Download PDF
ads:
Natalia Rayol Fontoura
Heróis ou Vilões?
O abuso e a exploração sexual
por militares em missões de paz da ONU
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Programa de Pós-Graduação em
Relações Internacionais
Orientador:
Prof. Kai Michael Kenkel
Rio de Janeiro
Abril de 2009
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Natalia Rayol Fontoura
Heróis ou Vilões?
O abuso e a exploração sexual
por militares em missões de paz da ONU
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio.
Kai Michael Kenkel
Orientador
IRI - PUC-Rio
Nizar Messari
IRI - PUC-Rio
Antônio Jorge Ramalho da Rocha
UnB - IREL
Rio de Janeiro
Abril de 2009
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
ads:
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora
e do orientador.
Natalia Rayol Fontoura
Graduou-se em jornalismo pela PUC-Rio em 2006. Cursou um ano
de sua graduação no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Institut
d'Etudes Politiques de Paris). Trabalhou durante um ano no Centro
de Informação das Nações Unidas no Rio de Janeiro (UNIC-Rio).
Participou do curso para civis do CIOpPaz (Centro de Instrução de
Operações de Paz), do Exército Brasileiro. Tem interesse nas áreas
de gênero, segurança e questões relativas a missões de paz.
Ficha Catalográfica
CDD: 327
Fontoura, Natalia Rayol
Heróis ou vilões? : o abuso e a exploração
sexual por militares em missões de paz da
ONU / Natalia Rayol Fontoura ; orientador: Kai
Michael Kenkel. – 2009.
229 f. il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Relações
Internacionais)–Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
1. Relações internacionais Teses. 2.
Segurança internacional. 3. Abuso sexual. 4.
Operações de paz. 5. ONU. 6. Gênero. 7.
República Democrática do Congo. 8. Haiti. 9.
Exploração sexual. I. Kenkel, Kai Michael. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Instituto de Relações Internacionais. III.
Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Para todos aqueles que
arriscam suas vidas pela construção da paz.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Agradecimentos
Ao meu orientador Kai Michael Kenkel, pela dedicação e atenção durante toda a
realização deste trabalho.
Ao Professor Nizar Messari, pelo apoio e carinho durante todo o curso.
Aos meus amigos do mestrado, em especial Jana, Miguel e Cristina, pelos conselhos,
pela paciência e pelos bons momentos.
Ao Diogo Dario, por ter me ajudado tantas vezes a entender o mundo das Relações
Internacionais.
Ao Capitão-de-Mar-e-Guerra Carlos Chagas, aos Capitães-de-Fragata José Reis,
Ludovico Velloso, Silvio Aderne Neto e ao Capitão-Tenente Alexandre Simioni, do
corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, pela preciosa ajuda e cooperação.
Ao Centro de Instrução de Operações de Paz (CIOpPaz), do Exército Brasileiro, em
especial ao Capitão Enio Barbosa Fett de Magalhães e ao Major Nelson Ricardo
Fernandes da Silva.
Aos militares do Centro de Operações de Paz da ONU (CUNPK), do Exército Indiano.
A Ximena Jimenez, consultora de gênero do
Peace Operations Training Institute, pela
grande ajuda em todo o processo.
À CAPES, pelo auxílio concedido.
Aos funcionários do IRI, em especial à querida Natacha.
À vida, que tanto me deu.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Resumo
Fontoura, Natalia Rayol; Kenkel, Kai Michael. Heróis ou Vilões? O abuso e a
exploração sexual por militares em missões de paz da ONU. Rio de Janeiro, 2009. 228p.
Dissertação de Mestrado -
Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
A dissertação presente tem como tema os casos de abuso e exploração sexual
(AES) cometidos por militares em operações de paz da ONU. Na década de 90, com o
aumento das funções exercidas, e, conseqüentemente, do número de tropas empregadas,
as denúncias de má-conduta sexual tornam-se, em várias missões das Nações Unidas,
cada vez mais numerosas. A situação de pobreza extrema e de vulnerabilidade em que
se encontram a maioria das mulheres e meninas dos países-hospedeiros, a sensação de
impunidade e a grande disparidade de recursos entre militares e habitantes locais têm
como conseqüência uma série de relações sexuais explorativas, que vão desde o
envolvimento com prostitutas à formação de relacionamentos mais duradouros.
Tais interações sexuais têm uma série de conseqüências negativas não só para as
vítimas, mas também para a credibilidade da missão e da própria ONU. Após anos de
inércia institucional, o tema ganha, em 2002, espaço relevante nas políticas da
Organização, que introduz diversas medidas em combate ao AES. Tais políticas, no
entanto, têm efetividade limitada frente às imunidades dadas a militares e civis em
missões de paz. Em face dos entraves das medidas punitivas, a pesquisa tem por
objetivo verificar a hipótese de que o treinamento sobre AES implementado nos países
contribuintes de tropas possa ser uma ferramenta eficiente na diminuição de tais casos.
Para isso, analisaremos os treinamentos ministrados no Exército e na Marinha do Brasil
- principal país contribuinte de tropas para a Missão de Estabilização das Nações Unidas
no Haiti (MINUSTAH)- e no Exército da Índia - o maior fornecedor de militares para a
Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC).
Palavras-chave:
Segurança internacional – Abuso sexual – Operações de paz – ONU – Gênero –
República Democrática do Congo – Haiti Peacekeeping – Exploração sexual
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Abstract
Fontoura, Natalia Rayol; Kenkel, Kai Michael. Heroes or Villains? Sexual abuse and
exploitation by military contingents in UN peacekeeping operations. Rio de Janeiro,
2009. 228p. MSc. Dissertation -
Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The present thesis focuses on sexual abuse and exploitation (SEA) committed
by members of the military components of United Nations peacekeeping operations. In
the 1990s, with the increase of the tasks exercised by, and the number of troops in
peacekeeping operations cases of SEA became ever more numerous. The extreme
poverty and vulnerability from which most of the women and girls in peacekeeping host
countries find themselves, the impunity of UN soldiers and the huge disparity between
their resources and those of local populations has as a consequence a number of forms
of exploitative sexual relationships, that go from the use of prostitutes to more long-
term arrangements.
Such sexual interactions have a series of negative consequences not only for
the victims, but also for the credibility of UN missions and of the Organization itself.
After years of institutional inertia, the subject eventually gained some profile within UN
policy, with the introduction of a series of measures to combat SEA. Nevertheless, these
policies have shown limited effectiveness faced with the immunity granted to the
soldiers in question. Given these limitations, the research upon which this thesis is
based has as a goal the verification of the hypothesis that the training on SEA
implemented in the troop-contributing countries can be an effective tool in combating
these crimes. To do so, it analyzes the training implemented in Brazil’s Army and
Navy- which furnish the lead contingent of the United Nations Stabilization Mission in
Haiti (MINUSTAH), and in the Indian Army - the main troop contributing country to
the United Nations Mission in the Democratic Republic of Congo (MONUC).
Keywords:
International Security – Sexual Abuse – Peacekeeping Operations – UN – Gender –
Democratic Republic of Congo – Haiti – Sexual Exploitation
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Sumário
1. Introdução 15
2. Abuso e exploração sexual em missões de paz da ONU 20
2.1. O conceito de abuso e exploração sexual 20
2.1.1. A situação da mulher durante e após conflitos armados 23
2.1.2. O impacto das missões complexas para as mulheres 28
2.1.2.1. As operações de paz no pós-Guerra Fria 28
2.1.2.2. Para além da prostituição: as conseqüências negativas das
relações sexuais entre peacekeepers e mulheres locais
32
2.3. Medidas implantadas pela ONU 42
2.3.1. As primeiras respostas estabelecidas pela ONU 42
2.3.2. O Relatório Zeid 48
2.3.2.1 Jurisdições e imunidades 49
2.3.2.2 Prevenção, investigação e punição 53
2.3.3. Treinamento e códigos de conduta 58
3. O abuso e a exploração sexual em missões de paz na produção
acadêmica
63
3.1. Literatura sobre as conseqüências não-esperadas
63
3.2. A violência sexual na literatura de gênero
68
3.3. Gênero e militarização
74
3.4. Gênero e missões de paz
90
3.5. Treinamento de gênero para militares
93
4. Radiografia do problema 102
4.1. Dados gerais sobre abuso e exploração sexual 103
4.2. O abuso e a exploração sexual pelo mundo 107
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
4.2.1. Primeiros casos: Camboja e Somália 107
4.2.2. Bósnia 110
4.2.3. Timor-Leste 112
4.2.4. Libéria 114
4.2.5. Serra Leoa, Burundi, Eritréia e Etiópia 116
4.2.6. Costa do Marfim e Sudão 118
5. Pode o treinamento acabar com o abuso e a exploração sexual em
missões de paz?
120
5.1. Hipótese e indicadores 121
5.2. O problema da sub-notificação de casos de violência sexual 124
5.3. Teorias explicativas alternativas 129
6. O abuso e a exploração sexual na MINUSTAH 131
6.1. A situação do abuso e da exploração sexual no Haiti 134
6.1.1. Casos de abuso e exploração sexual na MINUSTAH 135
6.1.2. Medidas adotadas e estrutura de Investigação 141
6.2. O treinamento do Batalhão Brasileiro (BRABATT) 145
6.2.1. O treinamento sobre abuso e exploração sexual para
militares brasileiros
146
6.2.2. “Não adianta nada uma palestra linda, se você não colocar
em prática”
152
6.3. Conclusão
7. O abuso e a exploração sexual na MONUC 160
7.1. O conflito na República Democrática do Congo 161
7.2. O estupro como arma de guerra 163
7.3. Casos de abuso e exploração sexual e medidas adotadas
pela ONU
168
7.4. A Índia, as missões de paz e o abuso e a exploração sexual 183
7.5. O treinamento sobre abuso e exploração sexual para militares
indianos
189
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
7.6. Conclusão 196
Conclusão 200
Referências bibliográficas 207
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Lista de tabelas e gráficos
Tabela 1 - Quantidade de citações por missão 103
Gráfico 1 - Número de alegações de casos de
abuso e exploração sexual por ano (1988-2008) 105
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Abreviaturas e Siglas
ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
AES Abuso e Exploração Sexual
CS Conselho de Segurança
DPKO Departamento de Operações de Manutenção da Paz
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
FCI Funcionários Civis Internacionais
MONUC
Missão das Nações Unidas na
República Democrática do Congo
MOU
Memorandum of Understanding
(Memorando de Entendimento)
OIOS
Office of Internal Oversight Services
(Escritório de Serviços de Supervisão Interna)
ONUB Operação das Nações Unidas no Burundi
OP Operações de Paz
ONU Organização das Nações Unidas
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
RDC República Democrática do Congo
SG Secretário-Geral
SGTM
Standardized Generic Training Modules
(Módulos Genéricos de Treinamento Padronizados)
SOFA
Status of Force Agreements
(Status dos Acordos de Uso da Força)
SRSG Representante do Secretário-Geral
TCC País Contribuinte de Tropas (Troop Contribuing Countries)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
UNAIDS Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/aids
UNAMIC Missão das Nações Unidas no Camboja
UNAMID Operação Híbrida das Nações Unidas em Darfur
UNAVEM Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola
UNDOF
United Nations Disengagement Observer Force
(Força de Observação de Desengajamento da ONU)
UNFICYP Força de Manutenção da Paz das Nações Unidas no Chipre
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNIFEM Fundo das Nações Unidas para a Mulher
UNIFIL Força Interina das Nações Unidas no Líbano
UNMIBH Missão das Nações Unidas na Bósnia e Hezergovina
UNMEE Missão das Nações Unidas na Etiópia e Eritréia
UNMIL Missão das Nações Unidas na Libéria
UNMIS Missão das Nações Unidas no Sudão
UNMOGIP Grupo de Observação Militar das
Nações Unidas na Índia e Paquistão
UNOMIG Missão de Observação das Nações Unidas na Geórgia
UNOCL Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim
UNTAC Autoridade de Transição das Nações Unidas no Camboja
UNTSO
United Nations Truce Supervision Organization
(Organização de Supervisão de Cessar-Fogo das Nações
Unidas)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
A manutenção da paz e da segurança
está indissociavelmente ligada
à igualdade dos direitos entre homens e mulheres.
Sérgio Vieira de Mello
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
1
Introdução
A década de 90 assistiu ao aumento da quantidade e da complexidade das
operações de paz
1
(OPs) levadas a cabo pelas Nações Unidas (ONU). A incorporação de
mais participantes e o exercício de variadas e diversas funções ainda hoje caracterizam
grande parte das missões de peacekeeping: Mais de 76 mil militares de 119 países
contribuintes encontram-se hoje em campo, destruindo minas, repatriando refugiados,
distribuindo ajuda humanitária, monitorando acordos de paz, reconstruindo escolas,
treinando policiais. À incorporação de novos atores e de atividades exercidas nas missões
de paz atuais seguiu-se, no entanto, um crescimento correspondente no número de casos
de abuso e exploração sexual (AES) cometidos por militares e trabalhadores
humanitários, que incluem estupros, “utilização” de prostitutas e até mesmo
envolvimento em tráfico humano.
O abuso e a exploração sexual são fenômenos recorrentes na interminável história
das guerras. Há séculos mulheres são estupradas por facções inimigas em situações de
violência aberta. Ruanda, Iugoslávia, Congo e Sudão são apenas alguns dos muitos casos
contemporâneos em que a violência sexual foi utilizada como forma de subjugar
comunidades étnicas inimigas. O aumento da prostituição é outro resultado freqüente de
situações de conflitos armados. A chegada de um grande número de militares é quase
sempre suficiente para aumentar a oferta de prostitutas locais e para estimular o tráfico
humano, preocupado em “satisfazer” à demanda recém-criada através da escravização de
adultos e crianças.
Mas ainda que o abuso e a exploração sexual sejam efeitos previsíveis, ainda que
indesejados, de situações de conflito, quando peacekeepers são responsáveis por tais atos
o problema torna-se ainda mais profundo. Neste caso, estamos diante não somente de
claras violações aos direitos humanos e aos direitos das mulheres, mas da total perversão
1
O conceito de “operações de paz” utilizado nesta pesquisa refere-se a toda missão levada a cabo pelo
Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO) das Nações Unidas, deixando de fora,
portanto, as operações políticas da Organização ou operações gerenciadas por outras organizações
internacionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN),
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
16
de um sistema que tem por objetivo, muitas vezes, paralelamente à questão da segurança,
reverter o quadro de pobreza e violência que leva mulheres e meninas a se oferecerem em
troca de comida, segurança ou dinheiro. Ao engajarem-se em relações íntimas com locais
– com consentimento ou não – os militares não só expõem essas mulheres e meninas
(assim como eles mesmos) ao risco da contaminação pelo HIV, mas à marginalização
dentro de suas próprias comunidades e a um espiral contínuo de dependência.
Além dos sofrimentos infligidos às vítimas, os casos de AES dificultam a própria
efetividade das missões, uma vez que colocam em xeque a construção de um ambiente de
confiança e estabilidade – a conquista, em suma, de hearts and minds-, necessárias à
reconstrução do Estado e de uma paz duradoura. A despeito de críticas de que o conceito
abrangente de exploração e abuso sexual utilizado pela ONU- que inclui relações
consensuais- seria moralista e paternalista, e subtenderia a mulher como incapaz de
exercer escolhas, não há duvida de que estas relações sexuais têm conseqüências
negativas não só para as mulheres e meninas envolvidas, mas para a efetividade da
missão e para a imagem da própria Organização. Muito mais que uma questão de moral
sexual, a eliminação da má-conduta é essencial para a boa implementação dos mandatos
das OPs que, por sua vez, depende, em grande parte, do apoio local.
Além da quebra de confiança, os envolvidos em abusos e na exploração sexual
podem acabar por fortalecer grupos criminosos responsáveis pela prostituição e pelo
tráfico de mulheres e crianças, prejudicando um dos principais objetivos das missões: o
respeito à lei (rule of law). Ao participarem, mesmo que não intencionalmente, da
indústria do sexo, peacekeepers e trabalhadores humanitários acabam por ajudar
economias obscuras que mantêm a instabilidade na região e os sistemas de desigualdade,
exploração e marginalização existentes, dificultando a construção de uma paz duradoura.
Nesse sentido, o presente trabalho, ciente dos prejuízos causados por casos de AES, tem
como foco analisar a possibilidade de que o treinamento seja uma ferramenta útil na
eliminação de tal prática, perversa às vítimas, às missões, e à própria Organização.
A importância da análise do treinamento deriva da incapacidade da ONU em
implementar medidas restritivas e punitivas eficientes. Em 2002, após anos de inércia
institucional, várias medidas de combate a tais atos são estabelecidas pela ONU, seguindo
a política de tolerância zero instituída pela organização: zonas proibidas (No-go zones),
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
17
campanhas de informação, códigos de conduta, linhas telefônicas para denúncia, conduct
and discipline teams, focal points. No entanto, frente às imunidades de que gozam os
integrantes de missões de paz, tais mecanismos não foram suficientes para eliminar o
problema, enfatizando a dificuldade em manter a disciplina de militares e civis. Tanto no
meio militar quanto no civil há, ainda, uma cultura de tolerância de tal prática,
especialmente no que diz respeito ao envolvimento com prostitutas e mulheres locais.
Tal condescendência baseia-se na visão de que o estabelecimento de relações
com mulheres nativas – pagas ou não - são uma conseqüência inevitável de homens
heterossexuais submetidos a um ambiente de isolamento e tensão. Se o estupro é
claramente entendido como uma prática criminosa, a prostituição e, especialmente, o
envolvimento com mulheres locais não são vistos como comportamentos violentos e/ou
criminosos. Muito pelo contrário: Militares e civis acreditam, muitas vezes, que
“sustentar” ou dar coisas a uma mulher os tornam pessoas boas, capazes de boas ações, e,
portanto, eticamente compatíveis com as missões de paz.
Frente à forte possibilidade de que peacekeepers se engajem em atos de AES por
desconhecerem os prejuízos causados pelo envolvimento com prostitutas e mulheres
locais, e à impossibilidade da ONU em tomar medidas punitivas mais drásticas, a
pesquisa buscará saber se o treinamento contribui para a diminuição dos casos de abuso
e exploração sexual dentre militares em missões de paz. Para isso, analisaremos o
treinamento implementado no Exército Brasileiro e na Marinha do Brasil, grandes
contribuintes de tropas para a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti
(MINUSTAH), e no Exército Indiano, o maior fornecedor de militares para a Missão das
Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC).
É importante lembrar que, apesar da hipótese tratada no estudo referir-se
exclusivamente a militares, a realidade do abuso e da exploração sexual é mais complexa.
Muitos civis – categoria em que se incluem policiais, funcionários internacionais e locais,
participantes de organizações não-governamentais (ONGs) e de empresas sub-contratadas
e voluntários – se envolvem também em atos de AES, segundo inúmeras denúncias
publicadas na mídia. No entanto, há diferenças cruciais entre os dois grupos que tornam
inadequada metodologicamente a análise de militares e civis na mesma pesquisa. Dentre
elas, o fato de que civis têm status jurídico diferente dos militares e a forte possibilidade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
18
de que a necessidade que as populações locais têm dos bens distribuídos pelas agências
fazem com que os casos perpetrados por civis sejam ainda mais não-registrados que
aqueles cometidos por militares. No entanto, o número de civis participantes em missões
de paz é menor que o de militares. Assim, ainda que proporcionalmente haja muitos casos
de AES cometidos por civis, em números absolutos os casos de militares ultrapassam em
muito os de civis: a análise dos casos de AES perpetrados por militares torna-se, assim,
mais urgente, já que estes casos são mais numerosos.
A análise também tem como objetivo lembrar que militares que participam em
missões de paz não são, necessariamente, heróis, apesar de exercerem trabalhos honrosos.
Muitos não escolhem candidatar-se a estas operações pelo sentido de humanidade, mas
pelo soldo extra e pela vontade de viver uma “aventura”. Mas ainda que estes por vezes
cometam atos prejudiciais às próprias sociedades que deveriam proteger, a maioria dos
militares também não é composta por “vilões” - pessoas sem caráter ou escrúpulos, que
não se importan com as conseqüências negativas de seus atos - mas apenas indivíduos
que podem, através de um treinamento efetivo, aprender e moldar seu comportamento às
necessidades das operações de paz.
Tendo em vista a necessidade de apoio local para a boa implementação dos
mandatos das missões de paz e os prejuízos causados às vítimas, podemos dizer que a
análise sobre a efetividade do treinamento como ferramenta de eliminação e contenção de
casos de abuso e exploração sexual é crucial para o funcionamento pleno das operações
de paz e para a formação de uma paz duradoura em sociedades devastadas pela guerra.
Assim, esta pesquisa não tem como objetivo provar que as OPs são um instrumento falho,
que deve ser descartado na construção da paz devido a seus possíveis efeitos negativos,
mas justamente examinar e analisar tais conseqüências, para que possamos exercer tais
missões cada vez melhor.
Este estudo está dividido em seis capítulos, além da introdução e da conclusão. O
primeiro capítulo tem como objetivo situar o tema da pesquisa. Primeiramente,
esclareceremos o conceito de abuso e exploração sexual usado pelas Nações Unidas e
pelo trabalho. O estudo analisará ainda a situação de vulnerabilidade na qual mulheres e
meninas se encontram e que determina a formação de uma série de relações de
exploração, que vão além do estupro e da prostituição. Em seguida, analisaremos como o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
19
aumento da participação de militares e civis e a maior interação destes com a população
local nas missões complexas têm como conseqüência o aumento proporcional de casos de
abuso e exploração sexual. Neste capítulo, analisaremos ainda as medidas implementadas
pela ONU no combate ao AES e as imunidades de que gozam os militares nas missões de
paz.
No segundo capítulo, será feita uma análise de como o tema é tratado na literatura
acadêmica, situando-o como uma interseção entre as produções que tratam de violência
de gênero, de missões de paz de forma mais geral e do processo de socialização dos
militares. O objetivo do capítulo 3 é traçar um mapeamento do fenômeno do AES pelo
mundo, detendo-nos mais detalhadamente em certas missões: Camboja, Somália, Bósnia,
Libéria, Burundi, Serra Leoa, Sudão, Costa do Marfim.
No capítulo 4, detalharemos nossa hipótese principal, fazendo algumas ressalvas
importantes. Os capítulos 5 e 6 serão dedicados à análise do abuso e da exploração
sexual, respectivamente, na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti
(MINUSTAH) e na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo
(MONUC), atentando para a situação sócio-econômica em que meninas e mulheres se
encontram nestes países quando da chegada dos peacekeepers, para os casos de AES e
para as medidas implementadas pelas Nações Unidas em resposta a tais denúncias. Os
capítulos analisarão, ainda, respectivamente, os treinamentos implementados no Exército
e na Marinha do Brasil, e no Exército da Índia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
2
Abuso e exploração sexual em missões de paz da ONU
Neste capítulo, analisaremos o conceito de abuso e exploração sexual (AES)
formulado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e utilizado nesta pesquisa. Frente
às inúmeras relações estabelecidas por peacekeepers
1
e mulheres locais no contexto das
operações de paz (OPs), a visão da ONU sobre o fenômeno vai além da prostituição e do
estupro, mas condena, também, quaisquer outras ligações sexuais- ainda que estas
possuam um caráter afetivo, afastando-se de um objetivo estritamente instrumental por
qualquer uma das partes. A justificativa é que, em todas estas interações, a situação de
extrema pobreza e de vulnerabilidade das mulheres e meninas locais, além da assimetria
existente entre o UN personnel e a população local - situação que estudaremos a seguir -
as impossibilitaria de exercerem escolhas reais. Analisaremos, ainda, neste capítulo, as
imunidades dadas a civis e militares, que acabam por limitar as medidas punitivas por
parte da ONU, dificultando a efetividade destas, e tornando o treinamento prévio uma
ferramenta ainda mais importante no combate ao AES.
2.1
O conceito de abuso e exploração sexual
A chamada “violência sexual”
2
é um fenômeno multifacetado, que inclui variados
atos de violência não-consentidos relacionados à sexualidade humana, tais como
prostituição forçada, escravidão sexual, mutilação genital, exposição ou participação
forçada em pornografia (Skjelsbæk, 2001). De uma forma geral, no entanto, o conceito de
“abuso sexual” está ligado ao maior ato de violência de conotações sexuais cometido sob
1
Neste trabalho, usaremos o termo “peacekeeperpara designar apenas militares participantes de OPs.
2
Segundo o relatório da Human Rights Watch, “We will kill you if you cry” a “violência sexual” pode ser
entendida como: “any violence, physical or psychological, carried out through sexual means or by
targeting sexuality. Sexual violence includes rape and attempted rape, and such acts as forcing a
person to strip naked in public, forcing two victims to perform sexual acts on one another or harm
one another in a sexual manner, mutilating a person’s genitals or a woman’s breasts, and sexual
slavery”. (2003, p. 2). Disponível em http://hrw.org/reports/2003/sierraleone/
. Acesso em
25/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
21
coerção: o estupro. Assim, grande parte da produção acadêmica sobre a prática do abuso
sexual em períodos de guerra tem como foco a transculturalidade de tal prática
3
, cuja
presença constante em conflitos armados independe de localização geográfica, período
histórico, ou especificidades culturais (Skjelsbæk, 2001; DeGroot, 2001). O
reconhecimento da violência sexual como crime de guerra e crime contra a humanidade
pelo Estatuto de Roma
4
, em 2002, acabou por enfatizar ainda mais o estupro como a
representação principal do abuso sexual, especialmente em períodos de conflito armado.
Já o conceito de “exploração sexual” diz respeito, geralmente, ao ato de lucrar
monetária, social ou politicamente da exploração sexual de alguém, seja este adulto ou
criança. Esta exploração pode se dar por meio de redes de prostituição, pornografia,
tráfico humano e turismo sexual. Apesar de muitas dessas práticas serem coercitivas,
como é o caso do tráfico humano e da escravidão sexual, a idéia do lucro pela troca de
dinheiro por “serviços” acaba por priorizar a prostituição como o ato representativo per
se da exploração sexual. Esta, por sua vez, é vista como uma relação sexual consentida,
ainda que de caráter explorativo, que, é, inclusive, considerada uma prática legal em
muitos países, como na Holanda, na Alemanha ou na Suíça.
Em geral, pode-se dizer que o entendimento tradicional de abuso e exploração
sexual limita-se, respectivamente, ao estupro e à exploração de prostitutas. Mas a
realidade da violência sexual em situações de conflito e nas OPs delas decorrentes
esconde inúmeras outras relações entre militares ou funcionários civis internacionais
(FCI) e mulheres locais que navegam entre o “consentido” e o “não-consentido”, e que,
para os envolvidos, vão, muitas vezes, além do sexo, tornando sua conceituação uma
tarefa complexa. Para dar conta destas sutilezas, o conceito utilizado pelas Nações Unidas
é essencialmente mais abrangente, uma vez que todas estas relações, ainda que com
configurações distintas, são permeadas por assimetrias de poder e de recursos, e
estabelecem prejuízos a médio e longo-prazo às mulheres e meninas locais.
Em 2003, o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, define
“exploração sexual” como:
3
Para mais sobre a “transculturalidade” da violência sexual ver Bovarnick (2007).
4
International Criminal Court. “Rome Statute of the International Criminal Court”. Documento das Nações
Unidas número A/CONF.183/9*, de 17 de julho de 1998.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
22
Any actual or attempted abuse of a position of vulnerability, differential power, or trust, for sexual
purposes, including, but not limited to, profiting monetarily, socially or politically from the sexual
exploitation of another
5
.
Já o “abuso sexual” é definido como “the actual or threatened physical intrusion
of a sexual nature, whether by force or under unequal or coercive conditions
6
. Assim,
segundo o conceito utilizado pela ONU, a má-conduta sexual englobaria não só as
relações sexuais forçadas, mas também a prostituição e o uso, por parte do peacekeeper,
de sua posição de poder para obter favores sexuais. Isso quer dizer que a troca de sexo
por comida, por outros itens de consumo, por trabalhos diversos (como oferecer sexo em
troca de um posto como cozinheira ou empregada doméstica, cargos tradicionalmente
ocupados por mulheres do país-hospedeiro) ou a exploração da prostituição local também
são consideradas condutas inadequadas, ainda que estas relações sejam, teoricamente,
consentidas. Este entendimento deriva da idéia de que a assimetria de poder existente
entre o UN personnel e a população tiraria da mulher a capacidade de consentir
livremente. Pelos mesmos motivos, relações sexuais com locais dos países-hospedeiros
são, ainda, “fortemente desencorajadas”
7
.
A introdução da preocupação com as assimetrias de poder existentes entre o UN
staff e a população local permite que o conceito de abuso e exploração sexual como
formulado e utilizado pelas Nações Unidas abarque a complexidade da violência e das
interações sexuais em missões de paz, cujas relações vão desde o sustento sistemático de
determinadas mulheres por militares ou FCIs até a troca de sexo por itens de consumo
básicos, como comida, leite ou alguns poucos dólares. Este entendimento é, sem dúvida,
inovador, uma vez que a prostituição é, muitas vezes, aceita como algo “natural”: uma
“tradição” entre alguns militares que servem no exterior (Enloe, 2000, p. 108). Para
entender o contexto no qual se dão essas relações sexuais explorativas é preciso,
primeiramente, entender a situação de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres
e meninas em situações de pós-conflito e o impacto das missões de paz em suas vidas.
5
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse”, Secretary-General’s Bulletin. Documento das Nações Unidas No. ST/SGB/2003/13,
09/10/2003.
6
Idem. Itálico da autora.
7
A expressão exata é “strongly discourage relations with beneficiaries” (Idem). Todas as traduções desta
pesquisa são livres da autora.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
23
2.1.1
A situação da mulher durante e após conflitos armados
“The main challenge we face for children and armed conflict lies in the changing
nature of warfare where civilian life is far less protected,” afirmou Radhika
Coomaraswamy, atual Representante-Especial do Secretário Geral para Crianças e
Conflito Armado, ao Conselho de Direitos Humanos em Genebra
8
, em setembro de 2008.
De fato, as características dos conflitos armados contemporâneos são prejudiciais não só
às crianças, mas a todos os grupos civis considerados “vulneráveis”. Isto porque as novas
formas de violência organizada do pós-Guerra Fria têm como um de seus principais
elementos constitutivos a grande escala de violações dos direitos humanos contra não-
combatentes.
Nas chamadas “novas guerras” (Kaldor, 1999), a morte e o sofrimento de civis
não são mais um efeito colateral das guerras, mas o resultado da estratégia central dos
grupos armados contemporâneos
9
(Schnabel, Thakur, 2001, p. 248; Fetherston, 1994, p.
21 e 1998, p. 162; Münkler, 2005, p. 14). A violência é deliberadamente causada contra a
população, seja porque esta não possui a mesma proteção que as forças militares, seja
porque a distinção entre combatentes e não-combatentes torna-se cada vez mais difícil.
Segundo Mazurana:
Recent wars in Angola, Colombia, the DRC, Liberia, Uganda, Sierra Leone and Sudan, for
example, are marked by extreme levels of violence against civilian populations, most notably
butchery and amputation of limbs; the widespread use of abducted boys and girls as soldiers,
porters, and domestic and sexual slaves, and for mine detection; and mass rape and sexual
violence of extraordinary brutality against women and girls, including rape, gang rape, sexual
mutilation, and sexual slavery by the various armed rebel and government forces. (2007, p. 32)
Segundo Kaldor (1999, p.103), a principal técnica dos new warriors na
dominação de um determinado espaço é o deslocamento das populações. O objetivo é
construir um ambiente não-favorável àqueles que podem representar uma ameaça, através
de deslocamentos forçados, minas terrestres, fomes forçadas e estupros: “(...) Hence the
importance of extreme and conspicuous atrocity and of involving as many people as
8
“Children becoming increasingly vulnerable in conflict situations”. UN News, 09/09/2008. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=27985&Cr=Coomaraswamy&Cr1. Acesso em
30/08/2008.
9
No começo do século XX, 85 a 90% das mortes em guerras eram de militares. Na II Guerra Mundial,
metade das mortes já eram de civis. No final da década de 90, aproximadamente 80% das baixas
eram de civis (Kaldor, 1999, p.107).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
24
possible in these crimes so as to establish a shared complicity, to sanction violence
against a hated ‘other’ and to deepen divisions” (Idem, p. 105)
10
.
Ainda que situações de conflito levem sofrimento a toda a população envolvida, as
mulheres e as crianças são particularmente afetadas pelos efeitos de curto e longo-prazo das
guerras. Como já foi dito, o estupro, freqüentemente utilizado como arma de guerra, é
responsável por diversos efeitos negativos na vida das mulheres: estigmatização, isolamento,
alienação, trauma emocional prolongado, aumento de doenças sexualmente transmissíveis como o
HIV
11
, e gravidez indesejada, (que, freqüentemente, resulta em crianças abandonadas). Mas as
vítimas destas práticas não são somente as mulheres: Além de utilizadas por grupos insurgentes
como crianças-soldados
12
ou até mesmo como terroristas suicidas, de serem expostas à violência
e a torturas, e de serem separadas de seus pais, as crianças também são, muitas vezes, alvo de
violência sexual. É importante lembrar que meninos também são vítimas destes abusos
13
, ainda
que este seja um aspecto freqüentemente negligenciado.
Durante os deslocamentos, forçados ou não, mulheres e crianças tornam-se ainda mais
vulneráveis ao abuso sexual
14
. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA),
estima-se que cerca de 80% dos deslocados internos sejam mulheres e meninas
15
. Os campos de
refugiados, por sua vez, estão longe de constituírem lugares seguros para os grupos mais
vulneráveis: a violência sexual cometida por tropas do governo, insurgentes e outros refugiados é
freqüente contra mulheres e crianças
16
, especialmente contra aquelas cujos membros masculinos
10
Kaldor dá o exemplo da morte de tutsis, em Ruanda, em 1994, dos deslocamentos forçados na Bósnia-
Herzegovina, ou da fome forçada no Sudão e da destruição de prédios e monumentos históricos
representativos de uma dada etnia, como a destruição de várias mesquitas pelos sérvios em Banja
Luka ou de estátuas budistas no Afeganistão (1999, p. 105)
11
United States Agency for International Development (USAID). “Women and Conflict” (2007).
Disponível em http://www.usaid.gov/our_work/cross-
cutting_programs/conflict/publications/docs/cmm_women_and_conflict_toolkit_december_2006.
pdf . Acesso em 30/08/2008.
12
Para mais sobre crianças-soldados, ver SINGER, P. W. “Children at War”. Berkeley: University of
California Press, 2006 e WESSELLS, Michael. “Child Soldiers: From Violence to Protection”.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006.
13
“Ms. Coomaraswamy also noted that sexual violence continues to be prevalent, but added that it was not
just limited to girls. She said that during her visit to Afghanistan, she was appalled by the scale of
sexual violence committed against boys by war lords and commanders”. “Children becoming
increasingly vulnerable in conflict situations”. UN News, 09/09/2008. Ver nota 6.
14
Ibidem.
15
Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). “Global Review of Challenges and Good Practices in
Support of Displaced Women in Conflict and Post-Conflict Situations” (2007). Disponível em
http://www.unfpa.org/publications/detail.cfm?ID=348&filterListType= . Acesso em 10/09/2008.
16
Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). “The Impact of Conflict on Women and Girls”. 13-15
de novembro de 2002. Disponível em
http://www.unfpa.org/publications/detail.cfm?ID=29&filterListType=1
. Acesso 10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
25
de suas famílias estejam ausentes, tornando-as dependentes de ajuda externa. Em áreas de
conflito, como em Darfur, no Sudão, mulheres estão sujeitas a ataques físicos diários de todos os
tipos quando estas deixam os campos para coletar água ou madeira para fazer fogo. Muitas vezes
as mulheres têm de trocar relações sexuais por livre passagem, documentos ou acesso a ajuda
humanitária para si e para suas famílias (Mazurana, 2007, p. 33).
Tal situação de insegurança é agravada pela perda de membros da família
(especialmente os homens, que morrem, ferem-se ou juntam-se a forças oficiais ou
guerrilheiras) durante situações de conflito. Em sociedades patriarcais, em que os direitos
das mulheres permanecem limitados se comparados aos dos homens, a morte do marido
pode ter conseqüências ainda mais nefastas. Em Serra Leoa, na Arábia Saudita, no
Quênia e em Uganda, por exemplo, em caso de falecimento do cônjuge, à mulher não é
permitido herdar os bens do marido, e, por vezes, nem mesmo continuar com seus
filhos
17
. Em situações de conflito, o status inferior da mulher torna-se problema ainda
mais agudo, devido ao grande número de viúvas de guerra que, muitas vezes, perdem
grande parte ou todos os homens de sua família.
Neste contexto, mulheres são obrigadas a tornarem-se provedoras de seus lares.
Este novo papel as expõe ainda mais, uma vez que, devido a restrições culturais, sociais e
à falta de educação, estas mulheres são relegadas ao desemprego, tendo que voltar-se à
economia informal ou à exploração sexual (Rubinstein, 2003, p.44). Desta forma, a
discriminação estrutural existente contra as mulheres em muitas sociedades – que, por
exemplo, preferem manter suas meninas ocupadas com o trabalho dostico a man-las
às escolas- faz com que, muitas vezes, o nível educacional do sexo feminino seja
significativamente inferior ao dos homens, limitando seriamente suas possibilidades de
subsistência
18
. As mulheres são, ainda, afetadas pela decadência dos serviços sociais dos
quais estas muitas vezes dependiam anteriormente. Em resumo, “
[a]lthough conflict may, in
some cases, improve gender relations as a result of shifts in gender roles - some changes even
improve women’s rights - by and large its impact on women is devastatingly negative”
19
.
17
Human Rights Watch. “We will kill you if you cry” (2003, p. 18). Ver nota 1.
18
Outro fator determinante das disparidades educacionais entre homens e mulheres é a prática do
casamento forçado. “Girls who are forced to marry early not only miss out on education, but also
on skills training opportunities and are therefore highly dependent on their husbands” (Idem. p.
23). Ver nota 1.
19
United States Agency for International Development (USAID). “Women and Conflict” (2007, p.8).
Ver nota 10.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
26
De fato, é esta a situação encontrada em muitos dos países-hospedeiros de
missões de paz. Nos conflitos em Serra Leoa (1991-2002) e na Libéria (1980-2003),
estima-se que pelo menos 50% das mulheres tenham sofrido alguma forma de violência
sexual, porcentagem que chega a 80% entre deslocados internos e refugiados (Williams
et al., 2009). Os níveis de violência sexual na República Democrática do Congo,
intensificados em 2008 pela escalada do conflito, são alarmantes
20
. Assim, quando a
ONU chega a esses países, os problemas trazidos pela pobreza extrema, pela morte de
membros masculinos das famílias e pelo deslocamento já levaram muitas mulheres a se
engajarem em relações de “sexo de sobrevivência”, em que estas trocam relações sexuais
por comida, por proteção, ou por outros favores, para elas mesmas e para suas famílias. É
neste contexto que ocorrem a maioria dos casos de AES.
A troca de sexo por comida ou dinheiro muitas vezes torna-se uma forma de
sobrevivência também para as crianças
21
:
In both camps and returnee communities, the estimates by respondents of the numbers of girls
engaged in obtaining benefit through sex are disturbingly high. Perceptions ranged, but were
always alarmingly high. In every location people told us of girls from 12 years and upwards being
regularly involved in ‘selling sex’, but, in many locations there was an awareness of girls as young
as eight to ten years being involved
22
.
Tal situação de vulnerabilidade é agravada pelo fato de que, muitas vezes, a
ausência de “guerra” não necessariamente significa a volta da “paz”
23
. Pelo contrário:
Para Pouligny (2004, p. 8), o pós-conflito é um período em que, muitas vezes, ainda mais
atenção é necessária. Na difícil transição das sociedades em conflito armado para a
reconciliação e a reconstrução, a situação de insegurança continua, muitas vezes,
20
“Congo Crisis: More Help is Needed for Women and Girls in North Kivu as Sexual Violence Escalates”.
International Rescue Committee, 21/11/2008. Disponível em http://www.theirc.org/news/congo-
more-help-needed1121.html. Acesso em 10/01/2008.
21
Relatório da Save the Children afirma que crianças têm relações sexuais com adultos em troca de
telefones, roupas, perfumes, relógios, ou por favores, como ver um vídeo, ou dar uma volta no
carro do peacekeeper ou trabalhador humanitário. Save the Children. “From Camp to Community:
Liberia study on exploitation of children”, 08/05/2006. Disponível em
http://www.savethechildren.it/2003/download/pubblicazioni/Liberia/Liberia_sexual_exploitation_
edited_LB.pdf. Acesso em 15/09/2008.
22
Idem, p.10.
23
Segundo novo relatório da Small Arms Survey, cerca de 3 milhões de pessoas morrem todos os anos
como resultado de violência armada, sendo a maioria causada por crimes, e não por guerras.
“Survey charts costs of armed violence”. Financial Times, 12/09/2008. Disponível em
http://www.ft.com/cms/s/0/c56a66e0-8015-11dd-99a9-000077b07658.html?nclick_check=1
.
Acesso em 13/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
27
inalterada. Segundo relatório do Small Arms Survey de 2005
24
, muitos dos chamados
contextos de pós-conflito apresentavam mais ameaças diretas e indiretas a civis do que os
conflitos precedentes. A mudança é muito mais qualitativa que quantitativa: Os
confrontos entre combatentes e os deslocamentos forçados são substituídos pelo aumento
da criminalidade e da violência interpessoal. Novamente, os grupos mais vulneráveis,
como mulheres e crianças, são os que mais sofrem.
Além da inalterada situação de insegurança, nos primeiros estágios do pós- guerra
as instituições da sociedade civil ainda encontram-se devastadas. A falta do Estado de
direito como conseqüência da inexistência ou da inatividade da força policial e do
judiciário local abre espaço para atividades criminosas, como o tráfico de drogas e de
pessoas, e a prostituição. A junção de violência com a falta de instituições acaba por
reforçar a situação de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres e meninas no
pós-conflito.
Often, the end of the war does not signal the end of violations against women. In the post-
conflict period, many women confront discrimination in reconstruction programs, sexual and
domestic violence in refugee camps, and violence when they attempt to return to their homes
25
.
É neste contexto de violência e de ausência de lei e de proteção social que
entrarão as operações de paz. Tal contexto explica, em grande parte, o impacto que têm
as missões nestas sociedades, em especial para as mulheres. Para entendermos melhor tal
fenômeno, começaremos por explicitar as mudanças pelas quais passam as operações no
pós-Guerra Fria, e que são determinantes no formato atual das OPs, em que mais atores,
em especial militares, e mais funções são integradas às missões, aumentando a interação
entre peacekeepers e a população local. A pesquisa analisará, ainda, os efeitos das
assimetrias de poder existentes entre funcionários da ONU e a sociedade-hospedeira da
missão de paz.
24
“Managing ‘post-conflict’ zones - DDR and weapons reduction”. In Small Arms Survey. “Weapons at
War” (2005). Disponível em
http://hei.unige.ch/sas/files/sas/publications/year_b_pdf/2005/2005SASCh10_full_en.pdf
. Acesso
em 27/09/2008.
25
Human Rights Watch. “Women and Armed Conflict; International Justice”. Disponível em
www.hrw.org/women/conflict.html
. Acesso em 23/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
28
2.1.2
O impacto das missões complexas para as mulheres
No pós-Guerra Fria, as missões de paz passam a abarcar inúmeras novas funções,
com o objetivo de construir um ambiente propício a uma paz duradoura. O exercício
destas novas tarefas resulta não só no aumento dos participantes destas operações, em
especial os militares, mas também na maior interação entre o UN staff e a população
local. Estes dois fenômenos são, em grande parte, responsáveis pelo crescimento dos
efeitos negativos das missões, em especial a prostituição e o estabelecimento de outras
relações sexuais que acabam por perpetuar a situação de dependência e vulnerabilidade
de meninas e mulheres em situações de pós-conflito e de ausência do Estado. Por isso,
entender as mudanças nas operações de paz (OPs) no pós-Guerra Fria e a situação de
meninas e mulheres nos países-hospedeiros é essencial no entendimento do abuso e da
exploração sexual (AES) em missões de paz.
2.1.2.1.
As operações de paz no pós-Guerra Fria
O crescimento de casos de abuso e exploração sexual cometidos por peacekeepers
militares é uma das muitas conseqüências diretamente ligadas ao aumento da presença de
participantes nas operações de paz (OPs) chamadas de “segunda geração” (Doyle,
Sambanis, 2006, p. 11), “multidimensionais” (Fetherston, 2004, p. 23; Doyle, Sambanis,
p. 308) ou “abrangentes” (Bellamy et al., 2004, p. 128), ainda que episódios desta
natureza estejam longe de ser um fenômeno inédito no contexto das missões de paz.
A mudança na atuação das OPs está ligada ao fim da Guerra Fria, e às inúmeras
mudanças que o término da rivalidade bipolar trouxe ao Conselho de Segurança das
Nações Unidas (Herz, Hoffmann, 2004, p. 111; Fetherston, 1994, p. 22; Forsythe et al.,
2004, p. 45; Kaldor, 1998, p. 119). O clima de otimismo e de cooperação entre as grandes
potências substitui o congelamento do Conselho de Segurança (CS) e o uso freqüente do
veto, e permite a construção de um ambiente de otimismo.
A partir do fim do conflito Leste-Oeste as Nações Unidas, e mais especificamente
os países-membros do Conselho de Segurança, se comprometem, portanto, com um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
29
maior papel na segurança global (Schnabel, Thakur, 2001, p. 238), o que acarreta um
período fértil para as missões de paz, que aumentam em complexidade funcional e em
números (Kaldor, 1998, p.119). Segundo Fetherston, “in the absence of other options
peacekeeping was singled out to play a significant role in bringing about resolution in
some of the most acute problems” (1994, p. 22). Se até 1989 foram apenas 15 missões de
paz, a despeito da existência de diversos conflitos que poderiam vir a ameaçar a paz e a
segurança internacional em maior ou menor escala, de 1990 até 1993, mais de 40 missões
já haviam sido postas em prática
26
.
A idéia, no pós-Guerra Fria, é lidar com as causas estruturais dos conflitos em
diversas frentes, não se limitando mais apenas à questão militar, com o objetivo de criar
assim, uma paz positiva e duradoura, através da formação de um novo ambiente político
(Herz e Hoffmann, 2004, p. 115). Tal objetivo será alcançado através da democracia e da
atenção às questões sociais, políticas e econômicas que contribuem para a formação dos
conflitos (Aoi et al., 2007, p. 5), consolidando um ambiente pacífico sustentável. Frente a
estes objetivos, as missões ditas de segunda geração passam, progressivamente, a abarcar
cada vez mais novas funções civis e sociais, que vão desde monitoramento de direitos
humanos, organização de eleições, implantação de programas de DDR (desmobilização,
desarmamento e reintegração) à repatriação de refugiados, instalação de programas de
destruição de minas e reforma dos setores judiciário e policial (Bellamy et al.,1994, p.
129; Doyle, Sambanis, 2006, p. 15; Heje, 1998, p. 15).
O exercício destas novas e inúmeras funções acaba por resultar no visível
aumento do tamanho do contingente civil (devido à participação de ONGs internacionais,
organizações internacionais e de diversas agências da ONU nas missões
27
) e, em especial,
do militar. Se, em 1990, o tamanho das forças militares em OPs era de 13.700 homens,
em 1993, já eram 78.800 militares participantes: um crescimento de 475%. As 17
26
É relevante lembrar que tal crescimento não se deu de forma constante, mas foi mais acentuado na
primeira metade da década de 90. As “más experiências” da ONU e a dificuldade dos conflitos na
Bósnia, em Ruanda e na Somália acabam por trazer ceticismo aos países-membros, que hesitam
em continuar aumentando o número de operações de paz. SCHAEFER, Brett. “United Nations
Peacekeeping: The U.S. Must Press for Reform”, 18/09/2008. Disponível em
http://www.heritage.org/Research/InternationalOrganizations/bg2182.cfm#_ftn8
. Acesso em
09/10/2008.
27
As ONGs (e as agências da ONU) não fazem parte formalmente do contingente civil das operações de
paz das Nações Unidas, mas a chegada de seus funcionários também exerce impacto na população
local.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
30
operações de paz atuantes hoje envolvem, no total, cerca de 90 mil militares de 120
países
28
.
A mudança de uma responsabilidade meramente observadora para um
posicionamento ativo em atividades humanitárias, tais como na distribuição de comida e
na construção de escolas, hospitais e estradas (Aall, 2002, p. 123; Tripodi, Patel, p. 58;
Mazurana, 2007, p. 37) faz com que membros das forças armadas tenham, cada vez mais,
de lidar com novas, e muitas vezes inesperadas, funções. O resultado é a maior interação
entre militares e a população local. Se antes somente trabalhadores humanitários tinham
contato estreito e diário com aqueles a quem ajudavam (Rubinstein, 2003, p. 40), a partir
do advento das operações complexas aumenta significativamente o intercâmbio também
de militares com os habitantes locais
29
.
Tanto o aumento de militares participantes quanto a diversificação de suas tarefas
acaba por gerar variadas conseqüências ditas “indiretas”, ou “não-esperadas” (Aoi et al.,
2007) que são, em suma, os efeitos trazidos pelas missões de paz cuja previsão é difícil, e
que muitas vezes não condizem com os objetivos descritos nos mandatos ou esperados da
atuação da ONU; mas chegam, até mesmo, a serem prejudiciais às próprias populações
cujas missões deveriam proteger. Segundo relatório de 2008 do Office of Internal
Oversight Services (OIOS) da ONU
30
, 73% de todas as alegações de má-conduta da ONU
estão relacionadas às missões de paz. Dentre estas conseqüências inesperadas, pode-se
citar desde o choque de cultura entre participantes da missão e locais (Rubinstein, 2003,
p. 30) e as dificuldades de coordenação entre militares e civis (Aall, 2002, p. 121 e 133)
até o aumento de casos de má-conduta de soldados: assassinatos de civis, execução
sumária, prática de torturas, corrupção e suborno.
Diversos casos de má-conduta de militares em OPs vieram a público desde o
começo da década de 90: Na Somália, militares canadenses, italianos e belgas torturaram
28
Organização das Nações Unidas. Department of Peacekeeping Operations. "United Nations
Peacekeeping Operations”. Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/bnote.htm.
Acesso em 10/01/2009.
29
Civis, no entanto, continuam a ter maior interação com a população local, uma vez que militares,
normalmente, vivem em alojamentos militares, muitas vezes com entrada restrita a pessoas não-
autorizadas, e não em bairros residenciais.
30
O Office of Internal Oversight Services (OIOS) é o órgão responsável nas Nações Unidas pela
fiscalização das práticas da organização, através de auditorias internas, inspeções, investigações,
avaliações, etc.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
31
e estupraram mulheres somalis em casos distintos
31
. Na Bósnia, policiais e militares
freqüentavam bordéis em que as prostitutas eram meninas traficadas (Allred, 2006, pp. 6-
8; Pallen, 2003). Recentemente, reportagens afirmaram que militares paquistaneses
estariam trocando armas por ouro e marfim com grupos paramilitares na República
Democrática do Congo (RDC)
32
. Assim, muitas vezes a exploração e o abuso sexual
acontecem em uma situação em que muitos outros casos de má-conduta prejudiciais à
população local são registrados. Segundo Dahrendorf: “(…) substantiated allegations of
sexual exploitation and abuse do not come alone. They are always linked to other forms
of misconduct, either financial or staff mismanagement, or abuse of power”
33
.
Assim, da mesma forma que os conflitos, as operações de paz podem ter grande
impacto na vida das mulheres pelos efeitos negativos que sua presença causa às
comunidades hospedeiras. É claro que muitos benefícios diretos ocorrem para elas com o
início das OPs: novos empregos são criados, a segurança é, em parte, restaurada,
mulheres traficadas são libertadas, mecanismos de registro e combate a violações aos
direitos das mulheres começam a ser implementados. Mas há também diversas
conseqüências negativas do impacto da chegada de missões de paz para as mulheres e
meninas, dentre eles o incentivo a redes de prostituição e de outras formas de exploração
sexual, que acabam por reforçar a situação de dependência e vulnerabilidade em que estas
se encontram.
31
CROSSETTE, Barbara.“When peacekeepers turn into troublemakers”. New York Times, 07/01/1996.
Disponível em
http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=9E00E6DE1339F934A35752C0A960958260&sec
=&spon=&pagewanted=all . Acesso em 09/10/2008.
32
PLAUT, Martin. “UN troops 'traded gold for guns'”. BBC News, 23/05/2007. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/6681457.stm . Acesso em 10/10/2008.
33
DAHRENDORF, Nicola. “Sexual Exploitation and Abuse: lessons Learned Study”. Organização das
Nações Unidas, DPKO, Março de 2006. Disponível em
http://pbpu.unlb.org/PBPS/Library/OASEA%20LL%20Paper%20Final%20Version%20WITHOU
T%20Ref%20to%20Annexes.pdf . Acesso em 10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
32
2.1.2.2
Para além da prostituição: as conseqüências negativas das relações
sexuais entre peacekeepers e mulheres locais
Uma das conseqüências mais drásticas da chegada das operações de paz para as
mulheres é a associação entre a chegada de um grande número de civis e militares e o
aumento da prostituição (Allred, 2006; Cockburn, Zarkov, 2002, p. 106, International
Alert, 2002, p. 42; UNAIDS, 1998, p. 3) e, conseqüentemente, das taxas de infecção de
HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis (Rehn, Sirleaf, 2002, p. 70)
34
.
Características existentes anteriormente à chegada das missões de paz, como o colapso da
economia formal, acompanhada pela ausência da lei e da ordem contribuem para o
contexto de exploração e de florescimento de atividades criminosas (Rubinstein, 2003, p.
45). Ainda assim, a chegada em si das OPs têm, individualmente, impactos significativos
na vida das mulheres e meninas.
Como já explicitado na análise da situação de vulnerabilidade em que se
encontram as mulheres em contextos de pós-conflito, com a auncia de membros
masculinos da família, as mulheres assumem a função de provedoras de seus lares.
Diante das limitações culturais e da falta de educação, muitas vendem seus corpos para
sobreviver e sustentar seus parentes. Com a chegada das OPs, mulheres locais muitas
vezes trocam relações sexuais por dinheiro, bens de consumo diversos, ou mesmo por
proteção com participantes destas missões. Mulheres e meninas ficam em volta dos
lugares freqüentados ou habitados pelo staff da ONU, “oferecendo-se” a civis e militares.
Higate (2007) define as tentativas das mulheres locais para atrair peacekeepers como
“entusiásticas e insistentes” (p. 106): Na República Democrática do Congo, mulheres
chegam a levantar suas saias para veículos da ONU que passam na rua (Ibidem).
A fome acaba por encorajar também as crianças a terem contato mais próximo
com peacekeepers. Segundo relatório da ONU de 2005
35
, crianças de até seis anos trocam
sexo com trabalhadores humanitários e militares por comida, dinheiro, sabão e até mesmo
34
Cabe lembrar que as taxas de HIV entre militares é muitas vezes maior que na população em geral.
(Tripodi, Patel, 2002, p. 54).
35
Organização das Nações Unidas. Office of Internal Oversight (OIOS). “Investigation by the OIOS into
allegations of SEA in the MONUC”. Documento das Nações Unidas número A/59/661, de
05/01/2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
33
telefones celulares
36
. Matéria do Independent de 25 de maio de 2004 relata inúmeros
casos de meninas e mulheres que, em estado de pobreza e vulnerabilidade na República
Democrática do Congo (RDC), se ofereciam aos recém-chegados militares. Faela, de 13
anos, mãe de um bebê de seis meses, moradora de um campo de refugiados, afirma:
It is hard in the camp for the girls like me with little babies and no husbands (…) We have no men
to look after us. We have been dirtied by the soldiers who came to our villages. No one will now
take us as their wives and it is hard to get food in the camp for us.
37
Diante de tal situação, relata a matéria, Faela recorre à única opção que pensa ter:
os soldados marroquinos e uruguaios estacionados a apenas 20 metros de seu campo “(...)
it is easy for us to get to the UN soldiers. We climb through the fence when it is dark,
sometimes once a night, sometimes more”.
Diante deste cenário, o entendimento explicitado pela ONU de proibição da
prostituição é o de que civis e militares que se engajassem em tais relações estariam
explorando a situação de vulnerabilidade que obriga estas mulheres – privadas de
oportunidades econômicas e de membros da família em decorrência do conflito - a se
prostituírem ou a trocar seus corpos por qualquer tipo de ajuda (Kent, 2005). Ao
recorrerem a prostitutas, militares estariam, ainda, inviabilizando novas oportunidades de
autonomia econômica não-explorativas, já que estas mulheres se tornam cada vez mais
dependentes da prostituição como forma de sobrevivência, e a própria rotulação destas
como prostitutas acaba por limitar outras maneiras de alcançar a subsistência. Os
perpetradores estariam, assim, contribuindo para a institucionalização de uma economia
essencialmente explorativa, em que os corpos das mulheres se tornam parte de um
sistema de troca (Higate, 2001, pp. 21-23).
Além de contribuir para a continuação do contexto de vulnerabilidade e
dependência das mulheres locais, a exploração e o abuso sexual servem de vetores para a
transmissão do HIV (Tripodi, Patel, 2002), não só para as mulheres, mas também para os
36
Zeid, o representante do Secretário-Geral da ONU para abuso e exploração sexual, afirma, em seu
documento, que há também o “estupro disfarçado de prostituição”, em que meninas afirmam
terem sido estupradas e depois ganhado comida ou dinheiro como forma de dar ao estupro uma
aparência de relação consensual. Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “A
comprehensive strategy to eliminate future sexual exploitation and abuse in United Nations
peacekeeping operations”. Documento das Nações Unidas número A/59/710, de 24 de março de
2005, p. 8.
37
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah. “Sex and death in the heart of Africa”. Independent, 25/05/2004.
Disponível em http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-death-in-the-heart-of-
africa-564563.html . Acesso em 10/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
34
civis, e especialmente, militares envolvidos nestas relações. Segundo dois investigadores
do fenômeno, “(…) some reports indicate that up to 46,000 military and police working
as UN peacekeepers around the world are more likely to contract HIV than be killed in
action” (Rehn, Sirleaf, 2002, p. 63). Segundo Tripodi e Patel (2002, p. 56), a mobilidade,
o isolamento de parceiros sexuais e de familiares, a sensação de stress e de pressão, a
exposição a sex workers e a oportunidades de sexo casual
38
tornam militares
39
, em
especial peacekeepers, um dos grupos mais afetados pelo HIV: “As peacekeepers are
among the most mobile populations in the world, they can easily become a vector for the
spread of HIV both in the region where they are deployed and back home” (Idem, p. 51).
Frente à falta de capacidade da ONU em obrigar os troop contributing countries (TCCs)
a fazerem testes de HIV regulares em suas tropas, os militares que se engajam em
relações sexuais com mulheres ou homens locais tornam-se vetores (ou vítimas) em
potencial do vírus da aids
40
.
O envolvimento de civis e militares com mulheres locais é responsável, também,
pelo nascimento dos chamados “peacekeeper babies”, que, na maioria das vezes, ficarão
sem o suporte paterno (Rajoo, 2005). Segundo o relatório Women, War, Peace: The
Independent Experts Assessment on the Impact of Armed Conflict on Women and
Women’s Role in Peace-Building, de 2002, de autoria de Elisabeth Rehn e Ellen Johnson
Sirleaf
41
, 6,600 crianças foram registradas como filhos de peacekeepers entre 1990 e
1998. De acordo com o documento:
Children of peacekeeping personnel may never see their fathers and are often stigmatized. They
usually grow up in poverty and face rejection from their family and community. Many end up
38
No caso de peacekeepers, outro fator importante é o fato destes terem muito mais dinheiro que os
habitantes locais (Idem).
39
“Military personnel have a high risk of exposure to sexually transmitted diseases (STD) including HIV.
In peacetime, STD infection rates among armed forces are generally 2 to 5 times higher than in
comparable civilian populations. The difference can be even greater in times of conflict”
UNAIDS. “Aids and the military” (1998, p. 2).
40
É relevante lembrar que o HIV é uma das doenças com conseqüências mais drásticas para a construção
de uma paz duradoura, já que afeta não só seres humanos, mas sistemas econômicos (uma vez que
atinge particularmente os segmentos mais ativos da população) e políticos como um todo,
especialmente em países em situação de pós-conflito, nos quais os sistemas de saúde tendem a ser
precários (Ibidem).
41
Fundo das Nações Unidas para as Mulheres (UNIFEM). REHN, Elisabeth, SIRLEAF, Ellen Johnson.
“Women, War, Peace: The Independent Experts Assessment on the Impact of Armed Conflict on
Women and Women’s Role in Peace-Building” (2002). Disponível em
http://www.unifem.org/resources/item_detail.php?ProductID=17
. Acesso em 10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
35
living and working on the streets. In some countries, they may not even be granted citizenship
(Idem, p.64).
Além disso, o conceito de proibição à exploração sexual subtende também o
entendimento de que militares e civis estariam se aproveitando do clima de
condescendência com relação ao abuso sexual, típico de sociedades em que o estupro
tenha sido generalizado (Rajoo, 2005, p. 18). Em muitas sociedades, o entendimento da
violência sexual como um crime é muito recente
42
. Em Serra Leoa, por exemplo, apenas
o estupro de uma virgem é considerado como tal. Não há estupros de mulheres não-
virgens, ao mesmo tempo em que há uma idéia de que as mulheres vítimas de tais atos
tenham “contribuído” para tal.
Grande importância é dada à virgindade em certas sociedades, especialmente as
mais religiosas, caso dos países católicos, como o México (Bovarnick, 2007), ou aqueles
que adotam a Sharia - o código de leis muçulmano- como o Paquistão ou o Sudão
(Bovarnick, 2007). Segundo matéria do Washington Post sobre a República Democrática
do Congo (RDC):
In much of rural Africa, as in many other traditional societies, a girl’s virginity has high
monetary value. If a prospective bride is proved not to be a virgin, she cannot fetch a traditional
bride price. Even if virginity has been lost through rape, the price can no longer be demanded by
her family and the girl is considered unworthy of marriage
43
.
Assim, no caso da RDC, a perda desta (e especialmente a gravidez de uma menina
solteira) é responsável por trazer vergonha a todos os familiares
44
, uma vez que a mulher
representa o repositório da honra da família. Assim, o estupro não só torna a menina ou
mulher “impura”, mas tal prejuízo estende-se a toda sua família, o que faz com que as
vítimas de violência sexual sejam estigmatizadas dentro de suas comunidades, tornando-
se mais vulneráveis a outros estupros.
A história da menina congolesa Maria, de 15 anos, contada em matéria do
Independent de 25 de maio de 2004, exemplifica perfeitamente tal situação: Grávida de
um dos muitos estupros ocorridos durante a guerra civil na RDC, Maria era sustentada
por seus pais, os quais ajudava nos trabalhos domésticos: nunca foi à escola, não sabe ler
42
A exemplo do Paquistão (Bovarnick, 2007) e de Serra Leoa (HRW, 2003). Ver nota 1.
43
WAX, Emily. “Congo’s desperate ‘One-Dollar UN Girl’”. Washington Post, 21/03/2005. Disponível em
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A52333-2005Mar20.html
. Acesso em
23/09/2008.
44
Para mais sobre o estupro em diferentes sociedades ver Bovarnick (2007).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
36
nem escrever. Quando estes souberam que a menina havia sido estuprada, expulsaram-na
de casa. Sem sua virgindade, e considerada agora “suja”, dificilmente Maria conseguirá
um marido que a sustente. A opção que encontrou foi manter relações sexuais com
peacekeepers, em troca de comida ou de algum dinheiro.
A proibição do envolvimento do UN staff
45
com a prostituição explica-se, ainda,
pelo crescente conhecimento do envolvimento de militares e civis no tráfico de mulheres
e crianças, do qual a Missão das Nações Unidas na Bósnia (UNMIBH) é caso
emblemático (Pallen, 2003)
46
. Mesmo que os próprios não se envolvam diretamente com
a comercialização de seres humanos, a própria utilização de prostitutas é suficiente para
incentivar o crescimento do crime organizado local, que utiliza o tráfico de mulheres e
crianças como forma de atender à demanda trazida por milhares de civis e militares
(Kent, 2005) que participam das missões de paz. Ainda que haja outros fatores que
contribuem para a criação de um ambiente de crescente exploração sexual, a participação
de militares e civis na prostituição ajuda a manter o cenário construído pela decadência
da economia formal, da lei e da ordem e do sistema judiciário, pela vulnerabilidade das
mulheres e pelo aumento da criminalidade em situações de pós-conflito
47
.
Mas muitas outras relações são estabelecidas entre peacekeepers e mulheres
locais, que acabam, da mesma forma, por deixar estas mulheres em posição de
dependência. Em sua investigação sobre a Missão das Nações Unidas na RDC
(MONUC), Dahrendorf (2005) já enfatizava a dificuldade premente em se constatar a
exploração de certas relações, uma vez que:
In many cases, perpetrators paid and/or provided material assistance to a ‘girlfriend’ who
‘belongs’ to them for the duration of their mission. In other cases, ‘live-in girlfriends’ cook, shop,
wash and clean the perpetrator’s house and receive money to do so
48
.
O documento lembrava ainda que tais casos geralmente só são reportados às
autoridades caso a “namorada” fique grávida, seja expulsa da casa do parceiro ou
abandonada com seu filho, ficando a maioria destas relações desconhecida.
45
O UN staff é formado por civis, policiais e militares.
46
Para mais sobre o tráfico sexual de mulheres e meninas na Bósnia, ver LAVARENE, Célhia. “Passaporte
para o Inferno: Uma Mulher no Combate aos Mercadores de Sexo”. São Paulo: Editora
Landscape, 2008.
47
REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson.“Women, War, Peace: The Independent Experts Assessment
on the Impact of Armed Conflict on Women and Women’s Role in Peace-Building” (2002). Ver
nota 54
48
Dahrendorf, Nicola. “Sexual Exploitation and Abuse: lessons Learned Study”. (2006, p. 14). Ver nota 41
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
37
Dessa forma, falar de prostituição como uma atividade homogênea ou conceber
esta como a única relação possível é uma representação que não consegue abarcar toda a
complexidade das interações estabelecidas por participantes das OPs e mulheres locais.
Isto porque muitas destas relações têm, para uma das partes ou ambas, uma dimensão
romântica ou afetiva, em que não há troca direta entre sexo por itens de consumo ou
dinheiro. Sobre estas relações, relatório do Refugees International afirma: “The
difference in economic power between UN peacekeepers and local women makes it
unlikely that there is any real choice in the relationship for the women involved”
49
. Com
base na mesma idéia, documento do Fundo das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM),
de 2002, diz: “Although some peacekeepers have established more permanent intimate
connections with local women, such relationships can rarely be considered purely
voluntary, tinged as they are by the necessities of hunger and the need for housing or jobs
(2002, p. 71)
50
.
Tais opiniões subtendem que pessoas em estado de insegurança humana se
encontram desprovidas de capacidade de escolha, sendo suas decisões, frente à
necessidade, puramente instrumentais. Na verdade, questões como “consentimento”,
“obrigação” e “escolhas” são muito mais complexas do que estas sentenças sugerem,
especialmente porque há distintos graus de assimetrias e de recursos envolvidos
51
. A
questão concernente, no entanto, não é comprovar a impossibilidade da existência de
sentimentos nestas relações, ou provar que estes se originem da falsa esperança de que a
relação possa tornar-se duradoura, tirando estas mulheres da pobreza. Ainda que estas
estejam em uma posição de recursos desigual, isto não significa que não possam
desenvolver sentimentos sinceros por homens participantes de missões de paz (ou que
estes não possam desenvolver sentimentos pelas mulheres locais), e que necessariamente
qualquer interação será instrumental. O ponto relevante é que seja qual for o objetivo –
49
Refugees International. “Must Boys Be Boys? Ending Sexual Exploitation and Abuse in UN
Peacekeeping Missions” (2005, p. 24), itálico da autora. Ver nota 50.
50
Fundo das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM). REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen
Johnson.“Women, War, Peace: The Independent Experts Assessment on the Impact of Armed
Conflict on Women and Women’s Role in Peace-Building” (2002). Ver nota 54.
51
A não ser em casos de relações com menores, cujo entendimento legal é o de que crianças não têm idade
suficiente para exercer escolhas, sendo, por isso, proibidas quaisquer relações, “consentidas” ou
não.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
38
racional ou sentimental-, tais relações invariavelmente têm conseqüências negativas para
as mulheres locais, a despeito da existência de sentimentos de ambas as partes.
Mark Hunt (2002) chama atenção para relações, na África, em que o elemento
central são os presentes (gifts), mas que não são estritamente relações de prostituição.
Tais ligações se dão entre mulheres locais e o que o autor chama de “sugar daddies” -
homens com dinheiro, normalmente estrangeiros contratados por firmas internacionais ou
trabalhadores humanitários que, em uma África predominantemente pobre, sustentam
meninas pobres - que utilizam o dinheiro não para a compra de itens essenciais, mas para
a obtenção de bens de consumo como roupas, celulares e tratamentos de beleza. Para o
autor, esse tipo de relação não-marital, mas que ao mesmo tempo não constitui
prostituição propriamente dita já que não envolve pagamento previamente estabelecido-
, é comum na África (assim como em outros lugares do mundo), e é um dos grandes
vetores do HIV, pela alta rotatividade tanto das meninas, que muitas vezes possuem mais
de um provedor, quanto dos homens. Tais relações são comuns especialmente em
contextos de coabitação, ainda que tal cenário corresponda mais à realidade do pessoal
civil das missões de paz – que mora em bairros residenciais – do que de militares, que
costumam habitar zonas próprias.
Estas relações são qualitativamente distintas daquelas em que as mulheres trocam
sexo por comida, já que neste caso sua única alternativa pela sobrevivência é a
prostituição. Para Hunt, há uma diferença entre o sex linked to subsistence (mais comum
em áreas rurais, em que a pobreza torna-se mais aguda) e o sex linked to consumption:
neste último, comum em ambientes urbanos, a mulher, que já tem a subsistência
garantida por algum membro da família, é ativa nesta procura por recursos e bens de
consumo, e invoca discursos de direitos iguais, mais comuns nestas áreas, para justificar
sua busca e a rotatividade de parceiros, estando num papel mais ativo de escolha. Nesse
sentido, ter múltiplos parceiros é mais uma forma de ter controle sobre suas vidas, do que
um puro ato de desespero, ainda que ambos estejam interligados.
A existência de sentimentos ou de regularidade nestas relações entre peacekeepers
e mulheres locais faz com que os envolvidos tendam a não considerar tais atos como
exploração ou abuso sexual. Muito pelo contrário: Puechguirbal afirma que muitos
militares acreditam que “sustentar” ou dar coisas a uma mulher durante sua estadia em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
39
uma missão de paz faz dele uma pessoa altruísta, capaz de boas ações, e, portanto,
eticamente compatível com as operações:
Some mission personnel take the view that a peacekeeper who is supporting a (poor) local woman
during his stay in the host country feels “good” about it; he feels that he is “a good man”. But he
does not always anticipate what his departure would mean for that girl once she is left to her own
devices in her own community, or what the impact will be if she left with a child she has
conceived with him. (…) Most trainees never consider that their attitudes may endanger local
girls, or that their money and power might cause resentment among local men (2003, p. 120).
Ainda que haja diferenças significativas entre as diversas relações que podem ser
estabelecidas entre militares e civis e mulheres locais, em todas estas há pelo menos dois
elementos em comum: a posição economicamente privilegiada do participante da OP, e a
situação de pobreza ou de menos recursos das mulheres locais. Ainda que nas relações
ligadas ao consumo as mulheres tenham maior liberdade, estas ainda estão sujeitas a
doenças sexualmente transmissíveis (DST) e a filhos indesejados, que, muitas vezes,
ficarão sem suporte paterno, uma vez que grande parte dos sugar daddies já são casados
em seus locais de origem (Hunt, 2002), o que também vale para participantes de missões
de paz.
Relatório do Office of Internal Oversight Services (OIOS) sobre a África
Ocidental
52
relata o caso de uma refugiada de 17 anos de Serra Leoa que alegou estar
envolvida em uma relação sexual com um voluntário da ONU que trabalhava para o Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) na Guiné, em que o homem
a sustentava, pagava sua escola e um curso de informática. Como resultado de sua
relação, a jovem ficou grávida. O homem então a abandonou e recusou-se a aceitar a
paternidade, ou a prover qualquer forma de ajuda
53
.
Há ainda o perigo da estigmatização de mulheres que se envolvem com
peacekeepers, especialmente em sociedades muito conservadoras. Na missão das Nações
Unidas no Camboja (UNTAC), muitos militares e funcionários internacionais adquiriram
wives’ com quem moravam enquanto estavam no país, o que acabou por tornar-se uma
52
Organização das Nações Unidas. Assembléia Geral. “Investigation into sexual exploitation of refugees
by aid workers in West Africa”. Documento das Nações Unidas número A/57/465, 11/10/2002.
Case 1, p. 9.
53
“When confronted with the evidence in the case, the United Nations Volunteer at first attempted to deny
the allegation but later admitted that he had had a sexual relationship with the victim. He refused
to accept responsibility for the pregnancy, however. The contract of the United Nations Volunteer
has since been terminated as a result of the evidence obtained during the investigation” (Idem, p.
9).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
40
prática comum entre peacekeepers (Whitworth, 1998, p.180). Porém, “(…) once the
personnel left, the women were ostracized by a society which had strict ideals ... about
women’s virtue”
54
. Outro problema é que o envolvimento com mulheres locais põe em
risco a imparcialidade das OPs, especialmente em sociedades em que há muitas etnias ou
facções, o que pode levar ao aumento da tensão entre estes grupos ou à percepção de que
a missão estaria beneficiando um dos grupos, em detrimento do(s) outro(s). Além disso, o
envolvimento de peacekeepers com mulheres locais pode criar ressentimento entre os
homens da comunidade, incentivando sentimento negativos com relação à OP na
sociedade receptora:
In an increasingly winner-takes-all sexual economy – where wealth can secure many girlfriends
and poverty none – those marginalized from the productive economy also face marginalization
from the sexual economy. Indeed, poor men frequently complain about the difficulties they have
in attracting girlfriends. These men are extremely resentful of rich men, not simply because they
consume expensive goods, but because they consume many of the women in the area (Hunter,
2002, p. 109).
A preocupação com a percepção da população local sobre os participantes das
missões de paz torna-se mais aguda na década de 90, porque o maior número de funções
exercidas nas OPs exige maior interação, e colaboração, entre o UN personnel e a
população local. Na falta de campanhas mais amplas de informação e publicidade,
militares e funcionários das Nações Unidas são embaixadores da imagem da organização:
seu comportamento será crucial na percepção local sobre a missão, e na garantia de que a
operação de paz gozará de legitimidade durante todo seu ciclo de existência (Rubinstein,
2003, p. 42).
Segundo Ammitzboell (2007, p. 70), as percepções das populações locais tendem
a mudar de um estado de otimismo - com a chegada da operação - a um senso de
frustração - conforme o tempo passa e as condições de vida locais não melhoram como
esperado, o que é agravado pela tendência à diminuição da assistência financeira. Neste
segundo momento, em que as opiniões locais não favorecem a missão, e em que rejeição
e hostilidade podem vir à tona (Rubinstein, 2003, p. 43), casos pontuais de AES, e de má-
conduta, podem ter efeitos gerais entre a população local, prejudicando a colaboração, o
desenvolvimento institucional efetivo e a capacidade de reconstrução, uma vez que, nesta
54
Koyama, Myrttinen, 2007, p. 32.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
41
nova fase, a legitimidade da missão para com a população local é essencial no apoio às
novas instituições políticas trazidas pela missão (Kaldor, 1998, p. 121).
De acordo com Ammitzboell (2007), a decepção típica das fases posteriores é
agravada pelos sentimentos ambíguos da população local com relação ao staff da ONU:
ressentimentos surgem freqüentemente quando a população local compara sua situação
com a dos funcionários internacionais (p. 70). Com base em entrevistas com locais na
RDC, Paul Higate (2002, p. 16) afirma que grande parte dos habitantes tende a ver a
Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC) como uma força de ocupação, com
acesso desproporcional a recursos. “The image of UN personnel driving around in
expensive four-wheel drive vehicles juxtaposed with local people in a condition of
poverty was mentioned by many informants” (Higate, 2003, p. 16). Habitantes locais
também se referiram às “atitudes arrogantes” de alguns peacekeepers para com a
população. Tal visão de que os participantes das OPs agiriam de forma “superior”, e por
vezes desrespeitosa ou imparcial, acaba por ser fortalecida pelo ressentimento dos
homens locais trazido pelas relações estabelecidas entre funcionários e militares da ONU
e as mulheres da comunidade, e pelo sentimento de que a ONU é conivente com tais
práticas.
Desta forma, os casos de AES dificultam a própria efetividade das missões, uma
vez que colocam em xeque a construção de um ambiente de confiança e estabilidade
necessárias à reconstrução do Estado e de uma paz duradoura, tal como explicitado na
Agenda para a Paz:
Peacemaking and peace-keeping operations, to be truly successful, must come to include
comprehensive efforts to identify and support structures which will tend to consolidate peace and
advance a sense of confidence and well-being among people.
55
Assim, a eliminação do abuso e da exploração sexual é muito mais que uma
questão ética e moral, mas é a própria garantia da boa implementação do mandato das
missões, que por sua vez, depende do apoio da população local
56
. Segundo Jean-Marie
Guéhenno, ex-sub-Secretário-Geral para Operações de Peacekeeping: “Indeed, it is
55
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “An Agenda for Peace: Preventive Diplomacy,
peacemaking and peacekeeping”. Documento das Nações Unidas número A/47/277, 17 de junho
de 1992.
56
É relevante lembrar que grupos internacionais opositores às missões tendem a usar casos de má-conduta
como forma de ativismo (Kent, 2007, p.52). Ver, por exemplo,
http://www.margueritelaurent.com/
.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
42
precisely the image and reputation of the United Nations that gives us the credibility to
work so effectively in war-torn countries and bring peace and stability to millions across
the world”
57
.
2.3
Medidas implantadas pela ONU em combate à má-conduta sexual
Apesar dos inúmeros relatos de abuso e exploração sexual (AES) nas operações
de paz (OPs) da Organização das Nações Unidas (ONU) na Somália e no Camboja, o
tema só ganhará, de fato, espaço nos documentos e nas políticas da organização em 2002,
quando o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e a
organização inglesa Save the Children acusam militares de missões de paz e
trabalhadores humanitários de abusarem de crianças refugiadas na África Ocidental. A
partir dessas denúncias, e de sua extensa veiculação na mídia, inúmeras medidas são
implementadas pela ONU, tais como focal points para investigar os casos, grupos de
trabalho e medidas disciplinares. Sem dúvida, tais providências demonstram que a ONU
finalmente dá certa importância ao problema, proibindo formalmente tais práticas,
consideradas, agora, como um “comportamento inaceitável”.
Estas providências não se revelam, no entanto, tão eficazes para uma diminuição
relevante dos casos de abuso e exploração sexual. Para entendermos as razões pelas quais
as políticas implementadas não têm um resultado efetivo, é necessário compreendermos
as diferentes imunidades envolvidas, que acabam por determinar um clima de
impunidade entre participantes de missões de paz. Frente a esta impossibilidade em
eliminar o problema através de políticas introduzidas na missão, a introdução de
programas de treinamento sobre abuso e exploração sexual, que enfatize os códigos de
conduta, torna-se ainda mais latente.
57
“Presentation by Jean-Marie Guéhenno, Under-Secretary-General for Peacekeeping Operations, to the
Special Committee on Peacekeeping Operations”, 4 de abril de 2005. O atual Under-Secretary-
General of Peacekeeping Operations é o francês Alain Le Roy.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
43
2.3.1
As primeiras respostas estabelecidas pela ONU
Apesar das graves conseqüências que a má-conduta sexual tem na Missão das
Nações Unidas no Camboja (UNTAC)
58
, o assunto ainda não ganha destaque nem na
mídia
59
, nem tampouco nos documentos da ONU. Um dos primeiros relatórios da
organização a se reportar sobre o tema é o estudo produzido em 1996, por Graça
Machel
60
, sobre os efeitos dos conflitos em crianças, no qual a autora denunciava que a
chegada de peacekeepers estava associada ao aumento da prostituição infantil
61
. Machel
revelava que a pobreza, a fome e o desespero muitas vezes forçavam mulheres e meninas
à prostituição, ou ao sexo em troca de abrigo, comida, segurança, ou mesmo documentos,
e que militares da missão da ONU em Moçambique (ONUMOZ) estariam se
aproveitando desta situação:
Children may also become victims of prostitution following the arrival of peacekeeping forces. In
Mozambique, after the signing of the peace treaty in 1992, soldiers of the United Nations
Operation in Mozambique (ONUMOZ) recruited girls aged 12 to 18 years into prostitution. After
a commission of inquiry confirmed the allegations, the soldiers implicated were sent home. In 6
out of 12 country studies on sexual exploitation of children in situations of armed conflict
prepared for the present report, the arrival of peacekeeping troops has been associated with a rapid
rise in child prostitution
62
.
A denúncia, no entanto, ocupa nove linhas em um relatório de 78 páginas, em que
diversas questões relevantes são abordadas, e no qual o foco é a exploração sexual e suas
conseqüências para as crianças, e não a identidade do perpetrador. Talvez por isso, apesar
de ter sido apresentado na Assembléia Geral em 26 de agosto de 1996, muitos anos ainda
se passarão até que o tema do abuso e da exploração sexual (AES) cometidos por
peacekeepers entre na pauta da ONU. Será o relatório do Alto Comissariado das Nações
58
Para mais sobre o AES na UNTAC, ver capítulo 3.
59
Salvo em jornais locais cambojanos. DEEN, Thalif. “L’ONU cible l’exploitation sexuelle par les soldats
de la paix”. IPS, 1 de agosto de 2002. Disponível
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/02/pkoexploitation.html
. Acesso em 10/10/2008.
60
Graça Machel é indicada como expert do Secretário-Geral em 8 de junho de 1994, a partir da resolução
48/157 da Assembléia Geral de 20 de dezembro de 1993.
61
Organização das Nações Unidas. Assembléia- Geral, “Promotion and Protection of The Rights of
Children - Impact of armed conflict on children”. Report of the expert of the Secretary-General,
Ms. Graça Machel, Documento das Nações Unidas número A/51/306, 26 de agosto 1996.
62
Idem, p.24.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
44
Unidas para Refugiados (ACNUR) em conjunto com a Save the Children
63
, de 2002,
sobre a exploração sexual de refugiados por peacekeepers e funcionários civis da ONU e
de ONGs na África Ocidental que chamará, de fato, a atenção da mídia (e em
conseqüência, da ONU) para o tema. Em novembro de 2001, o ACNUR, a partir dos
resultados preliminares das suas investigações - que já haviam chegado à mídia através
de matéria da BBC
64
- pede ao Office of Internal Oversight Services (OIOS) uma
investigação sobre as alegações.
Em 22 de outubro de 2002, a investigação do OIOS, que havia sido concluída em
julho, é finalmente apresentada
65
. O relatório, entitulado “An investigation into the
allegations of sexual exploitation of refugee girls and women by aid workers in refugee
camps in West Africa”, chega à conclusão de que não há provas suficientes para
confirmar que de fato haja exploração sexual sistemática de refugiados. Segundo a
investigação, o que há são casos isolados de mulheres que se engajam em relações
sexuais consensuais, ou em prostituição, como resultado da pobreza extrema. Nenhuma
alegação contra qualquer membro das Nações Unidas foi provada. O estudo, no entanto,
admite que vários fatores, que incluem as condições dos próprios campos de refugiados,
contribuem para a exploração sexual.
A partir do documento, que resulta no estabelecimento de 14 recomendações ao
ACNUR, é estabelecida pelo Inter-Agency Standing Committee (IASC)
66
, em março de
2002, uma força conjunta para combater casos de AES (Task Force on Protection from
Sexual Exploitation and Abuse in Humanitarian Crises), com o objetivo de fazer
recomendações para aumentar a proteção de populações vulneráveis em situações de
63
ACNUR e Save the Children UK. “Sexual Violence and Exploitation: The Experience of Refugee
Children in Guinea, Liberia and Sierra Leone”. 22 outubro-30 de novembro de 2002.
64
“Child refugee sex scandal”. BBC News, 26/02/2008. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/1842512.stm
. Acesso em 10/10/2008.
65
Organização das Nações Unidas. “Allegation of widespread sexual exploitation in West Africa Refugee
Camps”. Press Release. Documento das Nações Unidas número ORG/1361, 22/10/2002.
Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/unamsil/DB/221002.pdf
. Acesso em 03/10/2008.
66
“The Inter-Agency Standing Committee (IASC) is the primary mechanism for inter-agency
coordination of humanitarian assistance. It is a unique forum involving the key UN and non-
UN humanitarian partners”. Disponível em
http://www.humanitarianinfo.org/iasc/content/default.asp
. Acesso em 01/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
45
crise. Em 22 de maio de 2003, a Assembléia Geral
67
, tendo considerado o relatório do
OIOS, pronuncia-se sobre o tema:
(A Assembléia Geral) … [e]xpresses its serious concern that the conditions in refugee
camps and communities may make refugees, especially women and children, vulnerable to sexual
and other forms of exploitation (…) Condemns any exploitation of refugees and internally
displaced persons, especially sexual exploitation, and calls for those responsible for such
deplorable acts to be brought to justice (idem, p. 1).
Estava instituída a política de tolerância-zero ao AES
68
: a partir dos casos da
África Ocidental, a ONU estabelece formalmente a proibição de tais atos, ainda que de
maneira geral, e exige sua punição. A cultura do “boys will be boys”
69
, típica da missão
da ONU no Camboja (a UNTAC), fica, formal e legalmente, para trás. Em outubro deste
ano, com base nestes mesmos relatos, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi
Annan
70
, esclarecerá os conceitos de “exploração sexual” e “abuso sexual”, e proibirá
expressamente todos os funcionários da ONU e de seus órgãos de cometerem atos de
AES, estabelecendo claras especificações de tais práticas em seu boletim:
In order to further protect the most vulnerable populations, especially women and
children, the following specific standards which reiterate existing general obligations under the
United Nations Staff Regulations and Rules, are promulgated:
(a) Sexual exploitation and sexual abuse constitute acts of
serious misconduct
and
are therefore grounds for disciplinary measures, including summary dismissal;
(b) Sexual activity with children (persons under the age of 18) is prohibited
regardless of the age of majority or age of consent locally. Mistaken belief in the age of a
child is not a defence;
(c) Exchange of money, employment, goods or services for sex, including sexual
favours or other forms of humiliating, degrading or exploitative behaviour, is prohibited.
This includes any exchange of assistance that is due to beneficiaries of assistance;
(d) Sexual relationships between United Nations staff and beneficiaries of
assistance, since they are based on inherently unequal power dynamics, undermine the
credibility and integrity of the work of the United Nations and are strongly discouraged;
(e) Where a United Nations staff member develops concerns or suspicions
regarding sexual exploitation or sexual abuse by a fellow worker, whether in the same
67
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral/Office of Internal Oversight. “Investigation into
sexual exploitation of refugees by aid workers in West Africa”. Documento das Nações Unidas
número A/RES/57/306, 22/05/2003.
68
“Great Lakes: Focus on sexual misconduct by UN personnel”, IRIN, 23/7/2004. Disponível em
http://www.irinnews.org/report.aspx?reportid=50804
. Acesso em 04/10/2008.
69
LYNCH, Colum.“UN Faces More Accusations of Sexual Misconduct”. Washington Post, 13/03/2005.
Disponível em http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A30286-2005Mar12.html.
Acesso em 23/09/2008.
70
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse”. Documento das Nações Unidas número ST/SGB/2003/13, 9 de outubro de 2003.
Itálico da autora.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
46
agency or not and whether or not within the United Nations system, he or she must report
such concerns via established reporting mechanisms;
(f) United Nations staff are obliged to create and maintain an environment that
prevents sexual exploitation and sexual abuse. Managers at all levels have a particular
responsibility to support and develop systems that maintain this environment
71
.
O documento responsabiliza ainda o chefe da missão ou do departamento em
questão (Head of Department, Office or Mission) como responsável por garantir um
ambiente em que tais práticas sejam coibidas, e por levar a cabo as ações devidas em caso
de alegações. Tais responsabilidades serão efetuadas através da nomeação de um focal
point – um funcionário da ONU que receberá treinamento especial para lidar com
reclamações e alegações de casos de AES. Hoje, além da Focal Point on SEA (sexual
exploitation and abuse) do Departamento de Operações de Paz (DPKO), que fica em
Nova Iorque, todas as missões de paz da ONU têm (ou deveriam ter) seus próprios focal
points.
A pedido do Secretário-Geral, em novembro de 2003, o Executive Committee on
Humanitarian Affairs estabelece um grupo de trabalho para desenhar um sistema de
implementação do boletim em todo o sistema da ONU. Segundo relatório do Secretário-
Geral de 2004
72
, várias entidades das Nações Unidas adaptaram seus códigos de conduta
para incorporar os princípios estabelecidos em seu boletim de 2003. Em 2004, o
Departamento de Operações de Manutenção de Paz (DPKO) cria uma força
multidisciplinar para abuso e exploração sexual, fortalecendo os esforços já iniciados
pelo grupo de trabalho - que seria dirigida pela então Assistente do Secretário-Geral Jane
Holl Lute, com o objetivo de produzir políticas específicas para coleta de dados,
investigação, treinamento, informação pública e comunicação.
Por esta época, com as diversas notícias que não cessam de aparecer na mídia
sobre casos de AES na Republica Democrática do Congo (RDC), a Missão das Nações
Unidas na RDC (MONUC) ganha, em abril de 2004, um Personnel Conduct Officer. A
idéia será copiada na Costa do Marfim, no Burundi e no Haiti. São implementadas
também no-go zones (áreas que são proibidas ao UN staff) nas missões da Costa do
Marfim, Libéria, República Democrática do Congo, Etiópia, Kosovo e Timor-Leste. O
71
Idem, pg.2. Itálico da autora.
72
Organização das Nações Unidas. “Special measures for protection from sexual exploitation and sexual
abuse”. Documento das Nações Unidas número A/58/777, 23/04/2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
47
DPKO estabelece ainda números de telefone para denúncias nas missões em Serra Leoa e
na Libéria
73
, e a obrigatoriedade para militares do uso do uniforme permanentemente na
MONUC e na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), além
de curfews que impedem que estes deixem seus alojamentos depois de certa hora da noite
em distintas missões.
Depois do “Relatório Zeid” (A comprehensive strategy to eliminate future sexual
exploitation and abuse in United Nations peacekeeping operations), que será analisado
em seguida, outras medidas são estabelecidas pela ONU em combate ao AES. Em 2005,
oito missões, como a Missão das Nações Unidas na Libéria (UNMIL), a MONUC, a
MINUSTAH e a Missão das Nações Unidas no Sudão (UNMIS) estabelecem Conduct
and Discipline Teams (uma das recomendações de Zeid), ao invés de apenas Focal
Points, com o objetivo de lidar com reclamações e coletar dados
74
. Recentemente foi
criada uma Unidade de Conduta e Disciplina no Department of Field Support (DFS), com
divisões em todas as missões
75
. Instalações de lazer também são implementadas em
diversas OPs, “to alleviate the concentrated stress present in field missions”, afirmou
Kofi Annan
76
. Tais medidas são, no entanto, instauradas de forma pontual, conforme a
necessidade de cada caso específico. Mas ainda que várias novas práticas tenham sido
implementadas, as alegações de AES em missões de paz continuavam a ser
incessantemente veiculadas na imprensa.
73
DEEN, Thalif. ““No-go” zones to prevent sex abuse by UN Peacekeepers”. IPS, 04/04/2005. Disponível
em http://list.web.net/archives/women-peace-and-security/2005-April/001418.html
. Acesso em
10/10/2008.
74
“UN establishes disciplinary units to eliminate sexual abuse by peacekeepers”. UN News, 04/08/2005.
Disponível em http://www.globalsecurity.org/military/library/news/2005/08/mil-050804-
unnews02.htm . Acesso em 04/10/2008.
75
“United Nations / Press conference by Department of Peacekeeping Operations”. Organisation de la
Presse Africaine. 19/09/2008. Disponível em http://appablog.wordpress.com/2008/09/18/united-
nations-press-conference-by-department-of-peacekeeping-operations/ . Acesso em 10/10/2008.
76
“Sex ban on DR Congo peacekeepers”. BBC News, 10/02/2005. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4252405.stm
. Acesso em 01/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
48
2.3.2
O Relatório Zeid
A partir das diversas denúncias de abuso e exploração sexual envolvendo menores
na Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC), veiculadas freqüentemente na mídia,
Kofi Annan afirma que “torna-se claro” que as medidas implementadas pela ONU no
combate ao abuso e à exploração sexual (AES) são inadequadas, e que, portanto, uma
“mudança fundamental” é necessária
77
. Como um primeiro passo, Annan nomeia, em
julho de 2004, o príncipe Zeid Ra’ad Zeid Al-Hussein, ex- peacekeeper civil e
Representante Permanente na ONU da Jordânia (cujos soldados são acusados de vários
casos de má-conduta sexual), Enviado Especial do Secretário-Geral para abuso e
exploração sexual (Secretary-General’s Advisor on Sexual Exploitation and Abuse by
Peacekeepers). Sua missão é a de formular um relatório amplo sobre o problema, além de
recomendações práticas e efetivas sobre como combatê-lo.
A partir de extensa pesquisa, surge o documento entitulado A comprehensive
strategy to eliminate future sexual exploitation and abuse in United Nations
peacekeeping operations, de 24 de março de 2005. O estudo é uma investigação ampla,
holística e sinceramente crítica sobre o abuso e a exploração sexual em missões de paz
78
,
sobre a efetividade das respostas implementadas pela ONU com relação à prevenção e à
punição, e sobre suas limitações, com recomendações tanto para os Estados-membros
quanto para a organização. No relatório, Zeid afirma:
In October 2004 I visited the Democratic Republic of the Congo, and Bunia in particular, and
sensed that sexual exploitation and abuse was widespread, involving both civilian and uniformed
personnel. Sexual exploitation and abuse appeared to be ongoing, thereby highlighting the
inadequacy of current measures to address the problem in peacekeeping operations
79
.
Para entendermos as críticas traçadas pelo documento e suas recomendações, é
necessário, num primeiro momento, esclarecermos as diferentes jurisdições envolvidas
em missões de paz.
77
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. ‘Letter dated 24 March 2005 from the Secretary-
General to the President of the General Assembly”. Documento das Nações Unidas número
A/59/710, 24/03/2005.
78
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “A comprehensive strategy to eliminate future
sexual exploitation and abuse in United Nations peacekeeping operations”. Documento das
Nações Unidas número A/59/710, de 24 de março de 2005.
79
Idem, p. 9. Itálico da autora.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
49
2.3.2.1
Jurisdições e imunidades
Uma das dificuldades apresentadas pelo documento preparado pelo Enviado
Especial é a existência de diversas categorias de participantes de missões de paz que são
submetidos a quadros jurídicos diferentes e gozam de distintas imunidades, o que
dificulta o estabelecimento de medidas de resposta únicas. Policiais civis, trabalhadores
humanitários da ONU, de suas agências e de ONGs, observadores militares, membros de
contingentes militares nacionais, voluntários da ONU, consultores e trabalhadores
terceirizados são apenas algumas das muitas categorias hoje presentes nas missões de
paz.
Pelos acordos estabelecidos entre a ONU e os países contribuintes de tropas (ou
pelo Status of Forces Agreement ou pelo Memorandum of Understanding
80
), os soldados
gozam de imunidade total com relação às leis locais, e, em troca, os países de origem
destes se comprometem a exercer jurisdição criminal e disciplinar. Essa responsabilidade
não é, no entanto, uma obrigação formal. Assim, a responsabilidade e a escolha de levar a
julgamento quaisquer suspeitos ficam a cargo dos países, e não da ONU. A organização
possui, portanto, jurisdição limitada sob os soldados que trabalham em seu nome. A única
medida punitiva sob cargo da ONU é a repatriação, que pode ser ordenada pelo
Secretário-Geral (SG) contra qualquer membro de um contingente militar que tenha sido
considerado culpado de séria má-conduta através de investigação. Além disso, militares
são empregados como parte de contingente, e não como indivíduos, o que dificulta a
punição individual.
Outro fator que dificulta a punição de militares (ainda que, por outro lado,
diminua a probabilidade de formação de relações a longo-prazo, especialmente as de
coabitação) é a alta rotatividade destes na missão (Hampson, Kihara-Hunt, 2007, p.207).
Enquanto civis podem permanecer por vários anos, militares tendem a ficar apenas de
seis meses a um ano. Assim, mesmo que a ação contra um possível perpetrador seja
iniciada, muitas vezes no decorrer do processo, o militar em questão já partiu, o que
80
Há um debate na academia sobre se mesmo sem qualquer SOFA, militares estariam protegidos com
imunidade. Segundo Bedont (2005), direito internacional é incerto neste ponto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
50
dificulta em muito as investigações (Chamadas de BOI – Board of Inquiry),
especialmente se tivermos em conta que a maioria dos casos de indisciplina ocorrem ao
final da estadia do soldado. O problema da rotação não se dá apenas com os militares,
mas também com os próprios profissionais encarregados das investigações (Idem, p.
208), o que afeta a rapidez e a eficiência destas.
Já os observadores militares e policiais civis têm status de experts on mission e
são recrutados como indivíduos. Também respondem juridicamente e criminalmente ao
seu país-natal, mas sua imunidade é apenas funcional, e não total. Ou seja: o indivíduo
está protegido de processo legal com relação apenas a ações que forem levadas a cabo
durante o cumprimento de seus deveres (Hampson, Kihara-Hunt, 2007, p. 200).
Com relação ao UN staff há diferenças de níveis entre os vários civis
internacionais participantes de missões de paz. Funcionários de nível hierárquico muito
superior podem gozar de imunidade total. UN civil servants – da ONU ou de suas
agências- com estatuto de funcionários (official) são protegidos, assim como os
observadores militares e os policiais, por imunidade funcional. Os que não têm esse
status também são protegidos por imunidade funcional, mas esta apenas o protege da
jurisdição do país-hóspede, e não do Secretário-Geral (SG), a quem respondem. Por esse
motivo, em missões atuais, cada vez mais funcionários e voluntários da ONU ganham o
status de officials (Hampson, Kihara-Hunt, 2007, p. 200). Na verdade, funcionários da
ONU acabam por gozar de imunidade também de seu país-natal, já que respondem ao
SG, e não ao seu país de origem. Já algumas categorias de funcionários da ONU e de
voluntários não são imunes aos seus Estados, já que suas imunidades baseiam-se no
SOFA e não na Convention on the Privileges and Immunities of the United Nations, de
1946
81
.
A imunidade funcional, teoricamente, é aquela que só se aplica a atos feitos
durante o curso do trabalho. Estupro e abuso de menores não se encaixariam, portanto,
nesta categoria. Estes crimes seriam, teoricamente, passíveis de processos legais. Mas a
definição sobre se o contexto em que se dá o ato é durante o trabalho ou fora deste fica a
cargo do Special Representative of the Secretary-General (SRSG), que é o chefe da
81
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “Convention on the Privileges and Immunities of the
United Nations”, 13/02/1946.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
51
missão. Além disso, na maioria dos países receptores de missões de paz, o sistema
judiciário e policial é absolutamente falho ou mesmo inexistente, o que, na prática,
garante imunidade ao perpetrador (Bedont, 2005, p. 92; Hampson, Kihara-Hunt, 2007, p.
202 e 208; Kent, 2007, p. 50). Cabe lembrar, também, em contextos de pós-conflito, a
existência de corrupção generalizada dentre as autoridades locais, seja do setor policial
ou judicial (Lavarène, 2006). Segundo Kent (2007, p. 50): “Host countries may be
reluctant to be seen as going against those who are there to help them”.
Funcionários de ONGs normalmente não gozam de nenhum tipo de status
especial, e tendem a responder a seus próprios códigos de conduta. Mas a maior punição
que estas organizações podem aplicar a seus funcionários é a demissão. O status de
funcionários terceirizados fica a cargo do SOFA estabelecido, mas geralmente estes não
gozam de imunidade. Funcionários locais/nacionais que trabalhem para a ONU gozam de
imunidade funcional limitada, baseado no SOFA, com exceção daqueles que são pagos
por hora. Assim, estes ainda estão sujeitos à jurisdição do Estado-hospedeiro (Hampson,
Kihara-Hunt, 2007, p. 200).
Todos os participantes de OPs, independente de suas categorias, devem agir
conforme os padrões de direitos humanos, de acordo com a Carta das Nações Unidas
82
.
Todos devem se portar, ainda, de acordo com os dois principais códigos de conduta para
missões de paz: Ten Rules: Code of Personal Conduct for Blue Helmets e We are United
Nations Peacekeepers. Com relação ao AES, todos os participantes deveriam respeitar as
proibições determinadas no Boletim do SG de 2003
83
. Mas estas constituem apenas
recomendações (guidelines), e não regras que subtendam punições pelo não-
cumprimento. Apenas os funcionários internacionais da ONU, ao serem subordinados ao
SG, estão inquestionavelmente obrigados a obedecer a estes padrões.
De acordo com a Convenção Geral, há a possibilidade de que as imunidades
estabelecidas possam ser suspensas, com exceção da imunidade absoluta. Ou seja,
policiais civis, observadores militares e funcionários geralmente podem ter suas
82
Organização das Nações Unidas. “Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça”.
26/06/1945, Artigo 1.
83
Ver nota 6.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
52
imunidades suspensas pelo SRSG, a pedido do Secretário-Geral
84
, quando este entender
que o direito de proteção está obstruindo o curso da justiça (Hampson, Kihara-Hunt,
2007, p. 202). No entanto, as imunidades são raramente revogadas (O’Brien, 2004, p.
69).
A função das imunidades não é, obviamente, garantir a impunidade. Segundo
Zeid: “The founders of the United Nations did not intend that the privileges and
immunities (…) should constitute a shield from national criminal prosecution for crimes
committed in a State hosting a UN operation”
85
. Mas o representante admite que, ainda
que este não fosse o objetivo, as imunidades estabelecidas acabam por reforçar a
sensação de impunidade.
While it is understandable for states to want to spare their citizens from being subject to the
criminal system of another state, the United Nations system has proved dysfunctional and
incapable of providing accountability where national authorities have failed to act.
86
Em alguns casos, especialmente com relação àqueles que tiveram grande
cobertura na mídia, as autoridades nacionais de fato levam adiante as investigações e a
punição de seus soldados envolvidos em operações de paz (Bedont, 2005, p. 86)
87
. Mas
segundo relatório do Refugees International
88
, a maioria dos países tem pouco ou
nenhum interesse em levar seus militares a tribunal por atos cometidos “while doing good
deeds” em outras partes do mundo (Kent, 2007, p.49; Hampson, Kihara-Hunt, 2007, p.
209). Segundo Bedont (2005, p. 87), peacekeepers têm noção da impunidade de que
gozam, a qual entendem como uma carta branca para atos cometidos no exterior. Mas a
falta de punição nem sempre depende da falta de vontade política, mas é resultado, por
vezes, da falta de capacidade investigativa e judiciária do país-contribuinte.
Devido à falta de documentação existente sobre a continuação dos casos nos troop
-contributing countries (TCCs)- o que em si já uma falha do sistema atual (Bedont, 2005,
84
A Convenção Geral de 1946 (Convention on the Privileges and Immunities of the United Nations)
determina as condições exatas em que as imunidades podem ser suspensas pelo Secretário-Geral.
85
Pg.6
86
Bedont (2005, p.86).
87
Recentemente, o francês Didier Bourguet, que trabalhava de mecânico para a ONU, foi condenado a 9
anos de prisão por estuprar cerca de 20 meninas em missões de paz na RDC e na República
Centro-Africana. “Un ancien fonctionnaire de l’ONU condamné à neuf ans de prison". RFI,
12/09/2008. Disponível em http://www.rfi.fr/actufr/articles/105/article_72257.asp
. Acesso em
05/10/2008.
88
“Addressing the Sexual Misconduct of Peacekeepers”. Refugees International, 23/09/2004. Disponível
em http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/4047/
. Acesso em 29/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
53
p. 86) - não é possível saber se os Estados de fato levam os casos apresentados pela ONU
a julgamento, ou se a impunidade é a regra. Mesmo porque, no caso dos militares,
geralmente estes são julgados por tribunais militares que, segundo alguns autores, são
menos transparentes e independentes do que tribunais civis (idem, p. 90). Segundo
Whitworth, o mundo militar tem suas próprias regras, direitos, responsabilidades, normas
e sistema judiciário (2005, p. 158), o que faz com que este, nem sempre, trabalhe com o
mesmo rigor, ou transparência, que a justiça civil. Além disso, a jurisdição de alguns
países não criminaliza todas as formas de violência sexual (Bedont, 2005, p. 91; Kent,
2007, p. 49). Em muitos países, o estupro é crime apenas se a vítima for virgem ou não-
casada com o perpetrador (Ver item 1.1.1). Além disso, em muitos países, como na
Holanda ou na Alemanha, a prostituição não é crime (O’Brien, 2004, p. 54)
Mas ainda que a justiça seja feita no país de origem, nem a vítima, nem tampouco
a população do país-hospedeiro, tomam conhecimento das punições aplicadas, o que
continua a reforçar a sensação de que a ONU é conivente com tais práticas. “Justice not
only needs to be done, but it needs to be seen to have been done” (Bedont, 2005, p. 87).
2.3.2.2.
Prevenção, investigação e punição
As imunidades de que gozam militares e civis são o motivo pelo qual a
efetividade das medidas implementadas pela ONU em combate ao abuso e à exploração
sexual (AES) mostrou-se tão limitada. É por isso que em seu relatório Zeid dá tanta
importância à prevenção - especialmente através do treinamento - e à mudança das
imunidades, através do estabelecimento da obrigatoriedade dos países contribuintes de
tropas em julgar os militares suspeitos de AES.
Com relação à prevenção, o relatório aponta, especialmente, para a necessidade de
que as regras estabelecidas no Boletim do SG de 2003 sejam aplicáveis a todas as
categorias de participantes das OPs, através de mecanismos que garantam por escrito a
obrigatoriedade destes em seguir os códigos de conduta. Em relação aos militares, por
exemplo, o relatório recomenda que os padrões definidos pelo Boletim sejam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
54
incorporados aos Memorandum of Understanding (MOU)
89
, e que a clareza e o acesso às
regras sejam reforçados, através da publicação do Boletim em tamanhos pequenos e em
várias línguas.
Para diminuir a sensação de que a ONU é conivente com o AES, recomenda-se
que os superiores hierárquicos garantam que seus subordinados tenham consciência das
proibições. Com este objetivo, o Departmento de Operações de Paz (DPKO) deve
organizar treinamentos na chegada e durante o tempo da missão (pre-deployment e in
mission training). Recomenda-se, ainda, que a ONU estabeleça aos troop contributing
countries (TCCs) a obrigatoriedade da implantação de programas de treinamentos prévios
adequados, que enfatizem as questões de gênero e a tolerância zero no que diz respeito à
má-conduta sexual. Deve-se reforçar também a conscientização da comunidade local,
com o objetivo de explicar quais são as políticas da organização com relação ao AES.
Segundo relatório da Refugees International: “The attitude of senior
management in UN peacekeeping missions towards sexual exploitation and abuse can
make a major difference in ending the problem”
90
. O documento produzido por Zeid
concorda com esta afirmação, uma vez que enfatiza a importância de que comandantes e
superiores hierárquicos garantam que seus subordinados tenham consciência de que atos
de AES são proibidos. No entanto, muitas vezes militares e civis de hierarquia superior
não conseguem traçar limites e padrões de conduta claros
91
. Isto se dá, em parte, porque a
idéia corrente nos círculos militares e civis é a de que tais práticas, especialmente a
prostituição, são uma conseqüência inevitável de um grupo formado apenas por homens
heterossexuais, submetidos, supostamente, a um ambiente de isolamento e tensão. Além
disso, há a crença de que manter relações sexuais com meninas e mulheres “que querem
fazer sexo” com militares ou trabalhadores humanitários é algo natural e inofensivo
(Mazurana, 2007, p. 34).
89
Em 29 de maio de 2007, o Under-Secretary-General, então chefe do DPKO, Jean-Marie Guéhenno,
afirmou que os TCCs deveriam aceitar que padrões de conduta fossem incorporados ao MOU.
Guéhenno lembrou que diversos países se opõem a esta introdução. “Formal discipline standards
for peacekeepers needed, says UN official”. UN News, 29/05/2007. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=22720&Cr=peacekeep&Cr1=
. Acesso em
10/10/2008.
90
Refugees International. “Must Boys Be Boys? Ending Sexual Exploitation and Abuse in UN
Peacekeeping Missions”, 2005, pg.ii. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/publication/detail/6976/
. Acesso em 29/08/2008.
91
Ibidem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
55
A recomendação de Zeid, portanto, é a de que o Under-Secretary-General for
peacekeeping operations pessoalmente garanta que os comandantes militares estejam
conscientes da política de tolerância zero instituída pela ONU, e que estes sejam
individualmente responsabilizados pela implementação de medidas de combate ao AES e
pela punição daqueles que não obedecerem às regras estabelecidas. Aqueles que
cumprirem estas tarefas devem ser recompensados com medalhas ou recomendações
especiais.
Com relação à investigação, o documento enfatiza a necessidade de um
mecanismo permanente de notificação e investigação de má-conduta que seja
independente da missão. Zeid afirma que não há profissionais especializados na prática
investigativa, tais como profissionais forenses, para garantir que práticas de
identificações modernas (incluindo exames de DNA para determinar a paternidade de
possíveis peacekeeper babies, impressões digitais etc.), sejam utilizados na investigação.
O fato de que se deve adequar a investigação às exigências do país de origem dificulta a
já precária infra-estrutura disponível nas missões. Para lidar com esta dificuldade,
recomenda-se duas soluções: 1) que um especialista legal do país envolvido na acusação
esteja presente para garantir que as investigações estejam de acordo com as exigências
legais do TCC; 2) Ou ainda que os TCCs levem a cabo cortes marciais no local em que
foram cometidos os abusos, facilitando, dessa forma, o acesso às evidências e às
testemunhas.
Mais uma vez, o papel dos superiores hierárquicos é fundamental no combate ao
AES. Muitas vezes estes, ainda defensivos quanto ao tema, tentam interferir na
investigação ou encobrir os casos, ameaçando a independência e a integridade do
processo. Nicola Dahrendorf (2006), em sua investigação sobre as medidas de respostas
instituídas na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo
(MONUC), nos dá um exemplo prático (e real) de tal situação:
A minor complained to the Head of a MONUC Regional Office that a staff member was
responsible for her pregnancy. The Head of Office discussed the matter directly with the alleged
father and another colleague from the office (…) The Head of the Office not only took sides in
favour of the alleged perpetrator and tried to protect him, but also gave him the opportunity to
influence witnesses and convince them to make false statements. This made the task of the
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
56
OASEA investigators more difficult as the alleged perpetrator refused to cooperate and witnesses
were found to be lying
92
.
Frente à existência desta “cultura de acobertamento”, Zeid recomenda que as
obrigações dos comandantes dos contingentes estejam especificados no MOU.
Com relação à punição, o documento enfatiza a necessidade de implementação de
medidas de resposta, aumentando assim, a efetiva accountability dos participantes das
missões de paz. Assim, o relatório sugere que aqueles que violarem as regras definidas no
Boletim do SG de 2003 devem ser responsabilizados individualmente, e garantias de que
estes não poderão ser readmitidos em outras missões da ONU devem ser prontamente
estabelecidas. As punições sugeridas incluem a suspensão sem pagamento e o término
imediato do contrato. Zeid recomenda também que os pais dos peacekeepers babies
sejam obrigados a dar suporte financeiro aos filhos, seja pela dedução do salário do
funcionário ou militar envolvido, ou pelo pagamento de multas que serão repassadas às
famílias. O documento enfatiza ainda a necessidade de que se estabeleça a
obrigatoriedade do TCC – através do MOU ou do SOFA - de levar seu soldado a
julgamento caso a missão tenha considerado haver evidências suficientes de casos de má-
conduta. Os resultados e o andamento de tal julgamento devem ser, necessariamente,
relatados à Organização. A cooperação entre agências para estabelecer respostas
unificadas deve ser fortalecida, desencorajando, dessa forma, a cultura de proteção.
Em junho de 2005, a Assembléia Geral adota, em princípio, as recomendações, e
algumas destas são, de fato, implementadas (Murphy, 2006). Hoje, várias missões
instituem áreas off-limits, curfews, proibição de entrada de civis não-autorizados nos
campos militares, substituição de postos de guardas estáticos por patrulhas,
obrigatoriedade do uso dos uniformes ou de permanecer nos campos militares mesmo
fora de serviço. Seguindo outra recomendação de Zeid, Kofi Annan indica, em outubro
de 2005, um grupo de especialistas com o objetivo de traçar formas de garantir a
accountability dos peacekeepers
93
. Em 13 de outubro de 2006, Kofi Annan indica um
segundo grupo de especialistas para produzir um estudo sobre as maneiras mais eficientes
92
Dahrendorf, Nicola. “Sexual Exploitation and Abuse: Lessons Learned Study”. DPKO, Março de 2006,
p.17
93
Organização das Nações Unidas. Secretariado/Department of Public Information. “Secretary-General
Appoints Legal Expert Group Aimed At Strengthening Peacekeeping Zero Tolerance Policy On
Sexual Exploitation”. Documento das Nações Unidas número SG/A/1023, 13/12/2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
57
de garantir que as regras contra AES sejam aplicáveis a todas as categorias de UN
personnel
94
.
No dia 4 de dezembro de 2006 acontece, em Nova Iorque, a High-Level
Conference on Sexual Exploitation, organizada pelo DPKO, pelo Office for the
Coordination of Humanitarian Affairs (OCHA), o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). A
conferência, que contou com a participação de representantes de Estados-membros,
organizações internacionais e ONGs, terminou com a aprovação do Statement of
Commitment on Eliminating Sexual Exploitation and Abuse by United Nations and Non-
United Nations Personnel
95
, que contém 10 princípios, já citados por Zeid, para facilitar a
rápida implementação de padrões de prevenção e eliminação de AES- tais como a
introdução dos materiais de treinamento, o fortalecimento de medidas de punição e o
estabelecimento de garantias de que funcionários acusados não sejam recontratados. Em
19 de dezembro de 2007, é aprovada uma estratégia de assistência a vítimas de abuso
sexual, que inclui aconselhamento médico, atendimento psicológico e apoio a crianças
nascidas dessas relações
96
. O projeto já havia sido apresentado por Kofi Annan em 13 de
julho de 2006
97
, com base nas recomendações do Representante Especial. Mas a verdade
é que as políticas definidas por Zeid que poderiam fazer frente às imunidades - como a
obrigatoriedade do julgamento dos suspeitos ou de que as regras estabelecidas no Boletim
do SG de 2003 fossem aplicáveis a todas as categorias de participantes das OPs, nunca
foram implementadas, frente à forte resistência dos países contribuintes de tropas.
94
“Annan further enhances ‘zero tolerance of sexual abuse by UN peacekeepers”. UN News, 13/10/2006.
Disponível em http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=20247&Cr=peacekeep&Cr1
.
Acesso em 10/10/2008.
95
Organização das Nações Unidas. “Statement of Commitment on Eliminating Sexual Exploitation and
Abuse by UN and Non-UN Personnel”, 4/12/2006.
96
“UN forum adopts strategy to aid victims of sexual abuse by Organization’s staff”. UN News,
19/12/2007. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=25135&Cr=UN&Cr1=staff
. Acesso em
11/10/2008.
97
“New strategy aims to help victims of sexual exploitation committed by UN staff”. UN News,
13/07/2006. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=19193&Cr=sexual&Cr1=exploit
. Acesso em
10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
58
2.3.3
Treinamento e códigos de conduta
Outra ferramenta instituída para lidar com as alegações de AES, com base nas
recomendações do enviado especial do Secretário-Geral é a instituição do treinamento
tanto de militares quanto de civis. Segundo Zeid:
DPKO must organize intensive training for peacekeepers, both on arrival and during the mission
assignment, on the required standards of conduct and (…) on the detailed prohibitions set out in
the 2003 bulletin
98
.
A necessidade do melhor preparo das tropas já estava presente no relatório
apresentado pelo Panel on United Nations Peacekeeping Operations, de 21 de agosto de
2000, mais conhecido como “Relatório Brahimi”
99
. Dentre as recomendações
estabelecidas, o treinamento aparece como uma ferramenta importante na qualidade e no
preparo de militares, policiais e civis para worst-case scenarios e para o conhecimento
dos participantes em questões de direitos humanos e de direito internacional humanitário.
O treinamento seria, assim, uma ferramenta essencial para garantir a qualidade das
tropas, o que, conseqüentemente, melhoraria a rapidez e a eficiência das operações de paz
(OPs).
Ao mesmo tempo, os casos de má-conduta cometidos pelo staff da ONU
deixavam claro que os diferentes níveis de profissionalismo, de padrões éticos e de
jurisdições dos diferentes participantes exigiam um treinamento que os uniformizasse.
“Their training is varied, they come from an array of cultural backgrounds and import
their own perceptions of how men and women should relate and function in society”,
afirmou Angela Mackay
100
, antiga Chief Officer of Gender Affairs da Missão das Nações
Unidas no Kosovo (UNMIK). Muitas vezes militares e civis de diferentes países são
98
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. A comprehensive strategy to eliminate future
sexual exploitation and abuse in United Nations peacekeeping operations”. Documento das
Nações Unidas número A/59/710, de 24 de março de 2005, p. 18
99
Em março de 2000, Kofi Annan toma a iniciativa de formar um painel para rever as atividades
relacionadas à manutenção da paz e da segurança internacional. O relatório resultante, dirigido
pelo antigo Primeiro-Ministro da Argélia, Lakhdar Brahimi, traça uma crítica não só da
organização, mas da falta de vontade política dos Estados em, de fato, prover os recursos
necessários ao alcance das OPs.
100
Mackay, Angela. “Sex and the peacekeeping soldier: the new UN resolution”. Peace News, junho/agosto
2001. Disponível em http://www.peacenews.info/issues/2443/mackay.html. Acesso em
10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
59
insensíveis aos tabus locais e às fronteiras de comportamento existentes em cada
sociedade, dificultando a relação entre a população local e a equipe da ONU. Segundo
Mackay, no Camboja, muitas vezes os habitantes reclamavam das “bebedeiras”, do
comportamento arruaceiro e das relações dos militares com prostitutas, na esperança de
que alguma medida disciplinar fosse tomada. A atitude da ONU era, no entanto, de
condescendência com tal comportamento.
Nesse sentido, os escalões superiores têm papel fundamental, já que são
responsáveis por criar um ambiente de estrita disciplina, que desencoraje os atos de AES
e enfatize a política de no-sex (consentido ou não). O engajamento, portanto, não é
apenas declarar-se politicamente favorável à política, mas estabelecer o cumprimento das
ordens. A importância de tal ênfase decorre do fato de que as regras não são, por hora,
internalizadas, especialmente com relação à prostituição: Segundo um representante da
ONU na Libéria, “Many people don’t think it’s wrong”
101
. Sendo a prostituição uma
relação “consentida”, muitos militares e civis não a consideram como algo amoral ou
imoral, uma vez que não entendem quais conseqüências negativas tais relações podem
ter, uma vez que as mulheres e meninas “concordam” em participar destas interações.
Um militar brasileiro, participante da missão da ONU na Etiópia e Eritréia (UNMEE),
afirmou, sobre o abuso e a exploração sexual (AES): “A ONU diz que é errado...mas eu
não acho que seja errado. Não acho que seja exploração”. Outro militar afirmou: “Qual a
diferença entre sexo e exploração sexual? Eu não entendo”
102
.
O treinamento, dessa forma, se enquadraria como um mecanismo de construção
de uma cultura que substituísse a aceitação do abuso e da exploração sexual como um
efeito natural da reunião de homens heterossexuais, ou de militares que servem no
exterior. Segundo Enloe, (2000, p. 116), militares tendem a ver a prostituição como uma
“atividade recreativa rotineira”. Outro fator relevante é que militares vêm de inúmeras
culturas distintas (Kent, 2007, p. 48). Tal entendimento tradicional seria substituído por
aquele que entende a exploração e o abuso sexual não como uma questão de
comportamento sexual, mas como um abuso de poder desviante da ética das missões de
101
Citado por Kent, 2007, p. 48.
102
Comunicação pessoal de militar brasileiro anônimo, dia 28/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
60
paz, contrário aos objetivos do mandato e extremamente prejudicial às populações
vulneráveis.
É relevante lembrar que cada OP tem seu próprio código de conduta
103
, com
medidas mais específicas, que incluem curfews, listas de lugares off-limits etc. Mas todos
estes são baseados em dois documentos principais: Ten rules: Code of Personal Conduct
for Blue Helmets
104
e We Are United Nations Peacekeepers
105
, que formam a base dos
Standardized Generic Training Modules (SGTM), o programa de treinamento formulado
pela ONU. Esses dois códigos traçam recomendações de comportamento gerais, tais
como o respeito à cultura, à população local e aos princípios da ONU, a disciplina e o
cuidado com os equipamentos utilizados.
Sobre o abuso e a exploração sexual, o quarto ponto do Ten Rules diz: “Do not
indulge in immoral acts of sexual, physical or psychological abuse or exploitation of the
local population or United Nations staff, especially women and children”. Já o We Are
United Nations Peacekeepers é dividido em duas seções: “We will always” e “We will
never”. Na segunda parte, estão descritas proibições como o uso de drogas, o abuso de
álcool, o uso excessivo de violência, e a participação em atividades ilegais. Sobre o AES,
o documento diz: “(Never) Commit any act that could result in physical, sexual or
psychological harm or suffering to members of the local population, especially women
and children”, e ainda: “Become involved in sexual liaisons which could affect our
impartiality, or the well-being of others”.
Tais documentos são, como se pode perceber, demasiadamente gerais e vagos em
suas proibições. Nas instruções do Ten Rules, a proibição é quanto a “atos sexuais
imorais”. O conceito de moralidade, ao não ser especificado, fica a cargo do julgamento
de cada indivíduo. Da mesma forma, no We Are United Nations Peacekeepers, as
restrições são de atos que possam trazer danos físicos, sexuais e psicológicos, ou que
possam ferir a imparcialidade da organização ou o bem-estar do outro. Mais uma vez, o
julgamento de valor fica por conta de cada participante, uma vez que não há instruções
específicas sobre quais atos sexuais devem ser proibidos.
103
Com relação a trabalhadores humanitários, cada agência da ONU ou ONGs normalmente possui seu
próprio código de conduta.
104
Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/Conduct/ten_in.pdf. Acesso em 14/09/2008.
105
Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/Conduct/un_in.pdf. Acesso em 13/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
61
Outra questão relevante quando se trata de treinamento é que a ênfase maior, na
maior parte dos países contribuintes, é dada a questões estritamente militares, tais como
em relação à estratégia militar, à logística ou a exercícios práticos. Para Fetherston (1994,
p. 171), a ênfase em questões não-militares é importante porque estimula a mudança de
hábitos que podem reforçam a cultura de violência presente em situações de pós-conflito:
Training could play a key role in the process of bringing about a conceptual shift away
from purely traditional conflict management to a broader understanding of the work of
peacekeepers as part of a transformative process (Ibidem).
Ainda que a responsabilidade pelo treinamento prévio seja responsabilidade de
cada TCC, o DPKO desenvolve materiais de treinamento (para militares, policiais e
treinadores) que devem ser usados como base. Os Standardized Generic Training
Modules (SGTMs)
106
são um pacote de treinamento preparado pelo DPKO e pelo
Training and Evaluation Service (TES) como parte de um esforço de unificação dos
diversos treinamentos existentes. O SGTM é usado em diversos países (inclusive no
Brasil e na Índia) como material-base de treinamento, podendo ser complementado por
informações adicionais relevantes a cada país e a cada missão
107
. Cada módulo (são 17 no
total) trata de um tópico específico: noções sobre a ONU e sobre as operações de paz,
administração de stress, direitos humanos, códigos de conduta, assistência humanitária,
comunicação, negociação, aids/HIV e gênero, dentre outros temas.
No entanto, uma vez que o treinamento prévio (pre-deployment) é uma
responsabilidade nacional e soberana, continua a ser uma decisão dos TCCs utilizar ou
não os materiais de treinamento formulados pela ONU na preparação de suas tropas.
Assim, os níveis de treinamento e de temas incluídos nestes variam muito conforme o
país-contribuinte. Segundo Lyytikäinen (2007), os TCCs com maior capacidade de
106
Standardized Generic Training Modules for United Nations Peacekeeping. Integrated Training Services
(ITS), julho de 2006.
107
O SGTM, assim como a maioria dos treinamentos desenvolvidos, é direcionado a militares e policiais
civis. Poucos são os treinamentos desenvolvidos para civis. Algumas exceções são
“Understanding Humanitarian Aid Worker Responsabilities: Sexual Abuse and Exploitation
Prevention”. Disponível em http://www.reliefweb.int/rw/rwt.nsf/db900SID/LSGZ-
5WFFUN/$File/CCSEA%20Sexual%20Exploitation%20Prevention%20Training%20Manual%20
Novem.pdf?OpenElement. Acesso em 05/10/2008; e “UNICEF Training of Trainers on Gender-
Based Violence Focusing on SEA”. Disponível em
http://www.reliefweb.int/library/documents/2003/unicef-tot-25sep.pdf
. Acesso em 05/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
62
treinamento são aqueles que menos contribuem com operações de paz
108
. A maioria dos
militares vem de países com poucos recursos e capacidade de treinamento limitada.
Muitas vezes os treinamentos existem, mas dão pouca atenção a questões não-técnicas,
como aos códigos de conduta e à prevenção ao AES
109
. A maior parte dos treinamentos
de gênero, por sua vez, está nos centros dos países do Norte, e não dos maiores TCCs
110
.
Desta possível falha resulta a importância do treinamento in loco: Além de
superar possíveis ausências e temas nos treinamentos nacionais, ele pode reforçar
princípios já estabelecidos no treinamento prévio. No entanto, a extensão em que o
treinamento de gênero ou a atenção aos códigos de conduta são incluídos também varia
de missão para missão
111
. De todo modo, nas OPs em que estes treinamentos existem, as
sessões são, geralmente, curtas, com cerca de 30 minutos a duas horas. Devido às muitas
línguas faladas pelos diferentes contingentes, nem todos os militares passam pelos
treinamentos. Desta forma, é necessário que o tema do abuso e da exploração sexual
ganhe prioridade tanto nos treinamentos prévios quantos nos treinamentos durante a
missão se o objetivo for, de fato, diminuir os casos de AES em missões de paz.
108
Os países que mais contribuem com tropas (em julho de 2008) são: Paquistão, Bangladesh, Índia,
Nigéria, Nepal, Gana, Jordânia, Ruanda. “Ranking of Military and Police Contributions to UN
Operations”.
Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2008/aug08_2.pdf
. Acesso em
13/09/2008.
109
O treinamento relativo ao AES é, por vezes, incluído no tema “código de conduta”, e outras vezes nas
questões de gênero.
110
“Gender Training for Peacekeepers: Preliminary overview of United Nations peace support operations”.
United Nations International Research and Training Institute for the Advancement of Women
(UN-INSTRAW), 2007.
111
A tendência é que o treinamento de gênero seja mais forte em missões que tenham gender advisers
(Lyytikäinen, 2007).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
3
O abuso e a exploração sexual em missões de paz na produção
acadêmica
Este capítulo tem como objetivo formular uma revisão da literatura existente
sobre o abuso e a exploração sexual (AES) em operações de paz (OPs). Apesar da
produção acadêmica sobre missões de paz ser relativamente extensa na área de Relações
Internacionais, especialmente aquela relacionada às operações multifuncionais, típicas do
pós-Guerra Fria, tanto a bibliografia quanto a produção acadêmica sobre,
especificamente, o abuso e a exploração sexual são limitadas, em parte pela carência de
dados existentes e disponíveis, em parte pela falta de atenção ao tema. Com relação à
literatura acadêmica, pode-se afirmar que a temática do abuso sexual em operações de
paz localiza-se na interseção entre a literatura sobre operações de paz e suas
conseqüências não-esperadas; aquela que trata de violência sexual e da situação da
mulher em conflitos armados; e a que trata da masculinidade envolvida na construção
social do militar. Cada uma destas literaturas tem consideráveis contribuições para o tema
e para a importância do treinamento na construção de atitudes militares compatíveis com
as OPs, mas também sérias limitações, que impedem sua plena utilização neste estudo.
3.1
Literatura sobre as conseqüências não-esperadas
Dentro da produção acadêmica sobre operações de paz, o tema do abuso e da
exploração sexual é, muitas vezes, abordado dentro da análise sobre os efeitos colaterais
das operações ou sobre as conseqüências não-esperadas (unintended consequences)
destas
1
. Grande parte da atenção dada às missões de paz tem como foco as conseqüências
1
A exemplo de AOI, Chiyuki, DE CONING, Cedric, THAKUR, Ramesh (ed.) Unintended consequences of
peacekeeping operations. Tokyo, New York, Paris: United Nations University Press, 2007;
PALLEN, Daniel. “Sexual Slavery in Bosnia: The Negative Externality of the Market for Peace”,
2003 e ANDERSON, Mary. “Do no Harm: How Aid can support peace or war”. Londres: Lynne
Rienner, 1999, para os efeitos colaterais da ajuda humanitária em geral.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
64
intencionais das missões – ou seja, os resultados das atividades definidas nos mandatos.
Segundo Aoi, de Coning e Thakur (2007, p. 3), policy-makers e acadêmicos preocupam-
se em aumentar a efetividade das missões com base nos objetivos descritos
anteriormente: Assim, o sucesso de uma operação é representado pelo quanto esta pôs em
prática seus objetivos intencionais previamente estabelecidos
2
. A produção acadêmica
sobre as conseqüências não-esperadas, por sua vez, não é tão fértil, ainda que de grande
valor prático, uma vez que as externalidades podem ter impacto relevante na
implementação do mandato e na recuperação das sociedades em questão.
Segundo Aoi et al (2007, p. 8), a falta de atenção às conseqüências não-esperadas
se deve por pressupostos liberais que vêem as missões de paz como práticas
inerentemente “boas”, e que portanto não causariam prejuízos, mas apenas benefícios.
Os muitos incidentes
3
desta natureza, no entanto, ocorridos nas últimas duas décadas (tais
como incentivo à violência, abuso de poder contra civis, suborno, corrupção e estupros) –
quando as missões de paz aumentaram em número, funções e complexidade – acabaram
por chamar a atenção aos resultados destes efeitos colaterais, dantes completamente
negligenciados.
O conceito de “externalidades” - positivas e/ou negativas - é originalmente uma
discussão da economia. A externalidade é o impacto das ações de alguém sobre o bem-
estar dos que estão em torno (Mankiw, 1999, p. 10). Esta pode ser responsável pelas
falhas de mercado, situação em que este não consegue, por si só, alocar recursos de forma
eficiente. Transportada para o âmbito das missões de paz, as conseqüências ditas
“indiretas”, ou “não-esperadas”, são, em suma, os efeitos trazidos a curto, médio e longo-
prazo pelas operações de paz (OPs), cuja previsão é difícil, e que muitas vezes não
condizem com os objetivos descritos nos mandatos ou esperados da atuação da ONU;
mas chegam, até mesmo, a serem prejudiciais às próprias populações cujas missões
deveriam proteger. Segundo Pallen:
2
Assim, analisar as falhas das missões em alcançar seus objetivos é diferente de estudar os efeitos
colaterais destas. O primeiro caso seria exemplificado pela análise dos motivos pelos quais não se
teve crescimento econômico em missões cujos mandatos previam a melhora da economia local, ou
pela análise dos fatores pelos quais não houve diminuição dos níveis de criminalidade, em OPs
que tinham como objetivo a manutenção da segurança pública (Aoi et al. 2007, p. 6)
3
Como o escândalo do programa Oil-for-Food, no Iraque, e os casos de abuso e exploração sexual (AES)
na Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
65
Peace is a market in its own right. (…) Global public goods, such as peace, have benefits that
spread across nations, generations and population groups. However, their corresponding markets
may also generate negative externalities. A negative externality causes an inefficient outcome
within any given market, thus forcing the demand side of the equation to bear a higher cost for the
good or service (2003, p. 28).
Apesar das externalidades poderem ser positivas ou neutras, o foco desta literatura
são, sem dúvida, as conseqüências negativas das OPs (Aoi et al, 2007, p. 6). Dentre as
várias conseqüências indiretas da presença de missões de paz, pode-se citar a criação de
falsa economia, o aumento dos níveis de infecção do HIV e de outras doenças
sexualmente transmissíveis (DST); da corrupção e das atividades criminosas no país-
hospedeiro, além do crescimento de casos de má-conduta de soldados, como assassinato
de civis, execução sumária, prática de torturas, suborno e exploração e abuso sexual. Tais
fenômenos ocorrem por vários fatores, tais como o ambiente de permissividade (típicos
de sociedade em que os sistemas legais são falhos ou inexistentes) ou impunidade
(devido às imunidades dadas ao UN staff), a chegada de um grande número de
estrangeiros a um ambiente já frágil, a entrada de grandes quantidades de bens e de
capital e a criação instantânea de empregos bem-remunerados comparados aos existentes
no país-hospedeiro.
Tal produção acadêmica não é crítica do conceito e da existência em si das
missões de paz, mas parte do princípio de que, da mesma forma que através de políticas
públicas, códigos morais e sanções sociais o mercado pode alocar melhor os recursos a
despeito das externalidades, (o que é chamado de “internalização de uma externalidade”
4
)
as conseqüências negativas trazidas pelas OPs também podem ser reduzidas ou contidas
se previstas anteriormente – através da análise de missões passadas - aumentando a
efetividade da implementação dos mandatos (Aoi et al., 2007, p. 5)
5
. Tal crença deriva
do argumento de “do no harm” de Mary Anderson
6
: Ainda que a ajuda internacional
possa representar algum prejuízo em certos casos, exacerbando o conflito ou estimulando
a dependência, seria uma falácia moral e lógica concluir, desta constatação, que uma vez
que a ajuda pode causar o mal, não ajudar seria causar o bem. Para Anderson, o desafio
4
Segundo MANKIW (1999), a “internalização de uma externalidade” é a “alteração de incentivos de forma
que as pessoas levem em consideração os efeitos externos de suas ações” (p. 209).
5
Os autores enfatizam, no entanto, que algumas conseqüências são completamente inesperadas, não
podendo ser previstas e reduzidas. “(...) despite peace operations’ best efforts to limit their actions
to those necessary to achieve a desired outcome, unintended consequences are likely to occur”
(2007, p. 268).
6
ANDERSON, Mary. “Do no Harm: How Aid can support peace or war”. Londres: Lynne Rienner, 1999.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
66
para doadores e policy-makers é instituir formas de alcançar os objetivos visados sem
causar efeitos colaterais prejudiciais às próprias sociedades as quais devemos ajudar. Da
mesma forma, o treinamento é visto, neste trabalho, como uma possível forma de reduzir
conseqüências não-esperadas ligadas ao abuso e à exploração sexual.
Esta literatura, portanto, tem importantes contribuições a fazer, uma vez que,
como este estudo, parte do princípio de que 1) os efeitos inesperados negativos das
operações de paz não a tornam um instrumento em si negativo, mas, ainda assim, devem
ser levados em conta, uma vez que podem prejudicar a implementação do mandato; e de
que 2) tais conseqüências não-esperadas podem ser extinguidas ou ao menos suavizadas
se antecipadas corretamente. Desta forma, a análise sobre estes resultados colaterais das
missões de paz permite que se integrem estes temas aos treinamentos aplicados a
militares e civis, como forma de reforçar, através do entendimento, as políticas
estabelecidas pela ONU com relação ao abuso e à exploração sexual.
As conseqüências esperadas para as mulheres da presença de missões de paz são,
de uma forma geral, o desenvolvimento e a estabilização de suas sociedades, o que,
conseqüentemente, melhorará suas vidas. Há, ainda, efeitos mais específicos, como a
melhora de suas situações econômicas, uma vez que a chegada das operações de paz
(OPs) é responsável pela criação de diversas oportunidades de trabalho - que beneficiam
especialmente as mulheres, previamente marginalizadas no mercado (Koyama,
Myrttinen, 2007, p. 38; Cockburn, Hubic, 2002, p. 106), e social, através do trabalho dos
Gender Units. Na United Nations Transitional Authority in Cambodia (UNTAC)
7
, por
exemplo, inúmeras conseqüências positivas foram trazidas pelo esforço do Fundo das
Nações Unidas para as Mulheres (UNIFEM) em incorporar as mulheres nas eleições
democráticas. Através de campanhas informativas e educacionais, organizações locais
pelos direitos das mulheres foram incentivas e formadas, e através de suas atuações,
direitos iguais para as mulheres foram incluídos na nova constituição cambojana
(Whitworth, 202, p.66). Pode-se citar, ainda, a volta de um certo grau de segurança como
outro efeito positivo das OPs para as mulheres (Cockburn, Hubic, 2002, p. 106).
Mas inúmeras externalidades positivas e negativas das operações de paz, que nem
sempre são previstas por seus formuladores, também resultam da simples presença física
7
Resolução 745 do Conselho de Segurança, 28/02/1992.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
67
das missões. Dentre as positivas, podemos destacar as mudanças nas dinâmicas de
gênero
8
causadas pelo aumento da presença de estrangeiros– que vão além dos resultados
diretos da criação de Gender Units e de campanhas de conscientização. Koyama e
Myrttinen (2007, p. 39) afirmam, em seu estudo de caso sobre o Timor Leste, que a
presença de funcionários internacionais trouxe novos valores, atitudes e padrões de
comportamento em relação à mulher, o que acabou por influenciar as dinâmicas de
gênero no país. Mas diversos efeitos colaterais negativos também foram causados pelas
práticas de empowerment das mulheres previstas no mandato das missões. Segundo as
autoras, o tratamento preferencial dado às mulheres resultou no ressentimento dos
homens contra as mulheres em geral. Em alguns casos, tal sentimento foi responsável
pelo aumento da violência doméstica. Outro efeito colateral percebido é que, ao
conseguirem empregos nas missões, as mulheres acumulavam o trabalho doméstico –
tradicionalmente sua função- com o profissional, aumentando sua carga horária (Koyama,
Myrttinen, 2007, p. 40)
9
.
Uma das conseqüências negativas das OPs para as mulheres mais analisadas na
produção acadêmica é a ligação da chegada das missões de paz com o aumento da
prostituição
10
(Pallen, 2003; Allred, 2006; Mazurana, 2002). Características existentes
anteriormente, como o colapso da economia formal, acompanhada pela ausência da lei e
da ordem contribuem para o contexto de exploração e de florescimento de atividades
criminosas. Ainda assim, a chegada em si das OPs tem impacto significativo no aumento
do comércio sexual. Do aumento da prostituição, decorre o aumento da infecção pelo
HIV e de outras DSTs, o nascimento de crianças, que muitas vezes ficarão sem suporte
financeiro, dentre outras conseqüências negativas a longo-prazo para as mulheres e para
toda sua sociedade
11
.
8
Usaremos o conceito de gênero, neste trabalho, como o papel construído socialmente para homens e
mulheres.
9
Para mais conseqüências negativas da chegada das OPs para as mulheres ver: The Impact of Peacekeeping
Operations on Women and Girls. In Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). “The
Impact of Conflict on Women and Girls”, 13-15 de novembro de 2002. Disponível em
http://www.unfpa.org/publications/detail.cfm?ID=29&filterListType=1
. Acesso 10/10/2008.
10
A ligação com a prostituição não se dá apenas com missões de paz, mas em qualquer situação em que se
tenha a chegada de um grande número de militares, como no caso de bases militares americanas
no exterior. Ver Enloe (1989 e 2000).
11
Tais conseqüências já foram apontadas por inúmeros documentos: UNAIDS. “Aids and the Military”.
1998, p. 3; REHN, SIRLEAF, “Women, War, Peace: The Independent Experts Assessment on the
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
68
3.2
A violência sexual na literatura de gênero
A literatura que trata da violência sexual tem importantes contribuições a oferecer
a este estudo, uma vez que analisa a situação de vulnerabilidade em que se encontram as
mulheres durante e após conflitos armados. É esta situação que, em grande parte,
contribuirá para o abuso e a exploração sexual (AES) por integrantes de missões de paz.
Esta literatura tem, no entanto, limitações relevantes, uma vez que, em primeiro lugar,
prioriza o estupro como arma de guerra- o que não corresponde à realidade da violência
sexual nas missões de paz. Em segundo lugar, tal produção acadêmica tende a silenciar as
experiências dos homens e meninos em suas narrativas. Um entrave importante, já que
vários casos de AES em missões de paz têm os meninos como vítimas.
A grande quantidade de trabalhos acadêmicos produzidos sobre a violência sexual
em conflitos armados é resultado do próprio enquadramento político que a violência
sexual ganha no movimento pelos direitos das mulheres. Existente desde a luta pelo
sufrágio feminino, no século XIX, (Berkovitch, 1999, Keck, Sikkink, 1998), as coalizões
feministas ganharam novo fôlego quando, a partir dos anos 80, as opressões e
desigualdades relacionadas ao gênero foram sendo continuamente identificadas como
violações de direitos humanos (Thompson, 2002). Além de ter reforçado
internacionalmente o movimento pelos direitos das mulheres, o novo enquadramento
dado pelas ativistas serviu para amenizar as crescentes clivagens entre os movimentos
feministas do Primeiro e do Terceiro Mundo, permitindo a construção de um discurso
feminista global (Costa, 2003).
A grande atenção dada à violência sexual na década de 80 teve também como
objetivo transportar a violência sexual do âmbito privado – espaço “tradicional” da
mulher - para a discussão pública. Segundo Tickner (1996), a modernidade tem como
base a separação entre o espaço doméstico e o público, em que o homem, visto como
racional e autônomo, é ator por excelência do espaço público, enquanto a mulher,
Impact of Armed Conflict on Women and Women’s Role in Peace-Building”, de 2002,
Assembléia Geral, “Promotion and Protection of The Rights of Children - Impact of armed
conflict on children”. Report of the expert of the Secretary-General, Ms. Graça Machel, A/51/306,
26 de agosto 1996.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
69
emotiva, submissa e dependente, é relegada ao espaço privado, e impedida de participar
ativamente da política, da economia, e da guerra. Some-se a esta construção a idéia de
que o liberalismo político entende a família como um lócus em que não deve haver
interferência estatal, permitindo que violações dos direitos das mulheres fossem
cometidas dentro do núcleo da família sob o véu da impunidade, uma vez que as crianças
e as mulheres são entendidas como atores dependentes legal e socialmente de unidades
familiares patriarcais (Thompson, 2002). Desta forma, o estupro, por exemplo, inexistia
dentro do casamento, uma vez que a visão dominante era a de que, uma vez casada, a
mulher não tinha o direito de recusar sexo a seu marido (Bovarnick, 2007).
Idéia reforçada na Conferência de Pequim
12
, quando a questão tornou-se peça
central nas discussões, a violência contra a mulher é um dos temas globais feministas
entendidos como violações aos direitos humanos de forma geral. Praticamente inexistente
como tema na década de 80, a violência contra a mulher tornou-se uma das questões mais
relevantes da agenda feminista na década de 90. Antes da formação de uma categoria
geral de “violência contra a mulher” – que abarca abuso sexual, tortura, tráfico de
mulheres, prostituição forçada, agressão, dentre outras questões -, o que existia eram
movimentos separados, que lutavam pela abolição de práticas específicas: contra o
estupro nos EUA e na Europa, contra o dote na Índia, contra a mutilação genital na
África. Para Keck e Sikkink (2002), o tema permite que, ao considerarmos a agressão e o
estupro de uma mulher americana e a mutilação genital de uma menina na África como
formas de “violência contra a mulher”, os movimentos possam interpretar tais violações
como situações comuns.
Neste contexto de fortalecimento de temas transnacionais sobre as mulheres, de
práticas, em suma, que existem em diferentes sociedades, a literatura sobre a violência
sexual torna-se abundante. Um dos grandes focos desta produção é a utilização do
estupro como arma de guerra e de limpeza étnica (Alison, 2007), exacerbada pelo
aumento de conflitos étnicos e civis no pós-Guerra Fria.
A violência sexual é uma das muitas conseqüências sofridas pelas mulheres e
meninas nos chamados “novos conflitos contemporâneos”, (Kaldor, 1999; Duffield,
12
A IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz aconteceu entre 4 de
setembro e 15 de setembro de 1995 em Pequim, na China.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
70
2001) caracterizados pelos ataques deliberados às populações civis. O entendimento
destas novas formas de violência organizada permitiu que grande atenção tenha sido dada
às mulheres como atores envolvidos nos conflitos, seja como combatentes, líderes
sociais, espiãs, mensageiras, “esposas”
13
e, especialmente, vítimas
14
(Pankhurst, 2000, p.
5). Ao longo das décadas de 80 e 90, a situação da mulher em conflitos armados torna-se
cada vez mais relevante na ONU, em diversas organizações internacionais e em ONGs de
direitos humanos. As mulheres são cada vez mais entendidas como um grupo vulnerável
nestes contextos, ainda que o discurso da vulnerabilidade não seja capaz de demonstrar a
variedade de papéis que a mulher exerce em períodos de guerra
15
(Moura, 2005, pp. 61-
63).
A análise da situação da mulher durante e após os conflitos armados, e de como
estas são prejudicadas diferencialmente pela violência, é imprescindível para entender o
contexto de abuso e exploração sexual nas missões de paz. Um dos primeiros documentos
relacionados à situação de mulheres e meninas em conflitos armados é a Declaração
sobre a Proteção de Mulheres e Crianças em emergência e conflitos armados, de 1974
16
.
Mas será o documento final da quarta Conferência sobre Mulheres
17
o marco na
consideração do conflito armado como uma das áreas críticas para as mulheres. A
chamada Plataforma de Ação de Pequim não só recomenda que se garanta a proteção e a
assistência de mulheres em conflitos armados e em deslocamento, mas que se aumente a
participação destas nos mecanismos de construção da paz
18
. O empowerment das
13
Para mulheres como participantes ativos da Guerra, ver Enloe (2000), Moura (2005) e Carreiras (2006).
14
Para situação da mulher como vítima de conflitos armados, ver: BUTEGWA, Florence. Women in
Conflict Situation. In MULEI, Christophe et al. (eds.), “Legal Status of Refugee and Internally
Displaced Women in Africa”. Nairobi: UNIFEM, 1996; GILES, Wenona, CROSBY, Alison,
KORAC, Maja, “Women in Conflict Zones”. NY: NY University, 1996; INTERNATIONAL
COMMITTEE OF THE RED CROSS, “Women and War”. Genebra: 1995.
15
Outra crítica formulada à visão da mulher como vítima dos conflitos contemporâneos é que a priorização
da proteção da mulher causa um efeito de desvirtuamento na aplicação da norma de imunidade
civil, que deveria ser sex-neutral, mas, na prática, silenciam a necessidade de homens civis de
proteção. CARPENTER, Charli. “Innocent women and children: gender, norms and the protection
of civilians”. Hampshire: Ed. Ashgate, 2006.
16
“Declaration on the Protection of Women and Children in Emergency and Armed Conflict”. Assembléia-
Geral, RES 3318 (XXIX), 14/12/1974. Disponível em
http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/24.htm
. Acesso em 19/09/2008.
17
“Beijing Declaration and Platform for Action”. Fourth World Conference on Women, setembro de 1995.
Disponível em http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/platform/. Acesso em 19/09/2008.
18
“Women and Armed Conflict”, parágrafos 131 a 149. Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
71
mulheres passa a ser uma política que “encara as mulheres não apenas como vítimas da
guerra, mas como agentes de mudança” (Moura, 2005, p. 65).
Os conflitos nos Bálcãs tiveram, também, grande influência nesta literatura, pela
utilização sistemática do estupro e da violência sexual como arma de limpeza étnica
(Enloe, 2000, p. 109). Segundo DelZotto e Jones:
[f]eminist attention to Balkan women's suffering resulted in an extraordinary explosion of
scholarly investigation and activist endeavour. The results were impressive. Rape was probably
the crime that figured most prominently in international media accounts of the conflict. It became
the subject of numerous fact-finding expeditions, and a principal focus of NGO organizing and
publicizing (2002, p. 9)
Especialmente a partir dos Tribunais Penais Internacionais para Ruanda e para a
Antiga Iugoslávia
19
, e do reconhecimento pelo Estatuto de Roma
20
da violência sexual
como crime de guerra e crime contra a humanidade, tal assunto tornou-se grande
preocupação desta literatura
21
, já que, anteriormente, a violência sexual era vista como
um efeito colateral das guerras, que atingia a honra ou a dignidade pessoal da vítima, e
não como uma prática cujo objetivo é atingir a toda a comunidade.
Segundo Allison (2007), a existência do estupro em diferentes épocas e culturas
se explica pelo fato de que tal violência, a despeito da inexistência de consenso sobre
suas causas concretas, e das especificidades de cada conflito, representa uma agressão
que é facilitada em períodos de guerra (quando a violência é sancionada pelo Estado ou
“permitida” por sua ausência) e que reafirma a construção da masculinidade
heterossexual do homem – base da identidade masculina como soldado ou guerreiro. O
abuso sexual, usado como arma de guerra, tem o objetivo de subjugar a mulher (ou o
homem), e, por conseqüência, toda sua comunidade. “This leads to an understanding that
the primary target for sexual violence in war is not the individual victim themselves, but
19
O Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia foi pioneiro em considerar a violência sexual
como um crime de guerra específico e um crime contra a humanidade. O Tribunal Penal
Internacional de Ruanda foi ainda mais longe, tratando o estupro como um ato potencial de
genocídio.
20
International Criminal Court. “Rome Statute of the International Criminal Court”. Documento das
Nações Unidas número A/CONF.183/9*, 17/07/1998.
21
ASWAD, Evelyn Mary. "Torture by Means of Rape," The Georgetown Law Journal, vol. 84, no. 5, May
1996, p. 1913-1943; BLATT, Deborah. "Recognizing Rape as a Method of Torture," New York
University Review of Law and Social Change, no. 19, 1992; COPELON, Rhonda. "Gendered War
Crimes: Reconceptualizing Rape in Time of War," in: PETERS, Julie, WOLPER, Andrea (eds.).
Women's Rights, Human Rights: International Feminist Perspectives, New York, NY: Routledge,
1995, p. 197-214
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
72
the social identity they represent” (Allison, 2007, p. 72). Especialmente em conflitos
étnicos - como no caso de Ruanda ou da antiga Iugoslávia - o estupro da mulher de etnia
“inimiga”, vista como a reprodutora daquela dada comunidade, significa demonstrar
simbolicamente a vitória sobre todo o grupo rival (Rajoo, 2005).
A fértil produção acadêmica sobre a violência sexual como arma de guerra acabou
por dar ainda mais ênfase ao estupro como a principal representação do conceito de
“abuso sexual”. Há pouca atenção, portanto, às práticas sexuais empregadas por
peacekeepers, uma vez que estas relações não têm o caráter sistemático da violência
sexual como arma de guerra. Além disso, o foco destes autores é predominantemente o
estupro, e não as relações sexuais com prostitutas e mulheres vulneráveis - o problema
principal nas operações de paz. Com base na crítica que formula da divisão estabelecida
entre prostituição e estupro como coisas completamente diferentes, Enloe (2000) afirma
que tal ênfase se deve ao fato de que o estupro é visto como uma violência muito “maior”
do que a prostituição (2000, p.108) : “Prostitution seems routine. Rape can be shocking”.
Se o estupro é aceito como um crime bárbaro, a troca de sexo por dinheiro ou outros itens
é vista, por muitos, como uma comodidade dada aos militares que se encontram longe de
casa. A produção acadêmica sobre as diversas relações estabelecidas por militares e
mulheres locais, que vão muito além da prostituição e envolvem, por vezes, traços de
afeto, é extremamente limitada, o que torna a literatura de gênero, em grande parte,
incapaz de dar conta da variedade de relações estabelecidas entre peacekeepers e
mulheres locais.
É relevante lembrar, no entanto, que a exploração sexual está intimamente ligada
à condescendência existente em sociedades em que a violência sexual foi
sistematicamente utilizada durante os conflitos, uma vez que, em muitas sociedades, a
mulher ou menina que sofre estupro torna-se impura, e muito provavelmente não pode
mais se casar ou é estigmatizada pelos membros de sua família. A prostituição torna-se,
assim, uma das únicas opções de sobrevivência
22
.
Outra limitação da produção acadêmica sobre o estupro é que, apesar de muitas
vezes o conceito de “violência de gênero” ser usado como sinônimo para “violência
sexual”, atos de abuso e exploração sexual não são cometidos exclusivamente contra
22
Ver parte 1.1.2.2.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
73
mulheres. Enquanto muito se avançou no reconhecimento do abuso sexual feminino em
períodos de guerra, as experiências masculinas continuam, em grande parte, silenciadas
(DelZotto, Jones, 2002; Allison, 2007). Da mesma forma que mulheres são estupradas
como forma de subjugar comunidades inimigas, homens sofrem violência sexual com o
objetivo de diminuir sua masculinidade (Idem, p. 2). Para DelZotto e Jones, estas
construções limitadas são disseminadas não só na academia, mas também no discurso de
variadas ONGs e de organizações internacionais como a ONU. Raras são as organizações
de direitos humanos, por exemplo, que estabelecem pesquisas ou políticas voltadas para a
violência sexual contra homens e meninos (Idem, p. 6).
Portanto, a “feminização” da construção legal e humanitária do crime sexual tanto
na literatura sobre gênero e conflito, quanto nos discursos de organizações, impossibilita
que se reconheçam homens e meninos como vítimas de abuso sexual em períodos de
conflito, “denying them representation and protection by both governmental and non-
governmental actors” (DelZotto, Jones, 2002, p. 19). A literatura de gênero e conflito
tem, portanto, um entendimento limitado sobre os conceitos de masculinidade e
feminilidade, apoiando-se em paradigmas limitadores como mulheres-vítimas/homens –
perpetradores.
Assim, é relevante lembrar que da mesma forma que homens são violentados em
situações de conflito
23
, estes podem sofrer abusos e explorações sexuais em contextos de
missões de paz, em especial no caso de meninos órfãos. Segundo o relatório da Save The
Children
24
de 27 de maio de 2008, trabalhadores humanitários e peacekeepers
25
estariam
abusando de meninas e meninos (através da troca por comida ou dinheiro; ou mesmo
através do sexo forçado) no Haiti, na Costa do Marfim, e no Sudão. Diz o relatório:
The majority of beneficiaries we spoke to identified girls as being far more likely to become
victims of abuse than boys. In Southern Sudan and Côte d’Ivoire no boys were identified by focus
group participants as victims of abuse. However, child protection professionals working in the
same areas cited cases of abuse against both girls and boys. Moreover, focus group participants in
Haiti identified several cases of sexual abuse of boys (2008, p. 7).
23
Allison (2007, p. 89) cita o caso da Bósnia como representativo de situações de conflito em que homens
também são vítimas de abusos sexuais. Del Zotto e Jones lembram que a violência sexual contra
homens remonta pelo menos aos antigos persas. Com a o repúdio das religiões monoteístas a
homossexualidade, tais práticas foram, no entanto, silenciadas (2002, p. 3).
24
Save the Children UK. “No One to Turn To”, 27 de maio de 2008. Disponível em
http://www.savethechildren.org.uk/en/docs/No_One_to_Turn_To.pdf. Acesso em 01/10/2008.
25
Neste trabalho, usaremos o termo “peacekeepers” para designar apenas militares participantes de OPs.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
74
Segundo Ray Murphy, no Haiti, muitas funcionárias da ONU estabeleceram
relações sexuais com homens locais, e apesar de existirem as mesmas disparidades de
recursos, estas não foram vistas como responsáveis por abuso de poder ou por relações
explorativas em si (2006, p. 542). É evidente que há especificidades com relação às
mulheres especialmente por sua posição social em muitas sociedades. Mas isto não quer
dizer que relações sexuais entre participantes de missões de paz e homens locais não
acarrete em prejuízos para estes. Assim, quando a pesquisa se refere a mulheres, esta não
tem como objetivo descartar a possibilidade de que homens, e especialmente meninos,
também sejam afetados por casos de AES em missões de paz, mas apenas de afirmar que
a maioria dos casos se dá, de fato, com o sexo feminino.
A produção acadêmica sobre a violência sexual tem, portanto, duas ausências
principais que impedem sua utilização teórica completa nesta pesquisa. A primeira diz
respeito à priorização do estupro como tema de estudo, já que, apesar de freqüente nos
novos conflitos contemporâneos, este é menos freqüente nas OPs que as relações
“consentidas” – principal tema deste estudo. A segunda é a prioridade dada às
experiências das mulheres, em detrimento do abuso sexual contra homens e meninos
(estes últimos muitas vezes vítimas de AES em missões de paz). Mas esta linha de
pesquisa, ao preocupar-se extensivamente em analisar a situação de vulnerabilidade de
meninas e mulheres em situações de pós-conflito, permite que se compreenda os motivos
pelos quais ocorrem tão freqüentemente casos de AES também em missões de paz. Este
entendimento, por sua vez, deve ser incluído nos treinamentos para militares (e civis),
como forma de justificar as proibições estabelecidas pela ONU.
3.3
Gênero e militarização
Autoras feministas das relações internacionais, como Ann Tickner e Cynthia
Enloe, vêem o mundo militar como um espaço essencialmente masculino e calcado na
ênfase das diferenças de gênero. Segundo Tickner (1996), a construção das características
dos Estados feita similarmente à do “indivíduo moderno”- baseadas ambas na
racionalidade-, e a ligação dos mitos formadores das identidades nacionais com a guerra
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
75
limitam a participação das mulheres na construção do Estado e as relega a um papel
secundário e dependente, em que estas necessitam da proteção que somente o homem,
e/ou o Estado, são capazes de prover
26
. É com base nesta idéia de exclusão da mulher que
Enloe (2000) afirmará que a militarização tem resultados significativos para as mulheres,
uma vez que é um processo que prioriza a masculinidade.
Segundo Carreiras, o regime militar seria um caso extremo de uma “gendered
organization” (2006, p. 40), uma vez que as diferenças de gênero seriam acentuadas nas
mais diversas áreas e órgãos (Zarkov e Cockburn, 2000, p. 13). Além de serem
numericamente inferiores, as mulheres são sistematicamente excluídas de certas funções,
especialmente aquelas que permitem a passagem aos escalões superiores, como as
relacionadas a áreas estratégicas ou a unidades de combate. Tal inferioridade seria
reforçada na base ideológica militar, calcada em culturas masculinas hegemônicas
(mesmo que esta construção esteja sujeita a mudanças históricas e varie conforme a área)
(Ibidem). Não à toa, o serviço militar é visto, comumente, como a passagem de menino
para homem (“Join the army, Be a man”
27
), ou de diferenciação entre o sexo feminino e o
masculino (Carreiras, 2005, p. 41; Arkin, Dobrofsky, 1978, p. 151).
Desta forma, a despeito dos avanços que possa trazer para mulheres individuais,
em geral a militarização tem um impacto negativo no status da mulher na sociedade.
Transpondo esta idéia às missões de paz, pode-se afirmar que apesar dos benefícios que
as missões possam trazer a algumas mulheres, o fato destas serem levadas a cabo em
grande parte por militares traz, em si, prejuízos às mulheres, uma vez que a construção
social do soldado subtende práticas que lhe são prejudiciais, tais como a violência, os
estupros e o aumento da prostituição (Enloe, 2000).
Partindo da idéia de que a militarização está ligada a práticas prejudiciais às
mulheres, para muitos autores da literatura de gênero, a construção social do militar é o
principal fator explicativo dos casos de abuso e exploração sexual em missões de paz.
Para estes, a exemplo de Allison (2007), De Groot (2001), e Whitworth (2004)
28
, há uma
26
Argumento similar é traçado por CROUCH, Coulin. “Social Change in Western Europe”. Oxford:
Oxford University Press, 1999.
27
Citado por Arkin e Dobrovsky (1978, p. 156).
28
Ver também Arkin, W., Dobrofsky, L.R. (1978), "Military socialization and masculinity", Journal of
Social Issues, Vol. 34 No.1, pp.151-68; Higate, P.R. (Eds),Military Masculinities. Identity and the
State, Praeger Publishers, London, 2003; Higate, P.R., "Concluding thoughts: looking to the
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
76
contradição latente entre a cultura militar tradicional – que valoriza princípios ligados ao
estereótipo de masculinidade- e os valores requeridos em uma missão de peacekeeping
tais como conciliação, sensibilidade e compaixão, sentimento rejeitados na vida militar
preparatória para a guerra e para a proteção da nação. Segundo DeGroot, “The well-
trained soldier is hungry for battle because it is in battle that he asserts his dominance.
Yet the peacekeeper is supposed to keep aggression in check and pursue the path of
conciliation” (2001, p. 34).
Assim, a construção social do soldado seria a celebração do que há de mais
agressivo e inseguro na masculinidade: misoginia, homofobia, racismo, violência.
Segundo Whitworth (2004):
This does not mean that all male military peacekeepers are beasts, that every individual soldier is
violently homophobic, racist or sexist. It does mean, however, that all soldiers have been subjected
to the message that they have been given license to express these things. (2004, p. 3)
Por um lado, as missões de paz precisam de indivíduos como soldados; por outro,
exige que estes abdiquem de traços que os constroem enquanto tal (e que se acredita são
adequados em tempos de guerra) e se mostrem benignos, altruístas, neutros,
conciliadores.
Whitworth, em seu livro Men, Militarism and UN Peacekeeping (2004), defende
que as operações de paz seriam uma situação de segunda classe para os militares, uma
vez que o combate - o elemento principal para o qual estes indivíduos são treinados - não
estaria presente. Afinal, os soldados são criados socialmente para destruir outras pessoas
pela força (p. 151). Tal construção, foco da análise de alguns autores da sociologia
militar, como Arkin e Dobrofsky (1978), se dá através de uma série de ritos de passagem,
em que os jovens são expostos a imagens negativas de mulheres e homossexuais, usadas
como representação do que há de mais fraco (Carreiras, 2006, p. 43; Macdonald, 1987, p.
16). Atos de humilhação e violência têm como objetivo primeiro apagar qualquer traço de
individualidade, e em segundo lugar, inculcar, em todos, os mesmos valores de
masculinidade heterossexual, racismo, coragem, força, racionalidade, obediência,
disciplina e patriotismo – valores teoricamente ligados à masculinidade (p. 156). Nesta
future". In Higate, P. (Eds), Military Masculinities. Identity and the State, Praeger Publishers,
London, 2003, pp.201-16; Ingeborg Breines, Robert Connell & Ingrid Elle (eds) Male Roles,
Masculinities and Violence, Paris: UNESCO, 2000, pp. 21–33, at p. 29.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
77
construção, sentimentos como medo, culpa, remorso, tristeza e homossexualidade não são
permitidos
29
.
A grande influência exercida pela doutrinação militar se daria por inúmeros
fatores. Arkin e Dobrofsky (1978, p. 151) consideram que, na medida em que este
processo ocorre no período de transição da adolescência para a idade adulta (quando as
influências que o indivíduo recebe ainda exercem grande impacto na formação de sua
identidade), em um sistema social relativamente fechado, onde mecanismos de controle
são constantemente utilizados, em conjunção com uma significativa valorização de
atitudes e comportamentos que reforçam uma auto-imagem masculina, o doutrinamento
militar seria um poderoso agente de socialização secundária
30
.
Para Whitworth (2004), a suposta ausência de violência nas missões de paz
31
levaria a uma crise de masculinidade, já que “all the messages a soldier receives about
appropriately masculine soldierly behavior are fundamentally at odds with what is
expected in a peace operation” (p. 16). Sendo a masculinidade militarizada uma formação
frágil, que necessita constantemente de confirmações, a ausência de violência nas OPs
resultaria em uma crise que se expressa em explosões de violência – como atestam os
casos de tortura e execuções sumárias por militares canadenses na Somália, e no alto
índice de violência doméstica entre militares - e de “hipermasculinidade” – como
exemplificam os inúmeros relatos de estupros e de sexual assault registrados na missão
da ONU no Camboja (UNTAC)
32
. Whitworth afirma: “When ‘traces of femininity’
reemerge, soldiers react in a variety of ways. Some become angry, hostile and violent” (p.
167)
33
.
Desta forma, a violência permitida em períodos de guerra serve como um canal de
confirmação da masculinidade. Tal válvula de escape não existe, no entanto, nas missões
de paz, o que obriga o militar a internalizar quaisquer sentimentos vistos como
29
Whitworth acredita que tais rituais são semelhantes em distintos países, uma vez que “[t]he contemporary
practices of boot camp are remarkably similar across most modern state militaries”. (2002, p. 155)
30
A socialização primária seriam as influências sofridas no período anterior ao militar. (p. 152)
31
Lembramos que a violência é um fator presente em uma série de missões, em especial as de capítulo VII.
32
A necessidade de afirmação da masculinidade, para Carreiras (2006, p. 54), é causa do grande número de
casos de sexual harassement no mundo militar em geral, especialmente frente a um período em
que a guerra é cada vez menos a atividade militar por excelência.
33
Carreiras (2006, p. 29) afirma que, uma vez que a reprodução é necessária à manutenção das identidades,
quando estas são confrontadas com novas práticas, há uma tendência ao desenvolvimento de
crises, desafiando a ordem de gênero dominante.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
78
pertencentes a “traços femininos” – tal como medo, culpa ou tristeza. Esta internalização
explica o alto índice de stress pós-traumático existente entre militares, situação agravada
pelas OPs, já que, nestes contextos, os soldados não podem expressar sua raiva e
frustração da forma pela qual foram treinados (p.168). Segundo Whitworth:
Numerous consequences may flow from the construction of militarized masculinity: the sense of
license to sexually assault and exploit women when deployed on peacekeeping missions; the
hyperviolence against men understood as “foreign” and less than human; the high rates of
domestic violence recorded within military communities; and the incidence of post-traumatic
stress disorder and, importantly, militaries’ reactions to PTSD in soldiers who fail to live up to
military ideals. (2002, p.172)
Allison (2007), assim como Whitworth, também acredita que a prática do abuso
sexual está intimamente ligada à construção social da masculinidade, exacerbada no caso
de militares ou combatentes. Para a autora, algumas características da masculinidade
variam conforme a cultura e o tempo, enquanto outras, como força física, agressividade e
competência sexual- tendem a estar presentes em distintos contextos e entre diferentes
períodos históricos (p. 76). Em situações de conflito aberto, a agressividade é sancionada
pelo Estado, permitindo ao militar ou combatente afirmar sua masculinidade através de
atos de violência (Idem). Allison acredita que ainda que as mulheres também sejam
capazes de violência, a maioria das sociedades a condena, enquanto aprova o uso da força
por homens - não à toa funções como policiais, carcereiros e militares são mais ocupadas
por estes (Idem). Segundo DeGroot (2001, p. 26), na maioria das sociedades ocidentais, a
aceitação geral é de que as mulheres devem dar a vida, e não tirá-la. Assim, afirmam
Zarkov e Cockburn (2002, p. 13), a guerra eleva o homem ao mundo das armas e da
glória, enquanto a mulher fica relegada ao espaço doméstico: é o que Cockburn
34
chama
de “divisão sexual da violência”.
A sexualidade é outra parte importante da constituição da masculinidade no
combatente (p. 77). O estupro seria, para Alisson, uma forma de reafirmar a
heterossexualidade masculina evidenciada na construção do indivíduo como soldado.
Outra questão levantada pela autora na construção militar é a importância, em ambientes
dominados por homens, de uma cumplicidade entre pares, responsável pela tradição do
“muro do silêncio”- que dificulta a apuração dos casos de abuso sexual – e, em sua forma
34
COCKBURN, Cynthia. “The gender dynamics”. Peace News, junho-agosto 2001. Disponível em
http://www.peacenews.info/issues/2443/guested_gd.html
. Acesso em 01/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
79
mais extrema, pelos gang rapes. Segundo Relatório da Refugees International, a cultura
hiper-masculinizada, fruto do grande número de militares, causa, nas missões de paz,
uma tradição de silêncio, em que indivíduos tendem a acobertar casos de má-conduta
cometidos por seus colegas
35
.
Assim, para estes autores, o problema estaria na própria formação social do
militar, e, portanto, na utilização destes como principais participantes das missões de paz.
Dag Hammarskjöld, segundo Secretário-Geral da ONU, teria dito que 'peacekeeping is
too important to be undertaken by soldiers' (DeGroot, 2001, p. 33). Mas, acrescentou
Hammarskjöld, estes são os únicos capazes de fazê-lo
36
. Os autores aqui citados parecem
concordar com a afirmação: DeGroot acredita que, uma vez que existe a possibilidade de
violência nas missões de paz, a presença de pessoal treinado para combate é essencial
(Ibidem). Whitworth também acredita que indivíduos treinados para a guerra não são os
atores ideais para missões de paz. Mas os militares talvez sejam os únicos capazes de
empreender tais operações, especialmente com a crescente necessidade de mandatos
militarmente mais robustos. “There are no other large ‘contigents’ of people who could
be deployed relatively quickly to zones of conflict around the world. If sending soldiers is
not the best practice, it is the only practice” (Whitworth, 2004, p. 185).
Mas ainda que os militares sejam necessários por suas qualidades de combate,
estes também devem ser conciliatórios, pacientes e pacíficos. Segundo este grupo de
autores, poucos militares, no entanto, possuem todas estas qualidades juntas. É por isso
que as operações de paz têm sido testemunhas de atos de violência, acredita DeGroot
(2001, p. 33). A solução, para o autor, é simples: aumentar o número de militares
mulheres
37
. Olsson (2000) afirma que o aumento da participação das mulheres nas tropas
participantes das missões vai além do imperativo ético ou dos argumentos essencialistas
de que as mulheres seriam inerentemente, ou biologicamente, mais calmas e pacíficas (p.
9). A presença feminina nas missões de paz aumentaria a possibilidade de sucesso destas
35
Refugees International. “Must Boys be Boys? Ending Sexual exploitation”, 2005, p.5. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/publication/detail/6976/
. Acesso em 29/08/2008.
36
A frase exata é: “Peacekeeping is not a job for soldiers, but only soldiers can do it”.
37
Esta opinião não é representativa do feminismo dito “radical”, que, diferente do “feminismo liberal” (que
defende a participação das mulheres ao mundo militar), assume posições antimilitaristas e
pacíficas. Algumas feministas, como Cynthia Enloe, acreditam que a integração das mulheres às
forças armadas acaba por reforçar a dominação masculina da sociedade, assim como a
discriminação às mulheres (Carreiras, 2006, p. 66).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
80
(Mazurana, 2002, p. 43), já que estimularia a diminuição do número de estupros e de
casos de abuso de poder, e contribuiria para as resoluções pacíficas dos conflitos, através
da melhora das negociações (Ibidem).
Além de ajudar na conquista do apoio local, uma vez que as mulheres são menos
vistas como uma ameaça, a presença feminina traria uma mudança positiva das relações
de gênero no país-receptor (Olsson, 2000, p. 10). Segundo Angela Mackay
38
, mulheres
locais tendem a confiar mais em peacekeepers mulheres, e negociadoras do sexo
feminino tendem a entender melhor as implicações dos processos de paz para as
mulheres. Quando ao menos 30% dos participantes das missões são do sexo feminino,
acredita Mackay, as mulheres locais tendem a participar mais de comitês pela paz, que,
por sua vez, darão mais atenção a suas questões. Segundo Kent (2007, p. 56), casos de
AES caem significativamente com o aumento da participação de mulheres.
Assim, a despeito de argumentos sobre a menor capacidade física das mulheres, e
sobre as conseqüências negativas para a coesão do grupo, a inclusão de mulheres nas
missões de paz aumentaria sua efetividade, já que estimularia a capacidade das mulheres
locais e o apoio da sociedade hospedeira, e tornaria as OPs mais sustentáveis e justas.
Para DeGroot (2001), no entanto, os benefícios trazidos pelas mulheres seriam mais
específicos: “There is no evidence that women make better peacekeepers, but a great deal
of evidence to suggest that the presence of women improves an operation’s chances of
success”. Ou seja, a participação de mulheres deve ser aumentada não porque estas
estejam mais aptas às missões de paz, mas porque os homens estariam menos inclinados
a comportar-se mal sexualmente na presença de mulheres de sua própria cultura. Assim, a
maior presença de mulheres diluiria certas características negativas dos militares. A idéia
de Ehrenreich
39
é representativa da idéia, defendida por muitas feministas: “I hoped that
the presence of women would over time change the military, making it more respectful of
other people and cultures”.
De fato, o gender balance
40
tem sido estimulado pela ONU- seguindo a tendência
da área militar dos países ocidentais (Moskos, Carreiras, 2006, p. 84)- mas o número de
38
Citado por Whitworth (2002, p. 126).
39
EHRENREICH, Barbara. “What Abu Ghraib Taught Me”. AlterNet, 20/05/2004. Disponível em
http://www.alternet.org/story/18740/
. Acesso em 06/10/2008.
40
Gender balance é a política de tornar o número de mulheres participantes em uma dada instituição,
hierarquia e posições tão representativo quanto o número de homens.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
81
mulheres na área militar é ainda pequena. Entre 1957 e 1989, as mulheres representavam
apenas 0,1% de todos os militares de missões de paz. Hoje, de 77.057 militares
participantes de missões de paz no total, apenas 1734 são mulheres, ou cerca de 2,25% do
total
41
. Apesar do aumento da participação de militares do sexo feminino, sua
representação ainda é notavelmente menor que a dos homens
42
. Segundo Hicks, muitas
OPs ainda são totalmente constituídas por homens
43
(Hicks, 2001, p.40).
Apesar de afirmar que uma das razões da grande quantidade de relatos de estupro
e sexual assault na UNTAC
44
era a pouca quantidade de mulheres na missão (2002, p.
71), Whitworth não defende a inclusão do sexo feminino como forma de amenizar a
identidade militar masculina. Isto porque, para a autora, a inclusão de mulheres e gays no
Exército nunca será total, uma vez que a admissão destes elementos é visto como um
fator de enfraquecimento da união existente na vida militar. De fato, a idéia de que a
função do mundo militar é a de proteger a sociedade, e não de garantir direitos iguais- o
que prejudicaria a efetividade das forças armadas, não só porque as mulheres não têm as
qualidades físicas necessárias (como rapidez, força e resistência), mas porque estas
prejudicariam o sentimento de coesão social existente (Segal, 1982; Carreiras, 2006, p.
92), têm sido repetidos incessantemente (Carreiras, 2006, p. 87).
Entretanto, ainda que a inclusão das mulheres às forças armadas fosse bem-
sucedida, diversas críticas podem ser feitas sobre os efeitos positivos esperados deste
processo. Olsson afirma que, apesar da tendência ser benéfica, há, ainda, uma grande
ausência de pesquisas sobre os impactos da maior inclusão de mulheres nas OPs (2000, p.
10). A autora acredita que temos de ter cuidado com o que esperar das mulheres como
indivíduos: Podemos, sim, esperar delas que sejam mais negociadoras, uma vez que
foram socializadas em opções mais pacíficas que os homens (Idem, p. 12). Mas não se
pode acreditar que todas as mulheres ajam de acordo com seus papéis femininos.
Numerosos estudos já mostraram que a presença das mulheres não necessariamente altera
a cultura militar dominante. Na verdade, a presença feminina pode reforçá-la, uma vez
41
“Gender Balance”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/gender/2008gender/aug08.pdf. Acesso em
01/10/2008.
42
O pequeno número de mulheres explica-se especialmente pelo baixo número de mulheres nas forças
armadas dos TCCs.
43
Caso da BINUB, MINURCAT, UNAMA, UNIOSIL e UNMIT (idem).
44
Resolução 745 do Conselho de Segurança, 28/02/1992.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
82
que, por serem estigmatizadas e ocuparem cargos específicos, acabam enfatizando as
diferenças entre homens e mulheres
45
.
Ainda mais sério que o reforço às diferenças, é a possibilidade de que as mulheres
sejam envolvidas nos supostos ideais e imagens masculinas do mundo militar, física ou
sociologicamente. Representativa desta possibilidade é a preocupação existente em
manter as mulheres militares femininas. Hillman (1999, p. 90) afirma que a preocupação
com a “masculinizaçao” física das mulheres é uma constante nas forças armadas
americanas, o que pode ser atestado pela separação entre homens e mulheres nos
alojamentos militares e nos treinamentos, e na diferenciação dos uniformes, que incluem,
freqüentemente, a obrigatoriedade de saias para o sexo feminino (Carreiras, 2006, p. 53).
Mas a masculinização das mulheres pode dar-se não só nos aspectos físicos, mas
também nos fatores ideológicos e sociológicos, influenciando a própria identidade das
mulheres militares. Whitworth descreve como militares canadenses na Somália
torturaram e mataram brutalmente um adolescente somali em março de 1993
46
. A
similaridade do caso canadense com os atos cometidos por militares americanos em Abu
Ghraib
47
, em 2003, é significativa. Ainda que não tenham, em grande parte, sido atos de
violência física, estes continham, como no caso canadense, grande carga de racismo,
intolerância cultural e sexismo, representadosno caso iraquiano, através de atos de
humilhação e tortura de cunho sexual
48
. A diferença, neste caso, é que três dos sete
perpetradores - Megan Ambuhl, Lynndie England e Sabrina Harman - eram mulheres
49
.
A significativa presença, portanto, do sexo feminino na administração da prisão
não foi capaz de evitar que os detentos homens sofressem torturas de conotação sexual,
com o objetivo de humilhá-los através de sua “feminização” (com base na imagem da
45
International Alert. “Gender Mainstreaming in Peace Support Operations: Moving Beyond Rhetoric to
Practice”. Julho de 2002, p. 30.
46
“Canada: Peacekeeping Country Par Excellence?”. In Whitworth, 2005. Para mais detalhes sobre os
casos da Somália, ver: “Dishonoured Legacy - The Lessons of the Somalia Affair”. Report of the
Comission of Inquiry into the Deployment of Canadian Forces to Somalia. Canada: Minister of
Public Works and Government Services, 1997.
47
Até agosto de 2006, o lugar conhecido como Prisão de Abu Ghraib foi usado pela frente de ocupação
norte-americana para manter detentos iraquianos.
48
Tais atos de humilhação e tortura incluíam sodomizar detentos, forçá-los a se masturbar, a simularem
posições homo-eróticas e a vestirem roupas de mulheres.
49
Os altos escalões envolvidos no caso eram, também, do sexo feminino: A brigadeiro Janis Karpinski era
a responsável pelas prisões no Iraque, e a mais alta funcionária do U.S. Intelligence Officer com
relação aos detentos iraquianos era a major Barbara Fast.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
83
mulher como infantil e vulnerável)
50
. Ou seja: perpetradoras mulheres passam a participar
ativamente de atos de que o sexo feminino era a forma em si de humilhação, reforçando a
visão de características femininas e homossexuais como degradantes e vergonhosas
51
.
Como afirma Eisenstein (2008): “Just the sex has changed; the uniform remains the
same”. O desejo de integração e de igualdade dentro da instituição pode, assim, fazer
com que as mulheres sejam assimiladas a um mundo em que a violência e a falta de
sentimentos como remorso, culpa ou piedade e o cumprimento não-crítico de ordens são
valorizados. Para serem respeitadas, as mulheres devem provar que também podem jogar
as regras do jogo (Kaufman-Osborn, 2005, p. 20).
Assim, Abu Ghraib é uma das muitas evidências de que violência e racismo não
são exclusivos nem do homem, biologicamente falando, nem do militar do sexo
masculino. Barbara Ehrenreich, em seu artigo “What Abu Ghraib Taught Me” (2004),
exemplifica o sentimento de muitas feministas americanas (Kaufman-Osborn, 2005),
especialmente frente ao impacto das fotos de mulheres torturando detentos: “A uterus is
no substitute for a conscience... A certain kind of feminism, or perhaps I should say a
certain kind of feminist naiveté, died in Abu Ghraib
52
. Mas não é somente este argumento
essencialista, baseado em “visões de gênero retrógradas” e estáveis (Idem, p. 7), que é
posto em xeque: Diferentemente do que afirmara DeGroot, a presença feminina não fez
com que os homens se comportassem melhor, uma vez que as mulheres estavam
integradas e assimiladas ao mundo militar e a seus valores
53
, tornando óbvia a distinção
entre sexo e gênero (Idem, p. 10).
50
A humilhação através da feminização pode ser confirmada pelo depoimento do ex-detento de Abu
Ghraib Dhia al-Shweiri: “They were trying to humiliate us, break our pride. We are men. It's OK
if they beat me. Beatings don't hurt us, it's just a blow. But no one would want their manhood to
be shattered. They wanted us to feel as though we were women, the way women feel and this is
the worst insult, to feel like a woman”. Citado por Kaufman-Osborn (2005, p. 14).
51
EISENSTEIN, Zillah. “Sexual Humiliation, Gender Confusion and the Horrors at Abu Ghraib”,
22/06/2004. Disponível em http://www.zmag.org/znet/viewArticle/8326. Acesso em 04/10/2008.
Ver também Puar, Jasbir K. 2004. “Abu Ghraib: Arguing against Exceptionalism.” Feminist
Studies 30 (2): 522-354.
52
EHRENREICH, Barbara. “What Abu Ghraib Taught Me”. AlterNet, 20/05/2004. Disponível em
http://www.alternet.org/story/18740/. Acesso em 06/10/2008.
53
Ehrenreich (2004) afirma que “What we need is a tough new kind of feminism with no illusions. Women
do not change institutions simply by assimilating into them, only by consciously deciding to fight
for change. We need a feminism that teaches a woman to say no -- not just to the date rapist or
overly insistent boyfriend but, when necessary, to the military or corporate hierarchy” (op cit.)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
84
Muitos estudos empíricos cujo foco é a integração do sexo feminino às
organizações militares têm chegado à conclusão de que este processo pode ter resultados
benéficos, e que homens e mulheres podem trabalhar efetivamente juntos
54
, o que
estimularia a visão das mulheres como indivíduos, e não como parte de uma categoria
sexual (Carreiras, 2006, p. 91). Assim, a integração é, sem dúvida, benéfica, mas está
longe de resolver todos os problemas. Nas operações de paz, nem sempre a presença de
unidades de mulheres garante que as necessidades das mulheres locais serão levadas em
conta, ou que casos de AES diminuirão. Se, de fato, o aumento do número de mulheres
diminuiria casos de AES, uma vez que inibiria os homens, como explicar a cada vez
maior participação de funcionários humanitários e civis em casos de abuso e exploração
sexual de mulheres e crianças, uma vez que no meio civil a participação de mulheres é
maior
55
?
Tanto DeGroot (2001) quanto Whitworth (2004) afirmam negar teorias
essencialistas - que argumentam que os homens seriam biologicamente inclinados à
violência; enquanto as mulheres seriam mais pacíficas, maternas e caridosas. Mas ambos
os autores acreditam que o problema está na própria utilização do militar como principal
participante das missões de paz, o que subtende a impossibilidade de mudança destes
através do treinamento. Tal argumento, ainda que não corrobore teorias essencialistas,
acaba por definir um determinismo à construção social do soldado. Inúmeras outras
falhas conceituais e argumentativas permeiam esta literatura. O primeiro questionamento
que podemos fazer é: Se o âmago do problema de AES em missões de paz está na
construção social do soldado, duas perguntas podem ser aqui colocadas: 1) Como
explicar os muitos casos cometidos por civis?
56
2) Como explicar que muitos militares,
submetidos aos mesmos ritos de passagem, não se engajem em casos de violência e AES?
54
Ver MOSKOS, Charles. “Female GI’s in the field”. Society, 22,6, pp.28-33, 1985; DEVILBISS, M.C.
“Gender Integration and Unit Deployment”. Armed Forces and Society, n.11, vol.4, pp.523-552,
1985.
55
Em algumas missões de paz, a porcentagem de mulheres dentre civis chega a até 53%. International
Alert. “Gender Mainstreaming in Peace Support Operations: Moving Beyond Rhetoric to Practice.
Julho de 2002 (p.43). Disponível em http://www.international-
alert.org/pdfs/Gender_Mainstreaming_in_PSO_Beyond_Rhetoric_to_Practice.pdf. Acesso em
30/08/2008.
56
Para casos cometidos por civis, ver: “Civilian employees, not soldiers, will be big problem as United
Nations tackles sex abuse, official says”. Associated Press, 15/03/2005. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/4047/
. Acesso em 30/08/2008. “UN
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
85
Outra limitação em considerar a construção social do militar como principal fator
explicativo de AES é que tal argumento subtende a classe militar como algo homogêneo,
sem interação com outros elementos da sociedade. Higate (2004, p. 69) aponta para uma
tendência, no estudo da interação entre militares e mulheres, a universalizar as
identidades masculinas, uma vez que o foco destas análises são as mulheres, e não os
clientes. Assim, estabelece-se uma tendência em representar os militares participantes das
operações de paz como uma categoria única: “They appear somewhat one-dimensional,
devoid of agency, and motivated by their desire to exercise power over disadvantaged
women in line with their ‘uncontrollable biological’ urges”. (Idem, p. 10)
Desta forma, ainda que Whitworth e DeGroot afirmem não corroborar com teorias
essencialistas, ao verem todos os peacekeepers como uma categoria homogênea ligada à
violência e sempre inclinada a atos que reafirmem sua heterossexualidade agressiva,
ainda que tal inclinação não seja biológica, mas social, os autores limitam as
possibilidades de mudança e escolha destes indivíduos, e subtendem um determinismo
em seus comportamentos. Segundo Higate, tal argumentação determinista não permite
que soluções a estes problemas sejam pensados e formulados: “This conceptualisation
turns on essentialising and universalising military masculinity and represents a poor basis
from which to build effective policy response” (2004, p. 10).
Ao ignorarem que a masculinidade não é um fenômeno único, mas sim algo que
se apresenta de diferentes formas (Zarkov, Cockburn, 2002, p. 13), autores como
Whitworth estariam dando excessivo peso ao militarismo como variável explicativa, e
não conseguiriam ver que o peacekeeper não é somente influenciado pelo mundo militar,
ainda que este exerça grande influência em sua identidade, mas também por
características como raça, etnia, classe, idade, nacionalidade, dentre tantas outras
características que influenciam a identidade do indivíduo (Higate, 2004, p. 70), e que
podem, até mesmo, suplantar, em alguns momentos, a identidade militar. Dudink
descreve tal argumento simplista como “(...) the fantasy of a singular, self-evident,
natural masculinity that is at the heart of the modern discourse of gender” (2002, p. 161).
and NGOs Commit to Eliminating Sexual Abuse by All International Agency Personnel”.
Refugees International, 01/12/2006. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/9684. Acesso em 30/08/2008
. “No One
to Turn To: The under-reporting of child sexual exploitation and abuse by aid workers and
peacekeepers”. Save the Children, 27 de maio de 2008 (ver nota 19).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
86
A multiplicidade de identidades militares é ainda mais notável no mundo militar
pós-moderno, em que as instituições militares cada vez mais se misturam com a
sociedade civil
57
, e em que preocupações com ameaças nacionais são substituídas, cada
vez mais, por questões humanitárias (Williams, Segal, Moskos, 2000)
58
. O resultado
destas mudanças é que, se antes a solidariedade e a coesão eram baseadas em modelos
compartilhados de masculinidade, agora estes são substituídos por uma ética
individualista e mais instrumental. Visões tradicionais de masculinidade perderam muito
de seu poder integrativo: Muito mais do que um lugar que transforma meninos em
homens, as forças armadas são, agora, um lugar para profissionais qualificados e de
obtenção de capacidades técnicas (Carreiras, 2006, p. 45). A importância que a força
física e as qualidades de combate tinham anteriormente na construção do militar acaba
por perder sua força com as novas tecnologias utilizadas e com as novas funções
exercidas, como as operações de paz, em que o combate está longe de ser o fator
principal.
Dois exemplos de como as identidades masculinas podem ser múltiplas podem
ser dados: Em sua análise sobre as forças armadas da Holanda, Dudink (2002, p. 148)
percebe que a identidade militar clássica, ligada à violência e ao patriotismo, nunca foi
hegemônica na construção da identidade nacional holandesa. Tal representação “clássica”
teve, desde tempos imemoriais, de conviver com identidades alternativas, em que a
masculinidade estava ligada a valores como moralidade, moderação e contemplação
(Idem, p. 160). Estas diferentes relações com “princípios militares”, como violência e
heroísmo, construídas a partir da comparação com outros países, são apresentadas como
qualidades, e não como fraquezas, uma vez que qualificam o país para atuar em outras
áreas, tais como as operações de paz (2002, p. 149)
59
.
57
No pós-Guerra Fria, há cada vez mais necessidade de especialistas não-militares para o desenvolvimento
de complexos sistemas de armamentos, substituindo forças armadas em massa por forças
voluntárias e menores e de maior profissionalismo e qualidade técnica (Carreiras, 2006, p.74).
58
Carreiras (2006, p. 45) afirma, ainda, que há uma notável heterogeneidade dentro das forças armadas,
uma vez que o nível de aceitação de mulheres varia muito entre os órgãos e as divisões
hierárquicas.
59
Dudink afirma, no entanto, que a construção da imagem do soldado holandês como menos violento e
mais pacífico não quer dizer que a realidade seja da mesma forma, como atestam as atrocidades
cometidas na guerra de independência da Indonésia, entre 1946 e 1948 (2002, p. 160). Outra
ressalva importante a ser feita é que a construção de uma masculinidade mais moderada não
significa que esta será melhor para as mulheres (idem, p. 161).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
87
Ao analisar um batalhão do sub-continente indiano, formado em sua maioria por
muçulmanos, participante da missão da ONU em Serra Leoa, Higate (2004) percebe que
os valores ligados a sua religião tendem a ser mais fortes do que a necessidade que
teriam, segundo o argumento de Whitworth, de confirmar sua heterossexualidade. Assim,
quando confrontados com mulheres com seios de fora, os militares pedem às mulheres
que se vistam. Higate (2004, p. 80) vê esta masculinidade como algo que se quer virtuoso
e moral, e que tem como objetivo ensinar princípios éticos (tais como vestir-se
adequadamente) a povos vistos como “primitivos”. Estes valores religiosos não permitem
que os peacekeepers se envolvam em relações sexuais, evitando que os homens se
distraiam pelas “tentações diárias”. Portanto, esta “masculinidade religiosa” teria, ao
menos nesta situação, mais influência que a masculinidade militar.
A conclusão da análise destes casos é que existem, num único indivíduo,
inúmeras masculinidades (Higate, Henry, 2005, p. 483). Segundo Connelly (2002, p. 35),
a conseqüência desta multiplicidade existente é que a violência não é a única forma de se
expressar a masculinidade, ainda que o autor admita que algumas identidades masculinas
sejam, de fato, hegemônicas. Ao analisar as identidades existentes nas missões de paz,
Higate e Henry (2005, p. 489) afirmam existir pelo menos três “masculinidades”
distintas: a do homem que vê as relações com as mulheres locais como algo natural e
legítimo, a daquele que se vê como vítima da insistência agressiva das mulheres locais, e
o “homem disciplinado”, que evita as tentações sexuais.
Higate acredita que o comportamento de militares que recorrem a prostitutas em
missões de paz tem mais semelhanças com o turista sexual do que propriamente com o
mundo militar, uma vez que ambos se dão em uma situação de grandes disparidades de
recursos, e de grande possibilidade de impunidade, diferente do país-natal do turista
sexual ou do militar (2007, p. 110). Ambos estariam, portanto, fazendo aquilo que não
fariam em seus locais de origem. Para Higate (2007, p. 103), o contexto sócio-
econômico, as disparidades que permeiam as relações entre peacekeepers e mulheres
locais e a sensação de impunidade (características típicas de contextos de pós-conflito)
seriam chaves explicativas muito mais eficientes, uma vez que poderiam explicar,
também, o envolvimento de civis.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
88
Sem dúvida, o conceito de masculinidade militar oferece um importante ponto de
partida analítico para entender o abuso e a exploração sexual em missões de paz (Higate,
2007, p. 101). Mas determinar o militarismo como variável explicativa única é
excessivamente simplista, uma vez que não permite entender os motivos pelos quais
tantos militares, embebidos na mesma cultura militar, não se engajam em relações de
exploração. Assim, olhar somente para a construção social do soldado através da
violência e da necessidade de afirmar sua sexualidade é reforçar a falta de agência e o
determinismo, uma vez que este seria formado e controlado pela lavagem cerebral sofrida
nos ritos de passagem. Tais argumentos têm semelhanças relevantes com argumentos
utilizados pelos próprios militares de que seu desejo sexual não pode ser controlado, e
estes, portanto, não podem ser responsabilizados por seus comportamentos,
especialmente frente à insistência das mulheres locais (Idem, p. 106).
Além disso, generalizar a imagem do militar como alguém sempre inclinado a se
envolver em relações sexuais obscurece as experiências daqueles que agem de forma
distinta (que são, de fato, a maioria do contingente). Higate (2007, p. 106) narra o caso de
um observador militar casado e com filhos que tinha, constantemente, que relembrar a
seus colegas que “não precisava de uma namorada”. Permitir agência e subtender a
capacidade de escolher é deixar espaço para que se exija um comportamento adequado de
militares, e para que se refute argumentos como “Homens serão sempre homens, e não
podem ser treinados de outra forma. Violência e estupros são parte de sua própria
natureza” (Connell, 2002, p. 34). Afinal de contas, afirma Connell (Ibidem), quase todos
os soldados são homens, mas nem todos os homens são soldados. Quase todos os
assassinos são homens, mas a maioria nunca vai matar ninguém. Ainda que todos os
estupradores sejam homens, a maioria nunca cometeu um estupro. Valorizar o
comportamento daqueles que não agem de forma imprópria é quase tão importante
quanto analisar aqueles que o fazem.
Neste ponto, a literatura jurídica sobre as imunidades dadas a participantes de
missões de paz tem grandes contribuições a fazer na análise do AES em missões de paz,
já que permite uma análise das razões pelas quais existe uma forte sensação de
impunidade nas OPs. O surgimento de casos de má-conduta e de violações de direitos
humanos cometidos por peacekeepers, tais como assassinatos, execuções sumárias,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
89
tortura, envolvimento com crime, suborno e também o estupro e a violência contra a
mulher incentivam certas perguntas: Pode a ONU ser considerada como uma das partes
de um conflito? Estão obrigadas as operações de paz a respeitar o direito humanitário
internacional? Esta produção acadêmica jurídica terá como foco principal oferecer
sistemas que garantam o cumprimento dos códigos de conduta e dos direitos humanos,
diante das imunidades estabelecidas
60
.
Outro ponto importante de crítica é sobre a visão da hierarquia e da obediência,
características resultantes do treinamento militar já enfatizadas pelo estudo sociológico
das instituições militares
61
, como valores militares exclusivamente negativos. Whitworth
(2004, p. 158) afirma que na construção social do militar, a obediência, a importância da
cadeia de comando e a promoção do senso de solidariedade entre os soldados são
características notáveis. “Soldiers need to see also that they are part of a chain of
command that follows clear and highly structured lines of authority from which no one,
at any level, is allowed to deviate”(p. 158). O que é visto como um defeito pela autora,
uma vez que não permite a análise dos valores e das ordens ou a presença e exposição de
diferentes opiniões, pode ser uma importante característica positiva na implementação de
regras claras sobre abuso e exploração sexual. As organizações civis, tais como as ONGs,
são valorizadas por sua estrutura hierárquica descentralizada, centrada na iniciativa e no
compromisso individual, o que lhes garantiria um caráter mais flexível e democrático
(Aall, 2002, p. 135).
Tal caráter informal, no entanto, dificulta a generalização de ordens comuns, uma
vez que a individualidade existente faz com que se dependa do engajamento de cada
funcionário para com as ordens. Já a disciplina e a forte estrutura hierárquica existente no
mundo militar, ainda que limitem a problematização de valores e de ordens, facilita a
internalização de regras. Além disso, diferente da situação de militares, sujeitos à justiça
militar de seus países, não está claro a quem respondem os trabalhadores humanitários de
60
A exemplo de MURPHY, R. “United Nations military operations and international humanitarian law:
what rules apply to peacekeepers? Criminal Law Forum. Vol.14, n.2, junho de 2003, pp.153-194;
HAMPSON, Françoise, KIHARA-HUNT, Ai. “The accountability of personnel associated with
peacekeeping operations”. In AOI, Chiyuki, CONING, Cedric de, THAKUR, Ramesh (ed.)
Unintended consequences of peacekeeping operations. Tokyo, New York, Paris: United Nations
University Press, 2007.
61
A exemplo de Arkin e Dobrofsky (1978) e Carreiras (2006).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
90
ONGs – se a seus governos, se à população local, se a seus doadores- (Aall, 2002, p.
138), o que aumenta a sensação de impunidade.
Uma última crítica que pode ser feita a Whitworth é que, se casos de violência e
abuso sexual se dariam pela ausência de conflitos nas operações de paz, o que impediria a
existência de uma válvula de escape, como explicar que grande parte dos casos de AES
se dêem justamente em OPs robustas, tais como a Missão de Estabilização das Nações
Unidas no Haiti (MINUSTAH) ou a Missão da ONU na República Democrática do
Congo (MONUC), em que, em diversas situações, os conflitos entre peacekeepers e
facções locais podem atingir níveis de extrema violência, com risco de vida para ambas
as partes?
Assim, as teorias que defendem que os problemas gerados pelas OPs são causados
pela utilização de militares em si como participantes não serão utilizadas nesta pesquisa.
Suas idéias, simplistas e essencialistas, não conseguem 1) abarcar a diferente gama de
experiências existentes no mundo militar, formadas através das muitas identidades sociais
que convergem na formação do soldado; 2) nem tampouco explicar os casos de abuso e
exploração sexual cometidos por civis. Além das falhas teóricas apontadas, tal imagem
“preconceituosa”, construída e difundida por esta literatura, não ajuda, em nada, a
melhora da coordenação civil-militar, imprescindível para a boa implementação das
operações de paz
62
.
3.4
Gênero e missões de paz
Para Whitworth, sendo o problema das missões de paz os próprios militares,
pressionar pela inclusão de questões de gênero na ONU, e não pela substituição dos
militares, seria uma prática inútil, que resultaria no reforço do próprio militarismo (2002,
p. 121). A autora afirma, ainda, que ao usar o conceito de gênero para políticas de
problem-solving, sua capacidade crítica é esvaziada (Idem, p. 137). Mas para outros
autores, que serão analisados aqui, incluir questões de gênero às políticas da ONU é a
62
Idéia defendida pelo Capitão Fábio Cordeiro Pacheco, do Setor de Doutrina do Centro de Instrução de
Operações de Paz (CiOpPaz) do Exército Brasileiro. Entrevista à autora por email, 13/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
91
principal via de proteção e promoção das mulheres em missões de paz. Isto não quer
dizer que para esta produção acadêmica os militares estejam prontos a manterem a paz:
uma vez que não há um botão que transforme automaticamente soldados em
peacekeepers, o treinamento é essencial (Fetherston, 1998, p. 167).
Diferente de Whitworth, portanto, autoras como Mackay (2003) e Puechguirbal
(2003) acreditam que o treinamento adequado das tropas pode resolver, ou pelo menos
diminuir, os casos de má-conduta sexual e aumentar a efetividade das missões. Como diz
Fetherston (1998, p. 167): “The basic military training is still widely considered the best
means of producing effective peacekeepers”. O foco, portanto, não é problematizar os
militares, mas estimular o bom comportamento destes. É a partir da crença de que o
treinamento é uma ferramenta efetiva no estímulo da conduta adequada que parte,
também, esta pesquisa. “If, however, soldiers have been created through rigorous training
and adherence to particular assumptions and codes, so too can peacekeepers” (Fetherston,
1998, p. 170).
Frente à ausência de preocupação específica com questões de gênero nas políticas
das Nações Unidas, ONGs de direitos humanos e direitos das mulheres, governos e
agências da ONU (como o Fundo nas Nações Unidas para as Mulheres) pressionaram, na
década de 90, para que o tema fosse introduzido no direito internacional, nos tratados e
nas resoluções da organização (Carey, 2001, p.50; Mazurana, 2002, p. 41). Ao longo da
década de 90, a promoção de práticas como gender balance e gender mainstreaming
63
passam, cada vez, mais, a estarem presentes nos documentos da ONU, nas mais
diferentes áreas, incluindo questões referentes a conflitos armados, segurança, e missões
de paz
64
.
Para feministas dentro e fora das Nações Unidas, a Resolução 1325 foi o ápice
deste esforço (Whitworth, 2004, p. 121). A resolução do Conselho de Segurança (CS),
63
“Mainstreaming a gender perspective is the process of assessing the implications for women and men of
any planned action, including legislation, policies or programmes, in all areas and at all levels. It is
a strategy for making women’s as well as men’s concerns and experiences an integral dimension
of the design, implementation, monitoring and evaluation of policies and programmes in all
political, economic and societal spheres so that women and men benefit equally and inequality is
not perpetuated”. (Olsson, 2001, p. 98).
64
Para mais sobre os documentos que estabelecem o “gender mainstreaming”, ver International Alert.
“Gender Mainstreaming in Peace Support Operations: Moving Beyond Rhetoric to Practice”,
julho de 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
92
lançada em 31 de outubro de 2000, é fruto de intensa pressão de ONGs, Estados-
membros, e outros órgãos da ONU. Entitulada de Resolução sobre Mulheres, Paz e
Segurança (Resolution on women, peace and security), o documento é um marco na
aceitação dos impactos diferenciados de conflitos armados nas mulheres e meninas, e no
reconhecimento da necessidade de levar em conta tais especificidades em todas as etapas
da construção da paz, inclusive nas operações de peacekeeping. Era a primeira vez que o
CS da ONU admitia o impacto diferenciado dos conflitos nas mulheres, garantindo,
assim, uma base legal na qual os movimentos pelas mulheres podiam se apoiar na pressão
para que as questões de gênero fossem levadas em conta em temas referentes à
segurança.
A partir da Resolução 1325, estabelece-se o entendimento de que as operações de
paz também devem dar prioridade às questões de gênero: O empowerment das mulheres e
de suas organizações deve ser levado em conta nos processos de negociação da paz e na
reconstrução da sociedade (especialmente as patriarcais, em que as mulheres são
tradicionalmente cidadãs de segunda classe), através do aumento da participação das
mulheres nas novas instituições da sociedade civil, da divulgação dos direitos das
mulheres através de campanhas de esclarecimento público, em especial contra a violência
de gênero, e da criação de órgãos especiais (como os Gender Units
65
) para suas
necessidades especiais e para o registro de dados sobre a situação da mulher nestas
sociedades
66
.
Além disso, o gender mainstreaming
67
deve ser enfatizado na própria operação,
através do aumento qualitativo e quantitativo de funcionárias internacionais, locais e
militares do sexo feminino
68
. Desta forma, as missões de paz passam a incluir questões
65
As Unidades de Gênero são responsáveis por implementar o treinamento em questões de gênero,
organizar encontros e seminários, pressionar pela implementação de políticas para as mulheres,
colaborar com outras agências da ONU em questões de gênero etc.
66
Conselho de Segurança. “Resolution on Women, Peace and Security”. S/RES/1325, 31 de outubro de
2000. Disponível em http://www.peacewomen.org/un/sc/1325.html. Acesso em 30/08/2008.
67
“Mainstreaming a gender perspective is the process of assessing the implications for women and men of
any planned action, including legislation, policies or programmes, in all areas and at all levels. It is
a strategy for making women’s as well as men’s concerns and experiences an integral dimension
of the design, implementation, monitoring and evaluation of policies and programmes in all
political, economic and societal spheres so that women and men benefit equally and inequality is
not perpetuated”. (Olsson, 2001, p. 98).
68
“Gender Resource Package for Peacekeeping Operations”. Peacekeeping Best Practices Unit.
Departamento de Operações de Paz (DPKO), 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
93
de gênero em seus mandatos e exercícios, incentivando uma grande produção acadêmica
sobre o papel da mulher na construção da paz e nas missões
69
, cujo foco maior é a
marginalização da mulher no planejamento e na implementação das OPs, e as práticas
estabelecidas para promover a igualdade de gênero dentro das operações e nas próprias
sociedades receptoras. Missões como as do Timor Leste (UNTAET e UNMISET) e da
Namíbia (UNTAG), em que houve claro estimulo à participação das mulheres nas
eleições, e à inclusão dos direitos das mulheres na nova constituição (Olsson, 2001,
pp.100-102), são freqüentemente apontadas como sucessos destas implantações.
Vários autores, no entanto, atestam que apesar da linguagem dos pronunciamentos
e dos documentos da ONU terem incorporado as questões de gênero, e apesar de alguns
esforços concretos terem sido postos em prática, como a implementação de escritórios de
Gender Affairs em várias OPs (Mazurana, 2002, p. 45), as práticas de inclusão dos temas
de gênero na organização, e mais especificamente nas missões de paz, não foram bem-
sucedidas
70
. Para Raven-Roberts (2007), a falta de coerência da organização com relação
ao que seriam, afinal, as questões de gênero a serem abordadas seria um dos motivos
deste “fracasso”. Há, ainda, uma falta de procedimentos operacionais padrão, o que faz
com que cada agência ou órgão desenvolva suas próprias políticas, com base em suas
próprias interpretações do que seriam as práticas adequadas (Raven-Roberts, 2007, p.
52). Segundo Whitworth (2004, p. 120), muitos funcionários da ONU admitem não saber
o que exatamente significa implementar práticas de gender mainstreaming em suas áreas
de responsabilidade.
Outro fator explicativo da dificuldade em incluir questões de gênero nos
documentos e práticas da organização é a falta de mecanismos de monitoramento de
implementação e de efetividade, com objetivo de testar os impactos da implantação de
69
A exemplo de MAZURANA, Dyan, RAVEN-ROBERTS, Angela. Gender, Conflict and Peacekeeping.
Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2005 e OLSSON, Louise (ed.), Women and
International Peacekeeping. Londres: Frank Cass, 2001; MOSER, Caroline, CLARK, Fiona.
Victims, perpetrors or actors? Gender, armed conflict and political violence. Londres : Zed
Books, 2001 ; KARAME, Kari (ed.), « Gender and Peace-building in Africa », Training for Peace,
Norsk Utenrikspolitisk Institutt, 2004. PANKHURST, Donna. « Women, Gender and
Peacebuilding ». Centre for Conflict Resolution, Working Papers #5, 2000. Disponível em
http://www.bradford.ac.uk/acad/confres/assets/CCR5.pdf
. Acesso em 19/09/2008.
70
Para mais sobre as dificuldades na inclusão das questões de gênero nas operações de paz, ver:
International Alert. “Gender Mainstreaming in Peace Support Operations: Moving Beyond
Rhetoric to Practice”. Julho de 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
94
tais políticas em mulheres e meninas (Raven-Roberts, 2007, p. 53). Stiehm (2001, p. 44)
resume a situação ao afirmar que três ‘I’s são necessários: primeiro a inércia deve ser
vencida; depois energia e recursos devem ser direcionados à implementação, e em
terceiro lugar, as regras devem ser institucionalizadas, ou seja: devem tornar-se rotina.
Assim, apesar da linguagem de gênero ser cada vez mais comum, a implementação
efetiva de tais políticas está longe de ser perfeita.
Com relação às missões de paz, Carey (2000, p. 63) afirma que, ainda que muitos
países apóiem as políticas de gender mainstreaming previstas na Resolução 1325,
somente com o tempo as aspirações se tornarão normas efetivas e serão incluídas nos
procedimentos padrões da OPs. Hoje, para que questões de gênero sejam incluídas em
cada missão, é necessária pressão constante de ONGs e outros órgãos de defesa das
mulheres, uma vez que a implementação de novas políticas é sempre difícil e lenta
(Hicks, 2001, p. 45). Assim, a distância entre retórica e prática com relação a questões de
gênero dentro das Nações Unidas ainda é profunda, mesmo que a Resolução 1375
permita uma maior pressão pela efetividade de tais políticas
71
.
3.5
Treinamento de gênero para militares
A análise sobre os efeitos do treinamento de gênero para militares tem relevantes
contribuições para esta pesquisa, uma vez que evidencia não só as formas pelas quais este
tem sido posto em prática, mas como os militares recebem o conteúdo transmitido, o que
se permite pensar formas mais efetivas de fazê-lo. Esta literatura é incentivada, em
grande parte, pela Resolução 1325, e pela Declaração de Windhoek.
É relevante lembrar que a literatura sobre o treinamento de civis é praticamente
inexistente. Isto porque o treinamento de civis em si é extremamente limitado.
Diferentemente do caso de militares, o treinamento de civis é de responsabilidade de
departamentos particulares da ONU (o treinamento para preparação eleitoral, por
exemplo, é ministrado pelo departamento eleitoral, e assim por diante), ou pelo Training
Service do UN Office for Human Resources Management (Meijer, 1995), não havendo
71
Ver ainda International Alert. “Gender Mainstreaming in Peace Support Operations: Moving Beyond
Rhetoric to Practice”. Julho de 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
95
uma sistematização do treinamento sobre regras de conduta, direitos humanos e outros
temas essenciais. Mas segundo um funcionário das Nações Unidas que já participou de
missões de paz, “quase ninguém faz treinamento prévio”. Segundo esta pessoa, civis da
ONU têm grande resistência a serem “ensinados, como algum militar”
72
. Há ainda outros
obstáculos a uma implementação efetiva de treinamento para civis, como a falta de verba
para o projeto, e mesmo de interesse (Meijer, 1995). Não há dúvidas de que uma
preparação mais sistemática e a longo-prazo de civis é necessária (Jackman, 1995)
73
. De
acordo com Heje: “Peacekeepers themselves frequently call for greater attention to be
paid to training, and civilian peacekeepers rarely receive any preparation at all” (1998, p.
19).
A Declaração de Windhoek e o Namibia Plan of Action on Mainstreaming a
Gender Perspective on Multidimensional Peace Support Operations
74
, de 2000,
estabelecem inúmeras formas práticas de dar mais espaço às mulheres, que vão desde a
formulação e prática das missões de paz à implementação dos acordos
75
. Dentre suas
recomendações, o documento insta os troop-contributing countries (TCCs) a envolverem
um maior número de mulheres nos treinamentos de militares, civis e policiais, e a
introduzirem questões de gênero nos conteúdos dados. Pelos documentos, o
Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO) deve formular material
sobre questões de gênero, que devem ser, por sua vez, incorporados aos treinamentos
nacionais prévios. Os treinamentos sobre gênero na própria missão devem, ainda, ser
obrigatórios. Seu conteúdo tem, necessariamente, de abarcar ensinamentos sobre códigos
de conduta, cultura, história, hábitos locais do país-hospedeiro, e abuso e exploração
sexual.
72
Comunicação pessoal de um funcionário da ONU anônimo, 12/09/2008.
73
Hoje em dia há apenas dois centros que oferecem treinamento para civis fora do sistema ONU: O Lester
B. Pearson Canadian International Peacekeeping Centre, no Canadá, e o International Civilian
Peace-keeping and Peace-building Training Program, do Austrian Study Centre for Peace and
Conflict Resolution, na Áustria.
74
Lessons Learned Unit (DPKO). “The Namibia Plan of Action on ‘Mainstreaming a Gender Perspective
In Multidimensional Peace Support Operations’”, 31/05/2000. Disponível em
http://www.reliefweb.int/library/GHARkit/FilesFeb2001/windhoek_declaration.htm.
Acesso em
29/08/2008. “Windhoek Declaration”. Disponível em
http://www.un.org/womenwatch/osagi/wps/windhoek_declaration.pdf
. Acesso em 05/10/2008.
75
Ambos os documentos são resultado do seminário “Mainstreaming a Gender Perspective in
Multidimensional Peace Support Operations”, realizado em maio de 2000 pelo Lessons Learned
Unit do DPKO em Windhoek, na Namíbia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
96
Autores como Mackay (2003), Puechguirbal (2003), Hicks (2001), Carey (2001),
Olsson (2000,2001), Higate (2003) e Raven-Roberts (2007) terão como foco principal a
efetividade da introdução do gender sensitivity training para civis, e principalmente para
militares, nas missões de paz
76
. Assim, diferente de autores como Whitworth (2002), esta
produção acadêmica não aponta a militarização como cerne do problema, mas sim a falta
de treinamento adequado dos militares. O foco é, portanto, como melhorar o preparo de
militares e civis participantes das operações de paz, e não problematizar os próprios
participantes. Tal literatura trará importantes insights sobre a efetividade e a adequação
desses treinamentos, e sobre a percepção daqueles que são treinados. A idéia, no entanto,
que permeia todos estes trabalhos, é que ensinar sobre gênero não é uma tarefa simples.
Como afirma Mackay:
At face value it is a simple idea—training peacekeepers on ‘gender’. At the same time, the
suggestion that peacekeepers should be required to receive training on ‘the protection, special
needs, and human rights of women and children in conflict situations’
is close to revolutionary
(2003, p. 217).
De uma forma geral, estes autores apontarão para inúmeras falhas, que impedem
que o treinamento tenha o resultado esperado, seja por questões relativas à própria
implementação da questão de gênero às missões de paz, seja por motivos específicos ao
treinamento. Desta forma, temos que, ainda quando as questões de gênero são incluídas
no mandato, há, freqüentemente, poucos recursos destinados à introdução dos gender
units (Olsson, 2001, p.107). Whitworth (2002, p. 131) afirma que além dos problemas
financeiros, os gender units sofrem também com a falta de comprometimento da
organização em colocá-los como prioridade. Estes problemas dificultam a implementação
do treinamento in loco, uma vez que são os gender units que se encarregam desta parte.
Tal treinamento é importante porque o treinamento prévio é de responsabilidade de cada
TCC, que pode escolher, ou não, incluir questões de gênero nos treinamentos (Hicks,
2001, p. 46).
Críticas mais pontuais quanto ao treinamento também serão formuladas. Mackay
(2003, p. 220) afirma que a linguagem, o conceito e os exemplos utilizados devem ser
76
HIGATE, Paul. “Case Studies: The Democratic Republic of the Congo and Sierra Leone,” Gender and
Peacekeeping, Monograph No. 91, Institute for Security Studies, 2003; PUECHGUIRBAL,
Nadine. “Gender Training for Peacekeepers: lessons from the DRC”. International Peacekeeping,
vol.10, n.4, 2003, pp.113-128; Training for Peace, “Gender and Peace-Building in Africa”, 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
97
passados da forma mais básica possível, uma vez que a maioria dos militares recebeu
pouco ou nenhum preparo. Concordando neste ponto, Puechguirbal afirma que as
experiências práticas de treinamento na Missão das Nações Unidas na República
Democrática do Congo (MONUC) mostraram que a linguagem utilizada é muito
“sofisticada” (2003, p. 117), tornando-se quase inacessível. Para a autora, os treinamentos
devem ser mais baseados em casos reais e na interação com os participantes. Neste ponto,
no entanto, há ainda outro problema: Mackay afirma que, se as classes expositivas não
são a melhor tática, o debate fica limitado pela presença de militares de vários escalões
numa mesma sala de aula, o que faz com que os subordinados relutem em expor suas
opiniões (Ibidem). Muitas outras recomendações de como melhorar a efetividade do
treinamento são traçadas a partir da análise da prática: A linguagem utilizada deve ser
simples e pragmática, casos reais, filmes e teatros podem ser incluídos, e deve-se
estimular a formação de homens-treinadores e o treinamento para escalões superiores
77
.
Outro fator determinante do sucesso do treinamento é o grau de importância dada
ao AES, em comparação com outros temas, especialmente os
técnicos/estratégicos/militares, que tendem a ganhar prioridade nos materiais e nas aulas
aplicadas. Para Puechguirbal (2003, p. 20), o treinamento deve enfatizar adequadamente
o impacto dos peacekeepers nas comunidades hospedeiras, os motivos pelos quais
haverão mulheres dispostas a se prostituírem, e as razão pelas quais engajar-se nestas
atividades será extremamente prejudicial na recuperação daquela sociedade. A ênfase em
todos estes temas é necessária porque muitos militares acreditam que “sustentar” ou dar
coisas a uma mulher durante sua estadia faz dele uma pessoa boa, capaz de boas ações, e,
portanto, eticamente compatível com as missões de paz. O treinamento deveria fazê-lo
entender que o impacto de sua saída será muito pior que quaisquer benefícios que
porventura tenham sido feitos. “Peacekeepers must also understand that local women are
people with rights, and that their exploitation reinforces the inequality that prevails
between man and women in society” (Idem, p. 220).
Uma das dificuldades apontadas por Puechguirbal (2003, p. 117) é que os
militares têm grande resistência à palavra “gênero”, fazendo com que estes acabem por
77
United Nations International Research and Training Institute for the Advancement of Women (UN-
INSTRAW). “Good and Bad Practices in Gender Training for Security Sector Personnel:
Summary of a Virtual Discussion”, junho de 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
98
ver a ênfase nos códigos de conduta ou em questões de direitos humanos como algo
específico às mulheres, ou ligado ao feminismo. Higate, em seu estudo sobre o
treinamento na MONUC, afirma que a palavra “gênero” causa uma série de diferentes
respostas, que vão da má-compreensão do termo, devido aos diferentes backgrounds
culturais, à suspeita com relação ao conteúdo. Segundo o autor, para alguns, a palavra
estaria ligado ao feminismo, enquanto para outros a palavra evocava uma atitude
defensiva, além de grande desconforto (2003, p.18). O desentendimento é agravado pelo
pouco tempo disponível aos treinamentos: a maioria dos conteúdos de gênero tem em
média, de uma a duas horas
78
.
Frente à polêmica que envolve o conceito de “gênero”, há um debate entre
formuladores dos treinamentos sobre se as questões relacionadas ao código de conduta,
incluindo as políticas e definições da ONU com relação ao abuso sexual, devem ser
ensinadas separadamente ou dentro do treinamento de gênero (Lyytikäinen, 2007, p. 12).
Proponentes da segunda opção acreditam que os casos de abuso e exploração sexual e a
cultura de impunidade existentes nas missões estão intimamente ligados a estereótipos de
gênero e a relações desiguais entre homens e mulheres existentes em certas sociedades,
assim como a experiências passadas de violência sexual (Idem).
De fato, sem a compreensão de como as relações entre homens e mulheres são
estruturadas e de como as mulheres e meninas são afetadas pelos conflitos violentos e
pela presença de peacekeepers, não há como progredir na efetividade das missões e do
treinamento (Mackay, 2003, p. 221). Assim, é imprescindível que participantes de
missões de paz entendam o impacto dos conflitos armados e das próprias operações para
as mulheres. Mas será que, frente a tal desconforto causado pelo conceito de “gênero”, e
do pouco tempo disponível para desfazer imagens negativas, seria efetivo utilizá-lo?
Precisamos do conceito de gênero para esclarecer as regras de conduta da organização?
Ou este é um conceito imprescindível? Esta é uma pergunta que deve nortear a produção
acadêmica sobre os impactos do treinamento.
A produção acadêmica que analisamos aqui nos dá evidências fortes de que a
utilização do conceito de “gênero” acaba por ser até mesmo contra-produtiva nesta
78
Idem, p.4.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
99
empreitada. Segundo Puechguirbal
79
, os militares têm grande resistência à palavra
“gênero”, fazendo com que estes acabem por ver a ênfase nos códigos de conduta ou em
questões de direitos humanos como uma “coisa da ONU ou uma frescura de mulher”.
Segundo ela, “many of these populations (militares e policiais) have never before heard
the word “gender”, or hold distorted and/or extremely negative views about what it
means” (p. 117).
Segundo Enloe (2001, p. 111) e Raven-Roberts (2007, p. 56), o conceito de
gênero é, muitas vezes, usado e entendido como sinônimo de “mulher”, o que acaba por
resultar em atitudes defensivas por parte dos homens. As razões pelas quais o
entendimento de gênero acaba por ser, muitas vezes, ligado somente às mulheres, ou a
uma imagem do movimento feminista radical, não são fruto somente da ignorância da
população em geral, e dos militares em particular. Tal imagem do conceito se daria
porque, de fato, a maioria das vezes em que os movimentos feministas falaram de gênero,
foi para falar de questões concernentes a mulheres (Allison, 2007, p.89). Experiências
masculinas, como no caso do abuso sexual, foram, muitas vezes, silenciadas. Segundo
Zarkov e Cockburn (2002, p.14), estudos de gênero feministas falharam em focar
somente nas mulheres quando deveriam focar em ambos os gêneros e em suas relações,
demonstrando que o conceito de gênero diz respeito a ambos os sexos.
Além disso, as políticas afirmativas decorrentes da inclusão de questões de gênero
causam uma sensação de “ameaça” nos homens. Raven-Roberts (2007, p.14) afirma que
a implantação de ações de gender mainstreaming dentro das Nações Unidas causou “a
great deal of bitterness” em alguns homens que viram seus anos de experiência e chances
de promoção irem por água abaixo por tais políticas. Sem nomear os sujeitos, Raven-
Roberts diz que há, dentro da ONU, acusações de que a implantação de práticas de
gênero acaba muitas vezes por estimular o conflito, e não a cooperação. Há, ainda,
acusações de que questões de gênero são uma filosofia estimulada por “feministas
radicais/ocidentais/lésbicas”, o que seria visto como uma imposição de uma certa
ideologia liberal ocidental a outros povos
80
(Idem, p. 57).
79
PUECHGUIRBAL, Nadine. “Gender Training for Peacekeepers: lessons from the DRC”. International
Peacekeeping, vol.10, n.4, 2003.
80
De fato, muitas feministas islâmicas acusam feministas ocidentais de quererem dominar a agenda
feminista, impondo seus valores liberais/individualistas (Keck e Sikkink, 1998). Lloyd (2007)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
100
Frente a esta postura defensiva, é pouco provável que, como afirma
Lyytikäinen,“(...) discussing gender roles and inequalities can be a good entry point to
addressing SEA” (2007, p. 12). Ao contrário: Se o objetivo último do ensinamento sobre
gênero é evitar que prejuízos sejam causados a mulheres e meninas locais, o melhor é
instruir sobre os códigos de conduta sem citar tal conceito, mas apenas explicando o
impacto destes sobre as mulheres locais, os motivos pelos quais muitas se oferecem, e o
que os militares podem ou não fazer. É claro que a explicação sobre gênero seria útil.
Mas a internalização de normas que são vistas como uma ameaça, por um público que
assume uma postura defensiva, é pouco provável.
Desta forma, é necessário que haja um esclarecimento, dentro da ONU, dos
objetivos visados. A organização quer dar uma nova cultura militar a seus soldados, que
inclui o entendimento de questões de gênero e a reconfiguração das masculinidades ou
quer apenas que estes entendam as regras de conduta? Ambos os objetivos são legítimos,
uma vez que a identidade masculina é dinâmica, fruto de contextos históricos específicos
(Connelly, 2002, p. 37). No entanto, caso o alvo seja, de fato, transformar socialmente os
militares, substituindo suas identidades por outras mais condizentes com as operações de
paz, treinamentos de 30 minutos a 3 dias (como são hoje) não serão, de forma alguma,
suficientes para a construção de uma nova identidade masculina-militar.
É provável que num futuro próximo as identidades militares se modifiquem pelas
distintas características do mundo militar na pós-modernidade, tais como a maior
integração de mulheres, a progressiva aceitação de homossexuais, e a maior interação
com o mundo civil, através da crescente participação destes nas Forças Armadas
81
(Williams, Segal e Moskos, 2000). Este, no entanto, é um processo impossível de ser
obtido em curtos espaços de tempo, ainda que, em alguns países, como na França, a
afirma que, para algumas feministas do terceiro mundo, os direitos humanos teriam um caráter
“ocidental” e imperialista. Feministas islâmicas, por exemplo, acusam o ocidente de incorporar
uma plataforma feminista liberal que se quer universal. A interpretação liberal do feminismo
religioso associa diretamente religião e patriarcalismo de forma completamente arbitrária.
81
Para mais sobre o mundo militar pós-moderno ver The Military Institution and Social Change. In
CARREIRAS, Helena. “Gender and the Military – Women in the Armed Forces of Western
Democracies”. Londres: Routledge, 2006; DANDEKER, Christopher. “New Time for the
Military: Some Soiological Remarks on the Changing Role and Structure of the Armed Forces of
Advanced Societies”. British Journal of Sociology, 45, 4, pp. 637-654, 1994.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
101
reformulação das forças armadas para uma instituição mais profissional e humanitária
tenha se dado em menos de uma década (Boëne, Martin, 2000)
82
.
Caso o resultado almejado seja que os militares entendam os impactos que têm
sobre as mulheres locais, e compreendam as regras de conduta em relação ao AES, em
um curto espaço de tempo, devemos focar na efetividade do treinamento. Uma vez que o
conceito de gênero traz posturas defensivas à tona, não seria mais prático e rápido
suprimir o conceito do que tentar criar toda uma nova visão sobre ele? Se a presença de
treinadoras mulheres reforça a noção de que o conceito de gênero é algo ligado ao sexo
feminino, ou se militares respeitam mais treinadores homens, deve-se substituir as
mulheres, a despeito das questões éticas de gender balance, ou a igualdade de sexos é
mais importante?
83
As evidências dadas por esta literatura deixa claro que há uma mistura
entre dois objetivos distintos, e por vezes excludentes: ensinar sobre gênero e respeitar a
inclusão de mulheres no treinamento; e evitar prejuízos para as mulheres locais. Qual
será, portanto, a prioridade? Esta é uma questão ética e prática que deve, urgentemente,
ser pensada na produção acadêmica futura.
82
Williams, Segal e Moskos afirmam que, se o Canadá rapidamente se inclui no mundo militar pós-
moderno, outros países, como Israel, continuam ligados a ameaças tradicionais (2000, p. 10), sob
o paradigma do mundo militar moderno.
83
Segundo Toiko Tõnisson Kleppe, UN-INSTRAW, “A man who speaks to other men about gender is
often listened to in a more attentive way”. UN NEWS CENTRE. “UN-sponsored meeting calls for
more male facilitators in gender training”, 26/06/2008. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=23030&Cr=gender&Cr1=training
. Acessado em
30/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
4
Radiografia do problema
O problema do abuso e da exploração sexual (AES) não se restringe a apenas
certas missões de paz, apesar do fenômeno ser, sem dúvida, mais latente em algumas
operações específicas, especialmente naquelas com maior número de civis e militares,
caso da Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC) e na Libéria (UNMIL). Isto
porque em todos os países-hospedeiros, encontram-se contextos similares: sociedades
destruídas pela guerra e pela pobreza, em que um grande número de refugiados são
meninas e mulheres que lutam por sua sobrevivência. Frente a sistemas judiciários e
policiais fracos ou mesmo ausentes, à existência das imunidades de militares e civis da
ONU, à limitação, por parte da Organização, de respostas punitivas adequadas, e,
principalmente, à disparidade de poder e de recursos entre os habitantes locais e os
participantes das missões, uma série de relações sexuais explorativas são estabelecidas.
Níveis distintos de consentimento podem ser encontrados em uma série de interações que
vão desde o estupro a relações mais duradouras, mas cujos resultados são similares: o
possível aumento do nível de infecção pelo HIV, a dependência, a marginalização, a
geração de filhos sem pais.
A interação sexual mais comum é, sem dúvida, a troca de relações sexuais por
pequenas quantias de dinheiro, comida e outros bens. Mas a ligação da chegada de
missões de paz com a prostituição acaba, muitas vezes, por estimular também o crime
organizado e o tráfico humano, a exemplo dos casos da Bósnia e da Libéria: Meninas são
seqüestradas e transformadas em escravas sexuais para atender à demanda recém-chegada
de militares e civis dispostos a pagar por estes “serviços”. A participação de menores
nestas relações, em especial de meninas, mas também de meninos, está, infelizmente,
sempre presente. A análise de artigos da mídia sobre o tema demonstra não só que as
operações complexas são mais suscetíveis ao AES, mas que a hipótese de que militares
de algumas culturas seriam mais propensas a tais comportamentos não se sustenta:
perpetradores de todas as raças, religiões e origens sócio-econômicas são citados nestas
matérias.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
103
4.1
Dados gerais sobre AES
Através de um levantamento de dados, feito a partir de 1989 em matérias de
jornais, documentos da ONU e relatórios de ONGs especializadas, foi possível traçar uma
radiografia aproximada dos casos de abuso e exploração sexual por militares em missões
de paz
1
, com o objetivo de responder às seguintes perguntas: Em que missões os casos
acontecem com mais freqüência? Que tipo de relações são estabelecidas entre mulheres e
meninas locais e integrantes de operações de paz (OPs)? Quem são os perpetradores? Em
que anos se deram mais casos?
É extremamente importante lembrar que os relatos contabilizados são apenas
alegações
2
, e não fatos comprovados (ainda que uma pequena minoria destes tenha sido,
de fato, investigada e confirmada). Como analisaremos melhor no capítulo 4, devemos
lembrar que algumas denúncias são feitas com o objetivo de receber indenização, o que
não é de todo surpreendente dada a situação de miséria em que se encontram a maioria
dos países-hospedeiros: As Nações Unidas geralmente pagam uma indenização, através
do Civil Claims Unit (Hampson, Kihara-Hunt, 2007) a praticamente todos os tipos de má-
conduta, tais como batidas de automóvel, destruição de propriedade privada ou mesmo
abuso sexual.
Cabe ressaltar também que relações “consentidas”, tais como as interações
sexuais entre prostitutas e participantes da missão, ou os relacionamentos mais
duradouros, não costumam aparecer na mídia, já que, salvo em casos em que há filhos
envolvidos, as mulheres ou meninas em questão não denunciam tais relações. Além
disso, estas relações não são proibidas, mas apenas “desencorajadas”, segundo o Boletim
do Secretário-Geral de 2003
3
.
1
No capítulo 4 analisaremos mais detalhadamente os problemas metodológicos referentes à coleta de dados
sobre AES, como a sub-notificaçao, a confidencialidade das investigações e a confiabilidade das
fontes.
2
Segundo Nicola Dahrendorf (2006): “A significant number of false allegations have been made against
MONUC personnel by other MONUC personnel, alleged victims and the local police. The
motivation for a false claim is varied but appears to fall within three main categories:
compensation, revenge or to discredit”.
3
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse”. Documento das Nações Unidas número ST/SGB/2003/13, 9 de outubro de 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
104
De 125 matérias e documentos analisados no total
4
, a Missão das Nações Unidas
na República Democrática do Congo (MONUC), é, de longe, a missão mais citada, com
34% das referências: o dobro da segunda missão que mais aparece na mídia - a Missão de
Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), com 13,3% das citações. Das
17 operações de paz em ação hoje, apenas sete não foram citadas em nenhuma matéria:
United Nations Mission for the Referendum in Western Sahara (MINURSO), United
Nations Military Observer Group in India and Pakistan (UNMOGIP); United Nations
Peacekeeping Force in Cyprus (UNFICYP); United Nations Observer Mission in Georgia
(UNOMIG), United Nations Disengagement Observer Force (UNDOF), United Nations
Interim Force in Lebanon (UNIFIL) e United Nations Truce Supervision Organization
(UNTSO).
Tabela 1:Quantidade de citações por missão
Missões Porcentagem
RDC 34%
Haiti 13,3%
Libéria 12%
Costa do Marfim 9,3%
Burundi 4,6%
Bósnia 6%
Sudão 6%
Somália 4,6%
Serra Leoa 4%
Eritréia/Etiópia 2,6%
Timor Leste 2%
Camboja 0,6%
República C.A. 0,6%
É interessante notar que as operações não-citadas são justamente as de
observação, em que há menos militares, e estes não interagem tanto com a população
4
A pesquisa analisou a mídia internacional de língua inglesa, francesa e espanhola. Veículos de mídia locais
ficaram de fora da pesquisa, o que provavelmente acaba por diminuir a representatividade da
análise.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
105
local
5
. Com exceção da UNFICYP, que conta com 922 militares, policiais e observadores
militares, da UNDOF, que tem 1041, e da UNIFIL, com 12.542, em todas as outras
missões não citadas o número de pessoal uniformizado não ultrapassa 230. Com exceção
da UNIFIL, todas as maiores OPs da ONU em atividade, como a MONUC, na República
Democrática do Congo, com 18.402 militares e policiais, a UNMIL, na Libéria, com
11.471, a UNMIS, com 9960 e a UNAMID, com 15.114 (ambas no Sudão), a UNOCL,
na Costa do Marfim, com 9176, e a MINUSTAH, com 9070
6
, tiveram casos de AES
citados na mídia. Assim, de fato parecer haver evidências para acreditarmos que as
missões multifuncionais, e aquelas que contam maior número de participantes, parecem
ser mais suscetíveis que as pequenas missões de observação a casos de AES. Devemos
ter em vista, no entanto, a possibilidade de que as operações de paz clássicas, com menos
participantes, não recebam tanta atenção da mídia.
Quando tentamos desvendar em quais anos se deram a maioria dos casos, vemos
que 2004 e 2005 foram os anos em que mais denúncias foram publicadas na mídia,
especialmente após o relatório do Secretário-Geral de abril de 2004
7
, do documento do
Office of Internal Oversight Services (OIOS) sobre a MONUC
8
, de janeiro de 2005 e do
Relatório Zeid
9
. Muitas das matérias de 2004 referiam-se às investigações em andamento
do OIOS. Devemos levar em conta, ainda, que o crescimento de casos acompanha o
crescimento do número de soldados e o aumento da capacidade investigativa por parte da
ONU e, ainda, a possibilidade de que a diminuição de casos em 2006 e 2007 não
represente uma diminuição real do número de alegações, mas apenas de matérias
produzidas pela mídia.
5
A MINURSO tem 226 militares e policiais, a UNMOGIP, 43; a UNOMIG, 145; UNTSO, 151. “UN
Missions Summary of Military and Police”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/feb09_4.pdf.
Acesso em 17/03/2009.
6
Todos os dados foram obtidos em “Monthly Summary of Contributors of Military and Civilian Police
Personnel”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO). Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/05-08.htm
. Acesso em 03/04/2009.
7
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse”, Secretary-General’s Bulletin. Documento das Nações Unidas No. ST/SGB/2003/13,
09/10/2003.
8
Organização das Nações Unidas. Office of Internal Oversight Services (OIOS). “Investigation by the
Office of Internal Oversight Services into Allegations of SEA in theUnited Nations Organization
Mission in the DRC”. Documento das Nações Unidas No. A/59/661, 05/01/2005.
9
Organização das Nações Unidas. Assembléia Geral. “A comprehensive strategy to eliminate future sexual
exploitation and abuse in United Nations peacekeeping operations”. Documento das Nações
Unidas No. A/59/710, 24/03/2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
106
O padrão de crescimento de citações na mídia de casos de AES logo após a
publicação de relatórios de ONGs ou da ONU está presente em todo o recorte temporal.
Assim, percebemos que muitas matérias referem-se aos mesmos casos já publicados
oficialmente. Ou seja: a maioria dos meios de comunicação não apura seus casos, mas
divulga aqueles já relatados em relatórios da ONU e de ONGS. Assim, parte do grande
número de casos relativos à MONUC vem da duplicação de informações, em que vários
veículos de mídia reproduzem informações ou de outro órgão de imprensa ou de algum
relatório da Organização. Isto não quer dizer que os casos não tenham sido numerosos,
mas apenas que o número de citações na mídia de casos de AES não reproduz fielmente a
realidade das missões de paz.
Gráfico 1 – Número de alegações de casos de AES por ano (1988-2008)
-5
0
5
10
15
20
25
30
35
40
199
3
1994
199
5
1996
199
7
1
99
8
1999
200
0
2001
200
2
2003
200
4
2
00
5
2006
200
7
2008
nº de alegações por ano
Sobre os perpetradores, a prática parece ser, de fato, transcultural. Foram citados
nas matérias e nos documentos (especialmente de ONGs, já que a ONU preserva a
nacionalidade dos envolvidos) militares de países como Bélgica, EUA, Canadá,
Alemanha, Irlanda, Itália, Dinamarca, Nova Zelândia, França, Rússia, África do Sul,
Guiné, Nigéria, Tunísia, Sri Lanka, e Ucrânia. Os mais citados foram os soldados de
Jordânia, Marrocos, Paquistão, Uruguai e Nepal, não por acaso alguns dos países que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
107
mais contribuem com tropas
10
para missões de paz. Com exceção de Marrocos, todos
estes países estão entre os 10 maiores contribuintes das OPs. De toda forma, devemos ter
em mente que a maioria das matérias e especialmente dos documentos não cita a
nacionalidade dos perpetradores, para protegê-los até que as investigações tenham sido
concluídas.
4.2
O abuso e a exploração sexual pelo mundo
Nesta seção, analisaremos as missões em que se dão as primeiras alegações de
abuso e de exploração sexual por peacekeepers, muito antes que qualquer tipo de política
restritiva ou de medidas de combate tenham sido implementadas pela ONU: São as
operações da Organização no Camboja, e depois, na Somália. Especialmente no caso do
Camboja, a exploração sexual de prostitutas se dava de forma absolutamente aberta por
parte de militares e civis. Assim, é esta missão que alertará a ONU, pela primeira vez,
para os riscos que tal comportamento possa ter efeitos negativos no apoio local à missão.
Depois, analisaremos os casos da missão da ONU na Bósnia, em que alguns integrantes
participaram ativamente no tráfico humano de mulheres e meninas e do Timor Leste, em
que a chegada da missão foi responsável pelo crescimento da prostituição local. Serão
analisados ainda os casos da Libéria - outra situação em que a chegada da operação de
paz estimulou o tráfico humano - e de outras missões contemporâneas, como aquelas em
Serra Leoa, Burundi, Eritréia e Etiópia, Costa do Marfim e Sudão.
4.2.1.
Primeiros casos: Camboja e Somália
Os primeiros relatos de má-conduta em geral, como tortura, violência contra
locais, e, especialmente, abuso sexual - tais como estupros e o envolvimento de
peacekeepers com redes de prostituição - foram registrados na Somália, em 1992, e no
10
Paquistão é o maior TCC, Nepal o quinto, Jordânia o oitavo, Uruguai o nono, África do Sul o décimo
quinto e Marrocos o décimo sétimo. “Ranking of Military and Police Contributions to UN Operations”.
Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO), 28/02/2009. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/feb09_2.pdf
. Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
108
Camboja, no ano seguinte (Kent, 2007). Em 24 de junho de 1997, fotos de dois militares
belgas participantes da Operação Restore Hope torturando um menino somali, fazendo-o
beber água salgada e vômito e aparentemente urinando em cima de um corpo foram
publicadas na capa da revista semanal americana Village Voice
11
. Em 15 de julho, uma
segunda série de fotos mostrava soldados belgas torturando com choques elétricos e
estuprando uma menina. A revista publicou ainda denúncias de que militares canadenses
também teriam torturado um menino somali de 16 anos, chamado Shidane Arone, em
março de 1993
12
. Em 8 de agosto, militares italianos admitiram que seus soldados haviam
torturado e abusado de mulheres somalis, depois de uma reportagem do Washington Post
ter afirmado que assassinatos, tortura e estupros haviam sido cometidos por peacekeepers
e que drogas e prostitutas circulavam livremente entre as tropas italianas (idem).
As denúncias sobre militares canadenses da Canadian Airborne Regiment
levaram ao estabelecimento de uma comissão de investigação- Commission of Inquiry
into the Deployment of Canadian Forces to Somalia- conhecida como “the Somalia
Inquiry” (Whitworth, 1998, p. 176)
13
. A apuração dos casos comprovou as denúncias de
tortura e morte de Shidane Arone, trazendo à tona detalhes grotescos do que os militares
canadenses chamaram de “Operation Snatch Niggers” (Idem, p. 93).
De certa forma, no entanto, será a má-conduta sexual de militares no Camboja –
missão considerada como um sucesso da cooperação pós-Guerra Fria e da promoção de
questões de gênero (Whitworth, 1998, p. 177), que enfatizará que a ligação de militares
com a prostituição é um problema muito mais presente que os estupros ou as relações
sexuais forçadas, e que pode acarretar prejuízos notáveis à população local dos países-
hospedeiros de missões de paz.
O impacto da United Nations Transitional Authority in Cambodia (UNTAC) na
indústria sexual cambojana foi visível
14
, em uma época em que a política de no-sex ainda
11
GRIGG, William Norman. “Beasts in Blue Berets”. The New American, 29/09/1997. Disponível em
http://whatreallyhappened.com/RANCHO/POLITICS/UN/peace.html
. Acesso em 30/09/2008.
12
Para mais sobre o caso ver Whitworth (1998 e 2004).
13
Para mais sobre a investigação, ver “Dishonoured Legacy - The Lessons of the Somalia Affair”. Report
of the Commission of Inquiry into the Deployment of Canadian Forces to Somalia. Canada:
Minister of Public Works and Government Services, 1997.
14
“An indication of this is that the only display in the Siem Reap Museum of National History covering the
UNTAC period in Cambodia is a wax figure of a peacekeeper with his arm around a sex worker”
(Koyama e Myrttinen, 2007, pg.32).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
109
não era enfatizada nos poucos treinamentos nacionais aplicados aos militares. De 1992 a
1993, segundo relatório da Refugees International
15
, baseado em cifras da Cambodian
Women’s Development Association, o número de sex houses e de casas de massagem se
multiplicaram, e o número de prostitutas aumentou de seis mil para 25 mil, estimulando a
prostituição infantil
16
. Segundo relatório do Programa Conjunto das Nações Unidas para
HIV/aids (UNAIDS)
17
de 1998, “45% of Dutch navy and marines personnel on
peacekeeping duty in Cambodia had sexual contact with sex workers or other members of
the local population during a five-month tour”. Camisinhas eram raramente usadas.
Como conseqüência do aumento da prostituição, afirmam alguns autores, os
índices de contaminação pelo HIV cresceram drasticamente (Koyama, Myrttinen, 2007;
Whithworth, 1998, p. 179; Leadgerwood, 1994, p. 7): Segundo Whitworth (2004, p. 68),
75% dos doadores de sangue em Phnom Penh estavam infectados pelo vírus, assim como
20% dos militares de um batalhão francês ao final dos seis meses servindo na UNTAC. O
aumento da contaminação teria estimulado a demanda por "clean young girls"
18
:
Child prostitution was particularly popular because of the better chance that younger
prostitutes would not yet have contracted the HIV virus. Child ‘virgins’ were sold to UN
peacekeepers for as much as £500 after which these children were ‘worth’ considerably less,
getting paid on average £10 per soldier (Fetherston, 1998, p. 168).
Confrontado com denúncias de que militares estariam cometendo tais atos, o
Representante do Secretário-Geral (SRSG) da missão no Camboja, o japonês Yasushi
Akashi, diminuiu a gravidade das alegações, afirmando que soldados de sangue-quente
de 18 anos têm “direito a beber algumas cervejas e ir atrás de bonitas espécies do sexo
oposto” (Fetherston, 1998, p. 168). Nenhum tipo de medida disciplinar foi implementada,
mas apenas recomendações para que os militares fossem mais discretos, não
estacionando, por exemplo, os carros com distintivo da ONU na frente de casas de
massagem. Militares foram ainda orientados a não freqüentarem bordéis de uniforme
(Ledgerwood, 1994, p. 8). Além da prostituição, casos de estupros contra mulheres e
15
Refugees International. “Must Boys Be Boys? Ending Sexual Exploitation and Abuse in UN
Peacekeeping Missions” (2005). Ver nota 50.
16
DEEN, Thalif. “L’ONU cible exploitation sexuelle par des soldats de la paix”. IPS. Disponível em
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/02/pkoexploitation.html . Acesso em 10/09/2008.
17
UNAIDS. “Aids and the Military” (1998, p.2). Ver nota 47.
18
MCKAY, Angela. “Sex and the peacekeeping soldier: the new UN resolution”. PeaceNews, junho-agosto
de 2001. Disponível em http://www.peacenews.info/issues/2443/mackay.html . Acesso em
10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
110
menores e de sexual assault em geral também foram registrados por ONGs locais
(Whithworth, 1998, p. 179).
Apesar de vários relatos terem sido publicados na mídia local, e uma carta
produzida por 170 cambojanos ter sido entregue ao SRSG (Ibidem) com denúncias de
que a prostituição e o comportamento indisciplinado – como uso excessivo de álcool e
acidentes de trânsito- ocorriam em bares, hotéis e até mercados, intimidando mulheres
onde elas estivessem, a prostituição por militares da ONU no Camboja não parece ter
chegado às linhas dos jornais internacionais. Segundo Koyama e Myrttinen, peacekeepers
não só ficaram notórios por “comprar” serviços sexuais, mas por, em alguns casos,
participar ativamente na prostituição: Segundo as autoras, surgiram denúncias de que
militares franceses tinham seu próprio bordel, e forças da Bulgária teriam formado sua
própria rede de prostituição no norte do país.
Os impactos negativos causados pelos cerca de 23 mil militares que passaram pela
missão
19
foram não só sociais, mas também políticos: Segundo Ledgerwood (Whitworth,
1998, p. 179), os Khmers Vermelhos acusaram peacekeepers de estarem muito
“ocupados” com as mulheres para controlar a saída dos soldados vietnamitas, o que
trouxe consideráveis obstáculos ao processo de paz, uma vez que tal “propaganda”
acabou tendo alguma influência na população local. “Some Cambodians were more
inclined to believe the Khmer Rouge propaganda that UNTAC was collaborating with the
Vietnamese to colonize Cambodia when they saw UNTAC personnel taking Vietnamese
‘wives’”.
4.2.2
Bósnia
A missão das Nações Unidas na Bósnia e Hezergovina (UNMIBH), iniciada em
1995 e terminada em dezembro de 2002, é representativa não só do envolvimento de
militares, civis e policiais com a prostituição, mas especialmente com o tráfico humano.
Segundo Pallen (2003, p. 27), com a grande presença de peacekeepers e policiais
19
“UNTAC - Facts and Figures”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/co_mission/untacfacts.html
. Acesso em 03/11/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
111
internacionais, aliada a um judiciário ainda deficiente e ao conseqüente crescimento do
crime organizado, o tráfico de mulheres torna-se um dos negócios mais lucrativos da
Bósnia. Segundo a Human Rights Watch
20
, em 2000 a Bósnia já havia se tornado um dos
maiores centros de uma rede internacional de tráfico de mulheres e meninas - a maioria
vindo de Moldávia, Romênia, Ucrânia e Belarus.
Um dos primeiros casos a aparecer na mídia, no entanto, foram as alegações de
que peacekeepers canadenses teriam mantido relações sexuais com enfermeiras e
intérpretes em um hospital mental em Bakovici, em 1993/1994
21
, onde também foram
violentos com os pacientes e abusaram de bebidas alcoólicas e fizeram transações no
mercado negro, incluindo a venda de armas para milícias bósnio-croatas. Apenas 22 dos
60 peacekeepers envolvidos sofreram quaisquer tipos de punição.
Ainda em 1993, denúncias de que militares (do Canadá, França, Nova Zelândia e
Ucrânia) teriam se envolvido em prostituição com escravas sexuais também foram
veiculadas em alguns jornais
22
. A situação de miséria também levava várias meninas e
mulheres a venderem seus corpos por quantias mínimas de dinheiro, por comida ou
outros bens (Simic, 2005). Com pouquíssimas medidas de combate ao abuso sexual, e
sem monitoramento de curfews ou de áreas proibidas, a visita de peacekeepers a bordéis
era freqüente. Casos de estupros por militares a mulheres e meninas locais também foram
relatados (Vandenberg, 2005, p. 153)
Matéria de 2002 da BBC News revelava que meninas de até 15 anos trabalhavam
como escravas em bordéis e eram obrigadas a fazer sexo com militares e funcionários da
ONU
23
. Mas a participação de peacekeepers ia além do incentivo econômico ao crime
organizado. Kathryn Bolkovac, funcionária da DynCorp (empresa terceirizada americana
20
Citado por Pallen (2003, p. 28).
21
LASALLE, Luann. “Not all allegations about peacekeepers can be proved: Baril:22 of 60 disciplined
over role in Bosnia”. The Hamilton Spectator, 09/06/1998. Disponível em
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/pre01/Baril.html. Acesso em 10/09/2008.
TURNER, Craig. “Abuse Allegations Changes Image Of Canadian Peacekeepers”. Los Angeles
Times, 11/08/1996. Disponível em
http://community.seattletimes.nwsource.com/archive/?date=19960811&slug=2343558. Acesso em
16/03/2009.
22
FERGUSON, Alan. “UN probes abuse claims at brothel in Bosnia”. Toronto Star, 04/11/1993.
Disponível em http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/pre01/probes.html
. Acesso em
30/08/2008.
23
“Boys will be boys”. BBC News, 14 de junho de 2002. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/programmes/correspondent/2043794.stm
. Acesso em 30/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
112
que prestava serviços para a polícia internacional na Bósnia) encarregada de investigar
tais denúncias, afirmou em e-mails para sua empresa que meninas de até 15 anos eram
obrigadas a dançar nuas e a fazer sexo com clientes, e que funcionários da ONU e
trabalhadores humanitários estavam ligados a redes de prostituição locais. Bolkovac
afirmou ainda que as meninas que se recusavam a fazer sexo eram espancadas e
estupradas na frente de peacekeepers que nada faziam. Suas denúncias lhe custaram seu
emprego na DynCorp
24
: A partir daí, Bolkovac passou a fazer suas alegações
publicamente, inclusive na investigação da Câmara de Representantes dos EUA, de
2002
25
, que revelou que membros da International Police Task Force e militares da
Stabilisation Force (SFOR) estavam “comprando” mulheres e participando ativamente
no tráfico humano, falsificando documentos e facilitando o comércio
26
. Militares
paquistaneses também foram acusados de participar ativamente em redes de tráfico de
mulheres (Simic, 2005). Em meio às investigações, Madeleine Rees, então chefe do Alto
Comissariado para Direitos Humanos da ONU
27
, afirmou: “There is virtually no dispute
any more that the issue of trafficking arose predominantly with the arrival of the
peacekeeping troops in 1995”.
4.2.3
Timor-Leste
Assim como no Camboja, no Timor Leste a presença de civis e militares teve
impacto relevante na indústria sexual local (Koyama e Myrttinen, 2007, p. 31). A
prostituição se dava em bordéis, nas ruas, em casas de massagem e em boates, e com a
chegada de peacekeepers e trabalhadores humanitários passou a acontecer também em
restaurantes e boates freqüentadas pelo UN staff, ainda que, segundo as autoras: “(...) the
24
MCGORY, Daniel. “The Seamy Side of peacekeeping; whistle-blower vindicated after being fired for
exposing UN ties to prostitution racket”. The Sunday-Herald Observer, 11/08/2002. Disponível
em http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/02/Bolkovac.html
. Acesso em 10/09/2008.
25
Citado por ALLRED, Keith. “Peacekeepers and Prostitutes: How Deployed Forces Fuel the Demand for
Trafficked Women and New Hope for Stopping It”. Armed Forces and Society,33, no 5,2006.
26
“Sex Worker Issues Unsurprising, Former UN official says”. UN Wire, 06/09/2001. Disponível em
http://www.unwire.org/UNWire/20010906/17761_story.asp
. Acesso em 10/10/2008.
27
“Dark Side of Peacekeeping”. The Independent,10/07/2003. Disponível em
http://www.independent.co.uk/news/world/politics/dark-side-of-peacekeeping-586303.html.
Acesso em 23/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
113
UNTAET/UNMISET missions did not lead to such a highly visible increase in
prostitution as was the case with UNTAC in Cambodia” (Idem, p. 35). Segundo Koyama
e Myrttinen (2007, p. 35), militares, policiais e civis recorriam ao serviço de prostitutas
“regular e abertamente”
28
. Com base em trabalho de campo e entrevistas, Koyama e
Myrttinen afirmam: “(...) We observed UN staff negotiating prices for sexual services in
a Dili nightclub in April 2004” (2007, p. 35). Além de profissionais do sexo, localizadas
em bordéis e casas de massagens, havia ainda a presença freqüente de mulheres e
meninas que ofereciam sexo aos militares e civis em troca de pequena quantia de dinheiro
ou de outros itens, como comida ou sabão.
Segundo Myrttinen e Koyama (2007, p. 35), a maioria dos clientes da indústria
sexual era de civis (funcionários da ONU, trabalhadores humanitários, policiais civis,
jornalistas, e outros estrangeiros) e não militar (ainda que estes também tenham tido
alguma participação), provavelmente pela imposição de curfews aos peacekeepers. A
exceção era o batalhão português (PorBatt), cuja atitude de laissez-faire em relação às
atividades noturnas dos militares fez com que estes ganhassem notoriedade em Dili pela
presença em casas de massagem, em brigas de bares e pelas denúncias de peacekeeper
babies (Idem, p. 36). Os militares jordanianos também ficaram notoriamente conhecidos
pelos atos de AES.
Em 2001, denúncias de que soldados jordanianos haviam cometido atos de má-
conduta sexual em maio daquele ano foram veiculadas na mídia, assim como de que dois
membros do batalhão paquistanês foram repatriados por “comportamento inapropriado”
para com as mulheres locais
29
. Reportagem do The Age de 22 de julho de 2006 afirmava
que o jornal havia obtido um relatório confidencial da ONU, que dizia que mais de 20
peacekeepers babies haviam sido abandonados no Timor Leste. O documento afirmava
ainda que havia uma cultura de acobertamento das denúncias, em que casos de AES não
eram registrados por medo e vergonha, situação típica de um país fortemente religioso
30
.
28
No capítulo 2, serão analisadas mais detalhadamente as situações de AES em várias missões: Camboja,
Somália, Bósnia, Libéria, Burundi, Serra Leoa e Haiti.
29
“UN peacekeepers in Timor face possible sex charges”. Reuters, 03/08/2001. Disponível em
http://www.etan.org/et2001c/august/01-4/03unpeac.htm
. Acesso em 03/10/2008.
30
“UN’s legacy of shame in Timor”. The Age, 22/07/2006. Disponível em
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/06/shame_in_TImor.html. Acesso em 10/09/2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
114
A investigação afirmava ainda que as mães destas crianças eram freqüentemente
estigmatizadas em suas comunidades.
4.2.4
Libéria
Em 14 anos de conflito, o estupro foi utilizado extensa e sistematicamente como
arma de guerra na Libéria, afetando de 60 a 75% das mulheres no país (Kent, 2007, p.
45). Mais da metade dos casos de estupro são cometidos contra meninas de até 12 anos
31
.
Até hoje, frente a um sistema judiciário e policial falho, o estupro é o crime mais sério do
país, com uma média de oito casos registrados a cada semana
32
. Militares da Missão das
Nações Unidas na Libéria (UNMIL), uma das maiores missões de paz da ONU, com
1.471 militares e policiais
33
, instituída em 2003, estão entre os perpetradores. Casos de
incentivo ao tráfico humano e de envolvimento em prostituição por parte dos
participantes da missão (além de trabalhadores humanitários de outros órgãos da ONU e
de ONGs) também surgiram na mídia a partir de 2004, quando matéria do Washington
Post afirmou que meninas de até 12 anos estavam trocando sexo por comida ou pequenas
quantias de dinheiro
34
em boates na cidade de Gbarnga.
A situação de extrema pobreza em que se encontram muitas meninas e mulheres
incentiva uma grande indústria de exploração sexual. Segundo artigo da Refugees
International
35
, “(...) Sexual exploitation has become a social norm in Liberia. Sex is a
survival mechanism for many people”. O relatório afirma ainda que algumas meninas se
oferecem a civis e militares apenas para terem onde dormir. A organizaçao Save the
31
LEWIS, Stephen. “Africa: Peace with sexual violence is still war”. Africa Files, 05/06/2008. Disponível
em http://www.africafiles.org/article.asp?ID=18170
. Acesso em 19/03/2009.
32
DEEN, Thalif. “Liberia: Rape, Gender Violence the Norm in Post-War Liberia”. AllAfrica.com,
07/03/2009. Disponível em http://allafrica.com/stories/200901160030.html. Acesso em
17/03/2009.
33
“UN Missions Summary of Military and Police”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/feb09_4.pdf.
Acesso em 17/03/2009.
34
“Liberia: UNMIL investigating alleged sexual misconduct by peacekeepers in four incidents”. IRIN,
03/05/2005. Disponível em http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/pkwatch.html. Acesso em
18/03/2009.
35
“Sexual Exploitation in Liberia: Are the conditions ripe for another scandal?”. Refugees International,
02/04/2004. Disponível em http://www.sos-sexisme.org/English/Sexual_Exploitation.htm. Acesso
em 19/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
115
Children afirmou que meninas de até 8 anos estavam mantendo relações sexuais com
trabalhadores humanitários em troca de comida
36
. As várias relações sexuais com
mulheres locais resultaram ainda em um grande número de baby peacekeepers
37
.
Segundo Célhia de Lavarène
38
, ex - focal point sobre AES da UNMIL, a chegada
de um grande número de participantes da missão estimulou um intenso tráfico de
meninas do Marrocos para os bordéis locais, freqüentados por militares, policiais e civis
da ONU. Estas ficavam presas, em condições subumanas, trabalhando como escravas
sexuais. Apesar da política de tolerância zero implementada pelo Representante do
Secretário-Geral (SRSG) da missão, Jacques Paul Klein, e da instituição tanto de uma
focal point para AES quanto de um Conduct and Discipline Unit, e de uma série de
proibições, como locais off limits, Lavarène denuncia que a infra-estrutura de
investigação e de proteção às vítimas e o monitoramento dos integrantes da missão é
absolutamente falha: Militares e civis freqüentam bordéis sem medo de sofrerem
qualquer tipo de represália. Segundo a autora:
Não passa um dia sem que eu receba uma queixa de abusos sexual (...) Ao longo das missões,
tornei-me fatalista: em qualquer lugar onde houver boinas-azuis, haverá abusos sexuais. Enquanto
o DPKO não ousar designar os culpados por medo de desagradar os países-membros, sobretudo os
que são grandes fornecedores de tropas, isso não vai mudar. (Lavarène, 2006, p. 284)
Apesar de todos estes defeitos, os casos de AES na UNMIL parecem ter
diminuído com o tempo. Em 2005, foram registrados 45 casos de AES, dos quais 3 eram
relativos a estupros, 9 a prostituição, 18 a exploração sexual, 2 a abuso sexual e 13 a sexo
com menores
39
. Em 2006 foram 30 casos
40
. O relatório da missão sobre AES que cobre o
período de janeiro a junho de 2008 afirmava que apenas 5 casos haviam sido registrados.
36
“Liberia Sex-for-aid ‘widespread’”. BBC News, 08/05/2006. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4983440.stm
. Acesso em 09/03/2009.
37
“Liberia: Daddy wore a blue helmet”.The Economist, 21/04/2005. Disponível em
http://www.economist.com/world/mideast-africa/displaystory.cfm?story_id=E1_PRJNNNN.
Acesso em 27/02/2009.
38
Entrevista à autora por email, 10/06/2008. Lavarène escreveu ainda um livro sobre o abuso e a
exploração sexual na UNMIL, chamado “Passaporte para o Inferno: Uma mulher no combate aos
mercadores de sexo”. São Paulo: Francis, 2008.
39
“Sexual Exploitation and Abuse: an Update from UNMIL”. UNMIL Press Release, 07/06/2006.
Diponível em http://www.un.org/Depts/dpko/missions/unmil/pr7june.pdf .
Acesso em
02/03/2009. “UNMIL releases 2006 sexual exploitation and abuse report”. UNMIL, 09/03/2007.
Disponível em http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/07/unmil_SEAreport.html
. Acesso
em 10/03/2009.
40
“UN in Liberia report shows decline in sex abuse allegations; envoy says some progress”. UN News
Centre, 09/03/2007. Disponível em
http://www.peacewomen.org/news/Africa/WestAfrica/westafrica.html
. Acesso em 10/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
116
No período de julho a dezembro de 2007, haviam sido 9 casos
41
. A atual SRSG da
missão, Ellen Margrethe, acredita que a diminuição seja resultado da implementação de
um programa de treinamento sobre AES para os participantes da missão
42
e das medidas
implementadas em combate ao AES, como os curfews e as áreas proibidas a militares.
4.2.5
Serra Leoa, Burundi, Eritréia e Etiópia
O relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)
em conjunto com a organização inglesa Save the Children
43
, de 2002, sobre a exploração
sexual de refugiados por tropas de peacekeepers e funcionários civis da ONU e de ONGs
na África Ocidental citava casos de abuso e exploração em campos de refugiado na
Guiné, na Libéria e em Serra Leoa. Mas estas não foram as únicas denúncias de abuso e
exploração sexual na Missão das Nações Unidas em Serra Leoa (UNAMSIL), iniciada
em 1999. Em 2003, relatório do Human Rights Watch entitulado “We’ll kill you if you
cry” sobre a violência sexual durante o conflito armado de Serra Leoa afirmava que
vários casos de estupro e exploração haviam sido documentados pela organização, entre
eles o de uma menina de 12 anos por um soldado da Guiné, em março de 2001, e de uma
mulher por dois peacekeepers ucranianos, em abril de 2002. Segundo a Human Rights
Watch, “(…) there appears to be reluctance on the part of UNAMSIL to investigate and
take disciplinary measures against the perpetrators”
44
. Já nas palavras do UNIFEM:
In Sierra Leone, the estimates of young girls involved in the sex trade are even higher. “I am the
only person who has an income in my family," a 19-year-old commercial sex worker told us in
41
“Liberia/ Latest UNMIL Sexual Exploitation and Abuse (SEA) report shows a decline in reported
allegations, as UN envoy urges zero tolerance to SEA”. African Press Organisation, 20/08/2008.
Disponível em http://appablog.wordpress.com/2008/08/20/liberia-latest-unmil-sexual-
exploitation-and-abuse-sea-report-shows-a-decline-in-reported-allegations-as-un-envoy-urges-
zero-tolerance-to-sea/. Acesso em 10/03/2009.
42
“Sexual Exploitation and Abuse - An update from UNMIL”. UNMIL, 07/06/2006. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/unmil/pr7june.pdf. Acesso em 19/03/2009.
43
ACNUR e SAVE THE CHILDREN. “Sexual Violence and Exploitation: The Experience of Refugee
Children in Guinea, Liberia and Sierra Leone”. 22 outubro-30 de novembro de 2002.
44
“Human Rights Watch. “We’ll kill you if you cry” (2003, p. 28). Disponível em
http://hrw.org/reports/2003/sierraleone/
. Acesso em 25/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
117
Freetown. "Since UNAMSIL’s arrival, I have been able to make enough money to support my
family. My clients are mainly peacekeepers”
45
.
Segundo reportagem de 10 de julho de 2003 do Independent, alguns pais
afirmavam que mandavam suas filhas nunca entrarem nos veículos dos peacekeepers
46
. A
matéria também dizia que uma menina de 16 anos havia sido estuprada por soldados da
Nigéria em Freetown; e que um menino havia sido estuprado por um peacekeeper de
Bangladesh. Artigo do Guardian de seis de abril de 2005 relatava que meninas de até 14
anos se ofereciam livremente aos peacekeepers de Bangladesh, Nigéria e Quênia nas
praias de Freetown. A matéria afirmava ainda que: “dozens of children have been
fathered by UN peacekeepers, many of whom have completed their assignments and
left”
47
.
Alegações de má-conduta sexual também aparecem na Operação das Nações
Unidas no Burundi (ONUB), que encerrou suas atividades em 31 de dezembro de 2006.
No final de 2004, dois peacekeepers foram suspensos por fazerem sexo com menores de
idade
48
. Roxanne Carrillo, code of conduct officer da ONUB, afirmou que existiam casos
de exploração sexual de meninas e crianças por militares, policiais e civis, e que pelo
menos seis casos haviam sido investigados desde setembro de 2004
49
. Segundo Carrillo:
“In every single location we have addressed the issue of sexual exploitation”
50
.
Em março de 2001, a ONU declarou que investigaria sete peacekeepers
dinamarqueses da Missão das Nações Unidas na Etiópia e Eritréia (UNMEE) que
supostamente haviam abusado sexualmente uma menina de 13 anos na Eritréia. A
investigação dinamarquesa sobre o caso, no entanto, afirmou não ter encontrado
45
REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson .“Women, War, Peace: The Independent Experts
Assessment on the Impact of Armed Conflict on Women and Women’s Role in Peace-Building”.
(2002). Ver nota 54.
46
“Dark Side of Peacekeeping”. Independent.co.uk,10/07/2003. Disponível em
http://www.independent.co.uk/news/world/politics/dark-side-of-peacekeeping-586303.html.
Acesso em 23/09/2008.
47
FOFANA, Lansana. “Zero tolerance for UN troops involved in sexual abuse”. Mail & Guardian Online,
06/04/2005. Disponível em http://www.mg.co.za/article/2005-04-06-zero-tolerance-for-un-troops-
involved-in-sexual-abuse. Acesso em 01/20/2008.
48
“UN sex abuse sackings in Burundi”. BBC News, 19/07/2005. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4697465.stm
. Acesso em 30/09/2008.
49
“Burundi: UN mission sets up units to check sexual abuse”. IRIN, 15/11/2004. Disponível em
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/04/ONUBConductUnit.html. Acesso em
23/09/2008.
50
“UN Reforms Aim to End Sexual Abuse by Peacekeepers”. IRIN, 10/05/2005. Disponível em
http://www.globalpolicy.org/security/peacekpg/reform/2005/0510conduct.htm. Acesso em
27/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
118
evidências do caso
51
. Em 20 de dezembro de 2002, matéria da BBC dizia que um vídeo
pornográfico havia sido feito por um soldado irlandês envolvendo uma mulher local de
22 anos, com quem este afirmou ter um relacionamento
52
. O peacekeeper foi repatriado
(e mais tarde sentenciado a 16 dias de detenção em seu país natal) e sua “namorada”
(supostamente uma prostituta) foi presa. A mulher disse à mídia local que o irlandês lhe
dava dinheiro, presentes e que prometera levá-la para a Irlanda; e revelou que vários
hotéis e boates locais serviam como pontos de prostituição, e eram freqüentados por
peacekeepers. Soldados italianos, dinamarqueses e eslovacos já haviam sido repatriados
nos anos anteriores em casos isolados
53
, todos de sexo com menores.
4.2.6
Costa do Marfim e Sudão
Em 27 de maio de 2008, extenso documento da Save The Children
54
afirmava que
trabalhadores humanitários e peacekeepers estariam abusando de crianças (através de
sexo por comida ou dinheiro, ou sexo forçado) no Haiti, na Costa do Marfim, e no Sudão.
Denúncias de casos de AES nas missões destes países já haviam sido veiculadas na mídia
anteriormente. Em 2007, a ONU já havia suspendido um contingente marroquino inteiro
da United Nations Operation in Côte d'Ivoire (UNOCI), que conta com 9176 policiais e
militares
55
, fixados em Bouake, por abuso e exploração sexual
56
, supostamente
envolvendo menores.
51
LYNCH, Colum. “UN to investigate alleged sex abuse by peacekeepers”. UN Wire, 02/03/2001.
Disponível em http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A3145-2004Dec15.html
. Acesso
em 30/08/2008.
52
LAST, Alex. “Porn scandal rocks Eritrean peace force”. BBC News, 20/12/2002. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/2595003.stm
. Acesso em 23/09/2008.
53
WALSH, Declan. “Peacekeeper jailed for porn films”. The Scotsman, 23/01/2003. Disponível em
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/03/Irishpeacekeeper.html . Acesso em
30/08/2008.
54
Save the Children UK. “No One to Turn To”. 27 de maio de 2008. Ver nota 13.
55
Organização das Nações Unidas (ONU). Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO).
“UN Missions Summary of Military and Police”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/feb09_4.pdf
. Acesso em 22/03/2009.
56
“Côte d’Ivoire: UN, Moroccan officials meet to address allegations of sexual abuse”. UN News Center,
23/07/2007. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=23311&Cr=ivoire&Cr1
=. Acesso em
10/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
119
Denúncias de AES, incluindo estupro e pedofilia, por soldados da União Africana
em Darfur, no Sudão, foram feitas pelo BBC Channel 4 da Televisão Britânica em março
de 2006
57
. O jornal Daily Telegraph afirmou que os abusos começaram logo depois da
chegada da missão, em março de 2005, e envolviam crianças de até 12 anos. Investigação
do UNICEF sobre as denúncias cita entrevistas com cerca de 20 supostas vítimas
58
.
57
“AU inaugurates inquiry panel on allegations of sexual abuse in Darfur”. Sudan Tribune, 16/04/2006.
Disponível em http://www.sudantribune.com/spip.php?article15092
. Acesso em 30/08/2008.
58
“UN to probe Sudan sex abuse claim”. BBC News, 03/01/2007. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/6226829.stm. Acesso em 12/09/2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
5
Pode o treinamento acabar com o abuso e a exploração sexuais
em missões de paz?
Como vimos, a possibilidade de implementação de medidas punitivas pela ONU
contra o abuso e a exploração sexual é limitada frente às imunidades dadas a militares em
operações de paz (OPs), o que impede o combate adequado ao abuso e à exploração
sexual (AES). Dadas as limitações de tais políticas, o treinamento prévio e durante a
missão torna-se uma ferramenta essencial no combate a este tipo de má-conduta. Neste
capítulo, apresentaremos a nossa hipótese principal: O treinamento contribui para o
combate ao abuso e à exploração sexual dentre militares e civis, diminuindo o número de
casos do fenômeno. A hipótese será testada através de uma série de entrevistas com
militares de diversos batalhões, treinadores, além de participantes da sociedade civil. O
objetivo destas entrevistas vai além do estabelecimento de relações causais simplistas,
mas visa também a explorar e descrever mecanismos causais, através de indicadores
previamente estabelecidos, analisando as formas pelas quais o treinamento poderia
influenciar no comportamento de um militar participante de missão de paz. Esta
estratégia parece mais adequada, dado que o abuso e a exploração sexual em missões de
paz é um fenômeno conjuntural, em que diversas outras variáveis, para além do
treinamento, têm influência em seu resultado e devem, também, ser analisadas.
Tão importante quanto testarmos nossa hipótese sobre o treinamento, é a análise
dos contextos sócio-econômicos em que se dão a maioria dos abusos nas missões de paz.
Como já vimos no capítulo 2, a situação de vulnerabilidade em que se encontram
meninas e mulheres é essencial no entendimento do AES. Assim, a análise tanto da
Missão das Nações Unidas no Haiti, a MINUSTAH, quanto da Missão na República
Democrática do Congo, a MONUC, darão grande atenção à situação que se encontram as
mulheres e meninas quando da chegada das OPs. A pesquisa tem como objetivo estudar e
entender todos os fatores que levam estas meninas e mulheres a participarem de relações
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
121
sexuais explorativas: a utilização do estupro como arma de guerra num momento anterior
à chegada das missões, a situação de pobreza e de vulnerabilidade, o sentimento de
“superioridade” e arrogância que muitas mulheres sentem nos peacekeepers que,
teoricamente, vieram lhes proteger.
5.1
Hipótese e indicadores
Após analisar as limitações das respostas punitivas disponíveis à ONU em casos
de abuso e exploração sexual (AES) em operações de paz (OPs), Kent (2007, p. 50)
afirma: “(...) thus, for now, the United Nations’ room for remedial action is severely
restricted”. Assim, a pesquisa buscará saber se, frente à impossibilidade de se
desenvolver respostas jurídicas e criminais eficazes ao abuso e à exploração sexual, o
estabelecimento de treinamento preventivo adequado seria capaz de superar as falhas
legais das estruturas das missões e, principalmente, de substituir a condescendência e a
tradição do silêncio existentes entre militares e civis. Assim, pode-se dizer que a pergunta
condutora da pesquisa seria: O treinamento contribui para a formação de uma
cultura que condene o abuso e a exploração sexual dentre militares ?
A hipótese com a qual trabalharemos, nesta pesquisa, é a de que o treinamento é
uma ferramenta poderosa na construção de uma nova cultura militar, que enfatize os
códigos de conduta dos peacekeepers e que proíba, expressamente, o abuso e a
exploração; de forma que, caso os treinamentos sejam fortalecidos, os números de abuso
e exploração sexual cairão.
Enfatizamos, aqui, que a escolha de militares como objeto de estudo desta
dissertação não subtende, de forma alguma, que estes sejam os únicos perpetradores do
abuso e da exploração sexual em missões de paz. Pelo contrário: sabe-se que civis –
categoria que inclui trabalhadores humanitários e policiais- cometem, proporcionalmente,
tanto ou mais casos de abuso e exploração sexual que militares
1
. Muitas razões justificam
tal constatação: 1) civis passam mais tempo nos locais das missões (enquanto a maioria
1
A informação foi dada à autora por Vanessa Kent, Focal Point for Sexual Exploitation and Abuse na
missão das Nações Unidas no Congo (MONUC). Entrevista à autora, 25/04/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
122
dos militares passa apenas seis meses), o que facilita a formação de relações com locais;
2) civis têm mais contato com a população local, já que vivem em bairros residenciais, e
têm maior mobilidade que militares, que, muitas vezes, só podem sair em conjunto, e
vivem em bases militares
2
; 3) não há definição clara jurídica sobre a quem os civis
respondem, o que dificulta sua punição, enquanto militares, apesar de terem imunidade
em relação às leis do país local, ainda estão sujeitos aos códigos militares de seus países
3
;
4) a população local tende a depender mais dos bens distribuídos por trabalhadores
humanitários, aumentando a sub-notificação, 5) na ausência de um órgão comum,
agências da ONU e ONGs engajam em uma cultura de proteção, abafando tais casos
(Kent, 2007, p. 58), o que aumenta a sensação de impunidade.
Assim, apesar da imagem corrente, não há uma diferenciação relevante entre civis
e militares no que diz respeito ao AES, uma vez que civis também parecem engajar-se em
condutas inadequadas as mais diversas no contexto das missões de paz. Os casos de
militares parecem ser mais noticiados porque militares estão numericamente mais
presentes nas operações de paz (OPs): Em fevereiro de 2009, havia 20.987 civis
(incluindo voluntários e pessoal local) e 79.670 militares (incluindo observadores
militares)
4
. Ou seja: para cada civil participante em missões, temos cerca de quatro
militares.
Feita tal ressalva, passemos à hipótese. As principais evidências a serem levadas
em conta na verificação desta hipótese deveriam ser a comparação entre o número de
casos de AES, e a implementação do treinamento em uma dada missão. Mas, frente às
dificuldades com os dados (a serem vistas a seguir), e às possibilidades de viés, não há
como estabelecer quantitativamente os efeitos concretos do treinamento. Seria mais
produtivo, nesse sentido, focarmos em uma análise interpretativa que busca deduzir o
processo pelo qual a variável independente leva à variável dependente. Ou seja, o foco
aqui é desmembrar a relação causal, analisando a forma pela qual o militar se estabelece
2
Idéia defendida pelo Comandante Velloso, dos Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, em entrevista à
autora. Cabe lembrar que a situação é diferente quando se trata de observadores militares, uma vez
que estes têm maior mobilidade espacial.
3
WADHAMS, Nick. “Civilian employees, not soldiers, will be big problem as United Nations tackles sex
abuse, official says”. Associated Press, 15/03/2005. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/6356
. Acesso em 10/10/2008.
4
“United Nations Peacekeeping Operations”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO).
Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/bnote.htm
. Acesso em 10/11/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
123
antes e depois do treinamento, e dando grande importância à análise do contexto sócio-
econômico que levam meninas e mulheres a se engajarem nestas relações.
Assim, ainda que o objetivo, aqui, seja traçar uma inferência causal, as análises
descritivas e interpretativas terão grande relevância, traçando uma combinação entre
dados quantitativos e a análise qualitativa. Tal análise será feita com base em fontes
primárias, como pela análise do material de treinamento utilizado, e especialmente
através de entrevistas com militares e treinadores, e, quando possível, pelo
acompanhamento dos treinamentos, o que foi feito tanto no Brasil quanto na Índia.
Uma vez que partimos do princípio de que grande parte dos casos se deve à falta
de ênfase aos códigos de conduta, pode-se argumentar que a efetividade com que os
treinamentos são ministrados é central nesta hipótese. Assim, traçaremos alguns
indicadores que permearão nossa análise dos treinamentos de AES ministrados no Brasil
e na Índia, como forma de atestar a qualidade destes.
1) Em primeiro lugar, devemos verificar a ausência ou a presença: será analisado
se há, dentro do treinamento implementado pelo país-contribuinte, a exposição sobre o
problema específico do abuso e da exploração sexual.
2) Em segundo lugar, analisaremos o conteúdo implementado: investigaremos se
as palestras estão de acordo com os preceitos dos Standardized Generic Training
Modules (SGTM) ou se possuem um conteúdo próprio, contrários aos padrões
estabelecidos pela ONU.
3) Em terceiro lugar, deve-se ater à clareza das políticas da ONU: o treinamento
deve deixar evidente as orientações de proibições com relação ao AES.
4) Em quarto lugar, devemos verificar a duração da palestra e sua origem, ou
seja: que órgão é responsável por ministrar tais palestras.
Tais indicadores devem ser comparados com as denúncias de AES publicadas em
veículos de mídia: Na falta de dados sistemáticos e concretos, pelos motivos que
analisaremos a seguir, tais publicações são a única forma que tentarmos obter um quadro
minimamente realista do comportamento das tropas brasileira e indiana nas missões de
paz analisadas. Mas não devemos atentar somente para o número absoluto de denúncias,
e sim levar também em conta o número de militares de um dado contingente dentro de
um período especificado. Assim, compararemos o número de casos de AES cometidos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
124
por brasileiros desde 2004, levando em conta o número de militares que participaram da
missão desde este período até 2009. Da mesma forma, a quantidade de denúncias
referentes às tropas indianas será equacionada com o número de militares num período de
2002 a 2009.
5.2
O problema da sub-notificação de casos de violência sexual
O abuso sexual é um assunto de dificuldades metodológicas inatas para o
pesquisador social, pela dificuldade de se obter dados confiáveis sobre a questão. O
abuso e a exploração sexual (AES), seja em tempos de paz ou de guerra, são temas pouco
notificados, uma vez que os perpetradores, e mais ainda as vítimas, carregam um estigma
em si. Segundo Bovarnick (2007), a vergonha como resultado do estupro é existente em
praticamente todas as sociedades e é, assim, responsável por formas de controles sociais
que protegem o perpetrador e tornam invisível o tratamento da vítima
5
. Em algumas
culturas, meninas e mulheres são mesmo estigmatizadas em suas próprias comunidades.
Ainda que a sub-notificação seja comum também em contextos de “paz”
6
, em
situações de conflito ou pós-conflito – justamente aquelas em que se dão as missões-, a
construção de dados sobre AES torna-se tarefa ainda mais complicada
7
. Segundo o
Boletim do Secretário-Geral de 2004
8
, em muitos casos, as vítimas de casos cometidos
por civis ou militares participantes de operações de paz (OPs) estão demasiadamente
envergonhadas ou amedrontadas para fazer uma denúncia. Há ainda o medo da retaliação
não só por parte do perpetrador individual, mas de sua organização – da qual as famílias,
muitas vezes, dependem para sobreviver (Kent, 2007, p. 58), uma vez que praticamente
inexistem programas eficientes de proteção a vítimas de AES nas OPs (Lavarène, 2006).
Mas mesmo quando há vontade por parte da vítima em denunciar, o alto índice de
analfabetismo presente em vários países-hospedeiros impede que as mulheres consigam
5
Para mais sobre a vergonha decorrente do estupro, ver item 2.1.2.2.
6
Ver a discussão sobre a problemática da diferenciação entre períodos de paz e de guerra no item 2.1.1.
7
A existência de poucos dados não é somente da ONU e de suas agências. Poucas ONGs fazem
sistematização de dados regular sobre AES entre seu próprio pessoal.
8
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “Special measures for protection from sexual
exploitation and sexual abuse. Report of the Secretary-General”. Documento número A/58/777,
23/04/2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
125
ler as etiquetas nos uniformes dos peacekeepers, o que dificulta a identificação do
perpetrador (Simic, 2005).
Segundo relatório da Save the Children de 2008
9
, quando se trata de crianças, o
medo muitas vezes é também da repreensão por parte de suas próprias famílias: “Many
children said their parents would beat them if they told them that they themselves had
been abused” (p. 13). Além disso, a maioria dos abusos sexuais se dá com crianças órfãs,
o que dificulta ainda mais o registro, uma vez que a falta dos pais dificulta o registro das
alegações ou a procura por atendimento médico em caso de violência sexual
10
.
A falta de denúncias decorre ainda de certa aceitação do abuso sexual existente
em dadas sociedades, pela cultura tradicional existente, ou em função de conflitos
recentes, que fazem com que a violência sexual seja vista como uma parte normal das
relações sexuais. A República Democrática do Congo é um exemplo. Para Olivera Simic
(2005), as mulheres congolesas foram por muito tempo, especialmente durante e após a
guerra, as responsáveis pela sobrevivência da família. Justamente por esta
responsabilidade atribuída às mulheres, as relações sexuais de sobrevivência são mais
aceitas, o que explicaria a falta de consciência destas sobre sua própria exploração. Simic
afirma que mesmo em casos de “estupro disfarçado”, quando as vítimas ganham dinheiro
após o ato, as mulheres acreditam que, tendo ganho algo, não há razão para denunciar.
Outra questão relevante é que a troca de sexo por comida, dinheiro, ou qualquer
trabalho é uma forma de sobrevivência. Não há, portanto, interesse em denúncias, nem
pela parte do explorador, nem tampouco daquele que é explorado, já que, muitas vezes,
nenhum dos dois acha que tais interações são “explorativas” em si. Assim, o medo, o
estigma, o analfabetismo, e a falta de consciência das vítimas sobre seus direitos tornam a
notificação um objetivo complicado de ser alcançado.
Outro obstáculo à notificação adequada é o desconhecimento da população local
sobre como ou onde denunciar. Tais dúvidas são representativas da falta de uma infra-
estrutura adequada de denúncias de cunho sexual nas OPs. A falta de órgãos
especializados para este tipo de registro, a ausência de campanhas de informação e a
baixa presença de mulheres entre o pessoal responsável pelo recebimento das denúncias
9
SAVE THE CHILDREN UK. “No One to Turn To”, 27 de maio de 2008. Disponível em
http://www.savethechildren.org.uk/en/docs/No_One_to_Turn_To.pdf. Acesso em 01/10/2008.
10
Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
126
são algumas das muitas características da estrutura existente contra o AES nas missões de
paz. O livro de Célhia de Lavarène
11
, chefe do Trafficking in Persons Unit (TPU), e mais
tarde Focal Point on Sexual Abuse and Exploitation (SEA) da missão da ONU na Libéria
(UNMIL), aponta claramente para como a falta de recursos e de pessoal especializado em
investigação tornam a infra-estrutura da ONU inadequada. Muitas vezes apenas dois ou
três focal points, desprovidos de escritórios apropriados que protegessem a
confidencialidade das vítimas, já sobrecarregados de serviço, têm de lidar com denúncias
de mais de 20 mil boinas-azuis (2006, p. 207). É importante lembrar que até mesmo as
barreiras lingüísticas entre funcionários da ONU responsáveis pela coleta das denúncias e
a população local são um fator que deve ser levado em conta.
Ainda que a denúncia chegue, de fato, a se consolidar, em muitos casos as vítimas
não colaboram com o andamento do processo investigativo. Segundo o oficial dos
Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, o Capitão de Fragata Ludovico Alexandre Cunha
Velloso
12
, muitas vezes as vítimas fazem a denúncia e “somem”, o que impede a coleta
de testemunhos e de outras evidências, e as investigações não podem ser concluídas.
Todos estes fatores contribuem para a possibilidade de que os dados existentes não sejam
representativos da realidade dos casos de AES em missões de paz. O próprio relatório do
Secretário-Geral de 2004
13
afirma:
The Secretariat is aware that the data gathered on cases of sexual exploitation and abuse
perpetrated by personnel affiliated with the United Nations may not reflect the true extent of these
deplorable incidents (p. 2).
Com base em entrevistas com a população local, a ONG inglesa Save the Children
afirma que as estatísticas oficiais da ONU são desproporcionalmente menores em
comparação ao nível de casos de AES sugeridos pelo trabalho de campo realizado (2008,
p. 11).
Para além da possível existência de viés nos dados, há o problema da falta de
transparência com relação a casos de AES e da ausência de um sistema público unificado
de casos comprovados, que abarque todas as missões de paz. Hoje, as informações
11
LAVARENE, Célhia. “Passaporte para o Inferno – Uma mulher no combate aos mercadores de sexo”.
Rio de Janeiro: Editora Francis, 2008.
12
Entrevista com o Capitão de Fragata dos Fuzileiros Navais Ludovico Alexandre Velloso. Complexo
Naval da Ilha do Governador, Rio de Janeiro, 21 /10/2008.
13
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special measures for protection from sexual exploitation
and sexual abuse”. Report of the Secretary-General. A/58/777, 23/04/2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
127
tornadas públicas vêm do relatório anual do Office of Internal Oversight Services
(OIOS)
14
, que contém denúncias de casos de má-conduta em geral- tais como desvio de
verbas, abuso de poder, violações de regras e regulamentos e má-administração – em toda
a organização, e não somente nas OPs
15
.
No entanto, muitas vezes falta ao OIOS a infra-estrutura necessária para coletar as
informações concernentes à má-conduta em geral, e em especial de casos de AES nas
missões de paz, uma vez que nem todas possuem investigadores próprios. Segundo
relatório do órgão de 2007
16
, as OPs que contam com pessoal especializado são: a Missão
das Nações Unidas na Costa do Marfim (UNOCI), A Missão das Nações Unidas no
Sudão (UNMIS), a Missão das Nações Unidas na Libéria (UNMIL), a Operação das
Nações Unidas no Burundi (ONUB), a Missão da ONU na República Democrática do
Congo (MONUC), e a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti
(MINUSTAH). Assim, apenas seis das 17 missões em operação têm, hoje, investigadores
próprios do OIOS.
Há ainda o lançamento eventual de documentos das Nações Unidas concernentes
a missões específicas - na maioria das vezes após denúncias da mídia- como foi o caso da
investigação do OIOS sobre casos de AES na África Ocidental, em 2003
17
, e na
República Democrática do Congo (RDC), em 2005
18
. Nos relatórios do Secretário-Geral
– os Special measures for protection from sexual exploitation and sexual abuse, -
também há, anualmente, dados sobre casos de AES relatados por órgãos e agências das
Nações Unidas. Não fica claro, no entanto, se tais casos são os mesmos já relatados nos
documentos anuais do OIOS. Algumas missões também publicam seus próprios dados:
A Missão das Nações Unidas na Libéria (UNMIL), por exemplo, publica anualmente a
14
Ver, por exemplo, OIOS.“Report on the activities of the Office of Internal Oversight Services for the
period from 1 January to 31 December 2007”. A/62/281, 25/02/2008.
15
A partir de 2005, o OIOS passa a ser responsável por investigar casos de má-conduta, incluindo AES.
Resolução 59/287 da Assembléia Geral.
16
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “Report of the Office of Internal Oversight Services
- Part two: peacekeeping operations”. Documento número A/61/264 (Parte II), de 23/02/2007.
17
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral/Office of Internal Oversight. “Investigation into
sexual exploitation of refugees by aid workers in West Africa”. Documento das Nações Unidas
número A/RES/57/306, 22/05/2003.
18
Organização das Nações Unidas. Office of Internal Oversight Services (OIOS). “Investigation by the
Office of Internal Oversight Services into allegations of sexual exploitation and abuse in the
United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo”. Documento
número A/59/661, 05/01/2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
128
quantidade de casos registrados de AES
19
. Essas publicações são, no entanto, não-
sistemáticas, e parecem atender a pressões pontuais, normalmente após inúmeras
denúncias serem reportadas em veículos de comunicação. Além disso, a ONU não tem
controle sobre os processos punitivos que ocorrem após a repatriação de um soldado
suspeito de abuso, o que impede um banco de dados sobre processos punitivos.
Tal falta de infra-estrutura é atestada pelo Relatório do SG de 2004
20
:
“Considerable additional efforts are required to establish a system within which
misconduct of this kind is systematically reported on and effectively followed up, while
safeguarding the rights of the victims” (p. 3). Sem dúvida, a capacidade investigativa da
ONU e das missões tem melhorado com o tempo, especialmente a partir da introdução de
uma série de medidas, como a destinação de mais recursos para o tema, a contratação de
profissionais com experiência investigativa e a implantação de escritórios próprios para o
recebimento de queixas pela população local, como os Conduct and Discipline Units.
Tais medidas, sem dúvida, contribuíram para aumentar a capacidade investigativa das
missões. No entanto, tal capacidade varia de missão para missão, uma vez que as medidas
são implementadas caso a caso, conforme as necessidades. Devido a esta variação, não é
possível estabelecer um nível de sub-notificação constante entre as missões.
Outro fator que dificulta a obtenção dos dados é a falta de transparência das
informações da ONU. A obrigatoriedade da “confidencialidade” dos casos de AES,
exigida pela recomendação do Boletim do SG de 2003
21
, impossibilita que se saiba a
nacionalidade dos perpetradores ou o tipo de relação estabelecida. A confidencialidade do
perpetrador e das próprias investigações internas tem como objetivo proteger a identidade
e a reputação do acusado, no caso deste ser inocente, e evitar constrangimentos com os
troop contributing countries (TCCs), visto que as Nações Unidas têm freqüente problema
em conseguir as tropas necessárias para as OPs (Murphy, 2006, p. 542). Tal estratégia de
proteção é defendida por causa do que Kent (2007, p. 50) chama de “name and shame”:
Tornar públicas as nacionalidades dos perpetradores seria constranger os países doadores
19
Ver UNMIL. “Sexual Exploitation and Abuse - an update from UNMIL”, 07/06/2006. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/unmil/pr7june.pdf. Acesso em 21/10/2008.
20
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special measures for protection from sexual exploitation
and sexual abuse”. Report of the Secretary-General. A/58/777, 23/04/2004.
21
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse”. Documento das Nações Unidas número ST/SGB/2003/13, 9 de outubro de 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
129
de tropas, diminuindo a possibilidade de que estes continuem a enviar seus militares para
as operações de paz.
A confidencialidade em torno dos perpetradores não nos permite que se trace um
perfil sobre os indivíduos que cometem tais atos, com base em informações sobre cultura,
idade, nível sócio-econômico, nível educacional, religião, valores. Apesar de nossa
atenção, aqui, ser prioritariamente com a análise do contexto das vítimas, que as levam a
engajarem-se nestas relações explorativas, pesquisas que visassem a traçar um perfil
compreensivo dos perpetradores seriam muito bem-vindas para a compreensão completa
do fenômeno.
5.3
Teorias explicativas alternativas
Devemos, ainda, atentar para a existência de outras teorias explicativas, para além
do treinamento, que também tenham influência na diminuição de casos de abuso e
exploração sexual (AES). Uma explicação que deve ser levada em conta é a existência de
um forte comprometimento dos escalões superiores com a política de tolerância zero.
Frente à limitação de mecanismos de punição pela ONU, a condenação expressa de tais
atos pelos escalões superiores pode ser um fator de contenção efetivo de tais casos. Ao
mesmo tempo, a ausência de uma hierarquia de comando entre civis dificulta o
estabelecimento e o monitoramento de regras de conduta. Da mesma forma, a melhora
dos sistemas de investigação e a diminuição da impunidade podem contribuir para a
diminuição de casos de AES, assim como o estabelecimento de curfews e áreas off-limits,
de políticas de controle da mobilidade de militares, e das chamadas políticas de não-
confraternização.
O fenômeno que analisamos nesta pesquisa não permite, no entanto, que isolemos
as variáveis com o objetivo de definir o peso exato de cada uma. Na verdade, tal
estratégia não seria adequada, uma vez que estamos falando de práticas de causalidades
múltiplas, que se influenciam mutuamente, atuando umas sobre as outras. Assim, o
treinamento com ênfase em direitos humanos, em gênero, e na política de tolerância zero
é apenas uma das formas de se alcançar a solução do problema do abuso e da exploração
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
130
sexual. Segundo Kent (2007, p. 60): “Training is important, but not a “cure-all”: it is a
means to an end and not an end in itself”.
Ou seja, para a total solução do problema deve-se empregar uma estrutura de
resposta multi-facetada, focada em prevenção e resposta. Assim, o treinamento é um fator
relevante, mas não é a única variável independente existente. Podemos dizer que este é
um caso de causação múltipla conjuntural, em que variados fatores determinam a
ocorrência de um fenômeno. Assim, é necessária uma análise holística, que leve em conta
todos os fatores envolvidos, e não somente aquele em que baseia nossa principal
hipótese- o treinamento. Variáveis se combinam e interagem, sendo a causalidade
conjuntural importante. Assim, a hierarquia ou a melhoras das estruturas de investigação
e de punição não seriam exatamente teorias alternativas, mas fatores a serem levados em
conta.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
6
O abuso e a exploração sexual na MINUSTAH
Após termos exposto nossa hipótese principal sobre a possibilidade de que o
treinamento seja uma ferramenta eficiente na diminuição de casos de abuso e exploração
sexual (AES), passaremos à análise de dois estudos de caso a fim de a testarmos. Tal
investigação se preocupará, também, com a situação de pobreza e violência de mulheres e
meninas quando da chegada das operações de paz (OPs), que as leva a envolverem-se em
relações sexuais explorativas com integrantes das missões. Neste capítulo, analisaremos,
em primeiro lugar, a situação dos casos de abuso e exploração sexual (AES) cometidos
por civis e militares da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti, a
MINUSTAH, através da exposição das denúncias publicadas na mídia. Estudaremos,
ainda, as medidas adotadas na missão em combate ao abuso e à exploração sexual. Ao
final, examinaremos o treinamento implementado na Marinha e no Exército do Brasil,
tendo como orientação os indicadores estabelecidos no capítulo 5.
Para tal análise, começaremos por relatar brevemente o aumento da violência no
Haiti desde 2004. Com a derrubada do presidente Jean-Bertrand Aristide e o colapso de
seu governo, o Haiti viu-se mergulhado não só em forte instabilidade política, mas no
confronto violento entre diversas gangues armadas - dentre estas grupos contra e pró-
Aristide, ex-militares e traficantes de drogas. Tudo isto frente a um cenário de completo
caos nas estruturas governamentais, exemplificado pela falta de delegacias, postos de
saúde, serviços de limpeza e de água, entre outras necessidades básicas; e de violações
dos direitos humanos - especialmente o direito à vida (Thebaud, 2004, p. 28). Assim, a
crise haitiana caracterizava-se por uma situação de insegurança generalizada, em que as
vítimas de violência encontravam grandes dificuldades de recorrer à justiça, o que acabou
por estimular um crescimento notável de atos de intimidação, de agressão e de violência
sexual, já existentes anteriormente à queda de Aristide.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
132
No dia 29 de fevereiro de 2004, a Resolução 1529
1
criou a Força Multinacional
Provisória (Multinational Interim Force). Apesar de ter votado a favor da resolução, o
Brasil não aceitou participar da MIF por considerá-la uma missão de imposição da paz,
uma vez que o documento é baseado no capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Tal
posição do país é consistente com a defesa do princípio da não-intervenção nos assuntos
internos de outros Estados, que pauta, tradicionalmente, a política externa brasileira
(Diniz, 2004, p. 92). A MIF foi estabelecida a pedido do presidente interino do Haiti,
Boniface Alexandre, teoricamente para evitar uma eminente guerra civil. Tropas do
Canadá, Chile, França e EUA foram imediatamente deslocadas para o país
2
. O objetivo
era manter a segurança na capital haitiana e em outros pontos-chave da cidade
3
.
Finalmente, em 30 de abril de 2004, considerando a situação uma ameaça à paz e
à segurança internacionais, o Conselho de Segurança (CS) da ONU aprovou a Resolução
1542
4
, que estabeleceu a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti, a
MINUSTAH. A missão, de capítulo VII, acaba de ter sua duração prevista prorrogada
para 15 de outubro de 2009
5
. O entendimento do governo brasileiro, no entanto, é de que
a MINUSTAH é uma missão de capítulo VI, uma vez que, na Resolução 1542, a
referência ao capítulo VII da Carta da ONU é feita apenas no parágrafo 7, o que indicaria
que apenas este parágrafo é baseado no cap. VII, e não a resolução por inteiro (Diniz,
2004, p. 92). Segundo Kenkel (2008, p. 22), a política externa brasileira é fortemente
calcada nos princípios da soberania e da não-intervenção, o que explicaria a relutância do
Brasil em participar de uma missão de capítulo VII.
O mandato da operação de paz (OP) é centrado em três áreas principais: provisão
de segurança e de um ambiente estável; apoio ao processo político e boa governança, em
preparação para futuras eleições; e monitoramento e melhora da situação dos direitos
1
Organização das Nações Unidas. Conselho de Segurança. Resolução 1529, 29 de fevereiro de 2004.
Disponível em
http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N04/254/10/PDF/N0425410.pdf?OpenElement
.
Acesso em 12/01/2009.
2
“Haiti - MINUSTAH - Background”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/minustah/background.html
. Acesso em 10/01/2008.
3
Organização das Nações Unidas (ONU). Conselho de Segurança. Resolução 1529 do Conselho de
Segurança, 29/02/3004.
4
Organização das Nações Unidas. Conselho de Segurança. Resolução 1542, 30 de abril de 2004.
5
“ONU renova missão no Haiti comandada pelo Brasil”. Agência Estado e Associated Press, 14/10/2008.
Disponível em http://www.estadao.com.br/internacional/not_int259648,0.htm. Acesso em
01/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
133
humanos. Em fevereiro de 2009, 7039 militares do Brasil, Argentina, Guatemala, Chile,
Sri Lanka e Jordânia, dentre outros países, participam da missão
6
, exercendo as mais
diversas funções, que vão desde as funções tradicionais das operações de paz ou do
mundo militar, como confrontos com grupos armados, patrulhas motorizadas e a pé,
escolta de comboios humanitários, controle de distúrbios e proteção de prédios e figuras
públicas; a funções não-militares, como remoção de lixo, recuperação de vias e ruas, de
escolas, e de hospitais, distribuição de comida e água e até mesmo corte de cabelo à
população, dentre muitas outras funções previstas e não-previstas
7
. Em dezembro de
2008, a operação de paz no Haiti contava ainda com 491 civis internacionais, 1202 civis
locais e 191 voluntários da ONU
8
.
Como já foi analisado no capítulo 1, o abuso e a exploração sexual são fenômenos
diretamente ligados à situação da mulher em períodos de violência, de pós-conflito e de
pobreza extrema. No Haiti - o país mais pobre das Américas – a situação não é diferente.
Com cerca de 8,9 milhões de habitantes, e PIB per capita de 430 dólares
9
, a situação
social do país é sofrível: 17,3% das crianças estão com o peso inferior ao normal, mais
que o triplo dos 5,3% registrados pela vizinha República Dominicana. Quase metade dos
haitianos consome menos calorias que o necessário - estabelecido pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)- (47%)
10
, e a expectativa de vida da
população é de apenas 59 anos
11
. Essa situação de pobreza é definidora da forma como
mulheres se “oferecem” a civis e militares da missão, como relatado por membros do
Exército, da Marinha e de organizações não-governamentais (ONGs). A situação de
vulnerabilidade da mulher está, ainda, ligada ao nível alarmante de estupros e de
violência contra a mulher de uma forma geral no país, facilitado por sua vez pela falta de
6
“Haiti - MINUSTAH - Facts and Figures”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/minustah/facts.html. Acesso em 03/04/2009.
7
Entrevista com Capitão de Mar e Guerra Carlos Chagas. Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, dia 21/10/2008.
Carlos Chagas foi assessor do Force Commander da Minustah.
8
“Haiti - MINUSTAH - Facts and Figures”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/minustah/facts.html. Acesso em 03/04/2009.
9
Índex Mundi. Disponível em http://indexmundi.com/haiti/population.html. Acesso em 03/12/2008.
10
INFANTE, Alan. “Hispaniola: uma ilha, dois mundos”. Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), 24/06/2005. Disponível em
http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=1269&lay=pde
.
Acesso em 03/12/2008.
11
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). “Human Development Reports”.
Disponível em http://hdrstats.undp.org/countries/country_fact_sheets/cty_fs_HTI.html. Acesso em
01/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
134
um sistema jurídico e legal, pelo domínio das gangues armadas e, até mesmo, por ruas
sem eletrecidade, que as tornam lugares de risco para mulheres e meninas que ali passam
diariamente
12
. Durante os 22 meses entre a saída de Aristide e o fim de 2005, estima-se
que 35 mil mulheres tenham sido abusadas sexualmente, metade das quais eram menores
de idade
13
.
6.1
A situação do abuso e da exploração sexual no Haiti
Para traçar um quadro minimamente realista da situação do abuso e da exploração
sexual (AES) na MINUSTAH, a pesquisa buscou fazer uma investigação na mídia,
através da coleta de reportagens sobre o tema na imprensa internacional; e realizar
entrevistas com membros do Exército e da Marinha Brasileira, além de organizações
internacionais e locais, que fazem trabalho de campo no Haiti e observam a interação
entre militares e a população local ou que tenham alguma conexão no país. É certo que
não conseguiremos traçar um quadro absolutamente condizente com a realidade, pelo
problema da sub-notificação de casos de AES
14
. É relevante explicitar que todos os atores
citados – sejam ONGs, militares ou funcionários da ONU- têm fortes agendas políticas,
que podem moldar sua visão, e, conseqüentemente, suas opiniões sobre a situação do
AES na MINUSTAH. Por isso, a escolha feita pela autora, uma vez que não há como
testar objetivamente a imparcialidade de cada um dos entrevistados, foi a de expor todos
os lados, de forma a não descriminar nenhum ator, com o objetivo de tentar formar um
quadro equilibrado.
Após tentarmos delinear a situação de AES na missão, o estudo analisará a
estrutura de denúncia e investigação existente na MINUSTAH, suas falhas e qualidades,
para depois seguirmos para o estudo do treinamento feito com militares do Exército e da
Marinha, levando em conta a presença e a clareza da prevenção ao abuso e à exploração
12
“Don’t turn your back on girls: Sexual violence against girls in Haiti”. Anistia Internacional, novembro
de 2008. Disponível em http://www.amnesty.org/en/news-and-updates/report/dont-turn-your-
back-girls-sexual-violence-haiti-20081127. Acesso em 03/12/2008.
13
Athena Kolbe and Royce Hutson.Human rights abuse and other criminal violations in Port-au-Prince,
Haiti: a random survey of households”. The Lancet, vol. 368, no. 9538, 02/09/2008. pp. 864-873.
14
Para mais sobre as dificuldades de notificação dos casos de AES, ver capítulo 4.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
135
sexual. A análise do treinamento será comparada com as denúncias de AES envolvendo
militares brasileiros desde 2004, levando em conta o período estudado e o número das
tropas, como forma de testarmos nossa hipótese de que o treinamento é uma ferramenta
importante no combate ao AES.
6.1.1
Casos de abuso e exploração sexual na MINUSTAH
Muitos Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil e membros do Exército Brasileiro
afirmaram enfaticamente não terem visto nenhum ato de AES cometido por quaisquer
dos militares presentes na missão (brasileiros e de outros países), enquanto outros
contaram à autora relatos esporádicos de encontros entre militares da Guatemala e do Sri
Lanka com mulheres locais em praias durante o domingo (dia em que não trabalham), de
festas de militares uruguaios em boates dos arredores, dentre outras denúncias.
Já a posição das organizações não-governamentais varia muito com relação a
supostas denúncias de AES. Uma funcionária da organização Viva Rio que viveu no
Haiti afirmou não ter visto ou ouvido nada
15
. Sarah Martin
16
, da Refugees International,
conta que, ao conversar com mulheres haitianas sobre a questão, estas responderam que
“os militares brasileiros gostam de conversar com as mulheres”
17
. Martin disse ainda que
não havia, no entanto, visto nenhum militar, de nenhum país, cometendo atos de AES,
mas que “estatísticas e informações que têm coletado ao longo dos anos mostram que este
não é um problema isolado – todos os militares têm problemas com prostitutas e com o
cumprimento de regras (enforcing regulations)”
18
.
Outras organizações não-governamentais são mais enfáticas em suas acusações.
David Josué, da organização haitiana Ezilidanto, afirma que “é de conhecimento público
no Haiti que abusos sexuais são cometidos pelos soldados (da MINUSTAH)”
19
. Quando
confrontado com a informação de que as Forças Armadas brasileiras afirmavam não
15
Entrevista com Mariana Reade, funcionária do Viva Rio. Rio de Janeiro, 25/11/2008.
16
Sarah Martin faz parte hoje dos Médicos sem Fronteiras.
17
Entrevista com Sarah Martin por email, 01/12/2008.
18
Idem.
19
Entrevista à autora por email, dia 28/11/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
136
haver casos, afirmou: “Estamos acostumados com as negações, mentiras e traições dos
brasileiros”
20
. A organização não cita, no entanto, nenhum caso específico.
Quando analisamos os casos de AES em ordem temporal, tanto na mídia como
aqueles relatados por nossos entrevistados, a verdade parece ser que há muito mais
denúncias do que casos concluídos. Os casos, em sua maioria, carecem de evidências,
talvez pela falta de uma estrutura de investigação apropriada. Segundo o Capitão-de-Mar-
e-Guerra dos Fuzileiros Navais Carlos Chagas Vianna Braga, que esteve no Haiti de maio
de 2004 a junho de 2005, e que trabalhou como assistente do Force Commander da
MINUSTAH, não houve nenhum caso concreto de abuso ou exploração sexual tanto de
civis como de militares durante este período, apenas uma denúncia contra um soldado
argentino atuando em Gonaïves, que durante as investigações verificou-se ser falsa. O
primeiro caso concreto a ser veiculado na mídia se deu em fevereiro de 2005, quando
uma mulher haitiana acusou três militares de a terem estuprado em Gonaïves
21
. Segundo
a investigação preliminar, tratava-se, na verdade, de um caso de prostituição, envolvendo
dois policiais paquistaneses.
Em sete de março de 2005, artigo da ONG Refugees International afirmou que,
em 18 de fevereiro, uma rádio de Gonaïves transmitira que três membros da força militar
da MINUSTAH teriam estuprado uma haitiana
22
. Em 19 de fevereiro a missão mandou
um investigador para a cidade. O artigo não diz a conclusão a qual chegaram as
apurações. Em março de 2005, uma investigação da ONU concluiu que os dois policiais
civis tinham, de fato, tido relações sexuais pagas com uma mulher
23
. Eles foram
dispensados da missão e da força policial, e sentenciados a um ano de prisão pelo
governo paquistanês. Em novembro de 2005, O Ezili Danto Witness Project Report
divulgou que uma mulher haitiana havia sido estuprada por cinco soldados jordanianos
20
Idem.
21
“UN probing rape allegations against peacekeepers in Haiti”. UN News, 24/02/2005. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=13453&Cr=haiti&Cr1
=. Acesso em 11/11/2008.
22
MARTIN, Sarah; GANTZ, Peter. “Haiti: sexual exploitation by peacekeepers likely to be a problem”.
Refugees International, 07/03/2005. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/5315/?output=printer
. Acesso em
11/11/2008.
23
LINDSAY, Reed. “UN Peacekeepers accused of rape”. Washington Times, 17/12/2006. Disponível em
http://www.washingtontimes.com/news/2006/dec/17/20061217-122119-4767r/. Acesso em
01/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
137
no dia 26 daquele mês. No áudio do depoimento
24
, no entanto, a vítima diz que não
poderia reconhecer o perpetrador, portanto não fica claro como esta sabia que aquele era
jordaniano.
Em 2006, da mesma forma, os relatos de AES parecem carecer de evidências. Em
30 de novembro de 2006, reportagem de Mike Williams, da BBC News
25
, afirmava que
uma menina de 14 anos dissera que um peacekeeper teria lhe oferecido gelatina, doces e
alguns dólares em troca de sexo com ela e com sua amiga – uma criança de 11 anos. A
matéria não cita a nacionalidade nem esclarece se o perpetrador seria civil ou militar. O
artigo afirma ainda que um “funcionário da ONU” teria dito que viu várias vezes “oficiais
da ONU ‘pegando’ (picking up) jovens prostitutas e saindo em seus carros com elas”.
Em dois de setembro de 2006, uma pesquisa feita por acadêmicos americanos,
publicadas pela revista acadêmica de medicina The Lancet
26
, afirmava que soldados
canadenses haviam feito ameaças sexuais a mulheres enquanto fora de serviço (off-duty)
e bêbados. Uma mulher afirmou que militares canadenses embriagados ficavam pelas
ruas tentando “conseguir” mulheres. Soldados americanos também foram citados. Os
entrevistados afirmaram que reconheceram os soldados canadenses pelas bandeiras
afixadas no braço do uniforme. O estudo diz ainda que militares brasileiros e jordanianos
teriam feito ameaças sexuais enquanto estavam sob patrulha. Segundo a revista, apesar de
14% dos entrevistados terem acusado soldados estrangeiros, incluindo militares da ONU,
de ameaçarem sexualmente ou com base em violência física, “os autores não encontraram
evidência do envolvimento de soldados estrangeiros em mortes ou em ameaças
sexuais”
27
.
Athena Kolbe, uma das autoras do estudo, afirma que a pesquisa foi feita
especificamente no ano de 2005. Durante este ano, segundo ela, o abuso sexual de
24
Disponível em http://www.margueritelaurent.com/campaigns/campaignone/testimonies/jordanrape.html.
Acesso em 01/12/2008.
25
WILLIAMS, Mike. “Fears over Haiti child abuse”. BBC News, 30/11/2006. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/6159923.stm
. Acesso em 12/12/2008.
26
Athena Kolbe and Royce Hutson.Human rights abuse and other criminal violations in Port-au-Prince,
Haiti: a random survey of households”. The Lancet, vol. 368, no. 9538, 02/09/2008. pp. 864-873.
HEINRICH, Jeff. “Canadian troops in Haiti accused of making death, rape threats”.
Ottawacitizen.com, 02/09/2006. Disponível em
http://www.canada.com/ottawacitizen/news/story.html?id=f50a6790-ead6-4eb1-8e61-
5524594435b1&k=70375. Acesso em 23/11/2008.
27
“UN peacekeepers in Haiti”. Editorial. The Lancet, vol.368, 2 de setembro, 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
138
crianças por “atores políticos” era sistemático. A autora informou, no entanto, que não há
dados sobre a situação atual. Segundo ela:
I don't have hard data but like everyone else working in Haiti, I hear the stories of girls who have
been taken advantage of or suffered abuse at the hands of peacekeepers, police and others in
power
28
.
Neste mesmo ano, surge um caso envolvendo um suposto estupro de uma menina
de 16 anos por um soldado brasileiro em novembro de 2004
29
, que confirmou o caso em
entrevista à BBC News
30
. Três investigações distintas foram feitas nos primeiros meses de
2005: primeiro um levantamento preliminar, depois um comitê de inquérito, que ouviu a
jovem, os familiares, o soldado e outras testemunhas. Segundo fontes oficiais, nenhuma
prova concreta foi encontrada
31
. Mesmo assim, o soldado (aparentemente do Exército) foi
mandado de volta a sua base no Brasil. Após o incidente, o Ministério da Defesa
brasileiro divulgou uma nota afirmando que “não há registro de qualquer caso
comprovado de abuso sexual por parte de integrantes de contingentes brasileiros enviados
ao Haiti”
32
.
Em 17 de dezembro de 2006, o Washington Times
33
publicou matéria afirmando
que “notícias de que peacekeepers haviam estuprado meninas adolescentes surgiram no
Haiti”. Segundo a matéria, uma menina afirmava ter sido estuprada por um militar do Sri
Lanka em uma cidade “a uma hora de Porto Príncipe”, há dois anos atrás, quando tinha
15 anos, e que foi proibida por sua mãe de denunciar o caso. David Wimhurst, porta-voz
da missão, disse que nenhuma evidência foi encontrada nas investigações feitas. O artigo
diz ainda que cinco meninas de rua de idades entre 9 e 13 anos afirmaram ter recebido
ofertas sexuais de peacekeepers.
Já 2007 parece ter sido o ano em que a missão mais apareceu nos jornais. No dia 3
de novembro de 2007, 108 soldados do Sri Lanka, país que tinha, nesta época, 960
28
Entrevista à autora por email, dia 06/01/2009.
29
“ONU investigou três acusações contra soldado brasileiro”. O Globo, 01/12/2006.
30
WILLIAMS, Mike. “Fears over Haiti child abuse”. BBC News, 30/11/2006. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/6159923.stm. Acesso em 12/12/2008.
31
GALLAS, Daniel. “ONU investigou três acusações contra soldado brasileiro”. BBC Brasil, 30/11/2006.
Disponível em
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/11/061130_haiti_dg.shtml
. Acesso em
11/12/2008.
32
Idem.
33
“UN peacekeepers accused of rape”.The Washington Times, 17/12/2006. Disponível em
http://www.washingtontimes.com/news/2006/dec/17/20061217-122119-4767r/. Acesso em
10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
139
militares na MINUSTAH
34
, foram repatriados com colaboração de seu governo por
suspeita de haverem pagado por sexo
35
, o que foi confirmado em uma investigação
preliminar feita pelo Office of Internal Oversight Services (OIOS). Segundo a porta-voz
das Nações Unidas Michèle Montas, a prostituição envolveria algumas meninas menores
de idade. O governo do Sri Lanka enviou quatro oficiais ao Haiti para investigar o caso e
afirmou continuar comprometido com a política de tolerância zero ao AES
36
.
No ano seguinte, um relatório foi responsável por levar a missão às páginas dos
jornais. Em 27 de maio de 2008, extenso documento da ONG Save The Children
37
afirmava que trabalhadores humanitários e peacekeepers estariam abusando de crianças
(através de sexo por comida ou dinheiro; ou sexo forçado) no Haiti, na Costa do Marfim,
e no Sudão. Os números relatados são relativos aos três países, não sendo possível
quantificar os dados específicos do Haiti. Há depoimentos, no entanto, de sete casos de
AES no país: Em quatro destes os perpetradores são funcionários civis internacionais
(FCI) e em três deles o relatório não define o status do perpetrador. No dia do lançamento
do relatório, o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou:
The abuse of children by those sent to help is a significant and painful issue and one that UN
peacekeeping has and will continue to address candidly, comprehensively and robustly. Even one
incident is one incident too many.
38
O então comandante militar da MINUSTAH, o General-de-Brigada brasilero
Carlos Alberto dos Santos Cruz, pediu, em seguida à divulgação do relatório, que a ONG
inglesa apresentasse os casos concretos em que militares são acusados de abuso sexual
contra menores de idade no país, já que só a partir de dados concretos poderia mandar
34
“UN Mission's Summary detailed by Country”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz
(DPKO), 30/11/2007. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2007/nov07_3.pdf
. Acesso em 03/04/2009.
35
“Sri Lanka to probe UN sex claims”. BBC News, 11/03/2007. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7076284.stm. Acesso em 22/03/2009; “UN soldiers
dismissed over sex abuse claims: Sri Lankan peacekeepers in Haiti sent home for allegedly paying
prostitutes”. MSNBC, 02/11/2007. Disponível em http://www.msnbc.msn.com/id/21600030/
.
Acesso em 22/03/2009; “Plus de 100 soldats de l’ONU sanctionées pour abus sexuels”. AFP,
03/11/2007.
36
“Sri Lanka to probe sex charges”. AFP, 02/11/2007. Disponível em
http://afp.google.com/article/ALeqM5jv1Dg19IGQjacW3GTAozDzgm43iQ.
Acesso em
03/04/2009.
37
“No One to Turn To”. Save the Children, 27 de maio de 2008.
38
“Ban Ki-moon voices concern over report on child sexual abuse by peacekeepers”. UN News Center, 27
de maio de 2008. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=26812&Cr=peacekeep&Cr1
. Acesso em
22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
140
abrir inquéritos. O general afirmou ainda que não teria nenhuma dificuldade em
investigar e propor a punição de militares que tenham cometido tais atos. “Não se tem
tolerância nesses casos, ainda mais quando se trata de crimes contra crianças. Não tem
lero-lero”, afirmou o general
39
. Mas, até o momento, o general afirmava desconhecer o
envolvimento de qualquer militar vinculado à ONU com crimes sexuais.
O último caso de AES no Haiti divulgado pela mídia diz respeito a funcionários
civis internacionais (FCIs). Segundo matéria da Agência France Press
40
, de 17 de
novembro de 2008, dois trabalhadores humanitários canadenses foram considerados
culpados em seu país de origem por abusar – ‘tocando sexualmente”- de menores de
idade, de idades entre 13 e 16 anos, em cerca de 10 ocasiões distintas em um orfanato
haitiano entre 2006 e 2007. Ambos foram condenados, respectivamente, a 3 e 2 anos de
prisão. A investigação foi levada a cabo com colaboração da MINUSTAH.
Dos casos citados, podemos tirar duas conclusões: Ainda que as opiniões sejam
díspares, o caráter das denúncias de abuso e exploração sexual parece ser esporádico, e
não sistemático, como foi o caso na Missão das Nações Unidas na República
Democrática do Congo (MONUC), mesmo que devemos levar em conta, no entanto, que
a notificação pareça ser falha. Segundo Sarah Martin:
Haiti is a more sophisticated society than DRC - it has more media, it’s more urban, and there are
more "observers" around, meaning that it would be a lot harder to get away with the things that the
soldiers in MONUC have gotten away with. Also, the UN uses more disciplined troops (…) in
Haiti than it does in the Congo. The Latin American troops tend to have had more training on this
issue
41
.
Assim, a disciplina dos militares, conseguida, em grande parte, pelo treinamento
implementado nos países-contribuintes e também pelas medidas e pelo grau de rigidez
estabelecido pelos superiores hierárquicos parece ter grande influência em como os
militares se comportarão em campo e no melhor estado da MINUSTAH em relação a
casos de AES, se comparada com a MONUC. Não à toa, países que não possuem centros
39
CARVALHO, Jailton de. “Comandante brasileiro cobra de ONG casos concretos de abuso de crianças no
Haiti”. O Globo Online, 27/05/2008. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=26812&Cr=peacekeep&Cr1
. Acesso em
12/12/2008.
40
“Canadians accused of sex assault at Haiti orphanage”. Agência France Press, 17/11/2008. Disponível
em
http://www.google.com/hostednews/afp/article/ALeqM5haIy86nMYVmOxD1dvDHOzfp5Oh4g.
Acesso em 22/03/2009.
41
Entrevista à autora por email, dia 01/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
141
de treinamento, ou que possuem programas deficientes, são aqueles que mais aparecem
em denúncias de abuso e exploração sexual, como parece ser o caso do Sri Lanka
42
,
conforme afirma o general indiano Dipankar Banerjee, do Institute of Peace and Conflict
Studies de Nova Déli.
Os casos cometidos por civis são também preocupantes. O fato de que civis ficam
mais tempo no país, muitas vezes por anos, e têm mais liberdade para circular, além de
viverem em áreas comerciais, podem ser fatores facilitadores deste tipo de interação. Não
há, no entanto, dados que corroborem tal sugestão. De forma geral - incluindo civis e
militares - o problema principal parece, de fato, ser o aumento da prostituição de
mulheres, meninas e meninos desde a chegada da missão. Peter Ganz e Sarah Martin, da
Refugees International, afirmam que prostitutas percorrem as ruas e bares em Pétion-
Ville, bairro onde mora a maioria dos funcionários internacionais
43
. Isto porque, ainda
que casos de AES sejam menos freqüentes no Haiti, “anywhere that there is desperate
poverty (as there is in Haiti) and people with power to abuse, you will find abuse of
power”.
6.1.2
Medidas adotadas e estrutura de investigação
A MINUSTAH, segundo suas autoridades, tem a luta contra a exploração e o
abuso sexual (AES) como prioridade. Em 10 de outubro de 2007, o Principal Vice
Representante Especial do Secretário-Geral da missão (Principal Deputy Special
Representative of the Secretary-General), Luiz Carlos da Costa, afirmou, em uma
conferência, que o AES constitui uma séria ruptura, que pode resultar em “dispensa
instantânea”. O brasileiro disse, ainda, que o papel da ONU no Haiti era baseado na
confiança, e para isso é necessário que todos tenham os mais altos padrões de
comportamento: “(...) É completamente inaceitável que certos indivíduos traiam essa
42
Entrevista à autora. Institute of Peace and Conflict Studies, Nova Déli, 04/02/2009. Para mais sobre o
treinamento implementado em cada país-contribuinte, ver International Association of
Peacekeeping Training Center (IAPTC), em http://www.iaptc.org/
.
43
“Must Boys Be Boys? Ending Sexual Exploitation and Abuse in UN Peacekeeping Missions”. Refugees
International, 2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
142
confiança ao cometerem atos de abuso e exploração sexual”
44
. Em inúmeras outras
ocasiões, como nas entregas de medalhas da ONU, o brasileiro reafirmou o compromisso
com a política de tolerância zero
45
. A prioridade da política de tolerância zero parece ser
seguida também pelos comandantes militares: Em documentos de janeiro de 2007
46
,
Edmond Mulet, Representante Especial do Secretário-Geral (SRSG) da missão, informa
aos comandantes militares dos passos a serem tomados em casos de denúncias de AES e
das medidas aplicáveis. Em fevereiro de 2007, o General Santos Cruz mandou um
memorando para todos os comandantes de unidades, relembrando suas responsabilidades
na prevenção do AES
47
.
A sombra dos escândalos sexuais da Missão das Nações Unidas na República
Democrática do Congo (MONUC)
48
, em que a exploração de crianças por peacekeepers
era absolutamente sistemática e feita sem nenhum esforço de discrição, causando grande
embaraço à ONU, parece exercer grande impacto nesta escolha. Logo no começo da
missão, e após as denúncias não-fundamentadas de que um brasileiro teria estuprado uma
haitiana, todas as relações sexuais entre militares e mulheres locais passam a ser
proibidas
49
, segundo o Capitão de Fragata dos Fuzileiros Navais Ludovico Alexandre
Velloso, que foi Force Provost Marshall (espécie de comissário ou chefe de polícia
responsável pela apuração de má-condutas menores por parte de militares) da
MINUSTAH.
Tal prioridade nas políticas de não-confraternização pode ser atestada, ainda, pela
adoção de um grande número de medidas existentes na luta contra o AES. Das seis
medidas registradas neste trabalho acerca do tema – estabelecimento de curfews e áreas
off-limits, de áreas de lazer nas bases, de períodos de arejamento
50
, de treinamentos de
44
“Senior UN official in Haiti urges action to prevent sexual abuse”. UN News, 10/10/2007. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=24253&Cr=haiti&Cr1
=. Acesso em 10/12/2008.
45
Entrevista com comandante José Reis. Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 10/09/2008.
46
Organização das Nações Unidas. United Nations Stabilization Mission in Haiti. MULET, Edmond
(SRSG). Memorandum. Subject: Guidelines for the Handling of incidents involving MINUSTAH
members, 15/01/2007.
47
Organização das Nações Unidas. United Nations Stabilization Mission in Haiti. De Gen. Carlos Alberto
dos Santos Cruz para All Unit Commanders. Memorandum. Subject: Monthly Report from
Contigent Commanders regarding the prevention of sexual abuse and exploitation .21/02/2007.
48
Ver capítulo 6.
49
Entrevista à autora. Complexo Naval da Ilha do Governador, Rio de Janeiro, 23/11/2008.
50
Os períodos de arejamento, no entanto, parecem, muitas vezes, deslocar o problema da prostituição para
a vizinha República Dominicana, onde não há proibição de sexo com prostitutas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
143
conduta e de unidades de conduta e disciplina nas missões; obrigatoriedade do uso de
uniformes durante todo o tempo, e restrições à livre mobilidade, a MINUSTAH, em
menor ou maior grau, (uma vez que a adoção de muitas de tais medidas dependem de
cada contingente) adota praticamente todas elas. Enquanto o Brasil, por exemplo, adota
todas as políticas disciplinares, outros países têm restrições menos rígidas, especialmente
com relação à mobilidade dos militares, segundo o Capitão Velloso
51
.
Os casos de má-conduta são divididos em dois tipos: “má-condutas sérias”
(serious misconduct) e “má-condutas menores” (minor misconduct). As sérias são as que
incluem negligência, atos criminosos, ou violações de regras e procedimentos da missão
que têm sérias conseqüências para a operação e para indivíduos. Exemplos de tais
condutas são casos de abuso de autoridade, quebra de confidencialidade, uso ou posse de
narcóticos, roubo, corrupção, intoxicação durante o trabalho, abuso e exploração sexual.
Estes casos são lidados pelo Office of Internal Oversight Services (OIOS)
52
. Já a má-
conduta menor constitui-se por omissões ou atos de negligência que não têm grandes
prejuízos para a missão ou para indivíduos, como o uso inapropriado do uniforme e a
direção negligente
53
. Estas devem ser lidadas pela própria missão ou pelo Conduct and
Discipline Unit.
Dentre os casos de má-conduta séria de militares registrados pela mídia, por
ONGs e pela própria missão a principal é, sem dúvida, a morte e o ferimento de civis,
especialmente tendo em vista que esta é uma missão de cap. VII (ainda que o Ministério
das Relações Exteriores discorde de tal visão), em que o princípio do uso mínimo da
força é deixado para trás. Os freqüentes confrontos de militares da ONU com grupos
armados
54
- ex-militares, paramilitares, traficantes de drogas, gangues armadas, grupos
51
Idem.
52
“Ban Ki-moon voices concern over report on child sexual abuse by peacekeepers”. UN News Center, 27
de maio de 2008. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=26812&Cr=peacekeep&Cr1
. Acesso em
22/03/2009.
53
Organização das Nações Unidas. Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO).
“Directives for Disciplinary Matters Involving Military members of National Contingent”. Sem
data, DPKO/MD/03/00993.
54
Ver, por exemplo, CARVALHO, Jailton, “Haiti: militares do Brasil acusados de agressão”. O Globo;
Justiça Global. “Mantendo a paz no Haiti?”, maio de 2005; MONTERO, Dario. “UN Mission
Walks Thin Line Between Peacekeeping and Repression”. Inter Press Service, 15/06/2005.
Disponível em http://www.globalpolicy.org/security/issues/haiti/2005/0615ribeiro.htm
. Acesso em
20/11/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
144
políticos- e com constantes pressões pelo aumento da força
55
, especialmente no início da
missão, quando a situação da insegurança era ainda mais latente, são responsáveis pelas
reclamações de uso abusivo da força, detenções arbitrárias e invasão de propriedade, até
hoje as reclamações sérias mais comuns. Tal constatação é corroborada por partes
independentes da missão. Em dois de setembro de 2006, a já citada pesquisa feita por
Athena Kolbe and Royce Hutson, publicadas pela revista acadêmica de medicina inglesa
The Lancet
56
, afirmava que 20% de todas as ameaças de mortes, sexuais e de violência
recebidas pelos 5720 haitianos entrevistas foram feitas por soldados estrangeiros. Ainda
que não se saiba a real extensão de tais casos, essa é a reclamação mais freqüente. Dentre
as má-condutas menores, os acidentes de carro envolvendo veículos da ONU são, de
longe, as denúncias mais freqüentes, talvez pela possibilidade de recebimento de
indenizações.
Para Sarah Martin e Peter Gantz, da Refugees International, a MINUSTAH não
está adequadamente preparada para lidar e lutar contra o AES
57
. Segundo eles, a missão
tem poucos recursos humanos e financeiros para lidar com o problema. Hoje, a focal
point on SEA (instância responsável por receber reclamações, aumentar a consciência e
fortalecer as respostas à má-conduta sexual) é, ao mesmo tempo, a responsável por
questões de gênero em geral (Gender Advisor) e em treinar toda a tropa da missão – que
contava com 7039 soldados e 2031 policiais em fevereiro de 2009
58
- em questões de
conduta sexual.
55
MONTERO, Dario. “UN Mission Walks Thin Line Between Peacekeeping and Repression”. Inter Press
Service, 15/06/2005, ver nota 6; GANZ, Peter; MARTIN, Sarah. Refugee International. “Haiti:
Brazilian Troops in MINUSTAH must intervene to stop violence”, 18/03/2005. Disponível em
http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/47a6eeb80.pdf
. Acesso em 20/11/2008.
56
Athena Kolbe and Royce Hutson.Human rights abuse and other criminal violations in Port-au-Prince,
Haiti: a random survey of households”. The Lancet, vol. 368, no. 9538, 02/09/2008. pp. 864-873.
57
MARTIN, Sarah; GANTZ, Peter. “Haiti: sexual exploitation by peacekeepers likely to be a problem”.
Refugees International, 07/03/2005. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/5315/?output=printer
. Acesso em
11/11/2008.
58
“Haiti - MINUSTAH - Facts and Figures”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/minustah/facts.html. Acesso em 03/04/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
145
6.2
O treinamento do Batalhão Brasileiro (BRABATT)
Tendo analisado os casos publicados pela mídia de abuso e exploração sexual
(AES) por militares da MINUSTAH e as medidas implementadas pela missão em
combate ao fenômeno, passemos à análise do treinamento de AES de militares do
Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais do Brasil. Do total de 7039 militares
participantes da MINUSTAH
59
, 1282 são brasileiros
60
: Destes, cerca de 225 são
Fuzileiros Navais, ligados à Marinha do Brasil, e o restante é do Exército brasileiro. Os
militares brasileiros, tanto da Marinha, quanto do Exército, são orgulhosos de seu
comportamento disciplinado no Haiti. Frases como “Não tenho nada para te dizer, porque
nunca fazemos nada”, “com o Brasil isso não acontece....” foram repetidas variadas vezes
durante as entrevistas. A frase do Capitão-de-Fragata dos Fuzileiros Navais José Firmeza
Simões dos Reis, que esteve no Haiti de novembro de 2007 a junho de 2008, exemplifica
bem esta crença: “Até hoje não vou dizer para você que não houve, mas eu não tenho
conhecimento e ninguém nunca soube de algum caso de brasileiros cometendo atos de
abuso sexual”
61
.
Obviamente, no interesse de manter a seriedade metodológica, devemos lidar com
a possibilidade de que as diretrizes recebidas pelos militares sejam a de nunca tornar
pública uma denúncia ou um caso concreto de AES contra um militar brasileiro. Mas
como relatado acima, o único caso que aparece na mídia é a já citada denúncia
envolvendo uma menina de 16 anos que afirmava ter sido estuprada por um soldado
brasileiro em novembro de 2004
62
, que foi refutada pelas investigações militares
brasileiras que se seguiram.
Nesta análise, temos como objetivo verificar a importância do treinamento como
definidora do aparente baixo número de casos de AES cometido por militares brasileiros.
59
Idem.
60
“UN Mission's Contributions by Country”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO),
28/02/2009.
61
Entrevista com o Capitão-de-Fragata dos Fuzileiros Navais José Firmeza Simões dos Reis. Ilha das
Cobras, Rio de Janeiro, dia 21/11/2008.
62
LINDSAY, Reed. “UN Peacekeepers accused of rape”. Washington Times, 17/12/2006. Disponível em
http://www.washingtontimes.com/news/2006/dec/17/20061217-122119-4767r/. Acesso em
01/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
146
Para isso, analisaremos o treinamento implementado para membros do Exército e dos
Fuzileiros Navais com base em certos critérios pré-estabelecidos. Em um segundo
momento, faremos entrevistas com militares a partir de três perguntas-padrão, com o
objetivo de analisar a recepção da mensagem por parte dos militares.
6.2.1
O treinamento sobre abuso e exploração sexual para militares brasileiros
O treinamento prévio dos militares do Exército que vão para missões de paz é
feito no Centro de Instrução de Operações de Paz (CIOpPaz), a partir de 2009 Centro
Sergio Vieira de Mello, enquanto que o dos Fuzileiros Navais é feito na Escola de
Operações de Paz, que faz parte do Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo
63
.
Como já analisado no capítulo 2, a literatura de gênero e missões de paz, especialmente
aquela que se preocupa com o treinamento, produziu inúmeros insights, a partir de
experiências passadas, de como o treinamento pode tornar-se mais efetivo. Com base
nesta literatura, definimos indicadores de efetividade.
Os indicadores estabelecidos foram, em primeiro lugar, a ausência ou presença do
treinamento sobre abuso e exploração sexual (AES). Em segundo lugar, analisaremos o
conteúdo implementado: ou seja, se as palestras estão de acordo com os preceitos dos
Standardized Generic Training Modules (SGTM) ou se possuem um conteúdo próprio,
contrários aos princípios da ONU. Em terceiro lugar, deve-se analisar a clareza das
políticas da ONU com relação às proibições de AES. Em quarto lugar, devemos verificar
a duração da palestra e sua origem, ou seja: que órgão é responsável por ministrar tais
palestras.
Para a análise do treinamento aplicado, fizemos diversas entrevistas com aqueles
que ministram o conteúdo especificamente sobre AES para militares. Para o exame do
treinamento dos Fuzileiros Navais falamos com o Capitão-de-Fragata Silvio Aderne
Neto, treinador para cursos de gênero e AES para observadores militares do Corpo de
Fuzileiros Navais. Para o Exército, entrevistamos o Capitão Enio Barbosa Fett de
Magalhães, responsável por ministrar a palestra de AES em diversos cursos oferecidos
63
Ambos os órgãos ficam no Rio de Janeiro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
147
pelo CIOpPaz. Além das entrevistas, analisamos o conteúdo das palestras ministradas por
estes profissionais. Entrevistamos ainda o Comandante José Reis, do Corpo de Fuzileiros
Navais, responsável da inteligência e contra-inteligência do Batalhão Brasileiro de
novembro de 2007 a junho de 2008
64
, cujas atribuições incluíam fazer palestras sobre
questões de disciplina na MINUSTAH a militares tanto do Exército, quanto da Marinha.
Em um primeiro momento, é necessário verificar a ausência ou a presença, além
do espaço dado ao tema, frentes aos muitos outros assuntos teóricos existentes nos
treinamentos. Tantos Fuzileiros quanto membros do Exército afirmam que o AES, e a
disciplina em geral, são assuntos existentes e enfatizados nos treinamentos, de acordo
com o próprio conteúdo-base repassado pela ONU
65
. No Exército, por exemplo, todos os
cursos ministrados (cursos para comandantes de pelotão e de sub-unidade de engenharia,
para capitães e tenentes da companhia de logística; para capitães tenentes de infantaria e
cavalaria, para comandantes das tropas de engenharia etc.) incluem palestras sobre AES,
da mesma forma que nos cursos ministrados pela Marinha.
Segundo o Comandante José Reis, durante a missão, são escolhidos alguns
assuntos prioritários nos treinamentos sobre código de conduta, com base em
experiências passadas da ONU, como, por exemplo, abuso de poder, detenções arbitrárias
e abuso e exploração sexual, para serem os temas principais nas palestras, nas
recomendações aos comandantes e nas reuniões semanais entre autoridades.
O conteúdo do curso ministrado no Exército é uma mescla dos Módulos
Genéricos de Treinamento Padronizados (SGTM), produzidos pelo Serviço de
Treinamento Integrado, órgão do Departamento de Operações de Manutenção da Paz
(DPKO), com noções formuladas pelo Centro, tais como informações técnicas e
operacionais específicas à missão e aos cargos exercidos (sejam eles militares que vão
como tropa ou como observadores militares). Com relação às apresentações sobre AES,
o conteúdo é integralmente aquele do SGTM, no caso o número 5. O curso do SGTM 5 é
sobre temas ligados a “atitudes e comportamentos”, e está dividido em 4 sub-cursos: 5 A
- Código de Conduta; 5 B - Consciência Cultural; 5 C - Proteção de Crianças e 5 D -
64
Como explicitado no capítulo 1, os militares têm o induction training, treinamento recebido logo após a
chegada das tropas; e o continuous training, palestras dadas ao longo da permanência dos
militares.
65
Afirmação feita tanto por Major Ricardo, quanto pelos Comandantes José Reis e Aderne.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
148
Prevenção ao Abuso e à Exploração Sexual. Nesta última palestra, o objetivo é explicar o
contexto em que se dá o AES, as conseqüências negativas para as vítimas e para a
reputação e credibilidade da ONU. Ao final do curso, espera-se que os militares possam
descrever o que constitui AES, que saibam quais as políticas da ONU, e quais as
proibições impostas
66
.
Enquanto o módulo de AES do Exército é totalmente baseado nos SGTMs, a
palestra para observadores militares do Corpo de Fuzileiros Navais é, segundo o Capitão-
de-Fragata do Corpo de Fuzileiros Navais Silvio Aderne Neto, uma mistura do SGTM
com cursos ministrados no Canadá e na Irlanda. Da mesma forma, o objetivo da palestra
é enfatizar a importância de seguir os padrões de conduta da ONU, e os motivos pelos
quais o AES é proibido pela regra da ONU, além de esclarecer quais ações constituem
AES e explicar o impacto destas ações na população local e na missão. Assim, no caso de
Fuzileiros Navais, que também incluem as palestras de AES, o conteúdo é um pouco
distinto, mas ainda assim a apresentação segue os objetivos estabelecidos pelo SGTM.
A palestra dada pelo Comandante José Reis é aquela produzida pelos CI (Centro
de Inteligência do Exército). As palestras eram feitas por rodadas: os 225 fuzileiros
fizeram de uma vez, enquanto o Exército as ministrava por companhia, até cobrir todo o
contingente. É relevante lembrar que o pequeno número de participantes por vez facilita o
entendimento e a comunicação entre palestrantes e alunos.
A principal característica que procuramos no conteúdo das palestras e nas
entrevistas com os treinadores é a clareza do conteúdo passado, especialmente com
relação às políticas da ONU, uma vez que esta característica garante, em grande parte, o
entendimento daqueles que passam pelo treinamento. A clareza é uma característica mais
facilmente verificada através do entendimento daquele que foi treinado, e não pelo que
afirma o treinador. Ainda assim, é relevante perguntar a percepção daquele que ministra
as palestras, uma vez que, em grande medida, a forma como este formula a palestra pode
facilitar o entendimento de conceitos e regras não tão claros, como os conceitos de abuso
e exploração sexual utilizados pela ONU. A introdução das relações consensuais nestes
66
Organização das Nações Unidas. Integrated Training Service, 2006. “SGTM 5 D: Prevention of Sexual
Exploitation and Abuse”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
149
conceitos pode, por certo, causar inúmeros desentendimentos, uma vez que, como já
vimos no capítulo 2, o entendimento tradicional de AES é outro.
É relevante notar que o apelo à obediência das regras da ONU parece ser mais à
imagem da missão do que aos prejuízos causados aos indivíduos envolvidos nestas
relações. Segundo o Comandante Aderne, a intenção das palestras é causar impacto nos
militares, demonstrando o quanto casos de AES têm resultados negativos para a imagem
da missão, da organização e do país. Segundo ele: “Eu digo: O nosso país vem em
primeiro lugar. Se vocês conseguirem manter a imagem da ONU intacta, fiquem
tranqüilos, que a imagem do Brasil também estará intacta”
67
. Para demonstrar os
prejuízos à imagem, de uma forma geral, em sua palestra é mostrada uma imagem do site
de busca Google com a frase “misconduct of UN personnel” digitada na caixa de busca, e
o resultado são mais de 317 mil matérias sobre o tema. Da mesma forma, Capitão Enio
68
afirma que o objetivo é demonstrar a importância que tem o soldado brasileiro no Haiti,
ao representar seu país. “Qualquer incidente, mesmo que não tenha sido provado, gera
uma certa mácula na imagem brasileira”.
Ainda que pareça negativo ou inadequado para alguns, a ênfase nos resultados
negativos para a imagem da ONU e do país contribuinte de tropas, em detrimento das
conseqüências individuais que a exploração e o abuso sexual podem causar, facilita o
entendimento da importância do seguimento da regra. Puechguirbal (2003) afirma há
quem acredite que “sustentar” ou dar coisas a uma mulher durante sua estadia faz dele
uma pessoa boa, capaz de boas ações, e, portanto, eticamente compatível com as missões
de paz, como já foi relatado no capítulo 1. Assim, apoiar-se na imagem da ONU faz com
que aqueles para quem as conseqüências negativas para as mulheres locais não sejam
justificativa suficiente para agirem segundo as normas comportem-se apropriadamente.
Ainda assim, se o objetivo é construir uma nova cultura, é absolutamente necessário
enfatizar não só a imagem do país, mas as conseqüências negativas às vítimas,
introduzindo, assim, um componente moral no cumprimento das regras.
Ainda assim, o apelo à manutenção da imagem do país contribuinte de tropa
também parece ser eficiente, já que, em princípio, todo militar é essencialmente patriota.
67
Entrevista com o Capitão-de-Fragata dos Fuzileiros Navais Silvio Aderne Neto. Ilha das Cobras, Rio de
Janeiro, dia 21/11/2008.
68
Entrevista com o Capitão Enio Fett Magalhães. CIOpPaz, Rio de Janeiro, dia 5/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
150
Comandante José Reis afirma que o apelo à imagem da missão e do país destrói a
tradição de silêncio supostamente existente entre militares, já que a má-conduta de um
militar de um contingente de outro país prejudicará a imagem da missão como um todo,
inclusive do Brasil. Assim, para ele, a identidade militar é menos importante do que a
identidade de brasileiro. “Se suja o nome da missão, suja a todos conseqüentemente. É
uma questão de proteção”
69
.
Ainda que em menor grau, os treinadores também tentam enfatizar as
disparidades de poder e as conseqüências negativas para as mulheres na explicação das
políticas de AES da ONU. José Reis afirma explicar para os militares: “Não pensem que
a haitiana vai se apaixonar por vocês porque vocês são lindos. Ela vai se apaixonar por
vocês porque vocês são a esperança de um futuro melhor pra elas lá no Brasil”
70
. Reis
afirma ainda que tenta explicar àqueles que porventura não se importem com o fato de
que as haitianas não estão apaixonadas pela beleza dos soldados que “na cabecinha dela
está se passando uma coisa que é completamente diferente do que se passa na cabeça
dele. Ela está achando que vocês estão namorando elas. Isso é uma maldade muito grande
com as moças, além de ser um troço estupidamente prejudicial para imagem do Brasil”
71
.
Na palestra do Comandante Aderne, há também a explicitação do impacto destes casos
para “o mandato, a segurança, a missão, o país de origem, e a população local”.
A clareza dos conceitos utilizados pode ser facilitada pelo uso de diversas
ferramentas, tais como o uso de estudos de caso, e também da narração, por parte dos
treinadores, de suas próprias experiências pessoais. O treinamento do Capitão-de-
Fragata dos Fuzileiros Navais Silvio Aderne Neto, por exemplo, utiliza-se de uma série
de estudos de caso. Tal ferramenta acaba por esclarecer possíveis dúvidas já que
explicam, na prática, conceitos que parecem ser demasiadamente vagos. Na palestra do
Comandante Aderne, são quatro estudos de caso: um oficial do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) que se envolve com uma menina de 16 anos,
cujos pais se orgulham da relação; um observador militar que se encontra com uma
prostituta de 30 anos em um país em que a prostituição não é ilegal; uma adolescente
69
Entrevista com o Capitão-de-Fragata dos Fuzileiros Navais José Firmeza Simões Reis. Ilha das Cobras,
Rio de Janeiro, 21/11/2008.
70
Idem.
71
Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
151
refugiada que é assediada por um funcionário do Programa Mundial de Alimentos (PMA)
e os dois engajam numa relação “consentida”, em que “nenhum dos dois acha que está
fazendo algo errado”; um observador militar que assedia sua empregada doméstica, que,
por sua vez, parece gostar dele. Depois de cada caso, há uma explicação sobre os motivos
pelos quais tais relações são proibidas, ainda que envolvam sentimentos e consentimento
mútuo. Os casos ajudam a entender que, ainda que os envolvidos locais estejam
satisfeitos com a situação, estes são proibidos pela ONU, o que combate a sensação, já
explicitada, que alguns militares sentem, através destas relações, de estarem sendo
altruístas. Há, ainda, na palestra, a utilização de fotos, representando a situação de
pobreza em que se encontram as mulheres, como forma de explicar a ligação da
vulnerabilidade que as leva a se oferecerem.
Com relação a quem apresenta as palestras, conforme já dito no capítulo 2, uma
das recomendações feitas para melhorar a clareza e a efetividade do treinamento seria
incluir treinadores homens. No Brasil, por sua vez, não só os treinadores são sempre
homens, mas são também militares, assim como os treinados. A identidade entre
treinador e treinado facilita a simplificação da linguagem
72
e o respeito às normas, uma
vez que estas são entendidas dentro da estrutura militar de obediência às ordens emitidas
pelos superiores. Esta identificação com o mundo masculino e militar permite que se use
uma linguagem mais direta: Segundo Comandante José Reis, a clareza de sua palestra
estava em usar termos “só de homens”, que não deixavam dúvidas quanto ao que queria
dizer com a proibição. O Comandante afirmava ainda que, além de usar termos diretos,
perguntava, como se fosse os militares, possíveis questões, como “Comandante, beijar na
boca é fazer sexo?”, de forma a esclarecer possíveis desentendimentos. Este tipo de
linguagem corriqueira parece evitar os desentendimentos conseqüentes do uso de uma
linguagem demasiadamente sofisticada (Puechguirbal, 2003, p. 117).
O Brasil possui ainda um programa de prevenção a atos de má-conduta, tais como
abuso e exploração sexual, agressões físicas ou morais, suborno, intimidação, extorsão e
abuso de poder. As palestras são ministradas todo mês, tanto pela Marinha como pelo
72
Segundo Toiko Tõnisson Kleppe, UN-INSTRAW, “A man who speaks to other men about gender is
often listened to in a more attentive way”. “UN-sponsored meeting calls for more male facilitators
in gender training”, UN News, 26/06/2008. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=23030&Cr=gender&Cr1=training
. Acessado em
30/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
152
Exército
73
. O objetivo da apresentação é enfatizar os principais problemas a se evitar em
uma missão de paz, relembrando as conseqüências de tais atos - não só para os militares,
como a repatriação e os efeitos negativos à carreira, assim como os danos à imagem do
Brasil e da ONU- mas para as vítimas, como a humilhação e estímulo ao tráfico humano.
Segundo a apresentação: “O que menos se espera de um soldado a serviço de uma missão
de paz é uma conduta reprovável como essa (abuso e exploração sexual)”
74
.
No Exército, o tempo total de treinamento para uma missão como a MINUSTAH
é de quatro meses. Pela quantidade de militares e pelos diferentes lugares de onde estes
vêm, o curso é aplicado com base no conceito de “multiplicadores” – ou seja, aqueles que
fazem o curso são apenas os oficiais de comando- normalmente, capitães e tenentes.
Estes voltam do CIOpPaz para suas bases – com uma apostila, em que estão contidas as
informações ministradas - e repassam a seus subordinados as noções aprendidas. No
final, há um exercício prático, chamado de Exercício Avançado de Operação de Paz
(EOP), em que há uma replicação da estrutura do Haiti, no qual todos participam. No
total, segundo o Major Nelson Ricardo Fernandes da Silva do CIOpPaz
75
, 150 de 1250
militares da missão fazem diretamente o curso: uma razão de pouco mais de 1 para 9.
Assim, apesar de serem ministradas pelo CIOpPaz, os conhecimentos são repassados
pelos próprios superiores militares de cada base, o que garante a identificação entre
treinador e “aluno”.
A única crítica que pode ser feita aos treinamentos implementados é com relação
à duração das palestras. No Exército, os cursos, para diferentes categorias, costumam ter
de uma a duas semanas. O curso para observadores militares do Corpo de Fuzileiros
Navais não é muito diferente. São três semanas de curso, das quais duas semanas são
teóricas e uma prática. No total, são dadas 11 disciplinas em 110 horas. Mas a duração
das palestras tanto do Exército quanto da Marinha não passam de uma hora. A curta
duração das palestras de prevenção ao AES já havia sido apontada como uma das falhas
do treinamento de AES em vários países (como Higate, 2003, p. 4).
73
Entrevista com Comandante Renato Rangel Ferreira por email, dia 13/03/2009.
74
“Normas de Conduta (Abuso Sexual)”. Material concedido por Comandante Renato Rangel Ferreira,
13/03/2009.
75
Entrevista com Major Ricardo, CIOpPaz, dia 28/11/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
153
No dia 14 de fevereiro de 2009, a Unidade de Conduta e Disciplina da
MINUSTAH promoveu a “Campanha contra o Abuso e a Exploração Sexual”
76
. O
objetivo do evento era aumentar a conscientização sobre a gravidade do assunto entre
militares. A campanha, que durou até o dia 27 de fevereiro de 2009, contou com
distribuição de cartões-alerta e palestras informativas
77
5.2.2
“Não adianta nada uma palestra linda, se você não colocar em prática”
A percepção, como afirmou o Comandante José Reis
78
, é inerente a cada um.
Dessa forma, ainda que a palestra tenha sido dada da forma mais clara possível, com
linguagem simples e utilização de fotos e estudos de caso, é necessário investigar se, de
fato, seu conteúdo foi compreendido por seu público. Estabelecemos, assim, três
perguntas a serem feitas, em dois momentos distintos, com o objetivo de identificar a
compreensão daqueles que passaram pelo treinamento. Em um primeiro momento,
perguntamos aos militares: 1) O que é abuso sexual e o que é exploração sexual? E 2)
Qual a política da ONU com relação a sexo com mulheres locais? Após responderem às
duas primeiras perguntas, a terceira questão era formulada: 3) O que acontece caso o
militar faça sexo com uma mulher local? Esta terceira pergunta é feita em um segundo
momento para não subtender àqueles que porventura não tivessem conhecimento das
proibições, que havia, de fato, uma proibição de fazer sexo com mulheres locais.
Lembrando que, segundo o Boletim do Secretário-Geral de 2003
79
, o abuso sexual
é definido como “atos ou ameaças físicas de teor sexual”, e a exploração como o abuso
de uma posição poder, de um lado, e de vulnerabilidade, de outro; podemos afirmar que
os dois observadores militares do Corpo de Fuzileiros Navais que fizeram o curso com o
76
“Campanha contra o abuso e a exploração sexual”. Exército Brasileiro, março de 2009. Disponível em
http://www.exercito.gov.br/03ativid/missaopaz/minustah/noticias/2009/02fev/abuso.html. Acesso
em 22/03/2009.
77
MINUSTAH. “Campanha contra o abuso e a exploração sexual”. Ordem de Serviço Nr 006.G9,
12/02/2009. Material concedido por Comandante Renato Rangel Ferreira, 13/03/2009.
78
Entrevista com o Capitão-de-Fragata dos Fuzileiros Navais José Firmeza Simões Reis. Ilha das Cobras,
Rio de Janeiro, 21/11/2008.
79
Organização das Nações Unidas. Secretariado. “Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse”, Secretary-General’s Bulletin. Documento das Nações Unidas No. ST/SGB/2003/13,
09/10/2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
154
Comandante Aderne sabiam o que significavam ambos os conceitos. Segundo o Major de
Infantaria da Aeronáutica, Salomão Pereira da Silva
80
, o abuso sexual é “qualquer
atividade sexual praticada por alguém, sem o consentimento ou desejo do outro”. Já a
exploração sexual é definida por ele como “a prática de ações relativas ao sexo, nas quais
o autor detém posição privilegiada sobre o outro”.
Com relação às políticas da ONU, os militares parecem ter conceitos ainda mais
estritos que a própria Organização. Tanto o Capitão-Tenente Alexandre Simioni quanto o
Major Salomão afirmaram que o sexo com mulheres locais, e inclusive com funcionários
da ONU é proibido. Segundo Simioni: “É completamente proibido pela ONU que haja
esse envolvimento”
81
, uma vez que estas relações acabariam com a imparcialidade
necessária ao observador militar. Major Salomão afirmou que a política da ONU com
relação a sexo com locais é “extremamente severa, com tolerância zero para qualquer
ocorrência desta natureza”
82
. Todos os dois afirmaram, ainda, que a conseqüência é a
repatriação (e não “pode ser” a repatriação, como seria mais semelhante à realidade das
missões de paz).
É relevante que ambos os militares tenham um entendimento mais severo do que
de fato é a realidade das políticas da ONU. Na verdade, segundo o Boletim do Secretário
Geral de 2003, o abuso e a exploração sexual são ações proibidas, mas as relações
sexuais com mulheres locais sem troca de favores ou violência são apenas
“desencorajadas”. Além disso, ambos afirmaram que, ao envolver-se com mulheres
locais, o militar é, como afirmou Simioni, “automaticamente repatriado e julgado pela lei
do Brasil, mantendo a ONU informada da situação, e a ONU vai cobrar do país como está
o andamento do processo”. Ou seja: Diferente do que afirmou Bedont (2005, p. 87), os
militares parecem não ter consciência da demora e dos problemas envolvidos nos
processos de investigação e punição tanto da ONU, como dos países-membros, já
explicitados no capítulo 1. Na verdade, o treinamento parece enfatizar que, apesar da
limitação da ONU, eles serão, por certo, julgados pelas leis brasileiras.
80
Entrevista com o Major de Infanataria da Aeronáutica Salomão Pereira da Silva por email, dia
09/12/2008.
81
Entrevista com Capitão-Tenente Alexandre Simioni dos Fuzileiros Navais, dia 02/12/2008.
82
Entrevista com o Major de Infanataria da Aeronáutica Salomão Pereira da Silva por email, dia
09/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
155
No entanto, devemos levar em conta certas especificidades próprias aos
observadores militares, em comparação com militares que seguem para as missões como
parte de tropa. Os observadores são todos, praticamente, oficiais, ou seja: suas patentes
são, via de regra, superiores à patente de tenente. O fato de que estes são oficiais garante,
quase sempre, um nível de escolaridade superior, e uma maior experiência profissional, o
que facilita, segundo o Comandante Aderne, a compreensão destes com relação às regras
de conduta. Como os observadores são quantitativamente menos numerosos que os
militares de tropas, todos passam por treinamento, e não apenas seus comandantes. Por
outro lado, a melhor compreensão é imprescindível ao observador, uma vez que o nível
de ligação deste com a população local é distinto daqueles que vão como tropa. O
observador militar tem mais mobilidade e interage mais, já que sua função é justamente
colher informações. O fato de que são mais velhos (idades entre 30 e 40) e casados, em
sua maioria, também é apontado como uma característica benéfica com relação a seu
comportamento sexual por alguns militares. É válido apontar uma certa vulnerabilidade
com relação à formação do observador militar do corpo de Fuzileiros Navais: o curso é
oferecido apenas uma vez por ano, então, muitas vezes, o militar é deslocado para uma
missão meses depois de ter assistido às palestras teóricas, o que pode enfraquecer a
memória de seu conteúdo.
Já no caso de patentes inferiores - ou seja, daqueles que não são oficiais, como
praças, sargentos e subtenentes- e oficiais subalternos, como tenentes, a situação é um
pouco diferente. Para esta pesquisa, entrevistamos 10 militares no total, todos do oitavo
contingente do BRABATT, anonimamente: 4 tenentes, 4 praças e 2 sargentos. É
relevante lembrar que tal amostra pequena numericamente não tem o objetivo de ser
representativa, mas apenas de ser um exemplo de como as informações podem ser
entendidas pelos militares. A grande maioria destes (9 no total) não sabe qual o
significado dos conceito de abuso e exploração sexual da ONU. Respostas confusas como
“a exploração sexual ocorre quando fica caracterizada a criação de um vínculo entre as
partes, ou seja, explorador e vítima estabelecem uma relação constante igualmente
baseada na intimidação em troca dos mesmos tipos de favores” (tenente) ou “abuso é
tudo aquilo que você esta fazendo de errado” (cabo) foram comuns. Todos, no entanto,
sabiam que o envolvimento com locais poderia resultar em repatriação, e alguns eram
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
156
mesmo capazes de dissertar sobre como se dá o processo mais detalhadamente (a
exemplo de: “Existe uma espécie de corregedoria da MINUSTAH que abre sindicância e
pode chegar a expulsar o(s) envolvido(s) da missão, pedindo (ou exigindo) a
repatriação”). Alguns citavam ainda as punições possíveis aqui no Brasil, uma vez que a
punição do militar é de responsabilidade do país-contribuinte, e não da ONU.
Dessa forma, podemos concluir que a confusão entre relações com consenso e
sem consenso é presente no entendimento dos conceitos e abuso e exploração sexual
adotados pela ONU. Se os observadores militares parecem ter noção do entendimento do
conceito, os militares de patentes inferiores, que são a esmagadora maioria do
contingente - cerca de 1000 no Exército e 100 dos 225 fuzileiros navais - não sabem o
que é exploração e abuso sexual. No entanto, o relevante é que praticamente todos,
independentemente da patente, afirmam que ter sexo com mulheres e meninas locais é
proibido, e resulta em automática repatriação.
6.3
Conclusão
Conforme atestamos através de notícias de mídia e de relatos de integrantes de
organizações não-governamentais, pouquíssimas denúncias apareceram especificamente
sobre militares brasileiros na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti
(MINUSTAH). De uma vez, 108 soldados do Sri Lanka, país que tinha, nesta época, 960
militares na MINUSTAH
83
, foram repatriados por suspeita de haverem pagado por sexo
84
(o que foi confirmado em uma investigação preliminar feita pelo Office of Internal
Oversight Services), o que equivale a mais de 10% do contingente em um curtíssimo
espaço de tempo. Já o Brasil teve apenas um relato de AES apurado pela pesquisa, em
83
“UN Mission's Summary detailed by Country”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz
(DPKO), 30/11/2007. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2007/nov07_3.pdf
. Acesso em 03/04/2009.
84
“Sri Lanka to probe UN sex claims”. BBC News, 11/03/2007. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7076284.stm. Acesso em 22/03/2009; “UN soldiers
dismissed over sex abuse claims: Sri Lankan peacekeepers in Haiti sent home for allegedly paying
prostitutes”. MSNBC, 02/11/2007. Disponível em http://www.msnbc.msn.com/id/21600030/
.
Acesso em 22/03/2009; “Plus de 100 soldats de l’ONU sanctionées pour abus sexuels”. AFP,
03/11/2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
157
2005
85
, além da denúncia da revista acadêmica Lancet de que militares brasileiros e
jordanianos teriam feito ameaças sexuais enquanto estavam sob patrulha
86
. Isto num
espaço de tempo de mais de cinco anos - de 2004 a 2009 -, em que mais de 12 mil
militares brasileiros passaram pelo país
87
O bom comportamento das tropas brasileiras está muito provavelmente ligado à
qualidade do treinamento empregado no país. Apesar da duração das palestras do AES
ser curta, todos os cursos possuem apresentações sobre o tema, que seguem as
orientações dos Standardized Generic Training Modules (SGTM), e que deixam claras as
políticas da ONU em relação ao AES.
É importante, no entanto, levar em conta outros fatores que podem ser relevantes
na explicação do bom comportamento do contingente brasileiro. Como já foi dito, as
mais importantes medidas à prevenção do abuso e da exploração sexual (AES) são: o
estabelecimento de curfews e áreas off-limits, de áreas de lazer nas bases, de períodos de
arejamento, de treinamentos de conduta e de unidades de conduta e disciplina nas
missões; a implementação da obrigatoriedade do uso de uniformes durante todo o tempo,
e de restrições à livre mobilidade. A MINUSTAH, em menor ou maior grau (uma vez
que a adoção de muitas de tais medidas depende de cada contingente) adota praticamente
todas elas.
Vamos analisar, agora, as medidas adotadas especificamente pelo batalhão
brasileiro, e que também devem ser levadas em conta quanto tentamos explicar o baixo
número de denúncias de abuso e exploração sexual do Brasil na MINUSTAH. O primeiro
fator que devemos levar em conta é a limitação da mobilidade das tropas brasileiras. As
patrulhas brasileiras são feitas em grupo, sempre com um oficial a bordo
88
. Assim, para
que ocorresse um ato de má-conduta, seria necessário que todos os integrantes da
patrulha concordassem ou fossem, no mínimo, condenscendentes com tal
comportamento. Ainda que muitas vezes os indivíduos cometam atos de violência em
85
“ONU investigou três acusações contra soldado brasileiro”. O Globo, 01/12/2006.
86
Athena Kolbe and Royce Hutson.Human rights abuse and other criminal violations in Port-au-Prince,
Haiti: a random survey of households”. The Lancet, vol. 368, no. 9538, 02/09/2008. pp. 864-873.
87
“UN Mission's Summary detailed by Country”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz
(DPKO), 30/11/2007. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2007/nov07_3.pdf
. Acesso em 03/04/2009.
88
Tal informação foi concedida por inúmeros militares tanto da Marinha quanto do Exército.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
158
grupo que não fariam sozinhos, de forma geral o fato de que os militares brasileiros
andam sempre em grupo parece ser benéfico em evitar o mal-comportamento.
O arejamento - ou os dias em que o militar está fora de serviço - é outro fator que
deve ser levado em conta. Apesar de todos os batalhões terem arejamento, alguns
militares de outros países fazem arejamento no próprio Haiti, o que facilita a interação
com mulheres locais. De acordo com um militar brasileiro, enquanto a maioria dos
brasileiros usa seus dias de folga no exterior (a maioria na República Dominicana),
outros, como os militares do Nepal, do Sri Lanka, da Jordânia e do Uruguai tendem a
passar o arejamento na base. Isso parece explicar, em parte, os motivos pelos quais
uruguaios e membros do Sri Lanka são acusados de freqüentar boates e fazer festas em
suas bases.
O Comandante José Reis lembra ainda que a repatriação, em caso de atos de AES,
significa, muitas vezes, o fim de uma chance de crescimento profissional nas Forças
Armadas, especialmente para os não-oficiais - que ainda não possuem estabilidade- e o
fim do soldo extra recebido pelos soldados, além da vergonha de ser expulso do Exército.
De todos os fatores, o que parece, no entanto, ser mais relevante, é o
comprometimento dos superiores hierárquicos com a prevenção do abuso e a exploração
sexual. O Comandante José Reis afirma que a liderança é a coisa mais importante não só
na missão, mas na vida militar como um todo. Para Major Ricardo, a estrutura
hierarquizada existente nas Forças Armadas faz com que os superiores sintam-se
diretamente responsáveis pelos erros cometidos por seus subordinados, estimulando a
disciplina de seu grupo. Assim, mesmo o soldado que não fará carreira no Exército segue
ordens e regulamentos. Desta forma, os superiores são aqueles que relembram a todo
momento seus subordinados da importância da questão.
Segundo Comandante Aderne, os superiores são importantes não só na ênfase às
regras, mas no monitoramento psicológico de seus subordinados. Ou seja: de tanto
conviverem, os superiores têm a capacidade de identificar aqueles que estão mais
fragilizados, deprimidos, desmotivados ou inclinados a se comportarem mal. Neste caso,
é necessária uma “ação de comando”. Segundo ele: “Uma coisa que é fundamental (...) é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
159
liderança. Se você tiver liderança, em todos os níveis, você consegue influenciar seus
soldados, de modo a (...) evitar os procedimentos errados”
89
.
É relevante lembrar que o comprometimento dos oficiais brasileiros com relação à
conduta de seus subordinados é resultado da importância com que o governo brasileiro
lidera militarmente a MINUSTAH, por diversos motivos relacionados à política externa
do país, que vão desde à vontade de construir uma nova identidade internacionalista à
intenção mais pragmática de obter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, em
uma eventual reforma do órgão (Diniz, 2004). Uma vez que a liderança da missão no
Haiti parecia ser, para o Brasil, uma possibilidade de mostrar sua capacidade de liderar
processos no âmbito internacional, o que poderia ajudar na candidatura ao assento no
Conselho de Segurança da ONU, sair-se bem nesta tarefa é essencial para o país. No fim
das contas, a especificidade brasileira é o comprometimento do país em ter uma imagem
idônea, seja por quais motivos forem- se objetivos a subjetivos.
Mas tais objetivos não tiram o mérito do comportamento das Forças Armadas
brasileiras no Haiti. Primeiro porque os motivos pelos quais a preparação das tropas é
levada a sério não são fatores primordiais, desde que sejam compatíveis com a missão de
paz e com seus objetivos. Em segundo lugar, porque, como veremos no caso da Índia, a
vontade de alcançar um assento no Conselho de Segurança e, conseqüentemente, de
manter a imagem dos militares indianos intacta nem sempre é suficiente para garantir o
bom-comportamento dos soldados.
89
Entrevista com Comandante Silvio Aderne Neto, Ilha das Cobras, dia 21/11/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
7
O abuso e a exploração sexual na MONUC
A missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC) é o
segundo estudo de caso desta pesquisa. Neste capítulo, utilizaremos a comparação dos
inúmeros casos de abuso e exploração sexual (AES) publicados na mídia envolvendo
militares da MONUC com a análise do treinamento implementado pela Índia, o maior
contribuinte de tropas para a missão. Em primeiro lugar, analisaremos como a situação de
pobreza extrema e de violência sexual, decorrentes do longo conflito na República
Democrática do Congo (RDC), são fatores essenciais na explicação dos casos de AES por
integrantes da missão de paz. Depois, a pesquisa citará os diversos casos de AES que
assolaram a MONUC desde 2002. Por último, será analisado o treinamento introduzido
pela Índia, tendo em vista os indicadores estabelecidos no capítulo 4, como forma de
testarmos a hipótese de que o treinamento seja uma medida importante no combate ao
AES.
A missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC) foi
estabelecida em 1999, após a assinatura do acordo de cessar-fogo de Lusaka, em julho
deste mesmo ano. É justamente para vigiar seu cumprimento e levar a cabo outras
funções, como a implantação de programas de DDR (desmobilização, desarmamento e
reintegração), e no futuro, garantir a organização de eleições livres, que a MONUC é
estabelecida em 30 de novembro. Seu mandato
1
, com base no capítulo VII, autoriza o uso
de “todos os meios necessários” para proteger civis. Com um orçamento de mais de um
bilhão de dólares para cada ano
2
, a missão é hoje a mais cara e a maior do Departamento
1
Organização das Nações Unidas. Conselho de Segurança. Resolução No. 1291, 24/02/2000.
2
Organização das Nações Unidas. Departamento de Operações de Paz (DPKO).Democratic Republic of
the Congo - MONUC - Facts and Figures”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/monuc/facts.html
. Acesso em 19/03/2009.
2
A RDC, especialmente sua parte nordeste, é rica em ouro, estanho, nióbio e diamantes.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
161
de Operações de Paz (DPKO)
3
da ONU, com a participação atual de cerca de 16 mil
militares, 729 observadores militares e 1092 policiais
4
. Com o reinício da violência em
2008, a missão torna-se, ainda, uma das mais complexas e violentas para as Nações
Unidas.
A MONUC foi um divisor de águas na ONU com relação ao abuso e à exploração
sexual (AES). A combinação de extrema pobreza das mulheres e meninas locais, a quase
inexistência de outras formas de sobrevivência e a sensação de total impunidade
experimentada pelos peacekeepers foi a combinação “ideal”: Os muitos casos de má-
conduta sexual por civis e militares, divulgados extensamente na mídia, evidenciaram
não só a ineficiência da missão em vigiar e punir seus integrantes, mas a necessidade de
implementação de medidas de combate ao abuso e à exploração sexual. O despreparo e o
desrespeito de parte das tropas com relação ao tratamento da população local deixou
claro, ainda, a necessidade de implementação de programas de treinamento sobre
questões não-militares, por parte especialmente dos países contribuintes de tropas
(TCCs). A Índia, o país com mais militares na MONUC, introduziu o treinamento sobre
AES para oficiais e superiores em seu centro de treinamento em Nova Déli, o que não
tem sido, no entanto, suficiente para evitar os muitos casos de AES em que seus militares
aparecem envolvidos.
7.1
O conflito na República Democrática do Congo
Entender a violência na República Democrática do Congo (RDC) é essencial não
só para entender como a MONUC tornou-se uma das operações mais complicadas
logística e politicamente para as Nações Unidas, mas para compreendermos como anos
de conflito e das mais graves violações dos direitos humanos tornaram a RDC um dos
lugares mais propícios para o abuso e a exploração sexual (AES) por parte de uma série
3
MONUC. “Mandate”. Diponível em
http://www.monuc.org/News.aspx?newsID=11529&menuOpened=About%20MONUC. Acesso
em 22/03/2009.
4
Organização das Nações Unidas. Departamento de Operações de Paz (DPKO). “Democratic Republic of
the Congo - MONUC - Facts and Figures”. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/monuc/facts.html
. Acesso em 19/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
162
de atores, inclusive militares da própria missão de paz designada, em parte, para pôr fim a
tais transgressões.
O conflito na República Democrática do Congo (RDC), estimulado, em grande
parte, pela riqueza mineral do país
5
, envolve uma série de distintos atores, como forças
do governo - apoiadas por Angola e Namíbia - e inúmeros grupos rebeldes- alguns
apoiados por Uganda e Ruanda, numa guerra violenta, complexa e intrincada
6
. Apesar de
vários acordos de paz e de um governo de transição terem sido estabelecidos, a
intensidade da violência entre grupos opostos continua a assolar o país, crescendo e
decrescendo de tempos em tempos. A origem do conflito remonta ao fim da Guerra Fria,
quando o então Zaire deixa de ser um local de interesse aos EUA. Em 1994, quando tem
início o genocídio ruandês, o país é invadido por um grande fluxo de milícias hutus, que
acabam por incentivar os rebeldes anti-Mobutu, ditador que estava no poder desde 1965.
Em 1997, os rebeldes tomam a capital, Kinshasa, e instalam Laurent Kabila (apoiado por
Ruanda e Uganda) como presidente. É Kabila quem muda o nome do país para
“República Democrática do Congo”.
Desentendimentos entre Kabila e antigos aliados seus iniciam uma nova rebelião,
estimulada por Ruanda e Uganda. Kabila, no entanto, sente-se logo “incomodado” pela
interferência dos dois países, e busca apoio de outros para manter-se no poder. Assim,
enquanto Angola, Chade, Sudão, Zimbábue e Namíbia apoiaram o regime de Kinshasa,
Ruanda, Uganda e Burundi passam a apoiar o rebelde ACD (Agrupamento Congolês para
a Democracia). A influência - direta ou indireta - de tantos atores regionais fez com que o
conflito ficasse conhecido como a “Primeira Guerra Mundial Africana”
7
.
Em 2008 a violência volta a crescer no país. O atual conflito tem como
protagonistas os mesmos atores locais de anos atrás: as antigas milícias da ACD, que se
integraram às Forças Armadas da RDC, mas que só ficaram ao lado do governo até 2004,
e as próprias forças governamentais. Em agosto, grupos guerrilheiros avançaram rumo às
5
A RDC, especialmente sua parte nordeste, é rica em ouro, estanho, nióbio e diamantes.
6
Conflito no Congo pode estar se 'internacionalizando'. BBC Brasil, 13/11/2008. Disponível em
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/11/081113_congoangola.shtml. Acesso
em 10/03/2009. Para mais detalhes sobre o conflito congolês, ver: HUMAN RIGHTS WATCH.
“The curse of gold”, junho de 2005. Disponível em http://www.hrw.org/en/node/11733/section/2.
Acesso em 22/03/2009; BILLION, Phillipe Le. “Fuelling War: Natural resources and armed
conflict”. Adelphi Papers, vol. 45, n. 373. International Institute for Strategic Studies (IISS), 2005.
7
Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
163
bases do governo e ao distrito de Goma, causando uma fuga em massa de civis e
militares, enquanto peacekeepers da ONU tentavam tanto impedir que os guerrilheiros
avançassem quanto garantir as condições para a assistência às milhares de pessoas que
vivem em campos de refugiados. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU),
cerca de 45 mil pessoas deixaram às pressas os campos no leste do Congo, fugindo dos
rebeldes que avançavam pela região
8
.
Em novembro, devido à limitação das tropas de peacekeepers presentes no país
diante do aumento da violência
9
, o Conselho de Segurança aprovou uma resolução que
autorizava o envio de mais três mil capacetes azuis
10
e cerca de 300 policiais. Apesar do
aumento das tropas, a situação atual de segurança no país continua instável. E as maiores
vítimas, são, sem dúvida, as mulheres e meninas, uma vez que, além de sofrerem com a
violência e com estupos, as desigualdades entre homens e mulheres experienciadas
durante o conflito tendem a perpetuar-se muito tempo depois (Higate, 2003, p. 21). Os
efeitos do conflito e da militarização criam uma cultura de violência que deixa as
mulheres especialmente vulneráveis no pós-guerra.
7.2
O estupro como arma de guerra
Ao todo, estima-se que desde 1998 o conflito tenha tido como saldo de três a
cinco milhões de mortos, seja como resultado direto do conflito, seja por decorrência de
doenças e má-nutrição resultantes dos tempos de violência
11
. A situação atual no país, em
grande parte em decorrência de anos de luta armada, é de pobreza extrema e de um
8
“Violência no Congo forçou fuga de 45 mil, diz ONU”. BBC Brasil, 29/10/2008. Disponível em
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/10/081029_congo_cessarfogorg.shtml.
Acessos em 10/03/2009.
9
“Tropas de paz 'estão no limite', diz diretor da ONU”. BBC Brasil, 31/07/2008. Disponível em
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080731_tropasonu.shtml. Acesso em
10/03/2009.
10
“Conselho de Segurança da ONU autoriza envio de 3.000 ao Congo”. Folha Online, 20/11/2008.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u469836.shtml. Acesso em
10/01/2009. Acesso em 18/03/2009.
11
“Country profile: Democratic Republic of Congo”. BBC News, 28/01/2009. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/country_profiles/1076399.stm. Acesso em 02/03/2009
.
SOMMERS, Marc. “The Thinker: Combating the terror of rape in Congo”. JakartaGlobe,
27/01/2009. Disponível em http://www.thejakartaglobe.com/opinion/columns/article/7532.html
.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
164
número enorme de campos de refugiados. A volta da agressão entre os grupos trouxe
novamente à tona, ainda, o problema da violência sexual.
É imprescindível analisarmos a extensão com que o estupro foi utilizado no
conflito congolês para entendermos o AES por integrantes da MONUC. Isto porque em
muitas partes da República Democrática do Congo, o estupro de um dos membros
femininos de uma família é fonte de vergonha e desonra, o que define, muitas vezes, a
expulsão de uma menina ou mulher de casa. Com a perda da virgindade, dificilmente esta
menina poderá encontrar um marido que a sustente. Não é incomum, ainda, famílias em
situação de miséria venderem suas filhas a redes de prostituição.
A pobreza extrema, existente principalmente nos campos de refugiados, agravada
pela situação de várias meninas que sofreram violência sexual, faz com mulheres e
meninas se engajem em relações de sexo por sobrevivência, especialmente quando um
grande número de homens estrangeiros - que muito provavelmente podem pagar mais que
os homens locais - chega a estes locais. Inúmeras destas mulheres e meninas - muitas de
até 12 anos - passam o dia ao redor das bases onde ficam os peacekeepers, em busca de
sexo em troca de comida ou dinheiro
12
. Para meninas e mulheres em uma situação de
total pobreza, os soldados e civis da missão de paz, “com seus trailers brilhantes e
banheiros com água corrente” são fontes de renda em potencial
13
. A enorme quantidade
de soldados e civis participantes da missão
14
torna o problema ainda mais difícil de
controlar por parte da ONU.
O estupro, no conflito congolês, está longe de ilustrar uma série de casos isolados:
ele é, na verdade, uma estratégia de guerra, com o claro objetivo de aterrorizar a
população e forçar as pessoas a se deslocarem, da mesma forma que a pilhagem e as
execuções sumárias. Em Kivu do Sul, por exemplo, a população aterrorizada acaba se
12
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah. “Sex and death in the heart of Africa”. Independent, 25/05/2004.
Disponível em http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-death-in-the-heart-of-
africa-564563.html . Acesso em 10/09/2008.
13
“Sex and the UN: when peacemakers become predators”. The Independent, 11/01/2005. Disponível em
http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-the-un-when-peacemakers-become-
predators-486170.html. Acesso em 10/03/2009.
14
São 16 mil militares, 729 observadores militares e 1092 policiais, 966 international civilian personnel,
2,209 local civilian staff and 547 United Nations Volunteers. “Democratic Republic of the Congo
- MONUC - Facts and Figures”. Organização das Nações Unidas. Departamento de Operações de
Manutenção da Paz (DPKO). Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/missions/monuc/facts.html
. Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
165
dispersando, e o militantes podem tomar controle das terras, abundantes em ouro e
cassiterita
15
.
O jornalista Marc Sommers chama tal uso sistemático do estupro de “campanha
organizada de terrorismo sexual”
16
: “Probably no war zone in recent times has employed
rape as sexual terrorism as extensively as the various military forces in eastern
Democratic Republic of Congo”
17
. Para ele, a violência sexual visa não só ao
deslocamento, mas a humilhar as mulheres e a compensar sexualmente os combatentes. A
intensidade dos estupros faz com que a RDC seja conhecida como a “capital mundial dos
estupros”. De acordo com Bob Herbert, correspondente na RDC: “Women and girls of all
ages, from old women to very young children, have been gang-raped, and in many cases
their sexual organs have been mutilated
18
.
O correspondente do New York Times no país Jeffrey Gettleman diz que o nível
de brutalidade característico destes estupros é chocante mesmo para o nível de violência
presente no conflito congolês
19
. Tais estupros não são cometidos apenas por militares e
membros de milícias: A certeza da impunidade acabou por estimular os estupros
causados também por civis
20
. Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF),
“rape forms part of the daily reality for women”
21
.
O estupro já era uma preocupação constante nas primeiras fases do conflito. De
acordo com a pesquisadora do Human Rights Watch, Anneke Van Woudenberg, os
estupros aumentaram dramaticamente durante os primeiros anos de violência, de 1996 a
15
“Press conference on five-city ‘turning pain to power’ tour aimed at battling sexual violence in
Democratic Republic of the Congo”. Organização das Nações Unidas, Department of Public
Information, 11/02/2009. Disponível em
http://www.un.org/News/briefings/docs/2009/090211_UNICEF.doc.htm.
Acesso em 10/03/2009.
16
SOMMERS, Marc. “The Thinker: Combating the terror of rape in Congo”. JakartaGlobe, 27/01/2009.
Disponível em http://www.thejakartaglobe.com/opinion/columns/article/7532.html
.
17
Ibidem.
18
HERBERT, Bob. “It’s Time That We Talk About The Horrors of Congo’s War”. JakartaGlobe,
22/02/2009. Disponível em http://www.thejakartaglobe.com/opinion/article/10703.html. Acesso
em 10/03/2009
19
Citado por HERBERT, Bob. “It’s Time That We Talk About The Horrors of Congo’s War”.
JakartaGlobe, 22/02/2009. Disponível em
http://www.thejakartaglobe.com/opinion/article/10703.html. Acesso em 10/03/2009.
20
CLIFFORD, Lisa; EICHSTAEDT, Peter; GLASSBOROW, Katy; GOETZE, Katharina; NTIRYICA,
Charles. “Special report: sexual violence in the DRC”. Institute for War & Peace Reporting,
outubro de 2008.
21
Médicos Sem Fronteiras. “Democratic Republic of Congo: Rape as a Weapon in North Kivu”.
19/07/2006. Disponível em http://www.doctorswithoutborders.org/news/article.cfm?id=1836.
Acesso em 10/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
166
1997, e de 1998 a 2003
22
. O acordo assinado em 2002, no entanto, não foi capaz de evitar
tal brutalidade. Mesmo durante os períodos de “paz” (em que os conflitos não são tão
intensos), os níveis de violência sexual continuam altos: Segundo as Nações Unidas, em
2006, 27 mil casos de abuso sexual foram registrados apenas na província de Kivu do
Sul. Outros números, obtidos pelo All-Party Parliamentary Group nos Lagos Africanos
(APPG), afirmam que 38 mil pessoas receberam tratamento em 2007 após terem sido
vítimas de estupros. Com a volta da violência em agosto de 2008, o estupo volta a ser
usada em escala ainda maior como arma de guerra.
Apesar do governo da RDC ter aprovado leis mais duras com relação à punição a
crimes sexuais em 2006
23
, mulheres continuam sendo estupradas diariamente em um
clima de total impunidade. Em novembro de 2008, o coordenador dos Médicos Sem
Fronteiras em Kivu Norte, Romain Gitenet, afirmou que desde o começo daquele ano
foram registrados 5700 casos de estupros de mulheres apenas na província. Gitenet
lembrou ainda que o número real é provavelmente ainda maior, já que muitas mulheres
não denunciam por medo de serem estigmatizadas
24
. Mais de três quartos das mulheres
tratadas em locais da organização foram estupradas por homens armados
desconhecidos
25
. De acordo com a campanha Congolese Women’s Campaign Against
Sexual Violence in the DRC, todos os dias 40 mulheres são estupradas apenas na parte
oriental do país
26
. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), as
crianças são vítimas em potencial destes atos
27
. De acordo com a assistente social da
agência Michel Magayane, “sexual violence has become a daily phenomenon here”
28
.
Entre junho de 2006 e maio de 2007, o UNICEF e seus parceiros identificaram 13.000
22
CLIFFORD et al, 2008.
23
Ibidem.
24
Kivu Norte teve mais de 5.700 casos de estupro em 2008. EFE, 21/11/2008. Disponível em
http://tools.folha.com.br/print?site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br
%2Ffolha%2Fmundo%2Fult94u469842.shtml. Acesso em 11/01/2009.
25
“Democratic Republic of Congo: Rape as a Weapon in North Kivu”. Médicos Sem Fronteiras,
19/07/2006. Disponível em http://www.doctorswithoutborders.org/news/article.cfm?id=1836
.
Acesso em 10/03/2009.
26
Congolese Women’s Campaign Against Sexual Violence in the DRC. Disponível em
http://www.rdcviolencesexuelle.org/site/en/node/37. Acesso em 09/03/2009.
27
MCKENZIE, David. “Even when fighting has ended, sexual violence scars children and women in DR
Congo”. UNICEF, 04/08/2008. Disponível em
http://www.unicef.org/infobycountry/drcongo_35223.html
. Acesso em 10/03/2009.
28
Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
167
vítimas crianças de violência sexual, sendo 4.200 destas crianças
29
. Afora a violência
cotidiana ao conflito, há certas crenças no país de que estuprar uma menina nova dá boa
sorte nos negócios
30
ou pode curar certas doenças.
A extrema pobreza e vulnerabilidade das mulheres e meninas envolvidas em tais
relações sexuais explorativas foram vitais na percepção das Nações Unidas de que o
consentimento, ou mesmo a capacidade de escolha, eram idéias difíceis de serem
concebidas nessa situação. Na RDC, por exemplo, a pobreza extrema e os estupros em
massa levam centenas de meninas a se engajarem no “sexo de sobrevivência”. Mas tais
relações são tão desiguais em termos de recursos que dificulta a própria separação entre o
próprio e o impróprio, entre o livre-arbítrio e a coerção.
Higate (2003) traz ainda outro aspecto relevante na compreensão do abuso e da
exploração sexual no Congo: o status da mulher. Os homens locais - e as próprias leis do
país
31
- consideram as mulheres cidadãs de segunda classe (Simic, 2005). Para Olivera
Simic (2005), as mulheres congolesas foram, por muito tempo, especialmente durante e
após a guerra, as responsáveis pela sobrevivência da família. Assim, as relações sexuais
de sobrevivência são mais aceitas, já que fazem parte de suas próprias responsabilidades
em manter a família. Esta posição subalterna da mulher explicaria a falta de consciência
destas sobre sua própria exploração. A autora afirma que, mesmo em casos de estupro
disfarçado, quando as vítimas ganham dinheiro após o ato, as mulheres acreditam que, já
que ganharam algo, não há razão para denunciar.
De acordo com Higate (2003, p. 14), a posição subalterna da mulher exacerba o
racismo de alguns peacekeepers, já que estes parecem perceber a forma pela qual os
homens locais tratam suas próprias mulheres, e acabam por adequar seus próprios
comportamentos a estas percepções. Segundo o autor, a forma explorativa como os
homens locais tratam suas próprias mulheres - militares freqüentemente mencionavam
como as mulheres é que coletavam água, madeira e cuidavam das crianças, enquanto os
homens pouco faziam- fazem com que peacekeepers vejam as mulheres congolesas como
29
“NGO Call to Action on Sexual Violence in the Democratic Republic of the Congo”. CARE, 08/10/2007.
Disponível em http://www.theirc.org/resources/2007/drc-gbv-statement-12-07-07.pdf. Acesso em
09/03/2009.
30
Idem.
31
O código legal familiar da RDC requer que a mulher obedeça a seu marido, reconhecidos como donos da
casa (Simic, 2005).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
168
essencialmente diferentes das mulheres brancas educadas de seus países-natal. Para
Olivera Simic (2005), o preconceito contra mulheres de diferentes raças, e níveis sócio-
educacionais deve, de fato, ser considerado na análise do AES, já que tal sentimento
explicaria os motivos pelos quais alguém que se comporta dentro da lei em seu país de
origem pode cometer atos condenáveis em outros países - caso dos muitos peacekeepers
envolvidos em abuso e exploração sexual.
7.3
Casos de abuso e exploração sexual e medidas adotadas pela ONU
A MONUC é, de longe, a missão mais citada na mídia com relação a casos de
abuso e exploração sexual por militares e civis de operações de paz da ONU. De 125
matérias analisadas pela autora na mídia internacional, 34%, eram referentes à Missão
das Nações Unidas no Congo (MONUC)
32
. O grande número de artigos referentes a esta
missão - comparados com os 13,3% referentes à MINUSTAH - é justificado não só pelo
grande número de casos concretos, mas pela visibilidade que tais denúncias tiveram na
mídia: Muitas vezes o mesmo caso era publicado por inúmeros outros veículos da mídia.
As alegações de abuso e exploração sexual na MONUC evidenciaram a ineficiência das
medidas até então existentes, e a necessidade de mudanças drásticas.
Segundo o Personnel Conduct Officer da MONUC em 2005, Jane Rasmussen,
desde o começo da missão havia rumores de casos de AES cometidos por civis e
militares da missão
33
. Algumas evidências levavam a crer na existência de eventos
isolados de prostituição e de peacekeepers babies abandonados pelos pais. Segundo
Rasmussen, algumas investigações teriam sido levadas a cabo entre 1999 e 2004. Em
2002, uma reportagem do Independent
34
afirmava que a ONU havia recebido um
relatório que detalhava abusos sexuais - incluindo estupro de bebês e shows de
32
Para mais detalhes sobre o levantamento, ver capítulo 4.
33
RASMUSSEN, Jane. “MONUC: Sexual Exploitation and Abuse - End of Assignment Report”.
MONUC, 25/02/2005.
34
“Sex and the UN: when peacemakers become predators”. The Independent, 11/01/2005. Disponível em
http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-the-un-when-peacemakers-become-
predators-486170.html. Acesso em 10/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
169
pornografia
35
- cometidos por militares do Marrocos. Apesar do grau de seriedade das
denúncias, o tema parece não ter recebido a atenção devida dos superiores da Missão,
como as futuras ocorrências de AES mostrarão. Com o decorrer dos anos, a falta de
atenção dada ao assunto - tanto com relação às denúncias quanto à estrutura de
investigação e à implantação de medidas disciplinares, acabou por criar um clima de
impunidade e de condescendência entre os participantes da operação: Muitos estavam
envolvidos direta - através da participação ativa- ou indiretamente - já que sabiam de tais
atos e acobertavam seus amigos e colegas- nestas relações impróprias (Rasmussen, 2005,
p. 1). Tal “política de silêncio” explica a resistência inicial (pré-2004) ao combate do
problema.
Apesar da questão do abuso e da exploração sexual ter sido, durante anos,
negligenciada pelos superiores da missão, o aumento dos rumores e dos relatos na
imprensa acabou resultando na nomeação, em abril de 2004, de um Personnel Conduct
Officer (PCO), que deveria receber as denúncias de má-conduta por parte dos integrantes
da OP. Até então, apesar dos inúmeros casos, não havia nenhum funcionário ou órgão
que centralizasse informações e denúncias de AES da MONUC. Neste mesmo ano, em
10 de maio de 2004, matéria da Reuters afirmava que a missão estaria investigando
alegações de AES por parte de civis da ONU.
Dois meses após a nomeação do PCO, em 25 de maio de 2004, extensa matéria do
Independent relatava inúmeros casos de meninas e mulheres que, em estado de pobreza e
vulnerabilidade na República Democrática do Congo (RDC), se ofereciam aos recém-
chegados militares do Uruguai e do Marrocos no campo de deslocados internos de Bunia.
O artigo teve grande visibilidade na imprensa: suas denúncias foram publicadas em
muitos outros veículos de mídia. Segundo Rasmussen, ao ler a matéria, o Representante
do Secretário-Geral (SRSG), William Sing, mandou um time multidisciplinar para o
local, com o objetivo de conduzir investigações preliminares sobre 150 denúncias de
AES
36
.
35
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah.“Army silent on sex scandal”. The Star, 21/07/2004. Disponível em
http://www.thestar.co.za/index.php?fSectionId=129&fArticleId=2146949
. Acesso em 10/02/2009.
36
“UN probing charges of sex abuse in DR of Congo, peacekeeping official says”. UN News, 23/11/2004.
Disponível em http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/04/probingDRCabuse.html.
Acesso em 10/01/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
170
As investigações descobriram não só que as alegações eram verdadeiras, mas que
as relações sexuais de participantes da missão com menores de idade eram sistemáticas, e
não simplesmente casos isolados de alguns “funcionários irresponsáveis” (Rasmussen,
2005, p. 2). Segundo Jane Holl Lute, então assistente do Sub-Secretário-Geral no
Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO), as investigações
descobriram casos de pedofilia, estupro, e inúmeras atividades criminosas, o que
evidenciou a falta de medidas para punir e vigiar os participantes da missão: um clima de
total impunidade e falta de regras claras parecia existir na MONUC. Na ocasião, Lute
afirmou: “We recognize that sexual exploitation and abuse is a problem in some missions
(..) It’s obvious that the measures we have had in place have not been adequate to deal
with the changing circumstances found in some missions”
37
.
Com a confirmação das denúncias e a grande visibilidade que a mídia deu aos
casos, em maio de 2004 o SRSG ordena um projeto piloto rápido de combate ao AES. Ao
mesmo tempo, é pedida uma investigação para ao Office of Internal Oversight Service
(OIOS), o órgão de investigações independente da ONU
38
. Segundo a investigação
39
, que
se estendeu de maio a setembro de 2004 e foi lançada em janeiro de 2005, dos 72 casos
recebidos, apenas 20 puderam ser investigados plenamente. Destes, 19 eram relativos a
militares de três contingentes e um a civis: Seis casos foram confirmados. De acordo com
as averiguações, as relações sexuais eram mantidas em locais próximos aos campos
militares. Os envolvidos trocavam ovos, leite, pães ou alguns dólares (de um a dois) por
relações sexuais com meninas de até 13 anos. A conclusão do documento foi a de que o
problema do AES era “sério e contínuo”, e de que a MONUC foi incapaz de impor
mecanismos de respeito à política de tolerância zero da ONU, produzindo uma “situação
de zero cumprimento da tolerância zero”
40
.
37
Idem.
38
“Press briefing on OIOS investigation in DRC”. Press Briefing, 07/01/2005. Disponível em
http://www.un.org/News/briefings/docs/2005/Dixonbrf050107.doc.htm
. Acesso em 23/03/2009.
39
Organização das Nações Unidas. Office of Internal Oversight Services (OIOS). “Investigation by the
Office of Internal Oversight Services into allegations of sexual exploitation and abuse in the
United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo”. A/59/661,
05/01/2005.
40
“Tough UN line on peacekeeper abuses”. Africa Renewal, abril de 2005. Disponível em
http://www.un.org/ecosocdev/geninfo/afrec/vol19no1/191peacekeep.htm
. Acesso em 10/01/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
171
De fato, o envolvimento com a prostituição parecia ser algo absolutamente
“natural”, uma forma de recreação legítima entre integrantes de missões de paz. Higate
(2007), que fez trabalho de campo na RDC em 2003, relata que, segundo uma civil
participante da missão, vários militares e civis da MONUC ficavam “contando” com
quantas mulheres e meninas já haviam tido relações sexuais, como uma “brincadeira
amistosa” de competição de masculinidade. Outra civil da ONU afirmou ter visto vários
militares e civis “cercados de meninas” (Idem, p. 106). O autor narra ainda que um
participante da missão afirmara que dois terços das alunas da escola secundária local
estavam pagando as mensalidades com o dinheiro que ganhavam dormindo com
peacekeepers (Idem, p. 107). Outra civil afirmou que as mulheres levantam suas saias
quando passam os carros da ONU, como forma de se oferecer. Esse tipo de participação
ativa e insistente - em que meninas e mulheres procuram ativamente peacekeepers,
chegando a escalar os muros das bases militares- estimula o pensamento de que tais
relações, uma vez que são consensuais, nada têm de anti-éticas: Segundo Higate (2004,
p.490), peacekeepers da MONUC não costumam perceber as desigualdades de poder que
permeiam suas relações com meninas e mulheres locais.
Apesar das tropas saberem que investigações estavam sendo conduzidas, o clima
de impunidade existente era tão agudo que alguns militares continuaram suas atividades,
como evidenciado pelos preservativos recém-utilizados perto dos campos militares e
postos de guarda, e pelas alegações que continuavam a surgir durante as averiguações
41
.
Segundo Olivera Simic (2005), as imunidades tornavam as medidas punitivas possíveis
“fracas e imprecisas”. Outro time investigativo, formado em novembro de 2004, deveria
investigar alegações exclusivamente contra civis participantes da missão. O resultado
foram dois funcionários absolvidos e um demitido. Mais tarde, em março de 2005, de 17
civis investigados por abuso sexual, um funcionário da ONU é demitido e seis são
suspensos sem pagamento
42
, incluindo um funcionário francês e um australiano. Estes
grupos de investigação vão formar a base, mais tarde, para introdução do Office for
Addressing Sexual Exploitation and Abuse (OASEA), em 2005. Mas, apesar do
41
LYNCH, Colum. “UN sexual abuse alleged in Congo”. Washington Post, 16/12/2004. Disponível em
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A3145-2004Dec15.html
. Acesso em 10/03/2009.
42
LEOPOLD, Evelyn. “UN turns on the heat in Congo abuse probe”. Reuters, 18/03/2005. Disponível em
http://www.iol.co.za/index.php?sf=136&set_id=1&click_id=68&art_id=qw1111120382187B252.
Acesso em 01/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
172
estabelecimento destes grupos de investigação ad hoc, não havia ainda um esforço sério
de implantação de políticas de combate ao AES, especialmente de caráter preventivo.
Segundo Dahrendorf: (2005, p. 3): “there was a policy vacuum; the definition of policies
on crucial aspects such as the UN’s responsibility to victims (...) was embryonic”.
Apesar da formação destes vários times investigativos, a capacidade do OIOS e
dos grupos responsáveis em dar conta das inúmeras denúncias que chegavam era
limitada, uma vez que os recursos técnicos e humanos eram insuficientes para a
quantidade de casos alegados. A falta de infra-estrutura investigativa fora de Kinshasa -
como em Kivu, Bunia, Ituri e Bukavu, lugares em que muitos casos vinham à tona -
dificultava a apuração. Além deste problema, a missão sofria com a falta de colaboração
interna. Como já foi dito, grande parte desta deficiência se dava pela resistência entre os
próprios participantes da missão em levar o tema a sério (Rasmussen, 2005, p. 2). Níveis
consideráveis de suspeita e uma sensação de “auto-defesa” eram significativos por parte
dos integrantes da MONUC, que viam os esforços para combate ao problema como uma
“caça às bruxas”, ou ainda como estratégias temporárias “cosméticas”, com o objetivo
único de salvar a imagem da ONU (Dahredorf, 2005, p. 4).
Um exemplo da ausência de políticas específicas ao combate do AES é a falta em
si de um esforço de estabelecimento de linhas de comportamento para os integrantes da
missão. O primeiro código de conduta da MONUC com relação ao abuso e à exploração
sexual foi estabelecido somente em 2002. Até então, não havia nenhuma formalização
sobre o que civis e militares podiam fazer. O código, que vale para civis, policiais e
militares, estabelece que todo membro tem a obrigação de relatar casos de AES que
tenham ouvido ou presenciado. Falsas alegações (feitas “com má-fé”) seriam, no entanto,
severamente punidas
43
. O código, contudo, não proíbe relações “de boa fé”, sem
“enganações”, entre participantes da missão e mulheres locais
44
. Mas o código alerta para
o “alto risco de que relações entre participantes da MONUC e a população local sejam
explorativas ou abusivas, dada a disparidade de recursos entre esses dois atores”.
Obviamente, relações com menores de 18 anos são proibidas, assim como a troca de
43
MONUC. “Reporting Misconduct”. Disponível em http://www.monuc.org/news.aspx?newsID=9172.
Acesso em 09/03/2009.
44
MONUC. “Conduct Unit - Issues to know”. Disponível em
http://www.monuc.org/news.aspx?newsID=9164
. Acesso em 09/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
173
relações sexuais por quaisquer tipos de bens ou serviços e visitas a bordéis e lugares off-
limits.
Higate (2003) afirma, no entanto, que em abril de 2003, o código ainda esperava
por tradução para o francês, em um país de língua oficial francesa. Além disso, a
divulgação do código era sofrível: poucos militares e civis tinham conhecimento de seu
conteúdo. “(…) Reactions to questions about what was contained in the Code of Conduct
addressed to civilian and military personnel elicited a muted response in the majority of
cases” (2003, p. 25). Além disso, tanto mulheres como homens participantes da missão
afirmavam que os objetivos do código eram “irreais” e que a prostituição era
“inevitável”. O código era, para a maioria dos integrantes da MONUC, “mais um
documento para colocar no bolso” (Ibidem).
Apesar dos esforços empreendidos, como o estabelecimento de grupos
investigativos para apurar as denúncias, a “política do silêncio” entre os participantes da
missão - civis e militares ignoravam e acobertavam o mal-comportamento alheio, além de
estigmatizar aqueles que denunciavam casos de terceiros -, a falta de vontade política e,
conseqüentemente, de recursos para a implantação de medidas disciplinares de longo-
prazo e de uma infra-estrutura de investigação apropriada evidenciavam a incapacidade
da missão de lidar com o problema. Além disso, o problema da sub-notificaçao dos casos
de AES, já explicitado no capítulo 4, dificultava ainda mais a possibilidade de se traçar
um quadro real do problema.
Na RDC, o medo de represálias das vítimas por membros da missão parece ter
atingido níveis alarmantes. Segundo o reverendo Alfred Buju, que afirma ter visto duas
meninas serem assediadas por dois militares paquistaneses, as pessoas têm medo dos
membros da ONU
45
. Artigo da ABC News de 10 de fevereiro de 2005
46
narra o caso de
uma menina de 14 anos estuprada por um militar marroquino em Bunia. Sua família a
levou à polícia e fez a denúncia à ONU. No dia seguinte, um comandante marroquino foi
à sua casa oferecer dinheiro para que o caso fosse retirado. Mas além das tentativas de
45
“Peace at what price? UN Sex Crimes in Congo”. ABC News, 10/02/2005. Disponível em
http://abcnews.go.com/Blotter/UnitedNations/Story?id=489306&page=1. Acesso em 10/03/2009.
46
Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
174
obstrução da justiça, muitas vezes as vítimas de abusos são ostracizadas em suas próprias
comunidades
47
, o que as faz não denunciar o abuso.
A falta de capacidade da missão em combater o abuso e a exploração sexual acaba
por estimular o grande número de casos de mal-comportamento sexual que continuam a
ocorrer em todo ano de 2004 a despeito da implementação dos times investigativos, e que
são extensamente publicados pela mídia, para constrangimento das Nações Unidas. Em
junho de 2004, matéria da BBC
48
afirmava novamente que meninas menores de idade em
campos de refugiados recorriam a soldados em troca de alimentos. Em 12 de julho de
2004, matéria do UN Wire
49
falava de uma rede de prostituição infantil no aeroporto de
Bunia, além de casos de estupro de menores por soldados nepaleses no campo de
Ndromo, enquanto um artigo do The Star, da África do Sul, afirmava que, no ano de
2003, 50 casos de ataques a menores haviam sido cometidos por militares sul-africanos, e
que de fato militares estariam administrando uma rede de prostituição infantil. Ambas as
matérias citam ainda acusações contra soldados da Tunísia, Marrocos, Uruguai, Paquistão
e África do Sul. Artigo do Times relatava que até mesmo pilotos russos da missão
estariam trocando potes de maionese por relações sexuais
50
. No total, seriam mais de 50
casos de abuso sexual cometidos por membros da missão. Em dezembro do mesmo ano
matéria do New York Times denunciava que militares estavam estuprando crianças após
atraí-las com copos de leite e biscoitos. Segundo o Washington Post
51
, militares do
Marrocos, Paquistão e Nepal haviam tentado subornar algumas das testemunhas das 150
denúncias de AES.
No final de 2004, veio à tona um dos casos mais notórios e divulgados de abuso e
exploração sexual: Didier Bourguet, um francês que trabalhava como mecânico na
missão, tinha várias fotos e vídeos pornográficos de mulheres e meninas com quem
47
MONUC. “Victims”. Dsponível em http://www.monuc.org/news.aspx?newsID=9168. Acesso em
09/03/2009.
48
HOLT, Kate. “DR Congo’s shameful sex secret”. BBC News, 03/06/2004. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3769469.stm. Acesso em 10/03/2009.
49
“Abuse by UN Troops in DRC may go unpunished, report says”. Independent, 12/07/2004. Disponível
em http://www.arts.ualberta.ca/childrenandwar/news_abuse_by_un_troops.php. Acesso em
10/02/2009.
50
HOLT, Kate. “Sex scandal in Congo threatens to engulf UN’s peacekeepers”. The Times, 12/07/2004.
Disponível em http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/article405213.ece
. Acesso em
01/02/2009.
51
LYNCH, Colum. “UN sexual abuse alleged in Congo”. Washington Post, 16/12/2004. Disponível em
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A3145-2004Dec15.html
. Acesso em 10/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
175
mantinha relações sexuais - consensuais e forçadas
52
. Oficiais congoleses acreditam que o
mecânico dividia as fotos com outros membros das Nações Unidas
53
. Quando a polícia
entrou em sua casa, o funcionário supostamente estaria em vias de estuprar uma menina
de 12 anos
54
. Bourguet foi repatriado, e em setembro de 2008 foi condenado a nove anos
de prisão por cerca de vinte estupros de menores pela justiça francesa.
Os casos não cessam em 2005. Em fevereiro deste ano, seis soldados do Marrocos
são acusados de terem abusado de mulheres e crianças. O governo do Marrocos decide,
então, prender seis de seus soldados, além de tirar de suas funções o comandante
marroquino e seu vice
55
. Um contingente de sul-africanos também foi removido da
missão após inúmeras denúncias de AES. Um coronel da África do Sul, Koos van Breda,
foi acusado de molestar um adolescente que trabalhava como seu tradutor
56
.
Estes inúmeros casos de AES têm como resultado, muitas vezes, bebês que
provavelmente ficaram sem o apoio paterno. Segundo Anneke Van Woudenberg, da
Human Rights Watch, membros da ONU que engravidam meninas são responsáveis por
criar “um nível diferente de problemas no Congo”
57
, como se já não houvesse questões
suficientes a serem resolvidas no país. De acordo com uma organização internacional que
analisa relações sexuais entre membros da MONUC e mulheres locais, 82 mulheres
teriam sido engravidadas por marroquinos e 59 por uruguaios
58
. Um oficial ucraniano e
um canadense também foram repatriados por engravidar mulheres locais
59
.
52
“French UN man in child rape trial”. BBC News, 09/09/2008. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7607106.stm
. Acesso em 10/03/2009.
53
ROSS, Brian, SCOTT, David, SCHWARTZ, Rhonda. “Peace at what Price? UN Sex Crimes in Congo”.
ABC News, 10/02/2005. Disponível em
http://abcnews.go.com/Blotter/UnitedNations/Story?id=489306&page=1
. Acesso em 10/02/2009.
54
CLAYTON, Jonathan; BONE, James. “Sex-scandal in Congo threatens to engulf UN’s peacekeepers”.
The Times, 23/12/2004. Disponível em
http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/article405213.ece
. Acesso em 10/03/2009.
55
“UN soldiers arrested in DR Congo”. BCC News, 13/02/2005. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4262743.stm. Acesso em 10/02/2009. Acesso em 02/03/2009.
56
ROSS, Brian, SCOTT, David, SCHWARTZ, Rhonda. “Peace at what Price? UN Sex Crimes in Congo”.
ABC News, 10/02/2005. Disponível em
http://abcnews.go.com/Blotter/UnitedNations/Story?id=489306&page=1
. Acesso em 10/02/2009.
57
Idem.
58
CLAYTON, Jonathan; BONE, James. “Sex-scandal in Congo threatens to engulf UN’s peacekeepers”.
The Times, 23/12/2004. Disponível em
http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/article405213.ece
. Acesso em 10/10/2008.
59
Ibidem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
176
Em janeiro de 2005, o relatório do OIOS
60
sobre as denúncias de AES por
participantes da missão é finalmente lançado. Suas conclusões são extensamente
divulgadas pela mídia
61
, que enfatizava a falta de prestação de contas, a impunidade e os
abusos cometidos por membros da missão. Matéria do Independent diz sobre o
documento:
The UN has a problem of accountability and of abuse; of an organization sent to police the world
which remains unable to police itself, and of a climate of systematic abuse which ranges from
alleged high-level fumblings to the rape of girls and boys, some of them as young as six, by
members of the DRC peacekeeping force.
62
A grande atenção dada pela mídia às descobertas do relatório parece ter feito o
tema chegar, finalmente, aos corredores da sede das Nações Unidas em Nova Iorque. O
próprio Secretário-Geral da Organização afirmou seu comprometimento pessoal em
permanecer vigilante com relação ao AES, com a certeza de que a ONU trabalharia “sem
descanso” para recuperar a fé nas operações de paz
63
. Ao Independent, Annan afirmou
estar “profundamente chocado e revoltado”
64
com relação ao escândalo na MONUC.
Em julho de 2004, Annan nomeia o príncipe Zeid Ra’ad Zeid Al-Hussein Enviado
Especial do Secretário-Geral para exploração e abuso sexual (Secretary-General’s
Advisor on Sexual Exploitation and Abuse by Peacekeepers), com o objetivo de formular
60
Organização das Nações Unidas. Office of Internal Oversight Services (OIOS). “Investigation by the
Office of Internal Oversight Services into allegations of sexual exploitation and abuse in the
United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo”. A/59/661,
05/01/2005.
61
“Peacekeepers sexual abuse of local girls continuing in DR Congo, UN finds”. UN News, 07/01/2005.
Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=12990&Cr=democratic&Cr1=congo
. Acesso em
10/10/2008. “UN accuses force of sex abuse”. CNN.com, 08/01/2005. Disponível em
http://www.cnn.com/2005/WORLD/africa/01/08/congo.peacekeepers.sex/index.html.
Acesso em
10/11/2009. “Sex and the UN: when peacemakers become predators”. The Independent,
11/01/2005. Disponível em http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-the-un-
when-peacemakers-become-predators-486170.html. “Peacekeepers sexual abuse of local girls
continuing in DR of Congo, UN finds”. UN News, 07/01/2005. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=12990&Cr=democratic&Cr1=congo
. Acesso em
10/10/2008.
62
“Sex and the UN: when peacemakers become predators”. The Independent, 11/01/2005. Disponível em
http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-the-un-when-peacemakers-become-
predators-486170.html. Acesso em 11/09/2008.
63
“Annan calls for Security Council supports in fight against sexual exploitation in peacekeeping
missions”. UN News, 09/02/2005. Disponível em
http://www.un.org/News/ossg/hilites/hilites_arch_view.asp?HighID=219
. Acesso em 10/11/2008.
64
“’Shocked’ Annan backs zero tolerance to stop sex abuse by peacekeepers in Congo”. The Independent,
11/02/2005. Disponível em http://www.independent.co.uk/news/world/africa/shocked-annan-
backs-zero-tolerance-to-stop-sex-abuse-by-peacekeepers-in-congo-482822.html. Acesso em
28/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
177
um relatório sobre o tema, traçando recomendações sobre como combatê-lo
65
. Para a
formulação do documento, intitulado A comprehensive strategy to eliminate future sexual
exploitation and abuse in United Nations peacekeeping operations, de 24 de março de
2005
66
, Zeid visitou a República Democrática do Congo de 24 de outubro a três de
novembro de 2004, onde investigou denúncias de que o abuso e a exploração sexual
teriam se tornado práticas sistemáticas na missão. Com base em uma série de entrevistas,
Zeid relata em seu documento que meninas estariam trocando sexo por dinheiro - uma
média de um a três dólares por encontro - por comida, por empregos ou por quaisquer
outros bens. O enviado especial afirma ainda que algumas meninas com quem havia
falado citaram o “estupro disfarçado de prostituição”, em que meninas são estupradas e
os estupradores, após o ato, dão comida ou dinheiro às vítimas, para dar a impressão de
que a relação sexual foi, na verdade, consensual. Zeid aponta para o risco de que, uma
vez que meninas muito novas se encontram envolvidas nestas relações sexuais, um
vínculo é criado em que estas tornam-se dependentes da prostituição, e ficam
especialmente sujeitas à violência, a doenças e a ainda mais exploração.
Uma das medidas implementadas no momento posterior à divulgação do relatório
do OIOS foi a criação, em março de 2005, do Office for Addressing Sexual Exploitation
and Abuse (OASEA)
67
, com o objetivo de conduzir investigações, desenvolver políticas
de combate e estabelecer treinamento e esclarecimento sobre o assunto para os membros
da missão. Nicola Dahrendorf, uma especialista da ONU em direitos humanos,
comandava o escritório. Segundo Dahrendorf (2005), o órgão recrutou especialistas em
investigações especificamente de abuso sexual, e começou a formular políticas de
combate ao AES, que praticamente não existiam anteriormente. O escritório passou,
ainda, a formular um treinamento para civis e militares, que esclarecesse as regras da
ONU com relação ao AES. O OASEA encerra suas atividades em novembro deste
mesmo ano, quando as investigações passam a ser de responsabilidade do OIOS. Nesta
mesma época, uma força-tarefa organizada pelo DPKO promulga o UN Standards of
65
Para mais sobre o Relatório Zeid, ver capítulo 1.
66
Organização das Nações Unidas. Assembléia-Geral. “A comprehensive strategy to eliminate future
sexual exploitation and abuse in United Nations peacekeeping operations”. Documento das
Nações Unidas número A/59/710, de 24 de março de 2005.
67
O OASEA encerra suas atividades em novembro deste mesmo ano, quando as investigações passam a ser
de responsabilidade do OIOS.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
178
Conduct para membros da missão, e o então Secretário-Geral, Kofi Annan, anuncia as
políticas que ficariam conhecidas como “políticas de não-confraternização”, em que
proíbe peacekeepers de ter sexo ou de socializar de forma inadequada com a população
local
68
.
No entanto, todas essas medidas, como a implementação de investigações ou o
estabelecimento de órgãos responsáveis pelo combate ao AES são, segundo Rasmussen
(2005), de caráter ad hoc, ou seja: sua introdução depende da pressão de superiores da
ONU ou da mídia, que por sua vez divulga tais casos, obviamente, depois que estes
ocorreram. Assim, não havia um trabalho preventivo, em que essas medidas de combate
ao AES fossem um procedimento padrão anterior ao acontecimento de casos de má-
conduta sexual nas missões de paz. Os códigos de conduta da MONUC em relação ao
AES e o Boletim do SG de 2003, que formam a base das regras de comportamento, por
exemplo, eram pouco conhecidos dentre os membros da OP (Dahrendorf, 2005), como já
foi explicitado. Para combater tal desconhecimento, foram introduzidos treinamentos
durante a missão sobre o tema - chamados de induction training - para policiais, civis e
militares que chegavam em campo. Nomeado de “MONUC Training Strategy on SEA”, o
projeto carecia de pessoal suficiente para treinar todo o contingente e também de material
adequado (Dahrendorf, 2005).
No período de dezembro de 2004 até outubro de 2005, o OASEA conclui um total
de 111 investigações, envolvendo 155 membros da missão. A maioria era relativa a
denúncias de prostituição e de exploração sexual. Mais de 40% foram substanciadas, o
que representava casos envolvendo 0,4% do pessoal da MONUC. O resultado foi a
demissão de um civil e de três voluntários da ONU. Dois voluntários da ONU ainda
receberam reprimendas e 10 policiais e 30 militares foram repatriados. No número total
das investigações, alegações contra 0,2% dos militares e 0,9% dos civis foram
confirmadas
69
. Não se sabe se o baixo número de confirmações demonstra que a maioria
dos casos foi investigada e de fato não havia evidências, ou se o escritório foi incapaz de
investigá-los apropriadamente. O fato é que o órgão enfrentava uma série de problemas
68
LEOPOLD, Evelyn. “UN turns on the Heat in Congo abuse probe”. Reuters, 18/03/2005. Disponível em
http://www.iol.co.za/index.php?sf=136&set_id=1&click_id=68&art_id=qw1111120382187B252
.
Acesso em 10/08/2009.
69
MONUC. “Investigations”. Disponível em http://www.monuc.org/news.aspx?newsID=9166. Acesso em
01/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
179
em suas investigações: a situação instável de segurança no país, a dificuldade de chegar a
alguns locais e, especialmente, a rotatividade de militares e civis da missão.
Segundo matéria da BBC News de 6 de maio de 2005, um total de 121 alegações
haviam sido registradas no ano anterior, sendo quase a metade delas relativas a sexo com
menores e 15% envolvendo relações forçadas. Cerca de 53 militares foram repatriados.
Em maio, 4 soldados nepaleses foram repatriados
70
. Em setembro, foi a vez de dez
oficiais da polícia da Nigéria serem investigados por denúncias de AES
71
. As tropas
nigerianas já haviam sido acusadas de tráfico de diamantes e de venda de armamentos e
drogas na missão das Nações Unidas na Serra Leoa (UNAMSIL).
Com base nas denúncias, o OASEA traçou um perfil das vítimas, e descobriu que
a maioria dos casos era relativa a casos de prostituição. Depois das alegações de
prostituição, a maioria das denúncias era relativa a pedidos de reconhecimento de
paternidade. Segundo o OASEA, 25% dos locais envolvidos eram menores de idade.
Muitas dessas meninas - chamadas pelo Washington Post de “one-dollar UN girls”
72
,
haviam perdido seus pais na guerra civil, e recorriam aos militares em busca de comida
ou algum dinheiro. Segundo matéria do Washington Post, muitas meninas de 13 ou 14
anos que se envolviam em relações sexuais com peacekeepers já haviam sido estupradas
pelas milícias que dominam o país. A perda da virgindade diminuía drasticamente suas
chances de conseguir um marido, e muitas vezes determinava suas expulsões de casa.
Estas questões culturais acabavam por facilitar a entrada das meninas na prostituição ou
no chamado “sexo de sobrevivência”. Segundo uma delas: “I was worthless anyhow. My
honor was lost”
73
. Algumas vezes, segundo o artigo, os próprios pais pressionavam as
filhas para tornarem-se prostitutas.
Segundo Van Woudenberg, pesquisadora do Human Rights Watch que investigou
alegações de AES por membros da missão, aqueles que abusam de menores de idade
costumam acreditar que quanto mais novas as meninas melhor, uma vez que a chance de
70
“UN sexual allegations double”. BBC News, 06/05/2005. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/4521481.stm
. Acesso em 09/08/2008.
71
“Nigeria recalls UN peacekeepers”. ISN Security Watch, 19/09/2005. Disponível em
http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/05/nigerianPK.html. Acesso em 10/05/2008.
72
WAX, Emily. “Congo’s Desperate ‘One-Dollar U.N. Girls’”. Washington Post, 21/03/2005. Disponível
em http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A52333-2005Mar20.html
. Acesso em
21/03/2009.
73
Idem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
180
infecção por HIV diminui
74
. Higate (2004, p. 490) afirma ainda que, para muitos
peacekeepers, a MONUC parecia ser a oportunidade de experimentarem algo que nunca
teriam coragem de fazer em seus países-natal, como manter relações sexuais com
meninas de 12 ou 13 anos. Tais interações fariam parte da “aventura” de ir para uma
operação de paz em um país distante.
Em fevereiro de 2005, o SRSG da MONUC estabelece uma série de medidas
preventivas, que mais tarde tornam-se obrigatórias tanto para civis quanto para militares e
policiais, como o estabelecimento de um curfew - ou seja, de um limite de horário, além
do qual os participantes em questão não podem sair de suas bases-, de políticas de “não-
confraternização”, de controle e proibição de não-membros em veículos da ONU e de
áreas off limits - locais em que membros da ONU são proibidos de freqüentar. Agora, os
militares não podem mais sair de suas bases após as 6 horas da noite nem freqüentar
lugares que não estejam autorizados pela ONU. O SRSG implanta ainda a obrigação
(obviamente para o pessoal uniformizado) do uso permanente de uniforme, mesmo fora
de serviço. Além disso, vários contingentes militares tomaram a iniciativa de estabelecer
medidas ainda mais restritivas de disciplina dentre seus comandados.
Mas as medidas implementadas pelo SRSG enfrentaram grandes resistências
internas. Muitos membros da missão acreditavam que os curfews e as áreas off limits
eram restrições desnecessárias a sua liberdade de movimento, e que tais políticas
representavam a falta de confiança dos superiores da MONUC em seus próprios
subordinados. A proibição de relações íntimas com mulheres locais seria discriminatória
contra os cidadãos congoleses, além de, novamente, uma invasão de privacidade.
Segundo Higate (2004, p. 492), tais mecanismos eram vistos, ainda, por muitos
peacekeepers, como uma concessão de seus superiores à opinião pública, e não como
medidas para serem levadas a sério. Em resposta a tais restrições, vários militares
simplesmente estacionavam seus carros longe dos bares e locais proibidos. Alguns, para
manterem seus comportamentos de forma mais discreta, davam celulares às mulheres
para encontrarem-se em outros lugares ou referiam-se a elas como “tradutoras” em hotéis
e restaurantes.
74
ROSS, Brian, SCOTT, David, SCHWARTZ, Rhonda. “Peace at what Price? UN Sex Crimes in Congo”.
ABC News, 10/02/2005. Disponível em
http://abcnews.go.com/Blotter/UnitedNations/Story?id=489306&page=1
. Acesso em 10/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
181
Além da resistência dos próprios participantes às medidas, faltava um mecanismo
de fiscalização efetivo: jornalistas da ABC News flagraram peacekeepers em um café em
Bunia, muito depois do horário estabelecido pelo curfew, bebendo e dançando com
prostitutas, muitas das quais, mais tarde, entravam nos carros da ONU e seguiam com os
militares. No entanto, mesmo que os militares permanecessem em suas bases após o
horário estabelecido, respeitando a limitação, a verdade é que muitas meninas ficam em
volta destes locais
75
, e o acesso aos barracões não parece ser difícil, como atestam
algumas matérias
76
. Segundo artigo do UN Wire, o próprio funcionário responsável pelo
campo afirmou que não havia dificuldades em chegar aos militares e que os
administradores do campo eram coniventes com tais práticas: “There is nothing to stop
them and the girls need food. It is best to keep quiet (…) I am frightened that if I say
something I may lose my job and I have children of my own to feed"
77
. Além disso,
grande parte dos civis e militares recorrem a intermediários - muitas vezes a própria
polícia local- para “conseguir” meninas, e, portanto, não precisam freqüentar bares e
clubes noturnos.
No final de 2005 o OASEA torna-se um Conduct and Discipline Team - órgão
que acaba sendo implantado posteriormente em diversas outras missões - que teria como
objetivo não apenas combater o AES, mas também receber denúncias de qualquer tipo de
má-conduta - o que tira, de certa forma, o foco do tema do abuso e da exploração sexual.
Segundo Dahrendorf, “sexual exploitation issues have been watered down”
78
. É esta nova
unidade de conduta e disciplina a responsável por prover o induction training para todos
os civis, militares e policiais da missão
79
. Mas oferecer treinamento para todos aqueles
que chegam - hoje, são mais de 18 mil participantes uniformizados (militares e policiais),
75
WAX, Emily. “Congo’s Desperate ‘One-Dollar U.N. Girls’”. Washington Post, 21/03/2005. Disponível
em http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A52333-2005Mar20.html. Acesso em
21/03/2009.
76
CLAYTON, Jonathan; BONE, James. “Sex-scandal in Congo threatens to engulf UN’s peacekeepers”.
The Times, 23/12/2004. Disponível em
http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/article405213.ece
. Acesso em 10/10/2008.
77
“U.N. Peacekeepers Sexually Abusing Girls In D.R.C. Camp”. UN Wire, 25/05/2004. Disponível em
http://www.unwire.org/News/328_426_24228.asp.
Acesso em 10/10/2008.
78
“DRC: UN investigations into allegations of sexual offences by peacekeepers”. IRIN, 26/01/2006.
Disponível em
http://www.eyeontheun.org/assets/attachments/articles/2500_DRC_UN_investigations_into_alleg
ations_of_sexual_offences_by_peacekeepers.doc. Acesso em 11/08/2008.
79
MONUC. “Training”. Disponível em http://www.monuc.org/news.aspx?newsID=9170. Acesso em
18/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
182
fora os civis - é, no entanto, uma tarefa hercúlea. Por isso, mais que em qualquer outra
missão, a qualidade do treinamento prévio dado pelos TCCs tem grande importância no
combate ao AES.
Apesar de todas as medidas implementadas ao longo de 2004 e 2005, 2006, 2007
e 2008 não passam em branco. Em agosto, surgem denúncias de que uma rede de
prostituição infantil existiria na província de Kivu
80
. No final de 2007, uma investigação
do OIOS foi aberta contra um militar acusado de estuprar uma mulher na noite do dia 13
ou 14 de novembro
81
. Em 2008, novas alegações surgem contra militares estacionados
na província de Kivu do Norte. Em maio, o OIOS afirmou estar investigando tais
denúncias
82
.
Assim, frente às denúncias que apareciam na mídia freqüentemente com relação a
casos de abuso e exploração sexual por integrantes da MONUC, várias investigações ad
hoc foram implementadas, assim como uma série de medidas de combate. Apesar de
apontarem para uma maior preocupação com o tema por parte das Nações Unidas, após
anos de total impunidade, tais políticas não foram suficientes para evitar que novas
denúncias viessem à tona. Além da falta de monitoramento e de recursos apropriados,
especialmente no caso dos grupos investigativos, a pouca seriedade com que tais políticas
de combate ao AES foram encaradas por alguns militares, e especialmente seus
superiores, foram definitivas na continuação do mal-comportamento sexual, muitas vezes
envolvendo menores de idade.
80
“UN probes child prostitute ring”. BBC News, 17/08/2006. Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/5260210.stm. Acesso em 22/03/2009.
81
“DR Congo: UN Inquiry opens into sexual abuse allegations against peacekeeper”. UN News,
17/11/2007. Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=24703&Cr=Democratic&Cr1=Congo
. Acesso
em 22/03/2009.
82
“UN investigates new accusations of sexual abuse by peacekeepers in DRC”. VOA News, 14/05/2008.
Disponível em http://www.voanews.com/english/archive/2008-05/2008-05-14
voa64.cfm?CFID=144390614&CFTOKEN=55010055&jsessionid=003071fdf226baa7ced995a39
2438612f333. Acesso em 10/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
183
7.4
A Índia, as missões de paz e o abuso e a exploração sexual
Após termos examinado os inúmeros casos de AES cometidos por integrantes da
Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (RDC) e as medidas
implementadas pela ONU para tentar controlar o problema, que se tornava um escândalo
para a Organização, analisaremos o treinamento sobre abuso e exploração sexual (AES)
introduzido pela Índia- um dos mais ativos participantes de operações de paz (OP) das
Nações Unidas e o principal contribuinte de tropas para a MONUC, a fim de testarmos a
hipótese de que o treinamento possa ser uma ferramenta eficiente no combate ao AES.
Apesar dos próprios problemas com o Paquistão e com vários movimentos
internos violentos e grupos insurgentes, a Índia é hoje o terceiro maior contribuinte de
missões de paz, ficando atrás apenas de Bangladesh e Paquistão
83
. Em 2008, os atentados
a Mumbai em novembro e as posteriores suspeitas de que os grupos terroristas teriam
vindo do Paquistão; além das alegações de violação, por parte de ambos os lados, da
linha de cessar-fogo que divide a Caxemira entre os dois países
84
, pioraram sensivelmente
as relações militares indo-paquistanesas. Mas tais questões não impedem que a Índia
continue a ser, de todos os países em desenvolvimento, o mais consistente e ativo
participante e apoiador das operações de paz das Nações Unidas, como afirma Bullion
(2007, p. 196).
A Índia participou em quase todas as missões de paz das Nações Unidas
85
: foram
mais de 30 missões desde a operação de negociação da paz na Coréia
86
, em 1953
87
, e a
83
Departamento de Operações de Paz (DPKO). “Ranking of Military and Police Contributions to UN
Operations”, 31 de janeiro de 2009. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/jan09_2.pdf.
Acesso em 22/03/2009.
84
International Institute of Strategic Studies (IISS). “The Military Balance 2009. Executive summary”.
Disponível em http://www.iiss.org/publications/military-balance/the-military-balance-2009/
.
Acesso em 22/03/2009.
85
“A History of Indian Participation in UN Peacekeeping Operations”. Disponível em
http://www.indianembassy.org/policy/peace_keeping/history_india_UN_peace_keeping.htm.
Acesso em 10/03/2009.
86
UN Temporary Commission on Korea (UNTCOK), seguida da UN Commissions on Korea (UNCOK I
and II).
87
“India's Participation in Peacekeeping Activities at a Glance”. Disponível em
http://www.indianembassy.org/policy/peace_keeping/participation_india_UN_peace_keeping.htm
. Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
184
missão no Oriente Médio
88
, em 1956. Neste período, a participação indiana pode ser
explicada pela solidariedade do país com outros países não-alinhados e pelo movimento
árabe de auto-determinação, o que justificaria a participação indiana na missão entre
Egito e Israel (UNEF), na operação da ONU no Líbano (UNOGIL) e no Iêmen
(UNYOM) (Bullion, 1994, p. 100). O envolvimento ativo indiano com as operações de
paz pode ser explicado também pelo apoio existente, de uma forma geral, dos países do
Terceiro Mundo, especialmente aqueles recém-independentes, aos princípios da ONU
89
.
Para Bullion (1995, p. 98), a necessidade de firmar-se como um país de Terceiro Mundo
solidário ao Movimento Não-Alinhado e ao ethos das Nações Unidas foram essenciais na
decisão de participar ativamente das missões de paz desde sua independência, em 1947.
No pós-Guerra Fria, assim como no período anterior, a política indiana continua a
ser de ativo engajamento nas operações de paz da ONU. Os interesses geo-estratéticos do
país na estabilidade regional, especialmente no caso das missões na Ásia, como as do
Camboja ou da Indonésia, foram decisivas no envolvimento indiano nestas operações
(Bullion, 2005, p. 197). Já o envolvimento nas missões de paz na África são explicadas
por Parakatil (1975, pp. 16-21) como uma contínua expressão de solidariedade a países
não-alinhados, casos das contribuições indianas à missão da ONU em Moçambique
(ONUMOZ) e em Angola (UN Angola Verification Mission, a UNAVEM III). Segundo
o autor, assim como durante a Guerra Fria, o país continua a acalentar uma forte
inclinação anti-colonialista, e tende a ver grande parte dos conflitos africanos como uma
herança do passado colonial. Em menor grau, Bullion (2005, p. 197) também acredita que
haja uma preocupação humanitária na decisão de se envolver em missões de paz, casos
da participação indiana em Ruanda e na Somália.
Bullion afirma que a renda ganha nestas participações também é um fator
importante na decisão de contribuir para missões de paz da ONU (1995, p. 106). Mas a
questão do reembolso, fator decisivo da participação de Paquistão, Nepal e Bangladesh
nas operações de paz, é negada veementemente pelos generais do país
90
, que afirmam
(assim como o Brasil), não “lucrarem” com o reembolso pago pela ONU.
88
A United Nations Emergency Force (UNEF I).
89
Entrevista com o General Satish Nambiar. CUNPK, Nova Délhi, 02/02/2009.
90
Entrevista com o General Dipankar. Institute of Peace and Conflict Studies, Nova Déli, 04/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
185
Mais recentemente, no entanto, estes interesses prioritariamente solidaristas,
baseados no altruísmo e na solidariedade para com países do Terceiro Mundo, foram, em
parte, substituídos pela ambição cada vez maior da Índia em ganhar um assento
permanente em um Conselho de Segurança reformado (Bullion, 1995, p. 9). Como o
Brasil, a Índia almeja alcançar o status de “potência média”. Assim, a intensa
participação nas operações de paz passa a servir a um objetivo político maior, para além
apenas da identificação do país com os princípios da ONU.
Além de participar nas OPs, contribuindo com tropas, a Índia liderou militarmente
muitas destas operações, caso das missões em Chipre, Namíbia, Iugoslávia e Serra Leoa,
dentre outras
91
. O país contribui, hoje, com 10 missões de paz - dentre as quais a United
Nations Interim Force in Lebanon (UNIFIL), com 894 soldados, a United Nations
Mission in Sudan (UNMIS), com 2605, e a MONUC, a origem do maior número de
militares indianos: 4266
92
.
Em relação ao comportamento das tropas da Índia, com base em levantamento
feito pela autora, verificou-se que os soldados indianos foram citados em menos casos de
mal-comportamento sexual do que os militares de Jordânia, Marrocos, Paquistão e Nepal.
Tal constatação é relevante se tivermos em mente o grande número de tropas indianas em
missões de paz: Enquanto o Brasil tem, ao todo, 1346 militares em OPs, a Índia conta
com 8633
93
: mais que 6 vezes o número de participantes brasileiros. Cabe ressaltar que,
com quatro mil militares participando da MONUC, os soldados indianos praticamente
não foram citados em nenhuma das matérias sobre abuso e exploração sexual em 2004 ou
2005 - anos de pico deste tipo de caso, enquanto países com menos contribuintes, como
Marrocos e Uruguai, tenham sido citado tantas vezes, com exceção de uma matéria de
2004 do The Star, da África do Sul, que afirmava que várias meninas haviam sido
91
Indian Army. “UN Peace Keeping”. Disponível em http://indianarmy.nic.in/un.html. Acesso em
22/03/2009.
92
Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO). “UN Mission's Summary detailed by
Country”. Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/jan09_3.pdf.
Acesso em 22/03/2009.
93
Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO). “Ranking of Military and Police
Contributions to UN Operations”, 29/02/2009. Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/feb09_2.pdf.
Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
186
estupradas por militares sul-africanos e indianos, que as enganavam com doces
94
. Mas é
em 2008 que o aparente bom-comportamento das tropas da Índia deixa de ser o padrão.
Em 28 de abril de 2008, matéria da BBC
95
afirmava que tropas de paz das Nações
Unidas na República Democrática do Congo teriam fornecido armas para milícias e
contrabandeado ouro e marfim. De acordo com as evidências obtidas pela BBC, militares
do Paquistão operando na cidade de Mongbwalu, no leste do país africano, envolveram-
se no comércio ilegal de ouro e forneceram armas aos rebeldes da milícia FNI para
garantir a segurança das minas. Soldados indianos presentes na cidade de Goma, no leste
do Congo, estiveram diretamente envolvidos com milícias responsáveis pelo genocídio
de Ruanda. As forças indianas ainda teriam contrabandeado ouro, comprado drogas de
membros das milícias e viajado em um helicóptero da ONU até o Parque Nacional de
Virunga, onde trocaram munição por marfim
96
. Fontes confidenciais da ONU disseram à
BBC que as investigações não foram levadas adiante por medo de isolar a Índia e o
Paquistão, que juntos fornecem quase um quarto do total de tropas de paz da ONU.
As Nações Unidas refutaram veementemente as alegações da matéria, afirmando
que as investigações da BBC eram falsas, e estavam baseadas em fontes questionáveis -
os repórteres usaram as afirmações de líderes de milícias presos pela MONUC para
fazerem as denúncias. O então chefe do DPKO, Jean-Marie Guéhenno, afirmou que não
havia evidências suficientes para comprovar as acusações. Guéhenno disse ainda que, no
caso dos militares que porventura fossem declarados de fato culpados após as
investigações do OIOS, pediria ao governo de Paquistão e Índia que tomassem as
medidas cabíveis
97
. Em 2008, a Human Rights Watch afirmou que investigadores da
ONU tinham evidências substanciais de envolvimento de peacekeepers com venda de
94
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah.“Army silent on sex scandal”. The Star, 21/07/2004. Disponível em
http://www.thestar.co.za/index.php?fSectionId=129&fArticleId=2146949
. Acesso em 10/02/2009.
95
“Tropas da ONU são acusadas de armar rebeldes no Congo”. BBC Brasil, 28/04/2008. Disponível em
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/04/080428_onuarmasilegaiscongo_fp.sht
ml. Acesso em 10/03/2009.
96
Idem.
97
“Report on Indian peacekeepers' misconduct false: UN”. Rediff News, 29/04/2008. Disponível em
http://www.rediff.com/news/2008/apr/29peace.htm
. Acesso em 10/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
187
armas a milícias, e que os investigadores da Organização estariam minimizando e
abafando o caso
98
.
Neste mesmo ano, surgem inúmeras denúncias de abuso e exploração sexual por
militares indianos. Em 2008, artigos na mídia afirmavam que uma investigação do OIOS
descobrira que mais de 100 peacekeepers indianos haviam abusado de crianças nos
últimos anos
99
. Alguns jornais chegaram a falar de uma rede de prostituição infantil em
Masisi, na província de Kivu do Norte
100
. Já outras matérias falavam que os militares
haviam usado as crianças para trabalhar com o objetivo de conseguirem meninas
congolesas para sexo
101
. Apesar da seriedade das denúncias, Ximena Jimenez, treinadora
do Centre for UN Peacekeeping (CUNPK), o centro de treinamento de missões de paz
indiano, afirmou: “This was the first time something like that happened in Indian
contingents. They have contribuited with more than 100.000 militaries since its
particpation in UN PKOs (peacekeeping operations)”.
102
Ainda segundo Jimenez, todos
os militares repatriados afirmaram que as alegações foram feitas vários anos atrás, e após
as investigações, ninguém foi condenado. “All information was false. But media used this
info and put it on the web without previous investigations”
103
.
O Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon pediu, em declaração, que a Índia
tomasse as medidas cabíveis o mais rápido possível
104
. Em agosto de 2008, a Índia
afirmou que estava levando a cabo investigações e que puniria os peacekeepers que
98
“Rights group: UN investigators in Congo ignored misconduct”. Washington Post, 02/05/2008.
Disponível em http://www.usatoday.com/news/world/2008-05-02-1966239962_x.htm
. Acesso em
22/03/2009.
99
“UN official underscores zero tolerance for sexual misconduct”. UN News, 14/08/2008. Disponível em
http://secint24.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=27695&Cr=monuc&Cr1
=. Acesso em
22/03/2009.
100
“India probes UN sex charges in DR Congo”. AFP, 13/08/2008. Disponível em
http://www.iol.co.za/index.php?from=rss_Central%20Africa&set_id=1&click_id=136&art_id=nw
20080813100155278C844304. Acesso em 22/03/2009.
101
“UN sexual misconduct allegations won’t go away”. IWPR, 12/09/2008. Disponível em
http://www.iwpr.net/?p=acr&s=f&o=346657&apc_state=henh
. Acesso em 22/03/2009.
102
Entrevista à autora por email, 22/03/2009.
103
Idem.
104
HERMAN, Steve. “India assures UN it will punish errant peacekeepers”. VOA News, 13/08/2008.
Disponível em http://www.voanews.com/english/archive/2008-08/2008-08-13-
voa14.cfm?CFID=147899343&CFTOKEN=55077444&jsessionid=de301e4c7e9c8853821c195a1
116623c173a. Acesso em 22/03/2009. “Ban ‘troubled’ by preliminary evidence of sexual abuse
by UN peacekeepers”. China View, 12/08/2008. Disponível em
http://english.peopledaily.com.cn/90001/90777/90856/6474236.html.
Acesso em 22/03/2009.
Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
188
haviam se engajado em AES enquanto servindo na RDC. Os militares envolvidos foram
repatriados
105
. Militares indianos também foram acusados de estuprar uma mulher
quando estavam na África do Sul, a caminho da Índia, mas as acusações não puderam ser
comprovadas.
O governo indiano afirmou que tal comportamento era “totalmente inaceitável”.
A Índia prometeu ainda tomar as medidas cabíveis e ordenar uma investigação. “India is
committed to prompt and thorough investigation of any act of misconduct and if proven,
strict and exemplary action would be taken as per the law” afirmou Sudarsana
Natchiappan, membro da delegação indiana da Assembléia-Geral da ONU
106
. Na sessão
de 2008 do UN Special Committee on Peacekeeping Operations (C-34), a Índia afirmou
apoiar totalmente a implementação de uma política de tolerância zero, e do
estabelecimento de padrões de conduta, de treinamento e de investigação
107
. Mas o
jornalista Steve Herman, que cobriu o caso dos militares repatriados de Nova Déli pela
Voa News afirma, no entanto, que os casos de abuso e exploração sexual por parte de
militares indianos não parecem ter tido impacto algum nas políticas do governo com
relação às missões de paz. Herman afirmou ainda que “(…) the domestic coverage of the
issue was very muted as it was a huge embarrassment and even the Indian media desires
to sweep it under the rug”
108
.
Mas a questão principal é que, apesar de uma centena de militares indianos terem
sido repatriados em 2008, aqueles que ficaram não parecem ter mudado em nada seu
comportamento. De acordo com matéria do Institute of War and Peace Reporting
(IWPR)
109
, três prostitutas de Goma afirmavam que militares indianos continuavam a ter
relações sexuais dentro de seus jipes durante as patrulhas ou nos próprios campos.
105
“DR Congo: Probe ordered into sexual abuse charge against Indian troops”. Hindustan Times,
13/08/2008. Disponível em
http://www.hindustantimes.com/StoryPage/StoryPage.aspx?sectionName=IndiansAbroadSectionP
age&id=ec9a59d6-80d7-4a5c-a753-
b8f4a5589fdf&&Headline=Probe+ordered+into+sexual+abuse+charge+against+Indian+troops&st
rParent=strParentID. Acesso em 22/03/2009.
106
“India urges UN to pull up erring peace-keepers”. UN News, 02/11/2008. Disponível em
http://news.in.msn.com/national/article.aspx?cp-documentid=1690809. Acesso em 22/08/2009.
107
UN Special Committee on Peacekeeping Operations (C-34), 2008 Session, General Debate:March 10-
11,2008.
108
Entrevista com Steve Herman por email, dia 15/01/2009.
109
“UN sexual misconduct allegations won’t go away”. IWPR, 12/09/2008. Disponível em
http://www.iwpr.net/?p=acr&s=f&o=346657&apc_state=henh
. Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
189
Algumas prostitutas afirmaram ficar esperando os veículos passarem nas estradas para
entrarem nos veículos da ONU
110
.
Segundo o General Nambiar, apesar dos casos de 2008, a Índia continua a ter um
dos contingentes mais disciplinados do mundo. Para ele, isso se deve ao fato de que a
maioria de seus militares vem de um ambiente rural, que diferentemente das grandes
cidades, ainda mantêm valores relativos à família e ao respeito às mulheres. Já Jimenez
acredita que a cultura rica em valores e espiritualidade minimiza tais ocorrências, ao
contrário das culturas ocidentais ou muçulmanas
111
.
7.5
O treinamento sobre abuso e exploração sexual para militares indianos
Assim como fizemos no capítulo 6, com base na análise da literatura de gênero e
missões de paz, especialmente aquela que se preocupa com o treinamento, seguiremos
nossa análise por indicadores estabelecidos anteriormente, a fim de verificarmos a
possibilidade de que o treinamento possa combater o abuso e a exploração sexual (AES).
Desta forma, daremos atenção, em primeiro lugar, à ausência ou presença da exposição
sobre o tema do abuso e da exploração sexual no treinamento implementado; em segundo
lugar, para o conteúdo implementado na apresentação, verificando se este está de acordo
com os preceitos dos Standardized Generic Training Modules (SGTM); em terceiro
lugar, para a clareza das políticas de proibição com relação ao AES pela Organização;
em quarto lugar para a origem da palesra - ou seja, ao palestrante -; e em último, para a
duração da palestra.
Os militares indianos treinam no Centre for United Nations Peacekeeping
(CUNPK)
112
, órgão que é parte do United Service Institution of India (USI), localizado
em Nova Déli, capital indiana. Assim como o Centro de Instrução de Operações de Paz
(CIOpPaz) brasileiro, o CUNPK oferece vários cursos, quase todos com duração de duas
a três semanas: oficiais de contingentes, observadores militares, oficiais de logística etc.
Os alunos do CUNPK não são somente militares indianos: O centro recebe inúmeros
110
Idem.
111
Entrevista à autora por email, 22/03/2009.
112
O site do centro é: http://www.usiofindia.org/CUNP.HTM.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
190
militares de outros países, inclusive da América Latina, e dispõe até mesmo de
alojamento interno para recebê-los. Segundo vários militares estrangeiros com quem a
autora conversou, estes participam dos cursos oferecidos pelo CUNPK não só pela sua
qualidade, mas pela quantidade de diferentes cursos existentes. Além disso, a Índia tem
seis times de treinamento espalhados pelo mundo: nas Ilhas Seychelles, em Laos,
Maurícius, Botsuana, Zâmbia e Butão
113
.
Segundo o General Satish Nambiar
114
, que foi Comandante da Força da
UNPROFOR, a missão das Nações Unidas na antiga Iugoslávia em 1992/1993 e diretor
do CUNPK, os soldados indianos já têm uma boa experiência militar, dadas as inúmeras
guerrilhas existentes no país, como as dos Estados de Punjab ou da Caxemira. Essa
experiência teoricamente faria com que o treinamento não tivesse de enfatizar tanto as
questões militares, já que em sua própria experiência anterior às missões de paz o soldado
indiano teria ganho este ensinamento. Segundo o general, essa vivência é condizente com
o treinamento de um peacekeeper, uma vez que a insurgência é um conflito que muito se
assemelha a uma situação de missão de paz já que, na impossibilidade de distinguir entre
civis e militares, a conquista de “corações e mentes” torna-se imprescindível. Bullion
(2005, p. 199) parece concordar que o Exército Indiano é um dos mais profissionais e
bem-treinados do mundo, sendo apropriado para uma série de situações de conflito,
inclusive as operações de paz (OPs). Não só pela participação em seus próprios conflitos
internos,- que lhes garante experiências em vastos terrenos e situações, como afirma
Nambiar, mas pela participação contínua em missões de paz.
Segundo o General V.P.Malik, do Exército Indiano:
Our soldiers’ vast experience in varying terrain and in extreme climatic conditions gives them easy
adaptability to operate anywhere in the world. They possess a wide range of human and
technological skills that are so important for peacekeeping operations
115
.
General Dipankar
116
também concorda: Para ele, os militares são naturalmente
treinados para as missões de paz, já que passam longos períodos longe de casa em sua
prática no próprio país. Dessa forma, é idéia comum entre militares indianos que o
113
“A History of Indian Participation in UN Peacekeeping Operations”. Disponível em
http://www.indianembassy.org/policy/peace_keeping/history_india_UN_peace_keeping.htm.
Acesso em 22/03/2009.
114
Enrevista com General Satish Nambiar. Centre for UN Peacekeeping (CUNPK), Nova Déli, 02/02/2009.
115
Citado por Bullion, p.207.
116
Entrevista com o General Dipankar. Institute of Peace and Conflict Studies, Nova Déli, 04/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
191
treinamento pode dispensar a parte prática e militar mais geral existente no treinamento
brasileiro, limitando-se a questões específicas às missões de paz. Assim, o tempo
dispensado aos exercícios práticos é menor que nas Forças Armadas brasileiras
117
. Isto
pode ser visto como um fator positivo, já que os militares indianos poderiam, na teoria,
dedicar mais tempo às questões não-militares do treinamento, como direitos humanos e
regras de comportamento.
Segundo o Coronel Shaibal Kumar
118
, em todos os cursos ministrados estão
incluídas as palestras sobre AES, da mesma forma que nos cursos ministrados no Brasil.
O conteúdo dos cursos ministrados pelo CUNPK com relação às questões não-militares é
inteiramente baseado nos Standardized Generic Training Modules (SGTMs), produzidos
pelo Serviço de Treinamento Integrado, órgão do Departamento de Peacekeeping
Operations (DPKO)
119
, que abarca diversos assuntos não-militares, como direitos
humanos, noções sobre a ONU ou sobre o HIV. Assim, o conteúdo da palestra sobre AES
é inteiramente baseada no SGTM, sem nenhum acréscimo ou modificação.
Como já havíamos afirmado no capítulo 6, o curso do SGTM 5 é sobre temas
ligados a “atitudes e comportamentos”, e está dividido em 4 sub-cursos: 5 A - Código de
Conduta; 5 B - Consciência Cultural; 5 C - Proteção de Crianças e 5 D - Prevenção ao
Abuso e à Exploração Sexual. Nesta última palestra, como já vimos no capítulo 5, o
objetivo é explicar o contexto em que se dá o AES, as conseqüências negativas para as
vítimas e para a reputação e credibilidade da ONU. Ao final do curso, espera-se que os
militares possam descrever o que constitui AES, que saibam quais as políticas da ONU, e
quais as proibições impostas
120
. Assim, o material utilizado na palestra sobre abuso e
exploração sexual é, diferentemente dos Fuzileiros Navais do Brasil, em que cada
treinador tem uma certa independência para introduzir estudos de caso, filmes e fotos, fiel
àquele produzido pela ONU, como nas palestras do CIOpPaz, que também seguem o
SGTM.
117
Enrevista com General Satish Nambiar. Centre for UN Peacekeeping (CUNPK), Nova Déli, 02/02/2009.
118
Entrevista com Coronel Shaibal Kumar. Centre for UN Peacekeeping (CUNPK), Nova Déli,
02/02/2009.
119
Idem.
120
Organização das Nações Unidas. Integrated Training Service, 2006. “SGTM 5 D: Prevention of Sexual
Exploitation and Abuse”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
192
O primeiro objetivo do treinamento é, portanto, estabelecer a consciência de que
os peacekeepers representam a imagem da organização. O segundo passo é ensinar os
códigos de conduta, a consciência para com a cultura local, a proteção às crianças, e
algumas noções sobre gênero. Nesta última parte, o foco é fazer com que os participantes
de missões de paz entendam o significado das relações de gênero no ambiente em que
trabalham, e como estas são afetadas pelos conflitos, tanto pela perda dos membros
masculinos das famílias, da pobreza extrema e dos estupros, quanto pela desintegração
dos serviços sociais dos quais estas antes dependiam.
No slide 12, há uma pergunta: “Am I
allowed to have sex in a peacekeeping mission?” A pergunta é respondida através da
explicação – simples e clara - das diferenças de poder existentes entre os militares e a
população local:
The Peacekeepers are powerful, because they have money, mobility, access to food, water and
other goods, and force. This causes a power imbalance between the peacekeepers and the host
population. Most peacekeepers use this power to do good. Some peacekeepers have, however, used
the powerful situation they are in to abuse vulnerable populations by using prostitutes and thus
encouraging prostitution, including often children; by spreading HIV/Aids in the process; by
getting involved in or even unknowingly encouraging organized crime involved in prostitution and
the trafficking of women; by abandoning children they have fathered and by abandoning women
who have been promised marriage or other benefits in exchange for a sexual relationship. (…) Such
behavior is illegal and morally unacceptable and will not be tolerated by the United Nations
121
.
O SGTM é um curso de linguagem clara e direta, que evidencia de várias formas
os comportamentos sexuais proibidos e “desencorajados” pela ONU. Desta forma, nosso
terceiro indicador - a clareza com relação às políticas da ONU - é existente, sem dúvida,
no programa. Tal objetivo é alcançado através da apresentação de alguns exemplos
concretos de AES, como as denúncias na África Ocidental, o incentivo ao tráfico humano
na Bósnia ou o aumento da prostituição no Timor-Leste, e também de condutas que
podem ser consideradas como abuso e exploração sexual, tal como estupro, troca de bens
por sexo e prostituição, de forma a facilitar o entendimento de um conceito tão abrangente
e ligeiramente vago. O SGTM recomenda ainda, aos treinadores, a utilização de fotos e
notícias que exemplifiquem casos de AES em diversas missões de paz.
O programa do SGTM atenta para a possibilidade de perguntas como: “What is
wrong with having sex with a prostitute if that person is an adult and gives full consent?
I’m not harming anyone and in my home country/culture as well as the mission
121
“SGTM 5 C: Gender And Peacekeeping”. Slide 12.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
193
country/culture, prostitution is legal and using the services of prostitutes is accepted”. A
resposta recomendada à colocação é que há um padrão de conduta existente, independente
do país ou da cultura do militar, que proíbe tais relações. A proibição é, dessa forma, clara
e direta, e evidencia o fato de que as políticas da ONU estão acima daquelas dos países-
hospedeiros. Mas sobre as relações consensuais - com mulheres que não sejam prostitutas
nem menores de idade- a resposta é mais vaga e não deixa claro qual comportamento a ser
seguido. O programa afirma que o foco não deve ser sobre se há consenso ou não, mas na
natureza da relação. “The abuse of power, where differential power exists, determines
whether the relationship is exploitative. If one party abuses a position of vulnerability,
differential power or trust for sexual purposes, there is sexual exploitation”. Mas o que
definiria o conceito de “abuso de poder”? A relação consensual com uma maior de idade
local, sem troca pré-definida de bens é abuso de poder? Mais uma vez o julgamento fica
por conta de cada um. Uma resposta negativa ou afirmativa seria, talvez, mais clara e
eficaz do que uma resposta que não deixa clara a política da ONU com relação a
interações sexuais consensuais.
Outro ponto positivo do treinamento é a explicação da situação de vulnerabilidade
de meninas e mulheres nos países-hospedeiros de missões de paz: a economia destruída, a
morte de parentes masculinos, o menor acesso à educação e ao crédito, as quase
inexistentes possibilidades de sobrevivência. O programa explica ainda como, por vezes, a
população local, além de não ter conhecimento de seus direitos, tende a ver os recém-
chegados peacekeepers como possibilidades concretas de conseguir comida, água, ou
dinheiro extra. “The peacekeepers thus have considerable personal power over the local
population that they should not abuse”. O programa evidencia ainda as medidas punitivas
que podem ser tomadas em caso de AES: O militar pode ser repatriado, julgado pelas leis
de seu país, e proibido de participar de outra missão de paz. Militares são orientados,
ainda, a informarem sobre rumores e suspeitas de AES: “It is not necessary to know, at the
time of reporting a suspicion, rumour or allegation, whether it is true or false, as long as
the suspicion, rumour or allegation is reported in good faith”.
Com relação à origem do curso, o treinamento aplicado na Índia difere um pouco
daquele do Brasil. Isto porque apesar de ser de origem militar, o CUNPK,
diferentemente dos cursos do Exército ou da Marinha do Brasil, convida civis ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
194
especialistas, integrantes de ONGs ou da ONU, para ministrarem palestras sobre temas
como direitos humanos ou AES. Nos últimos anos, tem sido a professora Manjeet Bathia,
do Centro de Desenvolvimento e Estudos da Mulher da Universidade de Nova Déli, a
responsável por aplicar o programa para militares no CUNPK. Adotar civis nos
ensinamentos não-militares tem prós e contras: Como dissemos no capítulo 5, alguns
autores acreditam que incluir homens nas palestras seria benéfico, uma vez que os alunos,
especialmente em caso de militares, se sentiriam mais “confortáveis”, frente às idéias
negativas alimentadas por muitos sobre questões relacionadas ao conceito de “gênero”,
conforme vimos no capítulo 2. De acordo com Toiko Tonisson Kleppe, “A man who
speaks to other men about gender is often listened to in a more attentive way”
122
. Vimos
que no treinamento de Fuzileiros Navais brasileiros o fato de os treinadores serem
homens militares não só parece exercer maior impacto no aprendizado, uma vez que há
uma identificação entre “professor” e “aluno”, mas permite a utilização de uma
linguagem mais “aberta” e direta, e a exposição mais clara de perguntas por parte dos que
assistem à exposição.
No entanto, ainda que não haja a mesma identificação entre palestrantes e alunos,
os acadêmicos têm, via de regra, maior conhecimento sobre o assunto, acredita o Coronel
Shaibal Kumar. De fato, civis muitas vezes são especialistas no assunto, e podem passar
uma melhor representação do contexto do pós-guerra e da situação das mulheres nos
países-hospedeiros, aumentando a clareza e a efetividade do treinamento. De qualquer
forma, a palestra dada por civis é apenas para oficiais. Assim como no Brasil, a Índia
trabalha com o princípio de “multiplicadores”: Os superiores militares de diversas regiões
do país fazem o curso e repassam os conhecimentos adquiridos a seus subordinados
123
.
Desta forma, a maioria dos militares acaba por receber o conhecimento de seus
superiores.
Outra questão que deve ser levada em conta é a duração da palestra: Apesar do
SGTM ser um material claro, ele deve ser apresentado em três sessões de 50 minutos
122
“UN-sponsored meeting calls for more male facilitators in gender training”, UN News, 26/06/2008.
Disponível em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=23030&Cr=gender&Cr1=training
. Acessado em
30/08/2008.
123
Entrevista com Coronel Shaibal Kumar. Centre for UN Peacekeeping (CUNPK), Nova Déli,
02/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
195
cada uma: As duas primeiras sessões devem servir para apresentar o conteúdo, e a
terceira para revisão e discussão. Tanto no Brasil quanto na Índia, no entanto, o conteúdo
do SGTM é feito em apenas uma palestra de 50 minutos. Apesar do programa afirmar
que “(…) The trainer should modify the time allocated for this module according to
national training requirements”, a ausência de um tempo para revisão e discussão
provavelmente terá efeitos no entendimento dos militares, especialmente com relação a
quais situações constituem atos de AES, ponto que parece ser o mais problemático.
É relevante notar que, assim como no Brasil, o principal apelo da palestra sobre
abuso e exploração sexual parece ser mais à imagem da missão e da própria Organização
do que aos prejuízos causados aos indivíduos envolvidos nestas relações. Apesar de
apresentar as conseqüências negativas às vítimas, o programa dá grande ênfase aos
efeitos dos casos de abuso e exploração sexual à implementação do mandato:
When you are serving with a United Nations peacekeeping mission, you represent the
Organization during your free time as well as during your working day. You do not have the same
freedoms in your “private life” as you do when you are in your home country or working for
another organization. You accept this when you accept the job.
Segundo General Satish Nambiar, o objetivo principal é fazer os militares
entenderem que eles são os embaixadores da imagem da Índia. Como já foi dito no
capítulo 5, a ênfase na imagem do país em detrimento das conseqüências para as vítimas,
ainda que pareça inadequado, pode representar um forte apelo a militares que não
acreditem que relações sexuais com mulheres locais possam ter efeitos negativos, ou
mesmo para aqueles que simplesmente não se importem com tais conseqüências. Ainda
assim, se o objetivo é construir uma nova cultura militar, a preocupação deve ser mais do
que apenas com a imagem do país ou da própria ONU, mas especialmente com as vítimas
envolvidas. A compreensão da imoralidade, no sentido humanístico, de tal ato deve ser
enfatizada nos treinamentos, como forma de formar soldados sensíveis e compatíveis
com os valores das missões de paz, e não apenas militares que obedeçam cegamente às
regras da ONU.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
196
7.6
Conclusão
Como vimos na análise dos casos de abuso e exploração sexual (AES) na Missão
das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC), a Índia, o maior
contribuinte de tropas para a missão, não teve praticamente casos registrados em 2004 e
2005, anos em que houve mais acusações de AES contra militares e civis. No entanto, em
2008, mais de uma centena de militares indianos foram repatriados de uma só vez por
denúncias de AES. Frente à não divulgação do resultado das investigações (se é que
houve investigação), não há como ter certeza da culpabilidade dos militares indianos
envolvidos nas denúncias. Por um lado, matérias da mídia afirmam que os militares em
questão são culpados, e que muitos outros peacekeepers continuam a abusar de mulheres
e meninas. Algumas autoridades indianas, como o General Nambiar e o General
Dipankar não negam os casos, mas afirmam que as medidas de combate foram
fortalecidas depois das denúncias. Outras pessoas, como a consultora de gênero Ximena
Jimenez, que trabalha no CUNPK, o centro de treinamento indiano, acreditam que os
militares são totalmente inocentes, e que a mídia se precipitou ao formular tais alegações.
Por um lado, se compararmos o número de casos de AES de militares da Índia
com o número de denúncias das tropas de outros países, os militares indianos são, de fato,
mais disciplinados que aqueles do Paquistão, da Jordânia ou do Marrocos. Se
compararmos a quantidade de militares indianos existentes na missão com a quantidade
de denúncias, o resultado parece ainda mais positivo. Até o ano de 2004 participavam da
MONUC no máximo 340 militares indianos, número que passa a 400 a partir de setembro
de 2004. Com o passar do tempo, a quantidade vai paulatinamente aumentando: São 891
militares em novembro de 2004, e 1303 já em dezembro deste mesmo ano. Em 2005, o
número sobe para 2553, e a partir daí, são cerca de 3500 militares a cada seis meses,
aumentando para cerca de 4500 em 2006 até hoje, cujo número está em 4265 militares
124
.
Portanto, se contarmos a quantidade total de militares indianos na MONUC a partir de
2005 - quando o número torna-se significativo- até 2007 - o último ano sem denúncias-,
124
Todos os dados foram obtidos em “Monthly Summary of Contributors of Military and Civilian Police
Personnel”. Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO). Disponível em
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/05-08.htm
. Acesso em 03/04/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
197
temos cerca de 23 mil militares indianos que passaram pela MONUC e quase nenhuma
denúncia publicada pela mídia. Temos apenas uma denúncia de AES contra eles,
publicada pelo The Star, da África do Sul, em 2004, que afirmava que várias meninas
haviam sido estupradas por militares sul-africanos e indianos
125
, quando a Índia contava
com apenas 350 militares em campo.
No entanto, de uma vez só, uma centena de militares indianos foi repatriada por
má-conduta sexual. Obviamente, a situação é diferente de uma centena de militares do Sri
Lanka repatriados, uma vez que, enquanto a Índia tem 4265 militares, o Sri Lanka tem
959 militares em campo
126
. Apesar da diferença, devemos atentar para o fato de que
militares indianos foram acusados de manter uma rede de prostituição infantil em Masisi,
na província de Kivu do Norte
127
, e de continuarem a fazer sexo com prostitutas mesmo
depois da repatriação dos militares. Devemos lembrar, ainda, que parte do contingente foi
acusado de estar envolvido em denúncias de contrabando de armas para milícias do país.
Frente a tal comportamento, podemos trazer à tona duas possibilidades: 1) Ou que o
treinamento implementado na Índia não seja claro e eficiente o suficiente; 2) Ou que o
treinamento, ainda que eficiente, não tenha sido suficiente para evitar casos de AES.
A primeira possibilidade é pouco provável. Isto porque, da mesma forma que o
Brasil, a preocupação com a qualidade das tropas enviadas para missões de paz também
parece ter raízes no desejo de um possível assento num Conselho de Segurança (CS)
reformado, um dos principais objetivos estratégicos do país com relação a sua política
externa (Bullion, 2005, p. 196). No caso da Índia, o desejo de ter um assento, - assim
como o de possuir armas nucleares
128
- vai além da necessidade de firmar-se como
potência global e regional, mas inclui necessidades estratégicas de segurança com relação
aos países vizinhos, numa visão “realista” tradicional, agravada após os atentados de
125
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah.“Army silent on sex scandal”. The Star, 21/07/2004. Disponível em
http://www.thestar.co.za/index.php?fSectionId=129&fArticleId=2146949
. Acesso em 10/02/2009.
126
“UN Mission's Summary detailed by Country”. Departamento de Operações de Paz (DPKO),
28/02/2009. Disponível em http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/contributors/2009/feb09_3.pdf
.
Acesso em 03/03/2009.
127
“India probes UN sex charges in DR Congo”. AFP, 13/08/2008. Disponível em
http://www.iol.co.za/index.php?from=rss_Central%20Africa&set_id=1&click_id=136&art_id=nw
20080813100155278C844304. Acesso em 22/03/2009.
128
“Armas nucleares são "obrigação estratégica" para a Índia, diz Sonia Gandhi”. Folha Online,
29/01/2007. Disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/01/29/ult1808u84594.jhtm.
Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
198
2008. Ainda que militares afirmem que a participação indiana é relacionada a ideais de
fortalecimento da segurança e da paz internacional, e não a interesses estratégicos
129
,
muitos generais já admitem a vontade indiana de firmar-se como uma potência global,
com direito a assento no principal órgão da ONU.
Segundo o General Shrivastava: “An emerging Power gives indications of
aspirations in many ways. Strong presence in UN missions is one of them. The activity,
besides being noble, signifies a nation’s destiny and capacity, to play its part in world
affairs”
130
. Como no caso do Brasil, a participação em missões de paz não só
demonstraria a capacidade militar e de liderança do país, mas legitimaria o direito por um
assento no CS. Assim, a qualidade do treinamento implementado é, em grande parte,
justificada pela necessidade da Índia em mostrar-se um país capaz de liderar missões de
paz e de manter a disciplina dentre suas tropas. De fato, o país obedece a todos os
indicadores estabelecidos pela pesquisa: Apesar da duração das palestras ser curta (em
comparação com as recomendações do SGTM), assim como no treinamento brasileiro,
todos os cursos possuem apresentações sobre abuso e exploração sexual (AES), baseados
integralmente nos SGTM. As exposições, conforme visto na análise do treinamento,
deixam claras as políticas da ONU em relação ao AES, ainda que as políticas da ONU
com relação a interações consensuais sejam um tanto quanto vagas.
Apesar da qualidade dos treinamentos de AES estabelecidos pela Índia, país que
recebe até mesmo militares de outros países, devemos analisar mais a fundo outras
hipóteses que possam explicar o surgimento desses casos de abuso sexual por militares
indianos. Quando analisamos a matéria que afirma que mesmo após a repatriação de uma
centena de militares indianos, estes ainda faziam sexo dentro dos carros da ONU
131
,
podemos imaginar que, em primeiro lugar, não há uma preocupação em implantar
medidas de controle do uso dos veículos da ONU, como no Brasil. No Batalhão
Brasileiro há um controle eletrônico dos veículos: não há como um militar simplesmente
utilizar um veículo da forma que lhe convém.
129
“A History of Indian Participation in UN Peacekeeping Operations. Disponível em
http://www.indianembassy.org/policy/peace_keeping/history_india_UN_peace_keeping.htm.
Acesso em 05/03/2009. Acesso em 23/03/2009.
130
Citado por Bullion, p.206
131
“UN sexual misconduct allegations won’t go away”. IWPR, 12/09/2008. Disponível em
http://www.iwpr.net/?p=acr&s=f&o=346657&apc_state=henh
. Acesso em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
199
Fica claro, também, pelo comportamento não somente das tropas indianas, mas de
outros países, que falta não só fiscalização por parte da missão do cumprimento das
medidas de “no go zones” e de curfews, mas de um papel ativo dos superiores
hierárquicos. Como já foi citado, os superiores são essenciais na disseminação de bons
exemplos e de padrões de conduta. Na MONUC, no entanto, muitas vezes a adoção,
pelos oficiais, das medidas adotadas pela ONU, tinha como objetivo apenas “atender à
opinião pública”, e não adotá-las como regras que devem, de fato, ser obedecidas. Talvez
seja por isso que o código da MONUC seja visto, por muitos, como algo irreal e idealista.
Da mesma forma que a estrutura hierarquizada do mundo militar facilita o cumprimento
das ordens, o mau exemplo dado pelos superiores pode colaborar para a disseminação do
mau-comportamento. Segundo Kent (2007, p. 60), “Senior leadership must set standards
by actively supporting the UN policy of zero tolerance; any perception of apathy can
encourage misconduct and demoralize staff”. É imprescindível que oficiais criem um
ambiente de respeito aos padrões de conduta e sirvam como exemplos de disciplina.
Como vimos no capítulo 5, a política de tolerância zero para com o abuso e a exploração
sexual parece ser seriamente compartilhada pelos superiores hierárquicos do Brasil. No
caso da Índia, não se pode ter tanta certeza.
Outra hipótese que deve ser aventada é a forma pela qual os militares vêem seu
próprio papel na missão, e quais seus sentimentos com relação a suas próprias funções e à
população local na operação de paz. Segundo Higate (2003, p. 12), uma forte
negatividade podia ser sentida entre os peacekeepers na MONUC com relação aos
objetivos da missão, especialmente frente à volta da violência na República Democrática
do Congo. Segundo o autor, esta sensação de pessimismo fazia com que muitos
justificassem instrumentalmente sua presença, afirmando estarem ali somente pelo ganho
extra de dinheiro, e não pela vontade de melhorar a situação da população local. Muitos
alegavam estar “entediados” (p. 13) e não acreditavam que o país pudesse melhorar,
especialmente porque seus habitantes, que seriam os principais agentes de mudança,
seriam visto por muitos como “preguiçosos” (p. 12). Segundo o autor: “(...) a number of
peacekeepers believe that their actions could not make the situation any worse in an
already dire situation” (p. 13).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
200
Além disso, vários habitantes locais referem-se à forma como peacekeepers têm
uma atitude arrogante e superior para com a população, que os apelidou de “Vodacom”-
o nome da companhia local de telefonia, cujo slogan é “always stronger” (Idem, p. 17). É
esse tipo de atitude que justifica, para Higate, que muitas vezes peacekeepers se
comportem de formas que não fariam em seu país-natal (2003, p. 13). Este mesmo
comportamento superior ocorria com relação às mulheres locais: Higate afirma também
que muitos militares tendiam a ver as mulheres locais como essencialmente distintas das
de seus países (p. 14). Apesar do autor não se referir especificamente aos indianos em sua
pesquisa, é necessário levar em conta esse tipo de sentimento por parte de militares. Tal
diferença fica latente quando se compara com a posição quase unânime de orgulho de
militares brasileiros - tanto da Marinha quanto do Exército, em exercer suas funções na
MINUSTAH. Não porque estes sejam mais nobres que aqueles: Temos de levar em conta
que, da mesma forma que a população local, os militarem também se sentem frustrados
quando a missão não é capaz de atingir seus objetivos, e podem acabar por se engajar em
condutas contrárias aos princípios das OPs.
A extensa publicação na mídia dos vários casos de AES determinou a implantação
de várias medidas do combate ao problema - algumas pela primeira vez em missões da
ONU. Sem dúvida, tais medidas, como o estabelecimento de curfews e áreas off-limits, de
áreas de lazer nas bases, de períodos de arejamento, de treinamentos de conduta e de
unidades de conduta e disciplina nas missões; obrigatoriedade do uso de uniformes
durante todo o tempo, e restrições à livre mobilidade tiveram influência na diminuição
dos casos de abuso e exploração sexual na MONUC. Estes são fatores que, sem dúvida,
devem ser levados em conta, uma vez que praticamente inexistiam nos anos de 2004 e
2005, períodos em que ocorreram mais casos de abuso e exploração sexual. Tais medidas,
no entanto, não foram suficientes para cessar os casos de AES completamente.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Conclusão
No pós-Guerra Fria, as operações de paz (OPs) passam a exercer uma série de
novas funções, com o objetivo de construir uma paz duradoura, evitando as tão
constantes voltas à violência armada. O exercício destas novas tarefas, no entanto, exige
um aumento relevante do número de integrantes das missões, que passam a ser
responsáveis não só pela parte ligada à segurança, mas pela execução de uma série de
tarefas tradicionalmente civis, tais como a construção de escolas e estradas, a distribuição
de comida ou a limpeza das ruas. Como resultado, os militares passam a ter uma
proximidade maior com a população local, o que, se por um lado, estreita os laços entre a
missão e os habitantes do país-hospedeiro, por outro facilita, em parte, casos de abuso e
exploração sexual.
Com muito mais recursos que a esmagadora maioria da população, uma vez que o
simples fato de terem acomodação, comida e água encanada já representa uma diferença
relevante, os integrantes de missões de paz passam logo a ser alvo da insistência de
meninas e mulheres, ávidas por dinheiro, comida, ou quaisquer outros bens que ajudem
em sua sobrevivência, como na República Democrática do Congo (RDC). Alguns civis e
militares, cientes da disparidade de poder que lhes separa da população local, abusam
sexualmente de trabalhadoras locais, como tradutoras e empregadas domésticas, a
exemplo da Bósnia. Outros, ainda, exigem sexo em troca daquilo que é direito da
população, tal como a provisão de comida ou mesmo de segurança, como já ocorreu em
Serra Leoa. A exemplo do Camboja, inúmeras mulheres tornam-se, ainda, “esposas” de
militares durante sua estadia.
Longe de representarem um fenômeno homogêneo, relações sexuais de diversas
formas são estabelecidas entre participantes das OPs e mulheres e meninas locais, em que
níveis distintos de recursos, de consentimento, de violência e mesmo de afeto se
misturam em um grande e complexo emaranhado: há desde o estupro à construção de
relacionamentos duradouros, passando pela participação direta e indireta de militares e
civis na prostituição e no tráfico humano. Nestas interações, a imagem simplista e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
202
estereotipada da mulher como sujeito passivo e do homem como predador sexual fica
para trás. A participação das mulheres, especialmente na prostituição, é, freqüentemente,
ativa: Em muitas missões, mulheres e meninas passam a circular insistentemente por
locais freqüentados por peacekeepers - como restaurantes e hotéis, e até mesmo
checkpoints e bases militares - com o objetivo de oferecer sexo. Esta reconfiguração da
imagem da vítima passiva, frente ao desconhecimento do contexto sócio-econômico e das
conseqüências para meninas e mulheres, é responsável, muitas vezes, pelo entendimento,
por parte dos perpetradores, de que tais relações são consensuais, e, portanto, não
configuram uma forma de abuso ou de exploração.
Cabe refletir sobre se o conceito abrangente de “abuso e exploração sexual” como
formulado pela ONU - que inclui também relações “consentidas”- não seria uma posição
moralista e paternalista, em que se subtende que as mulheres em situação de pobreza não
possuem capacidade de escolher seus próprios destinos. Esta, sem dúvida, é uma crítica
válida, que deve ser levada em consideração. Mas a posição das Nações Unidas é a de
que tal “expressão de agência”, representada pelo papel ativo das mulheres nas relações
com peacekeepers, esconde a latente falta de oportunidades e de formas de sobrevivência
dessas mulheres e meninas. Diante de uma situação brutal de pobreza, como é a situação
na maioria dos países-hospedeiros, conceitos como “escolha”, “consentido” e “não-
consentido” tornam-se difíceis de serem encaixados e entendidos plenamente.
É justamente o contexto sócio-econômico em que se encontram meninas e
mulheres nos países que recebem missões de paz o principal fator de estímulo ao abuso e
à exploração sexual. Assim, quando da chegada da missão de paz, os problemas trazidos
pela pobreza extrema, pela morte de membros masculinos das famílias e pelo
deslocamento já levaram muitas mulheres a se engajarem em relações de “sexo de
sobrevivência”, em que estas trocam relações sexuais por comida, por proteção, ou por
outros favores, para elas mesmas e para suas famílias. É neste contexto que ocorrem a
maioria dos casos de AES, responsáveis não só pelo aumento da infecção pelo HIV para
vítima e perpetrador, pela possível marginalização destas meninas e mulheres em suas
sociedades, e pela geração de filhos que ficarão sem pais.
O desencorajamento de relações sexuais de integrantes de missões de paz com
locais baseia-se na visão destas mulheres como um “grupo vulnerável”. Tal construção já
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
203
foi alvo de críticas por inúmeros autores (tais como Moura, 2005 e Carpenter, 2006), uma
vez que a consideração das mulheres dos países-hospedeiros como um grupo a ser
protegido reitera a construção desigual entre gêneros em que a mulher é o sujeito “que
necessita de proteção”, diminuindo ainda mais sua capacidade de ação, além de silenciar
as experiências dos homens, que também sofrem com a violência. Mas a questão é que as
conseqüências do abuso e da exploração sexual vão muito além daquelas infligidas às
mulheres e meninas envolvidas diretamente em tais atos. Tais interações entre estas e os
participantes de missões de paz geram ressentimento entre os homens, e comprometem a
parcialidade, o apoio à missão, e, conseqüentemente, sua própria efetividade. Assim, a
eliminação do abuso e da exploração sexual é muito mais que uma questão ética e moral,
mas é a própria garantia da boa implementação do mandato das missões.
Parte significativa não só da literatura de relações internacionais que se ocupa
com o tema, mas também de especialistas e de organizações governamentais e não-
governamentais tende a culpar a socialização do militar por tais comportamentos. Para
estes autores, a construção social do militar, baseada na violência e na misoginia, seria
responsável por formar indivíduos capazes de tais atos. Mas se o âmago do problema do
AES em missões de paz está na construção social do soldado, duas perguntas podem ser
aqui colocadas: 1) Como explicar os muitos casos cometidos por civis
1
? 2) Como
explicar que muitos militares, submetidos aos mesmos ritos de passagem, não se engajem
em casos de violência e AES?
Desta forma, olhar somente para militares como os perpetradores per se do abuso
e exploração sexual é, além de injusto, perigoso, uma vez que o militar é apenas parte do
problema. O contexto em que se dá o abuso e a exploração sexual é muito mais complexo
e é definido por muito mais variáveis que apenas o perfil do perpetrador: A junção do
contexto sócio-econômico de pobreza extrema, de impunidade e de poder parece ser a
explicação mais plausível para a ocorrência deste fenômeno. A possibilidade de abusar da
1
Para casos cometidos por civis, ver: “Civilian employees, not soldiers, will be big problem as United
Nations tackles sex abuse, official says”. Associated Press, 15/03/2005. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/4047/
. Acesso em 30/08/2008. “UN
and NGOs Commit to Eliminating Sexual Abuse by All International Agency Personnel”.
Refugees International, 01/12/2006. Disponível em
http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/9684. Acesso em 30/08/2008
. “No One
to Turn To: The under-reporting of child sexual exploitation and abuse by aid workers and
peacekeepers”. Save the Children, 27 de maio de 2008 (ver nota 19).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
204
diferença gritante de recursos entre os participantes de missões de paz e as mulheres e
meninas locais está para além das diferenças entre civis e militares, e até mesmo entre
homens e mulheres. É a possibilidade de abuso do poder, frente à sensação de
impunidade, e não o status ou o sexo que definem tais comportamentos.
Diante de um contexto em que, inevitavelmente, meninas e mulheres se
oferecerão aos participantes da missão, e em que, dadas as imunidades estabelecidas e as
possibilidades punitivas limitadas por parte da ONU, forma-se uma forte sensação de
impunidade, o treinamento torna-se uma ferramenta essencial: o respeito à cultura local,
aos direitos humanos e às políticas da ONU podem ser ensinadas e internalizadas através
da implementação de um treinamento prévio claro e eficiente, que demonstre que, em
missões de paz, o envolvimento com mulheres e meninas locais e com a prostituição são
atitudes contrárias ao espírito das missões de paz e da própria Organização.
A análise do treinamento do Exército e da Marinha do Brasil e do Exército
indiano nos leva a conclusões mais profundas e complexas. À primeira vista, percebemos
que o treinamento de ambos os países é bastante similar. Tanto Índia quanto Brasil
parecem levar a sério a recomendação da ONU de aplicar treinamentos efetivos sobre
assuntos não-militares: ambos os países possuem centros de treinamentos reconhecidos
internacionalmente, ministram vários cursos, e tem como base de suas aulas o conteúdo
formulado pela ONU. A seriedade com que os dois países prezam a manutenção de suas
imagens, alcançada através do bom treinamento dos militares envolvidos em missões de
paz encontra-se, em grande parte, no desejo de Índia e de Brasil em conseguirem um
assento permanente num possível Conselho de Segurança reformado.
Obviamente, a vontade política de ambos os países em mostrar-se capaz
militarmente, através do bom trabalho executado por suas tropas em missões de paz, é,
em parte, responsável pelo baixo número de denúncias de casos de AES de ambos os
países-contribuintes, se comparados com a quantidade de ocorrências envolvendo outros
países. Mas apesar da implementação de programas de treinamento e de esclarecimento
com relação ao abuso e à exploração sexual, a diferença de comportamento entre as
tropas brasileiras e as tropas indianas é notável, ainda que os militares indianos sejam
mais disciplinados que os de outros países. Por quê? Tal constatação nos leva a duas
conclusões. A primeira refere-se ao fato de que o treinamento, como uma variável
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
205
sozinha, parece não ser suficiente para diminuir os casos de má-conduta sexual. Como já
havíamos dito nesta pesquisa, o combate ao AES é um trabalho complexo, que envolve a
adoção de inúmeras medidas ao mesmo tempo, tais como a melhora da capacidade
investigativa, o envolvimento dos superiores hierárquicos, e a implementação de políticas
de restrição de mobilidade.
Desta forma, várias evidências nos levam a crer que, a despeito da existência de
bons programas de treinamento, as tropas indianas não dispõem da mesma restrição à
mobilidade na MONUC que as tropas brasileiras na MINUSTAH. A ocorrência de casos
de AES por tropas indianas em 2008 apontam, ainda, para a falta de engajamento dos
superiores hierárquicos para com a política de tolerância zero da ONU. Devemos levar
em conta, ainda, a forma como o militar vê seu próprio trabalho em operações de paz.
Enquanto há relatos de que peacekeepers da MONUC sentem-se desestimulados e
desesperançosos com relação à evolução da missão e do país, especialmente frente ao
retorno da violência armada em 2008, entre as tropas brasileiras, tanto da Marinha quanto
do Exército, é notável a esperança e o otimismo nutrido com relação às melhoras
alcançadas na MINUSTAH. Tais sentimentos podem ter grande influência na forma
como militares se comportarão em campo.
Devemos lembrar que as medidas implementadas nas missões de paz ainda são,
em sua maioria, de caráter reativo e ad hoc: Ou seja, as políticas de combate são quase
sempre implementadas após o surgimento de denúncias de abuso e exploração sexual,
quando os efeitos negativos para as vítimas, a missão e a própria Organização já
ocorreram. Há, desta forma, uma necessidade latente de que as políticas implementadas-
tais como curfews, locais proibidos, hotlines para denúncias, campanhas de
esclarecimento e órgãos de investigação se tornem um procedimento operacional padrão,
implementadas no momento da chegada da missão de paz, de forma a evitar um problema
que já se sabe ser freqüente nas OPs. Tendo em vista a grande disparidade que sempre
existirá entre locais e peacekeepers, a ONU deve trabalhar com um quadro preventivo:
Os problemas devem ser combatidos, no mínimo, ainda na fase de rumores e suspeitas,
antes que o AES torne-se uma pratica sistemática e comum, como ocorreu na MONUC.
A participação dos superiores hierárquicos militares é absolutamente
imprescindível no combate ao AES. Escalões mais altos devem ter programas de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
206
conscientização especiais, e o Representante do Secretário Geral na missão (SRSG) deve
garantir que estes tenham noção clara das políticas da ONU. Isto porque o apoio dos
superiores às regras da ONU e à política de tolerância zero é vital, uma vez que a cadeia
de comando tem um peso central na estrutura militar. Desta forma, os oficiais devem não
só garantir um ambiente de disciplina, mas serem responsabilizados por casos de má-
conduta perpetrados por membros de suas tropas.
Muitas outras medidas devem ser melhoradas para o combate efetivo do AES. As
restrições à mobilidade dos militares devem ser fortalecidas, através de limites de horário
para sair, controle de utilização de veículos da ONU, proibição de presença em certos
estabelecimentos e diminuição das patrulhas com poucos soldados, sem nenhum oficial.
É imprescindível ainda o aumento de campanhas de informação que disseminem os
códigos de conduta e as políticas da organização não só para integrantes da missão, mas
também para a população local, garantindo que estes saibam a quem recorrer em caso de
AES ou de qualquer outra má-conduta.
A capacidade investigativa das missões de paz também deve ser melhorada
urgentemente, através do aumento de recursos e especialmente da contratação de pessoal
especializado em crimes sexuais. A melhora da coleta e a transparência dos dados
ajudariam, ainda, em futuras análises do fenômeno, já que poderiam esclarecer quem são
as vítimas e seus perpetradores e quais os tipos de relações estabelecidas, o que
melhoraria a capacidade de desenvolvimento de políticas de combate ao AES. Não
podemos nos esquecer ainda das medidas punitivas: Os países contribuintes de tropas têm
de garantir que a imunidade não signifique impunidade, levando a julgamento todo
militar repatriado e tornando pública a conclusão a que as investigações chegaram.
A segunda conclusão a que chegamos é a de que, ainda que não seja suficiente
para o total desaparecimento do abuso e da exploração sexual, como constatamos pelo
caso da Índia, país em que a qualidade do treinamento não conseguiu evitar os casos de
má-conduta por suas tropas, o treinamento continua a ser uma ferramenta extremamente
importante na construção de uma nova cultura militar, que veja casos de abuso e
exploração sexual como atos que vão contra os princípios das missões de paz e que
trazem inúmeras conseqüências negativas para as vítimas, para a missão, para o país-
contribuinte e para a ONU. É relevante lembrar, no entanto, que se o objetivo não é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
207
somente evitar casos de AES, mas construir uma nova “cultura militar”, não somente os
efeitos negativos à imagem do país-contibuinte devem ser enfatizados, mas também às
vítimas, deixando claro a imoralidade humana deste comportamento. Os treinamentos
devem, desta forma, continuar a serem implementados e melhorados, não só com relação
à parte militar, mas também em assuntos relacionados a direitos humanos e a padrões de
conduta. É imprescindível que militares cheguem ao país-hospedeiro com total noção das
políticas da organização e dos efeitos que sua própria presença tem na população local.
Não há dúvidas de que o treinamento brasileiro e indiano exercem grande influência
sobre o comportamento de grande parte das tropas, e tornam os militares mais preparados
e aptos aos desafios das missões de paz. Afinal, peacekeepers não são vilões ou heróis,
mas pessoas capazes de aprender e de se adaptar às condições existentes.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Referências Bibliográficas
ALISON, Miranda. Wartime sexual violence: women’s human rights and questions of
masculinity. Review of International Studies, v. 33, n.1, p.75-90, 2007.
ALLEN, B. Rape Warfare. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006.
ALLRED, Keith. Peacekeepers and Prostitutes: How Deployed Forces Fuel the Demand
for Trafficked Women and New Hope for Stopping It. Armed Forces and Society, v. 33,
n. 5, p. 5-23, 2006.
AMMITZBOELL, Katarina. Unintended consequences of peace operations on the host
economy from a people’s perspective. In: AOI, Chiyuki; CONING, Cedric de;
THAKUR, Ramesh (ed.) Unintended consequences of peacekeeping operations. Nova
Iorque: United Nations University Press, 2007.
ANDERSON, Mary. Do no Harm: How Aid can support Peace or War. Londres:
Lynne Rienner, 1999.
ANISTIA INTERNACIONAL. Don’t turn your back on girls: Sexual violence against
girls in Haiti, novembro de 2008. Disponível em <http://www.amnesty.org/en/news-and-
updates/report/dont-turn-your-back-girls-sexual-violence-haiti-20081127> Acesso em
03/12/2008.
AOI, Chiyuki; CONING, Cedric de; THAKUR, Ramesh (ed.). Unintended
consequences of peacekeeping operations. Nova Iorque: United Nations University
Press, 2007.
ARKIN, William; DOBROFSKY, Lynne. Military Socialization and Masculinity.
Journal of Social Issues, vol.34, n.1, 1978.
BELLAMY, Alex e al. Understanding Peacekeeping. Malden: Polity, 2004.
BOEHME, Jeannette. Human Rights and Gender Components of UN and EU Peace
Operations. German Institute for Human Rights, outubro de 2008. Disponível em
< http://files.institut-fuer-
menschenrechte.de/488/d84_v1_file_491024cbcaa99_Human_Rights_and_Gender_Com
ponents.pdf> Acesso em 22/03/2009.
BOVARNICK, Silvie. Universal human rights and non-Western normative systems: a
comparative analysis of violence against women in Mexico and Pakistan. Review of
International Studies, v.33, n.1, p. 59-74, 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
209
BULLION, Alan James. India. In SORENSON, David; WOOD, Pia Christina. The
Politics of Peacekeeping in the Post-Cold War Era. Nova Iorque: Frank Cass, 2005.
BULLION, Alan James. India and UN peacekeeping operations. International
Peacekeeping, vol. 4, n. 1, p. 98-114, 1997.
CANADA MINISTER OF PUBLIC WORKS AND GOVERNMENT SERVICES
DISHONOURED LEGACY. The Lessons of the Somalia Affair: Report of the
Commission of Inquiry into the Deployment of Canadian Forces to Somalia, 1997.
CARPENTER, Charlie. Innocent Women and Children: Gender, Norms and the
Protection of Civilians. Aldershot: Ashgate Press, 2006
CLIFFORD, Lisa et al. Special report: sexual violence in the DRC. Institute for War &
Peace Reporting, outubro de 2008.
COCKBURN, Cynthia; ZARKOV, Dubravka. The Postwar moment: militaries,
masculinities, and international peacekeeping. Londres: Lawrence & Wishart, 2002.
DAHRENDORF, Nicola. Sexual exploitation and abuse: Lessons Learned Study-
Adressing Sexual Exploitation and Abuse in MONUC. Missão das Nações Unidas na
República Democrática do Congo (MONUC), março de 2006. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/resources/Peacekeeping/DPKO/OASEA_Paper.pdf>
Acesso em 29/03/2009.
DEGROOT, Gerard. A Few Good Women: Gender Stereotypes, the Military and
Peacekeeping. In: OLSSON, Louise (ed.). Women and International Peacekeeping.
Londres: Frank Cass, 2001.
DELZOTTO, Augusta; JONES, Adam. Male-on-Male Sexual Violence in Wartime:
Human Rights' Last Taboo? Artigo apresentado na Convenção Anual da Associação de
Estudos Internacionais (ISA). Nova Orleans, 23-27 de março de 2002.
DOBBINS, James et al. The UN’s role in Nation-Building: from the Congo to Iraq.
Santa Monica: Rand Corporation, 2005.
DOYLE, Michael; SAMBANIS, Nicholas. Making War and Building Peace: United
Nations Peace Operations. Princeton: Princeton University Press, 2006.
DUFFIELD, Mark. Global Governance in New Wars. Londres: Zed Books, 2001.
ENLOE, Cynthia. Bananas, Beaches and Bases: Making feminist sense of international
politics. Londres: University of California Press, 1989.
FETHERSTON, A.B. Towards a Theory of United Nations Peacekeeping. New York:
St.Martin’s Press, 1994.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
210
FETHERSTON, Betts. Voices from Warzones: implications for Training UN
Peacekeepers. In: MOXON-BROWNE, Edward. A Future for Peacekeeping?
Basingstoke: Macmillan, 1998.
FLESHMAN, Michael. Tough UN line on peacekeeper abuses. Africa Renewal, vol.19,
n.1, abril de 2005. Disponível em
<http://www.un.org/ecosocdev/geninfo/afrec/vol19no1/191peacekeep.htm> Acesso em 9
de maio de 2008.
FORSYTHE, David; WEISS, Thomas; COATE, Roger. The United Nations and
Changing World Politics. Boulder: Westview Press, 2004.
Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Global Review of Challenges and
Good Practices in Support of Displaced Women in Conflict and Post-Conflict
Situations, 2007. Disponível em
<http://www.unfpa.org/publications/detail.cfm?ID=348&filterListType= > Acesso em
10/09/2008.
HAMPSON, Françoise; HUNT, Ai Kihara. The accountability of personnel associated
with peacekeeping operations. In: AOI, Chiyuki; CONING, Cedric de; THAKUR,
Ramesh (ed.) Unintended consequences of peacekeeping operations. Nova Iorque:
United Nations University Press, 2007.
HERZ, Monica; HOFFMANN, Andrea. Organizações Internacionais: História e
Práticas. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004.
HIGATE, Paul. Peacekeepers, Masculinities, and Sexual Exploitation. Men and
Masculinities, vol.10, n.1, p. 99-119, 1 de julho de 2007.
HIGATE, Paul; HENRY, Marsha. Engendering (In) security in Peace Support
Operations. Security Dialogue, vol.35, n.4, p. 481-498, 2004.
HIGATE, Paul. Case Studies: The Democratic Republic of the Congo and Sierra Leone -
Gender and Peacekeeping, 2003. Dissertação de Mestrado - Institute for Security Studies.
HILLMAN, Elizabeth. Dressed to kill? The paradox of women in Military Uniforms. In
KATZENSTEIN, Mary; REPY, Judith. Beyond Zero Tolerance : Discrimination in
Military Culture. Boulder: Rowam & Littlefield, 1999.
HUMAN RIGHTS WATCH. Women and Armed Conflict: International Justice. Sem
data. Disponível em <www.hrw.org/women/conflict.html> Acesso em 23/08/2008.
HUMAN RIGHTS WATCH. We will kill you if you cry. 2003. Disponível em
<http://hrw.org/reports/2003/sierraleone/>. Acesso em 25/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
211
HUNTER, Mark. The Materiality of Everyday Sex: Thinking Beyond Prostitution.
African Studies, vol.1, n.61, p.199-200, 2002.
INTERNATIONAL ALERT. Gender Mainstreaming in Peace Support Operations:
Moving Beyond Rhetoric to Practice. Julho de 2002. Disponível em
<http://www.international-
alert.org/pdfs/Gender_Mainstreaming_in_PSO_Beyond_Rhetoric_to_Practice.pdf>
Acesso em 22/03/2009.
JACKMAN, David. Civilian peacekeepers: Signs of hope? The Ploughshares Monitor,
vol.16, n.3, setembro de 1995. Disponível em
<http://www.ploughshares.ca/libraries/monitor/mons95b.html> Acesso em 28/03/2009.
KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Stanford:
Stanford University Press, 1999.
KARAMÉ, Kari (ed.). Gender and Peace-Building in Africa. Training for Peace, 2004.
Disponível em
<http://www.peacewomen.org/resources/Organizing/TfPGenderAfrica.pdf> Acesso em
28/03/2009.
KAUFMAN-OSBORN, Timothy. Gender Trouble at Abu Ghraib? Department of
Politics, Whitman College, 04/06/2005. Disponível em
<http://www.csus.edu/org/wpsa/nesvold06.pdf.> Acesso em 22/03/2009.
KENKEL, Kai Michael. Global Player ou espectador nas margens? A “Responsabilidade
de Proteger”: Definição e Implicações para o Brasil. Previsão de publicação para 2009.
KENT, Vanessa. Protecting civilians from UN peacekeepers and humanitarian workers:
Sexual Exploitation and Abuse. In: AOI, Chiyuki, CONING, Cedric de, THAKUR,
Ramesh (ed.) Unintended consequences of peacekeeping operations. Nova Iorque:
United Nations University Press, 2007.
KENT, Vanessa. Peacekeepers as Perpetrators of Abuse: Examining the UN’s plan to
eliminate and address cases of sexual exploitation and abuse in peacekeeping operations.
African Security Review, v. 14, n. 2, 2005.
KOLBE, Athena; HUTSON, Royce. Human rights abuse and other criminal violations in
Port-au-Prince, Haiti: a random survey of households. The Lancet, vol. 368, no. 9538, p.
864-873, setembro de 2008.
KOYAMA, Shukuko; MYRTTINEN, Henri. Unintended consequences of peace
operations on Timor Leste from a gender perspective. In: AOI, Chiyuki, CONING,
Cedric de, THAKUR, Ramesh (ed.) Unintended consequences of peacekeeping
operations. Nova Iorque: United Nations University Press, 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
212
LAVARENE, Célhia. Passaporte para o Inferno: Uma mulher no combate aos
mercadores de sexo. Rio de Janeiro: Francis, 2008.
LEDGERWOOD, Judy. UN Peacekeeping Missions: The Lessons from Cambodia.
East-West Center, n.1, março de 1994. Disponível em
<http://www.dtic.mil/cgibin/GetTRDoc?AD=ADA278986&Location=U2&doc=GetTRD
oc.pdf>. Acesso em 01/11/2008.
LYYTIKÄINEN, Minna. Gender Training for Peacekeepers: Preliminary overview of
United Nations peace support operations. United Nations International Research and
Training Institute for the Advancement of Women (UNSTRAW), 2007. Disponível em
<http://www.un-instraw.org/jdata/test/world/map.html> Acesso em 28/03/2009.
MACKAY, Angela. Sex and the peacekeeping soldier: the new UN resolution. Peace
News, n. 2433, junho-agosto de 2001. Disponível em
<http://www.peacenews.info/issues/2443/mackay.html>. Acesso em 4 de maio de 2008.
MANKIW, Gregory. Introdução à Economia: Princípios de Micro e Macroeconomia.
Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999.
MEIJER, Guus. Training of civilians for UN peacekeeping operations. Coordinating
Committee for Conflict Resolution Training in Europe (CCCRTE), n.2, 1995. Disponível
em < http://www.c-r.org/ccts/ccts2/meijer2.htm> Acesso em 23/03/2009.
MOURA, Tatiana. Entre Atenas e Esparta: Mulheres, Paz e Conflitos Armados.
Coimbra: Coleção Andaimes do Mundo, 2005.
MÜNKLER, Herfried. The New Wars. Cambridge: Polity Press, 2005.
MURPHY, Ray. United Nations Military Operations and International Humanitarian
Law: What Rules Apply to Peacekeepers? Criminal Law Forum, n.14, p.153-194, 2003.
O’BRIEN, Melanie. Overcoming boys-will-be-boys syndrome: Is prosecution of
peacekeepers in the International Criminal Court for trafficking, sexual slavery and
related crimes against women a possibility? 2004. Dissertação de mestrado, University of
Lund.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Ten Rules: Code of Personal Conduct for
Blue Helmets, sem data. Disponível em
<http://www.genderandpeacekeeping.org/resources/5_UN_Codes_of_Conduct.pdf.>
Acesso em 8 de maio de 2008.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Office of Internal Oversight Services
(OIOS). Report on the activities of the Office of Internal Oversight Services for the
period from 1 January to 31 December 2007. A/62/281, 25/02/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
213
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. Report of the Ad Hoc
Open-ended Working Group on Assistance and Support to Victims of Sexual
Exploitation and Abuse. A/62/595, 19/12/2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. Special measures for
protection from sexual exploitation and sexual abuse. Report of the Secretary-General.
A/61/957, 15/06/2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. Report of the Office of
Internal Oversight Services Part two: peacekeeping operations. A/61/264 (Parte II),
23/02/2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Stabilization Mission in
Haiti. De Gen. Carlos Alberto dos Santos Cruz para All Unit Commanders.
Memorandum. Subject: Monthly Report from Contigent Commanders regarding the
prevention of sexual abuse and exploitation, 21/02/2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Stabilization Mission in
Haiti. MULET, Edmond (SRSG). Memorandum. Subject: Guidelines for the Handling
of incidents involving MINUSTAH members, 15/01/2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. Special measures for
protection from sexual exploitation and sexual abuse. Report of the Secretary-General.
A/60/861, 24/05/2006.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Presentation by H.R.H. Prince Zeid
Ra’ad Al-Hussein, Permanent Representative of Jordan to the United Nations to the
Special Committee on Peacekeeping Operations. 04/05/2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Report of the Special Committee on
Peacekeeping Operations and its Working Group on the 2005 resumed session.
A/59/19/Add.1, 11/04/2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Presentation by Jean-Marie Guéhenno,
Under-Secretary-General for Peacekeeping Operations, to the Special Committee
on Peacekeeping Operations. 04/04/2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. United Nations
Comprehensive Strategy to eliminate future sexual exploitation and abuse in United
Nations peacekeeping operations. A/59/710, 24/03/2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. A Comprehensive
Strategy to Eliminate Future Sexual Exploitation and Abuse in United Nations
Peacekeeping Operations. Report to the UN Special Committee on Peacekeeping
Operations. A/59/710, 24/02/2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
214
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Office of Internal Oversight Services
(OIOS). Investigation by the Office of Internal Oversight Services into allegations of
sexual exploitation and abuse in the United Nations Organization Mission in the
Democratic Republic of the Congo. A/59/661, 05/01/2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1542,
S/RES/1542, 30 de abril de 2004.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1529,
S/RES/1529 29 de fevereiro de 2004.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Special Measure for protection from
sexual exploitation and abuse. Secretary-General’s Bulletin, ST/SGB/2003/13,
09/10/2003.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1325,
S/RES/1525, 31/10/2000.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Report of the Panel on United Nations
Peace Operations. A/55/305, S2000/809, 21/08/2000.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Advance Mission in
Cambodia (UNAMIC)/ United Nations Transitional Authority in Cambodia. In: The
Blue Helmets: a review of United Nations peace-keeping. Nova Iorque: United
Nations Department of Public Information, 1996.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. Promotion and
Protection of The Rights of Children: Impact of armed conflict on children. Report of
the expert of the Secretary-General, Ms. Graça Machel. A/51/306, 26/08/1996.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia-Geral. An Agenda for Peace:
Preventive Diplomacy, peacemaking and peace-keeping. A/47/277 - S/24111,
17/06/1992.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Departamento de Operações de
Manutenção da Paz (DPKO). Directives for Disciplinary Matters Involving Military
members of National Contingent. Sem data, DPKO/MD/03/00993.
OTTO, Dianne. Making sense of zero tolerance policies in peacekeeping sexual
economies. In: MUNRO, Vanessa; STYCHIN, Carl (eds.). Sexuality and the Law:
Feminist Engagements. Londres: GlassHouse Press, 2007.
PALLEN, Daniel. Sexual Slavery in Bosnia: The Negative externality of the Market for
Peace. Swords & Ploughshares, vol. 13, n.1, p.27-43, primavera de 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
215
PUECHGUIRBAL, Nadine. Gender Training for Peacekeepers: Lessons from the DRC.
International Peacekeeping, vol.10, n.4, p.113-128, 2003.
PARAKATIL, Francis. India and the United Nations Peace-Keeping Operations.
Nova Deli: S.Chand & Co, 1975.POULIGNY, Béatrice. Civil Society and Post-Conflict
Peace Building: Ambiguities of International Programs Aimed at Building “New
Societies”. Sciences Po, 2004. Disponível em < http://www.ceri-
sciencespo.com/cherlist/pouligny/111004.pdf> Acesso em 22/03/2009.
PROGRAMA CONJUNTO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE HIV/AIDS (UNAIDS).
Aids and the Military, maio de 1998. Disponível em
<http://data.unaids.org/Publications/IRC-pub05/militarypv_en.pdf> Acesso em
22/03/2009.
RAJOO, Karishma. Sexual Abuse and Exploitation: Power Tools in Peacekeeping
Missions. Training for Peace, 2005. Disponível em
<http://www.trainingforpeace.org/pubs/accord/ctrends405/ct4_2005_pgs17_23.pdf.>
Acesso em 09/05/2008.
REFUGEES INTERNATIONAL. UN Peacekeeping: Responding to Sexual
Exploitation and Abuse, 1 de novembro de 2007. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/10276/> Acesso em
10/05/2008.
REFUGEES INTERNATIONAL. UN and NGOs Commit to Eliminating Sexual
Abuse by All International Agency Personnel. Refugees International, 1 de dezembro
de 2006. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/9684> Acesso em
02/05/2008.
REFUGEES INTERNATIONAL. Must Boys Be Boys? Ending Sexual Exploitation and
Abuse in UN Peacekeeping Missions, 2005. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/publication/detail/6976/>. Acesso em
08/05/2008.
REFUGEES INTERNATIONAL. Addressing the Sexual Misconduct of Peacekeepers.
23 de setembro de 2004. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/4047/> Acesso em 8 de maio
de 2008.
REFUGEES INTERNATIONAL. Sexual Exploitation in Liberia: Are the conditions
ripe for another scandal? Refugees International, 20/04/2004. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/957/> Acesso em
13/05/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
216
REHN, Elisabeth, SIRLEAF, Ellen Johson. Women, War, Peace: The Independent
Experts’ Assessment on the Impact of Armed Conflict on Women and Women’s Role in
Peace-Building. Progress of the World’s Women, vol.1, 2002. Disponível em
<http://www.unifem.org/resources/item_detail.php?ProductID=17> Acesso em
22/03/2009.
RUBINSTEIN, Robert. Cross-Cultural Considerations in Complex Peace Operations.
Negotiation Journal, vol.19, n.1, p.29-49, 2003.
SAVE THE CHILDREN. No One to Turn To: The under-reporting of child sexual
exploitation and abuse by aid workers and peacekeepers. 27/05/2008. Disponível em
<http://www.savethechildren.org.uk/en/docs/No_One_to_Turn_To.pdf> Acesso em
23/03/2009.
SCHAEFER, Brett. United Nations Peacekeeping: The U.S. Must Press for Reform.
The Heritage Foundation, 18/09/2008. Disponível em
<http://www.heritage.org/Research/InternationalOrganizations/bg2182.cfm#_ftn8>
Acesso em 23/03/2009.
SCHNABEL, Albrecht, THAKUR, Ramesh. United Nations Peacekeeping Operations:
Ad Hoc Missions, Permanent Engagement. Tóquio: United Nations University Press,
2001.
SKJAELSBAEK, Inger. Sexual Violence in Times of War: A New Challenge for Peace
Operations? In: OLSSON, Louise (ed.), Women and International Peacekeeping.
Londres: Frank Cass, 2001.
SMALL ARMS SURVEY. Managing ‘post-conflict’ zones - DDR and weapons
reduction. In Weapons at War (2005). Disponível em
<http://hei.unige.ch/sas/files/sas/publications/year_b_pdf/2005/2005SASCh10_full_en.pd
f> Acesso em 27/09/2008.
SURTEES, Rebecca. Trafficking Men as Unwilling Victims: The Politics of Human
Trafficking. St. Antony’s International Review. vol.4, n.1, abril de 2008.
TICKNER, Ann. Identity in International Relations Theory: Feminist Perspectives. In
LAPID, Yosef; KRATOCHWIL, F. The Return of Culture and Identity in IR Theory.
Londres: Lyenne Rinner, 1996.
TRIPODI, Paolo; PATEL, Preeti. The Global Impact of HIV/AIDS on Peace Support
Operations. International Peacekeeping, vol. 9, n.3, p.51-66, 2002.
UNITED STATES AGENCY FOR INTERNATIONAL DEVELOPMENT (USAID).
Women and Conflict, 2007. Disponível em <http://www.usaid.gov/our_work/cross-
cutting_programs/conflict/publications/docs/cmm_women_and_conflict_toolkit_decemb
er_2006.pdf> Acesso em 30/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
217
UNITED NATIONS INTERNATIONAL RESEARCH AND TRAINING INSTITUTE
FOR THE ADVANCEMENT OF WOMEN (UNSTRAW). Good and Bad Practices in
Gender Training for Security Sector Personnel: Summary of a Virtual Discussion.
Disponível em < http://www.un-instraw.org/en/library/gender-peace-and-security/gender-
training-for-security-personnel/download.html> Acesso em 22/03/2009.
VANDENBERG, Martina. Peacekeeping, Alphabet Soup, and Violence against Women
in the Balkans. In: MAZURANA, Dyan; RAVEN-ROBERTS, Angela. Gender, Conflict
and Peacekeeping. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2005.
VERENHITACH, Gabriela Daou. A MINUSTAH e a política externa brasileira:
Motivações e Conseqüências, 2008. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal de
Santa Maria.
WHITWORTH, S. Men, Militarism & UN Peacekeeping: A Gendered Analysis.
Boulder: Lynne Rienner, 2004.
Artigos de Jornal
Abuse by UN Troops in DRC may go unpunished, report says. The Independent,
12/07/2004. Disponível em
<http://www.arts.ualberta.ca/childrenandwar/news_abuse_by_un_troops.php> Acesso em
10/02/2009.
Annan calls for Security Council supports in fight against sexual exploitation in
peacekeeping missions”. UN News, 09/02/2005. Disponível em
<http://www.un.org/News/ossg/hilites/hilites_arch_view.asp?HighID=219> Acesso em
10/11/2008.
Armas nucleares são "obrigação estratégica" para a Índia, diz Sonia Gandhi. Folha
Online, 29/01/2007. Disponível em
<http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/01/29/ult1808u84594.jhtm>. Acesso em
22/03/2009.
Army sergeant sentenced to life without parole for murder of girl in Kosovo. CNN,
01/08/2000. Disponível em
<http://edition.cnn.com/2000/LAW/08/01/kosovo.soldier.sentence.01> Acesso em
15/05/2008.
Ban Ki-moon voices concern over report on child sexual abuse by peacekeepers. UN
News Center, 27/05/2008. Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=26812&Cr=peacekeep&Cr1> Acesso
em 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
218
Ban ‘troubled’ by preliminary evidence of sexual abuse by UN peacekeepers. China
View, 12/08/2008. Disponível em
<http://english.peopledaily.com.cn/90001/90777/90856/6474236.html. Acesso em
22/03/2009>. Acesso em 22/03/2009.
Behavior of U.S. troops under scrutiny in Kosovo. CNN, 25/01/2000. Disponível em
<http://edition.cnn.com/2000/WORLD/europe/01/25/kosovo.investigation/> Acesso em
22/03/2009.
Boys will be boys. BBC News, 14/06/2002. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/programmes/correspondent/2043794.stm> Acesso em
17/05/2008.
Burundi: UN mission sets up units to check sexual abuse. IRIN, 15/11/2004. Disponível
em <http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/04/ONUBConductUnit.html>
Acesso em 23/09/2008.
Campanha contra o abuso e a exploração sexual. Exército Brasileiro, março de 2009.
Disponível em
<http://www.exercito.gov.br/03ativid/missaopaz/minustah/noticias/2009/02fev/abuso.ht
ml> Acesso em 22/03/2009.
Canadians accused of sex assault at Haiti orphanage. Agência France Press, 17/11/2008.
Disponível em
<http://www.google.com/hostednews/afp/article/ALeqM5haIy86nMYVmOxD1dvDHOz
fp5Oh4g> Acesso em 22/03/2009.
Canadian army faces sex abuse allegations. BBC News, 20/05/1998. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/97251.stm> Acessado em 18/04/2008.
CARVALHO, Jailton de. Comandante brasileiro cobra de ONG casos concretos de abuso
de crianças no Haiti. O Globo Online, 27/05/2008. Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=26812&Cr=peacekeep&Cr1> Acesso
em 12/12/2008.
CLAYTON, Jonathan; BONE, James. Sex-scandal in Congo threatens to engulf UN’s
peacekeepers. The Times, 23/12/2004. Disponível em
<http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/article405213.ece> Acesso em
10/03/2009.
Children becoming increasingly vulnerable in conflict situations. UN News, 09/09/2008.
Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=27985&Cr=Coomaraswamy&Cr1>
Acesso em 30/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
219
Congo-Kinshasa: First Poll of Victims in East Shows High Demand for Justice.
International Justice of Transitional Justice, 19/08/2008. Disponível em
<http://www.ictj.org/en/news/coverage/article/1918.html> Acesso em 10/03/2009.
Conflito no Congo pode estar se 'internacionalizando'. BBC Brasil, 13/11/2008.
Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/11/081113_congoangola.shtm
l> Acesso em 10/03/2009.
Conselho de Segurança da ONU autoriza envio de 3.000 ao Congo. Folha Online,
20/11/2008. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u469836.shtml> Acesso em
10/01/2009.
Daddy wore a blue helmet. The Economist, 21/04/2005. Disponível em
<http://www.economist.com/world/africa/displaystory.cfm?story_id=3892222> Acesso
em 28/05/2008.
Dark side of peacekeeping. The Independent, 10/07/2003. Disponível em
<http://www.independent.co.uk/news/world/politics/dark-side-of-peacekeeping-
586303.html?service=Print> Acesso em 08/05/2008.
DEEN, Thalif. Liberia: Rape, Gender Violence the Norm in Post-War Liberia. All
Africa, 07/03/2009. Disponível em <http://allafrica.com/stories/200901160030.html>
Acesso em 17/03/2009.
DEEN, Thalif. L'ONU cible l'exploitation sexuelle par des soldats de la paix. Inter Press
Service (IPS), 01/08/2002. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/02/pkoexploitation.html> Acesso em
19/05/2008.
DR Congo: Probe ordered into sexual abuse charge against Indian troops. Hindustan
Times, 13/08/2008. Disponível em
<http://www.hindustantimes.com/StoryPage/StoryPage.aspx?sectionName=IndiansAbroa
dSectionPage&id=ec9a59d6-80d7-4a5c-a753-
b8f4a5589fdf&&Headline=Probe+ordered+into+sexual+abuse+charge+against+Indian+t
roops&strParent=strParentID>. Acesso em 22/03/2009.
DR Congo: UN Inquiry opens into sexual abuse allegations against peacekeeper. UN
News, 17/11/2007. Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=24703&Cr=Democratic&Cr1=Congo
> Acesso em 22/03/2009.
DRC: UN investigations into allegations of sexual offences by peacekeepers. IRIN,
26/01/2006. Disponível em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
220
<http://www.eyeontheun.org/assets/attachments/articles/2500_DRC_UN_investigations_
into_allegations_of_sexual_offences_by_peacekeepers.doc> Acesso em 11/08/2008.
FERGUSON, Alan. UN probes abuse claims at brothel in Bosnia. Toronto Star,
04/11/1993. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/pre01/probes.html> Acesso em
30/08/2008.
French UN man in child rape trial. BBC News, 09/09/2008. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7607106.stm> Acesso em 10/03/2009.
GALLAS, Daniel. ONU investigou três acusações contra soldado brasileiro. BBC Brasil,
30/11/2006. Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/11/061130_haiti_dg.shtml>
Acesso em 11/12/2008.
GRIGG, William Norman. Beasts in Blue Berets. The New American, 29/09/1997.
Disponível em <http://whatreallyhappened.com/RANCHO/POLITICS/UN/peace.html>.
Acesso em 30/09/2008.
HAGEN, Jonas. Fighting Sexual Exploitation and Abuse by UN Peacekeepers. UN
Chronicle Online Edition, 05/01/2008. Disponível em
<http://www.un.org/Pubs/chronicle/2006/webArticles/121306_unp.htm> Acesso em
10/05/2008.
HEINRICH, Jeff. Canadian troops in Haiti accused of making death, rape threats.
Ottawacitizen.com, 02/09/2006. Disponível em
<http://www.canada.com/ottawacitizen/news/story.html?id=f50a6790-ead6-4eb1-8e61-
5524594435b1&k=70375> Acesso em 23/11/2008.
HERBERT, Bob. It’s Time That We Talk About The Horrors of Congo’s War. Jakarta
Globe, 22/02/2009. Disponível em
<http://www.thejakartaglobe.com/opinion/article/10703.html> Acesso em 10/10/2009.
HERMAN, Steve. “India assures UN it will punish errant peacekeepers”. VOA News,
13/08/2008. Disponível em <http://www.voanews.com/english/archive/2008-08/2008-08-
13-
voa14.cfm?CFID=147899343&CFTOKEN=55077444&jsessionid=de301e4c7e9c885382
1c195a1116623c173a> Acesso em 22/03/2009.
HOLT, Kate. DR Congo's shameful sex secret. BBC News, 03/06/2004. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3769469.stm> Acesso em 12/05/2008.
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah. Sex and death in the heart of Africa. The Independent,
25/05/2004. Disponível em <http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-
death-in-the-heart-of-africa-564563.html> Acesso em 10/09/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
221
HOLT, Kate, HUGHES, Sarah. Army silent on sex scandal. The Star, 21/07/2004.
Disponível em
<http://www.thestar.co.za/index.php?fSectionId=129&fArticleId=2146949> Acesso em
10/02/2009.
India probes UN sex charges in DR Congo. Agência France Press, 13/08/2008.
Disponível em
<http://www.iol.co.za/index.php?from=rss_Central%20Africa&set_id=1&click_id=136&
art_id=nw20080813100155278C844304> Acesso em 22/03/2009.
India urges UN to pull up erring peace-keepers”. UN News, 02/11/2008. Disponível em
<http://news.in.msn.com/national/article.aspx?cp-documentid=1690809> Acesso em
22/08/2009.
INFANTE, Alan. Hispaniola: uma ilha, dois mundos. Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), 24/06/2005. Disponível em
<http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=1269&lay=
pde> Acesso em 03/12/2008.
Interahamwe: A serious military threat. BBC News, 12/03/1999. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/288937.stm> Acesso em 09/03/2009.
Kivu Norte teve mais de 5.700 casos de estupro em 2008. EFE, 21/11/2008. Disponível
em
<http://tools.folha.com.br/print?site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.
uol.com.br%2Ffolha%2Fmundo%2Fult94u469842.shtml> Acesso em 11/01/2009.
LANSANA, Fofana. Tolérance zéro pour des soldats de l'ONU impliqués dans l'abus
sexuel. Inter Press Service News Agency, 08/04/2005. Disponível em
<http://ipsnews.net/fr/interna.asp?idnews=2600> Acesso em 09/04/2008.
LASALLE, Luann. Not all allegations about peacekeepers can be proved: Baril: 22 of 60
disciplined over role in Bosnia. The Hamilton Spectator, 09/06/1998. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/pre01/Baril.html>. Acesso em
10/09/2008.
LAST, Alex. Porn scandal rocks Eritrean peace force. BBC News, 20/12/2002.
Disponível em <http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/2595003.stm> Acesso em 23/09/2008.
LEWIS, David. UN probes reports of sexual abuse by Congo staff. Reuters, 10/05/2004.
Disponível em <pkwatch/News/04/sexabuseCongo.html> Acesso em 28/04/2008.
Liberia: Daddy wore a blue helmet. The Economist, 21/04/2005. Disponível em
<http://www.economist.com/world/mideast-
africa/displaystory.cfm?story_id=E1_PRJNNNN> Acesso em 27/02/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
222
Liberia Sex-for-aid ‘widespread’. BBC News, 08/05/2006. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4983440.stm> Acesso em 09/03/2009.
Liberia: UNMIL investigating alleged sexual misconduct by peacekeepers in four
incidents. IRIN, 03/05/2005. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/pkwatch.html> Acesso em 18/03/2009.
Líder rebelde do Congo 'apóia' plano de paz. BBC Brasil, 16/11/2008. Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/11/081116_congoatualiza2_fp
.shtml> Acesso em 10/03/2009.
LINDSAY, Reed. UN Peacekeepers accused of rape. Washington Times, 17/12/2006.
Disponível em <http://www.washingtontimes.com/news/2006/dec/17/20061217-122119-
4767r/> Acesso em 01/12/2008.
LOCONTE, Joseph. The UN Sex Scandal. The Weekly Standard, 03/012005.
Disponível em
<http://www.weeklystandard.com/Content/Public/Articles/000/000/005/081zxelz.asp>
Acesso em 07/04/2008.
LEOPOLD, Evelyn. “UN turns on the heat in Congo abuse probe”. Reuters, 18/03/2005.
Disponível em
<http://www.iol.co.za/index.php?sf=136&set_id=1&click_id=68&art_id=qw1111120382
187B252> Acesso em 01/02/2009.
LEWIS, Stephen. Africa: Peace with sexual violence is still war. Africa Files,
05/06/2008. Disponível em <http://www.africafiles.org/article.asp?ID=18170> Acesso
em 19/03/2009.
Liberia/ Latest UNMIL Sexual Exploitation and Abuse (SEA) report shows a decline in
reported allegations, as UN envoy urges zero tolerance to SEA. African Press
Organisation, 20/08/2008. Disponível em
<http://appablog.wordpress.com/2008/08/20/liberia-latest-unmil-sexual-exploitation-and-
abuse-sea-report-shows-a-decline-in-reported-allegations-as-un-envoy-urges-zero-
tolerance-to-sea/> Acesso em 10/03/2009.
Liberia: UNMIL investigating alleged sexual misconduct by peacekeepers in four
incidents. IRIN, 03/05/2005. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/news/05/unmilinvestigating.html> Acesso em
08/05/2008.
LYNCH, Colum. UN to investigate alleged sex abuse by peacekeepers. UN Wire,
02/03/2001. Disponível em <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A3145-
2004Dec15.html> Acesso em 30/08/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
223
LYNCH, Colum. U.N. Faces More Accusations of Sexual Misconduct. Washington
Post, 13/03/2005. Disponível em <http://www.washingtonpost.com/wp-
dyn/articles/A30286-2005Mar12.html>. Acesso em 09/05/2008.
LYNCH, Colum. U.N. Sexual Abuse Alleged in Congo. Washington Post,16/12/2004.
Disponível em <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A3145-
2004Dec15.html> Acesso em 09/05/2008.
LINDSAY, Reed. UN Peacekeepers accused of rape. Washington Times, 17/12/2006.
Disponível em <http://www.washingtontimes.com/news/2006/dec/17/20061217-122119-
4767r/> Acesso em 01/12/2008.
MARTIN, Sarah; GANTZ, Peter. Haiti: sexual exploitation by peacekeepers likely to be
a problem. Refugees International, 07/03/2005. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/5315/?output=printer>
Acesso em 11/11/2008.
MCGORY, Daniel. The Seamy Side of peacekeeping; whistle-blower vindicated after
being fired for exposing UN ties to prostitution racket. The Sunday-Herald Observer,
11/08/2002. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/02/Bolkovac.html> Acesso em
10/09/2008.
MCKAY, Angela. Sex and the peacekeeping soldier: the new UN resolution.
PeaceNews, junho-agosto de 2001. Disponível em
<http://www.peacenews.info/issues/2443/mackay.html> Acesso em 10/10/2008.
MCKENZIE, David. Even when fighting has ended, sexual violence scars children and
women in DR Congo. Fundo das Nações Unidas para a Infânia (UNICEF),
04/08/2008. Disponível em <http://www.unicef.org/infobycountry/drcongo_35223.html>
Acesso em 10/03/2009.
MURDOCH, Lindsay. UN peacekeepers abandon Timorese babies. The Sidney
Morning Herald, 22/07/2006. Disponível em <http://www.smh.com.au/news/world/un-
peacekeepers-abandon-timorese-babies/2006/07/21/1153166582463.html> Acesso em
07/05/2008.
NGO Call to Action on Sexual Violence in the Democratic Republic of the Congo.
CARE, 08/10/2007. Disponível em <http://www.theirc.org/resources/2007/drc-gbv-
statement-12-07-07.pdf> Acesso em 09/03/2009.
Nigeria recalls UN peacekeepers. ISN Security Watch, 19/09/2005. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/05/nigerianPK.html> Acesso em
10/05/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
224
ONU decide aumentar missão de paz no Congo. BBC Brasil, 20/11/2008. Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/11/081120_onu_congo_missa
o_mv.shtml> Acesso em 10/03/2009.
ONU renova missão no Haiti comandada pelo Brasil. Agência Estado e Associated
Press, 14/10/2008. Disponível em
<http://www.estadao.com.br/internacional/not_int259648,0.htm> Acesso em 01/12/2008.
PAYNE, Stewart. Teenagers 'used for sex by UN in Bosnia. Telegraph News,
25/04/2002. Disponível em
<http://www.prisonplanet.com/teenagers_used_for_sex_by_un_in_bosnia.html.> Acesso
em 09/05/2008.
Peace at what price? UN Sex Crimes in Congo. ABC News, 10/02/2005. Disponível em
<http://abcnews.go.com/Blotter/UnitedNations/Story?id=489306&page=1> Acesso em
10/03/2009.
Peacekeepers sexual abuse of local girls continuing in DR of Congo, UN finds. UN
News, 07/01/2005. Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=12990&Cr=democratic&Cr1=congo>
Acesso em 10/10/2008.
Porn scandal rocks Eritrean peace force. BBC News, 20/12/2002. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/2595003.stm> Acesso em 17/05/2008.
PRICE, Susannah.
New sex misconduct claims hit UN. BBC News, 17/12/2004. Disponível
em <http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4106515.stm> Acesso em 08/05/2008.
Report on Indian peacekeepers' misconduct false: UN. Rediff News, 29/04/2008.
Disponível em <http://www.rediff.com/news/2008/apr/29peace.htm>. Acesso em
10/03/2009.
Rights group: UN investigators in Congo ignored misconduct. Washington Post,
02/05/2008. Disponível em <http://www.usatoday.com/news/world/2008-05-02-
1966239962_x.htm> Acesso em 22/03/2009.
ROSS, Brian, SCOTT, David, SCHWARTZ, Rhonda. Peace at what Price? UN Sex
Crimes in Congo. ABC News, 10/02/2005. Disponível em
<http://abcnews.go.com/Blotter/UnitedNations/Story?id=489306&page=1>. Acesso em
10/02/2009.
Senior UN official in Haiti urges action to prevent sexual abuse. UN News, 10/10/2007.
Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=24253&Cr=haiti&Cr1=> Acesso em
10/12/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
225
Sexual Exploitation and Abuse: an Update from UNMIL. UNMIL Press Release,
07/06/2006. Disponível em <http://www.un.org/Depts/dpko/missions/unmil/pr7june.pdf>
Acesso em 02/03/2009.
SOMMERS, Marc. The Thinker: Combating the terror of rape in Congo. Jakarta Globe,
27/01/2009. Disponível em
<http://www.thejakartaglobe.com/opinion/columns/article/7532.html> Acesso em
22/03/2009.
Tropas de paz 'estão no limite', diz diretor da ONU. BBC Brasil, 31/07/2008. Disponível
em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080731_tropasonu.shtml>
Acesso em 10/03/2009.
Tropas da ONU são acusadas de armar rebeldes no Congo. BBC Brasil, 28/04/2008.
Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/04/080428_onuarmasilegaisco
ngo_fp.shtml> Acesso em 10/03/2009.
TURNER, Craig. Abuse Allegations Changes Image of Canadian Peacekeepers. Los
Angeles Times, 11/08/1996. Disponível em
<http://community.seattletimes.nwsource.com/archive/?date=19960811&slug=2343558>
Acesso em 16/03/2009.
Sex and the UN: when peacemakers become predators. The Independent, 11/01/2005.
Disponível em <http://www.independent.co.uk/news/world/africa/sex-and-the-un-when-
peacemakers-become-predators-486170.html> Acesso em 10/03/2009.
Sex scandal rocks SA army. BBC News, 27/06/2003. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3025812.stm> Acesso em 06/05/2008.
Shocked’ Annan backs zero tolerance to stop sex abuse by peacekeepers in Congo. The
Independent, 11/02/2005. Disponível em
<http://www.independent.co.uk/news/world/africa/shocked-annan-backs-zero-tolerance-
to-stop-sex-abuse-by-peacekeepers-in-congo-482822.html> Acesso em 28/10/2008.
Sri Lanka to probe UN sex claims. BBC News, 03/11/2007. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7076284.stm.> Acesso em 08/05/2008.
‘Tolérance zéro’ aux abus sexuel: deux soldats suspendus par la Mission de l'ONU au
Burundi. Centre d’Actualités de L’ONU, 17/12/2004. Disponível em
<http://www.un.org/apps/newsFr/storyF.asp?NewsID=9670&Cr=Burundi&Cr1=ONUB>
Acesso em 28/04/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
226
U.N. accuses force of sex abuse. CNN, 08/01/2005. Disponível em
<http://www.cnn.com/2005/WORLD/africa/01/08/congo.peacekeepers.sex/index.html>
Acesso em 18/05/2008.
UN Grapples With Peacekeeping Abuse. Fox News, 20/03/2005. Disponível em
<http://www.foxnews.com/story/0,2933,150798,00.html> Acesso em 15/05/2008.
UN in Liberia report shows decline in sex abuse allegations; envoy says some progress.
UN News Centre, 09/03/2007. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/news/Africa/WestAfrica/westafrica.html> Acesso em
10/03/2009.
UN investigates new accusations of sexual abuse by peacekeepers in DRC. VOA News,
14/05/2008. Disponível em <http://www.voanews.com/english/archive/2008-05/2008-05-
14
voa64.cfm?CFID=144390614&CFTOKEN=55010055&jsessionid=003071fdf226baa7ce
d995a392438612f333> Acesso em 10/10/2008.
UN official underscores zero tolerance for sexual misconduct. UN News, 14/08/2008.
Disponível em
<http://secint24.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=27695&Cr=monuc&Cr1=> Acesso
em 22/03/2009.
UN peacekeepers accused of rape. The Washington Times, 17/12/2006. Disponível em
<http://www.washingtontimes.com/news/2006/dec/17/20061217-122119-4767r/> Acesso
em 10/10/2008.
UN peacekeepers in Timor face possible sex charges. Reuters, 03/08/2001. Disponível
em <http://www.etan.org/et2001c/august/01-4/03unpeac.htm> Acesso em 03/10/2008.
U.N. Peacekeepers Sexually Abusing Girls In D.R.C. Camp. UN Wire, 25/05/2004.
Disponível em <http://www.unwire.org/News/328_426_24228.asp> Acesso em
10/10/2008.
U.N. 'peacekeepers' rape women, children. WorldNetDaily.com, 24/12/2004.
Disponível em <http://www.worldnetdaily.com/news/article.asp?ARTICLE_ID=42088>
Acesso em 06/05/2008.
UN probes child prostitute ring. BBC News, 17/08/2006. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/5260210.stm>. Acesso em 22/03/2009.
UN probing charges of sex abuse in DR of Congo, peacekeeping official says. UN News,
23/11/2004. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/04/probingDRCabuse.html> Acesso em
10/01/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
227
UN probing rape allegations against peacekeepers in Haiti. UN News, 24/02/2005.
Disponível em
<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=13453&Cr=haiti&Cr1=> Acesso em
11/11/2008.
UN Reforms Aim to End Sexual Abuse by Peacekeepers. IRIN, 10/05/2005. Disponível
em <http://www.globalpolicy.org/security/peacekpg/reform/2005/0510conduct.htm>
Acesso em 27/09/2008.
UN sex abuse sackings in Burundi. BBC News, 19/07/2005. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4697465.stm> Acesso em 30/09/2008.
UN sexual allegations double. BBC News, 06/05/2005. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/4521481.stm> Acesso em 05/05/2008.
UN’s legacy of shame in Timor. The Age, 22/07/2006. Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/06/shame_in_TImor.html> Acesso em
10/09/2008
UN sexual misconduct allegations won’t go away. IWPR, 12/09/2008. Disponível em
<http://www.iwpr.net/?p=acr&s=f&o=346657&apc_state=henh>. Acesso em
22/03/2009.
UN soldiers arrested in DR Congo. BCC News, 13/02/2005. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/4262743.stm> Acesso em 21/03/2009.
UN soldiers dismissed over sex abuse claims: Sri Lankan peacekeepers in Haiti sent
home for allegedly paying prostitutes”. MSNBC, 02/11/2007. Disponível em
http://www.msnbc.msn.com/id/21600030/. Acesso em 22/03/2009.
UN troops face child abuse claims. BBC News, 30/11/2006. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/6195830.stm> Acesso em 18/05/2008.
UNMIL releases 2006 sexual exploitation and abuse report. UNMIL, 09/03/2007.
Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/07/unmil_SEAreport.html> Acesso em
10/03/2009.
U.S. Army sergeant pleads guilty to murder of 11-year-old girl. CNN, 28/07/2000.
Disponível <http://archives.cnn.com/2000/LAW/07/28/kosovo.murder/index.html>
Acesso em 16/05/2008.
Violência no Congo forçou fuga de 45 mil, diz ONU. BBC Brasil, 29/10/2008.
Disponível em
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/10/081029_congo_cessarfogor
g.shtml>Acesso em 10/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
228
VOGT, Heidi. Rights group: UN investigators in Congo ignored misconduct.
Washington Post, 02/05/2008. Disponível em: <http://www.washingtonpost.com/wp-
dyn/content/article/2008/05/02/AR2008050202485_pf.html. washingtonpost.com. >
Acesso em 05/05/2008.
WADHAMS, Nick. Civilian employees, not soldiers, will be big problem as United
Nations tackles sex abuse, official says. Associated Press, 15/03/2005. Disponível em
<http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/6356> Acesso em
08/05/2008.
WALSH, Declan. Peacekeeper Jailed For Porn Films. Peace Women, 23/01/2003.
Disponível em
<http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/03/Irishpeacekeeper.html> Acesso em
17/05/2008.
WAX, Emily. Congo’s Desperate ‘One-Dollar U.N. Girls’. Washington Post,
21/03/2005. Disponível em <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A52333-
2005Mar20.html>. Acesso em 21/03/2009.
WILLIAMS, Mike. Fears over Haiti child abuse. BBC News, 30/11/2006. Disponível em
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/6159923.stm>. Acesso em 12/12/2008.
XHARRA, Jeta. Investigative Report: Kosovo Sex Industry. IWPR, 5 de agosto de 2002.
Disponível em <http://www.peacewomen.org/un/pkwatch/News/02/kosovosex.html.>
Acesso em 17 de maio de 2008.
Entrevistas
CHAGAS, Carlos. Capitão-de-Mar-e-Guerra do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha
Brasileira. Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 21/10/2008.
DIPANKAR,
Banerjee. Diretor do Institute of Peace and Conflict Studies (IPCS). IPCS,
Nova Déli, 04/02/2009.
PACHECO, Fábio Cordeiro. Capitão do Exército Brasileiro. Setor de Doutrina do Centro
de Instrução de Operações de Paz (CiOpPaz) do Exército Brasileiro. Entrevista por email,
13/10/2008.
HERMAN, Steve. Correspondente da Voa News em Nova Déli. Entrevista por email, dia
15/01/2009.
JIMENEZ, Ximena. Consultora de Gênero do Peace Operations Training Institute.
Entrevista por email, 22/03/2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
229
JOSUÉ, David. Integrante da organização haitiana Ezilidanto. Entrevista por email,
28/11/2008.
KENT, Vanessa. Focal Point for SEA (Sexual Exploitation and Abuse) na Missão das
Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC). Entrevista por email,
25/ 04/2008.
KOLBE, Athena. Pesquisadora da Wayne State University. Entrevista por email, dia
06/01/2009.
KUMAR, Shaibal. Coronel do Exército Indiano. Centre for UN Peacekeeping (CUNPK),
Nova Déli, 02/02/2009.
LAVARENE, Célhia. Diretora do Stop Trafficking of People (STOP). Entrevista por
email, 10/06/2008.
MAGALHÃES, Capitão Enio Barbosa Fett de. Centro de Instrução de Operações de Paz
(CIOpPaz), Rio de Janeiro, 05/12/2008.
MARTIN, Sarah. Integrante dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). Entrevista por email,
01/12/2008.
NAMBIAR, Satish. General do Exército Indiano. Centre for UN Peacekeeping
(CUNPK), Nova Déli, 02/02/2009.
NETO, Silvio Aderne. Capitão-de-Fragata do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do
Brasil. Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 21/11/2008.
READE, Mariana. Integrante da organização Viva Rio. Rio de Janeiro, 25/11/2008.
REIS, José Firmeza Simões. Capitão-de-Fragata do Corpo de Fuzileiros da Marinha do
Brasil. Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 21/11/2008.
SILVA, Nelson Ricardo Fernandes. Major do Exército Brasileiro. Centro de Instrução de
Operações de Paz (CIOpPaz), Rio de Janeiro, 28/11/2008.
SILVA, Salomão Pereira. Major de Infantaria da Aeronáutica Brasileira. Entrevista por
email, 09/12/2008.
SIMIONI. Capitão-Tenente do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil. Rio de
Janeiro, 02/12/2008.
VELLOSO, Ludovico Alexandre Cunha. Capitão-de-Fragata do Corpo de Fuzileiros
Navais da Marinha do Brasil. Complexo Naval da Ilha do Governador, Rio de Janeiro,
21/10/2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710402/CA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo