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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
OFERTÓRIOS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Luciano Silva dos Santos
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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1
OFERTÓRIOS
por
Luciano Silva dos Santos
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais,
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/ RS),
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Artes Visuais.
Orientador: Profª Icleia Borsa Cattani
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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2
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
Aprova a Dissertação de Mestrado
OFERTÓRIOS
elaborada por
Luciano Silva dos Santos
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Artes Visuais
COMISÃO EXAMINADORA:
Icleia Borsa Cattani, Dr. (Orientador/ UFRGS)
Eduardo Vieira da Cunha, Dr. (UFRGS)
Nara Cristina Santos, Dr. (UFSM)
Edemur Casanova, Dr. (Suplente / UFSM)
Santa Maria, 18 de dezembro de 2009.
3
Para Deborah Rosa, pela presença, apoio e confiança constantes em mim e, em meu
trabalho. Obrigado por existir em minha vida.
“Tudo de bom que você me fizer
Faz minha rima ficar mais rara
O que você faz me ajuda a cantar
Põe um sorriso na minha cara...”
4
Agradecimentos
Aos meus pais, Luiz e Cleonice pelo exemplo de vida, superação e determinação
constantes, pela amizade.
Aos meus irmãos Flávia e Tarciso e cunhado Rodrigo, pela garra e força, e por não
hesitarem em acreditar em meu trabalho. A minha sobrinha Maria Luiza que nasceu
com este trabalho.
A minha avó Nadir, por sua onipresença em minha vida.
Aos meus amigos e compadres, em meio a tudo e todos vocês são especiais e, de tudo
obrigado por me fazerem rir sempre, esse sempre foi meu combustível.
A Eurídice, minha gata, por sempre encher de pelo tudo que faço.
Aos professores pelo exemplo de dedicação e conduta, por todo conhecimento; aos
meus colegas, em especial Salette, Francieli e Laudete, sem vocês não teria conseguido.
5
“Toda imagem revela e torna manifesto aquilo que está oculto.
Por exemplo, o homem não tem um conhecimento exato daquilo
que é invisível – uma vez que, no corpo, a alma jaz oculta -, nem
das coisas vindouras que lhe dizem respeito, nem das coisas que
lhes estão próximas ou distantes no espaço – uma vez que ele é
circunscrito pelo tempo e pelo espaço. A fim de que um caminho
até esse conhecimento fosse possível, para que as coisas ocultas
fossem manifestas e se tornassem acessíveis ao conhecimento do
povo, para isto tudo é que foram concebidas as imagens e a isto
elas se prestam: à assistência do espírito, ao seu benefício e à sua
salvação, para que descubramos o sentido das coisas ocultas nas
realidades gravadas nas estelas e nos troféus, para que
procuremos e almejemos às coisas belas, mas às contrárias, ou
seja, ao mal, evitemos e odiemos.”
(João Damasceno, “Discurso apologético contra os que rejeitam as imagens
sagradas”, c. 730 in LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.) A pintura – Textos
essenciais, Vol. 2: A teologia da imagem e o estatuto da pintura, RJ, Editora
34, 2004)
6
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal de Santa Maria
OFERTÓRIOS
Autor: Luciano Silva dos Santos
Orientador: Icleia Borsa Cattani
Data e local de defesa: Santa Maria, 18 de Dezembro de 2009.
Dividida em duas partes, a presente dissertação se propõe a ser uma reflexão
sobre o processo criativo em artes visuais, partindo do testemunho do criador/ artista. A
imagem da Virgem Maria, como fonte de trabalho plástico e pesquisa teórica, é
encarada aqui pelo viés da mestiçagem, na busca por entender essa fonte imagética. A
primeira parte “Nascimento da Virgem Maria” trata da instauração e do processo de
trabalho e construção dessa Virgem Maria bem como da memória pessoal como o
gatilho que dispara as motivações da elaboração das obras. A segunda “Memória da
Virgem Maria” vai ao encontro do conceito de mestiçagem e recai no uso da imagem da
Virgem Maria, como aspecto de memória errática que regressa constantemente ao
social. Um encontro mestiço de um fazer/ obra que sempre está imerso entre “entres”,
incontáveis, de possibilidades interpretativas.
Palavras chave: Virgem Maria, Mestiçagem, Memória social
7
ABSTRACT
Mestrado Dissertação of
Program of After-Graduation in Visual Arts
Federal University of Saint Maria
Offertory
Author: Luciano Silva dos Santos
Advisor: Icleia Borsa Cattani
Date and place of defense: Santa Maria, 18 of December 2009.
Divided into two parts, this dissertation aims to be a reflection on the creative process in
visual arts, based on the testimony of the creator/artist. The image of the Virgin Mary as
a source of plastic work and theoretical research is seen here from the perspective of
miscegenation in the search for understanding the source imagery. The first part, "Birth
of the Virgin Mary" is the establishment of the work process and construction of the
Virgin Mary and, of personal memory as the trigger that motivated the development of
the works. The second part, "Memory of the Virgin Mary" meets the concept of
mestizaje, and lies in the use of the Virgin Mary as the appearance of erratic memory
that constantly is regarded to the social. There is a meeting of mestizo ways of doing
works that is always immersed in an "intertwining" of countless possible interpretations.
Keywords: Virgin Mary, Miscegenation, Social Memory
8
Lista de ilustrações
Figura 1/ Figura 36 Acervo do artista (Fotos tiradas pelo autor para este
trabalho), 2007/ 2008
Figura 37- Ofertório - “Ebúrnea torre que o céu escala.”; 2007
Figuras 38/ 39 - Ofertório - “Ebúrnea torre que o céu escala.”; 2007/ detalhes
Figura 40 Ofertório - “Bondade foi quando disseste: Florinhas, d’agora sois
minhas, sois doutro jardim”; 2007
Figuras 41/42 - Ofertório - “Bondade foi quando disseste: Florinhas, d’agora sois
minhas, sois doutro jardim”; 2007/ detalhes
Figura 43 - Ofertório -“Levanta os olhos para Maria! Olha a estrela do mar!”;
2007
Figuras 44/45 - Ofertório -“Levanta os olhos para Maria! Olha a estrela do mar!”;
2007/ detalhes
Figura 46 - Ofertório - “Da carne tua, do sangue teu, de Deus o filho Jesus
nasceu!”; 2007
Figuras 47/ 48 - Ofertório - “Da carne tua, do sangue teu, de Deus o filho Jesus
nasceu!”; 2007/ detalhes
Figura 49/ Figura 65 - Fotos tiradas pelo autor para este trabalho, 2007/ 2008
Figura 66/ Figura 72 – “Atlas” / colagem, Luciano Santos, 2009.
Figura 73– “Construção cenográfica”, 2009
Figuras 73/76 – “Construção cenográfica”, 2009 / detalhes
9
Sumário
Resumo
6
Abstract
7
Lista de ilustrações
8
Introdução
10
Nascimento da Virgem Maria 14
Invenção e execução 15
Memória 18
Breves memórias 20
Relações: processo e obra 21
Pequeno código poiético de uma construção 22
Definitividade ou abertura 56
Pequeno pensar a partir do concluso
57
Memória da Virgem Maria 59
Arquivo de imagens, arquivo de memórias 61
A mestiçagem 78
Colagem e apropriação 80
Aporte do popular 84
Carnaval votivo 86
Tempos
88
Experimentação cenográfica
90
Conclusão
96
Referências
98
10
Introdução
Escrever uma dissertação em Poéticas Visuais tem implicado em grande
alteração no meu fazer artístico. Saio da maneira intuitiva que se dava a criação do
trabalho, em que refletia sobre o proposto, de maneira não sistematizada, para
transformar tudo em texto. Num tom bastante pessoal, como as conversas e
pensamentos que tenho sobre o ‘fazer’ e o trabalho que pode vir a ser, o texto assume,
por vezes, características de fragmento formando um todo – reflexo meu feito de
pedaços unitários.
A escrita tem muito do que é o trabalho. Uma prática que se constrói por
montagem de elementos, camada por camada. Uma grande montagem de lâminas que,
uma a uma, busco entender o fazer, o trabalho e a Virgem Maria.
A Virgem Maria, essa figura citada freqüentemente, refere-se à imagem de
origem religiosa
1
, tão ricamente presente na história da arte. A apropriação e
transformação em arte acontece meso que ideologias, questões de e crença se façam
presentes. Busco certo distanciamento para tratar essa imagem em minha poética. Por
vezes confunde-se a Virgem Maria figura de culto, a Virgem Maria imagem em papel
que colo e a Virgem Maria obra por mim construída, mas essa ‘confusão’ é de
fundamental importância na discussão que propõe meu fazer. A ambigüidade desse
entendimento é a imagem ou a figura de culto que estou colando? que, enriquece
sobre-maneira meu discurso poiético / poético ao abrir mais um dos muitos e
incontáveis “entres” de possibilidades de aproximação com a obra.
Essa imagem se instaurou como fonte imagética de construção algum tempo
e, desde sempre, sua presença é arrebatadora e fundamental. Tal figura pergunta coisas,
indaga e desafia. Afinal, de que maneira essa fonte imagética, que se construiu em mim
pelo olhar do outro, pode ser entendida, percebida pelo meu olhar? O enfoque da
mestiçagem pode desvelar alguns caminhos e apontar uma possibilidade de
aproximação com minha pesquisa.
1
Na aurora do Séc.XXI, a Virgem Maria continua sendo uma figura mítica [...] os fiéis m aos milhões
rezar a ela, acumulando os sinais de devoção mais extravagantes e kitsch, mas também os mais
comoventes [...] Segundo as épocas, segundo os países e segundo as necessidades, os fiéis reinventaram
constantemente a imagem da personagem virtual que é a Virgem Maria [...] Sucessivamente rainha ou
fada, mãe dolorosa ou alegre, quase púbere, modesta ou gloriosa, negra, amarela ou bronzeada, eles
imaginaram uma virgem que se presta a todos os desejos e a todas as súplicas dos fiéis... ’é a imagem
como feixe de significações que se torna verdadeiro’. (BOYER, 2000, p.10 e 13)
11
Divido este texto em duas partes: Nascimento da Virgem Maria e Memória
da Virgem Maria.
Nascimento da Virgem Maria trata da instauração da obra; do processo de
trabalho, da origem. Fica evidente minha maneira de pensar o trabalho por montagens
que, lidas uma a uma, até perdem o nexo, mas juntas e num diálogo que extrapola as
frases ditas, buscam uma significação maior.
Proponho uma reflexão sobre o processo criativo e as possíveis implicações
poéticas
2
que dele decorrem. E o faço pelo viés do autor. É um pensamento / visão com
parcialidade, pois acredito ser essa a única maneira possível de tentar entender o
nascimento da obra. que a obra, ao ser vista por dentro - na sua essência, pela visão
do artista - é diferente do olhar teórico, que analisa o conjunto pronto. Procuro sim,
pensar que possam ser complementares, dialógicas e não opostas. Este é o objetivo
principal que lanço neste texto teórico e que procuro desvendar em meu trabalho com a
imagem da Virgem Maria.
Um jorrar de pequenos fatos e acontecimentos cotidianos que, por mais que
pareçam não ter propósito de se fazerem presentes, são indispensáveis para me entender
e compreender enquanto artista, que traz um conteúdo imagético avassalador e uma
onipresente.
Memória da Virgem Maria vai ao encontro do conceito de mestiçagem que,
segundo Cattani (in FARIAS, 2004),
[...] pressupõe a presença simultânea de seus diversos elementos constitutivos,
os quais não se anulam mutuamente, nem se fundem, mas permanecem sempre
presentes, numa relação tensa, ambivalente, contraditória. [...] os lugares da
mestiçagem são espaços de tensão: tensão entre o original e sua cópia, entre
espaços de representação diferenciados, entre sistemas formais diversos, entre
ícones consagrados e sua dessacralização [...] (FARIAS, 2004, p. 66/67)
Recair sobre o uso da imagem da Virgem Maria é entendê-la como um aspecto
de memória errática que regressa constantemente ao social. A partir desse momento,
apresento meu arquivo imagético/ museu imaginário/ arsenal que, ao dialogar entre si,
2
Cabe aqui, a distinção entre poiética e poética que faço uso neste trabalho. Poética: “pode ser
considerada como tudo que constitui a obra em si mesma, a partir do momento de sua instauração. Trata-
se da obra na sua fisicalidade própria, com suas formas, materiais, técnicas, suportes, ou seja, todos os
elementos utilizados na sua constituição pelo artista. Mas, trata-se também de seus múltiplos sentidos e
significados, os quais escapam, em parte, ao desejo, à intenção e até mesmo ao controle do seu criador.”
(CATTANI, 2007, P. 13). Poiética: “a ciência e a filosofia das condutas criadoras (Passeron, 1994, p.6);
ela pressupõe o estudo das motivações declaradas ou sub-jacentes do artista, de seus processos de
trabalho e da instauração da obra enquanto forma, concreta ou virtual, permanente ou efêmera.”
(CATTANI, 2007, P. 13)
12
abre espaço para aproximações com a história da arte e a narrativa que se faz texto, ou
seja, busco uma equivalência entre pensamento e imagem.
A redação deste texto coincide com as leituras e aprofundamentos teóricos
propostos ao longo do mestrado. A etapa prática, que não sei precisar seu início, é fruto
de anos de pesquisa e labuta artística, por hora apresentados como “experimentos”, em
que escolhi como suporte, bandejas de papelão, num eco as explicações de Janson
(1996) e a obra colada de Picasso e Braque.
Porque Picasso e Braque subitamente preferem os conteúdos de uma cesta de
lixo ao papel e à tinta? Porque Picasso e Braque começaram a pensar na
superfície do quadro como espécie de bandeja na qual ‘serviriam’ a natureza-
morta ao observador e, porque descobriram que a melhor maneira de explorar
esse novo conceito era colocar objetos reais sobre a bandeja. (JANSON,
1996, P. 367)
O suporte que utilizo e dou ênfase nessa experimentação é a bandeja; várias
delas coladas, umas sobre as outras, para dar a sustentação matérica necessária aos
elementos ali colocados. É nessa ‘bandeja’ que sirvo minha fé, minhas memórias, meus
gostos, meus signos próprios. Apoiado na técnica de colagem, o material seriado,
comum, é utilizado a outros fins, que, descontextualizado, vira objeto de adorno e
assume outro significado. Rendas, botões, fitas, tintas, guardanapos, flores de tecido e
plástico, e imagens determinam motivações e contextos. Reativam e redimensionam
memórias, tanto minhas quanto coletivas, culturais e religiosas.
A presença de objetos, reconvertidos em “relíquias religiosas”, que desfilam
ostensivamente ao som de sambas enredo, rememoram lembranças na busca de uma
relação interna, não hierárquica, mas de uma semântica plástica que considero em
igualdade de importância visual e conceitual. Ainda que a extensão dos elementos
materiais seja muito ampla - de botões a imagens de resina ou elementos imateriais
como a cultura e a religiosidade, se tornam uma materialidade. Outra que gravita de
maneira diferente, não como contexto que facilita objetos e receituários, mas como
elementos/ vivências cuja incidência não posso ignorar.
Ao ‘finalizar’ a etapa de construção prática, mostro uma primeira
‘experimentação’ que extrapola o suporte usual de outros trabalhos. Uma construção,
um ‘cenário’ em que a bandeja se torna o protagonista principal - um cenário que, longe
de ser uma instalação e, talvez assuma o caráter de assemblage’, nos conduz e convida
a uma percepção diferenciada da Virgem Maria - uma vez que o suporte não está
mais dando conta de todas as situações que o trabalho propõe. Estudá-lo
13
conceitualmente requer, no nimo, outra possibilidade de instauração, pois entendo
que a arte é um processo de ir e vir e aqui crio coragem e mostro o início de uma ida.
A procura pela poética dos elementos constitutivos encontra significado na
relação de nascimento e epifania, ou seja, ao deslocar um elemento de um contexto a
outro transfiguro tal objeto que se põe num significado além de seu usual.
Ao chegar neste ponto do trabalho, penso que a seqüência de lâminas me faz
perceber o jogo oblíquo de uma leitura mestiça em minha poética que, me permite lê-la
inter-relacionada coma as leituras e tensões polares que a Virgem Maria apresenta. As
minhas proposições com relação à minha prática e o pensamento teórico que faço sobre
minha obra, meu trabalho e a Virgem Maria.
A linguagem deste texto é um pouco acadêmica formal; um pouco coloquial
pessoal. Desconcerta quem busca estritamente o “acadêmico”; são muitos os ‘eus’,
‘meus’, ‘minhas’ próximos de uma conversa em que os diversos temas e assuntos vão se
encadeando; mas enquanto escrevi de maneira puramente acadêmica, percebi que não
havia avanços, pois afastava-me do pensamento poiético. Assim, parei de lutar comigo
mesmo e aqui apresento o resultado de minhas pesquisas, nas quais procurei unir o mais
estreitamente possível as reflexões sobre os processos de elaboração das obras e a sua
instauração, bem como sua poética, a obra finalizada e as múltiplas vinculações entre
essas duas etapas e os conceitos e teorias que auxiliam a compreendê-las em seu
conjunto.
14
Nascimento da Virgem Maria
“Ó Senhora minha, ó Mãe, eu me ofereço todo a vós;
E, em prova de minha devoção para convosco, eu vos consagro neste dia;
Os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração
E inteiramente todo o meu ser.
E, porque assim sou vosso, ó incomparável Mãe;
Guardai-me e defendei-me;
Como bem e propriedade vossa.
Amém!”
3
3
Consagração a Nossa Senhora, domínio público.
15
Invenção e execução
Longe de ser algo mecânico, o processo de criação de um artista não é algo que
dependa puramente do artesanal, que não dependa unicamente da habilidade na
manipulação e combinação de materiais. As inquietações do artista caminham lado a
lado com as apresentadas pelo resultado de seu processo de trabalho.
A problemática apresentada pela obra, de certa forma, é também as que seu autor
deposita nela; num misto de questões provenientes da própria obra e da subjetividade do
artista. As origens do artista e as da obra estão interligadas, pois uma depende da outra
para existir. Artista e obra existem em sua relação recíproca, graças àquilo que vão
buscar e que às antecede.
Assim, para que o objeto criado seja reconhecido por outros, enquanto artista
faço uso de elementos intersubjetivos; que, entendo que o que é realmente
importante, no processo criativo não é a criação de novos elementos, mas as infinitas
combinações entre eles e o que podem estabelecer tanto com o artista como com o
público. Assim, no entrecruzamento de elementos, passo a recombinar tais formas, para
sugerir um novo significado ao trabalho.
Segundo Pareyson (2005), o processo de formação da obra de arte, por longos
séculos não foi objeto de consideração filosófica; relegado quando muito ao âmbito das
poéticas e abandonado as regras da retórica. Teve seu despertar de interesse quando os
próprios artistas passam a se interessar por suas questões, ao entender o artista como
consciente de suas próprias operações.
Este entendimento depende também da impostação de uma filosofia. Para Croce
(Apud PAREYSON, 2005) é longo o caminho entre a intuição e a obra acabada, pois
que, a obra irrompe perfeita no mundo humano. Deixando de lado as vicissitudes do
processo formativo onde a descrição psicológica é pressuposto da especulação
filosófica. Já para Dewey (Apud PAREYSON, 2005) ao contrário, o processo de
formação da obra mostra-se como uma filosofia da operosidade humana em seus
aspectos de busca, tentativa e precariedade. Além disso, aponta que o processo pelo qual
o homem chega a suas realizações, em particular quando o artista acaba sua obra; é visto
como algo orgânico, que pela gestação, incubação, nascimento, crescimento e
maturação, chegam à obra numa série de atos reativos que se acumulam na direção do
cumprimento de atos seletivos que, contribuem para a interpretação de todos os fatos
numa totalidade.
16
É certo que o problema da instauração da obra se multiplica em um sem fim de
questões. Croce (Apud PAREYSON, 2005), por exemplo, sustenta a tese que o
processo artístico consiste na cópia de uma imagem interna. Assim, inventar e produzir
são processos diversos e distintos no tempo de conceber e executar. Ou seja, ideação de
uma imagem interior, acabada e formada e a sua realização numa matéria física.
Pareyson (2005) citando Alain nos coloca que a teorização do processo artístico é
essencialmente realização. E essa realização é absorvida na própria execução onde, em
seu percurso, a imagem é encontrada e só existe quando é finalizada.
Estas concepções são opostas. Tento entender onde me coloco enquanto agente
do fazer artístico, e me pergunto: De onde vem a imagem interna que proponho
mostrar?
O principal elemento que trabalho, neste constante ‘combinar’ é a memória. Que
Sempre muito presente em minha trajetória pessoal e profissional. É quase um ato
nostálgico, que me mostra quanto o tempo marca o meu ver e o meu pensar do mundo,
calcado no receio constante de não ter uma ‘história para contar’.
É uma seqüência desconexa de imagens muito vivas e que, com freqüência,
recordo, por vezes, tornando-se referenciais para a pesquisa plástica desenvolvida
anos. A memória, como passado, de minha trajetória, está estreitamente condicionada a
imagens mentais que, por estímulos sensoriais da realidade evoco como presente, num
constante movimento de ir e vir, estabelecendo sensações e vivências incomuns da
associação de um estímulo e uma resposta. Trata-se de um complexo de imagens visuais
e mentais que, evocadas de forma tida, parecem romper com a barreira do temporal, e
questionam. Fico diretamente ligado a idéia que apenas reproduzo o que imagino ou
reproduzo o que lembro? Ou ainda, mostro aquilo que vou lembrando enquanto crio?
Neste jogo em que a obra existe somente quando o processo está acabado e é
resultado de atividade que a inventa no próprio ato que a executa; Pareyson (2005) nos
coloca que a obra antecede o seu existir ofertando-se a adivinhação do artista ao
solicitar seus presságios e dirigir suas operações. É baseado nessa dialética de forma
formante e forma formada que a obra de arte tem a prerrogativa de ser ao mesmo tempo
lei e resultado de sua formação; onde a conclusão do processo é promovido por ela.
Nesse emaranhado de invenções e execuções juntamente com a co-presença de
incertezas e orientações, a memória, como agente que dispara os gatilhos da criação,
guia meu pensamento pela busca interna de uma dialética entre a forma formante e
forma formada num imbricado complexo em que não é possível entender o que vem
17
primeiro: É a imagem? A memória? Ou o ato de fazer? O certo é que a memória é que
ativa, as imagens internas e o faz com que eu trabalhe e chegue a um resultado
imagético. Na maioria das vezes pra não dizer sempre é um misto de ambos que se faz
obra.
18
Memória
A produção do conhecimento plástico se dá nas inter-relações das trajetórias
pessoal e artística, como argumenta Corrêa (in OLIVEIRA, 2007) citando Bosi de que,
o registro de uma memória pode ser pessoal, social, familiar e grupal. Acionada a
memória
4
, as lembranças fluem naturalmente, perpassando a identidade do indivíduo-
artista. Identidade essa que socialmente vai ao encontro das relações artista enquanto
pessoa, com seu processo de criação direcionado pela metamorfose do
desenvolvimento de sua construção artística.
Assim, o fazer artístico instaura-se neste contexto como uma forma de criar,
ordenar, configurar, articular e expressar dada realidade. Nessa experiência
estão implícitas as configurações de vida dos indivíduos, pautadas dentro de
valores coletivos, e expressas a partir de uma materialidade própria,
possibilitando, com base nas propostas desta linguagem, alterações culturais
e sociais de todo um grupo (Corrêa in OLIVEIRA, 2007, p. 134)
Ao pensar os padrões de identidade oferecidos pelas estruturas sociais mais
amplas como mostra Ciampa (1987), chega-se ao pensamento de que as identidades em
seu conjunto refletem as estruturas sociais, reagindo sobre ela e conservando-as, ao
passo que, as transformam. Assim, da multiplicidade de fontes e pensamentos
religiosos, proporcionados pela estrutura familiar, via claramente os reflexos de tais
influências e as reações que se impregnaram.
Pelas influências sócio-familiares, construo minha identidade pessoal frente a
todas as situações vividas; opto por um pensar religioso, de apelo fortemente católico
portador desse entorno e, que, transformo e assumo como fonte intelectual, imagética e
artística.
A identidade é concreta; a identidade é o movimento de concretização de si,
que se dá, necessariamente, porque é o desenvolvimento do concreto e,
contingencialmente, porque é a síntese de múltiplas e distintas
determinações. O homem, como ser temporal, é ser-no-mundo, é a formação
material. É real porque é a unidade do necessário e do contingente.
(CIAMPA, 1987, p. 199)
Propondo um trabalho que carrega todas as influências do entorno familiar;
encaro-o com um pensamento que encontra premissas universais. Minha identidade
pessoal foi construída e reconhecida, no âmbito religioso de minha infância e na
curiosidade adolescente, que resultou na busca pessoal de uma religiosidade adulta que
4
Memória é a capacidade de reter informações e, pode ser dividida em três categorias como mostra o
dicionário de sinônimos de Roquette – lembrança, recordação e reminiscência; A lembrança o fato em si
– saber ler, por exemplo; a recordação associada ao saber ler seria com o momento do aprendizado, quem
ensinou; a reminiscência estaria ligada a lembranças incompletas, vagas.
19
hoje se faz presente na minha poiética/poética. Relações históricas e individuais em que
me apoio pela mediação do outro.
O emprego do vocábulo apropriação ao invés de adaptação ou introjeção tem
o objetivo de desatacar o caráter ativo e transformador do indivíduo na sua
relação com o contexto sócio-histórico. Contexto sócio-histórico resultante
da ação humana enquanto externalização do seu psiquismo que volta a se
interiorizar transformado, num processo contínuo de articulação entre o
individual e o social. (Maria Graça Jacques apud Psicologia Social
Contemporânea – Livro-texto, p. 162)
A compreensão da identidade pessoal e social supera falsas dicotomias e
apresenta o ser como personagem/ator - personagem de uma história que, ao mesmo
tempo, constrói o autor e a narrativa. Nesta interação/ação temos um ser social em
formas culturais que se apresenta como indivíduo-artista em sua trajetória.
Então, sob a égide da descoberta permanente, mesclada por uma aceitação
quase incondicional de todo e qualquer pluralismo, identifica-se reflexos da
pós-modernidade em todas as áreas. Prova disto ‘é que a arte hoje vive um
período de intensa velocidade de mutação, de um dês-compromisso com a
durabilidade e com a construção coletiva, indicando um tempo em que a
estética está ligada à concepção de individualidade. (Corrêa in OLIVEIRA,
2007, p. 134)
Entender os processos de ajuizamento da memória, nas questões de formação de
minha identidade, é praticamente entender que o uso da memória permeia toda a
construção do trabalho. Faço uso disso no meu processo de criação de lembranças e
recordações e tais procedimentos de memória são indissociáveis um do outro
memória/obra.
Entendido os mecanismos de construção de identidade pessoal e suas inter-
relações com o profissional e entendendo que o artista configura e capta as realidades
que o cercam, com clareza, identifico as lembranças e recordações transformadas em
matéria prima no meu fazer/ criar que resultam em objetos/obras.
20
Breves memórias
Posso dizer que nunca tive nenhum impedimento no que se refere à curiosidade
religiosa. Filho de pai kardecista, de mãe umbandista, de avó materna Mãe-de-santo de
‘Nação’
5
, amigos evangélicos e vizinhos protestantes. Fiz a primeira comunhão, lavei
cabeça no terreiro, aprendi o jogo de tarô, e ainda ia ao culto com os amigos. Dessa
multiplicidade de referências, formulei próprias conclusões e questionamentos. Hoje,
afirmo com certeza de que, na maioria dessas idas e vindas, o que realmente marcou e
procurei transformar em arte foi o gosto pelo ritual e a paixão pelas imagens sacras.
Cresci envolto nos mistérios dos rituais. Sempre tivemos uma relação familiar
que facilitou o contato com as convicções e crenças da família de minha mãe. Passei
boa parte de minha infância e juventude na convivência da avó materna e sua religião.
Em conseqüência disso, desde cedo, aprendi os “afazeres do santo” como ajudá-la nas
infindáveis peregrinações de pessoas acometidas por problemas. Dessa estreita relação
minha avó idealiza em mim, um legítimo sucessor de seus poderes e conhecimentos.
Por outro lado, aprendi, por meio da religiosidade de minha mãe, a respeitar e
acreditar no “passe” e no conselho dos caboclos da Umbanda. Assim, de dia, passava
na cozinha e terreiro da avó e, à noite, nos “centrinhos” - maneira carinhosa que minha
mãe chama as casas de Umbanda. Adorava as cantorias, as velas, os perfumes...
Desde onde consigo lembrar a religião sempre esteve presente. Como se não
bastasse a vida familiar, estudava em escola de freiras, onde a severidade das irmãs
Franciscanas contrastava com a enorme imagem de Nossa Senhora da Imaculada
Conceição
6
, que abençoava a todos no pátio do recreio. Mal sabiam elas que conversava
diretamente com Ela no centrinho de minha mãe.
Tornei-me artista. O todo me fez artista. E, a certeza se deu quando percebi que
criava a partir do meio em que vivia. Utilizando o conhecimento e o conteúdo
imagético, repleto de curiosidades e questionamentos. A imagem da Virgem Maria com
certeza me libertou dos conflitos familiares.
5
Religião africana, semelhante ao candomblé, praticada no sul do Brasil.
6
No sincretismo religioso da Umbanda, Nossa Senhora da Imaculada é associada a Oxum, Orixá da
beleza, ouro e amor.
21
Relações: Processo e Obra
Retomo o pensamento de Pareyson (2005), onde a discussão toma corpo entre o
processo artístico e a obra de arte. quem não considere essencial o processo artístico
(no sentido de que ele não interessa em nada ao espectador), pois segundo o autor o
espectador deve-se ater tão somente a obra imóvel e definitiva sem ater-se aos
procedimentos intrínsecos do processo artístico. Para além dessas considerações
podemos ainda acrescentar o pensamento de Valérv (Apud. Pareyson, 2005) em que
distingue claramente o esforço do artista em construir a obra (longo e penoso) e, o efeito
que esta pode provocar em dada parcela do público, por exemplo, o processo pode
interessar ao psicólogo curioso dos procedimentos mentais.
Por outro lado, os que consideram essencial a avaliação artística e as
considerações sobre o processo de produção da obra. Voltar a percorrer aquele processo,
esquadrinhado na sua determinação histórica e recuperado na sua efetiva sucessão de
tempo, onde a obra não pode ser percebida sem que se leve em consideração sua gênese.
Obra e processo de produção, neste momento, adquirem relação de equivalência.
Assim, concordo e entendo que o processo artístico se insere na própria obra,
numa trajetória histórica não linear, mas que pode abarcar questões psicológicas,
temporais, entre outras. Hoje, após um determinado distanciamento, e algumas
reflexões, entendo e verifico em meu trabalho a distinção entre as considerações
genéticas (dirigidas a reconstruir antecedentes históricos) e, as dinâmicas da obra (que
discerne a obra no ato de aprovar-se); pois segundo Passeron ( 1997, p.108) “A obra
compromete seu autor desde o começo da execução, tanto no sucesso social quanto na
recusa e na censura.”
Nesta incessante busca de acessar meu trabalho e por considerar as seqüências
genéticas temporais que constroem a obra, percebo que tais seqüências não são a obra
em si, mas um caminho de acesso à obra.
22
Pequeno código poiético de uma construção
Por obsessão, uma determinada cor.
Tudo é cor.
Não sei olhar qualquer coisa sem fixar na cor.
Vibração.
Essa é a explicação pelo fascínio da cor.
Mais que ver, tocar em objetos coloridos, me deixa alerta, latente, por vezes até
desconcertado.
Vibrante.
Ao começar um novo trabalho a cor fixa.
A partir dela, idealizo e realizo a obra.
A cor domina e prende em seus encantamentos, enche de quebrantos,
deslumbra e atrai irresistivelmente.
Não imagino começar um trabalho, seja qual for, a técnica e o suporte que
não fascine e ofusque os olhos à cor.
Sempre que rememoro, não são cheiros ou gostos que falam primeiro.
Mesmo sendo do “gosto das rosquinhas fritas da infância”.
O que vem primeiro é minha bisavó, amassando aquela massa lisa “cor de
massa de rosquinha” - um doce amarelo claro, fruto da mistura de ovos com
manteiga.
Cor palpável e tangível.
23
O olhar se enche de descobertas, torna-se incontrolável e na cor que se faz
parceira do olhar, procuro não enfeitar mais o mundo, mas encontrar sua
plenitude no comum da beleza do cotidiano colorido.
Indiferente à presença, a cor inunda o olhar e emite seus primeiros gritos
frente a minha presença espantada.
Por horas, dias, semanas...
Hoje é verde.
Tudo é verde.
Vestir verde, comer salada verde, reparar nas pessoas que na rua vestem verde.
Verde e vermelho, de flores da lojinha de R$ 1,99.
Figura 1
Figura 2
24
No atelier de vestidos de prenda em que trabalho, os tecidos verdes gritam.
Um tecido estampado, com fundo verde, será o suporte do trabalho.
A preferência por estampas florais.
Flores cativam no tecido.
Por vezes, algum tecido xadrez ou petit-pois. Apesar de um ter uma sobriedade
masculina, que não dialoga com o trabalho que faço; o outro se mostra muito
repetitivo em sua simplicidade.
Um ponto, outro ponto, outro ponto...
Figura 3
Figura 4
25
Figura 5
Figura 6
Figura 7
26
Figura 8
O verde continua gritando...
As prendas atendidas nessa tarde ‘vestem’ verde.
Em seus vestidos são testadas combinações de armarinhos.
Passamanarias,
Bordado inglês,
Fitas,
Botões forrados,
Botões de massa,
Rendas de guipure,
Pinturas,
Bordados,
Flores em verde.
Metros dos armarinhos, usados nesses vestidos, serão utilizados no trabalho.
27
Figura 9
Figura 10
Figura 11
Figura 12
28
Figura 13
Figura 14
Figura 15
Figura 16
29
Figura 17
Figura 18
Figura 19
Uma dúzia de botões verde com dourado.
Irá faltar - mais outra dúzia.
Mais um a infinidade de botões opacos de massa.
Mais alguns retalhos de um vestido verde montado meses atrás.
30
Duas ou três aplicações de renda branca que poderão ser tingidas de verde,
bege, vermelho ou talvez fiquem assim mesmo, brancos talvez não sejam
usadas.
Ficarão para um próximo trabalho.
Guardadas na multidão de coisas gritantes do atelier.
Onde não os objetos a serem colados ficam, mas todas as imagens, recortes
e “xerox” do que vão sendo encontrados e armazenados.
Nunca se sabe quando se farão necessários.
Figura 20
Figura 21
31
Figura 22
Figura 23
Há um suporte que espera ‘vida’ há meses.
32
Figura 24
Figura 25
Em outro armarinho, chatons em verde.
Mas também vermelho.
Alguns dourados e uns azuis.
E pérolas beges.
33
Figura 26
Figura 27
Em outra loja de preço único, pequenos vasos de porcelana.
Miniaturas de um verde cintilante.
Alguns adesivos de santos e borboletas com contorno em dourado.
Já não chegam os que tem em estoque nas pastas do atelier.
Da loja da diocese da cidade mais ‘santinhas’.
Um terço de cristal.
Apesar de ter uma dúzia de terços em verde e uma dúzia em azul.
Do “paraíso” que vende peças de bijuteria para montagem, mais algumas
medalhinhas.
34
Figura 28
Figura 29
Figura 30
35
Figura 31
Figura 32
Figura 33
Figura 34
36
Lojas de preço único, R$1,99.
Remetem a um universo kitsch, popular tão brasileiro.
A potencialidade artística dos materiais é arrebatadora.
Reflexo, talvez, da maneira como encaro minha arte e, em especial, como são
pensados os suportes de trabalho.
Dentro do universo ‘do feminino’ que a Virgem Maria transita, um ideário
criativo pessoal - objetos sem ‘valor’ redimensionados, re-sacralizados, o
feminino constante.
Figura 35
Figura 36
37
Assim, bandejas, bolsas, peças de roupas, tudo um possível suporte, tudo se
torna objeto de experimentação ao longo da trajetória. Como as bandejas do
presente trabalho.
A idéia inicial eram pratos – tipo pratos decorativos de parede – mas os
resultados não agradaram; parti então para a construção de pratos gigantes, em
gesso, que também não funcionaram.
A memória então disparou seus gatilhos.
Aqui estão as bandejas que sempre ajudei minha avó a montar no terreiro para
as oferendas.
38
Figura 37 / Ofertório - “Ebúrnea torre que o céu escala.”; 2007; 50 cm Ø; Materiais diversos (Passamanaria, chatons,
pombas de plástico, broches, fita crepe, guardanapo de papel, imagens xerográficas, imagens de calendários, imagem
de livro da historia da arte) sobre bandeja de papelão (Usada para “oferenda” em religiões afro-brasileiras).
39
Figura 38 / Ofertório - “Ebúrnea torre que o céu escala.”; Detalhe.
Figura 39/ Ofertório - “Ebúrnea torre que o céu escala.”; Detalhe.
40
Figura 40 / Ofertório - “Bondade foi quando disseste: Florinhas, d’agora sois minhas, sois doutro jardim”; 2007; 50
cm Ø; Materiais diversos (Botões, guardanapo de papel, adesivos, mãos de brinquedo, fita de cetim, anéis, rosário,
bordado inglês, imagens xerográficas, imagem de livro de história da arte) sobre bandeja de papelão (Usada para
“oferenda” em religiões afro-brasileiras).
41
Figura 41 / Ofertório - “Bondade foi quando disseste: Florinhas, d’agora sois minhas, sois doutro jardim”; Detalhe.
Figura 42 / Ofertório - “Bondade foi quando disseste: Florinhas, d’agora sois minhas, sois doutro jardim”; Detalhe.
42
Figura 43 / Ofertório -“Levanta os olhos para Maria! Olha a estrela do mar!”; 2007; 50 cm Ø; Materiais diversos
(botões, conchas, estrela do mar, bordado inglês, barco de brinquedo, laços de fita, imagens xerográficas, imagem de
livro de história da arte) sobre bandeja de papelão (Usada para “oferenda” em religiões afro-brasileiras).
43
Figura 44 / Ofertório -“Levanta os olhos para Maria! Olha a estrela do mar!”; Detalhe.
Figura 45 / Ofertório -“Levanta os olhos para Maria! Olha a estrela do mar!”; Detalhe.
44
Figura 46 / Ofertório - “Da carne tua, do sangue teu, de Deus o filho Jesus nasceu!”; 2007; 50 cm Ø; Materiais
diversos (Botões, passamanarias, aplicações de renda, fita crepe, vasos de porcelana, imagens xerográficas, imagem
de livro de historia da arte) sobre bandeja de papelão (Usada para “oferenda” em religiões afro-brasileiras).
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Figura 47 / Ofertório - “Da carne tua, do sangue teu, de Deus o filho Jesus nasceu!”; Detalhe.
Figura 48 / Ofertório - “Da carne tua, do sangue teu, de Deus o filho Jesus nasceu!”; Detalhe.
46
Figura 49
Figura 50
Na catedral da cidade, um medalhão no teto, pintado por Locatteli,
todo em verde, nele um cálice dourado e uma frase em latim, um
título a Virgem; “Vas Iinsignis Honorificum”; talvez um bom título.
A liberdade, fruto de nossa época, permite fazer misturas - misturar
tudo: memórias, referências e, acima de tudo, materiais.
Criar, partindo de elementos que dialogam entre si, mas que, ao serem
integrados ao trabalho, encontram, de uma maneira geral, mais de uma
possibilidade ao unirem-se.
47
Figura 51
Figura 52
Figura 53
O suporte é forrado em dias quentes, não criam bolhas durante a
colagem.
Lição aprendida com os ‘mosaicos’: a umidade no ar, além da demora
para secar, cria bolhas.
48
“Recebe essa flor mãe de todo amor, oh digna, digna, Maria!
Faze que no céu possamos sem véu, te contemplar a um dia;
Cantar com alegria o teu amor,
O teu amor, Em celeste harmonia... ”
7
A música de Maria Bethânia e suas canções à Maria pelo apartamento.
Restos mortais de livros de história da arte, que vieram de sebos ou
foram presenteados para recorte, e amontoados estariam em uma
das pastas?
Procurar é tão presente quanto guardar eis que ‘misteriosamente’ a
Virgem lança de si seus lampejos enigmáticos, ao lado de uma
natureza morta.
Será a Virgem que reina soberana num fundo estampado verde?
Não, não será profanada!
Muitos pensam nisso ao ver o trabalho. Ao utilizar a imagem da
Virgem Maria, meu testemunho de fé, não é ‘cego’, mas questionador
e, por vezes, cínico e debochado.
É um testemunho de amor por ‘mães’ que marcaram minha vida, na
figura de uma ‘mãe maior’ que, não sei ao certo, quando entrou em
minha vida e em minha poética.
Essa imagem me pertence!
Não importa a sua origem: se é um adesivo de ‘caminhão’ ou a
reprodução de Rafael, o que importa é ser fulminado pelo lampejo que
ela me desperta. Não me pergunto quem pintou esse quadro ou quem é
essa santa.
Ela agora é ‘minha’ santa. A ‘minha’ imagem. A ‘minha’ Virgem.
7
Maria Bethania. Oferta de flores/ domínio público. “Cânticos, suplica e preces à Senhora dos Jardins do
céu”. Biscoito fino.
49
Partir de uma imagem pronta e nela interferir, dela fazer outra coisa.
De uma cópia neutra, criar um original rico em sentidos. Trata-se de
processo característico da arte, o oposto da univocidade das técnicas
de reprodução. Bolas para a imagem de partida! O que interessa é o
que se pode fazer com ela. (Cattani in FARIAS, 2004, p.129)
Figura 54
Figura 55
Começa o planejamento do trabalho, a arquitetura do que será
construído.
Bandejas de papel rendado dourado - direto a loja de artigos pra
confeiteiro - duas ou três, de vários tamanhos, flores de biscuit, um
saco de minúsculas flores para enfeitar docinhos de festa e meia dúzia
de rosas cor de rosa.
Aplicações em tecido, folhas que lembram plátanos.
De frente com o suporte, verde.
50
Após alguns dias, as bandejas coladas, uma a uma - três no total, e um
reforço de sustentação por trás - secaram e assim começa a produção.
Mais figuras para o trabalho; mais vida.
Algumas imagens de um magnífico livro de historia do vestuário,
cópias de algumas ‘Plates’. Horas para recortar as figuras, elas
agradam e várias são usadas.
Expressivos romeiros que testemunham a fé de seu tempo, que não é o
meu e que, a partir de agora, passa a ser o da Virgem Maria.
Nestas figuras não serão necessário olhos de recorte.
Figura 56
Figura 57
51
Figura 58
Olhos de recorte.
Eles surgiram a partir da construção da primeira imagem, pois a
Virgem Maria, ao meu olhar, não tinha vida, não era uma fotografia
do ‘real’.
Após alguns dias, com coragem, o recorte do olhar de revistas de
moda se encaixou no olhar da Virgem Maria.
Vivo e ‘real’.
Figura 59
Figura 60
52
A esse olhar não cabem, até hoje, explicações.
Não sei se olham para os outros como olham para a mim.
Independente da ação de onde vieram poses sedutoras, mulheres
desfilando em passarelas da moda todos me analisam e sempre me
interrogam, mas nunca os enxergo com reprovações.
Pena a Virgem Maria ter só olhos e não boca pra contar o que vê!
O trabalho ‘vê’.
Segue a colagem. Quase sempre com pistola de cola quente e silicone
derretido. Dependendo do material, utilizo resina epóxi - para colar
objetos maiores ou vidro
.
Mais material é comprado.
A força das imagens e o perfume das defumações da loja de artigos
religiosos evocam o trabalho; uma pomba dourada – belo ‘divino’.
Figura 61
Figura 62
53
Defumar a casa.
O perfume da defumação provoca a inspiração.
O que digo? Faço. Sigo colando.
O fazer manual estimula um estranho e egoísta prazer.
Diante desse objeto que está surgindo, percebo a importância de estar
aberto a potência de sua materialização, altamente transformadora
que, ao surgir, foge aos conceitos e estabelece novos paradigmas.
Será ou não questionador essa nova identidade visual que o olhar da
Virgem Maria provoca?
Como pura magia, em pleno século XXI, colo de maneira tradicional,
sujo o dedo, sem pincel, essa viscosidade nutre e leva um prazer sem
descrições.
Recortar, lambuzar e reconstruir um mundo colado. Como se colando,
colasse tudo. Colo tecido, botão, passamanaria, e o perfume da
defumação.
Nessa profusão de elementos, qualquer figura ou objeto são de suma
importância. No grande desafio de superar o medo do suporte vazio e
nele encontrar a maneira apropriada de colar todos os itens, sem que
um anule o outro. Mas que cada qual reitere o outro.
Figura 63
54
Figura 64
Figura 65
O trabalho extrapola seu sentido ante ao espanto e as descobertas no
ato de colar.
No momento em que colo. A cada novo trabalho, um novo espanto e
uma nova descoberta.
E o trabalho impõe um ritmo que escapa ao controle. Ele que cola em
seu espaço o artista, um espaço sem tempo, exceto o do fazer um
tempo quase ritual, em que se perde o sentido de passado e futuro num
sempre repetido e novo presente.
55
Finalização.
Falta ainda um último e derradeiro ato colar o olhar da Virgem
Maria.
Na pilha de revistas de moda, depois de muita procura na multidão de
‘seres mutilados’ pelo recorte, com cuidado, além do olhar um pouco
das sobrancelhas por vezes o nariz, o encaixe perfeito entre a
imagem do livro, entre a imagem da revista, entre o olhar do artista e
esse olhar que “nasce”, que encara. O olhar da Virgem Maria.
Após dias de contemplação e, enquanto seca o verniz; saído de um
estado de suspensão me dou conta – ‘o mundo acordou vermelho!’.
56
Definitividade ou abertura
Pensar em processo artístico, pode-se perguntar: A obra continua após o término
dado pelo artista? Ao pensar que a obra de arte é substancialmente incompleta e se
oferece ao espectador, clamando que ele participe do ato criativo do autor e prolongue,
por conta própria, os mais originais complementos. É que alguns artistas
freqüentemente preferem o inacabado, um sugerir que definir.
Neste trabalho, acredito que a obra deve, por si só, provocar o leitor e levá-lo (ou
não) as suas múltiplas e infinitas possibilidades de entendimento do que dela apreender.
Assim, busco uma finalização em meu fazer que me leve sempre à exaustão. Ao
acreditar que nessa finalização está o ápice da minha construção. Quando “pronta” a
Virgem Maria indaga quem a encara. Crença de que a inexaurível e insondável
infinitude espiritual da obra, exige o limite perfeito da forma. assim ela se faz objeto
das infinitas interpretações por parte do leitor.
Entendo que o processo artístico é a busca do acabamento. A perfeição de
estabilidade definitiva que por isso mesmo, exige que o artista leve a sua obra até o fim,
não permitindo que o leitor retome o trabalho criativo. Abrindo, assim, o leque de
possibilidades infinitas de interpretações.
57
Pequeno pensar a partir do concluso
Partindo do entendimento do processo artístico, como a busca pelo “fechar”, o
“concluir”, encontro, em caminho inverso que costumava fazer, as evidências de minhas
motivações e, a partir delas, projeto a multiplicidade de direções possíveis para novas
interpretações.
Vivemos num estado social em que, cada vez mais divisão espiritual
pronunciada por desequilíbrio de forças individuais e coletivas e se fortalece pela
polarização de uma razão que virou instrumental e outra imagética. A consciência do
tamanho desassossego, que faz parte de nossa condição humana, hoje gera uma
esquizofrenia que existe na experiência contemporânea da falta da conjugação fecunda,
entre formas racionais e simbólicas. A arte, dentro deste quadro de tensão, se encontra
em um abismo entre o conflito ser / estar. Ao encarar a Virgem Maria procuro resgatar a
espiritualidade de uma sociedade que se distancia de um pensamento cosmológico, em
função de uma vida tecnologizada.
Escolhida, ou melhor, escolhido” pela Virgem Maria e por ela guiado na busca
da memória social coletiva, de imagens erráticas que se fazem presentes na sua
imparável migração histórica. Percebo a Virgem Maria como eco de uma sociedade
estruturada de maneira matriarcal, centrada em figuras femininas, em seus afazeres, em
suas personalidades onipresentes e onipotentes. Estrutura que, em minha poética, é
reiterada por meio de verdadeiros objetos votivos que transfiguram o banal pela
construção de um pensamento fantástico, imaginativo e carnavalizado.
Em virtude disso, ao buscar na diversidade matérica e simbólica dos meios e
materiais que faço uso, encontro uma cosmovisão e pergunto: Onde estou? Em que
tempo vivo? É a imagem da Virgem Maria que referenda essas inquietações e declara
essa condição, já que desmitifico e volto a matrizes neo-primitivas para buscar subsídios
importantes para a poética de meu trabalho.
Da concepção da origem mágica e sagrada da arte, situo a Virgem Maria numa
sacralidade difusa, que ultrapassa fronteiras na busca de um novo equilíbrio entre
carnaval/religião, profano/sacro; o que na prática artística permite uma leitura e
presença de valores que se abrem ao mundo e a sua transcendência.
Uma aproximação artística que coloca suas questões e questionamentos pela
recuperação e re-ativação de um imaginário “simples”, que se fundamenta na ligação
matéria/espiritualidade, num jogo imbricado de sublimar o cotidiano e transcender ao
58
espiritual que se manifesta na exploração de uma transfiguração matérica por meio de
apropriações. Nesse ponto, a obra re-situa a importância cultural do imaginário religioso
e popular, o imaginário do artesanato e das festas populares, uma presença matérica
forte e constante na minha poética; e que se lança na busca de re-significar objetos
simples e cotidianos (como bandejas de papelão) que o olhar apropria e transcende a um
mundo que não se entrega aos encantos do religioso.
A presença de símbolos e objetos carregados de significação espiritual, somados
ao cotidiano do atelier de criação e confecção de figurinos, não marca a Virgem Maria
em um território hermético, identificável: ressalta uma descodificação, numa amplitude
espiritual nada canônica, mas mestiça e livre, um jogo que procura uma transcendência,
construída no excesso do “horror vacui”, disposto de maneira exuberante e altamente
decorativizado.
Nesse turbilhão de informações simbólicas e matéricas, como funciona a poética
da Virgem Maria? Percebo como relevos, com uma visualidade atenta, perto de uma
experiência interior, cuja captação de objetos e ‘coisas’, coloca em circulação materiais
convenientes mito/poetizados, de alta vibração energética e vivencial. Ativam uma
‘adoração’ estética de forma arrebatadora via imaginário popular e que subjetivamente
são incorporados pelo lado poiético que encarnam influências de crenças religiosas de
ordem distintas.
Desse modo, me aproximo desse mundo imaterial quase que numa re-
espiritualização das formas e das experiências não discursivas de construção de
símbolos que, situados no limite da materialidade, trazem a crença de uma sensibilidade
que ultrapassa o território da estética. Ou seja, me permito a diálogos e relações
suspensas em sutil equilíbrio de energias e vibrações que não são só visuais, mas
também psicoemocionais. Incluo as dimensões do social de uma humanidade
compartilhada e não elitista, que se faz perceptível pela incorporação múltipla de
objetos, iconografias e imagens que se multiplicam.
Em virtude disso, penso que a Virgem Maria incorpora referentes de uma certa
contextualidade e de uma experiência estética que estreita vida e obra, incorporando
diversos aportes culturais inseridos na própria estruturação do objeto artístico. O que
favorece a saída de um tempo regrado para outros ritmos e possíveis direções
atemporais simultâneas. Uma poética que transcende e indaga visualmente sobre a
condição humana em sua iconologia mestiça/afro-ibérica/popular/carnavalizada que cria
sua própria mitologia poética contemporânea.
59
“Memória da Virgem Maria”
“... Baixai, baixai, ó Virgem da Conceição!
Maria Imaculada tirai as perturbação...
Se tiveres praga de alguém desde já será retirada...
Levando pro mar adentro... Pro fundo do mar sagrado...”
8
8
Ponto de Umbanda, domínio público
60
A Virgem Maria se construiu num imbricado jogo de referências, fontes e
crenças: E como não o seria? Segui construindo-a. Hoje entendo que muito pouco
entendo do que se passa e busquei em diversas fontes entender. “Psicologismos” a parte,
sei de uma coisa – que Ela esta aí posta.
Pensar na Virgem Maria é pensar na sua imagem. Consigo agora separar o que é
do campo da fé e o que proponho do campo da arte (mesmo que as motivações criadoras
quase sempre, se mesclem sem que eu saiba onde um começa e o outro acaba). Criei
assim, desde muito cedo um verdadeiro “arquivo” de imagens e de “crenças” das quais
ia extraindo o que poderia melhor satisfazer minhas dúvidas, medos e anseios; onde
tudo fizesse sentido. Pensar a Virgem Maria em meu trabalho levou-me a uma
indagação – Por onde começar?
Numa observação rápida e bastante óbvia, o que primeiro salta aos olhos em
meu trabalho é justamente a imagem da Virgem Maria
9
. E por tê-la, mesclada a e as
mais diversas crenças e, pelas mais díspares referências, se apresentam como um véu,
tal qual o “véu de Ísis”, que vela o que realmente traz “minha” Virgem. Encruzilhadas
que me assolam o entendimento em face da luta constante por erguer o véu.
9
Na aurora do Séc.XXI, a Virgem Maria continua sendo uma figura mítica [...] os fiéis m aos milhões
rezar a ela, acumulando os sinais de devoção mais extravagantes e kitsch, mas também os mais
comoventes [...] Segundo as épocas, segundo os países e segundo as necessidades, os fiéis reinventaram
constantemente a imagem da personagem virtual que é a Virgem Maria [...] Sucessivamente rainha ou
fada, mãe dolorosa ou alegre, quase púbere, modesta ou gloriosa, negra, amarela ou bronzeada, eles
imaginaram uma virgem que se presta a todos os desejos e a todas as súplicas dos fiéis... ’é a imagem
como feixe de significações que se torna verdadeira’. (BOYER, 2000, p.10 e 13)
61
Arquivo de Imagens, arquivo de memórias
Hace poco he acabado um texto sobre la imagen como mariposa. Si
realmente quieres verle las asas a uma mariposa primero tienes que matarla y
luego ponerla em uma vitrina. Uma vez muerta, y solo entonces, puedes
contemplarla tranquilamente. Pero si quieres conservar la vida, que al fin y al
cabo es lo más interesante, solo veras lãs alas fugazmente, muy poco tiempo,
um abrir y cerrar de ojos. Eso es la imagen. La imagen es uma mariposa.
Uma imagen es algo que vive y que solo nos muestra su capacidad de verdad
en um destello.
10
(Didi- Huberman, entrevista a ROMERO, 2007, s/p.)
Cursei duas graduações e aprendi história da arte, por meio de reproduções em
livros, revistas e internet. Perdi assim, a fisicalidade da obra, mas construí um “museu
de papel”– onde, se igualam pintura, escultura e fotos de arquitetura.
Meu museu de papel vem se construindo desde, muito tempo, antes mesmo
de a Virgem Maria instaurar-se como objeto de trabalho. Uma seqüência desconexa e
extensa de recortes de revistas, recortes de livros, fitas de vídeo, santinhos, “Xerox” e
reproduções. Um arquivo imagético, um arsenal”, que difere sobremaneira do pensar
“coleção”, pronto com suas “armas” a ser invadido, atacado, sobre os gritos de “-É
guerra!”. A guerra eclode no exato momento em que, como diria minha mãe, “- Baixou
a santinha!”. Procuro ter um relacionamento solto com meu arquivo, transitando
tranquilamente por entre as portas que ele abre.
Malraux (2000), ao tratar da criação de um museu imaginário
11
, mostra as
relações que oriente e ocidente tem com o museu. No oriente, museu e contemplação
artística é inconciliável, pois as pinturas não eram expostas, mas contempladas
individualmente. Ao passo que no ocidente confrontação entre as obras que são
colocadas lado a lado, em uma operação incessante de intelectualização. Me relaciono
como um pouco de cada, não me coloco à apaixonante contemplação artística
puramente – porque não disponho da obras, mas de suas reproduções
12
; nem me entrego
à busca totalmente intelectual que esse conteúdo imagético propõe. Num entre caminhos
10
Tradução livre: “Há pouco acabei um texto sobre a imagem como mariposa. Se realmente queres ver as
asas de uma mariposa primeiro tens que matá-la e logo pô-la em uma vitrine. Uma vez morta então
pode contemplá-la tranquilamente. Mas se queres conservar a vida, que afinal acabou e é o mais
interessante, veras as asas fugazmente, muito pouco tempo, um abrir e fechar de olhos. Isso é a
imagem. A imagem é uma mariposa. Uma imagem é algo que vive e que só nos mostra sua capacidade de
verdade em um destelho.” (Didi- Huberman, entrevista a ROMERO, 2007, s/p.)
11
“Onde a obra de arte não tem outra função senão a de ser obra de arte, numa época em que a exploração
artística do mundo prossegue, a reunião de tantas obras-primas, e a ausência de tantas outras obras-
primas, convoca, em imaginação, todas as obras-primas. Como poderia este possível mutilado não apelar
para todo o possível?” (Malraux. 2000. P.13)
12
Malraux trata do estudar história da arte no inicio do século XX e as questões de ser essa o resultado do
confronto entre um quadro e uma recordação. (Malraux. 2000. P.14)
62
de deleite e entendimento, que levam a lampejos que desse “exercício museal” me
conduzem a buscar relações e interconexões do que vai para a obra com crenças e
fazeres e ainda do que fica lá em latência.
Guerreiro (2008, p.4), ao ponderar os “Arquivos de memória” de Warburg e sua
teoria da memória social ou coletiva, vai mostrar como esse pensador trata da
recorrência de antigas formas de movimentos expressivos em quadros de Botticelli “[...]
e gestos dotados de um pathos que se refere a uma linguagem mímica cuja migração
histórica e geográfica é possível acompanhar”; encarando a história da arte em marcos
de “memória errática de imagens que regressam constantemente como sintomas
13
e a
Nachleben
14
da antiguidade como objeto central de seu programa historiográfico”, como
já observado anteriormente.
Meu arquivo imagético /museu imaginário /arsenal e a Virgem Maria, se fazem
ecos; são constatações que se mostram maiores do que eu e meu trabalho. Compreendo
isso nitidamente, pois “ela vem...”, “ela se apresenta...”, “ela se instaura...” como
lampejo. Como um principio histórico de funcionamento da minha memória cultural.
Mas não como revivalismo, que busca recuperar tradições perdidas, e sim “como um
mecanismo inconsciente, próprio da memória coletiva e, portanto, capaz de manifestar
através de sintomas” (Guerreiro, 2008, p. 5).
Aqui as imagens produzem um regime de significação, que faz em apelos aos
processos da memória psíquica e são elaborados como sintoma, sobrevivem e se
deslocam (histórico e geograficamente), reclamando que se alarguem os modelos
canônicos da temporalidade histórica e que se acompanhe sua “sobrevivência” para
além, inclusive, do espaço europeu e ocidental.
Como mostra ainda Claudia Valladão de Mattos:
De acordo com a concepção de Warburg, as imagens seriam formadas por
motivações psíquicas relacionadas a uma determinada época e carregadas
para dentro de outras culturas, onde seriam remobilizadas em seus conteúdos
psíquicos e reorganizadas em função de novo contexto. (MATTOS, 2007,
p.133)
Segundo Guerreiro (2008), uma quebra na linearidade histórica onde a
continuidade do tempo cronológico é vista sobre outro aspecto, ou seja, não como
13
Fazendo apelo a uma “psicologia histórica da expressão humana” (Guerreiro, idem)
14
“é o problema da vida póstuma da antiguidade”; “rede de fórmulas expressivas universais e trans-
históricas (sujeitas, muito embora, a determinações históricas na sua vida póstuma, pois elas não são pura
e simplesmente transmitidas, como algo a imitar: cada época tem a sua maneira de as selecionar, reanimar
e intensificar), presentes em todas as produções simbólicas da humanidade e não apenas na arte.”
(Guerreiro, idem, p. 3)
63
conteúdo, mas como valores expressivos que ganham forma. Mostrando assim, uma
concepção rememorativa da história em que as imagens, em suas dimensões de espaço e
tempo histórico condensado, criam em seu movimento de “sobrevivência” circulações e
intrincações de tempos, intervalos e falhas no contínuo da história.
Pensamento ratificado por Didi-Hüberman (in MATTOS, 2007, p. 133), “em
que as imagens, portadoras de memória coletiva, romperiam com o continnum da
história, traçando pontes entre o passado e o presente”. Temos aqui uma proposição de
um modelo cultural da história que tem muito mais a ver com os inconscientes do
tempo, com uma “sobrevivência” de certas formas expressivas do que com os esquemas
temporais que se articulam em começo e recomeço, progresso e declínio, nascimento e
decadência que, sempre se reduz a um mecanismo linear para explicar as influências e
os modos de transmissão da complexidade do tempo das imagens.
A concepção de imagem, para Warburg (in MATTOS, 2007)
Como símbolos condensadores de uma memória coletiva, que circulariam
através do tempo, reativando-se e modificando-se ao inserir-se em momentos
históricos específicos (MATTOS, 2007, p. 133)
Onde cada símbolo que se registra funciona como um “arquivo de memória
coletiva”, que se e em relação com todos os outros ao formar grandes “constelações
que cruzam conceitos espaciais e temporais na história”
15
.
Ao pensar a história da arte do ponto de vista contemporâneo; podemos inferir
que:
À diferença das concepções tradicionais da disciplina, que procuravam
estudar o fenômeno artístico como elemento autônomo (ou semi-
independente) de outros círculos da cultura, Warburg concebia a imagem
como um espaço de imbricamento de valores psicológicos, políticos, sociais,
religiosos, visão, aliás, que ele emprestara de Jacob Burckhardt. Essa visão
complexa do fenômeno artístico é essencial para compreendermos muitas das
manifestações da arte contemporânea. (MATTOS, 2007, p. 134)
Portanto, ao trabalhar com imagens dessa memória, encontro com a maneira que
Warburg tinha a respeito de seu próprio trabalho, ou seja, contruir pranchas de um
‘atlas’ por meio de recortes de tempo; conforme Edgard Wind (in MATTOS, 2007), nas
reflexões sobre as imagens que analisava,
Realizava função análoga àquela da memória pictórica quando, sob a
urgência compulsiva de se expressar, a mente sintetiza espontaneamente
15
Cabe aqui, a diferença apontada por Claudia Valladão de Mattos citando o filósofo Giorgio Agamben
que, “as imagens para Warburg diferença dos arquétipos de Jung] são realidades históricas, inseridas
num processo de transformação das culturas, e não entidades a-históricas.” (MATTOS, 2007, p. 133)
64
imagens análogas às das rememorações de formas preexistentes. [...] ao
interpretar uma obra do passado ele esta agindo como guardião de um
depósito da experiência humana, mas ao mesmo tempo como um lembrete de
que essa experiência é ela própria um objeto de pesquisa, que exige de nós o
uso de material histórico para investigar como a ‘memória social’ funciona.
(In MATTOS, 2007, p. 134)
Neste ponto, a Virgem Maria se insere em meu trabalho num empreendimento
artístico (conforme o pensamento de Siegrid Weigel in MATTOS, 2007, p.135) que vai
além de “história e lembrança” e se coloca como práticas materiais e simbólicas da
própria memória no eixo central desta pesquisa, em um processo de memória da arte
que se transforma em arte da memória, num artifício de
Recolhimento de imagens significativas relacionadas a um determinado tema
e sua articulação em uma imagem de síntese, [...] que, revelam-se como
constelações complexas e multifacetadas, que criam uma rede de
significados[...] (MATTOS, 2007, p. 136)
Uma investigação de como o universo da mitologia pessoal se organiza em
relação às imagens coletivas, onde cada trabalho representa uma possibilidade de
organização da informação visual, que me rodeia em uma configuração particular e
individual. Mesmo que sejam imagens coletivas do campo da arte, sua composição é
única. Pois crio verdadeiros “relevos” afetivos da alma, que se corporificam na obra
Ofertório: “Levanta os olhos para Maria! Olha a estrela do mar!”
16
. É nesse instante
que dou conta desse ‘atlas’ que estava em mim e hoje se apresenta materializado nessa
pesquisa. Os meios de multiplicação da imagem potencializam esse imbricado jogo, na
busca de romper fronteiras impostas pela própria cultura e a religião, intensificado, re-
ativados e carregados de um significado que se regeneram a minha época e que entram
em conflito.
16
Na versão impressa, a “Atlas” compõe-se em pranchas de tamanho A3 e A4com colagem direta dos
elementos. Aqui mostrado todo em tamanho A4 para uma melhor visualização das imagens; criando
assim diferenciação entre a numeração original das páginas.
65
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A Virgem se faz reflexo de tempos e formas simbólicas que vão além de mim,
além do que proponho, num imbricado jogo de re-ativações e re-percepções de um
arquivo imagético comum à memória coletiva, que se cruza com meu arquivo imagético
/museu imaginário / arsenal.
78
A mestiçagem.
Num momento contemporâneo, em que a arte se assume como campo de
experimentações, no qual “todos os cruzamentos entre passado e presente, manualidade
e tecnologia, materiais, suportes e formas diversos se tornam possíveis.” (CATTANI,
2007, p. 25) e somos levados, como Cattani mostra, a nos perder em um “labirinto de
sentidos múltiplos”. Sou levado a pensar o que constitui a mestiçagem, que se difere do
hibridismo que não visam à manutenção de tensões e integridade dos componentes,
gerando fusão de elementos, e do sincretismo que elimina a alteridade pela adição e
constitui-se de totalidades indiferenciadas.
Mestiçagem pode ser entendida como;
[...] A presença simultânea de seus diversos elementos constitutivos, os quais
não se anulam mutuamente, nem se fundem, mas permanecem sempre
presentes, numa relação tensa, ambivalente, contraditória. (Cattani in
FARIAS, 2004, p. 67).
E ainda o incerto – informe - transgressão: múltiplos cruzamentos, produtores de
novos signos, que mantêm em seu interior tensões irresolvidas, sempre em “vir a ser”,
marcas de pulsões internas e de aberturas ao devir, que constituem as mestiçagens na
arte contemporânea. (CATTANI, 2007, p. 29)
Lamas, nos mostra ainda o pensamento de Laplantine e Nouss que;
Desenvolvem uma reflexão sobre esse conceito entendendo que a
mestiçagem é um fenômeno possível de ser identificado a posteriori e
difícil de ser categorizado, pois decorre das experiências individualmente
vividas em diferentes sociedades. Experiências de um sujeito que pertence a
muitas culturas e a muitas histórias é a possibilidade de múltiplos
pertencimentos, por conseguinte não tem único sentido e possibilita múltiplas
interpretações. Logo é da ordem do diálogo e da subjetividade. Nada é
definitivo, mas está em constante transformação, está sempre em devir.
(Lamas, Nadja de Carvalho in CATTANI, 2007, p. 138)
Ao partir de meu arquivo imagético/ museu imaginário/ arsenal, pelo viés do
apropriativo que se cola na obra e a “Tensão entre o original e sua cópia, entre espaços
de representação diferenciados, entre sistemas formais diversos, entre ícones
consagrados e sua dessacralização” (Cattani in FARIAS, 2004, p.66), num imbricado
jogo de referencias e múltiplas possibilidades em que o conceito de mestiçagem
desdobra-se. Talvez seja pelo viés desse desdobre que busco perceber na obra o
79
entendimento do trabalho proposto, em sua poética e poiética, dos desdobramentos
apontados por Cattani
17
.
Apropriações e justaposições se apresentam em diversas modalidades do
cotidiano e em fragmentos de outras referências materiais e imateriais abrindo meu
trabalho, as infinitas possibilidades do entre; “Algumas dessas obras, ainda, ao justapor
componentes de diferentes origens, ressignificam as relações de espaço-tempo: elas o
atualizam, comprimindo-os num presente único, o da obra.” (CATTANI, 2007, p. 30).
Aplicando-se ao meu trabalho a idéia que Lamas propõe de “revisitamento”;
O conceito de revisitamento é aqui entendido como possuidor de
características e tensões que podem gerar princípios mestiços na arte, em
particular na arte contemporânea, pois decorre do diálogo entre o artista e
uma dada obra, por ele apropriada diálogo este que ocorre na fissura entre
ele próprio, sujeito de múltiplos pertencimentos, e a obra, que por sua vez é
decorrente e portadora de múltiplos sentidos. A tensão gerada desse encontro
que traz em si cruzamentos diversos gerará uma nova obra, com
características próprias que não estavam dadas a priori, mas possíveis de
serem identificadas somente a posteriori, após sua instauração. (Lamas,
Nadja de Carvalho in CATTANI, 2007, p. 139)
O jogo poética / poiética em que os processos que fazem parte da poiética que
cria as obras e culminam em sua instauração, confundem-se. Se tornam o próprio
processo constituinte da poética das obras. “Anulam-se nesse caso as diferenças de
tempo e de circunstância: ambas as instâncias passam a coexistir, remetendo
continuamente uma à outra, estabelecendo uma pulsação permanente.” (CATTANI,
2007, p. 32); Passeron mostra que;
O objeto da poiética é certamente restrito – a conduta criadora – mas o campo
de investigação em que tal conduta pode ser percebida é novamente campo
estendido, o da antropologia histórica em todas as suas variedades. Uma vez
posta à parte uma κτητικη τ. (ktétike t), habilidade que não deixa de ter
relações, certamente, com a criação propriamente dita, são, pois, abrangidas
as religiões, os costumes, o direito, a política, as técnicas de todos as ordens,
a medicina, as pórprias ciências e a filosofia. (PASSERON, 1997, p. 109)
Assim, a prática poética se faz mestiça como o próprio conceito de mestiçagem;
Ele é móvel e mutante, necessariamente inclusivo, talvez incerto e informe,
marcado pelas transversalidades possíveis que o fazem avançar de modos
oblíquos e pelos sentidos que escorregam pelos vãos e frestas ou que se
materializam entre dois ou mais elementos. Ele é, sobretudo, aberto ao devir
que acompanha a arte existente e aquela que se elabora sob os nossos olhos,
nas contradições, nas lutas e nos encontros do presente. (CATTANI, 2007, p.
33)
17
Os definidos e exemplificados por Cattani (2007) são: deslocamento de sentidos, apropriações e
justaposições, desdobramentos e ambigüidades, proliferações e transversalidades, migrações, poiética/
poética e U-topos.
80
Colagem e apropriação
Como puro encantamento, em pleno século XXI, faço a colagem de maneira
“tradicional” - com cola, sujo o dedo, não uso pincel essa viscosidade me nutre e leva
a um prazer sem descrição. Poderia estar “copiando e colando” no computador, mas
não. Estou recortando, lambuzando e reconstruindo um mundo colado.
É difícil separar o que é colagem e o que é apropriação em meu trabalho. Tudo é
colagem, tudo é apropriação. Tudo o que aproprio eu colo e, tudo o que eu colo é
apropriação. É uma constante em minha poiética, uma constante em minha poética.
Tudo me aproprio e tudo colo. Esse vaivém constante me leva a considerar essa maneira
de trabalhar, como reflexo de minha formação. Entendo-me como “colagem viva” das
várias relações apropriativas que me constituem.
Ligado a minha ação de olhar, escolher determinada imagem, em meio à
multidão imagética, se pela eleição não aleatória, mas emocional com a imagem.
Esse objeto eleito com que tenho reciprocidade, que atrai e retém meu olhar, gerando
emoção e indo ao encontro do desejo de possessão. Assim me aproprio - é meu! Colo
para reiterar minha apropriação nesse procurar, obter, reter, cortar a imagem de um livro
ou a lembrança de uma oração feita na “catequese” da primeira comunhão.
E aproprio desde um simples botão que aprendi a pregar com minha mãe, até
as relações metafóricas que implicam a imagem da Virgem Maria. Colo desde um
recorte de revista a um ato ritual. Berthet (BERTHET, 1998, p. 8) propõe pensar a
apropriação como um diálogo; entre culturas, obras, autores, locais. Que, se num
reencontro, cosmopolita, mestiço, em constante fazer e análise crítica. “A apropriação
de um ponto de vista é reencontro, uma reflexão, uma análise que desemboca sobre o
singular e a inovação”
18
.
Estabeleço um jogo quase obsessivo na busca de revelar uma a uma essas
imagens. Imagens virtualmente armazenadas na memória museu imaginário,
armazenadas em meu arquivo de imagens, que revelam-se em novas concepções/
construções do que é visto. Não me atendo simplesmente a um reproduzir, mas
incitando o surgimento de outra obra que propõe novas maneiras de olhar. Desafio a
intenção de fazer buscar na memória a identificação de formas e sentimentos em uma
18
Tradução livre: “L’appropriation de ce point de vue est une rencontre, une flexion, une analyse
débouchant sur du singulier et de l’innovation”.
81
história da arte (que, universal, torna-se particularizada), uma história de vida (que traz
ao trabalho seus questionamentos), um sentir religioso múltiplo e latente.
Partir de uma imagem pronta e nela interferir, dela fazer outra coisa. De uma
cópia neutra, criar um original rico em sentidos. Trata-se de processo
característico da arte, o oposto da univocidade das técnicas de reprodução.
Bolas para a imagem de partida! O que interessa é o que se pode fazer com
ela. (Cattani in FARIAS, 2004, p. 129).
Passetti (2007) mostra como a colagem é incorporada ao pensamento de Lévi-
Strauss quando apresenta sua noção de bricolagem
19
. Observando que as criações de
bricolagem se reduzem sempre a um arranjo novo de elementos, ao nascer universos
novos de seus fragmentos. E vai adiante;
A colagem não agrupa qualquer resto de papel só porque ele está à disposição
para ser colado. Há uma seleção prévia, subordinada ao acaso e supostamente
às forças do inconsciente, o que é completamente diverso de uma atitude que
propositalmente faz um inventário das diferenças, como um catálogo, e junta
todas as nuances (como se isso fosse possível) numa listagem que será
chamada de colagem, e elogiada como criativa. A colagem não está
preocupada em dar visibilidade ao diverso; ela busca descobrir as relações
entre os elementos que ocupam um mesmo espaço. A colagem é seletiva,
como é o mito e a bricolagem. Se o repertório é finito, os recursos escassos,
isto não significa que todos serão utilizados. (PASSETTI. 2007, s/p.)
Recém nascida, a Virgem Maria me encara e questiona: “- Sou construída do
colar dos materiais que achas pela frente?” Não! Colo apenas aquilo que esta ao meu
alcance, não de forma indiscriminada. Colo o que faz parte de meu cotidiano, minhas
memórias, os materiais que sempre estiveram ali, num trabalho de redimensionamento,
que busca a resolução irresoluta de elementos díspares, advindos das mais diversas
fontes – que coladas te formaram e me constituem.
Colo a imagem da Virgem Maria. O que marca é justamente o fazer manual. A
manualidade da busca, do recorte, da montagem, da construção. O fazer manual que se
abre em múltiplas possibilidades, a cada vez que pego a tesoura e a cola. É o ato de
recortar e colar que alimenta e que encanta. A gestualidade de um fazer, que se faz
“tradicional”, frente a multiplicidade de meios e avanços tecnológicos. Desligo-me do
mundo, na construção de um mundo particular colado.
19
Utilizou-se do termo, para, descrever testes padrões característicos do pensamento mitológico e,
introduz o conceito como atividade intelectual e como atividade mitopoética; num oposto a atividade
imaginativa e sem pré-conceitos do “bricoleur” (que trabalha em maneiras de bricolagem) com o trabalho
ordenado e metódico do engenheiro e suas certezas científicas, se utiliza os meios (matérias- primas,
instrumentos) que tem à mão, não realizando seu objetivo a partir de um projeto. Utiliza assim a
linguagem da bricolagem para distinguir o pensamento mítico do pensamento científico; o primeiro
apoiado no signo e o segundo nos conceitos.
82
O que eu colo?
Obras que talvez quisesse ter feito, que admiro e que, por vezes, venero. Que
consegui através de uma cópia” sei como, que “xeroco”. Roupas que queria ter
usado. Que pesquiso sua história e me fascinam. Botões que trato como jóias. Adesivos
que colam em si mesmos, revoadas de borboletas. Flores - de tecido, de plástico, de
biscuit. Penas, vasos, pérolas, passamanarias. Fitas – de cetim, de veludo, de organdi, de
organza, de natal, xadrezes, lisas, estampadas e gregas. Bijuterias, escapulários,
rosários, medalhas, anéis. Santinhos de papel, gesso, resina, bronze, ferro.
Calendários, bandejas rendadas, bandejas de papelão. Tecidos - de algodão, seda,
microfibra, brocados, veludos, tapeçarias. Rendas de nylon, de guipure, valencianas,
francesas e italianas. Baralhos de tarô, revistas, livros e filmes do cinema, da TV, das
propagandas. Teatros, óperas e balés.
Colo memórias, lembranças, questionamentos, metáforas, vivências, traumas,
emoções, orações, cantos, amizades, passagens, teorias, práticas, oferendas, esperanças,
pedidos, olhares meus, teus, da Virgem; tempos, espaços, culturas, invocações,
cenários, realidades, virtualidades, reproduções, autenticidades, industrializações,
manufaturas, artesanatos, preciosidades, dúvidas, certezas, dualismos, espíritos, fé,
superstições, crendices...
Posso me enquadrar, por vezes, nas premissas de Chiarelli e na prática do "uso
de imagens de segunda geração", a qual chama “citacionismo”
20
. Sobre o qual o artista
transita, sem prender-se à linearidade da história.
Pelo contrário, percebe-se nela a necessidade de manter um olhar
retrospectivo, produzindo obras cujo valor não está na novidade absoluta das
formas – que caracterizou principalmente as vanguardas históricas –, mas sim
na elaboração de outros sistemas visuais significativos, criados a partir da
conjugação de imagens e processos lingüísticos preexistentes (e muitas vezes
conflitantes), todos eles recolhidos naquele universo de imagens, referido.
(CHIARELLI, 2002, p. 100)
Mas, como disse Nicolaiewsky, “Este trabalho se propõe a ser uma reflexão
sobre o processo criativo em artes plásticas, a partir do testemunho do criador”
(NICOLAIEWSKY, 1997, p.2), devo confessar que, no momento de criação, não me
importo citar Leonardo Da Vinci ou citar o “camelô” de quem comprei adesivos. No ato
de criação me preocupo em colar elementos que juntos formem a Virgem Maria. Em
20
Como algo que está implicada com os avanços tecnológicos do último século, Uma tecnologia que
inicialmente foi usada para registrar o presente, construir uma memória material e preservar o passado,
passou a ser usada como matéria prima para composição de novas obras.
83
minha busca “barroca”
21
, que me faz detestar o vazio
22
. Não basta ter uma imagem
construída, preciso sempre transformá-la, colar, enfeitar, carnavalizar, o que leva a uma
imagem citada, mesmo que inconscientemente, da história da arte em assumir um
caráter “popular”.
21
“A ousadia de romper padrões convencionais e o sentido de liberdade plástica praticamente ilimitada,
em rebelião contra o funcionalismo, são duas características do barroco.” (CASTEDO, 1980, p.93)
22
Um Horror vacui que leva ao preenchimento de toda a superfície do trabalho com detalhes
ornamentais, figuras, e sempre mais “alguma coisa”.
84
Aporte do Popular
Não há como encarar a Virgem Maria católica e não se ater ante a ornamentação
que leva diretamente a pensar nos aspectos populares da religiosidade e folclore
brasileiros. Mas, deve-se ter bem claro que a situo na condição de popular, adotando
esse popular como maneira de se desenvolver a poética do trabalho.
Entender o popular contemporâneo implica o abandono de conceitos que
considera a cultura popular como essência pura e expressão da personalidade de um
povo; mas aproximar-se do pensamento de Antonio Gramsci, ao ponderar sobre os
cantos populares em que identifica o canto popular como o sendo não o composto pelo
povo nem para o povo, mas aquele que em que o povo se apropria por serem coerentes
com seu modo de sentir e de pensar. Tauk Santos (TAUK SANTOS, 2008, p. 2 e 3 )
aponta e, segue ainda:
Com as mudanças sócio-culturais decorrentes dos processos de globalização,
a perspectiva de pensar culturas populares de forma relacional à cultura
hegemônica, mediatizadas pela noção de classe, cede lugar a uma abordagem
considerando-as em processo de hibridização com a cultura massiva e as suas
relações com o consumo. (TAUK SANTOS, 2008, p. 4)
Apontando a hibridização cultural como “processos sócio-culturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini apud TAUK SANTOS, 2008, p. 5).
Num processo de “reconversão cultural”
23
em que notadamente a Virgem Maria se faz
aporte do popular enquanto resultado de uma cultura híbrida, que se faz compreender
através das mesclas de assimilações e conflitos,
A hibridização cultural segue engendrando a pós-modernidade latino-
americana, pois de um lado representa persistência de costumes, pensamentos
antigos, como resultado do acesso desigual das culturas populares à
modernidade; por outro lado, como afirma Canclini, ‘essas hibridizações
persistem porque são fecundas ao combinar a iconografia pré-colombiana o
geometrismo contemporâneo; entre a cultura visual e musical de elites, a
popular pré-massiva e a das industrias comunicacionais’. (TAUK SANTOS,
2008, p. 6)
Assim, a Virgem Maria se faz linguagem de manifestação cultural híbrida que
nasce do cruzamento entre o culto e o popular e opto pelo aporte do popular. Ao
compreender que, em seu cerne, as manifestações de cultura envolvidas, na
23
Intenção deliberada de reconverter um código cultural, pré-existente, em novas condições de produção
e mercado (Canclini apud TAUK SANTOS, 2008, p. 5)
85
corporificação da obra Virgem Maria”, não se mesclam, mas permanecem em choque
constante, apesar das “aparências”, ou seja a obra é mestiça.
A Virgem Maria insere-se em uma possibilidade visual contemporânea, em que
se perde o roteiro e o autor não como “estilo”, mas como a co-presença tumultuada de
todos em um lugar, onde os capítulos da história da arte e do folclore se cruzam entre si
e, com as novas tecnologias culturais, entrelaçando-se umas com as outras conseguindo
uma eficácia que não conseguiriam sozinhas. Eficácia garantida pela obliqüidade da
trama. Afinal, como aponta Suely Rolnik (ROLNIK, 1998, p. 129) “A cultura brasileira,
como sabemos, nasce sob o signo de uma multiplicidade variável de referências e sua
mistura”; e a cultura popular nasce de uma questão de sobrevivência ,da “necessidade
de constituir aqui um território de existência, um ‘em casa’ feito da consciência do que é
vivido cotidianamente” (ROLNIK, 1998, p. 129) resultando uma “estética viçosa,
irreverente e inventiva”.
A Virgem Maria se faz descoleção, que possibilita irreverências e abre
possibilidades de relativizar fundamentos religiosos. A Virgem Maria se encontra e se
mistura em seus gestos e objetos de procedências variadas.
Faz-se ainda desterritório ao não transitar por um território seu, nem meu,
nem de um popular “genuíno”; mas um território que mescla em seu cerne os aportes de
todos em um espaço territorial só seu e assim múltiplo e em constante transformar-se.
De uma memória errática, construída do que aproprio e colo, de flertes pelo
aporte do popular, descolecionada e desterritorializada, a Virgem Maria desce de seu
altar e sai à busca de seu território, que não mais é mais o do “sagrado”, mas tampouco
o do “laico” puro. Carnavalizada, busca entender-se nesse jogo sacro/ profano que
melhor compreendo na relação religião/ carnaval.
86
Carnaval votivo
Impossível pensar o ser brasileiro, desde seus aspectos formadores, e não pensar
carnaval, bem como não pensar em sua religiosidade. Assim, a Virgem Maria se
constrói na tensão de saber se é puramente expressão do religioso ou - numa sociedade
como a nossa e por sua construção - se é expressão de um profano que aqui se faz
carnaval.
Da Matta mostra, o carnaval (bem como as paradas militares do “Sete de
setembro”
24
e as procissões) como, princípios básicos da ritualização do mundo
brasileiro;
Através das quais a chamada realidade brasileira se desdobra diante dela
mesma, mira-se no seu próprio espelho social e ideológico e, projetando
múltiplas imagens de si própria, engendra-se como uma medusa, na sua luta e
dilema entre o permanecer e o mudar. (MATTA, 1978, p. 35)
Mostra ainda que os carnavais são “momentos muito mais individualizados,
sendo vistos como propriedade de todos, como momentos em que a sociedade se
descentraliza” numa situação em que o “comportamento é dominado pela liberdade
decorrente da suspensão temporária das regras de uma hierarquização repressora”
(MATTA, 1978, p. 38) como também nos mostra Hiram Araújo, ao tratar o carnaval
como válvula de escape, que libera tensões sociais e permite a convivência nas
sociedades divididas por classes;
No carnaval ficam suspensas as regras que controlam o olhar. O mundo se abre
ao poder ver e ao poder fazer, com inversões tais como pobre despertando a
inveja dos ricos e o estabelecimento de relações de desejo e de profunda
lascívia. (ARAÚJO, 2000, p. 7)
A Virgem Maria se constrói, a maneira como Isidoro Alves interpreta a festa do
Círio de Nossa Senhora de Nazaré “envolve as dimensões sacralizadas e devocionais
com aquelas carnavalizadoras, informais e comunitárias” (ALVES, 2005, p. 316) no
que, se utiliza da definição de Da Matta e pensa em um “Carnaval sagrado” (apud
Alves, 2005).
A ritualização religiosa no Brasil, ainda que consideremos suas origens
portuguesas, passa (em sua versão impregnada de um catolicismo popular) por
esquemas culturais e por sistemas de significados e significações que lhes são próprios,
conforme o pensamento de Isidoro Alves. Assim trabalha com a expressão descritiva
24
Comemorativas a Independência do Brasil.
87
“carnaval devoto”
25
; que um caráter conceitual ao englobar essas duas disposições
que fogem da dicotomia sagrado/ profano;
De um lado, as ões absolutamente informais, mas que não podem chegar a
uma inversão total e única (como no carnaval brasileiro) e de outro, a devoção,
marcada pelos atos e comportamentos formais, com regras de acesso ao
sagrado bem definidas e o respeito expresso na contrição devida à Santa.
(ALVES, 2005, p. 330)
Mostra-se a Virgem Maria no meio termo do profundo respeito (e sua
simbologia correspondente) e da alegria que se faz festiva no colorido e “douração”
exuberante, numa convivência que à leva descer do altar, da “conga”, e tornar-se
personalidade familiar. Numa conjunção cósmica, que aponta sentimentos idealizados
em uma sociedade, que só na aparência, se mantém em equilíbrio.
Construo a Virgem Maria, reflexo da tensão religião X carnaval que assume o
caráter respeitoso, sacralizado de uma e crenças, fortemente calcadas pela história de
vida e inserção do cotidiano do ‘bom moço’. Mas ao declarar a Virgem Maria carnaval,
as inversões características da festa como alegria, deboche e ironia (que não cabem no
sagrado); inverto a maneira de expressar a pessoal e opto por caminhos outros, que
não os do ‘bom moço’ que diz não a tudo ao passo que tudo aceita.
Em frente à Virgem Maria fica a pergunta: em que tempo ela está?
25
Conforme Dalcídio Jurandir referencia a Isidoro Alves.
88
Tempos
Numa seqüência imprevisível de tempos é que a Virgem Maria se apresenta.
Dou-me conta que ela possui uma maneira de “encarar” comum a sua
iconografia
26
, ou seja, o seu olhar me transmite a sensação de uma atemporalidade do
seu sofrimento e do seu júbilo espiritual. Ao apropriar e colar um novo “olhar” a esta
imagem, a atualizo temporalmente de sua situação no presente. Num jogo diacrônico, de
tensões temporais, que levam a um tempo da Virgem Maria, mas não o da Virgem
Maria figura de culto e sim o da “minha” Virgem Maria, obra produzida.
O fazer-se “religioso-carnavalizada” leva a um imbricado jogo tensivo, a
temporalidade do religioso e a noção de um “tempo fora do tempo”, no seu constante
repetir-se, onde o passado e o futuro independem entre si e o presente assume o caráter
da repetição do agora. Um tempo de festa, numa espécie de “parada cósmica”
27
, de um
tempo limiar, de um modo de vida e o mundo social que faz sua passagem anual. A
Virgem Maria assim, em sua “parada cósmica”, desfila seu tempo ritual, de crença e fé,
na alegria de um tempo que em suspensão assume o tempo de festa ao sacralizar as
inversões sociais e carnavalizar temporalidades seculares já que:
O tempo do Carnaval é cósmico e cíclico, remetendo os participantes do ritual
para fora do contexto brasileiro, colocando-os em contato com o mundo do
sagrado, do divino ou do sobrenatural. (MATTA, 1978, p. 43)
Ressalto ainda o cruzamento do tempo da infância e assim o de memória pessoal
que se cruza com o “agora” e, “congelado” no tempo da obra, permanece independente
do tempo do observador, numa ressignificação das experiências pessoais; tanto minhas
quanto do observador, pois todos têm suas relações com o “sagrado”.
Um tempo intimista da devoção, particular, interiorizado; [...]; um tempo que
estabelece novas possibilidades de sentido vinculadas ao tempo da memória
coletiva, em que a imagem da Virgem evoca o caráter atemporal da no
mesmo momento em que se impõe com o olhar distante, dos olhares estranhos
26
Cabe a Virgem Maria, iconografia e iconologia próprias a seu culto, muitas vezes pias diretas de
motivos clássicos, numa sobrevivência contínua desses motivos que, “Alguns dos quais foram usados
sucessivamente pra uma grande variedade de imagens Cristãs”. (PANOFSKY, 1979, p. 67); Como a
auréola que aparece nas imagens cristãs e, de Maria. mbolo da infinita bondade, geralmente circular
(temos auréolas triangulares simbolizando a trindade; quadrada representando alguém que vive e,
hexagonais para a representação de figuras alegóricas), oriunda dos raios que adornavam a cabeça de
Apolo, o deus Sol que vai se tornar o primeiro emblema do Imperador Constantino e depois do próprio
Cristo. Após Cristo, o Cordeiro de Deus, os anjos e todos os santos herdaram esse traço singular de
divindade: a auréola radiante. (MANGUEL, 2001, p. 62); A cada “devoção Mariana”, construiu-se uma
imagem particular que traz o fervor de seu culto, geralmente associada à denominação/ invocação que
determinada Virgem tem. E, assume suas características laicas/ populares pelo simbolismo de seus cultos.
27
ALVES, 2005, p. 323.
89
e estrangeiros que constituem a obra. (Nara Santos apud CATTANI, 2007, p.
132/ 133).
A Virgem Maria se faz possuidora de todos os tempos que não temos. Um tempo
de memórias cruzadas, que incidem sobre mim, numa trama peculiar, onde as re-
significações pessoais assumem modos de sentir, que me permitem “olhar” o tempo de
outra forma. Ou seja, numa montagem de tempos heterogêneos e impuros que não se
reduzem a história linear, mas a “montagem” de tempos de memória. Portanto, na
minha poética, o tempo é outro, que me permito carnavalizar um mito-católico, por
meio de colagens de olhares/ tempos aleatórios. O que importa é que este olhar se
encaixe em meu tempo presente isto é, na Virgem Maria que se faz obra.
90
Experimentação cenográfica
Partindo de que a Virgem Maria tem cada vez mais exigido novos e complexos
materiais que, ao somarem-se ao todo do conjunto, criam cada vez mais novos e
complexos discursos e que ela tem muito ansiado por libertar-se do jugo do suporte -
qualquer que seja ele: papel, madeira, tecido, vidro - parto pra a construção de um
verdadeiro cenário para a exibição de um dos Ofertórios produzidos.
Falo cenário no intuito de ir ao encontro que se trata da “decoração” de uma
peça de teatro ou filme, ou melhor, de onde se desenrola esse teatro de e crenças que,
trazido a baila por mim, como que a compor um local, no espaço e tempo de culto à
Virgem Maria, à figura do Feminino Sagrado.
Somam-se os mais diversos elementos, re-ativados ou melhor, re-percebidos
pela memória (como que uma busca e re-construção ‘arqueológica fantástica’ de tempos
próximos) consciente do fazer artístico pessoal onde, geram uma certa concorrência
com o ‘Ofertório” no sentido desse, ser o elemento principal da construção; mas, assim
como em uma altar de religiões afro-brasileiras e até mesmo Católica, todos os
elementos encerram em si significados próprios, fortes e latentes que, não se excluem
nem anulam-se, mais uma vez geram ‘ambigüidade mestiça’.
Pensar cenário me leva também a perceber o proposto como realmente em uma
peça de teatro; não lanço a participação corporal do observador no trabalho que se
constrói para ser visualizado a certa distância assim como se faz com uma encenação
teatral; Para Simon Marchan (apud TEDESCO, 2004, P.3);
A diferença entre assemblage e ambientação “se deve unicamente a suas
dimensões: quer dizer na assemblage andamos ao redor de algo e no
ambiente penetramos, estamos nos movendo dentro de algo.
Talvez o tempo me diga que essa “experimentação” pode ser encarada como
uma instalação
28
, ou até mesmo como um assemblage
29
- mesmo os elementos não
28
“O termo é incorporado ao vocabulário das artes visuais na década de 1960, designando assemblages
ou ambientes construídos nos espaços das galerias e museus. [...] As ambigüidades que rondam a noção
desde a origem não podem ser esquecidas, mas tampouco devem afastar o esforço de pensar as
particularidades dessa modalidade de produção artística que lança a obra no espaço, com o auxílio de
materiais muito variados, na tentativa de construir um certo ambiente ou cena, cujo movimento está dado
pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e o corpo do observador. Para a apreensão da
obra é preciso percorrê-la, passar entre suas dobras e aberturas, ou simplesmente caminhar pelas veredas e
trilhas que ela constrói por meio da disposição das peças, cores e objetos.” (Enciclopédia Itau Cultural de
Artes Visuais / Verbete: Inatalação)
29
“O termo assemblage é incorporado às artes em 1953, cunhado por Jean Dubuffet (1901 - 1985) para
fazer referência a trabalhos que, segundo ele, "vão além das colagens". O princípio que orienta a feitura
de assemblages é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à
91
estando colados fisicamente por cola; mas colados pelas relações pessoais de re-
ativação e re-significações que faço uso na construção da Virgem Maria - mas ao
acreditar que a arte, como disse anteriormente, é um processo de ir e vir; mostro aqui
o início de uma ida. Trata-se da maturação deste trabalho que com certeza extrapola o
tempo previsto de encerramento deste texto. o tempo conduzirá a ideal instauração
que este pensar/cenário se fará.
Muito de se pensar das particularidades que essa modalidade de instauração
da Virgem Maria que - se lança ao espaço, auxiliada de materiais variados (e outros, ou
não) - normalmente me utilizo na construção da obra. Para construir esse ambiente, cujo
movimento se amplia nas novas relações entre os objetos, as construções
apresentadas e agora, mais que nunca, o ponto de vista do observador. Novas dobras,
aberturas e entres que se formam pela disposição das montagens, das peças e matérias
tridimensionais (ou não) que se somam nessa nova busca.
Permito cosmogonias em cenários integrados em milhares de contribuições
cognitivas de origens as mais diversas. Submeto-me a todas estas
mestiçagens. (MIRANDA, Lenir in CATTANI, 2007, p. 298).
obra de arte. [...]A idéia forte que ancora as assemblages diz respeito à concepção de que os objetos
díspares reunidos na obra, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem o sentido original. Menos
que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do
conjunto mais amplo” (Enciclopédia Itau Cultural de Artes Visuais / Verbete: Assemblage)
92
Figura 73
93
Figura 74
Figura 75
94
Não pensar este trabalho encerrado não causa estranheza, a imagem pensa, a
Virgem Maria pensa e ao pensar encontro esse constante metamorfosear-se que, não se
alinha a nenhum tempo específico ou a padrões e datas de entregas e finalizações. Fui
recentemente saturado por essa fabulação cenográfica, que me fez povoar novos
mundos e que reinante encontra-se a Virgem Maria. Por si só já um jogo mestiço do que
se acaba e do que segue. Uma incerteza entre o que precede e o que advirá.
Apenas a imagem da Virgem Maria não está mais servindo aos seus anseios e,
ao não servi-la, não serve a mim também. Apesar de todas as imagens provocadas por
mim, com auxílio dela, espero que o espectador consiga com mais facilidade (ou não)
enxergar os lampejos que me fazem tremer ante a sua imagem e conectar-se a meus
lampejos e cintilações também.
Mas não quero apenas uma experiência visual. Para mim é necessário
carregar, nestas variedades de combinaçõs, em suas mestiçagens formais,
alguma mensagem que seja uma ponte para um pensamento, que possa nutrir
uma reflexão sobre o assombro da existência [...] diante do mundo no qual
vivo, como traçar poéticas que não sejam conturbadas e mestiças?.
(MIRANDA, Lenir in CATTANI, 2007, p. 309)
Figura 76
95
Ao propor uma nova experiência de construção e, como não poderia deixar de
ser, uma experiência de vida, uma tentativa nova (e espero exitosa) de recolocar com
potência os problemas da arte. Ao propor um espaço poético (a partir de seu âmago) que
na diferença dos discursos, suportes e meios não me impeça de ver neles a operação e
modos de “construir” a obra. Na busca de fazer-se habitar em um mundo (que por mais
estranheza que me cause neste momento) sob perspectiva distinta.
96
Conclusão
Como concluir o que com certeza, sempre estará inconcluso?
O que considero importante neste trabalho é a percepção da memória como
gatilho que dispara toda a produção e processo de criação, quer seja ela individual ou
coletiva. Hoje, estou consciente da percepção deste gatilho e tenho condições de melhor
explorá-lo, pois abrem-se novas possibilidades na criação. A exploração do espaço, por
exemplo questão nova em minha produção e suas possibilidades e desdobramentos
na soma de diversos elementos que não propunha até então. Procedimentos estes que,
tornados conscientemente agora, entram no processo de “internalização”, em que
procuro assimilar propor novas soluções plásticas, antes inimagináveis.
Buscava, desde o início do trabalho, verificar a possibilidade de aproximação e
entendimento de meu fazer, com relação a Virgem Maria, pelo viés da mestiçagem, mas
o problema sempre foi por onde começaria. Acredito em tantas possibilidades de
interpretação e aproximação. Entretanto, foi o viés da memória individual e coletiva que
me possibilitou uma melhor compreensão da obra, das vivências, do processo e, nessa
melhor compreensão o fundamental foi deparar-me com o encontro mestiço de um fazer
/ obra que sempre es imersa entre “entres” incontáveis de possibilidades
interpretativas.
Apesar das dificuldades iniciais, acredito ter atingido meus objetivos. Dar
clareza às relações da instauração da obra pelo viés da mestiçagem, com resultados
satisfatórios. No inicio, tinha muitas dúvidas; apenas a temática estava mais ou menos
delimitada. Depois de algumas tentativas frustradas na construção prática e na
construção deste texto, penso que consegui elaborar minhas intenções e ações.
Na sinuosidade do caminho que é a criação, a certeza do ganho de experiência e
enriquecimento pessoal. Enriquecimento do trabalho que por hora se concluí. Apesar da
forte ligação com a produção anterior, este trabalho é percebido como algo novo dentro
de minha trajetória. Os princípios construtivos e temáticos se expõem de maneira mais
legível, uma de minhas intenções originais.
Propus desde o início, fazer deste texto uma experiência de reflexão sobre meu
processo criativo e as possíveis implicações poéticas que dele decorrem e o fiz pelo viés
do autor, num pensamento / visão com total parcialidade. Sigo acreditando nesta
assertiva, pois creio ser a única maneira possível de tentar entender o nascimento da
obra. E penso que assim o foi.
97
Ao cruzar meu fazer, e o feito, abri uma possibilidade de leitura que se pelo
enfoque do meu olhar com relação a imagem da Virgem Maria, que se tornou muito
mais rico na medida que, pensamentos e idéias de outros autores, corroboraram para a
elucidação da hipótese dessa pesquisa. De que maneira essa fonte imagética, que se
construiu em mim pelo olhar do outro, pode ser entendida, percebida pelo meu olhar?
Tenho consciência que a abertura sempre pode ser maior e mais profunda, aqui está na
medida do alcance que meu conhecimento proporcionou.
A face do sagrado que é a Virgem Maria, perturba pelo que não é, uma face
sagrada ( Nara Santos in CATTANI, 2007). Acredito que a face do sagrado reside em
cada leitor, observador, cujo o olhar se faz pelo vislumbre da fé, em um tempo seu,
numa história outra, solta e aquém dos padrões estabelecidos. Múltipla, contraditória,
ambígua e polivalente. Um trabalho de fantasia que transgride limites - especialmente
os pessoais - em seu próprio campo de significações no acúmulo de sentidos.
A Virgem Maria que se faz obra rompe unidades, em significações
transformadas, nas suas associações paradoxais dos anacronismos agenciados por mim.
A minha Virgem Maria, enquanto imagem pensa e, enquanto obra, é portadora entre
muitos de seus “poderes” - de tornar presente o ausente. Um jogo teatralizado, na
interação observador/obra em que tudo se propõe “estudado” a impressionar, assombrar,
surpreender, num emaranhado de motivações religiosas e crenças pessoais. De quem?
Minhas? Do observador?
Talvez a maior e, mais corporal de todas as batalhas nesta pesquisa tenha sido
por buscar determinado distanciamento da Virgem Maria” que é a Virgem figura de
culto, enquanto questão de e motivação. Consegui? Penso que sim mesmo, que em
alguns momentos, parecia estar “grudado” eles muito mais que afastado. Mas como
não o seria? Minha vida e meu fazer, foram pautados na figura feminina que encontro
cada vez que olho para o lado.
98
REFERÊNCIAS
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