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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
CENTRO DE HUMANIDADES
UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO
METALINGUAGEM E ENSINO:
VIVÊNCIA COM POEMAS DE FERREIRA GULLAR
Caroline Mabel Macedo Santos Martins
Orientador: Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves
CAMPINA GRANDE – PB
FEVEREIRO DE 2010
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1
CAROLINE MABEL MACEDO SANTOS MARTINS
METALINGUAGEM E ENSINO:
VIVÊNCIA COM POEMAS DE FERREIRA GULLAR
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em
Linguagem e Ensino
(PPGLE), da Universidade
Federal de Campina
Grande (UFCG), para
obtenção do título de
Mestre em Linguagem e
Ensino.
Orientador: Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves
CAMPINA GRANDE – PB
FEVEREIRO DE 2010
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METALINGUAGEM E ENSINO:
VIVÊNCIA COM POEMAS DE FERREIRA GULLAR
CAROLINE MABEL MACEDO SANTOS MARTINS
Defesa de Dissertação:
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves – UFCG (ORIENTADOR)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Derivaldo dos Santos – UFRN
_______________________________________________________________
Profª. Dra. Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega – UFCG
Campina Grande – PB, 26 de Fevereiro de 2010
3
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UFCG
M386m
2010 Martins, Caroline Mabel Macedo Santos
Metalinguagem e ensino : vivência com poemas de Ferreira Gullar /
Caroline Mabel Macedo Santos Martins. Campina Grande, 2010.
293 f.
Dissertação (Mestrado em Linguagem e Ensino) – Universidade Federal
de Campina Grande, Centro de Humanidades.
Referências.
Orientador : Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves.
.
1. Poesia 2. Metalinguagem
3. Ensino 4. Recepção
I. Título.
CDU – 82-1(043)
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu refúgio, meu sustento, minha alegria, minha luz.
Aos meus pais, queridos alicerces da minha vida.
À irmã Marina, pela enorme ajuda em tudo.
À irmã Gisele, pelo incentivo mesmo de longe.
A minha família como um todo.
A Pablo, com quem quero dividir minha vida.
A Hélder, pelo grande privilégio de sua parceria.
A Marta, pela compreensão e confiança em mim.
A Angélica, pelos diálogos que só me fazem crescer.
Aos professores Edilson e Derivaldo, pelas contribuições.
A Rosa, por sua indispensável colaboração.
Aos alunos da turma do primeiro ano, pelo aprendizado mútuo.
A Manassés, pela amizade que incentiva.
A Michelle, pela doçura que acalma.
A Gesimiel, por torcer sempre por mim.
A todos os queridos professores da Unidade Acadêmica de Letras, em especial a
Rosângela Melo e José Mário.
Aos colegas do Mestrado.
Ao programa REUNI.
À UFCG, pela minha formação acadêmica e humana.
5
RESUMO
Nesta pesquisa realizamos e relatamos um experimento de convivência com
poemas metalinguísticos do poeta Ferreira Gullar, em uma turma do primeiro
ano do ensino médio de escola pública da cidade de Campina Grande. O
objetivo do experimento foi refletir sobre a recepção dos alunos aos
metapoemas gullarianos, a partir da seguinte problemática: a poesia de caráter
metalinguístico consegue ter alguma repercussão em jovens leitores? Os
principais instrumentos de coleta de dados foram: 1) antes do experimento:
encontros com a professora efetiva da turma para planejamento de aulas /
observação de aulas dessa professora / questionário escrito para sondar os
gostos de leitura dos alunos / nosso diário reflexivo; 2) durante o experimento:
gravação de nossas aulas em áudio / atividades escritas pelos alunos / blog
criado para debater os poemas com os alunos / nosso diário reflexivo. Como
referencial teórico para o experimento utilizamos estudos de Jakobson (1971),
Barthes (1970), Bosi (2000) e Benjamin (1994), acerca da metalinguagem.
Além disso, tomamos os pressupostos da Estética da Recepção
especialmente Jauss (1979 e 1994), Jouve (2002) e Eagleton (2001) e suas
implicações para o ensino de literatura Zilberman (1979), Leite (1983) e
Pinheiro (2006). A nosso ver, a grande contribuição da Teoria da Recepção
para este ensino é perceber o leitor como figura ativa a quem o texto literário,
em primeira e última instância, se dirige. Daí advém a maior tarefa do
professor: deixar o aluno ser o centro da aula de literatura. Os resultados da
pesquisa nos indicaram que a metalinguagem era tema novo para a maioria
dos leitores; que a turma lia poemas, mas que a sua relação com a poesia não
estava baseada na experienciação; que os alunos mostram-se mais abertos e
motivados ao trabalho com a literatura quando percebem que podem se
manifestar acerca dos textos sem o risco de recriminações/discriminações,
tendo a sua voz tomada como valor único e singular; que a poesia
metalinguística possui um valor peculiar, que reside essencialmente na
possibilidade de levar-nos a discuti-la, a descobrir seu valor através de sua
própria voz; que o diferencial não é exatamente o tipo de texto levado à sala de
aula embora devamos ser criteriosos na escolha mas o método através do
qual esse texto é trabalhado. Não importa se metalinguística, amorosa ou
social, a fonte mesmo é a Poesia.
Palavras-chave: Poesia, Metalinguagem, Ensino, Recepção
6
ABSTRACT
In this research we performed and reported an acquaintanceship experiment of
the poet Ferreira Gullar’s metalingüístic poems in a group of the first year of
High School of a public school of Campina Grande city. The experiment goal
was to bethink about the student’s reception on Gullar’s metapoems, starting of
the following question: Can the metalingüístic poetry have some repercussion in
young readers? The main instruments of data collection were: 1) before the
experiment: meetings with the effective group’s teacher in order to plan the
classes / observing the teacher’s classes / written questionnaire to gauge the
tastes of students' reading / our reflective diary; 2) during the experiment: audio
recording of our classes / student’s written exercises / blog made in order to talk
about the poems with the students / our reflective diary; The theoretical
framework used for the experiment were the studies of Jakobson (1971),
Barthes (1970), Bosi (2000) e Benjamin (1994), about metalanguage. Beyond
that, we took the assumptions of the Aesthetics of Reception – especially Jauss
(1979 and 1994), Jouve (2002) e Eagleton (2001) - and its implications for the
Literature teaching - Zilberman (1979), Leite (1983) e Pinheiro (2006). In our
view, the great contribution of the Theory of Reception for this teaching is to see
the reader as an active figure to whom the literary text, in the first and last
instance, is addressed. Hence the major task of the teacher: let the students be
the center of the literature class. The survey results indicated that the
metalanguage was new to most readers; the class read poems, but their
relationship to poetry was not based on EXP; that students are more open and
motivated to work with the Literature when they feel they can express about the
text without the risk of recrimination / discrimination, and making their voices as
unique and value; metalinguistic poetry has a peculiar value, which is
essentially the ability to lead us to discuss it, to discover his value through his
own voice; no matter whether metalinguistic, loving, social, the source really is
Poetry. Apparently, the difference is not exactly the type of text brought to the
classroom - although we must be careful in the choice - but the manner in which
this text is presented.
Keywords: Poetry, Metalanguage, Education, Reception
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................. 9
CAPÍTULO I REFLEXÕES TEÓRICAS
1. SOBRE A METALINGUAGEM.................................................................. 14
2. SOBRE A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O ENSINO............................... 22
CAPÍTULO II RELATO DE EXPERIÊNCIA
PARTE I – CONHECENDO OS COLABORADORES: A ESCOLA, A
PROFESSORA, OS ALUNOS LEITORES................................................... 33
1. SOZINHA, COM MEUS BOTÕES............................................................ 33
2. NA COMPANHIA DA PROFESSORA COLABORADORA....................... 35
2.1. Quem era essa professora?.............................................................. 36
2.2. A descoberta dos encontros.............................................................. 37
3. OBSERVAÇÃO SILENCIOSA DAS AULAS............................................. 40
3.1. Analisando a observação.................................................................. 41
4. QUEBRANDO O SILÊNCIO ................................................................... 45
4.1. O questionário – rica fonte de conhecimento da turma ................... 46
PARTE II – O EXPERIMENTO .................................................................. 74
1. MÓDULO I .............................................................................................. 74
1.1. Conversa sobre os gostos de leitura ............................................... 74
1.2. O contato com a poesia: “Bilhete”, de Mário Quintana..................... 81
1.3. No blog ............................................................................................ 87
1.4. Reflexão sobre a aula ...................................................................... 90
2. MÓDULO II ............................................................................................. 91
2.1. Depois do bilhete, a carta ................................................................ 91
2.2. Rápida reflexão................................................................................ 97
2.3. No blog............................................................................................ 97
2.4. Uma base construída....................................................................... 100
2.5. A estreia do tema “metalinguagem.................................................. 100
2.6. Reflexão sobre a estréia................................................................. 106
2.7. No blog........................................................................................... 109
3. MÓDULO III........................................................................................... 113
8
3.1. Traduzindo....................................................................................... 113
3.2. O desafio lançado............................................................................ 117
3.3. O momento do áudio....................................................................... 118
3.4. O ensaio de conversa sobre o poema............................................. 120
3.5. Um significativo aprendizado........................................................... 122
3.6. O Poemúsica.................................................................................. 123
3.7. A repercussão do evento no blog.................................................... 125
4. MÓDULO IV........................................................................................... 128
4.1. Em prosa, uma reflexão sobre a poesia.......................................... 128
4.2. Justificando a escolha de “O poema”.............................................. 130
4.3. A metalinguagem descoberta pelos alunos..................................... 131
4.4. A percepção oral dos leitores.......................................................... 135
4.5. Os jovens leitores em sua primeira atividade escrita....................... 137
4.5.1. O tempo como fator adversário............................................. 137
4.5.2. Reflexão sobre os dados...................................................... 139
5. MÓDULO V............................................................................................ 161
5.1. A luta na escolha dos poemas......................................................... 161
5.2. A discussão em grupo sem a intervenção do professor................. 163
5.3. Análise dos escritos dos leitores..................................................... 167
5.3.1. “Desastre”............................................................................. 167
5.3.2. “Poema poroso”.................................................................... 177
5.4. Encerrando o experimento.............................................................. 188
5.5. No blog............................................................................................ 188
5.6. Alguns resultados........................................................................... 189
5.6.1. “Gesso”, de Manuel Bandeira................................................ 190
5.6.2. Conversas off line................................................................. 192
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................... 196
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................... 205
ANEXOS.................................................................................................... 208
Anexo 1..................................................................................................... 209
Anexo 2..................................................................................................... 211
Anexo 3..................................................................................................... 244
Anexo 4..................................................................................................... 255
Anexo 5..................................................................................................... 260
Anexo 6..................................................................................................... 262
Anexo 7..................................................................................................... 285
Anexo 8..................................................................................................... 287
Anexo 9..................................................................................................... 291
9
INTRODUÇÃO
É como resultado da vivência com o texto literário, e, mais
especificamente, com a poesia, que surge este trabalho. Dentro do universo
amplo da poesia, optamos por trabalhar com a vertente metalinguística da obra
poética de Ferreira Gullar, e isso por algumas razões: primeiro, o fato de Gullar
apresentar-se como voz viva e contemporânea que pode dizer muito do
homem de nosso tempo, por meio de uma obra cuja “representação e
linguagem estão mais próximas” das nossas próprias experiências, “se
comparadas com escritores de 5 ou 6 séculos passados”
1
(PARAÍBA, 2006, p.
83).
A segunda razão fundamenta-se no fato de parecer ainda pouco
conhecido o veio metalinguístico de Gullar, apesar da boa quantidade de
poemas que versam sobre o fazer poético, e da significativa realização estética
de muitos desses textos. Sem descartar o valor da poesia social do
maranhense que, aliás, o consagrou como um dos poetas nacionais vemos
nos poemas metalinguísticos um terreno rtil para a compreensão e (possível)
descoberta do valor da poesia.
É importante esclarecer que não entendemos a metalinguagem como
tema superior a nenhum outro; apenas acreditamos que um valor peculiar
nessa poesia que está voltada para si mesma, que toma a si como objeto da
própria linguagem. Aliás, um dado significativo do universo da metalinguagem
gullariana é a tendência à “impureza”, à pluralização: boa parte dos
1
Essa afirmação dos “Referenciais Currilares para o Ensino Médio da Paraíba” merece uma
ponderação. Nem sempre os escritores contemporâneos apresentam uma obra cuja
“representação e linguagem estão mais próximas” de nossas vivências. Esse é, no entanto, o
caso de Ferreira Gullar, daí trazermos a voz do documento oficial para fundamentarmos a
nossa escolha.
10
metapoemas se associa a outras temáticas – em especial, a questões sociais –
como se falar da poesia fosse também enxergá-la em sua relação com o
mundo.
Uma terceira razão, essa bastante afetiva, é a própria afinidade que
desenvolvemos com o tema
2
desde o ingresso no curso de Letras. Chamava-
nos atenção o fato de existir uma poesia que, tendo toda uma gama de objetos
exteriores sobre os quais falar, optava por falar sobre si. Por que ela fazia isso?
Como imaginar um criador inquieto, que se pergunta sobre a própria criação?
A descoberta da metalinguagem fez-nos conflitar com o entendimento
ingênuo de que a poesia podia versar sobre os sentimentos do homem tal
como o amor, a tristeza e a morte encaminhando-nos a perceber a
necessidade de momentos introspectivos, em que ela, a poesia, buscava se
entender.
A quarta e última razão para a escolha do autor e do tema é a
convivência que temos estabelecido com a poesia metalinguística do
maranhense. O trabalho monográfico A metalinguagem no Muitas vozes, de
Ferreira Gullar, apresentado em 2007, é um dos resultados mensuráveis dessa
busca por significação poética, que, por tão complexa, instiga-nos a mais.
Esta dissertação é de certa forma a continuidade desse percurso, mas
agora dentro de uma perspectiva mais ampla e vertical, centrada na relação
pesquisa-ensino. Para sermos mais claros, caminhamos do terreno da
descoberta solitária para o da descoberta solidária, por causa da necessidade
preeminente de, como professores de literatura, experienciarmos o texto
2
Aqui falamos da poesia metalinguística de forma geral, e não apenas da poesia de Ferreira
Gullar.
11
literário, oportunizando aos alunos conviver com peças literárias que tanto nos
inquietam, a ponto de se tornarem objetos de nossos estudos por anos a fio.
O trabalho possui dois capítulos. O primeiro é a fundamentação teórica,
que está dividida em dois tópicos. Tendo em vista que o nosso foco o os
poemas metalinguísticos, o tópico inicial é uma reflexão acerca do tema
“metalinguagem”: através de estudos significativos como os de Roman
Jakobson (1971), Alfredo Bosi (2000) e Walter Benjamin (1994), destacamos a
metalinguagem como estratégia recorrente da poesia moderna, que parece
propensa a desvendar os bastidores da própria atividade artística.
No segundo tópico o leitor encontrará algumas reflexões teóricas sobre a
“Estética da Recepção”, de Hans Robert Jauss (1979 e 1994), e algumas de
suas implicações para o ensino de literatura (ZILBERMAN, 1979; LEITE, 1983;
PINHEIRO, 2006). Indubitavelmente, a maior contribuição da teoria para esse
ensino é perceber o leitor como figura ativa a quem o texto literário, em
primeira e última instância, se dirige. Daí advém a maior tarefa (e temor) do
professor: deixar o aluno ser o centro da aula de literatura. O capítulo inicial é,
pois, o construto teórico no qual se assentam os demais capítulos.
O capítulo segundo é a parte prática da pesquisa, mais precisamente o
relato de um experimento de convivência de leitores jovens com a poesia
metalinguística do maranhense Gullar os sujeitos da pesquisa são alunos do
primeiro ano do ensino médio de escola pública da cidade de Campina Grande.
Como o éramos professores efetivos da escola, o espaço da sala de aula foi
cedido por uma professora colaboradora, que já conhecíamos.
O experimento, realizado entre os meses de março e junho de 2009,
objetivou estudar a recepção dos leitores aos metapoemas, a partir da seguinte
12
problemática: a poesia de caráter metalinguístico consegue ter alguma
repercussão em jovens leitores? Desdobrando a questão: haveria para aqueles
leitores um valor peculiar nessa poesia que fala sobre a poesia? Ela seria
também, assim como a poesia lírico-amorosa, ou a social, uma oportunidade
de descoberta da Poesia?
O relato se estrutura em duas partes: a primeira delas refere-se ao
período que antecedeu as nossas aulas propriamente ditas, no qual fizemos a
observação de 9 horas/aulas da professora efetiva. Ali tivemos a oportunidade
de conhecer mais a respeito da escola, da professora, e dos leitores, os três
principais colaboradores da pesquisa. Nesse período, os instrumentos de
coleta de dados foram: os encontros com a professora efetiva para
planejamento de aulas / a referida observação de aulas da professora / o
diário reflexivo / a aplicação de questionário escrito para sondar os gostos de
leitura dos alunos.
Na segunda parte do relato, descrevemos as 10 horas/aula “ministradas”
por s. O vocábulo está em aspas mesmo, e tem sua razão de ser: o que
fizemos foi proporcionar aos alunos momentos de convivência com poemas de
caráter metalinguístico, utilizando-nos mais da pergunta que da resposta,
porque o que queríamos mesmo era ouvir os alunos, ver como eles “liam” os
poemas, captar o modo de percepção deles, ainda que fosse diferente do
nosso, ainda que não se configurasse em interpretações nos moldes
academicistas – nem poderia.
O trabalho realizou-se por meio de cinco módulos, que iam sendo
aplicados com intervalos de uma semana. Os instrumentos de coleta de dados
13
do experimento foram: gravação de aulas em áudio / fotografias
3
/ diário
reflexivo / atividades escritas / blog esse blog foi um espaço virtual criado
para que os alunos pudessem comentar os poemas que iam sendo levados
para a sala de aula, além de outros textos, músicas, imagens, que iam sendo
postados gradativamente.
Os resultados da experiência serão conhecidos ao longo do relato. Por
agora, vale dizer que nossa hipótese caminhou para uma resposta afirmativa:
“Sim, os poemas de caráter metalinguístico conseguem ter alguma
repercussão em leitores jovens”. A partir de agora, seremos levados em um
caminho que nos mostrará como e por quê.
3
As fotografias não serão utilizadas neste trabalho, porque necessitaríamos de autorização dos
pais dos jovens leitores para a publicação de suas imagens.
14
CAPÍTULO I
REFLEXÕES TEÓRICAS
1. SOBRE A METALINGUAGEM
O prefixo meta remete à etimologia grega, e significa “mudança”,
“posteridade”, “além”, “transcendência”, “reflexão”, “crítica sobre” (CHALHUB,
1998). Em termos simplificados, metalinguagem é um estudo reflexivo sobre a
própria linguagem, que se dá toda vez que o código fala sobre si.
Assim, quando uma música fala sobre música, quando a televisão
procura expor como se faz televisão, ou quando dentro da pintura um quadro é
pintado, estamos diante de fenômenos metalinguísticos. Seguindo igual
raciocínio, a metalinguagem literária acontece quando a literatura toma a si
como objeto, e, mais restritivamente ainda, existe metalinguagem poética
quando a poesia fala de poesia. É que se o “casamento” entre poesia e
metalinguagem:
É preciso observar, em estreita ligação, o trabalho da
mensagem, a função poética, que deixa exposto o código, a
função metalinguística. A relação entre esses dois níveis de
trabalho com o código e com a mensagem vai resultar na
metalinguagem das formas poéticas (CHALHUB, 1998, p. 39).
Roman Jakobson foi um dos grandes teóricos a abrir caminhos no
estudo da metalinguagem, especialmente a literária. No célebre ensaio
“Linguística e Poética” (1971), ele informa a respeito das seis funções da
linguagem, que recebem seus nomes de acordo com o elemento que
15
enfatizam. Desse modo, a função que está centrada no emissor é a “emotiva”;
a que se centra na mensagem é a “poética”; a que enfatiza o destinatário da
mensagem é a função “conativa”; a que está enraizada no contexto é a
“referencial”; a que enfoca o código, comum a emissor e destinatário, é a
função “metalinguística”; e por fim, a que enfatiza o canal que permite a
comunicação é a função “fática”.
Segundo o teórico, todo ato de comunicação verbal envolve os seis
fatores, em maior ou menor grau. Por conseguinte, o que determinará a
estrutura da mensagem é a predominância de um dos elementos, e não sua
exclusividade: “A diversidade reside não no monopólio de alguma dessas
diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de funções. A
estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da função
predominante (JAKOBSON, 1971, p. 123).
Dentre as funções elencadas, interessa-nos mais de perto a função
metalinguística, pautada no código da mensagem. Mas como o código só
existe na mensagem, e esta se efetiva por meio do código, a função poética
também se faz essencial ao estudo. É o entrelaçar de ambas as funções que
moverá todo o trabalho.
Mas se a metalinguagem poética ocorre quando a poesia resolve falar
de poesia, o horizonte que se desvenda é demasiadamente amplo,
plurissignificativo, porque diferentes poetas encontram diferentes maneiras de
falar sobre poesia. Nesse sentido, não é exagero falar em uma metalinguagem
drummondiana, em uma metalinguagem gullariana, em uma metalinguagem
bandeiriana, cabralina, e assim por diante. É significativo perceber que cada
16
poeta encontra uma maneira particular de comunicar “a poesia da poesia”. O
terreno aqui é bastante vasto: mais uma razão para investigá-lo.
Segundo Chalhub (1998), apesar da Retórica pensar a linguagem desde
Aristóteles, as especulações sobre metalinguagem tem sua origem nos estudos
da Poética
4
, de maneira que esse objeto pode ser interpretado como traço
típico da modernidade. Dois níveis de linguagem se fariam, então, presentes na
lógica moderna: a “linguagem-objeto” e a “metalinguagem”.
No primeiro nível, a linguagem versa sobre objetos, e, portanto, fala
sobre o outro; no segundo nível, tira o olhar de sob o outro e o coloca sobre si
(JAKOBSON, 1971). É a linguagem falando da própria linguagem, porque
parece que falar de outrem já não lhe satisfaz.
Note-se o seguinte: no nível da metalinguagem, a literatura não deixou
de versar sobre o outro. Para Barthes (1970), ela finge destruir-se como
linguagem-objeto, para, através da metalinguagem, continuar sendo uma nova
linguagem-objeto. Assume, então, uma dimensão dupla: ao mesmo tempo
objeto e olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura objeto e
metaliteratura (BARTHES, 1970, p. 28).
Haroldo de Campos (1977) aproxima-se do pensamento de Barthes, ao
entender o metapoema como objeto perpassado pela linguagem ensaística e
pela especulação teórico-filosófica, não dentro de uma perspectiva
pedagogizante, de como se ensinar a fazer poesia, mas dentro de uma
dimensão questionadora do próprio poetar:
4
Para Jakobson (1971), a Poética é a parte da Linguística que relaciona a função poética com
as demais funções da linguagem.
17
Trata-se de um poema que se questiona a si mesmo sobre a
essência do poetar, num sentido muito diferente, porém, das
“artes poéticas” versificadas da preceptística tradicional: o que
está em causa não é um receituário de como fazer poesia, mas
uma indagação mais profunda da própria razão do poema, uma
experiência de limites. Assim, a linguagem do ensaio e da
especulação teórico-filosófica (...) passa a integrar-se no
poema, que se faz metalinguagem de sua própria linguagem-
objeto (CAMPOS, 1977, p. 36).
Mas por que razão o texto moderno
5
tenderia a essa atitude
metalinguística questionadora, o que não se veria bem delineado na tradição
literária clássica? Um vislumbre de resposta para questão tão complexa estaria
na consideração das mudanças de caráter histórico e cultural por que passa a
sociedade pós-romântica, que redundariam também em uma mudança de
consciência em torno das formas artísticas. É o que nos ensina Hildeberto
Barbosa Filho:
O texto moderno envolve, portanto, uma atitude
metalinguística. Sistematicamente metalinguística. E essa
particularidade, considerada em função da longínqua tradição
clássica, não resulta naturalmente do acaso literário: a
mudança de consciência em torno das formas artísticas
prende-se, sem dúvida, às mudanças de caráter histórico e
cultural por que passa a sociedade como um todo. A
necessidade, pois, de fazer da literatura objeto de investigação
de si mesma trai a presença da crise da “boa” consciência
burguesa, desencadeada a partir do momento pós-romântico e
a partir do enrijecimento do Capitalismo, da fragmentação do
mundo, do crescimento das cidades, da clivagem da
subjetividade, etc”. Foram precisos os primeiros abalos no
momento pós-romântico, com sua urgência em problematizar
as relações entre a arte e a vida social, de problematizar as
suas formas de articulações, para que o discurso literário
vivenciasse uma dimensão crítica, percorrendo aquilo que,
5
Não que essa atitude metalinguística questionadora não se encontre também em outros
estilos de época literários, anteriores ao próprio Modernismo. Um importante trabalho de Sergio
Alves Peixoto (1999), intitulado A consciência criadora na poesia brasileira: do barroco ao
simbolismo, procura “mostrar exatamente como a preocupação consciente com o fazer poético
se manifestou e se impôs como elemento significativo em nossa poesia”, “de Bento Teixeira ao
simbolista Cruz e Sousa” (pp. 12 e 15). O que queremos deixar claro, porém, é que,
especialmente na modernidade, tal atitude se intensifica, assumindo um nível de profundidade
muito maior.
18
muitas vezes, chamamos de tradição metalinguística da
modernidade (BARBOSA FILHO, 1989, pp. 26 e 27).
Alfredo Bosi também concebe a metalinguagem como característica dos
tempos modernos. Sua leitura, posta em “Poesia-Resistência” (2000), percebe
na metalinguagem poética uma forma de sobrevivência em meio ao sufocante
mundo das ideologias dominantes. O autor esclarece que desde o Pré-
Romantismo encontra-se na poesia a tendência de resistir aos discursos
burgueses.
É importante lembrar que o Romantismo brasileiro surge em meados do
século XIX. Na segunda metade do século XVIII, o mundo assistira à eclosão
da Revolução Industrial. É o período em que o capitalismo encontra toda a sua
força, e o pensamento burguês segue na tentativa de dominar não só as
esferas político-econômicas, mas também as sócio-culturais. As artes, a
literatura, tenta sobreviver em meio ao caos. É assim que surgem “as saídas
difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou
sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio”
(BOSI, 2000, p. 165).
Trata-se de um momento extremo, no qual o poeta, não encontrando
mais fora de si a matéria que o mova em seu ofício, tira da própria poesia a
“substância vital” (BOSI, 2000). A metalinguagem poética se processa, pois,
como uma tentativa de conhecimento do ser da poesia, “uma forma peculiar e
singularíssima de episteme”, que deixa “à mostra os recursos que usa para
formular sua questão” (CHALHUB, 1998, p. 42).
Sob esse prisma, a matéria-prima parece ser fonte inesgotável. Havendo
poesia, haverá quem se debruce sobre ela, procurando descobrir-lhe os
19
segredos, desvendar-lhe a arquitetura. Talvez por isso seja possível
reconhecer na metalinguagem poética um caso de amor e ódio: ora o poeta
venera a poesia, quando ela se entrega de pronto; ora a repulsa, quando ela se
fecha em seus cadeados. A constante busca do poeta pelo objeto se justifica,
portanto, por esse jogo de sedução infindável.
Retornando ao que ensina Bosi, em seu percurso de resistência a
poesia parece ter trilhado caminhos indesejados. O teórico fala de uma “poética
da metalinguagem”, isto é, uma poesia extrema, assentada em uma
perspectiva pedagogizante que procura ditar regras de como a própria poesia
deve ser; o poético, então, encontra-se “deslocado e posto em digo até
adquirir a consistência de uma retórica de formas ou de conteúdos” (BOSI,
2000, p. 170).
Apesar de relativizada por Bosi, a experienciação desse tipo de
metalinguagem foi necessária. Se em meio à procura do seu “eu”, a poesia
escorregou ditando regras ou (re) produzindo fórmulas, como ocorreu em certa
medida no Parnasianismo – lembre-se da famosa “Profissão de fé” bilaquiana –
, e, mais recentemente, na vanguarda futurista
6
, é porque ela, poesia, estava
buscando horizontes. E o fato é que foi assim mesmo, empiricamente, que a
poesia conseguiu encontrar um outro caminho de metalinguagem, não mais
ditatorial; porém, libertário.
Essa metalinguagem libertária, abraçada por Bosi, não é uma que dita a
norma, mas aquela que a resiste, através de um discurso de recusa e invenção
pela lucidez (BOSI, 2000). Não mais uma “poética da metalinguagem”, mas
6
Bosi nos lembra do “Manifesto técnico do Futurismo”, escrito por Marinetti em 1912, o qual
propunha “verdadeiras ordens de serviço técnico-gramaticais”: empregar o verbo sempre no
infinitivo, abolir categorias como adjetivos e advérbios, entre outras (BOSI, 2000, p. 172).
20
uma “metalinguagem da poética”. Uma poesia que não quer ditar,
simplesmente porque sabe que não há o que ditar. Uma poesia que olha para o
seu próprio modo de construção como um mistério a ser continuamente
desvendado.
Nessa nova maneira de metalinguagem não se sustentam mais os
lugares altos e secretos da Arcádia e do Parnaso, onde o poeta, o “doador de
sentido” (BOSI, 2000), recebia inspiração para escrever a poesia única e
sacralizada, impassível de ser penetrada pelo leitor. Agora, o poeta é alguém
que escreve da terra, do mundo dos homens. E, mais que isso, é alguém que
compartilha com o leitor a angústia de “precisar conhecer”. O desvendamento
da poesia não é mais uma escolha; é urgente necessidade. Descobrir–lhe os
segredos é desvendar o poeta; é, igualmente, desvendar o homem.
A modernidade nos trouxe esse benefício. Como assinala Walter
Benjamin (1994), ela modificou a maneira de encarar o objeto artístico,
introduzindo na humanidade uma nova consciência de linguagem as massas
modernas teriam a preocupação apaixonante de fazer as coisas ficarem mais
próximas de si (BENJAMIN, 1994, p. 170). O conceito de arte como expressão
perde espaço para o de arte como construção. O público, antes contemplativo,
passa a interferir no objeto na medida em que participa ativamente de seu
desvendamento.
Nessa conjuntura de arte “construída”, e não apenas “expressada”, o
objeto artístico, o poema, antes concebido como objeto sagrado, inviolável,
ditado aos homens por inspiração divina, começa a ter sua aura
7
maculada. É
7
Benjamin define a aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e
temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN,
1994, p. 170).
21
o que Benjamim chama de “retirar o objeto do seu invólucro” (1994, p. 170) e o
que Samira Chalhub (1998) denomina “desvendamento do mistério”:
A metalinguagem, como traço que assinala a modernidade de
um texto, é o desvendamento do mistério, mostrando o
desempenho do emissor na sua luta com o código. O poema
moderno é crítico nessa dimensão dupla da linguagem que
diz que sabe o que diz. Um meta-poema não é aurático, e isso
porque sua feitura está à mostra, dessacralizada e nua
(CHALHUB, 1998, p. 47 – grifo nosso).
A luta do emissor com o código tem sido revelada pelos poetas do nosso
tempo, como é o caso de Ferreira Gullar. As questões metalinguísticas postas
ao longo de sua obra desnudam aos olhos do leitor a luta travada entre poeta e
poesia – batalha que, diga-se de passagem, sempre existiu.
A poesia advém do esforço; o problema é que o poeta, por muito tempo
visto como o semideus inspirado, não podia admitir tal esforço. Agora pode. O
título “doador de sentido” não satisfaz, pois o poeta é agora o “construtor de
sentidos”, um plural que denuncia a abertura de possibilidades. E, mais que
isso, é o “questionador de sentidos”, na medida em que passa a indagar sobre
a própria construção poética.
Moderna, portanto, não é a luta; é o seu desvendamento. Moderna é a
atitude de deixar cair a máscara, a fim de revelar os segredos do reino da
metalinguagem. Por isso, aquela “luta com as palavras”
8
, preconizada por
Drummond no século XX, pleiteava a causa de poetas de todos os tempos. A
“poesia da poesia” é, agora, objeto cognoscível: podemos adentrar.
8
A ideia foi tomada do poema “O lutador”, de Carlos Drummond de Andrade.
22
2. SOBRE A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O ENSINO
Um dos desafios do professor de literatura continua sendo o de estimular
no alunado o gosto pela leitura literária. Não são raros os depoimentos de
professores que afirmam que os alunos não gostam de ler, não suportam aulas
de literatura, não entendem o que lêem
9
, e assim por diante. Em se tratando de
poesia, talvez a tarefa do educador seja ainda mais complicada. Por seu
caráter demasiadamente plurissignificativo, muitas vezes os textos poéticos
são encarados como impenetráveis e incompreensíveis, tanto por professores,
quanto por alunos.
Quando dizemos “leitura”, não estamos pensando apenas em
questionários de interpretação textual, os quais muitas vezes podem ser
respondidos pelo aluno de forma mecânica, sem atentar para beleza de
imagens, ritmo e sem a mínima reflexão sobre o texto. A leitura pode sim
passar por esse estágio, mas este fará sentido se o aluno tiver tido a sua
própria experiência com o poema, se tiver sentido, ele próprio, o “frescor” da
criação poética: “A poesia produz no leitor uma percepção nova sobre
determinada experiência, ou constitui ela própria uma experiência sempre
renovada, como se guardasse sempre o frescor de sua criação” (OSAKABE,
2005, p. 49).
Atentemos de novo para as palavras de Haquira Osakabe: “a poesia
produz no leitor uma percepção nova (...)”. De fato, é para o leitor que o texto
existe; enquanto a obra estiver intocada, permanecerá inerte, infrutífera. O
texto anseia ser lido, interpretado, questionado por quem o lê, e desse modo,
9
Para saber mais sobre os discursos por vezes antagônicos de professor e aluno, ver a
dissertação A literatura na série do Ensino Médio: voz do aluno e do professor, de Euda
Cordeiro de Araújo (2002).
23
faz sentido pensar em trabalho com literatura por meio da consideração do
aluno como leitor literário.
É bem aqui que entra a Estética da Recepção, uma teoria que começou
a tomar forma nos anos 1970, e que tem como fundamento principal a
peculiaridade de voltar-se para o leitor, até então a instância mais esquecida do
tripé “autor-texto-leitor”, ou, nas palavras de Regina Zilberman (1989), “o
‘Terceiro Estado’, seguidamente marginalizado, porém não menos importante,
que é condição da vitalidade da literatura enquanto instituição social”
(ZILBERMAN, 1989, p. 11).
Hans Robert Jauss, principal expoente da Estética da Recepção, define
essa “nova” estética como “uma teoria da história” que procura dar “conta do
processo dinâmico de produção e recepção e da relação dinâmica entre autor,
obra e público, utilizando-se para isso da hermenêutica da pergunta e resposta”
(JAUSS, 1979, p. 48). Nessa definição curta, mas significativa, podemos
mapear os pontos-chave da teoria do alemão, sendo o primeiro deles o fato de
se tratar de uma “teoria da história”.
Quanto a esse aspecto, a ER
10
opera duas coisas: primeiro constata o
atraso ou “fossilização” da história da literatura, visto estar engessada em
padrões ainda herdados do século XIX, seja no idealismo, com a busca da
idéia fundamental que conectaria todos os acontecimentos da história, seja no
positivismo, com a crença na fôrma metodológica das ciências exatas para
explicação dos fenômenos literários (JAUSS, 1994); depois propõe uma
revisão da própria história literária, desta feita a partir da consideração da
relação entre autor, obra e público, com enfoque especial sobre o público: “A
10
Ao longo do texto, utilizaremos a sigla ER para referimo-nos à Estética da Recepção. Em
alguns momentos, usaremos o termo “teoria da recepção” como equivalente.
24
obra literária e a obra de arte, em geral se impõe e sobrevive por meio
de um público. A história literária é menos a história da obra do que a de seus
sucessivos leitores” (JOUVE, 2002, p. 14).
O enfoque sobre o leitor é, então, o diferencial dessa teoria, pois como
ensina Karlheinz Stierle (1979), o significado de uma obra não está apenas na
sua análise isolada, como se ele fora um sistema autosuficiente, nem tão
somente na sua relação com a realidade, naquilo que se pode ver do real na
ficção, ou vice-versa, nem unicamente na reconstrução da intenção de seu
autor (JAUSS, 1979), mas também, e bem especialmente, na “análise do
processo de recepção, em que a obra se expõe, por assim dizer, na
multiplicidade de seus aspectos” (STIERLE, 1979, p. 134).
E aqui caminhamos para um outro ponto significativo da definição de
Jauss, que estamos mapeando aqui: o aspecto dinâmico “do processo de
produção e recepção”. Realmente a Estética da Recepção se interessa em
perscrutar mais a fundo o lugar de intersecção entre autor, texto e leitor a
leitura mas isso acontece porque cada uma dessas três instâncias possui
uma dimensão singular e ativa, que as torna indispensáveis à concretização de
sentidos.
Dois modos de relacionamento entre texto e leitor são então concebidos:
a recepção, uma dimensão condicionada pelo próprio leitor, ao contribuir “com
suas vivências pessoais e códigos coletivos para dar vida à obra e dialogar
com ela” (ZILBERMAN, 1989, p. 65), e o efeito, uma dimensão condicionada
pelo texto / pelo autor, que constrói uma espécie de orientação ao seu leitor
“substantivo”, isto é, seja ele quem for. A concretização de sentido depende da
articulação, ou “fusão de horizontes” para usar o termo da ER, entre o efeito e
25
a recepção. A tarefa da hermenêutica literária é, portanto, diferenciar
metodicamente esses dois modos de relacionamento, ou seja:
de um lado aclarar o processo atual em que se concretizam o
efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de
outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é
sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de
tempos diversos. A aplicação, portanto, deve ter por finalidade
comparar o efeito atual de uma obra de arte com o
desenvolvimento histórico de sua experiência e formar o juízo
estético, com base nas duas instâncias de efeito e recepção
(JAUSS, 1979, p. 46).
No que concerne à dimensão ativa da obra literária, é preciso esclarecer
que a orientação ao leitor não é uma camisa-de-força que obriga todos a lerem
da mesma maneira, mas apenas a imposição de coordenadas ou “deveres
filológicos” termo de Umberto Eco para que sejam evitadas as
“decodificações absurdas” (JOUVE, 2002, p. 26). Trata-se de uma relação
pactual: o leitor submete-se às convenções da obra, enquanto esta se
subordina à criatividade do leitor. Nem sempre, porém, os limites serão
respeitados.
Jouve (2002) lembra que casos em que as próprias coordenadas
deixadas pelo autor criam um lugar de liberdade para o público, ao deixar
espaços de indeterminação propositais, que ativam a criatividade do leitor na
construção da interpretação. Surgem, assim, as novas possibilidades de leitura,
ou, pelo menos, elementos inovadores que enriquecerão uma dada leitura.
Esse importante conceito de “vazio” ou de “negação”, de Wolfgang Iser
11
,
permite constatar que por mais que a obra direcione a leitura, ela sempre
11
Embora advindos da Escola de Constância” a primeira grande tentativa de renovação de
estudos de textos a partir da leitura Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser tomaram rumos
teóricos diferentes: de uma certa maneira, o primeiro encabeça a “Estética da Recepção”, e o
segundo, a “Teoria do Leitor Implícito” (JOUVE, 2002, p. 14). Nesse trabalho enfatizamos a ER.
26
precisará do leitor para concretizá-la. Em outras palavras, o viés direcionador
da obra esbarra na autonomia e especificidade do leitor, pois cada um traz
consigo sua experiência, cultura, valores, elementos que, em conjunto,
possibilitam a cada indivíduo ler o texto de um modo singular.
Isso explica, pelo menos em parte, por que leitores de uma dada época
podem ler a mesma obra de modos tão diversos, ou por qual motivo leitores tão
distantes no tempo e no espaço podem fazer leituras até certo ponto
aproximadas de um mesmo objeto artístico. O conceito de “horizonte de
expectativa social”
12
, de Jauss, ajudará a compreender tal fenômeno. Trata-se
de um sistema de referências ou um esquema mental que um indivíduo
hipotético pode trazer a qualquer texto (ZILBERMAN, 1989) e que influencia
decididamente na maneira como a obra será recepcionada. A ER almeja
reconstruir esse horizonte do leitor, ainda mais em se tratando do primeiro
público a que a obra se destina, pois aí se encontrará um critério de aferição do
caráter artístico do próprio texto:
A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico
de sua aparição, atende, supera, decepciona ou contraria as
expectativas de seu público inicial oferece-nos claramente um
critério para a determinação de seu valor estético. A distância
entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido
da experiência estética anterior e a mudança de horizonte
exigida pela acolhida à nova obra determina, do ponto de vista
da estética da recepção, o caráter artístico de uma obra
literária (JAUSS, 1994, p. 29).
É assim que Jauss distingue a “arte genuína” da “arte culinária”, sendo
esta aquela que não proporciona nenhuma mudança ou ampliação do
horizonte do leitor, porque se encontra no campo do conhecido, do
12
Assinalamos “horizonte de expectativa social” porque Jauss (1979, p. 50) percebe também
um outro horizonte, interno ao texto e derivável dele mesmo. Esse está dentro da dimensão do
efeito; aquele, ligado à dimensão da recepção.
27
esperado, do que satisfaz as expectativas do gosto dominante. Por sua
previsibilidade, ou seja, por não se achar nela “uma tensão mais ou menos
aberta entre questão e respostas, problema e solução(ZILBERMAN, 1989, p.
75), esse tipo de arte não é capaz de sobreviver ao tempo, nem tampouco
conseguirá se tornar história literária a condição sine qua non para isso seria
haver um público contínuo para agir sobre a obra, mas ninguém procura
responder ao que já está respondido.
Daí constatamos a postura reconhecidamente iluminista de Jauss, ao
assinalar que “a função social da arte advém da possibilidade de influenciar o
destinatário” (ZILBERMAN, 1989, p. 50). Ao estabelecer comunicação com o
leitor, a obra “transfere-lhe” normas que são padrões de atuação; tais normas
podem apenas reproduzir os padrões vigentes e estarão no campo da arte
culinária ou então criar novos padrões e assim chegarão ao terreno da arte
genuína – cujo efeito básico é o estranhamento
13
do leitor. (ZILBERMAN, 1989,
p. 51). Para a teoria da recepção, o caráter emancipatório da arte reside
apenas nessa última alternativa.
Chegamos, agora, ao último ponto essencial da definição de Jauss,
fechando o mapeamento que ora fazemos aqui. Para isso, traremos a
conceituação novamente: a Estética da Recepção é “uma teoria da história”
que procura dar “conta do processo dinâmico de produção e recepção e da
relação dinâmica entre autor, obra e público, utilizando-se para isso da
hermenêutica da pergunta e resposta (JAUSS, 1979, p. 48 grifo nosso).
13
A noção de estranhamento advém especialmente dos estudos do Formalismo Russo: “um
bom produto artístico mobiliza vários artifícios, visando motivar um choque no destinatário:
somente quando se dá de modo tenso a relação entre o sujeito da percepção e o objeto
estético, este pode ser considerado de valor” (ZILBERMAN, 1989, p. 19).
28
Como se vê, trata-se agora de examinar um pouco o método utilizado pela
teoria da recepção para dar conta de seu objetivo.
E é a Georg Gadamer, ex-professor de Jauss, que a estética alemã deve
a premissa basilar de sua metodologia: “só se pode entender um texto quando
se compreendeu a pergunta para a qual ele constitui uma resposta” (JAUSS,
1994, p. 37). Esse entendimento é importante porque rompe com a percepção
comum de que a interpretação de um texto reside na possibilidade de
responder às suas perguntas, quando o objeto artístico é a resposta que o
leitor tem diante de seus olhos. Que função restará, portanto, ao leitor? Para
Terry Eagleton (2001), pelo menos duas ações precisam ser realizadas a de
indagação incessante à obra e a de investigação da pergunta-chave a que a
obra responde:
(...) aquilo que a obra nos “diz” dependerá, por sua vez, do tipo
de perguntas que somos capazes de lhe fazer, dependerá de
nosso ponto de vista na história. Dependerá também de nossa
capacidade de reconstituir a “pergunta” para a qual a obra é
uma “resposta”, pois a obra é também um diálogo com a sua
própria história (EAGLETON, 2001, p. 98).
Veja-se, então, que é no leitor que reside a possibilidade de ampliação
da leitura; o raciocínio é simples: terá as melhores respostas aquele que
conseguir fazer, à obra, as mais certeiras perguntas. Essas contribuições da
Estética da Recepção nos permitem enxergar que as mudanças pretendidas no
trabalho com o texto literário, e afunilando o objeto de estudo, com o texto
poético, passam necessariamente pela consideração do leitor como figura ativa
a quem o poema, em primeira e última instância, se dirige.
Documentos oficiais como as “Orientações Curriculares para o Ensino
Médio” absorveram essa idéia, e afirmam que o erro na formação escolar dos
29
leitores de poesia está em não se permitir que o leitor seja um co-autor no
desvendamento dos sentidos do texto, co-autoria que se configura como chave
para se chegar a uma experiência poética de leitura produtiva (2004, p. 74
grifo nosso). Como se viu, a atividade do leitor perante o texto o é uma
opção, mas uma exigência que o próprio texto, como “formação porosa”,
carrega em si (ZILBERMAN, 1989).
E para os temerosos que supõem que o professor está anulado nesse
processo, entenda-se que é ele o sujeito da consideração do leitor, ou, em
outras palavras, aquele que tem nas mãos o privilégio de dar “voz e vez a seus
alunos” (NEVES e MEDEIROS, 2006). É dele o papel de perguntar ao aluno-
leitor, estimulando-o também a fazer suas próprias indagações ao texto.
Infelizmente, a tarefa que deveria ser simples, e mais ainda, que deveria
ser o fundamento de toda e qualquer aula de literatura, torna-se difícil para nós,
acostumados a dar sempre a primeira, a segunda, a terceira, a última palavra:
Nosso papel é muito simples e, ao mesmo tempo, porque
estamos professoralmente viciados, bem difícil. Requer algo
bastante sutil: uma presença meio ausente, e, no entanto,
atuante; um apagar se da figura do mestre que, muito embora,
conduz o jogo; condução do jogo que se deixa conduzir
(LEITE, 1983, p. 113).
Note-se que Lígia Chiappini Leite assinala o professor como o mediador
do jogo, e não como o juiz dele. Assumir esse papel é permitir que a sala de
aula se torne um espaço privilegiado de discussão e debate, onde todos podem
falar, discordar, opinar, questionar, enfim, ser protagonistas de sua própria
história literária. Trata-se da vivência diária de uma “pedagogia da autoria”, que
tem professores e alunos como autores de mesmo patamar e importância
(NEVES e MEDEIROS, 2006).
30
Para o educador, isso implica uma postura crítica e humilde ao mesmo
tempo: criticidade para não aceitar qualquer leitura trazida pelo aluno, pelo livro
didático, pelos próprios críticos, observando sempre se tal leitura está
autorizada pelo texto literário; humildade em reconhecer que a sua leitura não é
a única, e que certamente será enriquecida pelo modo de ver do outro
(PINHEIRO, 2006, p. 118).
Assumir essa segunda postura parece ser o maior desafio do professor
de nosso tempo a ação de “criticar” não parece distante da maioria das salas
de aula mas a tarefa se torna mais fácil quando se entende que, por ser
múltiplo em si, o texto literário poderá gerar leituras e recepções que
também o são.
Ora, se tomarmos apenas uma possibilidade de leitura, em um universo
de tantas outras, ali constataremos uma atividade rica e multifacetada, que
se constrói com idas e vindas, com expectativas concretizadas e frustradas,
com a desconfiança até mesmo diante das coordenadas do autor, pois o texto
é uma voz perpassada por muitas outras vozes. É o que se depreende do
conceito fundamental de “polifonia”, de Mikhael Bakhtin, referido em trecho das
“Orientações Curriculares para o Ensino Médio”:
Embora não tenha explicitamente tratado da recepção ou dos
efeitos da obra de arte sobre o leitor, Bakhtin, ao desenvolver o
conceito de ‘polifonia’, chamando a atenção para a dimensão
dialógica do texto, apontou para sua pluralidade discursiva, que
ultrapassa os limites da estrutura interna da obra, estendendo-
se à leitura. A palavra plural, disseminadora de sentidos, requer
uma leitura também ela múltipla, não mais regulada pela busca
do significado único ou pela verdade interpretativa, mas atenta
às relações e às diferentes vozes que se cruzam nos textos
literários (BRASIL, 2004, p. 66).
31
Essa polifonia que perpassa o texto, a leitura, a recepção, exige do
professor uma prática pedagógica atenta, polifônica também, e, sobretudo
aberta, para entender que o aluno não terá necessariamente a sua leitura; que
a leitura do aluno pode enriquecer o seu próprio modo de ler, chamando a
atenção para aspectos despercebidos, ou até impensados; que os alunos não
lêem da mesma maneira, nem mesmo quando se considera o universo da
mesma sala de aula; que o alvo o é fazer o aluno ler da maneira x, mas
simplesmente ajudá-lo a chegar à sua própria leitura.
A literatura manifesta sua função social, da qual se fala tanto, quando
o leitor, e devemos pensar tanto no aluno-leitor quanto no professor-leitor,
assume sua condição ativa, tocando a obra e deixando-se ser tocado por ela.
“O leitor que, num primeiro tempo, deixa a realidade para o universo fictício,
num segundo tempo volta ao real, nutrido da ficção” (JOUVE, 2002, p. 109).
Não nos enganemos: essa troca entre universo real e fictício é um dos
caminhos para ver sentido em nossas aulas de literatura. Na prática, isso
significa que o texto, o conto, o poema, tem que se tornar experiência singular
para cada leitor, história particular que, por isso mesmo, influencia na história
geral da literatura. É o que se depreende das palavras de Hans Robert Jauss,
com as quais (quase) finalizamos este tópico:
A tarefa da história da literatura somente se cumpre quando a
produção literária é não apenas apresentada sincrônica e
diacronicamente na sucessão de seus sistemas, mas vista
também como história particular, em sua relação própria com a
história geral (...). A função social somente se manifesta na
plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária
do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática,
pré-formando seu entendimento do mundo e, assim,
retroagindo sobre seu comportamento social (JAUSS, 1994, p.
50).
32
No anseio de que essas reflexões caminhem do patamar da teoria para
a prática, primeiro na nossa, concluímos este tópico com um esclarecimento.
Vale lembrar que aqui não tocamos em todos os pontos da teoria da recepção,
nem mesmo na questão da pesquisa histórica, de que tanto fala Jauss.
Tomamos dele apenas algumas categorias, precisamente aquelas que ajudam
a construir a desejada ponte entre teoria e ensino de literatura: a valorização do
leitor não o histórico, mas o real, o nosso aluno como chave para dar
sentido às aulas de literatura; o horizonte de expectativa do leitor e sua
possibilidade de mudança/ampliação; o efeito, dimensão ativa da própria obra
que deve ser considerada na concretização da leitura; e, finalmente, o diálogo
de perguntas e respostas entre obra e leitor, o caminho necessário para que se
passe da especulação à interpretação da obra.
33
CAPÍTULO II
RELATO DE EXPERIÊNCIA
PARTE I
CONHECENDO OS COLABORADORES:
A ESCOLA, A PROFESSORA, OS ALUNOS LEITORES
1. SOZINHA, COM MEUS BOTÕES
Antes de começarmos a relatar o experimento propriamente dito, temos
que nos remeter a todo um percurso anterior, a preparação até que chegassem
os dias de ministração das aulas. O que tínhamos em mente para esse
experimento? Queríamos experienciar com leitores jovens os poemas
metalinguísticos de Ferreira Gullar, os quais tantas vezes haviam sido
vivenciados por nós em leituras solitárias. Em termos mais acadêmicos,
queríamos testar a recepção de leitores jovens a metapoemas do autor
maranhense.
Para isso, teríamos a opção de trabalhar com ensino fundamental ou
com o ensino médio, mas, pelo fato de a metalinguagem por vezes aparecer
atrelada a um viés filosófico, entendemos que seria melhor procurar um público
mais maduro – embora essa maturidade nem sempre se concretize – ou seja, o
leitor jovem, em vez do leitor adolescente.
Mas, dentro do ensino médio, com que ano trabalhar? Duas razões
principais nos levaram ao primeiro ano: nessa faixa escolar, essa é a série que
34
ainda oferece alguma flexibilidade em relação aos conteúdos dos concursos
vestibulares. A cobrança, é verdade, se inicia ali, mas aumenta
gradativamente, chegando ao ápice no terceiro ano do ensino médio.
O outro motivo é ainda mais justo: se quisermos intervir na maneira do
nosso aluno enxergar o texto literário, o ideal é que tenhamos mais tempo para
isso. Não esqueçamos que, para muitos estudantes, os anos de ensino médio
serão a última oportunidade de contato com o texto literário. Se pelo menos
esses três anos finais trouxerem experiências de leituras literárias
significativas, teremos mais chance de levar o aluno ao gosto, e o ao
desgosto literário, como comumente tem acontecido.
Definida a série, o passo seguinte era pensar em que escola trabalhar.
Como dissemos, um dos intuitos de nossa pesquisa era testar um tipo de
metodologia diferente da usual, que tomasse a instância mais esquecida do
tripé “autor-texto-leitor” (ZILBERMAN, 1989), considerando o aluno como leitor
literário a quem o texto, em primeira e última instância, se dirige. Como a nossa
intenção era contribuir d’alguma forma para a melhoria do ensino gratuito,
optamos por fazer o experimento em escola pública.
Como não estávamos atuando em sala de aula, precisávamos de um
espaço cedido por um outro professor para realizar o experimento. O nosso
desejo era fazer um experimento de colaboração, por isso optamos por
trabalhar com alguém conhecido.
Logicamente que essa posição era até certo ponto cômoda para nós. O
desafio, porém, continuava sendo grande: iríamos a uma escola totalmente
nova, com alunos com os quais nunca tínhamos tido contato, testar pela
primeira vez uma metodologia de trabalho com poemas metalinguísticos que,
35
até então, eram para nós reflexão introspectiva. Portanto, independentemente
da facilidade de trabalhar com um professor conhecido, o passar da pesquisa
solitária para a pesquisa solidária era, ao mesmo tempo em que o nosso
desafio, a provocação que nos movia.
2. NA COMPANHIA DA PROFESSORA COLABORADORA
O primeiro contato que tivemos com a professora efetiva foi no dia
12/03/09, ao telefone. Sondamos, então, se seria possível fazer um
experimento com a poesia metalinguística na turma do primeiro ano do ensino
médio em que ela ensinava, ao que a professora se mostrou bastante
receptiva.
Chamou-nos a atenção a maneira calorosa como fomos recebidos
naquela conversa, e o modo instigante como a educadora se referia aos alunos
e ao trabalho desenvolvido com eles. Ao que nos parecia, a sua principal
preocupação era fazer a escola ser útil para os estudantes, ou seja, criar a
necessária ponte entre a sala de aula e a vida. Desde esse dia, ficamos mais
motivados para o experimento, pois tudo indicava que teríamos uma parceira
ao nosso lado. Ainda ao telefone, marcamos de nos encontrar no dia seguinte,
na UFCG.
Ao todo tivemos sete encontros presenciais com a professora, os quais
duraram cerca de duas horas, cada um foram nos dias 13/03/09, 20/03/09,
27/03/09, 03/04/09, 10/04/09, 17/04/09 e 24/04/09. A maior parte deles
aconteceu antes do experimento iniciar, pois o nosso objetivo principal era
conhecer o perfil da escola e, especialmente, da turma: sondar, por exemplo, a
relação dos alunos com a literatura e, de modo mais específico, com a poesia;
36
conhecer os materiais didáticos utilizados (se trabalhavam com livro didático ou
não); receber algumas dicas da professora para o trabalho com os alunos; e, é
claro, acertar os detalhes para a execução do experimento.
Desde o início, a nossa intenção era não fazer nada precipitado, por isso
procurávamos aproveitar ao máximo os momentos na companhia da
professora para delinear o planejamento do nosso trabalho. Mas antes de
relatarmos os frutos desses encontros, falemos um pouco do perfil da nossa
colaboradora.
2.1. Quem era essa professora?
Era uma jovem que havia concluído os estudos de graduação em 2005,
e os de mestrado em 2008, ambos pela Universidade Federal de Campina
Grande e encaminhados pelo viés da Linguística. Em termos de experiências
de ensino, a professora havia lecionado pouco tempo em uma escola particular
de Campina Grande uma experiência rápida, mas frustrante, da qual ela não
gostava muito de falar. Além disso, ministrara aulas em escola pública do
interior da Paraíba, trabalho do qual lembrava com satisfação.
Desde fevereiro de 2009, ou seja, há pouco tempo, estava lecionando na
escola pública em que o experimento foi realizado – ali ingressara por concurso
público. Ao mesmo tempo, exercia a função de professora substituta na UFCG,
ministrando a disciplina “Português Básico”.
Apesar da pouca idade e experiência, a professora mostrava maturidade
na realização de sua atividade: no ensino dio, por exemplo, seu foco não
era exatamente o vestibular até porque, infelizmente, poucos alunos
pareciam se imaginar ingressando no ensino superior mas o fato de
37
aprenderem para a vida, de sentirem-se capazes de relacionar os saberes com
a sua própria história.
Embora sua familiaridade com a literatura não fosse tanta, as aulas
dessa disciplina, que ela preferia chamar de “Leitura e interpretação”, eram
ministradas na busca de transformar os alunos em leitores literários, em
sujeitos que manifestassem sua voz ao mundo, que usassem a língua materna
em seu próprio favor. Ao que nos parecia, a colaboradora estava conseguindo
assumir a postura equilibrada de que nos fala Leite (1983, p. 113), “meio
ausente, e, no entanto, atuante”, deixando o aluno desempenhar o papel ativo
que lhe cabe, mas sem permitir o apagamento da figura do mestre.
2.2. A descoberta dos encontros
As conversas com a professora colaboradora foram bastante produtivas,
e nos fizeram descobrir elementos fundamentais para o traçar do experimento.
Descobrimos:
que a turma era formada por 31 alunos, com faixa etária média de 16
anos;
que o ensino médio da escola havia começado no ano de 2009, e, de
certa forma, ainda estava em fase de adaptação, experimentação;
que a grande maioria do alunado tinha feito o Ensino Fundamental II
na mesma escola;
que havia uma pequena biblioteca na escola, não utilizada pela
professora nem pelos demais professores da turma;
– que os alunos do ensino médio não possuíam livro didático (isso
existia apenas no ensino fundamental), e que assim, cabia aos professores
38
elaborar e levar materiais para as aulas. É claro que esse fato poderia ser
bastante positivo por um lado, especialmente pela liberdade didático-
metodológica conferida ao professor, mas por outro, nem sempre haveria
meios de arcar com as despesas de xerox para as turmas, que a escola não
imprimia os materiais elaborados pelos professores, exceto as provas.
Daí decorria um outro dado significativo para nós: as aulas de “Leitura e
interpretação” da turma eram quase sempre desenvolvidas por meio da leitura
oral de textos. A professora falou-nos, então, da necessidade de criar um clima
de expectativa nos alunos, para que desejassem ouvir os textos que seriam
trabalhados. Tomamos essa informação como uma sugestão metodológica
para o experimento que desenvolveríamos; ao mesmo tempo, porém,
entendíamos ser ínfimo o contato dos alunos com o texto literário escrito, o que
poderia criar certa resistência inicial;
que desde o início do ano aaquele momento, o contato literário dos
alunos havia se restringido basicamente ao gênero “conto”, o que é de se
compreender, pois tinham ocorrido apenas dois meses de aulas. Os contos
trabalhados até ali eram as narrativas “Piabinha”, de Luiz Vilela e “Um
apólogo”, de Machado de Assis, as duas pelo viés da leitura oral, sem texto
escrito.
Segundo a professora, a estratégia de leitura oral vinha funcionando
(quando quer, o professor é capaz de contornar muitas das situações
adversas) tanto que, ao ler o conto “Piabinha” para a turma, alguns alunos
guardaram detalhes da história, chegando a reproduzir trechos tal qual
estavam no conto. Isso seria fácil se estivessem com o texto escrito em mãos,
mas em se tratando unicamente de escuta, essa informação era intrigante. Isso
39
nos leva a refletir que não devemos duvidar da capacidade de nossos alunos
leitores, e muito menos, do valor que a literatura pode ter para eles;
que o conceito de metalinguagem não era totalmente estranho aos
alunos, pois em 2009 a professora havia solicitado uma atividade de
pesquisa sobre as funções da linguagem
14
: a turma fora dividida em grupos, e
cada um deles ficara responsável por uma das funções (poética, emotiva,
metalinguística, fática, referencial, conativa). Além de pesquisar sobre o
assunto, os alunos teriam o desafio de observar, no dia a dia deles, onde as
funções se encontravam. A idéia era fazê-los transcender os limites da escola,
para que relacionassem o conhecimento da sala de aula com as suas próprias
vidas. Como entre essas funções estava a metalinguística, criamos a
expectativa de que, em algum momento de nosso experimento, os alunos
trariam esse conhecimento à tona. Em momento oportuno, saberemos se isso
aconteceu.
É importante ressaltar que essa atividade de pesquisa o foi um plano
ou uma solicitação nossa, até porque foi realizada antes mesmo de termos o
primeiro contato com a professora efetiva, ao telefone. Tratou-se apenas de
uma coincidência, mas que abriu novas possibilidades para o experimento;
que além do trabalho com o gênero “conto”, concluído, a professora
estava iniciando um trabalho de leitura e interpretação com músicas de Renato
Russo e Lulu Santos. O procedimento metodológico era o seguinte: as letras
eram entregues por escrito aos alunos (essas sim), que, junto com a
professora, liam e debatiam as sicas. Depois, então, escutava-se o áudio
das canções. De certo modo, esse era o primeiro contato que a turma do
14
A teorização sobre as funções da linguagem é de Roman Jakobson. Pode-se ler a respeito
em Linguística e comunicação (1971), livro do autor.
40
primeiro ano estabelecia com a poesia no ano de 2009, uma atividade que
deveria funcionar como uma espécie de alicerce para o que seria feito no
experimento dali a alguns dias.
Além dessas informações significativas acerca da turma do primeiro ano,
nos encontros presenciais com a professora recebemos várias sugestões de
trabalho, algumas das quais acatamos. Uma delas foi a idéia de iniciarmos o
experimento com poemas de temática amorosa, ou seja, começar com algo
conhecido, que estava dentro do horizonte de expectativa do alunado, e depois
ampliar esse horizonte, levando o tema da metalinguagem.
Lembremos que, para Jauss (1994, p. 29), o caráter artístico de uma
obra é determinado justamente pela distância entre o “já conhecido da
experiência estética anterior e a mudança de horizonte exigida pela acolhida à
nova obra”. Era principalmente fundamentados nesse conceito que julgávamos
pertinente começar o trabalho com poemas de amor.
Juntamente com a professora, íamos tendo cada vez mais claro que o
alvo inicial do experimento era fazer com que o contato da turma com o poema
fosse algo prazeroso, uma semente em potencial para desenvolver nos alunos
o gosto pela poesia. Para isso, a temática do amor era, a nosso ver, um “prato
cheio”. No relato das aulas propriamente ditas, detalharemos melhor essa
questão.
3. OBSERVAÇÃO SILENCIOSA DAS AULAS
Nos encontros com a professora efetiva, pedimos a permissão para
observar algumas aulas dela, pois assim, além de estreitarmos os laços com a
turma, poderíamos conhecer mais de perto o trabalho desenvolvido. Esse
41
também era um modo de tentar estabelecer uma ponte entre os “conteúdos”
que os alunos tinham visto, e o que veriam no experimento. Ao todo foram
nove horas de observação de aulas, a saber: duas horas em 31/03/09, duas
horas em 01/04/09, duas horas em 07/04/09, duas horas em 15/04/09 e 1 hora
em 22/04/09.
Uma semana antes que iniciássemos a observação, a professora avisou
aos alunos que iriam receber a visita de uma professora pesquisadora da
UFCG, a qual, no momento oportuno, iria desenvolver um trabalho com a
poesia naquela turma.
Nessa etapa da pesquisa trabalhamos apenas com o diário reflexivo. Ali
fizemos muitas anotações, colocando as impressões que nos vinham ao
pensamento. É desse oportuno instrumento de coleta que fazemos agora uma
análise da observação das aulas.
3.1. Analisando a observação
No primeiro dia em que chegamos à escola, estávamos com aquela
expectativa digna de qualquer estréia: fomos bem recebidos pelo corpo de
professores e pelos funcionários; os alunos da turma do primeiro ano, porém,
olhávamos com um misto de curiosidade e temor, sem saber ao certo o que
estava por vir.
Foi um momento difícil no início: estávamos em um ambiente estranho,
sendo, também, estranhos para os alunos. Como já foi dito, a professora
apresentou-nos à turma definindo-nos como uma professora pesquisadora da
UFCG que iria passar uns dias observando as aulas, e depois, ministrando
aulas para eles. Demos uma palavra rápida com os alunos, deixando claro que
42
estávamos ali para aprender também, e que tínhamos certeza de que a
experiência com poemas seria significativa para todos.
Embora percebêssemos o receio (normal) da turma, tínhamos bem
definido que não estávamos ali para medir/julgar o trabalho de ninguém, nem
da professora, nem dos alunos. Pelo contrário, aquele momento era
imprescindível para que fôssemos nos aproximando deles, criando caminhos
para a realização do experimento. Quanto à professora, ela se mostrou aberta
à observação das aulas, sem fazer quaisquer objeções.
As aulas que observamos eram referentes à disciplina “Leitura e
interpretação”, nome com o qual a professora designava as aulas de literatura.
Infelizmente, boa parte desses momentos acabou se transformando em aulas
de produção textual, pois a professora recebeu da diretoria a determinação de
que os alunos teriam de escrever um texto, no gênero “carta pessoal”, para
participar de um concurso dos Correios
15
.
Não detalharemos aqui as aulas porque fogem ao objetivo desta
pesquisa. Diremos, porém, que foram momentos bastante produtivos (afora o
fato de que as aulas de literatura foram prejudicadas), que se deveram
principalmente ao fato da professora ter uma “bagagem teórico-prática
consistente acerca do trabalho com produção textual. Deixando de lado o
aspecto conteudístico do período de observação, muitos dados importantes
foram colhidos. Eis alguns:
dentro da sala de aula, a maior parte da turma se mostrava atenta e
submissa à autoridade da professora; fora desse ambiente, porém, havia muito
15
A participação em tal concurso era obrigatória, e a proposta era a seguinte: “Escreva uma
carta a alguém para explicar-lhe como condições de trabalho decentes podem levar a uma vida
melhor”.
43
barulho, pois não raro as turmas vizinhas estavam sem professor
16
e ficavam
conversando nos corredores; isso desviava um pouco a atenção da turma;
a professora mostrava-se preparada para as aulas, ou seja, era nítido
que planejava bem cada encontro. Além disso, procurava ouvir seus alunos,
respeitando suas opiniões e colocações, e, mais do que isso, construindo a
aula a partir da “voz” deles;
as pessoas que participavam oralmente das aulas eram quase sempre
as mesmas, cerca de quatro alunos; os demais também participavam, mas de
outras maneiras: alguns faziam comentários apenas entre os colegas, e outros
preferiam estar calados, o que também não deixava de ser uma forma de
expressão, pois o silêncio pode significar muita coisa;
quando tinham que realizar alguma atividade escrita, como foi o caso
da produção textual, mostravam-se bem resistentes, e pareciam “perdidos”,
mesmo quando a professora havia explicado o que tinham que fazer; no oral,
porém, pareciam estar mais à vontade, e mais atentos à aula;
estando sentados entre os alunos, tivemos a oportunidade de
testemunhar situações que passariam despercebidas se estivéssemos na
condição de professor ministrante. Por exemplo: no dia de escrever a produção
textual (carta), depois da explicação da professora sobre o que teriam que
fazer, uma aluna que ficava o tempo todo calada, aparentemente atenta,
perguntou à outra: “Que é isso, hein? É pra fazer o quê?” A outra aluna, bem
conversadeira e aparentemente dispersa nas aulas, deu a explicação
adequada do que deveria ser feito.
16
Um dos problemas dessa escola, especialmente no ensino médio, era a falta de professor,
talvez porque ainda estivesse havendo uma estruturação do ensino nessa faixa escolar. O
número de professores pro tempore era grande, mas, com problemas de atrasos de salário,
muitos não aguentavam e abandonavam o trabalho.
44
Esse tipo de situação nos confirma a necessidade de sermos
educadores sensíveis à nossa sala de aula, que não vêem apenas o que está
posto diante dos olhos, mas o que está por detrás do aparente. Alunos calados
não são, necessariamente, alunos atentos; alunos conversadores não são,
necessariamente, alunos descompromissados;
a escola tinha uma boa estrutura física: as salas eram limpas,
ventiladas e espaçosas;
a turma do primeiro ano possuía um público feminino um pouco maior:
eram 17 meninas e 14 meninos;
os alunos iam se mostrando mais à vontade conosco com o passar
dos dias de observação. No terceiro dia, houve uma aluna que nos cedeu o
próprio assento. Outro incentivo para nós era o sorriso de alguns alunos, que
nos dizia, sem palavra alguma, que éramos bem-vindos naquele lugar. Após
uma semana de observação, a professora efetiva nos confidenciou que os
alunos começavam a perguntar por s, ou seja, a sentir a nossa falta. Essa
informação nos motivou, pois nunca imaginávamos que, calados, apenas
ouvindo e acompanhando as aulas, pudéssemos fazer alguma diferença no
meio deles; como os próprios alunos, nós também estávamos aprendendo e
descobrindo.
E no dia 22/04/09, depois de nove horas de silêncio naquela sala de
aula, chegou a hora de falar. Era o momento de aplicar o questionário, do qual
falaremos adiante.
45
4. QUEBRANDO O SILÊNCIO
Essa aula inicial, em que deixamos de lado a condição de observadora
para assumir a de professora foi um romper para nós; era difícil falar depois de
tanto tempo calados, ainda mais porque estaríamos em um espaço que, de
fato, não era o nosso. Por mais que a professora efetiva tivesse uma forma de
trabalho parecida conosco em alguns pontos, os alunos teriam que aceitar uma
nova dinâmica nas aulas de “Leitura e interpretação”.
Optamos, então, pelo caminho da sinceridade: dissemos que depois de
inúmeras aulas observando a turma os alunos praticamente haviam nos
ouvido no primeiro dia de observação de aulas, quando a professora efetiva
nos apresentara – agora chegara a hora de falar. Expusemos também o quanto
tinham sido importantes aqueles momentos de silêncio, e como tínhamos
crescido e aprendido a conhecer cada um deles.
Os alunos nos olhavam meio desconfiados, até que veio a parte mais
surpreendente da aula, quando afirmamos saber o nome de muitos deles
tínhamos decorado o nome de cerca de 10 alunos. Como duvidassem de nós,
começamos a chamá-los pelo nome, apontando para cada um, a fim de
saberem que realmente os conhecíamos.
A turma ficou atônita, pois nunca imaginou que pudéssemos ter prestado
tanta atenção neles; não faziam idéia de que, todos aqueles dias, estávamos
ali procurando “lê-los”, para que pudéssemos realizar um experimento
prazeroso para todos nós. Sentimos que essa atitude de aproximação,
mostrando à turma o seu valor, foi fundamental e contribuiu para que os alunos
se “abrissem” para nós.
46
Percebemos, também, o quanto a experiência de observação das aulas
foi importante, e, mais que isso, necessária, embora às vezes fosse também
difícil, pois aquela posição nos fazia sentir como espiões, como estranhos no
meio dos alunos. Deste ponto em que estamos, é nítido que precisávamos
estar ali, observando-os, nos “misturando” a eles, e aprendendo com eles.
Depois dessa conversa de rompimento, avisamos que a turma
responderia um questionário escrito (ver anexo 1), o qual tinha sido elaborado
com o intuito de conhecermos mais o perfil da turma do primeiro ano, o que nos
ajudaria no planejamento das aulas. As perguntas giravam em torno dos gostos
dos alunos em relação à leitura, programas de televisão, internet, bem como
sondavam acerca da relação da turma com a poesia, e com as aulas de
literatura em geral.
4.1. O questionário – rica fonte de conhecimento da turma
Após entregarmos a folha do questionário, fizemos uma leitura oral
explicando cada tópico à turma. Ressaltamos a importância da sinceridade dos
alunos nas respostas, porque queríamos percebê-los como eram, inclusive
dizendo se não tinham costume de ler, se não gostavam de poesia ou de
literatura, ou qualquer coisa desse tipo. Alguns poucos se mostraram avessos
ao início, como se responder àquelas perguntas não fizesse sentido algum; a
maioria, porém, se mostrou receptiva.
Procuramos fazer do questionário um momento descontraído para a
turma, frisando que ninguém estava obrigado a responder, como estava
evidente na introdução, mas deixando claro que as colocações deles seriam
significativas para o trabalho que desenvolveríamos ali. Dos 32 alunos
47
presentes, que receberam o questionário, 31 o preencheram (ver anexo 2), ou
seja, apenas 1 aluno assinou o nome e não respondeu nenhuma pergunta.
Quanto ao tempo utilizado nas respostas, apesar da turma ter tido cerca
de 30 minutos para responder a folha, a maior parte o fez em quinze minutos, e
alguns poucos, em cinco minutos somente um aluno ultrapassou o tempo
disponível, de modo que ficamos aguardando a sua finalização mesmo depois
da aula.
O pouquíssimo tempo utilizado pela turma do primeiro ano na feitura do
questionário, principalmente em se considerando que muitas perguntas exigiam
um exercício de rememoração, leva-nos a indagar se os alunos leitores
estariam apenas sem vontade de escrever, ou se suas experiências de leitura
eram tão incipientes a ponto de não terem muito sobre o que discorrer. Uma
análise acurada dos dados logo nos revelará que a segunda explicação é a
mais plausível.
Mas vale dizer que consideramos esse primeiro momento com a turma
bastante positivo, melhor até do que poderíamos imaginar. Muitos alunos se
“abriram” para nós principalmente quando puderam perceber que estávamos
interessados neles, da forma que eram. Abaixo, então, os principais dados
coletados ali e a análise deles não comentaremos todas as questões, mas
aquelas que estão mais diretamente relacionadas à nossa pesquisa.
Pergunta 1
Você lê com frequência? Que tipo de livro?
Esta questão foi uma das mais significativas para nós, pois as respostas
dadas pelos alunos vieram d’alguma maneira nos impactar, e render bons
48
frutos para as aulas que seriam ministradas. Para a pergunta 1, os alunos
tinham as seguintes opções de respostas: “histórias em quadrinhos”, “livros de
poemas”, “folhetos de cordel”, “histórias” (romances, novelas, etc.) e “outros”.
Nessa última opção, havia um espaço para o aluno escrever o seu tipo de
leitura costumeira.
É importante ressaltar que era possível a cada leitor marcar mais de
uma opção, desde que ele convivesse com vários tipos de leitura. Eis o número
de marcações para cada opção
17
:
Histórias em quadrinhos = 14
Livros de Poemas = 12
Histórias (romances, novelas, etc.) = 6
Outros = 6
Folhetos de cordel = 5
Não marcaram nada = 3
Como se pode ver, os gêneros de leitura maciçamente assinalados
pelos alunos foram “histórias em quadrinhos”, em primeiro lugar, e “livros de
poemas”, em segundo; os demais, “histórias” e “folhetos de cordel” ficaram
bem aquém dos primeiros, o que para nós soou como um dado significativo a
ser investigado.
Estávamos um tanto surpresos com os números, pois sinceramente não
imaginávamos que eles pudessem marcar tantas vezes a opção “livros de
poemas”, ou seja, não fazíamos idéia de que a poesia fizesse parte da vida de
tantos deles. O dado nos parecia importante, então resolvemos compartilhar os
números do questionário, especialmente desta pergunta 1, com a professora
efetiva – esse foi o assunto principal de um dos encontros que tivemos.
17
Os números serão apresentados em ordem decrescente.
49
Quando mostramos os questionários à professora ela se mostrou
bastante interessada, pois poderia conhecer mais o perfil de seus próprios
alunos, e assim, melhorar o trabalho com eles. As respostas à pergunta 1
também a intrigaram. Era esperado que assinalassem as histórias em
quadrinhos, mas os livros de poemas...
18
Que poemas será que eles liam? O
que eles estariam entendendo por livros de poemas? E ainda: seque o fato
de saberem que realizaríamos um experimento com a poesia havia
influenciado os jovens leitores, de modo que queriam apenas nos agradar com
aquelas respostas? Esses e outros questionamentos foram colocados na nossa
conversa, então veio a sugestão da professora colaboradora de investigarmos
melhor acerca disso. Foi o que fizemos na primeira aula do experimento, relato
que ficará para mais adiante.
Mas retornando aos dados, a opção “outros” foi assim especificada pelos
seis alunos que a marcaram: “bíblia, mensagens de reflexão, histórias de
sabedoria, contos de guerra, romances, revista e rock”. Alguns aspectos
significativos a esse respeito: note-se que os três primeiros tipos de leituras são
realizados com um objetivo semelhante, e podem se enquadrar em uma
categoria que chamaremos “texto de prazer”, para usar uma importante
conceituação de Roland Barthes (1987)
19
.
18
Essa colocação pode parecer um descrédito de nossa parte quanto ao trabalho com a
poesia. Não é. É que ainda se fala tanto da dificuldade de trabalho com o gênero poético, da
fragmentação de poemas em livros didáticos, da predominância da prosa sobre a poesia, da
resistência de alunos ao texto poético, do poema como pretexto para exercícios gramaticais,
que parece surpreendente que possamos ver dados assim.
19
Barthes distingue “texto de prazer” e “texto de fruição”: o primeiro seria aquele ligado a uma
prática confortável de leitura, porque é capaz de contentar, encher, e euforia; em outras
palavras, trata-se do texto que não exige tanto do leitor, porque se encontra dentro do seu
horizonte de expectativas. O segundo, por sua vez, estaria ligado a desconfortabilidade; seria
aquele texto capaz de pôr em crise a relação do leitor com a linguagem, fazendo vacilar a sua
própria visão de mundo, o que o teórico chama de bases históricas, culturais, psicológicas, “a
consistências de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças” (BARTHES, 1987, p. 22).
50
Os dois tipos seguintes, contos de guerra e romances, poderiam ser
colocados dentro da opção “histórias”, posta no questionário, embora alguns
alunos não tenham feito tal associação
20
. Elas seriam aquela literatura “de
fruição”, se pensarmos ainda na teorização de Barthes (1987), ou então aquela
“arte genuína”, se nos remetermos a Jauss (1994), em referência a uma leitura
capaz de proporcionar alguma mudança ou ampliação do horizonte de
expectativa do leitor.
Por último, alguns alunos escreveram em “outros” a revista e o rock.
Embora não possamos afirmar com certeza, é provável que o aluno que
registrou “rock” estivesse falando de revistas relacionadas a esse gênero
musical. Desse modo, talvez seja possível enquadrar esses dois tipos de leitura
na categoria “de entretenimento”, ou de “arte culinária”, para utilizar mais um
termo de Jauss (1994), que não se encontram nelas, pelo menos à primeira
vista, “uma tensão mais ou menos aberta entre questão e respostas, problema
e solução” (ZILBERMAN, 1989, p. 75).
Ainda sobre os dados coletados nesta pergunta, vale dizer que três
alunos optaram por não marcar nenhuma opção, nem mesmo a categoria
“outros”, o que nos faz supor que tinham pouca ou nenhuma vivência com a
leitura.
Pergunta 3
No ensino fundamental, você teve aulas de leitura? Fale um pouco desta
experiência.
20
No caso dos contos essa associação era quase impossível, pois cometemos uma falha na
elaboração do questionário: dentro da opção “histórias” destacamos “romances” e novelas”,
mas esquecemos do “conto” e da “crônica”, gêneros narrativos de menor extensão e que talvez
fizessem parte da vida de muitos alunos.
51
Esta pergunta era significativa porque instigava os leitores a discorrerem
acerca das aulas de leitura das séries anteriores ao ensino dio as
respostas da turma poderiam influenciar, e muito, o planejamento do nosso
experimento. Vejamos os números:
Sim = 19
Não = 10
Dúvida = 1
Como se vê, uma maior parcela de alunos vivenciou aulas de leitura no
ensino fundamental. Mas antes de analisarmos algumas respostas daqueles
que escreveram “simou “não”, olhemos o depoimento da aluna Ed
21
, a única
que demonstrou dúvida na resposta:
Depende do professor, as vezes eles falam tanto que dá sono.
Pela fala da aluna, pode-se entender que as aulas de leitura no
fundamental podiam ou não acontecer, atitude que dependia muito do
professor da disciplina “Língua portuguesa”. Além disso, na sua resposta Ed
identifica aulas de leitura com aulas que provocam sono, o que nos causa
estranheza, a ponto de nos perguntarmos que aulas de leitura eram essas
até onde sabemos, a literatura pode nos levar a “mares nunca dantes
navegados”
22
, arrancando-nos da apatia, da sonolência, da inatividade. A aluna
tem mesmo razão: grande parte da responsabilidade (não ela toda), cabe ao
educador.
21
Neste trabalho, os alunos terão sua identidade preservada: eles serão referidos por duas
letras de seu nome. Uma outra informação: transcreveremos a escrita e a fala deles tal como
escreveram/falaram, mesmo que a variedade de língua não seja a padrão.
22
O verso é emprestado do poema épico Os Lusíadas, de Luís de Camões.
52
O mais intrigante, porém, foi ver que mesmo entre aqueles que
afirmaram ter tido aulas de leitura, houve testemunhos negativos na hora de
comentar tais aulas. Foi o caso de cinco alunos:
Sim, elas eram um pouco intediantes, mas porém importantes. (An)
Sim, um pouco chata. (Sa)
Tive algumas aulas de leitura, mais eram um pouquinho chatas. (Ay)
Tive sim, mas não quero falar nada. (Me)
Sim, mas erram muito chata. (Ja)
À semelhança do que ocorre com Ed, esses alunos lembram das aulas
de leitura adjetivando-as com as expressões “entediantes” e “chatas”. O aluno
Me, por exemplo, se absteve de falar qualquer palavra sobre o assunto. Ele
não teria tido nenhuma aula de leitura significativa no ensino fundamental ou
apenas estaria sem vontade de escrever?
Não sabemos ao certo, mas o fato é que as colocações desses leitores
nos induziam a refletir. Nosso papel o era julgar como professor A ou B
tinham procedido, e sim procurar fazer diferente, de modo que as aulas que
ministrássemos, ainda que poucas, pudessem ser proveitosas, a ponto de
render depoimentos positivos em um futuro próximo.
Olhando outros dados coletados, percebemos que alguns poucos alunos
identificaram aulas de leitura unicamente com aulas de exercício oral. É
possível que a pergunta do questionário não estivesse mesmo clara, mas,
como dissemos, cada tópico dele foi explicado oralmente, antes da realização.
Mesmo assim, alguns não conseguiram entender que estávamos falando de
aulas de leitura e interpretação de textos, e o apenas da leitura oral, diga-se
53
de passagem, um passo importante e quase indispensável nesse trabalho.
Vejamos a fala deles:
Sim aulas de leitura mas eu tenho dificuldade para ler. (Wa)
Sim, a professora levava alguns textos para lermos em sala e eu gostava
de ler. (Am)
Sim, mas foram poucas, e apezar de tudo era praticamente forçado, era
muito raro eu ler, eu gosto mas de é poemas eu sou ligada mas a
poemas. (Ma)
A resposta da aluna Ma chamou-nos a atenção e merece ser
comentada: para ela, as aulas de leitura ficaram como lembrança de leituras
forçadas de outros textos, que não os poemas. Ora, por que será que a poesia
também não frequentava essas aulas
23
? Assim, a chance de Ma ter uma
rememoração positiva dessa experiência pelo menos existiria.
A esse respeito, vale lembrar a proposta dos Referenciais Curriculares
para o Ensino Médio da Paraíba: no ensino de literatura, ao invés de se
privilegiar o puro historicismo, pleiteia-se um trabalho a partir dos gêneros
literários, o que inclui a poesia ao lado – não abaixo, como muitas vezes
parece da narrativa e do drama (PARAÍBA, 2006, p. 83). Dito de outra forma,
há que se entender que a diversidade de gêneros, textos e autores deve
“marcar” as nossas aulas de literatura e, assim, em algum momento e sem
muita pressão, o texto que toca o aluno chegará.
Mas voltando aos dados do questionário, existiram, é claro, avaliações
positivas acerca das aulas de leitura, e queremos falar delas também. Vejamos
algumas:
23
Embora pareça um tanto utópico ver isso em manifestação em nossas salas de aula, “um
poema a cada dia seria a ‘ração diária’ de beleza de que todos necessitamos” (PINHEIRO,
2008, p. 30).
54
Sim, e muito bom para aprender a compreende os textos. (Ca)
Sim, gostava das aulas pois era uma forma de aprender bastante
interativa. (Ni)
Sim sempre “alguns” professores sempre faziam apresentação de vários
livros (Al)
Sim eu tive muitas aulas de leitura, o que eu achei dessa experiência é que
a leitura não é si uma forma de passar o tempo e sim uma forma de
conhecimento para a nossa vida. (Ru)
Sim. Eu achei muito ótimo as aulas de leitura do ensino fundamental. É por
esse tipo de aprendizado que a gente consegue desenvolver o nosso
aprendizado e consegue evoluir no nosso conteúdo. (Ej)
Perceba-se que a maior parte desses alunos conseguiu entender que as
aulas de leitura eram momentos que iam além da oralização de textos, pois
passavam pelo viés da compreensão, do aprendizado interativo, do
conhecimento para a vida. A resposta de Ru, aliás, parece-nos bastante
significativa, pois para ela aqueles momentos de leitura não eram uma “forma
de passar o tempo”, uma “enganação” do professor, mas sim uma maneira de
crescimento e maturação. Assim, a leitora conseguiu ver sentido em suas aulas
de leitura do ensino fundamental, pois estas transcendiam os muros da sala de
aula e da escola, tocando o seu próprio mundo.
Outra resposta que merece ser comentada é a de Al, porque ela remete
a um ponto interessante: a professores que levavam livros para apresentar em
sala de aula, ou seja, educadores que iam além do livro didático, onde os
textos por vezes aparecem fragmentados, onde, querendo ou não, só se tem
um pouco do livro literário, mas nunca o livro todo.
Imaginar um professor que levava livros para apresentar a seus alunos é
pensar em alguém antenado com a visão de que o ensino de literatura deve
subscrever-se na convivência com o texto literário, o aquele trazido pelo
55
manual, mas também aquele que toca o próprio educador, e que deve ser
levado para a escola como um direito a que nosso aluno deve ter acesso. É
Antonio Candido quem nos lembra: “aquilo que consideramos indispensável
para nós é também indispensável para o próximo” (1995, p. 239).
Pergunta 4
Você lembra de algum texto (um romance, um conto, um poema, etc.)
que você leu ao longo de sua vida e que o marcou? Qual? Fale sobre ele.
Nesta pergunta, ainda no momento em que estávamos fazendo a
explicação oral do questionário, sentimo-nos à vontade para contar uma de
nossas experiências pessoais aos alunos da turma. Foi então que, de maneira
sucinta, contamos que havíamos deixado o curso de Direito pelo de Letras:
durante dois anos, tínhamos tentado conciliar ambos os cursos, mas chegara
um ponto em que essa conciliação tornara-se impossível, e então tivemos que
escolher uma das carreiras. Por que havíamos optado por Letras, visto todo o
status social de um curso como Direito?
O fator decisivo para a escolha fora a lembrança que tínhamos de uma
aula “assistida” ainda nos tempos da graduação, acerca do poema “Gesso”
24
,
de Manuel Bandeira. Era incrível como esse poema parecia “soprar” em nossos
ouvidos e dizer que era aquilo que queríamos. Pensando bem, era a primeira
vez que entendíamos a definição de Haquira Osakabe para a poesia: esta era
mesmo uma experiência renovada, que guardava em si o frescor de sua
própria criação (OSAKABE, 2005).
24
Nesta ocasião, aproveitamos o ensejo e lemos oralmente o poema para a turma, mas não
fizemos nenhum comentário analítico acerca dele.
56
Notamos que, ao ouvir esse depoimento, boa parte da turma se mostrou
atenta e interessada, mas ao que parecia, alguns estavam duvidando se
aquelas palavras podiam mesmo ser verdadeiras. Será que um simples texto
podia marcar a vida de alguém e ajudar esse alguém a tomar uma decisão tão
importante?
As respostas dos leitores a esta pergunta foram equilibradas – o número
de alunos “tocados” por algum texto literário ao longo da vida foi quase igual ao
número daqueles que não o foram, como se pode ver abaixo:
Sim = 14
Não = 12
Não lembro = 4
Nos comentários daqueles que deram resposta positiva, conseguimos
enxergar muitos aspectos significativos. Alguns alunos remeteram a textos
propriamente literários, conseguindo lembrar do título, ou contando um pouco a
história:
Sim eu já li um livro chamado ciranda de pedra que me marcou muito (Ec)
Lembro de um conto, um homem que sempre que saia do trabalho
passava por perto de um cemiterio é dava sempre carona a uma moça até
a sua casa certo dia ela apaixonado pela moça foi procurar ela na sua
casa ao chegar a sua mãe falou que ela tinha morrido a muitos anos
(La)
Sim rios. O mais marcante foi “O caçador de pipas” que mostra como
uma pessoa pode mudar mesmo depois de tantos anos. (Ni)
uma história que marcou foi uma história de uma formiguinha que ia
andando atrás de comida e de-rrepente caiu um floco de neve no pé dela e
ela ficou sofrendo muito com frio e fraca e Deus salvo ela (Wa)
Bom eu le agora a pouco um livro de romance, não marcou a minha vida,
mas deixou uma coisa marcante, que a menina se relacionava com o
primo e acabou ficando grávida ela tinha 12 anos (Ru)
57
Sim. Era uma história de um pai que ficou desisperado ao vê um de seu
filho sofrendo após sertima de um desabamento na escola que ele
estudava (Ej)
Sim, é uma das histórias do livro (histórias de Sabedoria) “A árvore que
produzia pão” é uma história incrível que emociona e nos faz ver o quanto
Jesus e maravilhoso. (Si)
Era um conto chamado A viagem de (...) (indecifrável). Contava a estória
de uma menina orfam que vivia em meio a gerra do Afeganistão. (Ty)
A cartomante porque o final da história parece com de novela. (Is)
É notório que todos os alunos se referiram a narrativas, nenhum a
poemas. Esse dado é importante porque havíamos relatado que tínhamos sido
tocados por um poema, mas aluno algum parece ter sentido o mesmo ao longo
de sua trajetória como leitor.
Verdadeiramente ficamos satisfeitos ao ver que quatorze alunos
conseguiram lembrar e discorrer acerca de um texto que os marcou. É positivo
ver também que nomes como Lygia Fagundes Telles (Ciranda de Pedra) e
Machado de Assis (“A cartomante”) figuram como autores de algumas dessas
peças literárias marcantes; não menos positivo é ver ainda a referência a
outras histórias, como a da formiguinha que teve seu pezinho preso quem
nunca ouviu essa narrativa? textos que, independentemente de nossos pré-
conceitos ao não-canônico, alcançaram a grande proeza de fazer parte da
memória desses jovens leitores.
Longe de nós esteja tirar/diminuir o valor da narrativa, ou mesmo ocultar
a tendência de que é muito mais cil guardar uma história do que um poema,
pois aquela quase sempre parece mais palpável, mais delineada, menos
opaca. No entanto, é preocupante não ver um aluno sequer trazer um texto
poético como rememoração de sua história de vida. Será que isso se deve ao
fato da poesia não ter essa propensão de ser um texto significativo para o
58
leitor, ou uma das razões possíveis seria o fato de que os poemas pouco
frequentam as aulas de literatura na escola? Acreditamos mais na segunda
hipótese, pois é certo que não existem gêneros literários maiores ou menores;
ademais, gostamos daquilo que conhecemos e provamos apenas aquilo que
nos é oferecido.
Mas outros dados que podem ser tomados na análise das respostas
positivas advém da percepção de dois alunos, os quais o assinalaram
exatamente textos literários como marcantes, e sim outros gêneros. Vejamos:
Sim, teve um que marcou muito à minha vida, que foi no passado aos
meus 14 anos de idade, quando uma amiga minha me falou isso e que até
hoje, difícil de esquecer, que foi esse: A vida é feita para quem topa
qualquer parada, não para quem para em qualquer topada. (Ma)
O que o marcou não foi um romance foi uma carta de uma prima (Bu)
Note-se que a aluna Ma foi impactada por uma espécie de
“pensamento”, que a outros pode parecer simplório, mas que certamente foi
importante por marcar algum momento de sua vida ela o transcreve
literalmente. o aluno Bu é bastante sincero a ponto de dizer que não foi um
romance que o marcou (talvez ele achasse que essa era a única resposta que
queríamos ouvir), mas sim uma carta recebida da prima.
Bu não entra em detalhes acerca da carta, mas nem precisa: respostas
como essas nos lembram da necessidade de estarmos atentos ao que
realmente faz parte da história de nossos alunos; mais do que isso, nos
confrontam a refletir se vale mesmo a pena passar por cima dos “tesouros”
deles para imprimir os nossos, os do cânone, os do livro didático, enfim, os
alheios.
59
Somos professores de literatura, e seria no mínimo ignorância de nossa
parte não acreditar no valor do texto literário, mas não menos ignorante é a
atitude de deixar de aproveitar os valores dos indivíduos que estão nas nossas
salas de aulas. O nosso alvo, o cume do monte para nós deveria ser sempre
esse casamento frutífero entre vida e escola, entre o que o aluno tem de
significativo, e o que ele ainda pode conhecer.
Com relação às respostas negativas não muito o que se comentar,
pois como os alunos não se viam “tocados” por nenhum texto, o tinham algo
a dizer sobre isso. Uma resposta, porém, nos chamou a atenção; foi da aluna
Ta. Ela disse:
Até aqui ainda não
.
Sobre o “ainda não” da aluna, pelo menos duas considerações: primeiro,
ela parece acreditar que um texto pode realmente marcar a vida de alguém,
porque é como se estivesse à espera daquele que será parte de sua própria
história; segundo, sem saber direito, Ta estava nos motivando a um esmero
ainda maior no trabalho que desenvolveríamos com o primeiro ano. Não
podíamos saber se naquelas dez aulas a aluna iria encontrar o “seu” texto, mas
pelo menos teríamos a oportunidade de oferecer-lhe momentos de convivência
com a poesia, e isso, para nós, já era um grande passo.
para concluir as colocações acerca desta pergunta, vale lembrar que
quatro alunos não souberam precisar se haviam sido marcados ou não por
algum texto ao longo da vida. Esse fato, porém, nos leva a crer em respostas
negativas, que o exercício de rememoração não os fez se deparar com
nenhum texto que julgassem “tocante”.
60
Pergunta 5
Qual a sua experiência com poemas? Já leu alguns? Lembra-se do
título, do autor ou de alguns versos?
Esta pergunta é importante para a nossa pesquisa porque ela é a
primeira que remete especificamente à experiência dos jovens leitores com a
poesia. Os números foram positivos – a quantidade de alunos que deram
resposta “sim” superou em muito a quantidade daqueles que deram resposta
“não”, como vemos abaixo:
Sim = 22
Não = 7
Sem resposta = 2
Entre os alunos que disseram “sim”, um número significativo (9) não
conseguiu lembrar de nenhum título, autor ou alguns versos de um poema com
o qual conviveu. Invariavelmente, esse dado nos leva a questionar sobre a
qualidade do contato desses leitores com a poesia, que o simples fato de ter
lido poemas não garante que tal experiência tenha sido significativa. A resposta
da aluna Se deve elucidar nossa colocação:
Já lie mas não tive nenhuma experiencia.
Perceba-se que ela faz distinção entre leitura e experiência: ela leu
algum poema, mas naquela leitura, naquele trabalho, não existiu um “quê” a
mais que se tornasse uma experiência suficientemente valiosa para ser
guardada. Como professores de literatura, essas poucas palavras de Se nos
fazem refletir acerca da necessidade de caminharmos do lugar da comodidade,
onde a mera leitura do poema satisfaz, para o lugar do desafio, onde o aluno
61
assume a condição de leitor, e vivencia uma experiência de leitura tão
produtiva que é capaz de “marcá-lo”, e de, assim, ser recontada a outros.
Fora esses nove alunos que não souberam especificar sua experiência
com poemas, todos os outros lembraram de algum elemento que pudesse
singularizar esse contato com a poesia. A aluna Ej, por exemplo, conseguiu
citar o título do poema, o autor, e alguns versinhos:
Ótimas, eu li alguns lembro de um cujo o título era As borboletas. O
nome do autor era Paulo Paes
25
. As borboletas azuis gostam de luz.
Outros citaram apenas os autores, a saber: Castro Alves, Carlos
Drummond de Andrade, Augusto dos Anjos, José Paulo Paes, Manuel
Bandeira e Machado de Assis
26
.
Além de nomes de autores, houve citação de nomes de livros, como
José, de Drummond e Dispersão, de Mário de Carneiro a referência a
esse poeta português foi uma surpresa para nós. Outros alunos conseguiram
lembrar de versinhos de algum poema, ou procuraram dizer sobre o que o texto
falava:
Eu li gato na china, que diz assim: era uma vez um gato chinês que
morava em Xangai sem mãe e nem pai. (Da)
lia alguns, lindo nome de filha belo nome de Amada, coisa por demais
linda teu nome... (We)
Queremos refletir um pouco sobre esses dados da pergunta 5,
confrontando-os com os coletados na pergunta 4. Ora, aqui esses alunos
25
Ao contrário do que disse a leitora, o autor é Vinicius de Moraes.
26
Embora Machado tenha escrito poemas, esse lado do autor é pouco conhecido. Como o
gênero que o consagrou foi mesmo a narrativa, é bem provável que o aluno que remeteu a
Machado estivesse falando de algum conto, crônica ou romance do autor.
62
estão nos revelando que tiveram experiências com os poemas que podem
ser pouco ou muito significativas pois conseguem falar delas de algum modo.
No entanto, causa estranheza o fato de que esses mesmo alunos, nenhum
deles, aliás, conseguiu associar essa experiência a uma que tenha marcado a
sua vida, como pedia a pergunta anterior.
Os dados da pergunta 4, por sua vez, podem ser confrontados com os
da pergunta 1, aquela que discorria sobre os gostos de leitura da turma, pois ali
os “livros de poemas” foram os vice-campeões na marcação dos leitores. Era
de se esperar, portanto, que o número significativo pudesse elucidar uma
experienciação também significativa com a poesia, mas nesse aspecto, os
dados das duas perguntas entram em conflito.
Portanto, mais uma vez somos desafiados a pensar sobre o tipo de
abordagem que temos dado aos textos poéticos em sala de aula. Por que
esses alunos conseguiram lembrar dos poemas na pergunta 5 do
questionário, que remetia diretamente a esses textos, e apenas a eles? Por
que dentro do paradigma da pergunta 4, que continha “romance, conto e
poema”, os alunos puderam falar sobre a experienciação com romances e
contos? Por que os poemas não tem marcado os nossos alunos, se também
são a literatura em que acreditamos?
Talvez um vislumbre de resposta esteja na colocação da aluna Ma:
Minhas experiências com poemas, são muitas, eu sou mas atenta aos
poemas que fala de coisas que as vezes eu até acho que eles realmente
foram feitos para mim, mas no momento não vem nenhum não.
Perceba-se que ela afirma ter uma ligação com poemas, mas não
consegue lembrar de nenhum para compartilhar. A impossibilidade de
63
rememoração parece residir em algo simples: Ma espera uma identificação
com os poemas que lê, como se os textos fossem endereçados especialmente
a ela. Não queremos aqui discutir se a atitude da leitora é ingênua, pois
certamente haverá quem diga que ela está misturando ficção e realidade. O
que podemos entrever, e essa é a informação importante, é que Ma não pode
lembrar de nenhum texto assim porque não lhe foi dada essa oportunidade
(deram-lhe outras), ou melhor, porque não houve alguém sensível à sua
singular necessidade.
Para terminarmos a análise dos dados desta pergunta, é válido citar
algumas respostas daqueles ao todo, foram sete alunos que afirmaram não
ter experiência com poemas:
E não tive nenhuma e não gosto (Na)
Não gosto muito de poemas (La)
A minha experiências com poemas, não é muito legal porque eu não
costumo ler poemas e sim romance. (Ru)
Eu não tenho nenhuma experiência com poemas, por enquanto (Ta)
A aluna Na é bem enfática ao afirmar sua intolerância a poemas, como
se dissesse: “nem adianta porque ninguém vai me conquistar”. Mais tarde
veremos se a conquista aconteceu ou não, mas por enquanto é válido dizer
que não devemos desanimar com os depoimentos nem sempre favoráveis de
nossos alunos.
As duas respostas seguintes, as de La e Ru, são mais modalizadas: La
coloca um “muito” para demonstrar que a poesia não é um de seus gêneros
preferidos, enquanto Ru procura justificar o seu pouco gosto por poemas pelo
fato de ler mais romances. A justificativa, como sabemos, não é plausível: o
64
fato de Ru ler mais romances é apenas um elemento ratificador de sua
preferência por esse gênero; ela não lê o texto poético porque não teve
experiências significativas com ele, e assim, não se motiva a buscá-lo; o círculo
vicioso se perpetuará, até que uma nova maneira de ver/sentir a poesia lhe
seja oferecida.
Por último, destaquemos a colocação da aluna Ta, cuja expressão “por
enquanto”, no final da frase, remete a seu anseio por mudança na maneira de
encarar os poemas, ao mesmo tempo em que alimenta a nossa esperança de
ver alunos se tornarem leitores de poesia. Mais interessante ainda é vermos
que Ta demonstrara uma postura semelhante na resposta à pergunta 4, a qual
questionava sobre algum texto que marcou a vida dos alunos. A isto ela
respondera: “Até aqui ainda não”.
Pergunta 7
Você costuma ir à biblioteca da sua escola, sala de leitura ou biblioteca
pública?
A pergunta 7 também será comentada por s porque as respostas
dadas pelos alunos podem fornecer dados significativos em relação à
experiência de leitura da turma do primeiro ano. É preciso notar que a questão
não remete necessariamente ao espaço físico “biblioteca”, mas a algum lugar
onde o alunado teria contato com a leitura.
Outra informação relevante é que, na explicação oral desta pergunta,
deixamos claro o que seriam as “salas de leitura”, dando inclusive o nosso
próprio depoimento acerca desses espaços: durante as séries do ensino
fundamental II, tivemos a sorte de ter professores incentivadores da leitura
65
literária; mas foi na sexta série (hoje sétimo ano) em especial que começamos
a construir uma experiência mais frutífera com os livros de literatura.
Toda sexta-feira, em que tínhamos duas aulas seguidas de língua
portuguesa, a professora reservava o dia para lermos. Ela espalhava os livros
no birô de madeira, e cada um tinha a oportunidade de escolher o seu livro e ir
para algum cantinho da sala. Se quiséssemos, podíamos ler deitados, ou
comentar o livro com algum colega. A experiência era simples, mas temos
certeza de que foi decisiva para a valorização que ora fazemos dos livros
literários. Essa vivência que aquela professora nos proporcionara era o que
também queríamos oferecer aos nossos alunos, não exatamente daquela
forma, mas do nosso modo, pelo viés da nossa prática.
Será que a turma do primeiro ano teria alguma experiência semelhante
para relatar? Os dados apontaram uma superioridade do número de alunos
que não tinham costume de ir a espaços de leitura:
Não = 21
Sim = 10
Entre as 21 respostas negativas, queremos destacar algumas:
Não, mas já fui (Se)
Eu ia não vou mais (Je)
Não porque não está funcionando (Wa)
Não, A biblioteca da escola só vive fechada (Ad)
Não, eu só vou quando é necessário, ex: trabalhos de escola (Ma)
Os relatos da aluna Se e do aluno Je revelam que ambos tiveram
alguma experiência com espaços de leitura, mas que isso não acontece mais.
66
Como os alunos haviam iniciado o ensino médio pouco tempo, podemos
afirmar com certeza que tais momentos de convivência com os livros
aconteceram no ensino fundamental I e/ou II, ou seja, foi criado algum
caminho
27
para que esses alunos pudessem se tornar leitores literários.
No entanto, em um dado momento esse caminho deixou de ser trilhado
por falta de incentivo do professor, por falta de infra-estrutura da escola, ou
por qualquer outro motivo que não somos capazes de entrever agora e esse
fato ajudou a construir uma barreira entre os alunos e os livros. As palavras de
Se e Je são objetivas e decisivas: os alunos afirmam não ter mais contato com
espaços de leitura, e parecem dizer que não estão muito interessados em que
essa situação mude.
Os dois depoimentos seguintes, os do aluno Wa e da aluna Ad, remetem
a uma situação ainda preocupante em muitas escolas do país: as bibliotecas
“fantasmas”, aquelas que existem, são bem equipadas, mas que estão sempre
fechadas. Era essa a situação na escola em que nos encontrávamos. Ali
detectamos um círculo vicioso que é um espelho de muitas instituições de
educação do Brasil: uma diretoria despreocupada com questões de incentivo à
leitura, e professores bastante acomodados com essa situação.
A resposta que resta, a da aluna Ma, nos desperta para o fato de que as
raras idas de alguns alunos à biblioteca resumem-se à feitura de trabalhos da
escola, como pesquisas de geografia, ciências ou língua portuguesa. Para Ma,
as idas àquele espaço estavam associadas à necessidade, ao utilitarismo, não
ao prazer. Quando nos perguntamos por que nossos alunos não gostam de ler,
esquecemos que muitas vezes s mesmos fomos criadores dessas barreiras
27
Pelo menos em tese, já que muitas vezes as idas dos alunos à biblioteca são motivadas por
fins mais pragmáticos, como a realização de pesquisas para a feitura de trabalhos de escola.
67
de resistência, pois fazemo-los associar espaços como a biblioteca a um único
e mesmo fim: o pragmático.
Felizmente a turma do primeiro ano contava com as aulas de “Leitura e
interpretação” ministradas pela professora efetiva, uma espécie de “espaço de
leitura” existente na própria sala de aula. De fato, o próprio professor pode
garantir a seus alunos o que lhe é de direito, mesmo quando a escola não
incentiva isso.
Quanto aos dez alunos que deram respostas positivas à pergunta, cinco
afirmaram ter ido à biblioteca poucas vezes, como é o caso do aluno Da:
Eu fui uma vez, eu não tenho muita vontade nem costume de ir a
biblioteca, por que também na minha escola não tem.
A resposta do aluno confirma a pouca motivação de ir a espaços de
leitura, mas também revela algo mais sério: Da sequer sabia que a escola em
que estudava atualmente possuía biblioteca; como poderia ir até ela? Portanto,
a resposta dele, aparentemente positiva, revela-nos aspectos negativos do
ensino público, os quais precisam ser conhecidos para ser modificados.
Mas existiram relatos realmente positivos. Destacamos três: no primeiro,
o aluno Ni utiliza o adjetivo “interessante” para qualificar os livros da biblioteca.
Mais tarde saberíamos que esse aluno era o leitor literário ideal
28
, incentivado à
leitura desde a infância, comprador de romances, frequentador de bibliotecas:
Sim, há muitos livros interessantes la.
No segundo relato a aluna Ru associa a biblioteca ao canto tranquilo da
concentração. Vale dizer que essa aluna também deve ter tido experiências
28
Que não se enxergue no uso da palavra ideal” nenhum preconceito de nossa parte: ela foi
utilizada para designar esse tipo de leitor literário formado desde o “berço”.
68
significativas com a leitura ao longo de sua vida escolar, pois, ao longo do
questionário, tende a responder positivamente acerca do assunto.
Costumo ir muito a biblioteca da escola, porque lá é um canto tão tranquilo
que nós nos concentramos na leitura.
O último relato que destacamos aqui é o da aluna Ej, que concebe a
leitura como atividade interessante desde que satisfaça a condição de ser
relevante para ela mesma:
Sim, eu gosto muito de ler livros poéticos e gosto de desenvolver a minha
leitura lendo algo que seja bastante interessante do meu ponto de vista
como aluna.
Ej tocou em um ponto crucial: não é toda leitura que nos agrada, mas
aquela em que conseguimos ver algum sentido; ora lemos por diversão, ora por
aprendizado, ora por pura fruição, mas sempre buscando alguma coisa e
dando também, embora talvez a aluna não tenha consciência disso.
Ainda da resposta da aluna podemos extrair um detalhe significativo: ela
demonstra uma preferência pelos “livros poéticos”, mas mesmo assim não se
referiu a nenhum poema na resposta à pergunta 4, aquela que perguntava
sobre algum texto que marcou a vida. Relembremos a sua colocação: “Sim.
Era uma história de um pai que ficou desisperado ao vê um de seu filho
sofrendo após ser vítima de um desabamento na escola que ele estudava”.
O fato dela citar uma narrativa como texto importante dentro de sua
trajetória como leitora destoa da sua evidente preferência por livros poéticos,
atestada na pergunta 7. Não temos muitos dados para afirmar com certeza,
mas é bem provável que a escola em que Ej estudou tenha oferecido muito
69
mais histórias que poemas; quando pode ir sozinha à fonte, no entanto, ela
opta pelo que mais gosta: a poesia.
Pergunta 8
Costuma acessar a internet? O que costuma buscar, ler?
As respostas a esta pergunta serão aqui comentadas rapidamente, e
com um propósito específico que logo será revelado. Vejamos primeiro os
números:
Sim = 27
Não = 4
Como era de se esperar, o levantamento quantitativo confirmou que
quase todos os alunos tinham acesso a internet, ou seja, estavam antenados
com o mundo virtual – em momento posterior, tivemos a oportunidade de saber
que esse acesso eles o obtinham nas chamadas lan houses, pois poucos
tinham computador residencial.
Quanto aos sites visitados, eles citaram preponderantemente o site de
relacionamentos orkut e o espaço para bate-papo msn. Além disso, alguns
citaram sites de bandas musicais, de jogos, e o google, para pesquisas de
trabalhos da escola.
Essa informação era importante porque, por sugestão de nosso
orientador, estávamos pensando em criar um espaço virtual para debater os
poemas que seriam trabalhados no experimento. Isso realmente aconteceu
70
através de um blog
29
, onde postamos poemas, músicas, imagens, fotos, clips, e
outros elementos que atraíssem os jovens a um intercâmbio virtual.
Mas a parte fundamental dessa página era o fato dos alunos terem um
local para expor suas vozes, seus valores, suas opiniões. Em momento
posterior, no relato das aulas após a aplicação do questionário, faremos
referência maior ao blog, trazendo sobretudo os diálogos virtuais estabelecidos
com a turma.
Pergunta 9
O que você tem achado das aulas de “Leitura e Interpretação”? Tem
alguma sugestão para essas aulas?
Esta pergunta foi introduzida no questionário por dois motivos principais:
primeiro para que soubéssemos como os alunos estavam recebendo as aulas
de literatura ministradas pela professora efetiva, o que poderia nos auxiliar no
planejamento do experimento; e segundo, para que a própria professora
pudesse ter uma visão de como os alunos estavam percebendo a sua prática.
E aqui, uma observação: cremos ser importante dar esse retorno aos
colaboradores da pesquisa, pois nenhum trabalho desse tipo se constitui como
atividade unilateral, mas como troca de saberes, experiências, informações,
que só desse modo podem gerar uma transformação das nossas práticas
pedagógicas.
Os números dessa pergunta foram os mais positivos de todos:
Sim = 30
Não responderam nada = 1
29
O endereço eletrônico do blog é: www.poesianoprimeiroano.zip.net
71
Como se nota, quase todos os alunos, exceto um, que não deu resposta
alguma, afirmaram estar gostando das aulas de “Leitura e interpretação”, o que
aponta para um excelente trabalho desenvolvido pela professora efetiva.
Dentre as inúmeras respostas que poderiam ser trazidas aqui, selecionamos as
seguintes para comentar:
Eu tenho gostado é das leituras, e o que eu mais gostei que ela leu foi do
conto da agulha, que muitas vezes a gente abri caminho para os outros e
depois se esquecem do que fazemos por ela e nos dão as costas. (Is)
A na verdade eu gosto, conferço que antigamente eu não gostava das
aulas de literatura, mas depois eu vi que não é tão chato assim, mas era
mas chato porque as vezes dava sono, e o que me chama mas atenção na
aula de (nome da professora), é que apesar de eu não gostar de participar
e de chamar a atenção, eu me animo e fico bem atenta no que os meus
colegas de classe vão dizer, e eu acho legal, que isso vai me ajudando a
entender as coisas. (Ma)
Bom, tem sido ótimo pois eu tenho um pouco de dificuldade na
interpretação e com essas aulas eu tenho me desenvolvido um pouco. (Si)
Tenho achado ótimo, tenho aprendido a interagir com a aula, mais ainda
tenho medo dessa partir, as vezes não sei como se expressar. Tomara que
as aulas continuem assim. (En)
Eu achei uma boa aula de leitura e interpretação mas eu gostaria mas
ainda se fose uma aula fàcil (Wa)
O comentário de Is traz a referência ao conto “Um apólogo”, de Machado
de Assis, narrativa que foi lida e comentada apenas oralmente em sala de aula,
mas o suficiente para marcar de alguma forma a aluna. Ela consegue fazer
uma associação entre a história dos personagens e sua própria vida, quando
lembra que nem sempre se é reconhecido pelo que se faz pelos outros. A
colocação de Is sinaliza para o modo singular de percepção de cada leitor; a
aluna procurou em sua própria história alguma correlação com aquela fábula, e
foi justamente isso que a fez prontamente lembrar do conto machadiano.
72
o depoimento de Ma é significativo porque revela uma mudança de
perspectiva em relação às aulas de “Leitura e interpretação”: a aluna é
bastante sincera ao admitir que, no início, aquelas aulas eram chatas e davam
sono, o que deve apontar para uma possível resistência à maneira diferente
como a professora efetiva trabalhava, privilegiando a convivência com o texto
literário e a voz do aluno leitor. Porém, o sentimento de Ma agora era de
animação, o contrário do sono e da apatia, pois mesmo sem participar
oralmente das aulas, ela estava atenta a participação de seus colegas para
aprender com eles: “isso vai me ajudando a entender as coisas.”
É interessante ver que, além de Ma, outros alunos conseguiram
enxergar em si mesmos algum crescimento nas aulas, como se estivessem
fazendo um auto-exame. O mais significativo é perceber que esse “olhar para
si” não era diretamente exigido pela questão, que propunha olhar para as aulas
de “Leitura e interpretação” e fazer algum juízo de valor sobre elas.
Consideramos bastante positiva essa atitude de ir além do que está
proposto, o que pode ser visto nos depoimentos de Si e En. A primeira aluna
percebe-se como alguém que possui um nível de dificuldade na interpretação
de textos, mas que tem demonstrado algum desenvolvimento por meio das
aulas. a aluna En diz estar aprendendo a interagir com as aulas, mas por
outro lado demonstra receio em não saber se expressar no ambiente de sala
de aula.
A preocupação de En, que também está “embutida” na resposta de Ma,
foi percebida ainda no depoimento do aluno Wa: “Eu achei uma boa aula de
leitura e interpretação mas eu gostaria mas ainda se fose uma aula fácil”. Ao
mostrar-se saudoso das aulas fáceis, Wa deve recordar-se daquelas aulas de
73
literatura pouco desafiadoras, talvez concretizadas em uma única e mesma
metodologia a leitura do texto proposto pelo livro didático e o seu posterior
exercício.
A dificuldade do aluno é bastante compreensível, pois as “novas” aulas
de “Leitura e interpretação” se constroem por uma via de mão-dupla, à primeira
vista bem desconfortável: o texto que desafia o leitor; o leitor que desafia o
texto. A esse respeito vale lembrar dos chamados “vazios” do texto, ou seja,
aqueles espaços de indeterminação deixados propositadamente pelo autor, e
que exigem a ativação da criatividade do leitor na construção da interpretação
(JOUVE, 2002). Se por um lado lidar com tais “vazios” não parecia estar sendo
fácil para Wa, por outro ele estava tendo a oportunidade ímpar de assumir a
sua dimensão ativa na relação autor-texto-leitor.
Em aulas assim não é suficiente que os ouvidos do alunado estejam
prontos a ouvir; é preciso que suas vozes estejam dispostas a ecoar, seja para
concordar, seja para discordar, contanto que possam ser mais do que alunos
robôs. E embora seja redundante, sempre vale dizer que queremos mais que
alunos em nossas aulas de literatura; queremos leitores.
74
PARTE II
O EXPERIMENTO
1. MÓDULO I (29/04/09)
Para esse módulo I, que aconteceu uma semana após a aplicação do
questionário, havíamos planejado duas ações principais: na primeira aula do
dia, o objetivo era conversar sobre alguns dados do questionário que nos
haviam chamado especial atenção; e na segunda aula, trabalhar com o
primeiro ano dois poemas de amor, “Bilhete”, de rio Quintana e “Cartas de
amor”, de Fernando Pessoa. Para se ter uma ideia mais clara do que foi o
planejamento, ver anexo 3.
1.1. Conversa sobre os gostos de leitura
Como relatamos, nós havíamos compartilhado os dados do questionário
com a professora efetiva, e, assim como nós, ela se mostrara um tanto
surpresa com os números coletados na pergunta 1, a saber: Vo com
frequência? Que tipo de livro?”.
Apenas a título de rememoração, vale dizer que os dados apontaram a
seguinte ordem decrescente de tipos de leitura: Histórias em quadrinhos = 14;
Livros de Poemas = 12; Histórias (romances, novelas, etc.) = 6; Outros = 6;
Folhetos de cordel = 5; Não marcaram nada = 3.
Por sugestão da professora colaboradora, decidimos, então, sondar
mais acerca dos gostos de leitura dos alunos. Para isso, no dia anterior à
nossa primeira aula propriamente dita, a professora efetiva pediria para que a
75
turma levasse para a sala de aula os livros de sua preferência, ou seja, aqueles
que cada um costumava ler se não tivessem os livros em casa, poderiam
pegá-los na biblioteca. Assim ela o fez, e, para estimulá-los mais, garantiu até
algum ponto de participação para os que cumprissem a “atividade”.
No outro dia, chegamos à escola para efetivamente iniciar o experimento
de poesia na turma do primeiro ano. Estávamos mais tranquilos do que no dia
do questionário; ao que parecia, aquela barreira inicial havia sido rompida.
Apesar da professora efetiva estar todo o tempo presente nas aulas
deste dia, ela nos dera a liberdade de adentrarmos na sala de aula como
professores, enquanto que, agora, ela seria a observadora. A relação de
cumplicidade que se desenvolvia entre nós baseava-se em dois elementos
fundamentais: a nossa vontade mútua de fazer a escola ter sentido para os
alunos; o desejo de trocarmos experiências: ela colaborava conosco com sua
prática pedagógica mais experiente, com a sua familiaridade com a área da
Língua, e colaborávamos especialmente com a vivência com a Literatura.
Começamos a aula avisando aos alunos que os nossos encontros
seriam gravados em áudio, pois assim teríamos um registro fiel de todo o
trabalho que seria realizado. Comunicamos ainda que a identidade deles seria
preservada, e que, portanto, não precisariam ficar tímidos ou constrangidos
com aquela situação; queríamos que eles fossem autênticos. É claro que a
turma ficou a princípio meio desconfiada, mas com o passar do tempo, foram
até esquecendo a gravação. Nos últimos dias de experimento, os alunos é que
nos lembravam de colocar o gravador em ação.
Após essa introdução, falamos que havíamos lido os questionários
respondidos na semana anterior, e que naquela aula conversaríamos um
76
pouco sobre alguns dados coletados ali. Relembramos, então, a pergunta 1, e
escrevemos no quadro as quatro opções de respostas – a opção “outros”
deixamos para comentar no final.
Perguntamos à turma qual teria sido a opção campeã, e a maioria
acertou ao responder as “histórias em quadrinhos”. Quando questionados
acerca da segunda opção mais assinalada por eles, disseram que tinham sido
as “histórias”, alternativa que incluía os romances e as novelas.
Ao ouvirem que essa resposta o correspondia aos dados, e que na
verdade o segundo lugar estava com os “livros de poemas”, notamos que,
como nós, eles também ficaram surpresos. Podíamos sentir que havia um
ambiente de empolgação na sala de aula, pois os alunos estavam instigados a
conhecerem melhor uns aos outros, e se sentiam em uma espécie de jogo,
desafio.
Agora, restavam duas opções, e a turma conseguiu acertar a ordem
decrescente dos dados: as “histórias” primeiro, e os “folhetos de cordel”,
depois. No quadro, colocamos os números correspondentes a cada opção,
para que tivessem clareza do que estávamos discutindo.
Foi aí, então, que afunilamos a conversa oral sobre os gêneros.
Perguntamos se eles haviam trazido os materiais de leitura de que gostavam,
os quais tinham sido solicitados pela professora efetiva na aula anterior.
Mesmo com a estratégia de pontos de participação para a turma, e mesmo
escrevendo no quadro o aviso, como nos contou a professora, poucos alunos
levaram os materiais. Ainda assim, foi possível trabalhar com o que nhamos
ali, como veremos agora.
77
Histórias em quadrinhos
Para iniciar uma conversa sobre a opção campeã, perguntamos quais
histórias em quadrinhos a turma costumava ler. Algumas meninas disseram “A
turma da Mônica” e os meninos citaram alguns nomes de histórias japonesas,
que trabalham muito com o suspense e o terror. Pedimos, então, para que os
rapazes viessem ao quadro escrever o nome de algumas delas, mas ficaram
meio acanhados, afirmando que não sabiam escrever esses nomes
estrangeiros.
Aproveitamos ainda a oportunidade para comentar um pouco sobre os
desenhos animados da atualidade, em sua grande maioria vindos do Japão
mesmo, bem diferentes dos desenhos animados de outras épocas
30
.
Por último, perguntamos por que a turma gostava das HQ, ou seja, o
que atraía tanto nelas. Muitos responderam gostar das imagens que traziam, e
também do fato de serem engraçadas essas informações iam sendo
anotadas no quadro.
Infelizmente, nenhum aluno levou alguma história em quadrinhos para
mostrar, o que nos impediu de comentar mais sobre elas.
Histórias
Se fosse para seguir a ordem das preferências dos alunos, deveríamos
comentar depois das HQ, os livros de poemas. Porém, no nosso planejamento
havíamos pensado em deixar a poesia para o final, e assim ter o gancho para
iniciar o trabalho com o poema “Bilhete”, de Mário Quintana, na segunda aula
do mesmo dia.
30
Apenas a título de conhecimento, uma pesquisa no site da Rede Globo (www.globo.com)
revelou-nos os nomes de alguns desenhos animados japoneses da atualidade: Dragon Ball z,
Yu Gi Oh, Kamen Rider e Digimon.
78
Fomos então para as histórias, perguntando quais eles tinham lido,
para que pudéssemos anotar no quadro. Um aluno citou e inclusive mostrou o
romance O caçador de pipas, best-seller do autor Khaled Hosseini, publicado
em 2003. Solicitamos que o leitor contasse a história e ele prontamente o fez.
Esse aluno era Ni, que viria a ser um dos mais participantes das aulas e do
blog, um leitor formado desde o berço.
Além do best-seller, houve citação do romance Dom Casmurro, de
Machado de Assis, ao mesmo tempo em que alguns afirmaram ter assistido na
TV a uma recente adaptação do livro, realizada pela Rede Globo. Ainda foram
citados os clássicos Branca de Neve e os sete anões, Pinóquio e Romeu e
Julieta, os quais continuam sendo lidos, perpassados de geração em geração,
ressignificados.
Folhetos de Cordel
Quando fomos comentar acerca dos cordéis, que inclusive tinha sido o
tipo de leitura menos assinalada pelos alunos, sentimos uma grande
resistência da turma. Ouvimos na sala de aula expressões do tipo “É chato
demais”, mas mesmo assim perguntamos se haviam trazido algum folheto de
cordel para mostrar. O aluno An mostrou então a narrativa Seu Lunga, que
tomamos nas mãos e mostramos para que todos pudessem ver como era um
cordel.
Devolvemos o folheto ao leitor, e solicitamos que nos contasse a
história, caso se sentisse à vontade para fazê-lo. Ele disse que Seu Lunga era
um senhor muito mal humorado, que dava “patada” em todo mundo a turma
riu quando ouviu isso.
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An era um aluno calado, não gostava muito de falar nas aulas, por isso
pedimos novamente o cordel e lemos oralmente as três primeiras estrofes, para
que a turma pudesse “sentir” o ritmo acelerado da leitura, e um pouco do
humor. Eles ficaram bem atentos nesse momento.
Depois questionamos por que alguns tinham marcado os folhetos de
cordéis como opção de preferência, e apenas o mesmo An animou-se a falar:
ele gostava do gênero por causa do humor e das rimas.
A participação da turma do primeiro ano foi tão inexpressiva quando
conversamos acerca do cordel que nos incitamos a investigar o motivo. Foi aí,
então, que veio uma luz: o aluno Je disse que no ano anterior, ou seja, no nono
ano do ensino fundamental, eles haviam trabalhado com folhetos de cordel.
Procuramos apreender mais informações a respeito, e o aluno Ty
complementou dizendo que a professora
31
da turma os havia “obrigado” (foi
esse o termo do aluno) a fazer um cordel, e “isso era chato demais”.
Com esse comentário de Ty, outros alunos se sentiram motivados a
falar, demonstrando também aversão à atividade e aos cordéis. Aproveitamos
para falar à turma acerca da diferença entre leitura e escritura de cordel,
explicando que todos podiam ler cordéis, mas que elaborá-los era uma outra
história, que exigia um trabalho específico.
O aluno Ty, que parecia ser o mais traumatizado com a atividade
solicitada pela professora, disse que era difícil elaborar um folheto de cordel
por causa da “estrutura toda igualzinha” ele se referia às sílabas métricas,
que tinham que ser iguais para garantir a sonoridade poética desejada.
31
para deixar claro, essa professora do nono ano não era a professora colaboradora da
nossa pesquisa.
80
A essa altura entendíamos por que os folhetos haviam sido tão
minimamente assinalados pelos alunos do primeiro ano. Compreendíamos
também que, antes de julgarmos por que o nosso aluno entende algo de
determinada forma, devemos investigar o porquê, pois ninguém gosta ou deixa
de gostar sem razão alguma. Finalmente tínhamos a confirmação: um trabalho,
dependendo de como é realizado, pode levar ao gosto, ou ao desgosto literário,
pode afastar ou aproximar o aluno da literatura. Eram depoimentos como esses
que não queríamos construir naqueles alunos.
Livros de poemas
Finalmente chegamos ao ponto de comentar os livros de poemas, que
tinham sido a segunda opção mais assinalada pela turma. A aluna Ru havia
trazido o livro Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, que fazia parte da coleção
Meus primeiros versos – ela o pegara emprestado na biblioteca.
Pedimos para ver o livro e mostramos para os alunos a capa, alguns
poemas, bem como algumas ilustrações. Aproveitamos para ler em voz alta o
primeiro poema do livro: “Colar de Carolina”. Eles fizeram silêncio e ouviram
atentos. Quando terminamos a leitura, a aluna Ed soltou espontaneamente a
seguinte frase: “Eita, chega dá agonia!”. O aluno Ty complementou: “Parece
um trava-língua...”.
Quando questionada sobre a razão da agonia que sentiu, Ed
prontamente respondeu que era por que os sons se repetiam muito. Apesar da
reação aparentemente negativa
32
dos dois alunos, suas colocações eram bem
32
A reação negativa dos leitores faz-nos refletir que um ensino de poesia tradicional, pautado
nos recursos formais do poema, não tende mesmo a lograr êxito, a não ser que tais recursos
estejam associados aos sentidos do poema, ou seja, o conteúdo ligado à expressão
(Hjelmslev), ou o significante aliado ao significado, para lembrar o célebre Saussure.
81
significativas: eles haviam percebido a sonoridade construída pelas inúmeras
aliterações/assonâncias do poema, que tinha mesmo o “trava língua” como um
de seus recursos de construção.
É importante lembrar a seguinte informação: a turma do primeiro ano
vinha experimentando um trabalho oral de leitura literária com a professora
efetiva, que não estava sendo possível imprimir os materiais para os alunos.
Essa situação, que por um lado era complicada, por outro favorecia o
desenvolvimento do “ouvido” dos leitores.
No momento seguinte à leitura de “Colar de Carolina”, perguntamos
acerca de outros poemas que tinham lido, mas eles não souberam, ou não
quiseram, responder. Era intrigante: por que eles haviam assinalado tantas
vezes os livros de poemas no questionário, e agora se calavam acerca deles?
Essa era uma resposta que ainda não tínhamos, porém, mais uma vez íamos
sendo levados a pensar sobre a diferença entre leitura de poemas e
experiência com poemas.
Consideramos a discussão sobre as preferências dos gostos de leitura
dos alunos um momento ímpar dentro do experimento, muito mais proveitoso
do que poderíamos supor. Visivelmente os leitores da turma tinham estado à
vontade naquela aula, porque não estavam falando de terceiros, mas deles
mesmos. A estratégia estava funcionando como firme pilar para o início do
trabalho com a poesia, que aconteceria dali há pouco.
1.2. O contato com a poesia: “Bilhete”, de Mário Quintana
Iniciamos a aula que ocorreu após o intervalo afirmando o quanto aquele
primeiro momento de discussão sobre os gostos de leitura tinha sido
82
importante. Então, anunciamos que ali se iniciava um outro momento, em que
receberiam duas coisas: primeiro, um bilhete, e depois uma carta até então
achávamos que naquela aula daria tempo de trabalhar os dois poemas que
havíamos planejado: “Bilhete”, de Mário Quintana e “Cartas de amor”, de
Fernando Pessoa.
Para começar o trabalho com o poema de Quintana (ver anexo 4),
perguntamos se os alunos haviam escrito ou recebido um bilhete de alguém.
A aluna Sa disse que tinha recebido sim, mas que não podia comentar.
Diante disso, a turma fez um ruído de “hum...”, insinuando que provavelmente o
bilhete era de amor.
Procuramos instigá-los mais a falar: “Quem mais fez ou recebeu um
bilhete e quer contar para gente?” Vieram outras respostas. El disse que sua
mãe costumava deixar-lhe algum bilhete com as recomendações domésticas
do dia, do tipo “Varra a casa e faça o almoço”. Na, por sua vez, disse que
costumava escrever bilhetes para as amigas, dizendo algo como Hoje passo
na tua casa”. E Ni lembrou que quem escreva bilhete para o colega na hora
da aula, em vez de falar oralmente alguma informação. Isso causou um riso na
turma, e em nós também, já que ali havia duas professoras presentes.
Ainda nessa conversa inicial sobre bilhetes bom lembrar que até esse
momento eles não tinham recebido o poema), o aluno Ty disse que eram as
meninas quem costumavam escrever bilhetinhos, porque colocavam “essas
besteiras de amor”. Foi uma ótima oportunidade para questionarmos: “Mas os
meninos não escrevem bilhetes não?” A turma ficou na dúvida, e então alguns
rapazes responderam positivamente. O aluno We confirmou a que tinha
escrito um.
83
Após essa discussão, mostramos aos alunos os bilhetes que
receberiam: eles eram bem coloridos, estavam enrolados com fita e se
encontravam dentro de uma caixa redonda de papelão com tecido no blog
uma foto dessa caixa. A turma ficou entusiasmada e curiosa ao ver os bilhetes,
principalmente quando dissemos que teriam direito de escolher a cor.
Depois da entrega a cada aluno, avisamos que eles poderiam abrir e
fazer uma leitura silenciosa do bilhete; enquanto isso, nós os observávamos
atentamente. É difícil descrever o que vimos, mas nitidamente havia uma
expectativa positiva naqueles jovens leitores. Uns leram o poema rápido, outros
demoradamente. Ouvimos um primeiro suspiro de uma aluna dizendo
“Maravilhoso!”, e depois um leitor dizendo “Fantástico!”. Existiram também
alguns meninos que “torceram a cara”, como se achassem aquilo muito
meloso. Mas a maioria ficou mesmo com os olhos brilhando naqueles dez
segundos de leitura em silêncio.
Fizemos, então, uma leitura oral expressiva
33
do poema “Bilhete”, que
poderia ser acompanhada no papel, ou apenas ouvida por eles. Depois dessa
leitura, os suspiros voltaram a acontecer, especialmente por parte das alunas.
Para engatar uma conversa, perguntamos de que o poema tratava, e
unanimemente disseram que era um texto “de amor”. Em seguida, lemos
novamente o poema, e, verso a verso, fomos fazendo alguns questionamentos,
no intuito de instigá-los a falar: “O eu lírico... é assim que se chama a voz que
fala no poema... escreve esse poema para quem?”. Como ficaram calados,
33
“A poesia tem no ritmo uma de suas grandes cartadas para nos fisgar. Alfredo Bosi (2003)
lembra que se o leitor conseguir dar, em voz alta, o tom justo ao poema, ele terá feito uma
boa interpretação, isto é, uma leitura ‘afinada’ com o espírito do texto. Esta leitura afinada
pressupõe repetidas leituras em que se deverá tentar inflexões as mais diversas de palavras,
frases, do poema como um todo” (PINHEIRO, 2008, p. 24).
84
resolvemos complementar a questão: “Quem escreve o bilhete é um eu lírico
masculino ou feminino, dá para saber?”.
O aluno Ni observou um detalhe significativo: que no verso 7 o eu se
dirigia à sua “Amada”, e, que portanto, poderia ser um homem se
expressando ali. E complementou: “Só se ele for gay, porque tem a palavra
‘Amada’ aqui”. A turma riu. Com a boa argumentação do leitor, derrubaram-se
as possíveis especulações que estavam se formando na turma acerca de um
eu lírico feminino.
Munidos da idéia de um eu lírico masculino, continuamos a perguntar
sobre o texto, sempre relendo os versos: “Se tu me amas, ama-me baixinho /
Não o grites de cima dos telhados” (vs. 1 e 2). Questionamos, então, se
existiam modos diferentes de amar; o que seria, por exemplo, esse “amar
baixinho” do qual o eu lírico falava? Alguns leitores se manifestaram dizendo
que seria um amor “escondido, sem ninguém saber”. Aproveitamos para
perguntar também sobre um modo de “amar altinho”, que não era referido no
poema, mas que poderia ser imaginado. Seguindo o mesmo raciocínio,
afirmaram que seria “uma coisa que todo mundo ia saber”. De fato, como nos
ensina lder Pinheiro, o poema se filia ao “topos do carpe diem”,
especialmente no sentido de uma mensagem de amor que “recusa a
estandardização”, porque prefere ser “sussurro ao pé do ouvido” (PINHEIRO,
2007, p. 91).
É significativo atentar ainda para outro detalhe: no início do poema
aparece o elemento condicional “se”, que coloca o “amar baixinho” como a
própria “prova” ou manifestação do sentimento amor. É como se o sujeito
85
dissesse: “Bem, eu não sei se tu me amas, porém, se me amas mesmo, ama-
me baixinho”.
Nos quatro versos finais do poema, o “se” também está presente, mas
agora em estrutura oracional diversa, embora a ideia de “amor baixinho” de
certa forma permaneça: “Se me queres, / enfim, / tem de ser bem devagarinho,
Amada, / que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...”.
A condição do “querer bem devagarinho” confronta-se antiteticamente
com a afirmação categórica de que vida e amor são breves, e esse “mais breve
ainda”. Ora, era que se esperar que tal brevidade exigisse um amor “bem
rápido”, “apressado”, “dinâmico”, a como maneira de compensar o ritmo
acelerado da existência. Mas não: a compensação, para utilizar o mesmo
termo, parece vir justamente da experimentação de um amor sussurrado,
calmo, demorado, vivido instante a instante, dia a dia, beijo a beijo. O
remetente do “Bilhete”, que à primeira vista não parece exigir grande coisa,
procura na verdade um tipo de amar e querer bastante raros (“baixinho” e
“devagarinho”, respectivamente), que são as duas condições exigidas para a
permanência da relação amorosa.
Voltando ao relato da aula, um dos mais significativos momentos
aconteceu quando comentávamos dois versos centrais do poema: “Deixa em
paz os passarinhos / Deixa em paz a mim!” (vs. 3 e 4). Os questionamentos
que lançamos aos jovens leitores dessa vez foram os seguintes: “Por que será
que o eu lírico está dizendo ‘deixa em paz a mim’ para a sua amada? Será que
ele ama mesmo essa mulher?”. Foi que a aluna La, uma das mais divertidas
da sala, se posicionou afirmando meio em tom de brincadeira que essa mulher
86
para quem o eu lírico escrevia era a sua amante, por isso ele falava sobre esse
“amar baixinho”, “sem ninguém saber”.
Fomos surpreendidos pela colocação da leitora, pois havíamos lido
inúmeras vezes o poema de Quintana, mas nunca sob essa perspectiva.
Imaginávamos sempre um amor entre um homem e uma mulher, mas desde
que fossem namorados, ou casados, não amantes. O modo de ver de La
confrontava nossos próprios valores morais e religiosos, o que era uma
divergência com nós mesmos. As vivências pessoais e códigos coletivos da
leitora estavam sendo acionados para dar vida ao poema e dialogar com ele
(ZILBERMAN, 1989, p. 65).
Meio sem ter o que dizer, lembramos a aluna da necessidade de
comprovarmos as nossas hipóteses de interpretação por meio do próprio texto
literário sinceramente, queríamos ganhar tempo para ver como sairíamos
daquela situação. Ela teria como provar que a mulher era a amante do sujeito?
A leitora manteve-se na argumentação da súplica do eu lírico por um “amor
baixinho”; nas palavras de La, aquilo era “um negócio escondido”.
Tentamos persuadi-la da nossa interpretação (a idéia de professor como
centro da aula de literatura falou mais alto) ao lembrar que o eu lírico chamava
a sua interlocutora de “amada”. Será que ele chamaria sua amante assim? A
turma ficou pensativa, mas não se manifestou. Logicamente nosso contra-
argumento não fora suficiente para fazer La mudar de idéia, e nem mesmo o
poderia. Deixamos a questão em aberto, dizendo que todos precisávamos
pensar mais, conviver mais com o texto para poder afirmar alguma coisa a
respeito. Na verdade estávamos receosos de seguir em frente, porque aquela
leitura era um tanto inesperada para nós.
87
Do lugar de agora, é nítido que deveríamos ter considerado melhor a
resposta da leitora, deixando de lado os nossos preconceitos e encaminhando-
a a um aprofundamento de sua própria leitura, que geraria um crescimento na
interpretação de toda a turma. Afinal, de fato, aquele “personagem” poderia sim
estar se dirigindo à sua amante, bem como à sua namorada ou esposa. O foco
do poema era a relação de amor estabelecida entre homem e mulher, e o
sentimento do eu lírico que colocava a condição do “amor ao do ouvido”
para a continuidade do relacionamento.
1.3. No blog...
A polêmica que deixamos “morrer” na sala de aula sobreviveu no blog.
Como dissemos, havíamos criado esse espaço virtual especialmente para a
turma do primeiro ano, com o foco de debatermos os poemas. O blog já estava
organizado com os primeiros poemas e imagens duas semanas antes do
experimento começar, mas avisamos aos alunos da sua existência no dia
dessa aula. Escrevemos no quadro o endereço eletrônico
www.poesianoprimeiroano.zip.net e convidamos toda a turma, e a professora
colaboradora, para participar.
Essa parte do blog estava organizada assim: vinha primeiro o texto de
Mário Quintana, e logo abaixo a pergunta: “E aí galera, o que acharam do
poema “Bilhete”?
34
O texto foi o recorde de comentários do blog. Abaixo
trazemos os diálogos que se estabeleceram por conta da polêmica leitura da
aluna La. Tudo começou com um comentário feito pela professora
34
Os textos foram retirados do blog do modo como estão lá, ainda que estejam em desacordo
com a variedade padrão da língua portuguesa.
88
colaboradora, que também questionou, assim como nós, a perspectiva da
leitora:
[Professora colaboradora]
Simm... Não poderia deixar de comentar a hipótese de La... O eu-lírico do
poema Bilhete seria uma Amante??!!rsrs Foi uma hipótese interessante
para se discutir, mas a gente pode provar isso no texto??? Isso foi uma
acusação, viu?!rsrs Como você prova essa acusação ao eu-lírico, Hein,
La?? Beijo pra vc, e espero resposta, viu?!
30/04/2009 09:22
Como éramos os mediadores do blog, abaixo do texto da professora
efetiva postamos um comentário
35
que provocasse as colocações dos alunos, e
também de La. Dessa vez fomos mais cautelosos, admitindo a possibilidade da
hipótese dos amantes, mas deixando clara a necessidade de argumentação
consistente:
Eita, essa parte foi polêmica mesmo... =)Será que a gente pode
afirmar com certeza que o eu lírico falando pra sua amante? Por
outro lado, não haveria possibilidade de ser mesmo uma amante?
Comentem, turma! Vcs todos têm direito de se expressar aqui! Vc tb,
viu, La!
Ao ver esse diálogo, o aluno Ni quis dar sua opinião também. Para ele
não havia sustentação para a teoria de La, que aquele “amar baixinho” se
tratava de um amor discreto, só entre os dois, e não de um amor escondido por
serem amantes:
[Ni]
Acho que a teoria da amante ñ e comprovada no texto, na mina teoria o
eu-lírico gosta da pessoa para quem ele manda o bilhete, só que ele quer
um amor resevardo só entre os dois, por isso quando ele fala " ama-me
baixinho" ele tem a intenção de dizer que ñ quer que todas as pessoas
saibam que há uma relação de amor entre os dois
30/04/2009 21:56
35
Os nossos comentários virtuais aparecerão sempre em negrito, para diferenciação dos
demais.
89
Finalmente, alguns dias depois da positiva provocação no blog, La
sentiu-se à vontade para responder alguma coisa acerca da polêmica. Eis a
sua resposta à professora colaboradora:
[La :)]
oiiiiiii PROF. AI TA A RESPOSTA NO MOMENTO EM QUE ELE PEDIU
PRA ELA DEIXAR O EM PAZ Q A VIDA É BREVE E O AMOR MAIS
BREVE AINDA ,EU ENTEDIR Q É UM AMOR PROIBIDO COMO ELA
FOSSE SUA AMANTE E NO FUTURO TALVEZ ELES REALMENTE
FICASSEM JUNTOS E ASSUMISSE ESSE AMOR PRA TODOS...
BJINHOS.... S2
07/05/2009 19:33
Como se pode ver, a resposta da leitora foi bem consistente. O mais
significativo é saber que La sentiu-se motivada a reler o poema, na tentativa de
achar ali as “pistas” para a sua argumentação. No seu modo de leitura,
influenciado diretamente por seus valores e cultura, a relação amorosa do
poema “Bilhete” era um amor proibido, mas nem por isso menos digno do que
os outros amores. Interessante também é notar a ousadia da aluna, que em um
universo de cerca de trinta alunos, foi a única que defendeu essa ideia, e o fez
com veemência.
À professora efetiva restou apenas modalizar sua colocação, já que La a
convencera de outra possibilidade de leitura, assim como tinha acontecido
conosco:
[Professora colaboradora]
Oi La...analisando por esse lado, faz sentido, mesmo...Vc até prova com
partes do texto...Mas será que qndo lemos o todo do poema ainda fica
essa impressão?? è só pra vc pensar... Essa sua justificativa é realmente
interessante!! Bjo, La...e até mais..
08/05/2009 09:26
90
De “detentoras do saber”, passávamos à posição de “aprendizes dos
alunos”; ao ouvir a voz dos jovens leitores, estávamos crescendo, e não
diminuindo: “não há docência sem discência, as duas se explicam e seus
sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de
objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina
ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 23).
1.4. Reflexão sobre a aula
A aula com o poema “Bilhete” era a primeira que ministrávamos
procurando seguir uma metodologia diferente, porque privilegiava o leitor como
centro do trabalho com a literatura. Para se ter uma ideia, em todas as outras
aulas de poesia que havíamos ministrado aaquele momento, costumávamos
levar uma folha contendo inúmeras anotações no poema a ser trabalhado,
como se a análise estivesse ali pronta para ser repassada para os alunos
alunos mesmo, e não leitores.
Na turma do primeiro ano, porém, impomos a nós mesmos o desafio de
levar a folha contendo apenas o poema, para não cair na tentação de “jogar”
para os alunos as metáforas, as assonâncias, as rimas, a metrificação, sem
que existisse uma ligação entre esses recursos estilísticos e a interpretação do
texto poético.
Nessa nova perspectiva de trabalho, a leitura solitária, de investigação
do texto, continua sendo indispensável ao professor, não no sentido de achar
uma interpretação a ser imposta ao alunado, mas de ter, anteriormente, a sua
própria experiência com o texto. Afinal, o professor dificilmente conseguirá que
seus alunos se tornem leitores literários, se ele mesmo não o for primeiro.
91
O fato é que as leituras sobre a Estética da Recepção e as reflexões
sobre o ensino de literatura abriam os nossos sentidos e nos faziam
experimentar uma nova ordem de ações: estávamos “falando menos” e
“ouvindo mais”, e a aula com “Bilhete” era uma amostra de como esse método
funcionava melhor que o outro.
Entendíamos pouco a pouco que a nossa magna função como
professores de literatura era mediar o contato dos alunos leitores com o texto;
se estivéssemos lidando com cinema, diríamos que eles seriam os
protagonistas, e nós, os diretores. Ficaríamos nos bastidores, e eles, em
holofotes.
2. MÓDULO II (06/05/09)
Para esse módulo, havíamos planejado três ações principais (ver anexo
3): conversar sobre o blog; continuar propiciando aos alunos a convivência com
a poesia lírico-amorosa, desta feita através do poema “Cartas de amor”, de
Fernando Pessoa; iniciar o trabalho de convivência com a poesia
metalinguística, o foco central do experimento, por meio do “Poema obsceno”,
de Ferreira Gullar.
2.1. Depois do bilhete, a carta
Desde a aula anterior, em que havíamos trabalhado o poema “Bilhete”,
de Mário Quintana, a turma do primeiro ano estava ansiosa para ler a carta que
entregaríamos em um envelope. Como o intervalo entre as aulas ministradas
era de uma semana, aproveitamos o espaço do blog para criar um ambiente de
92
expectativa acerca do que poderia haver dentro dos envelopes. Assim,
colocamos uma foto das cartas e os seguintes dizeres abaixo:
Galerinha, tá chegando o dia da carta hein?! É quarta-feira...
Alguém imagina o q é que tem dentro dela? Tentem adivinhar!!!
Os alunos Ni e Ar, os que mais comentavam no blog, fizeram suas
apostas: o primeiro estava esperando que as cartas contivessem “algo ligado a
romance”, assim como tinha acontecido com os bilhetes, pois esse seria o
tema que chamaria a atenção da turma. o outro aluno demonstrou o desejo
de que as cartas contivessem algo “bem dramático”, o que se encaixaria com a
sua maneira de ser Ar era um aluno de estilo gótico, que se vestia de roupa
preta e adorava ler gibis com histórias de suspense e terror. Vejamos o diálogo
virtual estabelecido entre eles:
[ni]
(...) espero o conteudo na carta esteja ligado a romance, pois esse tema
sempre chama atenção da sala, especialmente as meninas da sala
02/05/2009 19:55
[ar]
poxa esse ni é viciado num romance, vamos mudar espero q venha um
conteúdo bem dramático!!!
05/05/2009 07:21
[ni]
ñ vou negar q gosto de romance é meu gênero literário favorito msm, mas
se haver um conteudo em q haja drama tbm gostarei pois gosto de
histórias tristes tbm
05/05/2009 21:16
Alguns dias depois, chegamos à turma do primeiro ano com as tão
esperadas cartas. Como os dois leitores haviam dado suas opiniões no blog,
aproveitamos para iniciar o trabalho com as “Cartas de amor” (ver anexo 4) a
partir daí, indagando se alguém tinha uma opinião diferente. A turma preferiu
93
não se posicionar, dizendo apenas que dentro dos envelopes deveria haver um
poema.
Entregamos as cartas avisando que as mantivessem fechadas até que
todos estivessem com o material em mãos. Dissemos então que podiam ler
silenciosamente, e, como era de costume, ficamos observando a reação deles.
Os alunos demoraram a ler o texto, tanto porque era maior que “Bilhete”,
quanto porque lhes pareceu mais obscuro. Quando iam terminando a leitura,
diziam expressões do tipo “Não entendi foi nada...”, “Nãaao....”; “Só tem
ridículo, ridículo...”. Em contrapartida, o aluno Je interrompeu por alguns
instantes a leitura, olhou para nós e disse: gostando!” Ao final, falou com
empolgação: “Massa!”.
Percebemos, pois, que boa parte dos meninos teve uma boa impressão
do poema, parecendo se identificar com a proposta do eu lírico. Significativo é
pensar que, em “Bilhete”, a reação foi inversa: ao que parece, as meninas se
identificaram muito mais com o poema de Quintana.
Depois desse momento fundamental de captar a reação dos alunos,
dissemos à turma que, se o poema parecia difícil, nós iríamos compreendê-lo
juntos. O leitor Je, aquele que tinha exclamado “Massa!”, aproveitou para dizer
que só não tinha entendido a última parte do texto, a que falava de “esdrúxula”,
e foi logo nos perguntando acerca do significado da palavra. Dissemos que ele
deveria esperar um pouco, e que no momento certo descobriríamos o sentido
do vocábulo no poema.
As reações negativas da turma do primeiro ano às “Cartas de amor” nos
surpreenderam um pouco; até achávamos que eles ficariam meio perplexos
com a primeira leitura do poema, principalmente depois de tanta expectativa
94
em torno dos envelopes, mas, por se tratar ainda do tema “amor”,
imaginávamos que a recepção seria outra.
Mas as alunas da sala tinham razão: o poema de Fernando Pessoa se
inscrevia em uma perspectiva amorosa bem diferente do poema de Quintana.
Enquanto “Bilhete” trazia a doce voz do eu rico pleiteando o “amor baixinho”
de sua amada, o eu lírico da carta vinha com uma voz de desdém em relação
aos escritos de amor, que eram, pelo menos à primeira vista, “naturalmente
ridículos”.
Aquela situação de resistência das alunas e de alguns poucos alunos
nos “desbaratou” um pouco, pois era muito mais cômodo trabalhar com leitores
“abertos” ao poema. Sentimos uma espécie de peso: será que eles
participariam da aula, ou teríamos de fazer a interpretação sozinhos,
justamente a atitude da qual desejávamos fugir?
Na continuidade da aula, realizamos uma leitura oral do poema,
procurando dar uma entoação que viesse a transmitir os sentimentos do eu
lírico de “Cartas de amor” (quais eram esses sentimentos, s os
descobriríamos juntos). Isso parece ter ajudado, pois alguns alunos
começaram a perceber o tom de ironia do texto. E então, verso a verso, estrofe
a estrofe, fomos perguntando aos leitores as suas impressões, a fim de captar
o seu modo singular de leitura e compreensão do poema.
Ao debatermos o primeiro verso, “Todas as cartas de amor são
ridículas”, os leitores da turma discordaram da posição do eu lírico. Do alto dos
seus 16 anos, a maioria disse que o amor o era um sentimento ridículo, e
que, portanto, as cartas de amor também não o eram. A discordância da turma
era ótima, porque conduzia os leitores a caminhos adequados de interpretação;
95
afinal, o próprio eu negaria adiante a sua primeira afirmação, dizendo que “as
cartas de amor, se há amor”, tinham “de ser ridículas” (vs. 5 e 6).
Outro momento significativo da aula aconteceu quando indagamos
acerca da idade do sujeito, ou seja, se existiam pistas no texto que
comprovavam se tratar de alguém jovem ou velho. Eles releram
silenciosamente os versos por algum tempo e então um primeiro aluno afirmou:
“Ele é mais velho”. Ni concordou, e para argumentar, utilizou o verso 3
“Também escrevi em meu tempo cartas de amor” que trazia na expressão
“meu tempo” uma sinalização para um momento passado.
No esteio da leitura de Ni, o leitor We citou os versos 11, 12 e 13, que
traziam uma ideia semelhante: “Quem me dera no tempo em que escrevia /
sem dar por isso / cartas de amor ridículas”. Por último, o aluno Je ratificou a
teoria dos meninos, utilizando os versos 15, 16 e 17: “As minhas memórias /
dessas cartas de amor / é que são ridículas”.
Essa interpretação coletiva era uma prática corrente em nossas aulas.
Os leitores mais participantes eram quase sempre esses três rapazes citados,
além de Ar, que também sentava à frente, e Ty, que sentava ao fundo da sala.
Quando íamos indagando sobre os poemas, eles se sentiam instigados a
responder, e geralmente iam acrescentando informações ao que os colegas
diziam, ou discordando uns dos outros, o que também era muito positivo.
Logicamente que queríamos a participação de todos os leitores, mas
respeitávamos o fato de que nem todos se sentiam à vontade para falar, para
expor oralmente a sua percepção sobre os textos.
Mas voltando à leitura dos alunos acerca da possível idade do eu lírico
de “Cartas de amor”, temos que dizer que a argumentação dos leitores deixou-
96
nos satisfeitos. Para sermos sinceros, nem nós havíamos percebido que
existiam tantos versos que comprovavam a condição etária madura do sujeito,
e o tom até certo ponto memorial que perpassava o poema. Realmente, eles
estavam nos ensinando.
No avanço do trabalho com o texto de Pessoa, perguntando verso a
verso, relendo estrofes oralmente, pacientemente, foi possível à turma do
primeiro ano perceber o movimento de idas e vindas do eu lírico, que muda a
sua percepção a respeito do que é efetivamente ridículo.
Em relação a essa mudança de perspectiva, houve um momento da aula
que consideramos exemplar, o qual se deu quando o leitor Je fez uma aguçada
colocação: na sua leitura, o eu lírico começava dizendo que as cartas de amor
eram ridículas, depois que as criaturas que nunca escreveram essas cartas é
que eram ridículas, e então que as memórias dessas cartas é que eram
ridículas. Em outros termos, ele achara a principal chave do poema, ao
perceber que o eu lírico não compartilhava de uma visão ridícula acerca do
amor, como uma primeira leitura superficial parecia apontar. Ao final de tudo se
entendia que ridículo mesmo era não amar mais, e viver esse sentimento agora
apenas através das memórias.
Quando chegamos à parte final do poema, onde aparecia a expressão
“palavras esdrúxulas”, utilizamos a seguinte estratégia: pedimos para que
algum leitor se voluntariasse a tomar o dicionário (nós havíamos levado um),
procurar o significado do vocábulo e ler em voz alta para a turma. Assim, a
turma ficou sabendo que “esdrúxulo” nada mais era que “esquisito” ou
“excêntrico”, palavras bem conhecidas deles. Com essa informação, voltamos
então aos três versos finais do poema, a saber: “(Todas as palavras
97
esdrúxulas, / como os sentimentos esdrúxulos, / são naturalmente ridículas)”.
Em conjunto, à guisa de conclusão, chegamos ao entendimento de que um
sentimento como o amor era, por sua própria natureza, ridículo, no sentido de
diferente mesmo, único e excêntrico. Um esdrúxulo que todo mundo um dia,
mais cedo ou mais tarde, iria experimentar.
2.2. Rápida reflexão
Ficamos satisfeitos com a aula sobre “Cartas de amor”, especialmente
porque ela tinha sido construída com os alunos, e não exposta a eles.
Felizmente havíamos aprendido algo com a situação anterior, que envolvia a
leitora La e sua “tese” acerca dos amantes de “Bilhete”. Agora estávamos mais
atentos às colocações dos alunos, não para aceitar tudo o que dissessem, mas
para ao menos dar-lhes a oportunidade de falar, mesmo que não fosse aquilo
que nós queríamos ouvir.
Embora os jovens leitores tivessem se mostrado mais abertos e
participativos ao trabalho com o poema de Quintana, o texto de Fernando
Pessoa dava-lhes a oportunidade de vivenciar uma outra experiência acerca do
amor, nem pior nem melhor, apenas diferente. Foi o que percebemos depois,
pelas colocações de alguns alunos no espaço virtual.
2.3. No blog...
Ainda no mesmo dia da aula, à noite, postamos o poema “Cartas de
amor” no blog, fazendo as seguintes perguntas:
98
IMPORTANTE!!!!!!!
Agora eu quero saber: todas as cartas de amor são mesmo ridículas?
Seja qual for a resposta, tem que argumentar viu?
Quem já escreveu ou recebeu uma carta de amor e quer compartilhar
com a gente?
Os questionamentos que fizemos não foram respondidos pelos leitores;
eles preferiram comentar o poema a falar de suas experiências pessoais sobre
cartas de amor, o que para nós foi ainda mais significativo. Mais uma vez os
alunos que deram suas opiniões foram Ni e Ar. Primeiro trazemos todo o
diálogo virtual travado, e depois, a análise acerca dele:
[ni]
cartas de amor, também é um poema muito bom, confesso que no começo
é difícil de entendê-lo (e tive essa dificuldade tbm) mas depois de reler, das
explicações e ajudas de Mabel ele ficou bem claro e quase foi melhor que
poema obsceno
36
que na minha opinião foi o melhor poema lido em sala
de aula até hoje
07/05/2009 22:00
Aquela reação de estranhamento q vcs sentiram ao ler "Cartas de
amor" pela primeira vez é bem normal. Vc notou que era isso mesmo
que o eu lírico queria causar no leitor? O poema é muito bom, porque
a gente começa achando uma coisa e termina achando outra... É meio
que uma surpresa pra nós!
[ar]
tbm gostei afinal um poema sem aver alguma coisa estranha ñ tem graça,
principalmente o primeiro verso q expressa bastante bem q uma carta de
amor é uma coisa ridícula q agente só se dá conta depois...
11/05/2009 17:58
Realmente, diante do estranho temos uma curiosidade maior né? Aí o
poema fica sendo uma espécie de desafio... Senti que vcs,
principalmente os rapazes, gostaram muito de "Cartas de amor". O
mais legal é que o eu lírico nos surpreende, lembra? Ele acha mesmo
as cartas de amor tão ridículas quanto diz no primeiro verso?
[ni]
só respondendo a "deixa" no seu último comentário, não no final o autor ou
o eu-lírico na verdade sente falta da sua adolescência ou do passado
quando ele escrevia cartas de amor
12/05/2009 20:46
36
O Poema obsceno”, de Ferreira Gullar, primeiro texto metalinguístico levado ao primeiro
ano, foi trabalhado no mesmo dia de “Cartas de amor”, por isso a referência do aluno.
99
Como se nota, o aluno Ni falou de sua dificuldade inicial de compreender
o texto de Fernando Pessoa, mas também sinalizou para uma compreensão
acerca dele, que adveio da releitura e debate em sala de aula. Na nossa
resposta ao leitor, aproveitamos para falar que aquela reação de
estranhamento experimentada pela turma era uma das sensações que o eu
lírico do poema queria causar em nós, e isso era um dos motivos que faziam o
texto tão intrigante.
o leitor Ar disse ter gostado do poema exatamente pelo fato de haver
alguma estranheza nele. Em outros termos, “Cartas de amor” tinha “graça”
porque fugia da previsibilidade e da mesmice, e não esqueçamos que Ar era
aquele sujeito gótico que achava uma bobagem as histórias melosas de amor.
Como se vê, ainda estávamos dentro do tema “amor”, mas focalizado sob uma
perspectiva bem diferente de “Bilhete”, que agradava a uns, e desagradava a
outros.
Na nossa resposta ao aluno Ar, dissemos que o poema de Pessoa
parecia uma espécie de “desafio” aos seus leitores. Não perdemos também a
oportunidade de lançar uma questão para os jovens leitores, cuja resposta nos
daria uma ideia de como teriam compreendido o poema em sua totalidade:
“Ele” (o eu lírico) “acha mesmo as cartas de amor tão ridículas quanto diz no
primeiro verso”?
Apenas o leitor Ni respondeu à nossa pergunta, e suas palavras
mostraram que ele estava indo em caminho adequado: na verdade o eu lírico
sentia falta do passado adolescente em que escrevia cartas de amor, e nisso
residia o ridículo de agora. O que fora vivência antes, hoje era uma saudosa
recordação.
100
2.4. Uma base construída
O trabalho com os poemas “Bilhete” e “Cartas de amor” funcionou como
a construção de um alicerce firme, para que em cima dele edificássemos a
experienciação com os poemas metalinguísticos de Ferreira Gullar. Como
esperávamos, os poemas de amor haviam aberto a “porta” do gosto literário da
turma do primeiro ano. Agora era a hora de avançar, oportunizando aos jovens
leitores a vivência/convivência com um novo tema da poesia: a própria poesia.
2.5. A estreia do tema “metalinguagem”
No mesmo dia em que trabalhamos o poema “Cartas de amor”, de
Fernando Pessoa, levamos também o “Poema obsceno”, de Ferreira Gullar
(ver anexo 4), que foi apresentado aos alunos na aula que aconteceu após o
intervalo.
Com o texto de Gullar, o nosso objetivo geral era propiciar aos jovens
leitores a convivência com a poesia metalinguística, por meio dos seguintes
objetivos específicos: ler e conversar sobre o poema; perceber possíveis
diferenças, especialmente a temática, entre os poemas já trabalhados e o
metalinguístico; desmitificar a idéia ingênua de que poesia podia versar
sobre o amor.
Começamos a aula propriamente dita escrevendo com letras bem
grandes o título “Poema obsceno” no quadro. Isso chamou um pouco a atenção
dos alunos, que iam paulatinamente se dirigindo à sala. Uma outra informação
importante a ser colocada é que a professora efetiva, por motivos pessoais,
teve de se ausentar da escola nesse dia. De certa forma, sentimo-nos mais à
101
vontade com a turma, assim como os alunos pareceram mais confortáveis em
nossa presença.
Quando avisamos que leríamos um poema com aquele título escrito no
quadro, muitos alunos se mostraram surpresos. Então, aproveitamos o
momento para perguntar o que seria “obsceno” para eles. We prontamente nos
advertiu: “Não faça o povo pensar nisso não, professora...”. Achamos
pertinente a colocação do leitor porque ela instigou ainda mais a curiosidade da
turma. De que assunto “obsceno” esse poema trataria?
Sentindo que o momento de expectativa era significativo, perguntamos
novamente o que seriam assuntos obscenos para os alunos e, dessa vez,
fomos anotando no quadro as respostas. Eles citaram: “safadeza”, “sexo”,
“gestos obscenos” e “palavrões”, ou seja, preponderantemente associaram
obscenidade ao desejo sexual, e a algum tipo de trangressão à ordem.
“Mas será que havíamos levado um poema falando de alguma dessas
coisas escritas no quadro?”. Foi o outro questionamento que fizemos a eles. A
reação de alguns alunos foi de riso; houve alguém que respondeu que não,
pois havia “muita gente de menor na sala”.
Como queríamos uma aula dialogada, e não expositiva, aproveitamos
para questioná-los mais uma vez: “Se não era sobre aqueles assuntos, sobre o
que o ‘Poema obsceno’ trataria? O que poderia ser obsceno, além daquilo?”.
Os alunos não mais se manifestaram. Na percepção deles, não havia mais
nada obsceno além dos elementos já apontados.
Após esse momento introdutório, entregamos a cada aluno a folha que
continha o poema, e avisamos que deveriam fazer uma leitura silenciosa dele.
Essa folha vinha com uma imagem em preto e branco contendo o nome
102
“censurado”, e então, logo abaixo, vinha o texto de Gullar (rever anexo 4). Essa
foi apenas mais uma estratégia para tentar chamar a atenção da turma.
Enquanto liam, ouvimos muitos comentários que demonstravam
incompreensão do texto, como por exemplo: “Oxe”; “Não entendi nada”; “O que
é que ele dizendo?”. Pelo que percebemos depois, pouquíssimos alunos
conseguiram, nessa primeira leitura, ter uma ideia mais clara do poema de
Ferreira Gullar, o que é bastante compreensível.
Publicado no livro Na vertigem do dia (1980)
37
, o “Poema obsceno” se
constitui como um canto de protesto de um eu rico identificado com o “lado
escuro do país” (v. 27), em meio ao contexto de opressão e censura do regime
militar. Ali, Ferreira Gullar faz um poema tão obsceno “como o salário de um
trabalhador aposentado” (v. 25).
A percepção desses elementos, no entanto, não é clara à primeira vista.
Note-se que o eu lírico começa o texto com uma convocação para uma festa
(v. 1), enquanto ele mesmo soca o “pilão”, o “surdo poema” (vs. 16 e 17). Ora,
se festa, então está tudo bem, não? Essa ironia do poeta parece ter sido o
fator de maior dificuldade dos alunos na compreensão do poema.
Aliás, é significativo dizer que não ouvimos nesse momento inicial em
que os alunos liam silenciosamente o texto, nenhum comentário positivo acerca
dele, diferentemente do que ocorrera com o poema “Bilhete”, de Mário
Quintana. Pelo que podemos entrever, o texto de Gullar causou um
estranhamento nos alunos, pois não puderam ver posta ali a noção de obsceno
que tinham. Nos termos da Estética da Recepção, houve algum
rompimento/ampliação do horizonte de expectativa (JAUSS, 1994) da turma,
37
Todos os livros e poemas de Ferreira Gullar citados neste trabalho estão na edição Toda
Poesia (2004).
103
pois se depararam com uma noção nova de obscenidade, proveniente de uma
tensão entre o significado usual da palavra, e o sentido peculiar que ela
assume no contexto do poema.
Na continuação da aula, quando realizamos uma leitura oral do texto,
sentimos que alguns alunos começaram a entender melhor a proposta do eu
lírico procuramos fazer uma leitura expressiva, como um discurso eloquente,
um canto de protesto. Questionados se seriam capazes de apontar a
obscenidade sobre a qual o poema tratava, o aluno Je releu em voz alta os
versos finais: “terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / e
espreitam”, e falou um pouco sobre as desigualdades sociais que tornam o
Brasil um país dividido em lados.
Então, retornamos aos versos iniciais e fomos perguntando acerca
deles, pois o poema ainda parecia um tanto obscuro para a turma. Dessa vez,
chamamos a atenção para as adjetivações usadas pelo eu lírico para se referir
ao próprio poema que escrevia: “poema duro” (v. 3), “poema-murro” (v. 4) e
“sujo” (v. 5). “O que seria, por exemplo, esse “poema murro?”.
Como não se sentissem prontos a responder, tomamos apenas a
palavra “murro”, e perguntamos sobre o seu significado. Prontamente alguns
falaram acerca de bater, socar alguém ou alguma coisa, e, então,
questionamos novamente por que o eu fazia essa comparação. Os leitores
compreenderam que o “Poema obscenoera um “tapa na cara” daqueles que
fingem que o país é formado por um único lado, o da claridade. Sim, havia um
lado escuro, que também precisava ser visto.
104
Com a expressão “poema sujo”
38
, fizemos o mesmo procedimento. Para
um dos alunos, o poema era sujo porque versava sobre esse “lado escuro do
país”, entendido como “podre” para muita gente. Aproveitamos para ampliar
essa discussão: de fato a sujeira física podia existir em muitos lugares, mas
havia uma outra sujeira, a moral, e era essa que o eu lírico estava denunciando
com fervor.
Na segunda estrofe, destaque para a conversa que tivemos acerca das
referências do samba. Note-se que o eu lírico fala de uma festa frequentada
por nomes como Bethânia, Martinho, Clementina, Estação Primeira de
Mangueira, Salgueiro, gente de Vila Isabel e Madureira os artistas estão na
mesma condição da gente simples dos bairros populares do Rio de Janeiro.
Os alunos conseguiram identificar todas as referências, exceto
“Clementina”, sobre quem nós pesquisamos no momento de preparação da
aula. Explicamos, então, a importância de Clementina de Jesus para o samba
brasileiro, e a necessidade de nos abrirmos para conhecer personagens como
ela, que fazem parte da história do nosso país.
No blog, colocamos o link Quer saber + sobre a Clementina citada no
“Poema obsceno???, o qual remetia a uma rápida biografia da sambista. Os
alunos que acessaram o link puderam saber que, antes de ser reconhecida
como cantora, Clementina fora por vinte anos empregada doméstica e
lavadeira, ou seja, conhecia de perto o “lado escuro do país” ao qual o eu lírico
se referia.
38
Embora não tenhamos feito nenhuma referência na turma do primeiro ano, vale lembrar que
Ferreira Gullar publicou um livro intitulado Poema sujo (1975), um longo poema escrito
enquanto o maranhense esteve exilado em Moscou. Para grande parte da crítica literária, o
livro é considerado a obra prima do autor.
105
Após a conversa sobre os nomes citados no poema, questionamos a
turma por que razão o eu lírico trazia referências do samba, e não de outro
ritmo qualquer. Para o aluno Ty, isso acontecia porque o texto estava falando
do Rio de Janeiro e os demais alunos concordaram com essa colocação.
Procuramos instigá-los a algo mais, porém, vendo o silêncio da turma do
primeiro ano, respondemos que o samba era um ritmo realmente nascido do
povo, que possivelmente identificaria bem aqueles que habitam o lado da
escuridão; a “bossa-nova”, por exemplo, não causaria o mesmo efeito.
Ao ouvir essa informação, percebíamos um olhar de surpresa no rosto
de alguns leitores. Talvez eles não imaginassem quantos elementos existiam
naqueles versos, naquelas imagens, na voz do eu lírico. Aos poucos, podiam
perceber que a interpretação de um texto literário passava por um caminho de
mão dupla: o leitor questionando o texto; o texto questionando o leitor. A esse
respeito, aliás, vale lembrar de Terry Eagleton (2001, p. 98): “aquilo que a obra
nos ‘diz’ dependerá (...) do tipo de perguntas que somos capazes de lhe fazer”.
Na última estrofe, conversamos acerca das metáforas “pilão” e “surdo /
poema” (vs. 16 a 18). Na tentativa de aproximarmo-nos das imagens criadas
pelo eu lírico, refletimos primeiramente acerca do objeto “pilão”, e para a nossa
surpresa, muitos alunos tinham visto aqueles pilões grandes que ainda hoje
existem em zonas rurais. Assim como o milho ou o café são pilados, o eu lírico
de “Poema obsceno” estava pilando alguma coisa: quem sabe a indiferença
dos que habitam o lado “claro” do país, quem sabe a frieza dos que pagam
sem culpa o obsceno “salário de um trabalhador aposentado” (v. 25).
Mas por que será perguntamos à turma que o eu lírico está pilando
um “surdo poema”? O aluno Je justificou de forma simples, mas pertinente: “É
106
porque ninguém quer ouvir...”. De fato, aquele canto de protesto do eu lírico
seria ouvido por poucas pessoas, e nós éramos algumas delas. Os que
habitam o lado claro do país não poderiam ouvir por causa da indiferença; os
do lado escuro, porque aquele canto não tocaria no rádio (v. 19). Estaria
escrito, mas quem ali poderia ler?
A parte final do poema, mais precisamente os sete últimos versos, foi
melhor compreendida pelos alunos, possivelmente por dois motivos: primeiro,
devido ao percurso anterior de conversa sobre o texto, e, segundo, porque é ali
que o eu lírico revela a razão da obscenidade do poema. Em outras palavras, é
naquele momento que o título e o texto o de fato concatenados. Tivemos a
sensação de que, apenas nessa altura da aula, a turma do primeiro ano
conseguiu vislumbrar de fato a proposta do eu lírico de “Poema obsceno”.
2.6. Reflexão sobre a estreia
O “Poema obsceno” era o terceiro texto poético que trabalhávamos no
experimento, e o primeiro de caráter metalinguístico. Intencionalmente,
preferimos levar para os jovens leitores um poema em que a metalinguagem
estivesse associada a outro tema no caso desse, a crítica social. Assim, a
aula se configurou como uma espécie de “aperitivo”, uma preparação para que
no momento apropriado viessem poemas cujo caráter metalinguístico estivesse
mais evidenciado.
Apesar da participação da turma não ter sido tão intensa, pois quase
sempre os que falavam eram aqueles quatro alunos que se sentavam à frente,
conseguimos visualizar um crescimento naquela aula. De uma situação
adversa, em que a quase unanimidade dos leitores disse não ter compreendido
107
o poema na leitura silenciosa, saltamos para uma situação bem mais favorável,
em que foram capazes de se manifestar acerca de imagens do texto, chegando
a uma compreensão parcial através da conversa coletiva.
Um outro fato foi também positivo: dois alunos que se sentavam ao
fundo da sala, e que vinham se mostrando bastante desinteressados em
nossas aulas, estiveram atentos à conversa sobre o “Poema obsceno”, talvez
porque se identificassem com aquela realidade apregoada pelo eu lírico, sendo
também parte daquele “lado escuro do país”. Eles não chegaram a expor sua
voz na turma, mas era nítido que, pela primeira vez desde que o experimento
começara, estavam realmente presentes na sala de aula.
Ainda assim, a inevitável comparação entre a aula desse dia, e aquelas
em que levamos os poemas de amor, fez-nos sair da escola com um
sentimento de decepção. Nitidamente a turma do primeiro ano sentira-se muito
mais instigada a debater “Bilhete”, de Mário Quintana, e “Cartas de amor”, de
Fernando Pessoa, do que “Poema obsceno”, de Ferreira Gullar.
Analisando a situação do lugar de agora, podemos inferir que o tema
“amor” fazia muito mais parte dos “códigos coletivos” (ZILBERMAN, 1989)
daqueles jovens leitores do que o tema “metalinguagem”; e diante do novo, ou,
pelo menos, do relativamente novo, sempre nos mostramos meio acanhados.
Naquele momento do experimento, porém, podíamos pensar que o
lirismo social que perpassava o “Poema obscenotrazia em si uma propensão
à discussão, por isso o nosso estranhamento diante da pequena participação
dos alunos. Ficamos receosos: se no trabalho com um poema lírico-social
como aquele, em que a metalinguagem era mais um pano de fundo, os alunos
108
haviam ficado calados, o que fariam em poemas com uma dimensão
metalinguística mais forte, às vezes até filosófica?
Preferimos não pensar tanto nisso, e adotar a postura de quem estava
testando, fazendo um experimento que podia ou não dar certo. De todo modo,
nos motivava saber que os alunos estavam amadurecendo como leitores, e
que, aula a aula, estavam conseguindo ir mais longe no exercício da
interpretação. Além disso, nós também estávamos amadurecendo como
professores, ao analisar criticamente a nossa prática.
A essa altura não entendíamos ainda – hoje já podemos – que os alunos
haviam se sentido confrontados com o poema de Gullar, exatamente aquela
sensação que o eu lírico desejava provocar em seu leitor. O texto “mexera”
com os valores da turma, fazendo-os pensar se tantas vezes não eram também
surdos àquele grito de protesto, se tantas vezes não ajudavam a manter um
lado escuro no país. E aqui lembramo-nos de uma reflexão exemplar de
Haquira Osakabe, que de certa maneira explica o que se processava naqueles
jovens leitores a “extemporânea” e “inadequada” poesia estava
sensibilizando-os, acordando-os para o exercício da crítica, transformando-os:
(...) nada mais extemporâneo do que a poesia, nada mais
inadequado do que ela nesta época em que critérios como
utilidade e eficácia impõem-se como determinantes dos valores
de prestígio. E nada mais fecundo do que ela para embasar o
exercício crítico e a perspectiva transformadora (OSAKABE,
2005, p. 54).
Do lugar em que estamos agora, refletindo sobre a situação, podemos
entender que o silêncio pode ser bastante positivo, como tempo necessário à
maturação das sementes lançadas em terra. Através do blog, os próprios
alunos nos mostraram isso.
109
Vale lembrar também que uma primeira leitura do poema
39
, por mais
aplicada que seja, sempre nos revelará pouco acerca dele, pois o que
desvenda o texto aos nossos olhos é a convivência demorada com ele, é o
diálogo sem hora para acabar. O blog era um instrumento significativo porque
fazia os leitores voltarem ao poema sem a pressão de estarem rodeados pelos
olhos e ouvidos do professor e dos colegas. Assim, podiam rever suas
hipóteses de leitura com mais calma, confrontar seu modo de ler com o dos
outros, preencher espaços ainda vazios, e até mudar sua visão em relação ao
texto, passando a gostar dele, ou mesmo rejeitando-o ao deparar-se com
compreensão nova de leitura. Talvez muito mais do que na sala de aula, ali os
leitores conseguiam ser eles mesmos.
2.7. No blog...
No mesmo dia em que ministramos a aula, ao chegarmos em casa
postamos o “Poema obsceno” no blog, com o seguinte comentário:
IMPORTANTE!!!!
Iiiii, vcs viram “obscenidade” na aula de hj? Kkkkkkk. Quem gostou
desse poema? E que parte mais gostou?
39
Mais uma vez é Roland Barthes quem nos esclarece. O teórico distingue dois modos de
leitura: no primeiro, a que podemos chamar “leitura superficial”, o aluno vai direto às
articulações da anedota, considerando a extensão do texto, mas ignorando os jogos de
linguagem. Nesse vel, o aluno capta apenas o elementar, ou seja, o sentido global do texto
literário. No segundo modo de leitura, a que denominaremos “leitura profunda”, o aluno “não
deixa passar nada; pesa, cola-se ao texto, lê (...) com aplicação e arrebatamento, apreende em
cada ponto do texto o assíndeto que corta as linguagense não a anedota” (BARTHES, 1987,
p. 19). Nesse nível o leitor está atento aos detalhes mais ínfimos do texto, quase como se
fosse um detetive que precisa desvendar um mistério, e para tanto, não deixa passar nada.
Vale lembrar, porém, que para se chegar à leitura profunda, necessário se faz passar pelo
estágio da primeira leitura. A questão é, portanto, não ficar apenas nesse primeiro passo.
110
Eis a resposta do aluno Ni, um dos leitores mais participantes na aula
presencial:
[ni]
Na realidade nem sei o que comentar sobre este poema, ele é muito
diferentes do que havíamos lido na sala de aula e por isso tamanha minha
fascinação por ele. Verdadeiro, brasileiro e voltado para os pobres e de
certa forma para elite da economia brasileira para que estes abram os
olhos do que acontece no Brasil, mas afinal como o própio Ferreira Gular
diz em um trecho do poema "terá o destino dos que habitam o lado escuro
do país - e espreitam". Espetacular esse poema Mabel gostaria de
parabenizá-la pelo seu trabalho como educadora. by: Ni
07/05/2009 21:54
A resposta revela o estranhamento que o aluno sentiu ao se deparar
com o “Poema obsceno”, ao mesmo tempo em que demonstra a sua
fascinação por ele. De fato, muitas vezes sentimo-nos tocados por alguma
coisa, mas nem sempre sabemos explicar como e por quê.
As palavras de Ni revelam ainda uma percepção interpretativa aguçada:
como tinha feito oralmente na sala de aula, o aluno percebe que o poema
“terá o destino dos que habitam o lado escuro do país” (v. 27), ou seja, passará
despercebido a muitos. Esse jovem leitor, de apenas 15 anos, era um dos que
mais participavam das nossas aulas. Pelo que pudemos perceber ao longo do
experimento, tinha sido incentivado à leitura desde a infância, costumava
comprar livros e frequentar bibliotecas.
Abaixo, a resposta que demos ao comentário do aluno no blog:
Excelente comentário o teu, Ni! Concordo contigo: o poema é
diferente mesmo, é algo inesperado, e principalmente qd a gente
pensa que pouco refletimos sobre aquele tipo de obscenidade...
Aquele texto é meio que "um tapa na cara da gente" =) Pena que
quase sempre vai ter esse destino obscuro, como vcs perceberam...
Continua dando tuas opiniões. Elas são muito válidas mesmo!!! Sim,
e obrigado pelos parabéns, mas essa é a minha função, não
ensinar, mas aprender junto a vcs =)
111
Um outro aluno que comentou acerca do poema foi Ar. Em suas
palavras, bastante rápidas, mas reveladoras, pode-se perceber um sentimento
de revolta por viver em um país tão obsceno:
[ar]
gostei do poema pq ele revela a verdadeira fase do Brasil, pqo Brasil é um
país obsceno, q ñ tem vergonha,q é sarcástico e fas da gente de
HÓTARIO!!!!!!!!!!!!!!
11/05/2009 18:02
Eis as nossas palavras para o leitor:
Legal o teu comentário, Ar... é mais ou menos esse tipo de reação de
revolta que o poema quer despertar em nós. Afinal, poucos são
aqueles que "olham para o lado obscuro do país", como o eu lírico
está fazendo, e querendo que a gente faça... Aliás, de que verso do
poema vc gostou mais?
Como se vê, na resposta que demos ao comentário de Ar procuramos
demonstrar que ele estava encaminhando bem a sua leitura. Além disso,
buscamos assegurar a continuidade da comunicação, fazendo-lhe um
questionamento ao final do texto. No entanto, esse jovem leitor não quis
comentar mais nada acerca do “Poema obsceno”, opção que nós respeitamos
totalmente, pois queríamos que a turma fosse ao blog por prazer, e o por
obrigação.
Mas os diálogos virtuais estabelecidos não ficaram apenas entre nós e
os alunos. O próprio Ni sentiu-se à vontade para comentar as palavras escritas
por Ar, como se pode ver abaixo:
112
[ni]
concordo com o que ar disse,o poema nos puxa pra ver o lado do pobre no
Brasil, pobre este que não é valorizado pela elite brasileira, essa
desvalorização é muito parecido quando nos deparamos com os
mendigos, muitas vezes passamos por eles e nem notamos, esta mesma
coisa acontece com o pobre, a elite prefere pensar que o pobre não existe
12/05/2009 20:44
Na nossa resposta final ao comentário de Ni, aproveitamos para instigá-
lo a continuar participando com suas colocações:
Você falou bem: o poema nos "puxa" para ver esse outro lado que
quase ninguém vê, ou finge q não vê... A intenção do eu lírico é
exatamente essa: nos tirar de uma posição de olhos fechados para
outra de olhos abertos. Vc indo muito bem nas suas colocações.
Parabéns!!!
Dispensamos comentar muito esses textos dos alunos porque cremos
que eles falam por si mesmos. A conversa do blog tirou de nós aquele
sentimento de decepção q
ue tivemos ao término da aula sobre o “Poema
obsceno”. Ni e Ar
eram exemplos de alunos para quem o poema tinha
significado, e se ao menos eles dois tinham sido tocados de alguma forma,
levados a refletir um pouco mais sobre o texto, e mais que isso, sobre
a vida, já
havíamos conseguido grande coisa.
Se para Jauss, em postura reconhecidamente iluminista, “a função social
da arte advém da possibilidade de influenciar o destinatário”, era isso o que
estava acontecendo naquela sala de aula. A obra, o poema,
o estava apenas
“transferindo” normas reprodutoras dos padrões de atuação vigentes na
sociedade, mas criando novos padrões, cujo efeito básico era o estranhamento
dos leitores (ZILBERMAN, 1989, pp. 50 e 51). O caráter emancipatório da arte
estava em franca
atividade. O desafio agora era continuar levando a turma do
113
primeiro ano pelos caminhos da metalinguagem.
3. MÓDULO III (13/05/09)
Para o módulo III, que continuaria o trabalho com a poesia
metalinguística iniciado na aula anterior, havíamos planejado (ver anexo 3)
levar dois poemas: Traduzir-se”, de Ferreira Gullar, e “Emergência” de Mário
Quintana. Com o texto gullariano, a ideia era discutir a concepção de arte
presente e, para tanto, utilizaríamos também uma versão do poema musicada
por Raimundo Fagner.
com o texto de Quintana o objetivo era fazer um trabalho de leitura e
conversa, como vinha acontecendo nas outras aulas, só que de maneira mais
rápida para a posterior realização de um exercício escrito. Focalizaríamos,
então, a concepção de poema trazida pelo eu lírico, e, ao final, tentaríamos
estabelecer com os alunos algum confronto entre “Traduzir-se” e “Emergência”.
Apesar do nosso plano, nesse dulo foi possível trabalhar o
metapoema gullariano, como veremos a seguir.
3.1. Traduzindo...
Nesse dia de aula, logo que adentramos a sala com um micro system
em mãos, os alunos foram nos perguntando se iríamos escutar música.
Respondemos que sim, e achamos propícia a expectativa deles.
Depois de conversamos um pouco sobre o blog em todo início de
módulo fazíamos isso descrevemos à turma do primeiro ano o que seria feito
nas aulas do dia: na primeira aula, leríamos um poema juntos e depois
escutaríamos uma música; na aula seguinte, depois do intervalo, faríamos uma
114
atividade escrita acerca de um outro poema, que contaria como uma das notas
do segundo bimestre de língua portuguesa (isso havia sido acertado com a
professora efetiva).
Quando falamos sobre a atividade, que não se realizou porque não
houve tempo, percebemos uma nítida resistência da turma, e um certo medo
também. Tentamos tranquilizá-los, dizendo que eles estavam indo muito bem
no trabalho de leitura e interpretação de poemas, e que a atividade escrita seria
basicamente a mesma coisa, mas só que agora, em vez de apenas falarem,
escreveriam. Mesmo assim, notamos um clima tenso em sala de aula: era
nítido que os alunos se sentiam desconfortáveis acom a ideia de expressar-
se por meio do papel.
Entregamos o poema “Traduzir-se” (ver anexo 4), de Ferreira Gullar, e
avisamos que, ao receberem, poderiam ir fazendo uma leitura silenciosa.
Quando todos leram, propomos uma leitura oral diferente: os meninos leriam os
dois primeiros versos de cada estrofe, e as meninas, os dois últimos versos de
cada estrofe; todos leriam juntos a última estrofe.
A primeira leitura coletiva não saiu muito boa. Eles estavam lendo em
ritmos diferentes, uns mais lentos, outros mais apressados, e nem toda a turma
estava participando. Insistimos, dizendo que poderiam fazer melhor; e fizeram.
Leram com mais empolgação, e sentimos no clima da sala que gostaram da
“brincadeira” oral.
Ainda nas conversas com a professora efetiva, antes mesmo de
entrarmos para observar as aulas, ela nos abria os olhos para a necessidade
de fazer os nossos alunos se sentirem e serem mesmo sujeitos de sua
história, os construtores da aula e não apenas os frequentadores dela.
115
No experimento, quatro aulas éramos nós quem líamos os poemas,
pois achamos essa estratégia necessária para que pudessem ir desenvolvendo
o “ouvido” para a leitura oral expressiva. Agora era a hora deles falaram, e
percebemos que a empolgação da turma era muito maior do que quando
somente nos ouviam. O clima estava bem propício a um bom trabalho, e
quando a leitura conjunta terminou, quisemos ouvir as primeiras impressões
acerca do poema. Eis alguma delas: “Interessante, mas quero descobrir
mais coisas...”; “Eu achei estranho.”; “Não achei muita coisa não: nem bom
nem ruim...”.
Depois desse momento, avisamos a turma que um cantor brasileiro
havia musicado o poema de Gullar, e perguntamos se alguém tinha
conhecimento de tal informação. Apenas uma aluna levantou a mão, dizendo
que tinha ouvido a música havia algum tempo. Para manter a atmosfera de
expectativa, pedimos para que ela não entrasse em detalhes, e seguindo o
nosso plano de aula, propomos a seguinte situação a todos: “Imaginem que
todos vocês aqui são cantores, e que receberam o poema “Traduzir-se” para
musicar, ou seja, para colocar uma música nele. Como vocês fariam isso?
A ideia era, antes de ouvir a versão de Fagner, ver como a turma do
primeiro ano “traduziria” o poema em música, sendo eles mesmos, criadores. A
princípio eles acharam meio difícil “responder” àquela questão, mas, como
sempre, fomos perguntando com paciência: “Que ritmo colocariam, ou seja, o
que se encaixaria bem nessa letra? Seria um ritmo lento ou acelerado? Que
tipo de instrumentos deveriam ser colocados?”.
O momento foi de intensa participação da turma, tanto que, por vezes,
muitos falavam ao mesmo tempo. No quadro, fomos anotando as sugestões da
116
turma. Ao final, tivemos três possibilidades diferentes de musicar o poema
“Traduzir-se”. Vejamos:
Ritmo: “sambinha de mesa” / Instrumentos: pandeiro, cavaquinho,
surdão
O aluno Ty, que inclusive é tocador de violão, propôs como ritmo o que
chamou de “sambinha de mesa”. Pedimos para que nos explicasse melhor o
que era aquilo, então ele disse que era um samba mais suave e lento,
semelhante ao que cantores como Zeca Pagodinho fazem na atualidade. Para
o jovem leitor, a ressignificação do poema “Traduzir-se” em música pedia uma
determinada suavidade, mas sem deixar de trazer também alguma alegria.
Quase nenhum aluno concordou com a sugestão de Ty, mas ele foi firme,
defendendo sua opção.
Ritmo: mpb / Instrumento: violão
O aluno We, que também sabia tocar violão, propôs a mpb como ritmo
na sua visão, o encaixe entre música e poesia sairia melhor assim. O jovem
leitor ainda propôs que fosse utilizada apenas a voz e o violão, para garantir
uma leveza maior à canção. Grande parte da turma acompanhou a sugestão
de We, concordando com ele. De certa maneira, intuitivamente, eles estavam
se aproximando da maneira como Fagner percebera o poema.
Ritmo: rock / Instrumentos: guitarra, baixo, bateria
A aluna Ed, que gostava muito de rock internacional, propôs que o
poema fosse musicado dentro desse ritmo, com a utilização de fortes sons de
117
guitarra, baixo e bateria. Alguns gostaram da idéia, mas a maioria disse que
seria impossível unir aquela “letra” a esse tipo de música. Em nenhum
momento nos posicionamos: importava ver o ponto de vista dos alunos, e não
queríamos interferir nesse processo em que eram artistas, criadores.
Após a exposição das sugestões da turma, perguntamos sobre outros
ritmos não citados por eles, como o funk, o rap, o forró. Eles disseram que
esses não se encaixariam com o “Traduzir-se”, e, portanto, demos por
encerrada essa parte do trabalho.
3.2. O desafio lançado
Pelo plano de aula que havíamos elaborado, o momento que se seguia
era para passar o áudio da música de Fagner, mas, percebendo que o
ambiente da sala de aula estava bastante favorável a um aprofundamento do
trabalho, fugimos do script e fizemos uma proposta desafiadora para a turma.
Ao longo da semana, os meninos da sala se reuniriam em um grande
grupo, bem como as meninas em outro grande grupo, a fim de musicar o
poema “Traduzir-se”, cada um à sua maneira. Eles teriam a liberdade de
escolher o ritmo, os instrumentos (que não precisavam ser realmente
instrumentos musicais, mas as “batidas” das mãos, o som da boca, etc.). O
importante era que “traduzissem”
40
o poema em canção, fazendo um
“casamento” entre som e sentido.
40
A princípio a proposta pode parecer tão desafiadora quanto impossível. Nós tínhamos a
consciência, no entanto, que não estávamos lidando com cantores, mas com leitores literários
que podiam lançar-se no terreno misto e instigante da poesia e música. Além disso,
acreditávamos nos alunos, e mesmo que eles não viessem a conseguir, tínhamos a certeza de
que eram capazes de tentar.
118
Assim, ficou combinado que os grupos passariam a semana produzindo
a versão do “Traduzir-se” para apresentá-la no módulo seguinte. Deixamos
claro que a atividade não era uma obrigação, mas dissemos o quanto seria
significativo que a fizessem. Eles pareciam em êxtase.
Quando chegamos em casa, no mesmo dia, tivemos a ideia de chamar
esse desafio de Poemúsica, e, no blog, fizemos o convite virtual para que todos
participassem do evento que aconteceria dali a uma semana.
3.3. O momento do áudio
Voltando à descrição da aula, após lançarmos o desafio aos alunos
chegou a hora de ouvirem a versão de Fagner para o metapoema de Gullar. É
bom lembrar que, até então, não tínhamos conversado profundamente sobre o
“Traduzir-se”, mas apenas ouvido algumas impressões dos leitores.
Enquanto a música tocava, muitos alunos riam; na verdade, poucos
eram os que efetivamente prestavam atenção no aúdio. Quando a canção
terminou, procuramos sondar a opinião da turma, o que eles haviam achado,
se era aquilo que esperavam; a quase unanimidade disse não ter gostado do
modo como Fagner “traduziu” o poema em música, o que, confessamos, foi
uma surpresa para nós.
Mas a reação do primeiro ano tinha razão de ser: depois de “soltar” tanto
a imaginação, propondo a própria maneira de musicar o poema, agora eles se
deparavam com uma versão
41
que se afastava do horizonte de expectativa
41
Vale lembrar que a versão de Raimundo Fagner data de 1981, ano em que o cantor lançou o
álbum de mesmo nome, Traduzir-se. Em outras palavras, a canção tem quase 30 anos de
existência, e logicamente carrega um estilo musical próprio dos anos 80, o que deve ter
contribuído para o estranhamento dos alunos.
119
deles. Não era aquela voz que eles estavam imaginando, nem aquele ritmo,
nem aquela batida, nem tampouco aqueles instrumentos musicais…
As expectativas deles foram frustradas, e as nossas também. Até
esperávamos que eles viessem a estranhar a música, mas não tanto, a ponto
da sala ficar em grande silêncio no momento posterior ao áudio. Nitidamente, o
clima havia esfriado, sensação também percebida pela professora efetiva, o
que ela nos confidenciou no intervalo.
Talvez o maior motivo da nossa decepção diante da atitude da turma
tenha sido o fato de que sempre gostamos daquela versão musical do poema
“Traduzir-se”, e assim, esperávamos que a resposta da turma do primeiro ano
fosse a mesma. Essa parte do módulo III do experimento tinha sido planejada
com aquela sensação de “com certeza dará certo”. E deu, especialmente como
aprendizado para nós.
Como professores, uma urgência em entendermos que os nossos
gostos nem sempre correspondem aos gostos dos nossos alunos. O que nos
encantou, por exemplo, enquanto éramos adolescentes, não é
necessariamente o que encanta os adolescentes de agora, pois os tempos são
outros. Eles, os alunos, continuam sendo tocados, maravilhando-se, mas com
outras coisas. Por isso, deixar de lado os julgamentos é a primeira grande
atitude para conquistá-los.
Outra lição que aprendemos? Que o fato de levar uma música para a
sala de aula não significa sucesso garantido. Muitas vezes mudamos a
metodologia, mas nossas posturas permanecem as mesmas, autoritárias e
absolutas. De nada adianta “bolar” estratégias bem intencionadas se o
levarmos em conta a singularidade do público com o qual estamos lidando.
120
Música, teatro, filme, tudo isso é muito bom, mas desde que esteja “casado”
com a realidade de nossos alunos.
A aula estava quase no fim, e, como descrito, o clima era de silêncio.
Após passar o áudio, lemos o poema “Traduzir-se” em voz alta, e liberamos a
turma para o intervalo. Era preciso pensar no que fazer, pois, pelo plano de
aula, o momento posterior ao intervalo seria usado para um trabalho com o
poema “Emergência”, de Mário Quintana.
Saímos para a sala de professores com um grande temor: aquele
esfriamento diante da sica comprometeria o trabalho de tradução artística
que estava sendo planejado para a semana seguinte? O Poemúsica viria
mesmo a acontecer?
3.4. O ensaio de conversa sobre o poema
Após dialogarmos com a professora efetiva no intervalo, decidimos
utilizar a segunda aula do módulo III para continuar investindo no poema
“Traduzir-se”, deixando o trabalho com o poema “Emergência” para um outro
momento tínhamos a sensação de que o metapoema gullariano não tinha
sido devidamente explorado, o que foi um equívoco, como logo veremos.
Começamos, então, a aula perguntando se os alunos haviam gostado
mais do momento em que leram o poema, ou do momento em que ouviram
Fagner cantá-lo. Os alunos confirmaram a nossa hipótese ao responderem a
primeira opção. Ora, aquela estratégia tão simples, de leitura oral conjunta,
tocara muito mais a turma do que a música do cantor cearense, como se a
poesia em si mesma já carregasse aquilo tudo de que o leitor precisa.
121
O fato é que, principalmente devido àquele clima de “esfriamento no
momento do áudio, a aula que aconteceu após o intervalo não se mostrou
produtiva. Talvez se tivéssemos deixado a música para o final de tudo, a
reação da turma tivesse sido diferente uma simples inversão na ordem das
ações planejadas pode mudar, e muito, os resultados.
Como não conseguimos fazer essa reflexão naquele momento,
quisemos utilizar o tempo da aula para debater, conversar sobre o poema de
Gullar, ver se e como os leitores perceberiam o caráter metalinguístico a ele
intrínseco, mas os alunos não se sentiram nem um pouco motivados a falar
(pelo menos, não mais).
E não foi isso. Pensando sobre a aula, podemos enxergar outras
razões para o insucesso dessa parte do dulo: além do “esfriamento” já
referido, o nosso próprio abalo sentimental influenciou. Muitas vezes falamos
do professor como se ele fosse um indivíduo imune a sensações de qualquer
tipo, mas somos, antes de tudo, humanos, e, assim como os alunos, também
criamos expectativas que podem ser frustradas.
Ficamos um tanto decepcionados com a recepção da turma do primeiro
ano à canção de Fagner, o que é compreensível, mas certamente também nos
faltou maturidade para contornar tal situação. Assim, desmotivados que
estávamos, não tínhamos como motivar o alunado.
A inexperiência também nos impediu de ver algo fundamental: que o
trabalho com o “Traduzir-se” havia se realizado na aula inicial, e insistir nele
seria procurar o caminho da saturação. Era como se, d’alguma maneira,
estivéssemos movendo alicerces bem colocados.
122
A ideia de que trabalhamos literatura quando lemos e conversamos
sobre os textos literários é positiva, desde que não se torne uma camisa-de-
força. Equivocadamente, sentíamos que o trabalho com o poema de Ferreira
Gullar o se faria completo enquanto não vencêssemos o estágio da
conversação pensamos exatamente assim: “não podemos passar pelo
poema sem interpretá-lo juntos”.
No entanto, não ouve conversa, mas silêncio: logicamente, eles
estavam exaustos de ler/ouvir/reler o poema, que tinha dado muito a eles, e
recebido muito deles, nessa troca frutífera entre autor e leitor por meio do texto.
Além disso, não esqueçamos que a turma ainda iria conviver com o “Traduzir-
se” durante a semana, por causa do desafio de musicá-lo. Não havia mesmo
mais espaço para insistir nele.
Quando percebemos a improdutividade da estratégia, resolvemos
finalmente mudar de tática. Faltavam poucos minutos para concluir o módulo,
então sugerimos que os alunos se reunissem em grupos, e começassem a
pensar em como musicariam o poema “Traduzir-se” definir o ritmo, as vozes,
os instrumentos, etc. A maioria, porém, aproveitou o tempo para conversar,
enquanto uma ou outra equipe fazia alguma anotação no caderno ou
combinava alguma coisa acerca do desafio. E assim, a aula acabou, na
expectativa de que o Poemúsica ainda viesse a dar certo.
3.5. Um significativo aprendizado
Toda essa situação vivenciada no trabalho com o poema “Traduzir-se”
despertou-nos para o fato de que, em nossas aulas, devemos ter como alvo
não exatamente o interpretar poemas, mas o conviver com eles. Nesse
123
processo, as estratégias metodológicas o muitas, e a interpretação textual é
somente um dos resultados.
A metodologia de leitura e conversa sobre os textos, que vinha
funcionando tão bem com os poemas anteriores, simplesmente não logrou
êxito com o metapoema mais famoso de Gullar. E a música, que levamos como
estratégia infalível para motivação dos leitores, foi simplesmente um fracasso.
Há, portanto, uma urgência em refletirmos continuamente sobre a nossa
prática, entendendo que toda vez que adentramos a sala de aula, temos diante
de nós um momento único, seja quais forem os métodos de ensino utilizados.
Desejaríamos ter tido essa maturidade ali, naquela hora, mas resta-nos
aprender com o momento de crise. Dos módulos todos, esse foi o mais
complicado, mas também foi o que nos fez refletir mais a fundo acerca de
nossa atividade pedagógica. Em suma, saímos da crise ainda mais fortalecidos
para a continuidade do experimento.
3.6. O Poemúsica
O evento Poemúsica aconteceu na primeira parte do módulo IV, o qual
se realizou no dia 20/05/09, ou seja, uma semana depois do módulo III.
Optamos por relatá-lo aqui por entendermos que essa atividade está
diretamente relacionada a esse momento do experimento.
No plano de aula elaborado para o novo módulo (ver anexo 3), tínhamos
decidido deixar toda a primeira aula para que os grupos apresentassem a sua
versão musical para o poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar. Nesse dia,
levamos gravador e câmera digital para registrar tudo.
124
Começamos a aula anunciando com grande animação que aquele seria
o dia do tão esperado evento. Relembramos, então, o desafio dos alunos; eles
tinham ficado incumbidos da “tarefa” de musicarem o poema de Gullar, o que
tinha se tornado uma responsabilidade maior porque quase ninguém havia
gostado da versão musical criada por Fagner. Aquele seria o momento de
mostrarem uns para os outros que haviam traduzido poesia em música, ou
seja, “uma parte na outra parte”, como dizia o eu lírico do poema.
Como os alunos não eram obrigados a cumprir a tarefa, ficamos
receosos de que ninguém topasse o desafio. Apenas um grupo o fez, mas foi o
suficiente para que ficássemos satisfeitos: um grupo de quatro rapazes
musicou a canção, utilizando um estilo a que chamaram “pop com mpb” – note-
se que eles não seguiram aqueles três ritmos que a turma havia proposto no
quadro, o “sambinha de mesa”, a “mpb” e o “rock”, mas criaram um outro.
Os meninos levaram até violões, um que foi tocado pelo aluno Ty, e
outro pelo aluno We. A versão criada pelo grupo era bastante original, difícil de
descrever aqui: havia uma harmonia na disposição das vozes; a melodia era
suave, mas ao mesmo tempo carregava a batida do pop, o que dava uma cara
jovial à canção. Não temos outra expressão senão dizer que, como a “mão na
luva”, aqueles jovens haviam encaixado poesia e música.
O que víamos e ouvíamos naquele momento era resultado do trabalho
de leitura e interpretação do Traduzir-se”, experimentado por aqueles quatro
jovens. Em outras palavras, a canção só aparecera daquele modo porque
antes eles tinham vivenciado o poema. O mais significativo é que a maior parte
dessa etapa de descobrimento e investigação do texto acontecera sem a nossa
intervenção, durante a semana em que planejavam a apresentação. Por
125
exemplo, eles mesmos haviam selecionado que partes do poema destacar, o
que seria o refrão, que sons se encaixariam com os sentidos do texto, e assim
por diante.
Ao final da apresentação da música, que foi cantada duas vezes a
pedido nosso, perguntamos a opinião da turma. Sentimos que alguns alunos,
talvez por não terem feito a sua própria versão, tentaram desmerecer o
trabalho do grupo. Nós, porém, tratamos de incentivá-los e achamos pertinente
quando a professora efetiva pediu a palavra para anunciar que a equipe teria
uma participação extra na disciplina.
Concluindo a aula, retomamos a idéia de tradução artística posta no
poema de Ferreira Gullar, afirmando que ali havíamos presenciado ao vivo o
que seria o “traduzir-se” do título. De fato, após vivenciarem a arte literária, os
jovens leitores estavam transformando a sua experiência em arte musical, ou,
em outros termos, estavam comunicando a sua própria maneira de ver o
mundo por meio da literatura e da música: “Traduzir uma parte / na outra parte /
que é uma questão / de vida e morte / será arte?” (vs. 25 a 29). Sim, aquilo
era arte.
3.7. A repercussão do evento no blog
No blog, colocamos um espaço para que o evento Poemúsica fosse
comentado. Eis as nossas palavras de felicitação aos alunos, bem como o
nosso estímulo para que a turma desse a sua opinião:
E aí, galerinha???
O “Poemúsica” foi muito bom!!!
Quero parabenizar virtualmente a Thy, We, Ar e Ni, com destaque
especial pra Thy e We, que arrasaaaaram na voz e no violão! Vcs
traduziram poesia em música, fizeram arte. Parabéns!
126
Agora, quero saber o que a turma achou da versão de vcs para o
poema “Traduzir-se”.
Comentem à vontade. Vamos dialogar aqui!
A seguir podem ser vistos os comentários de três alunas. Apesar de
rápidos, eles revelam que a aula foi d’alguma maneira marcante,
especialmente quando se notam as adjetivações positivas utilizadas em cada
fala. Abaixo trazemos ainda a opinião da professora efetiva, que fez questão de
expressar seu contentamento diante da criação artística dos meninos.
Provavelmente ninguém naquela sala ficara tão entusiasmado com aquela
situação quanto nós duas:
[So]
eu gostei muito da versão dos meninos
21/05/2009 22:21
[Na]
legal. enquanto a aula foi bem extrovertida e interessant.. abraços.
21/05/2009 23:41
[Em]
foi otimo
22/05/2009 10:01
[Professora colaboradora]
Autenticidade e superação...São qualidades que eu destaco na equipe de
Thy, we, Ar e Ni... Autenticidade pq eles CRIARAM uma nova melodia para
o poema (não se conhece outra semelhante a deles!!) Superação...pq a
cada apresentação, vozes que não conseguimos ouvir de ínicio, na
segunda apresentação apareceram mais, superando a timidez de alguns
da equipe... Muito Bom, meninos...é por essas e outras que sempre
destaco meu orgulho em tê-los como alunos! (...)
23/05/2009 00:10
Depois, alguns dos integrantes do grupo que apresentaram a canção
agradeceram os elogios. Uma das falas de Ar sinaliza para o trabalho que deu
fazer aquela tradução; em resposta a Ar, podemos dizer que “nada na vida
se consegue sem esforço”:
127
[ar]
obrigado gente!!!!!!!!!!
23/05/2009 18:15
[ar]
deu muito trabalho mas nós superamos isso (...)
23/05/2009 18:22
É verdade, Ar, nada na vida se consegue sem esforço. Mas valeu a
pena, pq vcs deram um presentão pra nós... :)
Na fala do aluno We, que aliás estava participando do blog pela primeira
vez, pode se ver a superação de seus próprios limites: provavelmente nem ele
achava que, junto a seus colegas, conseguiria fazer uma versão inédita e
original como aquela que ouvimos na sala de aula:
[we]
foi muito legal pela superação de transformarmos a musica em algo inedito
ou orijinal por isso q eu gostei ass:we (...)
03/06/2009 10:04
Por fim, destacamos a fala do integrante Ni, para quem o grande mérito
da equipe foi o fato de terem tido a coragem de expor o seu trabalho diante da
turma, mesmo estando sujeito a críticas:
[ni]
Embora só ter cantado no final, gostei muita da
apresentação,autenticidade, coragem e força de vontade no grupo.Sabe
acho que o maior do mérito do grupo não foi musicar o poema, mas sim ter
coragem para ir na frente da sala e mostrar o seu trabalho.
06/06/2009 22:02
O aluno tinha razão em fazer tal comentário, pois era bastante tímido;
vê-lo ali na frente, cantando, revelava o quanto aqueles meninos e meninas
estavam crescendo e aprendendo lições que iam muito além da arte literária. O
mais significativo era que eles mesmos chegavam a essas reflexões,
construindo pontes firmes entre a escola e a vida.
128
4. Módulo IV (20/05/09)
Como dissemos em momento anterior, a aula inicial do módulo IV foi
utilizada para a realização do evento Poemúsica, mas não somente para isso.
Como havíamos previsto que poucos alunos poderiam musicar o poema,
levamos como “carta na manga” uma célebre frase do poeta Manuel Bandeira,
que é na verdade uma reflexão sobre a própria poesia. na aula que
aconteceu após o intervalo, realizamos um trabalho com o texto “O poema”, de
Mário Quintana, fazendo pela primeira vez uma atividade escrita com a turma
do primeiro ano. Falaremos desses dois momentos a seguir.
4.1. Em prosa, uma reflexão sobre a poesia
Depois que os alunos apresentaram a versão musical do poema
“Traduzir-se”, percebendo que havia algum tempo para o término da aula,
copiamos no quadro a seguinte frase de Manuel Bandeira: “A poesia está em
tudo tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas gicas como
nas disparatadas”
42
.
Lemos em voz alta a frase e começamos a fazer os costumeiros
questionamentos à turma, indo de parte em parte. “Por que a poesia estava
tanto nos amores quanto nos chinelos?”. Alguns alunos riram ao ouvir isso, e
um deles até falou-nos que iria, então, fazer um poema falando do amor pelo
seu chinelo. A percepção do aluno era ingênua, porque tomava a ideia
bandeiriana ao “pé da letra”, mas pertinente porque revelava o estranhamento
compreensível diante daquela colocação do poeta.
42
A frase está no Itinerário de Pasárgada (1967).
129
Aproveitamos a ocasião para perguntar aos demais alunos se achavam
que o poeta estava literalmente falando de chinelos, e grande parte da turma
respondeu negativamente. “Mas, então, por que ele está aproximando essas
duas coisas tão diferentes?foi a nossa questão seguinte. Diante do silêncio
deles, ajudamos dizendo que era até comum ver poesia falando sobre amor,
mas sobre os chinelos... A partir daí, eles construíram o entendimento de que o
poeta não estava se referindo estritamente aos chinelos, mas que a sua
intenção era dizer que a poesia podia também falar sobre as “coisas do dia-a-
dia”
43
– foi esse o termo que um dos alunos utilizou.
Com essa compreensão inicial da frase, questionamos então a parte das
“coisas lógicas” e “disparatadas”. “O que seriam coisas disparatadas?”. A aluna
Na foi rápida e afirmou que eram “coisas loucas”. Desse modo, conversamos
um pouco sobre o interesse da poesia tanto por aquilo que é lógico, quanto por
aquilo que é loucura; e, fazendo a ponte com o outro pedaço da frase, tanto por
aquilo que é amor, quanto por aquilo que é chinelo.
No intuito de aproximar a poesia do universo dos alunos, perguntamos
se seria possível fazer um poema sobre os objetos ali presentes, talvez a
cadeira, o quadro, a janela, ou mesmo o anel que estávamos usando... Os
jovens ficaram mais atentos nessa hora, vindo a confirmar a nossa hipótese de
que se sentem motivados quando a aula diz respeito a eles. Quanto à pergunta
que fizemos, responderam positivamente.
Juntos estávamos descobrindo que a matéria da poesia não era
determinada a priori, pois qualquer uma podia ser importante, dependendo do
olhar que a focalizava. É como se ela, a poesia, quisesse estar provida de um
43
Alfredo Bosi entende que, a partir de Ritmo dissoluto, Manuel Bandeira pode ser considerado
o mais feliz incorporador de motivos e termos prosaicos à literatura brasileira (BOSI, 2006, p.
361).
130
leque de objetos em sua estante, para falar sobre quaisquer deles quando bem
entendesse: “tudo é passível de ser engrandecido pela poesia”, como bem nos
disse Clarice Lispector (OSAKABE, 2005, p. 52).
Chegara a hora do intervalo. A discussão em torno da frase de Bandeira
havia sido simples e rápida, mas bem proveitosa, o que nos fazia enxergar a
necessidade de às vezes sair do script, superando nossos próprios temores.
Ter levado aquela reflexão sobre a poesia contribuíra muito para o que seria
feito na aula seguinte, com “O poema”, de Mário Quintana.
No último minuto de aula, anunciamos que o momento posterior ao
intervalo seria utilizado para conversarmos sobre um novo poema, e que, em
seguida, realizaríamos um exercício escrito acerca dele. Ao sentir o temor no
semblante de alguns alunos, deixamos claro que a atividade era bastante
simples, principalmente se tivéssemos um bom momento de discussão sobre o
texto, em que todos pudessem participar.
4.2. Justificando a escolha de “O poema”
Começamos a aula entregando logo “O poema”, de Mário Quintana (ver
anexo 4), pois tínhamos pouco tempo para executar tudo o que havíamos
planejado (rever plano de aula no anexo 3). Vale lembrar que no módulo III,
aquele do “Traduzir-se”, havíamos pensado em trabalhar o texto “Emergência”,
também de Quintana, e aplicar uma atividade sobre ele. Como isso não tinha
sido possível, tivemos mais uma semana para refletir e decidimos levar um
outro poema do autor gaúcho, no qual o caráter metalinguístico estivesse mais
evidenciado. Assim se justifica a nossa opção por “O poema”.
131
Não podemos deixar de admitir, porém, um certo receio em trabalhar tal
texto, pois ele carrega em si uma dimensão reflexivo-filosófica bastante
profunda, o que poderia parecer “inadequado” a leitores de dezesseis anos.
Por outro lado, as palavras que havíamos lido em Vincent Jouve nos
encorajavam a permanecer com a nossa escolha: os textos mais interessantes
não o os que estão dentro das supostas disposições do leitor, mas os que
vão de encontro a elas. “Quando é confrontado com a diferença, e o com a
semelhança, o sujeito tem a possibilidade, graças à leitura, de se redescobrir”
(JOUVE, 2002, p. 131).
Além de estarmos embasados neste fundamento teórico, tínhamos a
consciência de que o nosso objetivo o era que os alunos chegassem ao
nosso nível de interpretação, mas sim que lessem o poema à sua maneira.
Ficamos pensando como seria uma experiência significativa ver um
adolescente lendo “O poema”: o que será que chamaria a atenção dos leitores?
Os resultados foram satisfatórios. A turma esteve bastante atenta e
participativa no momento de discussão do texto, o que também se deveu ao
fato de que realizariam um exercício escrito no momento posterior. Como se
poderá ver, aquelas imagens metalinguísticas, de alto nível de densidade lírica
(PINHEIRO, 2004, p. 13), aguçaram nos leitores o desejo de compreendê-las.
4.3. A metalinguagem descoberta pelos alunos
Nos poucos minutos que tínhamos para discutir com os alunos “O
poema”, utilizamos a seguinte estratégia: escrevemos o título no quadro, e, em
seguida, lançamos a primeira questão “Será que a gente pode imaginar de
que esse poema vai tratar?”.
132
O aluno Ty, de trás da sala, prontamente nos respondeu que “sobre o
próprio poema”. Na frente, Ni e Ar complementaram a colocação de Ty, quando
baixinho comentaram entre si que o poema era metalinguístico. É claro que, a
essa altura, os jovens leitores sequer tinham visto o texto de Quintana, mas
aproveitamos a oportunidade para explorar aquela colocação dos meninos,
porque percebíamos que eles estavam trazendo os seus saberes, as suas
descobertas para a discussão.
Escrevemos, portanto, a palavra “metalinguístico” no quadro, e
perguntamos por que aquele poema seria dessa estirpe. A resposta foi simples
e direta: “porque ele vai falar sobre ele mesmo”. “E existe metalinguagem
quando o poema fala sobre ele mesmo, ou vocês conhecem outras formas de
metalinguagem?” – foi o outro questionamento que lançamos à turma. Ni
respondeu: “Não, quando um filme conta a história dele mesmo também
acontece...”
É importante que se diga que, desde que o experimento começara, não
havíamos mencionado a palavra “metalinguagem” na turma do primeiro ano. O
que os alunos faziam naquele momento era trazer um conhecimento
apreendido em outra situação, mais precisamente naquela pesquisa
44
sobre as
funções da linguagem solicitada pela professora efetiva no início do ano.
É claro que nosso objetivo ali não era levá-los a estudar a
metalinguagem de maneira “seca” e teórica, mas conviver com poemas que
possuíssem uma dimensão metalinguística e ver como recepcionavam tais
44
Na página 33 deste trabalho, já falamos sobre esta pesquisa. para lembrar, a turma fora
dividida em grupos, de acordo com o número de funções da linguagem proposto por Jakobson
(1971). Os alunos deviam observar em seu próprio cotidiano, onde e de que modo
encontravam a função a eles designada, relacionando assim o conhecimento com a própria vida. Os
alunos Ty, Ni e Ar tinham ficado com a função metalinguística, daí a nítida lembrança deles
acerca do assunto.
133
textos. Porém, o fato dos três alunos terem sinalizado para um possível caráter
metalinguístico em “O poema” ajudou a turma no trabalho que seria feito, como
se tivessem achado ali a primeira grande pista ou coordenada deixada pelo
autor – são muitas, ainda mais em um poema como esse.
Satisfatoriamente, na atual conjuntura de ensino literário temos
conseguido sair da ordem limitativa da “teoria e prática”, ao proporcionar que o
aluno construa a teorização por meio da convivência com o texto literário.
Como ensina Hélder Pinheiro, a nossa intenção deve ser essa mesmo: “fugir o
mais possível a um modelo aplicativo de teoria e de conceitos e buscar, a partir
da experiência concreta de leitura de obras de diferentes gêneros literários,
elaborar os conceitos” (PINHEIRO, 2006, p. 111), ainda que apenas iniciais,
pois nem sempre caberá aprofundar-se na teorização.
Mesmo cientes disso, o conhecimento que alguns alunos tinham acerca
da conceituação de metalinguagem não foi desprezado por nós, mas, pelo
contrário, aproveitado e estendido à turma como um todo. A ordem estava
invertida, era teoria, sem ainda termos chegado à prática mas valia a pena
considerarmos a informação, desde que o fizéssemos com cautela.
Até ali, havíamos levado os textos “Poema obsceno” e “Traduzir-se”,
de Ferreira Gullar, mas em nenhum deles o caráter metalinguístico tinha sido
percebido pelos alunos, pelo menos a ponto de trazerem à tona o
conhecimento adquirido na pesquisa. Também, naqueles metapoemas
gullarianos, e mais especialmente no primeiro, a metalinguagem aparecia mais
como pano de fundo do que como tema central.
Como dissemos, esse procedimento na seleção de textos tinha sido
proposital, pois não queríamos cair no reducionismo de metalinguagem poética
134
apenas como “poesia que toma a si como tema”, mas fazer o aluno conhecer
também outros metapoemas, em que a metalinguagem se associasse a outras
temáticas, até mais evidenciadas.
Expliquemos melhor com um exemplo concreto: no “Traduzir-se”, os
leitores perceberam um caráter metalinguístico sim (apesar de que em nenhum
momento esse nome foi mencionado) ao traduzirem “uma parte na outra parte”,
ao relacionarem poesia e música. Eles intercambiaram o campo da arte literária
com o da arte musical, e, nesse processo, estiveram o tempo todo a refletir
sobre a própria linguagem, que é etimologicamente “metalinguagem”. A
diferença era que agora, no caso de “O poema”, de Mario Quintana, a
metalinguagem saltava aos olhos de maneira mais direta.
Depois da conversa rápida acerca do termo “metalinguagem” e da
possível temática de “O poema”, entregamos o texto e realizamos uma leitura
oral. Em seguida, procedemos assim: cada verso foi lido e discutido
separadamente
45
na intenção de podermos captar a percepção dos jovens
leitores para cada uma daquelas imagens criadas pelo eu lírico. No quadro,
íamos anotando as colocações dos alunos.
Como sugerem o título do texto e o verso inicial “Um poema é...” as
imagens procuram significar o que seria o próprio Poema, em sentido genérico,
subjetivo mesmo, tanto que aparece o artigo indefinido “um”, em vez do
definido “o”. Apesar do caráter metalinguístico evidenciado, as metáforas que
compõe o texto são à primeira vista quase impenetráveis, como se essa
45
A nosso ver, o texto de Quintana exigia uma reflexão mais pausada, como se fosse preciso
decompor o todo em partes, para depois se chegar de novo ao todo. Esse procedimento de
análise e interpretação tão bem explicitado e aplicado por Antonio Candido (2007) talvez se
aplique a todo e qualquer texto poético, mas nos parecia uma exigência maior no caso de “O
poema”.
135
aparente evidenciação estivesse revestida de um caráter de opacidade
instigante. Por isso, era preciso ter cautela no trabalho com “O poema”.
4.4. A percepção oral dos leitores
Enquanto perguntávamos aos leitores sobre as imagens do poema,
fazíamos, como dissemos, anotações no quadro para registrar suas
percepções. Vale lembrar que o debate foi rápido, pois depois seria realizada a
atividade escrita. Abaixo falaremos do momento de discussão dos três
primeiros versos do texto:
Verso 1 – Um poema é como um gole d’água bebido no escuro.
Ao lermos em voz alta o verso inicial, esperando dos alunos uma
posterior impressão sobre ele, houve grande silêncio na turma do primeiro ano.
Então, resolvemos nos aproximar da imagem de maneira bem simples:
pedimos para que todos se imaginassem em uma sala ou quarto bem escuro,
com um copo d’água na mão. Ao beberem essa água, que sensação teriam?
A percepção do leitor Ty foi bem significativa: “você não vê, mas sente
a água”. A partir daí, juntos fomos chegando ao entendimento de que, ao beber
o líquido em um local escuro, estaríamos mais sensíveis ao seu gosto, ou em
outros termos, ele nos “tocaria” de uma maneira mais forte. “O poema seria
assim também?”. Deixamos a pergunta para que eles pensassem.
Outra colocação do mesmo aluno nos deu uma nova luz na
interpretação do poema. Ele lembrou-nos de que “a gente vai tomar água
porque sente sede”, e assim, fez uma elucidativa associação: quando amos
um poema, é porque estávamos com sede de alguma coisa, é porque tínhamos
136
necessidade de algo. De fato, é por meio da literatura que é possível vivenciar
o que Antonio Candido chama de “superação do caos”, pois, “quer percebamos
claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um
fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e
sentimentos; e em conseqüência, mais capazes de organizar a visão que
temos do mundo (CANDIDO, 1995, pp. 245 e 246). Essa é uma das razões
porque, uma vez provado o “gosto” da leitura, mais dela queremos beber.
Verso 2 – Como um pobre animal palpitando ferido.
A metáfora do “pobre animal” foi uma das que causou maior impacto nos
leitores, pois, segundo eles, remetia à “dor” e à “solidão”. É bem provável que
os alunos tenham se identificado, e mais que isso, se condoído com essa
imagem, porque ela era a única que trazia um ser vivo para a comparação com
o poema. A turma ainda esteve atenta às adjetivações “pobre” e “ferido”, que
caracterizavam, respectivamente, o animal e a ação de palpitar.
Outro elemento significativo que chegou a ser comentado por algum
aluno foi o fato de, ao encontrar-se machucado, o animal buscar o seu próprio
isolamento, como se essa fosse uma maneira de sentir sua própria dor, de
experimentar, sem interferência de outros, os seus últimos minutos de vida. “E
o que tudo isso tinha a ver com o poema, que era com esse propósito que o
eu lírico trouxera tal metáfora?”. A questão foi apenas “lançada” aos leitores;
eles deveriam ir refletindo sobre ela, e manifestar sua percepção na atividade
escrita.
137
Verso 3 Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na
floresta noturna.
Em relação ao terceiro verso de “O poema”, os leitores fizeram duas
colocações pertinentes: primeiro, chamaram a atenção para o vocábulo
“pequenina”, que indicava o tamanho insignificante da moeda diante da
imensidão da floresta noturna; em segundo lugar, falaram sobre o material que
constituía a moeda: tratava-se de um metal nobre que trazia “luz” e “brilho”, de
modo que aquele pequeno objeto se constituía como uma espécie de tesouro,
e merecia ser procurado ainda que fosse difícil de achar.
O desafio empreendido à turma do primeiro ano era relacionar essas
percepções com a caracterização do próprio poema, pois essa era uma das
convenções programadas pelo próprio texto, ou, dito de outra forma, essa era
uma das “regras” do pacto de leitura (JOUVE, 2002) estabelecido entre os
jovens leitores e Mario Quintana.
4.5. Os jovens leitores em sua primeira
46
atividade escrita
4.5.1. O tempo como fator adversário
Após a conversa sobre os três versos iniciais do metapoema, os demais
versos foram comentados apenas de relance, pois o tempo que tínhamos era
mínimo a aula posterior ao intervalo parecia sempre menor, pois os alunos
demoravam a retornar à sala de aula.
Pensando bem, que estávamos diante de uma peça literária mais
complexa, talvez tivesse sido melhor dispensar o exercício, e desenvolver toda
a aula na conversa sobre o texto. Nem sempre podemos esquecer, no entanto,
46
Os alunos tinham feito o questionário, também escrito, mas aqui referimo-nos a uma
atividade específica acerca da poesia.
138
do sistema em que estamos inseridos: uma das coisas que havíamos
combinado com a professora efetiva era que faríamos algumas atividades
escritas pelo menos duas as quais ajudariam a compor a nota do segundo
bimestre de Língua Portuguesa. Tínhamos uma espécie de “dívida” com a
colaboradora, e então paramos a conversa sobre o texto de Quintana, que
ainda estava “embrionária”, e entregamos a atividade aos alunos.
Por outro lado, havia outra razão para insistirmos no exercício. Nós
mesmos queríamos ver como os leitores se expressariam na forma escrita, já
que, no oral, faziam pertinentes colocações, mas sentiam-se pouco à vontade
para falar. Além disso, seria significativo ver como cada um deles trabalharia
nesse momento mais com o poema, ainda que tivesse havido uma
discussão rápida e coletiva sobre o texto.
Faltavam apenas quinze minutos para o término da aula quando
entregamos a atividade à turma, e, devido ao avançado da hora, não
explicamo-la oralmente. Mas o exercício era simples (ver anexo 5): tratava-se
de um comentário sobre “O poema”, onde os leitores iriam dizer: a) algum
aspecto do texto que houvesse chamado a atenção; b) reescrever e comentar
o verso de que mais haviam gostado, ou o que mais os havia inquietado; c)
refletir sobre o título do poema.
Como era de se esperar, nenhum dos leitores conseguiu terminar a
atividade em sala de aula. Assim, dissemos que levassem o exercício para
casa e que o trouxessem respondido na aula seguinte. Durante a semana,
aproveitamos para lembrar, no blog, a tarefa que tinham a realizar:
AVISO IMPORTANTÍSSIMO
Não esqueçam de fazer a atividade sobre “O poema”, de Mário
Quintana, e me entregar na quarta-feira (03/06).
Avisem uns aos outros, ok?
139
Bom trabalho a todos!!!
4.5.2. Reflexão sobre os dados
Uma semana depois da aula, quando aplicaríamos o último dulo do
experimento, recebemos a atividade sobre “O poema” 22 alunos a
entregaram, e este é, portanto, o nosso corpus de análise; todos os exercícios
respondidos encontram-se no anexo 6. A partir de agora, observaremos cada
uma das três assertivas do exercício, começando pela letra a:
a) Após leituras e releituras, algum aspecto do poema chamou sua
atenção? Diga qual e comente livremente.
Para responder a esse questionamento, alguns leitores optaram por uma
visão mais generalizada acerca do poema. Foi o caso das alunas La e Ay:
O que mais me chamou atenção foi o modo que o autor descreveu o
poema, pois alves dele falar sobre a poesia de forma direta ele coloca
versos no qual devemos pensar para chegar uma conclusão o que
realmente ele quer dizer (La)
Algumas coisas me chamou atenção como os sentimentos que são
destacados no poema como a angustia, a tristeza, a dor, o sofrimento e
etc. Mário Quintana mostra tudo isso no poema, ele faz com que a gente
reflita e tente explicar alguns aspectos, não nesse poema mais em
outros também (Ay)
Embora a leitora La não comente qualquer das imagens do texto, ela
percebe a construção de um processo de metaforização acerca do próprio
poema. Em outras palavras, a aluna está atenta ao fato de que quase sempre a
140
poesia opta pelo caminho indireto, deixando a evidência das coisas para a
linguagem prosaica
47
.
Em sua resposta, a aluna ainda aponta para a necessária atividade do
leitor diante do texto: a de refletir para chegar a uma conclusão sobre o que o
autor quer realmente dizer. Nesse sentido, o máximo que o texto pode fazer é
dar indícios, conferir coordenadas, cabendo ao leitor o papel de construir o
sentido global da obra (JOUVE, 2002, p. 65). Não é exagero, portanto, ao
lermos um texto, pormos à prova o seu próprio construtor.
A leitora Ay, por sua vez, revela em sua fala uma visão peculiar do
poema, ao enxergar os sentimentos do eu lírico que estão por detrás das fortes
imagens do texto, a exemplo da “angústia”, da “tristeza”, da “dor” e do
“sofrimento”. Note-se que, com exceção de “angústia”, nenhum desses
vocábulos aparecem em “O poema”; essa é a interpretação singular de Ay, ao
deparar-se com versos tais como “Um pobre animal palpitando ferido” (v. 2), ou
talvez “Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de
poema” (v. 4). É, portanto, significativo ver como nossos alunos são capazes
de enxergar além da superfície, preenchendo espaços vazios com a sua
singular percepção.
Outras respostas dos alunos focalizaram aspectos mais específicos do
poema metalinguístico de Quintana, mais precisamente um ou outro verso que
chamou a atenção:
O autor está definindo poema, para ele é como um gole dágua bebido no
escuro. Que é uma comparação bem elaborada, (Am)
47
Não queremos discutir aqui o fato de que a linguagem prosaica também se reveste de
metaforização. Tomamos prosaísmo aqui no sentido de “linguagem usual”, “linguagem do
nosso dia a dia”.
141
“Ferido de mortal beleza” - retrata que o poema tem beleza, ilustrações e
versos que emocionar mais é ferido porque ninguém dar valor ao poema a
pequenas letrinhas (Na)
O verso que chamou a minha atenção foi “Ferido de mortal beleza”, porque
quando o autor escreve o poema, ele escreve para que as pessoas leiam e
reflita sobre ele, mais as pessoas nem ligam para isso inclusive alguns
jovens. Por isso que ele diz: triste, sozinho solitário. (Ru)
Veja-se a sensibilidade crítico-literária do jovem Am, ao caracterizar a
metáfora “gole d’água bebido no escuro” (v. 1) como “comparação bem
elaborada”, que certamente causou nele algum impacto. as alunas Na e Ru
fizeram referência ao verso Ferido de mortal beleza”; de certa maneira, a
interpretação de ambas as jovens se aproxima, pois elas enxergam a
“emoção”, a beleza do poema, mas assinalam que tais características o são
vistas por “ninguém” (Na), nem por “alguns jovens” (Ru). Nesse ponto temos de
discordar da colocação das meninas, que elas são exemplo de jovens para
quem o poema, ou pelo menos um verso dele, significou.
Note-se ainda que em sua resposta Ru traz os versos “Triste.”,
“Solitário.” e Único.” (vs. 5 ao 7), estabelecendo uma relação entre eles e o
derradeiro verso do poema. É como se a leitora quisesse dizer algo do tipo: “eu
percebo que o poema é ‘Ferido de mortal beleza’ justamente porque ele é
triste, solitário e único”. Essa interrelação não é percebida senão com atenção,
por meio da atuação interativa do leitor, por meio do preenchimento dos
espaços vazios do poema, como dissemos reiteradas vezes.
Mas além da leitora Ru, outro aluno citou os versos “Triste.”, “Solitário.” e
Único.”. Vejamos sua resposta:
O que mais me chamou a atenção foi quando mario quintana fala assim:
triste, solitario, unico. eu comparei esse trecho do poema comigo; por que
142
eu vivia triste, sozinho no caso solitário, mas agora que eu encontrei a
solução hoje vivo feliz mas continuo unico. (Da )
Claramente, Da faz uma associação entre o poema e a sua própria vida,
transformando a “metapoética”, o olhar da poesia sobre si, em uma espécie de
“metaindividualidade”, o olhar do indivíduo sobre si. Na comparação entre o
poema e si mesmo, o leitor enxerga as características “triste” e “solitário” como
parte de seu passado, embora continue a sentir-se “único” em seu presente.
Pouco importa saber exatamente o que teria levado o aluno a essa
mudança do estado “triste” para o “feliz”; o significativo é notar que Da
conseguiu ver-se no poema, isto é, foi impulsionado a um confronto consigo
mesmo, a uma reflexão sobre o “estar no mundo”, em um texto metalinguístico
em que aparentemente não haveria espaço para tal. Não cremos em
superinterpretação neste caso, mas em uma interpretação perfeitamente
possível, que é evidente que o leitor percebeu o caráter metalinguístico do
poema de Quintana, e caminhou além dele.
Os mesmos versos “Triste”, “Solitário” e “Único” chamaram a atenção de
mais alunos. Das três características trazidas pelo eu lírico para caracterizar o
poema, é a última a que mais marca os leitores:
O poema é único pois cada poeta tem sua percepção sobre algo. (Is)
O que mim chamou atenção foi as palavras: triste, solitário, único, porque o
poema em si é as vezes triste, as vezes solitario e sempre único e é assim
que nos sentimos muitas vezes ao refletir sobre certas coisas. (So )
“triste, solitário, único”. “Pois por mais triste que ele é, por mais angústia
que ele traga ele vai ser único e talvez possa até ficar marcado na vida de
alguém. (Ed)
143
Observemos inicialmente as respostas das alunas Is e So: para a
primeira leitora, a unicidade do poema reside na percepção singular de cada
poeta sobre os objetos que focaliza; a segunda leitora entende que, assim
como ela, o poema pode ser triste ou solitário, mas o imutável é que sempre
será único. Essa individualidade, tão bem constatada pelas meninas, põe cada
poema no âmbito da “experiência nova e fundante” (OSAKABE, 2005, p. 50)
que se depara com a singularidade de cada leitor, provocando uma recepção
também única.
Na resposta da aluna Ed, que também enxerga a unicidade do poema
como característica peculiar, destaque-se o modalizador “talvez”: ele pode
sugerir certo descrédito em relação ao poder de significação da própria poesia,
mas por outro lado assinala a possibilidade de “alguém”, quem sabe até ela
mesma, vir a ser marcada pela poesia.
Deixamos por último a percepção do leitor We, e logo se entenderá o
motivo:
O poema fala de que, no mundo diversos tipos de poemas e coisas
para se fazer as pessoas estão voutada para a tecnologia e se
esqueceram dos livros de poemas. (We)
A primeira ideia do aluno é significativa, pois o sortimento de metáforas
metalinguísticas construídas pelo eu lírico pode apontar mesmo para uma
diversidade de tipos de poemas por exemplo, um pode ser “como um gole
d’água bebido no escuro”; outro pode ser “como um pobre animal palpitando
ferido”; outro pode ser apenas “solitário” ou “triste”; e outro ainda, e parece ser
esse o caso do texto de Quintana, pode ser tudo isso junto.
144
No entanto, na continuidade da resposta de We deparamo-nos com uma
interpretação inadequada de “O poema”: o aluno contrapõe a referida
diversidade ou sortimento de poemas existentes no mundo à pouca ou
nenhuma leitura deles, pois as pessoas “estão” mais “voltadas para a
tecnologia”. A percepção do leitor é válida como reflexão que relaciona o
poema com a sua própria realidade, mas é inadequada porque o poema não
“fala” acerca disso, nem abre espaço para tal.
A leitura deste jovem nos surpreendeu, principalmente porque ele era
um dos mais participativos de nossas aulas. Mas, como aqui estamos em
caráter de investigação, temos que dizer que sua percepção não veio do nada.
Na aula, quando comentávamos o verso Como pequenina moeda de prata
perdida para sempre na floresta noturna”, construímos junto à turma o
entendimento de que essa “moedinha” que é o poema, apesar de feita de metal
nobre, não raro ficava perdida na floresta noturna de nossas próprias vidas.
Daí, então, na tentativa de fazer alguma ponte entre aquela imagem
metalinguística e a juventude deles, fizemos de relance um comentário acerca
da realidade atual, em que muitas vezes prefere-se estar na internet nada
contra ela, nós a utilizamos aqui em lugar de dar um passeio com os amigos
ou ler um livro. Os tesouros ou preciosidades vão, então, mudando, conforme o
homem muda.
Deixemos claro, porém, que em nenhum momento tomamos essa
reflexão como argumento do poema, mas apenas como um comentário extra,
aqueles “devaneios necessários” que nos fazem ter a consciência de que o
poema, o poeta, de alguma maneira nos fala. Tanto isso é verdade que, dos 22
145
alunos que estavam presentes na aula e que responderam a atividade, apenas
o leitor We fez uso do comentário. O que o teria levado a agir assim?
Difícil saber, mas lembramo-nos de que, ao falarmos sobre o assunto,
esse jovem foi o único que dialogou conosco, inserindo-se entre aqueles que
não costumavam ler poemas, porque preferiam fazer outras atividades. É
possível que, por ter ajudado a construir a informação, tenha guardado-a com
mais afinco.
Ao que parece, o equívoco residiu em uma pouca maturidade do leitor
para reconhecer o que cabia no poema, e o que não cabia, que nem tudo
que comentamos na aula será estritamente relacionado à leitura e
interpretação que fazemos do texto literário.
b) Reescreva o verso do qual mais gostou ou que de algum modo o
inquietou e, em seguida, diga como você o compreendeu;
Na análise dos dados desta assertiva, traremos os versos citados pelos
leitores, na ordem em que aparecem no poema, e, em seguida, os necessários
comentários acerca de seus escritos.
Um poema é como um gole d’água bebido no escuro.
Dos 22 leitores da turma do primeiro ano, 6 remeteram ao verso inicial
do poema. Abaixo, selecionamos duas dessas respostas:
“Um poema é como um gole d’água bebido no escuro”. O que mais ou
menos entendi foi que mesmo no escuro e com vários sentimentos
saltando é como um gole satisfatório mesmo com muita sede. (Je)
O verso que eu mais gostei foi o primeiro verso, que diz assim: um poema
é como um gole d’agua bebido no escuro, como já foi debatido na sala de
aula o que o autor quis passar foi o seguinte sentido que quando você
bebe água no escuro você não vê mais no entanto esta sentindo, a mesma
146
coisa acontece com poema, você não mas esta sentindo o que o eu
lírico quer passar através do poema. (Da)
A colocação do leitor Je é significativa: ele lembra que o poema é como
um “gole”, uma pequeníssima quantidade de água, mas o suficiente para saciar
a sede, ainda que grande. Note-se que o aluno percebe “vários sentimentos
saltando” do poema, ou, em outros termos, está sensível à carga emocional
que perpassa o metapoema de Quintana.
o comentário do leitor Da revela pelo menos duas coisas: primeiro, a
sua atenção ao debate em sala de aula, e segundo, e isso é o mais
significativo, a necessidade de se “sentir” o poema. Embora os nossos olhos
enxerguem o papel onde está escrito o poema, a experiência com o texto
literário não virá senão pela “degustação” dele, como se estivéssemos mesmo
no escuro, saboreando esse “gole d’água” tão pequeno, mas indiscutivelmente
precioso. Essa experiência singular e personalíssima, no entanto, aplaca a
sede apenas momentaneamente (PINHEIRO, 2004, p. 14), o que aponta para
a poesia como alimento diário, cotidiano, vivificante.
Como um pobre animal palpitando ferido.
A metáfora do “pobre animal” foi referida por 5 leitores do primeiro ano.
Aqui, traremos os comentários de duas alunas:
“Como um pobre animal palpitando ferido”, eu gostei mais desse verso
porque um animal ferido ele que ficar sozinho, as pessoas nem querem
ajudar a eles, ele fica desamparado, triste, solitário, deixando a dor pra
ele, é como o autor do poema se sente quando as pessoas não dão a
mínima importância ao poema. (Ru)
“Como um pobre animal palpitando ferido”, e acho que diz que o poema,
alguns pessoas não gostam. (Se)
147
Para Ru, assim como um animal ferido, o eu lírico ela usa o termo
“autor” precisa do momento de solidão para vivenciar a sua dor. Logicamente
que a imagem foi criada por Quintana para metaforizar o próprio poema, mas,
em certo sentido, o poema é a extensão do poeta, e só existe por meio dele.
A leitora está no caminho adequado, pois a ideia da solidão perpassa
mesmo o poema de alto a baixo: no primeiro verso, a imagem do “gole d’água
no escuro” evoca a ocultação; no segundo, o animal ferido a palpitar leva de
pronto a uma condição de isolamento, primeira reação típica de todo ser
convalescente; no terceiro verso, com a “moeda de prata perdida” na
imensidão da floresta noturna vem à tona a condição de “perdição”; e o que
dizer do verso “solitário”, ou do “único”, ambos individualizando,
particularizando, cada vez mais o próprio poema?
Na visão da jovem leitora, a dor do “autor” reside no fato de não haver
quem ouça o seu canto, que “as pessoas o dão a mínima importância ao
poema”. Mais uma vez, o modo singular de percepção de Ru tem razão de ser;
para chegar a esse entendimento, provavelmente ela também trouxe a
memória o verso seguinte “Como pequenina moeda de prata perdida para
sempre na floresta noturna” que de certa maneira corrobora o anterior: o
poema é tesouro, mas nem sempre encontrado.
Note-se ainda que a aluna faz uma associação entre o verso do animal
ferido e os versos “triste” e “solitário”, trazendo inclusive o termo
“desamparado”, que não existe no poema, para descrever a forte sensação
emocional daquela imagem.
De fato, muito o que pensar sobre o segundo verso do metapoema:
“mais que fragilidade, estamos diante de uma condição absolutamente agônica,
148
das mais dolorosas” (PINHEIRO, 2004, p. 14). O verbo “palpitando”, que está
no gerúndio, evoca uma situação em contínua vivência, onde o bater do
coração do animal ferido é o bater do poema em “constante resistência”, para
lembrar Bosi (2000). A forma verbal contrasta inclusive com as adjetivações
“pobre e ferido”, pois nem elas são capazes de paralisar a “pulsação”, a
“palpitação” do coração do animal, do coração do poema.
Analisemos o comentário da outra aluna, que também selecionou o
verso do “pobre animal feridocomo sua maior preferência ou inquietação. Se
percebeu que a imagem do animal ferido causa certa repulsão, e entendeu ser
isto uma metaforização para o próprio poema.
Não como negar que por vezes somos tentados a fechar o livro
diante de imagens/cenas que nos inquietam, nos chocam, nos enojam, nos
paralisam... No entanto, esse texto que nos desconforta, que faz vacilar as
nossas bases históricas, culturais, psicológicas, é justamente aquele que nos
faz fruir (BARTHES, 1987, p. 31). Se por um lado temos que admitir, como diz
a aluna, que “algumas pessoas não gostam” do poema, por outro não significa
que o poema de que não gostamos não tenha nada a nos dizer. A resposta da
leitora reitera isso, pois ela mesma citou um verso que d’alguma forma lhe
repulsionou.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta
noturna.
Outros leitores, exatamente 6 deles, fizeram referência a este verso.
Algumas colocações desse grupo de alunos:
149
Eu compreendi o verso “Como pequenina moeda de prata perdida para
sempre na floresta noturna” o autor compara o poema com uma pequena
moeda so que seu valor é caracterizado por cada pessoa que le o poema.
(El )
“Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta
noturna” citou uma moeda como exemplo que uma coisa mais simple na
escuridão da floresta agente temos que dar valor muitas vezes o livro o
poema nas bancas. (Na)
“Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta
noturna”. O autor está retratando o poema como pequeno más porém
brilhante e estará para sempre. (Am)
A leitora El percebe que existe uma singularidade do leitor em sua
relação com o poema, ou seja, é o leitor quem dará a medida de seu valor.
Lembremos que a imagem criada pelo eu lírico compara o poema a uma
“pequenina moeda de prata”, mas no cenário “floresta noturna”. um nítido
choque aí: a claridade da prata e a escuridão da noite, a pequenez da moeda e
a grandiosidade da floresta se confrontam e ao mesmo tempo se associam em
uma metáfora que, por isso mesmo, diz muito do poema, esse “objeto”
indizível. Como entende El, somente o leitor pode encontrar a moeda, ou,
então, deixá-la perdida na imensidão da floresta.
Vale acrescentar que tal busca não é somente do leitor, que existe
uma relação forte de cumplicidade entre ele, o texto e o autor, e que foi tão
bem colocada por Roland Barthes (1987). No fundo, esses três elementos se
procuram, e o intercâmbio entre eles possibilitará a concretização de
sentidos:
O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja. O texto
me escolheu, através de toda uma disposição de telas
invisíveis, de chicanas seletivas (...); no texto, de uma certa
maneira, eu desejo o autor: tenho necessidade de sua figura
(...), tal como ele tem necessidade da minha (BARTHES, 1987,
p. 38).
150
Voltando às respostas dos alunos, a leitora Na interpreta a metáfora
“pequenina moeda de prata perdida” à sua maneira, como tem que ser,
fazendo uma ligação pertinente entre o que o eu lírico diz e a sua própria
realidade: em suas palavras, a “coisa mais simples na escuridão” era o livro, o
poema nas bancas, mas que parecia ficar perdido em meio à floresta de
exemplares.
E embora nem sempre o leitor busque o texto literário, o significativo era
ver que d’algum modo o texto literário estava buscando o leitor: a turma do
primeiro ano estava realmente tendo acesso a um tesouro, estava tendo o
direito de satisfazer sua necessidade universal de fantasia (CANDIDO, 2002), e
a impressão que tínhamos era que alguns viviam esta experiência pela primeira
vez.
O terceiro comentário, o do aluno Am, chega a ser poético: de
“pequenina moeda de prata” ele extrai que o poema é “pequeno e brilhante”; do
restante da metáfora, “perdida para sempre na floresta noturna”, ele focaliza o
“estará para sempre”. Realmente, o poema permanece, mais do que na página
do livro, na lembrança do leitor a quem marcou.
É T. S. Eliot (1991) quem nos diz: se de fato uma função social
essencial da poesia, é que ela nos prazer. Um poema consegue “estar
para sempre”, quando, primeiro, atingiu esse estágio no leitor.
Neste ponto em que estamos é possível vislumbrar como “a poesia
pode ser um elemento fundamental de educação da sensibilidade”. De fato,
“em todas as épocas os poetas e poetisas (...) nos oferecem experiências
humanas que carreiam forças, sentimentos capazes de nos tocar (PINHEIRO,
2008, p. 25).
151
Talvez o mais significativo em tudo isto seja a descoberta de que a
poesia, e a literatura de forma geral, é “fator indispensável de humanização”
porque ensina como a vida: ela “confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”
(CANDIDO, 1995, p. 243).
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Nenhum aluno respondeu a assertiva b citando este verso, e é bom
observar que todos os demais versos do poema foram pelo menos referidos
48
nas colocações dos leitores. Como explicar tal ausência?
Temos pelos menos duas hipóteses: primeiro o tratar-se de uma imagem
difícil, construída com duas abstrações “angústia” e “misteriosa condição”
que pouco ajudam na compreensão do que seria “o poema”. Uma análise
cuidadosa nos mostrará, no entanto, que essa é exatamente a intenção do eu
lírico: o verso é tão nebuloso, e, consequentemente, o leitor fica tão embebido
por uma aura de mistério, que ele mesmo experimenta a angustiosa “condição
de poema”; ela é quase palpável.
A nossa segunda hipótese para a não citação do verso é simples e
direta: essa foi a imagem menos comentada em sala de aula. Como ocorreu
com os jovens leitores, a metáfora também causa desconforto em nós. Pinheiro
(2004) nos alguma luz, ao sinalizar que a misteriosa condição do poema
“talvez consista em ser algo discreto, mas de brilho perene que pede olhar
atento”. Sua condição misteriosa seria então, a sua própria angústia
48
Os versos “Triste.”, “Solitário.” e “Único.”, que são posteriores ao verso “Um poema sem
outra angústia que a sua misteriosa condição de poema”, também não foram diretamente
citados pelos leitores, mas eles vez por outra aparecem como referência indireta nas respostas
dos alunos.
152
(PINHEIRO, 2004, p. 15), sentimento difícil de descrever, mas vivenciado à
medida em que avançamos na leitura do poema.
O fato dos leitores ficarem temerosos de citar o verso 4 fez-nos refletir
sobre a importância do compartilhar juntos as impressões do poema, sobre a
necessidade da mediação do professor como condutor do “jogo” de leitura e
interpretação (LEITE, 1983), e não como juiz dele.
Na nova perspectiva de trabalho que queremos, devemos fugir das aulas
expositivas mas não podemos abrir mão das aulas dialogadas, construídas por
meio da relação de troca de experiências entre educador e educando. Muito
provavelmente, se tivéssemos conversado mais sobre o verso da “misteriosa
condição”, ele teria sido referido pelo alunado.
Ferido de mortal beleza
O último verso do poema foi citado por 3 leitores. Abaixo, trazemos
como exemplo o significativo comentário de Ed:
“Ferido de mortal beleza”. Pelo que eu entendi ele quis dizer que por mais
triste que o poema seja ele pode ser muito bonito. (Ed)
A aluna conseguiu perceber duas características fundamentais da
imagem: a tristeza e a beleza, um misto aparentemente impossível, mas talvez
por isto mesmo inquietante. Note-se que para indicar a maneira como percebe
a metáfora, Ed usa o intensificador “muito”, o que sugere ter sido tocada pelo
verso.
Corroborando o que vem sendo dito ao longo de “O poema”, o verso
“Ferido de mortal beleza” surge como se fosse resultado das sete metáforas
anteriores, ou melhor ainda, como se as concentrasse nele mesmo.
153
Uma observação
Para terminar a análise das respostas referentes à assertiva b, vale citar
ainda as colocações dos leitores Ni e Em, que se diferenciaram das demais
pelo seguinte aspecto como se podever a seguir, eles falam de um verso
do qual mais gostaram, e de outro que os inquietou:
Na verdade no poema houve dois versos especiais: um que gostei e outro
que me deixou inquieto. O que gostei foi o primeiro verso “um poema é
como um gole d’agua bebido no escuro” neste verso o “eu-lírico” descreve
muito bem o poema, pois o poema realmente é isso pra mim, nós não
vemos o poema, mas simplesmente o sentimos. Já o verso que me deixou
inquieto foi o último verso que diz o seguinte: “Ferido de mortal beleza”, o
que me deixou inquieto neste verso foi o fato de não compreende-lo muito
bem, ou seja, minha inquietação se deve ao ar de mistério que este verso
tem para mim. (Ni)
O verso que mais gostei foi - Como pequenina moeda de prata perdida
para sempre na floresta noturna. E é assim que mais uma vez, certas
pessoas se sentem; Elas tem um brilho enorme mas, se perderam no meio
de tanta angústia e solidão. Mas o que me deixo inquieta foi - Ferido de
Mortal beleza - justamente pelo fato que eu não o entendi. (Em)
No início da fala de Ni, trechos como “o poema é isso pra mim”, ou o “ar
de mistério que este verso tem para mim”, remetem a um importante processo
de particularização em que o leitor caminha da experienciação do eu lírico para
a sua própria experienciação. É claro que a significação do leitor é
construída por meio da vivência do mundo particular que é o poema, mas longe
de ser uma recepção passiva, a leitura se apresenta como uma interação
produtiva entre o texto e o leitor, de modo que é este quem lhe completude
(JOUVE, 2002, pp. 61 e 62).
Outro aspecto válido a se notar é que a inquietação de Ni diante do
verso “ferido de mortal beleza” provém de sua própria incompreensão acerca
da imagem, o que só nos leva a confirmar o quanto somos atraídos pelo
154
mistério, por aquilo que passa além da nossa lógica
49
. A esse respeito, vale
trazer uma citação de Lígia Chiappini Leite (1983):
Quando a mediação é o texto literário, um texto que expressa a
vontade de criar, um texto que mais interroga do que responde,
um texto opaco, cuja obscuridade misteriosa é o desafio que
propõe a busca de sentido, ela facilita a tarefa. Mas desde que
tentemos explorar ao máximo as suas potencialidades, ou, pelo
menos, desde que não atrapalhemos o encontro dos alunos
com ele e, através dele, consigo mesmos e com os outros
(LEITE, 1983, p. 113).
Olhemos agora para o comentário da aluna Em. Repare-se que ela
procura trazer o poema para mais perto de si: a pequenina moeda de prata
passa a ser metáfora para o próprio ser humano, precioso tesouro às vezes
ofuscado nas situações difíceis da vida, com “tanta angústia e solidão”. A
reflexão da leitora mostra-nos como a maturidade literária não se confunde
necessariamente com a maturidade etária; a jovem Em sabia que o poema
estava falando sobre ele mesmo, mas isso não a impediu de ir além, de traçar
novos caminhos de interpretação.
Interessante é notar também que, à semelhança do que ocorreu com Ni,
a aluna sentiu-se inquieta com o verso “ferido de mortal beleza” justamente
pelo fato de não o ter compreendido não raro ficamos marcados por um texto
literário, lendo-o e relendo-o por anos a fio, justamente por não
compreendermos um verso, uma estrofe, ou ele todo.
para deixar claro, não estamos fazendo aqui uma “apologia da
incompreensão”, mas tão somente admitindo a importância de lidarmos
49
para lembrar, Ni já havia assinalado a sua fascinação pelo “impenetrável” no trabalho
com o Poema obsceno”, de Ferreira Gullar; para o aluno, aquele havia sido o mais marcante
poema do experimento, como ele deixou explícito em comentário postado no blog.
155
também com o incompreensível, pois é na ultrapassagem desta barreira que
reside o caráter emancipatório da arte (JAUSS, 1994).
c) Reflita sobre o título do texto: por que será que o autor o
chamou de “O poema”?
Para responder a esta questão, a maior parte dos alunos apenas definiu
o que seria metalinguagem poética, o que não é de se estranhar, visto que não
se exigia mais do que isso deles. O que queremos dizer é que a assertiva ficou
“pobre”, ou, dito de outra forma, careceu de uma melhor elaboração para que
pudesse vir a extrair algo mais dos leitores. Eis algumas respostas deles; no
fim, todas procuram dizer a mesma coisa:
Foi chamado de “O poema” porque fala sobre o próprio poema. (Ad )
Fala do próprio poema e como ele estivesse contando a história do poema
falando o que ele é (...) (Wa)
Pois ele quis explicar o poema fazendo um poema. (La)
pelo fato de se referir aos poemas. (We)
Acho que porque tem esse titulo por que é um poema que fala do proprio
poema que diz o que é um poema. (Se)
eu acho que o Altor escolheu o título do texto justamente para falar sobre o
que é um poema então ele faz algumas comparação que o poema é isso e
aquilo como está escrito no poema. (Ec)
Não é difícil ver que um nítido empobrecimento quando se considera
a metalinguagem pela metalinguagem, isto é, quando a compreensão do
metapoema está alicerçada unicamente em se perceber que ele volta-se para
si mesmo. Pouco adianta identificar que “O poema” fala sobre o próprio poema
a não ser pelo que advém de suas imagens, pelo que esse texto diz como
156
indagação profunda de sua própria razão (CAMPOS, 1977, p. 36). Quase como
aquele ideal de “arte pela arte” dos parnasianos, a metalinguagem, se ficar
apenas nesse nível, é aquilo que Alfredo Bosi chama de “poética da
metalinguagem”, que o poético, que deveria ser o foco toda vez que se lida
com poesia, encontra-se encoberto, “deslocado e posto em código aadquirir
a consistência de uma retórica de formas ou de conteúdos” (BOSI, 2000, p.
170).
Mas na turma do primeiro ano existiram algumas respostas, poucas é
verdade, que foram além da simples definição de metalinguagem. Vejamos
algumas:
Porque eu acho que o autor queria tratar um sentimento forte e transformá-
lo em um poema. (Je)
Porque ele refletiu sobre o que um poema pode ser, o que ele causa nas
pessoas e então escreveu esse poema com o nome de poema para
chamar a atenção dos leitores. (Is)
porque reaumente dava tudo pra ser um poema por causa das frases. e é
muito bonito. (Ed)
Note-se que Je focaliza “O poema” não exatamente por seu caráter
metalinguístico, mas pelo nível de sentimentalidade nele presente, como se a
metalinguagem estivesse subordinada à esfera maior da significação.
Pensando bem, o texto de Mário Quintana nos toca porque antes tocou o eu
lírico. Dito de outra forma, não é por falar sobre o poema, mas sim por falar
sobre esse objeto por meio de um olhar emocionado, para quem o próprio
poema, e, abstraindo, a poesia, é tão surreal que pode ser comparado a
imagens da estirpe de “um gole d’água bebido no escuro”, “um pobre animal
palpitando ferido”, ou de “uma moeda de prata perdida para sempre na floresta
noturna”.
157
A segunda resposta, a de Is, revela um alto nível de percepção
interpretativa e merece ser analisada com cuidado. Inicialmente, devemos
atentar para o detalhe de que a leitora utilizou o verbo “refletir” para demonstrar
a atitude do eu rico na construção do poema. E, na sua reflexão, o eu lírico
teria pensado em duas coisas: no “que um poema pode ser” e no que o poema
“causa nas pessoas”.
Pensemos agora no “que um poema pode ser”. É significativo especular
por que Is utilizou a forma verbal condicional pode ser”, em vez de um tempo
verbal de certeza como é”. A leitora notou que o eu lírico se expressa por meio
de comparações, como se olhasse o mundo ao seu redor e procurasse
encontrar aquilo que seria igualado a seu objeto mais caro, o poema. Na sua
difícil tarefa, o poeta alcança profundo nível de densidade lírica, com a
construção de imagens insólitas e misteriosas, especialmente nos três versos
iniciais (PINHEIRO, 2004).
Mas parece que mesmo essas metáforas tão bem elaboradas ainda não
dizem tudo o que “um poema é...”, mas tão somente o que ele “pode ser”. É
como se as reticências estivessem ali, mesmo sem estar. É como se a jovem
leitora soubesse que oito versos, mesmo aqueles, são pouco para traduzir “O
poema”.
Daí advém outra questão: importa considerar também que “o poema
pode ser porque, para lembrar um texto de Cecília Meireles, pode ser “isto”
para mim, e “aquilo” para outra pessoa. A ideia estruturalista de poema como
“organização auto-suficiente e auto-produtora de sentido” construída pelo poeta
se abala quando tal poema chega ao leitor. Aí, então, é preciso admitir que o
texto poético é uma formação porosa, constituída de vazios a serem
158
preenchidos pela figura que nele deposita seu conhecimento e experiência
singulares: o leitor (ZILBERMAN, 1989 / In: SMOLKA, 1989
50
). No fim das
contas, é ele, o leitor, quem dirá o que “um poema é...”.
Is captou bem essa informação: na outra parte fundamental de sua
resposta ela diz que o eu lírico reflete sobre o que o poema “causa nas
pessoas”, porque, de fato, o poema não age da mesma maneira em todo
mundo, assim como cada leitor age de um modo único sobre o poema.
Refletindo, então, sobre os versos de Quintana, pode-se perceber que a
relação de causalidade apontada pela jovem Is está alicerçada no fato do
poema ser aquele gole d’água que bebemos, aquele palpitar do animal ferido
que sentimos, aquela moeda de prata perdida que desejamos... uma
identificação entre o que o poema é, e o que ele provoca em nós: ele é
porque atua em s; ele é porque, como em Adélia Prado, o “trem de ferro”,
a coisa mecânica, “virou só sentimento”
51
.
E sentimento que não se constrói necessariamente em uma relação
amistosa, mas por vezes em um relacionamento conflituoso, no qual poeta e
leitor se enfrentam, medem forças, e, por fim entendem que ninguém tem que
vencer, porque quem permanece mesmo é a Poesia.
Chegamos, agora, ao último comentário selecionado, que de certa
maneira exemplifica o tópico sobre o que falávamos pouco. A leitora Ed
revela em sua resposta o que o poema “causou” nela mesma: na sua visão,
aquilo “dava tudo pra ser um poema por causa das frases”. As frases são,
como sabemos, os versos do poema; cada pedacinho da construção poética
50
Como estamos fazendo uso de dois textos de Regina Zilberman, ambos de 1989,
escreveremos “In: SMOLKA” toda vez que utilizarmos este.
51
A ideia está presente no metapoema “Explicação de poesia sem ninguém pedir”, de Adélia
Prado.
159
parece ter tocado a leitora, a ponto dela terminar o seu texto com a sincera
expressão “e é muito bonito”.
Para quase concluir as colocações acerca da questão c da atividade,
convém dizer que apenas dois alunos remeteram ao termo “metalinguagem”
em suas respostas, o que para nós soou como um dado positivo. Logo se
entenderá o porquê, mas, antes, olhemos para os escritos dos leitores:
Eu acho que o autor usou essa metalinguagem o “poema” por que ele
queria passar o sentido do poema para que a gente venha refletir sobre
este lado de leitura. (Da)
Na minha opinião Mário Quintana pôs esse nome no poema porque ele
explica o próprio poema com um poema. Vale lembrar que ele utiliza a
função metalinguística (quando explicamos um tema com o mesmo tema)
nesse poema. (Ni )
Deixemos claro o seguinte: o temos aversão ao termo
“metalinguagem” ou qualquer coisa assim. De certa maneira é relevante ver
que dois alunos da turma lembraram-se de que o procedimento estilístico de
falar do poema em um poema recebe a designação técnica “metalinguagem”.
O que nos deixa satisfeitos, porém, é ver que todos os demais leitores, que não
remeteram diretamente a essa nomenclatura, perceberam também a
metalinguagem que existia ali.
A esse respeito, Teresa Colomer nos lembra de que as crianças, e por
que não dizer, os jovens leitores, têm facilidade de aprender o que é um título,
um personagem, um conto ou um poema. Mais tarde, então, vão saber “o que
é uma comparação ou uma lenda e, logo, o que é uma metáfora, um
personagem secundário ou um início in media res. E, no entanto, todas essas
coisas existem nos livros que lêem antes de sabê-las explicitamente”
(COLOMER, 2007, p. 66)
160
Estamos, pois, caminhando para uma descoberta-chave deste trabalho:
a metalinguagem poética é significativa não como teorização, mas como tema
que nos introduz, por meio da vivência com o poema metalinguístico, na
reflexão e percepção sobre a própria poesia. Dessa vivência pode sim nascer a
teorização, e esse é, inclusive, um passo a mais nesse caminho.
O contrário, entretanto, é mais difícil. Da teorização raramente nascerá a
vivência, porque aquela tende a ficar no nível da racionalidade, enquanto a
outra, no patamar da experiência. O jogo é o seguinte: experimentamos
primeiro, e, se quisermos, podemos racionalizar tal experiência; quando
começamos racionalizando, porém, trancamos a porta dos nossos sentidos
para a significação, porque tudo já nos é dado de pronto.
Nesse sentido, não é difícil entender porque somente dois alunos da
turma remeteram ao termo “metalinguagem” em seus exercícios. Lembremos
que, no dia da aula, a conversa acerca da pesquisa sobre as funções da
linguagem aconteceu antes dos alunos chegarem à leitura de “O poema” a
então, o único conhecimento que tinham era do título do texto. Eles não haviam
experienciado o poema metalinguístico, e por isso, por mais que se
esforçassem em “decorar” o que era metalinguagem, a informação dizia-lhes
pouco, ou mesmo nada.
Como ensina Roland Barthes, era preciso que a porta do prazer fosse
aberta, e que o metapoema, à semelhança dos prazeres da vida (um petisco,
um jardim, um encontro, uma voz, um momento, etc.), entrasse no catálogo
pessoal das sensualidades do leitor; ou então que se abrisse, ao invés do
caminho do prazer, “a brecha da fruição, da grande perda subjetiva,
161
identificando esse texto com os momentos mais puros de perversão, com seus
locais clandestinos” (BARTHES, 1987, p. 76).
Concluindo este tópico, e mais que isso, o relato do módulo IV, é preciso
dizer que não postamos “O poema” no blog por uma razão principal: ele
havia sido bastante explorado em sala de aula, e contávamos com uma boa
quantidade de dados escritos acerca dele. Temíamos utilizar sempre as
mesmas estratégias, pois isso poderia cansar os internautas.
5. Módulo V (27/05/09)
Para o último módulo do experimento com a poesia metalinguística,
planejamos talvez o “desafio dos desafios”: era a hora de testar a hipótese de
que, mesmo os textos mais difíceis, ou seja, aqueles que contrariam a
percepção usual do sujeito (ZILBERMAN, 1989), são passíveis de ser
interpretados pelos leitores a seu modo. De certa forma, o módulo anterior,
em que havíamos levado “O poema”, tinha funcionado como uma preparação
para o que aconteceria agora.
No plano destes momentos finais (ver anexo 3), pensamos no seguinte:
na primeira aula e em parte da segunda iríamos concluir o trabalho de
convivência com a poesia metalinguística trabalhando dois poemas de Ferreira
Gullar, “Desastre” e “Poema poroso”; no momento restante, então,
conversaríamos sobre o experimento.
5.1. A luta na escolha dos poemas
É preciso se dizer inicialmente o quanto nos deu trabalho a escolha dos
últimos metapoemas a serem levados à turma do primeiro ano. Dentre uma
162
grande variedade de textos do poeta Gullar, tínhamos muitas opções: levar um
outro poema lírico-social atrelado à metalinguagem, como é o caso de “Agosto
1964”, “Meu povo, meu poema”, “A bomba suja” e tantos outros textos do livro
Dentro da noite veloz (1975); levar poemas metalinguísticos mais “leves”, onde
de certo modo uma brincadeira com a metalinguagem, como acontece em
“A voz do poeta”, “That is the question” e “O poema na rua”; optar por um outro
metapoema consagrado como o “Traduzir-se”, escolhendo talvez “Arte poética”
ou “Subversiva”; ficar com os “poemas-desafiadores”, caso de “Desastre” e
“Poema poroso”, a nossa escolha.
Ao ler os poemas que selecionamos (ver anexo 4), temos a certeza de
que poucos professores de literatura se arriscariam a introduzi-los em uma
turma de leitores de primeiro ano. Mas por que razão não fazê-lo? Na nossa
ainda ínfima, mas, para nós, significativa experiência de ensino, sabíamos de
uma coisa: os poemas “lírico-sociais”, os “leves” e os “consagrados” já parecem
carregar em si uma característica que os torna propensos ao gosto dos leitores;
os “poemas-desafiadores”, não. Esses são aqueles que tendem a causar no
aluno certo impacto, e não raro certa aversão, mas é interessante como esse
agir diferenciado do texto sobre o leitor pode ser um caminho de conquista do
gosto literário.
De fato, segundo Regina Zilberman, o estranhamento ou choque no
destinatário, que advém da relação tensa entre o sujeito da percepção e o
objeto estético, é o que torna esse objeto de valor (ZILBERMAN, 1989, p. 19).
Era esse caminho contraditório que queríamos experienciar com aqueles
jovens, mesmo sabendo da real possibilidade de fracassarmos.
163
5.2. A discussão em grupo sem a intervenção do professor
No trabalho propriamente dito, a metodologia utilizada foi a seguinte:
dividimos a turma em grupos de 4 alunos, e entregamos a cada equipe a folha
avulsa contendo os dois metapoemas de Ferreira Gullar. Designamos, assim,
parte dos grupos para ler e discutir o texto “Desastre”, e outra parte para fazer
o mesmo com o “Poema poroso”.
Dessa vez optamos por o ler os poemas em voz alta, e avisamos que
eles mesmos é que fariam e testariam entre si a leitura expressiva. Ficamos
então a observar e passear pelos grupos, e pudemos ver o quanto lhes parecia
dificultoso encontrar um caminho de leitura oral, por causa da dificuldade de
dar significação aos poemas metalinguísticos.
Também pudera: que “desastre” era aquele que tinha a ver com “poema
podre”, e não com acidente de carro ou de avião? E se ninguém ali sabia o que
era uma coisa porosa, como ia entender do que tratava o “poema poroso”?
Eram mais ou menos esses os questionamentos aflitos que os alunos da turma
lançavam sobre nós.
Apesar disso, tínhamos a convicção de testar aquilo a que nos
propuséramos, e por isso permanecemos na posição de não ajudá-los nesse
momento. A oportunidade era única: no nosso entender, os leitores podiam ir
muito além do que imaginavam, e era preciso que eles também se dessem
conta disso. Ademais, todos nós vínhamos em processo de convivência com a
poesia há cinco semanas, lendo e conversando sobre os poemas, tanto na sala
de aula quanto no blog, o que levava a crer que já eram capazes de se
expressarem mais sozinhos.
164
O período de tempo, admitimos, era pouco, mas esse não era, nem é, o
ponto principal. O fundamental é entender e este trabalho subsiste nisso
que a literatura, a poesia, faz o trabalho por si mesma, quando damos aos
alunos a oportunidade de viver e conviver com ela. Isto é para nós mais do que
uma teoria; é uma experienciação em que acreditamos tanto que sentimo-nos
constrangidos a repassá-la. Afinal, onde mais haverá tanta liberdade de “ser
outro sem deixar de ser o mesmo”?
A literatura permite ‘ser outro sem deixar de ser o mesmo’, uma
experiência que, como a do jogo, oferece o mistério de permitir
ser e não ser ou ser mais de uma coisa ao mesmo tempo.
É através dessa experiência tão particular de sonhar-se a si
mesmo que se ao leitor um instrumento poderoso de
construção pessoal e uma completa dimensão educativa sobre
os sentimentos e ações humanas (COLOMER, 2007, p. 61).
Na aula, aquele era o momento da turma do primeiro ano experimentar o
jogo do “sonhar-se a si mesmo”, como nos disse Teresa Colomer. Ou, para
usar outra metáfora, era o momento de serem como que bandeirantes. A “terra”
a ser encontrada parecia difícil, mas eles receberiam as ferramentas para
chegar lá. Foi nesse momento que entramos com a nossa contribuição mais
direta; após dar tempo para que fizessem a leitura oral em grupo, escrevemos
no quadro duas perguntas para direcionar a discussão sobre os poemas:
1) Que tipo de poema o eu lírico quer escrever?
2) Por que ele procura o poema com essas características?
Como se pode notar, os questionamentos estavam bem interligados:
primeiro vinha o momento de identificar o tipo, ou seja, a característica
essencial do poema que o eu lírico desejava escrever. Em seguida, os leitores
165
deveriam refletir sobre a razão, ou as razões, dessa procura. Haveria algo de
diferente nesse poema que o eu lírico buscava? O que era? Por que ele queria
esse, e não um outro tipo de poema?
Esses desdobramentos que surgiam das duas questões-chave iam
sendo colocados por s enquanto visitávamos os grupos. A compreensão,
porém, eram eles que iriam construir. Demos, portanto, um tempo para que
pudessem conversar sobre as possíveis “respostas” em termos, pois para
Gadamer, toda obra é a resposta a uma pergunta (ZILBERMAN, 1989); caso
os alunos quisessem, poderiam também fazer alguma anotação no caderno.
Novamente, sentimos que o instante era desafiador para a turma do
primeiro ano. Muitos grupos nos chamavam ao mesmo tempo, alguns para
pedir auxílio, direção, e outros a grande maioria, diga-se de passagem – para
solicitar de nós respostas prontas.
Se aquele era um desafio para os jovens leitores, não era diferente
conosco. Tínhamos diante de nós duas opções: voltar à metodologia usual de
ler e discutir os textos com a turma, e assim cessar o desespero dos alunos
diante dos “incompreensíveis” metapoemas; persistir com a estratégia de
trabalharem entre si, acreditando que seriam capazes de compreender os
poemas à sua maneira.
Ficamos com a segunda opção, a que nos oferecia o diferencial de
conhecer várias possibilidades de interpretação literária: não nos interessava
“transmitir” para os leitores a nossa própria leitura, mas captar o modo único de
leitura de cada um daqueles grupos.
Enquanto a discussão se processava, percebíamos que os alunos iam
crescendo no exercício da investigação literária, como bandeirantes que
166
procuram pistas da terra almejada. Ao captar o sentido de um verso, de uma
estrofe, acendia-se uma luz cada vez maior que ia indicando caminhos para a
interpretação do “todo”
52
.
Terminado o momento da discussão oral em grupo, pelo planejamento
da aula seria a hora de externarem uns para os outros o que haviam
descoberto acerca dos poemas isso enriqueceria muito a aula, pois permitiria
aproximar/confrontar percepções diferentes de “Desastre” e “Poema poroso”.
Infelizmente não houve tempo para tal socialização, e tivemos que utilizar
“outra carta da manga”, ou o “plano b”, como se costuma dizer.
Prevendo que algo assim poderia acontecer, em casa havíamos digitado
as mesmas duas perguntas que colocamos no quadro com um espaço de
linhas abaixo para que os grupos pudessem se expressar na forma escrita (ver
anexo 7). Como os leitores já haviam discutido os textos oralmente por um bom
tempo, não tiveram grandes dificuldades de transmitir as ideias para o papel, e
na mesma aula, nos entregaram a atividade. Essa foi, pois, a estratégia que
utilizamos para assegurar os dados da nossa investigação, já que ficamos
impossibilitados de gravar em áudio a socialização, que não aconteceu.
E que dados significativos foram aqueles: os jovens leitores superaram
todas as nossas expectativas. Sem sombra de dúvidas, eles foram muito além
do que nós, e eles mesmos, poderiam imaginar. O módulo V estava sendo
concluído e apontava para uma real maturação daqueles jovens leitores. É o
que se constatará no tópico seguinte.
52
Essa ideia de interpretação do “todo” é muito relativa: será que alguém chega a uma
interpretação total de um poema? Muito provavelmente não. Como nos lembra Teresa
Colomer, “a compreensão literal de um texto (...) só existe em formas extraordinariamente
limitadas de comunicação. Se pensarmos em uma boa telessérie de humor, “literal” seria o que
diz o personagem, mas para rir o espectador tem que entender muito mais” (COLOMER, 2007,
p. 70). Como os dois metapoemas de Gullar eram textos reconhecidamente difíceis, o que
queríamos mesmo era captar e refletir sobre o modo de aproximação e leitura dos alunos, ou,
sendo mais claros, ver o que conseguiriam compreender deles, como iriam interpretá-los.
167
5.3. Análise dos escritos dos leitores
O nosso corpus de análise constou de 10 exercícios, cada um deles
referente a um grupo diferente de alunos. É preciso se dizer que houve um
equívoco metodológico de nossa parte: deveríamos ter designado 5 grupos
para o poema “Desastre”, e 5 grupos para o “Poema poroso”, mas o que
tivemos mesmo foi 6 equipes para o primeiro, e 4 equipes para o segundo
poema. De todo modo, isso não veio a comprometer os dados da pesquisa,
pois continuamos com um bom número de interpretações distintas para os
metapoemas. E isso era, de fato, o que nos interessava.
5.3.1. “Desastre”
Começaremos este momento trazendo e analisando respostas de alguns
grupos que ficaram com o poema “Desastre” – as respostas de todas as
equipes referentes a esse texto se encontram no anexo 8. Como as duas
perguntas da atividade se complementam, traremos sempre os escritos de
ambas. Lembramos, mais uma vez, que as colocações dos leitores são deles
mesmos, sem interferência nossa. A única atitude que tivemos foi a de lançar-
lhes os questionamentos; a leitura oral, a discussão grupal do poema, e a
posterior escritura do que foi discutido, tudo isso foi obra dos alunos.
GRUPO 1
53
Me, Da, Wa e Am
1) Ele quis fazer um poema diferenciado que estivesse relacionado ao
público. Porque quando ele falou das frutas podres no prato ele se refere
ao mercado publico”
53
Coincidentemente estamos iniciando com o grupo 1, mas não consideraremos aqui ordem
crescente ou decrescente na numeração dos grupos.
168
2) Ele quer demonstrar neste poema que o poema não é feito pra ricos
mas para gente mais pobre também
Para responder ao questionamento inicial, ou seja, “que tipo de poema o
eu lírico quer escrever”, o grupo 1 percebeu uma característica essencial do
metapoema “Desastre”: ali o eu lírico procura fazer uma criação poética
diferenciada, que d’alguma maneira se destaque dentre as outras, os poemas
apenas “comuns”. Para falar com mais precisão, o eu está rejeitando o poema
“mármore ou cristal” (vs. 3 e 4), e está em busca do “poema podre” (v. 14), ou,
na outra metáfora, o poema que se compara a “um desastre em curso” (v. 25).
Em sua resposta, os rapazes Me, Da, Wa e Am também apontaram para
um segundo elemento crucial, que se perfaz na relação entre o poeta e o seu
público lembremos sempre que não há sobrevivência do texto sem o leitor,
pois “qualquer obra, por mais sólida que pareça, compõe-se na realidade de
“hiatos” (EAGLETON, 2001, p. 105) a serem preenchidos por quem a lê.
Nas linhas de “Desastre”, o eu lírico revela o anseio por um poema que
se processa à semelhança de “pêssego/ pêra / banana apodrecendo num
prato” (vs. 5 ao 7), em um misto de desintegração que contraditoriamente se
processa como a forma de integração do poema, do poeta, no mundo.
O desejo intenso de estar na “varanda”, em meio às vozes e barulhos da
rua, pode ser facilmente revisitado ao longo da obra poética de Ferreira Gullar,
é claro, em criações
54
sempre novas e únicas. Quase sempre o que aparece é
a matéria calada, amorfa, em processo de mortificação; a essa matéria não dão
54
Ver poemas como As pêras”: As pêras, no prato, / apodrecem. / O relógio, sobre elas, /
mede / a sua morte?” (...); ou então “Frutas”: “Sobre a mesa no domingo / (o mar atrás) / duas
maçãs e oito bananas num prato de louça / São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela
/ com pintas de verde selvagem: uma fogueira sólida acesa no centro do dia (...)”; conferir
ainda “Bananas podres” e “Bananas podres 2”.
169
mais a mínima importância, mas é ali, naquele seu último estágio, que ela se
embebe e se impregna da mais latejante vida: a que vem do povo, a que vem
da rua. Assim, a podridão do poema, que à primeira vista parece ser a sua
sentença de morte, é na verdade a sua tábua de salvação nunca ele esteve
tão vivo, tão “exposto” em sua “química de sílabas”, em sua “desintegração de
metáforas”, como naquele momento.
Esta reflexão que ora fazemos nos vem a partir da resposta dos leitores
da turma do primeiro ano. Ali, no entanto, os alunos se equivocam em um
aspecto, mais exatamente quando afirmam que, ao falar das frutas podres no
prato, o eu lírico “se refere ao mercado público”. Embora a percepção tenha a
sua lógica, pois esse é o espaço provável de se encontrar frutas, verduras, o
poema não nos permite fazer tal colocação. Se há algum local no metapoema é
tão somente a varanda, que inclusive aparece não como concretização, mas
como possibilidade: “e se possível /numa varanda / onde pessoas trabalhem e
falem “(vs. 8 e 9).
Esse entendimento acerca do espaço “mercado público” levou os jovens
leitores a responderem ao segundo questionamento da atividade da seguinte
forma: “Ele quer demonstrar (...) que o poema não é feito só pra ricos mas para
gente mais pobre também”. Ora, tomando-se o mercado como lugar aberto a
todas as classes sócio-econômicas, mas especialmente frequentado pelos
mais pobres, que inclusive são os que vendem os produtos, que se
entender por que os alunos raciocinaram assim.
E apesar de “Desastre” não ter sido feito exatamente para “demonstrar”
que o poema é feito para todos, como diz o grupo, há dois pontos bem
significativos no modo de ver dos alunos: o primeiro é que eles repararam no
170
caráter metalinguístico do poema, ou seja, passaram pela porta principal na
interpretação do mesmo; o segundo ponto é que os leitores atentaram para a
necessidade de identificação do eu lírico com o povo, com a gente de qualquer
classe, de qualquer cor, pois o que esse eu quer mesmo é misturar-se com as
ações, vozes e barulhos que procedem da rua, o único meio de chegar ao
“poema podre” – é perecendo que o poema se tornará imperecível.
Além disso, a equipe ainda foi capaz de notar que a poesia não costuma
acertar-se muito com rotulações: esse poema é para rico, esse para pobre,
esse para criança, esse para adulto... O poema se mostra como “polpa fendida
e exposta” ao leitor que satisfaça apenas uma condição: a de doar-lhe os
sentidos para ver, ouvir, e sentir-lhe o odor. A própria escritura do texto, aliás,
já é a prova cabal de que ele deseja o leitor (BARTHES, 1987, p. 11).
GRUPO 10
Ra, Ed, Dy e Ma
1) É um poema estranho pelo qual chame atenção de muitos, e que possa
lançar um desafio de ler e tentar interpretá-lo.
2) Como a maioria dos poemas falam de amor e entre outros eles apenas
quis fazer um poema pobre, para fazer com que o mesmo seja comentado.
Pensando especificamente no caráter metalinguístico do poema
“Desastre”, à semelhança do grupo 1 quase todas as equipes de alunos
entendeu a metáfora do “poema podre” como a busca do poema diferenciado,
exausto de ser apenas “verde” ou “maduro”, se assim podemos nos expressar.
Como se pode constatar, no trecho em que respondem à pergunta 1, as
leitoras do grupo 10 usam o termo “poema estranho”, no esteio daquilo que o
171
eu lírico quer provocar, e que, de fato, provoca nelas. As alunas percebem
mais: que a reação de estranhamento está associada à intenção de chamar a
atenção do leitor, e “fisgar-lhe” para o desafio da leitura e interpretação. Talvez
o mais significativo em tudo isto seja o fato de que Ra, Ed, Dy e Ma estão
descrevendo a sua própria situação de leitoras, isto é, elas próprias vivenciam
a desafiadora interpretação de “Desastre”.
Na resposta ao segundo questionamento, novamente as alunas trazem
dados de investigação relevantes para a nossa pesquisa: na visão delas, ao
procurar fazer o “poema podre
55
”, o eu lírico está rompendo com a ideia comum
de que os poemas costumam versar sobre o amor; a metalinguagem, então,
aparece como tema inesperado, que irá por isso mesmo causar uma reação
diferente no leitor: nas palavras das meninas, “fazer com que o mesmo seja
comentado”.
Um dos mitos que queríamos desfazer ao desenvolver o trabalho na
turma era justamente esse que a colocação do grupo evocou. o é verdade
que dentro da poesia cabem as temáticas relacionadas aos sentimentos
humanos, embora grande quantidade de poemas tomem essa matéria como
assunto principal. Como dissemos, a poesia não gosta nem de limitações,
nem de rotulações, mas prefere estar livre para tomar qualquer tema, desde
que seja do seu interesse no momento singular de feitura do poema.
Ao utilizar a estratégia de iniciar o experimento com a poesia lírico-
amorosa, e depois levar a poesia metalinguística, era isso que queríamos
que os alunos percebessem. E foi o que ocorreu, sem que tenhamos feito
nenhum comentário direto a esse respeito. Os leitores descobriram por eles
55
Na resposta, elas usam o termo “pobre”, mas cremos que queriam dizer “podre”.
172
mesmos, construíram um conhecimento teórico
56
significativo a partir da
convivência com o texto literário. E, nesse ponto, vale trazer as palavras de
Pinheiro:
(...) não defendo a idéia de se começar a estudar literatura
partindo de conceitos advindos da teoria da literatura. Acho a
teoria literária importantíssima, mas para os professores, para
os críticos, para os leitores iniciados. Para jovens leitores,
não me parece boa idéia e os resultados para a formação de
leitores de literatura estão para comprovar (PINHEIRO,
2006, p. 115).
Temos mesmo que pensar: em que a “transmissão” da teoria literária
tem ajudado na formação de jovens leitores, especialmente de ensino médio?
Muito pouco, para não dizer nada. O máximo que se tem conseguido é formar
ótimos alunos que sabem de cor autores, obras e estilos de época literários,
mas que não conseguem ser leitores literários, porque se enrolam na leitura do
mais elementar dos textos.
Aliás, as “Orientações curriculares para o ensino médio” constatam
haver mesmo um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais na
passagem do ensino fundamental para o ensino médio, de modo que nessa
última fase os livros de literatura infanto-juvenil, ou de alguns poucos autores
representativos da literatura brasileira são substituídos pela história da
literatura e seus estilos. No caso da poesia, então, um dos mais graves
problemas é a fragmentação e isolamento de poemas, que aparecem apenas
porque são considerados exemplares de determinados estilos literários
(BRASIL, 2004, p. 63).
56
Bem, não se trata exatamente de um conhecimento “teórico”, como o podemos entender na
teoria da literatura. De todo modo, queremos assinalar a construção de conhecimento em que
os alunos aparecem como os próprios construtores, ao invés de meros receptores de
informação.
173
No nosso experimento, porém, caminhávamos contra essa correnteza. O
eixo das aulas que construíamos era sempre o texto literário, não isolado,
amorfo, perdido, mas em encontro dinâmico com o leitor.
GRUPO 3
Sa, Ru e Na
1) Ele quiz divulgar um poema simples que demonstrase frutas podres que
as pessoas ouvisse nas ruas este grande barulho do poema.
2) para chamar atenção das pessoas por onde passasse.
Vale a pena trazer ainda as colocações do grupo 3, composto
exclusivamente por leitoras. Aqui também se comprovará uma percepção
adequada do caráter metalinguístico de “Desastre”. É significativo notar que
diferentemente do grupo 10, que entende o poema como “estranho”, Sa, Ru e
Na o percebem como “simples”, especialmente pelo fato de haver ali uma
busca de aproximação com a rua, ou melhor, com as pessoas que nela andam,
falam e vivem. Daí decorre que, em sua resposta, as alunas “tocam” em um
outro ponto fundamental não do texto, mas da obra poética de Ferreira
Gullar como um todo: a questão do barulho
57
.
Olhando para “Desastre” com atenção, percebemos que o eu lírico
pretende que seu poema seja tal qual fruta “apodrecendo no prato” (v. 7), e
prato que está “numa varanda” (v. 9), já que esse é o lugar donde é possível se
ouvir “o barulho da rua” (v. 12). Ocorre, porém, que as leitoras enxergam um
outro lado dessa história, ou, dito de outra forma, fazem uma interpretação
57
Em Gullar, não apenas o “barulho” é elemento fundamental, mas o seu diálogo com o
silêncio, como nos ensina Alcides Villaça (1998).
174
diferenciada desse trecho; para elas, o próprio poema se processa como um
“grande barulho”, que será ouvido pelas pessoas da rua.
No fundo, é como se houvesse entre o “poema podre” e as pessoas uma
relação de cumplicidade, em que um se impregna e depende do outro a
“polpa fendida” se embebe dos barulhos da rua, e assim, ela também passa a
ser estrondo
58
, voz, barulho, que não passará despercebido. No pequeno
trecho em que o resposta à pergunta 2 da atividade, as alunas demonstram
que entenderam justamente isso: o eu lírico faz o poema “para chamar a
atenção das pessoas por onde” passar.
GRUPO 9
Ja e Ay
1) Bem, este poema não fala sobre “Desastre” porque desastre nada mais
é um prejuízo ou acidente. O nome desse poema deveria ser “coisas
malucas.”
2) Porque ele queria fazer um poema com características diferentes para
que algumas pessoas não conseguisse desifrar.
O último grupo a que queremos fazer referência é o de número 9,
formado por duas alunas. Olhando bem para suas respostas, pode-se entender
que o poema “Desastre” parece ter apresentado um grau de dificuldade maior
para Ja e Ay. Na resposta à pergunta 1, entende-se claramente que as leitoras
não conseguiram ver ligação entre o título do poema e o texto propriamente
58
Aqui para lembrar do “Muitas vozes”, um dos mais recentes metapoemas de Ferreira
Gullar, que está no livro de mesmo nome, publicado em 1999. Eis a estrofe final: “Meu poema /
é um tumulto, um alarido: / basta apurar o ouvido”.
175
dito, ou seja, o seu conhecimento acerca do significado da palavra “desastre”
entrou em choque com a proposta metalinguística do eu lírico.
Devemos nos recordar de que tal atitude de estranhamento entre título e
texto também ocorreu no trabalho com o “Poema obsceno”, de Ferreira Gullar.
Ali, depois do necessário choque, os leitores puderam então conhecer uma
nova forma de obscenidade, assentada em uma perspectiva lírico-social.
O fato é que, na interpretação literária, são acionados muito mais
conhecimentos que o linguístico
59
. Mesmo assim, a partir do entendimento
básico de que “desastre” só podia ser “prejuízo ou acidente”, Ja e Ay poderiam
ter avançado um pouco mais no desbravamento do texto, que ali o eu busca
fazer um poema que se processe “como um desastre em curso” (v. 25), isto é,
como um acidente mesmo.
O desastre almejado se explica em toda a última estrofe do metapoema,
onde, aliás, estão concentradas as metáforas mais dificultosas: aparece “o
avesso da voz / minando / no prato” (vs. 17 ao 19), “o licor a química / das
sílabas” (vs. 20 e 21) e “o desintegrando-se cadáver / das metáforas” (vs. 22 e
23). Note-se bem que a busca do eu lírico é sempre perpassada pelo
sentimento de destruição, como confirmam as formas verbais “minando” e
“desintegrando-se”.
Mais uma vez intensifica-se o desejo por aquilo que é diferente, por
aquilo que sai da ordem estabelecida por uma desordem que se constitui como
modo de sobrevivência do poema e do poeta. O grito que emana da segunda
59
No livro Lutar com palavras, Irandé Antunes (2005, p. 33) esclarece que o ato de escrever é
uma atividade que envolve, além de especificidades linguísticas, outras, pragmáticas, ligadas a
condições do contexto ou da situação da qual faz parte. Trazendo essa teorização para o
universo da literatura, ao se deparar com um texto literário, o leitor deve estar atento sobretudo
à polissemia das palavras, que muitas vezes adquirem sentidos diferentes do usual, sendo
empregadas em sentido figurado, ainda mais em se tratando de poesia.
176
estrofe de “Desastre” revela com veemência esse anseio, ou por que não dizer,
desespero do criador em seu processo de criação: “Ah quem me dera / o
poema podre!” (vs. 13 e 14). Na estrofe anterior, relembremos, havia a
rejeição ao poema “mármore ou cristal”.
Assim, ao chegar à estrofe final do poema, o leitor se depara com uma
espécie de ápice ou clímax, um derramamento de emoções que é constatado
no ritmo acelerado dos versos, na “força” dos fonemas que o constituem e, é
claro, nas imagens trazidas pelo eu lírico. Não se procura a voz, mas o seu
contrário, ou mais precisamente o “minar” do som, porque o som mesmo se
ouviu muito. Não se buscam propriamente as sílabas, essas todos os poemas
têm, mas a química, o licor que delas “escorre”. Não se querem as metáforas,
figura-mestra de qualquer poema, mas a desintegração do seu cadáver. Tudo
isso reunido, eis então o “poema podre”, o “desastre em curso”, que é
construído enquanto se fala nele. Para as meninas do grupo 9, porém, esse
“desastre” parece apenas “coisas malucas”, como elas afirmam na resposta 1.
Em contrapartida, a segunda colocação do grupo revela bastante
coerência. Semelhante ao que ocorreu com outras equipes, Ja e Ay observam
que o eu lírico procura “um poema com características diferentes” e com uma
função específica; no entendimento das alunas, essa função estaria em fazer o
poema indecifrável para algumas pessoas. Note-se que as leitoras são parte do
grupo de pessoas a quem o poema “Desastre” se mostra obscuro e enigmático
e, portanto, elas estão falando de uma situação que vivenciam.
Mas se por um lado o desejo de fazer o “poema podre” traz
necessariamente o risco de certa indecifração, devido principalmente a seu
caráter inovador, por outro não podemos esquecer o anseio do eu lírico de
177
misturar-se às vozes e barulhos da rua, em uma aproximação com as pessoas
que ali estão. O poema, em franco processo de desintegração, procura a
sobrevivência na vida que emana do povo. Essa situação ambígua nos revela o
quanto um metapoema como esse precisa ser perscrutado, investigado,
duvidado por seu leitor. Como ensina Vincent Jouve, “qualquer que seja o tipo
de texto, o leitor, de forma mais ou menos nítida, é sempre interpelado.”
Caberá a ele assumir ou o para si próprio a argumentação desenvolvida
(JOUVE, 2002, p. 22). O grupo 9 estava indo no caminho certo; faltou, apenas,
ousar um passo a mais.
5.3.2. “Poema poroso”
Como dissemos anteriormente, apenas 4 equipes da turma do
primeiro ano trabalharam com o “Poema poroso”, de Ferreira Gullar. Neste
momento, traremos e analisaremos as respostas de alguns desses grupos,
tendo como foco a valorização do modo singular de leitura de cada um deles
as respostas de todas as equipes que ficaram com esse texto se encontram no
anexo 9.
Mas antes de começarmos, deixemos claro o seguinte: a leitura e
interpretação deste metapoema parece ter oferecido aos alunos um grau de
dificuldade maior, quando comparado ao poema “Desastre”: na discussão oral,
as equipes de leitores que mais solicitavam a nossa presença eram justamente
as que haviam ficado com o “Poema poroso”; o que os alunos mais nos
perguntavam era acerca do significado da palavra “poroso”, pois entendiam
sabiamente que esse vocábulo era chave dentro do texto.
178
As respostas escritas revelam-nos algo relevante mesmo os poemas
mais aparentemente impenetráveis são passíveis de interpretação por parte de
nossos alunos.
GRUPO 4
Ec, Ni, Ar e Ty
1) Ele quer escrever um poema que se trata de um romance diferente por
uma coisa sem alma e sem rosto.”
2) Porque ele ama o que ele faz, e queria demonstrar esse Amor com seu
próprio Amor, o poema
Na resposta à primeira questão, aquela que pergunta sobre o “tipo de
poema que o eu lírico quer escrever”, o grupo 4 percebeu um aspecto
fundamental: à semelhança do que ocorria em “Desastre”, aqui também o
desejo de construir-se o poema diferenciado os alunos o entenderam como
“sem alma” e “sem rosto”. Note-se que, destas duas metáforas, apenas a
segunda aparece no poema (v. 12), de modo que a outra, “sem alma”, é uma
interpretação de Ec, Ni, Ar e Ty. De fato, o que se quer mesmo é o poema “de
terra”, “poroso”, “de poeira”, não havendo muito espaço para se pensar na
alma, que é transcendência, ou na forma do rosto, que é individuação que
empobrece.
A segunda resposta dos leitores e leitoras é ainda mais significativa,
que aponta para uma estreita ligação entre o poema e o poeta, ou, por que não
dizer, para a relação passional que se estabelece entre ambos. Se notarmos
bem, no “Poema poroso” uma linha progressiva de intensificação do desejo,
que se evidencia principalmente no fato do poema aparecer como interlocutor a
179
quem o eu lírico dirige-se diretamente: “De terra te quero; / poema, / e no
entanto iluminado.” (vs. 1 a 3); “assim te quero / sem rosto / e no entanto
familiar” (vs. 11 ao 13).
O poema aparece, então, como uma espécie de musa do poeta, o que
não se aplica, por exemplo, ao texto “Desastre”, no qual o poema aparece
referido ora em terceira pessoa “Há quem pretenda / que seu poema seja /
mármore” (vs. 1 ao 3) –, ora em primeira “o meu / o queria ssego / pêra /
banana apodrecendo num prato” (vs. 4 a 7) sugerindo uma relação mais
laboral entre artista e criação. Em “Poema poroso”, no entanto, parece haver
um envolvimento afetivo muito maior, como se o que existisse fosse um
romance entre o poeta e o poema.
Deve-se notar, inclusive, que os leitores utilizam o termo “romance” em
sua primeira resposta. Isso pode ter ocorrido por alguma confusão entre poema
e narrativa, mas é mais aceitável pensar que o grupo interpretou o “Poema
poroso” pelo viés da sentimentalidade, o que fica facilmente comprovado na
resposta que dão à segunda pergunta da atividade: “Porque ele ama o que ele
faz, e queria demonstrar esse Amor com seu próprio Amor, o poema”.
A interpretação metalinguística dos leitores surpreende: eles percebem
que uma carga de afetividade tal envolvida no ofício de poeta, que o próprio
poema aparece como objeto de demonstração do amor. Mais uma vez o desejo
de construção desse objeto em “Desastre”, o “poema podre”, aqui, “o poema
poroso” –, ao ser expresso, desencadeia o seu próprio nascimento. Em outros
termos, o que era apenas “pretensão” no primeiro metapoema, e “anseio” no
segundo, torna-se concretização em ambos por meio da escritura do que se
pretende e do que se deseja.
180
GRUPO 7
Ad , Se e So
1) Ele quer um poema que escreva as formas, ou mudanças dessa terra,
como os eclipses; ou um poema que demostre como funciona.
2) Para demostrar como é que a terra funciona.
O grupo 7 traz em sua resposta inicial a referência a uma metáfora
significativa dentro do “Poema poroso”, que se encontra exatamente na
segunda estrofe: “De terra / o corpo perpassado de eclipses, / poroso / poema /
de poeira (...)” (vs. 4 a 8). Trata-se, pois, da referência aos “eclipses”, bem
entendida pelas alunas Ad , Se e So como aquilo que sugere mudança,
transformação. Se o eclipse é o espetáculo que faz a terra parar para assisti-lo,
assim também o eu lírico deseja que aconteça com seu poema poroso ali, o
que se quer de fato é o poema “de terra” e, ainda assim, “iluminado” (vs. 1 e 3).
Repare-se mais uma vez nesta última idéia: o eu lírico deseja que sua
poesia carregue a porosidade da terra, o chão que os vivos pisam, e no qual os
mortos dormem. Ele aceita que a morte irremediável apagará a “forma” da
“mão/ por ora ardente” (vs. 20 e 21), mas também sabe que esta mesma mão
escreverá o poema “iluminado”, porque feito da matéria imprescindível a vivos
e mortos. Assim, o poema e a poesia sobreviverão, a despeito do
aniquilamento do poeta.
A segunda resposta das alunas, que repete em parte a primeira, toca no
veio metalinguístico do “Poema poroso”, exatamente no que se refere à
intenção de se fazer um poema que demonstre o funcionamento de alguma
coisa – para as leitoras, “como é que a terra funciona”.
181
Se atentarmos para o fato de que a expressão “De terra” é recorrente no
início das três estrofes, e também para outros elementos, a exemplo da
referência aos “eclipses” (v. 5), à “poeira” (v. 8), “ao chão do quintal” onde “a
galinha cacareja e cisca” (v. 14 e 17), e, principalmente, se consideramos que
as jovens leitoras estavam diante de um poema de interpretação
demasiadamente difícil, entenderemos como bastante coerente o seu
raciocínio.
Portanto, embora não possamos dizer expressamente que o texto
gullariano foi feito com a intenção de demonstrar como a “terra” funciona,
que se perceber que as leitoras captaram a ideia metalinguística essencial: o
poema constrói-se por meio do desvendamento de algo, mais precisamente a
exposição de sua própria matéria, ou seria melhor dizer, a revelação daquilo
que se deseja que o poema seja: “De terra te quero; / poema, / e no entanto
iluminado”.
Sem o saber, as alunas estão dialogando com uma importante ideia de
Walter Benjamin (1994, p. 170): na era moderna, a obra de arte deixa de ser “a
aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”, e começa a
ter sua aura relevada. A arte não é mais apenas expressão, mas construção
que advém da participação do próprio público.
Na poesia metalinguística, em especial, o que era misterioso aparece
quase como se estivéssemos diante do making off de um filme, novela ou
documentário de TV. Um meta-poema não é aurático, e isso porque sua feitura
está à mostra, dessacralizada e nua (CHALHUB, 1998, p. 47).
182
GRUPO 2
Ke, La, Je e Ge
1) Ele quer escrever, um poema que seja feito como plantas na terra, que
os sentimentos e palavras brotem sem esforço, e como o perfume das
flores surgem a partir de algo minúsculo, e até mesmo a poeira, e mesmo
assim consegue, que não tenham um rosto mas ainda se para sentir o
que quer nos passar, mas do jeito que cresce também se apaga com o
tempo.
2) Porque os seus sentimentos estão em puro nascer; ou seja; estão
fluindo e ele quer ou deseja muito, que esses sentimentos perdurem e que
eles venham com muita felicidade ou bons sentimentos.
Questionados sobre a pergunta inicial, o tipo de poema que o eu lírico
deseja escrever, os alunos e alunas do grupo 2 construíram uma resposta
bastante reflexiva, que merece ser analisada com atenção. Eles comparam o
nascer do poema a duas metáforas principais: a primeira é “plantas na terra”, e
a segunda, “perfume das flores”.
Com relação à primeira imagem, vale observar que ela não está
expressa no texto, de modo que surge como uma espécie de “interpretação
criativa” dos alunos, bem adequada por sinal. Terry Eagleton nos ensina que a
obra literária, quando valiosa, violenta ou transgride os modos normativos de
ver e, desse modo, nos ensina novos códigos de entendimento (EAGLETON,
2001, p. 108). De certa maneira, esta transgressão estava sendo vivenciada
pelo grupo de leitores quando eles criaram uma imagem, talvez mais próxima,
para o entendimento da metáfora do poema que o eu lírico deseja escrever.
Ke, La, Je e Ge notaram o seguinte: o poema almejado deve ser o mais
natural possível, com “sentimentos e palavras” que “brotem sem esforço”.
Realmente, o “poema poroso” deve ser simples “como o chão do quintal /
183
(sombra de todos nós depois / e antes de nós / quando a galinha cacareja e
cisca).” (vs. 14 a 17).
A presença do chão do quintal, bem como da galinha
60
que o pisa, não é
novidade na poesia de Gullar. Ela aparece à maneira de fixação, revelando a
permanência do universo diante da impermanência do homem. Se ele, homem,
fica d’alguma maneira, é somente por meio de sua “impregnação nos
elementos, sejam objetos, frutas ou animais: no avião, em “Electra II”; nas
tábuas do soalho em “Sob os pés da família”; na tangerina, em “O cheiro da
tangerina”; nas águas sujas e rasas, em “O poço dos Medeiros”; no grito rouco
do galo antes da morte, em “Galo galo”, e assim por diante.
Pensemos agora na segunda metáfora que os leitores trazem em sua
resposta, o “perfume das flores”. É importante notar que a expressão vocabular
que aparece no metapoema é tão somente “perfume”, como podemos ver nos
versos seguintes: “(...) poroso / poema / de poeira / onde berram / suicidas e
perfumes;” (vs. 6 a 10).
A imagem sinestésica dos “perfumes que berram” causa-nos
propositadamente uma estranheza, e certa aversão talvez, se pensarmos em
sua aproximação com os suicidas, constituindo uma ambiência de morte. Mas
o poema se quer dessa maneira, feito da poeira onde dormem os suicidas, e da
qual exalam os cheiros da matéria humana, porque é exatamente ali que a
terra e o homem se encontram e se entendem. O poema, assim, se
iluminado como se pretende.
É significativo notar que os alunos do grupo 2 trabalharam a
interpretação da imagem dos “perfumes” em consonância com o entendimento
60
A galinha e o galo são “personagens” recorrentes na obra poética de Ferreira Gullar. A título
de exemplo, citamos os poema “Galo galo” e “A galinha”.
184
da outra metáfora, “plantas na terra”. Essa foi a maneira que encontraram para
preencher alguns vazios do texto, pois “embora raramente percebamos,
estamos sempre formulando hipóteses construtivas sobre o significadodo que
lemos (EAGLETON, 2001, p. 105). Assim, tal como as plantas, pequenas e
capazes de exalar precioso perfume, o poema surge com o seu odor de pó, o
“poroso / poema / de poeira” (vs. 6 a 8).
Ke, La, Je e Ge ainda fazem referência a outro elemento importante
dentro do metapoema: a imagem do “sem rosto”, cuja indefinição não opera o
desconhecimento, pois “ainda dá para sentir o que” o poema “quer nos passar”.
Vejamos de novo os versos nos quais a metáfora está presente: “assim
te quero / sem rosto / e no entanto familiar / como o chão do quintal” (vs. 11 a
14). O poema que se deseja deve ser suficientemente genérico, para que todos
caibam em seu rosto informe, e suficientemente familiar, para que cada um se
identifique nele como objeto único.
Na finalização da sua resposta, os leitores procuram interpretar a estrofe
final do “Poema poroso”, a qual repetimos aqui:
De terra,
onde para sempre se apagará
a forma desta mão
por ora ardente.
Logicamente o grupo continua seguindo o seu raciocínio interpretativo,
ou seja, fazendo uso da metáfora das flores. Tal como a planta que cresce,
mas que “se apaga com o tempo”, assim acontecerá com o poeta,
metonimicamente representado pela sua “mão / por ora ardente” (vs. 20 e 21).
De certa maneira, o aniquilamento do poeta será a salvação do poema, que
ali ocorrerá a mistura de ambos, formados pela única e mesma matéria, a terra.
185
Esse é o momento em que o poema se fará “iluminado” (v. 3), terá o “corpo
perpassado de eclipses” (v. 5), com os berros “dos suicidas e perfumes” (vs. 9
e 10). É também que será “sem rosto / e no entanto familiar” (vs. 12 e 13),
em uma reunião de metáforas que se resume na pretensão de ser apenas o
“poema poroso”.
Em relação ao segundo questionamento da atividade, o grupo 2
justificou o desejo do eu lírico em construir o poema “de terra” por meio da
necessidade de expressão de sentimentos, que estariam “fluindo”, “em puro
nascer”. Nesse sentido, o próprio poema surge como maneira de garantir a
permanência de tais sentimentos, pois ainda que o poeta se aniquile, sua voz
perdurará através de sua criação.
GRUPO 5
An, El, Ta e We
1) O eu lírico retrata uma comparação sobre vários tipos de poemas, entre
eles o dramático e o poema mais suave.
2) Ele quer dizer que muitas vezes o poema é passageiro (esquecido) para
algumas pessoas, e o compara com a terra, que escrevemos algo nela e
depois de um tempo ela o apaga.
O grupo 5, formado por alunos e alunas, acaba por trazer uma resposta
à primeira vista incoerente para a primeira pergunta da atividade. Como se
nota, An, El, Ta e We enxergaram no “Poema poroso” uma comparação sobre
vários tipos de poemas, incluindo-se o dramático e o mais suave. De onde
teriam extraído isso?
Antes de julgarmos o entendimento dos leitores, devemos procurar
compreendê-los, colocar-se em seu lugar. Lembremo-nos de que as imagens
186
que compõem o metapoema são bem nebulosas, mas também apontam para
uma gradação, que se inicia com a metaforização intensa e avassaladora de
um poema “iluminado” (v. 3), com “o corpo perpassado de eclipses” (v. 5) e
“onde berram / suicidas e perfumes” (vs. 9 e 10); depois, uma nítida
suavização das metáforas, quando o eu lírico passa a almejar o poema “sem
rosto / e no entanto familiar / como o chão do quintal” (vs. 12 a 14), em um
esforço de aproximação daquilo que é simples, o território onde pisam homens
e galinhas. Por último, então, o eu abandona as inúmeras adjetivações, e quer
apenas o poema “de terra” (v. 18), que ali é o lugar da sua própria
aniquilação, no qual poeta e poema estarão juntos. Portanto, ao enxergarem no
texto de Gullar uma comparação sobre vários tipos de poemas, é bem provável
que os leitores estivessem observando tal gradação, ainda que em menor
profundidade de análise.
a resposta que o grupo deu à pergunta 2 revela um entendimento
coerente, mas ainda imaturo em relação à principal imagem do poema, a
saber: “de terra”. Os alunos e alunas conceberam essa terra como lugar
“passageiro”, “esquecido”, transitório, e, para isso, utilizaram como argumento
o fato de que, quando escrevemos algo na terra, “depois de um tempo ela o
apaga” eles provavelmente se firmaram na estrofe final do poema para fazer
tal afirmação.
Embora seja essa a lógica humana, não é assim que ocorre no poema.
No mundo subjetivo criado pelo eu lírico, a terra é, ao contrário, o lugar
“eterno”, “lembrado”, “perene”, não em um sentido místico ou transcendental,
mas em uma visão consciente de que essa é a matéria que compõe todas as
coisas, e da qual se deseja que o poema também seja feito, para permanecer.
187
O modo como An, El, Ta e We interpretaram a metáfora não deve, de
maneira nenhuma, ser descartado. As “Orientações curriculares para o ensino
médio” nos advertem de que “nem sempre a leitura literária, como experiência
estética, flui de modo espontâneo”. Existem pontos de resistência no aluno-
leitor (seu repertório, os lugares-comuns em que se assenta sua experiência de
leitor), assim como há tensões de difícil desvendamento em certos textos,
especialmente o poético (BRASIL, 2004, p. 70). Este parecia ser o caso de
“Poema poroso” para os alunos.
Mas note-se o seguinte: a partir do próprio entendimento dos leitores, se
poderia facilmente trazer questionamentos que indicassem uma nova direção
de leitura, como por exemplo: “Mas será que a terra aí vai mesmo apagar o que
está escrito nela?”; “Será que, se isso ocorresse, o eu lírico ia querer escrever
um poema assim?”; “Não haveria um diferencial nesse poema ‘de terra’?”; “Que
diferencial seria esse?”.
Talvez haja quem diga que, pela ausência de nosso direcionamento, os
leitores não puderam chegar a este passo a mais na interpretação do
metapoema. Pode ser. Mas não esqueçamos o desafio que havíamos imposto
a eles, e a nós: eram sozinhos que iriam desbravar o poema, para que todos
víssemos quão longe seriam capazes de chegar. Se ninguém espera que se
aprenda a tocar um instrumento musical se não se exercitar com ele
(COLOMER, 2007, p. 65), deve-se considerar que, na aprendizagem de tal
instrumento, são imprescindíveis os momentos com o mestre, mas também
aqueles em que o aluno se exercita sozinho.
188
5.4. Encerrando o experimento...
Após a atividade, o momento pós-intervalo foi utilizado para
conversarmos sobre o experimento, que aquela seria a nossa última aula. A
nossa ideia era procurar colher depoimentos que nos mostrassem se haviam
sidos significativos aqueles momentos, se haviam crescido em termos de
leitura e interpretação de poemas, se o tema da metalinguagem havia sido
interessante, de que textos haviam gostado mais, o que fariam diferente de
nós, e assim por diante.
No entanto, quase ninguém se manifestou. Com os módulos concluídos,
podemos ver o seguinte: a maior parte dos leitores da turma ficava nitidamente
constrangida ao ter de falar em público, especialmente quando faziam alguma
“análise” de si mesmos. Já no papel, ou no blog, eram capazes de nos fornecer
dados bem significativos para a pesquisa, daí por que nos detivemos mais
nestas fontes escritas que na oral (gravações das aulas).
5.5. No blog...
No nosso espaço virtual, deixamos um recado para os leitores da turma
do primeiro ano, para que ficassem cientes de que tinham sido capazes de
dizer algo sobre os textos “Desastre” e “Poema poroso”, à primeira vista
“impenetráveis”. Vale lembrar que a essa altura o experimento havia
terminado. Eis o recado:
POEMAS APARENTEMENTE DIFÍCEIS PODEM NÃO NOS DIZER
TUDO, MAS SEMPRE NOS DIZEM ALGUMA COISA.
TAVA OLHANDO A ATIVIDADE DE VCS E FIQUEI FELIZ EM VER QUE
VCS CONSEGUIRAM DIZER ALGO SOBRE OS POEMAS DE
FERREIRA GULLAR: “POEMA POROSO” E “DESASTRE”.
TÁ VENDO, NÃO FOI TÃO DIFÍCIL ASSIM... OU FOI? RSRSRS
SAUDADES TURMINHA =)
189
Apenas a aluna Dy respondeu a nossa pergunta. No seu comentário, ela
brinca com o título do poema, “desastre”, para falar da sua dificuldade de
leitura e interpretação, e insinua que a “salvação” do grupo foi a leitora Ed, que
“conseguiu decifrar aquele negócio”:
ouuu mabel n diz isso n q foi um verdadeiiro desaaaatre akle poema a
sorte do dia foi ed q estava inspirade e conseguiu decifrar akele negocio.
saudade viu volta mabel vai [PLEASE]
Logicamente, na nossa resposta à colocação de Dy deixamos claro que
ela também era capaz de ler e interpretar o poema, tanto quanto Ed. Além
disso, fizemos questão de dizer que o vocábulo “desastre” não cabia como
adjetivação para a leitura do grupo
61
, pois de fato havia bastante coerência no
modo como leram o metapoema gullariano.
Foi um desastre, foi??? rsrsr Foi nada... E não só Ed, mas TODAS vcs
são capazes de interpretar poemas. Vcs tavam ficando "experts"
nisso =)Quem sabe qualquer dia não apareço pra ver vcs. Por
enquanto, vamos ficar em contato aqui, né? Um xero enorme, querida
aluna
5.6. Alguns resultados
Embora na aula de encerramento não tenhamos conseguido colher
depoimentos orais dos leitores, mais uma vez a comunicação via internet nos
permitiu aferir a significância do trabalho desenvolvido na turma do primeiro
ano. Nas duas situações que descrevemos abaixo, deu para perceber que a
convivência com poemas foi d’algum modo importante para alguns alunos.
61
O grupo é o número 10, formado pelas alunas Ra, Ed, Dy e Ma.
190
5.6.1. “Gesso”, de Manuel Bandeira
Além dos poemas que trabalhávamos em sala, ao longo do experimento
costumávamos colocar outros textos poéticos no blog, não somente de caráter
metalinguístico. Um deles foi “Gesso”, de Manuel Bandeira, uma espécie de
marco na nossa vida, como podemos compartilhar com os alunos no dia em
que aplicamos o questionário sobre os gostos de leitura.
No blog, colocamos o poema com a seguinte frase:
ESSE É O POEMA Q MARCOU A MINHA VIDA, LEMBRAM?
AGORA, EU QUERO Q DIGAM AQUELE Q MARCOU VCS.
MAS TEM Q EXPLICAR PQ.
Como erroneamente imaginamos que nossos alunos se interessam
por aquilo que está ligado a algum fim pragmático, não esperávamos que
algum leitor viesse a comentar o poema no blog. Afinal, nós tínhamos apenas
lido o texto em sala; eles sequer o tinham recebido por escrito. Mesmo assim,
dois alunos quiseram comentar. Vejamos o que eles disseram, e também as
nossas respostas a eles:
[ar]
eu achei o poema um pouco gótico, pq ele expressa um lado bem obscuro,
sombrio, e um pouco de um lado meio revoltoso, como se ele já soubesse
q iria morrer... alguma coisa desse tipo.
11/05/2009 18:14
Que bom: vc tá de volta ao blog!!! Mas me fala mais sobre essa tua
maneira de ver o poema, Ar. Eu achei ela muuito interessante: que
versos revelariam o lado obscuro, e que versos mostrariam o lado
revoltoso do eu lírico? Defende a tua idéia com argumentos do texto.
Assim ela fica mais fundamentada, entendeu? =)
[ni]
poxa poemas muito bonito mabel, acho que pelo seus versos trabalhados
ele deveria ser apresentado na aula presencial
12/05/2009 20:40
191
É verdade! O poema "Gesso" é incrível!!! Não sei se vai dar tempo de
trabalharmos ele não... =( Por isso postei ele aqui. É incrível, Ni: eu já
li esse poema um "monte" de vezes, mas não me canso dele de jeito
nenhum rsrs Vc tem algum poema assim, que não cansa de ler?
É significativo notar a maneira como Ar percebe o poema “Gesso”. Em
uma espécie de identificação com o eu lírico, com aquela estatuazinha, ele
enxerga um lado “gótico”, “obscuro”, “sombrio”, “revoltoso”, adjetivações que
podem mesmo se encaixar no poema, dependendo da argumentação do leitor,
se consistente ou o. Afinal, uma obra, um poema, não pode ser reduzido a
uma única interpretação, tendo-se o cuidado apenas de observar os critérios de
validação existentes, para checar se dada leitura está mesmo autorizada pelo
texto (JOUVE, 2002, p. 25).
Infelizmente não tivemos oportunidade de aferir melhor o modo de ler do
aluno, porque mesmo com o nosso convite a um debate virtual, ele preferiu não
comentar mais sobre o poema. Porém, vale notar o seguinte: Ar era um sujeito
que se definia como gótico, e esse elemento é um dado importante para
entendermos o quanto aquilo que somos influencia a nossa maneira de ver o
mundo, de ler a vida, de ser leitor literário. Mais uma vez é Jouve quem nos
acorda para a especifidade do leitor e sua consequência principal: cada um
“traz consigo sua experiência, sua cultura e os valores de sua época”, e, assim,
o livro, o conto, o poema, se abre a uma pluralidade de interpretações (JOUVE,
2002, p. 24).
O outro comentário, o de Ni, nos revela um pedido interessante: ele
achou uma pena que “Gesso” ficasse apenas no blog, e pediu para que o
poema fosse levado também à aula presencial, por ser “muito bonito”, e por ter
“versos trabalhados”. Note-se: primeiro o leitor foi tocado pelo texto, e, depois,
192
desejou investigá-lo. Por isso, insistimos na importância de se vivenciar a
atitude de prazer provocada e possibilitada pela arte, como a experiência
estética primordial a que se seguirão outras
62
(ZILBERMAN, 1989, p. 49).
O tempo que tínhamos na escola era bastante limitado, o que não nos
deixou atender ao pedido do leitor, embora o quiséssemos. Independente
disto, os comentários de Ar e Ni funcionaram como um estímulo a mais para o
trabalho que empreendíamos com a turma do primeiro ano, pois tal atitude
indicava que os alunos estavam deixando-se tocar pela poesia, assim como
estavam também agindo sobre ela. Mais do que nunca, fazia sentido para nós
a concepção de que a obra literária é um diálogo, “singular e assimétrico”, entre
autor e leitor:
Wolfgang Iser (...) adota a premissa de que a criação literária
oferece-se ao leitor enquanto diálogo, troca de experiência a
partir da qual nasce sua efetividade como discurso. O diálogo,
todavia, é singular, porque assimétrico: o texto põe à
disposição de seu consumidor uma idéia de mundo, que ele,
fundado em suas vivências, interesses e formação, completa,
aprecia ou recusa (ZILBERMAN, 1989, p. 15/ In: SMOLKA,
1989).
5.6.2. Conversas off line
Ao término do experimento, procuramos manter contato com os alunos,
pelo menos virtualmente. Uma das alunas que mais se aproximou de nós ao
longo do trabalho desenvolvido foi Na, embora ela tivesse deixado claro, desde
o início, que não gostava de jeito nenhum de poesia. Foi o que a aluna nos
62
T. S. Eliot nos lembra de que, além de nos proporcionar prazer, a poesia sempre nos
comunica alguma nova experiência, ou uma nova compreensão do familiar, ou ainda a
expressão de algo que experimentamos e para o que não temos palavras – o que amplia nossa
consciência ou apura nossa sensibilidade (ELIOT, 1991).
193
disse pessoalmente, e o que também deixou escrito no questionário, quando
indagada sobre a sua experiência com poemas
63
.
Embora Na tenha sido bem enfática em sua colocação, isso não
funcionou para nós como fator de desânimo. Tínhamos a certeza de que a
poesia poderia tocá-la, que o gosto por poemas poderia nascer dentro dela, o
que aconteceria com a própria convivência estabelecida com os textos. Afinal,
como ensina Regina Zilberman, “o significado de uma criação artística pode
ser alcançado quanto esta é vivenciada: não conhecimento sem prazer,
nem prazer sem conhecimento. se pode gostar do que se entende e
compreender o que se aprecia” (ZILBERMAN, 1989, p. 53).
Além disso, tínhamos a convicção de que a poesia o era, não é, “um
joguinho ingênuo de palavras” (PINHEIRO, 2001, p. 60), e que seu valor
peculiar reside em trazer livremente em si o que chamamos o bem e o mal,
modo pelo qual ela “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”
(CANDIDO, 2002, p. 85).
De fato, essa aluna nos deu um outro depoimento ao final do
experimento. Havíamos trocado e-mail e msn, e foi justamente por meio de
mensagens off line no msn
64
que tivemos a oportunidade de aferir a nova visão
de Na em relação à poesia. Vejamos os diálogos estabelecidos entre nós duas,
em dois dias diferentes (10/06/09 e 20/06/09):
63
À pergunta 5 do questionário (“Qual a sua experiência com poemas? Já leu alguns? Lembra-
se do título, do autor ou de alguns versos?”), Na deu a seguinte resposta: “E não tive nenhuma
e não gosto”.
64
Embora o msn não tenha sido um dos nossos programados instrumentos de coleta de
dados, pedimos licença aqui para trazê-lo, por entendermos que isso enriquecerá o
experimento.
194
Na enviou em 10/06/2009 10:27:
OI MABEL TENHO TIDO MUITA SAUDADE D SUAS AULAS.. COM VC
APRENDIR A GOSTAR D POESIA E POEMAS E INVENTAR TBM
QUALQUER DIA APAREÇE VALEU.....
carolmabel@hotmail.com diz:
Como fico feliz em ouvir isso, Na. Se eu pude deixar algo bom em
pelo menos um de vcs, já fico grata a Deus! E é ótimo saber que vc
aprendeu a gostar de poesia e poemas por causa das aulas. Me fala
mais sobre isso qd tiver tempo, pois esse é um testemunho mto
importante pra minha função de professora. Saiba que estou com
saudades, viu? Um bjão enormeeeeeeee
Na enviou em 20/06/2009 00:00:
OI AMOR BOA NOIT. NÃO DEIXO RECADINHO NO SITE DO 1 ANO
PORQUE AGORA POSSO TC DIRETAMENT COM VC PELO MSN
RSRSRS. BEIJOS SAUDADES MINHA PROFESSORA Q APRENDI
MUITAS COISAS ATE FALAR UM POUCO NA SALA D AULA
carolmabel@hotmail.com diz:
Que coisa linda de se ouvir, aluna linda... A nossa função na terra é
fazer bem aos que nos cercam, e se fiz bem a vc de alguma forma, já
valeu a pena. Por falar nisso, tenha certeza de que vc fez e me faz mto
bem. Um grande bjo com saudades. Que vc e sua casa fiquem na
graça e na paz de Deus.
E é pra falar na sala de aula sim. Suas colocações enriquecem muito
os seus professores, pode ter certeza. Aula só se faz assim:
professor e aluno construindo o conhecimento =) Bjossssss
No diálogo do dia 10/06/09, além de ter nos dito que aprendeu a “gostar”
de poesia e poemas com as nossas aulas, Na afirmou que também aprendeu a
“inventar”. Ao dizer isso, possivelmente estava se referindo a alguns
pensamentos que agora escrevia em seu caderno, espécie de reflexões acerca
da vida, as quais ela entendia como poesia. Não estamos aqui para julgar o
grau de literariedade desses escritos; o que podemos ver é o nascimento de
uma leitora literária, pois Na, que defendia sua aversão ao texto poético, agora
dizia até que o “confeccionava”, se assim podemos dizer. Veja-se a atualidade
do apelo drummondiano: a escola precisa reparar no ser poético do aluno, e o
atender em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e o mundo
(ANDRADE, 1974).
195
No outro diálogo, que se estabeleceu no dia 20/06/09, um elemento
que merece ser comentado: Na afirma novamente ter aprendido “muitas
coisas”, mas agora acrescenta que aprendeu “até a falar um pouco na sala de
aula”. Realmente, apesar de se sentar logo à frente, na primeira carteira, no
início do experimento a leitora não se sentia nem à vontade, nem motivada
para comentar os poemas que levávamos à sala de aula. Com o passar dos
dias, porém, Na foi expondo a sua voz, a tal ponto que se mostrou uma das
mais interessadas em tudo que propúnhamos à turma.
Muitos fatores devem ter contribuído para construir na leitora essa nova
visão de poesia; um deles, talvez o mais decisivo de todos, tenha sido o
planejamento e aplicação de uma metodologia diferenciada, que percebe o
leitor como figura ativa a quem o texto literário, em primeira e última instância,
se dirige. Nas nossas considerações finais, aprofundaremos essa discussão.
196
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E aqui vamos concluindo esta pesquisa... Pesa sobre nós a
responsabilidade de fazer com que as descobertas e reflexões advindas deste
trabalho sejam mais do que influência sobre a nossa maneira de ver o ensino
de literatura; o nosso alvo era, e ainda é, “mexer” com a nossa maneira de
ensinar literatura, e se não é pedir muito, inquietar outros a também
vivenciarem o mesmo.
O experimento de convivência com a poesia metalinguística na turma de
primeiro ano de ensino médio ensinou-nos muito, ao mesmo tempo em que nos
deu a oportunidade de também ensinar. Nestas poucas linhas que nos restam,
tentaremos sintetizar os aprendizados mais significativos do percurso.
Inicialmente é preciso relembrar que esta pesquisa nos ofereceu a
oportunidade de trabalhar com a metalinguagem poética, objeto de estudo que
sempre nos inquietou, sob uma perspectiva nova e desafiadora: a da pesquisa
solidária. É forçoso reconhecer o quanto a pesquisa solitária é do nosso
agrado, porque proporciona momentos de encontro em secreto com o texto
literário, que depois serão revelados a outros leitores. No entanto, é na
solidarização que aguçamos os ouvidos para perceber e aprender com o outro,
exercitando o nosso senso de humildade. É ali também que vemos alargadas
as possibilidades de leitura de um texto, como também enriquecidas as nossas
próprias leituras, na medida em que o outro pode ver o que o estamos
vendo.
197
Em segundo lugar, vale dizer que a convivência com poemas
metalinguísticos tem nos ensinado o seguinte: se é verdade que cada poeta
encontra uma maneira particular de comunicar a “poesia da poesia”, o
fundamental em tudo isto é perceber na poesia, no poeta, a necessidade de
investigar e refletir sobre o próprio poetar, sobre o próprio objeto artístico,
compartilhando tal investigação e reflexão com o leitor. Essa dimensão dupla,
objeto e olhar sobre o objeto, fala e fala dessa fala, literatura objeto e
metaliteratura é, de fato, metalinguagem (BARTHES, 1970).
Em terceiro lugar, queremos destacar a relevância dos estudos da
Estética da Recepção, especialmente os de Hans Robert Jauss, na construção
de nossa identidade de professores de literatura. Embora o teórico alemão não
tenha refletido diretamente sobre o ensino desta disciplina, com suas
teorizações ele acordou-nos para um fato óbvio: qualquer texto literário existe
para ser lido. E daí advém outro fato, esse sim relacionado à prática de ensino:
só faz sentido pensar em trabalho com a literatura por meio da consideração do
aluno como leitor literário, ou em outras palavras, as aulas de literatura
precisam ser construídas visando sempre propiciar o encontro entre o texto e o
leitor, pois, do contrário, não terão razão de ser.
Foi sob este fundamento principal que assentamos o experimento na
turma do primeiro ano. Cremos que o fator mais decisivo para a significância do
trabalho foi exatamente o planejamento e aplicação de uma metodologia
diferenciada, que percebe o texto literário como instrumento magno, e o aluno
como leitor, ou seja, como a figura central da aula de literatura, a quem o texto,
em primeira e última instância, se dirige.
198
Inspirados em Georg Gadamer, mestre de Jauss, para quem a
compreensão de um texto passa pelo entendimento da pergunta para a qual
ele se constitui uma resposta, utilizamos como estratégia metodológica
fundamental a realização de indagações, estimulando os leitores a também
perguntarem ao texto, e a duvidarem das respostas do autor e até das suas
próprias, na construção de uma identidade de leitores críticos e proficientes na
leitura literária.
Admitimos que assumir essa postura na sala de aula, de presença meio
ausente, e, no entanto, atuante (LEITE, 1983), não foi tarefa fácil,
especialmente porque estávamos viciados em dar sempre a primeira e a última
palavra. Lembramo-nos de que, na escola particular em que fizemos o ensino
médio, os professores ministravam aulas em um batente mais alto; eles
pareciam nos dizer: “Não esqueçam, nós somos maiores que vocês, e por isso,
vocês devem ficar calados para nos escutar”. Romper com este paradigma que
nós mesmos experimentamos enquanto alunos é um processo que se encontra
em construção, um caminhar diário de reflexão sobre a nossa própria atuação,
a vivência diária de uma “pedagogia da autoria”, que tem professores e alunos
como autores de mesmo patamar e importância (NEVES e MEDEIROS, 2006).
Pensando agora especificamente no experimento, que visou captar e
refletir sobre a recepção de leitores jovens a metapoemas de Ferreira Gullar,
destacamos primeiro a relevância dos momentos de observação de aulas, que
nos ensinaram o exercício da escuta atenciosa e da investigação. A nosso
favor tivemos a facilidade de trabalhar com uma professora conhecida, que não
ofereceu resistências ao longo do percurso. O fundamental, porém, não foi a
familiaridade que tínhamos, mas a nossa preocupação comum de fazer a
199
escola ter sentido para os alunos, criando a necessária ponte entre a sala de
aula e a vida. Ainda aqui, vale relembrar que muitas das sugestões
metodológicas da nossa colaboradora foram aceitas por nós, afinal, tínhamos
que nos colocar em posição de humildade, entendendo inclusive que ela
conhecia muito mais a turma do primeiro ano do que nós.
Depois é preciso referirmo-nos ao questionário, instrumento de coleta
que se mostrou uma rica fonte de conhecimento da turma, à medida que nos
proporcionou colher informações relevantes da relação dos alunos com a
literatura, e, mais especialmente, com a poesia, mesmo antes de começarmos
as aulas propriamente ditas. Dentre tantas descobertas, o questionário nos
deixou cientes de que na sala de aula havia uma boa quantidade de alunos que
liam poemas, mas que a relação da maioria deles com a poesia não estava
embasada na experienciação. O nosso desafio principal, portanto, era fazê-los
vivenciar a poesia como experiência singular e humana, de que todos
necessitamos.
Rememorando agora as aulas ministradas, citamos o fato de termos
começado o trabalho levando para a sala de aula poemas de amor. Com o
experimento concluído, podemos afirmar o quanto esta estratégia foi
positiva, por dois motivos principais: primeiro porque, sendo o amor um tema
propício ao agrado de todos, os poemas rico-amorosos funcionaram como
uma porta de entrada para desenvolver no alunado o gosto, o prazer pela
poesia; e segundo porque, ao se depararem posteriormente com a poesia
metalinguística, experimentaram o rompimento/alargamento do seu “horizonte
de expectativa” (JAUSS, 1994), que conviveram com poemas cujo tema era
novidade, ou, no mínimo, pouco familiar.
200
Do trabalho com os dois poemas lírico-amorosos, “Bilhete”, de Mário
Quintana, e “Cartas de amor”, de Fernando Pessoa, queremos destacar os
principais aprendizados. Do poema quintaniano ficou o entendimento de que
toda leitura que esteja bem fundamentada no texto literário deve ser alvo da
nossa consideração, ainda quando confronta os nossos próprios valores
morais, culturais, religiosos. Era a nossa primeira aula do experimento e a
leitura confrontante da aluna La, que entendeu o casal de “Bilhete” como dois
amantes, ensinou-nos o quanto estávamos arraigados na noção de professor
de literatura como aquele que transmite a sua própria leitura do texto. Além
disso, a leitora nos mostrou o quanto precisávamos ser humildes para admitir
que estávamos diante de uma nova direção de leitura, nunca percebida por
nós, que já havíamos lido o poema inúmeras vezes.
Com as “Cartas de amor”, de Pessoa, tivemos então a oportunidade de
exercitar uma outra postura, a de quem se colocava em patamar de igualdade
com os alunos, construindo a aula com eles. Embora os jovens leitores tenham
mostrado uma resistência inicial ao poema, porque inevitavelmente o
compararam à doçura e leveza de “Bilhete”, o texto do poeta português nos
ofereceu a oportunidade de vivenciar uma nova experiência acerca do amor,
nem pior nem melhor, apenas diferente. No conjunto, as experiências com a
poesia lírico-amorosa construíram um efetivo alicerce para que em cima dele
edificássemos a experienciação com os poemas metalinguísticos de Ferreira
Gullar.
Iniciando a convivência com metapoemas gullarianos, veio o trabalho
com o “Poema obsceno”, no qual a metalinguagem aparecia como pano de
fundo, associado a um viés lírico-social. O mais significativo dessa experiência
201
foi que os jovens leitores puderam experimentar o “choque” ou
“estranhamento”, conceito do Formalismo russo retomado pela Estética da
Recepção, proveniente de uma tensão entre o significado usual da palavra
“obsceno”, e o sentido peculiar que ela assume no contexto do poema.
Em se tratando do poema “Traduzir-se”, também de Gullar, destacamos
que foi no trabalho com esse texto que testamos pela primeira vez a leitura oral
coletiva, bem mais instigante para os leitores do que a nossa solitária leitura
oral. Não que aquela estratégia metodológica deva ser usada sempre; ela deve
ser acionada sempre que o texto apresente elementos que a favoreça, sendo
um importante instrumento de “conquista” dos leitores para uma posterior
conversa com o texto.
Ainda aqui, lembramos que ao levar para a sala de aula o áudio da
canção “Traduzir-se”, interpretada por Raimundo Fagner, tínhamos a (ingênua)
certeza de que estávamos trabalhando com uma estratégia infalível, porque
fugia à tradicional metodologia de leitura e conversa sobre o texto. A
dificuldade desta parte da aula nos fez pensar em muitas questões: no quanto
precisamos refletir crítica e continuamente sobre a nossa prática; na humildade
que precisamos ter para reconhecer um planejamento que o deu certo; no
quão corajosos e ousados devemos ser para mudar de direção, pisando o
terreno movediço que aparece todas as vezes que saímos do nosso script.
Agora é o momento de refletir sobre o trabalho com “O poema”, de Mário
Quintana , o terceiro texto metalinguístico que levamos à turma do primeiro ano
a essa altura do experimento, para propiciar o contato com um modo
diferente de metalinguagem, optamos por um outro autor. A profunda dimensão
reflexivo-filosófica do texto de Quintana causou-nos certo receio, levando-nos a
202
questionar se aquele poema seria “adequado” a leitores de dezesseis anos. Ao
final do trabalho desenvolvido, pudemos comprovar que os textos mais
interessantes são aqueles que vão de encontro, e não ao encontro, das
supostas disposições do leitor, pois “quando é confrontado com a diferença, e
não com a semelhança, o sujeito tem a possibilidade de se redescobrir”
(JOUVE, 2002, p. 131).
Nos dois últimos metapoemas trabalhados, voltamos ao poeta Ferreira
Gullar. Em “Desastre” e “Poema poroso”, testamos e confirmamos a hipótese
de que, mesmo os textos mais difíceis, ou seja, aqueles que contrariam a
percepção usual do sujeito (ZILBERMAN, 1989), são passíveis de ser
interpretados pelos leitores. Como dissemos no blog: “poemas aparentemente
difíceis podem não nos dizer tudo, mas sempre nos dizem alguma coisa”.
Diante da opacidade dos metapoemas, os leitores, a quem nomeamos
“bandeirantes”, buscaram atalhos, testaram o senso de direção, preencheram
vazios, criaram novos caminhos. No todo, o que vimos foi uma turma de jovens
leitores desbravando dois dos metapoemas mais intrigantes de nossas leituras
solitárias.
O trabalho desenvolvido com os cinco poemas metalinguísticos, e com
os dois poemas lírico-amorosos, nos mostrou o seguinte: o tema “amor” fazia
muito mais parte dos “códigos coletivos” (ZILBERMAN, 1989) dos jovens
leitores do que o tema “metalinguagem”. Como diante do novo sempre nos
mostramos meio acanhados, não é de se estranhar que tenhamos enfrentado
uma resistência inicial dos alunos. No entanto, com a continuidade do
experimento, e, sobretudo, com o estreitamento dos laços de convivência com
203
os poemas, os leitores se abriram a uma nova experiência, a de reflexão,
indagação e valorização da própria poesia.
Encaminhando-nos para fechar estas considerações, queremos falar do
blog, um instrumento de grande valia ao longo de todo o experimento. Embora
acreditássemos que criar um espaço virtual para debater os poemas com a
turma fosse uma boa ideia, não imaginávamos o quanto ele se tornaria
importante no desenrolar da pesquisa.
Por meio do blog, oferecemos aos leitores mais do que podíamos dar
nas aulas presenciais, e aqui falamos em quantidade de poemas mesmo, e em
diversidade de recursos, já que ali os leitores tinham acesso a vídeos, imagens
e links com informações histórico-culturais. Além disso, à medida que
refletíamos sobre a nossa prática de ensino, o blog nos ofertava a possibilidade
de ponderar nossas atitudes e de corrigir nossos excessos, como aconteceu na
ocasião do trabalho com o poema “Bilhete”.
O espaço na internet ainda dava aos leitores a possibilidade de se
expressarem sem o temor dos olhos e ouvidos dos colegas e professor.
Ademais, oferecia tempo para refletirem melhor sobre os poemas, bem como a
possibilidade de verem registradas as suas descobertas, as quais, na sala de
aula, ficariam na oralização.
Ainda em relação ao experimento, queremos registrar o quanto foi
significativo para nós o depoimento de uma das alunas da turma, para quem as
aulas foram tão significativas, que a transportaram de uma situação de aversão
para outra de gosto pela poesia. Embora o número seja ínfimo diante de um
universo de 31 alunos, a mudança operada na jovem leitora deve ser tomada
como estímulo para s, professores de literatura, pois é perfeitamente
204
possível conquistar até os alunos mais avessos ao texto literário. Reflitamos,
porém, no seguinte: raros são os depoimentos desta estirpe em salas de aula
em que o aluno não tem vez, nem voz.
Por último, necessário é dizer que, ao completar esta pesquisa, temos a
sensação de que também mudamos de posição de “detentoras do saber”
passamos a “aprendizes com os alunos”, mas sem perder a nossa honrosa e
indispensável função de mediadores entre o texto e o leitor. Relembrando as
palavras do mestre Paulo Freire: “não docência sem discência, as duas se
explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se
reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e
quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 23).
205
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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aberto, 1989, pp. 10-22.
208
ANEXOS
209
ANEXO 1
O QUESTIONÁRIO
QUESTIONÁRIO
Nome completo:
_____________________________________________________________________________
Idade:________________________________________________________________________
Olá,
Vamos conversar um pouco sobre suas experiências de leitura?
Fique bem à vontade para falar o que quiser, ou se calar.
1. Você lê com freqüência? Que tipo de livro?
( ) histórias (romances, novelas, etc.)
( ) livros de poemas;
( ) histórias em quadrinhos;
( ) folhetos de cordel;
Outros:
_____________________________________________________________________________
2. Há algum programa de televisão que gosta de acompanhar? Se sim, cite alguns.
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
3. No ensino fundamental, você teve aulas de leitura? Fale um pouco desta experiência.
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
4. Você lembra de algum texto (um romance, um conto, um poema, etc.) que você leu ao longo
de sua vida e que o marcou? Qual? Fale sobre ele.
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
5. Qual a sua experiência com poemas? Já leu alguns? Lembra-se do título, do autor ou de
alguns versos?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
6. Se pudesse escolher um assunto para ler, que assunto escolheria?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
7. Você costuma ir à biblioteca da sua escola, sala de leitura ou biblioteca pública?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
8. Costuma acessar a internet? O que costuma buscar, ler?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
9. O que você tem achado das aulas de “Leitura e Interpretação”? Tem alguma sugestão para
essas aulas?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
211
ANEXO 2
QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS PELOS ALUNOS
(em ordem alfabética)
212
213
214
215
216
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235
236
237
238
239
240
241
242
243
244
ANEXO 3
OS PLANOS DE AULA
245
PLANO DE AULA
Módulo I
(29/04/09)
TEMAS:
1. Leitura
2. Leitura de Poesia
OBJETOS DE ENSINO:
1. Preferências de leitura
2. Poesia lírico-amorosa
OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS
1. Conversar sobre preferências de leitura
1.1. Conhecer os gostos literários uns dos outros;
1.2. Perceber a sala de aula como espaço democrático, onde todos têm direito a
se expressar;
1.3. Através dos materiais trazidos para mostrar, expor a visão que têm a
respeito dos gêneros literários marcados no questionário, especialmente a poesia;
2. Conviver com a poesia
2.1. ler e conversar sobre poemas de temática amorosa;
2.2. serem estimulados a falar acerca de suas impressões e percepções sobre os
poemas;
2.3. fazer a sua própria interpretação do poema, como leitores jovens que são.
MATERIAIS DIDÁTICOS
Papéis enrolados contendo o poema “Bilhete”, de Mário Quintana
Envelopes coloridos contendo o poema “Cartas de amor”, de Fernando Pessoa
INSTRUMENTOS DE COLETA
Gravador
Diário reflexivo
METODOLOGIA
Duas aulas (90 min)
Introdução (5 min)
- Falar acerca do trabalho de convivência com poemas, que se iniciará
efetivamente ali;
- Expor para os alunos as ações que serão realizadas: uma conversa instigante
sobre alguns dados do questionário, o trabalho com um “bilhete”, o trabalho com
uma “carta”.
Primeiro Momento (20 min)
- Ligar o gravador;
- Perguntar se os alunos trouxeram os materiais de leitura que mais gostam,
solicitados pela professora titular na aula anterior;
- Expor os dados quantitativos da pergunta 1 do questionário, a saber: “Você
com frequência? Que tipo de livro?
246
- Fazer alguns questionamentos para instigá-los a falar sobre seus próprios
gostos, e para ampliar as informações coletadas no questionário, por exemplo:
“Teve gente que marcou folhetos de cordel. Quem poderia dizer o nome de algum que
já leu? Quer contar um pouco a história para nós?”
“Que histórias em quadrinhos, que vocês marcaram tanto no questionário, trouxeram
hoje para mostrar?”
“Que romances ou novelas já leram? Por que esses livros marcaram tanto vocês? Leram
porque queriam, ou porque a escola incentivou?”
“Quem trouxe algum livro de poema que gosta de ler? Ou então quem trouxe um poema
avulso, copiado no caderno ou na agenda?”
- Enfatizar mais e deixar para o fim a conversa sobre as questões relacionadas à
poesia, para ter um gancho para iniciar o trabalho com o poema “Bilhete”.
Segundo Momento (20 min)
- Criar um ambiente de expectativa para a entrega dos papéis enrolados contendo
o poema “Bilhete” (por exemplo, perguntar se já receberam bilhetes, de que tipo,
etc);
- Entregar os bilhetes e solicitar que a turma faça uma leitura silenciosa do texto;
- Ler oralmente o poema de Mário Quintana, com leitura expressiva;
- Estimular a convivência com o texto e conversa sobre o texto, ouvindo
atentamente as impressões e percepções dos alunos.
Terceiro Momento (45 min)
- Relembrar um pouco a discussão da aula anterior sobre o poema “Bilhete” (há
um intervalo entre as duas aulas), anunciando que eles agora receberão uma
carta;
- Perguntar o que eles esperam dessa carta, de que acham que ela vai tratar;
- Entregar as cartas, ou seja, os poemas “Cartas de amor” em envelopes
coloridos, e fazer logo a leitura oral do texto, sem pedir a leitura silenciosa;
- Conversar e perguntar calmamente sobre o poema, procurando acompanhar e
captar o modo como os leitores o percebem (que imagens chamam a atenção
deles, para que detalhes atentam, o que gostam ou não, etc.);
- Fechar a aula com uma questão de reflexão para a aula seguinte, o módulo II:
“Hoje convivemos com dois poemas de amor. Será que a poesia pode falar de
amor?”;
- Convidar os alunos a acessarem e participarem ativamente da página
www.poesianoprimeiroano.zip.net, pois ali encontrarão um blog criado
especialmente para eles.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora,
1972.
QUINTANA, Mário. Nova antologia poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Codecri,
1983.
247
PLANO DE AULA
Módulo II
(06/05/09)
TEMA
1. Poesia
OBJETOS DE ENSINO
1. Poesia lírico-amorosa
2. Poesia metalinguística
OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS
1. Conversar acerca do blog sobre poesia;
2. Propiciar a convivência com a poesia lírico-amorosa;
2.1. relembrar o trabalho com o poema lírico-amoroso da aula anterior;
2.2. ler e conversar sobre outro poema de temática amorosa;
2.3. tentar fazer alguma associação entre os dois poemas;
3. Propiciar a convivência com a poesia metalinguística;
3.1. ler e conversar sobre poema metalinguístico;
3.2. perceber possíveis diferenças, especialmente a temática, entre os poemas já
trabalhados e o metalinguístico;
3.2. desmistificar a idéia ingênua de que poesia só pode versar sobre o amor.
MATERIAIS DIDÁTICOS
Envelopes coloridos contendo o poema “Cartas de amor”, de Fernando Pessoa
Folhas de papel com o “Poema obsceno”, de Ferreira Gullar
INSTRUMENTOS DE COLETA
Gravador
Diário reflexivo
METODOLOGIA
Duas aulas (90 min)
Introdução (5 min)
- Cumprimentar a turma, evidenciando que estávamos ansiosos por esse dia em que
conviveríamos um pouco mais com a poesia;
- Anunciar as duas ações que serão realizadas na primeira aula: eles lerão a carta que
estão curiosos para ler desde a aula passada; antes, porém, haverá uma conversa sobre o
blog, criado especialmente para eles, e anunciado na aula passada;
Primeiro Momento (10 min)
- Ligar o gravador;
- Na conversa sobre o blog, diremos que estamos satisfeitos com o número de pessoas
que tem entrado, pois já chega perto dos 100, em apenas 1 semana; perguntaremos sobre
o que mais gostaram de ver ali; sobre os comentários que fizeram; sobre a polêmica
da interpretação acerca do poema “Bilhete”, que está também sendo colocada no
blog, e outras questões que porventura venham a surgir. A nossa intenção é motivá-los a
participar, pois notamos que muitos têm observado o blog, mas a participação efetiva
deles ainda é pequena;
248
- Relembraremos então, no quadro, o endereço eletrônico do blog:
www.poesianoprimeiroano.zip.net;
Segundo Momento (30 min)
- Criar um ambiente de expectativa para a entrega das cartas. Perguntar algo do tipo:
“quem imagina o que tem aqui dentro?”;
- Entregar a carta colorida contendo o poema “Cartas de amor”, de Fernando Pessoa, e
dizer que eles mantenham a carta fechada até que todos a recebam;
- Dizer que podem abrir e ler silenciosamente a carta;
- Para uma aproximação inicial, perguntar se eles vêem alguma diferença entre “Cartas
de amor” e “Bilhete”;
- A partir das respostas deles, conversar e discutir especificamente o poema “Cartas de
amor”, tendo como foco o perguntar e o questionar os alunos, para ouvi-los;
- Anunciar que na aula seguinte, pós-intervalo, lerão um outro poema;
Terceiro Momento (45 min)
- Recapitular que depois de terem lido e conhecido dois poemas, “Bilhete” e “Cartas de
amor”, cada um vai receber agora um texto chamado “Poema obsceno” (escrever no
quadro, com letras bem grandes, o título a idéia é criar mesmo uma expectativa neles,
polemizar);
- Sondar se dominam o conceito, o sentido da palavra “obsceno”: O que será que tem
nesse poema obsceno? Por que será que ele é obsceno? O que é uma coisa obscena?”
- Com esse fundamento da discussão, entregar o “Poema obsceno”, de Ferreira Gullar, e
fazer uma leitura oral;
- Para começar a conversa sobre o poema, pegar o mesmo fio condutor da discussão
sobre obscenidade, com questionamentos do tipo: “Era isso que vocês esperavam?
Concordam que esse poema é obsceno? Por que é obsceno ou não é?
- Ouvir atentamente as impressões e comentários dos alunos sobre o texto, sem sequer
mencionar o nome metalinguagem, ou dizer que o tema tratado é também a poesia;
queremos ver como eles percebem o poema, que é marcado por uma dimensão social
forte, associado a uma dimensão metalinguística em segundo plano;
- Depois, confrontar o “Poema obsceno” com “Bilhete” e “Cartas de amor”,
perguntando se diferenças entre eles, e quais podem ser apontadas (ex: tema, ritmo,
imagens, etc.);
- Fechar a aula dizendo que eles estão indo muito bem na leitura e interpretação de
poemas, convidá-los de novo a acessar o blog para que estejamos em “conexão” durante
toda a semana, e dizer que na outra semana continuaremos nessa convivência boa com a
poesia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1972.
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
249
PLANO DE AULA
Módulo III
(13/05/09)
TEMA:
Poesia
OBJETO DE ENSINO:
Poesia metalinguística
OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS
1. Aprofundar o trabalho com a poesia metalinguística, iniciado no módulo II:
1.1. Discutir a concepção de arte presente em poema de Ferreira Gullar,
musicado por Raimundo Fagner;
1.2. Perceber a concepção de poema presente no texto “Emergência”, de Mário
Quintana;
1.4. Relacionar essas duas concepções de arte e de poema que têm afinidade
com a poesia metalinguística.
MATERIAIS DIDÁTICOS
Micro system para passar a música “Traduzir-se”;
Folha avulsa contendo o poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar;
Quadro-negro onde será copiado o poema “Emergência”, de Mário Quintana;
Exercício relacionado ao poema “Emergência”, de Mário Quintana;
INSTRUMENTOS DE COLETA
Gravador
Diário reflexivo
METODOLOGIA
Duas aulas (90 min)
Introdução (10 min)
- Conversar um pouco sobre o blog, falando das novidades que foram postadas
nele e dos comentários dos alunos;
- Ligar o gravador;
- Relembrar rapidamente os dois poemas trabalhados na aula anterior, “Cartas de
amor” e “Poema obsceno”, enfocando mais este último (perguntar, então, o que
se recordam acerca do poema de Gullar e conversar um pouco sobre isso);
- Anunciar que na presente aula irão escutar uma música, mas que antes vão
receber um poema chamado “Traduzir-se”, do autor Ferreira Gullar;
Primeiro Momento (40 min)
- Entregar o poema “Traduzir-se”;
- Propor uma leitura oral do poema da seguinte forma: os meninos lerão os dois
primeiros versos de cada estrofe, e as meninas os dois últimos versos de cada
250
estrofe; todos lerão juntos a última estrofe do poema (podemos, inclusive repetir
a leitura algumas vezes, sugerindo que procurem dar mais expressividade a uma
palavra, uma expressão, etc.);
- Depois da leitura oral conjunta, ouvir as primeiras impressões acerca do
poema;
- Dizer que o texto “Traduzir-se” foi musicado por um cantor brasileiro, e
perguntar se alguém já ouviu tal música, ou sabe que cantor a musicou;
- Criar a seguinte situação: “Imaginem que vocês são cantores, e receberam esse
poema/letra para musicar. Como vocês fariam isso? Que ritmo colocariam? Seria
rápido, acelerado, uma mistura dos dois? Que instrumentos escolheriam? Que
tipo de voz deveria cantá-la? Grave, aguda? Haveria um refrão? Qual? Etc.”;
- Depois dessa conversa, passar em áudio a música “Traduzir-se”, musicada por
Raimundo Fagner;
- Confrontar o modo como Fagner musicou com a maneira como os alunos o
fariam; ver se as expectativas deles foram frustradas, ou não, e por quê;
- Ler mais uma vez o poema, estrofe por estrofe, e dessa vez ir questionando a
turma para que possam se posicionar sobre o texto; ver se e como eles percebem
a concepção de arte apregoada, ou melhor, questionada (ele não responde a
questão) pelo eu lírico de “Traduzir-se”;
Segundo Momento (25 min)
- Começar a aula copiando no quadro o poema “Emergência”, de Mário
Quintana e dizer para que cada aluno faça o mesmo em seu caderno;
- Pedir para que um ou mais alunos façam uma leitura oral expressiva do poema
“Emergência”;
- Questionar um pouco sobre o poema, a partir das idéias-chave: “Quem faz um
poema abre uma janela / Quem faz um poema salva um afogado”;
Terceiro Momento (20 min)
- Entregar um pequeno exercício a respeito do poema “Emergência”, o qual deve
ser realizado individualmente em sala e entregue à professora;
- Explicar oralmente o exercício;
- Durante a realização da atividade, estar disponível para orientar cada aluno na
carteira;
- Receber os exercícios.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
QUINTANA, Mário. Apontamentos de história sobrenatural. 3. ed. Rio de
Janeiro: Globo, 1984.
251
PLANO DE AULA
Módulo IV
(20/05/09)
TEMA:
Poesia
OBJETO DE ENSINO:
Poesia metalinguística
OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS
1. Relacionar duas linguagens artísticas, poesia e música, através de trabalho
com o poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar.
2. Continuar o trabalho com a poesia metalinguística, através de:
2.1. leitura e conversa sobre “O poema”, de Mário Quintana, com enfoque sobre
a concepção de poema perpassada pelo eu lírico;
2.2. realização de atividade escrita acerca de “O poema”;
MATERIAIS DIDÁTICOS
Folha avulsa contendo “O poema”, de Mário Quintana;
Atividade acerca de “O poema”, de Mário Quintana;
INSTRUMENTOS DE COLETA
Gravador
Máquina digital
Diário reflexivo
METODOLOGIA
Duas aulas (90 min)
Introdução (5 min)
- Falar acerca das ações deste módulo: na primeira aula, a realização do evento
“Poemúsica”, e na segunda, a leitura e conversa sobre “O poema”, de Mário
Quintana, com a posterior realização de uma atividade escrita sobre o texto;
Primeiro Momento (40 min)
- Ligar o gravador;
- Convocar os grupos (um de cada vez) a apresentarem a sua versão musical do
poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar, dizendo da importância de apreciação
desse momento por parte de toda a turma (tiraremos fotos para registrar tudo);
- Ao final de tudo, retomar o questionamento final do eu lírico do poema
“Traduzir-se”, levando-os a pensar se traduziram “uma parte na outra parte”, se
fizeram arte, o que comunicaram, de que maneira, etc.
252
- Avisar os alunos de que no blog será criado um espaço para que façam seus
comentários acerca do evento “Poemúsica”; será importante que exponham suas
opiniões, digam o que acharam;
Segundo Momento (30 min)
- Começar a aula entregando “O poema”, de Mário Quintana e discutir um
pouco o texto com eles; se for preciso, ir anotando algumas das colocações dos
alunos no quadro-negro;
Terceiro Momento (15 min)
- Após esse momento de conversa, em que procuramos ouvir os alunos dando
direcionamentos para que reflitam sobre “O poema”, entregar um pequeno
exercício a respeito do texto de Quintana, o qual deve ser realizado
individualmente em sala e entregue à professora;
- Explicar oralmente o exercício;
- Durante a realização da atividade, estar disponível para orientar cada aluno na
carteira;
- Receber os exercícios;
- Avisar que na próxima aula será o último encontro com eles; todos devem estar
presentes, pois será um momento muito especial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
QUINTANA, Mário. Poesias. 8. ed. São Paulo: Globo, 1989.
253
PLANO DE AULA
Módulo V
(27/05/09)
TEMA:
Poesia
OBJETO DE ENSINO:
Poesia metalinguística
OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS
1) Concluir o trabalho de convivência com a poesia metalinguística com dois
poemas de Ferreira Gullar: “Desastre” e “Poema poroso”;
2) Conversar sobre o experimento;
MATERIAIS DIDÁTICOS
Folhas avulsas contendo os dois poemas de Ferreira Gullar
INSTRUMENTOS DE COLETA
Gravador
Máquina digital
Diário reflexivo
METODOLOGIA
Duas aulas (90 min)
Introdução (5 min)
- Avisar que este será o último encontro, e que todos devem aproveitar o
momento;
- Falar acerca das ações do módulo final: primeiro, o recolhimento da atividade
sobre “O poema”, de rio Quintana; depois, a realização de uma discussão em
grupo, e a posterior socialização da discussão; por fim, o encerramento das aulas
com uma conversa final;
- Recolher a atividade dos alunos e avisar que ela será corrigida e entregue na
semana seguinte;
Primeiro Momento (20 min)
- Para iniciar o momento de discussão em grupo, pedir para que os alunos se
disponham em equipes de 4 alunos (serão, então, uma média de oito grupos na
sala);
- Entregar uma folha contendo os dois poemas de Gullar;
- Direcionar um dos poemas para alguns grupos, e outro poema para outros
grupos;
- Sugerir que leiam em voz alta entre eles, testando diferentes modos de
realização e ao mesmo tempo, aproximando-se do texto;
- Escrever no quadro duas perguntas direcionadoras da discussão em grupo:
1) QUE TIPO DE POEMA O EU LÍRICO QUER ESCREVER?
254
2) POR QUE ELE PROCURA O POEMA COM ESSAS CARACTERÍSTICAS?
- Caso queiram, os alunos poderão fazer anotações no caderno, mas elas não
precisarão ser entregues;
Segundo Momento (30 min)
- Avisar que é hora de externar uns para os outros o que descobriram acerca dos
poemas na discussão em grupo (caso seja possível, iniciaremos essa socialização
ainda na aula anterior); ressaltar a importância de pararmos para ouvir a
percepção dos outros, para concordar, apoiar ou adiscordar, mas desde que se
saiba o que se está dizendo;
- Ligar o gravador;
- Começar esse momento com o poema “Desastre”;
- Pedir para que algum aluno o leia em voz alta;
- De acordo com o direcionamento dado, perguntar como os grupos perceberam
o poema, confrontando as percepções das equipes; se for preciso, anotar no
quadro algumas colocações deles;
- Terminado o momento de discussão de “Desastre”, fazer o mesmo
procedimento com “Poema poroso”, mas com a vantagem de que, agora, ambos
os poemas poderão ser comparados (aproximações, diferenças), ou seja, a
discussão sobre “Desastre” deve ser trazida;
Terceiro Momento (15 min)
- Conversar abertamente sobre essas cinco aulas de convivência com poemas:
falar um pouco sobre a nossa experiência, o que aprendemos com os alunos;
agradecer publicamente o espaço concedido pela professora efetiva; e o
principal, procurar colher depoimentos dos alunos, por exemplo, alguém que não
gostava de poesia, mas que passou a gostar; alguém que não gostava e continuou
do mesmo jeito; saber que poema marcou mais, e por quê, etc;
- Ao final, entregar um pequeno cartão de agradecimento a cada um;
- Tirar fotos para registrar o experimento concluído.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
255
ANEXO 4
OS POEMAS
256
BILHETE
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
QUINTANA, Mário. Nova antologia poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1983.
CARTAS DE AMOR
Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras, ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente ridículas.)
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1972.
POEMA OBSCENO
Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria
brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira
Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não canta
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador
aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado
escuro do país
- e espreitam.
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 14 ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2004.
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
Na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 14.
ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2004.
258
O POEMA
Um poema é como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
(QUINTANA, Mario. Poesias. 8. ed. São Paulo: Globo, 1989).
259
DESASTRE
Há quem pretenda
que seu poema seja
mármore
ou cristal - o meu
o queria pêssego
pêra
banana apodrecendo num prato
e se possível
numa varanda
onde pessoas trabalhem e falem
e donde se ouça
o barulho da rua.
Ah quem me dera
o poema podre!
a polpa fendida
exposto
o avesso da voz
minando
no prato
o licor a química
das sílabas
o desintegrando-se cadáver
das metáforas
um poema
como um desastre em curso
POEMA POROSO
De terra te quero;
poema,
e no entanto iluminado.
De terra
o corpo perpassado de eclipses,
poroso
poema
de poeira –
onde berram
suicidas e perfumes;
assim te quero
sem rosto
e no entanto familiar
como o chão do quintal
(sombra de todos nós depois
e antes de nós
quando a galinha cacareja e
cisca).
De terra,
onde para sempre se apagará
a forma desta mão
por ora ardente.
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. RJ: José
Olympio, 2004
260
ANEXO 5
ATIVIDADE INDIVIDUAL SOBRE “O POEMA”
261
ATIVIDADE
Disciplina: Leitura e Interpretação
Professora: Caroline Mabel
Turma: Primeiro ano do ensino médio
Aluno (a): ________________________________________________________
Olá!!! Você conhece o poema abaixo, não é mesmo? Leia-o mais uma vez com
bastante atenção e procure responder a questão que se segue:
O poema
(Mário Quintana)
Um poema é como um gole dágua bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
(QUINTANA, Mário. O aprendiz de feiticeiro. Porto Alegre: Ed. Fronteira, 1950).
Nas linhas abaixo, faça um comentário sobre “O poema”, de Mário Quintana,
observando os seguintes pontos:
a) Após leituras e releituras, algum aspecto do poema chamou sua atenção? Diga qual e
comente livremente.
b) Reescreva o verso do qual mais gostou ou que de algum modo o inquietou e, em
seguida, diga como você o compreendeu;
c) Reflita sobre o título do texto: por que será que o autor o chamou de “O poema”?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
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_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
262
ANEXO 6
ATIVIDADES SOBRE “O POEMA”
RESPONDIDAS INDIVIDUALMENTE
(em ordem alfabética)
263
264
265
266
267
268
269
270
271
272
273
274
275
276
277
278
279
280
281
282
283
284
285
ANEXO 7
ATIVIDADE EM GRUPO SOBRE “DESASTRE”
E “POEMA POROSO”
286
ATIVIDADE EM GRUPO
Disciplina: Leitura e Interpretação
Professora: Caroline Mabel
Turma: Primeiro ano do ensino médio
Alunos (as):
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
1) QUE TIPO DE POEMA O EU LÍRICO QUER ESCREVER?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
2) POR QUE ELE PROCURA O POEMA COM ESSAS CARACTERÍSTICAS?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
287
ANEXO 8
ATIVIDADES SOBRE “DESASTRE”
RESPONDIDAS EM GRUPO
(em ordem numérica crescente)
288
289
290
291
ANEXO 9
ATIVIDADES SOBRE “POEMA POROSO”
RESPONDIDAS EM GRUPO
(em ordem numérica crescente)
292
293
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