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Universidade de São Paulo
Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”
Centro de Energia Nuclear na Agricultura
Agroecologia, campesinidade e os espaços femininos
na unidade familiar de produção
Laura De Biase
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em
Ciências. Área de concentração: Ecologia Aplicada
Piracicaba
2010
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Laura De Biase
Engenheiro Florestal
Agroecologia, campesinidade e os espaços femininos
na unidade familiar de produção
Orientadora:
Profª. Dra. MARIA ELISA DE PAULA EDUARDO
GARAVELLO
Co-orientadores:
Prof. Dr. Paulo Eduardo Moruzzi Marques
Prof. Dr. Manuel Baltasar Baptista da Costa
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em
Ciências. Área de concentração: Ecologia Aplicada
Piracicaba
2010
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3
Dedico este trabalho
a quem me ensinou a não separar os aprendizados da vida da própria forma de viver
quem me fortalece para buscar aquilo que acredito e que desejo
quem compartilha comigo a esperança e as dificuldades da busca pela liberdade
alguém que me faz lembrar todos os dias da delícia de ser mulher
que me faz sentir o desejo de ser mãe
e que constrói comigo aquilo que temos de mais belo
a nossa família
Dedico este trabalho ao meu amado marido,
Roberto Donato.
4
5
AGRADECIMENTOS
Acredito que são raras as coisas da vida que fazemos efetivamente sozinhos.
Principalmente quando construímos a nossa vida a partir de relações orientadas por um mesmo
princípio. Para além das formalidades científicas, este trabalho está fundamentado numa grande
questão pessoal: a interação entre seres humanos e natureza. Como esta é uma questão que se faz
presente em toda e qualquer relação que estabeleço com o mundo, não seria possível fazer
agradecimentos individuais. Agradeceria à própria vida e aos aprendizados que ela me
proporciona.
Algumas pessoas, é claro, foram especialmente importantes para a construção deste
trabalho. Gostaria de começar agradecendo à minha orientadora Maria Elisa, com quem
estabeleço uma relação de orientação maior do que os limites de uma pesquisa de mestrado.
Agradeço pelo exemplo de flexibilidade que nos permite transitar pelas diferenças. Agradeço pela
confiança que dedicou a mim e por todos os ensinamentos, que vão desde a conjugação verbal até
a reflexão sobre conflitos existenciais.
Aos meus co-orientadores, Manuel Baltasar e Paulo Moruzzi. Um grande exemplo de
comprometimento e coragem, Baltasar me apresentou à agroecologia no período da graduação e
desde então pude sempre contar com seus conselhos e sua ajuda. Além das reflexões realizadas
em disciplina e em outros momentos de orientação, agradeço ao Paulo pelo exemplo de
incorporação na vida cotidiana de suas propostas teóricas. A ambos, agradeço às contribuições
realizadas na banca de qualificação deste trabalho.
Às professoras Larissa Bombardi e Valéria de Marcos, que me abriram as portas da
Geografia Agrária (USP) e, através de suas disciplinas, contribuíram muito para a realização
desta pesquisa. Além dos ensinamentos teóricos, gostaria de agradecer à Valéria por semear em
meu caminho ainda mais esperança sobre a possibilidade de um mundo melhor.
Agradeço aos professores Dálcio Caron e Flávio Gandara, tanto pelas contribuições
referentes a esta pesquisa como pelas orientações recebidas durante a graduação. Flávio foi tutor
do grupo de estágio que participei durante três anos da graduação (PET-Ecologia), mas sua
grandeza permitiu que eu o mantivesse como tutor da minha vida profissional até hoje.
Agradeço à Maria Emília Pacheco (FASE), Ellen Woortmann (UnB) e Emma Siliprandi
(NEPA/Unicamp) pela contribuição que me ofereceram através de suas discussões teóricas, do
envio de material bibliográfico e a forma atenciosa com que receberam meus pedidos de auxílio.
Devo muitos agradecimentos às famílias entrevistadas, tanto pela disponibilidade quanto
pelos aprendizados e acolhimento que ofereceram. Em especial, gostaria de agradecer àqueles
agricultores e agricultoras que me hospedaram em suas casas, sempre com muito carinho, ou que
contribuíram de alguma forma com a organização do trabalho de campo: Bete, Adilson e Walker;
D. Tereza, S. Zé Maria e Rosana; D. Matilde e S. Zito; Zinha, Geraldo e Agnaldo; Lila e
Gilberto; D Rose e S. Orlando. Agradeço à contribuição logística de José Bonilha; à Íris Raquel e
Marcelo, pela hospedagem em Joanópolis/SP, a ao meu tio Lídio e minha tia Beatriz pela ajuda
com relação a esta viagem de campo.
6
Gostaria de agradecer aos amigos André Toshio e a Marina Guyot que viabilizaram a realização
da pesquisa de campo em Joanópolis/SP e ao amigo João Dagoberto que contribuiu com a
realização da pesquisa de campo no Vale do Ribeira/SP. Agradeço ainda à instituição PROTER
pela oportunidade de participação no projeto PDA.
À minha ajudante e amiga Larissa Aguiar, que viabilizou minha dedicação a este
trabalho, cuidando com carinho de nossa casa e nossa alimentação. Ao José de Almeida Filho,
Mestre Zequinha, que ensinou a mim e a minha família a incorporar a noção de equilíbrio e a
valorizar a relação mestre-aprendiz.
Aos amigos e companheiros de movimento estudantil, Acácio (Bri), Daniel (Lava),
Renato (Salim). Às amigas e amigos com quem compartilhei importantes experiências
acadêmicas e de vida, Caroline (Bents), Ana Cristina (Aninha), Luciane (Tabs), Júlia (Jú), Renata
(Eros), Eduardo (Du), Ana Flávia (Fafá) e Fabrício (Juça). À amiga Sarah, colega de pós-
graduação e professora de inglês, que me ajudou em diversas traduções de textos. Agradeço
ainda, pela grande e longa amizade, às amigas de infância Maria Eugenia e Fernanda, à querida
Larissa Packer e à minha “amiga-irmã” Ana Barini, que como partícipes da minha vida também
contribuíram com a realização deste trabalho.
Agradeço pela força, compreensão, confiança e pelas orações do meu sogro Roberto,
minha sogra Maria Zélia, dos meus cunhados, cunhadas e sobrinhos queridos: Patrícia, Marcio e
Caio; Aline, Mateus e Pedro.
Gostaria de agradecer de forma especial aos meus pais Odete e Mário e aos meus irmãos
Renato e Fábio, e deixar, junto com os agradecimentos, o meu pedido de desculpas pelas
ausências que minha dedicação a este trabalho acabou acarretando. Agradeço ao amor existente
entre meus pais, que me possibilita desde sempre vivenciar a delícia da construção conjunta.
Amo vocês.
Por último, além de agradecer, gostaria de compartilhar com meus dois amores Beto e
Vitória, tudo de bom que este trabalho venha a oferecer. Esta pesquisa foi compartilhada com
eles em todas as esferas. Agradeço desde a participação em visitas de campo até o amor e a
paciência que me ofereceram nos momentos difíceis diante do computador. Especialmente à
minha “filha do coração” Vitória, agradeço pela compreensão e por toda ajuda que me deu
durante a construção deste trabalho. Muito obrigada minha querida!
7
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................................ 9
ABSTRACT ...................................................................................................................................... 11
LISTA DE SIGLAS .......................................................................................................................... 13
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 15
2 AGROECOLOGIA PLENA: UMA CONSTRUÇÃO INTEGRADORA................... .................. 27
2.1 A agroecologia de Stephen Gliessman e os processos ecológicos . ............................................ 28
2.2 A agroecologia de Miguel Altieri: politização e estratégias tecnicoagronômicas....................... 38
2.3 A agroecologia de Eduardo Sevilla Guzmán e o fortalecimento sócio-cultural.......................... 49
2.4 A construção de uma Agroecologia Plena. .................................................................................. 61
3 A CAMPESINIDADE E A VALORIZAÇÃO DA PERSPECTIVA DO OUTRO ....................... 69
3.1 O campesinato e sua matriz sócio-cultural: a campesinidade.. ................................................... 70
3.2 Unidades familiares de produção. ............................................................................................... 85
4 UMA BUSCA PELA CAMPESINIDADE E A PRÁXIS AGROECOLÓGICA .......................... 95
4.1 Procedimentos de pesquisa .......................................................................................................... 95
4.2 As regiões estudadas .................................................................................................................. 101
3.3 Os espaços do sítio .................................................................................................................... 106
4.4 Espaços femininos ..................................................................................................................... 110
4.5 Espaços masculinos ................................................................................................................... 121
4.6 O tamanho das terras ................................................................................................................. 130
4.7 Campesinidade em conflito: uma transformação na relação humano-natureza ........................ 134
4.8 Modernização: qual é a relação entre o lobisomem e a energia elétrica? .................................. 158
4.9 Agroecologia: um novo campo do conhecimento que ‘desfaz casamento’? ............................. 164
5 A CONSTRUÇÃO DE NOVOS CAMINHOS ............................................................................ 171
REFERÊNCIAS.. ................................................................................................................... ....... 185
B
8
9
RESUMO
Agroecologia, campesinidade e os espaços femininos na unidade familiar de produção
O objetivo desta pesquisa foi refletir sobre a dimensão feminina na campesinidade e a
importância de sua valorização para a incorporação dos aspectos sócio-culturais na prática
agroecológica. A agroecologia pode ser definida como um campo de estudos de caráter
multidisciplinar, que tem como objetivo articular o saber-fazer científico ao saber-fazer das
comunidades rurais, como forma de potencializar práticas sustentáveis de agricultura. Como
movimento de oposição ao processo de “modernização” da agricultura, busca recuperar as
condições socioambientais perturbadas por este e viabilizar a construção de uma realidade
sustentável. Contudo, tem-se constatado atualmente que a prática agroecológica brasileira tem
sido realizada de maneira restrita, limitando-se principalmente a aspectos técnicos, insuficiente à
realização da transformação pretendida teoricamente. Neste trabalho analisou-se, portanto, as
possibilidades da campesinidade, e particularmente a valorização da sua dimensão feminina,
contribuir para efetivar o projeto agroecológico de construção da sustentabilidade. Para tanto,
realizou-se: (1) um estudo sobre as diferentes concepções teóricas da agroecologia e suas
possibilidades de articulação para construção de uma proposta de agroecologia plena; (2) uma
análise teórica sobre o campesinato e as características da campesinidade, de uma perspectiva de
gênero, como fundamentação para a pesquisa de campo; (3) análises empíricas sobre
campesinidade, relações de gênero na unidade familiar de produção e prática agroecológica, em
duas realidades distintas: a região do Vale do Ribeira/SP e o município de Joanópolis/SP; e
finalmente, (4) uma reflexão sobre as potencialidades de contribuição da dimensão feminina e da
campesinidade para a construção da agroecologia plena. A pesquisa de campo foi realizada
através de observação participante e realização de entrevistas abertas, buscando diversas formas
de reduzir a distância existente entre pesquisadores e pesquisados. Como conclusão, constatou-se
que (1) o processo de modernização da agricultura causou efeitos perturbadores à campesinidade
e às relações de gênero, mas que, ainda assim, (2) é possível encontrar elementos de
campesinidade nas realidades transformadas por esse processo. No entanto, (3) as iniciativas
agroecológicas estudadas não alcançaram as condições necessárias para transcender os efeitos
desta modernização sobre a organização sócio-cultural camponesa, especialmente no que se
refere à masculinização dos processos familiares de produção. Finalmente, sugeriu-se que, quanto
ao procedimento metodológico, a antropologia tem muito a contribuir com a construção de uma
agroecologia plena.
Palavras-chave: Agroecologia; Campesinidade; Unidade Familiar de Produção; Relações de
Gênero; Espaço Feminino; Espaço Masculino
10
11
ABSTRACT
Agroecology, rural communities and feminine epaces inside family production units
The aim of this research was to reflect about the feminine dimension inside rural
communities and the importance of feminine valorization looking to incorporate socio cultural
aspects in agroecological practice. Agroecology can be defined as a multidisciplinary field of
study that aims to articulate the scientific know-how with the rural communities know-how, as a
way to strengthen sustainable practices in agriculture. As an opposition movement against the
agricultural “modernization” process, it seeks to recover socio environmental conditions
disturbed by it and facilitate the construction of a sustainable reality. However, it has been
confirmed that agroecolgy has been practiced in a restricted way, limiting it to technical aspects
that are not enough to reach the aimed theoretical transformation. Therefore, the contribution of
rural communities, especially regarding feminine valorization was analyzed looking to see its
contributions to the execution of an agroecological project for the construction of sustainability.
Looking to achieve the objectives of this research, the following analysis were made: (1) a study
about the different theoretical conceptions about agroecolgy and its articulation possibilities to
construct a full agroecological proposal; (2) a theoretical analysis about rural communities and its
characteristics from a gender perspective, as the basis for the field study; (3) empirical analysis
about rural communities, gender relations inside the family production unit and agroecological
practice in two different realities: Vale do Ribeira region SP, Brazil and Joanópolis municipality
SP, Brazil; finally, (4) a reflection about the potentialities of feminine dimension contribution and
of rural communities for the construction of a full agroecolgy. Field research was carried out by
means of participant observation and open interviews, looking to reduce the distance between the
researcher and the researched in several ways. To conclude it can be stated that (1) the agriculture
modernization process caused disturbing effects to rural communities and to gender relations,
but, even so (2) it is possible to find rural elements in the realities modified by this process.
However, (3) the analyzed agroecological initiatives did not achieve the necessary conditions to
transcend the effects of this modernization inside the rural socio cultural organization, especially
regarding the “masculinization” of family production processes. Finally, it is suggested that
anthropology can make a great contribution to the construction of a full agroecolgy, regarding the
methodological procedure.
Keywords: Agroecology; Rural communities; Family production unit; Gender relations;
Feminine space; Masculine space
12
13
LISTA DE SIGLAS
UCSC – Universidade da Califórnia, Santa Cruz
CSAT – Colégio Superior de Agricultura Tropical
CLADES – Consórcio Latino-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento
SANE – Sustainable Agriculture Networking and Extension
ONGs – Organizações Não-Governamentais
CGI-AR - Comitê Consultivo de Pesquisa Agrícola Internacional
DRP – Diagnóstico Rápido Participativo
CRN – Contabilidade de Recursos Naturais
ISEC – Instituto de Sociología y Estudios Campesinos
ETSIAM – Escuela Superior de Ingenieros Agrônomos y de Montes
UC – Unidade de Conservação
SAF – Sistema Agroflorestal
APP – Área de Preservação Permanente
RL – Reserva Legal
PDS – Projeto de Desenvolvimento Sustentável
ANA – Articulação Nacional de Agroecologia
MST – Movimento dos Sem Terra
PROTER – Programa da Terra
PCJ – Piracicaba-Capivari-Jundiaí
APA- Área de Proteção Ambiental
AGUA – Associação dos Moradores do Bairro do Guapiruvu
NACE-PTECA – Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão em Educação e Conservação Ambiental
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas
ANA – Articulação Nacional de Agroecologia
GT – Grupo de Trabalho
14
15
1 INTRODUÇÃO
“Os ‘silêncios’ sobre as mulheres estão a requerer outra matriz de análise que
parta dos ecossistemas e sistemas de produção, da ampliação do conceito de
trabalho e produtivo, em articulação com a questão da diversidade social,
como constitutiva de uma visão de agricultura sustentável que relacione
gênero e agroecologia.
O debate continua em aberto”
Maria Emília Pacheco.
Este trabalho é fruto de inquietações profissionais e pessoais que surgiram na convivência
com famílias rurais envolvidas em movimentos socioecológicos. É uma reflexão sobre a busca da
sustentabilidade através da agroecologia e o desafio da interação de seus aspectos constitutivos -
o ecológico, o econômico e o sócio-cultural. A agroecologia pode ser definida como um campo
de estudos de caráter multidisciplinar, que tem como objetivo articular o saber-fazer científico ao
saber-fazer das comunidades rurais, como forma de potencializar práticas sustentáveis de
agricultura. Este novo campo do conhecimento pretende viabilizar a construção de outra forma de
relação dos seres humanos entre si e com a natureza, na contramão do processo de
“modernização da agricultura”.
O objetivo desta pesquisa foi refletir sobre a dimensão feminina na campesinidade
1
e a
importância de sua valorização para a incorporação dos aspectos sócio-culturais na prática
agroecológica. Pretendeu-se analisar as possibilidades da campesinidade, e particularmente a
valorização da sua dimensão feminina, contribuir para efetivar o projeto agroecológico de
construção da sustentabilidade. Para tanto, foi realizado: (1) um estudo sobre as diferentes
concepções teóricas da agroecologia e suas possibilidades de articulação para construção de uma
proposta de agroecologia plena; (2) uma análise teórica sobre o campesinato e as características
da campesinidade, de uma perspectiva de gênero, como fundamentação teórica para a pesquisa de
campo; (3) análises empíricas sobre campesinidade, relações de gênero na unidade familiar de
produção e prática agroecológica, em duas realidades distintas: a região do Vale do Ribeira-SP e
o município de Joanópolis/SP; e finalmente, (4) uma análise sobre as potencialidades de
contribuição da dimensão feminina e da campesinidade para a construção da agroecologia plena
1
O conceito de campesinidade será discutido no decorrer deste trabalho, especialmente no segundo capítulo.
16
Na década de 1950 iniciou-se o que se costuma denominar de “modernização da
agricultura”
2
. Havia, naquele momento, uma discussão internacional sobre a insuficiência da
produção de alimentos necessária à crescente população mundial. O processo de modernização
agrícola se intensificou com o movimento intitulado Revolução Verde. Este movimento instituiu
o modelo tecnológico que aperfeiçoou os sistemas monoculturais em larga escala, basicamente
através da mecanização, seleção de variedades genéticas e emprego intensivo de fertilizantes
químicos e agrotóxicos.
No final do século XIX e início do século XX, uma série de descobertas
científicas e tecnológicas, como os fertilizantes químicos, o melhoramento
genético das plantas e os motores de combustão interna, possibilitaram o
progressivo abandono dos sistemas rotacionais e o divórcio da produção animal
e vegetal. Tinha início uma nova fase da história da agricultura, a Segunda
Revolução Agrícola, que consolidou o padrão produtivo químico, motomecânico
e genético praticado nos últimos sessenta anos. Esse padrão, posteriormente
denominado “agricultura convencional”, intensificou-se após a Segunda Guerra
Mundial culminando, na década de 1970, com a chamada Revolução Verde
(EHLERS, 1999, p. 45).
Neste processo de transformação da agricultura, a produção de alimentos aproximou-se
da produção industrial, de onde germinou o termo “agroindústria”. A agricultura familiar,
orientada para a produção para auto-consumo e mercado interno local, passou a se inviabilizar
diante do mercado de sementes, insumos industrializados e maquinários. Esta lógica de produção
tem sido gradativamente substituída por uma lógica de maximização da produção para o lucro,
alterando a organização familiar de produção.
O modelo “moderno” de agricultura gerou, e ainda gera, conseqüências ambientais e
socioeconômicas que impulsionam movimentos de contestação. Conhecidos como movimentos
alternativos, surgiram algumas formas de agriculturas baseadas em princípios ecológicos e de
equidade econômica. Pode-se considerar que o modelo da revolução verde gerou, com
velocidades semelhantes, um aumento das produtividades agrícolas e uma grande quantidade de
movimentos contestatórios.
2
O termo “agricultura moderna” ou “modernização da agricultura” é usado na verdade desde a Primeira Revolução
Agrícola, a partir dos séculos XVIII e XIX, quando, dentre outras coisas, a atividade agrícola aproxima-se da
pecuária. No entanto, convencionou-se (ao menos na bibliografia aqui utilizada) usar-se esse termo como referência
a agricultura pós-revolução verde.
17
A agroecologia é um dos movimentos que surge em antagonismo ao modelo hegemônico
da agricultura moderna, num exercício de resgate da sabedoria camponesa e de fortalecimento de
sua organização socioeconômica e cultural.
É importante compreender, neste momento, algumas diferenças conceituais relativas ao
que se denomina Agricultura Convencional, Agricultura Orgânica, Agriculturas Alternativas e
Agroecologia. De modo geral, a Agricultura Convencional é aquela que segue o modelo de
agricultura proposto pela revolução verde. Também chamada de Agricultura Moderna, baseia-se
principalmente em: produção monocultural ou criação confinada; utilização de insumos
industrializados como fertilizantes, agrotóxicos e rações animais, utilização de maquinário
agrícola; e seleção ou modificações genéticas de plantas. A Agricultura Orgânica surge da
preocupação com os efeitos socioambientais da modernização agícola, principalmente quanto à
degradação ecológica e aos riscos da saúde humana. Este modelo contestador fundamenta-se,
basicamente, no manejo ecológico do solo e na substituição dos insumos industriais por insumos
naturais, ou orgânicos. Além da Agricultura Orgânica, as denúncias a respeito das degradações
geradas pelo modelo de produção agrícola “moderno” incitaram uma onda de movimentos
contestatórios e de propostas diferenciadas de sistemas agrícolas. Estes movimentos e os novos
modelos de produção foram denominados Movimentos Alternativos e Agricultura Alternativa,
respectivamente. Dentre as agriculturas alternativas podemos citar a Agricultura Natural,
Agricultura Biodinâmica, Agricultura Biológica, Agricultura Ecológica e Permacultura. A
Agroecologia, por sua vez, é um campo de estudos que pretende fundamentar a construção de
formas sustentáveis de agricultura. Para evitar o equívoco comum de considerar a Agroecologia
como um modelo de agricultura, uma prática ou tecnologia agrícola, podemos diferenciá-la do
termo Agricultura Agroecológica. Esta, sim, refere-se ao estilo de agricultura baseado nos
princípios da Agroecologia (CAPORAL, 2002, 2004; EHLERS, 1999; COSTA, 2004). Portanto,
a Agroecologia pertence a uma dimensão que extrapola - e inclui - as diversas formas de
agricultura sustentável. É deste conceito que se trata o presente trabalho.
Num primeiro momento, diante da artificialização da produção de alimentos e da
contaminação ambiental, a agroecologia tinha como objetivo a aproximação da agricultura aos
princípios ecológicos. O agroecólogo Gliessman - importante representante do processo de
intersecção da agronomia à ecologia - define a agroecologia como “a aplicação de conceitos e
18
princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis(GLIESSMAN,
2001, p. 54).
No entanto, a subordinação e empobrecimento da unidade familiar levaram alguns autores
a ampliar a concepção agroecológica e a compreendê-la de forma multidisciplinar. Um dos
representantes desta abertura do conceito é Altieri, que define agroecologia como uma nova
abordagem que integra os princípios agronômicos, ecológicos e socioeconômicos à
compreensão e avaliação do efeito das tecnologias sobre os sistemas agrícolas e a sociedade
como um todo” (ALTIERI, 2001, p. 18). Nesta abordagem teórica, mais politizada que a
primeira, o autor fortalece a concepção de que a agricultura sustentável, além de resolver os
problemas ambientais, deve resolver os problemas socioeconômicos gerados pela modernização
da agricultura, tais como as desigualdades e a fome.
As estratégias de desenvolvimento convencionais revelaram-se
fundamentalmente limitadas em sua capacidade de promover um
desenvolvimento equânime e sustentável. Não foram capazes nem de atingir os
mais pobres, nem de resolver o problema da fome, da desnutrição ou as questões
ambientais. As inovações tecnológicas não se tornaram disponíveis aos
agricultores pequenos ou pobres em recursos em termos favoráveis, nem se
adequaram às suas condições agroecológicas e socioeconômicas (ALTIERI,
2001, p. 15).
Complementar às duas abordagens acima, uma discussão mais aprofundada dos
aspectos sócio-culturais que permeiam os conflitos inerentes ao movimento agroecológico,
realizada, por exemplo, por Sevilla Guzmán. Este autor elabora uma reflexão sobre a necessidade
de a agroecologia partir “de dentro” da organização local, ou seja, partir da própria lógica de
organização. Nesse sentido, evidencia a necessidade de a agroecologia estimular o fortalecimento
da identidade local, geralmente desgastada pelo processo de divulgação do modelo
desenvolvimentista da agricultura moderna.
A agroecologia, como manejo ecológico dos recursos naturais para o desenho de
métodos de desenvolvimento endógeno, precisa usar na maior medida possível
os elementos de resistência específicos de cada entidade local. Em nossa
opinião, a maneira mais eficaz de realizar esta tarefa consiste na potenciação das
formas de ação social coletiva que possuem um potencial endógeno
transformador. Não se trata de levar soluções à localidade, senão de detectar
aquelas que ali existem e “acompanhar” os processos de transformação
existentes através de uma dinâmica participativa: este é o núcleo central de nossa
19
escolha teórica e metodológica (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA;
SEVILLA GUZMAN, 2000, p. 139)
3
.
Pode-se perceber, portanto, que a concepção agroecológica vem passando, nas últimas
décadas, por um período de transformação orientado à ampliação do conceito. Isto significa que a
agroecologia tem incorporado contribuições de diferentes campos do conhecimento, para que
possa efetivar a construção de uma interação sustentável entre seres humanos e natureza.
No entanto, reconhecem-se algumas restrições na prática agroecológica que vem
majoritariamente acontecendo na atualidade. Nota-se que a supervalorização dos aspectos
técnicos ou a falta de inclusão das questões sócio-culturais têm gerado o que Sevilla Guzmán
denominou de agroecologia restrita:
A Agroecologia pode ser entendida de maneira ampla ou restrita, segundo a
amplitude que se concede aos seus fundamentos teóricos. Poderia considerar-se
como uma técnica ou como um instrumento metodológico para melhor entender
o funcionamento e a dinâmica dos sistemas agrários e resolver a grande
quantidade de problemas tecnicoagronômicos que as ciências agrárias
convencionais não têm conseguido resolver. Esta dimensão restrita está sendo
amplamente divulgada no mundo da pesquisa e da docência como um saber
essencialmente acadêmico, desligado de compromissos socioambientais
(GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2000, p.
85-86).
Alguns autores brasileiros vêm discutindo sobre este assunto e reconhecendo a existência
destas limitações em experiências agroecológicas. Segundo Caporal e Costabeber “(...) é
oportuno destacar que, atualmente, um importante segmento da pesquisa e da experimentação em
Agroecologia ainda se concentra em temas do campo agronômico, ou seja, se apresenta bastante
vinculado aos aspectos tecnológicos da produção agropecuária” (CAPORAL; COSTABEBER,
2004, p. 89). Almeida (2003) aprofunda estas discussões para o campo metodológico:
No seu sentido mais estrito, como preconizam alguns autores “clássicos” sobre o
tema (...), a agroecologia ainda não foi devidamente encarada e praticada.
Constata-se, no entanto, que o uso da noção é “estratégico”, pois sintetiza e
mesmo legitima as ações de muitos agentes, especialmente aquelas mais
recentes. (...) Do ponto de vista metodológico, ainda não se conseguiu
“operacionalizar” a noção de agroecologia. Esta compõe um sistema
heterogêneo de intervenções, de variáveis, de elementos que precisam ser
privilegiados a todo o momento. Não se consegue, dentro de um sistema de
produção, intervir em todas as variáveis. Deve-se ter bem claro, então, que, ao
3
As citações de textos em espanhol foram traduzidas para o português pela autora.
20
interferir em uma variável, em um elemento ou mesmo na linha de produção (do
“sistema de cultivo” ou de criação”), ou em uma tecnologia qualquer dentro de
um “sistema”, se está interferindo no seu conjunto, e isso é algo muito
importante a ser considerado. (...) Mesmo que ainda não se saiba muito bem
como interferir nos “sistemas”, pelo menos alguns agentes (individuais e
coletivos) parecem demonstrar, do ponto de vista geral e discursivo, como se
deve idealmente fazê-lo. Falta, contudo, um maior domínio teórico e prático
sobre o funcionamento desses “sistemas”. A capacidade teórico-prática e a
formação, ao longo dos anos, dos técnicos parecem ainda não ter sido adequadas
e suficientes para atender a essas exigências. A estrutura de seu referencial
teórico ainda não está montada; falta à agroecologia propor seus próprios
paradigmas. Uma grande lacuna, portanto, é observada nesse campo
(ALMEIDA, 2003, p. 7-8).
Observa-se que a falta de domínio sobre a aplicação dos fundamentos da agroecologia,
gera lacunas na proposta agroecológica que facilitam o seu desvio rumo à lógica de mercado
capitalista. A restrição da agroecologia aos aspectos técnicos ecológicos e agronômicos acaba
por integrar suas experiências às relações de produção típicas do modelo agrícola hegemônico.
Constroem-se sistemas de produção agrícolas ecologicamente equilibrados e bastante eficientes
quanto à geração de renda. A ênfase na produtividade para maximização dos lucros, que
anteriormente marginalizou os espaços de produção para auto-consumo, continua se
reproduzindo, mesmo que de maneira “ecologicamente correta” e “economicamente menos
excludente”.
Trata-se, portanto, de refletir sobre as possibilidades de viabilizar a inclusão dos aspectos
sócio-culturais às práticas realizadas atualmente nos projetos agroecológicos. Para tanto,
considera-se importante discutir os efeitos do processo de modernização da agricultura de uma
perspectiva ampla, sem restringir-se às transformações técnicas e econômicas.
Considera-se que o “pacote de revolução verde” não contém apenas os instrumentos e
materiais necessários à viabilização do modelo produtivo desenvolvimentista, mas traz consigo
uma carga ideológica que legitima sua proposta de sistema produtivo. As ideologias da revolução
verde estiveram atreladas primeiramente à idéia de crescimento econômico e posteriormente,
como um eufemismo desta primeira noção, a idéia de desenvolvimento econômico. Estas
ideologias garantiram a intervenção deste novo modelo tanto nas relações de produção quanto nas
relações sócio-culturais como um todo.
Apesar das contradições engendradas pela modernização agrícola, sua
permanência e aprofundamento o podem ser compreendidos sem a
21
consideração das poderosas bases ideológicas que lhe sustentação no plano
das mentalidades. De fato, sem a difusão de um sistema de valores positivos que
caucionou ideologicamente a Revolução Verde, provavelmente todo o
investimento político e financeiro – e, em alguns casos, militar realizado pelos
Estados nacionais nessa direção teria sido insuficiente. Noções como
modernização, progresso técnico-científico, eficiência produtiva e mesmo
crescimento econômico, foram utilizadas como alavancas ideológicas poderosas
e indispensáveis para que as rápidas e profundas transformações promovidas na
agricultura fossem reforçadas perante o conjunto da sociedade e adotadas
acriticamente como algo desejável per se (CAPORAL, 2009, p. 88).
As propostas desenvolvimentistas, os pacotes tecnológicos e os valores de consumo foram
todos trazidos ao campo através do modelo de extensão rural formulado durante o processo de
modernização da agricultura. Desde 1950, a extensão rural preocupava-se em educar o homem do
campo para tirá-lo do atraso e inseri-lo na corrida desenvolvimentista em busca pela
maximização dos lucros. Além da educação (treinamentos em aplicação dos “modernos” modelos
de produção e suas concepções auxiliares), acreditava-se na necessidade de estimular o consumo
intermediário da agricultura para esquentar o mercado agroindustrial. A partir de 1965 a extensão
rural adquiriu mais um instrumento de política pública, o crédito rural subsidiado. Caporal (2004)
discute estas questões e as desigualdades geradas por elas:
A extensão rural, aparelhada com o crédito à atividade agropecuária, continuou
privilegiando médios e grandes produtores. Diversos estudos mostram que a
fatia do crédito rural contratado com mini e pequenos produtores (usando as
categorias que constam nos relatórios) foi sempre infinitamente desproporcional
ao seu número e necessidade em relação aos demais. Mesmo assim não foram
poucos os produtores com terra de tamanho reduzido que adquiriram tratores
superdimensionados para as suas necessidades e possibilidades de cultivo. Neste
período, segundo Kageyama (1987:10), “a indústria passa a comandar a direção,
as formas e o ritmo da mudança na base técnica da agricultura”. Certamente esse
comando, por força do modelo, se expressa também na prática da extensão rural.
Com taxas negativas ao longo dacada de 1970, o crédito rural transformou-se
no cavalo de batalha da extensão rural, cujo trabalho restringia-se quase por
completo aos procedimentos burocráticos e à assistência técnica ao
empreendimento financiado. Mesmo com a criação da EMBRATER, as
mudanças não foram substanciais. (...) Sem se dar conta do processo no qual
estava envolvida, a extensão rural depara-se com a agricultura subordinada à
agroindústria, bem como com os reflexos sócio-econômicos e ambientais
ocorridos durante esta trajetória (CAPORAL, 2004, p. 7).
Entre tantos efeitos negativos deste paradigma “moderno” à organização camponesa e
seus ecossistemas, os estímulos à produção agroindustrial em larga escala marginalizaram a
produção familiar para o auto-consumo. Os espaços que cumpriam de forma mais direta a função
22
auto-reguladora do sistema familiar de produção passaram a ser vistos como mbolo de atraso e
de pobreza. A fartura’ ou, em sua versão atualizada, a ‘segurança alimentar’ foi gradativamente
substituída pela ‘geração de renda’, ‘agregação de valor’ ou busca por ‘melhores rendimentos’.
Assim, acredita-se que a homogeneização decorrente do processo de modernização da
agricultura abrange os aspectos sócio-culturais e fortalece discriminações étnicas e de gênero.
Ao que parece, o estímulo da produção ao mercado e desvalorização dos princípios da autonomia
e diversidade, excluiu não as práticas agrícolas destinadas ao auto-consumo como também o
trabalho das mulheres.
Do ponto de vista desta pesquisa, a dimensão dos problemas causados pelo paradigma
moderno exige que as questões socioantropológicas sejam incorporadas à prática agroecológica,
revalorizando os elementos que fundamentam a campesinidade, tais como a interdependência
entre o feminino e o masculino na unidade familiar de produção.
Diante da dimensão dos problemas que a agroecologia pretende responder propõe-se,
neste trabalho, uma concepção integradora da proposta agroecológica, a agroecologia plena. Isto
significa, do ponto de vista aqui adotado, que ela deve integrar a perspectiva de Gliessman quanto
aos processos ecológicos, à concepção de Altieri quanto às técnicas agroecológicas adaptadas às
realidades locais e a orientação de Sevilla Guzmán quanto a inclusão dos aspectos sócio-
culturais.
Sugere-se que a ênfase nos espaços masculinos de produção continuou se reproduzindo
mesmo em experiências agroecológicas, o que se traduz na ênfase da produção para geração de
renda em detrimento da produção para o consumo. A concepção sócio-cultural local,
especialmente as relações de gênero, parecem não ter sido incorporada de forma satisfatória na
práxis agroecológica.
Portanto, a intenção desta pesquisa é dimensionar a importância da campesinidade e dos
espaços femininos para a construção da agroecologia plena. Será a valorização da campesinidade
um caminho para a construção da agroecologia de uma perspectiva endógena
4
? Em que medida a
valorização da campesinidade e da dimensão feminina tem sido incorporada nas experiências
agroecológicas hoje em curso no Brasil? Estas são perguntas que irão nortear a discussão deste
trabalho, desde a reflexão teórica até as análises empíricas.
4
Este conceito será discutido no decorrer do trabalho, segundo a concepção de Sevilla Guzmán (2000).
23
Para tratar de agroecologia durante a pesquisa, utilizou-se como referencial o conceito de
agroecologia plena, construído no primeiro capítulo deste trabalho. Como veremos, a
agroecologia plena fundamenta-se, basicamente, na interdependência entre as concepções
ecológica, agronômica e socioantropológica de agroecologia. Além disso, a concepção de Sevilla
Guzmán quanto à agroecologia ampla e seu procedimento metodológico baseado na concepção
de mundo local, o endógeno, oferecem importante referência. O autor discute que as identidades
étnicas devem ser reconhecidas como um dos fatores importantes para a construção da
agroecologia. A sustentabilidade deve partir ‘de dentro’ como forma de colocar essas identidades
no centro de decisão quanto à construção da cada uma das agriculturas sustentáveis, conforme
suas localidades/paisagens. É interessante observar a forma como Sevilla Guzmán relaciona os
conceitos etnicidade e identidade:
Os antropólogos cunharam o termo etnicidade para referir-se à cristalização de
uma identidade coletiva (…), que lhes faz possuir um conjunto de elementos
culturais específicos que marcam diferenças significativas, tanto objetivas
quanto subjetivas, a respeito de outros grupos. Quando o conhecimento
camponês de manejo dos recursos naturais se em um agroecossistema cuja
identidade histórica está vinculada a um determinado grupo étnico, é comum se
referir a ele como conhecimento indígena. Contrariamente, quando o
conhecimento agrícola tradicional não se identifica com um grupo étnico
especifico, fala-se de conhecimento camponês a respeito de um determinado
agroecossistema; e quando este se encontra hegemonizado pelas formas
agrícolas de natureza industrializada, nos referimos ao conhecimento a respeito
do manejo dos recursos naturais como local, que as formas de exploração
camponesas, se existem, possuem uma clara natureza marginal. A pesar disto,
em qualquer destes casos existe uma identidade indígena, camponesa ou local a
respeito do conhecimento do agroecossistema que a Agroecologia pretende
resgatar para, através de uma adequada articulação com novas tecnologias
agrárias de caráter meio-ambiental, desenhar formas de agricultura alternativa
(GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2000, p.
113).
Quando o autor discute que a agroecologia pretende resgatar a identidade própria de cada
um dos grupos sociais nos conhecimentos sobre o agroecossistema (ou relação humano-
natureza), aproxima-se das discussões relacionas ao conceito de campesinidade desenvolvido por
Woortmann (1990). Para tratar das peculiaridades sócio-culturais das pequenas comunidades
agrícolas estudadas, adotaremos este conceito.
O estudo da campesinidade possibilita uma reflexão sobre a organização camponesa de
um ponto de vista menos econômico e mais sócio-cultural. Interpretando a organização
24
camponesa como um “tipo de sociedade”, uma forma de perceber o mundo, a campesinidade é
um elemento simbólico da organização camponesa capaz de sobreviver às transformações do
modelo produtivo. Sem negar a predominância das relações de produção na organização social,
pretende-se observar as influências das relações sócio-culturais nesta organização e,
principalmente, a resistência destes elementos simbólicos diante das transformações materiais.
Em intensidades diferentes, a campesinidade pode ser observada em realidades altamente
modernizadas. Do ponto de vista aqui adotado, estes elementos simbólicos podem ser o caminho
para a construção da agroecologia plena. Particularmente a dimensão feminina da campesinidade
pode ser o fio condutor necessário para tecer a rede da agroecologia plena.
A agroecologia foi, desde o início, construída a partir da preocupação quanto à
valorização do “outro”, do conhecimento e das práticas agrícolas daqueles que não estavam
inseridos na organização social hegemônica. Os objetivos destas pesquisas estão, de uma maneira
geral, relacionados a este princípio fundamental de valorização da alteridade. Desse modo, o
referencial metodológico deste trabalho é o marxismo antropológico, de Godelier (1978).
Retomando a noção marxista sobre as relações de produção ou o modo como as sociedades se
relacionam com a natureza para obtenção de seus meios vida – e a antropologia estrutural
levistrausiana, esta escola antropológica permite compreender a articulação entre a dimensão
material (infraestrutura) e a dimensão simbólica (superestrutura) existente em cada uma das
organizações sociais ou, neste caso, as identidades camponesas.
Os três princípios fundamentais desta escola são: (1) a totalidade deve ser entendida como
um sistema cuja lógica interna será apreendida através de suas próprias contradições; (2) as
análises das especificidades internas de um sistema devem anteceder as análises históricas; e (3)
os princípios de organização da dinâmica de uma dada sociedade devem ser buscados na maneira
pela qual se articulam a atividade de produção com as concepções culturais (parentesco, relações
de gênero, hierarquia, religiosidade...) (GODELIER, 1978). Como veremos adiante, estes
princípios podem ser colocados em diálogo com os princípios metodológicos da agroecologia
concebida por Sevilla Guzmán.
Realizadas as reflexões teóricas relativas à agroecologia e aos conceitos de campesinato e
gênero, este trabalho contemplou ainda uma pesquisa empírica, em duas realidades distintas: (1)
uma que possibilitou a reflexão sobre as conseqüências da revolução verde e (2) a outra, algumas
experiências de agroecologia, em região de Mata Atlântica. No primeiro caso, em Joanópolis/SP,
25
houve possibilidades de análise histórica do processo de modernização pico da região sudeste
do Brasil e suas conseqüências. Mais especificamente, essa realidade ofereceu condições de
análise quanto à resistência da campesinidade e as transformações nas relações de gênero e deles
com o espaço agrícola. No segundo caso, Vale do Ribeira/SP (municípios de Cajati, Cananéia,
Sete Barras e Barra do Turvo), foram observadas algumas realidades com experiências de mais
de 10 anos em agroecologia. Entre elas estão as experiências da Associação dos Moradores do
Bairro Guapiruvú (AGUA) e da Associação dos Agricultores Agroflorestais de Barra do
Turvo/SP e Adrianópolis/SP (Cooperafloresta).
26
27
2 AGROECOLOGIA PLENA: UMA CONSTRUÇÃO INTEGRADORA
Diante da problematização discutida no texto introdutório deste trabalho, o objetivo deste
capítulo é realizar uma reflexão teórica sobre a agroecologia segundo três diferentes vertentes
totalizantes do conceito: a concepção de Gliessman, de Altieri e de Sevilla Guzmán. A partir de
uma unidade conceitual comum, cada uma delas apresenta peculiaridades teóricas que as
complementam. Os autores concordam quanto à busca por alternativas socioambientais aos
problemas modernos em realidades cio-culturais diferenciadas (tradicionais, pobres, não-
ocidentais). No entanto, constroem suas concepções teóricas de uma perspectiva ecológica,
agronômica e sócio-cultural, respectivamente.
Pretende-se estabelecer uma reflexão sobre estas três concepções do conceito de
agroecologia para, a partir de então, discutir as possibilidades de construção de uma agroecologia
que não se restrinja aos aspectos técnicos, mas que incorpore, em pé de igualdade, os aspectos
sócio-culturais das realidades trabalhadas. Analisar-se-á, portanto, as possibilidades de integração
conceitual destas “agroecologias” para a construção do que se denominou de agroecologia plena.
Para desenvolver estas reflexões, pretende-se (1) buscar as motivações das elaborações
teóricas de cada um dos autores; (2) discutir os elementos constitutivos de cada uma delas e (3)
refletir sobre suas respectivas propostas de sustentabilidade. A partir destas, será elaborada uma
concepção de agroecologia que sirva como referência para as próximas discussões deste trabalho,
a agroecologia plena.
Devido à comum preocupação quanto à valorização do ‘outro’, será incluído nestas
discussões uma reflexão sobre a orientação antropológica que dialoga com cada uma das três
concepções teóricas de agroecologia. O intuito desta comparação epistemológica é oferecer
condições de análises quanto à profundidade das discussões sócio-culturais no interior de cada
uma das concepções agroecológicas.
É importante salientar, desde o início, a hipótese de que as três concepções aqui
apresentadas são noções complementares, que não se superam ou se contrapõem, mas juntas
constroem o campo de discussões da agroecologia. Tanto na análise teórica como nas
experiências empíricas, notou-se a relevância e a necessidade de articulação entre elas.
28
2.1 A agroecologia de Stephen R. Gliessman e os processos ecológicos
Como sugere o termo, a agroecologia nasceu no esforço de intersecção entre a agronomia
e a ecologia. Num primeiro momento, a questão central da agroecologia foi a busca pela redução
dos efeitos nocivos da agricultura moderna nos processos ecológicos. Após certo
amadurecimento teórico, foram incorporando-se as dimensões econômicas e cio-culturais em
sua proposta, que, de maneira alguma, minimizam a importância da aproximação entre a arte de
produzir alimentos e o conhecimento ecológico.
Durante sua pesquisa de doutorado, nos anos de 1970, Gliessman
5
rompeu com a tradição
de sua escola e ocupou o vazio existente entre a pesquisa em ecologia pura e ecologia aplicada,
aproximando-se da realidade de produção agrícola em pequenas propriedades rurais.
Preocupou-me o fato de que, se meu conhecimento ecológico não se tornasse
útil ao povo que tinha o maior impacto sobre a terra, então ele pouco estaria
servindo, afora produzir mais conhecimento acadêmico. Assim, lá na encosta do
morro, decidi que estudaria ecologia, não somente para aprender sobre como
plantas e animais interagem com o ambiente, mas para propiciar ferramentas
úteis aos agricultores no melhor manejo de suas unidades produtivas. Quando
trouxe esta idéia para o meu orientador de tese, C. H. Muller, da Universidade da
Califórnia, ele ficou um tanto tico em relação à minha tentativa (...)
(GLIESSMAN, 2001, p. 20).
O autor desenvolveu suas pesquisas durante a observação de sistemas agrícolas
tradicionais e a convivência com a população que os manejava. Na vanguarda do ambientalismo,
realizou uma aproximação entre ecologia e agricultura a partir do conhecimento denominado
tradicional. Em Agroecologia: processos ecológicos em agriculturas sustentáveis, Gliessman
comenta uma experiência vivida em Cárdenas, Tabasco, México, quando lecionava no Colégio
Superior de Agricultura Tropical CSAT, que ilustra esse processo de surgimento da
agroecologia em intensa relação com experiências de cultivo da terra que atravessaram muitas
gerações, comumente chamadas de “tradicionais”.
5
Stephen R. Gliessman é um agroecólogo que dedica a sua vida a aproximação entre a ecologia e a agronomia, via
sustentabilidade. Formado em Botânica, Biologia e Ecologia de Plantas pela Universidade da Califórnia, Santa
Bárbara, é fundador do Programa de Agroecologia da Universidade da Califórnia, Santa Cruz UCSC, um dos
primeiros programas de agroecologia formais do mundo, ocupando a cátedra Alfred Heller, no departamento de
estudos ambientais na UCSC. Além disso, cultiva, sem irrigação, uvas para vinhos e azeitonas orgânicas ao norte de
Santa Bárbara, Califórnia.
29
Um dia, Roberto e eu estávamos dirigindo no Km 21, subindo a estrada de
Cárdenas para o colégio. Ele apontou para uma plantação de milho em uma área
que, poucos meses antes, tinha sido um pântano inundado com, pelo menos, um
metro de água e coberto com plantas típicas dos alagados da região. O milho
parecia extremamente sadio e produtivo e, então, resolvemos parar.
Conversamos com os agricultores que cuidavam do campo e, para nossa
surpresa, a história de um agroecossistema sustentável, baseado no
conhecimento local, começou a aparecer. (...) a parte mais notável da história é
que agrônomos do colégio passavam dirigindo pela plantação há anos, sem parar
uma única vez para investigar, em primeiro lugar, porque os agricultores
plantavam em tal área, e sem descobrir que estes eram capazes de obter, ano
após ano, no mesmo solo, cinco a dez vezes a média convencional do
rendimento do milho, sem nenhum outro insumo além da semente local, facões e
seu próprio trabalho. Sentar-me com Roberto e escutar um homem com mais de
100 anos de idade descrever o manejo intrincado do sistema, como ele o tinha
aprendido quando criança, e seu papel como o “mantenedor da semente” para o
sistema teve um impacto dramático no meu pensamento sobre a agroecologia
(GLIESSMAN, 2001, p. 22).
Desde o início, para Gliessman, a agroecologia construiu-se em “laboratório real”, com a
colaboração daqueles que vivem a realidade da pequena agricultura tradicional. O “saber local”
surpreendeu os cientistas naturais e construiu o caminho da agroecologia em paralelo ao
conhecimento científico. A partir da preocupação em combinar ecologia e agricultura, o autor e a
equipe da Organização de Estudos Tropicais experimentaram técnicas orgânicas de manejo do
solo, estudaram o comportamento dos insetos nos sistemas naturais e agrícolas, realizaram
cultivos comparativos em florestas e sistemas antrópicos e, desta forma, construíram as
fundações de sua agroecologia
6
.
Segundo Gliessman, a agronomia e a ecologia tradicionalmente investigavam campos do
conhecimento bastante distintos. A primeira ocupava-se em desenvolver a ação humana sobre a
natureza, enquanto a segunda buscava obter uma compreensão sobre o ambiente natural. No final
dos anos 50 e início dos anos 60 do século XX, quando se inicia a grande abertura da agricultura
às inovações tecnológicas o processo de modernização da agricultura ou revolução verde
houve a intensificação das relações entre a ciência agronômica e a lógica de mercado. No entanto,
em decorrência aos efeitos degradantes dos sistemas agrícolas modernos, fortaleceu-se um núcleo
de pesquisadores preocupados em transformar este modelo e desenvolver alternativas. Sendo
assim, a degradação socioambiental tanto evidenciou aos agrônomos a insustentabilidade dessa
6
É importante lembrar, como faz o próprio Gliessman (2001), que outros autores e obras importantes sobre o
tema, antecedentes aos que são citados neste capítulo.
30
“agricultura moderna”, quanto despertou nos ecólogos o interesse em pesquisas aplicadas à
realidade agrícola.
Desta forma, construiu-se uma abertura mútua entre agronomia e ecologia, onde se
estabeleceu um campo fértil para o surgimento da agroecologia. Na relação entre as duas ciências
e nas experiências vividas por populações rurais desfavorecidas dos países pobres, Gliessman
encontra a possibilidade de construção de uma agricultura sustentável, ou ecologicamente menos
agressiva ao meio.
Na medida em que mais ecologistas, nos anos 70, passaram a ver sistemas
agrícolas como áreas legítimas de estudo, e mais agrônomos viram o valor da
perspectiva ecológica, as bases da agroecologia cresceram rapidamente. Pelo
início dos anos 80, a agroecologia tinha emergido como uma metodologia e uma
estrutura básica conceitual distintas para o estudo de agroecossistemas. Uma
influência importante durante este período veio dos sistemas tradicionais de
cultivo, de países em desenvolvimento, que começaram a ser reconhecidos por
muitos pesquisadores como exemplos importantes de manejo de
agroecossistemas, ecologicamente fundamentados (GLIESSMAN, 2001, p. 56).
Em contraposição ao modelo produtivista e antiecológico da agricultura moderna, a
agroecologia é definida por Gliessman como a aplicação de conceitos e princípios ecológicos
no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis” (GLIESSMAN, 2001, p. 54). Nesta
definição, são citados dois conceitos importantes para esta discussão: agroecossistemas e
sustentabilidade.
O conceito agroecossistema é considerado pelo autor como “um local de produção
agrícola – uma propriedade agrícola, por exemplo – compreendido como um ecossistema”
(GLIESSMAN, 2001, p. 61). Esta noção de agroecossistema possibilita uma análise complexa do
sistema de produção de alimentos, incluindo todas as estruturas componentes de um ecossistema
e suas relações. Desta forma, o sistema agrícola é visto como algo maior do que a soma de seus
cultivos individuais. O fluxo de energias, a ciclagem de nutrientes, os mecanismos reguladores de
população e a estabilidade do sistema como um todo, são elementos importantes para a análise de
um agroecossistema.
É, fundamentalmente, nas reflexões quanto ao manejo de agroecossistemas sustentáveis
que Gliessman estabelece o conceito de agroecologia. Sob o referencial da ecologia de
ecossistemas, o autor discute a produção agrícola em cada um dos níveis de organização de um
ecossistema e evidencia a necessidade de todos esses níveis pertencerem à estratégia de manejo
31
ecológico. O organismo planta e os fatores ambientais com os quais ela se relaciona (como a
luz, a temperatura, a umidade, a chuva, o vento, o solo e o fogo) são estudados no âmbito da
auto-ecologia, ou ecologia fisiológica. Os processos populacionais na agricultura (tais como
densidade, crescimento, dispersão, interferências intra-específicas e diversidade de nichos
ecológicos) são estudados segundo a ecologia de populações. As interações de espécies numa
determinada lavoura (interferências interespecíficas de adição (alelopatia), de remoção
(competição e parasitismo), adição e remoção (mutualismo), e outras relações de coexistência)
são estudadas em ecologia de comunidades. No entanto, as peculiaridades de um manejo
agroecológico exigem, segundo Gliessman, uma abrangência sistêmica que deve compreender
todo o ecossistema, ou seja, uma abordagem no âmbito da ecologia de ecossistemas. São ainda
utilizados, para a conectividade entre as paisagens agrícolas e naturais, os princípios da ecologia
de paisagem.
Gliessman discute que a restrição de um manejo agrícola a uma ordem menos complexa
que a de ecossistema, dificultaria a construção de uma base ecológica sustentável em produções
agrícolas. As monoculturas em larga escala, modelo do atual sistema econômico, são estudadas
apenas segundo os aspectos de fisiologia das plantas (melhoramento genético, controle
nutricional, etc.) e de organização populacional (tamanho e crescimento diante do adensamento
de plantas). Uma reflexão a partir da perspectiva holística que incorpora a noção de ecossistema,
evidencia a incoerência deste modelo.
A agroecologia enfatiza a necessidade de estudar tanto as partes quanto o todo.
Embora o conceito de que o todo é maior do que a soma de suas partes seja
amplamente reconhecido, ele foi ignorado por um longo tempo pela agronomia e
tecnologia modernas, que enfatizam o estudo detalhado da planta cultivada ou
do animal individualmente, como forma de tratar com as questões complexas da
produção primária e sua viabilidade. Aprendemos muitos detalhes a partir da
especialização e de um foco estreito sobre o rendimento dos componentes
cultivados dos sistemas agrícolas, mas é preciso, também, desenvolver formas
de compreensão de toda a unidade produtiva agrícola (e todo o sistema agrícola
alimentar) para entendermos plenamente a sustentabilidade agrícola e
implementarmos práticas sustentáveis de manejo (GLIESSMAN, 2001, p. 438).
A diversidade de um agroecossistema é considerada por Gliessman como estratégia-chave
de manejo orientado à sustentabilidade. A diversidade fortalece ligações entre as espécies que,
similar aos ecossistemas naturais, podem diminuir a dependência da interferência humana e de
insumos. Mesmo com a restrição imposta pela retirada de biomassa do sistema (comum a todos
32
os agroecossistemas), um agroecossistema quando é diversificado desfruta da vantagem de maior
estabilidade. No entanto, o autor ressalta alguns cuidados importantes que devem ser tomados
quanto à relação entre diversidade e estabilidade. Primeiro porque esta relação não é
essencialmente verdadeira, que depende do tipo de diversidade manejada em cada sistema
específico. Além disso, é necessário não compreender estabilidade como falta de modificações:
Em ecologia, tem havido consideráveis discussões a respeito da relação entre
diversidade e estabilidade. (...) Boa parte do problema é gerado pela natureza
restrita da definição aceita de estabilidade. Usualmente, estabilidade” refere-se
à ausência relativa de flutuações nas populações de organismos do sistema,
implicando uma condição de estado estável, ou de falta de modificações. Esta
noção de estabilidade é inadequada, especialmente em relação à descrição dos
resultados ecológicos da diversidade. O que precisamos é de uma definição mais
ampla de estabilidade (ou um novo termo), baseada nas características do
sistema, que enfoque robustez de um ecossistema sua habilidade de sustentar
níveis complexos de interação e processos de auto-regulação de fluxos de
energia e ciclagens de materiais. Tal noção ampliada de estabilidade é necessária
especialmente para compreender o valor e o uso da diversidade em
agroecossistemas, que são tudo, menos “estáveis”, no sentido convencional do
termo (GLIESSMAN, 2001, p. 448).
Quanto aos métodos de diversificação e complexificação do sistema sugeridos por
Gliessman, além do manejo quanto às formas de cultivo agrícola – consorciado, em faixas, cercas
vivas e vegetação tampão, cultura de cobertura, rotações, pousios, e outros inclui-se o manejo
dos demais organismos vivos que compõem o ecossistema agrícola, como animais e
microorganismos do solo. A concepção ecossistêmica inclui todos os seres bióticos (plantas e
animais) e os elementos abióticos (solo, água, ventos, etc.).
A prioridade central do manejo de um sistema como um todo é criar um
agroecossistema mais complexo e diversificado, porque somente com alta
diversidade poderá existir potencial para interações benéficas. O produtor
começa por aumentar o número de espécies de plantas no sistema através de
diversas práticas de plantio (...). Essa diversificação conduz a modificações
positivas nas condições abióticas e atrai populações de artrópodes benéficos,
além de outros animais. Desenvolvem-se qualidades emergentes que permitem
ao sistema (...) um funcionamento que mantém a fertilidade e a produtividade, e
regula as populações de pragas (GLIESSMAN, 2001, p. 439).
Nesta visão ecossistêmica, o conceito de diversidade não é entendido apenas como o
número de espécies que compõe uma comunidade em um determinado local, mas ainda
considera-se sua forma de organização. Isto resulta na inclusão de dimensões como a distribuição
33
espacial, funcional e temporal. Gliessman constrói uma tabela com a descrição das dimensões da
diversidade ecológica em um ecossistema (espécie, genética, vertical, horizontal, estrutural,
funcional e temporal) e ressalta a importância de todas elas para o manejo de um agroecossistema
sustentável.
Dimensão Descrição
Espécie
Número de diferentes espécies no sistema
Getica Grau de variabilidade de informação getica no sistema (dentro de cada espécie e entre
espécies diferentes)
Vertical
Numero de distintas camadas ou niveis horizontais no sistema
Horizontal
Padrão de distribuição espacial de organismos no sistema
Estrutural
Número de locais (nichos, papéis tróficos) na organização do sistema
Funcional Complexidade de interação, fluxo de energia e ciclagem de materiais entre os componentes
do sistema
Temporal
Grau de heterogeneidade de mudanças cíclicas (diárias, sazonais, etc.) no sistema
Quadro 1 - Dimensões da diversidade ecológica em um ecossistema
Fonte: Gliessman (2001, p. 444)
Esta discussão sobre as bases ecológicas dos agroecossistemas diversificados é
fundamental para o estabelecimento da noção de sustentabilidade para o autor. Como vimos, este
é o segundo conceito importante, destacado anteriormente, da definição de agroecologia
elaborada por Gliessman.
A sustentabilidade possui atualmente uma multiplicidade de interpretações teóricas. Em
muitos casos, o termo é utilizado como marketing de produtos do chamado “capitalismo verde”
7
,
em outros, politicamente opostos a este, pode significar a auto-regulação de um sistema e/ou a
relação integrada entre ser humano e natureza. O conceito de sustentabilidade surge, no entanto,
atrelado à noção de “desenvolvimento sustentável”.
Para Gliessman, a sustentabilidade é uma versão do conceito de produção sustentávelque, por
sua vez, é a condição de ser capaz de perpetuamente colher biomassa de um sistema, porque
sua capacidade de renovar ou ser renovado não é comprometida(GLIESSMAN, 2001, p. 520).
Contestando a capacidade de se prever a “perpetuidade”, o autor sugere algumas características
necessárias a uma agricultura sustentável, relacionadas à (1) minimização de efeitos negativos
(poluição) ao ambiente; (2) saúde do solo; (3) controle do uso da água; (4) dependência interna
7
Termo utilizado para definir uma tendência no interior do sistema capitalista de valorização de produtos cuja cadeia
produtiva inclua alguma ação considerada ecologicamente correta.
34
de recursos; (5) valorização e conservação da diversidade biológica; (6) igualdade de acesso às
práticas, conhecimentos e tecnologias agrícolas adequados; e (7) controle local dos recursos
agrícolas
8
.
Numa elaboração conceitual muito articulada aos princípios ecológicos, o autor faz claras
colocações a respeito da oposição entre mercado hegemônico e sustentabilidade:
As forças em ação na economia de mercado, juntamente com as várias estruturas
políticas instituídas para regulá-las, freqüentemente estão em discordância com
os objetivos da sustentabilidade. As variações determinadas pelo mercado nos
custos dos insumos agrícolas e nos preços que os agricultores recebem por sua
produção constantemente introduzem incerteza e flutuações na atividade
agrícola. Em resposta, os produtores o forçados a tomar decisões baseados na
realidade econômica presente e não em princípios ecológicos (GLIESSMAN,
2001, p. 596 ).
Pode-se compreender que, quando o autor refere-se à agroecossistemas sustentáveis,
sugere um caminho no sentido da transformação das relações de produção, na contramão do
modelo hegemônico. Além disso, percebe-se que, para Gliessman, o termo sustentabilidade está
atrelado à noção de autonomia ou independência em relação ao mercado capitalista, afastando-
se da noção hegemônica de desenvolvimento sustentável.
8
A noção de sustentabilidade ganhou institucionalidade a partir do primeiro documento publicado sobre o assunto: o
Nosso Futuro Comum (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991).
Depois deste, baseado nas discussões da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
- ECO/92, foi elaborada a Agenda 21 (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1992). As discussões e orientações redigidas nestes documentos seguem três norteamentos
básicos: o desenvolvimento econômico, a redução da pobreza e a conservação dos ecossistemas para usufruto das
gerações futuras. Mais recentemente, a Conferência de Johanesburgo ratificou o seu compromisso com a noção de
desenvolvimento sustentável, com a elaboração do documento Declaração de Johanesburgo sobre Desenvolvimento
Sustentável (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 2002). No entanto,
como discute Silva Júnior, existe uma incompatibilidade entre a noção de desenvolvimento e a noção de
sustentabilidade, que talvez possa ter contribuído para os desacordos quanto ao uso do termo: “O desenvolvimento
sustentável, (...), parece não garantir as bases efetivas da sustentabilidade. Pela ótica marxista, (...), é impossível
dissociar produção capitalista da expansividade de suas relações sociais; e estas são inevitavelmente orientadas para
a reprodução e alargamento das desigualdades e pela dependência cada vez maior dos recursos naturais. Além disso,
o contexto histórico de emergência do conceito desenvolvimento sustentável coincide com o fortalecimento da
unilateralidade dos Estados Unidos da América no cenário político internacional. Portanto, pode-se afirmar que as
bases fundamentais de edificação do desenvolvimento sustentável – garantia de renovabilidade dos recursos naturais,
promoção da equidade social, dinamismo econômico responsável e multilateralismo político nas relações
internacionais são estruturalmente inviáveis num mundo regido pela lógica de organização capitalista” (SILVA
JÚNIOR, 2008, p. 79).
35
Adotando uma compreensão sobre a sustentabilidade antagônica à lógica econômica
capitalista, o autor discute sobre a necessidade de construção não apenas de unidades de produção
agrícola sustentáveis, mas também de sistemas de distribuição e consumo sustentáveis. Usando o
conceito de Gliessman, os sistemas alimentares como um todo deveriam tornar-se sustentáveis.
Segundo ele “é a interação complexa entre todas as dimensões, ecológica, técnica, social e
econômica, de nossos sistemas alimentares que determinará se estes podem ser sustentáveis a
longo prazo” (GLIESSMAN, 2001, p. 593). Neste sentido, o autor discute sobre: a conectividade
existente entre as unidades de produção e a necessidade de adotar-se uma abordagem sistêmica
de análise; as conseqüências negativas da atividade econômica hegemônica no ambiente, na
saúde e na vida das pessoas e os malefícios da crença ideológica nas soluções tecnológicas.
Como “fatores sociais chave na sustentabilidade de sistemas alimentares”, o autor considera a
eqüidade, os padrões sustentáveis de dieta, o controle do crescimento populacional e a auto-
suficiência e biorregionalismo.
Sobre os sistemas alimentares, Gliessman busca parâmetros que possam ser medidos
como indicadores de sustentabilidade. Para o autor, os indicadores ecológicos são apresentados
durante a discussão do manejo de agroecossistemas sustentáveis, mas os indicadores sociais
“permanecem mais difíceis de identificar e medir”. Sendo assim, para estudar o “sistema social”,
coloca alguns aspectos ecológicos e sociais em analogia, nas suas palavras, através de “algum
tipo de relação funcional ou causal” (GLIESSMAN, 2001, p. 602).
36
SISTEMA SOCIAL SISTEMA ECOLÓGICO
CONDIÇÕES SOCIAS DE SUSTENTABIDADE CONDIÇÕES ECOLÓGICAS DE SUSTENTABIDADE
– equidade – estabilidade
– qualidade de vida – resiliência
– satisfação – eficiência
– eficiência – saúde
– estabilidade cultural – permanência
PARÂMETROS SOCIAIS DE FUNÇÃO DO AGROECOSSISTEMA PARÂMETROS ECOLÓGICOS DE FUNÇÃO DO AGROECOSSISTEMA
– dependência em relação a forças externas – diversidade biótica
– relações de propriedade da terra – estrutura e fertilidade do solo
– papel na economia de produção alimentar – disponibilidade de umidade
– qualidade dos alimentos – taxas de erosão
– parcela de retorno aos trabalhadores – taxas de reciclagem de nutrientes
COMPONENTES SOCAIS DE ESTRUTURA E FUNÇÃO DE AGROECOSSISTEMA
COMPONENTES ECOLÓGICOS DE ESTRUTURA E FUNÇÃO DE
AGROECOSSISTEMA
– produtores e assalariados agrícolas – plantas cutivadas e seus genomas
– proprietarios de terras – outros organismos componentes do agroecossistema
– consumidores de produtos alimentícios – qualidade do solo
– conhecimento técnico e prático – ciclagem de nutrientes
– conhecimento ecocultural – interações bióticas
BASES DO SISTEMA SOCIAL BASES DO SISTEMA NATURAL
Provê as matérias
-
primas para o contexto físico dos agroecossistemas
.
– Componentes culturais: valores, modos de vida,
língua
– Componentes sociais
:
estrutura de classes
,
instituições sociais
– Componentes locais: solo, microorganismos do solo, flora e fauna nativas
,
relações ecológicas
,
tempo atmosférico
,
clima
,
topografia
– Componentes econômicos: forças de mercado,
posições na economia global
– Componentes políticos
:
políticas regulatórias
,
estruturas de governo
– Componentes globais: ciclos biogeoquímicos, radiação solar, padrões
climáticos
Quadro 2 - Alguns dos aspectos sociais e ecológicos importantes que interagem em cada um
dos níveis de sistemas alimentares sustentáveis
Fonte: Gliessman (2001, p. 603)
É interessante notar que as correspondências entre os elementos da lista do sistema social
com os elementos da lista do sistema ecológico são realizadas, até certo ponto, de forma
classificatória, inventariada e pouco interpretativa. O tratamento dado aos aspectos biofísicos é
semelhante àquele dado aos aspectos sócio-culturais.
Para discutir as questões sociais da sustentabilidade o autor utiliza alguns instrumentos
metodológicos da ecologia humana. Dentre eles, destaca-se o conceito de economia ecológica.
De uma perspectiva ecossistêmica, a economia ecológica adapta as noções de trocas de massa e
energia entre as espécies de um ecossistema ao estudo das relações humanas.
É útil, antes de mais nada, fazer a distinção entre os diferentes tipos de aportes
de energia na agricultura. A distinção principal ocorre entre aportes de energia
da radiação solar, chamados de aportes ecológicos de energia, e aqueles
derivados de fontes humanas, chamados de aportes culturais de energia. Os
aportes culturais de energia podem ser divididos em aportes biológicos e aportes
industriais. Os aportes biológicos provêm diretamente de organismos e incluem
o trabalho humano, trabalho animal e esterco; os aportes industriais de energia
são derivados de combustíveis fósseis, fissão radioativa e fontes geotérmicas e
hidrográficas (GLIESSMAN, 2001, p. 514).
37
Desse modo, a metodologia adotada parece subordinar os conceitos socioeconômicos à
lógica ecológica
9
. Esta predominância do ecológico sobre o econômico e o sócio-cultural é
peculiar à ecologia humana, que, por sua vez, possui uma orientação antropológica semelhante à
da escola denominada antropologia ecológica
10
. Essa corrente teórica da antropologia declara-se
(...) como o estudo das relações entre dinâmica populacional, organização social
e cultura das sociedades humanas e o meio ambiente nas quais elas estão
inseridas. Assim definida, a Antropologia Ecológica é eminentemente um exame
materialista das sociedades humanas, e como tal apresenta mais afinidade com
as ciências biológicas e com outras escolas materialistas dentro das ciências
sociais (...) (NEVES, 1996, p. 18).
Um princípio básico para ambas é o conceito de adaptabilidade humana, definida por
Moran (1994) como a flexibilidade da reação humana frente às transformações ambientais. O
centro das discussões teóricas é a noção de ecossistema e o método de interpretação da realidade
fundamenta-se em modelos matemáticos. A sociedade é compreendida pelos seus estudiosos
como um subsistema que, assim como os demais subsistemas animais e vegetais, devem atingir
um equilíbrio energético no ecossistema: a homeostase
11
.
A aceitação, cada vez maior, do conceito de ecossistema no estudo da
adaptabilidade facilitou a integração da abordagem social e biológica. Este
conceito, formado a partir do estudo da ecologia biológica, considera todos os
organismos como partes de sistemas ecológicos e sujeitos às mesmas leis físicas.
A partir desta estrutura, podemos referir-nos aos seres humanos como
consumidores terciários em uma cadeia alimentar ou considerar a interação entre
duas populações humanas como mutualísticas. A abordagem da teoria de
9
Gliessman faz parte de uma tendência ambientalista biocêntrica que se fortaleceu entre as décadas de 1960 e 1970
em contraposição ao avanço desenfreado da tecnologia e uso inconseqüente dos recursos naturais. O biocentrismo
transfere a oposição homem/natureza existente no sistema econômico ocidental a todas as possibilidades de
organização socioeconômica. Por conseqüência, a tendência biocêntrica interpreta a ação humana como impactante
ao meio e privilegia os aspectos ecológicos nos estudos relacionados à sustentabilidade.
10
É importante saber que uma divergência entre a perspectiva da ecologia humana e a perspectiva da
antropológica ecológica. A primeira diz incorporar as ciências humanas como contribuição à ecologia (MACHADO,
1985). Inversamente a esta, a antropologia ecológica compreende que a ecologia é apenas um elemento importante
no interior da antropologia (NEVES, 1996). No entanto, o esforço de comparação (ecologia antropologia) aqui
realizado pretende apenas sugerir a orientação e profundidade da discussão sócio-cultural do autor.
11
Alguns representantes do pensamento antropológico questionam a validade da proposta de interdisciplinaridade
destas correntes. Entre as críticas decorrentes desta questão, as principais referem-se ao mecanicismo existente em
suas elaborações teóricas; a redução das relações sócio-ecológicas a relações de causalidade e a redução da noção
de cultura à capacidade adaptativa do ser humano ao meio. Descola discute a incoerência existente nesta redução da
noção de cultura ou organização sócio-cultural através da reflexão sobre os índios da Amazônia. Apesar da
agroecologia muitas vezes ser estudada em realidades não indígenas, as considerações feitas pelo autor são
relevantes para pensarmos as diferentes culturas não-ocidentais (DESCOLA, 2000, p. 155-156).
38
ecossistema permite aplicar um maior conjunto de dados aos modelos
explicativos do comportamento humano, o que não ocorre quando se utiliza uma
aproximação estritamente social ou cultural (MORAN, 2004, p. 24).
Ao adotar tal perspectiva, Gliessman mantém as referências teóricas da ecologia de
ecossistemas tanto nos aspectos ecológicos como nos aspectos socioeconômicos e culturais. Os
princípios ecológicos orientam os estudos sobre o manejo do solo, animais e plantas assim como
os estudos sobre os “sistemas alimentares”. Segundo o autor, “para que os sistemas alimentares
sejam sustentáveis, todos os seus aspectos humanos devem dar suporte à sustentabilidade de seus
aspectos ecológicos” (GLIESSMAN, 2001, p. 600).
Observa-se que a agroecologia discutida por Gliessman tem como unidade básica de
análise o agroecossistema e as relações “humanas” que lhe dão suporte. Além disso, é possível
perceber que o foco principal desta abordagem teórica é a dimensão ecológica. A dimensão
sócio-cultural, ou os “aspectos humanos”, não são excluídos das reflexões elaboradas pelo autor,
mas seguem o princípio da ecologização. Ou seja, a dimensão ecológica se sobrepõe à dimensão
sócio-cultural e compreende o ser humano como uma importante espécie reguladora dos
processos ecológicos. Como não era de se estranhar, Gliessman oferece, em maior profundidade,
o olhar do ecólogo à agroecologia.
2.2 A agroecologia de Miguel Altieri: politização e estratégias tecnicoagronômicas
A degradação socioambiental da revolução verde tem sido denunciada nas três
abordagens teóricas discutidas neste capítulo. No entanto, é Miguel Altieri
12
quem maior
ênfase à reflexão politicoeconômica que contrapõe o modelo de modernização da agricultura.
Reconhecendo a construção de dependências socioeconômicas ao mercado hegemônico,
característica ao atual sistema de produção, concebe a agroecologia como uma contraestratégia de
autonomia e “desenvolvimento econômico sustentável” para os(as) agricultores(as) pobres. Para
12
Altieri é engenheiro agrônomo pela Universidade do Chile, mestre pela Universidade Nacional da Colômbia e PhD
pela Universidade de Florida. É ainda professor de Agroecologia na Universidade da Califórnia desde 1981;
coordenador do Consórcio Latino-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento CLADES desde 1989;
coordenador geral do Sustainable Agriculture Networking and Extension SANE desde 1994; coordenador do
Comitê de Organizações Não-Governamentais ONGs do Comitê Consultivo de Pesquisa Agrícola Internacional
CGI-AR desde 1997. Sua trajetória acadêmica pode ilustrar as transformações ocorridas no interior da agroecologia,
principalmente quanto à incorporação das ciências ecológicas e humanas no seu campo de discussões.
39
tanto, enfatiza a importância da geração de tecnologias apropriadas às realidades ecológicas e
socioeconômicas locais e da adequação total do sistema produtivo aos princípios da
sustentabilidade. A perspectiva socioeconômica da agroecologia, anunciada desde os primeiros
pensadores, se solidifica nas obras de Altieri
13
.
Altieri é um dos grandes promotores de divulgação e popularização da agroecologia na
América Latina, devido à quantidade de publicações e desenvolvimento de projetos/consultorias
via instituições acadêmicas e ONGs. Como comenta Gliessman, sua “escrita prolífica na área de
agroecologia serve como excelente motivação para muitos de nós que trabalham neste campo
(GLIESSMAN, 2001, p. 25). Além disso, seus estudos, realizados em diversas regiões do mundo,
formam um grande arquivo de técnicas de manejo agrícola “ecológico” tradicionais. Desse modo,
Altieri é uma importante referência nos projetos brasileiros de extensão rural sustentável.
Partindo de uma perspectiva tecnicoagronômica e mantendo os aspectos ecológicos no
centro de sua discussão, Altieri ainda faz o que poderíamos chamar de politização da
agroecologia. De maneira bem simplificada, o autor pretende transformar o quadro
politicoeconômico atual através de uma renovação no processo de geração de tecnologias
agrícolas e suas aplicações. A crítica à agricultura moderna é contextualizada politicamente pelo
autor e o modelo da monocultura mecanizada é discutido enquanto fruto do sistema econômico
capitalista. Nessa perspectiva, o autor evidencia as desigualdades sociais promovidas pelo
desenvolvimento hegemônico (principalmente na América Latina) e constrói a agroecologia
como uma ciência que promove o desenvolvimento sustentável.
Em muitas regiões, a modernização da agricultura, com a utilização de
tecnologias intensivas em insumos, aconteceu sem a distribuição das terras. Os
benefícios dessas medidas – geralmente chamadas de “Revolução Verde” –
foram extremamente desiguais em termos de sua distribuição, com os maiores e
mais ricos agricultores, que controlam o capital e as terras férteis, sendo
privilegiados, em detrimento dos agricultores mais pobres e com menos
recursos. A Revolução Verde também contribuiu para disseminar problemas
ambientais, como erosão do solo, desertificação, poluição por agrotóxicos e
perda de biodiversidade. (...) A crise agrícola-ecológica existente, hoje, na maior
parte do Terceiro Mundo, resulta do fracasso do paradigma dominante de
desenvolvimento. As estratégias de desenvolvimento convencionais revelaram-
se fundamentalmente limitadas em sua capacidade de promover um
13
Numa revisão bibliográfica sobre as obras do autor, Iamamoto (2005) evidencia esse caminho de abertura
interdisciplinar, partindo da entomologia e as relações ecológicas na agricultura, até a incorporação de discussões
socioeconômicas e políticas sobre a agricultura moderna.
40
desenvolvimento equânime e sustentável. Não foram capazes nem de atingir os
mais pobres, nem de resolver o problema da fome, da desnutrição ou as questões
ambientais. As inovações tecnológicas não se tornaram disponíveis aos
agricultores pequenos ou pobres em recursos em termos favoráveis, nem se
adequaram às suas condições agroecológicas e socioeconômicas (ALTIERI,
2001, p. 15).
Para diferenciar o processo de desenvolvimento de uma perspectiva da agroecologia e da
revolução verde, o autor discute que, na abordagem agroecológica
(...) os critérios de desempenho incluem o uma produção crescente, mas
também propriedades como sustentabilidade, segurança alimentar, estabilidade
biológica, conservação de recursos e eqüidade. Um problema da Revolução
Verde nas regiões agrícolas heterogêneas, é que ela concentrou seus esforços nos
agricultores mais bem providos de recursos, no topo do gradiente, esperando que
os agricultores progressistas ou avançados” servissem como exemplo a outros,
em um processo difusionista de transferência de tecnologias. Os agroecologistas,
ao contrário, enfatizam que, para o desenvolvimento ser realmente de baixo para
cima, deve começar com aqueles pequenos agricultores da parte inferior do
gradiente. Assim, a abordagem agroecológica provou ser culturalmente
compatível, na medida em que se constrói com base no conhecimento agrícola
tradicional, combinando-o com elementos da moderna ciência agrícola
(ALTIERI, 2001, p. 36-37).
Altieri concorda com a existência de controvérsias no conceito de sustentabilidade, mas
acredita que este conceito contribui para ampliar a noção de agricultura e incluir tanto as questões
ecológicas como as questões humanas no planejamento dos processos de manejo dos
agroecossistemas. O autor costuma utilizar o termo desenvolvimento atrelado à noção de
sustentabilidade e às criticas ao desenvolvimentismo capitalista.
O conceito de sustentabilidade é controverso e quase sempre mal definido;
apesar disso, é útil, pois reconhece que a agricultura é afetada pela evolução dos
sistemas socioeconômicos e naturais, isto é, o desenvolvimento agrícola resulta
da complexa interação de muitos fatores. A produção agrícola deixou de ser uma
questão puramente técnica, passando a ser vista como um processo condicionado
por dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas (ALTIERI, 2001, p. 16).
A contraposição ao modelo de desenvolvimento hegemônico, e não apenas às técnicas da
agricultura moderna, é evidente. Nesse sentido, suas críticas se estendem a “agriculturas
alternativas” que propõem como processo de transformação uma substituição de insumos
“artificiais” por insumos “naturais”, sem qualquer preocupação com a organização do sistema
agrícola. A reflexão do autor evidencia a diferença entre uma transformação meramente
41
tecnológica e uma transformação no manejo de um agroecossistema como um todo, segundo um
enfoque sustentável.
Há um interesse geral em reiterar uma racionalidade ecológica à produção
agrícola, e em fazer ajustes mais abrangentes na agricultura convencional, para
torná-la ambiental, social e economicamente viável e compatível. Muitos
avanços tecnológicos inovadores estão sendo introduzidos, mas há, ainda, muito
destaque para os aspectos tecnológicos. O foco é a substituição de insumos, ou
seja, substituir agroquímicos caros e degradadores do meio ambiente e
tecnologias intensivas em insumos por tecnologias brandas, de baixo uso de
insumos externos. Este enfoque não atinge, no entanto, as causas ecológicas dos
problemas ambientais na agricultura moderna, profundamente enraizadas na
estrutura de monocultura predominante em sistemas de produção de larga escala
(ALTIERI, 2001, p. 16).
Para aprofundar essa discussão e esclarecer quais são os fundamentos do “pacote
tecnológico” da revolução verde, Altieri diferencia as premissas filosóficas da ciência moderna e
as premissas alternativas a ela, que deveriam compor a base fundamental da concepção de
agroecossistema sustentável. O princípio básico de cada uma das premissas é, respectivamente, a
simplificação e a complexificação do sistema.
PREMISSAS DOMINANTES
PREMISSAS ALTERNATIVAS
Atomismo: os sistemas consistem em partes não
intercambiáveis e que são simplesmente a soma de
suas partes.
Holismo: as partes não podem compreender-se separadamente de
seus todos e os todos são diferentes da soma de suas partes. As
partes podem desenvolver novas características ou podem surgir
partes totalmente novas.
Mecanicismo: as relações entre as partes estão
fixas, os sistemas se movem continuamente a partir
de um ponto de equilíbrio a outro e as mudanças
são reversíveis.
Os sistemas podem ser mecânicos, mas também podem ser
determinantes, ainda que não previsíveis ou contínuos, porque eles
são caóticos ou simplesmente muito descontínuos. Os sistemas
também podem ser evolutivos.
Universalismo: os fenômenos complexos e
diversos são o resultado de princípios universais
subjacentes, os que são um número reduzido e não
mudam no tempo nem no espaço.
Contextualismo: os fenômenos são contingentes sobre um grande
número de fatores particulares ao tempo e ao lugar. Fenômenos
similares bem podem ocorrer em distintos tempos e lugares devido
a fatores amplamente diferentes.
Monismo: nossas formas separadas e individuais de
entender sistemas complexos estão fusionadas
dentro de um todo coerente.
Pluralismo: os sistemas complexos podem conhecer-se
mediante padrões múltiples e diferentes de pensamento, cada um
dos quais é necessariamente uma simplificação da realidade.
Padrões diferentes são intrinsecamente incongruentes.
Quadro 3 - Premissas dominantes da ciência moderna e suas alternativas
Fonte: Altieri (1999, p. 32)
42
É, portanto, neste campo de discussões que Altieri elabora sua definição sobre a
agroecologia. Segundo ele, a agroecologia é uma
(...) disciplina científica que enfoca o estudo da agricultura sob uma perspectiva
ecológica e com um marco teórico cuja finalidade é analisar os processos
agrícolas de forma abrangente. O enfoque agroecológico considera os
ecossistemas agrícolas como unidades fundamentais de estudo; e nestes
sistemas, os ciclos minerais, as transformações de energia, os processos
biológicos e as relações sócio-econômicas são investigadas e analisadas como
um todo (ALTIERI, 1989, p. 26).
Além de considerar a agroecologia como “disciplina científica” o autor também considera
o ecossistema como unidade básica de estudo. A esta definição, podemos acrescentar ainda a
preocupação de Altieri quanto à compreensão e avaliação do efeito das tecnologias sobre os
sistemas agrícolas e a sociedade como um todo” (ALTIERI, 1999, p. 18). Finalmente, é
importante saber que estes elementos são mobilizados pelo autor em sua dimensão política e
socioeconômica.
Sendo assim, considera-se importante apresentar, mesmo que rapidamente, algumas das
técnicas e princípios anunciados pelo autor como “modelos para agroecossistemas sustentáveis”.
Baseados nos princípios da biodiversidade e do equilíbrio ecológico do ecossistema, o autor
discute sobre o manejo dos recursos naturais e produtivos e sobre elementos metodológicos
relacionados ao procedimento agroecológico:
I. Conservação e Regeneração dos Recursos Naturais
a. Solo (controle da erosão, fertilidade e saúde das plantas)
b. Água (captação/coleta , conservação in situ, manejo e irrigação)
c. Germoplasma (espécies nativas de plantas e animais, espécies locais, germoplasma adaptado)
d. Fauna e flora benéficas (inimigos naturais, polinizadores, vegetação de múltiplo uso)
II. Manejo dos Recursos Produtivos
a. Diversidade:
- temporal (isto é, rotações, seqüências)
- espacial (policultivos, agroflorestas, sistemas mistos de plantio/criação de animais)
- genética (multilinhas)
- regional (isto é, zoneamento, bacias hidrográficas)
b. Reciclagem de nutrientes e matéria orgânica:
- biomassa de plantas (adubo verde, resíduos das colheitas, fixação de nitrogênio)
- biomassa animal (esterco, urina, etc.)
- reutilização de nutrientes e recursos externos e internos à propriedade
Quadro 4 - Elementos técnicos básicos de uma estratégia agroecológica
43
c. Regulação biótica (proteção de cultivos e saúde animal):
- controle biológico natural (aumento dos agentes de controle natural)
- controle biológico artificial (importação e aumento de inimigos naturais, inseticidas botânicos, produtos
veterinários alternativos, etc.)
III. Implementação de elementos técnicos
a. Definição de técnicas de regeneração, conservação e manejo de recursos adequados às necessidades locais e ao
contexto agroecológico e socioeconômico.
b. O nível de implementação pode ser o da microrregião, bacia hidrográfica, unidade produtiva ou sistema de cultivo.
c. A implementação é orientada por uma concepção holística (integrada) e, portanto, não sobrevaloriza elementos
isolados.
d. A estratégia deve estar de acordo com a racionalidade camponesa, incorporando elementos do manejo tradicional de
recursos.
Quadro 4 - Elementos técnicos básicos de uma estratégia agroecológica
Fonte: Altieri (2001, p. 20)
A busca por agroecossistemas auto-sustentáveis indica, para Altieri, a necessidade de
otimização do sistema agrícola. De forma bastante simplificada, esta otimização estaria baseada
num equilíbrio dinâmico que viabilizasse a mínima “entrada/consumo e máxima
“saída/produto” de energia do sistema. Para tanto, a meta hegemônica de autos níveis de
produtividade precisaria ser substituída pela máxima produção total (diversificada) para cada
unidade de energia gasta.
A busca de sistemas agrícolas auto-sustentáveis, com baixo uso de insumos
externos, diversificados e eficientes em termos energéticos, é a maior
preocupação dos pesquisadores, agricultores e formuladores de políticas em todo
o mundo. A agricultura sustentável geralmente refere-se a um modo de fazer
agricultura que busca assegurar produtividades sustentadas a longo prazo,
através do uso de práticas de manejo ecologicamente seguras. Isso requer que a
agricultura seja vista como um ecossistema (daí o termo agroecossistema) e que
as práticas agrícolas e a pesquisa não se preocupem com altos níveis de
produtividade de uma mercadoria em particular, mas, sim, com a otimização do
sistema como um todo. Isso requer, também, que se leve em conta, não apenas a
produção econômica, mas o problema vital da estabilidade e sustentabilidade
ecológica (ALTIERI, 2001, p. 59).
Partindo de suas discussões sobre a construção de agroecossistemas sustentáveis, o autor
constrói uma figura síntese denominada “Objetivos e processos no desenho de um
agroecossistema sustentável modelo”. Nesta esquematização (Figura 1), constam os principais
objetivos, processos e métodos necessários e esse empreendimento. De maneira geral, a
diversidade, estabilidade dinâmica, auto-suficiência e procedimento ecológico são elementos que
44
fundamentam o referido modelo. É interessante notar que, diferentemente das outras “caixas”, na
“caixa” dos objetivos existe um item que faz referência ao aspecto cultural. A “tecnologia
aceitável culturalmente”, apresentada como um dos objetivos, não encontra correspondência
processual e metodológica, ou seja, os processos e métodos mantêm-se, nesta figura, na esfera
agronômica e ecológica.
Diversificados
no tempo e no
espaço
Dinamicamente
estáveis
Produtivos e auto-
suficientes em
alimentos
OBJETIVOS
Conservação e
regeneração de recursos
naturais (água, solo,
nutrientes, germoplasma)
Potencial
econômico e
social
Tecnologia
aceitável
culturalmente
Capacidade
de
autogestão
MODELO DE AGROECOSSISTEMA SUSTENTÁVEL
Cobertura do
solo
Reciclagem de
nutrientes e
conservação
Captura de
sedimentos
colheita aquática
PROCESSOS
Diversidade produtiva
Proteção de cultivos
“Ordem”
ecológica
Sistemas de
cultivos
policulturas
pousio
rotação
densidade
de cultivos
uso de mulch
cultivo de
cobertura
uso de não
lavoura
retirada
seletiva de
plantas
“daninhas”
Policulturas
uso de resíduos
rotação com
leguminosas
zoneamento da
produção
pousio
melhorado
uso de adubo
cultura em
passadiços
Barreiras vivas
ou mortas
retirada seletiva
de plantas
“daninhas”
cultivo em
terraços
uso de “não
lavoura”
zoneamento
semeadura em
contorno
MÉTODOS
Diversidade regional
enriquecimento do bosque
zoneamento dos cultivos
mosaico de cultivos
contra ventos, cintos de
proteção
diversidade dentro do
agroecossistema
policulturas
silvicultura
associação de cultura-
gado
combinações de
variedades
Diversidad
e genética
diversidade
de espécies
controle de
cultivos
controle
biológico
Desenho e reorganização do
agroecossistema
imitação da sucessão natural
metodologias de análises dos
agroecossistemas
Quadro 5 - Objetivos e processos no desenho de um agroecossistema sustentável modelo
Fonte: Altieri (1999, p. 90) no original: “barbecho”.
45
Apesar das sistematizações com relação ao procedimento agroecológico, Altieri não
pretende divulgar um “pacote agroecológico” com técnicas para obtenção de uma agricultura
sustentável, mas exemplificar as possibilidades de geração de tecnologias apropriadas a
realidades rurais que, distintas da realidade agrícola moderna, pretendem desenvolver-se segundo
princípios da sustentabilidade. A geração de tecnologias apropriadas é vista pelo autor como
uma estratégia de oposição à dependência dos agricultores com relação ao mercado hegemônico.
Tais tecnologias possibilitam a produção e processamento dos produtos agrícolas no interior da
propriedade (pelos próprios agricultores(as)), sem apropriação financeira por parte das indústrias
e de forma a agregar valor aos produtos vendidos pelas famílias rurais. O autor acredita que se a
tecnologia é desenvolvida localmente, sua apropriação é também localizada.
É crucial que os cientistas envolvidos na busca por tecnologias agrícolas
sustentáveis se preocupem com quem, finalmente, se beneficiará com elas. Isso
exige que eles reconheçam a importância do fator político quando as questões
científicas básicas são colocadas em discussão, e não somente quando as
tecnologias são distribuídas à sociedade. Assim, o que é produzido, como é
produzido e para quem é produzido o questões-chave que precisam ser
levantadas, caso se queira fazer uma agricultura socialmente justa. Quando tais
questões são examinadas, temas como posse de terra, mão-de-obra, tecnologia
adequada, saúde pública, política de pesquisas, etc., sem dúvida, emergirão
(ALTIERI, 2001, p. 105).
Para o desenvolvimento de tecnologias adaptadas à realidade dos agricultores, o autor
discute que faz-se necessária a identificação da realidade ecológica e socioeconômica local. Para
tanto, criam-se metodologias de extensão rural diferenciadas das convencionais, levando em
conta aspectos multidisciplinares e a diversidade de saberes. Uma equipe multidisciplinar deverá
avaliar, de maneira participativa, as características sociais, econômicas, técnicas e ecológicas
locais.
É claro que a geração de tecnologias, adequada às necessidades de outros
agricultores, deve nascer de estudos integrados às circunstancias naturais e
socioeconômicas que influenciam em seus sistemas agrícolas e dominam suas
respostas frente às tecnologias alternativas. (…) Ao efetuar uma investigação
multidisciplinar, em propriedades selecionadas de agricultores e ao analisar as
restrições sociais, econômicas, técnicas e ecológicas que enfrentam estes
agricultores na produção de culturas, pode-se obter uma importante
retroalimentação sobre as praticas de manejo, condições e necessidades
agrícolas. Conseqüentemente, esta informação pode ser levada em conta para
incorporá-la à pesquisa de cultivos que se realiza para o desenvolvimento de
46
uma tecnologia que se adapte às necessidades e recursos dos agricultores
(ALTIERI, 1999, p. 74).
A partir da investigação do sistema agrícola local, o autor sugere que a equipe técnica
estará apta a desenvolver uma tecnologia adaptada às condições especificamente verificadas
14
.
Alguns artifícios metodológicos que têm sido muito utilizados para a realização desta proposta
são o Diagnóstico Rápido Participativo - DRP e a Contabilidade de Recursos Naturais - CRN:
As técnicas de diagnóstico pido participativo enfatizam métodos não-formais
de levantamento e apresentação de dados, visando favorecer um processo
participativo entre as pessoas do local e os pesquisadores. Para conduzir o DRP,
uma equipe multidisciplinar trabalha com a comunidade local em uma série de
etapas, iniciando com a escolha do lugar e terminando com a avaliação e
monitoramento do projeto. O objetivo é mobilizar comunidades para definir
problemas prioritários e oportunidades, preparando planos específicos de
intervenção nos locais escolhidos. (...) As técnicas de contabilização dos
recursos naturais incorporam as externalidades ambientais à análise custo-
benefício convencional, e podem ser usadas para avaliar a rentabilidade dos
sistemas de produção agrícola alternativos, quando os recursos naturais são
contabilizados (ALTIERI, 2001, p. 53).
Pode-se perceber que, assim como na abordagem de Gliessman sobre os aspectos
humanos da agroecologia, Altieri compreende que “a produção estável somente pode acontecer
no contexto de uma organização social que proteja a integridade dos recursos naturais e estimule
a interação harmônica entre os seres humanos, o agroecossistema e o ambiente” (ALTIERI,
2001, p. 21). O autor tem como referencia teórica a noção de equilíbrio ecológico, de
homeostase.
Como foi discutido, Altieri evidencia a necessidade de compreender a agroecologia para
além das transformações técnicas. Assim, acredita que “só uma compreensão mais profunda da
ecologia humana dos sistemas agrícolas pode levar a medidas coerentes com a agricultura
realmente sustentável” (ALTIERI, 2001, p. 17). O aprofundamento realizado pelo autor no
14
É importante notar que a ênfase na geração de tecnologia e no desenvolvimento rural tem gerado alguns problemas
de interpretação ou adaptações inadequadas do conceito. Como exemplo, podemos citar um reconhecido ideólogo do
Movimento dos Sem Terra - MST, João Pedro Stedile, que tem discutido sobre a necessidade de “instalação de
agroindústrias no campo” diante da adoção de um modelo tecnológico de agroecologia(Carta Capital, São Paulo,
n. 530, p. 14, jan. 2009). Além de referir-se à agroecologia como modelo de tecnologia, Stedile usa o termo
agroindústria como “adaptação” do princípio de geração de tecnologia e processamento local. Veremos que esse tipo
de interpretação restrita limita as potencialidades transformadoras da agroecologia.
47
interior da ecologia humana se fundamenta no estudo das etnociências. Coerente com o princípio
agroecológico de resgatar o “conhecimento tradicional” dos agricultores (as) dos países
“subdesenvolvidos”, a etnociência possibilita o acesso a esses conhecimentos sobre o manejo
agrícola tradicional.
O estudo da etnociência (o sistema de conhecimento de um grupo étnico local e
naturalmente originado) tem revelado que o conhecimento das pessoas do local
sobre o ambiente, a vegetação, os animais e o solo pode ser bastante detalhado.
(...) É possível obter, através do estudo da agricultura tradicional, informações
importantes que podem ser utilizadas no desenvolvimento de estratégias
agrícolas apropriadas, adequadas às necessidades, preferências e base de
recursos de grupos específicos de agricultores e agroecossistemas regionais.
Entretanto, tal transferência de conhecimentos deve ocorrer rapidamente, ou essa
riqueza de práticas se perderá para sempre (ALTIERI, 2001, p. 21).
A etnociência, contribuição da antropologia ao campo da ecologia humana, pretende
alcançar o conhecimento biológico e ecológico de um determinado grupo não-ocidental através
de sua cosmo-visão. Seguindo este caminho, torna-se importante analisar as denominações, as
classificações e os usos da natureza e de seus fenômenos, por parte das populações pesquisadas.
As relações existentes entre as pessoas e delas com a natureza, segundo a etnociência, poderão
ser observadas através das categorias narrativas articuladas a elas.
A etnociência, tal como foi desenvolvida, por exemplo, nos trabalhos pioneiros
de Conklin (1957), propõe-se estudar as categorias semânticas indígenas
próprias dos objetos e fenômenos naturais. Fala-se igualmente das
“classificações ou das taxonomias populares”: como, em cada cultura, as
plantas, os animais o denominados e posteriormente classificados...? (...) A
compreensão das categorias semânticas permite o acesso, não somente ao
conhecimento que uma sociedade adquiriu sobre o meio natural no qual ela vive,
mas igualmente à sua visão de mundo (ROUÉ, 2000, p. 67).
Entre as diversas disciplinas “etno”, a etnobiologia e a etnoecologia tem sido foco de
muita atenção. Esta última, que une o referencial ecológico e a preocupação etnocientífica de
Altieri, é definida por Marques da seguinte maneira:
Etnoecologia é o estudo das interações entre a humanidade e o resto da ecosfera,
através da busca da compreensão dos sentimentos, comportamentos,
conhecimentos e crenças a respeito da natureza, característicos de uma espécie
biológica (homo sapiens) altamente polimórfica, fenotipicamente plástica e
ontogenéticamente dinâmica, cujas novas propriedades emergentes geram-lhe
múltiplas descontinuidades com o resto da própria natureza. Sua ênfase, pois,
48
deve ser na diversidade biocultural e o seu objetivo principal, a integração entre
o conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento ecológico científico
(MARQUES, 2001, p. 49).
Nesse sentido, é importante a contribuição de Altieri quanto à articulação das técnicas
agroecológicas a esta dimensão cultural das populações não-ocidentais. A orientação
etnoecológica realizada pelo autor permite uma oposição com relação à orientação teórica
etnocêntrica do modelo instituído pela revolução verde.
Salienta-se que a agroecologia discutida por Altieri está permeada pela preocupação de
romper com os paradigmas da ciência moderna e viabilizar a construção de uma ciência menos
atomística, que permita compreender o agroecossistema de forma ampla. Partindo deste ponto de
vista, o autor politiza a discussão agroecológica e elabora estratégias socioeconômicas e
agronômicas que viabilizem a construção de sistemas agroecológicos sustentáveis. Dentre elas,
busca no conhecimento popular considerado “tradicional”, os elementos necessários à geração de
tecnologias apropriadas à realidade econômica e ecossistêmica agrícola. Discute a eficiência
energética do sistema produtivo como forma de redução de impactos ambientais e aumento da
geração de renda às famílias agricultoras. Ou seja, na agroecologia de Altieri as dimensões
técnica e econômica dos agroecossistemas são colocadas em destaque. O manejo ecológico dos
sistemas agrícolas oferece, a partir da proposta do autor, meios de viabilizar economicamente a
agricultura dos pobres. Como era de se esperar, Altieri oferece, em maior profundidade, o olhar
do agrônomo à agroecologia.
49
2.3 A agroecologia de Eduardo Sevilla Guzmán e o fortalecimento sócio-cultural
A perspectiva de Eduardo Sevilla Guzmán
15
realiza certo deslocamento dos aspectos
ecológicos da agroecologia, tirando-os do centro da discussão para a posição igualitária com
relação aos outros aspectos, econômicos e sócio-culturais. Mesmo assim, a diferença com relação
ao referencial da ecologia não distancia este autor dos anteriormente apresentados. Devido à
inclusão de discussões socioantropológicas a respeito da agroecologia, o autor remete-se
obrigatoriamente ao estudo do campesinato
16
como forma de compreender as particularidades que
caracterizam as populações rurais, para, deste modo, estabelecer sua concepção de agroecologia.
Sevilla Guzman busca estabelecer um “intercâmbio simétrico” de conhecimento não
apenas entre as ciências naturais e humanas, mas dos intelectuais com os camponeses.
Acreditando nas especificidades camponesas de organização sócio-cultural e em seu potencial
revolucionário, o autor se considerada um “neo-narodinista ecológico”. O termo remete ao
movimento narodinista
17
russo e/ou populismo agrário russo, cuja práxis intelectual e política
elaboravam estratégias de luta contra o capitalismo.
Na elaboração de sua abordagem agroecológica, o autor retoma os estudos sobre o
campesinato e evidencia a necessidade de se fortalecer as especificidades sócio-culturais
peculiares a estes grupos sociais. Quanto à influência destes estudos no campo da agroecologia,
Sevilla Guzmán pode ser considerado um de seus maiores representantes. Segundo Caporal:
15
Sevilla Guzmán é doutor em sociologia, professor catedrático e diretor do Instituto de Sociología y Estudios
Campesinos ISEC, da Escuela Superior de Ingenieros Agrônomos y de Montes ETSIAM, Universidade de
Córdoba, Espanha. Em 1991, o ISEC se incorporou ao Consorcio Latino-Americano de Agroecologia e
Desenvolvimento CLADES e fundou o Programa de Maestría en Agroecologia y Desarrollo Rural Sostenible em
Latinoamérica y España, na Universidade Internacional de Andaluzia. Altieri e Gliessman participam das
experiências de docência e pesquisa desta instituição. Além disso, Sevilla Guzmán desenvolve uma forte interação
com a militância camponesa na Espanha, buscando, de uma perspectiva sócio-ecológica, fortalecer a luta pela terra e
as peculiaridades de produção e reprodução da agricultura camponesa. Assim, o autor atua com base na pesquisa-
ação-participativa e vincula a produção acadêmica aos movimentos sociais camponeses.
16
A utilização do termo camponês (campesinato) ou agricultor (agricultura familiar) remete a uma antiga discussão
dos estudos do campesinato brasileiro que será apresentada no capítulo seguinte. Neste caso, a utilização do termo
concorda com a opção feita por Sevilla Guzmán (2000). É ainda importante ressaltar que o termo “campesino” e suas
derivações utilizadas no espanhol são equivalentes ao conceito de “camponês” utilizado no Brasil.
17
Como explica Caporal, referindo-se a mesma questão tratada neste texto: “(...) esta corrente sugeria a extensão das
relações sociais do tipo coletivo, recomendando aos intelectuais que fossem “fundir-se ao povo”, para desenvolver
“com ele, em pé de igualdade, formas de cooperação solidária” que permitissem o progresso com inclusão social”
(CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 103).
50
Vem dos estudos camponeses e da recuperação do “populismo agrário russo” a
corrente mais atual e alternativa ao pensamento ecotecnocrático da
sustentabilidade. Neste sentido, a partir dos anos oitenta, começaria a se
conformar a Agroecologia como perspectiva teórica alternativa. Sustentados no
“neo-narodnismo ecológico” ou “neo-populismo ecológico”, seus autores
recuperam, a partir de uma análise científica, a necessidade de conservação da
biodiversidade ecológica e cultural, assim como o enfoque sistêmico para a
abordagem dos aspectos relativos ao fluxo de energia e de materiais nos sistemas
econômicos. Assim, o neo-populismo ecológico, ainda que faça uma crítica
radical à ciência e tecnologias modernas, não nega a ciência, mas propugna por
uma modernidade alternativa”, afastando-se da idéia de progresso a qualquer
custo e do entusiasmo cego com respeito às tecnologias ditas modernas. No
processo de conformação deste novo paradigma, encontramos ainda categorias
chaves para a construção de um modelo alternativo de desenvolvimento rural,
buscadas em Chayanov, tais como a importância dada à especificidade cultural,
a noção de economia moral camponesa e a idéia de desenvolvimento desde
baixo, assim como o reconhecimento de um certo “potencial anti-capitalista”
determinado pela particular racionalidade econômica dos camponeses
(CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 87).
É a partir desta orientação neo-narodnista que Sevilla Guzman constrói sua abordagem da
agroecologia. O princípio narodnista de “unir-se ao povo” transforma-se no princípio central de
sua construção teórica, a construção da agroecologia a partir do endógeno. De uma perspectiva
“desde dentro os elementos fundantes da abordagem agroecológica do autor são: a
complexidade e a interdisciplinaridade; a coevolução entre ser humano e natureza; a
biodiversidade ecológica e social e a construção de identidades locais.
Neste momento é importante esclarecer que a perspectiva endógena proposta por Sevilla
Guzmán não pretende negar relações com o exógeno, mas apenas selecioná-las ou adaptá-las a
lógica de organização local, protegendo desta forma as identidades sócio-culturais específicas.
(...) “o endógeno”, não pode ser visualizado como algo estático que rejeite o
externo; pelo contrário, o endógeno, “digere” o externo mediante a adaptação à
sua lógica etnoecológica de funcionamento, ou, dito em outras palavras, o
externo passa a incorporar-se ao endógeno quando tal assimilação respeita a
identidade local e, como parte dela, a auto-definição da qualidade de vida.
Somente quando o externo não agride as identidades locais é que se produz tal
forma de assimilação (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA;
SEVILLA GUZMAN, 2000, p. 145).
Como vem sendo discutido nas abordagens teóricas anteriores, o autor evidencia a
necessidade de interação entre as ciências naturais e humanas para viabilizar uma concepção o
compartimentada e holística do sistema produtivo. No entanto, o estudo realizado por Sevilla
51
Guzman não parte de uma perspectiva ecológica, mas de uma abordagem integrativa, que se
construa contemplando as variáveis socioeconômicas e culturais em de igualdade com as
biofísicas.
Frente ao discurso científico convencional aplicado à agricultura, que tem
propiciado o isolamento da exploração agrária dos demais fatores circundantes,
a Agroecologia reivindica a necessária unidade entre as diferentes ciências
naturais entre si e com as ciências sociais, para compreender as interações
existentes entre processos agronômicos, econômicos e sociais; reivindica, em
fim, a vinculação essencial que existe entre o solo, a planta, o animal e o ser
humano (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN,
2000, p. 85).
O agroecossistema é muito utilizado como unidade básica de análise da agroecologia. É
interessante notar que Sevilla Guzmán desenvolve uma discussão sobre o termo agroecossistema
que o distancia da concepção biocêntrica de relação entre humano-natureza. A compreensão a
respeito da diversidade de formas de intervenção humana na natureza e a valorização da
diversidade sócio-cultural contribuem para ampliar a discussão ecológica à dimensão das relações
entre natureza e cultura. Nesta concepção a ação humana não é necessariamente impactante.
Esta intervenção no mundo natural se torna possível mediante a apropriação dos
ecossistemas, conceito que alude às unidades básicas em que consideramos
organizada a natureza. Normalmente a intervenção ou processo metabólico,
pretende canalizar recursos materiais e energéticos do ecossistema para a
sociedade. No entanto, poderíamos distinguir duas formas principais de
intervenção humana nos ecossistemas a partir de um ponto de vista agrário. A
primeira se refere à forma de intervenção típica das sociedades de caçadores-
coletores (...), onde os recursos naturais são obtidos e transformados sem
provocar mudanças substanciais na estrutura, dinâmica e arquitetura dos
ecossistemas naturais. A segunda e mais freqüente forma de intervenção refere-
se a quando os ecossistemas naturais são parcial ou totalmente substituídos por
conjuntos de espécies animais e vegetais em processo de domesticação. Talvez o
mais importante seja a diferença existente entre ambas as formas de intervenção,
segundo Victor Toledo (1993): os sistemas naturais tem capacidade de auto-
manutenção, auto-reparação e auto-reprodução; entretanto, os sistemas
manipulados pelos seres humanos são instáveis, requerem energia e materiais
externos para sua manutenção e reprodução. Assim, a estes ambientes
transformados ou ecossistemas artificiais chamamos Agroecossistemas.
(GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2001, p.
87).
52
Para construir sua definição sobre a agroecologia, o autor estabelece uma importante
diferenciação entre duas concepções teóricas que compõe o campo de discussões do conceito,
denominando-as de agroecologia restrita e agroecologia ampla. A agroecologia compreendida de
forma restrita limita-se aos aspectos técnicos e/ou à construção de manejos do agroecossistema
para a resolução dos problemas agrícolas e ecológicos causados pela modernização da
agricultura. Os aspectos sociais são abordados de maneira secundária, apenas no que diz respeito
às intervenções diretas no agroecossistema. Cabe a esta visão restrita o que o autor denominaria
também de agroecologia débil.
Nesta forma de entender a Agroecologia, as variáveis socioambientais são assim
consideradas na medida em que podem perturbar o funcionamento dos sistemas
agrários; assume-se a sua importância, mas não se procuram soluções globais
que ultrapassem o âmbito da fazenda ou da técnica concreta que se coloca em
funcionamento. Na realidade, esta Agroecologia débil não se diferencia muito da
agronomia convencional e não supõe uma ruptura mais do que parcial com as
visões tradicionais (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA
GUZMAN, 2001, p. 86).
Em um sentido amplo, a agroecologia depende fortemente das variáveis sociais. Por
tratar-se de um ecossistema antroprizado, o agroecossistema é regulado pelas relações entre os
seres humanos e as instituições que as regulam. Observa-se que os conceitos de “coevolução
entre seres humanos e natureza”, “biodiversidade social e ecológica” e “fortalecimento
endógeno” fundamentam a definição de agroecologia elaborada pelo autor:
A Agroecologia pode ser definida como o manejo ecológico dos recursos
naturais por meio de formas de ação social coletiva que apresentam alternativas
à atual crise da modernidade, mediante propostas de desenvolvimento
participativo (...) a partir dos âmbitos da produção e da circulação alternativa de
seus produtos, pretendendo estabelecer formas de produção e consumo que
contribuam para encarar a crise ecológica e social e com isto ajudar a restaurar o
curso alterado da coevolução social e ecológica (...). Sua estratégia possui uma
natureza sistêmica, ao considerar a propriedade, a organização comunitária e o
restante dos marcos de relação das sociedades rurais articulados em torno da
dimensão local, onde se encontram os sistemas de conhecimento (local,
camponês e/ou indígena) portadores do potencial endógeno que permite
potencializar a biodiversidade ecológica e sócio-cultural (...). Tal diversidade é o
ponto de partida das agriculturas alternativas, a partir das quais se pretende o
desenho participativo de métodos de desenvolvimento endógeno (...) para o
estabelecimento de dinâmicas de transformação com vistas a sociedades
sustentáveis (SEVILLA GUZMAN, 2006, p. 202).
53
A abordagem ampla da agroecologia discutida por Sevilla Guzmán reivindica a
construção de um novo paradigma científico. A visão atomística, mecanicista, universalista,
objetivista e monista da ciência moderna não são capazes de dar conta da complexidade a qual se
propõe refletir a agroecologia ampla. Neste esforço crítico, o autor estabelece algumas reflexões
sobre a limitação da racionalidade técnico-científica e a conseqüente matematização do mundo:
(...) a linguagem preferida pela racionalidade técnico-científica, da ideologia
cientificista, tem sido a matemática. A idéia de que a matemática corresponde a
uma ordem supra-real e perfeita, tem sido tão forte que tem constituído
praticamente um único saber à margem da crítica. Neste sentido, a matemática
tem sido uma máquina de crenças a serviço da transformação da realidade e por
tanto, a linguagem idônea da racionalidade científico-tecnológica. A
demonstração constitui um dos pilares em que se fundamentam essas crenças.
Por meio dos métodos matemáticos podemos demonstrar a verdade sobre algo
ou alguém, sobre um enunciado, etc... Mas a natureza relativa da demonstração
tem ficado clara a partir do que K. Gödel demonstrou em seu arquiconhecido
teorema da incompletude. A demonstração não é nenhum acesso privilegiado e
direto da verdade ou da realidade senão um procedimento mais dentro de uma
determinada linguagem, submetida, além disso, à indeterminação e à
incompletude (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA
GUZMAN, 2000, p. 90).
Em contraposição ao modelo científico hegemônico, o autor situa a agroecologia não
como uma disciplina, mas como um novo campo de estudo que, por seu enfoque, requer
combinar os resultados de diferentes disciplinas. Nesse sentido, considera necessária uma
“orquestração das ciências” onde os distintos resultados sejam coordenados e as contradições e
incompatibilidades sejam abordadas para construir uma visão ampla da agroecologia; “não se
trata de cair em nenhum reducionismo, nem de buscar uma utópica unificação das ciências, mas
de aceitar um pluralismo metodológico, onde os limites dos juízos de autoridade de qualquer
especialista são aceitos (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN,
2001, p. 159)”. Para completar o campo de reflexão e ação da agroecologia, segundo uma
orientação cientifica complexa, Sevilla Guzmán dimensiona seu pluralismo metodológico em três
níveis distintos: distributivo, estrutural e dialético.
A perspectiva distributiva está baseada na caracterização sistemática de determinada
realidade, com base num conjunto de dados obtidos para descrevê-la, sejam eles sociais ou
naturais. Pertencem a ela as ciências agrícolas, pecuárias e florestais em seus aspectos técnicos
relativos ao manejo dos recursos naturais. O autor determina resumidamente seu campo de ação
54
ao afirmar que “a explicação distributiva registra, correlaciona, quantifica e estrutura”. Segundo
ele, em sua característica quantitativa esta perspectiva torna-se muito eficiente em determinadas
situações e insuficiente em outras:
Quando tais dados possuem um caráter objetivo quantificável, como o numero
de hectares de uma propriedade, as culturas que a integram, o numero de pessoas
que trabalham em cada um deles, etc., tal transformação é produto de uma
grande utilidade e não é equívoca. Deixa de ser assim quando as enquetes
recolhem opiniões e atitudes, que os dados (“enunciados da observação”) são
construídos por quem cria o questionário e respondidos de maneira passiva pelo
entrevistado (GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA
GUZMAN, 2001, p. 116).
A perspectiva estrutural explica as relações existentes nos fenômenos analisados, a partir
da percepção e dos discursos elaborados pelos sujeitos da ação. As informações obtidas são
qualitativas e partem de um sentido sócio-cultural, sejam elas naturais ou sociais. A perspectiva
dialética, por sua vez, refere-se a relações que se estabelecem no processo de pesquisa entre o
investigador e a realidade investigada. Nesta última, não se trata de conhecer (como na
perspectiva distributiva), de explicar (como na perspectiva estrutural), mas de intervir e de
articular com o objeto estudado no sentido de obter uma transformação. Desta forma, a
perspectiva dialética transforma a tradicional oposição existente entre sujeito (pesquisador) e
objeto (pesquisado) em uma relação dinâmica e transformadora.
A perspectiva distributiva, pela própria natureza de suas pesquisas, ao manejar-
se em um nível de pesquisa tecnológica, ao situar-se filosoficamente em uma
dimensão empírica, ao centrar-se no nível da analise descritiva, ao tentar
apreender o nível da realidade dos “fatos”, ao orientar-se para o nível dos
indivíduos ou elementos do sistema, ao pretender distanciar-se “cientificamente”
do pesquisador, ao cumprir uma função simuladora da realidade através de seu
desenho prévio e fechado a respeito da informação que captura, possui uma
estrutura metodológica que bem poderia ser qualificada como uma coleção de
técnicas de pesquisa científica. Isto acarreta em fortalezas (eficácia operativa) e
em limitações (debilidade epistemológica). Frente a isto, a perspectiva
distributiva e sua subordinação ao poder ou coexistencialidade com ele mesmo,
as perspectivas estrutural e dialética tratam de transcender às relações de poder
de sujeito (pesquisador) a objeto (pesquisado) (GUZMAN CASADO;
GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2001, p. 69).
A interdisciplinaridade permeia, portanto os principais conceitos fundantes da
agroecologia de Sevilla Guzmán. Entre eles está a biodiversidade. Durante a discussão da
perspectiva agrícola, o autor recorre a Altieri (1993): processos como a reciclagem de nutrientes,
55
o controle biológico de pragas, a conservação da água e do solo são lembrados como
conseqüência dos serviços ecológicos prestados ao agroecossistema através da manutenção ou
recuperação da biodiversidade. No entanto, o autor extrapola as considerações agronômicas e
aborda a biodiversidade em sua dimensão social. Nesta perspectiva, a (re)construção e
fortalecimento da identidade específica de cada grupo, assim como a garantia de sua perpetuação,
são discutidas também como elemento chave para a agroecologia.
(…) a agroecologia, por seu enfoque holístico e sua perspectiva sistêmica, não
termina na consideração agronômica dos agroecossistemas. A biodiversidade
agrícola (...) não poder separar-se do silvestre, que o input de genes silvestres
tem constituído historicamente uma continuidade dentro da agricultura
tradicional e estes dois aspectos estão inelutavelmente unidos ao conhecimento
camponês que tem desenvolvido tais formas históricas de manejo: existe assim
uma biodiversidade social e ecológica vinculada a uma porção de natureza sobre
o qual, em interação histórica, tem se desenvolvido uma identidade específica.
A Agroecologia reivindica o conceito de identidade, para ao vincular-se ao
agroecossistema, transmitir a necessidade de sua preservação como legado para
as gerações futuras. (...) É esta uma parcela da Agroecologia pouco desenvolvida
e na qual a pesquisa histórica, sociológica e antropológica mais podem aportar
(ALTIERI, 1993, p. 113).
As bases epistemológicas da agroecologia, segundo Sevilla Guzmán, configuram-se a
partir do estudo das relações de produção e reprodução que as sociedades humanas possuem a
partir de sua relação com a natureza. O autor considera que, nos ecossistemas naturais a
capacidade de auto-conservação, auto-regulação e auto-renovação independem da ação humana.
Quando tratamos, porém de ecossistemas manejados pelo ser humano, ecossistemas artificiais ou
agroecossistemas, o movimento reconhecido em seu interior resulta de uma construção social
que é, por sua vez, produto da coevolução dos seres humanos com a natureza
18
. Sendo assim,
torna-se evidente que o produto desta coevolução ser humano-natureza está determinado pela
forma de organização das sociedades humanas através de suas relações econômicas e cio-
culturais
19
.
18
Sobre esta interação coevolutiva, o autor estabelece referências na teoria denominada “coevolução etnoecológica”
de Norgaard (1987, 1995).
19
A esta discussão, é interessante relacionar o conceito de falha metabólica desenvolvido por Marx e resgatado por
Bellamy Foster em sua obra: “A ecologia de Marx, materialismo e natureza”. Seguindo a mesma linha de
pensamento sociedades humanas reproduzindo suas condições de existência através da relação com a natureza
Marx entende por trabalho a apropriação da natureza, e por metabolismo a “troca material” existente entre humano e
natureza. Sendo assim, Marx identifica uma falha no processo metabólico entre humano e natureza fundantes do
capitalismo. Segundo ele, o sistema capitalista funciona a partir de uma relação desconexa entre humano e natureza,
56
Convêm ressaltar que não existe uma homogeneidade ecológica nos
etnoecossistemas centrais nem nos periféricos; nem sequer em etnoecossistemas
hipotéticos com distribuições análogas de consumo exossomático existiria uma
homogeneidade etnoecológica, já que cada identidade cultural constrói
socialmente suas formas de relação com a natureza e com a sociedade; isto é,
sua realidade social através da especificidade de seu processo histórico. É este
quem confere uma diversidade aos grupos humanos; isto é, as formas de
consumo endo e exossomático, as pautas de desigualdade social e em geral, as
estruturas sociais dos grupos humanos são produto de uma adaptação aos
ecossistemas fazendo parte de sua biodiversidade, em sua dimensão sócio-
cultual. Em definitiva, existe uma configuração histórica de identidades
etnoecossistemicas, produto da coevolução social e ecológica (ALONSO
MIELGO; SEVILLA GUZMAN, 1994, p. 5).
Para criarem-se as condições efetivas de construção da sustentabilidade a partir da
coevolução entre os seres humanos e a natureza, o autor evidencia a necessidade de se reconhecer
a existência de gicas de organização social diferenciadas da gica hegemônica. Nesse sentido,
discute a importância, para a agroecologia, do estudo do campesinato como forma de
compreensão das especificidades das relações camponesas. Utilizando um vocabulário que
aproxima as ciências humanas das ciências naturais, Sevilla Guzmán usa a expressão “simbiose
do homem com a natureza” para dimensionar essas especificidades da organização camponesas.
Daí a importância que a Agroecologia dá ao campesinato. A vinculação do
camponês com a natureza se realizou e se realiza através de “uma especifica
relação, por um lado com a exploração agrícola familiar que se materializa em
uma característica ocupacional e, por tanto, na comunidade camponesa que
possui uma particular influencia do passado e umas específicas pautas de
organização social” (Sevilla Guzmán, 1987:366-399). São estes, além dos
marcos sociais que tem permitido a adaptação simbiótica do homem com a
natureza, onde este tem sabido, a nível local, artificializar os ecossistemas
mantendo as bases de sua renovabilidade (GUZMAN CASADO; GONZALEZ
MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2000, p. 107).
uma relação que rompe com o ciclo existente, através da qual não se estabeleceria as condições de sustentabilidade:
“Marx empregou o conceito de ‘falha’ na relação metabólica entre os seres humanos e a terra para captar a alienação
material dos seres humanos dentro da sociedade capitalista das condições materiais que formaram a base da sua
existência o que ele chamou ‘a[s] perpétua[s] condição[ões] da existência humana imposta[s] pela natureza’.
Insistirem em que essa tal falha metabólica entre os seres humanos e o solo foi em larga escala criada pela sociedade
capitalista era afirmar que as condições de sustentabilidade impostas pela natureza haviam sido violentadas. A
produção capitalista’, observou Marx, ‘volta-se para a terra depois que esta foi exaurida pela sua influencia e
depois que as suas qualidades naturais foram por ela devastadas’. Além do mais, isto podia ser constatado não em
relação ao solo mas também à relação antagônica entre cidade e campo” (FOSTER, 2005, p. 229).
57
A abordagem que Sevilla Guzmán dá à agroecologia, portanto, coloca no centro da
discussão o universo sócio-cultural específico das diferentes comunidades rurais. No caso
camponês, as unidades familiares ocupam o espaço de regulação da força de trabalho e meios de
produção, ou seja, da organização social-cultural como um todo.
Um dos elementos chave para o desenvolvimento de estratégias é o controle que
as unidades domésticas exercem sobre os meios de produção, sobre a terra (...),
sobre os saberes e, em geral, sobre os processos de trabalho; quer dizer, o
controle que exercem sobre os mecanismos de produção e, eventualmente, de
todos ou de parte dos mecanismos de reprodução. Para estudar adequadamente o
comportamento reprodutivo do campesinato há de se contextualizar a matriz
global de seu universo sócio-cultural (GUZMAN CASADO; GONZALEZ
MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2000, p. 108)
Considerando a unidade familiar como elemento central da organização camponesa, o
autor continua a discussão identificando nas relações de parentesco e vizinhança, a construção do
conhecimento tradicional. Nas relações familiares e delas com a natureza acumulam-se bens
simbólicos que serão transmitidos a cada geração. Serão transmitidos não apenas como cnicas,
mas como uma identidade.
Os processos de inserção do campesinado em sua matriz social possuem um
contexto ecológico especifico que vincula sua aprendizagem como ser social ao
conhecimento dos processos biológicos em que se insere a produção de seu
conhecimento: o saber do campesinato se aprende na heterogênea ligação entre
grupo domestico e grupo de trabalho, seja em uma aldeia ou em propriedades
maiores. O conhecimento do sistema de trabalho, a epistemologia, é o resultado
desta interação onde a lógica indutiva é aprendida na medida em que se fazer
e se escuta para poder dizer, explicar, devolver o conhecimento ao longo das
relações de parentesco e de vizinhança (GUZMAN CASADO; GONZALEZ
MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2000, p. 109).
O fortalecimento da identidade sócio-cultural é considerado por Sevilla Guzmán como o
ponto de partida para qualquer transformação baseada nos princípios da agroecologia. Desta
forma, qualquer intervenção exógena que não esteja de acordo com as premissas endógenas do
grupo, deveria ser rejeitada ou ao menos adaptadas a elas. Relacionado a este princípio, o autor
justifica a não utilização do conceito “desenvolvimento” atrelado à sustentabilidade:
(...) dentro do pensamento cientifico liberal, quando o conceito de
desenvolvimento é aplicado à economia, adquire este uma forte dimensão
58
etnocentrista ao identificar-se a plenitude ou superioridade com a trajetória
histórica despregada pela identidade sócio-cultural ocidental e as formas de
produção e consumo por ela instauradas. O desenvolvimento pode ser definido
assim como o crescimento econômico (incremento do Produto Interno Bruto)
acompanhado de uma mudança social e cultural (modernização) que acontece
em uma determinada sociedade (geralmente em um estado-nação), como
conseqüência das ações realizadas; significando estratégias de planificação de
mudanças para melhorar “a qualidade de vida” de sua população. E, entendendo
por “modernização”, um nome novo para um velho processo, a mudança sócio-
cultural e política que as potencias coloniais impunham às suas colônias: sua
ocidentalização. Neste contexto, adquire sentido, em nossa opinião, a melhor
analise até agora feita do conceito de desenvolvimento. Esta análise, de Gustavo
Esteva, assinala que “o desenvolvimento não pode desligar-se das palavras com
as quais foi formada evolução, crescimento, maturação”. Do mesmo modo,
quem faz uso dela atualmente não pode liberar-se da rede de sentidos que
uma cegueira especifica da sua linguagem, do seu pensamento e de suas ações
(GUZMAN CASADO; GONZALEZ MOLINA; SEVILLA GUZMAN, 2000, p.
116).
Segundo o autor, a palavra desenvolvimento indica sempre um sentido do simples para o
complexo, do inferior para o superior; não importa a intenção que se tenha ao utilizá-la, ela
encontra-se atrelada a esses significados indesejáveis, no sentido de alcançar uma lei universal
regida pela “civilização” ocidental. Por esses motivos, a noção de sustentabilidade é conceituada
por Sevilla Guzmán sem referir-se à noção de desenvolvimento. Reconhecendo as múltiplas
interpretações do conceito, o autor toma o cuidado de definir o que é para ele sustentabilidade e,
nesta definição, cita Gliessman:
Por isto, é importante precisar aqui o que é o sustentável” sob o ponto de vista
da Agroecologia, para evitarmos as armadilhas da sustentabilidade presente no
discurso ecotecnocrático. (...) O fazemos tomando como base os ensinamentos
de Gliessman (1990), que afirma que a sustentabilidade não é um conceito
absoluto, mas, ao contrário, existe mediante contextos gerados como
articulação de um conjunto de elementos que permitem a perdurabilidade no
tempo dos mecanismos de reprodução social e ecológica de um etnoecossistema.
(...) Assim, novas estratégias de ação, orientadas para a construção de contextos
de sustentabilidade, devem garantir o incremento da biodiversidade e da
diversidade cultural, minimizando, ao mesmo tempo, as dependências às quais
os etnoecossistemas estão submetidos (SEVILLA GUZMAN, 2001, p. 42-43).
Percebe-se que a discussão de Sevilla Guzmán está circunscrita pela perspectiva do
endógeno na agroecologia. Atrelada a esta perspectiva há uma ênfase na necessidade de se
compreender a unidade familiar de produção existente na organização camponesa para
efetivamente realizar a sustentabilidade nesta realidade. A partir desta discussão sobre as
59
especificidades sócio-culturais, é possível reportar-se aos princípios do marxismo antropológico,
de Godelier (1978). Sevilla Guzmán cita Godelier principalmente devido a seu conceito de
transição no pensamento marxista. Godelier representa a escola antropológica que à “(...)
possibilidade de produzir a teoria das relações sociais nas modalidades não capitalistas de
produção (...)” (CARVALHO, 1986, p. 1).
Assim como Sevilla Guzmán preocupa-se em ampliar o conceito de agroecologia,
Godelier critica o reducionismo existente nas concepções antropológicas ligadas à ecologia e
discute sobre a necessidade de reflexão da diversidade de relações sociais existentes, para além
das sociedades ocidentais.
Entretanto, precisamos constatar os limites dos trabalhos dos neofuncionalistas,
ligados à “ecologia cultural” e evidenciar sua origem. Ela reside nas influências
radicais de seu materialismo, que fizeram com que concebessem de maneira
“reducionista” as relações complexas entre economia e sociedade. A diversidade
das relações de parentesco, a complexidade das práticas ideológicas e dos rituais
nunca são reconhecidas em toda sua importância. (...) Reconheçamos o
marxismo vulgar, o economicismo”, que reduz todas as relações sociais ao
estatuto de epifenômenos que acompanham as relações econômicas, e as
reduzem a uma técnica de adaptação a um meio natural e biológico
(GODELIER, 1978, p. 57).
Diretamente relacionado ao princípio do “endógeno” que fundamenta a abordagem de
Sevilla Guzmán sobre a agroecologia, está o eixo central do marxismo antropológico. Este
evidencia a necessidade de compreensão da gica social interna para posterior observação e
reflexão sobre seu lugar na historia e relações externas.
Alguns princípios de natureza metodológica daí decorrem: em primeiro lugar,
que o conceito de totalidade não é mais entendido como justaposições e camadas
de instituições fundadas na regularidade comparativa, mas como sistema cuja
lógica interna deve ser apreendida em suas contradições internas; em segundo,
que a análise da gênese histórica e da evolução e sempre posterior ao
entendimento da especificidade interna. Finalmente, em terceiro que a
causalidade estrutural dos processos de produção e reprodução materiais devem
fornecer os vetores determinantes da dinâmica sócio-histórica (CARVALHO,
1986, p. 5).
É importante, portanto, relembrar que a perspectiva “endógena” proposta por Sevilla
Guzmán, assim como o método citado acima, não pretende negar relações com o exógeno, mas
60
apenas selecioná-las ou adaptá-las a lógica de organização local, protegendo desta forma a
identidade sócio-cultural específica.
A agroecologia discutida por Sevilla Guzmán é o campo do conhecimento que oferece
possibilidades de compreender os aspectos ecológicos e agronômicos a partir da concepção
sócio-cultural específica a cada grupo social. Para o autor, as especificidades do campesinato
oferecem outras formas de compreensão do sistema agrícola e das relações de produção. Além
disso, compreende que estas especificidades, que compõem uma identidade coletiva, devem
funcionar como filtros ou adaptadores às interferências exógenas. Este procedimento de
valorização do endógeno viabilizaria, na concepção do autor, um processo próprio de coevolução
entre famílias camponesas e seu ecossistema e, portanto, uma dinâmica produtiva mais
sustentável. Ou seja, a agroecologia de Sevilla Guzmán enfatiza a dimensão sócio-cultural
interligada às demais dimensões e destaca a importância da incorporação do endógeno em seus
procedimentos metodológicos.
61
2.4 A construção de uma Agroecologia Plena
Desde o início deste capítulo, as três vertentes teóricas da agroecologia foram
apresentadas como vertentes possivelmente complementares. Apresentou-se, também, o consenso
existente tanto sobre a multidisciplinaridade da agroecologia quanto sobre sua aproximação ao
saber-fazer não-científico. Pretende-se agora, como conclusão das reflexões acima elaboradas,
realizar um exercício teórico de integração das perspectivas estudadas, para uma conseqüente
construção do que se pode chamar de agroecologia plena.
A sugestão de uma complementaridade entre as perspectivas agroecológicas não pretende
obscurecer as divergências existentes entre elas, ou ainda propor uma harmonia teórica. Entende-
se que as relações de complementaridade não negam necessariamente as desigualdades e os
conflitos; mas que estes são elementos importantes para a manutenção da produção de
conhecimentos.
Como proposta multidisciplinar, a agroecologia não poderia ser construída por uma das
especialidades científicas, mas sim por algumas das áreas do conhecimento. A biologia, a
ecologia, a agronomia, a geografia, a sociologia ou a antropologia não possibilitaria sozinha a
germinação deste novo campo do conhecimento, por uma questão paradigmática. Ou seja, porque
a agroecologia caminha no sentido contrário aos princípios pelos quais estas ciências foram
fundadas. Sua construção exige um esforço contra-reducionista capaz de aglutinar as partes
(ciências modernas) para potencializar a construção de um todo complexo.
É nesse sentido que se pode dimensionar a importância da contribuição do ecólogo S.
Gliessman, do agrônomo M. Altieri e do sociólogo E. Sevilla Guzmán, na construção deste novo
campo do conhecimento, a agroecologia. Os três autores partem de concepções científicas
diferentes, com propósito de realizar um rompimento nos limites disciplinares e nos limites
acadêmicos quanto à busca por novos conhecimentos. Os olhares científicos não são os mesmos.
Cada um destes autores carrega em si as peculiaridades de seu campo de estudos, assim como a
motivação e as experiências de pesquisa de um universo complexo.
Partindo de áreas de estudo diferenciadas, cada uma das noções de agroecologia compõe
um importante espaço no conceito amplo desta nova ciência
20
. A agroecologia de Gliessman, em
20
Nota-se que Sevilla Guzmán (2001), cuja perspectiva agroecológica evidencia a necessidade de construção de um
conceito amplo de agroecologia, remete-se frequentemente à Gliessman e à Altieri durante sua elaboração do
conceito.
62
sua abordagem profundamente ecológica, suporte à agroecologia de Altieri, que tem como
preocupação central a elaboração de tecnologias apropriadas às específicas realidades rurais. As
técnicas agroecológicas lapidadas por Altieri potencializam transformações politicoeconômicas
mais profundamente estudadas por Sevilla Guzmán. Este último evidencia aos primeiros as
peculiaridades da organização sócio-cultural camponesa e, com a contribuição de ambos, oferece
uma metodologia com propósito de efetivar a construção de uma agroecologia ampla.
Apesar das grandes discussões quanto à noção de sustentabilidade, tanto no interior da
agroecologia como entre os estudiosos da área, acredita-se que um elemento fundamental
deste conceito que pode ser utilizado como importante conector das três concepções de
agroecologia: a diversidade. Como foi discutido anteriormente, as “três agroecologias” possuem
diversos pontos de convergências entre si. No entanto, a costura entre elas deve ser realizada
através de um conceito que as perpasse e que, ao mesmo tempo, guarde especificidades em cada
uma delas. Encontrou-se esta característica no conceito de diversidade, ainda que em três
dimensões complementares.
A perspectiva de Gliessman remete à diversidade no interior dos agroecossistemas. A
diversidade é discutida principalmente como característica necessária a sustentabilidade do
agroecossistema. O agroecossistema biodiversificado viabiliza a sustentabilidade do sistema
através dos processos de interações ecológicas estabelecidos por plantas e animais, em suas
distribuições espaciais, funcionais e temporais (diversidade de espécies, diversidade genética,
diversidade funcional, diversidade temporal, e outras). Além disso, a diversidade dos sistemas é
apontada como contribuinte para seu potencial de renovabilidade. Assim, a agroecologia de
Gliessman tem como foco a diversidade ecológica do agroecossistema.
Na abordagem de Altieri, a diversidade alcança uma nova dimensão, relativa ao campo do
conhecimento. A agroecologia discutida pelo autor evidencia a importância da diversidade de
conhecimentos sobre técnicas agroecológicas de produção, com destaque àqueles adquiridos por
agricultores “tradicionais”. Através desta diversidade de saberes e fazeres, o autor considera
possível o desenvolvimento de tecnologias apropriadas às realidades locais e, portanto, a
construção de sistemas agroecológicos sustentáveis. Desse modo, a diversidade ocupa uma
posição de destaque também fora da perspectiva ecológica strictu sensu. Assim, a agroecologia
de Altieri soma à diversidade ecológica a diversidade de saberes e fazeres de povos distintos.
63
A abordagem de Sevilla Guzmán torna mais subjetiva a discussão. O autor evidencia que
a agroecologia, para que seja compreendida de forma ampla, deve transcender seus aspectos
técnicos e incluir a diversificação sócio-cultural existente em seu campo de ação. Ou seja, o
conceito de diversidade alcança uma dimensão referente à cultura e ao modo de organização
social peculiar às famílias camponesas. Considerando o conceito de coevolução, compreende as
particularidades locais na relação que se estabelece entre cada grupo social e seu ecossistema e,
portanto, concebe a existência de uma diversidade socioecológica no interior da agroecologia. A
agroecologia de Sevilla Guzmán soma à diversidade ecológica e à diversidade de saberes e
fazeres de povos distintos, tanto a diversidade de modos de organização social como a
diversidade de identidades relacionadas a cada grupo social específico.
Percebeu-se, portanto, que a sustentabilidade construída por uma agroecologia plena, deve
contemplar todas as dimensões da diversidade, oferecidas pela interdependência das três noções
agroecológicas discutidas neste trabalho. Ou seja, para a construção de uma agroecologia plena,
deve-se conciliar a proposta de Gliessman quanto aos processos agroecológicos, com a
contribuição de Altieri sobre o desenvolvimento de técnicas agronômicas sustentáveis, e as idéias
de Sevilla Guzmán acerca do fortalecimento das especificidades sócio-culturais e a perspectiva
endógena de ação.
Para que se efetive a construção de relações sustentáveis entre populações rurais e seu
ecossistema, a sustentabilidade deve permear todas as relações, desde relações ecológicas,
relações entre seres humanos e naturezas até as relações entre humanos, ou relações sócio-
culturais, de um agroecossistema. Desse modo, para atingir os objetivos desta pesquisa, é
pertinente questionar quais seriam os caminhos construídos em direção à agroecologia plena e
em que medida estes caminhos têm incorporado a dimensão feminina nos processos familiares de
produção.
O método de extensão rural convencional desenvolvido durante a disseminação dos
‘pacotes tecnológicos’ da revolução verde vem sendo questionado pelos(as) agroecólogos(as)
bastante tempo. Novas concepções de extensão rural foram formuladas a partir dos princípios
agroecológicos. Caporal e Costabeber (2004) definem a Extensão Rural Agroecológica
(...) como um processo de intervenção de caráter educativo e transformador,
baseado em metodologias de investigação-ação participante, que permitam o
desenvolvimento de uma prática social mediante a qual os sujeitos do processo
buscam a construção e sistematização de conhecimentos que os leve a incidir
64
conscientemente sobre a realidade, com o objeto de alcançar um modelo de
desenvolvimento socialmente eqüitativo e ambientalmente sustentável, adotando
os princípios teóricos da Agroecologia como critério para o desenvolvimento e
seleção das soluções mais adequadas e compatíveis com as condições
específicas de cada agroecossistema e do sistema cultural das pessoas implicadas
em seu manejo (CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 64).
Muitos avanços foram obtidos com relação à participação dos agricultores na elaboração
dos projetos baseados em princípios agroecológicos. No município de Joanópolis/SP, o projeto
desenvolvido pela equipe de professores e pesquisadores do NACE-PTECA da USP/ESALQ a
“Experimentação em agrossilvicultura e participação social: um estudo de caso em Joanópolis-
SP” – teve como metodologia a experimentação participativa:
A experimentação participativa procura estabelecer o diálogo entre técnicos e
agricultores para a escolha e experimentação prática de técnicas de manejo da
propriedade, levando em conta as necessidades, vontades e saberes da
agricultura familiar, bem como as responsabilidades e conhecimentos dos
técnicos envolvidos. (...) É através da experimentação prática que questões
técnicas são revistas e também é através desta que questões mais amplas sobre o
Desenvolvimento Rural Sustentável podem ser aprofundadas e discutidas
(GUYOT, 2009, p. 55).
Nesta experiência, foram desenvolvidos sistemas de produção e de recuperação de APP’s
segundo as expectativas e possibilidades das famílias agricultoras. Os técnicos cumpriram o papel
de estimular a reflexão com relação às questões socioambientais envolvidas no projeto e as
informações com relação às possibilidades técnicas e legais de intervenção. Verificou-se, através
deste projeto, a efetividade da ação participativa e da experimentação participativa nos aspectos
técnicos por parte de agricultores e pesquisadores.
Algumas iniciativas existem também no sentido de incorporar ou fortalecer aspectos
sócio-culturais nos projetos de agroecologia. Dentre eles, existem argumentos sobre a
necessidade da construção de sistemas de produção cuja orientação agroecológica estimule uma
transformação nas relações de gênero e (re)inclua o trabalho feminino nas relações de produção
familiares. Num campo ainda muito restrito e pouco desenvolvido, o agroecólogo que mais se
aproxima das discussões a este respeito é Joan Martinez Alier. Siliprandi (2009) reconhece que
Martinez Alier, em seu livro El ecologismo de los pobres (2004), dedica um capítulo às questões
de gênero e mostra a contribuição que as mulheres podem trazer às lutas ambientais. Segundo
esta autora, Martinez Alier reconhece que “as sociedades camponesas (...) são “lastimosamente
65
patriarcais”, e chama a atenção de todos aqueles que, como ele próprio, defendem uma posição
ecológica pró-camponesa, para que não olhem para o passado, e sim para um outro tipo de
agricultura camponesa que não tenha essas características” (SILIPRANDI, 2009, p. 117).
A reflexão de Martínez Alier sugire novas relações de gênero segundo um procedimento
muito peculiar à própria agroecologia, através da articulação entre as referências de
complementaridade de gênero do trabalho camponês (endógeno) e uma proposta inovadora não
patriarcal (exógeno). Em entrevista para Siliprandi, Sevilla Guzmán comentou sobre a
importância da participação das mulheres e reconheceu que “a universidade não dispunha de
pessoal especializado na discussão de gênero ou das mulheres, e embora esse tema nos
interessasse, e sempre aparecesse nas reuniões, não conseguimos desenvolvê-lo” (SILIPRANDI,
2009, p. 114-115). Sobre o envolvimento das mulheres brasileiras no movimento agroecológico,
a autora conclui que:
Os temas da alimentação e da saúde das pessoas e do ambiente (relacionadas
com as questões da preservação da biodiversidade e do ambiente limpo) se
destacam em seu discurso e em suas práticas como importantes na construção
desse modelo, em uma perspectiva de integração das pessoas com o meio-
ambiente; temas com os quais essas lideranças se sentem particularmente
comprometidas, em função da suas experiências pessoais como responsáveis
pelas tarefas do cuidado e da reprodução dentro das famílias. (...) Os
movimentos agroecológicos estão sentindo a presença dessas mulheres, e vêm,
ainda que de forma paulatina, incorporando algumas questões nas suas pautas
políticas e nas suas prioridades organizativas. Sua ação política dentro desses
movimentos tem produzido resultados palpáveis tais como o reconhecimento da
sua participação na construção das experiências de base, assim como a abertura
de alguns espaços nos níveis de direção das entidades. (...) tomamos essas
histórias de vida não como sendo “a norma” dentro do campo agroecológico.
Pelo contrário, em muitos aspectos, significam exatamente “a singularidade”.
Mas são exemplos de mudanças que estão ocorrendo, e é preciso reconhecê-las
(SILIPRANDI, 2009, p. 273-274).
Mesmo que ainda não esteja fortalecida, a relação entre o movimento agroecológico e o
movimento feminista está institucionalizada. O Movimento de Mulheres Camponesas MMC
(articuladas desde 1995 e nomeadas MMC a partir de 2003) tem como projeto de agricultura
camponesa a agroecologia. Assim como, desde o primeiro Encontro Nacional de Agroecologia,
no qual se formou a Articulação Nacional de Agroecologia - ANA, em 2002/Rio de Janeiro,
organizou-se um Grupo de Trabalho - GT sobre a questão de gênero que reivindicou maior
atenção às questões das mulheres. Desde 2004, quando aconteceu o seminário intitulado
66
Construindo um Diálogo entre Feminismo e Agroecologia”, o GT-Gênero foi instituído como
um GT permanente dentro da rede de agroecologia (SILIPRANDI, 2009).
Maria Emilia Lisboa Pacheco lembra que, desde os primeiros encontros entre
ONGs do campo agroecológico, entidades sindicais e movimentos sociais rurais,
ocorridos no final dos anos 1990, em que se discutiu a necessidade de criar-se
uma articulação nacional do campo agroecológico, os movimentos de mulheres
já estavam presentes, ainda que em franca minoria. Além de Maria Emília,
participaram dessas reuniões duas ou três mulheres, vindas de ONGs de
assessorias e do MMC, que apresentaram a proposta de que, nos encontros
seguintes, fossem feitos esforços para a mobilização de mais mulheres (entre
todas as entidades participantes) para buscar equilibrar a participação de gênero
nessas instâncias. Porém, os resultados foram pífios. A maioria das instituições
enviava representantes homens para as reuniões, mesmo quando se sabia que
havia mulheres que previamente haviam sido convidadas para participar (Maria
Emília, em entrevista concedida à autora em 2007) (SILIPRANDI, 2009, p. 152-
153).
Reconhecida como a primeira autora brasileira a referir-se especialmente à participação
das mulheres na agroecologia, Pacheco (1997)
21
discute sobre alguns programas e projetos
governamentais que, por não considerarem os espaços da casa (quintal e criação) como espaços
produtivos, romperam “com a unicidade de grupo de parentesco e de trabalho que caracteriza a
família camponesa” e, portanto, desenvolveram o que denominamos aqui de agroecologia
restrita. Baseando-se em experiências deste tipo, Pacheco considera que “o conceito de sistema
de produção é chave para avançarmos no debate que tem como centro a crítica ao modelo
agrícola dominante e se nutre da perspectiva da defesa de uma agricultura sustentável, baseada
nos princípios da agroecologia”. A autora utiliza este conceito como articulador das abordagens
que relacionam gênero’, ‘ecologia’ e ‘economia’, mas reconhece que até o momento “há muito
pouco investimento teórico e prático nesse sentido” (PACHECO, 1997, p. 6).
Discute, ainda, que um sistema produtivo que combine ‘quintais’ e ‘cultivos comerciais’
numa proposta de agricultura sustentável, valorizaria o trabalho das mulheres e contribuiria para
o resgate da biodiversidade. Partindo do princípio que os espaços femininos majoritariamente o
espaço denominado quintal são os mais biodiversificados do sítio, a autora acredita que a
incorporação destes espaços nos projetos em agroecologia poderia contribuir para a construção de
21
Além de Pacheco (1997), Siliprandi (2009) também é importante na discussão deste tema. Sua obra oferece
discussões importantes sobre o feminismo e a aproximação ao movimento ecológico, sobre a participação das
mulheres no movimento agroecológico brasileiro e a contribuição destes movimentos para a construção de uma vida
melhor.
67
uma agricultura sustentável. Um sistema que articule ‘quintais agroflorestais’ e ‘SAF’s
comerciais’, parece sugerir um caminho técnico à agroecologia ampla.
Uma análise que tenha como centro a complexidade e diversidade dos sistemas
de produção, combinando as abordagens econômica, de gênero e ecológica,
permite dar visibilidade a questões políticas de extrema relevância para a luta
por um novo modelo agrícola. Cito algumas delas: os usos sociais da
biodiversidade, a agrossilvicultura, a diversificação da produção e o significado
econômico e social do auto-consumo (PACHECO, 2007, p. 7).
Há, contudo, alguns questionamentos quanto à inevitabilidade de um ‘modelo de
desenvolvimento rural sustentável’ promover mudanças nas relações de gênero. Fiúza (2006)
busca “fugir das armadilhas de uma visão reducionista” que considere a dominação da mulher
como fruto do modelo produtivista e sua emancipação como consequência do modelo alternativo
de desenvolvimento. A autora utiliza conceitos de Bourdieu (1998) para argumentar sobre o
relativo distanciamento existente entre as relações sócio-culturais (simbólico) e as relações de
produção (material) nas relações humanas com o meio: “Essa autonomia relativa da ordem
simbólica se traduz (...) nas disposições adquiridas, ou seja, se traduz em hábitos e
comportamentos tradicionalmente aceitos, que são resistentes às transformações da vida
material” (FIÚZA, 2006, p. 302). Isto significa que a transformação do modelo agrícola, por si
só, não implica em inclusão das mulheres na dinâmica familiar de produção, e muito menos na
inclusão da dimensão feminina da organização camponesa. Poderíamos afirmar, a partir da
argumentação de Fiúza (2006), que a campesinidade possui autonomia relativa quanto às
transformações nos sistemas de produção. Sendo assim, compreende-se a necessidade de uma
mobilização específica quanto ao fortalecimento da campesinidade. Evidencia-se, portanto, a
necessidade da agroecologia e do desenvolvimento de sistemas agrícolas sustentáveis não
restringirem-se à dimensão técnica e econômica, mas também abrangerem a dimensão sócio-
cultural e de gênero.
68
69
3 A CAMPESINIDADE E A VALORIZAÇÃO DA PERSPECTIVA DO OUTRO
O objetivo deste capítulo é obter uma reflexão, de uma perspectiva de gênero, sobre o que
Woortmann (1990) denominou de campesinidade. A campesinidade é aqui compreendida como a
lógica sócio-cultural vivida por famílias camponesas e mantida, mesmo que contraditoriamente,
no quadro atual de “modernização” agrícola e de proletarização do trabalho rural. Sendo assim,
mais do que discutir qual o tipo de economia que organiza grupos sociais familiares atrelados à
produção agrícola, o estudo da campesinidade requer uma reflexão sobre os aspectos sócio-
culturais que orientam a organização da unidade familiar de produção.
Como foi discutida no capítulo anterior, a concepção de agroecologia plena que orienta
este trabalho parte do princípio de que a sustentabilidade deve ser construída a partir das
especificidades internas de organização de cada uma das comunidades, ou seja, deve ser
construída a partir do endógeno. Sendo assim, este capítulo pretende refletir sobre as
potencialidades do conceito de campesinidade contribuir à agroecologia na busca pelo endógeno.
Acredita-se que o reconhecimento da campesinidade como experiência histórica é um elemento
que fundamenta e abre possibilidade de relações humano-natureza diferenciadas daquelas
estabelecidas no modelo da agricultura moderna. Além disso, que esta pesquisa tem como
hipótese que a valorização dos espaços femininos pode favorecer a construção da
sustentabilidade, pretende-se compreender as dimensões masculinas e femininas da
campesinidade, suas especificidades e complementaridades.
Para tanto, pretende-se percorrer um caminho de reflexão teórica que parte de (1) uma
simplificada caracterização sobre as polêmicas existentes com relação ao conceito de
campesinato de onde surge o conceito campesinidade e a justificativa do posicionamento
adotado nesta pesquisa; (2) passando para uma reflexão sobre as principais características do
campesinato, no que se refere às peculiaridades econômicas, técnico-produtivas e sócio-culturais;
e, finalmente, (3) uma caracterização sobre a unidade familiar de produção, especialmente quanto
à construção do gênero masculino e feminino, seus espaços característicos e o trabalho da terra.
70
3.1 O campesinato e sua matriz sócio-cultural: a campesinidade
Os estudos a respeito do campesinato fundamentam-se, basicamente, na questão da
introdução do capitalismo no campo e o destino da forma de organização camponesa. A “antiga
tradição dos estudos camponeses”, como denominou Sevilla Guzmán (2005), está ancorada em
três distintas orientações teóricas: o narodnismo russo, o anarquismo agrário e o marxismo
ortodoxo
22
. As duas primeiras concepções prevêem a perpetuação do campesinato, enquanto a
última defende a tese do seu desaparecimento. Por conta desta diferença conceitual, alguns
autores, dividem estas três correntes teóricas em apenas duas vertentes:
O debate sobre o destino do campesinato inicia-se ao final do sáculo XIX e
ganha novo impulso nos anos 1960 e 1970, com participação ativa de Teodor
Shanin. Destacam-se duas correntes nesse debate. A primeira, formada sob a
influência dos populistas russos, que desenvolveram estudos detalhados sobre a
organização da produção camponesa, valorizava as qualidades do modo de vida
e da economia camponesa e defendia a importância de sua contribuição para a
construção de uma sociedade mais igualitária e mais justa. Dentre os seus
principais autores, destaca-se A. Chayanov. A segunda, cuja ênfase estava na
análise das mudanças desencadeadas pelo avanço das relações de mercado e dos
processos de modernização e industrialização relacionados ao desenvolvimento
do capitalismo no campo e suas inevitáveis consequências de desagrarização e
descampesinização, tinha em V. Lênin e K. Kautsky duas grandes referências
(MARQUES, 2008, p. 49).
22
O narodnismo russo foi um movimento cuja premissa básica era que o capitalismo não precisaria ser vivenciado
no campo para que o socialismo fosse alcançado. Além disso, os narodnikis acreditavam que o campesinato não
deveria ser desorganizado ou ‘modernizado’. Construíam-se enquanto práxis intelectual e política como movimento
de “ida ao povo”, para desenvolver com ele, em pé de igualdade, formas de cooperação solidária que permitissem a
construção de um progresso baseado na justiça e na moral. Sevilla identifica três etapas do narodnismo russo: a etapa
de fundação (teoria da marcha para trás); o narodnismo clássico (teoria das vantagens do atraso e sociologia
subjetiva); e a etapa revolucionária (a ida para o povo) (SEVILLA GUZMAN; GONZALES DE MOLINA, 2005).
Construído paralelamente ao narodnismo, o anarquismo agrário compartilhava sua premissa básica com esta corrente
teórica. Seus principais representantes foram M. Bakunin e P. A. Kropotkin. O núcleo da filosofia anarquista,
segundo Woodcock , é a visão naturalista da sociedade. No entanto, Sevilla compreende que Bakunin e Kropotkin
viam na Rússia “o atraso”, que não permitiria a “marcha para trás” teorizada pelos populistas, mas o avanço para a
revolução social. O anarquismo agrário “poderia se definir como uma teoria da revolução na qual o campesinato é
uma classe revolucionária em potencial” (SEVILLA GUZMAN; GONZALES DE MOLINA, 2005, p.35). Este
potencial revolucionário, segundo o autor, era percebido pelos anarquistas agrários (1) no “apoio mútuo” existente no
interior do campesinato, (2) na estrutura da organização econômica camponesa e (3) na rebeldia contra os
exploradores do trabalho
.
O marxismo ortodoxo foi uma vertente do pensamento marxista, com atual expressão, cuja
interpretação das obras de Marx (O Capital), no interior das reflexões agrárias, remete aos pressupostos do
desaparecimento do camponês no processo de transição ao socialismo. Esta corrente teórica fundamentou a
concepção de Lênin e Kautsky a respeito das transformações que se produzem na agricultura durante o
desenvolvimento do capitalismo.
71
Desde o final do século XIX até a atualidade, este conflito com relação ao destino do
campesinato ainda não foi completamente superado. No entanto, ainda que o conflito permaneça,
alguns autores como Sevilla Guzmán, Gonzáles de Molina e outros, consideram que atualmente
uma aceitação geral sobre a permanência e necessidade de conservação da “velha identidade”
do campesinato. Na nova tradição dos estudos camponeses uma reflexão, baseada nos
“manuscritos” do próprio Marx, sobre a possibilidade de articulação entre vários modos de
produção no interior da formação socioeconômica capitalista. Fruto desta reflexão existe um
reconhecimento da importância das populações não-ocidentais de maneira geral, e camponesas
especificamente, no processo de transformação social rumo a uma sociedade sustentável e
igualitária (SEVILLA GUZMAN; GONZALES DE MOLINA, 2005).
A partir da “constatação, cada dia mais evidente, de que o campesinato não havia
desaparecido” (SEVILLA GUZMAN; GONZALES DE MOLINA, 2005, p. 78), persiste, desde
1970, outro debate sobre a conceituação deste grupo social. A polêmica gira em torno da
constituição do campesinato enquanto classe social, em si ou para si, ou ainda enquanto subclasse
e/ou frações de classes. Não detalharemos esta questão devido à sua impertinência no interior da
agroecologia. Ou seja, o foco das reflexões sobre o campesinato na agroecologia não está na
categorização do conceito, mas na observação das identidades sócio-culturais camponesas,
reconhecidas através do que alguns autores denominaram campesinidade.
Para nós, a questão camponesa baseada nesses termos é um falso debate; já que,
(...), desde uma perspectiva agroecológica que é a que utilizamos aqui, o
campesinato é, mais que uma categoria histórica ou sujeito social, uma forma de
manejar os recursos naturais vinculadas aos agroecossistemas locais e
específicos de cada zona, utilizando um conhecimento sobre tal entorno
condicionado pelo vel tecnológico de cada momento histórico e o grau de
apropriação de tal tecnologia, gerando-se assim distintos graus de
“camponesidade” (no original: grados de campesinidad) (SEVILLA GUZMAN;
GONZALES DE MOLINA, 2005, p. 78).
Além das polêmicas internacionais quanto ao destino e à conceituação do campesinato,
uma importante discussão a respeito da pertinência do uso deste conceito na realidade brasileira.
Em contraposição à denominação “agricultura familiar”, alguns autores reconhecem a
importância teórica e política da denominação “campesinato” no Brasil, dentre eles: Shanin
(1979, 1980); Martins (1990); Oliveira (1999); Moura (1986). Seguindo a concepção teórica
adotada por Woortmann, permitiu-se utilizar o termo campesinato e campesinidade, assim como
72
também será utilizada a expressão “agricultura familiar”, sem prejuízo do significado teórico
concebido nesta dissertação.
Essas novas palavras camponês e latifundiário são palavras políticas, que
procuram expressar a unidade das respectivas situações de classe e, sobretudo,
que procuram dar unidade às lutas dos camponeses. Não são, portanto, meras
palavras. Estão enraizadas numa concepção de História, das lutas políticas dos
confrontos entre as classes sociais (MARTINS, 1996, p. 23).
Antes de iniciar a reflexão sobre o campesinato e a campesinidade propriamente ditos,
deve-se ainda esclarecer a opção teórica adotada nesta pesquisa. Contrapondo-se às vertentes
teóricas que não encontram espaço para os camponeses na “modernidade”, adota-se a
interpretação de que o capitalismo, tal como se desenvolve no Brasil, é um sistema composto
tanto por relações capitalistas quanto por relações não-capitalistas de produção
23
. Compreende-se
o campesinato, portanto, como parte integrante do dinamismo do capitalismo
24
. Esta condição faz
com que a agricultura familiar viva uma tensão fundamentada em dois processos contraditórios:
(1) a desconstrução das relações produtivas peculiares ao campesinato e a substituição destas por
relações de produção capitalistas e (2) a apropriação da condição familiar de produção por parte
do capitalismo. Elementos específicos à organização familiar de produção como a
autoexploração e a não contabilização da força de trabalho e da produção feminina oferecem
possibilidades de produção de capital ao sistema hegemônico.
O estudo da agricultura brasileira deve ser feito levando-se em conta que o
processo de desenvolvimento do modo capitalista de produção no território
brasileiro é contraditório e combinado. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo que
esse desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente capitalistas
(implantando o trabalho assalariado pela presença no campo do bóia-fria), ele (o
capitalismo) produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas
de produção (pela presença e aumento de trabalho familiar no campo). Entre os
mais importantes pensadores dessa corrente estão Rosa Luxemburgo, Teodor
Shanin, Samir Amin e Kostas Vergopoulos e, no Brasil, José de Souza Martins,
Margarida Maria Moura, José Vicente Tavares da Silva etc. (OLIVEIRA, 1999,
p. 73).
23
Segundo Oliveira (1999, p. 70-73) o estudo da agricultura brasileira no pensamento marxista tem sido feito por
diferentes vertentes: (1) uma delas defende que no Brasil houve feudalismo, ou mesmo relações semifeudais de
produção, e que para que o campo se desenvolva seria preciso acabar com essas relações feudais ou semifeudais e
ampliar o trabalho assalariado no campo; (2) outra vertente entende que o campo brasileiro está se desenvolvendo
do ponto de vista capitalista; e (3) uma terceira vertente, adotada pelo autor, compreende que o estudo da agricultura
brasileira deve ser feito levando-se em conta que o processo de desenvolvimento do capitalismo no território
brasileiro é contraditório e combinado, ou seja, é composto por mais de um modo de produção.
24
É importante ressaltar a existência anterior e independente do campesinato às relações capitalistas.
73
Além desta contradição, será observado no decorrer deste trabalho, que o campesinato
brasileiro vive outra situação dúbia: a contraposição entre (1) o sistema de produção e o
arcabouço ideológico imposto pelo paradigma desenvolvimentista da revolução verde e (2) suas
especificidades sócio-culturais (campesinidade) e conhecimentos empíricos transmitidos de
geração a geração.
A organização do sistema camponês é aqui abordada, por um esforço de análise, em três
diferentes perspectivas: a econômica, a técnica, e a cultural. No entanto, é importante
compreender que na prática, ou seja, na realidade camponesa, estes aspectos tratados em
separado necessariamente não se dissociam. A organização não-ocidental de maneira geral não
compartimenta o sistema de produção e reprodução; os aspectos econômicos, filosóficos,
religiosos, ecológicos, políticos, etc.
Parte-se da premissa chayanoviana de que a economia camponesa não se constitui numa
típica economia capitalista de produção. A ausência do assalariamento como forma principal de
trabalho, a circulação simples de mercadoria, a assimilação de valores de uso/estímulo produtivo
condizente com as necessidades, e a não contabilização da sua força de trabalho no processo
produtivo (fórmula camponesa fluida) são algumas características da economia camponesa que a
diferencia da economia capitalista de produção.
Como uma economia não-capitalista, a unidade econômica camponesa deve ser
compreendida a partir da composição do núcleo familiar residente no sítio. A família nuclear
(pai, mãe e filhos) é a principal força de trabalho no processo produtivo, assim como suas
necessidades compõem o estímulo a esse processo. Isto significa que a força de trabalho na
economia camponesa depende do número de trabalhadores e número de consumidores existentes
na família. Ou seja, as variáveis básicas da fórmula camponesa de produção (nº trabalhadores e nº
consumidores) são fluidas, transformam-se com o passar do tempo: num modelo “ideal” inicia-se
a vida familiar com dois trabalhadores e consumidores (pai e mãe); num segundo momento, após
o nascimento dos filhos, um aumento no número de consumidores que se tornarão
trabalhadores gradativamente conforme atinjam certa idade; finalmente os filhos se casam e saem
do sítio, reiniciando o ciclo.
A produção camponesa, baseada nas necessidades socialmente construídas pela família,
compreende a produção para o próprio consumo e a produção para o mercado. Esta última tem
como objetivo a obtenção daquilo que não é produzido no sitio, mas faz-se necessário. É, contudo
74
necessário esclarecer a diferença entre a troca de mercadorias camponesa (M-D-M) e o mercado
capitalista (D-M-D’)
25
.
Além da obtenção de mercadorias não produzidas no sitio, o mercado
(lugar de mercado) para o camponês é um espaço público importante. Na primeira situação
predomina o valor de uso e a reprodução sócio-cultural, na segunda predomina o valor de troca.
O lugar de mercado espaço onde este ocorre é parte vital da existência
camponesa. Aqui o camponês adquire mercadorias do outro cultivador, recebe
informações sobre a vida pública e privada da comunidade a que pertence e de
outras mais longínquas. Podem ocorrer trocas mercantis simples, realizadas
entre camponeses, que mutuamente lhes possibilitam novas aquisições. Mas
neste mesmo lugar ocorrem também complexas trocas mercantis, que
transcendem o universo imediato da sobrevivência camponesa, geram lucros
comerciais para intermediários e terminam colocando o produto, a preços
elevados, nas mãos de consumidores distantes. (...) O mercado, no sentido
moderno da palavra, não coloca, face a face, dominantes e dominados,
produtores e consumidores (MOURA, 1986, p. 11).
Devido à peculiaridade da força de trabalho da unidade produtiva ser a própria família,
que produz e reproduz suas condições de vida de acordo com suas necessidades, a circulação de
capital na economia camponesa típica acontece de forma diferenciada da circulação na economia
capitalista, acumuladora de capital, ou produtora de lucros. Na primeira, o capital não utilizado
para renovação da produção não gera lucros, mas é usado para satisfazer as necessidades da
família, ou seja, reproduzir a força de trabalho.
Na analise da natureza da unidade domestica de exploração, podemos
estabelecer facilmente que seu característico esquema de circulação de capital é
algo diferente, pois, além do capital, a família aporta sua própria força de
trabalho à produção. Vemos neste esquema que a força de trabalho e o capital
aportado pela família camponesa combinam os fatores (força de trabalho, terra,
equipamentos, etc.). Como resultado do processo de produção estes produzem
ingresso bruto. Parte deste ingresso bruto destina-se à recuperação do capital
adiantado a seu nível original, e parte para aumentar a reprodução se a família
está ampliando sua atividade econômica. Todo o resto fica disponível para
satisfazer as necessidades normais da família, ou, dito de outro modo, para
reproduzir a força de trabalho (CHAYANOV, 1974, p. 231-232).
Isto significa que, na economia camponesa, a recuperação do capital necessário para a
manutenção do volume de produção será determinado, não pelas necessidades técnico-
25
A fórmula D-M-D’, onde D=dinheiro, M=mercadoria e D’= o dinheiro original mais um incremento, pertence a
MARX, K. O Capital. Rio Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. v. 1.
75
produtivas, mas segundo a satisfação das necessidades pessoais da família. Será “investido” o
capital que sobrar depois de garantida a reprodução familiar.
Um elemento relevante dessa organização econômica, em que o “explorador” e o
“explorado” encontram-se na mesma pessoa, é o grau de autoexploração. Foi definido por
Chayanov para determinar o esforço realizado pelo agricultor para produzir as condições de
satisfação das necessidades da família. Este elemento varia em grau conforme o número de
consumidores da família, quanto maior o mero de consumidores maior será o grau de
autoexploração do camponês, tendo como limite máximo a exaustão.
A medida da autoexploração depende em maior grado do peso que exercem
sobre o trabalhador as necessidades de consumo de sua família. A influência das
necessidades de consumo se exerce neste caso com tanta força que em uma serie
de zonas o trabalhador, sobre a pressão de crescentes necessidades de consumo,
desenvolve sua produção em estrita concordância com o número crescente de
consumidores. O volume da atividade da família depende totalmente do número
de consumidores e de nenhuma maneira do número de trabalhadores
(CHAYANOV, 1974, p. 81).
É importante ressaltar que, quando se discute a organização da unidade econômica
camponesa não é correto referir-se apenas à atividade essencialmente agrícola. Por volume de
atividades econômicas devemos entender, segundo Chayanov, tanto a agricultura como a
totalidade de atividades artesanais e comerciais. Para o autor, o desenvolvimento de atividades
artesanais e comerciais varia fundamentalmente de acordo com a sazonalidade da produção
agrícola (trabalho estival) e a situação de mercado. Na realidade brasileira, cuja apropriação da
terra acontece de forma privada, a quantidade de terra seria também um importante elemento.
Esta característica da diversificação do trabalho camponês tem sido apontada como elemento de
diferenciação entre o campesinato do passado e o campesinato da atualidade, chamada de
diversificação vertical.
A agricultura não é uma ocupação, é uma combinação de tarefas e, nesse
sentido, difere da maioria das ocupações do tipo industrial, nas quais o indivíduo
é treinado para desempenhar uma tarefa específica. Já o camponês executa
diferentes tarefas: ele é agricultor, carpinteiro, cuteleiro, etc. Isso explica por que
o campesinato tem uma socialização em bases familiares, que as diferentes
tarefas são ensinadas quase sempre pelos pais. Assim, o menino aprende com o
pai, a menina aprende com a mãe. Já o aprendizado em escolas técnicas é
profissionalizante e oferece treinamento especializado em um determinado tipo
de tarefa. Segundo Chayanov, a diversificação vertical residia justamente no fato
de o campesinato estar enfrentando a divisão e a especialização das tarefas, ou
76
seja, em vez de ser também carpinteiro, o camponês procura agora os serviços
de um profissional; em vez de ele próprio confeccionar sua roupa, ele a adquire
pronta. Dessa forma, as tarefas desempenhadas pelos camponeses estão cada vez
mais concentradas apenas na agricultura (SHANIN, s.d., p. 5)
26
.
A diversificação das tarefas tradicionalmente realizadas pelos camponeses pode ser
observada tanto no total de atividades por ele realizada como no próprio interior da atividade
agrícola. As técnicas de produção agrícola que poderíamos chamar de tradicionais, aquelas
transmitidas de uma geração para outra, incluem o fator diversificação.
Num primeiro momento verifica-se que as unidades agrícolas que possuem menores
entradas monetárias (relações com o mercado) são aquelas cuja produção agrícola é mais
complexa. Na unidade de exploração não-monetária, a atividade agrícola relaciona-se a uma série
de necessidades de consumo variadas, tendo maior diversificação, ou, nos termos de Chayanov,
maior matriz qualitativa.
As labutas da unidade de exploração adquirem um caráter totalmente distinto
enquanto esta ingressa à esfera de circulação de dinheiro e mercadorias. A
atividade econômica perde sua matriz qualitativa. Agora as demandas podem
satisfazer-se por meio de compras; o interesse pela “quantidade” obtenção da
maior quantidade que, ao ser intercambiada pode tomar qualquer outra forma
“qualitativa” necessária para cobrir as necessidades familiares passa agora à
frente. Ao ser desenvolvida a sua natureza monetária, a “quantidade” obtida vai
se livrando cada vez mais da “qualidade” e começa a adquirir o caráter abstrato
de “valor” (CHAYANOV, 1974, p. 140).
O consorciamento e a rotação dos cultivos são planejados de forma que restitua a
fertilidade do solo e esteja adequada à disponibilidade de trabalho da família. E. Woortmann e K.
Woortmann (1997) observaram, sobre os camponeses nordestinos, duas formas distintas de
cultivos possíveis de serem adotadas: o chão de roça e a malhada. O primeiro trata-se de um
modelo antigo, de roça extensiva, em que e terra passa por um “descanso” periódico; o próximo e
mais “inovador”, trata-se de roça intensiva, sem “descanso” para a terra, cuja estabilidade
depende de técnicas de cultivo que fortaleçam constantemente o solo.
A escolha da terra, do cultivo e do método de plantio é feita considerando suas condições
de existência, a “força” da terra e as exigências das plantas. O solo não será “corrigido” ou as
26
SHANIN, T. Chayanov e a questão do campesinato. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. s.d. Transcrição de Leny Belon Ribeiro e Marcos A. G. Domingues. Texto obtido em
disciplina, Departamento de Geografia Agrária, USP.
77
sementes “melhoradas”. Tradicionalmente, o camponês aprendeu a trabalhar com a terra, sem a
pretensão de dominá-la ou manipulá-la. A terra precisa de “descanso”, assim como ele. Ela tem
suas características próprias e o camponês deverá conhecê-las. As crianças aprendem a conhecer
e conviver com a terra desde cedo, preparando seus pequenos roçados, junto à e e próximos à
casa. Aprendem desde então a lógica do consorciamento, quais plantas devem ser cultivadas
juntas, o tempo de cada uma delas, as variedades fortes e fracas, e assim por diante. A
diversificação pertence à realidade camponesa, cada espaço cumpre diferentes funções e todos
eles servem à demanda do coração do sítio, a casa.
A lógica de consorciamento observada por E. Woortmann e K. Woortmann implica em
um cálculo de espaço e tempo, orientado pela exigência de ventilação entre as plantas. As plantas
“quentes” não deverão ser plantadas juntas, pois são plantas que exigem ventilação. São plantas
que possuem: forma fechada
27
e necessidade de maior pluviosidade (capim, algodão e inhame)
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 112-113). No entanto, conforme o período de
duração elas poderão ser plantadas juntas. plantas quentes de curto tempo de duração
(representadas por: PQCD), plantas quentes de longo tempo de duração (representadas por:
PQLD), ou ainda plantas frias durante um período e quentes em outro longo período de duração
(representadas por: PF-QLD), etc. O arranjo espacial da roça irá variar conforme as
características da planta num dado momento do processo produtivo:
O milho deve ser intercalado com produtos frios pelas razões já vistas
28
e porque
“ele põe sombra nas plantas [vizinhas] e tira a vitamina [do solo]”. Colhido o
feijão-de-arranca, a alternância quente-frio na carreira desaparece e permanece
apenas uma carreira de plantas PF-QLD, intercalada com plantas PQLD. O
tempo de retirada do milho coincide com a transformão do algodão de frio
para quente. O esquema seguinte esclarece esse sistema: M A F A F A M
(abril/maio); M A A A M (junho/julho); (outubro/novembro); M =
milho, A = algodão, Aº = Algodão em flor, F = Feijão (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997, p. 114).
O “descanso” da terra, anteriormente mencionado, está relacionado ao que se denomina
cientificamente de ciclo biogeoquímico do solo. A recomposição da fertilidade do solo acontece
durante o período de “descanso”, devido à deposição de material orgânico oriundo da capoeira ou
floresta. As raízes dos arbustos ou árvores proporcionam uma inversão do nutriente do solo,
disponibilizando-os na porção superficial. A atividade biológica dos microorganismos do solo
27
Plantas com densa presença de folhas (feijão), touceiras (capim) e expansão das ramas (algodão e inhame).
28
O milho é uma planta quente.
78
disponibiliza a “força” da terra para o próximo ciclo de cultivo. Descansada, a terra volta a
trabalhar na produção de alimentos.
É interessante notar e isso fica especialmente evidente durante a análise das técnicas de
produção camponesa a constante humanização da natureza e naturalização do ser humano.
Assim como não ficam claros os limites entre natureza e cultura, não existem separações no que
se refere à economia, religião, técnicas e/ou ciência e filosofia. Isto significa, em última instância,
que na organização camponesa a infraestrutura possui correspondência com a superestrutura, ou
seja, que o processo de transformação da natureza acontece em concordância a concepções
culturais que organizam sua visão de mundo. Essas concepções orientam as relações produtivas
estabelecidas. Em O trabalho da terra, E. Woortmann e K. Woortmann (1997) realizam um
trabalho etnográfico demonstrando esta inter-relação entre os elementos de produção e
reprodução da unidade camponesa.
Queremos de outro lado mostrar que, ao trabalhar a terra, o camponês realiza
outro trabalho: o da ideologia, que, juntamente com a produção de alimentos,
produz categorias sociais, pois o processo de trabalho, além de ser um
encadeamento de ações técnicas, é também um encadeamento de ações
simbólicas, ou seja, um processo ritual. Além de produzir cultivos, o trabalho
produz cultura (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 15).
Os autores sugerem que a discussão teórica realizada no interior do marxismo
antropológico a respeito das sociedades não-ocidentais, cabe ao estudo da organização
camponesa. Godelier, pensador desta escola antropológica, defende a tese de que uma instância
superestrutural torna-se dominante sobre uma organização socioeconômica, quando assume a
função de relações de produção.
O parentesco domina a organização social quando não regula apenas as relações
de descendência e aliança que existem entre os grupos e os indivíduos, mas
também regula seus direitos respectivos sobre os meios de produção e os
produtos do trabalho, define as relações de autoridade e obediência, dominando
as relações políticas no interior dos grupos (ou entre eles) e, eventualmente,
serve de código, de linguagem simbólica para exprimir as relações do homem
entre si e com a natureza. Esse não é o caso dos caçadores-coletores Mbuti do
Congo, onde as relações entre gerações sobrepõem-se às relações de parentesco.
Não é igualmente o caso dos incas, entre os quais a instância político-religiosa
funciona como relação de produção, posto que, de bom ou mal grado as tribos
índias consagram parte de sua força de trabalho a entreter os deuses, os mortos e
membros da classe dominante, personificados pelo inca Schinti, o filho do sol.
(...) São as relações de produção as responsáveis pela dominância de
79
determinada instância. Têm, portanto, eficácia determinante geral sobre
organização da sociedade, uma vez que determinam a dominância e através da
dominância a organização geral da sociedade (GODELIER, 1978, p. 49-50).
No caso da organização camponesa, a unidade familiar, orientada por relações de
hierarquia e gênero, é identificada pelos Woortmann como a instância superestrutural que assume
a função de relações de produção. Devido a esta peculiaridade da organização camponesa, os
elementos sócio-culturais nessas realidades ganham uma dimensão importante.
A noção de relações de produção refere-se às funções preenchidas por
indivíduos e grupos no processo de produção e no controle dos fatores e meios
de produção. Embora essa noção esteja geralmente vinculada à idéia de classes
sociais, podemos dar-lhe um outro sentido, voltado para as relações que se
estabelecem no interior do grupo social específico que realiza a produção; no
caso do trabalho camponês, a unidade familiar. Essas relações são de hierarquia
e de gênero (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 10).
Afastando-se da discussão sobre o campesinato baseada no determinismo econômico,
alguns autores dedicam-se, portanto, à compreensão desta ordem sócio-cultural camponesa. Num
processo de inclusão dos aspectos sócio-culturais, Shanin (1983) criou um modelo explicativo,
denominado mobilidade multidirecional e cíclica, sobre a estrutura social básica do campesinato
e as peculiaridades da economia camponesa. Em contraposição aos estudos que indicam a
polarização do campesinato (divisão entre camponeses ricos e camponeses pobres), o autor lança
mão de estudos dinâmicos, no qual busca as histórias individuais das unidades camponesas e as
mudanças ocorridas em sua estrutura interna durante um período de tempo. Nestes estudos, a
variável econômica é apenas um aspecto a ser considerado entre tantos outros. Desse modo,
comprova a existência de uma mobilidade multidirecional complexa, que inclui tendências
centrífugas e centrípetas, quanto à estrutura socioeconômica camponesa.
Às transmutações de unidades domésticas camponesas, que se traduzem na sua
aparição e desaparição dentro das comunidades camponesas, deu-se o nome de
“mudanças substantivas”. Este termo compreende os processos de repartição,
fusão, extinção e migração das unidades domésticas. Estes processos descobrem
a intimidade dos laços que conectam os destinos da família camponesa,
estruturada de forma tradicional, e da exploração. À partição, produz-se como
resultado a aparição de novas unidades. Extinção e fusão conduzem a sua
desaparição. Com a emigração, uma unidade doméstica camponesa desaparece
de uma comunidade para reaparecer (como imigração) em outro lugar distinto. O
termo compreensivo “mudanças substantivas” engloba, por tanto, processos
sociais de tipos amplamente diferentes, mas que possuem uma característica em
80
comum: seu impacto diferencial se refletido na forma de tendências
niveladoras sobre as sociedades camponesas. (...) As “mudanças substantivas”
estavam estritamente relacionadas com um número de características básicas da
vida e estrutura social da economia camponesa. O que necessita ser colocado em
destaque é o amplo contexto social em que este processo teve lugar, do qual as
determinantes econômicas representavam um dos seus aspectos (SHANIN,
1983, p. 120-122).
A limitação de recursos (terra, trabalho e equipamentos) em uma economia de pequena
exploração, coloca a família camponesa em situação de constantes riscos. As flutuações dos
fenômenos naturais, as relações de mercado e interferências do Estado, assim como o
imponderável, são elementos levados em consideração nos estudos do autor:
A unidade doméstica camponesa funciona como uma pequena unidade de
produção de recursos muito limitados, estando sujeita em grande medida às
poderosas forças da natureza, do mercado e do Estado. (...) Cada unidade
doméstica estava fortemente influenciada por fatores individuais de tipo
conjuntural que modelavam sua história e a estrutura atual da família. A posição
relativa dependia de diferenças econômicas realmente pequenas, pelo que o
acaso podia jogar um papel desproporcional. Um contrato afortunado, um filho
bom trabalhador, uma união proveitosa, ou, pelo contrario, a doença ou morte de
um membro trabalhador, um incêndio, a morte de um cavalo, a obrigação do
dote, ou inclusive um desentendimento familiar culminando na divisão da
unidade doméstica podiam conduzir a uma mudança completa na sua posição
socioeconômica. Os camponeses eram perfeitamente conscientes da influência
que os elementos do acaso tinham sobre suas vidas (SHANIN, 1983, p. 161-
164).
O reconhecimento sobre a integração existente entre a dimensão econômica e a dimensão
simbólica no modo de vida camponês inspira estudos socioantropológicos. Nesta perspectiva, os
aspectos culturais são profundamente analisados
29
e a economia passa a ser discutida como
oeconomia, como oikos, ou ainda como etnoecossistemas, como prefere Sevilla Guzmán (2000).
Mais do que na organização econômica, esta concepção busca a unidade camponesa na forma de
relacionar-se com o mundo. A organização camponesa quando é vista integralmente pode ser
compreendida como um tipo de sociedade, ou ainda como a ética que rege algumas relações
socioecológicas. É nesse sentido que Woortmann (1990) formula o conceito de campesinidade.
Na perspectiva que adoto, a família, que é um dos pontos centrais deste artigo,
não é vista chayanovianamente como um pool de força de trabalho, variável ao
29
Woortmann (1990), Woortmann; Woortmann (1997), Gonçalves (2000), Brandão (1995), Moura (1986) são
alguns exemplos importantes a serem citados.
81
longo do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, mas como um valor, o
valor-família, permanente no tempo. (...) O que interessa aqui é menos a teoria
de um tipo de economia do que a de um tipo de sociedade. Trata-se, por outro
lado, da construção de um tipo, apreendido através das conexões de sentido que
são significativas para os sujeitos, e nem todos os “pequenos produtores” são
camponeses ou partilham igualmente da ética que procuro examinar no decorrer
deste artigo. Prefiro então falar não de camponeses, mas de campesinidade,
entendida como uma qualidade presente em maior ou menor grau em distintos
grupos específicos (WOORTMANN, 1990, p. 12-13).
A campesinidade é interpretada neste trabalho como os aspectos sócio-culturais referentes
à organização tipicamente camponesa. A partir desta interpretação, é importante destacar que não
há, nas discussões que se seguem, a concepção do fortalecimento da campesinidade como um
retorno às condições de existência do passado, mas como um movimento necessário à atualização
do sistema de produção e reprodução da agricultura familiar, que aconteça a partir de suas
próprias especificidades sócio-culturais e identificação com o ecossistema local.
Como veremos, a campesinidade pode ser expressa no processo de trabalho, que constrói
espaços agrícolas e, em sua dimensão simbólica, espaços sociais e de gênero. Este conceito
constrói-se no conjunto de relações estabelecidas pelos camponeses, do ponto de vista subjetivo.
Tais relações podem ser divididas em dois grandes campos inter-relacionados: as relações entre
as pessoas e as relações das pessoas com a natureza. No primeiro campo de análise, podemos
destacar alguns elementos como: reciprocidade, autonomia e a moral propriamente dita. Na
relação com a natureza, além dos aspectos tecnicoagronômicos discutidos, ainda podemos
refletir sobre a noção trabalho, de relações de igualdade com a “natureza” e da religiosidade.
O trabalho é reconhecido pelos camponeses numa dimensão maior do que sua conotação
objetiva. Ele possui dimensões simbólicas que extrapolam a construção de produtos ou
mercadorias e constroem espaços sociais. O trabalho torna-se um valor não no sentido
econômico, mas cultural. Numa relação de convivência com a natureza, o camponês, trabalhador,
estabelece novas relações sociais.
O processo de trabalho faz-se, de um lado, a partir de uma idealização da
natureza. Em outros termos, não existe uma natureza em si, mas uma natureza
cognitiva e simbolicamente apreendida. De outro lado, ele se faz no interior de
um processo de relações sociais que transforma a natureza. Para entendermos a
construção do roçado, precisamos conhecer tanto o modelo cultural quanto o
processo histórico da sociedade, pois não existe uma natureza independente dos
homens: ao longo do tempo a natureza é transformada, inclusive pelo próprio
82
processo de trabalho. Transforma-se também o acesso a ela e são recriadas
categorias sociais específicas (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 10).
É interessante notar que o distanciamento existente entre humano e natureza na
organização ocidental o se concretiza no caso camponês. Os ciclos naturais “contribuempara
o processo produtivo e a alimentação da família, assim como a vida destas famílias pertencem à
dinâmica etnoecossistêmica local
30
.
Do ponto de vista destes agricultores, a noção de mato se opõe à de lavoura. Em
termos ideais, o mato deve ser transformado em roça ou lavoura que é o
trabalho concretizado na roça que atribui valor à terra. Através dessa lente, a
capoeira é enxergada como um mato que está a serviço da lavoura. Essa imagem
contrasta radicalmente com a dos turistas e a dos organismos de proteção
ambiental, para os quais a agricultura é vista como uma agressão ao meio
ambiente, sobretudo pelo fato de “queimar a mata”. Identificou-se aqui a disputa
por significados distintos atribuídos a um mesmo espaço, significados estes que
atribuem valores simbólicos conflitantes ao mesmo conjunto de referenciais
empíricos (CARNEIRO, 2003, p. 98).
Não existe, portanto, uma “natureza” independente e carente de proteção. O mato, a terra,
a chuva e o sol são elementos sagrados que estão ao lado do agricultor no processo de produção
de alimento. O camponês trabalha com a “natureza” e por isso dá a ela descanso e agradecimento,
ou ainda pede a Deus que lhe perdoe de sua maldade e lhe mande chuva. Evidencia-se, portanto a
intermediação divina na relação entre humano e natureza. A religiosidade está na ação cotidiana,
na relação com o mundo material e imaterial.
Estava-se, na época daquela pesquisa de campo, em plena seca (1981-1983) e
aquele sitiante partilhava da crença comum de que a seca era o castigo de Deus
imposto na terra como punição pela maldade dos homens, sendo necessário
realizar ritos de purificação. Estava-se, creio, numa situação pré-milenarista
31
. O
que para nós é um fenômeno meteorológico, explicável no plano da ordem
natural, para ele era uma realidade metafísica explicável no plano da ordem
moral, pela maldade intrínseca do homem, nos termos da “cultura bíblica” de
que fala Velho (1986), que informa tanto os milenarismos nordestinos quanto o
anti-milenarismo dos também nordestinos na frente de expansão. Por outro lado,
esse sitiante concebia a terra como propriedade de Deus, tornando-se o homem
seu dono legítimo apenas através do trabalho. Essa terra de trabalho (Garcia Jr.,
1983), que é também, a morada da vida (Heredia, 1979), estava sendo
30
Nota-se que os resíduos de uma família camponesa são incorporados no etnoecossistema. A não
impermeabilização do solo e a produção auto-suficiente, não produtora de embalagens, possibilitam o pertencimento
dessas famílias ao metabolismo do ecossistema local (FOSTER, 2005).
31
Nota do autor: “Deve-se notar que não era só a seca que ameaçava os lavradores. O processo geral de pecuarização
da região levava ao fim da terra de trabalho. A ambição tornava cada vez menos possível o trabalho.
83
submetida à Lei do Cão, enquanto propriedade mercantil, lugar do gado e do
cativeiro dos homens. Por obra do Demônio, passava-se da ordem moral para a
da mercadoria. Situação análoga à do Maranhão, onde o Coco de Deus (babaçu)
estava sendo roubado pela Besta-fera, através de sua transformação em
mercadoria monopolizada pela propriedade privada (WOORTMANN, 1990, p.
18).
O capitalismo, na moralidade camponesa, é a Besta-fera, que rouba a autonomia do
sitiante, coloca em dúvida sua honestidade e opõe-se à reciprocidade. O “mal” encontra-se
naquilo que fere a ordem camponesa, coloca em risco a dinâmica de vida tradicional. O “bem”
possibilita a reprodução da unidade familiar. Quando um elemento do capital torna-se necessário
para a reprodução da família e manutenção da organização camponesa como, por exemplo, o
negócio sua “maldade” é relativizada. Essa moralidade é colocada através da religião,
respeitando-se a hierarquia no interior da família.
Dono é também uma categoria moral entre os sitiantes de Sergipe, opondo-se à
de proprietário. Enquanto esta última remete a uma ordem econômica, onde a
terra é mercadoria, e a uma lógica jurídica coerente com tal ordem, a primeira
remete a uma ordem moral, onde a terra é patrimônio e transmitida como tal, de
geração a geração, segundo padrões camponeses de herança que variam de lugar
para lugar, mas sempre espelham essa ordem moral (WOORTMANN, 1990, p.
28).
O capital é geralmente responsabilizado por roubar a autonomia do sitiante. O valor
autonomia, que implica no controle do tempo, das técnicas e nas decisões em geral por parte do
trabalhador, é um dos motivos da diferenciação existente entre o assalariar-se às vezes (ser
jornaleiro ou “trabalhadorzinho”) ou “viver do alugado”. No primeiro caso, o trabalho é
considerado como ajuda, não se rompe com a liberdade: “se quero vô” (WOORTMANN, 1999,
p. 24). Enquanto na situação seguinte, a dependência com relação ao assalariamento faz da
situação o cativeiro. “Quem vive do alugado tem uma temporalidade distinta daquela do ciclo
agrícola e, por isso mesmo, não é agricultor” (WOORTMANN, 1999, p. 43). A troca de trabalho
é uma forma de ajuda e a troca de tempo, com é dito por eles, é um símbolo de reciprocidade.
Sítio designa sempre um espaço de reciprocidade e o assalariamento, ainda que
representado como ajuda, nunca ocorre no interior de um mesmo Sítio (isto é,
comunidade, bairro, parentela), mas apenas entre Sítios distintos. Dentro do
Sítio, as necessidades de trabalho são satisfeitas através da troca de tempo, para
usarmos o termo local. Essa troca não é pensada como trabalho, mas como
ajuda entre iguais, e que será retribuída. É uma atividade descrita mais como
84
festa que como labuta; o que os informantes enfatizavam ao falar dessa troca era
seu aspecto ritual. No interior do Sítio, a troca de tempo, além de responder a
uma necessidade prática, está-se reproduzindo uma comunidade
(WOORTMANN, 1990, p. 32).
A comunidade se reproduz através de relações de reciprocidade. O compadrio, ou
apadrinhamento é um sacramento importante para o desenvolvimento tanto das relações de
reprodução como também das relações de produção camponesa. Uma unidade familiar com
excedente de meninos ou meninas pode desequilibrar a dinâmica produtiva do grupo doméstico.
Ilustra-se, assim, a não separação das esferas de organização social.
Através do compadrio podia-se manipular a composição de cada grupo
doméstico segundo códigos culturais definidos e coerentes com o modelo da
família. (...) Compadres são concebidos como irmãos rituais (e, com grande
freqüência, são “irmãos de sangue”). O padrinho, por outro lado, é “que nem
pai”, e essas construções legitimam a troca de crianças, tornando-se o(a) um(a)
filho(a). Através da cultura, consegue-se equilibrar o grupo doméstico, ao
mesmo tempo que se preserva o princípio da família (WOORTMANN, 1990, p.
32-33).
A produção e reprodução camponesa, portanto, está permeada por valores relacionados à
noção do trabalho, relações de igualdade com a “natureza”, religiosidade, moralidade, autonomia
e reciprocidade, que dão as especificidades ao modo de vida do camponês. Todos esses
elementos, contudo, articulam-se à gica principal de organização da unidade familiar, baseada
em relações de hierarquia e de gênero (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997).
Desse modo, a importância da unidade familiar e por conseqüência da articulação entre o
feminino e o masculino na unidade agrícola de produção torna-se aparente. Esta discussão teórica
evidencia a existência de peculiaridades na organização camponesa que justificam a atenção da
agroecologia a essas questões. Considerando os princípios de uma agroecologia plena,
poderíamos concluir que especificidades sócio-culturais na organização camponesa relevante
quanto à relação humano-natureza. Os elementos discutidos acima parecem significativos à
inversão do processo de degradação socioecológica da agricultura moderna e à construção de
uma realidade agrícola sustentável. Assim, no próximo item deste capítulo, aprofundaremos a
discussão sobre as unidades familiares de produção, de uma perspectiva de gênero.
85
3.2 Unidades familiares de produção
O termo unidade familiar de produção é bastante significativo para a compreensão da
lógica de organização camponesa. Realizando atividades produtivas algumas vezes semelhantes e
outras bastante distintas, homens e mulheres compõem uma unidade. Espaços femininos e
masculinos se complementam na dinâmica produtiva do sítio. Homens sem esposa e mulheres
sem marido são incompatibilidades sociais, uma lacuna que deverá ser preenchida pela ajuda da
família. Mãe e Pai são respectivamente mulheres e homens destinados a ensinar a seus filhos a
experiência adquirida na escola da vida. Os filhos, nesta unidade, cumprem o papel de ajudantes
e aprendizes.
Conforme foi mencionado anteriormente, a unidade familiar de produção está articulada
às relações de hierarquia e gênero. É importante tomar alguns cuidados na interpretação da
palavra hierarquia. A visão ocidentalizada leva a crer que hierarquia pressuponha subordinação.
Isto porque, no processo industrial capitalista a hierarquia de trabalho subordina o trabalhador ao
capital, assim como na reprodução social subordina-se a mulher ao homem. As relações
capitalistas estão fundamentadas em relações de subordinação. Diferentemente destas, o processo
de trabalho familiar faz-se baseado em relações hierárquicas e complementares. O pai é quem
comanda o processo produtivo e quem se responsabiliza pela transferência do conhecimento e da
herança, sem a menor pretensão de exploração do trabalho da família.
(...) o processo de trabalho camponês é consciente. O “pai-patrão” não é o
equivalente de um empresário moderno, por ser detentor do saber. Ele é o
detentor de um saber que o autoriza a governar o processo de trabalho, isto é, a
dirigir o trabalho da família. Esse saber é transmitido à “força de trabalho”, aos
filhos que, ao trabalhar, estão-se constituindo também em “conhecedores
plenos”. Ademais, entre os sitiantes, governar é um processo ideológico: filhos,
após certa idade, conhecem o processo de trabalho tanto quanto o pai, como o
fazem também as mulheres ou os eventuais assalariados (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997, p. 13).
O sítio compõe-se de espaços que determinam funções sociais, divididos em femininos e
masculinos. Se a produção para o mercado é governada pelo pai, a produção para auto-consumo é
governada pela e. O alimento que será produzido somente para a família, “pro gasto”, é
domínio materno. O produto da horta, do pomar, a pequena criação e os “remédios” são domínios
femininos. Os espaços de fora o mato, o roçado/lavoura, o comércio são masculinos. Os
86
espaços de dentro a casa e seus arredores são femininos (GARCIA JUNIOR, 1983;
HEREDIA, 1979; WOORTMANN; WOORTAMANN, 1997). Como família e trabalho são
inseparáveis na organização camponesa, assim são homens e mulheres. Portanto, a relação de
gênero organiza a atividade socioeconômica na unidade familiar.
Na divisão de trabalho por sexo, como que uma “cooperação simples”
homens e mulheres fazem as mesmas tarefas na capina e na colheita e uma
“cooperação complexa” homens e mulheres fazem tarefas distintas e
complementares no processo global que faz a reprodução social, eles na roça e
pasto, elas na casa. A cultura-ideologia, contudo, se encarrega de tornar a
cooperação simples em complexa. É comum afirmar-se que a divisão de trabalho
deriva das diferenças de sexo. Nossa etnografia mostra que o processo de
trabalho, visto como processo ritual, constrói o gênero (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997, p. 135).
Em algumas situações simbolicamente determinadas, quando homens e mulheres
enfrentam os perigos inerentes a suas atividades, o respeito aos limites espaciais é fundamental
para a efetividade do processo. Invadido este limite, a presença do sexo oposto pode “empatar” o
trabalho.
O homem enfrenta o perigo fora, na natureza representada pelo mato na primeira
etapa do processo de trabalho, na companhia apenas de outros homens. A
mulher, pelo contrario, enfrenta-o dentro, na companhia apenas de mulheres,
num duplo sentido: dentro de casa e dentro de si mesma; o perigo está na sua
própria natureza e não, como no caso dos homens, numa natureza externa.
uma exclusão de gênero nesse momento: a mulher leva a comida até o limite
espacial da área onde o homem enfrentará o perigo do trabalho no mato. O
homem leva a parteira até o limite espacial onde a mulher enfrentará o perigo do
trabalho de parto (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 39-40).
Devemos lembrar que, independente da complementaridade entre os neros, a mulher
rural também pertence a uma sociedade que herdou o patriarcado e a dominação masculina dos
colonizadores. A realidade rural brasileira transita entre a identificação cultural indígena, com
concepções sociais e de gênero diferenciadas da cultura ocidental contemporânea, e a cultura
ibérica, imposta durante a colonização brasileira (ARRUDA, 2000). Apesar da nítida
predominância da cultura patriarcal existente nesse ambiente, é possível também perceber, como
veremos ao final desta dissertação, a possibilidade de valorização dos espaços de construção do
feminino como ser social e, portanto, de transformações nas relações de gênero baseadas na
dominação.
87
A “morada da vida” (HEREDIA, 1979) e/ou “terra de trabalho” (GARCIA JUNIOR,
1983) é dividida em ambientes masculinos e ambientes femininos. No interior desta divisão,
porém, existem gradações de tolerância da presença do gênero “contrário”, ou seja, tolerância do
homem em espaços femininos e da mulher nos espaços masculinos.
Na lavoura/roçado, espaço masculino, a participação da mulher tem importância
fundamental. Caracterizado como ajuda
32
, o trabalho feminino neste local é limitado a algumas
tarefas – semeadura, “limpezas” e colheita – sendo que algumas outras são essencialmente
masculinas, como a derrubada e a abertura de covas. Nos ambientes masculinos a mulher
encontra-se sob autoridade e obediência às ordens do pai.
Sem duvida, muitas vezes, (...), as mulheres desenvolve tarefas no roçado; além
do mais, dentro das atividades próprias ao roçado, a semeadura é uma atividade
considerada feminina e é realizada exclusivamente por mulheres. Além disso,
cabe a elas outro tipo de tarefas, como por exemplo as limpezas periódicas que
os cultivos requerem depois de serem plantados, embora homens e crianças
também participem destas atividades (HEREDIA, 1979, p. 80).
As ferramentas utilizadas no “trabalhoda lavoura garantem a hierarquia necessária para
manutenção da superioridade do pai. Este utilizará a ferramenta mais nova e eficiente, enquanto
mãe e filhos utilizarão as ferramentas mais antigas, menos eficientes ou menores.
O instrumento foice, pensado genericamente, tanto é utilizado pelo pai como
pela mulher e pelas crianças. O que faz a distinção é o tamanho e a qualidade: ao
homem é destinada a foice maior, mais nova ou em melhores condições de uso.
A mulher e as crianças recebem a foice mais velha, menor e em piores condições
de uso, utilizada em outras etapas do processo produtivo. Cabendo à mulher um
instrumento em piores condições, seu trabalho será menos produtivo. Assim, o
próprio instrumento de trabalho, por sua qualidade, identifica o homem como
“força plena” e como “comandante” do processo de trabalho (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997, p. 135).
Constituído pela relação com o exógeno, o gênero masculino o sentido “de dentro para
fora” e é complementado pelo feminino, cujo sentido aglutinador, “de fora para dentro”, retoma o
núcleo fortalecedor da família. O mato é para onde se vai e a casa é para onde se retorna. No
32
“A oposição casa-roçado delimita a área de trabalho e não-trabalho, assinalando os lugares feminino-masculino
relativos a essa divisão” (HEREDIA, 1979, p. 79). Quando as mulheres assumem atividades no roçado/lavoura, não
se considera que elas estejam realizando tarefas masculinas - trabalho; essas tarefas passam a ser consideradas como
ajuda.
88
preparo da terra para a lavoura é o homem que dá a direção. Na casa, especialmente na cozinha, o
cuidado materno rege a dinâmica familiar.
O mato se opõe à casa e, sendo um espaço não dominado pelo trabalho, o
deslocamento se dá do domesticado, conhecido (o espaço dentro) para o natural,
desconhecido (o espaço fora; fora do domínio humano). Tanto dizem que “a
direção vai da casa para o mato” quando “a direção vai de dentro para fora”
num movimento centrífugo que tem na casa o núcleo organizador do processo de
trabalho. (...) A direção do processo é determinada pelo pai de família, detentor
do governo do trabalho. É ele quem “dá a direção”. (...) A mulher, pelo
contrário, é remetida a um movimento inverso, de fora para dentro, trazendo
para dentro da casa os produtos da roça transformados em mantimento, para
torná-los comida, inserida em sua própria “direção”, a do consumo. Em oposição
ao homem, o movimento da mulher dá-se de um espaço já domesticado por ele
para outro espaço, a casa, núcleo simbólico da família. (...) O produto do
trabalho retorna para casa, onde passa para o governo da mulher. Há, portanto,
dois movimentos opostos e complementares: o homem leva para fora, inclusive
para o mercado; a mulher traz para dentro da casa, para o consumo
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 37-38).
A casa/edificação, assim como a lavoura, possui divisões internas quanto à presença do
gênero oposto. espaços exclusivamente femininos e espaços que, apesar de ser domínio da
mãe, são mais habitados pelo pai. A sala, dentre os cômodos da casa, é o que mais se aproxima
do desconhecido. Ela é o primeiro cômodo da casa, onde se recebe as visitas e onde o pai se
acomoda quando chega da lavoura. A sala de jantar, onde se faz as refeições, é um espaço
comum entre os gêneros, ocupado durante o dia e o quarto do casal (da mãe e do pai) é o espaço
comum ocupado durante a noite. A cozinha, onde se consolida a principal atividade materna o
preparo do alimento é exclusivamente feminina. Quando outro quarto na casa (além do
quarto do casal), esse quarto normalmente é ocupado pelas meninas, enquanto os meninos
dormem na sala (GARCIA JUNIOR, 1983; HEREDIA, 1979). Garcia Júnior apresenta um
esquema explicativo sobre os lugares onde ficam homens e mulheres na casa:
FEMININO
F F
M
M. F.
MASCULINO
Figura 1- Esquema explicativo sobre os espaços da casa
Fonte: Garcia Junior (1983, p. 173)
NOITE
DIA
89
A casa não se limita ao espaço edificado, mas inclui seus arredores. O terreiro ou quintal
encontra-se normalmente nos fundos da casa/edificação, com acesso direto à cozinha. O terreiro
é, sobretudo, onde a mulher cuida da criação (galinhas, gansos e porcos). Nele, ou num outro
espaço ao redor da casa, um lugar para a horta, o pomar, o canteiro de plantas medicinais e
ornamentais e ainda, quando a mãe-mulher não se encontra grávida ou com crianças pequenas,
ainda mantém um espaço com um roçadinho (roçados menores formados para cada filho e para a
mãe).
Esse negócio de criação... comigo eu não sei contar de terreiro, não. Negócio de
criação... se for nos burros, no cavalo, uma coisa, um cachorro. Mas negócio
de ave de pena, da casa, não. Isso é... é a dona da casa. É! Os animais (de carga)
porque tem que ser os homens, não é? Com os animais. Um burro, um cavalo...
um gado, uma coisa qualquer. Isso é dos homens. Agora, isso é da dona da casa.
Dona da casa é quem mexe com esse negócio. Eu não sei nem... se me perguntar
quantas tem, eu não sei arresponder. Agora, me perguntando quantas enxadas
tem pra cavar a terra, eu digo: isso tem tantas [pai entrevistado] (GARCIA
JUNIOR, 1983, p. 175).
A mãe ainda possui a responsabilidade de comprar as coisas para casa. Além dos
utensílios domésticos, é ela quem deve prover as vestimentas da família
33
. Para isso, os produtos
do espaço feminino (basicamente criação e hortaliças), em situação de sobra, podem ser vendidos
pelo pai para gerarem renda para a mãe. Assim como o pai de família é responsável belo
abastecimento da alimentação básica da família (proveniente da lavoura), a e de família é a
encarregada de providenciar os elementos que fazem parte da casa, como utensílios domésticos,
roupas da família e outros.
Eu planto roça [roçadinho], eu trato, quando está boa de farinha ele (marido) faz,
leva para a feira, vende e me dá o dinheiro. Agora já viu, ele não gasta nada que
é meu. Aí eu compro roupas, sapatos, chinelos, tudo sou eu que compro, mesmo
coisas para dentro da casa tamm [mãe entrevistada] (HEREDIA, 1979, p. 98).
A casa é o lugar onde se armazenam as sementes, o alimento e onde se guardam (e muitas
vezes se produz) as ferramentas de trabalho. É ainda “de onde se parte” e “para onde se retorna”.
Analisando as transformações ocorridas em comunidades pesqueiras do nordeste, Woortmann
33
Os filhos, depois de aproximadamente os 12 anos de idade, passam a adquirir renda de seu próprio roçadinho e
comprar as próprias roupas.
90
discute que antigamente “a casa, domínio feminino, especificamente da esposa-mãe, era um cento
polarizador das atividades e dos recursos”, os diferentes espaços do sítio encontram na casa um
centro aglutinador. “A grande articuladora desses espaços era a mulher. Era ela quem
transformava um agregado de espaços separados num todo articulado” (WOORTMAN, 1992, p.
45).
É interessante notar que existem determinações sócio-culturais que caracterizam os
espaços como feminino ou masculino, assim como existe uma constante interação entre esses
espaços e a influência do “sexo oposto” nas decisões do processo de trabalho. Sem perder as
peculiaridades de cada gênero com relação ao trabalho da terra e a reprodução da família, o
masculino e o feminino se complementam de modo a compor o que se denominou de unidade
familiar de produção. O processo de trabalho se realiza numa interessante relação entre seres
humanos e naturezas e, a partir desta relação, constrói os gêneros. Um exemplo significativo
desta interação de espaços é discutido por E. Woortmann e K. Woortmann (1997): os espaços
masculinos da roça podem ser separados por espaços femininos de plantação de “legumes” e
plantas medicinais.
Seus diferentes espaços [do roçado] roça de mandioca, roça de inhame, etc.
são separados por cercas simbólicas constituídas por “legumes” plantados pelas
mulheres, como o quiabo; ou plantas medicinais, como o capim santo, cujo
cultivo, assim como todos os cuidados com a saúde da família, é atribuição da
mãe de família. Mesmo excluídas da roça, ou nelas admitidas de forma
subordinada ou ambígua em outro contexto ideológico, são as mulheres que
dividem a roça, isto é, os vários subespaços do espaço maior masculino
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 88).
A relação de reciprocidade existente no interior da família transborda para a relação com a
natureza. A produção trabalhada pelo pai que se destina tanto para o consumo como para a
comercialização depende da dinâmica produtiva da mãe que é quem controla a alimentação
da família. Numa dependência mútua, pai e mãe “negociam” a respeito da produção. Assim
como, parecem ocorrer “negociações” semelhantes entre a família e o solo, a água, as plantas e os
animais. A relação da família com a natureza também estabelece uma unidade, unidade
comandada apenas por Deus.
O que queremos ressaltar aqui é que, ao contrário da agricultura moderna
“racional”, capitalizada e voltada exclusivamente para o mercado, os sitiantes
adéquam as plantas (vale dizer, aquilo que irão depois comer) ao solo, e não,
91
como na agricultura “moderna”, o solo às plantas, isto é, ao mercado. Em outras
palavras, não se corrige o solo com insumos industriais (só se corrige o que está
errado, e para os sitiantes o existem solos “errados”); planta-se aquilo que o
solo “dá”, naturalmente. Nas representações dos sitiantes estabelece-se uma
relação de troca entre o homem e a terra: o homem investe trabalho e em troca
recebe a produção, mas a natureza deve ser respeitada, não deve ser agredida
com corretivos químicos, pois ela poderá “vingar-se”, “envenenando o
mantimento”. O modelo camponês procura realizar as potencialidades da
natureza diante das demandas do homem. O saber e a prática do camponês não
impõem ao solo as exigências do mercado. Estabelecem, pelo contrário, uma
negociação entre as necessidades da família e as potencialidades da terra.
como que um diálogo entre o que a família precisa e o que a terra pode oferecer.
A sabedoria está justamente nesse diálogo, que faz o êxito do modelo camponês
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 65).
A unidade familiar de produção é, portanto, uma rede de relações complexa que se
estabelece no interior de uma família e fundamenta a organização camponesa. A reciprocidade,
por sua vez, pode ser reconhecida como o fio que tece essa rede. A profundidade simbólica
existente na concepção de unidade familiar de produção pode, num primeiro momento, sugerir
que a construção de uma relação sustentável entre o ser humano e a natureza não pode ser
restringida a aspectos técnicos e econômicos, mas deve também atingir os aspectos sócio-
culturais. Num segundo momento, pode-se perceber que o modelo camponês estabelece
diferenças com relação ao modelo hegemônico relacionadas ao sentido ideológico da
hierarquização, ou seja, se as relações são excludentes ou não. Algumas peculiaridades
importantes estão relacionadas ao fato da dimensão produtiva e da dimensão do consumo
acontecer de maneira interdependente, através do trabalho realizado pela unidade familiar
(CANDIDO, 1975; HEREDIA, 1979; MARTINS, 1996; MOURA, 1986; PANZUTTI, 2006;
SEVILLA GUZMAN, 2005).
Uma reflexão sobre as contradições existentes entre o paradigma moderno e a concepção
de mundo camponesa pode ser esclarecedora neste momento. Durante as transformações vindas
com a modernização, as relações que fundamentavam a unidade familiar passaram a disputar
espaço com a lógica mercadológica. O elemento ‘subordinação’ característico das relações
hegemônicas foi transferido, aos olhos das gerações camponesas mais jovens, ao interior da
família. A unidade familiar que anteriormente era vista como libertadora, agora é vista como o
cativeiro.
92
Parece surgir (...) uma tensão entre o trabalhar para nós e o trabalhar para mim,
quando era o primeiro que assegurava o não trabalhar para o outro. É como se,
no movimento constante de reintegração a uma sociedade global em
transformação, o filho realizasse uma “descoberta do outro”, de uma alteridade
não-tradicional de novos valores, estabelecendo, com isto, o estranhamento do
seu próprio universo e sua desnaturalização. É como se realizasse, à sua
maneira, pela experiência, o equivalente ao encontro etnográfico. Ao fazê-lo,
descobre o cativeiro no interior da família, enquanto seu pai percebia o cativeiro
como a negação da família. O coletivismo que possibilitava ser liberto é
interpretado como sujeição (WOORTMANN, 1990, p. 56).
Além disso, as interferências relacionadas ao processo de modernização atingem as
relações de gênero da unidade familiar, principalmente no que se refere à articulação entre os
espaços femininos e masculinos. A complementaridade existente entre as atividades relacionadas
ao auto-consumo e as atividades relacionadas à produção para venda perde o sentido diante do
paradigma desenvolvimentista. A necessidade de ampliar a produção para geração de renda e
abastecimento do mercado hegemônico – reflete em ampliação dos espaços masculinos e redução
dos espaços femininos do sítio. Diante disso, o trabalho das mulheres, cuja função principal é a
reprodução da unidade familiar e a qualidade de vida da família, foi marginalizado. Os espaços
femininos passaram a ser considerados como não-produtivos e as atividades femininas acabaram
por restringirem-se ao trabalho doméstico, tal como “trabalhadoras” domésticas da cidade
“moderna”.
A dona do terreiro é Luiza, ela tem que varrer, a vontade dela é fazer um terreiro
de até na beira do riacho. Eu por mim a lavoura vinha até a porta... eu
gostaria de quebrar desde a porta mesmo, se fosse por mim o milho estava
entrando pela parede, elas foram fazendo terreiro - Seu Pedro (HEREDIA, 1979,
p. 97).
A interdependência existente entre os espaços femininos e masculinos e a não dicotomia
entre humanidade e natureza são substituídos pela lógica da produção para o mercado e
maximização dos lucros e pela dominação do homem sobre a natureza e sobre as mulheres.
Com Adam Smith, a riqueza criada pela natureza e o trabalho das mulheres
tornaram-se invisíveis. O trabalho, e especialmente masculino, tornou-se o
capital que originalmente supre os seres humanos de todas as necessidades e
confortos da vida. (...) A natureza deixou de ser uma fonte de riqueza e sustento.
O trabalho das mulheres, visando o sustento, deixou de ser “produtivo”. (...) A
transformação, a força produtiva foi associada apenas com o trabalho do homem
ocidental, e o desenvolvimento econômico tornou-se um projeto de remodelação
do mundo, de acordo com essa presunção. A desvalorização e o desmerecimento
93
do trabalho e da produtividade da natureza levaram às crises ecológicas. A
desvalorização e o não-reconhecimento do trabalho da mulher criaram o sexismo
e a desigualdade entre homens e mulheres. A desvalorização da subsistência, ou
melhor, da economia de sustentação, baseada na harmonia entre o trabalho da
natureza e o trabalho humano criou as diferentes formas de crises étnicas e
culturais que grassam em nosso mundo, hoje (SHIVA, 2000, p. 110).
O abastecimento da casa para auto-consumo da família implica, necessariamente, em
produção biodiversificada. Numa realidade camponesa típica, a produção feminina é dedicada
especialmente à alimentação e saúde da família (horta, criações de pequeno porte, plantas
medicinais). Numa realidade biodiversificada, complementar e cíclica, os resíduos de um espaço
são nutrientes para o outro; a unidade existente entre os indivíduos familiares extrapola-se para o
ecossistema manejado pela família, formando o que poderíamos denominar de agroecossistema
familiar.
No entanto, o desenvolvimento tecnológico “moderno” rompeu com o princípio da
agricultura sustentável de reciclagem dos nutrientes do solo. A monocultura e a biotecnologia
produzida pelas corporações transnacionais do agronegócio, inviabilizaram o agroecossistema
familiar e elegeram os espaços masculinos como campo de produção monetária. Este sistema
excluiu a participação da natureza no processo de produção de alimentos, assim como excluiu a
participação das mulheres na dinâmica produtiva do sítio. Desse modo, o desenvolvimento
hegemônico pode ser compreendido como um projeto patriarcal, que separa natureza e cultura e
subjuga a primeira à segunda (SHIVA, 2000, 2001). O patriarcalismo estabelece uma relação
direta entre homem-cultura e mulher-natureza como forma de naturalização da dominação da
mulher
34
.
O estabelecimento do patriarcado (...) teve como conseqüência a dicotomia entre
o ser humano e a natureza. Esta dicotomia, ao mesmo tempo em que se baseia na
concepção de que os recursos naturais existem para que o homem os domine e
subjugue, é fator de sua sustentação. Quando a mulher é definida como um ‘ser
natural’ e depositária de todas as características e qualidades atribuídas ao
34
Siliprandi (2009) realiza uma discussão muito pertinente sobre a importância da não naturalização da relação da
mulher com o socioambientalismo e a construção de uma agricultura sustentável: “Não é por terem nascido
mulheres, no sentido essencialista do termo, que elas tem a contribuir na discussão de propostas. É porque se
tornaram mulheres e estão inseridas socialmente em atividades específicas, porque têm pontos de vista
historicamente e socialmente construídos, que podem oferecer visões sobre o desenvolvimento social que o
pensamento e a prática masculinas não são capazes de abarcar. É preciso que se assuma que a invisibilidade do
trabalho das mulheres na agricultura é um dos entraves para que as propostas alternativas de desenvolvimento sejam
efetivamente coerentes, amplas e eqüitativas” (SILIPRANDI, 2009, p. 70).
94
mundo natural, sua subjugação passa a ser justificada biologicamente (KOSS,
2000, p. 92).
A “erosão” causada na vida dos sitiantes diante dos paradigmas da modernização adquiriu
uma dimensão que atualmente faz muitos pesquisadores não acreditarem na capacidade de
reconstrução da organização camponesa
35
. Nesse sentido, alguns agroecólogos desenvolvem
trabalhos de extensão rural sem acreditar num possível fortalecimento da campesinidade. Tal
descrença é um dos motivos que fortalece a concepção e desenvolvimento da agroecologia
restrita. Apesar da grande descrença na possibilidade de fortalecimento da campesinidade,
orientações teóricas, como a de Sevilla Guzmán, que enfatizam a capacidade de reconstrução de
relações socioambientais tradicionalmente desenvolvidas, mesmo nas condições mais adversas.
Nos agroecossistemas fortemente artificializados, onde o manejo tem uma
natureza profundamente industrializada, também é possível gerar um
conhecimento local que aporte soluções específicas para cada realidade. Este
conhecimento oferecerá respostas análogas àquelas que, séculos atrás,
estabeleceram os habitantes da mesma zona, realizando um manejo ambiental
dos recursos naturais. Cremos que a evidência até agora acumulada nos permite
desenhar sistemas de manejo dos recursos naturais de natureza agroecológica,
com base no conhecimento local, inclusive naquelas zonas de manejo fortemente
industrializado (SEVILLA GUZMAN, 2001, p. 39-40).
Portanto, é possível inferir que, na relação entre uma família camponesa (agricultores e
agricultoras) e os técnicos responsáveis pela construção de um projeto agroecológico, seria
relevante uma valorização das especificidades relacionadas aos saberes e ao modo de organização
sócio-cultural local, mesmo quando elas estiverem fortemente perturbadas pelos elementos
ideológicos do processo de modernização.
35
Quando se utiliza no decorrer deste trabalho, a expressão “reconstrução da organização camponesa”, não se está
referindo à construção de uma realidade camponesa tal como a do passado, o que implicaria na negação da dinâmica
histórica existente neste peculiar sistema produtivo. Reconhece-se aqui a transitoriedade dos modos de organização.
Esta expressão pretende fortalecer a concepção das relações sociais enquanto “totalidades que formam sistemas”
(GODELIER, 1978) e, neste caso, um sistema auto-regulado por determinados elementos da campesinidade,
mencionados a partir do segundo capítulo.
95
4 UMA BUSCA PELA CAMPESINIDADE E A PRÁXIS AGROECOLÓGICA
“Porque o sítio pra gente é isso aqui, é pra viver,
num é pra ganhar dinheiro
D. Rosália
Nos capítulos anteriores foram discutidos os conceitos de agroecologia plena e
campesinidade. Nestas discussões pudemos compreender a importância da integração dos
aspectos ecológicos, técnico e agronômicos e sócio-culturais da agroecologia, assim como a
necessidade de uma abordagem agroecológica a partir do endógeno. Na reflexão sobre a
organização camponesa, evidenciou-se a existência de peculiaridades econômicas e culturais com
relação às sociedades hegemônicas, assim como a relevância da complementaridade entre a
dimensão masculina e feminina da campesinidade.
Neste capítulo, depois de essas questões terem sido discutidas em teoria, foram analisadas
duas realidades específicas: a região do Vale do Ribeira/SP (Cananéia, Cajati, Barra do Turvo e
Sete Barras) e o município de Joanópolis/SP. O objetivo foi (1) identificar os espaços masculinos
e femininos dos sítios estudados e analisar suas transformações com relação ao processo de
modernização e as experiências agroecológicas; (2) analisar a existência da campesinidade, assim
como a relação desta com os paradigmas impostos durante o processo de modernização agrícola;
(3) discutir sobre as possibilidades de permanência da campesinidade em realidades modernas de
produção agrícola; a ainda, (4) analisar algumas experiências agroecológicas e sua relação com a
campesinidade e os espaços femininos dos sítios.
Os dados apresentados ofereceram os elementos necessários para refletirmos sobre as
potencialidades de contribuição da dimensão feminina para a construção da agroecologia plena.
Além disso, a abordagem sócio-cultural destas análises será uma experiência relevante quanto ao
procedimento endógeno - como vimos - ainda não realizado pela agroecologia.
4.1 Procedimentos de pesquisa
A problemática desta pesquisa envolve reflexões a respeito de elementos que, segundo a
disciplinaridade científica atual, pertencem a campos distintos do conhecimento. A articulação
entre temas que transitam entre as ciências agrárias e as ciências sociais tal como a
agroecologia, a campesinidade e as relações de gênero exige um esforço interdisciplinar capaz
96
de acessar não apenas dimensões materiais (como os espaços agrícolas e a biodiversidade), mas
também dimensões simbólicas (como espaços sociais e de gênero). Nesse sentido, não seria
suficiente a realização de uma pesquisa de campo através de questionários e observações
quantitativas e qualitativas baseadas no distanciamento entre “sujeito” e “objeto” tal como
ocorre em muitas pesquisas das ciências naturais. Como ensinou Malinowski (1984), o acesso aos
“imponderáveis da vida real” se faz através da participação do observador e sua relação com o
mundo a ser observado.
Em relação ao método adequado para observar e registrar estes aspectos
imponderáveis da vida real e do comportamento típico, o resta dúvida de
que a subjetividade do observador interfere de modo mais marcante do que na
coleta dos dados etnográficos cristalizados. Porém, mesmo nesse particular,
devemos empenhar-nos no sentido de deixar que os fatos falem por si mesmos
(MALINOWSKI, 1984, p. 31).
Sendo assim, o trabalho de campo desta pesquisa procurou seguir, na medida do possível,
a metodologia desenvolvida pelo antropólogo funcionalista Bronislaw Malinowski, denominada
observação participante. Segundo o autor, o pesquisador deve realizar um exercício de alteridade
como condição de interpretar adequadamente uma realidade sócio-cultural muito diversa do seu
próprio modo de vida. “Ninguém antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto (...) na
mentalidade dos outros, e em compreender de dentro, por uma verdadeira busca de
despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é
a nossa” (LAPLANTINE, 1998, p. 80).
A melhor forma de compreendermos a totalidade dos fenômenos que compõem a
sociedade é, portanto, através da convivência com as pessoas. Segundo Malinowski (1984):
Estudar as instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento e
mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos
quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é, para ele, a essência de
sua felicidade, é, em minha opinião, perder a maior recompensa que se possa
esperar do estudo do homem (LAPLANTINE, 1998, p. 34).
Existem, por sua vez, alguns princípios metodológicos que podem indicar o caminho
através do qual o observador melhor alcançará a lógica de organização de uma sociedade.
Godelier discute que
97
(...) existem dois princípios metodológicos que são igualmente reconhecidos
pelo funcionalismo, estruturalismo e marxismo, como condição necessária ao
estudo científico dos fatos sociais. O primeiro estipula que é preciso avaliar as
relações sociais não uma a uma, separadamente, mas tomando-as em suas
relações recíprocas, considerando-as como totalidades que formam sistemas. O
segundo determina que é preciso analisar esses sistemas em sua lógica interna,
antes de analisar sua gênese e evolução (GODELIER, 1978, p. 60).
Inevitavelmente, esses procedimentos metodológicos devem colocar o pesquisador em
situação de aprendiz. Vindo de fora para dentro das sociedades não-ocidentais, o pesquisador
assume, como uma criança, a condição daquele que deverá ser socialmente inserido através do
aprendizado. Colocar-se, portanto, nesta condição é fundamental tanto para a vivência do
pesquisador no grupo estudado, quanto para o êxito do desenvolvimento das metodologias
propostas.
O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu
gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser
considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como
hóspedes (sic) que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como
aluno atendo, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua
língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo
(LAPLANTINE, 1998, p. 76).
Nesta concepção, a participação é compreendida como procedimento fundamental para
que se atinja a subjetividade humana. A ilusória precisão oferecida através de métodos objetivos
de análise da realidade não saltará, através da observação participante, ao universo das certezas
absolutas - quem sabe este universo nem exista... mas, ao menos, se obterá conclusões
decorrentes de experiências compartilhadas.
E, provavelmente, a prova permanecerá bem ilusória: não saberemos jamais se o
outro, com o qual não podemos, apesar de tudo, confundir-nos opera, a partir
dos elementos de sua existência social, uma síntese que coincide exatamente
com a que elaboramos. Mas não é necessário ir tão longe, é preciso somente e
para tanto, o sentimento interno basta que a síntese, mesmo aproximativa,
decorra da experiência humana (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 16).
Segundo Descola (2006) há uma lei implícita da prática etnográfica:
Se nos arriscássemos a formulá-la, ela poderia ser anunciada do seguinte modo:
a capacidade de objetivação é inversamente proporcional à distância do objeto
98
observado. Em outros termos, quanto maior o afastamento geográfico e cultural
que o etnólogo estabelecer entre o seu ambiente de origem e o seu campo”
escolhido, tanto menos sensível ele estará aos preconceitos das populações
dominantes locais em relação às sociedades marginais que estiver estudando.
Apesar do seu verniz civilizado, as primeiras não serão para ele mais familiares
do que essas últimas (DESCOLA, 2006, p. 28).
Aproximar-se da realidade pesquisada é, portanto, empreendimento básico a ser realizado
na escala espaço-temporal e na escala cio-cultural. Para tanto, é fundamental, e praticamente
inevitável, o exercício da alteridade e da postura de aprendiz. Como observou o antropólogo
Seeger (1980), numa organização sócio-cultural distinta da nossa, somos como crianças carentes
de aprendizados básicos de sociabilidade e sobrevivência. A condição de aprendiz permite ao
pesquisador uma experiência real das concepções de mundo locais. O convívio estabelecido
através do aprendizado talvez seja a forma de aproximação mais efetiva a se estabelecer com o
“outro”. Por esses motivos, o trabalho de campo desta pesquisa foi realizado de maneira atenta a
todos os ensinamentos recebidos, através das conversas, das histórias de vida, das expressões e
representações utilizadas, da relação com o espaço e a família, dos momentos de silêncio, dentre
outros.
As diferenças existentes entre pesquisadores e pesquisados podem se apresentar de forma
agressiva quando não se atenta a alguns detalhes. Nesse sentido, a comunicação deve ser
realizada de forma a minimizar as distâncias e buscar simetrias entre ambos. Desde o vocabulário
às vestimentas e acessórios utilizados pelos pesquisadores podem distanciar estes “diferentes”.
Tal como coloca Bourdieu (1997), a proximidade social e a familiaridade são fundamentais para
evitar os constrangimentos que uma relação não-simétrica pode suscitar:
A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das
condições principais de uma comunicação não-violenta. De um lado, quando o
interrogador está socialmente muito próximo daquele que ele lhe interroga, ele
lhe dá, por sua permutabilidade com ele, garantias contra a ameaça de ver suas
razões subjetivas reduzidas a causas objetivas; (...) por outro lado, encontra-se,
também assegurado neste caso um acordo imediato e continuamente confirmado
sobre os pressupostos concernentes aos conteúdos e às formas de comunicação:
esse acordo se afirma na emissão apropriada, sempre difícil de ser produzida de
maneira consciente e intencional, de todos os sinais não verbais, coordenados
com os sinais verbais, que indicam quer como tal o qual enunciado deve ser
interpretado, quer como ele foi interpretado pelo interlocutor (BOURDIEU,
1997, p. 697).
99
Neste trabalho, a pesquisadora contou, muitas vezes, com a presença da figura masculina
nas pesquisas de campo. Como marido e mulher, tínhamos acesso aos homens e mulheres
entrevistados de forma mais completa, ou seja, “assuntos de homem” e “assuntos de mulher”
puderam ser analisados. Como forma de acessar a dimensão masculina e a dimensão feminina, a
formação “homem e mulher” como “equipe” de pesquisa foi importante. Além disso, duas
outras condições que foram favoráveis às pesquisas: a condição de casal e a condição de mãe.
Como casal, obtínhamos a legitimidade de dialogar sobre questões familiares de uma perspectiva
interna. A condição de mãe oferecida a mim devido à existência, e algumas vezes a presença,
da minha enteada – possibilitou o diálogo sobre questões intimamente maternas.
Esta forma de abordagem da pesquisa de campo, facilitada através da presença de um
casal (marido e mulher), foi utilizada, e discutida em suas vantagens, por alguns autores como:
Descola (2006), Seeger (1980) e Woortmann; Woortmann (1997). Numa realidade indígena
(Achuar), distinta da realidade aqui pesquisada, o antropólogo Descola e sua esposa Anne
Christine também vivenciaram certas facilidades oferecidas pela condição de casal em pesquisa
etnográfica. É ainda importante a discussão realizada pelo autor sobre o respeito do casal aos
costumes locais no cotidiano da relação com o “outro”:
O casal que Anne Christine e eu formamos contribui certamente para nos tornar
menos exóticos aos olhos dos índios: dia após dia, devolve-lhes a imagem de um
laço afetivo e social, tanto mais fácil de identificar pelo esforço que fazemos por
seguir, em público, as regras de comportamento matrimonial prescritas pela
etiqueta. (...) Para os índios, existir na forma tranqüilizadora de um casal, mesmo
sem filhos, contribui para tornar menos visíveis nossas duas personalidades
respectivas, ocultadas por traz da figura sem surpresas de uma relação
repertoriada (DESCOLA, 2006, p. 232-233).
Nas relações estabelecidas durante este trabalho, acredita-se que a presença dos
pesquisadores enquanto casal e em certos momentos enquanto pai e “mãe”, talvez tenha sido
especialmente importante por tratar-se de uma realidade em que a família (monogâmica) é o
centro aglutinador das relações sociais e de produção. Mais próximas à organização hegemônica,
quando comparadas às organizações indígenas, as famílias pesquisadas ainda assim oferecem a
possibilidade do “estranhamento” com relação ao próprio mundo, a partir da observação do
100
“outro”
36
. É interessante notar que a parte empírica deste trabalho (terceiro capítulo) traz
questões que dizem respeito ao mundo moderno. As discussões sobre os conflitos atuais vividos
pelas famílias camponesas diante das intervenções da “modernidade” podem servir como base de
reflexão sobre a própria organização sócio-cultural hegemônica. Segundo Seeger “o estudo das
outras sociedades permite ao analista relativizar as instituições, as crenças e o éthos de sua
própria sociedade”. “A lição que cumpre tirar do estudo comparativo da humanidade não é a de
que as outras sociedades são melhores ou piores do que a nossa, mas a de que temos algo a
aprender com elas” (SEEGER, 1980, p. 15-16).
O estudo do “outro” o social e culturalmente distante não envolve
necessariamente a análise de sociedades tribais. muito que aprender com as
sociedades complexas, não-ocidentais, como a Índia, China, Japão ou Irã. Para
um membro das camadas médias da Zona Sul do Rio de Janeiro, um habitante
de uma favela ou a sociedade da elite é uma espécie de “outro” desconhecido
também. As distâncias sociais e culturais são uma questão de grau (SEEGER,
1980, p. 16).
Finalmente, sobre as técnicas utilizadas no trabalho de campo há que citar ainda o formato
de entrevistas semi-estruturadas ou abertas e a utilização do gravador. A disponibilidade total
com relação aos entrevistados(as) e as suas histórias particulares, assim como a orientação do
diálogo através de questionamentos ou, principalmente, do compartilhamento de experiências de
vida relacionados aos temas de interesse, orientavam as entrevistas. A utilização do gravador
como instrumento de pesquisa permitiu maiores condições de transcrição das falas. Desse modo,
valorizaram-se alguns elementos significativos da oralidade que não são transmitidos através da
narração. O gravador foi utilizado apenas em Joanópolis – e não em todas as entrevistas devido
à receptividade das famílias com relação a essa forma de registro.
36
Observar o “outro” e realizar o exercício da alteridade nos permite sair momentaneamente do nosso mundo e
observá-lo “de fora”. Esta observação, por sua vez, nos oferece as condições do “estranhamento” mencionado no
texto. Segundo Lévi-Strauss: “Na experiência etnográfica, (...) o observador coloca-se como seu próprio instrumento
de observação. Evidentemente, precisa aprender a conhecer-se, a obter de um si-mesmo, que se revela como outro ao
eu que utiliza, uma avaliação que se tornará parte integrante da observação de outra individualidades” (LÉVI-
STRAUSS, 1993, p. 43-44).
101
4.2 As regiões estudadas
Os dados de campo desta pesquisa provêm, em parte, de uma pesquisa realizada pela
autora em 2006, sobre “As potencialidades de inclusão das mulheres na efetivação de espaços
agroecológicos”. Fruto do Estágio Profissionalizante em Engenharia Florestal (USP/ESALQ
Departamento de Economia, Administração e Sociologia), sob orientação da Profª Drª Maria
Elisa de Paula Eduardo Garavello, a pesquisa foi desenvolvida durante a participação no projeto
37
: “Recuperação e Conservação Ambiental através do Desenvolvimento Agroflorestal em
Comunidades e Assentamentos no Vale do Ribeira e Pontal do Paranapanema, SP”; cujo
proponente é a instituição Programa da Terra: Assessoria, Pesquisa e Educação Popular no Meio
Rural - PROTER
38
.
Apesar de o projeto acontecer em duas regiões do estado de São Paulo, a pesquisa foi
desenvolvida apenas na região do Vale do Ribeira (Cajati, Sete Barras, Barra do Turvo e
Cananéia). Além da participação nas atividades do projeto, a pesquisadora hospedou-se por
aproximadamente uma semana em cada município, na residência de famílias envolvidas com o
projeto. Durante esta estadia, as mulheres da família (mãe e/ou filha) acompanharam a
pesquisadora até a casa de outras famílias não necessariamente envolvidas no projeto para
realização das entrevistas semi-estruturadas.
A escolha por utilizar os dados de campo referentes a esta pesquisa anterior, está
relacionada à importância do Vale do Ribeira no contexto socioambiental em que se encontra a
agroecologia. Além disso, os dados utilizados referem-se justamente a experiências
agroecológicas desenvolvidas – muitas delas já consolidadas – na região.
O Vale do Ribeira possui a maior área preservada de Mata Atlântica do Brasil. No Estado
de São Paulo, esta área representa 1.711.533 hectares e 23 municípios. Divido em Alto, Médio e
Baixo Ribeira, a região apresenta grande diversidade de paisagens. O Alto Ribeira exibe
montanhas e florestas por onde corre o rio Ribeira; no Médio Ribeira, onde situam-se as cidades
37
Projeto pertencente ao Subprograma do Ministério do Meio Ambiente: Projeto Demonstrativo - PDA.
38
O PROTER é uma instituição não governamental fundada em 1985 com o objetivo de apoiar a redemocratização
do campo e assessorar os movimentos da agricultura familiar no Estado de São Paulo. Conta com sede no Sítio Santa
Gertrudes, Ribeirão Vermelho, em Registro. Seus trabalhos enfocam o desenvolvimento sustentável da região do
Vale do Ribeira e de outras regiões do Estado. O PROTER, no ano de realização do estágio, compunha a
coordenação do projeto Formação Agroflorestal em Rede na Mata Atlântica CONSAF’s, coordenação nacional da
Rede de ONGs da Mata Atlântica RMA e o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica CN-
RBMA.
102
de Barra do Turvo, Cajati e Sete Barras, o rio recebe vários afluentes como o Juquiá e o
Jacupiranga; e na região do Baixo Ribeira, incluindo Cananéia, as terras são mais planas e
periodicamente inundadas, por onde o rio desce e finalmente desemboca no oceano, próximo ao
município de Iguape (DIEGUES, 2007).
A diversidade étnica da região pode representar a miscigenação típica do brasileiro. Além
dos povos indígenas de origem Tupi e a cultura negra presente nos diversos quilombos da região,
a colonização ibérica – tanto de espanhóis como portugueses, data desde o início do século XVI.
A primeira atividade econômica de relevância na região foi a mineração para extração de
ouro. Após a descoberta das Minas Gerais, no final do século XVII, o fim da extração do ouro
leva a uma ampliação das áreas de cultivo e especialização na produção agrícola. Em meados do
século XIX, o arroz traz um novo apogeu e se estende tanto nas fazendas (monocultura e trabalho
escravo) como nos sítios (roça e trabalho familiar). Os pequenos produtores eram dependentes
dos grandes fazendeiros, que financiavam e compravam sua produção. A partir da segunda
metade do século XIX, quando a política econômica volta-se para o desenvolvimento da
cafeicultura em outras regiões do país (como Joanópolis/SP), a rizicultura entra em decadência e
o Vale do Ribeira inicia sua estagnação econômica (BERNINI, 2005; DIEGUES, 2007).
(...) a decadência do sistema produtivo do arroz, a extinção da possibilidade de
mineração e a marginalização em relação à economia cafeeira transformaram o
Vale em uma região específica do estado de São Paulo, considerada atrasada e
estagnada economicamente. Essa situação colabora para a manutenção de
grandes áreas de terras devolutas e estrutura fundiária onde predominam os
posseiros que exploram a terra de forma familiar. Também facilitou a
preservação de grandes trechos de mata (BERNINI, 2005, p. 16).
Depois de o município de Iguape ter alcançado a posição de maior produtor brasileiro de
arroz, a região sofre um longo período de decadência. Uma possível explicação, frequentemente
evocada por lideranças locais, para esta decadência econômica da região são os desequilíbrios
ocorridos durante a construção do canal denominado Valo Grande:
Aliás, uma ambição exagerada em torno deste porto [o porto de Iguape] possa
talvez explicar, de maneira bem fundamentada, a decadência econômica da
região (explicação mobilizada em entrevista, por exemplo, com o secretário
executivo do CONSAD VR Associação Consórcio de Segurança Alimentar e
Desenvolvimento Local do Vale do Ribeira realizada em setembro de 2007).
A idéia de reduzir o tempo e as dificuldades do transporte das sacas de arroz
(realizado, numa primeira etapa, em canoas das áreas de produção até o Porto do
103
Ribeira e, numa segunda etapa, em carroças deste ponto até aquele de Iguape) e
também diminuir as despesas com frete levou à concepção de um projeto de
construção de um canal com três quilômetros de comprimento. Iniciada em
1827, as obras de implantação de tal canal, Valo Grande, foram completamente
concluídas vinte e cinco anos depois, em 1852. Porém, os enormes
desequilíbrios em torno desta construção originam prejuízos desde a década
de 1840 (MORUZZI MARQUES, 2009, p. 7).
O Vale do Ribeira, mais precisamente a Baixada do Ribeira, é incorporado aos fluxos
urbano-industriais apenas na década de 1940, com a introdução da monocultura de banana e de
chá na região. Neste mesmo período, e por conseqüência desta expansão da agricultura
comercial, identifica-se um momento de crise no modo de vida caipira (BERNINI, 2005). Desde
então, a bananicultura é a atividade econômica mais importante da região. É importante ressaltar,
contudo, que a pequena agricultura familiar para auto-consumo e sua relação com o mercado
interno não desaparece nem nos momentos de crise nem nos momentos de auge econômico
39
.
A expansão destas monoculturas faz com que esta região a mais preservada de Mata
Atlântica do Brasil torne-se alvo do ambientalismo conservacionista. A presença da floresta e
sua biodiversidade de fauna e flora, assim como a ausência de um forte atrativo econômico na
região, transformaram-na em lócus de pesquisas ambientais. “Desde a década de 60 se iniciou um
movimento de criação de áreas protegidas nessa porção da Mata Atlântica, tendo sido, no geral,
apoiado por organizações da sociedade civil - ONG’s, cientistas, movimentos e associações
locais” (DIEGUES, 2007, p. 31). Segundo o Atlas das Unidades de Conservação do Estado de
São Paulo, citado por Bernini (2005), são 19 UC’s no Vale do Ribeira. Além da criação das
UC’s, inicia-se um período de forte ação ambientalista junto às famílias sitiantes, dentre elas os
projetos de implantação de Sistemas Agroflorestais - SAF’s. Desde então, a região do Vale do
Ribeira vem se tornando referência quanto ao desenvolvimento de experiências agrícolas
baseadas em princípios agroecológicos.
39
As famílias reconhecidas culturalmente como caiçaras e/ou caipiras, mesmo nos períodos de migração e redução
populacional, não desaparecem em momento econômico algum. É interessante notar que a migração interna do
Baixo Ribeira para as regiões montanhosas - primeiramente a rizicultura, e mais tarde tanto a especulação imobiliária
impulsionada pelo turismo como a criação de Unidades de Conservação - UC’s –, faz com que muitas famílias
atualmente do Médio Ribeira ainda se identifiquem como caiçara. O caiçara é normalmente a população litorânea e
o caipira é a população interiorana: “(...) a região do Vale do Ribeira e do Litoral Sul é um mosaico de paisagens e
populações humanas distintas. Nela podem ser encontrados os caiçaras, na faixa litorânea, quilombolas, espalhados
em toda a região, principalmente no Médio Ribeira, os caipiras existentes no Médio e Alto Ribeira e migrantes
norte-americanos, alemães, austríacos e japoneses no Médio Ribeira e no litoral (DIEGUES, 2007, p. 16).
104
São, portanto, estas experiências ‘agroecológicas’ que justificam a relevância da
utilização, nesta pesquisa, das observações de campo realizadas no Vale do Ribeira, em 2006. A
pesquisa de campo nesta região possibilitou a análise de uma realidade fortemente vinculada a
ações socioambientais. Mais especificamente, ofereceu a observação da ação agroecológica em
realidades agrícolas familiares, ou ainda, das transformações na unidade familiar de produção
decorrentes das experiências agroecológicas. Não poderia, contudo, oferecer uma boa
possibilidade de análise quanto às conseqüências da modernização da agricultura na
campesinidade.
A longa marginalização econômica e o avanço do socioambientalismo que caracterizam
esta região, não possibilitariam observar uma “situação modelo” do contato entre a organização
camponesa e a ‘modernização da agricultura’. As famílias entrevistadas nessa região não são,
portanto, os melhores exemplos quanto à possível resistência da campesinidade em realidades
transformadas pelo processo de modernização agrícola. Para tanto, realizou-se também a pesquisa
de campo em Joanópolis.
Joanópolis é um município que pertence à Serra da Mantiqueira e conta com 13,6% de
área de remanescente de vegetação. Localiza-se na cabeceira da Bacia Piracicaba-Capivari-
Jundiaí - PCJ, área de produção de água para o Sistema Cantareira que abastece a capital paulista
e outros 10 municípios. Por esta importância, está inserido na Área de Proteção Ambiental - APA
de Piracicaba e Juqueri-Mirim e na APA Sistema Cantareira (GUYOT, 2009).
A antiga economia cafeeira do Vale do Paraíba alcança a região de Joanópolis e com
uma produção qualitativamente inferior a produção do oeste paulista é significativo para a
economia regional até o final de 1930. Neste período, os cafezais da região (que muitas vezes
ainda eram plantados à sombra) foram gradativamente sendo substituídos pelo pasto de capim
gordura (Melinis minutiflora), para o gado de leite. “Com a decadência do café (...) o leite o
substitui como alternativa rentável para os pequenos sitiantes, associado a uma agricultura
camponesa de excedentes, centrada na produção de milho, feijão e secundariamente arroz e
outras lavouras de menor relevância” (RAHAL, 2002, p. 13). É importante ressaltar que aquilo
que Rahal considerou como “lavoura de menor relevância”, deve ser compreendido como ‘menor
relevância mercadológica’, pois essa lavoura é a responsável pela produção alimentar, auto-
consumo, das famílias sitiantes daquele tempo.
105
A partir de 1980, a lavoura vai desaparecendo da região e dando lugar não apenas aos
pastos, mas também à silvicultura. Nessa época, o pasto de capim gordura é substituído pelos
pastos de braquiaria (Brachiaria sp.). A silvicultura se inicia com a produção de pinheiros (Pinus
sp.) e rapidamente substituída pela produção de eucalipto (Eucalyptus sp.)
40
. A agricultura
comercial, ou o modelo produtivo ‘moderno’, é instituída na região principalmente através da
pecuária de leite e da silvicultura. Compostas majoritariamente por imigrantes italianos, as
famílias produtoras de café, leite e lavoura para auto-consumo são inseridas em um modelo de
produção completamente dependente do mercado. A lavoura torna-se inviável e a necessidade de
renda aumenta muito.
Outras duas fontes de renda significativas na região passam a ser a venda da força de
trabalho para o turismo e para a empresa Sakata. Muitos sitiantes, diante das dificuldades
impostas pelo mercado, vendem suas terras para os ‘chacreiros’
41
que, por sua vez, empregam
mão-de-obra local. Substituindo a lavoura, as estufas de produção de sementes para a empresa
Sakata geram renda a algumas famílias. No entanto, a grande quantidade de insumos químicos
(agrotóxicos) utilizados nesta atividade, coloca em risco a saúde destes trabalhadores. Segundo
D. Felícia
42
“é um serviço muito pesado... pesado não, ruim (...) é uma falta de consideração com
a vida, com a própria vida”.
Desse modo, as realidades empíricas pesquisadas possibilitaram tanto a observação da
campesinidade diante do projeto de modernização proposto desde a década de 1970, como a
reação socioambientalista a esse projeto e suas consequências na organização familiar de
produção, através da agroecologia.
40
Tanto o cultivo de eucalipto como o pasto de baquearia foram citados por alguns sitiantes como responsáveis pela
falta de água na região e, especialmente, pela erosão do solo. Numa análise muito pertinente quanto ao plantio do
eucalipto, os sitiantes identificaram no manejo da espécie o seu ‘problema ecológico’. Segundo eles, o eucalipto é
cortado ‘antes de devolver a água’. o pasto de baquearia, promove uma relativa impermeabilização do solo: ‘a
água corre por cima e não entra no solo’.
41
Expressão utilizada pelos sitiantes para denomina os proprietários ‘de fora’, donos de chácaras de veraneio.
42
Para preservar certas intimidades dos entrevistados, os nomes de agricultores e agricultoras utilizados nesta
dissertação são todos fictícios. A substituição dos nomes foi realizada aleatoriamente, utilizando-se listas de nomes
disponíveis na internet. No entanto, preocupou-se em manter, neste processo de substituição, a característica
referente a nomes santos. Ou seja, nomes santos foram substituídos por outros nomes santos.
106
4.3 Os espaços do sítio
Quando se refere aos espaços do sítio, é importante compreender que o sítio e o processo
de trabalho nele desenvolvido possuem dimensões simbólicas que constroem espaços agrícolas e
também espaços sociais e de gênero. A pesquisa aqui apresentada relacionou estas duas
dimensões.
O sítio é o lugar do trabalho por excelência. Mas ele é igualmente o resultado do
trabalho, pois é um espaço construído; melhor dizendo, um conjunto de espaços
articulados entre si, que lhe permite organizar-se como um sistema de insumos e
produtos. Esse espaço é o resultado, também, de um processo histórico secular
em que o ambiente foi alterado, com a gradativa eliminação da cobertura vegetal
original e de todo o ecossistema que lhe era associado (WOORTMANN;
WOORTAMANN, 1997, p. 27).
Para melhor compreende-las, é de extrema importância a observação e reflexão sobre os
termos utilizados tanto para nomear as pessoas, quanto os elementos da natureza, ou ainda as
relações entre todos estes. Brandão (1995) explica que os sujeitos homens e mulheres são
denominados e classificados de acordo com as diferentes formas de participação no trabalho.
Lavrador, criador, caiçara, caipira, sertanejo, fazendeiro, arrendatário, são denominações “de
dentro” do lugar, dadas às pessoas de acordo com o trabalho realizado por elas naquele momento.
“O sitiante é o dono da terra em que trabalha com a família; o arrendatário é o usuário familiar
da terra alheia, o meeiro o usuário familiar dependente; o camarada é o trabalhador individual
assalariado ou tarefeiro” (BRANDÃO, 1995, p. 96). o chacreiro é o “de fora”, aquele cujo
terreno é usado para lazer ou negócio.
(...) qualquer pessoa da roça ou da vila sabe combinar a seqüência completa das
palavras que dizem que ela é, pelo que ela faz: a) de acordo com a relação de
posse ou uso da terra; b) de acordo com o modo de participação nos sistemas
locais de produção agrícola ou pastoril; c) de acordo com a sua atividade
preferencial de produção; d) de acordo com a relação entre o trabalho e a
residência; e) de acordo com sua origem, por nascimento ou procedência
antecedente (BRANDÃO, 1995, p. 91-92).
Alguns termos são importantes para discutir a identificação de gênero dos espaços do
sítio. Para identificação e caracterização dos espaços femininos e masculinos, alguns autores
utilizam as noções de: espaço próximo ou distante da casa; espaço de dentro (endógeno) ou
107
espaço de fora (exógeno); espaço privado ou espaço público; o espaço domesticado ou espaço
desconhecido, respectivamente (BRANDÃO, 1995; GARCIA JUNIOR, 1983; HEREDIA,1979;
WOORTMANN, 1997). Estas noções são importantes para a análise da realidade empírica. É
importante que elas não sejam compreendidas de forma objetiva ou de maneira restrita, pois,
afinal, referem-se a elementos de dimensões simbólicas e de ordem bastante complexa.
A divisão de trabalho existente no sítio de S. Maurício e D. Tereza e no sítio de S.
Carlos e D. Glória [Vale do Ribeira, 2006] são bons exemplos. Entre outras coisas, o primeiro
sítio contém o espaço da horta, como a principal fonte de renda da família, e um plantio de
maracujá doce, destinado à empresa Natura para produção de cosméticos (projeto Consórcio
Terra Medicinal). A horta é um espaço normalmente feminino que, no caso em questão, é
considerada como espaço de S. Maurício. Isto porque, quando a horta cumpre o papel de fonte
principal de renda da família, independente da proximidade deste espaço com relação à casa,
perde a característica de espaço de dentro (pro gasto) e passa a ser considerado espaço de fora
(pra venda), tornando-se portanto um elemento de relação com o desconhecido: o mercado. O
espaço do maracujá doce é localizado próximo a casa. Apesar da localização e da característica
medicinal (normalmente a esfera da saúde é feminina), sua aproximação com relação à empresa
Natura (espaço de fora, desconhecido, público), torna o plantio de maracujá um espaço
masculino.
No sítio de S. Carlos e D. Glória criam-se porcos e galinhas no arredor da casa e
cultiva-se a horta, localizada “lá no morro”. A horta é distante da casa, segundo D. Glória, por
causa da dificuldade de canalizar a água. No entanto, essa distância não impede sua identificação
com o espaço. Por encontrar-se num espaço longe da casa, a horta, que neste caso ‘é pro gasto’,
não se torna um espaço masculino. Ultimamente, por questões de saúde, D. Glória não tem
conseguido cuidar da horta e essa tarefa tem sido cumprida pelo marido. Ainda assim, a fala de
D. Glória evidencia sua identificação com o espaço: “é ele que está cuidando da horta... não está
muito bonita... porque ele cuida, mas não é que nem a gente...” [D. Glória, Cajati, 2006].
As expressões utilizadas para caracterizar as atividades do sitio também são carregadas de
significados simbólicos que podem ser relacionados à identificação dos gêneros. As mulheres
cuidam da casa, da horta, da criação, dos seus espaços em geral. Os homens trabalham com o
gado, a lavoura e os demais espaços masculinos. Quando a atividade da mãe é realizada no
espaço do pai e vice-versa, ela é denominada ajuda. D. Glória, por exemplo, diz que não
108
trabalha, ajudou muito o marido na roça, mas hoje apenas cuida da casa. Observou-se que
muito trabalho realizado pelas mulheres não é por elas reconhecido. Esta sitiante que não
entende suas atividades como trabalho produz, por exemplo, banana chips para vender nos
mercados e no bar. Para isso, cumpre uma jornada de trabalho que, algumas vezes, ultrapassa o
limite do grau de auto-exploração e causa a ela problemas de saúde.
Além da compreensão das terminologias que indicam divisões de espaço e de atividade
produtiva, é importante compreender algumas especificidades de gênero relacionadas à forma de
conceber as relações entre as pessoas e delas com o ecossistema. O destino da produção para
comercialização ou para auto-consumo determina, em cada um dos gêneros, algumas
peculiaridades quanto à concepção do sistema de produção e reprodução familiar. A diversidade
característica dos espaços e atividades femininas é conseqüência das múltiplas necessidades da
família. Tal diversidade constrói uma cosmo-visão complexa e não-linear, algumas vezes
bastante diferente da cosmo-visão masculina. Os homens normalmente lidam com menor
diversidade e maior quantidade, enquanto as mulheres lidam com maior diversidade e menor
quantidade. As fotografias abaixo ilustram essa discussão. São imagens de cartazes realizados por
um grupo de mulheres (Figura 2) e um grupo de homens (Figura 3), representando um
“calendário sazonal” de suas realidades agrícolas, no Pontal do Paranapanema/SP.
Os cartazes foram construídos como uma das atividades realizadas durante um
Diagnóstico Rápido Participativo, em assentamentos rurais. Os propositores da atividade
preocuparam-se em não interferir nas escolhas dos grupos com relação à construção deste
material. Além disso, homens e mulheres ouviram a mesma explicação a respeito do que era um
“calendário sazonal” e as possibilidades para sua construção. O grupo de mulheres optou por
construir um único cartaz com todos os elementos observados por elas. O grupo dos homens
optou por construir vários cartazes, um para cada uma das atividades produtivas.
109
Figura 2 - Foto do calendário sazonal do grupo das mulheres
Figura 3 - Foto do calendário sazonal do grupo dos homens
110
É interessante notar que o cartaz das mulheres identificou, por exemplo, no período de
Junho à Outubro, tanto a baixa produção de leite, a necessidade de irrigação da horta e a
diminuição da renda, como a presença dos ventos, a ausência do marido, doença das crianças e
conseqüente tristeza da esposa. Essa condição se altera no período de Novembro à Maio. Uma
observação atenta do cartaz permite identificar vários outros elementos, como: a vaca magra e a
vaca gorda; as plantas cultivadas (mandioca, abóbora, milho, mamão, banana e outras frutas); a
secura e “amarelamentodas folhas das árvores (junho-outubro) em oposição ao verde das folhas
(novembro-maio)...
Os homens, por sua vez, construíram cartazes que discutiam cada uma das atividades
agropecuárias realizadas pela família, limitando-se a expor os espaços masculinos, relacionados à
comercialização. Esta foto expõe o cartaz referente à produção do leite. De forma bastante
diferente que as mulheres, os homens também expuseram as vantagens da época das chuvas e
desvantagens da seca. Apresentaram algumas questões políticas e financeiras (custos,
financiamentos e demandas de mercado) e outras relacionadas ao manejo produtivo (ordenha
manual, condições do pasto e do ciclo reprodutivo das vacas).
A observação dos cartazes pode oferecer a visualização de especificidades simbólicas que
dificilmente seriam expressas através de palavras. Comparando as duas percepções com relação à
dinâmica familiar de produção, percebe-se que a complexidade e a diversidade, tanto material
como simbólica, expostas pelas mulheres são substituídas pela sistematização/simplificação e a
racionalidade dos homens. A opção por representar o calendário em um único cartaz (mulheres)
sugere uma visão menos compartimentada por parte das mulheres. como identificar uma
tendência maior, por parte das mulheres, de compreensão holística dos sistemas sociais e
ecológicos. Para concluir, é importante dizer que as diferenças com relação aos gêneros não
devem ser interpretadas de maneira valorativa, buscando superioridades. Ao contrário, pode-se
notar através desta comparação a relevância da complementaridade existente entre feminino e
masculino nas unidades familiares de produção.
4.4 Espaços femininos
É de fundamental importância que se compreenda que as atividades femininas, mesmo
quando não são consideradas como trabalho, compreendem uma multiplicidade de funções que
111
caracterizam uma ação extremamente complexa e produtiva, diretamente relacionadas ao cuidado
da família. Respeitando a autoridade do pai e sua responsabilidade pública com relação à família,
a mãe é quem assume os espaços do sítio destinados ao cuidado dos filhos e do marido.
Geralmente os espaços femininos são todos considerados como a casa. Muitas vezes os sitiantes
dizem que as mulheres cuidam da casa e, quando se verifica o significado disso, percebe-se que o
cuidado com a casa implica em atividades tanto no interior da casa/edificação como nos arredores
da casa e outros espaços específicos, como por exemplo, a igreja.
A casa
A casa é o centro aglutinador dos espaços do sítio, é de onde se sai e para onde se retorna.
Na casa, guardam-se as ferramentas e as sementes. Nela, o alimento é processado e oferecido à
família. A educação das crianças, ‘vem de casa’ e os cuidados com a casa simbolizam a
dedicação da mãe à família.
Sobre a casa/edificação, tal como discutem Heredia (1979) e Garcia Júnior (1983), a
cozinha é o espaço mais feminino da casa. Nas situações pesquisadas, em comparação com a sala
e os quartos, notou-se que a cozinha é geralmente o espaço mais rústico da casa, ou ainda, aquele
que contém menos elementos característicos da cidade.
No Vale do Ribeira, muitos são os casos em que a sala e os quartos são construídos em
alvenaria e piso de cimento, enquanto a cozinha é construída em madeira e piso ‘de chão’ (terra
batida). Em Joanópolis, onde a renda das famílias estudadas é comparativamente mais alta, há
freqüentemente duas cozinhas: a cozinha onde fica o fogão a gás, a geladeira e os demais
eletrodomésticos, e a cozinha onde o fogão a lenha. Nestas casas, todos os cômodos são
construídos em alvenaria, mas a cozinha com o fogão à lenha normalmente não possui forro no
teto e tem necessariamente acesso direto à área externa.
Além disso, a existência da cozinha com o fogão a lenha é um forte símbolo e recordação
do ‘tempo de antigamente’. A cozinha equipada com eletrodomésticos é símbolo de modernidade
e conforto. Observou-se que a rusticidade da cozinha “de antigamente” não faz dela um espaço
menos agradável ou evitado pela família, pelo contrário, ela é um espaço privado muito
valorizado e freqüentado pela família e os amigos. Apesar de não oferecer “facilidades” à mãe, o
fogão à lenha oferece “aconchego” à família.
112
É interessante enfatizar que a casa com fogão a lenha (em funcionamento) e a casa com
fogão a gás adquirem não apenas uma relação simbólica diferenciada, mas também uma
dinâmica interna relativamente própria. O fogão a gás disponibiliza uma praticidade que, por
exemplo, extingue a necessidade de buscar a lenha e ascender o fogo. A arte de produzir o
alimento se mecaniza assim como a arte de tecer o fio foi mecanizada tempos atrás com a
chagada das indústrias têxteis. Extrapolando os limites de gênero, se mecaniza assim como a arte
de cultivar a terra foi mecanizada após o aparecimento do trator.
É importante perceber que as transformações materiais ocorridas na casa são causa e
conseqüência de uma nova dinâmica de vida. O cuidado com a casa do tio cada vez mais se
aproxima ao cuidado com a casa da cidade. Os recursos materiais (eletrodomésticos, produtos de
limpeza, etc.) utilizados pelas mulheres da cidade e pelas mulheres do campo são atualmente
muito parecidos. A dinâmica da casa do campo e a da casa da cidade não guarda mais tantas
diferenças. Assim como, a desvalorização do trabalho doméstico ocorre em ambas, anteriormente
na cidade (período de industrialização) e depois no sítio (período de modernização da
agricultura).
Na sala, espaço tradicionalmente masculino, um elemento chave tanto para sua
coletivização no interior da família, quanto para o acesso ao ‘mundo moderno’ e os valores
urbanos, é a televisão. Com exceção da casa de S. Joel e D. Dinha, onde não acesso a energia
elétrica, as salas de todas as famílias estudadas contém uma televisão.
A horta
Como um dos espaços da casa, tanto no Vale do Ribeira como em Joanópolis, a horta
encontra-se sob os cuidados da mulher. Mesmo naqueles casos particulares em que a horta é
considerada do homem (quando são destinadas à comercialização), ela é cuidada pela mulher.
Nas hortas maiores, geralmente destinadas à venda, a mulher recebe ajuda do marido. Quando
são cultivadas ‘pro gasto’, ficam em inteira responsabilidade feminina. Neste caso, como outros
espaços da casa, a horta é um importante representante da dedicação e honra da ‘mãe de família’
aos seus afazeres.
Segundo S. Igor, no bairro Pinhalzinho (Joanópolis), se uma família não tiver horta: “aqui
no bairro é vergonha, se eu não tenho horta... na horta seu eu não consigo ir, eu num vô...”. S.
113
Igor identifica a falta da horta como “puro relaxo”. A frase de S. Igor encontra sintonia em
Woortmann; Woortmann (1997), quando discutem que “a presença da horta é um sinal de
prestígio, pois ela denota não apenas que o sitiante é forte, com disponibilidade de tempo,
insumos (adubo, força de trabalho) e terra boa, mas também que a mulher é eficiente e bem-
organizada” (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 86).
A esposa de S. Igor, D. Adelina, comenta sobre mulheres que tem ‘preguiça de cultivar
uma horta’ e preferem comprar as hortaliças num mercado. No entanto, aquelas que
consideram o cuidado com a horta um prazer:
(...) mais eu acho assim que, é um prazer, tem gente que tem prazer de fazer isso.
Tem gente que nem come muita verdura, e planta. Só de vê, sabe, que bonito é...
nossa eu gosto de fazer... eu gosto de fazer também, né? mais eu já vi gente falar
assim: eu faço porque eu gosto. Eu adoro aquela plantinha... sabe? Aquela
horta bonita... Aquela criação, aquelas galinha, sabe aquela vaca que tira o
leite... né?... e prazer mesmo, né? você fazer o queijinho e dizer: eu que fiz o
queijo, né? (...) quando caindo uma garoinha você planta o alface, ô beleza! é
sério, sabe, num murcha, a mudinha num murcha. Como dizia a vó, ela pega
com a mesma folha, sabe, com a mesma folhinha que tirou do canteiro ela pega
(...) mais é gostoso mesmo, você tira o leitinho... o leite agora é pouco, dando
bem pouco leite, mais a hora que vem, você já passa, né? é pertinho, você já
uma passadinha na horta também... dá uma olhadinha, né? tira um brotinho...
[D. Adelina, Joanópolis, 2009].
Como outras mulheres entrevistadas, D. Felícia [Joanópolis, 2009] também sente prazer
em cuidar da horta e fica feliz tanto por realizar uma atividade que lembra a sua infância, como
por oferecer ao seu filho, através do mercado da horta orgânica, uma oportunidade de
permanência no sítio. No entanto, como dizem as sitiantes, ‘a horta exige’ grande dedicação,
‘num tem sábado nem domingo’, as ‘verduras’ devem ser cuidadas todos os dias. Tal exigência
faz com que algumas mulheres não queiram mais o compromisso de cuidar da horta: algumas
porque preferem mesmo a facilidade de comprar as verduras no mercado; outras por estarem
“sozinhas” no sítio (sem a ajuda das crianças); ou ainda, porque recebem ajuda financeira dos
filhos e sentem-se satisfeitas podendo passear com a família nos finais de semana.
Em Cajati, a transferência das famílias do sertão
43
para a vila, inviabilizou os espaços que
compõem os arredores da casa como a horta e perturbou diretamente as mulheres. D. Júlia
43
A palavra sertão é utilizada desde os primeiros dias de colonização até os dias de hoje. Como comenta Metcalf “a
palavra sertão (...) designava o desconhecido, a imensa vastidão. Nos mapas, o sertão designava o interior do Brasil,
os territórios sob controle dos índios e a floresta virgem que poderia ainda existir em torno dos povoamentos”
(METCALF, 1996, p. 420). A palavra ainda mantém sua significação dentro do contexto histórico atual.
114
sente-se insatisfeita por estar morando num lugar onde as casas encontram-se muito próximas
uma das outras (a vila): “não para ter uma horta, uma planta, que a criação do vizinho
estraga... e a gente não tem cerca”, então também “não para ter criação”. D. Juana diz que na
vila “a terra está estragada, não presta... as flores ficam feias” e que “gostaria mesmo era de
voltar a viver no sertão”. Com a mudança do sertão para a vila, os espaços que pertenciam a ela
foram reduzidos apenas ao interior da casa, que, ainda assim, “não funciona mais como
antigamente” [D. Juana, Cajati, 2009].
Um caso não característico foi observado em Barra do Turvo (2009), no sítio de S.
Serafin e D. Rita. O sítio, chamado Sítio Ana Rosa, é um Centro de Desenvolvimento de
Sistemas Agroflorestais, ou seja, propriedade referência para os estudos em Sistemas
Agroflorestais - SAF’s. O SAF de S. Serafin possui vários módulos, cada qual com suas
especificidades e, em clareiras próximas a casa, encontra-se separadamente a horta de D. Rita e a
horta de S. Serafin. D. Rita cuida também de um pequeno viveiro de plantas (no espaço da horta)
e de um roçadinho (mandioca, milho, feijão). Seu marido usa a varanda para construir os cestos
de cipó tirados do SAF. O casal, já aposentados, vende separadamente os produtos na feira e
assim obtém cada um a sua renda adicional
44
. As duas únicas situações encontradas durante
a pesquisa de campo cuja horta era considerada espaço do homem foram em casos de produção
agroecológica destinada à comercialização.
As transformações ocorridas com relação às hortas, ou à ausência das hortas, colocam
como elementos da modernização e/ou da relação com o mercado a “facilidade”, a “comodidade”
ou a transformação no ritmo da vida. No caso da mudança da residência para a Vila, mencionou-
se a indisponibilidade de espaços apropriados.
A criação
São chamados de criação os animais de pequeno porte criados nos arredores da casa. Nos
casos pesquisados, geralmente são os porcos e as galinhas. As sobras obtidas durante o preparo
ou após o consumo dos alimentos é normalmente ‘trato’ destes animais. A mãe da família é
responsável pela alimentação da criação, pela limpeza dos espaços em que vivem e
44
A fonte de renda principal do sítio provém do processamento da banana (são produzidos diversos tipos de doce de
banana) e comércio dos produtos do SAF, realizados pelos filhos do casal através da cooperativa Cooperafloresta.
115
eventualmente pela resolução dos problemas de saúde apresentados pelos animais. As galinhas
vivem soltas, ciscam pelo sítio e chocam nos galinheiros ou em ninhos espalhados pelo quintal.
Os porcos ficam presos no chiqueiro, normalmente localizados no terreiro. Estes últimos são,
atualmente, menos freqüentes que as primeiras.
Os animais de criação são ‘pro gasto’, ou seja, tem função principal de alimentar a
família. A criação foi observada com mais freqüência no Vale do Ribeira, o que talvez possa ser
compreendido pela maior dificuldade de acesso aos produtos do mercado (da cidade). Os porcos
assumem uma função importante no sistema de auto-consumo familiar. Principal consumidor dos
restos alimentares, eles ainda fornecem a carne e a ‘banha’
45
para o consumo familiar. Nos dias
de hoje, o frango é a principal fonte de carne nas regiões estudadas. Segundo D. Felícia “no sítio
sem frango é complicado” [Joanópolis, 2009]. Como são poucas as famílias que ainda plantam
roça, o milho não é mais um produto constante nos sítios. Devido à ausência do próprio milho, as
galinhas são, muitas vezes, alimentadas com milho comprado ou ração.
O sítio da D. Ilda possui uma criação mais diversificada do que os outros tios visitados.
Além dos porcos e galinhas, D. Ilda possui uma cabra, um bode, uma vaca
46
e coelhos. Menos
comum que a criação dos outros animais, os coelhos são também fonte de alimento para a
família, assim como os ovos, a carne das galinhas e dos porcos e o leite, tanto das cabras como da
vaca [Cananéia, 2009]. Gansos também são normalmente criados pelas mulheres e possuem
como função principal proteger o território da casa.
Notou-se, a partir dos relatos, que a criação tem diminuído nos sítios. Principalmente a
criação de porcos foi substituída pela obtenção de produtos do mercado. As mulheres, tanto em
Joanópolis como na região do Vale do Ribeira, contam que, antigamente, a ‘banha’ do porco era
utilizada para conservação das carnes, para produzir sabão e principalmente para o cozimento dos
alimentos. Hoje em dia a ‘banha’ foi substituída pelo óleo de soja, comprado no mercado.
Uma reflexão sobre o sistema de organização dos sítios, considerando-o como um
agroecossistema, permite compreender a função ecológica e cio-cultural dos animais de
criação. Sem aprofundar esta análise, pode-se notar: as características ecológicas cumpridas
especificamente por cada animal; a função de re-inclusão dos restos alimentares ao sistema
45
Assim é chamada a gordura do porco, utilizada para estes fins.
46
A vaca, quando é criada apenas para fornecer o leite suficiente para a família, é geralmente considerada como
criação, sob os cuidados da mulher.
116
ecossistema familiar
47
; a importância simbólica da criação dos animais pela mãe para o sustento
de sua da família; e ainda, a função de iniciação das crianças nas relações de produção familiares.
O roçadinho
Também chamado no Vale do Ribeira de ‘roça branca’, o roçadinho é uma pequena
roça, aberta pelo pai, num espaço próximo a casa. Neste espaço, os filhos iniciam suas atividades
agrícolas e a mãe obtém, em pequenas quantidades, produtos importantes para a alimentação da
família, que não sejam produzidos na roça principal (milho, feijões, abóbora, mandioca, inhame,
café, etc.).
As dificuldades legais para abertura de roça (corte e queima de vegetação) e a redução da
área dos sítios, contribuíram bastante para o fim dos roçadinhos. De maneira geral o cultivo de
alimentos diversificado tem sido dificultado. As transformações relacionadas ao melhoramento
genético das plantas, compactação dos solos, multiplicação de ‘pragas’ e outras dificuldades de
manejo impostas pela modernização geram a situação do alimento que ‘hoje sai comprado’, ou
seja, se gasta no processo produtivo o que se gastaria (ou mais) comprando o alimento no
mercado. Além disso, como será discutido nos próximos parágrafos, a demanda das próprias
famílias, influenciadas ideologicamente pela ‘valorização do novo’, é frequentemente maior para
o alimento comprado.
A área, onde D. Bia cultivava feijão, mandioca, inhame, e outros alimentos, virou pasto.
Seu marido é envolvido com questões políticas (foi vereador em 2006) de Cajati e seu filho
Patrick trabalha no sítio cuidando do gado, da banana e da apicultura. As duas filhas foram morar
na cidade para estudar e, com essas transformações, D. Bia “ficou sozinha”. Depois que “ficou
sozinha” ela “desanimou” de cultivar o roçadinho e a área virou pasto.
Ainda assim, observaram-se alguns casos em que a mulher mantém um roçadinho nas
proximidades da casa. Além do roçadinho de D. Rita [Barra do Turvo, 2006] citado
anteriormente, ainda alguns casos em que se cultivam certos alimentos pelo quintal
(principalmente frutas, tubérculos e café), não necessariamente formando o que se reconhece
como roçadinho. D. Juana [Cajati, 2006], por exemplo, cultiva ao lado de sua casa uma pequena
47
Poderia se retomar neste momento a reflexão sobre o conceito de falha metabólica desenvolvido por Marx e
resgatado por Bellamy Foster (2005). Nos sistemas observados, onde não impermeabilização do solo e ainda a
presença dos animais de criação, não há o que Marx denominou de falha metabólica.
117
plantação de café (cujos grãos são colhidos, torrados e moídos por ela), alguns pés de mandioca e
inhame.
Como para os outros espaços, a permanência ou desaparecimento do roçadinho depende,
na verdade, de uma conjuntura de fatores. Desde as condições materiais como a disponibilidade
de espaço, mão-de-obra, sementes e outros instrumentos de trabalho; até as condições simbólicas
como a desvalorização do alimento “da terra” em contraposição à valorização do alimento “do
mercado” e o “desanimogerado pela perda da função educativa e aglutinadora destes espaços,
são elementos relacionados ao relativo desaparecimento dos roçadinhos.
A casa de farinha, o monjolo e o pilão
A casa de farinha é, basicamente, o espaço onde se transforma a mandioca em farinha.
Alguns instrumentos característicos deste trabalho são o ralador e a prensa. Este espaço de
processamento do alimento é caracteristicamente um espaço feminino, onde a mandioca é ralada,
prensada, peneirada e levada ao forno (taxo ou tambor) para secar e virar farinha. As crianças
ajudavam com freqüência na produção de farinha. No entanto, nas regiões pesquisadas, a
produção de farinha não faz mais parte do cotidiano de trabalho feminino da maioria das
famílias. A casa de farinha tornou-se um elemento representativo na memória dos sitiantes; a
memória sobre aquele tempo bom, aquele tempo de fartura.
O monjolo é um instrumento utilizado também para fazer farinha, no caso, a farinha de
milho. De maneira geral é utilizado pelas mulheres para ‘socar’ alguns produtos da roça e
transformá-los em determinado alimento para a família. A expressão ‘socar’ trata-se da ação de
uma ferramenta (geralmente de madeira) sobre um produto (arroz, café, milho). No caso do
monjolo a força utilizada é a força da água. O monjolo processava grandes quantidades de
alimento (descascava o arroz, moía o café para fazer pó e o milho para fazer farinha), necessários
às grandes famílias. A mesma função do monjolo poderia ser realizada no pilão, sobre força dos
braços fortes da mulher ou vários braços das crianças. Neste caso – ‘socar’ no pilão o
processamento era realizado em menor escala.
D. Bia [Cajati, 2006] conta que ao se casar, foi morar no quintal da casa da sogra, ao lado
da casa de farinha. Mostrando aquele espaço ela se recorda daquele tempo em que se comprava,
para alimentação, apenas o sal. Relata aquele tempo em que a casa de farinha, o monjolo e o pilão
118
eram espaço e ferramentas femininas importantes, que garantiam o ‘sustento’ da família. Uma
das etapas de processamento da alimentação mais freqüentemente identificada com a dificuldade
daquele tempo é esta de ‘socar’ o arroz, o milho e o café. No entanto, são os alimentos assim
trabalhados que representam a fartura e a saúde deste mesmo tempo. D. Cássia [Cajati, 2006] se
recorda desse tempo em que comia ‘comida da terra’ em tom de saudades e gratificação. D.
Cássia se orgulha em contar que ainda mantém a prática de pilar o arroz, fazer farinha e de
café, mas lamenta que “hoje as moças não têm mais coragem” de fazer tudo isso.
No sítio de D. Benedita, mãe de D. Tereza, ainda existe um monjolo que, apesar de muito
bonito, não é mais utilizado para ‘socar’. Aquele monjolo trabalhou muito naquele tempo em que
a família era grande e, segundo ela, a vida era muito diferente” [D. Benedita, Barra do Turvo,
2006]. S. Osmar comenta que “hoje é raro onde existe um monjolo” porque “a água num toca
mais, é pouca”. Na infância, S. Osmar e seus irmãos seguiam a rotina de “chegar em casa no final
do dia e pilar arroz”. Juntos, ajudavam a mãe no processamento do alimento. Segundo ele era
sofrido, mas era divertido” [Joanópolis, 2009].
Uma casa de farinha numa versão moderna cumprindo as exigências estruturais legais
da vigilância sanitária funciona no sítio de S. Juarez [Cajati, 2006]. A família de S. Juarez está
investindo na produção de mandioca em sistemas agroflorestais, nas ‘condições sanitárias’
necessárias em seu processamento e na comercialização da farinha. Num ‘tempo moderno’, a
farinha de mandioca adquiriu outro significado: de sustento da família ela torna-se possibilidade
de renda.
O quintal
O quintal é também um espaço de produção para auto-consumo. Muitas vezes pode-se
comparar antigos quintais ao que tem sido proposto ultimamente pelos SAF’s. A diversidade de
árvores frutíferas, mandioca, abóboras, café e outros cultivos agrícolas, plantados num mesmo
espaço, não parece novidade aos olhos de D. Rita [Sete Barras, 2006], moradora mais antiga (95
anos) do bairro Guapiruvu. D. Rita resiste à idéia de não poder queimar o mato para fazer uma
roça, mas quando compreende o princípio da biodiversidade do sistema agroflorestal, não se
surpreende e diz que isso, o consorcio de plantas, ela sempre fez.
119
Nos arredores das casas, é comum a existência de frutas e flores. Limão, laranja, banana,
abacaxi, acerola, pitanga, goiaba, abacate, manga e diversas outras frutas compõem os quintais de
muitas das casas. Além do consumo ‘no pé’ e dos sucos naturais, as frutas oferecem ainda a
possibilidade da produção de doces.
Mesmo que não formem um pomar ou um quintal agroflorestal, as frutas do quintal são
consideradas elemento básico aos espaços domésticos. A expressão ‘num tem nem um pé de fruta
no quintal’ simboliza uma situação de muita escassez ou de ‘puro relaxo’. As frutas pertencem à
dieta de muitas das famílias estudadas, mas não são consideradas como alimentação. É curioso
como o alimento que é comido fora dos momentos da refeição é, desde muito tempo, considerado
‘porcaria’. Independente de sua composição nutricional, as frutas, principalmente as ‘frutas do
mato’, são coisas de comer’ fora do horário das refeições. Quando se discutia a questão da
alimentação das crianças e das ‘porcarias’ alimentares da cidade (alimentos industrializados em
geral), S. Igor [Joanópolis, 2009] comentou: “nós comia porcariada no sítio, mais do mato... saía
e... sabe aquelas amorinha? Nossa mãe do céu... [Risos... mais isso num é porcaria, isso é coisa
boa!] pro era... era feijão com arroz, feijão com arroz e farinha, era assim... alimentação é
assim”. A fruta ‘amorinha do mato’ era considerada porcaria e não alimento.
No entanto, mesmo no sítio, as frutas também foram substituídas por produtos
industrializados, comprados no mercado. Os sucos naturais são substituídos por sucos vendidos
em pó. S. Igor se surpreende por seu vizinho ter cortado um limoeiro: “teve uns vizinhos que
cortou o de limão, uai... eu o de limão eu num corto nem...”; e ainda acredita que os sucos
artificiais em pó são consumidos no lugar dos sucos naturais porque “é mais fácil, é pura
preguiça” [S. Igor, Joanópolis, 2009]. Nas transformações do quintal, portanto, também está
presente a gica da facilidade e do consumo de produtos industriais, característica do paradigma
moderno.
As sementes
A semeadura é uma das atividades femininas realizada num espaço masculino a roça ou
lavoura. A abertura das covas é feita pelo pai e a introdução das sementes, ou talos, é realizada
120
pela mãe
48
. Além disso, as sementes são armazenadas em casa, sob os cuidados maternos. Pode-
se perceber, em diversos momentos das entrevistas e observações de campo, que as plantas e os
processos de trabalho são constantemente comparados às pessoas e às suas relações pessoais,
assim como a terra e a outros elementos naturais. Se as plantas são, em determinados períodos de
suas vidas, ‘jovens’ e depois ‘adultas’; as sementes são como os ‘bebês’. Assim, é compreensível
que a limpeza da roça realizada após o plantio seja também uma tarefa feminina: se as sementes
são como bebês, as plântulas são como crianças, dependentes do cuidado da mãe.
Pela associação entre a fecundidade e a fertilidade, a mulher acaba assumindo uma
identificação simbólica, maternal, com relação à semente. No entanto, como foi discutida
anteriormente, a incessante modernização da agricultura, como estratégia de construção da
dependência da agricultura pela indústria, desenvolve procedimentos de manipulação genética
que criam um domínio agroindustrial sobre as sementes. “Enquanto a RV [revolução verde]
baseava-se no pressuposto de que a terra é inerte, a revolução biotecnológica rouba da semente
sua fertilidade e capacidades auto-regenerativas, colonizando-a de duas maneiras principais: por
meio de técnicos e pelos direitos de propriedade” (SHIVA, 2001, p. 74).
Em entrevista com S. Igor e D. Adelina, o agricultor utiliza uma comparação entre os
seres humanos e as plantas para explicar a dependência criada pela agroindústria através das
sementes. S. Igor, assim como outros agricultores, concordam com a idéia de S. Sebastião de que
as sementes estão ‘viciadas’ no adubo. Ele acredita que as sementes “saem do laboratório assim”.
Sobre a interferência da biotecnologia na composição genética das sementes: “é o mesmo que o
bebê tomar vacina na barriga da mãe, né?” [S. Igor, Joanópolis, 2009]. O agricultor entende a
dependência das sementes aos adubos e pesticidas como uma doença criada propositalmente, com
intenção de garantir a venda destes produtos. Segundo ele, para garantir maiores rendimentos
econômicos “eles vendem o tratamento, não a cura” [S. Igor, Joanópolis, 2009]. Na sua visão, os
adubos e pesticidas são ‘o tratamento’, mas apenas uma semente geneticamente independente
destes produtos seria ‘a cura’.
48
Ellen e Klaas Woortmann discutem como o processo de trabalho evoca a sexualidade: “O processo de plantio,
quando se segue imediatamente à abertura das covas, com sua divisão de trabalho, é explicitamente associado à
sexualidade, ainda que haja uma inversão com relação à reprodução humana, não perdida de vista nas falas sobre o
assunto, principalmente no que tange à mandioca – lá, como cá, metáfora de um pênis com dimensões apreciáveis. O
homem “vai na frente” abrindo os “buracos” (covas); a mulher “enterra o talo”. Por fim, o filho “fecha o buraco”.
(...) Comparam tal processo de trabalho a outra atividade na roça, o intercurso sexual: a mulher “abre o buraco”, o
homem “enterra a maniva” e mais tarde o filho “sai do buraco”” (WOORTMANN; WOORTMANN, 1997, p. 140).
121
Esta comparação entre elementos da natureza e seres humanos (metáfora) é utilizada com
muita freqüência pelos sitiantes entrevistados. Nota-se que um dos importantes fundamentos
deste procedimento, principalmente quando ele aproxima plantas a pessoas, é o reconhecimento
do ciclo da vida. Comparando os ciclos vitais, o bebê e as sementes encontram-se num mesmo
momento. Tal aproximação, desperta nas mães agricultoras um desejo e responsabilidade no
cuidado, por exemplo, com as sementes e plântulas.
4.5 Espaços masculinos
O homem, pai de família, é o representante do núcleo familiar à sociedade. A relação
entre suas atividades e os fatores exógenos o mercado ou o mato caracterizam-nas como
trabalho. A autonomia no processo de trabalho é elemento muito importante para os sitiantes,
mas o trabalho, diferentemente da ajuda e do cuidado, coloca essencialmente a família
camponesa em relação com o desconhecido.
A Roça
A roça ou lavoura não é mais um elemento essencial na maioria dos sítios estudados.
A diversidade da roça lugar à monocultura, modelo produtivo comum às duas regiões
estudadas. A ausência ou diminuição dos espaços da roça está intimamente relacionada á
substituição do auto-consumo pela aquisição de alimentos no mercado.
Devido às diferenças históricas e socioeconômicas das duas regiões pesquisadas (Vale do
Ribeira e Joanópolis), mesmo que tenha seu fundamento num mesmo processo de
agroindustrialização, o relativo desaparecimento das roças possui especificidades regionais. No
Vale do Ribeira, a expropriação de terras para a introdução da grande bananicultura e os
impeditivos legais relacionados à preservação da Mata Atlântica são os principais elementos que
justificam a ausência das roças. Em Joanópolis, por sua vez, o ‘pacote tecnológico’ vendido
desde o período da revolução verde está fortemente relacionado à falência do modelo de
produção alimentar, tal como era desenvolvido pelas gerações anteriores àquelas entrevistadas.
Nesta região, a dependência com relação às sementes, os insumos e o maquinário agrícola; o
122
aparecimento da braquiária
49
; e a divisão de terras por herança, são os principais impeditivos
quanto ao cultivo da lavoura.
Observa-se, ainda, que a ideologia da modernidade baseada numa valorização do modo
de vida urbano em relação ao modo de vida rural, numa valorização das inovações tecnológicas e
negação doatraso do campo’ – é disseminada nas duas realidades pesquisadas. Como se
apresenta no decorrer deste capítulo, estas transformações ideológicas, que caminham com as
transformações materiais, fundamenta uma concepção de que o sitiante “tem que mudar também,
porque se não fica muito pra traz, né?” [S. Osmar, Joanópolis, 2009].
Nos poucos casos em que ainda se ‘trabalha a roça’, sua produção é ‘só pro gasto’ fato
que talvez aproxime a roça atual do roçadinho de antigamente. Apesar do auto-consumo de
antigamente ter sido discutido nas duas regiões pesquisadas, as descrições sobre o trabalho da
roça aparecem com mais freqüência e detalhamento nas entrevistas realizadas em Joanópolis.
Este fato não decorre de uma peculiaridade regional quanto ao cultivo da roça, mas da
possibilidade de maior participação dos homens nas entrevistas realizadas nesta região.
S. Jesus e D. Tita são uma das poucas famílias do bairro Cacãn (Joanópolis) que ainda
plantam lavoura, ‘pra comer nós planta’. Durante a entrevista, enquanto explicava a diferença
entre o trabalho na roça de hoje e de antigamente, S. Jesus fez uma descrição sobre o processo de
cultivo realizado ‘naquele tempo’:
Aquele tempo podia queimar, entendeu? você roçava uma capoeirinha assim... e
queimava. Então ficava barata a planta por causa disso aí. A turma num arava,
né? E a terra era... vamos supor... era capoeira largada, 8 ou 10 anos. Que a
turma já deixava, né? Pra descansar a terra... e depois roçava e vinha por baixo e
queimava. Hoje num pode queimar (...) então, aquele tempo... num... daí num
arava. Plantava na queimada, ficava bom, num precisava de adubo, que a
terra tava descansada, né? E dava muita planta! (...) Daí plantava até cansar de
novo. A hora que cansava... deixa outra vez, larga mão de novo outra vez, mais
2, 3, 4 anos de novo... daí plantava noutro lugar, entende? Daí... deixava
descansando e ia plantar do outro lado.
e no ‘tempo de hoje’:
(...) que hoje não. Hoje, encheu tudo de braquiária, (...) braquiária é praga
hoje, então ficou difícil hoje mexer com o terreno por causa da braquiária. A
braquiária enraíza, né? E aquele lá... meu Deus do céu... aquele lá, quanto mais
você ara mais bonito ele fica!
49
Nome comum utilizado para a gramínea Brachiaria sp..
123
[Risos... E como vocês fazem?]
hoje... matando, né? A gente matando ela, passa veneno, daí ela fica 3
meses, 4 meses, pra ela começar a brotar, um tempo. Mais sai... sai de
volta. Cada vez que plantar tem que por veneno, daí se põe o veneno, daí o
milho cresce, né? Daí depois você... você colhe o milho... batata que a turma
planta... daí depois que... pra colhe uma planta. Depois sai de novo... não sei
porque, eu... não sei de onde veio essa planta aí que... não sei de onde veio. Ouvi
dizer que o... aquele da rádio, o Zé Betio que trouxe a semente de muito longe...
[Então a braquiária atrapalhou?]
bom... é um bom pasto, ele agüenta a criação, é o que agüenta a criação é o
braquiária, né? Porque não tem outro capim pra agüentar criação se não for
braquiária... mais que... atormenta com ele, né? (...) agora não tem mais
lavora, tem pasto. A lavora ficou muito ruim de mexer... teve que... tem que
virá o mundo pra mexer também, né? Pelo menos... dando pra comer tá bom,
né? Tem que ir se virando, num é verdade? ... porque aqui num é que nem
galinheiro não... aqui... aqui você leva a vida boa! [S. Jesus, Joanópolis, 2009].
A situação de que “hoje num pode queimar” é um elemento que aproxima o Vale do
Ribeira e Joanópolis nas descrições sobre o sumiço da roça. A impossibilidade da prática do fogo
na ‘formação da roça’ é uma explicação muito freqüente para a ausência deste modelo de
produção de alimentos o sistema de coivara praticado durante muitas gerações. No Vale do
Ribeira região em que a forma de ocupação das terras possibilitou a manutenção de grandes
áreas de Mata Atlântica, protegidas desde cedo pela política ambientalista a paisagem
predominante ou é coberta por Mata Atlântica ou pelos bananais. Em Joanópolis, predominam as
áreas de pasto e monoculturas de eucalipto.
S. Ricardo [Joanópolis, 2009] conta que, no tempo de seu pai (por volta de 1970), o milho
e o feijão eram cultivados juntos. Primeiro colhia-se o milho e depois o feijão. Este último era
colocado para secar no próprio de milho (quebravam-se os pés de milho e amarravam-se os
ramos de feijão, expostos ao sol). No entanto, o processo de abertura de roça era realizado por
sua família de forma diferente àquela narrada por S. Jesus. Pertencentes a uma ‘família de
posses’, sua irmã mais velha, D. Neuci, conta que a família também cultivava (sem adubo) a terra
descansada (capoeira ou mato), colocava fogo e plantava a roça até que a terra se cansasse e o
fosse mais capaz de produzir boas colheitas. Contudo, a antiga área de roça não descansava, pois
virava pasto: “o pai ia plantando e formando pasto” [D. Neuci, Joanópolis, 2009]. O pasto, antes
da chegada da braquiária, era formado com ‘capim gordura’, considerado muito bom pelos
sitiantes entrevistados.
124
A transição da agricultura manual para a agricultura mecanizada é marcada, segundo S.
Lazinho [Joanópolis, 2009], por uma questão de comodismo. O sitiante diz que o jovem de hoje
não aceita mais trabalhar a roça ‘no braço’, não vai preparar a terra com a enxada se o trator pode
fazer isso por ele. Como conseqüência desse processo, na concepção do agricultor, o que veio
para ajudar [a modernização] acabou inviabilizando a lavoura. Além disso, a maioria dos sitiantes
comentou sobre a ‘falta de gente’ para trabalhar na roça. A diminuição das famílias e o êxodo
rural estão criando uma situação de escassez de mão-de-obra para agricultura familiar dessa
região. A família de S. Igor e D. Adelina, no bairro Pinhalzinho, é uma das poucas que, segundo
o casal, ainda possui a alimentação baseada (70%) nos produtos do sítio. No entanto, S. Igor diz
que “a roça está desanimadora... e a tendência é diminuir mais. Uma que pra trabalhar na roça
tem que ter gente, não tem gente mais. Pode saí por pra procurar gente... está todo mundo indo
embora, não tem como ficar” [Joanópolis, 2009].
Segundo S. Lucas (irmão de S. Ricardo e D. Neuci) e sua esposa, D. Neuma, a lavoura
acabou por ‘causa do mercado’, ou seja, pela dificuldade de venda dos produtos da lavoura. A
desvalorização dos produtos da roça e o aumento do custo de produção têm inviabilizado a
produção familiar de alimentos. O alimento ‘hoje sai comprado’. A roça ‘num tem jeito mais’.
O mercado
A ligação do elemento mercado’ ao campo/espaço masculino poderia ser questionada a
partir de alguns casos comuns em que são as mulheres quem se envolvem em tarefas relacionadas
com a venda. Nas regiões estudadas, observaram-se alguns exemplos em que elas eram quem
estabeleciam as relações de venda, como, por exemplo, a venda de hortaliças na cidade, ‘de porta
em porta’. Como foi discutido no início deste capítulo, a identificação de gênero não acontece
objetivamente. Determinadas dimensões sócio-culturais o nível de interação
endógeno/exógeno, a repercussão social, o volume das vendas, e outros fatores são mais ou
menos representativas, em cada caso específico. Segundo Burg “(...) eles [homens] preferem e
têm uma aceitação social melhor se trabalham com produtos que têm volume, mesmo esses sendo
menos rentáveis por área do que certas ‘miudezas’. A maioria das mulheres é responsável por
todo trabalho que envolve os produtos da feira” (BURG, 2005, p. 102).
125
São ‘miudezas’, por exemplo, a polpa de Juçara, os licores, as geléias e pimentas vendidas
na lojinha da AGUA, no Guapiruvú (Sete Barras); as hortaliças que D. Tereza [Barra do Turvo,
2006] carrega na carriola até a cidade; ou ainda os doces produzidos por D. Neuma [Joanópolis,
2009].
Contudo, na maioria das vezes ‘o mercado’ e não ‘as vendas’ - é mencionado em sua
representação masculina, ‘aquele’ com quem o pai de família negocia os produtos da atividade
agrícola da lavoura (feijão, milho, mandioca, etc.) ou agropecuária extensiva (gado de corte e
leite, eucalipto, banana, etc.). Neste caso, principalmente em Joanópolis, as transformações
decorrentes da modernização da agricultura parecem ter alterado a função do mercado: de destino
do excedente para determinante da produção. Ou seja, nos relatos feitos pelos sitiantes da região,
o mercado era o comprador do excedente da produção da lavoura. Hoje, muitas vezes culpado
pelo desaparecimento da lavoura, ele é um dos elementos que determina a produção do sítio.
D. Felícia e S. Osmar [Joanópolis, 2009] têm, atualmente, um dos sítios com produção
mais diversificada. Além de investirem numa ‘casa de hóspedes’ para o turismo, produzem
hortaliça orgânica, cultivam café num sistema diversificado, pasto para o gado de corte e de leite,
possuem um pomar e uma criação de galinhas. Segundo D. Felícia “a gente vai levando o
exemplo, né?”. O pai de D. Felícia foi um dos primeiros a ter um trator na região. Ele plantava
feijão, milho, batata “de bastante”. Mesmo produzindo em larga escala, “pra ganhar mais”, ele
“nunca deixava de plantar as coisas essenciais pra casa... de pouco. Mais que também sobrava pra
vender. Vendia na rua... levava nos armazéns...” [D. Felícia, Joanópolis, 2009]. Este caso da
família de D. Felícia pode esclarecer a diferença quanto à influência do mercado “de hoje” e “de
antigamente”. Como discute Woortmann (1978), o mercado obtém, historicamente, influência
sobre o cultivo principal da família camponesa. A demanda do mercado, desde “antigamente”,
exerce influência sobre o produto alimentar a ser plantado para comercialização e consumo.
Analisando criticamente a oposição entre produção de subsistência e produção
comercial, Pacheco explora a noção proposta por Garcia (1976) e mostra que o
camponês distribui os fatores de produção sob seu comando entre uma lavoura
“comercial-subsistência” e outra “subsistência-comercial”, a primeira destinada
fundamentalmente à venda, mas também ao auto-consumo, e a segunda
primordialmente a este último, mas igualmente à venda, particularmente em
certos momentos de “precisão”. (...) A exploração conjunta dessas duas ordens de
alternatividade possibilita ao “colono” de Santarém não apenas assegurar sua
subsistência (inclusive pela inversão do destino primordial do produto) como
também realizar projetos de ascensão social. No entanto é necessário enfatizar,
126
como o faz Pacheco, que é o destino comercial que determina a alocação de
recursos produtivos, configurando produtos principais tanto para a venda como
para o consumo: a farinha-puba e o arroz são, ao mesmo tempo, os principais
produtos para a venda e para o auto-consumo. (...) Poderíamos então dizer que os
hábitos alimentares obedecem a critérios de “racionalidade” econômica. A
substituição da farinha seca e do milho pela farinha puba e pelo arroz para
consumo, significa adequar este aos princípios de uma maximização de retornos
por unidade de fator empregada. Insistir no consumo daqueles produtos
“cearenses” como base de uma dieta alimentar significaria dispersar os fatores de
produção à disposição do “colono”. Assim, é racional tornar central à dieta
alimentar aquele produto que ocupa posição central nas relações de mercado; em
outras palavras, adequar o uso à troca. Mas, se a produção determina o consumo,
o camponês resiste a cultivar produtos de destinação exclusivamente comercial
(WOORTMANN, 1978, p. 5-7).
No entanto, como comentou D. Felícia, a diversidade produtiva garantia a alimentação da
família, ou seja, a produção para consumo, independente da produção para comercialização, o
faltava no “tempo do seu pai”. Ao contrário disto, nos tempos de hoje, pode-se observar uma
tendência à restrição da produção aos limites do mercado. Isto significa que os produtos
alimentares que não são demandados pelo mercado deixam de ser produzidos e passam a ser
adquiridos no mercado. A lavoura tende a desaparecer e a produção agrícola limita-se à demanda
do mercado; muitas vezes limita-se a cultivos não alimentares, como a produção de eucalipto ou
da soja.
S. Jesus avalia a situação atual da lavoura comparando o custo de produção dos alimentos
com o valor de venda desses produtos: “hoje num compensa, fica muito caro pra nós... você vai
vender, o preço é muito barato... você vai comprar o adubo, o adubo é muito caro... aração de
terra é muito cara...” [Joanópolis, 2009]. S. Igor e D. Adelina moradores de um dos poucos
bairros de Joanópolis que ainda áreas de lavoura, o Pinhalzinho – vão ainda mais adiante nesta
análise e compreendem que dinheiro acumulando em algum lugar. Segundo ele: “num sei se
tem gente ganhando muito dinheiro... pode ser, atrás da gente, né? Nas costas da gente, tem gente
ganhando muito” [S. Igor, Joanópolis, 2009]. Sua esposa completa: “pode ser... né? Porque se as
pessoas num tem muita consciência... acaba faltando... porque, por exemplo, o produtor tem
todo esse trabalho, compra caro, fica ali com a continha feita, se o dinheiro da lavoura der pra
pagar aquele gasto, bem, se num der ele vai ter que vender alguma coisa e pagar...” [D. Adelina,
Joanópolis, 2009].
É por essas dificuldades de produção da roça, impostas pelo sistema de cultivo e pela
relação com o mercado, que o alimento torna-se mercadoria. Produzia-se alimento para consumir
127
e vender; hoje se produz mercadoria (alimento ou o que o mercado demandar) para adquirir
renda. Transita-se da economia de excedentes para a economia de mercado. A alimentação
desloca-se do centro da questão e abre espaço para a produção de mercadorias. Num contexto um
pouco diferenciado, tratando-se de pescadores ao invés de agricultores, Woortmann (1992)
elabora uma reflexão muito pertinente para tratarmos desta transformação:
Se antes o peixe vendido era o que excedia às necessidades do consumo familiar,
que tinha preeminência no cálculo, agora o consumo familiar é o que sobrou, o
que não foi vendido, pois a venda ganhou o lugar de preeminência. De
“economia de excedente”, à maneira camponesa, passou-se a um consumo de
sobras (WOORTMANN, 1992, p. 47).
No caso aqui pesquisado, o que sobra às famílias sitiantes é a possibilidade de comprar
seu alimento no mercado da cidade. Sem ‘nem saber de onde vem’ o feijão e o arroz, os antigos
produtores passam à condição de consumidores de alimentos produzidos pela agroindústria.
O Mato
As duas regiões de Mata Atlântica Serra da Mantiqueira e Vale do Ribeira possuem
um histórico de degradação/preservação bastante distintos. Como toda área florestal, esta mata é
chamada pelos sitiantes de ‘mato’. A região do Vale do Ribeira, como se discutiu anteriormente,
possui mais de 30 anos de ação ambientalista voltada para a conservação da Mata Atlântica na
década de 1980, a política ambiental
50
no Brasil ganha força e passa a ser prioridade do governo
de André Franco Montoro. Por ser a região do estado de São Paulo que apresenta maiores
extensões de Mata Atlântica preservada, o Vale do Ribeira torna-se alvo de atenção não apenas
do governo, mas também das ONG’s ambientalistas.
Junto às expropriações por parte dos grandes produtores de banana, a criação das UC’s na
região também expropria muitas famílias locais, sitiantes posseiros. O fortalecimento da ação
ambiental fiscalizadora, por parte do governo, e extensionista, por parte das ONG’s, inviabiliza a
reprodução do modo de vida das famílias camponesas, tal como acontecia durante muitas
gerações. Sem possibilidade, por exemplo, de dar continuidade ao sistema de coivara – abertura e
50
Fazem parte da legislação ambiental brasileira: Código Florestal; Código de Pesca; Código de Águas; Sistema
Nacional de Unidades de Conservação SNUC; e ainda, especificamente sobre o Bioma Mata Atlântica, a Lei
11.428, de 22 de Dezembro de 2006.
128
descansos das roças devido à proibição do fogo, os sitiantes, num primeiro momento, passam a
vender os produtos extraídos do mato para obtenção de renda e acesso à alimentação. A caça e a
extração do palmito Jussara são dois exemplos de atividades tradicionalmente praticadas em
pequena escala, para o sustento das famílias, que passaram a ser praticadas, ilegalmente, em
maior escala, para obtenção de renda. Bernini (2005) transcreve algumas falas de suas entrevistas
com antigos moradores do bairro Guapiruvu (Sete Barras), importantes para esclarecer uma das
concepções sobre ‘o mato’ e a política ambientalista na região:
No nosso tempo tinha mais mercadoria que agora. Tudo tirava da terra. Nós
derrubava, queimava para fazer a roça e nunca que acabou esses mato. Depois
que entrou o meio ambiente é que começou a acabar. Tem terra mas o povo
não pode trabalhar, então entra pra tirar palmito pra ter o que comer. [Seu
Santana, julho/2005] (BERNINI, 2005, p. 68).
Mas naquela época era diferente, palmito, ninguém não tirava... Palmito foi de
um tempo para cá... Para consumo da gente sim, até agora não é proibido... De
uns tempos pra cá que começou, quer ver foi em 47 que começou tirar palmito
aqui... E esse lugar que a gente mora aqui era puro palmito... [Seu Altino Alves,
julho/2005] (BERNINI, 2005, p. 34).
Nota-se, portanto, a existência de uma associação tanto da degradação do ambiente como
da falta do palmito Jussara às próprias ações ambientalistas. As transformações impostas à região
e sua conseqüente interferência no modo de vida das populações que ali moravam são percebidas
pelos sitiantes como a causa da desordem socioambiental. No entanto, os anos de aproximação às
ações ambientalista e as capacitações de cunho socioecológico oferecidas por diferentes
instituições, possibilitam a alguns grupos o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência
relacionadas ao próprio discurso ambientalista. A política ambientalista do estado, a aproximação
às universidades e principalmente a ação de ONG’s, possibilitou uma organização comunitária e
a fundação de algumas associações como a Associação dos Agricultores Agroflorestais de
Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR - Cooperafloresta e a Associação dos Moradores do Bairro
do Guapiruvu AGUA. Essas organizações, ou ainda grupos sociais não organizados
juridicamente, obtém algum tipo de apoio ou incentivo para construir alternativas ecológica e
socialmente adequadas à atual realidade socioambiental e política do Vale do Ribeira.
Entre estas, o desenvolvimento de Sistemas Agroflorestais é uma alternativa que se
desenvolveu e frutificou na região. Ernst Götsch (referência internacional no desenvolvimento de
SAF’s) há aproximadamente 15 anos disseminou suas idéias e práticas agroflorestais na região. O
129
investimento das ONG’s no desenvolvimento dos SAF’s e as condições favoráveis quanto à
disponibilidade de água e matrizes de vegetação nativa, foram importantes para a consolidação
destes sistemas na região, que hoje são referências em muitos lugares do país. Ainda assim,
amenizado pelo tempo, existe um conflito entre aquelas famílias que desenvolvem os SAF’s e
aquelas que discordam da inovação. É bastante comum ouvir algumas pessoas principalmente
os mais velhos acusarem os ‘agrofloresteiros’ de ‘loucos’, ‘preguiçosos’, sitiantes que
abandonam a banana no meio do mato
51
. “A vida toda a gente derrubou para plantar o arroz, o
feijão e o milho. Agora vêm dizer que tem que plantar em baixo do mato. Não nada. o
palmito [Seu Toninho Teixeira, julho/2005]” (BERNINI, 2005, p. 68).
É interessante notar que, apesar das dificuldades impostas pela política ambientalista às
famílias agricultoras da região, muitas delas conseguiram apropriar-se do discurso ambientalista e
encontrar uma saída para a situação colocada. No Guapiruvú, por exemplo, há muitos ex-
palmiteiros que saíram da situação da ilegalidade para trabalhar na proteção e manutenção das
UC’s, como guarda-parques. Estes conflitos em torno das questões socioambientais têm
implicações bastante complexas, que não caberiam nesta pesquisa, mas que constituem um
campo de reflexões muito importante.
Em Joanópolis, a história política, econômica e sócio-ecológica estabelece condições
divergentes quanto à concepção do ‘mato’, formulada pelas famílias dos sítios daquela região. As
dificuldades de reprodução do modo de vida ‘tradicional’, impostas pelas restrições legais
principalmente quanto ao trabalho da roça (sistema de coivara) são também vividas pelos
sitiantes de Joanópolis e mencionadas nas entrevistas. Diferentemente das famílias observadas no
Vale do Ribeira, estas outras vivenciaram mais especificamente o processo de modernização da
agricultura e de degradação ambiental via agropecuária extensiva. A aproximação recente às
ações socioambientais governamentais e não-governamentais (iniciadas por volta de 2002)
também gera um sentimento de ameaça por parte de algumas famílias, que têm o receio de perder
suas áreas produtivas para a recuperação ambiental (áreas protegidas por leiAPP e RL). Muitas
dessas famílias, se fossem cumprir a legislação que assegura a preservação dos 30 metros de APP
51
Essa impressão é decorrente da biodiversidade manejada no sistema agroflorestal. Muitos produtores que adotam
esse sistema na região possuem outras espécies de plantas (árvores, cultivos agrícolas e forrageiras para adubação
verde, etc.) em meio ao bananal. Faz parte do manejo agroflorestal não “limpar” o bananal - como fazem os
produtores convencionais - ou seja, não retirar todas as plantas que nascem por debaixo das bananeiras, mas apenas
aquelas que podem não ser convenientes ao sistema.
130
ao redor dos cursos d’água, teria ‘o mato’ até a porta de suas casas, sem que se restasse muita
área disponível para a agricultura.
No entanto, as conseqüências da degradação ambiental (erosão do solo, falta d’água,
mudança no clima, etc.) são muitas vezes percebidas de maneira intensa pelos sitiantes desta
região. Esta experiência de convívio com a degradação ecológica, juntamente ao aprendizado
deixado pelos mais velhos quanto à ‘reserva de mato’, possibilitam interpretações como a de S.
Jesus:
Tinha muito... cortava muito mato, né? Derrubaram tudo, né? O que ficou agora
ficou, agora num pode cortar... virou reserva agora, né? Agora o que ficou,
ficou, né? O que cortou, cortou, o que num cortou num corta mais... nem
pinheiro num pode cortar, pinheiro que é planta num pode cortar... Eu tenho uma
muda de pinheiro aqui... é planta, mais num pode cortar. (...) olha... o mato eu
credito que... é boa coisa mato, né? Que o mato refresca, né? (...) eu mesmo...
tenho um alqueire de mato aqui... então está mais ou menos no limite, porque
vinte por cento tem que ter de mato, isso aqui é... exigido, vinte por cento tem
que ter. Só que é pouco... pouco lugar que tem mato, né? A maioria é parque e...
a maioria num tem mato. Eu tenho porque está reservado desde os antigos, né?
Então os antigos reservou, os avô reservou... e daí o meu pai também num
cortou, eu também num cortei [S. Jesus, Joanópolis, 2009].
O mato é considerado como um dos espaços do sítio que, apesar de promover o descanso
da terra, opõe-se à produção agrícola. É consolidada a idéia de que o cultivo, a ‘planta’, ocupa o
lugar do ‘mato’, ou seja, o ‘mato’ deve ser domesticado e geralmente retirado para que a roça
ocupe o seu lugar. O cultivo é provisório, ele ‘cansa a terra’. O mato é infindável, ‘nunca que
acaba’, ele ocupa os espaços, ele avança, forma a capoeira e ‘descansa a terra’. Há, portanto, uma
relação dúbia, na qual não se distingue no ‘mato’ o que de bem e mal. Quando ‘entrou o meio
ambiente’, quando o ambientalismo ‘ecologiza o mato’, cria uma negação deste por parte dos
sitiantes. O ‘mato’ torna-se um impedimento para aquelas famílias que buscam defender-se das
barreiras impostas a elas por meio das restrições ambientais.
4.6 O tamanho das terras
A questão fundiária também apresenta peculiaridades em cada uma das regiões estudadas.
No Vale do Ribeira, o contexto político-econômico do processo de desenvolvimento regional
131
coloca em pauta a questão da expropriação, da migração e, atualmente, do assentamento rural.
Pioneiro em Sete Barras, o assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável PDS
denominado “Alves, Teixeira & Pereira” é um exemplo de conflito fundiário no qual os sitiantes,
expropriados em 1960, conquistaram o seu direito de retorno à terra. No entanto, são mais
comuns os casos em que as famílias foram direta ou indiretamente expropriadas e levadas a
migrar para outras áreas: encostas dos morros; vilas ou cidades. Sobre este conflito, no bairro
Guapiruvu/Sete Barras:
Desde o início a questão central que se colocava eram as transformações no
modo de vida e no território da comunidade, mas agora ficavam mais claros os
processos que estavam ligados a essa realidade de mudanças, ou seja, a
agricultura comercial, a especulação imobiliária e o próprio ambientalismo,
geradores ali de um estado de conflito fundiário (BERNINI, 2005, p. 10).
A antiga estrutura fundiária, onde predominavam as posses de terra, facilitou a expansão
da bananicultura em larga escala e a criação das UC’s. Acostumadas a trabalhar a terra conforme
suas necessidades, as famílias posseiras sofrem as restrições impostas pelo regime de propriedade
privada das terras (Lei de Terras - 1850) e têm suas áreas de produção extremamente limitadas.
Em Joanópolis, também se observou um processo de redução do tamanho das terras
disponíveis para cada família. Neste caso, contudo, a redução das terras é identificada pelos
próprios sitiantes como uma conseqüência da divisão das terras por herança. Ou seja, sem
estarem imunes às dificuldades legislativas impostas pela Lei de Terras, as famílias entrevistadas
nesta região viveram condições políticas e socioeconômicas significativamente diferentes
daquelas primeiras.
A situação da partilha das terras por meio da herança foi discutida na maioria das
entrevistas realizadas em Joanópolis. S. Ricardo [Joanópolis, 2009] conta que seu avô, vindo da
Itália, comprou terras naquela região. Ainda no tempo de seu pai, por volta da década de 1960, o
‘dinheiro era para comprar terras’. O consumo da família era garantido pela produção do
próprio sítio e o dinheiro adquirido na venda do leite e dos produtos da lavoura possuía apenas
dois destinos: o banco ou a compra de terras. No entanto, como narrou sua irmã, D. Neuci, as
terras ‘foram reduzindo’ através da divisão por herança, ou seja, a geração de D. Neuci e S.
Ricardo herdou sítios menores que os de seus pais. Esta geração de pais (terceira geração após a
imigração) já não reuniu condições necessárias para aumentar suas ‘posses’, viabilizar uma nova
repartição de terras e garantir à reprodução das condições de vida através da herança. Desse
132
modo, na maioria dos casos, a partilha dos sítios não é mais viável e os jovens de hoje não
poderão contar com a herança para dar continuidade à vida no campo.
Aqui toda vida meu pai tirava leite, desde pequena meu pai tirava leite, tudo que
ele comprou foi com o dinheiro do leite. Tinha os bois, tinha as vacas que davam
o leite e se plantava de tudo, naquela época se plantava de tudo, arroz, feijão,
milho. Vendia o leite e sobrava todo o dinheiro, porque plantava o que comia e
com o dinheiro do leite ficava comprando terra. O leite naquela época
compensava. O dinheiro do leite sobrava para investir em outra coisa, por isso
que meu pai conseguiu sobreviver do leite. Ele conseguiu deixar isso para nós
por isso... e ensinou os filhos a trabalhar [D. Neuci, Joanópolis, 2009]
Além das questões econômicas (ou do sistema produtivo) que dificultam a acumulação de
terras e, portanto, a “transmissão” das terras aos filhos, S. Igor percebe um limite “natural” no
processo de divisão de terras por herança. Na fala transcrita, ele comenta sobre o limite dos
espaços do mundo diante da reprodução humana.
(...) eu ainda falo pra turma que é final de tempo... num acreditam muito no que
eu falo. Falo assim, pensando... porque o mundo desde que o mundo é mundo, é
o mundo, num é? Na casa seus num era seu pai e sua mãe? Daí num veio
você? Num veio os irmãos? você num casa junto com ele? E num tem um
filho? E o mundo é mundo... Aqui era o pai, o pai no ranchinho dele lá, né?
Hoje está eu... e se tivesse os três irmão, tava os três irmão. Que num tem como
você ficar junto com o pai... eu acho que um pouco é disso também [S. Igor,
Joanópolis, 2009].
A reflexão de S. Igor encontra fundamento teórico em Moura (1978). A autora discute
sobre às estratégias camponesas quanto à manutenção da integridade de seus patrimônios
territoriais ao longo das gerações, ou seja, a herança da terra segundo o “código local”. Sobre o
tamanho das áreas, a autora concordaria com S. Igor na concepção de que, apesar de todos os
esforços no sentido da continuidade do ciclo de aquisição de terras por herança, a diminuição dos
patrimônios territoriais é, geralmente, inevitável.
O tipo de reprodução que as regras de herança (...) asseguram a essa área de
campesinato parcelar tem um nexo paradoxal: reproduzem a propriedade
camponesa, lutam contra a fragmentação, mas ainda assim diminuem quase
sempre as dimensões dos patrimônios territoriais. De modo impressionista pode-
se observar que está havendo uma diminuição do tamanho das famílias, mas é
provável que, sendo sentida por parte delas a necessidade de poupar ainda mais
as propriedades da fragmentação, a solução esteja na migração de herdeiros e
133
não num controle significativamente rígido sobre a natalidade (MOURA, 1978,
p. 87).
S. Lucas [Joanópolis, 2009], irmão de S. Ricardo, preocupa-se em deixar aos filhos ao
menos aquilo que lhe foi deixado pelo pai. É interessante notar, através dessa postura de vida, que
a questão da herança é colocada por esses sitiantes mais como uma questão de honra do que por
necessidade de acumulação de capital. A terra herdada pelo pai deve ser honrada. Vendê-la ou
perdê-la para o mercado significaria desonrar a própria família. S. Pedro e D. Rosália
[Joanópolis, 2009] possuem apenas dois filhos (um filho e uma filha) que migraram para a
cidade. O casal está certo de que seus filhos não os farão esta desonra.
Por isso que a gente quer cuidar do nosso pedacinho aqui, tudo organizadinho...
pequenininho, mas... é pra deixar isso pra eles, né? Porque acho que esse
terreno aqui, acho que nunca vai ser vendido. Porque eles acho que jamais, o dia
em que eu num tiver, o Pulo num tiver, num é vendido não. (...) Igual essa coisa
da APP, foi plantado acho que umas 3 ou 4 mil árvores, na fila. A gente num vai
ver o resultado, mas a esperança é dos netos ver, ? É o que a gente espera [D.
Rosália, Joanópolis, 2009].
A solidariedade entre irmãos, para Moura (1987), é um elemento importante na luta contra
a fragmentação do patrimônio. Como o “código local” institui que as mulheres quando se casam
mudam para as terras do marido, é comum haver uma “negociação” da parte do patrimônio entre
o irmão e o cunhado, ou seja, o irmão compra, a preço baixo, as terras da ir
52
.
As regras de herança só se consumam na sua especificidade porque se exerce um
tipo de solidariedade entre irmã e irmão, entre irmãos e também entre cunhados.
Essa solidariedade entre indivíduos de sexo oposto mas irmãos e entre
indivíduos do mesmo sexo sendo ou não irmãos é a condição para que a
propriedade se subdivida o menos possível e não se fragmente em áreas
descontínuas (MOURA, 1987, p. 45).
As estratégias do código local” na luta contra a fragmentação das terras foram
observadas nas realidades pesquisadas, assim como a redução das famílias e a inevitabilidade da
redução dos tamanhos dos patrimônios territoriais.
52
As mulheres normalmente o possuem o poder que realizar qualquer tipo de negociação com a terra, ainda que
“proprietárias”; ficando essa função ao seu marido ou irmão.
134
4.7 Campesinidade em conflito: uma transformação na relação humano-natureza
Os diversos conflitos vividos no interior da agricultura camponesa são oriundos da
“insistente” permanência da campesinidade e de certa incompatibilidade desta lógica de vida com
relação ao sistema produtivo vigente. Mais especificamente, o modelo produtivo moderno vem
colocando em cheque a articulação entre relações de parentesco (hierarquia e gênero) e processo
de trabalho. Isto significa que, o elemento superestrutural denominado aqui de campesinidade,
atravessa atualmente um processo de crise com relação à correspondência infraestrutural
construída pela agricultura moderna. Ou seja, diante da inevitável articulação entre infra e
superestrutura, as famílias camponesas têm realizado um grande e criativo esforço para dar
continuidade a seu modo de vida camponês e ao mesmo tempo adquirir suas condições materiais
de existência ainda que em condição de subordinação à lógica econômica hegemônica.
Godelier (1978), retomando Marx
53
, discute que uma instancia superestrutural assumi
uma função importante na organização socioeconômica de uma sociedade quando essa
articulação entre o material e o simbólico for capaz de influenciar as formas de obtenção dos
meios de vida (relações de produção). Ou seja, o autor “constata não ser suficiente que uma
instância [superestrutural] assuma várias e o importa quais funções para ser dominante, se não
assumir a função de relações de produção” (GODELIER, 1978, p. 50).
No caso da unidade familiar de produção, alguns autores concordam que as relações
familiares de hierarquia e gênero articulam-se às relações de produção de forma que esta última,
quando exógena à lógica interna, provavelmente sofrerá adaptações no sentido de adequá-las às
concepções das primeiras. Este é um dos motivos que evidencia a necessidade da discussão sobre
a campesinidade.
53
A discussão elaborada por Godelier (1978) está em nítida concordância com as concepções marxistas: “Pode-se
referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta
distinção começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é
conseqüência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem
indiretamente a sua própria vida material. A forma como os homens produzem esses meios depende em primeiro
lugar da natureza, isto é, dos meios de existência já elaborados e que lhes é necessário reproduzir; mas não
deveremos considerar esse modo de produção deste único ponto de vista, isto é, enquanto mera reprodução da
existência física dos indivíduos. Pelo contrário, já constitui um modo determinado de atividade de tais indivíduos,
uma forma determinada de manifestar a sua vida, um modo de vida determinado. A forma como os indivíduos
manifestam a sua vida reflete muito exatamente aquilo que são (...). Aquilo que os indivíduos são depende portanto
das condições materiais da sua produção” (MARX; ENGELS, 1996, p. 33).
135
Os conflitos apresentados na fase empírica desta pesquisa podem ser compreendidos
como fruto de um desajuste quanto ao ritmo das transformações da modernidade na esfera
material (infraestrutura) e simbólica (superestrutura). Isto significa que as mudanças cnico-
econômicas do sistema de produção agrícola - desde as primeiras inovações do modelo da
revolução verde, até as atuais interferências promovidas pela biotecnologia – acontecem de forma
bem mais rápida do que seus efeitos nos aspectos culturais (BENJAMIN, 1975)
54
. Como
conseqüência, convivem numa mesma realidade de organização agrícola: técnicas modernas de
produção, alguns princípios socioeconômicos que fundamentam a aceitação dessas técnicas e
ainda a campesinidade.
É importante observar que a articulação entre a esfera da produção e a esfera da cultura
não é rompida, mesmo sob situação de relativa incompatibilidade. Além disso, pode-se perceber
que, em diversas situações, os aspectos morais impõem limites ou adaptações às inovações
tecnológicas - motivo este de os sitiantes serem chamados freqüentemente pelos cnicos de
“atrasados”, “cabeça dura” ou ainda de usarem a expressão “não adianta...” diante das tentativas
de promover eficiência no desenvolvimento dos ‘pacotes tecnológicos’.
Ao contrário do que se costuma pensar, as relações sócio-culturais encontram-se muito
próximas das relações de produção, especificamente nos sistemas de organização camponesa.
Acontece que muitos antropólogos “acreditam, mas de maneira espontânea e não científica, que
as relações de produção podem existir sob uma forma que as diferencie e as separe de outras
relações sociais, como é o caso das relações de produção no modo de produção capitalista”
(GODELIER, 1978, p. 47). No entanto, longe de separar a produção dos meios de vida das
demais relações sócio-culturais, as famílias camponesas articulam os recursos de sua existência
de tal forma que não seja necessário romper completamente com o tipo de organização próprio à
campesinidade. Nas brechas dos modelos exógenos de produção e das crises instituídas por ele,
as famílias ‘insistem’, ou persistem, em manterem-se camponesas.
(...) a resposta do campesinato às situações de crise nas quais eles são
submetidos é sobretudo complexa e eles não ficam esperando que alguém traga
a solução. As soluções encontradas para o problema de como permanecer
54
Tratando de questões mais especificamente urbanas, da perspectiva da sociologia da cultura, Walter Benjamin
discute a diferença temporal no processo de transformação da infra e superestrutura: “Como as superestruturas
evoluem bem mais lentamente do que as infra-estruturas, foi preciso mais de meio culo para que a mudança
advinda nas condições de produção fizesse sentir seus efeitos em todas as áreas culturais (BENJAMIN, 1975, p. 11).
136
camponês e assegurar a subsistência da família costumam ser muito flexíveis,
inventivas e criativas. Camponeses têm mostrado ser extremamente resilientes e
criativos em situações de crise e não há uma forma simplista para descrever isto.
(...) A flexibilidade de adaptação, o objetivo de reproduzir o seu modo de vida e
não o de acumulação, o apoio e a ajuda mútua encontrados nas famílias e fora
das famílias em unidades camponesas, bem como a multiplicidade de soluções
encontradas para o problema de como ganhar a vida são qualidades encontradas
em todos os camponeses que sobrevivem às crises. E, no centro dessas
peculiaridades camponesas, está a natureza da economia familiar (SHANIN,
2008, p. 25-26).
Partindo, portanto, da forma como as famílias estudadas relacionam-se com os elementos
da natureza para construírem seus meios de vida, observa-se uma peculiaridade importante e,
talvez, a mais fundamental delas: a aproximação existente entre seres humanos e naturezas. A
constante utilização de metáforas, cujos sentidos geralmente promovem uma humanização da
natureza (animismo), ou ainda uma naturalização do ser humano (totemismo), pode evidenciar
essa aproximação. Expressões como ‘descansar a terra’, ‘a chuva está brava’, o animal ‘num
acostuma’, a planta ‘num gosta’, são alguns dos muitos exemplos que podem ser encontradas
nas transcrições das falas – dessas metáforas. Ouviram-se muitas frases como: ‘a gente é que nem
bicho, assusta’ ou ainda ‘a gente num cansa? Então, a terra cansa também’.
Algumas dessas metáforas são ainda usadas em realidades sócio-culturais tipicamente
capitalistas. Contudo, a peculiaridade em questão reside, mais especificamente, na incorporação
dessas expressões nas ações cotidianas e no trabalho das famílias. Ou seja, as metáforas utilizadas
não são expressões destituídas de significado. Para exemplificar, analise-se um caso vivido por S.
Ricardo e D. Rubia [Joanópolis, 2009]. Pode-se considerá-los como um casal, entre os
entrevistados, que demonstrou grande receptividade às inovações tecnológicas da produção de
leite. Atualmente, S. Ricardo utiliza a técnica de inseminação artificial para a reprodução do seu
gado de leite. A necessidade do tratamento hormonal das vacas como forma de indução do cio, é
um processo que incomoda moralmente o casal, principalmente D. Rubia. Ela diz que gostaria de
não “precisar fazer isso com as vacas”. Em uma das visitas ao sítio desta família, S. Ricardo
encontrava-se ‘tratando’ de uma bezerra que nasceu cega. A bezerra não era capaz de encontrar
as tetas de sua mãe e mesmo quando era colocado pelo agricultor na posição adequada, o animal
não era capaz de mamar sem auxílio do sitiante. Isto significa que, para a sobrevivência da
bezerra, S. Ricardo dedica parte do seu tempo ajudando-a a mamar. Segundo ele, “ela não é
137
cega, ela é burra” porque solta a teta da mãe; quanto à vaca-mãe diz que “ela percebe”, “sabe que
tem coisa errada”.
Quando S. Ricardo foi questionado sobre o que faria com aquele animal, respondeu que
iria cuidar dela enquanto ela sobrevivesse, porque “cada cem que nasce boa, só uma nasce ruim”.
Ou seja, independente dos aspectos econômicos, S. Ricardo sente uma obrigação moral em cuidar
da bezerra “ruim”, para de algum modo retribuir aquelas que nasceram “boas”. Mais interessante,
foi discutir este caso com um especialista (não camponês) no assunto. Segundo ele
(representando o que se poderia chamar de visão racional), a pesquisadora deveria ter instruído o
agricultor, obviamente, a desfazer-se do animal cego (sem perspectivas de produção futura de
leite) e, mais do que isso, a alimentar suas bezerras ‘no balde’. O modelo de criação do gado
leiteiro sugerido pelo especialista garantiria, certamente, maior rendimento na produção de leite.
Contudo, S. Ricardo e D. Rubia provavelmente se incomodariam com a situação das vacas não
poderem amamentar suas crias, ou ‘filhas’.
É relevante compreender a forma como se concebe a natureza para visualizar as barreiras
ou as fendas existentes entre os seres humanos e a natureza. Ou seja, o acesso aos elementos
naturais assim como sua forma de apropriação não está dissociado das especificidades sócio-
culturais de uma dada sociedade, num dado momento histórico. Shiva (2001) oferece uma
reflexão sobre a concepção de natureza na transição à ciência moderna:
A ascensão da filosofia mecanicista que sobreveio à emergência da revolução
científica esteve baseada na destruição de conceitos de uma natureza auto-
regenerativa, auto-organizada, que sustentava toda a vida. Para Francis Bacon,
chamado o pai da ciência moderna, a natureza não era mais a mãe e sim a
mulher a ser conquistada por uma mente masculina agressiva. Como ressalta
Carolyn Merchant, essa transformação da natureza, de mãe viva e nutriz em
matéria inerte, morta e manipulável, conveio admiravelmente ao imperativo de
exploração do capitalismo em desenvolvimento. A imagem da natureza nutriz
agia como um obstáculo cultural à exploração da natureza. “Não se mata uma
mãe, não se remexem suas entranhas, nem se mutila seu corpo sem relutância”,
escreve Merchant. Entretanto, as imagens de supremacia e dominação criadas
pelo programa baconiano e a revolução científica eliminaram todas as restrições
e funcionaram como sanções culturais para o despojamento da natureza
(SHIVA, 2001, p. 71).
A concepção de natureza da grande maioria das famílias estudadas aproxima-se mais de
uma “mãe viva e nutrizdo que “matéria inerte, morta e manipulável”. S. Ricardo, por exemplo,
considera estranho o fato de todos os pesquisadores e professores (com exceção de apenas um)
138
que já estiveram por lá desenvolvendo projetos, falarem sobre a natureza sem mencionar a
questão divina, “porque natureza e Deus têm tudo a ver” [Joanópolis, 2009].
O respeito à natureza, representados neste exemplo pela divinização, está intimamente
relacionado à aproximação desta aos próprios agricultores e agricultoras. Ao referir-se aos
filhotes (animais) como filhos (seres humanos) e realizar tantas outras atribuições humanas aos
elementos naturais, os camponeses estão de alguma maneira expressando sua concepção não
dicotômica da relação ser humano-natureza. Em seus estudos sobre o processo civilizador, Elias
(1994) identifica no homem “civilizado” uma distância com relação à natureza. Segundo este
autor, quanto mais distante estivesse o comportamento do homem ao comportamento animal,
mais civilizado seria este homem. Além disso, Elias (1995) lembra que os camponeses eram
apontados como o grupo humano cujos comportamentos mais se distanciavam à “civilização”.
Desse modo, além dos preconceitos da concepção hegemônica com relação aos camponeses e a
outros grupos não-ocidentais, pode-se notar que a aproximação da natureza aos camponeses e a
tentativa de seu distanciamento (ou artificialização) do “mundo moderno”, são questões
colocadas desde os últimos três ou quatro séculos.
Ainda muito significativo é o fato de os entrevistados e as entrevistadas não utilizarem,
espontaneamente, o termo natureza. Podemos refletir sobre o distanciamento construído entre o
ser humano e a natureza quando se a ela uma denominação específica. O mato, a terra, o rio,
os animais e as plantas são apartados do ser humano quando denominados de natureza
55
. Torna-
se humano tudo aquilo que não é natureza, tendo o primeiro a função social e religiosa de
domínio sobre o segundo. Os camponeses (caipiras e caiçaras) não são culturalmente “imunes” à
visão dicotômica humano-natureza. Herdada principalmente por seus ancestrais europeus, essa
concepção do domínio do humano sobre os elementos naturais caminha em paralelo à concepção
metafórica e não dualista herdada de seus ancestrais indígenas. O resultado final, em comparação
com a cultura ocidental pica, é, certamente, uma relação menos dualista entre o humano e o
mato, a terra, o rio...
Portanto, considerando as referências acima, pretende-se refletir nos próximos parágrafos,
alguns elementos superestruturais da organização das famílias estudadas em relação às relações
55
Sobre este aspecto ver Ecologia e Cosmologia de Descola (2000). A antropologia monista de Descola propôs que
as matrizes sócio-culturais o-ocidentais pensam a natureza como a extensão de sua própria humanidade. Ao não
construírem fronteiras ontológicas gidas entre esses dois domínios, não faz sentido, para essas matrizes, a própria
idéia de uma ‘natureza’.
139
de produção. A família, a reciprocidade, a satisfação das necessidades, a religião, a alimentação,
a saúde e a educação serão discutidas no contexto desta pesquisa sem que se perca de vista os
referenciais discutidos acima.
A Família do sítio
“A gente quando fala família do sítio, a gente já vê uma coisa de antigo mesmo, né?
É... porque é coisa que na cidade já quase num tem hoje em dia, né?
que nem os outros falar assim: bênça mãe, bênça pai! Ah... num tem...”
D. Adelina.
A ‘família do sítio’, em geral, mantém algumas peculiaridades com relação à ‘família da
cidade’. Muitas estórias que se contam hoje no tio, as brincadeiras das crianças, a relação entre
elas e os pais e irmãos, as relações de compadrio, assemelham-se àquelas contadas pelas avós das
cidades interioranas. No entanto, os princípios orientadores das relações familiares do ‘tempo dos
antigos’ ainda são, nos sítios estudados, muito valorizados pela geração atual de pais. Mais do
que isso, muitos foram os pais que identificaram na própria relação familiar uma das causas da
‘desordem’ do mundo moderno.
Para a análise das relações familiares camponesas é relevante considerar as
transformações ocorridas na forma de obtenção dos seus meios de vida. No processo de transição
da agricultura familiar e auto-sustento à agroindústria e dependência do mercado, alteraram-se
alguns aspectos socioeconômicos que fortaleciam o núcleo familiar. O direcionamento da
produção do sítio ao mercado e toda dinâmica masculinizante que o sistema produtivo
hegemônico foi instituindo na realidade rural, acarretou perdas de espaços materiais e
simbólicos às mulheres. As atividades femininas foram aos poucos desvalorizadas,
inviabilizadas e excluídas do processo de reprodução da família. Seus espaços,
predominantemente dedicados ao auto-sustento da família, foram ocupados pelas monoculturas
destinadas à venda.
Concomitantemente, fruto do mesmo processo de transformação, a nova produção para o
mercado não garante a reprodução das condições de fartura dos tempos anteriores. Ou seja, os
homens, pais de família, em condição de dependência do mercado exógeno não são mais capazes
de garantir o auto-sustento do núcleo familiar, tal como antigamente. Estes últimos perdem, por
140
sua vez, a autonomia do processo de trabalho e certo grau de legitimidade diante das relações
morais no interior da família.
Em maior ou menor grau, essas novas relações de produção impostas às famílias do sítio
geram novos conflitos familiares internos, que muitas vezes alcançam situações de grande
violência contra as mulheres. Sua perda de espaços na lógica de produção familiar e a adoção dos
valores de consumo associados ao modelo produtivo moderno transformam a mulher
‘trabalhadeira’ em ‘preguiçosa’. Assim como, a subordinação do homem ao mercado hegemônico
transforma ‘pais de família’ em homens fracassados e inseguros. Associadas aos valores
machistas herdados pelos colonizadores portugueses, essas duas situações de crise - para homens
e mulheres terminam em violência contra a mulher. Não cabe nesta pesquisa um
aprofundamento sobre a questão da violência contra a mulher, mas vale ressaltar a importância de
se refletir sobre os problemas expostos
56
.
O acúmulo de tensões no universo masculino resultou em aumento da violência
contra as mulheres. Cada vez mais dependentes de quem não pode, sozinho,
prover a fartura, são redefinidas como preguiçosas, e vítimas de espancamentos.
Suas habilidades tradicionais pouco ou nada acrescentam à renda familiar
(WOORTMANN, 1992, p. 52).
Ao discutir este mesmo processo de modernização das atividades de produção familiar no
campo, em comunidades pesqueiras do Nordeste, Woortmann (1992) sugere que as relações
sociais de gênero tenham caminhado da complementaridade à dependência. A
complementaridade entre os espaços/atividades masculinos e femininos teria possibilitado,
durante muito tempo, a autonomia na produção e reprodução das unidades familiares. No
processo de perda desta autonomia, além da desarticulação entre a ação de homens e mulheres no
sítio, outra característica fundamental da organização familiar é desconstruída: a lógica
hierárquica.
Tomando novamente cuidado para não relacionar diretamente hierarquia à subordinação,
ocorre que a concepção moderna de descarte do velho e valorização do novo acompanha o pacote
56
Os relatos sobre violência contra a mulher foram mais freqüentes na região do Vale do Ribeira do que em
Joanópolis. Sugere-se que, além das diferenças nas condições socioeconômicas, esta situação pode ter relação com a
identidade cultural das famílias. Em Joanópolis, a colonização italiana, cuja sociedade possui influência matriarcal, é
bastante forte.
141
tecnológico vendido na revolução verde. Denominado por Marx de autodestruição criadora
57
, a
lógica capitalista de produção inverte a gica hierárquica camponesa, e coloca as famílias do
sitio, agora dependentes do mercado hegemônico, em uma contradição com relação a aspectos
sócio-culturais.
A hierarquia familiar, brevemente discutida em capítulo anterior, foi caracterizada pelos
sitiantes através da comparação entre as relações familiares de antigamente e as relações
familiares modernas. A hierarquia familiar ‘de antigamente’ pode ser fundamentada teoricamente
através da concepção de saber-poder
58
e de mestre-aprendiz
59
. Ou seja, o velho (homem ou
mulher) é respeitado no interior da família como detentor do saber e consequentemente detentor
do poder. O poder adquirido através do domínio do saber é, nesse caso, relacionado ao poder do
mestre; que deve ser respeitado enquanto tal sem que seja preciso estabelecer-se uma relação de
submissão. O novo (filhos, sobrinhos e netos) deve, portanto, colocar-se em situação de aprendiz
para que possa, no decorrer do tempo (convívio familiar), ter acesso aos saberes do mestre e um
dia tornar-se mestre (pai ou mãe).
57
Sobre esta concepção da desconstrução do velho e valorização do novo, Marx dizia: “Dissolvem-se todas as
relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as
relações que a substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se desmancha no
ar, tudo que era sagrado torna-se profano, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas
condições de existência e suas relações recíprocas (...). A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente
os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto, todo o conjunto de relações
sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de
todas as classes industriais anteriores. O contínuo revolucionamento da produção, o abalo constante de todas as
condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes” (MARX;
ENGELS, 1977, p. 23-24).
58
A relação saber-poder foi fundamentada por Michel Foucault. Segundo o autor precisamos admitir “que poder e
saber estão diretamente implicados; que não relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber,
nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder; mas é preciso considerar ao
contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são outros tantos
efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a
atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o saber-poder, os
processos e as lutas que o atravessam e o constituem, que determinam as formas e os campos de conhecimento
possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 1987, p. 27).
59
Longe de querer comparar a unidade familiar camponesa à capoeira, uma discussão a respeito da relação mestre-
aprendiz pode ser encontrada nos estudos sobre esta arte, mais especificamente a capoeira angola. No livro
“Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda”, Pedro Abib constrói uma reflexão sobre a figura do
mestre que pode servir para a discussão desta pesquisa: “Essa figura é fundamental no seio de uma cultura na qual a
transmissão do saber passa pela via da oralidade, e por isso depende desses guardiões da memória coletiva para que
esta seja preservada e oferecida às novas gerações. O mestre é aquele que é reconhecido por sua comunidade, como
detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos, alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e
heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa, de disponibilizar esse saber àqueles que a ele
recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume por essa razão, a função do
poeta que, através do seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora que irrompe para dignificar
o presente, e conduzir a ação construtiva do futuro” (ABIB, 2005, p. 95).
142
No entanto, observou-se, nas regiões estudadas, grande dificuldade de manutenção dos
princípios norteadores desta lógica de relação familiar. A concepção moderna de valorização do
novo tem gerado situações que causam estranhamento e insatisfação às famílias (os pais, tios e
avós) do sítio. A lógica da eterna reinvenção do novo, disseminada através dos avanços
tecnológicos, tem dado subsídios ao questionamento da autoridade dos pais e desvalorização dos
princípios e comportamentos sócio-culturais antigos.
Eu num sei... aquela época era pouco estudo e era mais educado a criançada do
que hoje, né? Bem mais educado, que é verdade é. Acho que o filho num tem
mais medo do pai, da mãe hoje... porque hoje filho num tem medo nem do pai
nem da mãe, filho enfrenta pai e mãe, ele enfrenta [S. Jesus, Joanópolis, 2009].
Algumas especificidades na relação entre pais e filhos, que a primeira vista parece
detalhe, foram apresentadas como elementos muito significativos para os sitiantes. Um exemplo
disto é a maneira como o filho deve referir-se ao pai. S. Igor não se conforma em ver os jovens de
hoje referirem-se ao pai sem chamá-los de ‘pai’. A geração atual de pais menciona sempre seus
pais como ‘o pai’ e ‘a mãe’, demonstrando, através deste comportamento, respeito à condição de
pai e de mãe.
Não... e depois, num chama nem de pai, né? Eu vejo assim: “ô Jão!”, é... filho
chama assim... eu vejo aí. O pai meio gordinho, o rapais tem 18 anos... eu
num consigo, né? O pai, Luiz Antônio Silva, num consigo falar Luiz Antônio, é
“pai”, pai... o outro, o pai meio gordinho, que né? É normal depois dos 40, 50
a barriguinha vai... daí: “o gordinho!”, ah... eu acho... nossa, eu num consigo, eu
num consigo [S. Igor, Joanópolis, 2009].
Outro elemento comum entre as famílias, nas duas regiões pesquisadas, foi a redução do
tamanho. Para além da questão do acesso a métodos contraceptivos e preservativos, as mulheres
de hoje optam por ter menos filhos. As justificativas apresentadas para o fato da redução do
tamanho das famílias geralmente estão relacionadas às dificuldades impostas pela vida moderna:
o acesso ao hospital, a necessidade de estudo e a falta de perspectiva de vida no campo.
A maioria das mulheres diz que ‘hoje está muito difícil criar os filhos’. Nota-se que a
dificuldade a que se referem está relacionada às novas necessidades construídas nesse ‘novo
tempo’. Os filhos de hoje tem que vestir-se segundo determinado padrão de beleza ‘não basta
estar limpo’, tem que se vestir como meninos e meninas da cidade –, devem ser vacinados e obter
143
mínimo acompanhamento médico e, além disso, possuem como exemplo de vida boa e feliz, os
programas (principalmente novelas) da televisão brasileira.
Numa perspectiva ampla, S. Lazinho [Joanópolis, 2009] elaborou uma reflexão muito
esclarecedora sobre a situação de redução do tamanho da família. Segundo ele, as crianças de
antigamente davam trabalho “até um tamanhozinho e depois ajudavam”, mas hoje “tá
diminuindo a criação” dos filhos porque eles não fazem mais parte da realidade da família do
campo. Hoje os filhos são criados no sítio segundo uma concepção urbana de qualidade de vida.
São criados no sítio para viver na e da cidade.
Sobre a vida das crianças no sítio, S. Ricardo [Joanópolis, 2009] contou sobre a
brincadeira de buscar pedras no fundo no rio, brincadeira que os ensinava a nadar, a enfrentar o
perigo das águas e ao mesmo tempo os divertia muito. As crianças que aguardavam o retorno da
criança que mergulhou, viviam uma ansiedade e um medo coletivo pela incerteza do retorno.
Menos protegidas as crianças viviam os perigos da vida e desenvolviam a inventividade. D.
Adelina recorda-se de quando as crianças construíam os próprios brinquedos, os carrinhos, as
bolas, as bonecas... “Do que queriam brincar, criava, tudo se criava” [Joanópolis, 2009].
D. Neuma comenta sobre os benefícios tanto das brincadeiras em si (individualmente)
como do convívio entre as crianças. Contrapõe a eles, os malefícios gerados pela televisão que,
segundo ela, individualiza e atrapalha o desenvolvimento das crianças. “As crianças tem que
brincar, tem que ter amiguinhos, sabe essa troca de idéias entre elas? É uma coisa sadia... porque
na televisão num tem troca de idéias”. Mais do que isso, D. Neuma acredita que o
desenvolvimento “sadio” das crianças carrega em si certo poder transformador da sociedade:
“tem que estimular a brincar... impossível que num volte o mundo desse jeito de novo... gente, o
mundo foi muito bom... de amigos, de... pessoas” [D. Neuma, Joanópolis, 2009].
D. Cássia [Cajati, 2006] e sua família sofreram o processo de mudança do ‘sertão’ para a
‘vila’. Sua filha, contudo, casou-se e teve possibilidade de voltar a morar no sítio. Ela concorda
com a opção da filha, porque “não tem lugar melhor para criar os filhos que no sítio”. Enfatiza
que no sítio as crianças vivem mais próximas à família e mais distantes das crianças da cidade,
com quem só aprendem ‘besteiras’.
Em Joanópolis, algumas mães como D. Felícia e D. Rosália, ainda discutiram a situação
das mães modernas com relação aos seus trabalhos, que dificultam a criação dos filhos. Não lhes
agrada o relativo ‘abandono’ das crianças nas creches e escolas. D. Rosália se preocupa com o
144
destino de sua filha (e netos) sendo mãe e gerente do banco: “eu até penso um dia no caso a
Daiane casar, acho que ela... ela estudou, agora teve uma prova e efetivou, gerente do banco, do
banco onde ela trabalha, mais... se ela engravidar? Ela num é mulher de largar filho na mão dos
outros...”.
(...) muito poucos que tá assumindo ali a cuidar das crianças, as mães parece que
nem querem mais, né? A vida das mães hoje é trabalhar e... filho é de final de
semana, né? (...) minha mãe sempre falou isso e eu cada ano que passa eu penso
mais isso, que se quer ter filho então programe bem, e quando tiver, que fique
pelo menos um tempo com essa criança, né? a mãe pelo menos sem trabalhar,
porque... faz muita falta [D. Felícia, Joanópolis, 2009].
A vida atual ainda transforma, na concepção de algumas sitiantes, a relação das famílias
com relação ao tempo, torna o tempo mais curto. Algumas mulheres comentaram sobre a falta de
tempo para cumprirem suas tarefas no sítio e ainda cuidarem dos filhos. D. Glória não pôde ter
filhos, por questões genéticas. Analisando, portanto, a questão do trabalho e da maternidade de
uma posição exógena, D. Glória diz que não compreende a ‘falta de tempo’ das mulheres de hoje.
Segundo ela, antigamente as mulheres arrumavam a casa, faziam comida na lenha, cuidavam da
criação, ajudavam o marido na roça e ainda cuidavam de mais de dez filhos. Hoje as mulheres
não têm mais criação, têm muitas facilidades para o cuidado com a casa (fogão, geladeira,
produtos de limpeza, etc.) e não têm mais de três filhos “porque muito trabalho”. Na verdade,
como ela disse, é “a vida que está muito diferente” [Cajati, 2006].
Diante das dificuldades impostas pela ‘vida moderna’, quanto à criação dos filhos e
constituição de família, D. Rosália se aflige: “é por isso que acaba, acabando... ninguém quer
mais filho. Como é que vai ficar no futuro?” [Joanópolis, 2009].
A Reciprocidade
Um dos maiores exemplo da prática da reciprocidade existente nas famílias e entre as
famílias de uma comunidade rural é a prática do mutirão uma ação de ajuda mútua em que o
dono de umtio convoca outros pais de famílias para ajudar-lhe em um serviço da roça
(geralmente por tratar-se de um serviço que demanda grande esforço, ou ainda em outras
situações de ‘precisão’ do sitiante, como problemas de saúde). Após um dia de trabalho, a família
que convocou o mutirão oferece ás demais um jantar e uma festa. A prática do mutirão era
145
comum nas duas regiões pesquisadas, mas também em ambas não é mais praticada como
antigamente.
O mutirão sempre era sábado, compreende? Então depois... jantava bem e depois
era aquele bailão (...) era bonito aquele lá, aquela época era gostoso! essa parte
aí... Tudo assim, baile, tudo assim educado, né? Tudo com respeito, é... família
mesmo, entende? num tinha assim, bagunça, essas coisa... isso aqui acabou,
baile essas coisas aqui num tem, acabou. (...) Mutirão num tem mais também,
acabou tudo. Num tem gente mais! Algum que tá, tá na chácara, num pode sair...
outro foi embora, né? Então... acabou, num tem...[S. Jesus, Joanópolis, 2009].
No Vale do Ribeira, o mutirão é praticado ainda hoje através dos projetos desenvolvidos
na região, ou seja, as instituições proponentes é que organizam a realização de trabalhos coletivos
que, raramente termina em festa. Em Cananéia, no momento desta pesquisa de campo, havia uma
instituição que pagava para os agricultores comparecerem nos mutirões promovidos pela mesma.
Nesses casos, portanto, o nome mutirão foi apropriado e o trabalho conjunto é reproduzido sem
que se reproduza com ele a reciprocidade camponesa.
O bairro Pinhalzinho é uma exceção em Joanópolis, é o único bairro onde ainda se pratica
o mutirão. A comunidade do bairro, além dos mutirões para ‘formar pasto’ e outras tarefas
agrícolas, trabalham conjuntamente organizados através da igreja na construção de obras
comunitárias. Além da própria igreja a comunidade já construiu um barracão para festas e
eventos.
É difícil mesmo hoje em dia um lugar em que as pessoas se ajudam. Até que
aqui no bairro nosso tem sim, graças a Deus. A gente resolveu construir uma
igreja... a gente começou a construção em 96 quando foi em 99 já estava
inaugurado... mais isso que é grande, sabe, num é pequena não... e tudo com a
ajuda do povo, e a maioria do esforço foi a turma do bairro mesmo, sabe?
Então, é mutirão pra fazer isso, é mutirão pra fazer aquilo... é gostoso [D.
Adelina, Joanópolis, 2009].
Ao contrário deste, nos outros bairros do município as falas sobre o mutirão variavam
entre ‘hoje num tem mais’ e ‘se convocar um mutirão num vem ninguém’. A prática do mutirão
permanece, em geral, apenas na memória daqueles que viveram um tempo diferente. No entanto,
S. João e D. Neuma acreditam que a reciprocidade no sítio não morreu. Como exemplo, narraram
uma situação que, segundo eles, poderia ser compreendida como um resquício da ação recíproca
mais freqüente poucas décadas atrás: recentemente o sítio de um ‘chacreiro’ pegou fogo e,
146
espalhada a notícia, sem mesmo haver uma convocação planejada, havia mais de dez homens
para ajudar a apagar o fogo daquele sítio que, inclusive, era de gente de fora’. Segundo Candido
(1975) o mutirão
Consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim
de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa,
colheita, malhação, construção de casa, fiação, etc. Geralmente os vizinhos são
convocados e o beneficiário lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o
trabalho. Mas não remuneração direta de espécie alguma, a não ser a
obrigação moral em que fica o beneficiário de corresponder aos chamados
eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado não falta, porque é praticamente
impossível a um lavrador, que só dispõe de mão-de-obra doméstica, dar conta do
ano agrícola sem cooperação vicinal (CANDIDO, 1975, p. 68).
O autor considera a “luta contra incêndios” como “um tipo especial de auxílio vicinal
coletivo, cuja urgência é máxima”; nesses casos “misturam-se os convocados e os acorridos
espontaneamente, à vista do fogo e da fumaça” (CANDIDO, 1975, p. 69). A ajuda mútua que não
é convocada é denominada pelo autor de “formas espontâneas de auxílio vicinal coletivo”, uma
modalidade particular do mutirão.
É importante, portanto compreender que a falta dos mutirões não significa
necessariamente ausência de reciprocidade. Como evidenciou S. Jesus a ausência dos mutirões é
conseqüência de toda a transformação ocorrida no sistema produtivo agrícola e suas decorrências
socioeconômicas. “Num tem gente mais” [Joanópolis, 2009], aqueles que continuam no sítio
também já não vivem mais as mesmas condições de trabalho que viviam no tempo do mutirão. A
ajuda mútua não pertence ao pacote tecnológico da agricultura moderna. O mutirão depende de
complementaridade entre os gêneros, depende de disponibilidade de mão-de-obra e depende do
que D. Neuma [Joanópolis, 2009] e D. Bia [Cajati, 2006] chamaram de “confiança entre as
pessoas”. A ajuda mútua é elemento fundamental de um sistema econômico não capitalista. No
contexto socioeconômico atual, a ajuda mútua poderia ser compreendida com um ato
revolucionário.
Para D. Felícia [Joanópolis, 2009], reciprocidade é também “uma questão de
humanidade”. Vivendo a realidade do turismo, D. Felícia não concorda com a cobrança
antecipada, no memento da reserva, de uma parte do valor da diária da casa de hóspedes (prática
comum realizada com intuito de garantir a reserva). Segundo ela, todas as pessoas gostam de
viver uma relação de confiança. Além disso, coloca-se no lugar dos hospedes e imagina que se
147
houvesse algum problema que lhe impedisse de comparecer na data reservada, ‘além de ter que
enfrentar o problema, ainda teria que perder o dinheiro’ da reserva. O exercício de colocar-se no
lugar do outro é “uma questão de humanidade”, alteridade necessária à manutenção da
reciprocidade.
Nota-se, portanto, que apesar de muitas das práticas de reciprocidade terem se
inviabilizado com as transformações no sistema de produção, a ação recíproca, oriunda do
exercício da alteridade, ainda é muito comum nas realidades estudadas.
Da fartura ao dinheiro
A princípio parecem contradições, mas aos poucos vamos compreendendo que o tempo de
antigamente e o tempo de hoje não são comparáveis de forma direta, como pares de oposição. “É
como se aquele tempo tivesse terminado” [D. Rosália, Joanópolis, 2009]. Num primeiro
momento, muitos dizem que ‘hoje está melhor’, porque hoje tem mais conforto, é mais fácil, tem
telefone, carro, fogão, etc.. Mas logo, no desenrolar da conversa, é muito comum ouvir que
‘naquele tempo é que era bom!’. Isto não significa a existência de dúvida nem incoerência com
relação à comparação entre hoje e antigamente. Apenas indica que é necessário compreender
cada tempo em seu próprio tempo.
Aquele tempo era tempo de rusticidade. Tempo em que o caipira era ‘que nem bicho’,
homens e mulheres fortes, crianças que enfrentavam o perigo e a morte. Sobre aquele tempo,
ouve-se contar muitos casos de coragem, enfrentamento das dificuldades da vida e do
desconhecido. A rusticidade é ainda mais aparente se a pensarmos nas relações com o material.
Algumas famílias tomavam banhos todos os dias, havia uma bacia para os meninos e outra para
as meninas tomarem o banho; em outras, a criançada “lavava o ”, mas “banho mesmo era em
dia de sábado” [S. Ricardo e D. Rubia, Joanópolis, 2009]. As roupas geralmente eram feitas em
casa, às vezes com sacos de açúcar, e calçados nem sempre havia, “o viveu 88 anos e foi
colocar sapato no pé com 18 anos, 18 anos colocou o primeiro sapato no pé” [S. Igor, Joanópolis,
2009].
O tempo de hoje é tempo de luxo. As crianças pedem roupas iguais a das crianças da
cidade, que vêm na escola e na televisão. Hoje é um tempo de “muito luxo” [D. Neuma,
Joanópolis, 2009]. Em Joanópolis, a maioria das famílias entrevistadas possui um automóvel. No
148
Vale do Ribeira, mesmo as famílias economicamente menos favorecidas possuem televisão. Com
relação à estética ou vaidade, principalmente feminina, D. Marta [Cajati, 2006], que viveu a
transição do tempo de antigamente para o tempo de hoje, questiona a postura das filhas que “só
aceitam as coisas prontas (...) querem sempre estar arrumadas e enfeitadas, mas o que deveria
estar em ordem (a casa) não fica”. O ‘luxo’ é vivenciado pelas mulheres principalmente através
dos artefatos estéticos (cosméticos, roupas e acessórios) e dos utensílios domésticos; pelos
homens através do automóvel e ferramentas/maquinário agrícola.
Segundo a grande maioria das famílias entrevistadas, o tempo do luxo é um tempo mais
fácil e o tempo da rusticidade foi um tempo bom. Ao primeiro relacionam ainda o conforto, os
estudos, a violência e o dinheiro. Ao segundo relacionam a dificuldade, a força, a tranqüilidade e
a fartura. “Aquele tempo era difícil (...) carro até num existia” [D. Tita, Joanópolis, 2009]. O
tempo difícil era enfrentado com coragem. A expressão dos mais velhos ‘já lutei muito!’
indica um tempo em que era preciso lutar para viver, enfrentar lutas que deixaram algumas
marcas na face dos avôs e avós. Pele ‘judiada’ pelo sol, expressão serena e feliz.
Numa comparação entre as pessoas e a terra S. Jesus justifica a atual dependência da terra
pelo adubo. Se antigamente terra e pessoas eram mais fortes, hoje ambas enfraqueceram. A terra
era “forte” quando as pessoas “lutavam”.
Antigamente era bom, sabe por quê? Porque você plantava sem adubo... e você
colhia. Hoje se você plantar sem adubo... (...) eu credito que antigamente... eu
fui criado na roça, né? Eu desde criança eu comecei trabalhar... comecei
trabalhar com 8 anos, entende? Tenho 57 ano, então faz 49 anos que eu luto, e...
antigamente parece que a terra era mais forte, num sei se a terra acostumou com
o adubo... isso aí que eu não sei entender, né? Antigamente a turma num usava
adubo... eu credito que... eu acho que... representa também, ? O povo
esqueceu de dá em cima também, né? Vai saber agora... é verdade ou num é? [S.
Jesus, Joanópolis, 2009].
As transformações levaram a vida de fartura e deixaram uma vida de dinheiro. S. Jesus e
D. Tita discutiram essas diferenças (fartura e dinheiro) de forma muito representativa quanto à
visão geral dos entrevistados. Lembrando do tempo de antigamente contaram que “tinha muita
fartura” e que “dinheiro mesmo era pouco”. “Nós vivia uma vida boa. Num tinha dinheiro.
Dinheiro assim num tinha. Fartura tinha... direto!” Sobre o dinheiro: “num comprava nada, né?
Então o pouco que tinha dava pra se virar” [Joanópolis, 2009].
149
No entanto, não há dinheiro em abundância. Mesmo em Joanópolis, cuja renda familiar é
mais alta, todos e todas ainda ‘lutam’ para conseguir a renda necessária à manutenção da família.
Há renda, mas como disse D. Neuma “a gente paga caro pra viver bem” [Joanópolis, 2009].
Em seu texto A primeira sociedade da afluência, Sahlins (1978) elabora uma discussão
que também pode ajudar a esclarecer a diferença entre ter fartura ou dinheiro:
duas formas possíveis de afluência. As necessidades podem ser “facilmente
satisfeitas”, seja produzindo muito, seja desejando pouco. A concepção vulgar,
de Galbraith, constrói hipóteses apropriadas particularmente às economias de
mercado: as necessidades dos homens são grandes, para não dizer infinitas,
enquanto seus meios são limitados, embora possam ser aperfeiçoados: assim, a
lacuna entre meios e fins pode ser diminuída pela produtividade industrial, ao
menos para que os produtos ou bens indispensáveis se tornem abundantes. Mas,
também uma concepção Zen da riqueza, partindo de premissas um pouco
diferente das nossas: que as necessidades humanas materiais o finitas e
poucas, e os meios técnicos invariáveis mas, no conjunto, adequados. Adotando-
se a estratégia Zen, pode-se usufruir de abundância material sem paralelo com
baixo padrão de vida (SAHLINS, 1978, p. 8).
Finalmente, é possível relacionar fartura à satisfação das necessidades socialmente
construídas. o dinheiro, apesar de oferecer facilidades e conforto, ele cria ininterruptamente
novas necessidade e rompe, portanto, com a possibilidade de um dia satisfazê-las por completo.
Escola do sítio ou da cidade
A escola foi um assunto que apareceu na maioria das entrevistas. O tema foi geralmente
discutido: como uma das justificativas da transferência de algumas famílias (na região do Vale do
Ribeira) do sertão para a vila; como via de acesso futuro a uma vida melhor, normalmente
idealizada fora do sítio; como elemento de transferência dos valores da cidade para o campo; ou
ainda como causa do distanciamento das crianças do sítio com relação às suas famílias e as
atividades rurais.
O saber-fazer do sítio é transmitido às crianças durante o convívio com os pais nas
atividades produtivas. Além de adquirir esse aprendizado, as crianças de fato contribuem com a
dinâmica de trabalho da família. Desse modo, quando a escola ocupa um período do dia dessas
crianças, ela necessariamente interfere na dinâmica familiar de produção. Essa interferência
geralmente não é vista de maneira negativa, pelo contrário, as famílias incorporam a escola às
150
condições de vida do campo e a valorizam tanto quanto um trabalho. Num estudo realizado em
Natividade da Serra/Alto Paraíba, Campos (2006) discute a relação entre o trabalho e o desejo da
escolaridade:
(...) de uma economia de subsistência, em que trabalho e escolaridade tinham
ligação muito relativa, passou-se a uma situação em que a produção ficou cada
vez mais dependente da cidade. E, por conseqüência, a capacidade de produção
ficou mais dependente da escola. Com isso, as unidades escolares, para os
habitantes da zona rural, passaram a ter uma ligação simbólica cada vez mais
profunda com o trabalho. (...) a medida que se processavam as mudanças na
forma de produção, também se alteravam as relações simbólicas de cada geração
com a escola. Ou seja, as condições de trabalho determinam a forma de escola
que os moradores da zona rural desejam (CAMPOS, 2006, p. 5-6).
Outra reflexão importante construída pelo mesmo autor é o fato de a escola ser uma
repartição pública que extrapola o lado institucional e burocrático e assume um papel social
fundamental na organização familiar camponesa. “Neste sentido, acredito que as escolas têm,
para os moradores, um caráter mais semelhante à Igreja do que com as outras repartições
governamentais” (CAMPOS, 2006, p. 6).
Como representante do saber, a escola possui uma força ideológica (poder) capaz de
invalidar algumas concepções sócio-culturais transmitidas por gerações. O conteúdo curricular e
outros aprendizados adquiridos através das relações escolares são muitas vezes colocados em
superioridade aos saberes-fazeres tradicionais. Sem desconsiderar o aprendizado realmente
adquirido pelas crianças e adolescentes nas escolas, atualmente há muitos casos em que a escola é
entendida pelos pais como um dos fatores que dificultam a reprodução da lógica familiar
camponesa. Mesmo as escolas rurais, que aparentemente deveriam promover um ensino
articulado às condições materiais e simbólicas do campo, não o fazem. A escola, de maneira
geral, está articulada à racionalidade urbano-industrial.
(...) o desenvolvimento econômico e tecnoburocrático das sociedades ocidentais
tende a instituir uma racionalização instrumental, em que eficiência e
produtividade parecem trazer a realização da racionalidade social. Assim, a
sociedade industrial aparece como sinônimo de racionalidade, em relação às
outras sociedades, consideradas infra-racionais. Em suma, ser racional significa
repudiar os apelos da paixão, da e da imaginação. É neste contexto que as
diversas tendências educacionais e ideológicas elaboraram seus discursos sobre
a escola da zona rural. De acordo com essas tendências, o compromisso da
escola é com a racionalidade urbano-industrial. Assim, no momento em que a
escola rural conseguir convencer seus alunos e a comunidade onde ela se situa
151
da superioridade dessa racionalização é que a escolarização ali mostrará sua
eficácia. A conseqüência disso para as escolas é que, como diz Brandão (1999,
p. 113), “na verdade, não há escolas rurais; há, sim, escolas de modelo urbano
que, desqualificadas, existem em comunidades de camponeses e outras
categorias de agricultores” (CAMPOS, 2006, p. 9-10).
Nas duas regiões estudadas, observou-se
60
um único caso em que a escola rural possuía
uma proposta de integração com a comunidade. Esta exceção de escola rural é a Escola Rural
Comunitária, localizada no bairro Guapiruvu/Sete Barras. No contexto regional em que se insere,
o bairro não apresenta apenas esse diferencial, mas algumas outras peculiaridades relacionadas à
organização comunitária, cuja mobilização socioeconômica pode ser considerada como bem
sucedida. Bernine (2005) discute essas peculiaridades e a relação da comunidade com o
ambientalismo local. Na citação a seguir, uma liderança comunitária conta sobre a experiência
desta Escola Rural Comunitária:
Na década de 80, em que o Guapiruvu estava no auge da produção do gengibre,
nascia um embrião da organização comunitária que iria se consolidar nos anos
90. O mesmo governo Montoro que incentivava a conservação ambiental
proporcionou a formação das Escolas Rurais Comunitárias que tinham como
grande diferencial a escola como um centro de socialização da comunidade. A
escola do baixo Guapiruvu entra nesse processo e no começo dos anos 80 forma
a associação de Pais e Mestres cujos participantes serão as principais lideranças
da organização comunitária do bairro fundada em 1997. “(...) A professora tinha
que mobilizar, articular a comunidade. Escolas Rurais Comunitárias, ai a
professora ganhava bem pra isso, ela tinha um período integral de aula, ela tinha
que ensinar as pessoas a compartilhar, a se socializar tal, se unir. E ai nessa
época eu comecei ajudando a montar essa escola daqui que é essa escola”
(Gilberto Otha, janeiro/2005). A preocupação com a conservação ambiental
também se fazia presente nessa época. Os então jovens da comunidade
organizaram um clube de jovens que promovia ações muitas vezes com um viés
ambientalista (BERNINI, 2005, p. 44).
Além desta escola, apenas em Barra do Turvo observou-se a existência de “escolas rurais”
(e não comunitárias). Quando as crianças e jovens do campo precisam freqüentar escolas urbanas,
as dificuldades se agravam. Além da distância percorrida pelas crianças para estudar e tempo que
isto implica, a adoção dos valores urbanos é o fator que mais perturba as famílias do sitio.
60
Como este não é o foco desta pesquisa, não se realizaram visitas às escolas e nem mesmo entrevistas direcionadas
a esse tema. As discussões feitas neste texto são baseadas naquilo que os entrevistados apresentaram à pesquisadora
e alguma restrita pesquisa bibliográfica.
152
D. Juana e D. Marta [Cajati, 2006] relataram que no seu tempo de escola (década de
1950, escola rural) havia maiores dificuldades de acesso à educação (falta de estradas, energia,
automóveis, material didático, etc.), mas ainda assim as crianças e jovens tanto freqüentavam a
escola como ajudavam no sítio. Hoje, segundo D. Marta, suas filhas estudam no período da
manhã (escola da cidade) e depois ficam a toa”. A pesar de esse relato ter ocorrido em um
contexto no qual D. Marta argumentava que, em comparação às mulheres de antigamente as de
hoje são “preguiçosas”, é comum, nas duas regiões pesquisadas, a relação entre a inatividade das
crianças e jovens de hoje e a escola da cidade. Além da falta de tempo, as atividades do sítio são
substituídas pelas atividades da cidade, entre elas a televisão, o computador e os vídeos-game.
Em Joanópolis, as escolas foram transferidas, recentemente, do sítio para a cidade. A
grande maioria dos pais acredita que essa mudança não foi positiva para as crianças. Os filhos de
S. Pedro e D. Rita, a Daiane (22 anos) e o Diego (24 anos), estudaram no sítio até a 4º série (atual
5º ano do ensino fundamental) em sistema de ensino multisseriado, concluíram o ensino médio na
cidade e fizeram faculdade de administração em Bragança Paulista. Os dois irmãos percebem
vantagens às crianças quanto ao estudo no sítio. Segundo Diego a escola da cidade “deixa a
criança perdida”. Essa concepção foi manifestada pela grande maioria dos entrevistados.
É... mudou muito as coisas... antigamente era melhor as coisas, num tinha muita
gente assim, descontrolada. Era outra coisa. Era todo mundo estudado no sítio.
Muita gente que estudou aquela época, tudo que se formaram professora... foram
pra cidade. Hoje a combi vem buscar aqui no sítio, leva na cidade... tem meninos
e meninas de 13, 14 anos... eles ficam tudo pra rua! Como é que mexe? Num
tem jeito, num entra, num entra na sala de aula... esse que é o problema,
complicou por causa disso [D. Tita, Joanópolis, 2009].
A expressão ‘perder a criança’ é muito utilizada. A criança, que depende das orientações
de um adulto se ‘perde’ ou é ‘perdida’ na escola da cidade. “O pessoal no bairro fala: depois que
começou a estudar na cidade, perdeu” [D. Adelina, Joanópolis, 2009]. A perda da criança foi
relaciona aos seguintes aspectos: a distância da criança com relação à família; a falta de
autoridade das professoras e da relação entre pais e mestres; a transferência dos valores da cidade
às crianças do sítio; e a falta de aprendizado (tanto na escola como no sítio) das atividades
específicas do sítio.
A distância da escola ocupa grande parte do tempo das crianças. Em Joanópolis, as
crianças do sítio saem de casa aproximadamente às 11 h da manhã e estão de volta apenas às 19 h
153
e 30 min., “perdem o dia todo, num sobra tempo pra trabalhar e pra ter interesse em alguma
coisa” [Diego, Joanópolis, 2009]. Além disso, acabam passando a maior parte do tempo longe da
família, sob a responsabilidade dos professores. “Até nas minhas orações eu lembro dos
professores que atendem meus filhos na cidade, que Deus os abençoe, porque o professor ele
faz parte da vida do filho da gente, né? Olha meu filho fica metade do dia lá, né? Entendeu?” [D.
Adelina, Joanópolis, 2009].
No entanto, na escola urbana nem se aprende o trabalho do sítio...
Ah... na escola do sítio a professora ensinava a plantar horta, fazia nossa horta...
nós comia verdura de mesmo, da mesma horta... ali plantava, a professora
ensinava e ajudava... era tudo do sítio, né? Ela perguntava... era diferente. Agora
na cidade num aprende nada [D. Tita, Joanópolis, 2009].
... nem se pode confiar na autoridade do professor: “A professora hoje num pode fazer nada, no
tempo nosso ainda tinha o cacete” [D. Tita, Joanópolis, 2009]. “Hoje os jovens enganam a mãe e
a professora, e como elas não conversam, fica assim...” [S. Neco, Cajati, 2006].
Por causa dessa dificuldade de controle sobre o jovem, D. Neuma tirou seu filho caçula da
escola. Os dois meninos mais velhos estudaram no sítio e segundo ela, nunca houve problemas
com eles. Na cidade, seu filho não freqüentava as aulas e ficava nos bares. Segundo ela, essa
coisa de que a professora não pode corrigir” é um grande problema. Na cidade, com a distância
da mãe e a falta de “correção” das professaras, “as crianças ficam sem correção, e num
certo”. Sua decisão de tirar o filho da escola baseou-se na seguinte concepção: “o dia que ele for
maduro, ele volta e estudar. Dois, três anos de estudo não vai fazer diferença nenhuma, mais se
ele se perder na vida...”. A pesar de parecer coerente, a atitude tomada por D. Neuma não é uma
atitude comum.
A implicação negativa do relacionamento das crianças da cidade com as crianças do
campo também foi citada por muitas famílias, tanto em Joanópolis como no Vale do Ribeira. Na
cidade “as crianças aprendem um monte de besteiras” [D. Cássia, Cajati, 2006]. Sofrem
preconceito das crianças da cidade somente no começo, porque logo “a criançada do sítio pega...
pega o clima da cidade” [D. Adelina, Joanópolis, 2009]. E pegar o clima da cidade significa
principalmente valorizar a vida urbana e a prática do consumismo do mundo urbano-industrial.
D. Felícia [Joanópolis, 2009] que cresceu em um sítio muito próximo da cidade e tem
até hoje fácil acesso à escola urbana – foi a única mãe que discordou da desvantagem da
154
transferência da escola do sítio para a cidade. Segundo ela a qualidade do ensino na cidade é
superior e, se a criança for bem educada em casa, não há problemas em estudar na cidade.
Alimentação e Saúde: comida da terra ou do mercado.
O modelo agrícola moderno foi aos poucos instituindo uma mercantilização do alimento.
O alimento-mercadoria foi colocado em condições de superioridade ao alimento da terra,
plantado para ser consumido. Como conseqüência, o trabalho desenvolvido pelas mulheres para o
auto-consumo da família, perdeu importância diante da valorização e disponibilidade dos
produtos alimentícios e farmacêuticos oferecidos no mercado. Atualmente, o ‘alimento da terra’
parece não ser nutricionalmente equilibrado como o do mercado. O poder de cura dos chás feitos
‘de mato’, parece não mais convencer a família do sítio. O produto industrializado carrega
consigo uma carga ideológica capaz de vender falsas satisfações e status social. A utilização do
dinheiro para sobreviver supera as possibilidades de viver a partir do trabalho da terra. Dedicar-se
ao trabalho que poderá oferecer recurso financeiro torna-se efetivamente mais viável e
ideologicamente mais importante do que o fazer com intuito de alimentar-se.
Durante a pesquisa, notou-se uma relação entre a produção para auto-consumo e a falta de
oportunidade financeira. D. Cássia [Cajati, 2006] reconhece o trabalho da mulher nas gerações
anteriores à dela (década de 60) como corajoso. Apesar de ainda manter algumas dessas práticas
de trabalho (cozinhar na lenha, pilar arroz, fazer farinha e café), ela não se considera corajosa
como sua mãe, que “fazia até cozido de urtiga! É muito bom remédio”. Discutindo a falta de
coragem das mulheres ‘modernas’, apresentou a relação auto-consumo/renda de maneira
surpreendente. Ela acredita que a coragem de sua mãe foi fruto da condição de baixa renda.
Diante da falta de recurso financeiro, sua mãe utilizava “as coisas do mato”. Portanto, D. Cássia
diz que sente “vontade de agradecer por ter sido criada em situação de pobreza”. A ‘situação de
pobreza’ do sítio, muito diferente da pobreza urbana, possibilitava uma alimentação mais
saudável e natural à D. Cássia.
O tema alimentação e/ou saúde é normalmente mencionado nas entrevistas atrelado à
discussão sobre o trabalho das mulheres. A grande maioria dos entrevistados, no Vale do Ribeira
e em Joanópolis, relatou que antigamente não era preciso comprar quase nada. As famílias
dependiam apenas da compra do sal para alimentação, do querosene para iluminação (lampião) e
155
do tecido para confecção das roupas. As mulheres, portanto, preparavam toda a alimentação da
família a partir dos produtos do sítio. A esse preparo estão incluídas atividades como: colher,
secar, torrar e moer o café, moer o milho, no pilão ou monjolo, para fazer a farinha, pilar
(descascar) o arroz, bater (também para descascar) o feijão, moer a cana para extrair o caldo e
obter açúcar, etc. Em Joanópolis, comentou-se muito sobre o café de cana’: para adquirir ‘o
doce’, a infusão do café era realizada com o próprio caldo da cana.
Junto a essa discussão, foi também um consenso a informação de que ‘as pessoas não
ficavam doentes como ficam hoje’. S. Neco diz que “tem um monte de doença de hoje que não
existia. (...) É que a gente comia comida boa, da terra (...) num tinha isso de ficar tão doente, e
quando tinha alguma coisa tomava algum chá de mato” [Cajati, 2006]. S. Pedro lembra que seu
avô, que viveu até os 96 anos, “era direto na gordura de porco e carne de porco” e “num tinha
colesterol”; “hoje todo mundo tem colesterol” [Joanópolis, 2009].
Atualmente, a maioria das famílias entrevistadas alimenta-se basicamente de comidas
compradas e/ou industrializadas. A alimentação da própria família agricultora não é mais
‘orgânica’. Segundo S. Igor, cuja família, exceção a essa regra, consome aproximadamente 70%
de produtos oriundos do sítio, o produto não-orgânico (ou industrializado) é mais aceito “porque
o povo num come com a boca, come com o olho”. A comida da terra normalmente tem um
aspecto ‘mais feio’, segundo os padrões ‘modernos’, do que a comida do mercado. Apesar de ser
mais saudável o alimento do sítio, do quintal, perde valor com relação ao alimento do mercado,
da prateleira.
Consequentemente, os ‘chás de mato’ não são mais eficientes. Num mundo artificializado,
o princípio ativo das plantas deve ser concentrado em laboratório e industrializado pelas
empresas farmacêuticas para tornarem-se potencialmente medicinais. A apropriação do
conhecimento das plantas pela ciência farmacêutica coloca mães curandeiras em dependência dos
médicos. Os médicos (em maioria homens) são agora quem detém o conhecimento sobre qual o
remédio e doses são necessárias a cada enfermidade.
Atualmente, para nascer uma criança ‘no tio’ é preciso que a mãe se desloque até a
cidade. Não são mais as mães que parem seus filhos, nas suas casas, com auxílio da mãe e
comadre parteira. Elas não precisam mais ser o fortes e corajosas para agüentar a dor de um
longo parto. No hospital da cidade, os médicos fazem nascer as crianças do sítio. O médico
assume a função da mãe e da parteira de colocar mais uma criança na família. No entanto, quase
156
contraditoriamente, ‘hoje ficou difícil ter filhos’. D. Rubia tem duas filhas e pretendia ser mãe de
mais crianças. No entanto, comenta que com essas duas foi difícil (...) cada vacina que tinha
que tomar era uma dificuldade pra chegar até a cidade...” [Joanópolis, 2009].
Essas ‘contradições’ que envolvem a qualidade de vida das famílias camponesas são, de
maneira geral, conseqüências da desvalorização do conhecimento tradicional e supervalorização
do saber científico
61
. Especificamente nesses casos (da alimentação e saúde), implicam em
desvalorização do saber-fazer feminino.
A igreja e a religião
Quanto à religião e a igreja, duas questões importantes foram observadas na pesquisa de
campo. Uma delas é a concepção cristã da ‘retribuição pelo sacrifício’ que norteia a vida das
famílias estudadas; e a outra é a importância da igreja enquanto organização comunitária.
Parece estranho, por exemplo, as designações atribuídas, pelos(as) sitiantes, ao ‘tempo de
antigamente’: um tempo difícil e um tempo bom. De uma perspectiva ‘moderna’ o adjetivo
‘difícil’ é, num primeiro momento, correspondente ao adjetivo ‘ruim’, e não ‘bom’. A
‘felicidade’ é, ilusoriamente vendida no sistema socioeconômico hegemônico de forma atrelada à
‘facilidade’. O ‘sacrifício’ deveria, em princípio, ser eliminado pelo avanço tecnológico.
Acontece que, essa concepção ‘moderna’ de felicidade inverte a concepção cristã da ‘retribuição
pelo sacrifício’, muito bem vista e adotada pela maioria das famílias pesquisadas.
A contradição entre a concepção ‘cristã camponesa’ e a concepção ‘moderna’ surgiu em
diversos momentos da pesquisa. S. Ricardo – sitiante de Joanópolis que fez questão de evidenciar
a necessidade de ‘evolução’ tecnológica se orgulha de sua filha ter mudado para a cidade em
busca de estudo (graduação) e trabalho. No entanto, não deixa de enfatizar, como forma de
61
Segundo Boaventura de Souza Santos, “o argumento em favor de privilegiar uma forma de conhecimento que se
traduzia facilmente em desenvolvimento tecnológico teve de confrontar-se com outros argumentos em favor de
formas de conhecimento que privilegiam a busca do bem estar e da felicidade ou a continuidade entre sujeito e
objeto, entre natureza e cultura, entre homens e mulheres e entre seres humanos e todas as outras criaturas. A vitória
do primeiro argumento explicou-se em parte pela crescente ascendência do capitalismo e das potencialidades de
transformação social sem precedentes que trazia no seu bojo. A vitória teve de ser tão completa quanto às rupturas
que se pretendiam com a sociedade anterior. E, para ser completa, teve de envolver a transformação dos critérios da
validade de conhecimento em critérios de cientificidade do conhecimento. A partir de então a ciência moderna
conquistou o privilégio de definir não só o que é ciência, mas muito mais que isso, o que é conhecimento válido. (...)
Por outro lado, ao incidir sobre outras formas de conhecimento, essa “destruição criadora” se traduziu em
epistemicídio” (SANTOS, 2005, p. 21).
157
diferenciar os valores urbano-industriais dos valores da campesinidade, todo o sacrifício, as
dificuldades e os esforços vividos pela filha durante essa conquista da cidade. Esse processo de
mudança não teria o mesmo reconhecimento e a mesma valorização de S. Ricardo se ele tivesse
sido vivido de maneira ‘fácil’, adquirido sem esforço. A vida na cidade tem valor porque foi
conquistada, porque se lutou por ela.
A segunda questão observada de grande relevância é uma função social da igreja: sua
contribuição quanto à organização comunitária. A igreja é normalmente um ponto de referência
do bairro. Poderíamos elencar muitos exemplos de como a igreja pode cumprir papeis sociais,
agrupar pessoas para realizarem ações sociais. A construção de uma igreja possibilita, inclusive
estruturalmente, reunir as pessoas do bairro e/ou comunidade. No bairro Pinhalzinho/Joanópolis,
por exemplo, a igreja foi construída em mutirão pela própria comunidade do bairro. S. Igor e D.
Adelina acreditam que a igreja une as pessoas “se tiver um líder que leve”. Este é o elemento que
se pretende discutir brevemente nos próximos parágrafos.
O casal, S. Igor e D. Adelina, é ministro da eucaristia a mais de dezesseis anos. O cargo
deveria durar apenas dois anos, mas a comunidade aparentemente confia na posição de liderança
do casal e não se prontifica a assumir as responsabilidades que cabem ao cargo. S. Igor e D.
Adelina são lideranças comunitárias e organizam a comunidade através de ações ligadas à igreja.
Sobre a posição do casal como ministros da eucaristia, D. Adelina concorda que sua família é
referência na comunidade e acredita que essa relação de referência e confiança pode ‘levar’ a
comunidade a se organizar e agir em busca de seus interesses.
É, é uma referência. Porque ali na igreja tem que ter ação, a igreja num é
necessariamente só pra orar, né? É orar e tem que ter ação. Por exemplo, a gente
poder ver na igreja uma maneira às vezes de olhar aquele que tá precisando de
alguma coisa... se unir pra ajudar... e criar coisa nova, né? A igreja, assim... a
partir da igreja a gente planeja, né? planeja isso, planeja aquilo... a gente tem
muitos sonhos pra comunidade, a partir da igreja, né? a partir do encontro, a
gente pensa... porque, no bairro tem muita gente idosa que precisa ir pra cidade,
fazer controle de pressão, essas coisas... a gente tem planos. (...) a gente num
tem ônibus aqui... então, a gente fala assim... ai... na comunidade a gente pode
comprar uma combi, né? essa combi pode levar o pessoal pra cidade, né? vai tá a
serviço do povo. Então é plano que a gente tem, né? Então a gente acredita que
pode até conseguir, porque pequenininho que a gente começou a gente
construiu bastante [D. Adelina, Joanópolis, 2009].
Notou-se que, não apenas em Joanópolis, mas também em Sete Barras, que a posição de
ministro da eucaristia (igreja católica) está possivelmente relacionada à posição de liderança
158
comunitária, de referência sócio-cultural e de organização de bairro. S. Ricardo e D. Rubia, S.
Jesus e D. Tita, S. Igor e D. Adelina em Joanópolis, e S. Gabriel e D. Nina em Sete Barras, foram
os principais exemplos desta situação.
Por último, cabe aqui mencionar a atribuição divina dos elementos da ‘natureza’.
‘Natureza’ entre aspas porque, como discutimos anteriormente, este conceito que reúne a terra, a
água, as plantas, os animais e os demais elementos de um ecossistema, é uma construção da
cultura ocidental relativizada na peculiaridade cultural camponesa. A relativa divindade atribuída
aos elementos naturais faz-se aparente na relação de respeito estabelecida historicamente por
essas comunidades. É claro que a gica da agricultura moderna e suas tecnologias de produção
inviabilizam essa relação de articulação entre as famílias do sítio e a ‘natureza’, mas nos
interstícios desse modelo hegemônico ainda reside o respeito e a relação de igualdade entre
humano e naturesas. Duas frases de S. Ricardo [Joanópolis, 2009] podem ilustrar essa reflexão. A
primeira foi um comentário sobre a chagada dos projetos ambientalistas na região: “o caipira é
que nem bicho mesmo, assusta!”; e a segunda foi dita durante uma discussão sobre ‘a natureza’:
“Deus e natureza tem tudo a ver”.
4.8 Modernização: qual é a relação entre o lobisomem e a energia elétrica?
O objetivo deste item é analisar as realidades pesquisadas quanto à permanência da
campesinidade. Mais especificamente, pretende-se refletir sobre as condições de existência da
campesinidade em sistemas de produção modernizados e organizações familiares que vivenciam
a modernização de forma geral. Para tanto, retoma-se a discussão sobre a economia e a cultura
camponesa à luz das observações empíricas.
As características principais de diferenciação entre a economia capitalista e a economia
camponesa foram verificadas na pesquisa de campo. A ausência do assalariamento como forma
principal de trabalho, a circulação simples de mercadoria, o estímulo produtivo condizente com
as necessidades familiares, e a não contabilização da força de trabalho no processo produtivo são
características da organização econômica camponesa que foram observadas nas duas realidades
estudadas.
159
A forma principal de trabalho nos sítios é a mão-de-obra familiar, eventualmente com a
contratação de mão-de-obra assalariada ou sob a forma de troca de trabalho. As dificuldades de
produção vividas pelas famílias em questão obrigam a venda da mão-de-obra por parte dos
sitiantes à ‘chacreiros’ ou empregadores da cidade. Essa situação é geralmente apresentada como
‘situação de precisão’. Ou seja, na ‘precisão’ vende-se a força de trabalho.
Sobre a força de trabalho familiar, retomando Chayanov, observou-se a diminuição do
tamanho das famílias no decorrer das gerações que, junto à realidade de êxodo rural, causou um
desequilíbrio entre o número de trabalhadores e o número de consumidores nas famílias. A
escassez de mão-de-obra e a transferência dos jovens para a cidade estão construindo uma
realidade de agricultura familiar envelhecida. Em muitos dos sítios visitados a força de trabalho
principal é a do pai e da mãe, em idades relativamente avançadas (entre 40 e 50 anos). Além
disso, como um dos motivos do próprio êxodo, de se considerar a redução do tamanho das
terras. As terras brasileiras são controladas pelo regime de propriedade privada. A pesar de
muitos sitiantes (principalmente no Vale do Ribeira) serem posseiros da terra, a obtenção de
novas terras acontece apenas por regime de compra. Ou seja, não há expansividade ou
acumulação de capital por parte das famílias pesquisadas.
Como foi discutida nesta dissertação, a economia tipicamente camponesa compreende
a produção para o mercado. A troca de mercadorias camponesa é, contudo, predominantemente
baseada no valor de uso dos produtos (M-D-M). Isto significa que a produção agrícola
camponesa fundamenta-se nas necessidades socialmente construídas pelas famílias. Quanto às
necessidades socialmente construídas, podemos refletir a partir da discussão sobre a transição do
tempo de fartura para o tempo de dinheiro. Nota-se que o tempo de fartura foi um tempo possível,
talvez, porque tenha sido um tempo em que as necessidades construídas pelas comunidades
camponesas eram afastadas das necessidades construídas pela sociedade urbano-industrial. Um
tempo em que as crianças não tinham necessidade de vestirem-se como as crianças da cidade.
Um tempo em que as mulheres não necessitavam de fogão e liquidificador; e os homens não
dependiam do trator.
A relação de simples troca (M-D-M) ainda é, de forma geral, praticada pelas famílias em
questão. Nos tempos de hoje, a relação com o mercado, por parte desses produtores familiares,
tem se tornado cada vez mais difícil. Como disse D. Adelina [Joanópolis, 2009]: “o produtor tem
todo esse trabalho, compra caro, fica ali com a continha feita, se o dinheiro da lavoura der pra
160
pagar aquele gasto, bem, se num der ele vai ter que vender alguma coisa e pagar...”. Ou seja,
algumas vezes a mercadoria vendida (produto da lavoura) não atinge preço suficiente para cobrir
o custo de produção (aquele gasto). A mercadoria é vendida abaixo do preço de custo (mesmo
não contabilizando a mão-de-obra do produtor), a relação de simples troca praticamente se
inviabiliza, as famílias acabam por endividar-se (M-d-?) e por tornarem-se devedoras no mercado
financeiro.
A modernização, portanto, atinge a economia camponesa e, em diferentes intensidades,
transfere as famílias da situação de fartura para a situação de pobreza. No entanto, pode-se notar
que a economia camponesa, mesmo quando encontra-se sob situação de dependência e
subordinação à economia capitalista, ainda se estrutura a partir das peculiaridades de uma
economia camponesa. É evidente que não são apenas as condições econômicas que sofrem
transformações com a modernização. “Depois que o moderno chegou” [S. Igor, Joanópolis, 2009,
diversos aspectos da vida rural camponesa se modificaram. D. Glória [Cajati, 2006] acredita que
não são as pessoas que mudaram, mas “é a vida que está muito diferente... não tem absolutamente
nada que eu faço hoje que seja igual ao que eu fazia antigamente (...). Hoje dou milho comprado
para as galinhas, cozinho no gás, fumo papel...”.
‘O moderno’ chega tão rapidamente que as transformações da vida acontecem de maneira
bastante radical, em poucas gerações. Contudo, os elementos sócio-culturais, a superestrutura da
organização social, não é possível que se transformem na mesma velocidade. As modificações
culturais levam mais tempo para se consolidarem. Portanto, o que tem acontecido nas regiões
estudadas é a convivência de muitos aspectos da modernidade com vários outros aspectos da
‘tradicionalidade’. Num ritmo bastante lento o ‘antigo’ vai se modificando e incorporando
elementos do ‘moderno’. Esta articulação entre ‘antigo’ e ‘moderno’ foi observada em muitas
situações durante a pesquisa. Refletiremos sobre o exemplo mais característico, sobre a realidade
que melhor simboliza essa discussão: a convivência da crença no Lobisomem com o acesso ao
mundo urbano e a tecnologias modernas, em Joanópolis.
O Lobisomem é uma construção cultural que representa muito bem a não disjunção entre
o humano e a natureza. Um homem comum – ou alma de um homem –, com alguns traços físicos
e comportamentais característicos, que se transforma em lobo nas noites de lua cheia. Um adulto
161
de barba preta, mãos grossas e calejadas, que se recusa a sentar no ‘meia-alqueira’
62
, pode ser um
lobisomem. Curioso é que todo homem, apesar de existirem algumas características que
colaboram com a identificação do ‘bicho’, é inicialmente suspeito. Qualquer homem está, a
princípio, sob suspeita. Pode ser um estranho ou um amigo. Pode ser branco ou negro. Durante o
dia homens e lobisomens são todos iguais.
No entanto, apesar de acreditar-se na possibilidade dessa mistura de humano (homem) e
natureza (lobo), o lobisomem é um ser temido pelas pessoas comuns. Ele come as galinhas do
terreiro, come os leitões novos, pega as crianças e as mulheres e anda durante a noite fazendo
‘estripulias’ na casa das pessoas. “Os mais antigo, meus avôs, meus pais, o pai dela [D. Rosália]
conta, que naquele tempo tinha mesmo, existia mesmo. Era... chegava a pegar e fechar no
quarto... no outro dia a pessoa tava lá, pelado. Que era pessoa que vinha, de outro... de outro
estado, lá de longe, que ninguém conhecia... como é que pode ser?” [S. Pedro, Joanópolis, 2009].
Existe o lobisomem vivo e o lobisomem morto: “O morto é aquele que tinha aquela...
como se diz... aquela sina, que os mais velhos falam, aquele dom, que num cumpriu os sete
anos... aí, por um motivo ou outro morreu. Então esse é o lobisomem morto. Daí é mais o
imaginário. As pessoas que vê... o vivo não, né? O vivo é aquele que faz as estripulias todas, na
noite de lua cheia, e depois, no dia seguinte, tudo que ele comeu ali... a noite, vomita tudo... [D.
Rosália, Joanópolis, 2009].
Os avôs contavam muitos casos em que viram o lobisomem, prenderam no quarto até que
voltasse à forma humana, ou até casos em que mataram o lobisomem e enterraram em algum
lugar do sítio. Os pais pediam aos filhos e às mulheres que tomassem cuidados e que não saíssem
de casa durante a noite. Muitos barulhos da noite escura, sem qualquer iluminação, assustavam a
família. Muitos destes barulhos poderiam ser ‘estripulias’ do lobisomem. O lobisomem, ser
desconhecido que transita entre o mundo humano e o mundo sobrenatural, era enfrentado
somente por mais de um homem, ou homens armados.
62
‘Meia-alqueira’ é uma unidade de medida utilizada antigamente pelos sitiantes. Na explicação de S. Pedro: “Os
mais velhos fazia... vocês num sabem o que era 'meia-alqueira'... Era uns quadrados que fazia, de madeira... Era
'meia-alqueira'... O que que é 'meia-alquera'? eles num sabe também... 'meia-alqueira' é... que é pra feijão, arroz...
então 25 litros. Então eles faziam um cachãozinho de madeira, que tava com a medida. Então o pessoal plantava 'de
meia', então chaga na hora de repartir, enchia aquele... aquele... quadrado, aquela... tipo de um balaio assim... então
era um pra e um pra cá, pra repartir sabe? então era 'meia-alquera' que chamava. Que um alquera é 50 litros de...
de feijão, de milho, de arroz...” [S. Pedro, Joanópolis, 2009].
162
Eu morava atrás aqui, num tinha energia num tinha nada aqui, na casa do (...),
tem uma fazenda velha ali. Nós era tudo criançada, os cachorro ficava bravo a
noite e latindo... e tinha um bicho que roncava, assim feio. Meu pai falava pra
nós ficar tudo quietinho... "vamos deitar, vamos deitar que é lobisomem". Ficava
esfregando a parede e os cachorro tudo bravo e coisando... [S. Pedro, Joanópolis,
2009].
No entanto, é interessante notar que a crença no sobrenatural, na materialização da
articulação entre humano e natureza, não é apenas uma antiguidade abandonada pelas gerações
‘modernas’. Daiane e Diego, por exemplo, não deixam de acreditar na existência do lobisomem.
Por algum motivo, desconhecido, as pessoas não vêm mais.
Então, é coisa antiga... E como não acreditar? Entendeu? Eu num abuso. Eu num
gosto desse tipo que eles fazem, esse comércio... é porque... isso é ruim. Mais a
realidade, a realidade é o que aconteceu, né? Comia leitão novo... todas as coisas
assim de... que as pessoa viam, isso os mais velhos. que ultimamente isso,
graças a Deus parece que acabou. Ninguém mais. Parece que é como se... se
tivesse terminado aquele tempo, sabe? Como se tivesse ficado lá atrás [D.
Rosália, Joanópolis, 2009].
A questão de que ‘ninguém mais’ não anula a possibilidade de o lobisomem ainda
existir. D. Rosália, D Rubia e outras mulheres de Joanópolis ainda temem sair nas noites de lua
cheia. A existência do lobisomem não pode ser contestada, do ponto de vista de D. Rosália, pelo
fato de que as pessoas que viram ‘o bicho’ ainda estão vivas, elas podem confirmar. “Como num
acreditar? quem fala isso é minha mãe, que bem viva, é meu pai que bem vivo...” [D.
Rosália, Joanópolis, 2009].
A questão colocada foi: “e porque que hoje ninguém mais isso? Até no que mudou...”
[S. Pedro, Joanópolis, 2009]. Diante da dúvida, discutiu-se com esta família sobre uma passagem
da obra A partilha da vida de Carlos Rodrigues Brandão. Mais especificamente, comentou-se
sobre a relação apresentada por um sitiante entrevistado pelo autor, entre a ausência atual do
lobisomem e a iluminação da cidade
63
. Sobre a hipótese do lavrador de Catuçaba, discutida por
Brandão (1995), Diego comenta: “E pode reparar que... faz sentido. Pode reparar porque essas
63
O trecho do referido diálogo com um lavrador arrendatário morador de Catuçaba: “(...) Que antes o sertão era
perto, as matas chegando na beira de tudo. E não tinha luz e nem nada desses progressos da cidade. Coisa como os
rádios, as televisões, o avião, carro, e tudo que a gente por aí. Então, por aqui era o lugar deles. Era perto. Eles
apareciam mesmo por aí, nas estradas, nos povoados, perto das pessoas. Mas agora, com tudo isso de novo, os
lugares claros, a luz, o muito movimento, o sertão recuando pra longe, pras beiras dos fundos, nessas serras, os
campos ficando limpos, os costumes da cidade invadindo tudo. Então, não quer dizer que eles desapareceram de
todos os lugares, do mundo mesmo. Eles só sumiram daqui” (BRANDÃO, 1995, p. 79).
163
histórias são de coisa de... vão lá, quarenta, cinqüenta anos atrás, quando não existia ainda
energia elétrica. Faz sentido a relação, mas... mas qual a relação entre o lobisomem e a energia
elétrica?” [Diego, Joanópolis, 2009]. Segundo Brandão:
Vinda a cidade, os seres tomam um duplo destino. Os que se podem colocar para
ela, porque querem ou porque precisam famílias inteiras dos bairros, casais
jovens em busca de futuro fora, jovens formados no magistério migram para a
cidade, “tomam destino” fora “da roça”. Os seres nativos ou incorporados a
territórios no intervalo entre a roça e o sertão refugiam-se, fogem. Escapam da
luz, do progresso, escondem-se onde ainda é como sempre precisa ser para que
eles prossigam existindo. Desaparecem, não de todos os lugares, mas daqueles
onde a chegada dos recursos “de fora” impedem a existência de seres tão “de
dentro” (BRANDÃO, 1995, p. 80).
Diego [Joanópolis, 2009] tomou o destino da cidade. Crescido no sítio, hoje assume um
cargo de gerência num banco da cidade. No sítio em que cresceu, onde ainda moram seus pais,
possui energia elétrica, telefone, carro e diversos outros ‘confortos’ tecnológicos. Aquele espaço
‘da roça’ vive outro momento histórico. A família usufrui da disponibilidade de tecnologia. Nesse
tempo o lobisomem já não se aproxima mais. No entanto, mesmo a geração mais nova da família,
Diego e Daiane, provavelmente não sairiam a passear pelo sítio em uma noite de lua cheia.
A disponibilidade de tecnologia e as transformações ocorridas no nível da produção e/ou
alternativas encontradas para obtenção dos meios de sobrevivência, mesmo quando assustam
alguns seres representantes do ‘tempo de antigamente’, do tempo ‘da roça’, ainda não foram
capaz de apagar por completo suas representações. Para usar o termo utilizado por Sevilla
Guzmán, o ‘grau de campesinidade’ vivido pelas famílias camponesas varia conforme o
momento histórico e a disponibilidade de tecnologias referentes a ele.
Quanto ao envolvimento dos jovens - diante da modernização atual - nas atividades do
sítio, observaram-se comportamentos diferenciados. Estas diferenças se dão conforme as
oportunidades econômicas e sócio-culturais disponíveis a eles. Ou seja, a migração dos jovens
não está relacionada unicamente a atração da cidade e a “modernidade” que ela oferece, mas
principalmente a falta de oportunidades (trabalho e terras) no campo. O envolvimento dos jovens
nos projetos de cunho socioambiental – mais antigos no Vale do Ribeira e recentes em Joanópolis
podem ilustrar essa reflexão. Os sistemas agroflorestais no Vale do Ribeira e a horta orgânica
em Joanópolis são exemplos de alternativas que contribuíram, em alguns casos, para a
manutenção dos filhos no sítio.
164
Conclui-se, portanto, que as conseqüências do processo de modernização da agricultura e
dos paradigmas modernos de forma geral são evidentes. No entanto, as observações de campo e
as análises aqui desenvolvidas permitem sugerir que a campesinidade ainda resiste, nas regiões
estudadas, às intervenções do modelo de organização social hegemônico.
4.9 Agroecologia: um novo campo do conhecimento que ‘desfaz casamento’?
As experiências com relação à agroecologia que possuem maior tempo de
desenvolvimento, entre as realidades aqui pesquisadas, são aquelas desenvolvidas na região do
Vale do Ribeira. Apesar de a região de Joanópolis ser atualmente um dos focos do
socioambientalismo, pode-se dizer que o primeiro projeto com princípios agroecológicos
denominado “Experimentação em agrossilvicultura e participação social: um estudo de caso em
Joanópolis-SP” foi desenvolvido pela equipe do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão em
Educação e Conservação Ambiental NACE-PTECA da Universidade de São Paulo
USP/ESALQ, e teve início em agosto de 2005. No entanto, alguns municípios do Vale do
Ribeira, como Barra do Turvo, já possuem experiências de contato com a agroecologia desde
1995. Por esse motivo, os próximos parágrafos trarão mais reflexões a respeito de experiências
desta última região.
A agroecologia chegou até os agricultores do Vale do Ribeira basicamente por meio das
ONG’s e seus projetos de implantação e/ou manejo de SAF’s. vários sistemas de produção
possíveis de serem manejados segundo os princípios agroecológicos. Devido a diversas
características, incluindo o potencial de sucessão ecológica e melhor ocupação vertical do espaço
(estratos), os SAF’s podem ser considerados os mais eficientes sistemas produtivos
(GLIESSMAN, 2001). O termo “agroflorestal” refere-se às práticas de implantação de espécimes
arbóreas, ou a manutenção das mesmas no ecossistema, em consórcio com culturas agrícolas e/ou
pastoreio. No Brasil, os SAF’s (como uma prática baseada nos princípios agroecológicos) podem
ser considerados sistemas de manejo que, se o plenamente ancorados em práticas agrícolas
tradicionais, consideram substancialmente seus conhecimentos.
Incorporar árvores em agroecossistemas é uma prática com uma longa história.
Isto é especialmente verdadeiro nas regiões tropicais e subtropicais, onde os
165
produtores muito plantam árvores junto com outras culturas agrícolas e
animais para ajudar a satisfazer as necessidades básicas de alimento, madeira,
lenha e forragem, e para ajudar a conservar e proteger seus recursos
freqüentemente limitados (GLIESSMAN, 2001, p. 490).
Estes sistemas podem ter níveis de biodiversificação diferenciados. Assim como podem
ter objetivos socioeconômicos diversos. Na experiência empírica em questão, técnicos e
agricultores nomearam alguns tipos de SAF’s de acordo com suas características. A classificação
realizada foi a seguinte: (1) os SAF’s biodiversificados, referem-se a um modelo existente na
propriedade da família Bernardo (Cananéia). Apresenta aproximadamente 70 espécies diferentes
de plantas por hectare, muitas das quais são utilizadas para o auto-consumo da família. Este SAF
não foi planejado para produção de um cultivo específico; (2) os SAF’s de produção, são mais
‘planejados’ do que os primeiros. Possuem espécies dominantes com objetivo último de
comercialização de seus produtos (principalmente a banana e a polpa de juçara); (3) os quintais
agroflorestais, são semelhantes aos SAF’s biodiversificados quanto à diversificação e produção
para auto-consumo. No entanto, costumam ser menores e normalmente implantados nos
arredores da casa; (4) os SAF’s medicinais, pretendem oferecer condições ambientais necessárias
ao cultivo de plantas medicinais. Sua produção priorizará o mercado das empresas de cosméticos;
(5) os SAF’s recuperação, são destinados principalmente à adequação ambiental da propriedade
(Áreas de Preservação Permanentes e Reserva Legal), visando a certificação dos produtos do
sítio (Associação de Certificação Instituto Biodinâmico – IBD); (6) os SAF’s roça branca,
incluem plantas de crescimento rápido para a alimentação básica (mandioca, feijão, quiabo, etc),
e deverão atender àqueles que necessitam de rápida produção para auto-consumo famílias
recém assentadas; e (7) a última classificação, que engloba algumas das anteriores, é a orientação
ao turismo, ou seja, a adequação dos SAF’s tanto para visitações educativas, como para produção
de alimentos agroecológicos destinados aos turistas.
Desta classificação cuja intenção era a sistematização das unidades de produção que
participavam do projeto, segundo peculiaridades específicas pode-se notar duas possíveis
orientações: (1) o mercado, que incluiria os SAF’s de produção, medicinal e recuperação; e (2) o
auto-consumo, que incluiria os biodiversificados, o roça branca e o quintal agroflorestal.
Lembrando que estas duas opções não se anulam, a orientação ao mercado (exógeno) limita as
possibilidades da participação feminina. As mulheres envolvidas efetivamente no projeto
estudado pertencem ao segundo grupo, dos SAF’s orientados ao auto-consumo. Nota-se que nas
166
experiências existentes de SAF’s orientados ao mercado, não participação feminina nem na
idealização do sistema, nem no seu manejo. Quando o SAF cumpre também a função de auto-
consumo, essa realidade se transforma.
No sítio da família Bernardo (SAF biodiversificado) Claudemir e Suzana recebem os
turistas para compartilhar a experiência agroecológica e para servir uma ‘refeição caiçara’ feita
basicamente com produtos do sítio. O casal, atualmente, compartilha o ideal de uma agricultura
sustentável e domina o procedimento técnico necessário para alcançar este ideal. Sobre a opção
de manejar SAF’s biodiversificados, Claudemir [Cananéia, 2009] diz que a intenção do casal é
produzir para o consumo próprio e vender a produção excedente. A venda realizada na feira
tanto dos produtos do SAF como da horta – tem garantido uma renda que satisfaz a família. Além
desta, eles obtém renda com a recepção de grupos (geralmente estudantes) que visitam o sítio. A
diversidade existente no sítio ainda inclui a produção e venda de mel e própolis, licores,
cachaças, geléias, banana passa e outros.
No bairro Guapiruvu/Sete Barras pelo menos duas experiências bem consolidadas de
SAF’s para produção. Como já foi mencionado, este bairro é um exemplo de organização
comunitária e desenvolvimento de ações visando a sustentabilidade. A formação das principais
lideranças comunitárias é um dos motivos pelo qual essa comunidade encontrou um caminho
diferenciado no contexto em questão.
No convencional eu me formei, mas vi a necessidade do grupo. Foi pela criação
da AGUA que me motivei a fazer faculdade. Fiz vários cursos, viajei bastante.
Perdi do ponto de vista econômico. Entretanto sai do convencional e fui para um
sistema alternativo. Amadureci na questão da democracia, na visão dos
processos da sociedade civil. Evolui da visão capitalista para uma visão mais
ética e de responsabilidade social Gilberto Ohta de Oliveira (ASSOCIAÇÃO
DOS MORADORES DO BAIRRO DO GUAPIRUVU - AGUA, 2003, p. 3)
64
.
No entanto, mesmo nessas experiências mais antigas de SAF, a participação das mulheres,
tanto na idealização da proposta como no manejo dos SAF’s, é marginal. No bairro como um
todo, o processamento da banana em banana chips e banana passa – é realizado pelas mulheres.
No entanto, o processo de produção desta banana parece indiferente à maioria delas. Se não pela
valorização do produto no mercado devido à certificação, os SAF’s têm pouco significado às
mulheres. Da observação desta realidade empírica em especial, foi possível compreender que o
64
Ata da “Primeira reunião de avaliação do processo de desenvolvimento da comunidade e da associação AGUA”,
realizada no município de Sete Barras, em 2003. Documento cedido à autora.
167
acesso ao conhecimento da agroecologia, quando é obtido apenas pelos homens, pode causar
conflitos familiares inesperados.
Como foi discutida anteriormente nesta pesquisa, a agroecologia tem como um de seus
objetivos a (re)construção da lógica de organização sócio-cultural endógena e a negação da lógica
mercadológica produtivista. O processo de transição de um sistema de produção ‘convencional’ –
modelo da revolução verde para um sistema que obedeça a princípios agroecológico é um
processo lento e difícil de ser enfrentado
65
. Por a agroecologia não ser simplesmente um modelo
de produção, esta transição implica em transformações que extrapolam o limite das relações
econômicas.
Normalmente, na realidade pesquisada, apenas o homem da família participa dos
encontros de agroecologia, dos projetos de capacitação e tantos outros momentos que
possibilitam a eles a compreensão do que é a agroecologia. Isto significa que, se não houver um
importante esforço de comunicação entre o casal, as mulheres não compartilharão o ideal
agroecológico adotado pelo marido. Mais ainda, o processo de construção de um sítio
sustentável, segundo os princípios da agroecologia, torna-se incompreensível e muitas vezes não
tolerado pelas mulheres. É nesse contexto que se pode compreender a frase da liderança
comunitária, Gilberto Ohta, do bairro Guapiruvu [Sete Barras, 2006]: “a agroecologia desfaz
casamento”.
Relacionado a esta desunião, observa-se um fortalecimento do poder masculino sobre a
mulher diante da obtenção individual do saber agroecológico. Assim como ocorreu durante o
processo de modernização da agricultura, as experiências agroecológicas estão mais próximas aos
homens e aos espaços masculinos. D. Tânia é esposa de um monitor agroflorestal, S. Maurício.
Agrofloresteiro desde 1995, seu marido discute sobre os princípios agroecológicos de maneira
muito segura. A peculiaridade de ser um sitiante conhecedor de um campo inovador do
conhecimento faz com que S. Maurício usufrua de uma posição de destaque. D. Tânia, por sua
65
Miguel Altieri discute o processo de conversão do manejo convencional para o manejo agroecológico: “(...) é um
processo de transição com quatro fases distintas, consistindo de retirada progressiva de produtos químicos;
racionalização e melhoramento da eficiência no uso de agroquímicos por meio do Manejo Integrado de Pragas - MIP
e manejo integrado de nutrientes; substituição de insumos, utilizando tecnologias alternativas e de baixo consumo de
energia; replanejamento do sistema agrícola diversificado visando incluir uma ótima integração planta/animal”
(ALTIERI, 2001, p. 68). A figura mencionada é um gráfico que indica uma primeira redução e posterior aumento da
produtividade (uma parábola voltada para cima) conforme o aumento da biodiversidade e a passagem pelas etapas de
conversão. O autor ainda sugere que “os incentivos e/ou subsídios podem ser necessários para alguns agricultores na
medida em que esperam seus sistemas produtivos geraremos ganhos, garantidos pela conversão” (ALTIERI, 2001, p.
72).
168
vez, apenas prepara as refeições nos dias de visitas técnicas. Ao contrário do que se apresenta aos
técnicos, D. Tânia é muito ativa quanto às atividades do sítio, e possui uma opinião forte com
relação ao projeto, questionando principalmente seu caráter familiar. D. Tânia conta, com mágoa
do marido, sobre a situação em que S. Maurício respondeu a um grupo de pesquisadores que sua
esposa ‘apenas cuida da casa’. É representativo o comentário de D. Tereza, confidenciado à
pesquisadora diante das explicações entusiasmadas do marido sobre o SAF: “eu não gosto de
gente que fala alto”.
É necessário, portanto, refletir sobre a forma pela qual a agroecologia tem sido construída
na prática. Em trabalho anterior (já mencionado), identificou-se a experiência do projeto
observado no Vale do Ribeira com aquilo que Sevilla Guzmán denomina de agroecologia restrita.
Mesmo havendo algumas exceções, a agroecologia tem sido entendida meramente como uma
técnica, ou como instrumento metodológico para melhor compreender o funcionamento e a
dinâmica dos sistemas agrícolas (GUZMAN CASADO; GONZALES DE MOLINA; SEVILLA
GUZAMAN, 2000). Dessa forma, não se formam os elementos necessários à (re)construção das
relações de produção para uma vida rural sustentável. Na realidade observada, alguns elementos
que impedem essa (re)construção são: a exclusão da mulher; a separação entre as noções de
trabalho e família; a submissão à lógica de produção e consumo capitalista; o êxodo dos jovens; e
outros aspectos relacionados à não inclusão da dimensão sócio-cultural nos princípios do projeto.
Observaram-se algumas iniciativas no sentido de resolver a desigualdade de gênero
relacionada à construção da agroecologia. No universo pesquisado, algumas ‘multiplicadoras
agroflorestais’ foram entrevistadas e puderam ser exemplo de ação agroecológica não
centralizada na figura do homem. Em Barra do Turvo, através de um projeto da Cooperafloresta,
algumas mulheres tiveram a oportunidade de acessar diretamente o saber-fazer agroecológico.
Num cargo de responsabilidade no interior do projeto essas mulheres concordam com a
necessidade de compreensão dos paradigmas da agroecologia para que se possa abraçar a idéia
dos SAF’s. D. Marluci diz que para o sucesso da implantação dos SAF’s a proposta deve
conquistar o coração das pessoas, pois é preciso muita paciência e credibilidade. Acredita que foi
conquistada e que pretende disseminar tudo o que aprendeu.
D. Marluci, D. ria e sua mãe (D. Madalena), cuidam do sitio sozinhas enquanto os
maridos trabalham fora. D. Marluci conta que no inicio do projeto era seu marido quem estava
envolvido no projeto e quem cuidava do SAF. Ela não acreditava. No entanto, quando ele foi
169
trabalhar fora, resolveu assumir o SAF “não podia deixar perder tudo aquilo” e a partir daí,
começou a se envolver e se ‘entregar’. Hoje, diz que “está melhor que ele (seu marido)”, com
relação aos conhecimentos agroflorestais, e protege o sítio das ameaças do marido em voltar a
produzir convencionalmente. Acredita que quando ele voltar “vai ver que dando” e vai
concordar com ela no manejo dos SAF’s [Barra do Turvo, 2006].
No entanto, é possível perceber que, de forma geral, uma falta de estratégia
metodológica de ação para a construção da agroecologia não restrita. A eficiência observada na
ação técnica, agronômica e ambiental, não se reflete quanto à ação sócio-cultural. Talvez esse
seja um dos motivos pelo qual Burg (2005) e Almeida (2003) identificam em seus trabalhos que
não há, ainda, uma metodologia adequada à construção de espaços roecológicos.
170
171
5 A CONSTRUÇÃO DE NOVOS CAMINHOS
Este capítulo final busca realizar uma síntese dos temas trabalhados nesta pesquisa,
procurando estabelecer relações que possibilitem sugestões para caminhos futuros. Realizadas as
análises sobre teorias e práticas que envolvem a agroecologia, o campesinato e as relações de
gênero relacionadas a estes temas, reuniram-se elementos suficientes à elaboração de três
importantes constatações: (1) o processo de modernização da agricultura causou efeitos
ecológicos e sócio-culturais na organização familiar de produção, principalmente no que se refere
às relações de gênero; (2) apesar destes efeitos, é possível encontrar elementos da campesinidade
nas realidades transformadas pelo processo de modernização; (3) as iniciativas agroecológicas
estudadas têm obtido êxito em alterar os aspectos ecológicos e agronômicos gerados pela
modernização, mas não alcançou as condições necessárias para transcender os efeitos desta sobre
a campesinidade, especialmente no que se refere à masculinização dos processos familiares de
produção.
As discussões realizadas evidenciaram que a agroecologia, enquanto proposta teórica
encontra-se bem desenvolvida em seus aspectos ecológicos, agronômicos e sócio-culturais, mas
que sua plenitude está atrelada à capacidade de articulação destes três aspectos. Acredita-se que
apenas com a realização desta articulação no processo de construção de uma agroecologia plena
poder-se-á fazer frente aos efeitos da modernização da agricultura nas unidades familiares rurais.
Como forma de estabelecer esta integração, utilizou-se o conceito de diversidade em suas
dimensões: interna aos agroecossistemas, no campo de conhecimentos quanto ao manejo dos
sistemas agrícolas e na esfera sócio-cultural local. Concluiu-se, portanto, que para a construção
de uma agroecologia plena, deve-se conciliar a proposta de Gliessman quanto aos processos
agroecológicos, com a contribuição de Altieri sobre o desenvolvimento de técnicas agronômicas
sustentáveis, e as idéias de Sevilla Guzmán acerca do fortalecimento das especificidades sócio-
culturais e a perspectiva endógena de ação.
Além disso, que reconhecer que, mesmo marginalmente, existe uma preocupação no
interior da agroecologia com relação aos espaços femininos na agricultura familiar e que existem
caminhos sendo abertos quanto à incorporação da questão de gênero na teoria e prática
agroecológica. Entretanto, observou-se que tais iniciativas ainda apresentam limites.
Quanto ao sistema de produção camponês, foi particularmente interessante compreendê-lo
como um conjunto de técnicas (consorciamento de espécies, diversidade de espaços produtivos...)
172
orientados por uma concepção metafórica que promove a articulação entre características
humanas e fenômenos naturais. Observou-se que esta relativa identificação entre seres humanos e
natureza contribui para o estabelecimento de relações de produção menos agressivas ao
ecossistema. De maneira geral, a concepção metafórica possibilita uma percepção de trabalho
conjunto, realizado pela família e a terra, a chuva, o sol, os insetos... Quando o ser humano é
concebido como possuidor da natureza, tal como se processa no paradigma hegemônico, o
trabalho é realizado contra ou sobre a natureza. A ação resultante desta última concepção,
obviamente, é mais degradante do que a primeira.
Estabelecidas as reflexões teóricas a respeito do campesinato e realizadas as discussões
das observações empíricas, foi possível estabelecer quatro importantes pilares fundamentais da
organização camponesa: a hierarquia familiar, as relações de gênero, a autonomia e a
reciprocidade. Dentre estes pilares, os dois primeiros merecem destaque, pois representam a
organização da unidade familiar de produção, ou seja, são os elementos que exercem a maior
influencia sobre as relações de produção.
A hierarquia familiar, composta por um conjunto de “regras” sócio-culturais bastante
complexas, se manifesta como princípio fundamental ao modo de vida camponês através da
valorização dos mais velhos. Este princípio garante legitimidade e respeito aos saberes e fazeres
dos homens e mulheres mais velhos da família. Seu fundamento básico é o acúmulo de
experiências adquiridas no decorrer da vida, sejam elas vitoriosas ou não. Como mestres, avós e
avôs, mães e pais adquirem a posição de “guardiões da memória coletiva” e têm “a missão quase
religiosa de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem”. Como mestres, corporificam “a
ancestralidade e a história de seu povo” (ABIB, 2005, p. 95).
Ao referir-se às relações de gênero, o foco é a existência da complementaridade entre os
espaços femininos e os espaços masculinos do sítio. As reflexões sobre as representações
femininas e masculinas dos espaços do sítio permitem compreender que a construção de sistemas
agrícolas possui uma dimensão simbólica referente à construção de relações de gênero, assim
como, esclarece que a complementaridade entre o trabalho feminino e o trabalho masculino
viabiliza a manutenção de um sistema auto-organizado: às mulheres atribui-se as atividades
direcionadas ao consumo (relação com o endógeno) e aos homens atribui-se as atividades
direcionadas à produção (relação com o exógeno). A produção da mãe está diretamente
relacionada ao cuidado da família, enquanto o pai estabelece essa relação de forma indireta,
173
através da mãe. À unidade familiar de produção, o gênero masculino o sentido “de fora para
dentro” e o gênero feminino o sentido “de dentro para fora”. Numa relação interdependente,
agricultoras e agricultores constroem a dinâmica cíclica do sistema de produção familiar.
Este caráter cíclico permeia todos os níveis de relações estabelecidas nas unidades
familiares de produção, desde as relações de produção às relações sócio-culturais, e oferece a elas
o fundamento do exercício da autonomia, o terceiro pilar aqui estabelecido. Ou seja, a soma dos
elementos materiais (como a biodiversidade, a renovabilidade do sistema, o conjunto “produção
pra auto-consumo e para o mercado”) com os elementos simbólicos (como a coragem, a força, a
independência moral e a simplicidade) compõe a autonomia de vida das famílias camponesas.
Por fim, o que viabiliza a construção desta autonomia é o princípio da reciprocidade.
Também desenvolvida na esfera material e simbólica, a reciprocidade garante a unidade da
“unidade familiar de produção”. Em práticas coletivas como o mutirão ou ações individuais como
o acolhimento ao próximo, o exercício da alteridade é realizado com freqüências e naturalidade.
Estas discussões sobre a campesinidade e a não dissociação destes elementos sócio-
culturais das relações de produção familiares, podem ser um importante instrumento de
fundamentação das ações técnicas exercidas em projetos agroecológicos. No entanto, muitos
autores demonstram um desequilíbrio quanto ao desenvolvimento das diferentes dimensões
(ecológica, agronômica e sócio-cultural) da agroecologia. Os aspectos ecológicos e agronômicos,
assim como o desenvolvimento de tecnologias e estratégias econômicas de ação, encontram-se
fortalecidos nos projetos agroecológicos. Contudo, os aspectos sócio-culturais são enfraquecidos
ou não pertencem a tais projetos. Como resultado da realização parcial da agroecologia, tem sido
construídas realidades agroecológicas mais satisfatórias do ponto de vista ecológico que, no
entanto, reproduzem os princípios da organização capitalista de produção e, consequentemente,
não contribuem com a reconstrução ou o fortalecimento da organização familiar e da
campesinidade.
A partir da pesquisa empírica realizada, foi possível estabelecer que os principais
elementos que caracterizam a campesinidade ainda podem ser observados nas realidades
pesquisadas. No entanto, o enfraquecimento destes princípios sócio-culturais não mais lhes
permite cumprir a função de orientação das relações de produção. Ou seja, a campesinidade vive
um momento de perturbação, pois, apesar de ser o conjunto de elementos que compõem as
174
concepções sócio-culturais das famílias camponesas, não se apresenta mais, diante do processo
de modernização, como a orientadora das atividades que constituem o sistema produtivo.
Observou-se que o paradigma da agricultura moderna inviabilizou as relações que
garantem a dinâmica interna da organização camponesa, ou seja, os quatro pilares que oferecem
sustentação à campesinidade (autonomia, reciprocidade, hierarquia familiar e relações de gênero)
foram obscurecidos durante este processo de modernização.
O princípio da autonomia (primeiro pilar) tem sido colocado em xeque pela imposição de
dependências exógenas. Quanto aos sistemas de produção, o modelo produtivista da revolução
verde criou condições técnicas e econômicas de disseminar a dependência dos produtores às
indústrias, às “leis” do mercado e aos bancos. Os elementos principais de cada um destes
aspectos de dependência são respectivamente: o melhoramento” genético, a homogeneização da
produção e os programas de financiamento; todos eles justificados pela “necessidade” de
maximizar a produtividade do sistema e a obtenção de renda do produtor.
Com intuito de viabilizar colheitas mais lucrativas, as sementes que historicamente eram
selecionadas por processos de adaptações “naturais” às condições ecológicas e sócio-culturais
locais, foram radicalmente transformadas em “laboratórios experimentais”. Depois de serem
“melhoradas” geneticamente pelos cientistas, as sementes pertencentes ao pacote tecnológico da
revolução verde não puderam mais ser adquiridas nas próprias plantas cultivadas. A garantia de
“qualidade” passou a ser oferecida apenas pela indústria de sementes. Além disso, para citar
apenas mais um exemplo da dependência relacionada à seleção genética, as sementes
“melhoradas” exigiam - e ainda exigem - um manejo especial, baseado em fertilização e proteção
contra predadores e plantas “invasoras”. Ou seja, para garantir a colheita destas plantas, criou-se
uma dependência de insumos externos, industriais; como ouvimos numa das entrevistas desta
pesquisa: “o milho hoje está viciado”.
A introdução do modelo monocultural está diretamente relacionada à introdução destas
técnicas, insumos e utilização de maquinários agrícolas. Além disso, a homogeneização da
atividade agrícola favorece, também por outras vias, a dependência ao circuito do produtivismo,
dentre elas, a dependência com relação ao mercado. O cultivo de um único produto alimentar
(para não falar da silvicultura) oferece colheitas maiores, porém homogêneas. Sem condições de
armazenamento (ou por questões estruturais ou por uma demanda do próprio produto), as
famílias não têm alternativa que não seja vender a produção. Através da “lei da oferta e da
175
procura”, instituída pela noção de “livre mercado”, as famílias agricultoras perdem
completamente o controle sobre os preços dos produtos comercializados. Resultado: vender o
produto a qualquer preço. Conforme ouvimos durante o trabalho de campo: “hoje o mercado é
quem dá o preço”.
Finalmente, para completar o pacote de dependências relacionadas ao sistema de
produção, os camponeses dependem de financiamentos para viabilizar a implantação deste
modelo produtivista. O aluguel das máquinas, a aquisição das sementes e insumos e, muitas
vezes, o custo do arrendamento de terras não permite que famílias descapitalizadas se insiram
neste esquema de produção agrícola sem “auxílio” financeiro. Ou seja, o envolvimento em
programas de financiamento torna-se praticamente inevitável e, com ele, a dependência com
relação aos bancos. A conseqüência disto, considerando todo o contexto discutido anteriormente,
é o endividamento destas famílias rurais.
Segue-se, então, para outro plano em que a autonomia é colocada em crise. Representada
pelo exercício da auto-realização, da independência, da dedicação, do cuidado, da entrega pelo
fazer e pela realização exaustiva, a autonomia tem encontrado inúmeras barreiras ideológicas. As
relações de dependência, de forma geral, não são almejadas, mas passam a reger as relações
sociais pela ideologia da “liberdade através da obtenção de renda”. Colocadas em situação de
crise econômica, as famílias são levadas a acreditar que a “geração de renda” é a melhor saída
para seus problemas. Os valores que se opõem à realização autônoma vendem necessidades de
consumo e estas, por sua vez, criam a dependência da “obtenção de renda”. A praticidade, a
comodidade, o conforto, a facilidade, a rapidez e a obtenção de uma vida “moderna” são como
areias movediças ao pilar da autonomia.
Observou-se que o funcionamento das casas passou, nas últimas décadas, a consumir
menos energia do trabalho das mulheres em substituição ao consumo de energia elétrica e dos
eletrodomésticos. O ritmo da casa se transformou e gerou uma situação dúbia, na qual a adoção
de todas as “facilidades da vida moderna” resultaram na aparente “falta de tempo”. A horta, um
dos símbolos de dedicação da mãe à família, começou a faltar nos quintais. As “verduras”
passaram a ser consumidas no mercado. Vergonhoso, nesse “tempo moderno”, não é mais a falta
da horta, mas da televisão. Os produtos do “roçadinho”, que complementavam a alimentação da
família, passaram também a ser obtidos na prateleira dos mercados. Este espaço de cultivo
feminino diversificado perdeu a razão de ser. Assim como a “criação”, estes espaços femininos
176
perderam seu valor. Os animais de pequeno porte, criados pelas mulheres, eram um importante
símbolo da renovabilidade do sistema doméstico - os maiores responsáveis pela “inexistência” do
lixo. No entanto, com exceção das galinhas (que ainda restam em alguns quintais) estes animais
pertencem apenas à memória dos mais velhos. O sistema que interligava “roçadinho-horta-
criação-quintal” era fundamental para a qualidade e a diversidade alimentar, assim como para a
saúde das famílias rurais.
A “fartura” é um símbolo importante de autonomia. A atualização deste termo poderia
resultar em “segurança alimentar”. A fartura é a abundância de alimento, alimento de qualidade,
alimento “da terra” e não “do mercado”. O “tempo de fartura” é também um tempo em que o
dinheiro era usado apenas para comprar terras, querosene, tecido e sal. Os relatos desse tempo
evidenciam que as condições de vida, desde o alimento e as roupas até o brinquedo das crianças,
eram produzidas. Nas palavras dos(as) agricultores(as), “tudo era feito” e “quase não existia
dinheiro”.
O fogão a lenha, a casa de farinha, o monjolo e o pilão são representantes do “tempo de
fartura”. Inimigos da praticidade, da facilidade e do conforto, representam paradoxalmente o
esforço, a dedicação e o aconchego do lar; marcam a lembrança de um “tempo bom e difícil”.
Tempo em que “não se precisava de dinheiro para viver bem”. Longe de acreditar na recusa à
tecnologia ou na necessidade da dor e do sacrifício para obtenção da felicidade, pode-se refletir
sobre os princípios que regem as transformações observadas. O modelo agrícola que vende a
praticidade e o conforto através da obtenção de maiores rendas e capacidade de consumo é o
mesmo modelo que desvaloriza e inviabiliza o princípio e a dinâmica familiar baseada na
renovabilidade dos recursos e na autonomia.
É importante notar que ao obter os instrumentos de trabalho e de lazer que aparentemente
oferecem maior praticidade e conforto, as famílias camponesas estão materializando a ideologia
da “obtenção de felicidade através do consumo”. Além de a aquisição e a manutenção destes
aparelhos muitas vezes colocarem as famílias em situação de dependência da “obtenção de
renda”, observa-se que esta ideologia relacionada ao consumo gradativamente enfraqueceu os
princípios da auto-realização. A “facilidade” oferecida pelo consumo coloca em crise a
autonomia.
O princípio da reciprocidade (segundo pilar) pode ser considerado o pilar mais resistente
às interferências do “mundo moderno”. Dito de outra forma, a ação recíproca ainda é muito
177
comum nas realidades pesquisadas. Mesmo quando as práticas produtivas não incluem este modo
de proceder recíproco, espaço para a construção de relações de auto-ajuda. Apesar da
existência do valor individualista no “pacote” do paradigma hegemônico, nota-se que o pilar da
reciprocidade foi pouco atingido por este valor e que a ausência de práticas como o mutirão está
relacionada a questões objetivas do sistema produtivo. Isto significa que este princípio não
estabelece grandes influências sobre as relações produtivas, mas que ainda permeia a vida das
famílias produtoras.
O grande símbolo da prática da reciprocidade na realidade camponesa é o mutirão,
ocasião mais significativa da produção coletiva. No entanto, deve-se compreender que, de forma
geral, as atividades do sítio desenvolvidas coletivamente incluíam neste coletivo apenas os
indivíduos que pertenciam às relações familiares, relação de compadrio e relações de vizinhança,
ou seja: a família nuclear e os demais familiares; compadres e comadres; e as famílias vizinhas.
Esta reflexão esclarece que a reciprocidade enquanto prática produtiva foi inviabilizada pelos
pacotes produtivos da modernização. As famílias encontram-se, atualmente, extremamente
reduzidas. A vizinhança se mudou, muitas famílias migraram e muitos “fazendeiros” e
“chacreiros” ocuparam o espaço.
ao menos três grandes transformações que explicam a ausência das atividades
coletivas símbolos da reciprocidade na realidade pesquisada: o êxodo rural (principalmente
dos jovens), o sistema de produção agropecuária (monoculturas e pastoreio) e a mecanização dos
instrumentos de trabalho. Nas palavras de S. Jesus [Joanópolis, 2009], “num tem gente mais”. O
modelo produtivo realizado nas últimas décadas minimiza a necessidade de mão-de-obra. Os
fertilizantes, agrotóxicos, seleção genética das plantas e animais e maquinário agrícola, formam
um “pacote” que excluem a possibilidade do trabalho em mutirão. A ideologia da “facilidade”,
vendida no mesmo “pacote”, confirma a necessidade destes instrumentos e a inviabilidade do
trabalho manual. Nas realidades em que as famílias têm produzido em sistemas agroflorestais,
estes últimos empecilhos não procedem, pois a demanda de mão-de-obra é grande. Nestes casos,
a “falta de gente” e a “falta de renda” são os principais complicadores.
Pode-se concluir que o exercício da alteridade é realizado com muita facilidade pelos
agricultores e agricultoras estudados nesta pesquisa. O princípio da reciprocidade não tem
encontrado meios para se fazer mais presente, mas foi possível perceber que ele permanece
guardado no interior da grande maioria dos entrevistados.
178
O conflito colocado ao princípio da valorização do mais velho desestrutura a hierarquia
familiar (terceiro pilar). Este conflito pode ser representado como o desvio do olhar aprendiz para
fora da família e da organização familiar camponesa. A porta de entrada para a desconstrução da
campesinidade é a desvalorização dos saberes e dos fazeres das gerações mais velhas. A
aceitação aos valores do consumo e do avanço tecnológico desenfreado é condicionada pelo
processo de valorização do “novo” e descarte do “velho”. O conflito se instaura quando o “novo
modelo”, para garantir o constante consumo, carrega consigo a valorização do descartável. O
conhecimento e as práticas realizadas tradicionalmente tornaram-se “antiquadas”, “inadequadas”,
pouco eficientes ou funcionais. Os pais e os avôs deixam de ser uma fonte de sabedoria e passam
e ser o cativeiro, aqueles que dificultam o acesso ao “progresso”. A concepção do “velho” como
“atraso” é uma construção simbólica constitutiva da modernidade.
É importante relativizar as concepções fundantes da visão ocidental de mundo para poder
compreender que o respeito e a busca pela sabedoria do “velho” não são sinônimos de
estagnação. As transformações sempre existiram no mundo camponês. Diferente do que
geralmente ocorre na atualidade, essas inovações, mesmo em relação com o exógeno, partiam de
dentro da própria realidade. Vindas de uma concepção endógena, não se desrespeitava o
aprendizado anterior, as experiências vividas pelos pais e pelos avôs.
As transformações ocorriam através de duas concepções básicas: o respeito ao
aprendizado anteriormente adquirido e a experimentação. Uma interação entre o “faço assim
porque meu pai fazia assim, e o pai dele também...” e o “não estava bom, tentei assim e deu
certo”. A experimentação geralmente fundamentava-se na observação das interações
ecossistêmicas locais: a relação entre plantas, delas com os animais e destes com os vizinhos,
parentes e amigos da família.
A transmissão geracional de princípios e conhecimentos é dependente de uma relação
mestre-aprendiz entre pais e filhos. O rompimento desta relação, gerado pela desvalorização da
sabedoria do “velho” e supervalorização da eterna reinvenção do “novo”, traz consequências às
diversas formas de relações não-capitalistas de produção e de organizações sócio-culturais. Os
olhares se voltam exclusivamente para fora e as especificidades internas se enfraquecem na
memória dos idosos. Observou-se que a geração atual de pais (homens e mulheres de
aproximadamente 45 anos) tem vivido um conflito mais intenso do que as gerações anteriores e
posteriores. Na maioria dos casos, estas gerações convivem, de maneira muito intensa, com a
179
campesinidade (fortalecida na concepção de mundo de seus pais) e o “paradigma hegemônico
(fortalecido na concepção de mundo de seus filhos).
O quarto pilar da campesinidade, que foi obscurecido com o processo de “modernização”,
é o princípio da complementaridade de gêneros. Como se discutiu no decorrer deste trabalho, o
rompimento desta complementaridade causou fortes perturbações nas relações de gênero das
famílias camponesas. Ainda que não seja correto compreender o feminino como atribuição
exclusivamente das mulheres e o masculino como atribuição exclusivamente dos homens
66
, pode-
se perceber que a desvalorização do feminino resulta em exclusão ou masculinização da ação das
mulheres. De maneira geral, os resultados desta pesquisa evidenciam que a campesinidade tem
sido perturbada, dentre outras coisas, devido a situações relacionadas ao que poderíamos
denominar de “masculinização da agricultura”. Esta masculinização, consequentemente,
desvalorizou as mulheres camponesas.
Conforme se procedeu durante esta pesquisa, a noção do feminino como aquele que se
liga à fonte, ao de dentro, ao endógeno; e do masculino como aquele que se liga ao que se lança,
ao de fora, ao exógeno (CARNEIRO, 2003; GARCIA JUNIOR, 1983; HEREDIA, 1979; KOSS,
2000; PACHECO, 1997; PANZUTTI, 2006; SHIVA, 2000; SILIPRANDI, 2009;
WOORTMANN; WOORTMANN, 1997), pode ser utilizada para que possamos visualizar
melhor esta orientação masculinizante do processo de modernização.
Todo movimento, toda expressão, todo comportamento é constituído de uma
mescla de ambas as polaridades [feminino e masculino], ainda que em
proporções diferentes. Nada é plenamente masculino ou plenamente feminino,
como é expresso exemplarmente no conhecido mbolo do Tao. Contudo,
quando a interação destes princípios origem a um movimento expressivo,
costuma-se denominar de masculino aquele que tem uma intenção prévia e se
mobiliza para alcançar este objetivo. Dito de outro modo, o masculino se lança
para algo que está fora e além dele. Por outro lado, dizemos que o movimento é
feminino quando emerge de uma necessidade interna, tendo por objetivo
responder a esta finalidade, ou seja, é emergente e vinculado à fonte (KOSS,
2000, p. 209-210).
66
É preciso tomar alguns cuidados para não recorrer ao freqüente erro de limitar a concepção de mundo dos homes e
das mulheres a representações do masculino e do feminino, respectivamente. Como nos ilustra este trabalho, nada
nem ninguém é plenamente masculino ou plenamente feminino, como sugere Koss (2000). Se o princípio feminino é
capaz de maior subjetivação que o princípio masculino, isto certamente não significa que as mulheres são menos
capazes de objetivar. Para tanto, é relevante fortalecer a noção de complementaridade sugerida no decorrer deste
trabalho - muito bem representada pelo símbolo do Tao sem esquecer-se de que as atribuições realizadas aos
homens e as mulheres são determinações sócio-culturais.
180
Numa relação interdependente e complementar (mesmo que patriarcal), o sentido da ação
feminina (de dentro para fora) somado ao sentido da ação masculina (de fora para dentro), resulta
na orientação cíclica do sistema produtivo camponês. A produção familiar ao qual referiu-se
neste trabalho caracteriza-se como um sistema aberto (como todo sistema agrícola produtivo),
porém muito próximo ao que denominar-se-ia sustentável. Sem identificar diretamente o
feminino ao que é “da mulher” e masculino ao que é “do homem”, poder-se-ia buscar o sentido
(feminino e masculino) dos princípios, valores e características básicas colocadas, de alguma
forma, na crise de campesinidade que vem sendo discutida neste texto.
Os sistemas auto-organizados crescem a partir de dentro, modelando-se para
fora. Os sistemas mecânicos organizados externamente não crescem; eles são
feitos, montados a partir de fora. (...) Quanto mais complexa uma estrutura
dinâmica, mais ela é dirigida endogenamente. A mudança depende não apenas
das suas compulsões externas, mas das condições internas. A auto-organização é
a essência da saúde e da estabilidade ecológica dos sistemas vivos (SHIVA,
2001, p. 54-55).
Nesse sentido, é possível interpretar a “modernização” enquanto processo
“masculinizador”. Para a reflexão sobre a orientação (exógena ou endógena) dos
agroecossistemas, Shiva oferece grande contribuição:
À medida que a natureza era agora [após a revolução científica baconiana] vista
como um sistema de partículas mortas, inertes, movidas por forças externas em
vez de internas, a própria estrutura mecânica podia legitimar a manipulação da
natureza. Além disso, como estrutura conceitual, a ordem mecânica estava
associada a uma estrutura de valores baseada no poder, totalmente compatível
com os rumos tomados pelo capitalismo comercial. (...) O paradigma da
Revolução Verde na agricultura substituiu o ciclo regenerativo de nutrientes por
fluxos unidirecionais de insumos, na forma de fertilizantes químicos adquiridos
nas fábricas, e produtos, constituindo mercadorias agrícolas comercializadas
(SHIVA, 2001, p. 72).
O modelo diversificado/cíclico da agricultura familiar se opõe ao modelo
monocultural/retilíneo da agricultura moderna. Nesses termos, pode-se compreender a
complementaridade entre gêneros (ciclo
=
endógeno
+
exógeno
+
endógeno+...) característica do
primeiro modelo e a masculinização (orientação ao exógeno) característica do segundo modelo.
As consequências da “masculinização da agricultura” são perceptíveis na desvalorização
dos espaços femininos (os quintais, as hortas, a criação, os roçadinhos e a casa), da produção para
181
o auto-consumo, das sementes “crioulas”, da ação medicinal das plantas, da “comida da terra”.
No extremo, este processo de masculinização intensifica a marginalização e a violência contra as
mulheres.
Além disso, observa-se que a questão de gênero perpassa os próprios pilares da
campesinidade e os seus contrapontos. A autonomia (auto-realização) remete ao mesmo ciclo
endógeno-exógeno, enquanto a dependência (consumo) remete ao de fora, ao exógeno. A
valorização do “velho” direciona o olhar para dentro (endógeno), enquanto a valorização do
“novo” direciona o olhar para fora (exógeno). Neste caso, o ciclo se fecha numa relação de
respeito mútuo (tal como a relação entre mestre-aprendiz). A reciprocidade, por sua vez, é a
própria representação do “caminho de mão-dupla”. O exercício da alteridade é colocar-se ao
mesmo tempo no lugar do “eu” (de onde efetivamente não se sai) e do “outro”.
É neste contexto que os elementos sócio-culturais denominados aqui de campesinidade
podem ser observados nas realidades estudadas. Como se viu anteriormente, o modelo anunciado
pela revolução verde, principalmente quanto ao seu conteúdo ideológico, oferece poucas
condições de transgressão. O avanço e o fortalecimento deste modelo vêm estimulando, desde
muito tempo, anúncios relacionados ao fim do campesinato. Nota-se, portanto, que a persistência
da campesinidade diante das transformações causadas pelo continuo processo de “modernização”
não é um elemento a ser desprezado por iniciativas que pretendem contribuir com a
transformação da realidade hegemônica. Em que medida, então, a agroecologia brasileira tem
incorporado em seus projetos ações voltadas ao fortalecimento da campesinidade e da dimensão
feminina?
As experiências agroecológicas analisadas, em sua maioria, têm acontecido em paralelo a
este fenômeno da “persistência da campesinidade”. Isto significa que, a realidade agroecológica
das regiões estudadas não incorporou os aspectos sócio-culturais locais em seu procedimento
metodológico, ainda que eles se façam presentes.
De maneira geral, as questões de gênero ainda são incipientes nas discussões sobre a
construção de uma agricultura sustentável, no interior do pensamento agroecológico. A
desarticulação entre os espaços masculinos e femininos do sítio e a redução quantitativa e
qualitativa destes últimos, é uma das importantes consequências da modernização da agricultura
observada nesta pesquisa e que ainda não foi contraposta de maneira efetiva pelos projetos
agroecológicos analisados. Os espaços destinados ao cuidado da família não tem sido
182
incorporados nos projetos agroecológicos. A agroecologia tem substituído o modelo agrícola
convencional sem se desarticular de sua lógica de reprodução hegemônica.
As técnicas ecológicas de produção agrícola, a construção de processos regenerativos, a
relativa independência quanto aos insumos externos, a biodiversificação dos sistemas, dentre
outras medidas técnicas e econômicas favoráveis aos processos ecossistêmicos, foram bem
desenvolvidas na maioria dos casos estudados. No entanto, a orientação da produção priorizando
a “geração de renda”, a exclusão dos espaços feminino nos projetos agroecológicos, os processos
de formação em agroecologia viabilizados apenas para os homens, a exclusão das mulheres no
planejamento e execução dos projetos (relação técnico-agricultor), e, principalmente, a
desvinculação dos sistemas agroflorestais com relação à identidade sócio-cultural local, ainda
inviabilizam o exercício de uma possível agroecologia plena. Ou seja, ainda um caminho a ser
construído pela agroecologia no sentido da incorporação dos aspectos sócio-culturais e da
dimensão feminina, para que ela atinja a plenitude discutida neste trabalho.
Para que se construa uma proposta de agricultura sustentável que articule questões
ecológicas, agronômicas e sócio-culturais, não há modelo produtivo que possa ser desenvolvido e
aplicado como exemplo de agroecologia plena. A incorporação da dimensão sócio-cultural exclui
a possibilidade da construção de modelos como estratégia única de ação e exige das(os)
agroecólogas(os) a capacidade de compreender cada realidade em sua totalidade sistêmica. Isto
significa que, além do domínio sobre as técnicas de cultivo e do manejo de agroecossistemas
sustentáveis, falta aos(às) agroecólogos(as) “um maior domínio teórico e prático sobre o
funcionamento destes “sistemas”” (JALCIONE, 2003, p. 8).
Nesse sentido, tal como qualquer organização cio-cultural, deve-se compreender que a
campesinidade não é estática. Atualmente as famílias camponesas têm elaborado estratégias
extremamente criativas para se saírem da crise imposta pelo modelo agrícola produtivista e
mercadológico. Como foi discutido neste trabalho, ao contrario da imobilidade ou de
polarização do campesinato (separação entre ricos e pobres), sua estrutura social básica
transforma-se de forma multidirecional e cíclica (SHANIN, 1983). Sendo assim, não existe
possibilidade de se pensar, no interior da agroecologia, “o endógeno” como uma fórmula, ou um
modelo técnico, aplicável em diferentes realidades agrícolas. O endógeno é peculiar a cada
realidade específica e ainda se transforma ao longo do tempo. Isto significa que a construção do
183
caminho que a agroecologia ainda tem a cumprir, poderia ser realizada através da reflexão quanto
aos procedimentos metodológicos utilizados pelos(as) agroecólogos(as).
Acredita-se que o(a) agroecólogo(a) deve ser capaz de compreender a campesinidade em
suas especificidades locais. Adquirida uma fundamentação teórica quanto aos caminhos da
agroecologia plena e da campesinidade, devem-se compreender cada organização familiar de
produção em suas próprias contradições com o “mundo moderno”. De forma participativa, a
identidade de cada grupo social precisa ser fortalecida com a contribuição dos saberes e fazeres
dos mais velhos. Finalmente, a campesinidade deve ser a orientadora do processo de construção e
execução dos sistemas de produção agroecológicos.
Para que a agroecologia plena se efetive, a soma dos saberes científicos dos técnicos(as) e
dos saberes peculiares à cada grupo de famílias agricultoras, deve promover a reestruturação dos
quatro pilares que sustentam a campesinidade: a autonomia, a reciprocidade, a hierarquia familiar
e as relações complementares de gêneros. Além disso, é também muito provável que, nas
experiências brasileiras de agroecologia, seja necessário realizar ações estratégicas para o
fortalecimento da dimensão feminina, em contraposição ao processo de masculinização
hegemônico.
Desse modo, o desafio encontra-se na construção de um procedimento metodológico que
ofereça condições de compreensão da perspectiva do ‘outro’, que permita conhecer o conjunto de
relações estabelecidas na realidade estudada e, a partir de então, articular as concepções
endógenas às contribuições científicas. Nesse sentido, sugere-se que a antropologia tem muito a
contribuir para a construção de uma agroecologia plena.
Ao se colocar como um aprendiz, tal como um antropólogo em seu ofício, talvez o
agroecólogo(a) alcance as condições adequadas de incorporação dos elementos sócio-culturais da
comunidade em que atua, rumo à agroecologia plena. Através da observação participante e dos
princípios metodológicos da antropologia, o(a) agroecólogo(a) talvez consiga inverter a relação
convencionalmente estabelecida com as sociedades agrícolas familiares e incorporar um
procedimento endógeno. Portanto, ao invés de adequar as comunidades rurais às diretrizes da
sustentabilidade e do socioambientalismo, o(a) agroecólogo(a) terá instrumentos para adequar
esses princípios à dinâmica interna dessas comunidades. Ao construir as diretrizes agroecológicas
segundo a dinâmica sócio-cultural de cada realidade agrícola em específico, as técnicas
184
científicas de adequação dos agroecossistemas aos princípios ecológicos encontrarão maior
capacidade de serem efetivadas. Rumo à agroecologia plena...
185
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