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que não há referência explícita a tal extensão; a essa objeção, acrescenta-se uma outra: a de que a
análise desse modelo de educação teria sido suscitada pela necessidade de educar os homens de
uma classe da cidade: a dos guardiões. Embora, em uma certa altura da obra, essa classe seja
divida em duas – a dos guardiões-governantes e a dos guardiões-auxiliares –, são estas que são,
segundo a maior parte dos comentadores da República, beneficiadas pela educação primária
descrita, ficando a terceira classe, e a mais numerosa, a dos artesãos, excluída dela.
Alguns adotam essa interpretação sem sequer tematizá-la, pois dão como suposto que a
educação primária visa aos guardiões
2
. Outros, mais raros, formam um segundo grupo e
procuram mostrar não só que se deve admitir que a educação primária visa aos guardiões mas
que, pelo que diz o texto, não pode destinar-se aos artesãos
3
. O principal representante desse
segundo grupo, pelo espaço que dedica à questão e pelo número de argumentos aduzidos contra a
tese da educação comum, é Reeve.
A tese contrária, e que se procurará defender também aqui, segundo a qual a educação
primária deve ser interpretada como se estendendo a todos os cidadãos, inclusive aos artesãos, é
muito menos defendida e, quando o é, isso ocorre de forma deficiente, pois geralmente envolve
um único aspecto e não procura responder às objeções levantadas pelos comentadores do segundo
grupo mencionado no parágrafo acima. Também é deficiente porque não procura confrontar sua
interpretação com as passagens do texto que resultariam aparentemente contraditórias com a sua
tese nem apresentar uma possível solução
4
.
2
Neste grupo, poder-se-iam elencar Jaeger, Grube e Nettleship. Cf. JAEGER, Werner. Paidéia, a formação do
Homem Grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995; GRUBE, G. M. A. Plato’s
Thought. Indianapólis: Hackett, 1980; NETTLESSHIP, R. L. Lectures on the Republic of Plato. London: Macmillan,
1920. ; _______ The Theory of Education in the Republic of Plato. Honolulu: University Press of the Pacific, 2003.
3
Neste grupo, poder-se-iam elencar Hourani, Ferrari, Strauss e Reeve. Cf. HOURANI, G. F. The Education of The
Third Class in Plato‘s Republic. The Classical Quarterly, v. 43, n.1/2, p. 58-60, 1949; FERRARI, G. R. F. City and
Soul in Plato’s Republic. Chicago: University of Chicago Press, 2005; STRAUSS, L. The City and Man. Chicago:
University of Chicago Press, 1978; REEVE, C. D. C. Philosopher-Kings: The Argument of Plato‘s Republic.
Princeton: Princeton University Press, 1988.
4
Neste grupo, poder-se-iam elencar Shorey, Cornford, Dorter, Irwin, Taylor e Vlastos. Cf. SHOREY, Paul (Trad.).
The Republic. London: Harvard University Press, 1994. v. 2. (The Loeb Classical Library, Plato, 5 e 6);
CORNFORD, Francis M. (Trad.). The Republic of Plato. Introduction and notes by Francis MacDonald Cornford.
New York: Oxford University Press, 1990; DORTER, Kenneth. The Transformation of Plato’s Republic. New York:
Lexington Books, 2006; TAYLOR, A. E. Plato, the man and his work. London: Methuen, 1960; IRWIN, Terence.
Plato’s Ethics. New York: Oxford University Press, 1995; VLASTOS, Gregory. Platonic Studies. 2nd. ed. New
Jersey: Princeton University Press, 1981. Embora sem o mesmo grau de argumentação ou de confrontação com as
teses contrárias, com o qual se defenderá aqui a tese de que a educação primária se estende a todas as classes, a
posição sobre o tema mais próxima da que se apresentará aqui se encontra no comentário à República de Averróes.
Cf. AVERRÓES. Exposición de la “República” de Platón. Traducción y estudio preliminar de Miguel Cruz
Hernández. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1998.