Download PDF
ads:
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
RENATO MOCELLIN
“RESSURREIÇÕES LUMINOSAS” – CINEMA, HISTÓRIA E
ESCOLA:
ANÁLISE DO DISCURSO EM ÉPICOS HOLLYWOODIANOS SOB A
PERSPECTIVA DO LETRAMENTO MIDIÀTICO
CURITIBA
MAIO 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
RENATO MOCELLIN
“RESSURREIÇÕES LUMINOSAS” – CINEMA, HISTÓRIA E
ESCOLA:
ANÁLISE DO DISCURSO EM ÉPICOS HOLLYWOODIANOS SOB A
PERSPECTIVA DO LETRAMENTO MIDIÀTICO
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre, pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação, linha de Pesquisa
Cultura, Escola e Ensino, da Universidade Federal
do Paraná.
Orientadora:
Prof. Dra. Susana da Costa Ferreira
CURITIBA
MAIO 2009
ads:
2
Para minha esposa,
Viviane,
que foi a inspiradora e
incentivadora deste
trabalho.
3
AGRADECIMENTOS
Ao meu irmão, Ronei Clécio Mocellin, pela sua amizade, por sua presença
mesmo distante e pelas discussões sempre proveitosas.
Aos meus pais, Alberto e Leoni, que me ensinaram a acreditar na educação.
A minha orientadora, professora Susana da Costa Ferreira, pelas sugestões,
apoio, amabilidade e dedicação ao ofício de ensinar.
Ao professor Geraldo Balduíno Horn, pela paciência e sabedoria em nos indicar
os vários caminhos teóricos e metodológicos.
À professora Rosa Maria Dalla Costa, pelas aulas que muito ajudaram a melhor
compreensão das diversas mídias e suas relações com a educação.
À professora Maria Rita de Assis sar, cujas aulas foram fontes de reflexão e
prazer.
Aos demais professores do Programa de Pós-Graduação, por contribuírem para
o desenvolvimento do potencial de seus alunos e para o êxito deste trabalho.
Aos colegas do programa, debatedores entusiastas dos problemas da educação.
Aos amigos Daniel Hortêncio de Medeiros e Adilson Longen, que incentivaram
minha “volta às aulas”.
Aos funcionários da Vídeo Um, especialmente ao Edson, pelo atendimento
sempre exemplar.
4
“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é
de hábito como coisa natural, pois em tempo de
desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade
desumanizada, nada deve parecer natural, nada
deve parecer impossível de mudar.”
(Berthold Brecht).
5
RESUMO
O cinema é um meio de comunicação que exerce enorme influência na forma
como as pessoas de um modo geral - e as em idade escolar em particular - constroem
seu saber histórico, cultural e ideológico. Inspirados na orientação pedagógica dos
Parâmetros Curriculares Nacionais - que defendem que é preciso ensinar o estudante a
pensar/refletir historicamente encaminhamos esta pesquisa para uma abordagem que
contempla o cinema como objeto de análise, direcionando-a para a investigação das
concepções históricas e ideológicas a que os alunos têm acesso através da indústria
cinematográfica. Foram analisados os quatro filmes com conteúdo histórico com maior
rentabilidade da história do cinema mundial, produzidos nos últimos dez anos: Gladiador
(2000); Tróia (2004); Cruzada (Kingdom of Heaven, 2005) e 300 (2007). O método de
análise escolhido foi a análise do conteúdo, para a qual estabelecemos duas unidades
principais de registro (que, por sua vez, agruparam diversos outros conceitos): conteúdo
histórico e conteúdo ideológico - este analisado sob a perspectiva da analise do
discurso. Este trabalho buscou avançar na discussão do cinema sob uma perspectiva
que reúne três campos de estudos aparentemente independentes: História,
Comunicação e Educação. A fundamentação teórica, portanto, está articulada em torno
de quatro eixos principais de estudo: História, historiografia e ensino da História; cinema
como indústria cultural; educação para as mídias/letramento midiático e análise do
discurso - esta como método de análise que objetiva desvendar as construções
ideológicas materializadas nas práticas discursivas para se chegar ao letramento
midiático - sem o qual o sujeito não chega a compreender o poder que os meios de
comunicação têm na construção da cultura, do conhecimento histórico, da ideologia, das
estruturas sociais e das relações socioculturais. Os filmes estudados estão repletos de
erros fáticos e anacronismos, não revelando, de um modo geral, maior compromisso
com a veracidade histórica. Seus discursos ideológicos convergem para um discurso
pró-guerra, justificado pela luta pela liberdade e conquista da paz, enaltecendo-se a
valentia do soldado que morre por sua pátria e o heroísmo das conquistas militares. A
análise do conteúdo histórico e dos enunciados presentes nas obras selecionadas
permitiram-nos fazer algumas considerações sobre a ligação entre os filmes, o passado
histórico que alegam resgatar e o ideológico da sociedade que representam.
Palavras-chave: Cinema e ensino de História; Educação, comunicação e
História; Letramento Midiático; Análise do discurso no cinema hisrico.
6
ABSTRACT
Motion pictures exert an enormous influence on how people in general - and school-age
people in particular - construct their knowledge of the world and their cultural and
ideological views. Inspired by the pedagogical orientations of the Brazilian National
Curricular Parameters – which focus on the need to teach students to think/reflect
historically - we directed this research to the analysis of films with historical content,
aiming to uncover historical and ideological constructions that students access through
films. The only four movies which grossed over $200 million dollars at the box office
during their theatrical runs in the past ten years were analyzed: Gladiador (2000); Troy
(2004); Kingdom of Heaven (2005) and 300 (2007). The method chosen for analysis of
the films was the analysis of content, for which two main units of register were
established: historical content and ideological content (both of which, in turn,
encompassed several additional concepts) analyzed under the perspective of critical
discourse analysis. This study unites three fields of apparently independent studies:
History, Communication and Education. The theoretical background, therefore, is
articulated around four main axles of study: History, historiography and the teaching of
History; cinema as cultural industry; media education/media literacy and critical
discourse analysis - this as a method of analysis that examines ideologies and
ideological constructions materialized in discursive practices - without which people
cannot arrive at an understanding of the power that the media have in their culture,
historical knowledge, ideology, and the construction of social structures and socio-
cultural relations. The four movies analyzed are filled with factual errors and
anachronisms and display a general lack of commitment with historical veracity. In
addition, their ideological discourse converge to pro-war propaganda - justified by the
maintenance of freedom and a quest for peace -, and the exaltation of the soldier who
bravely dies in the defense of his nation and on military conquests. This discourse
analysis allows us to draw a few conclusions about the relations between the films, the
historical past that they allegedly rescue and the ideological framework of the society
they represent.
Keywords: Motion pictures and History; Education, communication and
History; Media Literacy; Critical discourse analysis in movies with historical
content.
7
LISTA DE TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS
Tabela 1 - Filmes com conteúdo histórico de maior arrecadação na História do cinema......21
Tabela 2 - Arrecadação fora dos EUA dos filmes da tabela acima....................................... 22
Tabela 3 - Filmes estudados, em ordem de rentabilidade................................................... 126
Gráfico 1 - Receita mundial da indústria cinematográfica norte-americana (2001-2007)......42
Figura 1 - Capas dos DVDs de Tróia, Gladiador, Cruzada e 300....................................... 120
8
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................5
ABSTRACT.................................................................................................................6
LISTA DE TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS.........................................................7
SUMÁRIO ...................................................................................................................8
1. INTRODUÇÃO ...............................................................................................10
2. HISTÓRIA, CINEMA E EDUCÃO .............................................................25
2. 1 HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E ENSINO................................................................................27
2.1.1 História.........................................................................................................................................27
2.1.2 Historiografia................................................................................................................................32
2.1.3 O ensino da História......................................................................................................................38
2.2 O CINEMA, A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA E INDÚSTRIA CULTURAL ...................41
2.2.1 Por que Hollywood domina o mercado?.........................................................................................42
2.2.2 O Brasil e a indústria cinematográfica hollywoodiana ....................................................................44
2.2.3 Cinema, cultura e ideologia ...........................................................................................................45
2.3 EDUCAÇÃO PARA AS MÍDIAS E LETRAMENTO MIDIÁTICO.............................................50
2.4 ANÁLISE DO DISCURSO..............................................................................................................56
3. ANÁLISE DOS FILMES.................................................................................61
3.1 300 – O OCIDENTE CIVILIZADO VERSUS O ORIENTE BÁRBARO......................................61
3.1.1. A História da produção de “300”...................................................................................................62
3.1.2 A narrativa da fílmica da batalha das Termópilas ...........................................................................63
3.1.3 Contexto histórico de 300: As Guerras Médicas.............................................................................64
3.1.4 O conteúdo histórico e ideológico de 300.......................................................................................67
3.1.4.1 Identificação dos espartanos com a cultura ocidental idealizada...........................................70
3.1.4.2 Identificação de fraqueza para enfrentar a guerra com a idade avançada dos éforos ............71
3.1.4.3 Identificação dos espartanos com a heterossexualidade........................................................72
3.1.4.4 Identificação dos orientais como fundamentalistas religiosos................................................72
3.1.5 Análise geral de 300......................................................................................................................73
3.2 TRÓIA – HUMANIZAÇÃO DA GUERRA E AMERICANIZAÇÃO DE AQUILES...................75
3.2.1 Tróia na História ...........................................................................................................................76
3.2.2 Tróia segundo a obra atribuída a Homero.......................................................................................78
3.2.3 O conteúdo histórico e ideológico de Tróia....................................................................................81
3.2.3.1 Exaltação à guerra e de valores ocidentais...........................................................................82
3.2.3.2 O escamoteamento do politeísmo..........................................................................................83
3.2.3.3 A construção do ideal de guerreiro.......................................................................................85
3.2.4 Análise geral de Tróia...................................................................................................................86
3.3 GLADIADOR – PÃO E CIRCO NO SÉCULO XXI .....................................................................87
3.3.1 A História da produção de Gladiador.............................................................................................88
3.3.2 Contexto histórico.........................................................................................................................89
3.3.3 O conteúdo histórico e ideológico de Gladiador.............................................................................94
3.3.4 Análise geral de Gladiador............................................................................................................96
9
3.4 CRUZADA – A GUERRA EM NOME DA FÉ..................................................................................97
3.4.1 História da produção de Cruzada...................................................................................................98
3.4.2 Contexto histórico.........................................................................................................................98
3.4.3 Conteúdo histórico e ideogico do filme.....................................................................................105
3.4.4 Análise geral de Cruzada.............................................................................................................114
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................116
REFERÊNCIAS.......................................................................................................128
ANEXO 1 – FICHAS TÉCNICA DOS FILMES ANALISADOS...............................135
300...........................................................................................................................................................135
TRÓIA .....................................................................................................................................................136
CRUZADA...............................................................................................................................................137
GLADIADOR ..........................................................................................................................................138
10
1. INTRODUÇÃO
O cinema surgiu no final do século XIX como decorrência do avanço científico
e do aperfeiçoamento das técnicas de projeção de imagens empreendidas por
diversos cientistas. Entretanto, os irmãos Lumiere
1
são normalmente creditados
como os inventores do cinema: apesar de não terem sido os primeiros a inventar as
técnicas para criação de movimento de imagens, ou motion pictures
2
, as primeiras
cenas filmadas e exibidas publicamente, por estes franceses - em 1895, no Grand
Café, em Paris - são consideradas o marco inicial da História cinematográfica.
.Nas duas primeiras décadas do século XX houve, entretanto - por parte da
elite intelectualizada européia e norte-americana - um desprezo pela nova “arte”. O
cinema, além de ser inicialmente visto como uma simples inovação técnica, se
estabeleceu como uma diversão popular - daí, o descaso do mundo acadêmico e
intelectual. Mas foi justamente a aceitação popular do cinema que influenciou seu
uso político: com o triunfo da Revolução Russa (1917), Leon Trotsky (preocupado
empolitizar”
3
o povo) declarou que a inovação seria um contraponto para os
1
Os irmãos franceses Augusto (1862-1954) e Luis (1864-1948) Lumière, ambos engenheiros de
profissão e herdeiros da Fábrica Lumière (fabricante de películas fotográficas), foram, na verdade,
pioneiros no uso público de uma máquina chamada “cinematógrafo” uma câmera que filmava e
projetava filmes e pesava pouco mais de 5 kg (muito mais leve, portanto, que a quina patenteada
por Thomas Edison em 1889 com o nome de cinetoscópio, a principal invenção rival, desenvolvida
por um empregado de Edison, o cientista William Kennedy Laurie Dickson).
2
As imagens, como sabemos, não se movem a percepção de movimento é alcançada pelo efeito
da persistência da visão (conhecido dos romanos desde os tempos antigos e descrito por Tito
Lucrécio Caro, no século 1 a.C.) quando uma série de imagens seqüenciais é mostrada rapidamente:
cada imagem é mostrada por cerca de 1/24 de segundo, ou seja, por períodos muito curtos para que
o olho perceba a troca de imagem - o resultado é a percepção do movimento.
3
Na verdade, Trotsky utilizou o cinema para doutrinar o povo, e o para “politizar” no sentido de
oferecer a possibilidade de uma formação política e conscientização em relação à realidade. A
vanguarda russa – que apoiou os bolcheviques - imaginava uma revolução também nas artes e
pensava o cinema como uma nova estética, revolucionária ela mesma. Um exemplo disso é a
iniciativa de Alexandre Medveknine, criador do trem-cinema, que buscava levar o cinema até o povo
(percorrendo amplo território soviético e retratando a vida de operários e camponeses, com quem
elaborava conjuntamente cada filme) com o propósito de, de fato, “politizar” as massas, ou seja,
torná-las ativas no processo criador e não simplesmente consumidoras de ideologia.
11
atrativos do álcool e da religião: um suporte para a educação das massas. Mais
tarde, os nazistas alemães também utilizaram o imenso potencial propagandístico e
educativo do cinema para promover suas idéias.
Paulatinamente, as possibilidades didáticas do cinema foram sendo
reconhecidas e expandidas. Na década de 20, Abel Gance (1889-1981) - diretor
francês que produziu vários filmes históricos (Napoléon, por exemplo) - notou no
cinema amplas possibilidades para o ensino da História:
o tempo da imagem chegou... todas as legendas, toda mitologia e
todos os mitos, todos os fundadores de religiões e as próprias religiões,
todos os grandes vultos da História, todos os reflexos objetivos da
imaginação dos povos desde milênios, todos, todos, esperam sua
ressurreição luminosa e os heróis se acotovelam em nossas portas
para entrar (AGEL, 1982, p. 21).
Ainda na primeira metade do século XX, algumas escolas começaram a
utilizar filmes como material didático: em 1938, Elizabeth Laine publicou, nos
Estados Unidos, os resultados dos primeiros estudos empíricos realizados em
centros educacionais de todo o país sobre a utilização de imagens e som na
educação. A metodologia comum nestes estudos consistia em comparar, por meio
de testes orais e escritos, os avanços de classes inteiras de estudantes nos quais
estes meios haviam sido utilizados, com classes que ainda não os houvessem
utilizado. Os resultados, segundo a autora, indicavam um aumento de retenção do
aprendizado entre 20 e 27%. Como era de se esperar, estes estudos despertaram o
interesse comercial de empresários da recém-chegada indústria cinematográfica,
que viram na elaboração de filmes para utilização pedagógica um nicho a ser
explorado: a Erpi Classroom Films Inc., pioneira americana na produção de filmes
didáticos, patrocinou diversos experimentos com o intuito de demonstrar que o uso
12
de imagens melhora efetivamente o aprendizado em diversos campos (LAINE,
1938).
No Brasil, intelectuais ligados à Escola Nova
4
- como Fernando Azevedo,
Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira e Edgard Roquete-Pinto - também identificaram no
cinema um forte potencial didático. Em discurso proferido em sessão do Conselho
Internacional de Educação para o Ensino, no Rio de Janeiro, em agosto de 1963,
Anísio Teixeira ponderou sobre o papel do cinema e dos meios de comunicação da
educação:
Não somente a comunicação se fez assim universal no espaço, como
também, com os novos recursos cnicos, se estendeu através do tempo,
podendo o homem em uma simples sessão de cinema visualizar as
civilizações ao longo da História, como sucede nos grandes espetáculos
modernos em que a cultura antiga é apresentada de forma nem sequer
sonhada pelos mais ambiciosos historiadores do passado. Toda essa imensa
revolução dos meios de comunicação o poderia deixar de criar, em sua
fase inicial, antes a confusão do que o esclarecimento, sobretudo porque
esses meios não foram sequer conservados na posse dos grupos
responsáveis pela educação do homem, como a escrita e a imprensa, por
exemplo, de certo modo se mantiveram, mas se fizeram recursos para a
propaganda e a diversão comercializada, quando não para o condicionamento
político e ideológico do homem (TEIXEIRA, 1963).
Entretanto - e apesar das tentativas dos intelectuais da Escola Nova de
aproximar a escola e os meios de comunicão o uso de imagens
cinematográficas nunca foi implementado como prática didática regular. Como bem
notou Marcos Napolitano, embora o cinema não seja uma tecnologia nova, “a escola
4
Ou Escola Progressiva, cujo grande nome internacionalmente foi o filósofo do pragmatismo e
pedagogo norte-americano John Dewey (1859-1952) a quem Anísio Teixeira conheceu em 1927.
De um modo geral, este movimento representou uma tentativa de ruptura com as práticas
pedagógicas tradicionais (centradas no papel do professor, que seria o transmissor do conhecimento,
com ênfase em aulas expositivas e memorização de conteúdo). John Dewey, assim como os
escolanovistas brasileiros, acreditava que o principal papel da educação era o desenvolvimento do
indivíduo para sua inseão em uma sociedade em constantes transformações. No Brasil, a
publicação do Manifesto da Escola Nova (1932) - assinado por Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira, Hermes Lima, Carneiro Leão, Afrânio Peixoto visava impulsionar a educação como um
meio efetivo de combate às desigualdades sociais e defendia a escola pública para todos: laica,
gratuita e obrigatória.
13
o descobriu tardiamente (2003, p.11). É relativamente recente, tamm, a
preocupação sobre a não utilização ou a utilização desta mídia como ferramenta
didática preocupação refletida em obras que foram surgindo a partir da década de
90 e que apontam caminhos metodológicos possíveis para o professor
5
.
Por julgar ser de serventia para este trabalho, incluo aqui minha própria
experiência com o uso de filmes em sala de aula: em 1980, quando comecei a
lecionar História, uma das maiores dificuldades encontradas pelos professores era
que poucas escolas – mesmo entre as particulares – possuíam o material necesrio
para a veiculação de imagens em sala de aula (vale lembrar que os videocassetes,
ou vídeo players, hoje obsoletos - substituídos a partir de 1996 pelo DVD - àquela
época, acabavam de irromper no mercado norte-americano e, assim, só chegariam
ao mercado nacional alguns anos mais tarde).
Minha primeira tentativa de levar imagens para a sala de aula, em 1981,
envolveu um projetor de slides, uma fita cassete contendo, entre outras músicas,
faixas do disco long-play recém lançado pela Editora Abril, intitulado “Memórias de
Nosso Século” (com jingles e músicas relacionados à História do Brasil do período
da República Velha ao governo de Figueiredo) e cerca de 70 slides sobre a História
da República. Em uma turma do ensino médio, passava slides sobre a era Getúlio
Vargas ao som das músicas da época; os slides de Geisel eram acompanhados da
caão Apesar de você”, de Chico Buarque, e assim por diante. Tudo feito
manualmente: passava um slide, tocava a fita” com a montagem de áudio feita a
partir do disco, explicava a imagem.
5
Obras como Cinema e História no Brasil, de Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos (ed.
Contexto: São Paulo, 1994) e Como usar o cinema na sala de aula, de Marcos Napolitano (Ed.
Contexto: São Paulo, 2003).
14
Anos mais tarde, com a chegada do videocassete, acreditei - como muitos
colegas de profissão que poderia passar filmes inteiros para os alunos. Minha
primeira tentativa foi frustrante: o filme “Danton, o processo da revolução”, não foi
exatamente uma unanimidade entre os alunos, muitos dos quais se mostraram
desinteressados e inquietos durante a apresentação. Para as aulas seguintes, fiz
diversos cortes no filme e obtive melhores resultados. Com o tempo, passei a utilizar
apenas trechos de filmes, sempre fazendo intervenções para ilustrar o fato histórico
a que se referia o filme e discutindo relações entre este, sua produção e os fatos que
buscava relatar. Procurei levantar para os alunos questões do filme que não
estavam relacionadas à Revolução Francesa, comando com uma breve biografia
do diretor Andrzej Wajda, polonês militante do sindicato solidariedade. Através de
Danton, Wajda procurava condenar as práticas do Partido Comunista da Polônia,
que no icio da década de 80 impusera lei marcial e colocara na ilegalidade o
sindicato independente Solidariedade, principal foco de resistência ao regime. Isso
possibilitou aos alunos levantar discussões sobre a situação da Polônia e dos países
do leste europeu na década de 80.
Depois de mais de 20 anos trabalhando com filmes em sala de aula, acumulei
suficiente material para, em 2002, lançar O cinema e o ensino de História”, no qual
busquei abordar as vantagens e limitações do trabalho com filmes em sala de aula,
identificando e examinando diversos filmes com conteúdo histórico e organizando-os
de acordo com as épocas e temas a que se referem, fornecendo ao público alvo
uma ferramenta para a utilização do cinema em sala de aula.
Continuo acreditando no imenso potencial do cinema para o ensino de
História – que, a meu ver, é uma das matérias que melhor se adaptam ao uso desta
15
mídia, inclusive pela abundância de filmes com conteúdo histórico e de filmes que
o, por si só, verdadeiros testemunhos de época.
Além disso, o cinema tem uma relação muito mais específica com a História
do que com qualquer outra matéria que constitui hoje o currículo das escolas de
ensino fundamental e médio: assistir a um filme sobre Biologia, Física, Química ou
Português em sala de aula não é o mesmo que assistir a um filme histórico,
essencialmente porque a maior parte dos vídeos utilizados por estas matérias é
produzida com propósito exclusivamente didático. São filmes criados e adaptados
para fins pedagógicos e um pouco mais objetivos
6
quanto a seus objetos de ensino.
Em História, ainda que alguns documentários possam atingir certo grau de
objetividade, inclusive a escolha do pico traz consigo um posicionamento
ideológico, ou a mesmo político
7
. No filme histórico, quem escreve o roteiro
escolhe o que vai contar e como contar; quem dirige, corta de acordo às suas
crenças, às creas de quem produz o filme ou às que imagina serem as crenças
melhor aceitas pelo público que pretende conquistar.
Como notou Duarte (2002), longe de tratar o cinema como apenas mais um
recurso didático-pedagógico, a escola precisa assimilar a idéia de que educação e o
cinema são formas similares de socialização: um paralelo entre as relações
construídas entre alunos e professores e as relações construídas entre espectadores
6
Embora esta objetividade deva ser sempre questionada: um documentário de biologia feito por
“criacionistas”, ainda que se apresente como científico, não é neutro e mesmo assim é utilizado
(principalmente nos EUA), para o ensino de Biologia. Do mesmo modo, um documentário “oficial”
sobre a energia nuclear nos anos 50 e 60 era utilizado para “ensinar” física nuclear e de passagem
convencia o público de que tal energia era quase inofensiva. Portanto, mesmo o mais “científico” e
isento dos documentários contém ideologias, explícitas ou não.
7
O termo político, ou política, é comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades
que, de alguma maneira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado (BOBBIO, 2004, p.
954).
16
e filmes. Neste sentido, o professor de História de certa forma “concorre” com aquilo
que o aluno aprende no cinema e em outras mídias (inclusive TV e internet) - que
constituem um poderoso meio de influência:
Não se aprende História apenas no espaço escolar. As crianças e jovens têm
acesso a inúmeras informações, imagens e explicações (...) são seduzidos
pelos apelos de consumo da sociedade contemporânea e preenchem a
imaginação com ícones recriados a partir de fontes e épocas diversas. dio,
livros, enciclopédias, jornais, revistas, televisão, cinema, vídeo e
computadores também difundem personagens, fatos, datas, cenários e
costumes que instigam meninos e meninas a pensarem sobre diferentes
contextos e vivências humanas (...) os meios de comunicação reconstituíram
com gravuras, textos, comentários, fotografias e filmes, glórias, vitórias,
invenções, conflitos que marcaram acontecimentos (BRASIL, 1998, p.38).
Não pretendemos, com isto, afirmar que o professor de História deva se
contrapor a todo meio de influência externa (o que, de qualquer modo, seria
impossível), nem julgamos que as influências dos meios de comunicação sejam
nocivas e/ou devam ser minimizadas ou eliminadas (o que também seria
impossível). Partimos, sim, do pressuposto que é papel da escola desenvolver, no
aluno, a capacidade de refletir mais criticamente sobre as informações veiculadas
por estes meios. Como? Trazendo-os para a sala de aula e dando aos alunos a
oportunidade de observar como suas mensagens são construídas, de extrair-lhes as
informações aparentes e as mensagens mais subliminares e de estabelecer relações
entre o que constitui o saber histórico escolar e os valores, idéias e comportamentos
assimilados através dos meios de comunicação.
Dentro desta perspectiva, os modelos estritamente clássicos de educação
encontram-se defasados e o professor está praticamente obrigado, em sua prática,
ao confronto entre o que o estudo da Hisria - com suas limitações - aceita como
verdade e a crião cinematográfica. Como explica Moran (2002):
17
O que tentamos contrapor na sala de aula, de forma desorganizada e
monótona, aos modelos consumistas vigentes, a televisão, o cinema, as
revistas de variedades e muitas páginas da Internet o desfazem nas horas
seguintes. [...] a escola precisa observar o que está acontecendo nos meios
de comunicação e mostrá-lo na sala de aula, discutindo-o com os alunos,
ajudando-os a que percebam os aspectos positivos e negativos das
abordagens sobre cada assunto. [...] os modelos de educação tradicional não
nos servem mais.
O fato é que, quer o professor de História utilize filmes em sala de aula, quer
não, o cinema “ensina” versões muitas vezes deturpadas e carregadas de ideologias
capazes de modificar seu modo de perceber o passado, a realidade, as sociedades
e suas crenças e conflitos. A necessidade de se aprofundar o estudo das idéias e
influências que moldam a cultura de todos os membros da sociedade, inclusive as
apreendidas” através do cinema, justifica esta pesquisa.
Estes pressupostos estão muito claros no documento que Edgar Morin
preparou em 1999, a pedido da UNESCO, sobre a educação no futuro. Neste
documento (sintetizado por Jorge Werthein e disponível no site oficial da UNESCO),
Morin expõe sua crença de que é necessário educar para os obstáculos à
compreensão humana, combatendo o egocentrismo, o etnocentrismo e o
sociocentrismo, que procuram colocar em posição secundária aspectos importantes
para a vida das pessoas e das sociedades. Isto implica em que o ensino deve sair
das matérias isoladas para um reconhecimento da unidade e complexidade humana,
organizando e unificando o conhecimento disperso nas ciências naturais, sociais,
literatura, filosofia demonstrando a conexão indissolúvel que entre as diversas
esferas de conhecimento e o ser humano.
Como podemos notar, as idéias de Morin são pautadas na
transdisciplinaridade e na religação ou (re)união dos conhecimentos sobre a
matéria, a vida, o homem, a sociedade e o planeta, que é redutor o pensamento
18
implícito em políticas sociais e educacionais redutoras, parciais, cerceadoras das
liberdades e potencialidades do ser humano. Em suma, as idéias de Morin
assinalam uma nova etapa do pensamento educacional, voltado ao entendimento de
que a contextualização é necessária para explicar e conferir sentido aos fenômenos
isolados - as partes os estudos isolados em qualquer área - só podem ser
compreendidas a partir de suas inter-relações com a dinâmica do todo:
A educação deve favorecer a aptio natural da mente em formular e resolver
problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da
inteligência geral. Este uso total pede o livre exercício da curiosidade, a
faculdade expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que
com freqüência a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de estimular
ou, caso esteja adormecida, de despertar. (MORIN, 2000).
O papel do professor é, portanto, pedagógico-político
8
: exige que este possa
apontar para as relações de dominação que estão presentes em todas as esferas da
sociedade, inclusive nos meios de comunicação de massa.
Por esse motivo, o enfoque deste estudo não é examinar as vantagens do
cinema para o ensino de História tema sobre o qual hoje certo consenso - ou
investigar sobre a melhor maneira (técnicas) de se utilizar a mídia em sala de aula
tema que vem sendo pesquisado por profissionais, acadêmicos e órgãos ligados à
educação de um modo geral e sobre o qual já há obras de qualidade publicadas.
9
8
A História política foi, durante certo tempo, desprezada pelos historiadores ligados as concepções
de uma “nova História”. Este ostracismo parece ter chegado ao fim, tendo como pioneiro René
Rémond: “A nova História do político satisfaz presentemente as principais aspirações que tinham
suscitado a revolta justificada contra a História política tradicional [...]. Abraçando as grandes
quantidades, trabalhando na duração, apreendendo os fenômenos mais globais, buscando nas
profundezas da memória coletiva ou do inconsciente as raízes das convicções e as origens dos
comportamentos, ela descreveu uma revolução completa” (TÉTART, 2000, p.127).
9
A História vai ao cinema, de Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira (Rio de Janeiro: Record,
2001); História e Cinema, de Maria Helena Capelato, Marcos Napolitano, Elias Saliba e Eduardo
Morettin (São Paulo: Alameda, 2006); A escola vai ao cinema, de Inês Assunção de Castro Teixeira e
José de Sousa Miguel Lopes (Belo Horizonte: Autêntica, 2003).
19
Este trabalho pretende abordar o cinema como objeto de análise, com
potencial de ser veículo direto para o ensino, porém com potencial de ser também
um deformador da História – criando visões distorcidas e parciais, que vão na
contramão de pesquisas diligentes de historiadores. O enfoque deste estudo é,
portanto, investigar as concepções históricas e ideológicas a que os alunos
têm acesso em filmes com conteúdo histórico. Ou, em outras palavras, o que os
filmes comerciais com conteúdo histórico estão “ensinando”
10
aos nossos alunos?
Para responder a esta pergunta, julgamos que seria necessário, no início
desta pesquisa, fazer um levantamento entre professores de História do ensino
médio, com o objetivo de determinar quais filmes deveriam compor a análise. O
trabalho de pesquisa foi iniciado com um estudo piloto
11
que influenciou o
direcionamento dado a sua continuidade: perguntamos a oito (8) professores de
História da região de Curitiba quais filmes haviam trabalhado, nos últimos anos, em
sala de aula: as respostas foram as mais diversas; perguntados, entretanto, sobre
quais filmes com conteúdo histórico haviam assistido e sobre quais filmes os alunos
mais trouxeram perguntas nos últimos anos, as respostas levaram-nos às películas
10
A televisão, o cinema e o vídeo, CD ou DVD - os meios de comunicação audiovisuais -
desempenham, indiretamente, um papel educacional relevante. Passam-nos continuamente
informações, interpretadas; mostram-nos modelos de comportamento, ensinam-nos linguagens
coloquiais e multimídia e privilegiam alguns valores em detrimento de outros” (trecho do texto as
mídias na educação, do professor da Escola de comunicação e Artes da USP, José Manuel Moran
(disponível online: http://www.eca.usp.br/prof/moran/midias_educ.htm)
11
Conduzido entre os dias 10 e 29 de Outubro de 2007, com o objetivo inicial de testar a
necessidade/viabilidade de um pré-estudo quantitativo entre professores de História do ensino médio
para determinar quais filmes deveriam fazer parte desta análise. A amostra foi definida pelo critério
de acessibilidade 8 (oito) professores de História do ensino dio, sendo 5 (cinco) da rede pública
e 3 de escolas particulares de Curitiba e região metropolitana, responderam ao Questionário
(APÊNDICE 1) contendo as seguintes perguntas: 1) Nos últimos 5 anos, você mostrou algum filme
(inteiro) ou recortes de imagens de filmes com conteúdo histórico em sala de aula? Em caso positivo,
que filmes você mostrou? 2) Quais filmes com conteúdo histórico você assistiu? Quais mais lhe
marcaram? 3) Nestes últimos 5 anos, sobre que filmes com conteúdo histórico os alunos mais
fizeram perguntas?
20
de maior sucesso de bilheteria desde o ano 2000 (sendo 300 e Tróia os mais
citados).
Obtivemos, nos questionários, amplo material: de fato, a variedade de filmes
escolhidos foi tão ampla que a “lista de mais citados” exclui mais de 40 títulos com
apenas uma citação. Poucos filmes foram citados mais de três vezes, entre eles, os
filmes mais recentes que foram sucesso de bilheteria (como era esperado): 300 e
Tróia foram os mais citados - 6 vezes; seguidos de Gladiador (4), Alexandre e
Cruzada (3). Filmes como Zuzu Angel, Canudos e A Queda foram citados duas
vezes, confirmando a hipótese de que os filmes mais citados seriam os de maior
sucesso de bilheteria, pelo alcance e interesse que normalmente suscitam no
público.
Optamos, então, pela não condução de um levantamento quantitativo de
maior escala que objetivasse enumerar os filmes mais vistos primeiro, porque um
levantamento que pudesse nos fornecer dados nacionais significativos
estatisticamente exigiria uma pesquisa à parte; segundo, porque optamos por usar o
pressuposto lógico de que os filmes mais vendidos são os mais vistos (e vice-versa)
e finalmente, porque as respostas dadas ao questionário (ver APÊNDICE 1) do
estudo piloto confirmam a lógica: os filmes apontados nas respostas são os filmes de
maior sucesso mundial de bilheteria.
A tabela a seguir contém somente os títulos de filmes com conteúdo histórico
que fazem parte da lista dos filmes com maior rentabilidade da História do cinema
mundial, organizados de acordo com sua posição na lista:
21
Tabela 1. Filmes com conteúdo histórico de maior arrecadação na História do cinema
Posição
Título Original Ano de lançamento
Arrecadação Mundial
Total (em US$)
67. Troy 2004
481.228.348
73. 300 2007
456.592.000
75. Gladiator 2000
456.200.000
168. Schlinder's List 1993
321.200.000
332. Kingdom of Heaven
2005
208.300.000
338. JFK 1991
205.400.000
Fonte: IMDb. http://www.imdb.com/boxoffice/alltimegross?region=world-wide
O site The Internet Movie Database, ou IMBb, fornece acesso a um banco de
dados com informações numéricas sobre os filmes de maior sucesso de bilheteria no
mundo (filmes que arrecadaram, exclusivamente em exibições nos cinemas, uma
quantia superior a 200 milhões de dólares atuais). A lista completa é encabeçada
pelo filme Titanic (1997) - que arrecadou quase 2 bilhões de lares mundialmente -
e contém títulos conhecidos de todos, inclusive o clássico Gone with the Wind (E o
Vento Levou), de 1939 - que ocupa ainda a honrosa posição 106 na lista. A página
de relatórios do Observatório do Cinema e do Audiovisual da ANCINE - o órgão
governamental que hoje seria o responsável por divulgar ao público dados da
indústria no Brasil (http://www.ancine.gov.br/oca/), não dispõe de relatórios de
bilheteria dos filmes estrangeiros exibidos nacionalmente. Porém, o relatório da
ANCINE sobre filmes nacionais lançados entre 1995 e 2007 demonstra que a
produção nacional de filmes com conteúdo histórico atingiu com Olga (2004, dirigido
por Jayme Monjardim) seu sucesso máximo pouco mais de 3 milhões de pessoas
assistiram ao filme, que arrecadou em torno de 20 milhões de reais (Fonte:
http://www.ancine.gov.br/oca/rel_seriehistorica.htm).
Se considerarmos que:
1. O cinema brasileiro abocanha uma fatia do mercado cinematográfico,
dentro do Brasil, que normalmente o ultrapassa a casa dos 12% - os anos
22
2003 e 2004 foram exceções, com porcentagens de 22% e 17%
respectivamente (FONSECA, 2005); e
2. A indústria cinematográfica norte-americana é a maior distribuidora de
filmes do mundo e domina 90% do mercado mundial (ACKERMAN e SILVA,
2002);
Acreditamos ter suficiente razão para intuir que um levantamento em maior
escala retornaria resultados similares aos do estudo piloto que coincidem com os
da Tabela 1. Desta lista, optamos por analisar os filmes mais recentes (produzidos
nos últimos dez anos): Gladiador (2000); Tróia (2004); Cruzada (Kingdom of Heaven,
2005) e 300 (2007)
12
a tabela a seguir resume a receita dos mesmos filmes,
excluindo a arrecadação dentro dos Estados Unidos.
Tabela 2. Arrecadação fora dos EUA dos filmes da tabela acima
Fonte: IMDb. http://www.imdb.com/boxoffice/alltimegross?region=non-us
Do ponto de vista metodológico, optamos pela utilização da análise de
conteúdo (que, como nota Minayo, 2004, p. 74, destaca-se como técnica pela
“função de descobrir o que está por trás dos conteúdos manifestos, indo além das
aparências do que está sendo comunicado”). Para este fim, foram estabelecidas
algumas unidades de contexto ou unidades de registro, que facilitam a análise de
conteúdo por agrupar idéias ou conceitos:
1. Conteúdo histórico: adequação dos fatos - instâncias de erros ou
distorções; reducionismos; anacronismos; caricaturizações;
12
Os filmes Schlinder’s List (A Lista de Schlinder, 1993) e JFK (1991), não foram citados no estudo
piloto e, por terem sido produzidos há mais de 15 anos, não serão estudados.
Posição
Título Original Ano de lançamento
A
rrecadação fora dos
EUA (em US $)
% arrecadação
fora dos EUA
43. Troy 2004
348.000.000
72,31
80. Gladiador 2000
258.264.745
56,56
90. 300 2006
246.000.000
53,92
186. Kingdom of Heaven
2005
164.200.000
78,83
23
2. Conteúdo ideológico: relações do filme com a cultura que o produziu e seu
tempo histórico, visões que o filme pretende endossar/moldar sobre todos
os aspectos da vida: familiares, políticos, religiosos, afetivos, etc.
Do ponto de vista do conteúdo hisrico, amiúde sou abordado por alunos e
professores de outras matérias com uma pergunta que varia na forma, mas que
encerra sempre a seguinte questão: “é possível saber o que é realmente História, e
o que foi inventado através dos anos e recontado tantas vezes que hoje aceitamos
como histórico?- Esta problematizão compreende a questão da possibilidade do
conhecimento histórico: se considerarmos que a História foi, desde sempre, uma
projeção do pensamento contemporâneo sobre o passado, entendemos que a
completa objetividade é impossível: assim como os filmes que pretendemos analisar,
a História certamente foi, e será sempre, contaminada pela subjetividade e ideologia
do historiador e, assim como em qualquer outro campo de estudo, o conhecimento
de toda a “realidade” é epistemologicamente impossível. Entretanto, como ocorre
com qualquer disciplina científica – e a História como ciência cujo objeto de estudo é
o passado da humanidade tem este compromisso submete-se aos métodos
científicos das ciências sociais. Isto quer dizer que a formulação do conhecimento
hisrico perpassa critérios que nos permitem, com certo grau de certeza, afirmar
que alguns fatos ocorreram e outros não.
Uma discussão sobre História, historiografia (que, em sentido amplo, refere-
se à metodologia e práticas empregadas na escrita da História) e ensino da História
inicia a Parte II deste trabalho, que delimita vários conceitos e pressupostos teóricos
que serviram de embasamento para esta pesquisa. Apresentamos, também, uma
breve História do cinema e os fundamentos utilizados para a análise do conteúdo
ideológico, partindo dos conceitos de indústria cultural (de Theodor Adorno e Max
Horkheimer) e de ideologia e hegemonia, articulados magistralmente por Antonio
24
Gramsci. A análise dos filmes, por sua vez, está embasada em dois campos de
estudo relativamente recentes e interligados: a noção de educação para as
mídias/letramento midiático e a análise do discurso campo da lingüística e da
comunicação que busca desvendar as construções ideológicas presentes nos
enunciados que compõem os discursos - aprofundados nos subitens 2.3 e 2.4,
respectivamente, desta pesquisa.
A terceira parte do estudo apresenta, de forma detalhada, as análises dos
filmes 300, Tróia, Gladiador e Cruzada e na quarta parte são apresentadas as
considerações finais do trabalho, seguidas das referências utilizadas, apêndices e
anexos.
25
2. HISTÓRIA, CINEMA E EDUCAÇÃO
Na obra coletiva “Faire de l’histoire” (1974), dirigida por Jacques Le Goff e
Pierre Nora, Marc Ferro publicou o artigo chamado “O filme: uma contra-análise da
sociedade” onde procurou refletir o cinema como documento fílmico, possuindo,
portanto valor de fonte histórica, pois oferece testemunhos diretos e indiretos da
sociedade que o produziu. Para Ferro, a análise dos produtos cinematográficos pode
ser empreendida por vários prismas, conforme revela Susana da Costa Ferreira:
(…) como agente da História; como instrumento de observação e
planejamento nas táticas militares; como forma de indução, favorecendo ou
estigmatizando (propaganda); como propostas de visões de mundo iditas,
novas leituras da realidade social; como possibilidade de autonomia e de
contra-poder; como capacidade de intervenção na sociedade por meio de
modos de ação que tornam os filmes eficazes, operatórios (produção,
comercialização, seleção de gêneros, referências e significados culturais) e
como linguagem que inclui formas de censura e autocensura” (FERREIRA,
2003, p.2-3).
Apesar de destacar o pioneirismo de Marc Ferro, Eduardo Morettin alerta que
as tensões internas de um filme vão além do jogo de manipulação de uma “História
oficial” em oposição a uma contra-História” ou ainda a busca da “verdade” por trás
de uma película, sugerindo que se analisem as ambigüidades das imagens - o que
torna difícil uma leitura objetiva do fato histórico, da necessidade de um exercício
crítico do uso do cinema como fonte, que busque desvendar, nos filmes, seus
projetos ideológicos. Similarmente, Marcos Napolitano observa que:
(…) o filme histórico encena o passado, porém, olhando para o presente.
Trata-se de um olhar sobre o cinema, como fonte e veículo de disseminação
de uma cultura histórica, com todas as implicações ideológicas e culturais que
isso representa (NAPOLITANO, 2008, p.246).
O historiador, portanto, não deve perder de vista que cinema é manipulação e
essa natureza deve ficar clara em todo trabalho historiográfico:
26
Se não conseguirmos identificar, por meio da análise fílmica, o discurso que a
obra cinematográfica constrói sobre a sociedade na qual se insere, apontando
para suas ambigüidades, incertezas e tensões, o cinema perde a sua efetiva
dimensão de fonte hisrica (MORETTIN, 2003, p. 40)
Até a poucos anos, à escola (professores e, principalmente, alunos), não era
facultado o questionamento dos métodos de apropriação do conhecimento – o saber
hisrico vinha “pronto” nos livros e apostilas didáticos e a memorizão do conteúdo
fático era não apenas o suficiente, mas o esperado da escola. Hoje, espera-se tanto
dos professores quanto dos alunos, ao final do terceiro ciclo do ensino médio, que
tenham noções dos métodos do conhecimento histórico e que possam ser críticos
em relação à construção do saber histórico escolar:
A apropriação de noções, métodos e temas próprios do conhecimento
histórico, pelo saber histórico escolar, não significa que se pretende fazer do
aluno um pequeno historiador e nem que ele deve ser capaz de escrever
monografias. A intenção é que ele desenvolva a capacidade de observar, de
extrair informações e de interpretar algumas características da realidade do
seu entorno, de estabelecer algumas relações e confrontações entre
informações atuais e históricas, de datar e localizar as suas ações e as de
outras pessoas no tempo e no espaço e, em certa medida, poder relativizar
questões específicas de sua época (BRASIL, MEC. PCN História, 1998).
O papel do professor de História é, dentro deste desafiante contexto da
escola, o de propiciar as situações de troca para que o aluno possa estabelecer as
relações entre o estudo da matéria e a realidade. A primeira competência específica
que o ensino de História objetiva desenvolver esrelacionada à representação e
comunicação:
Criticar, analisar e interpretar fontes documentais de natureza diversa,
reconhecendo o papel das diferentes linguagens, dos diferentes agentes
sociais e dos diferentes contextos envolvidos em sua produção. Desenvolver
procedimentos que permitam interrogar diversos tipos de registros, a fim de
extrair informações e mensagens expressas nas múltiplas linguagens que os
seres humanos utilizam em suas práticas comunicativas e nas diferentes
formas de conhecimento que constroem sobre o mundo. Ao interrogar as
variadas fontes em suas múltiplas linguagens e suas especificidades
escrita, oral, gestual, pictórica situar os autores e os lugares de onde falam,
27
os grupos sociais com que se identificam, seus interesses e os objetivos
envolvidos na sua produção (BRASIL, 1998).
Aprofundamos, a seguir, a relação existente entre o ensino de História, o
cinema (que, como meio de comunicação, é formador de concepções históricas e
ideológicas), a educação para os meios na formação escolar e a análise do discurso
como uma prática e campo de estudo da comunicão e da lingüística que objetiva
desvendar as construções ideológicas nas práticas discursivas.
2. 1 HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E ENSINO
2.1.1 História
O vocábulo “História” vem do grego e quer dizer “investigação”, “informação”
ou ainda procura”. Desde o mundo antigo a escrita da Hisria, bem como mais
tarde o seu ensino, tem variado de acordo com as contingências políticas e
ideológicas: da História narrativa de Heródoto (que apresenta os acontecimentos
sem maiores preocupações em registrar suas causas ou mesmo sua veracidade) à
concepção de História científica (de preocupação com a veracidade e de análise de
causas e conseqüências), influenciada pelas correntes filosóficas do século XIX.
Num período marcado por noveis avanços científicos, os historiadores do
século XIX procuraram fazer da História uma ciência. A Escola Metódica também
chamada de Positivismo Histórico, inspirada nas teses de Leopold von Ranke,
estabeleceu um conjunto de critérios empíricos de análise documental tendo como
objetivo relatar os fatos tais quais eles aconteceram. Produziu-se uma História de
eventos”, numa narrativa cronológica da História política, diplomática, das guerras e
dos “grandes homens”. Ainda no século XIX, foram significativas as contribuições de
28
Karl Marx, que destacou a importância dos elementos econômicos e sociais na
análise histórica. O seu controvertido método de interpretação da História, ou
materialismo histórico, exerceu enorme influência sobre os historiadores do século
XX.
Na França, Lucien Febvre e Marc Bloch - influenciados pelo marxismo -
fundaram em 1929 a revista dos Annales, com o objetivo de romper com a Escola
Metódica e inscrever a História numa perspectiva mais ampla de reflexões
econômicas e sociais: ampliaram a visão do que é um documento, romperam com
os estreitos limites de uma História nacional e estabeleceram diálogos com as outras
ciências, como a geografia, a antropologia e a etnologia , por exemplo.
Marc Bloch redigiu - enquanto estava preso, durante a Segunda Guerra
Mundial (era judeu e participara da Resistência Francesa e acabou fuzilado em
1944) - uma espécie de introdução à História, propondo-se a responder à pergunta
que o filho de um amigo fizera ao pai historiador: “Papai, então me explica para que
serve a História.”(BLOCH, 2001, p. 41). Nesta obra, publicada em 1949 por Lucien
Febvre com o título “Apologie pour l l’histoire ou Métier d historien - em Portugal,
com o título Introdução à História(Publicações Europa-América) e no Brasil com o
título “Apologia da História, ou, O ofício do historiador” (Jorge Zahar Editor) - Bloch
exs de forma clara e sintética elementos de metodologia de pesquisa, bem como
a sua visão de História. O historiador francês não concordava com a definição
tradicional de que a “História é a ciência do passado” pois, para ele, a “História é a
ciência dos homens no tempo” (p. 55.). Destacava, ainda, a “necessidade de unir o
estudo dos mortos com o estudo dos vivos (p. 67), ou seja, de estudarmos o
passado em função do presente. Mais tarde Pierre Vilar, da segunda geração dos
29
Annales e influenciado por Bloch, desenvolveu um conceito sintético, porém
abrangente. de História:
(...) A matéria da História e também o conjunto dos fatos passados, mas não
apenas dos fatos “curiososou “notáveis”, que se observa com atenção, as
grandes linha da evolução humana dependeram sobretudo do resultado
estatístico dos fatos anônimos: daqueles cuja repetição determina os
movimentos da população, a capacidade produtiva, o aparecimento das
instituições, as surdas ou violentas lutas entre as classes sociais – todos
esses acontecimentos de massas que têm sua dinâmica própria, entre os
quais não devem eliminar, mas submeter a uma re-elaboração, os fatos mais
classicamente denominados históricos: incidentes políticos, guerras,
diplomacia, revoltas, revoluções. Este enorme conjunto é suscetível de
análise científica, como qualquer processo na, dado que apresentam traços
específicos devido ä intervenção humana. A História converte-se em ciência
na medida que descobre processos de análises originais adequados ä
especificidade desta matéria”(VILAR, 1985, p.26).
A relação entre passado e presente foi aprofundada por vários historiadores,
inclusive por um amigo de Bloch, o historiador Lucien Febvre, cuja frase “a História é
filha de seu tempo” tornou-se célebre. Apesar de ser natural, portanto, que o
historiador parta de questões presentes para estudar o passado, Jacques Le Goff
nos adverte de que:
Esta dependência da História do passado com relação ao presente deve levar
o historiador a tomar certas precauções. Ela é inevitável e legítima, na medida
em que o passado não deixa de viver e de se tornar presente. Esta longa
duração do passado não deve, no entanto, impedir o historiador de se
distanciar do passado, uma distância reverente, necessária para que o
respeite e evite o anacronismo (LE GOFF, 2003, p.26).
A questão do tempo, abordada por estes estudiosos, é um tema complexo e
de extrema pertinência no estudo de História, pois constitui uma dimensão do
universo cultural nas diversas sociedades, que muitas vezes o conceberam e
concebem de modos distintos: para alguns povos, o tempo é cíclico esta idéia
sugere repetição, ou seja, todas as coisas e oportunidades se repetem e o fim é
sempre um novo começo. Para os hindus, por exemplo, a morte e a reencarnação
30
o parte de um ciclo em que a vida se renova. Os Astecas - um povo da
Mesoamérica - acreditavam que o mundo foi gerado quando os deuses criaram o Sol
e que a cada 52 anos eram necessários ritos e sacrifícios para garantir que o astro
voltasse a nascer - à época da conquista espanhola, os astecas esperavam o
nascimento do Quinto Sol.
na concepção judaico-cristã orientada pela crença de que Deus criou o
homem e universo e de que, finda a História humana haverá o fim dos tempos, o
Juízo Final e a Ressurreição dos Mortos - o tempo é linear, ou seja, tem como,
meio e fim. A visão de tempo linear está presente, no mundo ocidental, também nas
obras de pensadores laicos. Para os Iluministas do século XVIII, que acreditavam na
razão e no progresso, as sociedades evoluem passando por vários estágios até se
tornarem desenvolvidas. Há, tamm nas obras de pensadores socialistas, uma
clara visão de progresso no sentido de se construir embora os métodos variem -
uma sociedade mais justa através do tempo, inclusive o marxismo, que teve uma
forte influência política e intelectual durante o século XX
13
. Os manuais produzidos
na antiga União Soviética popularizaram uma concepção linear e evolucionista da
História, através de uma sucessão progressiva dos modos de produção primitivo,
escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo chegando ao comunismo, uma
escie de “paraíso terreno”. Esta conceão esquemática foi descartada por
historiadores que tomaram Marx como ponto de partida e não como ponto de
chegada (HOBSBAWM, 1998).
13
A obra de Karl Marx é extensa e controversa e é natural, como notou Jacques Le Goff (2003) que,
ao tratar uma grande diversidade de temas, alguns conceitos fiquem vagos e ambíguos, daí a
diversidade de interpretações: muitas obras daqueles que procuraram didatizar a concepção de
História de Karl Marx caíram num reducionismo e numa simplificação excessiva e empobrecedora do
materialismo histórico.
31
Essas diferentes concepções de tempo geraram diversos calendários e
variáveis concepções em relação às estações, aos meses, aos dias e as horas. O
calendário que adotamos no ocidente, por exemplo, toma por base o nascimento de
Cristo; já os muçulmanos contam o tempo a partir da Hégira, quando Maomé
emigrou de Meca para Yatreb (Medina) - enquanto o calendário Ocidental é solar, o
calendário muçulmano é lunar. Os calendários o, portanto, construções religiosas
e culturais, podendo ser, inclusive, manipulados como instrumento de poder: caso
dos sacerdotes maias, que retinham o poder fazendo previsões de eclipses e de
uma série de eventos climáticos fundamentais para o controle da agricultura.
Para o historiador, o tempo cronológico continua essencial, pois como
destacou Le Goff “nadamos no passado como peixe na água e não podemos
escapar-lhe” (1993, p. 214). Contudo, o trabalho com o tempo aparece de formas
diversas: da simples cronologia dos acontecimentos da chamada Escola Metódica
até as concepções de curta duração e de longa duração de Fernand Braudel.
Outra discussão essencial para o estudo de História é aquela que versa sobre
a objetividade/subjetividade e/ou a manipulação do passado para fins políticos e
ideológicos do presente. A busca da objetividade, segundo entendiam historiadores
do século XIX - como Leopold von Ranke deveria ser descartada, pois ao escolher
aquilo que vai estudar o historiador está sendo subjetivo. Contudo, a objetividade
hisrica pode e deve ser buscada, através de pesquisas, “de laboriosas verificações
e acumulações de verdades parciais (LE GOFF, 2003, p. 33). Corrobora com a
crença na possibilidade de objetividade histórica Eric Hobsbawm (1998), que nos
adverte de que devemos tomar cuidados para não cairmos no relativismo de que o
passado é o constructo de nossas mentes negando-se a realidade objetiva (caso em
32
que o relato bíblico da criação da terra não seria inferior ao das ciências naturais,
apenas diferente). É possível, portanto, basearmo-nos em evidências passíveis de
verificação:
Em resumo, acredito que sem a distinção entre o que é e o que não é assim,
não pode haver História. Roma derrotou e destruiu Cartago nas Guerras
Púnicas, e não o contrário. O modo como montamos e interpretamos nossa
amostra escolhida de dados verificáveis (que pode incluir não só o que
aconteceu, mas o que as pessoas pensaram a respeito) é outra questão
(HOBSBAWM, 1998, p. 8).
2.1.2 Historiografia
A História, como toda ciência, tem sua própria História, a qual tem sido
construída ao longo do tempo, desde suas origens até os dias atuais. A historiografia
é uma reflexão sobre os historiadores e suas obras, a produção e a escrita da
História, sobre os métodos históricos e as diversas correntes historiográficas.
Portanto, é necessário que se tome o objeto da História em sua historicidade
(caráter do que é histórico, ou seja, fato atestado pela História), pois “sua definição
tem mudado de acordo com as transformões e a forma como a História vem se
construindo como campo de investigação científica, com método próprio, e enquanto
disciplina, matéria que deve ser estudada” (HORN e GERMINARI, 2006, p. 24).
Em seus primórdios, a História escrita tinha como objetivo justificar o estado
monárquico estabelecendo as relações entre os governantes e as divindades
protetoras. Procurava-se, através de textos diversos, de um passado remoto forjar
uma construção histórica que justificasse um reino unificado. Além de sua finalidade
política, a História possuía “um caráter didático e moralizador(FONTANA, 2004, p.
27).
33
a historiografia grega surgiu num contexto histórico diferente das
monarquias do Oriente. As cidades-Estado da Grécia sofreram, entre os séculos VII
e IV a.C., grandes transformações econômicas, sociais e políticas que tiveram
reflexos na produção historiográfica:
O que dá um caráter novo e original ao tipo de História que começará a ser
elaborada na Grécia no século V a.C. é que não se trata meramente de uma
crônica de acontecimentos do passado, mas de uma pesquisa “histórica”de
fatos que tem a ver com o presente...(FONTANA, 2004. p. 30).
Na antiga Roma, predominou uma historiografia que seguia modelos
retóricos, com cunho moralizante e patriótico. Buscavam-se, na sociedade e nas
ões dos indivíduos, as explicões dos fenômenos históricos. Influenciados pelos
seus mestres gregos, os historiadores romanos viram no imperialismo romano o
triunfo frente a barbárie; via-se a História como a mestra da vida, pois os exemplos
dos antepassados deveriam inspirar os romanos para combaterem a decadência.
Houve uma grande ruptura com o triunfo do cristianismo pois desenvolveu-se
uma nova concepção do homem e por conseguinte da forma de se produzir a
História. Passou-se a acreditar que existe um desígnio de deus que determina a
marcha dos acontecimentos. Para os historiadores cristãos, a verificação da
veracidade dos acontecimentos tinha pouca importância - o que realmente
interessava é se o relato se coadunava com os ensinamentos da Igreja. A História
passaria a ser usada não na busca de uma melhor compreensão do mundo, mas
para difundir mensagens cristãs, para a interpretão de profecias e visando uma
preparação para a parúsia (a volta de Jesus Cristo no final dos tempos).
A partir do século XV, com o Renascimento, surgiu uma historiografia mais
crítica, com um enfoque documental que representou um grande avanço em relação
às crônicas e hagiografias produzidas na Idade Média. Porém, estava quase que
34
totalmente subordinada aos interesses dos nascentes Estados Nacionais Modernos.
Somente a partir do século XVIII que a Hisria passou a ser considerada uma
ciência humana sendo objeto de reflexões filosóficas e aparecer como um guia
racional crítico (TËTART, 2000) .
Apenas durante o século XIX os historiadores se emanciparam, conquistando
a posição de cientistas: graças ao romantismo e a sua obsessão pela Idade Média,
os estudos sobre História entraram na moda. Após os autodidatas românticos,
vieram os historiadores a quem podemos chamar “profissionais”, com especial
destaque para a escola metódica - que procurou tornar a História uma ciência,
através do método histórico-crítico de análise das fontes escritas, a valorização do
documento e a busca da máxima objetividade posvel da historia narrativa. Apesar
das enormes contribuições na coleta de documentos, na organização de arquivos,
na metodologia de pesquisa que resultou na elaboração de um apurado método
crítico-filológico, esses historiadores (Ranke, Langlois, Seignobos dentre outros)
foram posteriormente criticados para Jacques Le Goff, estes estudiosos
empobreceram o pensamento hisrico produzindo uma História política,
administrativa e diplomática (LE GOFF, 2003). Destoando com essa visão de ênfase
exacerbada à História política, Jules Michelet e Jacob Burkhardt se preocupavam
com a cultura e com as camadas populares.
Foi durante o século XIX quando, no mundo ocidental, a construção da
nacionalidade tornou-se importante - que a Hisria nasceu como disciplina nos
currículos escolares. Os grupos sociais dominantes, visando justificar seus valores
como sendo de toda a nação, passaram a construir museus e bibliotecas e a
contratar arquivistas e professores. A História passou a ser vista como “seiva da
35
pátria” e como uma pedagogia republicana”, nas expressões de Michelet, ou ainda
como a “alma da nação”, segundo Ernest Renan. O lugar da História no mundo da
instrução pública ia sendo legitimado, inclusive com a formão de docentes pelas
universidades (TÉTART, 2000).
As idéias de Karl Marx (1818-1883) tiveram, na Hisria e nas ciências
sociais, um grande impacto. O“Manifesto Comunistade 1848, escrito em parceria
com seu amigo Frederico Engels (1820-1895), apresentava de forma embrionária
uma concepção materialista da História: “A História de todas as sociedades que
existiram é a História da luta de classes” e explicava como, no mundo
industrializado, ocorrera a polarização entre a burguesia e o proletariado, que era a
única classe revolucionária, enquanto as “classes médias adotariam atitudes
conservadoras e até reacionária”. A obra de Marx “O 18 Brumário de Luís Napoleão”
coma com a seguinte afirmação: “Os homens fazem a sua própria História, mas
não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo” (MARX, 2008, p. 207).
Marx e Engels deixaram, ao longo de suas vastas produções, diversas idéias
sobre História, algumas contraditórias, pois foram concebidas em épocas diferentes
e com objetivos diferentes. Contudo, é possível destacarmos algumas características
da concepção marxista da História, o chamado materialismo histórico
14
(GÉLÉDAN e
BRÉMOND, 1988, p.219):
14
O materialismo histórico é dialético, segundo Marx, no sentido em que cada modo de produção,
gera em si próprio o seu sucessor, os coveiros do velho mundo estão presentes nas suas entranhas,
contradição viva esta que se exprime pela sua luta de classes, essencial na dinâmica histórica”
(GÉLÉDAN e BRÉMOND, 1988, p.219).
36
1. O fator determinante da História é, em última instância, a maneira como os
homens organizam a sua produção, as relações de produção.
2. O nível de desenvolvimento das forças produtivas determina a História e as
formas sociais precisas.
3. As formas políticas e ideológicas, a tradição, desempenham papel
considerável, mas não decisivo, na evolução histórica.
4. Os agentes da História são os homens reais, os trabalhadores, não são os
grandes homens, as individualidades históricas. A História não é governada
nem por herói nem por Deus.
Esta exposição esquemática não deve suscitar a ilusão de uma
caracterização definitiva e precisa do materialismo histórico, pois mesmo antes da
morte de Marx surgiram interpretações diversas que o irritavam profundamente.
Seus escritos foram interpretados e utilizados na União Soviética, especialmente na
Era Stalin (1924-1953) quando em meio a um emaranhado de citações de suas
obras, produziam-se catecismos simplificadores e justificava-se toda sorte de
caminhos políticos dissonantes com suas idéias. Fora da União Soviética,
especialmente na Inglaterra, historiadores como Edward Thompson, Christopher Hill,
Raymond Willians e Eric Hobsbawm, rejeitaram a noção reducionista do
materialismo histórico - desenvolvendo correntes de historiografia marxista não
ortodoxas, livres de dogmatismos - e procuraram articular a História Cultural, a
História Social e a História Política:
(...) A renovão dos estudos culturais trazida pela Escola Inglesa tem sido
fundamental para repensar o Materialismo Histórico particularmente para
flexibilizar o já desgastado esquema de uma sociedade que seria vista a partir
de uma cisão entre infra-estrutura e superestrutura. Com os marxistas da
Escola Inglesa, o mundo da cultura passa a ser examinado como parte
integrante do “modo de produção”, e não como um mero reflexo da infra-
estrutura econômica de uma Sociedade. Existiria, de acordo com esta
perspectiva, uma interação e uma retro-alimentação contínua entre a Cultura
e as estruturas econômico-sociais de uma Sociedade. Desaparecem aqueles
esquemas simplificados que preconizam um determinismo linear e que
haviam sido defendidos pela historiografia stalinista, e que, rigorosamente,
também já haviam sido criticados por Antonio Gramsci, outro historiador
37
marxista especialmente preocupado com o campo cultural (BARROS, 2004,
p.62).
A escola dos Annales sem dúvida renovou a forma como a História vinha
sendo produzida, trazendo as demais cncias sociais para o âmbito da História. É
necessário destacar, porém, que existiram diferenças significativas entre as três
fases dos Annales
15
. É da terceira fase a expreso “a nova História (La nouvelle
histoire), que deriva do título de uma coleção editada na França, sob a direção de
Jacques Le Goff - que também auxiliou na edição dos ensaios em três volumes
sobre os “novos problemas”, as “novas abordagens e os “novos objetos” dos
estudos da História. Esta nova História começa a se interessar por virtualmente toda
a atividade humana, como por exemplo: a História da morte, da loucura, do corpo,
dos odores, das lágrimas, da infância, da feminilidade, da leitura, do clima, da
sexualidade, enfim “tudo tem uma História”.
Devemos lembrar, ainda, que desde o início os Annales mantiveram relações
ambíguas com o marxismo: Marc Bloch conhecia bem a obra de Marx, Lucien
Febvre, por sua vez, conhecia-a muito superficialmente ambos reconheceram as
contribuições de Marx, porém atacaram vigorosamente aqueles que usavam o
materialismo histórico para produzir uma História simplista e dogmática
(BURGUIÈRE, 1993). Ao longo da História dos Annales alguns historiadores foram
francamente marxistas, como Pierre Vilar, outros como Georges Duby, sofreram
forte influência do marxismo. Porém, a partir da década de 70, observa-se um desvio
ideológico que esvazia a idéia de conflito e se afasta cada vez mais do marxismo -
15
Na primeira, destacaram-se Febvre e Bloch; na segunda, predominou Fernand Braudel que deu à
Escola dos Annales uma base institucional e na terceira destacaram-se Jacques Le Goff, Pierre Nora
e Emmanuel Le Roy Ladurie.
38
como as idéias de François Furet e Pierre Chaunu, que passaram a trilhar um
caminho conservador, com um discurso sócio-liberal:
“Furet, depois de ter militado no Partido Comunista Francês aderiu de corpo e
alma ao ideário liberal: ‘Eu me sinto bem próximo dos representantes mais
esclarecidos do pensamento liberal... Quero dizer que não existe mais
combate, no século 20, que não seja duvidoso” (DOSSE, 2003, p. 321).
A característica atual da historiografia é uma História em migalhas ou, numa
linguagem mais poética, uma “Clio despedaçada”, tais as hiper-especializações, as
fragmentações e os diversos lotes em que a História foi dividida. É inegável a
necessidade das especializações. Porém não podemos esquecer que não existem
fatos que sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais (BARROS, 2004).
Como se percebe, a produção do conhecimento histórico passa pela
concepção de História que se adota. Nesta análise, pendemos para as contribuições
mais significativas do materialismo histórico. Contudo, ao analisarmos os aspectos
factuais do mundo antigo e medieval, utilizamo-nos de obras de historiadores de
tendências diversas, desde que fundamentadas em pesquisas documentais e no
rigor dos métodos científicos, independentemente das etiquetas políticas.
2.1.3 O ensino da História
A Hisria, como disciplina autônoma, passou a fazer parte dos currículos
escolares dos países ocidentais a partir de meados do século XIX, tendo como
temática o Estado-nação. o seu ensino tem variado de acordo com as funções
ideológicas e culturais das sociedades que a organizam e definem.
Na maior parte do mundo ocidental ainda adota-se o modelo cronológico
eurocêntrico, que parte da História antiga Mesopotâmia ou Egito - e chega até os
dias atuais. Este modelo incorpora as Histórias dos povos asiáticos, africanos e
39
americanos somente quando suas Histórias se cruzam com as dos Estados
europeus. É um modelo que prioriza a Civilização Ocidental.
O modelo marxista foi utilizado na URSS e nos países que após a Segunda
Guerra Mundial adotaram, de acordo com os ideólogos soviéticos, o “socialismo
realmente existente”, regime de partido único e economia planejada. Os manuais de
História usados nestes países apresentavam também uma visão evolucionista, que
ia do escravismo - passando por vários estágios (feudalismo, capitalismo,
socialismo) ao comunismo. , nestas obras, uma concepção determinista da
História - como se inevitavelmente todas as sociedades passassem por estas etapas
e chegassem a uma era de ouro que seria o comunismo. Com algumas variantes,
este modelo ainda é adotado em alguns países - como a China e Cuba, por
exemplo.
A partir dos anos 60, surgiu um novo modelo, que procurava justapor a
História ocidental e a História de sociedades asiáticas, africanas e americanas.
Apesar da inclusão de um número maior de povos no estudo da História, o modelo
continuou eurocêntrico, pois se partia, ainda, da perspectiva européia o estudo
destes outros povos. Concomitantemente, na Fraa e na Bélgica, ao lado de uma
História temática, tentou-se um ensino da História que levasse em consideração o
status de quem recebia este ensino:
(...) Ao lado da História temática, os pedagogos, êmulos distantes de Piaget e
das escolas americanas, tentaram aprontar uma abordagem dos problemas
históricos que levaria em conta o status daquele ao qual tal ensino é destinado:
as crianças e os adolescentes, mediante o conhecimento do meio, do passado
cultural e social desses discípulos, passado que serviria de ponto de partida para
uma prática retroativa em direção ao não-conhecido. Esse método contribuiu
para tornar inteligíveis os problemas do presente, sua relação com a vida de
cada um, mas ainda é mais sociológico do que histórico (FERRO, 1993, p. 296).
40
No Brasil logo depois da abdicação de D. Pedro I em meio às rebeliões do
Período Regencial (1831-1840), os grupos dominantes viram a necessidade de criar
uma identidade nacional. Neste contexto, foi criado o Imperial Colégio de Pedro II
(1837), o Arquivo Público (1838) e o Instituto Histórico e Geográfico (1838). Em
1849, foi criada a cadeira de História do Brasil, tendo como professor Gonçalves
Dias. Somente em 1861 foi publicado o primeiro livro didático, cujo autor foi Joaquim
Manuel de Macedo, que através de uma História fática procura relatar os principais
episódios da formão do nosso povo, exaltando os feitos dos heróis nacionais.
A Proclamação da República não mudou este quadro, pois, com algumas
adaptações os valores e heróis republicanos são exaltados - continuou sendo
ensinada uma História ufanista dos valores nacionais, nos moldes que era ensinada
no Imrio. A novidade é que foi introduzida uma História regional, para atender os
anseios das oligarquias dominantes nos vários Estados, que com sistema federativo
implantado com a constituição de 1891, descentralizara o sistema de ensino.
Após a Revolução de 1930, a História passou a ter maior autonomia.
Manteve-se, contudo, a divisão em História Universal e História do Brasil. Mais tarde,
na vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.024/61), o
Conselho Federal de Educação recomendava o ensino de História Geral e do Brasil
e se possível História da América (HORN e GERMINARI, 2006). Apesar dos
avanços que ocorriam nas universidades, na educação fundamental, em essência,
pouca coisa mudou - tanto que os autores dos manuais mais utilizados continuaram
sendo os mesmos por várias décadas.
Com o golpe militar de 1964 houve, de forma deliberada, um grande esforço
para eliminar aquelas disciplinas que suscitassem reflexões e questionamentos. Em
41
um contexto de valorização do ensino técnico e descaso com as ciências sociais
ocorreu, em 1971, a reforma do ensino de primeiro e de segundo graus, através da
Lei 5.692 que, dentre outras coisas, propôs a fusão da História e da Geografia em
uma nova disciplina que passou a ser chamada de Estudos Sociais. Havia, por parte
dos governantes militares, um objetivo ideológico muito claro - que era
descaracterizar tanto a História quanto a Geografia, eliminando as potencialidades
de um ensino crítico.
Com a redemocratização dos anos 80, na maioria dos Estados, História e
Geografia voltaram aos currículos como disciplinas autônomas. Iniciou-se, então, um
amplo debate para se discutir o objeto da História, que culminou na elaboração dos
parâmetros curriculares do ensino fundamental e depois o do ensino médio.
2.2 O CINEMA, A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA E INDÚSTRIA CULTURAL
Desde 1911, quando o italiano Riccioto Canudo publicou o Manifesto das
Sete Artes, o cinema é considerado “a tima arte” a arte de registrar
acontecimentos ou narrar Histórias através da repetição de imagens. Mais que uma
arte, entretanto, o cinema se consolidou no século XX como uma poderosíssima
indústria a primeira indústria de entretenimento de massa. No início do século,
países como Itália e França apontavam como líderes mundiais na nova indústria.
Entretanto, durante a Primeira Guerra Mundial, a produção francesa parou quase
que completamente, os filmes italianos não se estabeleceram comercialmente fora
da Itália e países do continente europeu começaram a importar filmes dos norte-
americanos, que fundaram os primeiros grandes estúdios de cinema (BAKKER,
2008).
42
Los Angeles, na segunda década do século passado, tornou-se o local
onde a maioria dos filmes americanos era produzida: uma região ao norte da cidade
- conhecida como Hollywood depois de ser palco das filmagens de In Old
Califórnia (1910), começou a se destacar mundialmente como grande centro
produtor e distribuidor de filmes (KOSZARSKI, 1994). Nascia o cinema
hollywoodiano, que passou a ser sinônimo de indústria cinematográfica norte-
americana: uma indústria que movimentou, em 2007, quase 27 bilhões de dólares
no mundo inteiro 64% desta receita fora dos Estados Unidos, conforme dados da
Motion Picture Association of América (MPAA), resumidos no gráfico a seguir:
Gráfico 1. Receita mundial da indústria cinematográfica norte-americana (2001-2007)
Fonte: http://www.mpaa.org/USEntertainmentIndustryMarketStats.pdf
2.2.1 Por que Hollywood domina o mercado?
As explicações para essa hegemonia o complexas, pois envolvem uma
gama muito grande de fatores econômicos, políticos e culturais. Através de uma
rede de distribuição em escala global e de esforços organizados e constantes
43
visando a expansão e o aumento dos lucros, Hollywood controla 75% do mercado
internacional de cinema. No bojo dessa atividade gravitam alguns poucos
conglomerados que controlam televisão, televisão a cabo, home vídeo, música etc.
Uma série de fatores econômicos explica parcialmente esta supremacia mundial
(WASKO, 2007):
Nos Estados Unidos existem mais de 37,000 salas de cinema e o público
norte americano é ávido consumidor da indústria cinematográfica nacional
e representa por 44% da bilheteria global dois fatores que garantem um
lucro constante que pode ser convertido em mais filmes;
Os filmes são lançados com grande aparato publicitário que muitas vezes
é aproveitado nos lançamentos para o mercado externo;
Oamentos milionários garantem superproduções com qualidade técnica
e a participação de megaestrelas
16
;
Um sistema de distribuição bem desenvolvido, constituindo na maioria dos
países em verdadeiros cartéis que garantem a exibição dos filmes na
maioria das salas de cinema espalhadas pelo planeta.
Uma outra explicação para o sucesso internacional de Hollywood é seu
caráter universal e transparência narrativa:
[...] A vantagem competitiva dos Estados Unidos na criação e distribuição
global de produtos do gosto popular deve-se a uma mistura exclusiva de
condições culturais que conduzem à crião de textos ‘transparentes
narrativas cuja polissemia inerente encoraja sua leitura por populações
diversas como se fossem nativas (OLSON, 1999).
16
O investimento na construção de ídolos e mitos foi uma das principais estratégias colocadas em
pratica para o sucesso e consolidação da indústria cinematográfica holywoodiana. As estrelas do
sistema, como ficaram conhecidas, atraiam multidões de espectadores. Por meio de publicidade,
revistas especializadas, colunas de fofocas em jornais e escândalos inventados foram fabricadas
celebridades da noite para o dia” (LEITE, 2005. p. 10).
44
Fatores históricos também contribuíram para essa supremacia, incluindo as
virias nas duas guerras mundiais e, sobretudo, a hegemonia econômica norte-
americana e o apoio estatal à indústria cinematográfica, com organizações
trabalhando em colaboração com o Departamento de Estado foram fatores de
grande relevância na exportação de películas hollywoodianas.
2.2.2 O Brasil e a indústria cinematográfica hollywoodiana
Embora o cinema tenha chegado ao Brasil em 1896, em uma exibição no Rio
de Janeiro, a situação econômica e tecnológica geral do país não favorecia o
desenvolvimento de uma indústria cinematográfica. Empresas norte-americanas se
estabeleceram rapidamente e dominaram o mercado interno de distribuição: a Fox
chegou ao Brasil em 1915, a Paramount (com o nome de Companhia Películas de
Luxo da América do Sul) em 1916, a Universal em 1921, a MGM em 1926, a Warner
em 1927 e a Columbia in 1929 (JOHNSON, 2000). Este domínio do cinema norte-
americano no mercado interno teve conseqüências que ahoje não puderam ser
revertidas: a indústria cinematográfica nacional não dispunha de recursos para
competir com a perfeição técnica dos filmes importados, o que influenciou, no
brasileiro, a percepção de que o cinema nacional era de má qualidade. A presença
maciça de filmes norte-americanos no Brasil criou ainda, uma “cultura
cinematográfica que valoriza muito mais a técnica na qual os Estados Unidos
sempre se destacaram que o conteúdo ou a beleza artística. A dominação histórica
dos EUA no mercado cinematográfico interno permanece praticamente inalterada
45
até os dias de hoje: o governo brasileiro ainda tem que recorrer ao sistema de Cota
de Tela para garantir a exibição de filmes nacionais durante 28 dias por ano
17
.
Seria ingênuo supor que esta dominação de mais de um século não teve
efeitos culturais e ideológicos: o cinema e seu forte potencial propagandístico
seguramente contribuíram de mais de um modo para a expansão e solidificação, no
Brasil, dos ideais e do modus vivendi norte-americano.
2.2.3 Cinema, cultura
18
e ideologia
19
Que os meios de comunicação de massa exercem uma enorme influência nas
sociedades modernas não é novidade. Theodor Adorno e Max Horkheimer, filósofos
da Escola de Frankfurt
20
, cunharam a expressão “instria culturalna obra Dialética
17
Para garantir a circulação de obras audiovisuais produzidas no Brasil, o governo brasileiro criou o
sistema de Cota de Tela (implementado em 1934 e modificado por vários decretos desde então). Este
sistema é um mecanismo de proteção da produção nacional em face da cinematografia estrangeira
comercialmente hegemônica. Pelo Decreto 6.711, publicado dia 26 de dezembro de 2008 no
Diário Oficial da União, o número de dias para exibição obrigatória de filmes nacionais nas salas de
cinema em 2009 permanecerá o mesmo em comparação aos anos de 2007 e 2008, ou seja: cada
cinema do país deverá exibir filmes nacionais de longa metragem no mínimo durante 28 dias do ano.
(Fonte: http://www.ancine.gov.br/templates/htm/ancine_portal/informativo/N20/informativo_n20_2008).
18
Cultura, em um sentido amplo, inclui todas as influências que afetam o modo de pensar e os
padrões de comportamento de um grupo: os valores, ideologias, normas, linguagem, crenças e
práticas que caracterizam uma unidade social (LAKATOS, 1999).
19
O conceito de ideologia é extremamente complexo e foi definido de diferentes formas por
diferentes estudiosos Lênin, Lukács, Gramsci e Althusser, para citar alguns, desenvolveram
conceitos que emanam de Marx e Engels (que identificaram a ideologia com a separação que se faz
normalmente entre o universo das idéias – a produção de idéias – e as condições sociais e históricas
em que estas são produzidas - o mundo material, à realidade humana). Segundo a filósofa brasileira
Cha(1980), a ideologia segundo a concepção marxista é um instrumento de dominação de classe,
pois a classe dominante faz com que suas idéias passem a ser as idéias de todos: ordenadas como
representações das normas e regras e como algo separado das condições materiais e da realidade
da existência.
20
A Escola de Frankfurt foi uma das mais influentes tendências filosóficas e de teoria sociológica do
culo XX (com nomes como Horkheimer, Adorno, Benjamin, Marcuse, Fromm, Habermas, Neumann
e Kirchheimer), surgida da iniciativa de um grupo de filósofos e cientistas sociais alemães que
formaram, em 1923, o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Associada diretamente à Teoria
Crítica da Sociedade, que propõe um exame crítico da sociedade em seus aspectos econômicos,
culturais e de produção de conhecimento: conceitos como "indústria cultural" e "cultura de massa"
emergiram daí. Apesar de ter surgido com inspiração marxista, os filósofos da escola, foram críticos
46
do Esclarecimento (1947) - em um capítulo intitulado A Indústria Cultural: o
esclarecimento como mistificação das massas, inteiramente dedicado à análise
funcional da cultura dentro do capitalismo. Segundo estes estudiosos, o capitalismo
convertia bens culturais em mercadoria, através dos veículos de comunicação, com
o objetivo de espalhar uma cultura padronizada, coletiva e acrítica, de reforço aos
interesses comerciais da classe dominante – detentora dos meios de produção
cultural e intelectual. Em outras palavras, Adorno e Horkheimer perceberam, na
incipiente indústria cultural, o objetivo de padronizar de tal modo os “bens” culturais
que, com o tempo, estes apenas parecessem diferentes, escondidos sobre um
pretenso “individualismo” - ou pseudo-individualismo - construído cuidadosamente
para que as pessoas vivessem do mesmo modo, consumissem as mesmas coisas,
dividissem as mesmas aspirações, tivessem as mesmas idéias, assistissem aos
mesmos filmes e ouvissem as mesmas músicas - mas tivessem ainda a falsa
sensação de individualidade e de escolha. Adorno acreditava que o capitalismo
encontrara, na indústria cultural, a forma de manutenção do status quo
assegurando cidadãos passivos e politicamente apáticos, incapazes contra um
sistema que os mantém distraídos pelas necessidades criadas e satisfeitas somente
dentro do próprio sistema.
Antônio Gramsci
21
, pensador italiano contemporâneo de Adorno e
Horkheimer, escreveu quase trinta cadernos de análise histórica e filosófica durante
um longo período de aprisionamento pelo regime fascista da Itália. Estes textos -
também em relação a Marx e aos rumos da Revolução Soviética de 1917 - para um aprofundamento
sobre a Escola de Frankfurt, ver A Escola de Frankfurt: História, desenvolvimento teórico, significação
política, de Rolf Wiggershaus (Rio de Janeiro, Ed. DIFEL, 2002).
21
Antonio Gramsci, influente filósofo marxista, é considerado um dos maiores teóricos da educação -
suas teorias são associadas às das pedagogias crítica e libertária e influenciaram as práticas político-
pedagógicas na América-Latina desde os anos 60 (MORROW e TORRES, 2004).
47
conhecidos como Cadernos do Cárcere, contêm as idéias de Gramsci sobre os mais
variados temas, entre eles, a noção de hegemonia cultural. Segundo ele, a
hegemonia é um meio de manipulação, que se através da cooptação ideológica,
pela classe dominadora, da classe dominada. Em termos muito simples, a
hegemonia garante a dominação de classe instituindo um “senso comum - uma
harmonia forjada por uma minoria, que concede aqui e ali, dentro de certos limites,
mas exercendo sempre a liderança moral e intelectual, para manter a maioria sob
controle. Adorno, Horkheimer e Gramsci circundaram o mesmo tema, de dominação
ideológica, mas com abordagens distintas. Adorno e Horkheimer especificaram um
dos mecanismos de dominação ideológica da sociedade capitalista: a indústria
cultural, através dos meios de comunicação de massa. Gramsci acreditava que a
manutenção do status quo poderia ser ameaçada e o equilíbrio de poderes entre
classes alcançado, mas somente através da elevação cultural das massas - através
da educação, para que o povo pudesse livrar-se do domínio ideológico da classe
dominante desenvolvendo uma cultura “contra-hegemônica”.
O cinema, principalmente hollywoodiano objeto das críticas de Adorno e
Horkheimer constitui um poderoso meio de propagação ideológica e de instituição
de “senso comum” que caracterizam a noção de hegemonia de Gramsci. Como
qualquer meio de comunicação de massa, rivaliza com a escola como influência
cultural - o em de igualdade, mas fazendo parte do tempo de lazer do aluno
22
.
22
Norbert Elias e Eric Dunning, em Memória e sociedade: a busca da excitação, distinguem
tempo livre de tempo de lazer: O tempo livre é o tempo liberto das ocupações de trabalho, do qual
uma parte apenas é destinada a atividades de lazer (pois se incluem, no tempo livre, as atividades de
repouso; as de cuidado pessoal, da família e das relações sociais e as de provimento das
necessidades fisiológicas – que nem sempre são consideradas como lazer). Mais especificamente, as
atividades de lazer são aquelas mais diretamente associadas à destruição da rotina, incluindo o
engajamento em “atividades miméticas”, dentre estas o cinema. Esta idéia de lazer converge para a
produção de reações agradáveis, ou de excitação, por desempenhar a função alívio das exigências e
do estresse causado pelas demandas das obrigações sociais – as demandas civilizadoras.
48
O professor da Universidade de Columbia, Mark C. Carnes, expõe muito bem esta
questão:
O cinema, assim como o teatro e a ficção, inspira e diverte. Freqüentemente,
ensina verdades importantes sobre a condição humana. Mas não substituí a
História que tenha sido escrita penosamente a partir das melhores análises e
evidencias disponíveis. Às vezes os cineastas, totalmente imbuídos de seus
produtos, proclamam-nos historicamente precisos ou fiéis, e muitos
espectadores os suem assim. Os espectadores não deveriam endossar tais
pretensões nem descartá-las de todo, e sim encará-las como um convite a um
aprofundamento posterior (CARNES, 1997, p.10).
Isto implica em que, se a escola tiver qualquer intenção de ser um espaço
contra-hegemônico (e esta é a proposta das pedagogias crítica, libertária e radical)
então as múltiplas influências externas precisam ser questionadas criticamente pela
escola.
Marc Ferro, historiador e professor francês considerado pioneiro nos estudos
da relação cinema-História, procurou mostrar, na década de 70, que filmes
hisricos exigem uma análise minuciosa e criteriosa:
(...) nestas condições não seria suficiente empreender as analises de filmes,
de trechos de filmes, de planos de temas, levando em conta, segundo a
necessidade, o saber e a abordagem das diferentes ciências humanas. É
preciso aplicar estes métodos a cada um dos substratos do filme (imagens
sonorizadas, não-sonorizadas) às relações entre os componentes desses
substratos; analisar no filme tanto a narrativa quando o cenário, a escritura, as
relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o público, a
critica, o regime de Governo. assim se pode chegar à compreensão não
apenas da obra, mas também da realidade que ela representa (FERRO,
1992, p 87).
Se “todo conhecimento é poder”, como propôs Gramsci, munir os alunos de
conhecimentos suficientes para entender como a ideologia é manipulada, inclusive
pelo Estado, através dos meios de comunicação, é também dar à sociedade ao
homem moderno, à juventude moderna, que precisa fugir das amarras, dos
49
percalços e da realidade crua de seu cotidiano - o poder de entender e mudar as
estruturas sociais, a cultura e as relações sócio-culturais.
O entretenimento fácil, sem qualquer necessidade de reflexão produto de
uma indústria cultural voltada ao lucro (e a serviço de um modelo ideológico) é o
principal atrativo de grande parte das produções cinematográficas dos últimos anos.
Como bem percebeu um especialista na área de estudo do cinema no Brasil:
(...) o espectador educado pela televisão que vai ao cinema (...) não espera ali
algo para refletir, o suporta seqüência lentas, os episódios precisam
suceder rapidamente uns aos outros. Este tipo de público quer cenas
agitadas, muito som, o bem e o mal nitidamente separados em conflitos
simplificados. Muita violência e pouco espaço para ternura e a bondade, que
quando aparecem surgem como prêmio ou recompensa ao conformismo
social e político (ALMEIDA, 2001, p.30).
O espectador torna-se, assim, presa fácil da propaganda política e ideológica
intensa de muitos filmes (o que também ocorre com as outras mídias, principalmente
a televisão) que nada têm de despretensiosos ou apolíticos: cativo em sua letargia,
não percebe que um filme aparentemente inócuo como é o caso de 300, criado
com base em uma História em quadrinhos - cria visões e concepções históricas e
ideológicas que provavelmente o acompanharão, incontestadas, por toda a vida. Um
exemplo do poder deletério que pode ter o cinema é o clássico norte-americano O
Nascimento de Uma Nação (de 1915, dirigido por D.W. Griffith) - considerado um
dos filmes mais populares do cinema mudo apesar de claramente glorificar a
escravatura e a segregação social e ajudou a promover o aparecimento da Ku Klux
Klan
23
.
23
Nome dado a organizações secretas que militaram e ainda militam nos Estados Unidos, sendo
originarias nos estados do sul do pais e eventualmente atingindo esferas nacionais. Estas
organizações são conhecidas mundialmente por defenderem a supremacia dos brancos com atos de
extrema violência e assassinatos de indivíduos de minorias raciais (principalmente afro-
descendentes) e usarem roupas e mascaras brancas. O primeiro Klan foi fundado em 1865 por
veteranos do exército dos estados confederados (vencidos pela União durante a guerra civil norte
americana), que não se conformavam com a abolição da escravatura.
50
2.3 EDUCAÇÃO PARA AS MÍDIAS E LETRAMENTO MIDIÁTICO
Devido à crescente importância que os meios de comunicação em massa
adquiriram durante o século XX (e a conseqüente descentralização da escola como
principal agente disseminador de conhecimento), a educação para as mídias (media
education), ou mais recentemente, a preocupação com o letramento midiático
(media literacy) passou a fazer parte das discussões de educadores dos países
desenvolvidos e a incitar a criação de novas políticas públicas de educação em
vários destes países.
A Declaração de Grunwald
24
, publicada em 1982 durante o primeiro Simpósio
Internacional de Educação Midiática da UNESCO, expressava a necessidade da
compreensão de que as mídias tornaram-se onipresentes no mundo moderno e da
implementação de políticas e sistemas educacionais capazes de promover nos
cidadãos o entendimento crítico dos fenômenos da comunicão social, através da
educação sistemática para as mídias
25
.
Enquanto países europeus (notavelmente Inglaterra, França, Suécia e
Escócia), Austrália, Rússia e Canadá vêem desenvolvendo e implementando
práticas de educação para as mídias desde várias décadas, no Brasil a própria
UNESCO parece alheia à complexidade do conceito de educação para as mídias
definido 25 anos, encaminhando a discussão para o uso adequado das
Tecnologias de Informão e Comunicação (especialmente a difusão de novas
tecnologias e a inclusão digital). Prova disto é que uma busca com as palavras
24
Declaração de Grunwald. http://www.unesco.org/education/pdf/MEDIA_E.PDF
25
Conforme a Declaração de Grunwald, a educação para as dias não deve ser confundida com a
educação através das mídias ou seja, não é o campo de estudo associado ao uso instrumental dos
meios (associado às tecnologias de informação aplicadas a educação), mas ao desenvolvimento da
capacidade de analisar criticamente os meios – reconhecendo seu impacto social e cultural.
51
chaves “educação para as mídias e letramento midiático”, no site brasileiro da
UNESCO, não retorna um artigo sequer que indique um esforço brasileiro no sentido
de incluir a capacitação para a análise crítica dos meios no currículo de formão de
professores ou de alunos no país
26.
Em contrapartida, o site internacional do órgão
(www.unesco.org) retorna mais de 100 artigos com as palavras chave media
literacye igual número com as palavras chave media education”. Entre estes, um
relatório de 2002 (intitulado Survey Report on Approaches to Youth Media Literacy)
sintetiza os resultados de uma pesquisa sobre letramento midiático na educação
formal envolvendo 35 países do mundo: Cuba, México, Argentina, Chile e Uruguai
o os únicos países da America Latina que figuram no relatório. Ainda assim,
segundo os dados coletados, não nestes países evidência de práticas
organizadas de educação para as mídias nas escolas. No Brasil, o tema parece
restrito ao âmbito do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação na
educação, ou seja, ao o domínio das tecnologias e seu uso em sala de aula.
Ismar de Oliveira Soares (1999), coordenador do Núcleo de Comunicão e
Educação da Universidade de São Paulo, vem procurando ampliar a área de estudo
que, no Brasil, denominou-se Educomunicação” e que engloba ou aproxima, dentro
de seu campo de estudo, a possibilidade de quatro áreas de intervenção social”
(SOARES, 1999, p. 27):
a) a área da educação para a comunicação que coincide com a
educação para as mídias, ou media education ou media literacy;
b) a área da mediação tecnológica na educação que compreende o
entendimento dos usos das tecnologias da informão na educação
c) a área da gestão comunicativa voltada para o planejamento e
crião de ecossistemas educacionais e
26
O site brasileiro da UNESCO encaminha a busca “educação pra as mídiaspara textos sobre as
Tecnologias de Informação e Comunicação – como estas podem ser utilizadas na educação, ou seja,
para o donio da tecnologia no sentido técnico.
52
d) a área da reflexão epistemológica o estudo da natureza do
fenômeno constituído pela inter-relação entre Comunicação e
Educação.
Naturalmente, o campo de estudo de maior interesse desta pesquisa é a área
da educação para a comunicão – área na qual, conforme visto, o Brasil não figura
como referência, como analisa o próprio Soares (1999):
...o sistema de ensino ainda não integrou, de forma definitiva e adequada, a
educação para os meios em suas metas e em suas práticas. Chega-se a
afirmar, em algumas partes, interpretando de forma errônea os resultados das
investigações sobre recepção, que a formação da consciência crítica é
desnecessária, pois a criança sabe perfeitamente distinguir o que é ficção do
que é realidade, permanecendo imune às possíveis influências negativas da
programação massiva. (SOARES, 1999, p. 30)
Embora os estudos da relação educação/comunicação possam ser traçados à
discutida Escola de Frankfurt - considerada superada por estudiosos da área de
Comunicão Social face ao desenvolvimento de novas teorias que contribuíram
para uma melhor compreensão da audiência como construtora de significado (e não
apenas consumidora passiva, como a julgaram Adorno e Horkheimer) - a educação
para as mídias requer, necessariamente, a análise das relações entre os meios de
comunicação, a cultura popular e o controle social por meio da manipulação
ideológica. Por isso mesmo, é extremamente atual – apesar da defasagem brasileira
neste campo - a discussão sobre a urgente necessidade de letramento midiático,
alcançada através da alfabetização crítica da mídia, visando dar poderes aos alunos
para que possam ampliar sua participação na sociedade e promover a democracia e
a justiça social:
As inovações tecnológicas, a expansão dos impérios globais da mídia, uma
explosão de novos tipos de mídia e um ilimitado bombardeio comercial a
crianças têm contribuído, atualmente, para a formação de um ambiente em
que a juventude escrescendo num mundo mediado, muito diferente do de
qualquer gerão anterior. Se, por um lado, os avanços tecnológicos criaram
novas possibilidades para o livre fluxo de informações, o uso de redes sociais
53
e o ativismo global, por outro lado,também o potencial que as empresas e
governos exercem de ampliar seu controle sobre os meios de comunicação,
restringir o fluxo de informações e apropriar-se dessas novas ferramentas
para o seu próprio lucro e controle, à custa da livre expressão e da
democracia (KELLNER e SHARE, 2008).
O letramento midiático, por sua vez, é uma expansão do conceito de
letramento: se este envolve muito mais que a simples alfabetização - que é somente
uma prática de aquisição de códigos (SOARES, 1998) - o conceito de media literacy
envolve não somente o acesso às mídias e o entendimento de seus códigos, mas
principalmente, a capacidade de analisar e avaliar criticamente as mensagens
transmitidas em tudo que lemos, ouvimos e assistimos. Esta capacidade inclui o
entendimento de que, muitas vezes, mensagens repassadas por estes meios
assumem uma dimensão de “realidade” e passam por naturais quando são, na
verdade, puras construções.
Esta breve incursão teórica no campo da inter-relação entre educação e
comunicação nos permitiu a construção de uma definição com a qual trabalhamos e
sobre a qual se assenta esta pesquisa: a educação para a comunicação ou para as
mídias é um processo que tem como objetivo principal o letramento midiático, que
por sua vez é a capacidade de entendimento crítico da natureza, impacto e técnicas
das mensagens e produções construídas pelos meios de comunicão de massa. É
basicamente este o conceito que permeia as práticas de educação para as mídias,
neste início do século XXI, nos países que são hoje referência no tema, como o
Canadá, que foi também o primeiro país do continente americano a incluir Media
Education em seu currículo escolar, em 1978 (atualmente, todas as províncias
canadenses incluem educação para os meios em seus currículos: em Quebec,
desde o primeiro ciclo primário). Os sites da Association for Media Literacy
(Associação para o Letramento Midiático, http://www.aml.ca) e da Media Awareness
54
Network (Network para Conscientização Midiática,
http://www.mediaeducationweek.ca), duas importantes entidades canadenses
dedicadas à educação para as mídias (ambas com base em Ontário), sintetizam os
“conceitos-chave” do letramento midiático filtros ou domínios que o cidadão letrado
deve ter para não ser simples consumidor passivo das mensagens dos meios de
comunicação:
1. Os meios de comunicação são construções
Tudo o que acessamos através dos meios de comunicação o construções –
produtos criados cuidadosamente com um propósito, a partir de uma
perspectiva particular, usando formas e técnicas específicas. O letramento
midiático trabalha com a desconstrução destes produtos, destrinchando-os
para mostrar como são feitos e explorando as decisões e fatores que os
influenciaram.
2. Os meios de comunicação constroem a realidade
Os meios são responsáveis pela maior parte das observações e experiências
sobre as quais nos apoiamos para construir nosso entendimento pessoal do
mundo e seu funcionamento. Muito da nossa visão de realidade é baseada
em mensagens dos meios de comunicação, que por sua vez foram
construídas e são imbuídas de representações e conclusões pré-concebidas.
Os meios de comunicação moldam nosso sentido de realidade.
3. Audiências negociam significado
Todos trazem parte de sua experiência de vida - conhecimento e atitudes
perante a vida - como lentes para a observação das mensagens que
encontram na mídia: cada pessoa constrói significado para o que ouve e
de maneiras diferentes. O letramento midiático encoraja o entendimento de
que fatores individuais como idade, sexo, etnia, condição social, valores e
crenças afetam nossa interpretação dos meios.
4. A produção midiática traz implicações comerciais
As produções dos meios são, em sua maior parte, produtos de empresas que
objetivam o lucro. Além disso, as empresas que controlam os meios
pertencem a poderosas redes e corporações que exercem influencia em seu
conteúdo e distribuição. Questões sobre a quem pertencem e quem controla
sua distribuição são centrais no letramento midiático por que um número
relativamente pequeno de indivíduos e empresas controla o que vemos,
lemos e ouvimos na mídia.
5. Toda produção midiática contém mensagens ideológicas e juízos de
valor
55
Todos os produtos dos meios de comunicação são, de certa forma, produtos
de propaganda, no sentido de que proclamam valores, crenças, opiniões e
modos de vida. Explicita ou implicitamente, os meios de comunicação
carregam mensagens sobre temas os mais variados: como devemos viver a
vida, as virtudes do consumismo, o papel da mulher na sociedade e outras
noções de valor, poder e autoridade. O letramento midiático propõe o
questionamento dos valores e juízos presentes nas mensagens dos meios - o
questionamento sobre o que é dito ou não é dito e por que e a tentativa de
decodificação das mensagens subliminares que carregam.
6. Os meios de comunicação têm poder social e político
Uma dimensão importante do letramento midiático é a conscientização de que
o imensos os efeitos políticos e sociais dos meios, que servem para
legitimizar ou condenar valores e práticas sociais.
Portanto, a análise dos meios deve considerar questões como: quem criou a
mensagem e por quê? Como ela foi construída? De que perspectiva a História é
contada? Quem é beneficiado se a mensagem é aceita? Quem é marginalizado?
Que estilos de vida, valores, pontos de vista são representados e quais são omitidos
na mensagem? Note-se que esta perspectiva não se assenta na crença de que as
mídias são inerentemente nocivas - muito pelo contrário: de um modo geral, os
meios de comunicação de massa oportunizam acesso à informação e a outras
culturas e modos de vida, ampliando a possibilidade de democratizão do
conhecimento. Por outro lado, o potencial benéfico dos meiospode ser alcançado
através do desenvolvimento de receptores questionadores, informados e política e
ideologicamente conscientes.
É a educação para os meios com a finalidade do letramento midiático que nos
permite ir além dos conteúdos manifestos, de fazermos uma “análise do discurso”
naquilo que nos é apresentado: ser letrado para as mídias significa ter a habilidade
de entender tanto as potencialidades quanto as limitações de cada meio, de captar
nos discursos o que é dito, como é dito e porque é dito, de distinguir “realidade” de
“construções”, descortinando ideologias explicitas ou implícitas.
56
2.4 ANÁLISE DO DISCURSO
A análise de conteúdo proposta na introdução desta pesquisa es
relacionada ao campo de estudos denominado Análise do Discurso (AD)
27
disciplina que tem origem na França da década de 60 e que propõe, em linhas
gerais, que para analisar um enunciado é preciso analisar suas construções
ideológicas
28
. O embasamento teórico para as unidades enumeradas, entretanto,
apóia-se na AD.
A proposta da Análise do Discurso pode ser melhor compreendida quando a
contrapomos ao estruturalismo método de analise textual que precedeu a AD. O
estruturalismo conferia autonomia relativa à linguagem, ou seja, propunha que um
texto pudesse ser estudado por si só - pela dissecação de suas partes, da
descoberta de suas regularidades, independentemente de suas influências externas.
A análise do discurso propõe justamente o oposto, afirmando que o discurso é a
materialização da ideologia (já que todo enunciado é produzido dentro de uma
ideologia, da qual não pode separado); nesta perspectiva, o discurso não pertence
ao indivíduo, mas é uma prática social e deve ser analisado dentro de seu contexto
hisrico-social. Em outras palavras, a formação ideológica do grupo ao qual
pertence o indivíduo que emite o discurso permeia o discurso. Por isso mesmo,
27
As considerações sobre AD constantes desta seção do trabalho foram fundamentadas na obra
Introdução á Análise do Discurso, de Helena H. Nagamine Brandão. ed. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1998.
28
Obras referenciais sobre Análise do Discurso: FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São
Paulo: Ática, 1988; FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1998;
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes &
Editora da Unicamp, 1989. MAINGUENEAU, Dominique. Termos-Chave da Análise do Discurso. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1998. ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos.
Campinas: Pontes, 1999.
57
certos enunciados que nos remetem imediatamente a certas ideologias a certas
formações discursivas.
O conceito de formação discursiva foi concebido por Foucault (1969) e depois
utilizado por Pêcheux (1975) para nomear o ponto de articulação entre discurso e
ideologia: toda formação discursiva é governada por uma formação ideológica e é
marcada por regularidades, ou seja, por regras que determinam o que deve e pode
ser dito a partir de certa posição na vida social. No entanto, a identificação do sujeito
falante com sua formação discursiva ocorre de maneira normalmente inconsciente –
o falante tem a impressão ou a falsa “certeza” de ser o autor de seu próprio discurso,
quando em realidade seu discurso é apenas uma função de sua formão discursiva
ou ideológica
29
.
Michel Foucault, um dos maiores teóricos da AD, define discurso como um
sistema de pensamentos composto de idéias, atitudes, cursos de ão, crenças e
práticas que sistematicamente constroem os objetos e o mundo dos quais eles
falam. Ele traça o papel do discurso em processos sociais mais amplos de
legitimação de poder, enfatizando a construção de verdades e como estas são
mantidas. O discurso, propôs Foucault, tem uma função essencial no poder, uma
vez que é um elemento de manutenção de poder e de exclusão
30
sendo esta a
principal razão pela qual certos textos ficam sempre inalcançáveis para uma grande
parcela da população (textos cnicos, textos literários cultos, textos jurídicos, textos
29
Formação ideológica - é a constituída por um conjunto complexo de atitudes e representações que
não são nem individuais, nem universais, mas dizem respeito, mais ou menos diretamente, às
posições de classe em conflito umas com as outras. Cada formação ideológica pode compreender
rias formações discursivas interligadas (BRANDÃO, 2000. p.90).
30
Para o aprofundamento das discussões sobre saber e poder, ver: Foucault, M. A arqueologia do
saber. Rio de Janeiro: Forense, 1997
58
de especialistas, médicos, econômicos e a maior parte dos textos acadêmicos). São
poucos os privilegiados com acesso ao entendimento de variados discursos, e
menos são os que se podem pronunciar, pois o discurso é controlado, em diversas
épocas, em diversas áreas, de modo mais ou menos sutil assuntos tabus para
cada época, para cada área de conhecimento, para o que constitui “verdade”.
Quando falamos, por exemplo, em discurso publicitário, econômico, político,
feminista, psiquiátrico, médico, pedagógico, etc., é porque aprendemos a reconhecer
em cada um deles o conjunto de enunciados que são próprios de sistemas (ou
discursos) de formação discursiva de cada uma destas áreas. Cada uma destas
áreas tem uma linguagem que funciona como uma matriz de sentido os falantes
destas “línguas” se reconhecem dentro de seus discursos.
Em termos de enunciado, Foucault (1968) definiu o discurso como um
conjunto de enunciados que se apóiam na mesma formão discursiva.
Resumidamente, todo discurso - pensamento, toda fala, todo o conhecimento de
uma época é coordenado por um grupo relativamente pequeno de idéias
fundamentais os enunciados. O enunciado é uma espécie de síntese do
pensamento intelectual e como o discurso, muda com o tempo - o que é
“anunciado”, o que é dito ou expresso, o que dá significado ao que é dito.
O exemplo abaixo é bem ilustrativo de como funcionam o discurso e seus
enunciados o trecho é parte de uma entrevista da autora do livro Televisão e
Educação: Fruir e Pensar a TV (2001), de Rosa Maria Bueno Fischer:
Talvez fosse melhor dizer: na mídia circulam diferentes discursos que, de
alguma forma, subjetivam as pessoas, os indivíduos, os grupos sociais. E
subjetivar quer dizer: produzir um tipo de sujeito, um ou vários tipos de
relação dos sujeitos consigo mesmos. Meu fundamento teórico aqui es
fortemente baseado em Michel Foucault e seus conceitos de poder, saber e
59
sujeito. Tudo isso tem a ver com relações de poder e com estratégias de
resistência. Por exemplo: a mídia tem insistido em educar” os adolescentes,
em dizer a eles o que fazer com seus corpos, com sua sexualidade, com sua
vida política, e assim por diante. um imperativo, para as meninas, de que
seus corpos sejam belos, sarados, de que seus cabelos sejam lisos, de que
elas sempre estejam prontas a satisfazer o desejo do homem..Isso se
transforma numa verdadeira tortura, para muitas, para a maioria delas, que
tomam isso tudo como verdades “suas”, como se o fossem coisas
construídas (...) Não é só a mídia que produz esses discursos; eles circulam
por diferentes lugares, e os meios de comunicação os transformam a seu
jeito, produzindo outras enunciações, nas novelas, nos reality shows, etc. Um
programa como Big Brother, por exemplo, tem forte apelo entre os mais
jovens, e sua palavra de ordem, em termos de vida pública e de convivência,
é: “vamos detonar o outro! (disponível em
http://www.consciencia.net/2004/mes/05/rosafisher.html).
A AD, portanto, empreende o esforço de interrogar a linguagem, instaurando
a possibilidade de estudo do discurso nas Ciências Sociais. Compreender os
enunciados - o que é dito, a forma como é dito e o que não é dito é a via de
acesso a compreensão do discurso em suas mais variadas manifestações e de
sua ideologia. É esta perspectiva que orienta a analise dos filmes selecionados para
esta pesquisa: captar e analisar os enunciados que compõe os discursos dispersos
e seus significados, observando suas articulações com formações ideológicas e,
dentro de uma perspectiva “Foucaultiana”, entender os processos mais amplos de
legitimação do poder que estes discursos encerram.
Um dos pressupostos desta pesquisa é o de que, a partir da escolha de um
determinado tema histórico para reprodução cinematográfica podemos avaliar como
caminha o ideológico dos povos na atualidade, pois como bem observou Lucien
Febvre a História é filha do seu tempo e entre o passado e o presente não
separação estanque” (1952). O passado é revisitado sempre em fuão dos
problemas, das aspirações, dos interesses (políticos, econômicos e ideológicos) e
das esperanças do presente. Não existe cinema - ou qualquer outro meio de
60
comunicação - isento de ideologia. A preocupação deste trabalho é exatamente a de
esmiuçar o uso da História e os enunciados presentes nas obras cinematográficas
analisadas a seguir.
61
3. ALISE DOS FILMES
O mundo antigo foi objeto de diversos filmes, a maioria sobre a civilização
romana. O interesse pelos gregos é numericamente inferior predominam filmes
mitológicos e produções com base na Ilíada e na Odisséia (a exemplo de Tróia). Dos
filmes selecionados para análise, três são sobre antiguidade clássica: dois sobre a
Grécia (300 e Tróia) e um sobre Roma (Gladiador). O tema de Cruzada é mais
recente historicamente, pois é ambientado na Idade Média.
3.1 300 O OCIDENTE CIVILIZADO VERSUS O ORIENTE BÁRBARO
O mito de Esparta é antigo. Os inimigos da democracia ateniense
idealizavam o Estado espartano. Políticos e filósofos conservadores como crates
e Platão
31
, faziam apologia da cidade-estado militarista. Entre os romanos, Plutarco
fazia coro à miragem espartana exaltando sua forma de vida, seus líderes e seu
espírito guerreiro. Muitos revolucionários franceses de 1789 - que não vacilavam em
mandar para a guilhotina, em processos sumários - aqueles que eram considerados
contra-revolucionários, louvavam Esparta, vendo nela os princípios igualitários que
almejavam implantar. Os líderes do Terceiro Reich, especialmente Adolf Hitler,
admiravam a rígida disciplina militar e o princípio da eugenia espartana
manifestada na política de higiene racial nazista.
31
Quando Platão foi obrigado a se exilar, porém, não foi para Esparta na não havia teatro, a vida era dura e
os filósofos não eram bem vistos (STONE, 2005, pg. 155).
62
3.1.1. A História da produção de “300”
A batalha entre 300 espartanos que, em 480 a.C., tentaram impedir a
passagem do exército persa pelo desfiladeiro das Termópilas (Grécia) já foi objeto
de um filme, produzido em 1962 pela 20th Century Fox - Os 300 de Esparta. Aquela
primeira versão ficou gravada na mente de Frank Miller, um jovem norte-americano
que, em 1998, escreveria a História em quadrinhos Os 300 de Esparta.
A graphic novel de Miller foi publicada originalmente em 5 edições mensais (A
primeira, Honra, foi publicada em Maio de 1998 e as outras - Dever, Glória, Combate
e Vitória nos meses seguintes) pela editora Dark Horse (no Brasil, pela Editora
Abril, utilizando o mesmo formato). Desta obra originou-se a superprodução filmada
em 3D, produzida e dirigida por Zack Snyder, que traz Frank Miller como produtor
executivo e consultor. A regravação é, em resumo, uma adaptação cinematográfica
da História em quadrinhos de Frank Miller, entremeada com alguns relatos truncados
de Heródoto. Em entrevista que aparece nos extras do filme, o diretor assim se
pronuncia: “Não se deve estragar uma História apenas com fatos verídicos. Deve-se
exagerar o momento para maior dramaticidade”.
O longa-metragem de 137 minutos, produzido pela Warner Brothers com um
orçamento de 60 milhões de dólares, estreou nos EUA em março de 2007
definitivamente “exagerando o momento para maior dramaticidade”. A produção foi
iniciada em outubro de 2005 e as filmagens foram feitas em Montreal, Canadá. O
site oficial do filme foi lançado pela Warner Brothers em dezembro de 2005 e o
primeiro trailer liberado em Outubro 2006. Somente no primeiro dia, o filme faturou
mais de US$ 28 milhões, mas desde seu début, durante o Festival de Cinema de
Berlim, em 14 de fevereiro de 2007, gerou críticas mistas: recebeu ovação do
63
público poucas horas depois de ter sido vaiado pela imprensa e muitos dos que
assistiram à primeira exibição abandonaram a platéia antes que o filme terminasse.
3.1.2 A narrativa da fílmica da batalha das Termópilas
300 começa com a narrativa de Dilios, um orador espartano (e, segundo o
filme, único sobrevivente da batalha das Termópilas) que conta a trajetória do rei
Leônidas desde o rigor e disciplina (espartanos) da sua infância, quando se iniciou
na agogê, asua morte como rei de Esparta na Batalha das Termópilas. Dilios
conta que, durante o reinado de Leônidas, um mensageiro chegou a Esparta com a
notícia de que Xerxes, rei dos persas, pretendia dominar a região. Leônidas,
ultrajado e ofendido, brada “Esta é Esparta!” (This is Sparta!); mata o mensageiro e
sua comitiva; coloca-se a organizar o exército de 300 soldados e marcha ao
encontro dos invasores persas. Antes, porém, visita os éforos para expor sua
estratégia de guerra: repelir o inimigo utilizando o terreno estrategicamente
vantajoso das Termópilas. Os éforos, por sua vez, consultam o oráculo e
desaconselham Leônidas em sua intenção de atacar os persas; nas cenas seguintes
um mensageiro aparece e entrega moedas de ouro aos éforos pagamento de
Xerxes (propina, melhor dizendo) pelo apoio dos éforos aos persas. Leônidas,
apesar de alheio à traição, não ouve os éforos e reúne seus homens, preparando-os
para a batalha. Enquanto marcham no sentido das Termópilas, juntam-se a eles um
grupo de arcadianos e outros grupos gregos. Antes da batalha, os persas exigem
que os espartanos se rendam e entreguem suas armas. Leônidas, em tom
desafiante, responde que venham buscá-las. O restante são batalhas que mostram
como a coragem espartana prevalece, quase até o final do filme, sobre o império
64
persa que envia para as batalhas desde mongóis rbaros e poções mágicas até
rinocerontes da África e elefantes de guerra indianos.
Após a estréia nos cinemas dos Estados Unidos, numerosas críticas surgiram
inclusive em grandes jornais norte-americanos: segundo Kenneth Turan, do Los
Angeles Times “300 não passa de um videogame de violência repetitiva, recheado
de estereótipos, mas sem grandes pretensões políticas” (TURAN, 2007). Para
Eugene Borza, professor emérito de História antiga da Universidade Estadual da
Pensilvânia, os produtores e diretores de 300 cometeram vários “crimeso maior
deles o de ter criado um vídeo game desumanizador a partir de um dos eventos
mais interessantes da historia grega” (BORZA, 2007). o jornalista A.O. Scott, do
New York Times, em um artigo intitulado Batalha de Homens Másculos: Banho de
Sangue Com Uma Mensagem (Battle of the Manly Men: Blood Bath With a
Message), descreveu o filme como sendo “duas vezes mais estúpido que o
Apocalypto(filme dirigido por Mel Gibson, trata da História dos Maias)” e criticou
principalmente “seu viés racista” (SCOTT, 2007).
3.1.3 Contexto histórico de 300: As Guerras Médicas
Ao longo do século VI a.C., os persas formaram um grande império, que ia do
atual Irã até o Egito. O exército poderoso, a administração eficaz e a tolerância com
os povos dominados garantiam ao império certa estabilidade. Entretanto, o
expansionismo persa chocou-se com os interesses das cidades gregas da Jônia, na
Ásia Menor: o rei persa Dario I colocava em cheque o ideal de soberania das póleis
gregas, além de prejudicar o comércio.
65
O ataque persa à Gcia, em 490 a.C, foi uma represália à ajuda prestada
pelos atenienses aos que haviam se revoltado contra o grande rei.
Surpreendentemente, e apesar de numericamente inferiorizados, os hoplitas
32
gregos venceram os persas em Maratona. Dez anos mais tarde, Xerxes, filho de
Dario, com um poderosíssimo exército - segundo Heródoto, eram mais de 5 milhões
de homens (HERÓDOTO, p. 393), o que é um evidente exagero, que os autores
modernos citam números bem mais modestos, algo entre 150 e 200 mil homens
aproximadamente (SOUZA, 1988) atacou a Grécia. A estratégia de defesa grega
consistia em tentar impedir o avanço das tropas persas. O desfiladeiro das
Termópilas, na Beócia, era uma ótima posição de defesa, pois está espremido entre
as montanhas e o mar, e em alguns trechos só permitia a passagem de um carro de
combate por vez. Foi neste local que o Rei Leônidas posicionou seus homens, e é
sobre esta resistência específica o filme 300.
Tais conflitos, denominados Guerras Médicas, foram travados no século V
a.C entre gregos e persas e quase sempre apareceram de forma idealizada nos
livros de História, sejam didáticos ou acadêmicos. A falta de criticidade deve-se ao
uso das fontes (ou melhor, da fonte), pois os relatos salvo raríssimas exceções
baseiam-se no historiador Heródoto de Halicarnasso (490-425 a.C.), que narrou os
eventos aproximadamente 30 anos depois de sua ocorrência, salientando uma
desproporção supostamente enorme (principal razão pela qual o conflito alcançou
status de lenda) entre as forças beligerantes. Infelizmente, não há qualquer relato
persa e, como Heródoto era grego, podemos supor alguma parcialidade.
32
Os hoplitas eram, no exército das cidades gregas, soldados de infantaria fortemente armados.
66
Na obra História, que reconstitui através de depoimentos escritos e orais os
acontecimentos históricos, encontramos dados importantes sobre os medos e
persas. Porém, como o Pai da História” tinha certo gosto pelo anedótico e pelo
exagero um estilo que visava mais a seduzir o leitor do que informá-lo
objetivamente encontramos também grandes lacunas em sua obra. Um exemplo
de que o historiador grego não era especialista em assuntos persas: quando
descreve a religião deste povo, o faz qualquer menção ao mazdeísmo, religião
que surgiu na Pérsia por volta do século VII. O profeta Zoroastro ensinava que
existem dois princípios antagônicos o bem (Ahura Mazda) e o mal (Arimã) e que
homem deve viver na verdade, pois no final dos tempos haverá o juízo final, quando
os mortos ressuscitarão, os maus serão castigados e os justos irão para o Paraíso.
Como se percebe, um credo religioso com muitas similitudes em relação ao
cristianismo. Em outras palavras: pelo menos naqueles tempos de Heródoto, os
persas estavam muito mais próximos das crenças ocidentais modernas que os
gregos.
Atualmente, a pesquisa histórica - graças à arqueologia, à paleografia e
outras ciências auxiliares – tem evoluído bastante e já é possível confirmarmos, mas
também descartarmos, certas afirmações do historiador. Por exemplo, em relação ao
Egito, Heródoto afirmou que a grande pirâmide de Queóps foi construída através de
trabalho escravo - sabemos hoje que as grandes obras públicas foram construídas
por camponeses, no período das cheias do rio Nilo:
O uso dos turnos de trabalhadores distribuía o fardo do trabalho e suscitava
uma completa distribuição da riqueza do faraó na forma de rações, ao mesmo
tempo que assegurava que quase toda família no Egito estivesse direta ou
indiretamente envolvida na construção das pirâmides (TYLDESLEY, 2005).
67
À época, Esparta era uma cidade na qual uma minoria vivia à custa do
trabalho de periecos pessoas livres, mas sem direitos políticos - e dos hilotas -
escravos públicos tratados com extrema crueldade. Quando a população de hilotas
aumentava, estes eram caçados por jovens guerreiros espartanos em treinamento.
Os espartanos não eram, portanto, nem o exemplo de civilizão avançada que o
historiador de Halicarnasso procurou perpetuar nem os defensores da liberdade
como o filme 300 procurou enfatizar. O desrespeito grego às outras culturas era
total, algo que na História ocidental permaneceu: a conquista e colonização da
América (bem como a expansão imperialista que resultou na partilha da África e da
Ásia pelas grandes potencias européias) é um exemplo deste desrespeito que desde
os tempos antigos acompanha as civilizações que se crêem superiores
culturalmente - dizia-se que era o fardo do homem branco levar a civilização aos
povos “atrasados”.
3.1.4 O conteúdo histórico e ideológico de 300
Apesar da consulta a Heródoto (rias frases do filme parecem retiradas
diretamente do historiador) e de um pretenso teor histórico, 300 não deve ser levado
à sério como obra histórica. Não , no filme, qualquer pista sobre a origem ou
extensão dos conflitos entre gregos e persas ou mesmo das relações entre as
cidades-estado gregas. A única informão histórica relevante (além, é claro, a de
que houve uma luta entre gregos e persas) é a de que os espartanos eram lutadores
excelentes – o que adiciona muito pouco a quem quer que tenha um mínimo
conhecimento da cultura grega. Ressaltamos aqui algumas (in) adequações
hisricas:
68
Leônidas, retratado como um herói de primeira grandeza, é uma figura
histórica de pouca relevância:
(...) sua única realização importante foi como comandante na batalha das
Termópilas. A maior parte do exército espartano escapou, mas Leônidas
ficou para trás por motivos inexplicados, talvez relacionados com a
rivalidade entre reis e éforos. (BOWDER, 1992).
O exército completo de Leônidas era de 7000 homens (a maior parte
bateu em retirada; dentre os espartanos, apenas 300 permaneceram). O
que poucos comentam (e que no filme é demonstrado de forma lateral) é
que pereceram também, nas Termópilas, além de 298 espartanos (2 se
salvaram, segundo Heródoto) 700 spios. Portanto, muito mais justo seria
se associássemos o último combate nas Termópilas com os 700, pois os
lacedemônios espartanos e os téspios se comportaram com coragem
igual” (HERÓDOTO, p. 403).
O traidor Efialtes (ou Epialtes) não era espartano e não tinha defeitos
físicos. Eis o que lemos em Heródoto:
O rei estava perplexo, sem saber o que fazer naquela situação
quando um málio da região em que fica situado o desfiladeiro das
Termópilas - Epialtes, filho de Eurídemos veio falar-lhe na
esperança de obter alguma coisa muito valiosa do rei e lhe revelou
a existência do atalho que levava às Termópilas através das
montanhas (HERÓDOTO, p. 400).
Dario (e não Xerxes) enviou mensageiros exigindo a submiso das
cidades gregas. Várias cidades sucumbiram, porém, Atenas e Esparta
executaram os enviados. Essa execução, narrada por Heródoto, provocou
consternação na própria Grécia e resultou na prática de vários sacrifícios:
os deuses não teriam aprovado a quebra da imunidade física dos
mensageiros, espécie de diplomatas de então. Além disso, o mensageiro
69
enviado por Xerxes no filme é representado por um ator negro – as razões
são inexplicáveis, uma vez que os persas eram brancos.
Não bastasse acrescentar pouquíssimo em conhecimentos hisricos, 300
opõe de modo chocante o mundo ocidental e oriental, exaltando a cultura espartana
e representando os asiáticos como descendentes de uma civilização completamente
degenerada a começar por Xerxes (interpretado por Rodrigo Santoro), que é a
personificação parte demoníaca-parte andrógena do tirano oriental. Os espartanos,
por outro lado, representam a beleza, a justiça, a moral e os ideais de liberdade do
mundo ocidental. Os dois mundos
33
são claramente demarcados e facilmente
identificáveis: o guerreiro espartano (branco) luta sem armadura, sem máscaras – de
peito aberto (na verdade, sabemos que os espartanos usavam túnicas reforçadas
com couro e placas de metal mas se o filme fosse fiel ao figurino espartano, não
cumpriria seu objetivo de valorização da beleza física
34
dentro dos padrões estéticos
clássicos). O exército persa (representado por extras pardos ou negros) usa armas e
vestimentas típicas dos orientais (a cimitarra, por exemplo) e adereços exóticos que
parecem reciclados de alguma produção pornô sado-masoquista qualquer.
Vários estereótipos são construídos e alimentados nesta obra através de
omissões e distorções da História e evidenciam a construção de um discurso
ideológico pró-guerra, que identifica como “justo” o lado de Esparta. Alguns destes:
33
Este “choque de civilizações” traduzido em visão de Ocidente civilizado, Oriente bárbaro, foi
defendido pelo teórico conservador americano Samuel Huntington, que apresentou esta tese em seu
livro The Clash of civilizations and the remaking of world order, 1996.
34
Na atual cultura do corpo, essa nostalgia pela Grécia é raramente explicitada, entretanto, a coneo entre
uma Grécia idealizada e o corpo perfeito fascinou aqueles que criaram os jogos olímpicos modernos, alimentou
a ideologia nazista (promoção do físico atlético ariano) e está presente nas academias atuais (GOLDHILL, 2007,
pg. 28).
70
3.1.4.1 Identificação dos espartanos com a cultura ocidental idealizada
O ago processo de educação dos meninos espartanos - é histórico.
Porém, afirmar que aprendiam Matemática e Filosofia (o que confere aos
espartanos um ar de transmissores da cultura ocidental) é falso. Como bem
notou I.F. Stone, na obra O Julgamento de Sócrates, os espartanos tinham
verdadeiro horror à filosofia.
O papel relevante da rainha Gorgo, esposa de Leônidas, não condiz com a
realidade da mulher espartana. È verdade que, aparentemente, as
espartanas tinham mais liberdade que as atenienses: todos os dias iam ao
ginásio para exercitar-se (deveriam gerar filhos sadios, que seriam os
futuros guerreiros da cidade) e também tinham certa liberdade sexual
(ARISTÓTELES, p. 60). Entretanto, estudos recentes demonstram que as
mulheres espartanas, em contraste com as atenienses, eram mais “livres”
unicamente devido a sua menor importância no corpo social e na vida de
seus maridos. As espartanas eram privadas de uma vida familiar efetiva,
deixavam de conviver com os filhos a partir de sete anos e apenas
esporadicamente encontravam-se com seus esposos. Em Esparta,
fortalecia-se a comunidade de guerreiros, em detrimento da esfera privada,
as mulheres não tinham direitos políticos, não participavam das assembléias
e não tinham poder decisório algum (SOUZA, 1988, p. 40). Vale dizer que,
apesar de não ressaltado no filme, à mesma época a situação da mulher
persa era muito melhor:
(...) circulando livremente e sem véu, a mulher persa ocupa uma
situação elevada. Como no mundo escandinavo primitivo ela
pode dispor de sua fortuna pessoal e geri-la ao seu modo, ela
tem igualmente o poder de dirigir os negócios de seu marido em
seu nome (MOURREAU, 1978, p. 276).
Os persas eram indo-europeus e, portanto, fisionomicamente muito
parecidos com os gregos. Seu exército multi-étnico era formado por
mercenários que não tinham o mesmo espírito de combate dos gregos, os
quais lutavam por suas famílias e em defesa do seu modo de vida. Em
outras palavras, os espartanos eram guerreiros de profissão, boa parte
71
dos persas, não. Contudo, imbecilizar os guerreiros de Xerxes é um
exagero, pois os persas haviam formado um grande império, vencendo
diversos povos.
Os persas, e não os gregos, eram povos tolerantes com os habitantes dos
territórios conquistados: respeitavam suas culturas, não interferiam em
suas religiões e não impunham o persa como língua oficial preferiam o
aramaico, uma língua semítica muito falada no Oriente Próximo. São
várias as fontes históricas que documentam esta faceta da civilizão
persa:
Quando Ciro, que deu início à expansão persa conquistou a
Babilônia, poupou a vida do rei Nabônide como havia sido benigno
com Astiages, rei dos medos que ele derrotara, e como foi
magnânimo com o infortunado Creso, rei dos lídios, que ele
também venceu (MOURREAU, 1978)
Quanto aos judeus que haviam sido levados cativos para a
Babilonia, Ciro os libertou e permitiu que eles retornassem a
JERUSAM para reconstruir o templo (Bíblia, Esdras, 1-11).
3.1.4.2 Identificação de fraqueza para enfrentar a guerra com a idade
avançada dos éforos
Os homens que desaconselharam Leônidas em sua estratégia de guerra não
eram, de forma alguma, as figuras caquéticas e corrompidas que aparecem na
película:
(...) são cinco, eleitos todos os anos pela assembléia, de entre o
conjunto dos cidadãos. Agindo colegialmente, talvez tenham tido de
inicio funções religiosas, mais tarde teriam sido encarregados de
controlar os reis ou de gerir a cidade, quando a guerra dela afastava
seus chefes, mas em seguida intervirão nas questões militares
(AMOURETTI, 1993, p. 115).
As implicações desta identificação são várias e das mais desconcertantes:
primeiro, associa-se à idade avançada dos éforos a senilidade e feiúra – o que por si
constitui um preconceito; segundo, associa-se à não-disposição para guerrear, ou
72
seja, à disposição para a paz, também à senilidade. Em outras palavras, a guerra é
para os jovens, belos e justos guerreiros, enquanto a paz é para os velhos
caquéticos...
3.1.4.3 Identificação dos espartanos com a heterossexualidade
Nem de longe eram os espartanos os seres homofóbicos representados na
frase jocosa de Leônidas, que em referência desairosa diz dos atenienses: “pouco
podemos esperar daqueles fisofos e pederastas”. A filosofia era, de fato, execrada
pelos espartanos. A homossexualidade, porém, era encarada com normalidade e
pode-se dizer que intensa: até os 30 anos os espartanos viviam em acampamentos
e as relações homossexuais eram bastante comuns (DOVER, 2007, p. 265).
Novamente, a frase proferida pelo personagem Leônidas no filme deixa transparecer
o preconceito: coloca a homossexualidade como uma fraqueza associada à
covardia. Ou seja, os bravos guerreiros espartanos erammachos”...
3.1.4.4 Identificação dos orientais como fundamentalistas religiosos
Xerxes, rei dos persas, é apresentado como um gigante de trajes bizarros,
adorado como um deus por seus súditos. Deixando de lado a mencionada
inverossimilhança do figurino que conforme pesquisa de John Peacock (1996,
p.13) nada tinha de extravagante – a representação de Xerxes é um equívoco. O rei
era, apenas, o representante mortal de Ahura-Mazda na terra, como podemos
observar no texto abaixo:
(...) na inscrição de Behistun, a mais antiga de Dario, a Ahura Mazda é
mencionado pelo menos uma vez em cada 1 dos seus 76 parágrafos.
Ahura Mazda levou socorro a Dario. Fê-lo rei, fê-lo derrrotar em 1 ano
todos os exércitos rebeldes, e tudo que ocorreu se deve unicamente à
vontade de Ahura Mazda. (ASHERI, 2006, p. 65).
73
O próprio Heródoto reconheceu as limitações do poder dos monarcas persas:
(...) louvo a uma outra instituição (persa), a que o permite sequer ao
próprio rei mandar matar qualquer homem por causa de uma única
falta, nem a qualquer outro persa estropiar um de seus serviçais por
causa de uma única falta. (HERÓDOTO, p. 64).
3.1.5 Análise geral de 300
É sabido e geralmente aceito que a indústria cinematográfica não tem
especial compromisso com a veracidade histórica, que seu principal objetivo é o
comércio do entretenimento. Pom, quando um filme transpira preconceitos contra
quase todas as minorias possíveis (contra negros e pardos, contra árabes, contra
idosos, contra homossexuais, contra os fisicamente menos favorecidos) devemos
nos perguntar se estamos realmente diante de uma mera coincidência”... A
dicotomia que resulta de todas as alterações e omissões históricas é clara: o oriente
sórdido, culturalmente inferior, feio, negro, decrépito, sexual e fisicamente
“defeituoso”; o ocidente belo, branco, forte, corajoso. Tudo, enfim, que a cultura
macho-ocidental considera ruim es relacionado ao mundo oriental; tudo que tem
valor, é belo e moralmente correto tem relação com o mundo ocidental.
Além de todo preconceito e do marcante maniqueísmo (transposto
diretamente da Hisria em quadrinhos de Frank Miller), 300 é um filme político; e um
filme político forte, principalmente por que se apresenta como totalmente apolítico.
Em alguns trechos do filme, Leônidas faz breves discursos sobre a “liberdade”
(apesar de que a maior parte da população grega era constituída de escravos)
liberdade que, subentende-se, só pode ser conquistada ou mantida com belicismo e
muita violência, com a coragem” dos que lutam por seus ideais até a morte.
Exaltam-se a beleza da guerra e o mito da invencibilidade.
74
Esta é a questão central do filme 300: as distorções históricas são usadas
para perpetuar preconceitos e estereótipos e a demonização do “outro” serve para
validar uma posição política. Compreendido em seu contexto de produção três
anos depois do início da invasão norte-americana no Iraque (2003) e dois anos
depois da re-eleição de George W. Bush (2004) o posicionamento político é mais
claro: o filme celebra claramente o patriotismo espartano, como poderia celebrar o
patriotismo das tropas americanas no Iraque. Quem assistiu aos discursos do
presidente George W. Bush, sobre a guerra no Iraque, lembra-se que seus
argumentos pró-invasão foram justamente a defesa da liberdade, a libertação do
povo iraquiano e a guerra ao terrorismo. Á época do início da guerra no Iraque, os
que se opuseram ao confronto e não se aliaram aos ideais libertários de Bush foram
estigmatizados como covardes e corruptos – assim como os éforos, que foram
retratados no filme como os velhos caquéticos que se opõem a guerra, as “caducas”
ex-potencias européias, como a França e a Alemanha, se opuseram à invasão do
Iraque (afinal, como diria o Leônidas do século XXI, quem pode confiar nos
filósofos?)
Do mesmo modo que a propaganda e o patriotismo grego impuseram o clic
de uma civilização helênica superior face ao obscurantismo persa, o filme serve
como uma propaganda não muito sutil para a política de Bush no Oriente Médio -
que objetiva “a paz e a democracia” - e para incitar o mesmo exemplo de patriotismo
nos jovens norte-americanos. Historicamente, ver no lado oposto - no inimigo, no
“outro” - tudo que é indesejável, aplaca consideravelmente a consciência dos povos
invasores. Como bem escreveu Van Effenterre:
O bárbaro é o homem a quem as pessoas se sentem no direito de desprezar,
porque foi por elas vencido. Mas procuram todas as razoes possíveis para
75
confirmar seu desprezo, são realçados os traços de costumes bizarros ou um
pouco repugnantes, os detalhes estranhos da roupa, da vida cotidiana, ou dos
comportamentos, não querem compreender nada dos valores de sua
civilização. O bárbaro é o outro (apud MOURREAU, p.. 318).
O melhor que se pode dizer de 300 é que os efeitos especiais são bons.
Sobre o valor da resistência espartana, podemos considerar apenas que foi relativa,
pois os persas passaram pelo desfiladeiro e saquearam parte da Grécia. A contra-
ofensiva grega veio somente mais tarde, graças à vitoria na batalha naval de
Salamina, onde os atenienses tiveram papel vital. Sem o poderio marítimo de Atenas
e a força de seus hoplitas, os persas teriam vencido. Foi a menos belicosa Atenas, e
não a truculenta Esparta, que salvou a Grécia.
3.2 TRÓIA – HUMANIZAÇÃO DA GUERRA E AMERICANIZAÇÃO DE AQUILES
Ao longo da História do cinema foram produzidos vários filme sobre a Guerra
de Tróia. Uma produção que fez muito sucesso foi Ulysses, rodada na Itália em 1954
e dirigida por Mario Camerini. Dois anos depois foi lançado Helena de Tia,
produção da Warner dirigida por Robert Wise. Em 1962, nos estúdios romanos de
Cinecittà, foi produzido A Guerra de Tia, com direção de Giorgio Ferroni. Filme
barato, com um figurino sofrível, excesso de cenas de gosto duvidoso em que atores
musculosos com trajes sumários participam de lutas incessantes sem objetivos
claros e contracenam com mulheres vestidas com nicas sensuais, cabelos
endurecidos por laquê e destilando frases piegas a exaustão. De um nível muito
superior foi filme do diretor Michael Cacoyanis, As Troianas, produzido em 1971,
adaptando uma obra de Eurípides. De origem cipriota, Cacoyanis soube como
poucos transpor para a tela os grandes temas da tragédia grega. Mais
recentemente(1997) foi laada a mega-produção (orçamento de 40 milhões de
76
dólares) A Odisséia com direção de Andrei Konchalovski – uma compilação de
várias obras, a película longa e confusa não agradou nem a crítica e nem o blico
em geral. Em síntese, passou despercebida. Situação bem diferente ocorreu com o
filme Tróia, lançado com grande aparato publicitário em 2005.
A superprodução da Warner dirigida por Wolfgang Petersen teve um
orçamento milionário de 180 milhões de lares. A reconstituição de Tróia
totalmente aleatória, que as ruínas daquela que os estudiosos supõem ter sido
Tróia poucas informações oferecem - foi levantada em uma área de 40,0 hectares,
na ilha de Malta, no Mediterrâneo; as cenas de batalhas foram gravadas no México.
O ator principal Brad Pitt recebeu 17,5 milhões de lares para interpretar Aquiles.
Investimento que valeu a pena, do ponto de vista comercial: em poucas semanas a
arrecadação superou em muito o valor empregado. Já a crítica não foi nada
complacente com mais essa produção hollywoodiana com uma tetica
pretensamente histórica.
3.2.1 Tróia na História
Durante o período em que foi exibido nos cinemas, fui questionado por vários
alunos: - Professor, o filme foi fiel a História? - A pergunta era respondida com outras
perguntas: - Qual História? - A História estampada na Ilíada” de Homero? Nas
Histórias que aparecem não apenas na “Ilíada”, mas também na outra obra de
Homero, a “Odisséia”, ou ainda nas informações sobre a “Guerra de Tróia” que
aparecem nas obras de dramaturgos gregos, especialmente Eurípides e ainda em
vários outros autores clássicos como o romano Virgílio em sua “Eneida”? Quem
sabe o filme tenha misturado todas essas fontes literárias e acrescentado elementos
77
da contemporaneidade visando torná-lo palatável as platéias que freqüentam as
salas de cinema? Como se percebe, a resposta não é nada simples.
Antes de analisarmos o filme, vamos procurar responder algumas perguntas:
Quem foi Homero? Do que tratam as duas obras atribuídas a ele? Como o tema foi
tratado por outros autores? Como era o “mundo homérico”? Houve de fato uma
guerra entre gregos e troianos? Veremos que, para a maioria destas queses, a
História não tem repostas conclusivas.
Em relação a Homero, o conhecimento é escasso: não se sabe exatamente
onde e quando nasceu - sequer tem-se a certeza de que tenha sido o autor da Ilíada
e da Odisia. Eis o que escreveu uma estudiosa do tema:
(...) Hoje, é crença geral que estas duas obras literárias representam o
resultado de uma longa tradição oral, como é particularmente atestado pelo
emprego de fórmulas repetitivas. Ao mesmo tempo, porém, concorda-se que
tenham sido recompostas a partir dessa tradição, provavelmente entre
meados e fim do século VIII a.C., por um ou mais poetas, que a “Odisséia”
apresenta, em relação à Ilíada”, diferenças que o podem ser atribuídas
apenas à diversidade de seus respectivos assuntos, sendo talvez fruto de
composição em período mais tardio (MOSSÉ, 2004, p. 171).
A questão homérica, porém, vai além do problema da identidade do autor das
duas epopéias: Que sociedade as obras descrevem? Os episódios narrados são
apenas mitos ou tem um fundo histórico? O historiador inglês Moses Finley, em sua
obra O Mundo de Ulisses (Lisboa: Editorial Presença, 1998), recusou-se a ver na
sociedade da época de Homero um reflexo do “Mundo Micênico”, pois a época que o
poeta viveu correspondeu ao período chamado pelos historiadores de “séculos
obscuros”, nada tendo da complexa sociedade palaciana que existiu em reinos
existentes na região que somente bem mais tarde veio a ser chamada pelos
romanos de “Grécia”. Em suma, as obras atribuídas a Homero descrevem eventos
ocorridos num período muito anterior à sua vida (séc. VIII a.C.): quando os aqueus
78
dominavam a região (entre os séculos XV e XII a.C), formando vários reinos
independentes, dos quais um era o de Micenas que, contudo, não tinha
preeminência sobre os demais. Os aqueus, chamados também de micênicos,
constituíam sociedades guerreiras que edificaram muralhas e palácios. Foram eles
os aqueus - que conquistaram Creta e que teriam destruído Tróia. Este mundo
comou a sucumbir diante das invasões dos rios, que provocaram um grande
retrocesso econômico e cultural que duraria vários séculos.
O alemão Heinrich Schliemann, leitor apaixonado de Homero, iniciou - a partir
de 1872 - escavações em Hissarlik, na atual Turquia, onde acreditava encontrarem-
se as ruínas de Tróia. De fato, encontrou restos de uma cidade desaparecida e de
um tesouro que batizou “tesouro de Príamo”. Em 1874, financiou escavações em
Micenas, na Grécia, onde descobriu vários túmulos. Romanticamente, divulgou que
havia encontrado a tumba de Agamênon, um dos protagonistas da Guerra de Tróia
segundo a obra de Homero. Mais tarde, os especialistas concluíram que a Tróia”
encontrada por Schliemann era muito anterior ao suposto conflito com os aqueus,
pois as seqüências estratigráficas, estudadas com uma metodologia científica, assim
o demonstravam. Para o arqueólogo Manfred Korfmann, a oitava seqüência
estratigráfica - de um total de dez correspondia aos restos da Tróia destruída na
tão decantada guerra. Quando? Talvez numa data entre os séculos XIII e XII antes
de Cristo. Certeza? Nenhuma, conforme assinala Claude Mossé:
Jamais saberemos se a Guerra de Tróia realmente ocorreu; o essencial é ter
fornecido o tema de uma das mais belas obras da literatura mundial
(MOSSÉ, 2004, p. 282)
3.2.2 Tróia segundo a obra atribuída a Homero
79
A Ilíada narra acontecimentos que ocupam cerca de 50 dias na virada do
nono para o décimo ano da guerra entre os aqueus e os troianos. A causa direta do
conflito teria sido o rapto de Helena - esposa de Menelau, rei de Esparta - por Páris,
filho de Príamo rei de Tróia. Diante do ultraje, Agamênon - rei de Micenas e irmão de
Menelau teria organizado um exército para resgatar a cunhada, que era também
irmã de sua esposa Clitmenestra. A Ilíadao trata de todos os aspectos da guerra:
a ação começa quando Agamênon se apossa de uma escrava de Aquiles, a jovem
Briseida. O poema, com mais de 15 mil versos divididos em 24 cantos, começa
justamente com “a ira de Aquiles”:
“Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu que incontáveis males trouxe
às hostes dos aqueus. Muitas almas de heróis desceram à casa de Hades e
seus corpos foram presa dos cães e das aves de rapina, enquanto se fazia a
vontade de Zeus, a partir do dia em que se desviaram o filho de Atreu
Agamênon - rei dos homens, e Aquiles, semelhante aos deuses” (HOMERO,
1998, p. 5).
Revoltado Aquiles deixa a luta em favor dos aqueus, mas apesar de sua
lera, permite que seu amigo Pátroclo continue combatendo. Quando este é morto
por Heitor príncipe de Tróia - em combate, Aquiles - consumido pelo ódio - volta a
combater para vingar a morte do amigo. Enfurecido, Aquiles mata e profana o
caver do príncipe troiano. Graças à intervenção divina, o corpo de Heitor é
entregue aos seus familiares. A epopéia termina com as exéquias funerárias de
Heitor:
Quando a prematura Aurora dos dedos róseos apareceu, o povo reuniu-se
em torno da pira do famoso Heitor. E, depois de terem-se reunido, os troianos
primeiro apagaram com o brilhante vinho toda a fogueira, onde as chamas
ainda crepitavam. Depois, os irmãos e camaradas de Heitor recolheram,
tristemente, os brancos ossos, enquanto as lágrimas lhes escorriam pela face,
e os guardaram em uma caixa de ouro. Sem demora, colocaram-na com um
maciço pano de púrpura. Sem demora, colocaram a caixa dentro de uma
profunda cova e empilharam muitas pedras por cima... Assim foram os
funerais de Heitor, domador de cavalos” (HOMERO, p.421).
80
O o citado Cavalo de Tróia - fruto do ardil de Ulisses, que possibilitou a
viria final dos aqueus – não aparece na Iada. Encontramos dele uma breve
referência no Canto VIII da Odisséia, e muito mais detalhadamente na Eneida,
escrita no século I a.C. pelo poeta romano Virgílio (BRANDÃO, 1989, p.288).
Portanto, a destruição de Tróia, a morte de Príamo, o retorno de Helena a
Esparta para viver o resto dos seus dias com Menelau, a morte de Aquiles atingido
por Páris na única parte vulnerável do herói (o calcanhar)todas estas informações
encontram-se espalhadas em várias fontes, como bem observou Pierre Grimal:
A lenda de Aquiles é uma das mais ricas e mais antigas da mitologia grega.
Tornou-se célebre com a Ilíada, cujo tema não é a tomada de Tróia, mas a
lera de Aquiles, a qual, ao longo da expedição, por pouco não causou a
derrota da armada grega. Assim, o poema épico mais lido de toda a
antiguidade contribuiu para popularizar as aventuras do herói. Outros poetas e
outras narrativas populares apoderaram-se do personagem e trabalharam
para completar o relato de sua vida, inventando episódios para preencher as
lacunas dos relatos homéricos. De qualquer forma, criou-se pouco a pouco a
pouco um ciclo de Aquiles’, sobrecarregado de incidentes e de lendas muitas
vezes divergentes, inspirando os poetas trágicos e os poetas épicos de toda a
antiguidade, até a época romana (apud SOUZA, 2001, p.51).
A produção cinematográfica de 2005 não foi fiel sequer à Ilíada, principal fonte
do mito, pois alterou substancialmente o pouco que se conhece sobre o conflito
através de uma série de fontes do chamado “ciclo troiano”: Menelau não foi morto
por Páris - o Rei de Esparta sobreviveu ao conflito e recuperou Helena; Agamênon
retornou vitorioso ao seu reino para, muito mais tarde, ser assassinado por sua
esposa Clitmenestra - que não perdoava o fato dele ter sacrificado a filha, Ifigênia,
para obter ventos favoráveis para a sua esquadra rumo
à Tróia; a escrava Briseida - razão da briga entre Agamenon e Aquiles - era natural
de Tebas e não troiana. O filme revelou-se eivado de erros também ao retratar o
81
“mundo micênico” e uma representação inadequada (de acordo ao que
conhecemos das pesquisas arqueológicas) sobre o período em que teria ocorrido o
conflito entre aqueus e troianos e da época em que Homero viveu.
3.2.3 O conteúdo histórico e ideogico de Tróia
A dificuldade em se estabelecer quanto da lenda de Tróia pode ou não haver
ocorrido é imensa, como ressaltado é possível, inclusive, que a única “verdade”
sobre o mito seja a de que existiu uma cidade com este nome, e que em alguma
época provavelmente entre XIII e XII a.C, esta foi destruída. Podemos, entretanto,
estabelecer que alguns equívocos permeiam a película:
Não registros que o Reino de Micenas tenha dominado a região onde
surgiu mais tarde a Civilização Grega. Falar em Império Grego” e exaltar
o país com rasgos patrióticos são disparates que aparecem na obra à
exaustão - o “mundo grego” clássico surgiu muito depois.
No filme, há cenas em um conjunto de ruínas, tal qual estão nos dias de
hoje - ruínas do período clássico (V e IV a.C), encontradas no período
micênico (XV a XI a.C)...
Sabemos que em torno do século XIII a.C., proliferavam reinos como os de
Tirinto, Pilos, Tebas, Iolco, Micenas e muitos outros porém, não existiam
na região cidades imponentes com muralhas grandiosas, muito menos
exércitos e nem uma marinha tão numerosa e equipada como o filme
apresenta.
A descrição fílmica também não corresponde à sociedade homérica (séculos
XI a VIII a.C.), período conhecido como tempos obscuros - é verdade que na “Ilíada”
82
lemos que os aqueus dispunham de mil embarcações, porém, não devemos tomar
essa informão literalmente: para Homero, o decisivo era a poesia, com suas
Histórias verdadeiras ou inventadas, para agradar uma aristocracia guerreira que
apreciava ouvir os aedos cantarem os grandes acontecimentos heróicos
preservados pelos antigos:
(...) Além do mais, a sociedade descrita pelos poemas, grosso modo
equivalente ao mundo grego dos séculos X e IX, não seria capaz de
empreendimento o grandioso em termos de escala e de organização. O
chamado “Mundo de Ulisses era pequeno em população, organizado em
torno de casas de nobres ou oikoi, à frente das quais estava um chefe ao
mesmo tempo militar, econômico e religioso: o basileus. Era um mundo em
que uma aristocracia de guerreiros disputava ferozmente a glória advinda da
participação nas atividades bélicas, que eram mais propriamente pequenas
pilhagens e saques dirigidos às regiões próximas do que grandes expedições
como a que teria levado os gregos a sitiarem Tróia (SOUZA, 1988, p.23).
3.2.3.1 Exaltação à guerra e de valores ocidentais
O filme, logo no seu icio, apresenta um diálogo entre Aquiles e sua mãe que
é uma exaltação da guerra. Por várias vezes os personagens, especialmente
Aquiles, enfatizam o desejo de “entrar para a História” anacronismo tolo, pois a
noção de História conforme entendemos hoje começou a despontar vários
séculos depois, com Heródoto, Tucídides e Xenofonte. É bastante ilustrativo o
discurso de Tétis, incentivando o filho a partir com o objetivo de fazer História e para
defender “o seu país”:
Muitos antes de você nascer, eu sabia que viriam. Querem que você lute em
Tróia. Se ficar em Larissa, encontrará paz. Encontrará uma mulher
maravilhosa. Terá filhos e filhas e eles terão filhos. E eles o amarão. Quando
se for, eles lembrarão de você, mas... quando seus filhos morrerem e
depois os filhos deles, seu nome será esquecido. Se você for a Tróia, a
glória será sua. Escreverão suas Histórias por milhares de anos. O
mundo se lembrará do seu nome. Mas se você for a Tróia, jamais voltará
para casa, pois sua glória anda de os dadas com sua morte (Tétis,
para o filho Aquiles, no filme Tróia, 2005)
83
Resumidamente, Tétis disse ao filho que se ele quisesse ser esquecido dentro
de pouco tempo, deveria ficar em Larissa, mas se quisesse ser lembrado, glorioso,
através dos séculos, deveria ir combater em Tróia... Dentro do contexto atual, nada
gratuito se levarmos em consideração que muitos jovens norte-americanos estavam,
no ano de 2005, sendo enviados para o Iraque e para o Afeganistão para
defenderem os “interesses do mundo livre”:
A exaltação do patriotismo e a valorização do guerreiro que luta para defender
sua família e religião aparecem de forma explícita em mais de uma ocasião: Heitor
afirma que lutaria pelos deuses, pelo país e por sua família. Ora, as noções de
pátria, nação e patriotismo são construções do mundo contemporâneo - inexistentes
naquele período - Heitor lutou para defender o seu reino. Em uma outra passagem,
num diálogo entre Ulisses e Aquiles, transmite-se o desprezo pelo questionamento
da guerra como atividade política:
“Guerra significa jovens morrendo e velhos conversando. Sabe disso? Ignore
a política!” (Ulisses, para Aquiles, no filme Tróia, 2005)
As famílias de Príamo e Heitor foram “ocidentalizadasde acordo com o ideal
monogâmico vigente no código moral atual – Príamo, segundo a lenda, teve mais de
50 filhos e inúmeras esposas, e Hector tampouco era monogâmico: tanto a noção de
família quanto a mentalidade da época não poderiam ser iguais às de hoje e a
poligamia era certamente, a prática considerada “normal”.
3.2.3.2 O escamoteamento do politeísmo
Para que o filme fosse melhor aceito pelas sociedades de religiões
monoteístas o que muito ajuda com a identificação daquelas nações” com as
nações modernas - a participação dos deuses na trama da Warner foi reduzida à de
84
meros espectadores. Fala-se deles, aqui e ali, como se eles constituíssem um bloco
unitário – como um deus das religiões monoteístas. Nada vai mais na contramão da
Ilíada, de Homero ou de qualquer outra fonte que nos relate sobre aquelas
civilizações: os “gregos” não poderiam lutar “pelos deuses”, conjuntamente
simplesmente porque os deuses gregos jamais estavam de acordo. Conforme notou
Souza (1989), a Guerra de Tróia foi uma teomaquia, ou seja, uma luta entre deuses,
antes de ser uma luta entre heróis.
Observa-se na ‘Ilíada’ uma divisão clara dos deuses: Hera, Atená, Poseidon,
Hermes e a ninfa do mar, Tétis (mãe de Aquiles), eso do lado dos aqueus
(“gregos”). Por outro lado Afrodite, Apolo, Ares e Ártemis apóiam os troianos. Como
Hera exercia sobre Zeus - seu marido e deus máximo do Olimpo - enorme influência,
os gregos conseguiram maior vantagem. Foi Hera quem, finalmente, convenceu
Zeus de que Tróia deveria ser destruída. Qual o motivo de Hera para defender os
gregos? Segundo a mitologia, na qual toda a História se baseia, um dos eventos que
levaram à guerra de Tróia foi o “julgamento de Páris”: Em um banquete celebrando o
casamento de Tétis e Peleus (pais de Aquiles), a deusa da discórdiachateada por
não ter sido convidada - teria jogado uma maçã com a inscrição “para a mais bela”.
Três deusas reclamaram o fruto Hera, Atená e Afrodite e chamaram Zeus para
julgar. Diplomático, Zeus chamou Páris príncipe de Tróia para decidir por ele.
Cada uma das três deusas lhe ofereceu favores pelo voto: Hera lhe ofereceu ser rei
de todas as terras conhecidas, Atená lhe ofereceu sabedoria, e Afrodite lhe ofereceu
o amor da mais bela mortal. Páris escolheu o presente de Afrodite, que lhe ajudou a
conquistar Helena, mulher de Menelau a expedição dos “gregospara recuperar
Helena, em Tróia, é a base mitológica da Guerra de Tróia. Páris conquistou a
85
inimizade de Hera com seu julgamento, e esta teria sido a razão pela qual tróia foi
derrotada.
No filme, entretanto, os deuses têm papel pouco significativo. inclusive
uma ironia totalmente descontextualizada em um diálogo entre Heitor e Príamo:
Heitor: Pai, não podemos ganhar esta guerra.
Priamo: Apolo zela por nós. Nem Agamênon é páreo para os deuses.
Heitor: E quantos batalhões o deus Sol comanda?
O roteirista usou uma famosa frase atribuída a Stalin, quando um de seus
auxiliares relatou as críticas do Papa feitas ao seu Governo: “Quantas divisões tem o
Papa?”, teria perguntado o líder dos soviéticos - nada mais fora do contexto.
3.2.3.3 A construção do ideal de guerreiro
É importante destacar, para não cairmos em anacronismos, que os gregos
não categorizavam as pessoas de acordo com suas preferências sexuais. Eis o que
escreveu K. J. Dover:
Os gregos tinham consciência de que os indivíduos diferem em suas
preferências sexuais, mas sua ngua o tinha substantivos correspondentes
a “um homossexual” ou “um heterossexual”, uma vez que eles consideravam
que virtualmente todos respondem, em momentos diferentes, a estímulos
homossexuais e heterossexuais... (DOVER, 2007,p.13).
Para os gregos, a alternância de preferência sexual não criava problemas
específicos para o indivíduo ou para a sociedade, por isso a sexualidade aparece de
forma desinibida na literatura e nas artes visuais. É possível afirmarmos que o amor,
bem como as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, foi não apenas
tolerado, mas elevado à condição suprema de realização individual. Personagens
lebres - de Sólon a Alexandre, passando por Sófocles, Pistrato, Alcibíades ,
Platão e Sócrates tiveram relações que hoje chamamos de “homossexuais”. O
86
relacionamento entre Aquiles e Pátroclo cuja morte ocasionou a “ira de Aquiles”,
tema central da obra Ilíada - era, segundo passagem encontrada canto XXIII do
poema homérico, quase certamente “homossexual”:
Homero, assim como Ésquines comenta, jamais fala de uma relação erótica
entre Aquiles e Pátroclo. Seria razoável atribuir o silêncio do poeta à ausência
de qualquer elemento erótico nesta relação, conforme ele considerava. Para
Ésquines, entretanto, assim como para os demais gregos do período clássico,
a extravagância das emoções de Aquiles quando troclo é morto,
combinada com a injunção de troclo de que, quando Aquiles morreu, suas
cinzas devem ser enterradas juntas, significa eros homossexual, e Ésquines
considera a reticência de Homero como um sinal de sensibilidade culta...
(DOVER, 2007, p.270).
Isto não impedia, absolutamente, que ambos tivessem relações com
mulheres: ao fim do canto IX da Ilíada, Pátroclo se deita com uma mulher que
Aquiles lhe envia de presente. De fato, a sexualidade grega era livre dos tabus das
sociedades ocidentais.
A questão, portanto, não é discutir a natureza da amizade entre Aquiles e
Pátroclo, mas sim a forma como a sexualidade aparece no filme: Brad Pitt é o ga
metrossexual moderno, malhado” e belo - para os padrões ocidentais, com seus
cabelos louros e olhos azuis que encarna o agressivo Aquiles, ansioso para entrar
para História como intrépido guerreiro. A sexualidade de Aquiles, no filme, é
extremamente convencional: seu amor por troclo é fraternal e o herói é visto com
várias mulheres, até que Briseida lhe conquista – nada que choque o grande público
ou macule a imagem do milionário ator junto ao público feminino. Em resumo,
valores familiares “tradicionais” ocidentais permeiam a obra.
3.2.4 Análise geral de Tróia
87
A apresentação do mapa localizando a cidade de Tróia - no início do filme e
as informações retiradas da obra de Homero o ao espectador a impressão de que
assistiu a um relato histórico. De modo algum Tróia deve ser encarado como tal, pois
não reconstitui nem o mundo micênico, nem a vida social, econômica e cultural do
mundo homérico. Também o pode ser considerado uma reconstituição nem
mesmo parcial - das belíssimas obras da literatura clássica atribuídas a Homero,
principalmente pelo lugar secundário que destinou aos grandiosos deuses do
Olimpo. O que resta na mega-produção da Warner são batalhas intermináveis,
duelos sanguinários, diálogos piegas, exaltação da violência física, da guerra e de
valores ocidentais orientados para o nacionalismo, patriotismo e belicismo. Os
efeitos especiais, apesar de excelentes do ponto de vista técnico, aumentam a
inverossimilhança da obra: as cenas das flechas incandescentes - que acendem
gigantescas bolas de fogo, que por sua vez se espalham pela praia destruindo o
acampamento inimigo - ultrapassam o surrealismo como antagonistas da lógica e da
razão.
A mensagem principal de Tróia é a da inevitabilidade das guerras, em que
nações defendem seus direitos e territórios e guerreiros valorosos morrem por sua
pátria, por suas famílias e por seus deuses.
3.3 GLADIADOR – PÃO E CIRCO NO SÉCULO XXI
Desde os primórdios do cinema, a História de Roma foi explorada pelos
cineastas. Os exemplos são muitos, mas o auge dessas produções ocorreu nos
anos 50 e 60 do século passado - destacaram-se Júlio César (1953), direção de
Joseph L. Mankiewicz; Demétrio e os gladiadores (1954), direção de Delmer Daves;
88
Ben-Hur (1959), direção de William Wyler; Aníbal, o conquistador (1960), direção de
Edgar Ulmer; Spartacus (1960), direção de Stanley Kubrick e Cleópatra(1963),
direção de Joseph L. Mankiewicz. Do ponto de vista comercial, apenas Ben-Hur e
Spartacus recuperaram o investimento:
(...) Um elenco excelente garantiu virtualmente que a Universal recuperasse
os 12 milhões de dólares que gastou com Spartacus a mais cara produção
hollywoodiana até então (HARRIS, 1997, p.50) .
O fracasso retumbante do caríssimo Cleópatra, falseado pelos caprichos das
estrelas e pelas exigências dos produtores, fez com que Hollywood abandonasse
por várias décadas a produção de épicos (TULARD, 1996, p. 414). O filme Gladiador
(2000) reiniciou um ciclo dos grandes épicos com temática histórica depois dele,
vieram Tróia, Alexandre
35
, Cruzada e, mais recentemente, 300.
O “efeito Gladiador” - como ficou conhecido o fenômeno entre escritores e
editores norte-americanos - também impulsionou consideravelmente a venda de
livros de História clássica, principalmente romana (ARNOLD, 2002) mais uma
prova da influência poderosa do cinema.
3.3.1 A História da produção de Gladiador
Boa parte da temática do filme Gladiador havia sido tratada na década de
60: primeiro em Spartacus
36
(1960), e depois em A queda do Império Romano
37
35
Alexandre o fez parte desta análise por não estar na lista dos 350 filmes mais rentáveis da
História do cinema norte-americano: apenas 4 filmes, depois de 2000, entraram na lista, composta
por filmes que arrecadaram mais de 200 milhões de dólares somente em exibições nos cinemas do
mundo inteiro.
36
Apesar de o filme ter se tornado um sucesso, Kubrick não gostou do resultado, pois considerou o
roteiro superficial e irreal: o herói do filme nada tinha a ver com o verdadeiro Spartacus - que não
nasceu escravo, foi brutal o bastante para executar prisioneiros romanos, não tentou deixar a Itália,
não liderou um grupo coeso de cativos e nem pode dar o último adeus a sua esposa (personagem
fictícia do livro homônimo de Howard Fast) e filho.
89
(1964), dirigido por Anthony Mann. Misturando muita ficção, o Gladiador, de Riddley
Scott (2000) apresenta uma série de paralelos no que tange a adulterações da
História.
O roteiro original, escrito por David Franzoni, foi inspirado na obra A História
de Augustus uma coleção de biografias de imperadores romanos, de mais de um
autor da qual saíram os personagens Cômodo e Narciso o executor de Cômodo
segundo sua biografia. Mais tarde, o personagem Narciso receberia o nome de
Máximo. Uma pintura famosa do século XIX, Pollice Verso, de Jean-Léon Gérome
que mostra uma cena de gladiadores - impulsionou o diretor Ridley Scott a perseguir
o projeto. Spartacus e A queda do Império Romano também serviram de inspiração
para o novo épico, filmado entre Janeiro e Maio de 1999, em locações na Inglaterra,
Malta e Marrocos, com um orçamento de mais de 100 milhões de dólares dos
quais cerca de um milhão foram gastos somente com a réplica do Coliseu.
3.3.2 Contexto histórico
A História que serviu de pano de fundo para o filme ocorreu no Imrio
Romano, ao final do reinado de Marco Aurélio (161-180), que enfrentava graves
problemas: no Oriente, a ameaça persa; a peste, que grassou em 165; as invasões
germânicas e a tentativa de usurpação de Avídio Cássio. O imperador encontrou na
filosofia esica a força para enfrentar e vencer todos estes desafios. Sua
apresentação como um homem virtuoso e abnegado é ponto unânime entre os
historiadores: ´
37
Já no título a História era sacrificada: o filme tratava apenas de uma crise no império, durante o
governo de Cômodo (entre 180 e 192) e de forma alguma a sua queda (ocorrida em 476)
90
(...)Sua memória foi reverenciada por uma posteridade agradecida, e mais de
um século após sua morte, muitas eram as pessoas que lhe guardavam a
imagem entre os deuses láricos(GIBBON, 1989, p. 87).
Marco Aurélio passou a maior parte do seu reinado nos campos de batalhas,
dedicando-se a restaurar as fronteiras do império e desenvolvendo uma política de
reconquistas. A tradição dos Antoninos (dinastia) ditava que os soberanos
adotassem pessoas qualificadas para sucedê-los - assim procederam Nerva,
Trajano, Adriano e Antônio Pio. Marco Aurélio, entretanto, rompeu com esta tradição
e declarou Cômodo – seu filho de sangue - seu sucessor (CHRISTOL, 1993, p.190).
Cômodo governou por três anos junto de seu pai, e depois da morte deste,
procurou firmar um acordo de paz com os germânicos:
Pensou-se que o jovem soberano prosseguiria a política belicista dos últimos
anos do reinado de seu pai: não lho tinha este recomendado antes de morrer?
Mas não foi o que se passou, pois Cômodo rompeu radicalmente com a
política para a Germânia seguida até 180; fez a paz, regressou a Roma e aqui
exaltou a sua Virtus nos jogos do anfiteatro, ao mesmo tempo que virava a
sua devoção para Hércules. ..(CHRISTOL,1993, p. 192).
Quer por ter sido escolhido para a sucessão ao trono não por seus méritos,
mas por ser filho do monarca; quer por procurar a paz em seu reino o que não
interessava economicamente à elite romana - ou por ser realmente um mau
governante, Cômodo foi um imperador amaldoado pelos historiadores Dion Cássio
e Herodiano
38
, que o descreveram como violento, devasso, vingativo, incompetente
38
A maior parte dos escritos sobre Roma neste período usa, principalmente, estas duas fontes
históricas: Dion Cássio escreveu uma História de Roma em 80 volumes, os quais muitos
sobreviveram intactos e alguns em fragmentos; foi cônsul (205/206), governou a África, a Dalmácia e
a Panônia Superior. Herodiano (180-250), ligado a elite senatorial, produziu uma obra repleta de
erros históricos, imprecisões geográficas, artifícios retóricos e um moralismo exacerbado, buscando
sempre um modelo de governante ideal. Contudo, é preciso não esquecer que a ordem senatorial foi
hostil ao jovem Cômodo e que os relatos de Dion Cássio e Herodiano podem ser apenas reflexos da
rivalidade de interesses entre os representantes do senado e o jovem imperador.
91
e capaz das maiores extravagância e desatinos. Dion Cássio, inclusive, acusa
Cômodo de assassinar o pai, que, aparentemente, morrera de causa natural:
Marco Aurélio não morreu em conseqüência da moléstia infecciosa que devia
matá-lo, mas antes graças aos bons cuidados de seus médicos que queriam
ganhar as graças de seu filho (LISSNER, 1959, p. 258).
Dois irmãos da família Quintiliano, Máximo e Condiano a quem os
Antoninos haviam promovido ao consulado e, subseqüentemente, à incumbência
conjunta da administração civil da Grécia eram os principais inimigos de Cômodo.
Este Máximo, no entanto, não era espanhol e jamais foi gladiador (GIBBON, 1989,
p.95).
Cláudio Pompeiano (senador, principal general do imperador filósofo e
segundo marido de Lucilla, irmã de Cômodo) tentou em vão persuadir Cômodo a
continuar a guerra contra os germânicos, entrando numa rota de colisão com o
cunhado (BOWDER, 1990, p. 79 e 161). No ano de 183, o imperador foi vítima de
um atentado – um homem com a espada desembainhada lançou-se contra ele
dizendo: “O Senado vos manda isto!”. O alarde impediu a concretização do crime e o
sicário, torturado pela guarda imperial, revelou o mandante do assassinato: Lucilla, a
irmã do imperador. Todos os envolvidos foram presos e executados:
(...) Irritada com a sua posão secundária e ciumenta da imperatriz reinante,
armara o braço do homicida contra a vida do irmão. Não se atrevera a
comunicar o sombrio desígnio ao seu segundo marido, Cláudio Pompeiano,
senador de elevado mérito e inabalada lealdade; entretanto em meio a turba
de seus amantes encontrou homens de fortuna em crise e de loucas
ambições preparados para servirem às suas paixões mais violentas, tanto às
mais ternas. Os conspiradores sofreram o rigor da justiça, e a princesa
abandonada foi punida, primeiro com o exílio, depois com a morte. (GIBBON,
1989, p. 94).
92
O atentado e a morte da irmã abalaram o jovem imperador, que se tornou
desconfiado e cruel - proliferavam os delatores e o corpo senatorial foi duramente
atingido: Máximo e Quintiliano foram alguns de suas vítimas. Culpados e inocentes
não escapavam da ira do tirano, que foi finalmente assassinado em 192, aos 31
anos:
Sua crueldade se revelou fatal a ele próprio. Derramara com impunidade o
sangue mais nobre de Roma; pereceu tão logo começou a ser temido pelos
seus próprios serviçais. Márcia, sua concubina favorita, Ecleto, seu camarista,
e Leto, seu prefeito pretoriano, alarmados com o destino dos colegas
predecessores, resolveram não evitar a ocasião que se lhe oferecia, de servir
um gole de vinho ao seu amante que se fatigara na caça de animais
selvagens. modo se recolheu para dormir, mas enquanto sofria os efeitos
do veneno e da embriaguez, um jovem robusto, lutador profissional entrou na
sua alcova e o estrangulou sem resistência. O corpo foi secretamente retirado
do palácio antes de a corte, ou a cidade, nutrir a mínima suspeita da morte do
imperador. Esse foi o fim do filho de Marco, tão cil se demonstrou aniquilar
um tirano odiado... (GIBBON, 1989, p.100).
As lutas de gladiadores, por sua vez, surgiram de um antigo costume
funerário etrusco, em que dois lutadores se enfrentavam até a morte para abrilhantar
o evento. A idéia foi aperfeiçoada e guerreiros passaram a ser convidados para se
enfrentar com o gládio (daí o termo gladiador) - uma espada curta. Mais tarde, esses
combates passaram a ser espetáculos oferecidos ao público por cidadãos que
queriam fazer carreira política e, com o crescimento da demanda, foram surgindo
escolas para a formão de gladiadores, chamadas ludus, dirigida por lanistas.
Existiam vários tipos de gladiadores como hoje existem vários tipos de lutas, com
regras, vestimentas e armamentos distintos que eram treinados geralmente por ex-
gladiadores. A alimentação era das melhores e havia um médico para tratar os
feridos. Os riscos eram grandes, mas também existiam recompensas: fama,
mulheres (os gladiadores eram considerados símbolos sexuais) e, para aqueles que
93
eram escravos, a possibilidade de alforria. Quem eram esses homens? Muitos eram
escravos, mas havia tamm marginais e ainda pessoas vindas de famílias
tradicionais, que sentiam ter vocação de gladiador:
Nós vamos ter, dentro de três dias, um magnífico espetáculo, um combate
não de simples gladiadores, mas de homens, em sua maior parte, livre. Tito,
meu amo, é um homem magnânimo; tem uma cabeça quente e vereis algo de
extraordinário, de uma maneira ou de outra... Não será um combate de
risadas. Ele dará aos lutadores lâminas bem temperadas, e eles não terão
possibilidades de fugir. Ele tem como arcar com tamanhas despesas. Seu pai,
ao morrer, deixou-lhe trinta milhões de sestércios. Mesmo que gaste quatro
mil, sua fortuna nada sofrerá com isso, e ele criará para si uma reputação
imperecível de generosidade... (PETRÔNIO, p. 63).
Como se percebe através desse texto extraído de Petrônio
39
, somente os
patrocinadores ricos tinham condições de realizar grandes espetáculos, com
execuções em massa dos derrotados. Petrônio cita também o caso de Norbano, que
caiu no conceito público pelo péssimo espetáculo que ofereceu:
Eram miseráveis gladiadores de aluguel, e tão velhos, o decrépitos, que um
sopro os teria derrubado. Já vi atletas mais temíveis perecerem em combates
contra as feras, à luz das tochas. Neste, parecia-se assistir uma briga de
galos. Um deles era tão pesado, que nem podia se arrastar; outro tinham os
pés tortos; um terceiro que substituiu o que acabara de morrer, estava
também meio morto, porque tinha os nervos despedaçados. Houve apenas
um, trácio, que fez boa figura...(PETRÔNIO, , p.64).
Como se percebe, nem sempre os gladiadores eram atletas esculturais e bem
preparados. Quanto à execução dos derrotados de acordo com o humor da platéia,
não era bem o que predominava, pois um gladiador custava caro e não era do
interesse do promotor do espetáculo, nem do lanista, a dilapidação dos
investimentos. Por outro lado, não devemos ver a História dos gladiadores de forma
homogênea, conforme revela um estudioso do tema:
39
Aristocrata Romano que viveu no século I (d.C.), na corte de Nero.
94
É verdade que um certo número de gladiadores (não sabemos a proporção)
obtinha em algum tempo, de seu dono, sua retirada dos jogos, o que lhe
proporcionava a oportunidade de morrer na cama. Porém o mais significativo
não é isso: sob Augusto, o enforcamento é exceção, sob Marco Aurélio é
praticamente a regra. Quer dizer que no início da nossa era um gladiador
era morto em dois casos: se recebesse um golpe mortal em pleno combate ou
se, após ser declarado vencido, o público considerasse que ele tinha lutado
contra um covarde ou como um incapaz, e que isso merecia um castigo; o
enforcamento, por essa época, era apenas uma punição e a clemência a
regra. Sob Marco Aurélio, ao contrário, o enforcamento do vencido parece ser
quase automático e dificilmente ele merecia o favor da graça. (VEYNE, 2008,
p. 146).
Finalmente, a célebre frase Ave, Caesar moriiturus te salutam! - “Salve,
César os que vão morrer te saúdam” que se tornou lugar comum em todos os
filmes em que aparecem gladiadores lutando na presença de imperadores,
aparentemente não era pronunciada. Georges Ville, que pesquisou sobre o tema,
revelou que o havia qualquer tipo de saudação, estivesse ou não o imperador
presente (VEYNE, 2008, p.142).
3.3.3 O conteúdo histórico e ideológico de Gladiador
Com base no contexto histórico apresentado, concluímos que muitíssimo
pouco do filme é realmente histórico exceto que existiu um imperador de nome
Cômodo, na Roma do século II, que governou provavelmente de forma tirânica. A
trama inicial não passa de pura especulação, pois somente uma fonte levanta a
suspeita de que o jovem imperador teria assassinado o pai. O herói do filme, Máximo
- que depois de cair em desgraça é vendido como escravo e torna-se gladiador - é
uma figura puramente fictícia: modo tinha de fato, um inimigo com este nome,
mas como vimos este era cônsul, não era escravo, espanhol ou gladiador, e foi
eliminado pelo monarca cedo durante seu reinado. Além disso, o jovem herdeiro
tinha a sucessão assegurada pelo pai ao contrário do que indica o filme - e sua
95
irmã, Lucilla – personagem importante no filme - foi assassinada pouco tempo
depois de o jovem ascender ao trono.
Em poucas palavras, tanto o amor não-correspondido de Lucilla por Máximo,
quanto à luta entre Cômodo e Máximo que culmina com a morte de ambos, na
arena - quanto o desejo incestuoso de modo pela irmã, contrariam fontes
hisricas. O incesto talvez tenha sido uma alusão ao caso célebre da História
romana que envolveu Calígula e a irmã Drusila (SUETÔNIO, 2003, p.167); porém
nunca houve alusões a algo semelhante envolvendo Cômodo – nem mesmo de seus
inimigos historiadores.
A fictícia trama amorosa no melhor estilo “João amava Maria que amava José
que amava Ana (pois ximo amava a esposa e o filho pequeno assassinados
pelos soldados de Cômodo)” e a amizade entre Máximo e dois gladiadores um
germânico e um africano dão um toque de humanidade à película. De resto são
intrigas e o desejo de vingança de Máximo - sua força motora: "Nesta vida ou na
outra, obterei minha vingança", diz o ex-general.
O capricho com as cenas de violência é notável: O mensageiro enviado a
propor um acordo com os germanos retorna ao acampamento preso ao cavalo sem
a cabeça; durante a batalha, o sangue jorra em profusão e nas lutas de gladiadores,
imagens de cabeças decepadas, corpos mutilados, cadáveres amontoados e
ferimentos diversos aparecem aos olhos dos espectadores, com enorme realismo.
Uma visão extremamente maniqueísta do mundo perpassa o filme: de um lado, o
bem nas figuras de Marco Aurélio, do herói Máximo e dos escravos; de outro, o
mal: associado principalmente à Cômodo e aos trogloditas germânicos.
96
3.3.4 Análise geral de Gladiador
As imagens digitalizadas da Roma do final do século II o excelentes com
especial destaque para as cenas externas do Coliseu - e a luta entre o exército
romano e os germânicos é uma das mais realistas que o cinema produziu
embora esteja longe de reconstituir as batalhas reais travadas pelos romanos contra
os diversos povos que o haviam assimilado a cultura latina, e por isso eram
depreciativamente chamados de “bárbaros”. Scott, entretanto, foi fiel ao mostrar os
germânicos como superiores no plano físico, mas inferiores no armamento, na
organização e na disciplina:
Mesmo quando, na segunda metade do século II (167-180 d.C.), foi
confrontado pela primeira vez com uma grande coalizão de povos
germânicos, o exército romano, embora dizimado pela peste que assolou
suas fileiras (e que levaria à morte cerca de um quarto dos habitantes do
império), demonstrou-se capaz de conseguir sobre os bárbaros uma completa
vitória (BRIZZI, 2003, p. 114).
Os romanos usavam a cavalaria para perseguir o inimigo, mas isto não seria
possível em meio a uma densa floresta. As flechas incendrias, bolas de fogo e
bombardeios em excesso apesar de produzirem belos efeitos teriam sido mais
apropriados em um filme de guerra moderno. O enredo tem todos os ingredientes
dos filmes hollywoodianos: uma História de amor não correspondido; um herói
guerreiro, leal ao seu imperador, ao povo de Roma e aos valores familiares; um
vilão, no caso o imperador Cômodo, símbolo de todos os vícios - enfim, o mesmo
maniqueísmo simplificador de produções similares, com a mesma agenda
ideológica: a guerra dos justos contra os injustos é justificável.
O filme reforça um estereótipo, mostrando os germânicos como bárbaros
truculentos e os romanos como civilizados: na verdade, os germânicos defendiam o
97
seu modo de vida, enquanto os romanos eram os invasores. Analisado do ponto de
vista da sociedade que produziu o filme - no caso os Estados Unidos, que tamm,
ao longo do século XX mascararam propósitos democráticos e humanitários para
realizar suas intervenções em todo o mundo o filme faz uma propaganda política
sutil, introduzida no primeiro minuto do filme, que contextualiza a trama:
No inverno de 180 a.D., a campanha de 12 anos do imperador Marco
Aurélio contra os bárbaros da Germânia chegava ao fim. Apenas uma
barreira impõe-se no caminho da vitória romana e da promessa de paz
em todo o império. (Gladiador, 2000)
Ou seja, para a pax romana ser conquistada, era preciso guerrear um pouco
mais: assim também foi justificada a Primeira Guerra Mundial, como sendo a guerra
para acabar com todas as guerras, ou mais recentemente as guerras no Iraque e no
Afeganistão, com o objetivo de por fim ao “terrorismo” e tornar estes países
“democráticos” – últimas “barreiras para a paz no império”. Quase todos os diálogos
do filme retomam este tema: sempre servir Roma, morrer por Roma...
3.4 CRUZADA – A GUERRA EM NOME DA FÉ
O filme Kingdom of Heaven (literalmente “Reino do Paraíso” - referindo-se ao
Reino de Jerusalém), lançado no Brasil em 2005, com o nome de Cruzada, o teve
o mesmo sucesso de bilheteria dos filmes analisados anteriormente (Gladiador,
Tróia e 300 ultrapassaram 450 milhões em arrecadação, enquanto Cruzada
alcançou “apenas” 211 milhões de dólares). Apesar disso, pelo tema tratado, foi o
que suscitou mais polêmicas, principalmente sobre questões atuais relacionadas aos
conflitos no Oriente Médio.
98
3.4.1 História da produção de Cruzada
A superprodução de Riddley Scott teve um orçamento de 130 milhões de
dólares e contou com uma equipe de produção de 900 pessoas que produziram
mais de 15 mil roupas, 5 mil pares de botas e 850 mantas para cavalos:
Quando se produzem filmes desse tipo inevitavelmente deve-se criar tudo...
Não é possível achar uma banheira do século XII, por exemplo. Então tivemos
de pesquisar muito e recriar todas as peças, com atenção a todos os
detalhes. Nós fizemos tudo, de bandeiras e armaduras a milhares e milhares
de armas. Flechas, lanças e escudos foram criados por uma equipe enorme
de artesãos, disse Arthur Marx designer de produção que trabalha muitos
anos com Riddley Scott (BARCINSKI, 2005, p.60).
Algumas cenas chegaram a ter mais de 30 mil figurantes, cedidos pelo
exército marroquino - as cenas que mostram a França do século XII foram gravadas
na Espanha, mas as imagens de batalhas foram rodadas no Marrocos. Uma réplica
da cidade de Jerusalém foi construída no deserto e os cenários foram
complementados em estúdio.
Um professor de Literatura Comparada da Universidade da Columbia,
especializado em Estudos Iranianos e Islâmicos foi consultado pela equipe de
produção. O tema do filme é bastante estudado pelos historiadores, daí a existência
de uma bibliografia vastíssima que nos permite cotejar de forma bastante precisa a
versão dos historiadores com a visão hollywoodiana.
3.4.2 Contexto histórico
As cruzadas foram expedições militares dos cristãos do Ocidente
incentivados pelo Papa - para libertar a Terra Santa que estava em poder dos
muçulmanos, os quais haviam ocupado a região no século VII, após tribos árabes
terem se convertido a um credo religioso monoteísta criado por Maomé (570-630).
99
Segundo os adeptos do islã, além de Meca e Medina, Jerusalém é uma cidade
sagrada, pois foi de que Maomé realizou uma viagem noturna ao u. O fato de
ser sagrada também para os adeptos do judaísmo e do cristianismo fez de
Jerusalém a cidade mais disputada ao longo da História. No mundo cristão, durante
a Idade Média, Jerusalém era apresentada como o “umbigo do mundo” conforme
observamos no relato de um monge:
“Jerusalém é o umbigo do mundo”, uma terra que é a mais fértil, superando
até muitas outras, como um paraíso de delícias. Resgata a raça iluminada
desta terra promissora, cheia de encantos para os que nela vivem, sagrada
por seu sofrimento, redimida por sua morte e ilustre por seu funeral. Esta
cidade real, situada no centro do mundo, es agora sendo cativa de seus
inimigos e escravizadas por ritos pagãos, por um povo que não conhece
Deus. Portanto, a cidade exige e deseja tornar-se livre, chamando você
incessantemente para vir socorrê-la (Roberto, o Monge, em “A chamada às
armas para a Primeira Cruzada”, citado por BARTLETT, 2002, p.5).
É evidente que o relato do monge estava eivado de imprecisões e não
passava de uma arenga propagandística por parte da Igreja Católica. Diversas
fontes relatam que, quando o califa Omar conquistou a cidade de Jerusalém no ano
de 638, nenhum cristão ou judeu foi obrigado a se converter à religião dos
conquistadores. Sinagogas e igrejas não foram tocadas, as propriedades foram
respeitadas e ninguém teve que deixar a cidade. Sendo minoritários na região, os
árabes se contentaram em cobrar seus impostos (inferiores aos cobrados pelos
bizantinos e sassânidas, que dominaram a região anteriormente). Portanto, as
Gentes do Livro (referiam-se a Bíblia – judeus e cristãos) mediante o pagamento dos
impostos, adquiriam um estatuto especial, sendo livres no seu culto e na sua
organização. Tanto cristãos como judeus viam os árabes como conquistadores
tolerantes: para os judeus, a situação melhorara significativamente, pois os
bizantinos haviam proscrito sua religião e procuravam forçá-los a receber o batismo -
100
os conquistadores maometanos não apenas os libertaram da opressão bizantina,
como lhes concederam o direito de residir permanentemente na Cidade Sagrada
(ARMSTRONG, 2000, p.273).
Quanto ao sucesso das conquistas dos árabes os fatores foram diversos. O
zelo religioso teve um papel relevante, porém, menor do que se convencionou
estabelecer. As condições climáticas difíceis da Arábia provocavam desde muito
tempo migrações e os califas desenvolveram uma política de conquista para atender
as necessidades e as ambições materiais de tribos convertidas ao islã. A promessa
do espólio dos povos vencidos e da vida eterna num paraíso repleto de coisas
mundanas fascinou a muitos e teve sua influência. Contudo, a fraqueza da
resistência adversária, a impopularidade dos bizantinos no Egito e na Síria, a crise
da sociedade sassânida na Pérsia, assim como a mobilidade militar dos beduínos
foram os fatores essenciais para a efetivação das conquistas. (DUCELLIER,
KAPLAN e MARTIN, 1994, p.83).
À época das cruzadas iniciadas no século XI o vocábulo não era usado.
As expedições dos crisos do ocidente objetivando libertar a Terra Santa em poder
dos muçulmanos eram chamadas por diversos nomes: iter hierosolymitanum
(viagem para Jerusalém), iter sancti sepulchri (viagem do santo sepulcro),
peregrinatio contra paganos, etc. Somente mais tarde, pelo fato dos cristãos
cozerem uma cruz em seus uniformes, é que as expedições passaram a ser
chamadas de cruzadas.
Para compreendermos as cruzadas, devemos inseri-las dentro de um amplo
contexto histórico, onde devem estar incluído o Ocidente Medieval, o Império
Bizantino e o Mundo Muçulmano:
101
O Ocidente estava dividido em reinos rivais, liderados por monarcas fracos
que não conseguiam controlar os belicosos senhores feudais, envolvidos em
querelas intermináveis que impediam o desenvolvimento econômico e a paz social.
Para o Ocidente, as cruzadas representavam uma válvula de escape, pois o ímpeto
guerreiro do homem medieval seria canalizado para combater os infiéis.
Os bizantinos, após a derrota sofrida frente aos turcos em Manzikert (1071),
ficaram debilitados - o que levou, mais tarde, o imperador Aleixo Comneno a enviar
uma comitiva pedindo ajuda ao papa Urbano II, na época ansioso para restabelecer
a unidade do cristianismo (que havia sido rompida com o Cisma do Oriente, em
1054).
Os muçulmanos tamm estavam divididos, tanto em termos políticos quanto
em termos religiosos. Portanto, a divisão muçulmanos x cristãos é profundamente
enganosa, pois os ocidentais estavam divididos em várias nações com interesses
muitas vezes divergentes, assim como os mulmanos - a tal ponto que alguns
príncipes firmaram acordos com cristãos contra seus rivais. Já os bizantinos, desde
o início, adotaram uma política dúbia, pois perceberam que não podiam conter as
hordas de cristãos que supostamente deveriam ajudá-los a combater os infiéis. As
divergências entre sunitas, xiitas e ismaelitas suscitavam ódios que eram
capitalizados pelos cristãos. O mesmo faziam os muçulmanos em relação às
inúmeras rivalidades entre os cristãos.
Resumidamente, as causas mais apontadas para as Cruzadas são as
seguintes:
A intensa religiosidade do homem medieval foi um fator importante
para o desencadeamento das cruzadas e as indulgências decretadas
102
pelo papa para todos aqueles que abraçassem a causa funcionaram
como um chamariz poderoso, pois muitos viram ali a real possibilidade
de salvarem suas almas.
O aumento da população, no final do século XI e no início do século XII
trouxe graves problemas sociais: cavaleiros desocupados,
camponeses oprimidos pelos encargos feudais e toda uma sorte de
deserdados viam nas cruzadas a possibilidades de arrebatarem
riquezas no oriente.
Há de se destacar também o direito de primogenitura, ou seja apenas o
filho mais velho herdava o feudo, sendo assim os demais eram nobres
pobres - daí muitos terem participado dessas expedições guerreiras,
ambicionando posses e fortunas.
Os comerciantes e navegadores italianos tamm tinham muito a
ganhar com tão concorridas expedições, pois seus serviços tornaram-
se requisitadíssimos no fornecimento de víveres e na travessia dos
exércitos cruzados.
As causas das cruzadas foram diversas, o que torna o assunto complexo
conforme assinala um especialista:
O costume das peregrinações pelas estradas do Oriente, a prática da guerra
santa, o ânimo de passar à ofensiva contra o Islã, a intenção de Urbano II de
substituir as guerras civis por uma guerra externa, as ambições e os instintos
voltados para a aventura e para a glória, as condições políticas, econômicas e
psicológicas favoráveis: todas essas causas, distantes e próximas, gerais e
particulares, não são suficientes para explicar as origens da Cruzada, não
justificam o movimento que projetou em direção à Síria milhares de
cavaleiros.A História não se faz sem o concurso da inteligência, sem a
participação da liberdade. Observa Louis Bréhier que, “se toda a História da
Europa nos séculos X e XI explica como nasceu e se desenvolveu o espírito
de Cruzada..., a própria Cruzada é um acidente histórico, que nada em
absoluto podia fazer prever e que se deveu apenas à iniciativa do papa
Urbano II”. A Cruzada é, ao mesmo tempo, o resultado de um longo trabalho
da História, o termo de uma evolução e um “acidente histórico”, a crião de
um homem, o fruto de uma vontade livre (ROUSSET, 1980, p.31 e 32).
Talvez Nietzsche tenha feito a melhor síntese sobre o tema:
103
(...) mais tarde os cruzados combateram algo diante do qual teria sido mais
apropriado que prostrassem no uma cultura perante a qual o nosso
século XIX parece muito pobre, muito “atrasado”. - É verdade que queriam
saquear: o oriente era rico... Vamos ser objetivos! As cruzadas pirataria em
larga escala, nada mais! (NIETZSCHE, 2008, p.131).
No Concílio de Clermont, em 1095, o Papa Urbano II lançou um apelo aos
cristãos, tentando fazer com que deixassem de lado as rivalidades e se unissem
para libertar o Santo Sepulcro. Salientou a santidade de Jerusalém, o sofrimento dos
peregrinos e conclamou os cristãos a deixarem de lado suas querelas para se
engajarem numa guerra justa. Prometeu que todos aqueles que morressem em
batalhas seriam absolvidos dos pecados. Falou, ainda - com fervor, usando todos os
artifícios de um grande pregador - que no Oriente todos seriam alegres e prósperos,
pois estariam se dedicando à uma obra divina. Terminou a sua pregação com o grito
de Deus le volt!” ou seja É a vontade de Deus!”. Na medida em que seu apelo foi
sendo divulgado por bispos e por pregadores populares, o entusiasmo das multidões
excedeu em muito o esperado. Assumir a Cruz tornou-se uma verdadeira obsessão,
especialmente entre os humildes (RUNCIMAN, 2002).
Uma cruzada popular, liderada por um monge com fama de santidade - Pedro
o Eremita e com a colaboração de rios cavaleiros empobrecidos e uma massa
de deserdados, dirigiu-se, em vários grupos, à Constantinopla. No caminho, estes
cruzados praticaram toda sorte de roubos e depredações contra cidades cristãs da
Europa Oriental e massacraram judeus que, assim como os muçulmanos, eram
considerados infiéis. O imperador bizantino logo procurou se livrar dos turbulentos
guerreiros ocidentais, lançando-os contra os mulmanos. Os desorganizados
“combatentes de Cristo” foram facilmente vencidos.
104
Ficara claro, no Ocidente, que apenas uma cruzada bem organizada poderia
lograr êxito contra os infiéis”. Os príncipes que organizaram aquela que ficou
conhecida depois como a primeira cruzada oficial, estavam menos impacientes que
Pedro e seus seguidores: Hugo, Conde de Vermandois; Godofredo de Bouillon,
Duque da Baixa Lorena; Raimundo de Toulouse; Boemundo de Tarento e uma
plêiade de outros nobres obtiveram grandes vitórias, inclusive tomando Jerusalém
em 1099. Nas regiões ocupadas pelos ercitos cristãos, terríveis atrocidades eram
praticadas contra as populações nativas, fossem muçulmanos, judeus ou até mesmo
cristãos orientais. A população de Jerusalém foi massacrada, conforme o relato de
Raimundo d’Agiles:
Entre os sarracenos, uns tinham a cabeça cortada, o que era para eles a
sorte mais doce; outros atravessados por flechas se viam obrigados a saltar
do alto das torres: outros ainda, após longo sofrimento, eram entregues às
chamas e por elas consumidos. Viam-se nas ruas e nas praças da cidade
pedaços de cabeças, de mãos, de pés. Infantes e cavaleiros abriam caminho
através de cadáveres... (apud GIORDANI, 1974, p. 570).
Como resultado da Primeira Cruzada, os ocidentais formaram, no Oriente
Médio, quatro unidades políticas: o Reino de Jerusalém, o Principado de Antióquia, o
Condado de Trípoli e o Condado de Edess. Tênues laços de vassalagem uniam
esses territórios ao reino de Jerusalém, cujo primeiro governante, Godofredo de
Bouillon, recusou o título de Rei da cidade “onde Jesus usou uma coroa de
espinhos”, aceitando apenas o título de Defensor do Santo Sepulcro
40
.
Os muçulmanos haviam sido vencidos em razão das enormes rivalidades que
grassavam entre eles. Porém, entre 1130 e 1140, a situação começou a mudar.
Zengi, governante de Mossul, paulatinamente organizou um vasto estado e em
40
Quando Godofredo morreu, em 1100, o seu irmão Balduíno não teve o mesmo escrúpulo,
tornando-se Rei de Jerusalém e passando a usar uma bela coroa repleta de pedras preciosas.
105
1144, atacou e conquistou Edessa. Quando a notícia chegou ao Ocidente, o Papa
Eugênio III e o célebre monge Bernardo de Claraval pregaram a necessidade de
uma nova cruzada.
O rei da França Luís VII e o imperador Germânico Conrado III colocaram-se a
frente do empreendimento. Quando os cruzados ingleses, flamengos e frisões
passaram pela Península Ibérica ajudaram o rei de Portugal Afonso Henriques a
tomar Lisboa (1147) que estava em poder dos mouros - que desde o século VIII
ocupavam grande parte da Península Ibérica. O objetivo principal desta cruzada era
reconquistar Edessa. O fracasso foi total: as ambições dos chefes cristãos e,
sobretudo, a falta de união entre os soberanos ocidentais, o imperador bizantino e
os príncipes francos explicam a fiasco militar da segunda cruzada. Esta derrota
fortaleceu os muçulmanos, que agora ambicionavam tomar Jerusalém. É neste
contexto histórico que se desenvolve a trama de Kingdom of Heavens.
3.4.3 Conteúdo histórico e ideológico do filme
O filme coma no ano de 1184 e procura retratar os últimos anos do Reino
de Jerusalém. O personagem principal - Balian de Ibelin é apresentado como um
ferreiro francês, cuja esposa - não suportando a morte do filho - suicidara-se, não
tendo por isso um enterro cristão: um frade, antes de ordenar que ela tivesse a
cabeça decepada, furta-lhe um pequeno crucifixo. Logo após esta perda, o pai de
Ibelin um cruzado, que depois de muito tempo na Terra Santa o reencontra - pede
perdão pela prolongada ausência e o convida para retornar com ele ao Oriente
Médio. A princípio, Balian recusa a oferta, porém, ao encontrar o sacerdote que
narrou o que fizera como sua esposa, exaspera-se e mata o religioso.
106
Preocupado agora em purgar os seus pecados e salvar a alma da esposa
(segundo a crença, as almas suicidas não m descanso), Balian parte para
Messina, ao encontro dos cruzados. Encontra o pai em seu leito de morte e depois
da despedida, parte - por via marítima - para a Terra Santa. Depois de tornar-se o
único sobrevivente e de desafiar e matar um célebre chefe muçulmano que encontra
no deserto, chega em Jerusalém é bem recebido por aqueles que conheceram seu
pai. Aproxima-se da vida da corte e inicia um romance com Sibila - irdo rei de
Jerusalém, o jovem Balduíno IV, já então acometido pela lepra.
Esta primeira parte é quase inteiramente fictícia: o personagem Balian de
Ibelin realmente existiu, só que nasceu na Palestina, era descendente de normandos
e seu pai faleceu quando ele ainda era criança. Em 1184, Balian tinha mais de 40
anos e era casado com a ex-rainha Maria Comneno (bizantina que fora esposa do
falecido rei Amalrico, de Jerusalém) - um casamento feliz, ao que consta - que
conferiu a Balian, como dote, o feudo de Nablus (RUNCIMAN, 2002). Sibila e
Balduíno IV, por sua vez, eram filhos do rei Amalrico e da rainha Agnes. Sibila,
depois da morte de seu primeiro marido -Gulherme Espada-Longa, com quem teve
um filho, o futuro Balduíno V prometeu casamento a Balduíno de Ibelin (irmão de
Balian). Sibila demonstrou estar apaixonada, porém, logo mudou de idéia conforme
o relato de Steven Runciman:
Balduíno e Balian eram os mais influentes dos nobres locais, e, a despeito de
sua linhagem obscura, o casamento de Balduíno e Sibila teria sido popular
em todo o reino. Antes que se pudesse arranjar o noivado, pom, Balduíno
foi capturado em Marj Ayun. Sibila escreveu-lhe na prisão para atestar-lhe seu
amor: quando ele foi libertado, contudo, ela lhe disse friamente que não
poderia considerar o matrimônio enquanto ele devesse um vasto resgate. Seu
argumento era razoável, embora desanimador: então, Balduíno, não sabendo
como levantar o dinheiro, viajou a Constantinopla para suplicá-lo ao
imperador. Manuel, com seu amor aos gestos generosos, arcou com tudo.
Balduíno retornou em triunfo para a Palestina no início da primavera de 1180,
107
mas encontrou Sibila comprometida com outro homem” (RUNCIMAN, 2002,
p.363).
O homem com quem Sibila estava comprometida era um nobre francês, fraco
e obscuro, chamado Guy de Lusignan, filho do Conde de Lusignan. Os Ibelins
sentiram-se melindrados e o rei Balduíno IV tentou demover a irmã mostrando a ela
que Guy era um rapaz tolo e medíocre. Sibila, porém, estava de tal forma
apaixonada que nenhum argumento a demoveu de romper com o belo rapaz. Diante
da postura da irmã, o enfermo monarca cedeu e o casamento foi realizado na
Páscoa de 1180. O filme, entretanto, retrata Balian como amante de Sibila.
Apesar de não retratar fielmente a História dos principais personagens, a obra
cinematográfica reconstituiu bem o divisionismo que imperava entre os cruzados e a
postura de Balduíno IV que, mesmo com todas as suas limitações físicas, procurava
adotar uma política de apaziguamento em relação os seus vizinhos muçulmanos
(tarefa em que encontrava dificuldades, pois os interesses divergentes entre os
nobres, os templários, os hospitálarios e a Igreja Católica eram impossíveis de ser
conciliados).
Os templários
41
também o apresentados com muita propriedade, inclusive
no apoio da Ordem dos Hospitálarios – rivais da ordem dos Templários e favorável a
manutenção da trégua com os mulmanos - a Balduíno IV, na figura do fictício
Tiberias. O filme também retrata com propriedade a figura de Saladino curdo
41
A Ordem dos Cavaleiros Pobres do Templo de Salomão - mais tarde Templários - originou-se por
volta de 1115 nas atividades de um grupo de cavaleiros franceses que procuravam proteger os
peregrinos que visitavam à Terra Santa. Os templários eram guerreiros corajosos e fanáticos,
contrários a política de apaziguamento que Balduíno IV queria levar a cabo. Foram aliados de Guy de
Lusignan - à época o grão-mestre da ordem, Gérard de Ridefort, era partidário de uma política de
enfrentamento sem tréguas com os muçulmanos, política esta que levou ao desastre de Hattin
A Ordem dos Cavaleiros de o João originou-se de um hospital (daí Hospitálarios) beneditino para
peregrinos nas vizinhanças do Santo Sepulcro e foi fundada em 1070. Mais tarde transformou-se
numa Ordem Militar à semelhança dos Templários de quem eram rivais.
108
originário de onde hoje é o Iraque - que se tornou o grande líder dos muçulmanos
por sua competência e sagacidade na reunificação do mundo islâmico. Seu talento,
cavalheirismo e espírito de tolerância aparecem em relatos de muitos historiadores
tanto cristãos quanto muçulmanos:
O sultão Saladino foi descrito em muitos relatos ocidentais, a despeito da
perda de Jerusalém para seus exércitos em 1187, como mais justo e honrado
do que muitos governantes cristãos...(WHEATCROFT, 2003, p.225).
Eis o relato de um historiador sobre o ataque a fortaleza de Kerak, no dia em
que estava sendo realizado o casamento de Humberto de Toron com a princesa
Isabela:
Numa bela demonstração de bravura, as cerimônias das bodas tinham
prosseguimento no interior do castelo. Enquanto se arremessavam pedras
contra suas paredes, a cantoria e as danças prosseguiam em seu interior.
Estefânia, mãe do noivo, preparou pessoalmente pratos do banquete de
núpcias para enviar a Saladino. Este, em troca, mandou perguntar em que
torre se encontrava o jovem casal e determinou que ela o fosse
bombardeada por suas máquinas de sítio... Dias depois, Saladino levantou
tio retornando para Damasco. (RUNCIMAN, Vol. II, 2002, p.379).
A representação de Reinaldo de Châtillon é apropriada, embora sua História
não seja exatamente a contada no filme: tendo chego à Palestina na cruzada do rei
Luís da França, havia-se colocado a serviço de Balduíno III, dando provas de ser um
brilhante soldado. Casou-se com Constância, uma princesa viúva, e desta forma
tornou-se Príncipe de Antióquia. De caráter belicoso e truculento, logo se indispôs
com os bizantinos e, em aliança com os armênios, invadiu Chipre. As atrocidades
praticadas em Chipre - a ilha foi saqueada, mulheres foram violentadas, crianças e
anciãos tiveram suas gargantas cortadas e nem as igrejas foram respeitadas -
durante três semanas, nas quais francos e armênios semearam o terror, provocaram
a ira de Manuel, imperador bizantino. Este, num primeiro momento, derrotou os
armênios e depois submeteu Reinaldo que, para escapar à punição, adotou uma
109
postura de total subserviência, suplicando o perdão imperial, que foi concedido. Em
1160, Reinaldo caiu em uma emboscada preparada pelos mulmanos, sendo
levado para Alepo, onde ficou cativo por dezesseis anos. Nem o rei de Jerusalém,
nem o imperador bizantino e muito menos os seus súditos fizeram qualquer esforço
para resgatá-lo. Reinaldo deixou de ser Príncipe de Antióquia, pois ele reinara como
marido de Constância. Em 1176, os francos ajudaram Gümüshtekin (líder
muçulmano rival de Saladino), senhor de Alepo, que estava sendo atacado pelas
forças de Saladino - como prova de gratidão, müshtekin libertou Reinaldo de
Châtillon e todos os demais prisioneiros cristãos que estavam nas masmorras de
sua cidade. Logo que foi libertado, aliou-se aos templários e apoiou a política
belicista de Guy de Lusignan: em 1181, atacou ricas caravanas islâmicas, chegando
a penetrar na Arábia ameaçando a cidade sagrada de Medina.
As ões de Reinaldo prejudicavam a política do jovem rei Balduíno IV, que
firmara uma trégua com Saladino. No filme, Reinaldo ataca uma caravana na qual
viajava uma irmã de Saladino, que foi violentada e morta - esta informação es na
obra Estoire d’Eracles de Ernoul, um cronista da época. O historiador Steven
Runciman, contudo, citando uma fonte árabe, afirma que isso não aconteceu, pois a
irmã de Saladino voltou de Meca em uma caravana subseqüente (RUNCIMAN, Vol.
II, 2002).
A humilhação pública de Reinaldo por Balduíno IV, dentro deste contexto,
tampouco ocorreu: as cenas reproduziram, na verdade, o pedido de perdão de
Reinaldo ao imperador bizantino Manuel, depois da invasão do Chipre - visando o
enriquecimento dramático o epidio foi enxertado fora de seu contexto original.
110
Após a morte de Balduíno IV (março de 1184) e de um curto reinado de
Balduíno V (filho do primeiro casamento de Sibilia, que veio a falacer em 1186), Guy
foi aceito como rei de Jerusalém. Sua política de enfrentamento, com o apoio dos
templários e de Reinaldo de Châtillon e oposição dos Ibelins e de Raimundo de
Trípoli, fez com que ocorresse a lebre Batalha de Hattin, vencida por Saladino. O
filme não retrata esta batalha, mas mostra os seus preparativos e a derrocada dos
cruzados. Em seguida, com enorme fidelidade, procura-se reconstituir o que ocorreu
após os líderes cruzados terem se entregado, conforme a narrativa de Steven
Runciman:
Foi lá (na tenda) que Saladino recebeu o Rei Guy e seu irmão, o Comissário
Amalrico, Reinaldo de Châtillon e seu enteado Humberto de Toron, o Grão-
Mestre do Templo, o idoso Marquês de Montferrat, os senhores de Jebail e
Botrun e muitos barões menos importantes do reino. Saudou-os de modo
gentil e sentou o rei junto a si. Percebendo sua sede, ofereceu-lhe um copo
de água-de-rosas, resfriada com a neve do Hermon. Guy bebeu e passou-o
para Reinaldo, que estava ao seu lado. Pelas leis da hospitalidade árabe,
oferecer alimento ou bebida a um prisioneiro significava que sua vida estava
segura; Saladino, então, tratou de ordenar ao intérprete: “Diga ao rei que foi
ele, e não eu, quem deu de beber a esse homem”. Em seguida, voltou-se
para Reinaldo, cujos ímpios crimes ele o podia perdoar e lembrou-o de
seus delitos, sua traição, suas blasfêmias e sua cobiça. Diante da resposta
truculenta de Reinaldo, Saladino pegou uma espada em suas próprias mãos e
decepou-lhe a cabeça. Guy estremeceu, pensando que seria o próximo.
Saladino, porém, tranqüilizou-o: Um rei não mata outro rei mas a perfídia e
a insolência daquele homem foram longe demais”. Em seguida, determinou
que nenhum dos barões leigos fosse maltratado e que todos fossem tratados
com cortesia e respeito durante o cativeiro. Entretanto, não pretendia poupar
os cavaleiros das ordens militares, salvo apenas o Grão-Mestre do Templo.
Um bando de sufistas muçulmanos fanáticos juntara-se às suas tropas, e foi a
eles que Saladino confiou a tarefa de eliminar seus prisioneiros templários e
hospitalários missão à qual se entregaram com prazer. Feito isso, o sultão
afastou seu exército de Hattin, e os mortos no campo de batalha foram
deixados para os chacais e as hienas.(RUNCIMAN, Vol. II, 2002, 394 e 395).
Após ter vencido a batalha de Hattin, Saladino conquistou a Galiléia e
paulatinamente foi subjugando o litoral fenício. Os cristãos, porém, ainda dominavam
111
Jerusalém, Tiro, Gaza e Ascalão. Em setembro de 1187, Saladino conquistou
Ascalão - com ele estavam, como prisioneiros, o Rei Guy e o Grão-Mestre Gerardo.
As cenas de Sibila em Jerusalém e de Guy desfilando virado para trás no
lombo de um burro em frente das muralhas da Cidade Santa são pura licença
poética” do diretor - Guy ficara preso em Nablus e a Rainha Sibila recebera
permiso para deixar Jerusalém, antes do cerco, podendo juntar-se ao esposo. No
ano seguinte (1188) o casal foi libertado.
Em Ascalão, Saladino recebeu uma comitiva de cristãos de Jerusalém, os
quais queriam negociar. O líder islâmico exigiu a rendição incondicional da cidade e
o diálogo não avançou. Balian de Ibelin, que estava refugiado em Tiro, enviou a
Saladino o pedido de um salvo-conduto para ir à Jerusalém, pois pretendia buscar a
sua esposa - a Rainha Maria - e filhos. Saladino deu a autorização, com a condição
que ele ficasse na cidade apenas uma noite e não portasse armas. Chegando,
Balian recebeu insistentes pedidos da população para que ele liderasse à
resistência:
Todos clamaram-lhe que ficasse e os liderasse, e não queriam deixá-lo partir.
Profundamente embaraçado, Balian escreveu a Saladino para explicar-lhe a
violão de seu juramento. Saladino, sempre cortês para com um inimigo que
respeitava, não perdoou Balian como mandou uma escolta para
acompanhar a Rainha Maria, e seus filhos, seu séquito pessoal e todas as
suas posses até Tiro. Com ela seguiu o jovem sobrinho de Balian, Tomás de
Ibelin, e o filho pequeno de Hugo de Jebail. Saladino chorou ao ver essas
crianças, herdeiras de uma grandeza desaparecida, passando por seu
acampamento rumo ao exílio (RUNCIMAN, Vol. II, 2002, p.397 e 398).
Esta troca imensamente civilizada entre Balian e Saladino foi ignorada pelo
filme, no qual Balian simplesmente rompe o cerco durante a batalha de Hattin e se
apresenta para liderar a resistência. Riddley Scott perdeu uma boa oportunidade de
mostrar o espírito cavalheiresco de Saladino e a honestidade de Balian - bastava ter
112
sido fiel a História. Outra distorção a ser notada: a cena onde Balian investe como
cavaleiros a todos os defensores da cidade, independentemente da condição social -
na verdade, Balian consagrou cavaleiros apenas os rapazes acima de dezesseis
anos, de família nobre, e trinta membros da burguesia (RUNCIMAN, Vol. II, 2002, p.
398).
Apesar dos ataques, os cristãos resistiam, pois temiam a rendição: deveriam
ter tido notícias sobre a forma como os cruzados trataram as populações
conquistadas anteriormente e esperavam sorte semelhante. Balian pediu para
negociar com Saladino, que o recebeu em sua tenda enquanto os combates
prosseguiam. Não sabemos exatamente o que falaram embora o filme recrie um
diálogo não todo inverossímil, a julgar pelos acontecimentos subseqüentes:
Saladino: - Irá entregar Jerusalém?
Balian: - Antes de perdê-la irei incendiá-la. Seus locais sagrados. Os nossos.
Tudo leva os homens à loucura em Jerusalém.
Saladino: - Talvez fosse melhor se o fizesse (com um leve sorriso). Vai
destruí-la?
Balian: - Cada pedra...
Saladino: - Sua cidade escheia de mulheres e crianças...
Balian: - Propõe um Acordo?
Saladino: - Darei salvo-conduto a todos os cristãos que queiram deixar a
cidade...Ninguém será ferido. Juro por Deus.
Balian: - Os cristãos massacraram todos os muçulmanos quando tomaram a
cidade.
Saladino: - Não sou desses homens. Sou Saladino.
Balian: - O que vale Jerusalém?
Saladino: - Nada ( pausa).. .Tudo (rindo).
113
O que sabemos é que Balian concordou em entregar a cidade, desde que as
vidas dos cristãos fossem respeitadas. Saladino exigiu o pagamento de um resgate,
e no dia 2 de outubro, entrou em Jerusalém. Segundo fontes cristãs, cumpriu a
palavra empenhada - o houve saques nem mortes. O que o filme não mostrou foi
que Balian teve enormes dificuldades para levantar os trinta mil dinares prometidos
como resgate: os templários e os hospitalários não queriam de forma alguma se
desfazer de suas riquezas Heráclio (patriarca de Jerusalém e principal
representante da Igreja) pagou os dez dinares pela sua libertação e partiu levando
várias carretas cheias de tapetes, ouro e prataria.
Atitude diferente teve Saladino que por sua conta libertou todos os velhos e
crianças:
Quando as damas francas que haviam conseguido pagar o seu próprio
resgate o procuraram em prantos, perguntando para onde iriam, que seus
maridos ou pais haviam sido mortos ou capturados, ele prometeu libertar
todos os maridos cativos _ e, para as viúvas e órfãos, deu de presentes de
seu próprio tesouro, a cada um de acordo com suas posses. Sua clemência e
miserirdia fizeram um estranho contraste com os atos dos conquistadores
cristãos da Primeira Cruzada (RUNCIMAN, Vol. II, 2002, p.400).
Nem todos partiram. Os cristãos ortodoxos e jacobitas, após pagarem o
resgate, puderam permanecer vivendo na cidade (Saladino perdoou as classes
menos favorecidas).
Infelizmente, o filme omitiu estes episódios e optou por um desfecho bem
mais fantasioso e menos edificante: Balian e Sibila partem, juntos, para a Europa
onde passam a viver numa bucólica aldeia; Ricardo Coração de Leão convida Balian
para participar da Terceira Cruzada - que tinha como objetivo libertar a Terra Santa
e o convite é polidamente rejeitado. A realidade foi bem menos romântica: em 1190,
Sibila morreu atingida pela peste, nas regiões que os cristãos ainda dominavam:
114
Uma das vítimas que o resistiu às doenças naquele outono foi a Rainha
Sibila. As duas menininhas que ela dera ao Rei Guy morreram após a morte
da mãe... (RUNCIMAN, Vol. III, 2003, p.38).
Balian de Ibelin morreu aos 50 anos, em 1193, deixando viúva a Rainha
Maria, com a qual teve quatro filhos. Saladino morreu no mesmo ano. Já a lutas pelo
domínio da Terra Santa só acabaram com a queda de São João d’Acre em 1291.
3.4.4 Análise geral de Cruzada
Apesar das várias distorções sobre os personagens envolvidos e dos
exagerados apelos visuais (bombardeios, flechas incendiárias e outros artefatos
incandescentes são usados a exaustão), o filme cumpriu a tarefa de reproduzir o
contexto e a complexidade do momento histórico abordado, assim como das
relações entre cristãos e mulmanos na época sem cair em maniqueísmos e
superficialidades.
Além disso, o filme induz a uma reflexão sobre os conflitos do início do século
XXI: quando o filme foi lançado (2005), havia no Ocidente, principalmente nos
Estados Unidos
42
, um forte sentimento anti-islâmico. O diálogo entre Balian e
Saladino, imaginado pelo diretor, transmitiu uma profunda lição de tolerância e
sobretudo de alteridade em um momento histórico marcado pela intolerância
43
.
42
Após os atentados de 2001 nos Estados Unidos, muitas pessoas dessa religião foram agredidas
nas ruas de cidades norte americanas européias, confundidos com terroristas da Al-Qaeda. Em sua
maioria absoluta, eram pessoas inocentes.
43
A invasão do Iraque e do Afeganistão por tropas estadunidenses, os bombardeios que atingiram
indiscriminadamente a população civil, as prisões arbitrárias, os horrores enfrentados pelos
prisioneiros em Guantánamo, as imagens de pessoas torturadas no Iraque por norte-americanos e
ingleses todos estes eventos refletem o quanto uma análise da História de forma maniqueísta deve
ser evitada. A ditadura de Saddam Hussein foi truculenta, o regime do Taleban no Afeganistão foi
anacrônico e perverso, porém, aqueles que os atacaram mentiram e usaram de meios bélicos
desproporcionais, só conseguindo o repúdio das populações que se propuseram a libertar.
115
A apresentação de Saladino não agradou àqueles que romantizam as
cruzadas e especialmente os Templários, daí o filme ter sido execrado, não pelos
seus defeitos e escorregões históricos, mas por suas qualidades. Algumas críticas
que o filme recebeu, especialmente do historiador inglês, Jonathan Riley Smith
44
-
que leciona História eclesiástica na Universidade de Cambridge - são claramente
preconceituosas. Segundo o historiador “o filme é uma versão da História contada
por Osama Bin Laden” - opinião que demonstra sua parcialidade e uma atitude que
em nada contribui para um diálogo entre Ocidente e Oriente.
De um modo geral, o filme procurou mostrar o contexto das cruzadas sem
desagradar demasiado o público cristão neste sentido, se houvesse sido mais
realista, teria ganhado ainda mais inimigos.
44
Em sua obra sobre as cruzadas que contraria fontes cristãs e muçulmanas - Smith chega a
afirmar que as expedições guerreiras dos cristãos do Ocidente foram em grande parte motivadas por
piedade sincera e não por ganância.
116
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a crescente expansão dos meios de comunicação de massa e uma
indústria cultural cada vez mais forte e onipresente, o processo de aprendizagem
torna-se, a cada dia, menos restrito ao contexto institucional ou à escola
(tradicionalmente o local onde o processo ensino-aprendizado “formal” e estruturado
acontece) e passa a envolver uma variedade crescente de circunstâncias e
contextos. Como atividade de lazer incorporada no tempo livre dos indivíduos, o
cinema é uma influência didática muito mais sutil que a escola e, assim como a TV,
distrai ao mesmo tempo em que “educa”, no sentido amplo da palavra.
As relações do cinema - que é, a um tempo, uma arte, uma técnica, um
negócio rentabilíssimo e um meio de comunicação poderoso - com a História e seu
ensino são múltiplas: desde a década de 20, produções com conteúdo histórico
cativam um público cada vez mais numeroso, com versões mais ou menos
verossímeis de acontecimentos históricos. Muitas destas produções chegam às
salas de aula (de modo organizado ou não), trazidas ora por professores, ora por
alunos, ora como simples parte da bagagem histórica de uns e de outros: a
Cleópatra VII que viveu na Alexandria no século I a.C pode não ter sido o modelo de
beleza reverenciada pelo mundo ocidental moderno, mas Elizabeth Taylor o foi e sua
atuação no filme Cleópatra (de 1963, o filme mais caro da história do cinema,
dirigido por Joseph L. Mankiewicz) consolidou, no imaginário popular, a imagem da
rainha de traços delicados, pele muito clara e olhar fatal.
A indústria cinematográfica, cada vez mais sofisticada em termos cnicos,
detém um poder de manipulação da imagem que somente a TV iguala: o tamanho
da tela, a qualidade e amplitude sonora, o ambiente do cinema (em que a pessoa
117
compromete totalmente o seu tempo para a relaxante atividade de assistir ao filme)
tudo colabora para uma experiência em que o sujeito se torna suscetível a
assimilação passiva e acrítica do conteúdo veiculado. O cinema hollywoodiano, por
sua penetração e tradição monopólica no Brasil, es entre um dos mais poderosos
disseminadores de idéias no nosso país fato que o pode ser ignorado, pois
quaisquer que sejam nossos esfoos organizados de ensino, estes serão sempre
complementados, moldados ou modificados pela enorme influência exercida por este
poderoso agente de (in)formão.
O ressurgimento grandioso do cinema histórico, ocorrido na última década e
marcado pelo grande sucesso de Gladiador seguido de Tróia, Cruzada e, mais
recentemente, 300 - ressuscitou e renovou mitos e heróis antigos, povoando o
imaginário das novas gerações com guerreiros musculosos e ocidentalizados -
interpretados por astros hollywoodianos como Russell Crowe, Brad Pitt, Gerard
Buttler e Orlando Bloom - cujas vidas (apesar de animadas por presenças de
mulheres igualmente belas, como Connie Nielsen, Diane Kruger, Eva Green e Lena
Headey, respectivamente) encontraram mais sentido nos campos de batalha.
Se considerarmos a produção cinematográfica com conteúdo histórico em
todas as suas influências - de desenvolvimento de consciência histórica, ideogica e
cultural entendemos a responsabilidade que a escola (especialmente, mas não
exclusivamente, na figura do professor de Hisria) tem perante seus alunos: a de
oferecer um contraponto com suficiente embasamento para que o aluno possa
construir uma visão mais ampla e crítica do mundo.
Buscamos, neste trabalho, escapar a já tradicional abordagem do cinema
apenas como recurso didático-pedagógico traduzido na prática escolar de
118
apresentação de filmes ou trechos de filmes para a motivação ou reforço do estudo
de determinados temas históricos para avançar na discussão do cinema sob uma
perspectiva que reúne três campos de estudos aparentemente independentes:
História, Comunicão e Educação. Ou seja, o cinema como uma forma de acesso à
História, às culturas e a concepções ideológicas como um meio de comunicão
que exerce enorme influência na forma como as pessoas de um modo geral, e as
em idade escolar em particular, constroem em seu saber histórico, cultural e
ideológico.
Esperamos haver deixado claro, até aqui, que o cinema assim como outros
meios de comunicação de massa – e suas produções:
1. Fazem parte da realidade dos alunos e suscitam seu interesse e
curiosidade;
2. Moldam ou manipulam - concepções históricas, culturais e ideológicas
através da recriação de personagens, fatos, costumes e experiências;
3. Contém uma quantidade imensa de informões veiculadas como
realidade quando, em verdade, não passam de construções elaboradas
com propósitos definidos e bastante específicos;
4. Constituem, por isso mesmo – e até mais por seus “defeitos” que por suas
“qualidades” objetos únicos de estudo, com os quais se pode estimular
no aluno a capacidade de reflexão crítica, por meio da desconstrução das
suas mensagens, da análise da relação entre seus contextos de produção,
as idéias e comportamentos que buscam estimular, as “histórias” que
contam e o saber histórico escolar.
Inspirados pelas idéias de Edgar Morin sobre a educação no futuro (de
aumento da compreensão humana, de combate ao egocentrismo, etnocentrismo e
sociocentrismo) e na orientação pedagógica dos Parâmetros Curriculares Nacionais
- que defendem a idéia de que é preciso ensinar o estudante a pensar/refletir
historicamente - encaminhamos esta pesquisa para uma abordagem que contempla
o cinema como objeto de análise, procurando investigar as concepções históricas e
ideológicas a que os alunos têm acesso através da indústria cinematográfica norte-
119
americana na atualidade. Esta proposta avançou em um caminho relativamente
novo pelo menos no Brasil de estudos na área de Comunicação, ou seja, o
letramento midiático (media literacy) e na área de estudo do campo da Comunicão
e Lingüística, a Análise do Discurso esta (como método de análise que objetiva
desvendar as construções ideológicas materializadas nas práticas discursivas) para
se chegar àquele – o letramento midiático - sem o qual o sujeito não alcança
compreender o poder que os meios de comunicação têm na construção da cultura,
do conhecimento histórico, da ideologia, das estruturas sociais e das relações
socioculturais.
A análise do conteúdo histórico e dos enunciados presentes nas obras
cinematográficas selecionadas permitem-nos fazer algumas considerações sobre a
ligação entre os filmes, o passado histórico que buscam resgatar e o ideológico da
sociedade que representam. A maior parte destas observações está pormenorizada
na análise individual de cada filme, mas as retomamos aqui – conjuntamente - com a
intenção de estabelecermos os diversos pontos comuns entre estas obras.
Além de serem os filmes com conteúdo histórico de maior sucesso mundial de
bilheteria de todos os tempos todos arrecadaram, exclusivamente em exibições
nos cinemas, uma quantia superior a 200 milhões de dólares atuais - os filmes
estudados estão repletos de erros fáticos e anacronismos, não revelando, de um
modo geral, maior compromisso com as principais obras produzidas pela vasta
historiografia dos temas abordados. Na ânsia de parecerem verossímeis, estas
produções se apropriaram de fatos e personagens mais ou menos conhecidos e
recriaram quase completamente a História - este é o caso de 300, Tróia e Gladiador
(que não passam de películas de ação ambientadas no passado) e, em menor grau,
120
de Cruzada (que é um filme de ão com uma visão geral histórica mais
responsável).
De qualquer modo, as quatro produções vulgarizam o saber histórico e alguns
de seus mais célebres personagens, tornando-os simples produtos de uma indústria
cultural padronizada e despersonalizada. As capas dos DVDs demonstram bem
esta padronização, que são praticamente idênticas: em todas elas, o herói da
película segura uma espada e – exceto por Gladiador – está em posição de ataque.
Figura 1 – Capas dos DVDs de Tróia, Gladiador, Cruzada e 300
Além de padronizadas, estas capas sintetizam muito bem – como as imagens
sempre o fazem os enunciados que compõem os discursos ideológicos
subjacentes. Nelas misturam-se: a sempre justificada luta pela liberdade, a valentia
do soldado que morre por sua pátria e o heroísmo das conquistas de guerra.
Especialmente em 300 e Tróia - mas tamm em Gladiador e Cruzada -
predominam os discursos patrióticos pró-guerra (ou pelo menos o discurso da
impossibilidade da paz, como em Cruzada): em vários trechos de 300, Leônidas
discorre brevemente sobre a defesa da nação grega (note-se que a Grécia sequer
121
existia como Estado) e da liberdade” a qual pode ser conquistada ou mantida
através da guerra; Tróia não é muito diferente, trazendo enunciados sobre a
inevitabilidade da guerra e a necessidade de defesa da nação e da pátria como
revelam os diálogos entre Aquiles e sua e Tétis (transcrito na análise de Tróia), e
entre Heitor e seu pai, nos quais Heitor deixa o pai cheio de orgulho ao afirmar
repetidas vezes que lutaria pelos deuses, pelo país e por sua família.
300 e Gladiador trazem visões igualmente maniqueístas dos conflitos que
buscaram reconstituir: 300 representa os persas como povo completamente
degenerado, ao qual os espartanos – exemplos de beleza, justiça, moral e dos
ideais de liberdade associados ao mundo ocidental precisam vencer; Gladiador
apresenta uma visão igualmente reducionista e simplificadora dos conflitos que
ocorreram no mundo romano do século II da era cristã: de um lado, o bem - nas
figuras de Marco Aurélio e do herói Máximo, leal ao imperador, ao povo de Roma e
aos valores familiares e de outro, o mal - associado principalmente à Cômodo e
aos povos germânicos, mostrados como bárbaros truculentos que se opunham aos
civilizados romanos (quando, na verdade, os romanos eram os invasores).
Adicionalmente, tanto Tróia quanto 300 exaltam o ideal de força e beleza
física ocidentais, o desejo de vitória e reconhecimento social e revelam
preocupações homofóbicas: “pouco podemos esperar daqueles filósofos e
pederastas(Leônidas, em 300). Como ressaltamos na análise, os povos gregos
não categorizavam as pessoas de acordo com suas preferências sexuais e a
questão heterossexualidade versus homossexualidade era inexistente à época:
personagens célebres incluindo Platão, Sócrates e Alexandre tiveram relações
que hoje chamamos de “homossexuais” e quase certamente o relacionamento entre
122
Aquiles e Pátroclo cuja morte ocasionou a “ira de Aquiles”, tema central da obra
Ilíada – foi também sexual.
Valores familiares ocidentaiso evidentes nas quatro películas, embora mais
notavelmente em Tróia: as famílias de Príamo e Heitor foram adaptadas ao ideal
monogâmico vigente no código moral (ocidental) atual embora Príamo, segundo a
lenda, tenha tido mais de 50 filhos e inúmeras esposas, e Heitor tampouco fosse
monogâmico - tanto a noção de família quanto a mentalidade da época não
poderiam ser iguais às de hoje e a poligamia era certamente, a prática considerada
“normal”. O curioso é que, nos quatro filmes, a constituição da família do herói
principal é idêntica: Heitor, em Tróia; Balian, em Cruzada; Máximo, em Gladiador e
Leônidas, em 300 têm uma esposa e somente um filho nada mais distante da
família clássica e medieval. Tróia destaca-se, ainda, por um discurso religioso que
escamoteia o politeísmo: os “gregos” não poderiam lutar pelos deuses”,
conjuntamente simplesmente porque os deuses gregos jamais estavam de acordo
e a Guerra de Tróia foi, antes de ser uma luta entre heróis, uma luta entre os
diversos deuses gregos (SOUZA, 1989).
Ou seja, valores ocidentais bastante conservadores permeiam Tróia e 300
embora este seja, dos quatro filmes, o que de longe mais apresente estereótipos e
preconceitos, incluindo a identificação dos espartanos com a cultura ocidental e dos
orientais como fundamentalistas religiosos e a identificação de fraqueza para
enfrentar a guerra – ou a disposição para a paz - com a idade avançada dos éforos.
A estetização da violência é, também, algo marcante nas quatro obras: em
Gladiador - que é basicamente um filme de arena, de lutas, de extremada violência
instigada pelo desejo de vingança (a força motora de Máximo, o herói do filme) - o
123
mensageiro enviado a propor um acordo com os germanos retorna - sem a cabeça -
preso a seu cavalo (aliás, o mensageiro inimigo é assassinado desnecessariamente
também em 300 o mensageiro de Xerxes é jogado no poço pelo rei Leônidas - e
em Cruzada – o mensageiro de Saladino é executado com uma punhalada na
garganta pelo rei de Jerusalém, Guy de Lusignan). Todos os filmes apostam nas
cenas de batalhas em que o sangue jorra em profusão, cadáveres se amontoam e
bombardeios, flechas incendiárias e outros artefatos incandescentes são usados a
exaustão.
O “discurso” que permeia 300 é o de que a guerra é para os jovens, belos e
justos guerreiros, enquanto a paz é para os velhos covardes. Submeter os povos
que são culturalmente inferiores – ou feios, negros, decrépitos, sexual ou fisicamente
“defeituosos” aos domínios dos que o belos, brancos, fortes, e corajosos, não é
somente justificável, mas desejável. Gladiador traz a mesma agenda ideológica: a
guerra dos justos romanos - contra os injustos germânicos - é inevitável e
justificável.
A análise do contexto histórico da produção destas quatro películas pode nos
dar algumas indicações dos motivos para tanta exaltação à guerra: Tróia e 300 -
produzidas em 2004 e 2006, respectivamente - são as duas películas em que o
discurso nacionalista pró-guerra é mais forte: ambas são posteriores à invasão
norte-americana no Iraque (2003) e seus discursos remetem aos discursos
inflamados do então presidente norte-americano George W. Bush para justificar o
envio de tropas para defesa dos “interesses do mundo livre”. A celebração do
patriotismo espartano e da valentia dos bravos guerreiros de Tróia, neste contexto,
não é certamente gratuita: celebra também o patriotismo norte-americano, enaltece
124
o soldado, justifica a guerra em defesa da liberdade ocidental e da libertação do
povo iraquiano. Assim como Aquiles e Heitor são exemplos do bom soldado, Tétis e
Príamo são exemplos de pais/mães que não hesitam em apoiar o filho no sacrifício
pela pátria: propaganda pontual para a política de Bush no Oriente Médio - que
objetiva a paz e a democracia”, para incitar o patriotismo nos norte-americanos e
para justificar a política externa de Bush nos pses consumidores das produções
hollywoodianas.
O passado, nestes filmes, é revisitado apenas como uma desculpa para a
mensagem principal, que é a justificativa da guerra. O que este filmes dizem o seu
discurso implícito é, resumidamente: o ser humano é naturalmente violento,
guerrear é normal, faz parte da vida, e fez sempre parte da história da humanidade –
o mundo pertence aos guerreiros mais valentes, e não aos fracos, e toda guerra
que busca submeter um povo inferior culturalmente é válida. Poderiam dizê-lo sem
recorrer a um passado tão distante – simplesmente mostrando as guerras do século
XX, por exemplo. Mas não o fazem, por motivos simples: quanto maior o
distanciamento no tempo, maior o apagamento dos fatos muito mais fácil
manipulá-los e muito mais natural” a mensagem. Para validar uma ideologia pró-
guerra que, na verdade, vai contra os poucos avanços civilizatórios que a
humanidade tem conseguido alcançar recorrem ao passado distante e mostram-
nos como temos uma história assentada na violência é o discurso “construído” se
passando por “natural”. Um exemplo muito óbvio é o da abertura do filme Gladiador:
No inverno de 180 a.D., a campanha de 12 anos do imperador Marco
Aurélio contra os bárbaros da Germânia chegava ao fim. Apenas uma
barreira impõe-se no caminho da vitória romana e da promessa de paz
em todo o império. (Gladiador, 2000)
125
Apenas uma barreira impõe-se no caminho da vitória se refletimos sobre o
eufemismo da frase, entendemos que era preciso matar alguns quantos bárbaros
mais para que a pax romana pudesse ser, finalmente, alcançada esta é a
racionalizão milenar para a guerra em atuação...
Para aqueles que, porventura, ainda duvidam de uma manipulação ideológica
e tentativa de estabelecimento de uma hegemonia através do cinema, eis o que tem
a dizer o filósofo Slavoj Zizek:
(...) o traço definitivo entre Hollywood e a guerra contra o terrorismo’ ocorreu
quando o pentágono decidiu convocar a colaboração de Hollywood: a
imprensa informou que, no inicio de outubro de 2001, havia se estabelecido
um grupo de autores e diretores, especialistas em filmes catástrofe, com
incentivo do pentágono, a fim de imaginar possíveis cenários de ataques
terroristas e a forma de lutar contra eles. Esta interação pareceu continuar em
vigor: no inicio de novembro de 2001, houve uma série de reuniões entre
conselheiros da Casa branca e executivos de Hollywood, com o objetivo de
coordenar o esforço de guerra e de definir a forma como Hollywood poderia
colaborar na ‘guerra contra o terrorismo’, ao enviar a mensagem ideológica
correta, não apenas para os americanos, mas também para o blico
hollywoodiano em todo o mundo a prova empírica, definitiva, de que
Hollywood opera de fato como um aparelho ideológico do estado. (ZIZEK,
2003, p. 30).
Cruzada é, definitivamente, mais ponderado neste sentido e o melhor dos
quatro filmes, sob todos os pontos de análise. Apesar do romance fictício entre
Balian e Sibila, dos efeitos pirotécnicos, dos escorregões na História factual e de
muitos exageros estéticos, o filme cumpre a tarefa de reproduzir a complexidade do
momento histórico abordado e as relações entre cristãos e muçulmanos na época,
sem cair no mesmo maniqueísmo e superficialidade vistos nos outros três filmes.
Traz, ainda, a perspectiva de que é possível a convivência tolerante entre culturas
diferentes e fornece material para reflexões sobre o passado e sobre os conflitos
atuais que assolam o Oriente Médio.
126
O discurso de Cruzada é também mais pluralista e questionador das soluções
através de conflitos armados. As figuras históricas de Balian de Ibelin e de Saladino
o representadas como as personagens complexas que foram, cada qual tentando
defender seus interesses e suas crenças o que compõe uma visão realista e
inspiradora para quem quer que deseje se aprofundar nos estudos sobre as relações
entre o ocidente cristão e o oriente islâmico. O diferencial do filme pode ser
explicado, do ponto de vista da pesquisa histórica: um professor de Literatura
Comparada da Universidade da Columbia, especializado em Estudos Iranianos e
Islâmicos, foi consultado pela equipe de produção.
Na contramão do discurso dos fundamentalistas atuais - sejam judeus,
cristãos ou muçulmanos – o filme transmite a mensagem de que o diálogo é possível
e desejável. Apesar dos excessos licos comuns aos outros filmes - esta é a
única produção, entre as quatro, que parece se afastar do discurso pró-guerra.
Diante de tais considerações, o relativo “fracasso” de bilheteria frente aos outros
filmes estudados pode servir de reflexão sobre o mundo contemporâneo:
Tabela 3: Filmes estudados – em ordem de rentabilidade
Título
Ano de
lançamento
Custo de
Produção
(US $)
Arrecadação
Mundial Total
(em US$)
300 2006
65.000.000
456.592.000
Gladiador 2000
103.000.000
456.200.000
Tróia 2004
180.000.000
481.228.348
Cruzada 2005
130.000.000
208.300.000
A conclusão desconcertante é a de que o filme que mais lucrou é tamm o
mais belicista, preconceituoso e sangrento. Definitivamente, a violência é também
um produto, uma mercadoria rentável - se não fosse assim, Hollywood a teria
banido de suas produções. O que devemos nos questionar é: por quê? Afinal - e
127
embora alguns historiadores e sociólogos tenham notado que a História da
humanidade é a História de conflitos - devemos nos render à evidência de que, se
houvéssemos lutado na mesma proporção em que se luta nos filmes hollywoodianos
– ou seja, mais de 50% do tempo – já não existiriam nem historiadores nem Histórias
para contar. Tudo o que foi construído em termos tecnológicos e científicos na
História da humanidade o foi em tempos de paz – inclusive o cinema.
128
REFERÊNCIAS
ACKERMAN, L. e SILVA, R. Cinema: O império dos sentidos. In: Revista Fórum. Ed. 5. julho
2002. Disponível online:
http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=1946
ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento:fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
AGEL, H. Estética do cinema. São Paulo: Cultrix, 1982.
ALMEIDA, M.J. Imagens e Sons: A Nova Cultura Oral. São Paulo: Cortez, 2001.
AMOURETTI, M.C. e RUZÉ, F. O mundo Grego Antigo: dos palácios de Creta à conquista
romana. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
ARISTÓTELES. Política. Brasília, UnB, 1997.
ARMSTRONG, K. Jerusalém: uma cidade. Três religiões. São Paulo: companhia das Letras,
2000.
ARNOLD, M. Making Books; Book Parties With Togas. In: The New York Times. 11 Jul.
2007. Disponível online:
http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=990CE2D61530F932A25754C0A9649C
8B63. Último acesso: 28 jan. 2009.
ASHERI, D. O estado persa. São Paulo: Perspectiva: 2006.
BAKKER, G. Entertainment Industrialized: The Emergence of the International Film Industry,
1890-1940. New York: Cambridge University Press, 2008.
BARCINSKI, A. A saga da superprodução. In Coleção Grandes Guerras, Editora Abril. Ed. 5,
Abril 2005,
BARROS, J.A. O campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.
BARTLETT,W.B. História ilustrada das cruzadas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
BERNARDET, J.C. e RAMOS, A.F. Cinema e História no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
BLOCH, Apologia da História, ou, O ofício do historiador” Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOBBIO, N. In: Dicionário de política. Organizado por: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,
Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Imprensa Oficial, 2004.
BORZA, E. Spartans Overwhelmed at Thermopylae, Again. In: Archeology. 22 Março de
2007. Disponível online: www.archaeology.org/online/reviews/300.html ).
BOWDER, D. Quem foi quem na Grécia antiga. São Paulo: Círculo do livro, 1992.
_______. Quem foi quem na Roma antiga. São Paulo: Círculo do Livro/Art Editora, 1990.
129
BRANDÃO, H. N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: Editora da Unicamp. 7ª Ed.
1998.
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, volume 3, 1989.
BRASIL, MEC. PCN+ Ensino Médio. Orientações educacionais complementares aos
Parâmetros Curriculares Nacionais: Os conceitos estruturadores da História.
1998. Disponível online: (ftp://ftp.fnde.gov.br/web/pcn/05_08_historia.pdf )
BRIZZI, G. O guerreiro, o soldado e o legionário: os exércitos no mundo clássico. São Paulo,
2003.
BURGUIÈRE, A. Dicionário das ciências sociais. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.50).
CAPELATO, M.H.; NAPOLITANO, M.; SALIBA, E.T e MORETTIN, E. (Org.). História e
Cinema. São Paulo: Alameda, 2006.
CARNES, M. Passado Imperfeito: a História do cinema (Trad. José Guilherme Correa). Rio
de Janeiro: Record, 1997.
CHRISPINIANO, J. História Viva. São Paulo: Duetto, ano V, n 56, p. 43).
CHRISTOL, M; NONY, D. Roma e o seu Império: das origens às invasões bárbaras. Lisboa.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.
DENCKER, A. de F. M.; DAVIÁ, S. C. Pesquisa empírica em ciências humanas: com ênfase
em comunicação. São Paulo: Futura, 2001.
DOSSE, F. A História em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: Edusc , 2003..
DOVER, K. J. A homossexualidade na Grécia antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.
DUARTE, R. Cinema & Educação: refletindo sobre cinema e Educação. Coleção Temas &
Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
DUCELLIER, A. ;KAPLAN, M.; MARTIN, B. A Idade Média: Bizâncio e o Islã: dos rbaros
aos Otomanos. Lisboa: Publicões Dom Quixote, 1994.
ELIAS, N. e DUNNING, E. A busca da excitação. Trad. Maria Manuela Almeida e Silva.
Lisboa: Difel, 1992.
FERREIRA, S. C. O professor como personagem e a escola como cenário: escola e
sociedade em filmes norte-americanos (1955-1974). Tese de Doutorado. Curitiba:
2003.
FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FERRO, M. In: Dicionário das ciências históricas. BURGUIÈRE, A. (org.). Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
FINLEY, M. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1998
FISCHER, R.M.B. Televisão e Educação: Fruir e Pensar a TV. Autêntica, 2001
130
FISCHER, R.M.B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa da
Faculdade de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 14. Nov. 2001. Disponível online:
http://www.scielo.br/pdf/cp/n114/a09n114.pdf
FONSECA, R. O tempo não parou. Caderno Cinema Brasileiro. Jornal do Brasil, 29/12/05.
FONTANA, J. A História dos homens. Bauru: Edusc, 2004
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1997
GÉLÉDAN, A.; BRÉMOND, J. Dicionário econômico e social. Lisboa: Livros Horizonte, 1988,
p.219).
GIBBON, E. Declínio e queda do Império romano. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GIORDANI, M. C. História do mundo feudal. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 570).
GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciaram nossas vidas
até hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
HARRIS, W. V. Spartacus. In: Passado Imperfeito: A História no cinema. Org.: Mark C.
Carnes. Rio de Janeiro: Record,1997.
HERÓDOTO. História. Brasília: UnB, 1968, pg. 64.
HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia da Letras, 1998
HOMERO. A Ilíada. Trad. (prosa) Fernando G. de Araújo Gomes. São Paulo: Publifolha,
1998.
HORN, G. B.; GERMINARI, G.D. O ensino de História e seu currículo: teoria e método.
Petrópolis: Vozes, 2006
IMBD. The Internet Movie Database. All Time Worldwide Box Office. Disponível em:
http://www.imdb.com/boxoffice/alltimegross?region=world-wide Última consulta;
20/01/2009.
JOHNSON, R. Cinema in Brazil. In: The International Movie Industry. Ed.: G. Kindem.
Carbondale, IL: Southern Illinois University Press. 2000.
KELLNER, D.; SHARE, J. Educação para a leitura crítica da mídia, democracia radical e a
reconstrução da educação (Trad. Márcia Barroso). Educação & Sociedade.
vol.29 no.104 Campinas. Out. 2008. Disponível online:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302008000300004&script=sci_arttext
KOSZARSKI, R. An Evening's Entertainment: The Age of the Silent Feature Picture. Los
Angeles: University of California Press, 1994.
LAINE, E. Motion Pictures and Radio: modern Techniques for Education. New York : The
Regents' Inquiry, The McGraw-Hill Book Co., 1938.
LAKATOS E.M e MARCONI, M. A. Sociologia Geral. 7a Edição. São Paulo: Atlas,1999.
131
LE GOFF. J. História nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
________. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2003.
LEITE, S. F. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Ed. Fund.
Perseu Abramo, 2005.
LISSNER, I. Os Césares: apogeu e loucura. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959.
MARX, K. O 18 Brumário de Luís Napoleão. In: A revolução antes da revolução. São Paulo:
Expressão Popular, 2008.
MOCELLIN, R. O cinema e o ensino da História. Curitiba: Nova Didática, 2002.
MINAYO, M.C.S. Pesquisa Social – Teoria, método e criatividade. 23a ed. Petpolis:
Editora Vozes, 2004.
MORETTIN, E. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. In: História, Questões
e Debates, Curitiba, História/UFPR, n. 20/38, jan./jun. 2003.
MORAN, J. M. Desafios da televisão e do vídeo à escola. Texto de apoio ao programa Salto
para o Futuro da TV Escola no módulo TV na Escola e os Desafios de Hoje, do dia
25/06/2002. 18 Set. 2006. Disponível :
<http://www.eca.usp.br/prof/moran/desafio.htm>
MORIN, E. Problema epistemológico da complexidade. Portugal: Europa-América, 1983.
_________. Os sete saberes necessários à educação do futuro, Unesco, 2000.
MORROW, R.; TORRES, C.A. Gramsci e a educação popular na América latina.
Percepções do debate brasileiro. Trad. Susana Guimarães. Currículo sem Fronteiras,
v. 4, n. 2, pp. 33-50, Jul/Dez 2004. Disponível em:
http://www.curriculosemfronteiras.org/vol4iss2articles/morrow.pdf
MOSSÉ, C. Dicionário da Civilização Grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004.
MOURREAU, J. J. A pérsia dos grandes reis e de Zoroastro. Otto-Pierre editores, 1978.
NAPOLITANO, M. Como usar o cinema em sala de aula. 1a ed. São Paulo: Contexto, 2003.
____________. Fontes visuais: a História depois do papel. In: Fontes históricas (org. Carla
Bassanezi Pinsky). São Paulo: Contexto, 2008.
NIETZSCHE, F.. O Anticristo. São Paulo: Escala, 2008.
OLSON, S. Hollywood planet; global media and the competitive advantagae of narrative
transparency. Mahwah: Lawrence Erlbaum, 1999.
OSTERMANN, N. W. Filmes contam História. 2a ed. Porto Alegre: Movimento, 2003.
PEACOCK, J. The Chronicles of Western Costume. London: Thames and Hudson, 1996.
PETRÔNIO. Satiricon. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Circulo do Livro, s/d.
132
ROUSSET, P. História das Cruzadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1980.
RUNCIMAN, S. História das Cruzadas, Volume I: A primeira cruzada e a fundação do Reino
de Jerusalém. Rio de janeiro: Imago, 2002.
___________. História das Cruzadas, Volume II: o Reino de Jerusalém e o Oriente Franco,
1100-1187. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
___________. História das Cruzadas, Volume III: O Reino de Acre e as últimas Cruzadas.
Rio de Janeiro: Imago, 2003.
SCOTT, A.O. Battle of the Manly Men: Blood Bath With a Message. New York Times. Março
9, 2007. Disponível online: http://movies.nytimes.com/2007/03/09/movies/09thre.html.
SILVA, E. L.; MENEZES, E. Metodologia da Pesquisa e Elaboração de Dissertação. 30 Ed.
Apostila do Laboratório de Ensino a Distância da UFSC, Florianópolis, 2001.
SOARES, I.O. Comunicação/Educação: A emergência de um novo campo e o perfil
profissional de seus profissionais. In: Contato, Brasília, ano 1. n. 2 jan./mar. 1999.
SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
SOARES, M.C. e FERREIRA, J. (Org.). A História vai ao cinema. Rio de Janeiro: Record,
2001.
SOUZA, M.A.P. A Guerra na Grécia Antiga, São Paulo: Ática, 1988.
SOUZA, C. M. Helena de Tróia: o papel da mulher na Grécia de Homero. Rio de Janeiro:
Lacerda Editores, 2001.
STONE, I.F. O Julgamento de Sócrates. São Paulo: Companhia das letras, 2005, pg. 155.
SUETÔNIO, C.T. A vida dos doze césares. Guarulho: Gemape, 2003, p.167
TEIXEIRA, A. Mestres de amanhã. In: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de
Janeiro, v.40, n.92, out./dez. 1963. p.10-19. Disponível online:
http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/
TEIXEIRA, I.A.C.; LOPES, J.S.M. (Org.). A escola vai ao cinema. Belo Horizonte: Autêntica,
2003.
TËTART, P. Pequena História dos historiadores. Bauru: Edusc, 2000.
TURAN, K. 300. Los Angeles Times - Movie Rewiew. Março 9, 2007. Disponível online:
http://www.calendarlive.com/movies/cl-et-three9mar09,0,7620364.story
TULARD, J. Dicionário de Cinema: os diretores. Porto Alegre: L & PM Editores,1996.
TYLDESLEY, J. Pirâmides: a verdadeira História por trás dos mais antigos monumentos do
Egito. São Paulo: Globo, 2005.
VASCONCELOS, C. S. Construção do conhecimento em sala de aula. São Paulo: Libertad,
1995.
133
VILAR, P. Iniciação ao vocabulário de análise histórica. Lisboa: Edições João da Costa,
1985
WASKO, J. Por que Hollywood é global? In: Cinema no mundo: indústria, política e
mercado.Estados Unidos, vol. IV. Alessandra Meleiro (org.). São Paulo:
Escrituras/Iniciativa Cultural, 2007.
WERTHEIN, J. Morin e a Educação do Futuro. Jornal do Brasil, 23/06/2000. online:
http://www.unesco.org.br/noticias/opiniao/artigow/2000/artigo_morin
WHEATCROFT, A. Infiéis: o conflito entre a Cristandade e o Islã, 638-2002. Rio de Janeiro:
Imago, 2003.
WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt. In: História, desenvolvimento teórico,
significação política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002
ZIZEK, S. Às portas da revolução: escritos de Lênin de 1917. Trad. Luiz Bernardo Pericás,
Fabrizio Rigout e Daniela Jinkings. São Paulo:Boitempo, 2005.
134
APÊNDICE 1 - QUESTIONÁRIO CINEMA e HISTÓRIA
Nome: ___________________________________________________
Data: ________________________
Há quanto tempo você leciona História?
Escola pública __________ Escola privada _______________
1. Nos últimos 5 anos, você mostrou algum filme (inteiro) ou recortes de imagens de
filmes com conteúdo histórico em sala de aula? ( ) Sim ( ) Não
Em caso positivo, que filmes você mostrou? (listar primeiramente os mais utilizados):
1.
2.
3.
4.
5.
6.
1. Quais filmes com conteúdo histórico você assistiu? Quais mais lhe marcaram?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
1. Nestes últimos 5 anos, sobre que filmes com conteúdo histórico os alunos mais
fizeram perguntas?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
135
ANEXO 1 – Fichas técnica dos filmes analisados
300
Directed by Zack Snyder
Produced by
Frank Miller
Zack Snyder
Gianni Nunnari
Jeffrey Silver
Mark Canton
Written by
Screenplay:
Zack Snyder
Kurt Johnstad
Michael Gordon
Comic Book:
Frank Miller
Lynn Varley
Starring
Gerard Butler
Lena Headey
Dominic West
David Wenham
Rodrigo Santoro
Music by Tyler Bates
Cinematography Larry Fong
Editing by William Hoy
Studio
Legendary Pictures, Virtual Studios, Atmosphere
Entertainment and Hollywood Gang
Distributed by Warner Bros.
Release date(s) March 9, 2007
Running time 117 min.
Country United States
Language English
136
TIA
Directed by Wolfgang Petersen
Produced by
Wolfgang Petersen
Diana Rathbun
Colin Wilson
Plan B
Written by David Benioff
Starring
Brad Pitt
Eric Bana
Orlando Bloom
Brian Cox
Sean Bean
Peter O'Toole
Diane Kruger
Music by James Horner
Cinematography Roger Pratt
Editing by Peter Honess
Distributed by Warner Bros.
Release date(s) May 14, 2004
Running time
162 Min
Theatrical
196 Min
Director's Cut
Language English
137
CRUZADA
Directed by Ridley Scott
Produced by Ridley Scott
Written by William Monahan
Starring
Orlando Bloom
Eva Green
Jeremy Irons
David Thewlis
Edward Norton
Marton Csokas
Liam Neeson
Ghassan Massoud
Music by Harry Gregson-Williams
Cinematography
John Mathieson
Editing by
Dody Dorn
Chisako Yokoyama (director's
cut)
Distributed by
20th Century Fox
Scott Free
Release date(s)
May 6, 2005
Running time
144 min.
194 min (director's cut).
189 min (Blu-Ray release, omits
Overture, Intermission &
Entr'acte)
Country UK / Spain / USA / Germany
Language English / Arabic
138
GLADIADOR
Directed by Ridley Scott
Produced by
Douglas Wick
David Franzoni
Branko Lustig
Written by
David Franzoni
John Logan
William Nicholson
Starring
Russell Crowe
Joaquin Phoenix
Connie Nielsen
Oliver Reed
Richard Harris
Derek Jacobi
Djimon Hounsou
Ralf Moeller
Music by
Hans Zimmer
Lisa Gerrard
Cinematography John Mathieson
Editing by Pietro Scalia
Distributed by
DreamWorks (USA)
Universal Studios (foreign)
Release date(s) May 5, 2000
Running time
154 min.
(Theatrical version)
171 min.
(Extended cut)
Country
UK
USA
Language English
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo