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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
João Batista Louzada
Performatividade da linguagem e heterogeneidade enunciativa em Machado de
Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires
Rio de Janeiro
2010
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João Batista Louzada
Performatividade da linguagem e heterogeneidade enunciativa em Machado de
Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires
Tese apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de
Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Língua Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos de Azeredo
Rio de Janeiro
2010
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João Batista Louzada
Performatividade da linguagem e heterogeneidade enunciativa em Machado de
Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires
Tese apresentada, como requisito
para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Letras, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Língua Portuguesa.
Aprovado em 31 de março de 2010.
Banca Examinadora:
____________________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Santos de Azeredo (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
____________________________________________________________
Prof. Dr. André Crim Valente
Instituto de Letras da UERJ
____________________________________________________________
Prof. Dr. João Baptista de Medeiros Vargens
Instituto de Letras da UERJ
____________________________________________________________
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
Faculdade de Letras da UFRJ
____________________________________________________________
Prof. Drª. Vanise Gomes de Medeiros
Faculdade de Letras da UFF
Rio de Janeiro
2010
DEDICATÓRIA
À minha mãe, que se ainda estivesse entre nós, certamente ficaria muito feliz
com esta realização.
À minha esposa Kátia, por existir na minha vida.
Aos meus filhos Vinício e Vanessa, por todo o amor.
Aos meus irmãos Honório e Moisés, partes com eu de um todo para sempre vivo
no coração.
AGRADECIMENTOS
A José Carlos de Azeredo – meu orientador, pela atenção constante, a
compreensão amiga, a competência e o estímulo.
Ao professor André Valente – mestre amigo sempre presente, com quem de fato
este trabalho começou.
A todos os outros membros da banca examinadora: professora Vanise Medeiros,
professor Godofredo Oliveira e professor João Baptista, por toda a atenção,
generosidade e incentivo.
Mas se a pessoa não possuísse o poder de transformar-se, de modificar-se, de
convencer-se, de dar de certa maneira as costas a seu passado, a formação educativa
seria uma léria, a moral não teria sentido e as ideias de responsabilidade, de mérito e de
culpabilidade, vinculadas à da liberdade da pessoa, deveriam ser abandonadas em
proveito de uma simples apreciação pragmática dos comportamentos.
Chaïm Perelman
RESUMO
LOUZADA, João Batista. Performatividade da linguagem e heterogeneidade
enunciativa em Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires. 2010. 168 f. Tese
(Doutorado em Língua Portuguesa) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
O objetivo
geral deste trabalho consiste na proposta de se conceber performatividade e
heterogeneidade como princípios gerais e inextricáveis entre si da atividade linguageira
do homem. Na nossa acepção, essa inextricabilidade permeia, no plano da enunciação,
toda e qualquer manifestação linguístico-discursiva. Quanto ao postulado da
performatividade, concebemo-lo com base no pensamento de John Langshaw Austin
(1962), enquanto o da heterogeneidade, apreendemo-lo, por sua vez, junto a Jacqueline
Authier-Reveuz (1982). Em relação à noção de heterogeneidade, esta compreende, no
âmbito desta tese, tanto as manifestações linguísticas que comportam explicitamente ou
não as marcas de um discurso outro no discurso (= heterogeneidade mostrada), quanto
aquelas em que as vozes do exterior só podem ser apreendidas a partir das suas
ressonâncias (inter)discursivas (= heterogeneidade constitutiva). No que concerne ao
postulado da performatividade, trata-se de uma concepção global da linguagem
enquanto função última de todo e qualquer ato de enunciação, no sentido de este
corresponder sempre a um instrumento de ação do homem sobre o mundo e sobre o
próprio homem. Cumpre ressalvar, no entanto, que, na presente tese, a apreensão da
performatividade inerente aos nossos atos de linguagem dialoga não só com o princípio
austiniano do dizer é fazer, mas também com a teoria interacionista (Van Dijk, 2000) da
fórmula dizer é fazer fazer. No que concerne ao corpus selecionado como fonte de
ilustração dos princípios mencionados, este se constitui dos romances Esaú e Jacó
(1904) e Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis.
Palavras-chave: Língua. Enunciação. Performatividade. Heterogeneidade.
ABSTRACT
The aim of this work consists in the proposal of conceiving performativity and
heterogeneity as general and inseparable principles of the linguistic activities of human
beings. This inseparability permeates, in the enunciation plan, any linguistic-discursive
manifestation. With regard to the performativity principle (< performative utterance),
the present work is based on John Langshaw Austin’s studies (1962), and the
heterogeneity principle relies on Jacqueline Authier-Reveuz’s works (1982). Regarding
the notion of heterogeneity, this includes both the linguistic expressions that explicitly
admit, or not, the marks of a discourse other in the discourse (= shown heterogeneity),
as those in which the exterior voices can only be seized from their resonances
(inter)discursive (= constitutive heterogeneity). In relation to the principle of
performativity, it is a global concept of language as a function of any act of enunciation,
as this always constitutes an instrument of the human action on the world and on
humanity. However, in the present thesis, the conceiving of performativity inherent in
acts of language dialogues not only with Austin’s principle of to say is to do, but also
with the formula’s interactionist theory (Van Dijk, 2000) to say is to do doing. With
regard to the corpus selected as a source of illustration of the principles mentioned, the
present work includes the novels Esaú e Jacó (1904) and Memorial de Aires (1908), by
Machado de Assis.
Keywords: Language. Enunciation. Performativity. Heterogeneity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 11
1 A LÍNGUA ...................................................................................................... 18
1.1 A língua de Saussure ....................................................................................... 18
1.1.1 Língua versus fala ............................................................................................. 19
1.1.2
A arbitrariedade do signo linguístico ................................................................ 21
1.1.3
Arbitrário absoluto versus arbitrário relativo .................................................... 23
1.1.4 A linearidade do significante ............................................................................ 24
1.1.5 Sincronia versus diacronia ................................................................................ 24
1.1.6 Sintagma versus relação associativa ................................................................. 25
1.1.7
O valor linguístico ........................................................................................... 26
1.2 A língua de Hjelmslev .................................................................................... 27
1.2.1
Teoria da linguagem ......................................................................................... 27
1.2.2 Função versus functivos ................................................................................... 31
1.2.3 Processo versus sistema .................................................................................... 33
1.2.4 Signos versus figuras ........................................................................................ 34
1.2.5 Plano do conteúdo versus plano da expressão .................................................. 35
1.2.6 Catálise .............................................................................................................. 37
1.3 A língua de Chomsky ...................................................................................... 37
1.3.1 Competência e performance.............................................................................. 40
1.4 Linguísticas enunciativas ............................................................................... 40
2 A ENUNCIAÇÃO ........................................................................................... 43
2.1
Texto e discurso ................................................................................................ 43
2.2
Enunciado e enunciação .................................................................................... 46
2.3 A situação comunicativa ................................................................................. 49
2.3.1 Sujeitos da comunicação .................................................................................. 49
2.3.2 Projeto de comunicação .................................................................................... 50
2.4 Subjetividade ................................................................................................... 51
2.5 O aparelho formal da enunciação.................................................................... 54
2.6 Dêixis e anáfora ............................................................................................... 57
2.7 Debreagem e embreagem ............................................................................... 62
2.8 Pressupostos e subentendidos ........................................................................ 68
3 A PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM ........................................... 73
3.1 A retórica .......................................................................................................... 73
3.1.1 A retórica de Aristóteles .................................................................................... 75
3.1.2 A retórica de Perelman ...................................................................................... 77
3.2 A filosofia da linguagem .................................................................................. 79
3.3 A pragmática ................................................................................................... 88
3.3.1 O objeto da pragmática .................................................................................... 89
3.3.2 Divisão da pragmática ...................................................................................... 92
3.3.3 Três pontos de vista pós-austinianos ................................................................ 96
3.3.4 Pragmática indicial ........................................................................................... 98
3.3.5
Pragmática ilocucional ................................................................................... 100
3.3.6
Pragmática conversacional ............................................................................. 107
3.4 O ethos ............................................................................................................ 112
3.5 A autoridade polifônica ................................................................................ 113
4 A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA ............................................. 115
4.1 Análise do discurso ....................................................................................... 115
4.1.1 Fases da AD ................................................................................................... 116
4.1.2 Especificidade e procedimentos de análise..................................................... 119
4.2 Gêneros do discurso .................................................................................... 121
4.3 Dialogismo e polifonia ................................................................................. 122
4.4 Intertexto e interdiscurso ............................................................................ 124
4.5 Modalização autonímica .............................................................................. 125
4.6 Nominalizações ............................................................................................. 128
4.7 Negação ......................................................................................................... 128
4.8 Enunciados conclusivos .............................................................................. 129
4.9 Conectores e expressões .............................................................................. 130
4.10 Discurso reportado ...................................................................................... 133
4.10.1 Discurso direto .............................................................................................. 134
4.10.2 Discurso indireto ........................................................................................... 137
4.10.3 Ilha textual .................................................................................................... 145
4.10.4 Discurso direto com “que” ............................................................................ 146
4.10.5 Discurso indireto livre ................................................................................... 146
4.10.6 Resumo com citações .................................................................................... 148
4.10.7 Provérbios ...................................................................................................... 150
4.10.8 Slogans ........................................................................................................... 150
4.10.9 Alusão ............................................................................................................ 151
4.10.10 Captação e subversão ..................................................................................... 152
4.10.11 Ironia .............................................................................................................. 152
5 CONCLUSÃO ............................................................................................... 154
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 158
11
INTRODUÇÃO
Performatividade e heterogeneidade correspondem a dois princípios gerais da
atividade linguageira do homem. Nesta pesquisa, concebemos a performatividade com base
no pensamento de Austin, que, a partir de seu texto Performativo-Constativo (Royamont –
França, 1958), encaminha a questão para o status de uma concepção performativa global da
linguagem, com base no postulado de que dizer é fazer, isto é, enquanto função última de
qualquer ato de enunciação, no sentido de este constituir sempre uma forma de ação do
homem sobre o mundo e sobre o próprio homem. Daí a apreensão da performatividade
inerente aos nossos atos de linguagem também comportar aqui a fórmula dizer é fazer fazer
da teoria interacionista (VAN DIJK, 2000). Concebidos na comunicação ordinária em um
circuito de troca, os atos de fala dos interlocutores comportariam, no caso, não só a função de
agir sobre o outro, mas também de incitá-lo a reagir, num sentido ideologicamente amplo do
termo.
Quanto ao postulado da heterogeneidade, apreendido junto a Authier-Revuz (1998),
este se justifica em plano lato pela condição de questionar, a partir de determinado momento,
tanto uma noção de subjetividade centrada na transcendência do Ego quanto uma concepção
de linguagem assentada na noção de homogeneidade, linhas caracterizadoras em essência da
linguística benvenistiana. Authier-Revuz (1998) estabelece, no âmbito dos estudos
enunciativos, uma distinção amplamente operacional entre heterogeneidade constitutiva e
heterogeneidade mostrada, ao reportar-se às marcas linguísticas da incorporação
(representação) de um discurso outro no discurso, entre as quais se situam, em nível
gramático-escolar, os tradicionais discursos (estilos) direto, indireto e indireto livre, formas
que, como observa a autora, não abarcam satisfatoriamente o inventário das estruturas que
manifestam na língua a referida recursividade discursiva. Estas correspondem à nomeação de
heterogeneidade mostrada, segundo Authier-Revuz, pelo fato crucial de se conceber,
consensualmente, uma heterogeneidade constitutiva inerente à produção (enunciação) de todo
discurso. A concepção desse caráter heterogêneo que permeia todo discurso remonta, como
salienta a autora, à teoria do dialogismo de Bakhtin (1992), para quem todo discurso se funda
no espaço do já-dito de outros discursos, e à do interdiscurso de Pêcheux (1997), segundo o
qual todo discurso consiste na ressonância de uma enunciação já realizada num contexto
situacional distinto, anterior e independente. Outro conceito-chave na teoria bakhtiniana,
recoberto neste trabalho sob o signo da heterogeneidade, corresponde ao termo polifonia, o
qual Bakhtin atribui ao conjunto de vozes que caracteriza um determinado tipo de discurso (o
12
discurso poético, por exemplo), em oposição aos discursos monofônicos, em que se promove
um mascaramento discursivo, a partir de estratégias de abafamento das vozes conflitantes,
configurando-se um discurso autoritário (o discurso religioso, por exemplo). Ainda sob a
égide do postulado da heterogeneidade, cumpre-nos examinar igualmente o conceito de
intertextualidade. Trata-se, conforme Barros (2003, p. 4), de um outro aspecto do dialogismo,
a saber, o “diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e
o define”. Como esclarece Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 288)
“a noção de ‘intertextualidade’ foi introduzida por Kristeva (1969) para o estudo da
literatura”, no contexto histórico do estruturalismo francês. No dizer de Fiorin (2003, p. 30),
“a intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o
sentido incorporado, seja para transformá-lo”. No âmbito deste trabalho, concordamos com
Verón apud Koch (1998, p. 48), quando observa que, tanto quanto “à verificação de um dos
aspectos do processo de produção dos discursos”, a noção de intertextualidade refere-se
“também à expressão de uma regra de base do método”, isto é, “trabalha-se sempre sobre
vários textos, conscientemente ou não, já que as operações na matéria significante são, por
definição, intertextuais”.
No entanto, a noção de heterogeneidade enunciativa no âmbito desta tese abarca ainda
aqueles modos de dizer em que frequentemente se ausenta o caráter natural e espontâneo da
produção dos enunciados, isto é, em que a enunciação se apresenta obliterada não
propriamente por elementos reportados de outros discursos, mas pela constante sombra
heterogênea do outro, que, em essência, é sempre imagem de discursos, constituídos de vozes
ou abafados por silêncios. Conforme Maingueneau (1996, p. 19), “o trabalho de antecipação,
o recurso a estratégias sutis destinadas a controlar, a condicionar o processo interpretativo não
são uma dimensão acessória, mas constitutiva do discurso”. Trata-se, sobretudo, das
estratégias metaenunciativas estudadas no capítulo 4 deste trabalho, sob a denominação de
modalização autonímica.
Quanto ao objetivo geral deste trabalho, este consiste, sobretudo, na proposta de se
conceber a inextricabilidade entre os princípios gerais da heterogeneidade e da
performatividade, que, na nossa acepção, permeia toda e qualquer manifestação linguístico-
discursiva. No que concerne ao motivo que direcionou a escolha dessa tese, podemos
visualizá-lo, principalmente, enquanto fruto da observação de que uma concepção polifônica
da enunciação (DUCROT, 1987) teoricamente isolada, isto é, em absoluto, não abarca por
completo, no plano do sentido, a complexa essência da instância enunciativa da linguagem.
Isto porque a natureza dialógica (BAKHTIN, 1992) da enunciação, concebida simples e
13
pragmaticamente como produção de enunciados, não parece ter sido focalizada ainda para
além de um plano descritivista, permanecendo estudada apenas num nível de concepção
próprio da polifonia pela polifonia, do dialogismo pelo dialogismo, da intertextualidade pela
intertextualidade, do interdiscurso pelo interdiscurso. Neste trabalho, insistimos que o caráter
heterogêneo da enunciação carece de uma apreensão metodológica que o situe no plano geral
da performatividade inerente a todo ato de discurso humano. Daí a necessidade de formulação
de um quadro de referência teórico que investigue o viés performativo da heterogeneidade
enunciativa do discurso. Sem dúvida, a questão da polifonia enquanto fonte de elaboração de
discurso próprio com fim de interpelação ideológica, no sentido lato do termo, ou seja, de
persuasão do outro, já foi contemplada teoricamente nos estudos do caráter argumentativo da
linguagem, especificamente na abordagem das formas de argumentação por autoridade, que
Ducrot (1987) distingue em autoridade polifônica e arrazoado por autoridade.
No entanto, não se trata aqui de conceber o caráter inextricável entre heterogeneidade
e performatividade a partir de uma quantidade mais ou menos previsível de estruturas
discursivas específicas, mas de toda e qualquer manifestação discursiva concreta. De outro
lado, cumpre sinalizarmos que, no caso, não reduzimos nossa apreensão do fenômeno
apontado a uma intenção cristalizada do locutor citante de agir teleológica e conscientemente
sobre o outro, concedendo precedência ao componente pragmático constitutivo do
acontecimento enunciativo. Conscientes da dificuldade de articular propriedades discursivas
oriundas do âmbito de teorias de direções díspares e até certo ponto antagônicas como,
respectivamente, a análise do discurso (Authier-Revuz) e a teoria dos atos de fala (Austin),
procuramos não ceder à tentação das interpretações (soluções) autômatas, isto é, elegendo
invariavelmente como ponto de partida as intenções e estratégias discursivas do sujeito-
locutor da pragmática.
Relativamente ao objetivo específico desta tese, tencionamos empreender um
satisfatório quadro descritivo sobretudo dos principais modos de acomodação sintático-
semântica e discursiva das vozes do outro na macroestrutura heterogênea do discurso. Para
tanto, procuramos transcender o plano da gramática tradicional, que reduz a questão a uma
tipologia rígida e reducionista, concebendo a totalidade do fenômeno da heterogeneidade
enunciativa tripartida nas modalidades dos discursos (estilos) direto, indireto e indireto livre.
Corresponde tal inconsistência metodológica, entretanto, a uma atitude verificada também no
âmbito de outras línguas, como apontam, por exemplo, Maingueneau (1987) e Authier-Revuz
(1998), referindo-se aos compêndios de gramática tradicional da língua francesa. No âmbito
deste trabalho, a proposta de descrição das marcas linguísticas de um discurso outro no
14
discurso privilegia a análise de “formas marcadas que vão das mais explícitas às mais
implícitas, das mais simples às mais complexas” (BRANDÃO, 2002, p. 50). Conscientes da
complexidade e sutileza que permeiam a essência heterogênea do discurso – na nossa
concepção focalizada “funcionalmente” em seu caráter inextricável quanto ao postulado da
performatividade da linguagem – preocupamo-nos concomitantemente em situar o fenômeno
da discursividade/textualidade relacionado sobretudo aos fatos linguísticos da enunciação.
Em relação ao corpus escolhido por nós para análise e descrição dos fatos linguístico-
discursivos referentes ao tema(s) proposto(s) nesta tese, a saber, os romances Esaú e Jacó
(1904) e Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis, cumpre considerar de antemão a
quantidade e qualidade significativas de sua matéria textual disponível aos nossos propósitos.
Em relação ao primeiro romance, podemos constatar, no que diz respeito ao postulado da
heterogeneidade enunciativa, que esta se manifesta ainda no seu título (Esaú e Jacó), em
alusão a duas personagens homônimas presentes no Gênesis, livro inicial da Bíblia. Além
disso, são muitas as citações e alusões eruditas presentes no corpo da narrativa – de Homero a
Goethe, como os gregos Ésquilo e Xenofonte, Camões, Dante e Shakespeare. Quanto ao
Memorial de Aires, além do próprio caráter rememorativo do narrador pseudoautor em
primeira pessoa ficcional – o que por si só já reveste seu discurso narrativo de certa
heterogeneidade enunciativa – a própria estrutura de diário da obra salta aos olhos como
manifestação de uma intertextualidade de forma/conteúdo (KOCH, 1998) entre os gêneros
discursivos (diário/romance). Por outro lado, tanto no Esaú e Jacó quanto no Memorial, esse
narrador pseudoautor mescla constantemente fatos narrados e reflexões não só sobre a
problemática filosófica do tempo como também sobre as razões em torno do tempo de sua
ocupação com a prática da escrita/narração dos romances. E essa suspensão (técnica) no curso
da narrativa, por sua vez, também concorre para a possibilidade de instalação no texto, através
da voz do narrador, de todo o conjunto de vozes já referido acima: citações principalmente de
outros autores e obras, máximas, provérbios e expressões cristalizadas extraídos da cultura e
da sabedoria popular, entre outros elementos polifônicos. Em suma, corresponde esse
narrador machadiano, sobretudo, a um narrador/enunciador glosador de suas próprias
palavras (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 29), ou seja, o enunciador que “as comenta ao mesmo
tempo que as enuncia, através da laçada reflexiva de um dizer que se volta explicitamente
sobre si mesmo”. Mas não só sobre as próprias palavras recai esse gesto metaenunciativo do
narrador machadiano em questão; como observa Soares (1968, p. 1), configuram-se também
considerações sobre o próprio enredo do romance, a razão de ser de certos capítulos e sua
distribuição no livro. No dizer da autora, “esta narrativa comporta, pois, a linguagem em
15
análise, como uma de suas dimensões”. Por fim, Esaú e Jacó e Memorial de Aires justificam-
se ainda como corpus para o estudo da heterogeneidade enunciativa do discurso devido à
própria personalidade do narrador-personagem Aires, considerado geralmente uma espécie de
alter ego do escritor Machado de Assis. Este, como sabemos, variou sua atividade literária em
diversos gêneros: a crônica, a poesia, o conto, o romance, a crítica, o teatro, assim como
dialogou, conforme Gomes (ASSIS, 1972, p. 8), com diversas influências, principalmente da
“tradição francesa, na linha de Balzac (o das fisiologias), Alphonse Karr, Xavier de Maistre e
outros”. Como observa Gomes (ASSIS, 1972, p. 9), na apresentação desse volume de crônicas
selecionadas, “Machado de Assis atraído desde muito moço pelo cosmopolitismo da cidade,
gostava de praticar o idioma de Racine, que aprendeu ainda menino, utilizando-o
esporadicamente em algumas composições e em suas correspondências”. Ainda segundo
Gomes (ASSIS, 1972, p. 14), “a diversidade de tema e estilo era a tortura de suas
lucubrações”, e os próprios recursos da ironia e do humor, peculiares a Machado, são
associados por ele à “personalidade dubitativa e reservada” do romancista. No entanto, não
tencionamos neste trabalho fundamentar nossa(s) proposta(s) temática(s) na associação ou na
imbricação entre fatos biográficos autorais e os elementos estruturais da matéria ficcional das
obras em questão. Sem dúvida, os atributos de personalidade referidos por Gomes em relação
ao autor também podem ser reconhecidos na personagem do Conselheiro Aires, mas, em
primeiro lugar, é ainda o seu próprio título honorífico que nos remete coerente e
verossimilhantemente ao caráter heterogêneo tanto da personagem quanto da obra:
conselheiro significa também aconselhador, o que dá conselhos, ou seja, simbolicamente a
voz do outro.
Quanto ao plano da performatividade da linguagem, à qual na acepção desta tese a
heterogeneidade enunciativa se associa de forma inextricável, podemo-nos ater também e
ainda na figura, ou melhor, no discurso do conselheiro Aires, em quem a palavra assume nos
romances em tela a condição de uma espécie de instrumento de ação (no sentido amplo do
termo) sobre as pessoas do seu relacionamento, ou seja, a palavra (discurso) de Aires
corresponde a sua real identidade na visão das outras personagens dos romances e do leitor.
Mesmo quando se desdobra em narrador onisciente de 3ª de pessoa (como em Esaú e Jacó),
para revestir de objetividade e isenção de ânimo a observação e a autoimagem, tão ao gosto
do realismo, a relação de Aires com as palavras ainda se apresenta repassada de uma espécie
de cuidado e afeição próprios de quem manuseia um instrumento através do qual se executam
ações cruciais, tanto para a sua quanto para a existência daqueles com quem convive. E, por
extensão, para a existência dos leitores dos romances em questão.
16
No que tange à questão do interesse e da relevância da proposta desta tese, podemos
apreendê-los, sobretudo, na tentativa empreendida de forjar uma concepção de leitura de dois
textos “machadianos” que intenta valorizar, em plano analítico, os avanços teóricos
alcançados pelos estudos enunciativos da linguagem, no âmbito da linguística contemporânea.
Trata-se, em outros termos, de uma proposta de abordagem das obras em questão a partir de
sua base textual, ou seja, das marcas linguísticas de sua própria enunciação. Como observa
Maingueneau (1996, p. 5), “a noção de ‘situação de comunicação’ não apresenta uma face
igualmente evidente quando se trata de textos literários [...], mas a enunciação literária,
precisamente por ser enunciação, não escapa à regra comum”.
O interesse e a relevância da proposta de leitura desta pesquisa consistem, finalmente,
numa atitude nova “de concepção do fato literário, a de um ato de comunicação no qual o dito
e o dizer, o texto e o contexto são indissociáveis” (MAINGUENEAU, 2001b, prefácio do
autor).
No que concerne à questão da metodologia, enquadraríamos a linha teórica central que
direciona o desenvolvimento desta tese – resguardando-se suas particularidades de concepção
própria dos fenômenos de linguagem abordados – no âmbito da análise do discurso de
orientação francesa.
No entanto, a proposta deste trabalho estabelece intenso diálogo com as diversas
tendências da linguistica moderna que concebem o discurso como objeto central de seus
estudos, a exemplo, dentre outras, da teoria do texto e da semântica argumentativa.
No que tange às partes do desenvolvimento desta tese, reservamos o capítulo I para,
ainda que com relativa brevidade, debruçarmo-nos de forma reflexiva sobre a natureza
sistêmico-estrutural da língua. E, para tanto, procuramos ouvir a voz de três linguistas que
inegavelmente revolucionaram no século passado os estudos da linguagem: Ferdinand de
Saussure, Louis Hjelmeslev e Noam Chomsky. Acreditamos que o arcabouço teórico da
atualidade observado no campo da linguística é, em larga medida, tributário do pensamento
desses autores. O lado social da linguagem em Saussure, a glossemática de Hjelmeslev, a
competência e a criatividade do falante em Chomsky, correspondem todos de certa forma a
alguns dos gérmenes das teorias enunciativas hodiernas.
No capítulo 2, procuramos refletir sobre a instância linguístico-discursiva da
enunciação, isto é, aquele “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização”, como a define Benveniste (1989, p. 82). Dessa forma, partimos do exame
distintivo dos conceitos de texto e discurso, enunciado e enunciação, dêixis e anáfora,
debreagem e embreagem, pressupostos e subentendidos, assim como nos atemos nas questões
17
da subjetividade e na teoria do contrato de comunicação de Charaudeau. Trata-se, do nosso
ponto de vista, de reflexões sobre conceitos e fenômenos de linguagem imprescindíveis
sobretudo para a abordagem da heterogeneidade enunciativa do discurso proposta neste
trabalho.
Tencionando forjar uma visão performativa global da linguagem, refletimos
inicialmente, no capítulo 3, sobre a gênese no Ocidente dos estudos enunciativos atuais, ou
seja, os primórdios da retórica na Antiguidade (Aristóteles, 1998), aportando por fim nos
trabalhos de Perelman (1999; 2000) que, após um longo intervalo na história das ideias,
promovem o seu ressurgimento, visando à síntese entre os principais elementos retóricos
aristotélicos e uma visão renovada sobre o assunto. Em seguida, consideramos algumas
reflexões da filosofia da linguagem, encerrando o capítulo com as questões da pragmática: os
atos e os macroatos de linguagem, as leis do discurso, a polidez, o ethos e a autoridade
polifônica (DUCROT, 1987).
No capítulo 4, por fim, abrimos nossa análise da heterogeneidade enunciativa com a
reflexão inicial sobre a história e os procedimentos de leitura/interpretação da análise do
discurso de orientação francesa. Na sequência, debruçamos sobre a questão dos gêneros do
discurso, seguida da apreciação reflexiva dos conceitos-pares de dialogismo e polifonia,
intertexto e interdiscurso, isto é, pontos teóricos nevrálgicos do tema abordado no capítulo.
Posteriormente, lançamo-nos no trabalho de descrição das diversas estruturas linguísticas
representativas dos discursos outros no discurso, a saber, a modalização autonímica
(constituindo o trabalho de Maria Nazaré Lins Soares – Machado de Assis e a Análise da
Expressão – um verdadeiro precursor em vernáculo da abordagem do tema, ainda que no
âmbito dos estudos estilísticos), as nominalizações, a negação, os enunciados conclusivos, os
conectores e expressões e as modalidades do discurso reportado, este abarcando desde o
exame dos tradicionais tipos (estilos) de discurso (direto, indireto, indireto livre), com suas
respectivas variações formais híbridas, até a abordagem da enunciação dos provérbios e
slogans, dos fenômenos da alusão, da captação e subversão e finalmente da ironia, sempre
com o fito em lhes extrair os concernentes efeitos de sentido, sobretudo no contexto dos
romances machadianos para tanto escolhidos. No âmbito do estudo do discurso reportado
neste trabalho, além da contribuição de Joaquim Mattoso Câmara Jr., em Ensaios
Machadianos, apoiamos nossas análises com significativo proveito na obra de Graciela Reys,
Polifonia Textual: la citación en el relato literario, de 1984, valiosa contribuição no plano da
reflexão sobre a linguagem literária e a expressão das estruturas acomodadoras de vozes e
discursos outros no discurso.
18
1 A LÍNGUA
Entendemos, naturalmente, que os princípios da linguagem (e não só os da
performatividade e heterogeneidade aqui abordados) inscrevem-se de alguma forma (explícita
ou implícita) no sistema da língua, isto é, acreditamos que é na língua e pela língua que os
fenômenos discursivos em geral se manifestam. A propósito da questão, examinemos
brevemente a posição de Possenti (2004, p. 361), no que tange especificamente ao lugar da
análise do discurso (AD) da década de 70 do século XX: “[...] não é verdade que a AD seja
antilinguística. Pelo contrário: não há AD sem linguística. Ela apenas coloca a língua em seu
lugar, ou seja, reconhece sua especificidade, mas lhe limita o domínio”. Dessa forma,
esperamos justificar o lugar deste capítulo, no interior desta tese, independentemente de sua
área de concentração em língua portuguesa e da importância do pensamento revolucionário
dos linguistas focalizados, como já mencionado, para a compreensão da complexidade dos
estudos atuais da lingua(gem).
Quanto à abordagem do pensamento dos autores, reservamos determinada economia
para a linguística de Chomsky, em virtude da nossa intenção, em face do dinamismo das suas
recorrentes autorreformulações, de nos determos apenas na base do seu edifício teórico,
limitação, entretanto, que esperamos atender aos objetivos deste capítulo e deste trabalho.
1.1 A língua de Saussure
A publicação em 1916 do Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure
corresponde ao marco inicial da linguistica moderna. Organizado postumamente (Saussure
morre em 1913) por Charles Bally e Albert Sechehaye, dois destacados discípulos do mestre
genebrino, e com a colaboração de Albert Riedlinger, outro de seus discípulos, o livro
constitui-se da síntese de anotações compiladas de seus alunos na Universidade de Genebra
entre os anos de 1907 e 1911. É a partir do aparecimento do Curso que a linguística define a
língua (= sistema de signos verbais) como o seu único e genuíno objeto de estudo, elevando-
se de fato ao estatuto de ciência autônoma, desvinculada sobretudo da filologia, o que, para
Lopes (1975, p. 73), no entanto, não implica que a linguística saussuriana seja antifilológica.
Conforme o próprio Saussure (1989, p. 11)
1
, “os estudos românicos, inaugurados por Diez –
sua Gramática das Línguas Românicas data de 1836-1838 – contribuíram particularmente
para aproximar a Linguística do seu verdadeiro objeto”.
1
Como todas as citações de Saussure neste capítulo referem-se apenas ao Curso, queremos propor apenas o
emprego da numeração das páginas em que ocorrem as referências.
19
Ao definir a língua, o sistema, como objeto da linguística, Saussure (p. 16) visa a
evitar que este se nos configure como “um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem
liame entre si”, previsível consequência de um estudo da linguagem sob vários pontos de vista
simultaneamente. Procedendo assim, acaba-se por abrigar várias ciências (psicologia,
antropologia, gramática normativa, filologia, etc.) no âmbito dos estudos linguísticos. Para ele
(p. 16-7), a solução é “colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma
de todas as outras manifestações da linguagem”. Na visão saussuriana, “entre tantas
dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto
de apoio satisfatório para o espírito” (p. 17).
1.1.1 Língua versus fala
Refere-se muito comumente pelo termo dicotomias às distinções conceituais
linguísticas realizadas por Saussure, embora essa denominação não apareça nenhuma única
vez no Curso. A mais fundamental dessas dicotomias na doutrina saussuriana talvez consista
na oposição entre língua e fala, intimamente associada ao estabelecimento do objeto da
linguística. Trata-se, em essência, da concepção de duas partes solidárias inerentes ao
fenômeno da linguagem humana: uma social constituída pela língua e outra individual
manifestada pela fala, concebida como ato psicofísico representativo de vontade e inteligência
do falante.
Para Saussure, a língua corresponde a “um tesouro depositado pela prática da fala em
todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe
virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente nos cérebros dum conjunto de indivíduos”
(p. 21). Podemos dizer que semelhante compreensão do conceito de língua perpassa o
discurso do narrador nos enunciados (1) e (2):
(1) Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta
data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: “Vai
vassouras! Vai espanadores!” Costumo ouvi-lo outras manhãs, mas desta vez trouxe-me
à memória o dia do desembarque, quando cheguei aposentado à minha terra, ao meu
Catete, à minha língua. (MA, p. 1.095).
(2) Quero dizer que, cansado de ouvir e de falar a língua francesa, achei vida nova e original
na minha língua, e já agora quero morrer com ela na boca e nas orelhas”
(MA, p.
1.180).
20
Constituindo a língua a parte social da linguagem, não é dado ao indivíduo por si só
modificá-la; justifica-se sua existência no interior de uma comunidade em nome de uma
espécie de contrato firmado entre seus membros. Como fundamento da pertinência da
distinção entre língua e fala, Saussure argumenta que “a língua, distinta da fala, é um objeto
que se pode estudar separadamente. Não falamos mais as línguas mortas, mas podemos muito
bem assimilar-lhes o organismo linguístico” (p. 22), como na fala da personagem no
enunciado (3), que finaliza com uma sentença latina:
(3) – Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do
Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por ora. Diga-lhes que
eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla. (EJ, p. 967).
No entanto, cumpre observar que, a despeito da distinção no Curso entre as instâncias
da língua e da fala, Saussure (p. 27) considera sua interdependência o principal fator para suas
respectivas realizações históricas pelos falantes das diferentes comunidades linguísticas, ou
seja, “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas
esta é necessária para que a língua se estabeleça”. Lyons (1979, p. 18), entretanto, lembra que
“não se pode falar sem usar a língua (isto é, sem falar uma determinada língua), mas é
possível usar a língua sem falar”. Tal fato de língua e linguagem talvez possa ser ilustrado
com a fala da personagem no enunciado (4), que remete à mesma sentença latina presente em
(3):
(4) – Perdoa, amiguinha; estava tão ansioso de saber a verdade... E nota que eu creio na
cabocla, e o doutor também; ele até escreveu isto em latim, concluiu tirando e lendo o
papelinho: Teste David cum Sibylla.
(EJ, p. 967).
Quanto ao plano histórico, afirma Saussure (p. 28) que a precedência pertence sempre
à fala. Para ele, a separação da língua e da fala corresponde a uma “primeira bifurcação que se
encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem”. Deparamo-nos, dessa forma,
com a necessidade de “escolher entre dois caminhos impossíveis de trilhar ao mesmo tempo;
devem ser seguidos separadamente” (p. 28), o que justificaria consequentemente a existência
de uma “Linguística da fala”, ao lado da “Linguística propriamente dita, aquela cujo objeto é
a língua”.
21
1.1.2 A arbitrariedade do signo linguístico
A arbitrariedade do signo linguístico corresponde talvez ao princípio central na
doutrina saussuriana. Declarar essa arbitrariedade consiste essencialmente em conceber a
ausência de qualquer laço natural entre o conceito e sua representação enquanto faces
constitutivas do signo verbal, que “une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica” (p. 80); imagem essa que, para Saussure, não se resume ao “som material”,
mas consiste na “impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o
testemunho de nossos sentidos” (p. 80). E justamente em virtude desse fato, Saussure (p. 80)
considera que “esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro”.
Acreditamos que a natureza da advertência do narrador ao leitor em relação ao emprego do
substantivo azul no enunciado (5) possa ilustrar tal caráter arbritrário do signo:
(5) Não leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje.
Chegou assim aos quarenta anos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de cor.
Uma vez que lhe não atribuas ao azul da alma nenhuma significação romântica, estás na
conta.
(EJ, p. 971).
De modo semelhante, supomos que a mesma propriedade do signo linguístico pode ser
apreendida no enunciado (6), em que o narrador negocia junto ao leitor uma convenção para o
significado que pretende expressar com o emprego dos substantivos desejo, esperança e
saudade:
(6) Não ponho aqui o sorriso porque foi uma mistura de desejo, de esperança e de saudade, e
eu não sei descrever nem pintar. Mas foi, foi isso mesmo que aí digo, se as três palavras
podem dar ideia da mistura, ou se a mistura não era ainda maior.
(MA, p. 1.162).
Por outro lado, a natureza psíquica do signo pode ser comprovada ainda através da
observação da nossa própria linguagem. Temos a possibilidade de, embora com os lábios e a
língua imóveis, mentalmente falar com nós mesmos ou nos recitar um poema. Dessa
propriedade da linguagem natural vale-se o narrador-personagem Aires no enunciado (7), em
que delibera seus próprios pensamentos consigo mesmo:
(7) Aires amigo, confessa que ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou
qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias
algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes; não podes. Logo depois
entraste em ti mesmo, e viste que nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos, se
ambos a quiserem ter juntos. A questão é querê-lo, e ela parece que o não quer.
(MA, p.
1.171).
22
Adiante, por questão de rigor terminológico, Saussure propõe a substituição dos
termos conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante, haja vista a
vantagem que estes apresentam de assinalar a oposição que os distingue, quer enquanto partes
(faces) do signo, quer em relação à totalidade deste mesmo signo de que constituem partes.
No uso corrente, para ele, o termo signo suscita geralmente a designação exclusiva da imagem
acústica. Nas suas palavras (p. 81), “esquece-se que se chamamos a arbor signo, é somente
porque exprime o conceito ‘árvore’, de tal maneira que a ideia da parte sensorial implica a do
total”. Dessa forma, concebemos o signo agora como “o total resultante da associação de um
significante com um significado” (p. 81).
Como prova irrefutável da arbitrariedade do signo, Saussure aponta as diferenças de
significantes para a expressão de um mesmo significado (conceito) entre as línguas e a própria
existência de línguas naturais distintas. A título de ilustração de tais diferenças, podemos nos
valer do enunciado (8):
(8) O que se deve crer é que Deus é Deus; e se alguma rapariga árabe me estiver lendo,
ponha-lhe Alá. Todas as línguas vão dar no céu.
(EJ, p. 981).
E mesmo no âmbito particular de uma comunidade linguística, uma sequência
significante de sons, representativa de certa ideia ou conceito, presta-se, em caráter
convencional, perfeitamente à substituição por qualquer outra sequência – eis a verdadeira
base do arbitrário proposto pelo princípio saussuriano. Considerando ainda a propósito a
necessidade de uma observação, ressalva que aqui arbitrário significa imotivado, “isto é,
arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade”
(p. 83), o que podemos de certo modo constatar no enunciado (9) em relação ao emprego do
adjetivo mordido, e em (10) à oposição entre os substantivos reumatismo e nevralgia:
(9) No meu tempo de rapaz dizia-se mordido; era mais enérgico, mas menos gracioso, e não
tinha a espiritualidade da outra expressão, que é clássica.
(MA, p. 1.166).
(10) Há duas diferenças. A primeira é que nela o mal é puro e confessado reumatismo. Em
mim também, mas o meu criado José chama-lhe nevralgia, ou por mais elegante ou por
menos doloroso: é um dos modos de amar o patrão. (MA, p. 1.153).
Visando à salvaguarda da integridade do princípio, Saussure se adianta a duas
objeções possíveis de serem manifestadas: a existência das onomatopeias e a particularidade
expressiva das exclamações, estas consideradas bastante próximas daquelas.
23
Quanto às onomatopeias, cuja escolha do significante, para o contraditor, nem sempre
corresponderia a uma arbitrariedade, Saussure argumenta que “elas não são jamais elementos
orgânicos de um sistema linguístico” (p. 83), além do fato de seu número ser bem menos
significativo do que geralmente se concebe.
Para Saussure, mesmo as onomatopeias listadas como autênticas (por exemplo, glu-
glu, tic-tac, etc.) somam número irrelevante, e “sua escolha é já, em certa medida, arbitrária,
pois que não passam de imitação aproximativa e já meio convencional de certos ruídos” (p.
83), sem correspondência de significante sonoro e/ou gráfico entre as línguas. No mais,
ressalta ainda que, com passar a tomar parte no sistema da língua, elas contraem para si a
mesma natureza evolutiva inerente às outras palavras.
Quanto às exclamações, Saussure considera a pertinência das mesmas observações
realizadas em relação às onomatopeias, apesar da inclinação a se concebê-las geralmente
como “expressões espontâneas da realidade, como que ditadas pela natureza” (p.83), ou seja,
como manifestações de sentimentos e emoções do enunciador sinalizados diretamente numa
situação interlocutiva. Negando para a maioria delas a existência de qualquer motivação entre
significante e significado, Saussure novamente recorre às variações entre as línguas para
afirmar o seu ponto de vista.
Diante de todo o exposto, conclui que as onomatopeias e as exclamações apresentam
importância menor quanto à questão da arbitrariedade do signo, assim como sua natureza
simbólica se revela em parte suscetível de contestação.
1.1.3
Arbitrário absoluto versus arbitrário relativo
Saussure (p. 152) distingue na língua, contudo, “o que é radicalmente arbitrário, vale
dizer, imotivado, daquilo que só o é relativamente”. Podemos frequentemente isolar e
reconhecer partes (segmentos) dos signos em que arbitrariedade bem dizer se atenua em prol
de uma relativa motivação. No dizer de Saussure (p. 152), “o signo pode ser relativamente
motivado”. Exemplifica esse fato da língua principalmente o processo da derivação, em que se
engendram novas palavras a partir de outras, elas mesmas mais ou menos suscetíveis de serem
articuladas em unidades menores. Saussure retornará à questão, quando tratar do fenômeno da
analogia enquanto princípio das criações da língua (p. 192). Nos enunciados (11) e (12), os
substantivos finura e giro, derivados respectivamente do adjetivo fino e do verbo girar,
exemplificam-nos a questão do arbitrário relativo do signo.
24
(11) Rita não tem cultura, mas tem finura, e naquela ocasião tinha principalmente fome.
(MA, p. 1.097).
(12) Fomos almoçar; às duas horas Rita voltou para Andaraí, eu vim escrever isto e vou dar
um giro pela cidade.
(MA, p. 1.097).
1.1.4 A linearidade do significante
A natureza sonora do significante condiciona-o inexoravelmente à dimensão do
tempo, ao qual ele toma suas características essenciais: “a) representa uma extensão, e b) essa
extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha” (p. 84).
Para Saussure, é possível que se tenha sempre omitido a proposição desse princípio
devido sua demasiada simplicidade, a despeito da sua imensurável importância para a
compreensão da linguagem verbal. No dizer de Saussure (p.84), “todo o mecanismo da língua
depende dele”.
De natureza oposta a dos significantes visuais (como, por exemplo, os sinais
marítimos, que se efetivam concreta e simultaneamente em várias dimensões), os significantes
sonoros supõem apenas a linha do tempo como suporte para sua materialização semiótica.
1.1.5 Sincronia versus diacronia
Os termos sincronia e diacronia configuram mais uma das dicotomias atribuídas à
doutrina saussuriana. Com eles, Saussure (p. 96) pretende designar “respectivamente um
estado de língua e uma fase de evolução”, e não propriamente fatos da língua. Conforme
esclarece Ducrot (DUCROT; TODOROV, 1998, p. 137-8), “como todo fenômeno da língua
está sempre ligado a fatores históricos, os adjetivos ‘sincrônico’ e ‘diacrônico’ qualificam
menos os próprios fenômenos do que o ponto de vista adotado pelo linguista”. Daí Saussure
(p. 96) distinguir duas linguísticas: a sincrônica e a diacrônica; esta relacionada com “tudo
que diz respeito às evoluções”; aquela, com fenômenos pertencentes a “um único e mesmo
momento de uma única língua (= a um único ESTADO)” (DUCROT; TODOROV, p. 137).
Na base da moderna ciência linguística saussuriana, no entanto, o estudo sincrônico
ocupa posição primacial em relação ao diacrônico. Para Saussure (p. 102), “a língua é um
sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade
sincrônica”. Observemos, ainda, mais estas suas palavras, que parecem corroborar a primazia
dispensada por ele à sincronia, no plano dos estudos linguísticos:
25
A primeira coisa que surpreende quando se estudam os fatos da língua é que, para o indivíduo
falante, a sucessão deles no tempo não existe: ele se acha diante de um estado. Também o
linguista que queira compreender esse estado deve fazer tabula rasa de tudo quanto produziu e
ignorar a sincronia. Ele só pode penetrar na consciência dos indivíduos que falam suprimindo
o passado
(p. 97).
Dessa forma, Saussure propõe a independência recíproca na língua entre os
acontecimentos diacrônicos e os estados sincrônicos. Para fundamentar esse postulado,
considera a comparação entre o jogo da língua e uma partida de xadrez a mais demonstrativa
das ilustrações possíveis. Isto, entre outras razões, porque, assim como nos inserindo
fortuitamente na situação de expectadores de uma partida de xadrez, podemos talvez de
imediato compreender o estado do jogo em andamento, independentemente de termos
presenciado os lances antecedentes, também o falante situado num determinado estado de
língua pode operar natural e competentemente sobre as unidades e combinatórias estruturais
desta, a despeito de desconhecer a história das suas mudanças (evoluções).
1.1.6 Sintagma versus relação associativa
Saussure estabelece ainda a dicotomia entre sintagma e relação associativa
(rebatizada posteriormente de relação paradigmática por Hjelmslev). Como sintagma,
concebe o segmento linguístico composto de pelo menos duas unidades consecutivas.
Conforme suas próprias palavras, “colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor
porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos” (p. 142). Trata-se
obviamente de relações que se apoiam necessariamente no caráter linear da língua. Para
Saussure, o sintagma estabelece no discurso uma relação in praesentia, isto é, “repousa em
dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva” (p. 143). No entanto, adverte
ele que, além de considerarmos a relação entre os elementos constituintes do sintagma, carece
apreendermos também a relação entre o todo e suas diversas partes.
Quanto à relação associativa, esta corresponde essencialmente, na concepção
saussuriana, à operação em que, baseados sobretudo numa combinatória pertinente ao
sistema, evocamos pelo espírito termos ou elementos que nos permitem substituir uma
unidade em determinado ponto do discurso. Saussure distingue duas ordens de associação: 1)
a que tem por foco a significação das unidades; e 2) a que se funda “na simples comunidade
das imagens acústicas” (p. 145), como podemos observar principalmente nos jogos de
palavras (ou simplesmente rimas) característicos de certos gêneros discursivos.
26
1.1.7 O valor linguístico
A noção de valor constitui outro princípio crucial na teoria saussuriana. Visando a
fundamentá-la, Saussure recorre, entre outras analogias, a uma nova comparação da língua
com o jogo de xadrez. Considerando as suas peças por si só, ou seja, “na sua materialidade
pura” (p. 128), estas nada representam, quando abstraídas do contexto real de uma partida.
Em outras palavras, apenas numa legítima situação de jogo elas se tornam, para os jogadores,
elementos reais, concretos e revestidos de valor. Tal condição é que de fato valida, numa
suposta destruição ou extravio de uma das peças (um cavalo, por exemplo), no decorrer do
jogo sua eventual substituição, não só por uma figura idêntica, mas também, uma vez que se
lhe tenha atribuído o mesmo valor, por uma outra forma destituída de qualquer semelhança
com o elemento original. No jogo do funcionamento da língua, realiza-se processo análogo
entre as idéias (significado) e os sons (significante). À força de uma convenção no âmbito de
determinada comunidade linguística, qualquer palavra (nova ou de uso consagrado) revela-se
potencialmente capaz de substituir qualquer outra palavra, isto é, de assumir seu significado.
Dessa forma, podemos constatar que o princípio do valor linguístico repousa
sistematicamente sobre os princípios da identidade e da arbitrariedade do signo linguístico.
Para Saussure, essa associação justifica sua famigerada concepção da língua como “uma
forma, não uma substância” (p. 131), concepção essa que vai se tornar o postulado básico da
teoria linguística estrutural.
Coerente com seu próprio pensamento, Saussure detém-se adiante em distinguir a
noção de valor da de significação, visto que, em plano conceitual, aquele corresponde a um
elemento desta. Para ele, não é “mais que a contraparte da imagem auditiva no interior do
signo” (p. 133), ou seja, que a representação do conceito na mente do falante. Já o valor de
um termo, por sua vez, resulta efetivamente das relações que ele contrai com outros a sua
volta. Como esclarece Saussure, “nem sequer da palavra que significa ‘sol’ se pode fixar
imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor; línguas há em que é
impossível dizer ‘sentar-se ao sol’” (p. 135).
Ainda no plano da diversidade das línguas, Saussure observa que a correspondência de
significação entre termos de uma e outra língua não implica necessariamente a
correspondência de valor entre eles no interior dos respectivos sistemas. Afinal, as línguas não
recortam nem categorizam de maneira idêntica os elementos do real, fato que Saussure (p.
135) ratifica talvez ao ponderar que, “se as palavras estivessem encarregadas de representar os
27
conceitos dados de antemão, cada uma delas teria, de uma língua para outra, correspondentes
exatos para o sentido; mas não ocorre assim”.
1.2 A língua de Hjelmslev
As bases doutrinárias da glossemática, teoria linguística criada por Louis Hjelmslev,
consolidam-se de fato a partir de seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem,
publicado em 1943. No entanto, essa nova teoria já vinha sendo desenvolvida, em parceria
com Uldall, desde 1931, ano em que Hjelmslev funda o Círculo Linguístico de Copenhague.
Conforme o próprio autor (1975, p. 82)
2
, a denominação glossemática comparece desde 1936
nos trabalhos preparatórios da teoria. A escolha do nome de glossemática (do grego glossa =
língua) por seus idealizadores deveu-se, sobretudo, à intenção confessa de ressaltar o caráter
da suposta originalidade das suas concepções, em relação à tradição dos estudos linguísticos
precedentes, assim como “sua independência de princípio em relação à substância
extralinguística” (p.82).
No entanto, Hjelmslev concebe, na esteira de Saussure, que a língua é uma forma,
não uma substância. Dessa afirmação, conforme Lopes (1975, p. 94), “fez o ponto de partida
para construir a sua teoria linguística, conhecida como Glossemática”. Ainda apoiado no
mestre genebrês (p. 141), para quem “a língua é, por assim dizer, uma álgebra que teria
somente termos complexos”, Hjelmslev (1975, p. 81-2) defende a proposta de uma ciência
linguística enquanto uma “álgebra imanente da língua”, ou seja, como uma ciência construída
“sobre bases internas e funcionais, sem admitir dados fonéticos ou fenomenológicos na
ciência da expressão, nem dados ontológicos ou fenomenológicos na ciência do conteúdo”.
Cumpre ressaltar, contudo, que a intenção de Hjelmslev consiste em levar às últimas
consequências, em plano metodológico-científico, essas duas concepções saussurianas
extraídas do Curso.
1.2.1 Teoria da linguagem
Linguagem e ação humanas, para Hjelmslev, constituem planos que se imbricam
inextricavelmente. Conforme suas próprias palavras (p. 1), “para o bem e para o mal, a fala é
2
Como também aqui as citações de Hjelmslev referem-se à mesma obra, queremos propor novamente, do
mesmo modo que o fizemos no item 1.1, apenas o emprego da numeração das páginas em referência.
28
a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade”. Tal
concepção sobre a língua/fala parece-nos sintetizada nos enunciados (13) e (14).
(13) O fato é que ambos sorriram de fé, de aceitação, de agradecimento, sem que achassem
uma palavra ou sílaba com que desmentissem o adequado dos versos. Que ele, o
Conselheiro, depois de os citar em prosa nossa, repetiu-os no próprio texto grego e os
dous gêmeos sentiram-se ainda mais épicos, tão certo é que traduções não valem
originais. (EJ: p. 1.000).
(14) – Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que a nossa língua e a prosa
do nosso tempo.
(EJ: p. 1.000).
Entretanto, Hjelmslev opõe-se, a exemplo de Saussure, a um estudo transcendental da
linguagem, isto é, centrado nos aspectos que dizem respeito ao seu plano exterior. Nesse caso,
os fenômenos físicos, fisiológicos, psicológicos e lógicos enquanto tais não constituem a
própria linguagem, mas sim apenas aspectos a ela exteriores, fragmentários, escolhidos como
objetos de estudo não tanto porque interessam à linguagem quanto porque abrem domínios
aos esta permite chegar
(p. 2).
Daí que, abstraindo os fatos não linguísticos (= exteriores ao sistema), a linguística
deve conceber a linguagem como um todo organizado e independente, isto é, como “uma
estrutura sui generis” (p. 3). Em outras palavras, trata-se da proposta hjelmsleviana de uma
“linguística imanente”. Segundo Hjelmslev, “o estudo da linguagem com seus objetivos
múltiplos e essencialmente transcendentais, tem muitos adeptos. A teoria da linguagem que se
quer exclusivamente imanente, pelo contrário, quase não os tem” (p. 4). A despeito da
distância no tempo, acreditamos que a condição de verdade dessa proposição ainda hoje
corresponde a um estado de coisas atualizado. A propósito dessa constatação, a teoria da
linguagem, como adverte Hjelmslev, não deve ser confundida com filosofia da linguagem.
Esta, para ele, frequentemente abrigou especulações subjetivas, oriundas de pensadores
desprovidos de “um conhecimento suficiente da linguística e da epistemologia” (p. 4). Na sua
visão, as bases de uma teoria da linguagem implicam “esquecer o passado e fazer tabula rasa
de tudo aquilo que nada forneceu de positivo e pudesse ser utilizado” (p. 5). A proposta
hjelmsleviana consiste na necessidade de se buscar uma base de essência da língua situada no
interior do próprio sistema linguístico, e não nos limites de uma realidade extralinguística. A
respeito da utilização da pesquisa linguística anterior, Hjelmslev admite que se apoiará
consideravelmente no seu material, embora ressalve que a reinterpretação deste se faz
necessária para constituir o essencial da teoria da linguagem. Relativamente a resultados
positivos do passado, Hjelmslev julga Saussure o único teórico merecedor de citação.
29
Dessa forma, Hjelmslev considera que a sua proposta teórica caracterizada pela
procura de uma constância estrutural específica da linguagem, isto é, sobre as bases “de um
sistema de premissas exclusivamente formais” (p. 7), promoverá inevitavelmente um choque
com a tradição humanística até então predominante nos estudos linguísticos. Conforme suas
próprias palavras, “esta tradição quer que os fenômenos humanos contrariamente aos
fenômenos da natureza, sejam singulares, individuais, não podendo portanto nem ser
submetidos, como os da natureza, a métodos exatos, nem ser generalizados” (p. 7).
Daí que Hjelmslev vai propor a priori a hipótese de a todo processo corresponder um
sistema suscetível de análise e descrição através de um número restrito de premissas. Trata-se,
em outras palavras, da possibilidade propriamente de se conceber a composição de todo
processo através de elementos recorrentes nas suas diferentes combinações. Para ele, “uma
descrição puramente discursiva tem poucas possibilidades de despertar grande interesse; e
deste modo sempre se sentiu a necessidade de um ponto de vista suplementar e
sistematizador” (p. 9).
Quanto ao objetivo da teoria da linguagem, este consiste em ratificar as teses da
existência de um sistema regente do processo e de determinada constância entre suas
manifestas flutuações, tanto quanto oportunamente “aplicar esse sistema a um objeto que
parece prestar-se a isso de modo particular” (p. 9). Satisfeitas essas condições, e finalmente
consumado o sucesso do empreendimento teórico apresentado, outras ciências humanas, para
Hjelmslev, poderão adotá-lo com semelhantes finalidades.
Quanto a tornar uma teoria a mais simples possível, ele alerta que sua elaboração deve
partir das premissas necessariamente determinadas por seu objeto. E visando à manutenção
fiel do seu objetivo, “ela deve, em suas aplicações, conduzir a resultados conformes aos
‘dados da experiência’, reais ou que assim se presumam” (p. 11). Trata-se de exigências que,
conforme Hjelmslev, dizem respeito ao célebre empirismo, e que ele crê plenamente
satisfeitas na sua proposta teórica, em tudo distinguida das premissas da filosofia da
linguagem. Eis as características de descrição do que Hjelmslev vai denominar de princípio
do empirismo:
A descrição deve ser não contraditória, exaustiva e tão simples quanto possível. A exigência
da não contradição prevalece sobre a da descrição exaustiva, e a exigência da descrição
exaustiva prevalece sobre a exigência de simplicidade
(p. 11).
No entanto, ele adverte que sua asserção do princípio do empirismo não pressupõe a
adoção do método indutivo como procedimento de descrição da teoria da linguagem. Para
30
Hjelmslev (p. 14), “em última análise, o método indutivo entra em conflito com o princípio do
empirismo”, visto que, em se limitando a descrição de flutuações acidentais, ou seja, no
âmbito da estrutura de uma língua, “ele não permite que se realize uma descrição não
contraditória e simples” (p. 14).
Daí considerar o método dedutivo o procedimento de descrição adequado para a teoria
da linguagem, haja vista justamente a proposta do princípio do empirismo de se partir dos
dados reais da experiência, ainda que eles se manifestem apenas no plano da presunção.
Conforme Hjelmslev (p. 14), “esses dados são, para o linguista, o texto em sua totalidade
absoluta e não analisada”, e somente o método da dedução permite abstrair o sistema
subjacente a esse texto, considerando-o como um conjunto de classes hierarquicamente
articuladas em componentes, nos limites de uma análise exaustiva. Segundo o autor, apesar de
se saber o choque que o termo dedução provoca entre os epistemólogos, tal contradição
terminológica revela-se perfeitamente suscetível de superação.
Dessa forma, o método da teoria hjelmsleviana da linguagem caracteriza-se
necessariamente como empírico e dedutivo. Isto porque, na acepção de Hjelmslev, o termo
teoria compreende fundamentos cuja justificação não depende da experiência. Conforme suas
próprias palavras, “em si mesma, ela não implica nenhum postulado de existência” (p. 16).
Por outro lado, o teórico vale-se de sua própria experiência para ratificar a possibilidade de
aplicação das premissas de sua teoria, que normalmente enuncia as mais gerais possíveis,
suscetíveis, assim, de aplicação a um grande número de dados da realidade.
Daí que Hjelmslev, respectivamente em decorrência das características do empirismo
e do procedimento da dedução referentes ao método, vai classificar a teoria da linguagem
como arbitrária e adequada. Para ele, “os dados da experiência nunca podem confirmar ou
contrariar a validade da própria teoria, mas sim, apenas, sua aplicabilidade” (p. 16).
No entanto, ao contrário em relação à teoria, a validade das suas hipóteses (“entre as
quais, as leis”) e dos teoremas destas deduzidos implica necessariamente a sua verificação
(confirmação). Como adverte Hjelmslev, paralelamente ao objetivo de formular empírica e
dedutivamente os seus princípios fundamentais, busca-se não ultrapassar o que “parece
diretamente utilizável para a teoria da linguagem” (p. 16). Embora ele a defina como um
cálculo com base em premissas expressivamente restritas e de maior generalidade possível, a
teoria não só “permite prever possibilidades, mas de algum modo se pronuncia a respeito da
realização destas” (p. 17).
Como observado anteriormente, o texto corresponde à instância que comporta os
dados da experiência de interesse para o linguista, no seu objetivo de reconhecimento e
31
descrição do sistema subjacente a esse texto. As premissas e os instrumentos da teoria em
geral, no entanto, devem se estender a qualquer outro texto, não só a todos os textos de uma
mesma língua, mas “a todos os textos de qualquer outra língua” (p. 20). E mais: não só a
todos os textos existentes em todas as línguas existentes, mas também a “todos os textos
concebíveis ou teoricamente possíveis” (p. 20) nestas e nas línguas por ora desconhecidas ou
ainda por serem realizadas.
1.2.2 Função versus functivos
A análise do texto deve processar-se em conformidade com as exigências do princípio
do empirismo. Para Hjelmslev, “o essencial não é dividir um objeto em partes, mas sim
adaptar a análise de modo que ela seja conforme às dependências mútuas que existem entre
essas partes, permitindo-nos prestar contas dessas dependências de modo satisfatório” (p. 28).
Trata-se, sobretudo, do reconhecimento de que uma totalidade não se constitui simplesmente
da soma de suas partes, mas essencialmente do conjunto das dependências (inter-relações)
entre elas. Como Saussure, Hjelmslev intenta, sempre impelido pela concepção da língua
como forma e não substância, desvendar relacionamentos no interior do sistema.
As dependências recíprocas, em que os dois termos se pressupõem mutuamente, serão, para
nós, interdependências. As dependências unilaterais, em que um dos termos pressupõe o
outro, mas não o contrário, serão chamadas determinações. Finalmente, as dependências mais
frouxas, em que os dois termos estão num relacionamento recíproco sem que um pressuponha
o outro, serão chamadas constelações (p. 29).
No entanto, adiante Hjelmslev observa que a análise não deve ignorar o
relacionamento também existente entre as partes (= termos) e a totalidade (= texto). Este, para
ele, corresponde a uma cadeia, assim como todas as suas partes (proposições, palavras,
sílabas, etc.) correspondem a cadeias, exceto as partes irredutíveis, isto é, não mais suscetíveis
de articulação em parte menores.
Conforme suas próprias palavras, “uma dependência que preenche as condições de
uma análise será denominada função” (p. 39). Daí que se contraem funções não só entre as
classes e seus componentes, mas também mutuamente entre os componentes. No primeiro
caso, a função repousa “entre uma cadeia e suas partes, entre um paradigma e seus membros”;
e no segundo caso, “entre partes e membros” (p. 39).
O termo funtivo, por sua vez, denomina os elementos constituintes de uma função.
Trata-se, conforme Hjelmslev, “de um objeto que tem uma função em relação a outros
32
objetos” (p. 39). No entanto, ele observa que se podem contrair funções entre funções, com
estas se apresentando agora como funtivos. Observemos os enunciados (15) e (16).
(15) O ministério apresentou hoje à câmara o projeto de abolição. (MA, p. 1.115).
(16) D. Cesária disse muitas cousas de fel e de mel [...]. (MA, p. 1.186).
No enunciado (15), constituem funções as relações contraídas entre o termo O
ministério (sujeito) e o verbo apresentou; entre este e o advérbio hoje e o objeto direto o
projeto de abolição; entre o substantivo projeto e o complemento nominal de abolição, e a
cada um dos termos apontados denominamos funtivo. No caso, trata-se de articulação entre
uma cadeia, que corresponde a todo o enunciado (15) e suas partes (= termos). Já no
enunciado (16), as relações contraídas entre os membros dos termos opositores fel (= f-e-l) e
mel (= m-e-l) caracterizam-se por articularem partes irredutíveis a outras menores.
Quanto ao termo grandeza, Hjelmslev reserva-o para denominar os funtivos que não
constituem funções, como no caso dos grupos de sílabas, as sílabas e as partes das sílabas. No
entanto, Hjelmslev pondera que, aproximando-nos de um emprego lógico-matemático do
termo, “poderemos dizer que uma grandeza no interior de um texto ou de um sistema tem
determinadas funções” (p. 39), quer em relação a outras grandezas, quer, evocando o sentido
etimológico do termo, enquanto elemento com seu lugar determinado na cadeia.
Relativamente à oposição constante-variável, denominamos de constante o funtivo
que justifica sua presença como uma condição necessária à presença de outro funtivo com o
qual assume uma função, e de variável o funtivo que, funcionalmente em relação a outro, não
tem sua presença justificada por um fato estrutural obrigatório.
Daí que Hjelmslev denomina de interdependência uma função entre duas constantes;
de determinação a função entre uma constante e uma variável, e de constelação a função
entre duas variáveis.
Adiante, ele prevê casos ainda em que há necessidade de uma designação comum para
mais de uma espécie de função, como a de coesões (= interdependência–determinação), em
que pelo menos um dos funtivos corresponde a uma constante; e de reciprocidades (=
interdependência–constelação), em que cada uma delas apresenta apenas um tipo de funtivo,
respectivamente constantes e variáveis. No caso último das reciprocidades, Hjelmslev
observa que as “duas funções não são orientadas” (p. 41).
Em decorrência desta “orientação” (advinda da natureza diversa dos funtivos), ele
distingue os funtivos de uma determinação (seleção ou especificação): determinada
33
(selecionada ou especificada) – denominação dada à constante; determinante (selecionante ou
especificante) – denominação dada à variável; determinado (selecionado ou especificado) –
denominação dada ao “funtivo cuja presença é condição necessária para a presença do outro
funtivo da determinação” (p. 41); interdependentes (solidários, complementares) –
denominação dada aos funtivos de uma interdependência (solidariedade, complementaridade)
e constelares (combinados, autônomos) – denominação dada aos funtivos de uma constelação
(combinação, autonomia). Por fim, Hjelmslev (p. 41) distingue ainda “os funtivos que
contraem uma reciprocidade” (= recíprocos) dos “que contraem uma coesão” (= coesivos).
Outra distinção, que Hjelmslev considera “essencial para a teoria da linguagem”,
corresponde à existente entre a função “e ... e” (= conjunção) e a função “ou ... ou” (=
disjunção). Trata-se de uma distinção básica para a distinção, por sua vez, entre processo e
sistema. Nas suas próprias palavras, “no processo, no texto, encontra-se um e ... e, uma
conjunção, ou uma coexistência entre os funtivos que dela participam. No sistema, pelo
contrário, existe um ou ... ou, uma disjunção ou uma alternância entre os funtivos que dele
participam” (p. 41-2). Daí Hjelmslev posteriormente concluir que
todos os funtivos da língua entram ao mesmo tempo num processo e num sistema, que eles
contraem ao mesmo tempo a relação de conjunção (ou de coexistência) e a de disjunção (ou
de alternância). A interpretação desses funtivos, em cada caso particular, como sendo
conjuntos ou disjuntos, coexistentes ou alternantes, dependerá do ponto de vista que se adotar,
por escolha (p. 42).
Procurando estabelecer maior rigor na terminologia da teoria da linguagem, em
relação à da linguística tradicional, Hjelmslev propõe ainda a denominação de correlação
para designar a função ou ... ou, e a de relação para a função e ... e. Quanto aos funtivos que
contraem essas funções, propõe respectivamente as denominações de correlatos e relatos.
Podemos observar que os termos fel e mel, extraídos do enunciado (16) acima, exemplificam-
nos, em seu próprio emprego (uso) e oposição que estabelecem entre si, as referidas funções.
1.2.3 Processo versus sistema
Na terminologia da teoria da linguagem para a língua natural falada, como já pudemos
atestar em momentos anteriores, os termos processo e sistema, para Hjelmslev, correspondem
respectivamente, na terminologia linguística tradicional, aos termos texto e língua. Na
abordagem de outros objetos semióticos, por sua vez, ele observa que “encontramos
34
designações cômodas e tradicionais para um processo e um sistema semióticos nos termos
sintagmática e paradigmática” (p. 44).
Para Hjelmslev, entre um processo e o sistema subentendido, há uma determinação em
que a constante corresponde ao sistema. No caso, “o processo determina o sistema” (p. 44).
Na possibilidade de se pensar contrariamente, Hjelmslev considera que a existência de um
sistema constitui uma condição sine qua non para a existência de um processo. Ou seja: “o
processo só existe em virtude do sistema subjacente que o governa e que determina sua
formação possível” (p. 44). Daí que não podemos conceber a existência de um processo
independentemente da de seu correspondente sistema; tratar-se-ia neste caso de um processo
completamente inexplicável. No entanto, a despeito da sua não realização através de um
processo, podemos conceber perfeitamente a existência de um sistema.
Em termos tradicionais, trata-se, de um lado, de declarar a impossibilidade de existir
um texto sem a correspondente base estrutural de uma língua, e, de outro lado, a possibilidade
de existência de uma língua, ainda que não se ratifique a de um texto sequer formalizado
nessa língua.
1.2.4 Signos versus figuras
A concepção tradicional define a linguagem como um sistema de signos. O termo
signo, por sua vez, ainda no âmbito de tal concepção, é concebido como signo de alguma
outra coisa. Esta acepção, conforme Hjelmslev (p. 48), “parece indicar que um ‘signo’ se
define por uma função”. Daí que, “opondo-se a um não signo, um ‘signo’ é portador de uma
significação” (p. 48).
No entanto, Hjelmslev propõe o abandono desta concepção tradicional da linguagem
como um sistema de signos. Em primeiro lugar, considera que uma análise em conformidade
com os princípios de sua teoria “deve analisar conteúdo e expressão separadamente, cada uma
dessas análises isolando finalmente um número limitado de grandezas que não são
necessariamente suscetíveis de serem comparadas com as grandezas do plano oposto” (p. 51).
Consequentemente, chegamos à proposição de inventários de signos e de não signos, estes em
número consideravelmente pequeno; aqueles naturalmente em quantidade ilimitada.
Na terminologia de Hjelmslev (p. 51), “tais não signos que entram como partes de
signos, num sistema de signos, serão denominados figuras”. Estas, ao possibilitar a
construção de um número ilimitado de signos, revelam, conforme Hjelmslev (p. 52), “um
35
traço essencial e fundamental da estrutura da linguagem”, e que coincide com a própria
finalidade desta.
Daí que, voltado para o seu funcionamento interno, ele propõe a descrição das línguas
enquanto sistemas de figuras que possibilitam a formação de signos, negando sua descrição
tradicional como simples sistemas de signos. Valendo-nos ainda dos termos fel e mel do
enunciado (16), dizemos que as consoantes (f-l-m) e a vogal (e) correspondem ao que
Hjelmslev denomina figuras.
1.2.5 Plano do conteúdo versus plano da expressão
Os termos expressão e conteúdo denominam, na terminologia de Hjelmslev, os
funtivos da função que, por sua vez, ele denomina de semiótica. Esta, como toda função,
apresenta solidariedade com esses seus dois funtivos. Conforme Hjelmslev (p. 54), “não
poderá haver função semiótica sem a presença simultânea desses dois funtivos, do mesmo
modo como nem uma expressão e seu conteúdo e nem um conteúdo e sua expressão poderão
existir sem a função semiótica que os une”.
Segundo Hjelmslev, somente por um procedimento artificial podemos isolar um
conteúdo de sua expressão e uma expressão de seu conteúdo.
Se se pensa sem falar, o pensamento não é um conteúdo linguístico e não é o funtivo de uma
função semiótica. Se se fala sem pensar, produzindo séries de sons sem que aquele que ouve
possa atribuir-lhes um contéudo, isso será uma abracadabra e não uma expressão linguística, e
tampouco será o funtivo de uma função semiótica
(p. 54).
Por outro lado, Hjelmslev adverte que a ausência de sentido de uma expressão não deve ser
confundida com a inexistência de um conteúdo dessa expressão.
Retomando em seguida o postulado saussuriano da língua como uma forma, não uma
substância, pondera, a partir desses termos, que “a substância depende exclusivamente da
forma e que não se pode, em sentido algum, atribuir-lhe uma existência independente” (p. 55).
Quanto à questão do sentido na língua, Hjelmslev o concebe como um fator (grandeza)
comum às diferentes línguas, a despeito das suas diferentes cadeias de expressão, com a
palavra sentido significando aqui “o mesmo pensamento que, assim considerado, apresenta-se
provisoriamente como uma massa amorfa, uma grandeza não analisada, definida apenas por
suas funções externas” (p. 56). Dessa forma, o sentido, conforme Hjelmslev, “deve ser
analisado de um modo particular em cada uma dessas línguas, coisa que só podemos
36
compreender do seguinte modo: o sentido é ordenado, articulado, formado de modo diferente
segundo as diferentes línguas” (p. 56). No segundo período do enunciado (17), o comentário
do narrador exemplifica de certa forma as considerações acima.
(17) Por muito que se recuse deixa sempre algum gosto a paixão que a gente inspira. Ouvi isto
a uma senhora, não me lembra em que língua, mas o sentido era este.
(MA, p.
1.122-3).
Para Hjelmslev, o fator responsável por tal diferença nas línguas corresponde à ênfase
dada por cada uma dessas línguas a “valores diferentes numa ordem diferente” (p. 57), no
processo de estabelecimento de suas fronteiras na “massa amorfa e indistinta do pensamento”
(SAUSSURE, 1989: 130). Conforme Hjelmslev, “são apenas as funções da língua, a função
semiótica e aquelas que dela decorrem, que determinam sua forma. O sentido se torna, a cada
vez, substância de uma nova forma e não tem outra existência possível além da de ser
substância de uma forma qualquer” (p. 57).
Daí Hjelmslev conceber que a todo conteúdo linguístico corresponde, tanto no
processo quanto no sistema, uma forma específica, por ele denominada de forma do conteúdo.
Esta, por sua vez, revela-se independente do sentido, com o qual mantém uma relação
arbitrária. Na terminologia hjelmsleviana, o sentido constitui a substância do conteúdo. No
plano da forma do conteúdo, mais uma vez consideramos ilustrativa de tal distinção a
oposição entre os termos fel e mel do enunciado (16), equivalentes respectivamente às
relações “matéria” (líquido) + sabor “amargo” e “matéria” (líquido) + sabor “doce”. Já no
plano da substância do conteúdo, teríamos respectivamente os conceitos fel e mel.
Quanto ao plano da expressão, Hjelmslev igualmente distingue entre forma da
expressão e substância da expressão. No caso, os termos forma e substância correspondem
grosso modo respectivamente a significante e matéria, na terminologia saussuriana. Nas
próprias palavras do mestre genebrino (1989, p. 130), “a substância fônica não é mais fixa,
nem mais rígida; não é um molde a cujas formas o pensamento deve necessariamente
acomodar-se, mas uma matéria plástica que se divide, por sua vez, em partes distintas, para
fornecer os significantes que o pensamento tem necessidade”. Quanto especificamente aos
termos fel e mel do mesmo enunciado (16), as formas de sua expressão corresponderiam
simplesmente aos respectivos membros significantes /fel/ e /mel/, enquanto as substâncias de
sua expressão consistiriam nas próprias letras (grafemas) f-e-l-m e seus respectivos sons
(fones) /f/, /e/, /l/, /m/.
37
1.2.6 Catálise
Hjelmslev prevê a possibilidade de o registro de certas funções determinar, diante da
solidariedade existente entre função e funtivo, a interpolação de “certos funtivos inacessíveis
ao conhecimento por outras vias” (p. 99). Essa interpolação, ele a denomina de catálise.
Daí que, na prática, a catálise torna-se uma condição necessária à realização da
análise. Esta, como observa Hjelmslev, necessita transcender “a base de uma observação
mecânica das grandezas de fato encontradas nos textos” (p. 99). Para ele, há expressões que
exemplificam com perfeição o princípio da economia que rege a realização de toda língua,
incluindo-se nesse caso, com significativa participação, a aposiopese e a abreviação.
No entanto, Hjelmslev adverte que se tenha o cuidado de não introduzir no texto
termos que não contraiam funções com os outros funtivos efetivamente manifestos. Além do
mais, muito frequentemente, o que se introduz por catálise não corresponde a “uma grandeza
particular mas um sincretismo irresolúvel de todas as grandezas que se poderia conceber para
a ‘posição’ considerada na cadeia” (p. 100). Comporta exemplo de catálise o enunciado (18),
em que constatamos a ausência de um predicado relacionado ao termo seguido de reticências.
(18) Natividade não consentiria nunca; depois, um estudante ...
(EJ, p. 1.012).
1.3 A língua de Chomsky
A publicação de Syntactic structures (1957) de Avram Noam Chomsky constitui o
marco da segunda grande revolução dos estudos linguísticos no século XX, a qual se
notabiliza com a denominação de gramática gerativa. Na expressão, o substantivo gramática
apresenta-se como correspondente a teoria (saber, conhecimento), enquanto o adjetivo
gerativa refere-se à ação de gerar (criar), relacionada diretamente com a criatividade do
falante em seu desempenho linguageiro no mundo; criatividade essa que, para Chomsky,
inscrever-se-ia biológica e geneticamente no cérebro, como uma espécie de “órgão mental” de
uma gramática comum aos falantes de todas as línguas do mundo, ou seja, de uma “gramática
universal”, acionável naturalmente a partir do contato de cada indivíduo com os dados de
determinada língua. No enunciado (18), parece-nos que de tal concepção em torno da
linguagem também participa intuitivamente a personagem Aires.
38
(19) – Ah! baronesa, para mim, já não há mundo que valha um bilhete de passagem. Vi tudo
por várias línguas.
(EJ: p. 992).
No plano da aquisição da linguagem, porém, o produto de semelhante interação
corresponderia a “uma língua particular”, selecionada pelo falante como a melhor para ele,
entre as várias línguas particulares possíveis que se lhe apresentam (CHOMSKY, 1994, p. 22-
3). Tal mecanismo de aquisição da linguagem consiste, por sua vez, numa concepção
decalcada reconhecidamente da filosofia de Humboldt (século XVIII). Conforme as próprias
palavras de Chomsky apud Lopes (1975), “Sua teoria da percepção de fala supõe a existência
de um sistema gerativo de regras sotoposto à produção da fala e também à sua interpretação.
O sistema é gerativo no sentido de que faz uso infinito de meios finitos”. O empreendimento
gerativo chomskyano vai se revelar como revolucionário justamente porque seu aparecimento
se dá num contexto linguístico dominado por um estruturalismo ideologicamente pautado na
teoria behaviorista do comportamento, isto é, com base no famigerado esquema estímulo-
resposta, revelador de um empirismo algo estreito e mecanicista. Dessa escola do
estruturalismo norte-americano, denominada distribucionismo, o nome de Leonard
Bloomfield corresponde ao do seu principal representante. Na concepção deste, a língua de
uma comunidade consistia unicamente na soma dos enunciados potenciais dos seus falantes,
ou seja, uma língua particular limitava-se exclusivamente à determinação de um “corpus
representativo”. Segundo Silva (1983, p. 22), “o estruturalismo americano atém-se
rigorosamente ao estudo dos fatos oriundos de um corpus linguístico, em conformidade com
as exigências epistemológicas e heurísticas do método indutivo”.
No entanto, a Chomsky interessa o caráter explícito do distribucionismo, visto que sua
teoria gerativa, inaugurada oficialmente com a publicação de Syntactic strutures,
paralelamente à explicação dos fatos e regras da língua, prioriza teórica e cientificamente
também o método descritivo, tomado ao estruturalismo. Segundo Ducrot,
O Distribucionismo é EXPLÍCITO no sentido de que as descrições de línguas às quais chega
não utilizam, como conceitos elementares (= não definidos), noção alguma cuja compreensão
implique já o conhecimento, seja da língua descrita, seja da linguagem em geral: seu conceito
básico, a noção de meio (determinada unidade, em determinado enunciado, está rodeada por
tais e tais unidades), é compreensível para quem, por uma hipótese absurda, não possuísse
experiência pessoal da fala”
(DUCROT; TODOROV, 1972, p. 47-8).
A concepção científica do distribucionismo, todavia, restringe-se ao trabalho de
descrição de corporas de línguas particulares, renegando sua explanação. Para os seus
seguidores, à ciência competiria exclusivamente a descrição dos fenômenos e uma relativa
39
ordenação de sua aparente desordem; a taxionomia consistiria no papel principal do
pesquisador.
Já na concepção de Chomsky, que, em síntese, propõe-se a fundamentar o caráter
biológico da linguagem humana, a línguística não pode consequentemente se contentar apenas
com a descrição e a classificação, mas deve concomitantemente se lançar na tarefa de
apresentar hipóteses explicativas para o inatismo dessa faculdade linguageira. Nas palavras de
Chomsky (2007, p. 59),
É possível que a teoria da percepção de rostos lembre a gramática gerativa. Como ocorre na
linguagem, se você supuser que há estruturas básicas e estruturas transformadas, pode-se
imaginar um modelo capaz de gerar os rostos humanos possíveis e as transformações que lhe
diriam como parceria cada rosto, visto de todos os ângulos.
A teoria gerativa vai se desenvolver em inúmeras publicações renovadoras da proposta
inicial de Syntactic structures. No entanto, vai se manter invulnerável no tempo a base
biológico-inatista do edifício gerativista, o que, como por um paradoxo, justifica sua própria
suscetibilidade à dinâmica das renovações. Quanto às críticas submetidas às diversas
mudanças operadas na gramática gerativa, em nome da salvaguarda do seu núcleo teórico-
metodológico, eis como o próprio Chomsky (2007, p. 179) se posiciona:
Quando as teorias e os conceitos que nelas aparecem são personalizados, olha-se para ver
“quem” está errado; mas essa não é a maneira correta de pensar. O “quem” pode ter estado
correto no contexto de sua época, errado no contexto de uma teoria mais rica, e talvez venha a
se mostrar correto outra vez. Além disso, não há nada errado em enganar-se. O progresso se
baseia em ideias interessantes que geralmente provam estar erradas – ou incompletas, ou mal-
construídas, ou totalmente erradas (...) Qualquer um que ensine aos cinquenta anos a mesma
coisa que ensinou aos 25 deve procurar outra profissão. Se em 25 anos não aconteceu nada lhe
provando que suas ideias estão erradas, isso quer dizer que você não está em uma área viva,
ou talvez que você faça parte de uma seita religiosa.
Em consequência da concepção de uma criatividade inata, determinante no uso da
língua pelo falante/ouvinte, a linguística chomskyana privilegiará o estudo da sintaxe,
enquanto um sistema de princípios e parâmetros reguladores das combinações das formas
morfofonêmicas da língua. Isto, entretanto, sem descurar da sua correlação também com a
semântica, o que sempre representou de uma forma ou de outra um ponto de discussão e/ou
polêmica no interior ou exterior da teoria gerativa.
40
1.3.1 Competência e performance
Preocupado em imprimir um caráter sobretudo explicativo ao estudo do fenômeno da
linguagem e do conhecimento da língua (natureza, origem e uso), Chomsky desenvolve, em
correlação com a dicotomia língua (langue)/fala (parole) saussuriana, os conceitos de
competência e performance (desempenho), distinguindo-os dos primeiros, basicamente, na
concepção do lugar concedido à criatividade do falante/ouvinte, capaz de, através de uma
quantidade reduzida de unidades sonoras distintas e de um número finito de regras, produzir e
interpretar um número infinito de sentenças (frases).
Trata-se ainda, entretanto, da eleição de um falante/ouvinte ideal, focalizado numa
comunidade linguisticamente homogênea, conservando Chomsky o mesmo procedimento de
exclusão saussuriano em relação aos aspectos periféricos da linguagem, específicos de outras
ciências, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, etc.
Daí que, não obstante a contribuição da revolução chomskyana, no tocante ao plano
da criatividade e desempenho do falante/ouvinte, o objeto da linguística continua sendo a
língua do estruturalismo, tomada no sentido de uma abstração, de um sistema com base em
elementos sonoros, isto é, concretos, observáveis, numa dimensão sincrônica e homogênea.
1.4 – Línguísticas enunciativas
Data da Grécia antiga (em registro ocidental) a inquietação que domina os estudiosos
em face do desafio de penetrar no âmago das questões suscitadas pelos fenômenos da
linguagem, tanto na sua modalidade de expressão oral quanto na escrita. O pensamento
moderno sobre a linguagem, entretanto, configura-se apenas a partir do século XIX, com a
linguística comparativa, cujo marco corresponde ao trabalho de Franz Bopp intitulado Sobre o
sistema de Conjugações do Sânscrito, Grego, Latim, Persa e Línguas Germânicas, de 1816.
Segundo Guimarães (2002, p. 2), “neste momento a linguística se apresenta tomando como
objeto a mudança linguística, motivada por um projeto de poder reconstituir o passado
linguístico das línguas européias e asiáticas”. Trata-se, notadamente, de uma preocupação
central com a busca de uma língua-mãe, reconstruída através da comparação do passado de
unidades formais entre as línguas aparentadas (da mesma família).
Os estudos sobre a linguagem em sua face atual, contudo, inauguram-se, de fato, a
partir do advento da publicação do Curso de Linguística Geral (Ferdinand de Saussure –
1916). Coube a esse genebrino, como já mencionado em 1.1, o mérito de elevar os estudos
41
linguísticos ao estatuto de uma disciplina científica, a partir da delimitação do objeto da
linguística sobre bases palpáveis, materiais (“positivas”), isto é, da língua (langue),
apreendida enquanto sistema (estrutura/forma), em oposição à fala (parole), que, destituída de
um caráter homogêneo, corresponderia ao plano da “linguagem”, constituindo interesse para
outras áreas de estudo, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, etc. Entendamos,
porém, que a redução da linguística por Saussure ao estudo da langue, como pudemos
constatar em 1.1, obedeceu a questões de ordem metodológica. Conforme esclarece
Guimarães (2002, p. 2), “Saussure chega a sua clássica distinção entre língua e fala, como
forma de definir um objeto específico para a linguística, que segundo ele, apresentasse uma
homogeneidade interna, sem o que seria impossível pensar a linguagem”.
Não tarda, porém, a reação a essa concepção da língua que a colocava como único
objeto da linguística, excluindo todos os aspectos periféricos de sua realização histórica num
determinado espaço sociocultural. Já em 1929, Bakhtin (Voloshinov) constrói todo um corpo
de estudo, em que concebe a língua “como algo concreto, fruto da manifestação individual de
cada falante, valorizando dessa forma a fala” (BRANDÃO, 2002, p. 9), ainda que, tal qual
Saussure, partindo também de um princípio de que a língua constitui um fato social. A
direção dos estudos de Bakhtin (1979, p. 99) corresponde à procura de formulação de uma
teoria do enunciado, em que estaria reservado um lugar privilegiado à enunciação na
abordagem dos fatos essenciais da linguagem: “A situação social mais imediata e o meio
social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio
interior, a estrutura da enunciação”.
No dizer de Brandão (2002, p. 59), “do lado dos linguistas, Ducrot apropria-se do
conceito bakhtiniano de polifonia e vai demonstrar como funciona o princípio do dialogismo
no nível do enunciado para chegar a uma concepção enunciativa do sentido”.
A teoria da polifonia de Bakhtin resulta do seu próprio pressuposto de que o locutor
não é um Adão e, por isso, o objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se
encontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa conversação ou numa discussão
sobre qualquer acontecimento da vida corrente) ou ainda as visões do mundo, as tendências,
as teorias etc., na esfera da troca cultural.
Também para Ducrot (1987), na base do estruturalismo em semântica linguística, o
fenômeno da polifonia vai revelar-se como um valor constitutivo.
O advento de uma linguística do texto/discurso resulta de tomada de consciência de
muitos linguistas europeus, especialmente de países como a França, a Alemanha, e a
Inglaterra, quanto à inocuidade do estudo da língua em abstrato, isto é, fora de uma situação
42
real de uso, que configurava o procedimento comum tanto à linguística estrutural de
inspiração saussuriana quanto à gramática gerativa de Noam Chomsky. Registramos, com a
nova orientação dada aos estudos linguísticos, uma valorização “das manifestações
linguísticas produzidas pelos falantes de uma língua em situação, sob determinadas condições
de produção” (VILELA; KOCH, 2001, p. 412).
A eclosão de uma linguística do texto/discurso é tributária da emergência de uma série
de estudos teóricos, entre os quais a teoria da enunciação, a teoria dos atos de fala, a teoria da
atividade verbal e a pragmática conversacional, além da obra fecunda de um Wittgenstein e,
até certo ponto, de um Benveniste.
Conforme Vilela e Koch (2001, p. 426), “atualmente são várias as perspectivas
teóricas que tem como objeto o texto/discurso, tanto no interior como fora da linguística.
Dentre estas, adquiriram maior importância a Análise do Discurso, a Análise da Conversação
e a Linguística Textual”.
Ao delinearmos este breve percurso das perspectivas teóricas emergentes no seio dos
estudos linguísticos modernos, pensamos, com Brandão (2002, p. 68), que o importante é
“verificar como a questão do histórico e, consequentemente, do ideológico se inserem na
questão do linguístico e com isso acarreta perspectivas discursivas diferentes”.
Para concluir este item, consideramos significativo o destaque destas palavras de
Cervoni (1989, p. 13):
as teorias da enunciação estão de acordo em considerar a língua saussuriana, o código
estruturalista e a competência chomskyana como definições do objeto da linguística
excessivamente redutoras, sobretudo em virtude das insuficiências decorrentes na análise do
sentido.
43
2 A ENUNCIAÇÃO
O objetivo deste capítulo consiste em refletir sobre os principais fenômenos e fatos da
língua(gem) associados à instância da enunciação. Como mencionamos no capítulo I,
Bakhtin, já em 1929, combatia a concepção saussuriana da língua como instância abstrata e
idealizada como um sistema sincrônico suscetível de ser isolado para fins de descrição
formal/estrutural. Neste capítulo, procuramos situar o estudo da língua em relação aos falantes
em situações concretas de comunicação, ou seja, importando do contexto extralinguístico
aqueles aspectos periféricos da linguagem relegados pela linguística estrutural ao domínio de
ciências particulares como a psicologia, a sociologia, a história, a etnografia, a antropologia,
etc. Os fenômenos e os conceitos de linguagem apreciados adiante são de fundamental
importância para o estudo dos postulados da performatividade e da heterogeneidade,
abordados respectivamente nos capítulos III e IV.
2.1 Texto e discurso
É plenamente verificável a eclosão de diferentes concepções de texto e discurso, que,
conforme Fávero e Koch (2002, p. 23), “acabaram por criar uma confusão entre os dois
termos, ora empregados como sinônimos, ora usados para designar entidades diferentes”.
Na nossa concepção, a noção de texto evoca sempre uma ideia de totalidade e de
completude, independentemente do cálculo da extensão e do modo (forma) verbal de
manifestação do significante. Segundo Maingueneau (2002, p. 57), “Com efeito, tende-se a
falar de ‘texto’ quando se trata de produções verbais orais ou escritas, estruturadas de forma a
perdurarem, a se repetirem, a circularem longe de seu contexto original”. Daí se falar
costumeira e preferencialmente, por exemplo, de textos literários, textos jurídicos, textos
filosóficos, etc., mas se evitar a classificar como texto seja uma conversa seja um debate.
Trata-se, nesses casos, de textos produzidos às vezes por vários locutores.
Apesar de frequentemente texto e discurso serem concebidos indistintamente como
sinônimos, como acima observado, consideramos significativo estabelecer a distinção entre os
termos, principalmente do ponto de vista da manifestação concreta da língua. Para Azeredo
(2002, p. 39), “o texto é um produto da atividade discursiva”, ou seja, um todo significante
dotado de coerência. No entanto, cumpre ressaltar que, para Sourioux e Lerat (2002, p. 2),
44
A noção de texto não pressupõe de maneira alguma extensão maior ou menor nem tampouco
um caráter de totalidade ou de parte. Ela se aplica tão legitimamente a uma obra integral (por
exemplo, um poema, um documento histórico, uma lei etc.), quanto a excerto, ainda que
muito curto (um verso, uma inscrição, um artigo de lei).
Dessa forma, podemos considerar como um autêntico texto o enunciado (20),
correspondente ao dia 7 de maio de 1988, no diário do conselheiro Aires.
(1) O ministério apresentou hoje à câmara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples.
Dizem que em poucos dias será lei.
(MA: p. 1.115).
Quanto ao discurso, Brandão (2002, p. 11) ressalta que a conscientização quanto ao
caráter heterogêneo constitutivo da linguagem, isto é, ao atravessamento do seu plano formal
por elementos exteriores de natureza subjetiva e social, representa um deslocamento nos
estudos linguísticos centrados na problemática da dicotomia saussuriana entre língua e fala,
determinante de uma linguística da língua. Busca-se, a partir de então, uma apreensão do
fenômeno da linguagem não só no plano da língua, “sistema ideologicamente neutro”, mas
também na instância do discurso, situada fora do domínio da dicotomia langue/parole
(língua/fala) saussuriana.
Como ressalta Azeredo (2002, p. 34), “a prática da comunicação linguística oral ou
escrita constitui o que chamamos de discurso (substantivo derivado do verbo discorrer, que
significa ‘desenvolver um assunto por meio de palavras’)”.
Para Brandão (2002, p. 12), o discurso constitui “o ponto de articulação dos processos
ideológicos e dos fenômenos linguísticos”. Trata-se, conforme Azeredo (2002, p. 34) de “um
acontecimento protagonizado por um enunciador e um ou mais destinatários numa dada
situação, que inclui o momento histórico e o espaço social”.
Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 168) observa que a
noção de discurso evoca “uma série de oposições clássicas”. Entre elas: (1) a oposição
discurso vs frase, em que se o concebe como uma unidade linguística constituída de uma
sucessão de frases; (2) discurso vs língua, em que se a define como sistema de valores virtuais
em oposição ao discurso enquanto “uso da língua em um contexto particular, que filtra esses
valores e pode suscitar-lhes novos”, assim como na oposição em que se concebe a língua
como produto social frente ao uso restrito do seu sistema (o “discurso comunista”, o “discurso
surrealista”, etc), tomando esse emprego em seu caráter ambíguo, visto pressupor as
possibilidades de referir-se tanto à orientação ideológica de produção textual especializada ( o
“discurso comunista”, por exemplo) quanto ao seu conjunto de textos (“comunistas”); (3)
45
discurso vs texto, em que “o discurso é concebido como a inclusão de um texto em seu
contexto (= condições de produção e de recepção)”, ou seja, prevê “estratégias criativas
utilizadas pelo falante para organizar funcionalmente seu texto para um determinado ouvinte
em uma determinada situação comunicativa” (CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003, p. 50);
(4) discurso vs enunciado, posição que, apesar da proximidade da distinção precedente,
“permite opor dois modos de apreensão das unidades transfrásticas: como unidade linguística
(‘enunciado’) e como traço de um ato de comunicação sócio-historicamente determinado”,
conforme Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 169). Essa concepção
concorreu na França para estabelecer um ponto de vista específico sobre a análise do discurso.
Sobre a questão, eis como se manifesta Guespin apud Maingueneau (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p. 169): “Um olhar lançado sobre um texto do ponto de vista de sua
estruturação ‘em língua’ faz dele um enunciado; um estudo linguístico das condições de
produção desse texto fará dele um discurso”.
Segundo Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, p.169), constata-se, a
partir dos anos 80, uma verdadeira proliferação do
termo ‘discurso’ nas ciências da linguagem, tanto no singular (‘o domínio do discurso’, ‘a
análise do discurso’) quanto no plural (‘cada discurso é particular’, ‘os discursos inscrevem-se
em contextos’...), segundo a referência seja à atividade verbal em geral ou a cada evento de
fala),
fato que pode ser identificado como “sintoma de uma modificação no modo de conceber a
linguagem”. Essa modificação revelar-se-ia, em boa medida, tributária da eclosão de uma
diversidade de correntes pragmáticas, comportando considerável número de significativas
“ideias-força”.
Entre estas, destaca Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.
170): (1) a noção de discurso enquanto uma organização transfrástica, ou seja, que “mobiliza
estruturas de uma outra ordem, diferente das da frase”; (2) discurso enquanto orientação, não
só no sentido de propósito (intencionalidade) do locutor, mas também de restrição da
linearidade significante, que prevê o seu desenvolvimento no tempo; (3) discurso enquanto
uma forma de ação, com base na “idéia de que toda enunciação constitui um ato (prometer,
sugerir, afirmar, interrogar...) visando a modificar uma situação”; (4) discurso enquanto
interatividade, cuja manifestação mais evidente é a conversação, “na qual os dois locutores
coordenam suas enunciações, enunciam em função da atitude do outro e percebem
imediatamente o efeito que suas palavras têm sobre o outro”; (5) discurso enquanto instância
46
contextualizada, que prescreve que, “de fato, não existe discurso que não seja
contextualizado: não se pode, de fato, atribuir um sentido a um enunciado fora de contexto”;
(6) discurso enquanto instância assumida, ou seja, “como fonte dos pontos de referências
pessoais, temporais, espaciais”, responsável, ainda, por indicar a atitude adotada pelo locutor
em relação ao que diz e a seu interlocutor (processo de modalização); (7) discurso regido por
normas, com base na sua submissão tanto às normas sociais gerais quanto às leis específicas
do próprio discurso; e (8) discurso enquanto instância assumida em um interdiscurso, que
postula que “para interpretar o menor enunciado, é preciso colocá-lo em relação com todos os
tipos de outros, que se comentam, parodiam, citam”, entre outras formas de
interdiscursividade.
Em face de todo o exposto, concordamos com Maingueneau (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p. 172) que “o discurso não delimita um domínio que possa ser
estudado por uma disciplina coerente. É, antes de mais nada, uma maneira de apreender a
linguagem”.
Entretanto, certos linguístas defendem a autonomia de uma linguística do discurso, em
oposição a uma “linguística da língua”. Ressaltam, contudo, que essa linguística do discurso
não pode se identificar com a disciplina proposta por Saussure (1989, p. 28) como “uma
linguística da fala”.
Como aponta Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 172),
definitivamente, “o desenvolvimento de uma linguística textual, das teorias da enunciação
linguística e de uma semântica marcada pelas correntes pragmáticas e cognitivistas
reconfigurou a oposição língua/fala e as oposições da mesma ordem, como
‘competência/desempenho’”.
2.2 Enunciado e enunciação
O termo enunciado, também usado na língua corrente, assume um caráter polissêmico
no âmbito das ciências da linguagem, incorporando verdadeiramente sentido apenas num
plano de oposição a outros termos (conceitos) no interior de uma situação de discurso comum.
Segundo Maingueneau, (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 195), “seus empregos
se organizam segundo dois grandes eixos: seja em oposição à enunciação – como o produto
do ato de produção – seja simplesmente como uma sequência verbal de extensão variável”.
Em linguística, emprega-se a denominação enunciado como termo primitivo, na
acepção do correspondente inglês utterance, ou seja, a base de que se vale o linguista. Para
47
Lyons apud Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 195-6), “enunciado
é mais primitivo do que palavra, frase, morfema etc., no sentido de que sua aplicação não
repousa sobre definições técnicas ou sobre postulados da ciência linguística [...] que figuram
alhures”. No dizer de Martins (1989, p. 189), consiste numa “sequência acabada de palavras
de uma língua emitida por um falante”.
Alguns linguistas opõem, do ponto de vista sintático, enunciado à frase. Para
enunciado, propõe-se sua definição como a unidade de comunicação básica, um segmento
verbal dotado de sentido e sintaticamente bem formado. Para frase, por sua vez, reservam a
concepção enquanto tipo específico de enunciado, organizado em torno de um verbo. Nos
exemplos “João está doente”, “Oh!”, “Que mulher!”, “Paulo!”, todos constituem enunciados,
ainda que apenas o primeiro possa ser identificado como uma frase. No entanto, cumpre
observar que se trata de uma concepção geralmente veiculada também na maioria das
gramáticas tradicionais.
No âmbito da pragmática semântica de Ducrot (1987, p. 163), reserva-se o conceito de
frase para uma estrutura linguisticamente bem formada concebida em abstrato, ou seja,
independente de uma situação de uso, o que implica relacionar a atualização do seu sentido à
variabilidade dos contextos do seu emprego enquanto enunciado. Ducrot (1987, p. 164)
considera o proferimento de um enunciado como “Faz bom tempo”, realizado por duas
pessoas diferentes ou pela mesma pessoa em dois momentos diferentes, ilustração de “duas
ocorrências da mesma frase de uma língua, definida como uma estrutura lexical e sintática, e
da qual se supõe que ela é subjacente”. Conforme Maingueneau (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p. 196), “aqui, enunciado torna-se um equivalente de frase-
ocorrência. Nesse caso, associa-se frequentemente a significação à frase e o sentido ao
enunciado”.
Transcendendo o nível frástico, o enunciado pode ser concebido como uma estrutura
significante (verbal) responsável pela formação de “um todo constitutivo de um determinado
gênero de discurso: um boletim meteorológico, um romance, um artigo de opinião, uma
conversação etc.” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 196). A equivalência da
noção de enunciado agora recai sobre a sua oposição com a de texto. Eis a propósito dessa
distinção o dizer de Adam apud Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.
196): “Um enunciado, no sentido de objeto material oral ou escrito, de objeto empírico,
observável e descritível não é o texto, objeto abstrato [...] que deve ser pensado no quadro de
uma teoria (explicativa) de sua estrutura composicional”.
48
Quanto à noção de enunciação, Todorov (DUCROT; TODOROV, 1998, p. 289)
observa que, em linguística, visa-se, sobretudo, “os elementos pertencentes ao código da
língua e cujo sentido no entanto depende de fatores que variam de uma enunciação para outra,
por exemplo, eu, tu, aqui, agora etc.” Daí que, para Anscombre e Ducrot apud Fiorin (2003,
p. 31), a enunciação é, “por essência histórica, da ordem do acontecimento e, como tal, não se
reproduz nunca duas vezes idêntica a si mesma”. Ao linguista não vai mais importar a
oposição enunciado/enunciação como ato e produto, ou seja, um processo dinâmio e o
correspondente resultado estático. Diante da impossibilidade de apreender diretamente o ato
da enunciação, o linguista visa agora surpreender e descrever as marcas enunciativas do
sistema presentes no enunciado. Para Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2004, p. 193), “a reflexão sobre a enunciação pôs em evidência a dimensão reflexiva da
atividade linguística: o enunciado só faz referência ao mundo na medida em que reflete o ato
de enunciação que o sustenta”.
Complementando a definição de Benveniste (1989, p. 83) de que “a enunciação é este
colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”, observa
Maingueneau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, p. 194) que não se deve “esquecer que a
enunciação é uma coenunciação”. Daí que a enunciação constitui um ato de comunicação
verbal que implica não só falar, mas também ouvir. Kerbrat-Orecchioni apud Martins (1989,
p. 189) amplia a definição de Anscombre e Ducrot de que “a enunciação é a atividade de
linguagem exercida por aquele que fala no momento em que fala” com a ressalva “mas
também por aquele que escuta no momento em que escuta”.
Por outro lado, há que se considerar que o locutor de um enunciado não se obriga a
corresponder necessariamente à voz a que se atribui a responsabilidade por esse enunciado.
Como ressalta Benveniste (1989, p. 218), “assumindo a responsabilidade de um conteúdo, não
se assume a responsabilidade da asserção deste conteúdo, não se faz desta asserção o fim
pretendido de sua própria fala”. Para Benveniste (1989, p. 195), o locutor (equivalente não
literário do narrador) é, tanto quanto este, “um ser do discurso, pertencente ao sentido do
enunciado, e resultante desta descrição que o enunciado dá de sua enunciação”. No caso, a
enunciação consiste no acontecimento engendrado pela produção de um enunciado. Na
opinião de Benveniste (1989, p. 169), há “necessidade, para construir uma teoria do sentido,
de uma teoria do que é enunciado, de um conceito de enunciação que não encerre em si, desde
o início, a noção de sujeito falante”.
Como palavras finais à questão da enunciação aqui abordada, julgamos elucidativa a
enumeração de Fonseca e Fonseca (1994, p. 95) dos “elementos fundamentais do acto verbal:
49
o emissor e o receptor, o enunciado, o momento e o locutor da manifestação comunicativa, os
condicionalismos físicos e culturais decorrentes da inserção dos protagonistas em
comunidade(s) historicamente configurada(s)”.
2.3 A situação comunicativa
A situação comunicativa corresponde a uma instância discursiva que, segundo
Charaudeau apud Oliveira H. (2003, p.1),
inclui, entre outros, os seguintes elementos: (a) perfil de quem fala ou escreve e o de quem lê
ou ouve (isto é, do Eu-comunicante e do Tu-interpretante respectivamente); (b) a natureza
da comunicação (oral ou escrita, monolocutiva ou interlocutiva, presencial ou não
presencial); (c) os rituais de abordagem; (d) os papéis na comunicação; (e) o canal utilizado
(televisão, rádio, jornal, telefone, fax, e-mail, conversa tête-a-tête etc.). A situação
comunicativa, enfim, é o conjunto das circunstâncias da comunicação [...].
A importância da situação comunicativa para a análise semiolinguística do discurso
(ASLD) consiste justamente na dependência que o sentido do discurso muitas vezes apresenta
em relação a ela. Não há possibilidade de dissociação entre o texto e a situação de
comunicação em que ele foi produzido. Daí que os objetivos desse texto, no plano social,
subordinam-se à qualidade da influência visada. A correlação necessária entre os objetivos a
serem alcançados pelos discursos e a situação comunicativa em que se inserem são
fundamentalmente os responsáveis pela produção dos seguintes modalidades: (a) textos
informativos (para fazer saber); (b) textos didáticos (para fazer aprender); (c) textos
demonstrativos (para provar); (d) textos legislativos (para legislar); (e) textos religiosos (para
debater sobre o divino), etc.
Revestindo essas possibilidades textuais de condições situacionais de produção mais
especializadas, podemos chegar às tipificações mais detalhadas como as seguintes: (a)
persuasão + domínio de prática de poder = tipo propagandístico (propaganda); (b) persuasão +
prática comercial = tipo publicitário (publicidade); (c) informação + domínio da prática da
informação sobre o espaço público = tipo jornalístico.
2.3.1
Sujeitos da comunicação
Charaudeau (PAULIUKONIS; GAVAZZI, 2005) concebe inicialmente dois eus e tus:
o eu-comunicante, o eu-enunciador, tu-destinatário e o tu-interpretante, renomeados em
50
trabalhos mais recentes, respectivamente, como sujeito comunicante, sujeito enunciador,
sujeito destinatário e sujeito interpretante.
Os sujeitos comunicante e interpretante equivalem a seres reais, indivíduos do nosso
mundo, com história psicossocial. Daí o sujeito comunicante e sujeito interpretante
atualizarem situações concretas de comunicação, conforme o esquema jakobsoniano,
enquanto o enunciador e o sujeito destinatário existem apenas como abstrações teóricas, só
tendo existência no discurso.
O sujeito destinatário configura o perfil de uma hipótese que o sujeito comunicante
articula, visto que, na impossibilidade de se preverem as possíveis reações do sujeito
interpretante, elegemos abstrata e necessariamente um arquétipo.
A maior aproximação do sujeito destinatário ao perfil do interpretante vai conferir ao
discurso do sujeito comunicante maior êxito em termo comunicacional.
Quanto ao sujeito enunciador, constitui este uma espécie de imagem com que o
comunicante espera ser visto pelo interpretante (expectativa possível ou não de ser bem-
sucedida), assim como, no interior da cena de enunciação, equivale à imagem de fato que o
interpretante cria do comunicante.
2.3.2 Projeto de comunicação
Consiste o projeto de comunicação de Charaudeau (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004) na pressuposição de que por trás de todo ato de fala ou escrita se
oculta um objeto (persuadir, desabafar, informar, ensinar, pedir informação, vender um
produto, obter votos, divertir, enganar, etc.) que se articula em estratégias discursivas para a
obtenção desse objetivo.
O êxito de um projeto de comunicação implica a gerência, pelo sujeito comunicante,
do espaço da cena de enunciação a ele concedida, com todas as restrições e liberdades
processadas pela correspondente formação discursiva, aproximação teórica que podemos
delinear entre ASLD e a análise do discurso de orientação francesa.
Segundo Sant’Anna (2000, p. 85-6), é possível, na visão de Charaudeau, “identificar o
‘contrato de comunicação midiático’ com determinados elementos e estratégias discursivas
que organizam as formas como se dão as diferentes interações entre a mídia e seu público”.
Charaudeau concebe, na organização do contrato, “um conjunto de elementos fixos que
delimitam a ‘identidade das partes’ (instância de produção e de recepção), a ‘finalidade’
(informar e captar) e as ‘circunstâncias’ (tempo, espaço e canal de tramissão)”.
51
Ainda no dizer de Sant’Anna (2000, p. 86),
as instâncias de produção e de recepção não constituem figuras do mundo social. Totalizam-
se essas instâncias numa situação de transação de sentidos. Além dessas instâncias envolvidas
no circuito da informação, há dois outros elementos que batizam a interação: o tempo e o
espaço.
Circulando entre essas duas dimensões (temporal/espacial), uma informação permite
que produção e recepção sejam observadas a partir das perspectivas social e discursiva.
2.4 Subjetividade
Concebemos, com Benveniste (1995, p. 285), que “a linguagem está na natureza do
homem, que não a fabricou”. Trata-se, segundo o autor, de uma ficção a conjetura da criação
da linguagem como um processo evolutivo, inaugurado num “período original, em que um
homem completo descobriria um semelhante igualmente completo e, entre eles, pouco a
pouco, se elaboraria a linguagem”. Para Benveniste (1995, p. 285), “é um homem falando que
encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a
própria definição do homem”.
Daí que se torna inconcebível a comparação da linguagem com qualquer instrumento,
como, por exemplo, a picareta, a flecha ou a roda, que “são fabricações”. No dizer de
Benveniste (1995, p. 285),
todos os caracteres da linguagem, a sua natureza imaterial, o seu funcionamento simbólico, a
sua organização articulada, o fato de que tem um conteúdo, já são suficientes para tornar
suspeita essa assimilação a um instrumento, que tende a dissociar do homem a propriedade da
linguagem.
É essa propriedade da linguagem no homem que, segundo Benveniste (1995, p. 286),
o constitui como sujeito e onde como tal se constitui, “porque só na linguagem fundamenta na
realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’”.
Essa subjetividade, por sua vez, na concepção de Benveniste (1995, p. 286), consiste
“na capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’”. Daí que, para ele, “é ‘ego’ quem diz
ego” – eis “o fundamento da ‘subjetividade’ que se determina pelo status linguístico da
pessoa”.
A subjetividade, entretanto, não se manifesta linguisticamente senão por contraste.
Como esclarece Fiorin (2002a, p. 41), “o eu existe por oposição ao tu e é a condição do
52
diálogo que é constitutiva da pessoa porque ela se constrói na reversibilidade dos papéis
eu/tu”.
Dessa forma, é a categoria de pessoa, por excelência, a responsável pela conversão da
linguagem em discurso, o que implica que eu nem indicia um indivíduo em particular nem
constitui um conceito e uma imagem acústica, no sentido saussuriano de signo linguístico,
mas, conforme Fiorin (2002a, p. 41), “refere-se a algo exclusivamente linguístico”, isto é, “ao
ato de discurso individual no qual é pronunciado, e lhe designa o locutor” (BENVENISTE,
1995, P. 288). O fundamento da subjetividade reside no exercício da língua, não havendo
“outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele
mesmo sobre si mesmo” (BENVENISTE, 1995, p. 288).
Quanto à questão da avaliação do falante sobre determinada referência no enunciado,
Martins (1989, p. 191) observa que essa subjetividade pode ser apreendida, em graus
variáveis, nos seus diversos tipos: quantitativa, modalizadora e apreciativa ou axiológica.
No caso da avaliação quantitativa, apesar da possibilidade de se constituir objetiva
quando expressa a partir de medidas exatas, podemos entrever “uma brecha por onde pode
entrar a subjetividade” (MARTINS, 1989, p. 191), visto que as medidas se relacionam a
critérios. O epíteto de obeso, por exemplo, para alguém que pese oitenta quilogramas só goza
de pertinência se a avaliação se baseia em algum padrão de comparação atualizado no seu ato
de enunciação, o que pode ocorrer acompanhado de atitudes particulares diversas, seja a
desaprovação, seja a depreciação. Já a avaliação com indefinidos como muito, pouco, algum,
etc. revela-se mais subjetiva, justamente por ser imprecisa. Parece-nos que tais expressões de
subjetividade podem ser observadas no enunciado (2).
(2) Santa-Pia não é feio velho, nem muito velho; terá menos idade que eu. Arqueja um pouco,
às vezes. mas pode ser da bronquite. É meio calvo, largo de espáduas, as mãos ásperas,
cheio de corpo.
(MA, p. 1.115).
Quanto à avaliação modalizadora, o locutor se manifesta em relação ao fato referido
para emitir juízos como verdadeiro ou falso, certo, incerto, possível, desejável, conforme a
situação. Daí que emprega o modo indicativo para expressar o fato julgado verdadeiro, “numa
oração declarativa, e essa certeza pode ser reforçada por expressões como: sem dúvida,
realmente, indiscutivelmente, etc.” (MARTINS, 1989, p. 191). Quando objeto de citação, o
fato pode vir expresso a partir de um enunciado em que aparecem verbos como afirmar,
garantir, afiançar.
53
(3) Afirmou que ela adivinhava tudo, o que era e o que viria a ser [...] (EJ, p. 957).
Se considerado falso, “o fato pode ser contestado, com maior ou menor veemência, e,
se for mencionado por outrem, pode ser apresentado pelo verbo negar” (MARTINS, 1989, p.
191).
(4) Três vezes negou Pedro a Cristo, antes de cantar o galo. (MA, p. 1.122).
Pretendendo não se comprometer com a condição de veracidade ou não de um fato,
pode o locutor eleger as formas verbais do futuro do pretérito do subjuntivo, as quais
normalmente veiculam a incerteza, a possibilidade, acompanhadas de expressões de dúvida
(talvez, é possível), assim como recorrer ao emprego dos auxiliares modais (poder/dever),
como, respectivamente, nos enunciados (5) e (6).
(5) – [...] Quando souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o mal se
faria, ainda que o soubessem desde o princípio [...].
(MA: p. 1.110).
(6) Aires disse ainda algumas palavras bonitas, e acrescentou outras feias, admitindo que a
briga podia ser prenúncio de graves conflitos na terra [...]
(EJ, p. 966).
Já a avaliação axiológica ou apreciativa corresponde a que refere valor moral ou
estético e se prende aos binômios bom/mau, bonito/feio, útil/inútil. Trata-se do tipo de
avaliação em que percebemos a intensificação da subjetividade, assumindo um caráter
pessoal. Acreditamos que tal avaliação pode ser apreendida através do adjetivo justa no
enunciado (7).
(7) A opinião que o desembargador achou em algumas pessoas, e creio justa, é que D. Carmo
parecia mais verdadeira mãe que a mãe de verdade.
(MA, p. 1.107).
Às vezes, a subjetividade manifesta-se num plano afetivo, o que corresponde “ao fato
de o falante mostrar-se emocionalmente envolvido no conteúdo do enunciado” (MARTINS,
1989, p, 192). Essa manifestação do falante pode dar-se explicitamente, como ocorre quando
ele se refere a si mesmo, a exemplo das composições líricas, ou implicitamente nas marcas
lexicais e/ou estruturais, assim como no emprego de figuras.
(8) Eu, se fosse capaz de ódio, era assim que odiava; mas eu não odeio nada nem ninguém, -
perdono a tutti, como na ópera.
(MA, p. 1.098).
54
Essa subjetividade afetiva, entretanto, não constitui exclusividade da poesia, “que é a
linguagem da emoção” (MARTINS, 1989, p. 192); há de permear também outros tipos de
textos, o que concorre para a tese de que é possível a convivência, a simultaneidade das
funções da linguagem, detectável num mesmo universo textual, fenômeno linguístico
suficientemente salientado por Bally, Bühler e Jakobson, entre os fatos da enunciação.
2.5 O aparelho formal da enunciação
Consiste a expressão (aparelho formal da enunciação) na referência à abordagem do
fenômeno da enunciação proposta por Benveniste (1989, p. 82)
3
como o “colocar em
funcionamento a língua por um ato individual de utilização”, isto é, uma abordagem que
“consistiria em definir a enunciação no quadro formal de sua realização” (p. 83)
Daí que Benveniste tenciona surpreender, no âmbito interno da língua, as
manifestações formais da enunciação. Considerando a importância da utilização particular do
sistema linguístico pelo indivíduo, concebe a enunciação como responsável central pela
constante atualização do sentido de tais manifestações. Para Benveniste (p. 83), “o ato
individual pelo qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro
nas condições necessárias da enunciação”. Sem enunciação, a língua constitui tão-só uma
possibilidade teórica. É a enunciação que concretiza a língua em discurso, instaurando uma
cena enunciativa que actorializa locutor e alocutário, numa dimensão espaço-temporalizada.
No dizer de Benveniste (p. 84), “toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma
alocução, ela postula um alocutário”.
Para Benveniste, o uso da língua, na enunciação, implica a expressão de determinada
representação do mundo. Trata-se mesmo de uma condição, para o locutor, a necessidade de
mobilização e apropriação da língua, no que concerne à possibilidade de referir o mundo,
assim como, da parte do alocutário, de correferir discursivamente esse mundo representado.
Daí que a referência se revela como constitutiva do processo de enunciação, introduzindo, por
um ato particular de apropriação da língua, “aquele que fala em sua fala” (p. 84). Essa
apropriação, por sua vez, manifesta-se, segundo Benveniste, através de todo um jogo de
formas específicas, em que se sela o vínculo pragmático-discursivo existencial entre o locutor
e sua enunciação.
3
Devido às referências corresponderem a um único texto do autor (“O aparelho formal da enunciação”),
queremos propor apenas o emprego da numeração das páginas de onde se extraem as citações.
55
Em primeiro lugar, temos “a emergência dos índices de pessoa (a relação eu-tu) que
não se produz senão na e pela enunciação” (p. 84), com o termo eu referindo o sujeito
enunciador, o responsável imediato pela enunciação, e o termo tu, o sujeito constituído
enunciatário a partir do ato enunciativo do eu enunciador.
Da mesma forma implicados no ato particular de enunciação e na sua estrutura,
apresentam-se os numerosos índices de ostensão (este, aqui, lá, etc.), “termos que implicam
um gesto que designa o objeto ao mesmo tempo que é pronunciada a instância do termo” (p.
85).
Os pronomes pessoais e demonstrativos, por sua vez, assumem agora o estatuto de
“indivíduos linguísticos”, visto que constituem formas remissivas, por essência, a referentes
distintos (individualizados), quer seja a pessoas, a momentos ou a lugares, oposição aos
termos nominais, referenciadores específicos de conceitos. No dizer de Benveniste (p. 85), “o
estatuto destes ‘indivíduos linguísticos’ se deve ao fato de que eles nascem de uma
enunciação, de que são produzidos por este acontecimento individual [...] são engendrados de
novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo novo”.
Uma terceira série de termos implicados no fenômeno da enunciação refere-se ao
paradigma inteiro das formas temporais, articulados a partir de “Ego, centro da enunciação”.
Para Benveniste, revelam-se de natureza semelhante aos termos já referidos as formas verbais
do presente denotadoras de ações concomitantes ao momento da enunciação.
Observa Benveniste (p. 85) que “da enunciação procede a instauração da categoria do
presente, e da categoria do presente nasce a categoria do tempo”. E mais adiante: “[...] o
homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o ‘agora’ e de torná-lo atual senão
realizando-o pela inserção do discurso no mundo”. Dessa forma, Benveniste (p. 86) defende a
necessidade de “distinguir as entidades que têm na língua seu estatuto pleno e permanente e
aquelas que, emanando da enunciação, não existem senão na rede de ‘indivíduos’ que a
enunciação cria e em relação ao ‘aqui-agora’ do locutor”. O “eu”, o “aquele” e o “amanhã”,
por exemplo, na descrição gramatical, constituem tão-só as referências de eu, aquele e
amanhã engendradas na enunciação. Há que considerar, ainda, no plano da enunciação, os
modelos de estrutura sintática dele emergentes. Como observa Benveniste (p. 1), “desde o
momento em que o enunciador se serve da língua para influenciar de algum modo o
comportamento do alocutário, ele dispõe para este fim de um aparelho de funções”. Em
primeiro lugar, Benveniste situa a interrogação, que constitui uma enunciação articulada com
finalidade de promover uma resposta da parte do alocutário ao conteúdo dessa enunciação.
56
Conforme Benveniste (p. 87), “todas as formas lexicais e sintáticas da interrogação,
partículas, pronomes, sequência, entonação, etc., derivam deste aspecto da enunciação”.
Na mesma ordem de distribuição, apresentam-se os termos ou formas denominadas de
intimação, como as ordens, os apelos veiculados nas categorias do imperativo, o vocativo,
constituindo estruturas discursivas forjadas necessariamente no plano enunciativo do eu
(locutor)/tu (alocutário)/hic (aqui)/nunc (agora).
Com menor evidência, mas com a mesma propriedade dos indivíduos e estruturas
linguísticos apontados, situa-se, ainda, a asserção no interior do aparelho. Para Benveniste (p.
86), “em seu rodeio sintático, como em sua entonação, a asserção visa a comunicar uma
certeza”, o que pode ser concebido como legível índice da “manifestação mais comum da
presença do locutor na enunciação”. Há, inclusive, instrumentos específicos da sua expressão
ou implicação, configurados nas “palavras sim e não afirmando positivamente ou
negativamente uma proposição”.
Num universo mais amplo, Benveniste (p. 87) situa, ainda que com menor
sistematização, os diversos tipos de modalidades formais, por exemplo, modos verbais
(optativo, subjuntivo) conotadores de atitudes do enunciador a partir do conteúdo da
enunciação (expectativa, desejo, apreensão) e termos modificadores da fraseologia (“talvez”,
“sem dúvida”, “provavelmente”) com as respectivas indicações de incerteza, possibilidade,
indecisão, etc., ou recusa deliberada de asserção, como podemos observar na frase final do
enunciado (9).
(9) Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, hei de pedir-lhos. Talvez ela os
recuse imaginando que começo deveras a morrer pela dama.
(MA, p. 1098).
Entretanto, para Benveniste (p. 87), “o que em geral caracteriza a enunciação é a
acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou
coletivo”. Daí que podemos conceber o que ele denomina “quadro figurativo da enunciação”,
em que se vislumbram duas “figuras” de igual importância num circuito de troca e parceria
discursiva, constituindo “uma, origem, a outra, fim da enunciação”. Trata-se da estrutura do
diálogo, com duas figuras em alternância na posição de protagonista da enunciação. Para
Benveniste, “este quadro é dado necessariamente com a definição da enunciação”.
Quanto ao monólogo, Benveniste (p. 87) concebe-o claramente no plano da
enunciação. Para ele, o monólogo “deve ser classificado, não obstante a aparência, como uma
57
variedade do diálogo, estrutura fundamental”. Isto porque o ‘monólogo’ consistiria num
diálogo interiorizado, formulado em ‘língua interior’, entre um eu locutor e um eu ouvinte.
Outra situação discursiva analisada por Benveniste (p. 88) consiste numa prática de
comunicação que “se apresenta em uma condição social das mais banais em aparência, mas
das menos conhecidas, de fato”. Trata-se do fenômeno de linguagem que Malinowski referiu
pela denominação de “comunhão fática, qualificando-a assim como fenômeno psicossocial
com função linguística” (p. 88). Configurando-a a partir da função que a linguagem aí
desempenha, Malinowski defende que as palavras na comunhão fática não funcionam como
instrumento de transmissão do pensamento, mas servem ao propósito direto de selar um laço
de sentimento social (ou de outro tipo) entre locutor e ouvinte. Nesse plano discursivo,
situam-se o bate-papo descontraído das pessoas nas horas desocupadas das obrigações
cotidianas, ou mesmo o tagarelar que transcende o espaço em que se desenvolve um trabalho
conjunto, isto é, que não mantém nenhuma relação de conteúdo com a atividade exercida.
Para Malinowski apud Benveniste (p. 90), “a linguagem, nesta função, manifesta-se-nos não
como um instrumento de reflexão mas como um modo de ação”, o que podemos atestar no
enunciado (10), com o diálogo entre dois coveiros.
(10) [...] havia gente perto, sem contar dois coveiros que levavam um regador e uma enxada, e
iam falando de um enterro daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em
voz grossa: “Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como tu”.
Tratavam de um caixão pesado naturalmente [...].
(MA, p. 1.096).
Por fim, Benveniste (90) salienta que “muitos outros desdobramentos deveriam ser
estudados no contexto da enunciação, como, por exemplo, “as alterações lexicais que a
enunciação determina, a fraseologia, que é a marca frequente, talvez necessária, da
‘oralidade’”. Considera, ainda, a necessidade de distinção entre enunciação falada e
enunciação escrita. Para Benveniste (p. 90), coexistem dois planos no âmbito da enunciação
escrita: “o que escreve se enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os
indivíduos se enunciarem”.
2.6 Dêixis e anáfora
A chamada linguística da enunciação constitui, para Lahud (1979, p. 97), “um novo
palco onde a noção de dêixis desempenha um papel relevante – senão o principal”. Entretanto,
ele observa que carece de absoluta precisão a delimitação do objeto próprio dessa orientação
58
linguística, visto que o conceito de enunciação nela ora se apresenta como marca da presença
do sujeito no enunciado, “ora como a relação que o locutor mantém pelo texto com o
interlocutor, ou ainda, como a atitude do sujeito falante em relação ao seu enunciado”,
conforme Dubois apud Lahud (1979, p. 97-8).
Todorov (DUCROT; TODOROV, 1998, p. 289) observa que, “quando se fala, em
Linguística, de ENUNCIAÇÃO, toma-se esse termo num sentido [que] não se visa nem o
fenômeno físico de emissão ou de recepção da fala [...] nem as modificações introduzidas no
sentido global do enunciado pela situação”. Considerando a existência na língua de elementos
cujo sentido se subordina às variáveis de cada ato particular de enunciação, como, por
exemplo, eu, tu, aqui, agora, Todorov propõe que “o que a Linguística retém é a marca do
processo de enunciação no enunciado”. Em outras palavras, a linguística da enunciação visa
no enunciado, conforme Martins (1989, p. 189), “as marcas dos vários elementos relacionados
com a enunciação: situação, contexto sócio-histórico, locutor, receptor, referente”. No dizer
de Fiorin (2003, p. 163), “a enunciação é o lugar de instauração do sujeito e este é o ponto de
referência das relações espaço-temporais, ela é o lugar do ego, hic et nunc”. Como esclarece
Fiorin (2003), Benveniste emprega os termos latino ego (eu), hic (aqui), nunc (agora) como
uma forma de mostrar a universalidade dessas categorias (pessoa/espaço/tempo), presentes em
todas as línguas naturais e em todas as linguagens, como, por exemplo, as linguagens visuais.
Como veremos no capítulo seguinte, quando nos determos no exame da pragmática
indicial, a essas categorias responsáveis pela ancoragem do processo de enunciação no
enunciado denominam-se dêiticos, elementos que, conforme Ilari e Geraldi (1985, p. 66),
“realizam o fenômeno da dêixis (ato de mostrar), que é um dos traços que distinguem a
linguagem humana das linguagens artificiais, tornando-se apropriada para o uso em situações
correntes”.
Levinson (2007) apresenta-nos uma tipologia da dêixis com base nas categorias de
pessoa (dêixis pessoal), de lugar (dêixis espacial), de tempo (dêixis temporal) e nas categorias
referentes ao discurso (dêixis discursiva) e à própria dinâmica da sociedade (dêixis social).
Seguindo a ordem da classificação apontada acima, a dêixis pessoal consiste em
identificar, no contexto de enunciação, tanto seus participantes quantos seus respectivos
papéis.
(11) Rita orou diante dele alguns minutos, enquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas
próximas. Em quase todas havia a mesma antiga súplica da nossa: “Orai por ele! Orai por
ela!” (MA, p. 1.096).
59
Em (11), os pronomes ele (contraído com a preposição de = dele), eu, nossa, ele e ela
referem-se respectivamente ao finado marido de Rita, ao narrador, aos donos (= Rita e
narrador) da sepultura e a outros finados, homens e mulheres, não identificados pelo narrador.
Entretanto, como observa Fonseca (1996, p. 442), “de um modo geral, pode afirmar-se que a
deixis pessoal está presente em todas as outras formas de dêixis, já que todas implicam uma
referenciação relativa aos participantes num acto de enunciação”.
A dêixis espacial, por sua vez, indicia a localização espacial do acontecimento
enunciativo, relacionando, em dimensão físico-espacial, eventos, situações, processos,
pessoas, objectos, etc.
(12) Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei. (MA, p. 1.095).
(13) Em cima, esperava por eles Perpétua, aquela irmã de Natividade, que a acompanhou ao
Castelo, e lá ficou no carro, onde as deixei para narrar os antecedentes dos meninos.
(EJ,
p. 955).
Em (12), o advérbio aqui refere-se ao espaço da enunciação e concomitantemente à
terra natal do narrador , que registra o seu retorno, após um ano, ao Brasil, enquanto em (13),
a expressão em cima e o advérbio situam espacialmente actantes do enunciado.
Quanto à dêixis temporal, consiste esta na indicação das coordenadas temporais em
que se desenvolve o acontecimento enunciativo, como podemos apreender nos enunciados
(14) e (15), em que os advérbios ontem e hoje referem-se a fatos focalizados pelo narrador a
partir da perspectiva do dia da sua narração.
(14) Isto foi ontem. Hoje pela manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-me, em nome
da mulher e dele, a ir lá jantar no dia 24.
(MA, p. 1.099).
(15) Não leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje.
(EJ, p. 971).
No caso do enunciado (15), temos, conforme Fiorin (2003, p. 168), “o chamado
presente de continuidade”, cujo momento de referência se apreende a partir da expressão
como se fosse hoje, em oposição ao início do estado de coisas evocado. Trata-se de um caso
em que “o momento de referência é mais longo do que o momento da enunciação”.
No que concerne à dêixis discursiva (ou textual), trata-se fundamentalmente da
retomada de lugares e momentos pertinentes à estrutura do próprio texto, ou seja, da alusão a
60
cotextos referidos por expressões como, por exemplo, acima, no capítulo precedente, etc, o
que podemos observar em (16) e (17).
(16) Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste
mês.
(MA, p. 1.152).
(17) Sei que há um ponto escuro no capítulo que passou; escrevo este para esclarecê-lo. (EJ,
p. 974).
Conforme adverte Gouveia (1996, p. 413-4), a dêixis discursiva não se confunde com
a anáfora, visto que esta se refere aos casos em que um pronome remete “a algo, ou a uma
entidade, já objecto de referência por parte de uma expressão linguística que lhe é anterior”,
como no enunciado (18), em que os termos um/outro e este/aquele substituem
respectivamente os substantivos próprios Shelley e Thackerav, e (19), em que, nos seus dois
empregos, o advérbio substitui a expressão morro do Castelo.
(18) Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma coisa de Shelley e também de
Thackeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-me daquele; é assim que o
engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito. (MA, p.
1.100).
(19) Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado
da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá
morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. (EJ, p. 946).
Em relação à dêixis social, por fim, trata-se das marcas distintivas dos papéis
representados pelos participantes da situação de comunicação, principalmente no que
concerne aos lugares sociais do locutor e do alocutário no processo da troca comunicativa. Há
que considerar, ainda, a possibilidade de o locutor remeter-se a “uma entidade ausente”
(GOUVEIA, 1996, p. 414). Apresentam-se na dêixis social, normalmente, as formas de
tratamento como, por exemplo, você, o senhor, vossa excelência, etc., indicadoras de relação
hierárquica entre os participantes de um processo de enunciação.
(20) – Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao trono. (EJ, p. 974).
(21) – Venho almoçar, conselheiro; voltando agora do meu passeio, lembrou-me subir e
perguntar por V. Excia. O seu criado disse-me que ia almoçar; ouso pedir-lhe uma lugar
à mesa. (MA, p. 1.161).
61
Bühler (1934) distingue, por sua vez, conforme Fonseca (1996, p. 440), três
modalidades de dêixis, tomando em consideração “o tipo de contexto compartilhado que
viabiliza a mostração: dêixis indicial, dêixis textual e dêixis transposta, respectivamente,
dêixis ad óculos, anáfora e dêixis em fantasma, na terminologia bühleriana”.
Na dêixis indicial, privilegia-se, enquanto contexto compartilhado, a situação de
enunciação; o processo ancora-se na mostração de elementos presentes no próprio contexto
situacional de enunciação, como no enunciado (22).
(22) – Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas damas, a casada e a
viúva, parecem amar-se como mãe e filha, não é verdade?
(MA, p. 1.103).
Quanto à dêixis textual (ou discursiva), vimos anteriormente com Gouveia (1996, p.
413) que se a deve distinguir da anáfora. No entanto, Fonseca (1996, p. 441) observa que,
neste tipo de dêixis, em que o contexto compartilhado consiste no próprio espaço textual da
interação dos participantes do ato de enunciação, o processo de mostração dêitica pode
realizar-se como anáfora ou como catáfora, conforme remeta a uma informação processada
anterior ou posteriormente ao cotexto (trecho) que se situa como ponto de referência. Em
(23), procuramos ilustrar o processo da dêixis textual em sua representação como catáfora.
(23) O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores,
que é o seu interesse particular nos livros.
(EJ, p. 980).
No dizer de Fonseca (1996, p. 441), “a dêixis textual desempenha um papel
fundamental na construção do texto, sendo o uso dos deícticos uma das marcas formais da
coesão textual”.
Quanto à dêixis transposta (ou projetada), trata-se não da indicação de elementos
presentes na situação de enunciação, mas da referência a dados compartilhados no plano da
memória entre locutor e alocutário. Conforme Fonseca (1996, p. 441), “o locutor reproduz ou
constrói (imagina) uma determinada situação distinta daquela em que estão inseridos,
propondo ao interlocutor uma transposição para essa situação imaginada”, como no
enunciado (24), em que o narrador evoca, no processo de descrição da personagem do
conselheiro Aires, a imaginação do leitor.
(24) Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso
aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo bem
distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo.
(EJ, p. 962).
62
Trata-se, conforme Fonseca (1996, p. 442), de uma mostração “in absentia” e, por
conseguinte, uma indiciação fictícia, o que, para o autor, “ilustra a possibilidade de criação,
pela linguagem (na narração, nomeadamente) do seu próprio contexto referencial”.
Tomando em consideração, por sua vez, o elemento do contexto situado como base da
classificação das tipologias dêiticas, Fonseca (1996, p. 443) distingue, além dos três tipos
clássicos (dêixis pessoal, espacial e temporal), um quarto tipo: a dêixis circunstancial (ou
nocional ou modal), lograda a partir do emprego do dêitico genérico plurivalente assim em
referência, no enunciado, a “qualquer circunstancial evidente nos contextos compartilhados
pelos falantes”, como, por exemplo, no enunciado (25).
(25) Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e
claras, nem as débeis, nem as menos débeis, todas faziam uma zoeira aos ouvidos da
consciência.
(EJ, p. 950).
No dizer de Fonseca (1996, p. 444), a consideração da dêixis circunstancial aponta,
num sentido radicalmente pragmático, para a possibilidade de ampliar a “noção de
coordenadas de enunciação (EU/TU-AQUI-AGORA-ASSIM)”. Para Lopes apud Fonseca
(1996, p. 444), estas são definíveis como “as coordenadas espácio-temporais não apenas de
um dizer, mas do fazer inerente ao dizer”.
2.7 Debreagem e embreagem
Considerando que a pessoa enuncia, conforme Fiorin (2002, p. 42), “num dado espaço
e num determinado tempo, todo espaço e todo tempo organizam-se em torno do ‘sujeito’,
tomado como ponto de referência”. O espaço e o tempo do eu são, respectivamente, o aqui e o
agora da enunciação. Através desses dois elementos, referenciam-se no discurso todas as
coordenadas espácio-temporais.
Para Greimas e Courtès apud Fiorin (2002, p. 42), quando o eu irrompe como sujeito
da enunciação, “constrói o mundo enquanto objeto ao mesmo tempo que se constrói a si
mesmo”. Segundo Fiorin, trata-se de um processo de “orientação transitiva, isto é, um ato de
mirar o mundo”.
A essa “orientação transitiva”, ainda conforme Fiorin (2002, p. 42), corresponde o
que Greimas concebe como “a intencionalidade fundadora da enunciação”. Daí que esta
constitui, para ele, “um enunciado cuja função predicativa é a intencionalidade e cujo objeto é
o enunciado-discurso”.
63
Quanto aos mecanismos de instauração de pessoas, espaços e tempos, no enunciado,
são eles a debreagem e a embreagem. Como debreagem, concebemos a operação em que se
representam no enunciado as categorias de pessoa, tempo e espaço. Daí que concebemos
“uma debreagem actancial (= de pessoa), uma debreagem espacial e uma debreagem
temporal” (FIORIN, 2003, p. 178).
Quando “se instalam no enunciado os actantes da enunciação (eu/tu), o espaço da
enunciação (aqui) e o tempo da enunciação (agora)” configura-se a debreagem enunciativa
(FIORIN, 2002, p. 44), como no enunciado (26).
(26) Ontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomático e prometi ir jantar com ele
amanhã em Petrópolis. Subo hoje e volto segunda-feira.
(MA, p. 1.103).
Em (26), as formas verbais de primeira pessoa do singular (eu:
encontrei/prometi/subo) e os advérbios de tempo (ontem/amanhã/hoje) correspondem no
trecho, cada uma a seu turno, a efetivas representações de debreagens enunciativas.
No enunciado (12), em nova numeração como (27), configura-se em plenitude uma
debreagem enunciativa espacial, com cena de enunciação
4
ancorada no espaço (aqui) do
locutor.
(27) Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei. (MA, p. 1.095).
Como exemplo, por sua vez, de ancoragem da cena de enunciação no tempo (agora)
da própria enunciação, fornecemos o enunciado (28).
(28) Eis agora a matéria da conspiração. (EJ, p. 1.011).
No caso de (28), no entanto, a debreagem temporal instala-se não só a partir do
dêitico agora, mas também da palavra de designação eis, marcando conjuntamente a
coincidência entre o tempo no enunciado e o momento da enunciação.
Quando, por sua vez, “se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele-eles),
o espaço do enunciado (algures) e o tempo do enunciado “configura-se a debreagem enunciva
(FIORIN, 2002, p. 44), como podemos atestar no enunciado (29), em que nenhum dos
4
“Representação que um discurso faz de sua própria situação de enunciação”, conforme Maingueneau
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 95).
64
actantes (Fidélia/Flamengo/D. Carmo/no dia seguinte) indiciam elementos subordinados ao
hic et nunc da enunciação.
(29) Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer. D.
Carmo fora achá-la a pintar; Fidélia lembrara-se de haver pintado em menina, e começara
um trecho do jardim da própria casa. Prometeu a voltar ao Flamengo no dia seguinte, e
não foi.
(MA, p. 1.161).
Em (29), identificamos de início uma debreagem espacial enunciva, marcada pelo
adjunto adverbial ao Flamengo (= espaço do enunciado), assim como a instauração de
actantes (pessoas) do enunciado (Fidélia/D.Carmo), instalando, por sua vez, as respectivas
debreagens actanciais enuncivas.
(30) No dia sete de abril de 1870 veio à luz um par de varões tão iguais que antes pareciam a
sombra um do outro, se não era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado.
(EJ, p. 956).
Já no enunciado (30), deparamos respectivamente com uma debreagem temporal
enunciva marcada pela locução adverbial no dia sete de abril de 1870 (= tempo do enunciado)
e uma debreagem actancial enunciva marcada pela expressão um par de varões,
correspondente ao pronome de terceira pessoa ele (= actante do enunciado).
Associam-se às debreagens enunciativa e enunciva respectivamente um efeito de
sentido de subjetividade e um efeito de sentido de objetividade. Dessa forma, o discurso
científico, que visa a um ideal de ciência com base na objetividade (positivista), caracteriza-se
essencialmente pelo apagamento constitutivo das marcas enunciativas no processo de
produção dos seus enunciados, assim como o discurso jornalístico, cuja objetividade “almeja
lograr um suposto tom de neutralidade e de imparcialidade” (FIORIN, 2002, p. 45). Quanto a
este último, parece-nos que o enunciado (31) reúne mais ou menos tais elementos funcionais,
concernentes à sua essência.
(31) O ministério apresentou hoje à câmara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples.
Dizem que em poucos dias será lei.
(MA, p. 1.115).
Cumpre considerar, ainda, a questão da debreagem interna, predominante “no
discurso literário e também na conversação ordinária”, como aponta Fiorin (2002, p. 45).
Configura-se uma debreagem interna quando, de um actante já debreado, seja no plano do
enunciado ou da enunciação, registra-se a produção (representação) de uma segunda
debreagem (enunciva ou enunciativa). Constitui exemplo, no caso, um diálogo, em que se
65
registra a variabilidade constitutiva dos turnos de fala dos seus participantes. Conforme
esclarece Fiorin (2002, p. 45), as debreagens internas num diálogo “subordinam-se umas às
outras: o eu que fala em discurso direto é dominado por um eu pressuposto pelo enunciado”.
Daí que o discurso direto configura uma debreagem de segundo grau, como no enunciado
(32).
(32) – Voltou triste, e o luto ainda o fez mais triste, disse Aguiar. (MA, p. 1.145).
Em (32), depreendemos uma debreagem interna quando o locutor (= narrador)
concede o direito de fala em seu discurso a um actante (Aguiar) já debreado enuncivamente
que, por sua vez, vai produzir em discurso direto uma debreagem actancial enunciva, ao
debrear um actantante do enunciado através de um ele, marcado na forma verbal (voltou) de
terceira pessoa do singular.
Há que considerar, ainda, a possibilidade de uma debreagem de terceiro grau, caso em
que, conforme Fiorin (2002, p. 46), “o sujeito debreado em segundo grau fizesse outra
debreagem”, o que podemos atestar nos enunciados (33) e (34).
(33) – Eu? redarguiu Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse nada. (EJ, p. 970).
(34) – Não, não, acudiu Fidélia; não teve nenhuma palavra de ódio. Não gosto de repetir o que
foi, um simples linha ou linha e meia, assim: “Recebi a tua carta, mas não recebi o teu
remédio para o meu reumatismo”. Só isto. Ele era reumático, e meu marido, como sabe,
era médico.
(MA, p. 1.123).
Em (33), detectamos três debreagens actanciais: três debreagens actanciais
enunciativas que consistem, respectivamente, na instalação do actante Paulo (= locutor do
enunciado em discurso direto) e dos seus interlocutores Pedro (representado pelo pronome
ele) e Natividade (representada, por sua vez, pelo substantivo mamãe).
Quanto ao mecanismo da embreagem, concebemo-la, junto a Fiorin (2003, p. 179),
como “‘o efeito de retorno à enunciação’, produzido pela neutralização das categorias de
pessoa e/ou espaço e/ou tempo, pela denegação, assim, da instância do enunciado”. Daí que, a
exemplo da debreagem, classificamos também a embreagem em três tipos: embreagem
actancial, embreagem espacial e embreagem temporal.
Quanto à embreagem actancial, trata-se, conforme Fiorin (2002, p. 84), da
“neutralização de oposições no interior da categoria de pessoa”. Apreendemos tal mecanismo
devido justamente ao fato de que “toda embreagem pressupõe uma debreagem anterior”
66
(FIORIN, 2002, p. 48), a qual compreende as marcas linguístico-contextuais que semantizam
pragmaticamente os elementos do enunciado posteriormente embreado. A título de ilustração,
observemos o enunciado (34).
(34) Aires amigo, confessa que ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal
ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu.
(MA, p. 1.171).
Em (34), a pessoa do alocutário (tu) – actante da enunciação – significa de fato uma
primeira pessoa (eu = narrador-personagem Aires), também actante da enunciação,
configurando-se, dessa forma, uma embreagem actancial. No caso, a debreagem que lhe
antecede no texto (romance/diário) corresponde ao próprio discurso narrativo de Aires.
Como esclarece Fiorin (2002, p. 148), essa neutralização da oposição categórica eu/tu
a favor deste último “denega o enunciado”, e isso “justamente porque o enunciado é afirmado
com uma debreagem prévia”. Por conseguinte, promove-se um retorno “à instância que o
precede e é pressuposta por ele”, com a embreagem logrando um efeito de identificação entre
as categorias de pessoa, espaço e tempo do enunciado e da enunciação.
Em relação à embreagem espacial, ela opera neutralizações (subversões) na categoria
de espaço, como podemos observar no enunciado (35).
(35) Concordei que Nova Friburgo era deliciosa, e concluí por estas palavras: “Quando descer
venha almoçar comigo; falaremos de lá e de cá”.
(MA, p. 1.137).
Em (35), o advérbio encerra valor de , indicador de proximidade de objeto ou
referência espacial em relação ao enunciatário (tu). Daí dizermos que ocorre uma
neutralização da categoria de espaço, com a introdução no enunciado de um indicador de
espaço (), situado fora da cena de enunciação (espaço do eu/tu).
Já a embreagem temporal consiste na neutralização (subversão) da categoria de tempo.
Fiorin (2002, p. 51) cita a frase “Em Minas, o futuro é agora” lida num outdoor em Minas, em
que se segue à debreagem temporal conotadora de posterioridade enunciativa instaurada pelo
substantivo futuro a embreagem processada pelo dêitico agora, significando concomitância
em relação ao momento presente da enunciação (verbo ser/ “é” no presente do indicativo).
Semelhante mecanismo podemos apreender no enunciado (36), a despeito da embreagem se
processar desta feita entre as categorias temporais do presente e passado.
(36) Tudo serão modas neste mundo, exceto as estrelas e eu, que sou o mesmo antigo sujeito,
salvo o trabalho das notas diplomáticas, agora nenhum.
(MA, p. 1.111).
67
No caso de (36), à forma verbal sou (presente), em concomitância com o momento da
enunciação, segue-se uma expressão predicativa (= o mesmo sujeito antigo) conotadora de
anterioridade enunciativa. No plano do sentido, instaura-se um tempo passado com
precedência sobre o presente.
Correspondem os casos até agora analisados a embreagens homocategóricas, isto é,
em que debreagem e embreagem se processam na esfera de uma categoria única de pessoa,
espaço ou tempo. Conforme Fiorin (2002, p. 50), “a embreagem em que as categorias
presentes na debreagem e na embreagem subsequente são distintas é chamada embreagem
heterocategórica”.
(37) A briga lá ia, se a houve, o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo. (EJ, p.
951).
(38) Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo
cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos.
(MA, p.
1.115)
Em (37), deparamos inicialmente com uma debreagem espacial enunciativa a partir da
presença do adjunto adverbial (= espaço da enunciação), ao qual se contrapõe a embreagem
processada através do substantivo futuro, empregado na indicação de um tempo impreciso no
enunciado. Dessa forma, neutralizam-se as categorias de espaço e tempo, com prevalência
para esta última.
Já no enunciado (38), processa-se, por sua vez, uma neutralização das categorias de
espaço (= Brasil) e de pessoa (= povo cristão). Logo, espaço e pessoa se fundem num
processo de substituição/identificação (uma coisa é a mesma coisa em outra), priorizando-se a
categoria actancial.
Assim como a debreagem, distinguimos também embreagem enunciativa e enunciva.
Esta ocorre quando o termo embreante é enuncivo, isto é, pertence ao enunciado; aquela,
quando o termo embreante é enunciativo, ou seja, situa-se no plano da enunciação.
(39) Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou prosa, que exprima a tua
situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do Fausto, adequado [...].
(EJ, p.
983)
5
.
5
Podemos visualizar neste enunciado a imbricação entre os princípios da performatividade e da heterogeneidade
aqui propostos como postulados inextricáveis entre si. No caso, uma citação adequada do autor evocado à
personagem funcionaria (agiria) como um sucedâneo aos “embaraços” expressivos do narrador.
68
(40) Aquele dia 18 de setembro (anteontem) há de ficar-me na memória, mais fixo e mais
claro que outros, por causa da noite que passamos os três velhos.
(MA, p. 1.151).
O enunciado (39) compreende uma embreagem em que se neutraliza enunciativamente
um actante (Flora) do enunciado, transformando-o num actante da enunciação (tu/alocutário),
na função sintática de vocativo.
No enunciado (40), por sua vez, temos uma embreagem enunciativa, visto que, a partir
da introdução do advérbio anteontem (= tempo da enunciação) na sentença, neutraliza-se um
elemento (dia 18 de setembro) já debreado enuncivamente, e uma embreagem enunciva, ao se
incluir o narrador no grupo de velhos referido, a partir da silepse de pessoa processada na
forma verbal passamos (= 1ª pessoa do plural/nós), associada ao sujeito (os três velhos) da
última oração.
A exemplo também da debreagem, distinguimos, ainda, embreagem interna e externa.
No enunciado (39), fornecido a título de ilustração de embreagem enunciativa, temos um caso
de embreagem externa, com a neutralização entre a terceira pessoa (Flora = instância do
enunciado) e a pessoa do alocutário (tu), implícita na função vocativa. Já no enunciado (40),
temos exemplo de embreagem interna, cuja neutralização se processa entre a terceira e a
primeira pessoa do plural, respectivamente actantes do enunciado e da enunciação.
Para finalizar a questão dos mecanismos de instauração no enunciado das categorias
de pessoa, tempo e espaço, destacamos estas considerações de Fiorin (2002, p. 52):
Os mecanismos de debreagem e de embreagem não pertencem a esta ou àquela língua, a esta
ou àquela linguagem (a verbal, por exemplo), mas à linguagem pura e simplesmente. Da
mesma forma, todas as línguas e todas as linguagens possuem as categorias de pessoa, espaço
e tempo, que, no entanto, podem expressar-se de maneira diferente de uma língua para outra,
de uma linguagem para outra.
2.8 Pressupostos e subentendidos
Corresponde a semântica da enunciação ao campo de estudos linguísticos que se
constitui a partir das falácias verificadas no plano do significado, no âmbito da semântica
formal. Tributária das idéias de Austin e Benveniste, a semântica da enunciação foi, conforme
Guimarães (1983, p. 22) “desenvolvida por Ducrot, Anscombre e Vogt, entre outros”.
A semântica formal deixa-se iludir pelo suposto poder da linguagem (criado por ela
própria) de referir o mundo extralinguístico enquanto fundamento específico de sua
sustentação. A linguagem, na concepção de Ducrot apud Oliveira R. (2003, p. 28), “é um jogo
de argumentação enredado em si mesmo; não falamos sobre o mundo, falamos para construir
69
um mundo e a partir dele tentar convencer nosso interlocutor da nossa verdade, verdade criada
pelas nossas interlocuções”. Daí a importância que Ducrot atribui, com base em Benveniste,
ao papel do locutor ao produzir seu discurso, constituindo-se como locutor, ao mesmo tempo
que constitui seu interlocutor. Para Ducrot, revela-se fundamental, ainda, conforme
Guimarães (1983, p. 22), “a concepção da linguagem como ação e, de modo particular, a
concepção do ato ilocucional como um ato jurídico”. Através deste, o locutor transforma o
contexto interacional em relação ao destinatário. Numa situação de interação, por exemplo,
entre chefe e subordinado, um enunciado como Feche a porta impõe ao destinatário as
alternativas únicas de cumprir ou não essa ordem, ou seja, inaugura para o subordinado uma
situação nova. Mas, ao mesmo tempo, também o locutor vai ter modificada sua relação com o
destinatário, constituído por ele na sua enunciação. Para Ducrot apud Maingueneau (1987, p.
31), “a língua comporta, a título irredutível, um catálogo completo de relações inter-humanas,
toda uma coleção de papéis que o locutor pode escolher para si e impor ao destinatário”.
Trata-se da sua conhecida metáfora do teatro, que, assim como o direito e o jogo, constitui
uma das fontes de extração de modelos operacionais da pragmática, na tentativa de “inscrever
a atividade da linguagem em espaços institucionais” (MAINGUENEAU, 1987, p. 29).
A partir dessa concepção de linguagem (como ação) e de ato ilocucional (como ato
jurídico), Ducrot desenvolve sua noção de pressuposição, conforme Guimarães (1983, p. 23),
“como ato ilocucional pelo qual o locutor estabelece o quadro dentro do qual o discurso deve
se desenvolver”, ou seja, “um quadro institucional a regular o debate dos indivíduos” (KOCH,
2002, p. 56). Concebendo os pressupostos pertinentes ao plano dos conhecimentos
compartilhados entre interlocutores, Ducrot considera, conforme Kerbrat-Orecchioni
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 404) que eles são “da ordem da polifonia
enunciativa”; no caso, uma espécie de vox populi os atravessa. Valendo-nos do recorrente
enunciado ducrotiano Pedro deixou de fumar, podemos constatar que, com sua enunciação,
duas coisas diferentes são ditas, isto é, o pressuposto que se fumava antes e o posto que
atualmente não se fuma. Para Ducrot, embora o enunciado em questão resulte da enunciação
produzida por um locutor único, os dois atos descritos implicam diferentes enunciadores: a
afirmação de que o locutor fumava não provém apenas de um locutor, mas de toda uma
comunidade lingüística, que pode até se identificar com a vox publica, ou restringir-se ao par
enunciativo locutor-alocutário. Por outro lado, o enunciador da segunda asserção (de que
atualmente não se fuma) correspondente ao posto, identifica unicamente o locutor do ato
integral Pedro deixou de fumar.
70
Podemos constatar que a pressuposição implica sempre, conforme Kerbrat-Orecchioni
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 405), “um suporte significante responsável
pelo pressuposto”. No caso do mesmo enunciado Pedro deixou de fumar, trata-se de um
significado lexical o elemento linguístico incumbido de veicular sua pressuposição; a saber, o
verbo transformativo deixou (deixar), que pressupõe o ato de afirmação Pedro fumava antes.
Semelhante fenômeno linguístico podemos constatar também no enunciado (41).
(41) Os gêmeos cumpriram cedo a promessa. (EJ, p. 1.049).
Em (41), incide sobre o verbo cumpriram a pressuposição de que uma promessa foi
feita. Como observa Kerbrat-Orecchioni (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.
405), “os pressupostos têm sempre, diferentemente dos subentendidos, um marcador no
enunciado, o que lhes confere uma relativa independência em relação ao contexto”. Para
Lopes (1975, p. 289), “o pressuposto pertence, de pleno direito, ao sentido literal, pois ele é
vivido como sendo inerente ao próprio enunciado, ou como uma ‘evidência’ do universo do
discurso onde a comunicação deva inscrever-se necessariamente”.
Quanto aos subentendidos, trata-se da outra importante noção discursiva na reflexão
semântico-linguística de Ducrot. Maingueneau (2000, p. 131) esclarece que “os
subentendidos, diferentemente dos pressupostos, são conteúdos implícitos pragmáticos”, ou
seja, constituem inferências engendradas a partir do contexto pelo coenunciador, que se vale
de um raciocínio mais ou menos espontâneo, com base nos princípios gerais (leis do discurso)
reguladores da atividade (utilização) da linguagem. Valendo-nos ainda do enunciado Pedro
deixou de fumar, temos, além do conteúdo implícito da afirmação Pedro fumava antes
enquanto ato pressuposto, como já descrevemos, um segundo conteúdo implícito possível,
expresso na fórmula Que isso sirva de exemplo para você (FIORIN, 2004, p. 181), enquanto
subentendido. Mas, como podemos constatar, apenas imaginando um contexto particular de
produção desse enunciado, sentimo-nos autorizados a inferir o seu conteúdo semântico-
pragmático. Isto porque, ao contrário do pressuposto, que se apresenta marcado
linguisticamente, o subentendido atualiza seu efeito de sentido
6
com base unicamente nas
circunstâncias particulares. Conforme Ducrot (1987, p. 32), “inversamente, o subentendido se
caracteriza pelo fato de que, sendo observável em certos enunciados de uma frase, não está
marcado na frase”. De acordo com Fiorin (2004, p. 181), o subentendido Que isso sirva de
6
O sentido específico que aparece em contexto e em situação, não podendo ser apreendido senão por inferência,
conforme Charaudeau (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 179).
71
exemplo para você, extraído do enunciado Pedro deixou de fumar, pode encaixar-se, por
exemplo, num contexto particular em que o locutor desse enunciado viesse relutando há
algum tempo com o interlocutor para que ele parasse de fumar. Observemos o enunciado (42).
(42) Só lhe ouvi meia dúzia de palavras algo parecidas com louvor próprio, e ainda assim
moderado. “Dizem que não escrevo inteiramente mal” encobrirá a convicção de que
escreve bem, mas não o disse, e pode ser verdade. (MA, p. 1.136).
Em (42), o narrador interpreta a fala da personagem com base num subentendido, em
relação ao qual ele próprio assume a responsabilidade da inferência.
Daí que, para Ducrot (1987, p. 41), “a pressuposição é parte integrante do sentido dos
enunciados. O subentendido, por sua vez, diz respeito à maneira pela qual esse sentido deve
ser decifrado pelo destinatário”.
Essas particularidades de um e outro implícitos acarretam algumas consequências,
digamos, “políticas” no plano do sentido dos enunciados:
a diferença entre um pressuposto e um subentendido é que aquele é uma informação
indiscutível, ou apresentada como tal , tanto para o falante quanto para o ouvinte, pois decorre
necessariamente do sentido de um marcador linguístico, enquanto este é de responsabilidade
do ouvinte
( FIORIN, 2003, p. 184).
No caso em que o deputado Álvaro Dias teria afirmado, na gestão Itamar Franco
(1992-1994), que o presidente da República selecionava os seus ministros “não por currículo,
mas por prontuário”, a fala do deputado comportaria, conforme Fiorin (2004, p. 184), o
“subentendido de que os ministros do governo Itamar Franco eram bandidos, que tinham
passagem pela polícia”. No entanto, se o deputado Álvaro Dias fosse submetido a uma
interpelação da parte de Itamar, poderia ele “afirmar que o que estava querendo dizer é que o
presidente era muito cuidadoso na escolha dos ministros e só escolhia aqueles que tivessem
uma vida absolutamente limpa, sem registro em prontuários policiais” (FIORIN, 2004, p.
184).
De todo o exposto, podemos concluir que a duplicidade de efeitos de sentido do
subentendido permite ao locutor proteger-se por detrás do sentido literal dos enunciados. No
dizer de Ducrot (1987, p. 43), “é esse processo que ilustra o subentendido: para dizer alguma
coisa, faz-se o outro dizer o que se disse”.
Neste mesmo contexto de considerações, ressalta Guimarães (1983, p. 23) a
importância do trabalho de Carlos Vogt, introdutor no Brasil, amigo e colaborador de Ducrot.
72
Para Vogt, a noção de ato ilocucional assume a dimensão de uma ação dramática, ou seja,
“ação na qual o locutor se representa de um certo modo na sua relação com o interlocutor”
(GUIMARÃES, 1983, p. 23).
Conforme Koch (2002, p. 69-70), “Vogt (1977) salienta que a pressuposição
linguística pode ser considerada como constitutiva de uma ‘espécie de tópico, de lugar da
argumentação [...] a pressuposição poderia ser vista como uma espécie de presunção de
adesão do(s) interlocutor(es), por parte do falante”.
Segundo Fávero e Koch (2002, p. 47-8), as obras de Ducrot e Vogt convergem “no
fato de considerarem o ato de argumentar como o ato linguístico fundamental, isto é,
postularem que a argumentatividade se acha inscrita sistematicamente no interior da própria
língua”.
A noção de argumentação, entretanto, no âmbito da semântica da enunciação, é
concebida, em essência, concomitantemente à noção de polifonia, o que, conforme Guimarães
(1983, p. 23), “de um certo modo, já está contida na concepção de ação ilocucional de Ducrot
e Vogt”. No dizer de Ducrot (1987, p. 9), “o sentido de um enunciado descreve a enunciação
como uma espécie de diálogo cristalizado, em que várias vozes se entrechocam”.
No capítulo 4, vamos nos deter um pouco mais nas inter-relações entre argumentação
e polifonia, fornecendo, então, alguns modelos de sua descrição linguístico-pragmática.
Por fim, cumpre ressaltar, junto com Guimarães (1983), a radicalidade que é impressa
à relação locutor-ouvinte na semântica da enunciação, o que nos autoriza, dessa forma, a falar
de uma pragmática dialógica. Conforme Guimarães (1983, p. 24), “aqui se desfigura,
totalmente, a pragmática como a relação signo-intérprete. O aspecto pragmático é, então,
tratado como fundamental para a significação. Mais especificamente, a relação dialógica é
fundamental para a significação”.
73
3 A PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM
A performatividade corresponde, como vimos defendendo, a um princípio de base da
linguagem humana. Na nossa concepção, a ele se associa de forma inextricável o postulado da
heterogeneidade enunciativa, como uma espécie de ”função”. O aspeamento do termo –
cumpre justificar – deve-se ao fato de que nesta tese rejeitamos uma concepção de linguagem
centrada invariavelmente no plano da intencionalidade do falante. Nesta pesquisa,
defendemos, conforme Récanati apud Flores et al (2009, p. 185), uma performatividade
generalizada da linguagem humana. Para nós, a linguagem é ação, e, como tal, há de sempre
promover transformação no homem e no mundo, independentemente do seu caráter invisível
ou impalpável. Acreditamos que a essa essência performativa da linguagem é que podemos
atribuir a possibilidade, por exemplo, de existência da literatura, da poesia, do monólogo, de o
indivíduo, enfim, deliberar consigo mesmo, para o bem e para o mal.
3.1 A retórica
A retórica na Antiguidade caracterizava-se, grosso modo, basicamente pelo estudo dos
raciocínios que Aristóteles, no capítulo V (“Tópicos”) do seu Organon, definiu como
dialéticos, em oposição aos raciocínios analíticos; estes suscetíveis de demonstração,
enquanto aqueles concernentes ao plano das opiniões compartilhadas “por todos, pela maior
parte dos filósofos, isto é, por todos, pela maioria, ou pelos mais notáveis e mais ilustres entre
eles” (PERELMAN, 1999, p. 22). Daí que, no contexto sociopolítico das democracias antigas,
a retórica representava mesmo uma arma necessária, o que justificava o interesse pelo seu
estudo. Nas palavras de Todorov (DUCROT; TODOROV, 1998, p. 79), “em seus primórdios,
a Retórica é acima de tudo uma técnica que deve permitir a quem a possua atingir, dentro de
uma situação discursiva, o alvo desejado; ela tem portanto um caráter pragmático: convencer
o interlocutor da justeza de uma causa”. Dessa forma, considera-se a retórica a fonte primacial
da reflexão sobre a linguagem no Ocidente.
A Arte Retórica de Aristóteles constitui um livro essencial e de significativa utilidade
ainda no universo dos estudos retóricos atuais. No entanto, cumpre observar que Aristóteles
não foi o criador (inventor) da retórica, como muitos às vezes equivocadamente aventam. A
retórica na época de Aristóteles já consistia num corpo de conhecimentos com suas categorias
e regras próprias, ainda que somente com o mestre estagirita, segundo Plebe (1978, p. 36), ela
tenha adquirido “roupagem científica”. No dizer de Citelli (1988, p. 9), “os pensadores gregos
74
de Sócrates a Platão escreveram sobre o assunto, porém é com Aristóteles que o discurso será
dissecado em sua estrutura e funcionamento”.
Associada à finalidade principal de convencer e de persuadir, entretanto, existia a
preocupação com a eloquência do discurso; a questão para os antigos não vai se restringir
apenas ao falar, mas realizá-lo de forma convincente e elegante. Conforme Citelli (1988, p.
9), “o exercício do poder, via palavra, era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte, louvado
como instância de extrema sabedoria”. Isto a despeito de o objeto da retórica na Antiguidade
consistir essencialmente na “arte de falar em público de modo persuasivo; referia-se, pois, ao
uso da linguagem falada, do discurso, perante uma multidão reunida na praça pública, com o
intuito de obter a adesão desta a uma tese que se lhe apresentava” (PERELMAN, 1996, p. 6);
multidão essa que, constituindo uma aglomeração em desordem, “não possui nenhum saber
especializado e que é incapaz de seguir um raciocínio um pouco mais elaborado”
(PERELMAN, 1999: 24). Posteriormente, a preocupação primacial da retórica com a técnica
do discurso persuasivo da retórica vai sendo substituída cada vez mais pela busca do
embelezamento do texto (discurso), o que se revela crucial no processo histórico de seu
desaparecimento enquanto disciplina destituída de interesse e valor educativo, no nosso
universo cultural. Como aponta Perelman (1999, p. 16), o discurso persuasivo dos antigos vai
se reduzir numa “retórica das figuras, consagrando-se à classificação das diversas maneiras
com que se podia ornamentar o estilo”. Em decorrência da desconfiança crescente para com
todo um aparato de recursos artificiosos de expressão, que camuflava muitas vezes a
inconsistência e o vazio das idéias, podemos ainda hoje constatar a persistência de uma visão
negativa da retórica como mero receituário de técnicas de enfeite do estilo. A propósito da
questão, observemos a ironia do narrador no enunciado (1).
(1) A constituição, se fosse gente viva e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais contrários
deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a
própria Minerva nascida da cabeça de Jove. Falo por metáfora para não descair do estilo.
(EJ, p. 1.054).
Como observa Soares (1968, p. 5),
O que importa, por conseguinte, não é que a expressão atinja o espírito, mas que soe bem ao
ouvido. Mesmo a prosa parece destinar-se à declamação, que acaba se tornando um termo
pejorativo em boca de Machado, que assim designa todas as manifestações de rebuscamento
na linguagem, de impropriedade enfática.
75
A propósito, podemos nos ater na seguinte passagem do Memorial, expressa no
enunciado (2).
(2) Nas duas ou três moléstias que o pequeno teve, a aflição de D. Carmo foi enorme. Uso o
próprio adjetivo que ouvi ao Campos, conquanto me pareça enfático, e eu não amo a
ênfase. Confesso aqui uma coisa. D. Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer
que “são doidas por morangos”, nem que “morrem por Mozart”. Nela a intensidade
parece estar mais no sentimento que na expressão. (MA, p. 1.107).
No enunciado (3), o narrador informa-nos da sua verdadeira concepção de estilo.
(3) Ora bem, a viúva Noronha mandou uma carta a D. Carmo, documento psicológico,
verdadeira página da alma. Como eles tiveram a bondade de mostrar-ma, dispus-me a
achá-la interessante, interessante deveras, disse-o, reli alguns trechos. Não tem frases
feitas, frases rebuscadas; é simplesmente simples, se tal advérbio vai com tal adjetivo;
creio que vai, ao menos para mim. (MA, p. 1.128).
No enunciado (4), entretanto, o narrador parece ironizar agora a sua própria
preocupação estilística com o emprego equilibrado das figuras.
(4) Desta maneira pudemos ouvir palpitar o coração aos dois, – hipérbole permitida para dizer
que em ambos nós, em mim ao menos, repercutia a felicidade daqueles vinte e cinco anos
de paz e consolação. (MA, p. 1.102).
3.1.1 A retórica de Aristóteles
Podemos considerar a Arte retórica de Aristóteles como uma espécie de testamento de
sua obra devotada aos estudos argumentativos. Nas palavras de Citelli (1988, p. 9), “a obra
pode ser considerada uma espécie de síntese das visões que se acumulavam em torno dos
estudos retóricos, assim como um guia dos modos de se fazer o texto persuasivo”. Trata-se de
considerações que podemos antever ainda na sua própria definição da retórica: “Assentemos
que a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar
a persuasão [...] a Retórica parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada
questão, descobrir o que é próprio para persuadir” (ARISTÓTELES, 1998, p. 33).
Quanto à relação entre a retórica e a dialética anteriormente esboçada, esta constitui
uma questão posta à baila logo na abertura da Arte retórica: “A Retórica não deixa de
apresentar analogias com a Dialética, pois ambas tratam de questões que de algum modo são
da competência comum de todos os homens, sem pertencerem ao domínio de uma ciência
determinada” (ARISTÓTELES, 1998, p. 29). Para Aristóteles, no entanto, as argumentações
76
da maioria dos homens processam-se espontaneamente, ou seja, geralmente sem o rigor
característico dos raciocínios sistematizados, enquanto a retórica deve consistir numa técnica
que equivale a uma verdadeira arte da argumentação. Esta, contudo, não se confundia com a
lógica, terreno das demonstrações irrefutáveis, logradas a partir de raciocínios que se
encaminham para a representação (clarificação) de evidências. À retórica interessavam em
primeira mão os raciocínios convincentes, independentemente da sua suscetibilidade a
refutações, o que, no entanto, de longe significava, como acima observado, atribuir-lhe
ausência de rigor metodológico. Pelo contrário, Aristóteles (1998, p. 34-5) não estabelece
diferenças entre as naturezas metódicas da argumentação retórica e das demonstrações
inerentes às ciências lógicas, políticas e naturais:
[...] atendendo a que nenhuma arte encara o particular – por exemplo, a Medicina não procura
o tratamento que convém a Sócrates ou a Calias, mas sim o tratamento que convém ao homem
e ou aos homens de tal compleição (e essa é a função da arte, ao passo que o particular é
indeterminado e não constitui objeto de ciência) –, também a Retórica não encarará
teoricamente o provável para cada indivíduo, por exemplo, para Sócrates ou Hípias, mas sim
o provável para homens desta ou daquela condição, e nisso se assemelha a Dialética.
Para Plebe (1978), a Arte retórica representa o pensamento maduro de Aristóteles,
articulado, por assim dizer, num livro em três livros (“Livro Primeiro”, “Segundo” e
“Terceiro”).
Quanto ao livro I, este constitui essencialmente uma exposição pormenorizada da
teoria retórica antiga: definição do objeto, método, conceitos teóricos, funções, gêneros,
lugares, provas, as verossimilhanças e os sinais (indícios).
Relativamente ao livro II, este se caracteriza basicamente pelo estudo detalhado das
paixões, dos caracteres e do raciocínio indutivo na demonstração retórica, em oposição ao
raciocínio dedutivo privilegiado no livro I.
No que concerne ao livro III, Aristóteles consagra a este o estudo da forma, “a teoria
do estilo”, nas palavras de Plebe (1978, p. 49): as diferentes partes do discurso, a
expressividade, a correção, a propriedade, o ritmo e a elegância do estilo, entre outras
questões estilístico-formais.
A título de conclusão, cumpre considerar ainda as relações da retórica aristotélica com
a ética e a política, assim como a questão da “sua teoria do cômico oratório”, na expressão de
Plebe (1978, p. 52). Quanto ao primeiro aspecto, consideramos significativo o seguinte
enunciado, extraído do capítulo XI do livro I: “Há muitas coisas que desejamos ver e adquirir,
porque ouvimos falar delas e porque nos deixamos persuadir de seus encantos”
77
(ARISTÓTELES, 1998, p. 70), o que significa que as sensações de prazer e desprazer,
associadas à ação humana, podem ser diretamente influenciadas pela retórica. Já em relação
ao aspecto do chiste retórico, Aristóteles aprecia tal questão no capítulo XI do livro III,
considerando-a nos tanto planos da homonímia quanto da paronímia, dos empregos dos
provérbios e do diminutivo, dos jogos de palavras e das figuras, como, por exemplo, as
metáforas e as hipérboles. Para Aristóteles (1998, p. 199), “as mais das expressões engraçadas
provêm da metáfora e de uma certa mistificação notada em seguida pelo ouvinte; ele apreende
tanto mais manifestamente que ficou sabendo alguma coisa, quanto o objeto é muito diferente
do que ele esperava”. No plano do jogo de palavras, observemos em (5) a consideração do
conselheiro Aires quanto à personagem Fidélia, viúva supostamente fiel a seu luto, em relação
a um novo casamento.
(5) – O nome não basta para não casar. (MA, p. 1.098).
3.1.2 A retórica de Perelman
Os trabalhos de Perelman apresentam um caráter teórico inovador no campo dos
estudos sobre a argumentação, empreendidos a partir da segunda metade do século XX. Seu
monumental Tratado da argumentação, realizado em parceria autoral com Lucie Olbrechts-
Tyteca, tem como subtítulo A nova retórica, e data em primeira edição de 1958. Em prefácio
próprio de sua Breve história da retórica antiga, obra já mencionada aqui neste trabalho,
Plebe (1978) diz que Perelman “vê na retórica uma disciplina ora estética, ora sociológica, ora
semântica ou, por fim, com um termo que perde cada vez mais uma acepção precisa,
‘filosófica’”.
Com base principalmente na retórica aristotélica e na de toda a tradição greco-latina,
Perelman (1999, p. 15) ratifica que
os domínios em que se trata de estabelecer aquilo que é preferível, o que é aceitável e
razoável, os raciocínios não são nem deduções formalmente correctas nem induções do
particular para o geral, mas argumentações de toda a espécie, visando ganhar a adesão dos
espíritos às teses que se apresentam ao seu assentimento.
Dessa forma, Perelman questiona o desaparecimento histórico sofrido pela técnica do
discurso persuasivo na cultura ocidental, assim como as razões de a retórica nesse contexto ter
sido reduzida exclusivamente à atividade de classificação de figuras e das diversas maneiras
de ornamentação do estilo.
78
Nas palavras de Gérard Genette apud Perelman (1999, p. 17),
A Retórica de Aristóteles não se pretendia ‘geral’ (e ainda menos ‘generalizada’); ela era-o, e
de tal modo o era na amplitude de sua intenção, que uma teoria das figuras ainda aí não
merecia qualquer menção particular; algumas páginas apenas sobre a comparação e a
metáfora, num livro (em três) consagrado ao estilo e à composição, território exíguo, cantão
afastado, perdido na imensidão de um Império.
No tocante à acima mencionada redução da retórica a uma teoria dos tropos, Ricoeur
apud Perelman (1999, p. 18) observa que “a retórica perdia ao mesmo tempo o nexus que a
ligava à filosofia através da dialéctica; perdida essa ligação, a retórica tornou-se uma
disciplina errática e fútil”. Para ele, a morte da retórica está associada à substituição desse seu
sentido filosófico original pelo gosto posterior de classificação das figuras.
Na concepção de Perelman (1999, p. 19), o exame das figuras indiferente a sua função
argumentativa torna-as tão-somente figuras de estilo, isto é, “ornamentos respeitantes apenas
à forma do discurso”. Daí rejeitar uma retórica das figuras em que não se considera
devidamente o contexto argumentativo.
No entanto, a maior contribuição de Perelman no empreendimento contemporâneo de
reabilitação da retórica consiste na sua proposta de constituição de uma lógica dos juízos de
valor. Eis como a questão se apresenta inicialmente a ele: “Como se pode raciocinar sobre
valores? Existem métodos racionalmente aceitáveis que permitam preferir o bem ao mal, a
justiça à injustiça, a democracia à ditadura. Insatisfeito com a resposta céptica dos
positivistas, pus-me em busca de uma lógica dos juízos de valor” (PERELMAN, 1999, p. 14).
Num estudo intitulado Da justiça – publicado em 1945 e apoiado num espírito
confessadamente positivista – Perelman (1999, p. 13) havia concluído “uma regra de justiça
formal segundo a qual ‘os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da
mesma forma’”. Mas a questão que se lhe impunha era “como distinguir o que é essencial do
que o não é, o que é importante do que é negligenciável?” Perelman acabava de se convencer
de que tal distinção só se fazia possível mediante juízos de valor. Negando-se a conceber “os
juízos de valor primitivos, os princípios da moral e de toda a conduta, [como] puramente
irracionais, expressão das nossas tradições, dos nossos preconceitos e das nossas paixões”,
Perelman (1999, p. 14) consagra-se à tarefa de constituir uma lógica dos juízos de valor,
elegendo como corpus para suas análises os textos de moralistas, políticos, oradores, etc. que
privilegiam determinado padrão de conduta. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, em prefácio à
edição brasileira do Tratado da argumentação (1996),
79
Perelman percebe que considerar irracional a aplicação do direito importa renunciar a
qualquer filosofia prática e abandonar da conduta humana ao sabor de emoções e interesses,
quer dizer, confiá-la à violência. Insatisfeito com a afirmação da irracionalidade da aplicação
do direito, Perelman elege como projeto teórico a pesquisa de uma “lógica dos julgamentos de
valor”. Daí nascerá a nova retórica.
Nas palavras do próprio Perelman (1999, p. 172), “A argumentação filosófica, como a
argumentação jurídica, constitui aplicações, a donios particulares, de uma teoria geral da
argumentação que nós consideramos como uma nova retórica”. E mais adiante na mesma
página: “Desde que uma comunicação tenda a influenciar um ou várias pessoas, a orientar os
seus pensamentos, a excitar ou a apaziguar as emoções, a dirigir uma acção, ela é do domínio
da retórica”.
3.2 A filosofia da linguagem
O estudo da dimensão pragmática da linguagem tem seu nascedouro e
desenvolvimento num plano exterior à linguística, especificamente nos estudos dos lógicos ou
filósofos da linguagem. Para estes, a natureza da linguagem – frequentemente mais geradora
de confusão do que esclarecimento – constituía potencialmente a causa dos problemas da
filosofia. Daí se instaurar no seu âmbito uma intensa busca de formulação de uma linguagem
de base lógica, que respondesse ao problema do significado de modo a fornecer subsídios à
ciência, tanto no plano cognitivo-ontológico quanto na esfera de legitimação (justificação) das
teorias.
Consequentemente, a expressão filosofia da linguagem passou a nomear o campo de
trabalho dos filósofos cujo desiderato era a descoberta de uma linguagem exata e comum.
Segundo Costa (2003, p. 8),
há historicamente duas espécies de filosofia da linguagem: a filosofia da linguagem ideal e a
filosofia da linguagem ordinária. A filosofia da linguagem ideal é influenciada pela lógica
simbólica desenvolvida a partir de Frege, principalmente pelo cálculo dos predicados. O
objetivo é revelar, por trás das sentenças de nossa linguagem natural, sua verdadeira estrutura
lógica, aquilo que é verdadeiramente pensado.
Eis as duas correntes que essencialmente constituem a filosofia da linguagem no
século XX: a filosofia da linguagem ideal (semântica clássica) e a filosofia da linguagem
ordinária, as quais, devido à interseção de concepções entre ambas, podemos situar
conjuntamente no âmbito da filosofia analítica.
Segundo Dummett apud Nef (1995, p. 135),
80
o que distingue a filosofia analítica em seus diversos aspectos de outras correntes filosóficas
é, em primeiro lugar, a convicção de que uma análise filosófica da linguagem pode levar a
uma explicação filosófica do pensamento, e em segundo lugar, a convicção de que esta é a
única maneira de se chegar a uma explicação global.
Quanto à filosofia da linguagem ordinária, trata-se da orientação que se propõe
investigar a estrutura funcional da linguagem do cotidiano, e vai revelar-se tributária da
segunda fase do pensamento de Wittgenstein (1889 – 1951), filósofo austríaco, reconhecido
por muitos como o mais importante filósofo do século XX. Ao lado de G. Frege e Russel,
Wittgenstein representa uma das fontes principais da filosofia analítica.
Frege (1848 – 1925), lógico e filósofo alemão, criador da moderna lógica matemática,
considerava que o sentido de uma frase encerra-se, fundamentalmente, em sua parte passível
de se submeter a um procedimento de verificabilidade em relação ao mundo real
representado, ou seja, “o sentido de uma frase é o pensamento, a idéia que ela expressa, só na
medida em que tal pensamento tenha a ver com o valor de verdade” (COSTA, 2003, p. 14).
Por valor de verdade de uma sentença, entende “a circunstância de ela ser verdadeira ou falsa.
Não há outros valores de verdade” (FREGE, 1978, p. 69).
Para Frege (1978), as características da linguagem natural constituem barreiras para a
expressão exata e inconfundível do sentido veiculado por uma frase. Daí que a linguagem,
segundo Frege, não comporta apenas a função de exprimir pensamentos exatos, mas também
a de intercambiar emoções, privilegiando o plano da imaginação, como o faz o narrador, entre
muitos outros trechos do seu diário, no enunciado (6).
(6) Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me,
acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te
reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa do sétimo dia, ou antes, ou ainda antes
do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.
(MA, p. 1.113-4).
A principal contribuição de Frege (1978) à filosofia da linguagem consiste na
elaboração de uma esclarecedora teoria acerca da natureza do significado. A base dessa teoria
situa-se, essencialmente, na sua distinção entre significado (= sentido/Sinn) e a referência ou
significação (Bedeutung) das expressões. O sentido de uma frase para Frege corresponde a
algo suscetível de modificação com a substituição das partes da frase por outras com sentido
diferente, a despeito da unicidade da referência. A propósito, eis as suas próprias palavras:
“Se substituirmos uma palavra da sentença por uma outra que tenha a mesma referência, mas
sentido diferente, isto não poderá ter nenhuma influência sobre a referência da sentença. No
entanto, vemos em tal caso que o pensamento muda” (FREGE, 1978, p. 67).
81
Daí que não se identificam os sentidos das expressões estrela da manhã/estrela da
tarde nas frases A estrela da manhã é Vênus/A estrela da tarde é Vênus, exemplo já clássico
tomado a Frege, apto a invalidar a tese dos empiristas lógicos, para quem essas duas noções se
identificavam. Logo, para Frege, a referência de Estrela da Tarde e Estrela da Manhã seria
única, mas os sentidos diferentes.
Para Frege, a referência de uma frase consiste na circunstância em que se pode
considerá-la verdadeira ou falsa. Em outras palavras, o valor de verdade de uma frase é que
constitui sua referência: a frase A estrela da manhã é Vênus, no caso, revela-se verdadeira,
enquanto falsa a frase A estrela da manhã é Mercúrio.
Conforme Carneiro (1999, p. 137),
ao fazer a separação entre a análise lógica da linguagem necessária à expressão do
pensamento e a análise da linguagem ordinária, Frege abriu maiores possibilidades de
compreensão do papel da linguagem na solução dos problemas filosóficos e despertou os
argumentos pragmáticos favoráveis à necessidade de contextualização da linguagem para que
se alcancem os sentidos do mundo representado ou interpretado.
Russell (1872 – 1970) é um dos pensadores mais influenciados pelas idéias de Frege.
Diferentemente deste, entretanto, não propõe diretamente uma língua instrumental de
expressão exata do pensamento, mas, antes, a equivalência entre significado e referente
(objeto), prescindindo da noção de sentido, o que, por sua vez, dialoga intrinsecamente com a
concepção russelliana de duas modalidades de conhecimento: conhecimento direto ou por
familiaridade (knowledge by acquaintance) e conhecimento por descrição.
Compreendemos por conhecimento por familiaridade o conhecimento imediato dos
elementos (dados) que afetam nossos sentidos, denominados por Russell (1989) de sense-
data, por exemplo, cor, forma, odor, etc., assim como os dados de memória, que nos guiam
em relação aos fatos passados e ao nosso próprio conhecimento acumulado. Outro tipo de
conhecimento, ainda, refere-se às idéias enquanto conceitos gerais (brancura, diversidade,
semelhança, etc.).
o conhecimento por descrição equivale aos diversos juízos de valores sobre os
objetos físicos, o eu e outras mentes, que traduzimos, de forma complexa, através de quase
totalidade de nossas frases. Estas, para Russell, constituem construções lógicas, ou seja,
representações simbólicas equivalentes a conjuntos de entidades que se nos revelam
familiares, como no caso dos sense-data. Russell, no dizer de Nef (1995, p. 140), “não
constrói diretamente uma língua do pensamento puro, mas limita o uso da lógica dos
82
predicados a um papel de paráfrase dos enunciados, que visa tornar explícita a sua forma
lógica”.
É a esse procedimento de análise que Russell (1989a, p. 54) chama de “atomismo
lógico”:
A lógica que defenderei é atomista, enquanto oposta à lógica monista das pessoas que mais ou
menos seguem Hegel. Quando digo que minha lógica é atomista, quero dizer que participo da
crença do senso comum de que existam muitas coisas separadas; não considero a aparente
multiplicidade do mundo como consistindo simplesmente em etapas e divisões irreais de uma
única Realidade indivisível. Resulta disso que uma parte considerável do que se deveria fazer
para justificar a espécie de filosofia que quero defender consistiria em justificar o processo da
análise.[...]. A razão pela qual chamo a minha doutrina de atomismo lógico é porque os
átomos aos quais desejo chegar como a espécie de último resíduo da análise são átomos
lógicos e não átomos físicos. Alguns deles serão o que chamo ‘particulares’ – coisas tais
como pequenos sinais de cores ou sons, coisas momentâneas – e alguns deles serão
predicados ou relações e assim por diante. O propósito é que o átomo ao qual desejo chegar é
o átomo da análise lógica, não o átomo da análise física.
Nesse “atomismo lógico”, a análise das sentenças (frases) da língua revelaria
elementos simples da realidade, concebidos, no plano da linguagem, como “signos atômicos”,
isto é, partículas representativas, apreendidas a partir de nosso conhecimento por
familiaridade, base por excelência do processo cognitivo-ontológico como um todo. Esses
elementos básicos, por sua vez, configurariam o que Russell concebia como “fatos atômicos”.
Para ele, uma sentença, como, por exemplo, “Isso é branco” poderia representar um fato
atômico.
Quanto à questão do significado, Russell (1989), em sua teoria da descrição,
postulava que a proposição representa diretamente o estado de coisas, ao contrário de Frege,
que não prescindia nunca da mediação do sentido. Strawson (1989) expôs a confusão de
Russel em torno dos conceitos de significação e referência de um enunciado, ao identificar o
caráter significativo de um enunciado com o fato de ele comportar alguma referência. Para
Strawson (1989), só o uso poderia conferir uma referência com valor de verdade a uma
expressão.
Em essência, a filosofia de Russell amalgama inextricavelmente teoria do
conhecimento, filosofia da linguagem e ontologia. Conforme Nef (1995, p. 141), “De fato, a
sua posição filosófica, que é a do atomismo lógico, tem um ponto de partida lógico, que é
aplicado depois ao conhecimento, à linguagem e ao mundo”.
Wittgenstein (1889 – 1951), austríaco, é reconhecido por muitos como o filósofo mais
influente do século XX. Podemos reconhecer duas faces completamente díspares na filosofia
wittgensteiniana: a primeira, desenvolvida na sua única obra publicada em vida, o Tractatus
83
logico-philosophicus (1921), ainda sob a influência logicista-filosófica de Frege e Russell; e a
segunda, desenvolvida principalmente nas obras Investigações filosóficas (1953) e Sobre a
certeza, produção dos seus últimos anos de vida sobre temas epistemológicos. Conforme
Costa (2003, p. 26),
o objetivo principal do Tractatus é explicar a natureza de nossa linguagem representativa ou
factual. Explicar como podemos, através da linguagem, representar e compreender o mundo:
como a linguagem se torna significativa; como o nosso pensamento se relaciona a ela.
Wittgenstein acreditava ter encontrado, na análise da linguagem, a chave de uma questão
central em toda a história da filosofia: a questão do conhecimento.
Podemos visualizar na arquitetura do Tractatus o desenvolvimento de três níveis: 1) da
ontologia atomista dos estados de coisas, dos fatos; 2) da proposição e o pensamento; 3)
daquilo de que não se pode falar.
Wittgenstein, no Tractatus, desenvolve a chamada teoria pictorial da frase, visando a
explicação do conúbio entre a linguagem e o mundo. A verdadeira essência da linguagem
constitui uma busca de isomorfismo entre proposições e estados de coisas, ou seja,
todas as proposições dotadas de significado são funções de verdade de proposições
elementares;todas as relações lógicas devem-se a uma composição vero-funcional. Ao
explicar as proposições elementares, a teoria pictórica explica a base da representação e da
lógica
(GLOCK, 1998, p. 350).
Para Wittgenstein (1995, p. 36), entretanto, as proposições constituem estruturas
representativas dos estados de coisas, mas não podem representar a estrutura do seu próprio
modo de representação da realidade, cabendo-lhe apenas a possibilidade de afigurá-la: ao
quadro não se atribuiria o poder de representar a sua própria forma de representação; ele
apenas a designa, ou seja, a proposição informa-nos sobre o modo de ser de uma coisa, mas
não se lhe faculta poder dizer que uma coisa é: ela a representa:
2.17 O que a imagem tem que ter em comum com a realidade para a poder representar
pictorialmente – verdadeira ou falsa – do seu modo e maneira, é a sua forma da representação
pictorial.
2.172 A imagem não pode porém representar pictorialmente a sua forma de representação
pictorial; exibe-a.
Um segundo limite do dizível corresponde ao plano do inexprimível, ou seja, ao fato
de que determinadas proposições não referem nada sobre o mundo, como, por exemplo, as
proposições forjadas no universo da ética e da estética. Nas palavras do Wittgenstein do
Tractatus (1995, p. 64),
84
4.121 A proposição não pode representar a forma lógica, esta espelha-se nela.
O que se espelha na linguagem, ela não pode representar.
O que se exprime na linguagem, nós não podemos exprimir através dela.
A proposição mostra a forma lógica da realidade.
Aponta para ela.
A filosofia, entretanto, para o Wittgenstein do Tractatus (1995, p. 62-63), consiste
numa atividade de elucidações, isto é, “ela denotará o indizível, representando claramente o
dizível”.
No Tractatus, a concepção pictorial da linguagem é complementada por uma teoria do
significado.
O significado (Bedeutung) de um signo simples, de um nome, é o objeto simples por ele
representado. Se um nome tem significado, o objeto que ele nomeia existe. Essa concepção
referencial do significado não pode ser estendida a frases. Pois, se o sentido de uma frase
fosse aquilo que ela representa – o fato –, então frases falsas não teriam significado – pois elas
não correspondem a fato algum. (COSTA, p. 32-3).
Daí que, para Wittgenstein (1995), o sentido (Sinn) de uma frase corresponde ao
possível fato por ela representado. Além disso, pode ocorrer mesmo de uma frase falsa
representar uma situação imaginável de intercâmbio entre objetos, ou seja, um fato
interpretável. Em contrapartida, como ressalta Costa (2003, p. 33), numa frase como “O
quadrado redondo não é redondo”, não se pode depreender nenhum sentido, isto é, nenhum
fato concebível.
Conforme sintetiza Nef (1995, p. 148), “no Tractatus, a significação da linguagem
provém da ligação entre ela e a realidade, segundo uma teoria representacional”.
Abandonando, a partir dos anos 30, a estreiteza da concepção da linguagem como
figuração especular da estrutura da realidade, Wittgenstein inaugura a segunda fase do seu
pensamento filosófico.
Ao considerar a multiplicidade dos fenômenos da significação no plano da linguagem
ordinária (= corrente), em que se constata a impossibilidade de análise de atos como dar
ordens, interrogar, dar o endereço etc., nos termos da teoria representacional,
Wittgenstein propõe substituir a equivalência entre significado e verdade (a significação de
uma expressão consiste em que condições ela é verdadeira, isto é, em que condições ela
exerce a sua função de referência) por uma nova equivalência: a da significação e do uso,
segundo o slogan bem conhecido “a significação é o uso”
(NEF, 1995, p. 148).
Para o Wittgenstein das Investigações (1995), só se forja o sentido das nossas
expressões nas situações concretas de uso, ou seja, no contexto global de sua enunciação.
85
Como observa Carneiro (1999, p. 148), trata-se de “uma adesão à abordagem pragmática da
linguagem”.
Entretanto, “a palavra ‘uso’ (Gebrauch) não deve ser entendida nem no sentido de um
uso arbitrário, não mediado por regras nem no sentido mais comum de uso como mera ação
de proferir corretamente a expressão” (COSTA, 2003, p. 38). Para o segundo Wittgenstein, o
significado de um signo não consiste na sua associação a um objeto, mas na especificação do
seu uso, regido por regras particulares. Conforme comenta Glock (1998, p. 359-360),
“aprendemos o significado das palavras aprendendo como utilizá-las, da mesma forma que
não aprendemos a jogar xadrez associando peças a objetos, mas antes aprendendo como as
peças podem ser movidas”. Daí talvez Wittgenstein empregar, às vezes, como observa Costa
(2003, p. 39), “a expressão modo de uso (Gebrauchsweise), o que sugere que aquilo que
efetivamente entende por ‘uso’ de uma expressão é a maneira, o modo como ela foi usada”.
Na fase convencionalmente concebida como segundo período da filosofia
wittgensteiniana (1995, p. 177), as noções fundamentais não se situam mais no plano da
representação e da lógica, mas no da regra, do jogo, de uma gramática filosófica: “Chamarei
também ao todo formado pela linguagem com as actividades com as quais está entrelaçada o
‘jogo de linguagem”.
Como observa Costa (2003, p. 40),
para o Wittgenstein das Investigações Filosóficas nossa linguagem é divisível em um sem-
número de sublinguagens, regiões, domínios mais ou menos específicos da linguagem natural
ou técnica, que podem ser considerados jogos de linguagem naturais, diversamente dos jogos
de linguagem da ciência.Tais jogos de linguagem podem em geral ser concebidos como
sistemas localizados de regras lógico-gramaticais determinadoras dos usos das expressões que
neles incorrem.
O surgimento do termo jogo de linguagem dá-se a partir de 1932, quando Wittgenstein
estende a noção de jogo à linguagem tomada como um todo. Para Glock (1998, p. 229), esta
constitui sua idéia mais importante. Isto porque se pode conceber que a cada jogo de
linguagem humano corresponde uma forma de vida. O exemplo clássico mais simples de jogo
de linguagem colhido em Wittgenstein (1995, p. 173) consiste no diálogo entre construtores
(um pedreiro e seu ajudante) com base nas palavras tábua, lajota, tijolo, as quais proferidas
pelo primeiro fazem com que o segundo lhe apresente os objetos a elas correspondentes. Daí
que, conforme ressalta Costa (2003, p. 40), “ao jogo pertencem não só as palavras, mas os
participantes, os objetos e outros elementos contextuais”. No dizer de Wittgenstein das
Investigações (1995, p. 189), “A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de
que falar uma língua é parte de uma actividade ou de uma forma de vida”.
86
Dessa forma, falar em jogo de linguagem implica referir uma forma de vida. Como
observa Glock (1998, p. 229), as atividades linguísticas dos construtores são tão cruciais para
suas vidas quanto são essenciais para as nossas a medição e o raciocínio indutivo: “Nossos
jogos de linguagem estão imersos em nossa FORMA DE VIDA, as práticas gerais de uma
comunidade”.
Para Cardoso (2003, p. 44), o segundo Wittgenstein corresponde a uma espécie de
guia intelectual tanto dos filósofos de Oxford quanto de toda a pragmática, ao defender, nessa
segunda fase de sua filosofia, uma concepção de linguagem enquanto, concomitantemente,
uso e ação. Na interpretação de Marcondes (2004, p. 43), as noções de jogo de linguagem e
de uso acarretam a indeterminação do significado, “Os resultados da análise são sempre
provisórios e parciais. Não existe sequer um único método filosófico, mas sim diferentes
métodos, como diferentes terapias, dependendo dos tipos de problemas a serem analisados”.
Austin (1911 – 1960), inglês, é considerado um dos principais representantes da
filosofia analítica. Sua obra consiste essencialmente num desenvolvimento e sistematização
particular e original da concepção wittgensteiniana de linguagem enquanto uso e ação.
Também Austin, seguindo uma tradição analítica que remonta tanto a Frege quanto a Russel,
vai considerar que muitos dos problemas filosóficos têm sua fonte em mal-entendidos
terminológicos e na ausência de clareza da definição dos conceitos empregados.
Daí que, segundo Austin (1989, p. 26),
8 Nomear erradamente não é uma questão trivial ou divertida. Se assim procedo, eu deverei
confundir os outros, e deverei também entender erroneamente as informações que recebo dos
outros. ‘Claro que sabia perfeitamente tudo sobre suas condições, mas nunca pensei que fosse
diabetes – pensava que era câncer e todos os autores concordam que é incurável – se apenas
tivesse sabido que era diabetes, pensaria prontamente em insulina’. Saber o que uma coisa é,
é, em grande parte, saber como nomeá-la, e como nomeá-la corretamente.
Considerando as palavras como “nossas ferramentas”, o ponto de partida seria a
análise da linguagem como um meio de lograr certo esclarecimento do significado das
expressões em torno da caracterização de um problema filosófico. Para Austin, a linguagem
ordinária (natural ou corrente) constitui a verdadeira fonte de reflexão para a teoria do
conhecimento, incorporando a priori suas significativas distinções epistêmicas, condição que
liberta o analista (ou filósofo) da necessidade de inventar uma terminologia complicada.
Segundo Cardoso (2003, p. 99-100), a proposta central de Austin é a superação da
oposição clássica radical concebida entre língua e mundo. Para tanto, vale-se Austin da
tentativa de transcender o conceito clássico de significado (= sentido + referência), em
conformidade com uma concepção de linguagem enquanto um complexo constituído de
87
elementos do contexto, convenções de uso e intenções do falante. A consciência da
necessidade de superação de uma teoria do significado impulsionaria Austin no sentido de
uma teoria da ação.
Como ponto de partida, Austin não se vale de frases, mas de proferimentos
(utterances): atos de produção de frases num circuito de troca concreto entre falantes e
ouvintes. Corresponde essa elaboração de análise da linguagem ao que Austin chamou teoria
das forças ilocucionárias e que se notabilizou como teoria dos atos de fala, exposta a partir
da lição VIII de uma série de doze conferências de Austin, proferidas na Universidade de
Harvard (EUA – 1955) e publicadas postumamente em How to do things with words, de 1962.
A teoria das forças ilocucionárias corresponde a uma substituição da por vezes
chamada teoria dos performativos, que estabelecia a distinção entre proferimentos
performativos – com os quais em essência se realizam ações, ainda que gramaticalmente
apresentem a forma de declaração – e proferimentos constativos – com os quais se constata
(verifica) algo. Aos primeiros, Austin atribui a impossibilidade de se lhes conferir um valor de
verdade, isto é, de se julgá-los como enunciados falsos ou verdadeiros, enquanto os últimos se
caracterizam, em essência, justamente pela possibilidade de se submeterem à constatação de
sua equivalência ou não com os fatos do mundo real. No que concerne à posterior dissolução
da distinção mencionada acima, eis as próprias palavras já premonitórias de Austin (1990, p.
35): “[...] quanto mais consideramos uma declaração, não como uma sentença ou proposição,
mas como um ato de fala (a partir do qual os demais são construções lógicas), tanto mais
estamos considerando a coisa toda como um ato”. Por ocasião do encontro de Royamont
(França, 1958), Austin apresenta o texto escrito em francês “Performatif-Constatif”, no qual
declara praticamente insustentável a dicotomia perfomativo/constantivo: “Temos talvez a
necessidade de uma teoria mais geral dos atos de fala e nesta teoria nossa antítese constativo-
performativo terá dificuldade para sobreviver” (OTTONI, 1998, p. 119). Quando abordarmos
mais adiante especificamente a pragmática ilocucional (3.3.5), procederemos à tarefa de
descrever categoricamente os nossos atos de fala. Como observa Cardoso (2003, p. 100), “não
é mais a verdade que se busca, mas o sentido ou a eficácia dos nossos atos de fala. A questão
que agora se coloca é: quais são as condições de sucesso de nossos atos?”.
Entendemos por condições de sucesso a completa adequação das enunciações
performativas ao conjunto das circunstâncias concomitantes indispensáveis à execução
(realização) das ações subjacentes aos nossos atos de fala. Aos defeitos de execução sofridos
pelos enunciados performativos Austin denomina infelicites (infelicidades), para os quais
procura estabelecer também uma classificação, que na sua hora também contemplaremos.
88
Visando a sintetizar a contribuição de Austin aos estudos da linguagem, revela-se
oportuna a transcrição das seguintes palavras de Nef (1995, p. 154):
Austin, interessando-se por um campo de fatos excluídos ou negligenciados pela lingüística,
realizou algo provavelmente único na história recente da filosofia da linguagem: abrir um
novo campo, que pode se chamar, globalmente, pragmática. Esses fatos eram negligenciados
pelos filósofos, que se desviavam em geral desse aspecto excessivamente comum da
linguagem. Austin também abriu um campo para a reflexão filosófica, o da relação do sujeito
locutor com a sua língua, que não pode simplesmente se definir em termos de domínio de
língua. A lingüística da enunciação, a psicanálise lacaniana desse ponto de vista, podem
testemunhar a sua ascendência austiniana.
Cabe ainda ressaltar, como o faz Gouveia (1996), a importância dos estudos
austinianos para a definitiva consideração das diferentes funções desempenhadas pelos
enunciados, no processo de interação verbal. Austin objetiva sistematizar, além das condições
de produção de nossas escolhas linguísticas, os seus respectivos efeitos tanto sobre a
compreensão discursiva quanto sobre a performance lingüístico-social dos nossos alocutários.
3.3 A pragmática
A pragmática não constitui precisamente, em sentido lato, uma perspectiva teórica que
comporta, enquanto um domínio da linguística, um objeto de estudo nitidamente delimitado,
com seus inerentes procedimentos de análise, a exemplo da fonética, da morfologia e da
sintaxe. Podemos dizer que, mais propriamente, a pragmática corresponde a determinada
concepção de linguagem, isto é, a um quadro metodológico de pesquisa de que se utilizam as
mais diversas áreas dos estudos enunciativos, como a análise do discurso, a análise da
conversação, a linguística textual e outras. Isto quer dizer que a pragmática funciona como
uma espécie de fonte teórica para essas áreas, dotando-as de todo um conjunto de conceitos e
perspectivas.
O termo pragmática seria ainda utilizado, conforme Parret (1988, p. 15), “em toda
uma série de disciplinas tradicionalmente delimitadas, como a filosofia da linguagem, a
lógica, a psicologia, a linguística, a sociologia e a semiótica”. Daí que o universo dos estudos
pragmáticos abarca uma complexidade imensa de orientações e perspectivas, a ponto de nos
autorizar a conceber a coexistência atualmente de várias pragmáticas.
89
3.3.1 O objeto da pragmática
Cumpre observar que normalmente se busca delimitar o objeto da pragmática, a
despeito da significativa diversidade dos ramos de estudos. O consenso em torno da
conceituação do termo pragmática consiste, geralmente, em relacioná-lo ao estudo da
linguagem em sua manifestação de uso concreto, considerando as relações do falante/ouvinte
real com o emprego dos signos e seus efeitos. Conforme Guimarães (1983, p. 15), a
pragmática “estuda a relação dos usuários da linguagem com a linguagem, ou seja, a
produção/recepção de manifestações linguísticas por falantes/ouvintes espácio-temporalmente
focalizados – dimensão do eu-tu/aqui-agora”.
Daí que, conforme Fonseca e Fonseca (1994, p. 94), “na Linguística da langue como
na Linguística da
competência não há lugar para a dimensão pragmática da linguagem”. Na
linguística estrutural, segundo Parret (1988, p. 26-27), “a começar por Saussure, a
subjetividade é expulsa da ‘língua’ para a ‘parole’, não passível de domínio teórico”, assim
como na gramática gerativa chomskyana, “ofalante/ouvinte ideal’ não é o sujeito que fala,
mas uma ‘mente’ que se identifica com a estrutura neurofisiológica do cérebro”.
No entanto, como observa Fiorin (2004, p. 166), “o estudo do uso é absolutamente
necessário, pois há palavras e frases cuja interpretação só pode ocorrer na situação concreta de
fala”. Num enunciado como, por exemplo, Amanhã eu virei aqui, deparamos com quatro
elementos formais cujo sentido só pode ser apreendido considerando a situação de
enunciação, ou seja, a cena enunciativa com suas categorias de pessoa (eu/tu), tempo (agora)
e lugar (aqui). Só então podemos depreender a referência do advérbio temporal amanhã, a
partir de um momento cronologicamente definido no calendário; do pronome eu, identificado
na pessoa do falante/emissor responsável pela produção do enunciado; do emprego do verbo
vir/virei e do advérbio locativo aqui como categorias dêiticas, isto é, que apontam para a
espacialização da cena de produção do enunciado. Por outro lado, esse mesmo enunciado
pode prestar-se a várias significações, dependendo do seu emprego em diferentes contextos
situacionais. Daí que ora pode assumir o significado de uma promessa, ora de uma
advertência ou mesmo de uma ameaça. Outra questão linguística situada nos limites da
análise pragmática refere-se ao plano do significado metafórico dos signos, o qual,
frequentemente, pode manifestar-se atrelado ao processo da sua enunciação, como, por
exemplo, na frase “Estou limpo”, (GOUVEIA, 1996, p. 385). Observa o autor que esta, para
além do seu significado literal, pode contrair diversas significações em correspondência à
variedade dos contextos de uso em que venha a ser empregada, seja ao término de um jogo a
90
dinheiro, significando a falência do jogador/locutor, seja numa situação de resposta à pergunta
de um agente da autoridade em relação à existência ou não de “passagem” policial referente
ao locutor.
É na tensão que se estabelece entre o significado literal e o significado do enunciado que, por
exemplo, as metáforas encontram a sua razão de ser, porquanto o significado metafórico é um
significado de enunciação a que o nosso interlocutor chega por via do significado literal,
única matéria linguística disponível para a sua interpretação
(GOUVEIA, 1996, p.
385).
A propósito do plano do significado literal, ao qual o autor faz menção, cumpre
ressaltar que este constitui um dos pontos cruciais dos estudos pragmáticos, visto que aponta
para a insuficiência da análise sintática quanto à apreensão do significado de certos
enunciados. Dessa forma, uma frase como “Você sabe que horas são?” (PERINI, 1996, p.
241) constitui um modo rotineiro de perguntar as horas, embora não compreenda “a estrutura
de um pedido de informação sobre as horas, antes, é um pedido de informação sobre se o
interlocutor sabe quantas horas são”. Conforme Azeredo (1990, p. 14), “de fato, a sintaxe não
explica tudo na criação e interpretação das frases”, ou seja, há que considerar o sentido que
um enunciado “adquire pragmaticamente, isto é, em função de sua contextualização e não de
seus aspectos lexicais e sintáticos”.
Observa Parret (1988, p. 22) que, em filosofia da linguagem, “o sentido se caracteriza
como globalmente ligado ao contexto”, ao contrário das teorias que proclamam o valor de
precedência da noção de sentido literal sobre o componente pragmático da linguagem, o que,
segundo o autor, se torna necessário “quando se quer proteger a autonomia e independência
da semântica”. Para ele, entretanto, a noção de estratégia revela-se central no universo
linguístico da pragmática: “uma ‘gramática profunda’ da pragmática não é a gramática
profunda do linguista porque em pragmática são pertinentes estratégias ao invés de regras”. É
o que podemos observar no enunciado (7), correspondente ao discurso diplomático do
narrador.
(7) Parou aqui. Tive curiosidade de saber o que era e evocando a musa diplomática, lembrou-
me induzi-la à confissão ou retificação, dizendo à minha recente amiga:
- Dissesse o que fosse a seu respeito ou de seu pai, era natural da parte de um inimigo...
(MA, p. 1.123).
Quanto à questão da fronteira entre semântica e pragmática, observa Moura (2000, p.
66) que esta “é normalmente traçada a partir da noção de contexto”, cabendo à semântica o
91
lugar da significação que não se subordina ao contexto, e à pragmática, a significação que
depende do componente/elemento contextual (situacional). Conforme Parret (1988, p. 15), “o
limite entre semântica e pragmática é constantemente discutido [...] coisas que, de acordo com
este, pertencem ao domínio da pragmática, são situadas por aquele no domínio da semântica”.
Em plano histórico, devemos a Charles S. Peirce o pioneirismo do emprego da palavra
pragmatics, no seu artigo How to make our ideas clear, de 1878. Revelar-se-á de grande
influência sobre vários filósofos a concepção do autor quanto à existência de uma tríade
pragmática, que prescrevia a necessidade de se pensar a linguagem como uma “relação entre
signo, objeto e interpretante”, ou seja, “o sinal, mas também aquilo a que este sinal remete e,
principalmente, a quem ele significa” (PINTO, p. 51-2).
Como componente da língua, a aceitação do elemento pragmático remonta às idéias do
empirista lógico Rudolf Carnap, que propõe a divisão da ciência da linguagem em sintaxe,
semântica e pragmática. Segundo Nef (1995, p. 144),
a contribuição de Carnap para a filosofia da linguagem é múltipla; esclareceu os fundamentos
da semântica; deu as regras do que é em geral uma sintaxe lógica ou formal; formalizou as
noções fregeanas de sentido e denotação [...] expôs os fundamentos da sua semântica; foi um
dos primeiros a definir o que é uma pragmática.
Conforme sintetiza Carneiro (1999, p. 142), “Carnap percorreu uma trajetória que o
deslocou do âmbito da sintaxe formal e o levou à semântica e à pragmática, comprovando que
a análise da linguagem não prescinde desses três níveis”.
Entusiasmado pela proximidade das idéias entre Peirce e Carnap, o filósofo americano
Charles W. Morris também propõe, em 1938, com Foundations of theory of signs, a divisão
entre sintaxe, semântica e pragmática:
Quanto aos três correlatos da relação triádica da semiose – veículo do signo, “designatum” e
intérprete –, um certo número de relações diáticas pode ser abstraído para estudo. Podem-se
estudar as relações dos signos com os objetos aos quais eles são aplicáveis. Chamar-se-á esta
relação a dimensão semântica da semiose, simbolizada pelo sinal “D
sem”; o estudo dessa
dimensão chamar-se-á semântica. Ou o tema do estudo pode ser a relação dos signos com os
intérpretes. Essa relação chamar-se-á dimensão pragmática da semiose, simbolizada por “Dp
e o estudo dessa dimensão chamar-se-á pragmática [...] Já visto que a maioria dos signos
estão claramente relacionados a outros signos e muitos casos aparentes de signos isolados,
quando analisados, se revelam não o serem, todos os signos estão potencialmente, se não de
fato, relacionados com outros signos, é conveniente estabelecer uma terceira dimensão da
semiose, coordenada com as outras duas atrás mencionadas. Essa terceira dimensão chamar-
se-á a dimensão sintática da semiose, simbolizada por “D
sin”, e o seu estudo chamar-se-á
sintaxe.
(MORRIS, p. 17-8).
92
3.3.2 Divisão da pragmática
Ressalta Cervoni (1989, p. 96-97) que a concepção austiniana promove uma divisão da
pragmática, ao abarcar, de um lado, o estudo do uso de formas linguísticas operativas,
enquanto intenção de realizar (efetuar) a ação subjacente a um dado ato de fala (ato
ilocucional), e, de outro lado, o estudo dos resultados (efeitos) logrados a partir da produção
do enunciado performativo, que, para Austin, confunde-se com a própria ação por ele evocada
ou veiculada (ato perlocucional). No dizer de Austin (OTTONI, 1998, p. 111), emitir um
enunciado performativo equivale essencialmente a
realizar a ação, ação, talvez, que não poderia ser realizada, ao menos com tal precisão, de
nenhum outro modo. Eis alguns exemplos:
Batizo este navio ‘Liberdade’.
Peço desculpa.
Eu te desejo boas-vindas.
Eu te aconselho a fazer.
A divisão da pragmática efetuada pelas ideias de Austin resulta, basicamente, dos fatos
de, por um lado, o ato ilocucional apoiar-se em marcas linguísticas (verbais) e, de outro, de o
ato perlocucional evocar um plano exterior ao sistema da língua. Daí que o estudo do
ilocucional circunscreve-se no âmbito da semântica linguística, enquanto o estudo do
perlocucional situa-se incondicionalmente num plano exterior a esta, implicando, como se
chama, uma pragmática fendida.
A partir dessa “fenda”, a pragmática resulta numa “disciplina em parte autônoma, em
parte integrada a outra disciplina” (CERVONI, 1989, p. 97), fato que acarreta o incômodo e a
insatisfação tanto dos linguistas quanto dos pragmáticos, que relutam em aceitar (pelo menos
sem discussão) semelhante bipolarismo.
Guimarães (1983, p. 16) observa que “Peirce já colocava o problema de que há signos
que são interpretados somente em relação aos objetos da situação na qual alguém (o usuário)
faz uso da linguagem”. Daí que podemos conceber duas orientações para a pragmática: uma,
em que se privilegia a relação linguagem/mundo (referência), sob a ótica de um usuário
concebido somente como um (des)codificador desse processo representacional, e outra, em
que se concebe o usuário no seu relacionamento concreto com a própria linguagem. Nesse
plano, parece-nos que se situam as idéias de Austin – mais precisamente, a teoria dos atos de
fala.
Em dias mais recentes, a teoria dos atos de fala, conforme Vilela e Koch (2001, p.
421), “tem sido alvo de críticas e recebido algumas reformulações”. Segundo os autores, ora a
93
crítica recai sobre o seu caráter teórico unilateral (alegando-se destaque praticamente
exclusivo ao locutor), ora se volta para a questão de se utilizarem basicamente enunciados
“idealizados” (enquanto sentenças), analisados independentemente de uma situação real de
uso (enquanto contexto existencial), argumentos que podemos certamente refutar.
Em relação ao pensamento austiniano, especificamente, entendemos que não procede a
primeira observação crítica, quanto a uma suposta ênfase conferida quase exclusivamente ao
locutor numa situação de comunicação, ou seja, em relação a uma uniteralidade teórica que
privilegia a ação, em detrimento da interação. Conforme Ottoni (1998, p. 80-1), o Austin de
How to do things with words apresenta “três maneiras de distinguir o ato ilocucionário do
perlocucionário
7
: assegurar a apreensão (securing uptake), ter um resultado (taking effect) e
demandar respostas (inviting responses)”, momentos que apontam claramente para a
integração do interlocutor no processo comunicativo. Como observa o autor (1998, p. 81),
mencionado acima, “o uptake, enquanto uma relação entre interlocutores por meio da
linguagem, está próximo do jogo, já que não há regras nem critérios formais definitivos que
possam descrevê-lo”. No que concerne à segunda observação crítica sobre a teoria dos atos de
fala, isto é, quanto à utilização de enunciados apartados de um macrocontexto empiricamente
concebido, acreditamos constituir reducionismo metodológico não considerar o artifício da
simulação enquanto modelo analítico. Para além da natureza filosófica que envolve a questão
do real, cumpre observar, ainda, não só o convencionalismo que naturalmente perpassa as
situações de interação comunicativa, mas também, e principalmente, o caráter institucional
em essência de determinados atos de fala, em situações como, por exemplo, batismo,
casamento, condenação, demissão, etc.
Van Dijk, linguista holandês, corresponde a um dos principais nomes que assumem
uma posição de crítica em relação à teoria dos atos de fala, tanto no tocante à questão da
ênfase quase exclusivamente atribuída ao locutor no processo de comunicação/interação com
o ouvinte/leitor, quanto no que concerne à questão da análise basicamente de enunciados
isolados de um contexto real de enunciação. A proposta reformuladora de Van Dijk (2000, p.
74), quanto a essas questões, situa-se no âmbito de uma teoria cognitiva da pragmática, da
qual elegeria, como principal função, a de “elucidar quais as relações existentes entre os
vários sistemas cognitivos (conceituais) e as condições de adequação dos atos de fala aos seus
contextos de ocorrência”.
7
Em português, registram-se ainda os termos ilocucional/ilocutório e perlocucional/perlocutório.
94
Quanto à questão particular da centralidade da análise sobre enunciados “gramaticais”,
isto é, desgarrados de uma situação concreta de uso, na teoria dos atos de fala, Van Dijk
(2000, p. 93) considera, em oposição, a necessidade de se conceber o texto/discurso
“enquanto sequência de sentenças interligadas e coerentes”, o que implica uma compreensão
dessas associações baseada na interpretação entre atos de fala subsequentes. Daí a proposta
do autor em torno da noção de macroatos de fala, pressupondo-se o texto/discurso como
veículo de um objetivo final, a que se subordinam os demais objetivos, inerentes a cada ato de
fala em particular. Devemos, portanto, estabelecer a distinção das relações entre atos de fala
subordinados e superordenados. Como ilustração destes, Van Dijk (2000) sugere a situação
em que um falante afirma inicialmente estar com fome, para, em seguida, realizar
coerentemente o pedido de comida; já como exemplo contextual daqueles, aponta os “casos
de sequências ritualizadas” (como parabenizar/agradecer, entre outros pares).
Há que considerar, ainda, segundo o autor (2000, p. 94), o tipo de relação entre atos de
fala compreendido em casos como “adição, correção ou explicação em relação ao ato de fala
anterior”.
A importância das ideias de Van Dijk pode ser atestada, também, no que tange ao
lugar do elemento sociológico reservado no seu trabalho teórico, forjado sob uma concepção
de linguagem enquanto (inter)-ação entre sujeitos sociais. A estruturação dos contextos
pragmáticos reflete na base a estrutura hierárquica da sociedade, que “deveria ser levada em
consideração ao se analisarem os processos de compreensão pragmática” (VAN DIJK, 2000,
p. 82-83). Conforme o autor, são quatro as categorias definidoras dos diferentes contextos
sociais: posições (= identidades socioeconômicas); propriedades (= particularidades físico-
biológicas); relações (= lugares civis de dominação/autoridade) e funções (= atividades sócio-
trabalhistas).
No dizer de Van Dijk (2000, p. 84), “essas propriedades dos contextos sociais e dos
seus membros estão sistematicamente relacionadas; elas definem as possíveis ações dos
membros sociais nos respectivos contextos”.
Jürgen Habermas (1930), respeitado filósofo da segunda metade do século XX,
elaborou o corpo teórico do que ele próprio, conforme Costa (2003, p. 49), denominou uma
pragmática universal, que, a exemplo da teoria cognitiva da pragmática (Van Dijk), também
estabelece considerável diálogo com a teoria dos atos de fala. O objetivo da pragmática
universal consiste em determinar os requisitos contextuais necessários à realização das ações
processadas na e pela linguagem natural. Para Habermas, a importância desse projeto residiria
na sistematização de pressupostos condicionais permanentes, enquanto elementos
95
constitutivos das estruturas das sociedades. No entanto, Habermas exclui do seu quadro de
classificação dos atos de fala aqueles que se vinculam diretamente a instituições no corpo da
estrutura social, visto que, em face da continência cultural das instituições, tais atos não
poderiam corresponder a modelos especulares das condições universais das (inter)ações na e
pela linguagem natural.
Para Habermas apud Costa (2203, p. 52), através da linguagem, os falantes interagem
com quatro domínios da realidade: “a natureza externa (tudo que é perceptível), a sociedade
(usuários da linguagem, instituições, valores...), a natureza interna (das vivências subjetivas)
e a própria linguagem (que é uma região sui generis, na medida em que é um meio capaz de
objetualizar-se a si mesmo)”.
Tanto quanto a teoria dos atos de fala, a pragmática universal de Habermas revela-se
importante, no âmbito dos estudos da linguagem, sobretudo por fornecer-nos uma imagem
clara da dimensão interativa e/ou performativa da linguagem.
Salientamos, ainda, segundo Pinto (2003, p. 61), a importância do grupo de pesquisas
pragmáticas referido pela autora como estudos da comunicação, que se caracteriza por se
encontrarem, no seu âmbito, autores que se valem tanto dos pressupostos do pragmatismo
americano quanto das orientações da teoria dos atos de fala. A grande novidade de que se
investem os estudos da comunicação corresponde ao fato de se revelarem tributários das
teorias filosóficas historicistas, diferentemente das correntes antes mencionadas, em que a
essas teorias é dispensado um tratamento praticamente nulo. Entendemos por teorias
filosóficas historicistas aquelas que incorporam em seu quadro os estudos marxistas,
problematizando a questão da diferença de classes sociais enquanto ponto de partida para se
pensar a linguagem como palco dos conflitos das relações na sociedade. Conforme observa
Pinto (2003, p. 62), “atuais pragmatistas apostam em comunicação como trabalho social”,
concebendo a linguagem enquanto ação necessariamente atrelada aos seus efeitos éticos,
econômicos e sociais.
Fiorin (2004, p. 174) ressalta que, “para a teoria clássica, os atos de fala são
universais, enquanto para a teoria interacionista, variam de cultura para cultura, de grupo
social para grupo social”. Como observa Kerbrat-Orecchioni (CHARADEAU,
MAINGUENEAU, 2004, p. 73), interlocutores, enunciados e atos de linguagem são
concebidos, na abordagem interacionista, “em um circuito de troca”. Daí que, conforme a
autora, “considerar os enunciados como atos é, então, admitir que eles são realizados para agir
sobre os outros, mas também para levá-los a reagir: o dizer não é somente fazer, mas tamm
fazer fazer”.
96
3.3.3 Três pontos de vista pós-austinianos
Ainda no que tange à observada contestação/reformulação da teoria dos atos de fala de
Austin, citamos mais uma vez Cervoni (1989, p. 97), que nos apresenta a síntese de três
pontos de vista pós-austinianos quanto à situação da pragmática, a partir da “fenda” efetuada
no corpo teórico dessa disciplina pela filosofia anglo-saxônica da linguagem ordinária,
principalmente no tocante à elucidação das fronteiras entre o ilocucional e o perlocucional em
relação ao sistema da língua. Correspondem os pontos de vista mencionados por Cervoni aos
nomes de Ducrot, A. Berrendonner e R. Martin.
Rejeitando uma concepção de língua enquanto instrumento essencial de comunicação,
isto é, como veículo de informação, Ducrot concebe a língua, metaforicamente, como
instância de natureza essencialmente teatral, na qual se plasma “todo um catálogo de relações
inter-humanas, todo um arsenal de convenções e de leis” que regulam “o debate dos
indivíduos” (CERVONI, 1989, p. 97).
Enquanto para Austin a pressuposição integrava os contextos adequados (próprios) de
emprego dos performativos, a fim de evitar ‘infelicidade’, para Ducrot, constituía, assim
como a afirmação, a interrogação ou a ordem, um ato de linguagem semanticamente
determinado, visto que “também modifica as relações intersubjetivas dos interlocutores, cria
obrigações, instaura direitos e deveres, atribui papéis” (CERVONI, 1989, p. 98).
Dessa forma, Ducrot transcende a definição que concebe num quadro único
ilocucional e explícito, visto que a pressuposição não se processa semanticamente através de
um verbo performativo. De fato, uma frase como ‘Eu pressuponho que Jacques virá’ não
apresenta o grau de aceitabilidade da frase ‘Eu te advirto que o touro vai atacar’.
A partir de Dire et ne pas dire (1984), Ducrot amplia o universo do ilocucional
austiniano, ao relacioná-lo com o estudo da argumentação na língua. Para ele, a língua
corresponde essencialmente a “um conjunto de convenções que permitem a interação dos
indivíduos, graças às quais eles podem jogar e impor-se papéis no jogo da fala” (CERVONI,
1989, p. 100). No artigo intitulado “As leis do discurso”, Ducrot (1987, p. 98) defende a tese
de que, em geral, uma orientação de natureza essencialmente argumentativa participa
intuitivamente da maioria das frases, acenando sempre para determinado tipo de conclusão.
Já o ponto de vista de A. Berrendonner situa-se em direção oposta à visão
performativa de Austin. Para A. Berrendonner, o significado das palavras ou a estrutura das
frases não comportam nenhum valor pragmático. Privilegiando a função representativa
enquanto instância primeira do fenômeno da linguagem, todo valor de ato, para ele, resulta da
97
enunciação lograda a partir do constativo e o conjunto das circunstâncias concomitantes do
contexto situacional.
Daí que os verbos performativos não serviriam para a pretendida realização do ato que
semanticamente veiculam. Pelo contrário, funcionariam de fato como substitutos das ações
por eles próprios denotadas, instaurando-se em seu lugar a fala, tomada tão-só como
articulação linear de fonemas. Dessa forma, “ao dizer Eu lego meu exemplar da Ilíada para
Fulano, substituo o gesto de dar por uma forma verbal que equivale a esse gesto”
(CERVONI, 1989, p. 100).
No entanto, o tratamento dispensado ao performativo pela teoria de A. Berrendonner
revelar-se-ia, apesar de sedutor, inconsistente em alguns pontos, como, por exemplo, na
questão das frases interrogativas e imperativas, as quais não se poderiam, de modo algum,
despojar de um valor ilocucional primitivo, inerente às suas estruturas semântico-pragmáticas.
R. Martin, por sua vez, propõe um modelo de análise que assegura a precedência do
imanentismo dos fenômenos e fatos da língua, dialogando assim com a concepção saussuriana
do estruturalismo em línguística. Trata-se de um procedimento, contudo, comum a muitos
linguistas, “principalmente quando se sentem arrastados pelo estudo do sentido para um
terreno onde as possibilidades de formalização rigorosa diminuem” (CERVONI, 1989, p.
102).
Para R. Martin, entretanto, situar-se no plano de imanência dos fenômenos e fatos
linguísticos não implica conceber a representação como a essência funcional da língua nem
desconsiderar a existência do ilocutório. A língua comportaria signos que constituem índices
de previsibilidade dos enunciados enquanto atos, o que, com efeito, justifica sua dimensão
ilocutória.
Quanto à questão da pressuposição, o seu tratamento por R. Martin distingue-se da
concepção de Ducrot. Para aquele, a pressuposição circunscreve-se, primitivamente, no
campo da semântica. Ao campo da pragmática, reservar-se-iam os pressupostos concebidos
numa situação particular e concreta de uso.
Apesar das divergências assinaladas entre os pontos de vista dos três autores quanto às
inter-relações semântico-pragmáticas, é possível, para Cervoni (1989, p. 102), detectar uma
confluência teórica que revela em graus análogos o interesse comum pela pragmática,
configurando assim a tendência dominante da linguística dos anos 80.
98
3.3.4 Pragmática indicial
Parret (1988, p. 6) alia a classificação dos tipos de pragmáticas à natureza dos tipos de
contextos, apreendidos enquanto conjuntos de elementos pertinentes ao acontecimento
enunciativo do discurso. Para ele, podemos considerar relevantes cinco tipos de contextos,
determinantes, por sua vez, de outros tantos tipos correspondentes de pragmáticas, ou seja, o
contexto cotextual, o contexto existencial, o contexto situacional, o contexto acional e o
contexto psicológico.
Evidentemente, esses cinco tipos admitem superposições: por exemplo, a idéia de que os
fragmentos de discurso são ações será sentida como real tanto em uma pragmática orientada
psicologicamente como uma pragmática orientada sociologicamente. (PARRET, 1988,
p. 6).
Constitui a pragmática indicial o tipo de orientação que elege o contexto existencial
como o universo-fonte de seus conceitos e especificidades. Entendemos por contexto
existencial o conglomerado de objetos, estados de coisas e acontecimentos que Parret (1988)
também denomina contexto referencial, isto é, aquele que, conforme Stalnaker apud Chierchia
(2003, p. 235), “contém canonicamente a unidade (item) a que a expressão linguística faz
referência”. Trata-se, como podemos observar, da ocorrência de um deslocamento da
semântica para a pragmática, visto que agora tanto emissor/receptor quanto sua localização
espácio-temporal correspondem a categorias que, na teoria peirciana da semiose (= processo
de significação) denominam-se índices (SHOOK, 2002, p. 57), ou seja, categorias de signos
cuja função, por excelência, consiste em substituir o gesto através do qual apontamos um
objeto num dado contexto existencial. Daí que qualquer existente, a rigor, constitui um índice
ou pode funcionar como tal, o que implica uma relação concreta entre ”o objeto de que o
índice é parte e com o qual está existencialmente conectado” (SANTAELLA, 2003, p. 66).
Para Guimarães (1983, p. 17), a pragmática indicial corresponde à orientação teórica
que concebe a subordinação do usuário ao problema da referência. Valendo-se de Bar-Hillel
(“Expressões Indiciais” – 1954), Guimarães evoca a necessidade, no âmbito da pragmática
indicial, de determinação do contexto para a especificação do valor de verdade das sentenças.
Daí que Parret (1988, p. 17) considera que “esta disciplina é plenamente verifuncional”, ou
seja, as referências do discurso processam-se sob sua subordinação aos índices de pessoa,
tempo e espaço do acontecimento enunciativo, isto é, do ato de produção (realização) do
enunciado.
99
Como esclarece Cervoni (1989, p. 14), na frase, por exemplo, “O gato de minha tia
está sobre o tapete”, suas condições de verdade implicariam, no dado momento de sua
enunciação, ou seja, de sua realização enquanto enunciado, a existência de um gato e um
tapete particulares, com esse gato ocupando um espaço sobre esse tapete, além de o locutor
desse enunciado ter de fato uma tia e dirigir-se necessariamente a um alocutário, situado em
plano real ou imaginário (fictício), e em condições existenciais de ratificar o estado de coisas
representado. Fazemos menção ao plano do fictício/imaginário porque, como observa Parret
(1988, p. 18), “não só o mundo real, mas todos os mundos possíveis podem ser tomados como
contextos existenciais de sequências linguísticas”, o que podemos observar tanto na fala da
personagem transcrita no enunciado (8) como no discurso do narrador em (9).
(8) – [...] Fidélia não lhe mandara lembranças, estava ainda no Flamengo; eu é que as inventei
na minha carta para ver o efeito que produziriam nele [...].
(MA, p. 1.117).
(9) Inimizades de famílias não têm impedido que moços se amem, mas é preciso ir a Verona
ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as famílias de Romeu e Julieta
eram antes amigas e do mesmo partido; também dizem que nunca existiram, salvo na
tradição ou somente na cabeça de Shakespeare.
(MA, p. 1.098).
Conforme já dissemos, constitui, para Guimarães (1983), um ponto fundamental na
pragmática indicial a relação linguagem-usuário enquanto determinante, por sua vez, da
relação linguagem-mundo. Daí considerar a pragmática indicial, em essência, subsidiária da
semântica, uma vez que, na sua orientação se revela crucial a antiga questão da referência,
isto é, do valor de verdade das sentenças.
Outra noção fundamental em pragmática indicial corresponde à dêixis, que, conforme
Gouveia (1996, p. 412), consiste “no conjunto de fenômenos responsáveis pela inscrição do
sujeito na estrutura formal do sistema linguístico”. Trata-se, no dizer de Pinto (1994, p. 49),
do “processo pelo qual os enunciados são ancorados referencialmente na perspectiva do
emissor”. Daí que a dêixis atesta o caráter de inseparabilidade gramatical entre a linguagem e
o contexto de enunciação. Quanto à sua realização linguística, denominam-se dêiticos os
elementos responsáveis por situar no enunciado as circunstâncias da sua enunciação pelo
falante num determinado contexto. Dessa forma, os dêiticos constituem elementos linguísticos
cujo referente só pode ser designado na sua relação com os interlocutores, ou seja, através do
conhecimento da situação particular de uso. O conhecimento do sistema linguístico, nesse
caso, assume um caráter irrelevante no processo de significação.
Os dêiticos, entretanto, tais quais os demais signos da língua, assumem uma
significação convencional, fato que lhes permite participar concomitantemente da natureza
100
dos símbolos e dos índices. Para Jakobson apud Cervoni (1989, p. 24), os dêiticos constituem
“estruturas duplas”, assumindo duas funções, enquanto “símbolos-índices”. Dessa forma, não
devemos considerá-los formas vazias a apresentar em cada emprego particular uma
significação diferente, haja vista sua figuração nos dicionários e sua universalidade semântica
no contexto de sua tradução em outras línguas. Os dêiticos caracterizam-se, em essência, por
sua sui referencialidade, ou seja, constituem signos que significam tão-somente com base na
referência à sua própria enunciação. Daí que eu, por exemplo, corresponde a pessoa que diz
eu, num determinado e único acontecimento enunciativo, enquanto instância do aqui/agora
(hic/nunc).
3.3.5 Pragmática ilocucional
Os trabalhos dos filósofos da linguagem, principalmente os de John Austin e Paul
Grice, constituem o ponto de partida da pragmática tal como se a concebe atualmente. Como
ressalta Kerbrat-Orecchioni (CHARADEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 72), apesar do fato
de se poder agir por meio da linguagem não corresponder a uma concepção recente, só a
partir da “segunda metado do século XX foi edificada, sobre essa base, no campo da filosofia
analítica anglo-saxônica, uma verdadeira teoria pragmática da linguagem: a teoria dos speech
acts”. Nesta a linguagem passa a ser concebida como forma de ação, seguindo-se a fórmula
“todo dizer é um fazer”, com suas decorrentes reflexões sobre os diversos tipos de ações
humanas realizadas através da linguagem: os atos de fala, atos de discurso ou atos de
linguagem. Ao lado da função de prestar informações ao outro sobre o contexto existencial
(referencial), a linguagem incorpora agora a função de fazer, isto é, de buscar agir sobre o
interlocutor, assim como sobre o mundo a nossa volta. Para Ducrot (DUCROT; TODOROV,
p. 301), “pouca atividade humana existe que não comporta como parte integrante o emprego
da linguagem”. Como salienta Guimarães (1983, p. 21), ao considerar o uso da linguagem não
basicamente com a função de informar, mas visando à realização de vários tipos de ação,
“Austin desloca a tradição da semântica lógica de que o que interessa no significado das
sentenças é seu valor de verdade”.
Dessa forma, constitui a pragmática ilocucional a orientação teórica que parte do
princípio austiniano de que dizer é fazer. Daí que Guimarães (1983, p. 22) considera
“fundamental a questão da intenção do locutor e seu reconhecimento pelo ouvinte”, no âmbito
da pragmática ilocucional.
101
Num primeiro momento, como vimos em 3.2, Austin (1990) constata a existência de
enunciados que não se prestam à função de descrever estados de coisas, e, por conseguinte,
conclui a impossibilidade de atribuir a esses enunciados um valor de verdade, como, por
exemplo, no enunciado Batizo este navio com o nome de “Senhor Stalin”. Como observa
Cervoni (1989, p. 85), “os enunciados deste tipo não descrevem, não relatam, não constatam
absolutamente nada. Sua enunciação é a execução de uma ação”. A estes Austin denomina
enunciados performativos, que, inseridos adequadamente num processo, não descrevem os
fatos, mas sim propriamente os realizam, quando da existência de circunstâncias favoráveis à
sua instância enunciativa. No dizer de Austin (OTTONI, 1998, p. 112), “não posso batizar o
navio se não sou eu a pessoa autorizada”. Em oposição aos performativos, inicialmente Austin
(1990) considera os enunciados constativos, isto é, aqueles que, contrariamente, prestam-se à
função de declarar ou descrever alguma coisa, submetendo-se, portanto, a critérios de verdade
e falsidade.
Mas, como já ressaltamos, a chamada teoria dos performativos, que estabelecia a
distinção constativo/performativo, cede lugar posteriormente à teoria das forças
ilocucionárias, notabilizada, por fim, como teoria dos atos de fala. Esta, por sua vez,
distingue três espécies de atos: o locucional
8
, que corresponde à produção linguístico-
gramatical do enunciado, isto é, ao próprio ato de enunciar o enunciado; o ilocucional, que
constitui o valor ou força da ação pretendida pela enunciação do enunciado; e o
perlocucional, que resulta em forma de efeito (êxito) do ilocucional sobre o falante/ouvinte,
quando atendidas, no conjunto das circunstâncias concomitantes, as condições necessárias à
realização do ilocucional.
Entretanto, todo ato de fala, em essência, reúne ao mesmo tempo um ato locucional,
um ato ilocucional e um ato perlocucional, visto que, caso contrário, não configuraria
verdadeiramente um ato de fala. Como observam Vilela e Koch (2001, p. 418), “sempre que
se interage por intermédio da língua, profere-se um enunciado linguístico dotado de certa
força, que irá produzir no interlocutor determinado(s) efeito(s), ainda que não aqueles que o
locutor tinha em mira”. Austin (1990, p. 91), no entanto, relacionando os três tipos de atos
mencionados à questão do uso da linguagem, adverte que “a expressão ‘uso da linguagem’
pode cobrir outros assuntos até mais diversos do que atos ilocucionários e perlocucionários”.
Podemo-nos referir ao uso da linguagem para atender a alguma função, como, por exemplo,
na narração de piadas. Como observa Araújo (2004:133), “os atos ilocucionários e os atos
8
Em português, registram-se ainda os termos locutório e locucionário.
102
perlocucionários não esgotam todos os empregos da linguagem, segundo Austin”. A distinção
fundamental entre o ilocucional e o perlocucional consistiria em que o primeiro é
convencional e o último não convencional. Como declara Austin (1990, p. 90), “os efeitos
consequentes das perlocuções são realmente resultados, que não incluem efeitos
convencionais, tais como, por exemplo, o fato de uma pessoa que fala ficar comprometida a
cumprir sua promessa (isso corresponde ao ato ilocucionário)”. No dizer de Ducrot
(DUCROT; TODOROV, 1998, p. 304), o ato ilocucional (sempre convencional para Austin)
“só se realiza pela existência de uma espécie de cerimonial social, que atribui a tal fórmula,
empregada por tal pessoa”.
Na base da teoria austiniana, encontram-se, contudo, os enunciados performativos, o
que podemos atestar no final do seu texto “Performativo-Constativo” (Royaumont – França,
1958):
Temos necessidade, parece-me, é de uma doutrina nova, ao mesmo tempo completa e geral,
do que se faz ao dizer alguma coisa, em todos os sentidos desta frase ambígua, e do que
chamo ato de fala, não sob tal ou tal aspecto somente, abstração feita de todo o resto, mas
tomado na sua totalidade.
(OTTONI, 1998, p. 121).
Como observa o autor (1998, p. 30) citado acima, neste texto de Royaumont, “Austin
em nenhum momento, nem como nota ou simples menção, refere-se ao ato ilocucionário, ou à
distinção locucionário-ilocucionário”.
Quanto ao desaparecimento da distinção performativo-constativo, não parece evidente
que a proposta de Austin recaia sobre sua substituição pelo ato ilocucional. Para Ottoni (1998,
p. 27) subjazem ao conceito austiniano da performatividade a proposta e a discussão de uma
nova visão da linguagem, o que não implica necessariamente uma dissolução do conceito de
ilocucionário, mas, pelo contrário, possibilita “uma abordagem do ato performativo que
pressupõe uma ‘visão performativa da linguagem humana’”.
Cumpre assinalar, entretanto, que o caráter de performatividade que permeia todo e
qualquer ato de fala requer, como já mencionamos, circunstâncias favoráveis à sua realização.
No dizer de Austin (OTTONI, 1998, p. 12), “o enunciado performativo, embora não seja nulo,
pode ser ‘infeliz’ de uma outra maneira, isto é, se é formulado sem sinceridade”, o que
podemos observar no relato de uma promessa do narrador, presente no enunciado (10).
(10) Disse-me que daqui a três dias volta para a fazenda, onde me dará hospedagem, se quiser
honrá-lo com a minha pessoa. Agradeci e prometi, sem prazo nem ideia de lá ir.
(MA,
p. 1.115).
103
Ainda na mesma página citada acima, acrescenta Austin que, “mesmo quando o
performativo entra em vigor, existe sempre uma terceira espécie de infelicidade que
chamamos de ‘quebra de compromisso’”, como, por exemplo, o não cumprimento de uma
promessa ou o tratamento como a um inimigo ou um intruso dispensado a quem tenhamos
desejado boas-vindas.
Quanto à questão de um critério línguístico da performatividade, propõe Austin (1990,
p. 59): “Devemos perguntar: há alguma forma precisa para distinguir o proferimento
constatativo do performativo? E, em particular, deveríamos naturalmente indagar primeiro se
existe algum critério gramatical (ou lexicográfico) para distinguir os proferimentos
performativos”. Austin descreve inicialmente duas construções através das quais se expressam
os enunciados performativos: 1. através de uma forma verbal na primeira pessoa do singular,
no presente do indicativo, na voz ativa (Eu te prometo que ...); 2. através de uma forma verbal
na voz passiva, na segunda ou terceira pessoa do presente do indicativo, forma privilegiada da
língua escrita (Os passageiros estão convidados a utilizar a passarela para atravessar as
pistas). A prova da performatividade dessas construções, para Austin (OTTONI, 1998, p.
113), consiste na possibilidade de reconstruir a segunda sentença inserindo de alguma forma
na nova construção a expressão por meio desta (hebery), e de, no caso da primeira sentença,
valer-se da assemetria entre a sua forma verbal na primeira pessoa do presente do indicativo
(prometo) e as formas verbais das outras pessoas e tempos (eu prometi, ele promete, etc), as
quais utilizamos para fins de descrição ou relato da ação (promessa) denotada, e não para
realizá-la, como na fórmula Eu prometo.
Um enunciado performativo, entretanto, não comporta obrigatoriamente uma dessas
duas fórmulas tomadas como “normais”. Sentenças, por exemplo, como Feche a porta,
constituem enunciados performativos, tanto quanto sua reescritura na forma equivalente
Ordeno que feche a porta, a qual Austin (1990) classifica como performativo explícito, em
oposição à primeira (Feche a porta), concebida como performativo primário, isto é, num tipo
de enunciado mais primitivo e menos preciso que o performativo explícito, podendo-se quase
dizer mais vago. Na concepção de Austin (OTTONI, 1998, p. 114), as fórmulas precisas
(performativos explícitos) consistem num “fenômeno recente na evolução da linguagem”,
refletindo paralelamente “o desenvolvimento das formas mais complexas da sociedade e da
ciência”.
Há que se considerar, ainda, o caráter de performatividade que algumas palavras
isoladas podem assumir às vezes, em substituição ao performativo explícito formal. Como
propõe Austin (OTTONI, 1998, p. 114), a palavra “cão” sozinha pode corresponder ao mesmo
104
ato de fala veiculado pela sentença “previno que o cão vai atacar” ou “pessoas estranhas estão
avisando que existe aqui um cão bravo”.
Segundo Austin (1990, p. 72), são vários os expedientes de que podemos nos valer
para assegurar, sem equívoco, a performatividade dos nossos enunciados isentos da fórmula
explícita: “Podemos acompanhar o proferimento das palavras com gestos (piscar de olhos,
sinais, dar de ombros, franzir o cenho, etc.) ou com atos cerimoniais não verbais. Tais
recursos, às vezes, podem ser usados sem o proferimento linguístico e sua importância é
bastante evidente”. Austin (OTTONI, 1998, p. 114) complementa os expedientes acima com
as particularidades circunstanciais do proferimento: “além disso, e sobretudo, o próprio
contexto, no qual são pronunciadas as palavras, pode tornar bastante certa a maneira pela qual
se deve tomá-las”.
De todo o exposto, conclui Austin (1990, p. 66), quanto a um critério verbal do
performativo, “o fato de que certamente não há nenhum critério absoluto deste tipo; e de que
muito provavelmente não seria viável sequer fazer uma lista de todos os critérios possíveis”,
assim como, da mesma forma, não seria possível distinguir os enunciados performativo e
constativo, estando ambos sujeitos às mesmas infelicidades. Como observa Maingueneau
(1996, p. 7), “para Austin, entre ‘está chovendo’ e ‘afirmo que está chovendo’, haveria apenas
uma diferença de explicitação; o performativo seria ‘explícito’ no segundo caso e ‘primário’
no primeiro”. Daí que, conforme Cervoni (1989, p. 88), “as próprias afirmações têm seu lugar
entre os performativos”.
A partir dessas constatações, Austin inaugura uma nova etapa na sua reflexão, ou seja,
a conscientização da necessidade de uma teoria geral dos atos de fala. Trata-se, finalmente, da
consolidação da renúncia de Austin (1990, p. 82-3) à distinção constativo-performativo, em
prol de uma visão performativa global da linguagem humana: “Pretendemos reconsiderar, de
maneira geral, os sentidos em que dizer algo possa ser fazer algo, ou em que ao dizer algo
estejamos fazendo algo (e talvez também considerar o caso diferente em que por dizer
fazemos algo)”.
A teoria austiniana, entretanto, para Pinto (2003, p. 59), “firmou-se na Linguística, de
fato, pela via da interpretação de John Searle, em Speech Acts, de 1969”. Retomando o
programa teórico austiniano, Searle empenha-se, entre outras propostas, em redefinir a noção
de ilocucional, e estabelecer uma clara distinção entre ato e verbo ilocucionais. Eis a seguinte
nota apresentada por Searle (1981, p. 35): “É com uma certa reserva que adoptamos a
expressão ‘actos ilocucionais’, uma vez que discordo da distinção, feita por Austin, entre
actos locucionais e ilocucionais”. Conforme Pereira & Gray (1999, p. 168), “para Searle, a
105
classificação deve ser de atos ilocucionários e o de verbos, já que nem todos os verbos são
ilocucionáros”. Os verbos considerar, estimar e pretender, por exemplo, não constituiriam
atos para Searle, mas apenas verbos, visto que não se lhes pode atribuir força ilocucionária.
Tais verbos comportariam objetivo (propósito), mas não exprimiriam intensidade (força).
Como ressalta Searle (1981, p. 94), “Porque há várias dimensões diferentes de força
ilocucional, e porque o mesmo acto de enunciação pode ser executado com uma variedade de
intenções diferentes, é importante notar que uma mesma enunciação pode constituir o
desempenho de vários actos ilocucionais diferentes”.
Quanto à questão do lugar da referência na teoria searleana, podemos constatar um
resgate da antiga necessidade logicista de determinação do valor de verdade das proposições.
Para Searle, a realização de um enunciado compreende simultaneamente a articulação de um
ato proposicional e um ato ilocucional. O primeiro, para ele, manifesta-se no nível do
locucional, constituindo-se, por sua vez, de um ato de referência e um ato de predicação.
Conforme Vilela e Koch (2001, p. 147), “através do ato de referência, designa-se (‘pinça-se’)
uma entidade do mundo extralinguístico e, por meio do ato de predicação, atribui-se a essa
entidade uma certa propriedade, característica, estado ou comportamento”.
o ato ilocucional consistiria numa força de interação entre locutor e alocutário
forjada na linguagem e pela linguagem, concomitante à ação do dizer. Essa força ilocucional
pode constituir, por exemplo, uma pergunta, uma asserção, uma ordem ou uma promessa.
O ato ilocucional, na concepção de Searle (1981, p. 84), manifesta-se sob a coerção de
basicamente quatro tipos de regras semânticas, indispensáveis à sua realização
(sucesso/felicidade): 1. de conteúdo proposicional, que envolve o conteúdo do ato e a sua
execução pelo falante/ouvinte no futuro; 2. de condição preliminar (preparatória), referente à
habilidade discursiva do falante para lograr o êxito de determinado ato (pedir; prometer); 3.
de sinceridade, que aponta para as intenções honestas (sinceras) do falante quanto à
realização do ato; 4. de condição essencial, alusiva à determinação pelo falante do objetivo
tanto do ato quanto das estratégias aplicadas para promover o seu sucesso.
Paralelamente à revisão das condições de felicidade na teoria austiniana, Searle (1979)
propõe uma classificação própria dos atos ilocucionais, descrevendo-os, contudo, também em
cinco tipos, a exemplo de Austin (1990). Para este, os atos de linguagem ou de fala
classificam-se em veriditivos, exercitivos, comissivos, comportamentais e expositivos. O
veriditivo consistiria num exercício de julgamento; o exercitivo, numa expressão de influência
ou exercício de poder; o comissivo, numa assunção de um compromisso; o comportamental,
106
na escolha de uma atitude; e o expositivo, na fundamentação de razões, argumentos e
mensagens.
Nos enunciados abaixo, configuram-se atos veriditivos com as formas verbais verifico
e repito, respectivamente em (11) e (12); ato comissivo com a forma verbal prometo em (13);
ato exercitivo com a forma verbal explico em (14); ato comportamental com a forma verbal
protesto em (15); e ato expositivo com a forma verbal digo em (16).
(11) Verifico que me faltou um ponto da narração do Campos. (MA: p. 1.109).
(12) [...] Mas eu repito que não casa.
(MA, p. 1.098).
(13) – Você é esquisita. Vá lá, prometo. Que tem que falasse, assim, por acaso?
(EJ: p.
959).
(14) Explico o texto de ontem.
(MA: p. 1.186).
(15) – Não furtei nada! – bradava o preso detendo o passo. É falso! Larguem-me! Sou um
cidadão livre! Protesto! Protesto!
(EJ: p. 994).
(16) – Não afirmo; digo que pode ser.
(EJ: p. 1.075).
Já a classificação reformuladora searleana articula-se nas seguintes modalidades
ilocucionais: atos representativos (= assertivos), diretivos, comissivos, expressivos e
declarativos. Os representativos consistiriam naqueles atos cuja ênfase expressiva recai sobre
o conteúdo de uma proposição (asserções/afirmações, declarações, suposições); os diretivos,
naqueles que comprometem o falante com o cumprimento (realização) de determinada ação
no futuro; os expressivos, naqueles que constituem expressão do estado psicológico do
falante; e os declarativos, naqueles cuja locução por parte do falante promove
mudanças/transformações na realidade/no mundo, como, por exemplo, a expressão Eu vos
declaro marido e mulher, que, enunciada por um padre ou um juiz de direito oficializa a união
conjugal de duas pessoas.
Embora reconhecendo o mérito de Searle enquanto introdutor das idéias de Austin no
universo das questões inerentes à ciência linguística, Ottoni (1998, p. 12) critica a leitura
searleana da obra do filósofo britânico. Para Ottoni, Searle descaracteriza demasiadamente as
idéias austinianas, “desvirtuando-as de maneira definitiva”.
Para Marcondes, em prefácio à obra citada acima, Searle, com sua teoria dos atos de
fala, “retoma, na realidade, as vertentes mais tradicionais da filosofia da linguagem,
redefinindo o ato de fala em termos da dicotomia conteúdo proposicional/força ilocutória, o
107
que põe a perder, em grande parte, a centralidade do performativo proposta por Austin”
(OTTONI, 1998, p. 9).
A despeito de reconhecermos a considerável colaboração da teoria searliana dos atos
de fala, concordamos neste trabalho com as críticas a Searle efetuadas pelos citados
estudiosos, no que concerne a sua não apreensão da visão performativa da linguagem
subjacente às idéias austinianas, e defendida especialmente por Ottoni (1998, p. 95): “há
necessidade de se repensar a eficiência positiva, à maneira de Searle que procura desenvolver
os aspectos empíricos e lógicos do performativo”.
3.3.6 Pragmática conversacional
Denominamos pragmática conversacional a orientação teórica que se vale
predominantemente das idéias do filósofo americano H. P. Grice, que procurou sistematizar
os princípios gerais implicados na conversação em obras como Meaning (1972) e Logic and
Conversation (1975). Dentre outras questões, esses princípios fornecem-nos, sobretudo, uma
possível explicação para a construção e compreensão dos atos de fala indiretos (ou derivados).
Conforme Maingueneau (1996, p. 8), ”trata-se de atos de linguagem que são realizados não
mais diretamente, mas através de outros atos”, isto é, das formas específicas de outros tipos de
atos. Daí que, diante do conhecido exemplo do enunciado Você pode me passar o sal?, o
ouvinte jamais o interpretaria como uma pergunta (interrogativa) acerca da sua possibilidade
física de pôr o saleiro ao alcance do locutor. Pragmaticamente, tal enunciado seria
interpretado pelo ouvinte como um efetivo pedido para que disponibilizasse ao locutor o
objeto requerido.
Entretanto, como observam Vilela e Koch (2001, p. 421), “para que um ato de fala
alcance os objetivos visados pelo locutor, é necessário que o interlocutor seja capaz de captar
a intenção ; caso contrário, o ato será inócuo”. Na oralidade, especificamente, o ouvinte
precisaria valer-se da entonação e dos movimentos mímico-gestuais próprios da atividade da
fala.
Para Grice apud Maingueneau (1996, p. 115), nossas trocas conversacionais, em nível
macro, articulam-se estrutural e discursivamente sob o princípio da cooperação (“seja
cooperativo”), que prevê o sucesso de um processo de comunicação como decorrência do
respeito mútuo entre interlocutor às regras do jogo verbal de negociação do sentido dos
enunciados: “que a sua contribuição para a conversação corresponda ao que é exigido de
108
você, no estágio atingido por esta, através do objetivo ou da direção aceita do intercâmbio
falado no qual você está envolvido”.
Para Maingueneau (1996, p. 115), o princípio da cooperação adquire em Grice “o
estatuto de um metaprincípio”, ou seja, todos os outros princípios estariam subordinados a
este enquanto princípio geral da comunicação.
Antes, porém, de fornecer a classificação dos princípios subordinados a esse princípio
geral, isto é, do conjunto de categorias que Grice denominou máximas conversacionais,
cumpre considerar outra contribuição sua, referente à noção de implicatura. Trata-se, no caso,
das inferências pertinentemente extraídas dos enunciados que apresentam divergência entre
seu significado enquanto sentença significante e seu sentido enquanto enunciado concreto.
Inicialmente, Grice distingue dois tipos de implicaturas: as convencionais, apreendidas
no plano significante de uma expressão linguística, e as conversacionais, semantizadas no
plano dos princípios gerais inerentes à comunicação. Como exemplo do primeiro tipo,
podemo-nos valer do enunciado “Fiz faculdade, mas aprendi alguma coisa” (SAVIOLI;
FIORIN, 1992, p. 241), em que a conjunção mas encadeia a seguinte implicatura: a faculdade
não ensina nada. Outro exemplo podemos colher no enunciado (17), que sugere a natural
inclinação das pessoas para a interpretação (decifração) mais conveniente a elas, em relação
ao significado das predições oraculares.
(17) Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se. (EJ, p. 948).
Como ilustração do segundo tipo, valhamo-nos do enunciado “A defesa da tese de
Antônio foi tranquila, não o reprovaram” (FIORIN, 2004, p. 176) em que se constata a
implicatura de que sua tese, para o locutor, é ruim, julgamento proveniente não de alguma
palavra da frase, mas do conhecimento prévio do interlocutor de que dificilmente uma tese é
reprovada, o que direciona a interpretação deste para decidir pela baixa qualidade daquela.
Posteriormente, Grice distingue, ainda, dois tipos de implicaturas conversacionais: as
generalizadas, com base no contexto e em elementos linguísticos, e as particulares,
desencadeadas unicamente pelo contexto. Para o primeiro tipo, constituiria um exemplo o
enunciado “André vai encontrar uma mulher à noite” (FIORIN, 2004, p. 177), em que a
implicatura consistiria na apreensão da natureza sexual desse encontro, o que se pode
constatar a partir dos seguintes índices: (1) o emprego do artigo definido uma, que exclui a
possibilidade de essa mulher corresponder à pessoa do círculo das relações íntimas de André
(mãe, irmã, tia, esposa, etc) e (2) o próprio contexto do relato, em que a própria ausência de
109
referências da mulher com quem André vai se encontrar funciona como índice da apontada
natureza desse encontro. Outro exemplo de mesmo tipo podemos conceber no enunciado (18).
(18) Agora o mundo começa aqui no cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no
cemitério de São João Batista.
(EJ: p. 992-3).
Em (18), a implicatura repousaria na referência da personagem Aires ao seu próprio
cansaço de uma vida de muitas viagens como diplomata e a proximidade da velhice. Daí
estabelecer como limite final do mundo o cemitério de São João Batista.
Como exemplo de implicatura conversacional particular, fornecemos o enunciado “Ele
enriqueceu durante o exercício de seus mandatos de deputado” (FIORIN, 2004, p. 177), em
que a implicatura consistiria na inferência de ele (= sujeito da oração) ser uma pessoa
desonesta. No caso desse enunciado, podemos constatar que nenhum elemento linguístico
encadeia a apontada implicatura; é o contexto político brasileiro, timbrado pela prática da
corrupção, que nos autoriza a engendrar a respectiva inferência.
Conforme Fiorin (2004, p. 177), “a implicatura convencional é provocada apenas por
um elemento linguístico, ela não precisa de elementos contextuais para ser feita, enquanto a
implicatura conversacional, seja ela generalizada ou particular, apela sempre para as noções
de princípio da cooperação e máximas conversacionais”.
Como já observamos, ao princípio da cooperação subordina-se todo um conjunto de
categorias, denominadas por Grice (1975) máximas conversacionais. Sua classificação
comporta quatro categorias principais: (1) “não diga nem mais nem menos do que o
necessário” (Máxima da Quantidade); (2) “só diga coisas para as quais tenha evidência
adequada; não diga o que sabe não ser verdade” (Máxima da Qualidade); (3) “diga somente o
que é relevante para o tópico em andamento” (Máxima da Relação); (4) “seja claro e conciso;
evite a ambiguidade, a prolixidade, etc.” (Máxima do Modo).
Nos enunciados abaixo, parece-nos que o narrador manifesta preocupações estilístico-
discursivas passíveis de serem relacionadas com as quatro máximas conversacionais
gracianas; a saber, a máxima da quantidade no enunciado (19), a máxima da qualidade no
enunciado (20), a máxima da relação no enunciado (21) e a máxima do modo no enunciado
(22).
(19) Assim o disse por esta única palavra que me pareceu expressiva, dita a brasileiros:
- Felicito-os.
(MA, p. 1.116).
110
(20) Velho e velha disseram-me então rapidamente, dividindo as frases, que a carta viera dar-
lhes grande prazer. Não sabendo que carta era nem de que pessoa, limitei-me a
concordar:
- Naturalmente.
(MA, p. 1.123).
(21) Contando-me estas particularidades, acaso dispensáveis, D. Carmo queria naturalmente
comunicar-me o próprio alvoroço.
(MA, p. 1.125).
(22) Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis nem as
menos débeis, todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em
língua falada, a fim de ser entendido das pessoas que me leem [...] (EJ, p. 950).
Como consequência da constatação gradual do significativo efeito dos atos de
linguagem nas relações interpessoais, observa Fiorin (2004, p. 175) que se abre “um novo
campo para a Linguística, o estudo da polidez linguística”. Segundo Kerbrat-Orecchioni
(CHARAUDEUAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 381), Lakoff (1973) apresenta a proposta de
“acrescentar às máximas conversacionais de Grice um princípio de tipo ‘Seja polido’”,
detalhado, por sua vez, “em três regras: Formalidade (não se imponha, mantenha distância),
Hesitação (Deixe a escolha para seu interlocutor) e Camaradagem (Aja como se você e seu
parceiro fossem iguais; deixe-o à vontade)”. Acreditamos que tais regras de polidez podem
ser observadas através dos comportamentos de narrador e personagem nos enunciados (23) e
(24), respectivamente.
(23) Quis perguntar-lhe se nos mares que percorreu viu algum peixe semelhante àquele que
anda agora em volta dela, mas não há intimidade para tanto, e a cortesia opunha-se.
(MA, p. 1.125).
(24) Custódio foi recebido com a benevolência de outros dias e um pouco mais de interesse.
Aires queria saber o que é que o entristecia.
(EJ, p. 1.013).
Leech (1983), ainda que efetuando uma abordagem mais sistemática do que Lakoff,
defende igualmente que, “ao lado CP (‘Cooperation Principle’ de Grice, conjunto de máximas
conversacionais), convém admitir um PP (‘Politeness Principle’)”, conforme Kerbrat-
Orecchioni apud Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 381).
Entretanto, pertence a Brown e Levinson (1978, 1987) – ainda de acordo com a
mesma fonte da autora citada acima –, o mais bem elaborado estudo da polidez, inspirado
diretamente nos trabalhos do sociólogo americano E. Goffman. Rebatizando deste as noções
de território e de face, Brown e Levinson propõem, respectivamente, as denominações face
negativa e face positiva.
Como esclarece Maingueneau (2002, p. 38), “o termo ‘face’ deve aqui ser tomado no
sentido que este termo possui numa expressão como ‘perder a face’”. No dizer de Fiorin
111
(2004, p. 175), “face é o amor próprio do sujeito”, que possui tanto uma face negativa,
correspondente ao território próprio de cada um, como, por exemplo, o corpo e a intimidade,
quanto uma face positiva, referente à imagem valorizante que se constrói de si para si e para
os outros. Esta, segundo Fiorin (2004, p. 175), “deriva da necessidade de ser apreciado e
reconhecido pelo outro”; aquela “advém da necessidade de defender o eu e seu território”.
Nos enunciados (25) e (26), podemos sinalizar certa preocupação do narrador com tais
questões.
(25) Uma das suas qualidades era falar com mulheres, sem descair na banalidade nem subir às
nuvens; tinha um modo particular, que não sei se estava na ideia, se no gesto, se na
palavra. Não é que falasse mal de ninguém, e aliás seria uma distração. Quero crer que
não dissesse mal por indiferença ou cautela; provisoriamente, ponhamos caridade.
(EJ,
p. 993).
(26) Tornamos à viúva, depois voltamos a Tristão, e ela só passou a terceiro assunto porque a
cortesia o mandou; eu, porém, para ir com a alma dela, guiei a conversa novamente aos
filhos postiços. Era o meu modo de ser cortês com a boa senhora. (MA, p. 1.126).
Brown e Levinson retomam a noção de ato de linguagem, centrando-se nos seus
efeitos sobre as faces dos interlocutores. A rigor, entretanto, todo ato de linguagem na
interação pode constituir de alguma forma, para a maioria, uma ameaça às várias faces dos
interlocutores. Daí que cada um procura salvar sua face, interessando-se em preservar a face
do outro, para não pôr a sua em perigo. A ordem, o conselho e a ameaça constituem exemplos
de atos ameaçadores da face negativa dos interlocutores, visto que correspondem a uma
espécie de invasão do seu território. Já a reprimenda, a refutação e a crítica configuram
exemplos de atos ameaçadores de sua face positiva, porque se pode concebê-los como
intenções de destruir a imagem do outro.
Quanto aos locutores, a promessa, a garantia e o juramento são exemplos de atos
ameaçadores da sua face negativa, haja vista a possibilidade de serem tomados como formas
coercitivas de expor os sujeitos falantes. Quanto à face positiva, os atos ameaçadores
consistem na confissão, no pedido de perdão e na autocrítica, visto que arriscam
potencialmente a integridade da imagem de si exteriormente construída.
Dessa forma, concluímos, junto com Fiorin (2004, p. 175), que “a polidez linguística
tem por efeito diminuir os efeitos negativos dos atos ameaçadores da face, de adoçá-los”. Para
tanto, valemo-nos constantemente dos atos de fala indiretos, como, por exemplo, quando
modalizamos em desejo a rispidez de uma ordem. Outra estratégia de polidez linguística
corresponderia aos casos em que recorremos preliminarmente a fazer um inventário de uma
112
série de aspectos positivos de um trabalho, antes de submetê-lo a críticas. Sintetizando a
questão, podemos dizer que, nas situações de comunicação, tanto se busca o equilíbrio da
preservação das faces frente aos atos que lhes são ameaçadores quanto o reforço dos atos que
se lhes revelam valorizadores, como os cumprimentos e os elogios.
Entretanto, o excesso de atos valorizadores pode tomar aparência de hipocrisia ou
bajulação na pessoa do falante, assim como a falta de minimização dos atos ameaçadores
pode encarná-lo na imagem de um sujeito grosseiro. Como ressalta Fiorin (2004, p. 175), “o
excesso, a falta, os limites entre o que é percebido como valorizador ou ameaçador, tudo isso
é cultural. O estudo da polidez linguística oferece dados muito preciosos para a compreensão
das culturas”.
3.4 O ethos
O ethos corresponde a uma categoria do discurso apreendida da retórica antiga e se
referia à imagem de si mesmo forjada pelo locutor através do seu discurso. Para Perelman
(1996, p. 363), “Se a pessoa do orador fornece um contexto ao discurso, este último, por outro
lado, determina a opinião que dela se terá. O que os antigos chamavam de etos oratório se
resume à impressão que o orador, por suas palavras, dá de si mesmo”. No enunciado (27), o
narrador sugere-nos brevemente o ethos da personagem Tristão a ele apresentada.
(27) É uma bonita figura. A palavra forte, sem ser áspera. Os olhos vivos e lépidos, mas
talvez a brevidade do encontro e da apresentação os obrigasse a essa expressão
única; possivelmente os terá de outra maneira alguma vez. É antes alto que baixo, e
não magro.
(MA, p. 1.129).
Conforme Aristóteles (1998, p. 33), o ethos incluía-se na relação das “provas
dependentes da arte”, que se distribuíam em três categorias: “umas residem no caráter moral
do orador; outras nas disposições que se criaram no ouvinte; outras no próprio discurso, pelo
que ele demonstra ou parece demonstrar”. As duas últimas dessas categorias são designadas
respectivamente pelos termos logos e pathos. Para Aristóteles, o ethos constitui a mais
importante dessas “provas fornecidas pelo discurso”.
No entanto, como observa Maingueneau (2001, p. 138), “O que o orador pretende ser,
dá a entender e mostra: não diz que é simples e honesto, mas mostra-o através de sua maneira
de se exprimir”. Daí que o ethos vincula-se a uma construção da palavra, isto é, a uma
imagem verbal e não à de um sujeito do mundo real, embora sua concepção seja indissociável
da noção de uma voz e, consequentemente, de um corpo. Como esclarece Maingueneau
113
(2002, p. 95), “toda fala procede de um enunciador encarnado; mesmo quando escrito, um
texto é sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além texto”.
Cumpre observar, contudo, que a noção de ethos não se restringe à concepção dessa
voz representativa de um sujeito de enunciação. Pelo contrário, ela compreende toda uma
gama de aspectos físicos e psíquicos da realidade coletiva associada ao universo idealizado
desse sujeito, como podemos assinalar no discurso de Aires ainda sobre a personagem Tristão
no enunciado (28).
(28) Vi hoje o Tristão descendo a rua do Ouvidor com o Aguiar; adivinhei-o por este e pelo
retrato. Trazia no vestuário alguma coisa que, apesar de não diferir da moda, cá e lá, lhe
põe certo jeito particular e próprio. Aguiar apresentou-nos. Tristão falou-me
polidamente, e com tal ou qual curiosidade, não ouso dizer interesse.
(MA, p.
1.129).
No âmbito da pragmática, Ducrot (1987, p. 189), por sua vez, postula que “o ethos está
ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da enunciação que ele se vê dotado
(affublé) de certos caracteres que, por contraponto, torna esta enunciação aceitável ou
desagradável”. Em Ducrot, o ethos aristotélico é concebido na base de uma teoria da
polifonia.
Acreditamos que semelhante concepção também pode ser entrevista no pensamento de
Perelman (1996, p. 37):
Em vez de se crer na existência de um auditório universal, análogo ao espírito divino que tem
de dar seu consentimento à ‘verdade’, poder-se-ia com mais razão, caracterizar cada orador
pela imagem que ele próprio forma do auditório universal que busca conquistar para suas
opiniões.
3.5 A autoridade polifônica
A expressão autoridade polifônica consiste numa das formas de argumentação por
autoridade distinguida por Ducrot (1987, p. 141), ao lado da noção de arrazoado por
autoridade. Na forma de argumentação por autoridade polifônica, ocorre no discurso a
introdução de uma voz que legitima a validade do encadeamento das asserções. No dizer de
Ducrot (1987, p. 158), “pelo fato de alguém haver asseverado uma proposição, arrogamo-nos
o direito de nós mesmos a asseverarmos como reflexo de um estado de coisas”, como o faz,
respectivamente, narrador e personagem nos enunciados (29) e (30).
114
(29) E a Terra continuará a gira em volta do Sol com a mesma fidelidade às leis que os regem,
e a batalha de Tuiuti, como a das Termópilas, como a de Iena, bradará do fundo do
abismo aquela palavra da prece de Renan: “Ó abismo! tu és o deus único!”
(MA, p.
1.124).
(30) Em verdade estava cansado de homens e de mulheres, de festas e de vigílias. Fez um
programa. Como era dado a letras clássicas, achou no Padre Bernardes esta tradução
daquele salmo: “Alonguei-me fugindo e morei na soledade.” Foi a sua divisa. (EJ, p.
987).
Para Ducrot, no entanto, a categoria discursiva da autoridade polifônica atravessa de
algum modo todo e qualquer ato de argumentação, ou seja, ela assume um caráter
constitutivo. Eis como se manifesta Perelman (1996, p. 348) sobre a questão: “O argumento
de prestígio mais nitidamente utilizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza atos ou
juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese”. É
o que podemos ratificar com o enunciado (31).
(31) Releu o manifesto; chegou a pensar em imprimi-lo, embora incompleto. Tinha conceitos
bons, como este: “O dia da opressão é a véspera da liberdade”. Citava a bela Roland
caminhando para a guilhotina: “Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!” (EJ, p.
1.039)
Referindo-se às “vantagens que se podem tirar das máximas”, Aristóteles (1998, p.
148) observa que a máxima efetivamente constitui “uma maneira de se exprimir em termos de
universalidade”. Daí o auxílio que o recurso às máximas prestaria aos oradores, na medida em
que às pessoas agrada ouvir em geral algo já preconcebido individualmente por elas. Uma
segunda vantagem diz respeito a determinado caráter moral que o emprego das máximas
confere aos discursos dos oradores, visto que os identifica com preferências geralmente
compartilhadas pelos ouvintes. A propósito, podemos obter um breve exemplo no enunciado
(32).
(32) “A ocasião faz o ladrão”, conclui o meu correspondente. (EJ, p. 1.044).
115
4 A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA
O objetivo deste capítulo final consiste sobretudo em fornecer um quadro descritivo
das principais formas explícitas da heterogeneidade enunciativa do discurso. Não temos
pretensão de forjar uma descrição exaustiva dos fenômenos e fatos linguísticos abordados.
Almejamos, em primeiro lugar, à integração do capítulo no desenvolvimento da tese aqui
defendida. Dessa forma, optamos por não conceder (maior) espaço a muitas outras questões
de elevado interesse. Partindo de aspectos relacionados à história e aos procedimentos de
leitura/interpretação concernentes à análise do discurso de orientação francesa, cedemos voz,
no entanto, a outras abordagens de estudos discursivos, guiados pelo objetivo geral da
proposta teórica que vimos defendendo.
4.1 A análise do discurso
A análise do discurso, tal qual a concepção adotada neste trabalho, refere-se ao corpo
de estudo linguístico que, segundo Maingueneau (1997, p. 9), tem seu nascedouro “no interior
de uma certa tradição, como o encontro de uma certa conjuntura intelectual e de uma prática
escolar”. A título de esclarecimento, observamos que o contexto descrito diz respeito a uma
realidade cultural própria da França, o que nos induz, muitas vezes, referirmo-nos à
orientação da disciplina inerente a esse país como “escola francesa de análise do discurso”,
menos, porém, pela questão geográfica do que pela substância constitutiva dos seus
pressupostos teóricos.
A prática escolar referida, segundo Maigueneau (1997, p. 10), consiste na “explicação
de textos”, que, sob uma multiplicidade de formas, permeia todo o sistema de ensino francês,
do nível escolar básico ao universitário. O sucesso da análise do discurso na França foi
frequentemente relacionada a essa prática escolar, isso até o ponto de se questionar a
possibilidade de a análise do discurso constituir um substituto à “explicação de textos como
forma de exercício escolar” (MAINGUENEAU, 1997, p. 10).
Em relação à conjuntura intelectual apontada, trata-se de ideias que, sob a influência
do estruturalismo, propõem nos anos 60, no tocante à reflexão sobre a escritura, a articulação
entre a linguística, o marxismo e a psicanálise. Segundo Pêcheux apud Maingueneau (1997, p.
10), “a análise do discurso na França é, sobretudo, - e isto desde l965, aproximadamente –
assunto de linguistas [...]. A referência às questões filosóficas e políticas, surgidas ao longo
116
dos anos 60, constitui amplamente a base concreta, transdisciplinar de uma convergência [...]
sobre a questão da construção de uma abordagem discursiva dos processos ideológicos”.
Como aponta Brandão (2002, p. 17), “inscrevendo-se em um quadro que articula o
linguístico com o social, a AD vê seu campo estender-se para outra áreas do conhecimento e
assiste-se a uma verdadeira proliferação dos usos da expressão ‘análise do discurso’”.
No entanto, Pêcheux realiza num de seus textos derradeiros intitulado “A análise do
discurso: três épocas” (1983),
uma síntese dos caminhos percorridos pela análise do discurso, disciplina originalmente por
ele próprio arquitetada, projeto que, na sua concepção, requeria rigorosamente uma nova
epistemologia, fundando a base do estudo do discurso na articulação do linguístico e do sócio-
histórico e, assim, tornando nucleares os conceitos de discurso e de ideologia
(BRANDÃO, 2002, p. 18).
Antes, porém, de nos determos nas questões metodológicas e referentes à constituição
do objeto próprio de cada fase da AD, cumpre considerar a ressalva de Pêcheux apud
Maingueneau (1997, p. 11) quanto à extensão da contribuição do analista do discurso às
hermenêuticas contemporâneas, ao lembrar que
a análise de discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação, dominando
o sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a
níveis opacos à ação estratégica de um sujeito (...). O desafio crucial é o de construir
interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma minúcia qualquer de um
discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico estabilizado com pretensão universal.
4.1.1 Fases da AD
Segundo Mussalim (2003: 117), a AD da primeira época (AD-1) privilegia “a análise
de discursos mais ‘estabilizados’, no sentido de serem pouco polêmicos”, ou seja, discursos
que, dotados de um caráter ideológico mais homogêneo, com pouca abertura para a voz do
outro – quer outro discurso, quer outro sujeito – oferecem um campo mais ou menos restrito
de considerações interpretativas. Daí a eleição como corpus de análise, principalmente, os
discursos políticos teórico-doutrinários. Para Mussalim (2003, p. 117), o Manifesto do
Partido Comunista constitui um bom exemplo de corpus pertinente quanto aos propósitos
analíticos da AD-1, visto que, sendo enunciado no interior do Partido Comunista e
representando a “voz” dos próprios interlocutores inseridos num espaço discursivo comum,
tal discurso compreende uma condição de produção mais estável e homogênea.
117
Com a AD-1, temos a noção de máquina discursiva, ou seja, a constituição de uma
cena enunciativa que prevê condições de produções estáveis, identificando os sujeitos como
produtores de seus discursos; a cada processo discursivo corresponde uma máquina
discursiva. Daí que, “diferentes processos discursivos (o processo de construção do manifesto
comunista e o processo de construção do manifesto liberal, por exemplo) referem-se a
diferentes máquinas discursivas, cada uma delas identifica a si mesma e fechada sobre si
mesma” (MUSSALIM, 2003, p. 118).
Como resume Maingueneau (1997, p. 21), “a AD de ‘primeira geração’, aquela dos
fins dos anos 60 e início da década de 70, procurava essencialmente colocar em evidência as
particularidades de formações discursivas (o discurso comunista, socialista, etc)”. Estas, para
Maingueneau, corresponderiam a “espaços relativamente auto-suficientes, apreendidos a
partir de seu vocabulário”. Cumpre salientar, entretanto, que o conceito de formação
discursiva é tributário de Michel Foucault, que o concebe como um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma
época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições
de exercício da funcão enunciativa.
Intimamente relacionado ao conceito de formação dicursiva, encontra-se o conceito de
formação ideológica, que para Haroche apud Brandão (2002, p. 38), “constitui um conjunto
complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas
se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas em relação
às outras”.
Dessa forma, conclui Brandão (2002, p. 38) que “a formação ideológica tem
necessariamente como um de seus componentes uma ou várias formações discursivas
interligadas”, o que significaria “que os discursos são governados por formações ideológicas”.
Acreditamos que tal fato pode ser atestado perfeitamente no enunciado (1).
(1) Já então confundíamos as práticas religiosas com as canseiras da vida, e fugíamos delas.
Entretanto, o padre que me confessou pela primeira vez era meigo, atento, guiava-me a
confissão indicando os pecados que devia dizer, e até que ponto, e punha a absolvição na
língua antes que os pecados lhe entrassem pelo ouvido; assim me pareceu.
(MA, p.
41).
Observa Mussalim (2003, p. 118-9), entretanto, que é justamente a noção de formação
discursiva que vai funcionar como um dispositivo desencadeador do “processo de
transformação na concepção do objeto de análise da Análise do Discurso”, verificado na
transição da AD-1 para a AD-2, em que “a noção de máquina estrutural fechada começa a
118
explodir”. Isso porque, ao se conceber que uma formação discursiva “determina o que
pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social”, define-se esta também em relação
não só a um interno (o que lhe pertence), mas também a um externo (o que não lhe pertence)
e, “ao definir-se sempre em relação a um externo, ou seja, em relação a outras FDs
[formações discursivas] não pode mais ser concebida como um espaço estrutural fechado”.
Daí as noções de pré-construído, de paráfrase, de dispersão, ligadas, respectivamente, à
questão do atravessamento numa FD de discursos oriundos de outras FDs; à questão da
retomada e da reformulação de enunciados dentro de uma mesma FD; e à questão da
impossibilidade de uma FD, enquanto espaço atravessado pelos discursos de outras FDs, ser
regida por um princípio definido de unidade.
No entanto, como ressalta Mussalim (2003, p. 119), “o fechamento da maquinaria
ainda é conservado, pois a presença do outro (outra FD) sempre é concebida a partir do
interior da FD em questão”.
Quanto à seleção do corpus como objeto de análise, a AD-2 vai privilegiar “discursos
nenos ‘estabilizados’, por serem produzidos a partir de condições de produção menos
homogêneas” (MUSSALIM, 2003, p. 120), como no caso de um debate político.
Já a AD-3, conforme Vilela e Koch (2001, p. 429), resultante da “emergência de novos
procedimentos, pela desconstrução das maquinarias discursivas”, caracteriza-se sob o signo
da heterogeneidade. A perspectiva adotada agora é a de que a constituição dos discursos de
uma FD não se processa nem autônoma nem paralelamente em relação a outras FDs, mas a
partir de um intercâmbio constitutivo, de relações interdiscursivas. Configura o interdiscurso
(item 4.4), na orientação teórica da AD-3, o objeto de análise por excelência dos discursos
produzidos no interior de uma FD. Segundo Vilela e Koch (2001, p. 429), “o primado teórico
do outro sobre o mesmo se acentua, empurrando até o limite a crise da noção de maquinaria
estrutural”.
Na atualidade, ocupam lugar privilegiado na AD os trabalhos de Authier-Revuz sobre
a heterogeneidade constitutiva da linguagem. Authier-Revuz parte do dialogismo constitutivo
bakhtiniano para mostrar, conforme Brandão (op. cit.: 68), “como a Psicanálise também
questiona a unicidade significante de uma concepção homogeneizadora da discursividade”.
Nas próprias palavras de Authier-Revuz (2004, p. 12), “No fio do discurso que, real e
materialmente, um locutor único produz, um certo número de formas, linguisticamente
detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, em sua linearidade, o outro”. O seja:
a heterogeneidade discursiva no trabalho da autora articula-se tanto no plano de uma
interdiscursividade mostrada através de marcas explícitas (do discurso relatado/citado, por
119
exemplo) quanto no de um dialogismo constitutivo não marcado na superfície, mas
apreensível através de uma interdiscursividade constitutiva inerente a todo discurso.
4.1.2 Especificidade e procedimentos de análise
A expressão análise do discurso tornou-se, na atualidade, suscetível de conotar uma
variabilidade imprevisível de significações, haja vista a possibilidade de toda produção de
linguagem vir a ser considerada “discurso”. Cumpre ressaltar, entretanto, que a elasticidade
semântica do termo discurso e a expressão análise do discurso não provém, no âmbito dos
estudos linguísticos atuais, de uma desvalorização terminológica destes, mas resulta de uma
concepção de linguagem que prevê “sujeitos inscritos em estratégias de interlocução, em
posições sociais ou em conjunturas históricas” (MAINGUENEAU, 1997, 11-2).
Daí que temos tantas “análises do discurso” quantas forem as referências que se façam
às “disciplinas vizinhas em que se apoiam: à psicologia, à história, à lógica, etc; assim como
aos seus subcampos, constituindo “a noção de ‘analise do discurso’ uma espécie de ‘coringa
para um conjunto indeterminado de quadros teóricos” (MAINGUENEAU, p. 12).
A análise do discurso – especificamente a da escola francesa de análise do discurso –,
por sua vez, constitui uma disciplina que, conservando sua base de estudo na linguística,
considera a produção de textos tanto no interior das formações discursivas e ideológicas
quanto no exterior dos interdiscursos que os atravessam constitutivamente.
Maingueneau (1997, p. 14) parece nos fornecer a chave do recorte essencial que a AD
efetua sobre a massa heterogênea dos discursos em sua totalidade:
não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um determinado
sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio-
histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis. Assim, nem os textos tomados em
sua singularidade, nem os corpus tipologicamente pouco marcados dizem respeito
verdadeiramente à AD.
Em resposta à reiterada crítica sobre o reducionismo operado no campo de interesse da
AD quanto ao plano extralinguístico, Maingueneau (1997, p. 14) advoga que, diante do
reconhecimento da existência de uma multiplicidade de orientações analítico-discursivas,
podemos compreender “que uma delas mantém uma relação privilegiada com a história, os
textos de arquivo, as instituições restritivas”.
Mas como ainda o próprio Maingueneau observa (1997, p. 16), “o domínio da AD,
mesmo restringido desta forma, permanece ilimitado”. Segundo ele, recorre-se a “tipologias
120
funcionais (discurso jurídico, religioso, etc.) ou formais (discurso narrativo, didático, etc.)”,
cruzando-os entre si, espacializando e temporalizando-os, com o fim de associá-los
inelutavelmente a condições de produção particulares, como, por exemplo, o discurso jurídico
em recortes temporal e geográfico específicos; o discurso polêmico filosófico em determinado
contexto e outros. Além disso, a AD frequentemente realiza o movimento inverso,
debruçando sobre uma ou várias formações discursivas, como a imprensa socialista, os
manifestos feministas, o discurso de determinada corrente da crítica literária, etc.
Quanto à inserção da AD no campo da linguística, para Maingueneau (1997, p. 18),
“na realidade, não existe nenhuma harmonia preestabelecida entre os diversos objetos que
podem ser propostos pela AD e os recursos que a linguística lhe oferece”. Daí que, diante de
um corpus, o pesquisador, em princípio, não é levado a se interessar pelo estudo de nenhuma
manifestação linguística específica, nem a se valer deste ou daquele procedimento de análise.
Sua escolha por um e não outro aspecto da língua a ser transformado em estudo deve-se ou a
certa familiarização com o seu corpus ou à clara consciência das possibilidades que se
apresentam ao analista, na eleição para o seu estudo de determinado fato de linguagem.
Quanto à questão dos procedimentos de análise, podemos remontar à fase inicial da
AD para surpreender a aplicação do método de Harris (1969) que, no rumo das análises
estruturalistas, elegia a análise do texto na base de uma análise transfrástica, para além do
limite do enunciado. Trata-se, conforme Mussalim (2003, p. 115), de “um método fundado
basicamente na linearidade do discurso; o autor propõe que se observe a ligação entre os
enunciados a partir dos conectivos, com o objetivo de equacionar essa linearidade em classes
de equivalência”.
Harris, entretanto, concebe o discurso como uma sequência de enunciados, e esse
método, que já constituíra recurso dos iniciadores da AD, para produzir uma análise da
superfície discursiva, vai mostrar-se, a partir de determinado momento, insuficiente para os
objetivos da AD, que almejava a reintegração de uma teoria do sujeito e uma teoria da
situação.
A partir do postulado de Chomsky quanto à existência de um sistema de regras
internalizadas responsável pela geração das sentenças, a AD, numa analogia com este, vai
propor “a noção de condições de produção, responsável pela geração dos discursos”
(MUSSALIM, 2003, p. 117).
Na AD-1, os procedimentos de análise baseiam-se na realização de etapas, a saber: 1)
eleição de um corpus (“estabilizado”); 2) análise linguística das sentenças (uma a uma),
considerando aspectos sintático-lexicais; 3) análise discursiva, com ênfase na relação de
121
sinonímia e de paráfrase; e 4) configuração de tais relações de sinonímia e de paráfrase como
decorrência de uma mesma estrutura originária do processo discursivo.
Na AD-2, poucas inovações registram-se em relação aos procedimentos de análise da
AD-1; a novidade vai se pontuar mesmo é no que diz respeito ao objeto de análise, isto é,
discursos menos “estabilizados”, construtos de condições de produção menos homogêneas.
Já na AD-3, fase em que se realiza finalmente a desconstrução da maquinaria
discursiva, o objeto de análise vai se constituir no âmbito de uma nova perspectiva: o
interdiscurso. Com isto, no dizer de Mussalim (2003, p. 120), “o procedimento de análise por
etapas, com ordem fixa, com afirma Pêcheaux (1983), explode definitivamente”.
4.2 Gêneros do discurso
A reflexão sobre os gêneros do discurso há que se revelar crucial no estudo da
heterogeneidade enunciativa. Corrobora esta nossa assertiva o fato de que as reflexões atuais
sobre a questão baseiam-se em primeira mão no conceito de gêneros do discurso em Bakhtin
(2003), para quem qualquer atividade linguageira caracteriza-se primacialmente por um
constante diálogo não só com enunciações anteriores, mas também com aquelas que ainda vão
lhe suceder. No tocante à literatura, observa Maingueneau (2002, p. 64) que constitui esta o
lugar onde foi inicialmente elaborada a noção tradicional de gênero, na medida em que as
obras literárias, diferentemente dos gêneros rotineiros (relatórios de estágio, reportagens
esportivas televisionadas, cursos universitários, etc.), “apontam então para seus ‘protótipos’”,
que configuram sempre obras consagradas. Daí a pertinência de evocarmos neste capítulo a
questão dos gêneros do discurso, alvo de atenção cada vez maior no âmbito dos estudos
linguísticos atuais. E no caso do autor e das obras por nós eleitas como corpus, a mencionada
consideração ganha ainda mais em importância, haja vista não só o diálogo que as une entre si
através do narrador e personagem do Conselheiro Aires como também o contraponto que
realizam com outras obras rememorativas da chamada 2ª fase machadiana, em especial
Memórias Póstumas de Brás Cubas: enquanto nestas o narrador se traveste de defunto para na
liberdade do além-túmulo dar vazão ao sarcasmo e à galhofa, naquelas encarna um diplomata
aposentado, que encontra o lugar dos seus últimos dias justamente entre o que dos outros ouve
e o que aos outros fala (geralmente “aconselha”), ou escreve no Memorial.
(2) Agora vivo do que ouço aos outros. (MA, p. 1.140).
122
(3) Eu gosto de ver impressas as notícias particulares, é bom uso, faz da vida de cada um uma
ocupação de todos.
(MA, p. 1.182).
4.3 Dialogismo e polifonia
Corresponde a polifonia ao fenômeno constitutivo crucial da linguagem humana.
Como esclarece NØlke (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 384), consiste a
polifonia no “fato de que os textos veiculam, na maior parte dos casos, muitos pontos de vista
diferentes: o autor pode falar várias vozes ao longo de seu texto”. Trata-se de um conceito
introduzido por Bakhtin (1929) nas ciências da linguagem como produto do seu estudo das
relações de reciprocidade entre autor e herói na obra de Dostoievski. Para Bakhtin (1979, p.
95),
o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser
considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das
condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.
Bakhtin (1979, p. 109) critica o objetivismo abstrato de Saussure ao conceber a língua
como um sistema monológico:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas
linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou
das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.
A palavra diálogo é concebida, dessa forma, “num sentido amplo, isto é, não apenas
como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação
verbal, de qualquer tipo que seja” (BAKHTIN, 1979, p. 109).
A partir desses pressupostos, Bakhtin desenvolve a sua teoria da polifonia, imprimindo
paralelamente, sobretudo, “críticas ao conceito de língua da linguística estrutural pelo fato de
ele não ser articulável nem com a história nem com o sujeito, nem com uma prática social
concreta” (BRANDÃO, 2002, p. 52).
Conforme NØlke (CHARAUDEAU;MAINGUENEAU, 2004, p. 385), “com o
crescente interesse que se manifestou em linguística, desde os anos 80, pelos aspectos
pragmáticos e textuais, o trabalho de Bakhtin foi redescoberto por alguns linguistas”.
Na França, Ducrot (1980, 1984) desenvolve, no interior da pragmática linguística, a
análise de uma série de fenômenos linguísticos, ou seja, das diversas perspectivas, pontos de
123
vista ou posições representados no enunciado. Para Ducrot (1987, p. 172), “o enunciado
assinala, em sua enunciação, a superposição de diversas vozes”.
Concebendo o sentido de um enunciado como uma representação (encenação) da
instância de sua enunciação, Ducrot (1987), em primeiro lugar, estabelece a distinção entre o
sujeito falante e o locutor de um enunciado. Entretanto, Ducrot distingue como sujeito falante
o responsável pela produção (emissão) de um enunciado que nem sempre assume o ponto de
vista neste expresso. Ducrot (1987, p. 180) cita o exemplo de uma situação em que alguém, “a
quem se censurou por ter cometido um erro, retruca: ‘Ah, eu sou um imbecil, muito bem,
você não perde por esperar!’”. Segundo Ducrot, o sentido do enunciado referente ao indivíduo
ofendido comporta marca incontestável de um locutor, o que se constata a partir da presença
do pronome de primeira pessoa. No entanto, o ponto de vista ali expresso, como ele observa,
não pode ser identificado ao do sujeito falante, que o retoma do locutor de uma enunciação
distinta.
Entendemos por locutor, no dizer de Ducrot (1987, p. 182), “um ser que é, no próprio
sentido do enunciado, apresentado como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade
deste enunciado”.
No interior da noção de locutor, Ducrot (1987, p. 188) ainda distingue “o ‘locutor
enquanto tal’ (por abreviação ‘L’) e o ‘locutor enquanto ser do mundo’ (‘λ’)”. Para Ducrot, L
corresponde ao agente responsável pela enunciação, encerrando unicamente essa propriedade,
enquanto λ identifica “uma pessoa ‘completa’, que possui, entre outras propriedades, a de ser
a origem do enunciado”. Para fundamentar essa distinção, Ducrot (1987, p. 188) se vale do
emprego de interjeições em oposição a descrições de estados anímicos. Para ele, “uma
interjeição apresenta sua enunciação como motivada” [déclencheé], pelo que “ao dizer Ai de
mim! ou Ah! colore-se sua própria fala de tristeza ou de alegria”. Já nas expressões descritivas
dos sentimentos e emoções pessoais como, por exemplo, “Estou muito triste” ou “Estou muito
alegre” podem-se reconhecer nulas, de um ponto de vista expressivo da atividade de fala, as
representações desses estados d’alma do indivíduo. No caso das interjeições, Ducrot considera
que estas situam o sentimento no âmbito da própria enunciação, enquanto no dos enunciados
declarativos, o sentimento se deixa representar “exterior à enunciação, como um objeto da
enunciação”.
Para Ducrot (1987, p.188), corresponde ao locutor enquanto tal (L) “o ser a quem se
atribui o sentimento, em uma interjeição”, ou seja, “o locutor visto em seu engajamento
124
enunciativo”. Já ao locutor enquanto ser do mundo (λ) corresponde o ser a que é atribuído o
sentimento expresso nos enunciados declarativos (“Estou muito alegre/muito triste”).
Outra distinção estabelecida por Ducrot em sua teoria polifônica corresponde ao par
locutor-enunciador. Como observa Brandão (2002, p. 59), “o enunciador se distingue tanto do
locutor quanto do sujeito falante”. No dizer de Ducrot (1987, p, 192), correspondem a
enunciadores os “seres que são considerados como se expressando através da enunciação,
sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas”. Visando a fornecer uma aclaradora
noção de enunciador, Ducrot (1987, p. 192) se vale das comparações com o teatro e o
romance. Dessa forma, propõe que “o enunciador está para o locutor assim como a
personagem está para o autor”.
Ducrot compara os enunciadores às personagens que, no teatro, se encarregam de
veicular um ponto de vista do autor. Trata-se, no caso, de uma “segunda fala”, dirigida ao
público através dessas personagens:
Seja porque se assimila a esta ou aquela que ele [autor] parece fazer seu representante
(quando o teatro é diretamente didático), seja porque mostra como significativo o fato de as
personagens falarem e se comportarem de tal ou tal modo. De uma maneira análoga, o
locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enunciadores de quem
organiza os pontos de vista e as atitudes. (DUCROT, 1987, p. 192).
4.4 Intertexto e interdiscurso
Intertexto e interdiscurso correspondem respectivamente a relações entre textos e
discursos, independentemente de imbricação ou oposição entre eles. Conforme Maingueneau
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 286), “o interdiscurso está para o discurso
como o intertexto está para o texto”. Mas embora não devamos conceber os termos como
sinônimos, frequentemente se revelam tênues os limites de sua demarcação.
Em relação ao nosso corpus, atestamos com recorrência a manifestação de um tipo de
intertextualidade que Sant’Anna (1985, p. 62) denomina autotextualidade, ou seja, a
apropriação pelo autor de texto da própria autoria. Em Esaú e Jacó, o narrador por diversas
vezes dá a conhecer ao leitor trechos escritos pelo Conselheiro Aires em seu Memorial, como
atesta (4).
125
(4) Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e
valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também guardar por escrito as descobertas,
observações, reflexões, críticas e anedotas, tendo para isso uma série de cadernos, a que
dava o nome de Memorial. Naquela noite escreveu estas linhas:
“Noite em casa da família Santos, sem voltarete. Falou na cabocla do Castelo. Desconfio
que Natividade ou a irmã quer consultá-la; não será decerto a meu respeito [...]”
(EJ, p.
962).
Quanto à questão do interdiscurso, trata-se, em sentido amplo, conforme Maingueneau
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 286) do “conjunto das unidades discursivas
(que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de discursos contemporâneos de
outros gêneros, etc.) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou
explícita”. No caso de Machado, e especificamente das duas obras aqui utilizadas como
corpus, o interdiscurso assume uma vasta proporção discursiva dentro universo cultural da
humanidade, conforme já ressaltado no momento introdutório deste trabalho.
4.5 Modalização autonímica
A “modalização autonímica” consiste, conforme Authier-Revuz (1998, p. 14), nesse
poder de “reflexividade metaenunciativa” do dizer, ou seja, da enunciação em sua “auto-
representação opacificante”. Como esclarece Maingueneau (2002, p. 158), a modalização
autonímica caracteriza-se “por englobar o conjunto dos procedimentos por meio dos quais o
enunciador desdobra, de uma certa maneira, seu discurso para comentar sua fala enquanto está
sendo produzida”, o que pode ser ilustrado por (5).
(5) achamo-la entre alegre e triste, se esta expressão pode definir um estado que se não
descreve; eu, ao menos, não posso.
(MA, p. 1.126).
Dispõe a linguagem natural de toda uma gama de variedades de categorias e
expressões enquanto instrumento para a manifestação da modalização autonímica, tais como
“de uma certa forma”, “desculpa a expressão”, “se eu posso dizer”, “ou melhor”, “isto é”,
“para falar com X”, “deveria dizer”, “enfim”, “em todos os sentidos da palavra”, etc.
Authier-Revuz (1998, p. 189) classifica em quatro categorias as “formas de glosas
metaenunciativas” da modalização autonímica: a não coincidência interlocutiva entre os
dois co-enunciadores; a não coincidência do discurso consigo mesmo; a não coincidência
entre as palavras e as coisas e a não-coincidência das palavras consigo mesmas.
126
A “não-coincidência interlocutiva” processa-se propriamente quando o retorno
metaenunciativo evoca a pessoa do interlocutor (tu/você) de forma explícita, como em (6) e
(7).
(6) Bárbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabelos em cada mão, e fitava-
as, sem a afetação que por acaso aches nesta linha.
(EJ, p. 947).
(7) Quando há piedade para outro, dizem elas, é que o amor ainda não nasceu de verdade, ou
já morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir essa primeira camisa do afeto.
Perdoa a figura, não é nobre, nem clara, mas a situação não me dá tempo de ir à cata de
outra.
(EJ, p. 1.051).
Já a segunda categoria, a “não-coincidência do discurso consigo mesmo” consiste no
retorno metaenunciativo que evoca no discurso “o jogo de um discurso outro”, o que podemos
observar em (8) e (9).
(8) Era moça, vestia de preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas e pendentes. A
cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer
de outras em Roma.” (MA, p. 1.096).
(9) A constituição, se fosse gente viva e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais contrários
deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a
própria Minerva nascida da cabeça de Jove. Falo por metáfora para não descair do estilo.
(EJ, p. 1.054).
A terceira categoria, a “não coincidência entre as palavras e as coisas”, corresponde ao
retorno metaenunciativo que evoca “a questão da nomeação, da ‘propriedade’, da adequação”,
como exemplificam (10) e (11).
(10) Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exatamente o que quero dizer. (EJ,
p. 963).
(11) Há duas diferenças. A primeira é que nela o mal é puro e confessado reumatismo. Em
mim também, mas o meu criado José chama-lhe nevralgia, ou por mais elegante ou por
menos doloroso.
(MA: 1.153).
A quarta categoria, a “não coincidência das palavras consigo mesmas”, equivale ao
retorno metaenunciativo que evoca a questão da ambiguidade das palavras (lugar da
polissemia, dos trocadilhos, etc.), como podemos atestar em (12) e (13).
(12) Fidélia chegou, Tristão e a madrinha chegaram, tudo chegou; eu mesmo cheguei a mim
mesmo, – por outras palavras, estou reconciliado com as minhas cãs.
(MA, p.
1.137).
127
(13) Não é que falasse mal de ninguém, e aliás seria uma distração. Quero crer que não
dissesse mal por indiferença ou cautela; provisoriamente, ponhamos caridade.
(EJ, p.
993).
Quanto à modalização autonímica marcada pela colocação de aspas sobre um ou mais
elementos da frase, trata-se de uma categoria que, integrando-se perfeitamente à sintaxe da
frase em que se insere, delega ao leitor a responsabilidade pela interpretação do segmento
aspeado. No dizer de Authier- Revuz (2004, p. 219),
Essas aspas são a marca de uma operação metalinguística local de distanciamento: uma
palavra, durante o discurso, é designada na intenção do receptor como o objeto, o lugar de
uma suspensão de responsabilidade - daquela que normalmente funciona para as outras
palavras. Essa espécie de suspensão de responsabilidade detetermina uma espécie de vazio a
preencher, através de uma interpretação, um “apelo de glosa”, se assim se pode dizer, glosa
que, às vezes, se explicita, permanecendo mais frequentemente implícita.
Geralmente, como observa Maingueneau (2002, p. 161), “colocar uma unidade entre
aspas significa transferir a responsabilidade do seu emprego a outra pessoa”, que deve
considerar o contexto e, especialmente, o gênero de discurso, no trabalho de interpretação do
respectivo enunciado. É o que podemos depreender de (14), aceitando neste a
correspondência do emprego do itálico com o das aspas, e de (15).
(14) Em caminho, arrependi-me de não ficado para jantar. Ouviria o grande talento que
arrancou a voz exclamativa ao Tristão. Não seria novo para mim, mas seria mais uma
vez, conquanto pareça que ela anda a recusar-se agora ao piano.
(MA, p. 1.157).
(15) Repliquei que a razão do distanciamento vinha de ser eu velho e ele moço. “Criei-me
com a Praia Grande; quando o senhor nasceu a crisma de Niterói pegara.”
(MA, p.
1.135)
Outro tópico de estudo de interesse corresponde ao que Authier-Revuz (1998, p. 135)
nomeia como modalização em discurso segundo e opõe ao discurso relatado em sentido
estrito. Conforme esclarece Maigueneau (2002, p. 139), trata-se de "um modo mais simples e
mais discreto para um enunciador indicar que não é o responsável por um enunciado: basta-
lhe indicar que está se apoiando em um outro discurso”, como em (16).
(16) Hoje estou bom, e segundo o médico, posso já sair amanhã; mas poderei ir às bodas de
prata dos velhos Aguiares?
(MA, p. 1.099-1.100).
Para Authier-Revuz, entretanto, em (16) há apenas um dos dois tipos possíveis de
modalização em discurso segundo, ou seja, o tipo com incidência modalizadora sobre conteúdo
128
da afirmação do enunciador citado. Outro tipo corresponde aos casos em que a incidência
modalizadora recai, conforme a autora, “sobre o emprego de uma palavra, tida como
emprestado de um exterior”. Na dificuldade de depreensão de exemplos estruturalmente
similares, junto às obras machadianas em análise, quanto ao segundo tipo de modalização,
entrevemos uma aproximação em essência através de (17).
(17) “Ala de namorados” era a daqueles cavalheiros antigos que bateram por amor das
damas... Ó tempos!
(MA, p. 1.166).
4.6 Nominalizações
O emprego de nominalizações no enunciado, conforme esclarece Cardoso (2005, p.
74), corresponde via de regra a marcas de polifonia. É o que podemos constatar em (18) e
(19).
(18) Parece que ele veio por causa do boato que corre na Paraíba do Sul acerca da
emancipação dos escravos.
(MA, p. 1.133).
(19) Demais, ele não cria nada mudado; a despeito de decretos e proclamações, Pedro
imaginava que tudo podia ficar como dantes, alterado apenas o pessoal do governo.
(EJ, p. 1.031).
Os nomes substantivos emancipação, decretos e proclamações, respectivamente em
(18) e (19), retomam indubitavelmente enunciações anteriores em outros lugares.
4.7 Negação
Conforme ressalva Brandão (2002, p. 60), “as atitudes expressas no discurso por um
locutor podem ser atribuídas a enunciadores dos quais ele se distancia”. No dizer de Koch
(1998, p. 51), “essa noção de polifonia permite explicar uma gama bastante ampla de
fenômenos discursivos, que podem ser classificados segundo a atitude de adesão ou não do
locutor à perspectiva polifonicamente introduzida”.
Para NØlke (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 385), “a negação sintática
é o exemplo por excelência usado por Ducrot para ilustrar a polifonia”. Valendo-nos do
exemplo “Essa parede não é branca”, colhido ao autor citado acima, podemos vislumbrar dois
pontos de vista “incompatíveis” coabitando o referido enunciado. Como observa NØlke
129
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 386), “se o emissor se utilizou da negação, é
realmente porque alguém pensa (ou poderia pensar) que a parede é branca”. Como podemos
observar, ao locutor corresponde obrigatoriamente o ponto de vista que defende a negação da
cor branca como referente da coloração da parede. Quanto ao ponto de vista “injustificado” da
afirmação que defende a cor branca para a parede, não podemos identificar com base apenas
no enunciado quem é o responsável pela sua origem. Conforme o referido autor
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, p. 386), “são observações desse tipo que inspiram o
desenvolvimento da teoria linguística da polifonia”. Segundo Ducrot (1987, p. 201), o
fenômeno da negação processa-se através de duas modalidades: a negação metalinguística e a
negação polêmica. Quanto à primeira, sua função consiste na finalidade direta de “atingir o
próprio locutor do enunciado oposto, do qual se contradizem os pressupostos” (KOCH, 1998,
p. 52), como em (20), em que a referida negação se contrapõe ironicamente ao aforismo
buffoniano, e em (21).
(20) Se tais papéis mostrassem sempre o coração da gente, Batista, cujas instruções eram,
aliás, de concórdia, parecia querer levar a concórdia a ferro e fogo; mas o estilo não é o
homem. (EJ, p. 1.037)
9
.
(21) Campos é homem interessante, posto que sem variedade de espírito; não importa, uma
vez que sabe despender o que tem. Verdade é que tal regra levaria a gente a aceitar toda
a casta de insípidos. Ele não é destes.
(MA, p. 1.109).
Quanto ao fenômeno da negação polêmica, sua encenação comporta dois
enunciadores: um (E1), responsável pelo enunciado afirmativo, e outro (E2) que se identifica
com o locutor responsável pelo enunciado contraditor do enunciado que veicula a afirmação.
Ilustram-nos semelhante fenômeno de polifonia os enunciados (22) e (23).
(22) A maledicência não é tão mau costume como parece. Um espírito vadio ou vazio, ou
ambas estas cousas acha nela útil emprego.
(MA, p. 1.164).
(23) Viva a Modéstia, e excluamos este livro; fiquem só os grandes livros épicos e trágicos, a
que a Discórdia deu vida, e digam-me se tamanhos efeitos não provam a grandeza da
causa. Não, a discórdia não é tão feia como se pinta. (EJ, p. 989).
Já nos enunciados articulados a partir das expressões ao contrário, pelo contrário,
temos que não ocorre oposição (negação) quanto ao conteúdo expresso no segmento
9
A escolha de um estilo cuidado e polido de expressão pela personagem, em contraste com o universo dos seus
sentimentos interiores, pode ser concebida também aqui como a ação (= performatividade) de uma
heterogeneidade representativa de vozes sociais (MEY, 2001).
130
antecedente, mas quanto à perspectiva do enunciador responsável pelo enunciado afirmativo
contraditado pelo enunciador (E2 = locutor), como em (24).
(24) Aires negou que fosse incrédulo, ao contrário, sendo tolerante, professava virtualmente
todas as crenças deste mundo.
(EJ, p. 991).
4.8 Enunciados conclusivos
Nos enunciados conclusivos, frequentemente a polifonia se manifesta a partir da
introdução no enunciado de uma premissa maior originada por meio de um enunciador que,
em grande número de casos, identifica-se com a voz da sabedoria popular, como na
argumentação com base em provérbios e ditos populares, ou através “da perspectiva da
comunidade ou do grupo a que se pertence, do interlocutor ou dos valores estabelecidos em
dada cultura” (KOCH, 1998, p. 51). É o que podemos observar em (25), através do eco do
axioma lavoisieriano sobre a transformação das coisas na natureza.
(25) Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda
apenas de dono.
(MA, p. 1.133).
Em (26), podemos entrever a reescritura do dito popular que assevera haver “males
que vêm para o bem”.
(26) Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez
indispensável, alguma vez delicioso.
(EJ, p. 1.021).
Em (27), temos outro exemplo de encadeamento com base numa premissa maior
fornecida por um enunciador genérico (ON)
10
.
(27) Quando a sorte ri, toda a natureza ri também, e o coração ri como tudo o mais. Tal foi a
explicação que, por outras palavras menos especulativas, deu o irmão das almas aos
dous mil-réis.
(EJ, p. 949-950).
10
Grosso modo, à forma ON do francês, podem corresponder, em português [...], na posição de sujeito, as
formas a gente, nós” e os sujeitos indeterminados das fórmulas da voz passiva pronominal (com SE) e da voz
ativa com verbo na forma da 3ª pessoa do plural sem agente explícito (MAINGUENEAU, 2002, p. 132).
131
4.9 Conectores e expressões
Nos enunciados introduzidos pela locução conjuntiva não só ... mas também, cumpre
considerar que a informação expressa pelo primeiro membro corresponde a um ponto de vista
que, embora compartilhado pelo locutor do enunciado, dele recebe uma espécie de
complementação ao fato tematizado, o que presumivelmente resulta em força argumentativa
superior para a informação delimitada pelo segundo membro (mas também) do par, como em
(28) e (29).
(28) Não só de fé vive o homem, mas também de pão e seus compostos similares. (EJ:
1.049).
(29) As Sibilas não terão dito só do mal, nem os profetas, mas ainda do bem, e principalmente
dele.
(EJ: 971).
Nos enunciados em que observamos o emprego “metafórico” do futuro do pretérito,
conforme Koch (ibidem: 52), “se introduz a voz a partir da qual se argumenta, mas cuja
responsabilidade não se assume, uso testado com frequência na linguagem jornalística”
11
.
Observamos semelhante procedimento discursivo-polifônico no enunciado (30).
(30) Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regimen, sim, era possível, mas
também se muda de roupa sem trocar de pele.
(EJ, p. 1.029).
Nos enunciados estruturados a partir da expressão parece que, a despeito da aparente
objetividade enunciativa, encadeia-se, de fato, um posicionamento todo pessoal, como em
(31).
(31) Santa-Pia chegou da fazenda, e não foi para a casa do irmão; foi para o Hotel da
América. É claro que não quer ver a filha. Não há nada mais tenaz que um bom ódio.
Parece que ele veio por causa do boato que corre na Paraíba do Sul acerca da
emancipação dos escravos.
(MA, p. 1.113).
Desconsiderando a inofensiva variação da estrutura com a expressão parece que
noutra com locução verbal (auxiliar + infinitivo), podemos ilustrar o caso de polifonia em
questão também através de (32).
11
As recorrentes alusões neste trabalho ao texto jornalístico e possíveis analogias deste com o literário devem-se
não só ao dado biográfico do autor enquanto cronista na imprensa de seu tempo, mas também ao próprio
“comportamento” do narrador e personagem Aires, identificado como uma espécie de repórter, nas obras em
questão.
132
(32) Os criados ficaram felizes com a mudança dos amos. Os próprios escravos pareciam
receber uma parcela de liberdade e condecoravam-se com ela: “Nhã Baronesa!”
exclamavam saltando. (EJ, p. 973).
Nos enunciados que apresentam contrajunção, ou seja, “caso de todos os enunciados
introduzidos por conectores do tipo adversativo (mas) e concessivo (embora)” (KOCH, 1998,
p. 55), ocorre o que Ducrot (1987, p. 216) chama de “ato de concessão”, que “consiste em
fazer ouvir um enunciador argumentando no sentido oposto ao seu, enunciador do qual se
distancia”. Como esclarece Koch (1998, p. 55),
acolhe-se no próprio discurso o ponto de vista do Outro (E1), dá-se-lhe uma certa
legitimidade, admitindo-o como argumento possível para determinada conclusão, para depois
apresentar, como argumento decisivo, a perspectiva contrária.
Trata-se dos enunciados descritos por Anscombre e Ducrot como do tipo “p mas q”,
tal qual observado em (33) e (34).
(33) Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião, como um devoto que se benzesse às
escondidas.
(EJ, p. 946).
(34) Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se. (EJ, p. 948).
Esse caso de fenômeno polifônico evoca, conforme Koch (1998, p. 54), uma
modalidade de discurso que, também se valendo de uma espécie particular de concessão,
comporta polifonicamente um verdadeiro “atenuador, por meio do qual o locutor tenta
preservar a própria face, procurando mostrar-se conforme ao modo de pensar e/ou agir que
constitui o ideal da comunidade a que pertence”. Isto, em especial, no discurso público. É o
que podemos conceber em (35).
(35) Quem sabe se não iríamos dar com a viúva Noronha ao pé da sepultura do marido, as
mãos cruzadas, rezando, como há um ano? Se eu tivesse ainda agora a impressão que me
levou a apostar com Rita o casamento da moça, poderia crer que tal presença e tal
atitude me dariam gosto. Acharia nelas o sinal de que não ama a Tristão, e, não podendo
eu desposá-la, preferia que amasse o defunto. Mas não, não é isso; é o que vou dizer.
(MA, p. 1.175).
Em certos enunciados comparativos, podemos igualmente vislumbrar, a partir da sua
identificação com as noções de tema e comentário
12
, o seu caráter e estrutura polifônico-
12
“Do ponto de vista funcional, cada enunciado divide-se em (pelo menos) duas partes – tema e rema
[comentário] -, a primeira das quais consiste no segmento sobre o qual recai a predicação trazida pela
segunda” (VILELA; KOCH, 2001, p. 512).
133
argumentativos. Como observa Koch (1998, p. 56), as noções de tema e comentário “são
comutáveis do ponto de vista sintático, mas não do ponto de vista argumentativo”. Tratando-
se do grau comparativo de igualdade, para o primeiro membro da comparação, concebido
como tema, inclinar-se-á a direção argumentativa favorável do enunciado. Quando por outro
lado, o tema corresponde ao segundo membro da comparação, a direção argumentativa a este
se revela desfavorável, como, em essência, podemos depreender de (36).
(36) E lembrava-se do Visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso
não haver nada mais parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa.
(EJ, p.
l.115).
4.10 Modalidades do discurso reportado
Optamos por nos referir neste trabalho como discurso reportado às modalidades dos
discursos (estilos) direto, indireto e indireto livre, entre outras formas de acomodação
sintático-semântica do discurso do outro no discurso. Alguns estudiosos ora as concebem
como discurso relatado (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 133) ora sob a expressão discurso
citado (MAINGUENEAU, 1996a, p. 103). Outros estudiosos, como Pinto (1994, p. 66), por
exemplo, preferem reservar a denominação discurso relatado para referir-se especificamente
à perspectiva própria do discurso indireto, deixando a nomenclatura discurso citado para o
discurso direto, estruturas concernentes à enunciação reportada, que conforme Cortès apud
Fiorin (2002, p. 40), “corresponde a um simulacro – no interior do discurso – da relação de
comunicação entre enunciador e enunciatário”.
Antes, porém, de procedermos ao exame específico dessas estruturas do discurso
reportado, cumpre salientar que a referência a outros locutores e a seus enunciados pode
valer-se, conforme Martins (1989, p. 193), simplesmente da menção ao ato de enunciação ou
da referência apenas ao conteúdo (tema) do enunciado, enquanto objeto direto do verbo de
elocução
13
, em plano sintático. Trata-se de uma consideração geralmente não abordada pelos
estudos das formas de referência ao discurso do outro.
(37) No fim da noite adverti que falávamos todos, menos o casal recente; esse, depois de
algumas palavras mal atadas, entrou a dizer de si mesmo, um dizer calado, espraiado e
fundido. De quando em quando os dois davam alguma sílaba à conversação, e logo
tornavam ao puro silêncio.
(MA, p. 1.194).
13
Também chamado dicendi, elocutor, verbo de dizer ou locutório.
134
(38) Enquanto o outro falava, ele ia remontando os tempos e a vida deles, recompondo as
lutas, os contrastes, a aversão recíproca, apenas disfarçada, apenas interrompida por
algum motivo mais forte, mas persistente no sangue, com necessidade virtual.
(EJ, p.
1.091).
(39) [...] agora é tarde para transcrever o que ele disse; fica para depois, um dia, quando
houver passado a impressão, e só me ficar na memória o que vale a pena guardar.
(MA, p. 1.104-5).
Identificamos em (37), (38) e (39) estruturas de menção apenas do ato de enunciação,
nada nos sendo informado da natureza temática dos atos de fala das personagens. Já em (40),
(41) e (42), configura-se a menção apenas ao conteúdo (tema) do enunciado (verbo de
elocução + complemento/substantivo).
(40) Antes do almoço, tornamos a falar da viúva e do casamento, e ela repetia aposta. (MA,
p. 1.097).
(41) Talvez quisesse beijar a sepultura, o próprio nome do marido, mas havia gente perto, sem
contar dois coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um
enterro daquela manhã. (MA, p. 1.096).
(42) Contaram a mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para eles com
inveja, uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que estavam às janelas,
algumas que os acharam bonitos (EJ, p. 970).
Como salienta Martins (1989, p. 193), trata-se de uma construção recorrente nas
manchetes de jornais, funcionando como sínteses das notícias que veiculam. Quando
estruturado em voz passiva, o enunciado citante parece emprestar, em plano semântico, “certo
relevo ao tema da enunciação”.
(43) O dia seguinte trouxe à menina Flora a grande novidade. Sábado seria assinado o
decreto; a presidência era no Norte.
(EJ, p. 1.017).
Consideremos, ainda, a condensação que se processa entre a oração com o verbo de
elocução e a que contém o enunciado reportado, nas construções com predicado verbo-
nominal, como em (44).
(44) Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derribar a monarquia com dez homens, e
Pedro de extirpar o gérmen republicano com um decreto.
(EJ: 1.000).
135
4.10.1 Discurso direto
O discurso direto, como lembra Fiorin (2002, p. 72), “é resultado de uma debreagem
interna (em geral de segundo grau), em que o narrador delega voz a um actante do
enunciado”. Daí que o discurso direto encerra uma enunciação reportada por uma enunciação
outra atualizada.
(45) Ora bem faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta
data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores:
“Vai vassouras! vai espanadores!”
(MA, p. 947).
Com base em (45), podemos concordar, junto a Maingueneau (1996a, p. 105-6), que “a
citação em discurso direto supõe a repetição do significante do discurso citado e
consequentemente a dissociação entre as duas situações de enunciação, citante e citada”. Daí
afirmarmos que coexistem “dois sistemas enunciativos autônomos”, com a conservação em
cada um deles do eu locutor e do tu alocutário e das suas respectivas marcas dêiticas.
Distinguem-se, ainda, marcas próprias de subjetividade num e noutro discurso. Em termos
estruturais, de materialidade linguística, podemos vislumbrar a ocorrência de uma pontuação
totalmente especializada, principalmente através da presença das aspas ou do travessão, com a
função de demarcar as fronteiras entre as duas instâncias enunciativas, a citante e a citada,
como em (46).
(46) O pai, quando pôde falar, disse-lhes:
– Venham beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos.
(EJ, p. 973).
Cumpre ressaltar, entretanto, que o discurso direto não corresponde sempre e
necessariamente a um enunciado efetivamente produzido. Como esclarece Maingueneau
(2002, p. 141) “pode-se tratar de uma enunciação sonhada, de uma enunciação futura,
ordenada etc.” No caso da literatura de ficção, as representações diretas das falas das
personagens revelam-se bastante ilustrativas. Mas no interior do próprio universo real pode-se
vislumbrar uma verdadeira gama de exemplares. Como observa Maingueneau (2002, p. 141),
“nesses exemplos, a questão da fidelidade é desprovida de sentido”.
(47) Enquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas idéias, a de Pedro ia pensando o
contrário; chamava ao movimento um crime.
– Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os
principais cabeças e mandá-los a executar [...]
(EJ, p. 1.033).
136
(48) Eis aqui entra uma reflexão da leitora: “mas se duas velhas gravuras os leva a murro e
contentar-se-ão eles com a sua esposa? Não quererão a mesma e única mulher?
(EJ, p.
980).
Concordamos ainda com Maingueneau (2002, p. 141) que o discurso direto, embora
relate falas efetivamente proferidas, constitui sempre "uma encenação visando criar um efeito
de autenticidade: eis as palavras que foram ditas, parece dizer o enunciador".
Entretanto, convém considerar a especificidade de uma ocorrência de fala efetiva
(marcada por entonações e apoiada por gestos, diante de um auditório que interage e reage)
em contraste com um enunciado citado, em sua delimitação entre aspas no contexto de um
texto escrito. Como observa Mangueneau (2001, p. 141) consistindo a situação de enunciação
numa reconstrução “pelo sujeito que a relata, é essa descrição necessariamente subjetiva que
condiciona a interpretação do discurso citado". Daí que se desfaz o caráter de objetividade
frequentemente atribuído ao discurso direto. Independentemente do grau de fidelidade da
citação, o discurso direto constitui sempre um recorte de texto sujeito à manipulação do
enunciador do discurso citante, que se pode valer de várias estratégias para camuflar sua
parcialidade nesse ato de citação, orientando a interpretação do enunciado para a direção que,
ideologicamente, lhe convém. Eis como, a propósito dessa possibilidade do discurso direto,
manifesta-se Authier-Revuz (1998, p. 149): “Há em DD (discurso direto) uma ficção de
apagamento, uma ostentação de objetividade no “eu cito” (com valor de eu não intervenho)”.
(49) A diferença entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato
de justiça, e para Paulo era o início da revolução. Ele mesmo o disse, concluindo um
discurso em São Paulo, no dia 20 de maio: “A abolição é a aurora da liberdade.
esperemos o sol; emancipando o preto, resta emancipar o branco”.
(EJ: 990).
Debrucemo-nos agora sobre uma modalidade discursiva problemática. No dizer de
Maingueneau (2002, p. 148), “trata-se do discurso direto livre, ou seja, de um discurso
relatado que tem as propriedades linguísticas do discurso direto, mas sem nenhuma
sinalização”, ou seja, sem os sinais da pontuação especializada do discurso direto clássico
(dois pontos, aspas ou travessão).
(50) Posto não seja grande apreciador de música, o desembargador parece satisfeito da
ressurreição, como lhe chama. Tudo é viver com mais ou menos barulho, disse ele.
(MA, p. 1.141).
(51) Mas então... perguntarás tu. Aires não perguntou nada.
(EJ, p. 995).
137
Em (50) e (51), não há dificuldade para concebermos o estatuto do discurso direto,
ainda que não estejam explícitas as aspas da sua estrutura clássica.
Junto com Maingueneau (2002, p. 147), cumpre também analisar a instância
enunciativa que “poderíamos chamar aqui de enunciador genérico”, ou seja, “o enunciador
que é o representante de um conjunto”. Como observa Maingueneau, “parece sem dúvida
mais difícil colocar no DD (discurso direto) um enunciado que não se pode atribuir a
ninguém”, como em (52).
(52) Creio que Tristão anda namorado de Fidélia. No meu tempo de rapaz dizia-se
mordido; era mais enérgico, mas menos gracioso, e não tinha a espiritualidade da
outra expressão, que é clássica. (MA, p. 1.166).
Por fim, cumpre salientar as particularidades da expressão do discurso direto por
Machado de Assis nos romances escolhidos como corpus para este trabalho. A primeira delas
recai sobre o emprego algo inusitado dos verbos de elocução introdutores do discurso citado,
fato estilístico concernente ao autor já abordado por Garcia (2000, p. 149), seguramente entre
outros estudiosos. Conforme Martins (1989, p. 203), “enquanto alguns escritores se
contentam com um número reduzido de verbos de elocução, outros os variam ao máximo,
procurando ajustá-los às circunstâncias da enunciação.” É o que podemos ratificar com (45),
transcrito agora em nova numeração como (53), cuja novidade não se processa nem mesmo
sobre o emprego de um verbo de elocução, mas sua substituição por um substantivo (pregão).
(53) Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta
data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: “Vai
vassouras! vai espanadores!”
(MA, p. 1.095).
Outra particularidade digna de nota incide sobre a atitude do narrador de
recorrentemente transcrever o conteúdo de enunciados escritos, como cartas, bilhetes ou
mesmo lides de periódicos de fins do século XIX, ao invés de resumir em paráfrase o
conteúdo das mensagens. É o que podemos observar em (54) e (55), em que se transcreve
respectivamente um bilhete e a epígrafe de um artigo, escritos por duas personagens.
(54) “Mano,
Só agora me lembrou que faz hoje um ano que você voltou da Europa aposentado. Já é
tarde para ir ao cemitério de São João Batista, em visita ao jazigo da família, dar graças
pelo seu regresso; irei amanhã de manhã, e peço a você que me espere para ir comigo.
Saudades da
Velha mana, Rita”.
(MA, p. 1.095).
138
(55) Paulo leu o artigo. Tinha por epígrafe isto de Amós: “Ouvi esta palavra, vacas gordas que
estais no monte de Samaria ...”
(EJ, p. 999).
4.10.2 Discurso indireto
Quanto à modalidade do discurso indireto (DI), trata-se de uma estrutura em que o
locutor, subordinando as falas e as palavras de um enunciador a uma anunciação única e
atualizada, dispõe de considerável liberdade para as manipular linguística e ideologicamente
num enunciado igualmente único, geralmente sem marcas tipográficas especializadas (itálico,
grifo, negrito) ou de pontuação especial (dois pontos, aspas, travessão), como discurso direto.
Como salienta Maingueneau (2002, p. 149), “o enunciador citante tem uma infinidade de
maneiras para traduzir as falas citadas, pois não são as palavras exatas que são relatadas, mas
sim o conteúdo do pensamento”.
(56) Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os
mortos ficam melhor onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor com os seus.
(MA, p. 1.097).
Podemos observar em (56) que o discurso citado apresenta-se extirpado das marcas da
sua enunciação. Não gozando mais de nenhuma autonomia, o discurso indireto apaga as
marcas formais das exclamações, das interrogações, dos imperativos, etc. (MAINGUENEAU,
2001, p. 109).
É importante considerar ainda que, diferentemente do discurso direto – no qual o
verbo dicendi pode ser omitido – no discurso indireto este se torna imprescindível, visto que é
seu sentido que se incumbe de apontar para a ocorrência de “um discurso relatado e não uma
simples oração subordinada substantiva direta” (MAINGUENEAU, 2002, p. 150). Em plano
sintático, em nada se distinguem a s orações de (57) e (58); classificam-se igualmente como
subordinadas substantivas objetivas diretas.
(57) Espero que hoje nos louvem. (MA, p. 1.115).
(58) Paulo acrescentou que ambos lhe mandavam lembranças. (EJ, p. 1.075).
Concordamos com Maingueneau (2002, p. 150), entretanto, que, “à semelhança do
discurso direto, a escolha do verbo introdutor é bastante significativa, pois condiciona a
interpretação dando um certo direcionamento ao discurso citado”. Para Martins (1989, p.
139
199), os verbos de elocução, presentes tanto no discurso direto quanto no indireto,“têm não só
uma grande importância por sua função de estabelecer um elo entre enunciados de diferentes
enunciações, como também um relevante valor estilístico dada a sua variedade e riqueza de
matizes semânticas”. No caso de Machado de Assis, observamos, como já ressaltado, uma
imensidão de enunciados representativos de empregos inusitados e de elevada criatividade
estilística.
(59) Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta
data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: “Vai
vassouras! vai espanadores!” (MA, p. 1.095).
(60) Podia parar aqui, mas continuou que, “como estávamos em Espanha”, o presidente
emendou o poeta espanhol, autor daquele epitáfio [...]
(EJ, p. 982).
Em (59), o DD apresenta-se desta feita no interior do parágrafo e introduzido por um
sintagma nominal. Em (60), o verbo aspectual continuou é empregado como verbo elocutor.
Concebendo os verbos de elocução como “verbos de comunicação”, Charolles apud
Maingueneau (1987, p. 88), “mostra que, excetuando dizer, aparentemente neutro, os demais
veiculam diversos tipos de pressuposição”. Há que se considerar, ainda, a esta altura, os casos
em que o enunciado citado, conforme Martins (1989, p. 195), subordina-se “não a um verbo
de elocução, mas a um substantivo a ele correspondente”, constituindo uma oração
completiva nominal, como em (61).
(61) Quanto ao desembargador vinha triste com a separação, mas a sobrinha obrigou-o a
prometer, à última hora, que iria vê-la no ano próximo, e ele não advertiu que o pedido
desdizia da promessa que lhe tinha feito de regressar no fim do ano ao Rio de Janeiro.
(MA, p. 1.196).
(62) Não é que só fossem liberais ao baile, também iriam conservadores, e aqui cabia bem o
aforismo de D. Cláudia, que não é preciso ter as mesmas idéias para dançar a mesma
quadrilha.
(EJ, p. 1.004-5).
Em (61), a referência ao ato de elocução da personagem citada associa-se ao
substantivo promessa (da sobrinha). Em (62), por sua vez, associado ao substantivo aforismo
(de D. Cláudia), o enunciado citado constitui agora uma oração apositiva.
Estabelecidas as bases estruturais e funcionais dos discursos direto e indireto, cumpre
salientar uma questão na qual, no dizer de Maingueneau (1996a, p. 104), “Uma concepção
errônea, mantida pelos exercícios escolares, quer que o discurso indireto seja o resultado de
uma transformação do discurso direto, o qual seria de algum modo o original das falas
citadas”. As denominações direto, indireto e indireto livre representam estratégias listadas
140
econômica e inconsistentemente pelas gramáticas para representar linguisticamente o
fenômeno da citação de falas próprias ou alheias. Conforme Fiorin (2002, p. 72),
Cada uma delas [estratégias] apresenta traços específicos que decorrem da relação que se
estabelece entre discurso citante e discurso citado. Nenhuma dessas estratégias provém de
outra, não há um modo de citar original, de que os outros seriam derivações.
Na questão da transposição do discurso direto para o indireto, tal qual se apresenta
nas nossas gramáticas, como, por exemplo, as de Cunha e Cintra (1985) e Lima (1976),
observamos, junto a Maingueneau (1996a, p. 104), a existência de “um grande número de
fenômenos que impedem a passagem do discurso direto ao indireto [...] ou de remontar do
discurso indireto a um enunciado em discurso direto”. Além disso, há que considerar, no
processo de representação de discursos, as diversas transformações linguísticas operadas no
plano das categorias enunciativas de pessoa, tempo e espaço, questões não consideradas nas
muitas gramáticas de língua portuguesa, entre as quais, as acima mencionadas. Trata-se de
questões, no entanto, já consideradas por Garcia (2000), pioneiro na abordagem de tais
problemas linguístico-discursivos entre nós.
Como esclarece Fiorin (2002, p. 75), havendo uma única enunciação com o discurso
indireto, “todos os traços enunciativos da enunciação desse interlocutor, que foi subordinada à
enunciação do narrador, e que, assim, tornou-se um locutor, são apagadas”. Daí Fiorin
lembrar que “é o discurso citante que diz qual a modalidade do discurso citado”. É o que
podemos ratificar com (63) e (64), através dos seus verbos de elocução.
(63) Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás
andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só
conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo.
(EJ, p.
945).
(64) Nem sempre os filhos reproduzem os pais. Camões afirmou que de certo pai só podia
esperar tal filho, e a ciência confirma esta regra poética.
(EJ, p. 981).
Em (64), o narrador atualiza, desobrigado de reproduzir as marcas enunciativas dos
enunciados citados, uma assertiva do discurso de um poeta e a confirmação desta pelo
discurso científico, numa espécie de contraponto que dialoga ironicamente com o
determinismo realista, como parece ratificar (65).
(65) Pela minha parte creio na ciência como na poesia, mas há exceções, amigo. Sucede, às
vezes, que a natureza faz outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as
estrelas de luzir. O que se deve crer sem erro é que Deus é Deus; e se alguma rapariga
árabe me estiver lendo, ponha-lhe Alá. Todas as línguas vão dar ao céu.
(EJ, p. 981).
141
Quanto às transformações linguísticas processadas no plano da categoria enunciativa
de pessoa, há dois fatores a serem observados no processo de integração do discurso citado no
discurso citante. Um desses fatores refere-se à particularidade da presença de um eu e/ou um
tu no discurso citado e da sua ausência no discurso citante. Em (66), os nomes das
personagens Santos e Plácido constituem referências aos enunciadores que, na situação de
diálogo reproduzida, se revezariam nos papéis de enunciador (eu) e enunciatário (tu).
(66) Santos expôs então a consulta, gravemente, com um gesto particular que tinha de
arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem escondeu nada; contou
a própria ida da mulher ao Castelo, com desdém, é verdade, mas ponto por ponto.
Plácido ouvia atento, perguntando, voltando atrás, e acabou por meditar alguns minutos.
Enfim, declarou que o fenômeno, caso se houvesse dado, era raro, se não único, mas
possível.
(EJ, p. 966).
Processo semelhante a (66) podemos registrar também em (67).
(67) Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual
resposta.
(EJ, p. 970).
Se, por outro lado, delega-se a fala com discurso indireto a um dos actantes (eu/tu) da
enunciação presentes no enunciado em discurso citado, observamos que o eu deste comparece
imutável naquele, enquanto o tu converte-se em ele, o que podemos atestar através de (68).
(68) Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher,
que lá está enterrada em Viena. Pela segunda vez, falou-me em transportá-la para o
nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto dela, mas que, em
minha opinião, os mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor
com os seus.
(MA, p. 1.097).
Quanto à categoria de tempo, cumpre considerar, junto com Fiorin (2002, p. 178), que
a passagem do discurso direto para o indireto implica “a mudança de dois para um momento
de referência”, o que “pode acarretar transformações nas marcas temporais, já que elas, às
vezes, precisam mudar do sistema enunciativo para o enuncivo”. Nossas gramáticas, contudo,
ainda conforme Fiorin (2002, p. 178), “apresentam o problema da acomodação das marcas
temporais de maneira inadequada, pois deixam entrever que elas ocorrem sempre, o que não é
verdade”.
Procurando situar a questão em sua complexidade, cumpre considerar, em primeiro
lugar, a inalterabilidade dos tempos do discurso citado quando pertencentes ao sistema
enuncivo (= tempo do enunciado – subsistemas da anterioridade e da posterioridade), fato
decorrente da instalação nesse enunciado de um marco temporal fixo (pragmaticamente
142
determinado), a partir do qual se organizam os tempos do discurso citante, como podemos
ratificar em (69), através da permanência do verbo do discurso citado no presente.
(69) A razão de tal sentimento é a tristeza que vejo nos padrinhos, à medida que se aproxima
o dia 24. D. Carmo perguntou a Tristão implorativamente por que é que não adiava para
9 de janeiro a viagem; eram mais quinze dias que lhe dava. Ele respondeu que não pode.
(MA, p. 1.173).
Uma segunda situação consiste naquela em que os momentos de enunciação dos
discursos citante e citado são enunciativos, isto é, concebidos a partir de uma marca temporal
debreada enunciativamente no discurso citado. Também nesse caso não ocorrerão
transformações no discurso citante dos tempos verbais do discurso citado, como em (70) e
(71) e (72), com a permanência das formas verbais respectivamente no futuro e no presente.
(70) Eu, algo incrédulo perguntei-lhe se já comprara bilhete; disse-nos que vai comprá-lo
amanhã.
(MA, p. 1.173).
(71) Já não me lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum é o que mais liga
duas pessoas.
(EJ, p. 1.021).
(72) Ulisses confessa a Alcinoos que lhe é enfadonho contar as mesmas cousas.
(EJ, p.
1.072).
Quanto aos casos em que se verificam mudanças no discurso citante dos tempos
verbais do discurso citado, listamos todos aqueles cujo verbo dicendi se apresenta num dos
tempos do subsistema do pretérito (perfeito simples; imperfeito; mais-que-perfeito e futuro do
pretérito simples/composto) e os tempos do discurso citado são enunciativos, como em (73) –
fragmento de (69) – e (74).
(73) D. Carmo perguntou a Tristão implorativamente por que é que ele não adiava para 9 de
janeiro a viagem.
(MA, p. 1.173).
(74) Então ela falou do calor, ele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio,
se ela se queixasse de frio.
(EJ, p. 1.035-6).
Não teremos mudanças, entretanto, “quando o verbo dicendi estiver num dos tempos
do subsistema do futuro” (FIORIN, 2002, p. 181), como podemos atestar através de (75), (76)
e (77), com os verbos dos discursos citados no presente.
(75) – Verdadeiramente não digo nada, emendou Aires; mas se me permite dizer alguma
coisa, direi que esta moça resume as raras prendas de sua mãe.
(EJ, p. 984).
143
(76) Poderia dizer-lhe que a gente traz na cabeça outros papéis velhos, que não ardem nunca
nem se perdem por malas antigas; não me entenderia.
(MA, p. 1.159).
(77) Dir-se-á que é um versátil, cativo do mais recente encanto?
(MA, p. 1.186).
Ainda no âmbito da categoria de tempo, cumpre considerar o papel do advérbio, ao
qual se subordina o tempo do discurso, como em (78) e (79), em que registramos debreagens
temporais enunciativas, e (80), enquanto registro de debreagem temporal enunciva.
(78) [...] Rita escreveu-me agora (seis da tarde) pedindo que a espere amanhã, à noite, para
irmos juntos ao Flamengo.
(MA, p. 1.176).
(79) Vim agora da rua, onde me confirmaram que o corretor Miranda teve hoje de manhã uma
congestão cerebral.
(MA, p. 1.182).
(80) Aires propôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo, e Pedro
concordou com este alvitre, alegando que, sobre o almoço, podia perturbar a digestão,
como ruim droga que devia ser, naturalmente. (EJ, p. 999).
Quanto às transformações linguísticas processadas no plano da categoria enunciativa
de espaço, “podemos ter duas situações distintas; as cenas enunciativas da narração e da
interlocução são idênticas ou diferentes”, conforme Fiorin (2002, p. 283). Se houver
identidade espacial, não há mudanças a realizar; conservam-se os dêiticos espaciais. É o que
podemos ratificar através das debreagens enuncivas em (81) e (82) e enunciativas em (83) e
(84).
(81) Campos disse-me hoje que o irmão lhe escrevera, em segredo, ter ouvido na roça o boato
de uma lei próxima de abolição.
(MA, p. 1.112).
(82) Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo
cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos.
(MA, p.
1.115).
(83) Não havendo melhor assunto de conversa que esse mesmo silêncio, lembrou-me dizer-
lhe que compreendia as saudades que ele levava daqui, já da terra, já das pessoas, e
particularmente das duas pessoas que lhe queriam tanto. (MA, p. 1.195).
(84) Referiu-me anedotas antigas, dedicações grandes. Depois confessou que as impressões da
nossa terra fazem reviver os seus primeiros tempos, a infância e a adolescência.
(MA,
p. 1.137).
No plano da expressão individual e estilística do discurso indireto por Machado de
Assis nas obras em análise, cumpre mencionar algumas particularidades do autor, as quais, ao
nosso ver, relacionam-se intrinsecamente com as questões do coloquialismo e das referências
144
ao leitor já submetidas a estudo por Câmara Jr. (1962). Estas, por sua vez, dialogam
internamente entre si, como nos propõe o mencionado estudo.
A primeira particularidade que salta aos olhos consiste em reduzir muitas das vezes o
conteúdo do DI, geralmente veiculado por uma oração substantiva desenvolvida, à integrante
que seguida de um único advérbio, como podemos observar em (85) e (86), o que, em suma,
corresponde a uso frequente na linguagem coloquial.
(85) Quando lhe perguntaram se Flora era bonita, respondeu que sim, e falou da temperatura.
(EJ, p. 1.062).
(86) Não vejo necessidade disso, mas respondi que sim. (MA, p. 1.195).
Outra particularidade de interesse corresponde agora a também frequente substituição
do verbo de elocução por um verbo de recepção, via de regra o verbo ouvir, como em (87).
(87) Ouvi ao Aguiar que daqui a dois meses começarão as suas reuniões semanais. (MA, p.
1.112).
Martins (1989, p. 199) observa que os verbos de elocução “têm não só uma grande
importância por sua função de estabelecer um elo entre enunciados de diferente enunciações,
como também um relevante valor estilístico dada a sua variedade e riqueza de matizes
semânticas”.
São muitos os casos em que se empregam os verbos como elocutivos. Funcionam
como de elocução propriamente ditos, os que significam, esencialmente, o ato verbal de
“dizer” (falar, declarar, afirmar, perguntar, exclamar, informar, jurar, prometer, confessar,
ordenar, pedir, aconselhar, etc), o que implica funcionarem sempre como elocutivos, como o
verbo responder em (88).
(88) Confessei achar nestes um bom exemplo de aconchego e união. (MA, p. 1.104).
Alguns verbos (insinuar, inventar, insistir, tornar, continuar, interromper, etc), pela
própria polissemia, empregam-se como elocutivos em alguns contextos e em outros não,
como o verbo continuar em (89).
(89) Podia parar aqui, mas continuou que, “como agora estávamos em Espanha”, o presidente
emendou o poeta espanhol [...]
(EJ, p. 982).
145
Há verbos (soluçar, gemer, zombar, alegrar-se, aborrecer-se, rir, agredir, esbravejar,
etc) que, denotando reações afetivas (emocionais) introduzem atos elocutivos, como o verbo
teimar em (90).
(90) Mas, por que é que vocês até agora não me disseram? teimava a mãe. (EJ, p. 969).
No mesmo plano de sentido, ocorre outras vezes, metaforicamente, o emprego de
alguns como elocutivos (trovejar, desembestar, explodir, papagaiar, etc).
Os verbos ouvir e escutar podem introduzir referência a atos de elocução, quando se
percebe subentendida a elipse de dizer, como já ilustramos acima com Machado de Assis, no
enunciado (87),
Alguns verbos (pensar, refletir, concluir, lembrar, filosofar, raciocinar, etc) referem
processos mentais que se relacionam, de alguma forma, com o ato de falar, como o verbo
concluir em (91).
(91) Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito disparate...
(EJ, p. 947).
Martins (1989, p. 200) observa que somente os verbos elocutivos propriamente ditos,
ouvir e os de processo mental empregam-se no discurso indireto.
Quanto às particularidades semânticas dos verbos de elocução, podemos concluir,
enfim, que estas se revelam praticamente incontáveis.
4.10.3 Ilha textual
Uma forma de discurso relatado de grande frequência na imprensa, conforme
Maingueneau (2002, p. 151), corresponde à chamada ilha textual ou enunciativa, em que,
através de aspas ou itálico, o enunciador citante (locutor) isola um grupo (segmento) de
palavras atribuídas ao enunciador do discurso citado. E acaso não será aleatório o fato de
constatarmos significativa quantidade de semelhante procedimento de citação em Machado de
Assis, para quem o trabalho jornalístico no campo da crônica funcionaria, conforme Eugênio
Gomes (ASSIS, 1972, p. 14), como um verdadeiro laboratório “experimentalista” da
renovação estética que deflaga nos romances machadianos, a partir da década de 1870.
(92) “Temos a confissão do réu” foi o título do primeiro artigo que rendeu à folha da oposição
o ato do presidente.
(EJ, p. 982).
146
(93) “Emancipado o preto, resta emancipar o branco”, era uma ameaça ao imperador e ao
império.
(EJ, p. 991).
(94) “A mulher é a desolação do homem” dizia não sei que filósofo socialista, creio que
Proudhom.
(EJ, p. 1.017).
4.10.4 Discurso direto com “que”
Outra modalidade de forma híbrida de discurso citado constitui a ocorrência do que
Maingueneau (2002, p. 151) aponta como discurso direto com “que”, isto é, a ocorrência de
“DD após introdutores de DI (verbo + que)”.
(95) Um dos convivas, – sempre há os indiscretos – no brinde que lhes fez aludiu à falta de
filhos, dizendo “que Deus lhos negara para que eles se amassem melhor entre si”
(MA,
p. 1.102).
(96) Quando escrevi há dias (duas ou três vezes) que “a moça Fidélia foge a alguma coisa, se
não foge a si mesma”, tinha em mira o afastamento em que ela vinha estando da casa da
amiga. (MA, p. 1.168).
Tanto quanto as ilhas textuais ou enunciativas, o DD com “que” constitui um
fenômeno que se expande cada vez mais na imprensa atual, em decorrência da evolução
midiática, que, por sua vez, se revela no desenvolvimento desses tipos de discurso relatado. A
propósito, destacamos estas palavras de Maingueneau (2002, p. 152):
Talvez sob a influência da televisão (ver o privilégio do ‘ao vivo’ e da entrevista de rua), os
jornalistas procuram atuar em duas frentes ao mesmo tempo: eles mantêm uma certa distância
em relação aos indivíduos de quem falam, mas tentam ‘colar-se’ à sua linguagem e ao seu
ponto de vista; não se contentam em comentar acontecimentos, descrever a realidade; eles
pretendem restituir o ponto de vista e as palavras dos atores.
4.10.5 Discurso indireto livre
Quanto à modalidade do discurso indireto livre (doravante DIL), trata-se de um tipo de
discurso reportado que, segundo Lorck apud Bakhtin (1979, p. 168), “constitui uma forma
direta de representação da apreensão do discurso de outrem, do vívido efeito produzido por
este”. Para Garcia (2000, p. 168), “quando o Autor quer impregnar suas palavras de certa
tonalidade afetiva própria do discurso direto, quando, enfim, Autor e personagem como que
se fundem numa espécie de interlocutor híbrido, então aparece o legítimo indireto livre”.
Maingueneau (2002, p. 153) observa que “a polifonia do DIL não é a de duas vozes
claramente distintas (DD), nem a absorção de uma voz pela outra (DI), mas uma mistura
147
perfeita de duas vozes”. Daí que, complementando a questão, concebemos não ser possível
especificar exatamente as palavras do enunciador citado e do enunciador citante. No plano
material do enunciado, conforme Maingueneau (1996a: p. 118), “o discurso indireto livre não
possui modo específico de introdução (ruptura ou subordinação)”, o que implica a
inexistência de pontuação e marcas tipográficas especializadas presentes no discurso indireto
e nas formas híbridas (ilhas textuais, DD com “que”, DDL) quanto de estruturação sintática
rígida e particular como no discurso indireto (= oração subordinada substantiva desenvolvida
com a integrante que ou reduzida de infinitivo). No dizer de Fiorin (2002, p. 81),
“diferentemente do que acontece no discurso indireto, não há subordinação a um verbum
dicendi e há exclamações, interrogações e torneios expressivos”, ou seja, como no discurso
direto, comparecem no discurso indireto livre as marcas da fala do enunciador citado, assim
como também se configura uma situação enunciativa única.
(97) Tudo isto considerado, e mais a hora, a viagem curta, e a presença do marido, que diabo
ganhava eu em desfazer o que ela dizia?
(MA, p. 1.176).
(98) Não tardaria a perder o filho postiço, que se vai embora, e a filha de empréstimo pode vir
a amar outro e casar, e ainda que não saia daqui, seguirá outra família. Unidos os dois
aqui, amados aqui, tê-los-ia ela abraçados ao próprio peito, e eles a ajudariam a morrer.
(MA, p. 1.171).
Ainda que (97) encerre uma reflexão do próprio narrador, não podemos determinar se
sua temporalidade se situa no momento da cena narrada ou na contemporaneidade do ato de
narração. Já em (98), podemos perceber a intenção do narrador de fundir seu discurso
narrativo com as reflexões do universo mental da personagem. E essa fusão não equivale à
identificação psicológica do narrador com a personagem, como na concepção de Lerch apud
Câmara Jr. (1962, p. 30), para quem “penetra o escritor na criatura da sua fantasia e identifica-
se com ela”.
Em relação ao autor contemplado neste trabalho, Câmara Jr. (1962, p. 34) observa que
“o romancista, apesar da sua orientação psicologista, não faz dele [o discurso indireto livre]
um uso primacial ‘para penetrar na criatura de sua fantasia’. É que Machado de Assis se
mantém cuidadosamente separado dos personagens [...]”. É o que parece atestar (99).
(99) O luxo do casal temperava a pobreza da oração; era espécie de homenagem ao finado. Se
a alma de João de Melo os visse de cima, alegrar-se-ia do apuro em que eles foram rezar
por um pobre escrivão. Não sou eu que digo: Santos é que o pensou.
(EJ: 953)
148
Naturalmente, a ressalva quanto ao uso particular do DIL em Machado não se estende
aos romances de foco narrativo em 1ª pessoa com narrador-personagem, como no caso de
Memorial de Aires. Em relação a Esaú e Jacó, em que, no tocante ao estatuto do narrador,
Machado forja um “truque” metaficcional na Advertência ao livro, é possível mesmo em
algumas passagens assinalar a identificação do e pelo narrador com a personagem do
conselheiro Aires. E talvez seja significativo constatar que todo o CAPÍTULO XII / ESSE
AIRES (relativamente extenso, dentro do romance) ocupa-se em descrever a personalidade do
conselheiro e referir particularidades da sua vida.
(100) Não pôde evitar que lhe caíssem duas pequeninas lágrimas – como tantas fitas que lhe
atavam para sempre a pasta do passado.
A imagem não é boa, nem verdadeira, foi a que acudiu ao Conselheiro, andando, ao
voltar de Andaraí. Chegou a escrevê-la no Memorial, depois riscou-a, e escreveu uma
reflexão menos definitiva: “Talvez seja uma lágrima para cada gêmeo”.
(EJ, p.
1.070)
.
Em (100), o narrador atribui bruscamente à autoria do Conselheiro a imagem utilizada.
Na verdade, Machado pretende “brincar” com a ilusão do foco narrativo do narrador
onisciente de 3ª pessoa do realismo, eleito tecnicamente pelo movimento como a perspectiva
narrativo-ficcional apta por excelência a captar com objetividade científico-positivista a
realidade do Universo.
Quanto ao emprego do discurso indireto livre na imprensa, observa Maingueneau
(2002, p. 154) que este se revela um recurso muito pouco utilizado no gênero jornalístico,
havendo outros instrumentos, como as ilhas textuais, os DD com “que” e “o resumo com
citações”, que se disponibilizam com “vantagens comparáveis ao DIL”. A menor utilização
do discurso indireto livre em relação aos outros tipos de discurso reportado talvez se associe a
uma determinada sutileza peculiar à sua estrutura. Contudo, não se justifica, como adverte
Authier-Revuz (1998, p. 134), tratá-lo como “uma forma especificamente literária: ele abunda
no discurso oral cotidiano, como também – no campo político – na imprensa ou nos ensaios”.
4.10.6 Resumo com citações
Quanto ao “resumo com citações”, trata-se, conforme Maingueneau (2002, p. 154),
“do resumo de um texto cujo original aparece apenas em fragmentos no fio do discurso”. Na
imprensa, podemos constatar uma intensa utilização desse tipo de discurso reportado.
149
Constitui uma característica do resumo com citações, entre outras, sua manifestação “em toda
a extensão de um texto”.
(101) D. Carmo crê na reconciliação dela com o pai, e nem por isso receia perdê-la. Fidélia
saberá ser duas vezes filha, é o resumo do que lhe ouvi, sem entrar em pormenores nem
na espécie de afeição que lhe tem. Do que ela me disse acerca do “gosto de sofrer pelo
marido”, concluo que a senhora do Aguiar é daquelas pessoas para quem a dor é coisa
divina. (MA, p. 1.121).
(102) O pedido era verdadeiro, a imputação de sócio é que era falsa. Não importa; tanto
bastou para que a folha da oposição dissesse que houve naquilo um bom “arranjo de
família”, acrescentando que, como era de águas, devia ser negócio limpo. (EJ, p.
982).
Como podemos observar, em (101) e (102), também o resumo com citações (a
exemplo das ilhas textuais), além de igualmente apresentar-se delimitado através de aspas,
acomoda-se da mesma forma sintática e harmonicamente ao discurso citante. Como esclarece
Maingueneau (2002, p. 154), “sem aspas, nada distinguiria as palavras do texto original das
palavras do jornalista [ou romancista], uma vez que os fragmentos citados estão integrados
sintaticamente ao discurso citante”. Conforme Fiorin (2002, p. 81),
O texto entre aspas é, evidentemente, discurso reportado. No entanto, se ele for lido em voz
alta, o enunciatário não poderá fazer distinção entre o discurso citante e o citado, pois não há
nele nenhuma marca, como no discurso direto ou no indireto.
Contudo, o resumo com citações participa tanto da natureza de uma quanto da de outra
modalidade. No dizer de Maingueneau (2002, p. 155),
as unidades entre aspas são empregadas ao mesmo tempo como no DI, que restitui o sentido, e
como no DD, que restitui as palavras empregadas: o leitor apreende o sentido e, ao mesmo
tempo, lê as palavras mesmas utilizadas pelo enunciador citado.
Diante de todo o exposto, podemos concluir, junto a Maingueneau (2002, p. 155), que
“O resumo com citações pretende efetivamente ter valor documentário, ele se baseia em uma
ética da palavra exata, da objetividade, que faz a voz do discurso citante tornar-se a mais
discreta possível”.
Ressalva Fiorin (2002, p. 81), no entanto, que “é preciso notar que a escolha das
citações e sua colocação num dado contexto revelam o ponto de vista do narrador”, o qual se
identifica, como já vimos, com a figura do locutor.
150
4.10.7 Provérbios
Quanto ao fenômeno da enunciação dos provérbios, trata-se, como observa
Maingueneau (2002: 169), de um tipo de polifonia menos visível; sua enunciação constitui
“uma retomada de inumeráveis enunciações anteriores, as de todos os locutores que já
proferiram aquele provérbio”. Em plano semântico, a enunciação de um provérbio
corresponde a fazer ouvir, através da própria voz, a voz da “sabedoria popular” (do
enunciador genérico on), o qual assume a “responsabilidade pelo enunciado”.
No dizer ainda de Mainguenaeu (2002, p. 170),
o enunciador não explicita a fonte desse enunciado: cabe ao co-enunciador identificar o
provérbio como tal, apoiando-se, ao mesmo tempo, no dizer sem dizer proporcionado pelo
provérbio mais a sedução produzida por seus elementos prosódicos e mnemônicos, assim
como sua essência de verdade geral incontesvel, proveniente de uma fonte de sabedoria
admitida como infalível, que faz dele uma arma infalível, que faz dele uma arma apreciada na
argumentação.
(103) “Quando um não quer, dous não brigam” tal é o velho provérbio que ouvi em rapaz, a
melhor idade para ouvir provérbios.
(EJ, p. 1.080).
(104) Releu a carta; dispôs-se a ir logo, mas há pessoas para quem o adágio que diz que “o
melhor da festa é esperar por ela, resume todo o prazer da vida.
(EJ, p.1.073).
Cumpre ressaltar, no entanto, que o emprego de provérbios e a alusão a estes nas obras
em análise deve-se muito frequentemente à atitude estética do autor de evitar o lugar comum
justamente a partir do seu emprego, num retorno metaenunciativo via de regra perpassado
criticamente de humor e ironia.
(105) No caso dos gêmeos eram ambos que não queriam; parecia-lhes ouvir uma voz de fora
ou do alto que lhes pedia constantemente a paz. Força maior, portanto, e troca de
fórmula: “Se nenhum quer, nenhuma briga”.
(EJ, p. 1.081).
(106) – Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.
(MA, p. 1.097).
(107) O que o berço dá só a cova o tira, diz um velho adágio nosso. Eu posso, truncando um
verso ao meu Dante, escrever de tais insípidos: Dico, che quando l’anima mal nata ...
(EJ, p. 964).
4.10.8 Slogans
Quanto ao slogan, observa Maingueneau (2002, p. 171) que, “publicitário ou político,
não deixa de ter uma certa semelhança com o provérbio”. Tal como se processa em relação ao
151
provérbio, também com o slogan, a responsabilidade pelo seu enunciado não recai sobre um
virtual enunciador citante, mas sobre uma fonte enunciativa genérica, a qual não se faz no
contexto necessário identificar.
que considerar, entretanto, a existência de diferenças que se tornam significativas
no confronto entre provérbio e slogan: “Enquanto um provérbio deve ser interpretável fora de
qualquer contexto singular, muitos slogans estão ancorados na situação de enunciação
(MAINGUENEAU, 2002, p. 171). Daí a possível presença no seu enunciado de “embreantes
e nomes próprios, que por razões diversas, são inseparáveis de contextos particulares”.
Outra diferença do slogan em relação ao provérbio consiste, conforme Maingueneau
(2002, p. 171), no fato de que "o valor pragmático do slogan é muito diferente do valor
pragmático do provérbio”. Enquanto o provérbio refere o funcionamento de um estado de
coisas do mundo, requerendo o estatuto de verdade (realidade), o slogan associa-se sobretudo
à sugestão persuasiva no plano da psicologia do mercado, ou argumento de tese, no plano
ideológico. A propósito, evocamos um procedimento frequentemente observado em textos
jornalísticos de encadear os argumentos de seu discurso a partir da apresentação (introdução)
de um slogan em circulação nos meios de comunicação da sociedade. Para Ducrot (1987, p.
88), “A astúcia do slogan consiste em que o conteúdo afirmado não o seja diretamente, mas
apenas de forma derivada e a partir de um enunciado marcado para pressupô-lo”. Acreditamos
que em (108) as considerações do próprio narrador possam ilustrar o exposto acima sobre a
enunciação do slogan. No caso, o slogan empregado veicularia uma propaganda republicana
no contexto histórico da época.
(108) “Emancipado o preto, resta emancipar o branco”, era uma ameaça ao imperador e ao
império.
Não atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a frase do discurso não era
propriamente do filho; não era de ninguém. Alguém a proferiu um dia, em discurso ou
conversa, em gazeta ou em viagem de terra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita
gente a fez sua. Era nova, era enérgica, era expressiva, ficou sendo patrimônio comum.
(EJ, p. 991).
4.10.9
Alusão
Ressaltamos, de passagem, o que Maingueneau (2002, p. 172), trata como “alusão a
outros enunciados”, que consiste numa prática comumente adotada em textos jornalísticos de
“deixar entrever, atrás de um enunciado, outros enunciados ou fragmentos de enunciados
célebres”. Cumpre observar, contudo, que “nesses tipos de enunciados alusivos não existe
152
relação de sentido entre os enunciados evocados e os que se constroem a partir dos primeiros”
(MAINGUENEAU, p. 2002, 172).
Em (109), podemos ouvir o eco do axioma lavoisieriano sobre a transformação das
coisas na natureza, enquanto em (110), do discurso cristão.
(109) Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda
apenas de dono.
(MA, p. 1.133).
(110) Bem-aventurados os que ficam, porque eles serão recompensados. (EJ, p. 1.011).
4.10.10 Captação e subversão
O fenômeno polifônico não consiste às vezes em tão-somente aludir a “um fragmento
isolado, mas de imitar globalmente um texto ou um gênero de discurso”, conforme
Maingueneau (2002, p. 173), para quem “falar de imitação é vago demais”. Segundo o autor,
o ato de imitação de um texto pode valer-se de duas estratégias opostas, “a captação e a
subversão”. Esta consistiria em visar à desqualificação do texto imitado – procedimento
próprio da paródia; aquela, em tomar uma direção comum a este – procedimento específico,
por sua vez, da paráfrase.
(111) Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes.
(MA, p. 1.115).
(112) Estou cansado de ouvir que ela vem, mas ainda não cansei de o escrever nestas páginas
de vadiação. Chamo-lhes assim para divergir de mim mesmo. Já chamei a este Memorial
um bom costume. Ao cabo, ambas as opiniões se podem defender, e, bem pensado, dão
a mesma coisa. Vadiação é bom costume.
(MA, p. 1.133).
Em (111), configurar-se-ia uma captação, uma vez que o narrador acena em direção
ideológica comum aos conjurados, ao empregar o advérbio tardiamente, cognato do adjetivo
tardia presente no lema dos Inconfidentes. Já em (112), o narrador expressa claramente o
desejo de subverter suas próprias palavras, embora seja mais um dos tão recorrentes jogos
metaenunciativos machadianos presentes na obra.
4.10.11
Ironia
Por fim, cumpre examinarmos o fenômeno da ironia. Trata-se, conforme Maingueneau
(2002, p. 174), não mais da “contestação de um gênero ou de um texto preexistentes”. No
153
caso da ironia, “o enunciador subverte sua própria enunciação”, e isso no instante mesmo que
profere o enunciado irônico. Conforme Maingueneau (2002, p. 175),
Classifica-se tal fenômeno como um caso de polifonia, uma vez que esse tipo de enunciação
pode ser analisado como uma espécie de encenação em que o enunciador expressa com suas
palavras a voz de uma personagem ridícula que falasse seriamente e da qual ele se distancia,
pela entonação e pela mímica no instante mesmo que lhe dá a palavra.
Parece-nos que em tudo e no todo (113) constitui um enunciado irônico, em face do
“filosofismo” que caracteriza o realismo no século XIX.
(113) Pareceu-me este dizer tão sutil e tão espevitado que preferi atribuí-lo a algum cão que
latisse dentro do meu próprio cérebro. Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi
dizer de certa cantora que era um elefante que engolira um rouxinol. Creio que falavam
de Alboni, grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão
filósofo, e o mérito do discurso será todo dele. Quem sabe lá o que me haverá dado
algum dia o meu cozinheiro Nem era novo para mim este comparar de vozes vivas com
vozes defuntas. (MA, p. 1.151).
No âmbito deste item final de capítulo, consideramos relevante ainda transcrever estas
iluminadoras palavras de Maingueneau (2002, p. 178):
Enquanto a polêmica apresenta argumento contra um enunciador externo e enquanto a paródia
aniquila internamente uma posição enunciativa visivelmente estranha e caracterizada, a ironia
simula imputar ao adversário a responsabilidade pelo texto, de maneira que ele se autodestrua.
Em (114), novamente nos parece que o alvo do enunciador irônico continua sendo o
movimento realista/naturalista, agora interpelado em seu esquematismo característico.
(114) Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que
sendo escrito com método. A insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a
ser impertinente. Suponha que deveras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu
conto o que a leitora me lembrou, quando a verdade é que apenas escrevo o que
sucedeu e pode ser confirmado por dezenas de testemunhas? (EJ, p. 980).
154
5 CONCLUSÃO
Propusemos, como ponto de partida desta tese, conceber a inextricabilidade
(“funcional”, se podemos dizer) entre os princípios gerais da heterogeneidade e da
performatividade, que, na nossa concepção, atravessam todas as manifestações linguageiras
do homem. No interior do contexto de justificação, identificamos a gênese da nossa proposta
na constatação de uma atitude teórica a nosso ver redutora, quanto ao estudo da
heterogeneidade e do dialogismo enunciativos, apreendidos num plano teórico isolado,
reduzido praticamente a um trabalho de descrição pela descrição.
Tal apreensão crítica, entretanto, não significa que consideramos destituídos de valor
os trabalhos (que não são poucos) desenvolvidos com a mencionada “limitação”. Na nossa
opinião, eles se integram numa produção de inestimável importância, na direção tomada
acertadamente pelos estudos enunciativos da linguagem, que recolocaram a antiga questão do
sentido no seu devido lugar, em relação ao plano imanentista-formal do sistema da língua, por
considerável intervalo histórico na pauta do estruturalismo em linguística.
Quanto à menção especificamente aos trabalhos de Ducrot no campo da pragmática
linguística, ou mais propriamente na área da argumentação polifônica, longe de nos sentirmos
autorizados a dimensionar o valor da sua colaboração no âmbito dos estudos linguísticos (o
que certamente seria o caso de atribuir-lhe merecido louvor), declaramo-nos grandemente
tributários de sua teoria polifônica da enunciação, que, para nós, contém o esboço da nossa
proposta. Se nesta se abrigam alguma validade e mérito, podemos dizer que eles consistem
modestamente em passar a limpo, em plano teórico, um rascunho (no bom sentido do termo)
vislumbrado principalmente em Ducrot, especialmente, como já mencionado na introdução
desta tese, a partir da sua abordagem das formas de argumentação por autoridade, que ele
batiza de autoridade polifônica e arrazoado por autoridade.
Quanto ao quadro de descrição dos fatos de língua e linguagem referentes aos
postulados abordados, que nos propomos como objetivo específico desta tese, com base no
corpus constituído dos romances machadianos Esaú e Jacó e Memorial de Aires, permitimo-
nos, diante da natural dificuldade de fornecer exemplos explícitos da defendida
inextricabilidade com que se imbricam os princípios em questão, a liberdade de analisar os
enunciados com preocupações descritivas distintas a cada vez. Daí que podemos justificar a
ausência de um capítulo especial nesta tese com o fim de explicitação do referido
empreendimento teórico, o que, a considerar o método hipotético-dedutivo empregado no
plano da sua dissertação/argumentação, acreditamos não representar uma inconsistência em
155
termos de encadeamento discursivo. Julgamos mesmo que a apreciação em separado dos
postulados em nada comprometeu a nossa convicção no que concerne ao fato da
inextricabilidade que os une. No entanto, algumas vezes tivemos a oportunidade de assinalar o
fenômeno de linguagem proposto, independentemente do lugar de sua exemplificação no
trabalho.
Em relação ao universo temático dos romances sob análise, evitamos propor
interpretações baseadas na associação do seu universo conteudístico a informações e
particularidades biográficas do autor. No caso, consideramos que o próprio fenômeno literário
já atendia suficientemente aos nossos propósitos de descrição e exemplificação dos princípios
abordados. Mas isto não por rigor esteticista, e sim pela conveniência do contexto de uma tese
na área de língua portuguesa.
No que concerne ao interesse e à relevância da nossa proposta, esperamos ter
apresentado, a partir das questões teóricas refletidas, instrumentos e meios suficientes para
uma abordagem de leitura dos dois romances de Machado de Assis pelo viés de tais questões,
que consensualmente representam avanços de pesquisas no plano dos estudos enunciativos da
linguagem. Podemos constatar, através de recentes publicações, que o autor vem sendo
revisitado cada vez mais sob a óptica desses estudos. Para citar pelo menos um exemplo, O
éthos dos romances de Machado de Assis (CRUZ, 2009), ainda não totalmente resfriado do
prelo.
Quanto à grande diversidade de enfoques teóricos abordados em torno do fenômeno
linguístico em geral, justificamo-nos aqui com o nosso objetivo confessadamente pretensioso
de visualizar o mais aproximadamente possível o todo sobre a questão maior da linguagem
humana; pretensão essa, entretanto, que se perde na história do tempo. Adotamos a mesma
posição de Pinto (1994: 12), ao declarar que não lhe “interessa olhar a árvore tão de perto que
perca de vista a floresta”; posição essa que se assume na contramão de um paradigma de
ciência que privilegia exclusivamente a análise sobre um escopo bem limitado de objetos em
detrimento da síntese e do todo, considerado, conforme as palavras do autor, “como não
analisável ou equivocadamente tomado como a resultante natural do somatório das partes
analisadas em detalhe”.
Retomando o objetivo específico de forjar um quadro descritivo dos fenômenos
linguístico-discursivos, ratificamos a concessão de maior espaço ao postulado da
heterogeneidade, que, em essência, constitui o veiculo de manifestação do princípio geral da
performatividade. No entanto, não nos guiamos naturalmente pelo postulado hjelmsleviano da
exaustividade descritiva, mencionada no capítulo I. Como declaradamente assumimos, nossa
156
proposta consistiu em abordar o essencial das questões, com o fito central de fornecer uma
concepção global da linguagem enquanto ação discursiva, o que, para nós, transcendia o plano
superficial das intenções dos falantes, como procuramos observar ainda na introdução do
trabalho. Nesta, por atendimento a requisito metodológico, procuramos situá-lo como uma
produção no âmbito da análise do discurso de orientação francesa, de onde provêm
principalmente os estudos atuais sobre a heterogeneidade enunciativa.
Em relação ao corpus dos romances machadianos escolhidos, reafirmamos, a título de
conclusão, nossa intenção de centrar a pesquisa apenas na apreensão dos fatos linguísticos
concernentes às nossas propostas teóricas. Pensamos, entretanto, que questões interdiscursivas
de profundo interesse geral (histórico, literário, político, etc.), presentes em abundância nas
duas obras, podem prestar-se perfeita e produtivamente a uma articulação com estudos
linguísticos, nessa proposta incluída principalmente a excelência inventiva da escrita do autor,
em muitos aspectos bastante atual, como pudemos constatar a partir dos enunciados
submetidos à análise. Com a licença para algo que já constitui lugar comum entre críticos e
teóricos, podemos dizer que Machado de Assis não se contenta em falar sobre as coisas, mas
inclui na sua fala ainda o modo de falar sobre essas coisas.
Relativamente ao desenvolvimento da tese, visamos refletir no capítulo I sobre o
essencial do pensamento dos autores: a constituição do objeto da línguística na obra
doutrinária de Saussure, ao lado da consideração sobre suas relevantes dicotomias; a retomada
por Hjelmslev da concepção saussuriana da língua e da linguística, alçada agora às ultimas
consequências teórico-formais com os Prolegômenos; a base biológico-inatista do edifício
téorico do gerativismo de Chomsky, culminando com um relance em torno da reação das
linguísticas enunciativas emergentes sobretudo na Europa, a partir da segunda metade do
século XX.
No capítulo II, voltamo-nos prioritariamente para as questões linguístico-discursivas
associadas à instância da enunciação, visando sua apreensão mediante marcas linguísticas de
subjetividade, comunicação e interação entre os falantes, ou seja, através de um arcabouço
teórico-conceitual indispensável ao exame dos principíos gerais da performatividade e da
heterogeneidade enunciativa, abordados respectivamente nos capítulos III e IV. Percorremos,
dessa forma, caminhos teóricos que estabelecem definitivamente o lugar da enunciação nos
estudos linguísticos do sentido e dos fatos da lingua(gem).
No capítulo III, procuramos situar a performatividade da linguagem em suas inter-
relações com a retórica, a filosofia da linguagem e a pragmática. Acreditamos que assim
pudemos fornecer clara compreensão da atividade linguageira do indivíduo, mediadora de
157
suas relações não apenas com o mundo e os outros homens, mas também com o seu próprio
destino.
No capítulo IV, analisamos, por fim, as manifestações do princípio geral da
heterogeneidade enunciativa, sem pretender, no entanto, como propõe Hjelmslev, alçar nossa
análise a um plano de exaustividade. A partir das considerações dos itens iniciais sobre a
análise do discurso de orientação francesa, o dialogismo e a polifonia, o intertexto e o
interdiscurso, intentamos construir uma imagem da dimensão pretendida por nossa abordagem
e descrição. No estudo dessa heterogeneidade, em que tanto um indivíduo fala em outros
quanto nele falam outros indivíduos, pudemos surpreender não somente formas (marcas)
linguísticas de citação explícita, mas também ressonâncias discursivas veladas, isto é, não
marcadas linguisticamente.
Na nossa concepção, entretanto, o outro é condição sine qua non da existência da
linguagem, independentemente de sinalizações linguísticas ou epilinguísticas. Com base nessa
sua relação (performativa) com a alteridade, esperamos ter justificado a proposta desta tese de
conceber a inextricabilidade entre os princípios gerais da performatividade e heterogeneidade,
no que tange às manifestações linguageiras do homem.
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