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Universidade Federal de Minas Gerais
Departamento de Geografia
Ricardo Alexandre dos Santos Araújo
RUPTURAS E PERMANÊNCIAS: UM ENSAIO
SOBRE A GEOISTÓRIA DO VALE DO SÃO
FRANCISCO
Minas Gerais - Brasil
Maio - 2009
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Ricardo Alexandre dos Santos Araújo
RUPTURAS E PERMANÊNCIAS: UM ENSAIO
SOBRE A GEOISTÓRIA DO VALE DO SÃO
FRANCISCO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação do Departamento de
Geografia da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito à obtenção do
título de Mestre em Geografia.
Área de Concentração: Organização do
Espaço.
Orientador: Professor Dr. Ralfo Edmundo
da Silva Matos
Belo Horizonte
Departamento de Geografia
2009
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Ricardo Alexandre dos Santos Araújo
RUPTURAS E PERMANÊNCIAS: UM ENSAIO
SOBRE A GEOISTÓRIA DO VALE DO SÃO
FRANCISCO
Membros da Banca Examinadora:
________________________________________
Professor Doutor Cássio Eduardo Viana Hissa
_________________________________________
Professora Doutora Marly Nogueira
_________________________________________
Professor Doutor Carlos Magno Guimarães
_________________________________________
Professor Doutor Ralfo Edmundo da Silva Matos
Dedicatória
muito tempo, apaixonei-me pela Geografia, não por essa encantadora disciplina
que desvenda o espaço, mas principalmente pela personificação desse saber na figura de
minha esposa, Patrícia de Machado. A ela dedico todo o meu esforço e o resultado
deste trabalho.
Agradecimentos
Ao Coordenador, pesquisadores e alunos que integraram a equipe do projeto “População
e Territorialidades Chaves da Rede de Cidades da Bacia do São Francisco”, pessoas
especiais, que com suas experiências muito contribuíram para a realização desta
dissertação.
Aos moradores das regiões ribeirinhas do Velho Chico, que, além de compartilharem
informações importantes para a pesquisa, nos brindaram com sua imensa sabedoria.
"Agora, por aqui, o senhor já viu: rio é só o São Francisco,
o rio do Chico. O resto, pequeno, é vereda. É algum ribeirão".
(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
7
Resumo
A atual conjuntura que cerca a academia permite considerar que a ciência tradicional
encontra-se em um momento de profunda reflexão sobre suas metodologias e práticas. A
introdução de novas variáveis no processo de construção de conhecimento e a postura mais
flexível proporcionada pela Pós-Modernidade sugerem que a ciência deva passar por
transformações para se adaptar. Diante desse cenário, é razoável questionar-se a rigidez da
divisão disciplinar do conhecimento, combinando posturas que incentivem ações para a
transdisciplinalidade e favoreçam o compartilhar de experiência entre os saberes. Na
intenção de contribuir para o desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa
geoistórica, esta dissertação, utilizando-se do Vale do São Francisco como objeto, propôs
realizar um ensaio sobre a ocupação da região, a fim de identificar e analisar as principais
permanências e rupturas relacionadas às transformações socioespaciais, objetos de estudo
das tradicionais disciplinas História e Geografia.
Palavras-Chave: Permanências. Rupturas. Geoistória. Transformações socioespaciais. Vale
do São Francisco.
Abstract
The modern conjuncture that surrounds the academy allows us to consider that traditional
science meets nowadays a deep reflection on its methodologies and practices. New
variables have been introduced in the process of knowledge construction and a flexible
position provided by post modernity suggests that science should change in order to adapt
itself. In this scenario, it is reasonable to ask the rigidity of the disciplinary division of
knowledge combining positions that stimulate actions for the transdisciplinarity and to
encourage the sharing of experience among knowledge. Thus, the main purpose of this
dissertation is to contribute for the development of a “geoistórica” research methodology.
By using “Vale do São Francisco” region as an object, the investigation, based on the
occupation of the region, was conducted in order to identify and analyze the transformation
of cultural, social and spatial permanence and also their disruptions which are objects of
study of the traditional disciplines such as History and Geography.
Key words: Permanence. Disruption. "Geoistória". Social transformations. Spatial
transformations. “Vale do São Francisco”.
8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO DO TEMA — O RIO SÃO FRANCISCO COMO
CATALISADOR DE EXPERIÊNCIAS SOCIAIS INVESTIGATIVAS
09
PARTE 1
INSERÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS 14
CAPÍTULO 1
- MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: ELEMENTOS
CONCEITUAIS PARA SE REPENSAR A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO
15
1.1 O PROJETO ILUMINISTA E SUA CRÍTICA PÓS-MODERNA 16
1.2 HISTÓRIA E GEOGRAFIA NA CIÊNCIA MODERNA: REFLEXÕES SOBRE
A PRODUÇÃO DOS SABERES SOCIOESPACIAIS
26
CAPÍTULO 2 - TEMPO E ESPAÇO, GEOGRAFIA E HISTÓRIA 35
2.1 SOBRE O TEMPO: A HISTÓRIA E A CONSTRUÇÃO DE SUA
METODOLOGIA DE PESQUISA
36
2.2 ESPAÇO E GEOGRAFIA: OS DESAFIOS DIANTE DA CRISE DOS
SABERES
48
2.3 POR UMA METODOLOGIA GEOISTÓRICA: O ESPAÇO E O TEMPO NA
ANÁLISE DA TRANSFORMAÇÃO SOCIOESPACIAL
54
2.4 A “GEOGRAFIA ORAL” COMO TÉCNICA PARA INCLUSÃO DA NOÇÃO
DE ESPAÇO E DE NOVOS PERSONAGENS NOS ESTUDOS
SOCIOESPACIAIS
63
PARTE 2
GEOISTÓRIA DO SÃO FRANCISCO: EXERCÍCIO TRANSDICIPLINAR PARA
A CONSTRUÇÃO MAIS DEMOCRÁTICA DOS SABERES
68
CAPÍTULO 3 - CONSTRUINDO A GEOISTÓRIA DO SÃO FRANCISCO 69
3.1 O SÃO FRANCISCO COMO REFERÊNCIA HISTÓRICA E MARCO
ESPACIAL PARA A FORMAÇÃO DO BRASIL
70
3.2 O ESPAÇO FÍSICO E AS CARACTERÍSTICAS NATURAIS DO VALE DO
SÃO FRANCISCO
80
3.3 REFLEXÕES SOBRE A OCUPAÇÃO DO VALE DO SÃO FRANCISCO 88
3. 4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A GEOISTÓRIA DO SÃO FRANCISCO
ATRAVÉS DA ORALIDADE: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS; O
MOVIMENTO TEMPORAL E AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOESPACIAIS
106
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
127
5 CONCLUSÃO
129
6 REFERÊNCIAS
132
9
APRESENTAÇÃO DO TEMA O RIO SÃO FRANCISCO COMO
CATALISADOR DE EXPERIÊNCIAS SOCIAIS INVESTIGATIVAS
O presente documento é um dos resultados, em forma de dissertação, da pesquisa
“População e Territorialidades Chaves da Rede de Cidades da Bacia do São Francisco”,
realizada no Vale do São Francisco, durante os anos de 2006 a 2008, coordenada pelo Prof.
Dr. Ralfo Matos, que teve como objetivos estudar, descrever e cartografar a rede de
localidades centrais e o cotidiano de relações da bacia do rio São Francisco, para a
compreensão das mudanças e reestruturações econômico-demográficas dispostas na região.
Apesar de o período citado ter sido o mais intenso no que diz respeito à organização
estrutural deste texto, certamente muitos dos elementos nele situados são frutos de outros
conhecimentos, que remontam à formação acadêmica do autor, à sua experiência de vida, à
convivência com outros pesquisadores e à seleção de interesses determinados por escolhas
pessoais que nortearam a pesquisa.
A investigação, do ponto de vista geoistórico da influência da pecuária e do
comércio no Vale do São Francisco, tornou-se uma empreitada de grande estima não
por ter proporcionado uma oportunidade ímpar para o exercício das teorias de análise
social, mas como prática pessoal prazerosa e intensa. A opção metodológica pelo contato
direto com os moradores das regiões ribeirinhas e a possibilidade de atuação conjunta com
outros pesquisadores formados em áreas distintas de conhecimento, revelou-se uma
excelente alternativa em função dos resultados obtidos e da oportunidade de compartilhar
experiências.
É fato inegável a importância da região do Vale do São Francisco na formação
histórica cultural do Brasil, principalmente no que se refere ao Estado de Minas Gerais.
Entretanto, algumas lacunas são evidentes quando se considera o ponto de vista da
dinâmica social através do tempo e do conhecimento acerca da sua organização espacial,
que acompanha e interage com essas transformações sociais. Inobstante o destaque
atribuído à “Região da Mineração”
1
que foi determinante na formação espacial do Alto
1
Região da Mineração é como convencionou-se denominar as áreas a montante do Vale do São Francisco e
dos rios Doce e Jequitinhonha, onde imperaram as transformações resultantes da exploração mineral dos
séculos XVII e XVIII. Segundo os critérios do Ministério da Integração e da Assembleia Legislativa de
Minas Gerais, o Vale do São Francisco pode ser segmentado em quatro áreas regionais:
Alto São Francisco das nascentes até a cidade de Pirapora (MG), com 100.076 km
2
, ou 16% da área da
Bacia, e 702 km de extensão. Sua população é de 6,247 milhões de habitantes;
Médio São Francisco de Pirapora (MG) até Remanso (BA), com 402.531 km
2
, ou 53% da área da Bacia,
e 1.230 km de extensão. Sua população é de 3,232 milhões de habitantes;
10
São Francisco e que possui diversos trabalhos a seu respeito —, o objetivo principal desta
pesquisa foi analisar, tomando como referência valores geoistóricos, o que se chamou de
“Região do Gado
2
, área concebida e delimitada, segundo os critérios da pesquisa,
localizada onde se convencionou denominar Médio São Francisco.
Observou-se que a incidência da pecuária na região do Vale do São Francisco
acontece com maior ênfase ao longo do leito do rio São Francisco e seus afluentes. Por
uma restrição imposta pela Coroa Portuguesa nos tempos da Colônia, a criação de gado foi
deslocada para o interior, uma vez que concorria com a produção de cana-de-açúcar, o
principal produto brasileiro da época. Por esse motivo a pecuária instalou-se em áreas mais
afastadas do litoral e, gradativamente, foi se espalhando pelos vales do grande rio, como
uma mancha de óleo, que se difundiu lentamente.
Por ser um tipo de atividade que necessita de grandes áreas para pastagem, a
pecuária expandiu-se utilizando o rio São Francisco como eixo condutor. A proximidade
com o leito do rio era fundamental não para o abastecimento de água, mas como fonte
de alimento para o gado, pois a vegetação de caatinga predominava nos solos relativamente
próximos do sertão da Bahia e de Pernambuco. A baixa densidade populacional na “Região
do Gado” é, em parte, coerente com a presença da pecuária, que não necessita de muita
mão-de-obra para operar e acaba por se configurar como uma atividade distribuída no
espaço.
A salinidade do solo, devido ao clima árido em algumas sub-regiões ao longo do
rio, estimulou a consolidação da ocupação promovida pela pecuária, visto que o sal é
elemento indispensável à criação do gado. Além disso, o comércio regional do sal foi
fundamental para o estabelecimento de rias localidades que tinham nesta atividade sua
principal mercadoria.
No outro extremo da bacia, no denominado Alto São Francisco e, principalmente ao
longo do rio das Velhas, verificou-se que a dinâmica da mineração se estabeleceu como
principal atividade econômica em fins do culo XVII e XVIII com a descoberta e a
exploração das minas de ouro. Devido à efervescência provocada pela descoberta do ouro,
Submédio São Francisco – de Remanso (BA) até Paulo Afonso (BA), com 110.446 km
2
, ou 17% da área da
Bacia, e 440 km de extensão. Sua população é de 1,944 milhões de habitantes;
Baixo São Francisco de Paulo Afonso (BA) até a foz, entre Sergipe e Alagoas, com 25.523 km
2
, ou 4%
da área da Bacia, e 214 km de extensão. Sua população é de 1,373 milhões de habitantes;
Essa divisão regional, defendida por Márcio Santos no livro Rio São Francisco: Patrimônio Cultural e
Natural, publicado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, será, em grande medida, acatada nas
considerações deste texto.
2
Também conhecida como Região dos Currais.
11
o Alto São Francisco tornou-se o principal centro consumidor dos produtos originados da
pecuária da “Região do Gado”.
A delimitação conceitual estabelecida neste trabalho para a definição teórica dessa
área descreve uma tentativa de somar características históricas ao conceito de região que é
marcadamente mais explorado na Geografia. Chamamos de “Região do Gado” ou “Região
dos Currais”, a área da bacia do São Francisco, onde a influência cultural e as
transformações espaciais indicam que a pecuária e o comércio foram suas principais
atividades econômicas, contribuindo, assim, para deixar marcas bastante profundas na
composição social, na cultura, no comportamento e na mentalidade dos moradores.
O movimento de ocupação do Vale do São Francisco não se deu de forma
homogênea no tempo. Por isso, é tarefa muito difícil abranger de forma detalhada as
características dessa ocupação desde o momento em que o rio São Francisco passa a fazer
parte da história do Brasil até os dias atuais. Mas, para respeitar os objetivos traçados na
pesquisa, o período entre os séculos XVIII a XX será tratado de forma mais vigorosa,
considerando-se que os apontamentos aqui realizados serão pautados por uma visão macro
e que a dinâmica de transformação geoistórica acontece de forma distinta, dependendo da
escala de tempo e da área utilizada na análise.
É importante ressaltar que a delimitação conceitual de uma “Região do Gado” não
assume como verdadeiro que a pecuária tenha sido o único meio de produção identificado
nessa área e, da mesma forma, não pretende reduzir a atuação da pecuária a esse único
perímetro. Certamente, em outras áreas a criação de gado promoveu suas transformações,
da mesma forma que na aqui definida “Região do Gado”, outros modos de produção e
culturas deixaram suas marcas. Contudo, fez-se necessária essa delimitação, justamente
para priorizar áreas onde a influência da pecuária foi mais pujante, de modo a permitir uma
análise mais detalhada das características e consequências desse complexo sistema de
produção, e das transformações espaciais e sociais por ele introduzidas.
Além de avaliar com maior interesse as marcas da pecuária, objetivou-se também
verificar a ascendência do rio São Francisco não como marco simbólico, mas como
elemento de transformação espacial, principalmente quando se considera o comércio e o
transporte por ele viabilizado. Ao analisar a formação das cidades ribeirinhas, encontra-se
ainda uma intrincada rede de comércio regional, movimentada pela navegação fluvial ao
longo do São Francisco. A intensidade e o alcance da utilização do rio como canal de
escoamento de produção e para abastecimento do comércio regional variou no tempo, e
12
mesmo em escalas diferentes, ainda hoje podemos observar os traços deixados por essa
atividade econômica.
Nessa perspectiva, foram utilizados conceitos e metodologias que são empregados e
discutidos nas disciplinas História e Geografia como elementos norteadores da pesquisa e
da análise sociocultural que será apresentada. Todavia, mesmo utilizando como suporte as
orientações e conceitos dessas disciplinas, optou-se por uma visão acadêmica mais aberta e
sensível às vantagens de uma abordagem mais transdisciplinar na produção de
conhecimento. Dessa maneira, acredita-se que o material aqui exposto é fruto de uma
forma diferenciada de se tratar a ciência, apoiada nos valores da liberdade de criação,
inovação e democratização da produção do saber, algo que, certamente, deve acompanhar
a construção do conhecimento científico.
Para tanto, e por se tratar de uma pesquisa de campo que envolveu questões
partilhadas pelas disciplinas História e Geografia, uma tarefa importante foi delimitar
conceitos e definir métodos de pesquisa dentro de uma visão mais transdisciplinar. Esta
apresentação do tema foi elaborada com o propósito de fornecer ao leitor informações
relevantes sobre o contexto atual da produção acadêmica e situá-lo neste momento, em que
as discussões teórico-epistemológicas se voltam para as bases estruturais da ideia de
ciência, catalisadas pelo movimento de transformação que muitos autores nomeiam "Pós-
Modernidade".
Não é intenção mergulhar nos desafios e conflitos que perpassam a definição de
Pós-Modernidade, que acaba por abordar também uma definição do que seja Modernidade.
No entanto, para contextualizar esta pesquisa dentro de um cenário mais abrangente da
produção de conhecimento acadêmico se fez mister construir esse tópico, sem perder de
vista os objetivos que conduziram o desenvolvimento do trabalho.
Definido o marco referencial macro de orientação, o próximo desafio foi determinar
conceitos e metodologias de pesquisa geoistórica, que seriam adotados na análise do
objeto. Para desenvolver essa tarefa, foi realizado um esforço teórico voltado para as
práticas e definições metodológicas adotadas pelas disciplinas História e Geografia e as
novas abordagens transdisciplinares, que, coerentes com tal percepção, representam o
modelo de ciência que tem maior aderência aos temas e aos objetivos almejados.
Dentre as práticas metodológicas selecionadas, destaca-se a utilização da oralidade
como recurso técnico-metodológico para obtenção de informações primárias, utilizadas e
validadas pela pesquisa. Mais do que um conjunto catalogado de entrevistas, foi necessário
apresentar uma definição teórica do que ficou conhecido no meio acadêmico como
13
“História Orale o que, nesta pesquisa, designamos como “Geografia Oral”, que será um
tema tratado com maiores detalhes adiante, mas que, grosso modo, origina-se das
percepções sobre a organização espacial dos indivíduos ao longo de suas experiências de
vida e que puderam ser identificadas por meio das entrevistas.
A opção por essa forma direta de obtenção de dados expõe uma preocupação
latente, que acompanhou toda a pesquisa e revela uma tentativa de democratizar a própria
produção de conhecimento acadêmico. A intenção não se limita à preocupação com o
acesso ao produto final de uma pesquisa científica, mas, para além disso, procurar fazer um
exercício de respeito e consideração do indivíduo comum pessoas que não possuem a
formação científica aparentemente necessária para se tornar aptos à produção de
conhecimento —, que carrega consigo toda uma bagagem de vida e que muito mais do que
informação científica, possui uma sabedoria indispensável à compreensão do que
imaginamos ser a realidade social. Nessa direção, entende-se que se privilegia um modelo
de ciência mais flexível, mais controverso, e mesmo assim, mais transformador.
Como exercício à aplicação dos conceitos e metodologias introduzidos nos
primeiros capítulos, delinea-se uma análise do ponto de vista geoistórico das
transformações encontradas no espaço social da “Região do Gado” do Vale do São
Francisco, ligadas às atividades econômicas introduzidas pela pecuária e pelo comércio
ribeirinho, considerando essas atividades como os principais modos de produção e
acreditando que tais ocorrências foram determinantes na transformação do espaço e na
identificação histórica do povo da região. Essa investida é também um importante
aprendizado, justamente por iluminar as mutações culturais, espaciais, econômicas e
sociais, frutos dessas atividades econômicas, sem desprezar o legado da mineração, tão
destacado nas terras mais altas da bacia e que acaba por se definir como símbolo
monolítico para todo o Vale do São Francisco.
14
PARTE 1
INSERÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
15
CAPÍTULO 1
MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: ELEMENTOS
CONCEITUAIS PARA SE REPENSAR A PRODUÇÃO DO
CONHECIMENTO CIENTÍFICO
16
1.1 O Projeto Iluminista e sua Crítica Pós-Moderna
Na visão de muitos autores a produção do conhecimento científico enfrenta hoje
uma profunda crise, não por apresentar restrições e dificuldades em incorporar novos
temas, discursos e atores — que antes se mantinham silenciados, e que, atualmente,
ganham força dentro da sociedade —, mas de forma mais veemente, a ciência é levada a
repensar estruturalmente suas origens, aplicações e sentidos.
As certezas universais amplamente aceitas no período em que os ditames do
Iluminismo se consolidaram como valores inquestionáveis tornaram-se incapazes de
responder a todas as mazelas e contrastes que a parceria entre racionalidade e capitalismo
apresentou. A crença em um progresso constante, pautado na existência de verdades
absolutas, revelou-se cada dia mais frágil e insuficiente para manter o status quo, que na
sociedade capitalista era causa das desigualdades. Por essa razão, a própria ciência está
reavaliando seus paradigmas, atualmente insuficientes para lidar com a complexidade do
mundo. Harvey (2001) vai mais a fundo na análise dessa situação, ao sustentar que existe
uma crise moral que está na estrutura de todo o pensamento iluminista.
A crise moral do nosso tempo é uma crise do pensamento iluminista. Porque,
embora esse possa ter permitido que o homem se emancipasse “da comunidade e
da tradição da Idade Média em que sua liberdade individual estava submersa”,
sua afirmação do “eu sem Deus” no final negou a si mesmo, já que a razão, um
meio, foi deixada, na ausência da verdade de Deus, sem nenhuma meta espiritual
ou moral (HARVEY, 2001, p. 47).
Harvey (2001) remete assim às origens do Iluminismo
3
, que desafiou a lógica
teocêntrica imperante na Idade Média, contribuindo para tornar o homem livre das amarras
tradicionais de uma interpretação religiosa da realidade, na qual todas as coisas estavam
diretamente ligadas à vontade de Deus.
René Descartes (1596–1650) foi um dos principais expoentes dessa visão racional e
matematizada da interpretação da realidade. Físico, filósofo e matemático, Descartes deu
origem à geometria analítica e ao sistema de coordenadas, sugerindo a fusão entre a
álgebra e a geometria. Foi uma figura-chave na inauguração do racionalismo na era
moderna. O método cartesiano dotou de metologia científica um modelo analítico de
pesquisa, que se propunha buscar a verdade suprema na interpretação dos fenômenos.
3
O Iluminismo, a grosso modo, foi um movimento filosófico refletido em conceitos e ações que sintetizaram
diversas tradições filosóficas, correntes intelectuais e atitudes religiosas, sustentado na defesa do
conhecimento racional e na ação humana como meios para a superação de preconceitos e ideologias
tradicionalmente teológicas. Não consenso em relação às origens do movimento, que, em geral, é
referenciado cronologicamente no século XVIII, conhecido como Século das Luzes.
17
Preocupado em eliminar erros e converter a dúvida em método, Descartes supervaloriza a
razão, utilizando como base quatro tarefas indispensáveis à produção do conhecimento:
verificar, analisar, sintetizar e enumerar os pensamentos, a fim de manter uma ordem
concisa na elaboração de leis. Com base no racionalismo matemático, Descartes iria
influenciar toda a ciência moderna, ao instituir a dúvida como elemento-chave da ciência:
se pode dizer que existe aquilo que possa ser provado, sendo o ato de duvidar
incontestável.
Com a influência do Iluminismo em várias áreas do pensamento e nos escritos de
vários filósofos entre os séculos XVI e XVIII tais como Hume (1724–1804), Adam
Smith (1723–1790), Rousseau (1712–1778), Montesquieu (1689–1755), Newton (1642–
1727), Diderot (1713–1784), dentre outros —, viu-se que a razão passou a ser sinônimo de
luz e abrangia as ideias de progresso, emancipação humana, domínio científico da
natureza, eliminação da escassez, e fim das irracionalidades do mito, da religião e da
superstição. Mais adiante, tudo isso iria incorporar-se ao método positivista, uma das
principais correntes filosóficas da modernidade. A herança iluminista e cartesiana seria
apropriada e aprofundada por Auguste Comte (1789–1857) em seu método científico,
cujos fundamentos são a certeza rigorosa dos fatos, a experiência como base da teoria e a
procura de relações constantes entre os fenômenos. A filosofia positivista sustentada por
Comte defende que existem leis gerais que determinam os fenômenos sociais, da mesma
forma que os fenômenos naturais. Comte usaria a observação, a experimentação, a
comparação e a classificação, como métodos para a obtenção dos dados reais que seriam
indispensáveis à atribuição de leis universais abstratas e constantes, que regeriam todos os
fenômenos. Assim, o Positivismo
4
evita indagar a essência das coisas e despreza as causas
de determinação inacessível, que dificultem a elaboração de leis gerais.
Outro importante expoente na definição do pensamento moderno foi Isaac Newton
(1643–1727). Cientista inglês atuante em várias áreas do pensamento, Newton propôs a
explicação de problemas universais, por meio da utilização da mecânica e da metafísica.
Foi o primeiro autor a demonstrar que o movimento dos objetos, tanto na Terra quanto em
qualquer outro corpo celeste, são governados por um conjunto de leis naturais universais.
As “Três Leis de Newton”, que explicariam a movimentação dos corpos celestes, acabaram
4
O Positivismo pode ser entendido superficialmente como uma corrente filosófica e científica que emergiu
no século XIX, por influência de Augusto Comte, e tem suas origens nos desdobramentos conceituais
iniciados com o Iluminismo. Defende a ideia de uma ciência medida com rigor por critérios técnicos e, a
partir disso, consolida uma expectativa de progresso e evolução constante da humanidade.
18
por sugerir que a investigação racional pudesse revelar o funcionamento mecânico da
natureza (VITTE, 2007)
5
.
Visualiza-se, assim, um novo paradigma racional com independência em relação às
crenças e à possibilidade de uso não arbitrário do poder. Entretanto, ao assumir a “ausência
de Deus”, a humanidade, carente de uma moralidade reguladora, creditou à razão e ao
capitalismo as normativas morais para a condução da sociedade. Bignotto (1994), ao tratar
o Renascimento italiano e os seus pensadores, reforça o pensamento de que a liberdade na
interpretação da realidade, viabilizada pelo racionalismo, possibilitou a emancipação na
construção dos saberes e a determinação do verdadeiro ator da transformação da realidade,
ou seja, o homem moderno.
O que essa imagem de um homem totalmente livre tem de encantadora não é a
descoberta do caráter necessário das escolhas que operamos no mundo, os
medievais sabiam disso, e sim o fato de que o pensador sugere que podemos
inventar uma natureza e também sua forma de estar no mundo. Em outras
palavras, somos os inventores de nossa natureza e também da nossa história
(BIGNOTTO, 1994, p. 177).
Novaes, porém, aponta os limites para uma interpretação tecnocêntrica, e coloca
lado a lado teologia e técnica, deduzindo que ambas são incapazes de abarcar a vida da
sociedade em toda a sua complexidade.
Vêem a história como realização dos desígnios de Providência ou como
determinismo que garante que, de etapa em etapa, tempo e história correm em
sentido determinado: é a visão do tempo como seqüência linear. Negam à
história o direito à incerteza e ao acaso. Técnica e religião pretendem libertar o
homem da angústia da incerteza e, por isso, desejam tudo dominar, tudo prever.
Mas tempo não se confunde com eternidade (da religião), e história põe em jogo
a totalidade do mundo e nenhuma técnica pode abarcar essa totalidade. A
técnica, como a religião, não conta do tempo interior e do tempo das coisas.
Ele está em nós e fora de nós, na história do mundo, e, portanto, jamais pode ser
objeto de manipulação absoluta (NOVAES, 1994, p. 10).
O Modernismo, baseado em valores positivistas, tecnocêntricos e racionalistas,
defende a crença no progresso linear, pautado em verdades absolutas, que ultrapassariam
as fronteiras geográficas, étnicas, de classe ou de nação, com a possibilidade do
desabrochar de um homem universal e da diminuição dos conflitos. Seria o que alguns
autores chamaram de o “Fim da História”. Entretanto, tal perspectiva foi duramente
questionada, principalmente por não ter resolvido todas as questões que se referem à
inserção desigual dos indivíduos no processo produtivo capitalista. Segundo Garcia
5
Cf. VITTE, Antonio C. (org). Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007.
19
A história teria chegado a seu fim se os conflitos houvessem sido dissolvidos.
Mas não eles persistem, como às vezes se intensificam, suscitando a
emergência de novos sujeitos articulados em torno de novas problemáticas na
qual estão explícitos ou subjacentes valores de liberdade e de igualdade
(GARCIA, 1994, p. 101).
O projeto iluminista considerava imperativa a existência de uma única resposta
possível a qualquer pergunta. Dessa percepção em relação à organização do universo, a
representação dos eventos seria sempre traduzida através de modelos matemáticos que,
uma vez descobertos, forneceriam os meios para os fins iluministas de controle e
representação do real. Diante disso, segundo Matos
As transformações provocadas pelo racionalismo-mecanicista, desde o
renascimento no século XVI, aprofundam e radicalizam a herança deixada pelos
gregos. A natureza passa a ser vista como um artefato mecânico a ser decifrado
através dagica matemática e sujeita ao domínio humano. É sua autonomização
em relação ao ser humano. O racionalismo confere à natureza um valor
científico, especialmente após o surgimento e o avanço da História Natural, que
concebia as áreas não transformadas pelo homem como “habitat” de espécies
selvagens e objeto de pesquisa (MATOS, 2008, p. 45).
Novaes (1994) comprova que, com o racionalismo, o real estava submetido, a todo
momento, às noções rígidas e exatas dos números, ainda que isso fosse um
empreendimento paradoxal, porque a realidade cotidiana não é matemática, nem sequer
matematizável. Mesmo com esses limites, a razão iluminista necessitava criar, validar e
difundir as suas regras.
É impossível despojar o mundo de suas ambigüidades, paradoxos e enigmas, e
dominá-lo plenamente por meio da racionalidade cnica e de forma sistemática.
No lugar de habitar o mundo, acolhê-lo, viver no meio dos acontecimentos, o
homem moderno tem a pretensão de dominá-lo pela técnica. Mas ele não se
conta de que essa pretensão é que o transforma no escravo moderno: dominado
por causas exteriores, o homem perde a prudência, e age como qualquer ser
passional, isto é, tudo o que ele faz o faz porque é levado pelos
acontecimentos (NOVAES, 1994, p. 15).
No princípio, o domínio da ciência prometia liberdade diante da escassez e das
arbitrariedades surgidas nas calamidades naturais. A promessa de emancipação humana
veiculada dentro do Iluminismo, segundo Harvey (2001), voltou-se contra si mesma,
tornando a opressão, a incerteza, o medo e a insegurança, uma constante no cotidiano dos
indivíduos. A lógica por detrás da racionalidade iluminista passou a ser vista como uma
lógica da dominação e da exploração. A ânsia por dominar a natureza envolvia também o
domínio dos seres humanos.
20
O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos
racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da
religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado
sombrio da nossa própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto
poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser
reveladas (HARVEY, 2001 p. 23).
Definida como principal elemento para a construção dos modelos conceituais da
ciência moderna, a racionalidade prestava-se a desenvolver saberes com a premissa da
universalidade. Modelos matemáticos foram propostos e o mundo transformou-se em
celeiro de experiências racionais, o que se tornou condição para a construção de uma
ciência objetiva. Esse esforço intelectual dos pensadores iluministas sustentava-se na
noção de que o acúmulo de conhecimento proporcionaria a emancipação humana com
conhecimento e controle da vida diária.
No entanto, o otimismo do racionalismo presente no discurso intelectual da
modernidade contribuiu durante muitos anos para ofuscar as mazelas e dificuldades
latentes, agravadas pelo capitalismo industrial. A ideia de segurança e controle presentes
no repertório do Iluminismo e o pensamento dominado pela técnica tiveram em comum a
ilusão de reduzir o futuro à espera e previsão. Ainda assim, durante o culo XX, muitos
eventos de alcance mundial serviram para colocar por terra a esperança de que a
racionalidade e o controle do capital seriam condições únicas fundamentais para garantir a
prosperidade e a liberdade dos indivíduos. A ocorrência de duas grandes guerras mundiais;
os campos de concentração; o risco atômico; a dependência em relação ao capital e o
mercado; a notória destruição do meio ambiente, com a possibilidade real de aniquilação
da raça humana; entre outros eventos de vital importância, comprovaram que algo havia se
perdido no decorrer dessa parceria.
A supremacia da racionalidade e da objetividade, que eram características do
pensamento iluminista, do Positivismo e da ciência moderna, esbarraram em seus limites
na segunda metade do século XX e isso contribuiu para o surgimento de novos
paradigmas. A partir de fins dos anos de 1960, a ciência discute a relação homem/natureza
e, finalmente, proclama a indissociabilidade entre essas duas entidades. De fato, desde o
início do século XX, novas descobertas científicas introduziram uma maneira inédita de
pensar essa relação, alterando os paradigmas vigentes, principalmente por aumentar as
discussões e as fronteiras entre as disciplinas. Com o advento da mecânica quântica de
Max Planck, em 1905, a solidez da física clássica começou a dissolver-se com as noções
21
de indivisibilidade da energia e de interconectividade integradora, em oposição ao
racionalismo mecanicista do método positivista. A incerteza e o acaso incorporaram-se ao
debate teórico, opondo-se ao determinismo dado pela ordem positivista. Mais tarde, em
1959, a proposição de Von Foerster de que a ordem constrói-se com a desordem, reforçou
o princípio da incerteza. Descobria-se, então, um tipo de desordem diferente, que deveria
ser considerada em contraponto à elaboração das leis universais.
Nesse aspecto, Gonçalves desenvolve, com bastante propriedade, o seguinte
raciocínio:
a expressão "dominar a natureza” tem sentido a partir da premissa de que o
homem é não-natureza... Mas se o homem é também natureza, como falar em
dominar a natureza? Teríamos que falar em dominar o homem também... E aqui
a contradição fica evidente. Afinal, quem dominaria o homem? Outro homem?
Isso seria concebível se aceitássemos a idéia de um homem superior, de uma
raça superior, pura e a História demonstrou à farta as conseqüências destas
concepções. A natureza é, em nossa sociedade, um objeto a ser dominado por um
sujeito, o homem, muito embora saibamos que nem todos os homens são
proprietários da natureza. Assim, são alguns poucos homens que dela
verdadeiramente se apropriam. A grande maioria dos outros homens não passa,
ela também, de objeto que pode até ser descartado (GONÇALVES, 1989, p. 26-
27).
Para Hissa (2002), o principal motivo pelo qual a relação entre racionalidade e
capital passou a ser questionada origina-se na forma como os indivíduos foram incluídos
dentro desse sistema. Diferentemente do que se imaginava, uma sociedade pautada em
valores racionais não estava livre de distorções sociais tão evidentes na sociedade da Idade
Média, e que, de certa forma, se repetiam, com outras justificativas, na modernidade. A
disputa de classe, as divisões do trabalho, as diferentes inserções no processo de produção,
o díspar acesso ao poder e ao saber, também tinham suas restrições, mesmo construídos
sobre a ótica da razão. A sociedade racional não se mostraria homogênea e as
desigualdades se mantiveram, muitas vezes se agravando. Concorda-se com o autor
quando afirma:
Contudo, a difusão da modernidade não se realiza de forma homogênea. A
modernidade é projetada de forma desigual. Pode-se dizer que a crise da
modernidade, em síntese, resulta da inserção dos indivíduos na sociedade de
forma desigual; resulta de promessas não cumpridas, advindas do próprio
ambiente histórico da modernidade; resulta da crise da sociedade, crise do
Estado e da crise política. Mas, ainda assim, a modernidade propaga-se. Com
todas as suas contradições, o projeto da modernidade é ampliado e estendido á
última fronteira do mundo contemporâneo (HISSA, 2002, p. 63).
22
A crítica crescente ao Modernismo, para muitos autores contribuiu para a
formatação de um novo paradigma teórico definido como Pós-Modernismo. Esse
movimento de crítica ao Modernismo, iniciado nas artes, mas que se reflete também nas
ciências, causou forte repercussão na teoria científica, pois atua diretamente na base das
concepções racionalistas, oferecendo novos modelos para a construção dos saberes.
Geralmente reconhecido como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o
Modernismo se identifica com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no
planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e
da produção. O Pós-Modernismo, em contraste, privilegia a heterogeneidade e a diferença
como forças libertadoras, e introduz novos paradigmas na redefinição do discurso cultural.
A fragmentação, a indeterminação e a total desconfiança em relação aos discursos
universais “totalizantes” são a principal marca do pensamento pós-moderno.
Exercício bastante complicado é a definição do status teórico do s-Modernismo,
uma vez que essa tarefa requer também uma definição aceitável do que seja Modernismo.
Concorda-se com Harvey (2001), quando afirma que o estudo mais apropriado da natureza
do Pós-Modernismo deve levar em conta não tanto o conjunto de ideias que o sustentam,
mas sim uma condição histórica que requer elucidação. É um enorme equívoco apagar as
realizações materiais e teóricas das práticas modernistas, como se o Pós-Modernismo
surgisse completamente novo e autêntico. Na realidade, com o arcabouço teórico racional,
os modernistas encontraram um meio de controlar e conter uma explosiva condição
capitalista de dimensões universais e foram eficazes, por exemplo, na organização da vida
urbana característica dos séculos XIX e XX. Se uma crise implícita na ciência moderna,
não é claro que seu objetivo seja apenas a substituição completa dos conceitos e práticas
modernistas.
Os sentimentos modernistas podem ter sido solapados, desconstruídos, superados
ou ultrapassados, mas pouca certeza quanto à coerência ou o significado dos
sistemas de pensamento que possam tê-lo substituído. Essa incerteza torna
peculiarmente difícil avaliar, interpretar e explicar a mudança que todos
concordam ter ocorrido (HARVEY, 2001, p. 47).
Harvey (2001), ao analisar as alternativas sugeridas com o Pós-Modernismo,
entende que esse movimento não representa uma ruptura total com o Modernismo. Ao
contrário, o Pós-Modernismo seria fruto de um processo histórico que fomentou a crítica
da cultura modernista sem, contudo, desbancá-la. É, portanto, um fenômeno estrutural, que
23
atua na base da ciência moderna, procurando rediscutir os conceitos e práticas que estão
em constante adaptação.
Foi quase como se as pretensões universais de modernidade tivessem, quando
combinadas com o capitalismo liberal e o imperialismo, tido sucesso tão grande
que fornecessem um fundamento material e político para um movimento de
resistência cosmopolita, transnacional, e, portanto, global a hegemonia da alta
cultura modernista (HARVEY, 2001, p. 44).
Garcia (1994), por sua vez, faz eco a Harvey e aponta os indícios que caracterizam
o período da s-Modernidade. O progresso tecnológico atual, que diminui distâncias e
fronteiras, atuando de forma marcante sobre as dimensões de tempo e espaço, é, sem
dúvida, um dos catalisadores para a crítica pós-moderna. Ao agir nas práticas cotidianas
dos indivíduos a tecnologia introduz novas demandas e novos sujeitos, fazendo com que o
paradigma dos saberes seja questionado. Além disso, na Pós-Modernidade, mesmo com
todo o aparato técnico, verifica-se a diminuição do espaço público e, por consequência, da
política.
A Pós-Modernidade esta seria a etapa histórica em que o mundo teria
ingressado caracterizar-se-ia pelo encolhimento do espaço público, com o
correspondente recuo dos sujeitos sociais e políticos para estações privados, onde
uma parafernália hi-tech (computadores interligados a redes planetárias, fax,
vídeos, fornos microondas) confinaria homens e mulheres à mais absoluta
privacidade permitindo a todos prescindir das formas e dos espaços clássicos de
sociabilidade (GARCIA, 1994, p. 95).
Harvey (2001) atribui a mudança pós-moderna a uma crise da nossa experiência
com os modelos conceituais de espaço e tempo, na qual as categorias espaciais vêm
sobrepor-se às temporais, ao mesmo tempo que sofrem mutações de tal ordem, que não
conseguimos acompanhar com as referências teóricas atuais. As ordenações simbólicas do
espaço e do tempo fornecem uma estrutura para a experiência, mediante a qual aprendemos
quem ou o que somos na sociedade. É da relação dialética entre o sistema estruturado do
espaço e do tempo que as práticas e representações comuns são determinadas, e é
exatamente a partir dessas experiências que se impõem esquemas duradouros de
percepção, de pensamento e de ação.
A Pós-modernidade, logo, é um movimento de transformação cultural que, na falta
de um termo mais adequado, traduz uma mudança na sensibilidade em relação às ordens
culturais, sociais e econômicas. A aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e
do caótico é, na visão de Harvey, o fato mais espantoso sobre o Pós-Modernismo. A teoria
pós-moderna descarta a possibilidade de definição de elementos eternos e imutáveis,
24
contribuindo assim para o abandono da ideia de conceitos universais. Dessa forma, rejeita
a noção de progresso contínuo e rompe com o padrão de homem burguês sugerido pela
modernidade.
A pretensão burguesa de estabelecer o homem burguês como homem universal
revela-se precária: este homem não é tão suficientemente universal; a
exploração, na modernidade, do elemento novo não esgota todas as suas
virtualidades, a ruptura deve ser mais radical
(
BORNHEIM, 1994, p. 106).
Um dos efeitos que mais interessam em relação às transformações introduzidas pelo
Pós-Modernismo é justamente a sua relação com a ciência. Reconhecida como principal
elemento de sustentação teórica dos conceitos modernistas, a ciência tem sua base técnica
sistematicamente questionada pelo Pós-Modernismo. O projeto iluminista considerava
determinante a existência de uma linguagem própria para a transmissão de conhecimento e
isso presumia a existência de um único modo correto de representação que, caso pudesse
ser descoberto, forneceria os meios para os fins iluministas de controle e representação.
Até aqui, apresentou-se e discutiu-se, de forma mais estrutural, o contexto
filosófico que serve de pano de fundo para a construção das concepções atuais de ciência.
Viu-se que a supremacia da técnica com o uso da racionalidade para a busca incondicional
da objetividade e previsibilidade tornou-se insuficiente para atender às necessidades atuais
da construção dos saberes. O estabelecimento de leis universais e a busca de uma única
resposta a qualquer pergunta concentram as críticas para uma interpretação tecnocêntrica
defendida pela ciência moderna.
Além disso, como se observou, a forma na qual os indivíduos tiveram acesso a esse
sistema técnico-científico, que determinou normas e condutas, também foi alvo de grande
crítica e acabou por questionar o otimismo do racionalismo e, o que mais interessa,
proporcionou uma crise na experiência com os modelos conceituais de espaço e tempo,
sugerindo uma emancipação na construção dos saberes e a possibilidade de maior interação
disciplinar.
Com a crítica pós-moderna constata-se uma mudança na percepção em relação às
ordens culturais, sociais, econômicas, temporais e geográficas, que se entende como
decisivas na construção de saberes que privilegiem a heterogeneidade e introduzam novos
paradigmas na construção de um sistema, no qual a diferença, o efêmero e a desordem
podem funcionar como forças libertadoras. Todavia, mesmo com toda a evolução técnica e
com a introdução desses novos elementos instigantes, verifica-se, na Pós-Modernidade,
uma diminuição constante do espaço público e, por consequência, do alcance da política.
25
Sabendo que a ciência consolidou-se como a principal linguagem utilizada pela
modernidade para construção de conhecimento, há que se verificar como esse embate se dá
na definição dos conceitos de Tempo e de Espaço, para então entender relações possíveis
entre a História e a Geografia.
A fim de investigar em que medida a Pós-Modernidade influenciou as práticas da
pesquisa científica, vai apresentar-se e discutir como as disciplinas História e Geografia
são influenciadas por esses novos paradigmas do Pós-Modernismo e quais as suas
consequências na produção dos saberes e na linguagem utilizada pela ciência moderna,
para interpretação e difusão de conhecimento.
Por conseguinte, desde o começo, o Modernismo se preocupava com a
linguagem, com a descoberta de alguma modalidade especial de representação
das verdades eternas. A realização individual dependia da inovação na
linguagem e nas formas de representação, disso resultando que a obra modernista
com freqüência revela voluntariamente sua arte num constructo auto-referencial,
em vez de um espelho da sociedade (HARVEY, 2001, p. 30).
26
1.2 História e Geografia na Ciência Moderna: Reflexões Sobre a
Produção dos Saberes Socioespaciais
A investigação da realidade para a reorganização teórica do que se denominou
conhecimento socioespacial é um objetivo-chave das ciências sociais. Inúmeros são os
fatores que influenciam esse processo, que é complexo, dinâmico e permanece em
constante transformação. A necessidade de organizar a aparente desordem com que se
depara na práxis social é uma necessidade intrínseca da condição humana, e coopera para
que os indivíduos estejam em uma assídua procura de padrões e critérios que possam dotá-
los de entendimentos sobre a realidade e, assim, conduzir suas escolhas, sugerindo uma
ideia imaginária de previsibilidade.
A cosmologia gica predominava nas primitivas comunidades humanas, que
imaginavam a natureza como uma extensão de si mesmas. O homem, na luta apenas pela
subsistência, estaria impedido de enxergar o mundo como algo exterior e criava seus mitos
para tentar explicar os fenômenos naturais. Nesse estágio inicial, a natureza não possuía
existência autônoma, os fenômenos naturais físicos e biológicos eram identificados como
parte de uma obra superior impossível de ser compreendida, e os fenômenos sociais
acompanhavam uma “ordem” coletiva, ligada diretamente à sobrevivência.
A natureza estabelece condições às comunidades humanas que são estruturadas
coletivamente, a partir de hierarquias impostas, que lidam com as dificuldades intrínsecas
de sua própria sobrevivência. Nesse contexto, os mitos representam a principal forma de se
explicar os fenômenos.
O mito é um meio através do qual os povos primitivos buscam explicar a
realidade. A primitividade dispensa o conhecimento, tal como concebido na
modernidade pelos parâmetros ou critérios próprios desses outros espaços-
tempos. Entretanto, mais do que um meio de interpretação, os povos primitivos
têm, no mito, um instrumento de viabilização de sua existência e sua situação no
mundo (HISSA, 2002, p. 49).
As primeiras rupturas com a cosmologia mágica surgiram na Grécia antiga, no
século V a.C., e se relacionavam com a “instauração” da democracia grega, na qual o
antigo rei, dotado de contatos com o sobrenatural, como consequência social de sua
autoridade, lugar ao filósofo, que, mesmo enquanto cidadão deverá fundamentar
racionalmente toda e qualquer ação na pólis.
27
Nesse momento, abrir-se-ia uma das mais surpreendentes formas de promover a
equidade, mesmo que restrita aos cidadãos da pólis grega. O pensamento de Aristóteles
marca a nova concepção de natureza, construindo um dos principais fundamentos da
filosofia ocidental, ao atribuir certa autonomia para os seres naturais e valorizar a
experiência humana no mundo concreto, como principal elemento para o desenvolvimento
lógico, avançando em relação ao modelo de “mundo das ideias de Platão. Essa
objetividade progride em relação ao antigo animismo, embora no mundo grego ainda
restem traços da visão mágica de sociedades anteriores (Matos, 2008).
A abordagem científica como linguagem universal de interpretação do real não foi
introduzida, como poderia se pensar, com o capitalismo industrial, mas remete a esse
passado ocidental, que remonta à história antiga da Grécia. Para Macfarlane (1989), com a
retomada dos clássicos, entre os séculos XIV a XVIII, observa-se que o mundo passou por
diversas revoluções, sejam elas industriais, científicas, agrícolas e políticas, as quais
contribuíram significativamente para modificar a maneira de se perceber e experimentar o
mundo. Os indivíduos saíram gradualmente de uma cosmologia mágica e religiosa para
uma mentalidade científica, capitalista e moderna, o que selou a separação entre homem e
a natureza. Matos (2008) assume que a história da ciência percorreria etapas anteriores às
interpretações mais recentes da modernidade, que tratam da ideia de interação constante
entre homem e natureza.
A relação do homem com o mundo exterior pode ser vista sob três grandes fases.
A primeira, a animista, recuaria à pré-história, a segunda se reportaria às
mudanças iniciadas com os gregos e aprofundadas com o renascimento e
iluminismo, a terceira, mais emergente, resgataria a natureza ao lado do homem,
ambos sinergicamente atados e em interação (MATOS, 2008, p. 29).
O ser humano, a fim de compreender a natureza e seus fenômenos, valeu-se da
necessidade de constituir significados aos elementos naturais, para tentar alcançar uma
sensação de domínio e estabilidade. Essa percepção de controle e previsibilidade foi
indispensável para a consolidação de uma sociedade dita moderna, na qual o sistema
capitalista prosperou como doutrina econômica predominante. Dessa forma, a definição de
conceitos e valores se coloca como uma ação ligada diretamente às relações de poder.
Inventar significados para a natureza é uma condição externa a ela mesma, uma vez que
esses significados serão sempre formados a partir de uma visão exterior, condicionada por
uma aspiração de ampliar domínios e promover o controle. Decifrar a natureza revela-se
como uma tentativa de estabelecer limites aos seus desdobramentos espontâneos. Hissa
28
afirma que "O limite é, pois, um conceito inventado para dar significado às coisas, para
facilitar a compreensão do que pode ser interpretado de diversas maneiras" (HISSA,
2002, p. 21).
O racionalismo, o humanismo e o individualismo confirmaram o homem em seu
papel na transformação da natureza. Dessa forma, o mundo passou a ser o palco das
experiências humanas. Pretendendo conquistar vantagens econômicas, os indivíduos se
propuseram a desvendar os mistérios da natureza, para melhor controlá-la e, utilizando as
premissas do racionalismo, incluíram os acontecimentos do cotidiano como elementos
possíveis de uma explicação racional e, portanto, de controle. Para Burckhardt (1991),
Pelo seu lado, o humanista é colocado em posição de alargar o mais possível o
círculo dos seus conhecimentos, visto que o seu saber filológico não deve servir
apenas como hoje, para o conhecimento objectivo da idade clássica, mas deve
encontrar a sua aplicação na vida de todos os dias (BURCKHARDT, 1991, p.
116).
Harvey (2001), a propósito, afirma que as modificações introduzidas nas ciências
originárias do Iluminismo buscavam romper com um passado teocêntrico, baseando-se na
criatividade humana como elemento fundamental para valorização de uma racionalidade,
que confirmou o papel do homem como principal agente de transformação da realidade.
Estavam lançadas as bases estruturais que contribuiriam para uma radical
modificação no tratamento do cotidiano da humanidade e das relações de poder que
envolviam a construção dos saberes. O indivíduo, gradativamente percebe-se como ser
localizado no tempo e no espaço, ciente, cada vez mais, de seu papel de agente
modificador da realidade, e a ciência positivista instala-se como ferramental indispensável
à realização dessa conquista.
A criação de uma ética reguladora implica no desenvolvimento de uma nova
referência que possa, progressivamente, orientar o uso do poder de
transformação da realidade segundo valores que ultrapassam os da Modernidade
(HISSA, 2002, p. 54).
À medida que se torna um instrumento de poder, a construção de conhecimento
científico também restringe severamente os seus protagonistas e suas fontes. O
distanciamento do senso comum desvincula a ciência de uma prática coletiva, usual no
homem comum, e passa a ser premissa exclusiva para um grupo seleto de letrados que,
imersos em suas especialidades, ditavam as regras para reger a orquestra do conhecimento.
29
Tais práticas afastavam o cientista do ser humano, a razão da arte, a objetividade da
criatividade, os modelos matemáticos do mundo real.
A essa concepção de uma sabedoria de elite, mas coletiva, masculina e branca
outros opunham a imagem de um individualismo sem peias de grandes
pensadores, os grandes benfeitores da humanidade, que, por intermédio de suas
lutas e esforços singulares, levariam a razão a civilização do nada ao ponto da
verdadeira emancipação (HARVEY, 2001, p. 24).
Por detrás de todo esse movimento de reorganização teórica, uma nova sociedade
ocidental se consolidava e, apoiada pelos avanços do racionalismo, solidificava uma nova
ética, novos valores e novos princípios, buscando uma estabilidade necessária ao seu
próprio desenvolvimento.
O paradigma disciplinar proposto pelo Positivismo contribuiu para fortalecer o
desejo de autonomia e autossuficiência dos saberes. Contudo, esse desejo, em certa
medida, revelou-se apenas como uma prisão, limitando, direcionando e padronizando a
produção do conhecimento. A separação entre ciência e senso comum foi favorecida pela
modelagem de uma nova sociedade, também pautada pelos valores da objetividade e da
razão. Nessa conjuntura, apenas um grupo seleto de indivíduos, os ditos “cientistas”,
teriam o privilégio de validar as regras, conceitos e modelos para a explicação do mundo,
apoiados na crença de que a racionalidade e a objetividade seriam os principais pilares para
a sustentação dos saberes. A ciência moderna criaria assim seus próprios “deuses”
senhores do saber — e uma nova forma de poder, que surge com a modernidade.
A busca pela objetividade dos conceitos manteve-se focada na apuração de técnicas
de controle, em detrimento da sua capacidade de transformação social. A ciência,
interpretada dessa maneira, traduz uma visão de cerceamento da liberdade e de
encapsulamento da criatividade, reduzindo a possibilidade de criação do novo e da
transgressão, que é indispensável para o processo de construção do conhecimento. A
procura de uma Verdade Universal para os acontecimentos, muitas vezes defendida pela
ciência moderna, manifesta mais claramente uma tentativa de falsear a realidade, na
intenção de minimizar os anseios de uma sociedade capitalista desejosa de estabilidade e
previsibilidade.
O sistema apresenta-se, portanto, como uma síntese acabada da realização da
história mediante a crença absoluta na técnica. A tecnologia passou a dominar
não apenas o comércio, as cidades, a vida cotidiana e a intimidade do homem,
mas foi além: transformou-se na linguagem do mundo contemporâneo, nossa
mediação universal. Como sistema universal, a História da mesma forma que
as ciências, as artes e a política — é vista da mesma perspectiva, isto é, por meio
de um conjunto de regras de conhecimento, geralmente quantificados, que valem
30
de forma indiferenciada para todas as dimensões do real. Isto é a constituição do
mundo sem perspectivas (NOVAES, 1994, p. 15).
Com a pretensão de contemplar o conhecimento objetivo disponível no mundo, a
ciência moderna, segmentada em várias disciplinas, lança mão de definições e conceitos,
para estabelecer um arcabouço teórico capaz de compreender e delimitar os elementos da
realidade, que adquirem um significado funcional dentro da sociedade e, desse modo,
servem de padrão para o processo de criação dos saberes. As diversas disciplinas ligadas à
análise da realidade social passavam, nesse momento, a produzir conhecimento
especializado sobre determinada característica da sociedade ou da natureza, evitando uma
discussão mais aprofundada sobre a sua própria função, método ou objeto de estudo.
E pensou-se então que a ciência podia existir se voltasse às costas para o
mundo dos sentidos, o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e percebemos;
o mundo sensorial é um mundo ilusório, ao passo que o mundo real seria um
mundo de propriedades matemáticas que podem ser descobertas pelo intelecto
e que estão em contradição com o testemunho dos sentidos (HISSA, 2002, p.
55).
Para Hissa (2002), essa busca incondicional da objetividade é um dos principais
paradoxos da ciência moderna. A tentativa subliminar de esvaziar a ciência de sua
componente criativa é, na verdade, uma ação que inibe a própria construção do
conhecimento científico. A objetividade idealizada pelos fundadores da ciência moderna
não passa de uma utopia, de um atalho que não conduz às realizações, aos lugares
prometidos. A imaginação humana não pode ser contida em regras e modelos universais e
a criação do novo acontece com a transgressão das normas e com a quebra de
paradigmas. Os espaços sociais são como instâncias mais abertas à criatividade e ação do
homem.
É o que constitui o paradoxo e a contradição, porque limita o que não pode ser
limitado; e o que é criado para ser ilimitado é contido pelas fronteiras: o
pensamento clássico, convencional, normatizado. Pensamento reproduzido pela
ciência moderna: condenado ao limite, às regras rígidas, aos modelos, às
estratégias normativas, à imponderável fronteira da objetividade (HISSA, 2002,
p. 63).
A atual crise da modernidade, nesse ponto, atinge diretamente a produção do
conhecimento científico ao criticar a fórmula como as disciplinas têm optado pela
interpretação do real. Concorda-se com Hissa (2002) quando afirma que a crença na
objetividade criou interpretações alheias ao próprio conhecimento, tais como: não
ciência sem objeto exclusivo; existem objetos e métodos exclusivos; saberes exclusivos
31
e monopolizados; ciência é limite interdisciplinar e especializado. É essa nova visão sobre
a construção dos saberes que está acompanhando a crítica pós-moderna, que favorece uma
ação mais transdisciplinar no trato dos ramos do conhecimento.
Esse projeto de uma “ciência nova”, a definir-se sob o rótulo da Pós-
Modernidade, inclui, portanto, movimentos que vão desde a reflexão sobre as
distancias falaciosas entre o eu e o mundo, entre o pesquisador e o que está em
observação, entre o saber e o fazer, entre disciplinas aparentemente autônomas.
No entanto, o movimento transdisciplinar — refletindo a abertura da ciência para
o social, o ético e o estático não deve ser compreendido como uma realidade
já posta (HISSA, 2002, p.107).
Harvey (2001) aponta para o paradoxo da ciência moderna quando questiona quais
seriam os limites desse modo de pensar objetivo e como tais procedimentos poderiam
analisar os movimentos de mudança social, considerando que os instrumentos
metodológicos utilizados na interpretação do real são insuficientes para abranger toda a
variedade dos processos da dinâmica social.
Aprendemos nossos modos de pensar e de conceitualizar no contato ativo com as
espacializações da palavra escrita, no estudo e na produção de mapas, gráficos,
diagramas, fotografias, modelos, quadros, símbolos matemáticos e assim por
diante. Até que ponto são adequados esses modos de pensamento e esses
conceitos diante do fluxo da experiência humana e dos potentes processos de
mudança social? (HARVEY, 2001 p. 191).
Novaes confirma a afirmação de Harvey ao admitir que apesar de o mundo viver
um momento prodigioso da técnica, com transformações profundas nas noções de espaço e
tempo, a política do espírito não acompanhou esse alargamento do mundo: pelo contrário,
vê-se dominar no homem o encolhimento das fronteiras éticas e o esquecimento de
algumas ideias essenciais, que fundaram o humanismo. A preocupação com a política, com
a democracia, com a transformação social, são termos secundários dentro dos processos de
construção do conhecimento moderno.
A própria sensação de ruptura da ciência com o senso comum contribuiu para
aumentar a distância entre os ditos cientistas e os outros homens, fazendo com que a
ciência moderna se caracterizasse pela construção de leis. Utilizar a metodologia científica
era dotar-se de um “método próprio”, sistemático, representante do rigor e da objetividade.
As demarcações mais evidentes dos limites entre as disciplinas, já distanciadas do senso
comum e adequada às formas e imagens sugeridas pela modernidade, tornariam-se os
pilares da ciência moderna. Corrêa (1987), diante da complexidade da realidade social,
32
reconhece a preocupação em demarcar as diferentes áreas da ciências, no entanto, critica a
ideia positivista de divisão radical entre os saberes.
Dada a dificuldade de se estudar a totalidade social em sua abrangência, verifica-
se uma divisão do saber, originando diferentes ramos. É preciso, no entanto,
deixar claro que não estamos falando de uma compartimentação positivista, onde
cada ciência tem seu próprio objeto, achando-se separada das outras. No caso, as
ramificações tem um objeto comum, a sociedade, analisada à luz de uma mesma
teoria (CORRÊA, 1987, p. 52).
Essa busca de regularidade, mesmo que utilizando as descobertas de cada ramo do
conhecimento social, não consegue reduzir a práxis social à homogeneidade sugerida pelo
método científico positivista. A dinâmica social ultrapassa as regras estabelecidas, e requer
maior esforço intelectual para sua interpretação. O saber científico, imaginado para
interpretar o mundo, ao ser concebido dentro das regras da ciência moderna, acaba por se
tornar algo segregado e restritivo, e é essa característica um dos principais alvos das
críticas pós-modernas à forma de se fazer ciência.
O ambiente técnico-científico, criado pelas sociedades modernas, impôs limites à
linguagem, à expressão e à comunicação do conhecimento. O saber científico é,
assim, mitificado. Não circula como deveria. A mitificação do conhecimento
através da linguagem apresenta-se como um ritual, inacessível aos não-membros
da comunidade. O texto da ciência moderna pretende circunscrever-se a um
universo lógico, cuja pretensão é ser exclusivamente racional. Assim, restringe-
se a si próprio (HISSA, 2002, p.150).
Acredita-se que existam formas mais engajadas de se fazer ciência e obter
instrumentos conceituais favoráveis à realização de discussões sociais, baseadas em
princípios humanistas, que levariam a ciência a retomar seu papel mais próximo da
política. Pensar politicamente a ciência significa acreditar que seu poder de transformação
social não pode estar restrito a pequenos grupos de notáveis, que tenham o aval para a
produção de conhecimento. Mais do que isso, existe a necessidade de que o cidadão
comum participe da construção do saber, principalmente, porque são as ações cotidianas
que nutrem toda a sua experiência social.
É por acreditar que o paradigma disciplinar não pode limitar a criação dos saberes
que Hissa (2002) defende a democratização do conhecimento, incentivado por uma
abordagem mais transdisciplinar. Dessa forma, a transdiciplinalidade ultrapassaria até
mesmo os limites acadêmicos, tornando a ciência algo ligado à construção do cotidiano,
estimulando as práticas democráticas que deveriam acompanhar o saber científico.
33
Não apenas os cientistas deveriam realizar as pesquisas, especialmente em
ciência social, mas também e de modo amplo, os habitantes que vivem e
constroem o cotidiano dos lugares. Assim sendo, a transdisciplinalidade pode ser
definida não somente como um movimento de apropriação, por uma disciplina,
de discursos referentes a áreas afins de conhecimento, mas também como um
movimento de apropriação de discursos e práticas, pela sociedade. Trata-se,
nesses termos, de uma aproximação simultânea entre os diversos campos do
saber, e entre eles e a sociedade; ou, ainda, de simultânea ruptura das fronteiras
disciplinares e dos limites entre ciência e sociedade (HISSA, 2002, p. 107).
Produzir conhecimento é, portanto, interpretar o universo em diversas de suas
dimensões, sejam elas econômicas, sociais, políticas ou ambientais; é permitir que se
definam novos paradigmas para decifrar o mundo; é interpretar em liberdade e
responsabilidade os conceitos que constroem a estrutura e a dinâmica das coisas; é
entender que não existem regras universais e a multiplicidade é que torna a vida social
possível; é buscar o entendimento dos fenômenos a partir da utilização de referências e de
critérios teóricos metodológicos, que não excluam o sujeito da transformação que é o
próprio ser humano, não só o cientista.
O momento atual é uma oportunidade ímpar para a ciência rediscutir seus modelos
conceituais. Apesar de o racionalismo, a objetividade e o individualismo terem
reafirmado o homem como elemento fundamental na produção dos saberes, a crise da
modernidade põe em xeque a crença absoluta na técnica e no papel exclusivo do cientista
como construtor do saber. O mais imediato reflexo desse movimento é justamente a crítica
à segmentação disciplinar e ao método científico positivista. Acredita-se que tais
questionamentos são motivados pela noção de que não existem regras universais
sacralizadas e a multiplicidade é que torna a vida social possível.
O movimento transdiciplinar, além de rediscutir o papel das disciplinas, suas
fronteiras e limites, traz também a crítica à forma de se fazer ciência, que acaba por afastar
o cidadão comum da construção do saber. Mesmo cientes de que o método científico é
linguagem indispensável à produção de conhecimento, entende-se que tal conquista não
deve substituir a criatividade e a imaginação humana como elementos imprescindíveis na
compreensão da realidade social. O debate político e o potencial de transformação
configuram-se como pilares da produção do saber, retomando os ideais humanistas que
estiveram na origem das disciplinas modernas.
Diante disso, e preparando o caminho teórico para desvendar o principal objeto de
estudo que é o espaço social, adiante vai se apresentar e discutir o sistema conceitual que
será utilizado para lidar metodologicamente com as duas principais disciplinas que
34
nortearam esta pesquisa: História e Geografia. Apesar de serem áreas de conhecimento
ainda fortemente vinculadas ao ferramental positivista, possuem atualmente novas
nuances, que possibilitam um tratamento diferenciado e mais libertário, favorecendo a
inclusão de novos sujeitos, novos conceitos, novas práticas, e novos desafios.
35
CAPÍTULO 2
TEMPO E ESPAÇO, GEOGRAFIA E HISTÓRIA
36
2.1 Sobre o Tempo: a História e a Construção de sua Metodologia de
Pesquisa
Compreender os indivíduos, as relações que concorrem para a formação da
sociedade e os desdobramentos dessas ações sobre o espaço e no tempo são objetos de
pesquisa das disciplinas Geografia e História. Detentoras da missão de tentar organizar o
conhecimento socioespacial, analisando a ação dos homens respectivamente a priori sobre
o espaço e no tempo, essas áreas de conhecimento utilizam-se de uma linguagem técnico-
científica, para a construção de seus saberes. A despeito de se debruçar muitas vezes sobre
os mesmos objetos, História e Geografia determinam e são determinadas por fronteiras e
limites, às vezes, claros; muitas vezes, imperceptíveis.
Pelo prisma da ciência convencional, a existência de gidos limites entre as
matérias foi algo estruturalmente decisivo para a definição das competências de cada uma
das áreas de conhecimento. Tais definições, supostamente foram indispensáveis para
determinar os objetos, os objetivos e as metodologias que cada disciplina utilizou na sua
busca pela interpretação da realidade.
A crítica à ciência moderna, mesmo necessária, pode conduzir a uma armadilha que
merece alguma atenção. Mesmo acreditando-se que a rigidez da metodologia científica
deva ser revista, muitos dos métodos usados neste trabalho foram concebidos e
desenvolvidos dentro das concepções tradicionais de ciência. Em um primeiro momento,
tal opção pode mostrar-se incoerente. Entretanto, o principal objetivo não é se desfazer por
completo das metodologias da modernidade, ou mesmo propor um modelo isento e
completamente inédito para a pesquisa científica. A intenção, ao tratar da estrutura atual da
construção dos saberes, é justamente somar às metodologias tradicionais os novos
paradigmas introduzidos com a crítica pós-moderna.
Os modelos e conceitos estruturados pelo Positivismo não podem ser
desconsiderados ao se pensar em metodologia científica. Fazer ciência hoje é uma reflexão
que se consolidou como atividade interpretativa do real, graças a esse esforço conceitual de
desenvolvimento de critérios objetivos, que minimamente caracterizam a Ciência
Moderna. Ao optar pela utilização de parte desse repertório metodológico, evidencia-se
que eles são, no momento, indispensáveis à pesquisa científica.
Por outro lado, a crítica que está sendo apresentada, refere-se ao acirramento desses
critérios objetivos que, levados ao extremo, invalidam a inclusão de outros elementos que
37
são de extrema importância para a análise social, muitas vezes, negligenciados dentro das
perspectivas da ciência tradicional.
Tentar-se-á utilizar as reflexões acerca das disciplinas Geografia e História, para
sugerir uma metodologia que seja coerente com as exigências atuais da ciência e,
principalmente, que seja eficiente como orientação, diante dos objetos e objetivos da
pesquisa. Para tanto, convém iniciar abordando dois conceitos que são cruciais, e que
perpassam ideias de tempo e de espaço.
O espaço e o tempo são categorias básicas da existência humana. E, no entanto,
raramente discutimos o seu sentido; tendemos a tê-los por certos e lhes damos
atribuições do senso comum ou auto-evidentes. Registramos a passagem do
tempo em segundos, minutos, horas, dias meses, anos, décadas, séculos e eras,
como se tudo tivesse o seu lugar numa única escala temporal objetiva. Embora o
tempo na física seja um conceito difícil e objeto de contendas, não costumamos
deixar que isso interfira no nosso sentido comum do tempo, em torno do qual
organizamos rotinas diárias. Reconhecemos, é verdade, que os nossos processos
e percepções mentais podem nos pregar peças, fazer segundos parecerem anos-
luz ou horas agradáveis passarem com tanta rapidez que mal nos damos conta.
Também podemos aprender a apreciar o fato de diferentes sociedades (ou mesmo
diferentes subgrupos) cultivarem sentidos de tempo bem distintos (HARVEY,
2001, p.187).
Não há como discordar de Harvey, quando assegura que
A história dos conceitos de tempo, espaço e tempo-espaço na física tem sido
marcadas, na verdade, por fortes rupturas e reconstruções epistemológicas. A
conclusão a que deveríamos chegar é simplesmente de que nem o tempo nem o
espaço podem ter atribuídos significados objetivos sem se levar em conta os
processos materiais e que somente pela investigação destes podemos
fundamentar de maneira adequada os nossos conceitos daqueles (HARVEY,
2001, p.189).
Complementando a afirmativa de Harvey, Soja introduz um terceiro elemento na
análise dos conceitos de tempo e espaço na modernidade, que se torna fundamental para
compreender esses termos dentro da ideia de ciência social, ou seja, o próprio ser humano.
Como tal, a experiência da modernidade capta uma ampla mescla de
sensibilidades, que reflete os sentidos específicos e mutáveis das três dimensões
mais básicas e formadoras da existência humana: o espaço; o tempo e o ser
(SOJA, 1993, p. 34).
Sobre o estudo do tempo, portanto, convergem os desafios relacionados às
mudanças e permanências no vivido dos homens. Independentemente da escala temporal,
humana ou geológica, o tempo nunca deixa de operar transformações. Localizar o homem
em seu tempo é o primeiro passo para trilhar o caminho do conhecimento socioespacial.
38
Coube à História a missão de priorizar o estudo do homem no tempo, e de captar as
diversas temporalidades que subsistem em um único momento. Como disciplina, a História
difere das demais ciências por se ater ao conhecimento do homem no tempo, reafirmando a
máxima de que o homem se expressa no tempo
6
. Todas as ações da vida humana operam
em um determinado tempo e, portanto, não existe um indivíduo atemporal. Entretanto, o
historiador não pode, em absoluto, observar os fatos que estuda, apenas por meio de
análises de épocas pretéritas, através de testemunhos, registros e documentos. A partir
disso, pode-se afirmar que o estudo do passado é indireto e, por conseguinte, realizado a
partir de vestígios. Apesar de os fatos ocorridos no passado ser definitivamente imutáveis,
o conhecimento que pode ser gerado a partir da análise desses fatos é progressivo e
continuadamente se transforma e se multiplica.
O passado é por definição, um dado que coisa alguma pode modificar. Mas o
conhecimento do passado é coisa em progresso, que ininterruptamente se
transforma e se aperfeiçoa (BLOCH, 1976, p. 73).
O conhecimento histórico, muito mais do que uma busca pela reconstituição
cronológica linear dos fatos, procura reforçar a figura de uma história viva, que apesar de
construída a partir de tempos idos, ainda consegue, no presente, identificar continuidades,
rupturas e influenciar a análise da práxis social.
A História é uma ciência que se propõe a estudar as relações entre os homens e os
diversos elementos que o cercam, tomando como guia a marca da temporalidade, assim
sendo, é um estudo efetivamente realizado, que usa como base os acontecimentos do
passado. Esse passado, enquanto presente, não estava pré-determinado a se tornar o mundo
que se conhece hoje. Apenas sabe-se que o passado se desenrolou no atual presente,
simplesmente por viver dias posteriores aos seus acontecimentos. Os dias atuais não estão
definidos quando se olha para o passado e, da mesma forma, não se pode acreditar na
existência de um futuro pré-estabelecido. Ao contrário, o presente está à mercê de várias
outras possibilidades, que podem determinar diversos futuros possíveis. Logo, inúmeras
foram as possibilidades que existiram no passado, que poderiam ter transformado a sua
constituição e, dessa maneira, modificado o que hoje se conhece como presente. A
pesquisa histórica não pode se limitar aos fatos que realmente ocorreram e que
determinaram o presente. Muito mais do que isso, o conhecimento histórico tenta
estabelecer as relações entre as possibilidades existentes no passado, e o porquê de uma ou
6
Definição utilizada por March Bloch (1997): “A História é o estudo do homem no Tempo”.
39
outra ter sido levada a cabo em detrimento das demais, definindo o fato histórico
identificado no presente. A História irá se preocupar muito mais com o ambiente da
produção dos fatos, do que, simplesmente, em determinar as suas causas aparentes.
A História não é, pois, a passagem de um amontoado de fatos desordenados a
idéias abstratas atemporais. Como trabalho de pensamento, ela é a retomada de
operações culturais começadas antes de nós, seguidas de múltiplas maneiras, e
que nós "reanimamos" ou ‘reativamos’ a partir do nosso presente (NOVAES,
1994, p. 11).
Mesmo que o historiador consiga trabalhar com um elevado número de fatos que
foram importantes na transformação do passado, o conhecimento histórico estará sempre
trabalhando com a dimensão do possível, pois determinar na totalidade todas as relações
ocorridas no passado, mesmo depois de se conhecer o seu desenrolar, é trabalho
praticamente impossível.
A História trabalha sempre com a ideia de possibilidade: com a criação de hipóteses
para uma explicação racional do passado. Entretanto, por melhor que seja essa construção,
é impossível revelar em plenitude o que realmente aconteceu. Cada nova teoria é
verdadeiramente uma possibilidade que, para traduzir uma explicação possível para o real,
deve ser elaborada, baseando-se nos vestígios disponíveis, no contexto histórico
investigado, e no diálogo constante entre as teorias existentes e as novas evidências.
O ofício do historiador não se resume a catalogar e descrever os fatos ocorridos no
passado. Muito mais do que isso, o conhecimento histórico se propõe a compreender os
fatos ocorridos e assim entender como o passado produziu e estabeleceu as relações entre
os seus indivíduos, a sociedade e o ambiente. O fato histórico passa a ser um recorte do
historiador, que é protagonista, ao delimitar as fontes e os métodos que deverão ser
utilizados na sua construção teórica. A interpretação dos vestígios torna-se, então, uma
atividade subjetiva, baseada no fato real e na experiência do pesquisador.
A síntese histórica não é mais do que essa operação de enchimento; chamá-la-
emos retrodicção, pedindo a palavra emprestada a essa teoria do conhecimento
lacunar que é a teoria das probabilidades. predição quando se considera um
acontecimento no futuro: quantas oportunidades tenho ou tinha eu de ter uma
mão de ases no poker? Os problemas de retrodicção são pelo contrário
problemas de probabilidade das causas, ou melhor dizendo, de probabilidades
das hipóteses: tendo um acontecimento já acontecido, qual a melhor explicação?
(VEYNE, 1983, p. 27).
O ofício do historiador é fundamentado principalmente na relação dos fatos com o
tempo, sendo assim, é essencialmente necessário desenvolver noções de temporalidade,
40
capazes de abstrair uma compreensão do passado. A História pretende analisar o
movimento social o vivido dos homens e nem sempre essas relações sociais estão
determinadas por uma cronologia única e linear, isenta da análise crítica. É importante
considerar que as causalidades estabelecidas pelo conhecimento histórico são geralmente
definidas a posteriori, ou seja, as relações entre os fatos e os demais aspectos ocorridos no
passado são determinados quando os fenômenos efetivamente ocorreram. Devemos
considerar, então, que o passado pode ser explicado se for possível compreender as
redes de causalidades que revelam os diferentes elementos constituintes desse passado.
O historiador que não quer, ainda que movido por um sentimento de charitas
pelos mortos, tudo resumir em uma catalogação dos tempos pretéritos, mas se
propõe avançar colhendo o sentido das intenções que enformaram a trama social
no interior daqueles sistemas, deverá conviver com volições, atos expressivos,
atos cognitivos, produções simbólicas, em suma, significados e valores que
constituem o teor do culto e da cultura (BOSSI, 1994, p. 26).
As primeiras reflexões a serem feitas sobre o tempo devem ter em conta os recortes
temporais como construções particulares de cada sociedade, muitas vezes, limitadas a seu
próprio contexto. Além disso, essas concepções não são homogêneas para todas as análises
das ciências humanas, pois dependem do foco e das relações de poder que definem os fatos
a serem selecionados, para a construção das diversas temporalidades que subsistem
simultaneamente em um mesmo recorte temporal.
Visto dessa maneira, o passado pode ser reflexo de uma mentalidade coletiva, ou da
indução de um poder vigente. Ao analisar a psicologia infantil, Le Goff (1984), compara
metaforicamente a relação da memória individual com a absorção da memória coletiva. O
autor atribui a descoberta da noção de tempo pela criança como a sua liberdade em relação
ao presente, conferindo-lhe minimamente o poder de antecipar o futuro em função de
regularidades conscientes percebidas no passado. Contudo, essa liberdade, na História, está
delimitada pela tradição e a indução de uma memória coletiva simultânea a uma memória
individual.
Com efeito, a grande diferença é que a criança não obstante as pressões do
ambiente externo forma em grande parte a sua memória pessoal, enquanto
que a memória social histórica recebe os seus dados da tradição e do ensino,
aproximando-se porém do passado colectivo (LE GOFF, 1984, p. 295).
A definição do que se entende como presente não pode se limitar à duração de um
instante, mas deve ser compreendida tendo em vista todo um projeto ideológico que
ultrapassa a simples noção de cronologia temporal. Ao se considerar a noção de presente,
41
faz-se necessário analisar em conjunto toda a complexidade do passado, que contribuiu
para sua constituição. O presente é fundado também pela memória individual e a sua
interação com a memória coletiva, que pode revelar as características de uma dada
sociedade, utilizando-se de fatos efetivamente ocorridos no passado e que fazem parte de
um imaginário coletivo, que influenciou significativamente a formação das percepções
individuais.
A memória articula-se formalmente e duradouramente na vida social mediante a
linguagem. Pela memória as pessoas que se ausentaram fazem-se presentes. Com
o passar das gerações e das estações esse processo “cai” no inconsciente
lingüístico, reaflorando sempre que se faz uso da palavra que evoca e invoca. É a
linguagem que permite conservar e reavivar a imagem que cada geração tem das
anteriores. Memória e palavra, no fundo inseparáveis, são condição de
possibilidade do tempo reversível (BOSSI, 1994, p. 28).
Muitas vezes, a periodização histórica tende a privilegiar as guerras, as revoluções,
os grandes heróis, tomando para si uma história simplesmente factual. Entretanto, a
distinção entre passado e presente deve ultrapassar os limites da memória coletiva. Muito
mais do que considerar os fatos de uma história oficial, a relação passado/presente/futuro é
capaz de nos revelar uma história muito mais rica e abrangente, levantando novos
personagens, e trabalhando sempre com a ideia de possibilidade.
Algumas sociedades têm como referência a ideia de atemporalidade, ou seja, seus
mitos são criados em épocas de impossível determinação temporal. Outras, porém,
atribuem ao tempo uma ordenação cíclica, ou seja, os fatos sempre irão ocorrer de formas
semelhantes e contribuirão para um retorno às origens. Contudo, essa informação de que
há repetições, ou mesmo lições do passado, só tem sentido em situações não históricas.
A construção dos conceitos de passado, presente e futuro como se tem hoje não
foram espontâneas, mas os historiadores cada vez mais se esforçam para estabelecer novas
relações. Principalmente durante a segunda metade do século XX, a História começa a
assumir formas reacionárias de ligação com o passado, caracterizadas por certa nostalgia.
O futuro, por sua vez, passou a ser encarado com temor ou esperança. March Bloch propôs
como método ao historiador uma análise do duplo movimento, ou seja, compreender o
passado pelo presente e o presente pelo passado.
A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas é
talvez igualmente inútil esgotar-se a compreender o passado, se nada se souber
do presente (BLOCH, 1976, p. 73).
42
Para a historiografia contemporânea, a periodização, ou seja, a determinação crítica
e analítica da datação dos fatos, assume papel de vital importância para a compreensão do
passado e do presente. Entretanto, datar um fenômeno não significa simplesmente dotá-lo
de uma referência no âmbito do calendário. Significa, sim, conseguir enxergar as relações
que esses fatos produziram muito além dos seus limites cronológicos naturais.
É indiscutível que o mundo natural nos impõe uma relação temporal, ligada aos
fenômenos astronômicos, o que chamamos de cronologia natural. Além disso, as
sociedades humanas, para tentar se relacionar com essa cronologia natural, construíram
uma noção de calendário, ou seja, determinaram os seus ciclos e as suas divisões. Ainda
assim, mesmo o calendário não é único e dentre as variadas sociedades é fruto de várias
construções coletivas.
Ao utilizar apenas o rigor do calendário para guiar o estudo dos fatos históricos,
interpõe-se uma noção de tempo aprisionado da perspectiva da curta duração, ordenado e
identificado com a História não-analítica. A periodização torna-se vazia, insensível às
mudanças na duração do tempo e alheia à dinâmica da História.
Narrar a história de um povo a partir apenas do tempo presente, tempo
fragmentado, direcionado “instante fugido tido como único tempo real”, é negar
a articulação de épocas e situações diferentes, o simultâneo, o tempo da história e
o pensamento do tempo. Ora, é essa articulação que permite diferenciar condutas
múltiplas no tempo e reconhecer que as práticas políticas e culturais,
consideradas estranhas e indesejáveis em determinado momento, sejam vistas de
maneira diferente em outro. Esquecer o passado é negar toda efetiva experiência
de vida. Negar o futuro é abolir a possibilidade do novo a cada instante. Mais
ainda, as idéias de justiça, liberdade, alteridade, pensamento tornam-se
abstrações, vazias no espaço e no tempo, a partir do momento, em que qualquer
ação se sabe “eternamente feita e absolutamente irreparável” (NOVAES,
1994, p. 9).
Para o historiador, todas as explicações de um fato não podem estar contidas
somente na referência ao calendário. Muito mais do que isso, cabe a ele desvendar as
relações dos fatos com os períodos que o antecederam e o sucederam. A datação
consciente marca um processo histórico: não é a data em si, mas sim o processo que
explica o acontecimento. O historiador deve construir uma cronologia crítica e estabelecer
uma ordem sensível aos movimentos da História. É interessante utilizar noções de
temporalidade variável, pois a datação com consciência leva à compreensão das mudanças
históricas. Periodizar significa dividir o tempo em uma unidade de análise. Conhecer o
passado, o presente e o futuro está relacionado a essa visão de recortes críticos dos fatos.
São as variadas temporalidades que explicitam a movimentação da História.
43
O anacronismo é o pesadelo do historiador, o pecado capital contra o método, do
qual basta apenas o nome para construir uma acusação infamante, a acusação
em suma de não ser um historiador, que se maneja o tempo e os tempos de
maneira errônea. Assim o historiador em geral evita cuidadosamente importar
noções que sua época de referência supostamente não conheceu, e evita mais
ainda proceder a comparações por princípio indevidas entre duas
conjunturas separadas por séculos. Mas, com isso, o historiador corre
inevitavelmente o risco de ser entravado, impedido de audácia, ao contrário do
antropólogo que, em condições análogas, recorre sem perturbação de consciência
a prática da analogia (LORAUX, 1994, p. 57).
Segundo Bloch (2002), a metodologia de investigação histórica pode ser
realizada pela análise indireta de objetos que constituíram o fato histórico.
Como primeira característica, o conhecimento de todos os factos humanos no
passado, o conhecimento da maior parte deles no presente, tem de ser, segundo a
expressão feliz de François Simiand, um conhecimento por vestígios (BLOCH,
2002, p. 52).
Por definição, como foi dito, a História não pode ter contato direto com os
objetos a que se refere, sendo concebida como um conhecimento indireto, baseado nos
vestígios que sobrevivem no presente. O estudo da História é intermediado por um
elemento essencial dentro de sua existência o vestígio. O conhecimento histórico é,
grosso modo, iniciado quando o historiador transforma um vestígio em um documento
histórico. Mas o que pode ser compreendido como vestígio? Essa resposta, apesar de nem
sempre ter figurado com esse teor, pode ser encontrada em Le Goff (1984, p. 98): "Onde o
homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência está a
história".
Considerando tal argumento, os vestígios que sobreviveram ao tempo e que, de
forma proposital, foram utilizados para a compreensão do passado pela ação do homem, no
caso do historiador, podem se transformar em um documento histórico. Mas na
constituição de um documento histórico ainda vão ser necessários outros cuidados e
desdobramentos, que Thompson (1984) bem exemplifica, ao analisar como algumas cartas
anônimas, enviadas ao editorial de um jornal inglês no século XVIII, se tornaram
documentos históricos importantes para a análise da sociedade naquele momento.
Ao aprofundar na análise da metodologia utilizada por Thompson, ficam evidentes
alguns cuidados que o historiador deve tomar ao efetivamente iniciar uma pesquisa
documental. Vários dos aspectos salientados pelo autor serão de grande importância
quando esta pesquisa se debruçar sobre os vestígios ligados ao objeto de pesquisa. Cabe
44
ressaltar a importância do tratamento das fontes, para obtenção do material mínimo
necessário à análise socioespacial que se pretende fazer.
Ao considerar-se a obra de Thompson, Tradición, Revuelta y Consciencia de
Classe, observa-se que o seu principal objeto de pesquisa são as cartas anônimas enviadas
ao jornal The London Gazzete: Published by Authority, que continham ameaças e
provocações nitidamente favoráveis ao acirramento da disputa de poder entre trabalhadores
e empregadores na cidade de Londres, no início do século XVIII. Utilizando esse contexto
específico, pode-se estabelecer algumas relações importantes entre esta pesquisa específica
e a metodologia histórica que se deseja evidenciar.
Para Thompson, o principal motivo para a análise das cartas anônimas não está
limitado ao conteúdo delas, mas na possibilidade desta ação — o envio de cartas de
ameaça ao jornal — revelar traços do comportamento da sociedade inglesa do século
XVIII, prenunciando situações indispensáveis para se pensar o contexto histórico daquele
momento. Para isso, o autor investiga a relação que essas cartas poderiam ter com o
comportamento da sociedade inglesa daquela época, e as possíveis relações sociais
existentes entre os remetentes e os destinatários das cartas. Para confirmar essa ideia,
verificou-se que as cartas de ameaça só se tornaram objetos de estudo quando a sua
ocorrência atingiu números consideráveis. Se fossem restritos os exemplos dessas cartas, é
provável que elas não tivessem alcançado a mesma repercussão. Logo, não é o fato
histórico a existência de cartas anônimas de ameaça que é a maior preocupação do
autor, mas sim as relações sociais e as prováveis situações que essas cartas poderiam
revelar.
A princípio, o conceito de documento defendido pela historiografia contemporânea,
remete-nos a qualquer tipo de objeto construído pelo toque humano. Todavia, o documento
só se constitui como tal se a proposta inicial do historiador prever a sua utilização e atribuir
a esse vestígio significado capaz de torná-lo uma evidência histórica. As cartas anônimas
analisadas por Thompson foram entendidas como documentos históricos porque, dentro
do estudo proposto pelo autor, elas continham informações de vital importância para
revelar o contexto histórico daquele momento. O que não significa que em outro tipo de
abordagem histórica essas fontes possam ser adotadas com a mesma ênfase.
Os vestígios sobreviventes do passado só serão importantes para o conhecimento
histórico se o historiador, na sua pesquisa, pretender considerá-los como documentos.
que se ponderar também, que na produção do conhecimento histórico o fato será sempre
uma construção entre o objeto (documento) e os recortes que o historiador se propõe a
45
fazer. É impossível que o historiador reúna todos os fatos existentes de certa realidade. Ele
junta uma parcela desses acontecimentos, completada com a própria subjetividade,
experiência e deduções.
Reconstruir um acontecimento, ou antes uma série de acontecimentos, ou uma
situação, ou uma instituição, com base nos documentos, é elaborar uma conduta
de objetividade de tipo próprio, mas irrecusável; pois essa reconstituição supõe
que o documento seja prescrutado, obrigado a falar; que o historiador ao
encontro de seu sentido, arremessando-lhe uma hipótese de trabalho; é essa
pesquisa que simultaneamente eleva-o à dignidade de documento significativo, e
eleva o próprio passado à dignidade de fato histórico (RICOEUR, 1968, p. 26).
O primeiro passo da metodologia de pesquisa utilizada por Thompson consistiu em
determinar quais seriam as suas “fontes primarias” e, definida essa questão, o autor
investigou as limitações e características dessas fontes, procurando conferir a
imparcialidade necessária à identificação de um documento histórico. Thompson
caracteriza o jornal La Gazzete como uma fonte não preocupada exclusivamente com as
cartas anônimas, mas cita os outros assuntos que são de abrangência do jornal e que lhe
conferem credibilidade.
La Gazzete, que salía dos veces a la semana, era, sin duda, la publicación de
más augusta autoridad. Em sus páginas aparecían las proclamaciones de reyes
y consejos privados, disposiciones de la Corte, comunicaciones de
nombriamentos navales y militares, promociones e comisiones, notas officiales
de Whitehall, el Almirantazgo, el War Office, la Fiscalía; listas de bancarrota;
la prórroga o reunión del Parlamento (THOMPSON, 1984, p. 174).
O autor teve a preocupação de revelar todos os fatores que atestam a veracidade da
fonte, cuidando de, dentro do possível, explicitar a sua origem, expor a data da publicação
e, às vezes, até o número do exemplar do jornal em que a carta foi publicada. E mesmo
com esse zelo em relação à veracidade, ele tratou de evidenciar por que algumas cartas
foram publicadas e outras, não, revelando o interesse na escolha da publicação de cartas
com determinadas mensagens, capazes de aumentar o interesse do público no jornal. Tais
cuidados demonstram a atenção especial necessária para a seleção do documento histórico,
pois como sua produção é subjetiva, é indispensável perceber o quão isenta tal fonte pode
se apresentar e quais as mensagens ela pretende divulgar.
Determinadas as fontes primárias, o autor conduziu uma análise quantitativa e
qualitativa das fontes. Muito mais do que determinar a ocorrência e a frequência com que
as cartas eram enviadas e publicadas no La Gazzete, Thompson fez uma separação e uma
comparação entre as diversas cartas, para tentar retirar delas algum tipo, atitude ou
46
tendência identificada nas relações sociais. Nesse esforço, manifesta-se a necessidade de o
documento histórico dialogar com a sociedade que o produziu, para identificar a relação
entre eles e determinar quais fatores possuem maior relevância e autenticidade para a
análise histórica.
Thompson realiza a análise crítica interna ao documento, para verificar o
vocabulário utilizado; o tipo de carga social que a carta poderia possuir; quais as pessoas
envolvidas no descritivo das cartas; quais os tipos de relações que as pessoas citadas nas
cartas poderiam ter com seus remetentes; quais os tipos de sentença a que essas pessoas
estariam submetidas, caso não cumprissem o que lhes fosse determinado, entre outras
variáveis. A partir dessa análise qualitativa, o autor propõe uma discussão sobre quais os
motivos fariam com que o remetente chegasse a enviar uma carta de cunho ameaçador.
Thompson utiliza-se do documento em si mesmo e do diálogo e comparação entre os
documentos, para revelar uma realidade social mascarada, ou não, pelo texto da carta
anônima de ameaça.
É interessante notar que Thompson distribui as suas fontes por uma linha
imaginária do tempo e mapeia a sua localização, analisando esses documentos sempre no
diálogo com os fatos sociais e os acontecimentos que ocorrem na mesma época. Com isso,
o autor pode ter uma noção cronológica da incidência dessas cartas, de modo a ajustá-las
aos diversos períodos estudados.
La producción de éstas era tan habitual (em épocas de escasez y altos precios),
los agravios que se expresan son de tal autenticidad y tan a menudi
acompañados por acciones de regulación de precios o “motín”, y aparecen em
tantos lugares del país, que sería ridículo sugerir que son obra de “locos”
(THOMPSON, 1984, p. 203).
Segundo Josep Fontana (1984), autor do prólogo desse mesmo livro, Thompson
desenvolve a noção de “economia moral”, que se apoia nos conceitos anteriores de “luta de
classes” e “classe social”, acrescentando neles várias outras formas de se observar a cultura
inglesa, na transição para o capitalismo. O autor assume o pensamento de que cada
conceito deveria ser primeiro historicizado, para, então, ser corretamente utilizado no
trabalho do historiador, evitando-se o pecado mortal do anacronismo histórico. Essa nova
ideia seria aproveitada para analisar as formas de protestos utilizadas pela população no
Antigo Regime que, por falta de mecanismos para expressão, se utiliza das cartas anônimas
de ameaça como saída. Thompson vale-se desse sistema de conhecimentos para verificar
47
as transformações ocorridas na sociedade inglesa, não com relação ao trabalho, mas em
todos os aspectos de sua cultura.
Para quienes se ban acostumbrado a identificar la historia marxista com una
elemental aplicación de rmulas de un recetario catequístico, las páginas de
Thompson van a resultar una revelación: la de una historiografia que puede
superar a la académia en cualquer terreno; que va más rica del hombre: del
hombre entero, desde su lucha por la subsistencia hasta las manifestaciones más
elevadas de su cultura (THOMPSON, 1984, p. 11).
Ao tomar como base a obra de Thompson (1984) para servir como referência a uma
metodologia histórica de pesquisa, a intenção foi exemplificar, a partir de uma experiência
bem-sucedida, quais os processos iniciais para a produção de conhecimento histórico,
contribuindo para fornecer elementos para uma análise crítica da sociedade e para
definições iniciais de uma metodologia de pesquisa científica. O cuidado dispensado pelo
autor no tratamento das fontes é condição sine qua non para obter das fontes históricas
elementos capazes de orientar a análise do contexto socioespacial que se pretende realizar.
Principalmente em relação ao tratamento dos vestígios, acredita-se que o método
científico positivista possui seus méritos. Muitos dos procedimentos utilizados por
Thompson dos quais essa pesquisa também irá se valer foram cunhados diante das
orientações de uma mentalidade racional e objetiva. A preocupação com a veracidade, que
pode ser obtida com a análise dos documentos, é procedimento legítimo e não pode ser
desconsiderado, independentemente do contexto teórico em que a pesquisa for concebida.
Esse reconhecimento vem reforçar o que foi dito anteriormente em relação à
metodologia a ser adotada neste projeto, que se propõe a somar vantagens metodológicas,
independentes de sua rotulação teórica.
Outra preocupação importante, que deve orientar uma pesquisa histórica, se
concentra no tratamento das temporalidades distintas, que coexistem dentro de um mesmo
sistema. Essas diferentes relações estabelecidas com o tempo determinam os ritmos dentro
da História. Fernand Braudel é um dos mais qualificados autores quando se trata desse
assunto. Essa questão será tratada mais adiante, quando se discutir a metodologia
geoistórica, que é baseada, principalmente, nas considerações deste autor.
48
2.2 Espaço e Geografia: os Desafios Diante da Crise dos Saberes
O espaço e a própria Geografia são termos que, diante dos desafios da Pós-
Modernidade, estão sendo revistos em suas definições e funções, procurando-se reafirmá-
los dentro de uma teoria de análise espacial crítica e para os estudos sociais
contemporâneos. Durante um longo período o espaço não se inseria nas ciências sociais
como objeto de interesse na pesquisa. Era entendido, como sintetiza Foucault, como
“fixo”, “imóvel”, “não dialético”, e tratado na periferia da metodologia científica. De
acordo com Soja (1993) o espaço geográfico permaneceu à sombra do historicismo,
enquanto objeto de estudo da ciência social. A imaginação geográfica ou espacial
permaneceu obscurecida, periferizada e impotente diante das barreiras impostas às suas
análises da vida social e da teoria dos saberes. O triunfo silencioso do historicismo acabou
por definir as referências históricas dos últimos anos.
As últimas décadas do século XIX, examinadas em retrospectiva, podem ser
vistas como uma era de crescente historicismo e de submersão concomitante do
espaço no pensamento social crítico. (...) Esta ascensão de um historicismo
desespacializante, que agora começa a ser reconhecida e examinada, concluiu
com a segunda modernização do capitalismo e com a instauração de uma era de
oligopólio imperialista e empresarial. Tamanho foi o sucesso do discurso social
crítico, que até mesmo a possibilidade de uma práxis social emancipatória
desapareceu do horizonte por quase um século (SOJA, 1993, p. 11).
A visão e análise crítica de viés espacial tornou-se cada vez mais ausente o que, na
verdade, revelava a perda de seu papel no uso de instrumentalidades e metodologias e
como elemento crucial na estruturação de um discurso político e social espacializado. A
Geografia humana praticamente foi silenciada.
A Geografia se isolou numa estreita ilhazinha própria, construindo um
reservatório de conhecimentos factuais que ocasionalmente eram divulgados
no âmbito público. O marxismo, entrementes, escondeu a imaginação geográfica
num sótão superestrutural, deixando-a acumular poeira (SOJA, 1993, p. 57).
Santos (1997) assume que a ausência do viés espacial da discussão conceitual nas
ciências sociais se deu por uma carência da própria Geografia em traduzir a sua
importância dentro das análises sociais. Claramente, a falta de discussões epistemológicas
sobre os objetos e metodologias geográficos contribuíram para agravar essa situação.
De modo geral, é por falta de uma epistemologia, claramente expressa, que a
própria Geografia tem dificuldade para participar de um debate filosófico e
interdisciplinar. A nosso ver, essa é a razão pela qual especialistas de outras
49
disciplinas, não sabendo claramente o que fazem os geógrafos, renunciam a
incluí-los nos seus próprios debates (SANTOS, 1997, p. 39).
A importância do conceito de espaço na discussão social emergiu com mais força a
partir da década de 1970, quando o espaço passou a ser encarado como elemento essencial
na interpretação das relações sociais. Seu principal defensor foi Henri Lefébvre que,
juntamente com outros nomes importantes como Edward Soja e David Harvey, introduziu
a concepção de espaço como espaço social vivido e receptáculo de múltiplas contradições
espaciais.
Atualmente, a submissão do Espaço ao Tempo, tornou-se uma perspectiva obsoleta,
enquanto cresce à legitimidade de um olhar espacial independente, apoiada em
interpretações capazes de reformular uma nova Geografia humana crítica, sintonizada com
as demandas da Pós-Modernidade. O espaço ganha primazia na análise do ser social e
conflui para uma nova maneira de ver tempo e espaço juntos, livres da rigidez disciplinar e
dos limites impostos ao conhecimento transdiciplinar. Nas palavras de Soja (1993) o ser
social estaria ativamente posicionado no espaço e no tempo, em uma contextualização
simultaneamente histórica e geográfica. É esse relacionamento dialético entre espaço, o
tempo e o ser social que permite transformações mais criativas no tratamento desses entes
diante da modernidade.
Aquilo que Soja chama de Pós-Modernidade introduz novas sensibilidades, que
interferem diretamente na análise das três dimensões básicas de reflexão socioespacial,
formadoras das teorias humanas: o espaço, o tempo e o ser social. Nessa direção, os
debates sobre a História e a Geografia trazem novos limiares dentro de conjunturas da
modernidade.
A associação entre a modernização e a sobrevivência do capitalismo é, segundo
Soja (1993), fundamental para se entender as mudanças sociais e culturais ligadas
diretamente às alterações radicais estampadas nos modos de produção. A modernização
desenvolve-se de forma diferente no tempo e no espaço. Na atualidade, o ritmo acelerado
das transformações tem afetado simultaneamente todas as sociedades capitalistas, o que
nos coloca diante de um patamar único de relação com o espaço.
Esse novo viés histórico-geográfico ultrapassa a simples possibilidade de utilização
da teoria espacial como elemento de análise social, e revela-se uma oportunidade de
reformulação da teoria social, na qual o espaço não será conceituado e representado apenas
em si, mas definirá toda uma gama de relações essenciais, que determinam o próprio
espaço, o tempo, e o ser social, em todos os níveis de abstração (Soja, 1993).
50
O mérito do conceito de formação sócio-espacial, ou simplesmente formação
espacial, reside no fato de se explicar teoricamente que uma sociedade se torna
concreta através de seu espaço, espaço que ela produz e, por outro lado, o espaço
é inteligível através da sociedade. o assim, por que falar em sociedade e
espaço como se fossem coisas separadas que nós reuniríamos a posteriori, mas
sim de formação sócio-espacial (CORRÊA, 1997, p. 25).
O desafio de compreender o espaço ultrapassa, assim, a simples ideia de mapear os
elementos físicos que o compõe. O conceito de espaço inclui variáveis, das quais se pode, a
partir de múltiplos olhares, extrair diversos elementos importantes para desvendar a
realidade social. O espaço mostra-se no plano físico, identificado no relevo, clima, fauna,
flora, e águas. Esses elementos servem de base para a expressão humana, primeiramente
exposta na ocupação do solo, na absorção dos territórios, na formação das sociedades, na
consolidação das cidades, nas relações de trabalho, no domínio da natureza.
Além disso, o espaço é também imagem, formada pela percepção que dele se tem.
É, portanto, uma construção mental carregada de simbolismo, subjetividade e de valores
que muitas vezes são repassados de geração para geração, o que torna o espaço também um
patrimônio: testemunho material e imaterial de uma história. O espaço interage com os
planos cultural, social e ambiental, por ser o resultado das ações humanas sobre a natureza.
Participa do processo de construção da identidade, por isso, demanda cuidados especiais
quando se discute gestão e planejamento. Nesse espaço conflitivo e dialetizado é que
Lefebvre (1976) sublinha a riqueza das contradições que influenciam e são influenciadas
pela reprodução das relações de trabalho e produção. A interpretação dessas contradições é
essencial para se compreender o que se esconde por detrás do véu espacial
7
.
Uma das discussões centrais em relação à natureza da Geografia se
necessariamente em torno do objeto de estudo que possa distingui-la das demais ciências.
Corrêa (1987) tenta identificar mais claramente qual seria esse objeto, assumindo que a
Geografia se constitui como uma ciência social, que tem como objeto a sociedade.
O longo processo de organização e reorganização da sociedade deu-se
concomitantemente à transformação da natureza primitiva em campos, cidades,
estradas de ferro, minas, voçorocas, parques nacionais, shoppings centers etc.
Estas obras do homem são as suas marcas apresentando padrão de localização
que é próprio a cada sociedade. Organizadas espacialmente, constituem o espaço
do homem, a organização espacial da sociedade ou, simplesmente, o espaço
geográfico. A objetivação do estudo da Geografia faz-se através de sua
organização espacial, enquanto as outras ciências sociais concretas estudam-na
através de outras objetivações (CORRÊA, 1987, p. 52).
7
Cf. LEFEBVRE, H. The Survival of Capitalism, Londres: Allison and Busby, 1976.
51
Concorda-se com o autor, quando assume que a Geografia, ao priorizar o estudo da
organização espacial de uma sociedade, deverá fazê-lo considerando vários aspectos de
análise, que lidam com sua forma, função, processo e estrutura categorias
indispensáveis ao processo —, mas somam-se a esses aspectos questões como a da
percepção, sentimento, simbolismo e suas relações com a sociedade no tempo.
Como materialidade, a organização espacial é uma dimensão da totalidade social
construída pelo homem ao fazer sua própria história. Ela é no processo de
transformação da sociedade, modificada ou congelada e, por sua vez também
modifica e congela. A organização espacial é a própria sociedade organizada
(CORRÊA, 1997, p. 53).
Para Santos (1978), a compreensão do espaço implica também na observação de
vestígios naturais, que revelam a organização da paisagem física no tempo. Essas marcas,
ele chama de "rugosidades", um termo da geomorfologia utilizado para demonstrar que os
sinais do passado são percebidos e acabam por condicionar o cotidiano dos indivíduos.
Para Corrêa (1987),
Ao se projetar este raciocínio no tempo, pode-se afirmar que o presente
condiciona o futuro, ou seja, as formas espaciais presentes têm um importante
papel no futuro da sociedade (CORRÊA, 1987, p. 71).
Santos (1994), fazendo eco a Corrêa, assume que a paisagem também é um
indicativo da relação passado-presente-futuro.
A paisagem não se cria de uma vez, mas por acréscimos, substituições; a
lógica pela qual se fez um objeto no passado era a gica da produção daquele
momento. Uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos
que tem idades diferentes, é uma herança de muitos momentos (SANTOS, 1994,
p. 65).
O espaço não é um “reflexo da sociedade”, ele é a própria sociedade. As formas
espaciais encontradas em nosso planeta são produzidas, incondicionalmente, pela ação
humana. Logo, o espaço deve ser estudado em toda a sua multiplicidade de aspectos,
inclusive, considerando sua vertente empírica e pragmática, norteada pelos campos de
testes da práxis social. A própria metodologia de interpretação do conceito de espaço passa
por mudanças, adotando uma análise mais social e política do tema, em detrimento de um
método homogeneizante, utilizado dentro do paradigma da ortodoxia marxista, que
favorecia uma redução empobrecedora da interpretação da realidade social.
52
Durante vários anos o paradigma marxista sustentou a omissão do espaço nas
análises realizadas por todas as ciências sociais. Os aspectos econômicos eram suficientes
para explicar as relações que diziam respeito à apropriação do espaço, para processos de
produção e para dinâmica social, em uma fase capitalista, na qual a dinâmica industrial e a
estruturação dos meios de produção se baseavam em uma lógica fordista, que favorecia o
processo de aglomeração. O paradigma marxista, aparentemente se mostrava suficiente
para resolver todos os conflitos da análise do espaço social, abafando todas as outras
formas de interpretação que não favorecessem a primazia dos aspectos econômicos. Os
grandes complexos industriais, a consolidação das grandes aglomerações urbanas e os
conflitos de classe eram fortes indicativos de que a lógica marxista poderia ser aplicada
sem maiores contestações, consolidando, assim, uma tendência homogeneizada na análise
espacial. O espaço havia se transformado em mercadoria e toda a sua dinâmica social era
ignorada, privilegiando-se apenas a tendência econômica de interpretação.
Nas últimas décadas do século XX, com a crise do historicismo marxista, o espaço,
ao invés de uma massa homogênea e definitiva, que definia a sua aplicação teórica, passou
a ser entendido como um sistema, onde poderiam ser identificados múltiplos atores de um
processo dinâmico e complexo. O sentido de espaço ampliou-se, envolvendo elementos
físicos e toda uma conjuntura cultural, política, ambiental, social e econômica, que influi
na realidade.
O desafio era claro. Havia uma interação complexa e problemática entre a
produção das Geografias humanas e a constituição das relações e práticas
sociais, que precisava ser reconhecida e aberta à interpretação teórica e política.
Isso não poderia ser feito em se continuando a encarar a Geografia humana
apenas como um reflexo dos processos sociais. A espacialidade criada da vida
social tinha que ser vista como algo simultaneamente contingente e
condicionador como um resultado e um meio da construção da história em
outras palavras, como parte de um materialismo histórico aplicado às questões
geográficas (SOJA, 1993, p. 74).
Entretanto, a preocupação em determinar qual o tema central dos estudos
geográficos não deve impedir que essa ciência se relacione com as demais, principalmente
aquelas que possuam objetos comuns de estudo, tal como a sociedade. Santos (1997)
reconhece a necessidade de definir melhor o objeto de estudo da Geografia, sem perder de
vista as fronteiras com as demais ciências.
O mundo é um só. Ele é visto através de um dado prisma, por uma dada
disciplina, mas, para o conjunto de disciplinas, os materiais constitutivos são os
mesmos. É isso, aliás, o que une as diversas disciplinas e o que, para cada qual
deve garantir como forma de controle, o critério da realidade total. Uma
53
disciplina é uma parcela autônoma, mas não independente, do saber geral. É
assim que se transcendem as realidades truncadas, as verdades parciais, mesmo
sem a ambição de filosofar ou de teorizar (SANTOS, 1997, p. 17).
Enfim, a organização do espaço não é apenas produto social, mas simultaneamente,
repercute na moldagem das relações sociais nos mais amplos aspectos. É nesse espaço,
onde se realizam múltiplas contradições sociais, que está o objeto de estudo da Geografia.
A superação do historicismo abriu novos patamares ao olhar geográfico, e a Pós-
Modernidade foi indispensável para introduzir novas sensibilidades em relação ao espaço e
ao tempo.
O atual ritmo das transformações sociais tem atingido, em diversas escalas, várias
sociedades, aumentando a necessidade de se observar os fenômenos sociais, considerando
uma dimensão espacial. A partir dessa nova perspectiva de inclusão capitalista em escala
mundial a reformulação da teoria social se fez necessária, definindo novos conceitos,
novos paradigmas e novas perspectivas metodológicas, capazes de abarcar o espaço, o
tempo e o ser social, sem desconsiderar a noção de transdisciplinalidade, que deve
acompanhar a produção das análises socioespaciais.
54
2.3 Por uma Metodologia Geoistórica: O Espaço e o Tempo na Análise da
Transformação Socioespacial
Nos primeiros capítulos deste estudo, apontou-se as principais características da
dinâmica de produção do conhecimento social crítico, baseadas nas premissas das
disciplinas História e Geografia, e nas discussões sobre os conceitos de espaço e tempo
dentro das ciências sociais. Essa revisão representa um suporte metodológico, que
procurou integrar as abordagens geográficas e históricas, avalizando que a relação entre
Geografia e História se daria não somente na metodologia, mas no diálogo entre espaço,
tempo e o ser social, como propõe Soja (1993):
A reafirmação do espaço na teoria social crítica não requer a subordinação
antagônica do tempo e da história, uma substituição e uma reposição simplista.
Ela constitui , ao contrário, a convocação a um equilíbrio interpretativo adequado
entre o espaço, o tempo e o ser social, ou aquilo que agora é possível denominar,
mais explicitamente, de criação das Geografias humanas, construção da história
e construção da sociedade (SOJA, 1993, p. 33).
Estabelecer uma análise científica da práxis social é, por si só, um desafio que
envolve inúmeras dificuldades: definição do objeto, criação de hipóteses, determinação da
metodologia de pesquisa, clareza na linguagem utilizada para a produção do conhecimento,
subjetividade do autor, entre outras. Ao considerar uma metodologia que se propõe
transdisciplinar e geoistórica, os desafios tornam-se ainda mais complexos.
As regiões de fronteiras entre as ciências sociais são habitadas por relações de
afinidade e conflito, que tornam o estabelecimento de paradigmas algo evidentemente
complexo. Nas discussões envolvendo a História e a Geografia, o desafio de elaborar
teorias e metodologias convergentes possui elementos característicos, que interferem na
maneira como cada disciplina lida com o saber socioespacial.
Como se viu, ao considerar um caráter mais positivista, torna-se pura formalidade
técnica apontar as características de determinado objeto do conhecimento ou da sociedade
real. A ciência, em sua tendência cartesiana, solicita ao pesquisador que ignore a variável
subjetiva do contexto da produção. As aspirações, sentimentos e preferências dos autores
devem permanecer externas ao conhecimento produzido. Amparada por essa metodologia
científica, que se considera universal e infalível, a produção do conhecimento foi moldada
por padrões de conduta que isolaram o pesquisador de seu objeto, mantendo-o preso a
regras para a realização das pesquisas e para a elaboração dos textos científicos. Ao se
55
optar por esse processo, a produção do conhecimento pode transformar-se apenas em um
mero preenchimento de formulários.
Essa forma de se proceder na pesquisa científica tem sido muito questionada, dentre
outros motivos, principalmente pela dificuldade de se isentar a subjetividade do autor do
contexto da produção do conhecimento. Afirmar que somente pelo “método científico” é
possível se produzir conhecimento, é no nimo, admitir que a complexidade do mundo
possa ser reduzida ao contexto de um “laboratório”. A forma cartesiana de pensar, muitas
vezes, tem limitado o alcance de olhar dos pesquisadores atados ainda às mazelas do
Positivismo e à “obrigação” das ciências humanas, em especial da Geografia, de se afirmar
enquanto ciência.
A fragilidade dos limites permite ao pesquisador uma infinidade de abordagens
mais coerentes com a complexidade do mundo. O conhecimento elaborado com essa
diretriz revela, que por mais amplo que seja o conteúdo abarcado por uma produção
científica na Geografia ou na História, ela nunca será conclusiva e, é com essa certeza, que
se dá o desafio de produzir o conhecimento socioespacial.
Quando o pesquisador consegue imaginar seu objeto sem as correntes que o
confinam à ciência positivista, a orientação da pesquisa passa a ser direcionada para a
produção do conhecimento, e não mais para a metodologia ou para o rigor dos ditames
cartesianos. Essa liberdade pode vir de uma ampla pesquisa, que passa a ser termômetro
da produção dos saberes. Quanto mais vasta, mais complexa e mais diversificada for a
pesquisa, melhor chance o pesquisador terá de desvendar as características de seu objeto de
estudo.
De qualquer modo não dúvida que, antes de experimentar estes novos
critérios, deve-se procurar até para evitar confusão de linguagem e de
terminologia um esclarecimento honesto acerca dos fins, objecto e método
das nossas investigações; a sua utilidade deverá ser verificada não através de
raciocínios e discussões mais ou menos abstractos, mas dos resultados concretos
da investigação de campo (FERRO, 1985, p. 49).
Para se propor uma nova abordagem sobre um objeto existente, faz-se necessária
uma base de conhecimentos sobre esse objeto, sem o qual não se pode improvisar, olhar
por novos prismas, criar. Libertos do rigor e das limitações dos métodos científicos,
sustentados por uma sólida base de conhecimentos anteriores sobre o objeto e,
principalmente, cientes das escolhas subjetivas que serão realizadas durante a pesquisa,
56
serão maiores as chances de produzir conhecimento socioespacial pautado pela
originalidade.
Discute-se a necessidade de se desenvolver uma linha de raciocínio perfeitamente
coerente, e uma metodologia “precisa” de estudos. Parece pertinente que o conhecimento
produzido a partir da análise da sociedade não seja limitado e conduzido por uma única,
definitiva e totalitária forma de se enxergar o mundo. A “metodologia científica”, apesar
de essencial, não é exclusiva e nem pode ser autossuficiente, limitada aos conceitos de
apenas uma disciplina. Para a produção do conhecimento não podem existir barreiras.
História e Geografia, ciências irmãs no “nascimento” e separadas na
“adolescência”, tornaram-se disciplinas independentes, muito mais por convenções
externas ao conhecimento e ao objeto estudado, do que pela ausência de afinidades e
similitudes entre elas. Buscando a autonomia sugerida pelo Positivismo, essas disciplinas
desenvolveram metodologias distintas para o tratamento e análise de informações,
objetivando de forma independente a realidade social da qual extrairiam suas teorias.
Diante do desafio de debruçar-se sobre uma discussão epistemológica, tem-se aqui
uma tentativa de conciliar metodologias de pesquisa, utilizadas principalmente para o
estudo da História e da Geografia na construção dos saberes socioespaciais, ultrapassando
os limites teóricos estabelecidos pela ciência tradicional para essas disciplinas. Tal esforço
pretende democratizar o acesso ao desenvolvimento dos saberes científicos, partindo do
princípio de que as rígidas cátedras da ciência tradicional se tornaram insuficientes para
lidar com os conflitos da Pós-Modernidade. Imaginando convergir às vantagens presentes
em ambas as disciplinas, e dialogando com a atuação de historiadores e geógrafos, impõe-
se o desafio de extrair a gênese de uma metodologia de pesquisa, que se propõe a ser
geoistórica e, por consequência, mais transdisciplinar.
Desse esforço busca-se elaborar uma metodologia de pesquisa mais liberada dos
entraves da ciência tradicional e que proporcionará a análise da sociedade a partir de uma
perspectiva espacial e histórica, contribuindo para o pensamento crítico e se conseguir
alcançar os objetivos propostos — para a ação e conscientização política.
A necessidade do estabelecimento de novos paradigmas para a prática da análise
social é empreendimento não possível, mas indispensável para atender às novas
demandas da educação contemporânea, o que certamente se viabilizará a partir da adoção
de referenciais teóricos apropriados. O desafio de rompimento com a tradição acadêmica,
obviamente, não é simples e, sem dúvida, enfrentará incompreensões e resistências. Por
isso, deve resultar de um processo cuidadoso, cujo primeiro passo parece estar na
57
integração de campos do conhecimento com maior afinidade, tais como a Geografia e a
História.
Os geógrafos oferecem aos historiadores novos paradigmas, que servem de
inspiração para uma concepção renovada do tempo histórico e de seus desdobramentos. A
historiografia, assim, reencontra o espaço, criando um novo modelo para o tempo histórico,
que soma ao seu ritmo acelerado, dinâmico e efervescente, visões de profundidade,
densidade e cadência. Como se os novos desafios estabelecidos fossem para se entender
geograficamente a História e se pensar historicamente a Geografia.
A Geo-História introduz a Geografia como grade de leitura para a história, e ao
trazer o espaço para primeiro plano e não mais tratá-lo como mero teatro de
operações e sim como o próprio sujeito da História possibilita o exame da
longa duração, esta história quase imóvel que se desenrola sobre uma estrutura
onde os elementos climáticos, geológicos, vegetais e animais encontram-se em
um ambiente de equilíbrio dentro do qual se instala o homem (DOSSE, 1994, p.
136).
Soja (1993) ressalta a redescoberta do espaço pelos historiadores ao admitir que a
autonomia do social em relação ao espaço, defendida pela historiografia tradicional, havia
sido ultrapassada, e as condições espaciais se tornariam elementos irrefutáveis ao se
analisar a realidade social.
A sociedade e a história estavam sendo separadas da natureza e ingenuamente
providas de ambientes que lhes conferissem o que se poderia chamar de relativa
autonomia do social em relação ao espacial. Impedida de ver a produção do
espaço como um processo social, enraizado na mesma problemática da
construção da história, a teoria social crítica tendeu a projetar a Geografia
humana no pano de fundo físico da sociedade, assim permitindo que seu
poderoso efeito de estruturação fosse jogado fora juntamente com a água suja de
um determinismo ambiental (SOJA, 1993, p. 46).
Um dos primeiros autores a tratar do aumento das fronteiras entre as ciências sócias
foi Fernand Braudel (1902–1985). Braudel foi um renomado historiador francês,
reconhecido mundialmente por ser um dos principais nomes da chamada "Escola dos
Annale"
8
. Ancorado nos argumentos dos representantes mais ilustres desse grupo
Lucien Febvre (1876–1878) e March Bloch (1886–1944) —, Braudel aprimora uma nova
8
A Escola dos Annales constitui-se como um movimento historiográfico de grande importância para as
ciências sociais. Recebeu essa designação por incorporar métodos das Ciências Sociais à História. Sua
trajetória, em geral, é dividida em três fases: a primeira delas (1920-45), liderada por Marc Bloch e Lucien
Febvre, caracterizou-se pela maior preocupação com a história econômica e social, procurando se distanciar
ao máximo da história política. A segunda fase (1946-68), marcada pela figura de Braudel, distinguiu-se pela
ampliação de conceitos (estrutura e conjuntura) e novos métodos, como a história serial. A terceira, liderada
por historiadores como Jacques Le Goff e Peter Burke, é marcada pela fragmentação e maior aproximação
com a história cultural.
58
maneira de se fazer História que passa a ser estudada de uma forma mais ampla,
envolvendo outros aspectos da realidade que não a política, principal temática tratada pelos
historiadores positivistas daquela época
9
. Ao questionar uma História exclusivamente
política, Braudel introduz novas questões ao debate histórico, que passaria a analisar não
somente as ações do Estado, mas traria à luz os problemas humanos dispostos de maneira
espacializada.
Segundo Reis (2000) As principais inovações introduzidas com a Escola dos
Annales preocupavam-se em interrogar o passado a partir do presente e, para isso,
sugeriam maior interação entre as ciências sociais com a ampliação das fontes de pesquisa,
o que seria indispensável para reforçar a percepção da pluralidade dos níveis de
temporalidade existentes simultaneamente na realidade social.
A influência dos estudos geográficos de Paul Vidal de La Blache (1845–1918) é
percebida claramente na obra de Braudel, principalmente com as contribuições em relação
aos conceitos de espaço e região. O modelo geográfico sugerido por La Blache ultrapassa
as análises superficiais de um “determinismo geográfico”
10
, trabalhando com a ideia de um
“possibilismo geográfico”, que, em outras palavras, considerava o meio geográfico como o
centro da análise da vida humana e procurava enfatizar as diversas possibilidades de
resposta que poderiam ser colocadas pelos seres humanos, diante dos desafios impostos
pela natureza e pelo meio físico. Essas considerações eram diametralmente opostas às
afirmações de Ratzel, da escola geográfica alemã, que enxergava uma influência quase
linear do meio físico sobre o destino humano. Entretanto, para Braudel, o objetivo final da
geoistória, vista a partir de uma perspectiva espaço-temporal, não compartilha com a
ressurreição do determinismo geográfico, o que é criticado nas palavras de Soja (1993):
A contingência espacial cheirava demais ao ambientalismo errante de um
passado embaraçoso e se chocava com a posição conferida a Geografia dentro da
moderna divisão acadêmica do trabalho, inocentemente descritiva da
diferenciação por área, mas empenhada na promessa de nunca mais voltar a
afirma nenhuma determinação geográfica do social, pelo menos não ao alcance
dos ouvidos das ciências diligentemente sociais (SOJA, 1993, p. 75).
9
Cf. REIS, José C. A escola dos Annales. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
10
O “Determinismo Geográfico foi uma teoria que se iniciou na Alemanha, principalmente a partir dos
estudos do geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844–1904). Essa teoria versa sobre a influência que as
condições naturais exerceriam sobre a humanidade, sustentando a tese de que o meio natural seria uma
entidade determinante da fisiologia e psicologia humana. Ratzel foi influenciado pela teoria da evolução de
Charles Darwin, e deduzia que a luta entre as espécies se aplicaria à humanidade e envolvia a luta pela
espaço. Dessa forma, acreditava-se que o meio natural mais hostil proporcionaria um maior nível de
desenvolvimento, ao exigir um alto grau de organização social, para suportar todos
os desafios impostos pela
natureza.
59
A obra de Braudel insere-se em um movimento filosófico de grande importância na
definição do pensamento histórico ocidental. Conhecido como Nouvelle Histoire, esse
movimento privilegiava o diálogo permanente entre as disciplinas, incentivando práticas
interdisciplinares para a discussão de problemas ligados às ciências sociais. Segundo
Benatte (2007), a rigor, o campo intelectual da chamada Nova História é constituído por
uma ampla e complexa rede de cruzamentos interdisciplinares, facilitados pela afirmação
de ciências relativamente novas, como a sociologia, a demografia e a antropologia, que
favoreceram práticas interdisciplinares e deram origem a uma série de ciências compostas,
tais como a matemática social; a etno-história; a história sociológica; a demografia
histórica, entre outras.
Ao propor a convergência das ciências sociais, principalmente História e Geografia,
Braudel assume que, sendo o homem e a sociedade os principais objetos de pesquisa
dessas disciplinas, a aproximação das mesmas em uma pesquisa científica traria vantagens
metodológicas significativas para se compreender a sociedade e, mais especificamente, os
conceitos de tempo e espaço. Ganha-se em clareza quando se concebe essa relação como
uma via de mão dupla e não como uma rua de mão única.
Braudel (1946) desenvolve o conceito que ele chamou de “geo-história”
aprofundando discussões acerca da relação indissociável entre o espaço e o tempo,
retirando dessa afinidade a sua teoria das múltiplas temporalidades. A geoistória de
Braudel considerava pertinente toda a dialética da relação entre o homem e a natureza,
principalmente nas ações cotidianas, que favorecem interpretações sobre o homem inserido
no espaço, e ciente da sua condição mais frágil diante desse cenário, considerando-se,
especialmente, a sua breve existência diante de um sistema temporal de longa duração.
Mas esse tempo, finito, condição da finitude do ser humano, é, como
temporalização, feita ou no sentido do presente ou do passado o do futuro, a
origem dos vários tempos que se apresentam no mundo, cada qual legítimo em
seu domínio ôntico próprio, na medida em que resultam de uma modificação da
mesma temporalidade extática de que derivam (NUNES, 1994, p. 133).
O tempo dos homens encontrou o atrito do espaço e a resistência do meio
geográfico, obrigando-os a perceber o quanto são localizados, limitados e condicionados
por circunstâncias objetivas de sobrevivência. Segundo Lima (2006) a geoistória é o estudo
de um duplo vínculo, da natureza ao homem e do homem à natureza; é o esboço de uma
60
ação e de uma reação, emaranhada, dispersa, recomeçando ininterruptamente na realidade
cotidiana
11
.
Ao criticar uma ideia de "geopolítica" apenas como pano de fundo para a História,
Braudel desenvolverá uma história espacial, uma geoistória, que trata de abordagens
tradicionais, tal como a história dos Estados, mas propõe novos problemas, ligados a
percepções no presente de ações acontecidas no passado e remetem a uma ideia de
coletividade e de movimentos estruturais tais como a economia, o comércio, os meios de
circulação, os eventos ligados à política, enfim, que confirmam o fato de que espaço,
tempo e o ser social fazem parte de um mesmo e complexo sistema de escolhas, ações e
valores. As diversas temporalidades históricas identificadas pelo autor permitem analisar
também as múltiplas respostas e as diversas reações de uma dada sociedade às condições
de sobrevivência que lhe foram apresentadas.
A abordagem geoistórica difundida por Braudel sugere também uma retrospectiva
aproximação com o dia-a-dia, um estudo quase antropológico, do qual emergem práticas
coletivas e hábitos do passado, que sugerem elementos regulares e repetitivos, criando uma
atmosfera familiar, para facilitar a identificação de valores quase inconscientes e tratando-
os com o cotidiano das pessoas comuns. Tal preocupação acarreta um efeito de realidade
capaz de nos transportar a tempos muito diferentes daqueles que experimentamos. São
através dessas análises detalhadas do cotidiano que se percebem as permanências e
rupturas que corroboram o desenrolar da história da sociedade: “Reencontra-se a idéia
fundamental do passado e do presente como construção, organização lógica, e não como
dado bruto" (LE GOFF, 1984, p. 296).
Braudel (1992) propõe uma divisão dos processos históricos segundo a velocidade
com que acontecem, como resultado de três temporalidades que dariam a visão mais plena
do conjunto
12
. A primeira temporalidade, de duração mais longa, corresponderia a uma
percepção mais lenta em relação às transformações. Não se trata de um tempo maior, a
partir de uma perspectiva cronológica, mas o autor entende essa temporalidade como a
mais favorável para se perceber a relação entre o homem e o meio que o rodeia. É desse
ponto de vista que surgem conhecimentos oriundos da observação no plano geográfico e da
“história das mentalidades”, na qual as modificações são lentas e muitas vezes
11
Cf. LIMA, Luiz C. História, Meio Ambiente e Cultura: A Contribuição de Fernand Braudel. Revista Em
Debate, Fascículo n. 2, 2006.
12
Cf. BRAUDEL, F. "História e ciências sociais: a longa duração". Escritos sobre a história. São Paulo:
Perspectiva, 1992.
61
imperceptíveis, ocorrendo em ciclos de longa duração. Le Goff traduz assim a concepção
de Braudel:
A longa duração não é forçosamente um longo período cronológico; é aquela
parte da história, a das estruturas, que evolui e muda o mais lentamente. Pode-se
descobri-la e observá-la por um lapso de tempo relativamente curto, mas
subjacente à história dos eventos e à conjuntura de médio prazo (LE GOFF,
1984, p. 17).
Em uma segunda temporalidade, Braudel teoriza o que seria o tempo social e
econômico, e embora mais dinâmico que o tempo geográfico, as mudanças recorrentes
nessa temporalidade dizem respeito às transformações estruturais, que atingem os grupos
humanos, favorecendo perspectivas mais econômicas, sociais e no âmbito do Estado.
Na terceira temporalidade, o autor trata o ser humano relativamente livre de sua
coletividade, mas privilegia a história individual, em que as variações são rápidas e o
tempo se mostra extremamente dinâmico. Seria a história dos acontecimentos e dos
grandes fatos que marcaram uma visão mais tradicional da história positivista e que, por
isso, merecem maior cuidado. Braudel chega assim a uma divisão conceitual para a análise
do tempo, decompondo a história em três matrizes principais: um “tempo geográfico”, um
“tempo social” e um “tempo individual”.
A divisão esquemática da História colabora com a ideia de que parte do atual
presente é herança do passado, e tais influências atingem a toda a sociedade. O presente se
dá, em grande medida, por uma intervenção do passado, que insiste em sobreviver.
Analisar essas permanências é uma das chaves indispensáveis para a compreensão do
tempo presente. Ao contrário do que pensava Marc Bloch, a história não seria apenas o que
se altera, mas também o que permanece.
Com efeito, a feição actual da “paisagem antrópica” resulta duma “série muito
complexa de acontecimentos (incluindo políticos, culturais, artísticos) repetidos
no tempo. Para compreender as suas características torna-se necessário “partir
das condições originais e seguir as transformações sucessivas, época por época
(FERRO, 1985, p. 40).
Partindo da premissa de que “a História é o estudo do homem no tempo”, rompe- se
com a opinião de que se deva constar como objeto de estudo apenas o passado. O interesse
da História concentra-se nas ações, movimentos, permanências e transformações humanas,
que podem ser percebidas em temporalidades distintas de longa, média ou curta duração.
Contudo, uma abordagem geoistórica deve considerar uma terceira variável nesse sistema.
62
Além do interesse pelo tempo e pelo ser social, entende-se que todas as transformações que
afetam a vida humana acontecem no espaço geográfico, este sim, constituído por questões
que ultrapassam a distribuição locacional, mas envolvem todo o espaço social construído
politicamente pela sociedade.
Acredita-se que relações entre o homem e o espaço modificam-se com o tempo,
tornando frágeis delimitações regionais mais rígidas, que podem funcionar bem para um
período e não para outro. Uma abordagem geoistórica sempre vai considerar as diversas
temporalidades que simultaneamente se relacionam no contexto social, e tende a privilegiar
análises de longa duração, nas quais as permanências e rupturas são mais profundas e
cadenciadas. O que se estuda, na verdade, são as transformações que se estabelecem e se
desenvolvem em um determinado período de tempo, considerando sempre o seu ritmo de
acontecimento. Nessa passagem pelo tempo, os processos de transformação da vida
humana interagem muito intensamente com o conceito de temporalidade e é dessa
complexa interação que se percebe seus desdobramentos sobre o meio, a economia, a
sociedade, a cultura, a política e os acontecimentos.
A historicidade, com que nos deparamos agora, nada mais é do que a mesma
temporalidade, o mesmo tempo finito, transportado aos dois níveis solidários,
individual e coletivo da existência do ser-no-mundo, que implicam o agir e,
portanto, também, a tomada de decisões. O homem se temporaliza, e o seu
acontecer histórico é temporalização (NUNES, 1994, p. 133).
Ao filiar-se às ideias de divisão do tempo histórico em temporalidades distintas
sejam as principais: o tempo geográfico, o tempo social/econômico e o tempo individual
—, acredita-se que a análise das rupturas e das permanências que derivam da passagem do
tempo seria a principal característica de uma metodologia geoistórica capaz de se ater às
demandas eminentes da pesquisa científica socioespacial.
63
2.4 A “Geografia Oral” como Técnica para Inclusão da Noção de Espaço
e de Novos Personagens nos Estudos Socioespaciais
Existe nas ciências uma tendência quase “natural” de se privilegiar os documentos
escritos como objetos de pesquisa e fonte para consulta e produção de conhecimento. A
linguagem escrita, desde a criação e a adoção maciça da imprensa, representa a ferramenta
formal para difusão, criação e validação do conhecimento. Grande parte da história
tradicional é construída a partir de registros escritos, sugerindo que o saber esteja de
alguma forma concluído, completo e estocado.
A adoção da escrita como ferramenta técnica para a difusão de conhecimento,
sugere que os leitores tenham acesso a saberes registrados sobre a forma de documentos,
fornecendo certa autonomia em relação aos sujeitos que o produziram. A partir dessa
leitura de códigos é que o conhecimento pode ser comparado, criticado, discutido e
transformado, sendo apenas os especialistas — aqueles que conhecem os códigos da escrita
os sujeitos da ação. O conhecimento perde um pouco de sua universalidade e de sua
consequente utilidade no cotidiano das pessoas e comunidades, para se tornar objeto de
exames, cujo principal objetivo será o de alterar os registros existentes em um ciclo
constante de interpretações e críticas.
Le Goff (1984) havia sustentado que a sociedade letrada utiliza-se dos
documentos escritos para expressar seus valores e para transmitir às gerações futuras parte
de seu saber. O conteúdo dos documentos escritos que se referem ao passado é, sempre,
um produto da sociedade; das relações de poder existentes no momento de sua criação e,
por esse motivo, referem-se a uma perspectiva do mundo privado, que, por meio da
cristalização em documentos escritos, podem se tornar de acesso relativamente público
para as gerações posteriores.
O documento é uma coisa que fica, que dura. Resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro determinada imagem de si próprias. O uso do
documento escrito pela sociedade possibilitou a expropriação privada do
conhecimento público. O saber público, o saber comunitário, ao ser codificado
na escrita, tornou-se um saber hermético, que passa a constituir uma ciência
dominada só por uns poucos iniciados (LE GOFF, 1984, p. 23).
O documento escrito é um objeto de estudo apenas descoberto pela pessoa
alfabetizada e, por essa razão, representa um conhecimento individualizado. Desvendar os
códigos que compõem a escrita representa um ritual que se opera no âmbito da dimensão
privada e, por se constituir como forma de obtenção de conhecimento, possibilita também
64
formas de apropriação, dominação e poder. Os indivíduos aptos a decifrar os códigos da
escrita possuem um instrumento para exercer a dominação.
Entende-se que o movimento transdisciplinar propõe uma abertura da ciência para
novas questões, dentre elas a social, a ética e a política e, por isso, apresentar o documento
escrito como forma monolítica de obtenção de conhecimento é, sem dúvida, uma das
críticas estabelecidas pela nova postura de se fazer ciência.
Concorda-se com Hissa (2002), quando critica a academia em sua forma tradicional
de atuação, na qual a produção de conhecimento tende a priorizar personagens, tendências
e fontes. Essa forma de conduzir a produção do conhecimento acaba por ser disseminada
na sociedade civil, pautada por esses valores. Na opinião do autor, tais padrões de
comportamento limitam a atuação do conhecimento. A possibilidade de interação com
outros métodos, outras abordagens, outros personagens e, por que não, outras formas de se
registrar o conhecimento, são indispensáveis como inspiração na construção do saber
científico.
Assim, a criação, seja ela de qualquer natureza, é compreendida como uma
atitude que, carregada de valores, é “leitura sobre leitura” e tem o mesmo
significado de crítica. A ciência também depende da imaginação, necessita de
histórias anteriores de criação, de imagens de naturezas diversas que mobilizem
o pensamento e a ação. A criação é, enfim, a arte de sempre reinventar (HISSA,
2002, p. 60).
Diante desse cenário e, com a intenção de apresentar alternativas para a construção
do saber socioespacial crítico, sustenta-se o argumento de que existem outras formas de
registro do conhecimento, que são completamente legítimas como fontes de pesquisa, e
como objetos de análise dentro das ciências sociais, dentre as quais se destaca a oralidade
em sua manifestação mais conhecida, denominada “História Oral”.
Não se sabe ao certo quando se deu a origem da História Oral como instrumento de
perpetuação do saber, mas os relatos orais desde os tempos remotos, representam para a
humanidade a forma mais comum de conservação do saber. Muito antes de registrar em
códigos seu conhecimento, o indivíduo usa a oralidade como instrumento de
relacionamento e comunicação. Relatar, através de depoimentos, os fatos acontecidos no
passado é, por definição, o que se conhece por História Oral.
Muitos pesquisadores acreditam que a História Oral seja a técnica mais eficaz para
se registrar o conhecimento que ainda não foi cristalizado através de documentação escrita
e, evitaria que tais informações deixassem de existir. Seria, portanto uma forma de captar o
65
que não pode ser escrito, um modo de dar voz àqueles que não possuem os códigos de
leitura, enfim, uma forma de inclusão de personagens na produção de documentos.
... através dos séculos, o relato oral constituíra sempre a maior fonte humana de
conservação e difusão do saber, o que equivale a dizer, fora a maior fonte de
dados para as ciências em geral. Em todas as épocas, a educação humana (ao
mesmo tempo formação de hábitos e transmissão de conhecimentos, ambos
muito interligados) se baseara na narrativa, que encerra uma primeira
transposição: a da experiência indizível que se procura traduzir em vocábulos
(QUEIROZ, 1988, p. 16).
As ciências tradicionais, ligadas diretamente às ideias positivistas de racionalidade
e objetividade, foram sempre reticentes em relação ao emprego da História Oral como
instrumento de pesquisa, porque a principal tarefa do pesquisador seria descobrir as leis
sociais que dirigem uma sociedade. Os relatos orais eram vistos apenas como motivadores
para as hipóteses iniciais, sem, contudo, obterem legitimidade para testá-las. Essa restrição,
segundo Pereira (1994), viria de uma carga dupla de subjetividade, que incidiria sobre esse
tipo de informação. A inviabilidade de se utilizar relatos orais para os positivistas se
explicaria no fato de que, tanto o pesquisador, quanto o informante, forneceriam grande
carga de percepções pessoais ao conteúdo dos depoimentos orais, distorcendo a realidade a
ser analisada.
A preocupação em relação à participação subjetiva do pesquisador e do informante
nos relatos orais é, certamente, legítima, e precisa de total atenção, entretanto, todo
material utilizado dentro de uma pesquisa científica tem como filtro o pesquisador, e nem
por isso, é descartado. Acredita-se, portanto, que a utilização ou não de relatos orais não
pode ser inviabilizada apenas por argumentos que trabalhem na perspectiva de uma
abordagem subjetiva. Além disso, a subjetividade por detrás dos depoimentos orais,
principalmente por parte do informante, é também subsídio a ser utilizado na pesquisa,
uma vez que reflete uma forma específica de comportamento adotado pelo sujeito, e pode
traduzir alguma intenção subliminar, que deve ser investigada.
Nas entrevistas obtidas em forma de História Oral é possível registrar situações e
modos de vida, não de um ponto de vista individual, mas de um grupo ou de uma
sociedade em geral, na qual o indivíduo esteja imerso. Essa técnica de obtenção de dados
permite que o pesquisador se aproxime da realidade e do cotidiano de seu entrevistado,
como atitude indispensável para se desvendar um emaranhado de desdobramentos
possíveis da vida social, facilitando a compreensão do passado e revisitando experiências
vividas por outros.
66
Mesmo creditando à História Oral o status de elemento legítimo a ser investigado, o
documento obtido dessa forma não deve ser confundido com a verdade definitiva sobre
determinado assunto. O que interessa em um depoimento oral não é a narrativa verídica e
precisa dos fatos, ou mesmo uma descrição detalhada de acontecimentos e personagens,
mas, sim, as relações que o indivíduo entrevistado tece com o seu entorno, seja nos
aspectos sociais, temporais ou espaciais.
Acredita-se que os relatos orais possam elucidar vários elementos disponíveis na
realidade social e que, por isso, despertem o interesse das ciências sociais críticas. Ao
considerar-se os objetivos específicos dessa pesquisa, os relatos orais podem trazer à luz
aspectos muitas vezes ignorados nos depoimentos, e que se referem às noções de espaço e
de temporalidade disponível nos testemunhos.
Releva-se o seguinte raciocínio:
O predomínio de uma visão fisicalista do espaço permeou a tal ponto a análise da
espacialidade humana que tende a distorcer nosso vocabulário. Assim, enquanto
adjetivos como social”, “político”, “econômico” e até “histórico” costumam
sugerir, salvo especificação em contrário, um nculo com a ação e a motivação
humanas, o termo “espacial” evoca, tipicamente, uma imagem física ou
geométrica, algo externo ao contexto social e à ação social, uma parte do “meio
ambiente”, parte do cenário da sociedade seu continente ingenuamente dado
—, não uma estrutura formadora criada pela sociedade (SOJA, 1993, p. 101).
Ao analisar o argumento de Soja, percebe-se que muitas vezes a noção do espaço,
para o senso comum, não ultrapassa os aspectos físicos, que são apenas um dos diversos
componentes de uma investigação do espaço social. Além disso, a percepção histórica
contida nos relatos orais tende a privilegiar uma abordagem cronológica, na qual a maior
preocupação dos pesquisadores e informantes é apenas localizar tal acontecimento em uma
“linha do tempo”, sobre uma perspectiva temporal evolutiva, quase sempre negligenciando
as diversas temporalidades existentes simultaneamente dentro do momento narrado.
Harvey (2001) reforça a afirmação de Soja ao assumir que as dimensões tempo e
espaço são aspectos indissociáveis e definem a maneira como podemos nos relacionar com
o mundo que nos cerca
Sob a superfície de idéias do senso comum e aparentemente “naturais” acerca do
tempo e do espaço, ocultam-se territórios de ambigüidade, de contradição e de
luta. Os conflitos surgem o apenas de apreciações subjetivas admitidamente
diversas, mas porque diferentes qualidades materiais objetivas do tempo e do
espaço são consideradas relevantes para a vida social em diferentes situações.
Importantes batalhas também ocorrem nos domínios da teoria, bem como da
prática, científica, social e estética. O modo como representamos o espaço e o
67
tempo na teoria importa, visto afetar a maneira como nós e os outros
interpretamos e depois agimos com relação ao mundo (HARVEY, 2001, p. 190).
Assim, baseado nos conhecimentos até aqui desenvolvidos, e acreditando que a
inovação é condição indispensável para a produção do conhecimento na análise dos relatos
orais, valer-se-á de uma nova perspectiva de abordagem que se ousou chamar de
“Geografia Oral”.
Partindo do princípio de que os relatos orais representam uma técnica mais
democrática para a obtenção de informações relevantes sobre um dado objeto, e,
entendendo que tais relatos podem trazer dados importantes sobre uma perspectiva
geoistórica da pesquisa, serão avaliados os depoimentos recolhidos em campo,
considerando esses novos olhares.
Os registros orais serão analisados de modo a se perceber posturas e características
em relação ao espaço geográfico que possam colaborar para a definição de uma análise
socioespacial individual, mas que culminem em uma definição coletiva desta variável.
Espera-se que a produção e análise dos dados obtidos através das técnicas orais permitam
incluir informações sobre os aspectos geoistóricos vividos individualmente pelos
entrevistados. A partir das informações obtidas com esse artifício serão apresentadas as
que podem ser validadas e as que foram descartadas, considerando o cruzamento desse
material com outros documentos que fizeram parte do acervo coletado em campo, e nos
textos utilizados em laboratório.
Trata-se de um exercício prático de tratamento das informações de campo, essencial
para a definição de uma nova abordagem na metodologia de pesquisa, além de possibilitar
inferências sobre a geoistória da Região do Gado do rio São Francisco, que é o cenário
principal desta pesquisa.
68
PARTE 2
GEOISTÓRIA DO SÃO FRANCISCO: EXERCÍCIO
TRANSDICIPLINAR PARA A CONSTRUÇÃO MAIS
DEMOCRÁTICA DOS SABERES
69
CAPÍTULO 3
CONSTRUINDO A GEOISTÓRIA DO SÃO FRANCISCO
70
3.1 O São Francisco como Referência Histórica e Marco Espacial para a
Formação do Brasil
Conhecido como “rio da integração nacional”, o São Francisco apresenta elementos
instigantes à pesquisa não pela sua importância econômica, social e simbólica, mas por
permitir um exercício singular de reflexão e aplicação dos conceitos de espaço e de tempo
definidos sobre o ponto de vista de uma metodologia geoistórica. A história do rio é, em
grande medida, confundida com a história de seu povo, sendo que essa epopeia se em
um espaço concreto que corta o Brasil no sentido Sul-Nordeste, desde a sua nascente na
Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a sua foz no Oceano Atlântico, na intercessão
entre os Estados de Alagoas e Sergipe.
Considerando o espaço como um dos principais elementos que envolvem as
relações humanas e o tempo, como caminho percorrido e para se compreender
transformações sociais, investigar-se-á a organização espacial e a dinâmica social do São
Francisco, a fim de perceber as permanências e rupturas que se definiram nesta área e
tiveram seus reflexos na formação histórica mineira e brasileira. Para isso, será analisada a
influência das atividades econômicas ligadas principalmente à criação de gado e ao
comércio ribeirinho na transformação do espaço e na gênese sociocultural da sociedade
são-franciscana. Ao dispor-se a esse desafio, a proposta ultrapassa a necessidade de se
somar dados à história oficial, mas em complemento a isso, tal intenção atesta a
necessidade de se buscar elementos de historicidade, exatamente como sugere Nunes
(1994).
Não é, portanto, a investigação histórica, mas a historicidade o que abre para
esse descobrimento do passado, condicionando o conhecimento de uma ordem
de fatos, legitimado pelo método de investigação (NUNES, 1994, p. 138).
O meio natural e as manifestações sociais constituem alvo desta pesquisa por
estarem associados a uma complexa e variada paisagem cultural construída e reconstruída
pelos homens através dos tempos. Ao investigar o Vale do São Francisco do ponto de vista
geoistórico, propôs-se identificar marcas culturais, referênciais espaciais, transformações
nos processos de produção do espaço, peculiaridades históricas e características sociais
responsáveis pela construção da sociedade ribeirinha e que, provavelmente, fornecerão
elementos para ajudar a compreender a formação da sociedade brasileira como um todo. A
partir da perspectiva geoistórica apresentada na primeira parte, investiga-se a inserção do
71
São Francisco na formação social e econômica da região delineada pelo seu vale, mais
especificamente na Região do Gado, onde as marcas da pecuária e do comércio são mais
evidentes.
Poderíamos compreender, por uma dilatação das vivências individuais, o que
outrora foi humanamente vivido. No fundo, o conhecimento histórico seria uma
nova espécie de autoconhecimento, o espírito humano mediado pela consciência
do historiador (NUNES, 1994, p. 136).
Desde os primórdios da história do Brasil, o rio São Francisco tem papel destacado
na ocupação do nosso território. Seu descobrimento é atribuído ao genovês Américo
Vespúcio, que navegou em sua foz em 04 de outubro de 1501 (Rocha, 1946). Por ser um
meio de transporte para o interior, o São Francisco colaborou na exploração do sertão do
país, partindo do litoral e, como rota de interiorização das Bandeiras nos séculos XVII e
XVIII, o rio serviu de referência natural às “Entradas”. A pecuária, desenvolvida ao longo
de seu leito, foi responsável pelo povoamento de praticamente toda a sua extensão,
inclusive do noroeste mineiro. A comunicação e o comércio entre os vilarejos do interior e
as cidades do litoral incentivaram o uso do rio como via de transporte e como instrumento
de integração do espaço. O transporte fluvial de larga escala, tem seu início a partir de
1871, permanecendo com grande importância até 1960, quando sente a concorrência das
malhas viárias e entra em decadência. Nesse período foi atribuído ao rio São Francisco a
designação de “rio da unidade nacional". Para alguns autores, a existência do rio foi o fator
preponderante para a não desagregação do Brasil colonial como ocorreu com as demais
colônias espanholas na América.
João Ribeiro, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso, analisando os
fenômenos da nossa História, chegaram à conclusão de que devemos a nossa
unidade quase exclusivamente ao fator geográfico resultante da existência do
grande curso d’água navegável que une partes longínquas do país, em pleno
hinterland brasileiro. O Vice-reinado do Prata, livre do julgo espanhol pelo gênio
Simão Bolívar, contava também com a unidade de ngua, de costumes e de
crenças, fatores que eram comuns aos originários da Lusitânia. Faltava, porém,
aos hispano-americanos o elemento de união geográfica construído pelo São
Francisco, e por esta razão se esfacelaram (ROCHA, 1946, p. 17).
Com um comprimento aproximado de 2.700 km, passando por cinco estados
brasileiros, o rio São Francisco recolhe as águas de 36 afluentes principais, sendo 19
perenes, o que corresponde a uma área de 640.000 km
2
, e delineia uma das mais
importantes bacias hidrográficas do Brasil. Nesse recorte habitam cerca de 15,5 milhões de
72
pessoas, distribuídas em 503 municípios
13
. As barragens de Três Marias, Sobradinho,
Paulo Afonso, Xingó, Apolônio Sales e Itaparica se distribuem ao longo do rio e, muitas
vezes servem como marcas referenciais de regionalização.
Essa magnitude demográfica e territorial encerra também uma ampla diversidade
geográfica que envolve: desde a força econômica da zona metalúrgica mineira,
as duras condições sociais do sertão baiano, as terras altas da Mantiqueira, o
Semi-Árido nordestino; o litoral de Sergipe e Alagoas e a Chapada Diamantina.
Essa mesma região ainda guarda uma rica diversidade cultural e uma
importância social estratégica para o país (MATOS, maio/2007, p. 3).
Dada a grandiosidade dos números apresentados pela bacia do rio São Francisco,
principalmente quanto à sua dimensão territorial, este trabalho concentrará esforços para
analisar prioritariamente o material de campo coletado e que faça referência à área entre as
cidades de Pirapora (MG) e Remanso (BA), que correspondem à dita Região do Gado,
conforme ilustrado na Figura 01, onde se observa que a Região do Gado compreende a
área da bacia identificada pelas regionalizações oficiais como Médio São Francisco. Nesse
ponto, o rio recebe as águas dos rios Verde Grande, Paracatu e Carinhanha. As cidades-
pólo que exercem influência nessa área são as cidades de Pirapora, Montes Claros e
Januária, em Minas Gerais; e Bom Jesus da Lapa, Barreiras, Barra, Xique-Xique e
Remanso, na Bahia. É nessa área que estão as marcas mais profundas da influência da
pecuária e dos laços comerciais apoiados no transporte ribeirinho, indispensáveis à criação,
engorda e escoamento do gado. Até por isso, essa área é também denominada "Região dos
Currais".
De maneira geral, utilizando como referência a classificação estabelecida pela
Assembleia Legislativa de Minas Gerais
14
, as quatro regiões destacadas no Mapa 01
podem ser apresentadas resumidamente da seguinte forma:
Alto São Francisco: estende-se da nascente, na Serra da Canastra até a cidade de
Pirapora, abrangendo as sub-bacias dos rios das Velhas, Pará, Indaiá, Abaeté e
Jequitaí e a represa de Três Marias. O divisor ao sul está na Serra da Canastra; a
leste, na Serra do Espinhaço e a oeste, na Serra Geral de Goiás. Essa região está
inteiramente contida dentro do Estado de Minas Gerais. A topografia é ligeiramente
movimentada, com serras, terrenos sinuosos e altitudes variando entre 600 e 1.600
13
Cf. SANTOS, Márcio. Rio o Francisco: Patrimônio Cultural e Natural. Assembleia Legislativa de
Minas Gerais: Belo Horizonte, 2003.
14
Idem.
73
m. A vegetação é predominantemente de cerrados, com índices altos de
pluviometria e temperatura amena. É classificada como uma região de clima
tropical úmido e, em algumas áreas, de clima temperado. As principais cidades
estão na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), onde a economia é
mais dinâmica, diversificada e densa;
Médio São Francisco: compreende o trecho entre Pirapora (MG) e a cidade baiana
de Remanso, incluindo as sub-bacias dos afluentes: Paracatu, Urucuia, Carinhanha,
Corrente, Verde Grande, Parnamirim, Pilão Arcado e Jacaré. O divisor a leste é a
Chapada Diamantina e a oeste a divisão se faz pela Serra Geral de Goiás e a Serra
da Tabatinga. A região está incluída nos Estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás e
no Distrito Federal. É o trecho de maior extensão, com cerca de 1.152 km. É
caracterizada pelas planícies da depressão o-franciscana, com altitudes que
variam entre 500 e 2.000 m. A vegetação é predominantemente a de cerrado, sendo
que em algumas áreas identificam-se ainda a caatinga e pequenas matas serranas. A
margem esquerda da bacia é a região mais úmida, com rios permanentes e
vegetação perenifólia; na margem direita a precipitação é menor, com rios
intermitentes e vegetação típica de caatinga. A temperatura média anual é de 24º.C.
As condições físicas permitem caracterizar a região como de clima tropical
semiárido. As principais cidades são: Montes Claros e Januária em Minas Gerais;
Formosa, em Goiás; Barreiras, Guanambi, Irece e Bom Jesus da Lapa, na Bahia; e
Brasília, no Distrito Federal;
Sub-médio São Francisco Estende-se de Remanso até a cidade baiana de Paulo
Afonso, incluindo as sub-bacias dos rios Pajeú, Tourão, Vargem e Moxotó. É
limitada ao norte pela Chapada do Araripe e pela Serra dos Cariris e ao sul pelo
Raso da Catarina, abrangendo as áreas dos Estados da Bahia e Pernambuco. A
topografia é ondulada, com vales muito abertos e altitudes entre 200 e 800 m. A
caatinga predomina em praticamente toda a região, que tem baixa pluviosidade e
temperatura média anual de 27ºC, permitindo caracterizá-la tipicamente como
semiárida. As principais cidades são Juazeiro e Paulo Afonso na Bahia; Petrolina,
Ouricuri e Serra Talhada, em Pernambuco. No sub-médio São Francisco estão as
represas de Sobradinho, Paulo Afonso e Itaparica;
74
Baixo São Francisco Estende-se de Paulo Afonso até a foz, englobando as sub-
bacias dos rios Ipanema e Capivara. Situa-se em áreas dos Estados da Bahia,
Pernambuco, Sergipe e Alagoas. São característicos os trechos de serras, o Canyon,
os tabuleiros e a planície costeira. As altitudes variam entre o nível do mar e 200 m,
embora, na periferia, algumas áreas atinjam 500 m. A vegetação é de dois tipos:
caatinga no trecho mais alto e mata na região costeira. A temperatura média anual é
de 25ºC e o clima da região é de tipo tropical semiúmido. As suas principais
cidades são Jeremoabo, na Bahia; Pesqueira e Bom Conselho, em Pernambuco;
Propriá e Nossa Senhora da Glória, em Sergipe; Arapiraca e Penedo, em Alagoas.
No baixo São Francisco está a represa de Xingó.
75
FIGURA 01 – BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO
As divisões apresentadas anteriormente pretendem fornecer referências didáticas
para estudos focados na bacia de São Francisco estabelecendo, a partir de características
naturais minimamente homogêneas, recortes possíveis para avaliação e análise.
Ao considerar-se a sub-região do Médio São Francisco, que corresponde à
Região do Gado, verifica-se certas similaridades nas características naturais, a despeito
das várias sobreposições socioespaciais e econômicas dentro desta área, o que permitiu
destacá-la em relação às demais e torná-la foco desta pesquisa. A ideia de Região do
Gado não faz referência apenas a elementos físicos de delimitação, mas somados a esses
critérios, elementos socioeconômicos e geoistóricos foram utilizados.
Sabendo-se que a história do rio remonta a tempos geológicos, optou-se por
ater-se à história recente da bacia, fazendo referência ao período das primeiras
explorações portuguesas, mas concentrando-se nas transformações ocorridas ao longo
dos séculos XVIII a XX, e que exerceram influência na subsequente organização
socioespacial.
De forma a auxiliar o entendimento histórico temporal, apresenta-se uma
periodização didática em três grandes etapas, que facilita a inserção dos eventos
apresentados na pesquisa dentro de uma conjuntura mais geral. Essa periodização pode
ser resumida como se segue:
76
1) O rio como vetor de ocupação do espaço (1530 a 1709): nesse período, a
conquista do território brasileiro sempre manteve uma íntima relação com as
condições naturais. Utilizando o rio São Francisco como vetor de interiorização
para o território, os pecuaristas foram gradativamente subindo o rio em direção à
nascente e instalando pelo caminho as raízes para a fixação da população e para
o surgimento das primeiras cidades. A hipótese defendida reforça esse processo
como indispensável para a formação da cultura e das bases sociais da população
em toda a bacia do São Francisco;
2) O rio como elemento chave da dinâmica econômica regional (1709 a 1822):
com o contínuo processo de fixação da população à terra pela criação de gado, as
primeiras cidades foram se estabelecendo. Assim, o rio São Francisco, além de
via para a interiorização, passou a se integrar à dinâmica local como condutor do
comércio e como fonte de subsistência por meio da pesca e da agricultura de
vazante. A descoberta do ouro na região de Sabará, Ouro Preto e Mariana fez
aumentar os fluxos migratórios vindos de toda parte da Colônia. Assim, as vilas
e cidades da bacia do São Francisco, passaram a incorporar-se à essa dinâmica
como principais provedoras de recursos para as vilas mineiras. O comércio, ao
utilizar o rio, prosperava, e as cidades ribeirinhas começaram a despontar como
importantes entrepostos de abastecimento, fortalecendo redes comerciais que
ligavam o Alto São Francisco ao litoral baiano. O caminho até o litoral pelo
traçado do São Francisco ficou conhecido como “Caminho da Bahia” e, durante
todo o ciclo do ouro, a sua utilização rivalizava com a Estrada Real
15
por ser
uma rota alternativa ao transporte de ouro e mercadorias, normalmente burlando
a tributação;
3) O rio frente ao avanço da modernização (de 1822 em diante): a queda da
mineração do ouro nas minas contribui para a falência do sistema de comércio,
utilizando o São Francisco. Os núcleos urbanos que se beneficiaram das redes
comerciais para o nordeste perdem importância econômica. O deslocamento da
sede administrativa da Colônia de Salvador para o Rio de Janeiro acelera o
15
Estrada Real foi o termo que designou o caminho por terra que ligava as cidades de Ouro Preto e
Diamantina aos portos das cidades do Rio de Janeiro e Paraty. Devido ao crescente volume de riqueza
explorado na região das Gerais, a Coroa Portuguesa procurou garantir o seu controle e fiscalização de
maneira rigorosa, instalando postos de inspeção (Registros) para arrecadar os diversos tributos sobre
minerais. Assim, toda a produção de ouro em Minas deveria escoar pela Estrada Real facilitando assim o
recolhimento de impostos.
77
sucateamento dos caminhos que utilizavam o São Francisco, levando a região à
estagnação por décadas. A introdução do transporte a vapor significou um
revigoramento temporário da economia regional, mas logo sofreu a concorrência
de outros modais de transporte, tais como as ferrovias e rodovias. Foram várias
as tentativas do Estado brasileiro de revigorar a região, por meio de entidades de
fomento, que conduziram inúmeros projetos de irrigação, criação de gado,
desenvolvimento do potencial hidrelétrico, entre outros, mas que produziram
apenas resultados pontuais, aumentando o abismo socioeconômico na região.
Desde os governos militares são retomadas ações que buscavam tornar o rio São
Francisco elemento estratégico para melhor integração nacional não só por
interligar o sudeste região mais rica e dinâmica do país ao nordeste
região que apresenta os piores índices de desenvolvimento —, mas também
como fator de estímulo ao desenvolvimento da região Nordeste por meio de
obras de infraestrutura, hidroeletricidade, agricultura irrigada e pecuária. A
possibilidade de utilização estratégica do São Francisco como vetor para a
diminuição das desigualdades regionais é pauta constante do planejamento
estatal, mas que recentemente se confronta com preocupações referentes à
prioridade na sua revitalização.
Pelo fato de esta pesquisa estar inserida no projeto “População e
Territorialidades Chaves da Rede de Cidades da Bacia do São Francisco”
16
, a
metodologia utilizada para obtenção dos dados de campo foi coerente com as
empregadas pelo projeto maior. Em linhas gerais, o projeto “Territorialidades Chaves”
dividiu-se em três subgrupos que privilegiaram determinado aspecto de interesse. O
primeiro deles concentrou-se nas questões físico-territoriais; o segundo, nos aspectos
socioeconômicos; e o terceiro, nos aspectos geoistóricos, o que, não coincidentemente,
tem maior aderência às questões discutidas neste texto. O acesso à documentação e aos
dados de campo organizados pelos três subgrupos do projeto maior serviram de
referência e comparação para as questões tratadas na dissertação. Mesmo considerando
que o tamanho relativo aos depoimentos e documentos representa uma acanhada parcela
das inúmeras possibilidades de análise dentro da área-tema, a participação no projeto
abrandou essa dificuldade, permitindo o contato com fontes que passaram por um
processo inicial de tratamento e filtragem.
16
O projeto “População e Territorialidades Chaves da Rede de Cidades da Bacia do São Francisco” aqui é
denominado apenas “Territorialidades Chaves” para facilitar a leitura e composição do texto.
78
Especificamente sobre o enfoque das questões geoistóricas, justifica-se a
preferência por utilizar entrevistas de profundidade
17
como instrumentos para a
obtenção de dados primários, apoiando-se na ideia de alcançar informações do que se
denomina Geografia Oral e que, juntamente com a História Oral obtida junto aos
entrevistados, forneceram elementos-chave para a análise socioespacial que se desejava
fazer. Esse tipo de fonte, firmado na oralidade, além das peculiaridades para a sua
obtenção, requer tratamento diferenciado ao ser analisado em laboratório. Assim,
inobstante a riqueza e a enorme quantidade de material recolhido e produzido pelo
projeto “Territorialidades Chaves” como um todo, foi necessário limitar as análises aos
materiais que se referiam à Região do Gado. Procurou-se reforçar a análise qualitativa
do material obtido em campo e privilegiar as entrevistas de profundidade como
elemento singular deste texto.
De modo geral, as entrevistas analisadas no contexto desta pesquisa foram
resultado do diálogo estabelecido com o entrevistado, tratando-o com cuidado, mas
explorando sua espontaneidade em questões que envolvessem sua relação com o rio São
Francisco; a própria inserção na comunidade; os aspectos ligados à relação com o
espaço físico; o trabalho; a cultura e o saber. Perguntas abertas como "O que o rio São
Francisco representa para você?"; "Qual a sua relação cotidiana com o São Francisco?";
"Quais elementos do passado você consegue identificar, que lembram sua relação com o
São Francisco?" conduziram a uma linha de raciocínio adequada para reconhecer, no
depoimento do entrevistado, aspectos socioeconômicos e geoistóricos que,
posteriormente, foram validados a partir de outras fontes e da análise comparativa das
entrevistas.
Privilegiou-se entrevistar as pessoas mais experientes e antigos residentes
na região, procurando sempre contrapor as impressões referentes ao passado às
constatações atuais.
O perfil dos entrevistados e as localidades onde foram realizadas as entrevistas
se concentraram nos municípios-pólos, geralmente mais capazes de expressar a
diversidade encontrada em sua área de influência. Mesmo nas Cidades-Chaves
18
, que à
primeira vista representam um perfil mais urbano dos entrevistados, a opção por realizar
entrevistas também nas periferias, permitiu contemplar os retirantes do campo que
17
As entrevistas obtidas nos trabalho de campo estão disponíveis para consulta no acervo do Laboratório
de Estudos Territoriais LESTE, no IGC/UFMG. Trata-se de cerca de 120 entrevistas que são citadas
bibliograficamente neste trabalho como “Acervo do Leste”.
18
Foram consideradas “Cidades-Chaves” nesta pesquisa, onde foram realizadas as entrevistas e coletados
os materiais utilizados na análise da “Região do Gado”, as seguintes cidades: Montes Claros, São
Francisco, São Romão, Pirapora, Paracatu, Januária, Janaúba, João Pinheiro, Unaí, Patos de Minas,
Montalvânia e Manga, em Minas Gerais; Barreiras, Irecê; Juazeiro, Rodelas, Carinhanha, Paulo Afonso e
Jacobina, na Bahia; Petrolina, em Pernambuco e Penedo, em Alagoas.
79
tentavam construir nova vida na cidade, mas que conservavam suas raízes no meio
rural.
Um segundo perfil de entrevistado foi composto pelas “autoridades locais”, que,
em geral, representou a opinião “oficial” do município e, de certa forma, contribuiu para
evidenciar as relações de poder que se desenrolavam na região. Para isso, foram
realizadas audiências específicas com indivíduos detentores de cargos institucionais.
A partir das entrevistas e do material recolhido nas cidades-chaves da Região do
Gado do São Francisco, foi possível traçar linhas gerais para a condução da pesquisa de
laboratório, na perspectiva de que as informações obtidas em campo seriam
provocações iniciais para aguçar a elaboração das análises sobre os aspectos
socioespaciais da área pesquisada. Várias das reflexões e conclusões aqui apresentadas
foram resultados do cruzamento das informações preliminares com bibliografia
disponível e tratamento das inferências.
80
3.2 O Espaço Físico e as Características Naturais do Vale do São
Francisco
A metodologia geoistórica que conduz esta pesquisa, ao contrário da perspectiva
de uma ciência tradicional, não considera essencial hierarquizar o tipo de conhecimento
produzido, seja ele de viés mais físico ou mais cultural. Ao contrário,
independentemente da sua origem e do objeto que o inspirou, a sua utilização e o seu
potencial transformador é que assumem destaque com esta abordagem.
Além disso, consonante com o que sugere Novaes (1994), a forma de tratamento
dos acontecimentos históricos iluminados por este trabalho, não tem a pretensão de se
tornar, como se esperaria, mais uma parcela da soma de constatações que compõem a
história oficial. Diferentemente disso, preocupou-se em produzir conhecimentos que
contribuam para esclarecer o cotidiano e a formação da região do São Francisco.
A história pode produzir acontecimentos ou ainda impedir que eles sejam
produzidos; pensada assim, o que a história produz são certezas absolutas
construídas fora do tempo que jamais dão respostas às questões do tempo;
acontecimentos produzidos em oposição à atividade prática, que abolem a
possibilidade da gênese do sentido ou de um vir-a-ser inteligível das idéias.
No máximo, ela é a soma de acontecimentos, postos uns em seguida aos
outros, sem sedimentação, aos quais geralmente somos submetidos sem que
tenhamos deles nenhuma perspectiva (NOVAES, 1994, p. 11).
Como principal eixo para o estabelecimento de limites, foi adotada a definição
geográfica de bacia hidrográfica para, inclusive, justificar a denominação coloquial de
Vale do São Francisco (Figura 01). Essa opção esclarece duas preocupações que
acompanharam esta pesquisa desde a sua origem: apresentar como objeto de estudo uma
porção mensurável do espaço possível de ser compreendida e identificada pelo leitor e
outra, tácita, com a valorização do elemento água, que se mostra como um vetor
fundamental da história e formação socioespacial do São Francisco.
A preocupação da pesquisa não é o detalhamento técnico das condições físicas
da região, e sim, apresentar tais características como fator indispensável para visualizar
e compreender as transformações socioespaciais aqui discutidas. As considerações
físicas e os mapas produzidos expõem toda a área da bacia do São Francisco, de forma a
possibilitar uma visão de escala mais ampla.
Mesmo considerando que os aspectos naturais são variáveis indispensáveis à
compreensão da intricada rede de relações socioespaciais existentes dentro Vale do São
81
Francisco, foi prudente limitar a análise desses fatores a três grandes variáveis: o relevo,
o clima e a vegetação.
O Vale do São Francisco é uma área heterogênea. Seja baseada em critérios de
distribuição espacial dos recursos naturais, seja utilizando a comparação entre
elementos históricos, seja empregando critérios econômicos ou de distribuição
populacional, o Vale do São Francisco, desde que interessou aos registros humanos,
apresenta diversidade significante.
Se por um lado, uma específica compartimentação morfológica
macrorregional delimita a unidade da Bacia do São Francisco no cenário
físicoterritorial brasileiro, por outro, as condições fisiográficas em seu
interior, somadas às atividades humanas aí estabelecidas, são, por assim
dizer, as mais diversas, ainda que, em alguns casos, extensões “infindáveis”
de suas paisagens possam induzir ao reconhecimento de uma suposta
homogeneidade, sobretudo, a cerca das condições de vida das populações ali
inseridas, e dos recursos naturais à sua disposição, a exemplo do que
acontece na porção da Bacia do São Francisco que está inserida no território
da Região Nordeste do Brasil (MATOS, 2007, p. 2).
Tomando como referência inicialmente os aspectos naturais, existe dentro da
bacia do São Francisco uma enorme diversidade. Entretanto, será considerado, para
efeito didático, que existem áreas de relativa homogeneidade, seja física ou
socioeconômica, que serão indispensáveis ao entendimento e validação dos argumentos
aqui apresentados. Ao analisar-se a influência dos aspectos físicos na identificação das
sub-regiões do São Francisco, não é difícil perceber que a relação com a água tem papel
fundamental.
O o Francisco, como um oásis no deserto, através dos sertões da Bahia ao
Ceará, de Pernambuco ao Piauí é, na verdade, a terra da promissão e o
refúgio daqueles povos assolados pela seca prolongada e periódica
(SAMPAIO, 2002, p. 66).
A percepção de Sampaio reflete o sentimento da população em relação à bacia e,
principalmente, em relação ao rio São Francisco. As condições naturais são, certamente,
elementos fundamentais para se entender o processo de ocupação e o desenvolvimento
socioespacial contido na região, mas não é o único fator que determina esse complexo
sistema. Zarur (1947), ao tratar das causas das imensas desigualdades sociais que
permanecem na região, apresenta outros aspectos preliminares, em conjunto com as
características físicas.
A aparente esterilidade do solo e a semi-aridez de parte da região não são as
únicas causas desta situação. Estes elementos não invalidam o uso das zonas
82
mais férteis da região. Entre as muitas outras causas incluem-se a falta de
capital, de transportes e de mercados, as doenças endêmicas e os preços
baixos da produção local (ZARUR, 1947, p. 54).
Nos três mapas seguintes, serão mostradas as características gerais do clima, do
relevo e da vegetação que, juntamente com a divisão da bacia hidrográfica apresentada
na Figura 01, farão a delimitação física da região estudada. Essas características básicas
servirão de referência para compreender a relação do espaço físico com as principais
transformações socioespaciais que se operaram na bacia no período de sua ocupação.
Do ponto de vista mais técnico é possível reconhecer a indissociabilidade entre
águas superficiais e águas subterrâneas, que formam um mesmo sistema de aquíferos e
interferem diretamente em outros elementos do quadro físico. No entanto, para fins de
análise, esta pesquisa irá limitar-se apenas ao sistema aparente de águas, uma vez que a
maior parte da população ribeirinha desconhece a associação entre essas duas variáveis.
Um fato impressionante referente à Bacia Média do São Francisco é que,
apesar de possuir um bom sistema de irrigação, com vários lagos perenes
margeando o rio principal, sofre secas periódicas. A estação seca anual e a
variabilidade de precipitação de uma época para outra, aumenta grandemente
a dificuldade de obter suprimento de água. Além dos afluentes maiores, que
apresentam quase os mesmos problemas do rio São Francisco, muitos cursos
menores, sobretudo na região ocidental da Bacia, de Barra para cima,
desempenham importante papel na economia da região (ZARUR, 1947, p.
37).
Observando a Figura 02, que trata dos compartimentos de relevo da bacia,
verifica-se que a totalidade da área apresentada é salpicada de planaltos e chapadas, que
moldam o caminho do rio São Francisco e de seus afluentes. Ao longo de sua descida
para o mar o rio principal atravessa uma área de planalto que acompanha o seu leito
principal, variando de espessura até a foz, o que acontece em menor escala com alguns
de seus principais afluentes. Essa característica do relevo é fundamental para entender
uma das principais dificuldades das populações ribeirinhas. A planície que margeia o rio
na época das chuvas torna-se um grande alagadiço, fazendo com que a distribuição das
plantações, principalmente para as famílias que a usam para sobrevivência, seja sempre
ameaçada pelo volume de águas do rio.
83
FIGURA 02 – RELEVO DA BACIA DO SÃO FRANCISCO
O São Francisco, depois de descer com certa rapidez das serras onde tem origem, corre com
pequeno declive na altitude média aproximada de 400 metros, que abandona próximo
á costa. É um rio de planalto (REGO, 1935, p. 24).
Essa mesma característica, que prejudica alguns, serve de sustento para outros. Na época das
cheias, quando o rio entorna o seu leito, formam-se várias lagoas naturais no seu entorno, que
servem como depósito de água e peixes e, assim, contribuem com o alimento de famílias que
retiram seu sustento dos alagadiços naturais, proporcionados pelo rio. O transbordo do rio é também
responsável pelo adubamento da terra e garante a sua fertilidade. As plantações realizadas após a
cheia do rio são conhecidas como "agricultura de vazante".
As práticas de cultivo no vale são bem primitivas. Os métodos pouco diferem dos
praticados nos tempos pioneiros. O grande progresso na agricultura que atingiu outras
zonas do país alcançou bem de leve a Bacia Média do São Francisco. Também muitos dos
homens que regressaram recentemente ao vale, vindos das fazendas de São Paulo, poucas
inovações introduziram (ZARUR, 1947, p. 55).
Dando foco à Região do Gado, verifica-se um alargamento dessa área mais plana, próxima
ao eixo principal do rio, o que, dentre outros fatores, colabora com a criação do gado, aumentando a
área de pastagem e facilitando o deslocamento das grandes boiadas, caso o trasbordo do rio assim o
determine.
84
As margens do Médio São Francisco são caracterizadas geralmente por barrancos de altura
relativamente pequena sendo cobertas pelas enchentes. As terras marginais, assim baixas,
prolongam-se por grandes extensões, constituindo vasto leito maior cuja largura alcança,
em certos pontos, mais de uma dezena de quilômetros (PORTUGAL, 1952, p. 10).
Em uma análise da Figura 03, verifica-se que, na escala apresentada, à exceção do Alto São
Francisco, as demais regiões da bacia tendem a apresentar clima semiárido, com escassez de chuva
em vários meses do ano. Na Região do Gado, a distribuição do clima acompanha a resto da bacia,
sendo que na área próxima a Minas Gerais, o clima é semiúmido, com distribuição de chuvas menos
acentuada durante o ano, mas, ainda assim, com predominância de clima mais seco.
FIGURA 03 – TIPOS DE CLIMA DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO
As principais características de muitos dos climas da Bacia Média do São Francisco são: a
pequena precipitação anual, curta estação chuvosa, longas estações de seca e grande
irregularidade na ocorrência das chuvas e na sua intensidade. Em algumas estações as
chuvas acarretam inundações desastrosas; em outras, uma precipitação baixa provoca secas
alarmantes (ZARUR, 1947, p. 33).
É parte do senso comum acreditar que boa parte das desigualdades socioeconômicas
encontradas dentro da bacia podem ser creditadas ao clima da região, que se apresenta com
85
configurações mais rudes e, muitas vezes, dificulta o estabelecimento de formas convencionais para
o desenvolvimento de atividades produtivas, tais como a agricultura e a criação de gado. Entretanto,
concorda-se com Matos (2007), quando minimiza os efeitos do clima sobre a condição social da
população da região e aponta outros elementos que contribuíram para sustentar o problema da
distribuição de renda na região.
Para além da questão climática, destaque-se que o baixo desenvolvimento econômico e
social de sua população é resultante de décadas marcadas pelos ditames de uma elite
concentradora de poderes político e econômico, que, para garantir o status quo, faz
promover, a partir de ações assistencialistas locais e de intervenções junto a projetos
governamentais padronizados, a reprodução de fatores que potencializam situações de
pobreza e dependência (MATOS, 2007, p. 2).
Zarur (1947) faz coro com Matos e cita uma série de outros entraves que influenciaram na
diminuição da competitividade da região do São Francisco e, consequentemente, favoreceram a
migração de pessoas que vão em busca de melhores condições em outras partes do país.
Na maior parte, a população do vale médio São Francisco deseja condições econômicas
melhores e mais estáveis. Excetuando os mais abastados, o povo tem um vel que impede
o uso total dos recursos humanos e naturais. O transporte inadequado, o sistema
desfavorável de impostos, a especulação comercial, e a falta de capital e crédito, dão em
resultado a baixa cotação dos produtos locais. Estas condições impedem também boas
oportunidades para os trabalhadores. Os baixos salários são a causa principal da grande
falta de braços em todo o vale (ZARUR, 1947, p. 21).
As duas características naturais analisadas anteriormente, relevo e clima, são claramente
demonstradas na Figura 04, que apresenta a distribuição das formas vegetacionais da bacia do São
Francisco.
86
FIGURA 04 – VEGETAÇÃO DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO
É importante ressaltar que mesmo havendo uma variedade de grupos de vegetação
distribuída em toda região, chama-se a atenção para as áreas antropizadas, seja pela urbanização,
que é mais recorrente nas sedes dos municípios; seja pela extração do cerrado para a indústria do
carvão; seja pela pecuária extensiva, que tem como característica a utilização de grandes áreas de
pastagem.
A diversidade vegetal encontrada na região do São Francisco possibilitou, principalmente
nos primeiros anos de ocupação, uma intensa atividade extrativista, que apesar de muito comum,
nunca foi explorada de forma industrial e, por isso, apresenta-se apenas como atividade
suplementar.
As atividades econômicas no vale médio do São Francisco consistem principalmente na
pecuária e na lavoura. A indústria extrativa vegetal, apesar de intensa, é apenas
suplementar. A transformação industrial dos produtos rurais constitui uma pequena parte da
economia regional e m muitos dos característicos de uma atividade rural (ZARUR, 1947,
p. 47).
Apenas a extração da madeira nativa ainda hoje se conserva como uma atividade lucrativa,
mas bem estratificada. O comércio de madeira de lei e a produção do carvão são opções de
produção que evidenciam a relação pouco sustentável das atividades econômicas que se
desenvolvem dentro da região. Na época dos vapores que trafegavam no São Francisco, a madeira
87
do cerrado foi amplamente utilizada e, atualmente, algumas das consequências dessa ação
verificam-se com o assoreamento do leito e a destruição das nascentes.
Apesar da imensa dificuldade econômica em que se encontra a maior parte da população
ribeirinha, é comum encontrar depoimentos que enaltecem o ecossistema da bacia, como sendo
alternativa à sobrevivência desses indivíduos. Sampaio (2002), por exemplo, exalta a riqueza do rio
e a sua utilização como elemento de sobrevivência.
O homem pobre nunca é suficientemente pobre que precise viver do salário. O mundo aqui
é largo demais para que se faça sentir a pressão das necessidades. A natureza pródiga não
deixa haver verdadeira pobreza, o rio é um enorme viveiro no qual nunca escasseia o peixe
e as catingas e matas marginais são um imenso e inesgotável tesouro (SAMPAIO, 2002, p.
32).
Todavia, mesmo que o rio consiga suprir as necessidades básicas de uma população pequena
e rarefeita, entende-se que a existência do indivíduo ultrapassa a simples sobrevivência, e demanda
uma inserção mais digna nas relações com a sociedade e com o meio. Por essa razão, acredita-se
que tais afirmações ufanistas tentam apenas esconder a condição social de miséria e adversidade,
nas quais vivem e viveram essas populações.
88
3.3 Reflexões Sobre a Ocupação do Vale do São Francisco
A ocupação da área da bacia do São Francisco deu-se de forma diferenciada ao longo do
tempo. Apesar do conhecimento da foz do rio logo nos primeiros anos da descoberta do Brasil,
apenas nos séculos XVII e XVIII, com a mineração em Minas Gerais, é que as áreas a montante
receberam uma ocupação mais efetiva. A historiografia tradicional, ao tratar do pioneirismo na
ocupação do território mineiro, sempre atribuiu tal feito aos bandeirantes paulistas, que ao final do
século XVII, descobriram o ouro em Minas Gerais e estabeleceram ali os primeiros povoamentos.
Tal interpretação permaneceu inquestionável até recentemente, quando revisões históricas
esboçaram novas teorias sobre esse tema. Sugere-se que a conquista do interior mineiro se deu, em
grande medida, por intermédio do rio São Francisco, mediante a migração de habitantes de
Pernambuco e da Bahia, para as áreas mais ao sul, acompanhados de suas boiadas.
Essa teoria defende que os primeiros povoamentos surgidos ao longo do São Francisco, em
função da pecuária, permitiram não a conquista de grandes áreas do sertão, como contribuíram
para o abastecimento dos engenhos de açúcar do litoral nordestino, logo nos primeiros anos de
colonização e, posteriormente, sustentaram a região mineradora, fornecendo itens de primeira
necessidade.
Na fase açucareira da Colônia, quando o Brasil detinha o cetro do fornecimento de açúcar
ao mundo civilizado, era o gado originário do vale do grande rio que abastecia de carne a
população lavradora do litoral, acionava as engenhocas ou transportava cana nos pesados
carros coloniais para as proximidades das moendas. Por ocasião da descoberta do ouro e do
desenvolvimento da mineração no século XVIII já o Vale do São Francisco se achava
repleto de gado, com várias vilas florescentes (ROCHA, 1946, p. 15).
O fator principal que sugere a ocupação do sertão mineiro, principalmente no Alto São
Francisco, é a descoberta do ouro na região da lendária Sabarabussu. Entretanto, são vários os
indícios que confirmam a presença consolidada de propriedades rurais especializadas na criação de
gado ao longo do rio São Francisco, e o esboço de uma rede comercial estabelecida entre esta
área e o litoral. Uma delas, como analisa Santos (2001), é a existência de um caminho terrestre
ligando a região do rio das Velhas principal afluente da margem direita do São Francisco no
interior de Minas Gerais à região do Recôncavo Baiano, principalmente a cidade de Salvador, na
Bahia, que funcionava como canal de condução para as boiadas utilizadas no consumo da
população baiana. Esse caminho era conhecido como “Caminho da Bahia”, “Caminho dos Currais”,
ou “Caminho do São Francisco”.
89
O que é certo é que, já na primeira fase da mineração, o caminho do rio das Velhas para o
Recôncavo Baiano era uma realidade que servia para duas ordens fundamentais de
objetivos: estabelecer a ligação mercantil entre a região das novas minas e a “cidade da
Bahia”, como chama Antonil a Salvador, e prover de gado a mesma região, trazendo dos
vales dos rios das Velhas e São Francisco as famosas boiadas para o consumo da sua
população (SANTOS, 2001, p. 118).
Essa hipótese é compartilhada por vários autores
19
, defensores de que, inobstante o papel do
conquistador paulista no desbravamento do sertão, os criadores de gado baianos e pernambucanos,
estabeleceram-se às margens do São Francisco, próximos a área do ouro, antes mesmo das
primeiras bandeiras de exploração alcançarem aquela região. Tais considerações sugerem que os
caminhos terrestres, partindo do litoral e seguindo pelo São Francisco, permitiram fixar o homem à
terra com o desenvolvimento de fazendas de gados e de pequenos povoados ao longo do grande rio.
Esses pequenos arraiais, localizados à beira do rio, contribuíram para fomentar o comércio fluvial,
indispensável à criação das primeiras redes de comércio ribeirinho.
As pastagens atraíram os primeiros colonizadores para o rio São Francisco. A criação de
gado nos primeiros tempos da colonização foi a única atividade bem apropriada para o
sertão, pois: 1) o gado poderia conduzir-se facilmente para os mercados litorâneos mais
distantes, e 2) as pastagens naturais e as condições físicas gerais da região eram favoráveis.
O capital necessário para começar um estabelecimento criatório era pequeno. A terra era
adquirida por sesmarias ou pelo pagamento dum pequeno aforamento anual. Umas tantas
cabeças de gado e um par de cavalos bastavam para iniciar um rebanho. O gado requeria
pouco trato, pois era, e ainda é criado em campos abertos; as instalações que outras zonas
do país requeriam ali tornavam-se desnecessárias. Quatro ou seis escravos, geralmente
mestiços ou índios, bastavam para guardar um enorme rebanho. Manter um curral requeria
poucos gastos. A maior parte do sal era trazida da costa, mas alguns solos do sertão
possuíam uma quantidade apreciável de sal, que era usada diretamente pelos animais
(ZARUR, 1947, p. 71).
O pioneirismo na ocupação de praticamente toda a área do Vale do São Francisco, pelos
criadores de gado baianos e pernambucanos, acontece paulatinamente, a partir do litoral, logo nos
primeiros anos da exploração efetiva do Brasil. Em meados de 1549, chega ao Brasil Tomé de
Souza, primeiro Governador Geral da Colônia. Lançar as bases do Império Português nas terras de
além-mar, era a sua principal missão, compartilhada com Gárcia d’Avila, personagem conhecido e
emblemático da história do São Francisco.
Na comitiva de Tose Souza vinha Garcia d’Ávila, o precursor de nossos bandeirantes.
Circunscritas ao litoral na primeira metade do século XVI, após a chegada de Tomé de
19
Essa teoria é compartilhada também pelos autores Magalhães (1935), Vianna (1935), Carvalho (1953) e Vasconcelos
(1974).
90
Souza começaram as penetrações pelo sertão. O gado trazido pelas caravelas multiplicou-se
com rapidez. Garcia d’Ávila penetrando o São Francisco em correrias contra os selvagens,
lobrigou as vantagens de aproveitar os vargeados, vazantes e carnaubais para o
desenvolvimento da pecuária no vale (ROCHA, 1946, p. 15).
Observando-se o contexto político externo, verifica-se que as ações quase espontâneas de
interiorização do país não foram totalmente reguladas pela Coroa Portuguesa, que se encontrava em
dificuldades para encontrar a própria estabilidade política. Mesmo com a vigência do Tratado de
Tordesilhas
20
, um apoio velado a essas empreitadas pelo sertão pôde ser percebido. A conjuntura
política na Metrópole favorecia as expedições para o interior do Brasil uma vez que, de 1580 a
1640, Portugal esteve sob o domínio da Espanha, no período que ficou conhecido como União
Ibérica
21
. O Tratado de Tordesilhas, que dividia as descobertas marítimas na América entre
Portugal e Espanha, funcionava como barreira simbólica às penetrações para o interior, uma vez que
transpor esse limite significava invadir os territórios espanhóis na América. Contudo, no período da
União Ibérica, a fusão das duas monarquias possibilitava o deslocamento para o oeste das colônias
portuguesas, sem que isso significasse um desarranjo diplomático.
Com a retomada da autonomia em relação ao reino espanhol, as terras exploradas pelos
colonizadores portugueses no Brasil continuariam em poder dos Portugueses que, vislumbrando
essa possibilidade, se adiantaram na conquista do território, mediante incentivo às expedições rumo
ao sertão. A conjuntura que envolveu a demarcação de terras das colônias ibéricas na América
revela a habilidade dos diplomatas portugueses, ao se anteciparem às mudanças na demarcação de
territórios (que deixariam de ser realizadas por linhas imaginárias convencionadas, para basear-se
em marcas naturais, como rios, serras, divisores de águas e outras referências espaciais
22
). Com a
20
O Tratado de Tordesilhas, assinado na povoação castelhana de Tordesillas, foi firmado em 7 de junho de 1494, entre
Portugal e Castela. Estabelecia a divisão das áreas de influência dos países ibéricos, cabendo a Portugal as terras
"descobertas e por descobrir", situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas (1.770 km) a oeste das ilhas
de Cabo Verde, e à Espanha, as terras que ficassem além dessa linha.
21
Com a morte do rei português Dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, Portugal se em uma crise
dinástica sem precedentes, pois o rei não havia deixado herdeiros. O cardeal Dom Henrique, tio-avô do monarca,
assumiu o trono como regente, mas em 1580, por ocasião de sua morte, chega ao fim a dinastia de Avis, estabelecida
desde 1385. Filipe II, rei da Espanha, reivindica para si o controle das duas coroas e, a partir de um controle militar,
estabelece a1640 o período da União Ibérica, que chegou ao fim com a ascensão de Dom João IV, iniciando em
Portugal a Dinastia de Bragança.
22
O Tratado de Tordesilhas não foi impeditivo para que espanhóis e portugueses trafegassem livremente entre as
colônias na América. Todavia, depois do fim da União Ibérica e as constantes disputas territoriais entre os dois países,
foi firmado o Tratado de Madrid. Assinado na capital espanhola por D. João V de Portugal e D. Fernando VI de
Espanha, em 13 de janeiro de 1750, esse acordo vem para definir os limites entre as colônias americanas. O objetivo do
tratado era substituir o de Tordesilhas, que não era mais respeitado na prática. As negociações basearam-se em
referências naturais, privilegiando a utilização de rios e divisores de águas, para a demarcação dos limites territoriais
entre as duas cortes. Cf. BUENO, Beatriz P. Siqueira. "Definição de Fronteiras Razão & Técnica na Selva"; Revista
História Viva. Ano VI, nº 65, 2008.
91
exploração de ouro e diamantes nas serras de Minas, Portugal promove uma política de estimulo à
ciência geográfica, incentivando a vinda de engenheiros, naturalistas e pesquisadores, a fim de
realizar um efetivo mapeamento do território. As vantagens obtidas nas negociações com o reino de
Castela, após o fim do Tratado de Tordesilhas, refletem a preocupação da Coroa Portuguesa em
controlar os caminhos e formas de penetração na cobiçada Colônia.
Em terras brasileiras, o gado que inicialmente era um complemento às atividades de
produção de cana de açúcar no litoral brasileiro, sendo utilizado também para o consumo aos
poucos, começa a competir com os engenhos de açúcar, fazendo com que a antiga tendência de
deslocamento para o interior, acompanhando o curso do rio, fosse incentivada a partir de uma
resolução da Coroa Portuguesa, de 1701, que proíbe a pecuária a menos de dez léguas da costa
atlântica, evitando, assim, que o gado interferisse na produção de açúcar e incentivando ainda mais
a conquista do interior
23
.
nas primeiras ações para a conquista das terras a montante do São Francisco, fica claro o
caráter complexo dessa ocupação e da constante disputa por terras produtivas da região. Os efeitos
da expansão recaíram de imediato sobre as tribos indígenas que povoavam essas áreas. As
constantes investidas das frentes de expansão e de ocupação dos colonizadores forçaram o indígena
a se deslocar cada vez mais para o interior, na tentativa de garantir sua sobrevivência e evitar o
confronto. Esse processo não foi sem resistência, e são vários os registros de intensas batalhas entre
o conquistador português e os índios, principalmente os Kariris, que habitavam o baixo e médio São
Francisco. Tais combates foram se intensificando à medida que os colonos necessitavam de mais
terra para a criação de gado.
Pode-se perceber que as entradas para o sertão, mais do que representar a necessidade de
exploração de novas terras, eram verdadeiras expedições militares para o combate de grupos
indígenas, visando a captura e escravização do nativo, ainda utilizado nas tarefas ligadas à produção
de cana de açúcar no litoral. Além dessa atividade imediata, as entradas para o sertão contribuíram
para a pesquisa de metais preciosos e para a condução do gado para o interior.
O povoamento começou do norte e espalhou-se rio acima para as melhores pastagens
naturais, dando ao vale uma colonização esparsa. Além das grandes doações para pastagens
as bandeiras e entradas, durante o século XVII, criaram muitos currais novos e, depois de
1690, os soldados que tinham combatido os índios estabeleceram muitos outros, com o
auxílio do índio cativo (ZARUR, 1947, p. 72).
23
Cf. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1520-1820). São Paulo: Nacional, 1962, 4 ed., p. 150-
152.
92
Na linguagem nativa dos índios, Oparáera o nome que designava o São Francisco. Seu
significado é Rio-Mar. Por não encontrar um termo equivalente na língua portuguesa, o “Opará” foi
batizado como São Francisco, em homenagem ao santo comemorado no dia de sua descoberta,
ditando, então, a tônica dessa ocupação, que seria executada segundo os interesses exclusivos dos
conquistadores.
As relações estabelecidas com os indígenas após a ocupação de suas terras foram
reconhecidamente conflitantes, embora tenha havido também relações de acomodação e
aculturação. Por desenvolver práticas culturais e produtivas usando o mesmo espaço, coexistiram
índios, portugueses e, posteriormente, os escravos africanos, apesar de suas matrizes culturais
distintas. As práticas comuns ao cotidiano, que forçavam a convivência dessas culturas, por muito
tempo desencadearam um processo de sobreposição, mistura de costumes e hierarquização de
culturas, que se moldaram a partir de influências recíprocas.
O elemento humano na Bacia Média do São Francisco, apesar de sofrer em geral vários
cruzamentos, apresenta um tipo especial, completamente diverso do que habita a região
costeira e os platôs do sul. O habitante de ascendência cruzada do vale, tanto quanto o do
nordeste e do interior, é chamado sertanejo. Ainda que puramente brancos, negros e índios
somem um pequeno total a maior parte pertence ao tipo caboclo, que é principalmente, um
produto dos troncos branco e índio, com traços de sangue negro (ZARUR, 1947, p. 8).
Esse olhar antropológico sobre a condição imposta aos indígenas e negros durante a
ocupação é uma visão que pode ser aplicada atualmente com as novas revisões historiográficas,
que entendem o índio como personagem histórico dotado de interesses e necessidades, ao contrário
da percepção da época, que o identificava quase como um animal de trabalho. O mesmo pode ser
dito em relação aos negros, que até pouco tempo figuravam na historiografia tradicional, apenas
como mão-de-obra para as ações dos brancos.
Desde as investidas de Garcia d’Ávila sobre o Vale do São Francisco, desafiando os
obstáculos de uma terra desconhecida, dotada de ecossistemas bem diferentes, surgem os embriões
das primeiras vilas e arraiais.
Penetrando pelo Vale do São Francisco, do norte para o sul, em direção oposta a corrente,
ele escolheu pontos apropriados, construindo currais primitivos, deixando em cada um
deles um casal de escravos, dez novilhas, um touro e um casa de eqüinos, lançando assim a
semente da maior e mais notável das riquezas nacionais (ROCHA, 1946, p. 16).
É notório o fato de que a criação de gado e a agricultura de subsistência foram as principais
formas produtivas exercidas pelos primeiros habitantes do São Francisco, ao lado das ações
93
extrativistas, da caça e, principalmente da pesca, atividades complementares extremamente
difundidas nos primórdios da ocupação.
Apesar de serem o pastoreio e a agricultura as fontes mais lucrativas da região, houve desde
logo uma ativa devastação da riqueza natural. As florestas foram derrubadas. Ceras e óleos
de diferentes espécies de palmeiras eram extraídos de maneira rudimentar. Empregavam-se
sistemas primitivos para pescar e os animais selvagens eram caçados intensamente para a
utilização de suas peles (ZARUR, 1947, p. 6).
Em uma de suas viagens ao São Francisco, Saint-Hilaire
24
confirma a ocorrência constante
desses métodos, cujas ações desordenadas sobre os recursos naturais formavam os embriões das
condições ambientais hoje existentes em várias partes do vale.
Durante todo o dia, o único animal que encontrei foi um macaco. Como já disse, os
habitantes do sertão são todos caçadores entusiastas, matando qualquer animal cuja pele
possa ser objeto de comércio. o passei por uma única propriedade que não contasse com
numerosos cães de caça (SAINT-HILAIRE, 2004, p. 108).
Com o início da ocupação das áreas mais ao interior, instituiu-se o sistema de sesmarias,
como incentivo a fixação do homem à terra. Às margens do São Francisco, as grandes sesmarias de
Antônio Guedes de Brito e dos Garcia d’Ávila, datadas do século XVII, subsidiaram esse processo
de ocupação e de povoamento.
Estabelecido um governo regular na Bahia, com a creação da Província do Brazil, tendo
como primeiro governador Thomé de Souza erigiram-se três casas que se dedicaram a
conquista e a colonização: Niza, representada pelo Conde de Castanheira e D. Violante da
Camara; Casa da Torre, com os Avilas inolvidáveis e Casa da Ponte, com o mestre de
Campo Antonio Guedes de Britto. A casa Niza limitou sua acção ao litoral, pouco ou nada
fazendo pela colonização (...) A Casa da Ponte teve papel mais relevante que a primeira,
estendendo sua acção de Jacobina para o rio Verde e dahi para o São Francisco. (...)
Sobrelevou a todas a Casa da Torre, a legendária Casa, cujos representantes se enaltecem
nas campanhas da conquista dos sertões brasileiros, da colonização e da Independência
(PIMENTEL, 1936, p. 11).
Entende-se que no Brasil Colônia a relação de poder está diretamente vinculada ao acesso à
terra, e a sua concentração foi responsável pela centralização da renda e exclusão social. No Vale do
São Francisco essa realidade possui origens profundas, que remontam os primeiros anos da
ocupação, com a chegada de Tomé de Souza, quando grandes lotes de terra foram distribuídos entre
as três principais Casas Senhoriais, que tinham como principal tarefa cuidar de sua colonização.
24
Trecho extraído dos relatos da viagem realizada ao São Francisco no ano de 1816.
94
Essa estratégia de ocupação colonial incentivava a concentração de terras e estabelecia o embrião de
futuros problemas fundiários no sertão do São Francisco.
... a história do rio é um contínuo pedir de sesmarias que se vão justapondo pelas duas
margens, entram pelos vales dos tributários e depois de ocupá-los, refluem para a calha do
S. Francisco prosseguindo na subida. Com o tempo novas sesmarias virão, por caminho
diverso, ao encontro destas, descendo da chapada Diamantina pela rampa dos vales. A
servidão da água para os rebanhos dará a este marcha e aspecto de um líquido paradoxal
que se alastra rio acima, procurando as linhas de menor declive, acompanhando o baixo
relevo dos vales, desenhando com o pontuado dos rebanhos a árvore hidrográfica da bacia
(PROENÇA, 1944, p. 52).
Proença (1944), ao discutir a distribuição das sesmarias, apresenta algumas justificativas
para tentar entender o processo de distribuição e concentração de terras característico da ocupação
do São Francisco.
A ganância de ampliar desmedidamente as propriedades, criando latifundiários como
Garcia d’Ávila, dono de terras de criação maiores que o território de Portugal, é mais que
um traço psicológico, porque é uma necessidade. A criação de gado não enriquece
facilmente, não tem comparação com os lucros que deixam os engenhos, é ridícula numa
terra onde existem minas de ouro e pedras preciosas. Outros motivos determinam o sistema
extensivo de criação: as terras nem sempre são boas para a agricultura, que exige solo
humoso obtido pela destruição das matas, segundo sistema aprendido dos índios
(PROENÇA, 1944, p. 68).
A descoberta do ouro em Minas foi efetivada a partir dos descaminhos dos bandeirantes
paulistas, que saindo da Capitania de São Vicente, tinham como missão aprisionar índios e
prospectar novas fontes de riquezas pelo interior. Anunciada a descoberta das minas de ouro na
região de Sabará, os bandeirantes paulistas reivindicaram junto à Coroa a exclusividade na
exploração das jazidas descobertas. A despeito das reivindicações paulistas, a Corte Portuguesa, tão
logo foi informada da descoberta do ouro, reivindicou todo o controle da exploração do ouro, sendo
este um dos principais causadores da “Guerra dos Emboabas”.
A Guerra dos Emboabas, que se passa na região central de Minas
25
, entre os anos de 1707 a
1709, configurou-se como um conflito armado entre os paulistas — originários da Capitania de São
Vicente — e os Emboabas. Em linhas gerais, o termo "emboaba" fazia referência a qualquer
indivíduo que não pertencesse ao grupo dos paulistas. Incluíam-se nesse grupo, os reinóis,
pernambucanos, baianos, fluminenses e estrangeiros, pois a alcunha era utilizada para representar o
outro. Conforme Romeiro (2001):
25
Região do Ouro: Sabará, São João Del Rei, Ouro Preto e Mariana.
95
... segundo uma velha tradição, geralmente aceita pela historiografia, mas insuficientemente
documentada, a palavra emboaba deriva de “Mbuãb”, palavra que os índios empregavam
para se referir às aves que têm penas até os pés. Como os reinóis usavam calças ou polainas
que lhes cobriam os peitos dos pés, ao contrário dos paulistas que andavam descalços, estes
lançaram mão da palavra emboaba para associá-los, de forma pejorativa, ao pinto calçudo
(ROMEIRO, 2001, p. 195).
É equivocado pensar que o grupo dos Emboabas mantivesse uma homogeneidade de
interesses e valores que justificasse essa composição, fato é que o único elo que os unia era a
oposição ao grupo paulista.
O conflito estendeu-se por quase dois anos e, sem os privilégios desejados e não dispondo
de mais forças para se opor, os paulistas deixaram as áreas das novas jazidas e dirigiram-se para a
região de Goiás. Com o fim da refrega, a região das minas abrigou uma variedade enorme de
indivíduos, com culturas e valores diferentes, sendo que rapidamente as cidades ali constituídas se
tornaram as mais populosas e com a economia mais diversificada da colônia.
Não se pretende apontar aqui o derradeiro desbravador das terras mineiras. Contudo, tratar
desse assunto revela uma série de elementos úteis para o entendimento não do processo de
ocupação do Alto São Francisco, mas de todo o simbolismo que envolve essa questão.
O bandeirante paulista, na historiografia nacional, durante muito tempo representou a figura
do herói. Um indivíduo, que apoiado apenas na coragem pessoal, desbravava o sertão a fim de levar
a “civilização ao não civilizado”. Como símbolo nacional, a representação do herói bandeirante
surge no momento em que o Brasil, já independente de Portugal, tenta elaborar uma história
nacional. Carente de mitos genuinamente” brasileiros, a historiografia oficial utiliza a figura do
bandeirante como elemento simbólico para formatar os valores nacionais.
As revisões historiográficas recentes criticam essa figura estigmatizada do paulista do
sertão, identificando seus hábitos e costumes, muito mais com os indígenas que eles perseguiam, do
que com os senhores portugueses que eles representavam.
A verdade é que os homens do planalto (paulistas) teriam compreendido que para levar a
cabo a empresa de enfrentar e dominar grupos indígenas, era preciso ser como eles virar
índio aprender o mundo do ponto de vista dos indígenas. Precisavam entender o sertão
para conseguir sobreviver nele. Portanto, era preciso aprender com sua presa. Na
cosmologia indígena verifica-se a noção de que no embate com o outro é preciso usar as
categorias de percepção do outro. (...) Contudo, os homens do planalto não sairiam ilesos.
O resultado, como uma espécie de jogo dialético, foi a elaboração de um modo de ser
paulista estreitamente relacionado à sua proximidade com o indígena. A partir daí, a
percepção desse grupo sobre a perspectiva da alteridade pelos emboabas, era sempre
referida à sua mescla com o indígena. Mescla cujo sentido não se limitava a miscigenação
biológica, mas pela assimilação de seu aparato cultural. A formação de uma identidade
paulista não se deu por oposição ao indígena, mas sim pela assimilação de seu aparato
cultural (NASCIMENTO, 2007, p. 34).
96
Essas constatações somam-se a uma nova interpretação que revaloriza o papel do criador de
gado, do pequeno comerciante fluvial, enfim, do sertanejo do São Francisco na historiografia
regional. Em conjunto com o bandeirante paulista e com o minerador, os pecuaristas do São
Francisco, o sertanejo e os comerciantes ribeirinhos talvez sejam os personagens principais da
consolidação do que entende-se como sociedade e cultura mineira.
Até esse momento, tratou-se de um recorte temporal, que se passa aproximadamente entre os
anos de 1530 (quando se inicia oficialmente a ocupação da colônia brasileira pelos portugueses) a
1709 (quando chega ao fim a Guerra dos Emboabas, o que facilitaria o acesso às minas de ouro
recém-descobertas em Minas). Tais considerações refletem sobre a paulatina ocupação do rio a
próximo de suas nascentes em terras do Alto São Francisco. A descoberta do ouro ao final do
século XVII acelerou o processo de ocupação das áreas a montante, uma vez que esse
acontecimento teve repercussão, em toda a Colônia, na Metrópole, bem como em boa parte do
mundo. Observa-se que nas áreas de criação de gado os processos de ocupação e consolidação
social ocorreram mais lentamente. Em contrapartida, nas áreas mais a montante do São Francisco,
em função da descoberta do ouro e da chegada dos imigrantes, foi notável uma dinâmica social
mais diversificada, com transformações que ocorreram de forma mais rápida. A própria
urbanização, favorecida pela concentração populacional, proporcionou o surgimento de novas
ocupações e ofícios, que algumas vezes, possibilitaram a alguns uma relativa flexibilização nos
critérios para a mobilidade social.
Tais averiguações remetem aos princípios que nortearam a ideia das temporalidades
múltiplas, apontadas por Fernand Braudel e apresentadas na primeira parte deste trabalho. As
diferenças nas dinâmicas sociais e econômicas, dispostas comparativamente na região da pecuária e
na região da mineração, vão ao encontro das constatações do autor, no que diz respeito às relações
diversas com a temporalidade, que dependendo do aspecto e da escala analisada, apresentam
comportamentos distintos diante das mudanças e permanências.
Chegaremos assim a uma decomposição da história em planos sobrepostos; ou se se quiser
à distinção, no tempo da história, de um tempo geográfico, de um tempo social, e de um
tempo individual. Ou ainda, se se preferir, à decomposição do homem num cortejo de
personagens (BRAUDEL, 1946, p. 26).
A maior dinâmica econômica, social e cultural, propiciada pela descoberta do ouro no Alto
São Francisco, possibilitou a maior assimilação das transformações culturais e sociais que
acompanharam o processo de formação da sociedade, que se consolidava a partir da extração
mineral. Diversamente do que sucedeu na Região do Gado, os indivíduos que se arriscavam na
97
mineração possuíam formação, interesses e necessidades bem diferentes dos fazendeiros do São
Francisco.
A descoberta das minas de ouro representou desde o início a esperança de cabedal para
muitos homens. E nessa busca verificou-se um fluxo migratório para a região das minas, o
qual refletiu um processo de decréscimo populacional não das demais capitanias, mas
também da Metrópole. Nesse contexto, visando garantir a posse de seus descobertos, os
paulistas redigiram uma petição reclamando a prioridade da exploração das datas auríferas,
enquanto seus legítimos descobridores (NASCIMENTO, 2007, p. 25).
Rapidamente, os pequenos vilarejos surgidos da exploração do ouro foram se tornando mais
urbanizados e com uma dinâmica tal, que atingiu a sociedade em todos os seus aspectos,
econômicos, sociais ou culturais. A consolidação das primeiras cidades com vocação mineradora,
tais como Sabará, Mariana, Ouro Preto e Caeté, foram marcos importantes para se compreender as
mudanças que se processariam não só na região mineradora, mas em todo o Vale do São Francisco.
O povoamento das Minas Gerais foi efetivamente impulsionado pelo comércio, que
representou para a Coroa a possibilidade de interiorização da Colônia. A possibilidade de
auferir grandes lucros através da atividade comercial favoreceu o estabelecimento de redes
de abastecimento na região, incentivadas pelo caráter urbano do povoamento promovido
pela economia aurífera (NASCIMENTO, 2007, p. 19).
Zarur (1947) afirma que a maior dinâmica econômica incentivada pela urbanização nas vilas
ligadas à mineração teve papel preponderante para o desenvolvimento do comércio também na
região do médio São Francisco. Inclusive, o autor salienta a íntima relação entre essas duas áreas,
atestando que os eventos situados na região da mineração sempre interferiam na dinâmica
econômica da Região do Gado.
Nos meados do século XVIII, a criação e, em menor escala, a lavoura, floresceram como
conseqüência dos mercados das regiões auríferas. Os povoados ao longo do rio São
Francisco também começaram a mostrar desenvolvimento nas suas atividades comerciais e
muitas fortunas foram feitas no vale (ZARUR, 1947, p. 72).
Um dos principais motivadores para a maior dinâmica da região aurífera foi justamente o
florescer do comércio. Com o crescimento populacional e maior agilidade econômica, a exploração
do ouro favoreceu o fortalecimento das relações comerciais interregionais, possibilitando que áreas
próximas à região das minas servissem como sustento aos indivíduos que se aventuravam na busca
do ouro. A possibilidade de estabelecer comércio com as cidades do ouro incentivou ainda mais as
trocas mercantis já consolidadas entre as cidades do médio São Francisco.
98
Pelo Caminho da Bahia formou-se, então, uma das mais amplas redes de circulação de
mercadorias para a região das minas. E os criadores de gado dos rios São Francisco e das
Velhas puderam se consolidar como os responsáveis pelas grandes reservas da mercadoria
de que, juntamente com o escravo negro, as minas gerais mais necessitavam: a carne bovina
para a manutenção dos arraiais, povoados e vilas mineradoras (SANTOS, 2001, p.,133).
Segundo Matos (2007), a consolidação da rede de cidades no médio São Francisco foi
consequência das relações comerciais estabelecidas tanto com o litoral nordestino, quanto com a
região das minas.
Como conseqüência de uma primeira fase de incursões pioneiras a partir da foz do São
Francisco, e da descoberta de riquezas minerais em algumas áreas no interior de sua bacia,
dá-se no transcurso dos séculos XVI, XVII e XVIII, uma progressiva ocupação do Vale do
São Francisco. Com o tempo, a integração econômica e a constituição de uma rede de
localidades, catalisaram a formação de um complexo de caminhos que, historicamente,
constituíram vetores fundamentais no processo de territorialização da Colônia portuguesa,
podendo-se citar dois dos mais importantes: a Estrada Real e a Hidrovia do São Francisco
(MATOS, 2007, p. 4).
Santos (2001) compartilha as afirmações referentes aos caminhos do São Francisco,
afiançando que a possibilidade de utilização de uma via alternativa para o escoamento da produção
de ouro seria um artifício para burlar os mecanismos de tributação instituídos pela Metrópole, na
Colônia, em Minas Gerais, e um dos principais fatores que incentivaram a rota são-franciscana após
a descoberta do ouro. Formalmente escoado pelas estradas oficiais, o caminho do São Francisco,
tornara-se rota alternativa para o contrabando e a saída ilegal da produção aurífera.
O Caminho da Bahia era o descaminho do ouro, outra razão da preferência por ele. A
expressão, que tem hoje um sentido alegórico, tinha no século XVIII um significado bem
preciso. Pelos descaminhos se evitava o pagamento de quintos, direitos de entrada, direitos
de passagem e todos os outros atributos que pesavam sobre a população envolvida com o
conjunto de atividades geradas pela mineração. Eram os caminhos do contrabando
(SANTOS, 2001, p. 143).
Durante todo o período da mineração em Minas, o Caminho do São Francisco serviu como
elemento de integração entre o Nordeste e o Sudeste do país. Somente após a transferência oficial
da sede da Colônia da Bahia para o Rio de Janeiro, o Caminho da Bahia perde importância.
Foi somente quando a cidade do Rio de Janeiro se firmou efetivamente como o grande
entreposto da capitania das Minas Gerais que o Caminho da Bahia perdeu em significação.
Em 1724, os direitos de entrada pagos na via baiana deixam de crescer; em 1725, o
Caminho Novo está definitivamente consolidado com a abertura da variante Proença; em
1763, a capital do governo geral da colônia é transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.
As três datas, emblemáticas, espelham a longa e inexorável derrocada da Bahia como o
eixo econômico da colônia e a ascensão da cidade fluminense como pólo econômico e
99
político do território brasileiro. D se seguiu o fim do Caminho da Bahia como via de
circulação mercantil historicamente significativa (SANTOS, 2001, p. 145).
Ao final do século XVIII, com a diminuição da extração de ouro em Minas Gerais, o sistema
da mineração declina e as cidades surgidas a partir do ouro perdem população. Com a decadência
da mineração, a porção mineira da bacia do São Francisco, principalmente a Região do Gado,
permaneceu durante décadas semiabandonada. Mesmo sendo o rio São Francisco um importante
meio de transporte fluvial local, a economia do médio São Francisco, entra em declínio, pois não
conseguiu, nos períodos áureos, implantar processos econômicos que ultrapassassem o mero
fornecimento de itens primários para a manutenção da área de mineração. Com a mudança da
capital da Colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, o processo de desenvolvimento da
região estagnou-se e o rumo do comércio de Minas Gerais orientou-se para o sul, em direção ao
litoral do sudeste.
Como era natural, a crise da mineração atingiu a economia dos criadores que nunca mais
se aprumaram, visto que, ao tempo em que Minas se refez economicamente, esse já era um
fenômeno de influência litorânea, alheio portanto à vida do São Francisco. Minas Gerais
voltara-se para o mar em sua economia, dispondo do caminho de Garcia Pais, que levava
ao Rio de Janeiro, para onde se mudara o Governo Geral desde 1763, onde viera a ter a
corte portuguesa no começo do século dezenove. Conservavam-se fiéis ao sertão apenas as
populações mineiras do vale, fidelidade que pode ser caracterizada por uma pobreza sem
remédio, desamparo dos governos, pouca saúde e um traço comum de infelicidade que une
os ribeirinhos do São Francisco (PROENÇA, 1944, p. 94).
A decadência da exploração do ouro em Minas Gerais é um marco essencial para se
compreender o desuso dos caminhos do gado, a diminuição do comércio fluvial e menor utilização
dos caminhos terrestres na região do São Francisco. Segundo Matos (2007),
Com a vinda da família real para o Brasil em 1808, estavam lançadas as bases para um
processo de modernização do Brasil meridional que se irradiaria até perto da Independência
em 1822. As melhorias econômicas demandadas com a transferência da sede do Império
português para o Brasil contribuíram para o relativo abandono da região do São Francisco.
Mais tarde, outras regiões mineiras sobressaíram-se na atividade agropecuária
ultrapassando a região do São Francisco em termos de produtividade e planteis raciais.
Regiões mais próximas do Rio de Janeiro, como o Sul de Minas, e depois o Triângulo
Mineiro gradativamente se tornaram prósperas em decorrência da criação de gado leiteiro,
produtos lácteos, carne e derivados (MATOS, 2007, p. 23).
Com o esgotamento das minas, grande parte dos habitantes que viviam da mineração passa a
dedicar-se à agricultura e à criação, tornando-se competidores dos seus antigos fornecedores.
Assim, ao mesmo tempo em que prosseguia a exportação de gado da bacia média do São Francisco,
100
começava a concorrência dos criadores vizinhos dos mercados consumidores. Favorecidos por
melhores condições naturais e pela proximidade dos grandes centros, pouco tempo depois, essas
novas áreas de pecuária ocupariam o lugar da região do São Francisco como fornecedor do gado.
Após a conclusão do processo de Independência, a elite brasileira responsável pelo
movimento praticamente desinteressou-se pela região do sertão são-franciscano. Pressionada por
exigências de modernização do país, principalmente das áreas de produção do café e da embrionária
indústria nacional, grandes áreas do interior do Brasil ficaram em compasso de espera. A construção
de uma nação independente solicitava melhorias significativas em áreas de infraestrutura básica
que, devido à baixa densidade demográfica da região do São Francisco e ao primitivo sistema de
produção disponíveis na região, não conseguiu capturar recursos para a modernização. Mesmo o
comércio fluvial pelo São Francisco, que conservava parte de sua relevância regional, não foi capaz
de captar investimentos, uma vez que as características do transporte pela via fluvial não atendiam
mais às demandas da modernidade.
Entretanto, a viabilidade natural da navegação utilizando o São Francisco foi fator decisivo
para que na década de 1870
26
, se iniciasse a utilização dos barcos a vapor, como importante veículo
de transporte de cargas e passageiros de Minas Gerais até próximo da foz. Essa iniciativa fez com
que a região do São Francisco figurasse em consonância com a modernidade, uma vez que a
utilização de tais equipamentos de navegação traduziu um alinhamento com as tendências de
vanguarda da época.
O Governo Imperial, percebendo a importância da viação fluvial do S. Francisco, cogitou
seriamente melhorar as condições do rio, tornando-o uma via de penetração integral, com a
utilização dos portos situados em sua barra (REGO, 1935, p. 204).
A condição de destaque no período inicial de adoção dos vapores foi facilitada pela
abundância de material utilizado como combustível para movimentação dos motores. A fartura da
lenha encontrada no cerrado e no sertão, ao longo do leito do São Francisco foi essencial para se
manter comercialmente viável a viagem fluvial, inobstante as consequências dessas práticas na
própria conservação das condições de navegabilidade do rio.
O quase total desaparecimento da vegetação ciliar do rio São Francisco, que serviu para
extração da lenha que movimentou o vapor Presidente Dantas, utilizado pela Comissão
26
No dia 3 de fevereiro de 1871, o barco Álvares de Araújo inaugurou a era da navegação fluvial a vapor nas águas do
rio São Francisco, passando pelas vilas de Guaicuí, Januária, Carinhanha, Barra do Rio Grande, Xique-Xique, Pilão
Arcado, Remanso, Juazeiro e Boa Vista.
101
Hidráulica, provocou o assoreamento de partes do rio que seguramente não seriam
reconhecidas pelos viajantes de então (SAMPAIO, 2002, p. 38).
A utilização do transporte fluvial via vapores, aliada a incipiente malha ferroviária que
interligava algumas das principais cidades do São Francisco ao litoral foi, durante algum tempo,
responsável por manter relativa dinâmica comercial, utilizando o rio e favorecendo os núcleos
urbanos às suas margens, principalmente as cidades de Pirapora e Juazeiro, que eram terminais
ferroviários.
As linhas férreas, que procuram o vale do S. Francisco, em sua maioria vias de penetração
na mais legítima acepção, tem a diretriz mais ou menos perpendicular à costa. Assim: a
antiga linha do centro da E. F. Central do Brasil, que encontra o S. Francisco em Pirapora; a
E. F. Oeste de Minas, apoiada em Angra dos Reis (...) e a E.F do S. Francisco, que liga a
Bahia a Joazeiro (REGO, 1935, p. 212).
Entretanto, o sucateamento das ferrovias e as crescentes dificuldades na navegação
favoreceram o desuso desses modais de transporte, que gradativamente foram sendo substituídos
pelas rodovias. Somado a isso, os processos de degradação do rio, com o crescente assoreamento da
calha principal, dificultava fortemente a navegação. Proença (1944) faz uma descrição simplificada
desse processo de erosão, causado pela destruição das matas ciliares e que contribuiu para
inviabilizar a navegação de larga escala, utilizando o rio São Francisco.
A navegação vai se tornando cada vez mais difícil, vão surgindo as coroas de areia que
mudam de lugar a cada nova enchente, ora no meio do rio formando ilhas, ora colada a uma
das margens. (...) É possível descobrir em muitos casos a origem das coroas pela destruição
da mata ciliar. Encontrando o barranco desprotegido da trama das raízes, a correnteza o
desmonta e o rio adquire uma largura desproporcionada; a água fica mais rasa, a velocidade
da corrente diminui e não possui força capaz de arrastar as areias que vem rodando, e que
amontoam em bancos extensos, dificultando a navegação (PROENÇA, 1944, p. 126).
Uma interpretação superficial dessa conjuntura poderia levar a concluir que a gradativa
destruição das condições naturais disponíveis na hidrovia são-franciscana seriam as únicas
justificativas para limitar a utilização da via como eixo de transporte comercial. Entretanto, vários
estudos encomendados pelo governo brasileiro comprovaram o potencial natural do rio para uma
utilização específica como meio de transporte, apesar das limitações inerentes aos deslocamentos
fluviais que possuem restrições, principalmente em relação à velocidade.
102
Segundo o Engenheiro Affonso Portugal, que em 1952 realizou um estudo detalhado das
características de navegabilidade do rio São Francisco
27
, o advento de outros meios de transporte
mais rápidos e mais baratos representaram uma concorrência bastante significativa em relação ao
transporte fluvial. O autor afirma, todavia, que as características naturais do leito do São Francisco
não o inviabilizavam enquanto meio de transporte, sendo ainda economicamente viável, desde que
utilizado para fins de transporte de mercadorias específicas, que suportassem um prazo maior de
deslocamento, compensado por um custo mais baixo no frete.
... uma via navegável, com o advento e o progresso de outros meios de transporte, mais
rápidos, e com as faculdades de poder atingir qualquer ponto de um país, longe de ser
relegada ao abandono, pode prestar inestimáveis serviços, porém dentro de suas
características e com função toda especial. (...) Uma das suas principais características é a
lentidão e não como fugir economicamente de tal circunstancia, porquanto, além de
outros fatores menos ponderáveis, a potência das máquinas propulsoras e, por
conseqüência, o consumo de combustível crescem proporcionalmente ao cubo da
velocidade. Tal contingência a lentidão, faz com que grande numero de mercadorias não
a suportem, escoando-se pelos outros meios de transporte, como a ferrovia, a rodovia, a
aerovia mesmo, mais rápidas embora mais onerosas; é o caso das mercadorias de custo
elevado, em que o frete representa uma parcela mínima do seu valor, a ponto de permitir o
confronto entre os juros do capital empatado nas mercadorias durante o tempo de transporte
e o respectivo frete. Também as mercadorias facilmente deterioráveis fogem dos meios de
transporte lentos (PORTUGAL, 1952, p. 7).
O fato é que a partir dos anos 1930, começava a desvalorização do uso do rio como vetor do
comércio em larga escala para o interior. O Estado brasileiro, após a ditadura de Getúlio Vargas,
para promover o desenvolvimento integrado da região, cria a Companhia Hidro Elétrica do São
Francisco (CHESF), a fim de explorar o potencial hidrelétrico do rio. Em 1946, é criada a Comissão
de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), como instrumento
para auxiliar no desenvolvimento da região, lidando com fatores tais como os fluxos migratórios,
secas, inundações e uma eminente preocupação com a conservação dos recursos naturais da bacia.
A exploração do potencial elétrico da bacia do São Francisco também se apresentou como
uma das alternativas de desenvolvimento da região. A primeira grande usina a operar no São
Francisco foi a de Três Marias, localizada na região central do Estado de Minas Gerais e inaugurada
em 1952 pela Centrais Elétricas de Minas Gerais S.A (CEMIG), com uma barragem de 2.700 m de
comprimento, formando um reservatório com aproximadamente 21 bilhões de m
3
cúbicos de água.
27
Compartilha de conclusões similares em relação à utilização do rio como elemento economicamente viável para
transporte de carga, o Engenheiro Teodoro Sampaio, que entre 1879 e 1880 realizou, a mando da Comissão Hidráulica
Brasileira, uma viagem da foz do rio São Francisco, até a cidade de Pirapora para avaliar as condições de
navegabilidade e do potencial hidrelétrico do mesmo.
103
A essa primeira usina seguiram-se outras
28
, sendo as principais as usinas de Paulo Afonso (1954)
29
;
Sobradinho (1979)
30
; e Xingó (1994)
31
. Apesar da relevância dessas usinas no cenário nacional, os
benefícios locais gerados pelas mesmas são muito tênues e não foram suficientes para sustentar
ações distributivas de renda e para a diminuição da pobreza.
A dificuldade por parte das autoridades federais, que não conseguiram fomentar ações de
desenvolvimento econômico; a baixa densidade populacional, agravada pela constante emigração
de mão-de-obra; o isolamento geográfico e a dificuldade de acesso à região do médio São
Francisco, são alguns dos fatores que contribuem para entender a estagnação econômica da área.
Governo após governo, projeto após projeto, as iniciativas de desenvolvimento do São Francisco
não lograram êxito em reativar a economia da região. Segundo Matos (2007), apenas algumas áreas
pontuais obtiveram relativo sucesso ao absorver os incentivos governamentais.
A história dessa hidrovia é marcada por ciclos de maior ou menor intensidade em sua
utilização, orientada quase sempre por aspectos conjunturais. Uma ciclicidade que, de certo
modo, contribui para que toda uma região, especificamente os sertões mineiro e baiano,
apresentassem dinâmicas de crescimento econômico mais lentas e descompassadas em
relação a outras regiões do país. Mesmo projetos de desenvolvimento direcionados a essas
regiões, com destaque para aqueles referentes ao semi-árido, não conseguiram potencializar
uma melhor e mais eficiente utilização da hidrovia são franciscana e seus recursos
(MATOS, 200,7 p. 6).
Na história recente do Brasil, principalmente no período da ditadura militar, constata-se a
preocupação crescente com a modernização e gestão eficiente do território. Nesse sentido, a bacia
do São Francisco voltou a ser colocada como um importante instrumento para permitir o controle e
integração do território. Outras fronteiras no interior do país foram visualizadas e a necessidade de
desenvolvimento conduziu os principais investimentos do Estado, como as aplicações feitas em
grandes obras de infraestrutura e os projetos de irrigação recorrentes no Vale do São Francisco. Do
ponto de vista da gestão foi possível identificar a tentativa de homogeneização forçada do território.
A ideia de integração nacional foi uma das bandeiras levantadas pelos militares na tentativa de
modernização do espaço através do desenvolvimento técnico, com a extensão das redes de
28
Informações fornecidas pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF), principal gestora das usinas
hidrelétricas dispostas na bacia do rio São Francisco.
29
Formado pelas usinas de Paulo Afonso I, II, III, IV e Apolônio Sales (Moxotó), o Complexo de Paulo Afonso produz
4 milhões e 279 e 600 mil kw.
30
O reservatório da hidrelétrica é um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 4 mil km² e 34 bilhões de de
capacidade de acumulação. Tem capacidade para produzir 1 milhão e 50 mil kw de energia elétrica.
31
A usina de Xingó pode gerar em torno de 3 milhões kw.
104
transporte, telecomunicações, energia e centralização política dos Estados em Brasília, o que traz a
errônea impressão de coesão do território brasileiro.
Esse contraste veio à tona, quando a partir dos anos 70 o Estado entra em crise e não é mais
capaz de manter os projetos desenhados para atender às novas fronteiras. O investimento seletivo do
Governo acabou por contribuir para a fragmentação do território. A modernização brasileira, que
aparentou ser tecnicamente homogênea, acabou por contribuir para as graves diferenças
socioeconômicas, embriões de espaços sociais altamente segregados.
Ao analisar-se a região do São Francisco, é fácil perceber a contradição. Os investimentos
realizados pelo Estado não foram suficientes para proporcionar índices de desenvolvimento, que
contribuíssem para diminuir as diferenças sociais encontradas na área da bacia do São Francisco.
Mais recentemente, os investimentos no agronegócio e nas grandes obras de irrigação, ao invés de
forçarem a melhor distribuição de renda, contribuíram para a maior centralização. Apenas um
pequeno número de produtores conseguiu aproveitar-se da infraestrutura disponibilizada pelo
Estado e alavancar a produção agrícola. Matos (2007) examina essa situação e acrescenta que o
relativo sucesso do agronegócio talvez possa significar a possibilidade de revitalização da hidrovia
são-franciscana, como eixo para o escoamento da produção agrícola rumo à exportação.
Marcado por velhas e novas contradições, trata-se de um espaço que, se outrora vivenciou
momentos de grande destaque econômico e demográfico, vem apresentando nas últimas
décadas um quadro de persistente perda de dinamismo, não obstante, a presença de algumas
áreas prósperas e modernizadas. De fato, a existência dessas verdadeiras “ilhas” de
crescimento econômico, sobretudo aquelas cujo cerne está relacionado ao agronegócio e à
exploração mineral, tem propiciado, por exemplo, uma espécie de sobrevida útil à hidrovia
do São Francisco, que, certamente, na sua totalidade, não apresenta mais a mesma pujança,
intensidade, em termos das relações entre localidades de outros tempos. A presença desses
espaços geradores de riquezas tem sido tratada como justificativa fundamental para a
implementação de novos projetos relacionados à infra-estrutura logística, assim como,
ações no sentido de revitalizar a própria hidrovia são franciscana, focalizando, sobretudo,
aspectos relacionados a sistemas de integração multimodal de transporte (MATOS, 2007, p.
4).
A história recente da bacia tem sido tomada de discussões acaloradas sobre a reutilização do
São Francisco como instrumento para o revigoramento econômico das regiões mais carentes do
sertão nordestino. A própria ideia da transposição, apesar de não ser nova, ganha força atualmente,
sugerindo à sociedade uma discussão mais séria sobre o aproveitamento do rio ou dos recursos
naturais que fazem parte do ecossistema que o ajuda a mantê-lo.
Vários são os movimentos que sugerem a revitalização das nascentes, a proteção das matas
ciliares e a despoluição das águas dos afluentes, antes de se pensar qualquer forma de distribuição
105
das águas do rio principal, colocando assim, mais variáveis na discussão sobre a transposição.
Como informou-se, não cabe a esta pesquisa debruçar-se sobre as questões ligadas à avaliação de
viabilidade ou não da transposição do São Francisco. No entanto, tal decisão terá influência nas
discussões futuras sobre a disposição socioespacial da bacia.
Apesar de não ser foco deste estudo, o projeto de transposição do rio São Francisco, que
ganhou força no Governo Lula, chama a atenção para aspectos de interesse, uma vez que trata de
assuntos-chaves para a pesquisa, principalmente no que diz respeito às transformações
socioespaciais que podem ocorrer com tamanha empreitada. Independentemente do resultado dessa
questão, o interesse do Estado em conduzir esse processo contribui para difundir uma atenção
especial à região, que, certamente, merece melhor tratamento, principalmente em se tratando da
história oficial.
106
3. 4 Considerações sobre a Geoistória do São Francisco através da Oralidade:
Permanências e Rupturas; o Movimento Temporal e as Transformações
Socioespaciais
As considerações expostas neste capítulo são frutos de uma preocupação que transcorreu
toda a pesquisa, desde a sua concepção até a consolidação do produto final. Muito mais do que um
resumo dos relatos recolhidos em campo, o texto aqui apresentado traduz uma tentativa de
contribuir para a maior democratização do processo de produção de saberes, dando voz ao
indivíduo comum, tornando-o co-participante da construção de conhecimento científico. Procura-se
romper com uma concepção de ciência, que desde suas origens, sempre foi seletiva em relação aos
seus colaboradores, fontes, públicos e personagens. A introdução das novas perspectivas trazidas
pela Pós-Modernidade e a crise da Ciência Moderna corroborou para a adoção de uma postura mais
flexível e mais ampla na relação com os saberes e com as disciplinas chamadas científicas. A
adoção de novos elementos na elaboração do conhecimento favorece o debate, que é indispensável
para a edificação da democracia.
A historicidade, com que nos deparamos agora, nada mais é do que a mesma
temporalidade, o mesmo tempo finito, transportado aos dois níveis solidários, individual e
coletivo da existência do ser-no-mundo, que implicam o agir e, portanto, também, a tomada
de decisões. O homem se temporaliza, e o seu acontecer histórico é temporalização (Nunes,
1994, p. 133).
Possibilitar que o indivíduo comum, mesmo que de forma incipiente, participe da produção
de conhecimento pode significar correr riscos maiores, inovar, lidar com o imprevisível,
complementar o saber técnico, e expressa a notória preocupação de construir-se uma ciência, não
para restringir a realidade em modelos imaginários, mas para compreender a mesma realidade em
toda a sua complexidade e dinamismo.
Nas práticas espaciais e temporais de toda a sociedade são abundantes as sutilezas e
complexidades. Como elas estão estreitamente implicadas em processos de reprodução e de
transformação das relações sociais é preciso encontrar alguma maneira de descrevê-las e de
fazer uma generalização sobre o seu uso. A história da mudança social é em parte
apreendida pela história das concepções de espaço e tempo, bem como dos usos ideológicos
que podem ser dados a essas concepções (HARVEY, 2001, p. 201).
Ao optar-se pela oralidade como instrumento de diálogo com o indivíduo comum, a intenção
foi, inicialmente, obter informações primárias que permitissem uma pesquisa focada nos fatos e
107
objetos que se desejava elucidar. Contudo, após percorrer as várias etapas para a concretização
deste trabalho, verificou-se que a oralidade, mais do que fornecer dados primários para as ações
iniciais do processo de análise da realidade, contribuiu de forma ímpar para construção de um
panorama geral sobre os mais variados aspectos da vida socioespacial atualmente pulsante dentro
das áreas visitadas da bacia do São Francisco.
O uso da oralidade, ainda assim, foi acompanhado de preocupações em relação à veracidade
e autenticidade das afirmações. Todos os depoimentos registrados foram submetidos a outros meios
de verificação, para atestar sua precisão. Uma condição encontrada na adoção da oralidade foi o
fato de que, nas entrevistas, as afirmações referentes ao tempo presente e ao passado próximo foram
mais ricas e detalhadas. Ao afastar-se da realidade cotidiana o entrevistado muitas vezes forneceu
informações imprecisas ou historicamente equivocadas. Nesse momento é que os outros métodos de
validação foram utilizados. Tal limitação metodológica já era conhecida antes mesmo de sua
adoção, mas ponderou-se que os benefícios de sua utilização seriam bem maiores do que as
restrições quanto ao seu uso. Thompson (1992), uma das referências na utilização da metodologia
oral, ressalta tais dificuldades quando afirma:
Conseguir ir além das generalizações estereotipadas ou evasivas e chegar a lembranças
detalhadas é uma das habilidades, e das oportunidades sicas do trabalho de história oral
(THOMPSON, 1992, p. 261).
A partir dos depoimentos e das pesquisas complementares realizadas em trabalhos de outros
pesquisadores, foi possível traçar um esboço das permanências e rupturas ligadas às variáveis
geoistóricas pertinentes às transformações socioespaciais que foram objetos desta pesquisa. A
análise desse material revelou-se uma rica experiência para se constatar novos aspectos muitas
vezes desconhecidos da região do São Francisco e que, como afirma Novaes (1994), as versões
oficiais da História podem ofuscar. Dar a versão “verdadeira” dos fatos nos estudos tradicionais
resulta de lutas com outras versões, incompletas ou equivocadas, que nesse momento também
foram objetos de interesse. Assim “o caráter geográfico” dos estudos não procede somente da
procura das causas geográficas da distribuição da população nas várias épocas, mas também e
principalmente — da descrição dos quadros regionais de cada época, como paisagens sociais.
Ao deparar-se com o conteúdo dos depoimentos de campo, identificou-se o movimento
temporal: as transformações, a estabilidade, as mudanças e os elementos de longa duração.
Valorizando as fontes não oficiais, muitas vezes ignoradas em estudos tradicionais, percebeu-se o
108
cerne do movimento temporal. A temporalidade é, sobretudo, mudança, e é a transformação que
marca o ritmo de nossa história interior.
Não percebemos, por exemplo, o tempo e o movimento, mas o esquema de mobilidade e da
sucessão, isto é, pontos em que se divide uma trajetória e posições que os objetos ocupam
no tempo. Não percebemos o mover-se propriamente, assim como não percebemos o passar
do tempo, que é sua característica mais intrínseca. O que percebemos do tempo são
instantes que se sucedem como pontos sobre uma linha imaginária: os objetos que se
movem são percebidos, a cada vez, imóveis num ponto do espaço e fixos numa posição da
linha temporal. Reconstruímos depois o tempo e o movimento relacionando esses pontos e
essas posições, e dizemos então que o objeto se moveu, isto é, passou de um ponto a outro,
ou então que ele evoluiu, transformou-se no tempo porque comparamos entre si duas
posições, o antes e o depois. Mas o que se entre os pontos e as posições, o processo pelo
qual o objeto se move e muda, transformando-se no seu evoluir temporal, isto não
percebemos, e são essas as características mais profundas da realidade (SILVA, 1994, p.
143).
As mudanças ocorridas no tempo têm influência, também, na relação com a dimensão
espaço. Como afirma Soja (1993), o espaço não é reflexo da sociedade, ele é a sociedade e, por isso,
de ser produzido pela ação humana. A transformação do espaço no tempo é, portanto, variável
importante para se compreender a dinâmica socioespacial. O espaço é moldado a partir de
elementos históricos e naturais, e esse é um processo de dimensão política. O espaço é, ainda, um
processo cultural no qual a sociedade interage com elementos, valores e conceitos dos mais
diversos, para determinar a sistemática da sua existência. É um elemento que complementa a ação
histórica e contribui para introduzir contradições e dúvidas. É o espaço quem corrobora os múltiplos
movimentos da história, municia a formação da cultura e as transformações socioespaciais.
O mérito do conceito de formação sócio-espacial, ou simplesmente formação espacial,
reside no fato de se explicitar teoricamente que uma sociedade se torna concreta através
de seu espaço, do espaço que ela produz e, por outro lado, o espaço é inteligível através
da sociedade. Não há, assim, por que falar em sociedade e espaço como se fossem coisas
separadas que nós reuniríamos a posteriori, mas sim de formação sócio-espacial
(CORRÊA, 1995, p. 26).
Assim, paralelamente às análises ligadas à História Oral, os depoimentos foram
investigados, levando-se em conta, também, a possibilidade de identificar as transformações,
permanências e outras reflexões que envolvessem a variável espaço. Entendendo o conceito de
espaço como elemento essencial para a formação da sociedade, e constatando que essa relação,
apesar de ter aplicação coletiva, manifesta-se também individualmente, procurou-se verificar nas
entrevistas percepções do espaço através da oralidade, o que se chamou de Geografia Oral.
109
É possível individualizar na história dos homens ”constantes”, “tempos longos”
(correspondendo ao que se designa por “estrutura”), e o ambiente natural pode ser
caracterizado pela sua variabilidade em tempos “curtos” (acontecimentos). Esta via admite
a premissa de uma nova síntese entre a história e a natureza, entre os homens e o
“ambiente”, de conseqüências interessantes no campo da investigação geohistórica
(FERRO, 1985, p. 31).
Na análise dos documentos e depoimentos disponíveis, distinguiram-se vários elementos no
Vale do São Francisco, que convergem para as afirmações acima. As entrevistas de campo
revelaram uma história que ultrapassa a realidade registrada nos livros e expõem um complexo
desenvolvimento social, possível de ser captado pela tradição oral, que o perpetua, passando de pai
para filho. Os relatos permitiram resgatar as percepções espaciais e temporais enraizadas na
população e que, de uma forma ou de outra, se modificam ou permanecem dentro da tradição e da
sabedoria popular, algo que a ciência tradicional muitas vezes não se preocupa em perceber.
Não percebemos os aspectos do real que não interessam à nossa prática porque não
prestamos atenção neles. A atenção é o mecanismo seletor da percepção e é ela que faz com
que vejamos no real apenas aquilo que preenche nossas expectativas de ação. E nos
relacionamos intelectualmente com o real da mesma forma na medida em que para nós ele é
um instrumento e não um fim. O real é a disponibilidade instrumental pela qual as coisas se
dispõem para nós em vista do uso que podemos fazer delas. A atenção mantém nossa
consciência perceptiva e intelectual ligada aos aspectos instrumentais do real. Trata-se de
uma tensão e de um esforço continuadamente desenvolvido para que o homem se mantenha
na condição de senhor das coisas e de usuário da natureza. Aquilo que de direito
perceberíamos, se nosso espírito se pusesse diante da realidade desarmado de qualquer
critério pragmático, se obnubila: nosso espírito se concentra, tensionado, estreitando-se
como um cone para que a ponta deste cone toque o real, o adentre e o domine naquilo
em que ele nos pode ser útil (SILVA, 1994, p. 146).
Os depoimentos recolhidos em campo, juntamente com o acervo documental utilizado como
base de consulta para esta pesquisa, tornaram-se ponto de partida para a realização de inferências
iniciais ligadas às mudanças e continuidades que podem ser identificadas nos quatro séculos da
história de ocupação do Vale do São Francisco. Entende-se que tais permanências e rupturas o
fundamentais para se compreender as principais transformações socioespaciais que se operaram na
região.
Manuel Proença (1944), ao escrever sobre a ribeira São Francisco, descreve algumas das
etapas para a formação da sociedade, da política e da cultura naquela área. Dos apontamentos do
autor, fica evidente que todo o processo de ocupação da região foi cercado por conflitos de toda
natureza.
O estabelecimento dos currais é uma experiência que demonstra a fibra enérgica do povo,
pois a ocupação dos sertões não foi feita sem lutas. Estas a princípio confrontavam índios e
110
colonos pela posse da terra, evoluíram mais tarde para lutas de clans, disputando campos de
pastagens e ainda posteriormente influências políticas (PROENÇA, 1944, p. 80).
Desde os primórdios da ocupação da área, foram constantes os embates pela posse de terras.
As primeiras batalhas de expansão das pastagens para o gado, aquelas travadas contra os indígenas,
permanecem ainda no imaginário popular, revelando a primitiva visão de que o colonizador branco
seria o verdadeiro condutor da civilização e que deveria se impor sobre os índios. Em depoimento
registrado na cidade de Carinhanha (BA), o Sr. Wanderley Barbosa
32
, recorda-se do destino dado
aos indígenas que, primordialmente, habitavam o sertão da Bahia e gradativamente foram expulsos
para o interior do país: Os índios kaipós foram empurrados para o norte de Goiás, hoje Tocantins,
sul do Pará e Mato Grosso. Olhando a história de Goiás existem relatos de lutas contra os kaipós
que duraram quase 30 anos”. Vários foram os depoimentos que apontavam o apresamento e
expulsão de indígenas como elemento primordial para o estabelecimento das primeiras vilas ao
longo do São Francisco. Essa condição inicial do território é indispensável para se perceber o
processo de estruturação socioespacial, face à disputa por terras férteis ou de localização
privilegiada dos assentamentos humanos.
Caetés rbaros e comedores de gente, tupinambás e potiguaras cediam terreno à custa de
muita mortandade. Porém os herdeiros de Duarte Coelho aliam-se aos Tupinambás e
Tupinaés e partem sobre os Caetés, apartando-os de encontro ao S. Francisco onde são
arrazados. Tal foi o estrago e a crueldade empregada que os índios se entregavam feito
ovelhas e eram vendidos a dois crusados ou um mil réis que é o preço de um carneiro
(PROENÇA, 1944, p. 51).
A vitória dos criadores sobre os índios, no fim do século XVII, foi decisiva para a expansão
da sociedade pastoril, pois abriu o caminho para a conquista das terras do sertão e para o avanço da
pecuária.
Em várias das cidades visitadas, os moradores atribuem a origem do povoamento a um
possível embate com os índios nativos. Em muitas localidades tais afirmações possuem
comprovação por registros históricos oficiais; em outras, no entanto, os elementos gerais da história
da região são utilizados como referências locais. Muitos dos entrevistados citaram as disputas com
os indígenas como origem das cidades em que residem, muito mais por isso ser difundido em um
contexto regional do que por constar em referências históricas concretas. A organização do espaço
não era apenas produto social. Simultaneamente, repercutia na moldagem das relações sociais e era
32
Entrevista realizada no município de Carinhanha (BA), em 2007. Disponível no “Acervo do LESTE”.
111
nesse espaço que se realizava a reprodução das relações de produção, introduzindo contradições
múltiplas.
O depoimento do Sr. Ivan da Mota, recolhido na cidade de Pirapora (MG), deixa claro que a
população local reconhece o contato com os indígenas como uma das primeiras condições para o
estabelecimento das bases da cidade, mesmo que os dados apresentados não possuam a precisão
científica necessária. “Apesar de não se ter um registro seguro, consta na tradição que teria
passado por aqui uma bandeira pelos anos de mil seiscentos e tanto, e tiveram uma disputa com
os índios cariris. Pelos registros que se tem dos cariris, eles defendiam com muito afinco suas
propriedades e, por isso, teria havido uma batalha que chamou a atenção para a região e que
antecipou a chegada dos fazendeiros pelo São Francisco” (Ivan da Mota, Pirapora-MG, 2006).
Como visto em capítulos anteriores, a ocupação do São Francisco deu-se a partir da criação
do gado, que foi incentivada, uma vez que a área pela qual desliza o rio reunia condições adequadas
à pecuária extensiva. Zarur (1947), em seus escritos sobre o processo de ocupação do São
Francisco, apresenta a criação de gado como elemento fundamental para o avanço sobre as terras do
vale e a expulsão dos indígenas.
Ainda que correndo paralelamente ao litoral e constituindo um meio de transporte barato
entre o Brasil nordeste e o Brasil meridional, a escravatura, o ouro e as pastagens foram os
fatores básicos do povoamento do Vale do São Francisco. Desde 1553 as expedições
iniciaram a penetração no vale, buscando principalmente escravos para a região litorânea.
Mais tarde, tendo a Coroa portuguesa doado grandes áreas do território, começou o
povoamento baseado na indústria agro-pastoril. A criação de gado teve como propulsores
máximos a boa pastagem, o clima relativamente salubre e a existência de sal no solo areno-
argiloso da região. O curral foi o símbolo da penetração do homem civilizado no vale. Os
meios vegetais de subsistência, fornecidos pelo braço escravo, índio e negro,
multiplicaram-se na medida das necessidades dos povoadores, mas até fins do século XVII
o gado constituiu a base da riqueza regional (ZARUR, 1947, p. 6).
Somado às características naturais que favoreceriam a criação de gado, o fato desse tipo de
produção exigir um número menor de braços também foi determinante para a sua adoção em terras
do São Francisco. A possibilidade de demarcar grandes porções de terreno com escassa mão-de-
obra favoreceu a utilização da pecuária como modo de produção. Como consequência, para atender
às condições da criação de gado, a população do São Francisco instalou-se espaçadamente pelo
território. As cidades que se edificaram a partir do comércio e da criação de gado tinham dimensões
pequenas e a população estava distribuída de forma desigual dentro da bacia, especialmente, a
região do médio São Francisco, onde imperava a pecuária. Essa conjuntura corrobora os
112
pensamentos de Soja (1993), quando especula que a estrutura do espaço se dá a partir da relação das
formas de produção com as condições espaciais que a envolvem.
A estrutura do espaço organizado não é uma estrutura separada, com suas leis autônomas de
construção e estrutura de classes que emerge das relações sociais (e por isso, a-espaciais) de
produção. Ela representa, ao contrário, um componente dialeticamente difinido das relações
de produção gerais, relações estas que são simultaneamente sociais e espaciais (SOJA,
1993, 99).
Durante praticamente um século, a ocupação do São Francisco ocorreu de forma lenta,
seguindo o ritmo da criação de gado e da luta contra os indígenas. Os principais vínculos da região
se mantinham com as cidades litorâneas do nordeste, principalmente Salvador e Recife, que durante
os primeiros anos da conquista da Colônia foram os principais centros urbanos. A partir do final do
século XVI, com o incentivo das “Entradas”, introduz-se na história do vale a figura do bandeirante
a quem compete a missão de mapear e explorar mais rapidamente o sertão.
As insurreições de índios nunca cessaram de todo, ameaçando a existência dos vaqueiros,
impedindo ou retardando o estabelecimento de currais novos. Tal foi a importância dos
prejuízos causados nas ribeiras do São Francisco em 1677 que o governador pede socorro
aos paulistas, autorizando a viagem pelo interior, suspendendo a proibição que pesava sobre
as rotas terrestres. A carta patente que nomeia Matias Cardoso de Almeida governador e
administrador dos índios tem data de 1684 (PROENÇA, 1944, p. 60).
Mesmo que as informações registradas nos depoimentos sejam muitas vezes imprecisas em
datas e personagens, alguns nomes e períodos são recorrentes e confirmam os fatos apresentados na
história ”oficial”. É o caso, por exemplo, da figura do bandeirante paulista Matias Cardoso. Consta
que ele embrenhou-se pelo sertão mineiro à caça de indígenas, em meados do século XVI e foi
contratado para vencer os índios cariris no Nordeste. Porém, o principal fato em torno da vida desse
bandeirante foi ter sido apontado como fundador da vila de mais antigo registro na história de
Minas Gerais, e que não por outro motivo, leva o seu nome, fato reconhecido por Santos (2001).
Terminada a campanha contra os índios cariris no Nordeste, onde foram vitoriosos no
comando de tropas contratadas para o combate, em 1694 estavam os paulistas Matias
Cardoso e Antônio Gonçalves Figueira de volta á enorme zona então conhecida como dos
“currais da Bahia”. Haviam fundado dois anos antes, a caminho do Nordeste, arraiais no
norte do que hoje é o estado de Minas Gerais, que funcionariam como reservas de provisão
quando do seu retorno. Sitiou-se Matias Cardoso no arraial então conhecido pelo seu nome
(SANTOS, 2001, p. 128).
113
A data de fundação do município de Matias Cardoso tem sido motivo de controvérsias,
principalmente pelo fato de simbolizar o mais antigo vilarejo de Minas Gerais, sendo fundado antes
mesmo da cidade de Mariana, que atualmente conserva tal primazia. Em depoimentos registrados
em vários municípios do norte mineiro, paira o desconforto em relação a essa questão. A fundação
de Matias Cardoso é anterior à fundação de Mariana. Então, pra gente entender um pouco e
buscar de novo essa recuperação da identidade do povo do norte mineiro, na consolidação da
sociedade de Minas Gerais. Porque existem as Minas, mas existem também os Gerais (Sr. João
Santana
33
, Montes Claros-MG).
A exemplo do Sr. João Santana, muitos foram os entrevistados que citaram esse equívoco
histórico, ao conferir a Mariana o título de povoamento mais antigo do Estado.
Essa situação, para a população do norte mineiro, confirma o descaso que a maioria dos
indivíduos têm para com a história de ocupação do São Francisco, imaginando que a formação de
Minas Gerais se deu apenas a partir do bandeirantismo e da mineração. Tal sentimento fica claro no
depoimento do Sr. Leonardo Avelar
34
, de Montes Claros (MG), quando afirma que Minas hoje são
duas, o imaginário de Minas é das montanhas pra baixo, e a população do norte de Minas entende
que a importância da criação do gado é o que sustentou Mariana. Se não houvesse esse transporte
do alimento, da carne, da rapadura, da cachaça, não haveria Mariana”. Reforça tal desconforto o
depoimento da Sra. Anildes Evangelista, Secretária de Meio Ambiente de Montes Claros (MG):
Matias Cardoso foi identificada como a origem da ocupação; o pessoal costuma comemorar o
Dia de Minas em Mariana, e nós queremos trazer para comemorar em Matias Cardoso, porque é
mais antiga do que Mariana. Temos de reconhecer essa existência aqui”.
Diante desses depoimentos, retomou-se a ideia de Harvey (2001), ao sugerir as diferentes
formas de percepção do indivíduo em relação aos conceitos de espaço e tempo sociais, que variam
de acordo com as práticas individuais e o cotidiano.
A objetividade do tempo e do espaço advém, em ambos os casos, de práticas materiais de
reprodução social; e, na medida em que estas podem variar geograficamente e
historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos
diferencialmente. Em suma, cada modo distinto de produção ou formação social incorpora
um agregado particular de práticas e conceitos de tempo e do espaço. (HARVEY, 2001, p.
189).
33
Entrevista realizada no município de Montes Claros (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
34
Idem.
114
Um morador do município de Matias Cardoso, Sr. Pedro Lima
35
, além de reafirmar o
pioneirismo da cidade como primeira vila do Estado, oferece ainda outros indícios que justificam
essa afirmativa. O entrevistado afiança que a posição estratégica do município em relação às rotas
comerciais existentes com a Bahia favoreceu a criação de uma pequena vila comercial, ainda no
final do século XVI: “Matias Cardoso foi a primeira vila, o primeiro povoado de Minas Gerais.
Aqui começou as Minas Gerais, aqui começou as Minas. E o que se fazia em Matias Cardoso? Era
o comércio. O comércio que era o forte de Matias Cardoso. Em 1700, aproximadamente, Matias
Cardoso era o maior centro comercial das Minas Gerais, era o ouro que descia da região
mineradora até aqui, pelo rio e daqui então faziam-se trocas e as permutas com o sul da Bahia.
Então, aqui era o ponto de encontro. Perdurou-se por algum tempo, mas depois outro caminho foi
encontrado
(Pedro Lima, Matias Cardoso-MG, 2006). Essas informações são confirmadas por
pesquisadores que admitem ter sido o município um importante entreposto para a criação de gado e
comércio regional.
Juntamente com o sertanista Antônio Figueira e os que se lhe seguiram, participou Matias
Cardoso, assim, da primeira onda povoadora da região do rio São Francisco. Não se sabe ao
certo, como se viu, quando terão chegado os criadores de gado baianos e pernambucanos,
mas não dúvida que aos colonos do norte se juntaram os paulistas no povoamento da
área, estabelecendo a sua ligação com as distantes minas do rio das Velhas e, daí, com os
centros mineradores da região de Ouro Preto e Serro Frio (SANTOS, 2001, p. 130).
Investigando-se a controversa questão ligada à origem dos primeiros povoados mineiros, o
embate revela-se para além do âmbito simbólico, sendo importante ressaltar o imenso valor
histórico e cultural que engloba o assunto. Ao sustentar que os primeiros vilarejos ao longo do São
Francisco foram formados a partir das investidas dos pecuaristas do Nordeste, fica comprovada a
noção de que os caminhos do gado possuem papel decisivo na determinação da cultura mineira e,
também, na conquista do território.
Sob a superfície de idéias do senso comum e aparentemente “naturais” acerca do tempo e
do espaço, ocultam-se territórios de ambigüidade, de contradição e de luta. Os conflitos
surgem não apenas de apreciações subjetivas admitidamente diversas, mas porque
diferentes qualidades materiais objetivas do tempo e do espaço são consideradas relevantes
para a vida social em diferentes situações. Importantes batalhas também ocorrem nos
domínios da teoria, bem como da prática, científica, social e estética. O modo como
representamos o espaço e o tempo na teoria importa, visto afetar a maneira como nós e os
outros interpretamos e depois agimos com relação ao mundo (HARVEY, 2001, p. 190).
35
Entrevista realizada no município de Matias Cardoso (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
115
Parece que está bastante solidificado dentro da cultura do São Francisco o reconhecimento
do papel primordial dos caminhos dos currais e do comércio regional na manutenção da atividade
mineradora nos séculos XVII e XVIII. As atividades agropastoris realizadas nas fazendas ao longo
do rio são reconhecidas como verdadeiros celeiros para a manutenção da urbanização crescente das
cidades ao sul do Estado. Com destaque, constatou-se que nos depoimentos foram apontadas
possibilidades de construção de grandes fortunas a partir das atividades agropastoris e comerciais.
A região das Minas Ouro Preto, Diamantina era muito rica em diamante e ouro, mas muito
pobre em terra de cultura e o alimento era pouco. (...) O pessoal tinha muito dinheiro, mas pouca
comida, então o negócio era produzir pra fornecer pra eles. Achava o pessoal com fome e com o
bolso cheio de ouro, e querendo comer, eles pagavam bem (Virgílio de Paula
36
, Montes Claros-
MG).
A restrição da Coroa em relação à permissão para as atividades complementares disponíveis
na área da mineração podem, segundo Proença (1944), cooperar no desenvolvimento da
dependência entre a área da mineração e o médio São Francisco, que funcionava como suporte à
atividade mineradora.
... [na área da mineração] não indústria nem agricultura desenvolvida, mesmo por que o
governo proíbe engenhos e lavouras para não desviar braços da mineração. O tecido ali
fabricado é apenas um “teçume” para uso dos escravos, e tudo mais vem de fora, por preços
fabulosos. Fazendas finas, quinquilharias chegam através do litoral, o gado vem do S.
Francisco, bem como o sal acondicionado em bolsas de couro no lombo dos cavalinhos
sertanejos (PROENÇA, 1944, p. 90).
O depoimento do Sr. Wanderley Barbosa
37
, reforça o uso constante do Caminho da Bahia
como alternativa de comércio e de contrabando de ouro, o que valida a convicção de que a região
do São Francisco teve papel primordial na construção de grandes riquezas no Nordeste. Naquele
período o ouro ia para a província da Bahia. Até o gado tinha o comércio feito com Salvador. o
era a Estrada Real (...) o Nordeste era muito mais rico do que o Sul (Wanderley Barbosa,
Carinhanha-BA).
Vários dos centros urbanos do médio São Francisco eram pouco mais do que aldeias rurais,
originárias de primitivos povoados que serviram como centros de aprovisionamento dos sertanejos
pioneiros e como base de alimentos para o usufruto dos bandeirantes. A dispersão pelo território,
muito evidente no sertão baiano e semiárido, e a fragilidade dos aglomerados urbanos situados no
36
Entrevista realizada no município de Montes Claros (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
37
Entrevista realizada no município de Carinhanha (BA), em 2007. Disponível no “Acervo do LESTE”.
116
São Francisco ajudam a entender alguns traços que podem ser percebidos nas entrevistas e que
fazem alusão ao constante movimento de migração existente na região há séculos.
Com o desenvolvimento das primeiras cidades originadas da mineração, um forte
movimento migratório pode ser constatado utilizando o Vale do São Francisco, por ser o elo mais
barato com o sul do país. Os primeiros lampejos desse movimento acontecem logo após a
mineração, mas a ligação com a migração praticamente permanece durante toda a história da região,
tornando-se uma marca referencial da população do sertão.
Os deslocamentos populacionais regidos pelos rigores das secas nordestinas e as medidas
paliativas que levam parte da população para as frentes de trabalho fazem parte do
cotidiano nordestino. (...) No desenvolvimento histórico do país, o São Francisco
representou sempre papel de condensador e distribuidor das correntes povoadoras de nossa
terra (SAMPAIO, 2002, p. 52).
Seja em busca de melhores condições de vida, seja para fugir da seca e das dificuldades
naturais, os sertanejos fizeram da região do São Francisco, há muito tempo, uma área de emigração.
O constante movimento para fora, praticamente está incorporado na conduta da população local.
Em depoimento registrado no município de Carinhanha (BA), o Sr. Honorato dos Santos ressalta a
preocupação com as migrações para outras províncias, lembrando que no período da exploração
aurífera na região de Ouro Preto, a Metrópole portuguesa teve de limitar tais deslocamentos: A
região de Ouro Preto devia ter em torno de 50.000 pessoas. A Corte tinha muito medo de revoltas
na Colônia e chegou a interferir, proibindo a descida dos nordestinos, porque as outras províncias
estavam ficando vazias” (Honorato dos Santos, Carinhanha-BA, 2007).
Apesar de a pecuária ter se desenvolvido e deixado marcas profundas na região do Vale do
São Francisco, essa atividade não conseguiu criar vínculos efetivos para a fixação do homem na
terra. Os excedentes populacionais não aproveitados na lida com o gado somavam-se às ondas de
retirantes, que rumavam para o sul do país à procura de melhores condições de vida e de
oportunidades nas promissoras cidades que iam se formando, atraindo esse público.
A pecuária é ali uma indústria extrativa, a sesmaria garante a posse de um determinado
espaço coberto de grama natural que o boi transforma em carne e couro, sem necessidade
nenhuma de interferência do homem. Por isso se nota uma ânsia de latifúndios que não
corresponde ao amor pela terra. As fazendas não deixarão, nesta fase, nenhum monumento
duradouro da sua existência porque os currais são de varas, os ranchos de pau a pique e
vivem menos que seus construtores; o pasto não guardará também a história desses rústicos
estabelecimentos porque as queimadas sucessivas agirão, perturbando e alterrando as
associações primitivas (PROENÇA, 1944, p. 68).
117
A pecuária, como modo de produção mais comum nos primórdios da ocupação da bacia,
fornece elementos suficientes para concordar com as ideias de Harvey (2001) em relação às práticas
socioespaciais. Segundo o autor, a formação do espaço social é, em muitos casos, determinada pela
relação direta com os modos de produção.
As práticas temporais e espaciais nunca são neutras nos assuntos sociais; elas sempre
exprimem algum tipo de conteúdo de classe ou outro conteúdo social, sendo muitas vezes o
foco de uma intensa luta social. Isso se torna duplamente óbvio quando consideramos os
modos pelos quais o espaço e o tempo se vinculam com o dinheiro e a maneira como esse
vínculo se organiza de modo ainda mais estreito com o desenvolvimento do capitalismo.
Tanto o tempo como o espaço são definidos por intermédio da organização de práticas
sociais fundamentais para a produção de mercadorias. Mas a força dinâmica da acumulação
(e superacumulação) do capital, aliada às condições da luta social, torna as relações
instáveis. (HARVEY, 2001, p. 218).
Atualmente, a migração continua sendo prática comum a uma parte significativa da
população. Principalmente os jovens, quando não encontram condições de estudo ou de inserção no
mercado de trabalho local, tendem a deixar a região em busca de uma vida melhor. Geralmente,
quando a pessoa adquire o segundo grau aqui, sai mesmo, isso não tem jeito. Vinte, trinta por
cento sai. Setenta por cento dos que saem, eu acho que é por falta de condições. Alguns saem, mas
acabam ficando por aqui por perto mesmo, acaba trabalhando aqui mesmo, arrumando um
empreguinho pequeno. Mas o pessoal que quer um poder aquisitivo maior, sempre desloca daqui e
vai para Belo Horizonte. Agora o pessoal daqui sai para trabalhar mesmo é para São Paulo. De
primeira é São Paulo, hoje começou a mudar um pouco, hoje tem muita gente que vai para
Brasília, até porque hoje tem ônibus que sai de São Romão para Brasília direto, então isso
facilita, né?Vai muito para Brasília e Belo Horizonte. Montes Claros aqui também começou, o
pessoal fazendo faculdade. Com essa facilidade hoje o pessoal começou também a deslocar muito
para Montes Claros” (Antonio Neto
38
, São Romão-MG, 2006).
Apesar de os movimentos migratórios continuarem fortes, é possível observar um
movimento pendular entre os retirantes, que retornam à sua terra de origem após temporadas
passadas longe da família em terras do sul do país. Essa característica da migração não é algo tão
recente e foi apontada por Zarur em seu texto, que data 1947.
Os emigrantes do Vale do São Francisco não abandonam suas casas impelidos pela fome ou
pela miséria. A emigração é intensiva, não pela impossibilidade de subsistirem, mas porque
querem melhorar sua condição econômica em outras regiões em que maiores oportunidades
sejam oferecidas e onde seja possível um padrão de vida mais alto. Contudo, muitos desses
emigrantes não permanecem no sul durante muito tempo; após 5 ou 10 anos de trabalho,
38
Entrevista realizada no município de São Romão (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
118
regressam aos seus primitivos lares com algumas economias e freqüentemente com família
constituída (ZARUR, 1947, p. 20).
Muitos entrevistados apontam os atuais incentivos governamentais como instrumentos que
viabilizam o retorno dos retirantes após a sua aposentadoria. A possibilidade de garantir renda
mensal via benefício do Governo favorece o regresso à terra natal, contribuindo também para a
manutenção de um tímido comércio local, a partir da renda com a aposentadoria.
Em entrevista com o Sr. Antonio Neto, de São Romão (MG), fica claro o papel das
aposentadorias no retorno do retirante do sertão: “Esses planos do governo, de aposentados, fizeram
a economia girar mais. O pessoal está mais preocupado em voltar, então de dez anos para deu
um pulo muito grande. (...) Hoje um retorno desses aposentados, por exemplo, um retorno
de muitos aposentados e do pessoal que saiu naquela época de 1960 e foram para São Paulo,
Brasília. Hoje eles já voltaram aposentados, têm as famílias aqui, já vão direto para as casas deles,
os filhos vão ficando aqui, alguns ganham bem e vão arrumando alguma coisa (Antonio Neto,
São Romão-MG, 2006).
Outro elemento que define o período de ocupação do São Francisco é a relação com a posse
da terra. Como se viu, desde a origem, a divisão da propriedade na região do grande rio privilegiou
a distribuição de sesmarias, que representaram as atuais origens dos latifúndios. A figura política
que se beneficiou dessa condição é representada pelos coronéis, que administravam grandes porções
de terra, controlando a vida de todas as pessoas que estavam dentro de suas posses. Segundo Zarur
(1947) isso foi uma das possíveis causas da dispersão populacional, principalmente no médio vale, e
acompanha a história do rio até os dias de hoje.
O sistema atual da propriedade na Bacia do São Francisco é o resultado da extensão das
propriedades doadas nos tempos coloniais. Por muitas gerações o sistema de terras, feudal,
não acompanhou pari-passu o progresso do país, daí resultando que, antigos valores e
velhos problemas continuam até hoje sem solução. A economia de criação extensiva e o
relativo isolamento do vale favoreceram a continuação da existência dos latifúndios. (...) O
caráter conservador dos habitantes locais, a falta de influxos freqüentes de população, o
abandono da terra, o isolamento do resto do país, e finalmente a decadência econômica
auxiliaram a manter quase imutável o sistema latifundiário (ZARUR, 1947, p. 49).
A raiz do coronelismo ainda está muito presente e são comuns rixas familiares em toda a
região. Diferentes dos artifícios passados, onde a disputa por poder era praticamente uma guerra
particular, hoje os instrumentos são outros. Como o Estado conseguiu diminuir as antigas disputas
armadas, os embates se dão nas eleições, onde cada lado se filia a um partido político e são comuns
os choques políticos acirrados. Em depoimento recolhido na cidade de São Romão, o Sr. Telêmaco
119
Galvão, referenda essa discussão: Aqui tem um problema muito sério, tem muita perseguição
política. Aqui se persegue demais até hoje. Aqui tem muito aquela coisa de orgulho de família; de
nome de tradição. Por ser uma cidade bastante velha. Tem umas famílias que estão muito
tempo. O perseguidor de hoje é o perseguido de amanhã, é perder na política (Telêmaco
Galvão, São Romão-MG, 2006).
Em entrevista com uma das moradoras do município de Carinhanha (BA)
39
, a Sra. Lindaura
Santana, é fácil perceber que as disputas políticas pelo poder se fazem presentes no cotidiano da
região. O coronelismo de outrora se utiliza atualmente de outros instrumentos políticos, que
definem o controle do poder. Segundo ela Ainda existe um grande ranço do coronelismo na
região, inserido nas pessoas e que reside na cultura aqui do povo de Carinhanha. (...) Muitos ainda
acham que a cidade deve ser administrada de acordo com o que o coronel deixou. O prefeito deve
ser autoritário. Não precisa ouvir ninguém, é do jeito que ele decidir e acabou”.
Esse tipo de atitude, que favorece a concentração do poder, ocorre muito em municípios
distantes, onde não é comum a supervisão do Estado. Em regiões mais afastadas dos grandes
centros, com pequena densidade populacional e onde o interesse econômico é menor, as práticas do
coronelismo e do curral” político são mais frequentes. Na entrevista com Sra. Lindaura Santana,
registrou-se o seguinte testemunho: O Coronelismo aqui é tão grande, que as pessoas se sentem
coronéis, mesmo sem saber que estão sendo coronéis. Falavam assim: 'Eu sou Diretor desta escola.
Eu não estou diretora desta escola. (...) Na minha escola quem manda sou eu'. Isso aqui é muito
ruim, as pessoas falarem isso. é uma coisa de cultura, né? 'Ah não, na minha escola quem
manda sou eu'. Quer dizer, passa por cima dos pais, passa por cima de outras autoridades e tudo,
né? (Grifo nosso).
Analisando tais afirmações verifica-se que as práticas ligadas ao controle do poder
ultrapassam as camadas políticas tradicionais e atingem outras instituições públicas, que passaram a
ser administradas a partir dos interesses dos grupos dominantes. Não existe, portanto, uma
percepção de que os bens públicos necessitam de maior interação popular na gestão, mantendo
vivas as práticas de autoritarismo de outrora. Essa realidade é comum em vários dos municípios
visitados, principalmente porque, muitas vezes, as disputas políticas por cargos públicos traduzem
questões intimamente ligadas à posse de terra e a variáveis econômicas que complementam embates
históricos familiares, que remontam ao tempo das sesmarias.
39
Entrevista realizada no município de Carinhanha (BA), em 2007. Disponível no “Acervo do LESTE”.
120
Hoje a população possui melhor acesso a informações sobre a conjuntura política geral e,
com isso, muda paulatinamente a percepção em relação às suas escolhas, mesmo persistindo ações
de assistencialismo tão comuns em tempos de eleição. A própria relação com a política tem sido
lentamente alterada. A presença de organizações populares, tais como associações e ONGs, tem
contribuído para aumentar a participação da comunidade, despertando o interesse para diversas
temáticas, tais como a preservação do patrimônio e a conservação do rio. Além disso, o retorno dos
antigos retirantes vem colaborando para movimentar não o comércio, mas a vida política de
várias localidades. Muitos concorrem a cargos públicos porque, ao retornar à terra natal, após
grande perídodo ausente, possuem respeito e prestígio. Mesmo que ainda perdurem os hábitos dos
tempos áureos do coronelismo, o morador do Vale do São Francisco tem hoje instrumentos um
pouco melhores para compreender e interferir na organização da vida política dos municípios.
Elemento marcante na cultura e na formação socioespacial do Vale do São Francisco é, sem
dúvida, a sua utilização como hidrovia. Data da segunda metade do culo XIX a introdução dos
primeiros “vapores” ou “gaiolas”, que incrementaram o uso comercial do rio São Francisco.
Entretanto, remontam a tempos antigos a utilização do rio como vetor comercial de pequena escala,
no qual o movimento mercantil era realizado pelos barqueiros e remeiros, que cooperaram tanto
com o processo de interiorização, quanto com o comércio de gêneros dos mais diversos.
Segundo Matos (2007), pode-se falar da existência de uma “hidrovia popular”, em que,
diferentemente das embarcações de maior porte, ligadas a empreendimentos de grande capital,
circulava uma grande quantidade de embarcações mais leves e funcionais ao comércio realizado
cotidianamente entre as localidades ribeirinhas e seu entorno, tendo, no barqueiro ou nos remeiros,
suas figuras humanas de maior expressão.
Por quase um século, a importância econômica, política e cultural, de muitas localidades no
Vale do São Francisco, esteve relacionada diretamente à necessidade e à capacidade de
utilização desse rio enquanto um caminho de integração. Isso se dá particularmente no caso
das localidades portuárias nodais mais bem equipadas, a exemplo de Pirapora, com sua
conexão ferroviária para o Rio de Janeiro e Belo Horizonte; e Juazeiro, cuja ligação com
Salvador também era feita por estrada de ferro. Pode-se destacar ainda, aquelas localidades
que apareciam no sistema hidroviário enquanto importantes entrepostos comerciais, como
são os casos de São Romão, Januária, Ibotirama, Barra, Pilão Arcado, Remanso, Casa Nova
e Sento Sé (MATOS, 2007, p. 5).
Em vários depoimentos encontram-se referências significativas, que remetem aos tempos
áureos da navegação fluvial. Em conversa registrada na cidade de Januária, que era um dos
121
principais portos do São Francisco, o Sr. Lenine Correa
40
, descreve com saudosismo o período da
navegação: “Januária era isolada, mas por volta de 1930 já foi o principal porto do São Francisco.
Os vapores eram cheios de gente, muita gente chegava e rumava para o Sul, mas muita gente
ficava e movimentava o comércio daqui. E ainda hoje a cachaça de Januária mantém a freguesia
da época do vapor (Lenine Correa, Januária-MG, 2006).
Em Pirapora (MG), o papel dos remeiros é revisitado na lembranças do Sr. Ivan da Mota
41
,
que reconhece nessas figuras a imagem do comerciante ribeirinho, responsável pelo abastecimento
de várias cidades. Havia uma navegação intensa utilizando as pequenas barcas tocadas pelos
remeiros e utilizando as canoas. A partir de 1871 é que foi inaugurada a navegação a vapor, mas
havia uma movimentação intensa na região, que comerciava assim de forma muito destacada, a
rapadura, a cachaça a farinha e o peixe seco (Ivan da Mota, Pirapora-MG, 2006).
A importância dos vapores foi significativa, principalmente naquelas cidades portuárias,
onde era possível uma integração com o sistema de transporte ferroviário. Tal possibilidade
facilitou ainda mais a movimentação da população que utilizava o rio. “Com a extensão da Central
do Brasil, passou-se a ter este intercâmbio e transformou o lugarejo em um entreposto natural.
Pirapora era parada quase obrigatória. Quem quisesse comerciar com o Nordeste ou quisesse vir
do Nordeste para o Sul, passou a utilizar as embarcações do São Francisco até aqui, que era o
ponto final da Central do Brasil e, daqui, eles seguiam de trem para outros lugares: Rio de
Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte” (Ivan da Mota, Pirapora-MG, 2006).
Da época áurea da navegação resta um saudosismo quase melancólico que reconhece a
importância dessa atividade para a dinâmica dos municípios, que hoje usufruem menos dos
benefícios do comércio fluvial pelo São Francisco. Em depoimento recebido em Manga (MG), cita-
se o movimento dos vapores pela região, que atualmente não possue mais a mesma importância:
“Tinha muito vapor aqui em 1940, o comércio era vivo e com todo tipo de mercadoria. Tinha vapor
que vinha de Minas, da Bahia e que levava mercadoria para todo este sertão(Sr. José Olímpio
42
,
Manga-MG, 2007)
Durante quase 70 anos a navegação com os vapores foi responsável pelo avivamento da
região, apesar dos limites produtivos para a sua integração com as regiões mais dinâmicas
economicamente. A obsolescência da navegação fluvial via vapores é lembrada em depoimentos,
40
Entrevista realizada no município de Januária (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
41
Entrevista realizada no município de Pirapora (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
42
Entrevista realizada no município de Manga (MG), em 2007. Disponível no “Acervo do LESTE”.
122
que apontam algumas das causas dessa decadência. “Aqui era muito isolado, para você ir a Montes
Claros, você tinha de ir a Pirapora. Às vezes, quando o rio estava baixo, levava oito dias para se
chegar daqui a Pirapora. Às vezes o vapor batia o bico em uma praia dessa, era.
Desencalhava aqui, encalhava ali. Era tudo isolado, como é que ia fazer? E hoje tem a questão da
lentidão, é tudo de carreira, não para esperar oito dias para chegar a Pirapora (Lenine
Correa, Januária-MG, 2006).
Matos (2007) discute a condição atual da utilização do rio como vetor de comércio e
transporte e reitera a sua importância local. A concorrência com as rodovias e a necessidade de
maior rapidez no deslocamento de cargas podem ser apontadas como algumas das razões para o
desuso do rio. Porém, mesmo com a diminuição de sua importância regional, o transporte fluvial
ainda é utilizado com recorrência em deslocamentos intramunicipais, principalmente envolvendo
localidades ainda não contempladas por rodovias.
Para as novas gerações de ribeirinhos, a rodovia tende a significar um elemento de
incentivo à migração, frente às dificuldades econômicas inerentes aos pequenos e pouco
dinamizados núcleos urbanos. O rio parece perder potência enquanto uma opção de
ocupação e uma alternativa econômica confiável. E, em função da rapidez com que as
conexões efetuadas pelo complexo de rodovias podem propiciar, a navegação para
transporte de passageiros e cargas passa a ser, na maioria das vezes, uma opção cotidiana de
última instância, fundamentalmente, quando da necessidade de deslocamento para
localidades ainda não interligadas diretamente pelas rodovias (MATOS, 2007, p. 8).
Apesar de perder importância em relação ao uso comercial, uma das principais
permanências identificadas nos depoimentos, é que o rio São Francisco, independentemente do
período estudado, da fonte de pesquisa utilizada, ou da região referida, continua possuindo papel
fundamental na estruturação de uma dinâmica regional, não por prover recursos naturais
indispensáveis à população ribeirinha, mas também por se manter como elo de integração entre os
muitos municípios que fazem parte do seu vale.
Mesmo sofrendo com as consequências de uma utilização não planejada e predatória, que
acaba por prejudicá-lo em relação ao volume e qualidade das águas, o rio São Francisco ainda
sustenta grande parte da população ribeirinha, funcionando como principal provedor de recursos
para a subsistência (pesca, extração vegetal, agricultura de vazante); contribuindo nos
deslocamentos locais; atuando como vetor de comércio ribeirinho e como guia para deslocamento
de pequenas boiadas: o rio mantém viva a sua importância estrutural na região.
123
Em depoimento registrado em Montes Claros (MG), o Sr. Leonardo Avelar
43
descreve o
contexto que realça a dinâmica proporcionada pelo São Francisco. Indagado sobre a importância do
rio e sobre as consequências de sua degradação, o entrevistado respondeu: “Acho muito, muito
importante. Não pela importância ecológica, que eu acho que não precisa nem falar. A questão
da água em si, é a vida mesmo dessa população. Isso não é história de pescador, porque eu mesmo
vi surubins enormes, de não sei quantos quilos, e hoje, não acha surubim com mais de meio
metro. O rio já bem raso. Então é uma coisa que assusta principalmente os barranqueiros,
porque eles tão vivendo ali direto, eles vivem do rio e da pesca. A vida deles é o rio ( Leonardo
Avelar, Montes Claros-MG, 2006).
A essa condição indispensável, proporcionada pelas características próprias do rio, somam-
se os laços que permanecem ainda fortes, estabelecidos a partir do contato direto com os elementos
naturais, principalmente a pesca e a pecuária desenvolvida na região. Desde os primórdios da
ocupação do Vale do São Francisco, a forte ligação com o meio ambiente, especialmente pela
criação de gado, sempre foi elemento marcante. As primeiras vilas e povoamentos surgiram em
função das atividades agropastoris e, tal condição, perpetuada durante séculos, favoreceu a
consolidação de marcas culturais que continuam ainda vivas na população local.
A expansão dos currais trouxe como conseqüência, uma identificação muito íntima entre os
povoadores e a natureza. Alimentação, vestuário, habitação, costumes e a própria estrutura
social sofrem a influência do meio e o ajustamento ao ambiente geográfico termina por
imprimir a esses agrupamentos, características de unidade regional (PROENÇA, 1944, p.
67).
Mesmo em contato com instrumentos presentes na modernidade (rádio, televisão, internet),
vários dos hábitos notoriamente originários na vida no campo ainda prosseguem. É possível
observar que muitos dos habitantes do São Francisco conservam a tranquilidade e o comedimento
que soam incoerentes com a agitação e correria de uma realidade comumente urbana e moderna. A
alimentação, por exemplo, ainda é muito baseada no peixe e na carne, iguarias que mantêm a
ligação com o passado.
Essa postura diferenciada em relação à vida nos grandes centros é percebida também na
relação com a cultura. São várias as manifestações culturais que conservam firme a tradição
acumulada por séculos. No depoimento da Sra. Maria da Conceição Moura, a folclórica Maria do
Boi, de São Romão (MG), tem-se uma ideia das inúmeras festas e comemorações pagãs e religiosas
que se confundem com tradições negras, indígenas e brancas, moldando um diversificado cenário
43
Entrevista realizada no município de Montes Claros (MG), em 2006. Disponível no “Acervo do LESTE”.
124
cultural. Na conclusão do depoimento, contudo, identifica-se a fragilidade dessas manifestações, e
a dificuldade de se imaginá-las no futuro, uma vez que são poucos os que trabalham para a sua
conservação. Aqui tem festa do Divino, Nossa Senhora da Abadia, São Romão, tem batuque,
reinado, tem caboclo, Festa de Nossa Senhora do Rosário, tem o boi. Isso tudo era da minha avó,
mas agora isso morrendo. Se eu parar com essas coisas ninguém vai ficar. Depois que eu for
meu irmão, esse é capaz de ficar” (Maria da Conceição de Moura, a Maria do Boi, São Romão-MG,
2006).
Em Pirapora (MG), a Sra. Mariangela, recorda-se de que a tradição cultural e as festas
comemorativas são elementos bastante comuns no cotidiano dos moradores, inclusive, sendo
perpetuados, passando de pais para filhos, em um processo delicado de continuidade. “Antes era o
Sr. Arquileu que era o guia do São Gonçalo, que dirigia o grupo. Ele morreu, ficou o filho dele,
agora é o Sr. Afonso. Não é só a família do Sr. Afonso que participa, a mulher dele também dança,
mas são pessoas da comunidade que fazem a festa, não tem vinculo de família, de laço de
sangue não, eles se juntam com as demais comunidades e dançam (Mariângela, Pirapora-MG,
2006).
É importante perceber que nas manifestações culturais estão os indícios mais claros da
profunda interação entre as culturas que se relacionaram no São Francisco. Independentemente do
motivo da celebração, ritual, ou festa, fazem-se presentes as influências das principais etnias que
contribuíram para a ocupação do São Francisco. A Sra. Anildes Evangelista, de Montes Claros
(MG), ao comentar sobre as “festas de agosto”, reconhece a mistura de costumes e culturas. “Ela
tem influência africana, indígena e portuguesa. A festa de agosto, ela é a junção desses três povos,
né? Você tem uma influência até dos espíritos, dos reis, que nada mais é do que o povo
reverenciando o rei passar. E a influência dos negros, é na dança dos catopés e na dança dos
negros. É negro, índio e português.
A influência dos catopés é muito forte, é a festa mais importante
da cidade e de grande participação do povo mesmo, onde o povo, o povo com pé descalço sente que
a festa é deles. Eles é que fazem a festa (Anildes Evangelista, Montes Claros-MG, 2006).
Mesmo reconhecendo que houve uma profunda mistura de culturas, uma ruptura importante
em relação às posturas do passado refere-se à figura do sertanejo do São Francisco. Normalmente
citado nos livros como um ser dotado de muito vigor físico, acostumado às dificuldades do sertão,
para o caboclo do São Francisco convergem as referências ligadas à mistura de raças, verdadeiro
elemento do intercâmbio cultural de índios, brancos e negros, que constituíram o povo brasileiro.
125
O elemento humano na Bacia Média do São Francisco, apesar de sofrer em geral vários
cruzamentos, apresenta um tipo especial, completamente diverso do que habita a região
costeira e os platôs do sul. (...) Ainda que puramente brancos, negros e índios somem um
pequeno total, a maior parte pertence ao tipo caboclo, que é principalmente, um produto dos
troncos branco e índio, com traços de sangue negro. (...) Por conseqüência o sertanejo, é o
tipo resultante de alguns séculos de amalgamação racial e aculturação. (...) É fisicamente
forte, capaz de suportar longas horas de labor extenuante, quando não atacado pelas
moléstias dominantes na região. Tem inteligência viva e arguta, é de espírito inventivo, o
sendo entretanto econômico. Possui uma filosofia fatalista que o preserva de revoltas contra
condições adversas. No seu trabalho não demonstra a perseverança e a continuidade do
imigrante estrangeiro, não em virtude da ascendência indígena, mas porque lhe falta a
educação apropriada. (ZARUR, 1947, p. 8).
Para esse mesmo elemento humano exortado nos escritos sobre a região, convergem também
boa parte dos preconceitos em relação à lida no trabalho e à falta de operosidade. Vários são os
depoimentos que enaltecem o sertanejo, mas que tecem duras críticas em relação ao seu
comportamento diante das rotinas de trabalho, como se isso fosse de alguma forma ligado mais a
uma predisposição genética, quase racial, do que a uma conjuntura sociopolítica. Em depoimento
registrado na cidade de São Romão, tem-se uma noção da intensidade desse preconceito: "A
maioria é preguiçoso, não quer fazer muita coisa. Tem cabeça de peixe, farinha e cachaça, o
pessoal não quer nada não. Barranqueiro é o baiano cansado, né? Teve preguiça de chegar a São
Paulo e ficou por aqui" (Telêmaco Galvão, São Romão-MG, 2006).
Usando palavras bem parecidas, em um depoimento registrado em Montes Claros, o Sr.
Virgílio de Paula, também expõe esse tipo de preconceito em relação ao barranqueiro e,
principalmente, ao baiano: “Dizem que o barranqueiro era meio preguiçoso, não era o baiano.
Também, grande parte dos barranqueiros daqui vieram da Bahia. Barranqueiro pescador era o
seguinte: ele jogava o anzol e ficava esperando o peixe cair. Ele pegava o surubim, limpava o
peixe, tirava a cabeça. Ele vendia o peixe, e com o que ele vendia, ele comprava a pinga, o fumo, o
sal e a carne. Voltava pra casa, cozinhava a cabeça do peixe, fazia o pirão, tomava da pinga, e ia
pitar na beira do rio, esperando outro peixe. Essa era a vida dele" (Virgílio de Paula, Montes
Claros-MG).
Atualmente, vai se abolindo aos poucos o conceito de que o sertanejo seja, de alguma forma,
geneticamente diferente de qualquer outra tipologia humana. Para os moradores ribeirinhos, está
mais claro que as condições de vida em que se encontram são consequência de limitações
socioculturais e conjunturas econômicas, que atuaram na região durante séculos e que serviram para
moldar as mentalidades e comportamentos desses seus habitantes.
No desenvolvimento da pesquisa, comparando as fontes documentais com as entrevistas de
campo, foi possível notar uma ruptura significativa em relação à percepção sobre a disponibilidade
126
dos recursos naturais fornecidos pelo rio. Nos escritos mais antigos, era comum difundir-se a
informação de que o São Francisco seria um provedor quase que infinito de recursos para a
subsistência da população, relacionado à pesca abundante, à disponibilidade de águas para
consumo, à riqueza da flora e fauna e a diversos aspectos naturais que compunham as necessidades
básicas da população. Atualmente, ao contrário da maioria dos relatos sobre o São Francisco, vê-se
nitidamente, que os recursos providos pelo rio tendem a se esgotar, se não forem usados com
parcimônia. A população consegue compreender que a antiga abundância de recursos naturais que
cercavam o São Francisco se esvaeceu e que os indivíduos que dependem dele encontram certa
dificuldade para se manter. Tem-se a consciência de que o rio, para se recuperar, necessitará de
contribuição externa e que a escassez atual, certamente foi causada pela ação desgovernada e
predatória do homem.
Em depoimento registrado na cidade de Januária (MG), o Sr. Lenine Correa compartilha a
sua impressão sobre o rio e aponta o perigo de que ele esteja “morrendo”, quando afirma: O rio
se tornou menos importante como sustento, a não ser pela água, né? O rio minguando, os peixes
sumiram, não tem mais o vapor e o comercio está diminuindo muito(Lenine Correa, Januária-MG,
2006). Em Carinhanha (BA), o Sr. José Patrício relata a sua preocupação em relação à atual
situação do rio, que se configura bem diferente da abundância de outrora: O rio agora está
defasado, todo quebrado, todo maltratado, abandonado, não pelo ribeirinho, mas pelo povo
desta nação. Você está vendo este esgoto aí, em junho você consegue atravessar a pé. Você não
nada, só areião, que nós chamamos de coroa (José Patrício, Carinhanha-BA, 2007).
Identifica-se na população ribeirinha um sentimento de relativo paternalismo em relação ao
rio, justificado pela iminência da sua perda. Vários foram os discursos de afeto e preocupação com
o rio, entretanto, poucos são os mecanismos efetivos utilizados para a sua conservação.
127
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção de conhecimento científico, por suas características tradicionais e peculiares,
exige que cada tentativa para a sua elaboração apresente, minimamente, conclusões formatadas no
ponto de sua chegada. Em alguns casos, o sucesso ou não na empreitada é vinculado estritamente
aos seus resultados finais.
Nas ciências humanas, mais do que as conclusões que tentam resumir o resultado de um
trabalho, o caminho percorrido até o arremate possui grande importância, principalmente, quando se
considera a possibilidade de criação, aperfeiçoamento ou reprodução de metodologias de pesquisa.
Nesse sentido, somados aos resultados gerados em relação à análise da região do São Francisco,
acredita-se que o processo e a metodologia que conduziu a tais conclusões são de suma importância.
Recordando as etapas que encaminharam até aqui, aponta-se a necessidade de renovação na
postura da ciência tradicional, ainda muito presa aos preceitos positivistas, que, muitas vezes,
limitam a construção do saber, ao segmentar o conhecimento em diversas e autônomas disciplinas.
Ao optar-se por procedimentos que favoreçam a transdisciplinalidade, acredita-se que tal escolha
representa um ensaio para a transformação da ciência em algo mais sensível aos novos desafios da
Pós-Modernidade.
Entretanto, trazer essa postura mais flexível para servir de suporte à investigação da
realidade é tarefa bastante complexa, visto que as raízes do comportamento positivista ainda são
bem profundas e acabam por condicionar o comportamento investigativo quase que intuitivamente.
Ao promover a investigação das transformações socioespaciais no Vale do São Francisco, segundo
um olhar geoistórico, reconhece-se que muitas das propostas sugeridas para promover alterações na
metodologia positivista são mais simples no discurso.
Esta dissertação é um produto voltado, em princípio, para o mundo acadêmico, motivo pelo
qual algumas regras e condições foram respeitadas, principalmente no que se refere à padronização
da linguagem e à necessidade de estabelecer nculos com os resultados obtidos por outros autores
desse tema, e mesmo para o projeto no qual este trabalho se insere. Essas condições estruturais para
a construção do saber são padrões importantes para o desenvolvimento de uma ciência que se
pretende universal e homogênea.
Tal crítica, todavia, torna-se pertinente a partir do momento em que a utilização das regras
da academia interfira, de alguma forma, limitando as possibilidades de produção do saber e a
relação entre ciência e os indivíduos que não fazem parte do mundo acadêmico. As regras e
128
preceitos positivistas e a divisão das disciplinas são artifícios necessários. Entretanto, incentivam o
desenvolvimento de uma ciência, que pode substituir o conteúdo pela forma, e isso deve ser evitado.
Da defesa inicial de um espírito e de uma metodologia interdisciplinar passa-se a apoiar
uma moderna atitude científica, que se poderia definir adisciplinar, ou seja, mais de
convergência ou polarização sobre os problemas do que sobre os conteúdos esclerosados
das disciplinas tradicionais, na perspectiva de uma concepção moderna da ciência do
homem não mais modelada por divisões disciplinares artificiais e autoritárias (FERRO,
1985, p. 48).
Nesta pesquisa, as disciplinas tradicionais Geografia e História foram os primeiros alvos,
por ser, respectivamente, os ramos do conhecimento que tratam dos conceitos de espaço e de tempo.
A opção por utilizar uma metodologia de pesquisa geoistórica coloca-se como alternativa à rigidez
disciplinar e à possibilidade do desenvolvimento conjunto do saber socioespacial.
"Uma perspectiva geo-histórica” requer uma tipologia dos aglomerados humanos” que
“seja funcional para uma periodização da ocupação do espaço”, dado que é necessário
“reconhecer uma lógica própria na história do povoamento, uma periodização própria que
não pode coincidir nem com a de uma história ecológica nem com a de uma história
econômica nem, por fim, com a de uma história demográfica. Por isso, “o discurso geo-
histórico tende a tornar-se um discurso de história social e de morfologia geográfica... e a
passar a morfologia social (FERRO, 1985, p. 47).
As palavras de Ferro (1986) resumem o objetivo principal desta empreitada, que se crê
alcançado:
Pode-se assim concluir reafirmando que o trabalho e a investigação do geógrafo não podem
deixar de ter em conta as transformações históricas do território que se examina, com o
duplo objectivo de reconstruir as condições do ambiente no passado e, sobretudo, de se
reportar às formas de vida, às condições de civilização, às técnicas de trabalho e aos tipos
de consumo do passado; e tudo isto nãopara melhor compreender as condições de então,
mas também as condições do presente (FERRO, 1986, p. 67).
129
5 CONCLUSÃO
Com base no conceito de uma metodologia geoistórica para servir de suporte às análises
relacionadas às variáveis socioespaciais, utilizou-se o Vale do São Francisco no período core de sua
ocupação, como concretude a ser investigada e por julgar que tal região comportaria características
fundamentais para se desenvolver e testar essa mentalidade investigativa.
Percorrido o caminho delineado na pesquisa, demonstrou-se que a área escolhida e o período
investigado foram satisfatórios como objetos para o exercício transdiciplinar de análise. A
complexidade de variáveis contempladas pelo objeto foram essenciais para a validação da
metodologia aplicada e, junto a isso, os resultados da averiguação proporcionaram novas visões
sobre o São Francisco, sua história e sua organização socioespacial.
Das conclusões sobre o Vale do São Francisco, a mais significativa é referendar a
importância da pecuária e do comércio ribeirinho como elementos fundamentais na organização
espacial e na escrita da história da região. Os depoimentos registrados em campo e as pesquisas
bibliográficas convergiram para apontar a relevância desses dois modos de produção, como partes
definidoras do território, da economia, da sociedade e da cultura do São Francisco. Apesar da
grande relevância das Bandeiras e da mineração na tradição e na história do Alto São Francisco, é
inegável reconhecer a pujança e influência desses outros elementos, que interferiram,
principalmente, na formação do médio São Francisco, a que chamamos de Região do Gado.
Após a avaliação, é possível reconhecer que a ocupação do Vale do São Francisco deu-se de
uma forma bem mais complexa do que sugerem as que tratam toda a região como área de influência
da mineração. Tomando como referência o Estado de Minas Gerais, fica claro que existe uma
divisão simbólica e socioespacial, que separa a região da mineração Minas da região dos
currais Gerais. Contudo, afirma-se que é da complexidade dessas diferenças que se moldam a
cultura, a história, o espaço e a sociedade mineira.
Ao considerar-se a utilização da linguagem oral como instrumento de pesquisa, cabe
ponderar a dificuldade no tratamento dessa fonte. Apesar de os depoimentos, em grande maioria,
revelarem elementos instigantes sobre o objeto estudado, tornou-se mister certificar-se de que as
informações registradas em campo seriam comprovadas e validadas por outros documentos
disponíveis sobre o tema, para garantir minimante a qualidade e precisão dos dados apresentados
neste texto. Assim, o tratamento das entrevistas recebeu atenção especial, e independentemente de
quaisquer tipos de interferência que tenham sido captados e registrados durante as conversas, optou-
se por expor parte do material arquivado pela pesquisa.
130
Atentar para a possibilidade de alcançar, via registro oral, informações sobre a organização
e formação do espaço foi diferencial bastante importante para se compreender a realidade
socioespacial do Vale do São Francisco. A utilização da Geografia Oral como instrumento de
obtenção de dados foi essencial para despertar a atenção para vários aspectos do real, que muitas
vezes passariam despercebidos, se fossem usadas apenas fontes tradicionais de consulta.
Reconhecer que não se pode idealizar o conhecimento científico, pois ele está sempre
inserido em um contexto social, foi uma das conclusões a que chegamos percorrido o caminho até
aqui. A ciência é, acima de tudo, feita por pessoas, e por isso está sujeita ás modificações
sociopolíticas e geograficotemporais que podem questionar a suposta imparcialidade da produção
científica.
Ao tratar-se das condições para a formação da sociedade do Vale do São Francisco ficou
evidente que a questão da distância interfere diretamente na maior ou menor integração de
determinado município. As regiões mais afastadas dos grandes centros conservam durante mais
tempo as tradições e costumes ligados ao passado. Em áreas onde a integração não é obstáculo,
pode ser constatada maior dinâmica e as transformações socioespaciais operam de modo mais
acelerado.
Mais do que analisar a região do São Francisco como uma massa homogênea, a pesquisa
revelou a complexidade de relações que envolvem a ocupação do vale, sendo que os rótulos
preconcebidos tendem a esconder diferenças significativas em relação à organização socioespacial
disponível na região. Ressalta-se, assim, a necessidade de se reconhecer as diversas redes criadas
entre os municípios da bacia, que mesmo não obtendo uma influência macrorregional, ajudam na
construção das características locais de cada município. Esse argumento torna-se cristalino ao
observar-se as redes comerciais e de transporte fluvial. Quando o comércio fluvial pelo São
Francisco é citado na literatura, a imagem que logo se forma é a dos vapores e gaiolas, que durante
um longo período foram responsáveis por conduzir o comércio e o transporte de passageiros da
região. Porém é um imenso equívoco julgar que esse tipo de comércio só foi viável após a
introdução dos vapores, no século XIX. A história da ocupação do rio comprova que uma complexa
rede de relações comerciais entre os municípios ribeirinhos já era significativa anos antes da
introdução das gaiolas a vapor. Os remeiros e barqueiros do São Francisco possuem papel
fundamental na formação do vale, mesmo antes de os navegadores conduzirem as primeiras
embarcações a vapor. Reconhecer a importância dos agentes locais na transformação do São
131
Francisco é critério fundamental para se compreender as transformações socioespaciais que
operaram na região.
Diante dos desafios apresentados por esta pesquisa, admite-se que muitos assuntos ainda
merecem um tratamento mais aprofundado, devendo tornar-se objetos para futuras pesquisas na
área. A visão aqui apresentada destaca apenas algumas das possibilidades de análise em relação à
região e ao tema escolhido. Os resultados desta pesquisa são, portanto, ranhuras superficiais, que
não se esgotam neste trabalho e que merecem novas investidas.
132
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