivindicar benfeitorias para o assentamento,
há uma espécie de ressentimento das pessoas dessa comunidade, principalmente
68
Borges me informou ainda que esta região é palco de grandes latifúndios: os Queiroz, os
Coutinhos, os Silveiras;
69
O atual presidente da associação de Baixão Grande pertence a uma igreja evangélica.
158
das que estavam à frente da sua direção na época da desapropriação, no que se
refere aos benefícios adquiridos com a constituição do assentamento. Estes não
foram dirigidos para a comunidade de Baixão Grande e sim de Brejo de São Félix.
De acordo com Nega, que foi presidente da associação de Baixão Grande, e
uma das lideranças da área: “tudo que foi solicitado veio só para a comunidade
sede, Brejo de São Félix, o Baixão Grande ficou para trás”. (Entrevista realizada em
15/06/2006). A informante entende que por ser mais ativa, a associação do Baixão
Grande merecia ter sido mais favorecida.
As três associações do P.A Brejo de São Félix são os núcleos mais
importantes na vida comunitária do assentamento, pois atuam, não somente como a
ponte entre os assentados e o poder público. Aqui, cabe analisar os mecanismos
que são utilizados para preservação do grupo, as interações sociais entre os
moradores e a associação, e quais sociações se formam para a manutenção das
comunidades, como diz Simmel (1983, p. 60):
A sociação só começa a existir quando a coexistência isolada dos
indivíduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração,
que caem sob o conceito geral de interação. A sociação é, assim, a forma,
realizada de diversas maneiras, na qual os indivíduos constituem uma
unidade dentro da qual se realizam seus interesses. E é na base desses
interesses – tangíveis ou idéias, momentâneos ou duradouros,
conscientes, impulsionados casualmente ou induzidos teologicamente -
que os indivíduos constituem tais unidades..
De uma maneira geral, a autoridade exercida pela associação é legitimada
pelos assentados, mesmo que apenas uma parte participe das decisões. Isso
aparece de forma ambígua já que de um lado cabe às associações fazer o controle
e por outro necessita da adesão dos mesmos para manter sua legitimidade e
garantir seus custos financeiros. Esta ambigüidade de interesses deixa clara a
principal preocupação das associações, a produção agrícola. Durante todo tempo
em que convivi com as três associações as questões giravam em torno da
viabilidade da agricultura.
Mesmo cientes das dificuldades financeiras acarretadas pela não associação
de um morador, o risco maior que se coloca para o grupo é a saída de um morador
para “fora” do assentamento. Dessa maneira, podemos nos remeter a Simmel (1983.
p. 52), quando alerta para as condições de continuidade de um grupo:
159
A saída dos elementos antigos e a entrada dos novos operam-se tão
progressivamente que o grupo dá impressão de um ser único, exatamente
como um organismo no centro do escoamento incessante de seus átomos.
Se essa substituição se efetuasse uma vez só, se a certa saída em massa
sucedesse bruscamente uma entrada em massa, pouco fundamento
teríamos para dizer que o grupo, apesar da mobilidade de seus membros,
subsiste em sua unidade. No entanto, constituírem os recém-chegados, a
cada momento, uma minoria ínfima com relação àqueles que já
compunham a sociedade no momento anterior, é o fato que lhe permite
continuar idêntica a si própria, mesmo que, em duas épocas mais
afastadas, o conjunto do pessoal social fosse inteiramente renovado.
A saída individual não compromete, portanto a continuidade do grupo, mas há
o temor de que venha a ocorrer uma saída em massa.
A existência de um assentamento com mais de uma associação, como é o
caso do P.A Brejo de São Félix, faz com que os funcionários do INCRA elejam uma
delas como representante do assentamento. E, geralmente, quem fica com esta
representação é o presidente mais ativo, que consegue se deslocar com mais
facilidade, vem mais vezes ao INCRA, acaba facilitando o trabalho para o
funcionário e impondo a sua “representação” no assentamento como um todo.
Esta comunidade adquiriu através do crédito implantação / INCRA,
financiamento para a construção de um campo agrícola que está desativado. Foi
sugerido pela equipe técnica de ATES que fosse utilizado para os beneficiários do
Projeto PRONAF de bovino, mas não houve um consenso sobre a forma de sua
utilização.
Existe um poço artesiano na comunidade de Baixão Grande, que, também,
não está sendo utilizado. A companhia de abastecimento de água do município de
Matões havia delegado à associação a responsabilidade pela compra de todo o
material hidráulico para levar água encanada às casas. Como a maioria dos
moradores possui poços tipos cacimbões, não está havendo interesse no
encaminhamento da questão.
No ano de 1996, esta comunidade entrou no programa de eletrificação rural,
com recurso do Banco Mundial, via Prefeitura de Matões, gestão do prefeito Rubens
Pereira. Segundo pude saber, foram ludibriados. Assinaram documentos liberando o
pagamento sem a obra estar pronta e a empresa colocou apenas alguns postes,
tendo desaparecido com o recurso da associação.
Tiveram que completar os custos da implantação da eletrificação com o
recurso do crédito implantação/INCRA, que só foi suficiente para implantar energia
monofásica. Ainda mais, muitas famílias não foram atendidas. Atualmente estão
160
reivindicando a complementação dos serviços e a mudança de fase monofásica para
trifásica, através do Programa “Luz para Todos”, do governo Federal.
O que se percebe é uma disputa interna na associação de Baixão Grande,
entre algumas pessoas que foram lideranças no processo de desapropriação e sua
atual direção que, em sua maioria, permanece muito tempo trabalhando fora da
comunidade. Essa situação tem sido questionada, principalmente, por duas
lideranças, filhas do Sr. João Batista, o primeiro morador, que argumentam que os
diretores não resolvem os problemas da comunidade. Essa parece ser uma posição
minoritária, pois a atual direção da associação tem o apoio da maioria dos
moradores, conforme o resultado da última eleição que confirmou a atual direção
para mais uma gestão.
A partir dessa situação, as pessoas, principalmente as de Brejo de São Félix,
tecem comentários depreciativos em relação à comunidade de Baixão Grande, como
afirmou Neto, presidente da associação de Brejo de São Félix :
Hoje, até hoje mesmo, querem ser guerreiros, lutaram pela terra; a fala
incentiva a guerra, são metidos a sabidos, são os primeiros a falar, e
querem ter a liderança, mas continuam sem ter nada e hoje estão todos
brigando entre si (Entrevista realizada em18/07/2006.).
A associação Brejo de São Félix tem a diretoria composta só por homens, e
vivencia um processo de disputa entre a atual e antiga diretoria. A equipe de ATES
admite que esse clima tem causado dificuldades ao desenvolvimento de um trabalho
conjunto com a atual associação desta comunidade. Conforme a Assistente Social:
Realizamos várias reuniões para reiterar a proposta do trabalho de ATES,
a metodologia de trabalho deste programa, as atribuições de cada
profissional e a importância da parceria da Associação com o
desenvolvimento do trabalho da equipe. Constata-se que a diretoria desta
Associação não socializa com a equipe as atividades a serem
desenvolvidas, por considerá-la “opositora a esta diretoria”. Ressaltamos
que enquanto equipe de ATES, temos que desenvolver as ações em
parceria com as Associações, independente de quem esteja integrando a
composição desta, entretanto, esta parceria apenas será efetivada na
medida em que a Associação proporcionar à equipe abertura para que isto
aconteça.
Esta associação coloca-se numa posição subalterna em relação aos
funcionários do INCRA. Não questionam as regras impostas como, por exemplo, a
exclusão dos assentados que se ausentam do assentamento, da Relação de
Beneficiários /RB do INCRA. A diretoria acata a regulamentação e pressiona os
assentados nessa condição a se desligarem.
161
Presenciei este conflito numa reunião na casa de farinha desativada da
comunidade de Brejo de São Félix. Ao final da reunião, fui questionada sobre a
possibilidade de uma beneficiária continuar no assentamento, pois era mãe solteira
e precisava passar um tempo fora para tentar arranjar um trabalho. A beneficiária já
estava antecipando uma situação de desligamento arbitrário que poderia vir a
acontecer.
As reuniões sejam de lazer ou de cunho político, tornam-se uma das
estratégias da associação para buscar o consenso ou a unidade do grupo. Pois
como diz Comerford (1999, p.47):
[...] as reuniões (...) tem como objetivo mostrar que para além de sua
dimensão instrumental de simples meios de tomar decisões ou discutir
assuntos dos interesses dos membros das organizações, as reuniões
podem ser vistas também como um elemento importante na construção
desse universo social, na medida em que criam um espaço de
sociabilidade que contribui para a consolidação de redes de relações que
atravessam a estrutura formal das organizações, estabelecem alguns dos
parâmetros e mecanismos para as disputas pelo poder no seio dessas
organizações, possuem uma dimensão de construção ritualizada de
símbolos coletivos e colocam em ação múltiplas concepções ou
representações relativas à natureza das organizações de trabalhadores e
ao papel de seus dirigentes e membros, bem como sobre a natureza da
própria categoria que essas organizações se propõem a representar.
Portanto, além dos objetivos políticos, no caso do assentamento, as reuniões
têm a importância de sociabilizar os moradores através dos encontros entre
moradores e de suas interações antes, durante e depois das reuniões, através de
conversas, brincadeiras e até mesmo discussões acaloradas.
Nas três associações percebi formas diversas de reuniões. Algumas
enquadram-se no que Comerford (1999) denomina reunião: um tipo de encontro
convocado por alguma organização formalmente definida – Sindicato, Associação,
Movimento -, agrupando um conjunto de pessoas, em torno de um objetivo
previamente definido, contando com uma pauta – tanto no sentido de questões a
serem discutidas como de uma seqüência de etapas a serem seguidas, (ou
comumente chamada de programação da reunião) – e uma coordenação, grupo
responsável pelo andamento dos trabalhos. As reuniões se distinguem, por fim,
consoante Comerford (1999, p. 49) como ”[...] formas de interação e sociabilidade
mais ”informais” e cotidianas, como as brincadeiras as conversas, as visitas a
amigos, vizinhos e parentes etc”.
162
Observei outro tipo de reuniões onde não havia pauta ou uma programação a
ser seguida, a coordenação dos trabalhos era centralizada pelo presidente e não
pelos demais membros da diretoria da associação. Não havia preocupação com a
sistematização das discussões, ou seja, com os resultados esperados, tais como
decisões tomadas pelo grupo, tarefas a serem distribuídas, ou resultados de
reflexões a respeito dos temas discutidos.
Como, ainda, outras reuniões ocorriam, onde havia uma preocupação com
estas questões e visavam, também, propiciar um momento de interação, através de
jogos ou dinâmicas de grupo das mais variadas (como por exemplo, dramatizações,
orações, cânticos, jogos, etc), concebidos como mecanismos para aumentar o
entrosamento ou a animação, favorecendo a participação. Este último tipo de
reunião ocorria com a intervenção da equipe de assessoria técnica, ATES ou de
lideranças, geralmente ligadas à Igreja.
Conforme colocou a Assistente Social, a equipe de ATES percebe as
reuniões “como um momento fundamental de participação, de democracia e de
organização”. Assim, a equipe, através das reuniões, visa proporcionar espaços
onde todos tenham oportunidade de falar abertamente o que pensam, tomar
decisões coletivamente, pelo consenso ou pelo voto.
Neste sentido, citou o exemplo de uma situação recente em que a
comunidade decidiu através do voto. Foi o caso de uma professora, que por morar
distante da comunidade de Brejo de São Félix, solicitou ao presidente da associação
a permissão para construir uma casa num local já cedido por alguém da própria
comunidade. O presidente na ocasião manifestou-se contra o pleito e a professora
buscou apoio da equipe de ATES. A equipe propôs uma reunião para ser debatido o
assunto com todos os moradores. Não havendo consenso sobre o assunto, foi
proposta uma votação. A comunidade, em sua maioria, votou a favor de a solicitação
da professora fosse atendida.
Dessa forma, a associação é vista pela equipe, como um espaço onde os
técnicos da ATES tornam públicos os problemas e dilemas da organização dos
assentados e/ou as disputas internas de seus membros. Ainda, conforme a
Assistente Social, é um espaço onde pode ocorrer o aprendizado dos assentados
dos conhecimentos relativos a novas tecnologias produtivas, as redes de articulação
de trabalhadores rurais e de instituições nacionais de financiamento. A associação é
163
percebida, dessa forma, como espaço para conscientização dos direitos dos
assentados, que se dá através da discussão participativa e reflexiva.
No entanto, conforme pude observar em outros contextos, essa
representação sobre a associação expressa uma figura retórica, um discurso
idealizado, pois ao descrever as reuniões a mesma técnica reconhece-as como
infrutíferas.
Mas, geralmente, as reuniões das associações expressam uma (encen)ação,
onde dirigentes e associados representam seus papéis, de modo a fazer constar que
ocorreu uma reunião. Participei de uma reunião convocada pelo presidente de uma
associação, num local onde não havia cadeiras e foram feitas discussões por mais
de três horas. Os associados permaneceram todo o tempo, reunindo-se grupos de
pessoas nos cantos, outros encostados nas paredes, de cócoras, ou apoiados nas
árvores. O presidente falava e a maioria não prestava atenção. Ao terminar a
reunião, a maioria das pessoas desconhecia o conteúdo das discussões e seus
encaminhamentos.
A organização espacial do local sede das reuniões, ou melhor, dizendo, a
montagem do seu “cenário” é relativamente simples, porém significativa. O critério
básico é o grau de distanciamento e separação entre a direção da organização ou
convidados – que geralmente ocupam uma mesa - e os demais participantes, os
assentados. Pelo que observei, a equipe de ATES privilegia o arranjo de cadeiras
em círculos, favorecendo, um arranjo que possibilita, de acordo com Comerford
(1999, p. 53):
[...] igual visibilidade/audibilidade a todos os participantes, pois de acordo
com concepções igualitárias e participativas todos podem e devem falar,
não apenas os coordenadores e pessoas de destaque. Neste sentido, o
próprio arranjo espacial simboliza os ideais igualitários e democráticos da
organização que promove a reunião.
Porém, presenciei reuniões que eram organizados em espaços claramente
hierarquizados, e a direção, ou melhor dizendo, o presidente, se comportava
também dessa forma, sentado atrás de uma mesa bem destacada, diante da qual se
sucediam linhas de cadeiras, todas voltada para frente do salão.
As reuniões assumem um caráter quase “obrigatório” no contexto dos
assentamentos rurais, o que não impede, porém, que haja reclamações freqüentes a
respeito da ineficácia das mesmas, tanto por parte de quem organiza (no caso os
164
presidentes das associações e a equipe de ATES) como daqueles que apenas as
freqüentam.
Escutei por várias vezes a equipe de ATES reclamar da ineficácia das
reuniões, pois na maioria das vezes os objetivos propostos não eram alcançados, as
discussões não se aprofundavam, nada era decidido e principalmente, as decisões
tomadas não eram seguidas. Outra reclamação referia-se ao fato dos resultados de
uma reunião serem esquecidos na reunião seguinte, quanto tudo teria que ser
repetido. Por outro lado, havia a acusação de que as pessoas não se posicionavam
na reunião e depois ficavam falando por fora. Os assentados concordaram com
estas observações.
Presenciei várias falas de pessoas das três comunidades que reclamavam
que as reuniões “são perda de tempo”, que são “só conversa”, que não ia mais para
as reuniões porque era só “bate boca”, e “não se resolvia nada”. Paradoxalmente,
ouvi, também, a reclamação de da falta de reunião por parte de uma assentada, que
ao mesmo tempo reclamava da ineficácia das reuniões.
A associação da comunidade Canafístula, visando evitar a fuga dos seus
associados das reuniões, colocou uma clausula no seu regimento interno que
estabelece que mais de três faltas consecutivas, sem justificativa, implica no
desligamento da associação.
5.5 A rede de controle social
Os assentados estão sujeitos a uma rede de observação e controle. Há o
controle da associação sobre os moradores, dos próprios moradores entre si e das
instituições como o INCRA que exerce controle sobre todo o assentamento.
O controle ocorre em relação a distribuição espacial dos locais de produção,
assim como sobre a permanência no assentamento. Há, ainda controle sobre a
participação nas atividades associativas e de ajuda mútua. Mais recentemente outra
agência controladora se impôs junto aos assentados, no caso aqueles que
obtiveram financiamento para a produção. Trata-se do Banco do Nordeste.
165
As formas de controle são distintas dependendo da instância controladora. No
que se refere à permanência no assentamento, o controle maior ocorre por parte do
INCRA, que ameaça com a exclusão aqueles que se ausentarem do assentamento
por mais de três meses. Os assentados percebem o afastamento do assentamento
como um direito do assentado de buscar melhores condições de vida, que implica
sempre em retorno. A associação, diante do afastamento de assentados assume
posição ambígua, pois desloca-se entre a necessidade de reproduzir as
determinações do INCRA e o compromisso em atender aos interesses dos
assentados.
Com relação a distribuição espacial no assentamento, o controle maior é
exercido pelos próprios assentados. Fiscaliza-se atentamente aquelas tentativas de
avanço nas áreas que são consideradas de outro. Essa fiscalização também é
assumida pela associação. O INCRA restringe-se a fiscalizar apenas as situações
de casas consideradas em abandono, não interferindo nos limites dos locais de
produção de cada assentado.
Problemas considerados de invasão do espaço alheio ocorrem principalmente
em situações de afastamento de assentados do povoado. Como suas áreas de
cultivo ficam ociosas, outros tentam ocupá-las. Outra motivação para o avanço em
áreas de outros tem sido a escassez do espaço de produção, especialmente para as
famílias maiores.
Outra forma de controle muito intensa ocorre em relação a participação dos
assentados no que se são denominadas tarefas associativas. Essas ações, que
incluem especialmente os mutirões e a ajuda mútua, antes ocorriam de forma mais
“espontânea”, muitas vezes sob a motivação do proprietário da terra.
Atualmente são coordenadas pelas associações, que fiscaliza a participação
dos assentados. Em algumas atividades realizadas em mutirão, como a limpeza dos
espaços coletivos, é cobrada a participação com maior intensidade.
Há controle por parte das associações no que se refere à participação nas
reuniões dessas entidades. Faltas regulares estão sujeitas ao pagamento de multas.
Os assentados possuem total controle dos espaços das comunidades, que
embora não estejam demarcados formalmente, estão devidamente mapeados
socialmente. Todos sabem a quem pertence e onde se localiza cada área de cultivo,
assim como as residências.
166
Os critérios de localização espacial são geralmente referidos com base em
relações de parentesco. Por exemplo, diante da pergunta onde mora alguém,
responde-se sempre associando essa pessoa à sua rede de parentesco: “fica logo
ali, ao lado da casa da “Dona Fulana”, acrescentando de quem é filha, irmã,
cunhada, etc.
Dessa forma, o conhecimento da vida uns dos outros é socializado, de
maneira quase obrigatória, sendo muitas vezes uma forma de proteção. Portanto,
constroem um mapa de referências familiares e geográficas que são naturalizadas e
transmitidas a todos.
Assim, na maioria das vezes, os assentados se referem aos outros, situando
sua moradia, suas relações de parentesco e o tempo em que vive no local:
[...] a casa de Dona Benedita Fernandes, fica ali ao lado da casa de
Mariazinha, ela é uma das moradoras mais antigas aqui do assentamento.
Se a senhora tiver alguma dificuldade ela sabe de tudo é só perguntar, aqui
todo mundo conhece ela.
Percebe-se, desta forma uma hierarquização associada a um critério de
antiguidade no local. Existe um respeito aos moradores antigos por estarem no
assentamento desde a época em que eram apenas moradores do Sr. Nilson da
Silveira. Portanto, a relação de respeito entre os moradores é desta forma associada
não só a sua situação de agricultor familiar, mas também a sua reputação,
antiguidade no local, afetando desta forma toda a dinâmica do “mapeamento social”
(Comerford, 2003).
A associação da comunidade Canafístula é considerada pelas outras
comunidades e, inclusive pela equipe de ATES, como a que consegue encaminhar
as questões e se preocupa com os problemas internos da comunidade. O fato é que,
por exemplo, das três associações, é a única que o presidente, mesmo sem ainda
participar do PRONAF, senta para discutir o crédito com os agricultores. Zela pelas
instalações físicas do assentamento, presta conta dos recursos utilizados. No
entanto, percebo que procura seguir, também, as determinações do INCRA, no que
se refere, principalmente, ao controle de quem sai e quem fica no assentamento,
quem freqüenta às reuniões e paga as contribuições.
Esta questão do controle de quem permanece no assentamento é colocada
porque existe um número muito grande de pessoas das três comunidades que
continuam a sair para trabalhar fora do assentamento. Continuam, porque isso
167
ocorria antes da desapropriação e continuam a exercer essa prática. Atualmente
mais do que antes, como informaram o presidente da associação de Brejo de São
Félix, Duda de Canafístula e Raimundinho de Baixão Grande
70
.
O destino prioritário é Brasília, mas vão também para São Paulo, Rio de
Janeiro e para o próprio estado Maranhão, trabalhar.
Em Brasília, vivem principalmente no seu entorno como Pedregal, Val Paraíso
e Santo Antônio do Descoberto. Existe, inclusive, uma espécie de agência de
viagens na comunidade Brejo de São Félix, numa casa originada do crédito
habitação, com uma placa, que diz o seguinte: “Nanda Marley Tur. Vendas de
passagens para Brasília. Saídas todas as segundas, terças e sextas. (99) 3577 –
8027, (orelhão). Falar com o Galego”.
Essas pessoas passam algum tempo fora do assentamento, principalmente
no período da entressafra, mas em sua grande maioria retornam. Não perdem o
vínculo com o assentamento, pois enviam recursos, mantém contatos com os
familiares e, quando conseguem melhorar de vida, ou seja, reunir uma poupança
para investir em um negócio próprio retornam, como afirmou José Pereira de Souza,
36 anos (Duda)
71
:
[...] a vontade era muito de vir para cá, a vontade era grande. O que mais
marca era a carga horária de trabalho, porque a construção civil é quase
uma escravidão, não tem horário, não pode chegar atrasado, tudo aquilo
ali, para que tem responsabilidade, marca a gente, mas dar graça a Deus
aquele que está trabalhando. O objetivo da gente era manter a família em
condição. O objetivo é trabalhar mais e voltar para trabalhar por sua conta.
Nas férias eu vinha, primeira filha eu tive aqui, conversar com os irmãos; A
gente é uma família integrada, eu sempre prometia que vinha. Meu objetivo
era voltar. (Entrevista realizada em Março de 2007).
.
Quando questionei, sobre o que tinha melhorado nestes anos que passou
fora, afirmou:
Quando eu cheguei achei as coisas bem melhor; primeiro a liberdade da
gente de saber que a terra não era de um dono só; Antes não tinha saída,
hoje posso falar pelo o que tem os meus irmãos, que possuem
eletrodoméstico: televisão, geladeira, mostrando o nível das pessoas.
Antonio tinha uma vida muito difícil, problema saúde, não tinha um ganho;
depois saiu a oportunidade família entrar no projeto, depois que o INCRA
70
Entrevistei estes três assentados porque já trabalharam fora e são referência para aqueles que
desejam passar um tempo fora.
71
Duda faz parte de uma família de 09 irmãos. Perdeu o pai ainda pequeno e foi criado pela irmã
Lúcia que faz parte do Projeto de Avicultura de Canafístula, além de Lúcia tem mais 02 irmãos que
estão no projeto. Duda esteve fora por 12 anos, primeiro em São Paulo e depois Brasília, onde
afirmou que melhorou de vida, tirou carteira de motorista e as “coisas começaram a melhorar”.
168
chegou, até a saúde chegou junto. Ele tinha um sonho de comprar a moto.
Hoje tem a moto, tem a reserva dele, está depositado, está tranqüilo. Acho
que vai melhorar muito. (Continuação da entrevista realizada em Março de
2007).
Os aspectos mais enfatizados para afirmar as mudanças ocorridas pós-
desapropriação são a sensação de liberdade na terra e as novas possibilidades de
obtenção de renda através dos projetos em implantação.
5.6 Solidariedade e ajuda mútua
Há, nas três associações, uma espécie de tradição que permanece, o hábito
de fazer o que eles denominam de “limpeza dos pátios”. Trata-se de uma limpeza
em mutirão das áreas comuns da comunidade, ruas, e os caminhos de acesso.
Geralmente, a limpeza é feita após o fim das chuvas, quando o mato está grande.
Limpam também em mutirão o cemitério, ás vésperas de finado.
O mutirão
72
também se coloca em resposta a uma situação-problema; este é
um dos momentos mais marcantes da solidariedade entre os trabalhadores rurais. A
comunidade se reúne com o objetivo de ajudar determinado membro, em situação
de doença, por exemplo, dedicando-lhe um dia de trabalho para limpar sua roça,
proceder à colheita, fazer cerca, etc. O indivíduo ajudado contrai uma dívida social,
encontrando-se na obrigação de retribuir a ajuda quando solicitada. O pagamento
(retribuição) da ajuda também pode ser feito em comida, num momento em que a
comunidade se confraterniza e celebra a solidariedade dada e recebida.
Referindo-se aos dias de mutirão de limpeza do pátio, Paulo da comunidade
de Brejo de São Félix, afirma:
É um dia de divertimento – é muito bom, todo mundo se ajunta, depressa
termina. É uma tradição que continua e que hoje vai para o livro de ata,
todo mundo ajuda, o assentado e o cadastrado, é tipo um
imposto[...].(Entrevista realizada em 18/11/2006).
72
Trabalho realizado em equipe, em determinadas etapas da produção.
169
O convite para o mutirão, e mesmo para a troca-de-dia, deve ser feito pelo
dono da roça ou pelas lideranças da associação e ser aceito por quem é convidado.
A recusa ao convite pode significar a exclusão do circuito de reciprocidade e o
indivíduo correria o risco de ficar em situação de hostilidade e isolamento perante a
comunidade, à medida que deixava de cumprir umas das regras de reciprocidade:
aceitar o convite e ao mesmo tempo dar uma dádiva. Como afirma Mauss (1974,
p.110), abster-se de receber (o convite), assim como de dar, é perder dignidade. O
indivíduo rompe com laços que unem historicamente as famílias e permitem a
reprodução da comunidade. A negação, a recusa ao convite, é vista
comunitariamente como arrogância e auto-suficiência, conseqüentemente, ele perde
prestígio e dignidade.
Pude observar que são muito solidários entre si, principalmente nos
momentos de doença ou de “crise”, período de seca, quando passam maiores
necessidades, articulam entre si formas de ajuda.
Em duas reuniões da comunidade de Brejo de São Félix, ouvi Paulo solicitar
mantimentos para ajudar uma pessoa que estava doente. O exercício da
solidariedade, segundo me informou, vem desde os tempos do Sr. Nilson da Silveira.
E agora segundo ele, todos os presidentes da associação fazem o mesmo.
Segundo Paulo, o antigo dono, embora obrigasse a pagar renda, era uma pessoa
boa, que os acolhia nos momentos de crise, principalmente a sua esposa que trazia
coisas, roupas, para as famílias que tinham mais filhos. Chamavam-na de tia ou mãe
Darcy: “[...] pra mim ela era melhor do que ele”, “[...] pra mim eles não foram ruim
patrão, deram muito a mão para minha mãe, é certo que tinha que trabalhar”.
(Continuação da entrevista realizada em 18/11/2006).
. Informou ainda que o Senhor Nilson sempre ajudava na doença,
conduzindo os enfermos para Teresina, Caxias: “[...] quando alguém ficava doente,
senhor Nilson fazia mutirão das cestas, para dar para as famílias” sobre a doença
ele enxergava a gente”.
170
5.7 A sociabilidade no lazer
Nas três comunidades o lazer se dá através de diferentes empreendimentos,
muitos deles tradicionais, que são mantidos como forma de atualizar a memória dos
moradores em relação a situações que vivenciaram. O principal desses
empreendimentos é a “festa do lavrador”.
Destacam-se, também, como manifestações da tradição local, em todo o
assentamento, o reisado, a festa do Divino Espírito Santo, o bumba boi, o cordão de
São Gonçalo e de São Benedito e a “macumba”
73
, hoje praticada apenas na
comunidade Canafístula.
5.7.1 Sob o pé de tamarindo: a “festa do lavrador”
Uma das atividades de lazer mais importantes é a “festa dos lavrador”. Dona
Ortelina, uma das suas organizadoras, informou que a festa dos lavradores é feita
sempre no mês de julho, na lua cheia. É resultado de uma promessa feita por ela e
mais duas quebradeiras de coco a São Benedito. Foi iniciada nos anos de 1980,
num período que as mulheres denominam de “crise”, quando viveram dificuldades
financeiras, decorrentes da escassez de chuvas.
De acordo com Dona Ortelina, o inverno havia sido fraco e estavam perdendo
toda a produção da roça. Quando estava quebrando coco com mais duas mulheres,
decidiram fazer a promessa para São Benedito ajudá-las, fazendo chover para que
os legumes não fossem perdidos. Em troca, prometeram rezar o terço, fazer
procissão e oferecer um café para todos, embaixo do tamarineiro (Figura 04), árvore
centenária que existe numa das áreas principais da comunidade de Brejo de São
Félix.
73
Termo utilizado pelos assentados, mas é um terno pejorativo. Na verdade é um ritual da cultura afro-brasileira
em que há o sincretismo do candomblé e dos cultos espíritas.
171
FIGURA 04 - PÉ DE TAMARINDO
Conforme Paulo, uma das lideranças na área da cultura em Brejo de São Félix, “[...]
as mulheres se reunia no pé de tamarindo, fazendo prece, só as quebradeiras de
coco. Depois os filhos, que iam ficando no lugar dos pais que não estavam mais
presentes, começaram a participar para dar continuidade à festa” (Entrevista
realizada em novembro de 2006).
A partir de então a festa manteve regularidade anual. As mulheres se reúnem,
inicialmente rezam o terço com uma pedra na cabeça, depois cantam, dançam e
oferecem o café.
A festa já virou uma tradição no calendário da comunidade e da região, pois
mobiliza as comunidades vizinhas e os municípios mais próximos como Matões,
Parnarama, Timon e Caxias. Este ano foram comemorados os 28 anos de tradição
da festa dos lavradores.
Quando conversamos sobre a festa, as mulheres fizeram questão que eu
anotasse o nome das primeiras organizadoras e das atuais. As primeiras foram
Ortelina Francisca Cavalcanti, Elvira Gomes dos Santos (in memoriam) e Maria
172
Pereira da Silva. Hoje, além destas duas, cuidam também da organização:
Mundoca, Inocência Alves de Oliveira, Maria de Lourdes, Maria Ferreira que reside
em Caxias, mas vem todo o ano, Rosalino, Antonio Lino, Antonio Caxinqueira, Eva
Pereira dos Santos, Dona Santinha que também reside em Caxias.
As mulheres, em sua maioria possuem laços de parentesco entre si, ou são
comadres, como dona Ortelina, Carmelita e Mundoca.
João Cabaço é o encarregado de fazer o altar de São Benedito, junto ao Pé
de Tamarindo. De um lado é construída uma cozinha improvisada (atualmente além
do café é oferecido um almoço). Todos ajudam a comprar um boi para ser morto
neste dia. Do outro lado, fica a caixa de som e, fechando a roda, as barracas para
venda de bebidas, roupas e outros materiais que vêm de fora do assentamento.
Domingos Fernandes, Zé Rosa e Manoel Pedão
74
são os responsáveis pelo
tambor de crioula.
A comunidade de Brejo de São Félix se mobiliza durante a semana toda: Um
dia antes da festa já começam a chegar pessoas de outras comunidades para ajudar
na cozinha, preparar os bolos do café da manhã, cortar e temperar as carnes, como,
ainda, arrumar, enfeitar o local da festa: embaixo do pé de tamarindo. Este ano
utilizou-se folha de buriti e folha de pati (palmácea nativa da região) circulando o
espaço da festa.
Anuncia-se o início da festa com uma trovoada de foguetes em torno das
quatro ou cinco horas da manhã. Durante o dia, é intenso o movimento das pessoas
levando cadeiras, deixando arroz, feijão, verduras, ajudando no que for preciso. ]
Este ano a festa aconteceu no dia 21 de julho. Participei das atividades desde
o dia anterior, cortando bolos junto com a criançada, durante a noite, enquanto as
mulheres temperavam as carnes. Na manhã do dia seguinte, muito cedo, fui tomar o
café e lá fiquei ajudando a cortar as verduras para salada, enquanto começavam as
apresentações de capoeira e outras.
Os camelôs se instalam, e as pessoas das outras comunidades também
começam a chegar. Continua-se a servir o café com bolo, e outras variedades.
Durante todo dia tem comida que é preparada nas enormes panelas de ferro.
Mas, o ponto alto da festa é no final da tarde, quando sai a procissão pelas
ruas da comunidade de Brejo de São Félix. No retorno é rezado o terço e são
74
O senhor Manoel Pedão não participou da festa do lavrador este ano. Faleceu no mês de março.
173
cantadas as ladainhas de São Gonçalo e São Benedito. São feitas duas filas onde
os devotos batem com uma colher, ou outro instrumento de metal numa garrafa e se
aproximam do altar, onde fazem as orações. Durante toda a noite dança-se tambor,
quadrilha, e baião
75
. Este ano foi apresentado também a dança do lili
76
, da qual
participei.
Além dos políticos locais, este ano apareceram vereadores de outras
comunidades, ofertando camisetas de divulgação da festa associadas ao seu nome,
para as cozinheiras e mais um conjunto musical, pois já havia um carro de som
oferecido pelo Secretário de Saúde do Município de Parnarama. Então, em diversos
momentos os dois carros de som tocavam ao mesmo tempo, com isso Paulo e Dona
Ortelina tiveram que intervir para solicitar a paralisação do carro de som, que insistia
em anunciar o patrocinador da festa, o político fulano de tal....
Assim, percebi, avaliando as duas versões da festa que presenciei, que este
ano, com mais intensidade do que no ano passado, houve uma apropriação por
parte dos políticos, que acabaram por se transformar nas grandes estrelas da festa.
Com isso, ficou em segundo plano um dos pontos altos, que é a oferta e
agradecimento da produção colhida, a fartura de um ano produtivo.
No final da procissão, quando foi feito o cordão de São Gonçalo, parte dos
participantes deslocou-se para assistir ao telão que os políticos colocaram
veiculando imagens do bumba-meu-boi.
Os organizadores acabam favorecendo esta situação quando “pedem” aos
políticos o carro de som, o arroz, a carne, embora, muitas pessoas continuaram
ofertando a produção, espontaneamente. Mas a festa vem se transformando,
substituindo os produtos locais, a comida que era possível ser ofertada, os
instrumentos próprios da comunidade.
75
Tambor refere-se ao Tambor de Crioula, ritual de origem afro-brasileira, realizado, geralmente,
como pagamento de promessa. Os homens tocam tambor e as mulheres, com saias longas e
rodadas, dançam em círculos. Quadrilha é uma dança folclórica típica do período junino, dançada aos
pares ao som do forró. Baião é um ritmo nordestino, que se celebrizou através de Luiz Gonzaga,
sanfoneiro. Dança-se também com um par. o Baião é dançado por todos, principalmente os mais
idosos, nas três comunidades.
76
Dança folclórica tradicional da região de Caxias-Ma. Dança-se em círculo, onde são distribuídos os
pares que vão sendo alternados ao longo da dança.
174
5.7.2 As demais festas
A festa do bumba-meu boi também é parte do contexto de lazer do
assentamento. Realiza-se, como nas demais partes do Maranhão, no mês de junho
e está associado a pagamento de promessas a São João, São Pedro e São Marçal.
Atualmente, no assentamento, o bumba-meu-boi, é organizado pelo Sr. Zé Caixeiro
A dança do Lili continua na memória dos mais idosos, mas só é dançada
algumas vezes, na época da semana santa. É formada por pares, em volta de um
círculo, trocando de par e fazendo sapateado. Os brincantes cantam músicas em
versos ritmados e não usam instrumentos. Em 2007, foi dançada na festa do
lavrador.
FIGURA 05 - IGREJA DE MENINO DEUS
Há ainda a festa do Menino Deus que se realiza na Igreja do mesmo nome
(Figura 05).
175
Esta festa ocorre no período natalino. Ainda segundo Paulo:
[...] a Igrejinha de Menino Deus foram os pais de Sr. Nilson que levantaram,
vem do tronco veio, a antiga igreja caiu e genro dele levantou. Se festeja o
Menino Deus também dia 26 de julho, data do casamento de Sr. Nilson,
depois, ou antes, faz a missa; e no dia 23 de dezembro, continuam
mantendo como ela queria; já esta na agenda, todo ano tem missa deste o
tempo dele, duas vezes. (Entrevista realizada em 18/11/2006).
Observa-se nessa festa o poder do proprietário da terra em definir, inclusive o
calendário das festividades, impondo seus interesses particulares e familiares como
critérios definidores.
O assentado Paulo, referindo-se as festividades do povoado, dá um tom
saudosista à sua fala, considerando que as festas teriam perdido parte do seu
glamour:
[...] era bem organizado, tinha a morte do boi, caboclo enfeitado de fita,
reisado, a morte do boi, tinha tudo, era bem organizado, direitinho, tinha o
vaqueiro Catirina, Mariquinha, Vaqueiro. O Xibão cantava assim, “oh laço o
boi vaqueiro, oh laço boi vaqueiro”. No mês de maio que matava o boi, era
muito bonito; tinha um salão, acompanhei duas matanças; organizei o
reisado, meia noite saía cantando assim “oh de casa oh de fora, menino vai
ver quem é, é o tirador de rês, dois homens e duas mulheres”.
(Continuação da entrevista realizada em 18/11/2006).
Mas pude observar que as festas permanecem muito presentes na vida dos
moradores, sujeitas ao processo de mudança que caracteriza todas as relações
sociais.
5.7.3 Outras formas de lazer
Atualmente, nas três comunidades, joga-se o futebol em campos
improvisados, todos os fins de tarde. Fazem, também, campeonatos de futebol
entre si e com outras comunidades mais próximas.
As crianças e adolescentes da escola de Brejo de São Félix estão
participando de um grupo de capoeira que os tem mobilizado. Realizam ainda festas
dançantes, bingos, etc.
176
Os jovens gostam de festa, forró e reggae. Existem clubes dançantes nas
comunidades de Baixão Grande e Canafístula.
Na comunidade de Canafistula todo o ano é organizada a festa de Nossa
Senhora Aparecida, no dia 12 de outubro. Acontece em um barracão coberto de
palha, construído com este objetivo. Há também, nesta comunidade, a festa anual
do sábado de aleluia, quando comemoram o fim da quaresma.
Os assentados em sua maioria são católicos. Mas, existem também
evangélicos da Assembléia de Deus e da Congregação Cristã no Brasil (Igreja do
Véu), nas comunidades de Baixão Grande e Brejo de São Félix.
Existem três igrejas católicas: Rainha da Paz, em Baixão Grande, Nossa
Senhora Aparecida em Canafístula, e Menino Deus, em Brejo de São Félix. As
missas só são realizadas quando há uma programação específica, casamentos,
batizados e festas do final do ano, e precisam ser agendadas com antecedência
com o padre da paróquia de Matões. Existe a pratica de “rezar o terço” em algumas
casas.
As alternativas para o preenchimento do tempo que ainda resta livre aos
moradores do assentamento são: ouvir rádio, assistir televisão, bater papo com os
vizinhos e jogar dama e baralho. Esses jogos já são um hábito, e acontecem
principalmente no período da tarde, à sombra das árvores.
5.8 Conflitos internos e heterogeneidade dos assentados.
Nem só de festas vivem os assentados do P. A Brejo de São Félix. Diferentes
níveis de conflitos ocorrem. Em primeiro lugar, são decorrentes das relações
intercomunitárias. Em segundo, decorrem da relação entre os assentados e as
agências de mediação: INCRA, Banco, técnicos do programa ATES. Há ainda um
terceiro tipo de conflito que se dá entre os moradores de uma mesma comunidade.
Os Conflitos entre as comunidades decorrem fundamentalmente das
representações construídas no assentamento de uma comunidade com relação às
demais. Essas representações hierarquizam as comunidades nos moldes do que
Elias e Scotson (2000) denominam “estabelecidos e outsiders”.
177
Um establishment é um grupo que se autopercebe e que é reconhecido
como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor, uma identidade social
construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e
influência: Os established fundam o seu poder no fato de serem um modelo
moral para os outros. (...) o termo que completa a relação é outsiders, os
não membros da “boa sociedade”, os que estão fora dela. (2000, p.7)
A principal hierarquização que se estabelece entre, especialmente as
comunidades de Brejo de São Félix e Baixão Grande, fundamenta-se na
composição da primeira, constituída por antigos residentes, já estabelecidos há
bastante tempo e a segunda por ´moradores recém-chegados.
Os moradores da comunidade de Brejo de São Félix já se conheciam há
algum tempo, estabeleceram para si um estilo de vida comum e um conjunto de
regras e normas, dadas inclusive pela relação com o patrão e se orgulhavam disso.
Por conseguinte, os recém-chegados na comunidade de Baixão Grande, passaram
a ser percebidos como uma ameaça ao estilo de vida já estabelecido, embora todos
vivessem formalmente a mesma relação de moradores” do proprietário.
De acordo com Elias e Scotson (2000, p. 25), para o grupo da parte antiga,
[...] o sentimento do status de cada um e da inclusão na coletividade estava
ligado à vida e às tradições comunitárias. Para preservar o que julgavam
ter alto valor, eles cerravam fileiras contra os recém-chegados, com isso
protegendo sua identidade grupal e afirmando sua superioridade. Ela
mostra com muita clareza a complementaridade do valor humano superior
– o carisma do grupo – atribuído a si mesmo pelo grupo já estabelecido, e
as características “ruins” – a desonra grupal – que atribuía aos outsiders.
Costumeiramente, os membros dos grupos outsiders são tidos como não
observantes dessas normas e restrições. Foi a comunidade de Baixão Grande que
quebrou as normas de pagar renda ao dono da terra e vender o coco babaçu no
armazém do proprietário. Em razão disso, ainda hoje é vista, principalmente pela
comunidade de Brejo de São Félix, que estou denominando de estabelecidos, como
indignos de confiança, desordeiros, e indisciplinados.
Os conflitos não se restringem à dinâmica interna das comunidades. Ocorrem
com as agências de mediação, principalmente com os técnicos do INCRA, com o
Banco (na questão dos financiamentos), e com a assessoria técnica/ATES. Com a
ATES o conflito fundamental reside na recusa dos moradores em seguir a orientação
178
de realizar a produção de forma coletiva. As associações têm uma função
importante, também, na administração de conflitos.
Para Simmel (2000), o conflito é uma forma de sociação, destinada a
conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das
partes conflitantes. Segundo Simmel (1983, p, 55) as oposições “[...] atuam como
princípio de união”. Para ele:
[...] os indivíduos também têm necessidades de se oporem para
permanecerem unidos. Essa oposição pode manifestar-se igualmente ou
pelo contraste que apresentam as fases sucessivas de suas relações, ou
então pela maneira segundo a qual o todo que eles formam se diferencia
do meio ambiente moral que os envolve.
Desta forma, o conflito aparece como forma indispensável ao processo de
sociação, pois ele não é só um fator dissociador, mas pode e deve ser encarado
com a função de manter o grupo, pois através da superação das divergências o
grupo se fortalece.
A importância do ato de se opor pode ser fundamental à manutenção do
grupo, pois se por um lado a oposição gera o conflito, também gera a união para se
chegar ao consenso, tornando muitas vezes o grupo mais sólido. Apesar das várias
mobilidades que o grupo atravessa é fundamental que, no fim, ele seja uma unidade
social, como diz Simmel (1983, p. 57).:
O fato de que a oposição pode servir à conservação do grupo é o exemplo
mais tópico da utilidade que, nesse mesmo objetivo, é oferecida pela
variabilidade social em geral. (...) A unidade social é o elemento constante
que persiste idêntico a si próprio, embora as formas particulares que ela
recebe e as relações que ela mantém com os interesses sociais sejam
infinitamente móveis; e essa constância tanto mais acusada quanto maior
for a mobilidade.
No assentamento, as associações, conforme já foi explicitado, exercem certo
controle sobre os assentados, seja na promoção de eventos ou filiação de seus
associados, criando uma relação de dependência entre a associação e os
moradores. Seja para serem incluídos em projetos de repasse de verba para a
agricultura, ou como beneficiários da reforma agrária, os moradores não podem se
desvincular da associação e por sua vez, a associação faz valer sua autoridade
sobre o assentamento, visando sua unidade.
As relações da associação com os assentados se dão na forma de um jogo,
em que as partes envolvidas buscam otimizar seus interesses. A associação visando
179
formar novas lideranças, captar recursos para o investir na comunidade, estimular a
permanência dos assentados no local, articular alianças visando benefícios para o
assentamento, objetivando o que denominam a união de todos. Do outro lado estão
os assentados buscando o apoio da entidade para favorecer sua produção e seus
interesses, mesmo que isso signifique entrar em conflito com as determinações do
INCRA.
A implantação de crédito tem sido uma das fontes de conflito na forma de
conduzir sua gestão. Da forma como os projetos estão sendo conduzidos, coloca-se
a necessidade de aprendizado de novas formas de cultivo, impostas pela disciplina
da técnica, do manejo dos projetos, da negociação com o Banco, o poder público
local, na relação e discussão com o mercado, etc. Ou seja, configura-se o conflito
entre o denominado rudimentar, extensivo e o moderno, que requer o aprendizado
de novas possibilidades de trabalho.
Os conflitos são recorrentes, principalmente, quando se trata das formas de
organização da produção nos moldes “coletivo” ou “individual”.
A partir de algumas conversas com a equipe técnica do Programa ATES,
venho percebendo que há uma insistência, principalmente da engenheira agrônoma
e do zootecnista, responsáveis técnicos pelos projetos no Banco do Nordeste, para
que as famílias, principalmente as do Projeto de Bovinocultura de Baixão Grande,
trabalhem de forma coletiva. O argumento utilizado pelos técnicos para justificar o
trabalho coletivo é a diminuição dos gastos com o projeto.
Em relação à recusa em realizar o trabalho de forma coletiva, afirmou a
engenheira agrônoma: “[...] como os assentados apresentam dificuldade em realizar
algumas das atividades em conjunto, vão acabar tirando do próprio bolso para arcar
com as despesas”.
Para os técnicos o trabalho individual vem dificultando e atrasando a
implantação do projeto. Segundo a Engenheira Agrônoma: “[...] observa-se pouco
empenho de algumas famílias nas atividades dos projetos, sendo estes implantados
em áreas individuais, dificultando desta forma a conclusão das atividades”.
O depoimento da engenheira agrônoma expressa a dificuldade dos
assentados, em se deslocar de suas formas específicas de cultivo para adotar
outras, de cunho coletivo ou comunitário, consideradas, pelos técnicos, mais
adequadas e viáveis economicamente. Ou seja, os técnicos insistem para que o
180
trabalho seja realizado de forma coletiva, contrariando assim, a dinâmica do trabalho
familiar individual até então realizado pelos assentados.
Houve uma tentativa de realizar produção coletiva utilizando a área do campo
agrícola da comunidade de Baixão Grande, que está desativado. A equipe pretendia
fazer um curral coletivo e um poço próximo, no campo agrícola comunitário,
possibilitando, também, a utilização desse recurso por outras famílias que fariam
uma horta comunitária. Porém, a proposta foi recusada pela diretoria da associação.
Com isso as famílias acharam melhor cada uma trabalhar o seu projeto.
O campo comunitário é apresentado no âmbito do assentamento, pelos
funcionários do INCRA e demais técnicos, como sinônimo de desenvolvimento,
numa perspectiva de crescimento, progresso e poder de organização das
comunidades do assentamento.
Porém, as famílias das duas comunidades, Canafistula e Baixão Grande,
abandonaram por completo o campo agrícola comunitário. Ou as famílias se
negaram a participar do trabalho coletivo, ou então iniciaram o trabalho e depois
foram abandonando “o projeto”, fato que expressa o dissenso interno, no sentido de
seguir as regras estabelecidas pelos técnicos.
A questão do conflito entre trabalho individual e coletivo nos assentamentos
rurais tem sido recorrente. A produção coletiva coloca-se como uma proposta de
fora, oriunda das entidades de mediação e seus técnicos e possui diferentes
fundamentações. No assentamento Brejo de São Félix, especificamente na
comunidade Baixão Grande, a influência partiu primeiramente, da Comissão
Pastoral da Terra-CPT, quando motivaram a constituição da associação comunitária
de Baixão Grande.
Na construção discursiva dessa entidade ligada a igreja católica, como é o
caso da CPT, está presente uma idealização, que se expressa em termos de
”união”, “organização”, “cooperação” ou “produzir comunitariamente”. No processo,
os agricultores acabam internalizando essa perspectiva, definindo a atitude dos que
se opõem a esse modo de organização da produção como “falta de união”, “falta de
espírito comunitário”.
Essa noção de trabalho coletivo respalda-se na visão das Comunidades
Eclesiais de Base (CEB’s) que apregoam o ideal de vida comunitária, baseado na
igualdade, na fraternidade e na solidariedade. Muitas vezes, tratam a produção
181
coletiva como algo natural na constituição de um assentamento, como foi dito por
Enyr Freitas (Apud Pessoa, 1999, p.183), sobre a implantação do Assentamento
Mosquito:
Dado o nível de organização dos trabalhadores, a ocupação deu-se de
maneira ordenada, o que permitiu o plantio dos produtos de subsistência
em regime de lavoura comunitária já no ano agrícola que se iniciava.
1986/1987. Este tipo de exploração, emergencial e provisória, tem a
vantagem de tornar mais fácil e econômica a atividade, desenvolvida em
regime de mutirão, bastante natural numa comunidade que vivenciou
problemas que só com elevado nível de entendimento, organização e de
solidariedade seriam solucionados.
Na perspectiva do trabalho coletivo está, também, a atuação do Movimento
Sem Terra – MST, mas nesse caso a representação do coletivo respalda-se na
perspectiva socialista ou de coletivização. A posição da coordenação do MST, e/ou
de militantes políticos de esquerda é voltada para um modelo de socialismo.
A outra representação do trabalho coletivo fundamenta-se em critérios da
racionalidade econômica e é defendida pelos técnicos que defendem a criação das
associações de produção direcionada para o mercado.
Essas propostas de um projeto socialista de formação de coletivos
cooperados para os assentamentos, não têm encontrado respaldo na visão de
mundo dos agricultores, baseada na produção familiar. Na maioria das vezes, a
discussão sobre o significado da coletivização não lhes faz sentido, como no
assentamento em estudo. Isso não significa falta de solidariedade entre os
moradores, mas que preferem trabalhar à sua maneira para assegurar o sustento de
sua família.
Concordo com Pessoa (1999, p. 191), quando afirma que os aspectos
ideológicos e militantes, “[...] reproduzem modelos de pensamento pré-
estabelecidos, pretensamente homogeneizantes. Em vez disso, o que interessa aqui
é saber como as pessoas vivem o dia-a-dia. [...] Como elas criam, vivem e trocam
significações em torno desta questão”.
A produção coletiva, conforme Pessoa (1999, p.193),
[...] tem pretensões homogeneizadoras. Ela não leva em conta as
singularidades dos indivíduos dentro do grupo. E nem poderia. Seria sua
negação absoluta. Ela só pode existir em um grupo em que todos tenham
saúde perfeita, idade condizentemente produtiva, gostos uniformizados.
Mesmo assim, ela ainda teria que eliminar este traço importante da nossa
cultura que é a defesa de um certo espaço pessoal.
182
Ainda conforme o autor, “[...] o que é determinante nesta questão é que o
coletivismo não tem nada a ver com a nossa maneira de viver e de pensar o
trabalho”.(PESSOA, 1999, p, 193).
Enfim, o modelo de produção coletivizada, pretendido pela maioria dos
mediadores não se configurou na história dos assentamentos brasileiros. Entre ele e
o mais “individual-familiar” possível, há inúmeras outras formas e combinações,
conforme apontam Bergamasco e Norder (1996, p. 57). Pois, conforme já afirmado,
as diferenças regionais brasileiras e as especificidades da história de configuração
de cada grupo são fatores imperativos na organização do trabalho e da produção.
Entendo que isso não significa que os assentados do P. A Brejo de São de
Félix, recusem qualquer tipo de trabalho coletivo. Realizam trabalhos coletivos
quando relacionados aos seus interesses comuns. Nesse sentido, desenvolvem
muitas atividades, como por exemplo, a limpeza dos caminhos de acesso às três
comunidades, a limpeza do cemitério e o trabalho na roça, com a troca de diárias.
Realizam ainda de forma coletiva a administração da infra-estrutura como a casa de
farinha, a usina de arroz. Porém, preferem realizar o trabalho produtivo e nas suas
roças de forma individual.
Os assentados respeitam princípios religiosos de solidariedade, exercem
atividades em conjunto, ajudam-se mutuamente, principalmente em casos de
doenças, ou quando algum deles está passando por maiores necessidades.
Porém, a equipe técnica da ATES insiste em trabalhar a produção dos
projetos de PRONAF A de forma coletiva e as famílias, principalmente as de Baixão
Grande, preferem trabalhar de forma individual. A assentada Nega
77
, de Baixão
Grande, afirma: ”gostaria que fosse tudo no coletivo, mas fiquei isolada, sozinha,
para evitar o conflito, porque não daria certo”.
Outra manifestação expressa de conflito se dá no âmbito da direção das
associações. No caso da associação de Baixão Grande há uma disputa pela direção
da associação que se configura atualmente como um confronto entre as lideranças
mais antigas, católicas e as novas lideranças, protestantes.
77
Conforme já apresentado na Introdução, Dona Nega já foi presidente da associação de Baixão
Grande, nessa época, havia o trabalho com a Comissão Pastoral da Terra / CPT, que os ajudou na
fundação da associação, Nessa época a associação era mais atuante, informação confirmada na
entrevista realizada com Borges da CPT, em julho de 2007.
183
As mais antigas são associadas ao “progresso”, estariam articuladas a CPT e
a constituição da associação. As mais novas, predominantemente masculinas, são
consideradas “atrasadas”, oportunistas, por terem chegado após algumas
conquistas já terem sido efetivadas.
Dona Nega é uma liderança antiga por conta de sua atuação na formação da
associação. Afirma-se semi-analfabeta, mas teve uma participação ativa nas
atividades de pastorais, desde época que a CPT atuava na comunidade. Sua
presença acaba favorecendo uma disputa com o atual presidente da associação,
que passa a maior parte do tempo fora, mas consegue centralizar todas as decisões
da entidade.
Além do mais, o atual presidente da associação e a maior parte da diretoria é
composta por homens que pertencem a Assembléia de Deus e a Congregação
Cristã do Brasil (Igreja do Véu), configurando a disputa entre católicos e evangélicos,
confirmada por Borges da CPT, embora não assumam formalmente que a relação
entre as Igrejas seja conflituosa.
O fato é que prática da evangelização figura como mecanismo de expansão
religiosa, campo de sociabilidade. Apesar de uma aparente cordialidade, a
competição entre religiões é resultado da busca por novos fiéis, já que sem eles as
Igrejas não têm como se manter.
A equipe de ATES reforça algumas idéias defendidas por dona Nega,
principalmente as relacionadas ao trabalho comunitário, como a reativação do
campo agrícola, (benefício este adquirido no período em que esta era Presidente da
Associação). Talvez, seja este um dos motivos pelos quais, Dona Nega e a equipe
de ATES não sejam bem vistos pelo presidente da associação de Baixão Grande.
Por esta razão, a opção por sair do trabalho “coletivo” e permanecer no
“individual” é colocada como uma forma de evitar o conflito. Assim, o assentamento
apresenta-se como lugar de aprendizado da gestão democrática e de vida pública.
Nos períodos de minha permanência no P.A, presenciei por duas vezes as
associações das comunidades de Brejo de São Félix e Canafistula se organizarem
para participar de mutirão. A primeira para efetivar a limpeza do cemitério, pela
proximidade do dia de finados e, a segunda, para a limpeza dos caminhos de
acesso e ruas que os assentados denominam de pátios.
184
Outro conflito, que pude observar, insere-se na disputa que se configura entre
os novos preceitos do INCRA e a dinâmica de atuação dos assentados. Conforme
foi colocando antes, os assentados costumam alternar a residência no
assentamento com períodos de trabalho em cidades, especialmente na entressafra.
Esta situação de “abandono” da área ocorre nas três comunidades e ocasiona
conflitos no âmbito da associação, ou seja, na gestão do assentamento.
As associações, principalmente a de Brejo de São Félix, e de Canafístula,
entre outras razões, como falta de informações, por terem sido criadas também,
como uma imposição de fora, mantém uma relação tensa com o INCRA, que procura
controlá-las e ditar as regras de permanência ou não de cada assentado no interior
do assentamento. Vivenciam assim, uma situação na qual elementos de autonomia
e dependência se alternam.
Com a denominação de assentados da reforma agrária, os trabalhadores
rurais são introduzidos numa relação técnico-burocrática estabelecida pelo INCRA
para o “Projeto de Assentamento”, que segue três etapas: implantação
78
,
consolidação
79
e emancipação
80
. Ao longo dessas etapas, a posse e o uso da terra
estão condicionados ao cumprimento de certas normas impostas pelo INCRA, que
conforme Marques, “restringem sua autonomia, e pesam sobre eles como uma
ameaça de retorno à condição de sem - terra – ainda que, comumente, duvidem
dessa possibilidade” (2004, p. 278).
Verifiquei pontos de tensão e desencontros entre determinações do INCRA e
a situação dos assentados, que se colocam desde o inicio da desapropriação, como
o processo de seleção dos beneficiários. Segundo informação do INCRA/MA, a
prioridade nos casos de assentamentos em que as famílias já moram na área há
algum tempo, seria dada a essas famílias.
No entanto, o órgão deixa essa seleção a cargo da associação e nesse
processo ocorrem muitas distorções: O presidente da associação passa a priorizar
seus familiares, amigos, que às vezes não moram no assentamento. Pessoas que
78
Conforme MIRAD/INCRA (1987), na etapa de implantação, é prevista a realização de obras de
infra-estrutura, como a construção de estradas, núcleo comunitário, etc. Também são previstos os
trabalhos de preparação da terra para a exploração agrícola e a qualificação do agricultor para
administrar o lote, além das discussões sobre as alternativas de produção para a definição do plano
de desenvolvimento do assentamento.
79
A etapa da consolidação corresponde ao período de implantação do projeto técnico responsável
pela estruturação do sistema produtivo do assentamento.
80
A emancipação ocorreria quando os assentados apresentassem condições de assumir sozinhos a
gestão dos bens comunitários e do interesses gerais do grupo.
185
na época não tinham os documentos prontos e ficaram para ser beneficiadas
posteriormente, nunca tiveram sua situação regularizada.
No caso do P. A Brejo de São Félix encontrei muitas pessoas nesta situação,
geralmente pessoas mais idosas, por exemplo, o Sr Zeca Beor, dona Maria
Fernandes, entre outros, que me afirmaram “que queriam pelo menos ter uma casa”.
No P.A Brejo de São Félix há diferentes trajetórias de vida. Algumas pessoas
nunca moraram fora do assentamento, enquanto outras foram e continuam indo para
cidade, gerando conflito nas relações com o INCRA. Os assentados argumentam
que faltam condições para trabalhar na terra o que gera a necessidade de buscar
trabalho em outros locais.
Segundo Miranda (1988, P.126-127), a adaptação dos assentados a nova
situação de pequenos sitiantes e seu bom desempenho vai depender “[...] das suas
experiências passadas e do seu nível de capitalização. A tendência geral no
assentamento é tentar estabelecer-se enquanto sitiantes, com autonomia de
produção e de organização do trabalho no interior do sítio”. Portanto, para ser
assentado é preciso ter condições econômicas que só a posse da terra não garante.
A autora procura ressaltar a cultura e as condições de capitalização como
determinantes para a permanência e adaptação no assentamento. A fala do
assentado Sebastião de Souza da Silva, atual presidente da associação de Brejo de
São Félix, que morou em torno de 14 anos fora do assentamento, aponta para esta
necessidade de capitalização: “[...] a gente quer ganhar fora e representar aqui na
comunidade, terra natal. O sonho é retornar para o Brejo”. (Entrevista realizada em
janeiro de 2007).
Todos a quem indaguei sobre os motivos que os levaram a sair do
assentamento, afirmaram que partiam em busca de melhores condições de vida.
Wanderley (1996) chama a atenção para a precariedade e a instabilidade da
unidade familiar. Nas suas palavras, “[...] o trabalho externo se torna, na maioria dos
casos, uma necessidade estrutural. Isto é, a renda obtida neste tipo de trabalho vem
a ser indispensável para a reprodução, não só da família, como do próprio
estabelecimento familiar” (1996, p. 13).
Este aspecto é de grande importância, porque não se trata simplesmente de
demonstrar que os assentados não conseguem gerar renda suficiente para manter a
família; “[...] trata-se de compreender os mecanismos deste equilíbrio precário e
186
instável, pelos quais o estabelecimento familiar se reproduz, a despeito do trabalho
externo e, em muitos casos, em estreita dependência deste mesmo trabalho
externo” (1996, p. 13).
Além deste contingente de pessoas que saem do assentamento, existem
pessoas que moram em lugares relativamente próximos ao assentamento, como nos
arredores do município de Matões, Parnarama, Teresina, Caxias e até em Brasília
ou São Paulo, que se reconhecem como pertencentes às comunidades do
assentamento Brejo de São Félix. São pessoas que saíram da comunidade,
principalmente, motivadas a buscar escolas para os filhos e procurar trabalho.
Mesmo de forma precária, as estradas, o transporte e a ampliação dos meios
de comunicação de uma certa forma diminuiu as distâncias físicas, espaciais e o
estilo de vida campo-cidade. Assim, embora haja uma hierarquia entre as
localidades, há uma certa imbricação entre os territórios que ultrapassa a dicotomia
rural-urbano.
Essas situações expressam a dissonância entre a lógica do INCRA e a dos
assentados. Para o INCRA o assentamento define-se como um espaço físico
limitado e a relação com esse espaço se dá pela permanência nele. Para os
assentados, o assentamento é um lugar de reprodução de relações diversas e suas
fronteiras transcendem os limites físicos da demarcação administrativo-burocrática.
De um lado, o INCRA visa à inserção das famílias assentadas no sistema
econômico em vigor, a partir de uma intervenção concebida segundo parâmetros da
racionalidade técnica e valores da ideologia moderna. De outro, os assentados
visam tornar-se donos de sua própria terra para realizar um projeto de vida pautado
por seus valores e tradição.
Nos assentamentos, os trabalhadores rurais não são concebidos como
sujeitos políticos e cidadãos dotados de direitos conquistados. São percebidos como
um vir a ser, um sujeito enquadrado ou adaptado aos modos de convivência com a
ação dos órgãos do Estado. Para tanto, procuram construir o assentado, dotado de
modos adequados de comportamento e de reivindicações, condição a partir do qual
ele se insere ou se posiciona nos “lugares” e espaços de acesso ao mundo
institucional.
Assim, o assentado fica reduzido ao silêncio, por ser excluído do debate que
pretende construí-lo como personagem social e político. Seu reconhecimento
187
quando acontece é via porta voz institucional, através do dirigente da associação
política – ou mais comumente, dos técnicos vinculados às instituições gestoras.
Através de uma classificação e de um enquadramento que pressupõe a não
organização política dos assentados, o INCRA entende ser necessário criar novos
espaços de reivindicação, novas questões, novas identidades e novos modos de
incorporação de comportamentos, independentemente da aceitação ou resistência
dos assentados, porque faz parte do enquadramento e da exigência legal.
Uma das estratégias de imposição desse modelo é a “construção do
beneficiário”. Qualquer ação do INCRA no âmbito do assentamento requer a figura
do “beneficiário” que é aquele que deve cumprir trâmites burocráticos tais como:
estar cadastrado no Sistema Informação de Processamento da Reforma Agrária /
SIPRA; estar em dias com as obrigações financeiras; ser portador de documentos
de identificação; ser associado; morar e trabalhar no assentamento.
Uma característica importante do assentamento Brejo de São Félix e do
espaço rural em foco é sua proximidade aos centros urbanos das cidades do
entorno. Os assentados têm uma relativa facilidade para ir à cidade, trajeto que pode
ser feito por ônibus municipais. Podem vender pessoalmente seus produtos na feira,
e alguns até estudam em Matões. Ou seja, os assentados têm uma vivência urbana,
já trabalharam e trabalham, nos mais diversos serviços urbanos.
Observei no assentamento Brejo de São Félix uma situação semelhante
àquela identificada por Ruschel (2007) nos assentamentos rurais do MST no
município de Vitória da Conquista/BA. Resguardadas as devidas diferenças do
contexto e histórico de cada caso, conforme coloca esse autor:
[...] o assentamento, “parcialmente modificado pelos influxos
modernizantes, recomposto pela presença dos movimentos sociais, com
seu relacionamento estreito com o meio urbano tanto para o comércio
como para o trabalho, caracterizam-se pelo entrecruzamento do antigo e
do moderno produzindo o as análises recentes concebem como um "novo
rural" e uma "nova ruralidade" (RUSCHEL, 2007, p.7).
No assentamento Brejo de São Félix, cidade e campo fazem parte da
estratégia de sobrevivência familiar. No caso da relação com o município mais
próximo, Matões, observei situações em que os pais moram no lote e filhos e netos
moram e trabalham na cidade. Os membros "urbanos" vão para o assentamento nos
188
finais de semana e são presenteados por gêneros alimentícios e estes retribuem
com serviços e produtos urbanos.
Esta relação, com algumas mudanças, se reproduz com os que moram mais
distantes, como Brasília, São Paulo ou Teresina. O contacto permanece, enviam
recursos para o trabalho na terra ou outras necessidades, passam as férias,
feriados, etc no assentamento. Há laços que os mantém ligados uns aos outros, que
são a terra, a história comum, o parentesco, o sentimento de pertencer a um lugar.
São elos de fortalecimento dos laços familiares, um "porto seguro". O novo e o
antigo estão presentes nas expectativas e nos sentidos dos assentados. O novo é
aceito e integrado contanto que certos aspectos mais fortes de sua cultura não
sejam anulados. Isto pode ser percebido, por exemplo, nas festas e nas relações de
trabalho.
A disputa pela direção das associações tem sido motivo, também, de conflitos
no assentamento. As associações acirram as disputas entre comunidades e,
internamente, na mesma comunidade. O caso mais característico é o da associação
da comunidade de Baixão Grande. Neste sentido afirma Nega:
Depois que veio a terra, trouxe a individualidade das pessoas. Cada um
quer ser mais que o outro, medindo força, quer ter os direitos, aquela briga.
Quem não quer trabalhar, não deixa o que quer, trabalhar. Nós que
brigamos para não ver a terra dividida... Agora achamos melhor que fosse
cada um no seu lote. (Entrevista realizada em 18 de novembro de 2006).
Nega está se referindo ao fato de que o assentamento não é dividido em lotes
e isso tem gerado conflito. Muitos assentados não estão trabalhando no
assentamento e impedem os que lá estão de utilizar certas áreas, que são
apossadas individualmente. As famílias grandes têm dificuldades para os filhos
trabalharem. “Nós que estamos trabalhando, plantando mandioca, arroz, milho, uns
quatro aqui não fazem roça, mas podem proibir os que trabalham. O pior que pode,
pois é dono também. A família grande fica prejudicada, eu gostaria de que não
faltasse terra para ninguém que fosse assentado.”
A proibição a que se refere D. Nega está contida no Regimento Interno da
Associação de Baixão Grande, que está sendo discutido pela comunidade desde o
ano passado, sem que tenha sido possível chegar a um consenso, conforme
observei em quando estive no assentamento em julho de 2007.
189
Numa das clausula de um modelo de regimento fornecido pelo INCRA/ MA,
está posto que os filhos casados não podem morar junto e trabalhar com os pais. A
diretoria da associação, por concordar com essa cláusula, não tem propiciado sua
discussão, colocando a questão como já definida. Argumenta como se fosse uma
imposição do INCRA, portanto, fora de discussão. Este não é o entendimento da
equipe de ATES e de outras famílias da comunidade.
Lamentando esse contexto, afirma D. Nega:
Sei que meu filho não vai ter direito à casa, ao projeto PRONAF A, mas
morar e trabalhar junto comigo, acho que ele pode....Vou trabalhar a vida
inteira nesse projeto e se der certo que eu acho que vai dar certo, quem vai
morar comigo, com quem vou ficar quando estiver velha? (entrevista
realizada em novembro de 2006).
D. Nega ainda questiona: “O projeto não se chama programa de
fortalecimento da agricultura familiar, que familiar é este, se não deixar meu filho
morar junto comigo? Eu não entendo. Nós precisamos discutir isso com ele, mas ele
não quer nem mais me ouvir”. (Continuação da entrevista realizada em novembro de
2006.
Esta situação, que se aplica a todo o assentamento, embora atualmente
explicite-se com mais força no Baixão Grande, está levando a formação de outra
organização, a Associação das Quebradeiras de Coco do assentamento.
Na associação, as lideranças acabam concentrando poder, decisões, gerando
o conflito, em oposição ao que eles afirmam que acontecia anteriormente, onde tudo
era decidido em comum acordo, presente na expressão “antes a gente era unido”.
Desta forma, as associações, embora se coloquem como instância mediadora
de conflitos, que buscam na comunidade uma “unidade” através do consenso, na
prática acabam por atuar como deflagradoras de conflitos.
No entanto, o conflito não é um elemento desagregador. É através dele que é
possível chegar a “unidade” sonhada pela associação e demais participantes. A
associação, vinculada aos moradores do assentamento está num intenso fluxo de
interações e intenções. Como diz Simmel (1983) são as sociações que interessam e
não a comunidade estanque, por ela mesma. São suas relações, conflitos,
dificuldades, aflições, interesses individuais e coletivos, as interações dos indivíduos
com a comunidade e seus diversos grupos que dão sentido à comunidade.
190
6. CONCLUSÃO
Neste trabalho, tive como objetivo analisar a sociabilidade no Projeto de
Assentamento Brejo de São Félix, no Maranhão. Foram analisadas as relações de
sociabilidade antes e depois da desapropriação da terra. Dei ênfase às relações
desenvolvidas após a desapropriação, ou seja, as relações institucionais
estabelecidas com entidades locais e nacionais e com programas instalados através
do INCRA, assim como às relações inter e intracomunitárias. Foi possível observar
modificações na sociabilidade no assentamento.
A sociabilidade anterior ao assentamento ancorava-se no que denominei
relações patrão-cliente. O controle social antes era exercido pelo proprietário e sua
família, nos moldes clientelistas. Entretanto, ao entrarem outros agentes nesse
espaço social, especialmente os trabalhadores que vieram a constituir a comunidade
de Baixão Grande, as regras locais foram sendo questionadas. No processo de
resistência na terra, a díade patrão-cliente foi sendo alterada.
Descomprometidos do antigo vínculo estabelecido entre patrão e clientes, os
moradores de Baixão Grande buscaram construir outras formas de sociabilidade,
marcadas pela luta pela conquista da propriedade da terra.
O que mudou na sociabilidade, após o processo de desapropriação, no
assentamento Brejo de São Félix?
A desapropriação da terra, e sua posterior efetivação como assentamento
rural, possibilitou a construção de nova sociabilidade e novas articulações foram se
estabelecendo, especialmente efetivadas via INCRA e demais instituições e
programas.
Como assentados de reforma agrária, os moradores do Brejo de São Félix
vêem-se diante de novas regras de convivência, que na maioria das vezes são
impostas pelos agentes institucionais, gerando uma tensão entre a submissão e a
negação dessas regras estabelecidas de “fora para dentro”.
Os órgãos e programas oficiais voltados para o desenvolvimento no campo
brasileiro como o INCRA, pautam-se, historicamente, por concepções generalizantes
e apriorísticas sobre as realidades aonde atuam, desconsiderando as histórias
particulares e a heterogeneidade que constitui os assentamentos rurais.
191
Hoje, com algumas diferenciações, a política de assentamento continua
seguindo a lógica das intervenções estatais anteriores, pois desconsidera as
especificidades e as histórias das comunidades para onde se voltam às ações a
serem implantadas.
Assim, mesmo que o INCRA aglutine diferentes interesses e programas no
assentamento dificilmente consegue controlar os procedimentos e seus efeitos. Com
a justificação da falta de recursos financeiros, o INCRA acaba não cumprindo seus
prognósticos. E quando os consegue, busca investir no reconhecimento de sua
presença no campo, muitas vezes de forma autoritária. Os técnicos do órgão quando
chegam ao assentamento, efetivam ações que consideram relevantes, sem ouvir os
assentados, priorizando atividades burocráticas como preenchimento de cadastros e
estabelecimento de regras que os assentados o efeito simbólico da presença do
órgão em campo.
Uma das regras impostas pelo INCRA, que acaba sendo incorporada pelas
associações refere-se à permanência dos assentados no local, impedindo quaisquer
deslocamentos para outros lugares. Esse tem sido um dos maiores motivos de
insatisfação por parte dos assentados que não consideram o deslocamento como
abandono da condição de assentado, mas como mais uma alternativa de
sobrevivência.
Os assentados, apesar do discurso de liberdade do jugo do antigo patrão, não
romperam de forma definitiva com a tradição que receberam dos antepassados,
inclusive na relação com o antigo proprietário. Hoje parecem conviver
“harmoniosamente”, com a família Silveira, ainda presente no assentamento. Talvez
porque percebam que o poder dessa família sobre eles foi substituído por diferentes
instâncias do poder público a quem hoje prestam contas de suas ações.
A relação que mantêm com o passado como arrendatários é ambígua.
Guardam lembranças como as casas de palha e taipa que ainda conservam ao lado
da casa de alvenaria, construída com o recurso do crédito habitação, as árvores
centenárias, como o pé de tamarindo sob o qual realizam a festa do lavrador e o
velho “casarão”, morada e comércio do antigo patrão.
As antigas formas de solidariedade e ajuda mútua, que hoje passam a ser de
alguma forma impostas pelas associações, são lembradas através de expressões
192
como “antes a gente era mais unido”, “hoje é tudo individual, cada um cuida do que
é seu”; “antes tinha mais fartura”.
Ao mesmo tempo em que insistem na “liberdade” que hoje desfrutam,
reforçam formas anteriores de sociabilidade como positivas, em detrimento de
muitas que ocorrem atualmente.
Com a descentralização das ações, a política de assentamentos, cabe à
prefeitura municipal uma efetiva implementação de condições para a viabilização do
projeto de assentamento. Essa atribuição de responsabilidade, na maioria das vezes
opera para inviabilizar o programa de assentamento, tendo em vista que o programa
está sujeito aos interesses econômicos e compromissos políticos assumidos pelos
participantes do jogo político local. Neste sentido, o assentamento fica numa
situação de dependência das políticas públicas municipais, favorecendo o
clientelismo e o paternalismo das políticas públicas.
As dificuldades de conciliação entre o recurso estatal, o acesso a técnicas de
plantio e gerenciamento da produção, no assentamento, fazem parte de um projeto
de reforma agrária que se caracteriza mais por tentar amenizar os conflitos no
campo do que efetivamente solucionar os problemas através de políticas que
favoreçam a autonomia do trabalhador rural.
O assentamento configura-se como um conjunto de ações isoladas, pontuais,
desatreladas de um projeto maior de emancipação dos assentados por meio de
trabalho qualificado na terra e da viabilização de recursos operacionais e financeiros.
A incompatibilidade existente entre o projeto dos técnicos e o desejo dos
assentados faz com que os recursos sejam aplicados de forma descontextualizada,
desconsiderando as particularidades daquele grupo específico de assentados.
Observei uma desconsideração por parte dos técnicos das especificidades do
assentamento no que se refere às relações étnico-raciais, pois há momentos em que
a comunidade Brejo de São Félix se autodenomina comunidade remanescente dos
escravos e isso em nenhum momento foi considerado pelos gestores do INCRA.
Isso acaba gerando uma situação que, à primeira vista, culpabiliza o sujeito
da reforma agrária. Culpa-se o assentado pela sua situação de pobreza e falta de
condições de produzir.
Os programas e projetos chegam com um novo discurso, mas a prática
continua a mesma.
193
Observei que a condição de assentados não gerou um protagonismo dos
sujeitos. Há, inclusive, uma espécie de choque entre o conhecimento especializado
dos técnicos e os meios tradicionais de trabalhar a terra, enraizados no agricultor.
Coloca-se um modelo de desenvolvimento que deve ser seguido pelos assentados,
com a incorporação de novas técnicas, que nem sempre se adequam ao contexto
local e desrespeitam as práticas culturais dos assentados.
Por outro lado, os assentados temem assumir compromissos que estão além
de suas possibilidades e muitas vezes rejeitam a idéia de se sujeitar a novas
disciplinas de trabalho, como por exemplo, o trabalho coletivo.
Diante da sugestão de novos empreendimentos, na maioria das vezes, os
assentados preferem ver os resultados antes de correr o risco. Assim, os técnicos
precisam fazer experimentos e mostrar a viabilidade, para que o trabalhador possa
definir o que melhor pode se adaptar ao seu projeto de vida.
Embora ainda de forma reduzida, pode se dizer que há uma diversificação da
produção agrícola, com a introdução do PRONAF, que está proporcionando uma
mudança tecnológica. Isso tem se refletido na composição da receita dos
assentados, afetando o comércio local, a movimentação bancária, etc., com efeitos
sobre a capacidade do assentado e do assentamento.
De forma reduzida, o mercado local passou a ser dinamizado pela venda de
produtos dos assentados, seja de forma direta aos supermercados da sede do
município, como fizeram inicialmente os assentados da comunidade de Canafístula,
ou mesmo através da compra direta no assentamento, a partir do momento que já
se coloca como referência na área.
A constituição do assentamento acarretou a introdução de novos agentes que
de alguma forma modificaram as relações de poder, O controle sobre os moradores,
antes concentrado nas mãos do patrão, passa a ser difuso. Entram em cena as mais
variadas instituições: INCRA, associações, Bancos, deslocando para essas relações
o conflito.
Nesse contexto, o assentamento ao destituir os laços tradicionais de
patronagem, constitui novos, fundados nas novas redes em que estão articulados.
Nas novas relações, os assentados ficam sujeitos a uma rede de observação e
controle.
194
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202
ANEXOS
203
ANEXO A – Cópia de FAX: Informação do cartório de Parnarama ao INCRA sobre
compra de terra.
204
ANEXO B – Mapa assentamento de Brejo de São Félix.
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