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GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA
A EDUCAÇÃO COMO FUNDAMENTO DA UNIDADE E DA FELICIDADE DA
PÓLIS NA REPÚBLICA , DE PLATÃO
Rio de Janeiro
2010
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GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA
A EDUCAÇÃO COMO FUNDAMENTO DA UNIDADE E DA FELICIDADE DA
PÓLIS NA REPÚBLICA , DE PLATÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
Orientadora: Profa. Dra. Maria das Graças de
Moraes Augusto
Rio de Janeiro
2010
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GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA
Motta, Guilherme Domingues da
A educação como fundamento da unidade e da felicidade da lis
na República, de Platão. / Guilherme Domingues da Motta.
Rio de Janeiro, 2010.
293 f.
Orientador: Maria das Graças de Moraes Augusto.
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Platão. 2. República. 3. Educação. 4. Política. I. Augusto, Maria
das Graças de Moraes. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA
A EDUCAÇÃO COMO FUNDAME NTO DA FELICIDADE E DA UNIDADE DA
PÓLIS NA REPÚBLICA, DE PLATÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
Aprovada por:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria das Graças de Moraes Augusto (UFRJ Orientadora)
______________________________________
Profa. Dra. Alice Bitencourt Haddad (UFRRJ)
______________________________________
Profa. Dra. Maura Iglésias (PUC-Rio)
______________________________________
Prof. Dr. Ricardo Jardim (UFRJ)
______________________________________
Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho (USP)
Rio de Janeiro, ______ de ______________________ de 2010.
À Junia.
AGRADECIMENTOS
Aos amigos Carlos Frederico Gurgel, Sérgio Salles, Antônio Carlos Hirsh, pelo apoio e pela
interlocução.
A Guilherme Cecílio e Renata Ramos, pela amizade, pelo desvelo na leitura, pelas
contribuições e críticas fundamentais.
À Claudia Assad, pela amizade, desvelo na leitura do texto e interlocução.
À Enedina e Sônia, pela solicitude e gentileza ao longo dos anos.
Aos meus alunos, pela motivação constante.
Aos membros da Banca de Pré-Defesa, Professores Ricardo Jardim, Alice Bitencourt Haddad
e à minha orientadora, Professora Maria das Graças de Moraes Augusto, pelas leituras,
contribuições, correções, críticas e interlocução.
À Fundação Dom Cintra, pelo auxílio financeiro.
[...]
Quem vê o todo é dialético; quem não o vê, não é.
Platão. República, 537c.
RESUMO
A compreensão adequada da proposta política contida na República, de Platão, depende
fundamentalmente do entendimento de que a “educação primária”, composta pela mousiké e
gymnastiké, se estende a todas as classes da cidade. Falhar em reconhecer um aspecto tão
importante acarreta graves incoerências. Subestimar o alcance do poder retificador da
educação resulta em um empobrecimento da concepção platônica de política. Que esse poder
não seja absoluto não exclui que ele possa atuar, em certa medida, na maioria dos homens, ao
lado dos costumes, criando neles mesmos o fundamento da boa vida, tanto particular como
pública. Uma interpretação da República que leve em conta o seu caráter dialético, segundo o
qual certas passagens posteriores esclarecem, ampliam, e até modificam o sentido de uma
passagem anterior, se torna fundamental para o entendimento adequado da obra. A esse
método de interpretação se deve aliar a consideração de que Platão faz frequentemente uso de
“antecipações”. Deve-se ainda compreender que a “educação primária” é condição necessária
das virtudes e do modo de vida da cidade.
Palavras-chave: Platão. República. Educação. Política.
ABSTRACT
An adequate understanding of Plato’s Republic’s political proposal depends fundamentally on
the consideration that “elementary education”, composed by mousiké and gymnastiké, be
extended to all the classes in the city. The failure to recognize such an important aspect entails
severe incoherencies. To underestimate the reach of the rectifying power of education results
in the impoverishment of Platonic political conception. That such power is not absolute does
not rule out that it, nevertheless, can act, in a certain measure, in most people, along with
customs, establishing the basis of a good life, whether private or public. An interpretation of
the Republic which takes into account its dialectical character, according to which certain
subsequent passages clarify, enlarge and even modify the meaning of previous passages,
becomes fundamental to the adequate understanding of the work. This method of
interpretation must be combined with the consideration that Plato frequently uses
“foreshadowings”. One must understand that “elementary education” is a necessary condition
to virtues and to the way of life of the city.
Keywords: Plato. Republic. Education. Politics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................
9
FILOSOFIA E CRISE..................................................................................................
26
A crise de valores e a nova concepção de virtude na Apologia de
Sócrates...................................................................................................................
26
Os critérios da sophía no Laques e sua importância no contexto da
crise.........................................................................................................................
34
A crise de valores na República e o papel da sophía...........................................
45
O argumento de Gláucon.........................................................................................
53
O argumento de Adimanto.......................................................................................
60
A CIDADE NO LÓGOS E A PROPOSTA DE PAIDEÍA NA REPÚBLICA............................
76
O conteúdo da poesia.............................................................................................
79
O estilo da poesia...................................................................................................
86
As harmonias e os ritmos......................................................................................
90
A gymnastiké ..........................................................................................................
91
AS VIRTUDES NA CIDADE E NA ALMA.......................................................................
93
As virtudes na cidade............................................................................................
93
As virtudes na alma...............................................................................................
125
A EXTENSÃO DA EDUCAÇÃO....................................................................................
141
Os efeitos da paideía na cidade no lógos...........................................................
154
O modo de vida na cidade e sua unidade............................................................
207
A comunidade de bens, mulheres e filhos..............................................................
222
As formas corrompidas...........................................................................................
242
A felicidade ............................................................................................................
255
CONCLUSÃO.............................................................................................................
269
REFERÊNCIAS..........................................................................................................
279
Edições/traduções de República...........................................................................
279
Sobre República.....................................................................................................
279
Sobre Platão ..........................................................................................................
284
Edições/traduções de obras antigas.....................................................................
Sobre cultura, história e literatura......................................................................
289
291
Index e léxicos........................................................................................................
292
9
1 INTRODUÇÃO
É conhecida e muito debatida a polêmica proposta educacional apresentada por Platão na
República, na cidade que propõe que seja construída com o lógos
1
, nessa obra, principalmente no
que diz respeito à primeira etapa da educação.
Considerando-se que o modelo de educação (paideía) proposto nessa obra pode ser
dividido em duas etapas, chamar-seaqui a primeira etapa de ―educação primária‖ e a segunda
de ―educação superior‖. A primeira etapa, que estará no foco da discussão, é uma educação que
se pela mousiké e pela gymnastiké, no que segue, nesse aspecto, a tradição grega; e a segunda
consiste em um programa de estudos de disciplinas ligadas à matemática e no estudo da dialética.
Se a mousiké para os gregos envolvia tudo o que diz respeito à recitação poética, não só o
conteúdo versificado mas os ritmos, as harmonias, a atitude corporal e o uso de instrumentos; e a
gymnastiké, tudo o que dizia respeito à excelência física, as razões da polêmica que envolvem a
primeira etapa podem residir tanto nas alterações e nas restrições que sofrem a poesia tradicional
no âmbito da educação primária proposta, quanto na suposta extensão dessa educação a uma
minoria dos cidadãos.
Se, para atender aos fins que pretende, a poesia é convertida em instrumento a serviço da
pedagogia e da política, e isso significa alterá-la profundamente quanto ao conteúdo e ao estilo, já
haveria aqui motivos suficientes para protestos entre os admiradores da poesia grega; assim, seria
necessário investigar se existe justificativa possível para tais restrições e tal subordinação.
Admitindo-se que essas restrições são compreensíveis em vista dos fins visados pela obra,
os quais se espera atingir, em grande parte, através da educação, restaria perguntar por que, se se
considera que esse modelo de educação visa a um bem para os educandos, contemplaria a menor
parte dos cidadãos da cidade.
As questões são indissociáveis, porém o que se pretende aqui é uma análise do modelo
educacional da República para mostrar que a educação primária deve ser compreendida como se
estendendo a todos os cidadãos da cidade construída no lógos.
Uma primeira objeção a essa tese de que a educação pela mousiké e pela gymnastiké
constantes da República se estende a todos os cidadãos da cidade construída com o lógos é a de
1
Todas as transliterações foram feitas de acordo o modo ordinariamente empregado, resguardadas as seguintes
peculiaridades: e; - o - kh; e ao iota subscrito corresponde a letra i, adscrita e entre parênteses.
10
que não referência explícita a tal extensão; a essa objeção, acrescenta-se uma outra: a de que a
análise desse modelo de educação teria sido suscitada pela necessidade de educar os homens de
uma classe da cidade: a dos guardiões. Embora, em uma certa altura da obra, essa classe seja
divida em duas a dos guardiões-governantes e a dos guardiões-auxiliares , são estas que são,
segundo a maior parte dos comentadores da República, beneficiadas pela educação primária
descrita, ficando a terceira classe, e a mais numerosa, a dos artesãos, excluída dela.
Alguns adotam essa interpretação sem sequer tematizá-la, pois dão como suposto que a
educação primária visa aos guardiões
2
. Outros, mais raros, formam um segundo grupo e
procuram mostrar não só que se deve admitir que a educação primária visa aos guardiões mas
que, pelo que diz o texto, não pode destinar-se aos artesãos
3
. O principal representante desse
segundo grupo, pelo espaço que dedica à questão e pelo número de argumentos aduzidos contra a
tese da educação comum, é Reeve.
A tese contrária, e que se procurará defender também aqui, segundo a qual a educação
primária deve ser interpretada como se estendendo a todos os cidadãos, inclusive aos artesãos, é
muito menos defendida e, quando o é, isso ocorre de forma deficiente, pois geralmente envolve
um único aspecto e não procura responder às objeções levantadas pelos comentadores do segundo
grupo mencionado no parágrafo acima. Também é deficiente porque não procura confrontar sua
interpretação com as passagens do texto que resultariam aparentemente contraditórias com a sua
tese nem apresentar uma possível solução
4
.
2
Neste grupo, poder-se-iam elencar Jaeger, Grube e Nettleship. Cf. JAEGER, Werner. Paidéia, a formação do
Homem Grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995; GRUBE, G. M. A. Plato’s
Thought. Indianapólis: Hackett, 1980; NETTLESSHIP, R. L. Lectures on the Republic of Plato. London: Macmillan,
1920. ; _______ The Theory of Education in the Republic of Plato. Honolulu: University Press of the Pacific, 2003.
3
Neste grupo, poder-se-iam elencar Hourani, Ferrari, Strauss e Reeve. Cf. HOURANI, G. F. The Education of The
Third Class in Plato‘s Republic. The Classical Quarterly, v. 43, n.1/2, p. 58-60, 1949; FERRARI, G. R. F. City and
Soul in Plato’s Republic. Chicago: University of Chicago Press, 2005; STRAUSS, L. The City and Man. Chicago:
University of Chicago Press, 1978; REEVE, C. D. C. Philosopher-Kings: The Argument of Plato‘s Republic.
Princeton: Princeton University Press, 1988.
4
Neste grupo, poder-se-iam elencar Shorey, Cornford, Dorter, Irwin, Taylor e Vlastos. Cf. SHOREY, Paul (Trad.).
The Republic. London: Harvard University Press, 1994. v. 2. (The Loeb Classical Library, Plato, 5 e 6);
CORNFORD, Francis M. (Trad.). The Republic of Plato. Introduction and notes by Francis MacDonald Cornford.
New York: Oxford University Press, 1990; DORTER, Kenneth. The Transformation of Plato’s Republic. New York:
Lexington Books, 2006; TAYLOR, A. E. Plato, the man and his work. London: Methuen, 1960; IRWIN, Terence.
Plato’s Ethics. New York: Oxford University Press, 1995; VLASTOS, Gregory. Platonic Studies. 2nd. ed. New
Jersey: Princeton University Press, 1981. Embora sem o mesmo grau de argumentação ou de confrontação com as
teses contrárias, com o qual se defenderá aqui a tese de que a educação primária se estende a todas as classes, a
posição sobre o tema mais próxima da que se apresentará aqui se encontra no comentário à República de Averróes.
Cf. AVERRÓES. Exposición de la “República” de Platón. Traducción y estudio preliminar de Miguel Cruz
Hernández. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1998.
11
Defender de forma suficiente a tese da educação comum a todas as classes exige,
portanto, que, por um lado, se refutem as teses do ―segundo grupo‖ de comentadores
supramencionado, que aduzem razões para que se rejeite que a educação primária se estende a
todos os cidadãos, e que, por outro lado, seja essa tese confrontada com as passagens do texto
problemáticas, com o propósito de mostrar que, mediante uma interpretação abrangente, ela
resiste a todos os testes.
Uma interpretação abrangente exige, no entanto, um método; e o que será aqui adotado é
fundamentalmente devedor em relação a dois autores: Charles Kahn e David Roochnick.
Em Plato and the Socratic dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form, Charles
Kahn defende a tese segundo a qual todos os diálogos de Platão escritos antes da República
representam, em estágios, não o desenvolvimento do pensamento do autor Platão, mas ―diferentes
momentos de sua apresentação de Sócrates e diferentes abordagens da posição filosófica da
República
5
. Segundo esse autor, Platão criou ainda, ao escrever um certo grupo de diálogos,
uma forma essencialmente nova: a do diálogo aporético com uma cena pseudo-histórica. Kahn
chama os diálogos que pertencem a esse grupo por um nome de difícil tradução: threshold
dialogues‖ ou diálogos pré-intermediários, por estarem no ―limiar‖ da apresentação mais clara de
questões as quais ―antecipam‖ e para as quais preparam e que serão apresentadas pelo grupo de
diálogos que virá a seguir, chamado grupo intermediário (middle dialogues), o qual comporta o
Banquete, o Fédon e, principalmente, a República, que, por sua vez, pode ser considerada a obra
para a qual todos convergem, tanto os diálogos pré-intermediários, quanto os que, junto com ela,
recebem o nome de intermediários. O grupo desses diálogos pré-intermediários seria composto
por: Laques, Cármides, Eutífron, Protágoras, Mênon, Lísis e Eutidemo
6
.
Segundo Kahn, os diálogos pré-intermediários foram concebidos para preparar o leitor
para as concepções constantes do Banquete, do Fédon e da República, e eles ―só podem ser
adequadamente compreendidos a partir da perspectiva desses diálogos intermediários‖
7
.
Seguindo essas premissas, o que Kahn faz na obra referida é mostrar como estas se
fundamentam na análise dos diálogos; para isso, o autor aduz vários exemplos em que seu
método interpretativo é enormemente esclarecedor.
5
KAHN, Charles H. Plato and the Socratic dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996. p. 48. Tradução própria.
6
KAHN, 1996, p. 41.
7
KAHN, 1996, p. 60.
12
No artigo Proleptic Composition in the Republic, or Why Book I was Never a Separate
Dialogue, Kahn aplica o método à própria República e mostra uma série de ―antecipações‖,
presentes no livro I, de questões que serão desenvolvidas e esclarecidas no restante da obra
8
.
Seria impossível reconhecer aqui todas as dívidas que resultaram, no que diz respeito à
compreensão de muitos diálogos de Platão, da leitura de Kahn.
Aqui mesmo, algumas vezes, se fará referência a alguns pontos estabelecidos por ele.
Porém, o que se deseja é estender o próprio método de leitura dos diálogos concebido por Kahn, a
toda a República, e mostrar que a aplicação do método vai muito além da possibilidade de se
mostrar como o livro I é indissociável do resto da obra. Assim, aplicar-seo seu método na
interpretação que se proporá aqui da República e se procurará mostrar como se resolvem certas
dificuldades do texto, que ficariam sem solução, ou com uma solução insatisfatória, se não se
considerasse que certas partes do texto contêm antecipações do que será desenvolvido e
esclarecido mais à frente na obra.
Esse método será aplicado a algumas passagens cujo esclarecimento é fundamental para
que se possa defender com fundamento que a educação primária proposta na República se
estende a todos os cidadãos, assim como para mostrar que são coerentes com essa interpretação
da obra certas passagens que poderiam ser consideradas contraditórias com ela.
Um segundo aspecto do método de interpretação que será explorado aqui e pode encontrar
filiação em um intérprete das obras de Platão é aquele proposto por David Roochnik em Beautiful
City: The Dialectical Character of Plato´s Republic, que ele chama de ―interpretação dialética‖
9
.
Embora seu livro contenha uma proposta de interpretação da República, é mais o seu
método que interessa aqui, pois os aspectos da obra por ele abordados visam a um fim diverso do
objetivo específico almejado aqui.
Segundo Roochnick, a República é uma obra ―dialética‖ no sentido de que teses afirmadas
em certo momento na obra
10
não podem ser consideradas teses isoladas expostas explicitamente e
então consubstanciadas em um ponto específico dela. Segundo ele, essas teses devem ―emergir
8
Para uma leitura alternativa da relação entre o livro I da República, entendido como ―proêmio‖, e o restante da
obra, ver AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. O Proêmio à Décima Musa: A função proemial do livro I na
República de Platão. Revista Latinoamericana de Filosofía, [S.l], p.1-35, 2010.
9
ROOCHNIK, David. Beautiful City: The Dialectical Character of Plato‘s Republic. New York: Cornell University
Press, 2003.
10
Roochnick, em sua exposição desse ponto tem em vista um aspecto específico que é uma possível concepção sobre
a democracia menos negativa do que se supõe. Aqui, entretanto, trata-se o método independentemente da questão
abordada. Cf. ROOCHNICK, 2003, p. 2.
13
do diálogo como um todo, da tessitura mesma da obra compreendida como uma atividade
dialética‖
11
. Considera ainda que certas teses, mesmo que o estejam explicitamente afirmadas
por uma passagem específica da obra, na qual encontre fundamento explícito, podem emergir da
compreensão de seu todo.
Segundo essa perspectiva, Roochnik defende que a República deve ser lida como uma
obra na qual um certo estágio preliminar do diálogo pode ser tomado como tendo sido
interrompido e então revisado de forma crescentemente mais rica e adequada
12
. Em complemento
a isso, diz Roochnik sobre seu próprio método:
Em um desenvolvimento dialético, um estágio prévio não é, entretanto, totalmente
descartado como sendo simplesmente errado. Antes, mesmo que parcial ou limitado a
um ponto de vista apenas, é, não obstante embora modificado e, portanto, negado pela
explicação mais completa que lhe sucede preservado na sua parcialidade mesma como
um estágio ou momento de todo o desenvolvimento
13
.
Esse método de interpretação dialética, pelo qual uma passagem posterior da República
pode ser tomada como esclarecendo, ampliando, e mesmo revendo ou modificando o sentido de
uma passagem anterior sobre o mesmo tema, será fundamental para sustentar a leitura da obra
que se defenderá aqui.
A descrição do método de interpretação adotado não estaria completa se não se fizesse
referência a uma abordagem, que é aquela recomendada pelo próprio Platão na República,
segundo a qual se deve considerar se o que se descreve sobre as virtudes e o modo de vida, enfim,
sobre os bens da cidade construída com o lógos, nessa obra, é compatível com as instituições que
foram descritas exatamente como aquelas que os promove. Não seria supérfluo citar a passagem
mais explícita e significativa a esse respeito, a qual, entretanto, encontra ecos em toda a obra:
14
11
ROOCHNICK, 2003, p. 2. Tradução própria.
12
ROOCHNICK, 2003, p. 5.
13
ROOCHNICK, 2003, p. 5. Tradução própria.
14
PLATÃO. República, 462a: Utilizou-se a tradução de PEREIRA, Maria Helena da Rocha (Trad.). A República. 5.
ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.
14
Porventura não deve ser o ponto de partida do nosso acordo perguntar a nós mesmos
qual é o maior bem que podemos apontar na organização de uma cidade, aquele que o
legislador deve ter em vista ao promulgar as leis, e qual é o maior mal? E depois, em
seguida, inquirir se as instituições que descrevemos nos ajustam às pegadas do bem, e
nos desviam das do mal?
O que Platão propõe aqui, em outras palavras, é que certas coisas que são efeitos e
outras que são causas ou parte das causas, e que, muitas vezes, certas causas são condições de
possibilidade de certos efeitos. Se se descreve algo como bem e se relaciona esse bem como
tendo sido promovido maximamente ou unicamente por certas instituições, então essas
instituições podem ser chanceladas como causas necessárias ou parte delas na promoção desses
bens.
Assim, certos bens que se encontram na cidade construída no lógos, como, por exemplo,
as virtudes que se identificam nela e um certo modo de vida que é considerado melhor, são vistos
por Sócrates como efeitos das instituições de que foi provida a cidade, as quais, então, podem ser
consideradas sua causa, ou parte necessária da causa.
Tudo o que se diz das virtudes, das qualidades que tem a cidade e do modo de vida,
descritos como presentes nela, deve suscitar, portanto, a pergunta sobre quais instituições tornam
cada uma dessas coisas possíveis.
Acredita-se que a consideração dessa premissa metodológica aliada aos outros dois
métodos antes mencionados possam levar a bom termo a proposta de fundamentar a tese segundo
a qual a educação concebida para a cidade construída com o lógos, na República, se estende a
todas as classes descritas nessa cidade.
Um outro aspecto que, se entende, deve ser considerado e deriva em certa medida dos
métodos de leitura sugeridos por Kahn e Roochnik tomados em conjunto, é a consideração de
que, assim como os diálogos anteriores à República antecipam questões que são melhor
formuladas e esclarecidas nessa obra, podendo ela, inclusive, apontar para a solução certas
aporias de uma obra anterior, o mesmo pode se dar com relação a obras posteriores à República,
que, sob certos aspectos, poderiam lançar luz sobre temas tratados com certa obscuridade e
mesmo apontar a solução de certas aporias, remetendo o leitor da República novamente à obra,
para, sob a perspectiva de uma nova hipótese, procurar enxergar a maneira de solucionar a
aporia.
15
No Laques, por exemplo, tenta-se sem sucesso definir o que é a coragem e o diálogo
termina com os interlocutores em aporia. Deve-se notar, entretanto, que se chegou a afirmar
concepções de coragem que são aquelas dadas como boas na República. Nesse sentido, o fato de
não ter sido esclarecida a aporia do Laques no âmbito desse diálogo, não significa que as
concepções aí avançadas sobre a coragem sejam falsas ou indefensáveis. A República, ao retomar
essas concepções como boas pode representar, assim, também um convite a uma volta ao Laques
para que se examine qual foi a causa da aporia lá. Se essa tese se sustenta, então, através dos
diálogos, Platão convida seus leitores a se converterem em dialéticos e a resolverem, eles
próprios, as aporias deixadas sem solução.
Se Platão é aquele que, mais do que qualquer outro, precisa defender a proposta de vida
voltada para a filosofia e para o exame dialético das questões, posta na boca de seu mestre
Sócrates na Apologia, então faz parte de seu projeto, como mostra Kahn, ir paulatinamente
preparando os leitores para compreenderem tudo o que precisam compreender sobre a filosofia de
que fala.
Deve-se, portanto, considerar que o tipo de exercício dialético que Platão impõe aos seus
leitores não se resume a acompanhar as discussões, às vezes intrincadas e difíceis, no momento
mesmo em que se o diálogo, mas é um exercício que se continua no próprio tratamento
dialético das questões propostas, o qual exige uma visão abrangente para que as possíveis aporias
sejam superadas.
Tendo em conta que a questão de a quem se destina a educação primária tenha sido
considerada difícil pelo próprio Aristóteles
15
e por outros leitores
16
e que não se pode dar como
facilmente solucionável, o que se quer aqui, em vista do que se disse sobre a possibilidade de
considerar que um diálogo posterior lance luz sobre questões aporéticas de diálogos anteriores, é
que se coteje a República com as Leis, diálogo considerado mais tardio, e no qual se sugere a
consideração das instituições de uma ―segunda melhor cidade‖ em comparação com uma
hipotética ―melhor cidade‖, como é chamada a cidade construída no lógos, na República.
Kahn admite que não como provar a tese de que Platão, ao compor o Laques, por
exemplo, já tinha em vista a República e as soluções que conceberia para as aporias que
15
Na Política, Aristóteles entende que não é questão fácil determinar como será regulada a vida da classe dos
artesãos. Cf. ARISTÓTELES, Política, 1264a.
16
Neste grupo, poder-se-iam elencar Guthrie e Mayhew. Cf. GUTHRIE, W. K. C. A History or Greek Philosophy.
Cambridge: Cambridge University Press, 1962. v. 5. e MAYHEW, Robert. Aristotle’s Criticism of Plato’s Republic.
New York: Rowman & Littlefield Publishers, 1997.
16
aparecem naquele diálogo, mas entende, não obstante, que se deve aceitar a tese de que, no
mínimo, a República foi escrita remetendo-se ao Laques.
Da mesma forma, não se defenderá que Platão escreveu a República tendo em vista que
mais tarde escreveria uma outra obra, que viria a ser as Leis, na qual lançaria luz sobre as aporias
da República, e convidaria seus leitores a uma releitura. Porém, pretende-se que não se objete que
se considere que, quando escreveu as Leis, Platão tinha em mente também as propostas feitas na
República e que estava pondo em curso uma discussão que remetesse a ela de algum modo.
Poder-se-ia dizer que chamar a atenção para as Leis pode representar um risco para a tese
defendida aqui, pois, se Platão é explícito ao propor um modelo comum de educação
17
, isso
poderia significar não um esclarecimento sobre um ponto deixado propositalmente obscuro na
República e um convite a uma releitura desta, mas, antes, uma mudança em relação à tese que,
supostamente, defendeu lá, segundo a qual, a educação primária se destina apenas aos guardiões.
É claro que uma objeção assim terá sempre de ser levada em consideração e é por isso que
não será o caminho seguido aqui o de aceitar que se leia a República somente em vista do que se
diz nas Leis.
Entende-se que será suficiente uma interpretação da República que se sustente por si
própria, e é isso o que se pretende. Não obstante, como também não se pode descartar totalmente
a hipótese de que o velho Platão tenha, em sua última obra, e não pela primeira vez, fornecido
indícios de como se deveria ler uma obra anterior, adotar-seesse cotejo com as Leis através de
referências nas notas, exceto em algum caso específico em que a citação de algum trecho da obra
no corpo do texto se mostrar imprescindível, mesmo que como mera indicação de que uma certa
posição não era absurda para Platão, ainda que na velhice.
Sendo Reeve o principal comentador da República que se ocupa em demonstrar que não
se sustenta a tese de que se deve considerar que a educação primária se estende a todas as classes
na cidade construída como o lógos, na República, cabe apresentar seus argumentos para
estabelecer como meta mostrar que a interpretação da República que se fará aqui responde a
todos eles e possibilita entender como a educação primária pode se estender a todas as classes.
Em seu comentário à República
18
, Reeve
afirma que a construção com o lógos da cidade
idealizada na obra como a melhor cidade e mais feliz se em três estágios. Sobre eles, afirma
17
Cf. Leis, 665c, 770d, 804a.
18
REEVE, 1988.
17
que ―cada um dos quais descreve um diferente modelo ou cidade paradigmática (479d9e1): a
primeira cidade (369a5-372d3), a segunda (372e-471c3) e a terceira (473b4-544b3)‖
19
.
Segundo a interpretação de Reeve, quando Sócrates procura mostrar que a segunda cidade
é realizável (473a1-b2), na verdade está mostrando que a terceira cidade é que é uma
possibilidade real, sendo uma versão modificada, em certos aspectos, da segunda
20
.
Assim, a segunda cidade não seria, por si, uma possibilidade real, mas uma parte ou sub-
modelo da terceira cidade, esta, sim, possível. Se é assim, então mostrar que a terceira cidade é
possível, significaria mostrar que a segunda, sendo parte daquela também pode existir, e as três
póleis podem ser consideradas como constituindo uma ―série ordenada de boas cidades, cada uma
das quais, quando modificada, é uma componente da sua sucessora, sendo unicamente o terceiro,
que é o membro final, por si, uma possibilidade real.‖
21
A conclusão que Reeve deseja sustentar com sua análise da República é a de que cada
cidade torna possível a felicidade de cada uma das classes, sendo a primeira cidade aquela na
qual são felizes os amantes das riquezas (classe dos artesãos, que chama de produtores ou money
lovers); a segunda, aquela em que são felizes os amantes das honras (a classe dos guardiões-
auxiliares); e a terceira, aquela na qual são felizes os amantes da sabedoria (a classe dos
guardiões-governantes).
Sobre elas, diz Reeve:
A Primeira Pólis é a kallípolis para os amantes das riquezas. Mas essa não é uma
possibilidade real porque não inclui nada que contrabalance os efeitos desestabilizadores
dos prazeres desnecessários e da ambição os quais traz à luz; para isso, requerem-se
guardiões. Quando estes são incluídos, o resultado é a Segunda lis, cidade a qual
contém as instituições políticas necessárias para produzi-los. A Segunda Pólis é a
kallípolis para amantes da honra e amantes das riquezas. Mas não é uma possibilidade
real porque não provê nada para contrabalançar os efeitos desestabilizantes das falsas
crenças; para isso, requerem-se reis filósofos. Quando estes são incluídos, o resultado é a
terceira cidade, a qual contém as instituições políticas necessárias para produzi-los. A
Terceira Pólis, que é uma possibilidade real, é a kallípolis para os amantes das riquezas,
os das honras e os filósofos. A primeira cidade é, para usar de um hegelianismo
conveniente, ‗superada mas preservada‘ na Segunda, e a Segunda, superada mas
preservada na Terceira
22
.
19
REEVE, 1988, p.170. Tradução própria, como todas as referentes ao texto de Reeve.
20
REEVE, 1988, p. 170.
21
REEVE, 1988, p.171.
22
REEVE, 1988, p. 171-172.
18
A forma como Reeve interpreta a relação entre essas três cidades implica que o que se diz
sobre a segunda cidade, principalmente sobre o modo de vida e a educação, afeta apenas
indiretamente a primeira cidade e o seu modo de vida característico, à medida que explicita a
existência de instituições sem as quais aquela primeira cidade não subsistiria com a ordem
necessária para fazer seus habitantes felizes. Assim, a primeira cidade é uma parte da segunda,
aquela na qual os amantes das riquezas são felizes. Da mesma forma, a segunda cidade é uma
parte da terceira, aquela na qual os amantes de honras, classe que associa com os auxiliares
(epíkouroi e oficiais), são felizes, sendo a terceira cidade aquela na qual os amantes da sabedoria
(reis-filósofos) são felizes. A felicidade de todos é possível porque em cada cidade há as
instituições necessárias para tornar feliz uma das classes.
Com essa interpretação, Reeve parece manter-se fiel a uma premissa fundamental da
República: aquela segundo a qual a cidade é fundada não para tornar uma classe específica
especialmente feliz (diapheróntos eúdaimon), mas, tanto quanto possível, a cidade inteira
23
.
Porém, uma objeção que se pode fazer a essa interpretação é que ela só preserva a
premissa segundo a qual a cidade é feliz na sua totalidade à custa de tomar a palavra felicidade
como correlata à satisfação de um tipo específico de desejo. Assim, se o que caracteriza a classe
dos artesãos é o amor ao dinheiro (aqui significando, como observa Reeve, os bens sensíveis),
então ter esses desejos pelos bens sensíveis satisfeitos é o que basta para torná-la feliz. Da mesma
forma, se o que caracteriza a classe auxiliar é o amor à honra, receber essas honras é o que basta
para torná-la feliz e, se o que caracteriza os governantes é o amor à sabedoria, ter o acesso a esse
conhecimento viabilizado é o que basta para torná-los felizes.
Por outro lado, aceitar essa interpretação seria distanciar a noção de felicidade de uma que
parece muito mais cara à República e muito mais apropriada para ser elemento unificador do
múltiplo quando se procura defini-la como estando presente em todas as classes: o eupráttein e a
boa vida decorrentes da noção de justiça.
Se se entende a cidade proposta por Reeve, então vemos claramente que os artesãos estão
sujeitos à ambição (pleonexía), e o único elemento que impediria a desordem decorrente de sua
manifestação na primeira cidade são as instituições da segunda cidade e a vigilância dos
auxiliares, que devem impor de ―fora‖ o modo de vida dos artesãos.
23
Cf. PLATÃO. República, 420b.
19
Embora seja possível supor um tal ordenamento social, no qual a coerção terá de ter um
papel relevante, ele parece distanciar enormemente o modo de vida (e a consequente felicidade)
dos artesãos, de um lado, e o dos auxiliares e dos governantes, de outro. Assim, o modelo de
felicidade para os artesãos, na cidade, proposto por Reeve, ficaria assim: a felicidade dos artesãos
consiste em ter os seus desejos por bens sensíveis atendidos e uma certa ordenação na vida
devido à coerção externa dos guardiões. Exatamente para marcar essa distância entre os modos de
vida de uns e de outros, é necessário a Reeve defender que a educação primária não se destina à
classe dos artesãos, mas apenas à dos guardiões.
Para Reeve, a educação primária é introduzida ―como parte de um conjunto unificado de
ordenamentos sociais divisados para tornar guardiões as crianças que já possuem os dons naturais
requeridos em um soldado-policial‖
24
.
O autor em questão argumenta que:
(1) como a classe produtiva está excluída do programa de eugenia e do modo de vida,
que fazem parte do mesmo conjunto de ordenamentos sociais, e como, em geral,
procriam de acordo com seu tipo (415a7-8), então pouquíssimas crianças nascidas na
classe dos produtores terão os dons naturais necessários que são pré-requisitos para a
educação primária
25
.
Isso o leva a concluir que ―(...) a educação primária destina-se a futuros soldados (398b3-
4, 386b10-c1) ou guardiões (383c3-4, 387c3-5 401b8-c1, 402c1-c2), não a futuros produtores‖
26
.
Reeve elenca então uma série de argumentos que visam sustentar essa conclusão; seguem
as passagens nas quais se fundamentam:
(2) Nunca é dito explicitamente que a classe dos produtores receberá educação primária
e, embora sejam especificados em detalhe vários testes pelos quais reis-filósofos serão
separados dos guardiões em geral, que completaram a educação primária, nenhum teste
pelo qual são separados guardiões de um grupo maior de pessoas que receberam
educação primária é jamais mencionado. Dada a forma explícita como a República trata
as questões educacionais, especialmente as inovadoras, como uma dessa espécie, isso é
uma forte evidência de que a existência desse grupo maior não se sustenta. Os testes são
desnecessários porque somente filhos de guardiões excepcionais (460c1-5) e aqueles
raros filhos de produtores com ouro ou prata na sua natureza (415c3-5) recebem
educação primária
27
.
24
REEVE, 1988, p. 186.
25
REEVE, 1988, p. 186.
26
REEVE, 1988, p. 186.
27
REEVE, 1988, p. 186-187.
20
Na sequência:
(3) Cada elemento da educação primária é justificado em referência a algum traço de
caráter que um bom soldado-policial, motivado por um desejo de honra, deve ter. Mas
estes não são os traços requeridos por um produtor eficiente ao buscar o lucro.
Consequentemente, se a educação primária é pretendida para os produtores, não se provê
o tipo de rationale para fazê-lo que é cuidadosamente prevista no caso dos próprios
guardiões. (383c3-4, 386b10-c1, 387c3-5, 387e9-388a3, 394e1-395d1, 398e6-7, 401b1-
d3)
28
.
(4) Alguns dos argumentos pelos quais o curriculum da educação primária é justificado
mostram que ela é totalmente inapropriada para futuros produtores. Por exemplo, o
argumento dado em favor de se restringirem as histórias que compõem a educação
primária àquelas que requerem que os educandos imitem ou personifiquem apenas
gentlemen (kaloì kagathoì), não ferreiros ou outros artesãos, é aquele segundo o qual o
―princípio da especializaçãoaplica-se à imitação tanto quanto às reais artesanias, e que
uma pessoa deve imitar o tipo de pessoa que pretende ser (394e1-395b4). Nesse
contexto, futuros produtores deveriam fazer os papéis de sapateiros ou carpinteiros em
histórias sobre trabalhadores braçais e produtores obedientes, não os papéis de Aquiles,
Ajax ou Odisseus em histórias sobre bravos e corajosos guerreiros
29
.
Ainda enumerando os argumentos:
(5) No Mito dos Metais, no livro III, está claramente implicado que, exceto em um
número exíguo de casos, as crianças de produtores recebem uma educação
completamente diferente daquela das crianças dos governantes ou guardiões. ‗Se um
filho deles [dos governantes] acaso nascer com uma mistura de bronze ou ferro, de modo
algum se apiedem dele, mas honrem sua natureza apropriadamente e os lancem fora para
a classe dos trabalhadores e dos agricultores, e, novamente, se desses um filho acaso
nascer com uma mistura de ouro ou prata, eles o honrarão e o trarão para unirem-se aos
governantes e aos guardiões, pois um oráculo segundo o qual a pólis se arruinará se
algum dia tiver um guardião de bronze ou ferro.‘ (415b6-c6; cf. 423c6-d6). Claramente
não haveria sentido em enviar uma criança com ferro ou bronze em sua alma para
crescer entre agricultores e artesãos se ela fosse receber lá a mesma educação e as
mesmas honras que a prole de um guardião
30
.
(6) Os efeitos da educação primária são, às vezes, explicitamente contrastados com os
efeitos do tipo de educação dado aos produtores: ‗Na pólis que estamos fundando [a
Segunda Cidade], quem pensas que se tornará um homem melhor: o guardião que recebe
a educação que descrevemos [educação primária] ou os sapateiros que são educados na
arte de fazer sapatos?‘ (456d8-10; contraste similar é sugerido em 405a6-b4, 522a2-b7).
Isso não faria sentido se os produtores realmente recebessem a educação primária
31
.
Para concluir a enumeração:
28
REEVE, 1988, p. 187.
29
REEVE, 1988, p. 187.
30
REEVE, 1988, p. 187.
31
REEVE, 1988, p. 187-188.
21
(7) Ninguém ―será educado em músicaaté que conheça quais os modos e as qualidades
da temperança, da coragem e de outras semelhantes (402b5-c8). Mas ninguém pode
conhecê-los até que tenha acesso aos números de que essas coisas são imagens. Amantes
das riquezas, entretanto, m acesso a qualidades e modos. Segue que amantes das
riquezas e, consequentemente, produtores não podem ser educados em música
32
.
(8) Finalmente, no fim da discussão sobre a educação primária, somos informados de
que a ginástica não visa primeiramente ao corpo, como a maioria das pessoas pensa, mas
que tanto ela quanto a música visam a partes da alma (410b10-c3): ‗Parece que o deus
deu essas duas artes, música e ginástica, para os homens para essas duas coisas, não para
a alma e o corpo, mas para a aspiração [aspiration] e a razão, para que estas estejam em
harmonia uma com a outra, cada qual sendo afinada no grau apropriado de tensão e
relaxamento.‘ (411e4-412a2, cf. 441c8-442a2). Mas, se música e ginástica visam à
aspiração e à razão, não aos apetites e ao corpo, então, dada a estrita analogia entre
psykhé e pólis (435a5-b2), deveriam ser direcionadas a guardiões e a governantes, não a
produtores
33
.
Da evidência que sugere que não se pretende dar a educação primária aos produtores,
Reeve volta-se para as evidências que apontariam o contrário. Reconhece que muitas
observações, especialmente nos livros II e III, sugerem fortemente que pelo menos uma parte da
educação primária é dirigida a toda a cidade, e não simplesmente a futuros guardiões e
governantes
34
.
O autor cita como exemplos o fato de que as histórias em que os deuses aparecem
maltratando seus pais ―não devem ser contadas na cidade‖ (378b1-6), assim como a proibição de
que se diga que os deuses são causa de mal, caso se deseje que a cidade seja bem governada, e
que qualquer pessoa, jovem ou velha, ouça tais coisas sendo ditas seja em verso ou prosa (380b6-
c3)
35
.
Soma ainda a esses exemplos a prescrição de que as mães não aterrorizem as criancinhas
com histórias errôneas nas quais acreditem (381e1-6) e a instrução para que todos os artesãos
sejam proibidos de ―representar, seja em imagens ou em edifícios ou em qualquer outro trabalho
(artefato), caracteres que sejam viciosos, maus, sem comedimento ou sem graça (401b3-5)‖
36
.
32
REEVE, 1988, p. 188.
33
REEVE, 1988, p. 188.
34
REEVE, 1988, p. 188.
35
REEVE, 1988, p. 188.
36
REEVE, 1988, p. 188.
22
Segundo Reeve, as medidas de censura contidas nas passagens citadas e em outras de teor
análogo são justificadas por características específicas requeridas em bons guardiões, e não por
características requeridas em bons cidadãos em geral.
Para ele, os artesãos são proibidos de representar o que é vicioso não porque tais
representações tendem a corromper todos os jovens membros da pólis, mas somente para que os
guardiões não sejam criados expostos a essas imagens com seus efeitos deletérios.
Assim, para Revee, deve-se concluir que as medidas de censura em questão são
impingidas aos produtores, não como são aos guardiões, para moldar sua alma. Para ele, é a
psykhé dos guardiões que está em foco, e não a dos produtores, e que o objetivo da Educação
Platônica é remodelar ou ―dar a volta‖ na alma de seu receptor, conclui-se que, mesmo que
algumas partes da educação primária sejam dirigidas a futuros produtores tanto quanto a futuros
governantes e guardiões, não são direcionadas àqueles com o fim de educá-los, o que seria outro
jeito de dizer que, com a educação primária, não se tenciona educar produtores
37
.
Para Reeve, a adoção do ―princípio de especialização‖ esgota a inovação platônica no que
diz respeito à educação dos produtores, e os futuros produtores na kallípolis são educados e
treinados através do aprendizado tradicional em uma artesania.
Ainda para esse autor, devido à estrutura de composição da República e da sucessão de
cidades delineada, razão para crer que qualquer discussão formal sobre a educação dos
produtores teria de aparecer na descrição da primeira cidade, como se com a descrição da
educação dos guardiões na segunda cidade e dos governantes na terceira. Segundo ele, essa
discussão formal não ocorre porque envolve apenas o treinamento tradicional nas artesanias
38
.
Reeve cita ainda passagens que seriam difíceis de conciliar com a tese da educação
primária comum, como aquela abordada em seu argumento de número (6) contra a referida
tese. Acredita que aquela passagem sugere que o treinamento numa artesania é o equivalente para
alguém da classe dos produtores ao que a educação primária é para os guardiões. Em apoio a essa
conclusão, cita ainda outra passagem:
‗E além de observarmos essas coisas, eles [os guardiões neófitos] devem assistir e ajudar
em tudo o que diz respeito à guerra e ajudar seus pais e mães. Ou nunca notastes como é
37
REEVE, 1988, p. 188-189.
38
REEVE, 1988, p. 189.
23
com as artesanias, como, por exemplo, os filhos de oleiros observam, como ajudantes,
antes de realmente pôr as mãos no barro?‘ (467a1-5)
39
.
Reeve conclui sua análise sobre os ―produtores‖ assim:
A situação dos produtores na Segunda Cidade parece, então, ser como segue: Eles são
governados por pessoas que têm uma estável disposição de fazer o que é melhor para a
cidade. Eles são policiados e protegidos por pessoas que são corajosas, honestas,
moderadas, leais e confiavelmente gentis com os amigos e duras com os inimigos. E
nenhum desses grupos compete com eles pelas riquezas, que é o que eles mais desejam;
guardiões sãos amantes de honras, não amantes de riquezas. Ademais, os produtores
recebem apenas o treinamento e a educação requeridos para, em primeiro lugar, moderar
seus apetites desnecessários de modo que não ameacem a estabilidade da Kallípolis e,
com isso, sua própria felicidade, no longo prazo; em segundo lugar, para garantir a ótima
satisfação de seus apetites necessários; e em terceiro lugar, para garantir que nada em
seu modo de vida corrompa os guardiões
40
.
Uma tão extensiva rejeição da tese da educação primária comum a todas as classes, como
a de Reeve, se funda em uma interpretação equivocada da República, a qual parte de certas
premissas da obra, como (1) o ―princípio de especialização‖, que afirma que cada um deve
executar uma tarefa na cidade; (2) a analogia entre cidade e alma; e (3) a tese de que os homens
são diferentes por natureza.
Reeve as toma [as premissas] como absolutas, sem levar em conta o caráter dialético da
obra, segundo o qual o todo esclarece o significado das partes, e o que se diz a uma certa altura
do texto enriquece, esclarece e até modifica algo que se disse antes.
Uma das coisas que se pretende é mostrar que as objeções de Reeve à tese da educação
comum podem ser todas refutadas tendo em vista uma interpretação abrangente e dialética da
República.
Para sustentar a interpretação que se propõe aqui, segundo a qual a educação primária
concebida na República se estende a todos os cidadãos, se começará por mostrar que a educação
da maioria é um aspecto que não poderia ser negligenciado na República, na qual Platão, sem
qualquer limite, pode construir com o lógos uma cidade que seja a melhor possível e que tem o
papel de ser uma proposta de filosofia política, que, por definição, deve considerar os
fundamentos mesmos da boa vida social.
39
REEVE, 1988, p. 190.
40
REEVE, 1988, p. 190-191.
24
Essa proposta de Platão vem à luz em um momento de profunda crise dos valores, a qual
é amplamente abordada nos diálogos; valores estes, que, em última instância, estão na raiz das
escolhas e do modo de vida dos homens. Que ele opte, na República, por associar,
inequivocamente, essa crise às opiniões da maioria, é um aspecto que exige atenção do leitor e
precisa ser levado em conta ao se sugerir uma interpretação da obra que contém uma vigorosa
resposta de Platão a essa crise.
Procurar-se-á mostrar que a construção dessa resposta começa já na Apologia de Sócrates,
na qual Platão não só denuncia a crise como anuncia, usando como porta voz seu mestre,
Sócrates
41
, uma nova concepção de virtude, entendida como sophía; além disso, aponta a
filosofia e o exame como uma possibilidade a ser reconhecida e mobilizada pelos homens para
levarem uma vida melhor, possibilidade essa sintetizada na fórmula ―[...] da virtude é que provém
a riqueza e os bens humanos em universal, assim públicos como particulares.‖
(
)
42
.
Em seguida, analisar-seo diálogo Laques tendo em vista responder a duas perguntas
suscitadas pela Apologia, mas não respondidas: em que consiste o exame socrático e o que
entende Sócrates por sophía. Defender-seque o exame socrático consiste no exame dialético
que visa fundamentar as crenças ou opiniões que dirigem as escolhas e o modo de vida dos
homens e que a sophía, entendida como virtude, seria esse conhecimento fundamentado.
Continuando a análise, chegar-se-á à República e considerar-se-á que esta é a obra na qual
reside a resposta a uma última pergunta levantada, e não respondida pela Apologia: ―por que a
filosofia é necessária?‖. Procurar-semostrar qual é a importância da cena dramática para a
compreensão da crise de valores e que essa crise é retratada em seu ápice nos discursos de
Gláucon e Adimanto, embora já viesse sendo antes, paulatinamente, descortinada para o leitor.
Nesse momento, procurar-sechamar a atenção para o papel da opinião dos hoí poll (a
maioria) como raiz da crise de valores e para o fato de que a necessidade de retificação de sua
41
Entenda-se qualquer referência feita aqui a Sócrates como dizendo respeito ao personagem dos diálogos de Platão,
e não ao Sócrates ―histórico‖.
42
PLATÃO. Apologia, 30b4. Para a Apologia, utilizou-se a tradução do texto para o português, de NUNES, Carlos
Alberto (Trad.). O Banquete, Apologia de Sócrates. 2. ed. Belém: UFPA, 2001. Para o texto grego, utilizou-se
CROISET, Maurice (Éd.). Hippias Mineur, Alcibiade, Apologie de Socrate, Euthyphron, Criton. Paris: Les Belles
Lettres, 1953. (Collection des Universités de France, Platon, t. 1).
25
alma não poderia passar despercebida em uma obra em que a proposta política passa pela
retificação da alma dos homens como condição para a boa vida ―privada e pública‖.
Na terceira seção, descrever-se brevemente a construção com o lógos da cidade
concebida na República e a educação proposta com o objetivo de fornecer a base sobre a qual
se possa discutir, na quarta seção, como devem ser entendidas as virtudes tanto na cidade como
na alma dos homens.
Na quarta seção, procurar-semostrar como Socrátes chega a identificar na cidade que
construiu com o lógos as virtudes que entendia como necessárias para que ela fosse bem
construída. Considerar-secomo a identificação das virtudes na cidade constitui um problema
para Sócrates e seus interlocutores, tendo em vista que, no momento em que ―olham‖ para a
cidade procurando identificá-las, nem tudo de que elas dependem, como condição de
possibilidade, está claramente estabelecido a não ser que se considere que houve certas
―antecipações‖.
Defender-se-á que, especialmente no caso da temperança e da justiça, sua identificação na
cidade é problemática e exige que se avance no exame dos elementos constituintes da alma
humana e em como se relacionam, o que obrigará o leitor a identificar como condição necessária
da temperança e da justiça, como foi identificada na cidade, a educação primária comum.
Pretende-se mostrar ainda como raciocínio semelhante se aplica à coragem, mesmo que,
como virtude plenamente desenvolvida, não esteja presente em todas as classes.
Na quinta e última seção, voltar-se à educação proposta, tendo em vista a
compreensão das virtudes [na cidade] e dos elementos constituintes da alma, bem como de suas
relações; procurar-se-á, em uma análise mais cuidadosa da paideía brevemente descrita na
terceira seção, entender suas diversas prescrições como diretamente relacionadas não com as
virtudes descritas mas também com o modo de vida que se diz que será aquele da cidade.
Defender-seque a educação primária comum é uma condição necessária para que se
possa afirmar o que se diz sobre as virtudes e o modo de vida da cidade sem incorrer em graves e
numerosas incoerências.
Destacar-seainda a importância de que se considere a educação primária comum para
que se preservem duas premissas fundamentais da República: a de que a cidade é uma e a de
que nela todos são felizes.
26
2 FILOSOFIA E CRISE
2.1 A crise de valores e a nova concepção de virtude na Apologia de Sócrates
A República é uma obra que concorre para que se responda a uma pergunta que pode
intrigar os leitores de Platão desde a Apologia: por que a filosofia é necessária?
Essa pergunta pode surgir da natureza mesma do argumento de defesa de Sócrates, na
Apologia, no qual ele admite uma prática que reconhece ter despertado ódio em muitos dos seus
concidadãos
43
, o que lhe rendeu inimizades que foram fonte de todo tipo de calúnia
44
, inclusive a
de corromper os jovens, e acabou sendo uma das acusações que o levaram ao tribunal
45
. Essa
prática, Sócrates muitas vezes identifica com o exame que faz dos atenienses e de si mesmo
(exetázonta emautòn kaì toùs állous
46
) e também com a prática da filosofia.
Por que Sócrates insistiu nesse exame e nessa prática que tanto ódio e calúnias
despertavam, além de ocupá-lo a ponto de descurar de seus próprios assuntos
47
? A resposta mais
imediata é a que Sócrates repete várias vezes: ele o fez no cumprimento de uma missão divina
48
.
Sócrates explica a origem de sua prática e de sua missão relatando que, certa vez, seu
amigo Querefonte foi ao oráculo de Delfos e perguntou se alguém era mais sábio do que ele
[Sócrates]. Depois de ouvir que fora negativa a resposta da Pítia, intrigado, por não se considerar
sábio, Sócrates passou a investigar o sentido do oráculo. A maneira pela qual o fez foi procurar os
homens de Atenas reputados sábios e submetê-los a exame para verificar se possuíam a
sabedoria. Se encontrasse alguém que a tivesse, por saber que ele mesmo não a possuía, estaria
refutando o oráculo.
Sócrates começou por um político, mas, ao examiná-lo (diaskopôn
49
), pareceu-lhe que
―passava por sábio para muita gente e principalmente para ele mesmo, quando, em verdade,
43
PLATÃO. Apologia, 21a4, 21e2, 24a8.
44
PLATÃO. Apologia, 23a1.
45
PLATÃO. Apologia, 23c14.
46
PLATÃO. Apologia, 28e5-6.
47
PLATÃO. Apologia, 23b9.
48
PLATÃO. Apologia, 21e5 - ; 23b7 - ; 23c1 -
28e4 - ; 29d3-4 - 30a5 -
; 30e6 - 33c4-5
49
PLATÃO. Apologia, 21c3.
27
estava longe de sê-lo‖ (
)
50
.
Ao mostrar a tal homem que ele se considerava sábio sem o ser, Sócrates admite ter
atiçado seu ódio e de outros presentes contra si
51
. Essa prática repetida com vários outros
atenienses considerados sábios resultou em cada vez mais ódio, tanto mais quanto essa prática era
reproduzida pelos jovens de famílias abastadas que gostavam de -lo a examinar os outros.
Assim, também aqueles, examinados, engrossavam as fileiras dos que o odiavam, por sentirem-se
atingidos, e chamavam-no de corruptor da juventude por ter posto os jovens que o imitavam
nessa prática
52
.
É da repetição da prática, sempre com os mesmos resultados, que Sócrates acaba por
chegar ao sentido do oráculo:
53
[...] a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que não se referia
particularmente a Sócrates e que se serviu do meu nome apenas como exemplo, como se
dissesse: Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates que reconhece não valer,
realmente, nada no terreno da sabedoria.
A afirmação de que sua prática em Atenas é uma obrigação imposta pela divindade por
meio de oráculos e sonhos
54
pode levar à conclusão de que houve outros episódios, além daquele
relacionado à ida de Querefonte a Delfos, que foram fundamentais para que Sócrates tenha
chegado a interpretar o oráculo como a imposição de uma missão divina.
Porém, a interpretação de que sua prática constituía-se em uma missão desse tipo parece
decorrer muito mais do fato de Sócrates ter entendido que produzia um bem ao encaminhar os
atenienses para a virtude e para o cuidado com a alma
55
.
50
PLATÃO. Apologia, 21c6-7.
51
PLATÃO. Apologia, 21d5.
52
PLATÃO. Apologia, 23c3.
53
PLATÃO. Apologia, 23a7-b4.
54
PLATÃO. Apologia, 33c6.
55
PLATÃO. Apologia, 30a7.
28
Se tomarmos a tese socrática da República, de que os deuses são causa de bens e nunca de
males
56
, fica mais clara a interpretação socrática do oráculo: é porque entende que a prática que
iniciou leva a um bem e reconhece que essa prática teve início por causa de uma intervenção
divina, que pôde associar uma intenção a essa intervenção: a de dar Sócrates à cidade como quem
dá um bem. Resta examinar por que Sócrates considera que o resultado de sua prática produz um
bem para os atenienses.
Uma questão que se reveste de grande importância para o esclarecimento do sentido da
missão socrática é o da relação entre virtude
57
e sabedoria, na Apologia. Embora reconheça que a
concepção socrática de virtude inclui um elemento cognitivo por implicar a busca de inteligência
prática ou compreensão (phronéseos
58
, phronimótatos
59
), Charles Kahn sustenta que nada na
Apologia sugere que a virtude é simplesmente conhecimento ou idêntica à sabedoria. Kahn
baseia-se no fato de que Sócrates ―nega a posse de genuína sabedoria ou conhecimento do que é
mais importante, mas nunca nega que tenha sabedoria prática (phrónesis) e excelência moral
(areté)‖
60
.
Segundo Kahn, o exame referido na Apologia tem um resultado, por um lado, negativo e,
por outro, positivo, uma vez que, se, de um lado, leva o interlocutor a reconhecer a sua própria
inadequação e a necessidade de ―cuidar de si‖ (epimeleîstai heautoû) ou de cuidar da alma
(psykhé), de outro, é um chamado a um autoexame e a um autoaprimoramento
61
.
Kahn entende que o cuidado com a alma implica a recusa de praticar qualquer ato injusto
ou vergonhoso, recusa esta que pode encontrar na vida de Sócrates e em episódios narrados na
própria Apologia exemplos ilustrativos da adesão a certos princípios normativos segundo os quais
56
PLATÃO. República, 380c10. Utilizou-se a tradução de PEREIRA, Maria Helena da Rocha (Trad.). A República.
5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987; para o texto grego, SHOREY, Paul (Ed.). The Republic. London: Harvard
University Press, 1994. 2 v. (Loeb Classical Library).
57
Usar-se-á aqui a palavra ―virtude‖ para traduzir areté sem, no entanto, deixar de reconhecer que a areté envolve
excelência e não tem uma conotação exclusivamente moral. Ademais, o sentido em que se interpreta a virtude na
Apologia, como sendo a sabedoria (sophía), não exclui que haja outras virtudes, entendendo-se a sophía, contudo,
como aquela virtude que é o elemento unificador e a condição de possibilidade de que haja excelência para um
homem. Entende-se essa virtude ―máxima‖ como aquela que torna uma coisa mais capaz de realizar bem seu érgon
próprio ou a única coisa capaz de realizá-lo. Cf. PLATÃO. República, 352e ss.
58
PLATÃO. Apologia, 29e1.
59
PLATÃO. Apologia, 36c7.
60
KAHN, Charles H. Plato and the Socratic Dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form. Cambridge:
Cambridge University Press, 1992. Cf. p. 90. Tradução própria.
61
KAHN, 1992, p. 90.
29
Sócrates testa a si mesmo e aos outros
62
. Assim, o exame referido na Apologia passa a ter um
sentido muito mais moral, sem qualquer ênfase no seu sentido epistêmico.
Que o exame descrito por Sócrates na Apologia possa ter o efeito moral descrito por Kahn
é inegável, mas conferir um conteúdo epistêmico, no sentido forte, ao exame socrático não
elimina o efeito moral do encontro com Sócrates e parece ser a condição para a compreensão do
sentido da missão socrática.
O que se passará a defender é que Sócrates aponta, sim, para uma identidade entre virtude
e sabedoria (sophía) e que a vida de exame que inclui um elemento epistêmico, no sentido forte
, representa o cuidado com a alma.
A comparação dos passos em que Sócrates descreve o exame a que submeteu os
atenienses reputados sábios e o passo em que, pela primeira vez, identifica a vida de exame com
o cuidado com a alma e a virtude é esclarecedora em mais de um aspecto e fundamental para
mostrar que a identidade entre virtude e sabedoria está indicada na Apologia. Contrafeito por
não alcançar o sentido do oráculo que o reputou como sendo o mais sábio dos homens, Sócrates
descreve sua prática com vistas a esclarecê-lo:
63
[...] por fim, bastante contrafeito, passei a investigar o caso por este modo: fui ter com
um indivíduo considerado sábio, certo de que ali ou nenhures conseguiria desmentir o
oráculo e declarar-lhe: este homem é mais sábio do que eu; no entanto, afirmaste que eu
era o mais sábio dos homens. Passei, portanto, a examiná-lo [diaskopôn oûn toûton].
Não há necessidade de declinar-lhe o nome; era um dos nossos políticos. Mas ao
examiná-lo [skopôn], atenienses, aconteceu o seguinte: no decurso de nossa conversação,
quis parecer-me que ele passava por sábio para muita gente, mas principalmente para ele
mesmo, quando, em verdade, estava longe de sê-lo. De seguida, procurei demonstrar-lhe
que ele se considerava sábio sem o ser, do que resultou atiçar contra mim seu ódio e de
muitas das pessoas presentes.
62
KAHN, 1992, p. 91.
63
PLATÃO. Apologia, 21b8-d2.
30
Em um passo posterior, Sócrates, pela primeira vez, identifica a vida de exame com o
cuidado com a alma e a virtude. Ao explicar aos atenienses que se lhe impusessem como
condição de absolvição abandonar sua prática, diz Sócrates:
64
Estimo-vos atenienses, e a todos prezo, porém sou mais obediente aos deuses do que a
vós, e enquanto tiver alento e capacidade, não deixarei de filosofar e de exortar a
qualquer de vós que eu venha a encontrar falando-lhe na minha maneira habitual: como
se dá, caro amigo, que, na qualidade de cidadão de Atenas, a maior e mais famosa
cidade, por seu poder e sabedoria, não te envergonhes de só te preocupares com dinheiro
e com ganhar o mais possível, e quanto à honra e à fama, à prudência e à verdade, e à
maneira de aperfeiçoar a alma, disso não cuidas nem cogitas? E se algum de vós
protestar e me disser que cuida, não o largarei de pronto nem me afastarei dele, mas o
interrogarei [erésomai], examinarei [ekhetáso] e arguirei [elénkho] a fundo. No caso
porém, de convencer-me de que é carecente de virtude, embora diga o contrário,
repreendê-lo-ei por dar pouca importância ao que é de mais valor e ter em alta estima o
que de nada vale. Assim procederei com quantos encontrar: moço ou velho, estrangeiro
ou meu concidadão. Sim, primeiro com estes, por me serdes mais próximos pelo sangue.
É o que me ordena a divindade, bem o sabeis, estando eu convencido de que nunca nesta
cidade vos tocou por sorte maior bem do que o serviço por mim a ela prestado.
Algumas conclusões tornam-se possíveis a partir da comparação dos passos acima: em
primeiro lugar, a de que Sócrates pode estar estabelecendo uma identidade entre virtude e
sabedoria, pois, se a sua prática de examinar e arguir a fundo tinha sido antes reconhecida como o
meio para verificar a falta de sabedoria, agora é também o meio para verificar a falta de cuidado
com a alma e a falta de virtude.
64
PLATÃO. Apologia, 29d2-30a7.
31
Outra conclusão que se pode extrair da comparação dos dois passos é a de que deles
decorre o reconhecimento da alma como a sede de uma capacidade que deve ser desenvolvida se
se almeja sua virtude: a capacidade do exame que visa à sabedoria.
Note-se ainda que todos os elementos antes referidos na prática socrática, que verifica a
falta de sabedoria dos seus interlocutores, são retomados ao referir-se ao modo como identifica a
falta de virtude: o fato de o interlocutor dizer o contrário, ou seja, declarar-se virtuoso; o exame
mesmo a que é submetido; a convicção de que o interlocutor é carente de virtude e a repreensão
do interlocutor por Sócrates, consequente à descoberta da falta do que declara ter. Não parece
haver, portanto, duas práticas socráticas, uma destinada a verificar a falta de sabedoria e outra, a
falta de virtude.
Ademais, é no mesmo passo que diz crer que foi destinado pela divindade exclusivamente
à prática da filosofia e a examinar a si e aos outros (philosophoûntá me deîn zên kaì exetázonta
emautòn kaì toùs állous
65
) e que, mesmo tendo de desobedecer aos juízes que lhe impusessem
essa condição, jamais deixaria de filosofar
66
. Seria necessário esvaziar a palavra ―filosofia‖ do
seu sentido epistêmico ―forte‖ para entender a missão socrática como tendo a função de produzir
unicamente um efeito moralizante, e não, ao mesmo tempo, o reconhecimento da falta da
sabedoria, entendida como capacidade de resistir ao exame.
Se esta leitura, que identifica virtude e sabedoria, se sustenta, então haveria aqui um
passo fundamental, pois ela representa uma inovação quanto à concepção de virtude
historicamente associada ao poder, às posses, à fama e à honra
67
. Por que Sócrates arrisca um
passo tão largo no momento mesmo em que apresenta sua defesa no tribunal, que, na verdade,
toda sua defesa depende desse ponto? Se convencer os juízes de que a virtude é a sabedoria e que
sua prática leva ao reconhecimento da sua falta por parte dos atenienses, então estes não podem
deixar de considerá-lo um benfeitor, pois a virtude é o que todos almejam, e ele os exortaria a
buscá-la.
65
PLATÃO. Apologia, 28e5-6.
66
PLATÃO. Apologia, 29d5.
67
Não se quer dizer que, antes do Sócrates dos diálogos de Platão, a virtude não fosse apanágio de homens
considerados excelentes em vários aspectos. Porém, se se considera que a virtude estava associada à excelência
guerreira e ao bom senso em geral, que eram apanágio dos bem nascidos e traziam honra e acesso ao poder, mas não
envolviam o aspecto epistêmico no sentido forte que Sócrates associa a ela, então ele está inaugurando um novo
sentido de virtude.
32
Porém, se, de um lado, relacionar sua prática com a promoção da virtude parece uma
excelente estratégia de defesa, de outro, é necessário admitir que a eficácia de tal estratégia fica
muito prejudicada pela apresentação de uma concepção nova de sabedoria e de virtude.
E é claro que haveria outras estratégias de defesa melhores como não cansam de ressaltar
os críticos que veem em Sócrates alguém que, talvez de propósito, tenha se defendido mal para
lançar uma mácula na democracia ateniense com sua condenação
68
.
O que esses críticos parecem não perceber é que, se o objetivo de Sócrates com sua defesa
era obter a absolvição, não a punha como um fim que justificasse a adoção de qualquer meio para
obtê-la, o que, aliás, fica claro em mais de uma passagem
69
.
A adoção dessa concepção de virtude em sua defesa parece mais corresponder à verdade
prometida por Sócrates aos jurados
70
e à compreensão do papel, da dýnamis e da necessidade da
sabedoria como a entende. Essa necessidade pode tornar-se plenamente visível na cidade em
um momento de decadência e corrupção, quando se torna claro que só da virtude, entendida como
sabedoria, podem provir os bens humanos em universal, assim públicos como particulares
71
.
Embora se possa objetar que os indícios de identidade entre virtude e sabedoria
apresentados até agora não estabelecem sua aceitação como necessária, é preciso atentar para
esse último ponto.
Se se entende que, na proposta política contida na cidade construída com o lógos, na
República, a sophía é a epistéme própria do filósofo-governante e que seu governo é apontado
como o único meio de fazer cessar os males tanto particulares como públicos,
não parece que
sejam negligenciáveis os passos da República em que se repete essa fórmula
72
, e se torna bastante
plausível que o Sócrates da Apologia esteja, em uma ―antecipação‖, fazendo referência à
necessidade dessa virtude própria do filósofo como elemento faltante e necessário à cidade.
Que a sophía, como virtude do governante, seja capaz de retificar a maioria, dependerá do
alcance da intervenção de que é capaz a filosofia em uma cidade. Se essa intervenção puder se
estender, em uma cidade construída com o lógos, na qual não limites para o que se possa
68
Veja-se STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cia. das Letras,
1988.
69
Note-se a crítica que Sócrates faz à própria condução da democracia e a altivez com que se recusa a apelos
emocionais em PLATÃO. Apologia, 21c-32c, 34b-35a.
70
PLATÃO. Apologia, 17b5.
71
Cf. PLATÃO. Apologia, 30b4. e República, 373e.
72
Cf. PLATÃO. República, 473e5, 517c5.
33
prescrever, à educação (paideía) que forma todos os cidadãos, então talvez seja esse o projeto
político que a República vem apresentar, ainda que apenas como paradigma.
Essa necessidade da sophía, embora seja muito mais visível na República, se encontra
prenunciada na maneira nem um pouco sutil pela qual a Apologia apresenta um momento de
corrupção e de abandono de valores. São indícios suficientes de uma crise moral as ilegalidades
cometidas no âmbito da democracia ateniense descritas por Sócrates na sua própria defesa
73
, mas
não deixa de ser esclarecedor também nesse aspecto o último trecho citado acima.
Ora, embora geralmente, como se disse, o poder, as posses, a fama e a honra sejam
considerados valores e bens a serem perseguidos e relacionados com a virtude, Sócrates parece
encontrar em Atenas muitos que se preocupam com posses e riqueza, e abandonam não o
cuidado com a alma e com a busca da prudência e da verdade mas até mesmo [a busca] da fama e
da honra. Essa identificação da riqueza e daquilo que dela decorre com o bem será ainda
referida duas vezes
74
, e terá ressonâncias importantes ao longo de toda a República
75
. Esse
abandono até mesmo de valores caros à tradição, como a fama e a honra, parece mostrar que
uma crise de valores e que, mesmo aqueles que pareceriam mais firmes em seu lugar, não mais
permanecem.
O momento da Apologia parece, portanto, ser o momento, com Sócrates, da descoberta de
uma capacidade na alma, que coexiste com outras, mas que agora precisa ser revelada ao homem
como a virtude: a capacidade do exame que visa à sabedoria. A urgência dessa revelação talvez
resida no fato de que, nesse momento de crise de valores, o exercício dessa capacidade tenha se
tornado necessário
76
.
A questão que a Apologia não responde, entretanto, é o que significa ―sabedoria‖ para
Sócrates e a que ele se refere quando fala de filosofar e examinar. Na verdade, Sócrates refere-se
a uma prática, o exame, que é capaz de revelar a falta de sabedoria, mas nem exemplifica o que é
esse exame nem revela qual o critério que usa para julgar essa falta e, portanto, não revela o que é
73
Cf. PLATÃO. Apologia, 31c-32c.
74
Em PLATÃO. Apologia, 30a11 e 41e4.
75
Como se terá ocasião de mostrar, na República, a riqueza será considerada causa da dissensão e da corrupção da
cidade e de todos os males, bem como simbolizará ainda a prevalência dos desejos sobre qualquer outra dimensão da
alma.
76
Não se deseja insinuar que a sophía, entendida como a epistéme do filósofo, deve ser cultivada por todos, mas,
apenas, que Platão cria nos seus diálogos a situação dramática‖ mais apropriada para estabelecer que isso mesmo
que os homens em geral negligenciam e cuja essência e utilidade não compreendem ainda deve estar presente na sua
vida e dirigi-la, mesmo que só em alguns plenamente presente, como efetiva epistéme capaz de descobrir os
fundamentos das crenças que conduzem à boa vida. Cf. PLATÃO, República 505a-c e Filebo 60a-67b.
34
a sabedoria. Suprir essa lacuna é fundamental até mesmo para que se possa defender com
fundamento que Sócrates identifica virtude e sabedoria.
O que se propõe aqui é partir de uma leitura do Laques como ilustrativa da prática
socrática mencionada na Apologia e mostrar que essa leitura esclarece o sentido de sabedoria
neste último texto, embora deixe por explicar por que a sabedoria é necessária e a missão de
Sócrates tão urgente, o que, defender-se-á, é plenamente compreensível a partir dos discursos
de Gláucon e Adimanto no livro II da República.
2.2 Os critérios da sophía no Laques e sua importância no contexto da crise
A escolha do Laques se justifica pelo fato de que trata da coragem e ainda porque nele se
chega muito perto das definições de coragem tomadas como certas na República
77
e no
Protágoras
78
. O motivo pelo qual se atinge uma definição próxima a essas no Laques e esta é
abandonada é esclarecedor a respeito do sentido de ―sabedoria‖ na Apologia, se for aceito que o
Laques ilustra a prática socrática nela mencionada.
Outra razão é que o Laques indica também o que se chama aqui de crise de valores e o
risco de decadência moral que estão indicados na Apologia e que serão retomados de maneira
acabada no livro II da República, nos discursos de Gláucon e Adimanto.
Outro motivo dessa escolha é o fato de o Laques poder ser considerado como um diálogo
de data dramática próxima da data dramática da República
79
.
A cena do Laques apresenta dois homens de famílias ilustres, Lisímaco e Melésias,
acompanhados de dois atenienses com destacado papel na política, no último quarto do séc. V
a.C.: Laques e Nícias.
O encontro foi promovido por Lisímaco e se em um ginásio onde acaba de se
apresentar Estesilau, um especialista na hoplomakhía. Após a apresentação do lutador, Lisímaco
revela a Laques e Nícias que a razão de lhes ter levado ali é sua intenção de consultá-los sobre o
77
PLATÃO. República, 492b10-c3.
78
PLATÃO. Protágoras, 360d7-9. Utilizou-se a tradução de NUNES, Carlos Alberto (Trad.). Protágoras, Górgias,
Fédon. 2. ed. Belém: UFPA, 2002.
79
Tendo Laques morrido em 418 a.C. na batalha de Mantinéia e havendo referência à batalha de Délio, ocorrida em
424 a.C., como recente, seria possível situar a data dramática do diálogo perto de 420 a.C. Essa data é aceita como
próxima à data dramática da República, e é interessante notar também a aparição de Nicérato, filho de Nícias, citado
no Laques, na cena inicial da República.
35
valor da hoplomakhía na educação dos jovens com vistas a torná-los homens perfeitos
80
. Com a
franqueza que o caracteriza ao longo de todo o diálogo, Lisímaco admite que gostaria que seus
filhos pudessem ter a fama e a glória que mereceram, pelos seus feitos e realizações, seus avós
paternos de mesmo nome que eles, Tucídides e Aristides. Lisímaco e Melésias temem que, por
deixarem de preocupar-se com a educação dos jovens, como julgam que seus pais fizeram com a
sua, eles acabarão por não se tornarem perfeitos
81
.
A censura de Lisímaco ao seu pai e ao de Melésias é baseada no fato de que eles, seus
filhos, ficaram sem glória e fama por estarem seus pais por demais absorvidos nos negócios
públicos
82
, o que indica já uma relação entre três gerações em que há uma perda, no que concerne
à virtude, da primeira para a segunda e o risco de perda também para a terceira
83
.
Laques considera legítima a preocupação de Lísimaco, mas introduz na conversa Sócrates,
que, até então, permanecera em silêncio, como a pessoa mais indicada para aconselhá-lo sobre a
educação de seus filhos
84
.
Usando uma ―fórmula‖ comum nos diálogos e importante no contexto da República
85
,
Sócrates compromete-se a ―tentar, na medida de suas possibilidades‖ (
)
86
aconselhá-lo, mas, por ser mais novo e considerar Laques e
Nícias mais experientes nesses assuntos, pede que estes o precedam, ficando a seu cargo apenas,
em caso de necessidade, complementar o que eles disserem
87
.
Nícias faz a defesa da hoplomakhía e Laques a desmerece, o que leva Lisímaco a pedir o
voto de desempate a Sócrates
88
. Este, recusando-se a aceitar que o assunto seja resolvido
80
PLATÃO. Laques, 178a1-b3. Utilizou-se a tradução de OLIVEIRA, Francisco (Trad.). Laques. Lisboa: Ed. 70,
1989. (Clássicos Gregos e Latinos, 2).
81
PLATÃO. Laques, 178b9-d2.
82
PLATÃO. Laques, 178d2.
83
Note-se que, para Lisímaco e Melésias, que são anciãos, ainda são relevantes a fama e a glória. Essa relevância
parece a Sócrates ter se perdido em Atenas por ocasião de seu julgamento. Cf. PLATÃO. Apologia, 29d2-30a7.
84
PLATÃO. Laques, 180b1-c5. Um dos temas do Laques é a possibilidade de perda da virtude. Sobre o fato de que
as virtudes cívicas fundamentais eram, para Sócrates, mais presentes no passado, note-se o juízo que ele faz de
renomados políticos atenienses ―mais recentes‖ e sobre o efeito de seu ―governo‖ em Atenas no rgias. Ver,
especialmente, PLATÃO. Górgias, 502d-519d.26a-b. Sobre a virtude de Aristides, pai de Lisímaco, ver Górgias,
526a-b.
85
PLATÃO. República, 368c3-4.
86
PLATÃO. Laques, 181d1-2.
87
PLATÃO. Laques, 181d1-8.
88
PLATÃO. Laques, 181d-184d.
36
simplesmente pelo voto da maioria, introduz a ideia de que a pessoa apropriada para resolver a
questão seria alguém que fosse entendido no tema, estabelecendo uma analogia com a tékhne
89
.
Porém, Sócrates adverte que o assunto realmente em questão não é tanto a hoplomakhía,
mas a maneira de tornar virtuosos os jovens, para a qual a hoplomakhía só está sendo considerada
como meio
90
. Esse passo leva a uma reformulação da questão, passando a considerar-se que o que
deve ser examinado (skeptéon) é se algum deles ―é versado [tekhnikós] no tratamento da alma e
se é capaz de a tratar bem, e se teve bons mestres‖ (
)
91
.
Mais uma vez é a Laques e Nícias que Sócrates aconselha Lisímaco a recorrer, uma vez
que ele mesmo declara não possuir essa arte (tékhne), não por não ter tido mestres no assunto
mas também por não ter podido vir a conhecê-la por si. Porém, como Laques e Nícias se
colocaram com tanta confiança quanto à hoplomakhía como meio para se chegar à virtude, isso
deve indicar que ou tiveram bons mestres ou descobriram-na por si mesmos
92
.
Lisímaco então transfere para Sócrates a tarefa de interrogar os generais sobre o tema da
virtude, desde que os generais aceitem dar respostas ao que Sócrates perguntar. Conversando [e
examinando] com Sócrates (eípate kaì koinê(i) metà Sokrátous sképsasthe
93
), através de
perguntas e respostas, pode-se chegar a uma deliberação sobre o que Sócrates considera o maior
dos bens
94
.
Nícias responde a Lisímaco:
95
É que me pareces desconhecer que quem for muito chegado a Sócrates (por convívio ou
parentesco) e vier a falar com ele habitualmente, ainda que, de início comece a discutir
sobre algo diferente, inevitavelmente acabará por ser arrastado para uma conversa em
89
PLATÃO. Laques, 184d-185a.
90
PLATÃO. Laques, 185b-185e.
91
PLATÃO. Laques, 185e4-6.
92
PLATÃO. Laaues, 186a-187b.
93
PLATÃO. Laques, 187d1-2.
94
PLATÃO. Laques, 187b-187d.
95
PLATÃO. Laques, 187e5-188a3.
37
círculo, até cair em dar respostas a perguntas sobre si próprio como passa atualmente e
como viveu a sua vida passada. Depois de ter caído, Sócrates não mais o largará antes
de tudo ter posto à prova [prìn àn basaníse(i) taûta eû te kaì kalôs hápanta].
O passo citado tem claras ressonâncias na Apologia e pode mesmo ser considerado como
descrevendo aquilo que Kahn acredita ser o resultado da prática a que Sócrates se refere na
Apologia, um exame que visa muito mais a levar o interlocutor a refletir sobre si mesmo e sua
vida do que sobre a falta de um conhecimento que diz ter. O ponto é que, mais uma vez, uma
coisa não exclui a outra, e o fato de Nícias identificar no exame socrático primordialmente esse
ponto pode significar apenas que ele próprio não consegue enxergar a importância do aspecto
epistêmico do exame socrático. Não é por outra razão que, ao término do diálogo, mesmo tendo
de reconhecer uma aporia, considera que pôde se exprimir corretamente (epieikôs
96
) e que logo,
sem a ajuda de Sócrates, ou do lógos filosófico, poderá sair da aporia.
Declarando a seguir não ser novidade para ele ser posto à prova por Sócrates, Nícias
concorda com o exame, no que é seguido por Laques
97
nessa decisão.
Sócrates, recordando o que estabeleceram antes ser o verdadeiro tema da discussão, o
modo como a virtude nas almas jovens pode torná-los melhores, remete o assunto para a questão
prévia de saber o que é a virtude, o que Laques declara saber e poder dizer o que é
98
.
Alegando que talvez seja trabalho exagerado examinar (skopómeta) a virtude na sua
totalidade, Sócrates propõe que se veja se eles têm capacidade para conhecer alguma de suas
partes e argumenta que a investigação (sképsis) será até mais fácil
99
.
Diante do acordo de Laques, Sócrates começa o exame com a pergunta ―o que é a
coragem?‖
100
e passa a utilizar com Laques o método que aqui será chamado de dialético, e que
consiste em, diante da primeira tese do interlocutor, verificar se há objeção possível. Caso haja,
coloca-se a objeção e faz-se o interlocutor substituí-la por outra não vulnerável à objeção, e assim
por diante
101
.
96
PLATÃO. Laques, 200b3.
97
PLATÃO. Laques, 188a-189b.
98
PLATÃO. Laques, 190c3-5.
99
PLATÃO. Laques, 190d1.
100
PLATÃO. Laques, 190e3.
101
Como alternativa, pode-se falar de uma dialética ―construtiva‖, caso em que o exame dialético não se pela
colocação de objeções, mas ―completando‖ o objeto investigado através do acordo do interlocutor, como se faz ao
longo da construção com o lógos da cidade da República.
38
No momento em que o interlocutor não mais puder responder à objeção, está-se diante de
uma aporia. Em todo o processo, Sócrates testa o interlocutor muitas vezes com objeções
improcedentes ou de viés sofístico
102
, não necessariamente porque acredita na objeção que
levanta, mas para verificar se o interlocutor é capaz de superá-la, ou ao sofisma, e de dar conta de
que realmente sabe fundamentar o que afirma ou se simplesmente repete uma fórmula, provenha
ela da tradição, do senso comum, de uma intuição pessoal ou de um empréstimo tomado de mais
alguém. É a identificação da incapacidade de fundamentar dessa forma suas teses diante do
exame dialético que leva Sócrates a negar que o interlocutor seja sábio. Assim, o que se considera
é que, se o Laques exemplifica a prática socrática mencionada na Apologia, tem-se que o critério
de Sócrates para conferir o título de sábio é a verificação da posse de um conhecimento
fundamentado ou epistéme, que seria o mesmo que a sabedoria no sentido ―forte‖, mencionada
acima, e que, na República, é o saber que se atinge como termo da dialética
103
.
Um outro aspecto visado pela dialética socrática que se tornará mais claro através da
República e de outros diálogos é o da completude do objeto investigado. No caso dos diálogos,
em que, como no Laques, se parte do pedido de uma definição geral, o exame socrático começa
por verificar se a definição geral foi atingida e, por meio de objeções e críticas, confronta o
interlocutor com o seu discurso até que este a atinja.
Uma vez atingida a definição geral, esta passa também a ser criticada: mostra-se ao
interlocutor sua parcialidade ou incompletude e se lhe obriga a considerar o objeto em questão
cada vez por mais ângulos e mais aspectos
104
. É a capacidade mesma de considerar o objeto em
discussão sob todos os aspectos, na sua completude, que levaria ao sucesso da definição geral,
que visa descobrir o que dá unidade a todas as instâncias do definiendum.
De várias passagens da República parece poder-se depreender esses significados para a
dialética:
102
Para um exemplo de uso de uma refutação com viés sofístico por parte de Sócrates, ver o comentário de Reeve
sobre a refutação de Polemarco na República, em REEVE, 1988, p. 5-22. Note-se que não se defende que Sócrates
seja um sofista, mas apenas que usa sofismas, entendidos como raciocínios inválidos ou apoiados em falácias para
testar um interlocutor que diz saber algo. A utilização de um ―sofisma‖ é um bom teste para se verificar o grau de
compreensão que o interlocutor tem do que afirma.
103
Sobre esse sentido de epistéme ver, PLATÃO. República, 510c-511e.
104
Entenda-se que, nesse processo, pode recorrer-se ainda a diaíresis e à exploração de hipóteses em que ficam
claras as relações de condicionante e condicionado.
39
105
[...] quem não for capaz de definir com palavras a ideia de bem, separando-a de todas as
outras, e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as refutações, esforçando-se
por dar provas, não através do que parece, mas do que é, avançar através de todas estas
objeções com um raciocínio infalível não dirias que uma pessoa nestas condições não
conhece o bem em si, nem qualquer outro bem, mas se acaso toma contato com alguma
imagem, é pela opinião, e não pela ciência [ouk epistéme(i)] que agarra nela, e que a sua
vida atual passa a sonhar e a dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro descerá
ao Hades para cair num sono completo?
E mais à frente:
106
[...] achas então que a dialética se situa para nós no alto, como se fosse a cúpula das
ciências [thrinkòs toîs mathémasin], e que estará certo que não se coloque nenhuma
outra forma do saber acima dela, mas que representa o fastígio do saber?
107
É também a melhor prova para saber se alguém é dialético ou não, porque quem for
capaz de ter uma vista de conjunto é dialético; quem o não for, não é.
No caso do Laques é por um exame assim que o general que nome ao diálogo passa.
Começa por falhar em dar uma definição geral, mas conduzido por Sócrates consegue formular
uma definição que atenda à exigência de generalidade e que provém, assume-se aqui, de uma
intuição pessoal, que é traço marcante de Laques o apego ao saber que vem da experiência
vivida e à necessidade de coalescência entre lógos e érgon.
A definição de Laques é:
108
105
PLATÃO. República, 534b8-534d1.
106
PLATÃO. República, 534e2-535a1.
107
PLATÃO. República, 537c6-9.
40
Parece-me que é uma perseverança [kartería] da alma, já que é necessário indicar
(acerca da coragem) a sua natureza em todas as circunstâncias.
Porém, Sócrates, implacável, elogiando a qualidade formal da definição, apresenta as
objeções quanto ao seu sentido. Como explicitado acima, essas objeções visam a verificar se
Laques é capaz de defender sua definição de coragem. Este, ao termo do exame a que é
submetido por Sócrates, tem de admitir que não consegue ver saída para suas objeções e declara-
se irritado por não ser capaz de exprimir o que pensa
109
. É que Laques, homem que já provou sua
coragem em batalha e viu muitos outros exemplos de atos de coragem que pode reconhecer
quando
110
, julga-se capaz de ter uma ideia do que seja a coragem, mas não sabe como logrou
fugir-lhe naquele momento sem ter conseguido agarrá-la (syllabeîn) com as palavras e dizer o
que ela é
111
.
A causa da aporia de Laques foi a de não conseguir ver o ―todo‖ da coragem, pois, por
exemplo, quando Sócrates pergunta se um médico que persevera sensatamente nas suas
prescrições é corajoso, o general não consegue enxergar como e caminha para a aporia
112
. Ora, é
sua visão parcial do que seja coragem, sempre relacionada com a batalha ou o risco físico que o
impede de enxergar o elemento unificador entre os atos do médico e os do soldado: uma
perseverança no conhecimento do que se deve temer. Chegar a essa consideração ultrapassa a
capacidade limitada de Laques de enxergar além da experiência imediata.
Voltando à aporia de Laques, declarar que não sabe dizer o que é a coragem equivale,
para Sócrates, a admitir que não sabe o que ela é, uma vez que, no âmbito ainda da discussão
sobre a virtude, ao declarar que sabia o que ela era, Sócrates estabeleceu: ―ora, naquilo que
sabemos, sem dúvida que poderemos dizer o que é‖ (
)
113
; segue daí a proposta de examinar (skopómetha) a virtude não na sua
totalidade, mas em alguma de suas partes
114
.
108
PLATÃO. Laques, 192b9-c1.
109
PLATÃO. Laques, 194a9.
110
Sobre a coragem de Sócrates na retirada de Délium, notada por Laques, ver PLATÃO. Laques, 181a-b.
111
PLATÃO. Laques, 194b1.
112
PLATÃO. Laques, 192e-193a.
113
PLATÃO. Laques, 190c6.
114
PLATÃO. Laques, 190c3-5.
41
Diante da aporia de Laques, Sócrates incita-o a perseverar na investigação (epì tê(i)
zetései epimeínomén te kaì karterésomen
115
); e, usando uma analogia, julga que, como o bom
caçador, devem perseguir e não largar
116
.
É essa exortação que dá ensejo à entrada de Nícias no exame com o convite de Sócrates
para, caso tenha capacidade (tina ékheis dýnamin) para isso, socorrê-los, que se encontram
flagelados (kheimazoménois) e em aporia na discussão
117
.
Aceitando o convite e tendo já se declarado acostumado ao exame socrático, Nícias
sugere uma definição derivada de algo que diz ter ouvido da boca do próprio Sócrates: sua
definição, supostamente emprestada de Sócrates, acaba sendo formulada, para melhor
entendimento de Laques, pelo próprio Sócrates: ―nosso amigo explica a coragem como uma
sabedoria‖ ( )
118
.
Submetida à dialética socrática e às objeções iniciais, resulta uma definição mais
completa, e a coragem é definida como:
119
Ciência [epistémen] do que é perigoso e do que é favorável, tanto na guerra como em
todas as outras circunstâncias.
Na conclusão do diálogo, Sócrates leva Nícias à aporia com o argumento que vai de 198a
a 199c, e que foi assim esquematizado por Roochnik
120
:
1. Coragem é parte da virtude (areté) (o que foi acordado no início do argumento em
190c6).
2. Coragem é definida por Nícias como a epistéme do que é perigoso e do que é
favorável.
3. Medo é expectativa de mal futuro.
115
PLATÃO. Laques, 194a2.
116
PLATÃO. Laques, 194b5-6. O ―não largar‖ acima referido e também na Apologia 29e2-30a2 parece ter um
conteúdo eminentemente epismico.
117
PLATÃO. Laques, 194c2-7.
118
PLATÃO. Laques, 194d8-9.
119
PLATÃO. Laques, 194e11-195a1.
120
ROOCHNIK, David. Of Art and Wisdom: Plato‘s Understanding of Techne. University Park: Pennsylvania State
University Press, 1996. Cf. p. 102-103.
42
4. Portanto, conhecimento do que deve ser temido e do que não deve é conhecimento
de bens e males futuros.
5. Conhecimento (baseado nos modelos da medicina e da agricultura dados em 198e)
não pode ser restrito ao futuro. Seu alcance deve cobrir passado, presente e futuro
igualmente.
6. Portanto, não pode haver conhecimento de bens e males futuros, mas apenas
conhecimento de bens e males simpliciter.
7. Conhecimento do bem e do mal simpliciter seria o todo (sýmpasa), e não uma
parte da virtude. Àquele que possuísse tal conhecimento não faltaria coragem,
temperança, piedade ou justiça.
8. Portanto, a definição de Nícias é autocontraditória: coragem é, ao mesmo tempo,
definida como a parte e o todo da areté.
Tanto no caso de Nícias como no de Laques, suas definições não foram consideradas
necessariamente falsas, mas apenas inconsistentes, ou aparentemente inconsistentes, com algo
mais que fora admitido. Se se procedesse a partir da aporia de Nícias como se procedeu com a
aporia de Laques, retomando o exame, talvez pudessem chegar à boa definição de coragem.
Ademais, como nota Kahn
121
, foi apontado por vários comentadores que, se se
adicionasse a fórmula de Nícias à definição de Laques corrigida por Sócrates, ter-se-ia uma
definição de coragem perfeitamente respeitável: perseverança e firmeza da alma guiada pelo
conhecimento do que é bom e mal, e do que deve ser temido.
Que estas definições de Laques e Nícias não sejam completamente improcedentes pode-se
inferir também do fato de que definições semelhantes de coragem são assumidas por Sócrates
tanto no Protágoras (―conhecimento do que se deve ou não temer
122
) quanto na República (―a
dýnamis que preservará através de todas as vicissitudes a sua opinião sobre as coisas a temer‖
123
).
Portanto, voltando à analogia da dialética com a caça, eles pareciam estar no bom
caminho para, caso não desistissem da caçada, ou da busca, chegar a bom termo.
É Nícias, e não Sócrates, que desiste da busca ao concordar com este que não descobriram
o que é a coragem; ao retirar-se admitindo não saber, mas julgando que se exprimiu até ali
121
KAHN, 1992, p. 166.
122
PLATÃO. Protágoras, 360d4-5: .
123
PLATÃO. República, 429b9-c1:
43
convenientemente (epieikôs) acerca do que discutiam, afirma que, se algo não ficou
suficientemente explícito, será mais tarde esclarecido com o auxílio de Dâmon, seu mestre
124
.
A confiança de Nícias contrasta com o embaraço de Laques no momento de admitir a
aporia. É Laques quem sugere que é Sócrates, e não eles, quem deve ser retido por Lisímaco e
Melésias, se querem realmente conselho quanto à educação dos jovens
125
.
Nícias concorda, mas acha pouco provável que Sócrates cuide dos jovens porque
interpreta que este se recusa a cuidar da educação de seu filho Nicérato
126
. O que a atitude de
Nícias, ao final do diálogo, denuncia é que, se Sócrates representa o discurso dialético/filosófico,
então é provável que, se fez tal pedido a Sócrates, a sua negativa deve ter se baseado
fundamentalmente na identificação das falsas expectativas do general sobre o que seu filho
poderia obter na relação com ele. Ademais, Sócrates tinha declarado não ser mestre da virtude
e, na ocasião oportuna, acaba por ser ouvido por Nicérato
127
. Mas o principal motivo da recusa de
Sócrates em aceitar a tarefa de imediato é o fato de estar também em aporia e julgar necessário
continuar a busca por instrução
128
.
O que é central para o argumento sobre o Laques e sobre sua relação com o que é dito na
Apologia é que o critério, segundo o qual Nícias e Laques acabam sendo obrigados a admitir que
não sabem o que professavam saber sobre os temas discutidos, é o de não resistirem ao exame
dialético e, portanto, não serem capazes de fundamentar suas teses até o fim. Ora, se tivessem
realmente a sophía, seriam capazes de enxergar de onde provém a aporia e de que modo ela pode
ser superada. Se não o fazem, é porque não têm a dýnamis que julgavam ter.
Algo semelhante dá-se no Eutífron, outro diálogo considerado aporético. Não é
necessariamente a impropriedade da definição de piedade a que chega Eutífron, em uma certa
altura, com a ajuda de Sócrates, que leva à aporia, mas admite-se que a causa da aporia pode ser,
nas palavras de Sócrates, a de que ―há pouco nós viemos a ficar de acordo em uma proposição
124
PLATÃO. Laques, 200b4.
125
PLATÃO. Laques, 200c3-7. Em OLIVEIRA, 1989, p. 98, nota 90, uma referência à observação de K. Gaiser
de que ―não deixar Sócrates ir embora‖ é um leitmotiv frequente no diálogo (181a7; 184c6; 186d), vital para a
interpretação da República que se pretende dar, e cuja importância, conforme o tradutor, já fora notada por T.
Szlezák.
126
PLATÃO. Laques, 200c8-d4.
127
Sobre essa interpretação, note-se que Nicérato é o único dos jovens do grupo de Polemarco e Adimanto que
aborda Sócrates no Pireu, no início da República, que é citado nominalmente. Acaba, portanto, por estar presente na
cena da República e é, de certo modo, ―educado‖ por Sócrates. Cf. PLATÃO. República, 328c.
128
PLATÃO. Laques, 200e6.
44
falsa, ou incidimos agora em algum erro‖ (
)
129
.
Que tenham se desviado de um caminho promissor também é admitido no Eutífron
130
. A
questão é que cabe ao interlocutor que declara saber e que é examinado por Sócrates enxergar o
desvio ou o erro e corrigi-lo, além de procurar sempre cercar seu objeto e não largá-lo enquanto
não chegar ao termo da busca.
Ao final do Eutífron, Sócrates chega mesmo a sugerir a Eutífron que continuem o exame
do que seja piedade
131
, mas é este quem, com pressa, se retira.
Toda a análise do Laques e a referência final ao Eutífron não visaram senão a procurar
fundamentar a tese de que a sabedoria, que Sócrates nega encontrar entre os atenienses, na
Apologia, se refere ao sentido forte de sophía como posse de uma epistéme, entendida como o
conhecimento fundamentado a que se chega, ao termo do exame dialético, pois é a falta dessa
epistéme mesma que serve como critério para Sócrates considerar seus interlocutores carentes da
sophía.
Se isso ficar assentado e se se considerar que a filosofia se identifica com a posse dessa
epistéme, então pode-se voltar à pergunta inicial: por que a filosofia é necessária?
Não é da leitura de diálogos como o Laques ou o Eutífron que se pode depreender a
necessidade da filosofia. Afinal, embora os interlocutores desses diálogos e de outros ditos
aporéticos admitam-se em estado de aporia, não vemos nenhum deles ser lançado em crise a
respeito de suas crenças fundamentais por causa disso. Ademais, sempre se viveu sem esse tipo
de conhecimento fundamentado visado pela filosofia. A concepção de sophía implícita nos
diálogos platônicos, e nos aporéticos, é uma novidade, e é aparentemente uma excentricidade
maior ainda identificá-la com a virtude, talvez o ponto mais problemático da linha de defesa
adotada por Sócrates na Apologia.
Se no Laques Sócrates representa a exigência de um conhecimento fundamentado
(epistéme), embora haja referências à necessidade de se reter Sócrates ali
132
, essa necessidade
nunca é levada ao extremo de se converter em uma exigência à qual se apega com firmeza e até o
129
PLATÃO. Eutífron, 15c8-9. Utilizou-se a tradução de NUNES, Carlos Alberto (Trad.). Eutífron. Belém: UFPA,
1980.
130
PLATÃO. Eutífron, 14c.
131
PLATÃO. Eutífron, 15c14.
132
Vide PLATÃO. Laques, 200c3-7e, e OLIVEIRA, 1989, p. 98, nota 90.
45
fim. Como se vê no Laques e no Eutífron, é ou por premência de tempo, ou por falta de
capacidade, ou pelo orgulho de se achar que se pode dispensar a filosofia que o exame socrático
costuma terminar em aporia.
No Laques, não ser capaz de fundamentar o que disse não lança Laques em qualquer crise
moral ou na real consciência de que lhe falta um conhecimento moral que deveria possuir.
Laques parece saber por outros meios o que é a coragem (o que se chamou aqui de intuição com
base na experiência). Na verdade, Laques não tem nenhuma crença moral que esteja ameaçada ou
precisando de fundamentação; ele tem convicções morais.
A mesma falta de urgência no que diz respeito à fundamentação encontra-se em Nícias ou
Eutífron. É na República, mais exatamente em Gláucon e Adimanto, que Sócrates encontrará
interlocutores realmente dispostos a retê-lo e à busca exaustiva que implica a dialética, talvez por,
ao contrário de Laques, Nícias e Eutífron, representarem com seus discursos o momento em que
se revela a necessidade do lógos filosófico.
2.3 A crise de valores na República e o papel da sophía
A própria cena dramática da República, na sua abertura, mostra indícios da urgência e
da necessidade da tarefa que espera Sócrates. Ele se encontra no Pireu com Gláucon e, no
momento em que se prepara para voltar à cidade, é avistado por Polemarco, que manda seu
escravo correr e pedir que esperem por ele
133
. O escravo corre e agarra crates pelo manto
134
.
Considerando-se tudo o que se passa no restante do diálogo, é impossível não ver aqui uma
indicação dessa verdadeira disposição de reter Sócrates presente na República.
É Gláucon, não por acaso, quem responde por eles, concordando em esperar. Chegam
então Polemarco e Adimanto, irmão de Gláucon, e Nicérato acompanhados de outros
135
.
Concluindo que Sócrates põe-se a caminho de volta para a cidade, Polemarco, sem mais, ameaça
retê-los ali à força e sequer ouvir os argumentos eventualmente oferecidos para convencê-los de
que os deixem partir
136
.
133
PLATÃO. República, 327b.
134
PLATÃO. República, 372b2-b6.
135
PLATÃO. República, 378c1-3.
136
PLATÃO. República, 367c9-15.
46
Se se entende que Sócrates, pelo exposto acima, representa o lógos filosófico, que, por
meio da dialética visa levar a cabo a busca de uma epistéme, pode-se entender que tudo nessa
cena dramática aponta para a disposição por parte dos jovens ali presentes, incluindo Gláucon, de
reter Sócrates e, com ele, o lógos filosófico.
Podendo ser esse o motivo ―simbólico‖ do pedido para que Sócrates fique, o motivo
declarado explicitamente é a celebração noturna que ocorrerá em honra da deusa e merece ser
vista, além do jantar que precederá a festa e contará com a presença de muitos jovens, que se
dedicarão a conversar (dialexómetha
137
). De qualquer forma, portanto, o lógos estaria presente,
porém o lógos filosófico depende da presença de Sócrates.
Tudo o mais que segue no livro I da República parece ser a cuidadosa apresentação, em
um crescendo que culmina nos discursos de Gláucon e Adimanto, no livro II, dos motivos pelos
quais se torna necessário reter o lógos filosófico, que vai, mais ou menos explicitamente, se
desdobrando frente ao leitor uma crise de valores que encontrará sua expressão máxima quando
falarem os dois irmãos de Platão.
Quando Sócrates chega à casa de Polemarco, é saudado pelo pai deste, Céfalo, um
ancião, e inicia com ele uma conversa. Inquirindo Céfalo sobre a velhice e dizendo este, a certa
altura, que a velhice para os sensatos e bem dispostos é moderadamente penosa, Sócrates o
provoca dizendo que, se aceita bem a velhice, é porque possui muitos bens e tem, assim como os
ricos, muitas consolações. À resposta de Céfalo, segue a pergunta de Sócrates que diz respeito à
maneira pela qual Céfalo adquiriu os bens que tem, se por herança ou por aquisição
138
.
Céfalo explica que o avô, de mesmo nome, herdou fortuna aproximadamente igual à sua e
aumentou-a umas poucas vezes, ao passo que seu pai, da geração seguinte, a diminuiu. Céfalo
tornou a aumentá-la
139
, e isso deixaria o esquema da fortuna da família ao longo das três últimas
gerações assim: aumento-diminuição-aumento.
Porém, o leitor da República sabe que, tendo sido vítima dos 30 tiranos, a família de
Céfalo teve a herança confiscada, e Polemarco foi obrigado a tomar cicuta. Assim, de posse dessa
informação, o esquema da fortuna da família de Céfalo, ao longo das gerações, fica: aumento-
diminuição-diminuição.
137
PLATÃO. República, 328a9.
138
PLATÃO. República, 328c6-330a10.
139
PLATÃO. República, 330b1-10.
47
Se se entende que Céfalo, enquanto ancião, pode representar a tradição e a fortuna da
família, bem como o valor dessa tradição na formação dos jovens, então, em três gerações, a
capacidade da tradição de formar jovens virtuosos diminuiu. Se essa interpretação se sustenta,
então é a referida crise quanto aos valores que orientam a vida dos atenienses, que toda a cena
inicial e o diálogo até aqui indicam.
Esta situação não estaria em dissonância com a crise de valores e a corrupção que a
Apologia aponta, e o Laques insinua. A corrupção apontada na Apologia diz respeito ao
abandono, entre os atenienses mesmo, da busca da fama e da glória e à sua fixação pelo
dinheiro
140
. Note-se que, no Laques, trata-se também de três gerações de atenienses, e tudo indica
que, se nada for feito, dar-se-á o mesmo processo de perda e corrupção.
Ademais, se se aceitar a data dramática da República e a do Laques em torno de 420 a.C.,
então se junta a essa literatura que tematiza a crise, a perda de valores e a corrupção em As
Nuvens, de Aristófanes, encenada em Atenas
141
em 423 a.C.
Nessa peça, tematiza-se o risco da educação sofística, mas o ponto fundamental é o uso
das habilidades sofísticas para subverter valores tradicionais pela capacidade de ―tornar forte o
discurso fraco‖. Ora, o ―discurso da tradição‖ reza que se devem pagar as dívidas, mas, na peça,
Estrepsíades deseja descobrir um meio de defender o discurso segundo o qual quem deve o
precisa pagar. Da mesma forma, no final da peça, seu filho defende que os filhos podem bater nos
pais, contra tudo que é tradicional.
Na continuação de seu diálogo com Céfalo, Sócrates faz derivar de suas respostas uma
definição de justiça. Caberá a Polemarco, seu herdeiro, defendê-la, uma vez que, posta uma
objeção a essa definição, Céfalo retira-se para fazer um sacrifício
142
.
A definição que Sócrates deriva do discurso de Céfalo é a de que justiça é restituir aquilo
que se tomou de alguém
143
. Diante da objeção de Sócrates, a primeira defesa consiste em apelar
para a autoridade, já que [Sócrates] alega que tal definição provém de Simônides, o poeta.
Diante de mais objeções e embora Sócrates o ajude a reformular a definição de justiça,
que fica sendo ―restituir a cada um o que lhe convém‖ (
140
PLATÃO. Apologia, 29d2-30a7, 30a11, 41e4.
141
ARISTÓFANES. As nuvens. Tradução Gilda M. R. Strazynski. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
142
PLATÃO. República, 331d.
143
PLATÃO. República, 331c2.
48
)
144
, a incapacidade de Polemarco de compreender o real sentido da fórmula o leva a
ser refutado facilmente por Sócrates
145
.
A refutação de Polemarco denuncia sua total falta de preparo para o embate dialético, por
este exigir fundamentação, e mesmo a fraqueza dos argumentos avançados por Sócrates passa
despercebida a Polemarco
146
.
Considerando-se que Polemarco, na verdade, quer defender a fórmula de Simônides e
outros pontos de vista que não deixam de ser tradicionais, como mostra Reeve, a refutação de um
jovem assim pode, em última instância, levá-lo a uma crise de valores e a abandonar mesmo os
que tenha herdado e tenham raízes na tradição.
Não estará Sócrates preocupado com essa possibilidade da refutação? Por que não oferece
a Polemarco uma definição de justiça? A verdade é que ofereceu (―dar a cada um o que
convém‖), e, a seguir, exigiu que sua adesão a ela fosse justificada. Foi a incapacidade de
Polemarco que o levou a ser refutado, não quanto à definição socrática, mas quanto ao que dela
derivou. Ademais, dizer que Sócrates deixa Polemarco em aporia sobre a justiça é prematuro,
considerando-se a continuação do diálogo e a presença de Polemarco até o fim.
Embora o risco da refutação de Polemarco comece a apontar para a necessidade do
discurso filosófico completo, que vise realmente a fundamentar aquilo que se afirma e que é
preciso defender de ataques, a verdade é que nem Sócrates nem Polemarco, durante o
desproporcional embate, chegaram a avançar teses diferentes das que são tradicionalmente
admitidas.
É por ter assistido a tão desproporcional embate que Trasímaco, o sofista
147
, interfere
abruptamente exigindo de Sócrates que saia de sua habitual posição de quem interroga e diga ele
mesmo o que entende por justiça
148
.
144
PLATÃO. República, 332c3.
145
PLATÃO. República, 331d3-336a11.
146
Para uma análise da refutação de Polemarco por Sócrates, ver REEVE, 1988, p. 5-22, do qual se é devedor não
quanto a essa análise mas também na análise da refutação de Trasímaco.
147
Embora Trasímaco figure como retórico e diplomata, a correspondência entre o que se diz que ele é capaz de
fazer no Fedro (267c-d) e a descrição da prática do sofista na República em 493a-b, além do seu tipo psicológico,
comum nos sofistas retratados por Platão, permite que ele [Trasímaco] seja tomado como sofista. Note-se ainda o
risco para a cidade que um discurso como o de Trasímaco representa, pois Sócrates faz nitidamente menção a ele, na
figura do lobo, quando justifica a necessidade de guardiões. Ademais, com o uso da palavra ―sofista‖ se quer
significar menos a ―profissão‖ do que o estilo de discurso que usa os recursos denunciados por Sócrates em 493a-b.
Sobre a passagem que permite associar Trasímaco ao lobo, ver PLATÃO. República, 336d-e e PEREIRA, 1987,
p.20, nota 24. Para a referência ao lobo como risco para o rebanho, entendido como a cidade, ver PLATÃO.
49
Porém, é o próprio Trasímaco, confiante na sua tese sobre a justiça, que passa a defendê-
la da refutação socrática. Com Trasímaco, o embate é mais difícil principalmente porque este não
está disposto a aceitar a regra do élenkhos socrático, de afirmar aquilo em que se acredita
149
.
Estar dispensado disso abre todo um leque de possibilidades para que exponha teses anti-
tradicionais sem incorrer no escândalo de afirmar que acredita realmente no que diz. Sócrates
a custo consegue refutá-lo, sem, entretanto, deixá-lo convencido de que sua tese sobre a justiça
não é boa.
Essa falta de convencimento de Trasímaco indica a própria renúncia de Sócrates em levar
a dialética até as últimas consequências e o recurso ao argumento apenas suficiente para mostrar
a incapacidade do interlocutor de defender sua tese. Entretanto, essa incapacidade de Trasímaco
não pode ser completamente atestada, uma vez que este não teve a oportunidade de conduzir o
diálogo como quis
150
, mas, antes, aceitou o método socrático de perguntas e respostas
151
.
Sem que se disponha aqui de espaço para reproduzir o embate de Sócrates e Trasímaco
152
,
o que é necessário ressaltar é que, ao longo do discurso deste último, valores tradicionais foram
subvertidos, até chegar-se a afirmar que a injustiça é proveitosa e a justiça não
153
.
Embora Trasímaco tenha sido, por fim, refutado, a confiança que continua a depositar em
suas teses, mesmo após a refutação, indica que sua derrota foi uma derrota por incapacidade de
captar os pontos fracos da refutação de Sócrates. Se tivesse conseguido isso, não teria sido
refutado com os argumentos de Sócrates, e é nisso mesmo que Trasímaco parece acreditar, e é o
que também não passará despercebido a Gláucon e Adimanto.
Achando-se também em aporia, uma vez que reconhece que abandonaram a questão
prévia de dizer o que é a justiça, de cuja definição as outras dependiam, Sócrates chega a
considerar-se livre da discussão
154
.
República, 415d-e. Para as referências a Trasímaco como retórico e diplomata, ver NAILS, Debra. The People of
Plato: A Prosopography of Plato and Other Socratics. Indianapolis: Hackett, 2002. Cf. p.288-289.
148
PLATÃO. República, 336b1-d5.
149
Sobre o élenkhos socrático, ver VLASTOS, Gregory. The Socratic elenchus: method is all. In. _______. Socratic
Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p. 1-29.
150
PLATÃO. República, 350d10-13.
151
Para Reeve, a incapacidade de Trasímaco de vencer o embate dialético com Sócrates não significa que aquele
abra mão de suas posições. Segundo esse autor, sua derrota deve-se a uma incapacidade de enxergar por que seu
argumento está sendo refutado pela dialética socrática. É por isso que declara querer usar outro tipo de discurso para
defender sua tese, o que demonstra confiança na tese que defende e na solidez de sua concepção. Ver REEVE, 1988,
p. 5-22.
152
PLATÃO. República, 348c-354c.
153
PLATÃO. República, 348c.
50
A partir do que se propôs até aqui, algumas perguntas podem surgir: se o que está em jogo
na República é uma crise de valores e o risco de que estes sejam abandonados, o que levaria à
corrupção dos jovens; e se a refutação põe em questão o risco de simplesmente refutar jovens
que defendam valores que não se afastam da tradição, como Polemarco
155
, por que Sócrates, se
representa mesmo o gos filosófico, capaz de atingir uma epistéme e fundamentar os valores,
não o apresentou ainda em sua plenitude? Mais premente ainda se torna a mesma pergunta no
caso de Trasímaco. Por que Sócrates não o refutou até deixá-lo completamente convencido?
A questão se torna ainda mais desconcertante se se percebe que o discurso de Trasímaco,
que contém um ataque a valores tradicionais, é proferido na frente dos jovens ali presentes com
todo o seu poder de compelir, o que fica evidente pela sua retomada por Gláucon e Adimanto.
A resposta é dada por Platão logo a seguir, ao fazer Sócrates dizer que o que se deu até
então não passava de um proêmio
156
. Nesse proêmio, Platão parece querer preparar o leitor para
entender progressivamente a função do lógos filosófico e sua necessidade.
Se Polemarco representa a incapacidade de fundamentar valores tradicionais ante um teste
dialético, Trasímaco representa a materialização da possibilidade de atacá-los e subvertê-los, bem
como do risco daí decorrente. É preciso ter paciência e esperar que esse discurso sofístico seja
apropriado por jovens atenienses e retratado como um risco à sua própria crença nos valores
tradicionais, pelos quais foram educados e que orientam suas escolhas. Esse risco só ficará
plenamente claro nos discursos de Gláucon e Adimanto que seguirão.
Assim, o discurso de Sócrates não pode ser convincente para Trasímaco, e este tem de
falhar em ver por que não foi realmente refutado, não como quer Reeve, ou não só apenas porque
Platão quer mostrar a fragilidade de certos pressupostos da ética socrática e abandoná-los
157
mas,
sobretudo, para que se torne visível com a máxima evidência a necessidade do lógos filosófico
pela intervenção de Gláucon e Adimanto.
154
PLATÃO. República, 357a1-2.
155
Note-se que crates confunde Polemarco sobre se deve ou não fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, o que,
do ponto de vista de cidades em guerra, é um preceito válido na própria pólis com lógos, como nota Strauss: ―[...]
Therefore Socrates himself demands later on (375b-376e) that the guardians of the city be by nature friendly to their
own people and harsh or nasty to strangers. He also demands that the non-austere poets, a great evil to the city, be
sent away to others cities (398a5-b1). Above all he demands that the citizens of the just city cease to regard all
human beings as their brothers and limit the feelings and actions of fraternity to their fellow citizens alone (414d-e)‖.
STRAUSS, Leo. 1978. Cf. p.73. Para a refutação de Polemarco sobre esse ponto e seu viés sofistico, pelo qual se
distorce o sentido pretendido por ele, ver PLATÃO. República, 332d-336a e REEVE, 1988, p. 5-22.
156
PLATÃO. República, 357a2-3.
157
REEVE, 1988, p. 22-23.
51
Se Trasímaco percebesse a fragilidade do argumento socrático que o refuta, e se Sócrates
tivesse de substituí-lo pelo lógos filosófico na sua plena acepção, talvez não houvesse ocasião
para os discursos de Gláucon e Adimanto, que são fundamentais para que se torne visível com a
máxima evidência a necessidade da filosofia.
Trasímaco mais de uma vez é tomado como expositor de um discurso que representa o
modo de ver da maioria
158
e, portanto, representa a materialização da perda de hegemonia da
tradição, que fazia permanecerem para ela [essa maioria] certos valores frente ao discurso
contrário, com a patência necessária para determinar as suas escolhas e o seu modo de vida.
Que exista um discurso contrário é natural pela diversidade mesma dos homens e pela
existência neles de uma dimensão que é sede de desejos e paixões que podem contrapor-se a
esses valores, mas o que indica uma crise é o fato de que passe a existir nas escolhas e no modo
de vida da maioria uma confirmação da adesão ao que antes poderia ser considerado
dissonante e contrário aos valores tradicionais.
O sofista representa apenas a capacidade de compreender as premissas subjacentes ao
comportamento da maioria e a de produzir com proficiência um discurso que integre premissas e
consequências de forma racional, apresentando esse discurso com sua capacidade de compelir e
seduzir pela correspondência com a realidade histórica e pela perspicácia com que explora
aspectos da alma humana reconhecíveis por todos como a força dos desejos.
Gláucon e Adimanto representam o risco da perda da efetividade dos valores baseados na
tradição, não mais consubstanciada apenas no discurso dos retóricos e dos sofistas estrangeiros da
República ou do Górgias, ou entre os ricos metecos, mas entre os atenienses mais próximos e das
melhores famílias
159
. Esse risco é não de que seja efetivada a perda mas de que esta termine
em um rompimento com esses valores por parte da elite, e não por parte da maioria, e de que
158
PLATÃO. República, 368a-c. Sobre os sofistas serem tomados, na República, como mestres nas doutrinas da
maioria, ver PLATÃO. República, 493a-b.
159
Sócrates, na Apologia, se diz disposto a admoestar a todos que entender carentes de virtude por darem pouca
importância ao que tem mais valor e estimarem o que vale menos, no caso as riquezas, mas diz que o fará primeiro
com os seus concidadãos por lhe serem mais próximos pelo sangue. Cf. PLATÃO. Apologia, 29e-30c. Neste sentido,
Gláucon e Adimanto representam, como personagens de Platão, o que pode haver de mais próximo. É interessante
notar que esse ―risco‖ seja anunciado progressivamente não só na República mas também na obra de Platão. Além do
que se disse a esse respeito sobre a Apologia e o Laques, note-se também que, no Górgias, Cálicles, outro
personagem que afirma teses imorais e antitradicionais, é um ateniense e é retratado como amante de Demo, filho de
Pirilampo, que é o padrasto de Platão. O que o rgias indica, portanto, é que a ―crise de valores‖ está cada vez mais
próxima. Na República, as teses de Trasímaco, o sofista estrangeiro, passam não mais para alguém próximo de um
membro da casa de Platão, indiretamente ligado a ele, mas para os seus irmãos de sangue. Cf. PLATÃO. Górgias,
481d-e. Sobre a oposição entre virtude e riqueza, ver PLATÃO. República, 550e.
52
haja, por parte daquela, uma reinterpretação da própria tradição que os estabeleceu, levando à sua
inversão mesma.
O que os discursos de Gláucon e Adimanto, no início do livro II, trazem é a confissão de
estarem atordoados por ouvirem mil outros discursos como o de Trasímaco
160
e a denúncia de sua
capacidade de entendê-lo e julgá-lo convincente. É uma confissão de desamparo e de necessidade
de ouvir um discurso contrário que tenha força suficiente para ser mais convincente, que na
tradição, reinterpretada, também confessam não enxergar elementos para defendê-la, o que fica
claro pelo discurso de Adimanto
161
, embora essa reinterpretação da tradição esteja mais
sutilmente anunciada também no discurso de Gláucon.
Gláucon e Adimanto são irmãos de Platão; atenienses de família ilustríssima
162
,
receberam a melhor educação e se encontram perdidos em meio ao comportamento da maioria, à
sua racionalização pelos sofistas e à sua incapacidade de enxergar na tradição poética uma saída.
Que melhor cena para desvendar o que é a filosofia, qual a sua dýnamis e por que é
necessária?
Se se entende o discurso filosófico como o discurso dialético que, partindo de hipóteses
tomadas apenas como hipóteses, as submete a objeções exaustivamente para verificar se se
sustentam, até que não haja mais objeção, com o objetivo de atingir a completude de um objeto,
ele também é o discurso capaz de enxergar quais conceitos dependem de quais outros e retificar
qualquer adesão apressada a um princípio ainda não submetido a exame.
O que Platão apresenta com os discursos de Gláucon e Adimanto, no Livro II da
República, é a necessidade desse tipo de retificação, que pode se dar uma vez detectado o
princípio do qual se partiu indevidamente.
O argumento de Sócrates em resposta aos discursos de Gláucon e Adimanto será
pacientemente construído até atingir esse princípio mesmo do qual partem e que torna possível a
eles atacarem a justiça: a sua concepção de homem. Esta é tomada de Trasímaco, que, por sua
vez, a toma da ―maioria‖, incapaz de enxergar para além do seu próprio horizonte de experiência.
160
PLATÃO. República, 358c9-11.
161
Sobre esse ponto, veja-se o que se diz quanto ao discurso de Adimanto. Cf. supra, 2.3.2.
162
Cf. PLATÃO. Cármides, 157d10-158b1. Utilizou-se a tradução de OLIVEIRA, Francisco (Trad.). Cármides.
Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981. (Textos Clássicos, 12). Ver também NAILS, 2002, p.
2, 154 e 244.
53
Que os jovens da elite fechem esse círculo e legitimem essas concepções é o risco
representado pelos discursos de Glaúcon e Adimanto, o que justifica que Sócrates apresente o
lógos filosófico em sua plenitude.
Se na resposta de Sócrates a Gláucon e Adimanto se chega à construção com o lógos de
uma cidade onde se surgir a justiça, ao se transferir o foco para o homem, chega-se não à
definição de justiça na alma mas também a uma concepção da alma e do homem.
A justiça e o homem definidos na República são exemplos da completude que se pode
atingir pelo discurso filosófico, bem como tornam possível a resposta à questão original que se
discutia com Trasímaco, sobre qual é a mais vantajosa, se a justiça ou a injustiça.
Resta, então, uma análise dos discursos de Gláucon e Adimanto que torne claro em que
medida necessitam da retificação do lógos filosófico.
2.3.1 O argumento de Gláucon
O argumento de Gláucon toma como ponto de partida o estabelecimento de três tipos de
bens: os que são bens por si, os que o são por si e pelas consequências, e os que são bens apenas
pelas consequências, embora em si mesmos sejam penosos
163
. À opção de Sócrates de pôr a
justiça entre os bens do segundo tipo, Gláucon contrapõe a opinião da maioria, que a põe entre os
que pertencem à espécie penosa,
164
que se pratica em vista das aparências, em vista do salário e da reputação, mas que por si
mesma se deve evitar, como sendo dificultosa.
Sócrates entende perfeitamente a observação de Gláucon e identifica nessa opinião mesma
da maioria a base do argumento de Trasímaco, que, portanto, fica reduzido à descrição
163
PLATÃO. República, 357b-d.
164
PLATÃO. República, 358a5-6.
54
proficiente do que está implicado na opinião da maioria
165
. O que o discurso de Gláucon torna
mais explícito do que o de Trasímaco é qual o pressuposto, ou o modelo
166
do qual parte.
Gláucon não faz outra coisas senão retomar
167
o poder descritivo do lógos sofístico e
mostrar o quão proficiente se pode ser na arte de olhar para um modelo e descrever o que se vê. O
modelo em questão é uma certa concepção de homem e, portanto, da alma, que Gláucon,
refletindo a opinião da maioria, adota.
Gláucon se propõe a retomar o discurso de Trasímaco e mostrar em primeiro lugar o que
se afirma ser a justiça e qual a sua origem. Em segundo lugar, que todos os que a praticam fazem-
no contra a vontade, como coisa necessária, mas não como boa, e, por último, que a vida do
injusto é muito melhor do que a do justo
168
.
Embora Gláucon descreva em primeiro lugar a origem da justiça e a caracterize como um
acordo entre os homens pelo qual estes se privam de possuir o maior bem (o exercício da
injustiça), em vista de não sofrerem um mal maior do que o bem que em cometê-la (ser vítima
da injustiça), é a partir da concepção de homem que ele adota, e explicita em seguida, que,
retroativamente, se explica sua tese sobre a própria origem da justiça.
Assim, tudo no argumento de Gláucon depende desse modelo de homem para o qual olha
como um escultor que visa reproduzi-lo ao máximo que pode (Hos málist’, éphe, dýnamai)
169
. O
modelo de homem e de alma de que Gláucon parte surge no momento em que argumenta em
favor da sua segunda tese, a de que os que observam a justiça fazem-no contra a vontade
170
.
Gláucon propõe que se conceda, tanto para o justo quanto para o injusto, o poder de
fazerem o que quiserem e, a partir daí, sejam seguidos para que se veja aonde o desejo
(epithymía) leva cada um.
Diz Gláucon:
165
PLATÃO. República, 368a-c. Sobre o sofista ser um elaborador da opinião da maioria para fins de persuasão, ver
PLATÃO. República, 493a-b.
166
Usa-se o termo modelo em referência à comparação feita por Sócrates do discurso de Glaúcon sobre o homem
perfeitamente justo e sobre o perfeitamente injusto com a confecção de uma estátua. Cf. PLATÃO. República, 361d.
167
PLATÃO. República, 358b-d.
168
PLATÃO. República, 358c.
169
PLATÃO. República, 361d7.
170
PLATÃO. República, 358c3-6.
55
171
Sentiremos melhor como os que observam a justiça o fazem contra a vontade, por
impossibilidade de cometerem injustiças, se imaginarmos o caso seguinte. Demos o
poder de fazer o que quiserem a ambos, ao homem justo e ao injusto; depois vamos atrás
deles, para vermos onde é que o desejo leva cada um. Pois bem! Apanhá-lo-emos, ao
justo, a caminhar para a mesma meta que o injusto, devido à ambição [dià tèn
pleonexían], coisa que toda criatura espor natureza disposta a procurar alcançar como
um bem; mas por convenção, é forçada a respeitar a igualdade.
Note-se que Gláucon assume que o homem é guiado naturalmente pelo desejo e pela
ambição e ilustra o tipo de poder a que se refere com a dýnamis
172
, que diz ter sido concedida a
Giges, cuja história narra em seguida.
Há no mito de Giges uma série de elementos que podem ser reconhecidos como analogias
que esclarecem muito sobre o modelo de homem do qual Gláucon parte para esculpir seu elogio
da injustiça.
Gláucon conta a história de Giges:
173
171
PLATÃO. República, 359b7-c7. Tradução com adaptações. Preferiu-se aqui traduzir ―epithymíapor ―desejo‖.
172
PLATÃO. República, 359d1.
173
PLATÃO. República, 359d2-360b2.
56
[Giges] era um pastor que servia em casa do que era então soberano da Lídia. Devido a
uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local
onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu e contemplou,
entre outras maravilhas que para fantasiavam, um cavalo de bronze, oco, com umas
aberturas, espreitando através das quais viu dentro um cadáver, aparentemente maior
do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-
lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de
comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá
também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso
uma volta ao engaste do anel para dentro em direção à parte interna da mão, e, ao fazer
isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se
tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o
engaste. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, experimentou,
a ver se o anel tinha aquele poder e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se
tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim, senhor de si, logo fez
com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez chegado, seduziu a
mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou
do poder.
Tendo exemplificado com a história de Giges o tipo de poder que considera que poria
justo e injusto no mesmo caminho, Gláucon passa a exemplificar quais seriam as ações tanto do
justo quanto do injusto se tivessem o mesmo poder: apropriar-se de bens alheios, tirar à vontade o
que quisesse do mercado, unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas quem lhe
aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fossem iguais aos deuses
174
.
Uma primeira analogia que o mito permite é a que aproxima o discurso de Gláucon ao
risco que o próprio discurso assume de produzir a corrupção e a perda de valores, por meio do
uso da imagem do cavalo oco. Tendo sido um cavalo oco a causa da destruição de Tróia, que até
o uso do cavalo pelos gregos tinha resistido, o tipo de discurso que Gláucon assume pode chegar
a significar o mesmo para a cidade onde surge. Se se recordar a proverbial infelicidade de
Príamo, então o cavalo, artefato que, em última análise, levou à queda de Tróia, quer dizer muito.
Adiciona-se à imagem do cavalo oco o fato de este ser de bronze, o que representa, por
analogia, na cidade construída com o lógos ao longo da República, a maioria dos homens, os que
tendem, por natureza, a terem mais desenvolvida a parte apetitiva da alma (epithymetikón), sede
dos desejos. Assim, nessa imagem confirma-se o modelo de homem do qual Gláucon parte: o
homem definido pela epithymía e pela pleonexía.
Porém, se se considerar que a alma, reconhecida através da dialética socrática, no livro
IV, tem três elementos constituintes e que não é possível compreendê-la a partir da epithymía
somente, nem como única instância nem como força diretora na alma justa, mas também a partir
174
PLATÃO. República, 360b3-c4.
57
dos demais elementos, o irascível (thymoeidés) e o racional (logistikón)
175
, então possuir um
modelo completo de homem significaria pôr-se diante dos três elementos da alma e das relações
que estes comportam. Sendo esse o verdadeiro modelo do que é o homem e a sua alma, então
Gláucon está olhando para um modelo incompleto, parcial e distorcido.
Se se continua na descrição da origem da dýnamis, que possibilitará a Giges ser injusto,
expressando sua natureza determinada pela ambição, sem sofrer consequências, então se que
essa dýnamis provém de um anel, retirado de um cadáver que não é de um homem
176
. Se o
cadáver de um homem não representa integralmente um homem, tanto menos poderá dar a
imagem completa do homem um cadáver que o seja de um homem. Um modelo assim só pode
servir para uma representação parcial do que seja o homem e que, se é tomado por total, pode
levar a toda uma concepção distorcida sobre quais as suas possibilidades de vida
177
.
Se se aceita a tese defendida anteriormente de que a dialética como lógos filosófico visa à
completude, e se entendemos que através da dialética Sócrates chegou a retificar o modelo de
homem, e que a partir desse novo modelo poderá defender a justiça, então a história de Giges,
e, portanto, o discurso de Gláucon, tem muito a esclarecer sobre a necessidade da filosofia, pois é
expressão da parcialidade, precariedade e incompletude que ela visa a retificar.
Dos três pontos que Gláucon se propõe a esclarecer quando retoma o argumento de
Trasímaco
178
, tanto o primeiro, a descrição da origem e da essência da justiça, quanto o terceiro,
as vantagens da vida injusta frente à justa, dependem da sua concepção de homem implícita no
esclarecimento do segundo ponto, o de que os que praticam a justiça o fazem contra a vontade, e
que inclui o mito de Giges.
Se no primeiro a justiça é entendida como limitação forçada dos desejos, cuja falta de
limite seria o maior dos bens, no terceiro, ao elencar os ―bens‖ que se obteriam pela prática da
perfeita injustiça, vê-se que todos, de alguma forma, poderiam ser reduzidos ao ganho, ao lucro, à
175
Ver PLATÃO. República, 434d-441c.
176
PLATÃO. República, 359d9. Note-se que o cadáver é dito aparentemente maior do que um homem
- e não de um homem grande.
177
Poder-se-ia objetar que a epithymía que Gláucon descreve é a de Giges, e não do anel ou do cadáver, mas se se
aceitar que, com a imagem de Giges, Gláucon, por analogia, está apresentando sua concepção de homem, então a
imagem do cadáver não humano e do anel, ao servir para constituir a imagem do próprio Giges, fala também de uma
certa concepção de homem.
178
PLATÃO. República, 358c.
58
riqueza, ou, como se verá, segundo a visão de Sócrates sobre a riqueza
179
, aos prazeres que dão
satisfação à epithymía.
Se é da concepção que tem do homem que resulta todo o elogio da injustiça e vitupério da
justiça, e se essa concepção de homem se baseia em um modelo para o qual Gláucon olha, então
compreende-se porque Sócrates, ao procurar defender a justiça, caracterizará a busca (zétesis) que
será necessário empreender como uma empresa que exige acuidade de visão
180
. Essa acuidade
parece ser a dýnamis, que falta à maioria e mesmo a Gláucon.
Indício da falta de acuidade de visão de Gláucon é o fato de que explica a justiça ou a
injustiça como resultantes da repressão ou liberação do mesmo elemento definidor do homem, a
epithymía, e não enxerga que, ao defender o terceiro ponto de seu argumento, as vantagens da
vida do homem injusto na comparação com as penas da vida do homem perfeitamente justo, cita
como exemplo do homem justo um homem que não queria parecer justo, mas ser justo como o
personagem de Ésquilo
181
. O personagem em questão é Anfiareu, dos Sete contra Tebas, que, se
olhado com acuidade de visão, bem poderia ser o ponto de partida para uma concepção mais
completa do homem.
Anfiareu, na tragédia de Ésquilo, é descrito pelo mensageiro como um homem
notoriamente sapientíssimo (sophronéstaton) e corajoso (alkén)
182
, combatente exemplar e
vidente, alguém que ―colhia os frutos do sulco que a sabedoria aprofundara em sua mente, onde
verdejavam sábios conselhos‖ ( /
)
183
.
Se entendemos que, na alma tripartite do livro IV, sabedoria (sophía) e coragem (andreía)
são as virtudes próprias dos dois elementos da alma negligenciados
184
por Gláucon em seu
discurso, então este falhou em ver no exemplo do poeta uma imagem mais completa do homem.
O elemento epithymetikón pode também entender-se simbolicamente referida no escudo de
179
Sócrates chama o elemento epithymetikón da alma de amante da riqueza (philokhrématon) por entender que é,
sobretudo, com riqueza que se satisfaz os desejos que lhe são próprios: os da comida, bebida, sexo e os que os
acompanham. Sobre esse ponto, ver PLATÃO. República, 580d-581a.
180
PLATÃO. República, 368c9-11.
181
PLATÃO. República, 361b8-10.
182
ÉSQUILO. Os Sete contra Tebas, 568. Utilizou-se a tradução de SCHÜLLER, Donaldo (Trad.). Os Sete contra
Tebas. Porto Alegre: L&PM, 2003; e o texto grego de SMYTH, Herbert Weir (Trad.). Suppliant Maidens, Persians,
Prometheus, Seven against Thebes. Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann, 1988.
(Loeb Classical Library, 145).
183
ÉSQUILO. Os Sete contra Tebas, 590-595.
184
Entenda-se os elementos thymoeidés e logistikón.
59
bronze de Anfiareu, mas, ao contrário da epithymía no modelo de homem de Gláucon, o escudo
não se destaca e, ao contrário dos escudos dos outros seis combatentes descritos, sequer tem
imagens gravadas.
Anfiareu é a personificação da ausência de subversão da ordem presente na justiça, como
definida no livro IV: a do homem que se submete à ordem da razão (sede da deliberação) e suas
escolhas, a uma ordem superior e colhe os frutos do sulco que a sabedoria aprofunda em sua
mente, onde verdejam sábios conselhos; do homem que não subverte a ordem do comando militar
e cuja submissão a uma ordem superior encontra-se mais uma vez referida na sua relação com o
divino. É de se notar, sobre esse último ponto, que, de todos os seis atacantes a serviço de
Polinice, seja o único que de uma forma ou de outra não vitupere os deuses, mas, antes, lhes
mostre reverência.
Anfiareu, portanto, é o contraponto de Giges, e se não faltasse a Gláucon acuidade de
visão, ele poderia perceber que um modelo de homem mais completo do que aquele de que parte
está já a rolar sob seus pés
185
.
Porém, o lógos poético não parece mais suficiente para a miopia da maioria, que, neste
momento, e em uma certa medida, inclui o próprio Gláucon. Ora, ele conhece a tragédia e é capaz
de citá-la sem descobrir no trecho que cita uma possível saída para o próprio problema que o
aflige. Se existe verdade oculta e profunda no mito
186
, não é a maioria, presa à experiência
imediata das sensações, desejos e temores, que vai descobri-la, podendo, inclusive, distorcer
mesmo o que é mais claro.
Ainda que Gláucon esteja veiculando a opinião da maioria e não a sua própria, é sua a
escolha de Anfiareu para ilustrar o perfeito justo, e é ele quem coloca na boca da maioria a frase
de Ésquilo, referindo-se a Anfiareu, invertida até os limites do cinismo, para ser aplicada ao
homem injusto ―que não quer parecer injusto, mas -lo‖ (
)
187
, dando em seguida, como remate, o trecho seguinte do poema, no qual esse modo de
ser se justifica: colhendo, em espírito, o fruto do sulco profundo do qual germinam as boas
185
Note-se como será fácil para crates fazer os interlocutores reconhecerem as dimensões da alma que não se
relacionam necessariamente com os desejos sensíveis ao analisar, junto com eles, a composição da alma humana no
livro IV. Cf. PLATÃO. República, 434d-443c.
186
Sobre haver verdade nos mitos, mesmos naqueles proscritos da cidade, e sobre poderem estar certos para outros
efeitos que não o de educar os jovens, e ainda sobre seu possível sentido alegórico, ver: PLATÃO. República, 378a8,
378b, 387c.
187
PLATÃO. República, 362a6-7.
60
resoluções‖ ( /
)
188
.
Que aqui esteja sendo feita, ironicamente, uma reinterpretação explícita da intenção do
poeta para servir à maneira de ver as coisas da maioria fica claro. Se até as passagens da poesia
em que a nobreza de um personagem não admite ambiguidade ou interpretação simbólica que
inverta o sentido original podem ser apropriadas pela maioria (supondo-se que Gláucon coloca-se
no lugar dela ao escolher a tragédia e fazer o uso que faz dela) e subvertidas cinicamente, o que
dirá as passagens que admitem dupla leitura. A parte final do discurso de Gláucon, citando o
poeta, prenuncia o discurso de Adimanto, que retomará de onde o irmão parou e refletirá sua
miopia.
2.3.2 O argumento de Adimanto
O argumento de Adimanto, vindo em socorro ao do irmão, como nota Sócrates, não faz
senão procurar tornar mais claro por que se diz ser preferível a injustiça à justiça e por que esta
última só pode ser tomada como um bem que vale só pelas consequências.
Uma das causas de que seja tomada assim é o fato de que em toda a educação que se
aos jovens, quando se elogia a justiça, relaciona-se sempre sua escolha a um bem subsidiário. A
começar pelos pais e chegando aos poetas, não elogio da justiça que não insista nessa relação:
se houver adesão à justiça, seguem outros bens, que, no elenco de Adimanto, se resumem àqueles
que dão satisfação à pleonexía e epithymía do perfeito injusto que aparenta ser justo no discurso
de Gláucon, como magistraturas, desposórios e o favor dos deuses quanto à riqueza e
prosperidade. Além disso, a justiça atrai o favor dos deuses trazendo aos justos prêmios no além e
no que se refere à descendência
189
.
Quanto aos ímpios e injustos, diz Adimanto, refletindo a maioria, os poetas dizem que os
deuses os punem no além e lhes imputam fama em vida, acarretando toda sorte de mal que
acomete os justos que têm fama de injustos e que Gláucon já havia elencado
190
.
A seguir, Adimanto refere-se à opinião dos poetas e dos leigos, que, em uníssono, entoam
hinos sobre a beleza da temperança e da justiça, ressaltando, porém, o caráter difícil e trabalhoso
188
PLATÃO. República, 362a8-b1.
189
PLATÃO. República, 362e-363d.
190
PLATÃO. República, 363d-e.
61
destas, em contraste com a facilidade com que se leva a vida intemperante e injusta, a qual seria
odiosa apenas à fama e à lei
191
.
Note-se que introduzir a temperança no momento em que se trata da justiça, e da forma
como introduz, significa assumir que a justiça é uma espécie de repressão dos desejos, tal como
implícito no discurso de Gláucon
192
.
Ainda referindo-se aos leigos e aos poetas, Adimanto afirma que:
193
Proclamam que a injustiça é, em geral, mais vantajosa do que a justiça, e estão prontos a
pretender que são felizes os maus, se forem ricos e possuidores de outras formas de
poder, e a honrá-los em público e em particular, ao passo que desprezam e olham com
sombranceria os que forem fracos e pobres, embora concordem que sejam melhores do
que os outros.
Sobre os deuses, dizem que ―[...] atribuíram a muitos homens de bem infelicidades e uma
vida desgraçada, e aos maus, o contrário‖ ([...]
)
194
.
Acrescentam ainda que:
/
191
PLATÃO. República, 363e-364a.
192
Não parece ser por acaso que a temperança apareça pareada com a justiça mais de uma vez. O que isso indica,
defender-se-á aqui, é que estas são as virtudes cívicas fundamentais, que devem estar presentes em todos os
cidadãos. Da mesma forma, defender-seque, se justiça na alma, é natural que haja temperança. Daí, em uma
cidade como a da República, a temperança poder ser a virtude que pertence a todos. Sobre a aparição conjunta de
justiça e temperança, ver PLATÃO. República, 500d, 501b; Protágoras, 323ª; Górgias, 447e, 478a, 491e-492c,
504d-c, 507a-b, 507c-e, 519a. Ver também BRISSON, Luc. Leituras de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p.
163-164.
193
PLATÃO. República, 364a5-364b2.
194
PLATÃO. República, 364b3-5.
62
/
195
Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de que têm o poder,
outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encantamentos, de curar por meio de
prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime cometido pelo próprio ou pelos seus
antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena
despesa, prejudicarão com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a serem
seus servidores dizem eles - graças a tais e quais inovações e feitiçarias. Para todas
estas pretensões, invocam os deuses como testemunhas, uns sobre o vício, garantindo
facilidades, como: ―Mal pode colher-se em abundância e com facilidade. / O caminho é
plano, e mora junto de nós. / Mas ante a virtude puseram os deuses o suor,‖ e um
caminho longo, escarpado e íngreme.
Mostra ainda como Homero é invocado pelos que dizem que os deuses tornam-se
propícios aos que erraram ou saíram do caminho mediante sacrifícios citando-o:
/
/ /
196
Flexíveis até os deuses o são. / Com suas preces, por meio de sacrifícios, / Votos
aprazíveis, libações, gordura de vítimas, os homens / Tornam-nos propícios, quando
algum saiu do seu caminho e errou.
Apresentam ainda, reforçando esse ponto, livros de Museu e Orfeu, que também apontam
para essa possibilidade
197
.
Adimanto então alerta Sócrates para o fato de que todas essas afirmações, provenientes de
todos os lados e chanceladas pela autoridade dos poetas, acabam por formar a opinião dos jovens
sobre que caminho é preferível na vida:
198
Toda essa espécie de afirmações, meu caro Sócrates, proferidas dessa forma e com tais
garantias, que se fazem sobre a virtude e vício sobre o valor que homens e deuses lhes
atribuem ao ouvi-las, que pensamos que fazem as almas dos jovens que forem bem
dotados e capazes, de andando como que a volitar em torno de todos, extrair delas uma
195
PLATÃO. República, 364b5-d3.
196
PLATÃO. República, 364d6-e2.
197
PLATÃO. República, 364e-365e.
198
PLATÃO. República, 365a4-b4.
63
noção do comportamento que uma pessoa deve ter e da espécie de caminho por que deve
seguir, a fim de passar a existência o melhor possível? Na verdade, dirá provavelmente
para si mesmo aquela famosa sentença de Píndaro: ―Hei de subir ao bastião mais elevado
/ pela justiça ou pelo dolo tortuoso‖, para assim me acolher a esse reduto e passar a
minha vida?
É interessante notar como nessa passagem Adimanto ―voz‖ a um suposto jovem que
tenha sido ―educado‖ por todas essas afirmações que ouviu e que, sendo bem dotado, percebe
quais devem ser suas escolhas. Esse jovem que ―ganhou voz‖ passa a responder, através de
Adimanto, a qualquer objeção hipotética ou explícita que se faça à sua opção pelo modo de vida
injusto, mostrando que o que se extrai daquelas afirmações é que, se, por um lado, não compensa
ser injusto sem parecer justo, porquanto quem não parece justo é punido, por outro lado, a vida
do injusto que parece justo, diz-se que sua vida é divinamente boa
199
.
À objeção de que não é fácil passar despercebido quem é mau respondeque o que é
grandioso é mesmo difícil e que a felicidade depende de se seguir esse caminho, mesmo que
envolva usar para isso todos os recursos disponíveis como amizades, capacidade de persuasão e
até mesmo a violência, e assim satisfazer as ambições e gozar de todos os benefícios da injustiça
sem ter de pagar a pena
200
.
Sobre a impossibilidade de passar despercebido aos deuses, ou de cometer violência
contra eles, responderia o jovem que, caso eles existam e se preocupem com o homem, como a
única fonte que afirma sua existência são os poetas e as leis, que levam a crer que se deixam fletir
por meio de sacrifícios, preces brandas e oferendas, bastaria lhes fazer oferendas com o próprio
fruto das injustiças, pois de nada valeria abrir mão desses frutos apenas em atenção aos deuses
201
.
À objeção de que no Hades se pagariam as penas pelas injustiças cometidas, mais uma
vez o jovem responderia que as iniciações que libertam dessas penas e que a crença em seu
poder é corroborada pelos poetas e profetas
202
.
No remate de seu argumento diz Adimanto:
199
PLATÃO. República, 365b.
200
PLATÃO. República, 365b-d. Sobre esse ponto, note-se que espelha os discursos de Gláucon, em 360e-d, e de
Trasímaco, em 344a-c.
201
PLATÃO. República, 365d-366a.
202
PLATÃO. República, 366a-b
64
203
Depois desses argumentos, havíamos de escolher a justiça, de preferência a uma
injustiça de maior amplitude, uma vez que, se assegurarmos os resultados desta com uma
falsa respeitabilidade, procederemos a nosso bel-prazer junto dos deuses e dos homens,
quer em vida quer depois de mortos, tal como diz a afirmação feita pelo povo em geral e
pelas pessoas de categoria elevada? Segundo tudo quanto dissemos, ó Sócrates, que
de querer honrar a justiça uma pessoa que tenha a vantagem de possuir força de ânimo,
capacidade econômica ou física, ou nobreza de nascimento, sem que se ria ao ouvir
elogiá-la? A verdade é que, como admites, se alguém puder demonstrar que é mentira o
que dissemos e estiver seguro de saber bem que a justiça é o maior dos bens, tem sempre
uma larga compreensão, e não se encoleriza com as pessoas injustas, mas sabe que, a
menos que alguém, por um instinto divino, tenha aversão à injustiça ou dela se abstenha
devido ao saber que alcançou, ninguém mais é justo voluntariamente, mas que devido à
covardia, à velhice ou a qualquer outra fraqueza, censurará a injustiça, por estar
incapacitado de a cometer.
Diante desses discursos, a constatação de Adimanto é de que nunca ninguém jamais
censurou a injustiça ou louvou a justiça por outra razão que não fosse pelas consequências de
uma e de outra, sem jamais demonstrar suficientemente até que ponto a justiça é um bem e a
injustiça um mal pela sua virtude própria:
204
Meu caro amigo, de todos vós, que vos proclamais defensores da justiça, começando nos
heróis de antanho, cujos discursos se conservaram, até aos contemporâneos, ninguém
jamais censurou a injustiça ou louvou a justiça por outra razão que não fosse a
reputação, honrarias, presentes, dela derivados. Quanto ao que são cada uma em si e o
efeito que produzem pela sua virtude própria, pelo fato de se encontrarem na alma de seu
possuidor, ocultas a homens e deuses, ninguém jamais demonstrou suficientemente, em
prosa ou em verso, até que ponto uma é o maior dos males que uma alma pode albergar,
ao passo que a outra, a justiça é o maior dos bens.
203
PLATÃO. República, 366b3-d3.
204
PLATÃO. República, 366d7-e9.
65
Adimanto, no seu apelo para que se defenda a justiça como um bem por si, entende que
uma educação que equiparasse a justiça a um valor assim e que fosse dada desde a infância
resultaria em que não seria preciso que os homens assim educados estivessem a guardar-se uns
aos outros para que não cometessem injustiças, mas seriam os melhores guardiões de si mesmos:
205
Se, portanto, todos vós nos falásseis assim desde o começo, e nos persuadissem desde
novos, não andaríamos a guardar-nos uns aos outros para não praticarmos injustiças, mas
cada um seria o melhor guardião de si mesmo, com receio de coabitar com o maior dos
males, se praticasse a injustiça.
Adimanto faz aqui uma associação que perpassará toda a República: a de educação e
capacidade para exercer a guarda. Ele parece enxergar na educação poética a capacidade de, pelo
menos em uma certa medida, determinar a opinião da maioria, que tudo o que ele e Gláucon
disseram sobre a justiça e a injustiça procede, em última análise, do modo de ser e de agir da
maioria racionalizado e colocado em discurso pela retórica sofística. Nota-se isso pelo fato de que
entende que uma outra educação poderia modelar de outra forma o éthos.
O que se defenderá aqui é que é visando responder ao apelo dos irmãos, mas
particularmente a dar conta dessa última observação de Adimanto, que Sócrates proporá a
construção da cidade com o lógos e proporá a adoção da paideía pela mousi e gymnastiké. É
por vislumbrar a possibilidade de uma intervenção política retificadora da alma humana, através
da paideía e das leis
206
, que o tratamento da questão de se a justiça, para o homem, é melhor do
que a injustiça, passará pela construção com o lógos de uma cidade. No modelo proposto, o que
se nota é que são indissociáveis a paideía e o modo de vida da cidade, regulado por leis explícitas
e implícitas. Esse modo de vida e essas leis serão tanto mais aceitos harmoniosamente quanto
mais forem afins com o que a paideía prepara para que seja aceito. É nesse sentido que Sócrates,
205
PLATÃO. República, 367a1-4.
206
Note-se que essa possibilidade de uma ―boa política‖, que seja retificadora da alma dos cidadãos, já se encontra
―antecipada‖ no rgias. Cf. PLATÃO. Górgias, 513e-514a, 515c, 517a-c.
66
ao propor a construção da cidade, se converterá em um legislador disposto a modelar os
cidadãos
207
.
Para o momento, porém, algumas observações sobre o discurso de Adimanto são
pertinentes para o argumento que se desenvolverá mais adiante sobre o poder e o papel da
paideía na cidade.
Uma coisa que a maioria que profere o discurso veiculado por Adimanto não parece notar
é que se os pais que educam seus filhos e os poetas que compõem seus versos associam bens
subsidiários à justiça, isso não significa, necessariamente, que o enxerguem nela também um
bem em si mesma. É claro que Adimanto tem o direito de reivindicar que se elogie a justiça por si
mesma, pela dýnamis que produz na alma de quem a possui, mas é preciso lembrar que o próprio
Sócrates a colocou na categoria dos bens que valem por si e pelas consequências
208
. Assim, é
natural que, se a justiça tem boas consequências, estas também sejam lembradas pelos pais e
poetas. Daí extrair que a justiça é um bem só pelas consequências é interpretação da ―maioria‖.
Uma interpretação alternativa dos poetas, e que a maioria bem poderia fazer, seria a de
que, se os deuses premiam os justos é porque prezam a justiça porque ela é, em si mesma, um
bem digno de ser prezado por eles. Por que os deuses prezariam a justiça senão pelo seu valor?
Não cobrar esse rigor da maioria é submeter-se à sua interpretação como se ela fosse a única
possível diante do que dizem os poetas.
Uma educação que inculque nos educandos valores e, inclusive, o valor da justiça não
precisará ser, como não será aquela proposta por Sócrates na cidade construída com o lógos, uma
educação que veicule teorias sobre o valor da justiça em si mesma. Enquanto virtude, ela é
simplesmente apresentada como valor e cultivada. O que se procurará nessa educação é que se
elimine qualquer ambiguidade que possibilite que se interprete a justiça de outra forma, mas isso
será feito, como se verá, retratando a justiça, e também outros valores, como nobres e
merecedores de honras.
A questão central a ser percebida no discurso de Adimanto é a do por que a maioria tem
de interpretar as palavras dos poetas como exortativas de uma vida injusta. Se há algum problema
com a palavra dos poetas é que podem ser interpretadas em duas direções e a maioria escolhe
207
Sobre a função do legislador de modelar os cidadãos na virtude cívica, e explicitamente para a temperança e a
justiça, ver PLATÃO. República, 500d, 501b.
208
PLATÃO. República, 358a.
67
uma delas não porque seja necessária, mas pelo tipo de ordenação que tem na alma, ordenação
esta constituída em um ambiente em que as forças em jogo na alma são deixadas seguir um curso
em que os desejos e a ambição são hipertrofiados sem ter em vista o risco que é opor essa
dimensão da alma assim hipertrofiada às outras que são, respectivamente, sede das opiniões
verdadeiras e da força que auxilia na preservação dessas opiniões, muitas das quais transmitidas
pelos pais e pelos poetas
209
.
Poder-se-ia dizer que, ao introduzir a educação poética que proporá para a cidade que
construirá com o lógos, na República, para mostrar que a justiça é melhor do que a injustiça,
Sócrates, ao citar os poetas e, especificamente, Homero, o faz de tal forma que distorce o
significado pretendido por ele.
Assim, quando, por exemplo, ao retratar o momento em que Aquiles tem um
comportamento indigno do que se deseja para o educando da cidade, e se exclui que na cidade
um herói possa ser retratado assim, pode-se interpretar que Sócrates entende que esta parte do
poema estimula ou, no mínimo, admite complacência com esse tipo de comportamento, e, por
isso, o exclui.
Porém, poder-se-ia objetar, Homero não estava necessariamente estimulando tal
comportamento, mas, antes, mostrando-o como um momento de ―queda‖ do herói a ser evitado.
É notório que Homero educa não pela emulação dos bons exemplos mas pela mestria com que
mostra as consequências nefandas da hýbris.
É claro que isso não pode passar despercebido a Sócrates, mas se elimina essas passagens
em que os heróis cometem a hýbris, é porque teme que a maioria interprete de outra maneira:
como se o poeta estivesse autorizando a emulação desses comportamentos.
O que o argumento de Adimanto sobre a influência da educação poética prova é que é isso
mesmo que acontece. A maioria interpreta a poesia segundo os modelos que predominam em sua
alma. Assim, uma alma que tem os desejos hipertrofiados e ilimitados não verá na hýbris de
Aquiles ou de Agamêmnon uma falha a ser evitada, mas a confirmação de que seus desejos são
aceitáveis.
209
Entende-se aqui essas duas outras dimensões como o logistikón e o thymoeidés. Sobre a descrição de processo
semelhante, ver aquela feita nos livros VIII e IX sobre as formas corrompidas de constituição e de alma, bem como
do processo pelo qual chegam ao ponto máximo de degenerescência, a tirania. Cf. PLATÃO. República, 543c-580d.
Sobre esse estado desordenado da alma ser o estado da alma dos atenienses, ver PLATÃO. Górgias, 517b-c.
68
A interpretação que a maioria faz da poesia é míope em vários sentidos: um dos mais
patentes é o que denuncia sua incapacidade de ver a contradição de seu próprio discurso. Se
tomarmos o que diz Adimanto sobre a justiça e a injustiça, vemos que primeiro diz que, segundo
os poetas, os deuses premiam os justos
210
e punem os injustos, e em um segundo momento diz
que atribuem aos homens de bem infelicidades e uma vida desgraçada, e aos seus opostos, uma
vida oposta.
211
Quem defende um argumento assim deveria ao menos se perguntar como é possível que
os deuses achem a justiça digna de prêmios e punições ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
Se notarmos o que Sócrates fará mais tarde para remediar essa aparente contradição, é
simplesmente excluir um dos termos, aquele segundo o qual os deuses premiam a injustiça,
apenas elimina a necessidade de se interpretar o sentido do que diz o poeta.
Mesmo eliminando um dos termos, ainda faz a ressalva que esclarece em que sentido se
poderia conceber que os deuses são causa de males para os justos: que se por acaso algum mal
lhes for imputado, que seja claro que não é verdadeiramente mal, mas que envolve um bem
oculto
212
. Ora, que os justos sofram reveses e que os injustos sejam prósperos não significa que
esses reveses não sejam um mal aparente ou menor e a prosperidade um bem aparente ou menor e
provisório
213
.
Porém, chegar a ver assim não parece mais possível para a maioria, e a saída é eliminar a
possibilidade de equívoco, ―reescrevendo‖ a poesia, tendo em vista que será o meio de educar as
crianças que não são capazes de fazer essas distinções e com as quais não se pode correr o
mínimo risco de uma inversão de valores, por mais sutil que seja.
O que, entretanto, não se pode deixar de notar é que essa ―re-escritura‖ que Sócrates fará é
posterior à ―re-escritura‖ que fez Adimanto como porta voz da maioria, a qual também fez as
leituras as mais desfavoráveis possíveis dos poetas.
Essa interpretação ―seletiva‖ do que diz o poeta pode-se ver também quando menciona os
prêmios outorgados aos justos no Hades por Museu e seu filho: coroas, um banquete dos bem-
210
PLATÃO. República, 363a-e.
211
PLATÃO. República, 364b.
212
PLATÃO. República, 380a-c.
213
Sobre esse aspecto, ver a nota ao texto de Shorey: ―The gnomic poets complain that bad man prosper for a time,
but they have faith in the late punishment of the wicked and the final triumph of justice.‖ Cf. SHOREY, 1994, p.364.
69
aventurados e uma embriaguez perpétua
214
, imaginando os poetas, segundo ele maldosamente
insinua, que este é ―o mais formoso salário da virtude‖ ( )
215
.
Quem interpreta assim passa do sentido original de que a virtude é premiada para a
questão secundária e sujeita a interpretações: a qualidade dos prêmios. Tal pode se dar porque
se é capaz de enxergar nesses prêmios seu sentido literal e abandonar o sentido primeiro dos
próprios prêmios para colocar toda ênfase naquilo que eles mesmos consideram os únicos
valores: o que aparece imediatamente aos sentidos como bem e que se identifica com o prazer.
Se educar é levar além do imediato e valorizar o que tem valor para além do imediato, a
educação tradicional o serve para a maioria míope, que sabe destacar das palavras dos
poetas os bens imediatos que enxerga.
Talvez o que Sócrates tenha visto ao propor suas restrições é que primeiro é necessário
formar a alma e depois, com muito cuidado, para muitos poucos e com o antídoto à mão,
deixar ter contato com uma poesia não purificada
216
.
O argumento exposto por Adimanto manteve como premissa a mesma concepção de
homem implícita no argumento exposto por Gláucon, como um ser regido pelo desejo
(epithymía) e ambição (pleonexía).
Colocar esses discursos para serem proferidos por Gláucon e Adimanto, mesmo que se
ressalte que não lhes dão adesão, significa, no nimo, apontar um risco. O risco é que essas
concepções acabem por persuadir mesmo os melhores jovens, que, apesar de serem bons, não são
suficientemente capazes de enxergar um argumento contrário mais forte.
A verdadeira disposição dos irmãos de reter Sócrates e o seu estado de aporia, sobre se é
melhor a vida do justo ou do injusto, é o momento em que se esclarece a necessidade do lógos
filosófico. Essa necessidade fica patente pelo caráter e pela dramaticidade do apelo de Adimanto
para que se defenda que a justiça é o maior dos bens, defesa esta que não enxerga na tradição que
o educou e que espera de Sócrates.
214
PLATÃO. República, 363c-d
215
PLATÃO. República, 363d.
216
Sobre esse ponto, ver PLATÃO. República, 595a-b.
70
217
E a causa de tudo isto não é senão aquela da qual toda esta discussão contigo, do meu
irmão e minha, partiu, ó crates, o dizer: ―Meu caro amigo, de todos vós, que vos
proclamais defensores da justiça, começando nos heróis de antanho, cujos discursos se
conservaram, até aos contemporâneos, ninguém jamais censurou a injustiça ou louvou a
justiça por outra razão que não fosse a reputação, honrarias, presentes, dela derivados.
Quanto ao que são cada uma em si e o efeito que produzem pela sua virtude própria,
pelo facto de se encontrarem na alma do seu possuidor, ocultas a homens e deuses,
ninguém jamais demonstrou suficientemente, em prosa ou em verso, até que ponto uma
é o maior dos males que uma alma pode albergar, ao passo que a outra, a justiça, é o
maior dos bens. Se, portanto, todos vós falásseis assim desde o começo, e nos
persuadissem desde novos, não andaríamos a guardar-nos uns aos outros para não
praticarmos injustiças, mas cada um seria o melhor guardião de si mesmo, com receio de
coabitar com o maior dos males, se praticasse a injustiça‖.
Cabe ainda apontar, quanto ao discurso de Adimanto, que, tal como se deu no caso de
Gláucon ao citar Anfiareu, é o próprio Adimanto que, sem enxergar o alcance do que diz, deixa
de tornar visível para si mesmo uma outra possibilidade de conceber o homem e de criar um
outro modelo a partir do qual poderia até encontrar uma resposta para os argumentos sobre o
papel da educação e da poesia na formação de jovens que tendem para a injustiça.
Diz Adimanto:
218
A verdade é que, como admites, se alguém puder demonstrar que é mentira o que
dissemos, e se estiver seguro de saber bem que a justiça é o maior dos bens, tem sempre
uma larga compreensão, e não se encoleriza com as pessoas injustas, mas sabe que, a
menos que alguém, por um instinto divino [theía(i) phýsei], tenha aversão à injustiça ou
dela se abstenha devido ao saber [epistémen] que alcançou, ninguém mais é justo
voluntariamente, mas que devido à covardia, à velhice ou a qualquer outra fraqueza,
censurará a injustiça, por estar incapacitado de a cometer. Que assim é, é evidente: uma
217
PLATÃO. República, 366d5-367a4.
218
PLATÃO. República, 366c3-366d5.
71
pessoa dessa espécie que alcance essa capacidade [dýnamin] é o primeiro a praticar a
injustiça, até onde for capaz.
Ao mencionar uma ordem superior, a ordem divina, ou uma epistéme como possível fonte
de uma aversão à injustiça, Adimanto não é capaz de relacionar esse saber com alguma dimensão
superior do homem de onde [o saber] ele possa provir, e, portanto, não pode, partindo dela,
mesmo como hipótese, explorá-la e descobri-la em todas as suas possibilidades
219
. A miopia
demonstrada por Adimanto reflete a de Gláucon tanto quanto seu discurso reflete e complementa
o do irmão.
Em ambos os casos a corrupção decorrente pode ser total, tal como foi a de Tróia, pois se
as resistências dos irmãos em ceder definitivamente aos argumentos dos quais são tão
proficientes porta-vozes indica ainda adesão aos valores tradicionais, o que o discurso de
Adimanto mostra, mais claramente do que o de Gláucon, é que o rompimento com esses valores
pode ser iminente, mesmo para os melhores, quando o seu abandono generalizado, uma vez
identificado e descrito pelo lógos sofístico, culmina em uma reinterpretação da própria tradição
que os estabeleceu.
A reinterpretação da tradição, expressa na leitura seletiva que faz da poesia tradicional, e
que o discurso de Adimanto apresenta, mostra que a incapacidade de reconhecer-se na sua
inteireza leva o homem a uma perda dupla, pois perde ao mesmo tempo a imagem completa de si
mesmo e a possibilidade de vê-la refletida na tradição. O passo seguinte é subverter a própria
tradição à luz da imagem incompleta que tem de si mesmo. Cabe, então, retificar a visão,
conferindo-lhe novamente a capacidade de enxergar o todo do homem, e é isso que, através do
discurso filosófico, Sócrates procurará fazer e que anuncia como uma busca que não é cil, mas
que exige acuidade de visão
220
.
Que o que está em jogo no discurso de Gláucon e Adimanto é fundamentalmente uma
concepção de homem mostra o fato de que, tratando das restrições ao conteúdo do que será
narrado ao educar os homens da cidade construída com o lógos, não é problema para Sócrates,
partindo de uma certa concepção do que sejam os deuses e os heróis, obter assentimento dos
irmãos para se retificar o que a respeito deles dizem os poetas
221
. O mesmo não se quanto ao
homem. Ora, sobre o que diz respeito aos homens e sobre como são felizes, a questão prévia
219
Entenda-se aqui o logistikón.
220
PLATÃO. República, 368c.
221
PLATÃO. República, 377e1-392a9.
72
de definir o homem ou, como vem sendo dito até agora, de se chegar a uma concepção completa
do homem. Diz Sócrates:
222
Por conseguinte, chegaremos a acordo quanto ao que se deve dizer acerca dos homens,
quando descobrirmos que coisa é a justiça e se, por natureza, é útil a quem a possui, quer
pareça sê-lo ou não?
Embora Sócrates estabeleça a prioridade da definição de justiça em relação à questão de
se é útil a quem a possui, o que sua a estratégia dialética revelará é uma concepção de homem,
cuja alma passa a possuir três elementos constituintes: epithymetikón, thymoeidés e logistikón. A
compreensão desses elementos e de suas relações será fundamental para entender não a justiça
mas todas as outras virtudes.
É a consideração da dýnamis de cada um dos elementos da alma que se poderá levar a
descobrir a possibilidade, através do elemento logistikón, de se buscar através da dialética uma
epistéme que leve ao conhecimento do que cada coisa é na sua completude. Assim, o
conhecimento que se atinge pelo elemento logistikón pode fazer a respeito de cada coisa o que
Sócrates mostra na República, que é possível fazer a respeito da justiça e do homem, defini-los na
sua completude
223
.
Uma vez atingida essa completude sobre o que cada coisa é, pode-se conhecer a
hierarquia de bens que deve dirigir as escolhas. Esse conhecimento parece ser àquele que visa o
filósofo governante, a quem, depois de descobrir aquela hierarquia de valores, cabe transmiti-la
através da educação
224
.
Segundo essa concepção de homem, não serão mais a epithymía e a pleonexía que
determinarão o que é o homem e quais são as suas escolhas.
222
PLATÃO. República, 392c1-4.
223
Sobre esse ponto, ver o que se diz nos livros VI e VII sobre o conhecimento das ideias pelo filósofo governante.
224
Sobre esse ponto, deve-se levar em consideração a necessidade de um conhecimento da hierarquia de bens pelo
legislador se quer realmente estabelecer, através da educação, o que se deve ou não temer. Cf. PLATÃO. República,
429b-c, 505a-c. Antes disso, porém, precisa conhecer o que cada coisa é. Sobre esse ponto, diz Kahn: ―In the
language of the Theatetus, knowledge entails truth and truth entails Being (ousía, tò ón), that is, that things are really
so-and-so, that they exist in some determinate way rather than in other ways. And this holds for the knowledge of
right and wrong and the knowledge of what is good: there is something definite that is the case, something there to
be known.‖ Cf. KAHN,1992, p. 383-384.
73
Assim, o que parece indicar a República é que Platão, na cidade construída com o lógos,
propõe a instituição de uma nova tradição cujos valores sejam fundamentados em uma epistéme.
O motivo pelo qual essa tradição deve ser fundamentada em uma epistéme encontra sua
justificação na crise de valores que os discursos de Trasímaco e, principalmente
225
, de Gláucon e
Adimanto revelam e que pode ser melhor entendida [a crise] a partir de um passo do Mênon.
Neste diálogo, ao concluir, em um certo ponto da argumentação, que a virtude não pode
ser ensinada, Sócrates deixa confuso seu interlocutor, pois este não sabe mais se existem
homens virtuosos e, caso existam, como conseguem -lo
226
. Isto ensejo para que Sócrates
estabeleça a comparação entre epistéme e opinião verdadeira, começando por afirmar que não é
só a epistéme que nos dirige no bom êxito de nossas ações: no que diz respeito às ações humanas,
possuir a opinião verdadeira vale tanto e é tão útil quanto possuir a epistéme, uma vez que as
ações por ela determinadas levam ao mesmo resultado a que levaria a posse da epistéme sobre o
mesmo assunto
227
.
Estabelecido isto, resta a Sócrates esclarecer por que a epistéme é mais estimada do que a
opinião verdadeira. É neste momento que traz à luz a diferença fundamental entre a epistéme e as
opiniões verdadeiras, comparando estas últimas às estátuas de Dédalo, que precisam ser atadas
para que não fujam. Possuí-las de outra maneira as tornaria sem valor, tal como um escravo fujão
que pode escapar a qualquer momento
228
.
Assim, diz Sócrates, são as opiniões verdadeiras: enquanto permanecem na alma do
homem, são belas e úteis, porém, se não estão atadas, não permanecem muito tempo e não
terão muito valor até que estejam encadeadas e estáveis, o que pode se dar pelo trabalho de
fundamentação que produz a epistéme
229
.
O que indicam os discursos de Gláucon e Adimanto e a energia com que retêm Sócrates e
lhe pedem uma defesa da justiça é que a República ilustra esse momento em que é grande o risco
de que voem para longe as opiniões verdadeiras não da alma da maioria mas também da dos
melhores e mais próximos atenienses. E se, como consequência, o que fica em risco é a
225
Por serem concidadãos e mais próximos pelo sangue. Cf. PLATÃO. Apologia, 30a.
226
PLATÃO. Mênon, 96c-d. Utilizou-se o texto de IGLÉSIAS, Maura (Trad.). Mênon. Texto estabelecido e anotado
por John Burnet. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2001.
227
PLATÃO. Mênon, 96d-97c.
228
PLATÃO. Mênon, 97d-97e.
229
PLATÃO. Mênon, 97e-98a.
74
possibilidade de se agir bem e de levar a boa vida
230
, então este é o momento em que se torna
patente a necessidade da filosofia.
Que desde a Apologia a obra de Platão prepara esse momento e que o livro II da
República é o lugar em que se torna patente a necessidade da filosofia é o que se procurou indicar
até agora.
Porém, a filosofia, enquanto discurso capaz de fundamentar valores e de refutar o discurso
sofístico que expressa em um discurso racional o modo de agir da maioria, tem, na República, o
papel político mais amplo de ser, na cidade no lógos, o elemento a partir do qual toda a educação
será moldada e com ela, como bem vê Adimanto, a visão de mundo dos jovens que virão a
constituir não só a maioria mas os melhores.
Sobre esse último ponto, é ilustrativa a pergunta de Adimanto sobre se deve preferir a
justiça à injustiça:
231
Depois destes argumentos, havíamos de escolher a justiça, de preferência a uma injustiça
de maior amplitude, uma vez que, se assegurarmos os resultados desta com uma falsa
respeitabilidade, procederemos a nosso bel-prazer junto dos deuses e dos homens, quer
em vida quer depois de mortos, tal como diz a afirmação feita pelo povo em geral e pelas
pessoas de categoria mais elevada?
Que a raiz da crise de valores apontada na República está no predomínio da epithymía na
alma da maioria é suficientemente claro e que, dirigindo-se a todos os atenienses, sem distinção,
Sócrates
os repreenda no dia mesmo em que é julgado
232
, particularmente pelo seu apego às
riquezas, vem mostrar que a questão da educação da maioria e da retificação de sua alma, na
medida em que isso for possível, não poderia deixar de ser atacada pelo governante em um
modelo político como a cidade no lógos da República.
Admitir que essa questão não seja tratada na República é solapar na raiz a possibilidade de
que a resposta de Sócrates a Gláucon e Adimanto tenha sido completa e suficiente.
Note-se que, aos discursos de Gláucon e Adimanto, nos quais atacam a justiça, segue um
pedido para que Sócrates defenda a justiça como um bem que vale por si e este, para tanto,
230
Cf. PLATÃO. República, 521a.
231
PLATÃO. República, 366b3-7.
232
Ver PLATÃO. Apologia, 29d-e.
75
propõe que se construa uma cidade com o lógos para ver surgir a justiça, cujo tema central será a
educação dos jovens.
Note-se ainda que Sócrates não precisaria ter tomado o caminho que tomou. Poderia ter
dado uma resposta que teorizasse sobre a alma apenas e mostrasse a parcialidade da concepção de
homem que é a premissa fundamental da qual tudo deriva no discurso da maioria. Estabelecendo
uma nova premissa, poderia ele também derivar rigorosamente as consequências.
Porém, se o que ele deseja é dar uma resposta completa aos irmãos, que aborde todos os
temas tratados por eles, e que incluem não um modelo de homem mas a maneira como um
homem concreto, na cidade, se forma, então a construção da cidade com o lógos se justifica e a
própria liberdade que o lógos permite e da qual Sócrates não abre mão deve ser tida sempre em
vista pelo intérprete.
É essa liberdade que se dará ao lógos que permitirá a construção de uma cidade na qual a
alma dos cidadãos pode ser retificada mesmo se sua construção precisar lançar mão de medidas
heterodoxas e inverossímeis do ponto de vista histórico.
Assim, o que se proporá aqui é que é uma leitura equivocada da República aquela que
admite que uma cidade como a que Sócrates constrói tenha as feições, o modo de vida e as
virtudes que ele nela identifica, sem que a maioria tenha recebido a educação que está na base de
tudo isso.
Que, antes, a educação pela mousiké e gymnastiké, como proposta por Sócrates, seja
estendida a todos os cidadãos como condição de possibilidade para que se possa olhar para a
cidade e ver nela o que se vê é o que se procurará defender.
76
3 A CIDADE NO LÓGOS E A PROPOSTA DE PAIDEÍA NA REPÚBLICA
Gláucon e Adimanto terminam seu discurso com o pedido para que Sócrates mostre não
que a justiça é melhor do que a injustiça mas por que motivo e por quais efeitos que uma e
outra produzem em quem as possui, quer passem despercebidas a deuses ou a homens
233
.
Mostrando-se impressionado com a capacidade dos jovens de atacarem a justiça e
defenderem a injustiça da maneira como fizeram sem estarem convencidos do que diziam,
Sócrates sente-se em aporia e incapaz, pois julgava ter defendido a justiça contra os
argumentos de Trasímaco
234
.
Porém, tendo em vista que não foi bem-sucedido e a necessidade de não se deixar a justiça
sem defesa, pelo receio de que isso seja impiedade, Sócrates promete socorrê-la na medida de sua
dýnamis
235
.
Instado por Gláucon e pelos outros presentes a não desistir, Sócrates, mais uma vez,
sinalizando a dificuldade da pesquisa (zétesis), aponta que esta exige acuidade de visão
236
.
Admitindo ainda que não é especialista, Sócrates propõe que a investigação seja levada a
cabo como se, tendo a vista fraca e incumbidos de ler de longe letras pequenas, descobrisse que
há as mesmas letras maiores em outra parte.
Considerando que a justiça existe tanto na cidade quanto no indivíduo, propõe que se
construa, com o lógos, uma cidade para ver nela surgir a justiça em uma escala mais ampla para
que depois se compare com o indivíduo. Começar pela cidade seria mais fácil porque seria
análogo a olhar primeiro para letras grandes e depois para as mesmas letras em escala menor
237
.
Assim, propõe que se considere com o lógos a formação de uma cidade na qual se
pudesse ver surgir a justiça e a injustiça
238
.
Aceita a proposta, Sócrates estabelece como o princípio de origem de toda cidade o fato
de que os homens não são auto-suficientes e de que têm diversas necessidades
239
.
Passa então a elencar as necessidades fundamentais de uma comunidade humana:
alimento, habitação, vestuário e coisas do gênero. Vê, então, que a obtenção de todas essas coisas
233
PLATÃO. República, 367e.
234
PLATÃO. República, 368a-b.
235
PLATÃO. República, 368c-d.
236
PLATÃO. República, 368d.
237
PLATÃO. República, 368d.
238
PLATÃO. República, 368e.
239
PLATÃO. República, 369b.
77
exige que se introduza na cidade o lavrador, o pedreiro e o tecelão, assim com sapateiros e todos
os artífices (demiourgoí) que se ocupem de produzi-las
240
.
Partindo do princípio de que os homens são diferentes por natureza, cada qual melhor
para a execução de uma tarefa, obtém o acordo dos interlocutores sobre que será melhor que cada
um na cidade execute uma tarefa, de acordo com sua natureza, dividindo assim as tarefas e
evitando que cada um tenha que produzir tudo de que necessita
241
.
Assim, tendo em vista esses princípios, alargam a cidade para incluir os fabricantes de
instrumentos, boieiros, pastores e comerciantes que supram a cidade do que necessita e não
produz, o que leva a um incremento do número de artesãos pela necessidade de excedentes para
as trocas com outras cidades. O comércio leva à necessidade dos retalhistas e de servidores que
vendam a utilidade de sua força física para trabalhos pesados: os assalariados
242
.
Diante da pergunta de Sócrates sobre se a cidade está completa, Adimanto hesita; sobre
onde estariam nela a justiça e a injustiça, [Adimanto] consegue enxergar que estaria nas
transações que ocorrem na cidade
243
.
Sócrates, então, propõe que se continue examinando e que seja considerado o modo como
as pessoas assim organizadas viverão. Descreve então um modo de vida simples e sem excessos
que seja pacífico e saudável
244
.
É então que Gláucon, interrompendo o exame da cidade, que Sócrates chamará a seguir de
cidade sã, protesta quanto ao fato de que nessa cidade falta o costume, que chega a considerar
condição de felicidade: leitos onde se possa reclinar, jantares nos quais à mesa haja iguarias e
sobremesas
245
.
Embora afirmando a cidade que acabaram de criar seja a cidade (hygiés) e verdadeira
(alethinè), e entendendo que a cidade pretendida por Gláucon seja uma cidade luxuriosa
(tryphôsan pólin), não obstante Sócrates considera que pode descobrir o que sejam a justiça e a
injustiça ao estudar uma cidade assim. Entende que deve possuir toda sorte de objetos que seriam
supérfluos na outra como: mesas, perfumes, incenso, cortesãs e guloseimas, a pintura e o
colorido, ouro, marfim e preciosidades, além de caçadores de toda espécie e imitadores: sejam os
240
PLATÃO. República, 369c.
241
PLATÃO. República, 369e-370d.
242
PLATÃO. República, 370d-372a.
243
PLATÃO. República, 370d-372a.
244
PLATÃO. República, 372a.
245
PLATÃO. República, 372d-e.
78
que se ocupam de desenho e cores, sejam os poetas e todos os que se relacionam com a sua
atividade
246
.
Precisarão ainda de todo tipo de artífice que fabrique todo tipo de coisas e ainda mais
servidores: pedagogos, amas, governantes, açafatas, cabeleireiros, cozinheiras e marchantes, além
de porqueiros. Como consequência desse modo de vida precisarão ainda de médicos
247
.
Sobre a necessidade de mais terra para suprir tantas necessidades, Sócrates pergunta se
não tornará necessário usurpar a terra dos vizinhos, assim como aqueles deverão fazer o mesmo:
[...]
248
[...] se também eles se abandonarem ao desejo da posse ilimitada de riqueza
ultrapassando a fronteira do necessário?
Conclui, então, que a consequência será a necessidade de fazer guerra, declarando ter
descoberto sua origem e que dela derivam as desgraças particulares e blicas para as cidades,
cada vez que ela se origina
249
.
Vê que será preciso, então, um grande exército que possa lutar contra o invasor pelos bens
da cidade, ressaltando que também na guerra é necessária a especialização exigida nas diversas
tékhnai e que visa, no caso delas, à perfeição
250
.
Em defesa da especialização do soldado, Sócrates argumenta que em sua arte (tékhne),
assim como qualquer outra, o domínio dos instrumentos com a qual é realizada depende do
conhecimento da arte e da prática suficiente (epistéme e meléte) e acrescenta que, quanto maior
for o érgon dos guardiões (phylákon)
251
, tanto mais necessitarão de vagar (skholé) do que os
outros e da maior arte (tékhne) e cuidado (epimeleía).
252
246
PLATÃO. República, 372e-373a.
247
PLATÃO. República, 373c-373a.
248
PLATÃO. República, 373d9-10. Sobre esse ponto, note-se ainda que a ―cidade luxuriosa‖ (tryphôsa pólis) pode
muito bem ser a Atenas do século IV a.C., na qual o Sócrates da Apologia denuncia a fixação dos atenienses pela
riqueza em detrimento não da virtude mas até da fama e da honra. Note-se ainda a constante relação na República
entre riqueza e prazeres desnecessários e a sua relação, portanto, com a parte epithymetikón da alma. Sobre esse
ponto, ver principalmente PLATÃO. República, 580d-581a.
249
PLATÃO. República, 373e.
250
PLATÃO. República, 373e-374d.
251
Note-se que, embora a nova classe da cidade tenha sido entendida, inicialmente, como suprindo a necessidade de
um exército (stratopédo(i); Cf. 373a-374e) cujo componente é o combatente (polemikòs; Cf. 374c) e tendo em vista a
guerra, essa nova classe passa a ser entendida, a partir desse passo, como composta pelos guardiões (phylákon), cuja
função, defender-se-á aqui, inclui a de soldado e a excede em muitos aspectos.
252
PLATÃO. República, 374d-e.
79
Considerando-se que a guarda exige uma natureza apropriada, Sócrates entende que deve
escolher alguém semelhante e que tenha as qualidades de um bom cão: perspicácia para sentir o
inimigo, rapidez na perseguição e força para o combate, coragem e ânimo (thymós) invencível
253
.
Percebe, entretanto, que a brandura para com os compatriotas e impetuosidade para com
os inimigos envolve a possibilidade de se conciliar no mesmo indivíduo a brandura e a
impetuosidade e que, embora seja difícil divisar uma natureza assim, é a que está presente
exatamente nos cães, que tomaram inicialmente como modelo dos guardiões. É que os cães de
boa raça são mansos com as pessoas de casa e bravos com os estranhos, vindo sua capacidade de
reconhecer uns e outros de sua natureza filosófica (philósophos tèn phýsin), pois [os cães]
distinguem uma visão amiga da inimiga pelo fato de conhecê-las
254
.
Afirma, então, que um perfeito guardião da cidade (kalòs kagathós phýlax) terá de ser
filósofo (philósophos), fogoso (thymoeidés), rápido (takhỳs) e forte (iskhyròs)
255
.
Surge então a questão de como educar estes homens, que é considerada útil para o exame
sobre como se originam a justiça e a injustiça na cidade
256
.
3.1 O conteúdo da poesia
Sócrates propõe que se eduquem com o lógos estes homens e começa por estabelecer que
não educação melhor do que aquela consagrada pela tradição: gymnastiké para o corpo e
mousiké para a alma
257
.
Começando pela mousiké, [Sócrates] admite que ela inclui o lógos, havendo, entretanto,
aquele que é verdadeiro e o que é falso
258
.
Propõe que se deve começar com o lógos falso, uma vez que os mŷthos, com os quais se
começa a educação das crianças (paidía), são mentirosos
259
.
Como se trata de educar os muito novos (néoi) e considerando-se que é nesse momento
que se forma alguém a partir de um molde (týpos) que se quer imprimir, então não se pode
253
PLATÃO. República, 374e-375b.
254
PLATÃO. República, 376a-b.
255
PLATÃO. República, 376c.
256
PLATÃO. República, 376c-d.
257
PLATÃO. República, 376e.
258
PLATÃO. República, 376e.
259
PLATÃO. República, 377a.
80
permitir que as crianças (paidía) sejam educadas através de mitos que contenham opiniões
contrárias às que se entende que deverão ter quando forem adultas
260
.
Tendo isso em vista, propõe que se selecionem os bons mitos e que os maus sejam
proscritos, podendo permanecer na cidade as composições que corresponderem aos modelos
(týpoi) designados pelos legisladores
261
.
Tomando Hesíodo e Homero como exemplos de compositores de mŷthos que contêm
mentiras sem beleza ( kalôs pseúdetai), qualifica-as como sendo aquelas em que o poeta
delineia erradamente, com o lógos, a maneira de ser de deuses e heróis
262
.
Assim, que os deuses possam vingar-se e castigar os pais ou que lutem entre si ou com
parentes, que conspirem e combatam uns aos outros não se contará na cidade por não ser verdade
e por não ser coerente com os valores que se quer que os educandos tenham
263
.
Ora, se o fim da educação, dentre outros, é o de persuadi-los (peísein) de que ―jamais um
cidadão (polítes) teve ódio a outro e que isso não é sancionado pela lei divina‖ (
)
264
, é isto que os homens e
mulheres de idade devem dizer às crianças (paidía), sendo compelidos, os poetas, a comporem
para as crianças mais velhas também segundo os mesmos moldes
265
.
Sócrates entende que os mŷthos que contenham mentiras sobre os deuses, embora possam
ter um significado profundo, não terão esse significado descoberto por quem é novo e,
considerando-se que o que se aprende quando se é novo é indelével e inalterável, é preciso que as
primeiras histórias ouvidas pelos muito novos sejam ―compostas com a maior nobreza possível e
orientadas no sentido da virtude‖ ([...] [...])
266
.
Passa então a estabelecer quais são os moldes que devem seguir os poetas e começa por
estabelecer aqueles referentes aos deuses. Deve-se impor aos poetas que um deus é
essencialmente bom e que nunca é causa de males, dos quais não tem culpa, como pensa a
maioria
267
.
260
PLATÃO. República, 376e-377b.
261
PLATÃO. República, 377c.
262
PLATÃO. República, 377c-e.
263
PLATÃO. República, 378c.
264
PLATÃO. República, 378c6-c8.
265
PLATÃO. República, 377e-378d.
266
PLATÃO. República, 378e.
267
PLATÃO. República, 379b-380c.
81
É interessante notar que, para Sócrates, qualquer episódio que trate de sofrimentos
atribuídos aos deuses deve ser interpretado buscando-se as razões de tais sofrimentos e
entendendo-os como ação justa daqueles mediante a qual os culpados lucram com o castigo
268
.
Essa prescrição impossibilita, portanto, que os educandos, tal como a maioria retratada
por Adimanto, interpretem os poetas como se afirmassem que os deuses são causa de mal. Ora, é
exatamente isso que faz a maioria, cuja interpretação da poesia é refletida no discurso de
Adimanto.
Assim, se a maioria interpretava, no caso do discurso de Adimanto, segundo lhe convinha,
que os deuses eram, literalmente, causa de mal, na cidade no lógos esta possibilidade não existirá.
O que Sócrates propõe é ou um sentido literal que não admite ambiguidade ou o esclarecimento
de sentido sempre que houver outra possibilidade. Previne, assim, o risco da inversão do sentido
pretendido pelo poeta e salvaguarda a fidelidade ao primeiro molde (týpos) proposto.
Fica ainda estabelecido como molde que os deuses não se metamorfoseiam, pois é forçoso
que, sendo o que há de mais belo e melhor, não queiram metamorfosear-se no pior
269
.
É com base no que se disse que estabelece que as mães não devem, convencidas pelos
poetas, contar histórias que admitam deuses metamorfoseados vagando pela noite, não por ser
errôneo, mas por aterrorizar as criancinhas (paidía) e implicar que os deuses mentem
270
.
Com base nisso, o segundo molde estabelecido para os poetas é aquele segundo o qual um
deus será retratado como absolutamente simples:
271
Por conseguinte, deus é absolutamente simples e verdadeiro em palavras e atos, e nem
ele se altera nem ilude os outros, por meio de aparições, falas ou envio de sinais, quando
se está acordado ou em sonhos.
Qualquer rompimento com esses moldes relativos ao que se pode dizer dos deuses será
vedado que os mestres usem na educação dos jovens (néon), tendo em vista que se quer que os
guardiões (phýlakes) sejam tementes aos deuses e semelhantes a eles, na máxima medida em que
isso for possível ao ser humano.
268
PLATÃO. República, 380a-b.
269
PLATÃO. República, 381c-d.
270
PLATÃO. República, 381e.
271
PLATÃO. República, 382e8-11.
82
Ao encerrar a descrição dos moldes para a poesia, no que diz respeito aos deuses, Sócrates
diz:
272
Quanto aos deuses, aqui temos, pois, aquilo que, em meu entender, aqueles que hão de
honrar as divindades e os pais, e que hão de ter em não pequena conta a amizade uns dos
outros, devem ouvir desde a infância [ek paídon], e aquilo que não devem.
Para inculcar a coragem, que, plenamente desenvolvida, é a virtude própria do guardião,
estabelece que não se deve dizer-lhes palavras que os façam temer a morte e, assim, se proscreve
dos versos dos poetas da cidade, aqueles que, como em Homero, fazem referências ao Hades e
levam ao temor da morte. Sobre elas, afirma:
273
Palavras como estas e todas as outras da mesma espécie, pediremos nia a Homero e
aos outros poetas, para que o se agastem se as apagarmos, não que não sejam poéticas
e doces de escutar para a maioria; mas, quanto mais poéticas, menos devem ser ouvidas
por crianças e por homens que devem ser livres, e temer a escravatura mais do que a
morte.
Os nomes terríveis relativos ao Hades devem ser rejeitados para que os guardiões (phýlax)
não fiquem com febre e mais amolecidos do que convém
274
, pois se deve ter um modelo contrário
a esses em conversas ou em poemas (lektéon te kaì poietéon).
Eliminar-se-ão ainda os gemidos e lamentos dos homens célebres (ellogímon andrôn), dos
quais se faz grande conta por serem autárquicos (autárkes) e para quem são menos temíveis as
perdas
275
.
Da mesma forma, deve-se eliminar o riso violento nos homens dignos de consideração
(anthrópous axíous) e nos deuses, por representar uma mudança violenta
276
.
272
PLATÃO. República, 386a1-4.
273
PLATÃO. República, 387b1-6.
274
PLATÃO. República, 387c.
275
PLATÃO. República, 387e.
276
PLATÃO. República, 388e-389a.
83
Mais uma vez o que está em jogo é a verdade e a inutilidade da mentira para os deuses e
sua utilidade para os homens, desde que sob a forma de remédio reservado aos chefes da cidade,
(toîs árkhousin) aos quais compete mentir por causa dos inimigos ou dos cidadãos (è polemíon è
politôn), para benefício da cidade, excluindo-se que um particular (idióte(i)) minta aos chefes,
sob pena de cometer um erro semelhante ao de um doente que não diz a verdade ao médico ou ao
de um aluno que não revele seus sofrimentos ao mestre de ginástica, ou ao de um marinheiro que
não dissesse a verdade ao piloto sobre o navio e a tripulação quanto à sua situação e à dos seus
companheiros de viagem
277
.
Determina então que, se alguém for apanhado mentindo na cidade:
278
daqueles que são artífices, ou adivinho, ou médico que cura os males, ou construtor de
lanças‖ castigá-lo-á, a título de que introduz costumes capazes de derrubar e deitar a
perder a cidade tal como se fosse um navio.
E, adiciona Adimanto, seria assim mesmo se de tais palavras seguissem atos
279
.
Voltando à questão da temperança, e considerando que, para a grande massa, a
temperança significa, fundamentalmente, obedecer aos chefes e ser senhor de si relativamente aos
prazeres da bebida, do sexo e da comida
280
, então passa a considerar que serão admitidos os
versos dos poetas que contenham exemplos de obediência aos chefes e excluir-se-ão aqueles em
que há desobediência ou desrespeito
281
.
Diz Sócrates sobre esses versos: ―A meu ver, não são coisas próprias a inclinarem os
jovens que os ouvem à temperança‖ (
)
282
.
Também com relação aos prazeres, são condenáveis as passagens em que os poetas
apresentam como as mais belas das coisas os prazeres da comida e da bebida, tais como:
277
PLATÃO. República, 389b-c.
278
PLATÃO. República, 389d2-5.
279
PLATÃO. República, 389d.
280
PLATÃO. República, 389d-e.
281
PLATÃO. República, 389e-390c.
282
PLATÃO. República, 390a.
84
/
/
283
Estar junto de mesas repletas / de pão e carnes, e o escansão haurir o vinho / dos
crateres, para o vir deitar nas taças.
Também com relação ao sexo, apresentar Zeus, Ares e Afrodite como incapazes de se
dominarem frente a esses prazeres não é apropriado para produzir a temperança nos jovens
(néoi)
284
. Fazer tal coisa seria estabelecer esses bens como altos valores, o que poderia acabar
resultando em uma hipertrofia daquilo que se quer conter.
Por outro lado, quando são executados atos de firmeza (kartería) por homens ilustres,
(ellogímon) devem ser vistos (theatéon) e ouvidos (akoustéon)
285
. Cita como exemplo os versos
de Homero em que Ulisses exorta a si mesmo a ter coragem: ―Batendo no peito censurou o seu
coração: / agüenta, coração, que já sofreste bem pior‖ (
/ ‖)
286
.
É vedado também que os homens (ándras)
287
recebam presentes ou sejam amantes de
riquezas (philokhremátous)
288
; da mesma forma, nem deles se deve contar que ―os presentes
convencem os deuses, convencem os reis veneráveis‖ (
)
289
.
Assim também, determina que seria impiedade dizer que presentes pudessem fazer
Aquiles renunciar à sua cólera ou que o fizessem restituir o cadáver de Heitor sem que o fizesse
de outro modo, como também o seria se acreditar nos que dizem ser ele capaz de tais
sentimentos
290
.
283
PLATÃO. República, 390a10-b2.
284
PLATÃO. República, 390b-c.
285
PLATÃO. República, 390d.
286
PLATÃO. República, 390d.
287
Essa prescrição atinge, portanto, os homens da cidade e não os guerreiros, como sugerem as traduções de
Chambry e de Pereira. Introduzir a palavra guerreiro nesse passo resultaria prejudicial ao argumento que se quer
defender, segundo o qual as prescrições que se fazem aqui atingem a todos os cidadãos e segundo o qual, ao tratar da
temperança, Sócrates evita a palavra phýlax e usa ánthropos, anér, néoi e paidías. Cf. CHAMBRY, Émile (Trad.).
La République. Introduction de Auguste Diès. Paris: Les Belles Lettres, 1996. v.1. p. 98; e PEREIRA, 1987. p. 111.
288
PLATÃO. República, 390d.
289
PLATÃO. República, 390e3.
290
PLATÃO. República, 390e-391a.
85
A seguir, propõe que não se acredite que falou a verdade nem que se consinta que os
homens
291
acreditem que Aquiles, sendo filho de uma deusa e de Peleu e tendo sido educado por
Quíron, pudesse ter um amor à riqueza (philokhrematías) incompatível com um homem livre e
uma pretensão de superioridade em relação aos deuses e aos homens
292
.
Sócrates considera ainda esses males contraditórios, o que se infere do fato de que ser
dominado pelos prazeres torna um homem inferior
293
e sem sentido sua pretensão de
superioridade não só em relação aos deuses como em relação aos homens.
Também não se deve acreditar ou consentir que se diga que filhos de deuses cometem atos
que não se coadunam com o bem que se estabeleceu antes, que é próprio dos deuses, ou que se
tente convencer os jovens (néoi) de que os deuses são causadores do mal e de que os heróis não
são em nada melhores que os homens. Essas prescrições se justificam, mais uma vez, pela
influência que podem ter nos jovens, nos quais podem desencadear uma propensão para o mal
294
.
Resta a Sócrates examinar o que dizer acerca dos homens uma vez que sobre eles também
julga que poderia dizer que os poetas e prosadores cometem erros ao dizer que:
[...]
295
[...] muitas pessoas injustas são felizes, e desgraçadas as justas, e que é vantajoso
cometer injustiças, se não forem descobertas, que a justiça é um bem nos outros, mas
nociva para o próprio.
Considerando que impor aos poetas que digam o contrário implica admitir um acordo
sobre o próprio tema da discussão, ou seja, se é melhor a vida do justo, cabe, então, primeiro,
descobrir o que é a justiça e se é útil a quem a possui, quer pareça sê-lo ou não
296
.
Porém, compreender o que é o homem é uma questão prévia da qual esta depende. É o
fato mesmo de que os interlocutores aceitam uma concepção implícita dos deuses e heróis, das
291
Pereira preferiu ―nossos homens‖ a guerreiros, mantido por Chambry. Shorey prefere ―nossos jovens‖. Cf.
PEREIRA, 1987, p. 113 ; CHAMBRY, 1996, v.1, p. 99; SHOREY, 1994, v.1, p. 221.
292
PLATÃO. República, 391c. Preferiu-se a tradução literal de philokhrematías por amor à riqueza, e hyperephanían
como pretensão de superioridade para que se mantenha a linha de raciocínio segundo a qual o que se trata nessas
passagens é a temperança, seja tomada como domínio de si mesmo em relação aos bens sensíveis, seja em relação à
obediência e reconhecimento de instâncias superiores.
293
PLATÃO. República, 431a-b
294
PLATÃO. República, 391c-e.
295
PLATÃO. República, 392b.
296
PLATÃO. República, 392b-c.
86
divindades e do Hades que tornou possível prescrever, mediante um acordo, o que se poderia
dizer na cidade acerca deles. Será preciso avançar no exame até atingir uma concepção do
homem para que se possa também determinar se a justiça é melhor para ele.
Sócrates propõe a seguir que se examine o estilo (léxis) para completar o exame dos temas
e das formas (te lektéon kaì hos lektéon)
297
.
3.2 O estilo da poesia
Depois de classificar o que dizem prosadores e poetas como uma narrativa de
acontecimentos passados, presentes e futuros executada por meio de simples narrativa (haplê(i)
diegései), através da imitação (è dià miméseos) ou por meio de ambas (amphotéron)
298
, Sócrates,
dando como exemplo o trecho da Ilíada em que Crises implorou a Agamêmnon que libertasse sua
filha, mostra que, no trecho em questão, um momento em que o poeta deixa de narrar os
acontecimentos como se fosse ele próprio a falar e fala como se fosse ele mesmo o sacerdote
299
.
Com base nesse exemplo, Sócrates pode distinguir as formas de narrativa e classificar
como uma narrativa por meio da imitação (miméseos tèn diégesin) aquela em que se propõe um
discurso como se fosse outra pessoa, assemelhando-se o mais possível o seu estilo (léxin) ao da
pessoa cuja fala anunciou, tornando-se a ela semelhante na voz e na aparência
300
.
Procura ainda esclarecer para Adimanto o que sejam a mímesis e a narrativa simples
convertendo o trecho citado, no qual o poeta ―imita‖ Crises, no que seria seu equivalente em
discurso indireto. Tendo sido dado esse exemplo de narrativa simples, no qual se excluiu a
imitação, fica fácil reconhecer na tragédia e na comédia o exemplo oposto, de pura mímesis, pois
aí há só o diálogo
301
.
Sendo a tragédia e a comédia exemplos de pura mímesis, e a epopéia um exemplo do
estilo misto, cabe ao ditirambo figurar como exemplo de narrativa simples
302
.
297
PLATÃO. República, 392c-d.
298
PLATÃO. República, 392d.
299
PLATÃO. República, 392d-393c.
300
PLATÃO. República, 393b.
301
PLATÃO. República, 392d-393d.
302
PLATÃO. República, 394b-c.
87
Após essas distinções é que Sócrates introduz a pergunta, fundamental para o modelo de
educação que se propõe na cidade, sobre se os guardiões (phýlakas) devem ser imitadores
(mimetikoùs):
303
Considera pois, ó Adimanto, o seguinte: se os guardiões devem ser imitadores ou não.
Ou resulta do que dissemos anteriormente que cada um exerce bem uma profissão, e
não muitas, mas, se tentasse exercer muitas, falharia em alcançar qualquer reputação?
Com base no argumento precedente, segundo o qual se exerce bem uma profissão, e na
nova premissa segundo a qual a mesma pessoa não é capaz de imitar muitas coisas tão bem como
uma só, conclui que dificilmente poderá exercer uma função importante na cidade e imitar muitas
coisas e ser imitador
304
.
Entendendo que, no caso dos guardiões (toùs phýlakas), deve-se manter o princípio de
que cada um deve ocupar-se de uma só função, estabelece, então, que:
[...]
[...]
305
[...] os nossos guardiões, isentos de qualquer outro ofício, devem ser os artífices muito
escrupulosos da liberdade do estado e de nada mais se devem ocupar que não diga
respeito a isso [...].
Assim, estabelece que, se vão imitar, que imitem o que lhes convém desde a infância:
homens corajosos (andreíous), temperantes (sóphronas), pios (hosíous) e livres (eleuthérous) e
tudo o que lhes é semelhante; mas, o que não convém aos homens livres (aneleúthera), não o
façam nem sejam hábeis a imitar, nem qualquer outra coisa vergonhosa
306
para que não passem
da imitação ao gozo do que imitam (da realidade).
Como razão para tal cuidado, afirma sobre as imitações que:
303
PLATÃO. República, 394e1-6.
304
PLATÃO. República, 394e-395a.
305
PLATÃO. República, 395b-d.
306
PLATÃO. República, 395d. Sobre esse ponto, remete Shorey a: PLATÃO. República, 606b, e Leis, 656b, 669b-c.
Cf. SHOREY, 1994. v.1, p. 235.
88
[...]
307
[...] se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o
corpo, a voz e a inteligência [diánoian].
Assim, passa a estabelecer que os homens de que se ocuparão com a intenção de que se
tornem superiores não imitarão as mulheres em situações diversas em que a emoção desmedida
ou injustificada aflora os escravos e escravas em suas ações servis, os homens perversos e
covardes, os loucos ou aqueles em atitudes errôneas e contrárias às que se atribuíram aos
guardiões
308
.
Ao perguntar a Adimanto se os homens que querem que sejam bons devem imitar os
ferreiros ou quaisquer outros artífices, os remadores das trirremes ou seus capitães, ou qualquer
outra coisa referente a essas profissões, este responde com convicção que não, já que nem
poderiam aplicar-se a esses ofícios
309
.
Adimanto exclui ainda que se possa imitar o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros, o
murmúrio dos rios, o bramir do mar, os trovões, e todos os ruídos dessa espécie, associando-os
sua imitação à loucura
310
.
Se a mímesis envolve um engajamento psicológico e um gozo da realidade‖ quando é
vivenciada, não é surpreendente que Sócrates admita, depois de todas essas considerações, que o
estilo de narrativa adotado na cidade será aquele das epopéias de Homero, e que:
[...]
311
[...] o seu estilo participará de ambos os processos: a imitação e as outras formas de
narração; mas, num discurso extenso, pouco lugar haverá para a imitação.
Se o papel da educação é, como se verá
312
, moldar o caráter dos educandos para que
alberguem na alma tudo o que é nobre e belo e que é sempre associado a um valor, que é
honrado, então a imitação é uma forma poderosa de obter esse efeito
313
.
307
PLATÃO. República, 395d1-3.
308
PLATÃO. República, 395d-396b.
309
PLATÃO. República, 396a-b.
310
PLATÃO. República, 396b.
311
PLATÃO. República, 396e5-7.
312
Cf. infra, capítulos 4 e 5.
89
Como, porém, o efeito também pode se produzir no caso da imitação do homem inferior,
é claro que, desse ponto de vista, se pode admitir a forma de narrativa que imita o homem de
bem (agathós) excluindo aquela na qual se imita tudo sem restrição
314
.
Adotar esse modelo de narrativa encontra, aliás, fundamento no próprio princípio segundo
o qual cada um executa a sua tarefa e que permite que o sapateiro seja sapateiro e execute só o
que lhe compete. Assim, o homem de bem só faz o que é próprio do homem de bem
315
.
Sócrates sacramenta essa norma na passagem em que, ironicamente, propõe que, se
chegasse à cidade um poeta que imitasse tudo sem restrição, lhe seriam conferidas honrarias
como as devidas a um homem divino, maravilhoso e encantador, mas que fosse mandado embora,
pois seria útil para a cidade o poeta mais austero que imitasse unicamente a fala dos homens
de bem e compusesse segundo os moldes propostos
316
.
Ao determinar a forma de exposição (diégesis) do homem moderado, fica estabelecido
que será aquele que corresponde às epopéias de Homero, admitindo, portanto, mímesis e narrativa
simples, reservando, em um discurso extenso, pouco lugar para a mímesis
317
.
Sócrates introduz ainda a noção de seriedade, ou aplicação (spoudé), na imitação ao tratar
do orador que se opõe a este, o qual imitará seriamente tudo sem restrição e em grande
quantidade, pois todo seu discurso será feito de imitação. Só então exclui que se imitem os ruídos
como aqueles antes mencionados por Adimanto, incluindo ainda outros: trovões, o ruído do
vento, da saraiva, dos eixos e roldanas, trombetas, flautas, siringes e os sons de todos os
instrumentos, e ainda os ruídos dos cães, das ovelhas e das aves. O discurso de um homem assim
seria todo feito através de mímesis e conteria pouca narração
318
.
introduzindo a questão das harmonias e ritmos, Sócrates entende que a forma de narrar
do homem comedido, pela sua própria simplicidade, exige menos variação também na harmonia
e esta, a forma que imita o homem de bem e que é caracterizada como ―sem mistura‖ (ákraton),
que entende que deverá ser recebida na cidade, embora seja a mista mais aprazível para crianças,
313
Sobre o papel da mímesis ver HAVELOCK, E. A. A. Prefácio a Platão. Tradução Enid Abreu Dobránzsky.
Campinas: Papirus, 1996. e FERRARI, G.R.F. Plato and Poetry. In: KENNEDY, G. A. (Ed.). The Cambridge
History of Literary Criticism. Cambridge: Cambridge University Press,1989. v.1. p. 92-148.
314
PLATÃO. República, 397d.
315
PLATÃO. República, 397e.
316
PLATÃO. República, 397e-398b.
317
PLATÃO. República, 396e-398b.
318
PLATÃO. República, 397a.
90
preceptores e a multidão
319
, sendo a razão dessa escolha a de que não existe na cidade homem
duplo ou múltiplo, tendo cada um uma tarefa
320
.
É esse o motivo de se determinar que não se aceitaria na cidade poeta que fosse assim
múltiplo, o qual coroado de grinaldas seria preterido em favor de um mais austero que imitasse a
fala do homem de bem apenas e segundo os moldes estabelecidos quando se começou a propor a
educação dos soldados (stratiótas)
321
. Nesse ponto, está quase completo o tratamento da questão
sobre o que dizer e como dizer.
Considerando que esgotou a discussão sobre os discursos (lógoi) e histórias (mŷthos) na
arte das Musas, passa a tratar do canto e da melodia.
322
3.3 As harmonias e os ritmos
Entendendo que a melodia se compõe de três elementos: as palavras (lógos), harmonia e
ritmo, e entendendo que já tratou do lógos e que deve seguir os modelos já estabelecidos,
prescreve que a harmonia e o ritmo devem acompanhar o lógos. Assim como se excluíram do
lógos os lamentos e gemidos, excluir-se-ão as harmonias lamentosas, moles, dos banquetes e as
efeminadas por não convirem aos guardiões a embriaguez, a moleza e a preguiça, nem a soldados
o caráter efeminado
323
.
Ao explicar sua escolha das harmonias, Sócrates destaca dois aspectos: a coragem na
guerra e em toda a ação violenta aliada à ordem e energia qualquer que seja a circunstância.
Como se verá na discussão sobre a coragem
324
, ela implica exatamente a inalterabilidade do
caráter em qualquer circunstância e é claro que a coragem física‖ de que se fala pode também
ser compreendida no sentido ―psicológico‖. Assim, nada mais natural que se volte aqui a usar a
palavra phýlax, por se tratar da virtude que se exige que o phýlax tenha plenamente desenvolvida
para o exercício do seu érgon.
Porém, ainda aquela harmonia que deve ficar na cidade e que serve para aquele que se
encontra em atos pacíficos e não violentos:
319
PLATÃO. República, 397d.
320
PLATÃO. República, 394d.
321
PLATÃO. República, 397e-398b.
322
PLATÃO. República, 398c.
323
PLATÃO. República, 398d-399c.
324
Cf. infra, capítulo 4.
91
325
E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra atos pacíficos, não violentos
[biaío(i)], mas voluntários [ekousío(i)], que usa do rogo e da persuasão, ou por meio da
prece aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos homens, ou pelo
contrário, se submete aos outros quando lhe pedem, o ensinam ou o persuadem, e tendo
assim procedido a seu gosto sem sobranceria, se comporta com bom senso e moderação
em todas estas circunstâncias, satisfeito com o que lhe sucede. Estas duas harmonias, a
violenta e a voluntária, que imitarão admiravelmente as vozes de homens bem e mal
sucedidos, sensatos e corajosos, essas, deixa-as ficar.
A função educativa desses dois tipos de harmonia tem que ver, fundamentalmente, com a
coragem e a temperança. Embora se possa dizer que os governantes estão educando os guardiões
para que sejam auxiliares cordatos, é preciso admitir também que os artesãos não precisam ser
menos cordatos e, portanto, educá-los assim convém à cidade.
Essa limitação de harmonias acaba limitando os tipos de instrumento necessários na
cidade e é interessante notar que a lira e a cítara servirão aí, enquanto os pastores terão a
siringe
326
.
3.4 A gymnastiké
Tendo tratado da mousiké, Sócrates passa, em seguida, a tratar da gymnastiké e volta a
usar o termo ―jovens‖ para referir-se aos educandos: ―depois da música, é na ginástica que se
devem educar os jovens [neaníai]‖ (
)
327
. E complementa: ―devem ser educados nela cuidadosamente desde crianças [paídon]
e pela vida afora‖ ( )
328
.
325
PLATÃO. República, 399b3-c4.
326
Note-se que a siringe estava entre os instrumentos que não convém imitar seriamente, mas que fica na cidade por
ser útil aos fins que se tem em vista. Sobre a siringe permanecer na cidade, ver PLATÃO. República, 399d. Sobre
não ser apropriado ao homem de bem imitar o som da siringe seriamente, ver PLATÃO. República, 397a.
327
PLATÃO. República, 403c9.
328
PLATÃO. República, 403c11-d1.
92
Exclui a embriaguez, por não ser lícito a um guardião estar embriagado, e lhes prescreve
uma dieta diferente da dos atletas profissionais, que têm vida muito diferente da dos guerreiros,
por envolver exercícios extenuantes e necessidade de repouso excessivo
329
. Entende que a
ginástica que convém é a simples e flexível
330
.
Em seguida, propõe uma série de restrições quanto aos alimentos e prazeres, os quais, na
verdade, representam expurgos em relação à cidade luxuriosa e que se justificam por espelharem
a simplicidade da harmonia e dos ritmos adotados antes
331
.
Levando mais adiante a analogia, Sócrates conclui pelo benefício da ginástica adotada
apontando que, na música, a variedade (poikilía) produz a licença (akolasían) e, na ginástica, a
doença (nóson), enquanto a simplicidade na música gera a temperança na alma (en psykhaîs
sophrosýnen), na ginástica gera a saúde no corpo
332
.
Entende ainda que, sem essa música e ginástica simples, a libertinagem (akolasías) e as
doenças (nóson) se multiplicariam na cidade, gerando a necessidade de numerosos tribunais e
enfermarias (iatreîa), e as chicanas (dikaniké) e a medicina (iatrikè) seriam veneradas
333
.
329
PLATÃO. República, 403e-404b.
330
PLATÃO. República, 404b. Traduziu-se aqui haplê pou kaì epieikès por simples e flexível seguindo a tradução de
Shorey. Cf. SHOREY, 1994, p. 267.
331
PLATÃO. República, 404b-e.
332
PLATÃO. República, 404e.
333
PLATÃO. República, 405a.
93
4 AS VIRTUDES NA CIDADE E NA ALMA
4.1 As virtudes na cidade
Estabelecida a cidade, que tem como um dos fundamentos a paideía proposta, Sócrates e
seus interlocutores podem então procurar ver onde nela está a justiça e onde a injustiça, em que
diferem uma da outra e qual das duas deve possuir quem quiser ser feliz, quer passe ou não
despercebido a todos os deuses e homens
334
.
Considerando-se que a construção da cidade com o lógos proposta na República se em
um processo contínuo, entende-se aqui que, nesse processo, que culmina na bela cidade
(kallípolis) não há a convivência de três cidades distintas, como quer, por exemplo, Reeve.
Segundo esse autor co-existem dentro da cidade descrita na República uma cidade para os
amantes de riquezas, outra para os amantes de honras e uma terceira para os amantes da
sabedoria. Em cada uma delas estariam presentes as prescrições que tornam cada tipo humano
feliz. Assim, cada cidade, diz o autor, ―supera e conserva‖ a cidade anterior, sendo os elementos
introduzidos na cidade posterior, condição de possibilidade da anterior
335
.
A limitação da interpretação de Reeve consiste em não considerar que no processo
contínuo de construção da cidade nem sempre o que se diz sobre a cidade é conservado. O que se
é que a partir da cidade sã, a passagem para a cidade luxuriosa é um processo pelo qual se
acrescenta uma diversidade que será revertida fundamentalmente pelo processo de educação
proposto.
Ora, tanto a mousiké, quanto a dieta e os exercícios físicos e outras prescrições sobre a
excelência do corpo, que se poderia chamar gymnastiké, serão profundamente alterados e
expurgados começando com a proposta de educar os soldados (stratiótas)
336
. Assim, a cidade é
praticamente moldada, em suas virtudes, pela educação e por algumas prescrições adicionais
sobre seu ordenamento. Porém, considerando que adquire as virtudes que tem por efeito da
educação, seria interessante considerá-las não como efeitos mas como dynámeis resultantes
desse processo de educação.
334
PLATÃO. República, 427d.
335
REEVE, 1988, p. 170-208.
336
Ver PLATÃO. República, 376c-d.
94
A melhor ocasião para se verificarem esses efeitos é o início do livro IV quando, uma vez
fundada a cidade que foi construída com o lógos para ser a melhor possível
337
, Sócrates entende
que deve possuir a sabedoria (sophía), coragem (andreía), temperança (sophrosýne) e justiça
(dikaiosýne). É a partir daí que se pode ter uma visão, ainda que parcial, da cidade e de suas
virtudes e das características delas decorrentes.
Partindo da premissa de que a cidade fundada por ele e os interlocutores no lógos foi bem
fundada (orthôs ge ó(i)kistai) e deve ser totalmente boa (teléos agathèn), Sócrates conclui que
deve ser, portanto, sábia (sophè), corajosa (andreía), temperante (sóphron) e justa (dikaía)
338
.
Entende que a cidade construída com o lógos é sábia (sophè) porque nela existe a ciência
(epistéme) da boa deliberação (euboulía)
339
, pela qual se delibera bem sobre a totalidade da
cidade e sobre a melhor maneira de se comportar consigo mesma e com relação às outras cidades.
A este saber, chama phylakiké e o identifica nos chefes (árkhousin), que classifica como
guardiões perfeitos (teléous phýlakas)
340
. A existência dessa ciência na cidade lhe vale o nome de
prudente nos conselhos (eúboulon) e sábia (sophén). Os que a possuem são chamados
verdadeiros guardiões (alethinoùs phýlakas) e serão os menos numerosos na cidade e os únicos
que possuem a sabedoria (sophía)
341
.
Não é possível compreender que a cidade seja sábia sem que se admita nela uma epistéme
que seja o fundamento da sua boa deliberação. Um tipo de epistéme do bem e do mal
342
que ainda
não foi descrita, mas que é condição de possibilidade da existência da sabedoria.
Como aquele que possui essa epistéme, seu objeto, o método necessário para atingi-lo e o
tipo humano capaz de dedicar-se a ela serão amplamente descritos nos livros V, VI e VII, então
compreender a sabedoria e admitir sem problemas que existe na cidade exige todo um conjunto
de passagens posteriores, na República, e isso justifica a afirmação de Sócrates ao fim da busca:
337
PLATÃO. República, 358c9-11.
338
PLATÃO. República, 427e.
339
PLATÃO. República, 428b.
340
PLATÃO. República, 428d-e. Cf. República, 414b.
341
PLATÃO. República, 428d-e.
342
Faz-se menção aqui a uma epistéme do bem e do mal em referência a diálogos como o Laques e o Cármides, mas
também a uma passagem da República em que esse nome é usado. De resto, o que se quer significar é que está
implícito que, se os governantes filósofos chegarão a propor uma educação em que se estabelece o que se deve
temer, como admitido ao se definir a coragem, então, considerando-se que se deve temer o que é o mal e honrar-se e
preservar o que é o bem, segue que a epistéme do governante pode ser entendida como uma epistéme do bem e do
mal. Sobre as referências à epistéme do bem e do mal serem possíveis antecipações do que será a epistéme do
filósofo-governante na República, ver KAHN, 1992, p. 61, 150, 168, 183, 201-202. Sobre a importância do
conhecimento do bem para a própria utilidade das virtudes e sobre a indicação de que se tem em vista a noção de
hierarquia de valores a partir da noção de bem, ver PLATÃO, República, 505a-c.
95
343
É esta então uma das quatro virtudes
344
. Descobrimo-la não sei de que maneira, a ela e
ao lugar da cidade onde mora.
Por outro lado, mesmo que ainda não tenha sido esclarecido o objeto próprio dessa ciência
que poucos possuem (a Ideia do Bem)
345
, e o processo educativo suplementar, que é condição de
possibilidade da sua posse
346
, algumas indicações já foram dadas.
Embora essas indicações não justifiquem plenamente a identificação na cidade da sophía,
como, de resto, o próprio cuidado de Sócrates mostra, tornam possível que, retroativamente, seja
reconhecida no guardião que deve ter a natureza de um ―cão-filósofo‖
347
e também está
antecipada em uma passagem na qual a educação pela mousiké inclui certos estudos e
investigações que fazem sentido se entendidos como antecipações de um modelo de mousiké
mais completo do que aquele que envolve apenas a educação poética
348
.
Ora, esse modelo completo da educação do filósofo, que possui a sophía, será
explicitado no livro VII. Assim, sem que essas menções sejam interpretadas como indicativas da
presença da epistéme da euboulía, seria inaceitável concluir que a cidade é sábia, como se passa a
argumentar a seguir.
Sobre o primeiro ponto, a consideração de que o ―cão-filósofo‖ é uma antecipação do
filósofo governante, cabe lembrar que essa imagem aparece quando é introduzida a necessidade
de um exército que combata pelos bens da cidade. Admite-se, então, que esses precisarão de
epistéme e meléte tanto como qualquer outro que exerça uma tékhne na cidade, visto que aquilo
343
PLATÃO. República, 429a5-6.
344
Manteve-se a opção de Pereira de suprir a indeterminação da expressão com o termo ―virtude‖,
entendendo-se aqui, da mesma forma que ela e outros entendem, que está implícito a referência às, assim chamadas,
quatro virtudes cardeais. Note-se ainda pelo menos duas referências à ―virtudes‖ no plural em: PLATÃO. República,
518d e 618d. Note-se também a passagem do livro I na qual Sócrates esclarece que tudo o que tem uma função
própria tem também uma virtude. Cf. PLATÃO. República, 352d-353e. Ora, se existem classes na cidade e
elementos na alma que têm funções próprias, então estes também m virtudes próprias, como de resto fica claro
quando Sócrates atribui a sabedoria ao governante e a coragem aos guardiões em geral. Assim, mesmo um tradutor
―literal‖ como Shorey, que evita usar a palavra virtude quando não espresente no texto, chama a sabedoria, a
coragem, a temperança e a justiça, todas elas de ―virtudes cardeais‖ ou de ―virtudes‖ quando faz referência a elas nas
notas de sua tradução.
345
Sobre a Ideia do Bem como objeto próprio do conhecimento do filósofo ver: PLATÃO. República, 504e-506e.
346
Sobre o processo educativo suplementar que prepara o filósofo para chegar à contemplação da Ideia de Bem, ver
PLATÃO. República, 521a-535a.
347
Sobre as qualidades do ―cão filósofo‖, ver PLATÃO. República, 376c.
348
Sobre a ―mousiké que parece antecipar a educação do filósofo, ver PLATÃO. República, 411a-e.
96
que diz respeito à guerra envolve também uma tékhne
349
. Ora, assim como os artífices e atletas
precisam de epistéme e meléte para que possam exercer suas tékhnai, do mesmo modo precisará o
guerreiro.
É nesse momento que Sócrates introduz a palavra guardião (phýlax) pela primeira vez no
contexto da discussão sobre a cidade:
350
Portanto, quanto maior for o trabalho dos guardiões, tanto mais necessitará de vagar do
que os outros e da maior arte e cuidado.
Uma primeira coisa que essa passagem permite concluir é que graus na ―arte‖ da
guarda. Que isso seja assim ficará confirmado mais tarde quando se diferenciarem auxiliares
(epikoúrous) dos guardiões (phýlax) em sentido próprio
351
. É notório que a skholé, tékhne e
meléte envolvidas no estudo das disciplinas superiores da educação são maiores do que as
necessárias para que o auxiliar chegue a ser auxiliar.
Porém, o que se diz a respeito da nova classe introduzida com a função de combater pela
cidade é que, para que possa chegar a ser formada, é preciso também uma natureza apropriada.
Sócrates assume como tarefa escolhê-los:
352
Portanto é tarefa nossa, segundo parece, e se na verdade formos capazes disso, proceder
à escolha [ekléxasthai] daqueles de qualidades e natureza apropriadas para a custódia da
cidade.
Reconhecendo que a tarefa de fazer uma seleção a esta altura é difícil e usando a fórmula
de procurar desempenhar a tarefa até onde as forças permitirem
353
, chegam à conclusão de que
deve ter as qualidades de um bom cão, as quais foram mencionadas acima
354
.
349
PLATÃO. República, 374b.
350
PLATÃO. República, 374d8-e2.
351
PLATÃO. República, 414b.
352
PLATÃO. República, 374e6-8.
353
PLATÃO. República, 374e.
354
Cf. nota 255, supra.
97
O que parece fora de lugar, entretanto, é que, no contexto em que se fala de soldados cuja
função explicitada até agora tinha sido a de combater os inimigos, se adicione às qualidades
necessárias ao cão-guardião as de filósofo e isto com base na afirmação de que se pode identificar
nos cães um instinto filosófico
355
e que se fale que os cães são considerados amigos do saber por
distinguirem uma visão amiga de uma inimiga pela circunstância de a conhecerem ou não.
Conclui Sócrates:
356
E como não terá alguém o desejo de aprender [philomathès], quando é pelo
conhecimento [synései] e pela ignorância [agnoía(i)] que se distinguem os familiares dos
estranhos?
Identificando o amigo de aprender (philomathés) e o filósofo, passa então a defender que
aquele que quiser ser brando para com os familiares e conhecidos tem de ser por natureza filósofo
(philósophos) e amigo de saber (philomathés)
357
.
Quando, portanto, nessa altura, Sócrates termina por concluir que aquele que quiser ser
―um perfeito guardião da nossa cidade‖ (kalòs kagathòs phýlax)
358
terá de ser por natureza
filósofo, fogoso, rápido e forte, está se referindo a uma figura que está longe de poder ser
compreendida totalmente e está já antecipando, defende-se aqui, a phylakiké no seu grau máximo.
É claro que toda definição do que é realmente ser filósofo só se dará muito mais tarde, nos
livros V, VI e VII, e como esses serão os governantes da cidade, dizer que tendo sido exposta a
educação pela mousiké e gymnastiké se habilita a reconhecer a sophía, prerrogativa dos filósofos
governantes, é muito prematuro e justifica a reticência de Sócrates nesse momento
359
, a menos
que essa figura já se encontre ―antecipada‖ no cão-filósofo.
Uma outra passagem que pode ser considerada o complemento para que se tenha o
fundamento mínimo para que se admita a existência da sophía na cidade, no início do livro IV, é
aquela em que se examinam os efeitos da educação pela mousiké e gymnastiké e na qual se
355
PLATÃO. República, 375e-376b.
356
PLATÃO. República, 376b5-6.
357
PLATÃO. República, 376b-c.
358
PLATÃO. República, 376c.
359
Note-se a hesitação de Sócrates no momento em que diz ter encontrado a sophía: É esta então uma das quatro
virtudes. Descobrimo-la não sei de que maneira, a ela e ao lugar da cidade onde mora.‖ (
) PLATÃO.
República, 429a5-6.
98
defende que elas não existem uma em vista do corpo e outra da alma, como inicialmente
admitido, mas em vista de dois elementos da alma: o corajoso e o filosófico
360
.
Sócrates entende que a disposição de espírito (diánoia) que adquirem ―os que passam a
vida a fazer ginástica, sem contato nenhum com a música‖ (
)
361
é a grosseria e dureza, que é contrária à
moleza e doçura além do apropriado para os que se dedicam só à música
362
.
Sobre o tipo naturalmente impetuoso que pratica exclusivamente a ginástica diz Sócrates:
363
E agora, se ele praticar a ginástica em grande escala e se banquetear à larga, sem tocar na
música e na filosofia? Primeiro que tudo, como passa bem do seu físico, não se encherá
de sobranceria e ardor e não se tornará mais corajoso do que era?
E continua:
364
Pois então! Visto que nada mais faz nem convive com a Musa
365
! Ainda que existisse
dentro de sua alma qualquer desejo de aprender, uma vez que não toma o gosto de
ciência alguma, nem investigação, nem participa em nenhuma discussão ou em qualquer
outra exercitação de música, torna-se débil, surdo e cego, em vista de não ser despertado
nem acalentado nem purificado no acervo de suas sensações.
Uma pessoa assim, segundo Sócrates, torna-se um misólogos
366
.
Sócrates termina por concluir que foi para as faces corajosa (thymoeidés) e filosófica
(philósophon) da alma que a divindade concedeu aos homens a música e ginástica, para que essas
duas faces da alma se harmonizem. Então, conclui:
360
PLATÃO. República, 410a.
361
PLATÃO. República, 410c9-10.
362
PLATÃO. República, 410d.
363
PLATÃO. República, 411c4-7.
364
PLATÃO. República, 411c9-d5.
365
Sobre referências posteriores à musa da philosophía e da dialética ver PLATÃO. República, respectivamente,
499d, e 548c.
366
PLATÃO. República, 411d.
99
367
Por conseguinte, aquele que melhor caldear a ginástica com a música e as aplicar à alma
na melhor medida, - de um homem assim diríamos com toda a razão que seria o mais
consumado músico e harmonista, muito mais do que o que afina as cordas umas pelas
outras.
E pergunta se não é de um governante
368
(epistátou) assim de que a cidade precisará se
quiserem salvar a administração
369
.
O que se propõe aqui é que nessas passagens já há uma referência implícita e uma
antecipação do modelo de educação superior explicitado no livro VII
370
. Pela terminologia
utilizada e sua identidade com a terminologia usada quando se fala da educação superior e das
naturezas apropriadas para recebê-la (philomathés, máthema, zétesis), não parece possível
interpretar aqui a palavra filosofia no sentido fraco de ―cultura superior‖
371
.
Ademais, o que vem logo a seguir no texto é exatamente a pergunta sobre quem na cidade
construída até aqui com o lógos deveria governar
372
e que, resumidamente, são identificados
como os mais velhos, os melhores guardiões e aqueles que, em nenhuma circunstância, deixam
de fazer o que em seu entender é útil e melhor para a cidade
373
.
Ora, aqui também tem de estar subentendida a capacidade para descobrir que isso é útil e
melhor e que é o fundamento da boa deliberação, e que pode estar presente nos de natureza
superior submetidos à educação superior. Estes serão designados guardiões completos:
367
PLATÃO. República, 412a4-7.
368
Aqui, segue-se a interpretação de Shorey em nota a essa passagem: ―This epistates is not the director of
education of Laws 765d ff., though of course he or it will control education. It is rather an anticipation of the
philosophic rulers, as appears from 497 c-d and corresponds to the nocturnal council of the Laws 950 b ff.‖ Cf.
SHOREY, 1994. v.1, p. 412.
369
PLATÃO. República, 412a.
370
Para uma descrição da educação superior, ver PLATÃO. República, 521a-535a.
371
Note-se particularmente as características que se atribuem aos que receberão a educação superior citadas em
PLATÃO. República, 462c7-8, 503c, 535b-c.
372
PLATÃO. República, 412b.
373
PLATÃO. República, 412c-e.
100
[...]
374
Ora, para verdadeiramente os designar com exatidão, serão guardiões perfeitos os que
cuidam dos inimigos externos e dos amigos internos, a fim de que uns não queiram, os
outros não possam fazer mal, e os novos, que há pouco apelidávamos de guardiões, serão
auxiliares [epikoúrous] e defensores da doutrina dos chefes [...].
Todas essas referências à filosofia, estudos, qualidades intelectuais e posse de um
conhecimento do que é melhor para a cidade são antecipações do que seja o filósofo governante
e, portanto, tornam possível, embora não totalmente claro, que exista na cidade a epistéme da
boa deliberação pela qual é sábia. Se depois de percorridos os livros V, VI e VII pode-se
compreender melhor que epistéme é essa, quem são os aptos a cultivá-la e qual o tipo de
educação que pressupõe, pode-se voltar ao livro III e lançar luz sobre essas passagens em que se
escolheu o governante e se identificou na cidade a sua epistéme.
Um outro ponto sobre a educação dos futuros filósofos-governantes e sobre as qualidades
que devem ter e que cabe ressaltar para que se possa melhor compreender o caráter da
interpretação ―dialética‖ que se propõe aqui, mediante a qual uma passagem posterior esclarece
uma anterior, é que tanto essa educação quanto a própria existência de indivíduos com as
qualidades apontadas como necessárias para aqueles que deverão receber educação superior
dependem em larga medida das prescrições feitas no âmbito da educação primária pela mousiké
(no sentido apenas poético e que não inclui as matemáticas e a dialética).
Uma passagem obscura sobre a educação primária é aquela em que se determina que,
mesmo tendo sido estabelecido que o estilo adotado na cidade é o misto, ou seja, o que admite
narrativa simples e mímesis e mesmo que essa seja exclusivamente aquela na qual se imita o
homem de bem, deve ser admitida em pequena quantidade
375
.
Ora, se a mímesis do que se deseja cultivar na cidade permite inculcar esses valores mais
do que qualquer outro meio, então, considerando-se que se quer que os educandos os absorvam
como a um tinto indelével
376
, não faz sentido restringir a quantidade de ―mímesis útil‖.
Porém, é isso mesmo que Sócrates propõe:
374
PLATÃO. República, 414b1-6.
375
PLATÃO. República, 396e.
376
Como se verá na descrição do que significa a coragem na cidade. Cf. PLATÃO. República, 429d-430b.
101
377
Portanto, servir-sede uma forma de exposição no nero da que nós abordamos
pouco a propósito das epopéias de Homero, e o seu estilo participará de ambos os
processos, a imitação e as outras formas de narração; mas, num discurso extenso, pouco
lugar haverá para a imitação. Não está certo o que digo?
No entanto, em uma passagem logo a seguir se dá uma primeira indicação sobre a razão
dessa restrição de quantidade de mímesis.
Sócrates, sobre a mímesis, diz:
[...]
378
[...] as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, transformam-se em hábito e
natureza para o corpo, a voz, e a inteligência (diánoia)?
Quando se chega aos livros V, VI e VII, essa restrição à quantidade de mímesis fica,
retroativamente, clara, pois, dentre as qualidades que deve ter o candidato à educação superior,
está a disponibilidade de uma diánoia megaloprépreia
379
. Essa prescrição tem, portanto, o efeito
de preservar a diánoia. Essa referência à necessidade da diánoia não comprometida para a
educação superior é ainda evocada em várias passagens
380
.
Esse exemplo foi mencionado como forma de se defender o tipo da interpretação da
República que se faz aqui, a qual pressupõe que se tenha uma visão do todo da obra e, mediante
ela, lançar luz sobre passagens anteriores obscuras. São obscuras porque os elementos
necessários para o seu entendimento pleno ainda não foram fornecidos, embora muitas vezes
estejam insinuados ou antecipados.
Esclarecido o sentido em que se pode dizer que sophía na cidade e reforçado esse
ponto sobre o método de interpretação da República que se propõe aqui, o que se deseja agora é
passar para os efeitos da educação primária naquilo em que ela se relaciona mais diretamente
com as virtudes que, por si só, é capaz de produzir, pois, se a educação preliminar é responsável
377
PLATÃO. República, 396e4-8.
378
PLATÃO. República, 395d1-3.
379
Cf. PLATÃO. República, 486a, 503c.
380
Sobre a incapacidade da diánoia dos ―amantes de espetáculos‖ de discernir e de amar a natureza do belo em si, ao
contrário dos filósofos, ver PLATÃO. República, 476b-d. Sobre uma disposição da diánoia que torne possível o
acesso às formas, ver PLATÃO. República, 486a-e. Sobre a diánoia aplicada à contemplação das formas, ver
PLATÃO. República, 500b-c. Sobre a importância da diánoia no que concerne a atingir o conhecimento do que é
inteligível, ver PLATÃO. República, 510d-511e.
102
pela preservação da diánoia, não é diretamente responsável pelo desenvolvimento da dýnamis
própria do filósofo como trophé.
As duas virtudes diretamente dependentes da educação primária são a coragem (andreía)
e a temperança (sophrosýne).
Sobre a coragem que se admitir que, das três primeiras virtudes procuradas na cidade
construída com o lógos, é a única que é considerada fácil de discernir.
Afirma Sócrates:
381
Mas realmente, a coragem e o ponto onde reside, essa virtude pela qual a cidade merece
o nome de corajosa, não é nada difícil de discernir.
Ora, este setor e sua virtude foram claramente constituídos com o concurso da paideía
descrita e, embora seja fácil para Sócrates discerni-los, não é assim tão fácil para Gláucon.
A ―facilidade‖ de se encontrar a coragem provém do fato de que, como anui Gláucon,
ninguém diria que uma cidade é covarde ou corajosa, senão tomando em consideração qualquer
outra coisa que não seja aquele setor que luta e combate por ela
382
.
Porém, Gláucon fica embaraçado
383
, pois Sócrates, colocando de lado o aspecto
―material‖ da defesa da cidade, isto é, a de seu território e de seus bens, o que é o mais óbvio para
todos e mais claramente identificado com o combate
384
, conclui sobre a coragem que:
385
[...] a cidade é corajosa numa de suas partes, por armazenar energia [dýnamin] tal que
preservará através de todas as vicissitudes a sua opinião sobre as coisas a temer, que são
tais e quais o legislador [nomothétes] proclamar na educação.
Diante do embaraço de Gláucon, Sócrates acrescenta que a coragem é uma espécie de
salvação (sotería):
381
PLATÃO. República, 429a8-10.
382
PLATÃO. República, 429b.
383
Cf. PLATÃO. República, 429c.
384
Daí a dificuldade de Gláucon em compreender a definição de Sócrates, a qual envolve um alargamento do
conceito de coragem também não captado por Laques no diálogo que leva seu nome. Cf. supra, seção 2.2.
385
PLATÃO. República, 429b8-c2.
103
386
A da opinião que se formou em nós, por efeito da lei, graças à educação, sobre as coisas
a temer que existem, e a sua qualidade. Por ―salvação através de todas as vicissitudes‖,
entendia eu o fato de uma pessoa a conservar no meio dos desgostos, dos prazeres, dos
desejos e dos temores, sem a abandonar.
Ainda esclarecendo sua concepção de coragem, Sócrates propõe uma analogia entre o
processo pela qual ela se constitui e o processo de fazer um bom tingimento de uma lã. Explica
que, no caso do tingimento desta, se se quer que se torne rpura é preciso, em primeiro lugar,
escolher uma única espécie: a branca. Esta deve receber um tratamento prévio cuidadoso, a fim
de que se imbua o mais possível daquela cor, e então ser mergulhada no tinto. Seguir esse
processo é a garantia de que a cor se tornará indelével e a não desbotará, mesmo submetida a
detergentes. Se a não é branca ou não foi preparada, o próprio Gláucon conclui que desbota e
fica ridícula
387
.
Sócrates completa a analogia dizendo:
388
Supõe, portanto, que também nós realizamos uma coisa parecida, na medida das nossas
forças, quando selecionamos os guerreiros [stratiótas] e os educamos pela música e pela
ginástica. Não julgues que planejamos outra coisa que não fosse imbuí-los das leis o
melhor possível, a fim de que as recebessem como um tinto, para que a sua opinião se
tornasse indelével, quer sobre as coisas a temer, quer sobre as restantes, devido a terem
tido uma natureza e uma educação adequadas. E também para que seu tinto não desbote
com aqueles detergentes que são terríveis para tirar a cor o prazer, de efeito mais
terrível do que qualquer soda ou barrela, o desgosto, o temor e o desejo, que o o mais
do que qualquer outro detergente. É pois, a uma força [dýnamis] dessa ordem, salvação
386
PLATÃO. República, 429c7-d1.
387
PLATÃO. República, 429d-e.
388
PLATÃO. República, 429e7-430b5.
104
em todas as circunstâncias de opinião reta e legítima, relativamente às coisas temíveis e
as que não o são, que eu chamo coragem e tenho nesse conta, se não tens nada a opor.
Sobre essas passagens em que se tratou da coragem, alguns pontos merecem ser
ressaltados: em primeiro lugar, a concepção de coragem da República não é fruto de um exame,
como as do Laques e Protágoras
389
. Compreendê-la plenamente, portanto, dependerá também de
passagens posteriores da República que, assim com no caso da sophía, virão a esclarecê-la.
Porém, se nesse momento se tomar a concepção do Laques, vê-se que lá, quando a
coragem é definida como ―ciência [epistéme] do que é perigoso e do que é favorável, tanto na
guerra como em todas as outras circunstâncias‖ (
)
390
, Sócrates logo concluirá que
esse conhecimento tem de se tratar de um conhecimento do bem e do mal, já que o temor só pode
ser a expectativa de um mal futuro e a confiança a expectativa de um bem:
391
Ora, neste momento, aparentemente, de acordo com tuas palavras, a coragem é a ciência
não só do que é perigoso e do que é favorável, mas talvez até a coragem seja, novamente
de acordo com a tua afirmação de ainda agora, a ciência de todos os bens e de todos os
males, e em todas as circunstâncias.
Assim, a coragem depende de que se conheçam esses bens e males, ou que, pelo menos,
se classifiquem as coisas como bens e males com base em uma opinião verdadeira.
O que ficará claro com o desenvolvimento do texto da República é que é prerrogativa dos
filósofos governantes conhecerem, no sentido forte da palavra, pelo conhecimento que têm das
Ideias e da Ideia de Bem, quais são os bens e os males e que lugar ocupam em uma hierarquia de
valores
392
. Conhecer essa hierarquia se torna fundamental para que não se tema em maior grau
algo que deve ser temido em menor grau, considerando-se que há mais de uma coisa temível.
389
Entende-se que, na República, Sócrates como sabido o que é a coragem, enquanto que tanto no Laques como
no Protágoras as definições a que se chegam dependem de um exame ―dialético‖.
390
PLATÃO. Laques, 194e11-195a1.
391
PLATÃO. Laques, 199c5-d1.
392
Cf. PLATÃO. República, 505a-506a.
105
Mesmo que isso não possa estar ainda claro, o que torna a coragem fácil de identificar é o
fato de que é imediatamente reconhecível que houve na cidade um processo de inculcação de
uma hierarquia de valores através da educação.
Ora, se se voltar aos moldes impostos aos compositores de mitos na cidade, o que se é
que certas atitudes, disposições e valores serão reforçados, valorizados e honrados, enquanto
outros serão suprimidos, desvalorizados e associados à desonra
393
.
Uma outra coisa que se pode aceitar da descrição de Sócrates é que, submetidos a esse
processo de educação análogo a um tingimento, alguns, tal como um tecido que tinha a natureza
adequada e recebeu tratamento adequado, se tornem imbuídos desses preceitos, propostos como
valores, com o grau que Sócrates considera necessário para caracterizar a coragem do guardião.
Aquela coragem com a qual pode se contar para uma função (érgon) específica, que é a de
defender esses valores em quaisquer circunstâncias.
Note-se que a função militar de defesa externa torna-se uma espécie do gênero guarda‖
ao lado da muito mais importante e vital defesa desses valores que definem o modo de vida na
cidade. A função de guarda militar e a coragem guerreira são agora dadas como subentendidas e
têm de ser inferidas e entendidas como implícitas na definição dada; deve reconhecer-se, com
grande ganho de sentido, pois a coragem na batalha passa a ser vinculada ao conhecimento dos
valores pelos quais vale a pena arriscar a vida.
Assim, é por compreender claramente que há valores em jogo superiores ao da sua própria
vida ou integridade física que o soldado verdadeiramente corajoso caminha resoluto para a morte
ou para os ferimentos.
393
O ―vocabulário‖ da timé perpassa toda a República. Já Trasímaco denuncia que se ―honra‖ a justiça por não se ser
capaz de cometer injustiças. Cf. PLATÃO. República, 359a-b. Adimanto também alerta para o efeito que pode ter na
alma dos jovens ouvirem sobre a honra (timé), que se diz que homens e deuses conferem à virtude e ao vício. Para
ele, extrairiam justo daí a noção sobre como se comportar. Cf. PLATÃO. República, 365a-b. Note-se também que a
seguir reclama que ninguém ―honra‖ a justiça como um bem por si. Cf. PLATÃO. República, 366c-e. Assim que
estabelece o que os poetas podem dizer sobre os deuses na cidade, Sócrates, estabelece que esses moldes são
propícios para aqueles que se pretendem que ―honrem‖ as divindades, os pais e a amizade. Cf. PLATÃO. República,
386a. Sobre se conferir honrarias aos que se destacam pela coragem, ver PLATÃO. República, 468c-e. Sobre honras
superiores serem conferidas aos que são encaminhados para os estudos superiores, ver, PLATÃO. República, 537b-c.
Note-se que o vocabulário da timé é freqüente nos livros VIII e IX, nos quais se fala da degenerescência da cidade,
processo no qual vão se valorizando coisas que não eram valorizadas antes na cidade, no lógos. Para uma passagem
representativa sobre esse aspecto, ver PLATÃO. República, 561b-c. Para a passagem mais importante para se
estabelecer a relação entre a educação para a adesão a certos valores e a honra que se lhes confere, e que em grande
medida descreve o processo de inculcação de valores antes descrito no âmbito da paideía pela mousiké, ver
PLATÃO. República, 537e-538e. Note-se ainda como essa última passagem explica a crise de valores mencionada
no capítulo 2 e reflete o ataque à justiça nos livros I e II através do discurso sofístico. Sobre a ―honra‖ ser usada com
finalidade educativa, ver também PLATÃO, Leis, 632a, 653c, 697a-b, 711c, 731b, 744b.
106
O que isso mostra é que começar a explicação da educação a partir de uma classe de
soldados é apenas o pretexto para se tratar de uma defesa muito mais ampla do que a defesa do
território e dos bens materiais e que envolve um érgon muito mais amplo, o do phýlax, que não é
militar. Os soldados mencionados inicialmente, quando foi introduzida sua necessidade na
cidade, mas não a sua educação, não são sequer temperantes e educados. São potenciais invasores
das terras dos vizinhos para atenderem aos seus desejos de posse ilimitada de riquezas, além do
necessário
394
, isto é, não são os phýlakes. É quando é introduzida a palavra phýlax que se introduz
a questão de como serão educados e formados para que atinjam a dýnamis necessária ao exercício
do seu érgon. Mas se a coragem é uma dýnamis que se constrói com o concurso da paideía
395
sobre uma natureza apropriada, então se pode saber quem atingiu a dýnamis almejada depois
de se observar o resultado a que se chega no termo da paideía.
Assim, no momento em que, ao esclarecer o que é a coragem, remete à analogia com o
tingimento, que também envolve a seleção da apropriada, e compara essa seleção com aquela
pela qual tiveram de selecionar os guerreiros e os educar pela mousiké, um momento em que
tiveram de selecionar as naturezas adequadas para receber a paideía, não deixa de denunciar que
se trata de tarefa difícil fazer tal seleção
396
.
Pelo que vem se indicando até agora é preciso entender que essa seleção, como se verá
mais adiante, terá de ser muito ampla. O que se propõe aqui é que é isso que justifica tratar essa
seleção como difícil e o recurso à palavra stratiótas, quando já estava muito ampliada a função do
phýlax. O que o uso dessa palavra nesse momento de embaraço indica é que se está fazendo
referência menos ao tipo determinado que se escolheu do que ao início do processo e ao
momento em que, primeiramente, se colocou a necessidade de uma educação que vise como
termo final a um guardião guerreiro.
Assim, as referências à ―educação do guardião‖ devem ser entendidas como aludindo ao
termo final visado, o qual, no momento em que se fala da necessidade de guarda, é o guardião
394
Sobre a primeira caracterização dos soldados como aqueles que atendem à necessidade de tirar as terras dos
vizinhos, ver PLATÃO. República, 373d-374b.
395
Como está explícito na própria definição de coragem. Cf. PLATÃO. República, 429b-d.
396
―Supõe, portanto, que também s realizamos uma coisa parecida, na medida de nossas forças, quando
selecionamos os guerreiros e os educamos pela música e pela ginástica.‖ (
). PLATÃO. República, 429e7-430a1. Note-se que a fórmula ―na medida de nossas forças‖,
sempre usada para indicar a dificuldade da consecução de uma proposta, aparece aqui relacionada com o processo de
seleção.
107
com sua virtude própria realizada plenamente, o que não exclui a necessidade de alguma
educação para os cidadãos que se quer que aceitem as leis e o modo de vida da cidade
397
.
Ora, de alguma educação a cidade precisaria mesmo se não se tivesse tornado luxuriosa e
necessitada de um exército. Note-se que, quando se descreve a vida na cidade sã, mencionam-se
hinos aos deuses que serão cantados pelos cidadãos, assim como uma vida comedida
398
. Uma
pergunta que poderia ser feita é: quais os moldes que regem a composição desses hinos? Não
seriam necessárias prescrições como as feitas no âmbito da paideía purificadora da cidade
luxuriosa?
O que se quer marcar ao associar a educação aos guardiões-guerreiros é menos a atividade
guerreira propriamente, mas, principalmente, a necessidade de uma dýnamis pela qual se
preservam os valores que regem a vida da cidade contra a perda, mas não que antes, na cidade sã,
não houvesse valores pelos quais se vivesse e que precisassem ser preservados. Ocorre que lá não
se chegou a denunciar essa necessidade. Mais do que à guerra, a educação visa à salvação de
valores. A guerra é apenas uma circunstância em que a preservação de um certo modo de vida e
de certos valores exige luta física, mas outras circunstâncias em que esta preservação não a
exige. A educação, tendo em vista fundamentalmente a preservação de valores, visa como termo
final formar guardiões auxiliares e filósofos que sejam possuidores da coragem na sua plenitude.
Porém, a interpretação que se defende aqui é que essa paideía que visa à coragem deve ser
entendida como se estendendo a todos e beneficiando a todos. Ora, mesmo que não gere a
coragem no sentido pleno, capaz de definir um érgon, no mínimo alimentará os cidadãos com
valores que poderão se contrapor aos valores sensíveis, gerando neles a temperança e a justiça na
alma: duas virtudes cívicas fundamentais e que devem ser possuídas por todos
399
.
O ponto central dessa interpretação é o de que, sendo a coragem uma dýnamis, é resultado
de uma síntese entre phýsis e paideía. Ser capaz de ser submetido a todos os testes e não
tergiversar em nenhuma circunstância é uma dýnamis
400
resultante de um processo, assim como é
397
Essa interpretação encontra apoio em Shorey: ―(...) Zeller anda many who follow him are not justified in inferring
that Plato would not educate the masses. (…) It might as well be argued that the high schools of the United States are
not intended for the masses because some people sometimes emphasize their function of ―fitting for college‖. In the
Republic Plato describes secondary education as a preparation for the higher training. The secondary education of the
entire citizenry in the Laws marks no change of opinion (Laws 818 ff.) (…)
398
Cf. PLATÃO. República, 372a-d.
399
Com esse argumento, que será ainda aprofundado, pretende-se refutar os argumentos de números 3 e 4, de Reeve,
contrários à tese da educação primária comum, elencados na introdução.
400
Entende-se sempre aqui a palavra dýnamis no sentido estabelecido pelo próprio Sócrates: ―Diremos que as
potências [dynámeis] são um gênero de seres, pelos quais nós podemos fazer aquilo que podemos, nós e tudo que
108
a dýnamis de certos tecidos bem tingidos serem submetidos a todos os detergentes e não
desbotarem.
Que essa firmeza nas opiniões sobre o que se deve realmente temer e sobre as quais não se
tergiversa em nenhuma circunstância tenha sido atingida pelo concurso da paideía sobre uma
natureza apropriada é tão claro quanto a dependência que o tecido apropriado tem do tratamento
químico apropriado para imbuir-se do tinto de forma que este se torne indelével.
Com base nisso, o que se deseja aqui propor é que a coragem, como dýnamis, comporta
graus, mas que só no seu grau máximo é a coragem que define um érgon específico: o da guarda.
Sobre o fato de que algum grau de coragem deve existir nos cidadãos que não são
guardiões, note-se que, ao introduzir a busca pela coragem na cidade construída com o lógos,
Sócrates propõe que se dirá que uma cidade é corajosa tendo em vista o setor que luta e combate
por ela. Mas, diante da concordância de Gláucon, logo a seguir acrescenta:
401
Não julgo, com efeito, que os outros habitantes, quer sejam covardes ou corajosos,
possam ser senhores de lhe atribuir uma ou outra dessas propriedades.
As propriedades em questão aqui são a de lutar e combater pela cidade, as quais exigem a
coragem no grau pleno
402
. estariam habilitados para exercer a função de guarda aqueles que
fossem testados com todos os ―detergentes‖, aqui representando o prazer, o desgosto, o temor e o
desejo
403
.
Ora, assim como se pode saber se o tinto chegou ao grau de fixidez desejado, testando-
o com detergentes, da mesma forma a firmeza de opinião dos que combaterão pela cidade,
combate esse que inclui, obviamente, o combate pela preservação dos valores pelos quais se vive,
e que não é necessariamente físico, pode ser testada submetendo-os ao teste dos prazeres,
tenha capacidade de atuação.‖ (
). PLATÃO. República, 477c1-2.
401
PLATÃO. República, 429b5-6.
402
Note-se que, ao estabelecer o que é a coragem, Sócrates em curto espaço enfatiza três vezes que a coragem que
aqui se defende é a coragem no sentido pleno, que não admite tergiversação alguma, o que fica ainda mais claro com
o exemplo do tinto e dos detergentes.
403
PLATÃO. República, 430a.
109
desgostos, temor e desejo. Esses testes visam identificar uma dýnamis, a qual se sabe que foi
atingida com o concurso da paideía
404
.
Se é assim, então é a dýnamis atingida que permite assegurar qual era a natureza sobre a
qual atuou a paideía. É a dýnamis final que permite identificar a natureza. Ademais, as naturezas
variam enormemente em grau e seria absurdo adotar a caracterologia humana apresentada no
livro IX
405
, segundo a qual o philokerdés (amante do ganho, do lucro, das riquezas e, por
consequência, dos prazeres), o philónikon (amante da vitória, da glória e das honras) e o
philósophon (amante de sabedoria)
406
, como capaz que possa determinar a dýnamis final de um
homem, independentemente da paideía. Mesmo que na infância possa haver certos traços
indicativos de que, com o concurso da paideía, pode-se atingir certa dýnamis, nada garante que
será atingida. Identificar as dynámeis é função dos testes
407
.
Se se aceita essa concepção, pode-se, então, aplicá-la também à sabedoria, própria dos
filósofos, que, tendo sido selecionados aos vinte anos
408
, como potenciais futuros filósofos,
exatamente porque se verificou neles uma dýnamis que denuncia certa natureza, podem ser
submetidos a uma educação matemática e dialética com vistas a saber quem é capaz de se tornar
um dialético completo, ou seja, de realizar essa nova dýnamis com o concurso de uma nova
educação:
409
Em todas as ocasiões, trabalhos, estudos e receios, aquele que se mostrar sempre mais
ágil, deves -lo num grupo à parte. [...] Na idade em que abandonam os exercícios
gímnicos obrigatórios, porquanto nesse período de tempo, quer seja de dois, quer de três
anos, é impossível fazer qualquer outra coisa. É que a fadiga e o sono são inimigos do
404
PLATÃO. República, 429c7-d1.
405
Como faz Reeve. Cf. REEVE, 1988, p. 170-197.
406
Para uma descrição detalhada dessa caracterologia, ver PLATÃO. República, 580d-583a.
407
Com esse argumento, pretende-se refutar o argumento número 2, de Reeve, contrário à tese da educação primária
comum, elencado na introdução.
408
PLATÃO. República, 537b-c.
409
PLATÃO. República, 537a9-c6.
110
estudo. Ao mesmo tempo, esta é uma prova e não das menores, para saber quem brilha
na ginástica. [...] Depois desse período os que forem escolhidos, de entre os que
completaram vinte anos, terão honras mais elevadas do que os outros, e apresentar-se-
lhes-ão em conjunto os estudos feitos à mistura na infância, para verem o parentesco dos
estudos uns com os outros e com a natureza do Ser.
Se se aceita que a mousiké, mesmo no livro III, pode, em certo momento, estar sendo
tomada como incluindo, em uma antecipação, a educação superior, então, a passagem na qual
Sócrates trata dos critérios para a escolha dos chefes pode muito bem ser vista como aquela que
anuncia uma dýnamis especial adquirida com a educação primária e, depois, com os estudos
superiores, e que também se identifica mediante testes:
410
E quem tiver sido sempre posto à prova, na infância, na juventude e na idade viril, e sair
dela inalterável, deve ser posto no lugar de chefe e guardião da cidade, devem prestar-se-
lhes honrarias, quer em vida, e caber-lhe-ão as mais altas distinções, nas sepulturas e
demais monumentos à sua memória. Quem assim não for, deve excluir-se. É mais ou
menos essa, ó Glaucon, a escolha e nomeação de chefes e guardiões, para me exprimir
de um modo geral, e não com rigor.
No passo imediatamente anterior esses chefes são caracterizados como aqueles que,
mediante testes, se mostraram bons guardiões de si mesmos e da música que aprenderam através
da educação
411
.
Se se entende o poder da paideía de, como uma trophé, atuar sobre uma natureza
determinada produzindo uma dýnamis, então se entende melhor tanto o papel da educação
primária quanto da superior na constituição, respectivamente, da coragem e da sabedoria. Isto
ficará ainda mais claro quando se tratar das virtudes da alma
412
.
Cabe agora tratar da temperança na cidade e procurar reconhecê-la também como tendo
sido atingida com o concurso da paideía.
410
PLATÃO. República, 413e5-414a7.
411
PLATÃO. República, 413d-e.
412
Cf. infra, seção 4.2.
111
A sophrosýne é de todas as virtudes que deveriam estar presentes em uma cidade boa a
mais difícil de ser reconhecida na cidade no lógos, na altura em que se olha para ela procurando
identificá-la no livro IV. Embora se defenda aqui que também a coragem e a sabedoria serão
melhor delineadas ao longo da obra e retroativamente se possa voltar a essas passagens e
reconhecê-las plenamente na cidade, o caso da sophrosýne é muito mais complexo.
Se o fato de que se havia falado, na altura em que se encontra a sophía na cidade, em
uma classe governante, na qual residia uma epistéme da boa deliberação, pode-se admitir a
existência da sabedoria, consequência de um certo tipo de educação indiretamente mencionado,
embora ainda não explicitamente delineada (a educação superior). Junte-se a isso a ―antecipação‖
presente na figura do cão-filósofo e a presença da sophía na cidade torna-se aceitável.
Da mesma forma, se uma classe que combate pela cidade, pode-se reconhecer na
virtude própria dos que pertencem a essa classe a coragem, forjada por uma educação
explicitamente mencionada e explicitamente associada a esse fim.
A sophrosýne, entretanto, entendida por Sócrates como a virtude presente não em uma
classe, mas em toda a cidade, exigiria que se aceitasse que uma consonância (symphonía) que
permeia toda a cidade segundo a qual os piores aceitam o governo dos melhores
413
.
Ocorre que, tanto no caso da sophía, como no caso da andreía, não se pode esquecer que
a cidade é nomeada sábia ou corajosa em vista de um setor ou classe da cidade, mas isso implica
que haja homens fazendo parte dessas classes, os quais possuem essas dynámeis da boa
deliberação e da coragem. No caso da definição dessas duas virtudes, fica claro que o setor pelo
qual se diz que a cidade as possui depende de que os homens que a constituem a possuam, e,
como foi visto, um certo fundamento na educação descrita até então para que se possa admitir
que certos homens a possuem, embora no caso da sophía se tenha de admitir algo subentendido e
apenas antecipado.
No caso da sophrosýne, como é uma virtude que não está em uma classe específica, mas
permeia toda a cidade, precisar-se-ia admitir também que está em todos os homens da cidade.
Assim, como a sophía e a andreía, a sophrosýne pode ser uma virtude de homens e de cidades,
mas, se no caso da andreía e da sophía, para que a cidade seja reconhecida com as possuindo,
elas têm de estar nos homens e na cidade, nessa ordem, não seria rigoroso admitir que a
413
PLATÃO. República, 432a. A escolha da palavra consonância para trauduzir symphonía deve-se à interlocução
como o mestrando do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica da UFRJ, Guilherme da Costa Assunção
Cecílio, de quem se é aqui devedor em mais de um aspecto.
112
sophrosýne pode ser uma virtude da cidade independentemente de estar nos homens
414
,
principalmente tendo em vista que, envolvendo ela uma consonância, se exige o fundamento
dessa consonância.
Essas dificuldades envolvidas no reconhecimento da sophrosýne na cidade são claramente
antecipadas por Sócrates quando, depois de encontrada a coragem, passa à sophrosýne. Diz
Sócrates:
415
Há, portanto, ainda duas virtudes a examinar na cidade, a temperança e a que é causa de
toda esta investigação, a justiça.
Diante da concordância de Gláucon, Sócrates acrescenta de forma surpreendente:
416
Se ao menos houvesse uma maneira de descobrir a justiça sem que tivéssemos que nos
ocupar mais com a temperança?
Embora a declaração de Sócrates, diante do pedido de Gláucon de que se examine
primeiro a sophrosýne, de que seria injusto que não se fizesse assim, indique que não tinha a real
intenção de passar à justiça sem tratar da sophrosýne
417
, a passagem citada merece atenção
especial, principalmente tendo em vista o que segue.
Diz Sócrates sobre a sophrosýne:
418
414
Ferrari argumenta que o que torna a cidade temperante é a existência de uma consonância entre governantes e
governados sobre quem deve governar. Embora admita que isso não exclui que sejam todos temperantes, não
considera necessário que todos sejam ou que mesmo alguns o sejam, desde que os melhores governem com a
concordância dos piores. Cf. FERRARI, G.R.F. City and Soul in Plato´s Republic. Chicago: The University of
Chicago Press, 2005. p. 45-47. Para posição semelhante, ver WILLIAMS, Bernard. The analogy of City and Soul in
Plato‘s Republic. In: KRAUT, Richard (Ed.). Plato’s Republic: critical essays. Maryland: Rowman & Littlefield
Publishers, 1997. p. 49-60.
415
PLATÃO. República, 430d1-3.
416
PLATÃO. República, 430d5-6. Neste passo, preferiu-se a tradução de Shorey, por denunciar mais claramente a
surpreendente manifestação de Sócrates sobre a possibilidade de se passar à justiça sem antes definir a temperança.
Cf. SHOREY, 1994, v. 1., p. 359. Tradução própria.
417
PLATÃO. República, 430d.
418
PLATÃO. República, 430e3-4.
113
Vista de onde estamos assemelha-se, ainda mais que nos casos anteriores, a um acorde
(symphonía(i)) e a uma harmonia.
E acrescenta:
419
A temperança [sophrosýne] é uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos
prazeres e desejos, como quando se dizem, não entendo bem de que maneira, ―ser senhor
de si‖, e empregam outras expressões no gênero que são como que vestígios desta
virtude.
Sócrates prossegue esclarecendo o significado de tal expressão:
Mas esta expressão parece significar que na alma do homem como que uma parte
melhor e outra pior; quando a melhor por natureza domina a pior chama-se a isso ―ser
senhor de si‖ – o que é um elogio, sem dúvida; porém quando devido a uma má
educação ou companhia, a parte melhor, sendo mais pequena, é dominada pela
superabundância da pior, a tal expressão censura o fato como coisa vergonhosa, e chama
ao homem que se encontra nessa situação escravo de si mesmo e libertino.
Entende, então, que da nova cidade que estão construindo com o lógos pode-se dizer com
justiça que é senhora de si, se realmente se deve denominar temperante (sôphron) e senhor de si
tudo aquilo em que a parte melhor governa a pior (tò ámeinon toû kheíronos árkhein)
421
.
Como nota Adam, três acepções de sophrosýne na passagem acima e nas que seguem.
A primeira é a que envolve o domínio da parte melhor sobre a pior; a segunda é aquela que
implica o domínio da phrónesis sobre os desejos; e a terceira a que implica a consonância entre
melhor e pior sobre quem deve governar. Ainda segundo ele, a primeira e a segunda são
419
PLATÃO. República, 430e6-9.
420
PLATÃO. República, 431a3-b2.
421
PLATÃO. República, 431b.
114
diferentes maneiras de dizer a mesma coisa e nenhuma das duas é fundamental, pois ambas
seguem-se da terceira, enquanto a terceira não se segue de nenhuma delas
422
.
Chambry segue a mesma linha:
Enquanto virtude política, a temperaça compreende três elementos: a submissão do pior
ao melhor, a submissão das paixões à razão, e, enfim, o acordo do melhor e do pior para
decidir quem deve governar. Os dois primeiros na realidade remetem a um e não são
de fato fundamentais, pois eles decorem do terceiro; este, ao contrário não decorre do
dois outros. É por isso que, na sua definição final, Platão não admite senão o terceiro e
faz da temperança uma harmonia
423
.
Embora Sócrates chegue realmente a esta definição final, segundo a qual a sophrosýne é a
consonância entre melhores e piores sobre quem deve governar, e ela não esteja necessariamente
implicada pelas outras duas, o fato é que depende delas para se tornar inteligível no caso da
cidade. Note-se que para chegar a essa definição final Sócrates, ao contrário das outra virtudes
encontradas, a sophía e a andreía, teve de, pela primeira vez, usar como auxílio a psicologia dos
indivíduos como ponto de partida
424
.
Assim, para esclarecer a Gláucon, como vê que na cidade existe harmonía e symphonía, diz:
425
A temperança é uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos prazeres e
desejos, como quando dizem, não entendo bem de que maneira, ―ser senhor de si‖, e
empregam outras expressões no gênero que são como que vestígios desta virtude. Não é
assim?
Diante da concordância de Gláucon, Sócrates continua seu exame da alma e esclarece o
sentido da expressão em questão:
422
ADAM, James (Ed.). The Republic of Plato. Volume I. Books I-V. Cambridge: Cambridge University Press,
1979. Ver p. 236.
423
CHAMBRY, 1996, p. 24. Traudção própria.
424
Deve-se a Ferrari a percepção do embaraço de Sócrates, em relação à sophrosýne, e da importância dessa
passagem, a qual foi o ponto de partida para toda a discussão aqui proposta sobre a sophrosýne. Ferrari, no entanto,
uma interpretação sobre a passagem e sobre a sophrosýne que é oposta à daquela defendida aqui. Cf. FERRARI,
2005, p. 38.
425
PLATÃO. República, 430e6-9.
115
426
Mas esta expressão parece-me significar que na alma do homem como que uma parte
melhor e outra pior; quando a melhor por natureza domina a pior, chama-se a isso ―ser
senhor de si‖ – o que é um elogio, sem dúvida; porém, quando devido a uma má
educação ou companhia, a parte melhor, sendo mais pequena, é dominada pela
superabundância da pior, a tal expressão censura o fato como coisa vergonhosa, e chama
ao homem que se encontra nessa situação escravo de si mesmo e libertino.
Só então Sócrates passa à cidade:
427
Olha então para a nossa nova cidade, e descobrirás nela a presença de uma destas
condições. Dirás que é com justiça que ela é proclamada senhora de si, se realmente
deve se denominar temperante e senhor de si tudo aquilo cuja parte melhor governa a
pior.
Com base nessas passagens, tem-se que, se os indivíduos são chamados temperantes e
senhores de si, é porque neles o elemento melhor governa o pior e, embora se possa assumir,
dada a posse de uma epistéme pelos governantes, que eles são melhores e que governam, poder-
se-ia assumir que na cidade a temperança no sentido de que o governo do melhor sobre o
pior.
Entretanto, não se poderia estabelecer com o que foi dito até aqui que na cidade no lógos
um domínio dos desejos pela phrónesis e muito menos uma consonância entre melhores e
piores sobre quem deve governar. Sócrates parece perceber isso, mesmo tendo estabelecido
que, olhando para a cidade, vê que nela o melhor governa o pior.
Talvez esteja aqui a causa do embaraço de Sócrates ao anunciar a busca da sophrosýne e a
insinuação de que seria melhor passar direto à justiça.
Sócrates precisará estabelecer a presença desses dois outros sentidos da sophrosýne
(consonância sobre quem deve governar e domínio da razão sobre os desejos) na cidade,
426
PLATÃO. República, 431a3-b2.
427
PLATÃO. República, 431b4-8.
116
indiretamente, novamente por analogia com os homens e usando uma outra cidade tomada
genericamente.
Para estabelecer que há o domínio dos desejos pela phrónesis, faz uma transição da cidade
que chamava ―nossa nova cidade‖ para uma comparação entre tipos humanos:
428
Ora, desejos, prazeres e penas, em grande número e de todas as espécies seria coisa fácil
de encontrar, sobretudo nas crianças, mulheres, criados e nos muitos homens de pouca
monta a que chamam de livres.
Ora, não parece, pelos cuidados tomados com a educação na cidade que possam nela
residir ―desejos, prazeres e penas, em grande número e de todas as espécies‖ (
). As próprias prescrições que
envolvem tanto a mousiké quanto a gymnastiké, e que levaram à exclusão da variedade nos dois
âmbitos, excluem essa possibilidade.
Ademais, a referência depreciativa feita às mulheres tomadas como gênero seria
incoerente com o fato de que as mulheres poderão exercer a função de guardiãs e, portanto,
pode ser tomada como fazendo referências às mulheres ―históricas‖, e não às educadas na polis,
no lógos. Assim, Sócrates parece estar muito mais recorrendo a um tipo humano de que precisa
para ilustrar o domínio dos desejos sobre a razão do que à descrição de uma parte da ―sua‖
cidade. Não admitir isso, envolveria entender que duas cidades sendo descritas: uma na qual
valem as prescrições feitas no âmbito da educação primária, e outra na qual elas não valem.
Ora, só em uma cidade na qual essas prescrições não valessem poderia haver essa
―variedade de desejos, prazeres e penas‖, o que levaria à questão sobre se esse modo de vida é
aceitável para os artesãos da cidade no lógos.
Que, na cidade descrita na República, isso não seja possível fica claro. E mesmo que os
artesãos vivessem em uma parte da cidade diferente daquela em que vivem os guardiões, que de
tão diferente fosse outra cidade, também esse modo de vida não seria plausível se se pretende
que os artesãos desempenhem bem a sua função, sem serem desviados dela pela cobiça por
riquezas.
428
PLATÃO. República, 431b9-c3.
117
Assim, embora essas pessoas não possam existir na pólis no lógos, as que são
mencionadas na passagem que vem logo a seguir poderiam, mas é preciso tomá-la não como uma
referência à cidade no lógos, mas como simples oposição aos tipos humanos antes mencionados
naquela outra cidade genérica e que encaminham para uma visão genérica do que seria a
sophrosýne em uma cidade.
A passagem é a que segue:
429
Mas sentimentos simples e moderados, dirigidos pelo raciocínio conjugado com o
entendimento e a reta opinião, em pouca gente os encontrarás, e nos de natureza
superior, e formados por uma educação superior.
A conclusão que se poderia extrair é que uma cidade em que os desejos da multidão dos
homens de pouca monta (phaûlos) são subjugados pelos desejos e pelo bom senso (phrónesis)
dos que são melhores poderia ser dita temperante.
Porém, o que Sócrates pede que Gláucon veja, com base no que foi dito antes, é que é isso
que ocorre na cidade ―dele‖:
430
Não vês também que na tua cidade os desejos da multidão dos homens de pouca monta
são subjugados pelos desejos e pelo bom senso dos que são menos e melhores?
Considerando que se refere à lis, no lógos, não parece necessária a ligação entre o que
se disse antes e a conclusão. Ora, se se diz de uma cidade genérica que nela há tipos humanos que
se opõem quanto a dominar ou serem dominados pelos desejos, nada foi dito sobre o modo como
se a submissão destes por aqueles em uma cidade, muito menos subsídios para determinar
como essa submissão se dará na lis no lógos.
Haveria duas alternativas: essa submissão se daria pela força ou pela consonância sobre
quem deveria governar. O fundamento dessa consonância, porém, não se pode depreender do que
429
PLATÃO. República, 431c5-7.
430
PLATÃO. República, 431c9-d1.
118
foi dito até agora sobre a lis no lógos e, portanto, torna-se problemático que se admita que ela
existe aí, a menos que se considere que a educação primária foi dada a todos.
Não parece ser outra a razão pela qual Sócrates só pode dar o passo seguinte considerando
que, hipoteticamente, se existisse uma outra cidade em que houvesse essa consonância, também
na lis no lógos, poderia existir:
431
Ora se, noutra cidade, existir o mesmo parecer em governantes e governados, sobre a
espécie de pessoas que devem exercer o poder, também na nossa isso seria possível. Ou
não te parece?
Mais uma vez, esse é um ponto difícil de aceitar que se como estabelecido porque
supõe, como se disse, um fundamento dessa consonância que não está claro nem nessa ―outra
cidade‖, e muito menos na cidade, no lógos, a menos que se admita que houve a educação
primária comum a todos os cidadãos.
Sócrates passa, então, a identificar essa consonância com a temperança ao perguntar em
quais dos cidadãos ela existe quando se comportam desse modo, introduzindo a noção de
consonância na definição de temperança:
432
Em quais dos cidadãos dirás que existe a temperança, quando eles se comportam deste
modo? Nos governantes ou nos governados?
Com o assentimento de Gláucon de que são ―nuns e noutros‖, Sócrates pode então
concluir que adivinharam corretamente ao dizer que a temperança era uma harmonia e explica:
431
PLATÃO. República, 431d9-e2.
432
PLATÃO. República, 431e4-5.
119
433
Porque não é como a coragem e a sabedoria que, existindo cada uma num lado da
cidade, a tornavam, uma sábia, a outra corajosa, que a temperança atua. Esta estende-se
completamente por toda a cidade, pondo-os todos a cantar em uníssono na mesma
oitava, tanto os mais fracos como os mais fortes, como os intermédios no que toca ao
bom senso, ou se quiseres à força, ou se quiseres à abundância, riquezas ou qualquer
outra coisa desta espécie. De maneira que poderíamos dizer com toda a razão que a
temperança é esta concórdia, harmonia, entre os naturalmente piores e os naturalmente
melhores, sobre a questão de saber quem deve comandar quer na cidade quer num
indivíduo.
Sócrates aqui, ao considerar que a temperança se assemelha realmente a um uníssono,
introduz uma tripartição onde antes parecia haver uma bipartição.
Se até aqui a temperança envolvia razão e desejo, melhores e piores, agora parece admitir,
para que funcione a analogia com a música, um grau intermédio, o que, de resto, é fundamental
para que se atenue a divisão sem nuances e artificial entre melhores e piores, pois, se os melhores
são os governantes, os piores teriam de ser todos os outros. se se admitem graus, pode-se
admitir que os governados são piores em relação aos governantes, mas não necessariamente ruins
como na oposição que se estabeleceu anteriormente entre os que são dominados pelo desejo e os
que são guiados pela phrónesis
434
. Essa nuance é necessária no mínimo para salvar da
denominação de ruins os guardiões-auxiliares, mas, como se defenderá aqui, vai muito além.
Por outro lado, o escopo em que se admite a existência da temperança, desde que haja
esse uníssono, é muito amplo. Tenham os fortes, fracos ou intermédios essas qualidades em
relação ao bom senso, à força, ao número, à riqueza ou qualquer outra coisa do gênero, se
consonância entre eles sobre quem deve governar, há temperança.
Ora, esse tipo de extensão do conceito de temperança não parece se coadunar com o
conceito de justiça que será exposto em seguida e, portanto, não seria possível identificar a
presença da temperança
435
, como segue, como a consonância entre os naturalmente melhores e
piores, sem qualificação de aspecto.
Essa identificação parece não apressada, porque não se pode compreender o
fundamento dessa consonância, como contraditória com a concepção de justiça que seadotada
433
PLATÃO. República, 431e10-a9.
434
Os governantes seriam melhores no sentido de possuir a sabedoria entendida como conhecimento fundamentado,
o que está além do que possuem tanto auxiliares quanto artesãos.
435
PLATÃO. República, 432a.
120
logo a seguir, já que a justiça exige o governo do filósofo, ou seja, o ―mais forte‖ quanto ao saber,
e não o governo de alguém que seja ―mais forte‖, por exemplo, quanto à riqueza.
Ora, se a justiça, por exclusão das outras virtudes descobertas na cidade e que a tornam
virtuosa, é uma outra virtude fundamental para que a cidade participe da virtude, então é
identificada como o preceito estabelecido logo na fundação da cidade, que devia observar-se em
todas as circunstâncias, segundo o qual cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela
para a qual a sua natureza é mais adequada.
436
Embora o que se costume enfatizar sobre essa definição de justiça seja a separação das
tarefas, o que se deseja aqui, sem desconsiderar a importância dessa separação, é enfatizar o
verbo práttein quando relacionado com as funções determinadas para as classes na pólis com
lógos. Essa ênfase leva, a partir da definição da justiça, a uma necessidade de se complementar o
que se disse de forma incompleta sobre as outras virtudes na cidade e, retrospectivamente, lançar
luz não sobre essas virtudes como sobre o processo que deve ser condição de possibilidade de
sua manifestação.
Por isso, entender plenamente a noção de justiça na cidade envolve o conhecimento dos
elementos constituintes da alma e de suas relações mútuas e de como as virtudes se manifestam
nela.
Assim, se a sophía na cidade envolvia uma epistéme da boa deliberação sobre o que é
melhor para a cidade, é preciso entender que o exercício efetivo dessa função exige a posse dessa
epistéme como o critério mesmo para o exercício do governo, o que antes da definição de justiça
não ficava absolutamente claro. Antes se identificava um setor da cidade que possuía essa
dýnamis, mas agora, quando se exige que esse setor, exclusivamente, exerça essa dýnamis, então
o que é mais claramente essa dýnamis e como se constitui tem de ser explicado.
Da mesma forma, considerando-se a exigência extrema envolvida na caracterização da
coragem, é o estudo do elemento thymoeidés que levará a uma melhor compreensão de como se
constitui a dýnamis pela qual a função que depende dela pode ser exercida e que admite graus,
assim como a epistéme.
Por fim, a consideração e o estudo do elemento epithymetikón da alma também tem de
começar a ser abordado se se quer mostrar em que sentido é dominado. Essa compreensão exige
436
PLATÃO. República, 370b-c.
121
que a leitura seja levada até o Livro X, já que, ainda nele, se continuam a esclarecer os tipos de
desejos que o constituem
437
.
Ademais, foi o elemento epithymetikón que, no começo, irrompeu com violência e
colocou toda a discussão em curso. É pela compreensão do que seja a relação entre os
elementos da alma e os processos pelos quais adquirem sua dýnamis que se pode,
retrospectivamente, compreender que foi legítimo identificar na cidade as virtudes da sophía,
coragem, temperança e justiça.
Assim, seria um erro que se considerasse que as virtudes estão suficientemente
esclarecidas no âmbito da discussão sobre as virtudes na cidade no livro IV.
A sabedoria não é suficientemente clara porque uma epistéme da boa deliberação exige
como pré-requisito uma epistéme sobre o bem e o mal, que de modo algum se pode vislumbrar
claramente na cidade do livro VI.
A coragem, embora seja mais facilmente identificável na cidade, também se tornará muito
mais clara pela introdução do estudo da alma.
A temperança não é suficientemente clara porque é preciso compreender, e não
afirmar, como será possível que, na cidade, a razão governe os desejos, mediante uma
consonância entre governantes e governados, indicando o fundamento dessa consonância.
Quanto à justiça, vê-se que tampouco ela pode ser vista com clareza apenas com o que se
disse até o ponto em que se trata das virtudes na cidade.
Tratando agora especificamente da temperança, o primeiro problema para sua concepção
em um ―sentido amplo‖ como consonância entre mais fracos, intermédios e mais fortes
438
, sem
que se determine o critério pelo qual são qualificados assim, se na passagem seguinte à
definição de justiça, ao se mencionar a possibilidade de as classes, em uma cidade qualquer,
trocarem suas funções.
Sobre essa possibilidade, diz Sócrates:
437
Sobre a constatação de que o elemento irracional da alma se compraz não com os bens sensíveis, que dão
satisfação ao desejo, mas também com o pesar excessivo e com as emoções fortes e variadas, ver PLATÃO.
República, 604d-605a, 605c-606d.
438
Ver última passagem citada.
122
439
Mas, quando, penso eu, um homem for, de acordo com a sua natureza, um artífice ou
negociante qualquer, e depois de exaltado pela sua riqueza, pela multidão, pela força, ou
por qualquer outro atributo desse nero, tentar passar para a classe dos guerreiros, ou
um guerreiro para a classe dos chefes os guardiões, sendo indigno disso, e forem esses
que permutem entre si instrumentos e honrarias, ou quando o mesmo homem tentar
exercer estes cargos todos ao mesmo tempo, - nesse caso penso que também acharás que
esta mudança e confusão serão a ruína da cidade.
Ora, o que esta passagem parece admitir é que, se houvesse um artesão enriquecido,
considerado pela multidão empobrecida (o elemento mais ―fraco‖ na analogia com a harmonia
musical) o ―mais forte‖ (usando a mesma analogia) e se, por interesses quaisquer, fosse também
aceito como governante pelos ―intermédios‖ quanto à riqueza e pelos outros ricos, interessados
em estabilidade política, então haveria na cidade temperança, mas não justiça, que, tendo a
polis no lógos como modelo, só cabe o governo a quem tem a epistéme da boa deliberação.
Não é por outra razão que esse intercâmbio de funções, hipoteticamente admitido, será
qualificado como o maior prejuízo para a cidade e como uma injustiça
440
.
O que essa passagem mostra claramente é que não era sem razão o embaraço de
Sócrates diante da necessidade de identificar a temperança na cidade. A razão é que
simplesmente ainda não havia os elementos necessários para responder perguntas fundamentais
para que se compreenda a temperança na cidade no lógos: quem são os melhores e piores,
governantes e governados, os graus em que se diferenciam, e quais as condições de possibilidade
de que haja uma consonância entre eles sobre quem deve governar.
Ainda que Sócrates tenha introduzido o elemento da consonância entre melhores e piores
sobre quem deve governar, é preciso que não se ponha toda a ênfase na consonância, mas se
atente também sobre quem são os melhores e piores, e qual o fundamento e condição de
possibilidade de sua consonância.
Como mais uma repercussão imediata da entrada em cena da justiça, é preciso notar que,
ao retomar as virtudes da cidade no lógos, e não de qualquer outra, como aquela em que o artesão
pode, mediante acordo, assumir o poder, e se perguntar qual delas, pela sua presença, faz que a
cidade seja boa, afirma Sócrates:
439
PLATÃO. República, 434a9-b7.
440
PLATÃO. República, 434a-c.
123
441
Mas na verdade prossegui eu se fosse preciso julgar qual dessas qualidades, pela sua
presença, faz com que a nossa cidade seja boa, seria difícil de distinguir se era a
concordância de opiniões [homodoxía] dos governantes e dos governados, se a
preservação, mantida entre os guerreiros [stratiótais], da opinião legítima acerca do que
se deve ou não recear, ou a sabedoria e vigilância existentes nos chefes, ou se a que a
torna mais perfeita é a presença, na criança, na mulher, no escravo, no homem livre, no
artífice, no governante, no governado, da noção de que cada um faz o que lhe pertence, e
não se mete no que é dos outros.
Ao caracterizar a temperança, Sócrates usou a expressão homodoxía entre governantes e
governados, e não consonância entre governantes e governados sobre quem deve governar. Os
que consideram que na primeira expressão está implícita a segunda deveriam se perguntar se com
essa nova expressão Sócrates está apontando para o fundamento que torna inteligível a
consonância, o qual, até aqui, faltava.
O fundamento dessa consonância, defender-se-á aqui, só pode ser uma educação primária,
pela mousiké e gymnasti, comum a todos os cidadãos que justifique, finalmente, que a primeira
imagem da temperança na cidade no lógos tenha sido a de uma symphonía.
O problema, porém, o parece se limitar a sophía, à coragem e à temperança, mas
também diz respeito à concepção de justiça na cidade, a qual também não pode ser considerada
estabelecida para além de qualquer dúvida.
Tendo estabelecido que a troca de funções entre as classes seria o maior prejuízo para a
cidade e se identificaria com a injustiça
442
, Sócrates pergunta se o inverso não seria a justiça:
443
441
PLATÃO. República, 433c-d.
442
PLATÃO. República, 4434a.
443
PLATÃO. República, 434c7-11.
124
Por conseguinte, é isso a injustiça. E agora digamos a inversa: se a classe dos
negociantes, auxiliares e guardiões se ocupar de suas próprias tarefas, executando cada
um deles o que lhes compete na cidade, não se verificaria o contrário do caso anterior, a
existência da justiça, e isso não tornaria a cidade justa?
Diante da resposta afirmativa de Gláucon e considerando-se que haviam declarado ter
encontrado a justiça na cidade, não deixa de ser surpreendente que Sócrates manifeste dúvida:
444
Não o afirmemos com toda a segurança, mas se reconhecermos que esta concepção,
passando a cada indivíduo em particular, também será justiça, já concordaremos
pois porque não o diremos? Caso contrário, então examinaremos qualquer outra questão.
Mas agora, levemos a cabo esta investigação, da qual pensávamos que, se tentássemos
contemplar a justiça num de seus maiores possuidores, antes de a vermos aí, se tornaria
mais fácil vê-la num indivíduo. E pareceu-nos que tal possuidor era a cidade, e assim
fundamos uma o melhor possível, perfeitamente cientes de que a justiça estaria nela, se
fosse boa. Aquilo que se nos revelou, vamos transferi-lo para o indivíduo, e se se
acertar, bom será. Mas se a justiça se manifestar como algo diferente no indivíduo,
regressaremos novamente à cidade, para tirar a prova, em breve, comparando-as e
friccionando-as uma contra a outra, como de uma pederneira, faremos saltar a faísca da
justiça. E, depois de ela ter se tornado bem visível, fixá-la-emos em nós mesmos.
O que Sócrates parece admitir aqui é que a aceitação da concepção de justiça como a
virtude pela qual cada classe na cidade executa sua tarefa depende de que se compreenda o que é
a justiça no indivíduo, ou seja, depende de uma concepção de homem.
Ora, se uma cidade é constituída de homens e esses homens terão de ser alguns sábios,
alguns corajosos, e alguns ou todos temperantes e justos, então compreender as dimensões nos
homens nas quais podem residir essas dynámeis é fundamental para que se compreenda a cidade
que se fundou e saber se aquela educação pode fazer o efeito que disseram que podia.
444
PLATÃO. República, 434e-435a.
125
A questão que se coloca é sobre que tipo de naturezas e de que forma a educação poderia
produzir a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça.
Talvez a cidade ainda não possa ser vista com clareza e talvez seja preciso tomar em
consideração homens e cidade, nessa ordem, para se ver plenamente de que cidade se está
falando.
Esse tipo de exigência parece estar indicada no que diz respeito à temperança, pois, se
nos casos da sophía e da andréia, Sócrates pôde olhar para a cidade para encontrá-las e, mesmo
assim, incompletas, no caso da temperança, teve de partir do modelo da alma para enxergá-la na
cidade.
A justiça também pode ser encontrada friccionando-se homem e cidade, e o homem
parece ter um papel determinante. Se, por um lado, a justiça é a dýnamis que produz e mantém as
outras virtudes, por outro lado, se estas virtudes não se fazem presentes, então a justiça não
existe, pois delas dependem érga específicos que precisam ser desempenhados (práttein) para
que a justiça exista plenamente.
Porém, essas virtudes dependem de homens para estarem presentes. Homens nos quais se
manifestem através de um processo de educação, dynámeis específicas que os habilitem para
érga específicos.
Neste sentido, é preciso compreender a alma.
4.2 As virtudes na alma
Ao introduzir a discussão sobre a alma, Sócrates propõe que se concorde que em cada
homem estão presentes os mesmos elementos (eíde) e caracteres (éthe) que em uma cidade: a
irascibilidade (thymoeidés), o amor ao saber (philosophía) e o amor à riqueza (philokhrématon),
pois as cidades não poderiam ser assim qualificadas senão em vista dos indivíduos que as
compõem
445
.
Assim, seria com a irascibilidade dos trácios e cítios, ou com o gosto pelo saber dos
atenienses, ou o amor às riquezas, no caso de fenícios e egípcios
446
.
445
PLATÃO. República, 435e. Note-se que aqui se fala de cidades genéricas e é por isso que se pode, a seguir, dar
um exemplo concreto.
446
PLATÃO. República, 435e-436a.
126
É preciso atentar para o fato de que, pelo que foi estabelecido por Sócrates, haver estados
irascíveis, amantes do saber e amantes da riqueza não permite estabelecer que todos os indivíduos
nesses estados têm a mesma natureza.
Ora, poderia dar-se o caso de que, por exemplo, a maioria dos indivíduos da Trácia fosse,
por natureza, irascível, e que parte da minoria fosse amante do saber e a outra parte, amante das
riquezas. Ainda assim, seria considerado um estado irascível, mas isso não excluiria que estes
indivíduos, predominantemente irascíveis, também abrigassem em si um elemento amante da
sabedoria e outro amante das riquezas. O que está subentendido no argumento de Sócrates,
portanto, é que na Trácia uma maioria, ou uma minoria, que se destaca e representa o estado,
que tem naturalmente desenvolvida ou desenvolveu sua natureza irascível a ponto de valer o
nome de irascível ao estado, mesmo tendo em si as outras espécies e caracteres.
Assim, a irascibilidade da Trácia não depende de um caráter exclusivamente irascível
daqueles pelos quais é nomeada irascível, mas de que neles o caráter irascível seja predominante.
Que em cada homem estejam presentes os mesmos elementos (eíde) e caracteres se
confirmará pela análise que Sócrates fará em seguida para estabelecer se aquelas três qualidades
que existem nas cidades, e que devem existir nos homens, existem em elementos diferentes da
alma.
Essa análise será esclarecedora e partirá da experiência comum dos homens de
experimentarem em si as três dimensões atuando.
Ocorre que Sócrates indicou que, embora os homens possam ter naturezas em que
predominem uma ou outra espécie ou caráter, algum outro elemento que pode, guardados
certos limites, influir no desenvolvimento ou atenuação dessa natureza
447
.
Começando pelo reconhecimento de três tipos de ação (práttomen) no homem, Sócrates
propõe-se a examinar se ele executa cada ação por efeito do mesmo elemento ou se executa cada
ação por meio de um. As ações em questão são: compreender (manthánomen), irritar-se
(thymoúmetha) e desejar (epithymoûmen)
448
.
Partindo do princípio de que:
447
Sobre a influência da mousiké e da gymnastiké no desenvolvimento ou atenuação de certos elementos no homem,
ver PLATÃO. República, 410b-412a.
448
PLATÃO. República, 436a-b.
127
449
[...] o mesmo sujeito não pode, ao mesmo tempo, realizar e sofrer efeitos contrários na
mesma de suas partes e relativamente à mesma coisa [...].
é pela constatação de que isso ocorre, quando desejamos algo e deliberamos por não atender ao
desejo, que conclui que é por elementos distintos que desejamos e deliberamos
450
.
Ao primeiro, pelo qual desejamos, e que impele a dar satisfação aos desejos, chama
epithymetikón e àquele pelo qual se raciocina e que, às vezes, impede a satisfação de certos
desejos, de logistikón
451
.
Ao epithymetikón, Sócrates liga os chamados prazeres sensíveis, da comida, bebida, do
sexo e o chama de elemento irracional e da concupiscência
452
.
O exemplo que Sócrates usa para ilustrar a relação dos dois elementos é o do homem que
deseja beber e que se recusa a fazê-lo. Identifica então um conflito entre um elemento que nele
impele a beber e outro que impede, o qual, quando surge, provém do elemento da razão
calculativa (logismós), enquanto o que impele deriva de afecções e doenças (diá pathemáton te
kaì nosemáton paragígnetai)
453
.
O que está implícito no exemplo é que, sendo o desejo sempre desejo de um bem
454
, no
caso, o bem sensível, que é a bebida que matará a sede, algo que impele a beber e algo que
impede. Se o que impede provém da razão calculativa, significa que esta foi capaz de identificar
um bem maior em não beber e que uma alma doente se sentiria compelida a algo que é pior,
talvez pela sua incapacidade mesma de, em uma hierarquia de valores, reconhecer o que é melhor
ou pior, pelo menos com a força necessária para que esse ―conhecimento‖
455
determine que não
se deseje o pior.
Nesse conflito entre o elemento que deseja e o elemento que raciocina, se o bem que
em não beber, e que pode ser um bem abstrato, não for, patentemente, para o indivíduo um bem
maior, há que se admitir que a tendência de vitória do elemento que deseja reside em que os bens
449
PLATÃO. República, 436b8-9.
450
PLATÃO. República, 439c.
451
PLATÃO. República, 439c-d.
452
PLATÃO. República, 439d.
453
PLATÃO. República, 439c-d.
454
PLATÃO. República, 438a2-4.
455
As aspas se justificam porque, como se defenderá adiante, esse conhecimento, cuja sede é o logistikón, pode não
ser de natureza calculativa‖, mas simples opinião verdadeira sobre o que vale mais ou sobre o que se deve temer
mais.
128
sensíveis são imediatamente perceptíveis como bens, à medida que sempre saciam os desejos
sensíveis a eles relacionados.
É esse reconhecimento imediato dos bens sensíveis como bens que confere tanta força aos
argumentos da maioria, aduzidos por Trasímaco e depois por Gláucon e Adimanto, e só a
admissão de um tipo de educação que seja capaz de levar os indivíduos a reconhecerem outros
valores, acima dos sensíveis, como preferíveis, a ponto de determinar o curso das escolhas e da
vida, pode estabelecer as premissas necessárias para refutar o discurso da maioria
456
.
Porém, uma educação assim, caso exista, pode agir sobre homens e, mais ainda, sobre
certas dimensões desses homens que precisam ser plenamente reconhecidas tanto quanto à sua
existência e função, quanto às relações que comportam.
Se os bens sensíveis aparecem imediatamente à consciência como bens, é papel da
educação apresentar outros bens à consciência como bens patentemente superiores, de modo a se
estabelecer na alma uma hierarquia de bens.
Não parece supérfluo que Sócrates, logo antes, a caminho de estabelecer que o desejo é
sempre desejo de um bem, tenha ilustrado, analogicamente, a especificidade dos desejos tomando
como exemplo a especificidade das ciências, e que tenha tomado como exemplos principais a
medicina e uma ―ciência do bem e do mal‖
457
.
456
Note-se que é esse papel mesmo que Adimanto confere à educação, reclamando, entretanto, que na educação
tradicional encontra, antes, o contrário, ou seja, o encaminhamento para a escolha da injustiça. A injustiça, no
contexto de seu argumento, representaria a opção pela posse o mais ilimitada possível dos maiores bens, que seriam
os sensíveis. Cf. seção 2.3.2.
457
(
) PLATÃO. República, 438d11-e8.
A caminho de estabelecer que são distintos os elementos logistikón e epithymetikón, menciona ao lado da medicina,
uma ciência do bem e do mal: ―Confessa pois disse eu se agora percebeste, que era isso que eu então queria
dizer, que todas as coisas que m determinadas qualidades relativamente a um objeto, por si, apenas consigo se
relacionam; se em relação a objetos determinados, tornam-se coisas determinadas. E não digo que o que se relaciona
com certo objeto seja semelhante a esse objeto, como, por exemplo, que a ciência da saúde e da doença seja saudável
ou doentia, e a ciência do mal e do bem ou boa. Mas, uma vez que a ciência já não é ciência em si, mas de um
objeto determinado o qual era a saúde e a doença resultou uma ciência determinada, e isso fez com que já não se
chamasse simplesmente ciência, mas ciência médica, segundo a espécie particular em que se tornou‖.
129
Essa ciência que no Laques e no Cármides
458
parece estar na base da virtude poderia ser
na República identificada como a única que permite a boa deliberação sobre o que é melhor ou
pior para a cidade e alma tanto na parte quanto no todo e estaria na base da phylakiké, entendida
como a epistéme do governante.
A menção à medicina também encontra ressonância na concepção segundo a qual a
injustiça é um estado patológico
459
e naquela pela qual é identificado com um estado doentio
aquele em que uma força que impele a beber compete com uma que impede, considerando o que
é melhor
460
.
Ora, o que está implícito em toda a discussão é que, se uma razão que impede, um
mal ou bem menor em beber e um bem maior em não beber. Se o elemento na alma capaz de
reconhecer esse bem maior estiver muito atrofiado (sem trophé) e o que deseja, muito
hipertrofiado e superabundante, a ponto de não deixar o outro se desenvolver, subvertendo a
relação de governante e governado, o que se instala na alma será a injustiça compreendida como
doença
461
.
Separados dois elementos na alma e considerados distintos o logistikón, pelo qual se
raciocina, e o epithymetikón, pelo qual a alma deseja resta a Sócrates examinar se o elemento
pelo qual o homem se irrita pode ser considerado um terceiro ou se confunde com algum dos
outros
462
.
Diante da afirmação de Gláucon de que talvez o elemento que se irrita seja da mesma
natureza do epithymetikón, Sócrates conta a história do conflito que se deu com Leôncio, que viu
em seu caminho cadáveres que jaziam perto de um carrasco. Segundo a narrativa de Sócrates,
Leôncio:
458
Embora em ambos os diálogos tenha-se chegado a supor que a virtude envolve o conhecimento do bem e do mal e
essa tese conduza à aporia, não se deve ver na própria tese a causa da aporia, mas, antes, deve-se vê-la na
incapacidade dialética dos interlocutores de Sócrates de integrá-la na sua própria concepção de virtude. A retomada
da menção a essa epistéme na República sugere a necessidade, para o leitor daqueles diálogos, de lançar um olhar
mais atento sobre a possibilidade de recuperar a epistéme sobre o bem e o mal como essencial para se entender o
conceito mais amplo de virtude que propõem os diálogos de Platão. Para o momento em que no Laques e no
Cármides se menciona o conhecimento do bem e do mal como parte da discussão sobre a virtude, ver,
respectivamente, PLATÃO. Laques, 198d-199d e rmides, 174c-e.
459
PLATÃO. República, 444c-e
460
PLATÃO. República, 439c-d.
461
PLATÃO. República, 444c-e. Sobre a superabundância do elemento ―pior‖ da alma e sua relação com a
educação, ver PLATÃO. República, 431b.
462
PLATÃO. República, 439e.
130
[...]
463
[...] teve um grande desejo de os ver, ao mesmo tempo que isso lhe era insuportável e se
desviava; durante algum tempo lutou consigo mesmo e velou o rosto; por fim, vencido
pelo desejo abriu muito os olhos e correu em direção aos cadáveres, exclamando: ―Aqui
tendes, gênios do mal, saciai-vos deste belo espetáculo‖.
Sócrates toma a história como sendo ilustrativa do caso em que a cólera luta contra os
desejos, como sendo coisas distintas. Acrescenta que em muitas ocasiões sentimos que, quando
os desejos forçam o homem contra a razão, ele:
[...]
464
[...] se censura a si mesmo e se irrita com aquilo, que dentro de si o força, e que, como se
houvesse dois contendores em luta, a cólera se torna aliada da sua razão.
Acrescenta que não crê que em uma alma bem ordenada a cólera se associe ao desejo
contra o que a razão determina, mesmo no caso extremo de se estar sendo punido justamente e
submetido a sofrimentos.
Essa é uma afirmação forte, pois os sofrimentos de que fala são contrários ao prazer, que
é o objeto dos desejos sensíveis e que são tomados imediatamente como bens. Ora, aquele que é
punido e submetido a sofrimentos, é submetido a ―males‖ contrários aos prazeres, que são bens,
mas os suporta quando sofridos com justiça sem que nasça daí a ira
465
. Sobre o que ocorre no
caso contrário, em que a pessoa se considera vítima da injustiça, e, portanto, julga receber um
mal que é indefensável pela razão, diz Sócrates:
466
E agora, se uma pessoa se considerar vítima de uma injustiça? Acaso não ferve e se irrita
e luta do lado que entende justo quer passe fome, quer frio, e todos os sofrimentos
463
PLATÃO. República, 439e9-440a3.
464
PLATÃO. República, 440b1-4.
465
PLATÃO. República, 440c.
466
PLATÃO. República, 440c7-d3.
131
dessa espécie, aguentando firme; e vence, sem desistir da sua nobre indignação antes de
executar seu propósito ou morrer, ou de ser chamado e acalmado pela razão que nele
existe como um cão pelo seu pastor?
Com o acordo de Gláucon, Sócrates conclui que o elemento irascível fica do lado da razão
quando conflito entre ela e os desejos e com isso consegue estabelecer não que são três os
elementos da alma como também que são distintos e como se relacionam
467
.
O que é interessante sobre essas passagens é que explicam a necessidade que Sócrates
teve de relacionar a classe produtiva da cidade, quando tratava da justiça aí, com uma classe
negociante (khrematistikós)
468
. A identificação parece injusta
469
, visto que a função da classe
produtiva não se confunde com a arte de obter ou lidar com riquezas no sentido de ser ávida pelo
ganho como o nome pode sugerir, mas, antes, se relaciona com a produção do que é estritamente
necessário para a boa vida na cidade, fazendo-o da maneira mais bela e perfeita possível
470
.
Por outro lado, como o elemento epithymetikón é, por natureza, ligado aos prazeres
sensíveis e Sócrates liga a riqueza aos prazeres sensíveis
471
, então faz sentido para que a analogia
entre alma e cidade funcione que a classe produtiva seja relacionada à riqueza e, por conseguinte,
aos prazeres.
A corroborar a analogia, está a caracterologia humana proposta por Sócrates no livro IX, a
qual classifica os homens, segundo a natureza, como amantes do ganho ou de riquezas, amantes
de honra e amantes da sabedoria
472
.
Porém, mesmo diante dessas analogias, é necessário ter o cuidado de não dar o passo de
identificar a classe produtiva na pólis construída com o lógos como fundamentalmente amante de
riquezas
473
.
467
PLATÃO. República, 440e-441c.
468
Cf. PLATÃO. República, 434a-c. Note-se que nessa passagem Sócrates refere-se à classe dos artesãos como
―negociante‖ (khrematistikós).
469
Sobre esse ponto, estava estabelecido por Sócrates, desde a discusão com Trasímaco, que quem possui uma
tékhne, enquanto possuidor da tékhne, não visa ao lucro. Cf. PLATÃO. República, 342d. Note-se ainda que a riqueza
é considerada deletéria para os artesãos e esse é um dos motivos pelos quais é excluída da cidade. Cf. PLATÃO.
República, 421b-422a.
470
Sobre os artesãos da cidade serem caracterizados como artífices que devem atingir a perfeição na sua função, ver
PLATÃO. República, 374b-c.
471
PLATÃO. República, 580d-581a.
472
PLATÃO. República, 581c.
473
Trata-se de um erro fundamental na interpretação de Reeve e na de Strauss, que compromete a compreensão de
ambos da República. Como consequência, o primeiro chama os artesãos de money-lovers e o segundo, de money-
makers. Cf. REEVE, 1988, p. 170-234 e STRAUSS, 1978, p. 50-138.
132
O passo mais seguro seria dizer que, dentre as classes da cidade, uma é composta por
homens nos quais, por natureza, predominaria o amor à riqueza (ou o elemento concupiscente),
enquanto uma outra é composta por homens nos quais, por natureza, predominaria o amor das
honras (ou o elemento irascível), havendo ainda uma outra composta de homens nos quais, por
natureza, predominaria o amor ao saber (ou o elemento racional).
Os homens concretos, entretanto, são o resultado da síntese entre natureza e paideía e se,
no primeiro caso, o amor à riqueza e, consequentemente, aos prazeres, é a tendência natural, não
quer dizer que não possa ser ―esvaziada‖ por uma educação que desestimule esses valores e
estimule outros, honrando-os.
Ora, quem tem uma natureza predominantemente concupiscente não deixa de ter na alma
um elemento que é amante da honra e que se associa ao que é honrado. Da mesma forma, os
homens predominantemente amantes da honra ou do saber não deixam de ter um elemento
concupiscente que é necessário conter pela educação, a qual pode não retirar do horizonte de
experiência os prazeres que hipertrofiam esse elemento como se aproveitar do amor à honra
prevalente para, honrando a adesão a determinados valores, torná-la cada vez mais firme, como
um tinto indelével
474
.
Parece que é aí que reside a pedra de toque da educação da República. Enquanto a
educação para a sophía e para a coragem envolve uma trophé, com conteúdos que são
adicionados, a educação para a temperança parece envolver também um esvaziamento e uma
retirada do horizonte daquilo que possa superestimular os prazeres, não físicos como
psíquicos
475
.
Assim, a paideía-trophé se alimentando os elementos logistikón e thymoeidés da alma
com ciências e belos discursos que inculcam valores aos quais é associada a honra
476
. Essa
associação da honra com os valores que se quer inculcar no elemento logistikón torna seu aliado
na preservação desses valores o elemento thymoeidés, pois a honra associada a eles os torna mais
firmemente desejados também por esse elemento da alma, a qual passa a rejeitar o rompimento
com esses valores.
474
Como se verá na descrição do que significa a coragem na cidade. Cf. PLATÃO. República, 429d-430b.
475
Esse argumento corrobora a refutação do argumento número 3, de Reeve, elencado na introdução, e concorre para
a refutação do argumento número 8.
476
Sobre a mousiké e a gymnastiké servirem a esses dois elementos da alma, ver PLATÃO. República, 410b-412a.
133
Por outro lado, uma paideía ―atrofiante evita que se desenvolvam certos prazeres
sensíveis e outros ―prazeres emocionais‖ ligados a eles, como a autopiedade, o desgosto
excessivo e a sede de lágrimas
477
. Essa paideía ―atrofiante‖ se ou pela supressão do horizonte
de experiência de certos prazeres desnecessários ou pela sua desvalorização e desonra, a qual
pode se dar pela valorização e honra dos valores contrários.
As restrições quanto à alimentação, que, no âmbito da educação proposta, sofrem
expurgos apontam claramente para isso. O mesmo se em relação ao sexo e aos ―prazeres
emocionais‖ promovidos pelo tipo de poesia que é excluída da cidade.
Que essa relação da educação com a ordenação dos elementos presentes na alma seja vital
fica claro pela passagem seguinte, na qual Sócrates diz que podem concluir que, tal como a
cidade, a alma se compunha de três classes: a negociante, a auxiliar e a deliberativa:
[...]
[...]
478
[...] também na alma à terceira servia este elemento irascível, auxiliar do racional por
natureza, quando não foi corrompido por uma má educação [...].
Conforme o que se vem dizendo até aqui, essa corrupção do elemento irascível se dará
pela educação, a qual não estabelece uma hierarquia de valores sobre o que se deve e o que
não se deve honrar (ou temer) ou a estabelece equivocadamente
479
. Nesses casos, pode-se honrar
apenas o que imediatamente aparece como bem, ou seja, os prazeres sensíveis, sendo qualquer
privação deles fonte de irritação.
Em um caso assim, mesmo o homem que errou e é punido irrita-se, pois é privado de
prazeres e submetido a desprazeres relacionados com a punição que recebe.
477
Sobre esse tipo de prazer, ver PLATÃO. República, 605c-607a.
478
PLATÃO. República, 441a2-3. Nesta passagem, Sócrates volta a usar o termo khrematistikós para referir-se a
uma das três classes da cidade. Porém, mais uma vez, não se deve entender que com isso ele esteja afirmando que a
classe dos artesãos da cidade no lógos é voltada para o lucro. Assim como na passagem anterior, na qual o termo
ocorre (434c7-11), referia-se a uma cidade genérica, e não à ―sua‖ cidade, também aqui, para que funcione a
analogia com a alma que está em questão, Sócrates toma a ―terceira‖ classe de uma cidade como a classe ―apetitiva‖.
Note-se, entretanto, que, na própria passagem, ele apresenta a possibilidade de um ―segundo elemento‖ da alma, o
irascível, não tornar-se aliado de um ―primeiro elemento‖, o deliberativo. Essa possibilidade se dará no caso de
este elemento irascível, por uma educação, tornar-se aliado do elemento apetitivo. crates precisa do termo
khrematistikós para tornar plausível a analogia. Ademais, não se pode negar que a classe dos artesãos tem o elemento
apetitivo mais forte por natureza. O que se defende aqui é que a classe dos artesãos da cidade no lógos, sendo
educada, é o resultado da síntese de natureza e educação e, portanto, depois de educada, não pode mais ser chamada
de amante das riquezas, a não ser que com isso se queira dizer ―aquela classe que por natureza seria amante das
riquezas‖.
479
Como denuncia o discurso de Adimanto.
134
Seria o que aconteceria, caso se invertesse o exemplo dado por Sócrates da relação
saudável entre os elementos da alma, quando o irascível se alia à razão
480
. Naquele caso, o
homem que é punido justamente não se indigna nem se irrita com a punição. Se se imagina, por
outro lado, um homem que, tendo cometido uma injustiça, é punido com sofrimentos e privado
de prazeres, este, se não fosse capaz de reconhecer valores outros que não os sensíveis, não
aceitaria ser privado deles sem indignação se não vislumbrasse nos valores com os quais rompeu
bens superiores que precisam ser honrados e preservados e por cujo rompimento precisa ser
punido.
Nesta psicologia apresentada por Sócrates, a indignação do elemento thymoeidés se alia a
valores ou a bens aos quais este foi apresentado associados à honra. Se a alma foi apresentada
a valores sensíveis e se só estes são honrados em seu meio, o elemento thymoeidés alia-se a eles,
como de resto ficará claro pela afirmação de Sócrates no livro VIII: ―Mas busca-se o que é
sempre honrado, e descura-se o que não é‖ (
)
481
.
Continuando a análise da alma, Sócrates e os interlocutores também estabelecem que o
irascível se distingue do racional, pois a irascibilidade está presente nas crianças sem que tenham
desenvolvido a razão e até nos animais selvagens. Além disso, toma-se o testemunho de um verso
de Homero, no qual o elemento que raciocinou sobre o que é melhor e o que é pior repreende
aquele que se irritou sem razão
482
.
Tendo concordado que na cidade e na alma do indivíduo as mesmos elementos e em
número igual, Sócrates propõe, sem contestação, que é necessário que o indivíduo seja sábio
naquilo mesmo que o é a cidade
483
.
E pergunta ainda:
484
E que naquilo em que o indivíduo é corajoso, e da mesma maneira, assim o seja também
a cidade, e que em tudo o mais que à virtude respeita, ambos se comportem do mesmo
modo?
480
PLATÃO. República, 440c-d.
481
PLATÃO. República, 551a4-5.
482
PLATÃO. República, 441a-c.
483
PLATÃO. República, 441c.
484
PLATÃO. República, 441d1-3.
135
Diante do assentimento de Gláucon, Sócrates passa à justiça, sem nomear a temperança:
―Logo, segundo julgo, ó Gláucon, diremos que o homem justo o é da mesma maneira que a
cidade é justa‖ (
)
485
.
A cidade, lembra Sócrates, ―[...] era justa pelo fato de cada um executar nela a sua tarefa
específica, em cada uma das suas três classes.‖ ([...]
)
486
.
Assim, estabelece que também em cada homem haverá justiça se ele executar o que lhe
cumpre quando, nele, cada um de seus elementos desempenhar a sua tarefa
487
.
Por que Sócrates não citou nominalmente ainda a temperança? Mais uma vez parece que
precisa voltar às relações que existem na alma e as reafirmar antes que possa afirmar que a
temperança na cidade será como na alma.
Nesse ponto, e nos trechos a seguir, também fica claro o papel da educação na formação
dos elementos racional e irascível e a omissão de referência à intervenção que ―eduque‖ o
elemento apetitivo.
Sócrates, então, pergunta:
488
Portanto, não compete à razão governar, uma vez que é sábia e tem o encargo de velar
pela alma toda, e não compete à cólera ser sua súdita e aliada?
Diante do assentimento de Gláucon, complementa:
485
PLATÃO. República, 441d5-6.
486
PLATÃO. República, 441d8-10.
487
PLATÃO. República, 441e.
488
PLATÃO. República, 441e4-6.
136
489
Ora, não é, como dissemos, uma mistura de música e ginástica que harmonizará essas
partes, uma, fortalecendo-a e alimentando-a com belos discursos e ciência, outra
abrandando-a com boas palavras, domesticando-a pela harmonia e pelo ritmo?
Estabelecida essa trophé dos elementos logistikón e thymoeidés e, tendo tido, mais uma
vez, assentimento, Sócrates prossegue:
490
E estas duas partes, assim criadas [trophé], instruídas e educadas de verdade no que lhes
respeita, dominarão o elemento concupiscível (que, em cada pessoa, constitui a maior
parte da alma e é, por natureza, a mais insaciável de riquezas) e hão de vigiá-lo, como
receio que ele, enchendo-se dos chamados prazeres físicos, se torne grande e forte, e não
execute a sua tarefa, mas tente escravizar e dominar uma parte que não compita à sua
classe e subverta a vida do conjunto.
Essa última passagem tem claras ressonâncias com aquela em que, hipoteticamente,
Sócrates fala da possibilidade de um artesão, inflado por sua riqueza, querer tomar o poder
491
e
que poderia simbolizar o domínio do elemento epithymetikón sobre os outros e indica duas
coisas: embora não haja menção explícita a uma educação que vise tornar possível a temperança,
ela está implícita, uma vez que o domínio do logistikón e do thymoeidés é que estabelecerá em
que medida poderá ser vivido o prazer.
Se a temperança não pode ser incluída quando se fala dos efeitos de uma trophé, é porque,
ao contrário dos outros elementos, o epithymetikón não recebeu uma trophé. Pelo contrário, ele
foi esvaziado.
Ora, se entendemos que o governante-legislador é que determina os tipos de prazeres que
poderão ser vivenciados na cidade, tendo em vista não criar homens em que o elemento apetitivo
da alma se torne superabundante, então esse tipo de educação dos desejos, que não é trophé, mas
restrição (a-trophé), é complemento necessário da educação e está implícito tanto na música
489
PLATÃO. República, 441e8-a2.
490
PLATÃO. República, 442a4-b3.
491
PLATÃO. República, 434a-c.
137
quanto na ginástica, que em ambas restrições que visam não hipertrofiar os desejos. Ora,
mesmo que a paideía pela mousiké e gymnastiké fossem só para os guardiões, eles estariam tendo
esse elemento concupiscente também educado nesse sentido. A questão é se não seria necessário
e útil que isso se desse com todos.
Ainda refletindo sobre a relação entre os elementos que foram alimentados e educados, o
racional e irascível, Sócrates pergunta:
[...]
492
[...] não guardarão elas melhor toda a alma e o corpo, mesmo dos inimigos externos
sendo uma dessas partes a deliberar e outra a combater, obedecendo ao comando e
executando com coragem as ordens?
É com base nessas relações estabelecidas entre os elementos da alma que Sócrates pode,
então, estabelecer o que é a coragem no indivíduo:
493
Ora nós denominamos um indivíduo corajoso, julgo eu, em atenção à parte irascível,
quando essa preserva, em meio de penas e prazeres, as instruções fornecidas pela razão
sobre o que é temível ou não.
Define também a sophía no indivíduo:
494
E denominamo-lo de sábio, em atenção àquela pequena parte pela qual governa o seu
interior e fornece essas instruções, parte essa que possui, por sua vez, a ciência do que
convém a cada um e a todos em conjunto, dos três elementos da alma.
Ainda sobre o indivíduo, pergunta:
492
PLATÃO. República, 442b5-9.
493
PLATÃO. República, 442b11-c3.
494
PLATÃO. República, 442c5-8.
138
495
E agora? Não lhe chamamos temperante, devido à amizade e harmonia desses
elementos, quando o governante e os dois governados concordam que é a razão que deve
governar e não se revoltam contra ela?
É preciso notar que, embora a definição de temperança, a qual é estendida por Gláucon
para o indivíduo sem nenhum reparo de Sócrates, volte a enfatizar a consonância sobre quem
deve governar, introduz a amizade (philía) entre os elementos componentes e pode ser tomada
como um indício daquele elemento que fundamenta a consonância (symphonía) pela qual se
estabelece a temperança na cidade e que pode ser uma paideía pela mousiké e gymnastiké que
se estenda a todas as suas classes.
Se amizade‖ entre os elementos da alma é porque o elemento epithymetikón da alma
não se revolta contra o logistikón ou contra o thymoeidés e isso só pode ser assim porque não tem
desejos cuja urgência veja reprimida por eles. O que se chama aqui de ―educação a-trophé‖, que
não permite a hipertrofia dos apetites, tem um papel fundamental na promoção dessa amizade e
harmonia tanto na alma como na cidade, uma vez que os homens da cidade têm uma alma onde
essas forças estão em jogo.
Embora tenha definido antes a justiça na alma como a virtude pela qual cada elemento
desempenha sua tarefa sem interferir nos outros e agora lhe baste reafirmá-la, Sócrates, depois de
tratar da temperança, sente-se compelido a voltar a tratar da justiça e propõe firmá-la
confrontando-a com testes que são lugares-comuns e banais
496
.
O que Sócrates deseja deixar estabelecido é que o homem que tenha uma alma justa não
irá roubar, trair, faltar com a palavra em acordos ou juramentos, não cometerá adultério, nem
faltará com o cuidado devido aos pais ou com o culto aos deuses, tudo isto tendo em vista que
nele cada elemento da alma executa sua tarefa própria no que diz respeito a governar e ser
governado
497
. Tendo estabelecido, com o assentimento de Gláucon, que esse homem estará isento
495
PLATÃO. República, 442c10-d1.
496
PLATÃO. República, 442d-e. Ponto também notado por Shorey: ―The transcendental or philosophical definition
is confirmed by vulgar tests. The man who is just in Plato´s sense will not steal or betray or fail in ordinary duties.‖
Cf. SHOREY, 1994, p.410.
497
PLATÃO. República, 443a-b.
139
de todas essas falhas, Sócrates pode concluir que não é outra coisa senão a justiça a dýnamis que
produz homens e cidades justos
498
.
Tendo se visto na necessidade de confirmar que a justiça na alma é o mesmo que na
cidade, Sócrates toma como exemplo atitudes comuns de um homem justo do ponto de vista
cívico e estabelece que estas se devem à justiça na sua alma.
Ora, não será difícil defender que essas atitudes citadas devem ser características de todos
os cidadãos da polis no lógos, e, se é assim, todos devem ser, em uma certa medida, homens com
uma alma justa.
Sócrates poderia ter ―friccionado‖ a alma do homem justo com a cidade no lógos fazendo
referência a alguém que, como o governante, tenha uma epistéme que o leve a deliberar sobre o
melhor e o pior. Assim, como se defendeu aqui que na cidade alguém assim pode
―desempenhar‖ plenamente a função do governo, o mesmo poderia dizer-se do homem. Só aquele
com o elemento logistikón plenamente desenvolvido teria na sua alma um elemento governante
que desempenhasse plenamente essa função.
Embora Sócrates, nessa altura, ainda não tenha caracterizado o filósofo, já poderia colocar
em questão a epistéme sobre o que convém e o que não convém a cada um e a todos em conjunto,
dos três elementos da alma, e mencionado na caracterização da sophía na alma. Se usasse um
exemplo assim, Sócrates limitaria a justiça na alma aos que fossem capazes de possuir essa
epistéme.
Ao escolher exemplos de virtude cívica comuns a todos, o que Sócrates parece indicar é
que um grau de justiça na alma que, se não envolve o pleno desenvolvimento da razão, não
deixa de exigir sua atuação como sede de valores aos quais se dará adesão
499
.
Ao escolher esses exemplos de virtude cívica, que se deve esperar de todos, para
caracterizar a alma justa, aponta exatamente para esse tipo de homem que, tendo reconhecido
certos valores e os abrigado em seu elemento logistikón, tem o auxílio do thymoeidés, por terem
sido esses valores associados à honra, e pode perseverar neles, em uma certa medida, não
porque são sólidos mas porque sofrem pouca competição dos bens sensíveis, esvaziados de
honra, desvalorizados e muitos deles sequer experimentados em seus aspectos nocivos.
498
PLATÃO. República, 443b.
499
Para uma passagem esclarecedora sobre essa possibilidade de se considerar o elemento racional, tomado como
diánoia, como sede não só de conhecimento (thema) mas também de ocupações belas e discursos verdadeiros, Cf.
PLATÃO. República, 560b-c.
140
Sobre essas atitudes do ―homem comum‖ que descreveu, pergunta Sócrates:
500
Ora a causa de tudo isso não está em que nele cada elemento executa a sua tarefa
própria, quer no que respeita a mandar, quer a obedecer?
Diante do assentimento de Gláucon, é que conclui que a justiça é a dýnamis que produz
tais homens e cidades
501
.
Caracteriza a seguir a injustiça como sedição dos elementos da alma, uma intriga, uma
ingerência no alheio e uma sublevação de uma parte contra o todo, a fim de exercer nela o poder,
sem lhe pertencer. Atribui ainda a injustiça, a libertinagem, a covardia, a ignorância e, de modo
geral, toda maldade
502
a essas alterações, perturbações e desvios.
Estabelece, então, uma analogia segundo a qual a justiça está para a saúde assim como a
injustiça está para a doença. A justiça será uma espécie de saúde, beleza e bem estar da alma, e a
injustiça uma espécie de doença, enfermidade, fealdade e debilidade
503
.
Tendo-se examinado brevemente a proposta de paideía pela mousiké e gymnastiké
proposta por Sócrates e tendo-se tratado das virtudes na cidade e na alma, pôde-se indicar as
relações da paideía com as virtudes.
Cabe, agora, portanto, propor mais alguns argumentos que concorram para estabelecer a
necessidade da extensão da educação primária a todas as classes, tendo em vista o que foi
estabelecido sobre as classes da cidade e os elementos da alma. O que esses argumentos visarão é
estabelecer mais firmemente que a paideía primária descrita é a condição de possibilidade das
virtudes e do modo de vida que se identificam na cidade, pois estes dependem do ordenamento da
alma dos cidadãos, que é promovido pela paideía primária.
500
PLATÃO. República, 443b1-2.
501
PLATÃO. República, 443b.
502
PLATÃO. República, 444b.
503
PLATÃO. República, 444e.
141
5 A EXTENSÃO DA EDUCAÇÃO
Tendo sido delineada a educação pela mousiké e gymnastiké proposta na República e
considerados os efeitos que produz naqueles que a recebem, o que se viu é que todas as virtudes
fundamentais dependem da educação.
A sophía depende claramente de uma educação superior pelas matemáticas e pela
dialética apresentada explicitamente no livro VII
504
, mas que permeia as discussões anteriores
sobre ―cães-filósofos‖ e ―mousiké filosófica‖, que inclui a filosofia
505
.
A coragem é explicitamente considerada uma namis pela qual se preserva, através de
todas as vicissitudes, a opinião sobre as coisas a temer e que foram estabelecidas pelo legislador
na paideía
506
.
A temperança, embora não dependa de uma trophé, como a sophía e a coragem, não é
menos dependente de uma paideía, que leva muito seriamente em consideração a força dos
desejos e procura colocá-los em uma medida mínima, ou desonrando os excessos e honrando o
comedimento ou, simplesmente, retirando do horizonte de experiência possível os excessos que
levem a uma hipertrofia do elemento apetitivo da alma.
Considerando-se que a sophía, entendida na sua acepção plena, envolve a dýnamis
dialética
507
, pela qual se chega ao conhecimento da Ideia de Bem
508
e que depende de uma vida
de estudos para os quais se tem de ter uma natureza apropriada, é natural que seja atingida por
poucos
509
.
Porém, considerando que todos têm o elemento logistikón na alma, de alguma forma
certos conteúdos lhes serão apresentados como correspondendo ao que é melhor.
É preciso admitir que esse é o caso dos educandos que, mesmo antes de a razão poder
reconhecer estes valores como melhores
510
, já os têm nessa conta. Isso se dá não pela sua
capacidade dialética de encontrar os fundamentos dessa hierarquia de valores, mas porque neles
foram inculcados valores, como quando se ―inculca‖ a tinta em um tecido bem tingido, como
504
PLATÃO. República, 525a-535a.
505
PLATÃO. República, 375a- 376c, 402b-c, 411c-412a, 441e-442b.
506
PLATÃO. República, 429b.
507
PLATÃO. República, 532a-533d.
508
PLATÃO. República, 505a, 532a-b.
509
PLATÃO. República, 428e-429a, 491a-b, 503b.
510
Cf. PLATÃO. República, 401b-402a.
142
crenças sólidas. No caso dos guardiões-governantes e dos guardiões-auxiliares
511
, indeléveis sob
qualquer circunstância, já que a coragem é característica deles e própria a torná-los capazes de
exercer o seu érgon.
Ocorre que será preciso admitir que nem todos esses educandos chegarão a poder
conhecer os fundamentos de sua crença e, portanto, ―conhecer pela razão‖ tem de ter um outro
significado.
O que se propõe aqui é que conhecer pela razão significa ter como conteúdo de
consciência o reconhecimento de um certo valor como bem, a ponto de se poder deliberar, em
face de valor menor ou oposto, que se prefere aquele e ter suas ações e escolhas dirigidas por ele.
Um ponto a considerar é que a dýnamis do elemento logistikón da alma deve admitir
muitos graus: desde a visão da Ideia do Bem, passando pela capacidade dialética elementar, pela
geometria avançada, pela geometria elementar, até chegar à simples capacidade de reconhecer
como bem um certo valor e ser capaz de considerar que há uma hierarquia entre os bens.
Dito de outra maneira, é preciso admitir que, se a alma humana possui um elemento
logistikón, ele está presente em todos os que possuem uma alma humana e que, em todos, esse
elemento possui algum conteúdo. O quanto sua dýnamis poderá ser estendida dependerá tanto da
natureza quando da paideía. Sem uma paideía-trophé, nem mesmo a melhor natureza filosófica
poderia desenvolver a dýnamis dialética avançada nem, por outro lado, toda paideía superior
seria capaz de desenvolvê-la em uma natureza imprópria. Isso parece, sem dúvida, decorrer do
texto da República.
Porém, é importante atentar para essa questão dos graus em que uma namis pode ser
desenvolvida. Sócrates parece chamar atenção para isso, quando, ao definir a justiça, no final do
livro IV, entende que, para que haja justiça na alma, se deve
[...]
[...]
512
[...] ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes, exatamente como se fossem
os três termos numa proporção musical, o mais baixo, o mais alto e o intermédio, e
outros quaisquer que acaso existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os de
muitos que eram, numa perfeita unidade, temperante e harmoniosa [...].
511
Admite-se, obviamente, que também existe a coragem nos guardiões-governantes e que, além dela, eles possuem
também a sabedoria.
512
PLATÃO. República, 443d5-e2.
143
Embora Sócrates esteja aqui falando da alma, essa é uma passagem que segue aquela em
que, tendo definido a justiça na alma, volta à comparação com a cidade
513
. É, portanto, um ponto
do texto no qual o que se diz da alma aplica-se, analogicamente, à cidade.
Na verdade, nada é mais natural do que considerar que dentro das três classes haverá
graus em que as dynámeis próprias possam ser atingidas. Não seria supérfluo evocar novamente a
passagem que anuncia a necessidade da nova classe de guerreiros no livro II, em que se fala
claramente de diferentes graus de philakiké, implicando diferentes graus de skholé, tékhne e
epimeleía
514
.
Não seria necessário, entretanto, recuar tanto, uma vez que a escolha dos que prosseguirão
na educação superior, a partir dos vinte anos, depois do período da ginástica, significa uma
seleção de quem tem, além da coragem em sentido pleno, capacidade para os estudos rigorosos
de matemática. Ora, essa capacidade (dýnamis) teve de ser comprovada pela observação do
desempenho dos educandos nos estudos não sistemáticos de matemática
515
. Porém, além dessa
seleção inicial, é preciso admitir que, entre esse momento e aquele em que alguém poderá
enxergar a Ideia de Bem, há ainda outros.
Assim, só os que mostrarem essa capacidade matemática ao extremo, ao longo dos
estudos superiores, serão conduzidos à dialética. Da mesma forma, essa capacidade matemática
extrema não é garantia de sucesso na dialética ―avançada‖. Um grande ―matemático‖ pode
tornar-se um dialético mediano ou extraordinário.
Que no nível superior de ―guarda‖ haja graus é indiscutível; porém, o objetivo principal
aqui é demonstrar que a educação primária deve ser considerada como comum a todos na
República e, para tanto, é preciso passar aos efeitos mais propriamente produzidos pela educação
primária e verificar se se dá o mesmo nesses casos.
Assim como graus de desenvolvimento da dýnamis do logistikón, pela conjunção de
phýsis + paideía, haveria também graus de desenvolvimento da dýnamis do thymoeidés e,
portanto, graus de coragem dependentes dessa mesma conjunção?
513
PLATÃO. República, 443c-c.
514
PLATÃO. República, 374d-e.
515
PLATÃO. República, 536d-537d, 455b-c.
144
Sobre esse ponto é necessário recordar o que se disse sobre o thymoeidés e sobre a
coragem.
Considerando-se o ―método dialético‖ de leitura da República que se propõe aqui,
segundo o qual passagens posteriores lançam luz, retroativamente, em passagens anteriores
trazendo uma melhor compreensão do texto, seria esclarecedor nesse momento voltar a
considerar a caracterologia dos tipos humanos que Sócrates propõe no livro IX
516
, segundo a qual
os homens se dividem em amantes das riquezas, amantes das honras e amantes da sabedoria.
Embora alguns erroneamente absolutizem essa caracterologia aplicando-a retroativamente
aos indivíduos pertencentes às classes da cidade e não às naturezas (antes da paideía) como seria
apropriado, a verdade é que ela é bastante esclarecedora sobre o modo como se deve dar a
educação e a trophé dessas naturezas.
Se entendermos que o ―alimento natural‖ de uma natureza amante da riqueza é a riqueza
ou o prazer
517
e que o alimento natural de uma natureza amante da sabedoria seria o saber, as
ciências e os estudos, restaria admitir, por analogia, que o alimento natural de uma natureza
amante das honras seriam honras.
Uma primeira observação que deve ser feita sobre essa caracterologia é que ela não separa
os homens de forma absoluta e definitiva, indicando apenas a natureza que predomina neles antes
da paideía. Ora, não admitir isso levaria à conclusão errônea de que um homem que, por
natureza, é ―amante das riquezas‖, estará condenado a ser governado pelos desejos e não pode ter
desenvolvidos, em uma certa medida, os elementos thymoeidés e logistikón. O fato de nesses
homens esses últimos elementos serem mais débeis
518
não implica que não possam ser
―desenvolvidos‖ em uma certa medida. É claro que essa medida é imposta pela natureza que põe
limites, mas o fato de haver uma natureza que coloca limites não significa que não haja margem
para desenvolvimento.
Embora um erro tão grosseiro como o de excluir que as coisas se passem assim não seja
comumente admitido explicitamente, ele é cometido de forma implícita quando se associam esses
―tipos humanos‖ da caracterologia do livro IX com as três classes da cidade, como se uma
516
PLATÃO. República, 581c.
517
Sobre essa possibilidade de considerar ―riqueza‖ e ―prazer‖ como termos correlatos na República, ver PLATÃO.
República, 580d-581a.
518
Cf. PLATÃO. República, 590c-d. Sobre essa passagem, é preciso ter o cuidado de não interpretar que o artesão
que merece censuras se identifica com aquele que é educado na cidade no lógos, mas, antes, refere-se aqui a um que
não tenha recebido educação.
145
natureza amante da riqueza tivesse de se tornar necessariamente alguém que, mesmo depois do
influxo da paideía, perseverasse como alguém predominantemente amante das riquezas e incapaz
de temperança
519
, por exemplo.
Ocorre que, se entendermos que uma natureza ―amante da sabedoria‖ deve ser vista como
aquela em que predomina um elemento logistikón com uma dýnamis natural apropriada para,
sob o influxo de uma paideía-trophé, desenvolvê-lo plenamente, então o ―amante da sabedoria‖ é
o potencial filósofo que, como será exposto à educação pela música e ginástica, a qual incluíra,
de forma não sistemática, a matemática e os estudos, poderá ter essa natureza identificada e
submetida à paideía-trophé superior que a desenvolva plenamente.
Entendida assim, a caracterologia é plenamente compatível com o que se disse antes e
admite que essa natureza ―amante da sabedoria‖ seja, também, em uma medida muito menor,
―amante das honras‖, pois tem um elemento thymoeidés, e amante das riquezas‖, que, no
mínimo, tem fome e deve, ao menos, sentir o prazer relacionado com sua eliminação ao comer
520
.
Porém, como já se indicou antes, é preciso admitir que, se há uma paideía-trophé que vise
ao desenvolvimento do elemento logistikón da alma e do thymoeidés, à qual se voltará em
seguida, deve-se também admitir que não uma paideía-trophé do elemento epithymetikón da
alma. Há, isto sim, uma paideía-atrofiante desse elemento.
As prescrições que visam à não estimulação dos desejos são claras tanto na mousiké
quanto na gymnastiké e se pode dizer que têm como finalidade evitar a hipertrofia do elemento
apetitivo, mesmo naqueles que ―por natureza‖ são amantes da sabedoria ou amantes das honras,
uma vez que, sendo eles humanos, têm de possuir um elemento apetitivo da alma que cabe
conter.
Assim, que exista uma paideía-atrofiante, ou pelo menos que tenha em vista a não
hipertrofia do elemento apetitivo da alma, fica claro se voltarmos às prescrições da paideía
primária.
Também sobre essa ―atrofia‖ do elemento epithymetikón será necessário, mais uma vez,
admitir que se dará em graus, pois naqueles que o têm naturalmente atrofiado o efeito da
519
Exclui-se aqui que a temperança possa ser entendida como repressão dos desejos, antes significando consonância.
520
Note-se, de resto, que eliminar a fome, comendo quando se tem fome, está no âmbito dos desejos e prazeres
necessários. Cf. PLATÃO. República, 559b.
146
paideía semais garantido, enquanto naqueles que o têm, por natureza, mais forte, o efeito da
paideía pode não ser suficiente para dispensar algum grau de guarda ―externa‖.
Porém, deve-se admitir que, mesmo nesses, as prescrições da paideía, se tiverem sucesso,
produzirão um homem que, se por natureza seria um amante das riquezas, depois do influxo da
paideía pode ter se tornado um amante com uma hierarquia de valores na qual as riquezas não
são os objetos amáveis por excelência, embora, se identificadas com os prazeres, sejam
amáveis por si.
Ora, seria absurdo supor, como se indicou, que mesmo a natureza ―amante da
sabedoria‖ mais esvaziada de desejos não consideraria um bem e um prazer desejável
(necessário) comer quando se tem fome. O problema, como mostra Sócrates no livro IX, não está
nos prazeres, mas nos prazeres desnecessários
521
.
Se se entende que a temperança é o domínio dos desejos pela razão e do pior pelo melhor
e que ainda envolve a consonância sobre quem deve governar, o que se propõe aqui é que o
fundamento dessa consonância, tanto na alma como na cidade, seja uma paideía-trophé que
alimente a razão com valores gerando no logistikón ao menos uma crença ou ―opinião
verdadeira‖
522
de que esses valores são melhores que outros (os sensíveis) e um reforço da
adesão a essa crença através da honra que se associa a esses valores, tornando-os valores também
para o elemento irascível, amante das honras. Porém, o fundamento dessa consonância estará
completo se considerarmos aquela paideía-atrofiante dos desejos.
Que este esquema pode ser aceito para os auxiliares e governantes parece fora de dúvida.
A questão, então, passa a ser: por que não seria apropriado e útil para a classe produtiva na
cidade?
Tratado o problema dos graus que se devem admitir, quanto à dýnamis, que os
naturalmente ―amantes da sabedoria‖ atingem pelo influxo da paideía-trophé e tratada a atrofia
do elemento apetitivo dos naturalmente ―amantes das riquezas‖ pelo influxo da paideía-atrofiante
dos desejos, resta tratar dos efeitos e da natureza da paideía nas naturezas ―amantes das honras‖ e
no elemento análogo, o thymoeidés.
521
PLATÃO. República, 558d-559c.
522
Entenda-se que nos filósofos governantes essa adesão pode se dar, também, com fundamento em uma epistéme.
Sobre a ―opinião verdadeira‖ poder ser a base da virtude, ver PLATÃO. Mênon, 96d-98c.
147
O que se propõe aqui é que, também no caso do elemento thymoeidés, seu
desenvolvimento dá-se por uma paideía-trophé, pela qual esse elemento é dirigido para associar-
se à razão, e não aos desejos, como se daria caso a educação fosse má.
Ora, se assim como o alimento natural para uma natureza ―amante de riquezas‖ seriam as
riquezas (ou os prazeres) e para uma natureza ―amante da sabedoria‖ seria o saber, uma natureza
amante das honras, teria como alimento próprio as honras.
Se se olhar com atenção os modelos da paideía primária, o que veremos é a busca de
inculcar valores louvando o que é nobre e belo e omitindo e desqualificando o que é feio e vil
523
.
A analogia com o processo pelo qual se produz o bom tingimento de uma ilustra esse
processo pelo qual se produz a coragem, a qual exige um thymoeidés forte e direcionado. Todo o
processo de ―preparação da para o tingimento‖, através da paideía, é, além de uma trophé não
sistemática nas disciplinas propedêuticas à dialética
524
, uma atrofia dos desejos e uma trophé
entendida como processo de fortalecimento e direcionamento do elemento thymoeidés.
Entendida como a trophé que visa aos elementos logistikón e thymoeidés a paideía se dá
em conjunto pela mousiké e gymnastiké, como se viu acima
525
. Cabe lembrar que a gymnastiké
retesaria esse elemento thymoeidés em uma natureza em que ele não é retesado e a mousiké o
―afrouxaria‖ em uma natureza em que ele é retesado demais
526
.
Se se entende que o elemento thymoeidés é auxiliar da razão na preservação das crenças
que nela residem sobre o que se deve temer, tem-se de entender que a natureza desse auxílio é a
indignação que nasce à simples menção de se romper com essas crenças. O thymoeidés é,
portanto, uma espécie de seguro. Uma vez aceito que certos valores são superiores a outros em
uma hierarquia, a tendência é que não se troque o que vale mais pelo que vale menos, mas,
considerando-se o caráter imediato e patente dos prazeres sensíveis como valor, em uma situação
em que ―prazeres e penas‖ ameacem as opiniões que se consideram as melhores, o thymoeidés
entraria em ação se indignando com essa possível troca espúria para impedi-la, que, no caso
em questão, a razão não foi suficientemente forte e precisa de auxílio.
A causa pela qual o thymoeidés toma armas ao lado da razão, e não dos desejos, não
reside nele mesmo, mas no tipo de trophé que ele teve, por meio da qual os valores tidos como
523
Cf. nota 393, supra.
524
PLATÃO. República, 536e-537a.
525
PLATÃO. República, 411a-412b.
526
PLATÃO. República, 411e-412a.
148
melhores pela razão, com ou sem fundamento epistêmico
527
, foram honrados e associados à
honra.
Durante todo o processo da paideía, esses valores são apresentados como superiores e, de
certa forma, honrados e inculcados, inclusive, com o concurso da mímesis, sendo o prêmio para
os que se mantêm firmes neles honras
528
também. É a honra que está o tempo todo associada aos
valores que se quer preservar na cidade e é natural que aqueles que têm uma natureza ―desejante
de honras‖, ou seja, na qual o elemento thymoeidés é mais forte, tenham essa natureza mais
fortalecida nesse elemento mesmo por uma trophé assim.
Da mesma forma, é natural que uma natureza ―amante da sabedoria‖ se beneficie mais dos
estudos superiores e possa ter seu elemento racional levado à plenitude.
Como foi visto acima, a coragem, como virtude da alma ou da cidade, não admite
tergiversação sobre o que se deve temer. O érgon associado a essa virtude deve ser entendido
como aquele que se pode exercer não pela capacidade de reconhecer os valores que honra em
sua manifestação na cidade ou pela sua capacidade de reconhecer o oposto, mas pela capacidade
de irritar-se ou indignar-se frente a mais simples manifestação do que se opõe aos valores
honrados na cidade, como um cão
529
.
527
Entenda-se ―com fundamento epistêmico‖ no caso do filósofo.
528
Cf. PLATÃO. República, 415c, 468c8, 468d3, 468d4, 468e1, 537c.
529
que se reconhecer que, embora os guardiões-auxiliares tenham inculcados na alma os valores pelos quais a
cidade vive e tenham a dýnamis de reconhecer e reagir sempre a tudo o que se afaste destes, os melhores guardiões
desses valores serão sempre aqueles que possam defendê-los também ―epistemicamente‖. Ora, esses últimos
teriam a capacidade de ―encadear‖ as opiniões verdadeiras para que não ―voassem‖ como voariam as estátuas de
Dédalo no passo do Mênon em que se justifica a superioridade da espistéme em relação às opiniões verdadeiras. Cf.
PLATÃO, Mênon, 96d-98c. Neste sentido, uma das passagens supostamente mais problemáticas da República para a
tese que se defende aqui (456d, citada por Reeve no argumento número 6, dos elencados na introdução) fica
perfeitamente conciliada com a interpretação proposta, uma vez que ―aqueles que assegurarão melhor a guarda‖,
citados na passagem, ficam sendo os guardiões-governantes, os quais tiveram uma educação superior que os artesãos
não tiveram e que consiste nos estudos de matemática e dialética. É claro que também se considera nessa
interpretação que essa educação foi ―descrita‖ à medida que foi ―antecipada‖ nas referências a uma mousiké que
incluiria philomathía, máthema e zétesis. Cf. PLATÃO. República, 411c. Com este argumento, espera-se ter refutado
a parte principal do argumento número 6, de Reeve, elencado na introdução. As outras passagens citadas por ele
como incompatíveis com a tese da educação comum, nesse argumento (405a6-b11 e 522a2-b7), também são
perfeitamente conciliáveis com a interpretação que se propõe aqui: a primeira diz respeito nitidamente a uma cidade
genérica, que não é a cidade no lógos da República e, portanto, admite-se que se façam referências depreciativas a
―artesãos sem educação‖; a segunda envolve uma comparação entre as tékhnai e as disciplinas que levam à
verdadeira filosofia. É certo que Platão usa nessa passagem um termo extremamente desfavorável para se referir as
téckhnai: banausoí‖. O que é preciso notar é que, comparada à verdadeira filosofia, qualquer outra coisa, para
Platão, é, em certa medida, banausía‖. Cf. PLATÃO. Banquete, 203a; e Teeteto, 176c. A base para esse último
argumento, deve-se inteiramente a Nightingale. Cf. NIGHTINGALE, Andrea Wilson. Genres in dialogue: Plato and
the construct of philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p.55. Para um desenvolvimento dessa
discussão e citação dos passos referidos do Banquete e do Teeteto, ver também a nota 675, infra.
149
A coragem, entretanto, comporta graus. É claro que a coragem característica do auxiliar é,
no mínimo, a dýnamis pela qual não se tergiversa quanto ao que se deve temer, nem diante de
prazeres nem de temores, e que se admitir que essa é uma exigência extremamente rigorosa, a
ponto de, quando reconhecida, merecer honras especiais
530
.
Porém, é preciso que se pergunte quem são aqueles que, tendo sido educados pela paideía
primária, que tinha em vista principalmente a temperança e a coragem, não atingiram a coragem
como qualificada acima, ou seja, falharam em algum teste rigorosíssimo que envolvia prazeres e
temores.
Bem, o que se deve concluir é que, tendo recebido a paideía adequada, não tinham a
natureza adequada para que dessa mistura de natureza que varia e de paideía que é fixa surgisse a
dýnamis necessária para que fossem designados guardiões-auxiliares ou portadores da coragem
que caracteriza essa classe (e também a dos governantes, obviamente).
Quem tem essa natureza adequada se pode descobrir mediante testes. Os testes
necessários para que se possa prosseguir nos estudos superiores são claramente mencionados
531
,
mas que os auxiliares passam por testes para se saber qual a sua dýnamis fica claro pela menção,
ao se definir a coragem, aos testes dos ―detergentes‖ da alma: o prazer e os temores
532
.
A questão que se coloca é, portanto, mais uma vez, quem são esses que receberam a
educação primária e não passam no teste de auxiliar, ou seja, não possuem a coragem no sentido
pleno de não tergiversar em nenhuma circunstância. Não podem prosseguir nos estudos
superiores, pois se as virtudes intelectuais e talentos para o estudo são necessários, a temperança
e a coragem são pré-requisitos
533
. Se estes não serão governantes nem auxiliares, podem
pertencer à classe dos artesãos.
O que esse exemplo mostra é que seria absurdo considerar que a educação primária não
atinge todas as três classes, se só mediante testes se pode reconhecer quem tem a namis
necessária para exercer tal ou qual função.
530
Note-se que, os que se destacam em matemática e nos estudos, quando são selecionados para ingressar na
educação superior, recebem honras maiores. Cf. PLATÃO. República, 537b-c. Isso indica que honras também
para os outros, embora menores. pode entender-se que são honrados pela sua perseverança nos valores que
receberam, através da paideía, e nas crenças sobre o que se deve temer. Se se quiser ir além, deve-se entender que os
artesãos também devem ter sua medida de honra, o que é de se esperar, uma vez que devem ser perfeitos no seu
érgon, tão importante para a cidade.
531
PLATÃO. República, 537a.
532
Ao contrário do que afirma Reeve, para quem não são mencionados esses testes. Com este argumento, espera-se
corroborar a refutação do argumento número 2, de Reeve, elencado na introdução.
533
Cf. PLATÃO. República, 535b-c.
150
Que seja a dýnamis final que se atinge pela síntese de natureza e paideía que pode,
retroativamente, tornar possível reconhecer qual a natureza de tal ou qual indivíduo não exclui
que se tenha nascido com essa natureza. Assim, preserva-se uma premissa fundamental da
República, segundo a qual diferentes indivíduos têm diferentes naturezas, sem se abrir mão de
tornar a obra coerente.
Ademais, admitir que possa haver, desde a infância, sinais que indiquem essa natureza,
não elimina o fato de que o verdadeiro critério para seleção das funções é uma dýnamis
plenamente estabelecida, e não a presença de sinais de que poderá se estabelecer.
Ora, esta pode se constituir pela síntese de natureza e paideía e pode ser verificada
por testes. Seria impossível prever a dýnamis que poderá atingir pela síntese de natureza e
paideía um recém-nascido, por mais que fosse filho de homens e mulheres que a possuíssem e
por mais que as espécies gerem segundo a espécie
534
.
Mesmo uma criança com facilidade para aprender, boa memória e comedida não
necessariamente se mostrará, na adolescência, sob o influxo de novos hormônios, tão afeita ao
estudo e tão insensível aos prazeres.
Indícios não são nunca definitivos.
Se é através de testes que se determina quem tem uma certa dýnamis, seria absurdo
querer saber, já no nascimento, quem terá capacidade dialética ou força moral. Não se pode testar
uma criança em dialética e seria contraditório submetê-la aos ―detergentes‖ do prazer e da dor
para ver se persevera nos valores transmitidos pela educação se ela nem sequer foi educada, além,
é claro, de isso corresponder a um grau de crueldade que não se pode atribuir seriamente ao
modelo de educação proposto.
Assim, a educação é, obviamente, junto com a natureza, um elemento que tem de estar
presente como determinante da dýnamis que será testada. Fazer o teste antes seria claramente
contraditório em todos os casos que envolvam a necessidade de uma educação que capacite para
os testes, como aquela que produz a coragem ou a capacidade dialética.
O que se procurou demonstrar aqui é que tanto a sophía quanto a andreía admitem graus e
que os graus em que são exigidas, respectivamente de governantes-filósofos e auxiliares, são tão
elevados e testados com tanto rigor que a presença das dynámeis que tornam o seu érgon
específico possível só pode ser auferida na idade adulta.
534
Cf. PLATÃO. República, 415a-b.
151
Ora, se é uma dýnamis que se produz por força de uma paideía que é ―fixa‖, é essa
dýnamis mesma que permitirá identificar de forma cabal as diferentes naturezas, pelo menos
enquanto naturezas que precisam ser nitidamente distintas em vista de um érgon específico na
cidade. Esse argumento não elimina a distinção de natureza entre os homens, tão cara à
República, apenas remete à idade adulta o momento em que essas naturezas podem ser
plenamente reconhecidas sem possibilidade de engano
535
.
Qualquer engano nesse reconhecimento seria o que de pior poderia acontecer à cidade,
pois significaria a inversão de função entre as naturezas, tão temida como fonte de corrupção da
cidade
536
e que teria, na descrição que se faz dessa corrupção no livro VIII, estreita relação com a
falta de cuidado com a paideía.
537
Considerando-se que a cidade luxuriosa é uma cidade corrompida‖ e que representa um
afastamento da cidade sã, cabe ainda uma análise sobre esta última visando estabelecer a
importância de uma educação extensiva a todos os cidadãos em qualquer cidade que se pretenda
boa.
Se se considera a cidade sã, vê-se que, como seus habitantes não foram nomeados
soldados ou governantes, a única classe daquelas que existem depois do processo de purgação da
cidade luxuriosa (guardiões-governantes, guardiões-auxiliares e artesãos) e que existe também na
cidade sã é a classe dos artesãos.
Porém, não parece que uma cidade como a cidade exclua a necessidade de uma classe
que a defenda e de uma que a governe. Ora, quando Sócrates conclui o processo de purgação da
cidade luxuriosa, uma pergunta que lhe parece óbvia é aquela sobre quem deve governar
538
.
Sócrates parece dar como implícito o princípio segundo o qual uma cidade deve ter um governo.
Da mesma forma, se se considerar a cidade luxuriosa depois do processo de purificação
pela mousiké e gymnastiké, vê-se que fica muito parecida com a cidade sã, e nem por isso
dispensa o exército, muito pelo contrário, este permanece na cidade, pois é útil que ele se
mantenha, já que será necessário eventualmente formar alianças para a defesa da cidade
539
.
535
Com o que se disse sobre a alma, na seção 4, e com os argumentos desenvolvidos aqui, nesta seção, espera-se ter
refutado o argumento número 8, de Reeve, contrário à tese da educação primária comum, elencado na introdução.
536
Cf. PLATÃO. República, 415c.
537
Cf. PLATÃO. República, 546d-e.
538
PLATÃO. República, 412b.
539
PLATÃO. República, 422a-423a.
152
Ora, mesmo uma cidade sem excessos, como a cidade sã, teria necessidade de
soldados/guardiões auxiliares, pois mesmo que não tivesse que velar, de alguma forma, pelos
princípios estabelecidos pela paideía e pelas leis sobre o seu modo de vida, no mínimo teria de
velar pelo território, que seria cobiçado e precisaria ser defendido.
Se uma classe de soldados, ou pelo menos de cidadãos-soldados, não foi introduzida na
cidade sã, isto pode significar simplesmente que ela não estava completa como também não o
estaria sem governantes, que pareceram tão obviamente necessários na cidade purgada. A razão
para que essas classes não apareçam na cidade sã é a de que sua construção foi interrompida pela
intervenção de Gláucon, que a qualificou como uma cidade de porcos
540
.
Não parece ser necessário que se considere que a cidade sã estava acabada. Pelo contrário,
quando, depois de introduzir na cidade todas as funções até chegar aos assalariados, entendidos
com complemento da cidade, Sócrates pergunta a Adimanto se a cidade aumentou até ficar
completa, este responde: ―Talvez‖
541
.
Quando, depois disso, pergunta onde dentro dela estaria a justiça e a injustiça e com qual
das coisas examinadas se teria formado, Adimanto não consegue ver a justiça, a não ser nas
transações que se fazem na cidade
542
. A esta resposta de Adiamanto, Sócrates propõe que se
examine, em primeiro lugar, de que maneira irão viver as pessoas assim organizadas e, em
seguida, descreve esse modo de vida
543
. Ora, o que se tem aqui é um exame em curso, no qual se
examina primeiro o modo de vida e é de se esperar que algo mais seja examinado a seguir. É
então que se a intervenção de Gláucon interrompendo ou, melhor dizendo, redirecionando o
exame
544
.
Esse redirecionamento poderia ter sido causado por qualquer outra pergunta ou objeção;
por exemplo, alguém poderia ter se lembrado que, mesmo cidades sem riquezas em excesso e
pacíficas, podem ter seu território cobiçado e obrigado Sócrates a lançar mão de um exército
semelhante àquele da cidade que está por vir (a cidade luxuriosa) e com as mesmas funções.
Que essa função de soldado de um hipotético guardião na cidade se estendesse para os
outros sentidos que têm a guarda e que terminasse por envolver a proposição de uma paideía
540
PLATÃO. República, 372d.
541
PLATÃO. República, 371e.
542
PLATÃO. República, 372a.
543
PLATÃO. República, 372a.
544
Esse ―redirecionamento‖ pode muito bem ser entendido como uma digressão em relação ao exame da cidade e
verdadeira, que se completará, a partir desse desvio, na cidade purgada.
153
seria, aliás, natural. Se os homens são diferentes por natureza e em alguns predomina o elemento
da alma que, sem educação, é amante de riquezas e se esse tipo humano é o mais comum, como
mantê-lo comedido senão educando-o?
Introduzir-se-ia, então, a paideía na cidade sã.
Seria ingênuo achar que na cidade sã os homens não são ―humanos‖ e não têm o elemento
epithymetikón da alma e mais ingênuo ainda acreditar que, sem uma educação apropriada, essa
maioria, ou mesmo os outros, possa manter-se temperante
545
. Poder-se-ia ainda mencionar o
elemento thymoeidés de suas almas que pode se corromper sem a educação adequada ou, pior, a
corrupção de um homem com natural predomínio do elemento logistikón.
Pelo que se disse sobre a constituição da alma humana, a paideía será sempre necessária
se se quer construir uma cidade boa.
Mesmo concedendo que a cidade estava acabada e não possuía uma classe determinada
que auxiliava na sua guarda ou outra classe determinada que a governava, a paideía seria
necessária para manter comedidos os artesãos e ainda se colocaria a questão de qual seria a
paideía em uma cidade assim.
Ora, teria que ser uma que visasse à justiça na alma e teria que ser dada a todos, pois,
como mostra o mito do Protágoras, as virtudes cívicas têm de estar presentes em todos os
cidadãos e são, no mínimo, a temperança e a justiça, não bastando as tékhnai
546
.
Não será, portanto, a cidade no lógos, uma vez acabada, uma volta à cidade sã, desta vez
mais completa, porque sua construção, por outro caminho, pôde chegar a termo?
Por último, dizer que a cidade era a verdadeira cidade não exclui que a cidade reta do
livro IV seja também e verdadeira, a menos que alguma de suas características seja
considerada contraditória com essas qualificações.
Todos esses argumentos parecem apontar para a necessidade de que a paideía descrita na
República seja tomada como sendo comum a todos os cidadãos. Porém, uma rie de
considerações que podem reforçar essa tese e têm em vista mais do que tudo preservar a
coerência da obra, que, admitida a tese contrária, resultaria incoerente em um grau inadmissível.
O que se propõe agora é que, conhecendo as virtudes na cidade e na alma, se volte à
paideía primária para mostrar mais claramente sua relação com a constituição mesma dessas
545
Basta lembrar o início do processo de degenerescência da cidade, descrito no livro VII, para enxergar que, sem a
paideía apropriada, os desejos afloram.
546
Cf. PLATÃO. Protágoras, 320c-324d.
154
virtudes para tornar claro que sua presença na cidade exige, como condição de possibilidade do
que é reconhecido como existindo na cidade, que a paideía seja estendida a todos os cidadãos,
assim como exige o que se diz sobre o modo de vida na cidade.
5.1 Os efeitos da paideía na cidade no lógos
A educação dos cidadãos da pólis no lógos será feita através da paideía, pela mousiké, e
pela gymnastiké, por um lado, e pelas leis e costumes, de outro. É preciso reconhecer que cada
uma dessas dimensões refletirá e reforçará a outra se se quer compreender a cidade construída por
Sócrates e como ele pode chegar a identificar nela as virtudes e o modo de vida que identifica.
Tendo sido delineado o processo de formação da cidade e de sua paideía e indicada a
relação entre esta e as virtudes na cidade e na alma, cabe agora voltar à cidade e à paideía que a
formou para identificar de forma mais clara em que medida, à luz do que se disse até aqui, as
virtudes e modo de vida da cidade se relacionam com a paideía.
Tratar dessa questão à luz do que se disse antes também permitirá argumentar a favor
de que a educação primária deve ser compreendida como se estendendo a todos os cidadãos,
ficando o restante do argumento dependendo de que se olhe para o modo de vida que se diz ser o
da cidade.
O processo de purgação da cidade luxuriosa começa com a pergunta sobre como se
deveriam educar os homens que foram introduzidos na cidade na qualidade de guerreiros
(polemikós), depois chamados de guardiões
547
.
Uma primeira defesa que se poderia fazer da tese segundo a qual a educação primária se
destina a todos seria a de que, educando a todos desde a infância, se estaria, necessariamente,
educando os que viriam a ser guardiões. Também ganharia força o argumento se se considerasse
que, de todas as ocorrências sobre os educandos ao longo do processo da educação primária, em
um número muito menor de ocorrências, estes foram referidos como soldados ou guardiões e em
um número muito maior foram referidos como crianças, jovens e homens.
Ora, bastaria que fossem referidos como guardiões uma única vez, diria um objetor, pois,
Sócrates, no início, ao perguntar de que maneira se iria criar e educar esses homens, referia-se
547
PLATÃO. República, 374c-e.
155
aos guardiões; assim, qualquer referência a jovens ou crianças teria de ser lida como se referindo
aos jovens guardiões, crianças guardiãs ou bebês guardiões.
se viu o quanto seria problemática a possibilidade de se identificar ―bebês guardiões‖ e
―crianças guardiãs‖. Entretanto, é possível explorar a fragilidade dos argumentos do objetor sob
outro aspecto: mesmo que a referência inicial ao processo educativo tenha como objeto os
soldados-guardiões, poder-se-ia, como se viu, entender essa referência como alusão ao termo
visado pela educação; acrescente-se ainda que essa menção inicial não exclui, necessariamente,
uma paideía que inclua a todos.
Pelo contrário, como a identificação do ―termo visado‖ depende de testes, uma paideía
comum seria a melhor maneira de criar um número maior de possibilidades de, mediante testes,
identificar aqueles que atingiram o termo visado.
Nessa mesma linha, poder-se-ia argumentar que, se certos procedimentos pedagógicos
sem os quais não seria possível formar aqueles que devem exercer o érgon em questão, de
soldado ou guardião, são esses mesmos que se tem de passar a elencar ao se examinar a educação
apropriada para formá-los. Isso, entretanto, de forma alguma exclui que esses mesmos
procedimentos não teriam efeitos maximamente desejáveis e úteis, ainda que em graus diferentes,
em todos os cidadãos.
Além disso, que o guardião seja o termo visado pela discussão da paideía, pelo seu papel
político retificador em uma cidade que precisa de retificação, não exclui que depois se dividam os
guardiões em guardiões-auxiliares e guardiões-governantes.
Se se usar de rigor na análise do início da discussão sobre a paideía, ver-seque os
―homens‖ referidos como aqueles que se procurará educar são os guardiões-governantes, que o
por natureza filósofos e perfeitos guardiões da cidade
548
, afinal, a filosofia não é apanágio dos
guardiões-auxiliares, e esses homens sobre os quais se discute e cuja natureza é difícil de
entender são os ―cães-filósofos‖.
Assim, de acordo com a interpretação que se vem defendendo aqui, segundo a qual o
―cão-filósofo‖ é uma antecipação do governante-filósofo, a discussão sobre a paideía começa
apontando para o termo final de uma paideía que inclui não só a educação primária, mas também
a superior.
548
PLATÃO. República, 503b.
156
Assim, quando, no início da discussão sobre a educação do guardião, se faz menção a
qualidades que indicam que o termo final visado pela paideía que se descreverá pode ser o
filósofo-governante, isto não exclui que, no processo de educá-lo, se tenha em vista também os
auxiliares e que essa paideía os beneficie
549
.
Um exemplo seria a limitação da quantidade da mímesis, que é útil para o fim de formar
guardiões-auxiliares inculcando-lhes valores
550
. Essa limitação visa, primordialmente, como se
defendeu aqui
551
, à preservação da diánoia dos futuros guardiões-filósofos-governantes, mas não
deixa de ser de valia para os auxiliares por evitar que ocorra a hipertrofia do elemento que
―deseja‖ emoções.
Um outro exemplo seria a educação não sistemática em matemática e nas disciplinas
propedêuticas à dialética
552
, que não visam levar o educando a exercer um érgon primordialmente
relacionado com elas, mas nem por isso deixarão de ser-lhe úteis, por exemplo, na guerra
553
.
Da mesma forma, podem-se destacar os momentos em que o termo visado pela paideía é
a formação da virtude do guardião auxiliar, a coragem em sentido pleno, sem que isso exclua que
a educação se estende e beneficia a todos, produzindo diferentes dynámeis para a guarda: umas
para o érgon de guardião-auxiliar e, possivelmente, guardião-governante, outra para artesãos que
sejam guardiões de si mesmos
554
e da beleza de sua obra
555
.
Ademais, se faltam referências explícitas à educação de todos os cidadãos, abundam
referências sobre as virtudes presentes na cidade e sobre seu modo de vida que exigem, como
condição de possibilidade, a extensão da educação a todos.
Assim, exigir referência explícita à educação comum, mesmo tendo em vista que se
descrevem efeitos que não poderiam existir se não fosse por ela, seria o mesmo que exigir
referência explícita ao calor como causa da água fervente, mesmo que o calor seja condição de
possibilidade de sua fervura e a água seja referida como fervente.
549
Na introdução de sua tradução da República, diz Shorey: ―He [Platão] embodies [na República] his criticism of
existing greek institutions in a scheme for the trainning of his soldiers, suplemented by the higher education of the
guardians. But we cannot infer, as hasty critics have done, from 421a, that he would not educate the masses at all‖.
Cf. SHOREY, 1994, Introduction, p. xxxiii.
550
PLATÃO. República, 398e.
551
Cf. Capítulo 4.
552
PLATÃO. República, 536e-537a.
553
PLATÃO. República, 521d.
554
O que, de resto, atenderia plenamente à possibilidade mais utópica ―antecipada‖ por Adimanto. Cf. PLATÃO.
República, 367a.
555
Cf. PLATÃO. República, 401d-e.
157
Assim, se se entende ―guardião‖, qualquer que seja a acepção, como termo final buscado,
então se retira a força do argumento segundo o qual, se não foi feita menção explicita à educação
da classe dos artesãos, então se deve excluí-la das disposições introduzidas na cidade pela
paideía.
No processo de construção da cidade, ao tratar da paideía, uma das coisas sobre as quais
Sócrates e seus interlocutores concordam em relação às prescrições da paideía é que muitas
prescrições que eles fazem se justificam tendo em vista que seus destinatários são as crianças
(paidías) e os jovens (oi), pois a educação tem o poder de moldá-los. Assim, concordam que
essas crianças não deveriam ouvir mitos compostos sem critério por qualquer um, os quais as
fariam recolher na alma opiniões contrárias às que deveriam ter quando adultas
556
.
Fica claro que a educação que se delineia destina-se aos muito novos, pois logo a seguir
se prescreve que as mães e as amas devem ser persuadidas a moldar as almas das crianças por
meio dos mitos escolhidos
557
.
Uma questão que se coloca aqui é que mitos deverão ouvir as crianças filhas dos artesãos;
antes de haver guardiões na cidade, na cidade sã, onde havia artesãos, se cantavam hinos
558
.
Quais seriam os moldes que governariam a composição desses hinos?
As primeiras prescrições sobre como devem ser os mitos na cidade tratam, como visto
559
,
do que se dirá dos deuses, excluindo que se diga que entre eles vingança e punição aos pais,
conspirações, lutas e combates. Tais coisas se excluirão não por não serem verdade mas por
não serem condizentes com o que se espera que sejam os guardiões.
Embora se refira aqui a guardiões, essa é uma prescrição que valeria a pena que dissesse
respeito à educação de todos, uma vez que o respeito aos pais, relacionado a ela, é desejado para
a cidade como um todo, o que, como se viu, não pode ser excluído do ponto de vista da utilidade.
O que poderia justificar a escolha da palavra phýlax, a essa altura, para nomear os
educandos, e não da palavra jovens, é que Sócrates fala especificamente do combate de deuses,
ou seja, de dissensão entre os que se poderia chamar, analogamente, de ―classe governante‖, cuja
unidade é importantíssimo que se preserve
560
.
556
PLATÃO. República, 377a-b.
557
PLATÃO. República, 377b.
558
PLATÃO. República, 372a-c.
559
Cf. seção 3.1.
560
PLATÃO. República, 545c-d.
158
Ademais, considerando-se que a educação começa na mais tenra infância, com as mães e
as amas, logo depois do nascimento
561
, fica a pergunta, mais uma vez, sobre que tipos de mitos
contariam aos seus filhos as mulheres dos produtores. Não teriam seus filhos que honrar os pais?
A honra aos pais é uma qualidade que não pode faltar na cidade
562
e seria estranho que o se
fizesse nada para promovê-la entre os artesãos.
Mas as prescrições não tratam apenas da relação pai e filho, mas da relação entre os
cidadãos:
563
Não se lhes deve contar ou retratar lutas de gigantes e outras inimizades ltiplas e
variadas, de deuses e heróis para com parentes e familiares seus. Mas, se de algum modo
queremos persuadi-los de que jamais um cidadão teve ódio a outro, nem isso é
sancionado pela lei divina, é isto que deve ser dito, de preferência às crianças, por
homens e mulheres de idade, e, quando elas forem mais velhas, também os poetas devem
compelir-se a fazer-lhes composições próximas desse teor. Mas que Hera foi algemada
pelo filho, e Hefestos projetado a distância pelo pai, quando queria acudir a mãe, a quem
aquele estava a bater, a que houve combates de deuses, quantos Homero forjou, é coisa
que não deve aceitar-se na cidade, quer essas histórias tenham sido inventadas com um
significado profundo quer não. É que quem é novo não é capaz de distinguir o que é
alegórico do que não é. Mas a doutrina que se aprendeu em tal idade costuma ser
indelével e inalterável. Por causa disso, talvez é que devemos procurar acima de tudo
que as primeiras histórias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possível,
orientadas no sentido da virtude.
Também aqui fica claro que ou se exclui a classe dos artesãos dessa cidade de que se está
falando ou se lhes tira o título de cidadãos, pois o objetivo anunciado de excluir este tipo de ódios
561
PLATÃO. República, 377c, 381e, 460c-d, 561b-c.
562
PLATÃO. República, 378d, 425b.
563
PLATÃO. República, 378c3-e3.
159
na cidade ficaria, de outro modo, prejudicado. Mas Sócrates caracteriza claramente os cidadãos
como sendo todos os habitantes da cidade
564
.
Assim, não se pode cobrar do leitor da República que considere que tudo o que se diz
sobre a educação a seguir se aplica a esses que foram explicitamente nomeados guardiões e que
qualquer referência a néoi, paidías e anér posteriores são variações de ―guardião‖.
Não estender a paideía descrita aos artesãos geraria a necessidade de se providenciar uma
outra paideía para eles, exclusiva, e, esta sim, sequer implícita no texto, mas misteriosa e suposta,
que os eduque para as virtudes cívicas tão obviamente presentes em toda a cidade. Ora, essa
paideía ―misteriosa e suposta‖ acabaria tendo que levar em conta as mesmas prescrições que
aquela que é explicitamente descrita e é dada pela mousiké e pela gymnastiké. Essa tese da
duplicação de paideíai que visem ao mesmo efeito é muito menos provável do que a tese de que
aquela que é descrita deve se estender a todos os cidadãos, promovendo as virtudes cívicas
necessárias a todos.
Poderia o objetor da tese da educação comum dizer que as prescrições da paideía, que
eliminam conteúdos e restringem as formas de narrativa da poesia, assim como os prazeres
sensíveis e psicológicos, acabam por influir, de certa forma, também nos artesãos, que não
ficarão contaminados pelos excessos de uma cidade luxuriosa. Ora, então, as prescrições da
paideía se aplicam a eles e os beneficiam, pois é a paideía a causa desses efeitos.
Reeve, o autor que argumenta mais detalhadamente contra a tese da educação comum,
entende que, mesmo que certas prescrições da paideía primária atinjam toda a cidade, se
justificam tendo em vista a educação dos guardiões, pois visam a certas características requeridas
para bons guardiões. Assim, segundo Reeve, essas prescrições não poderiam ser interpretadas
como atingindo os artesãos com o fim de moldar a sua alma, pois é a moldagem da alma dos
guardiões que está em foco quando elas são propostas
565
.
564
PLATÃO. República, 463a-464a.
565
REEVE, 1988, p. 188-189. O que parece mais estranho nessa interpretação de Reeve é que, quando se
obrigado a admitir que os artesãos possam estar submetidos, de certa forma, à educação primária e que acabem por
se beneficiar dela, converte-se imediatamente em adivinho e supõe que Platão pretendia que os guardiões fossem
diretamente beneficiados por ela. Se Reeve exige, para que se aceite a tese da educação primária comum a todos,
menção explícita à extensão desta aos artesãos, então se poderia exigir também dele menção explícita à estranha
determinação de que, mesmo beneficiando os artesãos, a educação primária não visa beneficiá-los. As tentativas de
Reeve de conciliar os aspectos da República que apontam para a tese da educação primária comum a todos com a sua
tese de que esta se destina aos guardiões acabam por exigir argumentos absurdos como esse exposto, o que, de
resto, costuma acontecer com todos os comentadores de mesma linha. Com este argumento, espera-se corroborar a
refutação de parte do argumento número 2, de Reeve, elencado na introdução.
160
Como se viu pelo argumento defendido até agora, não é preciso tirar a alma dos guardiões
do foco, como termo visado, para admitir-se que seria útil que todos os cidadãos tivessem as
qualidades descritas como efeitos da paideía.
Porém, é preciso conceder que o argumento de que seria útil estender a educação a todos
os cidadãos não implica necessariamente que essa extensão tenha sido proposta na República. É
por isso que se precisa avançar na análise até se chegar a mostrar que este é apenas um
argumento complementar, pois o que se tem realmente em foco é a possibilidade de coerência da
obra no que diz respeito ao que se reconhece como existente na cidade e suas condições de
possibilidade.
Voltando à descrição da paideía e de seus efeitos, o próximo molde a ser seguido nela,
aquele segundo o qual os poetas deverão dizer que os deuses são essencialmente bons e não são
causa de mal, contempla, dentre outras, a seguinte prescrição sobre como se deve expor que
sofrimentos provenham dos deuses:
566
[...] não lhe devemos consentir que diga que isso é obra de um deus, ou, se diz que é
dele, tem de descobrir a razão de fato aproximadamente como nós estamos agora a
procurá-la, e de dizer que o deus procedeu de modo justo e bom e que os culpados
lucraram com o castigo. Que o poeta diga que quem espia a pena é desgraçado, e que o
autor da desgraça foi a divindade, não devemos consenti-lo. Mas devemos consentir,
sim, se disserem que precisavam de castigo os maus, por serem desgraçados, e que,
expiando seu crime, estavam a receber um benefício de deus. Que se diga que o deus,
sendo bom, foi causa de desgraça para alguém, é coisa que se deve combater por todos
os processos, para que ninguém faça afirmações dessas na sua própria cidade, se quer
que ela tenha uma boa legislação, nem pessoa alguma velha ou nova, ouça contar tais
histórias, em verso ou em prosa, pois quem assim falasse diria impiedades, sem utilidade
para nós e em desacordo uns dos outros.
566
PLATÃO. República, 380a7-c3.
161
Essa passagem, se, por um lado, mostra que essas prescrições se fazem com vistas a
todos, por motivos iguais aos expostos logo acima, por outro lado, levanta uma nova questão.
Esses moldes dizem respeito especificamente (e parecem mesmo dirigidos) ao discurso de
Adimanto sobre os efeitos da educação na determinação das crenças e comportamentos dos
jovens e dos homens em geral
567
.
Nesse discurso, um dos argumentos dados em favor da preferência pela injustiça foi o fato
de a injustiça envolver ―vantagens‖ desde que se tenha o poder de ser injusto parecendo justo ou
de fazer os sacrifícios e intervenções que apaziguem os deuses.
As ―vantagens‖ são sempre relacionadas com bens sensíveis, o que levaria os homens a se
questionarem sobre os prêmios da justiça e se ela vale a pena
568
. Se se entende que tanto Gláucon
como Adimanto são porta-vozes do discurso dos hoí polloí e tanto na Atenas retratada na
Apologia quanto na discussão sobre a justiça na República é a concupiscência da maioria,
definida pela epithymía e pela pleonexía, consubstanciada em uma perda de valores que exige, na
Apologia, o alerta e as repreensões de Sócrates, então, essa concupiscência exige na República
um tratamento que vai muito além.
A questão colocada por essa passagem vai além da retificação dos poetas, no que dizem
sobre serem os deuses causa de males, e introduz uma intervenção que visa à retificação das
visões presentes em todo o discurso de Adimanto sobre as concepções de justiça e suas relações
com a educação pela poesia, de modo que esta não possa mais ser apontada como causa das
concepções que seu discurso veicula. Mas se o discurso de Adimanto é o discurso da maioria e se
esse discurso provém de um éthos, que provém da alma, então que melhor oportunidade para
retificá-la do que o momento mesmo em que o lógos, como uma brisa, pode, sem amarras,
conduzir a construção de uma cidade?
Ora, se a causa da corrupção das cidades como Atenas e do afastamento, descrito nos
livros VIII e IX, do modo de vida da cidade construída com o lógos
569
são a riqueza e a pobreza e
se a riqueza é fundamentalmente entendida como busca de prazer e, por conseqüência, de
satisfação da epithymía, então por que não educar a maioria, por natureza tendente a ser
dominada pelos desejos, para que depois de educada possa ter uma alma justa e não se comporte
de tal forma a fornecer as premissas que justifiquem o louvor da injustiça e vitupério da justiça?
567
PLATÃO. República, 365a-b.
568
PLATÃO. República, 364a-366b.
569
PLATÃO. República, 547b-c.
162
Ao fim da República, Sócrates terá, como bom dialético, esgotado todas as objeções à tese
de que é melhor ser justo do que injusto. Não seria plausível que lhe escapasse que a origem de
todo vitupério da justiça está na própria injustiça e intemperança na alma da maioria, que não
teve educação apropriada, segundo o próprio Adimanto
570
.
Que uma educação apropriada, como a proposta na cidade no o lógos, possa, em certa
medida, pela coalescência de phýsis e paideía, tornar a maioria das almas justas e temperantes,
embora nem todas, é o que se vem tentando mostrar aqui e é o que se pretende mostrar que o
próprio Sócrates enxerga na cidade que está construindo.
Voltando à passagem citada, é preciso notar, portanto, que, segundo essa leitura, não só se
exclui qualquer interpretação ambígua sobre a natureza e intenção dos deuses mas se retira do
horizonte dos educandos uma razão para pensar que é melhor ser injusto.
O terceiro molde, aquele segundo o qual os poetas não poderão dizer que os deuses se
metamorfoseiam, tem em vista, principalmente, excluir da cidade a possibilidade da mentira,
exceto em uma circunstância em que possa ser útil.
Quanto à circunstância em que se dá essa utilidade, pergunta:
571
Não será em relação aos inimigos e aos chamados amigos, quando, devido a um delírio
ou a qualquer loucura, intentam praticar qualquer má ação, que ela se torna útil como um
remédio, a fim de os desviar? E na composição de fábulas que ainda pouco
referíamos, por não sabermos onde está a verdade relativamente ao passado, ao
acomodar o mais possível a mentira à verdade, não estamos a tornar útil a mentira?
A passagem em que se volta ao tema da mentira, estabelecendo que é vedada a todos,
menos aos governantes, é fundamental para compreender o alcance da passagem citada
572
.
Ainda no âmbito da discussão dos moldes que acabaram de ser propostos, no início do
livro III, Sócrates afirma:
570
PLATÃO. República, 362e-367e.
571
PLATÃO. República, 382c8-d3.
572
Cf. PLATÃO. República, 389b-c.
163
573
Quanto aos deuses, aqui temos, pois disse eu aquilo que, em meu entender, aqueles
que hão-de honrar as divindades e os pais, e que hão-de ter em não pequena conta a
amizade uns dos outros, devem ouvir desde a infância, e aquilo que não devem.
É difícil, tendo em vista tudo o que se dirá ainda sobre a amizade entre todos os cidadãos,
que esses moldes não sejam usados exatamente visando promover esses valores em toda a
cidade
574
.
As próximas prescrições excluem da poesia os versos aterrorizantes e que façam temer a
morte. Embora isso vise primordialmente os que não podem, em combate, temer a morte, os
nomes terríveis relativos ao Hades devem ser rejeitados, tendo-se um modelo contrário seja em
conversas, prosa ou em poemas (lektéon te kaì poietéon).
Que essas prescrições se estendam não aos poemas mas às conversas e à prosa indica
que atingem a cidade como um todo, pois mostram que em todos os lugares da cidade esses
conteúdos serão considerados impróprios.
Há a eliminação também de ―gemidos e lamentos‖ dos homens célebres (ellogímon
andrôn), os quais são tomados como autárquicos e para os quais são menos temíveis as perdas
575
.
As razões apresentadas para que se respeitem esses moldes e se elimine o que lhes é
contrário é, mais uma vez, o efeito nos jovens (néoi) da cidade:
576
É que, meu caro Adimanto, se os nossos jovens escutassem a sério tais palavras, e não
troçassem delas, como indignas dos seres a quem se referem, dificilmente algum deles,
sendo homem apenas, se julgaria indigno de proceder assim e se censuraria se lhe
acontecesse, a ele também, dizer ou fazer alguma coisa neste gênero; mas muitos deles,
por qualquer pequeno sofrimento, entoariam sem vergonha nem energia trenos e
lamentos.
573
PLATÃO. República, 386a1-4.
574
PLATÃO. República, 378c, 386a, 547b-c.
575
PLATÃO. República, 387d.
576
PLATÃO. República, 388d2-7.
164
Com base no que se disse antes sobre a alma e as relações entre os seus elementos,
identifica-se aqui aquilo que se chamou de paideía-atrofiante, uma vez que se eliminam
conteúdos relacionados com a epithymía e o elemento epithymetikón da alma
577
.
O riso violento nos homens dignos de consideração (anthrópous axíous) e deuses também
se devem excluir por representarem uma mudança violenta.
Mais uma vez, o que está em jogo é a verdade e a inutilidade da mentira para os deuses,
voltando-se à questão da sua utilidade para os homens, desde que sob a forma de remédio
reservado aos chefes (toîs árkhousin) da cidade, aos quais compete mentir por causa dos inimigos
ou dos cidadãos (politôn)
578
para benefício da cidade, excluindo que um particular minta aos
chefes, sob pena de cometer um erro semelhante ao de um doente que não diz a verdade a um
médico, ao de aluno que não revele seus sofrimentos ao mestre de ginástica ou ao de um
marinheiro que não dissesse a verdade ao piloto sobre o navio e a tripulação quanto à sua situação
e à dos seus companheiros de viagem
579
.
Ao propor isso, determina que, se alguém for apanhado mentindo na cidade ―daqueles que
são artífices, / ou adivinho, ou médico que cura os males, ou construtor de lanças‖ (
/ )
580
, serão castigados por
introduzirem costumes que poriam a perder a cidade como se fosse um navio
581
.
Se, por um lado, é claro que aqui a mentira é vedada a todos os cidadãos, por outro lado,
poder-se-ia dizer que a introdução de castigos para os transgressores implica que, para alguns, a
educação se dá por coerção e castigos, e não por inculcação de valores.
Porém, castigos para os transgressores se tornam tanto mais justos e aplicáveis quanto
mais eles tenham sido educados para não transgredir. Ademais, se se considera que o castigo é
uma forma de desonra e a desonra, enquanto medida educativa, é uma forma de associar um
desvalor ao que a ocasiona, então, implicitamente, o oposto do desvalor punido, a verdade, é um
valor que fica explicitamente valorizado e honrado na cidade.
Ainda sobre os castigos, previsão de pena de morte para os ―incuráveis
espiritualmente‖, que se propõe que sejam vistos aqui como aqueles impermeáveis à paideía:
577
PLATÃO. República, 604d e 606a.
578
Note-se que a mentira contida no ―mito das raças‖ é contada para toda a cidade. Cf. PLATÃO. República, 561b-c.
579
PLATÃO. República, 389b-c.
580
PLATÃO. República, 389d2-3.
581
PLATÃO. República, 389d4-5.
165
582
Portanto estabelecerás na cidade médicos e juízes da espécie que dissemos, que hão-de
tratar, dentre os cidadãos, os que forem bem constituídos de corpo e de alma, deixarão
morrer os que fisicamente não estiverem nessas condições, e mandarão matar os que
forem mal conformados e incuráveis espiritualmente?
Que todos conheçam os valores pelos quais a cidade vive fica ainda claro em mais de uma
passagem em que há referência a uma ―internalização‖ das leis, ponto ao qual se voltará
583
.
Ademais, Sócrates concorda com Gláucon sobre haver uma diferença fundamental entre
educar os cidadãos através da inculcação de valores, que leva à coragem, e a posse das opiniões
retas que se adquire sem o concurso da paideía.
Sobre esse ponto, afirma Gláucon:
584
Parece-me, efetivamente, que não consideras nada estável
585
a opinião reta acerca destes
mesmos assuntos, quando formada sem o auxílio da educação, como é o caso da dos
animais e dos escravos, e achas que deve dar-se-lhe qualquer outro nome, menos o de
coragem.
Sócrates, ao comentar a afirmativa, não deixa dúvidas: ―É exatamente como dizes‖
( )
586
.
Tendo em vista essas passagens, ou se exclui que os artesãos tenham qualquer educação
que lhes transmita valores ou se lhes denomina escravos; ocorre que o próprio texto exclui que
sejam escravos; consequentemente, têm de receber alguma educação que lhes inculque valores e,
portanto, algum grau de coragem.
582
PLATÃO. República, 409e5-410a4.
583
Cf. seção 5.2.
584
PLATÃO. República, 430b6-9.
585
Tradução com modificações.
586
PLATÃO. República, 431c1.
166
Porém, nada do que se disse até aqui exclui que, mesmo sob o influxo da paideía, certas
naturezas, as piores, tenham sua alma desordenada e sejam merecedoras de castigos que podem
incluir até a morte, como se viu.
A seguir, Sócrates introduz explicitamente sua preocupação em formar jovens
temperantes. É interessante notar que, depois de anunciar que vai tratar da temperança, em todo
trecho em que trata da mousiké, só se refere aos educandos como néoi e paidías.
Um outro ponto digno de nota é que muito antes de definir a temperança, tendo em vista a
cidade formada, Sócrates, nessas passagens em que trata da educação, apresenta uma
concepção do que ela seja e inclui não a obediência aos chefes, que alguns, apressadamente,
entendem que é o elemento central da temperança na cidade mas também o autodomínio,
significando domínio da razão sobre os desejos.
Sócrates introduz a discussão com uma pergunta: ―Como assim? Então a temperança não
será necessária aos nossos jovens?‖ (
)
587
; e apresenta, com uma pergunta, a concepção de temperança da massa:
588
Para a grande massa os pontos cardeais da temperança não são o obedecer aos chefes e
ser senhor de si relativamente aos prazeres da comida, de Afrodite e da bebida?
Diante do assentimento de Adimanto, entende que aprovariam as palavras que Diomedes
profere na Ilíada, as quais cita: ―Amigo, cale-te, senta-te, e obedece à minhas ordens‖ (
)
589
, e ainda: ―Os aqueus avançam respirando força, /
mostrando no silêncio o temor pelos chefes‖ ( /
)
590
.
Uma passagem que retratasse o oposto, como, por exemplo, a insolência de Aquiles
perante Agamêmnon, seria proibida, assim como as que lhe fossem semelhantes por não serem
587
PLATÃO. República, 389d7.
588
PLATÃO. República, 389d9-e2.
589
PLATÃO. República, 389e6.
590
PLATÃO. República, 389e8-9.
167
―próprias a inclinarem os jovens que as ouvem à temperança [...]‖ (
)
591
.
Considerando-se que o respeito aos chefes é introduzido aqui como valor, seria útil que
fosse disseminado, através da educação, por todas as classes.
Note-se que a utilidade não é um critério sem importância na construção da cidade, mas,
muito pelo contrário, é referido várias vezes
592
e, embora se tenha argumentado aqui que
Sócrates não precisaria adotar, necessariamente, na cidade o que é o mais útil, admitir que não o
fez efetivamente seria uma falha dele como dialético e como ―legislador‖, o que, embora não seja
impossível, se daria em um grau inaceitável se se quer adotar uma interpretação que pretenda
alguma coerência para a obra.
Poder-se-ia objetar que as passagens citadas podem referir-se à relação entre militares na
guerra. Porém, se, por um lado, a obediência aos chefes é necessária na guerra, por outro,
também o é na paz e, se será importante entre governantes e auxiliares, não devem menos
obediência aos governantes e auxiliares a classe dos artesãos.
Considerando que Sócrates, nessa passagem e nas que seguem, trata de como, através da
educação, gerar a temperança na cidade, então, contra aqueles que acham que a temperança pode
ser entendida principalmente como consonância entre melhores e piores sobre quem deve
governar, é preciso introduzir os outros aspectos que tinha posto ao lado do respeito aos chefes.
Assim, Sócrates considera que, ao se retratar Ulisses, não se deve:
/
/
593
Pôr o mais sensato dos homens a dizer que a coisa que lhe parece mais bela no mundo é
―estar junto de mesas repletas / de pão e carnes, e o escansão haurir o vinho / dos
crateres, para o vir deitar nas taças.‖
591
PLATÃO. República, 390a4.
592
A utilidade é outro conceito que perpassa toda a República, seja entendida como khrésimos ou como óphelos ou
mesmo beltíon ou béltistos. Sobre a exclusão do que não é útil para a educação dos jovens, ver PLATÃO. República,
409e5-410a4. Sobre a exclusão de harmonias inúteis, ver 398e. Sobre os governantes terem que ter o comportamento
mais útil para a cidade, ver 413e. Sobre a noção de utilidade para a cidade perpassar toda a discussão sobre a
educação comum para as mulheres e a comunidade de mulheres e filhos, ver 457b, 457d, 458e. Sobre o fato de que
esses polêmicos ordenamentos se justificam por serem melhores para a cidade, ver 461e.
593
PLATÃO. República, 390a8-b2.
168
Também a incontinência sexual de deuses, retratada pelos poetas, se prescreve que não
seja aceita
594
.
Sócrates introduz, portanto, os elementos que, junto com a obediência aos chefes,
caracterizam a temperança para a massa: o domínio de si relativo aos prazeres da comida da
bebida e do sexo.
Ora, o que Sócrates faz aqui foi o que se chamou acima de paideía-atrofiante. Enquanto
certos comportamentos são condenados, castigados ou, para usar a expressão que melhor se
encaixa na descrição feita acima dos elementos da alma e de suas relações, ―desonrados‖, outros
são retirados do horizonte de experiência.
Assim, como se propôs acima, algo que é imediatamente experimentado como bem (como
os bens sensíveis), se não é um bem que esteja em posição elevada em uma hierarquia objetiva de
bens, então não pode ser honrado, pois, ao fazê-lo, o que se acaba produzindo é que se consiga
em relação a ele a adesão também do elemento thymoeidés.
Essa relação entre temperança e o auxílio do thymoeidés à razão fica insinuada na
passagem examinada a seguir, embora ela se torne muito mais clara, retrospectivamente,
conhecendo-se os elementos da alma e suas relações. Trata-se da passagem da Odisséia, dada
como exemplo por Sócrates de um ato de firmeza ante todos os perigos por um homem ilustre,
que se deve ouvir na cidade: ―batendo no peito, censurou o seu coração: / agüenta, coração, que
já sofreste bem pior!‖ ( /
)
595
.
Essa é também a passagem que Sócrates usa para mostrar que logistikón e thymoeidés se
diferenciam, pois é tomada como uma ilustração da exortação do logistikón ao thymoeidés para
que contenha sua indignação. Diante do comportamento despudorado das escravas da casa em
relação aos pretendentes, Ulisses fica indignado com seu comportamento vil e deseja puni-las,
mas é contido pela razão que delibera tendo em vista um ―bem‖ maior do que a satisfação
imediata da indignação que clama por justiça.
Ora, é a consciência de estar diante de algo indigno e desonroso, portanto um desvalor,
que provoca a ira de Ulisses. Tal como um cão que reage prontamente ao que é estranho, o
594
PLATÃO. República, 390b-c.
595
PLATÃO. República, 390d4-5.
169
coração de Ulisses sente a impropriedade e a desonra do comportamento das escravas e quer
puni-lo, pois merece a mais severa punição.
Porém, como tinha estabelecido, pela razão, uma maneira mais completa e abrangente
de punição, a qual pode ser interpretada aqui como um ―bem‖ maior divisado pela razão,
repreende em si mesmo o elemento que se indigna e que nesse momento é repuxado pelo clamor
de vingança imediata contra o plano mais ―racional‖ de vingança completa
596
.
A prescrição a seguir não parece se dirigir exclusivamente aos guardiões como sugerem
algumas traduções: ―Tampouco se deve consentir que os homens recebam prendas, nem que
sejam amantes de riquezas‖ (
)
597
.
Ainda com referência à argumentação feita acima sobre a cidade e a alma
598
, partindo-se
do princípio de que a educação visa promover a temperança de todos, então associar valor ou
honra a prendas e riquezas seria fazer o contrário do que é educar para temperança, o que
envolveria atrofiar ou manter não hipertrofiados os desejos.
Permitir associar valor à riqueza significaria produzir uma trophé hipertrofiante do
elemento epithymetikón, por um lado, e uma trophé oposta à desejada para o elemento
thymoeidés, por outro, uma vez que dirigiria honra e valor para as riquezas. Tudo isso é reforçado
pela condenação dos versos atribuídos a Hesíodo, que cita: ―os presentes convencem os deuses,
convencem os reis veneráveis( )
599
; ou pela
condenação dos versos que retratam Fênix a instar Aquiles a aplacar sua ira mediantes presentes,
sem que o fizesse de outra forma, ou daqueles que retratam Aquiles a receber dádivas de
Agamêmnon ou só entregando o corpo de Heitor mediante resgate
600
.
596
Cf. HOMERO, Odisséia, XX.
597
PLATÃO. República, 390d7-8. Tanto Pereira quanto Chambry traduzem ánthropos por ―guerreiros‖, o que deixa
subentendido que esta prescrição, que visa à temperança, se faz em vista dos guerreiros, enquanto aqui se interpreta
que se faz em vista de todos e, propositalmente, evita a palavra guerreiros ou guardiões. A opção por guerreiros dá-
se, parece, pela determinação de que esses homens não devem ser amantes da riqueza, mas é uma leitura pré-
concebida insinuar, através da tradução, que isso será admitido quanto aos outros. Cf. PEREIRA, 1987, P. 111; e
CHAMBRY, 1996, t. 6, p. 98.
598
Cf. capítulo 4.
599
PLATÃO. República, 390e3.
600
PLATÃO. República, 390e.
170
Segundo a mesma linha, expõe passagens nas quais se retrata Aquiles em atitudes tão
impróprias a um herói que chega a duvidar que possam ser atribuídos a ele atos e palavras de
insubordinação contra os deuses, como as que o poeta coloca em sua boca
601
.
Sintetizando o que se viu na poesia de Homero sobre Aquiles, conclui que não se deve
permitir que este seja retratado como tendo um amor à riqueza que não condiz com um homem
livre nem que tenha uma pretensão de superioridade frente a homens e deuses
602
.
Que esses males possam ser considerados contraditórios infere-se do fato de que ser
dominado pelo amor à riqueza indica um tipo de escravidão característica de um homem inferior,
o que tornaria sem sentido sua pretensão de superioridade.
De acordo com o molde segundo o qual dos deuses não pode provir o mal, Sócrates volta
a reforçar, com exemplos, que se devem excluir da cidade narrativas que admitam que deuses ou
filhos de deuses possam lançar-se em atos que não se coadunam com sua natureza, pelo risco de
desencadear nos jovens uma propensão para o mal, por se sentirem escusados de agir da mesma
forma
603
.
Até esse ponto, pela consideração dos conteúdos admitidos nos mitos com os quais se
educarão os jovens na cidade, se podem reconhecer os aspectos de trophé e a-trophé antes
mencionados, mas é preciso avançar pela questão do estilo, das harmonias e da gymnastiké para
que esses aspectos da educação fiquem ainda mais evidentes à luz do que já se falou, assim como
o esclarecimento sobre a quem se destina a educação na cidade no lógos.
É grande o efeito que pode ter na promoção das virtudes na alma e na cidade o estilo de
narrativa escolhido para veicular os mitos compostos segundo os moldes que foram propostos.
Conforme foi visto, o estilo escolhido foi o misto, entendido no sentido formal de
admitir tanto a narrativa simples quanto a mímesis. Porém, excluiu-se que se possa imitar tudo
sem restrição, prescrevendo-se que se pode imitar apenas o que é digno do homem de bem, com
exclusão do que não lhe é próprio e que só pode ser imitado senão como brincadeira.
É preciso ter em vista que a mímesis como é entendida na República envolve um alto grau
de engajamento emocional daquele que imita, tornando-se, portanto, uma poderosa aliada na
601
PLATÃO. República, 391a-b.
602
PLATÃO. República, 391b7-c6.
603
PLATÃO. República, 391e.
171
inculcação dos valores mais nobres que se deseja imprimir na alma dos educandos de forma
indelével
604
.
Se se entende esse aspecto da mímesis, vê-se que, quando os educandos imitam os valores
que se deseja que tenham, não estes valores tornam-se conteúdos aos quais se associa a honra
mas são emulados. Entender esse papel da mímesis na educação poética é fundamental para se
entender o alcance do que diz Sócrates sobre o poder da educação pela mousiké
605
.
As prescrições segundo as quais os guardiões
606
devem imitar só o que lhes convém desde
a infância, com exclusão do contrário, esclarecem ainda mais a noção da trophé desejada para a
alma. Da mesma forma, certos tipos de mímesis e a mímesis em excesso não são admitidos não só
porque a imitação do que não convém acabaria por inculcar esses conteúdos como também
porque a mímesis, em si mesma, envolve uma trophé do elemento epithymetikón que se deve
evitar que fique hipertrofiado.
Ao introduzir a questão do que poderá imitar o educando, Sócrates diz:
607
Por conseguinte, se conservarmos o primeiro argumento, de que os nossos guardiões,
isentos de todos os outros ofícios, devem ser os artífices muito escrupulosos da liberdade
do estado, e de nada mais se devem ocupar que não diga respeito a isso, não hão de fazer
ou imitar qualquer outra coisa. Se imitarem que imitem o que lhes convém desde a
infância a coragem, a sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie.
Mas a baixeza, não devem praticá-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos
outros vícios, a fim de que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade. Ou não te
604
Sobre esse aspecto da mímesis, considere-se que é com seu concurso que melhor se obtém o efeito descrito por
Sócrates quando compara a boa educação com o processo de tingir a lã. Cf. PLATÃO. República, 429e-430a. Ver
também FERRARI, 1989, v.1, p. 92-148. e HAVELOCK, 1996.
605
PLATÃO. República, 401b-402a.
606
Aqui, mais uma vez, não se considera problemática, para a defesa de que a educação de que se fala se estende a
toda a cidade, a referência ao guardião. Toma-se em consideração o argumento segundo o qual as referências ao
guardião como objeto das prescrições m em vista o termo final da educação, que contempla todas as qualidades
visadas, sem exclusão de que a caminho de obtê-las se atinjam outras qualidades necessárias a todos os cidadãos. Por
essa razão, passar-se-á a designar o destinatário da educação como ―educando‖.
607
PLATÃO. República, 395b8-d3.
172
apercebeste que as imitações, se se persevera nelas desde a infância, se transformam em
hábito e natureza para o corpo a voz e a inteligência [diánoian]?
Essa passagem se torna bem clara à luz do que se disse sobre o poder de inculcar valores
da mímesis, embora tenha outras ressonâncias como se verá.
Assim, passa a estabelecer que os homens de que querem ocupar-se e que é preciso que se
tornem homens superiores (ándras agathoùs) não imitarão as mulheres em situações diversas,
sob emoção desmedida ou injustificada, os escravos e escravas em suas ações servis, homens
perversos e covardes em atitudes errôneas e contrárias às que se atribuíram aos guardiões ou os
loucos:
608
Logo, não ordenaremos a um daqueles de quem queremos ocupar-nos e que é preciso
que se tornem homens superiores, que, sendo homens, imitem uma mulher, nova ou
velha, ou a injuriar o marido, ou a criticar os deuses, ou a gabar-se, por se supor feliz, ou
dominada pela desgraça, pelo desgosto e pelos gemidos; muito menos quando está
doente, ou apaixonada, ou com as dores da maternidade.
Diante do assentimento de Adimanto, continua: ―Nem que imitem escravas e escravos,
procedendo como tais‖ ( )
609
; e
continua:
610
Nem homens perversos e covardes, me parece, que fazem o contrário do que pouco
dissemos, que falam mal e troçam uns dos outros e dizem coisas vergonhosas, tanto
quando estão embriagados como sóbrios, e toda espécie de erros que tais pessoas
cometem, em palavras e em ações, contra si mesmos e contra os outros; entendo ainda
608
PLATÃO. República, 395d5-e3.
609
PLATÃO. República, 395e5.
610
PLATÃO. República, 395e-396a6.
173
que não devem habituar-se assemelhar-se aos loucos em palavras nem em atos. Pois
devem conhecer-se os loucos e os maus, homens ou mulheres, mas não fazer nem imitar
nada que seja deles.
Ao perguntar a Adimanto se os homens que querem que sejam bons devem imitar os
ferreiros ou quaisquer outros artífices, os remadores das trirremes ou seus capitães, ou qualquer
outra coisa referente a essas profissões, este responde, com convicção, que não, que nem
poderiam aplicar-se a esses ofícios
611
.
Porém, esse passo exige cuidado, pois estes são os primeiros na enumeração de Sócrates
(do que supostamente não se deve imitar) que não são descritos no exercício de atos indignos ou
tomados de emoção excessiva, ou seja, sentimentos que não convêm ao homem livre
612
.
Também não é Sócrates, mas Adimanto, quem exclui tal imitação sem perceber que é
preciso ter em vista de que artífices se fala e de que nau se fala. Sócrates parece, portanto, deixar
em aberto a possibilidade de que ferreiros e outros demiourgoí sejam imitados desde que não
sejam representados como aneleútheroi, ou seja, escravos de paixões e desordenados. O
surgimento, neste exemplo, das demiourgíai e da arte de navegar evoca ainda a demiourgía do
guardião e a analogia da nau do estado. Se a boa cidade pode ser comparada a uma nau
613
na qual
o capitão e os remadores aceitam, harmoniosamente, o governo dos chefes, quem sabe, então,
imitar remadores obedientes equivale a imitar o respeito aos chefes retratados nos passos da
Ilíada citados por Sócrates e considerados apropriados para serem ouvidos na cidade? Amigo,
cala-te, senta-te e obedece às minhas ordens‖ (
)
614
ou ―Os Aqueus avançavam respirando força, mostrando no silêncio o temor pelos
chefes‖ ( / )
615
.
Ora, é fato que qualquer interpretação segundo a qual Sócrates assentiu sobre a exclusão
sumária e sem qualificação de que se imite ferreiros, que são o protótipo do demiourgós, ou os
marinheiros e seus capitães, prejudica a tese da educação primária comum, por implicar uma
visão depreciativa dessas profissões.
Porém, parece, pelo que diz logo a seguir, que para ele o problema não é o que se imita,
mas a situação da alma daquele que é imitado. Os exemplos citados por Sócrates logo antes,
611
PLATÃO. República, 396a-b.
612
Cf. PLATÃO. República, 395d-c, 395e-396a.
613
Sobre a analogia entre a cidade e uma nau, ver PLATÃO. República, 488a-489b, 551c.
614
PLATÃO. República, 389e6.
615
PLATÃO. República, 389e8-9.
174
sobre quem não se poderia imitar, não incluíram ferreiros ou quaisquer outros artífices, mas
mulheres em atitude indesejável e escravos e escravas em atitudes servis, assim como homens
perversos e covardes: todos, de certa forma, ilustrando a aneleuthería.
O mesmo pode-se dizer sobre a imitação do relinchar dos cavalos, do mugir dos touros,
do murmúrio dos rios, do bramir do mar, dos trovões e ruídos dessa espécie que são excluídos por
Adimanto porque associados à loucura, tendo sido excluída a imitação dos loucos.
É claro que, se a única leitura possível de ferreiro ou demiourgós é a de um homem vulgar
e dominado pela paixão (aneleútheros), então esse não se pode imitar, pelas próprias palavras de
Sócrates. Porém, que o demiourgós não tenha que ser necessariamente assim parece ter sido
implicitamente admitido por Sócrates ao caracterizar o guardião como demiourgós da eleuthería
da pólis.
Se essa interpretação é adotada, o passo seguinte torna-se coerente com o que Sócrates
estabeleceu até aqui, e não com o que foi afirmado por Adimanto.
Sócrates infere do que disse Adimanto, com certa ironia, que duas maneiras de falar e
narrar: uma pela qual se exprime o homem de bem (kalós kagathós) e outra própria do homem
oposto, ambas determinadas não só pelo nascimento, como também pela educação
616
.
617
Ora, pois, se eu percebo o que dizes, uma maneira de falar e de narrar pela qual se
exprime o verdadeiro homem de bem, quando é oportunidade de o fazer e outra maneira
distinta desta, à qual está ligado e na qual se exprime o homem nado e criado ao invés
daquele.
A ironia reside no fato de que Adimanto, ao excluir sumariamente a imitação de qualquer
demiourgós sem qualificação, não atentou para as distinções que Sócrates entende necessárias e
que explica a seguir a pedido de Adimanto:
616
Note-se aqui a necessidade de se considerar a já referida fórmula: phýsis + paideía = dýnamis.
617
PLATÃO. República, 396b10-c3.
175
618
O homem que julgo moderado [métrios anér], quando em sua narrativa, chegar à ocasião
de contar um dito ou feito de uma pessoa de bem [andròs agathoû], quererá exprimir-se
como se fosse o próprio e não se envergonhará dessa imitação, sobretudo ao reproduzir
atos de firmeza e bom senso do homem de bem; querê-lo-á em menos coisas e em menor
grau, quando essa pessoa tiver tergiversado, devido à doença, à paixão, ou mesmo à
embriaguez ou a qualquer outro acidente.
Quando, porém, se tratar de algum exemplo indigno dele, não quererá copiá-lo seriamente
quem lhe é inferior, a não ser de leve, quando tiver praticado algum ato honesto, e, mesmo assim,
sentir-se-á envergonhado:
[...]
619
[...] ao mesmo tempo por não ter prática de imitar seres dessa espécie e por se aborrecer
de se modelar e se formar sobre um tipo de gente que lhe é inferior, desprezando-o no
seu espírito [dianoía(i)], a não ser como entretenimento.
Se se compreende que o risco que Sócrates apontou na mímesis é de que se passe ao gozo
da realidade ao conformar corpo, voz e diánoia ao que se imita
620
, parece que estabelece aqui um
tipo de imitação que não compromete seriamente a diánoia de quem imita, uma vez que o mais
perigoso na personificação mimética é a identificação com os sentimentos e paixões do tipo
humano que é imitado, e não uma imitação que não seja ―séria‖. ―Desprezar na sua diánoiatem,
portanto, o sentido de não permitir que aquilo que é imitado chegue a modelar o próprio
pensamento de quem imita. Daí a diferença entre imitar seriamente e não seriamente.
Quem imita um homem digno, acidentalmente afetado pela bebida, e sem
comprometimento da diánoia ou identificação psicológica com a falta de comedimento que levou
à embriaguez não imita seriamente e não se expõe ao verdadeiro risco dessa conformação, pois só
―imita‖ um comportamento exterior, e não um estado de alma desequilibrado que tem de buscar
em si mesmo para imitar bem.
Parece que o risco é imitar um certo estado em que um verdadeiro desequilíbrio da
alma. Poder-se-ia dizer, tendo já em vista a concepção de justiça na alma apresentada no livro IV,
que é a alma injusta que não pode, de forma alguma, ser imitada pelo educando. A alma justa, se
618
PLATÃO. República, 396c5-d3.
619
PLATÃO. República, 396d7-e2.
620
PLATÃO. República, 395b-d.
176
acidentalmente tergiversa, ainda é uma alma justa e, embora se prefira não imitar esse homem de
alma justa no momento mesmo em que tergiversa, essa imitação não é excluída em absoluto.
A prescrição referente a esse tipo de imitação parece útil à medida que não há como
representar uma pronta reação do homem de bem ao infortúnio e às paixões se se proíbe
representá-lo nesse momento. Como é importante valorizar as atitudes do homem de bem frente
ao infortúnio e às paixões, a representação da pronta recusa a se entregar a esses estados é
absolutamente condizente com a reação de um cão de boa raça frente ao que é estranho. Nesse
tipo de imitação, o que importa é mais a reação do que o breve momento de tergiversação. É
como se se admitisse aqui que se imite o próprio Sócrates perturbado pela visão do corpo de
Cármides por baixo do manto no Cármides
621
.
Esse passo do Cármides é um testemunho do proverbial autodomínio de Sócrates. O
homem de bem não pode ser mostrado recompondo-se rapidamente se não for mostrado em uma
situação em que tergiversa por um momento. Note-se que nos passos referidos Sócrates
recompõe-se prontamente. É essa recomposição que parece interessar aqui, e não o momento da
tergiversação. Não que quem imita esteja autorizado a buscar ―sentir‖ o que Sócrates sentiu no
momento da tergiversação. Deve, antes, ―sentir‖ apenas a vitória da razão. Daí para esse tipo de
imitação se recomendar que seja imitação em ―menor grau‖.
Ainda a ilustrar a interpretação que se pretende dar aqui para as últimas passagens citadas,
está a admissão de que até alguém indigno do homem de bem pode ser imitado, desde que não
―seriamente‖, ou seja, sem comprometimento da diánoia, mas de leve, quando tiver praticado um
ato honesto. Ora, invertendo-se o que se disse sobre a prescrição anterior, o que pode ter alguma
utilidade nesse tipo de imitação é o louvor de que pode ser objeto o homem que, mesmo
vencendo sua natureza em desequilíbrio, age bem. É claro que aqui não se pode imitar sem
desprezar na diánoia o tipo que é imitado; além disso, toda ênfase da imitação tem de estar,
obviamente, na vitória da razão. Essa vitória do homem inferior sobre si mesmo e a honra que
pode ser associada a ela é uma maneira de educar para a vitória do bom senso sobre os desejos, e
alguma utilidade tem de ter para que seja admitida, ainda que com todos os cuidados e restrições.
Assim, os tipos de imitação que devem ser considerados como admitidos são,
resumidamente, os que seguem:
621
PLATÃO. Cármides, 155c-156d.
177
Anér agathós: pode ser imitado, sobretudo ao reproduzir atos de firmeza (asphalôs
sólido) e de bom senso (emphrónos).
Anér agathós induzido ao erro sob o domínio da paixão, doença, embriaguez: pode ser
imitado, porém, menos e em menor grau.
Homem inferior (kheíroni), indigno de ser considerado anér agathós, quando pratica ato
honesto (khrestón): pode ser imitado, mas em menor grau e não seriamente. Esse tipo humano
não é admitido na poesia, pois a ―imitação poética‖ é sempre ―séria‖.
Homem inferior (kheíroni) indigno de ser considerado anér agathós e que está dando
curso a ações que decorrem do estado injusto de sua alma: não pode jamais ser imitado.
Se a mímesis envolve um engajamento psicológico e um gozo da realidade‖ quando é
vivenciada, não é surpreendente que Sócrates admita, depois de todas essas considerações, que o
estilo de narrativa adotado na cidade será o que participa de ambos os processos: a imitação e a
narrativa simples.
Se o papel da educação é moldar o caráter dos educandos para que alberguem na alma
tudo o que é nobre e belo e que é sempre associado a um valor, então a imitação é uma forma
poderosa de obter esse efeito.
Como, porém, o efeito pode se produzir no caso da imitação do homem inferior, é claro
que, desse ponto de vista, se pode admitir a forma de narrativa que atende às prescrições
descritas, excluindo aquela na qual se imita tudo sem restrição.
Adotar esse modelo de narrativa encontra, aliás, fundamento no próprio princípio segundo
o qual cada um executa a sua tarefa e que permite que o sapateiro seja só sapateiro e execute só o
que lhe compete
622
. Assim, o homem de bem só faz o que é próprio do homem de bem.
Ao determinar a forma de exposição (diégesis) do homem moderado, fica estabelecido
que será aquele que corresponde às epopéias de Homero, admitindo, portanto, mímesis e narrativa
simples, reservando, em um discurso extenso, pouco lugar para a mímesis
623
.
Sócrates volta a considerar a questão da seriedade, ou aplicação (spoudé) na imitação, ao
tratar do orador que se opõe àquele que imitará tudo sem restrição e em grande quantidade e cujo
discurso será todo feito de imitação. É só então que exclui que se imitem os ruídos antes
mencionados: trovões, o ruído do vento, da saraiva, dos eixos e roldanas, trombetas, flautas,
622
PLATÃO. República, 396e.
623
PLATÃO. República, 396e.
178
siringes e os sons de todos os instrumentos, e ainda os ruídos dos cães, das ovelhas e das aves
624
.
Seu discurso será todo feito através de mímesis e conterá pouca narração.
Mais uma vez, como no caso da possibilidade ou não de se imitar ferreiros
625
, Sócrates
parece ter corrigido Adimanto, estabelecendo que não se deve imitar ―seriamente‖ (spoudé) os
ruídos e instrumentos mencionados. Um sinal disso é que inclui entre os instrumentos que não
podem ser imitados ―seriamente‖ a siringe
626
, um dos que ficam na cidade
627
e que corresponde
ao instrumento próprio do pastor, figura que, na República, remete ao governante
628
. Por mais
que o som da siringe não seja inadequado, como o da flauta, não espaço para a mímesis
―séria‖, a não ser daquilo que colabore para a inculcação de valores desejados
629
.
introduzindo a questão das harmonias e ritmos, Sócrates entende que a forma de narrar
do homem comedido, pela sua própria simplicidade, exige menos variação também na harmonia
e é esta a forma que imita o homem de bem (epieikoûs) e é caracterizada como ―sem mistura‖
(akráton), que entende que deverá ser recebida na cidade, embora seja a mista mais aprazível
para crianças, preceptores e a multidão
630
. É que não existe na cidade homem duplo ou múltiplo
tendo cada um uma tarefa.
No entanto, parece errôneo interpretar a opção pela forma ―sem mistura‖ de narrativa na
cidade como uma variante do ―princípio de especialização‖, pelo qual cada um realiza uma
tarefa, pois, como já se viu, o problema não é a diversidade de atitudes exteriores, mas o
engajamento psicológico que a imitação ―séria‖ e variada envolve e que acaba conformando a
diánoia. O homem que imita tudo não é expulso apenas pelo conteúdo em desacordo com os
moldes, mas enquanto imitador, pela atitude psicológica de albergar em si os modelos de tudo e,
por outro lado, comprometer a diánoia. De qualquer forma, esse é o ponto do texto em que fica
definido o estilo na cidade: aquele que reúne narrativa simples e mímesis e que se chamou aqui de
624
PLATÃO. República, 397a.
625
PLATÃO. República, 396a-b.
626
PLATÃO. República, 397a.
627
PLATÃO. República, 399d.
628
PLATÃO. República, 440d.
629
Toda essa discussão sobre o estilo da poesia admitido na cidade contribui para refutar o argumento mero 4, de
Reeve, elencado na introdução, contra a tese da educação primária comum. Se os artesãos devem ser temperantes e
justos, então, se o forem, serão também, em certa medida, kalós kagathós. Que os exemplos que lhes sejam
oferecidos à emulação sejam também de alguém kalós kagathós é coerente com o fato de que eles devem imitar
aqueles semelhantes aos quais devem se tornar.
630
PLATÃO. República, 397d.
179
misto no sentido formal, mas que não admite imitação ―séria‖ que não seja do que concerne ao
homem de bem
631
.
Sócrates sacramenta essa norma na passagem em que, ironicamente, propõe que se
chegasse à cidade um poeta que imitasse tudo sem restrição, lhe seriam conferidas honrarias
como as devidas a um homem divino, maravilhoso e encantador, mas que fosse mandado embora,
pois seria útil para a cidade o poeta mais austero que imitasse unicamente a fala dos homens
de bem e compusesse segundo os moldes propostos:
632
Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomar
todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus
poemas, prosternávamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso,
encantador, mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade não homens dessa espécie, nem
sequer é lícito que existam e mandá-lo-íamos embora para outra cidade, depois de lhe
termos derramado mirra sobre a cabeça e de o termos coberto de grinaldas. Mas, para
nós, ficaríamos com um poeta e um narrador de histórias mais austero e menos
aprazível, tendo em conta sua utilidade, a fim de que ele imite para nós a fala do homem
de bem e se exprima segundo aqueles modelos que de início regulamos quando
tentávamos educar os militares [stratiótas].
É interessante que Sócrates aqui se refira aos moldes propostos no início, quando
começou a tratar da educação dos militares. Que não tenha usado a palavra phýlax parece indicar
que a necessidade de educar os militares foi apenas o pretexto para a proposta de um modelo
educacional mais geral, uma vez que as qualidades do phýlax e dos homens de bem que a
educação visa formar ultrapassam de muito as especificidades técnicas da arte militar
compreendida como arte da guerra.
Enquanto da arte da guerra faz parte a guarda dos bens territoriais e materiais, a arte do
phýlax tem um sentido muito mais amplo que envolve também a guarda dos valores pelos quais a
631
PLATÃO. República, 397d.
632
PLATÃO. República, 398a1-b4.
180
cidade vive. Depois de ter estendido essa função do phýlax para muito além da de um soldado
regular, voltar a usar esse termo pode indicar muito mais o início do processo de educar a cidade,
quando se estabeleceram os moldes que seguiria a educação, do que uma referência à classe que
se tentava educar.
Considerando que esgotou a discussão sobre os discursos e histórias na arte das Musas,
passa a tratar do canto e da melodia (tò perì o(i)dês trópou kaì melôn loipón)
633
.
Entendendo que a melodia se compõe de três elementos: as palavras (lógos), harmonia e
ritmo e entendendo que já tratou do lógos e deve seguir os modelos estabelecidos ao se tratar
dele, prescreve que a harmonia e o ritmo devem acompanhá-lo.
Assim como se excluíram do lógos os lamentos e gemidos, excluir-se-ão as harmonias
lamentosas, moles e dos banquetes e as efeminadas por não convirem aos educandos a
embriaguez, a moleza e a preguiça, nem a soldados o caráter efeminado
634
.
As harmonias escolhidas para figurar na cidade também têm um papel importante na
constituição da coragem e da temperança:
635
Não entendo bem de harmonias prossegui eu. Mas deixa-nos ficar aquela que for capaz
de imitar convenientemente a voz e as inflexões de um homem valente na guerra e em
toda a ação violenta, ainda que seja mal sucedido e caminhe para a morte ou incorra em
qualquer outra desgraça, e em todas estas circunstâncias se defenda da sorte com ordem
e com energia. E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra em atos pacíficos,
não violentos, mas voluntários, que usa do rogo e da persuasão, ou por meio da prece
aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos homens, ou, pelo contrário,
se submete aos outros quando lhe pedem, o ensinam ou o persuadem, e tendo assim
procedido a seu gosto e sem sobranceria [hyperphános] se comporta com bom senso e
633
PLATÃO. República, 398c.
634
PLATÃO. República, 398d.
635
PLATÃO. República, 399a5-c4.
181
moderação [sophrónos te kaì metríos] em todas essas circunstâncias, satisfeito com o
que lhe sucede
636
. Estas duas harmonias, a violenta [bíaion] e a voluntária [ekoúsion]
que imitarão admiravelmente as vozes de homens bem e mal sucedidos, sensatos
[sophrónon] e corajosos [andreíon], essas, deixa-as ficar.
Ao selecionar as harmonias, Sócrates destaca dois aspectos: a coragem na guerra e em
toda a ação violenta aliada à ordem e energia qualquer que seja a circunstância. Ora, como se viu
na discussão sobre a coragem, ela implica exatamente na inalterabilidade do caráter em qualquer
circunstância e é claro que a coragem ―física‖ de que se fala pode também ser compreendida no
sentido ―psicológico‖, como fica claro pela expressão ―ordem em qualquer circunstância‖, que
expressa o grau de exigência próprio da coragem em vista de definir o érgon do guardião. Assim,
nada mais natural que se volte a usar a palavra phýlax, que aqui é o fim almejado.
Porém, ainda aquela harmonia que deve ficar na cidade e serve para aquele que se
encontra em atos pacíficos e não violentos (biaío(i)), mas voluntários (ekousía(i)). Sobre aquela,
fica claro que é a mesma ―voz‖ a do que persuade e a do persuadido. Essa visão da harmonia
voluntária espelha, portanto, a temperança entendida como uníssono
637
e homodoxía
638
entre o
que persuade e o persuadido e tem como único fundamento plausível uma educação comum, pela
qual as ―vozes‖, mesmo que em oitavas diferentes, possam emitir a mesma nota
639
.
Note-se que o caminho para se conquistar essa homodxía envolve, por um lado, rogo ,
persuasão, ensinamento, e admoestações e, por outro lado, uma disposição não forçada de aceitá-
los (katà noûn) sem qualquer sentimento de superioridade ferida
640
, terminando em atos de bom
senso e moderação (sophrónos te kaì metríos) e acolhimento amistoso do que sucede nessas
circunstâncias.
Toda linguagem desse último passo citado parece esclarecer o sentido da harmonia que
rege a consonância entre governantes e governados sobre quem deve governar e mostra mais uma
vez o papel da paideía para a inculcação da coragem e da temperança.
636
Esse comportamento contrasta com o do homem que diante do infortúnio cultiva o ―prazer‖ de satisfazer, por
exemplo, sua ―sede de lágrimas‖. Cf. PLATÃO. República, 606a. O comedimento aqui diz respeito a esses prazeres,
e a ligação que se faz nesse passo entre temperança e coragem mostra, mais uma vez, a relação entre as duas
virtudes. Sem um certo grau de coragem, ou seja, adesão ou honra de certos valores em detrimento de valores
sensíveis, não como, harmonicamente, abrir mão deles. Se é preciso educar mesmo os melhores para que atinjam
esse estado e, com tantos cuidados, o que não dizer dos outros cidadãos?
637
PLATÃO. República, 432a.
638
PLATÃO. República, 433c.
639
Sobre a harmonia grega, ver. ADAM, 1979, v. 1, p. 156.
640
Sobre esse ponto, note-se a descrição do comportamento de Aquiles em PLATÃO. República, 391a-c.
182
A função educativa desses dois tipos de harmonia tem que ver, fundamentalmente, com a
coragem e a temperança. Embora se possa dizer que os governantes estão educando os guardiões
para que sejam auxiliares cordatos no sentido acima, é preciso admitir também que os artesãos
não precisam ser menos cordatos e, portanto, educá-los assim é útil à cidade. Essa utilidade, já se
defendeu aqui, não é um critério a ser descurado ao se investigar o alcance das prescrições da
paideía na cidade.
A limitação das harmonias acaba limitando os tipos de instrumentos necessários na
cidade, restando a lira e a cítara, que servirão na cidade, enquanto os pastores, no campo, terão a
siringe
641
.
Depois de tratar das harmonias e instrumentos, Sócrates entende que ficou purificada a
cidade que pouco tinha chamado luxuriosa (tryphân)
642
. Note-se que a palavra tryphân refere-
se à luxúria e que a cidade se diz purificada ainda que não se tenha ainda tratado, diretamente,
da gymnastiké e de outras prescrições sobre o modo de vida que, de fato, tirarão do horizonte de
experiência prazeres desnecessários sob esses aspectos.
Subentende-se aqui que a educação da alma pela mousiké é o fator principal na produção
da temperança, como ficará mais claro adiante
643
. De qualquer forma pode-se compreender que
há certos prazeres emocionais exacerbados e desnecessários que são purificados pelas prescrições
feitas quanto à poesia e que, portanto, concorrem para a a-trophé ou, pelo menos, não favorecem
a hipertrofia do elemento epithymetikón, a qual tornaria os homens intemperantes.
Ao tratar do ritmo, Sócrates se diz necessitado da ajuda de Dâmon, mas estabelece como
regra geral que não deve ser variado, mas correspondente a uma vida ordenada (kosmíou) e
corajosa (andreíou). Estabelece ainda que ―[...] a beleza ou fealdade de forma depende do bom e
do mau ritmo‖ ([...]
[...])
644
.
E acrescenta:
641
PLATÃO. República, 399e.
642
PLATÃO. República, 399e.
643
PLATÃO. República, 404e.
644
PLATÃO. República, 400c7-8.
183
645
Mas na verdade, o bom e o mau ritmo seguem, imitando-o, aquele, o estilo [léxei] bom,
este o inverso; e do mesmo modo sucede com a boa e a harmonia, se o ritmo e a
harmonia se adaptam à palavra, como há pouco se disse, e não a palavra a esses.
E continua:
[...] [...]
646
Mas o modo de expressão (ho trópos tês léxeos) e a palavra [gos] dependem do caráter
da alma [tês phykhês éthei] [...] E da expressão [léxei] tudo o mais.
Só então conclui:
647
Logo, a boa qualidade do discurso, da harmonia, da graça e do ritmo depende da
qualidade do caráter, não daquele a que, sendo debilidade de espírito, chamamos
familiarmente ingenuidade, mas da inteligência [diánoia] que verdadeiramente modela o
caráter na bondade e na beleza.
O que aqui é uma dupla dependência: um bom lógos e uma boa léxis determinam boa
harmonia e bom ritmo e tudo isso modela o caráter. Por outro lado, é necessário um bom caráter
já formado para modelar assim a mousiké como um todo: esse é o papel do governante e, de certa
forma, dos que se ocupam aqui de educar com o lógos.
Assim, a modelação do caráter dos jovens depende de que a beleza e a bondade estejam
por toda parte e, como legisladores, Sócrates e os interlocutores continuam a fazer as prescrições
que tornem possível esse efeito:
648
Portanto, não devem os jovens procurar por toda parte estas qualidades, se querem
executar o que lhes incumbe [tò autôn práttein]?
645
PLATÃO. República, 400d1-4.
646
PLATÃO. República, 400d6-9.
647
PLATÃO. República, 400d11-e3.
648
PLATÃO. República, 400e5-6.
184
Sócrates usa aqui uma fórmula cuja força salta aos olhos por ser aquela que define uma
virtude fundamental da cidade e que será identificada com a própria justiça: executar cada um a
sua tarefa. Poder-se-ia acrescentar: belamente e o mais perfeitamente possível
649
.
Ocorre que há três classes na cidade as quais devem executar cada uma a sua tarefa e uma
dessas classes é a dos artesãos. Não se beneficiariam os jovens artesãos dessa mesma modelagem
do caráter do qual tudo depende e do qual dependem escolhas, ações, obras e execução perfeita
da sua tarefa?
As passagens que seguem parecem sugerir exatamente isso:
650
Mas também a pintura está cheia delas, bem como todas as artes desta espécie. Cheia
está a arte de tecelagem, de bordar, de construir casas, e o fabrico dos demais objetos.
Em todas estas coisas há, com efeito, beleza ou fealdade. E a fealdade, arritmia, a
desarmonia, são irmãs da linguagem perversa e do mau caráter; ao passo que as
qualidades opostas são irmãs e imitações do inverso, que é o caráter sensato e bom.
E continua:
649
PLATÃO. República, 370c-d.
650
PLATÃO. República, 401a1-8.
185
651
Mas então aos poetas é que devemos vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos
a imagem do caráter bom, ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar
também os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a
baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer
outra obra de arte? E, se não forem capazes disso, não deverão ser proibidos de exercer o
seu mister entre nós, a fim de que os nossos guardiões [phýlax]
652
, criados no meio de
imagens do mal, como no meio das imagens do mal, como no meio de ervas daninhas,
colhendo e pastando aos poucos, todos os dias, porções de muitas delas,
inadvertidamente não venham a acumular um grande mal na sua alma? Devemos mas é
procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a seguir os vestígios da
natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um
lugar saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes impressione os olhos
ou os ouvidos, procedente de obras belas, como uma brisa salutar de regiões sadias, que
logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar de
harmonia com a razão formosa?
Ora, se se propõe que a cidade seja, por todos os lados, modeladora do caráter na beleza, a
ponto de seus jovens estarem expostos a ela como a uma brisa salutar, como não esperar algum
efeito de tão poderoso recurso modelador também no caráter dos futuros artesãos? Como impedir
a ―brisa‖ de chegar a todos? A única interpretação que poderia excluir isso seria a admissão de
que se está construindo duas ou três cidades, e não uma, o que é incoerente com o que se afirma
sobre a cidade
653
.
Sobre esse poder da mousiké, diz Sócrates:
654
Não é então por esse motivo, ó Gláucon, que a educação pela música é capital, porque o
ritmo e a harmonia penetram fundo na alma e afetam-na mais fortemente trazendo
651
PLATÃO. República, 401b1-d3.
652
Sobre aqui haver referência ao phýlax, veja-se a argumentação segundo a qual às vezes o phýlax é o termo visado
pela paideía, sem que isso implique, necessariamente, que, quando se fala dele nesse âmbito, se estejam excluindo os
outros cidadãos.
653
Cf. PLATÃO. República, 423c.
654
PLATÃO. República, 401d5-402a4.
186
consigo a boa conformação
655
[euskhemosýnen], e tornando aquela bem conformada
656
[euskhémona] se se tiver sido educado? E quando não, o contrário? E por que aquele que
foi educado nela, como devia, sentiria mais agudamente as omissões e imperfeições no
trabalho [demiourgía] ou na conformação natural, e, suportando-as mal, e com razão,
honraria as coisas belas, e, acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se
alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito, ao passo que as coisas feias, com razão as
censuraria e odiaria desde a infância, antes de ser capaz de raciocinar, e, quando
chegasse à idade da razão, haveria de saudá-la e reconhecê-la pela sua afinidade com ela,
sobretudo por ter sido assim educado.
Se uma boa trophé torna a alma bem conformada e a falta de uma boa trophé a torna mal
conformada
657
, então privar os artesãos de uma boa trophé é privá-los de uma alma bem
conformada. Mas é dessa trophé mesma que se diz depender a capacidade de sentir agudamente
as imperfeições da demiourgía.
Ora, que as demiourgíai tenham sido aqui mencionadas em nítida contraposição às coisas
que vêm a ser de forma defeituosa pela ação da própria natureza parece indicar que Sócrates tem
em vista as coisas que vêm a ser bem ou mal constituídas pela ação de um demiourgós que as
produz e é tomado aqui em sentido amplo
658
.
Assim, o demiourgós bem educado, tal como um cão que sente de longe o estranho,
suporta mal as imperfeições em sua própria obra. Nessas passagens, parece mesmo estender a
noção de guarda até o ponto em que, se não chega a constituir uma dýnamis apropriada para um
érgon específico na cidade, não deixa de ser um tipo de perseverança no conhecimento do que se
deve temer. Seria contraditório com o critério de perfeição que se exige também da obra dos
artesãos não educá-los para rejeitar as imperfeições na sua obra, assim como o seria com a noção
de utilidade, que perpassa a cidade, que eles não fossem educados com esse fim
659
.
Todas essas passagens sobre o efeito da paideía parecem ecoar o ideal que Adimanto
antecipou: que uma educação apropriada tornaria os homens guardiões de si
660
. A noção de
655
Tradução com alterações.
656
Tradução com alterações.
657
PLATÃO. República, 370c-d.
658
Contra o argumento de que o demiourgós aqui referido é o phýlax, e não o demiourgós entendido no sentido
amplo, poder-se-ia aduzir ainda que isso excluiria o guardião-auxiliar dessa qualificação, pois não é ele quem
delineia a politeía. Ocorre, entretanto, que ele é claramente beneficiado pelos aspectos citados da paideía e com os
efeitos citados. Sobre o guardião-auxiliar ser também nomeado demiurgo, ver PLATÃO. República, 421b-c. Sobre a
necessidade de que a obra dos que pertencem à classe dos artesãos tenha de ser bem feita, ver PLATÃO. República,
374b-c, 421b-c. Sobre a razão da extensão do conceito de demiurgós, abarcando desde o phýlax até os artesãos da
cidade, ver AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. Hefesto, vem cá, depressa, Platão precisa de ti. Kléos, Rio de
Janeiro, v. 9-10, n. 9-10, p. 67-86, jul 2005/jul 2006.
659
Sobre a noção de utilidade na República, ver nota 592, supra.
660
PLATÃO. República, 367a.
187
guardião e a ênfase com que atribui sua dýnamis de sentir o estranho à trophé contrabalança o
peso inicial da natureza na determinação dessa dýnamis quando, em primeiro lugar, foi
considerado o cão
661
. Agora, depois de descrita e considerados os seus efeitos, é a trophé que
mostra sua força e a possibilidade de determinar, pelo menos em uma certa medida, a capacidade
de que cada um na cidade seja guardião: ao menos de si mesmo e da beleza de sua obra.
É claro que a sugestão de tal extensão da palavra ―guardião‖ não significa a eliminação da
tripartição da cidade, assim como a atribuição da palavra demiourgós ao phýlax também não a
elimina. Assim como o phýlax é demiourgós em um certo sentido, todos os beneficiários da
paideía proposta acabam, em certa medida, sendo também guardiões. Isso não exclui que se
continue defendendo aqui que é a coragem no sentido pleno que pode definir o érgon do guardião
em sentido estrito, o qual só se pode determinar por testes nos quais nem todos são bem-
sucedidos.
Ainda segundo essa linha de interpretação, Sócrates passa a falar de um músico, que
pode ser o filósofo-dialético, que fosse capaz de reconhecer as virtudes promovidas pela paideía
qualquer que fosse a pessoa e o grau em que se manifestasse:
662
É como quando aprendemos as letras e achamos que as sabíamos o suficiente quando
os caracteres, apesar de poucos, não nos passavam despercebidos em todas as
composições em que entravam, e, se fossem elas grandes ou pequenas, não as
desprezávamos, como se não devessem ser notadas, mas em todo o lado nos
esforçávamos por as distinguirmos, na convicção de que não deixaríamos de ser
analfabetos antes de atingir essa fase
663
.
Diante do assentimento de Gláucon, continua:
661
Note-se que, inicialmente, ao se considerar como deveriam ser os guardiões, se enfatizou a ―natureza‖. PLATÃO.
República, 375a-376d.
662
PLATÃO. República, 402a7-b3.
663
Note-se, a esse respeito, o ―analfabetismo‖ de Laques, no diálogo homônimo, por não reconhecer na perseverança
da alma do médico uma instância da coragem. Cf. seção 2.2.
188
664
Portanto, não reconheceremos as imagens das letras, se nos apresentarem refletidas na
água ou em espelhos, antes de as conhecermos a elas, pois pertencem à mesma arte e ao
mesmo estudo [tékhnes te kaì melétes]?
Glaúcon concorda, e Sócrates continua:
665
Ora, pois, pelos deuses! Digo do mesmo modo que não seremos músicos, nem nós
mesmos nem aqueles que nos propusemos a educar para serem guardiões, antes de
conhecermos as formas [eíde] da temperança, da coragem, da generosidade, da grandeza
de espírito e de quantas qualidades forem irmãs destas, e por sua vez os vícios que lhes
são contrários, onde quer que andem, e de sentirmos a sua presença onde eles se
encontram, e as respectivas imagens, sem as desprezarmos nas pequenas ou nas grandes
coisas, pois acreditaremos que pertencem à mesma arte e ao mesmo estilo [tékhnes eînai
kaì melétes].
Embora muito já se tenha escrito sobre essa passagem e Adam argumente em favor de que
não se tome o termo eíde no sentido de ideias transcendentes
666
, mas como espécies, o que se
propõe aqui é que aquela seja interpretada como dizendo respeito à khne e meléte de um
guardião
667
, que variam em graus, entendidas em seu grau máximo.
Se se aceita, como vem sendo defendido aqui, que já houve uma ―antecipação‖ do
filósofo-governante na imagem do cão-filósofo e na referência à ―música filosófica‖ no Livro
III
668
, então fica eliminado o principal obstáculo para que o termo eíde seja interpretado assim, e
toda essa passagem e as posteriores ganham mais coerência.
A primeira passagem desse grupo é uma clara referência à dýnamis dialética, pela qual se
reconhece a unidade no múltiplo e que depende do conhecimento completo do elemento
664
PLATÃO. República, 402b5-7.
665
PLATÃO. República, 402b9-c8.
666
Cf. ADAM, 1979, v. 1, p. 168.
667
Cf. PLATÃO. República, 374e.
668
Entenda-se por ―música filosófica‖ aquela que é mencionada no livro III, da República, e que,
surpreendentemente, envolve philomátheia, zétesis e máthemata. Cf. PLATÃO. República, 411c-d.
189
unificador. Se entendermos as ideias como o elemento unificador de todas as suas instâncias,
sejam elas objetos sensíveis ou manifestações de dynámeis, como as virtudes, então é à
capacidade de distingui-las que Sócrates se refere aqui.
Ora, esse conhecimento do filósofo-governante não se reduz a reconhecer as instâncias
dos eíde da temperança, coragem e das demais virtudes, parcialmente representadas e às vezes
distorcidas, nas obras dos poetas, mas, antes, e, principalmente, como dynámeis presentes nos
homens. Poder-se-ia, inclusive, atribuir a isso o fato de que sejam tão bons ―eugenistas‖
669
.
Se se aceita o que se disse até aqui, a terceira passagem faz referência, portanto, à música
no sentido forte de filosofia, e o guardião que se tem em vista nela é o filósofo-governante, uma
vez que se está formando alguém que conhecerá não só as formas da virtude mas do vício, sem as
desprezar nas pequenas e nas grandes coisas.
Ademais, essa dýnamis do filósofo-governante é que o tornará capaz de reconhecer as
próprias dynámeis resultantes da síntese entre phýsis e paideía nos educandos. Que seja de
alguém com essa função de que se está falando parecem confirmar as passagens seguintes:
Diz Sócrates:
670
Logo prossegui eu quem fizer convergir, intimamente, na sua alma, boas
disposições, que, no seu aspecto externo, condigam e se harmonizem com aquelas, por
participarem do mesmo modelo, tal pessoa será a mais bela visão para quem puder
contemplá-la?
Diante do assentimento de Gláucon de que será a visão mais bela, Sócrates conclui que o
mais belo é o mais amável (erasmiótaton) e finaliza:
671
Eis porque o músico se encantaria o mais possível com homens dessa espécie; e se fosse
privado de harmonia, não se encantaria.
669
PLATÃO. República, 459a-461e.
670
PLATÃO. República, 402d1-4.
671
PLATÃO. República, 402d8-9.
190
O que estas passagens indicariam, se se aceitar a interpretação que se defendeu até agora,
é que qualquer homem, no qual o aspecto externo e as ações decorram de um éthos que participe
daqueles modelos (eíde) da temperança, coragem, generosidade, grandeza de alma e outras
semelhantes, encantará o educador que verá sua demiourgía bem realizada, mesmo que ela
comporte graus e se manifeste em diferentes oitavas
672
.
O que se propõe aqui é que todas essas passagens, que vão de 400b a 402d, sejam
consideradas a descrição dos efeitos e da utilidade máxima de uma demiourgía que produza a
eleuthería da pólis, pela extensão da paideía a todos os cidadãos.
De resto não faria sentido falar da demiourgía de um demiourgós, cujo érgon é produzir a
eleuthería da pólis, sem essa extensão, principalmente se o seu resultado permite olhar para a
cidade e encontrar nela uma harmonía e uma symphonía
673
.
Se o que se disse até aqui procede, então deixa de ser objeção à tese da educação comum
que Sócrates se refira aos educandos como kalós kagathós, métrios anér, homens belos de se ver,
pois são essas virtudes mesmas que a paideía, guardadas as diferenças de grau e de ―oitavas‖,
produz naqueles sobre os quais age e que podem tirar proveito dela.
De resto, seria injustificável querer impor a Platão a submissão, do ponto de vista do uso
das palavras, a categorias históricas e culturais com as quais, na própria República, ele está o
tempo todo rompendo. É ele quem constrói conceitos
, amplia significados
674
e chega a denunciar
exatamente a superficialidade com que se usa termos como kalós kagathós
675
.
672
Com esse último argumento, no qual se mostra que a ―música‖ referida pertence ao filósofo-governante,
pretendeu-se refutar o argumento número 7, de Reeve, contrário à tese da educação primária comum, elencado na
introdução. Segundo Reeve, nesse argumento, a passagem 402b5-c8 deve ser interpretada como dizendo respeito à
―música‖ entendida como educação primária, ou seja, poética, mas o que ocorre é que ela se refere à ―música‖ no
sentido filosófico. Essa ―música‖ sequer é estendida aos auxiliares ou aos artesãos.
673
PLATÃO. República, 430e.
674
Sobre a ampliação do sentido de dikaiosýne na República, ver AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. Politéia
e dikaiosýne: uma análise das relações entre política e utopia na República de Platão. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ,
1989.
675
Cf. PLATÃO. República, 569a3-4, onde faz um uso irônico de kalós kagathós: ―[...] dos ricos e dos chamados
homens de bem [kalôn kagathôn][...]‖([...] [...]). Ainda
sobre a questão do uso dos termos pelos quais se pode ―hierarquizar‖ pessoas, Nightingale mostra como Platão erige
uma hierarquia na qual se distinguem dois tipos: filósofo e não-filósofo. Mostra ainda que faz um redirecionando da
retórica da banausía, citando uma passagem do Banquete e outra do Teeteto: ―God does not mix with man, but it is
through this being [i.e. the intermediary called a daímon] that all intercourse and conversation takes place between
the gods and men, whether they are awake or sleeeping. And the person who is wise in this regard is a daemonic man
(daimónios anér) but the person who is wise in any other regard, whether in the realm of arts and sciences or manual
labor, is banausic (nausos)‖ (PLATÃO. Banquete, 203a.); ―God is no way unjust, but is as just as it is possible to
be, and there is nothing more similar to god than the man who becomes as just as possible. It is concerning this
activity that a man is revealed as truly clever or else worthless and cowardly. For the knowledge of this is wisdom
191
Considerando que se tratou suficientemente do pensamento (diánoian hikanôs
therapeúsantes), ao tratar do lógos, da léxis, da harmonia e dos ritmos
676
, Sócrates passa, em
seguida, a tratar da ginástica e volta a usar o termo ―jovens‖ para referir-se aos educandos:
―Depois da música, é na ginástica que se devem educar os jovens [neaníai] (
)
677
.
E complementa: ―Devem ser educados nela cuidadosamente [akribôs tréphesthai] desde
crianças [paídon] e pela vida afora‖ (
)
678
.
Entendendo a ginástica, a princípio, como o que promove a saúde e a excelência do
corpo
679
, fica sendo a exclusão da embriaguez, assim como todas as restrições que dizem respeito
aos alimentos, um exemplo claro do que se vem chamando aqui de atrophía do elemento
epithymetikón. Embora essa atrophía diga respeito também às emoções excessivas e impróprias,
é, ao tratar da ginástica e tirar do horizonte de experiência dos jovens os prazeres
desnecessários
680
da bebida, da comida e do sexo, que Sócrates cuida de não tornar o desejo por
eles ―superabundantes‖ por uma falta de cuidado com a paideía
681
.
A eliminação desses prazeres representa, na verdade, um expurgo em relação à cidade
luxuriosa e que se justifica por espelhar a simplicidade da harmonia e dos ritmos adotados antes.
Levando mais adiante a analogia, Sócrates conclui pelo benefício da gymnastiké adotada
apontando que, na música, a variedade (poikilía) produz a licença (akolasían) e, na ginástica, a
doença (nóson), enquanto a simplicidade na música gera a temperança na alma (en psykhaîs
and virtue in the true sense, and the ignorance of it is manifest folly and viciousness. All other things that appear to
be cleverness and wisdom whether their sphere is politics or the other arts are vulgar or banausic (bánausoi).‖ Cf.
PLATÃO. Teeteto, 176c. Cf. NIGHTINGALE, 1995. p.55. Com esses argumentos, espera-se ter refutado, mais uma
vez, o argumento número 4, de Reeve, elencado na introdução. Considerando-se que o que se visa na cidade no gos
é produzir por toda a cidade homens de alma ordenada, os homens mencionados por Reeve no argumento, servem,
sim, de modelo para todos os cidadãos. O que se tem em vista na cidade com histórias de guerreiros bravos e
corajosos, se, por um lado, é associar honra a coragem guerreira, por outro, é honrar também certos valores que se
quer preservar em toda a cidade.
676
PLATÃO. República, 403d-e.
677
PLATÃO. República, 403c9.
678
PLATÃO. República, 403c11-d1.
679
Mais tarde, será estendida sua influência à alma. Cf. PLATÃO. República, 410b-c.
680
PLATÃO. República, 558d-559c.
681
Sobre a possibilidade de os desejos se tornarem superabundantes pela falta de cuidado com a educação, ver
PLATÃO. República, 431a-b. Essa falta de cuidado com a paideía é o fator determinante para a corrupção da cidade
como descrito no livro VIII. Para as observações de Sócrates sobre a necessidade de cuidado com a paideía, ver
PLATÃO. República, 546d, 549b, 552e.
192
sophrosýnen) e a ginástica, a saúde no corpo. Entende ainda que, sem essa música e ginástica
simples, haveria a libertinagem (akolasías) e as doenças (nóson) e se multiplicariam na cidade
numerosos tribunais e enfermarias (iatreîa), e as chicanas (dikaniké) e a medicina (iatrikè) seriam
veneradas
682
.
Note-se que, embora esteja relacionando a variedade na música à libertinagem e [a
variedade] na ginástica à doença, e considerando-se que a justiça visada pela paideía é também
tomada como saúde, e a injustiça como doença,
tanto a libertinagem quanto a doença do corpo
denunciam uma doença na alma, que é a injustiça e a intemperança e, em certo sentido, a
covardia, entendida como incapacidade de perseverar no que vale mais.
A relação entre libertinagem, doenças, enfermarias e chicanas nos tribunais é bastante
esclarecedora sobre a extensão da paideía na cidade.
Sobre essa relação, diz Sócrates:
683
E acaso se arranjará prova maior do vício e da educação vergonhosa numa cidade do que
serem necessários médicos e juízes eminentes, não para as pessoas de pouca monta
[phaúlous] e os artífices [kheirotékhnas], mas também para os que alegam terem sido
criados como homens livres?
684
. Ou não julgas uma vergonha e um grande sinal de falta
de educação ser-se forçado a recorrer a uma justiça importada de outrem, como se eles
fossem amos e juízes [despotôn], por falta de justiça própria?
O que essa passagem mostra é que Sócrates usa uma linguagem muito forte (kakês,
aiskhrâs) para caracterizar uma paideía que não excluísse a necessidade de médicos e juízes,
doenças e chicanas. Embora esteja tomando como exemplo aqui uma cidade genérica, a descrição
do que aconteceria em uma cidade assim parece ser a do que inevitavelmente aconteceria na pólis
no lógos, caso a maioria dos seus cidadãos não recebesse a educação descrita na construção da
cidade. Seria preciso considerar que se pretende uma educação diferente e, portanto, kapara
682
PLATÃO. República, 404d-405d.
683
PLATÃO. República, 405a6-b4. Tradução alterada, seguindo Shorey.
684
Sobre esse passo, comparar com aquele em que ironiza os que são nomeados pelo termo kalós kagathós na
―cidade histórica‖. PLATÃO. República, 469a.
193
os artesãos, com os efeitos que necessariamente teria, para que eles não fossem considerados
incluídos na paideía que vinha se descrevendo.
Ora, uma vida de excessos nos prazeres não necessários e de constantes rompimentos
das leis e normas que regem o modo de vida da cidade poderia justificar a presença de médicos e
juízes em grande número e com múltiplas funções e, no entanto, estes estão excluídos da cidade.
A referência a artesãos e homens de pouca monta em contraposição aos educados pela
paideía descrita não pode ser alegada, pois se trata aqui de uma cidade genérica e de artesãos e
homens de pouca monta que não foram educados na cidade no lógos, o que fica mais claro ainda
porque nesta os governantes não são déspotas
685
. Ora, se não são déspotas, é porque não precisam
fazer o papel reservado por Sócrates àqueles que governarão uma cidade onde não haja educação
apropriada.
Ademais, todas as prescrições que se fazem a respeito da medicina apontam para uma
discussão que envolve todas as classes: Sócrates, ao tratar dos inconvenientes de uma medicina
que envolva tratamentos longos e impeditivos do exercício do érgon próprio de cada cidadão,
exemplos que vão do carpinteiro
686
à administração da casa; das campanhas aos cargos políticos
sedentários, fazendo inclusive referência à vida de estudos própria do filósofo
687
.
O que isso mostra é que a medicina simples tem como condição de possibilidade,
fundamentalmente, a dieta prescrita antes e que, fazendo parte da gymnastiké e, portanto, da
paideía, diz respeito à cidade como um todo. De resto, não seria útil para a cidade que os
guardiões fossem mantidos saudáveis e os artesãos pudessem ficar doentes por causa de excessos
e incapacitados de exercer seu érgon. Essa medicina simples que atua como complemento da
dieta na promoção da saúde da cidade intervirá apenas em caso de ferimentos e doenças ligadas
às estações
688
.
A seguir, ao comentar como devem ser os médicos e os juízes na cidade, Sócrates
estabelece uma diferença entre o médico e o juiz no que diz respeito à experiência que ambos
devem ter, este da injustiça e aquele da doença, sendo a experiência útil desde cedo, no primeiro
caso, e conveniente só na velhice, no segundo
689
.
Sócrates acrescenta:
685
Cf. PLATÃO. República, 416a-b.
686
PLATÃO. República, 406d.
687
PLATÃO. República, 407b-c.
688
PLATÃO. República, 405c-d.
689
Cf. PLATÃO. República, 408c, 409e.
194
690
Portanto, estabelecerás na cidade médicos e juízes da espécie que dissemos, que de
tratar, dentre os cidadãos [politôn], os que forem bem constituídos de corpo e de alma,
deixarão morrer os que fisicamente não estiverem nessas condições, e mandarão matar
os que forem mal conformados e incuráveis espiritualmente
691
?
Se, como se defende aqui, a paideía primária pela mousiké e pela gymnastiké descrita na
República se estende a toda a cidade e produz efeitos, mesmo que em diferentes medidas ou
―oitavas‖ em todos os cidadãos, então todos possuem, em uma certa medida, a justiça e a virtude
que determinam o caráter e, consequentemente, a qualidade da diánoia; acrescente-se que essa
passagem pode ser esclarecedora a respeito de uma contraposição onipresente na República:
aquela na qual se referem ―melhores‖ e ―piores‖, ―superiores‖ e ―inferiores‖.
É preciso ter cuidado com a leitura desses termos, pois ―melhorpode significar tanto o
mais excelente em uma escala (o melhor, áristos), quanto o melhor (melhor [do] que, ameínonon)
comparativamente a um pior. Por outro lado, ―pior‖ pode significar tanto o ruim, como termo
final de uma escala descendente (phaûlos no sentido pejorativo ou kakós), quanto pior
(kheíronos, phaûlos) em comparação com algo, caso em que pode estar, ou não, implicada a
noção de ruim; assim, kheíronos admite a comparação entre duas coisas boas, sendo uma delas
melhor, e o termo phaûlos também pode ser usado nesse sentido comparativo, pois Sócrates
chega a usá-lo até para comparar os chefes
692
.
O que se propõe aqui é que, quando Sócrates deseja nomear os inferiores em comparação
com os superiores, sem que isso indique que se fala de homens ruins, usa kheíronos ou phaûlos
no sentido de comparação
693
. Quando quer se referir ao mau e ao ruim, usa phaûlos no sentido
pejorativo ou kakós.
Assim, a passagem citada, refere-se, no que diz respeito à pena de morte, àqueles que são
kakoí ou phaûloi no sentido forte e não comparativo e que lá não são nomeados assim, mas como
690
PLATÃO. República, 409e4-410a5.
691
Sobre esse ponto, note-se também o comentário de Shorey, que remete a outros diálogos: ―Only the incurable
suffer a purely exemplary and deterrent punishment in this world or the next. Cf. infra 615e, Protag. 325a, Gorg.
525c, Phaedo 113e.‖ Cf. SHOREY, 1994, p. 286.
692
PLATÃO. República, 467d.
693
Sobre a possibilidade de phaûlos significar ―de qualidade inferior‖, ver CHANTRAINE, 1968, p. 1183.
195
sendo incuráveis de espírito. Incuráveis de espírito seriam, portanto, aquelas naturezas que se
podem determinar, depois da paideía, ou durante o processo da educação, que não se
beneficiaram dela no que diz respeito a adquirir a temperança e a justiça na alma.
que se entender, ainda, que tal disposição pode ser identificada por atos que a
denunciem, o que leva a crer que esse tipo de pessoa viverá enquanto não se engajar em atos
prejudicais à cidade e contanto que sua alma não seja retificada por admoestações e persuasão
694
.
Um sinal de que há uma certa tolerância para com os ―piores‖ é que estes podem chegar à
idade de se casar, que, ainda no âmbito das duras prescrições que se fazem para eles, está a de
que se encontrarão menos com as mulheres visando à procriação
695
:
696
É preciso, de acordo com o que estabelecemos, que os homens superiores se encontrem
com as mulheres superiores o maior número de vezes possível, e inversamente, os
inferiores [phaûlos] com as inferiores, e que se crie a descendência daqueles, e a destes
não, se queremos que o rebanho se eleve às alturas, e que tudo isso se faça na ignorância
de todos, exceto dos próprios chefes, a fim de a grei dos guardiões estar, tanto quanto
possível, isenta de dissensões.
Seria absurdo interpretar essa passagem como significando que os filhos dos guardiões
piores, no sentido comparativo, não serão sequer criados. Ora, a menos que haja erro dos
governantes, no mínimo são filhos de homens de prata e, embora seja possível que, através da
paideía e dos testes, acabe se denunciando neles uma natureza de bronze, nada indica que, por
isso, não deveriam ser criados, pois tal natureza, segundo o argumento defendido aqui, não seria
reconhecível em bebês. Ademais, pensar assim levaria à possibilidade de o criar os filhos dos
artesãos. ainda que se considerar sobre esse ponto a menção à possibilidade de que um filho
que tenha nascido da classe dos de bronze passe à dos de ouro ou prata
697
.
694
PLATÃO. República, 399a-c.
695
Cf. República, 459d-e.
696
PLATÃO. República, 459d7-459e3.
697
PLATÃO. República, 415a-b.
196
Se os melhores e piores comparados na passagem não são os guardiões, mas os melhores
e piores homens da cidade, então é compreensível que Sócrates estabeleça disposições para que
seus casamentos também sejam controlados, e isso é coerente com a tese que se defende aqui da
educação comum e com outra que se defenderá mais adiante, segundo a qual muitas das
prescrições sobre o modo de vida também são comuns.
Que se tenha feito menção a guardiões quando se falou da necessidade de mentira quanto
aos arranjos que visam a esses casamentos é porque, poder-se-ia dizer, visa evitar dissensão onde
ela seria mais danosa para a cidade
698
, mas não exclui que se tenham de ―arranjar‖ todos os
casamentos para benefício da cidade.
Voltando à prescrição em questão, deve-se, então, considerar que uma prescrição tão dura,
de que não se criem os filhos de certos homens, pode significar que se fala dos piores no
sentido de incuráveis de alma, mencionados na passagem citada antes
699
. De qualquer forma, a
menor frequência das uniões entre eles e a manipulação dos governantes quanto à fertilidade dos
nubentes poderia até evitar esses nascimentos e a suposta ―exposição‖ dos nascidos dessas
uniões, se ―criar‖ for aqui entendido como permitir, pela alimentação, que continuem vivendo.
Sobre a possibilidade de cura daqueles que o têm a melhor natureza possível, mas
retificável, deve-se levar em conta a passagem que faz menção a uma terapeía da alma para os
cidadãos (polítes) bem constituídos de corpo e alma, feita pelos juízes
700
.
Ainda sobre os efeitos da paideía na cidade contruída com o lógos, Sócrates acrescenta:
701
No entanto, é evidente que os jovens se precatarão da necessidade de justiça, se
cultivarem aquela música simples, da qual dissemos que gerava a moderação.
E ainda:
702
698
Cf. PLATÃO. República, 545c-d. Sobre a prioridade de que não haja dissensão entre os guardiões, embora as
prescrições visem a que não haja dissensão entre quaisquer cidadãos, ver PLATÃO. República, 459d-e.
699
PLATÃO. República, 409e-410a.
700
Sobre a possibilidade de um ―tratamento‖ dos cidadãos seja pelos médicos, seja pelos juízes, ver PLATÃO.
República, 409e-410a.
701
PLATÃO. República, 410a7-9.
197
Porventura, se o músico exercitar a ginástica seguindo no mesmo rastro, não alcançará o
mesmo resultado, a ponto de não precisar da medicina para nada, a não ser em caso
de força maior?
Ora, se se está falando da cidade como um todo e se essas qualidades a que se fazem
menção se constituem por causa das prescrições da paideía, então é de se esperar que a paideía
modele toda a cidade.
A seguir, Sócrates toma, então, como óbvia a necessidade de um governante para a
cidade:
703
E depois disto, que temos de delimitar? Não será porventura quais, dentre estes, hão de
governar e quais ser governados
704
?
Estabelece, nesse primeiro momento, que deverão ser os mais velhos e os melhores
(arístous)
705
. Assim como os melhores lavradores são os mais aptos para o seu ofício, também o
melhor guardião será o mais apto para guardar a cidade
706
.
Depois de nomear como qualidades que lhe são necessárias a inteligência (phrónesis),
autoridade, capacidade e cuidado com os interesses da cidade, prescreve que os que, mediante
exame (skopoûsin), se mantiverem firmes, em qualquer circunstância, na opinião de que
devem fazer o que for melhor para a cidade, devem ser nomeados governantes
707
.
Aqui, poder-se-ia ver uma referência ao próprio Sócrates, entendido como ―construtor‖ da
cidade no lógos, quando prescreve o que é melhor ou o mais útil para a cidade,
independentemente do estranhamento que possa causar.
De qualquer forma, considerando-se que seria claramente melhor para a cidade que a
paideía descrita se estendesse a todos, não estendê-la à maioria desqualificaria Sócrates como
―construtor de cidades‖, pelo critério estabelecido por ele próprio para julgar um governante ou
um legislador.
702
PLATÃO. República, 410b1-3.
703
PLATÃO. República, 412b8-9.
704
Note-se a contiguidade dessa questão e da descrição do efeito da ―música‖ que inclui ―estudos superiores‖,
conforme se mencionou. Cf. PLATÃO. República, 411c-d.
705
PLATÃO. República, 412c.
706
PLATÃO. República, 412c-d.
707
PLATÃO. República, 412c-e.
198
Poder-se-ia argumentar que os motivos que se apresentaram até agora e que justificariam
que a paideía comum seria melhor para a cidade inteira se baseiam muito mais em questões
morais e relativas às virtudes da alma do que às necessidades reais da cidade enquanto
comunidade que tem necessidades diversas.
Assim, como estas necessidades só seriam preenchidas com base em artesanias que
fossem bem executadas, poder-se-ia inferir que a paideía pela mousiké e gymnastiké apresentada
não seria melhor para a cidade inteira por romper com a ideia de que os artesãos precisam
aprender seu ofício, sistematicamente, desde crianças, observando os pais.
Porém, se o aprendizado sistemático, desde a infância, das artesanias é uma realidade
histórica afirmada, inclusive, pelo texto
708
, é preciso compreender que a cidade no lógos não se
submete, na sua construção, a uma adequação às cidades históricas. Ela tem um ordenamento
próprio que segue, antes, o lógos, assim como o segue o que diz respeito à retificação da alma dos
cidadãos
709
.
A questão da educação moral dos cidadãos subordina as exigências de adequação à
realidade histórica. No caso das restrições à poesia, isso é mais do que claro e, compreender a
subordinação, implícita na proposta de Sócrates, da ―arte‖
710
aos fins da paideía, é fundamental
para que se possa compreender as restrições à poesia, mesmo que envolvam rompimento com
padrões historicamente estabelecidos
711
.
Também se poderia dizer o mesmo quanto à educação das mulheres e quanto à
comunidade de filhos, mulheres e bens; tudo isso é adotado por ser o caminho indicado pelo
lógos.
Assim, o artesão da cidade no lógos, tal como tudo o que se delineia nela, pode ser
considerado um parádeigma, que não é mais ―dependente‖ de encontrar um correlato na
708
Cf. PLATÃO. República, 467a.
709
Note-se, a esse respeito, a passagem em que Sócrates defende o modelo que criou de cidade e homem
comparando-o a um paradigma: ―Logo, foi para termos um paradigma que indagámos o que era a justiça e o que era
um homem perfeitamente justo, se existisse, e, uma vez que existisse, qual seria o seu caráter e inversamente, o que
era a injustiça e o homem absolutamente injusto, a fim de que, olhando para eles, se nos tornasse claro que felicidade
ou que infelicidade lhes cabia, e sermos forçados a concordar, relativamente a nós mesmos, que quem for mais
parecido com ele terá a sorte mais semelhante à sua; mas não foi por causa de demonstrarmos que era possível.‖
PLATÃO. República, 472c-d. Sobre essa passagem, comenta Voegelin: ―The paradigm, thus, is a standard by which
things can be measured; and the reliability of the measure is not diminished if things fall short of it, or if we have no
means to bring them closer to it.‖ Cf. VOEGELIN, Eric. Order and History: Plato and Aristotle. Columbia:
University of Missouri Press, 2000. (The Collected works of Eric Voegelin, v. 3). p. 157.
710
Entendida no sentido de ―belas artes‖.
711
Sobre esse aspecto, ver JAEGER, 1995; e HAVELOCK,1996.
199
realidade do que aquele que representa o próprio governante-filósofo ou homem perfeitamente
justo.
Ademais, contra essa ideia de uma necessidade de aplicação sistemática desde a infância
às demiourgíai, pode-se aduzir ainda que as disciplinas da educação superior, fundamentais na
formação do próprio filósofo-governante, só serão objeto de estudo sistemático depois do fim dos
exercícios gímnicos, aos vinte anos
712
.
A matemática, entretanto, é introduzida como ―brincadeira‖ ao longo de toda a educação,
então servindo para observar e testar quem tem talento para o seu estudo. São disciplinas
importantes para a cidade, tanto quanto a dialética, que será estudada mais tarde ainda.
Ora, não se exige dos futuros governantes, que terão de mostrar excelência em matemática
e dialética, que frequentem, desde a mais tenra infância, matemáticos e dialéticos. Se
especialização em ―artes‖ o complexas podem aguardar a juventude para serem
sistematicamente desenvolvidas, com base em um talento prévio identificado, por que não se
pode dar o mesmo com as demais artesanias?
Nada disso elimina que haja mestres sapateiros, mais velhos e constituídos como tais,
exercendo seu ofício e aguardando a chegada dos novos aprendizes, que, tanto como futuros
matemáticos ou dialéticos, podem muito bem aprender seu ofício em idade mais avançada do que
na cidade histórica, desde que isso seja útil à cidade construída com o lógos.
Ademais, embora isso possa parecer uma provocação aos que consideram Platão a
suprema caricatura do aristocrata, se se estuda matemática de forma não sistemática, ao longo da
educação primária, e como uma brincadeira que tem como uma das funções identificar talentos,
não parece uma heresia que deva ser silenciada uma interpretação da República que admita a
ideia de que as crianças, todas elas, brinquem também de fazer trabalhos manuais
713
.
Que uma brincadeira assim possa conspurcar a alma de jovens educandos não se sustenta
nem pelo texto
714
nem por qualquer juízo acerca Platão que lhe conserve a sanidade.
Que Sócrates faça várias referências depreciativas a artesãos e artesanias ao longo da obra
tem de ser entendido como dizendo respeito, portanto, ao artesão ―histórico‖.
712
PLATÃO. República, 537b-c.
713
Mesmo que nas Leis o Ateniense use palavras duras ao se referir ao trabalho manual, é preciso entender que
este é visto de uma perspectiva mais aderente à circunstância histórica; a partir dessa visão, Platão associa o artesão à
busca da riqueza através do trabalho manual. É esse aspecto de busca da riqueza que leva Sócrates a referir-se aos
artesãos ―históricos‖, e não aos de sua cidade no lógos, como pessoas voltadas para a riqueza. Cf. PLATÃO.
República, 434a-b e Leis, 741e e 743c-d.
714
Sobre esse ponto, ver a interpretação que se fez aqui sobre o que se pode ou não pode imitar.
200
Assim, há dois tipos de artesão: o ―histórico‖, tomado como pessoa comum, sem a
educação descrita na República, e o artesão da cidade no lógos. Um, se não é literalmente
escravo, é comumente considerado escravo de si e do lucro, e o outro teve a sua liberdade
construída pelo ―demiourgós da eleuthería da pólis
715
.
Que esta leitura possa ser feita comprovam as diversas referências depreciativas que
Sócrates faz às mulheres
716
. Que esteja, nesses casos, fazendo referência também às mulheres
históricas fica claro pelo papel que confere às mulheres que passam pela paideía pela mousiké e
pela gymnastiké, as melhores das quais poderão chegar a guardiãs-governantes ou auxiliares
717
.
Assim, também como no caso das mulheres, há uma distinção entre ―artesãos‖ e ―artesãos
educados na pólis no lógos‖. Ademais, que Sócrates demonstre uma visão crítica não dos
artesãos históricos mas também dos aristocratas ―históricos‖ fica claro em mais de uma
passagem
718
. O que lhes vale a crítica e o comentário depreciativo não é a classe a que pertencem,
mas, antes, o estado em que se presume encontrar-se sua alma
719
.
Para que todos aceitem a ordenação entre governantes e governados da cidade, Sócrates
propõe que se conte nela um mito. Que se destine a todos fica claro pela introdução:
[...]
720
[...] não sei de que coragem nem de que palavras me servirei para me exprimir e
tentarei persuadir, em primeiro lugar, os
721
próprios chefes e os soldados, e
715
Cf. PLATÃO. República, 395b-c.
716
Cf. PLATÃO. República, 388a, 431c, 469d, 557c, 605e.
717
PLATÃO. República, 451b-457b.
718
Sobre essa questão, ver toda a discussão sobre a degenerescência da cidade no livro VIII e a referência irônica aos
kalòs kagathós em: PLATÃO. República, 569a.
719
Sobre esse aspecto, ver toda a discussão sobre as formas de constituição que se afastam daquela delineada com o
lógos como a melhor nos livros VIII e IX da República.
720
PLATÃO. República, 414d1-e6.
721
Essa anterioridade temporal não não exclui que os outros ouvirão também, como fica claro a seguir, como se
explica pelo fato de que os guardiões adultos vivem acampados e o mito lhes é contado depois de adultos. Explica-se
ainda por que, se o mito visa inculcar a ideia de que há, por natureza, governantes e governados, existe uma certa
prioridade de que isso seja aceito por aqueles mesmos que, sendo guerreiros, poderiam se sublevar contra os
201
seguidamente também o resto da cidade, de que quanta educação e instrução lhes demos,
todas essas coisas eles imaginavam que as experimentavam e lhes sucediam como em
sonhos, quando, na verdade, tinham sido moldados e criados no interior da terra, tanto
eles, como as suas armas e o restante do equipamento; e que, depois de eles estarem
completamente forjados, a terra, como sua mãe que era, os deu à luz, e que agora devem
cuidar do lugar em que se encontram como de uma mãe e ama, e defendê-la, se alguém
for contra ela, e considerar os outros cidadãos como irmãos, nascidos da terra.
Mesmo em face da ironia de Gláucon
722
, tal como o governante que acabara de descrever
como aquele que persevera no que é melhor para a cidade
723
, continua Sócrates o mito:
724
Vós sois efetivamente todos irmãos nesta cidade como diremos ao contar a história
[mythologoûntes]. Mas o Deus que vos modelou, àqueles dentre vós que eram aptos para
governar, misturou-lhes o ouro na sua composição, motivo por que são mais preciosos;
aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e demais artífices. Uma vez que sois
todos parentes, na maior parte dos casos gerareis filhos semelhantes a vós, mas pode
acontecer que do ouro nasça uma prole argêntea, e da prata, uma áurea, e assim todos os
restantes uns dos outros. Por isso o deus recomenda aos chefes, em primeiro lugar e
acima de tudo, que aquilo em que devem ser melhores guardiões e exercer mais aturada
vigilância é sobre os que são gerados na cidade [ekgónous], sobre a mistura que entra na
composição de suas almas, e se, se a sua própria descendência tiver qualquer porção de
bronze ou de ferro, de modo algum se compadeçam, mas lhes atribuam a honra que
governantes. Que a dissensão entre os guardiões seja a mais perigosa de todas e a causa da corrupção da cidade fica
claro pelo texto em PLATÃO. República, 545c-d. Ademais, esse é o momento em que Sócrates sugere que o mito
seja contado a adultos, o que, depois, parece ser retificado por Adimanto, quando à pergunta de Sócrates sobre se
conhece algum expediente para fazê-los acreditar no mito responde: ―Nenhum, para que esses homens creiam nele;
mas talvez para os filhos deles, para os que vierem após eles, e os demais homens.‖ (
) PLATÃO.
República, 415d1-2.
722
PLATÃO. República, 414e.
723
PLATÃO. República, 413c-414b.
724
PLATÃO. República, 415a2-c6. Tradução com alterações.
202
compete à sua conformação, atirando com eles para os artífices ou os lavradores, e se,
por sua vez, nascer destes alguma criança [filho] com uma parte de ouro ou de prata, que
lhes dêem as devidas honras, elevando-os uns a guardiões, outros a auxiliares, como se
houvesse um oráculo segundo o qual a cidade seria destruída quando um guardião de
ferro ou de bronze a defendesse.
Ora, tendo em vista estas prescrições, parece incompreensível que se possa cumpri-las se
os guardiões são separados dos outros cidadãos ainda criancinhas. Como se defendeu
amplamente antes, não é possível que uma criancinha tenha identificada sua natureza de
stratiótes, epíkouros ou árkhon se a identificação da capacidade para o exercício de cada um
desses érga depende de testes como sugere o texto: a coragem (andreía) característica dos
epíkouroi, antes de ser reconhecida como presente, depende de que se verifique uma dýnamis tal
que seja:
[...]
[...]
725
[...] salvação em todas as circunstâncias da opinião reta e legítima, relativamente às
coisas temíveis e às que não são [...].
Essas opiniões são aquelas proclamadas pelo legislador na educação, e a coragem
existe em quem as conservar em meio dos desgostos, dos prazeres, dos desejos e dos temores.
Não se pode supor aqui, como se disse, que Sócrates pretenda que se submeta a tais provas
criancinhas de colo. Nessa idade não não tiveram ainda qualquer educação efetiva como
apenas podem ser observados nelas certos traços, em nada definitivos, das qualidades que deve
ter o futuro guardião.
Mas talvez seja contra essa possibilidade mesma de distorção do que diz, ao tratar das
prescrições sobre os cuidados na seleção de quem será epíkouros e árkhon, que Sócrates tenha
tido o cuidado de usar a palavra ekgónous (os que são gerados ou descendência) ao invés de
crianças
726
.
Ora, seria difícil entender como uma criança ―de ouro‖, nascida entre os artesãos e
educada sem os cuidados que se deve dar aos futuros guardiões, poderia ser depois levada para
essa classe sem grande prejuízo e risco. O que é mais razoável é que se observe a descendência
725
PLATÃO. República, 430b2-3.
726
Essa opção por ―crianças‖ foi a de PEREIRA e, por isso, a tradução que se usa aqui, como base para a citação da
passagem em questão, foi modificada. Cf. PEREIRA, 1987, p. 157.
203
dos cidadãos para ver, ao longo da vida, quem teve a perfeita coalescência entre phýsis e paideía
para o exercício de cada érgon.
Desse modo, a passagem se torna perfeitamente coerente e é possível fazer passar um
filho de artesão à educação superior se a educação primária tiver sido a mesma e se se tiver
vencido todos os testes que os outros venceram.
Ainda sobre essa passagem, se, como se admitiu aqui, a ―especialização‖ de um artesão
pode se dar mesmo depois da infância, a falta da educação primária torna inviável a passagem de
alguém com natureza de ―ouro‖, descoberta tardiamente na classe dos artesãos, para a classe dos
guardiões.
Sobre essa necessidade da boa trophé, desde cedo, para as naturezas melhores, diz
Sócrates ao referir-se, mais adiante, à natureza filosófica e às causas de sua corrupção:
727
Este ponto toda gente no-lo concederá, penso eu: as naturezas assim e com todas as
qualidades que há momentos lhe preceituamos, a quem quiser tornar-se um filósofo
perfeito, são poucas, e raras as que surgem entre os homens. Ou não te parece?
Como complemento dessa passagem, figuram ainda estas palavras de Sócrates:
728
A respeito de toda a semente ou rebento, de planta ou animal, sabemos nós que aquele
que não obtiver o alimento que convém a cada um, ou a estação, ou o lugar, quanto mais
forte ele for, tanto mais sente a falta dessas vantagens, porquanto o mal é, de algum
modo, mais oposto ao que é bom do que ao que não é bom.
E mediante o assentimento de Adimanto, continua:
729
É lógico então, me parece, que a natureza melhor, sujeita a uma alimentação diversa da
que lhe compete, resulte numa coisa pior do que a natureza medíocre.
727
PLATÃO. República, 491a8-b2.
728
PLATÃO. República, 491d1-5.
729
PLATÃO. República, 491d7-8.
204
Como Adimanto concorda, conclui:
730
Logo, ó Adimanto, diremos que as almas mais bem dotadas, se se lhes deparar uma
educação má, se tornam extremamente perversas? Ou julgas que os grandes crimes e a
maldade imoderada m a sua origem numa natureza medíocre, e não numa natureza
estuante, pervertida pela educação, e que uma natureza débil nunca será causa de
grandes bens nem de grandes males?
Sobre a natureza filosófica, diz ainda:
731
Por conseguinte, essa natureza filosófica que postulamos, se, julgo eu, se lhe deparar o
gênero de ensino que lhe convém, é forçoso que, desenvolvendo-se, atinja toda espécie
de virtudes; se, porém, for semeada e plantada num terreno inconveniente e for criada
cairá no extremo oposto a menos que se dê o caso de um deus qualquer vir em seu
socorro.
O que tudo isso leva a concluir é que, se, como se propôs antes, não é na mais tenra
infância que podem ser selecionados os futuros guardiões, mas depois de submetê-los a testes,
não seria coerente com o que é prescrito no mito das raças que fossem os filhos de artesãos e
guardiões separados na infância e que depois, sem ter tido a educação primária adequada, um
filho de artesão pudesse ser levado para junto dos jovens guardiões quando se descobrisse que
tem ouro ou prata na composição de sua alma.
O contrário faz sentido, pois, se um jovem que seja filho de epíkouros ou árkhon falhar
em passar pelos testes que o definiriam como tendo as mesmas qualidades que seus pais, então
ainda poderiam aprender uma artesania. A diferença é que terá tido o beneficio de ter tido a
educação primária e nenhum prejuízo.
730
PLATÃO. República, 491e1-6.
731
PLATÃO. República, 492a1-5.
205
Além disso, como se indicou antes, algum érgon na cidade deverão ter aqueles que
foram educados tendo em vista o termo final da educação primária (o tornar-se guardião), mas
não passaram nos rigorosos testes que determinam quem tem a dýnamis necessária para esse
érgon, seja ele o de auxiliar ou o de governante. Se se admite isso, é necessário admitir que os
que não passarem nos testes que definem quem é guardião podem pertencer à classe que resta
na cidade: a dos artesãos.
A prescrição contida no mito das raças é retomada quando se adota o preceito de que a
cidade deve ser suficiente e unida:
732
[...] se nascer algum filho inferior aos guardiões, deve ser relegado para as outras classes,
e, se nascer um superior das outras, deve ser levado para a dos guardiões. Isto queria
demonstrar que mesmo os outros cidadãos devem ser encaminhados para a atividade
[érgon] para que nasceram, e para ela, a fim de que cada um, cuidando do que lhe diz
respeito, não seja múltiplo, mas uno, e deste modo, certamente, a cidade inteira crescerá
na unidade e não na multiplicidade.
Depois de Sócrates descrever esse mito, como que fechando a questão da educação, volta-
se para prescrições que dizem respeito ao modo de vida dos guardiões.
O que se torna claro nesse passagem do mito das raças e que, de certa forma, está
implícito no que vem sendo dito até aqui, é que a interpretação segundo a qual a educação
primária se estende a todos os cidadãos envolve uma interseção entre a paideía e o modo de vida
na cidade, inclusive nos aspectos mais polêmicos da comunidade de mulheres, filhos e bens
733
.
Cabe então examinar também em que medida o que se diz a seguir sobre o modo de vida
dos guardiões é aplicável também aos demais os cidadãos.
Ora, se não pode haver uma segregação das crianças da cidade na paideía primária e se é
adotada a comunidade de filhos, então é obrigatório, para tornar a interpretação coerente, que os
732
PLATÃO. República, 423c8-d6.
733
Trata-se de um argumento aceito por Strauss, que é um opositor da tese da educação comum, a qual, entretanto,
chega a considerar como hipótese que acaba rejeitando. Cf. STRAUSS, 1978, 113-114.
206
filhos dos artesãos também sejam criados pelos guardiões
734
. É claro que, depois de criados, se
não forem identificados como guardiões (epíkouros ou árkhon) serão devolvidos aos seus ―pais‖
artesãos para sua educação complementar, tal como os futuros governantes serão encaminhados
para a educação superior.
Tudo o que se disse sobre as prescrições contidas na paideía e sobre os seus efeitos fica
bastante claro à luz do que se disse sobre a relação entre as classes da cidade e os elementos da
alma, o que confirma a pertinência do método de leitura da República segundo o qual se deve
avançar no texto para, retrospectivamente, lançar luz sobre o todo.
Assim, o fato de que as disposições sobre a paideía são condições de possibilidade da
existência de certas virtudes na cidade e de um certo modo de vida esclarece muito sobre esse
modo de vida.
Da mesma forma, o que se diz sobre o modo de vida na cidade, por ter como condição de
possibilidade a paideía, esclarece e lança luz sobre o próprio alcance da paideía.
Ora, bastaria admitir que, ao construir a cidade com o lógos, Sócrates construiu duas ou
três cidades, para que se pudesse aplicar o que diz sobre a paideía apenas aos guardiões.
O problema é que isso o é fácil de admitir sem um tour de force interpretativo ainda
mais ousado do que o que aqui se propõe. Se se pode dizer que a tese que se defende aqui de que
Sócrates estende a paideía pela mousiké e pela gymnastiké a todos os cidadãos da cidade no lógos
sem que isso tenha sido afirmado explicitamente no texto, pelo menos se deve reconhecer que
também não vai contra o que tenha sido afirmado explicitamente, pois não esse tipo de
referência explícita de que a educação proposta destina-se só aos futuros guardiões. Ademais, não
compromete a coerência da obra em um grau inaceitável.
Por outro lado, a interpretação segundo a qual estão sendo descritas na República duas ou
mais cidades ao invés de uma padeceria de um mal do mesmo gênero, porém ainda mais
grave. Não afirmaria o que não está explícito no texto, como iria contra o que está explícito,
uma vez que a cidade é muitas vezes dita una
735
. Que sua unidade esteja sendo afirmada sob
734
É exatamente esta a tese que se defenderá aqui, mais adiante. Cf. seções 5.2 e 5.2.1.
735
Cf. PLATÃO. República, 423a9, 423b10, 462b1, 462b2, 462c12, 551d5.
207
qualquer aspecto relevante para a discussão, como, por exemplo, o interesse de todos
736
, essa
―unidade‖ só seria plausível mediante a tese da educação primária comum.
A esse respeito, se defendeu aqui que esse tipo de consonância pela qual os artesãos
reconheceriam nos governantes aqueles que garantem seu interesse de terem seus desejos
atendidos, envolve, primeiramente, que se convença os artesãos a aterem-se aos desejos
necessários. Essa consonância depende de um ―fundamento‖ que pode estar na educação tal
como modelada por Sócrates e seus interlocutores, e que gera a temperança e a justiça na alma
dos homens.
Além da conservação da unidade da cidade, outra premissa que qualquer interpretação
defensável tem de preservar e coerir com o resto da obra é a de que a cidade é contruída visando
à felicidade de todos.
O que seja felicidade na República não é um tema secundário. Na verdade, é o que
ocasionou a própria construção, com o lógos, da cidade que se examina para se procurar entender
se é mais feliz o homem justo ou injusto.
Seria então proveitoso investigar em que sentido a unidade da cidade, em qualquer sentido
que seja relevante, e a felicidade dela toda dependem de que a paideía seja comum a todos os
cidadãos.
Para tanto, após examinar a paideía, as classes da cidade, os elementos da alma em suas
relações e virtudes, e a influência da paideía em sua constituição, cabe examinar, para lançar
ainda mais luz sobre esses temas, o modo de vida proposto por Sócrates, e em que sentido a
cidade deve ser considerada una.
5.2 O modo de vida na cidade e sua unidade
No âmbito das prescrições que se fazem para que a cidade construída com o lógos seja a
melhor possível, algumas dizem respeito diretamente ao modo de vida dos cidadãos. Embora
algumas coisas se conheçam sobre o modo de vida na cidade, como, por exemplo, o fato de
que não se admitirão excessos que levem à necessidade de médicos especializados em tratá-los, e
736
Como quer Reeve, que afirma a existência de três cidades, a dos amantes de riquezas, a dos amantes de honras e a
dos amantes de sabedoria, uma dentro da outra, para unificá-las sob o aspecto do interesse comum. Cf. REEVE,
1988, p. 170-204.
208
se tenha afirmado que não serão admitidos juízes que tratem de almas desordenadas, essas
características serão ser melhor compreendidas com o que se exporá a seguir.
Uma questão que não pode deixar de ser tratada em vista do que se disse sobre a
comunidade de educação das crianças é a da sua relação com a comunidade de filhos e que
costuma ser interpretada como dizendo respeito exclusivamente à classe dos guardiões
737
.
Da mesma forma, seguindo o método de olhar para a cidade e de, identificando nela certas
virtudes e modo de vida, identificar suas condições de possibilidade, se passará a defender aqui
que a comunidade de mulheres e bens se estende a toda a cidade, pois isto é fundamental para a
unidade da interpretação da República que se propõe aqui.
Sobre todos esses aspectos da vida na cidade, tal como no que se disse sobre a paideía,
são muitas vezes os guardiões que estão no foco da discussão. Isso pode levar a crer que as
prescrições sobre seu modo vida se aplicam apenas a eles.
O que se propõe aqui é que essas prescrições, quando não dizem respeito exclusivamente
ao exercício do seu érgon, mas são condição de possibilidade de qualidades presentes na cidade,
devem ser estendidas à cidade toda.
O método de interpretação que aqui se emprega, pelo qual o que se diz depois
complementa, esclarece e altera o que se disse antes, mais uma vez se mostrará apropriado no que
diz respeito a eliminar contradições e inconsistências aparentes do texto.
Sócrates, ao começar a tratar das condições de vida dos guardiões, estabelece o lugar da
cidade onde habitarão: aquele que é o mais apropriado para a guarda. Devem ser habitações
adequadas para proteger do frio e do calor, além de condizentes com a vida de soldados, e o
com a de homens de negócios
738
.
O que Sócrates começa a introduzir aqui com essa última menção a homens de negócios é
a ideia de que não cabe a guardiões serem cobiçosos de bens materiais, o que poderia levá-los a
voltarem-se contra os outros cidadãos, situação na qual estes últimos sequer teriam como se
defender de homens mais fortes
739
.
737
Esta é, por exemplo, a posição implícita ou explícita de Annas, Popper, Reeve, Shorey e Strauss. Cf. ANNAS,
Julia. An Introduction to Plato’s Republic. Oxford: Oxford University Press, 1981; POPPER, Sir Karl R. A
Sociedade Aberta e seus Inimigos. 3. ed. Tradução de Milton Amado. São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1987. v. 2.
(Biblioteca de Cultura Humanista, 2-3); REEVE, 1988; SHOREY, 1994 e STRAUSS, 1978.
738
PLATÃO. República, 416b.
739
PLATÃO. República, 416b.
209
Além do ―seguro‖ que representa a paideía descrita para que isso não aconteça, Sócrates
entende que outros cuidados são necessários para que venham a ter as virtudes de um bom
guardião:
740
Em primeiro lugar, nenhum possuirá quaisquer bens próprios, a não ser coisas de
primeira necessidade; em seguida, nenhum terá habitação ou depósito algum, em que
não possa entrar quem quiser. Quanto a veres, de que necessitarem atletas guerreiros
sóbrios e corajosos, ser-lhes-ão fixados pelos outros cidadãos, como salário de sua
vigilância, em quantidade tal que não lhes falte para um ano. As suas refeições serão em
comum, e em comunidade viverão, como soldados em campanha. Quanto ao ouro e à
prata, dir-se-lhes-á que os têm sempre e na sua alma, divinos e de procedência divina, e
para nada carecem do humano, e que seria impiedade poluir aquele que possuem,
misturando-o com a pertença dos mortais, porquanto muitos crimes ímpios se
produziram por causa da moeda do vulgo, ao passo que a deles é pura. Mas unicamente a
eles, dentre os habitantes da cidade, não é lícito manusear e tocar em ouro e prata, nem ir
para debaixo do mesmo teto onde os haja, nem trazê-lo consigo, nem beber por taças de
prata ou de ouro; e assim se salvarão a si e a cidade. Porém, se possuírem terras próprias,
habitações e dinheiro, serão administradores dos seus bens e lavradores, em lugar de
guardiões, volver-se-ão déspotas inimigos dos outros cidadãos, em vez de aliados,
passarão toda a vida a odiarem a serem odiados, a preparar conspirações e a serem
objetos delas, muito mais receosos dos inimigos internos do que dos externos, e a
precipitar-se a cidade para a beira da ruína. Portanto, por todos esses motivos
prossegui eu diremos que é necessário prover deste modo os guardas de habitação e do
resto, e legislaremos sobre o assunto ou não?
740
PLATÃO. República, 416d4-417b8.
210
Uma primeira observação que se poderia fazer sobre essa passagem é a de que, se o ouro e
a prata, ou quaisquer posses, representam um risco para os homens melhores que foram
escolhidos guardiões, tanto mais representará para aqueles que, por natureza, são mais inclinados
à posse de riqueza.
Assim, é preciso admitir que, pelas inúmeras referências, algumas enfáticas, sobre o poder
corruptor da riqueza e da cobiça
741
, este preceito deve ser estendido a todos, principalmente se se
entendeu o papel necessário da paideía para produzir a justiça e temperança mesmo nos
melhores.
Ora, se mesmo os guardiões precisam abster-se de qualquer bem ou riqueza, é porque se
entende que mesmo aquela educação descrita, e que seria um ―seguro‖ contra a falta de justiça e
temperança, não é considerada impeditiva de que a posse de riqueza por parte dos guardiões os
desvirtue. Se é assim, então é preciso atentar para o tratamento que é dado na cidade aos prazeres
em geral, que a cobiça por riqueza, para Sócrates, deve ser entendida como busca por
prazeres
742
.
O que se viu é que tanto os prazeres da comida, da bebida e do sexo foram, em seus
aspectos ―desnecessários‖, banidos da cidade no que se chamou aqui de paideía ―atrofiante‖ dos
desejos.
Conforme se argumentou, não entender essa paideía ―atrofiante‖ como se estendendo a
toda a cidade não exigiria a menção a uma outra cidade para a qual as restrições não valeriam
como retiraria da cidade o que se entende aqui que seja o fundamento da consonância pela qual se
pode dizer que há nela a temperança.
Se vista assim a questão, então, mais uma vez, o fato de se mencionar aqui explicitamente
os guardiões significa apenas que são eles o foco da questão, não se excluindo que se esteja
falando de princípios que são úteis e necessários se se quer manter a cidade temperante e justa.
Que o foco sejam os guardiões se justifica pelo fato mencionado de que, segundo
Sócrates, a dissensão na cidade começa sempre na classe governante, como, de resto, fica
ilustrado pelo início da corrupção da ―melhor cidade possível, a que foi construída com o lógos
741
PLATÃO. República, 421c-e, 547a-b.
742
PLATÃO. República, 580a-581e.
211
em suas formas degeneradas no livro VIII
743
. É natural que o foco inicialmente sejam os
guardiões, pois o risco de dissensão entre eles é aquele que se deve evitar primeiro.
Porém, o fato de se tratar primeiramente desse risco, não exclui que se trate depois do
mesmo risco para o resto da cidade. Deve-se recordar não só o número de referências na
República ao caráter deletério da riqueza para uma cidade
744
, como o fato de que é razão da
corrupção na Atenas da Apologia. Recorde-se também que a riqueza (o prazer) é o ―alimento‖
próprio do elemento epithymetikón da alma, o qual deve ser contido na cidade dentro dos limites
do necessário.
Note-se que Sócrates entende que tanto a riqueza quanto a pobreza são fonte de corrupção
não para os guardiões como para os ―outros artífices‖. Tomando o oleiro como exemplo,
entende que este, enriquecido, torna-se preguiçoso e descuidado da sua arte
745
.
Da mesma forma, a pobreza, impede o artífice de ter os meios necessários para bem
executar sua obra e ensinar sua arte, além de tornar sua obra pior
746
. Ocorre que suas obras devem
ser as melhores possíveis
747
. Assim, contra a introdução na cidade da riqueza ou da pobreza,
devem os guardiões exercer a guarda com todo empenho
748
.
Poder-se-ia objetar que isso significa apenas que haverá leis limitando a riqueza na cidade
e que essa limitação não implica, para os artesãos, comunidade de bens. A questão é: qual é este
limite e em que medida os cidadãos-artesãos estarão dispostos a abrir o da possibilidade de
enriquecer com sua arte?
Uma outra questão a considerar é a de que a cidade construída com o lógos, na República,
é a cidade na qual se tem a oportunidade de se promoverem as melhores disposições possíveis
sobre a questão da riqueza e dos bens dos cidadãos, sem qualquer amarra para o lógos. Assim, é a
ocasião mais indicada para que se possa estender a comunidade de bens a todos os cidadãos.
Sobre o fato de Platão a considerar o que de melhor se pode fazer na constituição de uma cidade,
não seria supérfluo citar um passo das Leis no qual isso fica claro.
Notem-se, nesse diálogo, as palavras do Ateniense:
743
PLATÃO. República, 545c-d.
744
PLATÃO. República, 373e, 421c-422a, 495a, 547a-b.
745
PLATÃO. República, 421c-d.
746
PLATÃO. República, 421d-e.
747
PLATÃO. República, 374b-c,421b-c.
748
PLATÃO. República, 421e.
212
749
O deslocamento a seguir, na disposição das leis, tal como no jogo de gamão, quando a
pedra transpõe a linha sagrada, talvez por sua própria raridade cause no começo uma
certa surpresa nos ouvintes; porém com um pouco de reflexão e as lições da prática,
convencer-se-ão de que em matéria de leis nossa cidade é a segunda em excelência. É
bem provável que aceitem a ideia com relutância, por não estarem habituados com um
legislador não tirano. O mais certo será descrever a melhor forma de governo, depois a
segunda e a terceira, deixando a escolha a critério do responsável de cada colônia.
Procedamos, então, agora, de acordo com esse esquema e apresentemos, primeiro, a
constituição mais perfeita, e a segunda e a terceira, confiando, desta vez, a Clínias a
decisão, e no futuro a quem aceitar igual incumbência e se disponha, de acordo com seu
temperamento, a conservar o que mais lhe agradar nas leis de sua pátria.
E continua:
750
Em primeiro, temos a cidade, a forma de governo e as leis ideais, confirmantes, com
satisfatória aproximação, do antigo provérbio que nos mostra como tudo entre amigos é
749
PLATÃO. Leis, 739a1-b7.
750
PLATÃO. Leis, 739b8-e7.
213
comum. Se tais condições se observam presentemente em qualquer parte, ou se algum
dia chegarão a concretizar-se serem comuns as mulheres, comuns os filhos, comuns
todos os bens no caso de ficar banida o que se chama propriedade particular, e se se
conseguir, na medida do possível, tornar comum, de um jeito ou de outro, até mesmo o
que por natureza é nosso, como os olhos, os ouvidos e as mãos, de forma que todos
pareçam ver, ouvir ou trabalhar em comum, e que todos, a uma voz, dentro das
possibilidades humanas, elogiem ou censurem as mesmas coisas, por se alegrarem ou
entristecerem com elas, e havendo, em suma, conseguido as leis amoldar a cidade na
mais perfeita unidade que se possa conceber: ninguém jamais adotará critério melhor e
mais acertado do que esse, para atingir o mais alto grau da virtude. Numa cidade assim
constituída, quer seja povoada por deuses, quer por filhos de deuses em grande número,
seus habitantes viverão na maior alegria. Essa, a razão de não precisarmos procurar
noutra parte a constituição modelo; bastará agarrarmo-nos a esta mesmo e procurar, por
todos os meios, pôr em prática a que mais se lhe assemelhe. A que tentamos criar nesse
momento é a que, depois de pronta, alcançará de mais perto a imortalidade e em valor
merecerá o segundo lugar. A terceira, querendo Deus, concluiremos a seguir. Quanto a
esta, de que tratamos agora, quais são as suas características e como chegou a constituir-
se.
Embora não se possa aduzir uma passagem das Leis como argumento definitivo para uma
proposta de interpretação da República tão ampla como a que se propõe aqui, visto que, por ser
um diálogo posterior, poderia veicular uma mudança de opinião de Platão, deve-se levar em
consideração a referência nessas passagens à possibilidade de uma cidade ―ideal‖, e todas as
ressonâncias que indicam uma referência à cidade proposta na República.
Ademais, tanto sob esse aspecto da comunidade de bens, como sob o aspecto da
comunidade da educação e seu papel, as Leis estabelecem que, no mínimo, essas não eram
considerações tão absurdas para o ―aristocrático‖ Platão
751
, como querem alguns comentadores
de sua obra
752
. Estes, no mínimo, deveriam sempre, ao menos em nota de rodapé, lembrar a
conversão do autor, ainda que, do seu ponto vista, tardia, a uma posição mais generosa em
relação à maioria dos homens de uma cidade.
Depois de estabelecer também o preceito de que a cidade não poderá crescer a ponto de
comprometer a união, devendo velar os guardiões para que seja suficiente e unida (hikanè kaì
mía) e de relembrar aquele segundo o qual devem se destinar os filhos dos guardiões que sejam
inferiores para as outras classes, assim como se deve destinar os filhos superiores das outras à
751
Sobre a educação se destinar a todos os cidadãos, nas Leis, ver PLATÃO. Leis, 665c, 770d, 804a.
752
Sobre uma leitura da República marcada pela pressuposição de que Platão escreve uma obra na qual sua visão de
mundo aristocrática a tônica, ver POPPER, Sir Karl R., 1987. Ver também, VERNANT, Jean-Pierre. Mito e
Pensamento entre os Gregos: Estudos de psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.
214
classe dos guardiões
753
, Sócrates entende que os preceitos que impôs aos governantes da cidade
não são numerosos nem grandiosos:
754
Os preceitos que lhes impomos, meu bom Adimanto, não são, como poderia julgar-se,
numerosos nem grandiosos, mas todos muito reduzidos, desde que guardem a grande
norma proverbial, ou melhor, uma norma que não é grande, mas adequada.
Sobre qual seja ela, esclarece:
755
A instrução e a educação. Efetivamente, se tiverem sido bem educados e se tornarem
homens comedidos, facilmente perceberão tudo isto, assim como outras questões que de
momento deixamos à margem, como a posse das mulheres, casamentos e procriação,
pois todas essas coisas devem ser, o mais possível, comuns entre amigos, como diz o
provérbio.
Sócrates refere-se, portanto, a preceitos que ele prescreveu aos guardiões-governantes:
exercer guarda contra a riqueza e a pobreza na cidade; contra o crescimento excessivo e a
desunião da cidade; contra a possibilidade de que pessoas com naturezas inapropriadas exerçam
funções indevidas; e, principalmente, exercer guarda para que a paideía e a trophé anteriormente
propostas não se alterem.
Entende-se aqui que, a partir do estabelecimento de que se deve guardar a paideía e a
trophé, Sócrates trata, na segunda passagem citada, dos efeitos que teria essa medida em vista de
se aceitarem essas prescrições, as quais dizem respeito à cidade toda.
Assim, os homens que, por terem recebido a boa educação prescrita antes, se tornassem
homens comedidos (métrioi ándres) aceitariam limitar sua riqueza ou abster-se dela, assim como
aceitariam os limites de crescimento da cidade e que fossem colocados na função de acordo com
753
PLATÃO. República, 423c-d. Cf. República, 415a-c
754
PLATÃO. República, 423d8-e2.
755
PLATÃO. República, 423e4-424a2.
215
sua natureza. Não se trata mais aqui, portanto, dos chefes a quem eram feitas as prescrições, mas
dos beneficiários da educação.
Segundo essa leitura, desaparecem nesta passagem os problemas ligados a determinar
como poderia Sócrates estar se referindo aos chefes se ainda não explicitou sua educação. Esse
não é um problema real pela interpretação defendida aqui, segundo a qual ―antecipações‖ da
educação superior no âmbito da descrição da paideía primária.
A má leitura dessa passagem mascara a importância do que Sócrates dirá em seguida, que
se aplica a toda a cidade:
756
Ora pois, a república [politeía], uma vez que esteja bem lançada, irá alargando como um
círculo. Efetivamente, uma educação e instrução honestas que se conservam tornam a
natureza boa, e, por sua vez, naturezas honestas que tenham recebido uma educação
assim tornam-se ainda melhores que os seus antecessores, sob qualquer ponto de vista,
bem como sob o da procriação, tal como sucede com os outros animais.
Ora, essa imagem do círculo que se alarga pode ser compreendida como significando o
poder da paideía de agir a partir do legislador, que, tendo retificado a si mesmo, retifica, a seguir,
o restante da cidade.
Não parece ser outro o sentido do que Sócrates diz quando trata, mais adiante, do governo
dos filósofos:
757
Logo, se surgir qualquer necessidade de cuidar que se instaure nos hábitos dos homens,
particulares e públicos, o que viu
758
, sem se limitar a modelar-se a si mesmo, acaso
julgas que será um mau criador de temperança, justiça e de toda virtude do povo
[demotikês aretês]?
756
PLATÃO. República, 424a4-b1.
757
PLATÃO. República, 500d4-8.
758
Entenda-se na contemplação das essências.
216
Sobre essa ação de delinear a cidade tal como um pintor que utiliza um modelo divino, diz
Sócrates:
759
Pegarão no Estado e nos caracteres dos homens, como se fossem uma tábua de pintura;
primeiro torná-la-iam limpa, coisa que não é lá muito fácil. Sabes, no entanto, que
seriam diferentes dos outros logo neste ponto; não quererem ocupar-se de um particular
nem de um Estado, nem de delinear as leis antes de a receberem limpa ou a limparem
eles.
-se aqui uma ressonância da passagem na qual se compara o processo de educar com o
de produzir um tingimento bem feito
760
. Assim, como é considerada tarefa difícil selecionar os
que receberão a paideía-tratamento químico, aqui é difícil limpar a tábua.
Sobre o trabalho desses ―pintores‖, diz ainda Sócrates:
761
Seguidamente, penso que, aperfeiçoando o seu trabalho, olharão freqüentemente para um
lado e para outro, para a essência da justiça, da beleza, da temperança e virtudes
congêneres, e para a representação que delas estão a fazer nos seres humanos, compondo
e misturando as cores, segundo as profissões, para obter uma forma humana divina
baseando-se naquilo que Homero, quando o encontrou nos homens, apelidou de ―divino
e semelhante aos deuses‖.
Não parece caber aqui uma interpretação segundo a qual, mesmo mencionando tal
diversidade de tipos humanos e profissões, Sócrates esteja se referindo apenas aos guardiões,
educados, só eles, para as virtudes cívicas
762
.
759
PLATÃO. República, 501a2-7.
760
PLATÃO. República, 429d-430b.
761
PLATÃO. República, 501b1-7.
762
Sobre esse papel modelador dos filósofos-governantes, ver também: PLATÃO. República, 540a-b.
217
Note-se também que a justiça e a temperança, virtudes que se defende aqui, pertencerem,
em certa medida, a toda a cidade, são citadas nominalmente na última e na antepenúltima
passagens referidas, e são aquelas que deve considerar-se que pertencem a todas as classes.
Feitas essas observações sobre o sentido do círculo que se alarga na cidade, cabe retomar
o argumento de Sócrates sobre a importância da preservação da mousiké.
Sócrates volta a insistir que não se altere na cidade o que foi instituído sobre a mousiké e a
gymnastiké, ressaltando a relação dessas mudanças com a perturbação das mais altas leis da
cidade
763
.
No que poderia parecer exagero, não fosse realmente a prescrição que disse que era a mais
importante, propõe mais uma vez, logo em seguida:
764
Logo, o posto de guarda devem eles erigi-lo ao que parece, nesse lugar: na música.
Adimanto entende que é na mousiké que a inobservância das leis se infiltra passando
despercebida. Sócrates concorda, com certo ar de brincadeira
765
. Ora, se todos os cuidados da
paideía descrita até aqui visavam produzir a justiça, a coragem
766
e a temperança na alma dos
educandos, entende-se, pela relação entre a paideía proposta e a capacidade de gerar esses
efeitos, que sua alteração colocaria em risco esses efeitos mesmos, os quais são necessários para
que os cidadãos sejam como são e a cidade, como é.
Sobre esse efeito de uma alteração na mousiké, diz ainda Adimanto, continuando a refletir
e, de certa forma, aprofundando a opinião que veiculou no livro II
767
:
763
PLATÃO. República, 424b-c.
764
PLATÃO. República, 424d1-2.
765
PLATÃO. República, 424d. O ar de brincadeira de Sócrates pode dever-se ao fato de que foi Adimanto que
apresentou no livro II uma visão segundo a qual a razão de se louvar a injustiça em detrimento da justiça residia em
uma má educação dada aos jovens, e que envolvia, fundamentalmente, a mousiké.
766
Entenda-se que a coragem em alguns chega a se constituir no sentido pleno a ponto de definir o seu érgon
como o de guardião da cidade.
767
Sobre a posição de Adimanto no livro II, segundo a qual a influência da paideía pela poesia e das afirmações que
a maioria faz, que acabam por determinar as escolhas e o modo de vida, ver PLATÃO. República, 362e-367e.
218
768
Nada mais faz, na realidade, do que introduzir-se aos poucos, deslizando mansamente
pelo meio dos costumes e usanças. Daí deriva, maior, para as convenções sociais; das
convenções passa às leis e às constituições com toda a insolência, ó Sócrates, até que por
último, subverte todas as coisas na ordem pública e na particular.
O que Adimanto parecia àquela altura reconhecer é que descuidar da educação reflete-
se primeiramente no modo de as pessoas se comportarem e daí às convenções, leis e
constituições. Porém, se continuasse a regressão em busca da causa da subversão das coisas na
ordem pública e privada, terminaria na falta de virtude como denunciada por Sócrates na
Apologia, e que é consequência de uma má ordenação da alma
769
.
Esperar que uma ordenação da alma da maior parte da cidade não termine causando
todos os efeitos descritos por Adimanto seria confiar excessivamente na força de uma minoria
para submeter uma maioria. Embora isso não seja impossível, poria por terra a plausibilidade da
consonância, da harmonia que Sócrates diz enxergar na cidade que construiu, quando encontrou
nela a temperança
770
, pois, como se defendeu antes, não haveria fundamento para tal
consonância. Ademais, implicaria uma relação entre governantes e governados, na cidade, que
seria aquela que entre déspotas e escravos, o que também foi excluído explicitamente por
Sócrates que seja o caso na cidade no lógos.
Feitas essas prescrições e compreendido o seu sentido, resta a Sócrates complementar a
ideia já antes desenvolvida de que o éthos se molda desde a infância por uma imersão naquilo que
é afim com o éthos que se deseja desenvolver
771
:
772
Portanto, como dizíamos de início, as nossas crianças
773
devem participar em jogos mais
conformes com a lei, pensando que, se eles lhe forem contrários é impossível que daí se
formem homens cumpridores da lei e honestos.
768
PLATÃO. República, 424d7-e2.
769
PLATÃO. República, 415.
770
PLATÃO. República, 430e.
771
PLATÃO. República, 400d-402a.
772
PLATÃO. República, 424e5-425a1.
773
Preferiu-se aqui traduzir paidías como crianças ao invés de filhos, que foi a opção de Pereira, para evitar a
interpretação de que possa se tratar dos filhos dos guardiões exclusivamente.
219
Essa passagem reforça em grande medida a interpretação que se defende aqui que seria
absurdo esperar que não se tome essa medida também em relação às crianças filhas dos artesãos,
que, com certeza, não estão dispensados de serem cumpridores das leis e honestos.
E continua:
774
Quando, portanto, as crianças principiam por brincar honestamente, adquirem, através da
música, a boa ordem e, ao contrário daqueles
775
, ela acompanha-os para toda a parte, e,
com o seu crescimento, endireita qualquer coisa que anteriormente tenha decaído na
cidade.
A seguir, conclui:
776
E sem dúvida descobrirão aquelas leis, que pareciam pequenas, e que os seus
antecessores tinham deitado todas a perder.
Quem descobrirá essas leis que pareciam pequenas e as mencionará em seguida são,
obviamente, aquelas crianças que vinham sendo expostas a elas desde cedo, até como
brincadeira.
Como é aos guardiões-governantes que cabe legislar, poder-se-ia dizer aqui que as
crianças referidas antes eram as crianças que serão futuros legisladores, pois caberia a elas,
quando maiores, descobrir essas leis e positivá-las.
Pórem, não se sustenta essa interpretação segundo a qual os que ―descobrirão‖ as leis são
os futuros legisladores, que elas são consequência da paideía e podem e devem ser
―descobertas‖ por qualquer um que se beneficie delas.
Quais sejam essas leis Sócrates anuncia em seguida, deixando claro que não são leis sobre
as quais valha a pena legislar positivamente, o que, considerando-se que se aplicam a todos os
cidadãos, torna ainda mais forte a interpretação segundo a qual todos devem ser educados.
774
PLATÃO. República, 425a3-6.
775
Aqueles mencionados em 424d.
776
PLATÃO. República, 425a8-9.
220
777
As seguintes: o silêncio que os mais novos devem guardar perante os mais velhos; o dar-
lhes lugar e levantar-se; os cuidados para com os pais; o corte de cabelo, o traje, o
calçado, e toda a compostura do corpo, e demais questões desta espécie. Ou não achas?
É difícil supor que Sócrates entenda que esses preceitos aplicam-se aos guardiões, mas
é o que diz a seguir que parece não deixar dúvida sobre o fato de que isso, que se espera que seja
reconhecido pelos educandos naturalmente, será efeito da paideía, e não de leis positivas:
778
Legislar sobre o assunto seria ingênuo, a meu ver, porquanto as disposições
estabelecidas não se realizariam nem se manteriam, oralmente nem por escrito.
E diante da pergunta de Adimanto sobre como fariam para instituí-las na cidade, Sócrates
responde:
)
779
Parece-me Adimanto, que o impulso que cada um tomar com a educação, determinará o
que há de seguir. Ou cada ovelha não busca sempre sua parelha?
Entendendo que a boa ou educação, determinando o caráter
780
, determina o resultado
final tanto bom quanto mau, no que diz respeito às ações, Sócrates insiste em que não deve
legislar sobre essas questões
781
.
ainda, segundo Sócrates, outras questões a serem levadas em consideração sobre o
modo de vida na cidade e que envolvem preceitos:
777
PLATÃO. República, 425b1-5.
778
PLATÃO. República, 425b7-8.
779
PLATÃO. República, 425b10-c2.
780
PLATÃO. República, 400d-402a.
781
PLATÃO. República, 425c.
221
782
Olha ainda, em nome dos deuses! disse eu . Essas questões de negócios relativas a
contratos que fazem as diferentes classes na praça, uma com as outras, e, se quiseres, os
contratos de mão de obra, as ofensas e tratamentos injuriosos, instauração de processos e
nomeação de jurados, e, se acaso for necessário, a exação e pagamento de impostos na
praça ou no porto, ou em geral, a regulamentação do mercado, da cidade, do porto e tudo
o mais dessa espécie aventurar-nos-emos a propor qualquer legislação sobre essas
questões?
É Adimanto quem responde que homens de bem descobrirão as leis a formular em tais
assuntos, o que Sócrates, mais uma vez, condiciona à preservação das leis analisadas
anteriormente
783
.
Os homens de bem referidos por Adimanto são, sem dúvida, os legisladores da cidade, os
quais legislariam para os homens comuns sobre essas coisas que talvez eles não pudessem
descobrir sozinhos, como aquelas outras que Sócrates entendeu antes
784
que não necessitariam de
legislação positiva.
Porém, referindo-se a essas mesmas coisas, Sócrates, mais à frente, esclarece que também
sobre elas não há necessidade de legislação positiva em uma cidade como a que estão fundando:
785
Eu, por conseguinte, não pensaria que um legislador autêntico devesse ocupar-se desta
espécie de leis e de administração, quer numa cidade mal governada, quer numa que o
seja bem naquela, porque são inúteis e sem alcance, nesta porque qualquer pessoa
descobrirá parte delas, e o resto surgirá espontaneamente dos costumes tradicionais.
Ora, caso realmente ocorram na cidade os tipos de contratos e transações descritos
786
, eles
só poderiam dar-se entre os membros da classe dos artesãos. Mas se em uma cidade bem
782
PLATÃO. República, 425c10-d6.
783
PLATÃO. República, 425e. Note-se que aqui, mais uma vez, a insistência é sobre a preservação, principalmente
da paideía.
784
PLATÃO. República, 425b-e.
785
PLATÃO. República, 427a2-7.
786
Sócrates parece tomar aqui como exemplo uma hipotética cidade histórica, Atenas, por exemplo, para examinar o
caráter inócuo das leis que regulam essas coisas em uma cidade na qual não houve a educação apropriada.
222
governada, na qual se preserva a boa paideía, não é preciso regular positivamente essas coisas, só
pode significar que nesta cidade os artesãos foram bem educados e possuem uma alma ordenada
de modo a não serem ambiciosos e injustos a ponto de quererem levar vantagem indevida onde
quer que seja, ou de se furtarem às suas obrigações.
Tudo isso apenas torna mais claro o motivo pelo qual a cidade não precisará de juízes para
pequenas causas, nem, analogamente, de médicos especializados em curar doenças decorrentes
de
excessos.
Ora, essa medicina que se propõe, assim como a legislação, aplica-se a toda a cidade. Ou
bem uma medicina para curar os excessos dos artesãos mal educados, ou se deixa que suas
doenças decorrentes dos excessos prejudiquem a sua função na cidade, o que não parece
plausível.
Por outro lado, que os seus excessos sejam naturalmente coibidos pela ausência, por
exemplo, dos alimentos prescritos na passagem da cidade inchada para a cidade reta, já os coloca
no âmbito da paideía descrita.
5.2.1 A comunidade de bens, mulheres e filhos
À luz das considerações feitas sobre o modo de vida na cidade logo após determinar que
os guardiões não teriam bens, e no âmbito das quais é inserida a comunidade de mulheres e
filhos, dentre eles, pode-se voltar à questão das prescrições sobre a comunidade, com o intuito de
determinar em que medida são válidas para a cidade toda.
Esta é uma questão importante para a tese aqui proposta, segundo a qual a educação
primária se destina a todos os cidadãos. É que a maneira como se entende aqui a extensão a toda
a cidade da educação primária, pela qual não é possível separar na mais tenra infância os
educandos, exige, por tudo o que se dirá sobre a comunidade de filhos, que essa comunidade se
estenda a todas as crianças da cidade. Não entendê-la assim levaria necessariamente a admitir que
as crianças que são filhos ―em comum‖ dos guardiões são educadas por eles, e as outras, que não
seriam ―comuns‖, pelos seus pais artesãos.
Embora se tenha defendido extensivamente a impossibilidade de testar as crianças para
determinar sua natureza e, consequentemente, a que tipo de educação se destinaria, o que por si
levaria a estender a comunidade de filhos a toda a cidade, cabe analisar o texto em que estas
223
disposições sobre filhos, mulheres e bens são feitas para mostrar que não são incoerentes com a
proposta de uma comunidade estendida a toda a cidade e que são condição de possibilidade para
certos traços que, mais à frente, se identificam na cidade.
Essas questões são tratadas no livro V quando Adimanto, secundado por Gláucon e até
por Trasímaco, cobra de Sócrates esclarecimentos a respeito da comunidade de mulheres e filhos,
que vinha causando inquietação entre os ouvintes
787
.
Mais uma vez o acompanhamento cuidadoso do texto mostra que Sócrates parece referir-
se à comunidade de mulheres, filhos e bens tendo como foco uma discussão inicial sobre os
guardiões, mas logo, implicitamente, estende esse modo de vida a toda a cidade, tal como se
fossem os guardiões os modelos a partir dos quais se estendem a toda a cidade, como em um
círculo em que se alarga aquilo que se prescreve para eles
788
.
Ora, o que Sócrates diz sobre o modo de vida da cidade e sobre o que se espera que se
passe entre os cidadãos, tal como quando falava da virtude da temperança, por exemplo, exige
que se entenda que aquela comunidade a que se referiu, a partir de uma discussão sobre os
guardiões, se estende a toda a cidade.
Mais uma vez, poder-se-ia defender que o foco nos guardiões dá-se porque eles são o
centro a partir do qual tudo se irradia e a partir do qual a dissensão também se irradiaria no caso
de existir entre eles qualquer egoísmo ou cobiça por bens
789
.
Porém, convém passar ao texto para verificar como essa proposta de interpretação, pela
qual se estende a comunidade a toda a cidade, dá a ele a coerência que não poderia ser encontrada
por outra via.
É Gláucon, e não Sócrates, quem o tom do início da discussão, colocando em foco os
guardiões:
790
E tu não te canses de responder, como te parecer bem, às nossas perguntas: que
comunidade será essa para os nossos guardiões, relativamente a filhos e mulheres, e à
787
PLATÃO. República, 449a-450a.
788
PLATÃO. República, 424a.
789
PLATÃO. República, 424a, 545c-d, 547b-c.
790
PLATÃO. República, 450b8-c5.
224
criação, quando ainda são novos, no tempo que medeia entre o nascimento e a educação,
e que se me afigura ser o mais trabalhoso de todos? Tenta, pois, dizer de que maneira
deve fazer-se.
Anunciando que a questão comporta não só a defesa de sua possibilidade, mas de que esta
seja melhor
791
, Sócrates, com o incentivo dos interlocutores, passa a tratar do papel das mulheres
na cidade:
792
Para homens nados e criados como nós explicamos, não em minha opinião, outra
posse e uso correto dos filhos e das mulheres do que seguirem aquele impulso que lhes
comunicamos de início. Pois tentamos estabelecer estes homens como uma espécie de
guardiões do rebanho.
Note-se que é justificável que o foco inicial da discussão sejam os guardiões que se vai
tratar de normas que precisam ser justificadas o como possíveis mas como melhores para a
cidade. Sendo os guardiões ―pastores‖ de um rebanho,
793
a análise que se fará, em última
instância, diz respeito a normas que evitam não dissensão entre eles, a qual seria causa de
corrupção de todo modo de vida da cidade
794
, mas que também são benéficas para toda a cidade e
condição de possibilidade do que se diz depois sobre ela.
O fato de se estar analisando o que seria benéfico para os guardiões, que estão em foco,
não exclui que seja benéfico para toda a cidade.
Sócrates começa por estabelecer que é possível e útil (dynatá te kaì ophélima)
795
que as
mulheres exerçam, sob todos os aspectos que sua natureza permita, as mesmas funções que os
homens na cidade. Como entende que sua natureza difere da dos homens por serem
fisicamente mais débeis, conclui que podem ser guardiãs e para tanto devem receber a mesma
educação que os guardiões
796
.
Note-se que, embora esse argumento tenha como ―foco‖ os guardiões, deve, pelo que se
diz sobre as necessidades da cidade, se estender a todos. Assim, também contra o que é usual,
791
PLATÃO. República, 450d.
792
PLATÃO. República, 451c4-8.
793
PLATÃO. República, 451c.
794
PLATÃO. República, 445c-d.
795
PLATÃO. República, 457c.
796
PLATÃO. República, 451d-457c.
225
deve-se esperar que as mulheres exerçam como ―artesãs‖ certas funções que em uma outra cidade
seriam destinadas aos homens. Ora, não é preciso que haja referência explícita a essa prática na
cidade no lógos para que ela pareça natural ao leitor.
Em seguida passa à questão que mais interessa aqui: a da comunidade de mulheres e
filhos. Tendo sido considerada a questão da função e educação das mulheres uma primeira onda a
ser superada, a anuncia como a segunda e maior.
Estabelece que sobre essa questão a lei deveria ser a seguinte:
797
Que estas mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e nenhuma coabitará em
particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais
saberão quem são os seus próprios filhos, nem os filhos os pais.
Não se pode duvidar aqui que Sócrates esteja se referindo, neste momento inicial da
discussão, às mulheres e filhos dos guardiões, tendo em vista que vinha falando das funções dos
guardiões e das guardiãs ao fazer a transição para esta nova ―onda‖.
Isto, porém, em nada elimina a possibilidade de que, pelo menos do ponto de vista de
Sócrates, a prescrição tenha que ser estendida. Que Sócrates seja cuidadoso e não afirme esta
extensão explicitamente justifica-se tanto pela sua própria admissão de que é mais cil mostrar
que é útil do que mostrar que é possível, quanto pela reação de Gláucon à proposta.
Porém, a questão que se coloca é: se a utilidade é tão clara, quão útil seria estendê-la?
Sócrates parece ser suficientemente coerente para estendê-la mais tarde.
A reação de Gláucon à proposta é a que segue:
798
Isso é ainda muito pior, quer sob o ponto de vista da inverosimilhança, quer da
possibilidade e da utilidade.
Sócrates responde:
797
PLATÃO. República, 457c10-d3.
798
PLATÃO. República, 457d4-d5.
226
799
Não creio ripostei eu que se possa discutir a utilidade, e dizer que não será um
grande benefício a comunidade das mulheres e dos filhos, desde que seja realizável. Mas
julgo que poderá originar-se a maior controvérsia sobre se é ou não possível.
Sócrates propõe-se então, partindo da consideração de que é possível tal ordenação, a
examiná-la sob o ponto de vista da utilidade
800
.
Propõe que não se permita que guardiões e guardiãs procriem segundo o seu desejo, mas
que suas uniões sejam promovidas pelos governantes, os quais promoverão casamentos sagrados
visando à eugenia tal como se dá em relação à procriação de animais
801
.
É ao tratar da necessidade de procedimentos eugênicos no que diz respeito a casamentos e
procriação que Sócrates parece introduzir uma característica na cidade que pode ter como
condição de possibilidade o fato de que pretende uma extensão da comunidade de mulheres e
filhos a toda a cidade:
802
É preciso, de acordo com o que estabelecemos, que os homens superiores [arístous] se
encontrem com as mulheres superiores o maior mero de vezes possível, e
inversamente, os inferiores [phaulotátous] com as inferiores, e que se crie a
descendência daqueles, e a destes não, se queremos que o rebanho se eleve às alturas, e
que tudo isto se faça na ignorância de todos, exceto dos próprios chefes, a fim de a grei
dos guardiões estar, tanto quanto possível, isenta de dissensões.
Existem várias interpretações possíveis para esse passo, mas uma coerente com o que
se disse até agora: que se favorecerão as uniões dos homens e das mulheres considerados os
melhores na cidade, promovendo-as o maior número de vezes possível em vista de criar ou
799
PLATÃO. República, 457d6-d9.
800
PLATÃO. República, 458a-c.
801
PLATÃO. República, 458c-459d.
802
PLATÃO. República, 459d7-e3.
227
promover (tréphein) uma descendência o mais numerosa possível deles, esperando que sejam
semelhantes aos pais, o que não é garantido, embora mais provável
803
.
Inversamente, limitar-se-ão as uniões entre os homens e mulheres piores, promovendo-as
o menor número de vezes possível tendo em vista que não se quer criar ou promover (tréphein) a
sua descendência.
Como está sugerido pela paráfrase acima, interpreta-se aqui tréphein o no sentido de
alimentar com vistas ao crescimento, mas no sentido de promover o crescimento de certo grupo
com características específicas dentro da mesma espécie, tal com se dá com a criação (tréphein)
de cavalos
804
.
Ora, que o verbo tréphein esteja sendo usado aqui neste sentido sugere não a coerência
que se exige do texto como um todo mas a própria comparação com a criação de cavalos, que foi
usada como justificativa para a adoção de procedimentos eugênicos
805
. É certo que a palavra que
foi então usada foi gennaíon
806
, mas remete a uma atividade nobre: a criação de cavalos
(hippotrophía)
807
.
Ora, quem ―cria‖ cavalos neste sentido não deixa de alimentar os cavalos não tão
excelentes que vão nascendo, mas simplesmente se esforça por promover acasalamentos que
produzam uma descendência excelente. Os cavalos não tão excelentes que forem nascendo
deixam de ser vistos como os melhores, os quais, tendo em vista a descendência, não serão os
preferidos para acasalar com as melhores éguas. Em nada se exclui que serão aproveitados ou
acasalados com éguas da sua categoria, visando a uma descendência de cavalos bons, embora não
excelentes.
O mesmo poderia ser dito sobre a passagem citada em relação ao rebanho mais amplo,
que é o dos cidadãos
808
. É claro que os melhores e mais raros são os homens de ouro, os mais
excelentes que por natureza, que de tão raros exigem que todos os recursos sejam usados para
―criá-los‖ (trépho) ou promover seu nascimento, inclusive os casamentos com as mulheres de
mesma natureza.
803
PLATÃO. República, 415a-b.
804
Sobre esse significado do verbo trépho, ver CHANTRAINE, 1968, p.1133-1134.
805
PLATÃO. República, 459a-b.
806
PLATÃO. República, 459a.
807
Sobre o significado do composto, diz Chantraine: ―l´élevage des chevaux est une activité noble, d´où l`emploi
d´un composé en tróphos‖. Cf. CHANTRAINE, 1968, p.1134.
808
PLATÃO. República, 451c.
228
É claro que, tendo isso em vista como objetivo, a verdade é que nascerão na cidade muito
mais homens de prata, de ferro e bronze do que de ouro. Considerando que esses homens são
necessários para exercerem érga específicos na cidade, convém também permitir que vivam e
procriem. Estão também, então, incluídos entre os que são criados (trépho) na cidade.
A quais homens Sócrates estará se referindo, então, quando diz que a descendência dos
piores não será criada? podem ser aqueles que são piores não apenas no sentido comparativo
mas piores como termo último de uma escala descendente, ou seja, ruins. Esses podem muito
bem ser aqueles que, mesmo recebendo a trophé (agora no sentido de educação) pela mousiké e
gymnastiké, não se deixam retificar por ela, nem na medida necessária para fazer parte da cidade.
Note-se que antes Sócrates tinha feito menção à pena de morte para os ―incuráveis de
espírito‖
809
. Ora, se os incuráveis de espírito podem ser condenados à morte, faz sentido que não
se favoreça a descendência dos que, sendo ainda curáveis, mais se aproximam daqueles, sendo,
então, esses homens ―ruins‖ que se unirão às mulheres o menor número de vezes possível. Nada
impede que o número dos filhos dos piores tenda a zero ou que se os evite mesmo, pois pode-se
evitar que dessas uniões nasçam filhos pela manipulação dos períodos férteis das mulheres. Essa
interpretação daria conta de explicar o que significa a prescrição de não ―criar‖ os filhos dos
piores.
Como forma de eliminar qualquer protesto sobre esses critérios, Sócrates, depois de
estabelecer que haverá festas de matrimônio nas quais se unirão noivos e noivas da forma antes
estabelecida, diz sobre a maneira de enganar os cidadãos sobre os critérios usados para formar os
pares:
810
Devem fazer-se, julgo eu, tiragens à sorte engenhosas, de modo que o homem inferior
[phaûlon] acuse, em cada união, a sorte, e não os chefes.
Ora, o que essa passagem parece indicar é que um dos motivos que poderiam levar o
homem inferior a acusar os chefes seria exatamente a escassez de uniões que a ―sorte‖ lhe
confere.
809
PLATÃO. República, 410a.
810
PLATÃO. República, 460a8-10.
229
Caso nasçam, entretanto, filhos das raras uniões de homens e mulheres inferiores, o seu
destino, pelo que se diz a seguir, será aquele que se diz adiante que os governantes darão às
crianças com defeitos congênitos:
811
Pegarão então nos filhos dos homens superiores [agathôn], e levá-los-ão para o aprisco,
para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e
qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto,
como convém.
Que esses piores (kheirónon) que não se quer criar, no sentido de promover sua
descendência, possam ser os filhos que porventura nasçam de homens e mulheres ruins, e não
os homens piores em comparação com os guardiões mais excelentes, fica claro, como já foi dito,
pela necessidade de criar, nesse mesmo sentido, também os artesãos e os auxiliares.
Porém, cabe analisar as passagens segundo uma leitura alternativa para mostrar que
perdem coerência com o que se diz da cidade.
Que se esteja falando, nas três passagens citadas em que se tinha em foco a comunidade
de mulheres e filhos, somente dos guardiões resultaria que não se procuraria criar, no sentido de
promover a descendência, os homens de prata ou auxiliares, que estariam sendo mencionados
apenas os áristoi. Assim, também esses homens de prata estariam sendo referidos como aqueles
que precisariam acusar a sorte por suas uniões menos frequentes com as mulheres.
Essa interpretação não se sustenta. Mas é que são necessários soldados e auxiliares na
cidade. E se diz explicitamente que um dos prêmios por valentia em batalha são uniões mais
frequentes. Ora, destacar-se na batalha não implica ser de ―ouro‖ e ter capacidade dialética e, no
entanto, é útil criá-los‖ e, por isso mesmo, prescrição para que procriem mais, ou seja, para
que sejam ―criados‖, mesmo que eles sejam, em um certo sentido, inferiores aos áristoi dentre os
guardiões.
Que se force a interpretação dizendo que melhores são governantes e auxiliares, e piores,
os outros, mesmo assim resulta problemático para a economia da cidade não ―criar‖ a raça dos
artesãos e agricultores.
811
PLATÃO. República, 460c1-5.
230
Se não são os guardiões que são referidos na passagem, mas todos os cidadãos, e se não se
entende, preconceituosamente, os artesãos como ―piores‖ nessa passagem em que kheirónon
significa claramente ―ruim‖, elimina-se esse problema.
Um problema ainda maior de interpretação surgiria em relação à última passagem
citada
812
, pois, se no âmbito dessa discussão sobre a comunidade de mulheres e filhos se está
falando dos guardiões, isso implicaria que os filhos dos piores guardiões seriam escondidos
junto com os filhos defeituosos dos outros cidadãos.
Ora, por tudo o que já se defendeu aqui, não haveria como determinar nem o que são nem
o que vão se tornar os filhos dos piores guardiões antes da paideía-trophé pela mousiké e pela
gymnastiké, o que só se pode saber mediante testes.
Mas se mesmo de homens e mulheres de bronze pode nascer uma descendência de
ouro
813
, que sentido faria esconder em local interdito e oculto filhos de homens de prata? Ora,
eles poderiam ser de ouro, de prata ou os melhores entre os de bronze, tão necessários à cidade.
Poder-se-ia ainda objetar que o que se tem em vista é chegar a uma geração toda de ouro,
mas isso nem é coerente com a proposta de cidade de Sócrates nem é necessário.
Sob esse aspecto parece necessário entender que houve uma transição na discussão sobre
a comunidade de mulheres e filhos e deixou-se de falar dos guardiões e passou-se a falar da
cidade como um todo.
Problema maior ainda resultaria na interpretação de trépho nas passagens acima como
significando ―nutrir‖. Embora muitos vejam na expressão kaì tôn mèn tà ékgona trépheinuma
referência à ―exposição‖ dos filhos dos homens piores, é possível a interpretação alternativa dada
acima, segundo a qual trépho significa ―favorecer a descendência‖.
Ainda que não fosse essa a melhor interpretação e trépho aqui significasse realmente
nutrir, pareceria sem sentido que a passagem dissesse respeito aos guardiões. Mais uma vez,
significaria que não prescrição na cidade para que se deixe viver os filhos dos piores entre os
guardiões, o que seria absurdo pelos motivos aduzidos acima.
Poder-se-ia dizer que as intervenções logo a seguir, de Gláucon, põem por terra a
interpretação que aqui se propõe, pois ele deixa claro que entende que o que se disse antes se
812
PLATÃO. República, 460c1-5.
813
PLATÃO. República, 415a-c.
231
aplica aos guardiões: ―[...] Se, realmente, queremos que a raça dos guardiões se mantenha pura‖
( )
814
.
Além disso, logo depois de ouvir Sócrates destinar às es levadas ao aprisco para
alimentar os filhos todas as facilidades, diz: ―São muitas as facilidades que concedes à
maternidade das mulheres dos guardiões‖ (
)
815
.
Quanto às intervenções de Gláucon, a única coisa que se pode concluir delas é que ele
também não interpretou as palavras de Sócrates conforme se propõe aqui que sejam interpretadas.
Que todos os intérpretes tenham de repetir a miopia de Gláucon nada no texto obriga. Pelo
contrário, por mais promissor que Gláucon seja
816
, não significa que seja um dialético acabado, e
é significativo que já tenha dado antes sinais de miopia, os quais voltarão a se manifestar
817
.
Talvez se devesse esperar que Sócrates corrigisse Gláucon em um caso assim e lançasse
luz definitivamente sobre o problema, mas o que se propõe aqui é que Sócrates trata essa questão
como difícil
818
e exige dos interlocutores que descubram por si a solução, embora, como sempre,
mostre o caminho.
814
PLATÃO. República, 460c6-7.
815
PLATÃO. República, 460d6-7.
816
Costuma-se ressaltar a capacidade de Gláucon de seguir as discussões de Sócrates sobre as ideias como sinal de
uma natureza filosófica e de que é um interlocutor diferenciado e qualificado. Sem que se queira aqui refutar essa
interpretação, o que se deseja é apenas considerar a diferença que existe entre a natureza filosófica de um jovem
promissor e a de um dialético acabado. De resto, não faltam exemplos na obra de Platão de jovens capazes e
desvirtuados antes de completarem o percurso de um ―amante da sabedoria‖. Tome-se como exemplo Cármides,
considerado um jovem promissor no Cármides, Alcibíades, e mesmo Agatão, como retratado no Banquete. Cármides
tornou-se um dos trinta tiranos, cujo regime constitui fonte de decepção para Platão. O Alcibíades, do Banquete, cuja
sinceridade, ao descrever a influência de Sócrates sobre ele na juventude, retrata um claro exemplo de impulso para a
filosofia não realizado. Para uma interpretação segundo a qual Agatão já se encontra, mesmo jovem, a caminho do
desvirtuamento provocado pela sedução da retórica sofística, ver CORRIGAN, Kevin; GLAZOV-CORRIGAN,
Elena. Plato´s dialectic at play: argument, structure, and myth in the Symposium. University Park: The Pennsylvania
State University Press, 2004. Ver p. 85-103. Sobre a decepção de Platão com o regime dos trinta, ver PLATÃO.
Carta Sétima, 324b-325a. Sobre a relação de Alcibíades com Sócrates, ver PLATÃO. Banquete, 215a-222b. Sobre
ser Gláucon um ―homem filosófico‖, ver REEVE, 1988, p. 41e sobre Gláucon ser um interlocutor diferenciado e
qualificado, ver VLASTOS, 1981, p. 143.
817
Sobre a miopia de Gláucon, ver infra, seção 2.3.1. Sobre novas manifestações de miopia e sobre o fato de que seus
costumes interferem na maneira como vê as coisas que estão em discussão, note-se que o seu entusiasmo em relação
a beijar os jovens em batalha trai a inclinação por um costume que tinha sido excluído por Sócrates. Sobre o
―entusiamo‖ de Gláucon, ver PLATÃO. República, 468b. Sobre o fato de se ter estabelecido antes que as relações
com os jovens não admitiriam o costume para o qual Gláucon se inclina, ver PLATÃO. República, 403a-c. Sobre o
caráter ―erótico‖ de Gláucon, ver PLATÃO. República, 458d, 474d. Sobre Gláucon reivindicar o ―costume‖, ver a
célebre passagem na qual qualifica a ―cidade sã‖ como uma cidade de porcos, em PLATÃO. República, 372d-e.
818
PLATÃO. República, 450b, 457d.
232
É depois da discussão sobre a idade apropriada de procriação e sobre suas regras, no
âmbito da qual faz a única prescrição clara no texto sobre a ―exposição‖ de crianças
819
, que
Sócrates parece disposto a retificar qualquer coisa que tenha ficado mal compreendida por
Gláucon:
820
É essa, portanto, ó Gláucon, a comunidade de mulheres e filhos entre os guardiões da tua
cidade. Que está de acordo com o resto da constituição e que é em muito o melhor, é o
que é preciso depois disto que seja solidamente confirmado pela nossa argumentação.
Ou como faremos?
Que Sócrates a partir desse ponto começar a lançar luz sobre o alcance dos princípios
que estabeleceu, que devem vigorar na cidade, fica sugerido pela maneira como se refere à
comunidade de mulheres e filhos entre os guardiões na ―cidade de Gláucon‖.
Embora Sócrates tenha usado antes a forma pronominal soí para referir-se à cidade
que ele e os interlocutores constroem em comum, o contexto aqui, em que se fazem claramente
esclarecimentos sobre a cidade que se está construindo, parece indicar uma antecipação dos
esclarecimentos necessários que dará a Gláucon, que, caso não fosse míope, deveria enxergar.
Diz Sócrates:
819
―Porém, em meu entender, quando as mulheres e os homens tiverem ultrapassado a idade da geração deixaremos
aos varões a liberdade de se unirem a quem quiserem, exceto a uma filha, mãe, neta ou avó; e, por sua vez, às
mulheres, exceto a um filho, um pai, ou outro parente em linha reta, descendente ou ascendente. E tudo isso,
depois de os termos exortado a terem o maior cuidado em não darem à luz o furto dessas uniões, e, se gerarem algum
filho, e se ele forçar caminho, em disporem dele, partindo do princípio de que tal ser não será criado.‖ (
),
PLATÃO. República, 461b9-c6. Considera-se aqui que a passagem 460c não é suficientemente clara, embora alguns
a interpretem como um eufemismo para a ―exposição‖. É que a ―exposição‖, mesmo dos filhos dos ―piores‖,
entendidos como ―ruins‖, não é coerente com a prescrição feita na obra, segundo a qual os filhos não são
necessariamente como os pais. A única coisa que se pode afirmar com certeza sobre 460c é que os filhos dos piores e
os filhos dos outros que sejam disformes serão segregados, nada sendo dito sobre o modo de vida e educação que
terão e sobre a possibilidade de serem reintegrados.
820
PLATÃO. República, 461e5-9.
233
821
Porventura não deve ser o ponto de partida do nosso acordo, perguntar a nós mesmos
qual é o maior bem que podemos apontar na organização de uma cidade, aquele que o
legislador deve ter em vista ao promulgar as leis, e qual é o maior mal? E depois, em
seguida, inquirir se as instituições que descrevemos nos ajustam às pegadas do bem, e
nos desviam das do mal?
Ora, Sócrates está praticamente expondo aqui o método segundo o qual se deve
interpretar o que se disse sobre a cidade. O que diz é que, partindo do que se espera encontrar na
cidade, se deve perguntar se o que se disse antes estabelece as condições necessárias para que se
encontre isso que se afirma estar presente nela.
Note-se que é o mesmo método usado para encontrar as virtudes: diz-se o que a cidade
deveria possuir para ser boa e então se olha para as instituições propostas e verifica-se se elas
fornecem as condições necessárias para que as virtudes existam.
Assim, o que se diz que se na cidade importa e muito para esclarecer e lançar luz,
retrospectivamente, sobre as instituições descritas. Se, no caso das virtudes, seu esclarecimento
lança luz sobre a paideía, sem a qual elas não teriam se constituído, agora, quando o que entrará
em foco é a unidade da cidade, o que se dirá sobre ela lança luz e esclarece, retrospectivamente, o
que se disse sobre as instituições que são sua condição de possibilidade.
Sobre o maior mal e sobre o maior bem para a cidade, diz Sócrates:
822
Ora nós teremos algum mal maior para a cidade do que aquele que a dilacerar e a tornar
múltipla, em vez de uma? Ou maior bem do que a aproximar e a tornar unitária?
Diante da concordância de Gláucon, Sócrates acrescenta:
823
Logo, a comunidade de prazer e pena não os une, quando os cidadãos,
no maior número
possível, se regozijam e se afligem igualmente com as mesmas vantagens e perdas?
821
PLATÃO. República, 462a2-7.
822
PLATÃO. República, 462a9-b2.
823
PLATÃO. República, 462b4-7.
234
Não parece que se justificam interpretações como a de Adam, segundo a qual a referência
aqui é aos guardiões
824
. Ora, o que a passagem refere explicitamente é a uma comunidade de
prazeres em penas entre ―o maior número possível de cidadãos‖, os quais serão, inclusive,
definidos mais adiante
825
, como se verá.
Diante da concordância de Gláucon, pergunta ainda Sócrates:
826
E não é o individualismo destes sentimentos que os divide, quando uns sofrem
profundamente e outros se regozijam em extremo a propósito dos mesmos
acontecimentos públicos ou particulares?
Contando mais uma vez com o assentimento de Gláucon, prossegue:
827
Ora este fato não provém de os habitantes da cidade não estarem de acordo em aplicar
expressões como estas ―meu‖ e ―não meu‖, e do mesmo modo quanto ao que lhes é
estranho?
824
―The perfect city is a ἕν with three πολλάrulers, auxiliaries, farmers and artisans, or, if rulers and auxiliaries
are classed together as guardians, then with two. Plato's object throughout this episode is to keep the whole city ‗one‘
by preventing one of its constituent factors, viz. the guardians, from becoming ‗many.‘ If the guardians are united
so he holds—no danger to the city's unity need be apprehended from the others (465 B).‖ Cf. ADAM, 1979, v.1, p.
305. Entretanto, pela interpretação da República que se defende aqui, a passagem citada por Adam em apoio ao que
afirma (República, 465b) o pode ser interpretada como se hoi andréssignificasse ―os guardiões‖. Se a palavra
phýlax figurasse aqui, que se admitir que isso prejudicaria o argumento segundo o qual se trata na cidade de uma
comunidade de bens extensível a todos, porém não é o que ocorre. Ademais, o elenco referido a seguir, dos males de
que ficariam livres os homens a que se referem, não parece suscetível de atingir uma cidade como aquela construída
no lógos para ser a melhor possível. A solução para a interpretação desses passos é aquela que se propôs para os
passos imediatamente anteriores: há no mínimo que se admitir uma alternância no uso do binômio guardião-cidadão,
significando sempre que a discussão diz respeito ao conjunto mais amplo, do qual aquele que é o foco da discussão
faz parte. Assim, quando se deseja trazer o guardião para o foco, isto é possível, pois a discussão é sobre um
―conjunto‖ do qual ele faz parte. Ora, da proposição ―todo guardião é cidadão‖, infere-se, validadamente, que ―algum
cidadão é guardião‖. Assim, falar algo de uma classe determinada de cidadãos, que, no caso, são os guardiões, não
exclui que se estenda isso que se fala deles ao conjunto dos cidadãos, que eles estariam sendo referidos enquanto
cidadãos.
825
PLATÃO. República, 463a-c.
826
PLATÃO. República, 462b8-c1.
827
PLATÃO. República, 462c3-5.
235
Note-se que o uso aqui da palavra estranho (allotríou) é o que se espera que todos os
cidadãos de uma cidade bem organizada apliquem às mesmas coisas.
Tal harmonía ou homodoxía pode provir de uma educação comum que tenha, mesmo
que em medidas diferentes, inculcado os mesmos valores em todos.
Embora reagir ao ―estranho‖
(allotríou) seja, do ponto de vista do érgon específico, obrigação dos guardiões auxiliares e
governantes, é também prerrogativa, no que diz respeito ao seu érgon específico, de todos os que
receberam a mesma educação. Seria o caso, por exemplo, de um artesão que, criado em meio à
beleza, reagiria como a uma coisa ―estranha‖ obra sua que saísse defeituosa.
E continua Sócrates:
828
Logo em qualquer cidade em que a maior parte [pleîstoi] dos habitantes estiver de
acordo em aplicar estas expressões ―meu‖ e ―não meu‖ à mesma coisa será essa a mais
bem organizada?
Ora, se a pólis no lógos é uma cidade e se é bem organizada, então seria preciso
considerar que os guardiões corresponderiam nela à maioria se se pretende interpretar que esta
passagem descreve uma possível relação apenas dos guardiões com a posse.
Diante do assentimento de Gláucon, Sócrates prossegue propondo uma analogia que
esclareça o que tem em vista quando fala de comunidade de prazeres e penas entre os cidadãos:
829
Portanto, também se comporta de modo muito aproximado ao de um homem? Por
exemplo, quando ferimos um dedo, toda a comunidade, do corpo à alma, disposta numa
organização (a do poder que a governa), sente o fato, e toda ao mesmo tempo sofre
em conjunto com uma das suas partes. É assim que nós dizemos que ao homem lhe dói o
dedo. E, sobre qualquer outro órgão humano, o raciocínio é o mesmo, relativamente a
um sofrimento causado pela dor, e ao bem estar derivado do prazer.
828
PLATÃO. República, 462c7-8.
829
PLATÃO. República, 462c10-d5.
236
Como Gláucon concorda que uma cidade bem administrada seja muito próxima de um
homem como Sócrates descreveu
830
, este conclui:
831
Penso, pois, que, se a um dos cidadãos acontecer seja o que for, de bom ou mau, uma
cidade assim proclamará sua essa sensação e toda ela se regozijará ou se afligirá
juntamente com ele.
Como Gláucon novamente concorda que é forçoso que seja assim em uma cidade com
boas leis
832
, Sócrates propõe que se volte à cidade que construíram com o lógos para ver se o que
se vê nela está em consonância com o que se acaba de dizer.
Ora, isso nada mais é do que aplicar o método antes anunciado
833
de descrever uma
qualidade e perguntar em seguida se estão presentes as condições de possibilidade para que esteja
presente. Porém, o mais interessante é que Sócrates dê, no âmbito desse exame, e antes de tudo,
uma concepção do que seja um cidadão e que deve aplicar-se, portanto, a todas as ocorrências de
cidadão nas passagens citadas acima, pois se aplica também à cidade no gos.
Diz Sócrates: ―Ora pois! Nas outras cidades há governantes e povo, e nesta também?‖ (
)
834
.
Como Gláucon concorda, prossegue Sócrates: ―E todos se denominam uns aos outros
cidadãos?‖ ( )
835
.
Frente a novo assentimento, prossegue: ―Mas além do nome de cidadãos, que é que o
povo das outras cidades chama aos seus governantes?‖ (
)
836
.
Como Gláucon responde que são chamados ou de déspotas ou de governantes, segundo se
trate da maior parte das cidades ou de democracias, respectivamente
837
, Sócrates acrescenta:
830
PLATÃO. República, 462d.
831
PLATÃO. República, 462d8-e2.
832
PLATÃO. República, 462e.
833
Cf. PLATÃO. República, 462a.
834
PLATÃO. República, 463a1-2.
835
PLATÃO. República, 463a4.
836
PLATÃO. República, 463a6-7.
237
―E que lhes chamará o povo na nossa cidade? Além de cidadãos, que dirão que são os
governantes?‖ (
)
838
.
Diante da resposta de Gláucon, segundo a qual são chamados salvadores e protetores
(sotêrás te kaì epikoúrous)
839
, Sócrates lhe pergunta como estes chamarão o povo e obtém como
resposta que serão chamados distribuidores de salários e alimentação (misthodótas te kaì
trophéas)
840
.
É o próprio Gláucon quem admite em seguida que nas outras cidades os governantes
chamarão ao povo escravos (doúlous), e os governantes, uns aos outros co-governantes (állais
árkhontes), enquanto na pólis com lógos se chamarão co-guardiões (symphýlakas)
841
.
Admite também que nas outras cidades governantes que tratam seus colegas de
governo a uns como amigos e a outros como estranhos
842
. Sobre esses, pergunta Sócrates:
―Por conseguinte, pensam e dizem que o que é dos amigos é como se fosse deles, o que é dos
estranhos lhes é alheio?‖ (
)
843
.
Diante do assentimento de Gláucon, pergunta:
844
E agora os guardiões da tua cidade? É possível que haja algum que pense ou diga que
algum dos seus colegas lhe é estranho?
Esses passos, e principalmente este último, podem levar o intérprete a estender tudo o que
se vinha dizendo aos guardiões, mas, mais uma vez, o que houve foi uma nova mudança de foco.
Não resta dúvida de que é de sumo interesse para Sócrates tratar do que pode gerar
dissensão entre os governantes, que admite que toda dissensão nas cidades ocorre primeiro
entre eles, mas isso não quer dizer que se pode voltar alguns passos atrás e interpretar tudo o que
837
PLATÃO. República,463a.
838
PLATÃO. República, 463a10-11.
839
PLATÃO. República, 463b.
840
PLATÃO. República, 463b.
841
PLATÃO. República, 463b.
842
PLATÃO. República, 463b.
843
PLATÃO. República, 463b14-c1.
844
PLATÃO. República, 463c3-4.
238
disse como se estivesse falando dos governantes, simplesmente porque o texto ficaria incoerente
em uma medida inaceitável.
Ademais não foi por acaso que crates deixou claro o que entende por ―polítai‖.
Preocupou-se em explicitar que é a comunidade não só de governados e governantes mas de povo
(dêmos) e governantes. Isso exclui a possibilidade da interpretação forçada de que polítai
nesses passos significa a comunidade de auxiliares (governados) e árkhontes (governantes).
O fato de Sócrates ter voltado a tratar do aspecto das causas de dissensão entre os
guardiões não autoriza a reler todas as passagens como dizendo respeito exclusivamente a eles,
mas apenas que esta é uma questão central, como ficará claro pela retomada da questão no livro
VIII, conforme já foi mencionado e será ainda explicado.
Como o foco nesse último passo citado eram os guardiões, é natural que a resposta de
Gláucon se refira a eles, e não nada de surpreendente nisso, uma vez que trata do que os une,
sendo sua união fundamental para a cidade, o que já foi compreendido por ele.
O que a miopia de Gláucon não o deixa ver é que os princípios de que falam foram
estendidos à cidade toda e, embora Sócrates não o corrija explicitamente, o faz o tempo todo
implicitamente.
Àquela pergunta feita por Sócrates no último passo citado
845
Gláucon responde:
846
De modo algum. Efetivamente, quando encontrar qualquer deles, julgará que se lhe
depara um irmão ou irmã, pai ou mãe, filho ou filha, ou descendentes ou ascendentes
desses.
Sócrates prossegue em seu exame e na sua tentativa de fazer Gláucon enxergar:
845
PLATÃO. República, 463c3-4.
846
PLATÃO. República, 463c5-7.
239
847
Dizes muito bem, mas explica-me mais isto: legislarás para eles apenas quanto aos
nomes de parentesco, ou para eles procederem em todos os seus atos de acordo com
esses nomes: relativamente aos pais, para executarem tudo quanto é de lei em matéria de
respeito, de solicitude e de submissão aos progenitores. Ou então não ficará mais bem
colocado à face dos deuses nem dos homens, pois entenderão que cometeu ações ímpias
e injustas, se proceder de outro modo que não seja este? São estes ou outros os dizeres
que todos os cidadãos [apánton tôn politôn] farão soar desde cedo aos ouvidos das
crianças, quer sobre os pais, que lhes hão de apontar, quer sobre os demais parentes?
O que esse passo mostra é que Sócrates entende, sim, que o preceito sobre a comunidade
de prazeres e penas refere-se aos guardiões e, às vezes, colocá-los no foco é importante para a
compreensão da cidade, mas diz respeito a todos. Como ler a expressão apánton tôn politôn
como dizendo respeito aos guardiões apenas se Sócrates acaba de definir explicitamente polîtai
como a comunidade de governantes e povo?
Sócrates alterna o foco entre guardiões e o conjunto da cidade, e Gláucon não percebe.
Chega a ser irônica a resposta a essa última pergunta de Sócrates colocada na boca de Gláucon:
848
São esses. Efetivamente, seria ridículo [geloîon], se as suas bocas se limitassem a
proferir esses nomes de parentesco, sem que as obras se lhe seguissem.
Embora o ridículo ou risível possa estar em que se aja em desacordo com as palavras que
se profere, aqui bem pode estar também em deixar escapar o objeto da discussão
mesmo quando
ele fica a rolar sob os pés de Gláucon ou do leitor
849
.
Sócrates continua o que parece, agora, ser uma brincadeira com a mudança de foco de
guardiões (phýlakes) para auxiliares (epíkouroi) e para cidadãos (polîtai):
850
Por conseguinte, nesta cidade mais do que em qualquer outra, todos em uníssono dirão,
quando acontecer algo de bom ou mau a um qualquer dentre eles, aquelas palavras que
momentos referimos, que ―as minhas coisas vão bem‖ ou que as minhas coisas vão
mal‖.
847
PLATÃO. República, 463c8-d8.
848
PLATÃO. República, 463e1-2.
849
Cf. PLATÃO. República, 432b-e.
850
PLATÃO. República, 463e3-5.
240
Como Gláucon assente, Sócrates continua:
851
Ora nós não dissemos que, devido a esta convicção e modo de expressão, prazeres e
penas se passariam em comum?
Mais uma vez, com a concordância de Gláucon, prossegue:
852
Então os nossos cidadãos terão sobretudo em comum aquilo a que aplicam o nome de
―meu‖. E, tendo isso em comum, partilharão acima de tudo de penas e prazeres.
Ora, esse uníssono (symphonésousin) de todos na cidade (pasôn ára póleon) significando
que os cidadãos (polîtai) terão tudo em comum não pode ser uma referência exclusiva aos
guardiões e, portanto, significa mais uma mudança de foco de Sócrates, à qual se segue ainda
mais uma em que o foco volta aos guardiões:
853
Ora pois, a causa disto, além das demais instituições, será a comunidade, que os
guardiões têm de mulheres e filhos?
Como Gláucon concorda, Sócrates acrescenta:
854
Mas, na verdade, nós assentamos em que era esse o maior bem para a cidade,
comparando uma cidade bem administrada com o corpo e seu comportamento
relativamente a uma das suas partes, no que toca ao prazer e à dor.
Com o assentimento de Gláucon, Sócrates conclui:
851
PLATÃO. República, 464a1-2.
852
PLATÃO. República, 464a4-6.
853
PLATÃO. República, 464a8-9.
854
PLATÃO. República, 464b1-3.
241
855
Por conseguinte, a causa do maior bem da cidade afigura-se-nos ser a comunidade, entre
os auxiliares, de filhos e mulheres.
É interessante que Sócrates tenha atribuído a comunidade primeiro a guardiões e depois a
auxiliares como que sugerindo um movimento descendente que terá como termo último os
artesãos, completando assim a comunidade entre os cidadãos que é a única que torna tudo o que
se disse sobre a comunidade e seus efeitos coerente.
Em seguida, Sócrates trata dos efeitos de tal ordenação e volta a referir-se explicitamente
a guardiões, mas mantém o tempo todo diante de Gláucon efeitos que se explicariam pela
extensão da comunidade. Esses aspectos, porém, já foram discutidos acima ao se tratar da
internalização, pelos educandos, das ―leis‖ fundamentais que devem reger a vida na cidade, a
ponto de dispensar legislação positiva.
Os argumentos aduzidos nesta seção mostram que a comunidade de bens, mulheres e
filhos se estende a todas as classes da cidade. Admitir a hipótese contrária tornaria muitas
passagens da República incoerentes. Além das passagens exploradas ao longo desta seção, não se
poderia explicar, por exemplo, como seria possível que os filhos dos artesãos nascidos com
―ouro‖ em sua natureza pudessem ser levados para a classe dos guardiões
856
.
Dada a ênfase com que se vem aqui ressaltando a importância que Sócrates à unidade
na cidade, pode-se admitir sem receio que é mais importante que essa unidade seja preservada
entre os guardiões. Isto porque, segundo Sócrates, as dissensões nas cidades costumam ocorrer
primeiro no seio da classe governante.
Cabe, portanto, abordar o processo de corrupção de uma cidade como a que foi descrita, o
qual Sócrates apresenta nos livros VIII e IX da República, pois, mais uma vez, pode haver
elementos que, retroativamente, lancem luz sobre a necessidade de se estender a paideía primária
a toda a cidade.
855
PLATÃO. República, 464b5-6.
856
Cf. PLATÃO. República, 415a-c. Ver também a discussão sobre essa passagem ao longo da seção 5. Com os
argumentos aduzidos nesta, pretende-se ter refutado os argumentos de números 1 e 5, de Reeve, elencados na
introdução.
242
5.2.2 As formas corrompidas
Tratar da dissensão que ocorre na ―melhor cidade possível‖ e de suas causas pode ser útil
ao argumento que aqui se defende em mais de um sentido.
Se, de um lado, pode contribuir para compreender melhor o caráter corruptor da cobiça
por bens e a necessidade de se eliminá-los em uma cidade que pretende ser a melhor possível,
pode, de outro, ser útil para responder a uma pergunta fundamental para que a tese que se defende
aqui se sustente, qual seja a de se há duas cidades sendo descritas na República: uma dos
guardiões (auxiliares e governantes) e outra dos artesãos. Lança luz ainda, retrospectivamente,
sobre a qualidade das relações entre governados e governantes na cidade no lógos.
Depois de estabelecer a paideía e modo de vida da cidade e de mostrar nela a presença da
sabedoria, justiça, coragem e temperança, Sócrates a nomeia como a cidade reta e boa,
estendendo esses nomes a um homem que tivesse a mesma qualidade
857
.
Considerando que uma forma de virtude e infinitas de vício e que tantas formas
de constituição quantas de alma, Sócrates propõe que, dessas formas viciosas, há quatro dignas de
se recordar, as quais somadas à única que é virtuosa perfazem cinco, tanto para as constituições
quanto para as almas
858
.
Entendendo que uma dessas constituições, a que construíram com o lógos, poderá se
chamar monarquia ou aristocracia, segundo surja um único ou mais governantes, estabelece que
nem por isso deixaria de ser uma a forma de constituição abordada, pelo fato de que não se
abalarão as leis importantes da cidade pela preservação da paideía e trophé expostas
859
.
Contrapõe a essa cidade boa e reta que fundaram, como ao homem de mesma qualidade,
todas as demais formas de constituição e de ordenação da alma, chamando-as de más e não retas,
e tanto em um caso como no outro correspondem a quatro formas de vício
860
.
Porém, quando ia enumerá-las na ordem em que lhe pareciam derivar umas das outras,
Sócrates é interrompido pela exigência, expressa por Adimanto, de que satisfaça aos ouvintes
857
PLATÃO. República, 449a.
858
PLATÃO. República, 445c-e.
859
PLATÃO. República, 448d-e.
860
PLATÃO. República, 449a.
243
quanto às questões concernentes à cidade recém-formada, as quais para eles ainda exigiam
exame: a introdução na cidade, por Sócrates, da comunidade de filhos e de mulheres
861
.
Mesmo afirmando que retomar a questão levantaria um enxame de discussões
862
, Sócrates
aceita retomá-la, adiando, portanto, com a digressão dos livros V, VI e VII, a análise das formas
viciosas de constituição e de alma.
Tendo estabelecido o número de cinco para as principais formas de constituição que se
podem nomear, as quais correspondem também a tipos humanos, Sócrates estabelece que são a
aristocracia, que corresponde à forma analisada por eles ao construírem a cidade com o lógos e
que é caracterizada como boa (agathón) e justa (díkaion), a timocracia, que entende corresponder
à constituição da Lacedemônia e na qual identifica o amor à vitória e à honra (philónikón te kaì
philótimon), a oligarquia, a democracia e a tirania
863
.
Propõe-se então a examinar a maneira pela qual a timocracia se origina da aristocracia e
estabelece que toda mudança em uma constituição se origina quando sedição (stásis) entre os
que governam
864
.
Partindo da cidade no gos, a aristocrática, para examinar como os guardiões e chefes
ficaram divididos, Sócrates se propõe a falar no estilo trágico das Musas, o qual diz ser
imerecidamente considerado sério
865
.
Sócrates, então, assumindo que é difícil abalar um estado constituído desse modo‖
( )
866
, mas aceitando como premissa que
tudo que nasce está sujeito à corrupção, entende que este também se dissolverá
867
.
Passa então a descrever, como se fosse a Musa, que esta causa residiria em uma falha no
poder de observação e de cálculo dos governantes quanto às regras de procriação que deveriam
ser seguidas na cidade. Apresenta, a seguir, um número
868
, o qual deveria presidir essa procriação
861
PLATÃO. República, 449a-d.
862
PLATÃO. República, 450a-b.
863
PLATÃO. República, 543e-545a.
864
PLATÃO. República, 545c-d.
865
PLATÃO. República, 545d-e.
866
PLATÃO. República, 546a1.
867
PLATÃO. República, 546a.
868
Note-se que Sócrates colocou esse número na boca de um poeta inspirado pelas Musas de Homero falando em um
estilo trágico. Embora se tenha defendido aqui que muitas das críticas à poesia dos livros II e III se devam muito
mais à recepção do que à composição, isto não exclui que Platão seja um crítico da pretensão de que a poesia possa
tratar da verdade. Colocar um cálculo como o descrito na voz de um poeta inspirado, cuja linguagem é descrita com
não sendo séria, é motivo suficiente para considerar que a falha nesse cálculo não é a causa fundamental da
corrupção da cidade. A função que o mero parece cumprir é muito mais a de figurar como causa de um efeito que
244
e que, não tendo sido respeitado pelos governantes, ocasionou que noivos e noivas fossem
casados fora de ocasião própria, gerando crianças nem bem constituídas, nem afortunadas
869
.
Qualquer que seja a influência do ―erro de cálculo‖ dos governantes na degenerescência
dos filhos dos melhores cidadãos, sua real influência na cidade começa por uma falta de cuidado
com a paideía destes, que são colocados no governo por serem os melhores que há. Note-se que
mais de uma vez Sócrates enfatizou a importância para a cidade da ―guarda‖ no que se refere à
paideía
870
.
O resultado da não preservação da paideía é que haverá jovens menos cultos
(amousóteroi), dos quais se escolherá um governante incapaz de distinguir as naturezas de ouro,
prata e bronze e ferro. Da consequente mistura das raças ―surgirá uma desigualdade e anomalia
desarmônica‖ ([...] [...])
871
, que,
uma vez constituídas, onde quer que apareçam, produzem sempre guerra e ódio
872
.
A discórdia entre os guardiões origina-se quando as raças de ferro e bronze voltam-se para
o lucro e posse de terras e casas, além de ouro e prata
873
. Como as raças de ouro e prata não
carecem de coisas materiais, explica, tendem a manter a virtude e a antiga constituição, o que não
evita o conflito:
não pode ficar sem causa. Note-se que Sócrates entende que é difícil abalar uma cidade como a que construíram com
o lógos. Por outro lado, a premissa de que ―tudo que nasce está sujeito à corrupção‖ e a premissa implícita de que
não efeito sem causa exigem uma hipótese que conta da verdadeira causa da corrupção da cidade, que,
defende-se aqui, é o descuido com a paideía. Como não seria possível a Sócrates dizer impunemente que os
governantes, guardiões perfeitos e conhecedores da ideia de Bem, falharam naquilo mesmo que lhes competia, resta
admitir governantes que, por não terem a phýsis e a paideía adequadas, acabam por não atingir a dýnamis que
deveriam. Mas governantes assim podem ser resultado de uma falha de seus antecessores quanto à procriação e,
portanto, é preciso introduzir, através das Musas, das quais não se pode exigir rigor, o tal mero geométrico. A
verdadeira causa da corrupção da cidade está em uma falha em aplicar a verdadeira paideía, falha esta que Sócrates
sempre esteve ciente que botaria a cidade inteira a perder. De resto, considerando-se que os filósofos-governantes
formam um grupo e que um poderia corrigir o outro em caso de falha, seria difícil que todos errassem ao mesmo
tempo, tanto no cálculo quanto na observação das consequências do erro. Por outro lado, não seria preciso admitir
um início de corrupção dos governantes para se manter a premissa de que tudo o que nasce está sujeito à corrupção.
Bastaria que o mundo se corrompesse sob o aspecto material para que a cidade se corrompesse junto, sem que se
tivesse de admitir que seus costumes tinham sido corrompidos. Esse argumento sobre o início de corrupção da cidade
daria margem a tantas discussões que adotar o erro de cálculo como causa pode significar uma maneira de evitar tão
longa discussão. O ponto fundamental, ao qual Sócrates precisa realmente chegar para explicar a corrupção da
cidade, é aquele em que se admite uma falha na Paidéia, ou mais exatamente, a ausência de uma dýnamis explicada
pela ausência tanto de uma phýsis quanto de uma paideía apropriadas.
869
PLATÃO. República, 546b-d.
870
PLATÃO. República, 424b-d.
871
PLATÃO. República, 547a2-3.
872
Sócrates aqui já se refere à riqueza e à pobreza que se seguirão, pois mais de uma vez enfatizou que é essa a causa
de todas as guerras. Note-se ainda a relação entre riquezas e prazeres desnecessários, objetos por excelência do
epithymetikón.
873
PLATÃO. República, 547b.
245
874
Depois de exercerem violências e lutarem umas com as outras, chegam a um acordo, de
dividirem e se apropriarem da terra e das casas, e aqueles por quem antes velavam como
pessoas livres, amigas e que os mantinham, a esses escravizam-nos então, tornando-os
periecos e servos, e cuidando eles mesmos de lutar e de os vigiar.
Note-se que o que o texto indica aqui é que, devido às falhas dos governantes em
promover os casamentos adequados surgirá, mesmo entre os guardiões, com o tempo, raças de
ferro e bronze, às quais, pela sua cobiça, causarão dissensão, apropriação de bens e a
escravização das pessoas livres e amigas
875
.
Sócrates se ocupa em mostrar como uma cidade timocrática, cuja origem descreve estando
a meio caminho entre a aristocracia e a oligarquia, tende, no processo de tornar-se oligárquica, a
ter traços tanto desta como daquela, distinguindo-se particularmente pela ambição e gosto das
honrarias
876
.
Da mesma maneira, o homem timocrático será descrito como pendendo ora para a razão,
ora para os desejos, embora seja, fundamentalmente, amante das honras:
874
PLATÃO. República, 547b7-c4.
875
Ora, essas pessoas livres e amigas e provedoras de sustento (eleuthérous phílous te kaì trophéas) a que o texto se
refere são os artesãos da cidade no lógos. Embora a palavra ―livres‖ aqui utilizada possa ter um sentido fraco, de não
submissão aos desejos arbitrários dos governantes, o que as referências à liberdade na República costumam mostrar é
que o uso do termo tem um sentido muito mais forte de liberdade em relação aos próprios desejos, no sentido de não
ser escravizado por eles. Ademais usar a palavra ―livre‖ para referir-se a um trabalhador manual é incomum em
Platão, se se exclui a cidade com lógos como referência. Isso indica que o artesão tem na cidade no lógos um
estatuto que não tem em qualquer outra parte. Mesmo nas Leis, referências depreciativas ao trabalho manual
como próprio de homem que não é livre, embora tanto lá como nas passagens depreciativas em relação ao artesão na
República o que esteja em questão é muito mais a atitude que costumam ter esses trabalhadores de visarem ao lucro e
à riqueza por meio de sua atividade e consequente escravatura, em relação aos desejos associados à riqueza, do que o
seu exercício propriamente. Ora, nem todo artesão ―histórico‖ é escravo, vive sob uma tirania arbitrária ou precisa,
em todas as etapas da vida, dedicar-se exclusivamente ao trabalho manual. Que ainda assim Platão possa contrapor
sua vida à do homem livre sugere mais do que uma simples referência à liberdade física ou de ocupação. A
interpretação de White atenua a importância do uso da palavra ―livre‖ (eleuthérous) neste passo: ―[...] They are free
because, as Plato sees the mater, they are not subject to the arbitrary desires and whims of the rulers, and therefore fit
into a scheme in which both their tasks and those of the rulers are equally prescribed.‖ Cf. WHITE, Nicholas P. A
Companion to Plato’s Republic. Indianapolis: Hackett, 1979. p. 209.
876
PLATÃO. República, 547b-548d.
246
877
Uma pessoa assim poderá desprezar as riquezas, em novo, mas, à medida que for ficando
mais velho, cada vez as apreciará mais, pelo fato de participar da natureza do avarento e
de a sua virtude não ser pura, por estar privado do melhor guardião.
Diante da pergunta de Adimanto sobre qual é esse guardião, do qual está privado,
Sócrates responde:
878
Da razão misturada com a música respondi que é a única defensora da virtude
durante a vida na pessoa em que ela habita.
Esse tipo de homem, apresenta-o Sócrates da seguinte maneira:
[...]
879
Como não é mau homem por natureza, mas teve más companhias e é puxado por ambas
as forças, vai para o meio delas, e entrega o domínio da sua pessoa à parte intermediária,
que é ambiciosa e exaltada, tornando-se um homem orgulhoso e amigo de honrarias.
A cidade oligárquica, que se segue à timocracia, é descrita como aquela em que se honram
a riqueza e os ricos e na qual a virtude e os bons são menos considerados.
Sobre a passagem para a oligarquia Sócrates pergunta:
880
A partir daí, por conseguinte, prosseguem cada vez mais no caminho das riquezas, e,
quanto mais preciosas as julgam, menos valor atribuem à virtude. Ou não é certo que a
virtude difere da riqueza tal como se elas se inclinassem sempre em direções opostas,
quando cada uma se coloca num prato da balança?
877
PLATÃO. República, 549a9-b4.
878
PLATÃO. República, 549b6-7.
879
PLATÃO. República, 550b3-7.
880
PLATÃO. República, 550e4-8.
247
Diante da resposta afirmativa de Adimanto, Sócrates conclui:
―Logo, quando numa cidade se honra a riqueza e os ricos, a virtude e os bons são menos
considerados‖ (
)
881
.
Mas é na nova premissa estabelecida que se encontra uma das pedras angulares da
interpretação que vem se propondo até aqui sobre o modo como se dá a paideía-trophé e a
paideía-atrofiante na cidade no lógos, a qual mostra a importância na determinação do gênero de
escolhas que se fazem tendo em vista os bens, a honra ou valor que se associam a eles: ―Mas
busca-se o que é sempre honrado, e descura-se o que não é (
)
882
.
Ora, o que está em questão em toda a descrição da degenerescência da cidade no lógos em
direção às formas viciosas de constituição é que nesse caminho uma tendência a enxergar
valor, cada vez mais, nos objetos do desejo ligados à epithymía, em detrimento de outros não tão
imediatamente reconhecíveis como bens. Isto o se deve a uma deterioração das naturezas
mas também da paideía. Que essa deterioração se por uma inversão de valores que deixa de
ser detida pela paideía é o que as passagens vistas até aqui indicam.
Se isso fica estabelecido, deve-se então entender que o primeiro efeito desse descuido
com a paideía é sentido pelos ―novos‖ homens de ferro e bronze que surgiram no seio da própria
classe dos guardiões. Note-se que eles, tendo o elemento apetitivo da alma não educado
propriamente, logo tendem, não pela natureza mas pela falta de paideía adequada, para as
riquezas.
Que essa tendência para a busca da riqueza, a ponto de causar dissensão, não se explique
pela natureza testemunho o fato de que na cidade no lógos, mesmo sendo a classe análoga
ao ferro e bronze predominante numericamente, não dissensão, podendo antes serem
qualificados como amigos dos governantes
883
.
Ora, não poderiam ser denominados assim se se sentissem reprimidos no seu desejo de, a
partir das suas profissões, enriquecerem. Note-se, entretanto, que, no processo descrito de
881
PLATÃO. República, 551a1-2.
882
PLATÃO. República, 551a4-5.
883
PLATÃO. República, 547b-c.
248
degenerescência da cidade, basta um descuido com a paideía para que os homens de bronze e
ferro se voltem para as riquezas.
Poder-se-ia objetar que no caso dos guardiões a dissensão é possível porque são todos
fortes e armados, tendo os artesãos da cidade no lógos que se submeterem pela sua incapacidade
de se sublevarem.
Ainda que isso fosse possível, seria incoerente, mais uma vez, com a maneira como se
descreve a relação de amizade
884
, harmonia e consonância entre as classes da cidade, tanto quanto
com a exclusão de que sejam os artesãos escravos ou servos submetidos à vontade arbitrária dos
guardiões, dos quais se diz explicitamente que não são déspotas
mas, antes, salvadores e
protetores
885
.
Ademais, o surgimento da democracia, como descreverá a seguir Sócrates, mostra que é
possível que a maioria tome o poder quando percebe que seu número é suficiente para submeter
seus antigos governantes
886
.
O que está nas entrelinhas dessa descrição da origem da dissensão entre guardiões é que o
mesmo modelo poderia, guardadas algumas diferenças, ser aplicado à cidade como um todo,
que, ao introduzir uma classe de ferro e bronze no seio dos guardiões, Sócrates cria uma analogia
com a própria cidade completa e com as forças em jogo nela. Que a educação seja ―salvadora‖ da
ordem entre os guardiões indica que seja, analogamente, salvadora onde quer que seja aplicada e
preservada.
Sobre o homem oligárquico Sócrates pergunta:
887
Não achas que uma pessoa assim sentará então no trono de sua alma o espírito de
ambição e de avareza, fará dele o grande rei e o cingirá com a tiara braceletes e
cimitarras?
Sobre a ordenação da alma em um homem assim, diz Sócrates:
884
PLATÃO. República, 463b-c.
885
PLATÃO. República, 463a-b. Ver também PLATÃO. República, 417a.
886
PLATÃO. República, 556c-557a.
887
PLATÃO. República, 553c4-7.
249
888
Quanto ao espírito da razão e ao da coragem, julgo eu, senta-os no chão ao lado daquele
rei, de um lado e de outro, como escravos, sem os deixar calcular nem observar outra
coisa que não seja a maneira de transformar poucos haveres em muitos, nem admirar e
pagar nada que não seja a riqueza e os ricos, e a não ambicionar outra coisa além da
posse de bens e tudo o que a ela conduza.
Ao tratar do homem oligárquico, Sócrates afirma que ―[...] na cidade como no homem
dessa espécie, é a riqueza que é mais honrada‖ ([...]
)
889
e explica: ―É que, segundo julgo disse eu esse homem
nunca recebeu instrução‖ (
)
890
.
Ora, o que se viu até aqui vai confirmar-se no caminho que conduz à democracia e ao
homem democrático e à tirania e ao homem tirânico. O que é uma tendência cada vez maior
para o predomínio dos desejos e a liberdade de gozá-los sem restrição.
Ora, esses desejos estão livres tanto das restrições da paideía que se chamou aqui de
atrofiante quanto da influência de uma paideía-trophé que alimente os elementos não apetitivos
da alma com epistéme, por um lado, e com valores não-sensíveis que sejam honrados, por outro,
já que cada vez mais o que se honra são a riqueza e os prazeres.
Sobre a democracia, Sócrates entende que se origina com a vitória dos pobres ao
perceberem que, pelo seu número, podem tomar o poder
891
.
Sobre os homens que dão a feição de uma cidade democrática, pergunta Sócrates:
892
Pois não serão em primeiro lugar pessoas livres, e a cidade não estará cheia da liberdade
e do direito de falar, e não haverá licença de aí fazer o que se quiser?
888
PLATÃO. República, 553d1-7.
889
PLATÃO. República, 553d.
890
PLATÃO. República, 553d.
891
PLATÃO. República, 556c-557a.
892
PLATÃO. República, 557b4-6.
250
E sobre a vida em uma cidade assim, conclui:
893
Mas onde houver tal licença, é evidente que cada um poderá dar à sua própria vida a
organização que quiser, aquela que lhe aprouver.
Ressaltando a liberdade ilimitada que caracteriza a democracia, Sócrates prepara a
conclusão que mais interessa aqui:
894
Mas a consideração e ausência de qualquer espécie de exigência, em ninharias, e
desprezo por princípios que enumeramos com veneração, quando construímos a cidade,
como aquele segundo o qual, a não ser que se tivesse uma natureza extraordinária, nunca
uma pessoa poderia tornar-se um homem de bem, se logo, desde a infância, não
brincasse no meio de coisas belas e não se dedicasse a todas as atividades dessa
qualidade com que arrogância ela calca tudo aos pés, sem querer saber para nada da
preparação com que se vai para a carreira política, mas presta honras a quem
proclamar simplesmente que é amigo do povo!
Algo que chama a atenção nessa passagem é a possibilidade para que alguém que não tem
uma natureza extraordinária possa tornar-se um homem de bem (anèr agathós). Se se considera
que, para Sócrates, raras naturezas extraordinárias que, sem receberem a totalidade da trophé
adequada, se tornam homens de bem, nota-se aqui o papel, que em nada é secundário, da
educação para que se atinja essa qualificação.
Ora, o que se pode concluir também é que, para Sócrates, um homem, para ser homem de
bem (anèr agathós), não precisa ser, necessariamente, um homem de natureza extraordinária,
pois a passagem indica que a educação atuará mesmo em casos que não sejam esses.
Se é assim, então a paideía descrita tem o poder de produzir homens suficientemente
virtuosos para serem chamados de homens de bem, mesmo que não tenham naturezas
extraordinárias.
893
PLATÃO. República, 557b8-10.
894
PLATÃO. República, 558b1-c1.
251
Essa conclusão é importante porque lança luz sobre a concepção de homem de bem na
República, que, como se vem indicando aqui, não exclui homens pertencentes à classe dos
artesãos que tenham sido bem educados.
Assim, este é mais um argumento que torna sem efeito a objeção à tese de que a educação
pela mousiké e gymnastiké proposta na República se estende a todos os cidadãos, caso essa
objeção se baseie no argumento de que não se poderiam usar qualificativos como homens de bem
e kaloì kagathói para qualificar os artesãos.
Também a discussão sobre o indivíduo que corresponde à democracia pode ser
esclarecedora sobre a importância que se à deficiência da paideía como elemento central na
deficiência das virtudes e na superabundância dos desejos.
Sócrates entende que a gênese desse indivíduo se a partir de uma mentalidade
oligárquica, que, tomando como valor central a riqueza, faz de tudo para preservá-la,
dominando, pela força, os prazeres desnecessários, não tanto porque não sejam para ele
desejáveis e valorizados, mas porque poderiam levar à dissipação de sua fortuna
895
.
Nesse ponto, Sócrates faz a distinção entre prazeres necessários e desnecessários;
caracterizando os primeiros, diz:
896
Não será justo chamar necessários àqueles que não seríamos capazes de repelir, e a
quantos nos for útil satisfazer? Porque a ambos foi a necessidade que os implantou na
nossa natureza. Ou não?
Sobre os desnecessários, pergunta:
897
Mas aqueles de que é possível libertarmo-nos, se nos esforçamos desde novos, e cuja
presença, além disso, não nos impele para nada de bom, por vezes até o contrário se
desses dissermos que são não-necessários, não teremos dito bem?
895
PLATÃO. República, 558c-d.
896
PLATÃO. República, 558d11-e3.
897
PLATÃO. República, 559a3-6.
252
como exemplo de um prazer necessário o simples desejo de comer dentro dos limites
da saúde e do bem-estar físico, tanto da comida quanto de seus temperos
898
. Que sejam
necessários fica comprovado tanto pela sua utilidade quanto pela sua capacidade de evitar que a
vida se extinga
899
.
Sobre os desnecessários, diz Sócrates, comparando-os com o desejo necessário de comida
que acaba de mencionar:
900
Mas o desejo para além disso, desejo de outras espécies de manjares, sem serem estes,
susceptíveis de se conter, se se começar desde novo, e de se educar, libertando dele a
maior parte, que é nocivo ao corpo e nocivo à alma, ao bom senso e à temperança? Não
teremos razão em o qualificar de não-necessário?
Mais uma vez nota-se o papel da educação no controle dos desejos não necessários e a
importância de controlá-los desde novo. Porém, o que mais chama a atenção nesse passo é a
referência à possibilidade de libertar desses desejos a maior parte dos homens (tôn pollôn). Seria
incoerente negar à maioria o benefício de uma educação que conduz à phrónesis e à temperança,
ainda que em graus variáveis, se sua falta não não é útil à cidade, sendo, pelo contrário,
prejudicial como causa de conflitos e corrupção.
Voltando a tratar da gênese do homem democrático, Sócrates o descreve como alguém
que, sendo filho de um homem oligárquico, tendo sido criado por um pai incapaz de dar uma
educação adequada, até por ter elegido como maior bem a riqueza, prova, devido às más
companhias, dos prazeres variados e desnecessários que seu pai evita, estando nesse ―estímulo‖, a
origem de sua passagem de homem oligárquico a democrático.
Sócrates compara essa passagem com a passagem da oligarquia para a democracia na
cidade:
898
PLATÃO. República, 559a-b.
899
PLATÃO. República, 559b.
900
PLATÃO. República, 559b8-c1. Tradução com alterações.
253
901
E, tal como o Estado mudou, quando socorrida uma das suas facções por aliados do
exterior, de acordo com as suas afinidades, porventura não mudará do mesmo modo o
jovem, quando uma das duas espécies de paixões que nele existem é auxiliada
externamente por um grupo parente e afim?
Ter provado os prazeres desnecessários estabelece um conflito nesse jovem. É o pudor
que ainda resta nele que o leva muitas vezes a rejeitá-los e a manter-se limitado aos prazeres
necessários. Porém, mais uma vez, é a falta de capacidade do pai de educá-lo que acaba tornando
possível o surgimento de outros desejos e finalmente conduzindo o jovem para a entrega a esses
desejos
902
.
Sobre esse momento, crates desenvolve uma bela descrição
903
, mas que já se encontra
sintetizada na passagem que a anuncia:
904
Por último, julgo eu, apoderam-se da acrópole da alma do jovem, por terem pressentido
que estava vazia de ciência, de hábitos nobres e de princípios verdadeiros, que são as
melhores sentinelas e guardiões da razão nos homens amados pelos deuses.
O que caracterizará a vida de um homem assim será a incapacidade de diferenciar as
coisas pelo seu valor, escolhendo as que valem mais e as que valem menos indiferentemente,
experimentando de tudo livremente, assim como todos os tipos de vida, segundo o que calhar no
momento
905
.
A passagem da democracia para a tirania tem como causa aquilo que nela mesma é o mais
valorizado: a liberdade
906
.
A tirania surge fundamentalmente da discórdia civil que se estabelece entre as classes da
cidade: uma, expropriada de seus bens pelos líderes que visam agradar à maioria, tem de reagir;
901
PLATÃO. República, 559e4-7.
902
PLATÃO. República, 559a-b, 572b-c.
903
PLATÃO. República, 560c-561b.
904
PLATÃO. República, 560b7-10.
905
PLATÃO. República, 561c-d.
906
PLATÃO. República, 562c.
254
outra, o povo, beneficiado dessas medidas, passa a ver os que reagem como inimigos. Dessa
discórdia surge o tirano como solução, ao qual se conferem poderes excepcionais. O tirano acaba
voltando-se contra aqueles que o julgavam um protetor adotando medidas que os prejudicam e
gerando ódio contra ele; consequentemente, acaba tendo necessidade de exercer violência e se
torna cada vez mais odiado, passando a viver sob proteção paga sem poder confiar em niguém
907
.
Ao introduzir o homem tirânico, Sócrates, mais uma vez, deixa clara a possibilidade de
retificação dos desejos:
908
Ora repara naquilo que eu quero ver neles. É o seguinte: de entre os prazeres e desejos
não-necessários, há alguns que me parecem ilegítimos, que provavelmente são inatos em
toda a gente, mas, se forem castigados pelas leis e pelos desejos melhores, com o auxílio
da razão, em alguns homens, ou se dá a libertação total deles ou os que restam são
poucos e débeis; ao passo que em outros se tornam mais fortes e mais numerosos.
O homem tirânico, entretanto, ao contrário do democrático, que, convivendo com ambos
os tipos de desejos, coloca-se a meio caminho entre uns e outros e goza com moderação dos dois,
acaba sendo levado, mais uma vez pelas más companhias, ao desenvolvimento de um amor (éros)
que preside os desejos ociosos e é como um zangão enorme e alado
909
.
Sobre o passo final na conversão à tirania, diz Sócrates:
910
Por conseguinte, quando os demais desejos, a zumbir em volta do amor, repletos de
incenso, de perfumes, coroas e vinhos e dos prazeres dissolutos de tais companhias, o
907
PLATÃO. República, 564c-568a.
908
PLATÃO. República, 571b3-c1.
909
PLATÃO. República, 572b-573a.
910
PLATÃO. República, 573a4-b4.
255
fazem crescer e o alimentam [trophé] até atingir o máximo e colocam neste zangão o
aguilhão do desejo, é então que este protetor da alma, escoltado pela loucura, é tomado
de frenesi, e, se encontrar em si algumas opiniões ou desejos considerados honestos,
mata-os e lança-os fora, para longe de si, até varrer da alma a temperança e a encher de
uma loucura importada.
As consequências desse tipo de ordenação da alma, na qual os desejos governam, serão
exploradas detalhadamente para mostrar o tipo de vida infeliz associada à tirania, seja no sentido
político ou anímico
911
.
Estas questões estão diretamente ligadas a uma questão fundamental para conferir unidade
à lis no lógos, que é a da felicidade.
5.3 A felicidade
Nenhuma interpretação da República pode deixar de considerar quais são as condições de
possibilidade de duas características que se afirma que a cidade no lógos tem: a sua unidade e a
felicidade dela toda.
É claro que uma cidade pode ser toda ela feliz e una sob rios aspectos. Porém, o que se
propõe aqui é que, na busca daquilo que, estando presente nela, a torna feliz e una, um primeiro
cuidado seja o de não distorcer o significado das palavras ―unae ―feliz‖, pois tanto uma como
outra têm um sentido determinado na República.
A discussão sobre a unidade deu-se principalmente no contexto das discussões sobre a
riqueza e a pobreza, de um lado, e sobre a comunidade de bens, mulheres e filhos, de outro.
Essa discussão mostrou que manter essa unidade envolve a necessidade de conter a
epithymía em toda a cidade e aponta para a obrigatoriedade de se considerar a educação primária
extensiva a todos os cidadãos.
Sobre a felicidade, cabe agora investigar qual o seu sentido na República, de que forma
pode ser atribuída à cidade toda e verificar em que medida ela exige, também, a extensão da
educação a todas as classes.
Desde a discussão com Trasímaco, se tratava da questão da relação entre justiça e
felicidade, tendo em vista a afirmação do sofista de que a vida do injusto é a mais feliz
912
.
911
PLATÃO. República, 566d-588a.
912
PLATÃO. República, 344a.
256
na defesa que fez da injustiça, Trasímaco, que ―racionaliza‖ a visão de mundo da
maioria
913
, entende que a vida do injusto é melhor tendo em vista a profusão de bens sensíveis de
que se pode gozar sendo injusto, dando satisfação à epithymía.
Embora Sócrates o tenha refutado e estabelecido que o justo é feliz e vive bem e que o
injusto é infeliz e vive mal
914
, o fato de Gláucon e Adimanto não se mostrarem convencidos
quanto à refutação do sofista leva a uma retomada da questão.
Mais uma vez caberá a Sócrates responder aos discursos de Gláucon e Adimanto, que,
como porta-vozes da maioria, voltam a afirmar que é melhor ser injusto do que justo e que o
injusto é mais feliz. E isso tendo em vista a satisfação da epithymía e da pleonexía.
Gláucon, ao comparar a vida do perfeito justo e do perfeito injusto, encontra na vida do
injusto todos os ―bens‖ que dão satisfação à epithymía:
915
Em primeiro lugar, manda na cidade, por parecer justo; em seguida, pode desposar uma
mulher da família que quiser, dar as filhas em casamento a quem lhe aprouver, fazer
alianças, formar empresas com quem desejar, e em tudo isto ganha e lucra por não se
incomodar com a injustiça. De acordo com isto, quando entra em conflito público ou
privado, é ele que prevalece e leva vantagem aos adversários; essa vantagem fá-lo
enriquecer e fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e efetuar sacrifícios aos deuses e
fazer-lhes oferendas numerosas, magníficas mesmo, e prestar honras aos deuses e
àqueles, dentre os homens, que lhe aprouver, muito melhor do que o justo, de tal maneira
que é natural, segundo todas as probabilidades, que ele seja mais favorecido pelos deuses
do que o homem justo. É assim que se afirma, ó Sócrates, que junto dos deuses e dos
homens o homem injusto granjeia melhor sorte do que o justo.
913
PLATÃO. República, 493a-c.
914
PLATÃO. República, 354a.
915
PLATÃO. República, 362b2-c8.
257
Também Adimanto, expondo a opinião da maioria, que entende ser, em última análise,
corroborada pelos poetas, mostra que eles propõem a superioridade da injustiça no que diz
respeito a produzir felicidade:
916
Proclamam que a injustiça é, em geral, mais vantajosa do que a justiça, e estão prontos a
pretender que são felizes os maus, se forem ricos ou possuidores de outras formas de
poder, e a honrá-los em público ou em particular, ao passo que desprezam e olham com
sobranceria os que forem fracos e pobres, embora concordem que são melhores que os
outros.
Ainda no âmbito de sua exposição do ―elogio‖ da injustiça que faz a maioria, Adimanto
volta a estabelecer a relação entre felicidade e injustiça:
917
Seja como for, se quisermos ser felizes, temos de seguir nesta direção, por onde nos
levam as pegadas destes argumentos. Para o fazermos passando despercebidos,
reuniremos cabalas e clubes; temos mestres de persuasão, para nos darem a ciência das
arengas e do foro, com cujos recursos havemos, ora de persuadir, ora de exercer
violência, de tal maneira que satisfaremos nossas ambições, sem termos de pagar a pena.
Tendo isso em vista, o é de surpreender que, no início do livro IV, tendo sido
delineada a cidade que Sócrates e seus interlocutores se propuseram a construir com o lógos para
que se pudesse saber o que era a justiça e se era vantajosa ou não, Adimanto peça uma defesa do
modelo adotado frente aos que reclamarem que os governantes não são felizes em tal cidade por
não usufruírem dos bens que os outros possuem
918
.
Ainda em decorrência da concepção de homem tomada como premissa no Livro II, em
conjunto com Gláucon, segundo a qual o homem é definido pela epithymía e pleonexía,
Adimanto passa então a elencar uma série de bens sensíveis dos quais estariam privados os
916
PLATÃO. República, 364a5-b2.
917
PLATÃO. República, 365d1-6.
918
PLATÃO. República, 419a1-7.
258
governantes e que se costuma ligar à posse da felicidade: campos com casas bonitas e grandes,
mobiliário, capacidade de fazer sacrifícios e de receber hóspedes, além de ouro e prata
919
.
Compreendendo perfeitamente a premissa da qual parte Adimanto na sua avaliação dos
bens que tornam os homens felizes, Sócrates complementa sua lista dos bens de que estarão
privados os governantes: viagens por conta própria, cortesãs e as despesas que fazem os homens
considerados felizes, confirmando que não recebem salário nenhum além da alimentação
920
.
Estabelecida a acusação, Sócrates defende-se dizendo não que esses homens seriam
muito felizes desse modo como ressaltando que a cidade o tinha sido fundada para que uma
raça apenas fosse feliz, mas para que o fosse, tanto quanto possível (málista), a cidade inteira
(hóle pólis)
921
.
Sócrates supõe que vem construindo, com a anuência dos interlecutores, a cidade mais
bem organizada e que nesta se encontrará a justiça, entendendo também que está a modelar a
cidade feliz, não tomando à parte um pequeno número para elevá-los a este estado, mas a cidade
inteira
922
.
A partir de então Sócrates passa avaliar os benefícios de terem fundado a cidade como
fizeram para só então considerar que é o momento de olhar para ela e procurar a justiça
923
.
Ocorre que, ao fundarem a cidade, dividiram-na em três classes: artesãos, auxiliares e
governantes. A rigor, a última pode atingir o grau maior de felicidade relacionado com a
contemplação das formas e que depende de uma natureza e educação apropriadas, que os
futuros governantes (árkhontes) têm.
Além disso, esses últimos possuem a justiça completa na alma; eles têm a parte
racional da alma plenamente desenvolvida e podem através dela descobrir os fundamentos da boa
deliberação sobre o que é melhor para a totalidade da cidade e da alma.
Partindo dessa premissa, alguns entendem que auxiliares e artesãos passam a ser meios
para a felicidade dos governantes, ficando os primeiros em posição mais favorável em relação às
duas outras classes.
Mas, se avaliamos a felicidade que cabe aos auxiliares, vemos que, a não ser pelo
conhecimento das formas e pelo prazer que sua contemplação proporciona, levam uma vida em
919
PLATÃO. República, 419a-420a.
920
PLATÃO. República, 420a.
921
PLATÃO. República, 420b.
922
PLATÃO. República, 420b.
923
PLATÃO. República, 420c-427d.
259
tudo mais semelhante à dos governantes, na qual se mantém um elemento essencial da concepção
platônica de felicidade: por terem a natureza apropriada, recebem a educação primária e têm, por
um lado, nutridos os elementos logistikón e thymoeidés da alma e, por outro, atrofiado o elemento
epithymetikón, e vivem segundo os mesmos valores dos governantes.
Por terem a natureza apropriada, receberam uma educação especial, desenvolveram a
parte thymoeidés da alma e vivem segundo os mesmos valores dos governantes. Levarão uma
vida separada e longe das aflições e contendas que atingem a vida dos homens que vivem nas
cidades comuns. Esse tipo de vida se funda na consonância inalterável sobre a hierarquia dos
bens estabelecida na educação que tiveram e que corresponde à própria hierarquia descoberta
pelos governantes através da razão. A educação que recebem os faz perseverar nessa hierarquia
de valores proposta a eles, que, por seu caráter objetivo, conduz necessariamente à melhor vida e
à mais ordenada.
Assim, segundo esse tipo de interpretação, a única classe que ficaria distanciada do que se
pode chamar de felicidade, entendida como posse (ou ao menos participação) nos verdadeiros
bens e no melhor tipo vida, seria a dos artesãos.
O grau maior de felicidade que lhes caberia em uma cidade como a proposta na República
seria a de ter seus desejos sensíveis atendidos na medida necessária para que, sob o controle
rigoroso dos governantes e auxiliares, continuem a produzir o que é necessário para a
subsistência desses últimos.
Ora, como os bens sensíveis são os bens por excelência que essa classe de homens pode
tomar como bens, então, sua posse, para eles, representaria a felicidade. Se a República coloca os
bens sensíveis, que dão satisfação ao elemento apetitivo da alma, no último lugar na hierarquia
dos bens, são esses bens de terceira classe que são destinados aos artesãos.
Note-se ainda que sua possibilidade de usufruir dos bens sensíveis foi limitada pelas
prescrições que eliminam a riqueza e os prazeres desnecessários da cidade. Assim, essa classe
poderia ser feliz parcialmente, pois aquilo que a tornaria mais feliz estaria fora de seu horizonte
de experiência.
Essa concepção sobre o modelo de cidade proposto na República parece tomá-la como
uma cidade dividida, onde uns são felizes e outros o são apenas em um sentido indigno de ser
comparado com o que se compreendeu até aqui como felicidade. Porém, é essa divisão mesma
que Sócrates mais de uma vez nega, ao defender que a cidade é una e feliz por inteiro.
260
A questão que se coloca é a de descobrir o fundamento dessa felicidade da cidade
composta por três classes. O que se propõe aqui é que se explore a possibilidade de que este
fundamento, mais uma vez, esteja em uma educação comum que é dada a todos os cidadãos e
pressupõe, inevitavelmente, que a separação das classes no modelo de cidade proposto não seja a
que é comumente aceita.
Voltando ao questionamento de Adimanto sobre a felicidade dos governantes, o primeiro
ponto da defesa que Sócrates fez da cidade foi o de que não seria de admirar se os governantes
fossem muito felizes. Essa tese de que os governantes são felizes depende, entretanto, da
refutação da premissa adotada, tanto por Adimanto quanto por Gláucon, desde o livro II, que
expressa a opinião da maioria. Essa opinião, já antes defendida por Trasímaco, sem sucesso, toma
o homem como sendo fundamentalmente definido pelos desejos sensíveis, sendo o que satisfaz
esses desejos os únicos bens.
A refutação de tal premissa depende de todo o argumento da República, pois é
definindo a alma como tripartite e descobrindo nela uma dimensão racional, para a qual os bens
por excelência não são sensíveis, que os bens elencados por Adimanto como superiores podem
desvanecer na hierarquia dos bens. Será preciso definir o tipo de conhecimento que torna possível
essa nova hierarquia (o conhecimento das Formas) e defender que sua posse é possível ao
governante-filósofo pela coalescência de natureza e educação. depois de apresentar o
argumento completo é que poderá defender que a felicidade do governante é a maior de todas.
Essa conclusão, entretanto, pode gerar um novo desequilíbrio e a interpretação de que
tudo na cidade, afinal, se ordena para produzir essa máxima felicidade dos governantes. Assim, o
modelo de cidade proposto passa a ser visto como elitista e manipulador.
No entanto, seria errôneo considerar que a posse desse bem próprio do elemento
logistikón da alma é suficiente para produzir a felicidade se não vier acompanhado de um
ordenamento da alma no qual a razão governe o epithymetikón com o auxílio do thymoeidés, o
que equivale à justiça e produz uma boa vida
924
e uma vida mais feliz
925
.
Dito de outro modo, a posse de um bem particular relacionado com os ―desejos‖ de
qualquer dos elementos da alma concorre para a felicidade no sentido de ser condição necessária
da felicidade daquele no qual esse elemento predomina, mas não é condição suficiente para
924
Cf. PLATÃO. República, 521a.
925
Cf. PLATÃO. República, 580b-c.
261
produzir a felicidade, pois a verdadeira felicidade liga-se a um modo de vida em que a justiça
na alma, como a descrição do modo de vida e da infelicidade do tirano deixa claro
926
.
Assim, se na alma do governante-filósofo justiça, ele é feliz. Mas se nele, pela
coalescência de natureza e educação, a possibilidade de contemplar as Formas, então, por isso,
ele tem uma felicidade adicional que qualifica a felicidade proveniente de ter uma alma justa.
Ora, da mesma forma, considerando-se que o filósofo tem uma alma na qual também
existe o elemento epithymetikón e que tem desejos por prazeres necessários, por mais justa que
seja sua alma e por mais feliz que seja a sua vida por ter suas escolhas pautadas pela razão, que
sabe o que é melhor, tendo ainda a capacidade de contemplar as Formas, não se pode negar que
será ainda mais feliz se não passar fome.
Ter atendidos os seus desejos necessários qualifica a felicidade do governante-filósofo no
mesmo sentido, embora talvez não no mesmo grau em que qualifica sua felicidade atingir o
conhecimento das Formas. Se ele é mais feliz do que os outros
927
, é por poder ter acesso a bens
aos quais os outros não têm acesso: as Formas.
Neste sentido, o que falta aos outros homens que possuem a justiça na alma não é a
felicidade que se identifica com essa justiça, mas outro elemento que qualifica essa felicidade, o
conhecimento das Formas.
Da mesma forma, se os auxiliares têm uma natureza amante das honras, o fato de
receberem maiores honras pela função que desempenham qualifica a sua felicidade proveniente
de possuírem a justiça na alma e de serem governados pela razão, não no sentido de possuírem
uma epistéme sobre o que é melhor e o que é pior, mas no sentido de reconhecerem maior valor a
esses bens cuja sede é o elemento racional, a ponto de esse reconhecimento determinar as suas
escolhas e, portanto, seu modo de vida.
Os auxiliares são governados pela razão porque foi a razão plenamente desenvolvida dos
governantes que descobriu a verdadeira hierarquia de valores e a propôs como conteúdo à sua
razão, que passa a ser sede desses valores fixados pela honra que se associa a eles. Assim,
poderíamos dizer que, em um certo sentido, são governados pela sua própria razão, que é ela a
sede desses valores.
926
PLATÃO. República, 566d-588a.
927
PLATÃO. República, 465d-466c.
262
Porém, em um outro sentido, são governados por uma razão externa, à medida que foi a
razão dos filósofos-governantes que descobriu os fundamentos dessa hierarquia e a propôs aos
outros através da paideía.
É este o significado da seguinte passagem do livro IX, na qual Sócrates pergunta:
928
E a profissão de artífice e de trabalhador manual, por que motivo julgas tu que acarreta
censuras? Diremos que é por qualquer outra razão, senão que se trata de alguém que tem
a sua melhor parte tão débil por natureza, que não é capaz de comandar os monstros que
nele habitam, antes os acalenta e a única coisa que aprende é a adulá-los?
Diante da resposta afirmativa de Gláucon, continua:
929
Portanto, a fim de um homem nessas condições ser mandado por um poder semelhante
ao do homem superior, não diremos que ele precisa de ser escravo desse ente superior,
cujo chefe é o elemento divino, sem julgar que essa sujeição seja em prejuízo do
escravo, como pensava Trasímaco relativamente aos súditos, mas sendo melhor para
todos ser governado por um ser divino e sensato, de preferência albergando-o dentro de
nós mesmos, e, caso contrário, comandando-nos do exterior, a fim de que, sob a mesma
égide, sejamos todos iguais e amigos, até onde for possível?
Obtendo, novamente, concordância, Sócrates acrescenta:
930
Também a lei demonstra ser esse mesmo o seu desejo, aliada, como é, de todos os que
vivem na cidade. E bem assim a maneira de mandar nas crianças, não as deixando em
928
PLATÃO. República, 590c2-6.
929
PLATÃO. República, 590c8-d6.
930
PLATÃO. República, 590e1-590a3.
263
liberdade, até termos organizado na sua alma, como na cidade, uma constituição, e,
depois de termos cultivado o que elas m de melhor, pelo que temos de equivalente,
instauraremos nelas um guarda e chefe semelhante a nós, para fazer nossas vezes, e
então as deixamos livres.
Se a justiça implica a existência de um elemento racional que governa os outros, então,
tanto no governante-filósofo quanto no auxiliar, existe o governo da razão; e se a felicidade tem
como condição necessária a justiça na alma que conduz à boa vida, ambos são felizes, podendo
essa sua felicidade ser ainda qualificada pela satisfação que se encontra no conhecimento ou por
uma maior medida de honra.
Se se passa à classe dos artesãos, ou se admite que eles sejam felizes por possuírem a
justiça na alma, sendo assim governados pela razão, tal como os auxiliares, mesmo que em um
certo sentido seja uma razão externa, ou é necessário admitir que são infelizes.
Poder-se-ia objetar que eles poderiam ser felizes pela satisfação dos seus desejos, que,
pela caracterologia da República, pertenceriam às naturezas amantes de riquezas/prazeres.
Embora já se tenha defendido aqui que essa caracterologia geral, embora válida, não se aplica aos
indivíduos concretos de uma cidade na qual se intervenha na sua educação, mesmo concedendo
ao objetor que os artesãos não foram educados e que a carcterologia vale para eles como
indivíduos concretos de uma cidade, é preciso admitir que a riqueza, entendida como relacionada
aos prazeres desnecessários, foi eliminada da cidade e eles, portanto, seriam os únicos que não
teriam satisfeita a parte naturalmente predominante na sua alma, ou a teriam satisfeita em uma
medida sempre deficiente.
Poder-se-ia objetar ainda que eles são felizes porque não sentem falta dos prazeres
desnecessários, uma vez que estes foram retirados do seu horizonte de experiência, que a
cidade expurgou os ―supérfluos‖. Essa admissão, entretanto, é perigosa para o objetor da tese da
educação comum, pois coloca os artesãos, em alguma medida, no âmbito da paideía proposta
na cidade.
Porém, um outro argumento pode ainda ser aduzido: mesmo que em relação à comida, por
exemplo, não sintam falta de raras iguarias, por não as terem jamais experimentado, nada impede
que desejem ter mais daquilo que experimentaram para, assim, por exemplo, se sentirem mais
seguros. Porém, como a riqueza é sempre limitada na cidade, ficariam infelizes por terem
reprimido seu desejo natural de acumular bens, pois se admite que, por natureza, são amantes de
riquezas.
264
Um outro aspecto dos desejos desnecessários, mais difícil ainda de conter, é aquele que
envolve as emoções excessivas, que são fonte de prazer, tão bem descritas no livro X
931
. É claro
que fazem parte do âmbito da epithýmia, e o desejo por esse tipo de prazer não pode ser
controlado ―de fora‖.
Assim, restaria sempre o problema de estabelecer como, sem a educação pela mousiké e
gymnastiké, que, por um lado, alimenta (trophé) os elementos logistikón e thymoeidés com
valores e os reforça pela honra e, por outro lado, atrofia o elemento epithymetikón, indivíduos por
natureza ―amantes das riquezas‖ poderiam encontrar felicidade em uma cidade que limita ao
extremo seu acesso a riquezas/prazeres.
Um problema ainda mais grave seria o de negar o princípio segundo o qual a felicidade
depende da justiça na alma, o que se poderia defender que possuem caso se admitisse que
foram educados pela mousiké e gymnastiké, que, por um lado, alimentaram seu elemento
logisitikón de conteúdos aos quais foram associados valor e honra. A adesão a esses conteúdos
seria suficiente para determinar as suas escolhas e o seu modo de vida, estabelecendo neles,
portanto, um governo da razão com o auxílio do thymoeidés, ainda que não no grau suficiente
para lhes valer o érgon de guardiões-auxiliares, que são os únicos que, testados, mostram uma
adesão suficiente para perseverarem em qualquer circuntância nesses valores.
Se se aceita isso, então seu modo de vida torna-se semelhante aos dos outros cidadãos e
sua felicidade está em fazer boas escolhas segundo uma hierarquia de bens internalizada e pela
qual tendem a não trocar o que vale mais pelo que vale menos.
A felicidade na República é inseparável da justiça. Um ponto fundamental para que haja
justiça na alma é que o governo, nela, seja exercido pelo logistikón com o auxílio do thymoiedés.
Qualquer interpretação que defenda que felicidade para um indivíduo e que se afaste dessa
premissa só pode ser falaciosa.
A justiça, assim entendida, é fonte de harmonia e de ausência de tensão e conflito na alma.
A injustiça é fonte de tensão e conflito. Assim, a justiça é um bem por si e pelo que traz à alma
daquele em que está presente, e Sócrates cumpriu a tarefa de defender a justiça nos termos
exigidos por Gláucon e Adimanto.
931
PLATÃO. República, 604d-e, 606a-d.
265
Apontar um tipo de ordenamento da alma que envolva harmonia e ausência de conflito
interno e associá-lo à felicidade exclui que se possa chamar de felicidade o estado contrário.
Como a educação é apontada como o fator que gera esse ordenamento e a simples falta de
cuidado com ela gera desordenamento, então não admitir que a educação se estenda a toda a
cidade deixa sem fundamento o argumento de que todos podem ter a alma ordenada e, portanto,
de que todos podem ser felizes, a menos que se altere, chegando às raias do sofisma, o sentido
fundamental de felicidade na República, o qual, mesmo admitindo graus e diferenças segundo as
diferenças entre os homens, tem de ter como elemento comum a boa ordenação da alma, que
corresponde à justiça.
Considerando-se que a justiça é um bem por si e que, existindo na alma, permite que a
vida seja dirigida pela hierarquia de valores presentes na razão e que conduz às boas escolhas e à
boa vida, então a justiça é também um bem pelas consequências.
Porém, um último ponto tem de ser levado em consideração se se quer compreender o
alcance da noção de justiça e felicidade na República e o alcance da proposta política contida na
obra: o fato de que a alma é tomada como imortal.
Assumindo, a uma certa altura, que a alma é imortal e que isso foi estabelecido quer
pelos argumentos que acabara de apresentar, quer por outros apresentados antes
932
, Sócrates,
considerando que também foi bem-sucedido em mostrar que a justiça é um bem por si
933
, passa a
reivindicar que se restituam à justiça os bens subsidiários que são a ela associados, ou seja, as
boas consequências de se possuir a justiça na alma.
Em primeiro lugar, cita os bens provenientes dos deuses, que amam o justo, que, na
medida do possível, é semelhante a eles
934
. Em seguida, a boa fama e os prêmios que recebem
932
PLATÃO. República, 611b.
933
PLATÃO. República, 612a-c
934
Note-se que de forma alguma a expressão ―semelhante aos deuses‖ envolve a referência ao homem que chegou ao
grau máximo de justiça pelo desenvolvimento pleno do elemento racional que o governa, mas, antes, aplica-se
àqueles que, tendo se beneficiado da educação, têm a alma justa e temperante. Note-se que, nas Leis, o Ateniense
praticamente ecoa as palavras de Sócrates na República estabelecendo que os justos e temperantes são, na medida do
possível, semelhantes aos deuses, que, por amarem o semelhante, os amam. Cf. PLATÃO. Leis, 716b-d. Note-se
ainda que, na própria República, Sócrates compara a ação dos legisladores de uma boa cidade à de um pintor que,
misturando as cores, cria homens que Homero chamou semelhantes aos deuses. Note-se que, pela referência a
diferentes ocupações nessa passagem, não se exclui que as virtudes que tornam os homens ―semelhantes aos deuses‖
estejam em todos os homens da cidade e note-se, ainda, que as virtudes nominalmente citadas são a justiça e a
temperança. Cf. PLATÃO. República, 501a-c.
266
por parte dos homens e todos os bens que antes tinham sido associados à vida injusta como
postos e bons casamentos para os filhos
935
.
Sócrates, além disso, estende as boas consequências da vida justa ao que aguarda os
homens justos após a morte e passa a narrar o mito de Er.
O mito narra a história de Er, o armênio, um homem que, tendo sido dado como morto em
batalha, voltou do mundo dos mortos para contar o que lá viu.
Er contou que viu que os homens quando morrem são conduzidos por dois caminhos
diversos, um ascendente e outro descendente e que isto se dá em consequência do julgamento que
recebem de acordo com o modo pelo qual viveram: os que foram justos eram conduzidos para
caminho ascendente e gozavam mil anos de prêmios no além. Aqueles que viveram mal e foram
injustos eram conduzidos pelo caminho descendente e pagavam mil anos de sofrimentos.
Após esses mil anos, tanto uns como outros chegavam ao lugar onde deveriam escolher
uma nova vida, exceto no caso daqueles cujos atos foram tão vis que não puderam ser punidos
suficientemente com mil anos de sofrimentos, caso no qual ouviam uma mugido que anunciava
que seriam levados para baixo, novamente, por seres de fogo, para mais mil anos de penas.
Depois as almas eram conduzidas ao lugar onde teriam de escolher um novo lote de vida
para reencarnar, e todas as possibilidades de vida lhes eram apresentadas, sendo em número
suficiente para que cada uma pudesse escolher cada um dos tipos de vida possíveis a um homem.
Estes continham tudo o que diz respeito à vida, menos a disposição do caráter, por este
mudar de acordo com a vida escolhida, estando tudo o mais misturado entre si: riquezas e
indigência, doença e saúde e o meio termo entre eles
936
.
Neste ponto Sócrates alerta Gláucon:
935
PLATÃO. República, 612b-613d.
936
PLATÃO. República, 614b-618b.
267
937
É que está, segundo parece, meu caro Gláucon, o grande perigo para o homem, e por
esse motivo se deve ter o máximo cuidado em que cada um de nós ponha de parte os
outros estudos para investigar e se aplicar a este, a ver se é capaz de descobrir quem lhe
dará a possibilidade e a ciência de distinguir uma vida honesta da que é e escolher
sempre, em toda parte, tanto quanto possível, a melhor. Tendo em conta tudo o quanto
pouco dissemos, e o efeito que tem, relativamente à virtude na vida, o fato de juntar
ou separar as qualidades, saberá o mal ou o bem que produzirá a beleza misturada com a
pobreza ou a riqueza, e com que disposição da alma, e o resultado da mistura, entre si,
do nascimento elevado e modesto, da vida particular e das magistraturas, da força e da
fraqueza, da facilidade e da dificuldade em aprender, e todas as qualidades naturalmente
existentes na alma, ou adquiridas. De modo que, em conclusão de tudo isto, será capaz
de refletir em todos esses aspectos e distinguir, tendo em conta a natureza da alma a vida
pior e a melhor, chamando pior a que levaria a alma a tornar-se mais injusta, e melhor à
que leva a ser mais justa. A tudo mais não atenderá. Vimos efetivamente, que, quer em
vida, quer para depois da morte, é essa a melhor das escolhas. Deve pois manter-se essa
opinião adamantina até ir para o Hades, a fim de, também, se permanecer inabalável à
riqueza e a outros males da mesma espécie, e não cair na tirania e outras atividades
semelhantes, originando males copiosos e sem remédio, dos quais os maiores seria o
próprio que os sofreria; mas deve-se saber sempre escolher o modelo intermédio dessas
tais vidas, evitando o excesso de ambos os lados, quer nesta vida, até onde for possível,
quer em todas as que vierem depois. É assim que o homem alcança a maior felicidade.
O que o mito indica é que as diferentes escolhas de lotes de vida implicam diferentes
hierarquias de bens ou valores. Assim a riqueza e seu correlato na República, o prazer, podem vir
associados, por exemplo, a uma vida injusta, necessária para que se possa obtê-los. Em outros
lotes de vida, não resplandecem os bens sensíveis, mas a justiça e os bens ligados a ela. É claro
que o que determinará a escolha é a hierarquia de bens de quem escolhe, pois se a riqueza for, na
sua escala, o bem maior que há, nenhum outro resplandecerá do mesmo modo que ela na hora da
decisão.
937
PLATÃO. República, 618b6-619b1.
268
Um elemento importante na narrativa do mito é a consideração de que a escolha feita do
lote de vida não admite recuo e condena a alma que o escolheu a viver aquela vida que, talvez,
apressadamente, escolheu
938
.
A importância de se viver em uma cidade bem ordenada e dotada de um sistema de
educação que tenha sempre em vista as forças em jogo na alma e sua constante retificação fica
clara quando se expõe, no mito, a possibilidade de que uma alma que tenha levado uma vida justa
e que, portanto, tenha gozado dos mil anos de prêmios no além, associados a ela, possa, no
momento da nova escolha, mediante o deslumbramento com os bens sensíveis, escolher,
apressadamente, uma vida na qual esses bens sensíveis estão associados à injustiça e a atos vis
939
.
O que se diz dessa alma é que levou aquela boa vida que lhe valeu prêmios por viver em
uma cidade com uma boa constituição, provindo sua virtude do costume, e não da filosofia
940
.
O que isso mostra é que viver em uma cidade de boa constituição é suficiente para que se
leve a boa vida, com todas as suas consequências. -se aqui que a proposta política de Platão
nada tem de elitista, pois não reserva a boa vida nem suas consequências para os poucos que são
capazes de se dedicar à filosofia.
A República termina, portanto, mostrando que a vida filosófica é uma possibilidade entre
tantas, e que se a melhor ordenação dos valores em uma hierarquia pode depender da epistéme de
um governante-filósofo, pela sua capacidade de fundamentá-la, esta o é a única forma de
atingir os bens decorrentes da boa vida.
938
PLATÃO. República, 619b-c.
939
PLATÃO. República, 619b-620d.
940
PLATÃO. República, 619c-d.
269
6 CONCLUSÃO
Compreender a proposta política contida na República envolve, antes de mais nada, não
perder de vista o que diz o próprio autor sobre a liberdade com que pretende tratar o tema,
propondo uma cidade construída com o lógos e cuja construção seguirá a direção que, como uma
brisa, o lógos determinar.
Que essa cidade é construída para ser a melhor possível e que sua contrução deve ter em
vista também o que é mais útil é reiterado muitas vezes. Assim, considerar o que seria melhor e
mais útil em uma cidade não pode ser considerado um critério ilegítimo de abordagem da obra.
No mínimo, o leitor está sempre autorizado a se perguntar se as instituições que estão sendo
propostas conduzem para o que é melhor.
Porém, mesmo que entenda que, do seu ponto de vista, aquelas instituições não conduzem
para o que é o melhor, fica obrigado a se perguntar se são condições de possibilidade para o que o
autor declara que é melhor.
Assim, por exemplo, se o autor diz explícita e reiteradamente que a riqueza é um mal que
divide a cidade e que, portanto, é melhor que ela não exista aí, merece atenção redobrada dos
leitores o exame das instituições que garantem que esse mal não se originará na cidade. Deve-se
fazer uma comparação entre as instituições que excluiriam plenamente esse mal e outras, também
possíveis, mas que não o excluiria completamente. Assim, entre duas possibilidades de
interpretação sobre o que sejam essas instituições, se deveria optar por aquela que as torne mais
capazes de produzir o bem almejado.
O mesmo raciocínio poderia aplicar-se às virtudes que devem estar presentes na cidade, as
quais são condição de possibilidade para que seja considerada boa. Sempre que houver duas
possibilidades de interpretação sobre as instituições que as garantem, deve-se perguntar qual
dessas possibilidades as garantiria melhor.
Isso seria ser fiel ao próprio método sugerido pelo autor para que se aborde a cidade que
se constrói com o lógos
941
. Foi a observação desse princípio, aliada aos outros métodos adotados
e anunciados na introdução
942
que permitiram chegar a mostrar que a educação primária proposta
941
Cf. PLATÃO, República, 462a.
942
Aquele mediante o qual se considera que há tanto na obra de Platão quanto na República o uso de ―antecipações‖
e aquele que foi chamado método ―dialético‖.
270
na República deve ser compreendida como extensiva a todas as classes da cidade. A discussão
que levou a esse resultado se mostrou profícua em mais de um aspecto.
Em primeiro lugar, permitiu enxergar com mais clareza as instituições que garantem que
possa haver na cidade aquilo que se diz haver: as virtudes e o modo de vida descrito. Essas
intituições que resultaram mais claras são, de um lado, a educação e, de outro, as ordenações
quanto à comunidade de bens, mulheres e filhos, propostas na cidade.
Em segundo lugar, livrou a obra de abrigar inúmeras incoerências que precisariam ser
atribuídas a erros de composição do autor, ou eliminadas à custa de interpretações que
necessariamente extraem do texto o que nele não se encontra.
Permitiu ainda uma visão da real proposta política contida na República e a consequente
necessidade de que seja reconhecida pelo que realmente é no debate sobre as ideias políticas.
Que existe o tempo todo na obra de Platão, mais ou menos explicitamente, uma discussão
política subjacente é inegável. Tomando em consideração dois textos que foram analisados aqui,
a Apologia e a República, então a discussão política é explícita e se apontam claramente os
fatores que estão na origem de uma má ordenação da pólis.
Na Apologia, esse fator é a riqueza, e o fator a que se opõe é a virtude, que, como se
defendeu aqui, em última análise, é a sophía, entendida como um saber fundamentado que dirige
as escolhas.
Na República, os dois aspectos são retomados mais explicitamente e esclarecidos: a
riqueza representa a valorização excessiva, em uma escala de valores, dos bens sensíveis que dão
satisfação ao desejo por prazeres sensíveis. A sophía, por outro lado, fica claramente definida
como uma epistéme ou saber fundamentado sobre o que é melhor e pior.
A questão fundamental que a filosofia política, nesse contexto, tem de discutir é qual a
força que determinará a condução da vida social: os desejos ou a razão.
O que fica claro ao longo da obra de Platão, e particularmente nessas duas obras citadas, é
que a hipertrofia dos desejos os deixa dificilmente governáveis pela razão e, tendo isso em vista,
a questão central da política passa a ser como estabelecer a relação apropriada entre razão e
desejos em uma comunidade.
Porém, como razão e desejos, em uma comunidade de homens, residem em homens e em
nenhuma outra parte, Platão entendeu com clareza que ordenar cidades passa, em primeiro lugar,
por ordenar homens.
271
A República é uma obra que expressa exemplarmente a subordinação mais claramente
perceptível entre ética e psicologia (entendida aqui como uma antropologia filosófica) e a estende
para a relação menos óbvia, mas intimamente ligada à primeira, entre psicologia e política.
As concepções de homem de Trasímaco e aquelas subjacentes ao discurso de Gláucon e
Adimanto se relacionam fundamentalmente com sua ética da ―busca de vantagem‖, sempre
entendida como satisfação de desejos sensíveis, seja direta ou indiretamente. Esta tem como
premissa sua psicologia ou concepção sobre o homem, segundo a qual ele é definido
essencialmente pelo desejo de bens sensíveis. Que isso acabe tendo reflexos no ordenamento
social é inevitável.
São os desejos por bens sensíveis, além do necessário, o fator de desestabilização política
para Platão. Por outro lado, a maioria dos homens que compõem as comunidades políticas são
homens que tendem, por natureza, à busca de satisfação dos desejos sensíveis, até porque os
objetos que lhes dão satisfação são apreendidos por todos os homens imediatamente como bens.
A força desestabilizadora da busca por riquezas e seus correlatos, os prazeres, foi
reconhecida por Platão na República não por ter afirmado isso explicitamente mas porque foi
retratada no processo de corrupção da cidade mais bem ordenada, que era a pólis, que Sócrates
construiu com o lógos. O que a análise do processo de corrupção da cidade mostra é que essa
força desestabilizadora se manifestou mesmo entre aqueles que eram nela os melhores, e a causa
realmente relevante dessa corrupção e de seu agravamento é sempre uma falha na educação que
se dá na cidade.
Esse é um ponto que o pode ser negligenciado se se deseja compreender a proposta
política da República. Ela passa pela necessidade de se levar em conta o que é homem, quais suas
dimensões essenciais e qual o melhor ordenamento possível entre essas dimensões. Porém, a
verdadeira intervenção se dará à medida que sejam descobertos e mobilizados os melhores meios
para se chegar ao fim, que é o bom ordenamento da alma humana.
Conforme apresentada na República, a intervenção política não se apenas pela
instituição de leis visando à melhor ordem social, positivadas e impostas aos homens porque têm
a chancela da razão. Ela começa na educação das crianças desde o nascimento, visando à
ordenação de sua alma para que venham a aceitar harmoniosamente as leis que, quando preciso,
são positivadas tendo em vista o que é racional e o que é melhor para a promoção do bem
comum.
272
É a educação que prepara os homens para a vida na pólis regida pela razão e, nesse
sentido, a educação pode ser considerada como um ―proêmio‖ às leis que expressam essa
racionalidade.
Aceitas essas premissas, é preciso avançar e reconhecer que tanto na Apologia como na
República a raiz do problema da má ordenação política está na ordenação da alma dos
homens, não só dos que governam mas da maioria dos homens.
É por saber manipular e atender aos desejos da maioria que os demagogos de Atenas
acabam por conseguir, muitas vezes, impor seus desejos, mesmo contra a razão e as leis, e é isso
mesmo que Sócrates aponta na Apologia.
Também na República a força que irrompe, com Trasímaco, despertando toda a discussão
sobre se é melhor a vida do justo ou do injusto é a concepção da maioria, segundo a qual é
preciso dar satisfação aos desejos e à ambição. Gláucon e Adimanto, ao retomarem as teses do
sofista, insatisfeitos com a refutação que lhes foi apresentada, tornam isso explícito.
Se se tem em vista a psicologia apresentada por Sócrates no livro IV, e aprofundada nos
livros VIII e IX, então o que se vê é que o elemento apetitivo da alma, destacado tanto por
Trasímaco quanto por Gláucon e Adimanto, nunca deixa de estar presente e sempre estará
relacionado com o desejo pelos bens sensíveis.
A grande diferença é que não representa mais o todo do homem ou a força diretiva da
alma humana, mas se relaciona com as outras dimensões da alma, que o governam. A intervenção
política pela educação deve, então, começar por reconhecer o papel de cada uma das dimensões
identificadas na alma e procurar conformá-la de modo que cada um desses elementos possa
exercer a sua função.
Se os homens tendem para o bem e se os bens sensíveis estão abaixo de outros bens
reconhecíveis pela razão como bens, então cabe ao governante que conhece a verdadeira
hierarquia de bens apresentá-la aos homens, colocando cada bem em sua sede própria e vinculado
ao seu valor próprio. Um intervenção assim pode se dar por uma educação que seja ao mesmo
tempo uma trophé e uma a-trophé.
Essa trophé deve conseguir estabelecer em sua sede própria o valor dos bens não
sensíveis, associando-os à honra e mobilizando, portanto, nessa tarefa, a dimensão da alma que
deseja a honra. Por outro lado deve prover, para aqueles que são capazes, os estudos necessários
para que se atinja o conhecimento fundamentado da real hierarquia dos valores.
273
Por outro lado, deve essa intervenção estabelecer uma a-trophé que não estimule a
valorização dos bens sensíveis desnecessários, seja pela desonra associdada a eles, seja pela sua
simples eliminação do horizonte de experiência.
Se se considera que as leis e os costumes refletem a razão e, portanto, a verdadeira
hierarquia dos bens, então seguir as leis e os costumes seria seguir a razão, e a cidade seria bem
ordenada, ficando o fator desestabilizador da vida na pólis, a riqueza, contida nos limites em que
não é capaz de desestabilizar.
Se essa educação que é trophé/a-trophé pode ser bem-sucedida em ordenar a alma dos
homens, então ela é um fator de retificação política fundamental, mas seria um erro grave
considerar que essa retificação política pode ser bem-sucedida, ou pode ser a mais bem-sucedida
possível, se não se estende essa retificação da alma à grande maioria dos homens.
A República não é uma obra que une psicologia e política por acaso. É por ter sido o mais
penetrante dos ―psicólogos‖ que Platão pôde ser um filósofo político tão perspicaz. Não aplicar,
em toda sua extensão, as conquistas de sua psicologia na sua filosofia política seria, por si, um
contrassenso.
O que se procurou mostrar aqui é que Platão está livre dessa acusação, pois se ele
entendeu a alma humana, seus elementos constituintes, como se relacionam e como se torna reta
essa relação, então aplicou esse entendimento na sua máxima extensão à política.
Se ao associar inequivocamente a felicidade a um bom ordenamento da alma que conduz
às boas escolhas e, conseqüentemente, à boa vida, associou também à felicidade todos os
cidadãos da cidade que propôs que fosse considerada, então os associou a todos ao bom
ordenamento da alma e consequentemente à boa vida definida pelas boas escolhas.
Ao objetor que dissesse que Platão não pode ter isso em vista porque a maioria não é
capaz de ordenar-se a si mesma senão pela obediência de uma força externa e coercitiva, poder-
se-ia dizer que não compreendeu a República e que tudo o que necessita para retificar sua leitura
se encontra no texto mesmo.
Em primeiro lugar, precisaria compreender que, embora os homens tenham naturezas
diferentes e que em alguns, e mesmo na maioria, o elemento apetitivo tenda a dominar, isso não
quer dizer que esse domínio potencial tenha de atualizar-se.
274
Se, como se procurou mostrar aqui, os homens concretos não são definidos pela sua
natureza, mas, antes, pela síntese de natureza e educação, então, depois de educada a maioria,
pode-se dizer do que ela é ou não capaz.
Que a maioria não possa, sob o influxo de uma educação apropriada, ter uma alma
ordenada e justa no sentido platônico é premissa muito mais da ―maioria‖ dos intérpretes da
República do que do próprio Platão.
O próprio Platão denuncia na República o papel das crenças e pressupostos fundamentais
dos homens na interpretação do que dizem outros homens. Essa é a relação do vulgo‖ do
discurso de Adimanto com os poetas: interpretam os poetas de acordo com suas próprias crenças.
O mesmo se poderia dizer de alguns intérpretes de Platão que não conseguem abordar sua
obra desarmados de seus estereótipos historicistas, segundo os quais, por exemplo, Platão, um
aristocrata, tem uma visão coerentemente aristocrática dos homens. Esses intérpretes, mesmo
obrigados a reconhecer que se trata na República de uma ―aristocracia de mérito‖, acham que têm
de tingi-la de ―aristocracia‖ entendida como desconsideração pela maioria dos homens, pelo
menos no que diz respeito aos maiores bens.
Abordar a República a partir de pressupostos históricos, sociais, empíricos ou a partir de
traumas históricos, sejam de que natureza forem, é falhar em conseguir fazer o que o próprio
Platão propõe como condição mínima para o filosofar: desvincular-se do sensível e do imediato.
A cidade da República é algo de inteligível que se propõe ao leitor.
A noção de pólis presente na República é muito complexa. Exige da inteligência que a
apreende não perder de vista em momento nenhum seus elementos constituintes fundamentais.
Eles incluem a admissão da existência de um bem objetivo; da possibilidade de conhecimento,
por parte de alguns, desse bem; da compreensão por parte destes das forças em jogo na alma
humana e de sua capacidade de intervir, através da educação, na sua retificação; e da sua
disposição adamantina de promover sempre o bem comum.
A alguém que rejeite qualquer desses elementos fundamentais como ―impossíveis‖ está
vedado captar o todo da pólis. Se se passa à consideração de sua ―indesejabilidade‖, por se
considerar que se aproxima de certos exemplos históricos traumáticos, então, mais uma vez, sua
necessidade de recorrer ao ―sensível‖ o colocará no caminho seguro para uma interpretação
distorcida.
275
Se o caminho para a apreensão da pólis é a dialética, então nada mais natural que seja
exigido do leitor uma interpretação ―dialética‖ que leve em consideração o todo sem nunca
perder de vista o que é essencial em relação às partes.
―partes‖ ou premissas que são elementos constituintes essenciais para a compreensão
do todo dessa pólis. Além daqueles mencionadas acima, ainda outros: é uma cidade onde
todos são felizes, é una, existem nela virtudes e qualidades que têm como condição de
possibilidade instituições que as promovam na maior medida possível; a busca do que é mais útil
e melhor para a cidade é um critério na eleição das instituições que estarão presentes nela.
Tudo isso tem de estar diante do leitor o tempo todo, e só essa atitude conduz ao
paradigma pretendido pelo autor.
A República é uma obra que por si só seria uma introdução completa ao que é filosofia.
Responde à pergunta sobre qual o objeto da filosofia, sobre qual o seu método, sobre qual o tipo
humano apto para a filosofia e responde até porque ela é necessária e útil. Não é surpreendente,
portanto, que seja também um exercício filosófico proposto ao leitor.
Por um lado porque verifica se, tendo em vista a cidade mesma que se constrói, o leitor é
capaz de visualizá-la sem apoio do sensível. O todo da cidade esconde-se nas entrelinhas e
desafia o intérprete a resolver as aporias e ambiguidades.
À objeção de que não se pode defender a tese da educação comum porque não é afirmada
explicitamente no texto se poderia responder o que a contrária também não está explícita
como torna a obra, mais cedo ou mais tarde, incoerente ao extremo.
Torna-a incoerente do ponto de vista interno da cidade, porque admite, contra o próprio
texto, a existência de instituições e virtudes que não encontrariam fundamento sem a tese da
educação comum. Torna-a dialética e artisticamente falha porque a condena a deixar de tratar um
tema, a retificação da alma da maioria, que aparece, desde o começo, clamando por tratamento.
São as incoerências mesmas envolvidas na aceitação da tese contrária àquela segundo a
qual a educação na República se estende a todas as classes que apresentam o desafio dialético de
se considerar a tese da educação comum. Esta, tomada como hipótese, pode, então, ir se
constituindo aos olhos do leitor atento como a mais coerente, e o que resplandece através dela é a
real proposta política de Platão na República.
276
Que Platão deixou justamente a questão da extensão da educação primária ambígua,
propositalmente, para exigir do leitor uma interpretação dialética que tornasse a obra coerente, é
uma tese que, obviamente, não se pode provar.
O que se propõe aqui é que não seria absurda essa tese, principalmente considerando-se
que Platão parece fazer isso ao longo de sua obra, como, por exemplo, ao propor aporias no
Laques, para as quais o leitor está convidado a dar solução.
Que nesse caso específico fique claro que o que se diz na República indica a necessidade
de se voltar àquele diálogo e buscar solução para as aporias se defendeu aqui
943
. Que Platão
tenha composto o Laques lançando um desafio e já tendo em vista uma obra na qual proporia um
caminho de solução não se pode provar, mas, como diz Kahn, não se pode deixar de considerar
que, quando compôs a República, tinha em vista as questões abordadas no Laques.
Se Platão, ao longo de sua obra, realmente desafia o leitor a ser dialético e se a República
contém propositalmente ambiguidades que desafiam o leitor a uma interpretação dialética, então
não seria absurdo considerar que as Leis contribuem para um entendimento de como devem ser
compreendidas as melhores instituições possíveis na ordenação de uma cidade. Se essa
interpretação sobre a maneira pela qual Platão constrói a sua obra é plausível, então a leitura das
Leis pode indicar mais um aspecto a ser considerado em uma interpretação dialética da República
que vise descortinar a real proposta política nela contida.
O que se na República, depois de um exame que leve tudo isso em conta, não é a
proposta ingênua de uma possível cidade de homens que têm todos a alma ordenada na mesma
medida, sendo todos isentos de tergiversação. A própria obra menciona que, paralelamente à ação
retificadora da educação, haverá a ação ―terapêutica‖ dos juízes e admoestações para aqueles que
precisarem. Há ainda os castigos e, como medida extrema, a exclusão da cidade.
O que não se pode pensar é que esse seja o único modo de tratar a maioria dos homens na
cidade, nem o mais importante. Essas medidas mencionadas, assim como a guarda externa dos
guardiões, representam o reconhecimento de que as forças em jogo na alma, e principalmente
naquelas em que o elemento apetitivo é por natureza mais forte, exigem cuidado e mecanismos
que funcionem como uma espécie de ―seguro‖ pelo qual a ordem social não será rompida pelos
elementos desviantes, mas visa também evitar que uma possível desordem, mesmo que
temporária, de sua alma, não lhe traga as más consequências que lhes vêm associadas.
943
Cf. seção 2.2.
277
O que a análise do mito de Er, aqui proposta, mostrou foi exatamente que o risco de que
os bens sensíveis resplandeçam frente àqueles mais afeitos a eles não envolve necessariamente
má fé ou uma escolha deliberada pelo mal, significando antes que em alguns a ordenação da alma
conseguida pela educação é mais frágil e exige uma constante vigilância mediante a qual se
observe se essa ordenação conseguida, em certa medida, pela educação e pelos costumes, se
mantém.
Ora, o fosse assim, seriam todos guardiões na acepção mais forte da palavra, ou seja,
seriam os homens que, tendo sido testados, perseveraram em todas as circunstâncias. Que alguns,
testados em circunstâncias extremas tenham tergiversado os exclui da classe dos guardiões
―profissionais‖, mas eles não deixam de ser, em certa medida e ainda, guardiões de si mesmos.
O fato de haver guardiões que vigiam e punem os possíveis desvios não significa que a
cidade não foi construída para evitar, na medida do possível, os desvios. Significa, antes, que a
proposta não é ingênua e, como proposta dialeticamente concebida, considera, o tempo todo,
todos os aspectos, inclusive a possibilidade, em alguns casos, de desvios. Que esses desvios
possam ser retificados com admoestações e não só com coerção é algo que indica a confiança na
ordenação da alma dos homens, conseguida por meio da educação e dos costumes, mesmo
daqueles que eventualmente se desviam.
Que a cidade foi construída tendo em vista evitar, na medida do possível, os desvios, e
que se acredite no alcance da intervenção retificadora da alma pela educação, fica claro pelo fato
de se dispensar nela legislação positiva sob vários aspectos que se entendem dados como
ordenados pela educação dos homens. Ora, esses são aspectos que, por sua vez, exigem
ordenação da alma. A desonra associada ao rompimento da ordem sob esses aspectos exerceria
suficiente ―guarda‖, tem-se de entender, na maioria dos homens, se estes tiveram seu elemento
amante das honras suficientemente reforçado.
A proposta contida na filosofia política de Platão, e que parte da compreensão do que é
homem, não é nem otimista ao extremo, a ponto de se tornar ingênua, nem pessimista ao
extremo, a ponto de considerar impossível qualquer intervenção que ordene a alma dos homens.
Ela é dialética, ou seja, leva o tempo todo em consideração todos os aspectos.
Seu traço fundamental, entretanto, é o de encarnar da forma mais acabada possível o ideal
da política de produzir o bem comum. Esse bem não se esgota no atendimento das necessidades
fundamentais do homem. Estas foram garantidas nas primeiras pinceladas do pintor/construtor de
278
politeía. Tudo o que se seguiu na composição desse ―quadro‖, que de tão rico e completo
extrapola as dimensões do espaço e do tempo, foi a busca de estabelecer para a comunidade dos
homens, na máxima medida em que isso é possível para todos, os bens espirituais que garantem
as boas escolhas, a boa vida e as boas consequências, sejam na vida privada, na vida pública ou
na vida ―eterna‖.
Que esses bens possam provir da virtude e que Platão tenha compreendido que a
verdadeira política pode ser aquela que leve todos os homens, na xima medida possível, a
participarem dela, tornam a sua proposta política, na melhor das hipóteses, igualável, mas jamais
superável em generosidade.
279
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7.6 Index e léxicos
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Berliner. Revisão técnica de Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.
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