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Vivian Bernardes Margutti
Peregrinos em busca:
alegoria, utopia e distopia em Paul Auster, Nathaniel
Hawthorne e John Bunyan
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor
em Letras: Estudos Literários.
Área de concentração: Literatura comparada.
Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Ferreira Brandão
Santos.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
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2
Meus agradecimentos
a Deus, pelo milagre da vida, que, embora efêmera, tem o dom de trazer alegria ao
coração;
ao professor Luis Alberto Ferreira Brandão Santos, pela presença e compreensão nos
momentos difíceis, pela confiança que transmitiu força na hora da superação, pelas
sugestões que abriram portas e por sua leitura cuidadosa e perpicaz;
a meus pais, por estarem sempre ao meu lado, independentemente das circunstâncias;
ao Charles, por seu amor incondicional;
à Sofia, pela esperança;
ao Luiz Felipe Xavier, pelas referências na área de teologia;
aos amigos queridos, por me acolherem;
ao Pós-Lit, pelo profissionalismo e pela oportunidade de continuar;
e ao CNPq, pelo apoio financeiro.
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3
RESUMO
No presente estudo, investiga-se o caráter alegórico do romance No país das últimas
coisas (1987), de Paul Auster, tanto através de suas ligações intertextuais com a paródia
―A estrada de ferro celestial‖ (1843), de Nathaniel Hawthorne, e com o texto alegórico
O peregrino (1678), de John Bunyan, como a partir da noção de alegoria presente no
pensamento de Walter Benjamin. Faz-se um histórico do uso da alegoria na tradição
literária, com o intuito de vislumbrar a possibilidade de uma reavaliação, na
modernidade, dessa figura de linguagem. As três obras em questão são analisadas a
partir de diferentes níveis interpretativos, percorrendo os sentidos metalinguístico e
figurado. A metalinguagem está presente em todos os textos estudados e se liga ao
trajeto da alegoria e do romance na literatura ocidental, em um cenário amplo que vai
desde a época medieval, passando pelos períodos do Barroco e do Romantismo, e
chegando aos dias atuais. O sentido figurado das obras apresenta um viés que é
associado à crítica social e às noções de utopia e distopia. Leva-se em consideração o
pensamento de Lewis Mumford no que diz respeito à utopia e seu papel na história.
Destaca-se também a tendência contemporânea à produção de uma literatura distópica.
Através da viagem de aprendizado e crescimento espiritual de cada um dos
protagonistas, o sentido figurado indica, ainda, três formas diferentes de peregrinar: a
primeira, pela graça divina, a segunda, pela modernidade liberal, e a terceira, pela
exposição exacerbada da fragilidade humana.
4
ABSTRACT
The current study investigates the allegoric character of In the country of last things
(1987), a novel by Paul Auster and its intertextual connections with Nathaniel
Hawthorne’s parody ―The celestial railroad‖ (1843) and John Bunyan’s allegory The
pilgrim’s progress (1678), having as a basis Walter Benjamin’s notion of allegory. A
brief historical account of the use of allegory in the literary tradition is made, with the
purpose of suggesting the possibility of the re-evaluation, in modernity, of such a figure
of speech. The three works mentioned are analyzed in different interpretative levels,
that involve the metalinguistic and figurative senses. Metalanguage is present in all texts
analyzed and is connected to the route followed both by allegory and the novel in
Western literature in a broad setting which starts in the Middle Ages, goes through the
Baroque and the Romantic Periods, and reaches the current days. The figurative sense
of the works analyzed presents aspects which may be associated to social criticism and
to the notions of utopy and distopy. Lewis Mumford’s thought is considered with
respect to utopy and its role in history. The contemporary tendency towards the
production of a dystopic literature is also emphasized. By means of a journey which
includes learning and spiritual growth, the figurative sense of the works indicates still
three different forms of pilgrimage: the first involves divine grace, the second, liberal
modernity, and the third, the exaggerated exposure of human fagility.
5
SUMÁRIO
1. Introdução …………......................................................................................6
2. Uma escrita dissonante .................................................................................19
A alegoria e o romance ................................................................................20
A busca por plenitude ..................................................................................40
A alegoria e o trabalho ................................................................................55
3. Utopia e distopia .........................................................................................65
Literatura e utopia ......................................................................................66
A ilusão do mercado ..................................................................................80
Peregrinos utópicos ....................................................................................95
4. Um olhar alegórico ......................................................................................102
O peregrino .................................................................................................103
Uma viagem para o inferno ........................................................................122
A descoberta de si ......................................................................................138
5. Conclusão ....................................................................................................156
Bibliografia .....................................................................................................162
6
1. Introdução
Este estudo propõe uma leitura que relaciona três obras que apresentam histórias de
peregrinações: O peregrino (1678), de John Bunyan (1628-1688), ―A estrada de ferro
celestial‖ (1843), de Nathaniel Hawthorne (1804-1864), e No país das últimas coisas
(1987), de Paul Auster (1947- ). A primeira foi escrita na Inglaterra, entre os anos de
1660 e 1672. No século XIX, Hawthorne fez uma paródia baseada na alegoria de
Bunyan. No século XX, Paul Auster escreveu um romance que dialoga com as obras
anteriores.
A epígrafe de No país das últimas coisas é constituída pela seguinte passagem: ―Não há
muito tempo atrás, passando pelo portão dos sonhos, visitei aquela região da terra em
que fica a famosa Cidade da Destruição‖.
1
A paródia de Hawthorne começa exatamente
com estas palavras, e a alegoria de Bunyan também se inicia de forma semelhante.
Ambas partem do pressuposto de um sonho do personagem principal, que se propõe a
uma viagem de aprendizado e crescimento espirituais. A protagonista de Auster, no
entanto, segue um trajeto diferente e um pouco mais conturbado. Ela também se propõe
a uma viagem, embora em nenhum momento pareça estar sonhando. Mesmo assim, os
recursos utilizados no romance produzem um mundo deliberada e explicitamente
semelhante ao onírico. Além disso, o objetivo inicial da protagonista acaba se
desdobrando em outras buscas inesperadas e seu crescimento como pessoa se torna
evidente no decorrer da narrativa.
Com o intuito de situar o leitor, a seguir uma breve exposição sobre a vida e a obra
de Bunyan, Hawthorne e Auster. Seo destacados os pontos que, de alguma forma,
1
―Not a great while ago, passing through the gate of dreams, I visited that region of the earth in which
7
interligam os escritores em termos do contexto histórico no qual se inserem e das
questões que os mobilizam à escrita. Pretende-se, também, ressaltar as ideias que serão
desenvolvidas neste estudo, a partir dos textos literários mencionados acima.
Os estudiosos de John Bunyan acreditam que a escrita de O peregrino se dá na prisão de
Bedford na Inglaterra, entre os anos de 1660 e 1672, e tem continuidade em 1676,
período que marcou a passagem de Bunyan pela prisão.
2
De acordo com informações
contidas no livro autobiográfico intitulado Grace abounding to the chief of sinners,
Bunyan já havia passado por experiências espirituais turbulentas o suficiente para firmar
sua e fornecer-lhe o vigor necessário para permanecer encarcerado e afastado de sua
família, inicialmente por doze anos e posteriormente por um período aproximado de seis
meses, tão somente em nome de sua crença espiritual.
3
Para compreender melhor a obra e a vida de Bunyan, faz-se necessária uma breve
exposição sobre o desenvolvimento do protestantismo e, em particular, do puritanismo,
na Inglaterra do século XVI. Por volta de 1520, após a escrita e divulgação impressa das
95 teses de Lutero, as ideias e críticas desse autor, relativas à prática do catolicismo,
chegaram à Inglaterra principalmente por meio de estudantes alemães que faziam
intercâmbio na universidade de Cambridge. Thomas Cranmer e William Tyndale foram
dois grandes estudiosos ingleses de Cambridge influenciados pelas teses de Lutero.
Posteriormente, ambos foram ordenados sacerdotes, sendo que o primeiro manteve
contato próximo com o Rei da Inglaterra e o segundo traduziu o Novo Testamento para
lies the famous City of Destruction‖ (Hawthorne, citado na epígrafe de In the country of last things).
2
SHARROCK, 1965, p. 9-10.
3
BUNYAN, 1928.
8
a língua inglesa.
4
A doutrina do protestantismo foi desenvolvida na segunda fase da Reforma, através do
movimento chamado calvinismo, que surgiu na França, por volta de 1535, com a
publicação do livro de João Calvino, aportuguesamento de Jean Cauvin, intitulado
Instituição da religião cristã (Institution de la religion Chrétienne). A partir da leitura
desta obra, grupos de ingleses conhecidos como puritanos se uniam com o intuito de
―purificar‖ a Igreja Anglicana, que ainda mantinha hábitos e crenças advindos do
catolicismo. A igreja de Calvino não apresentava nenhum tipo de hierarquia, de modo
que não pregava a submissão nem ao papa nem ao rei. O templo era isento de imagens
ou estátuas e os ministros não usavam o tradicional hábito preto dos padres católicos.
5
Os pressupostos básicos do puritanismo estão na ideia de que, após a queda de Adão e
Eva, o homem se separou de Deus, seguindo, então, a inevitável trilha de uma vida de
pecado e condenação. A morte de Cristo na cruz, entretanto, trouxe a possibilidade da
salvação, que se dá através de uma experiência de conversão.
6
Os puritanos acreditavam
também na predestinação, ou seja, os eleitos teriam sido escolhidos previamente por
Deus.
7
Ao contrário da doutrina católica, as boas obras não eram consideradas mérito do
homem, mas fruto da graça de Deus. A crença de cada indivíduo em sua própria
salvação se baseava apenas na fé.
8
De origem humilde, John Bunyan cresceu na Inglaterra do século XVII em uma
4
ADAMS, 1983, p. 121-123.
5
ADAMS, 1983, p. 145-146.
6
LEMAY, 1989, p. 173.
7
TALON, 1956, p. 9.
8
ADAMS, 1983, p. 145.
9
comunidade que demonstrou grande aceitação às novas propostas cristãs elaboradas
pela Reforma de Lutero. Apesar disso, muitos ainda se submetiam a práticas ditas
antigas, mais diretamente relacionadas ao catolicismo. De qualquer forma, foi
exatamente das regiões próximas de Bedford que surgiram, nas palavras de John
Brown, grande estudioso de Bunyan, os Pais da Peregrinação, ou seja, as famílias que,
em busca da liberdade religiosa, se dirigiram às colônias da Nova Inglaterra nos Estados
Unidos da América.
9
A partir daí, compreendem-se os fortes impulsos que fizeram com que Bunyan optasse
pelo puritanismo como caminho religioso e espiritual. Supõe-se que, a partir desse
clima puritano, juntamente com um grande ímpeto pessoal, Bunyan aos poucos cultivou
um persistente anseio espiritual que, inicialmente, o levou a pregar e, posteriormente, a
escrever. A maior parte de seus escritos são sermões, mas há também uma autobiografia
espiritual e três livros de ficção.
O peregrino, alegoria cristã publicada em 1678, é o mais conhecido de seus livros de
ficção. Seu título completo, bem ao gosto da época, é: The pilgrim’s progress from this
world, to that which is to come: Delivered under the similitude of a dream wherein is
discovered, the manner of this setting out, His dangerous journey; And safe arrival at
the desired country. O livro teve uma excelente recepção por parte dos leitores de sua
época, sendo rapidamente traduzido para outras línguas. Durante os séculos XVIII e
XIX, foi reconhecido como um dos clássicos da literatura infantil. Teve grande
influência no movimento da classe trabalhadora na Inglaterra e marcou a memória de
soldados ingleses que utilizavam trechos do livro para superar os momentos de
9
BROWN, 1902, p. 1-2.
10
dificuldade encontrados na I Guerra Mundial. Até os dias de hoje o livro ainda é lido,
foi reeditado inúmeras vezes e traduzido para mais de 200 línguas. Por estes motivos,
entre outros, é também considerado um dos clássicos da literatura mundial.
10
Os dados a seguir demonstram a difusão da alegoria de Bunyan. A ópera de Ralph
Vaughan Williams, intitulada O peregrino, foi baseada no livro. Vários escritores, como
William Makepeace Thackery, Mark Twain, Nathaniel Hawthorne, John Bunchan, Alan
Moore, Louisa May Alcott, C. S. Lewis, Henry Williamson, Kurt Vonnegut e Charlotte
Brontë, fazem, em suas obras, referência às aventuras vivenciadas por Cristão, o
peregrino protagonista de Bunyan, bem como aos personagens que o acompanham e aos
espaços pelos quais transitam. O livro foi adaptado para o cinema, para a televisão,
para animação e para um video game chamado Deus Ex: Invisible War.
Apesar dos 176 anos que separam Nathaniel Hawthorne e John Bunyan, uma linha
histórica que os une. Essa linha se manifesta de forma intertextual no conto ―A estrada
de ferro celestial‖. Para analisar esse encontro, é necessário um preâmbulo histórico
sobre a instauração das colônias puritanas no Novo Mundo.
Na Inglaterra, o puritanismo teve grande repercussão, pois se apoiava na crença de que a
Igreja não poderia se subordinar ao Estado, devendo estar isenta de qualquer
interferência política. Em contrapartida, ambos os monarcas da época, James I (1603-
1625) e Charles I (1625-1649), acreditavam na teoria do direito divino dos reis. Assim,
eles justificavam sua perseguição aos puritanos, vistos como uma ameaça aos preceitos
básicos da igreja e política inglesas, devido à necessidade de estabelecer uniformidade
10
OWEN, 2003, p. xiii.
11
religiosa. Um bom exemplo desse tipo de perseguição é exatamente o caso de Bunyan.
11
Um grande número de puritanos optou por emigrar para o Novo Mundo, onde teriam
liberdade de colocar em prática sua crença religiosa. Este processo teve início em 1620
e, em 1630, atingiu seu principal marco com a ida de John Winthrop e mais de mil
ingleses a bordo do Arbella para a América do Norte. A proposta destes peregrinos
englobava a missão de constituir uma sociedade baseada nos preceitos cristãos de
caridade, amor e ajuda, tanto aos amigos como aos inimigos. Na chegada, o governador
Winthrop afirmou em seu sermão que: ―seremos como uma cidade sobre uma
montanha, os olhos de todo o povo estão sobre nós.‖
12
William Hathorne, o primeiro dos antecessores norte-americanos de Nathaniel
Hawthorne, veio ao Novo Mundo a bordo do Arbella em 1630. O major William foi
considerado um homem de grande honra, pois além de ter lutado para defender seus
conterrâneos, atuou também como magistrado em Salem. Em contrapartida, como juiz,
condenou Ann Coleman, uma Quaker, a ser chicoteada pelas ruas de Salem. Este fato
trouxe a ele e a seus descendentes uma fama bia. John Hathorne, filho de William,
seguiu os passos do pai não em termos de seus méritos, mas também no que diz
respeito à sua conduta como juiz. Isto se deu especialmente em 1692, ano em que houve
uma sucessão de acusações relacionadas à bruxaria em Salem.
13
Cento e setenta e quatro anos após a chegada de William à Nova Inglaterra, nasceu o
escritor. É o próprio Nathaniel Hawthorne que insere a letra w em seu sobrenome. Com
11
NORTON, 1986, p. 20-21.
12
―[W]e shall be as a city upon a hill, the eyes of all people are upon us‖ (NORTON, 1986, p. 29-30).
13
TURNER, 1961, p. 2.
12
o w, que coincidentemente inicia a palavra writer, ele marca sua diferença com relação à
tradição familiar do magistrado, do julgamento e da condenação. Todos os seus
antepassados viveram em Salem e, depois dos dois primeiros, que se tornaram ilustres
juízes, veio a geração dos marinheiros. De fato, o próprio pai de Nathaniel morreu em
1808 no exercício desta profissão.
14
Ao observar a obra e a vida de Hawthorne, fica clara a enorme influência que William e
John tiveram sobre ele, pois em muitos de seus escritos, romances, contos e até mesmo
em seus cadernos pessoais, há referência a estes antepassados que, segundo Hawthorne,
morreram sem entender que, na verdade, haviam pecado, e que, portanto, morreram
carregando essa culpa. Além disso, seus descendentes herdaram a fama e o sentimento
negativos resultantes de seus atos.
15
No entanto, após vários anos exercitando a escrita,
Hawthorne encontrou, exatamente no puritanismo e na culpa como experiência inerente
ao ser humano o meio para se expressar.
16
De sua obra, pode-se destacar A letra escarlate, romance que se desenvolve na Boston
do século XVII, período do puritanismo na Nova Inglaterra. Em A letra escarlate,
Hawthorne aborda o pecado do adultério e a culpa na sociedade puritana. É clara a sua
crítica à hipocrisia e ao legalismo. Os puritanos são descritos como pessoas que
encaram a religião cristã de forma tal que as aparências e as leis são priorizadas, em
detrimento de determinados ensinamentos cristãos, como o próprio perdão.
Eis, então, a forte ligação entre Bunyan e Hawthorne: o puritanismo. Hawthorne, no
14
JAMES, 1879, p. 6 (capítulo 1).
15
JAMES, 1879, p. 4 (capítulo 1).
16
TURNER, 1961, p. 27.
13
entanto, esboçou, em sua obra literária, inúmeras críticas com relação à prática dessa
crença religiosa na Nova Inglaterra. Como a maior parte dos jovens que moravam no
noroeste da América do Norte, Hawthorne foi leitor de Bunyan, e ―A estrada de ferro
celestial‖, paródia satírica de O peregrino, denuncia alguns dos paradoxos gerados pelas
origens puritanas da grande potência em que a nação norte-americana aos poucos se
tornou.
Paul Auster é um escritor contemporâneo norte-americano de ascendência judaica. O
reconhecimento de sua obra e sua popularidade têm sido notórios:
No curto período desde a publicação da Trilogia (1985-1986), ele se
tornou um dos romancistas contemporâneos mais elogiados dos
Estados Unidos. Ele tem sido frequentemente comparado a autores
que vão desde Nathaniel Hawthorne até Alain Robbe-Grillet.
17
Sua escrita apresenta flexibilidade e complexidade, de forma a atingir tanto a esfera dos
acadêmicos como a do leitor comum. Segundo Barone, editor do livro Para além do
caderno vermelho de notas (Beyond the red notebook), uma coletânea de ensaios sobre
a obra de Auster, isto se dá devido à utilizão do humor, mesmo em momentos em que
os personagens se encontram em situações difíceis:
A seriedade de propósito não deve ser menosprezada e não deixa de
ter os seus prazeres, mas se Auster é um dos dois ou três autores
americanos mais importantes da era pós-1970, uma razão para esse
fenomenal aumento de popularidade nessa década pode ser
simplesmente que seus livros são divertidos.
18
A obra de Auster é extensa e variada. No âmbito da ficção, dezesseis livros
publicados, podendo-se destacar A trilogia de Nova York, três novelas que se mesclam
17
―In the short time since the publication of the Trilogy (1985 1986) he has become one of America’s
most praised contemporary novelists. He has frequently been compared to authors ranging from Nathaniel
Hawthorne to Alain Robbe-Grillet‖ (BARONE, 1996, p. 1).
18
―Seriousness of purpose is not to be slighted and is not without its pleasures, but if Auster is one of the
two or three major American authors of the post-1970s era, one reason for this phenomenal rise in
14
em termos de núcleos narrativos e temas, e No país das últimas coisas, narrativa
delineada em uma cidade imaginária, conhecida como the city. Esta cidade se apresenta
como um cenário móvel em forte interação com as personagens. Auster, aos 63 anos de
idade, continua em plena atividade, tendo publicado Viagens no escritóriot, em 2006, e
Invisible, em 2009.
No início de sua carreira, Auster escreveu livros de poesia e fez algumas traduções.
Posteriormente, sua obra proliferou, incluindo não os livros de ficção mencionados
acima, mas também um livro de ensaios e entrevistas, intitulado A arte da fome, e
alguns roteiros de filmes, como Cortina de fumaça e Sem fôlego. Auster também
publicou três livros que são uma mescla de biografia e ficção, sendo um deles A
invenção da solidão. Ele é também responsável por inúmeros trabalhos de tradução,
como The station hill Blanchot reader, publicado em 1999.
A intertextualidade parece ser inerente à escrita de Auster. Percebem-se diálogos com
autores como Kafka, Knut Hamsun, Poe, Hawthorne e Blanchot, entre outros. Há
também uma repetição de temas, noções e cleos narrativos que perpassam todos os
seus livros, interligando-os. Apresenta-se, aí, a ideia de uma escrita intertextual que
dialoga, também, consigo mesma. O escritor é, então, aquele que conta uma miscelânea
de histórias interconectadas, deixando-se envolver por uma polifonia de vozes
imaginárias e de autores do passado.
A obra de Auster gerou vários trabalhos críticos publicados em revistas especializadas.
Duas coletâneas de ensaios foram reunidas em livros Bloom’s modern critical views:
popularity over the decade may be simply that his books are fun‖ (BARONE, 1996, p. 3).
15
Paul Auster e Beyond the red notebook: essays on Paul Auster. Há ainda o livro de Ilana
Shiloh, professora de literatura americana na Universidade de Tel Aviv, que estuda oito
títulos de Auster, focando no tema da busca por um prisma contextual que engloba
paradigmas literários e filosóficos, como a tradição da literatura de detetive, o conceito
pós-moderno de sujeito, teorias existencialistas e de psicanálise. também textos
disponíveis na rede virtual, como é o caso do ensaio filosófico traduzido para o
português de Gianluca Cuozzo, professor de filosofia da Universidade de Torino,
intitulado ―A equação mortal‖: O país das últimas coisas de Paul Auster.
Apesar da enorme gama de trabalhos críticos disponíveis sobre a obra de Auster, nem
todos estudam o romance intitulado No país das últimas coisas, que será analisado aqui.
Além disso, não referência nestes ensaios críticos à alegoria, tema central deste
estudo. Por este motivo, procura-se apenas iniciar especulações sobre as possíveis
interpretações da literatura produzida por Auster pelo viés da alegoria. Para tal, será
necessário um estudo amplo sobre a alegoria na história e na tradição literária. Assim,
nesta análise utiliza-se somente algumas ideias interpretativas do romance de Auster
sugeridas nos textos de Shiloh e Cuozzo.
Vale lembrar, ainda, que a análise proposta neste estudo é proveniente do imbricado de
textos de autores diferentes, sugerido na epígrafe do romance No país das últimas
coisas (1987). Conforme mencionado, a frase é de Nathaniel Hawthorne no conto ―A
estrada de ferro celestial‖ (1843), que por sua vez é uma paródia baseada em O
peregrino (1678), a obra-prima de John Bunyan.
Quando lido a partir das perspectivas de Hawthorne e Bunyan, o romance de Auster se
16
transforma de forma iluminadora. O peregrino é uma alegoria do século XVII, que
retrata a caminhada espiritual de um cristão, desde sua conversão até sua morte, e sua
consequente chegada à ansiada Cidade Celestial. Por ser uma paródia, A estrada de
ferro celestial‖ também utiliza o recurso da alegoria em sua reescrita irônica da obra de
Bunyan. Assim, surge a pergunta que se relaciona à linguagem utilizada em No país das
últimas coisas: ela também pode ser considerada alegórica?
A alegoria foi utilizada com frequência, sobretudo durante a Idade Média e o período
Barroco. Posteriormente, os autores românticos passaram a considerá-la uma figura de
linguagem inferior ao símbolo, evitando-a ao máximo. A revalorização da alegoria se dá
na modernidade, em especial após os escritos de Walter Benjamin, que inicialmente
traçam a identificação da alegoria no drama barroco alemão, e posteriormente em
escritores modernos, como Baudelaire. O pensamento de Benjamin abre as portas para a
possibilidade de diferentes configurações da alegoria como recurso retórico na história.
A leitura de No país das últimas coisas como romance alegórico traz à tona
possibilidades interpretativas inusitadas. Além disso, destaca-se a questão da
intertextualidade, inerente a este romance, que também interfere de forma expressiva
em sua análise.
No presente estudo, conforme mencionado, pretende-se fazer uma interpretação
alegórica de No país das últimas coisas de Paul Auster, contraposta à leitura de A
estrada de ferro celestial‖, de Nathaniel Hawthorne e O peregrino, de John Bunyan. O
romance de Auster será considerado alegórico a partir da proposta de Walter Benjamin
em Origem do drama barroco alemão, obra que apresenta uma perspectiva diferenciada
17
tanto do conceito de barroco como da noção de alegoria.
Esta tese constitui um estudo comparativo do uso da alegoria nos três autores. Propõe-se
a fornecer elementos para uma discussão renovada da figura da alegoria, que foi
aparentemente suprimida da tradição literária durante o período do Romantismo. O
descaso pela alegoria e até mesmo sua exclusão como figura literária por parte dos
escritores românticos geraram consequências que permanecem até os dias atuais.
Entretanto, a partir da leitura alegórica do romance de Auster, observa-se como a figura
de linguagem em questão é, também, utilizada na contemporaneidade, recuperando,
assim, sua importância para a crítica literária.
Sugere-se, ainda, que nas três obras em questão a alegoria permite uma leitura que
aponte para as noções de utopia e distopia. Através do estudo comparativo, pode-se
destacar a função da utopia e da distopia nos três autores considerados, revelando,
através da análise textual, as ligações pouco exploradas, no campo dos estudos
literários, entre utopia, distopia e alegoria.
Para atingir os objetivos mencionados, a presente tese é dividida da seguinte maneira.
No primeiro capítulo, será feito um histórico da escrita alegórica, desde a época
medieval até os dias atuais. O pensamento de Walter Benjamin será destacado, pois
proporciona uma visão da alegoria que transgride a crítica romântica, apontando na
direção da possibilidade de uma concepção moderna dessa figura de linguagem. As
obras serão analisadas de forma a evidenciar os níveis interpretativos inerentes à
alegoria, dando maior ênfase à interpretação no nível da metalinguagem.
18
No segundo capítulo, será feita uma análise dos textos a partir de uma perspectiva que
leva em consideração a história do pensamento utópico e a tendência contemporânea a
uma literatura distópica. Será observado que a alegoria fornece recursos linguísticos que
auxiliam na estruturação de um texto que se volta para a crítica social. O papel da utopia
e da distopia nas narrativas estudadas será ressaltado, descrevendo o trajeto de tais
ideias no percurso histórico.
No terceiro capítulo, será feita uma leitura interpretativa com foco nos protagonistas de
cada um dos textos: Cristão, de O peregrino; o narrador sem nome de ―A estrada de
ferro celestial‖; e Anna Blume, de No país das últimas coisas. Ao analisar o
desenvolvimento destes personagens ao longo do texto, será levada em consideração a
ideia da peregrinação, que normalmente inclui a busca por crescimento espiritual.
Através do caminho trilhado pelos personagens, será destacada a relação que eles
estabelecem consigo mesmos, com o outro e com o mundo ao seu redor.
Nesta tese, o caráter alegórico de No país das últimas coisas é ressaltado no sentido de
sugerir uma nova possibilidade interpretativa não deste romance, como também de
outros textos de Auster. Além disso, o trabalho procura ampliar o horizonte dos estudos
literários, que indica a alegoria como um recurso retórico possível na atualidade. O
estudo das imbricações desta figura de linguagem com outras técnicas de criação pode
trazer à luz questões relevantes para a compreensão da literatura contemporânea, que, de
uma forma geral, apresenta ligações com a alegoria. Essa dimensão foi observada em
autores da modernidade como Baudelaire, Kafka, Rilke e Proust. Neste estudo é
focalizado o romance contemporâneo de Paul Auster, a partir do qual se inicia a
caminhada rumo ao passado, ao presente e ao futuro.
19
2. Uma escrita dissonante
20
A alegoria e o romance
A obra de John Bunyan intitulada O peregrino, apesar de ser uma alegoria cristã que se
encaixa mais nos moldes da Divina comédia, apresenta características que podem ser
identificadas, posteriormente, no gênero romance. O conto de Nathaniel Hawthorne, ―A
estrada de ferro celestial‖, é uma paródia da alegoria de Bunyan, e, portanto, além de
criticar a tradição da analogia através de suas caricaturas alegóricas, pode ser vista como
a semente da alegoria moderna presente no romance de Auster.
Hansen
19
descreve o trajeto da alegoria desde a Antiguidade. A partir de seu estudo
propõe-se analisar esta figura de linguagem em suas diversas configurações no percurso
histórico. Com o intuito de fazer uma ligação com a teologia, destacam-se alguns
comentários de Lopes
20
sobre a história da interpretação da Bíblia.
A palavra alegoria vem do grego e significa dizer uma coisa para significar outra
(állos = outro; agorein = falar). Hansen destaca dois tipos de alegoria que se
contrapõem e se complementam simultaneamente: a alegoria dos poetas e a alegoria
dos teólogos. A primeira se caracteriza por ser uma forma de ―expressão verbal retórico-
poética‖, bastante utilizada na Antiguidade para ornamentar discursos que se oferecem à
interpretação. Sua técnica engloba a utilização de um locus ou lugar-comum e um
vocabulário que substituem determinado discurso de forma figurada.
A segunda alegoria é hermenêutica, pois pressupõe uma ―interpretação religiosa de
coisas, homens e eventos figurados em textos sagrados‖. Em contraposição à visão
greco-romana da Antiguidade, a alegoria dos teólogos é cristã e medieval, de forma que
19
Cf. HANSEN, 2006.
21
seus pressupostos são essencialistas, incluindo a crença de que Deus escreveu dois
livros simbólicos: o mundo e a Bíblia.
21
A interpretação alegórica da Bíblia prevalece durante séculos. Filo de Alexandria (20-
25 a.C) é o precursor deste método de exegese, que domina durante toda a Idade Média.
Nesta época, é criada a ―quadriga‖ para distinguir os quatro sentidos das Escrituras: o
histórico, o alegórico, o tropológico e o anagógico. Segundo Lopes, na Idade Média o
método alegórico de interpretação bíblica é utilizado de forma distorcida para justificar
as inovações, os costumes e as doutrinas que surgem na igreja.
22
Dante Alighieri escreve sobre a alegoria na Carta XIII dirigida ao Can Grande della
Scala, seu patrono e protetor. Segundo Holloway, a carta inclui a interpretação histórica
(literal), alegórica, moral e anagógica do Salmo 113, que é considerado a matriz da
Divina comédia.
Dante interpreta o salmo através da alegoria de quatro faces das
Escrituras: o primeiro sentido (literal) é o da peregrinação histórica dos
filhos de Israel do Egito do tempo de Moisés; o segundo (alegoria)
significa a redenção realizada por Cristo, da qual o Exodus constitui o
tipo; o terceiro (moral) significa a conversão da alma da miséria
pecaminosa para o estado de graça; o quarto (anagógico) é a
peregrinação da alma que parte da servidão da corrupção e chega à
liberdade da glória eterna.
23
Holloway afirma que a Divina comédia seria uma tipologia do salmo 113, que, por sua
vez, é uma tipologia do livro do Êxodo. A partir da ideia cristã medieval de que a Bíblia
relata fatos reais com implicações espirituais, a obra de Dante pode ser interpretada
20
Cf. LOPES, 2007.
21
HANSEN, 2006, p. 7-12.
22
LOPES, 2007, p. 83-96 e 149-150
23
―Dante interprets the psalm with the scriptural fourfold allegory: the first sense (literal) is of the
historical journeying of the children of Israel from Egypt at the time of Moses; the second (allegoria)
signifies the redemption wrought by Christ of which the Exodus is the type; the third (moral) signifies the
22
simultaneamente como fato (alegoria dos teólogos) e ficção (alegoria dos poetas).
24
Dante foi inovador ao mesclar os dois tipos de alegoria. Além disso, reforçou a tradição
medieval cristã, que, apesar de considerar que a alegoria tem vários sentidos
(polysemous), aponta para uma única crença espiritual. Dessa forma, o resultado
interpretativo acaba sendo algo definido e, portanto, unívoco.
No Renascimento, de acordo com o estudo de Hansen, destaca-se o interesse em
traduzir e interpretar os textos filosóficos e poéticos gregos e latinos. Instrumentos
como os hieróglifos egípcios, a astrologia, a alquimia e a Cabala passam a ser utilizados
para tal intuito, e a alegoria se torna ―o instrumento principal de interpretação e
construção dos discursos‖.
25
Entretanto, ao contrário da alegoria medieval, perdem-se
não apenas a ideia de uma retórica que leva à ―tradução figurada de um sentido
próprio‖
26
, mas também as referências unicamente cristãs, trazendo uma abertura
eclética para a busca de um sentido inefável. A arte, a alegoria e o além se misturam de
uma forma ampla, incluindo crenças, religiões, os deuses gregos, a escrita dos antigos
egípcios, conhecimentos de astrologia, o pensamento platônico e a matemática, entre
outros. Assim, a alegoria se torna plurívoca, sem deixar de lado uma determinada lógica
interpretativa.
Propondo uma Antigüidade modelar e, portanto, monumental, a alegoria
é um procedimento referido à arqueologia, na operação de recuperar um
sentido oculto num monumento; ela é também artístico-poética, como
modo de formar; e também científica, pois engloba teoria, cálculo
mágico e simpatia generalizada.
27
Hansen acrescenta, ainda, que nessa época os hieróglifos são vistos como símbolos
conversion of the soul from sinful misery to a state of grace; the fourth (anagogical) is the journeying of
the soul from the bondage of corruption to the liberty of eternal glory.‖ (HOLLOWAY, 1992, p. 164).
24
HOLLOWAY, 1992, p. 165.
25
HANSEN, 2006, p. 140.
26
HANSEN, 2006, p. 140.
23
perfeitos. Considera-se que através deles seria possível tornar visíveis as Ideias
Platônicas. A interpretação destes símbolos é, ―na realidade, adaptação de sua forma
visível a uma abstração metafísica astrológico-cristão-neoplatônica.‖
28
No período Barroco, com o advento da Reforma Protestante no século XVI, uma
quebra com a interpretação alegórica, especificamente da Bíblia, e a consequente busca
pelo seu sentido único e literal. Mesmo no caso dos fragmentos obscuros encontrados
no texto sagrado, utilizam-se outros trechos da própria Bíblia para buscar
esclarecimento. Nota-se, na seguinte afirmação retirada de Conversas de Lutero à mesa,
como o método alegórico de exegese das Escrituras passa a ser visto pelos
reformadores:
A alegoria de um sofista é sempre retorcida; ela rasteja e se curva como
uma cobra, que nunca se endireita, quer caminhe, quer se arraste, quer
fique parada; somente quando morre é que uma cobra fica direita.
29
A dificuldade de compreensão das Escrituras é explicada através da queda do homem,
que o separou da presença de Deus e o tornou espiritualmente cego. A interpretação
bíblica, então, poderia ser considerada completa se houvesse a presença e o auxílio
do Espírito Santo, fornecidos somente aos convertidos. Além disso, ela deveria ser
acompanhada de muito estudo, pois os reformadores sabiam das complicações advindas
de traduções de textos de línguas e culturas distantes.
30
No âmbito da literatura, em Origem do drama barroco alemão, Walter Benjamin traz à
tona uma visão diferenciada da arte alegórica do período Barroco, abrindo as portas
27
HANSEN, 2006, p. 141.
28
HANSEN, 2006, p. 148 e 149.
29
LUTERO. IN: LOPES, 2007, p. 161.
24
para a percepção de um mundo incompleto e fragmentado, no qual todos caminham
naturalmente para a fatalidade da morte. Segundo Benjamin, este sentimento se faz
presente no período Barroco devido à Reforma Protestante e, posteriormente, à Contra-
reforma Católica, movimentos que quebraram paradigmas, contraditoriamente
resultando em uma percepção da história esvaziada de qualquer tipo de transcendência
e, também, de escatologia. Enquanto na Idade Média a história se inseria no processo da
salvação, no Barroco a história se transforma em uma sequência de catástrofes, seguida
da aniquilação final. A vida humana passa a ser sujeita ao destino e ao efêmero.
Ao analisar o drama barroco, Benjamin declara que a alegoria é uma linguagem que se
adapta ao pensamento da época, pois retrata em sua forma e em seu conteúdo a
ambiguidade de sentido, a incompletude, a morte e a decadência, tão presentes na
percepção barroca.
Quando, com o drama barroco, a história penetra no palco, ela o faz
enquanto escrita. A palavra história está gravada, com os caracteres da
transitoriedade, no rosto da natureza. A fisionomia alegórica da natureza-
história, posta no palco pelo drama, está verdadeiramente presente
como ruína.
31
Benjamin destaque à visão de um mundo histórico em estilhaços, e que se torna
enigmático aos olhos daquele que o experimenta. Há, portanto, uma espécie de busca de
decifração através de uma linguagem alegórica, que faz agrupamentos de determinados
fragmentos, com o intuito de compreendê-los: ―é sob a forma de fragmentos que as
coisas olham o mundo, através da estrutura alegórica.‖
32
Tal estrutura pode ser
representada pela retirada de um dado objeto de seu contexto, trazendo o consequente
30
LOPES, 2007, p.159-167
31
BENJAMIN, 1984, p.199.
32
BENJAMIN, 1984, p.208.
25
esvaziamento de sua significação e, posteriormente, pela transferência desse objeto a
um novo e diferente contexto. Dessa forma, a concepção de história se estilhaça, mas o
objeto se renova ao renascer com uma nova significação.
É interessante destacar que a leitura de Benjamin engloba tanto o objeto artístico como
o pensamento presentes na época, de forma que ambos estejam em sintonia com a
concepção de alegoria. No Romantismo, o mbolo é exaltado em detrimento da
alegoria, que é considerada deficiente, por ser processual e progressiva, não podendo
incorporar em si, como o símbolo o faz, a clareza e a graça do momento místico. De
forma semelhante, a crítica romântica traz à tona pressupostos relacionados à concepção
da arte e ao pensamento da época, que buscam refletir uma ideia imediata de totalidade
e transcendência. Tais pressupostos são ressaltados por Paul de Man em The rhetoric of
temporality:
A supremacia do símbolo, concebido como expressão da unidade entre as
funções representativa e semântica da linguagem, torna-se um lugar-
comum que subjaz ao gosto literário, à crítica literária, e à história
literária. A supremacia do símbolo ainda funciona como a base de
estudos franceses e ingleses recentes das eras romântica e pós-romântica,
a tal ponto que a alegoria é frequentemente considerada um anacronismo
e descartada como não-poética.
33
De Man destaque às ambiguidades presentes no pensamento romântico, ao
considerar a superioridade do símbolo como um elemento que possui uma unidade
orgânica, e a inferioridade da alegoria como uma forma imaterial que representa
fantasmas sem substância. Além dessa contraposição não ser exata, de Man aponta a
deficiência do símbolo em abranger a temporalidade, como acontece com a alegoria. O
33
―The supremacy of the symbol, conceived as an expression of unity between the representative and the
semantic function of language, becomes a commonplace that underlies literary taste, literary criticism,
and literary history. The supremacy of the symbol still functions as the basis of recent French and English
studies of the romantic and post-romantic eras, to such an extent that allegory is frequently considered an
anachronism and dismissed as non-poetic.‖ (MAN, 1983, p. 189).
26
símbolo se refere a um momento místico, a alegoria, por ser processual, apresenta
uma continuidade no tempo e no espaço. Um exemplo seria a alegoria de Dante, que
narra uma história que tem progressividade e temporalidade.
Em contraposição, o símbolo não faz referência ao ciclo da vida, no qual se insere a
inevitabilidade do envelhecimento e da morte. Segundo de Man, o esplendor do símbolo
funciona como uma espécie de véu que esconde tal inevitabilidade. A pretensão da
utilização exclusiva do símbolo, durante o Romantismo, aponta para uma busca pelo
transcendente. Entretanto, mesmo tendo criticado a alegoria, muitos autores românticos,
como Poe, Hawthorne, Rousseau e Wordsworth, utilizaram-na em suas obras.
Apesar das incongruências encontradas nas críticas dos autores românticos à alegoria,
desde este período a alegoria tem sido utilizada de uma forma mais discreta e sutil. O
trabalho de Walter Benjamin foi de grande importância, no entanto, para desmistificar
pensamentos discriminatórios tanto relativos à alegoria como ao Período Barroco.
Hansen destaca a maneira pela qual Benjamin identifica nas litanias satânicas da poesia
modernista de Baudelaire um teor alegórico, que permite que sejam interpretadas como
o outro da história, ou seja, sendo a favor dos proletários, vistos como demônios pela
classe dominante.
34
No livro de Paul de Man intitulado Alegorias da leitura, escritores
da modernidade, como Nietzsche, Rilke e Proust, são também lidos de forma
alegórica.
35
No caso de Paul Auster, verifica-se a utilização de uma retórica semelhante à alegoria
dos poetas no contexto contemporâneo. Sua alegoria se através de um locus e um
34
HANSEN, 2006, p. 18.
35
MAN, 1996.
27
vocabulário que substitui um determinado discurso de forma figurada. A cidade-cenário
de No país das últimas coisas apresenta analogias com a sociedade contemporânea, os
grandes centros urbanos, o mercado e o indivíduo.
Com o intuito de compreender o diálogo que se dá entre a alegoria moderna de Auster e
a alegoria romântica de Hawthorne, é interessante destacar as relações entre o âmbito da
estética e o campo da economia. Considera-se para este estudo a análise de Weinstein,
especialista em literatura e cultura do século XIX, que relaciona a representação do
trabalho em textos ficcionais e não-ficcionais, fazendo interseções com os campos da
estética e da economia.
Segundo Weinstein a alegoria passou por uma reconfiguração no contexto do
industrialismo. Ao mesmo tempo em que a alegoria do século XIX faz alusão à alegoria
religiosa utilizada por Bunyan, dela se distingue por trazer à tona questões relacionadas
ao trabalho e à identidade pessoal. O estudo de Weinstein analisa o período da história
dos Estados Unidos da América que engloba os anos de 1789 a 1849, conhecido como
Antebellum era.
De acordo com Weinstein, este período trouxe alterações no âmbito da relação do
indivíduo com o trabalho devido ao grande e rápido progresso na área da indústria. O
ritmo mecânico, repetitivo e exaustivo era pesado para o corpo humano. As
consequências do trabalho entravam em conflito com a ética do trabalho vigente nos
Estados Unidos, que prometia a prosperidade e a possibilidade de crescimento a todos
aqueles que trabalhassem.
28
Apesar da ideia de classe social não fazer parte de tal ética, a sociedade americana se
tornava cada vez mais segregadora. Enquanto alguns trabalhavam em condições ruins,
outros permaneciam no ócio. Devido à estratificação social gerada, Weinstein explica
que o trabalho começava, também, a afetar o indivíduo no nível da construção de sua
identidade pessoal. Assim, com o intuito de camuflar o contexto ao redor da ética do
trabalho e suas reais consequências, procurou-se apagar qualquer sinal que trouxesse
para a cena a visibilidade do trabalho.
36
Segundo Weinstein, a alegoria e o trabalho mecanizado são criticados neste período,
pois além de revelar o esforço do operário ou do escritor, podem produzir um tipo de
indivíduo superficial e plano. Tal afirmação pode ser percebida através de sua análise
do personagem John A. B. C. Smith, do conto de Poe intitulado ―The man that was used
up‖. O personagem alegórico é um homem com movimentos mecânicos devido a seus
braços e pernas artificiais. Ele é um produto do trabalho em uma economia de mercado,
que utiliza formas compensatórias para corrigir seus erros. Os membros artificiais,
criados pelo mercado, oferecem de volta ao personagem aquilo que o próprio mercado
lhe havia tirado.
Weinstein destaca que, assim como John Smith é um produto do mercado, é também
produto do trabalho literário de seu autor. Poe se coloca, então, na posição de um
trabalhador literário. O personagem, como tal, se faz visível através da materialidade
da linguagem sugerida pelas letras A. B. C. em seu nome. Smith é um personagem plano
(flat character), assim como a maior parte dos personagens alegóricos. Weinstein
argumenta que é exatamente nessa horizontalidade que está o primeiro locus de sentido
36
And last, at the very moment that the ideological foundations of the work ethic were being called into
29
do personagem.
A história de Poe sugere que a horizontalidade é em si mesma alegórica,
que a horizontalidade é em si mesma uma alegoria das ansiedades
culturais concernentes às relações mutantes entre o trabalho e a ação. A
horizontalidade literal de Smith poderia concluir a leitura do narrador,
mas inicia outra leitura de Smith, a qual situa personagens alegóricos em
um contexto cultural.
37
Weinstein sugere, então, que o a simplicidade dos personagens alegóricos seria
indicativa da necessidade de uma leitura mais laboriosa destes mesmos personagens.
Nota-se a ideia de trabalho presente tanto no nível metalinguístico como no nível
figurado. Estes personagens alegóricos, além de terem sido construídos por seus
autores, fazem parte de um contexto cultural totalmente inserido em uma lógica do
trabalho.
A literatura alegórica do século XIX selecionada por Weinstein traz à visibilidade tanto
o trabalho do escritor como o trabalho menico e exaustivo das classes operárias na
sociedade de consumo. Em sua análise da alegoria, Weinstein se baseia em vários
estudiosos da retórica literária, dentre os quais se destaca Walter Benjamin. Weinstein
explica que o pensamento de Benjamin em O drama barroco alemão demonstra a
construção da alegoria no contexto histórico do período barroco. A alegoria, entretanto,
passa por reconfigurações que se associam aos períodos históricos e suas idealizações
estéticas. Daí surge sua análise da alegoria associada à ética do trabalho no século XIX.
A pesquisa de Weinsten tem grande pertinência e perspicácia, pois relaciona dois
question by new conditions of labor, the best guarantee of a salutary work ethic was the invisibility of
work itself. (WEINSTEIN, 1995. p. 23)
37
Poe´s story suggests that flatness is itself allegorical, that flatness is itself an allegory of cultural
anxieties about changing relations between labor and agency. The literal flatness of Smith might conclude
30
âmbitos aparentemente distintos, mas que tendem a se encontrar em um nível
ideológico: a alegoria e a economia. Nota-se também a continuidade com Benjamin,
que insere a alegoria no contexto histórico, evidenciando um diálogo entre as duas. Na
maioria das vezes, observa-se o surgimento de uma literatura engajada com um
determinado pensamento de cunho social.
Weinstein analisa ―A estrada de ferro celestial‖ de Nathaniel Hawthorne, no qual as
marcas do trabalho parecem estar no âmbito da invisibilidade. Entretanto, o mero fato
de Hawthorne estar parodiando sugere a imagem de um escritor que trabalha relendo
e reescrevendo. A ferrovia denota o período do industrialismo e a alegoria de
Hawthorne ironiza a ideia da comodidade, além de ressaltar algumas características do
mercado da troca e do acúmulo. Destaca-se, na paródia, o uso de nomes alegóricos que
sugerem personagens de caráter questionável, os quais seriam espécies de figuras da
impostura.
A interseção entre alegoria e ironia observada no texto de Hawthorne aponta em duas
direções: para a continuidade de uma tradição alegórica e, simultaneamente, para uma
retórica da ironia, seguindo os passos já iniciados por Cervantes com Dom Quixote. Este
estudo sugere, a partir da leitura de Benjamin, uma configuração contemporânea da
alegoria. Figura que fora silenciada no romantismo por motivos éticos e estéticos,
embora tenha sido utilizada por vários autores românticos. Na modernidade, o
preconceito dos românticos parece ter permanecido. A referida figura de linguagem é
associada, na maior parte dos casos, a obras de tempos e pensamentos remotos.
the narrator’s reading, but it begins another reading of Smith which situates allegorical characters in a
cultural context. (WEINSTEIN, 1995. p. 6)
31
Afirma-se que No país das últimas coisas, escrito no período de quinze anos entre 1970
e 1985,
38
é um romance contemporâneo que faz uso de recursos alegóricos. Levando em
consideração o pensamento de Benjamin, propõe-se que a retórica de Auster se estrutura
mais especificamente a partir da história dos Estados Unidos. Destacam-se os
momentos iniciais dessa história com a vinda dos europeus para a América.
Posteriormente, nasce a sociedade industrial e seus ideais de progresso e liberalismo.
No país das últimas coisas foi escrito no fim da Guerra Fria; em um mundo que
enfatizava o consumismo e os velozes avanços tecnológicos. O cenário do romance
aponta para o fantasma do holocausto, as Guerras Mundiais e os ataques nucleares em
Hiroshima e Nagazaki. A prosa alegórica de Auster deixa transparecer algumas
consequências perversas da história do século XX e do capitalismo moderno como o
crescimento desordenado do extrativismo natural e mineral, com o único objetivo de
gerar lucro financeiro. É criado, então, um desequilíbrio com o meio ambiente, afetando
a sustentabilidade do planeta.
A retórica de Auster, além de fazer referência á críticas sociais através da utilização da
alegoria, traz à tona também um discurso irônico, que é próprio da modernidade e do
romance. Nesta tese defende-se que No país das últimas coisas apresenta uma mescla
de características, constituindo o que será considerado um romance alegórico. Com o
intuito de compreender melhor o encontro entre o romance e a alegoria, será feito um
estudo sobre a evolução do romance a partir dos trabalhos de Walter Benjamin, Octávio
Paz e Georg Luckács.
38
AUSTER, 1996a, p. 292.
32
Com relação à origem do romance duas linhas diferentes entre os teóricos da
literatura: a primeira considera que o romance pertence ao gênero épico ou narrativo,
assim como o conto, a crônica, o mito e a epopéia. As duas últimas seriam as espécies
mais remotas do gênero. O mito tem caráter sagrado e se baseia na memória do
princípio, contando a história do começo de todas as coisas. A epopéia narra a história
de um determinado povo, permeada pela ação de deuses e entes sobrenaturais. Sua
forma obedece a certas convenções formais, e seu enredo se baseia em relatos bíblicos,
lendários ou históricos, sempre voltado para a tradição coletiva e para a noção de que
tais relatos constituem ―um repertório definitivo da experiência humana.‖
39
A segunda linha de pensamento está vinculada aos estudos do teórico Russo Mikhail
Bakhtin, que discorda da filiação do romance ao nero épico, propondo que o romance
constitua um gênero próprio denominado romanesco. Bakhtin descreve a epopéia como
um poema sobre o passado e como um gênero acabado, diferenciando-a assim do
romance que é um gênero inacabado e que tem como objeto o presente e a atualidade. O
estudo demonstra, a partir de características estruturais e temáticas de autores e textos
da tradição ocidental, o distanciamento entre os dois gêneros.
Em ―O narrador‖, seguindo a primeira linha de pensamento exposta acima, Walter
Benjamin aproxima o romance da epopéia, já que ambos se baseiam na memória.
Benjamin destaca a musa dos autores gregos, Mnemosina, aquela que se recorda e ―leva
o observador a um cerne histórico de linhas mestras.‖
40
No caso do romance, a
estruturação se dá através do desencadeamento de um conjunto de histórias interligadas,
existindo em cada uma delas uma Scheherazade que se lembra.
39
WATT, 1996, p. 15.
33
É, em outras palavras, a lembrança que, como elemento artístico, filia-se
no romance à memória, o elemento correspondente na narrativa, depois
de a unidade de sua origem ter-se perdido na recordação, quando da
decadência do poema épico.
41
Este estudo adota a perspectiva de Benjamin, incluindo assim o romance no gênero
épico. A análise de Auster proposta aqui explora o diálogo com a obra de Bunyan, que
pode ser considerada precursora do romance, como será frisado no terceiro capítulo a
partir da leitura de Wolfgang Iser. A estrutura formal da alegoria de Bunyan apresenta
ora características que são próprias da epopéia, ora características que são próprias do
romance, demonstrando o desligamento com a tradição da epos e o início do que hoje é
conhecido como romance.
Benjamin afirma que O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha pode ser
considerado o ―primeiro modelo perfeito do romance.
42
O texto de Cervantes é
conhecido como uma paródia das novelas de cavalaria que, apesar de terem sido muito
populares durante o período medieval, estavam em declínio no início do século
XVII. Com o passar do tempo, entretanto, outros sentidos afloraram deste romance tão
rico e importante para a literatura ocidental. Dom Quixote, o protagonista louco do
romance, passa a ser visto como um herói, prefigurando um indivíduo sonhador e
idealista. Assim, todos os seus disparates podem ser bem fundamentados em uma
retórica invertida entre o real e o imaginário, de forma semelhante a uma alegoria.
A imagem alegórica dos moinhos de vento é provavelmente a mais forte de todo o
romance. Nesta cena D. Quixote pensa estar diante de gigantes, enquanto Sancho Pança
afirma e reafirma que são apenas moinhos de vento. O olhar de D. Quixote assustado
40
BENJAMIN, 1975, p. 73.
41
BENJAMIN, 1975, p. 73.
34
com uma possível ameaça ou um perigo se justifica através de uma retórica alegórica
relacionada ao contexto histórico de Cervantes. De forma semelhante à paródia de
Hawthorne que relaciona o trem com o progresso industrial, os moinhos são uma
espécie de motor movido à energia eólica e representam as grandes engenhocas
produzidas pelo homem devido à especialização do conhecimento na área da mecânica.
De fato, o olhar de Dom Quixote está mais próximo do imaginário medieval das
cavalarias, mas seu olhar se movimenta também para o presente histórico dos moinhos
de vento, simultaneamente como algo que ameaça e fascina por sua grandeza e
especialização. Percebe-se, assim, que a obra de Cervantes possui características
estruturais, formais e retóricas que indicam uma nova direção também na área da
literatura. a negação da tradição anterior através da ridicularizarão, e a indicação de
uma nova retórica, irônica e desconexa. Sugere-se, então que, através do uso de figuras
alegóricas associadas a um discurso irônico, Dom Quixote seja o primeiro exemplo de
um romance alegórico.
Em seu ensaio sobre poesia e tecnologia, Octavio Paz afirma Dom Quixote é irônico
através da negação de toda uma tradição, da qual a Divina Comédia é a obra de maior
destaque. Paz explica que na Divina Comédia o protagonista é um pecador que encarna
a história humana, sendo guiado por Virgílio e Beatriz. Sua viagem é a alegoria das
peregrinações do povo eleito, tendo como percurso uma descida e depois uma subida.
No final de suas andanças, Dante tem a visão da verdade e da vida.
Em contraposição, Dom Quixote é um louco, que se apresenta como uma exceção à
42
BENJAMIN, 1975, p. 74.
35
história humana. Ele é um homem extraviado e solitário e não é guiado por ninguém.
Sua viagem se faz através de um ir e vir sem qualquer sequência lógica e finaliza com o
retorno a si mesmo, ou seja, ―à realidade sem grandeza do fidalgo pobretão.‖
43
Paz adiciona que, enquanto a alegoria de Dante apresenta a correspondência perfeita
entre o mundo celeste e o terrestre, a ironia de Cervantes acentua exatamente o abismo
que existe entre o real e o imaginário ―a ironia semeia a dúvida no ânimo: não
sabemos o que é realmente o real, se o que vêem nossos olhos ou o que nossa
imaginação projeta.‖
44
É importante ressaltar que até o Renascimento a ironia era simplesmente um método
retórico, sendo considerada como um dentre os vários modos de dizer uma coisa e
significar outra, e, portanto, como uma forma de alegoria. Entretanto, devido à ruptura
com a analogia da linguagem alegórica e à entrada da subjetividade na história, a partir
do Romantismo a ironia se torna uma atitude para com a própria existência. não
divindades que revelam segredos, apenas o homem diante de um mundo escasso de
significado.
O romance na contemporaneidade segue a mesma trilha, de forma que não usa enredos
tradicionais, mas inventados ou baseados em incidentes reais. Além disso, há a ausência
das convenções formais. Lukács em A teoria do romance afirma que o mundo criado
por Dante, em seu poema épico, expressa uma totalidade estrutural, através de um
sistema que sugere a substancialidade dos conceitos trabalhados. o romance atinge
sua totalidade com a sistematizão de conceitos abstratos. No entanto, a realidade
43
PAZ, 1991, p. 108.
36
criada no romance traz à tona apenas ―a distância que separa da vida concreta tal
sistematização.‖
45
Lukács ênfase aos três seguintes pontos: personagens nostálgicos
por uma perfeição utópica, que é percebida como verdade última; a existência de
estruturas sociais que se baseiam unicamente em sua presença factual e na simples
habilidade de continuar existindo; e, finalmente, a intenção estética de dar forma ao
romance, que, ao invés de conciliar a interioridade do mundo subjetivo ao
convencionalismo do mundo objetivo, faz com que subsista a distância entre os dois. A
totalidade do romance não se resolve, deixando transparecer, assim, uma dissonância
metafísica.
46
De acordo com Lukács, a confirmação da existência de uma dissonância precede o ato
estético de dar forma e está presente em todos os gêneros. Entretanto, no caso do
romance, a dissonância não é precedente, e sim, sua própria forma. Lukács conclui que
a intenção ética no romance deixa de ser uma pré-condição puramente formal, passando
a ser ―visível na criação de cada detalhe, sendo, portanto, em seu conteúdo mais
concreto, um elemento estrutural e efetivo da obra em si.
47
Em contraposição aos
demais gêneros literários que comportam uma forma completa, o romance se revela
inacabado, dando a impressão de estar sempre no processo de vir a ser.
Além disso, segundo Lukács, a totalidade objetiva esperada pela épica se quebra no
romance, que forma somente a aspectos subjetivos dessa totalidade. É importante
ressaltar que a subjetividade, mesmo que altamente consciente de si mesma, se torna
44
PAZ, 1991, p. 108.
45
the distance separating the systematization from concrete life.‖ (LUKACS, 1971, p. 70)
46
LUKACS, 1971, p. 70 e 71.
47
is visible in the creation of every detail and hence is, in its most concrete content, an effective
structural element of the work itself. (LUKACS, 1971, p. 72)
37
cada vez mais abstrata. Assim surge a ironia, simultaneamente como o auto-
reconhecimento e a autonegação dessa subjetividade. Lukács afirma que a ironia seria
uma espécie de auto-correção da fragilidade do mundo, deixando transparecer
ambiguidades que demonstram as várias interpretações de uma mesma questão, ou as
fissuras presentes em afirmações categóricas.
48
A obra de Auster apresenta tais características, que são também inerentes ao romance
contemporâneo, seguindo, assim, o percurso iniciado por Cervantes, no qual o homem
está diante do mundo e da subjetividade. No romance, Auster cria uma cidade que
sugere um futuro catastrófico para a humanidade. Neste espaço dos últimos tempos, os
valores morais e humanos se perderam, a correspondência entre as palavras e as coisas é
questionável. Além disso, não há qualquer expectativa de estabilidade e previsibilidade.
Destaca-se, ainda, a incoerência que há em certas questões sociais, que remetem à
própria sociedade contemporânea.
O mesmo movimento crítico pode ser percebido com relação à própria literatura através
da metalinguagem presente na retórica alegórica. O romance contemporâneo é auto-
crítico, explicitando seu processo de criação, sua recepção pelo leitor e suas relações
com outras formas de construção literária. Além disso, destaca-se a noção de que a
literatura se faz a partir de si mesma e de sua própria história, sendo o escritor aquele
que lê a tradição literária do passado, transfere-a para o presente, e transforma-a em algo
novo. Tal ideia remete à intertextualidade conhecida também como transposição, ou
seja, uma espécie de reescrita, ou reciclagem de textos anteriores, que são re-elaborados
através do olhar contemporâneo.
48
LUKACS, 1971, p. 74 e 75.
38
Em No país das últimas coisas, na epígrafe duas indicações textuais que saltam
aos olhos: a do autor, Nathaniel Hawthorne, e a menção a uma famosa Cidade da
Destruição, o que faz lembrar a história do peregrino escrita por John Bunyan. A
referência direta a Hawthorne e indireta a Bunyan é feita inicialmente na epígrafe e,
posteriormente, deixa entrever seus traços no próprio enredo. Anna, a protagonista de
Auster, perambula pelas ruas de uma cidade desconhecida em busca de seu irmão
desaparecido. Traçando um paralelo, o fato de ser uma busca remete à peregrinação.
Entretanto, a viagem de Anna não segue o ritmo esperado, e também não apresenta
nenhum objetivo espiritual, ao contrio do peregrino protagonista da alegoria de
Bunyan.
A noção de intertextualidade pode ser percebida, também, quando Anna se envolve
com Samuel Farr, um jornalista que se mobiliza para escrever um longo livro baseado
em histórias verídicas contadas pelos habitantes da cidade sem nome. Anna e Sam
moram na biblioteca da cidade, em um dos dormitórios para estudantes.
Contraditoriamente, para assegurar o projeto do livro e a própria sobrevivência, quando
chega o frio do inverno, na falta de lenha, eles são levados a queimar na lareira do
dormitório alguns livros retirados da biblioteca que os abriga. Apesar da ironia inerente
a este ato, Anna percebe uma lógica que parece justificá-lo:
Sinceramente, acho que gostei de ter jogado aqueles livros no fogo.
Talvez por ter liberado um nervosismo secreto em mim; talvez tenha sido
simplesmente um reconhecimento do fato de que não importava mais o
que aconteceria com eles. O mundo ao qual pertenciam estava acabado e
pelo menos agora os livros estavam sendo usados para algum
propósito.
49
49
To be honest, I actually think I enjoyed throwing those books into the flames. Perhaps it released
some secret anger in me; perhaps it was simply a recognition of the fact that it did not matter what
happened to them. The world they had belonged to was finished, and at least now they were being used to
39
Anna fazia inicialmente uma triagem dos livros antes de queimá-los. Com isso, ela
pretendia selecionar aqueles que não tinham valor algum e aqueles que ainda poderiam
ser lidos. Mas, finalmente, todos os livros, sem qualquer triagem, passaram a ser
queimados e transformados em calor. Este trecho pode ser interpretado de forma
metafórica, de modo a insinuar exatamente a ideia de uma literatura que necessita de
sua própria história para ir adiante. É como se a queima destes livros antigos
proporcionasse a continuidade do projeto literário de Sam. Neste caso, a queima pode
ser lida como a completa desestruturação de textos antigos, para que sejam
reestruturados de outra forma.
Esta escrita ensaística tende a relativizar as fronteiras entre a crítica e a ficção,
sugerindo hipóteses sobre a noção de literatura na contemporaneidade. O termo
intertextualidade foi difundido por Julia Kristeva a partir da leitura de Mikhail Bakhtin.
Kristeva elucida a palavra literária não como um ponto fixo, mas como o cruzamento
de superfícies textuais, um diálogo de escritas diversas. Desse modo, compreende-se a
estrutura literária como uma elaboração a partir de outras estruturas.
50
Como um paralelo ao processo da intertextualidade, Compagnon sugere a atividade
infantil de recortar e colar figuras, retirando-as de um determinado espaço e
transferindo-as para outro. O recorte jamais é perfeito, pois, por mais que a criança se
esforce, às vezes um cantinho angular acaba ficando circular. Após o recorte, vem a
transferência para um novo contexto de relações entre imagens e signos, que se
some purpose. (AUSTER, 1989a, p. 116)
50
Para mais detalhes ver KRISTEVA, 1974.
40
entrecruzam e dialogam.
51
Borges diz coisa semelhante em Kafka y sus precursores,
52
invertendo, de forma
temporal, as ideias de fonte e influência. Assim, os textos escritos antes da obra de
Kafka, contraditoriamente, são influenciados por ela. Isto é possível porque o leitor,
neste caso Borges, se situa em um outro momento espaço-temporal, o presente. Essa
posição permite estabelecer um diálogo entre textos, de modo tal que o escritor ou o
leitor inevitavelmente crie nexos entre o que leu ou escreveu. Sua leitura, então,
realça pontos antes despercebidos em determinados autores anteriores ao próprio Kafka,
de forma que o presente consegue alterar o passado.
Em seu conhecido ensaio intitulado Tradição e talento individual‖, Eliot discorre sobre
a necessidade do poeta de se situar historicamente em termos da tradição literária, pois
sua grandeza como poeta é percebida de forma relacional com seus ancestrais. O
reconhecimento e a compreensão da obra dos poetas mortos são dois fatores que podem
trazer enriquecimento e significado para a obra do poeta vivo. É também neste espírito
que este estudo se desenvolve. O romance de Auster, quando lido a partir dessa
perspectiva, pode ser apreciado de modo mais rico e preciso em termos literários.
53
A busca por plenitude
Em um primeiro momento, pretende-se analisar as metalinguagens em Bunyan,
Hawthorne e Auster e expor as características de suas respectivas alegorias. Sugere-se,
então, que uma busca de significado através da linguagem tanto no caso de Bunyan
51
COMPAGNON, 1996.11
52
BORGES, 1974, p. 88-90.
53
ELIOT; JUNQUEIRA, 1989, p. 37-47.
41
como no de Auster. A voz de Anna, a narradora de No país das últimas coisas, seria
semelhante à voz de uma verdade que parece continuamente afirmar aquilo que todos
parecem saber. Em oposição a isso, na paródia de Hawthorne existe o movimento
contrário de camuflar o sentido daquilo que é narrado. Hawthorne aponta para o início
de um discurso escorregadio e uma linguagem que é por si insuficiente, embora seja
múltipla, devido à sua indeterminação.
Bunyan, representante de uma fase anterior, sugere uma experiência alegórica baseada
numa analogia de correspondências precisas. A partir da análise abaixo, percebe-se que,
apesar da expectativa de uma interpretação unívoca por parte de Bunyan, seu texto foi
lido de forma distorcida. Observa-se o uso da metalinguagem início do prólogo de O
peregrino, onde há uma breve descrição de como o escritor se sentiu impelido a
escrever, tendo como resultado um pequeno livro.
Quando, no início, peguei da pena,
A escrever, mal imaginava a cena,
Que fora compor assim um livrete.
54
Mais adiante na leitura, nota-se menção ao momento em que ele pega sua caneta para
escrever, sem grandes expectativas ou intenções, sugerindo a espontaneidade inicial do
processo, que aos poucos se desenrola e, por fim, conduz ao surgimento do livro: um
objeto visível e palpável. Há, também, referência ao processo e aos materiais da escrita,
unindo papel, tinta e pensamentos. O resultado são formas pretas sobre o branco do
papel. O trabalho da escrita, para Bunyan, se revela como prazeroso, e inclui escolher
um método, escrever e publicar.
Assim, pena ao papel, com prazer tanto,
54
BUNYAN, 2006, p x.
42
Logo vazei as ideias em preto e branco.
Pois sabendo já o método, todo aceso,
Arranquei e tudo me veio; e, teso,
escrevi até afinal vir a obra ao lume,
Essa grandeza de doce, fino perfume.
55
O método ressaltado por Bunyan está ligado à sua opção questionável pelo uso da
alegoria como recurso linguístico e literário em plena Reforma Protestante. partir deste
panorama histórico, que desconsidera a alegoria como forma de interpretação do texto
bíblico, devido à sua natureza escorregadia, a opção de Bunyan pela escrita com base
nessa figura de linguagem parece ser um tanto quanto contraditória e audaciosa.
No prólogo, Bunyan justifica sua opção pelo texto alegórico, pois não encontra na
Bíblia nenhum verso que proíba o uso de figuras de similitude. Ele admite, também, que
seus objetivos são sinceros e que a verdade deve ser livre para ser dita da forma que
agrade a Deus. Além disso, afirma que alguns trechos das próprias Escrituras
apresentam semelhança o método alegórico, que traz escondido, em si, ouro, pérolas e
pedras preciosas que merecem ser revelados.
Sensatas palavras deve usar Timóteo, bem sei,
E recusar as fábulas supersticiosas da grei.
Mas Paulo, sóbrio, não lhe proíbe jamais
O uso de parábolas, pois se ocultam nas quais
Esse ouro, essas pérolas e pedras preciosas,
Que tanto vale escavar, e com mãos ciosas.
56
O cuidado com que Bunyan faz uso da alegoria é nítido, provavelmente para evitar que
a abertura intrínseca a essa figura de linguagem não gerasse leituras inesperadas ou
mesmo indesejadas. O livro é repleto de notas nas margens das ginas, resumindo
determinados trechos ou indicando os versículos bíblicos aos quais aludem. No trecho
55
BUNYAN, 2006, p. x e xi
56
BUNYAN, 2006, p. xiv.
43
acima, Bunyan ainda faz referência ao trabalho necessário para que se tenha uma boa
compreensão da figura retórica utilizada.
Entretanto, pode-se dizer que Bunyan não se contentou com o resultado, pois escreveu a
segunda parte de O peregrino de forma a reorientar a interpretação da primeira. No
poema de conclusão, observa-se tal intuito na afirmação de que se o leitor o
encontrasse o ouro que se esconde envolto pelo metal bruto, Bunyan seria levado a
sonhar novamente:
Não se acha o ouro envolto em minério?
Pois trocar polpa por caroço é vitupério.
Porém se tudo descartares como lixo,
Sonho de novo, me perdoa o capricho.
57
Machosky, em ensaio crítico intitulado Verdade e engano em O peregrino, sugere que a
necessidade de escrever a segunda parte do livro demonstra características da alegoria
barroca expostas por Walter Benjamin, como a percepção do caráter problemático da
arte, remetendo ao equívoco e à ambiguidade: a alegoria não se permite permanecer
como um significante estável.‖
58
Consequentemente, mesmo um texto como o de
Bunyan, que repete a si mesmo e se esclarece com frequência, não atinge a clareza
esperada pelo seu autor.
Em termos de metalinguagem, ―A estrada de ferro celestial‖ é uma espécie de máscara.
Não referências a um escritor ou ao ato da escrita. Sua linguagem alegórica parece
ser extremamente simplificada, de forma que o leitor possa tão somente apreciar o texto.
De fato, como sugere Weinstein, a ideia da invisibilidade do trabalho. Entretanto,
57
BUNYAN, 2006, p. 235.
44
pode-se dizer que um bom leitor sabe da natureza de uma paródia e do trabalho
envolvido em seu fazer. De forma semelhante, observa-se, assim como analisado por
Weinstein, a presença da ideia do labor no conto ―O sinal de nascença‖
59
, também de
Hawthorne. Neste caso, a própria marca de nascença remete ao ato da escrita por ser
uma mão.
O conforto encontrado em uma leitura facilitada pode ser associado às vantagens
oferecidas pela nova tecnologia. O narrador sem nome de ―A estrada de ferro celestial‖
sente-se bastante confortável em sua viagem de trem. Ele não precisa carregar nenhum
tipo de fardo, como o faz Cristão em O peregrino. Sua bagagem está no bagageiro, com
seu nome etiquetado. O narrador será simplesmente levado, sem que haja grande
esforço de sua parte. Enquanto isso, os peregrinos, considerados completos idiotas,
fazem o mesmo caminho a pé.
A linguagem alegórica de Hawthorne se encontra exatamente no período do
Romantismo, enfrentando todo o preconceito gerado, seja por uma ética do trabalho,
seja por preferência estética. É óbvio que, através de seu texto, Hawthorne está
ridicularizando. Resta saber qual é o seu alvo. Seria o leitor alienado que se entrega à
literatura por mero deleite, ou seria a tradição alegórica com suas figuras de linguagem
superficiais e simplistas?
No país das últimas coisas apresenta uma escrita enigmática, que pede para ser
decifrada, assemelhando-se à linguagem alegórica. Destaca-se a relação que se
desenvolve entre Anna e a linguagem: a premência em colocar suas experiências no
58
―allegory does not allow itself to remain a stable signifier‖ (MACHOSKY, 2008.)
45
papel, contraposta ao difícil trato com as palavras, que nascem do silêncio e enchem as
páginas, mas jamais são suficientes para contar toda a história.
Estou tentando incluir tudo, e chegar ao fim antes que seja tarde demais,
mas percebo o quanto me iludi. As palavras não permitem tais coisas.
Quanto mais próximo você está do final, tanto mais a dizer. O fim é
apenas imaginário, um destino que você inventa para se manter em
movimento, mas chega um momento em que você percebe que jamais
chegará lá. Você pode ter que parar, mas somente porque o tempo se
esgotou. Você para, mas isso não quer dizer que tenha chegado o fim.
60
No trecho acima, Anna afirma que a linguagem é insuficiente, de forma que, por mais
que o escritor se esforce por incluir cada detalhe de uma dada história, a linguagem
jamais permite uma visão de completude. Nota-se, como descrito por Lukács, a
confirmação de uma dissonância no nível metalinguístico.
A ideia de insuficiência da linguagem também espresente em outra imagem sugerida
em No país das últimas coisas, aquela do personagem Samuel Farr e seu projeto de
escrever um enorme livro de entrevistas. Um livro infindável, pois a história da cidade
era tão extensa que uma única pessoa não teria como contá-la sozinha. Por causa disso,
Samuel Farr se empenhava em continuar entrevistando as pessoas e escrevendo o que
elas tinham a dizer. O livro de Farr se inicia como um projeto inacabado e termina sob a
forma de páginas em chamas dentro da biblioteca incendiada.
O projeto do livro descrito acima pode ser interpretado como a metáfora da própria
linguagem literária e de sua insuficiência. Além disso, pode ser lido também como a
59
HAWTHORNE, 1964, p. 62.
60
―I’ve been trying to fit everything in, trying to get to the end before it’s too late, but I see now how
badly I’ve deceived myself. Words do not allow such things. The closer you come to the end the more
there is to say. The end is only imaginary, a destination you invent to keep yourself going, but a point
comes when you realize you will never get there. You might have to stop, but that is only because you
have run out of time. You stop, but that does not mean you have come to the end. (AUSTER, 1988a,
p.183)
46
metáfora do romance que é, inerentemente, inacabado. O começo e o fim de No país
das últimas coisas se encontram nas ideias da abstração e da incerteza. O próprio nome
da narradora é revelador neste sentido, pois é um palíndromo, apontando para si mesmo,
do início ao fim ou do fim ao começo: A-N-N-A.
Estas são as últimas coisas, ela escreveu. Uma a uma elas desaparecem e
não voltam mais. Posso contar a você sobre as coisas que já vi, sobre as
que não existem mais, mas duvido que haja tempo. Tudo está
acontecendo rápido demais agora, e eu não estou conseguindo
acompanhar.
61
Evidencia-se, também, o desejo da narradora de registrar o passado recente e o presente.
Verifica-se, entretanto, um descompasso no jogo estabelecido entre a experiência vivida
e a possibilidade de expressá-la através da escrita, que a escrita não acompanha, no
tempo e no espaço, o movimento e a velocidade dos acontecimentos. Além disso, ela é
apenas a visão particular do narrador. Mesmo tendo a consciência da insuficiência da
linguagem, Anna insiste em registrar suas experiências em palavras escritas. É como se
através das palavras ela pudesse evitar que tudo se perdesse.
Observa-se que a escrita pode também ser considerada em paralelo com a fome. Através
da ilusão de completude gerada pela linguagem, o escritor se torna obcecado pelas
palavras. A fome de escrever é percebida como uma necessidade, quase biológica, de
fazer com que as ideias tenham alguma materialidade. É como se a linguagem escrita
oferecesse uma espécie de ―salvação‖, que se dá, no entanto, depois de ser trabalhada
longa e exaustivamente: ―Ele disse que tinha acumulado mais de três mil páginas de
anotações. Se ele continuasse nesse ritmo de trabalho, ele achava que a parte preliminar
61
These are the last things, she wrote. One by one they disappear and never come back. I can tell you of
the ones I have seen, of the ones that are no more, but I doubt there will be time. It is all happening too
fast now, and I cannot keep up. (AUSTER, 1988a, p. 1)
47
de seu livro estaria terminada em mais uns cinco ou seis meses.‖
62
As palavras descritivas de Anna aos poucos guiam o leitor, que procura desvendar o
espaço das últimas coisas. Percebe-se que o mundo criado pela narrativa pode ser
identificado, de modo geral, com o próprio espaço da ficção literária. O tom de urgência
pode soar ao leitor como uma espécie de mensagem de alerta. Anna não escreve porque
está inventando histórias, mas quer informar e prevenir seu leitor.
No nível metalinguístico, a mensagem de alerta pode ser relacionada à natureza
escorregadia da linguagem, que diz uma coisa para significar outra. Além disso, a
busca por significação através de uma escrita trabalhosa, que requer tempo e reflexão
linguística. Como consequência, sugere-se que o leitor também precisa realizar algum
esforço interpretativo para compreender melhor o texto de Auster.
A partir de uma linguagem insuficiente e de ruínas históricas, o romancista constrói um
mundo em cacos, e não poderia ser diferente. Além disso, a ironia em Auster revela
conflitos e contradições ocultos no próprio fazer literário. Como será mostrado mais
adiante, uma interpretação alegórica da escrita em Auster pode apontá-la como uma
forma de utopia que, simultaneamente, aprisiona e liberta, tanto o escritor como o leitor.
Em No país das últimas coisas há referência a um leitor, o destinatário da carta.
Presume-se que ele tenha publicado a carta em formato de livro. Além da publicação,
ele redigiu alguns trechos que inseriu no texto, revelando uma liberdade interpretativa
através da interação com o que encontrou escrito. Tem-se, assim, uma história ficcional
62
He had accumulated over three thousand pages of notes, he said. If he kept working at his present
48
de alguém que escreve e de outro que lê de forma participativa. O trio formado acima (o
escritor, o ato de escrever e o leitor) descreve as principais relações que se estabelecem
no processo literário como um todo.
O tema do processo de escrita e leitura se repete como um padrão em grande parte das
narrativas de Auster. Em entrevista a Larry McCaffery e Sinda Gregory, Auster afirma
que todos os seus livros são, de fato, o ―mesmo livro‖, pois giram em torno do mesmo
conjunto de questões e dilemas humanos.
63
Com o intuito de destacar o processo
literário e a ilusão criada pela linguagem, analisa-se a seguir a novela de Auster
intitulada ―Espectros‖.
A trilogia de Nova York (1986) é uma coletânea de três novelas que proporcionou
reconhecimento a Auster como escritor. ―Espectros‖, a segunda narrativa, apresenta o
processo de escrita e leitura de forma bastante clara. O enredo é simples e se desenrola a
partir do contrato de investigação envolvendo os personagens principais: Blue, Black e
White. Blue, o detetive particular, é contratado por White para vigiar Black e enviar-lhe
relatórios periódicos sobre as atividades desse último. Sem maiores informações, Blue
aceita o caso, muda-se para um apartamento em frente ao de Black e corta o contato
com sua futura esposa.
A investigação tem duração de aproximadamente um ano. Durante a maior parte deste
período, Blue não consegue entender seu papel como detetive e não compreende o
porquê do caso, pois Black, o vigiado, é apenas um escritor que não faz muito além de
trabalhar em sua escrivaninha. Os relatórios escritos por Blue se tornam cada vez menos
pace, he felt he could finish the preliminary work on the book in another five or six months. (AUSTER,
1988a, p. 103)
49
atraentes, já que as atividades de Black se reduzem basicamente a sua dedicação à
escrita e à leitura, incluindo algumas breves saídas de seu apartamento para comprar
alimentos, entre outros produtos necessários para sua sobrevivência.
Após um tempo, Blue começa a desconfiar de que algo de estranho, e decide iniciar
uma investigação sobre a própria investigação. Assim, inclui mentiras em um de seus
relatórios e depois aguarda em segredo diante da caixa postal para a qual os relatórios
são endereçados, com o intuito de ver quem os recebe. Finalmente, disfarçado, ele
consegue articular alguns encontros e conversas com Black.
O caso se conclui quando Blue percebe que Black, o vigiado, e White, que o contratou,
são a mesma pessoa. Na verdade, então, era ele, Blue, o detetive secreto, quem estava
sendo observado. Blue, enraivecido, invade o apartamento de Black, esmurra-o,
abandona-o ensanguentado no chão, e recolhe o manuscrito no qual Black
continuamente trabalhava. Ao lê-lo, deixa transparecer que é exatamente a mesma
história que acaba de ser lida. Depois, Blue coloca seu chapéu e deixa o apartamento
alugado.
As histórias de detetive clássicas se baseiam em princípios fundamentais ao gênero: a
presença de um detetive, o processo da investigação e a conclusão do caso. Portanto,
giram em torno da busca de uma solução, que será certamente encontrada ao final. O
detetive clássico atua em um tempo linear e teleológico, em que se pressupõe uma
relação fixa e, portanto, previsível entre os elementos.
63
AUSTER, 1992. p.260.
50
Em oposição, o enredo de ―Espectros‖ se desenvolve a partir de interações
imprevisíveis entre os personagens e o espaço que os envolve. Seu protagonista, o
detetive contemponeo, interage com um mundo em que não relações fixas, mas
proliferações de sentidos e arbitrariedades. Além disso, ao longo do processo
investigativo, o sentido da busca é questionado e alterado, de modo que atingir a tão
esperada solução final se torna algo cada vez mais distante. A causalidade, então, cede
lugar à não-linearidade e à imprevisibilidade dos eventos.
Entretanto, a história parece ser menos arbitrária e ter mais sentido, quando lida pelo
ângulo da metalinguagem. A partir de um exercício de pensamento para passar o tempo,
o personagem Blue relaciona nomes, cores e objetos. A cor azul (Blue), por exemplo, é
ligada aos pássaros, ao oceano, ao meio-dia e à cor dos olhos. A cor branca (White)
pode ser encontrada nos lírios do vale, na bandeira da paz, no leite materno e na página
em branco. A cor preta (Black) pode ser observada na noite, nos buracos negros, em
seus cabelos e na tinta que sai da caneta. Nota-se, nos nomes dos personagens, um
paralelo com o processo literário. Black (a tinta que sai da caneta) seria o escritor, Blue
(os olhos) seria o leitor, e White (a página em branco) o pano de fundo. Observa-se um
trio semelhante àquele formado entre Anna, o ato da escrita e o leitor, em No país das
últimas coisas.
O enredo demonstra o mesmo processo: White (a página em branco) contrata Blue (o
leitor) para investigar Black (o escritor). Após o início da investigação, ou seja, a partir
do momento em que Black entra em cena, White desaparece completamente. Assim, as
palavras começam a preencher as páginas em branco e pouco a pouco o escritor escreve
um livro. Com isso, Black escreve um livro, que de fato é lido por Blue, e pelo próprio
51
leitor de ―Espectros‖.
Sugere-se que, através da metalinguagem, a alegoria de Auster indica a realidade do
escritor contemporâneo. Um indivíduo solitário, que interage pouco com as pessoas e
muito com os livros. Seu mundo é restrito a seu ambiente de trabalho, que é, também o
mesmo espaço em que dorme e se alimenta. Sua vida gira em torno de sua escrita, que
parece ser lenta e interminável se comparada ao ritmo caótico e veloz da
contemporaneidade.
A escrita absorve tanto o escritor como o leitor de forma tal que ambos parecem ser
levados por ela, como Black, aquele que escreve em sua escrivaninha, e Blue, aquele
que os pequenos porém constantes movimentos de Black. Os dois se encontram em
um mundo imaginário criado pela escrita. Blue, o leitor, se sente enganado por Black, o
escritor, matando-o.
Ao olhar pelas lentes de seu binóculo, Blue observa que o título do livro que Black está
lendo é Walden, de Henry David Thoreau, e, admitindo nunca ter ouvido falar do livro,
Blue anota o título cuidadosamente em seu caderno. Ora, Walden é a obra mais
conhecida de Henry Thoreau, um autor renomado da literatura norte-americana do
século XIX. Juntamente com Emerson e Hawthorne, Thoreau fez parte do grupo dos
transcendentalistas.
Certo dia, Black deixa seu apartamento e Blue o segue até uma livraria, na qual entra e,
coincidentemente, se depara com um exemplar de Walden. Curioso para compreender o
que absorvia Black de forma tão intensa, Blue compra um exemplar do livro. Após
52
alguns dias, aventura-se em sua leitura:
Ler o livro, porém, não é nada simples. Ao começar, sente-se um
prisioneiro em marcha forçada que entra num mundo estranho, precisa
escalar penhascos perigosos e atravessar pântanos, arbustos espinhosos e
barreiras. Seu único pensamento é sair dali.
64
No entanto, insiste na leitura até se deparar com a seguinte frase de Thoreau: ―Os livros
devem ser lidos tão cuidadosamente e reservadamente quanto foram escritos‖.
65
A partir
de então percebe que deve mudar seu trato com as palavras, lendo mais devagar e
refletindo mais sobre o que lê. Apesar de perceber que Thoreau não era tão estúpido
como havia pensado inicialmente, ainda considera a leitura de Walden uma forma de
tortura. É neste ponto que o narrador expõe a forte ligação entre o caso de Blue e a
leitura de Walden:
O que Blue não sabe é que ainda não encontrou a paciência para ler o
livro dentro do espírito necessário. E que, se a tivesse, sua vida
começaria a mudar. Pouco a pouco, chegaria ao pleno entendimento da
situação que está vivendo, isto é, daquilo que diz respeito a Black, a
White, ao caso e a si próprio.
66
Thoreau se propôs a viver uma vida simples, afastado da sociedade, nas proximidades
do lago Walden, com o objetivo de observar não a natureza que o rodeava, mas o
contraste entre sua vida de simplicidade e a vida em sociedade. Em seu diário, faz um
relato de seus dias e de seus pensamentos. Após dois anos de reclusão, tendo suas
anotações diárias como base, escreveu Walden.
A tese de pós-graduação de Markku Salmela traz maior abrangência à análise proposta
64
AUSTER, 1986. p.180.
65
AUSTER, 1986. p.180.
66
AUSTER, 1986. p.180 e 181.
53
aqui, pois faz a ligação entre ―Espectros‖ e Walden. No capítulo intitulado ―Economy
Thoreau explora a impressão de que as pessoas que viviam em Concord, a cidade mais
próxima da região onde ele havia construído sua pequena casa, levavam suas vidas
aprisionadas pelo trabalho e pelo sistema econômico que controlava tudo o que faziam.
Assim, acabavam tornando-se reféns daquilo que, na verdade, deveria ser uma
ferramenta no auxílio do crescimento individual. Estas pessoas levavam suas vidas de
desespero taciturno acreditando na ideologia do materialismo da necessidade.
67
Em ―Espectros‖, Blue é levado a deixar de lado todos os seus planos e pensamentos
pessoais em prol de seu trabalho, que o induz a uma situação de isolamento e o coloca
na posição de observador. Em um primeiro momento, Blue age exatamente como os
habitantes de Concord, como um robô. Entretanto, à medida que percebe a circunstância
de aprisionamento na qual se encontra, aliada à perturbação de seus questionamentos
sem respostas exatas, Blue passa a interagir com seus proponentes de modo inteligente,
até o ponto em que desmascara a farsa.
Um segundo ponto de convergência entre os dois textos em questão pode ser extraído
do capítulo de Walden intitulado ―Reading‖. Thoreau, de acordo com Salmela
68
,
relaciona o ato de ler com o ato de observar a natureza, já que ambos oferecem ao leitor
ou observador cuidadoso uma grande diversidade de material estimulante. Da mesma
forma, relaciona a escrita e a leitura como atividades criativas que necessitam de
dedicação e certo isolamento. Uma leitura fácil e superficial não é adequada para
Thoreau, que acredita que através do esforço intelectual se pode alcançar alguma
transformação pessoal.
67
SALMELA, 2001.
54
Na maior parte de ―Espectros‖, Blue pode ser considerado este leitor de textos fáceis e,
aparentemente, superficiais. Durante a narração de sua primeira tentativa de leitura de
Walden uma justificativa para sua posição: ―Blue nunca leu muita coisa além de
jornais e revistas e, eventualmente, quando menino, romances de aventura.‖
69
Portanto,
devido à falta de esforço intelectual, como diria Thoreau, Blue o exercitou suas
habilidades como leitor, permanecendo, assim, na mediocridade.
Através de suas renúncias e de suas dificuldades de compreensão e interpretação,
relacionadas não ao ato da leitura, mas também ao caso, Blue passa por um processo
de transformação no qual ele deixa de ser um sujeito passivo para se tornar um sujeito
ativo. Ao invadir o apartamento de Black, esmurrá-lo, deixá-lo ensanguentado no chão e
roubar-lhe seu manuscrito, Blue anuncia sua revolta contra aquele que pretende
controlá-lo, seja ele o autor do livro ou o sistema econômico. Apesar da atitude
determinada de Black, ele não tem como tirar Blue de cena, pois ambos fazem parte da
mesma história narrada. Eis a ambiguidade insolúvel do texto: todos os atos de Blue
estavam previstos no próprio livro escrito por Black.
Os laços intertextuais entre o texto de Auster e a obra de Thoreau não são essenciais
para a compreensão de ―Espectros‖, mas, como exposto acima, adicionam elementos
que enriquecem a novela. Remetem ao espaço da biblioteca, sugerido por Foucault,
onde livros de todos os tempos se encontram. Percebe-se a fecundidade deste espaço
quando se relacionam obras e pensamentos do presente e do passado. Além disso, nota-
se também a urgência da utilização da biblioteca por leitores cuidadosos, já que seu solo
68
SALMELA, 2001.
55
é fértil e dele podem germinar as mais diferenciadas escritas e leituras.
Em No país das últimas coisas a escrita, o labor que ela envolve e sua temporalidade
são mencionados de forma que o leitor possa visualizar, a partir do olhar daquele que a
escreveu, as diferentes instâncias da história que se conta. De forma semelhante a
―Espectros‖, percebe-se que o enredo e o ato da escrita ora se diferenciam, ora se
identificam.
Anna Blume, a narradora, aos poucos descreve sua situação em uma cidade decadente e
sem nome. Pelas características do local, pressupõe-se que seja a própria cidade da
destruição mencionada anteriormente. Anna escreve para que sua história inusitada não
seja ignorada, precisa que alguém a leia, pois somente assim ela e a experiência que
viveu terão alguma existência. Desse modo, através da escrita e, posteriormente, da
leitura, outras pessoas saberão algo sobre o que acontece em uma cidade que está
quase completamente isolada.
A alegoria e o trabalho
No país das últimas coisas é uma narrativa de histórias sucessivas que, como ciclos, se
abrem, descrevem um traçado, e chegam a um fechamento. Um mesmo fio narrativo
apresenta quatro histórias diferentes em termos de objetivos e relações pessoais. A
primeira envolve a relação de mãe e filha entre Isabel e Anna, atingindo seu fim com a
morte de Isabel. A segunda se inicia a partir do momento em que Anna conhece Samuel
Farr, o jornalista/escritor, e os dois se tornam um casal. Contudo, eles se perdem um do
69
AUSTER, 1986. p.180.
56
outro, e mais um ciclo se fecha. Anna é acudida por Victoria e aos poucos elas se
tornam não só grandes companheiras, mas também amantes. Este ciclo se fecha quando
Samuel Farr reaparece.
Finalmente, Anna e Samuel retomam o relacionamento. Neste novo ciclo, os dois não
estão solitários como antes, mas são integrantes de um pequeno grupo de sobreviventes.
Ironicamente, apesar de todos os que de fato estão vivos serem sobreviventes, os reais
sobreviventes são somente aqueles cuja consciência de estar em guerra, associada à
completa desesperança, leva à única conclusão lógica: a fuga da cidade. Por este
motivo, no final da narrativa, Anna, Samuel, Victoria e Boris, ao considerar o caminho
que lhes trará o melhor resultado, organizam-se para fugir. Este ciclo, entretanto, não se
fecha. Assim, o próprio leitor pode, ou não, imaginar o final que gostaria para a história.
Qualquer coisa é possível, e isso é quase igual a nada, quase igual a
nascer em um mundo que nunca existiu antes. Talvez encontremos o
William depois que sairmos da cidade, mas não tenho muita esperança.
A única coisa que peço agora é a chance de viver mais um dia. Sou Anna
Blume, sua velha amiga de um outro mundo. Quando chegarmos ao
lugar para onde estamos indo, escreverei para vo novamente,
prometo.
70
O final da narrativa está em aberto, mas uma pequena esperança de que, além de
viver mais um dia, eles chegarão a outro lugar. Há, também, a promessa de que a
narradora/escritora, em algum momento futuro, irá escrever novamente. A narrativa se
inicia de modo semelhante, como um texto aberto, sem um começo preciso em termos
temporais e espaciais. O ciclo se fecha de forma semelhante, com a incerteza e a
70
Anything is possible, and that is almost the same as nothing, almost the same as being born into a
world that has never existed before. Perhaps we will find William after we leave the city, but I try not to
hope too much. The only thing I ask for now is the chance to live one more day. This is Anna Blume,
your old friend from another world. Once we get to where we are going, I will try to write to you again, I
promise. (AUSTER, 1988a, p. 188)
57
imprecisão. O mundo em que Anna viveu deixou fortes marcas, mas não passou de um
momento que se foi. Não se sabe o que virá, mas a promessa da continuidade da escrita
permanece.
Anna escolhe trabalhar como uma caçadora de objetos
71
, o que significa que ela passa o
dia caminhando pelas ruas, empurrando um carrinho de compras que é, por medida de
segurança, amarrado a ela com uma corrente chamada de cordão umbilical
72
. Anna
percorre o asfalto em busca de objetos abandonados que possam ser reutilizados ou
reciclados. Estes objetos são, posteriormente, vendidos aos Agentes de Ressurreição
73
.
A imagem de uma cidade com ruas cheias de lixo, que é catado e reutilizado, sugere
questões de cunho social. Como as pessoas daquela cidade convivem com uma
excessiva e talvez desnecessária produção de lixo? Como pode algo que é rejeitado por
uma pessoa ser útil e agregar valor a outras pessoas? Qual a relação entre a cidade de
Anna e o mundo contemporâneo? Naquela cidade não se constatam explicitamente a
produção e o consumo de bens. Há apenas o lixo pelas ruas.
Entretanto, a própria imagem de Anna empurrando um carrinho de compras remete
imediatamente à sociedade de consumo. Além disso, o mercado de oferta e demanda na
cidade das últimas coisas se baseia no capital e na propaganda, como é o caso das
empresas especializadas no extermínio de indivíduos. Devido ao estado de debilidade
no qual se encontram os moradores, a chegada da morte é iminente no cotidiano da
cidade. Há, também, um grande movimento em prol da morte, como se ela fosse um
71
―object hunter.‖(AUSTER, 1988a, p. 32 e 33).
72
umbilical cord (AUSTER, 1988a, p. 33).
73
Resurrection Agents (AUSTER, 1988a, p. 33).
58
bem de consumo, ou uma espécie de religião com ritual público.
A morte se torna um dos mais íntimos desejos destas pessoas, e por isso surgem
empresas que oferecem serviços como a extermínio fácil e sem dor proporcionado pelas
Clínicas de Eutanásia
74
. O cliente pode escolher entre Viagem de Retorno, Jornada das
Maravilhas e Cruzeiro do Prazer
75
. Cada uma tem um preço e uma proposta diferente.
Há, também, os Clubes do Assassinato
76
, que cobram uma taxa de inscrição e, a partir
de então, o participante está sujeito a ser morto por um assassino designado, de forma
rápida e violenta.
Sugere-se que Anna se encontra em um espaço que parece um futuro distante, mas que,
de fato, faz referência a questões ligadas ao presente imediato. Weinstein afirma que
certas figuras alegóricas demonstram um novo conceito de realismo, segundo o qual o
qual aquilo que parece ser algo remoto está perigosamente próximo daquilo que, de
fato, é vivido. Seria uma espécie de provável futuro próximo para o mundo atual. Neste,
pessoas que circulam com carrinhos à procura de lixo reciclável, da mesma forma
que também havia em 1987, época em que Auster publicou o romance. Assim, a ficção
e a realidade se misturam em um mundo alegórico de excessos, um pouco semelhante à
estética do período barroco. A cidade de Auster lembra uma escultura barroca com suas
inúmeras caveiras que escancaram a iminência do fim da matéria.
Muitos dos temas recorrentes na obra de Auster são associados à crítica social. O
carrinho de compras de Anna coloca em xeque o sistema capitalista da produção e do
74
Euthanasia Clinics (AUSTER, 1988a, p. 14).
75
Return Voyage, Journey of Marvel, Pleasure Cruise.‖ (AUSTER, 1988a, p. 14).
76
―Assassination Clubs‖ (AUSTER, 1988a, p. 14).
59
consumo exaustivos. O excesso de lixo e a necessidade de reciclagem na sociedade
contemporânea são questões de ordem mundial, que trazem à tona a desigualdade social
e uma grande ameaça ao meio ambiente.
As discrepâncias sociais se associam à dissonância metafísica, pois levam o indivíduo
ao questionamento de ordem existencial. A dissonância metafísica está presente também
na imagem dos defuntos, que ficam jogados pelas ruas da cidade das últimas coisas. Tal
imagem denota o vazio existencial, a falta de sentido. Como explicita Lukács, a
dissonância não precede o romance, mas é sua própria forma, sendo visível em cada
detalhe.
Esse vazio existencial surge através da ironia presente em metáforas continuadas, ou
imagens alegóricas, que permeiam todo o romance de Auster. Pode-se relacionar a
noção moderna de ironia com o sentimento de melancolia sugerido por Benjamin.
77
Segundo os estudos desse autor, tal sentimento se tornou explícito com a Reforma e a
crença na graça, que tirou do homem a possibilidade de se justificar diante de Deus
através das obras. Benjamin também descreve o alegorista como um melancólico, ao se
debruçar perante os cacos da história, procurando dar algum sentido àquele quebra-
cabeça. Observa-se que, de forma semelhante, o alegorista contemporâneo deixa
transparecer, através de seu tom irônico, o sentimento de melancolia.
A ideia de uma busca por preenchimento se manifesta na presença constante da fome.
Segundo Anna, a fome é o que a faz seguir em frente, seria uma espécie de motor que a
impulsiona a dar o próximo passo. Observa-se que cada indivíduo lida com a fome de
77
BENJAMIN, 1984, p. 161 a 181 e p. 207.
60
modo diferente: alguns vivem obcecados por comida, comendo tudo o que encontram
pela frente, até mesmo se arriscando por uma migalha qualquer. Existem, também,
aqueles que comem cada vez menos, procurando, com este ato, uma auto-suficiência
insustentável, pois morrem de inanição. Anna está entre as pessoas que comem somente
o suficiente, com o intuito de se acostumar com pouco, para que assim o desejo possa
ser satisfeito mais facilmente.
78
É assim que eu vivo, continuava sua carta. Eu não como muito. Apenas o
suficiente para me manter passo a passo, e nada mais. Em alguns
momentos, minha fraqueza é tão grande que sinto que o próximo passo
jamais virá. Apesar dos lapsos, consigo me manter em movimento.
79
A fome perpassa a narrativa como uma dificuldade diária dos personagens, este é o
sentido literal da fome. A sensação de fome aponta para um vazio no interior de
estômagos carentes de alimento. De forma semelhante, as pessoas, em sua subjetividade
individual, seguem famintas de sentido. Elas procuram alguma forma de completar a
distância que as separa do mundo objetivo, este seria o sentido figurado da fome.
Como não há restaurantes na cidade e os recursos são escassos, algumas pessoas optam,
ainda, por satisfazer sua fome através das palavras. O processo de degustação é
semelhante ao da narrativa oral exposto por Benjamin, que pressupõe um narrador e
ouvintes. Neste caso, a narração é feita por um dos participantes do grupo de cada vez,
como em uma conversa. Aos poucos eles descrevem detalhadamente a aparência e o
gosto de cada prato degustado, começando pela entrada até, finalmente, a sobremesa.
Como eles criam uma situação puramente imaginária, devem seguir um protocolo
78
AUSTER, 1988a, p. 2.
79
―This is how I live, her letter continued. I don’t eat much. Just enough to keep me going from step to
step, and no more. At times my weakness is so great, I feel the next step will never come. But I manage.
In spite of the lapses, I keep myself going. (AUSTER, 1988a, p. 2).
61
rigoroso para que ela seja vivenciada de forma correspondente. Os participantes não
podem gritar ou suspirar repentinamente e não é permitido rir ou chorar, pois tais
atitudes os reconduziriam imediatamente para a fome que de fato sentem naquele
momento.
Para obter resultados melhores, você deve permitir que sua mente pule
nas palavras que saem da boca dos outros. Se essas palavras puderem
consumi-lo, você será capaz de esquecer sua fome atual e entrar naquilo
que as pessoas chamam de ―arena do nimbo reconfortante.‖
80
Anna se refere a estas pessoas como fantasmas, que, através da língua dos fantasmas,
entram na arena do nimbo reconfortante. As pessoas fantasmas iniciam, assim, um
processo de desaparecimento, no qual elas tendem a vagar com um sorriso esquisito no
rosto e um olhar que não parece delas. É uma espécie de morte por inanição, que é
adiada pelo sugestivo mundo das palavras, levando a pessoa a um alto grau de torpor
mental e físico. No nível metalinguístico, a língua dos fantasmas se refere à linguagem
ficcional, que transporta o leitor para um mundo imaginário. As pessoas fantasmas
corresponderiam aos leitores, que são seduzidos a acreditar no que as palavras dizem. A
narração tem um tempo longo de duração, e os detalhes são minuciosos. Através deles,
os leitores vivenciam a experiência de um outro, em um tempo e espaço diferentes do
seu.
Em No país das últimas coisas o mercado se baseia no engano e nos desejos, o governo
é autoritário e tendencioso, privilegiando apenas alguns. A cidade se auto-consome, mas
também se auto-renova, através da combustão de corpos e matéria orgânica, com a
consequente geração de energia. Alguns dos habitantes da cidade trabalham no mercado
80
For best results, you must allow your mind to leap into the words coming from the mouths of others.
If the words can consume you, you will be able to forget your present hunger and enter what people call
the arena of the sustaining nimbus. (AUSTER, 1988a, p. 9 e 10).
62
de compra, venda e troca, outros trabalham para os órgãos governamentais, alguns
roubam, outros enganam. A maior parte das pessoas da cidade é individualista, e
preocupada somente com as próprias mazelas. Anna está entre aqueles que vivem
honestamente, ela sobrevive do dinheiro gerado pelo seu trabalho como caçadora de
objetos. O individualismo de Anna não é tão forte que a impeça de perceber e ajudar o
outro.
A imagem de Anna catando objetos descartados, quebrados, amassados e sujos, se
assemelha à imagem do trabalho do alegorista. Segundo Benjamin, o alegorista se
debruça diante das ruínas da história, procurando transformá-las e dar-lhes novo
sentido.
81
Anna percorre as ruas da cidade à caça de objetos que possam ser utilizados
de uma nova forma e com um novo significado. Assim, percebe-se que Anna pode ser
lida como metáfora do escritor-alegorista. A narrativa de Auster parece sugerir que o
escritor está na classe dos trabalhadores, do proletariado, pois a escrita é um trabalho
duro que requer tempo e dedicação. Entretanto, seu retorno nem sempre é financeiro.
Assim, o escritor se apresenta como aquele que trabalha continuamente, pois, em seu
quadro de horários, não há muita diferença entre o tempo livre e o tempo de trabalho.
A escrita em Auster depende de uma vontade interna de materializar o não-dito. É essa
vontade que o leva a escrever, em contraposição à possibilidade de algum retorno
financeiro, ou à garantia de que haverá leitores para seu texto. O personagem Samuel
Farr é um bom exemplo, pois ele gasta o pouco dinheiro que tem em prol de sua escrita.
Ele afirma ter deixado até mesmo de comprar alimento, com o intuito de investir em seu
livro e poder escrever mais algumas páginas. A história de Anna como escritora
81
BENJAMIN, 1984, p. 199 a 204.
63
também é reveladora neste sentido, já ela escreve mesmo sem saber se a carta irá chegar
ao seu destinatário.
O desejo que leva Anna e Samuel a escrever pode ser associado à sensação de
premência da escrita. Os personagens escritores precisam divulgar aquilo que acontece
na cidade sem nome. Através da escrita, eles podem informar e alertar seus leitores
sobre a realidade infernal daquela cidade.
Em O peregrino, a cidade da destruição corresponderia à cidade sem nome de Auster. A
cidade da qual o peregrino foge está associada à secularidade, ela seria um espaço em
que as pessoas não têm conhecimento de Deus. Em No país das últimas coisas, a cidade
não teria nenhuma conotação religiosa, se não tivesse sido contraposta à cidade de
Bunyan logo na epígrafe. Além disso, a ideia de um local infernal pode ser inferida em
vários trechos da narrativa. Pode-se afirmar, assim, que a carta de Anna, de forma
semelhante à alegoria de Bunyan, procura desmascarar uma realidade da qual poucos de
fato têm conhecimento preciso.
A premência da escrita pode ser associada à metáfora da fome. No sentido figurado essa
necessidade de expressão vincula-se à fome de significado. É como se, através da
escrita, o escritor pudesse alcançar a sensação de saciedade e completude. Entretanto, o
romance de Auster nos mostra que essa sensação é puramente imaginária e ilusória.
Além disso, como discutido anteriormente, a ilusão criada pela linguagem gera uma
espécie de apego naquele que escreve ou lê. Relembrando as três formas de lidar com a
fome, descritas por Anna: a obsessão, a abstinência, ou comer apenas o suficiente.
64
Através delas, pode-se dizer que o leitor ou o escritor faminto por palavras também
passa por experiências semelhantes. a tendência, como é o caso de Samuel Farr, de
transformar o apego a esta ilusão gerada pela linguagem em uma espécie de vício, algo
obsessivo e exaustivo em si mesmo. Samuel passa a viver para a redação de seu livro,
como um prisioneiro de sua própria escolha. Anna, por sua vez, procura usar as palavras
seguindo o caminho do meramente suficiente. Anna sabe da ilusão gerada pela
linguagem e não permite ser avassalada por ela.
A história segue o ritmo da escassez, do imprevisível e do inesperado. A cidade tem
regras próprias que tendem a causar surpresa em quem está acostumado com os
―esplendores burgueses‖.
82
falta de abrigo e de alimento, a economia é voltada para
a reciclagem de objetos descartados, pessoas vagam pelas ruas. A cidade de Anna é
assombrosa, sofrimento, medo, angústia, pessoas se atacam e roubam. Na cidade das
últimas coisas algumas palavras são até mesmo esquecidas. Entretanto, um tipo de
saciedade que pode ser vivida, em um nível ilusório de histórias inventadas. Neste
ponto, identifica-se uma experiência da linguagem como espaço de possíveis,
momentâneas utopias.
82
Texto original: bourgeois splendors. (AUSTER, 1988a, p. 135.)
65
3. Utopia e distopia
66
Literatura e utopia
Para analisar as obras de Auster, Hawthorne e Bunyan, pretende-se fazer um
levantamento das relações que surgem entre a história e a literatura através da noção de
utopia. Optou-se, principalmente, pelas ideias do sociólogo, escritor e professor norte-
americano, Lewis Mumford (1985-1990). Isso se justifica porque seu pensamento
abrange a utopia a partir dos dois pontos de vista que interessam a este estudo: o
histórico e o literário.
Em 1961, Lewis Mumford ganhou o National Book Award com seu livro A cidade na
história. Quase quarenta anos antes, em 1922, ele havia escrito The story of utopias, que
trazia parte dos frutos que efetivamente amadureceram em seu trabalho posterior.
Durante sua vida, Mumford ficou conhecido por seus trabalhos que analisam os efeitos
da tecnologia e da urbanização sobre os grupos humanos ao longo da história.
Em 1939, Mumford participou da produção do filme-documentário intitulado The city,
que tem como pano de fundo alguns momentos históricos dos Estados Unidos. O
documentário questiona o crescimento caótico dos grandes centros urbanos e a
utilização da mão-de-obra barata e mecanizada. Surgem as grandes indústrias, e com
elas a poluição tóxica da queima de substâncias. O documentário revela a segregação
social quando focaliza as imagens daqueles trabalhadores que moram em suas pequenas
casas, feitas de tábua e madeira, perto das fábricas, dos aterros de lixo, ou dos trilhos de
trem.
É a partir da visibilidade das consequências negativas do capitalismo emergente que
surge, no século XIX, a literatura anti-utópica ou distópica. A análise de Mumford
67
engloba um longo período histórico que vai das utopias gregas às utopias do século
XIX. Nesta tese serão enfatizadas as utopias relativas às épocas em que se deu a escrita
de cada uma das obras em análise. Assim a noção de distopia também será abordada,
que pode ser identificada principalmente no final do século XIX e a partir do século
XX. Optou-se pelo conceito de distopia sugerido pelo professor da Universidade de
Arkansas, Keith Booker, que tem dois livros publicados sobre literatura distópica.
83
Apesar da importância das colônias da Nova Inglaterra e da utopia puritana para a
história dos Estados Unidos, Mumford não faz menção a elas em seu livro A história
das utopias, o qual é a fonte principal deste capítulo. Pretende-se, portanto,
complementar as ideias de Mumford, inicialmente com um breve preâmbulo sobre a
história destas colônias e, posteriormente, através da identificação das utopias e
distopias presentes na análise comparativa das obras de Auster, Hawthorne e Bunyan.
Como analisado anteriormente, ―A estrada de ferro celestial‖, através da ironia,
reescreve a alegoria cristã de Bunyan a partir do ponto de vista proporcionado pela
modernidade. A paródia faz emergir, como em um palimpsesto, imagens e preceitos
históricos que, apesar de terem sido, de certa forma, apagados, deixaram rastros.
Assim, especialmente no caso de Hawthorne, pode-se dizer que o conto por ele escrito,
através da referência a O peregrino, traz à tona a antiga colônia da Nova Inglaterra e as
grandes utopias ali vivenciadas.
A nação norte-americana foi altamente influenciada pelos antecessores puritanos de
Hawthorne, que trouxeram para a América a Bíblia, como um texto de leitura acessível
83
Os dois estudos publicados são: Dystopian literature: a theory and research guide e The dystopian
impulse in modern literature: fiction as social criticism.
68
a todos, bem como a ideia da existência de um Deus soberano, pom misericordioso.
Além disso, esses antecessores foram extremamente bem sucedidos em termos da
colonização da nova terra, tanto devido ao grande número de peregrinos levados pelos
navios da Inglaterra como pela forma segundo a qual se organizaram posteriormente
como comunidade.
John Winthrop foi eleito o governador da Massachusetts Bay Company, um grupo de
ingleses que, inicialmente, se uniram com o intuito de purificar a Igreja da Inglaterra,
mas depois preferiram construir uma nova forma de vida religiosa em comunidade no
Novo Mundo. O famoso sermão pregado por John Winthrop a bordo do Arbella é
intitulado A modell of cristian charity e expõe suas expectativas com relação à nova
colônia. Um ponto que merece atenção é a natureza comunal daquele empreendimento
que visava, segundo a vontade de Deus, que todos trabalhassem juntos,
independentemente de serem ricos ou pobres, poderosos ou submetidos ao poder.
Winthrop afirma que as diferenças sociais não implicavam em um menor ou maior valor
pessoal, que Deus havia planejado o mundo de forma que ―cada homem poderia ter
necessidade do outro, e a partir daí eles poderiam estar todos entrelaçados mais
proximamente pelo liame da afeição fraterna‖.
84
Destaca-se, também, a frase mais
conhecida desse sermão: ―seremos como uma cidade sobre a colina, os olhos de toda a
gente estão sobre nós,‖ que termina afirmando que, se os puritanos falhassem em levar
adiante essa missão divina especial, o Senhor certamente explodiria em ira contra eles.
85
A estruturação da comunidade puritana na Nova Inglaterra se deu de forma mais fluida
84
Every man might have need of other, and from hence they might be all knit more nearly together in
the bond of brotherly affection‖ (WINTHROP apud NORTON, 1986, p. 30).
85
―We shall be as a city upon a hill, the eyes of all people are upon us‖; ―the Lord will surely break out in
wrath against us‖ (WINTHROP apud NORTON, 1986, p. 30).
69
e organizada do que em algumas das outras colônias do Novo Mundo. Mesmo assim, a
proposta religiosa levada pelos puritanos o foi plenamente atingida, tendo
permanecido como ideal durante um longo período. Observa-se a ênfase dada tanto à
questão da escolha divina do fiel a ser salvo consequentemente trazendo à tona a
incerteza da salvação, que parece ter feito com que muitos sofressem como à distorção
da doutrina calvinista, envolvendo uma valorização maior das boas obras, em
detrimento da fé na salvação pela graça.
Anne Hutchinson é apontada como uma das figuras que procurou renovar este
ensinamento na nova colônia. Entretanto, ela foi considerada herege, ao propor que o
homem convertido teria direto acesso a Deus, através da graça, podendo assim ter
certeza de sua condição diante Dele. Além disso, ela foi criticada por se expressar
abertamente, não se submetendo, assim, aos homens, que teriam precedência diante de
Deus e da comunidade.
86
Tais dificuldades encontradas pelos peregrinos no Novo Mundo, aliadas à
mencionada rigidez no pensamento e nas atitudes, que levavam a julgar e condenar
severamente todo aquele que contrariasse as crenças e normas em vigor, aos poucos
trouxeram uma mudança de foco que afetou fortemente os objetivos religiosos daquela
comunidade. A religião, então, passou a ser uma mera formalidade, perdendo seu
caráter inicial de transformação profunda em um nível pessoal e espiritual. Observa-se,
também, que os puritanos da Nova Inglaterra se tornaram grandes empreendedores e
comerciantes, tendo sido criticados por estarem se desviando dos objetivos espirituais
da colônia.
86
NORTON, 1986, p. 29 e 35.
70
Em um grande país como os Estados Unidos da América, no qual a história precisa
abranger todos os cantos de norte a sul, e de leste a oeste, bem como as diferenças
raciais entre brancos, negros e índios, nota-se a grande participação e influência
exercida pelos puritanos. A colônia da Nova Inglaterra trouxe uma ordem social
consistente e, também, abriu as portas para o mundo do comércio e para a ideia de que o
homem pode crescer através do trabalho duro. Esta imagem se consolidou com
Benjamin Franklin, nascido em 1706, na cidade de Boston, que se tornou a
concretização do self-made man.
O americano de Franklin era um indivíduo livre para fazer escolhas sobre
seu futuro, capaz de contemplar uma variedade de carreiras possíveis. O
americano de John Winthrop, delineado em seu Modelo de Caridade
Cristã, tinha sido um componente de um todo maior que exigia sua
submissão sem hesitação e sem questionamento.
87
Apesar de ter como fundamento muitos dos elementos suscitados pelo Iluminismo,
Franklin também prontamente se compromete a se submeter aos preceitos do homem
americano, descritos por John Winthrop em seu sermão. Eis um pensamento utópico
derivado das colônias puritanas que teve muita influência na formação da nação norte-
americana. Percebe-se assim a importância que um ideal utópico pode ter para uma
nação. A seguir, destacam-se algumas questões relacionadas à história da utopia, que
servem de base para a análise posterior.
O termo utopia foi cunhado por Thomas More no culo XVI, em seu romance de
mesmo nome, no qual ele descreve um lugar ideal para se viver em comunidade, tendo
87
Franklin’s American was an individual, free to make choices about his future, able to contemplate a
variety of possible careers. John Winthrop’s American, outlined in his ―Modell of Cristian Charity‖, had
been a component of a greater whole that required his unhesitating, unquestioning submission‖
71
como base críticas relacionadas à estrutura política, econômica e social de sua própria
época. O significado mais comum atribuído ao termo seria o de um não-lugar, ou um
lugar impossível. Percebe-se porém que, no livro de More, este não-lugar se torna
possível ao menos como espaço literário, por ser algo imaginado, que adquire alguma
forma de materialidade através da linguagem escrita.
A palavra utopia é um neologismo do grego, sendo formada por derivação: o nome
topos é anteposto pelo prefixo de negação u, e posposto pelo sufixo nominal ia. Em
inglês, o termo utopia é homófono do termo eutopia, que significa um lugar bom, feliz e
perfeito. As duas palavras não são sinônimas, mas, de alguma forma, uma contém a
outra, que ambas podem ser caracterizadas por referência a um lugar imaginário e
melhor, quando comparado ao mundo histórico.
Mumford, ao analisar a história da humanidade, afirma que a noção de utopia não é
apenas um sonho irrealizável ou uma espécie de quimera. Segundo Mumford, o homem
é impulsionado inconscientemente na direção da utopia, porque ele vive
simultaneamente em dois mundos diferentes: no físico e no subjetivo. O primeiro é
definido e inescapável. O segundo é espiritual, incluindo todas as filosofias e fantasias
através das quais as pessoas regulam suas condutas. Usando uma terminologia bastante
pessoal, Mumford chama esse mundo subjetivo de nosso idolum ou mundo das ideias.
88
Com base nisso, ele sugere que, à medida que o homem age de forma a interferir em seu
meio ambiente, ele está, de fato, vivendo no âmbito da utopia. Nas palavras de
Mumford, ―são as nossas utopias que tornam o mundo tolerável para s: as cidades e
(NORTON, 1986, p. 91).
88
MUMFORD, 2008, p. 21.
72
mansões com as quais as pessoas sonham são aquelas em que elas finalmente vivem.‖
89
A consciência de que a utopia é apenas um impulso interno vem à tona quando a ruptura
entre o mundo das coisas e o mundo das ideias imaginadas é efetivamente percebida.
Nestes momentos, a utopia tende a se separar da vida cotidiana.
A partir da leitura de Mumford, pode-se dizer que a intervenção humana no mundo
físico se devido a um impulso utópico. E se é verdade que ―o homem caminha com
seus pés sobre o chão e sua cabeça no ar‖,
90
Mumford considera que a história da
humanidade é incompleta sem a inclusão da história das utopias.
Mumford enfatiza dois tipos de utopia: a utopia de fuga e a utopia de reconstrução. A
primeira serve apenas como forma de compensação para as dificuldades encontradas no
mundo externo, já que tende a deixar as coisas como estão. A segunda reflete uma busca
por melhorias e mudanças e, desse modo, acaba interferindo no mundo físico e nos
problemas ali vivenciados.
Em um construímos castelos impossíveis no ar; no outro, consultamos
um agrimensor, um arquiteto e um pedreiro, e construimos uma casa que
satisfaça às nossas necessidades essenciais; do modo pelo qual casas
feitas de pedra e argamassa são capazes de satisfazê-las.
91
The story of utopias delineia o percurso que se relaciona ao idolum da humanidade
através da literatura e do contexto histórico de cada época. Mumford começa pelos
gregos e pela República de Platão, discutindo depois A Utopia de Thomas More e assim
89
―[I]t is our utopias that make the world tolerable to us: the cities and mansions that people dream of are
those in which they finally live‖ (MUMFORD, 2008, p. 19).
90
[M]an walks with his feet on the ground and his head in the air‖ (MUMFORD, 2008, p. 20 e 21).
91
In one we build impossible castles in the air; in the other we consult a surveyor and an architect and a
mason and proceed to build a house which meets our essential needs; as well as houses made of stone and
mortar are capable of meeting them‖ (MUMFORD, 2008, p. 22).
73
por diante, destacando as contribuições de Bacon e Campanella, até chegar ao século
XX.
Com relação à produção de textos que dão ênfase a questões utópicas, o período de
aproximadamente dois mil anos que separa Platão e More é identificado como uma
fissura. Isto se deve, de acordo com Mumford, ao fato de o homem medieval ter voltado
sua atenção para uma utopia de escape a doutrina cristã, que remete a um mundo bom
e perfeito, mas acessível aos homens somente após a morte.
A utopia dos anos mil e quinhentos depois de Cristo é transplantada para
o céu e chamada de Reino dos Céus. Ela é nitidamente uma utopia de
escape. O mundo tal como os homens o encontram está cheio de pecado
e perturbação. Nada pode ser feito a respeito, exceto arrepender-se do
pecado e encontrar refúgio da perturbação na vida depois da morte.
92
Posteriormente, entre os séculos XVII e XIX, mais uma fissura na tradição utópica.
Mumford explica que este período é marcado por livros como Robinson Crusoé, que
não apontam para nenhuma visão de mundo melhor em qualquer sentido, mas
simplesmente para os ideais de um homem solitário e refinado, em termos de seus
conhecimentos culturais. Rousseau e Chateaubriand são dois nomes citados como
autores que apresentam ideias que se relacionam mais diretamente com o homem em si
do que com um pensamento social utópico.
Em Robinson Crusoé, apesar de não haver alusão clara a questões sociais, é possível
identificar um pensamento utópico. O protagonista é um homem solitário, mas que se
organiza de forma exemplar em termos de sobrevivência, até mesmo manufaturando
92
The utopia of the fifteen hundred years after Christ is transplanted to the sky, and called the Kingdom
of Heaven. It is distinctly a utopia of escape. The world as men find it is full of sin and trouble. Nothing
can be done about it except to repent of sin and find refuge from the trouble in the life after the grave‖
74
objetos para seu próprio uso. Sugere-se que Robinson faça referência ao homem
civilizado, que constrói barcos capazes de atravessar oceanos. Desse ponto de vista, o
homem civilizado se torna um conquistador. Essa ideia é bastante clara quando
Robinson conhece Sexta-feira, o homem selvagem, o qual passa a ser seu subordinado.
Nota-se a menção ao ideal utópico do homem civilizado e conquistador.
O século XIX, nos estudos de Mumford, é riquíssimo em termos de literatura utópica,
pois a humanidade se encontra em um mundo que se refaz. No decorrer deste período,
destaca-se a transferência do foco do trabalho manual para o trabalho mecanizado, e dos
relacionamentos pessoais aos relacionamentos impessoais. Segundo Mumford, a maior
parte das utopias do século XIX está mais interessada em adicionar novas invenções ao
mundo do que em realizar o sonho de um mundo renovado.
Essas utopias se tornam vastos sistemas reticulados de aço e
formalidades burocráticas, até sentirmos que fomos apanhados pelo
Pesadelo da Era do Maquinário; e que nunca escaparemos. Se essa
caracterização parece injusta, peço ao leitor que compare as utopias antes
de Bacon com as utopias depois de Fourier e perceba quão pouca
importância humana permanece na utopia pós-século-dezoito, quando o
maquinário para manter a boa vida foi destruído. Essas utopias são todas
maquinários: o meio se tornou fim e o problema autêntico dos fins foi
esquecido.
93
Mumford destaca, então, os dois tipos de idola que se tornam as utopias da Era
Moderna: Casa de campo (Country house) e Cidade carvão (Coketown). A primeira se
baseia em Gargantua, de François Rabelais, e se caracteriza pela ideia do prazer e da
(Mumford, 2008, p. 51).
93
These utopias become vast reticulations of steel and redtape, until we feel that we are caught in the
Nightmare of the Age of Machinery; and shall never escape. If this characterization seems unjust, I beg
the reader to compare the utopias before Bacon with the utopias after Fourier, and find out how little
human significance remains in the post-eighteenth century utopia when the machinery for supporting the
good life is blotted out. These utopias are all machinery: the means has become the end, and the genuine
problem of ends has been forgotten‖ (MUMFORD, 2008, p. 107).
75
passividade. Apenas o grande proprietário pode, de fato, nutrir tal idolum, que
necessita de muitos para fazer o trabalho que ele mesmo se recusa a fazer. Sua casa é
grande, espaçosa, normalmente em um local sereno e natural, às margens da cidade. O
proprietário teria uma grande coleção de obras de arte, as quais ele aprecia e exibe.
Neste mundo criado, o bem estar da comunidade é descartado em prol da felicidade de
poucos. Reinam ali a insaciabilidade e uma existência marcada pela completa falta de
funcionalidade. Além disso, acredita-se que a felicidade possa ser adquirida através das
posses, dos bens, do luxo e do conforto.
Mais do que nunca a Casa de Campo hoje tenta produzir uma abundância
de bens físicos para tudo o que se perdeu através de seu divórcio da
comunidade subjacente; mais do que nunca ela tenta ser auto-suficiente
no interior dos limites do subúrbio. O automóvel, o fonógrafo e o
radiotelefone apenas serviram para aumentar essa auto-suficiência; e não
é preciso mostrar extensamente como essas instrumentalidades
aprofundaram os elementos da aquisição e da fruição passiva, não
criativa, mecânica.
94
A Cidade Carvão é a segunda utopia, que surge a partir da leitura que Mumford faz do
livro Hard times, de Charles Dickens. No centro da cidade funciona uma fábrica, que
tem como único objetivo produzir bens que possam ser vendidos. A vida social das
pessoas acaba se resumindo ao espaço da fábrica, devido à dura rotina de trabalho e,
consequentemente, às longas horas que permanecem ali. Todos os outros prédios da
cidade se assemelham fisicamente à fábrica. A cidade é planejada por um engenheiro,
que desenha ruas em formato quadriculado, para que os meios de transporte possam
94
More than ever the Country House today tries to make up by an abundance of physical goods for all
that has been lost through its divorce from the underlying community; more than ever it attempts to be
self-sufficient within the limits of suburbia. The automobile, the phonograph, and the radiotelephone have
only served to increase this self-sufficiency; and I need not show at length how these instrumentalities
have deepened the elements of acquisitiveness and passive, uncreative, mechanical enjoyment‖
(MUMFORD, 2008, p. 147).
76
segui-las e chegar a algum lugar. Se for preciso, as montanhas são terraplenadas, os
lagos, esvaziados, e os pântanos, preenchidos.
A população da cidade cresce continuamente, pois as pessoas se sentem atraídas pelas
oportunidades oferecidas pelo local. Na Cidade Carvão tudo é medido de forma
quantitativa, de modo a sempre visar a maior produção, o maior consumo e o maior
lucro. Além disso, como o consumo é grande, o lixo produzido pelos moradores dessa
cidade também cresce em igual proporção.
O status de cada família na Cidade Carvão pode ser descrito pelo
tamanho de seu monte de lixo. De fato, ―fazer uma pilha‖ nos mercados
da Cidade Carvão é, em última instância, fazer uma outra pilha de
poeira e refugo e lixo nos limites da cidade, onde o distrito das fábricas
vasa para dentro do campo aberto. Assim, na Cidade Carvão o consumo
não é meramente uma necessidade: é um dever social, um meio de
manter ―girando as rodas da civilização‖.
95
Cidade Carvão é um local onde alguns possuem muito mais do que outros, mas, nos
finais de semana, a maior parte da população se sente privilegiada por poder viver a
ilusão do prazer, do conforto e das necessidades preenchidas. Nota-se que a Cidade
Carvão é fruto da própria utopia da Casa de campo, ―embora as casas de campo da
classe operária possam ser nada mais do que uma extensão diminutiva das favelas
urbanas próximas ao mar ou às montanhas.‖
96
Mumford indica, ainda, que os produtos para consumo produzidos na Cidade Carvão
95
The status of every family in Coketown can be told by the size of its rubbish heap. In fact, to "make a
pile" in the markets of Coketown is ultimately to make another pile of dust and junk and litter on
the edge of the town where the factory district dribbles off into the open country. So in Coketown
consumption is not merely a necessity: it is a social duty, a means of keeping "the wheels of civilization
turning‖ (MUMFORD, 2008, p. 153).
96
although the country houses of the working classes may be nothing more than a dimimutive extension
of the urban slum near sea or mountain‖ (MUMFORD, 2008, p. 151).
77
são propositalmente de pouca qualidade, de forma que nada dure por muito tempo:
O furor e frenesi da produção da Cidade Carvão tem de ser
contrabalançado por um igual furor e frenesi de consumo a moderação
seria fatal. Em consequência, nada na Cidade Carvão é acabado ou
permanente ou estabelecido: essas qualidades são um outro nome para a
morte. A Cidade Carvão produz porcelana para ser quebrada, roupas para
se desgastarem e casas para serem derrubadas; e se sobreviver alguma
coisa de uma época anterior que tornava as coisas mais seguras, ela ou é
encarcerada num museu e escarnecida como o monumento de uma era
não-progressista ou é demolida como um estorvo.
97
Mumford finaliza sua discussão sobre a Cidade Carvão afirmando que um ambiente
que tem como único objetivo a produção de bens materiais não pode ser um bom lugar
para se viver:
Porque a vida é mais do que uma questão de encontrar o que comeremos
e com o que nos vestiremos: ela é uma interação com todo um mundo de
paisagens, criaturas vivas e ideias, em comparação com o qual a Cidade
Carvão é uma mera pústula sobre a superfície da terra.
98
É importante mencionar que Mumford faz críticas a cada um dos pensamentos utópicos
estudados por ele. Entretanto, essas críticas parecem se tornar mais severas a partir das
utopias do século XIX, levando em consideração que, apesar de pertencer ao âmbito do
idolum, estas utopias tiveram um papel marcante, pois muitas delas, de uma forma ou de
outra, se concretizaram no mundo físico. Desse modo, passaram a integrar uma
realidade que, de fato, apenas aparenta ser satisfatória, pois o industrialismo e,
97
The rage and fury of Coketown's production has to be balanced off by an equal rage and fury of
consumption continence would be fatal. As a result, nothing in Coketown is finished or permanent or
settled: these qualities are another name for death. Coketown makes china to be broken, clothes to be
worn out, and houses to be torn down; and if something remains over from an earlier age which made
things more soundly, it is either incarcerated in a museum, and derided as the monument of a non-
progressive age, or it is demolished as a nuisance‖ (MUMFORD, 2008, p. 152).
98
For life is more than a matter of finding what we shall eat and wherewithal we shall be clothed: it is
an interaction with a whole world of landscapes, living creatures and ideas, in comparison with which
Coketown is a mere blister on the earth’s surface‖ (MUMFORD, 2008, p. 153).
78
posteriormente, o capitalismo financeiro trouxeram, por um lado, muitas inovações,
mas, por outro lado, criaram uma subclasse de trabalhadores que, até os dias de hoje,
vivem em condições precárias.
Pode-se sugerir que, a partir do século XIX, a literatura distópica começa a se
manifestar em virtude tanto das incongruências geradas pelo sistema capitalista como da
abertura que o próprio sistema proporciona aos campos artístico e cultural. outros
termos utilizados na ficção para fazer referência a essa tendência de tratar a utopia de
forma cética, estes são: anti-utopia, cacotopia, utopia negativa, utopia satírica, utopia
crítica e heterotopia. Para esta tese, importa apenas a distinção conceitual entre as
noções de utopia e distopia.
Com base no estudo de Booker, pode-se dizer que a utopia e a distopia se identificam,
pois ambas criam um cenário imaginário com o intuito de criticar a ordem das coisas.
Entretanto, aquilo que é utopia para alguns, pode ser uma distopia para outros. Além
disso, ao mesmo tempo em que a distopia aponta para uma utopia negativa, ela
pressupõe a possibilidade de uma utopia positiva.
99
Booker, no livro intitulado Dystopian literature: a theory and research guide, destaca
Walter Benjamin como um dos críticos mais importantes na linha do neo-marxismo
moderno. Sua visão melancólica da sociedade moderna e sua opção por estudar autores
como Kafka e Brecht apresentam um tom distópico. Além disso, os comentários feitos
por Benjamin sobre os desenvolvimentos observados na sociedade capitalista moderna
―são altamente relevantes para as preocupações típicas dos escritores da literatura
99
BOOKER, 1994b, p. 15.
79
distópica‖.
100
Enquanto a literatura utópica cria um mundo imaginário e ideal a partir de referências
retiradas do próprio contexto histórico no qual se insere, a literatura distópica faz surgir
um mundo que traz à tona as questões negativas que decorrem de um determinado
sistema político, social e econômico. Ambas as formas de escrita tendem a levantar
questionamentos ligados a sistemas sociais. Entretanto, a literatura distópica maior
ênfase aos pontos que não são positivos e ainda deixa transparecer algumas de suas
prováveis consequências no futuro.
Segundo Booker, a estratégia principal da literatura distópica é a desfamiliarização, de
forma que as críticas a um mundo distante possam ser percebidas no próprio mundo
histórico com um outro olhar.
Considero a desfamiliarização a estratégia literária principal da literatura
distópica: ao focalizar suas críticas da sociedade em cenários
imaginariamente distantes, as ficções distópicas fornecem novas
perspectivas a respeito das práticas sociais e políticas problemáticas que
poderiam de outro modo ser assumidas ou consideradas naturais e
inevitáveis.
101
Booker cita Gary Saul Morson, que se refere à utopia como ―uma fuga da história‖, e à
distopia como ―uma fuga, ou uma tentativa de fuga, para a história, ou seja, do mundo
da contingência, do conflito e da incerteza‖.
102
Booker comenta ainda as palavras de
100
"are highly relevant to the typical concerns of writers of dystopian literature‖ (BOOKER, 1994a, p.
21).
101
Further, I consider the principal literary strategy of dystopian literature to be defamiliarization: by
focusing their critiques of society on imaginatively distant settings, dystopian fictions provide fresh
perspectives on problematic social and political practices that might otherwise be taken for granted or
considered natural and inevitable‖ (BOOKER, 1994a, p. 3 e 4).
102
"An escape from history‖; an escape, or attempted escape, to history, which is to say, to the world of
contingency, conflict, and uncertainty" (BOOKER, 1994b, p. 4).
80
Andrew Ross, que distingue a utopia, crítica que se baseia nas deficiências do presente,
da distopia, que se fundamenta em críticas que apontam para o resultada das
deficiências que surgirão no futuro. Assim se justificam os cenários da literatura
distópica, aparentemente em locais e tempos distantes. Simultaneamente, notam-se
referências que, de fato, se relacionam ao mundo concreto e atual.
103
É importante destacar que o uso da alegoria em narrativas distópicas é freqüente, pois a
literatura distópica também se baseia na ideia da analogia com um determinado
contexto, seja ele histórico ou espiritual. Nessa perspectiva, a alegoria se mostra um
recurso linguístico eficaz, pois permite a materialização de ideias complexas através de
uma linguagem enigmática e ficcional. Alguns exemplos de literatura distópica que
utilizam a alegoria são O processo de Franz Kafka e A Revolução dos Bichos (Animal
farm) de George Orwell.
A ilusão do mercado
Conforme apontado por Mumford, a concretização da utopia da Cidade Carvão através
do industrialismo, e, posteriormente, do sistema capitalista, trouxe consequências
negativas. Mumford destaca a centralidade da fábrica e faz referência aos operários que
trabalham longas horas. O sistema no qual se inserem estes operários se baseia na lei da
maior produção e do maior consumo. Como resultado, tem-se também uma grande
produção de lixo.
No caso de Bunyan, não referência à industrialização nem à produção de lixo, mas a
103
BOOKER, 1994b, p. 19.
81
lógica interna do sistema capitalista é percebida e criticada através da Feira das
Vaidades, que traz em si, de forma incipiente, algumas das consequências geradas por
um sistema que se baseia na aquisição de bens materiais, em contraposição ao
crescimento pessoal ou espiritual. Na feira não restrições, qualquer tipo de
mercadoria pode ser comercializada, independentemente de sua natureza, seja ela
material ou espiritual.
Além disso, na Feira das Vaidades há roubos, assassinatos, adultérios, perjúrios e outros
exemplos de má conduta, que podem ser interpretados como consequências de um
sistema que supõe que a saciabilidade pode ser atingida através da compra e da venda
de vaidades. Bunyan faz referência, também, ao uso de mágica, jogos, palhaços e
ilusionistas, que atraem as pessoas enganosamente. Pode-se associar tal manifestação à
propaganda, muito utilizada no sistema capitalista maduro, com o intuito de induzir as
pessoas ao consumo.
O narrador explica que a feira é antiga, pois existe mais de 5.000 anos. Ele
comenta que o próprio Jesus havia passado por lá, tendo sido tentado por Belzebu,
senhor e líder da feira, a adorá-lo através da compra de algumas das vaidades
oferecidas. Entretanto, Jesus passou pela feira e não comprou um item sequer. De
acordo com a alegoria de Bunyan, a Feira das Vaidades é um local pelo qual todos
necessariamente precisam passar. Sendo assim, pode-se dizer que a Feira constitui uma
característica da vida humana que precisa ser superada.
Destaca-se, ainda, o fato de que a Cidade da Vaidade foi cuidadosamente planejada,
provavelmente pelo próprio Belzebu, de forma a que tudo gire em torno do comércio.
82
Suas ruas têm nomes que facilitam às pessoas acharem o tipo de mercadoria buscada, o
que faz lembrar o traçado geométrico das ruas da Cidade Carvão, coincidindo, assim,
com o próprio espírito capitalista. Apesar de Bunyan adotar um ponto de vista
espiritual, sugere-se que a alegoria da Feira das Vaidades pode ser lida como uma
crítica inicial aos princípios do sistema capitalista então incipiente, como manifestação
distópica da própria vida humana.
Pode-se dizer que a paródia de Hawthorne também questiona, mas de forma um pouco
mais elaborada, o sistema capitalista, que, historicamente se associa ao ideal utópico do
progresso tecnológico. Nessa perspectiva, Hawthorne transforma a peregrinação de
Cristão em uma espécie de viagem turística. O fato de o narrador protagonista fazer a
viagem por simples curiosidade demonstra seu desinteresse com relação às questões de
ordem espiritual. Essa postura se contrapõe ao verdadeiro desespero de Cristão no início
de sua peregrinação.
A ironia da descrição das atitudes do narrador, que aparece como um indivíduo que
simplesmente se deixa levar pela comodidade das novas tecnologias, é ressaltada, pois
revela as reais intenções do personagem. O narrador, assim como os outros passageiros
do trem, não se interessa pelo pecado e pela necessidade de salvação. Dessa forma,
enquanto Cristão carrega seu fardo nas próprias costas, os passageiros guardam suas
malas no bagageiro do trem, deixando transparecer a opção por um caminho mais fácil
em direção ao aperfeiçoamento humano, um caminho que não requer muito esforço. A
paródia de Hawthorne foi elogiada na época, por ser um texto simples e de fácil
compreensão, refletindo, assim, aquilo que as pessoas passaram a buscar nos inícios do
industrialismo.
83
Em Hawthorne, a Cidade da Vaidade tem uma função completamente diferente daquela
que lhe atribui Bunyan, pois o narrador faz nela o oposto de Cristão e Fiel, pensando
seriamente em estabelecer-se ali. Pode-se dizer que a Feira das Vaidades constitui a
autêntica base da peregrinação do narrador, que, influenciado pelo conforto enganoso
das mercadorias modernas, se revela inteiramente desgarrado dos objetivos puritanos de
Bunyan. Na verdade, a simples opção do narrador pelo conforto do trem para realizar a
sua peregrinação faz da própria estrada de ferro e de seus benefícios tecnológicos
uma Feira das Vaidades móvel. A busca do caminho da salvação se faz por um
descaminho cujo resultado, embora não explicitado por Hawthorne, não parece ser coisa
boa. Em virtude disso, a Cidade da Vaidade pode ser interpretada como uma distopia,
pois ressalta aspectos negativos da sociedade industrial.
É relevante a sugestão, presente na paródia de Hawthorne, de que as comodidades
oferecidas pela sociedade nascente tendem a mascarar as necessidades espirituais
inerentes ao indivíduo. Tal afirmação se justifica, pois Hawthorne não descarta a
imagem dos peregrinos antiquados, que percorrem o trajeto à pé. Em alguns trechos da
viagem ferroviária, dois peregrinos são vistos caminhando. Posteriormente, no final da
história, o narrador descreve a chegada deles à Cidade Celestial.
Olhando para verificar qual seria o motivo dessa álacre harmonia,
percebi, ao descer do vagão, que uma multidão de seres refulgentes se
reunira na outra margem do rio a fim de acolher os dois pobres
peregrinos que acabavam de emergir de suas profundezas. Eram os
mesmos que Apólion e nós outros perseguimos com motejos, pilhérias e
vapor escaldante no início de nossa viagem os mesmos, cujo aspecto
extraterreno e impressionantes palavras agitaram a minha consciência
entre as orgias da Feira das Vaidades.
104
104
HAWTHORNE, 1964, p. 98.
84
Apesar de sua viagem ter um caráter turístico, em vários momentos o narrador
questiona as mudanças trazidas pela nova forma de peregrinar. Propõe-se que os
questionamentos do narrador acabam por transformar a viagem turística em uma viagem
envolta pela dúvida e pela suspeita da existência de pecados ocultos e não admitidos, o
que, de certo modo, aproxima tal viagem novamente da ideia de uma peregrinação
autêntica. Essa última, entretanto, seria uma peregrinação ao contrário, pois o destino
para onde vai o peregrino pode ser o próprio inferno. Sugere-se que o narrador, apesar
de sua preferência pela ferrovia e suas vantagens, carrega consigo certo receio que
disfarça um sentimento de culpa. Mas ambos permanecem mais ou menos encobertos,
em virtude tanto do fascínio gerado pelas novidades tecnológicas como pelo fato de a
história narrada ter sido apenas um sonho.
No espaço distópico criado por Hawthorne, a ênfase excessiva dada aos bens, às posses
e à vaidade vem acompanhada por um modo de pensar vazio de conteúdo e rico em
floreios verbais, como é sugerido tanto pelo episódio do Gigante Transcendentalista
como pelos nomes dos sacerdotes das igrejas da Cidade das Vaidades. No conto de
Hawthorne, há um trecho em que o trem passa em frente a uma caverna, onde reside um
ser terrível, chamado Gigante Transcendentalista (Giant Transcendentalist). Ele
alimenta os viajantes com substâncias etéreas, para poder devorá-los posteriormente.
Além disso, utiliza uma fraseologia confusa e sua forma é semelhante a um nevoeiro e
ao crepúsculo.
[...] em sua caverna deserta aboletou-se outro gigante igualmente terrível,
e o seu negócio é agarrar honrados viajantes e engordá-los para a sua
mesa com fartas refeições de fumaça, neblina, luar, batatas cruas e
serragem. Alemão de nascimento, seu nome é Gigante
85
Transcendentalista; quanto à sua forma, feições, substância e natureza em
geral, a principal peculiaridade desse infiel é ele, ou qualquer outra
pessoa, jamais ter conseguido descrever a sua imagem exata.
105
Aqui, o modo de vida voltado para o conforto material decorrente do progresso
tecnológico tem como contrapartida o desaparecimento da reflexão autêntica, que passa
a ser substituída por uma retórica cheia de imagens vazias. Quanto aos nomes dos
sacerdotes das igrejas da Cidade das Vaidades, eles são mencionados quando o narrador
de ―A estrada de ferro celestial‖ se refere a conferencistas sábios e virtuosos, versados
em todos os assuntos humanos e divinos, que auxiliam os habitantes da cidade no
campo do conhecimento e da sabedoria. Estes homens ilustres que formam o clero da
cidade possuem nomes que merecem atenção:
Justificando esse alto louvor, basta-me citar os nomes do Rev. Sr. Raso-
Fundo, do Rev. Sr. Tropeça-na-Verdade, da belíssima pessoa do idoso
Rev. Sr. Isto-Hoje, que espera poder em breve aposentar-se, e ser
substituído no púlpito pelo Rev. Sr. Aquilo-Amanhã; e mais o Rev. Sr.
Perplexidade, o Rev. Sr. Entope-o-Espírito, e por derradeiro, o maior de
todos, o Rev. Sr. Vento-de-Doutrina.
106
Através dessa lista, nota-se a ênfase em uma religiosidade que faz rodeios com a
verdade, se baseia na transitoriedade, gera perplexidade e confusão, que obstrui o
espírito e é difusa, ou seja, ão possui fundamentos edificantes. Esse é um dos motivos
pelos quais os habitantes da Cidade das Vaidades costumam desaparecer de repente,
como se fossem bolhas de sabão. Tal imagem sugere distopicamente uma vida humana
tão vazia de significado que o seu desaparecimento passa a ser inteiramente natural.
O livro No país das últimas coisas não é normalmente analisado como um texto
105
HAWTHORNE, 1964, p. 90.
106
HAWTHORNE, 1964, p. 92.
86
distópico. Neste trabalho, no entanto, pretende-se sugerir que o romance apresenta
características distópicas, especialmente quando analisado pelo viés da alegoria e de
suas relações intertextuais com Hawthorne e Bunyan.
Tendo como base o idolum expresso pela análise da Cidade Carvão, tal como sugerido
por Mumford a partir da literatura utópica do século XIX, pode-se dizer que a
modernidade industrializada trouxe consequências dignas de crítica, que também estão
presentes em No país das últimas coisas. Nesse último, entretanto, as críticas se dão
através da visualização de uma situação extrema, que aparenta estar totalmente
desconectada de qualquer tipo de passado histórico. Não se sabem os motivos que
levaram a Cidade das Últimas Coisas a chegar ao ponto que chegou.
Neste sentido, a interpretação alegórica se mostra útil, que possibilita ligações com
ideias abstratas e com determinados eventos históricos. Inicialmente, chamam a atenção
os nomes dos personagens Ferdinando e Isabel, que remetem aos reis católicos da
Espanha do século XV, a rainha Isabella I e o rei Ferdinando II. Eles são lembrados por
terem lidado com a crença religiosa de forma repressora e excludente. Como resultado,
os judeus foram expulsos da Espanha e alguns Mouros se tornaram católicos por meio
da força. Além disso, esses reis apadrinharam a expedição de Cristóvão Colombo ao
Novo Mundo.
Sugere-se, então, que os personagens Isabel e Ferdinando representam tanto as origens
da conquista do Novo Mundo como o protótipo do casal mal resolvido, fruto também de
todo um processo histórico, que leva a mulher a um espaço de servidão e o homem a
posturas machistas e ameaçadoras. Entretanto, Ferdinando é também um homem
87
solitário e desiludido com a vida, sonhador e até um pouco artista, e Isabel é quem na
verdade a palavra final. O casal convive sem que pareça haver um propósito maior
que os una.
Ferdinando se esconde da vida na cidade, deixando para sua esposa todo o árduo
trabalho diário de busca por alimento. Sua aparência é a de um homem desleixado, que
Anna Blume associa a um homem abandonado em uma ilha deserta. O passatempo de
Ferdinando é construir miniaturas de navios com materiais diversos, dentro de garrafas
de vidro. Depois, ele imagina estes pequenos navios atravessando oceanos.
Uma vez ou duas, acordando de manhã um pouco mais cedo do que de
costume, vi de fato Ferdinando sentado à janela e segurando um navio no
ar, brincando com ele como uma criança de seis anos, movendo-o
rapidamente em todas as direções, manobrando-o através de um oceano
imaginário e murmurando para si mesmo com diversas vozes, como se
estivesse atuando nos pais de um jogo que ele tinha inventado. Pobre
estúpido, Ferdinando.
107
Pode-se dizer que ele lembra a figura do escritor, ou do artista. Ele é um homem
desiludido com o mundo, que se volta para si e para sua arte, a qual se torna uma
espécie de manifestação daquilo que poderia ter sido. Seus pequenos navios atravessam
o oceano para um novo mundo, onde as coisas seriam diferentes. Ferdinando passa seu
tempo montando barcos em miniatura e criando histórias imaginárias. Dessa forma, ele
vive em um mundo paralelo, onde as dificuldades diárias não existem. É algo
semelhante àquelas pessoas que Anna identifica como fantasmas, pois se nutrem de
forma ilusória, através da língua dos fantasmas, permanecendo, assim, na arena do
nimbo reconfortante. Como figura alegórica, o personagem é criado de forma coerente,
107
Once or twice, waking up in the morning a little earlier than usual, I actually saw Ferdinando sitting
by the window and holding a ship in the air, playing with it like a six-year-old, whooshing it around,
steering it through an imaginary ocean, and muttering to himself in several voices, as though acting out
88
simultaneamente remetendo a um passado histórico marcado pela descoberta do Novo
Mundo e a um tipo de homem que pode surgir a partir de todo um processo histórico,
levado a suas consequências extremas.
Há, também, o personagem Samuel Farr, que tem exatamente o mesmo nome de um
político norte-americano, conhecido por suas lutas na área da saúde e do meio ambiente,
especificamente na indústria de produtos orgânicos e da preservação dos oceanos. No
romance de Auster, Samuel Farr é um jornalista que busca, através de sua escrita,
denunciar a pouca qualidade de vida levada naquela cidade. Observa-se que ele
simboliza a esperança de mudança, presente também em um segundo momento do
romance, no qual Sam é colocado na posição de médico em Woburn House. Devido aos
seus precários conhecimentos na área da medicina, ele acaba atuando mais como
alguém que leva consolo e esperança, pelo simples fato de ouvir os problemas do outro
e procurar trazer-lhe algum tipo de auxílio.
Ferdinando pode ser comparado a um homem acomodado, que, através de seu trabalho
artístico, vive em um mundo paralelo como uma forma de não encarar a crueza da
realidade. Este personagem cria para si pequenas utopias de fuga, nas quais ele se
esconde, guardando-se, assim, da interação com o meio social. O caso de Sam é
exatamente o contrário, que ele tem o intuito de usar sua escrita para que as pessoas
saibam sobre as coisas que acontecem naquela cidade. O objetivo de seu livro seria
desmascarar uma situação ruim.
Em Auster, o escritor como aquele que inventa histórias que inebriam o leitor poderia
the parts in a game he had invented. Poor stupid, Ferdinando.‖ (AUSTER, 1987a, p. 55).
89
ter a conotação de um sujeito alienado, do mesmo modo que acontece com Ferdinando.
Entretanto, a urgência das palavras de Anna sugere uma escrita literária que, ao se
associar a um discurso de crítica social, tende a indicar alguma possibilidade de
transformação. Assim, seguindo a lógica do pensamento de Mumford, pode-se dizer que
tanto Sam como Anna, através de impulsos utópicos, buscam, por meio da escrita, uma
forma de interferir no espaço social em que vivem.
Em entrevista a Larry McCaffery e Sinda Gregory, Auster é questionado sobre as cenas
palpáveis e reais do pesadelo urbano descrito em No país das últimas coisas. Ele
responde que o livro é firmemente ancorado em realidades históricas e cita os seguintes
exemplos: o Gueto de Varsóvia, o cerco a Leningrado, o sistema de lixo no Cairo, e
eventos que ocorrem no Terceiro Mundo e em Nova York.
108
Como se sabe, o Gueto de Varsóvia foi criado em 1940 pelos nazistas. Num espaço
reduzido de 340 hectares, 500.000 judeus foram cercados por um muro de 3 metros de
altura e 18 km de comprimento. As condições de vida nesse local eram extremamente
desfavoráveis, o que reduziu a população a 55.000 habitantes. Esses sobreviventes se
rebelaram contra os nazistas, mas foram derrotados. Aqueles que escaparam vivos dos
combates foram encaminhados a campos de concentração.
A história do cerco de Leningrado também é conhecida. Depois da invasão da Rússia
pelas tropas alemãs, em 1941, a cidade de Leningrado foi cercada pelos nazistas por
aproximadamente 900 dias. As condições de vida na cidade eram absolutamente
precárias durante o cerco, o que produziu a morte de inúmeros habitantes. Em 1944, os
108
AUSTER, 1992, p. 293.
90
nazistas foram forçados a bater em retirada e os moradores de Leningrado foram
aclamados como verdadeiros heróis.
De forma paralela aos eventos históricos mencionados acima, a cidade sem nome de
Auster é um espaço que aprisiona seus habitantes, que é cercada por todos os lados,
de forma a prevenir a saída aleatória das pessoas. Esta sensação de aprisionamento é
sugerida também através de um sistema com regras repressoras e autoritárias. Nas
margens do lado oeste da cidade há, ainda, campos de concentração, aos quais são
levadas as pessoas que transgridem as leis do sistema. Além disso, elas não têm o que
comer. A morte e o perigo são imanentes à Cidade das Últimas Coisas.
A menção de Auster à guerra, que também se encontra presente de algum modo no
romance em análise, aponta para a degradação do homem, ocasionada pelo próprio
homem. Neste caso, a discriminação racial e religiosa é explícita, levando os povos
envolvidos a um grau máximo de exclusão, fome e doença. Pode-se sugerir que o
romance de Auster enfatiza a resultante desvalorização da experiência humana gerada
pela guerra, assim como mencionado por Walter Benjamin.
109
Consequentemente
uma quebra de valores e referências, que faz com que o homem perca a habilidade de
buscar a troca efetiva de experiências significativas. Surge, então, a imagem, ressaltada
em No país das últimas coisas, de homens como seres solitários que vagam sem rumo,
deteriorados internamente e levados a crer que a vida se reduz a uma questão de pura
sobrevivência.
A experiência da pobreza e da fome, além de se fazer presente nas grandes guerras,
109
BENJAMIN, 1975, p. 63.
91
pode ser identificada no capitalismo moderno. A pobreza e a fome são vivenciadas de
forma explícita no Terceiro Mundo, mas também na maior parte dos grandes centros
urbanos. o caso específico de Nova York, como mencionado pelo próprio Auster na
entrevista acima. As ruas dessa cidade abrigam mendigos, e também aqueles conhecidos
como homeless
110
. também a segregação social visível através dos guetos raciais ou
étnicos, que aglomeram pessoas de uma mesma naturalidade, ou religião. Auster cita o
Brooklyn, um dos distritos de Nova York, com recorrência em sua obra. Este distrito é
ocupado por uma diversidade grande de comunidades como: as afro-americanas, as
hispânico-americanas, as chinês-americanas e as judaico-americanas.
Em No país das últimas coisas referência também ao espaço físico da cidade de
Nova York através dos túneis subterrâneos, que na cidade sem nome servem de abrigo
para o personagem Samuel Farr. A revista National Geograhic de fevereiro de 1997 traz
fotos e uma reportagem sobre os homeless que faziam sua moradia em uma espécie de
abertura subterrânea, semelhante a um quarto de concreto com o teto baixo, no Grand
Central Terminal. O artigo afirma que cinquenta pessoas moravam neste túnel em 1989.
Nota-se que a experiência ficcional de Farr encontra correspondência na realidade
histórica.
Por um lado, ao ler a fome como uma metáfora, ela pode ser interpretada como uma
crítica ao capitalismo moderno. Os famintos obcecados, mencionados no primeiro
capítulo, apresentam um sentimento de insaciabilidade, um desejo que jamais é
inteiramente preenchido. Tal sentimento associa-se à ilusão gerada pelo idolum da Casa
de Campo, que, juntamente com a utopia da Cidade Carvão, induz a sociedade ao
110
Homeless: pessoas sem casa, sem teto, sem moradia fixa.
92
consumo desenfreado. Os objetos, as posses, as conveniências, o vestuário, a moda, de
alguma forma se apresentam como possibilidade de preenchimento de um vazio interno.
Entretanto, este vácuo continua atormentando, e a insaciabilidade também continua
veementemente aguçada pela propaganda de tantas outras novas formas de
preenchimento.
Por outro lado, o caso das pessoas que comem cada vez menos traduzindo o
sentimento de desesperança. Equivalente ao cúmulo da desumanização, em que pessoas
completamente desprovidas de valores se tornam homens-máquinas. Estas pessoas são
prisioneiras de si mesmas e do contexto. A proximidade da morte talvez seja a única
coisa que lhes traga alento. O entorpecimento dos sentidos é revelado como a forma
utilizada pelo indivíduo para se integrar ao ambiente da cidade:
Nunca pense sobre coisa alguma, ela disse. Apenas dissolva-se na rua e
finja que seu corpo não existe. Nenhuma meditação, nenhuma tristeza ou
felicidade; nada senão a rua, toda vazia por dentro, concentrando-se
apenas no próximo passo que você vai dar. De todos os conselhos que
ela me deu, foi o único que de fato compreendi.
111
As questões ambientais, sugeridas pelo nome do personagem Samuel Farr, remetem ao
problema do excesso de lixo jogado pelas ruas da cidade. Destaca-se a importância do
trabalho dos coletores de lixo (garbage collectors) e dos caçadores de objetos (object
hunters), que atende à necessidade de subsistência dos próprios trabalhadores, que,
por sua vez, atendem à comunidade.
É central no romance de Auster a referência à transformação e reutilização de cacos,
111
Never think about anything, she said. Just melt into the street and pretend your body doesn’t exist.
No musings, no sadness or happiness; no anything but the street, all empty inside, concentrating only on
the next step you are about to take. Of all the advice she gave me, it was the one thing I ever understood‖
93
fragmentos, dejetos ou lixo. A partir da fala do autor em entrevista citada anteriormente,
sabe-se que tal aspecto tem como base histórica o sistema de coleta de lixo no Cairo.
112
A capital do Egito é a maior das cidades árabes e a mais populosa da África. Uma
cidade de 15 milhões de habitantes produz uma grande quantidade de lixo. No entanto,
o sistema de coleta proporcionado pelo governo é caro e pouco eficaz. É neste cenário
que surgem os Zabbaleen, palavra árabe que significa pessoas do lixo.
Os Zabbaleen vivem em comunidades de cristãos, sendo Moqattam a maior e mais
importante delas. São discriminados não por sua religião, mas também por serem
pobres e lidarem com os rejeitos da sociedade. Coletam o lixo da cidade do Cairo
mais de 50 anos e o transportam em carroças puxadas por burricos até a Cidade do Lixo,
nome dado ao local onde moram e trabalham. Ali, crianças e mulheres separam os
materiais encontrados no lixo com as próprias mãos. O composto orgânico é usado para
alimento dos porcos, animais nojentos para os mulçumanos. Os outros materiais são
reciclados de forma artesanal e revendidos.
O trabalho dessas pessoas é pouco valorizado e por isso elas vivem em estado de
pobreza. Além disso, contraem doenças, devido às condições de pouca higiene em que
vivem e trabalham. Como o governo não oferece um sistema eficaz de coleta de lixo, os
habitantes do Cairo dependem dos Zabbaleen, que reciclam 85% do lixo que coletam.
113
Ao ressaltar, de forma oblíqua, a vida efetivamente levada pelos Zabbaleen, Auster cria
(AUSTER, 1987ª, p. 57).
112
Devido à falta de livros publicados a respeito desse tema, a seguinte pesquisa foi feita a partir de
dados encontrados em sites jornalísticos e acadêmicos como Highbeam research e BBC.
113
EGYPT DUMPS GARBAGE PEOPLE, 2003 e ZABBALEEN, 2007.
94
uma alegoria rica, que reflete uma grande preocupação dos tempos atuais. Na maior
parte dos casos, o problema do lixo tende a ficar nas periferias das cidades. No entanto,
no Cairo se instaurou uma Cidade do Lixo, com pessoas que, apesar de viverem de
forma precária em termos de saúde e estruturas básicas, desenvolveram um trabalho
singular em termos de tratamento do lixo. De forma contraditória, estas pessoas, que são
discriminadas e, de certa forma, excluídas da cidade do Cairo, podem ser consideradas
verdadeiros heróis da humanidade.
A partir de um paralelo entre a Cidade do Lixo e a cidade ficcional das últimas coisas,
observa-se que a segunda representa um espo temporal que se caracteriza por expor
algumas das possíveis consequências trazidas pelo industrialismo e pelo capitalismo
financeiro. É como se ali permanecessem apenas o excesso de lixo e os restos
provenientes de uma sociedade que, como proposto pela utopia inicial da Cidade
Carvão, se baseia na lei da maior produção e do maior consumo.
A cidade distópica de Auster, na verdade, aponta para o momento presente, no qual
existem indivíduos andando pelas ruas empurrando carrinhos cheios de lixo, que será
vendido e, depois, reciclado. O consumo excessivo e as exigências do mercado fazem
com que as pessoas não percebam que o acúmulo e a consequente produção de lixo seja,
de fato, uma ameaça. O romance de Auster remete, pela negativa, às palavras de
Mumford, que afirmam que a vida não se resume à mera busca por alimento e vestuário,
mas engloba toda uma interação com o meio ambiente, com os seres vivos e com as
ideias.
114
114
MUMFORD, 2008, p. 153.
95
Apesar de a utopia da Cidade Carvão estar ligada ao século XIX e à revolução
industrial, seus parâmetros básicos continuam atuando até os dias atuais através do
sistema capitalista. Certas figuras alegóricas presentes no romance No país das últimas
coisas indicam alguns dos efeitos negativos do progresso tecnológico e do capitalismo
moderno: as grandes guerras mundiais e a criação da bomba atômica; a produção de
bens necessários aliada à propaganda comercial e ao consumismo desenfreado; o
extrativismo natural e mineral, que gera a falta de sustentabilidade do planeta; e as
disparidades sociais em ritmo crescente através da concentração da riqueza mundial,
deixando a grande maioria cada vez mais pobre.
Peregrinos utópicos
Tendo em vista não apenas o diálogo entre distopia e utopia, mas também o estudo feito
acima a respeito dos elementos distópicos presentes nos textos de Bunyan, Hawthorne e
Auster, a presente seção se propõe a analisar os textos desses autores em busca de uma
contrapartida, representada pelos elementos utópicos sugeridos nas narrativas. Pretende-
se traçar as linhas ideológicas que se entrecruzam nas obras em questão, com o objetivo
de visualizar o contexto histórico que as une e as críticas de inspiração utópica que por
elas são propostas.
A doutrina protestante e a alegoria de Bunyan não são trabalhados no estudo de
Mumford. O cristianismo medieval, em contraposição, é mencionado como uma utopia
de escape devido à visão utópica que o cristianismo tem de um paraíso perfeito.
Seguindo o próprio raciocínio de Mumford, sugere-se que o puritanismo funcionou
como uma espécie de impulso utópico que levou os peregrinos a atravessar o oceano
com o intuito de povoar o Novo Mundo. O livro de Bunyan fazia parte do repertório de
96
leitura destas pessoas, que acreditaram poder viver em um mundo transformado, através
da criação de uma comunidade exemplar. Neste caso, a experiência cristã parece deixar
o âmbito da utopia de fuga, que Mumford atribui ao cristianismo medieval, podendo ser
considerada uma utopia de reconstrução, ou seja, uma busca por melhorias e mudanças.
A peregrinação de Cristão de fato denota uma transformação espiritual interna muito
grande, que faz com que o personagem mude sua forma de pensar, de argumentar e de
agir. Até mesmo seu nome, que anteriormente era Graceless, passa por uma
transformação. Assim, apesar de o ideal de mudança agir apenas no plano pessoal e
íntimo do personagem, a diferente atuação de Cristão na comunidade poderia ser um
fator que aponta para formas de reconstrução. Entretanto, são poucos os casos em que
isso acontece no texto de Bunyan.
Vale a pena relembrar a cena de Cristão e Fiel na Cidade das Vaidades, na qual
acontece exatamente o movimento contrário. Conforme mencionado, os dois peregrinos
chegam à feira vestindo roupas diferentes e dizendo coisas ininteligíveis. Além disso,
eles não se interessam por nenhuma das mercadorias à venda, afirmando que não
querem ver a vaidade, pois se interessam por comprar somente a verdade. Isso gera um
tumulto que termina com a prisão e a condenação de ambos. Fiel morre queimado e
Cristão consegue fugir, auxiliado por Deus.
Percebe-se que o fato de Cristão e Fiel terem se colocado contra a expectativa de
consumo, partilhada pelos moradores da Cidade da Vaidade, fez com que eles fossem
vistos como ameaça e não como modelo de mudança para melhor. Essa passagem é
sugestiva, pois aponta para a transcendência de um mercado autoritário. Neste caso,
97
consequentemente, aqueles que não se submeteram às regras da Cidade das Vaidades
foram aprisionados e condenados. Um deles foi até mesmo martirizado.
Apesar de constituir um cenário distópico, a Cidade da Vaidade em Bunyan faz parte da
própria peregrinação em direção à Cidade Celestial. Nessa perspectiva, todos
necessariamente devem passar por lá. No caso do peregrino, este cenário distópico
funciona paradoxalmente como a confirmação de seu ideal utópico, baseado em sua
crença no cristianismo. Em outras palavras, a Cidade da Vaidade é um ponto de
passagem obrigatório para todo aquele que busca a evolução espiritual em direção à
Cidade Celestial. Isso localiza o cenário distópico, representado pela primeira cidade,
num plano maior e mais abrangente, representado pela segunda cidade.
A paródia de Hawthorne, por sua vez, parece sugerir que, a partir do pano de fundo do
puritanismo, entendido não como caminho espiritual, mas como proposta de vida em
comunidade, o advento do industrialismo se torna algo questionável.
O narrador de Hawthorne coloca-se em uma posição dúbia com relação às novidades
trazidas pelo industrialismo e pela modernidade liberal. Ele se vê diante de três utopias,
das quais a primeira está ligada à trajetória percorrida por Cristão e se baseia na
doutrina do calvinismo. Esta última parece inquestionável quanto ao seu caráter sólido e
biblicamente embasado, além de ser visivelmente propícia a produzir modificações
significativas em nível pessoal, como demonstra o caso de Cristão.
A segunda utopia se refere à aspiração dos puritanos no sentido de estabelecer uma
comunidade igualitária, ancorada pelas Escrituras e pelos ensinamentos que incluem a
98
caridade, o amor e o auxílio ao próximo, seja ele amigo ou inimigo. Por diversos
motivos, apesar das intenções iniciais, estes ideais não foram concretizados na prática.
Assim, através da inusitada possibilidade de realizar a mesma peregrinão que Cristão,
mas com a comodidade proporcionada por um veloz meio de transporte que comporta
um número grande de passageiros, o narrador destaque às distorções que resultaram
da tentativa de aplicar a utopia puritana ao Novo Mundo.
―A estrada de ferro celestial‖ traz à tona, ainda, uma terceira forma de utopia, a da
modernidade. Tanto para o narrador como para os outros passageiros do trem ela se
oferece como uma nova forma de vida, plena de conforto material. A ferrovia pode ser
interpretada como a figura dessa modernidade nascente. Ao considerar que o trem
percorre um caminho semelhante ao da peregrinação de Cristão, o leitor de Hawthorne
pode ser levado a supor que a ferrovia foi construída exatamente sobre as bases
anteriormente preparadas pelos peregrinos puritanos. Entretanto, à medida que a paródia
se desenvolve, constata-se que o trem faz suas paradas somente nos locais sombrios,
obscuros e questionáveis. Além disso, como manifestação moderna da Feira das
Vaidades, a ferrovia apresenta uma série de desvios, denunciando um plano oculto que
parece desfigurar o caminho inicialmente percorrido pelos peregrinos de Bunyan.
Apesar de ―A estrada de ferro celestial‖ trazer críticas que podem ser consideradas
distópicas com relação à mecanização do trabalho e à superficialidade das relações,
trazidas pela modernidade, o narrador e protagonista demonstra um grande apego ao
conforto, ao luxo e à conveniência de peregrinar de trem. Daí sua posição dúbia, pois a
maior parte do tempo ele questiona as sinalizações que indicam aquele novo caminho
99
como ilusório. Ainda assim, não consegue abrir mão dos privilégios proporcionados
pela modernidade, e segue da mesma forma até o final do seu trajeto. Momentos antes
de o narrador despertar de seu sonho tem-se a impressão de que algo vai mudar, que
finalmente ele percebe, com outros e assustados olhos, quem é seu estimado
companheiro de viagem. Mas nada parece de fato se definir, pois tudo tinha sido apenas
um sonho.
E o meu excelente amigo Sr. Arranja-Tudo soltou uma franca risada, e,
no meio da casquinada, um novelo de fumaça lhe saiu da boca e das
narinas, enquanto um lampejo de lúrida chama dardejou para fora de
cada um de seus olhos, provando sem sombra de dúvida que seu coração
era todo ele uma rubra fogueira. Impudente demônio! Negar a existência
do Tophet, quando sentia as suas ardentes torturas raivando-lhe no
peito!
115
Enquanto em Hawthorne se nota uma tendência ambígua entre o utópico e o distópico,
No país das últimas coisas cria uma cidade em local desconhecido, que é altamente
negativa em termos da vida levada em comunidade. Seguindo a mesma linha iniciada
por Hawthorne, a Cidade das Últimas Coisas parece trazer à tona os resultados futuros
daquilo que na paródia é apresentado como a modernidade liberal. Este futuro se
demonstra como o cenário distópico do romance de Auster.
É importante ressaltar que, de forma semelhante aos peregrinos de Bunyan, Anna
Blume opta por um caminho que não se ajusta exatamente à realidade da Cidade das
Últimas Coisas. Anna não tem uma fé ou um Deus para guiá-la, mas seus passos
procuram evitar caminhos que levam ao engano, à ilusão, ou à má conduta com relação
ao próximo. Seria como se ela tivesse um lado espiritual que a impulsionasse na direção
contrária àquela oferecida pela lógica interna da cidade.
100
Anna mantém sua dignidade como ser humano em um contexto distópico de escassez e
luta. Embora ela não tenha objetivos espirituais específicos, como é o caso de Cristão, a
personagem deixa transparecer um resquício de utopia através de seus atos. Dessa
forma, gera-se o sentimento de esperança em um local em que apenas os restos e os
cacos ocasionados pela lógica da sociedade industrial e do capitalismo financeiro.
Gianluca Cuozzo, professor de filosofia teórica da Università degli Studi de Torino,
analisa o romance de Auster sob o prisma da interseção entre filosofia e literatura. Sua
análise destaca que as últimas coisas, na realidade, podem ser as penúltimas. Assim, ele
afirma que em Auster a utopia está justamente nos restos, como uma esperança vaga e
implícita de salvação. O lixo também é interpretado como indicador da utopia, pois a
sobra se revela como uma prova de que a sociedade de consumo não se realizou
completamente. Afinal de contas, ela deixou de aproveitar algo que ainda poderia ser
aproveitado.
116
Em consonância com a análise de Cuozzo, destaca-se a reciclagem como a possibilidade
de uma continuidade, remetendo ao movimento, recorrente na narrativa, de morte e
renascimento. Assim, pode-se dizer que, também no romance de Auster, são os
elementos distópicos que paradoxalmente apontam na direção da utopia. São esses
elementos que geram a fome e o desejo nos habitantes da cidade, os quais, entretanto,
não encontram coisa alguma capaz de preenchê-los de forma definitiva. Apesar disso,
como será exposto no próximo capítulo, Anna encontra formas renováveis de
preenchimento através do relacionamento com o outro.
115
HAWTHORNE, 1964, p. 98-9.
101
A partir da discussão acima, observa-se como as três obras em questão podem ser lidas
como apresentando um diálogo entre as noções de utopia e distopia. No caso de Auster
e Bunyan, o cenário distópico parece impulsionar os protagonistas na direção da utopia,
que os leva a transformações pessoais. Em Hawthorne, reina a ambiguidade, que,
apesar de haver uma crítica à chamada modernidade liberal, não um movimento na
direção de qualquer transformação. Isto se dá, também, pelo fato de a paródia de
Hawthorne ter sido escrita nos primeiro momentos do chamado progresso industrial,
que foram momentos de fascínio e encantamento. Neste sentido, pode-se interpretar ―A
estrada de ferro celestial‖ como um texto que além do presente. O mesmo pode ser
dito com relação a Auster. No entanto, uma diferença que o separa de Hawthorne: a
constatação de que o futuro previsto através da imagem da Cidade das Últimas Coisas é
exatamente o futuro dos dias atuais.
116
CUOZZO, 2010.
102
4. Um olhar alegórico
103
O peregrino
Em The implied reader, livro do teórico alemão Wolfgang Iser, uma coleção de
ensaios que, a partir do ponto de vista da estética da recepção, analisa a evolução do
romance de Bunyan a Beckett. Iser considera a obra de Bunyan como precursora do
romance tanto devido a suas características formais, com também devido à trabalhada
construção dos personagens alegóricos.
117
Neste primeiro momento, pretende-se
analisar a obra de Bunyan tendo como base o estudo de Wolfgang Iser.
Com o intuito de verificar a precisão da interpretação textual proposta por Iser,
procurou-se levar em consideração os preceitos relativos ao calvinismo. Para tal, foi
utilizado o livro sobre teologia sistemática de Wayne Grudem, além do estudo
introdutório de Roger Sharrock sobre Bunyan e sua obra, e as notas de estudo de John
Scott, encontradas nos rodapés de uma das edições em português de O peregrino.
Segundo a análise de Iser, o trajeto narrativo em O peregrino apresenta uma estrutura
pouco convencional, especialmente para o século XVII, de forma que o livro pode ser
considerado um dos precursores do romance moderno. Iser trabalha a partir de dois
eixos. O primeiro está relacionado com a leitura de Schöffler, que concebe O peregrino
como uma antecipação dos primeiros romances de autores protestantes surgidos no
século XVIII, como Robinson Crusoé, de Defoe. O segundo leva em consideração os
argumentos de Tillyard, que incluem Bunyan na tradição da épica.
Iser observa que ambas as linhas de raciocínio têm fundamento, mas não isoladamente,
já que o texto de Bunyan oscila continuamente entre a épica e o romance através de dois
117
ISER, 1978, p. 1-28.
104
ângulos diferentes de visão: aquele que aponta para a ideia abstrata da busca da
salvação, e aquele que se dirige para o indivíduo, sua alma e o seu ser interior. Este
movimento está presente em todas as peças que montam o texto de Bunyan. Iser
observa que, como na épica, os personagens apresentam nomes e funções alegóricas:
Cristão, Boa Vontade, Evangelista, Sábio-Segundo-o-Mundo e Adulador, entre outros.
Contraditoriamente, no entanto, eles também dão a impressão de serem feitos de carne e
osso, destacando assim sua humanidade e individualidade, característica dos romances.
Este movimento também é ressaltado na técnica da narrativa. O narrador onisciente
descreve um sonho com um final previsível: a salvação do personagem principal,
Cristão, e sua chegada à Cidade Celestial. A onisciência do narrador remete à épica. Em
contraposição, Cristão percebe somente aquilo que lhe é imediato e que está diante de
seu campo de visão. Como personagem, ele se desenvolve através do diálogo e de suas
experiências pessoais, sendo levado pela tensão que surge a partir de sua incerteza com
relação a seu futuro. Esta característica remete ao romance.
Iser continua sua análise neste mesmo sentido, destacando o uso da prosa, através de
diálogos de caráter argumentativo, que remetem ao indivíduo e à sua busca espiritual.
Estes diálogos teriam a função de aumentar a consciência do personagem a respeito de
sua própria situação e experiência, sempre trazendo algum ensinamento em
consequência. também o uso do verso, que oferece ao leitor uma espécie de síntese
ou critério geral a respeito da conduta do peregrino puritano. O uso da prosa aponta para
a estrutura do romance, enquanto o verso, indicando um contexto mais geral, aponta
para a estrutura da épica.
105
No decorrer do estudo de Iser, nota-se maior ênfase em características pertencentes ao
romance, mais especificamente aquelas que se relacionam com o crescimento pessoal
dos personagens principais: Cristão, Fiel e Esperança. Iser afirma que eles são mais do
que personificações de uma ideia, que superam suas características alegóricas,
produzindo a edificação no sentido puritano. Estes personagens não se apresentam
como peregrinos exemplares, mas como seres humanos, que como tais são fracos e
falhos.
O caminho para a salvação em O peregrino, segundo Iser, segue a lógica da ausência da
certitudo salutis, ou seja, da certeza da salvação. Esta ausência estaria ligada à doutrina
calvinista da predestinação, segundo a qual existem aqueles que foram eleitos por Deus
para a salvação e a vida eterna, assim como existem os não-eleitos, e, portanto,
predestinados ao fogo e à ira eterna. Iser afirma que esta dúvida criou o que ele chama
de phsychic gap nos seguidores da Reforma. Este vácuo, como sugere Benjamin,
também se relaciona à ideia de que a salvação não é pelas obras, mas pela graça,
excluindo assim toda e qualquer possibilidade de o homem se achegar a Deus através de
seus próprios esforços: ―As ações humanas foram privadas de todo valor. Algo de novo
surgiu: um mundo vazio.‖
118
Segundo Iser, a incerteza da salvação, característica do calvinismo, faz com que os
personagens de Bunyan estejam sempre à procura de sinais que lhes permitam reverter
essa situação. Entretanto, essa confirmação lhes vem somente através do auto-exame e
da experiência pessoal.
119
118
BENJAMIN, 1984, p. 162.
106
Segundo Iser, os personagens alegóricos medievais são, de certa forma, esvaziados, pois
até mesmo seus pensamentos conflituosos podem ser traduzidos em uma realidade
sobreposta por figuras também alegóricas. Em contraposição, os personagens de
Bunyan demonstram possuir um ser interior, estando abertos à persuasão através dos
diálogos estabelecidos entre eles. Além disso, os monólogos individuais de Cristão
também refletem a existência de um ser interior, através do qual esse personagem tem
uma visão clara de si mesmo:
Ele forma uma relação consigo mesmo e não precisa de uma realidade
subreposta para obter uma visão clara de sua própria situação. Ao invés
disso, ele procura motivos e razões que possam eventualmente capacitá-
lo a corrigir a si mesmo e sua preocupação consigo próprio reflete o
isolamento radical do homem, produzido pela doutrina da
predestinação.
120
O desenvolvimento de Cristão, então, se a partir de sua capacidade de refletir sobre
aquilo que lhe acontece. Iser explica essa questão através da identificação do papel dos
personagens que ele denomina funcionais, pois neles predomina a característica
alegórica, normalmente ligada a vícios ou a virtudes. Estes personagens continuamente
incitam Cristão à reflexão, de forma a rever e repensar seus atos. Posteriormente, com o
acúmulo de experiência, Cristão também adquire este papel de orientar seus
companheiros de viagem, no sentido da percepção de si mesmos. Iser se volta, então, ao
leitor de Bunyan, sugerindo que essa manobra de transferência do indivíduo para o
centro foi de grande auxílio para o leitor puritano que, apesar do vazio deixado pelo
calvinismo, encontrou em O peregrino orientação e respostas situacionais a respeito de
como deveria seguir seu caminho para a salvação.
119
ISER, 1978, p. 4.
120
―He forms a relationship with himself and does not need a superimposed reality to gain a clear vision
of his own situation. Instead, he looks for motives and reasons that can eventually enable him to correct
himself, and this preoccupation with himself mirrors the radical isolation of man brought about by the
107
E assim a falta de certeza significava que a única fonte de informão do
peregrino sobre seu destino derradeiro era ele mesmo. Eis porque os
monólogos no Peregrino eram de particular interesse para os leitores
puritanos, que a busca de Cristão por certeza garantida lhes oferecia a
diretriz a respeito de como deveriam examinar a si mesmos.
121
Iser conclui que a alegoria de Bunyan complementa a doutrina da predestinação e
fornece novas diretrizes ao leitor puritano. No entanto, se a análise de Iser realmente
correspondesse ao ouro que se esconde envolto pelo metal bruto sugerido pelo próprio
Bunyan, uma leitura cuidadosa das propostas do calvinismo colocaria O peregrino na
lista dos textos considerados hereges, pois a interpretação de Iser se desenvolve de
forma contrária ao calvinismo.
Em termos da análise estrutural proposta por Iser, observam-se inúmeros pontos
interessantes e consistentes. Entretanto, quando Iser propõe sua interpretação do texto
de Bunyan, a qual está também intrinsecamente relacionada à estrutura da narrativa
alegórica, notam-se alguns deslizes que merecem atenção.
Sugere-se, neste estudo, que Iser pode ter desconsiderado alguns aspectos essenciais no
próprio texto alegórico, que trariam outro teor à sua análise. Simultaneamente, deve-se
admitir a possibilidade da multiplicidade de sentidos, intrínseca não à alegoria, mas a
qualquer texto de caráter ficcional, o que não permite a exclusão de leituras e análises
diversas de um mesmo texto. Dessa forma, propõe-se a seguir uma revisão da
interpretação de Iser, levando-se em consideração que Bunyan viveu em um contexto
doctrine of predestination.‖ (ISER, 1978, p. 19).
121
―And so the lack of certitude meant that the pilgrim’s one and only source of information about his
ultimate destiny was himself. This was why the monologues in O peregrino were of particular interest to
puritan readers, for Christian’s search for reassurance offered them the guideline as to how they should
examine themselves.‖ (ISER, 1978, p. 19).
108
puritano, foi preso por suas ideias puritanas e escreveu sermões, textos literários e uma
autobiografia, todos embasados em sua crença.
Sabe-se historicamente do grande apreço que os reformadores tiveram pela Bíblia,
excluindo toda forma de hierarquia que se colocasse entre o homem e a palavra de
Deus. As Escrituras eram consideradas auto-suficientes, e todo aquele que cresse,
encontraria nelas, com o auxílio do Espírito Santo, as necessárias orientações. A
importância das Escrituras Sagradas é destacada em praticamente todas as páginas de O
peregrino, através das indicações às referências bíblicas nas margens das páginas.
Conforme exposto, este fato demonstra a preocupação e o cuidado de Bunyan com as
prováveis armadilhas interpretativas presentes em textos alegóricos. Como escritor
puritano, ele tanto se justifica como procura prevenir leituras que não vão ao encontro
dos preceitos nos quais se baseia.
Como citado acima, Iser afirma que o relacionamento de Cristão consigo mesmo lhe
basta, de modo que ele aprende com seus próprios erros e, posteriormente, se corrige.
Esta interpretação vislumbra uma das características basilares do romance: o destaque
dado ao indivíduo, às suas buscas e conquistas. Entretanto, exclui as principais
prerrogativas do puritanismo, que consideram o ser humano completamente incapaz e
cego em termos de sua realidade espiritual e, consequentemente, de seu efetivo
crescimento pessoal. Assim, sem o auxílio divino, o homem jamais consegue perceber
seu caminho com clareza. Segundo a doutrina protestante, os eleitos por Deus têm uma
experiência de conversão, a partir da qual eles percebem o mundo com outros olhos,
passando então a se apoiar nas Escrituras Sagradas, na graça divina e na fé em um Deus
soberano. Portanto, ao dizer que Cristão não necessita de nada além de si mesmo em sua
109
busca de crescimento pessoal e espiritual, Iser deixa de lado fatores relevantes ao texto
de Bunyan.
A alegoria medieval faz uso de uma realidade sobreposta que pode ser interpretada
como o mundo espiritual. Neste estudo, pretende-se focar três elementos espirituais que,
segundo o puritanismo, formam a base da relação direta que se estabelece entre o
homem e Deus: as Escrituras, a graça divina e a fé. Pode-se dizer que estes elementos
diferenciam a alegoria de Bunyan do romance moderno, com seu conteúdo e sua
estrutura voltados ao indivíduo, que normalmente confia em si próprio e não em um
Deus atuante.
Em primeiro lugar, portanto, sugere-se que, como protagonista e representante do
peregrino puritano, Cristão se apóia na Palavra Sagrada desde o início de sua
peregrinação, a qual lhe revela as verdades cristãs, e também lhe oferece força,
orientação e algumas certezas. O início da trajetória de Cristão é marcado por grande
desespero. Ele em seu livro metaforicamente a Bíblia que a Cidade da Destruição
queimaria com fogo vindo dos céus, arruinando a vida de todos, exceto daqueles que
encontrassem uma forma de fuga e libertação. Isso faz com que Cristão fique
completamente transtornado, pois ele considera tal mensagem como verdade, e quer
encontrar alguma forma de evitar que seu destino seja trágico.
Vi um homem vestido de trapos, de em determinado lugar, com o
rosto voltado para o lado oposto da própria casa, um livro na mão e um
grande fardo às costas. Olhei e o vi abrir o livro, e lê-lo; e lendo, chorava
e tremia, e não se contendo, rebentou num choro sentido, dizendo:
Que devo fazer?
122
110
Os trechos em itálico são empréstimos do próprio texto bíblico. Em Isaías 64: 6
menção ao trapo da imundícia, que é comparado à justiça própria, em contraposição à
justiça divina. O versículo remete ao primeiro dos cinco pontos do calvinismo,
conhecidos também como a doutrina da graça ou a doutrina da predestinação. O
primeiro ponto é a Depravação Total (ou Incapacidade Total)
123
, e se refere à ideia de
que, após a queda, o homem é totalmente incapaz de demonstrar qualquer bem
espiritual perante Deus, devido à sua natureza decaída: ―Mas todos nós somos como o
imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos
como a folha, e as nossas iniqüidades, como um vento, nos arrebatam‖.
124
A questão da predestinação pode ser esclarecida através deste ponto, pois se o homem é
totalmente incapaz de fazer algo de si mesmo e se Deus é soberano, onisciente e
onipresente, cabe somente a Ele a escolha daqueles que o seguirão. Este é o segundo
ponto do calvinismo: a eleição incondicional. Além de eleger seus seguidores, a graça
divina lhes é concedida para que, através dela, e não através de seus próprios esforços,
eles sejam regenerados.
125
Nota-se que, segundo o pensamento calvinista, o homem não tem papel algum em sua
própria regeneração, pois a graça atua em sua vida desde os primeiros momentos de sua
conversão. Em Bunyan, não referência à graça neste momento inicial de desespero
de Cristão, mas vale notar que somente ele, dentre aqueles que o circundam, é tocado
pelas palavras do livro, o que demonstra que algo diferente ocorreu com ele. Além
disso, segundo a lógica do protestantismo, todos os moradores da Cidade da Destruição
122
BUNYAN, 2006, p. 3
123
GRUDEM, 1999, p. 409.
124
SHEDD, 2002, p. 1052 (Isaías 64: 6).
111
são considerados pecadores, mas Cristão é o único que percebe o peso de seus pecados,
simbolizado pelo grande fardo que carrega em suas costas e do qual não consegue se
livrar. O versículo 4 do Salmo 38, citado por Bunyan na margem, diz o seguinte: ―Pois
se elevam acima de minha cabeça as minhas iniqüidades; como fardos pesados,
excedem as minhas forças.‖
126
A repentina percepção que Cristão tem de sua própria incapacidade, do peso de seus
pecados e de seu provável futuro, caso ele permaneça na chamada Cidade da
Destruição, é tão forte que faz com que ele fuja desesperadamente. Ele vai mesmo sem
saber exatamente para onde ir, e acaba deixando para trás sua esposa e filhos, que ficam
com a impressão de que ele está enlouquecido:
Assim, afinal revelou sua angústia à mulher e aos filhos; e começou a
falar-lhes:
Minha querida esposa e filhos disse ele tenho estado muito
preocupado em virtude de um fardo que muito me pesa; além disso,
tenho uma informação segura de que nossa cidade será queimada com
fogo do céu, em cuja terrível destruição eu, você, minha esposa, e vocês,
filhinhos amados, seremos destruídos, a não ser que haja uma maneira
(que não vejo) de escapar, pela qual nos libertemos.
127
De acordo com o quarto dos cinco pontos do calvinismo, a inquietude de Cristão é
acionada pela Graça Irresistível. Da mesma forma que o homem é incapaz de perceber
sua depravação e de fazer algo para se justificar diante de Deus, ele também é incapaz
de resistir à graça divina que o leva à salvação. Sendo assim, a obra se torna
exclusivamente de Deus.
128
A partir de tal ideia, é possível compreender melhor a
atitude súbita e aparentemente insana que leva Cristão a abrir mão do conforto de seu
125
GRUDEM, 1999, p. 565-569 e 584-585.
126
SHEDD, 2002, p. 807 (Salmo 38: 4).
127
BUNYAN, 2006, p. 4.
112
lar e da companhia de seus familiares.
É importante compreender que a peregrinação de Cristão é alegórica, o que permite que
o trajeto por ele percorrido possa ser lido como uma sucessão de experiências
espirituais. Assim, a fuga de Cristão da Cidade da Destruição, local que habita, não é
necessariamente literal, mas se refere a uma mudança de direção que se dá devido a uma
decisão espiritual, a qual transforma sua vida, seus valores e seus objetivos.
Esclarece-se, ainda, a compreensão reformada das alianças estabelecidas por Deus no
texto bíblico. Estas envolvem ―um acordo imutável e divinamente imposto entre Deus e
o homem, que estipula as condições do relacionamento entre as partes‖.
129
A primeira é
a aliança das obras, tendo sido estabelecida desde o Jardim do Éden. Em linhas breves,
tal aliança inclui a promessa de bênçãos ao homem, pela obediência a Deus através das
obras. A segunda é a aliança da graça, que se refere à incapacidade do homem em
obter as bênçãos oferecidas pela aliança das obras e à necessidade da criação de um
novo caminho para a salvação. As partes desta aliança são Deus e o povo que ele
redimirá, tendo Cristo como mediador, que ele morreu pelos pecadores,
reconciliando-os com Deus. A aliança da graça requer a fé, como condição inicial, e a
obediência, como condição de permanência.
É neste espírito de fé e obediência que Cristão se decide pelo novo caminho. O
protagonista, então, inicia sua busca pela Porta Estreita, que, segundo as instruções do
personagem chamado Evangelista, o levará ao lugar onde poderá se livrar do pesado e
incômodo fardo que carrega nas costas. Antes de chegar lá, porém, ele cai no Pântano
128
GRUDEM, 1999, p. 584-585.
113
do Desânimo, e se desvia de seu caminho, ao dar ouvidos aos conselhos de um homem
chamado Sábio-Segundo-o-Mundo. Finalmente, quando chega à Porta Estreita, pede
humildemente para entrar e é recebido por Boa-Vontade.
A Porta Estreita está ligada aos textos bíblicos de Mateus 7: 13, 14 e Lucas 13: 24, que
fazem referência aos dois caminhos descritos biblicamente como os únicos possíveis,
aquele que conduz à vida eterna e aquele que conduz à perdição:
Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que
conduz para a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque
estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são
poucos os que acertam com ela.
130
A Porta Estreita pode ser interpretada como a entrada para o caminho que leva à
salvação. O personagem que a abre é Boa-Vontade. Segundo as notas explicativas de
Owens, este personagem ―representa a graça divina, a misericórdia de Cristo, pela qual
os pecadores são salvos‖.
131
A graça divina é comparada à misericórdia de Jesus Cristo,
que morreu na cruz de forma substitutiva, pois, segundo o calvinismo, todo aquele que é
desprovido da graça está morto. Jesus, então, morre no lugar dos eleitos e os salva de
uma vida pecaminosa e dissociada de Deus. Dessa forma, eles podem alcançar a glória e
ter a vida eterna. A graça seria algo inesperado e gratuito, assim como o sacrifício de
Jesus.
Segundo Owen, então, a graça divina é a primeira a receber Cristão no caminho que
leva à Cidade Celestial. Na segunda parte de O peregrino, a esposa e os filhos de
129
GRUDEM, 1999, p. 425.
130
SHEDD, 2002, p. 1338. (Mt 7: 13 e 14)
131
―[…] stands for divine grace, Christ’s mercy by which sinners are saved.‖ (OWENS IN: BUNYAN,
2003, p. 295).
114
Cristão também passam por uma experiência de conversão, que os leva até a Porta
Estreita. Quem os recebe, neste caso, é um personagem que pode ser identificado como
sendo o próprio Jesus, estabelecendo-se, também, a relação entre a graça e o sacrifício
de Jesus. Após passar pela Porta Estreita, Cristão encontra a Cruz, e a simples visão de
Cristo na Cruz é o bastante para fazer com que seu pesado fardo, que tanto o
incomodava, caia no chão, rolando morro abaixo.
Ao ser recebido no Palácio Belo, local de descanso e edificação para os peregrinos,
Cristão é indagado sobre qual é seu nome e de onde vem. Sua resposta é a seguinte:
―Meu nome é Cristão, mas antes eu me chamava Desditoso‖.
132
A palavra usada por
Bunyan para referir-se ao primeiro nome de Cristão é Graceless, que, em outra
tradução, é vertida como Desgraçado.
133
Na verdade, a tradução mais adequada seria
desprovido de graça. Ao dar sua resposta, o protagonista está expondo sua condição
quando vivia na Cidade da Destruição: ele era desprovido de graça.
Além da Bíblia e da graça divina como realidades espirituais, em O peregrino percebe-
se, ainda, referência ao ensinamento calvinista da providência divina, segundo o qual
Deus criou o mundo e tudo o que nele há, e após tal criação, Deus continuou no
comando. Dessa forma, cada coisa que acontece no percorrer da história, ou na vida dos
indivíduos, seja ela um pequeno detalhe, seja uma grande transformação, é considerada
ação de um Deus soberano. O protestantismo trouxe a ideia de que Deus usa todas as
coisas, inclusive as más, para cumprir seus desígnios. Exclui-se, assim, a ideia de sorte
ou acaso, já que ―todas as coisa acontecem pela sábia providência divina‖.
134
132
BUNYAN, 2006, p. 62.
133
BUNYAN, 2005, p. 85.
134
GRUDEM, 1999, p. 267. Ver capítulo 16: ―A providência divina‖.
115
Após sua estadia no Palácio Belo, Cristão segue morro abaixo, até chegar ao Vale da
Humilhação. Prudência já o havia prevenido: ―para o homem é penoso descer até o Vale
da Humilhação‖.
135
Como não havia desvios, a passagem pelo vale era obrigatória.
Assim, com sua recém-adquirida armadura, espada e escudo, ele desce o morro somente
para ir de encontro ao temível e horrendo Apoliom: um monstro que simboliza o diabo.
Apoliom se aproxima de Cristão para ameaçá-lo e julgá-lo. Após dialogarem
fervorosamente, Apoliom se lança sobre Cristão, e os dois começam a se digladiar.
Em determinado momento, Cristão é jogado ao chão, sua espada voa de sua mão e ele é
pressionado quase até a morte.
Mas quando o demônio se preparava para o golpe fatal, para dar cabo
enfim desse bom homem, Cristão, por graça de Deus, estendeu a mão à
espada e a agarrou, dizendo:
―Não te alegres a meu respeito‖, ó inimigo meu! ―Ainda que eu tenha
caído, levantar-me-ei‖.
Desferiu então um golpe fatal, fazendo recuar o demônio, como que
ferido de morte. Cristão, apercebendo-se disso, atacou-o novamente,
bradando:
―Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio
daquele que nos amou‖.
Diante disso, Apoliom abriu suas asas de dragão e afastou-se ligeiro, e
Cristão não mais o viu.
136
No início deste trecho, nota-se uma referência à providência divina, pois, apesar de
Cristão estar à beira da morte, o narrador diz: ―por graça de Deus‖ (―as God would have
it‖), e o andamento da disputa muda completamente de rumo. Observa-se que, antes de
dar o golpe de espada, Cristão repete um versículo bíblico retirado do livro de Miquéias
―Ó inimiga minha, não te alegres a meu respeito; ainda que eu tenha caído, levantar-
135
BUNYAN, 2006, p. 76.
116
me-ei‖.
137
No contexto calvinista, a força repentina de Cristão seria advinda da
providência divina, que através da graça o teria reerguido. Nota-se, também, o uso das
Escrituras, que, juntamente com o golpe final de Cristão, praticamente aniquilam seu
inimigo. Finalmente, Cristão extermina Apoliom, quando recita mais um versículo
bíblico: ―Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele
que nos amou.‖
138
A partir desse estudo, pode-se dizer que a análise de Iser ignora vários aspectos
pertinentes à doutrina calvinista presentes em O peregrino. Considere-se, por exemplo,
a seguinte afirmação de Iser, que desafia os ensinamentos calvinistas, segundo os quais
a alma do cristão não deve ter precedência sobre a graça divina: ―A obra de Bunyan
impressionantemente acentua a importância da alma individual, dando-lhe precedência
sobre os meios da graça, da instituição e da hierarquia‖.
139
A graça divina seria uma
espécie de força que levaria o indivíduo a agir da forma que agrade a Deus. É
importante ressaltar que, ao contrário do esperado, pode acontecer do cristão convertido
se deixar levar pela própria carne e pelos desejos humanos. Entretanto, tal atitude seria
considerada como um desvio do caminho, devendo ser corrigida.
Em concordância com Iser, observa-se que no contexto do calvinismo a alma tem
precedência sobre a instituição e a hierarquia. Este ponto é importante, pois ênfase à
novidade trazida pela Reforma: a salvação como algo pessoal. A exclusão da instituição
e da hierarquia dá autonomia ao indivíduo, que tem acesso às Escrituras Sagradas, com
136
BUNYAN, 2006, p. 81.
137
SHEDD, 2002, p. 1289. (Miquéias 7: 8)
138
SHEDD, 2002, p. 1289. (Romanos 8: 37)
139
―Bunyan’s work strikingly accentuates the importance of the individual soul, giving it precedence
over means of grace, the institution, and the hierarchy.‖ (ISER, 1978, p. 4).
117
liberdade para ler, estudar e verificar a precisão das doutrinas pregadas. Sua vida
espiritual se torna, então, significativa, no sentido de que o indivíduo pode se relacionar
diretamente com Deus, através do Espírito Santo e da Bíblia, considerada palavra
divina. Portanto, o cristão reformado está mais atento ao seu próprio crescimento
espiritual, realçando a concepção de que O peregrino realmente apresenta
características que indicam o surgimento do romance. No entanto, como explicitado
acima, Cristão não está sozinho nesta caminhada.
Com relação à falta de certitudo salutis, abordada de modo tão enfático por Iser, pode-
se dizer que Cristão demonstra tal incerteza somente no início de seu trajeto, quando
passa pelo Pântano do Desânimo e, posteriormente, quando tenta subir o Monte Sinai. O
episódio do Pântano do Desânimo seria equivalente ao período de incertezas espirituais,
aliado às primeiras sensações de impotência diante de Deus. O pântano é descrito como
um lamaçal, no qual Cristão e Vacilante, seu vizinho, subitamente caem. Devido ao
fardo pesado que Cristão ainda carrega naquele momento, ele começa a afundar.
Mesmo assim, seus esforços são no sentido de alcançar o outro lado do pântano, que
estaria mais próximo à Porta Estreita. Vacilante, ao contrário, se esforça para sair do
pântano pelo lado que ficava mais próximo de sua casa, na Cidade da Destruição.
O Pântano do Desânimo é interpretado por Thomas Scott, nas notas de estudo de uma
das traduções para o português de O peregrino, como o momento inicial de conversão
ao cristianismo, em que o convertido percebe sua debilidade diante de um Deus
bondoso e soberano, e, assim, se deixa afundar no brejo do medo e do desespero, devido
a uma profunda auto-humilhação.
140
Após tal momento, a alegoria de Bunyan ainda
140
SCOTT, 2005, p. 31 e 32.
118
retrata outros obstáculos que devem ser superados até que o cristão possa ter certeza de
sua salvação.
Depois de sair do Pântano do Desânimo, Cristão encontra um homem chamado Sábio-
Segundo-o-Mundo, que o convence de que uma forma mais fácil e igualmente digna
de se livrar do pesadíssimo fardo que carrega. Sua proposta inclui viver uma vida
segundo a moral e as leis de Deus. A princípio, Cristão se convence e segue o caminho
indicado, mas desiste quando se vê diante de uma montanha tão alta que dá a impressão
de que iria cair sobre sua cabeça. Além disso, seu fardo fica ainda mais pesado e
lampejos de fogo saem daquele monte.
Biblicamente, este seria o Monte Sinai, local em que Deus confiou os dez mandamentos
a Moisés. Segundo o protestantismo, com a vinda de Jesus houve o estabelecimento da
Nova Aliança, que pressupõe a incapacidade total do homem e a necessidade da graça
irresistível de Deus para que haja uma mudança espiritual realmente significativa no ser
humano. A entrega dos dez mandamentos no monte substitui uma Antiga Aliança, a
qual aterroriza o homem, pois ele se sente incapaz diante de uma lei que não consegue
cumprir. Na aliança anterior não a presença de Jesus como mediador entre o homem
e Deus.
A partir deste novo pacto, o monte passa a representar a confiança do homem em si
mesmo. Entretanto, as tentativas feitas pelo homem para atingir o bem diante de Deus o
levarão ao inevitável fracasso. A lógica da Nova Aliança está no reconhecimento por
parte do homem de sua dependência para com um Deus soberano. Dessa forma, mesmo
as boas ações são vistas como ganância ou vaidade, pois os homens acabam praticando-
119
as simplesmente para a própria justificação, sem que tenha havido uma verdadeira
entrega de sua vida à vontade de Deus, como acontece com Cristão.
Assim, como o próprio Cristão experimenta, o homem é incapaz de seguir a lei ao pé da
letra. Por isso, seu fardo se torna mais pesado e o monte parece desabar sobre sua
cabeça. Como explicitado acima, o fardo pesado de Cristão é exatamente o
reconhecimento da fraqueza e incapacidade humana de seguir um caminho de justiça,
pureza, simplicidade e amor. A partir daí, surge o sentimento de culpa. O Monte Sinai
representa a confiança nas boas ações e em um comportamento segundo os costumes
morais. Sábio-Segundo-o-Mundo e seus companheiros, Legalidade e Civilidade, do
povoado chamado Moralidade, são corretos em seu modo de agir, de forma que não
motivo para carregarem nenhum tipo de culpa ou peso na consciência. Entretanto,
somente essa postura já demonstra uma grande dose de vaidade e soberba, e está
desprovida da humildade necessária para que haja uma sincera entrega.
Cristão é novamente resgatado por Evangelista, que lhe explica seu erro em dar ouvidos
a ensinamentos que o desviem da Palavra Sagrada e do caminho descrito por ela. Então,
ele lhe indica mais uma vez a direção para a Porta Estreita. Cristão atravessa a Porta
Estreita e é recebido na casa de Intérprete. Depois, depara-se com a Cruz e é liberto de
seu fardo pesado, recebendo perdão por seus pecados, uma nova roupa, no lugar de seus
trapos, um sinal na testa e um rolo selado que ele deveria entregar ao chegar à Porta
Celestial. Todos estes são sinais de sua salvação. A partir daí, Cristão segue adiante com
a certeza de sua salvação, sabendo de suas próprias fragilidades e, portanto, de sua
dependência em relação a Deus. Mesmo no episódio em que luta contra Apoliom é
possível notar sua confiança no momento em que retoma suas forças e recita os
120
versículos fatais, derrotando seu inimigo.
Observa-se, portanto, que há uma divisão clara entre os períodos anteriores e posteriores
à salvação de Cristão. É neste sentido que se considera a falta de certitudo salutis
apenas como um momento de dúvida na vida de Cristão, anterior à sua salvação, e não
como uma incerteza que o persegue até o final de sua peregrinação, como afirma Iser.
A confusão interpretativa pode surgir porque, de fato, a certeza de Cristão permanece
somente no nível da fé, que está além de seu próprio entendimento como representante
do ser humano. A estadia de Cristão no Castelo da Dúvida, muito após sua passagem
pela Porta Estreita, demonstra que, apesar da certeza de sua própria salvação, Cristão
ainda é assaltado por momentos de dúvida e dificuldade. Segundo Talon, em seu estudo
sobre a vida de John Bunyan, aquele que se converte à cristã passa por experiências
pendulares distintas e, de certa forma, contraditórias:
Na vida espiritual de cada cristão e do puritano, mais especialmente
dois movimentos podem ser distinguidos: o primeiro, nascido da
penitência e da humilhação diante da face de Deus, volta-se interiormente
para examinar o eu; o segundo é o movimento contrário, afastando-se da
introspecção em direção à contemplação dos fins a serem alcançados. E
um dos mais importantes deles é o trabalho de evangelização.
141
Assim, motivado pela graça, Cristão se mantém fiel à sua crença e esperançoso de que o
final de todo aquele processo realmente o levará à tão desejada Cidade Celestial. Eis por
que seus grandes amigos e companheiros de viagem são primeiro Fiel e depois
Esperança.
141
―In the spiritual life of every Christian, and of the Puritan more especially, two movements can be
discerned: the first, born of penitence and humiliation before the face of God, turns inwards to examine
the self; the second is the contrary movement, drawing away from introspection towards the
contemplation of the goals to be attained. And one of the most important of these is the work of
121
A peregrinação representa a trajetória daquele que se converte ao cristianismo
protestante, expondo as possíveis dificuldades e alegrias com as quais pode se deparar
em seu caminho. Sharrock, estudioso da obra de Bunyan, afirma que em O peregrino
―cada junta articulada indica precisamente um estágio na psicologia puritana da
conversão‖.
142
No caminho, Cristão encontra personagens que lhe indicam a direção a
seguir, e outros que lhe sugerem desvios. Os locais por onde ele passa apresentam
nomes que se referem, de forma metonímica, às peculiaridades do lugar, podendo ser
interpretados como seus mais íntimos sentimentos: o desespero, a dúvida, a tentação, a
amizade, o aprendizado e o alívio, entre outros.
De acordo com a própria doutrina cristã, a escrita de O peregrino segue um trajeto
teleológico, sendo, portanto, indispensável dizer que Cristão chega à tão almejada
Cidade Celestial. Antes, porém, ele enfrenta inúmeros desafios. Suas lutas dependem de
muito auto-exame, mas não excluem a interferência de uma realidade espiritual,
invisível na maior parte dos casos. Além disso, ressalta-se a estrutura do texto, que,
segundo Iser, apresenta a passagem da épica para o romance através das reflexões
pessoais e dos diálogos que demonstram a profundidade do mundo interior dos
personagens.
O pensamento de Iser reforça a linha teórica que considera o romance pertencente ao
gênero épico ou narrativo, mencionada no primeiro capítulo. Isto se torna evidente,
pois a obra de Bunyan aponta em duas direções: para o passado da épica e para o
romance do presente. A alegoria como recurso retórico passa por alterações: na épica os
evangelization‖ (TALON, 1956, p. 14-15).
122
personagens eram apenas personificações de uma ideia, no romance os personagens
têm profundidade e individualidade. O texto de Bunyan demonstra uma das
modalidades dessa nova possibilidade de construção dos personagens.
Em termos históricos, é interessante perceber o papel da alegoria na evolução do
romance. Sugere-se, neste estudo, que houve uma transição da épica para o romance, na
qual a alegoria tem papel de destaque. Observa-se que é possível traçar um trajeto que
passa por Dante, Cervantes, Bunyan e Defoe. Devido a questões de cunho histórico, a
partir do século XVI a alegoria apresenta características que, posteriormente, serão
reconhecidas, também, no romance. A narrativa de Cervantes traz uma diferença ao
trajeto, pois utiliza uma retórica irônica. A alegoria de Bunyan se diferencia por
destacar o desenvolvimento psicológico dos personagens. Com Robinson Crusoé, Defoe
inaugura a identidade pessoal, o individualismo e o romance.
Uma viagem para o inferno
Nesta tese, afirma-se tamm que a paródia ―A estrada de ferro celestial‖ (The celestial
railroad), de Nathaniel Hawthorne, segue a tradição exposta acima. Apesar de ser um
escritor romântico, Hawthorne apresenta algumas características que o diferenciam de
seus contemporâneos. A primeira delas se deve ao fato de ter nascido em Salem e ter
sido profundamente marcado pela história de seus antecessores puritanos.
143
Esta
história, que não é a de seus familiares, mas também parte da origem do povo norte-
americano, em geral, determina os temas principais, os cenários e os personagens de
seus contos e romances.
142
―[E]ach articulated joint precisely indicates a stage in the Puritan psychology of conversion‖
(SHARROCK, 1965, p. 18).
143
Vide supra, p. 11.
123
Levando em consideração que Nathaniel Hawthorne foi grandemente atribulado pelos
atos de seus antecessores e profundamente marcado pelo puritanismo, como reflete sua
obra, constata-se a inevitabilidade do fato de ele ter lido Bunyan. Com efeito, a alegoria
da peregrinação de Cristão foi levada pelos puritanos para o Novo Mundo. E, na época
da juventude de Hawthorne, como afirma Henry James em biografia sobre o escritor, O
peregrino e The faerie queene eram as únicas opções de literatura infanto-juvenil
disponíveis.
144
Segundo Turner, em seu estudo biográfico, Hawthorne foi um leitor
entusiasmado de ambos os livros, em especial do primeiro.
Ele sabia o Peregrino virtualmente de cor, como disse uma vez, e se
referia ao livro mais frequentemente do que a qualquer outra obra
literária; ele estava inteiramente familiarizado com The Faerie Queene e
muitas vezes mencionava personagens e episódios de suas páginas.
Ambas essas obras o influenciaram grandemente e o elevado valor que
ele lhes atribuía comprova que considerava o método alegórico
aceitável.
145
Outro ponto a ser considerado é que na obra literária de Hawthorne há grandes indícios
de que ele não compartilha com seus contemporâneos o desgosto pelo uso da alegoria.
O próprio Edgar Allan Poe o critica de forma veemente no artigo intitulado Escrevendo
contos Nathaniel Hawthorne (Tale-writing Nathaniel Hawthorne), o qual questiona
a originalidade de Hawthorne como escritor, bem como seu excessivo apreço pela
alegoria: ―Ele é infinitamente aficionado demais pela alegoria e nunca poderá esperar
pela popularidade enquanto persistir nisso.‖
146
144
JAMES, 1879, p. 8.
145
―He knew O peregrino virtually by heart, he once said, and he referred to it more often than any other
literary work; he was thoroughly familiar with The Faerie Queene and often mentioned characters and
episodes from its pages. Both of these works influenced him greatly, and the high value he placed on
them testifies that he found the allegorical an acceptable method‖ (TURNER, 1961, p. 124).
146
―He is infinitely too fond of allegory, and can never hope for popularity so long as he persists in it.‖
(POE, 1847, p. 6).
124
A partir das reflexões acima, é possível vislumbrar ―A estrada de ferro celestial‖ como
um conto alegórico e irônico estruturado a partir de O peregrino. Na paródia,
Hawthorne faz uso da prosa, e seu protagonista, narrador em primeira pessoa, ocupa o
lugar de Cristão. Evidencia-se, além disso, uma localização temporal específica.
Enquanto Cristão transita por um espaço atemporal, com algumas características
medievais, o protagonista de Hawthorne está na época da Revolução Industrial.
Destaca-se, mais especificamente, a novidade trazida pelo advento das ferrovias e do
trem a vapor. ―A estrada de ferro celestial‖ propõe a mesma viagem feita a por
Cristão, mas agora com a conveniência de o viajante poder ficar confortavelmente
assentado em uma poltrona de trem durante a maior parte do tempo. O narrador sem
nome conhece todo o trajeto, e se refere ironicamente ao livro de Bunyan como o
guia turístico do Sr. Bunyan. A peregrinação se torna, assim, uma espécie de roteiro
turístico.
A referência feita ao guia turístico pode sugerir que o livro de Bunyan se teria tornado
uma leitura corriqueira, pois tanto o trajeto trilhado por Cristão como suas interações
com os personagens com os quais se depara são todos conhecidos de antemão pelos
passageiros do trem. A popularidade do livro o transformou em um espaço em que as
pessoas acabam transitando por mera curiosidade. Atualmente, pode-se apontar a
ocorrência de um fenômeno semelhante nos parques temáticos do Disney World. O
Mundo de Disney passou a ser um lugar conhecido por todos, pois, de certa forma, seus
personagens, cenários e histórias fazem parte de um imaginário coletivo desde a mais
tenra infância. Por isso, este mundo fantasioso, que se torna concreto nos parques
temáticos, gera uma espécie de emoção em seus visitantes, pela simples condição de
125
poderem estar ali presentes. Sensação semelhante é evidenciada no narrador ao
percorrer os caminhos pelos quais passou Cristão.
O guia turístico do Sr. Bunyan também pode ser uma referência irônica ao fato de
Bunyan ter escrito um livro baseado em sua crença e em seu próprio desenvolvimento
espiritual, livro que, por fim, se torna uma espécie de guia geral ao cristianismo
calvinista. Este guia, no entanto, com o passar do tempo, perde seu significado mais
profundo e se transforma apenas em um roteiro para uma viagem fantástica.
Apesar dessa transfiguração, através do conto de Hawthorne percebe-se que algo
permanece, pois os viajantes que optam pelo trajeto antigo, a pé, são muito bem
recebidos na Cidade Celestial. O mesmo não pode ser dito a respeito daqueles que
seguem a viagem de trem, pois a suspeita de que eles são levados para outro local
não tão aprazível quanto a ansiada Cidade Celestial.
É interessante perceber que a paródia de Hawthorne reafirma a doutrina cristã defendida
por Bunyan através da permanência do trajeto anterior com os peregrinos que percorrem
o caminho a pé. Desde o início da narrativa, estes peregrinos antiquados o satirizados
pelos peregrinos motorizados. Entretanto, no final da história, somente aqueles que
peregrinaram à moda antiga chegaram à Cidade Celestial. Os peregrinos modernos não
passaram, mas também findaram suas vidas nas próprias regiões infernais. Ressalta-
se que, apesar da reafirmação do cristianismo de Bunyan, a opção do narrador é a de
permanecer no trem, gerando uma espécie de ambiguidade que permanece até o fim da
narrativa.
126
O protagonista-narrador da paródia atravessa o portão dos sonhos e visita a região da
Terra onde fica a Cidade da Destruição. Ali chegando, ele se encanta com a novidade da
construção de uma ferrovia que une a Cidade da Destruição à Cidade Celestial,
facilitando assim todo o árduo percurso trilhado por Cristão. Tendo pouco tempo à
disposição, ele resolve fazer a viagem o quanto antes. Após pagar a conta de seu hotel,
chama uma carruagem para levá-lo à estação de trem, e pede ao cocheiro que guarde
suas malas. Ao entrar na carruagem, ele tem o prazer de conhecer o seu já mencionado
companheiro de viagem, o Sr. Arranja-tudo (Mr. Smooth-it-away).
Smooth away é um verbo frasal que significa retirar a aspereza de uma dada superfície.
A partir do significado do nome da personagem, pode-se imaginar qual é sua função
durante toda a viagem. A peregrinação de Cristão, apesar de ser muito gratificante e
plena de aprendizados, também é repleta de trechos sombrios e difíceis, sem mencionar
o próprio momento inicial da percepção espiritual que Cristão tem de sua incapacidade
total, do fardo que inevitavelmente carrega e de sua necessidade de salvação. O Sr.
Arranja-tudo é o personagem alegórico que convence o narrador a trilhar o caminho
mais fácil.
Pattison aponta a semelhança do personagem Sr. Arranja-tudo em A estrada de ferro
celestial‖, e o personagem Sábio-Segundo-o-Mundo em O peregrino. Logo no início da
história de Cristão, Sábio-Segundo-o-Mundo tenta desviá-lo do caminho que leva à
Porta Estreita. De modo diverso, em ―A estrada de ferro celestial‖, o personagem Sr.
Arranja-tudo e o princípio que ele simboliza acompanham o narrador até seus últimos
momentos de viagem.
147
147
PATTISON, 1968, p. 233.
127
O narrador e seu companheiro, ainda na carruagem, passam pelo Pântano do Desânimo,
mas por meio de uma ponte que havia sido construída sobre o local. Apesar da
descrição detalhada do Sr. Arranja-tudo sobre os fortes fundamentos da ponte, o
narrador se sente inseguro ao atravessá-la, já que ela vibra, movimentando-se para cima
e para baixo.
A estação de trem coincide com a Porta Estreita. Como se fosse uma estão comum,
qualquer pessoa tem livre acesso a ela. Para viajar, compra-se uma passagem, e as
malas, como era de se esperar, ficam guardadas no bagageiro. A viagem então começa.
A princípio, o narrador se surpreende com a aparência do trem e depois questiona a
presença de Apoliom, o condutor. Entretanto, o Sr. Arranja-tudo sempre tem respostas
convincentes, de forma que as dúvidas do protagonista não persistam.
Naquele momento a locomotiva parou à frente dos vagões, e mais
parecia, devo confessá-lo, uma espécie de demônio mecânico que devia
nos precipitar para as regiões infernais, não uma elogiável engenhoca
para nos aplainar o caminho para a Cidade Celestial. Sentava-se em cima
dela uma personagem quase inteiramente envolvida em fumaça e
chamas, as quais, para não assustar o leitor, se diriam jorrar de sua boca e
do seu estômago, bem como do brônzeo ventre da locomotiva.
Será uma ilusão de ótica? exclamei. Que diacho será isso? Uma
criatura viva? Se assim for, ele é o próprio irmão da máquina sobre a qual
cavalga?
Ora, ora, que tolice, o senhor é obtuso! disse o Sr. Arranja-Tudo com
uma franca gargalhada. Não conhece Apoliom, o velho inimigo de
Cristão, com quem ele travou uma batalha tão feroz no Vale da
Humilhação? Pois é ele mesmo que dirige a máquina; reconciliamo-lo
com o costume de peregrinação, contratando-o como maquinista chefe.
148
As dúvidas do narrador começam na ponte sobre o Pântano do Desânimo e persistem
até o fim da jornada. Apesar das evidências serem sempre contrárias ao que afirma seu
128
companheiro de viagem, o narrador se deixa convencer por ele com grande facilidade.
As paradas do trem, por exemplo, coincidem somente com os lugares sombrios pelos
quais passa Cristão e nunca com os locais de repouso e crescimento espiritual. Segundo
o Sr. Arranja-tudo, isto ocorre porque os moradores destes locais o concordam com a
nova forma de peregrinação, e por isso são tidos como intransigentes, antiquados e
pouco abertos a mudanças.
Considerando o conto ―A estrada de ferro celestial‖, Pattison relaciona o Sr. Arranja-
tudo ao personagem Sr. Não-se-afobe (Mr. Take-it-easy), pois ambos simbolizam o
mesmo princípio e funcionam como uma espécie de alter-ego do narrador. Entretanto, o
primeiro é admirado pelo narrador durante todo o percurso da viagem, enquanto o
segundo surge inesperadamente na caverna do Vale da Sombra da Morte, uma das
paradas do trem, e é explicitamente rejeitado pelo narrador. A diferença entre os dois
seria tão somente de postura diante de suas opções de vida. O Sr. Arranja-tudo é um
viajante que tem consciência de seu gosto pelas coisas do mundo, mas que procura
sempre esconder este seu apreço por trás de uma grande farsa. De forma semelhante, o
Sr. Não-se-afobe aprecia as coisas do mundo, mas, em contrapartida, é completamente
sincero com relação aos seus sentimentos, assumindo-os sem deixar transparecer
qualquer motivo para temor ou culpa:
Vocês não iam para a Cidade Celestial? perguntei.
Íamos, sim respondeu o Sr. Não-se-Afobe, distraidamente soltando
uma baforada de fumaça nos meus olhos. Mas ouvi tanta notícia ruim,
que não quis dar-me o trabalho de subir o monte onde fica a cidade.
não se faz negócio, nem a gente se diverte, nem há o que beber, é
proibido fumar, e dia e noite se ouve um zangarreio de música de
igreja… Não ficaria lá, nem que me oferecessem casa e pensão grátis.
149
148
HAWTHORNE, 1964, p. 84.
149
HAWTHORNE, 1964, p. 89.
129
Além disso, o Sr. Arranja-tudo tem o papel de convencer o narrador de que o caminho
que seguem é diferente do outro somente devido às mudanças que ocorreram naquela
época de grandes melhorias, mas que certamente os levará ao destino esperado. Tanto o
narrador como o Sr. Arranja-tudo utilizam adjetivos como liberal, conveniente, útil e
expansivo para descreverem tal época, que pode ser considerada a do nascimento da
modernidade.
No entanto, ao mesmo tempo em que o narrador admira as novidades trazidas pela
modernidade, ele tenta rejeitá-las, culpando-as e ridicularizando-as. Segundo Pattison, o
narrador utiliza esta manobra para continuar escondendo a verdade de si mesmo. A
modernidade seria, ainda, personificada pelo Sr. Arranja-tudo, e altamente ironizada
através da cena da Feira da Vaidade.
Esses absurdos transparentemente irônicos, juntamente com a crítica
direta do narrador, não desacreditam o modernismo, mas permitem ao
narrador desfrutar uma superioridade bastante convencida quanto ao fato
de que o modernismo é o que está errado com o mundo.
150
Em O peregrino uma cidade no caminho, que se chama Vaidade. Nesta cidade,
um lugar chamado Feira da Vaidade, ―porque tudo o que se vende ali ou que ali chega é
Vaidade.‖
151
A experiência de Cristão neste local foi de grande sofrimento, pois ele e
Fiel, seu companheiro de peregrinação, além de usarem roupas que destoavam daquelas
vestidas pelos moradores da cidade e de falarem uma língua diferente, se opuseram
veementemente a comprar qualquer um dos objetos oferecidos.
150
These transparently ironic absurdities, together with the narrator’s direct criticism, not only discredit
modernism but permit the narrator to enjoy a rather smug superiority about the fact that modernism is
what is wrong with the world.‖ (PATTISON, 1968, p. 230).
151
BUNYAN, 2006, p. 122.
130
[U]ma feira […] em que se vendesse toda sorte de vaidades, e que
durasse o ano inteiro. Logo, nessa feira vende-se todo tipo de mercadoria,
como casas, terras, negócios, lugares, honrarias, tulos, países, reinos,
paixões, prazeres e deleites de toda espécie, como também meretrizes,
cafetinas, esposas, maridos, filhos, senhores, servos, vidas, sangue,
corpos, almas, prata, ouro, pérolas, pedras preciosas e tudo o mais.
152
Em ―A estrada de ferro celestial‖, a Cidade da Vaidade também é parada obrigatória do
trem. Entretanto, em contraposição ao ocorrido com Cristão, o narrador se sente
bastante à vontade no local. Decide passar um período mais longo nesta parada, e
procura saber sobre as vantagens de residir ali. Ele considera sua opção mais séria do
que a da maioria dos viajantes, que estão ali apenas em busca de prazeres efervescentes.
Durante sua estadia, o narrador observa as mudanças ocorridas no local desde a
passagem de Cristão. A vida espiritual é muito valorizada, pois passou por grandes
melhorias. Ele destaca, com alegria, o fato de que cada rua tem sua igreja e o clero
responsável é altamente respeitado por sua sabedoria e virtude. Nesse ponto, faz
referência à lista de nomes exóticos de membros do clero, que, conforme mencionado,
descrevem muito bem não a maneira de pensar dos habitantes da Cidade das
Vaidades, mas também a religiosidade rasa dos mesmos.
Na época de Hawthorne, o transcendentalismo e a teologia Unitária estavam em voga e
ambos negam a existência do mal e a necessidade de salvação.
153
Alguns críticos, como
é o caso de Elder, consideram Hawthorne um Transcendentalista, já que ele teve contato
com vários dos integrantes do chamado Transcendental Club através de seu casamento
com Sophia Peabody, irmã de Elizabeth Peabody. No entanto, parece questionável
152
BUNYAN, 2006, P. 123.
131
propor que sua posição pessoal seja condizente com este pensamento. No próprio conto
em análise um trecho em que o trem passa em frente a uma caverna, onde reside um
ser terrível, chamado Gigante Transcendentalista (Giant Transcendentalist). Este
gigante parece fazer referência a Ralph Waldo Emerson, o maior expoente do
transcendentalismo romântico na América do norte.
A semelhança entre esse gigante e a religiosidade presente na Cidade da Vaidade é
bastante pertinente, pois ambos lidam com conceitos vagos, confusos e sem
fundamento. no conto de Hawthorne uma crítica veemente, direcionada a teologias
prolixas e com pouco embasamento. Na verdade, as crenças religiosas de Hawthorne
não são claras e sua postura pessoal parece bastante oscilante.
Outra característica marcante da Cidade da Vaidade em ambos O peregrino e ―A
estrada de ferro celestial‖ é a forma pela qual as coisas espirituais e as coisas materiais
se equivalem. Como citado acima, no texto de Bunyan as mercadorias vendidas na
Feira da Vaidade são de natureza variada. Compram-se desde casas, países, títulos e
pedras preciosas a profissões, esposas, prazeres e almas. No conto de Hawthorne, a
paridade entre o espiritual e o material fica ainda mais explícita. Importa adicionar que
as coisas espirituais englobam também tudo aquilo que é imaterial e, portanto,
intangível, como é o caso da ética, da religião e da literatura. Em ―A estrada de ferro
celestial‖, coisas como estas são produzidas por uma espécie de máquina e
posteriormente são transmitidas ou vendidas aos interessados.
Assim, a literatura é eterizada, adotando para seu veículo a voz humana;
e o conhecimento, precipitando todas as suas partículas mais pesadas,
153
PATTISON, 1968, p. 224.
132
exceto, indubitavelmente, o seu ouro, se exala num som, que daí por
diante se insinua no ouvido sempre aberto da comunidade. Esses
engenhosos métodos constituem uma espécie de maquinaria, mediante a
qual se fabricam o pensamento e o estudo para todas as bocas, sem que
ninguém precise esforçar-se para obtê-los. também outra espécie de
máquina para a fabricação em grosso da moralidade individual.
154
Nota-se acima que a modernidade é apresentada como uma forma de preencher os
vácuos do ser humano de um modo facilitado, embora desumanizado. Entretanto, essa
modernidade que preenche vazios através de suas maquinarias e transações financeiras
é, de fato, apenas uma farsa. É uma forma de mascarar o que pode ser uma verdade
autêntica. A ideia, por exemplo, de adquirir uma esposa na Feira da Vaidade pode trazer
ao comprador uma sensação de satisfação e poder, mas exclui todo um processo de
conquista, além dos sentimentos de amor e cumplicidade. Estas questões, no entanto,
não são problemáticas para os moradores da Cidade da Vaidade, pois existe ali uma
espécie de ação financeira chamada Consciência:
Havia ali um depósito, ou sacola, chamado Consciência, que se diria
estar em grande procura, pois comprava quase tudo. Com efeito, poucos
artigos finos se podiam obter sem pagar uma pesada soma àquele
depósito especial, e os negócios de um homem eram raramente lucrativos
a menos que ele soubesse quando e como lançar no mercado a
consciência que amealhara. Entretanto, como aquele depósito era a única
coisa de valor permanente, quem quer que dele abrisse mão, ao fim e ao
cabo, saía infalivelmente perdendo.
155
Quando a consciência dos moradores da cidade pesa, eles simplesmente a aplicam no
mercado financeiro, tendo a certeza de terem feito um bom negócio. Na Feira da
Vaidade há, também, o que o narrador chama de compras muito idiotas
156
que
demonstram ter uma lógica diferente daquela do lucro, do poder e da vaidade. Um
154
HAWTHORNE, 1964, p. 92.
155
HAWTHORNE, 1964, p. 93.
156
HAWTHORNE, 1964, p. 93.
133
exemplo é o rapaz que herdou uma fortuna, mas usou grande parte dela para adquirir
doenças. Com o restante do dinheiro, comprou arrependimento e um terno de farrapos.
Tal lógica faz alusão à sede por uma vida sincera, independentemente do sofrimento
que ela possa trazer. Além disso, remete ao caminho do arrependimento escolhido por
Cristão. Entretanto, segundo os ensinamentos encontrados em O peregrino, este
caminho não poderia jamais ser comprado, mas sim recebido através da graça divina.
Após uma longa estadia na cidade, o narrador relembra seu objetivo inicial somente
após ouvir a fala de alguns autênticos peregrinos com relação à forma de viagem
escolhida por ele: ―garanto-lhe, e conjuro-o a aceitar a verdade das minhas palavras:
toda essa coisa não passa de ilusão‖.
157
Estas palavras fazem com que ele queira sair
logo da Cidade da Vaidade, com o intuito de chegar o quanto antes à Cidade Celestial, e
assim confirmar a veracidade de sua própria peregrinação. Apesar da referência
negativa que os peregrinos fizeram com respeito à viagem de trem, o narrador retoma
sua poltrona. Enquanto o trem dá partida, ele se lembra de que realmente havia algo que
o incomodava na Cidade da Vaidade:
Uma estranha coisa me perturbava. Entre as atividades e os divertimentos
da Feira, nada mais comum do que uma pessoa estivesse ela num
banquete, num teatro, na igreja, ou traficando riqueza e honrarias, ou no
que quer que fosse que estivesse fazendo e quão intempestiva fosse a
interrupção do que uma pessoa, dizia eu, repentinamente desaparecer
como uma bolha de sao, a ponto de nunca mais ser vista por seus
semelhantes; e tão habituados estavam estes últimos com esses pequenos
incidentes, que prosseguiam em suas atividades tão tranquilamente como
se nada tivesse acontecido.
158
Percebe-se que, na Cidade da Vaidade, a vida, ou seja, aquilo que há de mais importante
157
HAWTHORNE, 1964, p. 95.
158
HAWTHORNE, 1964, p. 95.
134
para cada um, perde qualquer tipo de sentido. É como se os moradores da cidade aos
poucos se transformassem em bolhas de sabão, com suas superfícies finas e frágeis e um
interior completamente vazio. Por fim, estouram, sem deixar para trás qualquer
resquício que seja, nem mesmo saudades. Nota-se que os moradores da cidade não têm
nenhum comprometimento, em termos de um envolvimento de ordem mais profunda,
nem com eles próprios, nem com as outras pessoas que os circundam, e muito menos
com qualquer tipo de espiritualidade de fato edificante.
Esta é uma tendência que se desenvolve de várias formas ao longo do conto. Pattison
ressalta a característica evasiva do narrador que, diferentemente de Cristão, foge do
auto-exame a todo instante. Segundo Pattison, a utilização do sonho para incorporar as
verdades repugnantes que se escondem no coração do ser humano é uma tendência na
obra de Hawthorne.
159
No caso específico do narrador, nenhum crime grave foi
cometido, mas ele prefere se deixar levar pelos caminhos mais fáceis e prazerosos.
Além disso, não faz reflexões pessoais sobre suas próprias atitudes e forma de pensar.
Ao contrário, vive como que mascarado.
160
Pattison afirma que o narrador de ―A estrada de ferro celestial‖ ocuparia o lugar de
Cristão, mas sob a forma de uma pessoa adepta das invenções do mundo e da
liberalidade da época. Embora nutra a vontade de ser recebido na Cidade Celestial, não
está disposto a reconhecer nenhum de seus desejos mais íntimos. Portanto, estes desejos
se transformam em um grande sentimento de culpa, aliado à infeliz certeza de que seu
destino final não será a Cidade Celestial, mas o inferno. Apesar disso e de seu pavor por
159
―dreams embody the hidden, often intolerable, truths of the human heart under conditions of their own
choosing‖ (PATTISON, 1968, p. 226).
160
PATTISON, 1968, p. 226.
135
qualquer coisa que seja infernal, o narrador continua utilizando sua máscara de Cristão.
Segundo Pattison, como sonho, a narrativa exerce um papel ambíguo, pois ao mesmo
tempo em que revela os medos e os desejos mais íntimos do narrador, ela não pode ser
levada a sério, por constituir apenas uma história fantástica. Assim, quando no final do
conto o narrador acorda, ele acaba se livrando de um momento de muita tensão, ou seja,
a travessia do Rio da Morte e a descoberta do destino final de sua viagem. Ele acorda
aliviado, pois tudo não havia passado de um sonho. De fato, ele continua a afirmar que
prefere esconder de si mesmo aquilo que o aflige, em prol de uma tranquilidade
inconsistente.
[M]as as rodas, ao começarem as suas revoluções, atiraram em cima de
mim um borrifo tão frio tão mortalmente frio mercê do gelo que jamais
deixará essas águas até que a Morte se afogue em seu próprio rio que…
com um tremor e um baque no coração, acordei. Graças ao Céu tudo
fora um Sonho!
161
A culpa é considerada o grande tema da obra de Hawthorne. No conto ―A estrada de
ferro celestial‖ a culpa é encoberta e nem mesmo mencionada como tal. A bagagem do
protagonista, que seria o equivalente ao fardo pesado que Cristão carrega em suas costas
no início da peregrinação, é colocada no bagageiro da carruagem pelo cocheiro, de
forma que o protagonista não precise se incomodar com nenhum tipo de peso. Além
disso, o que o leva a sair da Cidade da Destruição para chegar à Cidade Celestial não
tem nenhum embasamento espiritual, que ele procura apenas satisfazer uma mera
curiosidade turística.
A Cruz é completamente desnecessária nessa nova proposta, visto que não quem
136
carregue fardos pesados neste trem. O Vale da Humilhação não existe no novo trajeto,
pois foi preenchido com a terra retirada para abrir o túnel dando passagem ao trem.
Restou apenas a lei e, consequentemente, a culpa. Entretanto, seria uma espécie de
culpa velada, e que não vem acompanhada de nenhum tipo de arrependimento e
crescimento espiritual.
É interessante retomar a discussão sobre Sábio-Segundo-o-Mundo em O peregrino, pois
no contexto do narrador de Hawthorne nota-se claramente a vontade de retidão, em
contraposição a uma incapacidade total de seguir tal caminho. Assim, a lei, a moral, os
bons costumes e a modernidade passam a funcionar também como uma máscara que, de
certa forma, serve como justificativa para que não haja a necessidade do
reconhecimento da própria dificuldade em simplesmente optar pela peregrinação
traçada por Cristão.
Além da culpa, o vazio do legalismo e da moralidade é, também, um tema recorrente na
obra de Hawthorne. rios de seus trabalhos demonstram a incoerência do
comportamento dos colonizadores puritanos, que fugiram da Inglaterra para ter
liberdade de pensar, e acabaram agindo de forma semelhante aos ingleses, ao aplicarem
punições àqueles que não compartilhavam da mesma crença. Além disso, a própria
Sociedade Puritana é deflagrada como um espaço onde predomina uma religiosidade
que se baseia em leis e formas de agir. O resultado é um grupo de pessoas que age
através do julgamento e não do perdão. Daí a grande ênfase na culpa, de forma
semelhante a um ciclo vicioso, como consequência do julgamento e da falta de perdão.
161
HAWTHORNE, 1964, p. 99.
137
Em O peregrino a Cidade da Vaidade faz referência ao livro bíblico do Eclesiastes, no
qual o narrador conta a história de como ele se dedicou a diversas coisas, como a busca
do conhecimento, a posse de tudo quanto desejasse e o trabalho. Entretanto, ele conclui
que ―tudo era vaidade e correr atrás do vento.‖
162
Correr atrás do vento pode ser
considerado uma atitude insana e sem objetivo, pois o vento é inalcaável. Entretanto,
sabe-se que o vento existe, já que as folhas balançam e a pele o sente. Talvez por isso a
busca continue, mesmo em vão. Essa corrida sem fim vincula-se à ilusão. Em ―A
estrada de ferro celestial‖, o Sr. Apegue-se-ao-direito (Mr. Stick-to-the-right),
representante dos peregrinos autênticos, afirma o seguinte sobre a viagem de trem feita
pelo narrador:
Pode o senhor viajar a vida inteira, e mesmo que tivesse de viver
milhares de anos, nunca lograria passar além dos limites da Feira das
Vaidades. Sim: embora pensasse estar cruzando os portões daquela bem
aventurada cidade, isto não seria mais que uma mísera ilusão.
163
A paródia de Nathaniel Hawthorne permite uma grande gama de leituras. Neste estudo a
retórica do narrador é analisada com o auxílio do ensaio crítico de Pattinson. Nota-se no
texto literário um discurso que oscila entre as aparências e a realidade. O ―guia turístico
do Sr. Bunyan‖ se torna algo que é aparentemente uma viagem turística, ignorando os
preceitos puritanos presentes na obra. uma oscilação também entre aquilo que é
profundo e aquilo que é raso. O transcendentalismo e a Cidade da Vaidade são
apresentados com características frívolas e sem fundamento. Os peregrinos antiquados,
em contraposição, são ridicularizados, mas seguem um caminho supostamente bem
fundamentado.
162
SHEDD, 2002, p. 959.
138
Além disso, no conto de Hawthorne a modernidade é descrita pela lógica do dinheiro
que paga qualquer tipo de necessidade física, emocional ou espiritual. O discurso de
Hawthorne, embora critique os tempos modernos e o progresso tecnológico, não é
sugestivo de nenhum tipo de saída, nem mesmo através da doutrina puritana. Apesar de
haver a possibilidade de dois caminhos, um que leva à Cidade Celestial, e outro que
leva às regiões infernais, percebe-se que o narrador teme o inferno, mas opta por
permanecer no caminho dos trilhos de ferro, do fogo, da fumaça, da queima de carvão,
da velocidade, das relações superficiais, das maquinarias, do dinheiro, da venda, da
troca, e do mundo financeiro.
Conclui-se, assim, que a alegoria no conto de Hawthorne é utilizada de forma satírica e
irônica, levantando questões históricas relacionadas ao progresso tecnológico, ao
sistema capitalista e suas influências nas relações sociais humanas. Além disso, desloca
para um passado remoto e ultrapassado não só os antigos valores puritanos, mas
também o uso de uma retórica alegórica baseada em uma doutrina religiosa.
A descoberta de si
A cidade sem nome de Auster faz correspondência com a Cidade da Destruição através
da utilização de uma linguagem alegórica que dialoga com a tradição literária e com a
sociedade e cultura contemporânea. Algumas das questões sociais levantadas no
romance foram descritas no segundo capítulo desta tese. No que diz respeito à cultura,
apesar de Auster não fazer referência ao artista plástico Kurt Schwitters, propõe-se um
paralelo entre a protagonista do romance e a obra do artista, destacando, em especial, o
163
HAWTHORNE, 1964, p. 95.
139
poema intulado ―An Anna Blume‖
164
e a colagem The Kots Picture
165
. Tal ligação será
estabelecida a partir do estudo que Mike Johnson faz da obra de Kurt Schwitters.
A escrita de Auster segue um caminho diferente da retórica caricatural de Hawthorne,
pois utiliza o desnudamento, a escassez e a falta para levantar questionamentos sociais e
espirituais. O romance de Auster sugere que a falta de sentido gera uma espécie de
busca espiritual que, embora não tenha fundamento teológico, promove a transformação
do indivíduo através do relacionamento com o outro.
Anna Blume, a protagonista de No país das últimas coisas, escreve uma carta, a um
destinatário incerto, sobre suas aventuras e desventuras em uma cidade sem nome. Ao
ler o romance, o leitor é levado a associar a cidade de Anna à Cidade da Destruição,
nomeada na epígrafe: ―Não muito tempo atrás, passando pela porta dos sonhos,
visitei aquela região da terra em que fica a famosa Cidade da Destruição.‖
166
No romance não há referência ao peregrino de Bunyan ou ao de Hawthorne, nem
mesmo a qualquer lugar que se assemelhe à Cidade Celestial. Além disso, Anna Blume
faz um percurso diferente, pois deixa sua cidade natal para se aventurar na própria
Cidade da Destruição, local a que poucos se arriscariam a ir, devido ao perigo que
subjaz ali. Ao contrário de Cristão, sua busca não é espiritual, pois seus objetivos são,
aparentemente, palpáveis: encontrar seu irmão e, após o fracasso da busca, sair daquela
cidade.
164
O poema em alemão está disponível em:
http://home.arcor.de/reisner/liebeslyrik/schwittersannablumegedicht.htm (acesso em junho de 2010)
165
Imagem disponível em: http://homepage.ntlworld.com/davepalmer/cutandpaste/schwitters_big1.html
(acesso em junho de 2010)
166
―Not a great while ago, passing through the gate of dreams, I visited that region of the earth in which
lies the famous City of Destruction‖.
140
A partir da longa carta apressadamente escrita à mão por Anna Blume, surge diante dos
olhos do leitor uma cidade tenebrosa que pode ser comparada ao próprio inferno, mas
curiosamente, também a inúmeras cidades dos séculos XX e XXI. Em O peregrino,
segundo as notas de estudo de Scott, a Cidade da Destruição simboliza ―o presente
mundo mau, que está condenado às chamas, ou à condição de pecadores apáticos,
mergulhados em objetivos e prazeres seculares‖.
167
Ela nada tem a ver com a Cidade
Celestial, que, segundo a doutrina protestante, além de ser destino daqueles que se
convertem a Cristo, é um lugar inconcebível pelo ser humano, devido à sua natureza
divina. A Cidade Celestial é feita de ouro e pedras preciosas, em suas ruas circulam
anjos, o Rio da Vida ali flui, e Deus, Ser Supremo e Bondoso, está assentado em Seu
trono próximo a todos que vivem no local.
Em contraste com a Cidade Celestial, os moradores da cidade sem nome de Auster não
se lembram da existência de Deus, lutam de forma sofrida pela própria sobrevivência e
não têm sequer a esperança de sair daquele lugar, vivendo com a constante e
perturbadora sensação de aprisionamento. São pessoas solitárias que, na maior parte dos
casos, vivem vagando pelas ruas. De forma antagônica, algumas estão em busca do
próprio sustento, e outras, da própria morte. Há, no ar, uma espécie de selvageria,
gerada pela situação de extrema escassez e necessidade em que se encontram. Como
resultado, observa-se um individualismo exacerbado, devido a estômagos famintos e
corpos frágeis, expostos às mais inclementes manifestações climáticas.
Uma vez na cidade, devido às dificuldades diárias, Anna não consegue se concentrar em
167
SCOTT, 2005, p. 20-21.
141
suas investigações referentes ao paradeiro do irmão. Naquela urbe sem nome, não o
que comer, onde passar as noites, ou pessoas em quem confiar. A princípio, Anna
encontra muita dificuldade para resolver essas questões básicas e primordiais que se
relacionam à sua própria sobrevivência. Conseqüentemente, o objetivo inicial de sua
viagem se torna longínquo.
É uma incógnita o fato de haver tantos habitantes nesse local, que muitas pessoas
morrem diariamente e os bebês se recusam a nascer. A impressão que se tem é de que a
própria cidade está se consumindo. É impossível compreender exatamente como a urbe
sobrevive, pois nada se constrói. Pelo contrário, prédios e ruas simplesmente
desaparecem. Este estado de incertezas e possibilidades imprevisíveis leva os habitantes
a desenvolver táticas para sobreviver.
Pouco a pouco, a cidade lhe rouba a certeza. Não pode haver nunca um
caminho fixo e você pode sobreviver somente se nada lhe for necessário.
Sem aviso, você deve ser capaz de mudar, de deixar o que está fazendo,
de inverter. No final, não nada que não importe. Em consequência,
você deve aprender a ler sinais. Quando os olhos vacilarem, o nariz por
vezes servirá.
168
É importante a indicação de que algum sentido por trás do caos aparente, podendo
ser eventualmente captado através de uma leitura interpretativa. O romance de Auster
expressa um olhar alegórico que corresponde ao descrito por Benjamin, tanto em termos
de forma como em termos de conteúdo. Assim, quando Anna dá destaque à necessidade
de aprender a ler os sinais, ela sugere não a construção alegórica do texto a partir
daquilo que é fragmentário e disperso, mas indica, também, a indispensável tarefa do
168
―Bit by bit, the city robs you of certainty. There can never be any fixed path, and you can survive only
if nothing is necessary to you. Without warning, you must be able to change, to drop what you are doing,
to reverse. In the end, there is nothing that is not the case. As a consequence, you must learn how to read
signs. When the eyes falter, the nose will sometimes serve‖ (AUSTER, 1988ª, p.6). Grifo nosso.
142
leitor de dar novo sentido às palavras e às imagens descritas naquela narrativa.
Em entrevista mencionada, Auster faz referência ao Gueto de Varsóvia, ao cerco a
Leningrado, ao sistema de lixo no Cairo e a eventos que ocorrem no Terceiro Mundo e
em Nova York.
169
Como foi comprovado no segundo capítulo desta tese, alusões a
tais eventos também no romance em análise. Estes dados são importantes, pois retratam
o alegorista dentre as ruínas da história, aglomerando fragmentos de fatos e eventos, que
eventualmente são transferidos para uma narrativa ficcional. Estas ruínas adquirem,
assim, um novo sentido que proporciona uma diversidade de leituras não do próprio
texto narrativo, mas também do mundo histórico em si.
Na entrevista citada, Auster comenta ainda que, enquanto escrevia o livro, a seguinte
frase permanecia em sua mente: ―Anna Blume percorre o século XX‖. Assim, pode-se
afirmar que a cidade sem nome se ergue a partir de um presente e um passado próximo
que, de fato, se transformam devido ao deslocamento e consequente esvaziamento
próprios da linguagem alegórica.
Em 1919, o artista alemão Kurt Schwitters escreveu um poema de amor dadaísta
intitulado ―An Anna Blume‖. Ele mesmo traduziu o poema para o inglês com o seguinte
título: To Eve Blossom‖
170
. A própria ideia de um poema de amor dadaísta parece
algo contraditório, pois o dadaísmo não costuma trabalhar com temas sentimentalistas.
Entretanto, seu mérito está exatamente nas possibilidades trazidas pelo uso de uma
linguagem que utiliza o método da colagem, de forma que o amor possa ser visto
169
AUSTER, 1992, p. 293.
143
paralelamente à própria modernidade:
Por mais pessoal que possa parecer, o amor é um processo sujeito às
interferências da vida cultural; a noção de amar alguém é pelo menos
parcialmente construída a partir de uma variedade de fontes intertextuais,
mesmo se a base esteja fundada nas relações naturais de pais e filhos e da
infância.
171
Johnson afirma que a obra de Schwitters, incluindo seu trabalho como artista plástico,
representa a turbulência da modernidade, que, devido ao grande processo de
mecanização que a constitui, traz a urgência de constantes formas de readaptação.
Schwitters busca então meios para evitar a entropia, de forma que ―as noções de
progresso, auto-realização e desejos humanos em geral devem ser constantemente
examinadas de maneira reflexiva e readaptadas, com o intuito de satisfazer à praxis
integral de vida na cultura como um todo.‖
172
Além disso, Johnson destaca que The Kots Picture, uma das colagens de Schwitters, faz
referência ao capitalismo, à moda e ao consumismo através de imagens e palavras.
Nesta colagem uma nota polonesa em posição centralizada e o nome Anna Blume
atravessa uma das pontas deste papel moeda. De acordo com Jonhson, a partir desta
montagem pressupõe-se que até mesmo o amor tenha se transformado em uma espécie
de mercadoria.
[…] sob o capitalismo, mesmo o amor se tornou submetido a respostas
170
O poema traduzido para o inglês está disponível em: http://www.costis.org/x/schwitters/eve.htm
(acesso em junho de 2010)
171
―However personal it may seem to be, love is a process subject to the interferences of cultural life; the
notion of loving someone is at least partially constructed from a variety of intertextual sources, even if the
basis is founded upon natural parent-infant and childhood relationships‖ (JOHNSON, 1993, p. 158).
172
―notions of progress, self-realization and general human desires must constantly be reflexively
examined and re-adjusted, in order to meet the integral life praxis of the whole of culture‖ (JOHNSON,
1993, p. 164).
144
mecânicas, irrefletidas (e se tornou possivelmente um bem de consumo,
como mencionei em minha análise de The Kots Picture); o amor é,
também, até certo ponto, uma questão de convenção econômica e
cultural.
173
Assim, a partir dessa breve exposição dos estudos de Johnson e da obra de Schwitters,
pode-se sugerir que um sentido se esconde por trás do nome da protagonista de Auster:
Anna Blume representa a mulher e o amor no contexto da modernidade. Além disso,
Johnson explicita que algumas marcas do pós-moderno estão evidentes na obra de
Schwitters, como ―abertura, jogo, acaso, desconstrução, intertextualidade e
indeterminação‖
174
e são características como estas que descrevem o contexto no qual
transita Anna Blume.
Além disso, da mesma forma que Schwitters recolhe seus recortes e os reconstitui em
um novo contexto de imagens, de modo a atribuir-lhes novo sentido, o escritor, o leitor
e o homem dos séculos XX e XXI, como sugere o romance de Auster, procuram
sentidos através de um processo semelhante ao da desconstrução, seguido de uma nova
construção.
A cidade sem nome onde se encontra Anna é uma verdadeira desconstrução do que se
entende por civilidade, noção determinante da urbe desde o seu surgimento como
espaço social. O dia-a-dia ali transcorre de forma semelhante à vida levada na selva:
plena de riscos, perigos e ataques repentinos.
Quando você passeia pelas ruas, […] deve lembrar-se de dar apenas um
173
―[…] under capitalism, even love had become subject to mechanical, unreflexive responses (and had
possibly become a commodity, as I mentioned in my analysis of The Kots Picture); love, too, is a matter
of economics and cultural convention to a degree‖ (JOHNSON, 1993, p. 158).
174
―openness, play, chance, deconstruction, intertextuality and indeterminacy (JOHNSON, 1993, p.
166).
145
passo de cada vez. Caso contrário, cair é inevitável. Seus olhos devem
estar constantemente abertos, olhando para cima, olhando para baixo,
olhando para frente, olhando para trás, prestando atenção a outros corpos,
de guarda contra o imprevisível.
175
Não se pode confiar em ninguém neste mundo onde escassez de praticamente tudo o
que é capaz de satisfazer às necessidades básicas do ser humano: abrigo, alimento,
higiene, vestuário. Dentre estas carências, a falta de alimento tem maior destaque, já que
é a fome que direciona os atos dos indivíduos. Como impulso orgânico e psicológico, a
fome é tão forte que estas pessoas, excessivamente magras e famintas, acabam se
portando quase como animais irracionais. Destaca-se, também, a ausência de
sentimentos considerados nobres, que costumam criar laços entre as pessoas, como o
amor, a amizade e o companheirismo, ao lado da forte presença do egoísmo, do
individualismo e de tentativas constantes de enganar, roubar e tirar proveito do
próximo.
Colidir com alguém pode ser fatal. Duas pessoas colidem e então
começam a bater uma na outra com seus punhos. Ou então elas caem ao
chão e não tentam se levantar. Mais cedo ou mais tarde, chega um
momento em que você não tenta mais se levantar.
176
Como pode ser inferido a partir do trecho acima, devido ao estado de debilidade no qual
se encontram os moradores, a chegada da morte é iminente no cotidiano da cidade. No
entanto, também um grande movimento em prol da morte, como se ela fosse uma
espécie de religião com ritual público, ou um bem de consumo. Destaca-se o grupo de
habitantes conhecidos como os corredores (Runners), que passam por uma iniciação,
durante a qual são preparados para correr até a morte, atingindo simultaneamente um
175
―When you walk through the streets, […] you must remember to take only one step at a time.
Otherwise, falling is inevitable. Your eyes must be constantly open, looking up, looking down, looking
ahead, looking behind, on the watch for other bodies, on your guard against the unforeseeable‖
(AUSTER, 1987a, p. 5).
176
―To collide with someone can be fatal. Two people collide and then start pounding each other with
their fists. Or else, they fall to the ground and do not try to get up. Sooner or later, a moment comes when
146
ponto de ―força suprema e fraqueza suprema‖.
177
Eles correm juntos pela cidade,
enquanto outros, como os Saltadores (Leapers), preferem uma morte solitária,
conhecida como ―O Último Salto (The Last Leap). Estes sobem altos edifícios e,
simplesmente, se jogam no ar.
A cidade fica repleta de corpos, os quais são examinados pelos Carniceiros
(Scavengers), que se apoderam das vestes e dos pertences dos defuntos, com o intuito
de revendê-los. O trabalho deles é feito antes que passem os caminhões do governo, que
recolhem os corpos desnudos e os levam aos Centros de Transformação
(Transformation Centers) nas margens da cidade, local em que são cremados e
transformados em combustível.
178
Nota-se o grande choque entre a vida que Anna leva na cidade das últimas coisas e a
vida, nos moldes burgueses, que ela tinha anteriormente: ―minha infância tinha sido
fácil, plena de esplendores e vantagens burguesas, e eu vivi com um sentimento de que
todos os meus desejos estavam dentro do reino da possibilidade.
179
Auster coloca seus
personagens em uma situação de completo desnudamento, no sentido de que seus
desejos sejam reduzidos às necessidades básicas. Tudo aquilo que pode ser considerado
supérfluo à sobrevivência é excluído das possibilidades acessíveis. Adiciona-se, ainda, a
nulificação dos princípios e da moral, de modo que estas pessoas não tenham realmente
nada em que acreditar ou a que se apegar. Os sentimentos de amor e cuidado ao
próximo, por exemplo, poderiam trazer algum alento a estas pessoas, mas não são
valorizados e, portanto, acabam sendo simplesmente descartados.
you do not try to get up anymore‖ (AUSTER, 1987a, p. 5).
177
―ultimate strength and ultimate weakness‖ (AUSTER, 1987a, p. 12).
178
AUSTER, 1988a, p. 11-17.
147
A experiência de Anna consiste em flagrar uma fragilidade que nem sempre é exposta e
que, ao contrário, é velada pelas diversas formas disponíveis na modernidade para o
preenchimento do vazio.
É verdade que não mais escolas; e que o último filme foi exibido
mais de cinco anos; é verdade que o vinho é tão raro agora que apenas os
ricos podem pagar por ele. Mas é isso que queremos dizer com vida?
Deixemos tudo definhar e então vejamos o que há. Talvez essa seja a
questão mais interessante de todas: ver o que acontece quando não
nada e se sobreviveremos ou não a isso também.
180
O próprio espaço físico da cidade, que deveria trazer algum tipo de segurança por ser de
concreto, é imprevisível e mutante, denotando algo que é oco, sem sentido, ausente e
confuso: ―Uma casa está um dia e no dia seguinte ela se foi. Uma rua pela qual você
passou ontem não está mais hoje‖.
181
Além disso, destaca-se um fluxo constante de
eventos inesperados, próprios do ambiente urbano, que conduzem o indivíduo em uma
marcha atenta, contínua e quase desesperada, sem sinalização de um começo ou de um
fim.
A repetida exposição à fragilidade humana através da ausência de alimento, vestuário,
abrigo, companheirismo, no interior de um contexto de instabilidades caóticas, produz a
sensação de vazio e perplexidade. Paira no ar dessa cidade a falta de um propósito
maior, que transcenda a mera busca cotidiana pela própria sobrevivência. Ao mesmo
179
―my childhood had been an easy one, filled with bourgeois splendors and advantages, and I had lived
with a sense that all my desires were within the realm of possibility‖ (AUSTER, 1988a, p. 135).
180
―It’s true that there are no schools anymore; it’s true that the last movie was shown over five years
ago; it’s true that wine is so scarce now that only the rich can afford it. But is that what we mean by life?
Let everything fall away, and then let’s see what there is. Perhaps that is the most interesting question of
all: to see what happens when there is nothing, and whether or not we will survive that too‖ (AUSTER,
1988a, p. 29).
181
―A house is there one day, and the next day it is gone. A street you walked down yesterday is no
148
tempo, o indivíduo não tem outra opção a não ser persistir em seu esforço, quase
carcerário, de continuar vivendo.
Este aspecto de esvaziamento presente na cidade sem nome pode ser identificado
também na Cidade da Vaidade de Hawthorne, onde as virtudes e os princípios se
perdem no jogo do consumo e as pessoas se tornam frívolas, volúveis e destituídas de
qualidades de espírito e inteligência. De forma inesperada, elas acabam desaparecendo
como se fossem bolhas de sabão. O vazio pode ser relacionado com aquilo que é
ilusório, como é dito em ―A estrada de ferro celestial‖ a respeito da nova forma de
peregrinação, feita de trem. Os peregrinos autênticos afirmam que os viajantes do trem
poderiam viajar o resto da vida daquela forma, mas que jamais atravessariam os limites
da Cidade da Vaidade. O trajeto de trem também é comparado a uma bolha.
A ilusão e o engano são praticamente sinônimos. No cotidiano tanto da Cidade da
Vaidade como da cidade sem nome ambos estão evidentemente presentes. No romance
de Auster, os habitantes da cidade se encontram em uma situação limite de desespero,
de forma que roubar, enganar e tirar proveito do próximo se tornam hábitos aceitáveis
para muitos. Pode-se dizer, também, que a vida que estes personagens levam é
semelhante à atitude de correr atrás do vento, pois não têm objetivos maiores no sentido
intelectual ou emocional, nem mesmo no sentido da transcendência.
É interessante apontar que, enquanto o narrador de ―A estrada de ferro celestial‖ se
deslumbra com o conforto e o luxo proporcionados pela modernidade, Anna está
completamente exposta, não tendo como relaxar e usufruir a vida, em virtude de sua
longer there today (AUSTER, 1988a, p. 1).
149
própria fragilidade, da carência constante, do engano, da vida e da morte. Esta estratégia
de Auster, que consiste em desnudar seus personagens até que eles não tenham nada
mais em que se apoiar, leva a um profundo questionamento com relação à natureza
humana e sua real possibilidade de transformação.
O que me impressiona como bizarro não é que tudo esteja
desmoronando, mas que tanta coisa continue lá. Leva muito tempo para
um mundo desaparecer, muito mais do que você pensaria. As vidas
continuam a ser vividas e cada um de nós continua testemunha de seu
próprio pequeno drama.
182
Como o trecho acima destaca, apesar de viverem em um mundo em ruínas, não uma
mudança de fato significativa na vida dos personagens, cada um dos quais continua
preocupado tão somente com sua própria vida. Em um mundo como o de Anna, as
pessoas teriam de se reunir com o intuito de criar novas formas de sobrevivência. No
entanto, não nenhum movimento neste sentido, somente a necessidade de cada
um, e o perigo gerado pela falta de confiança entre os indivíduos.
Na função de caçadora de objetos, Anna não consegue ultrapassar certos limites, como,
por exemplo, tomar para si os pertences dos defuntos:
Eu poderia ter feito melhor, penso, mas havia certas linhas que tracei
dentro de mim mesma, limites que recusei ultrapassar. Tocar os mortos,
por exemplo. Despir cadáveres é um dos aspectos mais lucrativos do
revirar o lixo e poucos catadores de objetos que não avançam quando
surge a ocasião. Eu continuava dizendo a mim mesma que era uma tola,
uma garotinha rica melindrosa que não queria viver, mas nada realmente
ajudava.
183
182
What strikes me as odd is not that everything is falling apart, but that so much continues to be there.
It takes a long time for a world to vanish, much longer than you would think. Lives continue to be lived,
and each one of us remains the witness of his own little drama‖ (AUSTER, 1988a, p. 29).
183
―I might have done better, I think, but there were certain lines I drew within myself, limits I refused to
step beyond. Touching the dead, for example. Stripping corpses is one of the most profitable aspects of
scavenging, and there are few object hunters who do not pounce at the chance. I kept telling myself that I
150
Anna presencia o momento em que um grupo de Corredores da Morte (Death
Runners) correm em grande velocidade na direção de uma senhora. Estarrecida, a
senhora não se mexe. Anna um salto e a tira do caminho do grupo de corredores,
salvando-a de ser empurrada e pisoteada até a morte. Este acontecimento é importante
para Anna, há nele uma significação redentora, pois a partir daí sua vida se transforma e
muda de rumo. Anna começa a se sentir simultaneamente responsável e, como veremos
à frente, cuidada por alguém.
Para melhor ou para pior, minha verdadeira vida na cidade começou
naquele momento. Tudo o mais é um prólogo, um enxame de passos
cambaleantes, de dias e noites, de pensamentos que não recordo. Se não
fosse por aquele momento irracional na rua, a narrativa que estou
contando a vo não seria esta. Dada a forma em que me encontrava
naquela época, duvido que teria havido qualquer narrativa que fosse.
184
Mesmo não seguindo o curso dos habitantes da cidade, Anna age de forma diferente
somente devido a um impulso irracional. E é nesta senhora, chamada Isabel, que Anna
encontra a figura materna que procura protegê-la daquele mundo onde ninguém parece
se importar com ninguém. Isabel faz questão de que Anna more em seu apartamento
com ela e seu marido, Ferdinand. Enquanto Isabel ainda está com saúde, as duas passam
seus dias trabalhando juntas como catadoras de objetos, cuidando da casa e comprando
e preparando o alimento.
Ilana Shiloh, em seu livro intitulado Paul Auster and the postmodern quest: on the road
was a fool, a squeamish little rich girl who didn’t want to live, but nothing really helped(AUSTER,
1988a, p. 37).
184
―For better or worse, my true life in the city began at that moment. Everything else is prologue, a
swarm of tottering steps, of days and nights, of thought I do not remember. If not for that irrational
moment in the street, the story I am telling you would not be this one. Given the shape I was in at the
time, I doubt there would have been any story at all‖ (AUSTER, 1988a, p. 45).
151
to nowhere, analisa várias obras de Auster pelo prisma da busca. Shiloh afirma que a
referência oblíqua ao livro O peregrino, feita na epígrafe, sugere que a busca da
protagonista por seu irmão William pode também ser lida como uma peregrinação
espiritual. Shiloh explica que a narrativa de Anna demonstra que o ser não é uma
entidade estática e coerente, mas criado e produzido por intermédio da ação. E
acrescenta que Anna se encontra com o outro e sentido para suas ações através de
sua relação interpessoal: "E sua ação se torna crescentemente motivada pelo seu
compromisso com o Outro‖.
185
Dessa forma, é o próprio envolvimento com o outro que
traz crescimento e força para Anna.
Em oposição ao narrador de ―A estrada de ferro celestial‖, Anna não opta pelo caminho
mais fácil e mais conveniente, mesmo encontrando-se em uma situação de completo
despojamento diante dos fatos. Anna poderia ter optado por uma vida desonesta, na qual
adquirisse vantagens tirando proveito dos outros, ou pela busca da própria morte, como
muitos o fazem na cidade das últimas coisas. Entretanto, o caminho escolhido por Anna,
nas palavras de Auster, a revela como uma heroína:
Mesmo em meio às realidades mais brutais, às condições sociais mais
terríveis, ela luta para permanecer um ser humano, para manter sua
humanidade intacta. Não consigo imaginar nada mais nobre e corajoso do
que isso. É uma luta que milhões de pessoas tiveram que enfrentar em
nosso tempo e poucas delas mostraram a mesma pertinácia de Anna
Blume. Penso nela como uma verdadeira heroína.
186
Anna pode ser vista como uma heroína, mas seu trajeto continua evanescente. Apesar de
suas ações serem todas genuínas, Anna não age por princípios, mas por impulsos, como
185
―And her action becomes increasingly motivated by her engagement with the Other‖ (SHILOH, 2002.
p. 150).
186
AUSTER, 1996a, p. 294.
152
foi com Isabel, ou é levada a determinada situação pelo simples acaso. Seu encontro
com Samuel Farr é completamente fortuito, assim como sua estadia e permanência em
Woburn House, onde é tratada de suas graves feridas e posteriormente convidada por
Victoria para viver e trabalhar.
A filosofia do fazer-o-bem do lugar me deixou um pouco desconfortável
a ideia de ajudar estranhos, de sacrificar-se por uma causa. O princípio
era excessivamente abstrato para mim, excessivamente sério,
excessivamente altruísta.
187
Aos poucos, ela se adapta àquele local e às suas atividades. À medida que o tempo
passa, as incoerências que sustentam Woburn House são reveladas ao leitor. O pai de
Victoria foi o fundador e o médico da casa, mas, depois de sua morte, os pacientes são
levados a acreditar na medicina num local em que restavam apenas os medicamentos, os
curativos e as auxiliares do médico.
Anna questiona, também, a consistência da ajuda oferecida aos residentes. Estas pessoas
eram recebidas na casa por um tempo limitado, durante o qual deveriam respeitar as
regras, como não roubar, não brigar e ajudar nas tarefas diárias. Anna considera este
trabalho uma farsa, apesar de muitos residentes se acostumarem rapidamente à vida com
maior disponibilidade de conforto, alimentação e roupa limpa, demonstrando gratidão
pelo pouco tempo que passaram ali.
Talvez o contraste entre aquela vida e esta vida fosse muito chocante
para eles. Você cresce acostumado a cuidar de si mesmo, a pensar apenas
em seu próprio bem-estar e então alguém lhe diz que você tem de
cooperar com um bando de estranhos, exatamente o tipo de gente de
quem você ensinou a si mesmo a desconfiar. que você sabe que estará
187
The do-gooder philosophy of the place made me a bit uncomfortable the idea of helping strangers,
of sacrificing yourself to a cause. The principle was too abstract for me, too earnest, too altruistic‖
(AUSTER, 1987a, p. 137).
153
de volta às ruas em apenas uns poucos curtos dias, vale realmente a pena
desmantelar a sua personalidade para isso?
188
As incoerências de Woburn House podem ser lidas como alegorias da ausência de
fundamento teológico nas relações e no mundo destes personagens. De forma
semelhante à Cidade da Vaidade na paródia de Hawthorne, até aquilo que é considerado
altamente espiritual na verdade é vazio, desprovido de bases sólidas. Há, assim, o
constante retorno à falta, àquilo que é frívolo e fútil. Entretanto, Anna se reencontra
com Sam e seus laços de amizade com Victoria e Boris renovam suas forças e
esperanças.
Mesmo depois da completa dissolução de Woburn House, o pequeno grupo se une com
a expectativa de encontrar um meio de sair daquele lugar. O final é incerto, mas a
esperança de que eles tenham alcançado seu objetivo de fuga da cidade permanece. Este
é um ponto em comum entre O peregrino e No país das últimas coisas, pois tanto
Cristão como Anna querem fugir da Cidade da Destruição, e ambos encontram uma
forma de atingir tal objetivo. O primeiro, através das Escrituras Sagradas que oferecem
uma saída pela fé em Jesus, e o segundo, através dos laços interpessoais.
Com relação à espiritualidade, Auster é bem diferente de Hawthorne e Bunyan. No
percurso de Anna na cidade das últimas coisas, somente Isabel faz referência a um Deus
soberano. Ela acredita que Deus é seu único amigo, que havia enviado Anna para salvá-
la da morte e fazer-lhe companhia em dias de tão grande solidão.
188
―Perhaps the contrast between that life and this life was too much of a shock for them. You grow
accustomed to looking out for yourself, to thinking only of your own welfare, and then someone tells you
that you have to cooperate with a bunch of strangers, the very class of people you have taught yourself to
mistrust. Since you know that you will be back on the streets in just a few short days, is it really worth the
154
Agora que Ferdinando não mais me dirá coisa alguma, Deus é meu único
amigo, o único que me ouve. Sei que ele é muito ocupado e não tem
tempo para uma velha como eu, mas Deus é um cavalheiro e me colocou
em sua lista. Hoje, finalmente, ele me visitou. Ele me enviou você como
um sinal de seu amor. Você é a criança querida, doce, que Deus me
enviou, e agora vou cuidar de você, vou fazer tudo o que puder por
você.
189
Victoria menciona a palavra milagre, que naquele mundo crianças não nascem e o
simples fato de Anna ter ficado grávida teria sido um milagre. No início da caminhada
de Anna, também um momento em que ela, embora incrédula, olha para o céu em
busca de respostas: ―parece que me lembro de olhar bastante para cima, como se
investigasse o céu para achar alguma carência, algum excesso, algo que o tornasse
diferente de outros céus‖.
190
A experiência de Anna traz à tona um ser humano desprovido de satisfação às suas
necessidades básicas e de transcendência. Neste mundo, as pessoas se tornam
verdadeiros bárbaros, interessados cada qual em seu próprio pequeno drama pessoal.
Anna, entretanto, levada por seus instintos, deixa transparecer que, apesar das
dificuldades e da carência em todos os sentidos, alguma forma de plenitude é
encontrada na abertura para experiências de transformação, especialmente através do
relacionamento com o outro. Esta leitura não é óbvia, por se esconder dentre os vazios
de uma existência frágil e sem sentido.
A contraposição entre Hawthorne e Auster explicita dois lados de um mesmo problema,
trouble to dismantle your personality for that?‖ (AUSTER, 1987a, p. 141).
189
―Now that Ferdinand won’t say anything to me anymore, God is my only friend, the only one who
listens to me. I know he is very busy and doesn’t have time for an old woman like me, but God is a
gentleman, and he has me on his list. Today, at long last, he paid me a visit. He sent you to me as a sign
of his love. You are the dear, sweet child that God has sent to me, and now I am going to take care of you,
I am going to do everything I can for you‖ (AUSTER, 1987a, p. 49).
190
―I seem to remember looking up a lot, as if searching the sky for some lack, some surplus, some thing
155
sendo que o primeiro se apresenta envolto pelo luxo, e o segundo, pela escassez. O luxo
tende a mascarar qualquer tipo de verdade, a escassez tanto pode levar à transformação
do indivíduo como à permanência de uma situação de insustentabilidade. No caso de
Bunyan, a presença do sofrimento e das dificuldades é notável, embora haja o
preenchimento do vazio através da transcendência, que é ausente no caso de Auster e
evanescente no caso de Hawthorne.
that made it different from other skies‖ (AUSTER, 1987a, p. 20).
156
5. Conclusão
Anna é um nome de origem hebraica que significa: cheia de graça, benéfica. Quem
seria, então, Anna Blume? A mulher, o amor, a flor que desabrocha, a fragilidade
repleta de graça? Qual mundo é esse no qual ela vive, ou melhor, sobrevive? Por que ela
escreve? Afinal, qual a sua busca? Todas essas são perguntas que foram levantadas
neste trabalho. Algumas delas foram respondidas, outras respostas foram apenas
sugeridas.
Esta tese se propôs a suscitar questões que surgem da leitura interpretativa de No país
das últimas coisas através do diálogo com a tradição da alegoria. O estudo do percurso
histórico da alegoria a revela como um recurso literário multifacetado, tendo sido
utilizado de formas diferentes desde a Idade Média até os dias atuais. Basicamente, a
alegoria como expressão verbal faz uso de um lugar-comum e um vocabulário que
substituem um discurso específico de forma figurada. O resultado é cenário e
personagens elaborados de modo que cada detalhe seja significativo.
O pensamento de Walter Benjamin aborda a alegoria por um viés histórico,
possibilitando uma compreensão diferenciada do próprio período barroco, e também do
drama barroco alemão. A análise de Bejamin fez com que saíssem da obscuridade
várias contradições referentes ao uso da alegoria na literatura e de maneira geral. A
partir desse enfoque, propôs-se considerar a obra de Auster como um romance
alegórico. Sua relação intertextual com a paródia de Nathaniel Hawthorne, A estrada
de ferro celestial‖ e com a alegoria de John Bunyan, O peregrino fundamenta tal
proposta, pois ambos os textos fazem parte do percurso seguido pelo romance e pela
alegoria na tradição literária.
157
Apesar de ter escrito um romance, Auster fez uso de recursos retóricos que são próprios
da alegoria. Como resultado, surge a Cidade das Últimas Coisas como um cenário
distópico, habitado por personagens bem desenvolvidos, mas com nomes enigmáticos.
Além disso, imagens e temas ao longo da narrativa que permitem diferentes níveis
interpretativos, como também acontece no caso da alegoria. Em Auster podem ser
destacados o sentido literal, o sentido figurado e o sentido metalinguístico da narrativa.
Observou-se que nas três obras há a afirmação de uma dissonância metafísica, que gera
uma espécie de busca por sentido. Bunyan, em seu prólogo, descreve e justifica o
processo de sua escrita, fazendo questão de recomendar que o leitor seja cuidadoso na
hora de interpretar o texto. Sua preocupação em alcançar uma plenitude de significação
se baseia em sua e na doutrina protestante. Bunyan tem objetivos espirituais
específicos ao escrever sua narrativa e, portanto, tem uma expectativa determinada de
interpretação textual.
No caso de Hawthorne, a alegoria passa por uma reconfiguração, na qual a retórica
dialoga com a linguagem da economia e do mercado. Foram destacadas as ideias de
troca, de acúmulo e de transcendência. A alegoria de Hawthorne parece simples e pouco
denotativa. Entretanto, sua leitura é de grande complexidade, especialmente por
constituir uma reescrita do texto de Bunyan. A interpretação da paródia de Hawthorne
se baseia na impostura e no engano. Sua linguagem é irônica, tendo como objetivo
ridicularizar.
Em Auster, a linguagem alegórica faz analogia com a sociedade contemporânea: os
158
grandes centros urbanos, o capitalismo moderno e o indivíduo. Há, também, um
discurso irônico e um olhar melancólico. A alegoria em Auster deixa transparecer a
confirmação da dissonância metafísica também através dos temas tratados no romance,
como a banalização da morte e do próprio ser humano, ou a produção excessiva de lixo,
que, apesar de ser um tema social, remete, igualmente, a questionamentos metafísicos.
No romance alegórico de Auster -se, ainda, uma mensagem de alerta, que previne o
leitor quanto a tomar o caminho mais fácil em termos interpretativos.
O fato do cenário imaginário de Auster trazer à tona críticas relacionadas a algumas das
mazelas do capitalismo moderno e da sociedade contemponea remeteu às noções de
utopia e distopia. Foi feito um histórico do que pode ser entendido por utopia, através
do pensamento de Mumford. As utopias, segundo Mumford, são criadas no mundo das
ideias, mas interferem diretamente na forma como o homem age em seu meio ambiente.
Seriam como ideais que impulsionam o homem a interferir na ordem das coisas, com o
intuito de modificá-las. Neste estudo, destacaram-se as utopias da Cidade Carvão e da
Casa de Campo, as quais para Mumford fundamentaram a sociedade industrial e,
posteriormente, o capitalismo financeiro.
No século XVII, Bunyan escreveu sobre a peregrinação de um cristão, que fugiu da
Cidade da Destruição em busca da redenção espiritual. No século XIX, Hawthorne
expressou sua preocupação com a vinda do progresso tecnológico, que obscureceu,
quase que por completo, a crença no Deus cristão. No século XX, Auster descreveu uma
cidade que reuniu, através de metáforas, vários dos pontos negativos do capitalismo
moderno. O romance de Auster retrata um mundo destruído, com suas ruas cheias de
lixo, cacos, ruínas, defuntos e pessoas famintas. Este cenário alegórico expõe
159
características da história da humanidade que merecem ser repensadas: as guerras
mundiais, as bombas atômicas, o preconceito racial, a segregação social, a mão-de-obra
assalariada, o extrativismo dos recursos minerais, o consumismo acelerado, o acúmulo,
o lixo.
Observou-se que em O peregrino a utopia puritana como alegoria age basicamente no
âmbito da transformação pessoal, não influenciando de forma significativa o âmbito
social. Entretanto, no vel histórico, o puritanismo foi destacado como uma utopia de
reconstrução, já que levou um grande número de puritanos a atravessar o oceano com o
intuito de povoar um novo mundo a partir das bases do cristianismo protestante. Além
disso, na alegoria de Bunyan, identificou-se um cenário distópico na Feira das
Vaidades, pelo qual todo peregrino deve passar, como alegoria da tendência do ser
humano em direção ao mundo das posses e das vaidades.
No caso da paródia de Hawthorne, ressaltou-se a crítica ao industrialismo como um
ideal utópico do século XIX, que acabou por substituir a utopia puritana. Afirmou-se
que o narrador de Hawthorne assume uma posição dúbia, pois, ao mesmo tempo em que
ironiza a sociedade industrial, não se dispõe a abrir mão da mesma. De forma implícita,
a paródia figura o percurso histórico que foi iniciado nas colônias da Nova Inglaterra
com os puritanos, os quais, em virtude do excesso de rigor moral, chegaram a distorcer
a doutrina cristã, tendo como resultado o surgimento da própria sociedade industrial.
No romance de Auster, destacaram-se as questões que se tornaram consequências do
capitalismo e dos avanços da tecnologia. Apesar disso, observou-se que os restos e as
últimas coisas expostas por Auster também remetem à utopia, pois sugerem a
160
possibilidade da reutilização e da continuidade.
A obra de Bunyan, em consonância com a análise de Iser, foi identificada como
precursora do romance moderno devido ao desenvolvimento interior de seus
personagens alegóricos, em contraposição aos personagens superficiais da épica. Há,
então, uma superação da alegoria pura e simples, através do destaque na atuação
individual do Cristão.
Observou-se, ainda, que a paródia de Hawthorne, enquanto releitura de Bunyan,
aparentemente banaliza o trajeto indicado pelo peregrino e ressalta o novo trajeto
proporcionado pela modernidade liberal. Entretanto, uma leitura mais cuidadosa tende a
inverter tal paralelo, de forma que a sociedade industrial se transforma,
simultaneamente, naquilo que há de mais aprazível e mais demoníaco.
Destacou-se que este percurso culmina no romance de Auster, que retrata os tempos
atuais através da exposição, até mesmo excessiva, da fragilidade humana. O espaço da
cidade no qual se encontram os personagens, à primeira vista, parece ser diferente dos
grandes centros urbanos da contemporaneidade. No entanto, aos poucos, as fortes
imagens presentes no texto começam a sugerir questões pertinentes na atualidade. Seria
como uma espécie de aviso: se as coisas continuarem assim, é bem provável que as
consequências sejam ruins.
Anna Blume, uma mulher de descendência judia em um mundo supostamente cristão.
Blume rima com doom (ruína, destino) e gloom (sombrio, triste, pessimista). No meio
das ruínas de uma cidade triste e sombria, Anna caminha em busca de seu irmão. Ela
161
percorre as ruas perigosas à procura do outro, alguém que precise de seu amor e
cuidado. Blume também rima com womb (seio, ventre, útero) e bloom (flor, beleza,
frescura, viço). Ela encontra sua motivação no outro, como um retorno a ela mesma.
Anna Blume, uma mulher que empurra um carrinho de compras, não com o intuito de
consumir, mas com o intuito de reaproveitar e transformar. Assim, em um mundo sem
esperanças, Anna se revela como algo raro e belo.
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