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tecnológico vendido na revolução verde. Denominado por Marx de autodestruição criadora
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, a
lógica capitalista de produção inverte a lógica hierárquica camponesa, e coloca as famílias do
sitio, agora dependentes do mercado hegemônico, em uma contradição com relação a aspectos
sócio-culturais.
A hierarquia familiar, brevemente discutida em capítulo anterior, foi caracterizada pelos
sitiantes através da comparação entre as relações familiares de antigamente e as relações
familiares modernas. A hierarquia familiar ‘de antigamente’ pode ser fundamentada teoricamente
através da concepção de saber-poder
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e de mestre-aprendiz
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. Ou seja, o velho (homem ou
mulher) é respeitado no interior da família como detentor do saber e consequentemente detentor
do poder. O poder adquirido através do domínio do saber é, nesse caso, relacionado ao poder do
mestre; que deve ser respeitado enquanto tal sem que seja preciso estabelecer-se uma relação de
submissão. O novo (filhos, sobrinhos e netos) deve, portanto, colocar-se em situação de aprendiz
para que possa, no decorrer do tempo (convívio familiar), ter acesso aos saberes do mestre e um
dia tornar-se mestre (pai ou mãe).
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Sobre esta concepção da desconstrução do velho e valorização do novo, Marx já dizia: “Dissolvem-se todas as
relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as
relações que a substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se desmancha no
ar, tudo que era sagrado torna-se profano, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas
condições de existência e suas relações recíprocas (...). A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente
os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto, todo o conjunto de relações
sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de
todas as classes industriais anteriores. O contínuo revolucionamento da produção, o abalo constante de todas as
condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes” (MARX;
ENGELS, 1977, p. 23-24).
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A relação saber-poder foi fundamentada por Michel Foucault. Segundo o autor precisamos admitir “que poder e
saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber,
nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder; mas é preciso considerar ao
contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são outros tantos
efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a
atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o saber-poder, os
processos e as lutas que o atravessam e o constituem, que determinam as formas e os campos de conhecimento
possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 1987, p. 27).
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Longe de querer comparar a unidade familiar camponesa à capoeira, uma discussão a respeito da relação mestre-
aprendiz pode ser encontrada nos estudos sobre esta arte, mais especificamente a capoeira angola. No livro
“Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda”, Pedro Abib constrói uma reflexão sobre a figura do
mestre que pode servir para a discussão desta pesquisa: “Essa figura é fundamental no seio de uma cultura na qual a
transmissão do saber passa pela via da oralidade, e por isso depende desses guardiões da memória coletiva para que
esta seja preservada e oferecida às novas gerações. O mestre é aquele que é reconhecido por sua comunidade, como
detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos, alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e
heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa, de disponibilizar esse saber àqueles que a ele
recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume por essa razão, a função do
poeta que, através do seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora que irrompe para dignificar
o presente, e conduzir a ação construtiva do futuro” (ABIB, 2005, p. 95).