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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Escola de Serviço Social
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Mestrado
A Democracia em Marx: Fundamentos Históricos e Teóricos
Autor: Antonio Elias Sobrinho
Orientadora: Dra. Cleusa Santos
Rio de Janeiro
Abril de 2010
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Escola de Serviço Social
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Mestrado
A Democracia em Marx: Fundamentos Históricos e Teóricos
Antonio Elias Sobrinho
Sob a Orientação da Professora
Cleusa Santos
Rio de Janeiro
Abril de 2010
2
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, sob a orientação da
Professora Doutora Cleusa Santos, como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestrado em Serviço Social.
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A Democracia em Marx: Fundamentos Históricos e Teóricos
ANTONIO ELIAS SOBRINHO
Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Serviço
Social no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
DISSERTAÇÃO APROVADA EM 15/04/2010
Dra. Cleusa Santos (Presidente)
Dr. João Baptista Bastos
Dr. José Paulo Netto
Dr. Marcelo Braz Moraes Reis
_______________________________________________
Dra. Cleir Marconsin
3
Dedico este trabalho a Viviane,
Minha filha,
o grande amor da minha vida.
Dedico também a Maria Célia, minha companheira,
com muito amor.
Aos meus irmãos, que em função da dureza da vida não conseguiram aproveitar
as oportunidades mas sempre me aplaudiram
4
RESUMO
Esta dissertação de Mestrado, que tem como título A Democracia em Marx:
fundamentos históricos e teóricos teve como objetivo central demonstrar que Marx, partindo
de um patamar teórico produzido por toda uma tradição ilustrada produziu uma teoria que
revolucionou todos os fundamentos da democracia. Para chegar a essa teoria Marx percorreu
um longo caminho que começa desse os momentos em que se colocou contra as formas
autoritárias de poder exercidas na Alemanha e contra a violência dos grandes proprietários
contra as populações mais pobres até assumir uma posição francamente revolucionária.
O desenvolvimento dessa trajetória, estudada em algumas obras de Marx e de Engels,
principalmente o Manifesto do Partido Comunista de 1848, nos permitiu compreender e
explicar alguns momentos históricos significativos dessa trajetória, bem como elementos
importantes que permitiram a Marx transitar de uma posição para outra. Assim como também
nos permitiu compreender que alguns elementos foram importantes para Marx desenvolver
sua teoria.
Entre esses elementos a descoberta da luta de classes como elemento importante para a
compreensão do processo histórico, das contradições do sistema então vigente e das
possibilidades de transformação radical da sociedade. Permitiram compreender também que
todas as formulações de Marx, para chegar a explicitar sua visão a respeito de democracia se
apoiaram em alguns pressupostos que escaparam aos pensadores anteriores como, por
exemplo, a concepção de que, todos os fundamentos da história passa, pelo trabalho, ação
vital que permite ao homem modificar a natureza e ao mesmo tempo modificar a si mesmo.
Tendo esse aspecto como elemento vital, Marx descobriu que, ao invés dele ser um
fator de libertação com relação as suas necessidades, no capitalismo ele se transformou num
martírio. Assim, entendemos que todo esforço de Marx foi no sentido de construir um projeto
que pudesse superar essa realidade.
A percepção dessas constatações foi possível a partir de um trabalho de pesquisa sobre
alguns elementos como, por exemplo: a questão da importância da classe operária como
agente transformador e a relação entre democracia e revolução.
5
ABSTRACT
This dissertation,entitled Demcracy in Marx: historical and theoretical fundaments”,
aims at demonstrating that Karl Marx, based on the tradition of the Enlightenment, produced a
theory that revolutionized the fundaments of democracy. First, he criticized the authoritarian
power exerted by the German proprietors, their use of violence against the poor people and
finally he took up a revolutionary stance.
Here, Marx`s and Engel`s evolution was analyzed especially through the “Communist
Manifesto” which allwed us to see how Marx moved from one position to another and the
important elements that contributed to the development of his theory.
Amongst these elements , class struggle led him to understand the historical process,
the contradictions and the possibilities to radically change reality. Marx`s presuppositions had
escaped to most of the analysts, such as the idea that all of the fundaments of history stem
from work, through which men modify both nature and themselves. This vital element
allowed Marx to understand that under capitalism such modification leads to hard times to the
workers. As from this perception , Marx began to fight in order to overcome this status quo.
Here, we analyze the importance of the working class as the agent who transforms
society and the relation between democracy and revolution.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................5
1. CAPÍTULO I: CONCEPÇÃO MARXIANA DE DEMOCRACIA:
FUNDAÇÃO DOS PRINCÍPIOS REVOLUCIONÁRIOS.........................11
1.1- Debate sobre democracia e a emergência do significado da revolução........12
1.2- A resistência dos trabalhadores: instrumento para a conquista da
Democracia....................................................................................................32
1.3- A importância do voto universal...................................................................44
2- CAPÍTULO 2: PRINCIPAIS FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA
EM MARX...................................................................................................58
2.1- Democracia e revolução...............................................................................58
2.2- Manifesto do Partido Comunista: a democracia e a fundação dos
Princípios revolucionários...........................................................................72
CAPÍTULO 3: O ESTADO COMO INSTRUMENTO DE PODER E O
SOCIALISMO............................................................................................ 82
3.1- O Estado e a questão democrática em Marx...............................................82
3.2- O socialismo no século XX.........................................................................95
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................112
7
1. INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como objetivo explicar por que o marxismo permanece como
uma referência importante, apesar de todas as dificuldades, em virtude do insucesso de muitos
movimentos revolucionários e de vários sistemas políticos que foram erguidos com base em
suas propostas. Aliás, ele permanece como a referência mais importante não só para a
compreensão da forma de funcionamento do sistema capitalista vigente, como também e,
sobretudo, a única teoria que apresenta um projeto articulado e coerente para a superação
desse regime.
O grande texto de Marx que, segundo nosso entendimento, conta dessa questão, em
suas linhas gerais, é o Manifesto do Partido Comunista, de 1848. O documento não faz
uma análise muito sintética de todo o processo de transformação do Antigo Regime para o
sistema capitalista, salientando sua forma renovadora e revolucionária das forças produtivas,
bem como identifica suas principais contradições a partir das quais demonstra ser possível sua
superação. Essa superação, segundo Marx, é uma necessidade para a humanidade porque esse
sistema é o responsável pelo estado de miséria da maioria da população. O centro dessa
explicação se encontrará no capítulo 2.
O fundamento principal dessa declaração (o qual procuraremos comprovar no decorrer
desse texto) encontra-se no fato de que o sistema vigente não resolveu nenhum dos problemas
centrais que ele engendrou. Suas promessas, que pareciam tão generosas, como por exemplo,
as que diziam respeito à igualdade e à liberdade, provocaram uma grande frustração e o
resultado desse processo foi a construção e consolidação de um sistema, caracterizado pela
exploração, a exclusão e a alienação.
1
Demonstraremos, também, que a construção da democracia em Marx faz parte de um
processo profundamente diferente dos anteriores. Enquanto estes tinham como objetivo
apenas a remoção de obstáculos que dificultavam o livre desenvolvimento das forças
produtivas e a substituição de minorias por outras minorias, a democracia, para Marx,
podia ser o resultado de um processo amplo, com a participação da maioria da população com
o objetivo de revolucionar o sistema vigente no sentido de construir uma sociedade nova. Esta
nova realidade seria construída através de novos valores, e novos fundamentos éticos, tendo
1
No texto sobre o trabalho estranhado e propriedade privada (MARX, 2004), ele explica que, com o
desenvolvimento do capitalismo, o homem foi se transformando num ser estranho tanto para o objeto do seu
trabalho, como para a natureza e até para a sua própria espécie. Assim, o trabalho, ao invés de ser uma fonte de
realização humana, transformou-se num martírio.
8
como base a socialização das riquezas, a partir da qual seria construída uma nova forma de
convivência entre os homens, onde a liberdade poderia se tornar possível.
Como a democracia vigente não resolveu nenhum dos graves problemas que atingem a
maioria da humanidade e ameaça os fundamentos da civilização contemporânea, partimos da
hipótese de que a proposta defendida por Marx, baseada na mudança revolucionária da
sociedade, ainda apresenta grande vitalidade e seus fundamentos ainda são indispensáveis
para a superação da opressão. Consideramos que, para esta comprovação, é necessário
verificar, além da leitura e de um balanço crítico do Manifesto, é necessário também o estudo
de várias outras obras de Marx, como A miséria da filosofia (MARX, 2009-a), Para a
questão judaica (MARX, 2009-b), assim como também textos de outros autores como Rosa
de Luxemburgo (LUXEMBURGO, 1999) os quais, indicaremos nas referências. Porém,
adiantamos que estas serão as principais obras utilizadas para tratar dessa questão principal.
Esclarecemos também que o centro da discussão se encontrará no capítulo 2.
Advertimos, também, que, para chegar a Marx, consideramos importante levantar
algumas bases sobre as quais se organizou e se consolidou o chamado mundo moderno. Nesse
caso, procuraremos estabelecer uma linha de progresso, sem ser linear, porém procurando
esclarecer as linhas centrais do processo histórico, a partir dos movimentos revolucionários
que consolidaram a hegemonia da burguesia. Assim, faremos algumas reflexões sobre o
chamado pensamento ilustrado que dava sustentação ideológica a esses movimentos e a essa
hegemonia. Daremos atenção especial para as influências de Jean Jacques Rousseau sobre as
transformações sociais, bem como sobre os movimentos políticos de contestação ao regime.
No entanto, mesmo considerando que estas contribuições foram importantes para uma nova
concepção de democracia, demonstraremos que a questão democrática passou a ter um
significado mais efetivo quando a grande massa de trabalhadores, sobretudo a classe operária,
resolveu se envolver decididamente nessa questão e considerá-la como prioritariamente de seu
interesse. Assim, podemos dizer que a distinção principal entre a concepção de Marx com
relação a todos os pensadores anteriores reside no fato de que as posições destes conseguiam
conviver com todas as formas de desigualdade, com a exploração e a alienação, enquanto que,
para Marx, a democracia era impossível com a presença desses elementos. Esta questão será
desenvolvida no capítulo 1. Adiantamos que este assunto, por ser apenas tangencial, será
apenas apresentado em suas linhas gerais.
Todavia, é o nosso propósito mostrar, também, que os trabalhadores, a princípio, não
possuíam uma visão geral da sociedade, não entendiam os mecanismos de funcionamento do
sistema e, portanto, não podiam visualizar uma transformação de conjunto e de forma radical
9
que possibilitasse mudanças efetivas. Pelo contrário, suas ações foram gradativas e, nesse
caso, destacamos dois aspectos fundamentais para explicar melhor essa estratégia. Assim,
destacaremos os movimentos de resistência, com a explicação de algumas iniciativas que
consideramos suficientes para um entendimento da questão. O volume I, do livro Primeiro, de
O capital (MARX, 1985-a) será o texto básico para este assunto. O outro movimento foi a
luta pela conquista do voto universal e por eleições livres, como instrumento importante de
mobilização dos trabalhadores. Fizemos assim porque consideramos que o processo no
sentido de construção da democracia, envolve várias formas de luta. Porém, deixaremos claro
que, para Marx, todos os instrumentos deveriam ficar subordinados à lógica da revolução. Em
outras palavras, era a revolução que dava sentido efetivo a uma possibilidade de construção de
uma verdadeira democracia que conseguisse superar todas as formas de exploração das
sociedades de classes. A introdução de Engels ao livro de Marx (As lutas de classes na
França (ENGELS, 1953)) foi o principal texto utilizado.
Também procuraremos demonstrar que a democracia é uma realização dos homens,
não dos homens individuais com seus interesses egoístas e particulares de classe ou de grupos
específicos, mas sim realização que pode ser o resultado da ação coletiva e organizada dos
trabalhadores tendo a classe operária numa posição de liderança, que indica uma direção.
Mais especificamente, trataremos de uma vanguarda da classe operária que, segundo Marx,
consegue se apropriar de uma teoria revolucionária e construir uma estratégia que incorpore a
grande maioria da população. Esta condição, de uma classe com uma consciência que
ultrapasse os limites da ação puramente empírica, é o que permite o sucesso do movimento.
2
Contudo, este movimento não pode ser realizado apenas de acordo com a vontade dos
homens. Ele pode ser realizado, com sucesso, se houver a combinação da ação consciente
dos homens com as circunstâncias históricas (MARX e ENGELS, 2009)
3
. Isto é, segundo
Marx,
Uma formação social nunca perece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é
suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção
mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas
condições materiais de existência tenham sido geradas no seio
mesmo da velha sociedade (MARX, 1999, p. 52).
2
No Manifesto do Partido Comunista de 1848, Marx e Engels (1998) escrevem que, entre os partidos dos
trabalhadores, os comunistas representam a vanguarda que tem a missão de organizar e dirigir a revolução. Esta
questão, que aparece em Marx apenas de forma embrionária, foi desenvolvida por Lênin quando tratou das
questões de mobilização e organização da classe operária (LÊNIN, 1978).
3
Marx e Engels demonstram que os homens têm a capacidade de mudar a realidade. Porém, a vontade e a
capacidade não são suficientes. É necessário que as circunstâncias sejam favoráveis. Isto é, para que os homens
possam transformar a realidade existente, é preciso que as forças produtivas e as relações de produção
encontrem-se num patamar bastante desenvolvido (MARX e ENGELS, 2009) e (MARX, 1999)
10
Assim, para que a revolução socialista seja viável, é necessário que as forças
produtivas e as relações de produção estejam bastante desenvolvidas no seio do sistema
capitalista.
Outro aspecto que abordaremos é o seguinte: esse período de crise do socialismo, que
se acentuou com o fracasso dos regimes que se ergueram em nome das ideias de Marx e de
Engels e que caracterizaremos no capítulo 3, pode se transformar num estímulo para novas
iniciativas. Procuraremos mostrar que as ideias de Marx são as que apresentam propostas
mais generosas para a superação das condições em que vivemos. Mesmo sendo ele um
pensador do século XIX, sua teoria continua válida nos seus fundamentos, principalmente o
método dialético, materialista.
É importante destacar que esse período possuía características muito desfavoráveis
para um amplo movimento revolucionário internacional.A civilização do século dezenove se
firmava em quatro instituições. A primeira era o sistema de equilíbrio de poder (...) A
segunda era o padrão internacional do ouro (...) A terceira era o mercado auto-regulável (...)
A quarta era o estado liberal” (POLANYI, 1980). Essas características propiciaram para o
período uma tranquilidade para os Estados principais do sistema e um grande
desenvolvimento econômico que dificultaram profundamente os movimentos de
trabalhadores. Apesar disso, havia também o precário desenvolvimento das forças produtivas
e a ausência de elementos importantes para tornar possível este movimento, como, por
exemplo, partidos políticos com grande representatividade e entidades de representação dos
trabalhadores.
Explicaremos, também, que o marxismo teve desdobramentos importantes, que
enriqueceram aqueles fundamentos. Os marxistas que vieram a seguir (como Lênin, Gramsci
e outros que tiveram outras oportunidades, porque conheceram realidades muito mais
complexas e um conjunto de instituições que na época de Marx eram inexistentes) deram
novas contribuições. Essas contribuições, às quais demonstraremos principalmente no
capítulo 3, enriqueceram o patrimônio teórico do marxismo. Além disso, fizemos questão de
esclarecer que as democracias originárias da vertente liberal também atravessam uma
profunda crise, com a diferença que para elas não existem propostas alternativas dentro do seu
ideário.
Demonstraremos, também, que a origem do processo de democratização socialista
encontra-se no próprio seio da sociedade e da produção capitalista que concentra os
trabalhadores em torno dos locais de trabalho e que, por isso, permite e facilita a sua
organização. Esta concentração, de forma cada vez mais socializada, viabilizou o
11
encaminhamento de uma resistência e favoreceu a criação de instrumentos de luta da classe
operária, como os sindicatos, os partidos políticos, assim como também ajudou no processo
de desenvolvimento da consciência de classe a partir da relação capital x trabalho. Esta
concentração, devido ao aprimoramento das máquinas e ao aumento da desproporção entre o
capital constante e o capital variável, provocou uma grande transformação no mundo do
trabalho, aumentando o chamado exército industrial de reserva, contribuindo para diminuir os
salários e para dificultar a capacidade de negociação e de luta dos trabalhadores. O panorama
principal dessa questão será tratado no capítulo 1, principalmente quando for abordada a
questão da resistência dos trabalhadores à exploração capitalista. O texto principal para esse
assunto será O capital, volume I, do Livro Primeiro.
Para Marx, no centro da construção democrática, encontra-se a revolução; sendo esta,
portanto, a questão central da presente dissertação. Trataremos dela, prioritariamente, no
capítulo dois; o Manifesto, por seu turno, será a referência principal. Aliás, para ele,a
revolução não era uma invenção exclusiva da classe operária. A burguesia, para destruir o
Antigo Regime e liquidar com o poder da aristocracia feudal, tinha usado desse instrumento
com um grau de violência impressionante. O fundamento da revolução encontra-se no fato,
segundo ele, de que nenhuma classe dominante abre mão passivamente de seus privilégios,
obrigando as classes revolucionárias a utilizar os recursos da força. Não é irrelevante
mencionar que a Grande Revolução Francesa, do final do século XVIII, tornou-se uma grande
referência para Marx.
É importante também considerar que Marx, para formular suas teorias, inclusive sobre
democracia, não procurou inventar nada e nem procurou buscar os fundamentos de seus
conhecimentos no mundo das ideias e nem na pura especulação. Pelo contrário, ela foi o
resultado de um trabalho de pesquisa que ocupou todo o tempo de sua vida útil. Para isso, ele
estudou, criticou e debateu com todos os grandes teóricos do seu tempo. Estudou
profundamente o pensamento alemão, principalmente a filosofia de Hegel. Não estudou e
criticou, mas foi além, construindo uma dialética materialista, baseada na vida real dos
homens, nas suas condições materiais de existência (MARX e ENGELS, 2009). Além disso,
entendeu que seus conhecimentos filosóficos eram insuficientes. Para compreender a
natureza da sociedade capitalista, com suas engrenagens e seus mecanismos de
funcionamento, era necessário outro tipo de conhecimento. Para isso foi que ele se dedicou,
durante anos, ao estudo crítico da economia política, sobretudo Adams Smith e Ricardo,
considerados os teóricos maiores da economia política do capitalismo. Também se dedicou ao
12
estudo dos chamados socialistas, que tinham na França seu principal centro
4
. A principal obra
que ele escreveu sobre essa questão é o resultado de uma polêmica com Proudhon, que havia
escrito um livro chamado Filosofia da miséria ao qual Marx responde com Miséria da
filosofia (MARX, 2009-a).
Procuraremos ressaltar, ainda, que o marxismo (perante uma quantidade imensa de
obras liberais, positivistas, que apresentam a realidade completamente pulverizada e
fragmentada, voltados para um mercado completamente virtual) apresenta-se como a melhor
alternativa para o debate e para a ação política. Isto não porque sua proposta seja a mais
generosa e humanitária, mas porque é a única que possibilita a compreensão da realidade na
sua totalidade, possibilitando o entendimento de todas as transformações nos mais variados
aspectos da sociedade. Ela também nos ajuda a formular projetos para o conjunto da
sociedade, baseada em novos valores éticos e em interesses que sejam realmente universais.
Para isso, além dos textos citados, utilizaremos as obras de Marx de caráter conjuntural, que
ele produziu baseado na realidade francesa, como o 18 Brumário, de Luis Bonaparte (MARX,
1968), A Guerra Civil em França (MARX, 1976) e as Lutas de Classe na França (MARX,
1953).
Finalizando, queremos acentuar que os estudos sobre este tema a democracia em
Marx é um desafio imenso para quem não possui uma grande intimidade com as obras
fundamentais desse pensador genial. Entretanto, dentro das nossas limitações, acreditamos ter
estabelecido as linhas iniciais de uma pesquisa que merece ser aprofundada noutra
oportunidade. Além disso, queremos destacar o fato de que, mesmo existindo uma quantidade
de abordagens sobre alguns aspectos da sociedade, como a questão do Estado e da revolução,
que são datados e que foram aprofundados e ampliados por outros teóricos que aprenderam
com Marx, o que foi mais importante nessa pesquisa foi a consolidação de uma convicção de
que as contribuições de Marx continuam imprescindíveis para todos aqueles que desejam
contribuir de alguma maneira com a superação do estado de coisas atual e que acreditam que
a história está muito longe de chegar ao fim, como dizem os liberais.
4
Nas Três Fontes e Três Partes Integrantes do Marxismo (LÊNIN, 1968) faz-se um balanço muito sintético dessa questão.
13
CAPÍTULO 1
Breves elementos teóricos sobre a gênese e os desdobramentos da concepção
marxiana de democracia: fundação dos princípios revolucionários
Neste capítulo, pretendo levantar os principais elementos históricos e teóricos, mas
principalmente históricos que ajudam a explicar as diferenças fundamentais entre os
principais argumentos sobre democracia em Marx com relação ao pensamento anterior,
considerando, sobretudo, os aspectos relacionados à igualdade e à liberdade. Achamos que
esse breve esboço é importante porque, mesmo considerando a questão da democracia como
uma realidade muito antiga, que data de séculos antes de Cristo, foi a partir dos grandes
movimentos revolucionários dos tempos modernos que ela passou a ter um significado muito
mais forte e consequentemente o debate tornou-se mais consistente e acirrado.
A razão fundamental dessa mudança, sem dúvida, foi a emergência de novos
segmentos sociais participando ativamente das mobilizações sociais e políticas, provocando o
desenvolvimento de um cenário de grande agitação, onde grande parte das condições
materiais e dos valores éticos passaram a ser contestados de maneira impressionante, abrindo,
dentro da antiga ordem, muitas possibilidades.
Numa transição assim, os vários agentes se movem com grande empenho tanto no
sentido da mudança, como na tentativa de preservação. No entanto, nem os elementos
empenhados na mudança nem a reação possuem o controle da situação, bem como não
possuem um plano consciente e abrangente que ultrapasse os limites do imediato e dos seus
interesses de classes.
Assim, explicaremos, de forma panorâmica, as linhas gerais desses processos, bem
como o significado de várias reflexões realizadas a partir dessas transformações.
Abordaremos algumas linhas de pensamentos que se preocuparam com as condições sociais
do grande conjunto das populações pobres, consideradas vítimas daquelas mudanças bruscas e
que procuraram imaginar algumas formas de convivência, em que a igualdade e a liberdade
pudessem ser uma referência importante. Jean Jacques Rousseau será o centro desse
levantamento para em seguida demonstrar que, no século XIX, Marx irá se preocupar também
com essas questões. No entanto, a sua abordagem levanta a possibilidade das mudanças a
partir de um patamar muito mais consistente porque sua preocupação fundamental foi no
sentido de transformação daquela realidade, para que a igualdade e a liberdade possam ser
realmente conquistadas. Porém, para ele, a igualdade e a liberdade poderiam realmente
14
existir se fosse algo construído através de um amplo movimento que destruiria todos os
fundamentos da sociedade estruturada na modernidade e construiria uma outra, baseada numa
nova ética, cujo objetivo seria o atendimento das necessidades sociais a partir do qual os
homens ficariam disponíveis para a construção de uma nova forma de democracia. Isto é, a
liberdade teria como base o atendimento das necessidades.
Para isso, como é apenas uma apresentação geral dos fundamentos, as obras de Marx
mais utilizadas serão aquelas onde tanto ele quanto Engels discutem questões gerais, como
por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista de 1848, que pela sua importância estará
presente em todos os capítulos dessa dissertação.
1.1 Debate sobre democracia e a emergência do significado da revolução
A concepção de Marx a respeito da democracia parte do princípio de que a liberdade e
a igualdade têm muito sentido prático se estiverem enraizadas nas condições materiais dos
homens, onde a relação deles com a natureza seja de harmonia, capaz de superar a divisão do
trabalho opressiva e as concepções de liberdade e igualdade até então vigentes que não
passam de simples ideais. Esta tem sido a tarefa do pensamento marxista, dentro do ponto de
vista materialista que tem, apesar de todas as dificuldades, contribuído de forma decisiva para
o desenvolvimento da prática política e para as conquistas sociais que aos poucos vêm
acumulando forças para um desfecho mais promissor.
A ideia que une os democratas revolucionários radicais e o
socialismo é uma nova concepção de democracia. É preciso
formulá-la brevemente: se pode falar de democracia quando
desaparecerem todas as formas de dependência do homem
frente ao homem, de exploração e de opressão do homem pelo
homem, de desigualdade social e de ausência de liberdade.
Trata-se, pois, de alcançar uma liberdade e uma igualdade sem
discriminação de condição econômica, nacionalidade, raça,
sexo, etc... (LUKACS, 2007 p28)
A questão da democracia tem sido tratada de uma forma muito elástica, conforme tem
sido defendida pelos mais significativos partidos, grupos e ativistas políticos. Entretanto,
observamos que, em Marx, o tratamento não é o mesmo. De suas ideias a respeito da
democracia, é possível tirar conclusões muito diferentes e até diametralmente opostas
5
.
5
TEXIER, Jacques Revolução e Democracia em Marx e Engels. Nesse texto o autor comenta que vários autores tiraram
conclusões completamente diferentes das formulações dos autores supracitados, inclusive algumas opostas. FEHÉR,
Ferenc, apresenta uma tese de um Marx jacobino e, segundo ele, antidemocrático. AVINERI, Shelomo defende, ainda
segundo Texier, uma tese totalmente oposta, tanto com relação à democracia quanto com relação ao jacobinismo”.
15
Se a democracia no capitalismo é impossível, como foi examinada por Marx, devido,
sobretudo, à questão da alienação, provocada pela forma de apropriação entre o homem e sua
espécie e entre o homem e a natureza, e entre o homem e o próprio produto do seu trabalho,
assim, nesse ambiente de profunda estranheza, como é possível a conquista da liberdade e
consequentemente da democracia?
Como a preocupação fundamental de Marx era com a transição de uma sociedade de
classes para uma sociedade sem opressão, entendemos ser importante explicar como ele via
esse processo, principalmente, no que diz respeito ao papel da classe operária. Porém, é
também importante saber que este processo não está escrito e nem definido de antemão em
nenhuma profecia. Pelo contrário, Marx via no movimento da política muitas possibilidades, e
a ação dos homens, para ele, estava muito condicionada às condições históricas de cada
situação concreta. Pela nossa avaliação, consideramos que Marx eleva a teoria a um patamar
superior.
Em que consiste a superioridade do pensamento de Marx e de Engels com relação ao
pensamento anterior? Pelo menos, esta superioridade, segundo nosso ponto de vista, reside
em dois elementos fundamentais: um, na questão do método quando ele desmistificou a
dialética de Hegel, tendo como pressuposto a visão do mundo real a partir das ideias. A partir
da visão idealista hegeliana e do materialismo empirista de Feuerbach Marx e Engels,
começando decisivamente por uma obra brilhante de 1846, A Ideologia Alemã, estabeleceram
novos parâmetros de pensamento, partindo não mais das ideias, mas sim da vida material dos
homens. Para eles, as premissas com que começamos não são arbitrárias, não são dogmas,
são premissas reais, e delas na imaginação se pode abstrair. São os indivíduos reais, a
sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto as que encontraram quanto as que
produziram pela sua própria ação. Essas premissas são constatáveis de um modo puramente
empírico”. (MARX e ENGELS, 2009, p. 23-24).
Para Marx, estas constatações não eram puramente empíricas e nem idealizadas, pelo
contrário, eram formuladas a partir de mediações cuja teoria e prática, num processo dialético,
produziam algo novo. Este conhecimento, assim inicialmente desenhado, permitia captar a
realidade como um todo, na sua totalidade, onde todos os aspectos sociais eram inter-
relacionados. Porém, nessa inter-relação, o elemento material, identificado como o
desenvolvimento das forças produtivas e das respectivas relações sociais, constituía o aspecto
que dava sentido e no qual devia ser buscada a explicação de fundo para todas as
transformações. Meszáros, por exemplo, com a declaração a seguir, explicita como poucos
essa questão.
16
Naturalmente, Marx negava a legitimidade de uma filosofia
auto-suficiente, que retirasse de si mesmo a própria orientação,
assim como ironizava a ideia de que a política, o direito, a
religião, a arte, etc., tivessem uma existência separada, na
medida em que todos esses campos (‘reflexos ideológicos’)
deviam ser compreendidos em relação com o desenvolvimento
objetivo das forças e das relações de produção, como parte
integrante da totalidade da práxis social. Ele recusava
igualmente a ideia de que a filosofia tivesse um âmbito próprio
privilegiado, ou um lugar de existência separado, que pudessem
ser opostos à vida real. E ele sublinhou o papel da divisão do
trabalho na formação das ilusões que a filosofia elabora a seu
próprio respeito (MESZAROS, 1983, p. 163).
Todos os pensadores anteriores, fossem conservadores ou progressistas, abandonavam
o terreno da história real e se refugiavam em algum ponto imaginário para explicar suas
teorias. De qualquer maneira temos que reconhecer que os fundamentos para esta virada
genial, se encontram em Hegel, apesar da sua expressão especulativa. Evidentemente que uma
das razões importantes para que aqueles pensadores não pudessem perceber e explicitar,
teoricamente, os fundamentos da história real dos homens e das suas possibilidades de
transformação, encontravam-se no pequeno horizonte das condições econômico-sociais
devido ao precário desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. A
verdadeira historicidade e uma visão de totalidade da sociedade se tornarão amplamente
possíveis com o desenvolvimento do capitalismo
Por outro lado, todos os pensadores anteriores conviveram com as desigualdades, e,
quando contestavam, era de forma tangencial. No máximo, chegaram a manifestações de
revoltas, de insatisfações, de caráter religioso, humanitário e nesse sentido suas propostas
propunham reformas a partir das classes dominantes para evitar situações de barbárie ou
mesmo a partir de lideranças individuais ou de grupos aguerridos que desejavam transformar
o mundo baseados em movimentos heróicos e românticos.
Marx e Engels foram herdeiros de toda essa trajetória e, a partir daí, formularam suas
propostas cujos fundamentos, procuraremos identificar. Começaremos por constatar que eles
aliaram todo o conhecimento derivado do desenvolvimento científico promovido pelas forças
revolucionárias que promoveram o triunfo do capitalismo. A partir daí verificaremos, com
base num ensaio de Lênin, (LÊNIN, 1968) que três vertentes de conhecimento contribuíram
decisivamente para as formulações desses dois pensadores: a economia política, que foram
desenvolvidas principalmente por Adams Smith e Ricardo, cuja teoria do valor trabalho foi
relevante, a filosofia alemã, sobretudo o pensamento de Hegel conforme foi mencionado
acima e as ideias e propostas socialistas que foram desenvolvidas, sobretudo, pelos
17
pensadores chamados “utópicos”, que teve seu principal centro a França pós-revolucionária
(NETTO, 1982). Nesse sentido, o ponto central dessa teoria era o entendimento objetivo,
ontológico, do processo
6
que lhes permitia visualizar a possibilidade de mudanças radicais na
história. Eis a razão pela qual suas posições eram completamente incompatíveis com a
existência de uma sociedade dividida em classes. (BICCA, 1982) Sua ideia mestra, ou
diretriz, era exatamente esta: a incompatibilidade da democracia com a desigualdade e a
opressão. Para ele a filosofia teria que ficar a serviço da mudança, da possibilidade da
construção de uma sociedade sem classes. O proletariado, considerado uma classe universal,
seria o elemento central dessa mudança. Isto, em virtude de sua posição na sociedade onde
não podia promover mudanças em benefício particular, nem em plano simplesmente local.
Sua tarefa era desenvolver as forças produtivas de forma universal e em benefício de todos
(MESZAROS, 1983).
De acordo com o estabelecido na décima primeira tese sobre
Feuerbach, a filosofia não pode ser um saber meramente
especulativo. Tem uma tarefa prática inescusável e da qual não
deve subtrair-se: transformar o mundo em que vivemos,
desmascarando e pondo fim à auto-alienação humana em todas
as suas formas, sagradas e seculares. Para cumprir com sua
missão , a teoria deve ser ‘radical’, isto é, ir ao fundo das coisas,
ao homem como produto social e à estrutura da sociedade
burguesa que o constitui como sujeito alienado. A teoria deve
dizer qual é a verdade e denunciar todas as mentiras da ordem
social prevalecente (BORON,2007,p. 175)
O que significaria, então, uma teoria radical? Para Marx significaria ir até a raiz, e para
ele a raiz é o próprio homem. Assim, sua orientação se desenvolve no sentido de que a prática
comum dos homens é incapaz de mudar radicalmente a realidade existente. A revolução é o
único instrumento capaz de operar essa mudança.
Segundo Hobsbawm, por exemplo, comentando a teoria de Marx, diz que nele a
política, a economia e a filosofia, a experiência francesa, inglesa e alemã, o socialismo e o
comunismo ‘utópicos’, foram, portanto fundidos, transformados e superados na síntese
marxiana, no decorrer dos anos 40 (HOBSBAWM, 1983, p.60). Tal asserção lhe permite
fazer elaborações sobre democracia de forma mais consistente do que os pensadores
anteriores. Isto porque não só as forças produtivas estavam mais desenvolvidas, em virtude de
um maior desenvolvimento da produção industrial, como também as classes sociais
6
Foi na Ideologia Alemã ( MARX e ENGELS, 2009 ) que eles definiram os pressupostos e os fundamentos da
teoria, quando fazem uma reflexão sobre a dialética idealista então vigente e predominante até aquele momento e
articulam os fundamentos daquela teoria com o processo concreto e material da vida dos homens produzindo
uma dialética nova, materialista, capaz de dar conta das explicações essenciais para o entendimento do processo
histórico capaz de fornecer os elementos essenciais para um projeto capaz de provocar sua mudança.
18
consideradas fundamentais do sistema capitalista marcavam suas presenças de forma
predominante.
Além disso, este foi um período de grandes tensões sociais na Europa Ocidental, que
possibilitaram e facilitaram tanto a agitação como a mobilização das camadas populares. Na
Inglaterra, o movimento dos trabalhadores urbanos;
7
na França, a fusão de várias teorias
revolucionárias do socialismo com o jacobinismo radical, possibilitando o fortalecimento das
contestações políticas e, na Alemanha, o pensamento de Hegel, através de seus seguidores,
provocou uma verdadeira revolução ideológica.
8
.
O movimento revolucionário, neste período, adquiriu uma dimensão forte e a
burguesia, também, preparou-se para um confronto de grandes proporções. Tudo isso
desembocou nos movimentos de 1848 e nas derrotas dos trabalhadores. Porém, é importante o
registro, a título de se fazer justiça, de que todo o movimento revolucionário anterior a Marx
não deixou sua marca, como também abriu caminhos importantes, para o desenvolvimento
do movimento dos trabalhadores, bem como para o processo de democratização. Neste
sentido, a leitura realizada por Santos (1998) é elucidativa:
Programática e revolucionária, a Ilustração é regida por uma
determinação geral que envolve todos os grupos sociais
transformadores e de vanguarda em sociedades cortadas pelas
divisões de classes: os valores que enuncia não aparecem nas
suas concretas conexões com interesses dos grupos particulares,
mas surgem, necessariamente, como expressões de um interesse
geral. Assim é que o ideário projetivo ilustrado centralizado
pelas noções de autonomia, liberdade e livre desenvolvimento
de todos e cada um dos homens se remete ao gênero humano,
indiscriminadamente; a mistificação ideológica de que é
prisioneiro, porém, não reduz o seu alcance revolucionário: seu
caráter liberador contém um potencial erosivo que transcende as
suas limitações e as suas ilusões. (SANTOS, 1998, p. 44)
Entre os ilustrados, por exemplo, uma série de pensadores, os chamados socialistas
utópicos, até que tentaram visualizar alguma forma de encontrar algum caminho que pudesse
contribuir para modificar uma realidade que eles entendiam como profundamente injusta.
Porém, as condições materiais daquele momento não permitiram, à medida que faltavam as
condições históricas necessárias. Sobretudo, faltava a presença, em termos significativos, dos
elementos que guiariam essa transformação no caso, a classe operária com a consciência do
seu papel (Cf. SANTOS, 1998).
7
Sobre essa questão consultar o livro de Hobsbawm ( HOBSBAWM, 1981-a)
8
Sobre esse assunto ver (HOBSBAWM, 1983) num ensaios sobre o socialismo pré-marxiano ( p. 33 a 60) e a Ideologia
Alemã, (MARX e ENGELS, 2009)
19
No entanto, é notório que todo o pensamento que se desenvolveu pelo grande
desenvolvimento intelectual a partir dos tempos modernos, sobretudo a partir do século XVII,
naquele amplo movimento chamado de iluminismo, representou um acentuado avanço com
relação ao pensamento representativo dos tempos predominantemente feudais, que davam
sustentação ideológica aos grupos dominantes daquele período e ao absolutismo de caráter
divino. O problema maior, e esta era a razão fundamental da crítica de Marx, era que o
iluminismo defendia a igualdade para uma classe
9
, isto é, para a burguesia.
Em suma, o ‘espírito do Iluminismo’... é ao mesmo tempo
subversivo e racional: pois a razão é sempre crítica, e o
irracionalismo é sempre reacionário. Essas duas condições, que
caracterizam o iluminismo clássico, caracterizam também seus
autênticos herdeiros. São condições necessárias e suficientes.
Elas bastam para caracterizar como contra iluministas as
posições conservadoras (ROUANET, 1998 p 204).
Estas concepções, que se apoiavam geralmente em ideologias de classes proprietárias,
limitavam-se apenas a alguns aspectos políticos, como o que é o cidadão ou quais os tipos de
direitos que cabiam aos cidadãos, ou qual a forma que melhor corresponderia a uma divisão e
a um equilíbrio de poderes entre as elites. Mesmo assim, o Iluminismo, ao defender a ideia de
progresso, representava uma profunda mudança. Seu fundamento era o aperfeiçoamento do
indivíduo e a construção de uma sociedade onde o homem pudesse adquirir o controle sobre a
natureza e conseguir o aperfeiçoamento da sociedade através das suas capacidades e do
trabalho, independentemente de qualquer plano sobrenatural ou divino
10
. Enquanto isso, o
quadro anterior era caracterizado pela rigidez dos estamentos, pela hierarquização da
sociedade definida pelo nascimento (HOBSBAWM, 1983). Assim, o Iluminismo, na sua
expressão mais ampla, era profundamente subversivo, porque contestava algo considerado
irracional, que eram as manifestações concretas do Antigo Regime simbolizadas na Igreja e
no Absolutismo. Dessa forma, concluímos que toda essa fase e todas as reflexões
desenvolvidas pela ilustração contribuíram de forma significativa para que Marx e Engels
pudessem avançar para um novo patamar do conhecimento.
O primeiro grande teórico a levantar a questão da democracia de maneira forte e até
surpreendente para as circunstâncias foi Rousseau.
11
Mesmo sendo um contratualista, com os
9
Hobsbawm levanta alguns pontos que distinguia o pensamento marxiano dos seus predecessores. O autor explica como
eles(Marx e Engels) prestaram contas com o passado. (HOBSBAWM, 1983)
10
Em As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem (LUKÁCS, 1978 ), o autor deixa claro que
o homem é o responsável pelo processo de desenvolvimento histórico, tendo no trabalho o seu fundamento
essencial.
11
(COUTINHO 1996) num ensaio publicado na revista Lua Nova, com o título:Crítica e Utopia em Rousseau, discute
fundamentalmente dois temas na obra de Rousseau: a relação entre indivíduo e sociedade e a crítica que este autor faz à
questão da desigualdade, apontando ao mesmo tempo para um novo projeto de sociedade.
20
limites característicos do seu tempo, sua posição representou um grande avanço com relação
ao pensamento liberal. Rousseau, porém, era um representante de camadas sociais que Marx
denominava de pequena burguesia, que, na época, era constituída por pequenos proprietários.
Em função disso o sonho de Rousseau era ver triunfar a constituição de uma sociedade de
iguais, isto é, onde todos fossem proprietários. No horizonte do seu discurso sobre a origem
da desigualdade, encontramos o combate fervoroso ao estatuto da propriedade privada. Sobre
isso ele diz que,
desde o instante em que um homem sentiu necessidade do
socorro de outro, desde que se percebeu a um contar com
provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a
propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas
florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs
regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a
escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as
colheitas (ROUSSEAU, 1973, p.271).
A partir daí, ele assume uma oposição radical a todas as desigualdades, da forma como
se desenvolveram e como se consolidaram no capitalismo. A sua condição social e a
conjuntura na qual ele conviveu contribuíram bastante para os limites do seu pensamento. Ele
continuava sendo um defensor da propriedade individual.
12
Achamos que sua presença nesta discussão é importante, porque o seu pensamento
representa certa inflexão com relação às visões anteriores. O modelo de democracia que ele
visualizava se diferenciava de todos os anteriores, desde a Antiguidade. Isto porque os antigos
das cidades-Estado gregas associavam a democracia com o pertencer à comunidade. Por outro
lado, nos tempos modernos, a democracia se restringia aos aspectos formais. Na época, havia
um fosso entre o homem genérico, o cidadão e o indivíduo, com toda a sua carga de
egoísmo.
13
Portanto, ao defender a soberania popular, na constituição do governo, ele levantou
uma questão importante e inesperada que influenciou não o debate sobre a democracia,
como também ações políticas significativas, sobretudo no processo das revoluções burguesas
do século XVIII e primeira metade do século XIX. O exemplo concreto mais significativo da
influência das ideias de Rousseau encontra-se sem dívida no período da Convenção, na sua
segunda parte, quando se instalou a República, dirigida pelo Comitê de Salvação Pública, a
chamada República Jacobina. Esta influência se estendeu por grande parte do século XIX,
impulsionando grande parte das ações revolucionárias, geralmente promovidas por pequenos
12
C. N, Coutinho (COUTINHO, 1994) Faz um pequeno balanço crítico sobre o discurso da desigualdade em Rousseau, onde
fica evidente não o avanço das concepções de Rousseau com relação ao pensamento liberal no que diz respeito à questão
da democracia, bem como também os limites inerentes às posições do autor que encontra-se ainda preso ao estatuto da
propriedade privada.
13
MARX, Karl Uma bela explicação dessa explicação encontra-se em Para a questão judaica (MARX, 2009-b)Ver também,
LUKÁCS, (2008) especialmente no ensaio o Processo de Democratização (p. 86 a 206)
21
grupos. O próprio marxismo, que pensava a revolução realizada por grandes massas de
trabalhadores, teve dificuldades em penetrar naqueles movimentos (MOBSBAWM, 1985).
Segundo HOBSBAWM (1981-b), a influência do jacobinismo, sobretudo na época do
expansionismo napoleônico, adquiriu grande prestígio na Europa. Na França, por exemplo, os
grupos influenciados por Rousseau, os jacobinos mais radicais, tiveram uma influência
enorme sobre os movimentos sociais.
O primeiro comunismo que Marx e Engels conheceram tinha
como palavra-de-ordem a igualdade; e Rousseau era,
precisamente, o seu teórico mais influente. Na medida em que o
socialismo e o comunismo dos primeiros anos da década de 40
do século XIX foram franceses,- e o foram em ampla medida -
uma de suas componentes originárias era precisamente um
igualitarismo de marca rousseauniana. Nem se deve esquecer o
influxo de Rousseau sobre a filosofia clássica alemã.
(HOBSBAWM, 1983 , p. 39- 40)
Assim, não é irrelevante começar a discussão sobre democracia em Marx,
considerando a posição desse pensador. Porém, por mais importante que tenha sido a
influência de suas ideias, elas foram superadas, em termos de magnitude, isto é, em termos de
penetração e influência na sociedade, pelos pensadores liberais. Estes, ligados de certa
maneira aos novos grupos sociais que haviam emergido com a nova realidade e que tinha na
escola de economistas escocesa seu principal centro e, em Locke seu principal formulador da
política, representavam a realidade burguesa e as formas de representações formais com maior
vinculação com o capitalismo da época.
Meszáros, depois de sintetizar as principais características da economia política liberal
e dizer que ela representou o ponto mais importante, no pensamento do desenvolvimento da
transição do antigo regime para o capitalismo, assim como de sua consolidação, afirma
também que a principal objeção de Marx à economia política liberal é a incapacidade dela
de provar que a essência da propriedade privada é o trabalho. E essa questão está
inseparavelmente ligada à avaliação da natureza da divisão do trabalho. A avaliação correta
é vital para toda a questão da alienação” (MÉSZÁROS,1981, p. 127).
Vale lembrar que a Inglaterra, devido ao grande impulso dado às atividades industriais
era, naquele momento, o expoente do que existia de mais avançado dentro da ordem
capitalista, e Locke passou a ser o grande nome do pensamento liberal. Cremos, inclusive, que
a citação a seguir reforça essa argumentação quando afirma que
o que é importante verificar e ressaltar é que, no seu conjunto, a
crítica social ilustrada, ao denunciar as instituições feudais,
abria o caminho para a instauração e o desenvolvimento das
instituições próprias da sociedade burguesa. Tanto no domínio
22
da teoria política quanto no da economia política pense-se em
Locke e em Smith –, a crítica social oriunda da Ilustração
operava no sentido da instauração de uma sociedade racional tal
como a entendia a perspectiva de classe da burguesia
revolucionária. A vertente mais significativa dessa crítica social
(e isto vale, repita-se, tanto para o debate político quanto para a
análise econômica), como se sabe, é o liberalismo clássico, a
mais emblemática das construções ideológicas da burguesia
heroica do século XVIII. O caráter emancipador do liberalismo
clássico, pré-revolucionário, é amplamente reconhecido,
inclusive por um de seus críticos mais inclementes, Marx, que
nunca deixou de valorizar a questão da emancipação política,
ainda que mostrasse a distância que a separa da emancipação
humana (Marx, 1969) (SANTOS, 1998, p. 48).
Com relação a Rousseau, sua importância encontra-se no fato dele ter se colocado
contra o pensamento liberal com relação à democracia. Enquanto os liberais defendiam a
participação exclusiva para quem era grande proprietário, Rousseau defendia a soberania
popular, isto é, quem legitimidade ao governo é o conjunto da população. As suas ideias,
porém, como ficavam deslocadas dos dois grandes eixos da sociedade capitalista, que eram as
representações das duas grandes classes sociais, ficaram limitadas a grupos revolucionários de
vanguarda, que não raro assumiram posições comprometidas com realidades superadas. De
qualquer maneira, naquele momento, suas posições foram bastante importantes na
contribuição para a democratização, na medida em que estimula a participação de setores até
então marginalizados do processo político. Assim, concordamos quando Carlos Nelson
Coutinho afirma que:
o povo se constitui como povo, gesta-se como sujeito coletivo;
e o que move esse sujeito é precisamente a vontade geral, ou
seja, uma vontade que tem como objeto não uma soma de
interesses particulares ou privados, mas sim o interesse comum
da coletividade. O que caracteriza a posição democrática de
Rousseau é precisamente isto: a afirmação de que é legítima
uma sociedade fundada na soberania popular, na construção de
um sujeito coletivo que, com base na vontade geral, atua
segundo o interesse comum, subordinando a ele os interesses
puramente privados (COUTINHO, 1994, p. 126).
Porém, foi durante os processos revolucionários dos tempos modernos
(HOBSBAWM, 1981-b) que a questão democrática assumiu uma dimensão gigantesca,
principalmente durante a Revolução Francesa. Isso porque, além da questão teórica, esses
movimentos viram emergir, em grandes proporções, a participação das camadas populares,
não só fazendo suas reivindicações, como exigindo e executando ações até então inesperadas.
23
Durante esse processo, as grandes massas foram convocadas, em nome da liberdade,
da igualdade e da fraternidade, pela burguesia e seus teóricos, para lutar contra o absolutismo
monárquico e a opressão dos antigos laços de dependência pessoal, resquícios do antigo
regime feudal. A esse apelo, as massas compareceram e participaram com grande entusiasmo.
Porém, mesmo agindo ainda de forma desorganizada com suas aspirações atreladas aos
projetos de transformação burguesa, no entanto, empiricamente sabiam das razões e dos
objetivos de suas participações. Isto é, enquanto a burguesia lutava para superar o passado
(MARX, 1998), os trabalhadores lutavam para construir o futuro (HOBSBAWM, 1981-a),
mesmo esse futuro sendo ainda meio indefinido. Os trabalhadores não possuíam ainda
qualquer tipo de unidade, nem projetos políticos de classe e menos ainda a consciência do que
eles podiam representar em termos de totalidade social. Contudo, ficava claro que existiam
objetivos diferentes, de classes. Lógico que, naquelas circunstâncias, ainda faltavam as
condições necessárias para um movimento independente, porque, segundo Marx, para que
uma classe social conseguisse dirigir um processo revolucionário de maneira mais profunda,
seria necessário que existisse uma sintonia entre os seus interesses particulares e os interesses
universais da sociedade, uma vez que
Nenhuma classe da sociedade civil consegue desempenhar esse
papel a não ser que consiga despertar, em si e nas massas, um
momento de entusiasmo em que se associe e misture com a
sociedade em liberdade, identifique-se com ela e seja sentida e
reconhecida como o representante geral desta sociedade. em
nome dos interesses gerais da sociedade é que uma classe
particular pode reivindicar a supremacia geral. Os seus
objetivos e interesses devem verdadeiramente ser os objetivos e
os interesses da própria sociedade da qual se torna o cérebro e o
coração social (MARX, 2003, p. 56).
Assim, até então, todos os movimentos de iniciativas populares ou que foram
realizados em nome do povo tinham fracassado, e os que tinham triunfado foram aqueles que
incorporaram a mobilização dos trabalhadores para seus fins particulares. Nesse sentido, as
revoluções burguesas que atravessaram todo o período de transição do feudalismo para o
capitalismo conheceram o seu ponto culminante na Revolução Francesa e, após o sucesso
dela, a burguesia, que assumiu um poder imenso, num vasto território resolveu, então, dar por
encerrado o processo e fixar os limites do que era possível negociar.
Além de todas estas conquistas, a burguesia tratou de definir a forma de apropriação
que melhor correspondia aos seus interesses. De antemão, ela consolidou a convicção de que
uma classe social estabelece o seu domínio a partir de uma visão determinada a respeito das
condições materiais. Pelo menos até aquele momento tinha sido assim e ela compreendeu que
24
a tarefa da Revolução estaria completa quando a questão da propriedade fosse consolidada
em todos os seus aspectos, inclusive na sua formalidade. Assim, a propriedade privada
material, imediatamente perceptível, é a expressão material e sensível da vida humana
alienada. O seu movimento a produção e o consumo é a manifestação sensível do
movimento de toda a produção anterior, quer dizer, a realização ou realidade do homem”
(MARX, 2003, p. 38).
A burguesia, portanto, que fora progressista e revolucionária na sua luta contra o
Antigo Regime, ao considerar que tinha superado os obstáculos ao desenvolvimento do
capitalismo, tornou-se conservadora. Sendo assim, ela foi revolucionária e democrática
enquanto este comportamento tinha sido favorável à consolidação de seus interesses. Uma vez
realizada essa tarefa, procurou alianças com os inimigos da véspera, provocando não uma
ruptura com o movimento dos trabalhadores, como também um grande retrocesso na linha de
progresso (TOGLIATTI, 1980).
De qualquer maneira, os teóricos da burguesia introduziram algo bastante novo com
relação ao pensamento anterior, principalmente com relação ao pensamento dos antigos
14
. O
homem deixou de ser basicamente contemplativo para participar ativamente da história. Tais
teóricos articulam o homem com a natureza e este passa a ser o autor do processo. Porém,
havia uma questão que era muito cara aos antigos: a questão do homem como ser
essencialmente social. Nas sociedades da Antiguidade, sobretudo nas cidades-Estado da
Grécia, a cidadania estava muito vinculada à comunidade, enquanto que, para o homem
moderno, no pensamento liberal, a cidadania é individual e o coletivo se forma através de um
pacto. Nesse processo, ao mesmo tempo de triunfo e de incertezas, os grupos sociais
vitoriosos se encontravam diante de uma encruzilhada: ameaçados por um lado, pelas
aristocracias conservadoras, que tinham no Absolutismo sua expressão política e na chamada
Santa Aliança
15
sua organização maior, que articulava vários países e do outro, pelas massas
populares, com suas reivindicações cada vez mais radicais e agressivas, fizeram as mais
diversas alianças, ora com elementos aventureiros, como Napoleão III, ora com aristocracias
representativas do Antigo Regime, como na Alemanha.
Porém, é importante o registro de que a ameaça dos pobres, na primeira metade do
século XIX, se dava mais pela sua simples presença, do que por ações efetivas que se
manifestassem em formas de luta. A situação das pessoas pobres era tão dramática naqueles
14
TONET, Ivo (2005 ) Ele faz uma comparação, estabelecendo a diferença entre a democracia dos antigos povos gregos
com relação à democracia consolidada nos tempos modernos.
15
A Santa Aliança era representada pelas grandes Monarquias Absolutas, e se formou após 1815 com o objetivo de reagir
contra o avanço das ideias liberais.
25
anos que antecedem 1848 que tornava quase impossível qualquer tipo de reação de forma
mais organizada e racional, tal o estado de miséria da grande maioria dos trabalhadores. As
cidades mais importantes, que haviam atraído grandes contingentes de pessoas desapropriadas
dos campos, encheram-se de miseráveis; e como as condições de saneamento e de assistências
públicas eram precárias, a consequência foi a degeneração e a mortandade provocada pela
fome e pelas epidemias. No décimo primeiro capítulo do livro a Era das Revoluções (1981),
Hobsbawm faz uma bela síntese das condições dos trabalhadores pobres na Europa, entre o
final do século XVIII e a década de 1840. Porém, apesar de toda essa situação dramática, e de
forma até inesperada, as massas populares resolveram se erguer e enfrentar a situação da
única maneira que era possível: através de movimentos revolucionários. Numa época em que
os trabalhadores não possuíam qualquer instrumento importante que pudesse intermediar de
forma eficiente um processo de negociação e onde, principalmente, o Estado liberal e as
classes dominantes não abriam nenhum canal de interlocução, o movimento radical era a
única possibilidade que se abria.
Quando chegou o ano de 1848, a situação tornou-se explosiva. Pela primeira vez, os
trabalhadores da Europa, em diversos países do continente, a começar pela França,
levantaram-se em manifestações impressionantes
16
contra a ordem vigente, desestabilizando
grande parte dos regimes políticos que haviam se organizado após a época napoleônica. Aliás,
pela primeira vez, os trabalhadores entraram em cena numa luta de grandes proporções, agora
de forma independente, tendo como motivação os seus interesses de classe. A luta dos
trabalhadores desse período ocorre exatamente numa conjuntura marcada por duas ordens de
crise. De um lado, no leste, as potências conservadoras se encontravam em dificuldades para
superar os movimentos nacionalistas e as rebeliões de caráter liberal, consequências da
divulgação e expansão das ideias revolucionárias e liberais, e do outro lado a crise do
capitalismo, principalmente na Inglaterra, que se manifestava nas dificuldades de realização
da acumulação, provocando miséria e desemprego (AARÃO REIS, 1998).
O resultado foi a derrota das revoluções, o massacre das vanguardas do movimento e
consequências econômicas graves. Segundo Marx, a esses acontecimentos seguiu-se uma
grande redução salarial, agravando ainda mais a situação de miséria dos trabalhadores, apesar
do desenvolvimento econômico que se seguiu a 1848 (MARX, 1973). Apesar disso, uma
outra consequência foi também importante. A partir daquele momento, a classe operária
16
Uma síntese importante sobre os acontecimentos fundamentais daqueles movimentos encontra-se em( AARÃO
REIS,1998).
26
percebeu que sua trajetória não podia continuar dependente dos interesses da burguesia. Era
necessário seguir sua própria orientação. Por outro lado, a classe dominante tomou
conhecimento e consciência da existência da força que possuíam os trabalhadores.
Portanto, o panorama que se apresentava em 1848, em virtude das crises das
sociedades europeias, ainda amplamente marcadas pelos resquícios do Antigo Regime,
sobretudo ao nível da política ideológica, abria amplas perspectivas para uma reação forte e
eficiente das forças capitalistas, principalmente lideradas pela Inglaterra, tanto contra as ações
restauradoras de caráter conservador, que desejava anular ou neutralizar as alterações que
foram promovidas pela Revolução Francesa e pelas consequências de sua expansão, assim
como também tentar resolver, de forma a mais duradoura possível, a grande ameaça que vinha
da classe trabalhadora. Estas duas questões foram razoavelmente resolvidas, na medida em
que não só conseguiram neutralizar as ações contra o nacionalismo e o constitucionalismo que
havia se estabelecido, como também não permitiram que o antigo regime mercantilista,
sobretudo com relação às ex-colônias, voltasse a funcionar. A ação da Inglaterra, nesse último
aspecto, foi decisiva.
Com relação aos trabalhadores, todas as grandes potências e todos os grupos
dominantes colocaram de lado suas divergências e se concentraram na repressão ao
movimento operário. Assim, conseguiram eliminar, circunstancialmente, todas as iniciativas
revolucionárias.
Porém, foi a partir daqueles acontecimentos, após os movimentos dos trabalhadores de
1848, que a sociedade moderna adquiriu e consolidou a sua conformação, baseada em novos
princípios e numa nova moral, em que a universalidade social se particulariza em função dos
interesses e dos objetivos de uma classe social, seja em relação aos indivíduos, aos grupos
sociais ou aos Estados. É exatamente aí, nesse momento, que se cristaliza a alienação. Isto
porque a burguesia conseguiu, de um lado, consolidar suas posições nas relações econômicas
e nas relações de poder, e, do outro lado, dominar os setores majoritários da sociedade através
de um processo de divulgação ideológica muito forte baseado no poder da nação e na
superioridade da chamada civilização europeia. Foi a partir daí que os principais países da
Europa, tendo a Inglaterra como principal referência, conseguiram consolidar os instrumentos
fundamentais do sistema capitalista, baseado num certo equilíbrio entre as nações que
conseguiram adiar até o século XX conflitos de grandes proporções. Também conseguiram
articular um sistema internacional de trabalho sob hegemonia inglesa que submetia o mercado
mundial a uma lógica de trocas desiguais, proporcionando uma acumulação de capitais
favorável aos grandes centros industriais. A utilização da moeda inglesa, como referência
27
universal, e a prática do livre-câmbio foram instrumentos importantes e muito utilizados
naquela conjuntura.
17
Como a preocupação fundamental de Marx era com a transição de uma sociedade de
classes para uma sociedade sem opressão, entendemos ser importante explicar como ele via
esse processo, principalmente no que diz respeito ao papel da classe operária. Porém, é
também importante saber que este processo não está escrito e nem definido de antemão em
nenhuma profecia. Isto significa dizer que toda formação econômica, ao mesmo tempo em
que vai se transformando, vai provocando a transformação de seus aspectos institucionais, no
sentido de articular os fundamentos materiais com uma determinada legalidade. No caso que
estamos tratando, a questão da democracia em Marx vai ficando claro que a transição pode
ser o resultado de um processo que se realiza em todas as esferas da sociedade vigente, onde a
realização humana, isto é, o reino da liberdade seja o resultado de uma mudança real nas suas
condições materiais. O tratamento que Marx dava, portanto, à questão da democracia era
completamente diferente da forma como vinha sendo tratada, porque ela seria um pressuposto
para a realização humana que partia de um patamar essencial: a satisfação das necessidades.
Ao contrário da forma como é tratada no capitalismo, em que as questões institucionais não
possuem relações necessariamente correspondes com a vida material dos homens, Lukács diz
que quando se trata ... a respeito dessas questões, fala-se frequentemente da democracia
como uma situação estática, deixando de lado, ao caracterizar tal situação, o exame das
ações evolutivas reais, embora somente desse modo seja possível uma correta conceituação
do problema. Para sublinhar isso, preferi usar o termo ‘democratização’ em vez de
democracia” (LUKACS, 2008, p. 85).
Tal asserção lhe permite fazer elaborações sobre democracia de forma mais
consistente do que os pensadores anteriores. Isto porque não as forças produtivas estavam
mais desenvolvidas, em virtude de um maior desenvolvimento da produção industrial, como
também as classes sociais consideradas fundamentais do sistema capitalista marcavam suas
presenças de forma predominante. Além disso, foi um período de grandes tensões sociais na
Europa Ocidental, que possibilitaram e facilitaram tanto a agitação como a mobilização.
Na Inglaterra, o movimento dos trabalhadores urbanos
18
, na França, a fusão de várias
teorias revolucionárias do socialismo com o jacobinismo radical, possibilitando o
fortalecimento das contestações políticas e, na Alemanha, o pensamento de Hegel, através de
17
Uma explicação bastante consistente sobre esta conjuntura, de forma sintética, pode ser encontrada no
primeiro capítulo de A Grande Transformação (POLANYI, 1980).
18
HOBSBAWM, Eric, no seu livro os trabalhadores, (1981:140) Ed. Paz e Terra Rio de Janeiro, faz um quadro sinótico
dos principais movimentos dos trabalhadores e suas organizações, do começo do século até 1848.
28
seus seguidores, provocou uma verdadeira revolução ideológica.
19
. Na esfera política, as
revoluções de 1830 e as reformas inglesas de 1832-35 instituíram regimes que serviam
evidentemente aos interesses da parte predominante da burguesia liberal, mas fracassaram
clamorosamente no objetivo da democracia política (HOBSBAWM, 1983, p. 62). Estas
mudanças possibilitaram reflexões muito mais profundas.
No entanto, o próprio Marx admitiu que o Iluminismo, representou um avanço com
relação ao pensamento providencialista
20
, representativo das aristocracias do Antigo Regime.
O problema era que o Iluminismo defendia a igualdade para uma classe
21
, isto é, para a
burguesia. Mesmo assim, o Iluminismo, ao defender uma ideia de progresso, baseada no
aperfeiçoamento do indivíduo e na construção de uma sociedade onde o homem pode adquirir
o controle sobre a natureza e conseguir o aperfeiçoamento da sociedade através das suas
capacidades e do trabalho representava uma profunda mudança no comportamento com
relação ao quadro anterior.
Em Marx, a categoria da democracia vincula-se a um projeto capaz de superar as
dificuldades do passado e do presente que impedem o pleno desenvolvimento do homem.
Para Marx, o homem é o criador de sua história e, por conseguinte, tanto produz a
sociabilidade, caracterizada pela exploração, quanto pode destruí-la para produzir uma outra
na qual a liberdade possa ser o caminho para a construção de uma sociedade efetivamente
fraterna e o começo de uma verdadeira história. Rosa Luxemburgo, por exemplo, enriquece
essa discussão com o seguinte argumento.
Nas relações políticas, o desenvolvimento da democracia, na
medida em que encontra terreno favorável, conduz à
participação de todas as camadas populares na vida política e,
por conseguinte, de certo modo, ao ‘Estado popular’. Mas isso,
sob a forma do parlamentarismo burguês, o qual, longe de
suprimir os antagonismos das classes e a dominação de classe,
patenteia-se, ao contrário, a olhos vistos. É por mover-se o
desenvolvimento capitalista através de contradições que o
proletariado, para extrair do seu invólucro capitalista a semente
da sociedade socialista, deve apossar-se do poder político e
suprimir completamente o sistema capitalista
(LUXEMBURGO, 1999, p. 100).
19
Na Ideologia Alemã, ( MARX, 1989:17 ) Editora Hucitec, São Paulo, ele diz que “Os princípios deslocaram-se; os heróis
do pensamento lançaram-se uns contra os outros em inaudita precipitação, e em três anos de 1842 a 1845 removeu-se o
solo da Alemanha mais do que antes em três séculos.”
20
O providencialismo caracteriza-se por uma espécie de plano divino, portanto exterior e independente da ação dos homens,
que ao nível da sociedade deveria ser algo restrito a grupos minoritários como a Igreja e a Monarquia (FONTES, 1998)
21
( HOBSBAWM, 1983) argumenta que o iluminismo foi uma poderosa força ideológica a favor da burguesia revolucionária
no sentido de afastar todos os obstáculos do Antigo Regime ao livre desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido
ele recebeu os elogios adequados de Marx.
29
A partir de Marx, a questão da democracia passou a ser formulada, pelo socialismo,
como algo em que a questão da igualdade e da liberdade assume um caráter universal e não
mais como algo exclusivo de uma classe social em particular, como algo que deveria ser o
resultado da mobilização de amplas massas, dirigidas por uma teoria comprometida com a
transformação visando à socialização das forças produtivas que haviam sido mobilizadas pelo
capitalismo.
22
Assim, o socialismo, como consciência histórica universal, tem suas origens no
sistema capitalista, na concentração dos trabalhadores em função do processo de acumulação
que coloca em lados opostos o capital e o trabalho. É exatamente esta relação que possibilita
os trabalhadores a identificar seus verdadeiros interesses, assim como identificar num
horizonte universal as possibilidades de sua libertação. Nessas circunstâncias surge também
uma nova consciência baseada em novos valores que ultrapassam os limites de qualquer
classe social
23
em função dos interesses maiores da sociedade.
A partir das formulações presentes no parágrafo anterior, podemos perceber que a
questão da democracia para Marx e Engels não pode ser entendida senão relacionada a um
processo, que tem como ponto central a luta de classes que se consolida no seio do
capitalismo. Neste processo, a burguesia, que se constituiu em classe dominante na sua luta
contra o Antigo Regime, provocou também o aparecimento e o desenvolvimento da classe
operária que tem a missão de superar esta realidade (MARX e ENGELS, 1998).
Esta luta de classes, no capitalismo, entre o capital e o trabalho, ao contrário dos
sistemas anteriores, caracteriza-se por um sistema de exploração baseado na extração de mais-
valia, encoberta por uma mistificação. Que mistificação é esta? Como a produção é realizada
por uma força de trabalho que é adquirida no mercado, como todas as mercadorias, o
pressuposto é que o capitalista adquire esta mercadoria por algo equivalente, que é o salário.
Como não e nem pode haver, nesse ato, uma definição das regras do uso dessa força de
trabalho a não ser pelas regras do próprio mercado capitalista, Marx descobriu que, ao ser
colocada para trabalhar, ela produz algo além do valor pelo qual foi adquirida. Isto é, significa
que na produção e acumulação capitalista a apropriação do excedente ou do mais valor é
camuflada com a finalidade de evitar o aumento do valor da força de trabalho que possa
22
- Sobre esse assunto, Gramsci, já em 1919, portanto, em plena guerra já argumentava que “ O Estado socialista existe já em
potência nos organismos de vida social próprios da classe trabalhadora explorada. Juntar entre si esses organismos, coordená-
los e subordiná-los a uma hierarquia de competências e de poderes, centralizá-los fortemente respeitando as autonomias e as
articulações indispensáveis, corresponde a criar desde já uma verdadeira e autêntica democracia...”( GRAMSCI, 1976, p.8)
23
Na Miséria da Filosofia, Marx (2009-a) descreve como os conflitos entre os capitalistas e os trabalhadores se
estabelecem e na Ideologia Alemã. Marx e Engels (2009) argumentam sobre a questão da consciência,
verificando as diferenças fundamentais entre a consciência histórica do capitalismo e a consciência histórica do
socialismo.
30
comprometer sua reprodução e consequentemente o próprio funcionamento do sistema. A
força de trabalho existe para a expansão das riquezas existentes.
No capitalismo geralmente se omite o principal, isto é, não se
compra a força de trabalho para satisfazer as necessidades
pessoais do adquirente por meio dos serviços que ela presta ou
do que ela produz. O objetivo do comprador é aumentar seu
capital, produzir mercadorias que contem mais trabalho do que
ele paga e cuja venda realiza também a parte do valor obtida
gratuitamente. Produzir mais-valia é a lei absoluta desse modo
de produção. A força de trabalho é vendável quando
conserva os meios de produção como capital, reproduz seu
próprio valor como capital e proporciona, com o trabalho não
pago, uma fonte de capital adicional (MARX, 2002, 721-722).
Além dessa questão, o capitalismo, no seu funcionamento e na sua lógica de
racionalização dos fatores que entram no processo produtivo, ainda se beneficia, de forma
significativa, de um excedente populacional, que não tem nada a ver com o crescimento da
população em termos absolutos. Ela é o resultado de um processo de racionalização do
sistema produtivo com o objetivo de aumentar a taxa de mais-valia. Assim, esse excedente se
constitui num elemento importante no processo de acumulação na medida em que estimula os
investimentos, pois está sempre disponível para as necessidades de expansão do capital. Ele
forma uma espécie de reserva de mão-de-obra que serve como instrumento de pressão dos
capitalistas sobre o valor do trabalho, isto é, sobre os salários, como também serve como
pressão política sobre a classe operária, na medida em que este excedente é um elemento
poderoso na concorrência perante o mercado de mão-de-obra (MARX, 2002).
Esta teoria, que Marx desenvolveu no Capital, foi o resultado dos estudos que ele
realizou na economia política, sobretudo nas obras de Ricardo. Foi ela que permitiu a
compreensão dos fundamentos de funcionamento do sistema capitalista bem como a
descoberta das possibilidades de sua superação e a formulação de um projeto capaz de superar
esta realidade. Foi a partir daí que se tornou possível a compreensão desse processo de
mudança que traz em si as possibilidades de construção de uma democracia. O ponto central
dessa teoria encontra-se no fato de que Marx assumiu o ponto de vista de uma classe,
abandonando completamente as pretensões de neutralidade científica. Para ele, não havia
formulação a respeito da vida dos homens e do futuro das sociedades de forma desinteressada.
Por isso é preciso destacar que a democracia para Marx é incompatível com o
capitalismo, pois nele predomina a divisão do trabalho, a exploração de uma classe sobre as
outras, a concentração da propriedade e a existência do trabalho alienado. Portanto, numa
sociedade com estas características, o grande conjunto da população fica distante das grandes
decisões, principalmente daquelas que dizem respeito à economia, como: a moeda, o câmbio,
31
a taxa de juros, etc. Sabe-se que, historicamente, sua participação ficou limitada ao sufrágio,
de forma esporádica.
Em suma, a democracia é incompatível com o capitalismo que apenas mantém em
funcionamento uma espécie de democracia formal (LUKÁCS, 2008). A democracia apenas
estabelece algumas regras
24
de funcionamento para uma democracia parlamentar ou
representativa. Nela, os cidadãos participam apenas eventualmente, no período eleitoral,
cessando, a partir daí, seu direito e poder de interferir nas decisões cruciais que afetam a sua
existência real. As grandes decisões passam a ser de seus ilustres representantes que dirigem a
sociedade, não mais de acordo com as tendências do que foi decidido nas eleições, mas sim
pelas pressões do poder econômico (WOOD, 2007).
De fato, o que ocorre é que as questões formais, as regras democráticas, que são
estabelecidas mesmo sendo depois de processos revolucionários bastante significativos, como
foi a Revolução Francesa do século XVIII, não significam necessariamente que as instituições
criadas sejam democráticas.
A significação dessas instituições, por mais avançadas que possam parecer não se
explicam por si mesmas e o conteúdo delas pode ser avaliado com algum grau de
convicção quando relacionadas às condições materiais do conjunto da população. Isto é, as
regras democráticas podem respaldar ideologicamente qualquer sistema e qualquer regime
(LUKÁCS, 2007). Assim,
Se para a burguesia a democracia tornou-se supérflua ou mesmo incômoda,
é, ao contrário, necessária e indispensável à classe operária. É necessária, em
primeiro lugar porque cria formas políticas (administração autônoma, direito
eleitoral, etc.) que servirão de pontos de apoio ao proletariado em seu
trabalho de transformação da sociedade burguesa. Em segundo lugar, é
indispensável porquepor meio dela, na luta pela democracia, no exercício
de seus direitos, pode o proletariado chegar à consciência de seus interesses
de classe e suas tarefas históricas (LUXEMBURGO, 1999, p. 101).
É importante, porém, assinalar que Marx dava uma extrema prioridade ao conteúdo
das coisas e dos seus movimentos, acima e independentemente das instituições jurídicas que
as acompanhavam. Isto que dizer que o conteúdo tinha uma prioridade sobre a forma. Porém,
isso não quer dizer que ele menosprezasse as questões formais. Quando ele estuda e descreve
os acontecimentos da Comuna de Paris, de 1871, ele dedica uma grande atenção a uma série
de mecanismos que foram estabelecidos, sobretudo às questões relacionadas às
representações. O que de fato ele detestava eram aquelas instituições criadas para iludir, para
24
BOBBIO, Norberto no seu ensaio: Quais alternativas à Democracia Representativa, em Qual Socialismo ( Paz e Terra,
1976 RJ) Bobbio enumera uma série de regras, que vão de a até f, as quais ele considera imprescindíveis para que um
regime seja considerado democrático.
32
embasar discursos e para protelar as transformações que realmente tenham alguma
significação para o encaminhamento das mudanças. Portanto, as regras podiam ser
consideradas democráticas se fossem o resultado de um processo de mudança empreendida
pela grande maioria da população, tendo à frente a classe operária que utilizaria essas regras
para evitar retrocessos e ações restauradoras por parte das antigas classes dominantes. Essas
questões são tratadas prioritariamente nas obras de caráter geral.
Os conceitos gerais, como por exemplo, os que o trados no Manifesto, têm validade
mais permanente na medida em que ali eles escrevem sobre generalidades, tentando dar uma
orientação e traçar diretrizes genéricas para o movimento dos trabalhadores ao nível
internacional, que era muito heterogêneo. Então, o Manifesto tinha de dar conta de todos os
aspectos gerais a respeito da sociedade capitalista, bem como apresentar aspectos para uma
perspectiva onde todos os trabalhadores, de todas as regiõeso só se reconhecessem nele como
também pudessem extrair dele a orientação nima para a devida adaptação às mais diversas
necessidades.
A democracia, em Marx, é definida por Adolfo S. Vasquez como sendo: “a) unidade do
universal e do particular, da esfera política e social (ao contrário da democracia burguesa,
liberal, que limita essa unidade; b) democracia para a maioria (que se distingue por isso da
democracia antiga) e c) democracia da liberdade (oposta a toda democracia baseada na
servio), conserva sua vigência ao longo do pensamento de Marx(VASQUES, 2001, p.66).
Ora, se a igualdade e a liberdade o pressupostos indispensáveis para a democracia,
podemos afirmar que Marx o reconhece e nem pode reconhecer a democracia em qualquer
tipo de sociedade existente nem nos modelos e nem nas formas de democracia que já existiram.
Isto porque, em nenhum destes momentos as formas ditas democráticas estavam e nem estão
associadas às condições materiais da maioria da população. O que Marx traz de novo é
exatamente isto: a democracia não pode ser caracterizada por um simples ideário ou por algumas
concepções que se encontram nas cabeças dos homens. Para ele, os homens produzem as suas
representações, porém o o fazem baseados simplesmente em suas ideias, pois se encontram
condicionados por suas condições matérias de existência e essas são historicamente determinadas
pelas condições materiais. Portanto, o nível de desenvolvimento das forças produtivas e de suas
respectivas relações de produção são elementos decisivos para a produção dessas representações.
Assim,a consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é
o processo real de vida (MARX e ENGELS, 2009, p. 31). Assim, a liberdade é incompatível
com a opressão. Afinal, a liberdade não é algo que se faz em si mesma. Ela é o resultado do nível
de consciência social e não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a
33
consciência.” Sua concepção de democracia passa, portanto, muito pela maneira como ele
entendia a questão da liberdade. E a liberdade, para Marx, não podia existir efetivamente
enquanto o trabalho não for, efetivamente, controlado pelo grande conjunto das pessoas, de tal
forma que todas as necessidades fundamentais do homem sejam plenamente supridas, sem
qualquer tipo de coação ou constrangimento. Isso quer dizer que para que haja liberdade
pressupõe-se o atendimento, pela sociedade, das necessidades.
A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por
natureza, não é um dom do alto e nem sequer uma parte
integrante de origem misteriosa do ser humano. É o produto
da própria atividade humana, que decerto sempre atinge
concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera,
mas nas suas consequências dilata objetivamente e de forma
contínua o espaço no qual a liberdade se torna possível; e tal
dilatação ocorre, precisamente, de modo direto, no processo de
desenvolvimento econômico, no qual, por um lado, acresce-se o
número, o alcance, etc., das decisões humanas em alternativas,
e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a capacidade dos
homens, na medida em que se elevam as tarefas a eles
colocadas por sua própria atividade. Tudo isso, naturalmente,
permanece ainda no reino da necessidade (LUKÁCS, 1978 p.
15).
É evidente que essas formulações, no geral, não são inéditas, Marx não criou essas
proposições do nada, ou do mundo das ideias. Elas já existiam. Por exemplo, as constituições
derivadas das revoluções burguesas, sobretudo as que foram produzidas no processo da
Revolução Francesa, que estruturaram, juridicamente, um modelo de sociedade
predominantemente liberal, baseada num certo equilíbrio dos poderes. Estas constituições,
que até hoje vigoram nos seus pontos centrais no mundo ocidental, orientou todo um processo
de civilização que se sustentava no mercado que, segundo seus ideólogos, era autorregulável.
Elas estabeleciam uma distinção forte entre o homem e o cidadão, entre o “reino da
necessidade” e o “reino da liberdade” (LUKÁCS, 2008,).
Além disso, é importante dizer que essas conquistas, por mais importantes que tenham
sido, contribuíram pouco para a consolidação de um regime democrático, mesmo nos limites
do sistema capitalista. Isto porque os proprietários, sobretudo os mais conservadores, sempre
que tiveram oportunidades, procuravam e, geralmente conseguiam anular os direitos que
tinham sido conquistas do movimento popular. Isto sempre obrigou os trabalhadores a uma
ação permanente, não só para manter as conquistas, como também para fazer avançar um
processo de acordo com seus interesses.
Até aqui, mesmo sem poder desenvolver o tema, tenho falado
da vida cotidiana dos homens. E é precisamente a partir desta
vida cotidiana que poderemos mais facilmente nos aproximar
34
dos problemas da democracia socialista. Como disse, ao
contrário da democracia burguesa, com seu citoyen idealizado,
o sujeito da democracia socialista até mesmo em seus inícios
revolucionários é o homem material da cotidianidade. Mas é
óbvio que não se trata aqui da canonização daquele homme
material que, na estrutura dualista própria da sociedade
burguesa e nela ineliminável, é contraposto ao citoyen. A
democracia socialista, enquanto forma social de passagem ao
‘reino da liberdade’, tem precisamente a tarefa de superar este
dualismo (LUKÁCS, 2008,p. 168, grifos do autor)
A luta dos trabalhadores pela democracia geralmente tem começado pelas
reivindicações imediatas, ligadas diretamente às condições de trabalho. O movimento popular
começou, de forma muito empírica, a lutar ao lado dos setores mais avançados da burguesia,
contra as características do Antigo Regime. Aquela aliança naqueles momentos foi possível
não só porque as bandeiras revolucionárias ficavam muito mais próximas de suas ansiedades e
necessidades, como porque também a própria burguesia apresentava uma postura que
naquelas circunstâncias podia ser considerada democrática. Só a partir de 1848 é que as cisões
entre as propostas revolucionárias das burguesias e os interesses populares, principalmente da
classe operária, começaram a ficar evidentes. Nesse sentido, a partir do momento em que
os trabalhadores passaram a interferir efetivamente na política, de forma organizada e de
maneira autônoma, é que podemos considerar um crescimento efetivo na busca pela
construção de uma democracia que não seja puramente circunstancial. É claro que a princípio
a classe operária luta para resolver suas questões imediatas, ligadas às necessidades
elementares. Porém, este movimento foi crescendo a tal ponto que o operariado começou a
vislumbrar as possibilidades de mudanças no próprio sistema. Palmiro Togliatti chega a dizer
que É o advento da classe operária no cenário dos conflitos políticos e sociais, com suas
reivindicações imediatas e com sua aspiração a uma nova estrutura econômica, que constitui
o motor do progresso democrático no mundo moderno” (TOGLIATTI, 1980, p. 187-188).
1.2 A resistência dos trabalhadores: instrumento para a conquista da democracia
Resolvemos tratar dessa questão, isto é, da luta dos trabalhadores contra a exploração
do sistema capitalista, movidos por uma razão que consideramos importante, que é aquela que
diz respeito a um princípio marxista, de que são as condições materiais de existência que
determinam e condicionam os outros aspectos da sociedade. Assim, os homens, para poderem
pensar, lutar pelos aspectos ideológicos e pelas formas de organização e aperfeiçoamento da
sociedade, primeiro precisam garantir suas formas materiais de existência.
35
Assim, achamos importante tratar dessa questão, como elemento preliminar à questão
da discussão da democracia em Marx, porque consideramos que foi nessa ordem que ele
procurou entender e explicar o funcionamento do sistema capitalista bem como projetar suas
formas de superação. Ele partia da premissa de que os trabalhadores não possuíam, a
princípio, qualquer plano geral que pudesse projetar alguma situação nova com possíveis
desdobramentos para uma democracia. Aliás, os operários nem escolheram ser operários. Pelo
contrário, eles foram submetidos ao poder do capital através de um processo forçado,
chamado por Marx no primeiro volume de O Capital de processo de acumulação de capitais
ou acumulação primitiva que culmina com a desapropriação dos trabalhadores. Assim, sua
luta, sua resistência, foi se desenvolvendo pelo próprio instinto de sobrevivência, o que
possibilitou a intensificação dos conflitos entre o capital e o trabalho até o ponto desse
conflito se generalizar e adquirir a dimensão de uma luta de classes. A questão da luta pela
democracia realizada pelos trabalhadores, assim consideramos, está profundamente vinculada
a esse processo.
Para fazer essa discussão, utilizamos prioritariamente os textos de Marx, sobretudo o
Volume I do livro Primeiro de O capital (MARX, 1985-a) e o texto sobre Salário, preço e
lucro (MARX, 2004). Utilizamos, também, vários argumentos de Rosa Luxemburgo sobre
Reforma ou Revolução? (LUXEMBURGO, 1999).
A reação dos trabalhadores contra a exploração e as precárias condições de vida
começa efetivamente e de forma mais vigorosa quando descobrem que quanto mais trabalham
mais aumentam a riqueza e o poder dos exploradores. Verificam que se tornam mais difíceis
as condições de existência. Verificam também que os salários se tornam cada vez mais
aviltados devido à concorrência cada vez maior no mercado de trabalho. Isto porque, devido
ao desenvolvimento das forças produtivas e aos investimentos cada vez mais intensos no
desenvolvimento tecnológico, forma-se uma camada imensa de desempregados que contribui
para aumentar a concorrência entre os próprios trabalhadores.
Assim, as riquezas tendem a se concentrar cada vez mais. Este processo (MARX,
2003) longo e violento, culmina com a desapropriação dos camponeses e artesãos
25
. A partir
daí, o conflito entre as classes sociais adquiriu uma nova dimensão. O proletariado,
pressionado pela violência da exploração, passou a lutar contra a permanência dessas
condições. Segundo Marx,
25
Um estudo brilhante sobre a desapropriação do povo do campo de suas terras, sobretudo pelo processo violento dos
chamados “cercamentos” dos campos ingleses, foi desenvolvido por( MARX, 1985-b) onde ele argumenta que grande parte
dos grandes proprietários, movidos pela perspectiva de exploração de suas terras para fins de acumulação, tanto para
produção agrícola visando o mercado, como para criação de ovelhas, afim de produzir , expulsam os camponeses e se
apropriam plenamente das terras.
36
A produção capitalista, que é essencialmente produção de mais-
valia, absorção de mais trabalho, produz, portanto, com o
prolongamento da jornada de trabalho não apenas a atrofia da
força de trabalho, a qual é roubada de suas condições normais,
morais e físicas de desenvolvimento e atividade. Ela produz a
exaustão prematura e o aniquilamento da própria força de
trabalho. Ela prolonga o tempo de produção do trabalhador num
prazo determinado mediante o encurtamento de seu tempo de
vida (MARX, 1985, p. 212).
Ao tomar conhecimento dessa realidade de maneira mais abrangente e adquirir um
grau de consciência maior dessa realidade, os operários, através de suas vanguardas, começam
a articular as mais variadas formas de reação, inclusive formando associações para
encaminhar suas demandas, dando origem aos sindicatos e mais tarde aos partidos políticos
operários, instrumentos fundamentais para a introdução da questão da democracia no debate
político. Esse conflito, que a princípio era muito localizado, na forma de confrontos,
geralmente em torno das fábricas, aos poucos foi tomando dimensões enormes. Como as
intermediações por meio de negociações eram quase inexistentes, devido à ausência de
interlocutores consistentes e com representatividade das classes sociais, capazes de construir
qualquer tipo de consenso, eles degeneravam, não raro, em confrontos violentos. Aos poucos,
este conflito foi crescendo e agregando cada vez mais segmentos diversos. De um lado, o
Estado foi se tornando mais complexo, assumindo de forma cada vez mais sofisticada a
representação da classe dominante como um todo
26
, assim como os grandes proprietários
foram se agregando em corporações cada vez mais poderosas, com uma abrangência
econômica e territorial cada vez maior; por outro lado, os trabalhadores foram também se
agregando em torno de suas entidades representativas. De qualquer maneira, este conflito vem
se desenvolvendo, porém de forma muito irregular. O movimento dos trabalhadores tem
avançado, conseguindo muitas vitórias, mas sofrido também derrotas. O próprio Marx, por
exemplo, presenciou e participou de algumas dessas derrotas, como as revoluções de 1848 e a
Comuna de Paris, em 1871.
A característica fundamental deste conflito tem sido o esforço que as classes
dominantes têm feito para preservar o funcionamento do poder sob seu controle, e por outro
lado, os trabalhadores, tentando socializar as decisões políticas. Esses avanços têm encontrado
dificuldades imensas, derivadas não da tenaz resistência da burguesia, como também da
dificuldade que os interesses populares têm encontrado para a formulação de um projeto
democrático, que unifique não só os diversos interesses corporativos sociais, como também os
26
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels não fazem uma sintética descrição do progresso da luta dos
trabalhadores, como também assinala, com veemência a posição que o Estado assume nesse confronto. ( MARX e ENGELS,
1998 ).
37
diversos projetos políticos. Para isso, não é desprezível se mencionar o grande poder de
atração que exerce sobre os diversos quadros as benesses do poder e dos cargos públicos.
Os trabalhadores vinham utilizando as mais variadas estratégias, inclusive a violência
e paralisações na produção. Entretanto a burguesia, sem dúvida, era mais coesa e mais
preparada para o combate naquelas circunstâncias. Além do poder econômico, contava com a
participação decisiva da força pública e as estratégias políticas as mais variadas. Ela tinha,
inclusive, o poder de encaminhar e votar as leis no Parlamento, como também possibilidades
de sabotar essas leis, frustrando, assim, as vitórias eventuais dos trabalhadores. A Inglaterra,
berço então da Revolução Industrial, foi o cenário principal para esses primeiros conflitos
(HOBSBAWM,1981-a)
27
.
Por isso é que Rosa, na sua obra Reforma ou Revolução?demonstrou um grande
ceticismo com relação à questão das leis que possam favorecer a classe operária. As leis
podem, no máximo, representar vitórias eventuais, como estratégia das classes dominantes
para moderar o ímpeto do movimento dos trabalhadores. Porém, nas próximas oportunidades
tudo volta ao estado anterior. Para ela a burguesia não cede um milímetro de seus privilégios
se isso significar a redução de seus lucros. Para ela, conforme citação abaixo, o essencial no
capitalismo é a relação de trabalho assalariado que se estabeleceu e esta relação tem como
fundamento as relações econômicas. A legalidade é apenas o elemento que mascara e justifica
essa relação.
Assim também, a exploração no interior do sistema do salariato
não repousa tampouco em leis, pois o são os salários fixados
por via legal, e sim por fatores econômicos. E o fato mesmo de
exploração não repousa em disposição legal, mas no fato
puramente econômico de desempenhar a força trabalho o papel
de mercadoria, que tem, entre outras, a agradável qualidade de
produzir valor, e mesmo mais valor do que consome nos meios
de subsistência do operário. Em suma, todas as relações
fundamentais da dominação da classe capitalista não são
possíveis de transformão por reformas legais na base da
sociedade burguesa, porque não foram introduzidas por leis
burguesas e não receberam a forma de tais leis
(LUXEMBURGO, 1999, p. 99).
Para Rosa, portanto, o que distingue o capitalismo das sociedades anteriores é que
nestas a exploração e a extração de um excedente era feito por instrumentos de coação política
e o poder das classes dominantes era algo exercido por tradição, por ‘direitos adquiridos’
enquanto que no capitalismo não a tradição foi completamente esmagada como os direitos
27
Nesta obra, Hobsbawm apresenta, numa descrição muito abrangente, tendo como cenário a Inglaterra,
aspectos da luta de resistência dos trabalhadores, bem como suas principais formas de organização, desde fins do
século XVIII até começos do século XX.
38
foram subordinados a questões vitais de funcionamento do sistema que se regem
prioritariamente por interesses e relações econômicas. Para ela, os trabalhadores não se
tornaram operários por questões legais. O Estado interferiu, é certo. Estabeleceu leis para
coagir a mão-de-obra, forçou as pessoas a se incorporar ao mercado de trabalho, porém foi a
incapacidade de garantir a sobrevivência sem salário que transformou contingentes enormes
da população em operários. Por isso é que a burguesia, para poder impulsionar a produção em
grande escala foi obrigada a subtrair dos trabalhadores suas formas de sobrevivência de forma
independente (LUXEMBURGO, 1999).
Cremos que Rosa esteja correta, no essencial. Porém, temos que considerar que ela
pouca importância à luta dos trabalhadores via parlamento. Afinal, é em função da lei que no
capitalismo as relações funcionam. E é, principalmente, em função dela que os trabalhadores
se mobilizam. Os trabalhadores, em sua vida empírica, em suas motivações para melhorar de
vida não incorporam propostas muito genéricas ou abstratas, como o socialismo. A posição de
Rosa pode ser compreendida de forma satisfatória se for vista no contexto em que ela
viveu, e no seu confronto com a máquina acomodada e moderada do Partido Social
Democrata. Naquele momento o movimento dos trabalhadores crescia, assim como também
se fortaleciam tanto os partidos como também os sindicatos ligados à classe operária. Esta
tendência favoreceu o aparecimento e o fortalecimento de um reformismo e um revisionismo
que renegava elementos fundamentais da teoria de Marx como a questão da validade da
revolução para alcançar o socialismo.
Porém, acima de qualquer divergência, o certo é que as pessoas que foram expulsas
das suas antigas formas de sobrevivência, quer fossem os camponeses, quer fossem artesãos,
procuraram sobreviver de acordo com as circunstâncias, porém resistindo, das maneiras as
mais variadas, a um enquadramento na nova ordem, que requeria deles uma nova forma de
comportamento e uma disciplina com a qual eles não tinham a menor intimidade.
Temos de considerar, também, o fato de que o processo de desapropriação foi
extremamente rápido e que as condições criadas na nova sociedade industrial para absorvê-los
não se desenvolveram no mesmo ritmo. Assim, diante dessas circunstâncias, entrou em ação o
Estado com a função de fazer um enquadramento forçado (MARX, 1985-b). A Inglaterra, país
pioneiro nesse processo devastador e onde a situação social apresentava-se mais grave, foi
também onde a legislação nesse sentido foi criada e usada com maior rigor. Assim, o povo
do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformado
em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária
ao sistema de trabalho assalariado” (idem, p. 277). Além do enquadramento forçado, no
39
sentido de obrigar as pessoas ao trabalho nas fábricas, a burguesia, através do Estado, também
promoveu uma regulação do salário para evitar não uma concorrência entre os capitalistas
individuais nesse sentido, como também evitar os movimentos de reivindicações através de
ações políticas. Assim, a burguesia nascente precisa e emprega a força do Estado para
‘regular’ o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites convenientes à extração de
mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau
normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação
primitiva” (idem, p. 277).
Esses conflitos entre burgueses e trabalhadores, que a princípio ocorrem entre
indivíduos ou entre pequenos grupos, aos poucos tomaram proporções enormes, assumindo
cada vez mais um choque entre as classes sociais do sistema. Mesmo sendo ainda precário o
grau de unidade e sua consciência, o que existia de fato era a luta econômica, que mesmo se
explicitando apenas em torno de aumento de salários e das melhorias das condições de
existência, não deixaram de ter também uma significação política muito forte e de apontar
para um futuro promissor. Assim, como dizia Marx, “os trabalhadores começam a formar
associações contra a burguesia; lutam juntos para assegurar seu salário. Fundam
organizações permanentes, de modo a se prepararem para a ocorrência de ondas
esporádicas de sublevações. Em alguns lugares a luta explode em revolta” (MARX, 1998,
p.16).
A maioria dessas lutas, que foram desencadeadas, sobretudo, nas décadas de 1830 e
1840, estimuladas pelas precárias condições de trabalho e pelas organizações de
trabalhadores, tendo à frente o movimento cartista inglês, alcançou vitórias significativas,
inclusive vitórias formais ao nível do Parlamento. Quando esses movimentos de trabalhadores
assumiram proporções inesperadas pela classe dominante, ultrapassando inclusive os limites
de simples reivindicações corporativas, e se espalhou pelos principais centros econômicos e
políticos da Europa, todos os setores das classes dominantes de então uniram suas forças e
esmagaram todas as iniciativas do movimento operário em 1848. Sobre esses acontecimentos,
esse trecho de O capital é o suficiente para dar uma pequena demonstração do episódio.
A campanha preliminar do capital havia fracassado e a lei das
10 horas entrou em vigor em de maio de 1848. Entrementes,
o fiasco do partido cartista, com seus chefes na cadeia e sua
organização arrebentada, tinha abalado a autoconfiança da
classe trabalhadora inglesa. Logo em seguida, a insurreição
parisiense de junho e seu afogamento em sangue uniram, tanto
na Inglaterra quanto na Europa continental, todas as frações das
classes dominantes, proprietários de terras e capitalistas,
especuladores da bolsa e lojistas, protecionistas e livre-
40
cambistas, governo e oposição, padres e livre pensadores,
jovens prostitutas e velhas freiras, sob a bandeira comum da
salvação da propriedade, da religião, da sociedade! A classe
trabalhadora foi por toda parte proscrita, anatemizada, colocada
sob a loi des suspects. Os senhores fabricantes já não
precisavam, portanto, de constranger. Rebelaram-se
abertamente o só contra a lei das 10 horas, mas também
contra toda a legislação que a partir de 1833 procurava, de certa
forma, refrear a “livre” exploração da força de trabalho. Foi
uma proslavery rebelion em miniatura, conduzida, durante mais
de dois anos, com cínica falta de escrúpulos, com energia
terrorista, ambas tanto mais baratas quanto o capitalista rebelde,
nada arriscava além da pele de seus trabalhadores (MARX,
1985-a, p. 226).
A luta pela regulamentação da jornada de trabalho certamente era um dos aspectos
cruciais da luta dos trabalhadores pela melhoria das condições de vida. Isso porque, numa fase
do capitalismo onde os meios de produção tinham ainda uma baixa incorporação de
tecnologia e, portanto a utilização da mão-de-obra em quantidade era fundamental para o
processo de acumulação, assim, a jornada de trabalho se estendia até o limite da resistência
física do trabalhador, não lhe sobrando nenhum tempo para o lazer nem para a convivência
com a família. Mesmo nas fábricas que partiam na frente com relação aos investimentos em
novos instrumentos de trabalho como, por exemplo, a introdução de novas máquinas que
permitiam a potenciação da produção, mesmo assim a jornada não diminuía porque o
capitalista almejava recuperar o investimento feito o mais rápido possível para aumentar sua
taxa de lucro.
Nessas condições, a resistência dos trabalhadores tende a ser mais na base do
desespero e em circunstâncias muito desfavoráveis devido ao pouco preparo, à falta de
planejamento e à precariedade nas articulações políticas que pudessem congregar um conjunto
maior de trabalhadores.
Além disso, não é irrelevante o fato de que existia uma defasagem muito acentuada
entre as vanguardas que puxavam as palavras de ordem e as grandes massas de trabalhadores.
Mesmo assim, Marx acata essas iniciativas como muito importantes, como elementos de
experiência e acumulação de forças, porém acentuando, que a conquista de uma jornada de
trabalho que possa ser considerada normal é possível com a mobilização de amplas massas
que sejam capazes de transformar o movimento numa luta duradoura porque isto era um
objetivo que só podia ser conquistado à longo prazo. E nunca era definitivo.
No capitalismo, as conquistas, para serem mantidas, precisam de uma resistência
constante, e essa resistência não pode assumir um caráter individual ou local; além disso,
41
exige um amadurecimento da produção capitalista. Isto porque, a definição de uma jornada
considerada normal de trabalho, do ponto de vista do conjunto da população, pode ser o
resultado de uma luta longa, em que a classe trabalhadora, além de ter uma coesão e uma
direção determinada, seja capaz de transformar essas demandas numa proposta e numa ação
política que ultrapasse o nível do corporativo e do imediatismo (MARX, 1985-a).
Os primeiros movimentos dos trabalhadores tiveram uma importância enorme porque
abriram os caminhos e demonstraram, para toda a sociedade, sobretudo para as camadas
populares, não o grau e o nível de exploração como também assumiram as
responsabilidades pelos riscos, demonstrando, com isso, que a reação não era possível
como necessária. Essa bravura, porém, mostrou os limites da capacidade dos trabalhadores
para um enfrentamento de grandes proporções. Não as condições materiais eram muito
precárias, devido ao pequeno grau de articulação e de cultura política dos trabalhadores, como
o próprio sistema era também ainda muito embrionário. Tudo isso dificultava não a
realização das ações, como também a compreensão do que realmente se queria mudar. Os
resultados eram comportamentos altamente grosseiros, não raro reacionários porque
buscavam uma espécie de paraíso igualitário que havia se perdido.
No início, os trabalhadores lutam individualmente; depois é a
vez dos operários de uma fábrica, em seguida os trabalhadores
de todo um ramo de produção, em uma localidade, contra um
único burguês que os explora diretamente. Eles não dirigem
seus ataques apenas contra as relações burguesas de produção,
mas contra os próprios instrumentos de produção; destroem as
mercadorias concorrentes vindas de fora, depredam as
máquinas, incendeiam as fábricas, procuram reconquistar a
posição perdida do trabalhador na Idade Média (MARX, 1998,
p.16).
Os primeiros movimentos de trabalhadores da classe operária que podemos considerar
com alguma consistência aparecem após os movimentos revolucionários de 1848. Mesmo
assim, depois de um bom tempo. Isto porque, como se esperava, as derrotas estrangularam
completamente as organizações e a combatividade dos trabalhadores, por um lado; e por
outro, o capitalismo começou um período de desenvolvimento e de expansão das atividades
econômicas que favoreciam de maneira significativa as posições e reações da burguesia
contra qualquer iniciativa dos trabalhadores. Porém, apesar das derrotas, os trabalhadores
aprenderam e se convenceram de que suas lutas não podiam ficar atreladas nem ao passado e
nem aos interesses da burguesia.
Assim, após as derrotas daqueles movimentos, sua rearticulação demorou décadas e
mesmo assim, quando recomeçou de forma mais expressiva, foi com muitas articulações de
42
cúpula sem muita correspondência com o movimento real, pelo menos de forma independente
e consciente num sentido de mudança da realidade existente. Podemos mencionar, por
exemplo, a existência de várias iniciativas nos principais centros do capitalismo, porém,
iniciativas formais, cheias de nobres intenções, mas que não exprimiam a realidade dos locais
de trabalho e nem mobilizavam as bases efetivas da classe operária. Mesmo assim, não
podemos dizer que elas não tenham contribuído, dentro das possibilidades, para um
revigoramento da luta, inclusive com um peso forte para as conquistas democráticas. Nos
Estados Unidos da América, em agosto de 1866, num congresso dos trabalhadores de
Baltimore, tiraram uma resolução em que se comprometiam a lutar até o fim por uma
limitação legal da jornada de trabalho. Dizia-se o seguinte: A primeira e mais importante
exigência dos tempos presentes para libertar o trabalhador da escravidão capitalista é a
promulgação de uma lei, pela qual deve ser estabelecida uma jornada normal de trabalho de
oito horas (...) Estamos decididos a empregar todas as nossas forças até termos alcançado
esse glorioso resultado” (MARX, 1985-a, p. 237).
Nessa mesma página do Capital, Marx transcreve outra resolução dos trabalhadores
num congresso internacional realizado em Genebra, apresentada pelo Conselho Geral de
Londres, onde dizia o seguinte: Declaramos a limitação da jornada de trabalho uma
condição preliminar, sem a qual todas as demais tentativas para a emancipação devem
necessariamente fracassar (...) Propomos oito horas de trabalho como limite legal da
jornada de trabalho”. Em função dessas duas declarações é importante considerar que os
Estado Unidos tinham saído, um ano antes, de uma guerra civil, quando as forças dos Estados
do norte impuseram uma derrota aos Estados escravistas do sul, trazendo como consequência
a libertação dos escravos e o início de uma expansão extraordinária do capitalismo naquele
país, o que de certa forma estimulava os trabalhadores para melhorar suas condições nesse
processo. Por outro lado, na Inglaterra, os trabalhadores procuravam aproveitar uma situação
em que este país consolidava sua hegemonia num processo internacional do trabalho e se
apresentava perante o mundo como um país defensor dos direitos, combatendo inclusive todas
as formas de escravidão e servidão em todas as partes do mundo.
Como podemos observar por essas manifestações de solidariedade dos trabalhadores
em várias partes do mundo, através de suas entidades de representação, uma perspectiva
verdadeiramente promissora para o movimento internacional dos trabalhadores. Isso foi muito
importante no sentido de apontar um caminho para o futuro. Entretanto, quando observamos o
movimento do capital, tanto no sentido da expansão econômica como no sentido da
propagação dos conflitos armados entre as nações, observamos a desproporção de forças.
43
Nesse sentido, não podemos descartar as influências culturais da época, profundamente
marcadas por uma dosagem de romantismo muito acentuada. Este movimento, que permeava
todos os traços da civilização do século XIX, que se caracterizava pelos grandes feitos
realizados por personagens emblemáticos ou por pequenos grupos convencidos de uma
grande superioridade moral, sem dúvida nenhuma influenciava aquelas lideranças que
possuíam pouca representatividade entre os trabalhadores, porém se inspiravam neles e
acreditavam poder mudar a realidade existente sem eles. Portanto, visualizavam uma
libertação e uma democracia sem nenhuma estratégia política, sem partidos e sem confrontos
práticos. Portanto, Ele foge a qualquer projeto de engenharia social em nome da
continuidade entre passado e presente. Ele julga falaz todo o propósito de tornar feliz o
homem aqui e agora. Na sociedade e na história, o romantismo um movimento circular
contínuo entre as funções mais elementares e primitivas e as mais elaboradas e civilizadas.”
(CESA, 1999, p.1139).
Assim, podemos concluir que a resistência dos trabalhadores contra as manobras das
classes dominantes era ainda muito precária, principalmente nos momentos de grandes
conflitos armados, envolvendo grandes potências. Eles prejudicavam profundamente a vida
dos trabalhadores, não pelas devastações que provocavam, como também pelas destruições
na produção onde os pobres tornavam-se as grandes vítimas; como também pelos processos
de mobilizações que recrutavam grande parte dos trabalhadores, obrigando-os a abandonar
seus trabalhos e suas famílias. Antes da guerra que envolveu a França e a Alemanha, podemos
ler a seguinte mensagem:
A classe operária estende uma mão fraterna aos trabalhadores
da França e da Alemanha. Está profundamente convencida de
que, qualquer que seja o rumo que tome a terrível guerra que se
anuncia, a aliança dos operários de todos os países acabará por
matar a guerra. Enquanto a França e a Alemanha oficiais se
precipitam numa luta fratricida, os operários da França e da
Alemanha trocam mensagens de paz e de amizade. Este fato
único, sem paralelo na história do passado, abre a via a um
futuro mais luminoso. Ele prova que, em oposição à velha
sociedade, com as suas misérias econômicas e o seu delírio
político, es a nascer uma nova sociedade, cuja regra
internacional será a Paz, porque em cada nação reinará o
mesmo princípio: o Trabalho! O pioneiro desta nova sociedade
é a Associação Internacional dos Trabalhadores (MARX, 1976,
p. 32-33).
O comunicado dos trabalhadores é nobre e sua promessa repleta de boas intenções.
Porém, elas não contribuíram, de forma significativa, para preservar a paz porque de fato sua
inserção no seio dos trabalhadores estava muito aquém do que era necessário para tamanha
44
mobilização. O poder dos Estados, que conseguiam aglutinar em torno de si as principais
forças econômicas, era imensamente superior às pretensões dos grupos pacifistas e
revolucionários, até porque as guerras, naquelas circunstâncias, exatamente quando se
iniciavam as grandes disputas entre as potências imperialistas pelos mercados mundiais,
tendem a sensibilizar multidões em função da questão nacional que acena com a possibilidade
da grandeza da pátria, a melhoria de todos que podem vir através das conquistas.
De qualquer maneira, mesmo em grande desvantagem, os operários tomam cada vez
mais consciência de que a luta dos trabalhadores era essencial para que a tragédia não se
aprofundasse. O trabalhador assalariado luta tendo em vista duas alternativas, que são
concomitantes: uma, é a redução da jornada de trabalho; outra, o aumento nominal dos
salários. O objetivo era encontrar um equilíbrio, porque sabe que, se as condições de trabalho
permanecerem na dependência da vontade dos capitalistas, a exploração alcança o limite
máximo das possibilidades físicas dos trabalhadores e suas condições se degradariam ao nível
do trabalho escravo.
Assim, a vida útil dos operários ficaria reduzida a um estreito limite. Além disso, é
importante ficar claro que toda a argumentação de Marx desenvolveu -se num nível em que a
luta cotidiana pelas condições de existência imediatas não é imprescindível como também
elas sinalizam que representam possibilidades de lutas maiores e mais ambiciosas, inclusive
pela construção de uma democracia realmente popular. Em suma, é a luta pelas questões
imediatas que qualifica a classe operária para confrontos maiores. Até porque existe uma
desproporção de forças entre os capitalistas e os trabalhadores não pela força do poder
econômico, mas também pela coesão e pela maior possibilidade de mobilizar, a seu favor, as
forças do Estado.
Por isso, vai ficando claro que confrontos, puramente corporativos, motivados apenas
pelos interesses imediatos, tendem geralmente ao fracasso. As possibilidades dos
trabalhadores aumentam de forma significativa quando os interesses específicos casam com
os interesses mais gerais da política. E nesse caso a luta pela democracia tem sido uma
motivação expressiva. Os operários Não deve[m] se esquecer que a luta é contra os efeitos,
mas não contra as causas dos efeitos (...) A classe operária deve saber que o sistema atual
(...) engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para
uma reconstrução econômica da sociedade.” (MARX, 2000, p. 98).
Para Marx, essa resistência dos trabalhadores, por mais importante que fosse não podia
abandonar o que era central no seu objetivo maior, que era a luta política contra a exploração
do capital sobre o trabalho. Para ele, os sindicatos eram entidades que cumpriam um papel
45
muito importante na organização dos trabalhadores no seu embate contra o patronato no
sentido de resistirem contra os efeitos da exploração. Porém, deviam, ao mesmo tempo, se
esforçarem para transformá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como
alavanca para a emancipação da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do
sistema de trabalho assalariado” (MARX, 2004, p.99).
Lênin, principalmente no seu livro Que fazer? (LÊNIN, 1978), trata dessa questão de
maneira importante. Para ele, nem os trabalhadores na sua luta cotidiana contra os capitalistas
nem os sindicatos de representação corporativa, tinham a capacidade nem o entendimento
suficiente para liderar uma luta contra o sistema em seu conjunto. A luta política, com essa
tarefa, não podia desenvolver-se por ai. Elas podiam, no entanto, ser o começo. Porém, a luta
política, em seu sentido mais geral, com objetivo transformador só podia ser empreendida por
algo que viesse de fora dessa relação e se concretizasse na organização de um partido político
que fosse capaz de congregar em torno de si as demandas sociais de uma maneira geral e
articulá-las num projeto político global. Portanto, para Lênin, o processo revolucionário não
nasce das lutas dos operários porque estas não produzem uma consciência socialista. Esta
nasce e cresce evidentemente no próprio seio de funcionamento do capitalismo, porém, não é
algo natural; ela é algo que se desenvolve, segundo Lênin, baseada em fundamentos teóricos e
que se efetiva numa prática política em relação com o movimento operário.
Lênin, portanto, queria dizer que sem uma teoria revolucionária não é possível a
revolução e essa teoria não é uma produção puramente empírica que seja produzida pelas
relações imediatas de trabalho, mas isso não quer dizer que delas prescinda. A teoria é uma
produção intelectual que, segundo ele era realizada por vanguardas, teóricos, que articulavam
a teoria, a organização e a estratégia com a prática dos homens nas suas relações sociais.
Logo, um partido político revolucionário seria capaz de conceber um projeto de
caráter realmente universal, que a partir das posições de uma classe fosse capaz de superar
todos os interesses particulares. Nesta fase do capitalismo, que estamos descrevendo, quando
as transformações ainda estavam provocando um impacto social muito grande e a organização
da classe operária era ainda muito incipiente, a existência de um partido conforme ele previu
mais adiante era quase impossível.
As formas de produção, na grande indústria, com a sua concentração cada vez mais
acelerada, agravam cada vez mais as contradições e os antagonismos, primeiro porque com a
introdução da máquina, grande parte das formas de produção anterior ou são submetidas e
perdem a autonomia ou desaparecem pela concorrência, deixando um rastro de misérias;
segundo, porque ao racionalizar a produção e aumentar a proporção do capital constante sobre
46
o capital variável, um grande contingente sobra e torna-se excedente, formando uma multidão
de desempregados, aumentando a concorrência entre os próprios trabalhadores, provocando
cada vez mais um agravamento da situação devido ao aumento da exploração e da opressão,
assim como também dificultando as estratégias e as possibilidades de mudança.
No entanto, diferentemente de outros autores, essa
indeterminação não se abre para o impossível...nem inaugura
um ‘tudo é possível’ que obscurece a ação sócio-política e
impede a prática consistente. Em Marx, a construção do futuro
procura ligar passado e presente, como desdobramento das
possibilidades neles contidas, através da ação humana. É sua
capacidade de identificar as tensões principais, o cerne da
manutenção das classes dominantes, que permite imaginar um
futuro radicalmente transformado. Mas é ela que permite
acumular lutas, reagir e resistir, alterando o padrão do conflito e
construindo – abrindo – mais possibilidades (FONTES, 1998, p.
167).
Assim, é diante desse quadro que a classe operária, a partir do século XIX, vai se
debater para encontrar uma alternativa com direção à construção de um regime
verdadeiramente democrático.
1.3 A importância do voto universal
Ao fazer um pequeno balanço da luta pelo voto universal e pela realização de eleições
gerais, periódicas e regulares, consideramos que estamos contribuindo para um maior
esclarecimento sobre a explicação de nossa questão de fundo, que é a democracia em Marx. A
importância desse aspecto reside no fato de que, mesmo considerando que Marx era um
revolucionário que queria mudar o sistema capitalista pela raiz, no entanto entendemos que
ele não via esse processo como algo simples.
Assim, se a revolução, o socialismo e o comunismo eram situações colocadas no seu
horizonte, como etapas de um longo processo a ser realizado pela classe operária, ele não
estabeleceu princípios a priori e nem excluiu formas de luta sem uma devida avaliação. Para
ele, a classe operária ia construindo suas alternativas, estimulada pela sua relação dialética
com a burguesia e era exatamente essa relação que possibilitava o amadurecimento de sua
consciência, o aperfeiçoamento de suas formas de organização e a ampliação de suas
propostas.
Nesse sentido, consideramos importante uma ligeira discussão sobre a questão do voto
universal, porque achamos que ele não representa apenas um aspecto formal conforme a
burguesia sempre procurou apresentá-lo. Não foi por acaso que ela sempre procurou controlar
47
as eleições e limitar a participação popular de forma bastante rigorosa. Ela sabia que a luta
pela conquista do voto universal, secreto e amplo representa um passo importante para a
conquista de uma verdadeira democracia. Ela sabe também que os momentos eleitorais são
especiais, porque abrem possibilidades para movimentos de agitação e organização dos
trabalhadores, em busca de reformas cada vez mais profundas, que forcem os limites
institucionais vigentes em busca de sua superação.
É claro que a classe operária, pela experiência, não é ingênua para não compreender
que seu movimento não pode ficar limitado às regras estabelecidas pelo regime vigente,
formuladas por comissões eleitorais que obedecem estritamente aos princípios legais. Porém,
achava que não era razoável ignorar esses momentos.
Marx não chegou a fazer grandes avaliações sobre o voto universal, até porque em seu
tempo essa questão era ainda muito incipiente. Mesmo assim, recebeu com grande entusiasmo
a reivindicação dos trabalhadores nesse sentido. Engels, que viveu mais 12 anos após a morte
de Marx, teve mais oportunidades e suas avaliações sobre o voto universal e sobre os
processos eleitorais foram mais detalhados.
No entanto, não podemos deixar de considerar que tanto as posições de Marx quanto
as de Engels foram sempre com reservas. Isto porque, acreditavam que a democraciapodia
ser o resultado de um processo revolucionário. Porém, a luta pelo voto universal podia fazer
parte desse processo. Por isso consideramos importante tratar dele.
A introdução de Engels (ENGELS, 1953) foi o texto básico para esta discussão.
Introduzir a luta pela conquista do voto universal, mesmo de maneira formal e controlada, foi
uma luta longa. Para isso não é irrelevante se dizer que no século XX as mulheres
conseguiram esse direito, e mesmo assim nos países mais avançados; e os analfabetos
muito recentemente. Assim, como era previsível, foi na Inglaterra que esta luta começou de
forma mais organizada e tomou uma dimensão que chegou a entusiasmar os setores
progressistas, inclusive Marx, que saudou com grande entusiasmo as reivindicações do
movimento cartista, tendo como uma das propostas fortes a conquista do voto universal. É
claro que Marx não saudava apenas a reivindicação do voto, mas sim a forma como era
colocada no seio de um movimento amplo.
Além disso, as condições que os cartistas colocavam em torno da reivindicação, como
por exemplo: uma retribuição para os membros do parlamento que possibilitassem o exercício
por trabalhadores, voto secreto, fiscalização e eleições gerais anuais representavam a
possibilidade da classe operária participar do poder político. Assim, investir nos processos
eleitorais, naquelas circunstâncias era importante, porque abria para imensas possibilidades.
48
Não é irrelevante dizer que naquele momento, segundo Marx, a classe operária formava a
maioria da população (TEXIER, 2005).
A questão do voto universal, uma forma de pronunciamento de um determinado
contingente populacional sobre as opções políticas e escolhas de alternativas e de candidatos,
é uma realidade ainda muito recente, considerando o longo período em que essa questão
ganhou alguma repercussão.
Ela sempre foi um dos aspectos relevantes no debate político, desde os momentos
cruciais das chamadas revoluções burguesas, quando os trabalhadores, aproveitando a
oportunidade das grandes mobilizações, começaram a cobrar das classes dominantes e dos
poderes constituídos sua inserção no mundo da política formal. Para o movimento, isso
significava a conquista da cidadania, que possibilitava uma participação mais sistemática dos
trabalhadores nos destinos das sociedades. Na época, a participação através do voto tinha uma
simbologia muito grande.
Por outro lado, a burguesia, em suas lutas contra os grupos sociais ligados ao Antigo
Regime, procurou incorporar as massas trabalhadoras para viabilizar a concretização de suas
demandas; para isso, um dos projetos que estavam no horizonte da política era a ampliação
das camadas populares através do voto. Porém, logo que a burguesia conseguiu consolidar sua
hegemonia sobre toda a sociedade, ela não recuou de suas propostas democráticas como
também procurou dificultar a expansão da participação popular. Para isso, dependendo das
circunstâncias e dos lugares, não teve o menor escrúpulo em se aliar aos antigos adversários
aristocratas no sentido de barrar os avanços das demandas populares na política. Existe uma
frase de Lênin muito significativa sobre essa questão, que é a seguinte:
Em política, os homens sempre foram vítimas estúpidas do
engano dos demais e do engano próprio, e continuarão a sê-lo
enquanto não aprenderem a discernir por trás de todas as frases,
declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais
os interesses de uma ou outra classe. Os partidários de reformas
e melhorias ver-se-ão sempre burlados pelos defensores do
velho enquanto não compreenderem que toda instituição velha,
por bárbara e podre que pareça, sustenta-se pela força de umas
ou outras classes dominantes. E para vencer a resistência dessas
classes, existe somente um meio: encontrar na própria
sociedade que nos cerca, educando-os e organizando-os para a
luta, os elementos que possam e, por sua posição social,
devam constituir a força capaz de varrer o velho e criar o
novo (LÊNIN, 1968 p. 28).
Essa frase de Lênin é um alerta bastante importante para o movimento operário.
Porém, achamos que nem sempre é fácil uma escolha muito acertada porque muitas das vezes
49
as alternativas nem sempre são de fácil visibilidade. Também nem sempre são fáceis as
escolhas de alianças em todas as conjunturas. Numa época de grandes confrontos de classes,
possivelmente as escolhas tendem a ser mais simples. Nos primórdios do capitalismo, quando
a tradição democrática e revolucionária era ainda muito incipiente, as opções eram mais
difíceis.
Portanto, podemos dizer que a luta pelo voto universal, como um verdadeiro
instrumento da democraciafoi iniciada quando a classe operária tomou essa bandeira como
sua e resolveu, de forma organizada, colocá-la na ordem do dia; agregando, às questões
formais, como o direito ao voto, suas reivindicações objetivas visando a melhorias nas
condições de trabalho; bem como, apontando para uma transformação mais radical da
sociedade. Colocado dessa maneira podemos dizer que, baseados nos argumentos que
levantamos até agora, que a conquista do voto foi importante. Porém, se sua efetivação não
estiver vinculada a um projeto que realmente possa transformar a sociedade ele não passará de
um instrumento esvaziado de conteúdo democrático e servirá apenas como uma estratégia de
uma classe para controlar os mecanismos fundamentais da sociedade e legitimar o seu poder.
Para Rosa de Luxemburgo, por exemplo, na sua polêmica contra Bernstein, esta é a posição
que prevalece. Sem descartar a importância do voto universal, ela argumenta que até agora,
todas as reformas de caráter legal foram utilizadas pelas classes dominantes mais para
consolidar seus poderes perante a sociedade do que contribuir para a mudança que possa
representar uma ampliação da participação popular na direção da coisa pública
(LUXEMBURGO, 1999). Isto é, a luta pela conquista do voto universal deve estar articulada
com a conquista pela democracia e pelo socialismo. Nesse sentido, é importante reconhecer
que essa luta tornou-se mais problemática, devido não ao fracasso do chamado socialismo
real, como também a descoberta das evidências do funcionamento precário da democracia
naqueles regimes. Quando, por exemplo, ficou claro que a questão da democracia e da
universalidade do socialismo, foram transformados em elementos particulares, apropriados
para dar sustentação política a um grupo que se apropriou do comando do partido e dos
aparelhos do Estado como instrumento de manutenção de poder como também as formas
eleitorais que aqueles regimes adotaram, com sistema de partido único e centralismo
democrático, que limitava o pluralismo das propostas, dos programas e dos candidatos, tudo
isso contribuiu para que a credibilidade da questão democrática ficasse arranhada.
Mesmo assim, continua tendo uma importância enorme, mesmo sabendo-se que uma
consulta esporádica sobre alguns candidatos e algumas questões programáticas
completamente esvaziadas de sentido popular têm pouco significado para a mudança da vida
50
real. Portanto, o voto universal pode se transformar em algo importante se houver uma
ligação entre ele e a luta pelo socialismo.a partir daí é que podemos verificar se a questão
do voto universal ganhou algum progresso e algum significado democrático. Mesmo assim,
essas conquistas são ainda muito frágeis e permeadas de avanços e retrocessos.
A reivindicação pelo voto universal, dentro de um processo de lisura tal que permitisse
a ascensão de trabalhadores ao Parlamento, foi uma iniciativa pioneira do movimento cartista
na Inglaterra, onde, segundo Marx, poderia representar um poder significativo para a classe
operária, porque abria perspectivas de ação política muito significativa, na medida em que ela
constituía a maioria da população. Jacques Texier transcreve uma citação onde Marx afirma o
seguinte: A conquista do voto universal na Inglaterra seria, por conseguinte, uma reforma
que mereceria ser qualificada de socialista, mais do que qualquer outra medida agraciada
com este nome no continente. Na Inglaterra seu resultado inevitável é a supremacia política
da classe operária” (TEXIER, 2005, p. 23).
Esse texto de Marx oferece alguns pontos para reflexão que são bastante importantes.
Em primeiro lugar, Marx via a classe operária como uma unidade, que perante um processo
eleitoral, se comportaria de forma homogênea, e todos votariam e acompanhariam uma
determinada posição como se formassem um partido político único e determinado. Além
disso, segundo ele, os operários formavam a grande maioria na Inglaterra; consequentemente,
havendo uma eleição com voto secreto e num processo transparente, eles seriam capazes de
instituir um regime socialista.
Esse texto esclarece que para Marx as classes sociais fundamentais formava, cada por
seu lado, uma unidade, cujos projetos eram profundamente antagônicos que a simples
presença física delas era suficiente para que as possibilidades fossem bastante previsíveis.
Naquelas circunstâncias, esse raciocínio era até pertinente. Com o amadurecimento do
capitalismo e o aumento da complexidade das relações sociais as coisas tornaram-se mais
complexas de tal maneira que a previsibilidade do comportamento das pessoas e das classes
sociais era quase impossível. Porém, mesmo naquelas circunstâncias, quais eram as
indicações de que todos votariam num determinado encaminhamento? E mais complicado
ainda, como se poderia prever que os operários, que naquela época possuíam uma cultura
política muito elementar, pudessem implantar um regime socialista se as outras condições
acima fossem satisfeitas?
O certo é que, pela leitura do texto de Marx, podemos dizer que para ele a questão do
voto universal tinha uma importância enorme e dependendo da situação, conforme a que era
vista por ele na Inglaterra, a democracia e o voto universal com todas as características de
51
uma eleição correta eram elementos profundamente ligados e interdependentes, que poderiam
levar a uma transformação profunda da sociedade. Isso porque, diante dessas condições a
classe operária poderia se transformar em classe dominante através de eleições. Assim, a
partir daí estaria aberto o caminho para a construção do socialismo. Eis a razão pela qual a
discussão sobre a democracia e a questão da luta pelos trabalhadores pela conquista do voto
universal torna-se relevante (REIS FILHO, 1998).
Achamos, por exemplo, que considerar a classe operária inglesa muito mais
desenvolvida e organizada do que as classes operárias do continente era bastante pertinente;
afinal, ali estava o centro nervoso do sistema capitalista e consequentemente uma classe
operária mais amadurecida. Porém, mesmo assim, ainda temos dificuldade de compreender os
prognósticos feitos por Marx. No fundo consideramos que existe nele um otimismo muito
acentuado, fato comprovado pelo desenvolvimento do movimento operário posterior. Nesta
outra citação, podemos ver uma avaliação diferente. Resta saber por que motivo.
A 4 de maio se reuniu a Assembleia nacional, fruto das eleições
gerais e diretas. O sufrágio universal não possuía a força mágica
que lhe atribuíam os republicanos de velho cunho. Viam em
toda a França, ou pelo menos na maioria dos franceses, titoyens
com os mesmos interesses, o mesmo discernimento, etc., tal era
seu culto ao povo. Ao invés deste povo imaginário, as eleições
trouxeram à luz do dia o povo real, isto é, os representantes das
diversas classes em que este se subdivide. vimos por que os
camponeses e os pequenos burgueses tiveram que votar sob a
direção da burguesia ansiosa de combater e dos grandes
latifundiários que anelavam pela restauração. Mas se o sufrágio
universal não era a varinha mágica que supunham os pobres
republicanos, tinha o mérito incomparavelmente maior de
desencadear a luta de classes, de fazer com que as diversas
camadas médias da sociedade burguesa verificassem
rapidamente, na prática, as suas ilusões e desenganos de lançar
de um golpe todas as frações da classe exploradora às
culminâncias do Estado, de arrancar-lhes assim a máscara
enganosa, enquanto a monarquia, com seu sistema censitário,
comprometia determinadas frações da burguesia, deixando
ocultas as outras entre bastidores e cercando-as de auréola de
uma oposição coletiva (MARX, 1953, p. 127).
Nesse outro texto, se referindo à França, descrevendo aquela conjuntura de uma época
de crise e de uma desarrumação generalizada das condições institucionais, Marx faz um outro
tipo de análise descrevendo os acontecimentos em cima do lance. aparece o povo, em
geral, não mais a classe operária, na sua verdadeira fragilidade. Aliás, todas as classes
sociais francesas naquela época apresentavam defasagens muito fortes no que diz respeito a
quaisquer posicionamentos que pudessem conduzir a França a alguma estabilidade, tão
precárias encontravam-se tanto as condições materiais quanto as instituições políticas.
52
Não é de estranhar, portanto, que aquelas condições tivessem desembocado num
sistema autoritário, capitaneado por um personagem da estatura de Napoleão III e de um
grupo de elementos que se apossaram do controle das finanças públicas até conduzir o país a
uma catástrofe. Estes e alguns outros acontecimentos demonstraram que nem sempre o povo
se pronuncia a favor do progresso. Pelo contrário, desde o século XIX que as eleições tendem
geralmente a favorecer as forças moderadas ou conservadoras. Isso quer dizer que a aposta no
voto como um termômetro para a questão democrática representa um risco e um problema. Os
revolucionários de 1848, por exemplo, impuseram a república, com receio do resultado
eleitoral.
Pelo que entendemos, a partir de tudo que foi exposto até agora, é que o voto por si
não significa uma atitude democrática. Ele pode, dependendo do momento e das
circunstâncias, ser completamente manipulado ou completamente desviado da sua trajetória
presumivelmente democrática, pela pesada propaganda demagógica, e pelo peso do poder
econômico, que muitas vezes desequilibram completamente a correlação de forças.
As eleições e o voto no sistema representativo, criado pelas constituições do início da
chamada época contemporânea, tornaram-se, por circunstâncias indevidas, um instrumento
mitológico que as forças conservadoras, muitas vezes sob as formas de ditaduras das mais
variadas formas têm usado e abusado para justificar e legitimar as manobras e os golpes.
Porém, mesmo que elas sejam realizadas dentro de regras muito definidas e
rigorosamente obedecidas, no máximo elas garantem apenas a permanência e o
aperfeiçoamento do regime representativo de matriz liberal, que foi estabelecido e
consolidado pelos regimes políticos sob a hegemonia burguesa. Portanto, a democracia
limitada aos aspectos formais sempre foi puramente instrumental. Ela não tinha, portanto, um
valor em si, com um significado que pudesse aperfeiçoar as formas de participação popular.
Diante disso, podemos dizer que a democracia pode possuir um significado que
ultrapasse esse limite se for o resultado da conquista dos trabalhadores. Nesse caso, o voto
universal tem um significado importante porque abre espaço para um processo eleitoral cheio
de significados em que as disputas de projetos se confrontam e a ação política ganha um
impulso bastante significativo. Nesses momentos, os operários possuem uma das raras
oportunidades de discutir as propostas e as alternativas, assim como também agregar os
trabalhadores e realizar tarefas de agitação que em períodos normais tornam-se muito difíceis.
Além disso, é importante tamm ser considerado que as eleições realizadas com um
mínimo de lisura permitem o ingresso no Parlamento de representantes dos trabalhadores.
Daquela posição, tanto eles m a oportunidade de tentar dificultar a aprovação de medidas
53
que contrariem os seus interesses, como podem denunciar, da tribuna, as manobras da classe
dominante e dos poderes constituídos. Eles podem também, dessa posição, se comunicar com
milhões de trabalhadores, ato que noutras circunstâncias seria muito mais difícil. Engels, por
exemplo, na sua Introdução de 1995 ao livro de Marx, As lutas de classes na França, faz uma
síntese brilhante dessa questão (ENGELS, 1953).
Marx e Engels, em grande parte dos seus escritos, sempre deixaram claro que a
questão da democracia política tem uma importância significativa para o aprofundamento das
questões sociais e como tal contribuem para o desenvolvimento e a participação política das
massas. Eles, Engels que teve oportunidade de presenciar eleições expressivas, com
participação crescente dos trabalhadores, em grande parte de seus escritos sempre deixaram
claro que a questão da democracia política tem uma grande importância para o
aprofundamento das questões sociais e como tal contribuem para o desenvolvimento e a
participação popular.
Neste caso é importante fazer uma distinção entre a situação descrita por Marx e
Engels em 1848, por exemplo, quando a sociedade era ainda bastante desorganizada, dentro
do ponto de vista das entidades representativas e o Engels de 1895, quando faz aquele balanço
da sua trajetória política, uma espécie de autocrítica de algumas formulações que haviam sido
feitas no período anterior. Nesse último momento as condições históricas estavam muito
modificadas, porque o capitalismo se encaminhava para sua fase monopolista. Ele pôde
fazer elaborações teóricas muito mais complexas sobre democracia e nesse caso o voto
universal e os processos eleitorais adquiriram significados muito mais expressivos.
Quando Bismarck viu-se obrigado a instituir esse direito de
voto como o único meio de interessar as massas populares em
seus projetos, nossos operários tomaram imediatamente a coisa
a sério e enviaram Augusto Bebel ao primeiro Reichstag
constituinte. E, a partir desse dia, utilizaram de tal maneira o
direito de voto que tiveram mil e uma recompensas, o que
serviu de exemplo aos operários de todos os países.
Transformaram o direito de voto nos termos do programa
marxista francês (de meio de engodo que foi até agora em
instrumento de emancipação) (ENGELS, 1953, p. 102).
Porém, é importante mais uma vez assinalar que para Marx o sufrágio universal
isoladamente não caracteriza a democracia. No entanto, isso não quer dizer que ele não
atribua importância ao voto. Pelo contrário, para ele todos os processos políticos são
importantes, contanto que neles esteja incluída a participação popular. Isto porque por essa via
seria possível a construção de soberania popular que deveria se manifestar na predominância
do poder Legislativo sobre o Executivo. Não de um Legislativo conforme conhecemos hoje,
54
nas democracias liberais, mas numa democracia radicalizada, sob hegemonia dos
trabalhadores. Era assim que a questão era vista no século XIX, sobretudo no seu final,
quando a intervenção dos trabalhadores em geral e da classe operária em particular crescia de
forma surpreendente.
Como o voto universal na época, por mais limitado e controlado que fosse, era uma
grande novidade e seu raio de abrangência muito superior a todas as manifestações até então
existentes, pelo seu próprio caráter legal e difuso, permitia nas suas entranhas um período
razoavelmente longo de ações cada vez mais atrevidas e desafiadoras. Por isso é que ele é
saldado com grande expectativa, possibilitando inclusive o aparecimento e crescimento de
posições reformistas altamente significativas.
O grande debate que se desenvolveu no seio do Partido Social-Social Democrata
alemão sobre a Reforma ou Revolução, onde se destacou a figura surpreendente de Rosa
Luxemburgo, é uma das consequências importantes desse momento. Lendo atentamente
algumas observações de Engels sobre o crescimento do movimento de massas, como esta a
seguir, podemos compreender melhor as circunstâncias daquele debate. Assim, dizia ele,
podemos contar hoje com dois milhões e um quarto de
eleitores. Se este avanço prosseguir conquistaremos até o fim
do século a maior parte das camadas médias da sociedade, tanto
os pequenos burgueses como os pequenos camponeses, e
cresceremos até nos convertermos na força decisiva do país,
força diante da qual terão de se inclinar, queiram ou o, todas
as outras. Manter incessantemente este crescimento, até que por
si mesmo ele se torne mais forte que o sistema de governo atual,
não desgastar em combates de vanguarda essa ‘força de choque’
que se reforça cotidianamente, mas conservá-la intacta para o
dia decisivo, eis nossa tarefa principal (ENGELS, 1953 p 108).
Esta questão nos ajuda a entender melhor a polêmica que se estabeleceu naquele
período. Estimulados pelos processos eleitorais que estavam ocorrendo de forma regular,
favorecidas pelas concentrações de trabalhadores em torno de grandes fábricas e de cidades
cada vez mais populosas que permitiam e facilitavam num ritmo impressionante a divulgação
das ideias, das propostas políticas e dos programas partidários, compreende-se com mais
facilidade por que as posições que defendiam o fim das revoluções ganharam prestígio.
Naquelas circunstâncias os processos de mudanças mais graduais que se dariam de forma
quase natural eram muito mais atrativos. Para essas posições era necessário estimular e forçar
o processo político através de reformas, que as transformações lentas levariam à mudança
radical do sistema. É evidente que para isso eles procuraram não ignorar os aspectos mais
revolucionários das posições de Marx e Engels como também moderar o marxismo. Eduardo
55
Bernstein, que naquele momento levantou a bandeira do revisionismo, quando declarou que
não era mais necessária a revolução para se chegar ao socialismo, é uma das figuras mais
importantes da social-democracia alemã que na época era o partido socialista mais expressivo
da Europa. Neste processo, as eleições através do voto secreto tinham uma importância
enorme porque, diferentemente das posições revolucionárias de Marx, o voto, as eleições e as
reformas em geral tinham um significado transformador em si. Não foi por acaso, portanto,
nem pela competência de seus teóricos e articuladores, que Rosa teve dificuldades imensas,
sobretudo a princípio, na sua luta contra o reformismo. As próprias palavras de Engels, que
manifestavam um grande entusiasmo com relação ao processo eleitoral, abriram espaço para
que os reformistas se fortalecessem perante a sociedade e perante os seus interlocutores da
social democracia que ocupavam espaços mais à esquerda. Essas declarações dele, que se
encontram a seguir, confirmam essa possibilidade:
Mesmo que o sufrágio universal não tivesse produzido outros
benefícios que o de permitir contar-nos a nós mesmos cada três
anos, que o de aumentar, pelo ascenso regularmente verificado
e extremamente rápido do número de votos, a certeza dos
operários na vitória, bem como na mesma medida o pavor entre
seus adversários, tornado-se assim nosso melhor meio de
propaganda; mesmo que servisse para nos informar
exatamente nossa própria força e a de todos os partidos
adversários fornecendo-nos, pois, um critério superior a
qualquer outro para calcular o alcance de nossa atuação,
preservando-nos tanto de um inoportuno temor como de uma
louca audácia igualmente despropositada, e esse fosse o único
benefício que tivesse tirado do direito de sufrágio, seria mais
do que suficiente. Mas ele nos deu muito mais. Forneceu-nos,
com a agitação eleitoral, um meio inigualável para entrar em
contato com as massas populares, onde elas ainda estão
afastadas de nós, para obrigar todos os partidos a defender
diante do povo suas opiniões e seus atos, diante de nossos
ataques; ademais abriu a nossos representantes no Reichstag
uma tribuna do alto da qual podem falar não apenas a seus
adversários no Parlamento, mas também às massas do lado de
fora com maior autoridade e maior liberdade que na imprensa e
nas reuniões...Ocorreu então que a burguesia e o governo
chegaram a ter mais medo da atuação legal que da atuação
ilegal do partido operário, mais temor aos êxitos das eleições
que aos êxitos da rebelião.
Pois também quanto a isso haviam se modificado
substancialmente as condições da luta. A rebelião de antigo
estilo, o combate nas barricadas que, até 1848, fora decisivo em
toda parte, estava consideravelmente ultrapassado (ENGELS,
1953, p. 103).
Uma das alterações significativas foi (junto com as grandes concentrações produtivas,
comerciais e financeiras, com o surgimento de grandes cidades cheias de problemas), o
56
crescimento das demandas que aumentaram as reivindicações pelo atendimento dos serviços
públicos, como educação, saúde, transportes, etc. Esta situação contribuiu para congregar e
mobilizar cada vez mais as camadas urbanas, possibilitando o afunilamento das propostas e
ampliação dos interesses entre diversos segmentos da população que passaram a encontrar
nessas mobilizações muitos interesses comuns.
Além disso, sendo o Estado o desaguadouro dessas demandas, fez com que ele
adquirisse uma dimensão muito maior e passasse a ser o terreno de disputas políticas muito
mais significativas e mais heterogêneas, bem como o articulador de políticas capazes de
alterar em profundidade toda a trajetória até então traçada pelas políticas liberais.
Estas alterações permitiram a Engels, na sua famosa Introdução, descrever as
possibilidades da democracia política, através dos processos eleitorais, com tanto otimismo.
Afinal, é importante, para facilitar a compreensão desse texto de Engels, dizer que, na Europa
ocidental, por exemplo, que era a região mais desenvolvida do mundo do ponto de vista do
capitalismo, só a Inglaterra e a Bélgica podiam ser considerados realmente países
industrializados, do ponto de vista fabril, quando foi escrito o Manifesto Comunista. A
Alemanha, nesse momento, ainda era constituída por uma confederação de Estados, sob a
hegemonia da Prússia, por um lado, e do Império Austro-Húngaro, por outro.
A comparação de 1848 com 1895 é importante, para melhor esclarecer não o
desdobramento do desenvolvimento capitalista, isto é, como aperfeiçoamento do próprio
regime.
Assim, as reformas não podiam ser vistas com muito otimismo e muito menos como
um objetivo prioritário para a luta dos trabalhadores, mesmo que elas fossem realizadas sob a
bandeira das chamadas vontades da maioria, ou seja, através do voto universal.
E mesmo, qualquer constituição legal outra coisa não é que o
produto da revolução. Ao passo que a revolução é o ato de
criação política da história de classe, a legislação outra coisa
não é que a expressão política da vida e da sociedade.
Precisamente, o esforço pelas reformas não contém força motriz
própria, independente da revolução; prossegue em cada período
histórico, somente na direção que lhe foi dado pelo impulso da
última revolução, e enquanto esse impulso se faz sentir,ou, mais
concretamente falando, somente nos quadros da forma social
criado pela última revolução. Ora, é precisamente que reside
o ponto central da questão (LUXEMBURGO, 1999, p. 96).
Porém, com o desenvolvimento do capitalismo e a maior complexidade da sociedade
havia uma tendência muito forte para o fortalecimento de novos setores da sociedade,
sobretudo os setores de classes médias intelectualizadas em virtude do grande
57
desenvolvimento técnico e o aparecimento de muitas atividades culturais ligadas não à
produção como também ao crescimento e à heterogeneidade das camadas urbanas. Essas
mudanças alteram as formas de fazer política e exigem das lideranças da classe operária um
maior esforço para produzir novos tipos de alianças, sobretudo com a intelectualidade, de tal
maneira que não subordine suas propostas e seus objetivos históricos a estes novos setores.
Rosa, por exemplo, (LUXEMBURGO, 1999) fazia sérias advertências com relação
a esse perigo, atitude que Lênin também mais tarde vai tomar quando diz que: “...Entre a
burguesia e o proletariado existe uma massa de graus intermediários, com relação à qual
nossa política deve seguir atualmente os caminhos previstos teoricamente por nós...(LÊNIN,
1968, p. 41).
O que era certo, isto é, o que de fato Marx e Engels acreditavam como o verdadeiro
instrumento para viabilizar a democracia, era a revolução. Esta podia ser ajudada por um
amplo processo eleitoral que facilitaria a mobilização da classe operária para as ações de
mudança de comportamento dos agentes políticos, como também melhorar a compreensão de
algumas formulações sobre democracia que foram feitas no Manifesto, por exemplo. Não só o
capitalismo encontra-se numa outra fase, quando grande parte das indústrias formou
conglomerados enormes com pretensões monopolistas como também as cidades cresceram e
suas populações diversificaram-se bastante. Num ambiente assim, não as condições
políticas e culturais do grande conjunto da população se alteraram profundamente como as
formas de atuação política, sobretudo as de caráter revolucionárias, sentiram a necessidade de
mudanças em seus métodos. Nesse caso, a atuação política legal, através de eleições, tornou-
se um instrumento eficiente no sentido da mobilização e da propaganda.
Nesta conjuntura assim precariamente definida, um aspecto bastante importante,
paralelo às articulações e concentrações dos interesses das classes dominantes, foi a formação
de grandes blocos proletários representados pela formação de sindicatos de massas, bem como
pelos partidos políticos ligados aos interesses dos trabalhadores.
Rosa Luxemburgo, na sua polêmica com Bernstein, que se tornou clássica,
publicada em sua obra Reforma ou Revolução?, advertia que as reformas políticas,
inclusive do aperfeiçoamento das leis, realizadas pelos parlamentos predominantemente
burgueses, podem, sem dúvida, melhorar circunstancialmente as condições dos trabalhadores.
Por isso, faz sentido a luta pelas reformas cujo voto popular tem significação. Porém, este não
deve ser o objetivo principal da classe operária. O objetivo fundamental dos trabalhadores
pode ser a revolução e a luta pela legislação tem que estar subordinada a ela. Isto porque
grande parte da legislação vigente foi o resultado da força. Este momento mais cedo ou mais
58
tarde chegaria a um desfecho que se daria após uma das grandes crises do sistema, que
deixaria evidente que as soluções eleitorais ou reformistas de qualquer natureza não dariam
conta das soluções adequadas para as necessidades das camadas populares.
Nesta avaliação, mesmo Engels estando focado mais na Alemanha, ela pode
perfeitamente ser generalizada. Ele considerava principalmente as condições da Alemanha
porque, ao mesmo tempo em que ela tinha uma estrutura econômico-social com uma base
agrária muito forte, com uma aristocracia ainda muito poderosa, passava por um processo de
desenvolvimento econômico muito acelerado, transformando-se numa grande referência no
conjunto das grandes nações.
Esta situação, que colocava a Alemanha numa situação especial, com relação a
algumas potências europeias, como a Inglaterra e a França, que tinham passado por
revoluções burguesas clássicas, cujas aristocracias e instituições do Antigo Regime foram ou
liquidadas ou incorporadas ao domínio do capitalismo, na Alemanha o processo se viabilizou
pela associação da burguesia a mais avançada da época com a aristocracia agrária, compondo
um tipo de movimento que Lênin denominou de via prussiana. Rosa de Luxemburgo traduz
muito bem essa relação entre reforma e revolução quando assinala dizendo:
É inteiramente falso e contrário à história representar-se o
esforço pelas reformas unicamente como a revolução
desdobrada, no tempo, e a revolução como uma reforma
condensada. Não se distinguem uma transformação social e
uma reforma legal pela duração, mas pelo conteúdo. É
precisamente na transformação de simples modificações
quantitativas em uma nova qualidade ou, mais concretamente
falando, na passagem de um dado período histórico, de cada
forma de sociedade, a outra, que reside todo o segredo das
transformações históricas pela utilização do poder político
(LUXEMBURGO, 1999, p. 96).
O que a Introdução de Engels deixa claro é que as transformações, operadas na
sociedade capitalista, impõem ao movimento dos trabalhadores mudanças significativas nas
suas formas de luta. Significa, em suma, que, ao invés de a classe operária partir para uma
mudança radical na base do confronto armado com a finalidade de se apossar dos aparelhos
do Estado para em seguida impor uma democracia através da violência contra as minorias
dominantes. Agora, o operariado tem pela frente um longo processo, mais gradativo em que
vários instrumentos de disputa pela hegemonia no seio da sociedade civil são importantes para
que a democratização tenha fundamentos mais consistentes. Assim, quando a classe operária
chegar ao poder, ela já tenha o controle sobre grande parte dos mecanismos de funcionamento
da sociedade civil.
59
Nesse caso fica claro tamm que o voto, a partir da segunda metade do século XIX
adquire uma importância imensa para a classe operária assinalando que os métodos
revolucionários predominantes até 1848, baseados em confrontos diretos, estavam cada vez
mais relegados a grupos muito reduzidos. Os revolucionários, que estavam de fato
acompanhando as elaborações teóricas de Marx e de Engels, dentro da verdadeira perspectiva
dialética, estavam entendendo que o processo de transformação da sociedade rumo ao
socialismo deveria ser muito mais complexo. Nesse sentido, estava exigindo novas formas de
atuação política, de tal forma que incorporasse grandes multidões, a fim de conseguir vitórias
que fossem mais definitivas. Para isso elas deveriam ser mais processuais e, portanto, mais
duradouras, que não ficassem tão vulneráveis a retrocessos bruscos porque a história já tinha
demonstrado que esse tipo de comportamento não raro provocava além de perdas, a redução
de possibilidades. E nesse sentido a questão do voto universal assume uma posição
importantíssima, sem abandonar, evidentemente, a revolução como aspecto decisivo. Esta é
uma das conclusões que se pode tirar da Introdução de Engels de 1895.
60
CAPÍTULO 2
Principais fundamentos da Democracia em Marx
A primeira informação que temos a dizer sobre a democracia, em Marx, é que ela
articula toda uma trajetória teórica produzida pelos pensadores anteriores, sobretudo os
pensadores do Iluminismo com os movimentos políticos empreendidos pelas classes
exploradas que, de várias formas, tinham sempre resistido à exploração e à opressão das
classes dominantes e dos poderes a elas vinculadas. Ele, porém, não abandonou toda uma
tradição de democracia que vem desde a Antiguidade. Foi assim, portanto, sempre procurando
aliar o passado com o presente, numa relação dialética, em que algumas diretrizes do passado
se uniam às linhas de força do presente, inaugurando uma forma nova de abordar a política,
que ele enfrentou as teorias produzidas pelos ideólogos da burguesia e produziu uma
perspectiva diferente de abordar a democracia.
A importância da obra de Marx reside, exatamente, num aspecto crucial da história
que é a questão da luta de classes e nesse sentido ele assume como ponto central de sua
concepção de política e de possibilidade de construção de uma verdadeira democracia, o
ponto de vista da classe operária. Assim, segundo suas próprias palavras a questão era assim
colocada:“Que la emancipación de la clase obrera debe ser obra de la propia clase obrera;
que la lucha por la emancipación de la clase obrera no es uma lucha por privilégios y
monopólios de clase, sino por el establecimiento de derechos y deberes iguales y por la
abolición de todo domínio de clase;”(MARX, 1973 p. 14).
2.1 Democracia e revolução
A existência de uma democracia para Marx só pode ser o resultado de uma construção
que supere a exploração e a divisão de classes conforme se estabeleceu com o sistema
capitalista. Esta construção pressupõe a existência de algumas condições, sobre as quais os
trabalhadores possam imprimir uma transformação radical. Esta transformação, pode
ocorrer quando o nível de desenvolvimento e acumulação de riquezas realizada no
capitalismo possa ser socializada para promover o bem-estar do grande conjunto da
população. Nesse sentido, uma condição essencial é que exista uma grande quantidade de
pessoas incorporadas no sistema de produção, desprovidas de bens, em que pelo menos sua
61
vanguarda esteja consciente de que as imensas desigualdades engendradas pelo sistema não é
algo natural e que só eles podem operar a mudança, de forma coletiva.
28
Primeiro, a tomada do poder político pelo proletariado, isto é,
uma grande classe popular, não se faz artificialmente.
Excetuando-se os casos como a Comuna de Paris, em que o
poder não foi conquistado pelo proletariado em seguida a uma
luta consciente de sua finalidade, mas veio cair nas mãos dele,
de modo absolutamente excepcional, como um bem desprezado
por todos, essa tomada pressupõe, por si mesma, certo grau de
maturidade das relações econômicas e políticas
(LUXEMBURGO, 1999, p. 104).
As forças produtivas desenvolvidas deviam se encontrar num nível bastante elevado a
fim de que a socialização pudesse partir de um patamar satisfatório, o suficiente para atender
as necessidades sociais. Isso porque a democracia é construída a partir daí, tornando possível
a libertação humana. O que, segundo Marx, ocorre quando o homem real e individual tiver
em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na vida empírica, no trabalho e
nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e
organizado as suas próprias forças como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de
si esta força social como força política” (MARX, 2003, p. 37).
Esta visão sobre democracia se distingue de todas as visões anteriores, principalmente
porque todos os processos de mudança, que até então tinham tido sucesso e se consolidado,
tinham sido o resultado da disputa dos interesses entre grupos e classes sociais com objetivos
e interesses específicos. Além disso, elas refletiam o movimento desses interesses e com eles
conviviam de forma harmoniosa. Mesmo assim, Marx admitia que o resultado de todo esse
processo, de transição do feudalismo para o capitalismo, representou um progresso tanto no
que diz respeito às condições materiais como nas formas de fazer política.
Porém, o resultado foi altamente decepcionante no que diz respeito às verdadeiras
possibilidades de construção de uma sociedade que pudesse chegar a algum grau de
universalidade e favorecesse a construção de um homem, liberto da opressão e das fadigas de
uma vida de alienação, conforme os ideólogos das grandes revoluções haviam prometido e os
próprios processos tinham acenado. Tudo isso ficou numa possibilidade que se perdeu ou num
processo que ficou incompleto. A revolução operária tem, portanto, como missão, completar
este objetivo.
Nesse sentido, a classe operária pode dirigir esse processo pela posição que ocupa
na sociedade, como produtora das riquezas, porém completamente desprovida de bens de
28
- Na Crítica ao Programa de Gotha (MARX, 2004), Marx argumenta que o fundamento da luta dos trabalhadores encontra-
se em sua organização, e esta organização, mesmo tendo como meta geral a luta de classes ao nível internacional, uma
condição para se alcançar esta meta é a classe operária ter seu próprio país como referência.
62
produção. Enquanto isso, todas as mudanças operadas na sociedade capitalista tem sido
basicamente no sentido de aperfeiçoamento das regras institucionais e das formas de governo,
em que os interesses privados dos capitalistas assumiram dimensões formalmente gerais, em
torno de um Estado que se formou com o objetivo prioritário de cumprir duas tarefas
fundamentais: de um lado, destruir todas as formas que agregavam instituições do Antigo
Regime; e de outro lado, incorporar e domesticar, pela força, se necessário, uma mão-de-obra
que a princípio encontrava-se dispersa e hostil à disciplina do trabalho nas fábricas (MARX,
1985 – a).
Podemos, então, dizer que a revolução política não alterou a relação dos indivíduos
perante o mercado, muito pelo contrário, até fortaleceram, à medida que deram uma melhor
ordem e um estatuto jurídico mais definido para normalizar a relação entre os indivíduos.
Talvez, o mais importante é que todo o arcabouço legal que estabeleceu os limites entre o
Estado e a sociedade civil, ou seja, a concepção liberal tinha uma preocupação não em
dominar o aparelho do Estado, mas também limitar seu raio de ação, abolindo o absolutismo.
Carlos Nelson Coutinho, depois de fazer um retrospecto da trajetória de Marx e de Engels,
assinalando a trajetória deles antes de 1848, faz uma declaração em seu comentário ao
Manifesto que articula perfeitamente a continuidade do pensamento dos autores com a
tradição democrática, mas assinala também a necessidade de uma ruptura. Assim, ele diz o
seguinte:
O enfrentamento da questão democrática como momento
essencial da revolução comunista é outro indicador da
atualidade do Manifesto. Marx e Engels elaboraram sua teoria
política anterior a 1848 em estreita interlocução com a
problemática da democracia, particularmente em sua versão
rousseauniana. Eles estavam e continuaram convencidos de
que a revolução comunista que defendiam representava a
oportunidade de levar a cabo as promessas democráticas que a
Grande Revolução Francesa e, de modo geral as revoluções
burguesas dos séculos XVII e XVIII haviam enunciado, mas
não cumprido. A emancipação política (que é como Marx
define os resultados da Revolução Francesa em A questão
judaica) devia ser completada e não abandonada pelo que,
ainda sob inspiração de Feuerbach, ele chamava então de
‘emancipação humana’. Essa emancipação recebe no
Manifesto, como ocorrera em textos anteriores, o claro nome
de ‘comunismo’. Ora, se a revolução proletária tem também
como meta levar a cabo as promessas da Revolução Francesa,
então ela deve ter uma relação positiva com a questão da
democracia. O Manifesto diz explicitamente que ‘o primeiro
passo da revolução dos trabalhadores é a ascensão do
proletariado à situação de classe dominante, ou seja, a conquista
da democracia (COUTINHO, 1998, p55-56).
63
Isto quer dizer que, para Marx, a democracia era algo profundamente diferente, porque
emergiria de um processo revolucionário. As formulações que ele apresentou, porém, não
foram concebidas de forma especulativa, conforme posição desenvolvida por Feuerbach; elas
partiram de uma profunda crítica a todo o conhecimento formulado até então, principalmente
no capital, cujo núcleo central é uma crítica da economia política desenvolvida pelos teóricos
da burguesia, principalmente Adams Smith e Ricardo. É esta mensagem que é o inaudito
da T. 11. Sua palavra mestra não é a prática, mas a revolução, a única prática que vai até o
fim dos questionamentos (LABICA, 1990, p. 188).
Além disso, ele se apropriou de todo o conhecimento histórico anterior, sobretudo da
França, sobre a qual produziu várias obras conjunturais importantes. Seus conhecimentos não
são apresentados de forma dogmática e estática formando uma doutrina. Pelo contrário, nele,
o passado e o presente se cruzam num processo dinâmico, tendo a luta de classes como seu
aspecto central. Esse algo novo não significava algo inédito, mas era um rompimento,
provocado por uma inflexão revolucionária, que eleva a realidade existente a um patamar
superior, numa universalidade social
29
. Para fortalecer essa argumentação transcrevemos suas
palavras a seguir:
No que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto
a existência das classes na sociedade moderna ou a luta entre
elas. Muito antes de mim, alguns historiadores burgueses
tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta de
classes e alguns economistas burgueses a anatomia econômica
das classes. O que eu fiz de novo foi demonstrar: 1) que a
existência das classes está ligada apenas a determinadas fases
históricas do desenvolvimento da produção; 2) que a luta de
classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3)
que esta mesma ditadura constitui tão somente a transição para
a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes
(MARX, 1977, p.25).
Esta declaração de Marx, que se tornou clássica, nos convida sempre a algum
comentário. Por exemplo, de que as classes, no verdadeiro sentido da palavra, é uma realidade
do capitalismo, bem como a luta de classes. Nos sistemas anteriores, o que predominavam
eram os estamentos, grupos, castas, etc., o que coloca em dúvida aquela afirmação sobre a
luta de classes durante toda a história que praticamente abre as formulações do Manifesto; por
outro lado, se o socialismo é concebido, pela tradição marxista, como um sistema que se
29
LUKACS (2008) , Rio de Janeiro, nas páginas 121 e 122 explica essa questão de forma sintética.
64
caracteriza pela sua universalidade, então ele não é exclusivo de nenhuma classe em
particular.
Assim a democracia, no socialismo, não é prisioneira de nenhum interesse particular
de classe; ao contrário da democracia formal, que no capitalismo nasceu e desenvolveu-se
articulada com os interesses particulares da burguesia. Então, a questão da ditadura é algo
problemático. É bem verdade que Marx emitiu muito poucas vezes esse conceito e que
certamente temos que ter cuidado ao transcrevê-lo mecanicamente. No Programa de Gotha,
(MARX, 2004), por exemplo, ele descreve esse período como sendo uma transição política,
de caráter revolucionário, da sociedade capitalista para o comunismo.
Para Marx, a classe operária na Inglaterra formava a maioria da população e tendia a
transformar-se em maioria na medida em que o capitalismo fosse adquirindo uma
universalidade maior, isto é, na medida em que ele fosse se internacionalizando e destruindo
as barreiras e as fronteiras nacionais. Assim, abria-se a oportunidade da classe operária
conquistar o poder, não para oprimir, conforme fazem as ditaduras burguesas, mas sim para
evitar a reação das antigas forças dominantes e retirar delas todos os bens sociais que foram
apropriados de forma privada. Porém, não podemos descartar seu caráter problemático com
facilidade (FORNAZIERI, 1988).
Porém, o que caracteriza muito as formulações de Marx é o seu caráter dinâmico,
dialético, que aponta numa direção que, mesmo não tendo sido feitas elaborações mais
profundas e mais completas a respeito de alguns temas, é suficiente para se perceber que ele
tinha o cuidado para não lidar com questões polêmicas, sem dar os devidos esclarecimentos,
mesmo um conceito controvertido como a ditadura do proletariado.
Para Marx, portanto, tinha muito sentido um projeto que fosse capaz de guiar uma
transformação da sociedade em seus fundamentos, capaz de alterar realmente a vida dos
homens. E esse projeto, para ser viabilizado, deveria contar, por um lado, com a liderança e a
direção da classe operária e, por outro, com a composição e a participação das camadas
populares as mais diversas. Nesse sentido, a chamada ditadura do proletariado, a qual Marx se
referiu pouquíssimas vezes, tinha mais ou menos o sentido que Lênin ou mesmo Gramsci vão
utilizar mais tarde, quando tratam da questão da hegemonia. Porém, isso é uma interpretação,
considerando algumas análises conjunturais, como em As lutas de classes na França e em A
Guerra Civil em França. Isto porque, em obras de caráter mais geral, como o Manifesto do
Partido Comunista, que sem dúvida é a principal obra que estabelece seus princípios
fundamentais sobre teoria política, a ditadura de fato está colocada como domínio exclusivo
65
de uma classe. Segundo Rosemberg, cuja citação utilizamos, não porque esclareça
definitivamente a questão, mas porque recoloca a polêmica de maneira importante.
Para Marx e Engels, o movimento democrático era tamm em
seu conjunto, uma coalizão de operários, camponeses e
pequeno-burgueses. Porém, dentro dessa coalizão, o
proletariado devia tomar necessariamente a direção. Dada sua
situação particular de classe, somente os operários industriais
eram capazes, de fato, de se livrarem das incertezas e das
ilusões de que eram vítimas os pequeno-burgueses. Quanto
mais avançado era o movimento democrático, tanto mais
aceitaria a direção proletária. Se os comunistas eram capazes de
dar aos operários as palavras de ordem no decorrer da
revolução, podiam também, apesar de seu mero reduzido,
determinar o ritmo e o ordenamento da revolução democrática
(ROSEMBERG, 1986, p.94).
Rosa Luxemburgo, em sua obra Reforma ou Revolução? (LUXEMBURGO, 1999),
comenta a classe operária, como ela sendo capaz de dirigir o processo de tomada do poder
como a grande massa popular consciente. Achamos que essa é uma questão muito discutível
entre os marxistas. Para o próprio Marx, por exemplo, mesmo considerando a classe operária
como um bloco coeso, no entanto, no Manifesto, ele descreve a posição dos comunistas como
se fosse uma vanguarda da classe operária. Nesse caso, uma coisa é a grande massa dos
trabalhadores, inclusive os operários, que por si já representam uma grande possibilidade
de mudança, isto é, a sua simples presença, em grandes concentrações, representam uma
ameaça ao sistema capitalista, segundo a visão de Marx, principalmente no Manifesto de
1848. Porém, enquanto tal isto é apenas uma possibilidade. Afinal, a responsabilidade dos
operários se apresenta, por enquanto, apenas como um dever moral. Para que este dever se
transforme em ação, que é o aspecto decisivo, é necessário, entre outras coisas que o
proletariado adquira uma consciência desse dever e o transforme num objetivo político.
Nesse caso, a consciência de classe não é algo natural, que nasce e cresce de forma
espontânea. Lukacs, em 1923, em sua obra História e consciência de classe, fazia, uma
advertência nesse sentido. Ele indicava que a consciência de classe se desenvolvia num
processo em que as lutas imediatas e empíricas dos trabalhadores se articulavam com teorias
revolucionárias num processo conhecido como práxis. Isto é, a classe operária, em si, na sua
prática cotidiana e empírica é apenas uma classe em si. Torna-se uma classe para si quando
percebe e adquire a consciência de sua importância na sociedade capitalista como elemento
importante de transformação social.
66
Marx estava convencido de que a democracia era possível se as mudanças
pudessem se estabelecer na própria estrutura da sociedade. A grande questão reside
exatamente no fato de que, para a classe operária, a mudança não significa uma nova forma de
apropriação, isto é, mudar a forma de propriedade burguesa para uma outra. A classe operária
ao combater a sociedade vigente e liderar um processo de transformão com destino a uma
sociedade verdadeiramente democrática, não pode reivindicar para si qualquer tipo de
domínio exclusivo ou privilégio. Para o proletariado, portanto, a transformação será
possível através de um processo que tenha como finalidade a abolição de todas as formas de
apropriação que foram estabelecidas pelo capitalismo. Na transição do feudalismo para o
capitalismo foram destruídas as relações servis de trabalho e uma estrutura política baseada na
fragmentação numa forma de relação assalariada e numa forma de organização política
concentrada em torno de Estados nacionais (LUKÁCS, 2008)..
30
Qualquer processo de mudança, nesta direção, estava associado à revolução. E no
século XIX, a revolução estava muito associada à violência. Esta era uma constatação que a
história demonstrou, e ele incorporou essa visão não porque fizesse opção pela violência, mas
sim porque sabia, de antemão, que as classes dominantes não abriam mão de seus privilégios
sem resistência. No entanto, não foi aleatório e nem por oportunismo que Marx se empenhou
pela melhoria das condições de trabalho dos operários, sobretudo na Inglaterra. Para ele, a
revolução era um objetivo que se encontrava no horizonte, e para que ela tivesse sucesso, as
crises do sistema capitalista eram importantes para apressar os acontecimentos; porém, o
processo na profundidade exigida para a transformação radical da sociedade tendia a ser
longo, e complexo, onde duas ordens de fatores seriam imprescindíveis: de um lado, as
condições objetivas adequadas
31
e por outro lado, forças sociais significativas e organizadas.
Para ele, os dois processos se completavam e deviam ser concomitantes. Nesse
processo as reformas eram importantes. Elas deixam de ser importantes quando consideradas
um fim em si mesmas, conforme posição defendida pelos social-democratas desde o final do
século XIX.
Marx, ao tratar sobre essa questão, não se fixava em país algum e nem em região
alguma. Quando fazia alguma observação nesse sentido era apenas como ponto de referência,
porque de fato a atuação política da classe operária se dá, prioritariamente, dentro das
fronteiras dos Estados, porém, conforme o Manifesto, a revolução proletária, para ter sucesso,
30
Lukács argumenta que com o processo da revolução burguesa é articulada uma estrutura política centralizada na sua
idealidade. Porém, ao nível da sociedade civil, que controlava os aspectos fundamentais vinculados a produção das riquezas,
encontrava-se o domínio particular. (LUKÁCS, 2008)
31
- No prefácio à Contribuição da Economia Política, Marx assinala que para que um novo regime se desenvolva
é necessário que o Antigo Regime desenvolva todas as suas potencialidades ( MARX, 1999)
67
precisa ser internacional, e seu instrumento mais previsível, mais cedo ou mais tarde, é a
violência. Alias, o internacionalismo é uma das características importantes das posições de
Marx, assim como também do socialismo que ele previa.
Que todos los esfuerzos dirigidos a este fin han fracasado hasta
ahora por falta de solidaridad entre los obreros de las
diferentes ramsa dês trabajo em cada país y de uma unión
fraternal entre las clases obreras de los diversos países;
Que la emancipación del trabajo no es um problema nacional o
local, sino um problema social que comprende a todos los
países em los que existe la sociedad moderna y necesita para
su solución el concurso práctico y teórico de los paises más
avanzados; (MARX, 1973, p. 14).
O próprio Engels, na sua Introdução, conclui que, em algum momento, o uso da força
torna-se necessário porque a burguesia não iria ficar assistindo de braços cruzados ao
processo de democratização acima dos limites tolerados pela sociedade de classes com o
respeito pela propriedade. Assim, a violência utilizada pela classe operária no processo
revolucionário teria um sentido defensivo, isto é, ela seria utilizada para a defesa das
realizações da revolução.
Mesmo na passagem da sociedade feudal para o capitalismo, apesar de considerarmos
todo o processo de desenvolvimento das forças produtivas nas entranhas da sociedade feudal,
foi necessário um processo violento para que se desse a tomada do poder político pela
burguesia. As revoluções inglesas do século XVII e a Revolução Francesa do século XVIII
são testemunhas dessa evidência.
Porém, segundo Rosa, a revolução é inconcebível de um golpe, de forma
surpreendente e explosiva. Pelo contrário, a transição para o socialismo é o resultado de um
processo longo, de uma maneira que os avanços e os recuos estão perfeitamente dentro das
possibilidades, mas que ao fim e ao cabo um programa mínimo de transformações aponta um
rumo e o amadurecimento das condições torna possível a realização e a concretização de uma
série de alterações na ordem social, onde as situações de opressão e de exploração são
gradativamente abolidas e novas formas de convivência são estabelecidas. Lógico que,
seguindo Rosa, concluímos que essas duas formas de transição são diferentes e que a
transição para o socialismo é mais complicado, porque significa não remover toda a
estrutura montada pelos regimes anteriores, como principalmente construir um sistema novo
sem as experiências adequadas. Enquanto isso, nas revoluções burguesas, a classe dominante
promove alterações, prioritariamente, só nos mecanismos de dominação política.
No fundo de todas essas questões, estava o fato, bastante relevante, de que Marx e
Engels não estavam preocupados em simplesmente interpretar o mundo como fizeram até
68
então os filósofos mas sim em transformá-lo (conforme está explícito em sua décima
primeira tese sobre Feuerbach)
32
, permitindo-lhe falar, dialeticamente, na unidade entre a
teoria e a prática. Baseados exatamente nessa determinação é que eles sabiam que
simplesmente o caminho das reformas tinha seus limites. Portanto, com relação à revolução
podemos dizer que em Marx ela não era algo secundário; ao contrário, ela estava no centro da
sua teoria (WEFFORT, 2003).
Com efeito, podemos afirmar que Marx era um pensador voltado para a ação, ação
esta que tinha um destino bem determinado. Ele partia da convicção de que a sociedade
capitalista era o último estágio das sociedades de classes e que trazia, intrinsecamente, as
contradições que possibilitariam sua superação.
Porém, esta mudança não era algo inexorável, imanente, necessário, num
evolucionismo ordenado. Ela era uma possibilidade, um dever para a classe operária, mas não
era uma certeza. Ela tinha que ser construída. Essa era a essência do processo de
transformação. A classe operária tendia, aos poucos, em função de sua própria situação e
posição na sociedade, a ir generalizando a resistência e, ao mesmo tempo, adquirindo a
consciência de sua missão no processo de transição. Ela, aos poucos, vai estabelecendo
formas de comportamento, aliando as suas realidades particulares e regionais com teorias que
possuem uma nova ética e uma nova moral, que nasceram e cresceram nas entranhas do
capitalismo, mas dele se desgarrou para chegar a um patamar superior, a uma nova
consciência histórica.
Esta nova consciência (fundada e caracterizada numa visão de universalidade, que fica
acima dos interesses da propriedade privada, do corporativismo e do regionalismo das nações,
mesmo tendo suas raízes e suas formas de desenvolvimento no próprio regime capitalista)
pode ser concretizada no socialismo. Tudo isso é o que Marx demonstrou, porém, apontando
para o fato de que essa superação não se daria de forma natural. De acordo com Marx, isto
poderia ocorrer quando
Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em contradição com
as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que
a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro
das quais aquelas então se tinham movido. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas, essas relações de
produção se transformam em seus grilhões. Sobrevém então
uma etapa de revolução social (MARX, 1999, p.52).
32
- Georges Labica diz que “ é indispensável situar a Tese 11 no contexto que é o seu, o da crítica da filosofia, cujo
expoente é a Ideologia Alemã.” (LABICA, 1987)
69
Mas a transformação de uma sociedade para outra não ocorre simplesmente pela
vontade dos homens. Ela é imprescindível, mas não suficiente. Ela está atrelada às
circunstâncias de tal forma que, “uma formação social nunca perece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida e
novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas
condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade
(MARX, 1999,p.52).
Essa concepção marxiana explica por que todos os movimentos revolucionários, a
partir dos trabalhadores de todas as épocas históricas passadas, fracassaram e todas as suas
lideranças tornaram-se mártires de grandes utopias. Os casos mais emblemáticos situam-se na
Roma antiga quando os movimentos de escravos chegaram a abalar toda a estrutura do
Império. Entre estes podemos citar a revolta liderada por Espártaco.
Na chamada Idade Média, no século XIV, a França foi varrida por uma série de
revoltas camponesas bem como a Alemanha, mais tarde, no período da reforma luterana.
Assim, tanto a França como a Alemanha, para ficar nesses exemplos, foram palcos de
revoltas camponesas contra as péssimas condições de existência; e mesmo nos tempos mais
recentes, sobretudo na esteira das revoluções burguesas, como a revolta dos niveladores, no
período de Cromwell, no século XVII. Toda esta tradição utópica, “veio a sofrer uma radical
alteração na passagem do século XVIII para o XIX. Trata-se da alteração que, propiciada
com a consolidação da sociedade burguesa, desaguou na constituição do pensamento e do
movimento comunistas. Estes são os herdeiros daquela tradição humanista e vão recolocá-la
em novas bases”. (NETTO, 1987, p.26). Essas bases novas serão possíveis e essas
tentativas viáveis, segundo Lukács,
quando a vida média da cotidianidade (ou seja, antes de mais
nada, precisamente o trabalho, a práxis econômica) for
estruturada, objetiva e socialmente, tendo em vista promovê-las
e não reprimi-las ou convertê-las em fatos negativos dos mais
diferentes tipos ...Quando, em sua atividade social, o homem
tiver criado ele mesmo as condições que realmente o
transformem num homem autêntico, este período – o socialismo
como formação transformar-se-á no prelúdio daquela grande
virada que Marx designou como o fim da pré-história da
humanidade (LUKACS, 2008 p167).
Para Marx e Engels, portanto, essa construção que tem no trabalho o seu fundamento e
que possibilita ao homem realizar esse movimento, tem como condição o desenvolvimento
real da vida dos homens, que resgata toda a trajetória das lutas nos diversos períodos da
70
história no sentido de realizar todas aquelas aspirações que alcançaram sua síntese na grande
Revolução Francesa. Assim,
resgatando os antigos ideais de igualdade, fraternidade e justiça,
a teoria social de Marx lhes confere um novo fundamento, que
não é mais o puro desejo de homens altruístas e generosos:
Marx identifica na própria realidade o movimento efetivo que
abre a via para a construção de uma nova ordem social. São as
condições históricas postas pelo desenvolvimento do
capitalismo que viabilizam o projeto da nova sociedade: seu
sujeito é o proletariado, seu caminho é a revolução. O projeto
da nova sociedade não é mais um simples ideal: é o movimento
real da sociedade (NETTO, 1987, p. 40).
Para Marx, portanto a transformação da sociedade presente que possibilite a
construção da democracia exige além de uma ação política consciente e determinada, uma
série de condições objetivas. A simples vontade dos homens não é suficiente. De qualquer
forma, segundo ele, as revoluções necessitam de um membro passivo, de uma base material.
A teoria só se concretiza num povo, na medida em que é a realização das suas necessidades”
(MARX, 2003, p. 54).
Portanto, quando se afirma que, nos tempos modernos, a democracia es
profundamente enraizada nos processos revolucionários, é porque de fato a história
demonstrou isso. Não é irrelevante, por exemplo, mencionar o fato de que a grande Revolução
Francesa, do final do século, tornou-se o modelo para a maioria dos revolucionários do século
XIX, inclusive para Marx, que não tinha uma grande admiração por ela, como também,
segundo Hobsbawm, se referindo a Marx, “durante toda sua vida a França continuaria sendo
o exemplo clássico da luta de classes em sua forma revolucionária e o laboratório mais
importante de experiência histórica no qual se formaram a estratégia e a tática da
revolução” (HOBSBAWM, 1983, p. 310).
Porém, mesmo a Revolução Francesa sendo uma referência, o que caracterizava, no
fundo, uma revolução para Marx era o seu caráter de classe. Isto é, a que classe social os
objetivos revolucionários se destinavam? Pelo menos prioritariamente. Assim, por exemplo,
ele fazia a distinção entre dois processos:
As revoluções burguesas, como as do século XVIII, avançam
rapidamente de sucesso em sucesso; seus efeitos dramáticos
excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam
como gemas fulgurantes; e êxtase é estado permanente da
sociedade; mas estas revoluções têm vida curta; logo atingem o
auge e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que
esta tenha aprendido a assimilar serenamente os resultados de
seus períodos de lutas e embates. Por outro lado, as revoluções
proletárias como as do século XIX, se criticam constantemente
71
a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao
que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem
com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias
de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário,
apenas para que este possa retirar da terra novas forças (Marx,
1968, p.19,20).
No mesmo texto, na página 18, para estabelecer a distinção entre os dois processos, e
dar uma certa nitidez a cada um dos modelos, ele escreve o seguinte:
A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do
passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto
não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As
revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da
história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A
fim de alcançar seu próprio conteúdo a revolução do século
XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes, a
frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da
frase (MARX, 1968, p. 18).
Assim, para que essas condições tornem-se realidade, é necessário que a classe
operária conquiste as condições para destruir todas as relações então vigentes. Para isso, é
importante uma forma de organização a fim de que possa estabelecer sua supremacia política
e a partir daí possa construir, de acordo com as peculiaridades de cada sociedade, um processo
de mudança cuja complexidade vai depender muito das condições objetivas de cada região e
do nível de organização da sociedade.
Sua missão é chegar a controlar as riquezas que foram então desencadeadas pelo
processo de produção e de acumulação capitalista, mas que foram apropriadas de forma
privada; e não incrementar essa produção, mas, principalmente, socializar. Quanto mais
avançadas estiverem as forças produtivas do ponto de visto do capitalismo e desenvolvidas as
relação de produção, mais breve será o processo e mais consistentes, serão as instituições
desse momento de transição.
Sobre esta travessia, não se encontram nos escritos de Marx grandes informações e
não podia se encontrar na medida em que ele não havia conhecido nenhuma experiência. Em
virtude dessa deficiência, entre outras, o primeiro regime socialista que se instalou em 1917
enfrentou uma enorme dificuldade para superar essa questão (LUKÁCS, 2008). No Manifesto
de 1848 Marx e Engels chegam a enumerar alguns elementos que deveriam nortear, de forma
geral, a nova sociedade dominada pelos trabalhadores que teria como objetivo chegar ao
comunismo, uma sociedade sem opressão, onde os indivíduos teriam a oportunidade de
desenvolver suas potencialidades.
72
Entre as medidas gerais adotadas estariam a abolição da propriedade privada burguesa,
libertação da mulher como propriedade do homem, a construção de uma convivência entre as
nações sem a dominação de umas sobre outras. Estas medidas possibilitariam a direção de um
sistema democrático, sob a direção da classe operária.
Como ele previa que o processo de transformação revolucionária, visando ao
socialismo, se daria nas sociedades capitalistas avançadas, como Inglaterra, Estados Unidos,
etc., certamente esse processo não ofereceria grandes dificuldades. No entanto, é preciso
salientar que para Marx a revolução era um processo social, de construção complicada,
despida de qualquer forma de automatismos. O que fazia com que ele previsse o processo nos
paises mais desenvolvidos era o fato de que o capital e o trabalho haviam se estabelecido de
forma mais intrínseca e as tensões adquiriram mais consciência e mais maturidade.
Além disso, a socialização da produção se encontraria bastante adiantada e assim as
formas de apropriação e desapropriação, bem como o caminho para uma nova sociedade ia
sendo encontrado através de uma supremacia política da classe operária. Esta, uma força
hegemônica da grande maioria da população, não teria muitas dificuldades em dominar as
minorias ligadas às antigas formas de apropriação.
Assim, quase que naturalmente, empreenderia as mudanças através e no interesse
dessa maioria de forma verdadeiramente democrática, porque em nome da soberania
majoritária e popular. A própria forma de transição que ele previa, a qual chegou algumas
vezes a chamar de ditadura do proletariado não seria, pelo caráter breve, uma forma de
governo opressiva, conforme são as ditaduras de domínio da burguesia. Na visão de Marx,
este era um processo que ele visualizava, com alguma previsibilidade, tais eram, segundo ele,
evidentes, as pré-condições (KONDER, 1992). Porém, no dizer de Virgínia Fontes, que não
contradiz a posição de Leandro Konder, mas explicita melhor, para Marx,
O processo permanece histórico: a possibilidade não é mecânica
ou assegurada. Existe como tal, no próprio processo..., mas sua
realização depende da ação política. Na reflexão marxiana, é
central essa conexão entre estrutura e processo, entre o que é
dado... e o construído...entre o econômico...e o político. A
história não é apenas uma lógica (embora a contenha); também
não pode ser reduzida à vontade consciente dos indivíduos (mas
não pode dela prescindir) (FONTES, 1998, p. 166).
Marx previa a revolução socialista e a implantação de uma democracia nos países
capitalistas mais avançados, é claro. Porém, ele não abandonou a ideia da possibilidade da
revolução nos países cujo estágio de desenvolvimento capitalista fosse ainda precário. Ela
começaria nas regiões de condições mais favoráveis, porém o internacionalismo da classe
73
operária possibilitaria a expansão dela, de forma gradativa. A Alemanha, certamente, era sua
maior preocupação nesse sentido. Esta observação de Rosemberg, segundo nos parece,
conta dessa preocupação quando ele afirma que,
segundo Marx e Engels, a burguesia moderna tem a tarefa de
expulsar de toda parte os restos do atraso feudal, agrário e
pequeno-burguês. Em todas as lutas que a burguesia deve
empreender, não contra a nobreza feudal, a monarquia, a
Igreja, a burocracia, mas também contra o caráter limitado e
tradicional dos camponeses e da pequena burguesia, Marx e
Engels colocam-se incondicionalmente ao seu lado. A
burguesia representa o progresso social diante de tais inimigos.
Segundo Marx e Engels, todo país civilizado deve alcançar
primeiro a etapa do capitalismo e do domínio da burguesia
antes que se possam alcançar outros progressos. Naqueles locais
em que domina ainda o feudalismo, como na Alemanha, por
exemplo, os comunistas têm a tarefa de ajudar a burguesia na
conquista do poder. A revolução democrático-proletária
podia se seguir à burguesa, como um segundo ato do grande
desenvolvimento histórico (ROSEMBERG, 1986, p. 92).
Nesses casos ele previa, um processo concatenado, constituído por dois movimentos
diferentes: primeiro, um aprofundamento das conquistas democráticas até o limite, que ficou
conhecido como revolução democrático-burguesa, em que a hegemonia seria da burguesia; e
outro, logo em seguida, dirigido pela classe operária, que implantaria o socialismo. É o que
ficou conhecido como revolução permanente. Isso significa que, naquelas circunstâncias, de
uma Europa muito heterogênea, não era possível trabalhar com parâmetros idênticos para
todos os países.
O socialismo e o comunismo eram objetivos que ele colocava no horizonte das
possibilidades, até para poder raciocinar sobre os instrumentos e as estratégias sem fazer
generalizações muito abstratas, de tal forma que ele estabelecia diferenças muito aproximadas
entre uma parte da Europa Ocidental mais desenvolvida, em que era possível a transição para
o socialismo diretamente, realizada através de uma revolução proletária e para o leste, onde
predominavam ainda muitas das instituições do Antigo Regime. Nesses casos era dever da
classe operária, em primeiro lugar lutar por um processo democrático em aliança com a
burguesia, no sentido de aprofundar as contradições no sentido que Marx e Engels traçam no
Manifesto para, numa segunda etapa, realizar a revolução socialista.
Esta premissa baseia-se naquele fundamento que eles colocam na Ideologia Alemã
(MARX e ENGELS. 2000) de que a revolução socialista requer um grande desenvolvimento
das forças produtivas. O argumento da revolução permanente, de certa maneira, é retomado
74
pela III Internacional na sua estratégia revolucionária para os países ditos atrasados,
principalmente as ex-colônias.
2.2 Manifesto do Partido Comunista: a democracia e a fundação dos princípios
revolucionários
As posições de Marx e de Engels, principalmente do primeiro, encontram-se dispersas
numa quantidade muito grande de escritos, a maioria deles incompletos ou escritos de forma
descontínuos no tempo. Porém, o certo é que, ao contrário dos grandes teóricos liberais como
Montesquieu, que elaboraram concepções a respeito de democracia como se fossem
ensinamentos sobre algo definitivo, Marx procurou acompanhar o processo da história,
assumindo a posição de uma classe social, elaborando e reelaborando as suas concepções à
medida que o processo ia se desenvolvendo.
É evidente que essa perspectiva tornou difícil uma definição de democracia. Mesmo
num texto considerado de caráter universal como o Manifesto do Partido Comunista, no qual
eles consolidaram da maneira mais adequada e coerente possível uma teoria da política, não é
sem problemas que a questão da democracia é ali abordada. Marx e Engels trabalham com
alguns conceitos (tais como, a redução da história à luta de classes, a simplificação dos
antagonismos de classes no capitalismo e a concepção do Estado como um comitê da classe
dominante) que hoje, mesmo considerando o objetivo da obra e o seu caráter (que se distingue
das obras conjunturais ou históricas), temos que considerar que são problemáticos. Os limites,
que foram mencionados acima, podem ser constatados nas seguintes passagens do Manifesto
quando eles afirmam que
A história de todas as sociedades até agora tem sido a história
das lutas de classe” (MARX e ENGELS, 1998, p. 8); quando
eles afirmam também, na mesma página, que Nossa época
a época da burguesia caracteriza-se, contudo, por ter
simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade se
divide, cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em
duas classes diretamente opostas: a burguesia e o
proletariado.” Nesta mesma obra, na página 10, eles dizem o
seguinte: “O poder do Estado moderno não passa de um
comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa
como um todo.
Os próprios autores, tempos depois, não reconheceram esses limites como também
fizeram a autocrítica deles, de forma esquemática, que de certa maneira serviram de guia para
os marxistas que tiveram outras oportunidades e que tiveram a preocupação e o cuidado de
desenvolver os eixos fundamentais apresentados naquela obra. No prefácio à edição alemã de
75
1872, eles afirmam que “Os princípios gerais expostos neste Manifesto conservam, em seu
conjunto, toda a sua exatidão. Apenas alguns pontos deveriam ser retocados” (MARX e
ENGELS, 1977, p. 64).
Aqui eles se referem aos pontos do programa, mas admitem que a aplicação prática
dos princípios, dependerá das circunstâncias. Como as circunstâncias mudaram
profundamente, conforme advertira Engels em sua famosa Introdução ao livro de Marx,
cuja referência encontra-se na nota de de página número 6, eles sinalizam que ser marxista
é procurar articular sempre a teoria com o desenvolvimento da vida real dos homens.
Sobre esses prováveis limites podemos mencionar Carlos Nelson Coutinho que chega
a dizer que o Manifesto continua uma obra com grande atualidade, nas suas formulações mais
gerais e abstratas, porém,
quem quer ser marxista hoje não pode repetir mecanicamente o
que o Manifesto diz. Lukács observava, em 1923 que a
ortodoxia marxista se refere exclusivamente ao método, o que
implica, segundo ele, a possibilidade (ou mesmo a necessidade)
de se abandonar muitas das afirmações concretas de Marx e
Engels (COUTINHO, 1998, p. 58).
Lukács também chega a dizer que a afirmação de Marx e Engels no Manifesto de que
a história é o resultado da luta de classes é uma redução monumental. Ele inclusive descreve o
texto do Manifesto e admite que esta redução é, uma questão polêmica (LUKACS, 2008).
Com relação a essas questões, se comparando o texto do Manifesto com o 18
Brumário, percebemos que nesse último texto, a divisão da sociedade francesa aparece de
forma muito mais complexa, com a presença de vários segmentos, como a pequena burguesia,
o campesinato, até da burguesia dividida em vários setores, de acordo com as suas atividades.
Por outro lado, o Estado é um aparelho político muito mais sofisticado, onde o Executivo tem
um poder muito grande para arbitrar os conflitos, de encaminhar os projetos e representar a
nação com muito mais independência com relação às classes sociais. Existem alguns teóricos
marxistas importantes, como o Professor José Paulo Netto, que afirma ser a referência de
Marx no Manifesto apenas ao Poder Executivo e não ao conjunto do Estado com a sua
complexidade de poderes e de instituições. Na leitura que eu fiz, nos textos mencionados nas
referências, não consegui identificar essa distinção.
Claro que as duas obras são distintas e que têm objetivos completamente diferentes. O
Manifesto é um panfleto que se destina a orientar os movimentos revolucionários dos
trabalhadores a nível internacional. Ele tamm faz análises de longa duração sobre a
formação e o desenvolvimento de um modelo de sociedade cuja pretensão maior era traçar
76
diretrizes gerais para a sua substituição por um outro modelo, enquanto que o 18 Brumário era
uma obra conjuntural, produzida com a intenção de explicar como foi possível, numa época
de crise, as classes dominantes abrirem mão de grande parte de seus poderes em favor de um
indivíduo para evitar colocar em risco os aspectos fundamentais da sua dominação.
Nesse aspecto estamos de acordo. Estamos de acordo inclusive com a visão que eles
possuíam a respeito de revolução naquele período, como se ela fosse o resultado de um
confronto militar, em forma de guerra civil, como algo a ser decidido em curto espaço de
tempo. Isso era compreensível porque naquele momento as condições políticas eram muito
fechadas, quando os poderes legais proibiam não todas as formas de manifestação política
dos trabalhadores como também, as formas de organização livre, como sindicatos, partidos
políticos, etc., enfim, tudo que pudesse colocar em risco a estabilidade social vigente e a
governabilidade.
No entanto, achamos que aquelas afirmações ou eram desnecessárias, por serem muito
concretas para uma obra de caráter geral e com um grau de abstração muito grande, ou no
mínimo elas deveriam ter sido mais condicionadas. Compreendemos que as conceituações
foram produzidas em circunstâncias determinadas e o que se modificaram foram as
circunstâncias, as quais os autores não podiam prever a não ser como exercício de profecia.
Porém, as duas obras foram produzidas na mesma conjuntura e quem faz ciências
sociais, fica sempre vulnerável a algumas contestações ou críticas, mesmo quando se trata de
dois gênios, principalmente mais de um século e meio depois, quando suas obras,
principalmente as mais importantes, como o Manifesto, passaram pela avaliação crítica de
muitos outros grandes teóricos, como Lênin e Gramsci, que tiveram oportunidades de ver de
forma muito mais ampla.
Finalizando esse comentário não é irrelevante dizer que Marx tornou-se um clássico,
certamente o maior deles, cujas ideias atravessaram os tempos e permanecem vivas e
importantes até hoje. Porém, como todos os clássicos, possui muitos argumentos e
conceituações que são datados, que não podem ser repetidos sem as devidas críticas.
Apesar de todos os limites que se possa levantar e admitir, O Manifesto do Partido
Comunista de 1848 foi sem dúvida o grande texto de Marx a levantar a questão da democracia
e um dos mais importantes documentos que abrem perspectivas de análise, de debate e de
ação política sobre a modernidade; não porque faz um diagnóstico e uma crítica profunda
sobre o capitalismo, de forma sintética, como também aponta os caminhos de possibilidades
para a sua superação. Sua importância encontra-se, principalmente, pela grande divulgação e
pela grande influência que exerceu sobre muitas gerações de teóricos e militantes.
77
Elaborado e divulgado num momento crucial, quando um amplo movimento operário
se anunciava, em várias partes do continente, vindo na esteira de uma série de movimentos
conspirativos fracassados, como a Liga dos Justos na França, ele veio em forma de panfleto, e
em poucas páginas cumpre a sua tarefa que era indicar, para aquele movimento, as linhas
centrais de sua direção, com uma avaliação do desenvolvimento histórico do capitalismo e a
formulação de um programa mínimo geral que fosse inteligível para todas as situações
específicas.
Em poucas páginas, ele traça, de forma brilhante, os movimentos fundamentais
executados pela burguesia no sentido de estabelecer e consolidar os pilares de sustentação da
sociedade moderna, dividida em duas classes fundamentais que, através de um processo
revolucionário, destruiu todas as barreiras e limitações do mundo feudal e construiu uma
concepção de mundo diferente, baseada no indivíduo, em seus interesses e seus direitos.
Aliás, rigorosamente, o capitalismo foi a primeira sociedade na história dividida em classes.
Foi a partir desse texto que a questão democrática adquiriu uma dimensão forte,
mesmo tendo sido produzido e divulgado num período carente de instituições consideradas
democráticas. Neste momento, os trabalhadores de vários países da Europa se preparavam
para uma série de manifestações e de movimentos contra uma ordem que se estabeleceu na
Europa após a grande Revolução Francesa. Esta nova ordem, liderada pelas grandes potências
conservadoras da Europa (Áustria, Prússia e Rússia), que depois receberam o apoio da
Inglaterra, tinha como objetivo evitar os avanços das conquistas liberais e, sobretudo, o
aprofundamento dessas conquistas que podiam degenerar em algo que pudesse fugir do
controle das classes dominantes.
Ao lado dessa onda conservadora a situação foi profundamente agravada com a crise
econômica do capitalismo, tendo como centro a Inglaterra, crise esta caracterizada pela
superprodução que provocou uma enorme quantidade de falências no parque produtivo
levando uma quantidade enorme de trabalhadores ao desemprego e à miséria. Assim,
pressionados por um lado pelo conservadorismo, resíduo do Antigo Regime e pela crise do
novo regime, os trabalhadores não tinham alternativa. Tiveram que enfrentar a situação e o
Manifesto veio de encontro a esta necessidade. A reação foi violenta e os grupos dominantes
saíram vencedores. No fundo, o que eles mais temiam era o desdobramento dos movimentos
populares que circunstancialmente eles tinham conseguido deter. Carlos Nelson faz um
comentário sobre esse assunto, que consideramos pertinente:
Marx e Engels elaboraram sua teoria política anterior a 1848 em
estreita interlocução com a problemática da democracia,
78
particularmente em sua versão rousseauniana. Eles estavam e
continuaram convencidos de que a revolução comunista que
defendiam representava a oportunidade de levar a cabo as
promessas democráticas que a Grande Revolução Francesa e,
de modo geral, as revoluções burguesas dos séculos XVII e
XVIII haviam enunciado, mas não cumprido. A emancipação
política (que é como Marx define os resultados da Revolução
Francesa em A questão judaica) devia ser completada e não
abandonada pelo que, ainda sob inspiração de Feuerbach, ele
chamava então de ‘emancipação humana’. Essa emancipação
recebe no Manifesto, como ocorrera em textos anteriores, o
claro nome de ‘comunismo’ (COUTINHO, 1998, p.55).
O Manifesto, mesmo sendo uma obra muito sintética, é, segundo o ponto de vista de
uma quantidade muito grande de analistas, uma obra fundamental no que diz respeito à
questão da democracia. Ele acenava com as possibilidades da mudança e estimulava os
trabalhadores para a ação em busca dos direitos, da legitimidade das contestações e da livre
organização como elemento essencial para que a independência fosse possível e a exploração
não continuasse a ser tratada como natural. Além disso, ele estabelece algumas linhas que
devem caracterizar as formas de transição das democracias então vigentes, para uma
democracia sob a hegemonia dos trabalhadores. Nisso estava o cerne da questão democrática,
na medida em que estes formam a grande maioria da população e que se apropriaria dos
instrumentos de centralização do poder no sentido de desapropriar a classe dominante, mas
uma vez realizada essa tarefa procuraria diluir esses instrumentos. O Manifesto é, portanto,
um instrumento de luta da classe operária no sentido de orientá-la num processo de forma
completamente diferente daqueles que foram desenvolvidos nas revoluções burguesas porque
neste, eles não devem ser apenas coadjuvantes. Agora, não ela participa de forma
independente, como também possui a direção, com a qual ela tem a possibilidade de
aprofundar e estender as ações de transformação para todos os aspectos da sociedade,
sobretudo para aqueles que são vitais, que são os relacionados à forma de funcionamento das
atividades econômicas bem como suas formas de apropriação.
Mesmo o texto apontando para uma transformação capitaneada por uma classe social,
e não se referindo ou dando importância muito secundária a outros setores populares, como os
camponeses e grupos de camadas médias urbanas, é notório que Marx, em grande parte dos
seus escritos, sobretudo nas obras conjunturais como o 18 Brumário e as Lutas de Classes na
França, não assinala a importância de alianças como aponta para uma ampla expansão dos
movimentos para evitar que a classe operária fique isolada num confronto decisivo com as
classes dominantes. Se houve um afastamento, ou mesmo confrontos, foi mais em função da
79
vacilação ou do oportunismo dos chamados pequeno-burgueses que muitas vezes preferiram
ficar ao lado das classes dominantes, do que do proletariado.
De qualquer maneira, pela própria precariedade da organização popular, sobretudo dos
setores ligados ao campo e às camadas médias urbanas, é o suficiente para justificar o
quanto era difícil a composição de alianças no século XIX. Além disso, conforme a própria
expressão do Manifesto era a classe operária a única que tinha possibilidades de adquirir uma
consciência que ficasse acima de seus interesses. Para ele, as outras, principalmente os
camponeses, que ficavam dispersas numa quantidade muito grande de unidades produtivas,
sem grau significativo de socialização, a participação na política para elas podia ser
secundária. Suas atividades não lhes proporcionavam qualquer possibilidade de autonomia
com relação a qualquer projeto de futuro.
Mesmo assim, para Marx e Engels, a classe operária não possuía qualquer tipo de
arrogância ou prepotência na ação política com relação aos seus possíveis aliados. Para ele a
classe operária não tinha uma missão messiânica. Pelo contrário, a conquista da democracia
seria o resultado de um amplo movimento a partir do qual a classe operária, pela sua posição
na estrutura da sociedade, possuía uma possibilidade maior de mobilização. No Manifesto,
porém, os autores não podiam descer muito a detalhes de situações concretas.
Em suma, a posição democrática de Marx no manifesto é inquestionável, mesmo se
considerando as dificuldades que a classe operária possuía no sentido de ampliar tanto o seu
movimento como principalmente a possibilidade de estabelecer alianças. Esta dificuldade
começava na própria condição objetiva de cada uma delas. Para começar,a classe operária,
rigorosamente, era completamente desprovida de meios de produção, enquanto que todas as
outras de alguma maneira eram proprietárias, inclusive os camponeses.
Além disso, o operariado era quem, pelas condições de trabalho e pelo tipo de relações
que possuíam com a burguesia, tinham a possibilidade de incorporar como sua uma nova
visão de sociedade capaz de romper com o particularismo das sociedades anteriores,
principalmente com a consciência histórica que se consolidou com o desenvolvimento do
capitalismo.
Isso se explica pelo seguinte: os capitalistas, que vivem numa constante e crescente
concorrência entre eles, em disputa pelos mercados, precisam produzir cada vez mais
mercadorias e a preços cada vez mais competitivos. Para isso, precisam aumentar sua taxa de
mais-valia para acelerar seu processo de acumulação e de investimentos. Com a exploração da
mão-de-obra que, pela forma absoluta encontra limites tanto na própria capacidade física dos
trabalhadores como nos limites legais estabelecidos a partir da resistência organizada destes
80
–, os capitalistas procuram outro caminho: a renovação das formas tecnológicas e sua
aplicação na produção que se manifesta na introdução de máquinas cada vez mais sofisticadas
que permitem não potenciar a produção, como tamm aumentar a taxa de lucro e tentar
levar vantagem na concorrência perante o mercado.
Esta atitude que se inicia num determinado setor força, em seguida, todos os outros a
acompanharem a corrida até o fim para recomeçar tudo de novo. Ele faz com que todos eles,
em graus e em proporções variadas, revolucionem constantemente suas forças produtivas.
Aqueles que fraquejam e perdem força são absorvidos pelos mais competitivos. Este
comportamento que distingue o capitalismo de todas as fases anteriores da História
possibilitou não uma metamorfose muito grande no sistema de produção, a partir da fusão
do capital industrial com o capital financeiro como também provocou uma competição
gigantesca entre as grandes potências, seguida de uma expansão extraeuropeia e conflitos
cada vez mais amplos e acirrados entre elas até provocar conflitos mundiais.
Este processo de desenvolvimento das condições materiais e de todos os
instrumentos institucionais a elas ligadas –, permitiu e facilitou a vitória do sistema capitalista
sobre todos os sistemas anteriores, sem contar a fase de acumulação de capitais. Porém, ao
capitanear esse movimento grandioso, que adquiriu dimensões globais, a burguesia
possibilitou a formação e o crescimento de uma força contrária, a classe operária, com as
condições e características que foram descritas. Isto é, grande parte dos produtores do antigo
regime feudal foi inviabilizada, como produtores independentes, e portanto, incapaz de
conseguir sua sobrevivência, a não ser se apresentando como homens disponíveis perante o
mercado.
Estes homens, porém, vão ocupar uma posição na estrutura da sociedade capitalista
que desde o início vão ter interesses diametralmente opostos aos capitalistas. Além disso,
pelas suas próprias condições de trabalho e pela forma de relações que possuem perante o
conjunto da sociedade, ocupam uma posição estratégica que lhes permite visualizar, mesmo
de forma empírica, saídas com relação ao futuro. Esta posição e esta possibilidade é o que
permite Marx afirmar, com toda autoridade, que
As armas com as quais a burguesia abateu o feudalismo se
voltam agora contra ela mesma. Mas a burguesia não forjou
apenas as armas que a levarão à morte; produziu também os
homens que usarão essas armas: os trabalhadores modernos, os
proletários. Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do
capital, desenvolveu-se também o proletariado, a classe dos
trabalhadores modernos, que sobrevivem se encontram
trabalho, e encontram trabalho, se este incrementa o capital.
Esses trabalhadores, que são forçados a se vender diariamente,
81
constituem uma mercadoria como outra qualquer, por isso
exposta a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as
turbulências do mercado (MARX, 1998, p. 14).
Assim, a classe operária, que nasce e cresce na correnteza do sistema, tende a
aumentar cada vez mais, com relação às outras classes sociais. Pelo menos isso é verdade
incontestável enquanto predomina o sistema fabril. Todas as outras tendem a encolher.
Enquanto a burguesia vai passando progressivamente por um processo de seleção, em virtude
da competição e da concentração do capital e das empresas, as outras classes, ligadas às
atividades anteriores, como os aristocratas, os camponeses e os artesãos, sofrem um processo
de degradação e absorção pelas atividades capitalistas. Em virtude disso perdem, de forma
significativa, suas referências e passam a gravitar entre posições bastante contraditórias com
relação ao desenvolvimento.
Assim, ao perderem as suas bandeiras procuram se articular com objetivos das classes
consideradas fundamentais. Podemos considerar, acompanhando Marx, que “De todas as
classes que hoje se contrapõem à burguesia, o proletariado constitui uma classe
verdadeiramente revolucionária. Todas as demais se arruínam e desaparecem com a grande
indústria; o proletariado, ao contrário, é seu produto mais autêntico” (MARX, 1998, p. 18).
A classe operária, que não nasceu e cresceu por sua própria opção, como a burguesia
que foi escalando degraus cada vez mais altos, a partir de ações cada vez mais ousadas, ao
contrário, se formou a partir de um processo violento, à revelia da sua vontade. Foi vítima de
estrangulamentos na ordem anterior que culminou com a desapropriação de amplos setores da
população que foram obrigados a se vender no mercado.
Neste processo, não foi dado, a ninguém, nem mesmo à burguesia, a oportunidade de
escolhas coletivas e conscientes a respeito do futuro. Os homens agiam em cima das
circunstâncias e das oportunidades, cada qual em defesa de interesses geralmente imediatos e
individuais. Por isso, revelou-se sempre um equívoco, qualquer interpretação ideológica de
qualquer natureza que tivesse como objetivo um apelo sentimental ou religioso que escapasse
a uma visão materialista.
Por isso, Marx percebeu que os operários não tinham alternativas que pudessem
reproduzir as transformações das sociedades anteriores, onde as classes dominantes de um
sistema que se formava nas entranhas do sistema anterior se apropriavam dos mecanismos de
dominação e passavam a conduzir o processo de acordo com seus interesses específicos. Sua
missão é promover uma mudança radical e procurar construir algo novo. Com relação a esse
comportamento Marx diz o seguinte: “Todos os movimentos precedentes foram movimentos
82
de minorias ou de interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo
da imensa maioria no interesse da imensa maioria. O proletariado, a camada mais inferior
da sociedade atual, não pode levantar-se, colocar-se de pé, sem mandar pelos ares todas as
camadas superpostas que constituem a sociedade oficial” (MARX, 1998, p. 19).
Este projeto tem que ser forjado a partir de linhas e diretrizes muito precárias que
aos poucos podem ir adquirindo uma forma que conta das expectativas e das necessidades
da grande maioria da população. Assim, Marx diz: “Os proletários só podem se apoderar das
forças produtivas sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por
conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu
para salvaguardar; eles têm que destruir todas as seguranças e todas as garantias da
propriedade privada até aqui existentes” (MARX, 1998, p.19).
Quando Marx afirma que todos os movimentos anteriores foram de minorias é porque
todas as transformações que ocorreram nas sociedades anteriores foram com o objetivo de
deslocar uma determinada classe de interesses específicos para substituí-los por outros. O
objetivo era apenas afastar os entraves existentes ao desenvolvimento das forças produtivas e
assumir o comando das ações políticas.
Esta ideia fica clara quando ele traça a história, no prefácio de sua Contribuição à
Crítica da Economia Política de 1859, (MARX, 1999) como uma sucessão de modos de
produção, tendo o capitalismo como a última etapa dessa trajetória onde, a partir daí, se abre a
possibilidade para uma outra realidade, ou seja, para sociedades sem divisão de classes e,
portanto, para uma nova história. Antes disso haveria um processo de transição, em que os
proletários só podem se constituir em classe dominante destruindo todos os interesses
particulares até então consolidados.
Este não é ainda um regime sem opressão porque os trabalhadores necessitam ainda de
algum grau de institucionalidade para poder impor, perante as resistências residuais, uma
verdadeira democracia. Assim, ele diz que “O que caracteriza o comunismo não é a
supressão da propriedade em si, mas a supressão da propriedade burguesa. Porém, a
propriedade burguesa moderna constitui a última e mais completa expressão do modo de
produção e propriedade baseado em antagonismos de classes, na exploração de uma classe
por outra” (MARX, 1998, p. 21).
Com relação a essa nova sociedade ele não oferece maiores informações e nem
poderia fazê-lo, a não ser como exercício de profecia, o que não constituía em nada o seu
estilo. Porém, por algumas linhas gerais traçadas sobre o comunismo, ele abre um amplo
espaço para que grande parte dos analistas, inclusive de esquerda e de grande respeitabilidade
83
como José Luis Fiori e até o Leandro Konder identifiquem, nas suas formulações, traços
muito acentuados do evolucionismo predominante no século XIX.
Com relação ao comunismo, fica patente que ele não se aventura a fazer formulações
mais ousadas e nem a fazer considerações mais detalhadas a respeito da sociedade no futuro.
Ele não era dado a esse comportamento. No entanto, ao considerar que o capitalismo era a
última fase das sociedades de classes e que em seguida viria uma sociedade sem classes e sem
opressão, ele foi obrigado a colocar algo diverso no lugar, mesmo que fosse de forma
esquemática. Foi o que ele fez.
Para isso, Marx fez apenas um desenho com alguns traços. Porém, mesmo esses traços
muito leves, são suficientes para provocar algumas preocupações e algumas dúvidas. Por
exemplo, considerando toda a história pregressa dos homens, mesmo que queiramos
considerar (e queremos) que os homens podem construir uma sociedade completamente
diferente desta, caracterizada pelos horrores do capitalismo, é muito difícil imaginar como
pode ocorrer uma mudança tão radical que transforme homens competitivos e individualistas
em pessoas que possam partir daqui para uma sociedade constituída por uma livre associação
onde todos os antagonismos e toda a luta pelo poder e pelo prestígio, desapareçam, mesmo se
considerando uma fase de transição.
É importante ainda considerar que Marx via a revolução para muito próximo, e essa
transição como algo relativamente breve. Por mais que queiramos ver essas possibilidades
todas (e elas são pertinentes), fica um pouco difícil não enxergar alguma influência do
romantismo que rondava as cabeças, por mais brilhantes e realistas que elas fossem,
principalmente durante a segunda metade do século XIX. Apesar de todas essas dúvidas,
consideramos que os princípios de caráter geral que foram traçados no Manifesto continuam
ainda muito importantes, para orientar as forças progressistas no sentido não da construção
de um programa que seja o mais unitário possível, como também e principalmente continuam
desafiando os trabalhadores para a ação política, como único caminho para livrar a
humanidade da catástrofe, ou da barbárie.
84
CAPÍTULO 3
O Estado como instrumento de poder e o socialismo
Neste terceiro capítulo abordaremos duas questões que consideramos muito
importantes para melhorar o entendimento da questão central: a democracia em Marx. Uma
diz respeito ao problema do Estado; outra, à questão do socialismo no século XX.
Com relação ao Estado, achamos que sua importância reside no fato de que, para
Marx, ele seria o instrumento principal que a classe operária utilizaria para desapropriar a
burguesia dos bens de produção. Nesse sentido, o proletariado, ao tornar-se força hegemônica,
precisaria de um instrumento político para realizar essa tarefa e socializar essas riquezas.
Para ele, uma vez realizada essa tarefa, o Estado paulatinamente perderia suas funções,
que sempre foram no essencial coercitivas e seria diluído. Portanto, para Marx, mesmo o
Estado sendo considerado importante, ele teria uma função instrumental. Nesse caso ele nem
poderia ter sentido e nem ter explicação nele mesmo e sim na estrutura econômica da
sociedade (MARX e ENGELS, 2009-b).
Com relação ao socialismo, que teve presença muito marcante na história do século
XX, não apenas como projeto, mas como uma realidade, com todas as complicações que
possa ter apresentado, não compete aos marxistas, deixar de fazer um balanço, por mais
sumário que seja. Afinal, foi baseado nas idéias de Marx que eles se ergueram e se
desenvolveram. Achamos, ao contrário, que além de discutir essa questão, os marxistas têm
obrigação de travar, como também colocar em discussão, a questão do comunismo. A
porque, Segundo Leandro Konder, o comunismo concebido como horizonte ajuda os
socialistas de filiação marxista a se orientarem nas lutas políticas que precisam ser travadas
em profundidade em longo prazo” (KONDER, 2009-a, p.194).
3.1 O Estado e a questão democrática em Marx
Nesses tempos de globalização, quando grande parte das atividades se
universalizaram, e todas as regiões do globo foram incorporadas ao mercado, tornou-se moda
dizer que os antigos Estados nacionais, que se consolidaram a partir do século XVI, tornaram-
se peças anacrônicas.
Essa nova dinâmica, puxada por grandes transformações tecnológicas e pela grande
concentração financeira, impulsionou de tal maneira as atividades econômicas que tem sido
lugar comum dizer que tanto as fronteiras dos Estados nacionais como as alternativas dos
85
governantes locais tornaram-se praticamente inviáveis. Esta posição tem sido sustentada pelos
liberais, convencidos de que o mercado sempre foi mais eficiente do que qualquer
instrumento de regulação.
Marx foi um dos primeiros a enfrentar o debate sobre a questão do Estado,
apresentando uma tendência forte para uma defesa dos interesses populares. Portanto, as
suas formulações partem de uma forte crítica à situação existente.
Ele não trabalhava ainda com uma perspectiva de luta de classes que apresentasse uma
alternativa radical. Suas formulações eram as de um democrata, humanista, influenciado ainda
pelas ideias de Rousseau e pelos exemplos da República Jacobina da Revolução Francesa. Ele
estava preocupado com as condições miseráveis dos pobres perante a prepotência das classes
dominantes de então. Nesse caso, mesmo ele ainda não sendo comunista, enfrentou o debate
fazendo pesadas críticas às formulações anteriores que tentavam apresentar o Estado e
consequentemente a legislação vigente como elementos que representassem a universalidade.
Para ele, nessa questão, o Estado não era neutro e sua burocracia, como dizia Hegel, não era a
representação da vontade geral acima dos interesses corporativos. Ela própria era uma
corporação, com seus próprios interesses. Assim, é exatamente com o objetivo de enfrentar
essas posições de Hegel que Marx inicia suas pesquisas e sua atuação política. Não é
irrelevante dizer, que sua visão sobre o Estado começa com uma forte crítica sobre a questão
do direito, quando ele assume a defesa dos camponeses do Vale do Mosela sobre a exploração
das terras consideradas públicas ou comuns para fins de extração de lenha.
É exatamente nesse momento que Marx identifica o poder do Estado com os interesses
das classes proprietárias. Assim,“O ponto central da crítica de Marx consiste em demonstrar
que o Estado é apenas um aspecto da sociedade civil, a qual compreende todo o complexo
das relações materiais entre os indivíduos dentro de um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas” (HOBSBAWM, 1983, p. 305).
Porém, ele foi também um dos pioneiros no tipo de abordagem que leva a questão da
globalização em consideração, evidentemente com outra lógica. Segundo a sua visão da luta
de classes, o capitalismo tendia cada vez mais a tomar uma dimensão internacional.
Ele faz, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista, uma belíssima descrição do
avanço das forças produtivas, dirigidas pela burguesia que, em sua luta, constrói uma nova
realidade, baseada no modo de produção capitalista. Na sua perseguição e necessidade de
revolucionar constantemente as forças produtivas e ampliar o mercado, avança cada vez mais
sobre as fronteiras dos Estados nacionais e aos poucos vai construindo uma nova ordem cuja
86
tendência é a globalização das atividades econômicas, formando uma espécie de um mercado
mundial onde os limites territoriais perderiam a sua importância.
Não é novidade que, para Marx, o Estado, como elemento político e, portanto,
instrumento de opressão, conforme ele se estruturou desde o aparecimento da propriedade
privada, foi sempre um instrumento das classes dominantes. Em cima da avaliação feita por
Marx, em que o Estado é, prioritariamente, uma máquina de opressão, queremos destacar que,
olhando para o Estado que posteriormente se desenvolveu, sobretudo a partir dos grandes
conflitos mundiais do século XX, da grande crise da década de 1930 e do aparecimento e
desenvolvimento de políticas intervencionistas como o chamado Estado do bem-estar social e
dos Estados fascistas, esta interpretação nos parece, hoje, insuficiente. Isto porque ele passou
a cumprir tarefas amplamente socializadas e assumir compromissos éticos, atitudes que no
período de Marx eram inexistentes.
Um aspecto que mais marcou a visão de Marx sobre a questão do Estado foi aquele
que o identifica como um instrumento de classe, mais exatamente um instrumento das classes
dominantes para, através dele, consolidar ao nível da política um poder que conquistaram na
estrutura econômica. Na sociedade moderna, portanto, quando a propriedade se desvinculou
completamente dos laços de compromissos tanto com relação à comunidade quanto com
relação às tradições e aos compromissos de dependências pessoais, assumindo a sua
verdadeira plenitude, o Estado assumiu um caráter de certa independência, como se ele de
fato fosse algo à parte, com funcionamento dirigido exclusivamente para a questão do poder.
Para Marx e Engels o Estado assumia de fato uma aparência que era completamente
diferente da sua vida real, na medida em que, dentro da generalidade o que predominava,
concretamente, eram os interesses particulares. Assim, podemos dizer que para eles o Estado
moderno conseguiu consolidar suas estruturas de dominação quando o poder econômico
cruzou com o poder político e articulou os interesses aparentemente gerais do Estado com os
interesses particulares dos grandes capitalistas que passaram a utilizar grande parte das suas
finanças no financiamento das operações do Estado, quer seja para financiar os déficits
públicos, quer seja para financiar as guerras e as disputas internas e externas.
No centro do poder estava, evidentemente, a defesa da propriedade privada, conforme
se estabeleceu no processo de acumulação capitalista. Assim,
A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado
moderno, o qual, gradualmente, por meio dos impostos, foi
adquirido pelos proprietários privados e, por meio das dívidas
públicas, ficou completamente à mercê destes, e cuja existência,
nas subidas e quedas dos papéis do Estado na Bolsa, ficou
totalmente dependente do crédito comercial que os proprietários
87
privados, os burgueses, lhe concedem. Porque é uma classe, a
burguesia é obrigada, desde cedo, a organizar-se nacionalmente
e a dar, ao seu interesse médio, uma forma geral. Pela
emancipação da propriedade privada em relação à comunidade,
o Estado adquiriu uma existência particular a par, e fora da
sociedade civil; mas ele nada mais é que a forma de
organização que os burgueses se dão, tanto externa quanto
internamente, para garantia mútua da sua propriedade e dos
seus interesses (MARX e ENGELS, 2009 p. 111-112).
De todas as formas como o Estado foi tratado até agora, a forma que foi abordada no
Manifesto foi a que ficou mais em evidência tanto pelos próprios marxistas como para os
adversários. Olhando-se para algumas formas de comportamento do Estado em alguns
momentos cruciais da História, esta conclusão se aproxima muito da seguinte lógica: nos
momentos cruciais, de conflitos ou quando estão em jogo questões importantes não resta a
menor dúvida de que o Estado tem sempre se colocado a favor das classes dominantes.
No início do desenvolvimento do capitalismo, quando grande parte das pessoas foi
desapropriada de seus bens, muitas delas tornaram-se vagabundos, salteadores de estradas,
enfim, pessoas completamente desvinculadas do sistema produtivo. Este comportamento
provocou certa carência de mão-de-obra e consequentemente uma maior valorização do
trabalho além de uma instabilidade social que perturbava a tranquilidade dos negócios. Logo,
para suprir essas carências e favorecer a burguesia com uma mão-de-obra abundante, o Estado
entrou em ação. “Daí ter surgido em toda a Europa Ocidental no final do século XV e
durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os
ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação,
que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers” (MARX, 1985-b, p 275).
Esta legislação, que começa com Henrique VII, se aperfeiçoa cada vez mais, à medida
que as atividades capitalistas e o Estado se articula de forma mais estreita com os homens de
negócios. A partir desse momento, o Estado mostra de forma mais cristalina sua posição de
classe e assume de forma mais veemente a defesa de um tipo de acumulação e de um tipo de
propriedade.
Marx, nessa mesma obra diz o seguinte sobre o assunto: “Assim, o povo do campo,
tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformados em
vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária ao
sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura”
(MARX, 1985-b 277).
No modo de produção capitalista a relação entre os proprietários dos meios de
produção e os trabalhadores aparece perante o mercado como uma relação de pessoas iguais
88
porque ambos são proprietários de mercadorias. Lógico que estas relações são intermediadas
pelo Estado, que sempre procurou equilibrar e justificar seu poder por alguma forma de
direito.
Os direitos fundamentais que foram consolidados nas constituições dos Estados
modernos foram elaborados a partir das revoluções burguesas. Isso quer dizer que, nas
sociedades contemporâneas, à medida que as sociedades foram se tornando cada vez mais
diversificadas, com os interesses de classes cada vez mais diversos, o Estado foi obrigado a
assumir funções sociais cada vez mais significativas, com uma forte interferência não nas
atividades econômicas como também funções de prestação de serviços públicos, assumindo,
portanto, uma nova postura que de certa maneira mistifica e esconde sua posição de classe,
como se fosse verdadeiramente um defensor da ética social acima dos interesses egoístas.
É como se ele tivesse abandonado as suas funções repressivas e assumido outra
postura moral, como defensor da legalidade imparcial. Porém, somente o Estado socialista
pode e deve ser um Estado ético na medida em que o seu fundamento se situe na auto-
regulação social e na expressão da máxima universalidade possível. (...) Teoricamente o
desenvolvimento moral do Estado capitalista pode ser infinito. Mas na realidade prática este
desenvolvimento moral encontra seu limite na força” (FORNAZIERI, 1988, p.61).
Com relação a esta questão, diferentemente dos sistemas anteriores de apropriação, em
que o processo de exploração se realizava de forma predominante pela força, por instrumentos
extra-econômicos, no capitalismo a extração do excedente se faz por via puramente
econômica, na medida em que as trocas têm uma aparência de coisas equivalentes, e tanto
para uns como outros estas relações aparecem como “naturais”, entre homens livres, que
espontaneamente se dirigem ao mercado para realizar as negociações de acordo com seus
interesses.
Por isso, é que o Estado pode se apresentar, formalmente, como um instrumento
neutro, norteado através de princípios e leis iguais para todos. Esta aparência, hoje, tornou-se
muito mais convincente do que no tempo de Marx, na medida em que ele hoje possui uma
estrutura muito mais complexa, intermediando conflitos muito mais diversos e ficando cada
vez mais deslocado de interesses específicos e regionais para fazer uma representação muito
mais abrangente.
Ele agora é o instrumento de planejamento mais global, que tem uma autonomia para
estabelecer prioridades e distribuir recursos. Os seus empreendimentos atingem parcelas cada
vez mais significativas da população através do atendimento de atividades públicas, como
saúde, educação, previdência, etc., cujas ações fogem ao controle e muitas vezes até
89
contrariam os interesses de alguns grupos de interesses. Ele é hoje um Estado muito distante
daquele que Marx e Engels definiram no Manifesto de 1848. Entretanto, seu recurso mais
eficiente, em última instância, ainda é a força.
É importante sinalizar que um momento em que Marx uma grande atenção ao
Estado, como instrumento político muito eficiente, é durante o processo de acumulação
primitiva quando ele é utilizado de forma eficiente e violenta contra todos os obstáculos ao
processo de acumulação de capitais, possibilitando a incorporação de todas as regiões do
globo ao mercado europeu e que culmina com a completa desapropriação dos trabalhadores e
a incorporação forçada destes ao mercado capitalista. Marx, portanto, destaca a importância
do Estado no processo de acumulação primitiva, como força concentrada de representação da
sociedade, porém, em defesa dos interesses da expansão do capital e da viabilização dos
fatores econômicos indispensáveis à acumulação de capitais.
Esta visão levemente exposta acima nos permite fazer uma comparação entre dois
teóricos de posições ideológicas completamente opostas: Adam Smith e Marx. Entretanto,
nesse aspecto podemos ver certa semelhança entre ambos. Para eles, a questão da acumulação
era algo que ultrapassava as fronteiras mais variadas. Ela era derivada da atividade dos
homens poderosos que dominavam os aparelhos do Estado, é verdade, porém as fronteiras
geográficas eram irrelevantes. Para Marx, a referência maior era a luta de classes, isto é, no
capitalismo, à medida em que a burguesia fosse avançando com suas atividades, ia
atropelando as fronteiras nacionais; enquanto que para Adam Smith a questão se encontrava
na capacidade e na eficiência no jogo do livre mercado.
Podemos dizer, portanto, que o entendimento da contribuição proporcionada pela
afirmação do poder político e pela sua necessidade constante de permanecer sempre atento, de
estar se preparando ou fazendo guerra sempre, segundo Maquiavel, é fundamental para se
compreender o avanço de todo aquele processo de desenvolvimento das forças produtivas tão
bem descrito por Marx. Aquele foi um movimento que deslanchou e desencadeou vários
processos concomitantes, esculpindo um formato de sociedade que passou a se chamar Idade
Moderna.
Tal processo teve a participação decisiva do Estado, único elemento capaz e com
poder para estabelecer fronteiras geográficas, mobilizar recursos a nível nacional, impor
sanções disciplinares com base numa legislação representativa, cunhar moeda, fazer a guerra
e firmar a paz em nome da nação. Em suma, o Estado possui uma força concentrada. Ele
adquiriu a sua forma e se fortaleceu quando o poder se encontrou com as grandes correntes do
poder econômico, formando um bloco e uma força em expansão poderosa.
90
Nesse processo, um elemento que contribuiu de forma significativa para o
fortalecimento dos Estados foram as guerras. Para isso não é irrelevante a sucessão de nações
que Marx descreveu desde o início da expansão colonial dos tempos modernos, quando as
nações, as potências da Europa ocidental na medida em que iam consolidando sua
centralização política e sua estrutura econômica, partiam para uma disputa de conquistas, em
que o instrumento mais eficaz era a força do Estado, capaz de impor às demais uma
hegemonia numa divisão internacional que se tornava mais acirrada.
Assim, segundo Marx,
os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se
então, mais ou menos em ordem cronológica, a saber pela
Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra,
em fins do século XVII, são resumidos sistematicamente no
sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno
sistema tributário e no sistema protecionista. Esses métodos
baseiam-se, em parte, sobre a mais brutal violência, por
exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder
do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade,
para ativar artificialmente o processo de transformação do
modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a
transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que
está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica
(MARX, 1985-b, p. 285:286).
Outro momento em que o Estado deve adquirir também uma grande importância é,
segundo a visão de Marx, o período de transição do capitalismo para o socialismo. Nesse
momento, assim como também no momento anterior, o Estado deve ser utilizado pela classe
operária não mais para impor um domínio sobre outras regiões, outros povos ou outras classes
sociais, mas sim como instrumento de democratização da sociedade, na medida em que ela
vai utilizar os instrumentos do Estado para eliminar os instrumentos de opressão da burguesia
e os mecanismos de exploração que tem seus fundamentos na existência da propriedade
privada e no trabalho alienado.
Porém, mesmo considerando o Estado como instrumento de poder, capaz de mobilizar
recursos imensos e ser um instrumento importante para a consolidação da sociedade moderna,
para ele a política era um dos aspectos de uma estrutura social que possuía vários níveis
interligados, de tal forma que nada podia ser considerado de forma isolada, com
funcionamento completamente autônomo. Pelo contrário, todos os fatos e alterações que
ocorriam diziam respeito a todos os aspectos porque todos eles formavam uma estrutura
social. É evidente que a política, no seu aspecto mais geral não se confunde, com os aparelhos
do Estado. Este é uma máquina constituída de mecanismos vários e instituições diversas que
91
foram se diversificando e se aperfeiçoando à medida que o capitalismo foi se tornando mais
complexo.
Assim, a partir da estrutura social como um todo era possível encontrar o caminho
para se compreender o que ele entendia como Estado. Este se define como órgão de ação
política, como instrumento de interesses e como tal, não podia ser compreendido nele mesmo.
Sua explicação encontrava-se noutra esfera, nas relações materiais, que era o fundamento de
todas as instituições. Ele diz que “Minha investigação desembocou no seguinte resultado:
relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir
de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano,
mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi
resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’” (MARX, 1999, p. 51).
No entanto, se para Marx o Estado é uma instituição que não se explica por si mesma,
isto não significa dizer que ele não tenha importância para a questão da democracia. Afinal,
são dois elementos que sempre estiveram intimamente ligados. Aliás, desde os antigos,
quando os primeiros sistemas democráticos se organizaram, sobretudo em Atenas, o fizeram
em função de uma organização da sociedade em que as formas de administração da coisa
pública fossem a referência.
Em suma, o que estava em jogo, era o seguinte: o governo deve ser exercido por um,
por poucos ou por muitos? Desde aquela época, havia uma forte discussão, sendo que os
grandes pensadores, geralmente, colocavam a democracia como um regime arriscado,
perigoso, porque responsabilidades imensas ficariam nas mãos de uma multidão, sem o menor
preparo intelectual e sem o menor discernimento sobre o que significaria governar. Para
aqueles pensadores, incluindo Platão e Aristóteles, a questão do poder, dirigido dessa
maneira, se transformaria em algo extremamente complicado, mesmo o regime sendo
constituído apenas por cidadãos. Não é puramente circunstancial que a democracia, na
Antiguidade, tenha durado tão pouco tempo e mesmo assim num território bastante limitado.
Para Bobbio,
das cinco formas de governo descritas por Platão na República,
aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia e tirania,
uma delas, a aristocracia, é boa. Da Democracia se diz que
nasce quando os pobres, após haverem conquistado a vitória,
matam alguns adversários, mandam outros para o exílio e
dividem com os remanescentes, em condições paritárias, o
governo e os cargos públicos, sendo estes determinados, na
maioria das vezes, pelo sorteio e é caracterizada pela licença
(BOBBIO, 1999, p. 320).
92
Uma questão é imprescindível: saber qual o papel do Estado num processo de
mudança, que signifique a incorporação de grandes massas ao mercado de bens e serviços. No
momento em que nos dispomos a estudar os fundamentos da democracia em Marx, o Estado
se nos apresenta como um elemento importante. Exatamente porque é ali em que se
encontram os principais instrumentos de gerenciamento dos projetos e em que se articulam as
políticas públicas que atingem a maioria da população, sobretudo os mais pobres.
Porém, é importante recordar que, mesmo o Estado não sendo mais aquele do tempo
de Marx, ele nunca deixou de ser, em última instância, um instrumento de classe. Nesse
sentido, todas as suas tentativas de melhorar as coisas, principalmente aquelas que dizem
respeito ao funcionamento das suas atividades fundamentais, relativas à economia e à
distribuição das riquezas entre as classes sociais, ou na sua intervenção perante os conflitos,
fica clara a sua postura em favor das classes dominantes. Para Rosa, por exemplo, esta
posição fica clara quando ela afirma:
Salta aos olhos a mistificação. Precisamente o Estado atual não
é uma ‘sociedade no sentido da classe operária ascendente’,
mas o representante da sociedade capitalista, isto é, um Estado
de classe. Eis por que a reforma por ele praticada não é uma
aplicação do ‘controle social’, isto é, do controle da sociedade
trabalhando livremente no seu próprio processo de trabalho,
mas um controle da organização de classe do Capital sobre o
processo de produção do Capital. É nisso, igualmente, isto é, no
interesse do capital, que as reformas acham seus limites naturais
(LUXEMBURGO, 1999, p. 46).
O Manifesto é o documento que explicita, de forma veemente, a natureza do Estado
como instrumento da classe dominante
33
. Sua função fundamental era o exercício da coerção
sobre as camadas sociais pobres para garantir os privilégios das classes dominantes. Esta
concepção, no decorrer do tempo, sofreu modificações, sem o abandono da ideia central. Isso
ocorreu porque as circunstâncias também foram se alterando, de forma que, ao se ler O 18
Brumário de Luis Bonaparte, não se encontra uma identificação direta entre aquela forma de
Estado e o domínio da burguesia. Ali parece mais um Estado de equilíbrio ou de compromisso
com as várias classes sociais. A única indicação de representação de classe que aparece com
certa nitidez é com relação ao campesinato, sendo isso mais devido ao seu poder numérico do
que econômico.
Assim, no dizer do próprio Marx,
Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se
completamente autônomo. A máquina do Estado consolidou a
33
- Esta posição é reforçada na Crítica ao Programa de Gotha (MARX, 2004) quando ele diz que independente da
diversidade dos Estados no capitalismo é que todos se assentam, ou se enraízam na sociedade burguesa.
93
tal ponto a sua posição em face da sociedade civil que lhe basta
ter a frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. E não
obstante, o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparte
representa uma classe, e justamente a classe mais numerosa da
sociedade francesa, os pequenos (Parzellen) camponeses
(MARX, 1968, p. 131 -132).
Na Guerra Civil em França, também, quando ele descreve os acontecimentos da
Comuna de Paris de 1871, ele o faz com certa admiração. Isso porque, sendo um governo de
hegemonia dos operários, acenava com alianças com outros segmentos, sobretudo, com os
camponeses, como também não tinha pretensões de opressão. É importante aquela descrição,
porque nos permite avaliar o que Marx imaginava o que seria um modelo de Estado capaz de
dirigir um processo de transição para uma sociedade na qual o poder político fosse
desnecessário. Porém, ele identifica, nas medidas de poder, adotadas pela Comuna, não
uma certa insegurança, como também algumas precauções de caráter preventivo, para evitar
surpresas. Afinal, era um Estado cercado de inimigos poderosos por todos os lados, com o
agravante de ser algo completamente novo, numa conjuntura internacional que lhe era
profundamente hostil. Assim, sua grande lição foi que adotou todas as medidas para evitar se
transformar numa força opressiva.
Para evitar esta transformação, inevitável em todos os regimes
anteriores, do Estado e dos órgãos do Estado em senhores da
sociedade, quando na origem eram seus servidores, a Comuna
empregou dois meios infalíveis. Primeiro, submeteu todos os
lugares à escolha dos interessados, através de eleição por
sufrágio universal e, evidentemente, à revogação, em qualquer
momento, por esses mesmos interessados. E segundo, retribuiu
todos os serviços pelos mesmos salários que recebiam os
operários (MARX, 1976, p. 23).
Com relação ao Estado, o que se pode dizer é que Marx não deixou uma formulação
teórica consistente, conforme fez com relação ao modo de produção capitalista. Não podemos
explicar as razões pelas quais isso aconteceu, porque afinal a política para ele era muito
importante. Esta importância residia no fato de que, para que a classe operária pudesse
superar o capitalismo e construir uma sociedade nova ele precisaria de uma força política
eficiente, e esta força, nessas circunstâncias pode residir numa forma qualquer de Estado.
Portanto, a conquista do poder político se constitui num pré-requisito para a superação de uma
forma de sociedade anterior.
Para Marx, o Estado assim como para os outros aspectos chamados supra-estruturais
não possuía autonomia. Por isso, seus mecanismos de formação e desenvolvimento não
podiam ser buscados neles mesmos, e sim nas condições materiais de existência dos homens.
94
Isso não quer dizer que todos os aspectos ou níveis da sociedade sejam automaticamente
ligados.
Esta interdependência, que forma uma totalidade complexa, significa que nenhum
acontecimento ou transformação que ocorra na sociedade se manifeste isoladamente. Pelo
contrário, toda mudança tem repercussões no conjunto. Sobre este aspecto J. P.Netto,
transcrevendo uma comunicação de Lukács, numa nota de de página do livro de Marx, A
Miséria da Filosofia, apresenta o seguinte:
Na teoria social de Marx, a totalidade, como categoria fundante
da realidade, significa, em primeiro lugar, a unidade concreta de
contradições interatuantes; em segundo lugar, a realidade
sistemática de toda totalidade, tanto para cima como para baixo
(o que quer dizer que toda a totalidade é constituída por
totalidades subordinadas a ela e também que, ao mesmo tempo
ela é sobredeterminada por totalidades de maior complexidade);
e, em terceiro lugar, a relatividade histórica de toda totalidade,
ou seja, que o caráter de totalidade de toda totalidade é
dinâmico, mutável, sendo limitado a um período histórico
concreto (NETTO, 2009, p. 39).
No período de implantação e amadurecimento da grande indústria, desde a segunda
metade do século XVIII na Inglaterra, esta realidade adquiriu dimensão gigantesca, na medida
em que a burguesia pode reunir e concentrar em determinados lugares todos os fatores de
produção e toda a mão-de-obra, formando verdadeiras fortalezas do capital. Ao mesmo tempo
em que isso se dava ao nível da produção, a expansão do comércio se acelerava, pois para
uma produção ampliada era necessária uma correspondente ampliação do mercado o que
exigia um fortalecimento do poder político para servir de instrumento dessa expansão.
Assim, todas as forças que se encontravam dispersas foram concentradas numa
máquina burocrática e militar que se colocou a serviço daquelas transformações. Os modelos
de Estados nacionais, criados e consolidados num momento de grandes mudanças ligados a
acumulação de riquezas e expansão das atividades mercantis, pelas burguesias regionais, teve
pela frente muitos obstáculos.
Por um lado, estavam os poderes locais representados pelas cidades e pelos
principados feudais e por outro os poderes de pretensões universais como a Igreja e os
impérios. Como os Estados nacionais modernos se ergueram obedecendo a critérios de classe,
da burguesia, então competia ao movimento revolucionário romper com esses limites.
Portanto, para Marx, as fronteiras territoriais que se ergueram são provisórias e secundárias
no seu raciocínio.
95
O Estado moderno, de fato, tem suas origens a partir do momento em que o capital se
articula com o poder. Aqueles agentes dos negócios e das finanças, que cresceram praticando
atividades que escapavam a simples troca (BRAUDEL, 1987), se articulavam com os
soberanos dos mais variados tipos, inclusive com o Papa. Como esses poderes constantemente
provocavam déficits, nas suas tentativas não de manter, mas também de expandir seus
poderes, geralmente apelavam e eram frequentemente atendidos pelos homens das finanças,
que obtinham lucros extraordinários com essas operações.
Como essas atividades eram perigosas e muito arriscadas, na medida em que grande
parte dessas finanças era utilizada no financiamento de guerras de resultados muitas vezes
duvidosos e com elementos de pouca credibilidade, os capitalistas para correrem os riscos
exigiam garantias pesadas. Estes grupos tinham acumulado fortunas imensas, praticando
atividades muito variadas, que iam desde a atividade comercial pura e simples, até a extorsão,
a pilhagem, a pirataria, o financiamento das cruzadas, enfim, todas as atividades que fossem
as mais lucrativas possíveis, sem obediência a qualquer regra ou ética.
Tal articulação se devia, em grande parte, às circunstâncias do contexto europeu: um
território muito fatiado, com uma produtividade limitada, abrigando uma quantidade muito
grande de poderes conflitantes, obrigava os soberanos, para sobreviverem, estarem
constantemente competindo. Assim, os conflitos eram permanentes, e os investimentos tanto
para a realização deles como para sua preparação eram imensos.
Desde seu nascimento, os grandes bancos, beneficiados com títulos nacionais, eram
apenas sociedades de especuladores privados, que se colocavam ao lado dos governos e,
graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de adiantar-lhes dinheiro. Além dos
lucros fabulosos derivados dos empréstimos para financiar as guerras, os capitalistas também
tinham outra fonte de renda altamente lucrativa que resultava dos financiamentos constantes
das dívidas do Estado. Esta situação privilegiada possibilitava a um conjunto de homens de
dinheiro acumular fortunas sem correr risco. A única coisa que precisavam era estar
disponíveis e atentos para o jogo do poder. Assim, a dívida do Estado fez prosperar as
sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em
uma palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia” (MARX, 1985-b,p.288).
Porém, é importante dizer que Marx dedicou a maior parte do seu tempo à elaboração
de sua obra maior, que foi a análise da economia política, na qual ele se dedicou à crítica do
modo de produção capitalista. Sabe-se que o seu projeto era muito mais ambicioso, que
incluía um estudo sobre o direito e sobre a política. Esse projeto, porém, não chegou a ser
concretizado porque, além de sua dedicação no campo da teoria, Marx era um homem que
96
também tinha uma atividade política prática muito intensa. Até a sua obra máxima, O capital,
ficou incompleta.
Porém, para alguns autores, inclusive para Hobsbawm, existe, nesse ponto, algo
controvertido. A controvérsia fica situada no seguinte. Se a questão da política e de outros
campos da dominação parecia uma questão secundária, conforme tanto ele como Engels
deixam claro tanto na Ideologia Alemã como no Manifesto, e que eles se enraízam na
dominação econômica, por que então dar tanta importância a eles?
Além disso, a perspectiva da história apontava para o fim do Estado, porque no
essencial ele era um instrumento de dominação, condenado a desaparecer com ela. Isto não
quer dizer que o papel ativo da política perdeu a importância, porém quer dizer que toda a
crítica da política, não pode ser autônoma, na medida em que ela se baseia no social que tem
como elemento de sustentação a economia. Portanto, como no capitalismo o Estado é, em
última instância, a materialização da política, então é pertinente a avaliação de que para Marx
o Estado era um elemento secundário. Esta citação sintetiza a questão:
Uma vez que, no processo, desapareçam as diferenças de classe
e toda a produção esteja concentrada nas mãos dos indivíduos
associados, o poder público perderá seu caráter político. O
poder político propriamente dito é o poder organizado de uma
classe para dominar outra. Se, em sua luta contra a burguesia o
proletariado se constitui em classe, se por meio de uma
revolução se converte em classe dominante e, como tal, suprime
violentamente as velhas relações de produção, então, junto com
elas, suprime os antagonismos de classes e as classes em geral
e, com isso, abole sua própria dominação de classe (MARX,
1998, p. 29).
O Estado, também, nasceu e cresceu com a finalidade de garantir a propriedade
privada da ameaça dos desapropriados. Dos pobres. Hobbes advertia, no Leviatã, que o
soberano, de forma absoluta, é o único que pode nos livrar dos perigos derivados da
agressividade dos homens. Para Locke, o Estado deve ser constituído, através de um pacto,
com a finalidade de defender os interesses dos cidadãos, principalmente as suas propriedades.
Na contramão dessas posições, que defendiam os interesses individuais de uma classe
social ascendente, proprietária, Marx produz uma teoria que vai de encontro a todos os
privilégios, até porque na base dessa teoria encontra-se a possibilidade de socialização dessas
propriedades que foram acumuladas pelos processos mais variados, mas que traziam como
resultado mais visível a desapropriação da maioria e a consequente exploração dessa maioria
através do trabalho assalariado.
97
Podemos dizer, portanto, que o entendimento da contribuição proporcionada pela
afirmação do poder político e pela sua necessidade constante de permanecer sempre atento, de
estar se preparando ou fazendo guerra sempre, segundo Maquiavel, é fundamental para se
compreender o avanço de todo aquele processo de desenvolvimento das forças produtivas tão
bem descrito por Marx. Aquele foi um movimento que deslanchou e desencadeou vários
processos concomitantes, esculpindo um formato de sociedade que passou a se chamar Idade
Moderna, e tudo isso sem dúvida contou com a participação decisiva de uma força
concentrada em torno do Estado, segundo Marx.
3.2 O Socialismo no Século XX
A partir das formulações de Marx, desenvolveu-se uma série de interpretações que
ficaram conhecidas como marxismo. Essas interpretações, que acompanharam o processo
histórico e que fundamentaram, ideologicamente, o conjunto dos movimentos sociais, ou pelo
menos a grande parte do movimento socialista, alcançou progressos imensos, enriqueceu
profundamente o campo teórico das esquerdas, desqualificou em grande parte os aspectos da
ideologia hegemônica burguesa e iluminou a construção de vários regimes socialistas no
século XX.
Porém, aquela teoria, que era tão fecunda, e aquele processo de socialização, que
parecia tão promissor, hoje, encontram-se numa encruzilhada. Isto vem exigindo um grande
esforço dos marxistas contemporâneos, no sentido de resgatar as matrizes teóricas que foram
formuladas pelos autores originários, Marx e Engels.
Com o decorrer do tempo, o processo rumo ao socialismo, que foi se consolidando
com o estabelecimento de vários regimes baseados em nome das suas ideias, foi se
estilhaçando, até chegar a um ponto em que o próprio Hobsbawm, numa entrevista concedida
à Folha de São Paulo em setembro de 2007, chegou a dizer que a questão da revolução é hoje
um assunto que interessa a pouca gente, é um debate que se limita aos restritos quadros da
academia.
34.
Hoje, depois do fracasso das duas principais vertentes (o “marxismo” da social-
democracia e o “marxismo-leninismo”), o pensador se defronta ainda com algumas
dificuldades, apesar de vários esforços de intelectuais que pressentiram o problema
35
, e
tentaram dar outro encaminhamento. De qualquer maneira, o conteúdo da entrevista de
Hobsbawm, mesmo ela contendo alguns aspectos de impacto, que parecem simplificar uma
34
HOBSBAWM, Eric J – Entrevista concedida à Folha de São Paulo, caderno Mais, em 31 de setembro de 2007.
35
Sobre os intelectuais, que previram esta questão, austríacos, ver( KONDER, 1992)
98
questão complexa, no entanto comparando a entrevista com textos mais fundamentados, sobre
o assunto como, por exemplo, um que tem o título de Adeus a tudo aquilo (HOBSBAWM
1992), compreendemos que no essencial a questão é pertinente.
O que realmente predomina no ideário das grandes massas é a fragmentação do
mercado e o corporativismo. Porém, mesmo sabendo que as dificuldades são imensas, nossas
possibilidades são ainda maiores. Mas para isso é preciso novas contribuições e ações mais
efetivas porque, segundo advertência de Leandro Konder, as orientações que nossas principais
matrizes podem nos oferecer são muito precárias. Assim, seguindo as suas afirmações, hoje ,
ambos os ‘marxismos’ foram se estiolando. O modelo social
democrata foi deixando de corresponder cada vez mais
obviamente ao que Marx tinha pensado e escrito, até ser
oficialmente aposentado no Congresso de Bad Godesberg, em
1958, quando já tinha desencarnado e se transformado em
ficção. O modelo leninista, degenerado em stalinista, foi se
servindo de uma caricatura cada vez mais grotesca de Marx e
demonstrando cada vez mais uma capacidade cada vez menor
para dialogar com a cultura contemporânea e para inventar
formas de ação política eficaz (KONDER, 1991, p 15).
De qualquer maneira, temos de reconhecer que o processo foi construído, tanto numa
vertente como na outra, de acordo com as circunstâncias
36
. Cada grupo político, ou indivíduo,
procurou se apropriar da teoria da maneira ou que achava mais correto ou da maneira que era
mais adequada para superar seus oponentes; ou ainda, para agilizar, de forma mais eficiente
um projeto que considerava mais justo e fiel. A partir dessa premissa se organizou um modelo
de sistema, em nome do marxismo, que passou a ser reconhecido como socialismo real.
O socialismo, como um processo de transição de uma sociedade capitalista para o
comunismo, conforme previa Marx, resultado de um trabalho teórico e prático, se concretiza
em 1917 na ssia com a Revolução Bolchevique. Este processo revolucionário contrariava
todos os prognósticos estabelecidos pelas formulações marxianas. Isto porque, em vez de a
revolução começar seus passos no centro do capitalismo, representado pelos países da Europa
Ocidental, sobretudo na Inglaterra, para a partir daí se internacionalizar, ela começou num
país atrasado, de dimensões geográficas continentais, com estruturas econômicas e sociais
bastante arcaicas, que iriam contribuir decisivamente para uma série de dificuldades que esta
revolução enfrentaria.
36
Segundo C.N. Coutinho “a crise é, basicamente, de uma interpretação de marxismo que ficou conhecida como marxismo-
leninismo.” (COUTINHO, 1991, p.96) Para Leandro Konder (KONDER, 1992) Marx não é inteiramente responsável, porém,
a crise compromete o patrimônio teórico original e mesmo Marx sendo um gênio, algumas das suas formulações encontram-
se envelhecidas, exigindo uma profunda revisão.
99
Além disso, esta revolução começaria numa conjuntura internacional profundamente
adversa, no auge de uma guerra que devastara grande parte das forças vitais do país, que o
deixara em condições precárias. Assim, todas as precondições previstas pelos formuladores da
teoria ou não existiam ou as poucas que existiam foram destruídas pela guerra e pela luta
revolucionária que se seguiu. Entre estas pré-condições podemos enumerar um forte parque
industrial, com amplo desenvolvimento das forças produtivas e uma classe operária numerosa
e coesa, com uma ampla concepção da sua missão histórica capaz de dirigir um movimento
massivo, sob a hegemonia de um amplo bloco de grupos sociais interessados na mudança
radical da sociedade.
Os bolcheviques, tendo Lênin à frente, ainda procuraram dar conta de algumas
condições inesperadas. No que diz respeito à teoria conseguem provar que as formulações de
Marx não eram dogmas e que, portanto, estavam sujeitas a adaptações, que fossem adequadas,
bem como de questões práticas, organizando um partido de vanguarda bastante aguerrido e
armando uma estratégia de tomada de poder bastante eficaz. No entanto, apesar de todas estas
credenciais e sucessos iniciais, a medida em que, o tempo foi passando, alguns aspectos foram
se revelando insuficientes e algumas das previsões dos bolcheviques foram fracassando.
Além disso, das poucas condições materiais existentes na Rússia, que podiam dar
sustentação a um movimento revolucionário, num processo de enfrentamento de grandes
proporções, praticamente desapareceram no decorrer da guerra e na luta revolucionária. A luta
que se seguiu no combate as forças contrarrevolucionárias e as potências imperialistas
intervencionistas, provocou, a destruição do parque industrial, grande parte de origem
estrangeira e a dizimação da classe operária que praticamente desapareceu.
Além disso, todas as previsões de Lênin, de que a Revolução russa seria o começo de
uma série e esta seria a condição imprescindível para que ela tivesse sucesso, fracassaram
porque uma série de movimentos que na época se acreditava prováveis, sobretudo na
Alemanha, não se confirmaram ou foram derrotados. Esta situação deixou o primeiro regime
socialista numa situação inusitada e com um desafio pela frente inesperado.
O que fazer agora, com a Revolução, depois que ela deu seus primeiros passos?
Retroceder não era possível porque depois de tudo não se podia dizer para a reação que tudo
deu errado e que eles recebessem de volta tudo. A porque não havia mais quase nada o que
devolver. Ou então, para evitar o isolamento, invadir a Europa e naquelas circunstâncias
transportar o socialismo para aquela região?
37
De qualquer maneira, apesar de todas as
37
Naquelas circunstâncias isso era completamente sem fundamento, fora de cogitação. A expansão do socialismo com
direção à Europa ocorreu em decorrência do sistema de guerra fria inaugurado pelas potências capitalistas.
100
dificuldades iniciais e principalmente as subsequentes, que Lênin não podia prever, suas
palavras ainda são bastante significativas quando diz:
Esta primeira vitória não é ainda a vitória definitiva, e nossa
Revolução de Outubro conseguiu-a com inauditas dores e
dificuldades, com uma série de desacertos e erros da nossa
parte. Seria bom que um povo atrasado conseguisse triunfar
sem desacertos e sem erros sobre as guerras imperialistas mais
avançados e poderosos do globo! Não tememos reconhecer
nossos erros e os examinaremos serenamente para aprender a
corrigi-los. Mas os fatos continuam sendo fatos: pela primeira
vez, a promessa de responder à guerra entre escravistas com a
revolução dos escravos contra todo gênero de escravistas foi
cumprida a o fim. Nós começamos a obra. Pouco importa
saber quando, em que prazo, e os proletários de que nação
terminarão esta obra. O essencial é que se rompeu o gelo, que
se indicou o caminho a seguir (LÊNIN, 1968, p.132).
A Revolução Russa de 1917 era vista por Lênin como uma primeira etapa de uma
revolução internacional capaz de se defrontar com o capitalismo num confronto de grandes
proporções e com amplas possibilidades de vitória. O prestígio da revolução e a expansão das
ideias socialistas eram tão eficientes que esta perspectiva parecia pertinente. Porém, o que
estava acontecendo realmente, segundo as palavras de Hobsbawm, era o seguinte:
No entanto, é claro que desde o começo dos anos 20 a política
da União Soviética não era elaborada mais para realizar a
revolução mundial, embora esta certamente tivesse agradado a
Moscou. Na era de Stalin, que ativamente desencorajava as
tentativas de ascensão ao poder por parte de qualquer partido
comunista e que desconfiava de partidos comunistas que
empreendiam a revolução contra suas recomendações, a política
soviética era cautelosa e essencialmente defensiva, mesmo
depois de vitórias surpreendentes do exército vermelho na
Segunda Guerra Mundial (HOBSBAWM, 1992, p. 94).
Foi em nome deste processo político tão complicado, de crescimento do socialismo e
desta teoria tão fecunda, que o regime foi se consolidando. Achava-se que tudo aquilo era
irreversível. Olhava-se para o mundo do socialismo, com suas altas taxas de crescimento, com
sua capacidade aparentemente impressionante de dialogar com as forças progressistas do
mundo inteiro e de enfrentar o sistema capitalista com toda sua máquina de fazer propaganda,
que parecia que tudo aquilo se desenvolveria conforme Marx havia previsto.
Quando tudo aquilo começou a perder força e sinais cada vez mais evidentes de suas
fragilidades começaram a aparecer, foi que todos nós começamos, de forma mais atenta, a
prestar atenção e começamos a refletir, com maior seriedade, sobre o que estava acontecendo;
e um dos aspectos que mais chamaram a atenção, naquelas circunstâncias, foi a forma como o
101
conjunto das populações daqueles países (como a Alemanha Oriental, Polônia, Romênia) se
manifestaram.
Começaram com rebeliões em várias repúblicas que formavam a União Soviética
(como a Ucrânia, Geórgia, Letônia), contra a opressão centralizadora de Moscou, passando
por manifestações populares reivindicando não o atendimento de necessidades básicas,
como principalmente o acesso a bens simbólicos (como a informação, a liberdade de
expressão e direitos elementares de cidadania). Tudo aquilo deixou claro algo elementar: a
falta de democracia foi um dos aspectos fundamentais que ocasionaram a derrocada daqueles
regimes.
A partir de 1956 o comunismo internacional começa a se desintegrar. Isto porque as
primeiras manifestações de insatisfação contra o centralismo imposto pelo regime de Stalin
começam a se explicitar, com a “Rebelião da Hungria”. Mesmo assim, o regime ganhou ainda
certa longevidade porque, de um lado, apresentava indicadores de crescimento econômico
impressionantes, algumas melhorias no atendimento de questões sociais importantes (como
educação e saúde), e principalmente era um aporte bastante importante para as populações
pobres do mundo inteiro e para as nações oprimidas pela truculência das grandes potências
capitalistas e pela exploração do imperialismo.
O socialismo, nesses casos, não era uma bandeira ideológica muito importante
como também uma possibilidade de apoio real. Grande parte do processo de descolonização
da África e da Ásia no período pós Segunda Guerra é uma lembrança notável.
Lamentavelmente, hoje, o que nos resta de tudo aquilo é um regime chinês com características
impressionantes que aliam repressão, centralização do poder articulados com uma política
econômica baseada na exploração de uma mão-de-obra numerosa e mal paga; e aqui na
América Latina o exemplo cubano, que pelos seus limites não pode ser considerado uma
referência importante. Segundo Hobsbawm, tudo isso representa o fim de um regime
(HOBSBAWM, 1992).
Muitos pensadores importantes, no seio das forças progressistas, procuram argumentos
os mais variados para tentar desvincular toda a trajetória do chamado socialismo real das
propostas originárias dos criadores do marxismo. Para isso, é verdade, não faltam argumentos
sólidos e convincentes. E de fato, as previsões formuladas por Marx, apontavam noutra
direção. Não no que diz respeito às regiões previsíveis de possíveis revoluções socialistas
(os países de capitalismo avançado), como o caráter internacional que essas revoluções
deveriam tomar, até as formas de participação e de lideranças que deveriam dirigir o processo
(a classe operária como um todo, liderada por sua vanguarda) e não por um partido político
102
clandestino, entre outras. Miliband, na citação a seguir, levanta alguns argumentos bastante
controvertidos, que segundo nossa visão é muito importante para se fazer algumas reflexões,
como as que fazemos a seguir:
Marx, na verdade, não tem nada a ver com isso. Na essência do
pensamento de Marx, a insistência de que o socialismo, sem
mencionar o comunismo, implica a subordinação do Estado à
sociedade; e mesmo a ditadura do proletariado, na perspectiva
de Marx, deve ser entendida como tudo menos um governo
popular sem mediação. O verdadeiro arquiteto do modelo de
governo que veio a imperar em todos os regimes comunistas foi
de fato Stalin, que primeiro o estabeleceu na União Soviética e
depois fez com que fosse copiado por outros líderes comunistas
formados em sua escola, ou o impôs nos países que passaram ao
seu controle após a Segunda Guerra Mundial (MILIBAND,
1992, p. 25).
Que Stalin foi o grande arquiteto daquele modelo não resta a menor dúvida. Ao
dominar o Partido Comunista e vincular com mão de ferro todas as decisões políticas do
Estado, ele conseguiu, através de uma corrente de transmissão bastante eficiente, submeter os
demais partidos comunistas do mundo inteiro e através dessa via bloquear não todas as
possibilidades alternativas revolucionárias como também bloquear todo o desenvolvimento da
teoria, impondo uma verdadeira petrificação em alguns princípios que passaram a ser
considerados como definitivos.
Para transformar o marxismo em justificação imediata de todas
as suas medidas, Stalin suprimiu-lhe as mediações, fez com que
seus princípios teóricos abstratos aparecessem usualmente em
ligação direta com os fatos crus o que representou grave
sacrifício da riqueza dialética do pensamento marxista e da sua
cientificidade. A pesquisa filosófica, enfeudada à direção
política do partido, despiu-se de toda inquietação: e o marxismo
foi ajustado ao leito de Procusto das vulgatas, isto é, dos
manuais lastrados de citações e postos a serviço direto das
conveniências políticas do momento (KONDER, 2009,p. 199-
b).
Se a experiência do socialismo chegou a ser importante, quando conseguiu, a
princípio, num país e numa região bastante atrasada desenvolver um projeto que durante
décadas parecia bastante promissor e nesse sentido conseguiu se confrontar com o capitalismo
em vários setores da concorrência internacional e em certa medida se apresentar perante o
mundo com uma proposta ideológica muito mais atraente e com maiores perspectivas, no
entanto, depois de tudo o que aconteceu a lição talvez mais significativa para as forças
progressistas, diz respeito à questão da democracia. É lamentável, inclusive, que uma
bandeira que pertence aos socialistas seja apropriada pelas forças políticas hegemônicas no
103
mundo capitalista, inclusive pelas forças mais retrógradas que sempre se nutriram da
exploração.
As lições realmente importantes da experiência comunista a
serem aprendidas pelos socialistas não pertencem, no entanto,
ao reino de técnicas: a mais importante dessas lições diz
respeito ao tema da democracia. Um dos grandes triunfos das
classes dominantes do ocidente tem sido a sua apropriação da
democracia, pelo menos em retórica e propaganda. A
experiência dos regimes comunistas apresenta, portanto, aos
socialistas do ocidente a necessidade de uma reflexão mais
profunda e mais ampla do exercício do poder (MILIBAND,
1992, p. 27-28).
Hoje, ao observar tudo o que aconteceu, e algumas das suas consequências,
acreditamos ser muito difícil, sobretudo para as novas gerações, imaginar e avaliar as perdas e
os retrocessos que a queda do socialismo provocou. Com todos os seus defeitos e
deformações, ele era, por um lado, uma referência para os socialistas do mundo inteiro que
acreditavam ser possível sua mudança de rumo. Esta crença existia, em grande parte, por
causa da confusão que se fazia entre o socialismo realmente existente e aquele que tínhamos
apreendido, em grande parte formada pelas leituras e discussões sobre os clássicos do
pensamento socialista.
Por outro lado, ele era também uma referência para seus adversários. Desde o
momento que ele se consolidou, sobretudo desde o final da Segunda Guerra, quando o
socialismo demonstrou sua vitalidade e sua força, no combate heróico contra as tropas dos
regimes fascistas, ele se credenciou, perante as relações internacionais, como um regime
capaz de mover energias imensas; e foi em grande parte sob a influência dessa energia que
grandes conquistas foram realizadas pelos trabalhadores do mundo inteiro, sobretudo na
Europa, onde regimes solidamente democráticos foram estabelecidos bem como conquistas
sociais importantes foram consolidadas, através de um Estado de bem-estar social de
características reconhecidamente populares.
Em função também disso, os partidos políticos passaram a ter uma grande influência
dos trabalhadores. Seus órgãos de representação sindical passaram a desempenhar papéis cada
vez mais significativos na vida dos povos. Estes avanços, que foram indiscutíveis, foram
possíveis, em grande parte, sob a influência do socialismo. Sua própria existência e sua
presença ameaçadora era o suficiente para que os Estados e as classes dominantes do mundo
capitalista vissem com temor e um grande respeito a possibilidade de expansão do socialismo.
As consequências da queda podem ser notadas sem grande esforço, não só pelo grande
retrocesso da política no sentido da construção da democracia como também de grande parte
104
das perdas das conquistas sociais. Os grupos dominantes mais reacionários retomaram uma
ofensiva avassaladora, investindo não com direção aos aparelhos de Estado como também
impondo uma ofensiva contra todas as conquistas e direitos que foram alcançados naqueles
anos promissores. Nesse sentido concordamos com a afirmação de HOBSBAWM quando
afirma o seguinte:
O principal efeito de 1989 é que o capitalismo e os ricos
pararam, por enquanto, de ter medo. Tudo o que fez com que a
democracia ocidental valesse a pena para seus povos –
previdência social, o estado de bem-estar social, uma renda alta
e crescente para os trabalhadores, e sua consequência natural, a
diminuição da desigualdade social e a desigualdade de
oportunidades resultou do medo. Medo dos pobres e do maior
e mais bem organizado bloco de cidadãos dos Estados
industrializados os trabalhadores; medo de uma alternativa
que existia na realidade e que podia realmente se espalhar,
notavelmente na forma do comunismo soviético. Medo da
instabilidade do próprio sistema (HOBSBAWM, 1992, p. 103).
Hoje, mesmo presenciando o quadro de misérias e barbárie no mundo, sobretudo na
periferia do capitalismo, onde impera a devastação do sistema ecológico, a disseminação da
miséria e das epidemias, lamentavelmente não encontramos nenhuma alternativa. Os regimes
ditos socialistas que nos restam são de importância reduzida, bem como os partidos políticos
ditos herdeiros de uma tradição socialista ou estão completamente esvaziados de ações e de
propostas populares, ou foram burocratizados e cooptados por interesses cada vez mais
distantes das classes trabalhadoras.
Além disso, a maioria dos movimentos sociais mais significativos ou se vincularam a
interesses econômicos e políticos localizados e corporativos ou foram cooptados pelo poder
em troca de barganhas muito pouco claras. Por outro lado, as grandes transformações nas
formas produtivas, alterando completamente o perfil dos trabalhadores, destruindo as suas
possibilidades associativas naturais pela antiga concentração do mundo industrial, agravaram
ainda mais a situação em virtude da concorrência mais individualizada pelo mercado de
trabalho baseada nas competências (HOBSBAWM, 1992).
Apesar de todas essas dificuldades e de todos os desafios, as forças progressistas não
possuem alternativas, porque a democracia então vigente atravessa uma profunda crise. Crise
que se explicita, sobretudo, pelas formas de exclusão das populações nas decisões políticas.
Assim é preciso a compreensão de que
a recuperação do estilo de trabalho de Marx supõe, deve-se
ressaltar, uma nova relação orgânica das vertentes marxistas
com o movimento social. Na medida em que a tradição marxista
reivindicou sempre uma conexão íntima com práticas sócio-
políticas e na medida em que, sempre historicamente esta
105
conexão se concretizou nestas medidas, a tradição marxista não
se reduz a um complexo teórico-ideal, nem suas crises a
realidades somente intelectuais. As crises teóricas verificadas
na tradição marxista frequentemente enlaçaram-se a crises de
implementação prático-política e se elas devem ser no plano
analítico claramente distintas, não o inteiramente
divorciáveis na realidade. Ora, a recuperação aludida implica,
hoje, uma relação orgânica diversa da que historicamente foi
viabilizada entre vertentes marxistas e movimento social
(NETTO, 1991, p 20).
Porém, essa tarefa enfrenta várias dificuldades, sendo a maior delas o grande poder
econômico e o grande controle que possuem as elites sobre as formas de divulgação,
principalmente os grandes instrumentos de comunicação. Mesmo assim, o debate avança,
porque todas as forças consideradas progressistas reconhecem que a democratização, sem a
contribuição do marxismo, é quase impossível.
Não existem, fora do pensamento e da tradição marxista, formulações que possam dar
conta da quantidade imensa de problemas que o desenvolvimento do capitalismo trouxe para a
humanidade. Podemos afirmar, com toda certeza, que nenhuma corrente de pensamento e
nenhuma força política fora do marxismo apresentaram propostas tão generosas e alternativas
tão viáveis para as questões cruciais do nosso tempo (COUTINHO, 1999, p. 100). Com
relação a isso, C. N. Coutinho afirma o seguinte:
Penso assim poder dizer que existem na tradição marxista
quando esta é vista na riqueza e na pluralidade de suas várias
vertentes conceitos válidos e atualizados tanto de democracia
como de revolução. E eu diria mais: diria que, para uma
formulação globalizante e adequada às necessidades de hoje,
esses conceitos existem na tradição marxista (COUTINHO
1991 p.100).
De fato essa observação é importante, porque o marxismo foi a única linha de
pensamento que se desenvolveu segundo um princípio de totalidade em que todos os aspectos
da sociedade se articulam num todo complexo em que nada é puramente econômico ou
político, ou ideológico; todos se inter-relacionam num movimento dialético, mas tendo as
condições materiais ou seja, a estrutura econômica, como elemento no qual deve ser
encontrada, em última instância, a explicação para o desenvolvimento do processo como um
todo.
Além disso, é importante que se façam revisões cada vez mais consistentes,
procurando redescobrir nos textos de Marx os seus aspectos mais fecundos, no que concerne à
sua contribuição para o processo da democracia, conforme C. N. Coutinho mencionou em
citação anterior seja positivo, porque, ao contrário, O que me parece mais previsível é que os
106
marxistas venham a travar lutas para as quais as codificações doutrinárias não terão efetiva
serventia. Nas novas circunstâncias, caberá a cada um ler, interpretar, desenvolver,
reelaborar e modificar o seu Marx (KONDER, 1992, p. 133).
Tal fato é fundamental para que o marxismo não perca o embate para uma avalanche
enorme de obras positivistas, pós-modernas e para que não perca a sua capacidade de se
renovar constantemente, a fim de que possa dialogar e crescer num movimento dialético com
o desenvolvimento histórico.
Portanto, para que possa dar passos largos no sentido de recuperar o marxismo de toda
as suas dificuldade e manipulações, é imprescindível que não retornemos aos textos de
Marx como também procuremos exercer uma ação política porque a teoria por si não
transforma a realidade, mesmo sabendo que tanto uma como outra apresentam muitas
dificuldades, a começar pelos textos em língua nacional cujas obras fundamentais ainda não
foram traduzidas.
Outra dificuldade que os textos de Marx apresentam é a seguinte: na época em que
eles foram produzidos, não existiam partidos políticos (conforme se concebe atualmente). O
primeiro partido moderno vinculado à classe operária foi o Partido Social Democrático dos
Trabalhadores Alemães, que se organizou na segunda metade do século XIX, e que segundo
Engels, na introdução ao livro de Marx A Luta de Classe na França (ENGELS, 1953), cresceu
rapidamente, em termos eleitorais.
Como a organização dos trabalhadores era muito incipiente e a cultura das massas
muito precária, quase não era possível a divulgação das ideias. As posições defendidas por
Marx não ficaram excluídas desta regra
38
. Além de tudo, é importante se dizer que a
publicação de obras daquela natureza encontrava limites também no desinteresse do mundo
editorial em função tanto de questões de mercado como também das perseguições políticas.
Dessa forma, “no fim do século, o nome de Marx tinha, então, feito a volta ao mundo;
suas ideias, no entanto, tais como se acham formuladas em suas obras, circulavam em áreas
muito limitadas (ANDREUCCI, 1985, p. 41). Não foi por mero acaso que grande parte da
produção de Marx permaneceu inédita até o século seguinte. A divulgação das ideias de
Marx, até então, vinha ocorrendo de maneira bem significativa, sob responsabilidade
principalmente de alguns teóricos, como Engels, Kaustyky, de alguns grupos que faziam
política pelas esquerdas e, sobretudo, pelos partidos, ligados à classe operária, de tendências
socialistas (HOBSBAWM, 1985,). Assim, ficavam limitadas a setores.
38
, Perry Anderson levanta algumas considerações sobre as dificuldades de divulgão das idéias no século XIX, sobretudo
idéias que diziam respeito ao movimento dos trabalhadores e da política em geral em virtude, principalmente, da precariedade
das condições culturais da época.(ANDERSON, 1976)
107
Conforme podemos perceber na Introdução (ENGELS, 1953) o marxismo se tornou,
no final do século XIX, a ideologia e a proposta mais divulgada no seio das representações
dos trabalhadores. Além disso, transformou-se no instrumento teórico mais importante da
social democracia, o maior partido marxista do mundo que crescia de forma impressionante.
Porém, esse crescimento, que articulava uma teoria revolucionária com um partido de
massas, que incorporava um movimento social em ascensão, provocou também segundo Rosa
Luxemburgo (LUXEMBURGO, 1999) não a sistematização da teoria como também um
comportamento burocrático e reformista do partido e do movimento, empobrecendo
significativamente o impulso revolucionário da classe operária.
Ora, esse atraso na publicação de obras importantes de um pensador decisivo
provocou um grande prejuízo. Além desse atraso, paralelo com a publicação dos textos,
desenvolveu-se uma ideologia, chamada de marxista, que foi apropriada por máquinas
partidárias cada vez mais burocratizadas (KONDER, 1992).
Assim, podemos dizer que o marxismo nasceu, de certa maneira, vinculado ao Partido
Social Democrático da Alemanha.
39
Porém, durante toda a trajetória do século XX, o
socialismo atravessou profundas dificuldades, não derivadas do fracasso dos modelos que
foram então implementados como também da radicalização das elites pela extrema direita,
que se manifestou, sobretudo, por meio dos regimes fascistas. O empenho que esses regimes
despenderam para combater o socialismo contribuiu para que o stalinismo encontrasse um
terreno fértil de desenvolvimento, à medida que alimentou certa polarização entre duas formas
de autoritarismo, isto é, fascismo versos stalinismo.
40
Finalmente, o que é mais importante nas obras de Marx não é o fato de algumas ideias
dele estarem defasadas ou envelhecidas e necessitando de uma revisão. Isto acontece com
todos os clássicos. Marx, de fato, tem uma teoria a respeito da sociedade moderna e um
projeto a respeito de sua transformação, baseados num método, o método dialético, que
consegue, até hoje, dar as respostas as mais adequadas para o movimento da classe operária e
o movimento popular em geral.
Assim, o que é impressionante é o fato de que, mesmo depois de mais de um século e
meio de sua morte, grande parte das questões que ele levantou não permaneceram como
39
Segundo Franco Andreucci , o marxismo “Nasceu nas revistas do partido, que eram dirigidas por Kautsky e Bernstein;
nasceu na troca de cartas entre Bebel e Engels, nasceu na ampliação dos conhecimentos e nas traduções dos textos de Marx,
nasceu nas polêmicas contra outras escolas socialistas, como o populismo ou o socialismo de Estado”. (ANDREUCCI, 1985,
p. 27)
40
Essa discussão é feita, de forma panorâmica, por Gyorgy Lukács em seu ensaio o Processo de democratização no livro
Socialismo e democratização. ( LUKÁCS, 2008)
108
também se aprofundaram.
41
Além disso, suas ideias foram incorporadas por milhões de
trabalhadores e indivíduos economicamente desfavorecidos, em geral, com a convicção de
que elas podem contribuir, decisivamente, para um programa de ação política capaz de
libertar os homens da opressão do sistema vigente. Este é o grande argumento que justifica o
debate sobre a democracia, baseado nas ideias de Marx.
No capitalismo, em virtude da sua dinâmica que obriga os homens a uma concorrência
desenfreada em disputa das questões materiais, os interesses individuais se sobrepõem aos
interesses coletivos. Os homens, portanto, na sua ânsia de procurar acumular o máximo que
for possível de bens, de forma privada, torna-se profundamente egoísta e a busca pelo
dinheiro passa a ser uma ordem.
Assim, todas as representações genéricas, elaboradas em função da necessidade de
articulação de uma convivência coletiva que seja a mais coesa possível, foram construindo um
verdadeiro mosaico de instituições que de alguma maneira garante a convivência no seio das
nações, com conflitos, evidentemente, mas garantindo, precariamente, a ordem e
estabelecendo como fundamento a hierarquia e o respeito forçado à uma situação que se
caracteriza pela desigualdade.
Em suma: quanto mais o parlamentarismo, a realização central
e mais típica deste idealismo estatal, torna-se aparentemente e
formalmente autônomo em relação à vida real da sociedade,
quanto mais se torna capaz de aparecer como puro órgão da
vontade ideal do povo, tanto mais ele se torna adequado a servir
como instrumento para implementar os interesses egoístas de
grupos capitalistas e isso precisamente sob a aparência de
uma liberdade e igualdade ilimitadas. Talvez aqui o termo
‘aparência’ não seja inteiramente exato. Com efeito, aqui não se
afirma simplesmente uma aparência de liberdade e de
igualdade, mas precisamente sua aparência econômica, ou seja,
o que liberdade e igualdade efetivamente representam na
circulação capitalista das mercadorias (LUKÁCS,.2008, p. 93).
É preciso deixar claro, porém, que esta duplicidade entre o ser individual, egoísta e o
ser genérico, desenvolvida pelo capitalismo, coloca, lado a lado, as individualidades as mais
heterogêneas, em virtude de um processo de acumulação privada dos bens e da socialização
cada vez mais crescente das formas de produção.
41
. Numa entrevista Meszaros faz um balanço da crise do capitalismo atual concluindo que todas as alternativas que o
sistema tinha a propor redundaram em fracasso. “A única certeza é que as adaptações reformistas do passado não terão êxito
duradouro. A crise atual é demasiado profunda para isso. Somente uma transformão estrutural radical pode ser uma saída
sustentável.” Assim, o socialismo tem alguma coisa a dizer e possibilidade de propor alternativas que possa nos livrar da
barbárie. ( MÉSZÁROS, 2009)
109
O capitalismo, ao mesmo tempo em que cria e estimula o desenvolvimento do
egoísmo,
42
por outro lado aproxima, de forma crescente, os indivíduos de acordo com as
posições que ocupam nesse sistema produtivo. E ao provocar necessariamente essa
aproximação ele cria, paradoxalmente, uma cisão que divide esses mesmos homens por
interesses inconciliáveis, condenados a um conflito permanente, em que as instituições
garantem a convivência, porém provisoriamente.
A solução dessa contradição, isto é, entre o indivíduo egoísta material e a questão
cidadã, não é e não pode ser o resultado de processo evolutivo natural, como se ela estivesse
guardada em algum lugar do futuro, cuja previsão e realização fossem inexoráveis. Para Marx
a solução desse conflito é possível e necessária, porém é o resultado de um longo processo
que articula as condições objetivas com a vontade consciente de uma classe social.
Isto é importante porque a realidade do capitalismo, conquistada por um amplo
movimento, foi a consolidação de um sistema onde as questões democráticas passaram a ser
aspectos puramente formais com relação à vida material. Assim, a luta pela democracia
passou a ser de interesse dos trabalhadores,
43
porque as bandeiras revolucionárias de caráter
geral, que acenavam com possibilidades de libertação foram transformadas em instrumentos
de consolidação de interesses particulares de classe, da burguesia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No início dessa pesquisa colocamos algumas questões a respeito da compreensão e do
funcionamento da democracia, exatamente num período de crise, tanto dos modelos que
foram erguidos a partir do marxismo como também do modelo de democracia que foi
consolidado a partir das instituições liberais.
Nosso interesse maior estava localizado na perspectiva do marxismo, para avaliar até
que ponto os fundamentos teóricos formulados por Marx ainda podem ser considerados
importantes para ajudar a compreender e superar os problemas que as transformações do
mundo moderno agravaram.
A pergunta, então, que se apresentava como desafio era a seguinte: existem, afinal, nos
escritos de Marx, algumas respostas que possam ser consideradas convincentes e que possam
ser utilizadas como guias no sentido de elaboração de um projeto realmente democrático, que
incorpore as grandes maiorias das populações excluídas num processo de civilização onde as
42
-Lukacs explica, no seu ensaio sobre o Processo de democratização, p. 83 a 106, que o desenvolvimento do egoísmo no
capitalismo está ligado, por um lado, ao rompimento da solidariedade existente no antigo regime feudal e por outro à questão
da apropriação privada em sentido pleno dos bens pelos indivíduos. (LUKÁCS, 2008).
43
- Duas abordagens importantes sobre esse assunto encontram-se em: (TOGLIATTI, 1980) e em (FORNAZERI, 1988)
110
necessidades sociais básicas sejam atendidas para que a liberdade possa ser construída sem os
constrangimentos da violência e da miséria?
O resultado dos estudos que fizemos aponta para algumas considerações. Temos que
considerar que a questão da democracia em Marx se diferencia de todas as visões anteriores.
O ponto central dessa distinção encontra-se no fato de que todas aquelas visões conviviam, e
aceitavam como natural a existência das desigualdades sociais, isto é, com a sociedade
dividida em classes. Esta constatação nos permite concluir que não existe nem no campo
teórico nem na prática política uma concepção de democracia que permita uma compreensão
não a respeito das contradições do sistema que predomina no mundo contemporâneo como
também que possua uma proposta mais abrangente como a que foi desenvolvida por Marx e
Engels; principalmente considerando que elas foram enriquecidas com as contribuições de
vários pensadores e do movimento político desenvolvido pelos marxistas.
A partir dessa premissa, concluímos que para se chegar a uma democracia, com as
características que Marx e Engels previram, a revolução era e continua sendo um instrumento
fundamental. Sabemos que é muito difícil imaginar uma revolução no mundo de hoje, não
em virtude do poder econômico como também dos instrumentos das forças repressivas, tanto
do Estado como das classes dominantes.
Além disso, temos de considerar a imensa abrangência que possuem os órgãos de
propaganda, a chamada mídia com sua grande capacidade de formar opinião. Ela formou, em
torno de alguns princípios individualistas, quase um consenso. Porém, por outro lado,
constatamos que as contradições previstas por Marx tomaram uma dimensão tão grande que é
praticamente impossível considerar esse estado de coisas como natural, segundo a tese que
prega o fim da história, defendida por um burocrata americano, chamado Fukuyama
(FRIGOTTO, 2003).
Esta é a razão pela qual a revolução não pode ser descartada. Até porque, se o regime
se aperfeiçoou e tomou novas proporções, os marxistas também aprenderam com as
experiências revolucionárias, inclusive com suas crises e derrotas
44
. Aprenderam,
principalmente, que os capitalistas, por mais que se apresentem de forma aparentemente
renovada, não conseguem esconder o caráter de classe como elemento prioritariamente
responsável pela degradação do homem.
Além disso, como os próprios textos de Marx e Engels nos ensinaram (principalmente
os que foram produzidos na segunda metade do século XIX) e mais ainda os dos marxistas
que vieram depois, a revolução não é, fundamentalmente, um combate frontal conforme foi
44
Uma trajetória do marxismo, de forma bem sintética é feita por Leandro Konder ( KONDER,2009-a).
111
assinalado em 1848 no Manifesto do Partido Comunista. Quando eles estimulavam e
apoiavam as lutas imediatas dos operários pela conquista de melhores condições de trabalho,
por melhores salários e pelo voto universal, eles estavam nos autorizando a concluir que a
reforma e a revolução não são dois processos excludentes. Pelo contrário, ambos podem ser
concatenados.
O que eles colocavam era a prioridade da revolução sobre as reformas. Aliás, a
revolução não foi uma invenção de Marx. A própria burguesia tinha utilizado esse
instrumento. O fundamento da revolução encontra-se no fato, segundo ele, de que nenhuma
classe dominante abre mão passivamente de seus privilégios, obrigando as classes
revolucionárias a utilizar os recursos da força.
Não é irrelevante considerar que a Grande Revolução Francesa do final do século
XVIII tornou-se uma grande referência para Marx. Porém, a questão da violência, para Marx,
não era um dogma, de maneira que, segundo Labica, “Nem o processo revolucionário, nem a
guerra de independência, nem a ditadura democrática pressupõem formas de violência
aberta. A violência não está inscrita em sua natureza. Ela lhes é imposta pela potência
repressiva da ordem estabelecida. Se houvesse alternativa, não dúvidas de que a via
pacífica seria a preferida.“(LABICA, 2009,p. 136)
Também podemos constatar que para eles não existe nenhum aspecto importante desse
processo de mudança, no sentido da democracia que seja colocado de forma dogmática, ou
que possa ser apropriada por qualquer classe ou grupo social que pudesse dirigir a sociedade
em benefício de interesse particular. Mesmo num determinado período de transição, chamado
de socialismo, quando a classe operária se tornaria hegemônica, o regime se tornaria
universal. O socialismo teria, portanto, uma nova referência. Neste prevaleceriam os
interesses de toda a sociedade (MARX, 1998).
Adquirimos também, nesse estudo, a convicção de que a origem do processo de
democratização socialista encontra-se no próprio seio da sociedade e da produção capitalista.
Isto porque ela concentra os trabalhadores em torno dos locais de trabalho e que por isso
permite e facilita a sua organização, de forma cada vez mais socializada. Assim, o
encaminhamento de uma resistência, torna-se crescente, na medida em que o capital vai se
concentrando de forma cada vez mais intensa, devido ao aprimoramento das máquinas e o
aumento da desproporção entre o capital constante e o capital variável. Este processo provoca
o aumento do chamado exército de reserva que contribui de forma significativa para diminuir
os salários e dificultar a capacidade de negociação.
112
Como a história para Marx era o resultado da luta de classes, que adquire sua forma
mais acabada no capitalismo, as questões políticas, ideológicas e de direito não podiam ter
uma explicação nelas. A explicação para esses aspectos da sociedade podia ser encontrada
na estrutura econômica. Talvez, isso explique a desproporção entre sua obra fundamental, O
capital, e sua produção com relação aos outros aspectos. Sabemos que seu projeto era muito
mais ambicioso, no entanto ficou incompleto (NICOLAUS, 2006).
Com relação à questão do Estado, concluímos que até hoje continua um aspecto
bastante polêmico. Sua visão inicial, como instrumento de opressão e de defesa dos interesses
das classes dominantes foi se alterando no tempo e hoje, mesmo se considerando que em
última instância ele continua como um instrumento que utiliza a força. Não encontramos
muitas evidências de que ele possa em algum momento desaparecer ou ser absorvido por algo
diferente. A explicação da história, como o resultado da luta de classes, que vai se
simplificando cada vez mais, não nos parece suficiente.
Por último, temos de considerar que mesmo que os conhecimentos e as influências
das ideias e posições de Marx e de Engels tenham atravessado os tempos e se apresentado até
hoje com grande atualidade, não podemos esquecer que foram pensadores do século XIX, e
que não podemos ter a pretensão de encontrar neles respostas para problemas que não
vivenciaram. Principalmente Marx, que morreu em 1883 e, portanto, não teve oportunidade
de presenciar transformações importantes que se desenvolveram com uma nova fase do
capitalismo, chamada por Lênin e outros teóricos de capitalismo monopolista.
Porém, essa pesquisa, mesmo tendo sido realizada baseada num universo limitado de
obras, para atender a uma tarefa limitada como exigência de um curso de Mestrado, mesmo
assim foi o suficiente para nos convencer de que, nos fundamentos, os textos de Marx e de
Engels nos oferecem um instrumental e um método que, como nenhum outro, pode
possibilitar não a compreensão do mundo de hoje como, principalmente, a formulação de
um projeto e de uma estratégia para transformá-lo.
45
Isto é bastante relevante porque não podemos repedir, ao da letra, todas as
afirmações que fizeram. Afinal, suas ideias tiveram desdobramentos, tanto teóricos como
práticos, e muitos outros pensadores, como Lênin e Gramsci, enriqueceram de forma
impressionante o marxismo, que apesar de toda a crise que atravessa, sobretudo após o
desmoronamento de vários regimes que foram construídos em seu nome, ainda aparece e se
apresenta como o principal patrimônio alternativo à democracia representativa do capitalismo.
45
Os textos de J. P. Netto (NETTO, 1987), de C. N. Coutinho ( COUTINHO, 1998) enriquecem muito o debate sobre essa
questão.
113
Segundo as palavras de Hobsbawm, “O futuro do socialismo assenta-se no fato de que
continua tão necessário quanto antes, embora os argumentos a seu favor não sejam os
mesmos em muitos aspectos. A sua defesa assenta-se no fato de que o capitalismo ainda cria
contradições e problemas que não consegue resolver e que gera tanto a desigualdade como a
desumanidade” (FRIGOTTO, 2003, p. 11)
114
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