Download PDF
ads:
Luciana Drummond Paz Verona
Comida auwe˜, comida waradzu e ressignificação:
O sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe,
Mato Grosso
Rio de Janeiro
2009
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro Biomédico
Instituto de Nutrição
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Luciana Drummond Paz Verona
Comida auwe˜, comida waradzu e ressignificação:
O sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, Mato
Grosso
Dissertação apresentada, como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre ao Programa de
Pós-graduação em Alimentação,
Nutrição e Saúde da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Silvia Angela Gugelmin
Rio de Janeiro
2009
ads:
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ /REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta dissertação.
___________________________________________ _______________
Assinatura Data
V548 Verona, Luciana Drummond Paz.
Comida auwe, comida waradzu e ressignificação : o
sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe, Mato Grosso / Luciana Drummond Paz Verona. -
2009.
133 f.
Orientadora: Silvia Angela Gugelmin.
Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Nutrição.
1. Índios Xavante Mato Grosso - Nutrição Teses. 2.
Povos indígenas Mato Grosso Saúde e higiene Teses. 3.
Etnologia Mato Grosso Teses. 4. Educação sanitária
Teses. I. Gugelmin, Silvia Angela. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Nutrição. III. Título.
CDU 613.2(=1-87)
Luciana Drummond Paz Verona
Comida auwe˜, comida waradzu e ressignificação:
O sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe,
Mato Grosso
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de mestre,
ao Programa de s-Graduação em
Alimentação, Nutrição e Saúde, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Linha de Pesquisa: Políticas, práticas e
saberes em alimentação, nutrição e saúde.
Aprovado em: 18 de dezembro de 2009.
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Silvia Angela Gugelmin (Orientadora)
Instituto de Nutrição da UERJ
________________________________________
Prof.º Dr.º Maurício Soares Leite
Curso de Nutrição da UFSC
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Shirley Donizete Prado
Instituto de Nutrição da UERJ
Rio de Janeiro
2009
DEDICATÓRIA
Ao meu filho Joaquim, presente que eu e o Kadu estamos prestes a ganhar.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, tão presente em minha vida, sempre me guiando por
caminhos prazerosos e fortalecendo nos momentos de necessidade.
Ao Kadu, meu marido, que constantemente me estimula com seu exemplo e
me apoia com seu amor e compreensão. O melhor amigo e companheiro que eu
poderia ter.
À minha mãe Luci e minha avó Ziza, que me ensinaram a ser uma mulher
melhor, amando e respeitando o outro.
À minha orientadora Silvia Gugelmin, que hoje também é minha amiga, pelo
amor ao ensino, dedicação e disponibilidade inesgotáveis.
Ao Paulo Delgado por todas as conversas “ensinadoras”, e Letícia, que me
acompanhou nos primeiros passos na aldeia e ainda dividiu a mamãe comigo.
À Lua (Luciene Souza), por ter deixado sua casa tão especial sempre de portas
abertas; e à Dona Elcy, que nos acordava em Barra do Garças com um maravilhoso
cheirinho de café.
À professora Shirley Prado, pela conversa no corredor que “plantou a semente”
deste mestrado.
Às quatro Marias:
- Maria Maranhão e Maria Creuza, por todo apoio enquanto estávamos na
Aldeia;
- À Maria Tsiontse`ewaporiö, primeiro sorriso Xavante que eu vi, e quem dividiu
comigo seu nome;
- À Maria (secretaria) pelos “helps” necessários...
Às professoras do curso de Alimentação e Cultura, que me ensinaram o valor
da Pesquisa qualitativa e suas aplicações, e me estimularam com seus
conhecimentos.
Aos Xavante da Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, por me terem recebido.
RESUMO
VERONA, Luciana Drummond Paz. Comida auwe˜, comida waradzu e
ressignificação: O sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe, Mato Grosso. 2009. 132f. Dissertação (Mestrado em Alimentação,
nutrição e saúde) Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Os Xavante constituem-se como um dos povos indígenas do Brasil mais
estudados em seus aspectos culturais, políticos, epidemiológicos, genéticos,
demográficos, entre outros. Contudo ainda são escassas, entre esse povo, as
pesquisas sobre práticas alimentares. Diante da falta de informações sobre a
alimentação xavante, bem como do subjetivismo agregado a ela, a presente
dissertação tem por objeto o sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe, localizada na Terra Indígena São Marcos, no estado
de Mato Grosso. Pretendemos discutir as ações concretas dos indivíduos em
relação à alimentação, demonstrando as limitações de abordagens
estritamente biomédicas e a importância da articulação entre nutrição e
ciências sociais na produção de conhecimento relevante e contextualizado para
a prática dos profissionais de saúde. Sendo a alimentação um objeto de caráter
complexo, buscamos recursos teórico-metodológicos que contemplassem sua
pluralidade, no caso, a etnografia. Para tanto o material empírico foi organizado
de acordo com as cinco fases de atividades alimentares propostas por Goody,
na obra Cooking, cuisine and class. Descrevemos a maneira como os Xavante
produzem, distribuem, preparam e consomem os alimentos, e como descartam
o lixo; apresentamos a discussão do tradicional, do novo e da ressignificação
das práticas alimentares. Os Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe,
como qualquer outra sociedade, possuem um sistema de ideias lógico e
coerente no que diz respeito à sua alimentação e ao modo de lidar com as
transformações inerentes ao processo de contato com a sociedade não
indígena. Entendemos que qualquer intervenção de educação em saúde com
os moradores da aldeia deve considerar as particularidades do pensamento
Xavante e as especificidades locais, de forma que respeitem seus
conhecimentos e as transformações já ocorridas e incorporadas pelo grupo.
Palavras-chave: Sistema alimentar. Alimentação. Xavante. Povos indígenas.
Transformações.
ABSTRACT
Recognizing the lack of information about the diet of the Xavante as well as the
subjectivity associated with it, the topic of this dissertation is the dietary system
of the Xavante who live in the Nossa Senhora de Guadalupe village located
inside the Terra Indígena (TI) São Marcos, Mato Grosso, Brazil. We intend to
discuss specific practices related to the diet of the members of this community,
showing the limitations of purely biological and medical approaches in contrast
to the beneficial relationship between nutrition and the social sciences to
produce relevant and contextualized information useful to health professionals.
Because the diet of a culture is a complex subject, we pursued appropriate
theoretical and methodological resources to explore such cultural richness, in
this case, ethnography. To organize the empirical material we used the five
phases of dietary activities proposed by Jack Goody in the book Cooking,
Cuisine and Class. We describe how the Xavante produce, distribute, prepare
and consume their food and how they dispose of their garbage. Included is a
discussion of the Xavante diet reflecting traditional and new practices as well
as contemporary adaptations. The Xavante of the Nossa Senhora de
Guadalupe Village, as in any other society, possess a consistent cosmology
related to their diet and the way they deal with the transformations inherent to
the process of social interaction with non-indigenous society. We understand
that any intervention in the health education of the residents of the village
should consider unique aspects of Xavante thought and its local peculiarities in
order to respect their cultural values and the previous transformations that have
already been incorporated by the group.
Key-words: Food system; Diet; Xavante; Transformations; Indigenous peoples
.
LISTAS DE TABELAS E QUADROS
Tabela 1
28
Tabela 2
128
Tabela 3
129
Quadro 1
88
LISTAS DE FIGURAS
Figura 1-
Localização das Terras Indígenas Xavante no Estado do Mato
Grosso ...................................................................................................
29
Figura 2 -
Vista aérea da Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe ...........................
38
Figura 3 -
Pirâmide populacional da Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe em
outubro de 2009 ....................................................................................
40
Figura 4 -
Prevalência (%) de desnutrição em crianças Xavante, segundo
altura/idade, peso/idade, peso/altura. Aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe, 2007 ...................................................................................
41
Figura 5 -
Estado nutricional de adultos Xavante (˃20 anos) segundo índice de
massa corporal (IMC). Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, 2007 ....
42
Figura 6 -
Mulher cavando raiz de mooni`hoiré durante atividade de coleta;
mulheres levando o abamé repleto de alimentos coletados .................
50
Figura 7 -
Criança abrindo jatobá com ajuda das pedras; mulher abrindo nonõré
com presença de larvas ........................................................................
71
Figura 8 -
Forma utilizada para preparo de bolo sem o forno a gás; milho
Xavante e casacas de mandioca usados na preparação da
da`tsiuparidzé ........................................................................................
77
Figura 9 -
Utensílios usados pelos Xavante ao cozinhar, dentro dos abamé
(para transporte até a pia comunitária) .................................................
79
Figura 10 -
Pia comunitária após ser utilizada pelas mulheres para limpeza de
utensílios; acúmulo de lixo ao redor da pia comunitária .......................
94
Figura 11 -
Várias qualidades de no`dzö, o milho Xavante; no`dzö secando ao sol
para preparo do estoque de sementes .................................................
103
Figura 12 -
Tsa`daré; brasa feita no interior de uma casa, utilizada no preparo de
tsa`daré .................................................................................................
107
Figura 13 -
Alimentos oferecidos como presentes aos padrinhos no ritual do Oi`ó;
alimentos recebidos por um padrinho ...................................................
112
LISTAS DE SIGLAS
AIS
Agente Indígena de Saúde
AISAN
Agente Indígena de Saneamento
CASAI
Casa do Índio
FUNAI
Fundação Nacional do Índio
FUNASA
Fundação Nacional da Saúde
IMC
Índice de Massa Corporal
SPI
Serviço de Proteção ao Índio
TI
Terra Indígena
SEDUC
Secretaria de Estado de Educação
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................
12
1.
PERCURSO METODOLÓGICO ....................................................
17
1.1
A observação sistemática............................................................
18
1.2
A entrevista etnográfica................................................................
19
1.3
A fotografia.....................................................................................
20
1.4
Os passos no trabalho de campo................................................
20
1.5
Delimitação do campo e aspectos éticos ..................................
25
1.6
Construção e organização dos textos e contextos...................
26
2.
OS XAVANTE ...............................................................................
28
2.1
História, demografia e organização social..................................
29
2.2
Estudos sobre saúde, nutrição e alimentação Xavante ...........
32
2.3
O bioma cerrado ...........................................................................
35
2.4
Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe .........................................
38
3.
O SISTEMA ALIMENTAR NA ALDEIA NOSSA SENHORA DE
GUADALUPE..................................................................................
43
3.1.
Produção ........................................................................................
44
3.1.1.
Caça, coleta e agricultura ..............................................................
44
3.1.2.
Pesca e criação de animais ............................................................
55
3.1.3.
Salários, benefícios sociais e comércio...........................................
57
3.2.
Armazenamento ............................................................................
65
3.3.
Preparação .....................................................................................
68
3.3.1.
Pré-preparo .....................................................................................
69
3.3.2.
Preparo ...........................................................................................
72
3.3.3.
Limpeza dos utensílios ....................................................................
78
3.4.
Consumo........................................................................................
80
3.4.1.
A cozinha Xavante: Maneiras “sem” mesa......................................
81
3.4.2.
Merenda escolar .............................................................................
83
3.4.3.
Aleitamento materno .......................................................................
85
3.4.4.
Restrições alimentares ....................................................................
87
3.4.5.
Álcool...............................................................................................
89
3.5.
Descarte do lixo.............................................................................
92
3.6.
Finalizando a discussão................................................................
95
4.
COZINHA, COMIDA E IDENTIDADE XAVANTE ...........................
97
4.1.
Comida auwe˜: o tradicional autêntico .........................................
98
4.2.
Só é tsa`daré se for com milho Xavante”: mudanças,
identidade e ressignificação ........................................................
103
4.3.
“Minha roça é o mercado”: Cozinha e status na aldeia ............
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................
116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................
120
ANEXO A: Parecer COEP 023/2006 ..............................................
126
ANEXO B: Termo de consentimento livre e esclarecido ................
127
ANEXO C: Tabelas 2 e 3, com nomes científicos dos animais e
plantas citados na dissertação.........................................................
128
APÊNDICE A: Cinco receitas tradicionais Xavante ........................
130
APÊNDICE B: Glossário de palavras em Xavante utilizadas na
dissertação ......................................................................................
132
12
INTRODUÇÃO
Like languages and all other socially acquired group habits, food systems
dramatically demonstrate the infraspecific variability of humankind (Mintz,
1989, p3)
1
A alimentação é um fenômeno que permeia diferentes áreas na vida do
ser humano. Enquanto prática está situada na intercessão dos aspectos
sociais, culturais e biológicos, recebendo influencias de todos eles, tornando-se
simultaneamente complexa e riquíssima. Seguindo o mesmo caminho, as
escolhas alimentares são orientadas por significados que partem de dois tipos
de lógica: a científica e a sociocultural. Isso implica no fato de que
representações, valores e sentimentos, além da ciência, terão seu papel nas
práticas alimentares em culturas diferentes (CARNEIRO, 2005; BAIÃO;
DESLANDES, 2006).
A ciência da nutrição ainda está distante desta discussão. A abordagem
da maioria das pesquisas em nutrição evidencia somente os aspectos
biológicos. Tal abordagem é, de fato, importante, visto que em quase todas as
culturas a relação da alimentação com a saúde e de que muitas vezes a
atitude diante da comida é influenciada pela opinião médica sobre ela
(CARNEIRO, 2005). No entanto, a alimentação, considerada aqui como o lugar
em que se estabelecem relações entre os seres humanos, mediadas pela
comida, tem sido pouco explorada pela nutrição. O problema está em quando
evidenciamos os aspectos biológicos em detrimento dos socioculturais. Essa
tendência se reflete no resultado das intervenções nutricionais, que muitas
vezes perdem seu sentido pela falta de contextualização.
Sendo a alimentação um objeto de caráter complexo, a busca de
recursos teóricos metodológicos que a contemplem em sua pluralidade é
necessária. As ciências sociais oferecem novos olhares, perspectivas e
descobertas. Coexistindo na interface dos aspectos biológicos, sociais e
culturais, a ciência da nutrição deve considerar cada um deles em suas
pesquisas, assim como em suas ações cotidianas. Nesse sentido, o presente
1
O texto correspondente na tradução é: Assim como uma linguagem e todos os outros bitos de um
grupo adquiridos socialmente, os sistemas alimentares evidenciam a variabilidade infraespecífica da
humanidade.
13
estudo tem por objeto o sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe, Terra Indígena (TI) São Marcos MT. Trata-se de um
estudo que reflete meus anseios e questionamentos sobre as estreitas relações
entre fatores sociais, ambientais, econômicos, culturais, e biológicos na
modelagem das práticas alimentares de povos indígenas do Brasil.
O conceito de sistema alimentar é diverso e o motivo, provavelmente, é
o fato de estar na intercessão de grandes áreas de interesse, entre elas a
nutrição e a antropologia, que têm feito reinterpretações da teoria dos sistemas
(CARRASCO I PONS, 2005). Assim sendo, em um estudo no campo da
alimentação, faz-se necessária a explicitação do conceito utilizado.
Carrasco i Pons afirma que “todas as práticas relacionadas com a
alimentação constituem sistemas organizados” (2005, p. 118), sejam elas
práticas de um grupo ou de indivíduos. A definição de sistema alimentar
escolhida para a presente abordagem segue a mesma direção. De acordo com
Goodman et al. (1999, p.3):
The phrase “food system” can be used to refer the totality of activities,
social institutions, material inputs and outputs, and cultural beliefs
within a social group that are involved in the production, distribution,
and consumption of food.
2
Escolhemos a definição de Goodman e colaboradores por ser ampla, e
assim adequada à forma adotada para organização dos dados da presente
pesquisa, nas quais as atividades alimentares foram divididas em fases,
descritas no item 1.6: “Construção e organização dos textos e contextos”.
Uma característica muito importante do sistema alimentar é descrita por
Mintz e Du Bois (2002). Os autores afirmam que os sistemas alimentares
extrapolam a questão da alimentação, e dessa forma têm sido usados na
criação de valores políticos e econômicos, valores simbólicos, bem como na
construção social da memória, e do comportamento humano. Entendemos,
assim, que o sistema alimentar de um povo é influenciado pela cultura, a qual
também o influencia. Dessa forma, pode ser pensado como um sistema
simbólico, em que “...códigos sociais estão presentes atuando no
estabelecimento de relações dos homens entre si e com a natureza.” (MACIEL,
2
O texto correspondente na tradução é: A expressão “sistema alimentar” pode ser usada em referência à
totalidade das atividades, instituições sociais, entrada e saída de materiais, e crenças culturais internas a
um grupo social, as quais estão envolvidas na produção, distribuição e consumo de alimentos.
14
2005, p. 49). Essa característica faz com que a reconstrução e a análise do
sistema alimentar de uma sociedade nos permita chegar à compreensão não
somente das características alimentares de um povo, mas dos condicionantes
culturais e sociais que estão por trás das atividades ligadas à alimentação. A
cultura de um povo pode ser estudada através da alimentação (CARRASCO i
PONS, 2005; MACIEL, 2005).
Mintz e Du Bois (2002) lamentam o fato das monografias sobre os
sistemas alimentares serem tão raras. As fontes relacionadas à alimentação
dos Xavante também são limitadas. Etnografias de épocas variadas trazem
algumas informações, embora o objeto da pesquisa não fosse a alimentação
(FLOWERS, 1983; GIACCARIA, HEIDE, 1984; MAYBURY-LEWIS, 1984).
Alguns estudos mais recentes trazem informações acerca das práticas
alimentares xavante, porém se concentram em uma das onze TI‟s Xavante,
Pimentel Barbosa (GUGELMIN, 1995; SILVA, 2008). Com relação às demais,
os dados ainda são insuficientes e se mostram necessários, principalmente ao
considerarmos a diversidade socioeconômica das aldeias, os diversos
processos de contato com a sociedade não indígena e as diferenças de acesso
e interação com os centros urbanos.
Diante da escassez de informações sobre a alimentação dos xavante,
principalmente na TI o Marcos, aliado aos dados que revelam condições
precárias de saúde
3
, torna-se evidente a necessidade de estudos que
contemplem as práticas alimentares deste povo. A presente pesquisa contribui
para o conhecimento sobre ões concretas dos indivíduos em relação à
alimentação e para o debate sobre as limitações das abordagens centradas
somente no modelo biomédico. Da mesma forma, proporciona informações
para a atenção à saúde lidar com as singularidades alimentares e as
especificidades locais. Estudos desta natureza podem subsidiar a Política
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, por meio de ações articuladas
e direcionadas à valorização da sociodiversidade alimentar e cultural dos povos
indígenas.
Com base no contexto acima descrito construímos as seguintes
questões norteadoras para o presente estudo: Como é o sistema alimentar dos
3
Uma breve revisão sobre as condições de saúde e nutrição dos povos indígenas e dos Xavante, mais
especificamente, está no item 2.2 dessa dissertação.
15
Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe? Como produzem, distribuem,
preparam e consomem os alimentos? Qual é o destino do lixo produzido pelas
escolhas alimentares cotidianas? diferenças nas práticas alimentares
relacionadas à sazonalidade (época de seca x época de chuva)? divisão
sexual do trabalho em relação às práticas alimentares?
Em resposta às questões de estudo foi construído como objetivo
principal:
Conhecer e analisar o sistema alimentar dos Xavante da aldeia de
Nossa Senhora de Guadalupe.
E como objetivos secundários ou específicos:
Descrever as fases de o sistema alimentar xavante, da produção até o
descarte do lixo;
Identificar possíveis diferenças nas atividades alimentares relacionadas
à sazonalidade (época de seca e época de chuva);
Identificar a existência de divisão sexual do trabalho relacionadas às
práticas alimentares.
A dissertação está organizada em quatro capítulos, além da introdução e
das considerações finais. A introdução apresenta as questões abordadas no
estudo, apontando brevemente as possibilidades que o conhecimento do
sistema alimentar de uma sociedade nos oferece, no entendimento das
características sócio-culturais que regem as ações ligadas à alimentação.
No primeiro capítulo descrevemos as ferramentas metodológicas
empregadas na pesquisa, explicitando a utilização de cada uma desde a
chegada ao campo até a análise do texto construído.
O segundo capítulo é constituído da caracterização do povo Xavante,
sua história, localização e desafios atuais, mais especificamente da aldeia
Nossa Senhora de Guadalupe, campo do presente estudo.
O terceiro capítulo caracteriza o sistema alimentar nesta aldeia,
apontando mudanças sociais, econômicas e políticas que m ocorrendo
desde os primeiros relatos sobre os Xavante e suas consequências nas
práticas alimentares.
16
No quarto capítulo discutimos a associação entre cozinha, comida e
identidade Xavante, com enfoque na ressignificação e nas transformações
inerentes ao processo de contato e de convivência com a sociedade não
indígena. Consideramos nessa construção as falas dos indivíduos bem como
suas ações e percepções do cotidiano.
Nas considerações finais destacamos o processo acelerado de
mudanças vivenciado pelos Xavante e a importância de conhecer os aspectos
subjetivos vinculados ao sistema alimentar. Uma abordagem mais ampliada
torna-se necessária a fim de subsidiar práticas de educação em saúde
contextualizadas, que sejam efetivas em suas aplicações em culturas diversas.
17
I. PERCURSO METODOLÓGICO
A simplicidade por parte do pesquisador é fundamental para o êxito de sua
observação, pois ele é menos olhado pela base gica dos seus estudos e
mais pela sua personalidade e seu comportamento (Minayo, 2009, p.73)
Nossa inserção na área da saúde indígena aconteceu juntamente com a
aproximação com a pesquisa qualitativa, durante um curso de especialização
em Nutrição Materno-infantil. O objeto de estudo eram os significados das
práticas alimentares de gestantes e lactantes Xavante. As questões de estudo
que nos inquietavam não poderiam ser respondidas com uma metodologia
quantitativa. Após essa primeira experiência, tão prazerosa, tanto com saúde
indígena quanto com a pesquisa qualitativa, optamos por continuar com as
duas, dessa vez com um assunto mais abrangente. A opção pela pesquisa
social foi mais uma imposição dos objetivos do que uma escolha pura e
simples. O pesquisador que decide investir nessa análise deve se colocar
numa posição aberta, dialogando com o material, e se permitindo mudanças
constantes que ocorrerão no seu planejamento e nos seus objetivos. O
caminho da análise qualitativa não possui uma fórmula precisa e muitas vezes
é construído ao longo da pesquisa. uma demanda do pesquisador a um
contato intensivo com o material empírico, de forma a ir além da aparência dos
fatos e das situações imediatas, chegando até a compreensão do fenômeno.
(MINAYO, 1994; ROTENBERG; DE VARGAS, 2004).
Devido às questões levantadas e aos objetivos da pesquisa, optamos
pela utilização da etnografia como ferramenta metodológica, pela possibilidade
que esta oferece de um contato direto mais extenso e intenso com o objeto de
estudo. A etnografia foi criada dentro da “Escola Funcionalista”, que muito
criticava a antropologia clássica por ser esta permeada com a cultura do
antropólogo. Um nome importante na Escola Funcionalista e na criação e
conceituação da etnografia é o de Bronislaw Malinowski. No livro Argonautas
do Pacífico Ocidental, Malinowski descreve o estudo realizado entre os
Trobriandeses, após estar em contato com os nativos e viver com e como eles
durante quatro anos. Dessa forma o autor quebra uma prática até então
existente, de que o antropólogo fazia a interpretação das diferentes culturas
18
baseado em relatos de viajantes, comerciantes e missionários. Malinowski
abertura a uma nova prática dentro da antropologia, na qual a cultura passa a
ser vista e analisada de dentro, tendo como fundamental o fato do pesquisador
“estar em contato” com uma realidade diferente daquela que ele faz parte. Para
o autor, a etnografia permite, por meio de uma maior convivência, a reunião de
informações diversificadas sobre o mesmo fato, o que resulta em maior
compreensão dos fenômenos pesquisados (MALINOWSKI, 1978).
Geertz (1989, p.24) define a etnografia como uma descrição densa da
cultura, a qual o é um poder, mas um contexto: “sistemas entrelaçados de
signos interpretáveis”. Como uma experiência interpretativa, o pesquisador não
percebe o que os informantes percebem, mas por meio “do que” os informantes
percebem. Essa interpretação e explicação não serão relevantes de forma
isolada, justamente devido ao caráter da etnografia de buscar o conjunto, de
buscar os significados presentes na teia o contexto.
A etnografia é um método amplamente utilizado nas ciências sociais.
Sua ênfase encontra-se na exploração da natureza de fenômenos sociais, feita
em uma investigação detalhada (ATKINSON; HAMMERSLEY, 2000),
considerando o contexto e as relações de poder que influenciam os achados da
pesquisa.
O material etnográfico pode ser colhido pela utilização de técnicas
associadas ou o. Dentre essas, destacamos as três que foram utilizadas na
presente pesquisa: a observação sistemática, a entrevista etnográfica e a
fotografia.
1.1 A observação sistemática
Para a observação participante o pesquisador fica durante um tempo
vivendo com o grupo pesquisado, e nessa aproximação consegue dados
importantes, pois “os nativos falam mais nas atitudes que têm diante dos fatos,
do que respondendo a perguntas” (MALINOWSKI, 1978, p.23). May (2004)
acrescenta que o método requer tempo a ser gasto no campo e o esforço em
desenvolver relacionamentos com pessoas (com as quais pode não haver
19
afinidade pessoal), além de numerosas anotações sobre acontecimentos
aparentemente ordinários. A participação na vida cotidiana e o registro no
diário de campo dos “imponderáveis da vida real”, ou seja, rotinas de trabalho,
preparo da comida, o ato de alimentar-se, os laços familiares e de amizade, a
vida social, permitem maior compreensão do outro (MALINOWSKI, 1987).
A observação sistemática, por sua vez, pode ser designada como um
conjunto de observações visuais e auditivas com um objetivo definido. Segundo
Costa (2003, p.132) o investigador observa os locais, objetos e símbolos, as
pessoas, as atividades, os comportamentos, interações verbais, maneiras de
fazer, de estar e de dizer, relações entre as pessoas, situações e
acontecimentos. Tudo isto é registrado diária e sistematicamente em diário de
campo, juntamente com suas reflexões, impressões e estado de espírito.
Essas anotações de campo são profundamente importantes no processo
da observação. Nessa escrita, emoções e experiências pessoais do
pesquisador são muito importantes. Os fatos mais simples do cotidiano são
cheios de significados, e dessa forma devem ser descritos de forma
apaixonante e minuciosa.
1.2 A Entrevista etnográfica
A entrevista etnográfica é também chamada de informal ou focalizada, e
é caracterizada pela flexibilidade. Possibilita a compreensão, indo além da
explicação e não precisa ter um roteiro fixo pré-estabelecido. Nesta técnica, o
indivíduo é valorizado, não havendo, assim, a necessidade de um grande
número de entrevistas. Mesmo sendo uma técnica mais aberta, a entrevista
etnográfica requer uma meta do pesquisador. Dessa forma, o entrevistado não
precisa se ajustar a quadros ou categorias pré-determinados pelo pesquisador,
resultando em um produto de profundidade qualitativa, caracterizado pela
flexibilidade e pela descoberta do significado, ao invés da padronização (MAY,
2004).
20
1.3 A Fotografia
Um dos sociólogos que utilizou a etnografia foi Pierre Bourdieu. Sua prática
tinha uma peculiaridade: entre as cnicas que utilizou, a fotografia teve um
importante papel em sua prática etnográfica inicial. O autor utilizava a fotografia
com três funções no trabalho de campo: em primeiro lugar, era uma forma de
“captar e guardar grandes quantidades de informação” sobre o local quando
não podia passar muito tempo e fazer uma observação minuciosa; em segundo
lugar, a fotografia desempenhava o papel de “intensificar o olhar do sociólogo,
e aguçar sua sensibilidade”; e em terceiro lugar, a fotografia “ancorava e
facilitava o trabalho emocional necessário” para observar alguma situação de
risco ou conflito, pois permitia a Bourdieu uma “postura objetiva de
distanciamento”. De certa forma, é uma oportunidade de se aproximar sem
interferir, e de manter a distância sem perder os detalhes mais importantes do
momento (WACQUANT, 2006, p. 25).
1.4 Os passos no trabalho de campo
Foram feitas duas visitas à aldeia. A primeira ocorreu durante quinze
dias do mês de julho de 2008, e teve como principal objetivo a aproximação
com o campo. A segunda etapa do trabalho de campo aconteceu durante os
meses de janeiro e fevereiro de 2009. Por ter sido um período mais extenso,
proporcionou um aprofundamento maior no objeto de pesquisa. Os períodos de
viagem permitiram acompanhar o cotidiano da aldeia nas duas principais
estações climáticas do cerrado: da seca (julho), e das chuvas (janeiro/
fevereiro), possibilitando a avaliação da sazonalidade.
Por ficarmos alojados na aldeia, a observação foi facilitada. Nos dois
períodos ficamos alojados em uma sala do posto de saúde. O local foi
sugestão do cacique, que reside bem próximo ao posto. Nos primeiros dias de
julho e de janeiro, andar livremente pela aldeia era uma ação um tanto quanto
difícil. Cada casa tem seus cachorros, que defendem o território com
21
agressividade. Dessa forma, antes de nos familiarizarmos com alguns
moradores, preferimos ficar no posto.
Na primeira viagem a campo estávamos em cinco pessoas, sendo dois
antropólogos, minha orientadora e sua filha. Todos, com exceção de mim
mesma haviam estado na aldeia desenvolvendo trabalhos de pesquisa. A
presença de um antropólogo que possui laços de amizade com moradores nos
ajudou no primeiro contato, e facilitou nossa aceitação. É importante ressaltar
que meus primeiros passos na aldeia foram acompanhados por uma criança
não índia que havia estado lá, e que tinha muita empatia por parte dos
moradores, o que também em muito me auxiliou nas primeiras aproximações
às casas.
Nos primeiros dias na aldeia fomos muito visitados no posto. Os
moradores estavam curiosos com a visita dos waradzu
4
. Durante a primeira
semana das visitas tivemos que responder muitas vezes à mesma pergunta
sobre o que estávamos fazendo lá. Outros nos visitavam a fim de saber o que
havíamos trazido e o que poderíamos dar para eles naquele momento e
também ao irmos embora. Pediam-nos feijão, carnes, biscoito, bala e roupas. A
porta da cozinha do posto tinha que passar o dia fechada, e ainda assim as
crianças subiam na janela para ver o que havia na cozinha e nos pedir. Muitas
vezes acabávamos dando algo que era pedido, e isso nos proporcionou viver o
esquema de trocas com algumas casas. Posteriormente falaremos mais do
assunto.
De fato a pesquisa etnográfica demanda tempo. Um contato mais
profundo com os moradores o é algo fácil, e no nosso caso, após quase
duas semanas de permanência na aldeia, o sentimento era de estar dentro,
mas fora ao mesmo tempo. Em um contexto de prazos curtos a serem
cumpridos, esses momentos “aparentemente sem resultados” o muito
angustiantes.
O posto onde ficamos era frequentemente visitado pelos moradores, e
nos horários de pico de atendimento (fim da manhã e da tarde), havia certa
aglomeração principalmente de mulheres e crianças, que ficavam sentadas na
varanda esperando ser atendidas. Estar no posto nesses horários foi muito
4
Forma como os Xavante se referem aos não indígenas.
22
proveitoso para a identificação de pessoas mais abertas a conversas, e ao
estreitamento de laços.
A permanência na segunda viagem foi mais longa, e nos proporcionou
uma maior compreensão da realidade e coleta de dados, adquirida com a
aproximação dos sujeitos e criação de relações sociais. Nessa oportunidade fui
acompanhada apenas do meu marido.
A observação pode ser imediata à chegada ao campo. Porém, a
observação sistemática e cuidadosa leva tempo. Mesmo tendo estado na
aldeia, passamos novamente por um processo de aproximação com o local e
com os moradores. Nesse tempo inicial tivemos mais uma vez dificuldades em
andar livremente pela aldeia, e em estabelecer diálogos. Por diversas vezes
fazíamos perguntas e a maioria das mulheres não respondia. Essas atitudes
dos moradores nos geravam sentimentos de medo e apreensão.
Desenvolver relacionamentos realmente requer não apenas o tempo de
permanência no local, mas também o esforço em compreender a forma de
pensar dos moradores locais. Nosso quarto recebeu algumas “visitas” que não
foram convidadas, e em alguns dias muitos vinham conversar apenas com a
intenção de nos pedir algo no final. Uma negativa de nossa parte era bem
aceita por alguns, mas por outros era motivo para passar alguns dias sem
quererem conversar conosco. Esses fatos, a falta de privacidade, e os
exagerados e incessantes (no meu modo waradzu de ver) pedidos por
qualquer coisa que tivéssemos nos chateavam algumas vezes. Tínhamos que
nos lembrar constantemente que estávamos vivendo em meio a um povo com
uma cultura diferente, e diante do qual nós éramos os estranhos. Pudemos
realmente entender que, ao passo em que fazemos a etnografia, também
somos etnografados.
A prática de pedir “presentes” não é recente em meio ao grupo. Em seu
trabalho de campo com os Xavante, no final de década de 50, Maybury-Lewis
(1984) teve que aprender a lidar com os mesmos pedidos. O autor explica que
os Xavante esperavam “ser cortejados com presentes e favores”, pois assim
aconteceu no primeiro contato com não indígenas, quando os Xavante eram
“atraídos” com os objetos e alimentos oferecidos. Dessa forma, tornou-se algo
natural ao grupo esperar o recebimento de presentes (MAYBURY-LEWIS,
1984, p. 26). Diante da dificuldade na aproximação com os Xavante, o autor se
23
utilizou da doação de farinha de mandioca como uma forma de estabelecer
relações logo no inicio de seu tempo em campo.
Também enfrentamos essas dificuldades, de forma que começamos a
pensar em estratégias de aceitação, que nos ajudassem a desenvolver
relações sociais. Geralmente pensamos em estratégias que são eficazes em
nossa cultura e, dessa forma, a simpatia foi a estratégia mais familiar que
encontramos. Infelizmente não foi a melhor, pois o sorriso nem sempre é
culturalmente entendido pelos Xavante como uma atitude empática.
Continuamos com dificuldades. Foi então que uma atitude despretensiosa de
meu marido começou a nos abrir algumas portas: Fomos à cidade e
conseguimos material para fazer o controle de praga de baratas
5
. Todas as
casas receberam o tratamento
6
. Após essa semana, ao andar pela aldeia os
moradores conversavam conosco, e entrar em algumas casas não era
mais tão difícil. Também começamos a trazer “presentes” da cidade quando
íamos comprar alimentos: sempre trazíamos carne para as casas onde havia
pessoas mais velhas. E sempre tínhamos algumas “encomendas”. De fato
essas atitudes nos ajudaram a criar uma maior interação social e dessa forma
começamos a participar do cotidiano da aldeia.
Participar do cotidiano possibilitou contatos e visitas às casas, ao rio, à
pia comunitária e às roças. A observação permitiu identificar aspectos como
acesso, produção, distribuição e consumo dos alimentos. Durante esse tempo
conseguimos mais informações ao realizar conversas informais e também
algumas entrevistas.
O diário de campo foi utilizado como instrumento para descrevermos
locais, interações, conversas, sensações e sentimentos. Esse material
constituiu parte fundamental do trabalho.
O tempo inicial, que antes nos parecia ter sido improdutivo, na verdade
não foi. Pudemos perceber que ele foi importante para a definição dos temas a
serem abordados nas conversas e entrevistas, bem como para a seleção dos
5
Desde que chegamos na aldeia essa foi uma reclamação dos moradores, que realmente estavam
sofrendo com uma praga de baratas (vindas da cidade nas caixas trazidas com compras), pulgas e
aranhas. Até o posto de saúde, onde ficamos hospedados, estava infestado. A situação foi relatada a
Funasa e em reunião ficou acordado que forneceriam os insumos para realizar a dedetização, uma vez
que não teriam condições de executar o trabalho.
6
Durante o período em que o controle de insetos foi feito tivemos oportunidade de entrar na maior parte
das casas e verificar as diferentes disposições de cada uma.
24
entrevistados. Assim, a escolha do informante privilegiado também foi bem
positiva: Já na quarta semana na aldeia, sabíamos que J., uma viúva de
aproximadamente 48 anos
7
era uma mulher que falava muito bem o português,
e que era muito respeitada na aldeia. J. se tornou nossa informante e também
a tradutora das entrevistas realizadas na língua xavante. Na prática pudemos
perceber que onde havia empatia, as entrevistas eram mais “profundas”.
Foram feitas entrevistas informais com 29 pessoas durante o trabalho de
campo. Os primeiros entrevistados foram escolhidos por falarem
razoavelmente o português e por se mostrarem disponíveis para conversar. Os
locais foram geralmente suas casas e o posto de saúde. Essas entrevistas
eram muito mais uma conversa informal e seu produto norteou o tema das
entrevistas posteriores. Algumas conversas foram realizadas aos poucos.
Sempre que percebíamos que eles não queriam mais conversar, não
insistíamos em continuar. Assim, cada vez que encontrávamos as pessoas
surgiam novos assuntos, e nossas dúvidas eram discutidas.
As entrevistas realizadas no mês de fevereiro foram conduzidas, em sua
maioria, no idioma xavante (com o auxílio da tradutora), e foram feitas até que
acontecesse a saturação teórica (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008).
Andando com a informante pela aldeia fomos convidadas a entrar em
muitas casas onde não havíamos estado, e presenciamos, inclusive, alguns
momentos de refeições. Quando estavam comendo milho em volta da fogueira,
geralmente ganhávamos um, e comíamos agachadas com eles, enquanto
fazíamos a entrevista. Quando chegávamos no momento das refeições, e estas
estavam sendo realizadas dentro de casa, não nos ofereciam nada.
Procuramos diversificar os entrevistados de forma a termos pessoas de
diferentes classes de idade, sexo, famílias e locais das casas.
A fotografia foi utilizada para facilitar a análise dos dados, visto que a
maior parte da elaboração teórica e construção do texto foram realizadas no
Rio de Janeiro, longe da aldeia e de seu contexto. A leitura etnográfica é
enriquecida com as fotos, e detalhes, que muitas vezes não reparamos na
vivência diária, podem ser desvelados ao observarmos as fotografias.o
7
As idades foram obtidas no livro de registros da aldeia, que fica no posto de saúde. Nem sempre a data
de nascimento é conhecida, o que implica em um cálculo aproximado da idade (conforme classes de
idade dos Xavante).
25
utilizamos as fotografias como um material a ser analisado, o que iria requerer
toda uma metodologia específica, e que não era nosso objetivo; a utilizamos
como mais uma ferramenta para a descrição das práticas alimentares e das
relações sociais, para a construção do contexto e do texto
As fotografias da primeira visita a campo foram em sua maior parte do
ambiente. Havíamos sido advertidas de que os Xavante não gostam de ser
fotografados sem permissão, e ainda não nos sentíamos a vontade para pedir
fotos, com exceção de poucas famílias.
Apesar de poucas fotos mais pessoais na primeira ida a campo, foi
justamente uma delas que nos abriu espaço para as demais durante a segunda
ida. Nós havíamos visitado uma das maiores roças da aldeia, quando
fotografamos o dono na frente de suas bananeiras. Ao retornar em janeiro,
levamos a foto impressa e a demos de presente em um porta-retrato. Ele ficou
extremamente agradecido, e a família nos permitiu tirar outras fotos
interessantes sobre o preparo dos alimentos, além de fazer filmagens. Creio
que a notícia tenha se espalhado, e recebemos pedidos de outras famílias para
que os fotografasse, com a promessa de que quando retornássemos,
levaríamos as fotos para cada um. Além da fotografia tivemos a oportunidade
de filmar o preparo de algumas “comidas” feitas para o ritual do Oi´ó
8
.
1.5 Delimitação do campo e aspectos éticos
A TI de São Marcos
9
foi criada por meio do decreto número 76.215, de
05/09/1975, o qual fixou os limites definitivos. Está localizada no Município de
Barra do Garças MT. Em dezembro de 2007, a população da TI estava
dividida em 28 aldeias, dentre elas, a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe,
campo da presente pesquisa (DELGADO, 2008).
8
Abordaremos o tema do ritual do Oi`ò no capítulo 4: Cozinha, comida e identidade Xavante.
9
Existem onze Terras Indígenas (TI‟s) Xavante no Brasil, distribuídas no estado do Mato Grosso, as quais
são descritas no capítulo 2.
26
A aldeia Nossa Senhora de Guadalupe foi criada no ano de 2002, por
moradores vindos, em sua maioria, da aldeia de São Marcos, da TI homônima
(DELGADO, 2008; SOUZA, 2008). Em relatos da década de 1960, São Marcos
era uma aldeia composta por 15 casas (MAYBURY-LEWIS, 1984).
A escolha da aldeia se deu pela facilidade de acesso ao local, pois a
aldeia dista cerca de 120 km de Barra do Garças, cidade de médio porte da
região leste do estado de Mato Grosso, e também por fazer parte do projeto
“Contextos locais na determinação das condições nutricionais de crianças
Xavante”, no qual a presente pesquisa está inserida. O projeto tem o parecer
da CONEP n.368/2006, e do COEP/ UERJ n. 023/2006 (Anexo 1). Também
possui autorização e Termo de consentimento livre e esclarecido da liderança
da aldeia Xavante (Anexo 2).
1.6 Construção e organização dos textos e contextos
Com o intuito de organizar os dados obtidos nas aproximações de
campo, optamos por construir o sistema alimentar dos Xavante de Nossa
Senhora de Guadalupe utilizando a divisão em cinco atividades alimentares
propostas por Jack Goody (1996), na obra Cooking, cuisine and class: A study
in comparative sociology. A opção aconteceu por percebermos que
precisaríamos de uma estruturação que contemplasse todas as fases
alimentares realizadas, desde a produção dos alimentos (ação importante no
contexto da aldeia) ao descarte dos resíduos sólidos e orgânicos. Assim
garantiríamos a compreensão de um sistema complexo, com múltiplas relações
e inter-relações, tornando-o mais acessível aos leitores e ao próprio autor.
Na proposta de Goody (1996) as atividades relacionadas ao provimento
e transformação dos alimentos são divididas nas seguintes fases: 1- Produção;
2- Armazenamento; 3- Preparação; 4- Consumo e 5- Descarte do lixo.
10
Na fase da produção dominam claramente os fatores relacionados à
economia local, bem como na segunda fase, a distribuição (na qual os recursos
10
As cinco fases são chamadas no original, em inglês, de: 1- Production; 2- Distribution; 3- Preparation;
4- Consumption; 5- Disposal.
27
determinam a durabilidade do que é produzido). A segunda fase ainda revela
características políticas imbricadas nas relações de trocas, compras e vendas.
Na terceira fase, o preparo do alimento, o foco se detém em uma arena
estritamente feminina: a cozinha, local onde o “sistema de divisão e
estratificação do trabalho doméstico se faz explicito” (GOODY, 1996, p. 37). O
consumo, quarta fase, é onde a “identidade e a diferenciação do grupo” são
trazidas a tona. É também a arena das preferências, proibições e tabus. Goody
(1996, p.37-38) salienta a importância da quinta fase: o descarte do lixo,
geralmente esquecida em descrições e análises, mas necessária para o
entendimento global do sistema alimentar de uma sociedade.
Ainda no campo, os dados obtidos começaram a ser alocados em
quadros específicos a cada fase. Além dos dados coletados em campo, os
obtidos em etnografias clássicas dos Xavante também foram estruturados da
mesma forma, dando início a uma análise preliminar.
As entrevistas foram transcritas, e com o auxílio das fotos, dos relatos do
diário de campo e da observação direta, deram consistência ao objeto aqui
explorado o sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe.
Nos estudos da antropologia da alimentação, bem como da sociologia da
cultura é comum que o autor diferencie “comida” de “alimento (WOORTMANN,
1978; WARDE, 1997; DANIEL, CRAVO, 2005). Por estarmos trabalhando com
uma população que não utiliza o português como língua oficial, e que não faz
distinção entre as palavras
11
, preferimos utilizá-las como sinônimas em todo o
estudo. Da mesma forma, não diferenciamos “significado” de “símbolo”, muito
embora alguns autores considerem suas diferenças.
11
Datsá pode ser utilizado tanto para comida quanto para alimento.
28
II- OS XAVANTE
Enquanto os nossos valorosos sertanistas estavam convencidos de ir
„pacificar‟ os índios, eram, eles, os Xavante, que procuravam com artes
mágicas, pacificar-nos (Giaccaria, Heide, 1975, p.9)
Os Xavante constituem, juntamente com os Xerente, o grupo Akwe,
“conhecidos como Centrais” (SILVA, 1986, p. 18 e 31). Em 2007 sua
população era constituída de aproximadamente 11.988 índios, que viviam em
onze TI‟s, com aproximadamente 167 aldeias (DELGADO, 2008; SOUZA,
2008). Estas terras estão localizadas no Planalto central brasileiro, no estado
do Mato Grosso, numa área de cerrado. São elas: Areões, Areões I, Areões II,
Chão Preto, Marãiwatsede, Marechal Rondon, Parabubure, Pimentel Barbosa,
Sangradouro Volta Grande, São Marcos e Ubawawe (RICARDO, RICARDO,
2006; DELGADO, 2008).
A distribuição geográfica das terras indígenas está apresentada na
Figura 1, sendo que a identificação de cada uma foi feita por meio de número
descrito na Tabela 1.
Tabela 1: Terras Indígenas Xavante e número de aldeias, Estado de Mato Grosso, 2007
TERRAS INDÍGENAS
NÚMERO DE ALDEIAS
(DEZ 2007)
01
Sangradouro/Volta Grande
26
02
São Marcos
28
03
Areões Areões I e Areões II
15
04
Pimentel Barbosa
08
05
Marawatsede
01
06
Parabubure, Chão Preto e Ubawawe
81
07
Marechal Rondon
08
TOTAL
167 Aldeias
Fonte: Delgado, 2008
29
Figura 1: Localização das Terras Indígenas Xavante, no estado Mato Grosso.
Fonte: DELGADO (2008, p.39) adaptado de RICARDO E RICARDO (2006).
2.1 História, demografia e organização social
Os primeiros relatos sobre os Xavante datam do século XVIII, quando foi
descoberto ouro no território de Goiás. Em decorrência de perseguições e
ameaças de extermínio, os Xavante paulatinamente migraram para o Oeste até
se instalarem na região que hoje denominamos Mato Grosso. No século XIX
ocuparam uma região que não possuía grande importância econômica, o que
possibilitou por quase um século certo afastamento da sociedade não indígena
(MAYBURY LEWIS, 1984).
Na primeira metade do século XX os Xavante recusaram as tentativas de
contato de particulares e do governo federal. O contato pacífico com os não
indígenas aconteceu a partir da década de 1950. Após um grande período de
isolamento e várias tentativas de contato sem sucesso, os Xavante “renderam-
30
se” à pressão das frentes de expansão, ou como eles mesmos descrevem,
resolveram “pacificar” os waradzu. O processo de contato foi feito por
diferentes organizações, e o período que se sucedeu é caracterizado, de
acordo com a antropóloga Aracy Lopes da Silva (1986, p 35-36), pela formação
de três agrupamentos distintos entre os Xavante: 1- o grupo contatado pela
agência do governo, o Serviço de Proteção Indígena (SPI); 2- o grupo
influenciado por missionários americanos protestantes; 3- o grupo contatado
por missionários católicos da congregação salesiana.
Ainda segundo Silva (1986), o primeiro grupo, contactado pelo SPI é
considerado o “mais tradicional”, por ocupar ainda a mesma área da época do
contato. Os Xavante do segundo grupo, contactado por missionários
protestantes se consideram “crentes”. O território que ocupam não é o mesmo
da época do contato. Ambos os grupos muito sofreram até que tivessem seu
direito de posse de terra demarcado. O terceiro grupo se formou lentamente
com a adesão de Xavante “sem terra” que buscavam abrigo nas missões
salesianas de Meruri e Sangradouro. Definem-se como católicos. Neste grupo
insere-se a aldeia onde realizamos nosso trabalho de campo.
Em meados de 1956 um grupo de Xavante, originários da região de Couto
Magalhães, buscou abrigo em Meruri, terra indígena dos Bororo onde a Missão
Salesiana desenvolvia seus trabalhos. Devido aos conflitos constantes entre
Bororo e Xavante, em 1958 estes foram transferidos para o lugar onde hoje é a
aldeia São Marcos. A escolha do local para a fundação da nova aldeia se deu
por conta da terra rtil e distanciamento dos Bororo, povo indígena rival
(MAYBURY-LEWIS, 1984; SILVA, 1986).
A proximidade do grupo com as missões salesianas criou particularidades
tanto em práticas tradicionais quanto na linguagem, no trato com o corpo e na
organização das classes de idade. A casa dos jovens (hö), para onde vão os
meninos Xavante a fim de aprender sua tradição e subsistência, foi deslocada
para dentro da missão, prejudicando o aprendizado. Os jovens passaram a
estudar no internato (MAYBURY-LEWIS, 1984). Silva (1986, p.43) relata
algumas destas mudanças a partir do trabalho desenvolvido pela missão:
A missão executa um trabalho de assistência à saúde, fornecimento de infra-
estrutura para os trabalhos agrícolas (ferramentas e máquinas) e atua
diretamente sobre as novas gerações, tomando a seu cargo a educação dos
jovens. Esta educação se efetivou sempre através de internatos que
31
impediam que os processos tradicionais de socialização atingissem
plenamente as crianças e os adolescentes.
As aldeias xavante são constituídas por grupos domésticos formados por
famílias extensas com relação de parentesco entre si; a sociedade é patrilinear,
com residência uxorilocal, ou seja, após o casamento o rapaz (marido) passa a
residir na casa da menina (esposa), junto com os sogros. A esfera doméstica é
considerada um espaço feminino, enquanto o espaço público (aldeia/cidade) é
de domínio masculino. No entanto, estes arranjos domiciliares e de
organização social tem se modificado em algumas aldeias (DELGADO, 2008;
SOUZA, 2008). As casas não são mais redondas, como primeiramente
descritas por Maybury-Lewis (1984), e em algumas aldeias são construídas
fora do semi-círculo que era característico dos Xavante. O número de casas
pode variar de 02 a 100 entre as aldeias. Por exemplo, em 2009 havia 33
casas na aldeia de Nossa Senhora de Guadalupe enquanto em Sangradouro o
número de domicílios atingia a 100.
Também observa-se que o padrão de residência nem sempre é
uxorilocal. Atualmente existem outras regras atuando, como o prestígio do
sogro ou pai do rapaz, por exemplo (SOUZA, 2008).
Os primeiros relatos mostram os Xavante como um povo semi-nômade,
que por essa peculiaridade tinham vantagem na sobrevivência, em relação aos
povos mais sedentários. Tal característica também proporcionava uma
alimentação mais farta tanto no período de chuva quanto no período da seca.
No processo de contato interétnico e demarcação das TI‟s, os Xavante foram
forçados a fixar suas aldeias, deixando de lado a prática do semi-nomadismo,
fato que trouxe conseqüências que serão discutidas mais tarde (FLOWERS,
1983; FLOWERS, 1994; GIACCARIA, HEIDE, 1984; MAYBURY-LEWIS, 1984).
Os Xavante possuem um sistema de classes e categorias de idade
próprios e bem complexos (MAYBURY-LEWIS, 1984; SILVA, 1986).
Abordaremos brevemente o assunto para auxiliar na compreensão tanto do
sistema alimentar quanto da relação entre os jovens e os mais velhos.
Segundo Silva (1986, p.63):
Categorias de idade dizem respeito às fases do ciclo de vida tal como
reconhecidas pelos Xavante e diferem no caso dos homens e das mulheres.
Classes de idade são as unidades de um sistema de classificação comum a
homens e mulheres embora, ao nível das práticas sociais, as classes sejam
mais atuantes e mais importantes para os homens no período máximo de
32
suas atividades cerimoniais, ou seja, ao nascimento de seu segundo filho,
aproximadamente, o que coincide com o inicio de seu envolvimento e
comprometimento maiores com a vida política e faccional da aldeia. As
classes de idade são grupos incorporados, nominados, formados por rapazes
que convivem juntos na casa dos solteiros durante o período de três a cinco
anos de preparação mais intensiva que precede às cerimônias da iniciação.
As meninas de idade correspondente são classificadas, por extensão, na
mesma classe de idade.
De acordo com Maybury-Lewis (1984, p.202), as categorias de idade
masculinas são: aiuté (nenê); watebremi (entre 2 e 9 anos); airepudu (entre 9 e
12 anos); wapté (morador da casa dos solteiros); `retéi`wa (iniciado); ipredupté
(patrocinador de iniciação); ipredu (maduro) e ihi (velho). As categorias de
idade femininas são: aiuté (nenê); ba`õtore (entre 2 e 3 anos); ba`õnõ (até 9
anos, aproximadamente); adzarudu (entre 9 e 12 anos); adabá (recém-casada
sem filhos); pi`õ (casada); ipredu (madura) e ihi (velha).
2.2 Estudos sobre saúde, nutrição e alimentação Xavante
Para os indígenas, de forma geral, a literatura coloca como desafios à
saúde as doenças crônicas não transmissíveis e doenças carenciais. As
modificações na subsistência, na dieta e na atividade física, aliada às
modificações socioculturais e econômicas, m gerado uma transição na
morbimortalidade, com o aumento, em adultos, da obesidade, hipertensão, e
diabetes tipo 2. as crianças são acometidas por problemas de sustentação
alimentar, como a desnutrição, os quais aumentam a incidência de anemia e
beribéri. Tuberculose e a malária também são recorrentes nas diversas faixas
etárias (CARDOSO; MATTOS; KOIFMAN, 2001; GUGELMIN; SANTOS, 2001;
SANTOS; COIMBRA, 2003; LEITE; SANTOS; COIMBRA, 2007; FERREIRA,
2009).
No entanto, ainda não dados fidedignos sobre a situação de saúde e
nutrição dos povos indígenas brasileiros (GUGELMIN, 1995; GUGELMIN,
SANTOS, 2001; COIMBRA et al, 2002; SANTOS; COIMBRA, 2003; FUNASA,
2002; SOUZA, 2008; FERREIRA, 2009). O Sistema de Informação da Atenção
à Saúde Indígena (Siasi), da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), é
responsável por reunir “informações demográficas, epidemiológicas e de
33
utilização de serviços” (SOUZA, 2008, p. 8). Além do SIASI, o trabalho de
organizações de saúde, instituições religiosas, organizações não
governamentais (ONG`s) e associações de povos indígenas. Porém, a
disponibilização desses dados ainda é insuficiente no cenário nacional
(SOUZA, 2008). Com relação à nutrição, a falta de informações estará
minimizada com a finalização do primeiro Inquérito Nacional de Saúde e
Nutrição dos Povos Indígenas
12
.
Por ora os estudos realizados, principalmente na região da Amazônia Legal,
indicam taxas de morbidade e mortalidade três a quatro vezes maiores do que
aquelas encontradas na população brasileira em geral (FUNASA, 2002).
Com relação aos Xavante, a dissertação de mestrado da pesquisadora
Silvia Gugelmin (1995) e o livro publicado por Carlos Coimbra e colaboradores
(2002) trazem um resgate histórico bem amplo dos estudos bioantropológicos e
em saúde desenvolvidos com esse povo desde 1960. E mostram que, na
década de 1990, havia registros de ganho de peso entre os adultos.
Também naquela época foi documentada a precária condição sanitária das
aldeias, que juntamente ao difícil acesso à água potável era relacionada à alta
prevalência de gastroenterite e dermatoses (GUGELMIN, 1995). As crianças
eram constantemente acometidas por diarreia, o que acabava por agravar o
quadro de desnutrição com altos índices de morbidade e mortalidade
(COIMBRA et al, 2002).
Segundo Souza e Santos (2001, p.361) o “coeficiente de mortalidade infantil
variou de 62,5 por mil a 116,3 por mil no período de 1993 a 1997,
apresentando o valor médio de 87,1 mortes por nascido vivo”, superando a
média do nordeste brasileiro. Ao comparar as taxas de natalidade e
mortalidade geral dos Xavante com aquelas registradas para outros povos
indígenas e para a população brasileira não indígena no período de 1999 a
2002, Souza (2008, p.55) encontrou valores mais elevados para os Xavante em
ambos os casos. Por exemplo, a mortalidade infantil entre os Xavante alcançou
133,6 óbitos por mil nascidos vivos em 2001, enquanto que para os onze
municípios onde estão localizadas as TI, a taxa foi de 25,5 por mil, sendo que a
taxa mais elevada entre esses municípios não ultrapassou o valor de 57,5 por
12
O Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição de Povos Indígenas foi coordenado pela ABRASCO e está
na etapa de análise dos dados. A divulgação dos resultados deverá acontecer em fevereiro ou março de
2010.
34
mil. As principais causas de morte entre as crianças Xavante são a
desnutrição, a pneumonia e a diarreia (COIMBRA Jr et al, 2002; LEITE et al,
2003; LEITE et al., 2006).
Ao analisar os dados sobre as hospitalizações dos Xavante nos anos de
2000 a 2002, Lunardi e colaboradores (2007) concluíram que as principais
causas de internação foram doenças nutricionais, infecciosas, parasitárias e
respiratórias, as quais, concluíram, têm relação com as ssimas condições
sanitárias e nutricionais nas aldeias.
Entre as crianças Xavante, a anemia e a desnutrição têm sido comumente
relatadas (GUGELMIN, 2001; COIMBRA et al, 2002; FERREIRA, 2009). A tese
de doutorado da pesquisadora Silvia Gugelmin teve por objetivo descrever o
perfil ecológico-humano e nutricional de dois grupos Xavante que viviam nas
aldeias Pimentel Barbosa e Sangradouro. A autora verificou que em 1997 e
1998 a prevalência de baixa estatura para idade entre crianças menores de
cinco anos em Sangradouro era aproximadamente três vezes maior (28,3%)
que aquela descrita para as crianças brasileiras (10,5%). Ao mesmo tempo a
população adulta entre 25 a 64 anos apresentava frequências de obesidade
13
extremamente elevadas (39,6%) se comparada a observada em Pimentel
Barbosa (4,2%) e na população não indígena (9,6%). Segundo a autora, as
diferenças encontradas entre Sangradouro e Pimentel Barbosa indicavam que
os Xavante apresentavam perfis de saúde e de ecologia humana
heterogêneos. Como conclusão o estudo demonstrou a necessidade e a
importância de investigações interdisciplinares e de caráter diacrônico para
maior compreensão dos determinantes da situação e do papel dos fatores
locais nos perfis de saúde Xavante (GUGELMIN, 2001).
Além da desnutrição e anemia, também foram registrados casos de
polineuropatia carencial (deficiência da tiamina, vitamina B1) entre crianças e
adolescentes das TI´s Sangradouro-Volta Grande e São Marcos (VIEIRA
FILHO et al, 1997).
No outro extremo encontramos adultos Xavante com excesso de peso e alta
prevalência de obesidade, geralmente muito acima daqueles registrados para a
população não indígena (GUGELMIN, 2001; GUGELMIN, SANTOS, 2001;
13
A obesidade foi caracterizada pelo índice de massa corporal (IMC) acima de 30.
35
COIMBRA JR et al., 2002; LEITE et al., 2003; LEITE et al., 2006; WELCH et al.,
2009). Em estudo realizado na década de 1990 em adultos de duas aldeias
com diferentes percursos de interação com a sociedade não indígena, a
comunidade que gastava mais tempo com atividades de subsistência
apresentou menores valores de índice de massa corporal, quando comparada
à que gastava mais tempo em atividades remuneradas (GUGELMIN, SANTOS,
2001). Para os autores o maior tempo gasto com atividades de subsistência e a
manutenção de práticas alimentares consideradas “mais tradicionais”,
possivelmente seriam os fatores responsáveis pela diferença encontrada entre
as aldeias.
Ainda são escassos os estudos que trabalham com a alimentação dos
Xavante. Etnografias de épocas variadas trazem algumas informações, embora
o objeto da pesquisa não fosse práticas alimentares (MAYBURY-LEWIS, 1984;
GIACCARIA, HEIDE, 1984; FLOWERS, 1983). Alguns estudos trazem
informações acerca das práticas alimentares xavante, porém se concentram
em uma das onze Terras Indígenas (TI‟s) Xavante, Pimentel Barbosa
(GUGELMIN, 1995; SILVA, 2008). Com relação às demais TI‟s os dados ainda
são insuficientes e se mostram necessários, principalmente ao considerarmos
os diversos processos de contato com a sociedade não indígena e as
diferenças de acesso e convivência com os centros urbanos.
2.3 O bioma Cerrado
O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro ocupando 25% do
território nacional. Com uma área de aproximadamente dois milhões de Km
2
,
abrange os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, o
Distrito Federal, e ainda, partes dos estados de Minas Gerais, São Paulo,
Maranhão, Piauí e Bahia. Sua localização principalmente na região do planalto
central do Brasil permite-lhe fazer fronteira com outros grandes biomas como a
Amazônia ao norte, a Caatinga a nordeste, o Pantanal a sudoeste e a Mata
Atlântica a sudeste (AB` SÁBER, 2003)
36
Existem seis ambientes fitofisionômicos nativos no cerrado que são o
cerradão, o cerrado stricto sensu, o campo sujo, o campo limpo, a mata de
galeria e as matas decíduas. Cada um deles está diretamente ligado à
características determinantes como profundidade efetiva do solo, presença de
concreções no perfil, proximidade à superfície do lençol freático, drenagem e
fertilidade. As características particulares de cada área provocam variações na
composição florística, fitossociológica, assim como na produtividade desses
ecossistemas naturais (HARIDASSAN, 2000).
O cerradão é o ambiente de transição entre a “mata” e o “cerrado”, com
vegetação mais alta e densa do que o segundo. No entanto mais baixa e
menos densa do que a mata de galeria, cujas árvores, em sua maioria, são as
mesmas que as do cerrado, porém mais desenvolvidas, além de eretas e sem
ramificações desde a base (PERÓN; EVANGELISTA, 2004).
O cerrado sensu stricto é geralmente formado por terrenos planos onde
ocorre a mata xerófita dos planaltos, de formação arbórea aberta, com
vegetação herbácea abundante e cujas árvores são geralmente pequenas e
tortuosas e de casca grossa (PERÓN; EVANGELISTA, 2004). É o local onde
estão a maior parte das frutas, e onde as mulheres costumam coletar pequi e
outros frutos.
O campo sujo é representado por uma área mais aberta do que a
caracterizada pelo cerrado, de terreno plano, por ser intercalada por áreas de
campo onde predominam gramíneas e/ou vegetação arbustiva; o campo
limpo predomínio das gramíneas, com formações arbóreas, ou vegetação
herbácea bastante esparsas (WALTER, 2006). É na área de campo sujo onde
as mulheres costumam fazer as excursões de coleta principalmente de raízes,
como será descrito no item 3.1.1.
As matas de galeria caracterizam-se pelas formações arbóreas de
diferentes tamanhos, mais adensadas que no cerrado e sua localização
predominantemente é nas margens dos rios (WALTER, 2006). A vegetação
dessas áreas próximas a aldeia têm sido derrubadas para dar lugar às roças
produzidas pelos Xavante.
A grande riqueza e diversidade de espécies de fauna e flora do Cerrado,
somada ao elevado grau de ameaça de destruição colocam este ambiente
dentro da classificação de Hotspot”, ou ponto quente da biodiversidade. Neste
37
bioma podem ser encontradas mais de 10.000 espécies vegetais, uma grande
variedade de vertebrados terrestres e aquáticos e um elevado número de
invertebrados, concentrando um terço da biodiversidade nacional e 5% da flora
e da fauna mundiais. A riqueza do cerrado brasileiro também pode ser notada
pela abundância de recursos hídricos: nas suas chapadas estão as nascentes
dos principais rios das bacias Amazônica, da Prata e do o Francisco,
fazendo com que a área seja cortada por muitos rios e riachos
(CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 2009). Os Xavante costumam escolher o
local de suas aldeias próximas a um rio de onde podem obter água para as
ações de seu cotidiano.
O bioma Cerrado é também conhecido como a savana brasileira por
possuir um solo pobre em nutrientes e vegetação normalmente baixa, com
plantas esparsas de aparência seca no inverno, e mais alta no verão
(AB`SÁBER, 2003). Apenas duas estações bem marcadas, portanto, o
caracterizam: inverno seco e verão chuvoso, o que fornece uma produção de
alimentos bem característica em cada época, influenciando na alimentação dos
Xavante.
Apesar do seu tamanho e importância, o Cerrado é um dos ambientes
mais ameaçados do mundo. Estima-se que atualmente 57% de sua área
original tenha sido completamente destruída e as atividades agropecuárias
continuam mantendo pressão para o aumento desse prejuízo
(CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 2009). Estudos realizados pelos
pesquisadores do Programa Cerrado da CONSERVATIONAL
INTERNATIONAL - Brasil, indicam que o desmatamento do Cerrado chega a
taxa de 1,5% ou três milhões de hectares/ano, o que equivale a 2,6 campos de
futebol/minuto. Caso o desmatamento continue na mesma proporção, não
poderemos medir as implicações que ocorrerão nas atividades de subsistência
do sistema alimentar Xavante: a caça, a pesca e a coleta.
38
2.4 Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe
Em janeiro de 2009 a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe era constituída
de 34 casas, sendo 33 de palha e uma de barro. A maior parte das casas é
habitada por grupos domésticos de aproximadamente 10 pessoas. Possui uma
escola de alvenaria, bem como um posto de saúde (também de alvenaria),
onde atendem dois técnicos em enfermagem e mais um agente de saúde
indígena (ambas as construções possuem água encanada e banheiro). Na
aldeia um poço artesiano construído pela missão salesiana, que abastece a
caixa d‟água, por meio de energia solar.
Figura 2: Vista aérea da Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe
Fonte: http://earth.google.com
39
As casas já não são mais construídas no formato circular. São
quadradas ou retangulares, pois os Xavante consideram que esse formato
permite uma maior durabilidade da casa. Apesar dessa modificação estrutural,
quase não houve alteração na disposição interior. Divisórias ainda são
levantadas quando um novo casal se forma, e estas são feitas de palha ou com
um lençol.
A aldeia foi construída com as casas dispostas no formato de ferradura,
com a “abertura” voltada para o rio. A “abertura” é ocupada pelo posto de
saúde. O rio fica em uma distância de cerca de 80 metros da casa mais
próxima. Um problema atual é o assoreamento, o que tem diminuído a sua
profundidade. Na época de seca este passa a ter áreas com apenas 10 cm de
profundidade. Na época das chuvas o aumento do volume de água não é tão
grande. Ainda assim continua a ser utilizado para lavar roupas, utensílios de
cozinha, e para o banho.
A aldeia fica em uma área de declive. Como o centro é descampado, as
chuvas têm causado erosões, as quais têm colocado algumas casas em risco.
Os moradores das casas ameaçadas planejavam construir suas casas em
outros locais dentro da aldeia para evitar o perigo de deslizamento para dentro
do buraco da erosão. Como o espaço entre as casas é pequeno para a
construção de outras, esses moradores têm a intenção de construir as novas
casas na parte mais alta da aldeia, mais distante do rio, e fora do semi-círculo
que lhes é característico.
Muito próximas da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe estão outras
duas aldeias: São Francisco (com 09 casas de palha) e Nossa Senhora das
Graças (14 casas, sendo 10 de alvenaria e 4 de palha). São Francisco não
possui a mesma infra-estrutura, por isso seus habitantes são atendidos no
posto de saúde da aldeia de Nossa Senhora de Guadalupe e lá também
frequentam a escola. Nossa Senhora das Graças possui uma estrutura melhor.
As casas foram construídas em alvenaria e a escola da aldeia tem o formato de
um tatu. No entanto, seus habitantes também são atendidos no posto da aldeia
Nossa Senhora de Guadalupe.
O idioma falado na aldeia é o xavante. Porém, a maioria dos homens e
algumas mulheres falam também o português. O número de “falantes” de
português pode aumentar considerando que, com a chegada energia elétrica,
40
quase todas as casas possuem televisão, e que estas passam a maior parte do
dia ligadas. Quando estivemos em julho, a energia elétrica ainda era recente e
poucas casas possuíam televisão. À noite os moradores se reuniam do lado de
fora das casas e ficavam conversando. Em janeiro, ao retornarmos, pudemos
ver uma situação diferente. apenas duas casas sem televisão, e poucos
ficam conversando fora das casas. Os mais velhos muito reclamaram dos
jovens, que “não fazem mais nada, só assistem televisão”.
Figura 3: Pirâmide populacional da Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe em outubro/ 2009.
Fonte: SIASI / DSEI XAVANTE
A população residente na aldeia em outubro de 2009 caracteriza-se por ser
jovem, mais da metade da população tinha menos de 15 anos. A pirâmide
populacional apresenta uma base larga e um ápice estreito, característica
encontrada em populações com elevadas taxas de natalidade e mortalidade
(Figura 3). Também podemos observar que nascem mais meninos, mas são as
meninas que sobrevivem por mais tempo. Um fato curioso é a lacuna existente
na faixa de 55 a 59 anos. Não nenhum indivíduo registrado neste grupo
etário o que poderia ser analisado como óbitos em um determinado período de
tempo (nascimentos na época em que os Xavante estavam no processo de
contato, em que muitos foram dizimados por doenças infecciosas e conflitos
-40 -20 0 20 40
0 a 4
5 a 9
10 a 14
15 a 19
20 a 24
25 a 29
30 a 34
35 a 39
40 a 44
45 a 49
50 a 54
55 a 59
60 a 64
65 a 69
70 a 74
75 e +
Masculino
Feminino
41
armados). Por outro lado, existe a possibilidade desta “falha” representar
aqueles indivíduos que estão para se aposentar e que fazem o registro com
idade alterada, uma vez que muitas vezes não têm documento oficial que
comprove a idade.
Em estudo antropométrico realizado na aldeia em 2007
14
encontrou-se
24,3% e 2,9% de déficit de estatura e de peso para idade em crianças menores
de cinco anos, respectivamente (Figura 4). Para os adultos acima de 20 anos o
principal problema evidenciado foi o excesso de peso entre homens e
mulheres. Os valores são extremamente elevados chegando a 58,4% de
mulheres com algum grau de obesidade (Figura 5). Esta situação é
preocupante quando analisamos as mudanças que estão ocorrendo no sistema
alimentar desse povo, tema que será discutido mais adiante, nos capítulos 3 e
4.
Figura 4: Prevalência (%) de desnutrição em crianças Xavante ˂ 5 anos, segundo altura/idade, peso/idade
e peso/altura. Nossa Senhora de Guadalupe, 2007.
14
Pesquisa intitulada “Contextos locais na determinação das condições nutricionais de crianças indígenas
Xavante”, na qual esta dissertação está inserida. Dados disponibilizados pela coordenadora da pesquisa,
inéditos.
0,0
5,0
10,0
15,0
20,0
25,0
altura/idade
peso/idade
peso/altura
24,3%
2,9%
1,4%
42
Figura 5: Estado nutricional de adultos Xavante (> 20anos) segundo índice de massa corporal (IMC).
Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, 2007.
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
Eutrofia
Sobrepeso
Obesidade
11,9
39,0
49,1
8,3
33,3
58,4
Homens
Mulheres
43
III. O SISTEMA ALIMENTAR NA ALDEIA NOSSA SENHORA DE
GUADALUPE
Em todas as sociedades, o modo de comer é regrado por convenções [...].
Esse conjunto de convenções, que chamamos de gramática, configura o
sistema alimentar não como uma simples soma de produtos e comidas,
reunidos de modo mais ou menos casual, mas como uma estrutura na qual
cada elemento define o seu significado. (Montanari, 2008, p.165)
Com base nos registros, nas observações e nas entrevistas realizadas
durante as duas viagens a campo, descrevemos os elementos que compõem o
sistema alimentar dos Xavante de Nossa Senhora de Guadalupe. O presente
capítulo está estruturado conforme as fases propostas por Goody (1996)
15
, e
incorpora informações obtidas nas etnografias clássicas sobre os Xavante.
Utilizamos as informações contidas nesses estudos anteriores com o fim de
deixar claro aos leitores as mudanças que vêm ocorrendo ao longo do tempo.
As etnografias clássicas sobre os Xavante foram escritas baseadas em
trabalho de campo desenvolvido em TI`s específicas. Ainda assim, os
resultados são colocados de forma abrangente, transparecendo uma ideia de
que os Xavante foram ou são um grupo homogêneo. Enfatizamos que o
sistema alimentar aqui descrito corresponde à realidade da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe, nos anos de 2008 e 2009. Tais resultados não podem
ser generalizados para os Xavante como um todo, sem que o mesmo tipo de
estudo seja realizado em outras aldeias. Esclarecemos ainda que todos os
alimentos e animais consumidos pelos Xavante foram citados no decorrer da
dissertação pelo nome popular em português e, em situações específicas, da
forma como os Xavante os designam. As tabelas 2 e 3, com o conteúdo citado,
estão no anexo C.
15
Ver item 1.6, Construção e organização dos textos e contextos
44
3.1 Produção
A produção de alimentos na aldeia é feita pela da caça, coleta,
agricultura, pesca, criação de animais e compra de produtos na aldeia e na
cidade.
Os itens centrais na dieta dos Xavante são o arroz, o feijão, o milho, a
abóbora, a mandioca e o óleo. A base da dieta é o arroz, presente diariamente
no prato dos Xavante. O feijão é frequente na dieta, mas não tanto quanto o
arroz. As fontes de ambos são o mercado ou plantação na própria aldeia. O
milho, a abóbora e a mandioca são obtidos majoritariamente nas roças, e o
óleo no mercado.
3.1.1 Caça, coleta e agricultura
Antes do contato, em uma época em que os Xavante ainda eram um
povo semi-nômade, a produção de alimentos na aldeia era obtida por meio da
caça, coleta e agricultura. A caça e a coleta eram feitas em excursões pela
mata, muitas vezes em grupos. A atividade que mais interessava aos Xavante,
e na qual eles utilizavam maior parte de sua energia era a caça (FLOWERS,
1983; GIACCARIA, HEIDE, 1984; MAYBURY-LEWIS, 1984; GUGELMIN,
1995). no final da década de 70, a subsistência mantinha-se nas mesmas
fontes (caça, coleta e agricultura), mas com algumas diferenças em seus
processos e produtos (FLOWERS, 1983). Essas diferenças serão abordadas
mais adiante. As três atividades ainda são realizadas atualmente, porém não
são mais as únicas (FLOWERS, 1983; GIACCARIA, HEIDE, 1984; MAYBURY-
LEWIS, 1984; GUGELMIN, 1995).
A atividade sobre a qual os Xavante mais gostam de conversar é a caça.
Os primeiros relatos especificavam essa particularidade. Faziam excursões
geralmente realizadas com sucesso tanto nas matas de galeria quanto em
campo aberto. A borduna era a arma utilizada para abater mamíferos, e o arco
e a flecha para abater aves e pequenos animais (MAYBURY-LEWIS, 1984).
45
Os animais geralmente caçados eram veados, caititus, antas,
tamanduás-bandeira e mirim, ratos de campo, tatus e a maior parte das aves
(ema e seriema eram mais apreciadas pela maior quantidade de carne. Dos
papagaios e araras utilizavam também as penas para fazer flechas e
ornamentos). Não se alimentavam dos répteis, mas sim dos ovos de jabuti.
Caso encontrassem algum pelo caminho, poderiam comê-lo (MAYBURY-
LEWIS, 1984).
A caça ainda é praticada pelos Xavante da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe. Como na época do contato (MAYBURY-LEWIS, 1984), ainda se
discute no wa
16
o local da caçada e quais serão os participantes no grupo
que sairá para a excursão. Estas informações nos foram fornecidas por alguns
homens da aldeia, pois por sermos mulheres participamos por duas vezes
da referida reunião.
As caçadas são realizadas de duas formas diferentes: em pequeno
grupo, quando caçam com armas (geralmente a espingarda calibre 22) e em
grupos maiores, quando utilizam as queimadas e as armas. A caça com arma é
geralmente realizada na época das chuvas, e a produção é menor.
Espingardas eram utilizadas, mesmo que com menos frequência, no final da
década de 50 (MAYBURY-LEWIS, 1984). Na época da seca fazem a caçada
com fogo: Um círculo quase fechado de fogo é feito de forma a cercar os
animais, e abater com mais facilidade os que tentam escapar pela parte do
círculo onde não fogo e os Xavante estão à espreita aguardando os
animais.
Na época do contato a atividade era estritamente masculina, e ainda o é,
segundo relatos dos informantes, sejam homens ou mulheres, jovens ou
velhos. Maybury-Lewis (1984) afirma que o fato de ser exclusivamente
masculina fazia com que a atividade fosse muito valorizada na sociedade. Era,
assim, uma expressão pública da virilidade e masculinidade. Por meio da caça
os homens poderiam mostrar resistência física, rapidez, agilidade, astúcia e
vivacidade. Dessa forma, caçadores bem sucedidos jogavam sua carne no
chão, ao chegar na aldeia, e deitavam em sua esteira, enquanto que os mal
sucedidos eram recebidos friamente pelas mulheres. Giaccaria e Heide (1984)
16
Warã significa pátio e no cotidiano passou a denominar a reunião masculina realizada quase que
diariamente no centro da aldeia.
46
acrescentam que era por intermédio da caça que o grupo avaliava a
capacidade de cada um, e a habilidade demonstrada nessa atividade conferia
prestígio ao homem.
Nos meses de janeiro e fevereiro, enquanto estávamos na aldeia os
homens saíram para caçar 18 vezes, geralmente de caminhão, em um grupo
de quatro a 10 homens, quase sempre acompanhados de dois ou três
cachorros. Nenhum jovem (ri`teiwá) participou das caçadas. Por ser época das
chuvas, as caçadas eram feitas com armas de fogo, e o intervalo entre cada
uma era de no máximo três dias, com a exceção de um período de quatro dias
quando o caminhão ficou quebrado. Durante estas expedições trouxeram os
seguintes animais: Tamanduá bandeira; tamanduá-mirim, caititu, veado e
jabuti. Destes, os mais frequentemente trazidos para a aldeia eram os jabutis.
Não vimos nem ouvimos relatos de caça de anta. As carnes de anta, veado e
paca são bem apreciadas, apesar de serem mais difíceis de encontrar. O fato
do apreço por esses animais parece estar mais ligado à quantidade de carne
que disponibilizam, do que propriamente ao gosto. Tal preferência era
percebida nos relatos de Maybury-Lewis (1984).
Ao perguntarmos aos ri`teiwá o motivo de não saírem para caçar, estes
afirmavam que saíam, porém com menos frequência que os mais velhos
(iprédu), devido ao trabalho e estudo. Foram também enfáticos em afirmar que
os “bichos no mato” têm diminuído, o que faz com que a caçada seja muito
cansativa. Os mais velhos dizem que “ainda caça no mato”, e culpam os
mais novos de preguiça por não quererem caçar e não terem a necessidade de
“orgulhar a família, como enfaticamente expresso nesta fala de um homem
velho (ihȋ):
Jovem não se interessa mais. Não querem orgulhar mulher, não querem
orgulhar pai e mãe. Eu sempre faoa... falo apra todos os homens, falo para ir
todo dia, todas as noites, dia de domingo: aprende esse!! Escute os velhos!!
Porque hoje, com muita doença, velho esmorrendo, né? Como vai ser?(...)
Mas hoje os jovens não sabem fazer nossas coisas. Não sabem caçar, não
sabem nada...
As palavras acima também expressam uma preocupação muito
frequente entre os mais velhos: o futuro dos Xavante dependentes de uma
geração tão diferente da deles: “Como vai ser?”.
Percebemos que, para os homens mais velhos ainda permanece a ideia
dos valores ligados à caça, isto é, do orgulho que a família sente por ter em
47
casa um bom caçador, como nos tempos antigos, um homem que expressava
por essa atividade a sua masculinidade e virilidade. Não podemos afirmar que
para as mulheres mais velhas exista a mesma realidade. Ao perguntarmos:
“Qual o trabalho do homem Xavante?”, apenas uma delas (ihi) fez referência à
caça: o trabalho deveria ser caça e roça. Mas hoje não fazendo mais...”.
Quando perguntávamos especificamente sobre a caça muitas diziam: “hoje não
querem mais caçar, pode comprar na cidade”. O novo meio de produção: a
compra, oferece possibilidade de escolha. Porém, por necessitar de recursos
financeiros para a aquisição (os quais são escassos para algumas famílias) em
alguns casos pode estimular o retorno à caça, como observado no caso a
seguir, de um ipredu (homem de meia idade) que afirma não caçar mais por
problemas de saúde. Após explicar sua impossibilidade, disse que se sente
muito mal, mas que quer voltar a atividade pois comprar carne na cidade é
caro”. Podemos perceber, então que, além da questão do valor, e de como o
homem que caça é visto pela sociedade como fonte de prestígio”
(MAYBURY-LEWIS, 1984), a questão econômica parece ser um fator
importante na opção por essa atividade.
Quando perguntamos aos homens mais velhos sobre a frequência da
caça, esses diziam que era “quando precisa”, isto é, “quando não tem mais”.
Alguns dizem que às vezes precisam caçar, mas não o fazem por falta de
munição” ou pelo fato da “espingarda estar quebrada”. Não houve referência ao
uso da borduna. Em entrevistas os homens disseram que não caçam mais com
arco e flecha. Apenas um falou que os utiliza quando acaba a “bala” (munição).
Apesar do arco e flecha não ser mais utilizado na caça, ainda é usado como
um símbolo nas festas (vimos arcos e flechas em muitas casas). No ritual do
Oi´ó
17
o cacique e alguns homens mais velhos participaram acompanhados de
seu arco e flecha.
Outros instrumentos usados mais recentemente na caça são a “espera”
e a lanterna. A “espera” é um tipo de escada larga, construída com troncos de
madeira. Os caçadores a encostam na árvore (geralmente de Jatobá), e
aguardam no topo as pacas e outros animais de vida noturna vir comer a fruta,
para então abatê-los. Rafael Silva (2008), em recente estudo feito na Terra
Indígena de Pimentel Barbosa, afirmou que esse tipo de caçada não era
17
Mais explorado no capítulo 4.
48
realizado na localidade, provavelmente porque o período da noite era
entendido como um período de convivência na aldeia, no warã, e em suas
casas.
Apesar de não ser o objetivo, caso os homens encontrem frutos do
mato, podem coletar. Pegam, também, brotos de palmeira para a confecção
dos cestos, e palha para fazer ou reformar suas casas. Alguns homens levam
cestos pequenos para as caçadas, onde carregam garrafas com água e
munição, e trazem raízes e frutos que encontram pelo caminho. O cesto, além
de menor, não é apoiado na testa, como fazem as mulheres, mas nos ombros
dos homens.
Como já afirmado, o cachorro é muito usado na caça, e por isso é
valorizado pelos caçadores. Eles se alimentam das comidas que caem dos
pratos e panelas dos Xavante. Em algumas casas recebem arroz e ossos
pequenos, que são colocados para eles em um renham`rie (pequena esteira
para colocar comida). Acreditam que a vacina prejudica o animal, e muitos não
vacinam com medo de que o cachorro não seja mais um bom caçador. Isto
gera diversos problemas de saúde tanto para o animal quanto para crianças e
adultos. As doenças transmitidas pelos cachorros e comumente observadas
entre os Xavante são a leishmaniose
18
e a sarna.
19
Na aldeia havia sete
indivíduos com o diagnóstico de leishmaniose e que estavam sendo tratados
pelos agentes indígenas de saúde (AIS) e muitas crianças atendidas no posto
de saúde com tratamento para sarna.
Ao percorrermos a Terra indígena de São Marcos para visitarmos outras
aldeias, percebemos que um grande território ainda com mata de galeria,
local onde, de acordo com Maybury-Lewis (1984), os Xavante preferiam caçar.
Tal fato nos levou a indagar por que os moradores de Nossa Senhora de
Guadalupe não caçam e coletam nessas áreas, visto que todos os
entrevistados relataram que estas atividades eram geralmente realizadas na
18
Também conhecida como calazar, ou úlcera de Bauru, é provocada pelos protozoários do gênero
Leishmania, transmitida ao homem pela picada de mosquitos flebotomíneos (Ordem Diptera; Família
Psychodidae; Sub-Família Phlebotominae), também chamados de mosquito palha ou birigui. Os cães,
juntamente com outros animais (roedores, marsupiais e gambás) podem ser reservatórios (FOREYT;
FOREYT, 2001).
19
A sarna tem como agente etiológico o ácaro Sarcoptes scabiei, que forma túneis na região subcutânea,
onde deposita seus ovos. Sua presença provoca prurido intenso no local e é transmitida por contato direto
com indivíduos ou outros animais infectados. (FOREYT; FOREYT, 2001).
49
terra dos Bororo
20
, ou até mesmo em algumas fazendas ao lado da BR - 070.
Referiam que a indicação do local era feita pelo cacique, que por sua vez dizia
que é justamente nesses locais que estão os animais e os frutos. Alguns
afirmam que pode ser uma questão de disputa política o fato de não caçarem
dentro do território da Terra Indígena São Marcos, uma vez que a aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe foi fundada devido a uma cisão da aldeia São Marcos
por motivos políticos e faccionais. Nesse caso, as terras entre as duas seriam
um “território” de caça dos moradores de São Marcos.
A coleta constituía-se uma atividade feminina, vista com importância
pelos Xavante (menos importante do que a caça, porém mais importante do
que a agricultura). Os locais onde seriam realizadas também eram discutidos
no warã, mas quase no final da reunião, quando os homens já haviam discutido
incansavelmente sobre a caçada. Antes do contato os alimentos obtidos na
coleta eram parte fundamental na subsistência, mas ainda assim o papel
feminino não era tão valorizado quanto o masculino na caça (GIACCARIA,
HEIDE, 1984; MAYBURY-LEWIS, 1984). Durante o estudo de Nancy Flowers
(1983) em Pimentel Barbosa a situação era diferente. A coleta ainda existia,
mas não era fundamental na subsistência, papel que havia sido tomado pela
mandioca e o arroz plantado em roças mecanizadas (projeto patrocinado pela
FUNAI na década de 1970, que será descrito mais adiante). Segundo a
antropóloga, as raízes eram pouco coletadas, mas o palmito, coquinhos e
frutos selvagens ainda eram largamente consumidos.
Atualmente a coleta ainda é uma atividade frequente, porém em sua
maioria realizada pelas mulheres mais velhas (ihi). Continua sendo referida
como uma tarefa feminina, apesar de alguns homens coletarem ao saírem para
caçar. A atividade costuma ser realizada nas matas de galeria, que ficam em
distâncias variadas, a partir de 500 metros, até cinco ou seis quilômetros
distantes da aldeia. A coleta requer um conhecimento prévio, por parte dos
Xavante, das folhagens das raízes, assim como das frutas nas matas. As
mulheres mais jovens dizem que não coletam mais por dois motivos: por terem
que “cuidar dos filhos na aldeia”, e por não reconhecem mais as raízes no
mato, fato que tem criado certo conflito intergeracional. Tal informação difere
do passado, quando as jovens não deixavam de ir às coletas, mesmo que
20
Os Bororo vivem em uma terra indígena contígua à dos Xavante.
50
estivessem com seus filhos. Estes eram levados nas cestas (GIACCARIA,
HEIDE, 1984; MAYBURY-LEWIS, 1984).
Pudemos participar de uma coleta de monihoiré (um tipo de cará), feita
por duas mulheres (mãe e filha). A coleta foi feita em uma mata de galeria,
numa distancia de aproximadamente três quilômetros da aldeia. A rama do
moonihoiré é seca, e a planta é uma trepadeira. Após identificar a rama, as
mulheres procuram, com cuidado, o local onde a rama entra no solo. O
trabalho exige delicadeza, pois pouca força faz a rama se soltar do chão e o
local da raiz fica perdido.
Após identificar o local no solo, cavam com a ponta do facão ou um tipo
de pá com cabo comprido, para quebrar a terra dura, e cuidadosamente,
procuram os pedacinhos da raiz, cavando mais, dessa vez com as mãos, até
encontrar o moonihoiré.
Figura 6: Mulher cavando raiz de mooni`höiré durante atividade de coleta e mulheres levando o abamé
repleto de alimentos coletados.
Cachorros podem acompanhar os Xavante na coleta, às vezes
atrapalhando o momento de cavar, mas sem serem repreendidos pelas
mulheres, que achavam graça deles deitarem dentro do buraco que estava
sendo cavado.
O esforço da coleta é bem grande. As mulheres andam no sol quente, e
voltam, geralmente,com as cestas cheias. O mato é fechado e com muitas
árvores espinhosas. As Xavante que usam saias, levam uma calça dentro da
cesta, e a colocam ao chegar no mato. Levam também uma garrafa de água
congelada para ir bebendo no caminho. Algumas mulheres, após a coleta,
51
ainda catam lenha para cozinhar os alimentos. E levam tudo empilhado nas
costas.
A coleta na época da chuva é basicamente de frutas: o u`wairê e o abarê
(pequi) e alguns cocos. O u`wairê é uma fruta pequena, que deve ser pega do
chão, pois as que estão no ainda estão muito adstringente. No final do mês
de janeiro um grupo de quase 30 mulheres saiu de caminhão até a BR - 070 na
terra indígena dos Bororo. Quem escolheu o local da coleta foi o cacique. As
mulheres disseram que nos arredores da aldeia o abarê estava escasso. A
coleta na fazenda foi muito produtiva. Trouxeram cestas e fardos cheios da
fruta. No dia seguinte, alguns que não foram receberam abarê, e todos da
aldeia passaram uma semana comendo o fruto. Alguns homens foram caçar no
local próximo à coleta de abarê. As mulheres disseram que tiveram que andar
bastante, pois o caminhão as deixou muito longe das árvores, mas que valeu a
pena, pois coletaram muito. No dia seguinte à coleta, muitas mulheres foram ao
posto de saúde reclamando de dor extrema no corpo devido ao esforço
realizado durante a atividade.
Na época da seca a coleta é mais variada. São trazidos para a aldeia
diversos tipos de cocos (ti`ri, babaçu, macaúba) e também muitas raízes
(majoritariamente: mooni´hoiré, moone, pidzi, wö, patede, tomõsu, poné`re).
Alimentos que aparecem em etnografias mais antigas, mas não observamos o
consumo no tempo em que estivemos na aldeia foram o mel e o palmito (tsé).
O palmito, juntamente com os cocos, eram encontrados durante todo o ano
(MAYBURY-LEWIS, 1984; GIACCARIA, HEIDE, 1984). Hoje os mais velhos
lamentam não encontrarem mais o tsé no mato. Alguns jovens relatam nunca
ter provado.
Outro meio de subsistência realizado pelos Xavante (tanto homens
quanto mulheres) antes do contato era a agricultura de corte e queima. Uma
parte da mata de galeria era queimada, sendo posteriormente limpa. Práticas
de queimadas recorrentes diminuem drasticamente os nutrientes do solo,
diminuindo sua qualidade (HARITASAN, 2000). Porém no caso dos Xavante,
sua mobilidade permitia um “descanso” da terra, de forma que os nutrientes
eram repostos, possibilitando o uso da terra em outro momento. A abertura das
roças também não afetava o rio, pois havia o cuidado de apenas queimar a
52
mata em locais mais distantes do leito, de forma que não houvesse perigo de
assoreamento (ASSOCIAÇÃO WARÃ, 2009).
Os produtos plantados eram o feijão, o milho e a abóbora, e tinham uma
função muito mais cerimonial do que de sobrevivência da comunidade, não
sendo tão vitais na dieta. Sendo os Xavante semi-nômades, o tempo gasto com
essa atividade não passava de um mês ao ano. As roças não necessitavam de
cuidado especial, pois os itens plantados eram resistentes. O produto mais
importante da agricultura era o milho, dos quais os Xavante distinguiam sete
tipos diferentes (nodzo, nodzopré, nodzob`á, nodzowawe, nodzopmrãri,
nõnomo`ubutí e nõnomohoby), razão pela qual desdenhavam dos brancos por
conhecerem apenas um tipo (o milho waradzu, ou wa`rú) (GIACCARIA, HEIDE,
1984; MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 93).
As roças eram de responsabilidade de cada grupo doméstico, e o
instrumento utilizado era apenas o pau cavador. A queimada e a limpeza dos
terrenos era uma atividade masculina, enquanto que do plantio participavam
homens e mulheres. Maybury-Lewis (1984, p.94) afirma que o “Serviço de
Proteção aos Índios tentou insistentemente persuadir os Xavante a cultivar
outras plantas, especialmente o aipim, arroz e bananas.” Acreditavam que a
região do Mato Grosso seria “aberta a colonizadores”, e por isso os Xavante
teriam que se adaptar a uma vida em um território no qual teriam chance de
sobrevivência se aumentassem a produção de alimentos com a agricultura. A
investida do Serviço de Proteção ao índio (SPI) não funcionou, de forma que
em 1958, alguns anos após o recebimento das roças com os alimentos acima
mencionados, os Xavante da região de Pimentel Barbosa não as possuíam
mais, e ainda continuavam como seminômades.
Na década de 1970 os Xavante já estavam fixados em um território, e os
produtos da roça Faziam parte fundamental de sua subsistência alimentar.
Com o passar do tempo, os produtos se diversificaram, e além do feijão, milho
e dois tipos de abóbora, tinham também a mandioca, o arroz, e em menor
quantidade banana, mamão, açúcar e cará. Vale salientar que o milho, ainda
produzido em grande quantidade, era o milho nativo, chamado hoje por eles de
milho xavante, e não o milho waradzu (FLOWERS, 1983; GIACCARIA,
HEIDE, 1984; MAYBURY-LEWIS, 1984;). Neste mesmo período a FUNAI
iniciou o projeto de rizicultura mecanizada, o qual tinha por objetivos garantir o
53
território (objeto de tensão entre os Xavante e os fazendeiros vizinhos) e gerar
renda com a entrada dos Xavante no mercado regional. O projeto foi
interrompido em 1985 na maior parte das aldeias, quando a FUNAI decidiu que
era o momento de os Xavante assumirem a condução do projeto e se
autofinanciarem. Nesta época o arroz constituía parte da dieta básica dos
Xavante, tomando lugar do milho e produtos da coleta, interferindo
negativamente nas condições nutricionais e de saúde dos indígenas
(FLOWERS, 1983; MAYBURY-LEWIS, 1984; SILVA, 1992; GUGELMIN, 1995).
Em junho de 2008, oito domicílios possuíam roça. Em janeiro de 2009, o
número de casas com roça havia aumentado para 17, ainda um número
reduzido se comparado ao número total de domicílios na aldeia (34), mas com
uma trajetória em ascensão. Tanto as mulheres quanto os homens são
responsáveis pelas plantações. Enquanto os homens abrem e preparam a
terra, as mulheres plantam e cuidam, também com a ajuda masculina. Em
apenas uma casa o homem é o responsável sozinho por sua roça. Atualmente
são os mais velhos (homens e mulheres, podendo ser o casal mais velho da
casa) que têm mantido as roças, e quando perguntados sobre uma possível
ajuda dos mais novos no trabalho, respondem que os mais novos o querem
fazer roça”. São poucos os jovens que ajudam seus parentes mais velhos,
destacando-se a participação predominantemente de mulheres. Os homens
mais novos se justificam dizendo que estão estudando ou trabalhando, que não
precisam mais plantar, e até mesmo que simplesmente não querem ir para
roça.
Além das roças familiares, no mês de julho fomos informadas de que
existia uma roça comunitária, que era cuidada apenas por homens velhos.
Durante o segundo trabalho de campo procuramos saber sobre a roça
comunitária e tivemos a informação de que não havia continuado após a
colheita. Não nos disseram o motivo.
Algumas roças ficam próximas da aldeia, numa distância de
aproximadamente um quilômetro. Outras ficam mais distantes, no interior das
matas de galeria. A escolha do local da roça é pessoal e não nos pareceu ser
motivo de disputas ou problemas. Cada um escolhe onde quer fazer a roça.
Fato interessante é que as roças atuais são feitas sempre próximas a algum rio
54
ou córrego. Tal prática, antes evitada pelos Xavante, tem causado o
assoreamento dos leitos d´água (MAYBURY-LEWIS, 1984).
Geralmente os Xavante usam o local aberto para a roça por atrês, ou
no ximo quatro anos. Relatam que após esse período precisam encontrar
outro local para queimar e limpar, pois a produtividade da terra diminui.
Os alimentos mais produzidos atualmente são: na época da seca o
arroz, a mandioca, banana, amendoim, abacaxi e feijão xavante; na época das
chuvas: Milho xavante, milho waradzu, abóbora, melancia, mamão, manga. Na
roça, a distribuição das plantas pode parecer aleatória, com vários alimentos
diferentes no mesmo espaço. Porém, os indígenas possuem o domínio da
organização do espaço, de forma que as plantas recebem sol e água
adequadamente. Os instrumentos utilizados na roça são a enxada, o ancinho e
o facão.
Além das roças mais distantes, quase todas as casas possuem
alimentos plantados em seu entorno. Os alimentos mais frequentes são a
mandioca, a banana, mamão e manga, além de batata-doce, babaçu, abacaxi,
jatobá, cajú e cajá manga, em menor quantidade. Mulheres e homens mais
velhos são os responsáveis por estas plantações.
Durante nossa primeira viagem a campo ouvimos muitos indígenas
lamentando o fato de terem perdido o cultivo do “milho xavante”
21
. Diziam ter
perdido por terem utilizado toda a produção, sem pensar em guardar sementes
para o plantio. Quando conversávamos sobre o assunto muitos revelavam
tristeza em suas palavras. Quando retornamos ao campo, seis meses depois, a
situação era outra: todos que tinham roça estavam com uma produção farta do
“milho xavante”. Dos sete tipos relatados por Maybury-Lewis (1984) na década
de 1960, pudemos identificar quatro (apesar de entenderem como quatro
variedades diferentes, os Xavante se referiram a todas com o mesmo nome:
no`dzo, o qual nomeava apenas uma das qualidades de milho conhecidas
antes do contato). Após perderem o cultivo, a FUNAI conseguiu sementes com
os Xavante de Marawatsede e distribuíram em N. S. de Guadalupe. Ainda com
a lembrança recente da perda do cultivo, vimos muitos secando as espigas
para guardar como sementes para o próximo plantio.
21
Mais informações sobre esse tipo de milho podem ser obtidas na tese de doutorado de Nancy Flowers,
1983.
55
3.1.2 Pesca e criação de animais
A pesca não era importante para os Xavante antes do contato. Estes
não sabiam construir barcos e não tinham interesse pelo rio. Porém, Maybury-
Lewis (1984) cita que a introdução do anzol fez com que os Xavante se
“apaixonassem” pela pesca. Esta se tornou uma prática masculina, mas não
exclusivamente. Mulheres poderiam ajudá-los e crianças também (FLOWERS,
1983; MAYBURY- LEWIS, 1984).
De acordo com os homens da aldeia, atualmente a pescaria tornou-se
uma atividade mais rara, pois o nível de água no rio mais próximo esmuito
baixo. Isto dificulta a pesca. Dessa forma, para pescar os Xavante precisam ir
para longe, mas a estrada está fechada para caminhão, dificultando o acesso,
e assim a prática da pesca.
Durante o período em que estivemos com os Xavante da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe presenciamos a realização de apenas uma pescaria.
Ao visitar uma das casas vimos um homem preparando o anzol. Ele nos relatou
que iria pescar junto com parentes de outra aldeia, os quais de fato passaram
de carro no outro dia bem cedo para pe-lo. No dia seguinte procuramos
saber se a pesca havia sido produtiva. Soubemos que ele havia pescado
“apenas dois matrinxã. O “apenas” na reposta demonstra o constrangimento
do pescador uma vez que sua expectativa era ter uma pesca mais produtiva.
O instrumento mais usado para a pesca é o anzol, mas alguns referem
que, quando liberados pelos anciãos, pescam com o timbó, um cipó que ao
bater na água mata muitos peixes. Segundo Delgado (2003, p.70-71) neste tipo
de pescaria é indispensável um grande número de pessoas, pois “se faz
necessário para extrair e bater, sobre uma pedra ou tronco com ajuda de um
porrete, o timbó”. As pessoas são divididas em grupos e distribuídas em
diversos pontos do rio (muitas vezes represado para facilitar a captura dos
peixes) para bater o timbó. Por isso é considerada uma pescaria coletiva. É
ainda uma atividade predominantemente masculina, da qual as mulheres e
crianças podem participar quando liberadas pelos homens, mas para recolher
os peixes do rio.
56
Algumas casas possuem criação de animais em seu entorno. Podem ser
galinhas, das quais comem a carne ou o ovo (mais raramente), ou papagaio,
arara, porco do mato e veado. Esses últimos geralmente são filhotes de
animais abatidos durante as caçadas e que são criados pelos Xavante, para
posteriormente serem utilizados para consumo. Esta situação era descrita
por Maybury-Lewis (1984) na década de 60.
Em relação à criação de galinhas, atividade incorporada pelos Xavante a
partir do contato com a sociedade não indígena, a maioria das pessoas criam-
nas soltas. Somente um ipredupté (homem mais novo) afirmou que não tem
galinheiro, pois “roubam muito e dá muito trabalho”.
Em quatro casas galinheiros fechados. Nas casas que criam as
galinhas soltas, estas recebem um pedaço de papel colorido na perna, como
identificação a fim de diminuir rusgas existentes entre os vizinhos que
requeriam a posse dos animais. Os ninhos das que vivem soltas são feitos em
qualquer lugar no interior da casa: embaixo da cama, atrás da geladeira, atrás
do fogão. Os Xavante não costumam comer os ovos das galinhas. Dizem que
tem pena, pois pode “ter pintinho dentro”.
criação de porcos-do-mato em quatro casas, e em apenas uma o
porco fica em um recinto fechado. Nas demais os animais ficam soltos e andam
no interior das casas e arredores. Ao mesmo tempo em que estes animais
trazem benefícios para os Xavante, pois estão próximos às suas casas
facilitando seu possível consumo quando adultos, eles são os principais
hospedeiros do bicho-de-pé (Tunga penetrans), o qual pode também parasitar
o homem (FOREYT; FOREYT, 2001). De fato, na aldeia este é um problema
que afeta a maioria dos moradores de forma bem expressiva nos pés, entre os
dedos e próximo às unhas. Alguns casos podem ser agravados com a
ocorrência de infecção secundária nos locais das feridas. Em casos crônicos,
muitas vezes observados por s na aldeia, lesões deformantes com
eliminação das unhas e espessamento da pele.
57
3.1.3 Salários, benefícios sociais e comércio
Uma realidade atual na aldeia é que todas as casas possuem pelo
menos um morador com fonte de renda. As fontes de renda relatadas em
entrevista são inúmeras: aposentadoria; salário como Agentes Indígenas de
Saúde - AIS, motoristas da Fundação Nacional de Saúde Funasa ou
Fundação Nacional do Índio FUNAI, Agente Indígena Sanitário AISAN,
professores, merendeiras, faxineiros da escola, chefe de posto indígena; bolsa
família, comércio (venda de excedente de produção das roças e venda de
artesanato). A fonte de renda possibilita aos Xavante uma nova forma de
produção de alimentos: a compra. Pelo menos uma vez por mês os Xavante
vão à cidade a fim de receber seus pagamentos e ao mesmo tempo fazerem
suas compras.
Nos relatos anteriores (FLOWERS, 1983; GIACCARIA, HEIDE, 1984;
MAYBURY-LEWIS, 1984; GUGELMIN, 1995; GUGELMIN, SANTOS, 2001) os
produtos industrializados, chamados aqui de “comida waradzu
22
, não
apareciam com a frequência que aparecem atualmente na dieta Xavante.
Atualmente a comida waradzu é obtida de várias formas: compra na cidade,
venda por não indígenas na aldeia, venda por indígenas na aldeia, recebimento
de cestas básicas e farinha láctea, e a reciprocidade
23
.
O transporte até a cidade de Barra do Garças é feito no caminhão da
aldeia. O motorista e o cacique vão na cabine, e atrás, na carroceria aberta,
vão homens, mulheres, crianças e idosos. Não bancos, e dessa forma uns
viajam sentados e outros de pé. Quando chove durante o trajeto, alguns se
cobrem com uma lona para se abrigarem da água.
O caminhão sai da aldeia entre as 5h30min e 7h da manhã após o
chamado feito por vocalizações. Dessa forma os homens chamam as pessoas
para a hora da saída, para a viagem que dura em média três horas (caso o
caminhão não sofra alguma avaria, como por exemplo problemas no motor e
22
Optamos por utilizar a nomenclatura “comida waradzu”, pois é a utilizada pelos Xavante quando falam
dos alimentos introduzidos após o contato. Estão incluídos na comida waradzu não apenas os alimentos
industrializados, mas os adquiridos na cidade e na aldeia através do comércio (compra).
23
Abordaremos a questão da reciprocidade no próximo item, 3.2, Armazenamento.
58
falta de gasolina). O combustível é pago pela FUNAI e/ou FUNASA, ou os
próprios indígenas dividem o custo. As viagens com o caminhão são
previamente negociadas na comunidade (na reunião dos homens warã). No
início do mês os velhos pedem para disponibilizar o caminhão para ir até a
cidade e, somente quando o carro está quebrado ou sem gasolina, as viagens
não acontecem. Muitas vezes o caminhão leva pessoas das aldeias vizinhas,
Nossa Senhora das Graças ou São Francisco, não havendo lugar para os
moradores de Nossa Senhora de Guadalupe.
Outra possibilidade de transporte para a cidade é a carona. Os Xavante
acordam muito cedo e vão para a estrada vicinal para aguardar algum carro de
outra aldeia ou o ônibus da Aldeia de São Marcos. Quando sabiam com
antecedência nossos planos de ir à cidade, muitos iam de madrugada ao Posto
de saúde nos pedir carona. Caso nosso carro estivesse cheio, e não
pudéssemos levar todos que nos pediam, estes faziam questão de averiguar o
banco traseiro, de forma a ter certeza de que estávamos falando a verdade.
Ao chegarem em Barra do Garças, o destino são os bancos, seguidos
dos supermercados. Nos bancos as filas ficam muito cheias, pois os indígenas
demoram muito para fazerem suas transações nos caixas eletrônicos. As
ajudantes estão ali, para idosos, mas não para indígenas, segundo informação
dos mesmos, e as enormes filas acumulam também os waradzu, que podem
ser ouvidos o tempo todo reclamando da “lentidão” dos Xavante.
Entrevistamos funcionários dos estabelecimentos comerciais onde os
Xavante mais fazem suas compras. Eles informaram que os pagamentos são
sempre feitos à vista, em dinheiro. Apesar disso, pudemos ver alguns com seus
cartões nas mãos e obtivemos informações dos próprios indígenas, de que
algumas compras são feitas a fiado”, conforme descrito a seguir: Os cartões
ficam detidos nos supermercados até que o salário do próximo mês seja
depositado na conta, quando algum funcionário do mercado, de posse do
cartão do indígena e de sua senha, vão até o banco para sacar o que “devido”.
As compras são entregues pelos mercados no local onde o caminhão
fica estacionado quando está na cidade, que geralmente são dois pontos
físicos no centro de Barra do Garças. Os pontos são estragicos porque ficam
perto dos bancos e do Mercado Municipal, onde muitas vezes os Xavante
fazem suas compras. Os produtos adquiridos no mercado o embalados em
59
caixase sacos, que serão transportados na carroceria do caminhão, junto com
os botijões de gás e as pessoas. São fardos de arroz, de trigo, feijão. Carnes
congeladas ficam horas em temperatura ambiente, e acabam descongelando.
Quando o caminhão retorna para a aldeia, a hora está avançada.
Chegam por volta das 22 horas. Os moradores que ficaram na aldeia vão até o
caminhão para ajudarem a levar as compras para casa.
Os alimentos waradzu mais frequentemente comprados são arroz, óleo,
sal, feijão, açúcar e o gás. Além destes compram também: farinha de trigo,
vários tipos de carne, linguiça, alho, cebola, café, sardinha em lata, fermento
para bolo e pão, extrato de tomate, biscoito recheado, o francês, tomate,
laranja e pepino. As compras são feitas mensalmente, geralmente por homens
mais novos. Algumas mulheres acompanham os homens no supermercado,
mas os relatos dos funcionários (e o que também foi observado) mostram que
quem realmente escolhe o que levar são os homens: “Pode vir os dois, homem
e mulher, mas o homem manda. A mulher não manda nada. A mulher fica
atrás.” E no mesmo tom: Vem os dois. Quer dizer, a mulher vem, mas o
dinheiro é do homem... e ele não libera! Manda mesmo.”
Quando os beneficiários estão mais velhos, os filhos ficam como
procuradores, e os idosos param de ir à cidade. Em alguns casos, o filho usa
parte do dinheiro para a compra de produtos que os idosos não acham
importantes. Por exemplo, ao conversar com um ihiri (homem, 65 anos) ele
comentou que seu filho havia gasto toda a sua aposentadoria comprando tênis,
cd e roupas; deixando a família com pouquíssima comida no s, a qual
conseguiu com vizinhos. Tal fato foi referido também por outras famílias da
aldeia, como um episódio de falta de respeito de um jovem com um idoso.
A compra de produtos na cidade como parte da produção alimentar cria
uma nova necessidade: a de rápida adaptação a um ambiente diferente. A fala
de um ihire (homem, 71 anos) demonstra que os próprios Xavante reconhecem
essa necessidade: “Agora Xavante tem que aprender a ir a cidade, a se virar
na cidade. Antes não precisava”. Não é uma questão fácil, pois além de lidar
com um ambiente diferente, outra cultura, e outro idioma (o qual a maioria das
mulheres não domina) têm que lidar com o preconceito.
um comércio local informal na aldeia. Alguns moradores que
possuem maior facilidade de locomoção acabam revendendo produtos
60
comprados na cidade, tais como refrigerante (observado a venda em três casas
diferentes) e arroz (em três casas, sendo apenas uma delas que vendem
refrigerante e arroz). Alguns vendem produtos de suas roças, como a banana
(uma casa) e mandioca (uma casa). As casas em que venda de produtos
industrializados não são as mesmas onde há venda de produtos da roça.
Uma vez por semana, um casal de não indígenas visita a aldeia, em um
carro tipo pick-up, conhecido como o carro branco”. O casal vende produtos
alimentícios aos indígenas, ou fazem trocas de produtos por cordões indígenas
confeccionados pelos Xavante. Toda sexta feira o carro é esperado pelos
moradores. O casal estaciona o carro embaixo da palha da antiga escola, e fica
aguardando os índios, homens e mulheres, que irão comprar suas
mercadorias. As crianças são as primeiras a aparecerem e ficam em volta.
Quase todas ganham balas ou picolés, que seus pais compram. Os preços são
bem acima daqueles cobrados na cidade, e mesmo assim os Xavante
compram seus produtos.
24
Vendas a fiado não costumam ser feitas pelos
comerciantes do carro. Soubemos de apenas um caso de um idoso que
comprou o frango dando uma “entrada” de três reais e prometendo pagar o
restante quando recebesse a aposentadoria. No carro é vendido refrigerante,
frango congelado, picolé, pão francês, biscoito água e sal, chiclete, além de
enormes pacotes de biscoito extrusado de milho.
Este casal tem a anuência do cacique para vender os alimentos na
aldeia e sua família recebe em troca um “presente”, geralmente um frango.
Essa prática de vender alimentos na aldeia pode ser associada à antiga loja
existente na aldeia São Marcos. Os missionários mantinham um pequeno
comércio na missão, onde vendiam produtos alimentares e de limpeza pelo
preço da cidade. A intenção era diminuir as viagens e o contato dos Xavante
com a cidade e ajudar aqueles que não podiam sair da aldeia, mas que
queriam algum produto.
Outro tipo de comércio é realizado por um rapaz morador de uma
fazenda próxima, que vai semanalmente à aldeia, em uma moto, vender carne
e, esporadicamente, leite. Da mesma forma que o “carro branco”, os preços
24
Da última vez em que estivemos na aldeia o frango era vendido a R$ 12,00 a unidade, enquanto que
um de tamanho equivalente na cidade saía por R$ 7,00 ou R$ 8,00.
61
são bem altos. Conversando com alguns Xavante, eles mencionaram a
desconfiança da procedência da carne, pois desconfiam que seja de animais
que morrem doentes na fazenda e por isso a compram se “precisarem
muito".
Além da aquisição de alimentos no mercado regional, e na aldeia pelo
“carro” e pela “moto”, os Xavante de Nossa Senhora de Guadalupe recebem
uma cesta básica da FUNASA, uma vez por ano
25
. A cesta faz parte do
Programa de distribuição de alimentos a grupos específicos, e sua composição
é definida pelo Governo Federal. A que os Xavante recebem contém: 10 Kg de
arroz, 2 Kg de feijão, 1 Kg de leite em pó, 2 Kg de açúcar, 1 Kg de fubá, 1 Kg
de farinha de mandioca, 1 Kg de macarrão e 2 litros de óleo.
Em uma conversa com um homem jovem voluntário no posto de saúde,
sobre a avaliação do estado nutricional, trimestralmente realizada pelos
técnicos de enfermagem, ele nos relatou que não cesta para todas as
casas. Dessa forma, no final de 2008 foi feita uma avaliação antropométrica
nas crianças, e definiram que as casas onde moravam crianças menores de 5
anos diagnosticadas com baixo peso para a idade receberiam a cesta. No
entanto, a avaliação foi feita por uma indígena moradora da aldeia, que ocupa
o cargo de auxiliar cnica de saúde, a qual possui parentesco com o cacique,
e a distribuição das cestas acabou beneficiando somente um lado da aldeia. O
jovem nos mostrou uma marca no chão, que quase divide a aldeia ao meio, e
disse que na metade à esquerda do posto de saúde, todos receberam cesta.
Até as casas onde não havia crianças com baixo peso. São as casas do “lado
da” auxiliar. No outro lado, nada foi dado. O voluntário disse que, por isso, as
famílias provavelmente não acreditariam mais nos agentes de saúde, e que
iriam se negar a fazer as aferições.
No entanto, em janeiro de 2009 todos se mostraram solícitos durante a
avaliação. Pode ter sido pela presença da nutricionista da Casa de Saúde do
Índio (CASAI), que estava acompanhando os agentes de saúde, e os indígenas
25
Informação dada pelos AIS, mas que não coincide com a informação da Funasa que mencionou o
recebimento constante da cesta. Não conseguimos retornar para identificar se as falas estão associadas
ao mesmo tipo de cesta ou se eram referentes a situações diferentes.
62
já sabiam que ela havia trazido porções de farinha láctea
26
produzida na CASAI
para entregar às mães de crianças desnutridas.
A farinha láctea é doada pela CASAI em dois momentos: quando a
criança desnutrida recebe alta, ou diretamente ao posto de saúde nas aldeias,
onde a distribuição mensal é feita pelo agente de saúde também para as
crianças desnutridas. Ouvimos relatos de que idosos com baixo peso recebiam
a farinha anteriormente, e muitos reclamaram com a nutricionista da CASAI o
fato de não receberem mais.
Pudemos ver que muitas mulheres desconhecem a forma de preparar a
farinha. Diluem em muita água para que demore mais para acabar, e a criança
acaba se satisfazendo com o volume, muito embora o aporte energético
desejado não seja atingido.
Fica evidente que a disponibilidade de recursos financeiros possibilita o
acesso a alimentos e outros bens de consumo, o que em alguns casos, gera
um menor envolvimento com as atividades de caça, pesca, coleta e agricultura.
Todavia, não podemos afirmar que isso aconteça em geral, pois existem
domicílios que mesmo com algum tipo de renda ainda praticam as atividades
de subsistência mencionadas. Mesmo resultado foi encontrado por Maurício
Leite (2007) entre os indígenas Wari`. De forma geral parecia haver um menor
envolvimento nas práticas tradicionais pelos Wari` que exerciam algum tipo de
trabalho remunerado. Mas tal fato não era regra, visto que alguns que tinham
fonte de renda também tinham suas roças. O autor conclui, então, que o
acesso ao dinheiro possibilitava, mas não determinava o acesso ao alimento
por uma forma que não a tradicional. Percebemos que as decisões são
individuais e não simplesmente uma resposta em relação à “disponibilidade de
tempo” daqueles que estão desenvolvendo algum tipo de trabalho remunerado.
Mesmo nas casas onde roça, os alimentos provenientes da cidade
são parte fundamental da dieta Xavante, pois a produção na roça domiciliar
não perdura o ano inteiro.
26
A composição básica da farinha láctea é: leite em pó, farinha (soja, fubá, aveia, mandioca), açúcar
mascavo ou sal, pó de babaçu e semente de abóbora. São produzidas, na CASAI, em quatro sabores
diferentes: três doces e um salgado. As doces são dos sabores amendoim e gergelim; banana e aveia, e
mandioca e açúcar mascavo. A salgada é composta de, além dos ingredientes básicos, fubá, soja, alho,
sal e gergelim. Segundo informação da nutricionista do CASAI a farinha deve ser utilizada junto à sopa,
arroz ou feijão.
63
De acordo com Goody (1996), a divisão sexual do trabalho pode ser
observada nessa fase do sistema alimentar. De forma geral, as práticas
tradicionais são marcadas pela divisão sexual: os homens são exclusivamente
responsáveis pela caça e pesca. As mulheres são exclusivamente
responsáveis por coletar frutos no mato e trazer os alimentos da roça, e o
fazem em cestas de folhas de buriti que elas mesmas produzem e que usam
presas à cabeça. A lenha usada na cocção vem em parte da limpeza do
terreno para a plantação, e a responsável pelo transporte da lenha é a mulher.
As práticas mais recentes como as compras na cidade podem ser feitas por
ambos os sexos (como eles dizem).
Nessa fase do sistema alimentar vemos claramente a participação das
crianças do sexo feminino. O antropólogo Paulo Delgado afirma que as
meninas e os meninos brincam juntos até os cinco anos de idade, e que a partir
desse momento elas assumem o papel ligado diretamente às “necessidades
domésticas” (DELGADO, 2008, p. 67). De fato observamos meninas bem
novas participando no transporte da lenha, bem como de água e utensílios,
porém com cestas menores.
3.2 Armazenamento
No passado os Xavante armazenavam seus alimentos tanto dentro quanto
fora das casas. Fora das casas eram feitos depósitos para os cereais, que
ficavam em cabaças fechadas. No interior das casas as sementes e raízes
ficavam em cestas. As cestas ficavam no alto, presas a estacas fincadas no
chão (MAYBURY-LEWIS, 1984; GIACCARIA, HEIDE, 1984).
Atualmente o armazenamento é feito dentro de casa, parecendo não
haver variação na forma de armazenar entre as casas. O local de
armazenamento dos alimentos é diferenciado. Alimentos que vem da roça
ficam estocados em locais onde não são facilmente visualizados (atrás do
fogão, ou separados por uma parede de palha) e estão sempre cobertos. Os
alimentos industrializados ficam um uma espécie de estante aberta.
64
Os depósitos de cereais não existem mais a não ser o de arroz, que
após a colheita fica armazenado ainda com casca em grandes amontoados na
própria roça. Os montes são cobertos com palhas e os Xavante vão retirando o
cereal aos poucos, na medida em que necessitam.
Na aldeia, ao longo do dia se milho e arroz secando ao sol, em cima
de pedaços de lona, mas estes são guardados no interior das casas, em sacos
grandes, no entardecer.
Muitos alimentos in natura são guardados em cestas de palha chamadas
abadzizé. Estas geralmente estão tampadas, quando não estão muito cheias.
Raízes, tubérculos, frutas e os vários tipos de co são armazenados dentro
das casas, nestas cestas, muitas vezes penduradas nos trançados de madeira
que sustentam as palhas das paredes, próximas ao fogo ou fogão.
O milho e a abóbora, muito frequentes na dieta Xavante na época das
chuvas, são estocados no chão, bem como a mandioca na época da seca. Os
alimentos estão sempre cobertos com um pano. Após um dia de coleta coletiva
de pequi no período das chuvas, pudemos observar em várias casas a mesma
forma de estocá-lo: dentro de sacos bem grandes, no chão, encostados na
palha da parede. Essas pilhas de alimentos não ficam em um local “avistável”
da porta. Para vê-los temos que adentrar as casas e aguçar o olhar para
identificar o conteúdo do estoque. Não raro estes produtos estão em um
cômodo ou no fundo da casa, em local escuro.
O milho, bem como a mandioca, o arroz e as raízes obtidas nas coletas
são deixados dentro da casca até o momento de ir para a fogueira, a não ser
que queiram secá-los (no caso, o milho e/ ou o arroz) para pilar.
Em algumas casas estantes feitas de tábuas de madeira, nas quais
organizam panelas simples, pratos (de plástico, muitas vezes ou metal),
panelas de pressão, leiteiras e bacias de plástico. Alguns alimentos também
ficam nas estantes. São geralmente os alimentos waradzu como potes de
margarina, sal, açúcar, biscoito, temperos prontos, leite. Apesar de ficarem nas
caixas ou sacos em cima das prateleiras, as embalagens ficam abertas na
maioria das casas. Esta forma de estocar não livra os alimentos do ataque de
baratas, formigas e outros tipos de insetos, comumente encontrados nas casas
de palha.
65
Outra forma de guardar os utensílios limpos utilizados para cozinhar é
colocar tudo dentro de cestas, pendurados nos troncos que sustentam as
casas ou na ponta da estante de madeira. Quando sujos, ficam em cestas no
chão, ou dentro do carrinho de mão (nem todos possuem) que usam para
transportá-los. Muitas vezes os utensílios ficam sujos durante a noite. Pela
manhã, antes de começarem a preparar a refeição, as mulheres vão ao rio ou a
pia comunitária a fim de lavá-los antes de um novo preparo.
Um elemento que trouxe mudanças na forma de estocagem dos
alimentos, especialmente da carne e refrigerantes, foi a chegada da energia
elétrica. Muitas famílias adquiriram geladeiras, algumas com congelador. É raro
ver geladeiras novas nas casas devido ao custo elevado. Dessa forma, em
várias casas onde a geladeira funcionava em julho de 2008, a mesma se
encontrava quebrada em janeiro de 2009. Acabavam sendo usadas com
“armário” onde eram colocadas panelas vazias e até mesmo roupas. Nas casas
onde a geladeira estava funcionando bem, o que havia no interior eram
basicamente garrafas com água e refrigerantes. Em raros casos havia algum
alimento. Quando perguntava aos Xavante onde guardavam a comida que
sobrava do almoço, as respostas sempre eram: “em cima do fogão” ou “no
forno”. De fato era o que nós observávamos ao entrar nas casas. Pães também
eram guardados dentro do forno. Isso acontecia mesmo nas casas onde havia
uma geladeira em uso.
Mesmo quando compram ou caçam mais carne, os Xavante acabam não
armazenando o produto, pois distribuem entre os parentes e o que sobra
comem em dias seguidos, até que acabe (dessa forma o armazenamento da
carne costuma ser feito por um tempo bem curto). Poucos utilizam a técnica de
moquear a carne para conservá-la por mais tempo. Essa prática foi observada
somente no período das festas, dada a grande quantidade de carne que
caçam. Essa prática era comum na época do contato, como afirma o
antropólogo Maybury-Lewis (1984).
Percebemos que as mudanças ocorridas nas atividades de subsistência,
com a incorporação de trabalho remunerado e recebimento dos benefícios
sociais; e nas condições de vida, com a introdução da energia elétrica na aldeia
e aquisição de geladeira (bem de consumo que possibilitaria armazenamento
de alimentos perecíveis), não afetaram a prática da reciprocidade entre os
66
Xavante de Nossa Senhora de Guadalupe. A manutenção dessa prática
continua criando laços e conservando a circulação dos bens materiais ou
simbólicos entre os grupos domésticos (WEISMANTEL, 1988; MAUSS, 2001).
Segundo Giaccaria e Heide (1984) no final da década de 1960 as trocas
de bens”, termo utilizado pelos autores, era comum entre os Xavante e regia as
relações sociais, dentre elas o casamento. As trocas recíprocas poderiam ser
entre objetos (produtos do trabalho masculino: flecha, esteira e arco; produtos
do trabalho feminino: novelo de algodão, cestos, recipientes de barro usados
na cocção de alimentos); de objetos por alimentos, ou de alimentos por
alimentos. Os alimentos mais frequentes nessas trocas eram a carne e o milho.
Para os autores as trocas eram reguladas por dois princípios
fundamentais: “1- A quem pede nunca se deve recusar o objeto pedido; 2-
Tanto a coisa dada como o pagamento devem ser proporcionais à situação
atual (material) dos contratantes” (GIACCARIA, HEIDE, 1984, p. 67). Dessa
forma, aqueles que tinham acumulado bens necessitavam revertê-los em
benefício do grupo, o que implicava aceitar “bens” de menor valor se
comparado ao que era cedido. A transgressão desse princípio de uma escala
de valores que deveria ser respeitada era vista como uma falta tão grave, que
era o único motivo de impedimento para um casamento entre Xavante. Este
sistema se diferencia da troca mercantil, utilitarista, vivenciada na sociedade
ocidental, pois está associado a um valor ético e moral, regulado por três
obrigações interligadas: dar, receber e retribuir (MAUSS, 2001).
Durante o período em que ficamos na aldeia reparamos que algumas
casas mesmo não possuindo roça, ainda assim, os moradores se alimentavam
com produtos de roças indígenas. Esses alimentos eram o milho, feijão,
abóbora, arroz e aipim. Eram obtidos por meio da reciprocidade. Os que
produziam esses alimentos levavam para aqueles familiares que não tinham
roça porque se preocupavam com eles, geralmente filhos e filhas que estavam
inseridos em atividades remuneradas na aldeia, tais como: professor, agente
indígena de saúde, auxiliar de serviços gerais na escola. Em troca, quando
esses voltavam das cidades com compras, entregavam algum produto
adquirido no mercado, como refrigerante, óleo, açúcar ou carne.
O valor do alimento produzido em roça e do alimento industrializado
pode ser visto na base das trocas. Sob a perspectiva ocidentalizada e muitas
67
vezes etnocêntrica parece não haver uma regra, e percebe-se que o volume do
alimento da roça é muito maior na troca, do que o industrializado. Por exemplo,
observamos em um dos domicílios visitados ao longo de nosso trabalho que
um fardo de mandioca, produto de roça indígena, foi trocado por um saco de
cinco quilos de arroz e uma garrafa de dois litros de refrigerante; na casa de
outro senhor vimos uma cesta cheia de milho xavante ser trocada por um
pacote de fermento para pão e um pacote de um quilo de farinha de trigo. De
forma geral, as trocas entre alimentos waradzú e auwé eram realizadas de
forma que a quantidade de comida auwé era superior em relação a waradzú.
No entanto, sob o ponto de vista Xavante os caracteres comercial e quantitativo
ficam em segundo plano, tendo outros elementos a regular as relações entre
grupos de idade, clãs, grupos domésticos o prestígio, a honra, a moral, a
obrigação de retribuir, o vínculo, são aspectos fundamentais nessas
transações. O importante é reproduzir as dádivas, pouco importando seu valor
ou sua natureza (SABOURIN, 2008). Os que produzem alimentos podem levar
“presentes” de sua roça para seu grupo doméstico, ficando os que recebem
com uma “dívida”, que poderá ser “cobrada” a qualquer momento. Muitas vezes
pudemos ver os Xavante ao voltarem da cidade com suas compras recebendo
“visitas” dos indivíduos que haviam oferecido o “presente”. Os visitantes
chegavam nas casas e escolhiam o que levar. Essa prática é comum entre os
Xavante e havia sido relatada por Giaccaria e Heide (1984) na década de
1960. Segundo os autores a dívida poderia levar anos até ser “cobrada”.
Outra situação de reciprocidade, que demonstra o aspecto do cuidado
pelo outro, foi observada em condições de doença ou nos casos em que os
pais são idosos. Durante nossa permanência em Nossa Senhora de Guadalupe
tivemos a oportunidade de observar uma mulher idosa levando diariamente
alguns alimentos da roça ou coleta para sua mãe, que morava na casa de sua
irmã, ao lado do posto de saúde, onde estávamos. Tanto na época da seca
quanto na época da chuva ela oferecia para a mãe moonihoiré assado e cru,
ramas de mandioca para que alguém plantasse, mandioca descascada, milho
xavante e abóbora assados na brasa, e pequi cozido. Os alimentos eram
sempre levados no abadzidzé (cesto com tampa).
Também tivemos a oportunidade de participar das trocas. Assim que
chegamos pela segunda vez na aldeia recebemos um abamé (cesto de palha
68
aberto) com milho xavante. Demos um pedaço de carne em troca. Recebemos,
ao longo da estada, muitos outros itens alimentares: milho xavante (no`dzo)
assado na brasa ou cru ainda na casca, milho waradzu, feijão xavante, um
pedaço de filé de uhö (queixada), várias abóboras, e muito pequi (já nos davam
aberto, faltando apenas cozinhar). As vezes as trocas não eram de alimentos.
Ganhamos espanadores, gravatinhas Xavante e cestinhas. Dávamos então
pedaços de carne, biscoito, ervilha e cebola, além de roupas e cobertores.
A reciprocidade, portanto, faz parte do cotidiano alimentar dos Xavante,
e parece que ainda segue o princípio fundamental de que um pedido não pode
ser negado. Esse assunto precisa ser aprofundado em futuros estudos, pois
em alguns momentos quando questionávamos sobre trocas as opiniões de
homens e mulheres de diferentes idades divergiam. Quando indagados sobre a
necessidade de dar o que foi pedido, respondiam: Sempre tem que dividir!
Sempre, sempre, sempre...Ou então: Xavante tem que dar!”. Mas quando a
pergunta envolvia produtos industrializados: Ah, isso é diferente! É caro, é
dinheiro. Tem que dar é comida xavante, o que no mato. A comida do
branco é difícil. Se a minha acaba, onde vou arranjar? E sem dinheiro...”.
Percebemos, assim, que uma prática antiga, que tem funções sociais
importantes tende a se manter, mas nem sempre em sua totalidade.
3.3 Preparação
De acordo com Goody (1996), tanto o preparo quanto o consumo da
refeição são o foco principal dentro de uma análise do sistema alimentar de
uma sociedade. Informações importantes acerca da fase do preparo são: quem
cozinha, com quem cozinha, onde cozinha, para quem cozinha, além dos tipos
de tecnologia que são utilizados. A arena é estritamente feminina: a cozinha,
local de domínio da mulher. Para que a descrição da fase do preparo seja
melhor, o autor sugere que seja dividida em três momentos: o pré-preparo, o
cozinhar e a limpeza dos utensílios. Optamos por descrever dessa forma,
inserindo em cada subitem as informações pertinentes.
69
3.3.1 Pré-preparo
As atividades de pré-preparo dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe são compostas de pegar lenha e folhas, arrumar e acender a
fogueira, quebrar cocos, cortar frutos, vegetais e carnes, pilar arroz, debulhar
feijão, ralar mandioca, torrar mandioca, construir o moquém.
27
No caso do
preparo de alimentos waradzu, e da forma de preparo waradzu (no fogão a
gás), necessitam apenas descascá-los e cortá-los. O tempo de preparo da
comida, portanto, é bem variável, e vai depender da forma de produção no qual
os alimentos foram obtidos. Os alimentos beneficiados (no presente caso os
waradzu) vão demandar menos tempo de pré-preparo, enquanto que os auwé
necessitarão de maior tempo e esforço.
As lenhas são coletadas no mato pelas mulheres. Geralmente as casas
que possuem roça deixam a lenha que foi obtida da queima da mata empilhada
em cada roça, e sempre que vão para buscar algum alimento aproveitam para
trazer um pouco da madeira. Quando esta acaba, ou no caso das mulheres
cujas casas não possuem roça, a lenha também pode ser pega no caminho em
que vão coletar frutos do mato. A madeira é trazida pelas mulheres e é
colocada para secar ao sol. Depois são empilhadas no interior da casa,
geralmente próxima à porta. A lenha acaba sendo a segunda opção nas casas
onde há fogão a gás.
O acendimento do fogo também é de responsabilidade das mulheres.
Nos primeiros relatos era descrito que os Xavante obtinham fogo por fricção,
girando entre as palmas das mãos um fino graveto por cima de um mais
grosso, até que as faíscas saíssem. Era um processo bem demorado,
executado apenas por mulheres (com a exceção de quando os homens
estivessem em excursões de caça) (MAYBURY-LEWIS, 1984).
Apenas mulheres carregam lenha. Alguns homens afirmam que podem
ajudar, e um deles disse que de fato ajuda a mulher. Porém, em todo o tempo
que estivemos na aldeia não vimos isso acontecer. Outros homens
(principalmente os ipredup) dizem que têm vergonha ou então que é “contra
a cultura”. Ao perguntarmos às mulheres se o trabalho da mulher era pesado, a
27
Pegam paus e ripas, fincam na terra, e colocam a carne em cima, com o fogo por baixo.
70
maioria das mulheres respondia que sim, citando o manejo da lenha como
exemplo de enfado. Durante uma das entrevistas a ihi (mulher, 50 anos)
interrompeu o que estava dizendo e nos mostrou um casal vindo da mata. A
mulher trazia a cesta apinhada de lenha nas costas e o homem vinha ao lado,
com o facão na mão. Ela disse:
Olha a mulher carregando a lenha! Muito pesado... E o homem nem ajuda...
Se a mulher brigar mesmo, o homem carrega, mas.... (silêncio)... Até grávida
carrega. E se acabou de ter bebê, carrega também. Cansa muito.
Em quase todas as casas há um pilão. Algumas casas próximas dividem
o mesmo instrumento. Ainda é muito utilizado para descascar o arroz colhido
na roça, fazer a farinha de milho, ambos plantados nas roças indígenas. O
pilão é feito de troncos largos de árvores, e fica ao lado das casas. Após
pilarem, colocam o arroz em uma peneira larga e fazem movimentos circulares
e depois jogam para cima e para baixo para retirar as cascas. O vento ajuda a
levar as cascas para o chão, separando-as do arroz descascado. As
galinhas ficam ao redor do pilão e “se aproveitam” dos pequenos pedaços de
arroz que caem no chão com as cascas. Desse processo participam mulheres
e meninas (desde cedo).
Também observamos em quase todas as casas um tacho bem largo e
raso, usado para torrar a farinha de mandioca. Para a sua utilização é
construído um suporte com três pequenos tocos de madeira, o tacho é
colocado em cima desta base e o fogo é aceso. Uma longa de pau é usada
no processo para mexer a farinha de um lado para outro e não queimá-la. É um
trabalho extenuante, principalmente por ser demorado (muitas vezes dura o dia
inteiro) e executado sob o sol escaldante. O calor do fogo acoplado ao do sol e
o movimento contínuo dos braços fazem com que a mulher ao final do dia
reclame de dores pelo corpo e de cabeça. Nesse procedimento há uma divisão
de tarefas. As mulheres trazem a mandioca para as casas, e as ralam. A
torrefação também é feita pelas mulheres, mas alguns homens podem,
eventualmente, ficar responsáveis por essa parte. Em uma das casas , no
quintal, uma máquina manual para passar a mandioca, substituindo o ato de
ralar.
Em relação aos utensílios utilizados na época do contato, Maybury Lewis
(1984) descreve alguns. Dentes de piranha eram utilizados para cortes no p-
71
preparo; garras de tatu eram usadas como ferramentas afiadas. Não vimos
esse tipo de utilização na aldeia na atualidade. Todas as casas possuem uma
dupla de pedras, geralmente ao lado de um banco ou uma cadeira. As pedras
são utilizadas por crianças e adultos para abrir os coquinhos, e também para
amassar raízes assadas que serão dadas para as crianças menores. Muitas
vezes os vi quebrando cocos do lado de fora da casa. Ao perguntar se “caso
alguém chegue e peça, vocês tem que dar o coquinho”? Eles respondiam que
sim, tinham que dar, mas que sempre tem muito em casa, e então “não tem
problema”. Todos quebram cocos. Homens, mulheres, adultos, velhos,
crianças.
Um dos cocos apreciados pelos Xavante, o norõré (côco indaiá), possui,
além da castanha em seu interior, larvas brancas as quais comem assados em
um palito ou usam para pescar. Ficam muito felizes ao abrir o coco e
encontrarem o verme.
Figura 7: Criança abrindo jatobá com a ajuda das pedras; e mulher abrindo norõré, com presença de
larvas.
Vimos várias vezes as mulheres fazendo o corte de abóboras, tanto do
lado de fora da casa, quanto dentro. A panela sempre fica no chão ou no colo
de quem corta, e as mulheres ficam sentadas em uma cadeira, tirando a casca
e as sementes da abóbora, para depois cortá-las. As sementes e a casca são
jogadas no chão, onde ficam por dias no local onde a abóbora foi cortada.
mesas em pouquíssimas casas. Mesmo nas casas onde há mesas, as
mulheres não a utilizam para o pré-preparo dos alimentos.
Se não há necessidade de utilizar todo o alimento que seria cortado
(exemplo, sobra a metade de uma abóbora), este geralmente fica em cima do
fogão, e descoberto, o que atrai muitos insetos e mosquitos.
72
O corte da carne de caça pode ser feito pelo homem ou pela mulher. As
carnes compradas na cidade já vêm geralmente cortadas.
3.3.2 Preparo
Na aldeia o ato de cozinhar é estritamente feminino, e o é desde o
primeiro momento: a busca de lenha. Como anteriormente afirmado, as
mulheres são as responsáveis pelo transporte da lenha, que vem equilibrada
dentro das cestas, penduradas nas testas, e formam uma pilha três ou quatro
vezes a altura da cesta. São estocadas do lado de fora da casa. É raro uma
casa que não tenha uma pilha de lenhas do lado de fora, pois além de usá-las
no forno, também a utilizam em fogueiras pela manhã, quando o frio os tira da
cama, e então saem e fazem fogueiras do lado de fora até se aquecerem.
Na época em que o antropólogo Maybury-Lewis (1984) esteve na aldeia,
a única forma de cocção era a fogueira. Os Xavante cozinhavam raízes em
panelas (menos frequentemente, pois era um processo mais demorado) de
cerâmica, as quais estavam sendo substituídas por panelas de alumínio, ou
assavam na brasa. Outra forma de cocção utilizada era o forno de terra:
utilizavam brasas quebradas, as quais cobriam com pedras e depois com
folhas. Sobre as folhas eram colocados os alimentos. Sobre eles uma nova
camada de folhas, e terra. Sobre o monte de terra acendiam nova fogueira,
sem chama e com muita fumaça, que lentamente assava o alimento. Esse tipo
de forno era usado para assar (tsé), carne e bolo de milho (tsada´ré). Durante o
período em campo pudemos ver essa forma de preparo ainda sendo utilizada
pelos mais velhos, na confecção do “bolo de milho xavante”. A palavra tsà`dá,
em auwe significa sapecada, queimada. Podemos perceber, portanto, uma
associação do nome com a forma de preparo, pois o próprio nome indica como
é feito o bolo (MAYBURY-LEWIS, 1984, GIACCARIA, HEIDE, 1983).
Nas décadas de 1950 e 1960 as mulheres faziam esteiras de folha de
palmeira (renham`rie), as quais usavam para abanar o fogo e para servir
alimentos quentes para os homens (MAYBURY-LEWIS, 1984). Essas
pequenas esteiras ainda são feitas na aldeia. Somente mulheres mais velhas
73
sabem fazê-la, com algumas exceções. Sua utilização cotidiana é limitada, em
sua maioria servem como tampas para as cestas que estocam alimentos, ou
para abanar a fogueira para aquecer a brasa. No ritual do Oi´ó, porém, foram
amplamente utilizadas como recipiente para todas as comidas ofertadas aos
padrinhos.
O preparo dos alimentos na fogueira é menos utilizado agora, mais
ainda muito apreciado, principalmente pelos mais velhos. Como citado, uma
mulher mais velha sempre levava abóbora inteira para a mãe, feita na brasa.
Os idosos dizem que, apesar de dar mais trabalho, a comida fica muito mais
gostosa, pois a lenha, “segura o gosto”. Para eles, não somente os alimentos
“tradicionais” são os melhores, como também a “forma tradicional” de preparar
o alimento, nesse caso a lenha
28
. Para ser feita na lenha a abóbora é cortada
ao meio, ao longo do comprimento, e é colocada sobre a brasa. Fica muito
macia, como uma pasta. O caroço do pequi que já foi comido também pode ser
jogado na brasa. Após um tempo o abrem e retiram uma castanha a qual dizem
que é “uptabdi”, ou seja, deliciosa.
Os Xavante classificam suas refeições em dois principais tipos: Da`tsa e
da`tsiuparidzé. Da`tsa é referente às grandes refeições, e são duas ao dia: A
primeira entre 11 horas e meio-dia, e a segunda por volta de 7 horas da noite.
As mulheres dizem que é uma refeição com hora certa, e de fato pudemos
observar isso durante o tempo na aldeia. Desde cedo as mulheres ficam
envolvidas com o ato de cozinhar a da`tsá da manhã. A da`tsá da noite é o que
“sobra” da manhã.
O ato de cozinhar é exercido na maior parte das vezes pelas mulheres
mais novas. Assim também era na década de 1950, quando cozinhar era uma
função das mais jovens (MAYBURY-LEWIS, 1984). A exceção atualmente é
quando mulheres mais velhas em uma moradia, o que acontece em
apenas uma casa na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Em cada casa uma escala informal para a preparação do almoço. As
mulheres mais velhas cozinham com menor frequência, e dizem que é assim
por estarem cansadas. Mas estão sempre na roça, inclusive no horário de
preparo dessa refeição. Em relação às crianças ou idosos, com necessidade
28
Discutiremos os alimentos tradicionais e as formas tradicionais de preparo no capítulo 4, Cozinha,
comida e identidade Xavante.
74
de uma alimentação diferenciada, uma modificação. O idoso pode cozinhar
para si, ou pode ter uma filha responsável por sua alimentação. A mãe é
responsável pela alimentação diferenciada do filho, no caso deste necessitar
de uma comida específica (acontece muito com crianças desnutridas, que
recebem a farinha láctea).
As preparações não costumam variar muito. As mais vistas durante as
visitas foram arroz puro; arroz com abóbora e macarrão com abóbora. Mas
também vimos carne de anta (comprada em Barra do Garças) frita; carne de
jabuti frita; sobrecoxa de frango frita; e costela de boi feita na panela de
pressão.
Em uma média de três vezes por semana havia feijão “carioquinha”
sendo preparado em panelas de pressão. Há pelo menos uma panela de
pressão em cada casa, as quais são utilizadas tanto no fogão a gás quanto na
lenha. Na última semana do mês de janeiro não vimos feijão ser preparado em
casa alguma. Os Xavante relatavam que o que haviam trazido da cidade
havia acabado, e o plantado ainda não estava pronto para a colheita. A carne
era um item menos frequente na da`tsá da manhã, e bem raro a noite. O que
era preparado pela manhã acabava na primeira refeição, e não era preparada
mais carne para a noite.
Além do moquear, a outra forma de preparo para a carne é a fritura. As
carnes são cortadas em pequenos pedaços e mergulhadas em óleo quente,
onde ficam até não estarem mais cruas, ou então são fritas na panela de
pressão aberta, e depois acrescentam sal e água e colocam na pressão para
acabar o cozimento.
As frituras também são feitas no fogão a gás ou na fogueira. A
quantidade de óleo utilizada nas refeições é bem grande, e não raramente
pudemos ver o óleo cobrindo o arroz cru quando este estava sendo “frito”. As
mulheres dizem que usar o óleo deixa a limpeza mais fácil, pois a comida
“gruda menos na panela”. Quando falavam sobre o preparo de qualquer uma
das comidas mais frequentemente feitas, não era raro utilizar a expressão
“fritar o arroz” ou “fritar a abóbora” como referência ao refogar. De fato, o modo
de preparo de comida das mulheres Xavante é geralmente a fritura, como
vemos na resposta de uma piõ (mulher, 33 anos) à pergunta - Como você
costuma fazer a carne?”: - Faz no óleo, frita. -E o arroz?” -Também frita.
75
Frita no óleo, com cebola, e depois joga água. A abóbora faz separado, mas
também frita.
Algumas vezes fomos abordadas por mulheres nos perguntando como
poderiam deixar o arroz “bem grudadinho”, fato que achávamos graça por ser
tão diferente da forma valorizada em nossa sociedade (bem soltinho). Mas ao
observarmos o momento do consumo pudemos ver que, pelo fato deste ser
realizado basicamente com as mãos, o arroz “grudadinho” acabava sendo mais
fácil de ser levado à boca.
O macarrão mais apreciado pelos Xavante é o tipo espaguete, ao qual
descrevem como “aquele comprido”. As mulheres quebram o macarrão ainda
cru em pequenos pedaços e cozinham em água e sal. Depois “fritam” o
macarrão no óleo com sal, cebola e alho. Caso seja época da chuva, a abóbora
frita é um acompanhamento frequente. Assim como o arroz, o macarrão
costuma ficar “bem grudadinho”.
Os temperos utilizados pelas mulheres são todos waradzu: sal, cebola, alho
e “tempero pronto da Arisco”. Assim como o óleo, a quantidade de sal utilizada
no preparo é bem grande.
O churrasco, ou o que consideram churrasco, foi incorporado como uma
prática para dias especiais, por alguns grupos domésticos no momento do
da`tsá. Ouvimos relatos de que o essa preparação foi a comida da festa de fim
de ano na escola, que aconteceu poucos dias antes da nossa chegada, e da
qual toda a aldeia participou.
Uma das casas da aldeia fez o “churrasco” em dois domingos diferentes.
Nesse caso, a “churrasqueira” foi preparada com tijolos, e por cima colocaram
uma grelha, que fica “guardada” ao lado da casa. Utilizaram a lenha para o
fogo e não esperaram fazer a brasa. Assaram direto no fogo, o que deixou a
carne bem tostada por fora e crua por dentro. Vimos pedaços de um frango
inteiro na grelha. Estava temperado com Arisco. Em uma bacia no chão,
próxima a grelha, havia mais pedaços de frango, peixes e carne vermelha. No
dia seguinte ao “churrasco” alguns moradores da casa apresentaram episódios
diarreicos. A grelha é utilizada pela maioria como apoio para panelas em cima
da lenha. Diversas casas possuem uma. A única vez em que vimos uma
utilização diferente foi para a preparação do churrasco.
76
Da`tsiuparidzé é como os Xavante chamam as pequenas refeições.
Podem ser feitas logo pela manhã, e no fim da tarde, por volta de 5 horas. O
local do preparo do da`tsiuparidzé é geralmente a fogueira externa nas casas
que possuem produtos da roça ou da coleta. Na época das chuvas preparam
milho nodzö e macaúba, e na época da seca preparam as raízes Xavante
(principalmente o mooni`hoiré) e a mandioca.
Na época da chuva, pela manhã e pela tarde era possível ver muitas
fogueiras pela aldeia. A maioria para assar o milho xavante. Mulheres, homens
e crianças ficavam sentados em volta da fogueira, no chão ou em cadeiras,
assando seu próprio milho. Colocavam-no sob as cinzas da fogueira e ficavam
conversando. Quando sapecava tiravam e ainda ao redor da fogueira
conversando, comiam-no e continuavam colocando mais milho. Se uma criança
de outra casa chegasse, logo recebia uma espiga, e saía toda feliz. Na época
da seca, as fogueiras para o da`tsiuparidzé eram mais raras.
Em algumas casas, pães e bolos podem ser feitos no da`tsiuparidzé.
Nos finais de semana víamos com mais frequência essas preparações. Em
quase todas as casas as mulheres faziam referência ao pão caseiro, que
aprenderam a fazer em um curso na cidade, ou foram ensinadas pelas “Irmãs”
da Missão Salesiana na época que ainda moravam na Aldeia São Marcos. O
pão leva em sua composição farinha de trigo, água, óleo, sal e fermento.
Geralmente é assado no fogão a gás, mas as que não têm fogão a gás assam
na lenha: Dentro de uma panela tampada, que fica em cima da brasa, e em
cima da tampa acendem outra fogueira. Dessa mesma forma também fazem os
bolos, sejam de milho ou trigo.
Outras preparações vistas ou relatadas por Xavante em referência ao
da`tsiuparidzé foram: Massa de pastel frita sem recheio, com sal; bolinhos de
farinha de trigo, água e sal fritos; mingau de fubá ou flocos de milho; café com
açúcar; e bolo de mandioca.
Como afirmamos anteriormente, os Xavante costumam dizer que a
comida feita na lenha “é mais gostosa” do que a feita no fogão a gás. Apesar
disso, o serviço árduo faz com que muitas mulheres usem o gás, se tiverem a
oportunidade de comprá-lo. As que usam o gás dizem que “dá menos
trabalho”, e elas o usam para cozinhar geralmente o da`tsá. Mesmo nas casas
77
onde gás as fogueiras são usadas para preparar o milho e as raízes, que
são consumidos como da`tsiuparidzé.
Figura 8: Forma utilizada para preparo de pão ou bolo sem o forno à gás; e milho Xavante e cascas de
mandioca usados na preparação do da`tsiuparidzé.
Quando perguntamos a um homem o que mudou com o uso do gás, ele
nos respondeu: é que agora acaba”... Como visto, a tecnologia utilizada no
momento do preparo do alimento é bem variada. A forma tradicional de preparo
não foi suprimida em função da waradzu, fazendo com que ambas coexistam.
Os Xavante entendem de ambas as vantagens (ausência de custo financeiro e
comodidade, respectivamente) e desvantagens (desgaste físico e demanda de
dinheiro, respectivamente), e optam por uma ou outra como lhes apraz ou lhes
é possível.
Na época da pesquisa de Maybury-Lewis, as fogueiras eram externas às
casas (MAYBURY-LEWIS, 1984). Giaccaria e Heide (1984), por sua vez,
descreveram que as fogueiras eram majoritariamente feitas no centro das
casas (que ainda eram redondas e tinham poucas divisórias). Dessa forma
segundo os autores, ficava bem delimitado o local do domínio feminino.
Atualmente, em quase todas as casas a cozinha é um local separado
por uma “parede” de palha. Da porta pode ser vista uma estante, que como
citado geralmente possui alguns alimentos industrializados: sal, açúcar, feijão,
fermento, farinha de trigo, tempero pronto, açúcar, e em quase todas as casas,
as embalagens ficam abertas. O local das fogueiras é variado, podendo ficar
por trás da parede de palha ou como anteriormente, perto do centro da casa. O
fogão a gás fica sempre dentro das casas, em um local bem visível. O gás
dura, em média, três semanas. Se dois botijões (o que não é frequente),
podem continuar utilizando essa forma de cocção até irem à cidade comprar
78
mais. Porém, majoritariamente, os Xavante costumam passar pelo menos uma
semana do mês cozinhando apenas na lenha, intervalo em que o gás acaba e
eles têm oportunidade e dinheiro para irem à cidade trocar o botijão vazio por
um cheio.
29
A cozinha é bem escura, tanto a noite quanto pela manhã, pois
apenas uma porta na casa, e não há janelas. A lâmpada no interior dos
domicílios é geralmente no meio ou perto de alguma cama de casal. Em todas
as casas há luz na entrada, mas não há lâmpadas próximas a cozinha.
Em algumas moradias um “puxadinho” (três paredes de palha com
um pequena cobertura) externo que é utilizado como cozinha. Quando as
mulheres cozinham dentro de suas casas o perigo de queimar o teto que é
feito de palha (o que aconteceu). Esse perigo é maior na época da seca,
quando as palhas ficam mais suscetíveis ao fogo. Na primeira viagem a campo
vimos três casas com a “cozinha” externa. No retorno, em janeiro, apenas uma
ainda era utilizada. As outras duas haviam perdido o telhado por causa das
chuvas e estavam fora de uso.
Muito embora tenhamos visto fogueiras no interior das casas, os
Xavante afirmavam que não as faziam. Alegavam que haviam sido alertados
pelos waradzu do perigo de que o teto se queimasse e da ocorrência de
doenças respiratórias em crianças devido a fumaça e calor. Apesar das falas
relatarem que não faziam fogo dentro das casas, observamos na prática o uso
cotidiano desse local para o preparo da da`tsá. no preparo da
da`tsiuparidzé, as fogueiras são feitas, geralmente, fora das casas.
3.3.3 Limpeza dos utensílios
A limpeza dos utensílios é feita em dois locais: no rio próximo à aldeia,
ou em uma pia comunitária: uma construção no estilo de um “muro” de 2 m de
largura por 1,80m de altura, onde 6 torneiras, 3 de cada lado. A água vem
de um poço artesiano, alimentado por energia solar. Acima do poço uma
caixa d‟água. Em volta da pia comunitária há afundamento do chão, pois o solo
29
O custo do refil para o botijão em janeiro de 2009, na cidade de Barra do Garças era de R$ 45,00.
79
é arenoso e, com tanta água, acabou cedendo. sempre uma poça com
água parada e restos de alimentos, e para usar 4 das 6 torneiras as mulheres
ou meninas têm que ficar com os s e os tornozelos mergulhados na água
suja a maior parte do tempo. Duas torneiras estão fora de utilização por falta de
manutenção.
Figura 9: Utensílios usados pelos Xavante ao cozinhar, dentro dos aba (para transporte até a pia
comunitária)
Ao ser construída, o intuito era que a pia comunitária servisse para
pegar água e lavar louça, apenas. A utilização para outros fins (lavar roupas ou
até mesmo banhar crianças) tem gerado alguns conflitos entre as mulheres,
principalmente entre as mais novas e as mais velhas (que utilizam a pia
para a função original: água e louça). Como resultado da larga utilização, até
mesmo para funções além da qual foi construída, a pia comunitária está em
péssimas condições de uso, o que contribui para o atrito entre as mulheres.
Na limpeza, usam sabão de pedra e muita palha de aço. As panelas são
de alumínio, e muito bem areadas. Todas brilham. Tanto panelas como
garrafas são levadas dentro de cestas nas costas das mulheres e meninas.
Algumas levam num “carrinho de mão” cheio, e ainda carregam uma cesta nas
costas, com mais utensílios, ou com seu filho ainda bebê. As mulheres passam
bastante tempo na pia comunitária, e conversam animadamente enquanto
estão lá.
Ao chegar a pia ou ao rio, as mulheres enchem as panelas de água e as
deixar de “molho” enquanto conversam ou enchem as garrafas pet de água.
Depois jogam a água com os restos de alimento no chão, e procedem com a
lavagem. Cachorros e galinhas ficam próximos se alimentando do que aparece.
80
Havia muitas panelas de pressão (umas que não funcionam mais
como pressão e outras, sim), além de cuscuzeiras, escumadeiras, panelas
comuns e “leiteiras” de grande capacidade. Pratos e canecas são geralmente
de plástico duro. O item mais frequente é a garrafa PET de 2 litros, usada para
guardar água ou refresco industrializado pronto.
Na época da seca, pudemos perceber que a falta de água é uma
realidade na aldeia. O rio fica muito baixo, pela seca, e pelo assoreamento,
devido ao desmatamento nas margens. no poço, em alguns dias, no fim da
tarde não tinha mais água. Ainda assim, muitas vezes que passamos pela
pia durante o dia, vimos torneiras abertas, sem que pessoas as estivessem
utilizando. Algumas mulheres pegam água na escola, quando acaba no poço.
Na época das chuvas não falta água na pia, e a água no rio, apesar de não ser
própria para o consumo, corre em maior quantidade.
3.4 Consumo
Muitas informações concernentes ao consumo foram relatadas e
discutidas na fase do preparo. São duas fases extremamente interligadas no
que diz respeito às refeições, e dessa forma fica difícil não ser repetitivo. Como
acima afirmado, as refeições feitas pelos Xavante são de dois tipos: Da`tsá
(grandes refeições) e da`tsiuparidzé (pequenas refeições), cada uma sendo
realizada geralmente duas vezes ao dia, totalizando quatro refeições diárias.
As refeições respeitam horários específicos em cada casa.
Não fizemos análise quantitativa do consumo. A descrição é baseada na
observação diretae nas entrevistas, sendo que algumas foram realizadas
durante os momentos de refeição.
81
3.4.1 A cozinha xavante: maneiras “sem” mesa
Ao caracterizar a quarta fase do sistema alimentar, consumo, o
sociólogo Jack Goody (1996) afirma que o “locus” deste é a mesa (GOODY,
1996, p.38). De fato é o que acontece na maioria das sociedades, de forma que
é muito comum encontrarmos referências ao “como se come” sob o título de
“maneiras à mesa” (GOODY, 1996, p. 77; LEITE, 2005, p. 83).
Estando na aldeia pudemos perceber que o locusda fase do consumo
para os Xavante não é a mesa. Dessa forma, a realidade do cotidiano da aldeia
nos levou a descrever o comer e o compartilhar do alimento sob o título
“maneiras sem mesa”.
Como não mesa nas casas, para comer as refeições os Xavante se
sentam em bancos (quando há), no chão (de terra batida), na rede ou em cima
da cama. O comer para os Xavante é marcado por uma característica: o
ajuntamento. Seja na da`tsá ou da`tsiuparidzé, os Xavante raramente comem
sozinhos. O ajuntamento para as refeições é geralmente centrado em algo: a
panela, a televisão ou a fogueira. Na da`tsá, o centro pode ser a panela ou a
televisão. A panela é colocada no chão, os moradores da casa se sentam em
volta e comem tirando o alimento diretamente da panela, com as mãos, ou (a
distribuição será abordada logo a seguir) em pratos (menos frequente quando o
centro é a panela). Nesse caso a televisão pode estar ligada, mas há mais
conversa entre os participantes da refeição. Quando o centro é a própria
televisão (opção mais corriqueira), esta fica ligada, em cima de um fogão
antigo, ou uma cadeira. Em volta se sentam os comensais, com seus pratos
apoiados no colo. pouca conversa, e todos comem com suas atenções
voltadas aos programas televisivos.
A fogueira forma, realmente, um ajuntamento. É o centro do
da`tsiuparidzé, podendo ser feita logo cedo pela manhã, quando ainda está frio.
A televisão, agora mais distante, dentro de casa, está desligada. Ficar perto da
fogueira é certeza de calor do fogo e das pessoas, que conversam, ouvem
música e comem. Cabe a uma das mulheres a função de colocar o milho ainda
envolvido pela palha entre as brasas, tirá-lo das brasas. Após isso, cada um
descasca o seu, e o coloca mais uma vez no fogo. Até as crianças manipulam
82
o milho no fogo. O milho é geralmente consumido em grupo, em família. Além
do milho comem raízes assadas, coquinhos e frutas. Não vimos acenderem a
fogueira para fazerem milho para apenas uma pessoa. Como anteriormente
afirmado, uma opção aos alimentos mais tradicionais nessa refeição o os
bolos e pães, além de biscoitos comprados na cidade. Caso seja esse o
conteúdo, o comem dentro das casas, centralizados na televisão. Os
da`tsiuparidzé feitos em volta da fogueira acabam tendo uma função social
mais forte do que as grandes refeições, geralmente feitas dentro de casa, em
volta da televisão.
No da`tsiuparidzé, é a mulher quem acende o fogo, mas logo cada
comensal fica responsável por seu alimento na fogueira. No da`tsá, a comida é
geralmente servida por quem preparou, ou seja, as mulheres mais jovens da
casa. Algumas mulheres relataram que em raros casos os homens preferem se
servir e assim o fazem.
De acordo com as entrevistas realizadas a ordem para se servir se
modifica em cada casa, porém, sempre uma ordem. Quando um homem
mais velho, este é o primeiro a ser servido, pois “são os chefes da casa”. As
porções podem ser um pouco maiores, principalmente as carnes. Nas casas de
viúvas, as crianças são as primeiras a serem servidas, pois “precisam mais da
comida do que os adultos”. Em qualquer dos casos a mulher que preparou o
alimento é a última a se servir.
Quando a refeição é arroz, geralmente o comem em pratos
separados. A panela fica no chão, e cada pessoa vai tirando uma parte do
arroz com as mãos, com ele se faz uma “bolinha”, e depois comem. De
maneira geral, quando há carne, pratos. Os pedaços são colocados em
cima do arroz.
Quando vão para a cidade os Xavante passam o dia. Após irem ao
banco e ao mercado, ficam sentados na praça aguardando a hora do caminhão
sair. Aqueles que recebem somente sua aposentadoria comem um salgado
durante a espera. Aqueles que têm uma renda um pouco melhor almoçam em
restaurantes mais simples ou até mesmo em uma churrascaria. Durante esse
tempo relataram fazer 2 refeições: um almoço, por volta das 10:30 ou 11 da
manhã, e um lanche no fim da tarde. Sempre que estávamos na cidade
podíamos vê-los nos restaurantes, que são do tipo “à kilo”, ou então que
83
cobram um preço tabelado pela refeição, com a carne porcionada e os
acompanhamentos à vontade.
Os restaurante “à kilo” são frequentados pelos que recebem um salário
melhor. Os Xavante enchem o prato com arroz, batata ou mandioca, e por cima
colocam uma grande porção de carne. No restaurante com a carne porcionada
agem da mesma forma, apenas com a diferença de que a quantidade de carne
é menor. O almoço é sempre acompanhado de refrigerante. O lanche é feito
em uma padaria, e comem pão com manteiga e refrigerante, ou então um
salgado e um refrigerante.
3.4.2 Merenda Escolar
A forma tradicional de transmissão de conhecimento dos Xavante é o
aprendizado no fazer na vida cotidiana e na transmissão oral do saber
(DELGADO, 2008). Atualmente a escola contribui em parte para a educação,
juntamente com as práticas já citadas. Com respeito à alimentação, o acesso à
merenda escolar
30
tem empenhado um papel importante.
Como estivemos na aldeia apenas em períodos de férias, não pudemos
acompanhar o dia a dia na cozinha da escola. Nossa descrição é baseada em
entrevistas com as merendeiras, o faxineiro da escola, e o encarregado de
comprar os alimentos para a merenda na cidade e transportá-los.
A escola costuma oferecer merenda a todos os alunos, porém o
treinamento oferecido pelo estado não os capacita a gerenciar e planejar os
cardápios. dias em que a comida acaba antes de ser servido o último da
fila. Em outros dias, nada é servido, pois os alimentos comprados geralmente
terminam antes das novas compras chegarem. Fomos informadas de que o
cardápio é previamente enviado pela Secretaria de Estado de Educação
(SEDUC), mas que na realidade o diretor ou as merendeiras decidem o que
vão cozinhar. Os alimentos para a merenda são adquiridos na cidade
30
Na escola que fica na aldeia os moradores cursam o ensino fundamental e médio. O diretor e os
professores são Xavante, moradores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. duas merendeiras,
também Xavante (duas piõ, de 28 e 37 anos), cada uma responsável pela merenda em um turno (manhã
e tarde).
84
mensalmente, e são basicamente waradzu. Da mesma forma são as
preparações. A escola não possui horta. Na primeira semana do mês são
oferecidos alguns vegetais, mas nas três subsequentes as preparações são
feitas apenas com produtos não perecíveis.
Os alimentos que chegam para a merenda são: arroz, feijão, macarrão,
óleo, sal, carne (vermelha e frango), “batatinha” (batata inglesa), tomate,
repolho, alface, limão, abóbora, mandioca, “bolacha” (tipo rosquinha),
concentrado para suco de caju e açúcar. São trazidos da cidade pelo
coordenador da escola.
As duas merendeiras afirmaram que não fazem comida auwě na escola.
O diálogo a seguir demonstra o motivo: -“Você faz alguma comida xavante na
escola? -Não... waradzu. -Você gosta de comida xavante? -Sim, mas não
vem alimento pra comida xavante”. Uma delas inclusive riu quando
perguntamos se faziam comida xavante para a merenda.
As preparações mais comuns são basicamente arroz e feijão, ou
macarrão e feijão. A carne também chega mensalmente e é estocada no
freezer de um morador, pois a escola não possui freezer nem geladeira. Uma
ou duas vezes por semana a carne é oferecida na merenda. O prato é servido
pelas próprias merendeiras e as crianças comem sentadas no chão, com
colheres. Caso sobre comida depois que as crianças tiverem comido, o sino de
escola é tocado e adultos da aldeia vão com seus pratos para comer o que
restou.
O fato de ser oferecida apenas comida waradzu na merenda foi
colocado por um ipredupté (homem, 32 anos) como um fator modificante na
dieta do Xavante, como pode ser visto na fala a seguir:
- O que mudou na alimentação xavante?
- Existia mais comida xavante quando eu era pequeno, e pouca comida da
cidade. Aprendi a comer waradzu na escola. A merenda mudou meu jeito de
comer.
A função da escola é a de ensinar, e isso é entendido pelos Xavante,
que o desassociam do ensino, a questão da comida. Se a escola ensina um
conteúdo importante para a vida, a comida servida é a ensinada como a
melhor. Desde cedo, então, os Xavante vêm aprendendo a consumir a comida
waradzu, não apenas em suas casas, onde o acesso ao dinheiro aumentou a
85
aquisição desses produtos, mas também na escola, onde a comida servida
vem acrescida de uma idealização de que é algo melhor.
3.4.3 Aleitamento materno
Em geral, quando indagadas sobre o “aleitamento exclusivo”, os Xavante
afirmavam que procediam com apenas o leite do peito até que nascesse o
primeiro dente na criança. Para eles esse é o sinal de que mais alimentos
podem começar a ser introduzidos, pois o dente “mostra que a criança pode
comer”. Mulheres Xavante, independente de suas idades, possuem esse
discurso. De fato pudemos ver muitas mulheres amamentando seus filhos, e
até mesmo netos, não somente até por volta de seis meses, mas até dois anos
de idade. Porém, em uma conversa com a mãe de uma criança de três meses,
enquanto me relatava sobre sua “prática de aleitamento exclusivo”, vi que sua
filha regurgitou um conteúdo muito similar a flocos de milho. Quando perguntei
o que era, a mulher riu e me afirmou que havia dado o ua`pserě para a criança.
Disse que de vez em quando faz isso, pois a “criança cresce melhor” e que
também oferecia água nos dias mais quentes. O ua`pserě foi relatado por
Maybury-Lewis (1984) como um alimento dado a crianças e idosos, uma vez
que entendiam o milho como um alimento com propriedades que auxiliavam a
saúde.
A introdução precoce de água e mingau foi confirmada por uma das
técnicas em enfermagem (não indígena) do posto da aldeia. Disse que as
crianças recebem alimentos desde cedo, e é muito comum aparecerem com
diarreia a partir dos três meses de idade. Afirma, também, que água é
oferecida às crianças desde recém-nascidas. Os Xavante não relacionam as
diarreias das crianças aos alimentos oferecidos, mas aos dentes que estão
sendo formados e vão nascer, dizendo que “para cada dente que vai crescendo
a criança tem uma diarreia”.
O discurso dos Xavante é semelhante ao dos profissionais de saúde que
visitam a aldeia e deixam suas orientações. Tais orientações (que também são
dadas no posto de saúde pelos técnicos em enfermagem, e na CASAI, na
86
cidade) parecem ter sido apreendidas pelos indígenas, que apesar de referirem
a prática como verdadeira, na realidade não a incorporaram no seu cotidiano.
Mais estudos precisam ser realizados de forma que possamos compreender a
importância do ua`pserě e da água na concepção dos próprios indígenas, a
forma de introdução de alimentos nesta fase da vida, o significado destes
alimentos para a mãe e para a saúde da criança e, consequentemente, para
elaborar ações mais contextualizadas de educação em saúde.
Pudemos perceber, em algumas conversas, que ao Xavante, tanto
homens como mulheres acreditam que uma correlação entre o leite ingerido
pela mulher e sua produção de leite. Durante os meses de janeiro e fevereiro
três mulheres deram à luz na aldeia (uma delas não era moradora local, mas
foi a Nossa Senhora de Guadalupe para ter o filho junto da família). Fomos
visitar as casas nos dias seguintes aos nascimentos, e todas às vezes fomos
abordadas por homens e mulheres da família, que nos pediam para que
conseguíssemos leite na cidade, a fim de que as novas mães pudessem bebê-
lo e dessa forma amamentar melhor. Diante desses pedidos, perguntávamos o
que os Xavante faziam para “amamentar melhor” antes de “conhecerem” o
leite. As respostas foram que as mulheres passavam o óleo que extraíam de
um coquinho (babaçu), no peito.
Muito embora tenhamos sido abordadas com a questão do leite da
cidade para as puérperas, não parece haver dificuldade para que estas
amamentem. As mulheres podem ser vistas amamentando seus filhos, netos e
sobrinhos em vários locais da aldeia: dentro das casas enquanto assistem
televisão, deitadas nas redes ao lado de fora das casas no entardecer, no
posto de saúde enquanto esperam seus atendimentos. Nesse contexto, o
ua`pserě e a água parecem ser os únicos alimentos dados ao bebê além do
leite materno, até que nasça o primeiro dente da criança.
A mamadeira foi citada como opção para as mulheres “que não têm
leite”. No tempo passado na aldeia vimos apenas uma mulher oferecer
mamadeira à filha. A criança havia nascido prematura, e ficou por meses
internada na cidade. Ao retornar para a aldeia, a mãe trouxe latas de leite de
soja, doados pela CASAI, para que pudesse amamentar a criança uma vez que
esta havia desenvolvido intolerância à lactose. A mãe afirmou precisar dos
leites de soja por não ter leite no peito”. Duas vezes por mês chegavam latas
87
de leite de soja no posto de saúde da aldeia, trazidos da cidade pelos carros da
FUNASA. As latas eram entregues à mulher.
Ao perguntarmos sobre o colostro, as mulheres mais novas afirmaram
que ofereceram aos seus filhos, pois aprenderam que é bom. Da mesma forma
as mulheres mais velhas também afirmaram que atualmente as crianças
mamam o colostro, mas “antigamente espremiam para não dar. As crianças
mamavam na avó e na tia porque achavam que fazia mal”.
3.4.4 Restrições alimentares
Algumas restrições alimentares para os Xavante foram relatadas por
Maybury-Lewis (1984). Eram relacionadas a períodos específicos da vida,
como por exemplo infância e gestação. Durante as entrevistas e conversas
informais, os Xavante citaram restrições alimentares para gestantes e seus
cônjuges, bem como para pais e mães de crianças em aleitamento, mostrando
que o respeito a essas regras alimentares ainda é, em muitos casos, uma
prática frequente.
As proibições e restrições alimentares são construídas a partir da
observação e experimentação e seguem uma lógica própria da sociedade. É
um sistema de classificação dos alimentos conforme seus efeitos no organismo
das pessoas. Esta classificação considera a estado fisiológico, etapa do curso
de vida, mitos, entre outros (WOORTMANN, 1978; BAIÃO, DESLANDES,
2006).
Maurício Leite (2007, p.93) sugere que após o contato entre duas
culturas diferentes acontecem modificações advindas da incorporação de
novos elementos à culinária dos grupos. Essas mudanças podem ocorrer em
duas direções: 1- O consumo de itens alimentares presentes no
ecossistema, mas que não eram consumidos anteriormente devido as
restrições alimentares; e 2- A introdução de alimentos e formas de preparo até
então desconhecidas. No caso dos Wari, o autor verificou que o consumo dos
alimentos que antes eram proibidos não é visto como um problema pelos
indígenas. Para os Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, porém, o
88
desrespeito às regras de restrições alimentares o é visto com tranquilidade e
é motivo de conflitos intergeracionais.
Restrição alimentar
Motivo da restrição
Para gestantes e cônjuges
Pacu
“pois é redondinho”
Matrinxã
“a criança não cresce”
Intestino de anta
“perigoso”
Intestino de tamanduá
“tripa de bicho”
“a criança nasce com o cordão enrolado no
pescoço”
“o cordão enrola na hora de nascer”
“comida da cidade”
“criança fica gorda porque a carne tem vacina”
“perna de bicho”
“faz a criança querer nascer pela perna, e é
perigoso”
“alho e cebola com óleo”
“criança nasce fraca”
“comida waradzu e arroz”
“o filho nasce fraco”
Arroz
“o tempero enjoa a mãe”
“Cabeça de bicho”
“nasce com o nariz entupido”
Para lactantes e cônjuges
Siriema
“leite da mãe fica envenenado”
Quati
“leite da mãe fica envenenado”;
“muito perigoso”
Comida quente
“a criança fica pequena e não urina”
“atrapalha o xixi da criança”
Gordura de bicho, de frango
“Disenteria na criança”
Jacaré
“Crianças podem morrer”
Osso de vaca torto
“A criança pode ficar com o pé torto”
Bolo
“incha a barriga da criança, que chora muito com
dor”
Comer muito
“a criança não mija”
Quadro 1: Restrições alimentares para gestantes, lactantes e seus cônjuges, segundo os Xavante
Na primeira viagem a campo foi realizada uma oficina com os homens,
na qual uma nutricionista e uma antropóloga apresentaram, por meio de
algumas dinâmicas, os resultados de uma avaliação nutricional que havia sido
89
realizada na aldeia no ano anterior. Os resultados mostravam déficit de peso e
de estatura em relação à idade das crianças. Dentro da dinâmica realizada
foram levantados os motivos para esta situação, sendo solicitado aos
participantes que respondessem o porquê da ocorrência dessas deficiências. A
explicação dada foi alusiva à quebra das restrições alimentares, as quais
deveriam ser seguidas por mães e pais das crianças.
As restrições alimentares citadas pelos Xavante de Nossa Senhora de
Guadalupe estão relacionadas no Quadro 1, com o respectivo motivo da
restrição para cada alimento.
Como podemos ver no quadro, além das restrições referentes aos
alimentos auwě, aparecem restrições alimentares a itens que começaram a
ser consumidos após o contato (o arroz, alho, óleo e comida waradzu em
geral). Este dado, aliado ao fato de que a explicação dos homens para a baixa
estatura das crianças residia na quebra de restrições, mostra que há uma
incorporação de novos elementos ao sistema simbólico dos Xavante da Aldeia
Nossa Senhora de Guadalupe. Tal acréscimo decorre do dinamismo,
característica presente em qualquer sistema alimentar
31
.
3.4.5 Álcool
Maybury-Lewis (1984) fala de uma raiz que constituía parte da dieta
Xavante, chamada tomõtsuihöirere. O bulbo só era ingerido após o processo
de fermentação. No intuito de saber se essa bebida ainda era consumida,
perguntávamos se no passado os Xavante ingeriam alguma bebida alcoólica. A
resposta era sempre negativa, independente do sexo e da idade. Afirmavam
veementemente que a „bebida alcoólica” era “coisa dos waradzu”. A única fala
no sentido do reconhecimento da raiz foi a de dois ipredupté. Um deles
(homem, 38 anos) disse: Xavante, antigamente, tinha raiz amarga e raiz
ardente. Mas isso foi antes do álcool. Hoje não tem mais!”; e outro homem (32
anos) respondeu: “Não! Tem uma raiz, mas bebe para não cansar logo.
Essa bebida tinha álcool. Tem que botar um pouco de água. Quando tem festa,
31
No capítulo 4, Cozinha, comida e identidade Xavante, esse assunto será melhor discutido.
90
tomam a semana todas antes da festa. Cada grupo toma”. A resposta dos
ipredupté mostra que a bebida não era considerada como uma “bebida
alcoólica” muito embora tivesse álcool. Talvez o motivo seja o fato de que a
função da bebida é de “não cansar”, e por isso a ingerem na semana anterior à
festa. A função seria diferente para a bebida alcoólica, da qual falaremos a
seguir.
A dependência ao álcool tem sido relatada em alguns estudos realizados
entre povos indígenas do Brasil (OLIVEIRA, 2003; SOUZA et al, 2007), sendo
considerada um problema de saúde pública. Assim que chegamos na aldeia
recebemos a visita de um ipredupté (homem, 38 anos), que no meio da
conversa suscitou o assunto da bebida alcoólica, sem que perguntássemos.
Falou que bebe, e não causa problemas a ninguém, mas que na aldeia
pessoas contra a bebida. Nem o deixam oferecer bebida aos amigos. E muito
reclamou do cacique, que acha que ele vende a bebida, cerveja, e já o
repreendeu por isso. Fomos também informadas de que o diretor da escola
havia proibido os professores de beber devido ao exemplo que devem ser para
os alunos.
Na verdade dois grupos claramente distintos no tocante à opinião
sobre a bebida alcoólica. Enquanto os mais velhos não bebem e são contrários
a que o mais novos bebam, os ipredupté têm bebido tanto na cidade quanto
dentro da aldeia, o que legalmente é proibido.
Apesar de não termos ouvido comentários sobre o uso da bebida
alcoólica entre mulheres, pudemos observar por algumas vezes o caso de duas
solteiras que chegavam embriagadas da cidade. De acordo com sua idade, as
mulheres seriam integrantes do grupo das piõ. O fato de o serem casadas
(uma delas mãe solteira) faz com que não sejam reconhecidas como
participantes do grupo. Por passarem boa parte do tempo na cidade, elas não
são vistas em atividades do cotidiano com outras mulheres, parecendo,
inclusive, haver certo tipo de preconceito. Apesar disso não houve referência
às duas mulheres em nenhuma das entrevistas, até mesmo quando
perguntávamos se já havia mulheres que bebiam.
Quando perguntávamos aos jovens o motivo de beberem, as respostas
eram todas no mesmo tom: “...eu bebo mesmo! Fico feliz quando bebo”; ou “eu
bebo porque pode fazer bem e deixa a gente feliz”. Para os mais novos, os que
91
bebem, são duas as justificativas: bebem para se divertir, se distrair, como
vemos nos relatos acima e também bebem por pensar que a bebida pode ser
benéfica para o organismo.
A ideia da função do álcool como uma bebida que gera a felicidade foi
também discutida em uma conversa com um ipredupté (homem 35 anos), que
nos perguntou se era verdade que na cidade existia cerveja sem álcool.
Quando respondemos afirmativamente o homem riu, dizendo que não entendia
por que os waradzu bebiam cerveja sem álcool, bebida de gosto ruim, se esta
não iria deixá-los “alegres”. Explicamos que o consumo deste tipo de cerveja
era devido ao gosto, gerando uma reação de incredulidade por parte do
homem. Tal conversa reafirma que, no caso dos Xavante da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe a ingestão do álcool é relacionada à função de suscitar
alegria”. Mas não é a única, como afirmaremos a seguir.
Durante as entrevistas os ouvimos falar que os indígenas geralmente
acreditam que o álcool ...é bom para limpar os rins e para não pegar diabetes.
Você bebe e vai muito no banheiro”. Quando perguntávamos quem os havia
“ensinado os benefícios” do álcool, respondiam que haviam sido os waradzu.
Em nossa primeira viagem a aldeia, havíamos ouvido essa referência
de que existe relação positiva do álcool com a Diabetes Mellitus. Segundo os
Xavante que participaram da oficina realizada para divulgar resultados da
pesquisa, a cerveja e a cachaça (“caninha 51”) ajudam no controle da
diabetes, patologia muito recorrente na aldeia. Um dos homens que falou sobre
o assunto é, inclusive, agente de saúde indígena. Todos afirmavam que haviam
sido ensinados pelos waradzu.
Os mais velhos afirmam já ter ouvido sobre os “benefícios” do álcool,
mas se mostram céticos em relação a essa informação, como podemos ver no
relato:
...eu perguntei para o branco: para que serve a cerveja?... Muita gente está
tomando! É bom para fazer limpeza, né? Para ter saúde, né? Mas não é bom, não!
O branco explicou para o Xavante que é bom para corpo forte, para fazer limpeza do
sangue... mas não é verdade”.
Não obstante às suas justificativas para ingerir a bebida alcoólica, o fato é
que tanto a cerveja quanto a bebida destilada vem sendo mais consumida na
92
aldeia, gerando conflitos e inclusive casos de violência à mulher.
32
Diante do
quadro do aumento da ingestão das bebidas juntamente às motivações para
beber citadas pelos Xavante, chamamos atenção para a necessidade de
intervenções nessa área, buscando esclarecer o mal entendido, antes que a
dependência ao álcool se torne um problema com proporções maiores.
3.5 Descarte do lixo
A última fase do sistema alimentar, citada por Goody (1996) é o descarte
do lixo. Mesmo estando de fora de muitos estudos relacionados ao tema, o
assunto não poderia ser negligenciado nessa pesquisa, dada a realidade de
um problema emergente e urgente que é o acúmulo de material (principalmente
inorgânico) nas aldeias Xavante, e em particular em Nossa Senhora de
Guadalupe.
Antes do contato, por serem seminômades, os Xavante não tinham que
se preocupar com o acúmulo de lixo. Soma-se a este o fato de não produzirem
resíduo sólido no passado (MAYBURY-LEWIS, 1984). O lixo da década de
1950, segundo Maybury-Lewis, era constituído de cascas e caroços de
vegetais, pedaços de intestinos de animais e ossos. Como anteriormente
afirmado, as mulheres cozinhavam em uma fogueira localizada do lado de fora
das casas, e as “partes indesejadas da carne e de outros alimentos eram
atiradas ao redor do fogo onde os alimentos eram assados. Maybury-Lewis
(1984) coloca que antes que o acúmulo do lixo orgânico se tornasse
insuportável (para ele), os Xavante estavam mudando suas casas e abrigos
de lugar. Aparentemente esse acúmulo não era considerado um problema
entre os Xavante.
Com a fixação em um território, a permanência em uma aldeia
33
e a
introdução de alimentos industrializados, surge uma nova necessidade de
adaptação: adaptação a produção de lixo, principalmente o inorgânico.
32
Tais casos não nos foram relatados por indígenas, mas pelos técnicos de enfermagem que atendem no
Posto de saúde da aldeia.
33
Como já afirmado, aldeias cada vez maiores e que geram cada vez mais lixo.
93
Observamos nos arredores das casas lixo orgânico proveniente do pré-preparo
de alimentos.
34
Cascas de abóbora, de raízes, de coquinhos, de ovos. Cascas
de arroz que foi polido. Em muitas casas pudemos observar que as mulheres
varrem o entorno de tempos em tempos. Mas acabam concentrando estes
resíduos em locais a céu aberto. Quando chove, a enxurrada esparrama
novamente ou, em alguns casos, acaba levando o lixo para as grandes valas
abertas pela erosão do terreno, que direcionam o lixo para o rio devido ao
declive do terreno.
Também bastante resíduo sólido, como por exemplo, caixas de leite;
garrafas de óleo; garrafas PET; sacos de café, biscoito e farinha de trigo;
papéis de bala; garrafa de cachaça; latas de cerveja; entre outros. Durante os
três meses que ficamos na aldeia vimos somente uma vez as mulheres
limpando o pátio central da aldeia, isto porque haveria a festa dos meninos no
dia seguinte.
Uma das perguntas que fazíamos aos Xavante era se eles achavam que
havia lixo na aldeia, ou se a aldeia estava suja. De forma geral todos afirmaram
que muito lixo na aldeia, e que estes são “... o que está estragado na terra,
garrafa, plástico” ou ...o que a gente não precisa mais: lata, casca. Alguns
homens velhos também se referiam ao mato no centro da aldeia como lixo.
As mulheres mais velhas e os homens se mostraram mais incomodados
com o acúmulo de material inorgânico na aldeia, como pode ser visto na fala de
uma ihi: ...“antigamente tinha lixo, mas não era como hoje. Agora tem muito e
as mais novas (mulheres) não fazem nada. Antigamente jogavam o lixo longe.
Hoje não fazem mais isso.” Muitos disseram que entendem o lixo como um
problema, pois não sabem como fazer com o acúmulo dos resíduos sólidos, o
que chamam de “o que não acaba”.
As mulheres mais velhas disseram que quando eram mais novas,
varriam as casas e os arredores e levavam os resíduos para um local afastado
da casa, onde os queimavam. Quando perguntávamos se ainda procediam
dessa forma, diziam que esse é um trabalho das mais novas, e que estas
“...não querem saber de cuidar”. Algumas relacionaram o acúmulo de lixo e de
34
Alimentos são descascados fora de casa, e as cascas ficam no chão até que varram, ação que não
costuma ocorrer com muita frequência.
94
mato com a presença de cobras, e disseram que a mulher deve varrer para
proteger seus filhos.
Os homens mais novos relacionaram a presença de lixo na aldeia com a
presença de mosquitos e doenças respiratórias, principalmente nas crianças,
como exemplificado na fala de um ipredupté, a seguir:
é (o lixo) um problema porque é plástico e o vento carrega. E a gente não respira
bem. Nessa época da chuva o lixo chega no rio ... e a muriçoca aumenta muito
por causa do lixo. O mosquitão também.
Um deles afirmou que antigamente também tinha lixo, mas que o lixo
atual não se acaba, e dessa forma se torna um problema para a aldeia.
Diferentemente das mulheres mais velhas, os homens não culpavam as
mulheres mais novas, e para eles a solução também o passava pelas mãos
das mulheres. A maioria mencionou que todos na aldeia “... precisam entender
que o lixo faz mal para o Xavante”, e que houveram palestras feitas pela
agente de saúde a respeito do assunto. Quase todos os homens mais novos
entrevistados conhecem a coleta de lixo que na cidade, e a citaram como
uma solução que deveria existir nas aldeias.
Figura 10: Pia comunitária após ser utilizada pelas mulheres para limpeza dos utensílios da pia
comunitária.
Na aldeia um AISAN (Agente Indígena de Saneamento), cujas
atribuições profissionais incluem exercer o papel de estimular a limpeza nos
arredores da mesma. Durante o tempo em que estivemos não vimos
nenhuma ação realizada pelo agente, mas ouvimos muitas reclamações
referentes ao fato de que o homem não se esforçava no trabalho. A única
atividade realizada pelo agente e relatada pela comunidade foi a organização
de um mutirão para abertura dos “buracos de queima” de lixo, de número total
95
de quatro na aldeia. Mesmo assim existem controvérsias quanto a sua ação na
abertura desses buracos. Muitos relatam que ele não participou. Os buracos de
queima existem, mas o são muito utilizados. Apenas o lixo do posto de
saúde é queimado regularmente, até mesmo pelos AIS.
O entorno da pia comunitária parece ser o destino principal dos destinos
do lixo orgânico, pois as mulheres “raspam” o que ficou “grudado” na panela
após a cocção e jogam por ali. Os cachorros e galinhas muitas vezes
aproveitam estes restos de alimentos
35
. A água parada aliada ao lixo gera um
acúmulo de insetos, principalmente pernilongos, que se espalham pela aldeia,
sendo motivo de muita reclamação por parte dos Xavante.
3.5 Finalizando a discussão
A descrição do sistema alimentar da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe evidencia particularidades que vão além da alimentação. O
dinamismo é uma das características desse sistema. Baseados nessa
particularidade, podemos, com as informações obtidas nessa temática,
entender o processo de mudança pelo qual a aldeia está passando. A
velocidade das modificações pode ser diferente em cada sistema. Dois fatores
são indicados como aceleradores dessas modificações, criando uma nova
relação das pessoas com os alimentos
36
: introdução da economia monetária e
a introdução de novos produtos (CARRASCO I PONS, 2005), fatos que têm
ocorrido na aldeia.
Outros autores ampliam a discussão sobre as direções tomadas pelo
sistema alimentar com base nos fatores que aceleram as modificações, bem
como as consequências (GOODY, 1996; WEISMANTEL, 1998; CARRASCO I
PONS, 2005; LEITE, 2007). Dentre eles os autores mencionam: a
monetarização do acesso aos alimentos; a monetarização da reciprocidade de
parentesco e vizinhança; a perda do conhecimento tradicional da manipulação
de alimentos; readaptações culinárias e gustativas; perda da cultura de
35
Já citado no item 3.3, Preparação
36
Os assuntos brevemente abordados nesse item serão discutidos no capítulo 4, Cozinha, comida e
identidade Xavante
96
abastecimento de certos alimentos; criação de novas hierarquias relacionadas
a uma culinária diferenciada; conflito nos programas de ajuda alimentar; crise
entre o conhecimento tradicional e o biomédico, a possibilidade de mudança na
identidade alimentar. Por outro lado, existem autores que discutem as
mudanças propriamente ditas, alterações que acontecem naturalmente, e são
trabalhadas pelos grupos sociais (MINTZ, 1985; MINTZ, DU BOIS, 2002). Esse
assunto será abordado no próximo capítulo.
97
IV- COZINHA, COMIDA E IDENTIDADE XAVANTE
“...comida não é apenas uma substância alimentar
mas é também um modo, um estilo e um jeito
de alimentar-se. E o jeito de comer define não
só aquilo que é ingerido, como também aquele
que o ingere.”
(Da Matta, p. 56)
Muito embora o ser humano seja onívoro por natureza, indivíduos e
sociedades não o são. Ambos são seletivos com relação ao alimento. Essa
seletividade coloca o “comer” o somente como um ato vital e íntimo, mas
acima de tudo, como uma ação que simboliza, que significa social e
coletivamente conforme o meio e a sociedade em que o indivíduo vive. Assim,
o alimento é algo que se percebe e que se aprende como tal, a partir de um
saber coletivo que separa o que é comestível, do que não é comestível
(WOORTMANN, 1978; MINTZ, 1985; FISCHLER, 1995; CONTRERAS e
GRACIA, 2005).
Inseridos em um sistema cultural particular, os Xavante, como as outras
sociedades, têm suas próprias classificações do que é comestível ou não.
Dentro dos alimentos classificados como comestíveis estabelecem ainda
proibições e prescrições, as quais foram relatadas no item “Consumo”, do
Capítulo 3 - Sistema alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe.
Os Xavante se auto denominam Auwe˜ Uptabi , que traduzido significa
povo autêntico” (GIACCARIA, HEIDE, 1984). Contrastando com essa visão de
sua identidade, chamavam todos os outros povos indígenas de Auwe˜. Com o
processo de contato denominaram os não indígenas como waradzu, fossem
eles de cor branca, negra ou mestiça, ainda que traduzam a palavra como
“branco”. A forma com a qual os Xavante se autodenominam e denominam os
outros, é importante na construção de um entendimento acerca da identidade,
como vemos na afirmação de Brandão (1996, p. 28):
“O universo dos símbolos e dos nomes com que os grupos sociais se definem e
definem os outros grupos, depende de como eles pensam as categorias de sujeitos
atores que percebem envolvidos nas suas relações de trocas de bens, de serviços
e de significados.”
98
Da mesma forma como referem a si mesmos como o povo autêntico, a
partir do momento em que iniciaram o contato com as sociedades não-
indígenas e, consequentemente, com outros alimentos, que não os tradicionais
aos quais estavam habituados, estes passaram a receber a taxonomia de
alimento xavante. Assim, poderiam ser diferenciados daqueles que estavam
sendo incorporados. Tal fato não deve surpreender, visto que a comida é um
dos veículos utilizados para comunicar valores simbólicos, identidades e
significados de diversas naturezas, sejam econômicos, políticos, estéticos,
sociais, entre outros (CARRASCO i PONS, 2005; MONTANARI, 2008). O
significado social partilhado na atribuição de posse dada pela nomenclatura
dos alimentos tradicionais merece uma discussão.
4.1 Comida auwe˜ : o tradicional autêntico
O ser humano se alimenta tendo por referência as normas, regras e
preferências da sociedade a qual pertence. A cozinha passa a refletir,
inconscientemente, a estrutura social desta sociedade (LEVI-STRAUSS, 1965).
Neste caso, o alimento não é mais um produto, mas um processo que cria e
sustenta uma identidade coletiva, a qual se modifica e se redefine
constantemente, devido a novas situações geradas pelo contato com culturas
diversas (FEGURSON, 2005; MONTANARI, 2008).
Em uma sociedade que está passando por transformações sociais e
econômicas em um ritmo acelerado, como é o caso dos Xavante, a tradição
alimentar pode se tornar uma referência ao passado, ela passa a ser uma
recordação. Essa recordação tem alto valor simbólico e gera um contexto onde
a utilização ou não de alimentos e procedimentos tradicionais são usados como
marcadores de identidade. Por outro lado, a tradição alimentar também pode
passar a conviver em dois universos simbólicos, do presente e do passado.
Assim as concepções do tempo pretérito ficam na memória coletiva do grupo e
não se perdem com as novas práticas alimentares. A cultura permite então que
ambas as práticas convivam juntas, às vezes de forma conflituosa, em outras
não. É claro que a substituição gradual pode ocorrer, mas leva muito tempo e a
99
referência se mantém na memória. Indo além, Goody (1996), afirma que os
alimentos tradicionais podem contribuir para a determinação de significados,
papéis sociais, continuidades e modificações em uma sociedade.
Apresentamos no capítulo anterior, de forma sucinta, a discussão sobre
alimentos tradicionais e a incorporação de novos produtos alimentares, a partir
do contato dos Xavante com a sociedade não indígena. Ao trabalharmos a
questão do tradicional, seja ele um ingrediente, um modo de preparo, ou um
sistema alimentar, optamos por expor características do conceito, ao invés de
um conceito em si. Muitos estudos foram realizados utilizando a
nomenclatura tradicional, porém Guerrero et al. (2009) afirmam que existem
poucas definições do termo. Diante desse cenário, optamos por extrair as
características principais do que consideramos como tradicional, analisando
diferentes autores. Tal opção nos auxiliará mais tarde na compreensão da
relação entre tradicional e identidade Xavante.
Destacamos quatro características, que ao nosso entender são
essenciais na ideia de tradicional. As duas primeiras características estão
relacionadas com o espaço e com o tempo. De acordo com Jordana (2000), os
alimentos são chamados tradicionais quando estão vinculados ao território e
têm sua utilização garantida por gerações. Por exemplo, um alimento
tradicional seria aquele cuja plantação oferece bons resultados em
determinada região, proporcionando boas colheitas e continuidade na
produção, garantindo assim sua utilização por um longo período de tempo.
A terceira característica implícita no conceito é a questão da função. De
acordo com Trichoupoulou et al. (2006), os alimentos tradicionais são
geralmente considerados saudáveis e palatáveis. Em outro artigo os autores
afirmam que os alimentos tradicionais são veículos de cultura e possuem
qualidades relacionadas à saúde, visto que a tradição não valoriza alimentos
sem gosto ou que prejudicam o corpo (TRICHOPOULOU et al, 2007).
A crítica acerca da falta de consenso na definição sobre o tradicional é
antiga. No final da década de 80, Humpfrey (1989) mencionava a dificuldade
de identificar o que significa tradicional. Apesar da autora não apresentar uma
definição, ela lhe acrescentou um elemento importante: sua conexão com a
memória. Tal relação nos remete à questão de valor, ou seja, fica na memória
o que é tido como importante pelo ser humano. Nesse caso, chamar uma
100
comida de tradicional seria uma marca de aprovação da mesma. Para
Humpfrey (1989, p.164), o “poder” do tradicional não está no grau de
dificuldade no preparo de uma receita, mas em sua “conotação: memória, valor
e conexão especial com a família” ou em nosso caso, com o grupo doméstico.
Entendemos, então, como primariamente implícitos na ideia do
tradicional as quatro características: o vínculo com o espaço, com o tempo,
com a função e com o valor. As quatro características descritas podem ser
observadas no imaginário dos Xavante com relação aos seus alimentos
tradicionais.
A ideia de espaço e do tempo no conceito de tradicional fica clara nos
discursos dos Xavante. Em entrevistas e conversas onde indagávamos sobre
os alimentos tradicionais, os moradores da aldeia sempre afirmavam que esses
ainda existem no “mato” em abundância (espaço), e que é a “alimentação
preferida pelos mais velhos” (tempo). No discurso estes alimentos estão
associados aos velhos. Contudo, quando os alimentos tradicionais estavam
disponíveis na aldeia os jovens também se apropriavam deles, por exemplo, no
abate de um animal de caça todos comem de sua carne (com exceção
daqueles com restrições, como mencionado anteriormente). O mesmo
acontecia quando as mulheres velhas iam pegar cocos ou frutos no cerrado. Ao
voltarem para suas casas todos consumiam os alimentos.
Os homens em geral e as mulheres mais velhas deixam claro que os
alimentos tradicionais ainda estão disponíveis, e explicam a diminuição do
consumo devido à facilidade que têm hoje, em obter a comida waradzu
37
, por
meio da merenda escolar, cestas de alimentos fornecidas pela Funasa,
doações ou pela aquisição destes alimentos nos mercados.
Homens e mulheres mais velhas acabam por culpar as mulheres mais
novas de não ir mais para o “mato” buscar os alimentos, e preferirem cozinhar
os alimentos dos waradzu. Mas na maioria das casas são justamente as mais
novas as responsáveis pelo ato de cozinhar. Quando indagada sobre quem
cozinhava na casa, uma ihi (mulher, 64 anos) respondeu: “Só minhas filhas
cozinham. Eu faço milho na brasa. Comida waradzu, não! Sei fazer, mas
37
Estamos utilizando o termo comida e alimento waradzú e comida e alimento auwe˜ , conforme
denominação dos próprios Xavante, a fim de distinguir duas categorias de alimentos: aquela autóctone,
produzida pelos seus meios de subsistência (caça, coleta e agricultura) daquela introduzida pelo contato
com a sociedade não-indígena (waradzú).
101
não gosto e o faço.” Outra mulher (71 anos) também respondeu: “Quem
cozinha aqui é minha neta. Eu não sei fazer comida waradzu.” Outro relato de
mulher, também da mesma categoria de idade (62 anos) ressaltou:
Sou antiga, mas ainda gosto de comida xavante. Quando a mulher velha sai no mato
para pegar, quando criança macaúba, pede e a gente dá. Mas a mãe nova não
vai para o mato pegar e aí a criança só come arroz.
As mulheres mais novas, por sua vez, se desculpam dizendo da
dificuldade em relação à comida tradicional, como podemos observar no relato
de uma piõ (mulher, 31 anos): ...é difícil para pegar no mato. É difícil achar.
Comida waradzu é mais fácil”. O tradicional, então, é considerado como algo
distante e difícil no cotidiano alimentar dos mais jovens, mesmo mantendo-se
no imaginário como os mais gostosos e os mais fortes (fato que sediscutido
mais adiante), demonstrando a relação com o espaço e o tempo na construção
do tradicional.
No que se refere a questão do cozinhar, um ipredupté (homem, 32 anos)
afirmou sobre as mulheres:
...agora só querem extrato de tomate, batata. Esquecem do que era nosso!
querem a fartura do branco. É por isso que quando vê, tem diabetes entre os
Xavante! Os homens engordam direto! Antigamente não... rala raiz que tinha, coloca
na água e bebe para o corpo ficar normal e não entrar doença. Hoje não tem mais...
Este relato nos leva à terceira particularidade incluída no conceito de
tradicional pelos Xavante: a função. Em diversas conversas observamos a
importância dos alimentos tradicionais para a manutenção da saúde e da força
física. Os Xavante consideram saudáveis os alimentos tradicionais. Como
exemplo, citamos o discurso de um ipredupté, (homem, 35 anos):
Ia ser bom comida Xavante porque nossos pais falavam que antigamente
não tinha fraqueza. Todo mundo era sadio. Fraqueza é comida waradzu. Ela
vem dessa comida. Tem muita anemia hoje! Se tivesse nossa comida
tradicional, a gente ficava forte de novo. O dente vai ser bom. Agora
comemos açúcar e estraga dente e saúde.
102
O mesmo relato pode ser observado entre os mais velhos. Uma ihi
(mulher, 67 anos) afirma: “... não como arroz. comida tradicional de
Xavante. Arroz dá problema no corpo da gente. Fica fraco.”
Fica claro nos relatos acima a idealização da comida tradicional como
mais saudável, mais forte; e por oposição, a comida waradzu como geradora
de fraqueza, uma comida fraca. Os Xavante relacionam a comida tradicional
com força física e saúde quando falam dos homens; estética, beleza e saúde
quando mencionam as mulheres. A mulher “forte” (não obesa!) é considerada
bonita pelos homens, enquanto o homem “gordo” é feio, está doente.
O sistema de classificação dos alimentos em oposições binárias há
muito tem sido discutido, tendo como referência o estudo realizado por Lévi-
Strauss nas Mitológicas, especialmente no volume 3, intitulado L´Origine dês
Maniéres de Table e publicado em 1968 (LÉVI-STRAUSS, 1990). Antes disso,
o autor já havia publicado O triângulo culinário (1966), onde discutia o papel da
Cozinha na articulação da natureza e cultura, pois ela “participa de ambos os
processos e projeta desdobramentos em cada uma de suas manifestações”. A
ambiguidade e a assimetria fazem parte de uma sociedade e mesmo quando a
estrutura se transforma para superar um desequilíbrio, acaba trazendo um
novo desequilíbrio num plano diferente.
Estas categorias - forte e fraco - são um conjunto de oposições, não
excludentes; elas se constituem na existência da outra, se complementam, e
certamente mereceriam um estudo à parte, voltado para a compreensão do
sistema classificatório dos alimentos articulado à cosmologia Xavante.
Limitaremos-nos a evidenciar a existência desta contraposição no cotidiano e a
demonstrar que os Xavante continuam acionando os mecanismos simbólicos,
resignificando as categorias alimentares mesmo em momentos de crise ou
transformações.
O quarto elemento relacionado ao tradicional é a conexão com a
memória. Na fala de um ipredu (homem, 45 anos), após fazer referência a
vários alimentos tradicionais xavante, afirmou: “sinto falta disso tudo... patede,
wö, feijão xavante, poneré... quando eu era criança comia tudo isso...”. Nas
conversas e entrevistas com os Xavante, eles tinham muito prazer em falar do
passado, principalmente os mais velhos. O interessante é que o assunto
principal não era o tempo, o passado, e sim a comida xavante, o que nos
103
mostra que as lembranças dos alimentos tradicionais acabam por ser uma
maneira simples de se conectar a esse tempo antigo. Uma mera referência ao
“jeito Xavante de comer” criava um vínculo com o passado, de onde vinham
lembranças da história alimentar, de sensações de prazer e desprazer, de
gostos aprendidos.
Como vimos, os Xavante denominam sua comida tradicional de comida
auwe˜, o que poderíamos entender como comida autêntica. Autêntica porque
tem ligação com o território Xavante, porque vem sendo utilizada como
alimento gerações, porque a entendem como saudável e geradora de força
física, e finalmente porque lembra a época em que os Xavante estavam menos
“susceptíveis” às transformações induzidas e/ou aceleradas pelo processo de
contato.
4.2 “Só é tsadá`ré se for com milho Xavante?: mudanças, identidade e
ressignificação
O milho no`dzö é considerado pela literatura como alimento tradicional
para os Xavante (Giaccaria, Heide, 1983). Ele está no discurso dos velhos e
dos jovens como um alimento forte, saboroso, muito diferente do milho do
waradzu, o wa`rú (que também plantam e comem, mas comentam que é duro e
não tem gosto).
Figura 11: Várias qualidades de no`dzö, o milho Xavante; No`dzö secando ao sol para preparo de estoque
de sementes
Todos mencionavam com pesar a perda das sementes em anos
anteriores e a dificuldade de conseguir novos espécimes. Em julho de 2008 os
104
moradores da aldeia estavam empolgados, pois alguns homens haviam
conseguido novas sementes em outras aldeias. Em janeiro e fevereiro de 2009,
em quase todas as casas havia milho auwe˜ e todos falavam com alegria que
continuariam plantando no próximo ano, pois agora tinham as sementes.
Como anteriormente afirmado, este fato difere do relatado entre os
Wari´. Para este povo a perda de variedades de milho e outros cultígenos não
parece ser algo que lhes traga preocupação, apesar de serem muito
apreciados. O autor relata o grande interesse dos Wari´ por novos cultivos, seja
de alimentos já conhecidos ou de novas espécies (LEITE, 2007).
Nessa perspectiva de mudanças alimentares e de possíveis
controvérsias sobre as direções que elas tomam na construção das
identidades, lançaremos mão do mito do milho, descrito no livro Jerônimo
Xavante: Conta, de Giaccaria e Heide (1975, p.62-72) para enriquecer a
discussão sobre mudanças e ressignificação dos alimentos.
Uma mulher escutou os periquitos cantarem e resolveu entrar na
mata a fim de ver o que era. Não era como homem, mas tinha muita
coragem. Na mata encontrou pedaços de milho embaixo de uma
árvore, estava cheio de milho misturado ao estrume de periquitos. Ela
olhou para cima e viu muito milho nos galhos da árvore. Os galhos
que estavam no meio do tronco davam pequenas espigas, e aqueles
que estavam mais por cima davam espigas maiores. Ela subiu, foi
quebrando e jogando-o para baixo até encher o cesto. Tampou bem
para ninguém ver e levou para casa. O pai perguntou-lhe a quem
pertencia o mantimento. Respondeu que era dos periquitos. Voltou
ainda três vezes para buscar o milho. Tirou quatro cestos de milho
para guardar e depois dar a todas as casas. Mas antes fez fubá e
com este um bolo redondo. Distribuiu-o a seus filhos, e um pedaço
também ao pai. Que lhe disse:
-Já me cansei com o pau podre de folhinha pequena (...) você achou
alimento mesmo, achou mesmo, porque eu não tinha o que comer.
Agora eu comerei o alimento especial. A minha filha é achadora.
Agora nós pararemos com aquela coisa, que tem gosto de raiz de
mandioca do mato.
Foi comendo aquela coisa, era auwe˜ i˜watsi (alimento de gente) que
comia. O que eles comiam agora tinha gosto de alimento. O tio viu os
sobrinhos comerem gostosamente. Foi à casa da irmã para saber a
procedência daquilo. Ela relatou o acontecido e ao por do sol o pai
levou uma espiga ao centro da aldeia e falou para todos sobre o
achado, convidando-os a irem dentro da mata buscar o milho. No dia
seguinte todos se pintaram no warã e quando o sol começou a sair
acompanharam a mulher que seguia na frente. Ao chegarem ao local
os moços subiram na árvore com cestos para recolher as espigas e
desceram bem carregados. Os velhos recolheram o que ficou
esparramado pelo chão. Voltaram para aldeia e foram guardando as
105
espigas maiores para plantio, secando-as no sol. Também o
debulhavam e assavam sobre o fogo
38
.
Além da simbologia, dos aspectos cosmológicos e do caráter sociológico
imanente ao mito (o que não é nosso objeto de análise), ele nos permite
discutir o processo de mudanças e, principalmente, demonstra que as
identidades alimentares “...se modificam e se redefinem incessantemente,
adaptando-se a situações sempre novas, determinadas pelo contato com
culturas diversas” (MONTANARI, 2008, p.184). Observamos que no tempo
mítico o milho não era tradicional; o tradicional era o pau podre. Destarte essa
mudança de hábito alimentar não alterou a identidade Xavante. Pelo contrário,
foi uma incorporação que entrou como elemento constitutivo desta identidade.
Durante a primeira viagem a campo foi realizada uma oficina
39
para
apresentar às mulheres informações sobre estado nutricional da comunidade e
entender o conceito que elas tinham de saúde. Por meio de uma dinâmica com
figuras, as quais elas deveriam colar em cartazes, foi trabalhado o significado
de saúde para elas. Em um dos grupos uma mulher (uma p) me entregou
uma foto de uma mãe ensinando a filha a cozinhar, de um lado, e do outro lado
tinha uma foto de um alimento industrializado. Perguntei de que lado ela queria
que eu colasse e ela respondeu que saúde era a imagem da mãe com a filha:
Isso é saúde porque a filha aprende receita xavante com a mãe e por isso
cozinha certo”.
Na fala da piõ, o “cozinhar certo” foi colocado em referência à receita
Xavante. De acordo com Humpfrey (1989, p.164), as receitas tradicionais são
como uma herança: revestidas de valor de forma que “...a good family recipe
has the same weight and power as a good family advice”
40
. A autora ainda
afirma que possuem um caráter de peso e poder, e por isso são transmitidas
mais vertical do que horizontalmente. As receitas tradicionais, bem como os
alimentos tradicionais, são aprendidas nas relações sociais.
38
Este mito foi resumido do texto descrito por Giaccaria, Heide, no livro Jerônimo Xavante: Conta (1975).
39
Atividade desenvolvida pelo projeto “Contextos locais na determinação das condições nutricionais de
crianças indígenas xavante, Mato Grosso”, projeto financiado pelo CNPq Processo 400.926-5.
40
Tradução do texto referido: uma boa receita familiar tem o mesmo peso e poder que um bom conselho
familiar.
106
Como relatado, no cotidiano da aldeia as meninas, desde cedo, se
envolvem com os afazeres domésticos. Pegam água, lavam os utensílios,
acendem fogueiras, mexem nos alimentos que estão nas fogueiras... de certa
forma aprendem em suas brincadeiras e no dia a dia o papel feminino na
sociedade (SILVA et al, 2002; DELGADO, 2008). Nesse contexto, as mulheres
mais velhas (ihi) são as detentoras do saber culinário tradicional. Apesar de
serem as piõ as responsáveis por cozinhar, na maioria das casas, estas diziam
não saber mais fazer a comida auwe˜, a comida xavante. Sempre que
perguntávamos sobre alguma receita tradicional as piõ nos diziam o nome de
alguma ihi, que saberia nos explicar como fazer, mas elas próprias não sabiam
mais. Os homens de idades variadas, igualmente citavam os nomes das
mulheres mais velhas (ihi) como possuidoras desse saber culinário.
Enquanto estávamos na aldeia vimos poucas vezes as receitas
tradicionais serem feitas (com exceção da forma tradicional de preparo:
alimentos na brasa). Ouvíamos falar, mas não as amos preparando ou
comendo cotidianamente. Apenas no ritual do Oi`ó
41
os Xavante fizeram o
tsa`daré (bolo de milho xavante), bem como um “equivalente”, o bolo de milho
waradzu, no qual algumas mulheres fizeram mudanças na receita original do
tsadaré, trocando o milho xavante pelo waradzu (ou mesmo pelo fubá
comprado na cidade), ou ainda utilizando o forno a gás, e não mais a fogueira
para o preparo.
42
Quando perguntávamos para as mulheres se o bolo de milho, feito do
mesmo jeito, mas com milho waradzu, era tsa`daré, a resposta era não.
Quando perguntávamos se o bolo feito com milho xavante, mas no forno à gás
era tsa`daré, a resposta era a mesma. Para as mulheres Xavante, tanto os
ingredientes quanto a forma de preparo são necessários para que a receita
seja considerada tradicional. No entanto, depois de pronto, durante e após o
ritual, ao perguntarmos o que era aquilo (o bolo) alguns homens responderam
que era tsa`daré.
Em um primeiro momento poderíamos pensar que estaria havendo uma
perda” na transmissão das receitas (ou dos alimentos tradicionais, conforme
41
Luta ritual que tivemos a oportunidade de assistir na segunda viagem a campo e que será discutida
mais adiante.
42
A receita do tsa`daré tradicional, de acordo com uma mulher, está no apêndice 1.
107
discutimos no item anterior), mas ao observarmos o cotidiano dessas mulheres,
mormente nos preparativos dos rituais
43
, percebemos que a comunidade
participava ativamente no preparo de comidas tradicionais, inclusive as
meninas mais jovens. As respostas, em relação ao fato de conhecerem e
prepararem alguma receita tradicional podem representar o reconhecimento da
legitimidade das mais velhas em falar sobre a questão, uma vez que dominam
esse saber e possuem a autoridade culinária para discutir e ensinar as
mulheres mais novas, situação em que nós como mulheres nos
encontrávamos.
Figura 12: Tsa`daré; brasa feita no interior de uma casa, utilizada no preparo do tsa`daré
Outro exemplo de situação em que houve uma ressignificação do objeto
é o caso da garrafa pet, chamadas de u’mre. Após o consumo do refrigerante
os Xavante passam a utilizá-las para pegar água na bica e guardar na
geladeira, sobre as mesas ou no chão. Estas garrafas não faziam parte do
cotidiano da aldeia apouco tempo; a água anteriormente era armazenada
em cabaças, cuja denominação no idioma xavante era u’mre. O objeto “garrafa
pet” passa a ter um novo significado e uma nova função no uso diário para os
Xavante, sem contudo significar prejuízos ou perdas
44
.
Os Xavante relatam as mudanças alimentares ocorridas ao longo do
processo de contato como um fenômeno que trouxe e ainda traz impactos nas
diversas esferas da vida cotidiana, sejam positivos ou negativos. Suas falas
demonstram que não apenas compreendem o processo, como possuem
43
Enquanto estávamos na aldeia aconteceu o ritual do Oi´ó onde pudemos observar os preparativos dos
alimentos que seriam oferecidos aos padrinhos. Além disso, Delgado (2003) descreve situações em que
as meninas e adzarudu estavam envolvidas no preparo desses alimentos.
44
Não estamos discutindo aqui o consumo do refrigerante, propriamente dito, e seus impactos na saúde
Xavante.
108
explicações para as mudanças alimentares ocorridas pelo contato com os não-
indígenas, por exemplo:
“...foi por causa do contato, da colonização. Desde o primeiro contato que
fez... se não conhecesse o branco, a gente não teria essa mudança. Se não
tivesse acontecido a invasão, não teria essa mudança. (...) O contato foi ruim,
porque a vida do branco entrou, e está estragando a nossa.” (ipredupté:
homem, 32 anos).
Enquanto em algumas situações os novos alimentos são incorporados
naturalmente, existem outras em que as transformações demoram mais a
ocorrer, sendo que em ambas as trajetórias estamos lidando com a capacidade
dos sistemas alimentares incorporarem o desconhecido, como discutido no
início desta seção com o mito do milho. Podemos também tomar como
exemplo a atitude de curiosidade e de cautela dos europeus frente a novos
alimentos (tomate, milho, batata, entre outros) levados das Américas. Foram
necessários aproximadamente três séculos para a adoção destes alimentos de
forma definitiva na dieta dos europeus, alimentos que identificam no presente a
culinária europeia (MONTANARI, 2008, p.176).
No que se refere aos Xavante cabe destacar duas características que
consideramos relevantes no processo de mudanças: a rapidez com que está
acontecendo a incorporação de alguns alimentos; e suas implicações na
saúde, que será discutida mais adiante. O arroz pode ser um alimento
interessante para se analisar no que se refere à dimensão temporal. Os
moradores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, descendem do grupo
Xavante que buscou ajuda em Meruri
45
e que em 1958
46
foram transferidos
para o local onde hoje é a aldeia São Marcos (SBARDELLOTTO, 1996).
Naquela época a missão salesiana iniciou o plantio de arroz como uma das
estratégias de ensino de práticas agrícolas. As plantações eram realizadas
pelos Xavante e a colheita distribuída entre os domicílios. Em poucos anos o
arroz acabou sendo incorporado ao hábito alimentar do grupo de tal forma que
hoje faz parte do cotidiano alimentar xavante
47
. Caso fosse retirado por
45
Meruri é uma Missão Salesiana construída no início do século XX no estado de Mato Grosso e que
atende aos índios Bororo, desde então.
46
Aspectos históricos do contato com a sociedade não indígena foram descritos no capítulo 3, Os
Xavante.
47
Sobre o consumo do arroz vide capítulo 3 desta dissertação e autores como Flowers (1983), Maybury-
Lewis (1984), Silva (1986 e 1992), Vieira Filho (1987) e Gugelmin (1995 e 2001).
109
completo, a produção de alimentos ricos em carboidratos não seria suficiente
para alimentar a todos.
Essa modificação no sistema alimentar não fez com que a identidade
Xavante mudasse ou que eles se tornassem menos Xavante. Tendo como
referencial Ulf Hannerz (1997) e Marshall Sahlins (1997) podemos considerar
que por ser um alimento “exógeno” o arroz passou por um processo de
ressignificação e assumiu um novo sentido nos rituais, na convivência social,
nas regras de reciprocidade e de restrição alimentar. No universo simbólico o
consumo de muito arroz no pós-parto, seja por parte da mãe ou do pai, é
considerado inadequado, pois a criança ficará com diarréia. Observamos a
convivência do “novo” com o saber próprio do grupo.
Retomando a discussão inicial na ideia de mudanças alimentares
precisam ser incorporadas as noções de fluxo, processo, dinamismo. As
culturas se interpenetram dinamicamente em um contato, constroem valores e
ressignificam alimentos, mantendo suas microfronteiras e suas identidades
(HANNERZ, 1997). Convém salientar que essas mudanças trazem consigo
consequências, as quais poderão ser ou não reelaboradas. Veremos a seguir
alguns destes aspectos.
4.3 “Minha roça é o mercado”: Cozinha e status na aldeia
As diferenças alimentares são produtos de distintas culturas em diversas
sociedades. Essas diferenças não ocorrem apenas entre, mas dentro de uma
mesma sociedade. O consumo de determinado alimento tem significados que
podem estar relacionados e condicionados ao poder aquisitivo do indivíduo na
sociedade, de forma a expressar o status deste no meio onde vive (MINTZ,
1985; MACIEL & MENASCHE, 2003). Weismantel (1988, p.7) afirma que um
alimento pode ter uma riqueza de significados ideológicos provenientes de seu
papel na economia. Dessa forma: “... an expensive food stands for wealth, a
110
cheap one for poverty; homegrown and handmade are contrasted to store-
bought, the well worn to the shiny new.
48
Os alimentos emblemáticos representam quem os consome, e
expressam o pertencimento a um determinado grupo. É o que relatam alguns
estudos, como de Sidney Mintz, no livro sobre a história do açúcar, no qual
mostra esse alimento como um marcador de posse financeira utilizado pela
nobreza da Inglaterra do século XVIII. O autor discute, ainda, como o açúcar se
tornou uma necessidade na vida moderna (MINTZ, 1985). Da mesma forma,
Bourdieu (1984) aponta diferenças de gosto na alimentação conforme a classe
social e capital cultural do indivíduo, refletindo habitus distintos entre as classes
mais elevadas e as classes trabalhadoras. De acordo com o autor, enquanto os
primeiros gostam de alimentos exóticos, naturais e saudáveis, o gosto dos que
têm baixo capital cultural e econômico é por alimentos gordurosos, baratos e
salgados.
No caso da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe pudemos identificar em
certos momentos uma distinção no discurso de algumas pessoas em relação à
execução de práticas de subsistência, rituais e consumo de alimentos
tradicionais. Ao perguntarmos a um ipredupté (homem, 29 anos) se ele ou os
de sua casa tinham alguma roça, a reposta que ouvimos foi: “Minha roça é o
mercado. Meu trabalho é na cidade. A resposta passaria despercebida, não
fosse a forma como foi falada, demonstrando muito orgulho por não precisar
cuidar de uma roça na aldeia, e também de ter fácil acesso aos alimentos dos
waradzu. A estrutura familiar dessa casa fugia do padrão de moradia da aldeia,
nela vivia apenas uma família composta por seis pessoas (um casal jovem com
seus três filhos e a sogra). O padrão de moradia nas aldeias Xavante descrito
na literatura (MAYBURY-LEWIS, 1984; GIACCARIA, HEIDE, 1983) e
observado no campo é de família extensa habitando o mesmo domicílio,
chegando muitas vezes a dez ou quinze pessoas.
Durante o tempo na aldeia, com as visitas realizadas neste domicílio e
as entrevistas, pudemos perceber que os alimentos consumidos por essa
48
A tradução da referida frase: um alimento caro é relacionado à riqueza, e um barato à pobreza; a
produção familiar, caseira e artesanal é contrastada aos produtos comprados no mercado, o bem
usado, com o novo em folha”.
111
família
49
, bem como em alguns outros grupos domésticos, eram mais
frequentemente os alimentos waradzu. O ipredupté falou que recebe um salário
na cidade, sem, contudo, nos relatar qual era seu trabalho, e demonstrou muito
orgulho em nos informar que a esposa havia sido aluna de um curso de
culinária oferecido na cidade de Barra do Garças, e que por isso sabia muito
bem como preparar as comidas conforme o jeito dos waradzu. Constatamos,
então, uma diferenciação na cozinha, advinda da forma de produção e do
preparo
50
do alimento. Tal fato nos despertou a curiosidade, visto que os relatos
mais antigos citavam uma alimentação muito parecida entre as casas de uma
mesma aldeia (MAYBURY-LEWIS, 1984; GIACCARIA, HEIDE, 1984). Estariam
os alimentos dos waradzu começando a criar uma diferenciação de consumo
na aldeia e, por conseguinte, trazendo algum status a determinados grupos?
O que percebemos na aldeia foi que o ingresso dos mais jovens
(homens e mulheres) no mercado de trabalho (como AIS, professor, funcionário
da FUNAI, entre outros) e o acesso a aposentadorias e benefícios sociais
possibilitaram a entrada de bens de consumo e outros alimentos, o que facilitou
a vida cotidiana e, ao mesmo tempo, trouxe alguns impactos e contradições.
Os indivíduos com maiores recursos financeiros acabam por adquirir
produtos de marca de maior prestígio, mais caros, e se distinguem dentro da
aldeia. Uma passagem durante o ritual do Oi’ó evidencia essa situação:
pudemos presenciar o orgulho dos que levavam refrigerantes de marcas
nacionalmente conhecidas ao invés dos de marcas conhecidas apenas
regionalmente, que são mais baratos
51
, oferecidos pelos pais dos meninos que
estavam entrando no . Alguns nos mostravam e diziam: “Está vendo? É
refrigerante de verdade!”.
Com a intenção de facilitar o entendimento por parte do leitor, relatamos
aqui nossa experiência na observação do ritual do Oi`ó, bem como da relação
do alimento com a festa. No último fim de semana de nossa estada na aldeia
49
Consideramos como família, aquela constituía por um núcleo familiar pai, mãe e filhos, sem
agregados. O grupo doméstico caracteriza-se por ser uma família extensa e seus parentes. Neste caso
específico, o pai da mulher vive viajando pelo Brasil vendendo raízes e a mãe mora junto com a filha.
50
Produção e Preparo são as terminologias utilizadas no capítulo 3, onde descrevemos o sistema
alimentar dos Xavante da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
51
Os refrigerantes nacionalmente conhecidos são aqueles com ampla divulgação na mídia e produzidos
em larga escala por multinacionais. Os refrigerantes regionais, por sua vez, tem uma produção em menor
escala.
112
foi realizado o ritual. Embora Giaccaria e Heide (1984) definam Oi`ó como um
jogo no qual dois times de meninos se defrontam, optamos por utilizar essa
nomenclatura para todas as atividades realizadas no fim de semana por ser a
maneira utilizada pelos moradores da aldeia para se referir ao que seria
celebrado. A luta
52
marca a entrada dos meninos no , a casa dos solteiros.
Figura 13 :Alimentos oferecidos como presente aos padrinhos no ritual do Oi`ó; alimentos recebidos por
um padrinho
Embora começasse apenas no sábado, durante a semana se podia
perceber muita agitação entre os moradores. Mesmo sendo a semana em que
muitos recebiam aposentadorias e salários, o caminhão não foi para a cidade,
e segundo os Xavante o motivo para tal era o de “não perder tempo”. Com
antecedência as mulheres capinaram o centro da aldeia debaixo do sol quente,
para que ficasse bonita
53
para a festa. Homens faziam a gravatinha xavante
(para usar na festa) e alguns mais velhos confeccionaram arco e flecha.
A festa começou no sábado pela manhã. Ainda de madrugada,
moradores de outras aldeias chegaram de carro ou caminhão, e iam tomando
seus lugares nas casas de seus parentes em N. S. de Guadalupe. As fogueiras
foram acesas do lado de fora das casas e vimos o compartilhar do milho
xavante ao redor do fogo, em meio a conversas e risos. Logo cedo começou
uma chuva fina, mas não foi suficiente para impedir o início da festa: a luta das
crianças. Elas estavam com o corpo e o cabelo pintados de preto ou vermelho,
cada uma com sua raiz oi`ó para a luta, acompanhadas de seu padrinho. As
raízes são escolhidas e retiradas do mato pelos padrinhos, e cada criança a
52
Informações detalhadas sobre a luta podem ser encontradas na tese de doutorado do antropólogo
Paulo Delgado (2008), em estudo também realizado na Terra Indígena de São Marcos.
53
Os Xavante consideram como “sujeira” o mato ou a grama que nasce no centro da aldeia.
113
utiliza para atingir o adversário no momento da luta. Os padrinhos guardam,
ainda, uma raiz reserva para o caso de que a utilizada se quebre. Infelizmente
a luta foi parada antes do final por causa de discussões advindas do tempo de
disputas políticas dentro da aldeia São Marcos. Mesmo com o imprevisto, a
festa continuou.
Após a interrupção da luta das crianças, as pessoas se dirigiram às
casas e as mulheres começaram a preparar a da`tsá. As seguintes
preparações foram vistas nas casas: arroz com frango”, “macarrão com
frango”, macarrão com abóbora acompanhado de carne com osso”. Em
apenas uma casa vimos carne de caça sendo preparada (frita) na panela.
Como sempre, as televisões estavam ligadas, mas ainda assim as pessoas
estavam sentadas no chão em círculo, em volta de uma grande panela que
continha a comida, e comiam e conversavam. Havia muita alegria. Além do
almoço as mulheres estavam envolvidas com a preparação do presente dos
padrinhos: comida auwě e waradzu.
Perguntamos a muitos qual o motivo do presente ao padrinho ser um
alimento. Uns respondiam que desconheciam a razão. Outros responderam
com a frase: É assim porque sempre foi assim...”. Mesmo não sabendo a
motivo do oferecimento de alimentos como presentes na festa, quando
perguntávamos sobre a escolha do que seria dado os Xavante respondiam:
“tem que ser gostoso”.
A diferença estava apenas no tipo de comida oferecida como presente.
Segundo os Xavante, “antigamente não davam comida waradzu, davam
tsada`ré, carne de bicho e frutos do mato”. Atualmente, ademais dos alimentos
tradicionais oferecem sacos de arroz, laranja, pipoca, frango, bolos e pães,
refrigerantes, entre outros.
Delgado (2008) participou de uma cerimônia chamada
nonhamahöpö`õno em duas aldeias: São Marcos e Nossa Senhora de
Guadalupe. Na cerimônia havia a exigência da troca de bolos tsadá`ré. O relato
do antropólogo mostra que, na época, a produção de nodzö (milho Xavante),
era insuficiente para o preparo do número necessário de bolos. Somando-se a
esse fato a aquisição de recursos monetários por alguns homens, permitiu que
a dinâmica das trocas rituais fosse mantida, mas através de substitutos aos
tradicionais tsada`ré. Os alimentos oferecidos em substituição foram:
114
bolos feitos de farinha de trigo e fubá, pilhas de caixas de biscoito, fardos de
farinha de trigo, porcos assados, quartos de vaca moqueados, fardos de
arroz, sacos de feijão, até fardos de refrigerantes tipo pet de dois litros
(DELGADO, 2008, p 178).
Na cerimônia presenciada por Delgado (2008), devido a quantidade
insuficiente de nodzö para a preparação do tsadà`ré, os indígenas que ainda
assim optavam por oferecê-lo tinham a opção de acrescentar feijão Xavante à
massa deste ou de utilizarem o fubá de milho e/ou farinha de arroz branco
(socada no pilão). Não vimos esta prática no Oi`ó.
O autor afirma que a substituição do bolo tradicional pelos alimentos
waradzu não podem ser entendidos como um fator empobrecedor do ritual,
mas como um processo de intensificação cultural, no qual a maior articulação
com o mercado simboliza proeminência e prestígio entre os demais. As
substituições nas cerimônias, portanto, não devem ser encaradas como
negativas, mas como a reapropriação de “bens materiais e simbólicos”, que
mantém e intensificam a produção cultural (DELGADO, 2008, p 179).
Mesmo com o simbolismo do prestígio imbricado no presente ofertado:
comida waradzu e “de marca”, não podemos afirmar categoricamente que está
se iniciando na aldeia um processo de distinção social. Existem mecanismos
internos que impedem uma diferenciação mais ampla, que extrapole o âmbito
das relações sociais e de reciprocidade. Os grupos domésticos extensos
acabam por diminuir as diferenças, pois existem regras de reciprocidade e
obrigações para com o sogro, cunhados e sua família. Assim, a circulação de
comida é grande. Podem existir grupos domésticos com maior acesso e
aquisição de alimentos, mas também são grupos em que a saída desses
alimentos é maior, dado o número de parentes existentes. Ainda assim vemos
no exemplo do Oi`ó que o poder de compra e de estoque de alimentos pode
trazer um status ou prestígio da pessoa frente ao grupo.
Outro fato associado à simbologia do alimento waradzu é a contradição.
Nos discursos, a comida waradzu, a qual os jovens se referem com tanto
orgulho por consumir, aparece como causadora de problemas de saúde no
cotidiano. Problemas como excesso de peso, anemia, diabetes, hipertensão
arterial e colelitíase têm sido uma constante entre os adultos Xavante e nos
relatos sempre aparecem relacionadas à mudança na dieta e aumento do
115
consumo de alimento waradzu. Voltamos ao discurso de alguns homens que
diziam que antigamente Os Xavante eram fortes. Hoje são fracos, são filhos
do arroz”.
Muitas vezes a comida waradzu foi comparada com um vício, por eles.
Essa comparação traz em si uma dualidade representada em seu significado
para os Xavante: é ruim para a saúde”, mas ao mesmo tempo vontade de
comer”. Uma mulher disse: comida waradzu é gostosa, mas é ruim porque
quando come muito fica gorda, com colesterol alto, pressão alta.”
No caso dos Xavante constatamos que os alimentos waradzu podem ser
considerados marcadores do surgimento de uma nova concepção alimentar,
trazendo consigo tradições, conflitos, simbologias e referências metafóricas
atribuídas a status e prestígio.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] toda cultura, toda tradição, toda identidade é um produto da história,
dinâmico e instável, gerado por complexos fenômenos de troca, de
cruzamento, de contaminação. Os modelos e as práticas alimentares são o
ponto de encontro entre culturas diversas, fruto da circulação de homens,
mercadorias, técnicas, gostos de um lado para o outro do mundo.
(MONTANARI, 2008, p.189)
A frase acima resume a situação de transformações alimentares, as
quais os Xavante, moradores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, têm
passado. As pessoas constantemente alteram suas práticas alimentares,
modificando também o sistema tradicional. No entanto existem autores, como
Kuhnlein (2000) que chamam atenção para a perda de conhecimento ligado à
diversidade de espécies de alimentos tradicionais indígenas que nunca foram
documentados e que hoje têm seu consumo diminuído devido à força imposta
por mudanças na dieta e utilização de produtos industrializados. Este é um
ponto de vista, mas não o único. Consideramos que as modificações nem
sempre irão provocar perdas em sistemas tradicionais, pois o sistema alimentar
é um processo complexo onde características e informações não
necessariamente se perdem, mas se transformam.
Não podemos considerar as sociedades como estagnadas no tempo e
no espaço. Como dizia Anne Kaplan citada por Humphrey (1989, p.163)
afirmar que a mudança é uma inimiga da tradição é uma falácia sentimental
(...); uma tradição estática... é uma tradição morta!
54
”. Chamamos atenção para
este fato pois, apesar dessa preocupação ter sido superada pelas ciências
sociais, tal situação é comumente encontrada entre profissionais de saúde que
trabalham com indígenas. Ainda existem, entre nutricionistas e enfermeiros,
profissionais que pensam que os povos indígenas deveriam viver isolados e
que a cultura não pode ser modificada, e que se esforçam para, inutilmente,
manter estático um movimento que é de permanente incorporação e
modificação.
A entrada no mercado de trabalho e a utilização de alimentos
industrializados não significam, necessariamente, a substituição e a perda de
54
A frase no original é: It is a sentimental fallacy that change is an enemy of tradition (…); a static
tradition is ... a dead one"
117
um alimento tradicional. Alguns alimentos e formas de preparo podem ser
descartados, outros substituídos e, outros ainda mantidos. O fato é que os
Xavante vão selecionando o que é significativo para eles. Um alimento
considerado tradicional pode daqui a um tempo não ser mais. Um alimento
waradzu pode entrar no rol de restrições e proibições, sendo incorporado no
imaginário cultural. Este movimento natural e constante surge, muitas vezes,
espontaneamente e, em certas ocasiões, pode gerar conflitos intergeracionais.
Tais conflitos podem ser minimizados à medida que forem acionadas as
relações de troca, de partilha, o sistema simbólico, isto é, enquanto forem
asseguradas as relações sociais existentes.
Para os Xavante a interação com outras sociedades indígenas e não-
indígenas, a sedentarização, o espaço e os recursos limitados ou reduzidos
(após a delimitação das terras indígenas), a degradação ambiental, a baixa
capacidade de sustentabilidade, o aumento do número de aldeias, além de
outros fatores, estão acelerando (e muito) as modificações na produção,
distribuição, preparo e consumo dos alimentos. Essas transformações criam
novas demandas, que precisam acontecer em um tempo muito menor do que
acontecia anteriormente, fazendo com que a adaptação tanto ao ambiente
quanto à realidade seja uma necessidade urgente.
Uma das adaptações necessárias diz respeito ao manejo dos resíduos
sólidos produzidos pelo consumo de novos alimentos e bens duráveis. Alguns
Xavante consideram o lixo um problema e se preocupam com o destino dado
aos entulhos e detritos. No entanto, pouco tem sido feito para resolver a
situação. Outra adaptação concerne às mudanças ambientais e sociais, e a
persistência ou manutenção do padrão tradicional de subsistência. Cabe
questionar a viabilidade de insistir em um padrão tradicional em uma realidade
que não tem condições de se perpetuar infinitamente. As fontes de recursos
naturais são esgotáveis e precisam ser manejadas adequadamente para
possibilitar uma sustentabilidade do modelo tradicional, fato que muitas vezes
não é discutido nos estudos sobre comida e alimentação e muito menos entre
os profissionais de saúde que atuam junto aos povos indígenas.
Existem escolhas e caminhos possíveis. Não podemos generalizar ou
considerar que os Xavante possuem a mesma característica, nem que todas as
118
aldeias respondem do mesmo modo às mudanças pelas quais estão passando.
Não existe um modelo único a seguir. Sahlins (1997, p. 63) afirmava que:
não conhecemos, a priori, e evidentemente não devemos subestimar, o poder que
os povos indígenas têm de integrar culturalmente as forças irresistíveis do Sistema
Mundial.
E, consequentemente, desconhecemos a riqueza das significações de
alimentos e comidas que podem ser criadas e recriadas pelos indígenas. No
passado as referências alimentares para os Xavante eram transmitidas pelos
velhos, grupos domésticos e tradições. Hoje, as informações chegam por
diversos meios: a escola, a televisão, a convivência na cidade, os profissionais
de saúde. Observamos nos relatos que os discursos dos profissionais de saúde
são apropriados de forma a legitimar as práticas cotidianas segundo suas
lógicas de pensamento, como identificado na feitura do fogo dentro das casas,
na introdução dos alimentos em crianças menores de seis meses, no consumo
da bebida alcoólica industrializada, entre outros. É preciso desmistificar a
imagem do índio sem capacidade crítica, que apenas incorpora as prescrições
médicas e as mudanças.
Reafirmamos que os Xavante continuam construindo a sua história e
algumas iniciativas tem sido realizadas ao longo desta trajetória. As aldeias
Wederã e Pimentel Barbosa realizaram projetos que buscam na tecnologia dos
waradzu (vídeos, cartilhas) uma forma de manter viva a memória, a tradição e
sua alimentação. Aparentemente estas estratégias são formas de reafirmar sua
identidade, a partir das diferenças e contrastes.
O estudo minucioso sobre comida, práticas alimentares e sistemas
alimentares possibilita conhecer como uma sociedade funciona, suas
transformações sociais, conflitos, as relações que se estabelecem a partir das
mudanças vivenciadas. Podemos dizer que conhecer o sistema alimentar de
um povo é conhecer a sua estrutura e suas contradições.
Qualquer programa de alimentação e nutrição com indígenas é mais
efetivo quando conhece, reconhece e incorpora produtos de seu sistema
alimentar tradicional aos advindos das mudanças. Reforçamos a necessidade
do equilíbrio nas ações de educação em saúde. De que se considere não
apenas o conhecimento de quais são os alimentos e as receitas auwe˜ pelos
119
profissionais que trabalham com o povo, mas da simbologia que a comida
tradicional carrega em si, e mais: de que as transformações ocorridas e
aceitas pelos indígenas sejam respeitadas nessas ações.
120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AB`SABER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades
paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
ASSOCIAÇÃO WARÃ. Disponível em: http://wara.nativeweb.org/roca.html.
Acesso em 13/11/2009.
ATKINSON P. & HAMMERSLEY M. Ethnography and Participant Observation.
In: DENZIN N.K., LINCOLN Y.S. (org). Handbook of Qualitative Research.
London: Sage publications; p. 248-261, 2000.
BAIÃO M; DESLANDES S. Alimentação na gestação e puerpério. Revista de
Nutrição, v.19, n.2, p.245-253, 2006.
BRANDÃO, C.R. Identidade e etnia. Construção da pessoa e resistência
cultural. São Paulo: Brasiliense, 1996. 173p.
BOURDIEU, P. Distinction: a social critique of the judgement of taste. London:
Routledge and Kegan Paul, 1984.
CARDOSO, A; MATTOS, I; KOIFMAN, R. Prevalência de fatores de risco para
doenças cardiovasculares na população Guaraní-Mybiá do Estado do Rio de
Janeiro. Cadernos de Saúde Pública, v.17, p. 345-354, 2001.
CARNEIRO, H. Comida e sociedade: Significados sociais na história da
alimentação. História: Questões & Debates, n. 42, p. 71-80, 2005.
CARRASCO I PONS, S. Pontos de partida teórico-metodológicos para o estudo
sociocultural da alimentação em um contexto de transformação. In:CANESQUI
& GARCIA. Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2005. p.101-128
COIMBRA, C.E.A. et al. The Xavante in transition. Health, ecology, and
bioanthropology in Central Brasil. Michigan: The University of Michigan
Press, 2002. 344p.
CONSERVATION INTERNATIONAL - CI
http://www.conservation.org.br/onde/cerrado/index. php?id=29. Acessado em:
19/11/2009.
CONTRERAS, J.H.; GRACIA, M.A. Alimentación y cultura. Perspectivas
antropológicas. Barcelona: Ariel, 2004. 505p.
COSTA, A.F. A pesquisa de terreno em sociologia. In: SILVA, A.S.; PINTO,J.M.
(Orgs.) Metodologia das ciências sociais. 12 ed. Porto: Edições
Afrontamento, 2003. p.129-148.
DA MATTA, R. O que faz do Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
128p.
121
DANIEL, J.M.P; CRAVO, V.Z. Valor social e cultural da alimentação.
In:CANESQUI & GARCIA. Antropologia e nutrição: um diálogo possível.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. p.57-68.
DELGADO, P.S. O faccionalismo Xavante na Terra Indigena São Marcos e
a cidade de Barra do Garças. Dissertação (Mestrado em Antropologia) -
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003
______. Entre a estrutura e a performance: ritual de iniciação e
faccionalismo entre os Xavante da Terra Indígena São Marcos. Tese
(Doutorado em Antropologia) Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2008.
FERREIRA, A.A. Estado nutricional e fatores associados ao crescimento
de crianças indígenas Xavante, Mato Grosso. Dissertação (mestrado).
Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro, 2009.
FISCHLER, Claude, El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo.
Barcelona, Editorial Anagrama, 1995. 424p.
FLOWERS, N. Forager-farmers: The Xavante indians of central Brazil. Ph. D.
Dissertation. New York: City University of New York, 380p; 1983.
______. Subsistence strategy, social organization, and warfare in central Brazil
in the context of european penetration. In: ROOSEVELT, A. Amazonian
Indians from prehistory to the present: anthropological perspectives.
Tucson: University of Arizona Press, 1994, p.249-269.
FONTANELLA, B; RICAS, J; TURATO, E. Amostragem por saturação em
pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Caderno de saúde
pública , Rio de Janeiro, v.24, n.1, p.17-27, jan, 2008.
FOREYT, W; FOREYT, B. Veterinary parasitology: Reference Manual. 5 ed.
Blackwell Publishing. 2001. 235p.
FUNASA. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2ª
ed. Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 40p. 2002.
GEERTZ,C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 1989. 324p.
GIACCARIA, B; HEIDE, S. Auwe Uptabi: Xavante - Povo Autêntico. 2ed.
São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1984.
______. Jerônimo Xavante: Conta. Campo Grande: Casa da Cultura, p.62-72.
1975.
GOODMAN, A; DUFOUR, D; PELTO; G. Nutritional anthropology:
Biocultural perspectives on food and nutrition. Mc Graw-Hill Companies,
392p. 1999.
122
GOODY, J. Cook, cuisine and class. A study in comparative sociology. 6
ed. New York: Cambridge University Press, 247p. 1996.
GUERRERO, L. et al. Consumer-driven definition of traditional food products
and innovation in traditional foods. A qualitative cross-cultural study. Appetite.
52, 345-354p. 2009.
GUGELMIN, S. Antropometria nutricional e ecologia humana dos Xavante
de Sangradouro Volta Grande, Mato Grosso. 133 f, 2001. Tese (Doutorado
em Saúde Pública) Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo
Cruz, 2001.
______ & SANTOS, R. Ecologia humana e antropometria nutricional de adultos
Xavantes, Mato Grosso, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, n.17, p. 313-322,
2001.
______. Nutrição e alocação de tempo dos Xavante de Pimentel Barbosa,
Mato Grosso: Um estudo em ecologia humana e mudanças. Dissertação de
mestrado. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 113p. 1995.
HANNERZ, U. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras chave da antropologia
transnacional. Mana, v.3, n.1, p.7-39, 1997.
HARITASSAN, M. Nutrição mineral de plantas nativas do cerrado. Revista
Brasileira de Fisiologia Vegetal, v.12, n.1, p.54-64, 2000.
HUMPFREY, L. Traditional foods, traditional values? Western Folklore, vol.
48, n. 2, 162-169 p. 1989.
Instituto Sócioambiental - ISA. Povos Indígenas no Brasil 2001-2005. São
Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. Disponível em
http://www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/qoqindex.shtm Acesso:
27/09/2007.
JORDANA, J. Traditional foods: challenges facing the European food industry.
Food Research International, v.33, n.3, 147-152p. 2000.
KUHNLEIN, H.. The Joys and Pains of Sampling and Analysis of Traditional
Food of Indigenous Peoples. Journal of Food Composition and Analysis.
n.13, 649-658p. 2000.
LEITE, M. S.; SANTOS, R. V.; GUGELMIN, S. A.; COIMBRA JR., C. E. A.
Crescimento físico e perfil nutricional da população indígena Xavánte de
Sangradouro-Volta Grande, Mato Grosso, Brasil. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 22 (2). 265-276p. Fevereiro, 2006.
123
LEITE, M; GUGELMIN, S; SANTOS, R; COIMBRA, C. Perfis de saúde
indígena, tendências nacionais e contextos locais: reflexões a partir do caso
Xavánte, Mato Grosso. In: COIMBRA; SANTOS; ESCOBAR, organizadores.
Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro:
Fiocruz; 2003. p.105-125.
______; SANTOS, R; COIMBRA, C. Sazonalidade e estado nutricional de
populações indígenas.: O caso Wari`, Rondônia, Brasil. Cadernos de Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v.23, n.11, p. 2631-2642, Nov, 2007.
______. Transformação e persistência: antropologia da alimentação e nutrição
em uma sociedade indígena amazônica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 293 p.
2007.
LÉVI-STRAUSS, C. O triângulo culinário. L`Arc Documentos, n 26, número
especial sobre Levi-Strauss. 1966 (Mimeo-tradução).
______. The origin of table manners. Mithologiques. Chicago: University
Chicago Press, 1990.
LUNARDI, R; SANTOS, R; COIMBRA, C. Morbidade hospitalar de indígenas
Xavante, Mato Grosso, Brasil (2000 2002). Revista Brasileira de
Epidemiologia, vol. 10; n. 4. São Paulo. Dezembro, 2007.
MACIEL, M. E. Identidade cultural e alimentação. In: CANESQUI & GARCIA.
Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
p.49-55. 2005.
______; MENASCHE, R. Você tem fome de quê? Democracia viva, Rio de
Janeiro, v.1, n. 16, p. 3-7, 2003.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições. 2001. 70 p.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental: Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova
Guiné Melanésia. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 424p. 1978.
MAY, T. Pesquisa social: questões, métodos e processos. 3 ed. Porto Alegre:
Artmed Editora, 288p. 2004.
MAYBURY-LEWIS, D. A Sociedade Xavante. Rio de Janeiro: Editora
Francisco Alves. 400p, 1984.
MINAYO, M.C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em
saúde. São Paulo: Hucitec; 1994.
______ Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta.
In: MINAYO, M.C.S.; DESLANDES, S.F.; GOMES, R. Pesquisa social. Teoria,
método e criatividade. 28 ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p.61-77.
124
MINTZ, S. Sweetness and Power: The place of suggar in modern history.
Penguin Books: New York. 274p. 1989.
______; DU BOIS, C. The anthropology of food and eating. Annual Review of
anthropology. 31, p 99-119. 2002.
MONTANARI, M. Comida como cultura. São Paulo: SENAC. São Paulo,
2008.
OLIVEIRA, M. Uso de bebidas alcoólicas e alcoolismo entre os Kaingang da
Bacia do Rio Tibagi: uma proposta de intervenção. In: Jeolas, L.S.; Oliveira, M.
(eds.). Anais do Seminário Cultura, Saúde e Doença. Londrina, pp. 43-65,
2003.
PERON, J. ; EVANGELISTA, A. Degradação de pastagens em regiões de
cerrado. Ciência e agrotecnologia, Lavras, v. 28, n. 3, p. 655-661, maio/jun.,
2004.
RICARDO, B e RICARDO, S. (Editores). Povos indígenas no Brasil, 2001-
2005. São Paulo: Instituto Sócio-Ambiental ISA.
ROTENBERG, S.; DE VARGAS, S. Práticas alimentares e o cuidado da saúde:
da alimentação da criança à alimentação da família. Revista Brasileira de
Saúde Materno Infantil, v.4, n.1, p.85-94, 2004.
SABOURIN, E. Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v.23, n.66,p.131-138, 2008.
SAHLINS, M. O "pessimismo sentimental" e a experiência etnográfica: por que
a cultura não é um "objeto" em via de extinção (parte I). Mana, Rio de Janeiro,
v.3, n.1, p. 41-73, 1997.
SANTOS, R; COIMBRA, C. Cenários e tendências da saúde e da
epidemiologia dos povos indígenas no Brasil. In: COIMBRA; SANTOS;
ESCOBAR, organizadores. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no
Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p.13-47.
SILVA, A.L.; NUNES, A.; MACEDO, A.V.L.S. (Org.) Crianças indígenas.
Ensaios antropológicos. São Paulo: Global/Mari, 2002.
______. Dois séculos e meio de história Xavante. In: CUNHA M.C. DA (org.)
História dos índios do Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: FAPESP/Cia das
Letras, 1992. p. 357-378.
______. Nomes e amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê. São
Paulo: FFLCH/ USP, 1986. 340p.
SILVA, R.J.N. Seis décadas de contato: transformações na subsistência
xavante. Dissertação de mestrado. Piracicaba: USP, 2008. 103p.
125
SBARDELLOTTO, P. Considerações e sugestões para a criação de reservas
para os índios Xavante. In: LACHNNITT, J.; MACIEL, J.B.M. (Org.) Do
primeiro encontro com os Xavante à demarcação de suas reservas.
Campo Grande: s.e., 1996.
SOUZA, L.G. Demografia e saúde dos indios Xavante do Brasil Central.
Tese (Doutorado em Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública.
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.
______; SANTOS, R.V. Perfil demográfico da população indígena Xavante de
Sangradouro Volta Grande, Mato Grosso (1993-1997), Brasil. Cadernos de
Saúde Pública, v.17, n.2, p.355-365, 2001.
SOUZA, M; SCHWEICKARDT, J; GARNELO, L. O processo de alcoolização
em populações indígenas do Alto Rio Negro e as limitações do CAGE como
instrumento de screening para dependência ao álcool. Revista de Psiquiatria
Clínica, v.34, n.2, 2007.
TRICHOPOULOU, A; SOUKARA, S; VASILOPOULOU, E. Trends in Food
Science & Technology. v.18, p.420 427. 2007.
______; VASILOUPOULOU, E; GEORGA, K; SOUKARA, S; DILIS, V.
Tradicional foods: Why and how to sustain them. Trends in Food Science &
Technology. v.17, p. 498504. 2006.
VIEIRA FILHO, J.P.B. et al. Polineuropatia nutricional entre índios Xavantes.
Revista da Associação Médica Brasileira. v.43; n.1; 1997.
WACQUANT, L. Seguindo Pierre Bourdieu no campo. Revista de Sociologia
Política. Curitiba, v.26, p. 13-29, jun. 2006.
WALTER, B. Fitofisionomias do bioma cerrado: síntese terminológica e
relações florísticas. Tese de doutorado. Universidade de Brasília,
Departamento de Ecologia, do Instituto de Ciências Biológicas, 389 p. 2006.
WARDE, A. Consumption, food and taste: Culinary antinomies and
commodity culture. Sage publications: London. 231p. 1997.
WELCH, J. et al. Nutrition Transition, Socioeconomic Differentiation, and
Gender Among Adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Human Ecology,
v.37, n.1, p.13-26, 2009.
WOORTMANN, K. Hábitos e Ideologias Alimentares em Grupos Sociais de
Baixa Renda: Relatório Final. 1978.
WEISMANTEL, M. Food, Gender, and Poverty in the Ecuadorian Andes.
Long Grove: Waveland Press, 234 p. 1998.
126
ANEXO A
127
ANEXO B
128
ANEXO C
Tabela 2: Plantas de uso na alimentação Xavante citadas na dissertação (Tabela adaptada de Silva,
2008)
Nome Xavante
Nome comum
Nome científico
Abarê
Pequi
Caryocar brasiliense
A`ódo
Macaúba
Acronomia aculeata
Aõ`onrê
Jatobá da mata
Hymenaea stilbocarpa
Mart.
Buru`wo
Cará
Indeterminada
Mooni`hoiré
Cará
Dioscorea trifida
Patede
Cará
Dioscorea sp.
Pidzi
Cará
Dioscorea sp.
Pone`re
Cará
Dioscorea sp.
T`sě
Palmito da macaúba
Acronomia sp.
Tiri
Tipo de coquinho
Indeterminada
Tomõsu
Cará
Dioscorea sp.
U`waire
Curriola
Pouteria ramiflora
Uhânhõrirene
Caju rasteiro
Anacardium sp.
Cará
Indeterminada
129
Tabela 3: Nome científico dos animais utilizados pelos Xavante como alimento durante a pesquisa de
campo
Classe
Ordem
Família
Gênero e espécie
Nome comum
Mammalia
Artiodactyla
Mazama gouazoubira
Veado-catingueiro
Ozotoceros bezoarticus
Veado-campeiro
Tayassuidae
Tayassu tajacu
Cateto, ou caititu
Rodentia
Caviidae
Cavia aperea
Preá
Hydrochoerus hydrochaeris
Capivara
Cuniculidae
Cuniculus paca
Paca
Dasyprocta agouti
Cutia
Cingulata
Dasypodidae
Euphractus sexcinctus
Tatu-peba
Dasypus novemcinctus
Tatu-galinha
Priodontes maximus
Tatu-canastra
Talypeutes tricintus
Tatu-bola
Lagomorpha
Leporidae
Sylvilagus brasiliensis
Tapiti
Pilosa
Myrmecophagidae
Myrmecophaga tridactyla
Tamanduá-bandeira
Tamandua tetradactyla
Tamanduá-mirim
Perissodactyla
Tapiridae
Tapirus terrestris
Anta
Marsupialia
Didelphidae
Didelphis albiventris
Gambá
Aves
Struthioniformes
Rheidae
Rhea americana
Ema
Reptilia
Testudinata
Testudinidae
Chelonoidis carbonária
Jabuti
130
APÊNDICE A
Cinco receitas tradicionais Xavante:
1. TSA`DARÉ (Bolo de milho Xavante)
Debulhar o milho xavante já seco
Pilar os grãos de milho
Passar na peneira (opcional)
Juntar água à farinha de milho, até que fique uma papa consistente
Sobrepor folhas de palmeira (muito semelhante a bananeira), em forma
de cruz
Colocar a papa sobre as folhas e fechá-las no formato redondo ou
retangular (Se for grande fica redondo. O pequeno pode ser retangular)
Levar o “pacotinho” na brasa que fica em um buraco, encher com terra
por cima e acender a fogueira.
Depois de um tempo tirar o bolo de debaixo da terra. Se as folhas
estiverem escuras, está pronto.
Abrir e comer
“É duro e gostoso, muito gostoso. Mas quente é mais macio. A
mulherada quase não sabe mais fazer...”
2. UNHENHÃ
Tirar o feijão xavante da vagem
Levar o feijão xavante ao fogo com água (antigamente faziam em panela
de barro. Hoje em panela de ferro)
Descascar e ralar a mandioca
Apertar no pano de saco até sair toda a água ou secar e bater no pilão
(é mais comum secar e pilar)
Quando o feijão estiver cozido, acrescentar a farinha
Mexer, mexer, mexer em cima do fogo, até ficar duro. Pronto.
“Fica uma comida embranquecida. Se come puro, sem nada, com
água. A época de comer é quando dá o feijão xavante, quando chove.”
131
3. UAPSE`RÉ (Mingau de milho xavante)
Primeiro seca o milho xavante e debulha
Depois pila o milho e peneira
Bota água na farinha do milho, até amolecer um pouco
Vai pro fogo na panela até endurecer
Antigamente era assim. Hoje podem fazer de sal ou de açúcar, mas faz mais
do doce. Quando não tem arroz ainda faz muito o uapse`ré salgado. Aí cozinha
ou assa abóbora e mandioca pra comer junto”
4. FARELO DE BABAÇU
Abrir o coquinho com as pedras
Tirar a castanha
Torrar bem a castanha até estalar
Bater a castanha no pilão
“É muito gostoso. Depois pode levar o farelo pro fogo de novo. Eu gosto cru”
5. UHI`ZEUPTÉ
Cozinha junto o milho xavante com o feijão xavante
Não usa sal nem açúcar porque é receita antiga de Xavante. Não tinha
isso ainda.
Joga fora a água
Dá muito pra criança e velho, só o grão.
Faz quando o milho e o feijão estão mais velhos. Fica gostoso. Criança e
velho gostam muito”.
132
APÊNDICE B
Glossário das palavras em Xavante utilizadas na dissertação:
Abadzidzé: Cesto de palha Xavante com tampa
Abamé: Cesto de palha Xavante sem tampa
Abaré: Pequi
Auwě: Autêntico; povo Xavante
Da`tsá: Grandes refeições (almoço e jantar)
Da`tsiuparidzé: Pequenas refeições (Desjejum e lanche)
Mo`one: Raiz Xavante
Mo`oni´hoiré: Raiz Xavante
Norõré: Coco Xavante
Pidzi: Raiz Xavante
Renham`rie: Trançado de palha Xavante, usado como abanador ou prato
Ti`ri: Coco Xavante
Tomõtsuihöirere: Raiz Xavante ingerida na forma de bebida, após fermentada.
Confere força ao indivíduo.
Tsà`dá: Sapecada, queimada
Tsa`dare: Bolo tradicional de milho Xavante
T`sě: Palmito
Ua`pserě: Mingau de milho Xavante
Uhi`zeupté: Preparação tradicional Xavante feita de milho e feijão
U`mre: Cabaça utilizada para guardar líquidos e garrafa de refrigerante de 2
litros (tipo PET)
Unhenhã: Receita tradicional Xavante, preparada com feijão e mandioca
Uptabdi: Gostoso
Uwai`rê: Fruto do cerrado, consumido pelos Xavante
Warã: Reunião de homens realizada diariamente no centro da aldeia no início
da noite
133
Waradzu: Não indígenas; homem “branco”
Wa`rú: Milho “dos brancos”
Wö: Raiz Xavante
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo