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Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
Moças Honestas”
Moças Honestas”Moças Honestas”
Moças Honestas”
ou “Meninas Perdidas”:
ou “Meninas Perdidas”:ou “Meninas Perdidas”:
ou “Meninas Perdidas”:
Um estudo sobre a honra e os usos da justiça pelas mulheres pobres em Pernambuco
Imperial (1860-1888).
Maria Emília Vasconcelos dos Santos.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Pernambuco sob a
orientação da Prof.ª Dr.ª Suzana Cavani Rosas.
Banca
Prof.ª Dr.ª Suzana Cavani Rosas (Orientadora).
Prof. Dr. Marcus J. M. de Carvalho.
Prof. Dr. Wellington Barbosa da Silva.
Prof. Dr. Peter Schröder. (Suplente)
Prof. Dr. Marc Jay Hoffnagel. (Suplente)
Recife
Agosto/2007
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Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
Moças Honestas”
Moças Honestas”Moças Honestas”
Moças Honestas”
ou “Meninas Perdidas”:
ou “Meninas Perdidas”:ou “Meninas Perdidas”:
ou “Meninas Perdidas”:
Um estudo sobre a honra e os usos da justiça pelas mulheres pobres em Pernambuco
Imperial (1860-1888).
Maria Emília Vasconcelos dos Santos.
Recife
Agosto/2007
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3
Ficha Catalográfica elaborada pela
Biblioteca do CFCH – UFPE
Santos, Maria Emília Vasconcelos dos
“Moças honestas” ou “meninas perdidas
: um estudo sobre a
honra e os usos da justiça pelas mulheres pobres em
Pernambuco imperial (1860-1888). – Recife: O Autor, 2007.
159 folhas : il., fotos, tab.
Dissertação (Mestrado)
Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. História. Recife, 2007.
Inclui: bibliografia e anexo
1. História. 2. História Pernambuco século XIX
Violência
sexual. 3. Justiça século XIX - Mulheres pobres. I. Título.
981.34
981
CDU (2.
ed.)
CDD (22. ed.)
UFPE
BCFCH2008/04
4
5
Dedico este trabalho às minhas queridas irmãs Carol
e Cecília, à mainha (Nenzinha) pelo carinho e a Pablo,
meu namorado pela dedicação e paciência.
6
Agradecimentos
mais de dois anos a agradecer. Vou fazê-lo, embora corra o risco de esquecer
alguém, pois, foram muitas mãos que apareceram no meu caminho. Sinto-me uma sortuda por
ter encontrado pessoas legais e que colaboraram para a execução deste trabalho.
Passei três anos freqüentando diariamente o Arquivo Público Estadual Jordão
Emerenciano como bolsista do Projeto Resgate da Memória institucional do Ministério
Público: transcrição de documentos manuscritos, sob a orientação da professora Vera Lúcia
Costa Acioli. vivi uma importante fase da minha formação profissional e contei com a
colaboração do competentíssimo funcionário do arquivo Hildo Leal da Rosa com o qual
aprendi a fazer pesquisa histórica, transcrição paleográfica e me tornar uma conhecedora do
acervo dessa instituição. Foi onde surgiram as idéias que resultam nesse trabalho. Obrigada
Hildo! Agradeço também às funcionárias Marcília Gama e Bete, sempre muito prestativas e
corteses.
No Arquivo Público fiz vários amigos, mas, entre todos uma foi muito especial a
minha amiga Lorena Ferreira parceira de pesquisa, de conversas e que me levou ao Instituto
Histórico para participar do grupo de pesquisa e catalogação dos processos do Tribunal da
Relação coordenado pelo professor Marcus Carvalho. Desde a primeira sexta-feira de
pesquisa vi estar ali um material rico para o meu trabalho. Ah! E também tinha nas sextas-
feiras, no final da tarde, o Caldinho do Henrique pra onde a equipe de Historiadores se dirigia
para conversar. No instituto também fiz amigos como Cira, Clarisse, Maciel Carneiro,
Marcelo Mac Cord, Rômulo Xavier e Bruno Dornelas a quem agradeço, em especial, por ter
lido parte desse trabalho e feito sugestões para aperfeiçoá-lo. Tenho uma dívida de gratidão
com Peter Beattie. Ele me ofereceu uma bolsa para fazer pesquisas nos processos do Tribunal
da Relação, dizendo-me apenas que me preocupasse em coletar os documentos para meu
trabalho, sendo assim, ele é um incentivador e patrono de grande parte da minha trajetória de
pesquisa e por isso serei eternamente grata. Agradeço também, a Galvão e a seu Severiano
E se seguiram sextas e sábados de pesquisas repleto de alegrias e também de
implicâncias ora na sala de pesquisa ora no “inferninho”, espaço nos fundos do instituto que
trabalhei na companhia do paraibano Luciano Mendonça e na de Celso Castilho. Com o
7
último selei uma amizade de pesquisa, de tardes de almoços na Fundaj, de carnaval, de
aventuras pelo Recife e do coração.
Na UFPE, no curso de mestrado reencontrei e conheci alguns colegas: (Rose) Rosilene
Farias que em meio às longas conversas ao telefone sempre tinha as melhores palavras para os
momentos de dificuldades acadêmicas, (Di) Diogo Cunha que o mestrado possibilitou um
contato mais estreito e a certeza de uma amizade que permanece, (Nati) Natália Barros,
Janaína Guimarães, Viviane Araújo, Carolina Cahú e com os companheiros/amigos de um
efêmero grupo de estudo onde pudemos compartilhar leituras, informações e gargalhadas:
Robson Costa, Lenira Lima, Ívina Peixoto, Caetano de Carli e Flávio Sá. Também agradeço
as minhas amigas dos tempos da graduação Cíntia Sales, Micheline Albuquerque, Girlaine
Patrícia e Taciana Mendonça, pelas boas risadas, pelas conversas interessantíssimas, pelas
palavras de incentivo por isso, amigas do coração. Com o Márcio Ananias, amigo mais que
especial, tenho muito que agradecer sempre com puxões de orelha para os meus atrasos com
os prazos na entrega dos trabalhos à minha orientadora, com as dicas de estudo, com as
discussões sobre os nossos trabalhos, companheiro de viagens, de farmácias, de fofocas e de
gargalhadas.
Aos amigos do Arquivo da Assembléia Legislativa Cinthya Barreto, Ieda,
Marquinhos, João Batista, Cacilda, Robéria, Fred, Humberto Miranda (amigo da facul, da
Assembléia e dos cafés da vida).
O CNPq financiou a pesquisa, me concedendo uma bolsa de estudos, fundamental para
o desenvolvimento do projeto. Foi importante também o apoio da Pós-Graduação em História
da UFPE, que me forneceu auxílio para participar de eventos em outros estados. Agradeço ao
Professor Marc Hoffnagel, pelas contribuições na banca de qualificação e na sala de aula. Aos
professores do programa de pós-graduação da UFPE Antônio Montenegro, Isabel Guillen,
Tânia Brandão, Regina Beatriz o meu agradecimento pelas discussões suscitadas nas
disciplinas que tanto me inspiraram e me ajudaram a refletir sobre o meu trabalho. Aos
funcionários da pós-graduação da UFPE por terem sido atenciosos com as minhas
solicitações.
A minha orientadora Suzana Cavani, agradeço por ter aceitado a orientação deste
trabalho, acompanhando a sua constituição todo o tempo colocando a minha disposição seus
livros e apontando as alternativas para aprimorá-lo. Tenho a dizer sobre Suzana que ela é
muito sabida, dedicada, rigorosa, competente e super paciente. Como sua orientanda, devo
8
agradecer o cuidado, a atenção, e sua ajuda para escrever esse texto. Sua orientação foi
bastante importante para a minha formação como uma profissional do campo da História.
Recomendo Suzana como orientadora a todos que queiram fazer um excelente trabalho.
KKKKKK - Só não sei se consegui fazê-lo, mas, podem ter certeza que ela tentou fazer isso.
É importante registrar aqui meu agradecimento ao Professor Marcus Carvalho que tive
a feliz sorte de conhecer. Ele possibilitou o meu acesso aos processos guardados no instituto.
Além disso, Marcus é uma pessoa competente e generosa com os mais novos no ofício. Ele
sempre é um amor. A sua sala pra mim é um lugar aconchegante e alegre vou procurar
aparecer constantemente por lá.
A minha sogrinha Fátima, ao “papai” seu Francisco e um agradecimento especial a
minha cunhada Fabiana pela leitura do meu texto.
A mainha (Nenzinha) e às minhas irmãs Carol e Cecília pelo carinho e por
viabilizarem a realização do meu trabalho de mestrado executando por mim as tarefas do
cotidiano.
Ao Pablo, querido companheiro e cúmplice de ofício, agradeço pela atenção, o
incentivo, e por toda a paciência que teve em meus momentos de angústia. Muitas das idéias
aqui discutidas foi fruto de nossas horas de conversa sobre o meu trabalho. Pablo obrigado
você é um namorado dedicado, um amor e um verdadeiro príncipe.
Maria Emília Vasconcelos.
9
Resumo
Esse trabalho tem por objetivo discutir o cotidiano, os usos da justiça e a honra para as
jovens pobres vítimas de crimes sexuais e seus familiares na Província de Pernambuco, entre
as décadas de 1860 e 1880. Esse período, corresponde à crise do escravismo que marcou
também as vivências cotidianas dos pobres livres. Para tanto, o trabalho de pesquisa
documental nos processos-crimes de rapto, estupro e defloramento, nossa fonte principal, bem
como outras fontes: jornais, ofícios policiais e literatura, os quais possibilitaram a
investigação dos modos de vida, dos relacionamentos amorosos, dos laços familiares e dos
momentos de intimidade dos segmentos populares. Destacou-se a questão do acesso à Justiça
por parte da população pobre. Buscou-se, ainda, discutir os arranjos domiciliares e as relações
familiares. Foi possível refletir sobre a noção de honra como um elemento de diferenciação
social e como uma característica a ser passada para as gerações sucessivas como um
patrimônio e poderia ser utilizada como um bem pelos descendentes.
1. História. 2. História – Pernambuco século XIX – Violência sexual. 3. Justiça século XIX - Mulheres pobres. I. Título.
Abstract
This study analyzes how poor women and their families in late nineteenth-century
Pernambuco defended and constructed their notions of “honor” in light of their everyday
interactions, as well as in response to sexually violent crimes. The temporal scope of the
project stretches from the 1860s through the 1880s, a period marked by the decline of slavery,
and one which also witnessed important changes in the social dynamics among the poor, free
population. The work stems primarily from judicial documents generated from cases about
kidnappings, deflowering, and rape. In addition, the consultation of newspapers, police
reports, and literature from the period allows for a nuanced view into various aspects of the
daily life of popular sectors, including insights about family ties and romantic relationships.
Throughout, poor women affirmed their views about “honor” in their interactions with the
judicial system, and thus this study is also concerned with the degrees of access that this
segment of the population had to the legal world. In short, what emerges is an intimate, multi-
layered portrait of the social and cultural worlds of those who lived modestly and without
material extravagances; of those who in their pursuits to defend and assert their “honor” left a
wealth of information about family dynamics and household relationships.
1. History. 2. History - Pernambuco nineteenth century - Sexual Violence. 3. Justice nineteenth century - Women poor. I.
Title
10
Lista de Ilustrações
Figura 1 – Carta de Maria Theodora de Paula Alves______________________________14
Figura 2 – Litografia de Luís Schalappriz_______________________________________30
Figura 3 – Jornal América Ilustrada___________________________________________31
Figura 4 – Quadro com pinturas de Edgar Degas_________________________________32
Figura 5 – Anúncio Diário de Pernambuco 1870_________________________________36
Figura 6 – Anúncio Diário de Pernambuco 1870_________________________________37
Figura 7 – Foto de Augusto Stahl_____________________________________________38
Figura 8 – Jornal América Ilustrada___________________________________________39
Figura 9 – Jornal América Ilustrada___________________________________________40
Figura 10 – Fotografia de Arredores de Salvador_________________________________51
Figura 11 – Fotografia menina negra na varanda de sua casa________________________51
Figura 12 – A venda no Recife, Rugendas_______________________________________59
Figura 13 – Jornal América Ilustrada__________________________________________68
Figura 14 – Jornal América Ilustrada__________________________________________106
Figura 15 – Anúncio Diário de Pernambuco 1881________________________________133
Figura 16 – Anúncio Jornal A Província 1876___________________________________136
11
Lista de Tabelas
Tabela 1 – Ocupação das vítimas nos processos de crime sexual (1863-1887)__________33
Tabela 2 – Ocupação e idade das vítimas nos processos de crime sexual (1863-1887)____34
Tabela 3 – Cor das vítimas nos processos de crime sexual (1863-1886)_______________54
Tabela 4 – Crimes encontrados nos processos de crime sexual (1863-1887)____________77
Tabela 5 – Faixa etária das vítimas nos processos de crime sexual (1863-1887)_________92
Tabela 6 – Ocupação dos réus nos processos de crime sexual (1863-1887)_________107/108
Lista de Quadros
Quadro 1 – Família de Izabel________________________________________________116
Quadro 2 – Família de Senhorinha____________________________________________123
12
Abreviaturas
AJ – Arquivo da Justiça.
APEJE – Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano.
BFDR – Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife.
IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico, Geográfico Pernambucano.
RCP – Repartição Central de Polícia.
13
Sumário
Introdução...............................................................................................................................15
Capítulo 1 Modos de viver das mulheres pobres livres.......................................................23
O mundo do trabalho das mulheres pobres: da casa à rua.........................................................25
Ocupações, serviços e ofícios......................................................................................................28
Onde e como moram os pobres?.........................................................................................................45
Samba: local de diversão da gente miúda..........................................................................................52
Vendas: locais de encontro..................................................................................................................58
As meninas pobres e o namoro...........................................................................................................62
Donata: uma moça honesta ou uma menina perdida?.....................................................................67
Capítulo 2 Amiaçou-o com a justiça”: os usos da justiça pelas mulheres das camadas
populares..................................................................................................................................71
O tema na historiografia............................................................................................................73
O Código do Processo Criminal e os crimes sexuais...................................................................76
Idade..........................................................................................................................................92
Preto é preto!Branco é branco! Nada de confusões!....................................................................96
Entre “Moças Honestas” e “Meninas Perdidas”........................................................................99
O Poder Judiciário espaço para “potentados” e “pobres desvalidos”...........................................99
Capítulo 3 Família pobre: arranjos domiciliares, relações familiares e honra...............110
O tema na historiografia..................................................................................................111
Histórias de vida familiar das moças honestas e das meninas perdidas.................................114
Mulheres chefes de domicílios e honradez..........................................................................124
Famílias pobres, mas Honradas........................................................................................132
Considerações Finais.............................................................................................................139
Fontes.....................................................................................................................................142
Bibliografia............................................................................................................................146
Anexo......................................................................................................................................159
14
15
Introdução
Nos últimos dias de janeiro do ano de 1887, Maria Lourença andava muito aflita por
causa do desaparecimento de sua filha. No dia 30, deste mesmo mês, pela manhã, ela
recebeu
uma carta, na qual constava o seguinte:
Minha cara mãe deite-me sua benção.
Com imenso prazer pego na pena para saber de sua saúde e
de todos que lhe [pertina], eu até o presente fico com saúde e muitas
saudades de minhas irmãs, e de vossa mercê não se fala. Vossa
mercê, e meu pai devem estarem (SIC) muitos zangados comigo.
Porém o destino, é sempre o destino e portanto a pessoa há de
cumprir com a sina assim mesmo não me julgo tão infeliz, eu saí com
um moço que hoje estou em companhia dele, porém que pelas belas
qualidades dele poderei ser muito feliz ainda. Eu dar (SIC) maneira
que estava de sair de casa (loucura minha) sairia até com a pessoa
que vossa mercê e meu pai não queria ouvir se falar na pessoa dele.
Ele curpa (SIC) quase que não tem, visto ele saber que eu queria sair
fosse com quem fosse; então ele perguntou-me se eu queria morar
com ele, respondi-lhe que aceitava seu convite; já deixa ver que culpa
não tem. Minha mãe queira perdoar o que cometi, a mulher que
quando vem pensar no erro praticou ele algum dia vossa mercê há
de saber. Bote-me sua poderosa benção sobre a filha que sempre a
estimou-a de coração. Se quiser vir até aqui pode vir sem medo, pois
garanto não haver nada estarei as suas ordens. Lembranças as
minhas irmãs. Caras irmãzinhas.
De Sua Filha do Coração
Maria Theodora de Paula Alves
1
Maria Theodora, com 14 anos de idade e “semi-branca”, disse, em seu relato ao
delegado, ter, numa quinta-feira, por volta das 7 horas da noite, do dia 27 de janeiro de 1887,
saído escondida pela parte de trás da casa de seus pais, tendo na rua à sua espera o chefe da
Estação Camaragibe, o senhor João Baptista. Segundo a menor, para ter êxito na fuga e não
ser reconhecido, o chefe da estação preocupou-se em tirar o paletó e colocá-lo sobre o seu
ombro. Chegando o casal na dita estação, Theodora disse que se recolheu a um dos quartos do
lugar e deitou-se sobre umas esteiras com João Baptista. Ela disse ainda, ter gritado “um tanto
1
Instituto Arqueológico Histórico Geográfico Pernambucano IAHGP, 1880 cx3, Segundo cartório do crime
Recife - Queixa = Apelada – A Justiça / Réu- João Baptista de Carvalho.
16
baixo”, tendo sido ouvida por José, irmão do acusado, que dormia no quarto ao lado e para
demonstrar estar acordado tossiu e escarrou.
Nessa mesma noite Maria Lourença, dando pela falta de sua filha Maria Theodora,
saiu a sua procura na casa dos vizinhos e não a encontrou. Três dias depois, a referida carta
chegou às mãos da mãe da menor e ela apresentou-a ao subdelegado, o qual iniciou as
diligências e logo depois foi instaurada uma queixa
2
. A carta foi anexada ao processo e
constava como uma das provas do defloramento da menor.
Assim como no caso de Theodora, em outros processos de crimes de rapto, estupro e
defloramento, os envolvidos, através de seus testemunhos, emitiam suas opiniões sobre o
caso. Dessa forma, as vítimas e os réus, em seus depoimentos, estavam interessados em
estabelecer uma verdade sobre o ocorrido. Cada um, a sua maneira, tenta comprovar ser a
pessoa com a razão para receber a proteção da Justiça. Por isso, na análise dos casos, teremos
acesso a várias versões de um acontecimento e isso torna as discussões dos historiadores bem
ricas.
Por meio desses processos, a principal fonte deste trabalho, podemos estudar os
segmentos populares, os quais deixaram poucos registros nas fontes ditas oficiais, ou então,
estavam mal representados nessas. Desde a década de 1980 um número considerável de teses,
dissertações e livros,
3
produzidos no Brasil, trabalharam com fontes judiciais. Algumas obras
tinham como o cerne de discussão “se seria possível ali encontrar ‘a voz’ de grupos excluídos,
ou apenas mais um discurso do poder, com o qual seria possível fazer uma história do
poder judiciário.”
4
2
Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife. Uflacher, Augusto - Promotor Público da Comarca de Santo
Ângelo na Província do Rio Grande do Sul. Livro do Promotor Público. B. L. Garnier Livreiro Editor, RJ,
1880, pg 53. Esse livro tinha a finalidade de informar, acreditamos, a estudantes do curso jurídico e a
profissionais da área, termos técnicos e os procedimentos legais para a formação de processos e julgamentos.
Uma Queixa seria a exposição do facto criminoso que o ofendido, seu pae ou mãe, tutor ou curador, sendo
menor, senhor ou cônjuge, faz em Juízo, pedindo a punição do delinqüente, proseguindo na accusação até final
sentença”.
3
Esteves, Martha de Abreu. Meninas perdidas Os populares e o cotidiano do amor do Rio de Janeiro da
Belle Époque, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Caulfield, Sueann. Em defesa da honra – moralidade,
modernidade e nação no Rio de Janeiro (1919 1940), Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2000; Chalhoub,
Sidney. Trabalho, Lar e Botequim O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque, São
Paulo, Brasiliense, 1986. SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e
representações de vendeiras e criadas no Recife do século XIX (1840-1870). Dissertação de Mestrado, Recife:
UFPE, 2004. Franco, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. edição, Fundação
Editora da UNESP, São Paulo, 1997. Lara, Silvia Hunold. & Mendonça, Joseli Maria Nunes Mendonça. Direitos
e Justiças no Brasil: ensaios de História Social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006
4
Bretas, Marcos Luiz. As Empadas do Confeiteiro Imaginário: A pesquisa nos arquivos da justiça criminal e
a história da violência no Rio de Janeiro. Revista Acervo, Rio de Janeiro, vol. 15, nº1, p-7, jan-jun, 2002.
17
Acreditamos, portanto, que, apesar dos depoimentos passarem pelo filtro das
autoridades policiais e judiciais, notadamente do escrivão, já que os relatos orais dos
envolvidos em uma querela eram transformados em uma versão escrita, e de ter existido uma
enormidade de mediações, separando o fato narrado de sua transposição para o papel, pois
existiram “filtros lingüísticos, culturais e burocráticos introduzidos pelas testemunhas, pelos
membros das Delegacias de Polícia e Tribunais de Justiça”
5
,
ainda assim, essa
documentação tem a vantagem de reunir os depoimentos das testemunhas, fossem elas pobres
e analfabetas. Para o Historiador, é mais difícil acessar essas informações por outra fonte.
Essa documentação é atraente porque contém dramas pessoais, conflitos e histórias de
vida. Contém detalhes admiráveis fornecidos pelas testemunhas, nas páginas reservadas às
alegações, às sínteses dos advogados e às opiniões dos juízes. Pudemos, por meio dela,
examinar eventos ocorridos na vida de Theodora e de João Baptista, assim como na de outros
homens e mulheres, de forma bastante próxima e minuciosa.
No momento das inquirições às vítimas, testemunhas e acusados, como José Baptista,
possível responsável pelo defloramento de Theodora, foram feitas algumas perguntas;
conhece Maria Theodora desde quando de onde?e “… se a raptou da casa de seus pais?”.
O interrogado respondeu a primeira pergunta dizendo ter conhecido Theodora cerca de
quinze dias na casa de Francisca de tal, com fama de mulher pública
6
. A segunda pergunta
respondeu da seguinte maneira; disse ter encontrado a menor quando ele passeava próximo a
estrada de ferro da Estação Camaragibe. Ela o teria avistado e o chamou pedindo que a tirasse
daquele local. João Baptista disse ter prontamente negado-se a realizar tal pedido. Mas, Maria
Theodora seguiu-o até a estação, apesar de seus pedidos para que ela se retirasse do lugar.
Contudo, Theodora disse dali não sair. Nessa ocasião teriam travado uma conversa. Nesse
diálogo, o acusado perguntou se Theodora era donzela, o que respondeu negativamente. E aí,
João Baptista, disse que ela o podia acompanhar e ainda perguntou quem a desvirginou. A
menina respondeu novamente que quem a desvirginou foi um rapaz chamado Muniz, um
velho conhecido do acusado, mas, ela fez uma ressalva dizendo que teria se deitado com ele
uma única vez.
Contudo, o relato de Theodora, supracitado na carta e no seu depoimento ao delegado,
pretendia provar sua honestidade para receber a proteção da Justiça. Ela deveria expressar que
5
Carvalho, Antônio Carlos Duarte de. Conflitos entre um Médium e a Justiça discussão sobre as
possibilidades da utilização do documento judiciário na pesquisa histórica in: Revista Pós-História Assis,
São Paulo, Vol. 7, 1999. pg. 35.
6
Prostituta.
18
seus comportamentos eram passivos e vigiados por sua família. Sendo assim, ela afirmou ter
saído escondida de sua casa para encontrar-se com José Batista. Esse, por outro lado, no seu
testemunho, levantou suspeita acerca da honra da menor, destacando que ela circulava pela
rua sozinha, as suas companhias e alguns dos seus comportamentos eram impróprios para
uma donzela. Esses aspectos podem ser observados no momento que o acusado afirma ter
encontrado Maria Theodora já na rua, não sendo por isso moça de respeito.
Não nos deparamos com depoimentos que somente, faziam referências as questões
relativas às queixas contra crimes sexuais. Também encontramos informações sobre espaços
de trabalho, lazer, relações familiares e também dos comportamentos e das formas de
relacionamentos amorosos considerados certos e errados pelos depoentes. Mesmo quando
esses interpretam uma personagem diante da Justiça, ainda assim as informações apresentadas
são válidas, pois, essas resultam da mobilização de representações verossímeis para aquela
sociedade, as quais visavam convencer delegados e juízes e assim acabavam por delinear
expectativas e padrões de comportamento pertinentes para homens e mulheres dos oitocentos.
A escolha do período para a nossa análise, segunda metade do século XIX, se deve por
ser esse um momento que encontramos um volume maior de documentos, no caso os
processos de crimes sexuais, onde podemos observar o estabelecimento e a normatização dos
comportamentos de homens e mulheres pobres livres numa sociedade ainda inserida na ordem
escravocrata. E segundo, em razão da relevância desde período, marcado por significativas
transformações nas relações de trabalho no Brasil monárquico. Em Pernambuco, embora estas
transformações já estivessem em curso antes de meados dos oitocentos elas tenderam somente
a se intensificar com Lei antitráfico de 1850 e a lei do ventre livre de 1871, em razão de
ambas terem influenciado e ampliado significativamente a constituição de um mercado de
trabalho livre, no Império.
A incorporação dessa mão-de-obra livre na economia Pernambucana, segundo Marcus
Carvalho
7
, vinha ocorrendo desde a primeira metade do século XIX. Isso não quer dizer,
que o trabalho escravo fosse utilizado em um número menor pelos senhores nas áreas rurais e
urbanizadas. Contudo, a mão-de-obra livre estava disponível. Já Peter Eisenberg chama
7
Carvalho, Marcus J. M. de. Liberdade Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850, Recife:
Editora Universitária da UFPE, 2001.
19
atenção para o fato dos trabalhadores livres serem mais numerosos do que os escravos, em
todas as categorias ocupacionais da província, por volta de 1872.
8
Paralelamente a esse cenário, podemos pensar que outros embates, para além das
injunções econômicas, se davam nesse período e na vida de homens e mulheres pobres. Uma
das cenas que compôs esse palco foi a solicitação por parte das meninas pobres e de suas
famílias da intervenção do Poder Judiciário para auxiliá-las na batalha em busca da reparação
de sua honra.
Ao longo da leitura desses encontros instrutivos de pessoas como Maria Theodora e
João Batista com a instituição judiciária ou com os profissionais da Justiça, acessível através
do registro feito pela pena dos escrivães, foi possível penetrar em residências, sambas, locais
de trabalho, tabernas e inventariar a população que por ali passava ou alguns de seus
membros. Esses encontros, ou melhor, essa documentação permite-nos estudar as relações
familiares e amorosas, as atividades de lazer e trabalho das camadas populares.
Além disso, essa documentação permite-nos chegar mais perto da teia de relações
sociais de homens e mulheres pobres. Foi possível também, perceber trajetórias individuais e
de grupos sociais. Tivemos o interesse de saber como viviam costureiras, criadas domésticas,
agricultores e pequenos negociantes, os quais, em sua maioria, podiam contar, para sua
sobrevivência, com sua força de trabalho. Por isso, concentramos parte do nosso esforço de
pesquisa no sentido de reconstruirmos as experiências cotidianas dos homens e mulheres
pobres livres.
Através da tentativa de construirmos pequenas biografias,
9
pudemos utilizar do
recurso da trama narrativa, a qual não se aproxima do aspecto ficcional usado largamente pela
Literatura. A composição da trama narrativa, aqui utilizada, permitiu investigar alguns
aspectos que, apenas pela descrição dos eventos, não seria possível abordar como, por
exemplo, os valores ligados a honra compartilhados pelos indivíduos estudados. Nessa
empreitada, as histórias de jovens como Theodora e João Baptista ganharam relevo e nos
indicaram elementos contraditórios que compuseram aquele indivíduo e as representações,
muitas vezes extremas que se pôde ter dele.
10
8
Eisenberg, Peter Louis. Homens esquecidos escravos e trabalhadores livres no Brasil séculos XVIII e
XIX, Campinas, Editora da Unicamp, 1989.
9
Levi, Giovanni. Usos da Biografia. In: Usos e Abusos da História Oral. (Org.) Marieta de Moraes Ferreira e
Janaína Amado, 4ª edição, FGV Editora, RJ, 2001.
10
Davis, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pg-21. Utilizo-me de
Natalie Zemon Davis, como especialista, para falar por mim. Quando narro às histórias de homens e mulheres
como Theodora e José Baptista, reconstruindo as suas vivências, caminho num perigoso terreno por isso recorro
20
Essas observações não se contrapõem as regras de escrita da História. Os nossos
relatos sobre o passado obedecem às exigências da disciplina. Entendemos a produção do
conhecimento histórico como resultado do gesto de separar, reunir e ordenar documentos, isto
é, através da prática de pesquisa, mas também de escrita, de se inserir no debate
historiográfico e do comprometimento do Historiador com as instituições de saber com a qual
dialoga.
11
Em face das considerações apresentadas, acreditamos não ser uma heresia unir o rigor
metodológico da História com o encantamento da trama narrativa. Tentamos articular essas
formas de se escrever História, ao reconstituirmos trajetórias pessoais de alguns dos homens e
das mulheres pobres da Província de Pernambuco nos oitocentos.
As histórias de vida das meninas pobres vítimas de crimes sexuais foram diversas.
Essa pluralidade de experiências incluía pardas, pretas, mulatas, brancas, semi-brancas,
meninas que trabalhavam como criadas, engomadeiras, lavadeiras dentre outros ofícios. É
sobre essas meninas/jovens pobres livres e os usos que as mesmas fizeram da Justiça, que o
nosso estudo pretende tratar.
Com esse objetivo, procuramos um autor que nos ajudasse a pensar as camadas
populares
12
. E nesse sentido, dialogamos com E. P. Thompson que está inserido em um
debate que se dedica a trazer as camadas populares para o debate historiográfico, levando em
consideração os aspectos do seu cotidiano, como fazer escolhas refletidas, o trabalho, a
participação política e a dimensão do lazer. Buscamos reconstituir as vivências das jovens
pobres livres, vítimas de crimes sexuais da província de Pernambuco. Notadamente, sob
influência da noção de justiça formulada por Thompson, pudemos perceber mulheres pobres
se apropriando da Lei e lutando pela defesa de seus direitos. O autor não viu a intervenção do
Poder Judiciário somente como meio de dominação, mas, como uma arena de negociações e
de lutas dos dominados
13
a fala da autora para enfatizar que estive sempre atenta às fontes. Em O Retorno de Martin Guerre, ela quando
apresentou as suas fontes concluiu que: “Quando não consegui encontrar meu homem (ou minha mulher) em
Hendaye, Sajas, Artigat ou Burgos, fiz o máximo para descobrir, através de outras fontes da época e do local, o
mundo que devem ter visto, as reações que podem ter tido. O que aqui ofereço ao leitor é, em parte uma
invenção minha, mas uma invenção construída pela atenta escuta das vozes do passado.
11
Certeau, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1982.
12
Pamplona. Marco A. A Historiografia sobre o protesto popular: uma contribuição para o estudo das revoltas
urbanas. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 17, 1996.
13
Thompson, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. Sobre essa
discussão de Thompson ver também: Fortes, Alexandre. O direito na obra de E. P. Thompson. In: Revista
História Social, Campinas – SP, nº 2, 1995
21
Sob essa perspectiva, os pobres, ao contrário do que defendia uma parte da
historiografia fizeram uso das Leis e da Justiça
14
. E a reconstituição de trajetórias, a partir de
fragmentos de suas experiências como a história de Theodora e de outras meninas, presentes
neste trabalho, nos ajudou a repensar essa questão.
O presente trabalho estrutura-se em três capítulos. No primeiro capítulo, procuramos
reconstituir, quem eram as jovens pobres livres, como viviam, quais suas ocupações e onde e
como moravam . Interessou-nos também saber como elas se apropriavam dos espaços de
sociabilidade e solidariedade, como sambas e tavernas, que, todavia, eram também espaços de
conflitos sociais. Neste capítulo fizemos um esforço maior, para aprofundarmos as análises
das especificidades das vivências dessas mulheres, utilizaremos a seguinte documentação:
jornais, ofícios polícias, literatura e processos crimes.
No segundo capítulo analisamos, baseados em 29 processos do Tribunal da Relação de
Pernambuco e nos ofícios produzidos pela Repartição Central de Polícia, os crimes sexuais
previstos na legislação, as penas previstas para os mesmos e os trâmites legais para
instauração dos processos. Será também observado ainda o perfil da idade, cor e atividades de
trabalho das meninas envolvidas nos processos, geralmente as vítimas dos crimes sexuais. Por
fim se analisará o acesso à Justiça pelos segmentos populares, em particular as mulheres
pobres, as quais em alguns casos obtiveram até sentenças favoráveis as suas demandas.
No terceiro e último capítulo, esforçamo-nos para reconstruir o universo das relações
familiares das camadas populares e as noções de honra tanto para os agentes do judiciário
quanto para os homens e mulheres envolvidos nas querelas judiciais. Demonstraremos que
pleitear o status de honrado era um importante elemento de diferenciação social entre as
mulheres pobres e a maioria da população que pouco tinha além da liberdade. Para tanto,
baseamos quase que exclusivamente nossa pesquisa nos processos crimes e nos ofícios
14
Na década de 1980 os Historiadores passaram a utilizar as fontes judiciais como meio de acesso ao mundo dos
que não deixaram seus registros nas “fontes oficiais.” O livro de Boris Fausto é um deles. O autor tem como
preocupação verificar regularidades de valores e comportamentos sociais através da transgressão das normas
penais. As nossas idéias sobre os usos sociais do direito pelos populares não coincidem com o trabalho de
Fausto, pois no entendimento do autor “… para uma pessoa das classes populares, sobretudo, o aparelho
policial e judiciário representa uma perigosa máquina, movimentada segundo regras que lhes são estranhas.”
Através da leitura atenta das fontes percebemos que os populares também faziam, na medida do possível, uso do
Judiciário a seu favor. Por isso, a Lei não pode ser entendida como instrumento de dominação. Com essa
afirmação não deixamos de lado as desvantagens oriundas das desigualdades de precedência ou econômica das
partes envolvidas em um conflito. Apenas cremos que a existência de um espaço para mediar às querelas de
sujeitos em confronto, não nos permite mais pensá-los como vítimas indefesas que nem tinham acesso à Justiça,
pois, mesmo quando entravam na arena jurídica numa posição inferior, o fizeram acreditando que valia a pena
lutar por seus direitos. Fausto, Boris. Crime e cotidiano – A criminalidade em São Paulo, São Paulo:
Brasiliense, 1984, pg-22; Lara, Silvia Hunold. & Mendonça, Joseli Maria Nunes Mendonça. Op. Cit.
22
policiais, pois, encontramos neles mais informações de como esses indivíduos interpretavam
o conceito de honra em seu dia a dia e nos momentos de conflito. Nesse ponto, destacamos a
organização dos arranjos domiciliares e a importância das relações de parentesco e de
amizade para firmar as estratégias de sobrevivência em meio à população pobre.
Com os capítulos assim organizados, aliado a documentação perscrutada e o diálogo
com a bibliografia que deu suporte à análise das fontes, procuramos compreender os usos da
Justiça pelas mulheres pobres livres vítimas de crimes sexuais na Província de Pernambuco
entre as décadas de 1860 e 1880.
23
1º Modos de viver das mulheres pobres livres.
O objetivo deste capítulo é estudar alguns aspectos do cotidiano das mulheres pobres
livres em Pernambuco, na segunda metade do século XIX. Para observá-las iremos tratar das
suas vivências cotidianas na província pernambucana a partir dos parâmetros da época
presentes na documentação como, por exemplo, os locais de moradia. Temos o intuito de
aproximarmos-nos do cotidiano de trabalho e do lazer desses indivíduos e, também, margear
esferas mais íntimas das suas vivências.
A partir de fragmentos de histórias de vida dos homens e das mulheres pobres livres,
envolvidos em crimes sexuais, tentaremos percebê-los ou identificá-los como um grupo social
distinto e perceptível.
15
O contato com a Justiça, quando algumas mulheres reclamavam o que
acreditavam ser seu direito, no caso a reparação da honra, abriu uma oportunidade para
conhecermos melhor o cotidiano dessa população.
Definir o que era ser pobre livre não é uma tarefa fácil ante a pluralidade de
compreensões, hierarquias e vivências daqueles que se identificavam ou foram identificados
como pertencentes a esse grupo. O termo pobre deve ser utilizado, por nós historiadores, com
bastante atenção, para que em nosso ofício de dar inteligibilidade ao passado, não usemos
uma lógica diferente da época pesquisada. A categoria pobre, por exemplo, variou muito no
tempo e no espaço. Uma coisa é a forma como a Igreja e as elites imperiais definiam a
pobreza. Nesse sentido, o ser pobre permeava várias representações, entre elas a de que os
sujeitos ora estudados, foram objeto da filantropia, provocavam medo e por isso necessitavam
ser civilizados.
16
Outra coisa é a maneira como esses sujeitos percebem-se a partir de suas
vivências e valores. Essa discussão acerca do mundo dos pobres deve levar em consideração
as experiências culturais daquelas pessoas que compartilhavam a mesma condição de pobreza,
a saber: quem eram e em que trabalhavam? Onde residiam e como moravam? Quais
ambientes freqüentavam e em que condições materiais viviam esse grupo social que possuíam
15
Pesavento, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade: vida e trabalho – 1880-1920. 2ª edição, Porto Alegre; Ed. da
Universidade/UFRGS, 1998, pgs-9 e 12.
16
Sobre os pobres e a igreja católica nos oitocentos ver: Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia
do século XIX.ed. São Paulo: HUCITEC/EDUFBa, 1996.
24
múltiplas faces e gradações; como a posse de moradias precárias, alguns móveis e poucas
roupas.
17
Diante dessas colocações não devemos falar em pobreza, mas sim em pobrezas”
18
.
Sabendo da diversidade de experiências no mundo dos desafortunados, nos deteremos
naqueles pobres que vivenciaram o declínio do escravismo, tanto da área urbana quanto rural,
na Província de Pernambuco, na segunda metade dos oitocentos. Aqui nos referiremos mais
especificamente àquelas mulheres que para terem suas questões/ ou direitos levados adiante
pelo Poder Judiciário só podê-lo-iam fazer se fossem pobres de acordo com a lei e fossem por
este reconhecidas como pobres por não poderem arcar com o pagamento dos custos do
processo. Tal procedimento era cabível nos casos de rapto, estupro e defloramento, os quais,
embora fossem considerados crimes particulares, se praticados contra “pessoas miseráveis”
tornar-se-iam públicos e permitia a atuação do Promotor de Justiça.
19
Embora os processos pesquisados abrangessem um conjunto limitado da população
eles nos possibilitam caracterizar minimamente, quem eram as mulheres pobres da Província
de Pernambuco de meados dos oitocentos. Mas antes de procedermos a esta análise, faz-se
necessário algumas breves considerações sobre a produção historiográfica relativa ao tema da
pobreza no Brasil do século XIX.
algum tempo, a historiografia sobre o Brasil do século XIX vem se dedicando a
analisar os pobres livres. Esse segmento da população foi objeto de estudo, na década de
1960, de Maria Sylvia de Carvalho Franco. A autora produziu um trabalho com uma pesquisa
empírica que teve como bases relatos de viajantes e os processos criminais, os quais
apresentam informações a respeito da vida dos pobres livres da região cafeeira do Vale do
Paraíba.
20
Para definir o que distinguia os homens pobres livres das outras categorias sociais do
século XIX, Maria Sylvia utilizou como elemento definidor a dependência pessoal. Mais
que a pobreza material, estar dependendo de um grande proprietário aparece como elemento
17
As nossas fontes: os ofícios policiais, processos criminais e matérias de jornais nos permitem vislumbrar o
modo de vida das camadas populares, contudo as mesmas não trazem muitas informações sobre a cultura
material dessas pessoas.
18
Ezequiel, Márcio. Pobreza como objeto histórico: Problemas empíricos e teóricos. In: Diálogos revistado
Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. V.02, N.02, 1998.
19
BFDR Uflacher, Augusto - Promotor Público da Comarca de Santo Ângelo na Província do Rio Grande do
Sul. Livro do Promotor Público. B. L. Garnier – Livreiro Editor, RJ, 1880, pgs- 68/69.
20
Franco, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na ordem escravocrata. edição, Fundação Editora da
Unesp, São Paulo, 1997.
25
homogeneizador dos pobres livres por ela estudados. A análise de Maria de Sylvia reúne uma
diversidade de categorias sociais nem sempre identificadas pela falta de recursos como
tropeiros, vendeiros, sitiantes ao lado de agregados e camaradas.
Por outro lado, Hebe Maria Mattos, ao dialogar com o texto de Maria Sylvia de
Carvalho, centra sua discussão, na necessidade de uma melhor caracterização dos homens
pobres livres. Diferentemente de Maria Sylvia, ela define esses homens, particularmente os da
zona rural, de acordo com o “grau de utilização do trabalho escravo e das formas de inserção
no mercado regional de café e mantimentos”
21
, isto é, pela posse de escravos (quantidade) e
posição na hierarquia econômica do universo dos agricultores/ classe senhorial.
O livro de Denise Moura é outra importante referência ao estudo dos pobres livres no
Império Brasileiro. E isso não se deve somente ao denso trabalho de pesquisa com os relatos
dos viajantes, processos crimes, jornais e documentação da polícia ou por conta da
diversidade de temáticas analisadas pela autora, como os lugares de sociabilidades
freqüentados pelos pobres, sobre os ajustes de trabalho e as relações dessas pessoas com os
escravos, mas porque esteve atenta à complexidade do viver desses sujeitos além, de tomá-los
como agentes autônomos com motivações próprias para gerir o seu viver, por não reduzir a
ação desses sujeitos somente às relações clientelísticas e nem isolá-los no universo da
pobreza.
22
É dentro da perspectiva analítica dessa autora que caminha esta dissertação.
O mundo do trabalho das mulheres pobres: da casa à rua.
O barulho dos fogos de artifício ganhava as ruas, pois, era noite do dia 23 de junho de
1885, véspera de São João, na Cidade do Recife.
23
Donata, que ora é indicada como branca e
ora como parda, com idade de 13 anos incompletos, nessa noite, se arrumava com sua mãe,
Rita Maria de Cássia, para mudarem da casa em que moravam na Rua Antônio Henrique,
25. Mãe e filha caminharam, provavelmente, sem muitos incômodos, como poças de água ou
21
Castro, Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História lavradores pobres na crise do trabalho escravo. Editora
brasiliense, São Paulo, 1987, pg-82.
22
Moura, Denise A. Soares de. Saindo das Sombras: Homens Livres no Declínio do Escravismo. Campinas,
CMU, Unicamp, Coleção Campiniana, 1998.
23
IAHGP - Apelação crime do júri da Cidade do Recife, apelada: A Justiça, apelante: Augusto Moreira da Silva,
1886.
26
poeira,
24
até a residência de Augusto Moreira da Silva, na Rua Imperial, 59, onde Rita era
empregada como ama.
Tivemos acesso aos detalhes sobre a mudança de residência realizada por Donata e sua
mãe, através de um maço de papéis que compunham o processo-crime de defloramento
sofrido pela menina. Através dos relatos das testemunhas arroladas no processo em questão
nos foi possível reconstituir alguns fragmentos de vida de pessoas pobres como Donata no
Recife dos oitocentos.
Ficamos sabendo ainda, que um dos possíveis caminhos para se chegar até a casa de
Augusto era pelas movimentadas Ruas Padre Floriano e do Jardim. O Bairro de São José tinha
grande movimentação de pessoas, inclusive daquelas que não residiam neste bairro popular.
25
O vai e vem nas ruas desta localidade, se dava também pela concentração de atividades e
serviços. Ali estava o Mercado de São José e a Rua Barão da Victória onde situava-se os
estabelecimentos onde rema vendidas máquinas de costura: Cardozo & Irmão Bazar das
Costureiras e o de Antonio Pedro de Souza & C., no qual além de se comprar máquinas de
costura, podia-se aprender a coser e consertar qualquer machina”
26
. Naquela rua ainda
existia um diversificado comércio que atendia aos diversos consumidores. Em meados do ano
de 1885, foram introduzidos no bairro os trilhos urbanos,
27
que permitiram a vinda de
indivíduos das localidades mais distantes para aquela paragem.
Como indica o processo, até chegarem a seu destino, mãe e filha foram observadas
pelas pessoas da redondeza, como foi relatado pela parteira Anna Maria das Mercês,
moradora na Rua Imperial. No depoimento prestado às autoridades, ela disse que, tinha
avistado Donata e interessou-se em observá-la quando aquela chegou à casa de Augusto.
Disse mais: “visto saber por experiência, visto ser parteira, e por outros motivos que Donata
era virgem”. Anna Maria das Mercês usava a janela da sua casa como ponto de observação
do que se passava na rua, a qual era bastante movimentada em dias comuns, mas, em dias de
24
A Rua Antônio Henrique em 1868 foi calçada “por designação do diretor das Obras Públicas, Manoel
Lourenço de Mattos (interino)”. Revista do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano APEJE. O
Calçamento do Recife no Século XIX; Carla Botelho, vol. 42, 46, dezembro 1996, p. 46. passagens da
apelação na qual aparece como local anterior de moradia de Donata e sua mãe o Beco ou Rua dos açouguinhos.
Isso nos leva a crer, a partir do artigo de Carla Botelho, ser o Beco ou Rua dos Açouguinhos uma extensão ou
situada em algum ponto da Rua Antônio Henrique.
25
Rocha, Artur Gilberto Garcéa de Lacerda. Discursos de uma modernidade: As transformações urbanas na
Freguesia de São José (1860-1888), Recife, 2003, Dissertação de Mestrado em História.
26
APEJE - Anúncios – Diário de Pernambuco, 4 de julho de 1870.
27
Os trilhos urbanos foram inaugurados no Recife em de junho de 1861, num trajeto provisório da Rua da
Formosura até a do Caldeireiro e o definitivo neste mesmo ano ligaria Santo Antônio a Boa Vista. pgs.66/67.
Duarte, JoLins. Recife no tempo da maxabomba (1867 1889) o primeiro trem urbano do Brasil. Recife,
2005, UFPE, dissertação de mestrado.
27
festa lançar-se à janela deveria ser como estar sentado numa platéia com um, porém, de
algumas vezes assistir as cenas e em outras participar ativamente do enredo.
Neste dia, véspera de São João, apesar de ser noite havia pessoas pela rua para soltar
fogos em homenagem ao santo. Na dita via, em dias comuns, o trânsito era intenso
moradores, clientes, trabalhadores locais e carroceiros. Essa rua era a principal via de entrada
da Cidade do Recife para os produtos de exportação vindos do interior da província e que
eram remetidos ao porto.
28
Não foi à toa o fato, de por volta de 1883, o português Augusto
29
, patrão da mãe de
Donata, ter ido morar e ter montado uma taverna nessa via, comércio que no processo
também aparece citado como um estabelecimento de molhados. Devia ser a mistura dos dois.
Provavelmente ali eram vendidos açúcar, lingüiça, arenque
30
e cachaça, além de também ser
um dos pontos de encontro das pessoas que trabalhavam em diversas atividades no Bairro de
São José: pintores, encadernadores, alfaiates, parteiras, senaleiros, funileiros, criadas
domésticas, lavadeiras, engomadeiras os quais atendiam às demandas do crescimento das
atividades mercantis na Cidade do Recife. Nesse espaço de sociabilidade, a taverna, se
comentava a respeito das medidas do poder público, como, por exemplo, as tentativas de se
por em prática as posturas municipais. Nesse local também poderiam acontecer
desentendimentos e amores.
Donata conhecia a casa da Rua Imperial, na qual funcionava a mencionada taverna,
pois, em momentos anteriores, auxiliou no trabalho de sua mãe, pois, no caso das crianças
pobres sua inserção no mundo do trabalho ocorria muito cedo, no passado e mesmo
atualmente. Donata devia realizar pequenos trabalhos como; carregar água e lavar pratos
atuando como ajudante de sua mãe. E esse deve ter sido o momento da aprendizagem de
muitas meninas do ofício de criada.
Mas desta vez Donata não se dirigiu a casa de Augusto para ajudar sua mãe no
trabalho. Naquela noite, do dia 23 de junho, foi diferente. Elas foram residir. Depois que
sua mãe, Rita Maria, solicitou, ao seu patrão autorização para morar com sua filha na casa do
mesmo, “por lhe ser muito penoso em vista da falta de recursos pagar uma casa onde
28
Botelho, Carla. Op. Cit.
29
A história de Augusto, acreditamos foi semelhante à de outros portugueses que foram caixeiros de
estabelecimentos comerciais quando menores e recentemente chegados de Portugal, posteriormente conseguem
juntar recursos e montam seu próprio negócio. Para uma melhor dimensão da vivência desses homens ver o
trabalho de Bruno Augusto Dornelas Câmara, Trabalho livre no Brasil Imperial: o caso dos caixeiros de
comércio na época da Insurreição Praieira, Recife, 2005, UFPE, dissertação de mestrado.
30
Peixe o qual se come defumado.
28
continuasse a ter sua filha”. Inicialmente, o patrão resistiu a idéia e disse a sua criada
31
: “não
queria em sua casa, moça que fosse tida como donzela”, mas por fim franqueou a sua morada
para a sua ama instalar-se com sua filha. Algum tempo depois, este patrão, estaria às voltas
com a Justiça acusado de praticar um crime sexual. Assim como neste caso, as folhas
empoeiradas de processos crimes nos abriram caminhos para uma incursão no cotidiano das
mulheres pobres, em suas múltiplas e variadas faces.
Ocupações, serviços e ofícios.
No período da segunda metade dos oitocentos, o leque de opções das atividades de
trabalho feminino não era tão amplo, consistindo as oportunidades de emprego para as
mulheres pobres das atividades ligadas às tarefas domésticas como a de ama-de-leite,
cozinheira, costureira, lavadeira, engomadeira e ama seca, como no caso da citada Rita Maria.
Naquele tempo os jornais se constituíam no meio para divulgação de oferta de emprego,
além, é claro do disse-me-disse das ruas e vizinhanças. O fato porém da maioria da população
não ser alfabetizada, não representava um obstáculo para as pessoas se informarem sobre as
ofertas de trabalhos.
32
Através de conversas em locais públicos, como chafarizes ou vendas o
que estava estampado nos jornais caia na boca do povo. E no final do século XIX, se
estampava nos jornais da capital um anúncio de uma agência de emprego doméstico
localizada no Pátio de São Pedro, 3. A existência deste estabelecimento sugere o
desenvolvimento razoável de um mercado de trabalho no Recife, em fins do século XIX.
33
Uma criada doméstica de um patrão como Augusto Moreira, proprietário de um
pequeno negócio, e por isso o identificamos como possuidor de pequenos recursos, devia ser
31
Augusto faz referência a esse dialogo em seu depoimento após o “crime” ocorrido.
32
Número de pessoas alfabetizadas e não-alfabetizadas de acordo com o censo de 1872: Freguesia de São Frei
Pedro Gonçalves: 4.673 sabendo ler e 3.300 analfabetos; Freg. de Santo Antônio: 9.979 sabendo ler e 5.391
analfabetos; Freg. de São José: 10.343 sabendo ler e 11.718 analfabetos; Freg. da Graça: 3.033 sabendo ler e
2.400 analfabetos; Freg. dos Afogados: 5.118 sabendo ler e 5.000 analfabetos; Freg. do Poço da Panela: 1.697
sabendo ler e 3.840 analfabetos; Freg. da Várzea: 2.658 e 4.007 analfabetos e Freg. de São Lourenço: 1.046
sabendo ler e 3.886 analfabetos. No número de analfabetos não estão incluídos os menores de 6 anos, que não
freqüentam escolas, e nem os maiores de 7, que freqüentam. In: (Org.) Mello, José Antonio Gonsalves de. O
Diário de Pernambuco e a História Social do Nordeste (1840 1889), vol. II, 1975. O número de pessoas
alfabetizadas não é muito maior que o de analfabetos e diante desse fato podemos dizer serem os últimos o que
Denise Moura denominou de leitores ouvintes. Além do mais, se pensarmos na população por nós estudada - a
dos pobres - é onde encontramos uma grande quantidade de pessoas que não m domínio das práticas de leitura
e escrita convencionais.
33
Jornal do Recife, Agencia de empregos, 1 de setembro de 1874, fl.4. In: Noemia Zaidan. Op. Cit. Pg- 31.
29
responsável por realizar o trabalho de portas adentro e de portas a fora. Provavelmente, Rita
acumulava diversas funções. Dentro de casa, a cozinha era o espaço onde se concentrava
maior parte do trabalho doméstico, principalmente, o preparo das refeições. Cozinhar exigia
todo um manejo de equipamentos como os fogões à lenha, os fornos de barro ou os fogões de
ferro. Requeria também o uso de muita água, que naquele tempo não jorrava nas torneiras das
casas.
A água deveria ser armazenada para se ter um bom funcionamento da cozinha nas
atividades de lavar pratos e cozinhar
34
. O abastecimento de água
35
até o início do século XX,
era, em sua maioria, retirada de chafarizes públicos. Rita Maria mesmo andava alguns metros
para pegar o líquido, pois, na Rua Imperial existiam dois chafarizes. Um ficava próximo ao
Viveiro do Muniz com 4 bicas e o outro ficava defronte ao Cabanga.
36
Esse trabalho na rua
possibilitava as domésticas conhecerem muita gente, como os aguadeiros, que transportavam
água até os domicílios, carroceiros, outras lavadeiras ou aquelas pessoas, as quais apenas
paravam para conversar. Os chafarizes em particular eram ponto de encontro de pobres livres,
cativos e libertos, onde se conversava sobre tudo, conforme observou Mario Sette.
37
34
Graham, Sandra L. Proteção e Obediência criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo,
Companhia das Letras, 1992.
35
Matos, Maria Izilda Santos de. Do público ao privado: redefinindo espaços e atividades femininas (1890
1930), Cadernos Pagu (4), 1995, pg-104.
36
Menezes, José Luiz da Mota; Araújo, Hamilton Francisco de e Chamixaes, José Castelo Branco. Águas do
Prata História do saneamento de Pernambuco 1838 a 1912. Companhia Pernambucana de Saneamento
COMPESA, 1ª edição, 1991, pg-109.
37
Sette, Mário. Arruar - história pitoresca do Recife antigo. edição, coleção pernambucana, volume XII,
Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Educação e Cultura, Recife, 1978, pg-217.
30
Eram em locais movimentados como esse que as criadas domésticas como Rita Maria e sua filha Donata,
pegavam água, nos chafarizes públicos como o circulado acima, e tinham oportunidade de conhecer muitas
pessoas. Litografia de Luís Schlappriz, Ferrez, Gilberto. O Álbum de Luís Schlappriz: Memória de
Pernambuco. Álbum para os amigos das Artes 1863. Recife:Fundação de Cultura da Cidade do Recife:
1981.
A lavagem de roupa também fazia parte do cotidiano do trabalho doméstico executado
porta à fora. As lavadeiras lavavam as roupas ao ar livre, nos chafarizes públicos ou próximos
a rios. Ensaboavam, esfregavam, torciam e colocavam para secar nas proximidades, o que
lhes causava alguns transtornos como o noticiado no jornal A Província
38
, no qual mulheres
que tiravam seu sustento da lavagem de roupa pediam ao fiscal do Poço da Panela atenção
para a transgressão das posturas municipais, pois, naquela localidade o gado andava solto,
pisando nas roupas estendidas nas margens do rio e acabavam sujando e rasgando as mesmas.
Além dessas dificuldades na execução do trabalho, as condições climáticas como as chuvas
interferiam no dia-a-dia dos serviços domésticos.
Lavar roupas e peças de uso doméstico consumia boa parte das horas de trabalho de
uma criada. Os outros cômodos de uma casa como a sala e os quartos geravam tarefas
38
APEJE - A Província, É Justo, 23 de fevereiro de 1877.
31
adicionais. Mesmo com poucos móveis, esses espaços precisavam ser arejados e espanados.
Ainda fazia parte do cotidiano de trabalho doméstico engomar roupas. Enfim, uma ama, como
Rita Maria, de um patrão mais modesto, como Augusto, fazia os trabalhos de casa e da rua.
APEJE – Jornal América Ilustrada, nº39, ano VI, Fl.4, 1876. Mulher desempenhando serviço doméstico.
32
O
OO
O Serviço doméstico, entendido como trabalho leve e de acordo com a fragilidade
feminina, deve ser repensado, como bem nos lembra Maria Izilda Matos,
principalmente, quando observamos relatos de atividades cotidianas de lavadeiras,
carregando trouxas de roupas e as pesadas bacias de flandres, rachando lenha para
queimar no fogão ou quando utilizavam o ferro de carvão e vez por outra se
queimavam.
*
A tarefa das engomadeiras era pesada e difícil como expõe em suas
memórias Dona Risoleta:
“… acendia cinco ferros de carvão para engomar a roupa de linho que tinha que passar tudo úmido:
eu largava um ferro pegava outro (… ) o ferro era pesado, não era ferro de estufa: o linho tinha que
se passar muito bem, com ferro bem quente.”
* *
* Matos, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura História, Cidade e Trabalho. EDUSC, Bauro, São
Paulo, 2002, pg-128. .* * Lembrança de Dona Risoleta. In: Bosi, Ecléa. Memórias se Velhos.
Figuras 1, 2, 3 e 4 Pinturas de Edgar Degas, disponível na internet: www.jimloy.com,
www.sanglier.co.uk e www.liverpoolmuseums.org.uk, data de acesso 05/11/2006.
33
A análise dos processos por nós trabalhados demonstra bem que o serviço doméstico
era a ocupação que predominava entre as moças ofendidas. A tabela abaixo apresenta a
distribuição das ocupações exercidas pelas meninas:
TABELA Nº 1
OCUPAÇÃO DAS VÍTIMAS NOS PROCESSOS DE CRIME SEXUAL (1863-1887).
Ocupação Quantidade Porcentagem
Costureira 4 13,79%
Serviço Doméstico 10 34,48%
Vendedora de lenha 1 3,45%
Indigente 1 3,45%
Não mencionada 13 44,83%
Total 29 100
Na tabela 1 há um percentual expressivo de mulheres que foram identificadas ou se
identificaram como empregada ou exercendo o serviço doméstico. Essa categoria de
trabalhadoras é bastante ampla e deixa certa vida se tais atividades eram realizadas nas
casas das vítimas ou na de seus patrões, como no caso das costureiras e das lavadeiras que
exerciam atividades de trabalho sistemáticas para seus empregadores, mas, não residiam com
eles.
Segundo o Censo de 1872, a população feminina livre, brasileira e estrangeira da
Província de Pernambuco que exercia alguma atividade produtiva era de 871.446 pessoas
39
.
Podemos tomar os dados do Censo de 1872, apenas, como verossímeis, pois, alguns dados
podem ter escapado das malhas quantificadoras oficias. Isso porque o trabalho foi uma
realidade que se apresentou desde muito cedo na vida da população pobre e os dados
apresentados na tabela 1, as informações fornecidas pelo censo e as próprias meninas,
quando declararam exercer algum serviço doméstico, nos fazem crer que muitas vezes sua
renda que contribuía no orçamento doméstico não foi computada como tal. Com relação a
essa questão é impossível qualquer tipo de contabilidade mais precisa. Mas essa omissão pode
39
Censo da Província de Pernambuco 1872. Na parte – População considerada em relação às profissões.
34
ser explicada pelo uso da própria categoria “serviço doméstico”, a qual poderia designar
mulheres que não exerciam atividade remunerada.
34,48% das atividades de trabalho exercidas pelas meninas nos processos pesquisados
são atividades ligadas a casa, como as amas-secas, engomadeiras, costureiras e lavadeiras, isto
para citarmos às atividades mais comuns, conforme se vê no quadro abaixo:
40
TABELA Nº 2
OCUPAÇÃO E IDADE DAS VÍTIMAS NOS PROCESSOS DE CRIME SEXUAL (1863-
1887).
Quantidade Ocupação Idade
1 Serviço Doméstico 9
1 Serviço Doméstico 12
2 Serviço Doméstico 13
2 Serviço Doméstico 14
2 Costureira 14
2 Serviço Doméstico 15
1 Costureira 15
1 Serviço Doméstico 16
* Nessa tabela foram relacionados os casos em que houvesse o registro das ocupações ligadas ao serviço doméstico e da
idade das meninas.
Se tomarmos os dados das tabelas 1 e 2 como referência, é possível lançar
algumas conjecturas acerca do ingresso de meninas pobres no serviço doméstico. Supondo
que as meninas começassem a exercer uma atividade de trabalho rentável e ligada ao serviço
doméstico por volta dos 9 anos de idade, era necessário desde muito cedo o treinamento
profissional das mesmas. Como no caso de uma pessoa a qual oferecia para ser alugada a sua
escrava de 14 anos, que já era treinada para “todo serviço”
41
. Assim, as meninas entrariam no
mundo do trabalho doméstico, por volta dos 12 aos 15 anos (tabela nº 2) e, de um modo geral,
estariam menos dependentes dos cuidados familiares e em condições de contribuir para o
sustento de seus lares.
40
Os exemplos das atividades de trabalho femininas, citados neste parágrafo, foram retiradas também do rol das
testemunhas.
41
APEJE – Diário de Pernambuco, Anúncio, 05 de março de 1868.
35
A entrada no mundo do trabalho, para as meninas pobres, poderia servir como auxílio
financeiro as suas famílias, mas, poderia assumir outro significado como a diminuição das
despesas de sua casa com uma boca a menos para alimentar. O pagamento das menores e até
das mulheres adultas, frequentemente, não se dava pelo pagamento de um salário e sim, em
troca de casa e comida. Em alguns casos deve ter havido pagamentos mistos, incluindo
alimentos, roupas e moradia junto à uma pequena remuneração em dinheiro.
42
O número significativo de mulheres empregadas nas atividades domésticas ocorria
porque a aprendizagem desse ofício dava-se, desde a infância, nas suas casas ou naquelas que
suas mães trabalhavam e no dia-a-dia. Outras meninas aprenderam um ofício em uma
instituição como o Colégio das Órfãs, que dispunha de máquinas de costura e tecidos para
serem utilizados nas aulas de costura, onde as meninas recebiam ensinamentos de mestres
experientes para iniciarem-se neste ofício comum ao sexo feminino.
43
O serviço de costura variava entre as costureiras especializadas e aquelas que
realizavam pequenos consertos
44
. Existiam as costureiras chamadas de modistas que sabiam
fazer uma variedade de trajes como os apresentados no seguinte anúncio do Diário de
Pernambuco de 10 de novembro de 1887:
Modista Aprontam-se vestidos por figurinos para casamento, baile,
theatro, passeio, luto, etc. para casamento por […] De seda.
Grossdenaple ou gorgorão por […] De merino, alpaca ou por […]
De cambraia ou gaze por […] De chita ou cretone por […].
Concertam-se e enfeitam-se chapéu de senhora. Preparam-se
enxovaes de criança na Rua do Imperador nº 39, 2º andar.
45
Por outro lado tinham aquelas costureiras chãs
46
as quais sabiam fazer pequenos
consertos. Algumas das nossas personagens presentes nos processos, apesar de jovens, eram
costureiras com certa especialidade, como a de cozer, uma delas apareceu cosendo camisa de
homem. Sheila Faria também observou o ingresso de crianças nas atividades produtivas.
42
Sarasúa, Carmen. Criados, nodrizas y amos El servicio doméstico em la formacióndel mercado de trabajo
madrileno, 1758 1868. Siglo Veintiuno de Espana Editores S.A. ,México/ Espana, edição, 1994. Carmen
Sarasúa no seu livro analisou as diferentes funções dentro do serviço doméstico no mercado de trabalho urbano
do século XIX em Madrid. Ela observou a inserção feminina nesse mercado de trabalho, especialmente, das
imigrantes das áreas campesinas.
43
APEJE - Série Instrução Pública – IP 13 Fl.515 e IP 14 Fl.119.
44
APEJE - Diário de Pernambuco, Anúncio Modista, 10 de novembro de 1887, pg4.
45
Idem.
46
Chã – terreno plano; planície. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa,
edição. Ver. Ampliada, RJ: Nova Fronteira, 2000.
36
Segundo a autora: “meninas de 6 e 7 anos se iniciavam nos ofícios de costureiras e
rendeiras, o que as colocariam bastante cedo como contribuintes do orçamento familiar.”
47
As meninas iniciadas no corte e na costura deviam, em geral, fazer trabalhos simples,
sob a orientação de uma mulher perita no ofício. A costureira cabia fazer o vestuário para
pessoas de qualquer sexo ou idade, além de roupas de cama e mesa. Nos anúncios dos jornais
das últimas décadas do século XIX, os empregadores procuravam costureiras que fossem boas
na agulha e também na máquina, como podemos ver no anúncio a seguir: Costureiras -
Precisa-se de boas costureiras e que também em machina : na Rua do […] nº 30 : a sobrado,
até as 7 horas da noite”.
48
E caso as costureiras o dominassem essa tecnologia ou não tivessem uma pessoa
próxima para repassar esses conhecimentos, nas próprias lojas onde esses produtos eram
vendidos, “ensinava-se a cozer”. Além disso, as facilidades oferecidas pelas lojas os
consumidores, como os descontos e a venda a prazo, sugerem que elas visavam atingir um
maior número de clientes, inclusive porque as mulheres pobres, pois, as mulheres ricas tinham
também o hábito de costurar.
Anúncio Diário de Pernambuco 1870.
47
Faria, Sheila de Castro. A colônia em movimento Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
48
APEJE- Diário de Pernambuco, Seção de Anúncios, 10 de novembro de 1887, pg-4.
37
Anúncio Diário de Pernambuco 1870.
Para as mulheres pobres a máquina de costura poderia ser um incremento na sua
atividade de trabalho, pois, o uso desse equipamento proporcionava agilidade na costura de
suas encomendas. Como foi registrado no romance o Mulato, onde algumas mulheres dos
segmentos mais abastados aparecem conversando sobre as mudanças que a máquina de
costura trouxe para suas vidas:
No seu tempo, dizia ela com azedume, as meninas tinham a sua
tarefa de costura para tantas horas e haviam de pôr pr'ali o trabalho!
se o acabavam mais cedo iam descansar?...
Boas! desmanchavam minha senhora! desmanchavam para fazer de
novo! E hoje?...
perguntava dando um pulinho, com as mãos nas ilhargas - hoje é o
maquiavelismo da máquina de costura! Dá-se uma tarefa grande e é
só “zuc-zuc-zuc!” e está pronto o serviço! E daí, vai a sirigaita pôr-se
de leitura nos jornais, tomar conta do romance ou então vai para a
indecência do piano!
38
E jurava que filha sua não havia de aprender semelhante instrumento,
porque as desavergonhadas só queriam aquilo para melhor conversar
com os namorados sem que os outros dessem pela patifaria!
49
Essas mudanças trazidas pelo ingresso de novas tecnologias podem também, ter sido
experimentada pelas meninas pobres. Para quem o trabalho sempre foi uma realidade no
século XIX. O fato de trabalhar possibilitava a elas transitar pelas ruas, conhecerem pessoas
fora do seu grupo familiar e marcarem encontros amorosos longe das vistas dos seus
responsáveis. A costura, por exemplo, era uma destas atividades que possibilitava a mulher
manter relações diversas, não somente com os seus fregueses, mas também com as pessoas
dos lugares onde eram vendidos os produtos de seu ofício.
Foto de Augusto Stahl, Doceira e Criança no Recife, Recife 1860. Coleção Gilberto Ferrez Acervo Instituto
Moreira Salles. Ermakoff, George. O Negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio de Janeiro: George
Ermakoff Casa Editorial, 2004. Mulheres e meninas pretas e brancas moviam-se diariamente e com desenvoltura
pelas ruas da cidade desempenhando uma infinidade de serviços.
49
Azevedo, Aluízio. O Mulato, Rio de Janeiro, Ediouro, s.d. (Prestigio) Texto proveniente da Biblioteca Virtual
do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br, pgs- 52/53.
39
Em grande parte dos processos criminais pesquisados, a rua, apesar de ser espaço das
atividades cotidianas de mulheres pobres como, por exemplo, das criadas que saiam para
comprar ou vender alimentos ou das lavadeiras, que entregavam as roupas na casa de seus
clientes – ainda assim era representada como lugar da desonestidade. Tanto que, o negociante,
Samuel Tiburcio d’Oliveira, declarou que Donata, a que nós nos referimos páginas
atrás“sempre vivia a janela [de sua casa no Beco dos Açouguinhos] e a porta e não
recatada”. Esse comportamento da menor, que segundo a testemunha ocorria com certa
freqüência, poderia ser associado às atividades comuns às meretrizes que ficavam expondo-se
nas janelas de suas casas.
O relato de Samuel não pode ser visto somente como um recurso para identificá-la
como uma mulher desonesta. Esta história é plausível, pois, não podemos esquecer que o
Bairro de São José era bastante movimentado, por ser um centro comercial, e ficar à janela
conversando era uma estratégia utilizada pelas meretrizes para atrair clientes. Além do que, a
prostituição poderia ser uma atividade complementar que as mulheres das camadas populares
lançariam mão quando as atividades de lavar roupas, de engomar, os serviços domésticos
realizados na casa de uma família ou a venda de alimentos não geravam renda suficiente para
pagar as suas despesas.
50
Janelas usadas como locais de conversas entre visinhos.
APEJE – Jornal América Ilustrada, nº6, 5º semestre (agosto – setembro), Fl.5, 1872.
50
Pereira, Cristiana Schettini. Lavar, passar e receber visitas: debates sobre a regulamentação da prostituição
e experiências de trabalho sexual em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, fim do século XIX. Cadernos Pagu
(25), julho-dezembro de 2005, pp.25-54.
40
Quanto à prostituição O delegado do distrito do Recife, em agosto de 1885, recebeu
ordens para ficar atento à exibição de meretrizes em janelas. Tinha ordem para providenciar
que as casas rreas ou lojas de sobrados ocupados por meretrizes tivessem, nas portas e nas
janelas, cortinas de chita ou de lã, colocadas de um jeito a fim de não permitir ver as
movimentações do seu interior. Teriam de estar atentos também a não consentir a parada de
homens nas portas dessas casas nem a reuniões que pudessem chamar a atenção dos
transeuntes.
51
Por si só, o fato de olhar o vai e vem da rua pela janela e até conversar com
quem passava não significava que Donata fosse uma meretriz, embora ela corresse o risco de
ser confundida com as que viviam desta profissão.
52
A janela de uma casa era uma tênue fronteira entre o espaço privado e o público. Para
Donata era mais do que um local de ventilação ou de entrada de luz para a casa, era também
um lugar para se ter contato com os passantes, com negociantes como Samuel, pois, as
compras e entregas podiam ser ali feitas. A janela consistia também no local para conversar
com os vizinhos, estreitando essa relação e também namorar.
53
Através da janela, a casa e a
rua se interpenetravam constantemente. Sendo assim, é difícil delimitar objetivamente o que
era espaço público ou privado.
APEJE – Jornal América Ilustrada, nº2, 13 de outubro de 1872, Fl.6. Trecho do diálogo realizado por
moças de posses em varandas.
51
APEJE – RCP – Delegacia de Polícia do 1º distrito do Recife em 10 de agosto de 1885.
52
Cristiana Schettini em seu estudo sobre a prostituição no Rio de Janeiro republicano, teve como preocupação
observar os significados dados ao espaço urbano pelas pessoas envolvidas nas atividades da prostituição e pelas
autoridades policiais. Pereira, Cristiana Schettini. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no
Rio de janeiro das primeiras décadas republicanas. Tese de Doutorado, Unicamp, Campinas, SP, 2002.
53
Souza, Fábio Gutemberg Ramos Bezerra de. Na casa e... na rua: cartografias das mulheres na cidade
(Campina Grande, 1930-1945), Cadernos Pagu (24), jan-jun, 2005, pgs-153-174.
41
Em 1883, um observador de época narrou a conversa entre uma mãe e sua filha nuançando a
representação de que janelas e portões, pela proximidade com a rua, eram lugares suspeitos,
espaço da desonestidade e de relações instáveis:
Ingenuidade
- Mamai, eu vou pr’a a janela,
ver passar o batalhão.
- Mas, menina, olha o feijão
que s’encráa na panella.
Tu’stás ficando amarella...
Já não vais mais ao fogão.
E não saes lá do portão
A segredar co’a Manoella...
- Mas, mamai, ella é quem traz
as cartas do seu Thomaz
que é o meu novo apaixonado.
- Já sei – Thomaz Nascimento;
mas não falla em casamento?
- Não, mamai, elle é casado...
54
Para alguns homens e mulheres que viveram na segunda metade do século XIX a rua
se opunha a casa, os comportamentos, eram em tese, pré-definidos para cada espaço e alguns
ainda eram marcados por distinções sexuais. Assim, no espaço público poderiam acontecer
sociabilidades atentatórias aos padrões morais da família burguesa e ameaçadora aos bons
costumes.
Para o Sociólogo Roberto da Matta
55
a rua relacionava-se ao mundo do trabalho, da
pobreza e da marginalidade, o que se contrapunha à harmonia e proteção da casa. Por isso,
para o autor, dois preconceitos pesavam sobre o trabalho feminino: o desprezo pelo trabalho
manual e a rua que eram coisas de escrava ou prostituta.
do ponto de vista da historiografia recente, as associações feitas entre esses dois
espaços a casa e a rua podiam assumir outros sentidos e casa, por exemplo, poderia
reverter-se de ambiente seguro para perigoso. Segundo Sueann Caulfield
56
, a rua, no século
XIX apresentava, para os populares, outros significados, os quais divergiam dos adotados
54
APEJE – O Tempo, Ingenuidade, 7 de junho de 1883, fl.2.
55
Matta, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
56
Caulfield, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940),
Campinas, SP: Editora da Unicamp/ Cecult, 2000.
42
pelas elites. Para a autora o dualismo casa (seguro) – rua (perigoso) defendido por Roberto da
Matta não pode ser considerado um sistema cultural homogêneo ou estático.
A idéia defendida por Roberto da Matta não tem plena correspondência com a
realidade que vinha se configurando na Província de Pernambuco na segunda metade do
século XIX, ou melhor, nas áreas urbanizadas da província. Inclusive no caso das mulheres da
elite, que vinham freqüentando os espaços públicos, indo ao teatro, aos bailes, ao passeio
público ou participando de eventos abolicionistas. Estas mudanças podem ter influenciado,
em uma nova maneira de encarar também as mulheres pobres que viviam mais na rua que as
mulheres das elites.
Porém, ao mesmo tempo em que essas formas de sociabilidades das mulheres dos
grupos abastados estavam se tornando mais comuns, na segunda metade dos oitocentos,
vários processos judiciários ilustraram existir entre os populares a idéia de que o espaço da
rua era ainda lugar perigoso, pois, era nele que a maior parte dos crimes registrados pela
polícia aconteciam.
Tomemos mais um caso de defloramento para essa discussão, o qual envolvia a
menor, de 15 anos, Severina Maria da Conceição, que em 1876 foi estuprada e deflorada pelo
Sargento Candido Guedes e pelo seu cúmplice o Soldado Jovelino da Silva, em Itambé.
Severina terminou grávida e foi expulsa por seus tios da casa em que morava. Posteriormente
a menina acabou suicidando-se.
57
No auto de perguntas, o sargento Candido Guedes contou de onde conhecia Severina,
afirmando que “por muitas vezes a tinha visto por ocasião de trazer lenha a esta
povoação, já por encontra-la na rua, já finalmente por vê-la algumas vezes sentada no
terreno da casa da velha Izabel”. Izabel era uma mendiga conhecida por mãosinha e morava
próximo ao quartel, sendo sua casa o local que Severina sempre passava quando ia à feira. A
menina circulava sozinha pela rua. Trabalhava ajudando os primos a vender lenha na feira e
por isto estaria exposta a algumas ameaças do domínio público, como a aproximação de
homens “pouco conceituados”.
O sargento sabia que a rua não era um espaço estranho à vivência da maioria das
meninas pobres. Mas o tinha como um lugar carregado de significados depreciativos, pois
numa conversa com Izabel
58
, referindo-se a Severina lhe confidenciou:
57
IAHGP - Apelação crime do júri. Itambé, 1876, cx. 1, A Justiça/ Isabel Maria da Conceição.
58
Izabel também foi incriminada no processo sobre o defloramento de Severina. Ela foi acusada de ajudar no
crime atuando como alcoviteira.
43
- Aquela menina não es boa de fazer uma coisinha, ao que
respondeu Izabel - Ave Maria, ela é honrada, o sargento retorquiu do
modo seguinte - Ora velha, menina que é criada por aí sem pai e sem
mãe tem lá honra.
Desse diálogo podemos perceber que, mesmo quando a rua era local de trabalho da
mulher pobre, o estar nela, implicava para a mesma estar fora da vigilância de seus parentes
num lugar suspeito e marginalizado.
Portanto, para se manter ou ajudar no sustento da família, as mulheres pobres como
Severina tinham que se expor aos perigos existentes no espaço público. A reclusão feminina
não cabia na vida da maior parte das mulheres pobres livres. Tal reclusão constituía modelos
de comportamento feminino elaborados para as mulheres da elite, os quais serviam como
parâmetro de honestidade também, para as meninas pobres. Isso criava contrastes, para as
mulheres pobres, porque o estilo de vida dos segmentos mais abastados em muitos momentos
não podia ou não queria ser seguido à risca.
Galdino de Albuquerque Montenegro, de 42 anos, casado e agricultor em seu relato
permite-nos perceber uma das representações, vigentes em meados dos oitocentos, sobre as
mulheres pobres. A testemunha acima disse que o sargento Candido Guedes era “da opinião
que moça pobre não tem honra”, e isso pode afirmar por ter ouvido numa conversa o dito
sargento falar.
Nas dezenas de páginas de ofícios policiais e dos processos criminais, os lugares
públicos são representados, em sua maioria, pelas autoridades policias e judiciais como locais
de perigo e por isso vedado às mulheres honestas. As categorias casa e rua pontuavam as
coordenadas para perceber o mundo como uma estrutura binária: os grupos familiares X
sociedade desordenada. Apesar dessas categorias serem utilizadas também pelos populares
com esse sentido, ainda assim, não podemos excluir a presença de variações e manipulações
por parte destes. Isso significa que a aceitação dessa idéia negativa de lugar público foi
contestada e manipulada a seu favor pelos populares nos processos por nós analisados.
A representação da intimidade do lar como refúgio da agitação das ruas e como espaço
da vivência familiar, concebido como reduto da moral, do amor e da tranqüilidade era forte.
Mas será que a casa era realmente espaço da proteção? O lar às vezes converteu-se num lugar
onde imperava o medo e a violência. Essa situação aconteceu na casa de Maria Fructuosa de
14 anos de idade, a qual foi deflorada pelo próprio pai. O seu suplicio começou em 1874,
44
quando ela morava em Água Preta e tinha menos de 13 anos de idade. Maria Fructuosa disse
em seu depoimento os detalhes desse evento:
Em um domingo pela manseu pai chamou a para ir com ele ao
mato aprender a caçar, e chegando próximo a uma árvore, puchou de
uma faca
59
que levava na cintura, e forçou a que cedesse a seus
desejos libidinosos, dizendo nessa ocasião que se não consetisse a
mataria ali mesmo.
60
Respondendo ao auto de perguntas, Maria Fructuosa falou sobre as situações de tensão
vividas por ela no espaço privado do lar. Pelo visto, tornaram-se rotineiras as incursões do pai
ao quarto da filha, a menina contou ainda que:
Pouco depois vieram todos para o Recife [ela, seu pai e sua mãe] e
continuando seu pai com os mesmos desejos, e ela fugindo e evitando,
aconteceu que ainda mais uma vez não lhe pudesse escapar, dizendo
por essa ocasião seu pai que se ela respondente revelasse o que se
passava, não só a mataria, como a sua mãe se o soubesse.
61
A relação entre pai e filha, não transcorria de maneira harmoniosa, sendo isso
observado pela mãe de Maria Fructuosa, que disse, em seu depoimento, que seu marido
perseguia e castigava constantemente a sua filha. Por isso, procurou ficar mais atenta ao que
se passava no interior de sua casa, conforme narrou:
Tratou de observar os passos de marido em casa; e então a 1 hora da
madrugada de segunda passada 25 do corrente [1876] ela […]
observando que seu marido levantava-se e dirigia-se para o quarto
onde dormia sua filha, acompanhou-o em distancia sem que ele
percebesse, e apenas penetrou no referido quarto, foi ele
surpreendido com a presença dela […], correndo e saltando de cima
da cama para uma janela.
62
A casa era território do privado, local onde as pessoas dormiam, recebiam os amigos,
comiam, nasciam e morriam, contudo, o aconchego do lar não excluía situações de
constrangimento e de abusos sexuais praticados por pais, tios, tutores e cunhados. Eles na
maior parte das situações exerciam alguma influência sobre as meninas e talvez, até
59
A faca levada pelo pai da menor era um equipamento importante para desempenhar as atividades cotidianas
como caçar, entretanto, por vezes transformava-se em instrumento de agressão. Um estudo mais elaborado dessa
questão encontra-se em: Franco, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na ordem escravocrata.
60
AJ – 1876 – Apelação crime do júri desta Cidade e Comarca do Recife. Apelante- Manoel Joaquim do Espírito
Santo/ Apelado- O Juízo.
61
Idem.
62
Idem.
45
estivessem responsáveis por protegê-las. Alguns, inclusive, extrapolavam sua autoridade
tornando a violência doméstica uma constante em suas vidas.
Assim, as histórias de Severina e Maria Fructuosa, levam-nos a pensar que a rua não
era somente o espaço do perigo e da desgraça e nem que havia homogeneidade do significado
dado ao espaço privado associado usualmente a honra, ordem e segurança
63
. Os significados
atribuídos aos espaços dependem das experiências vivenciadas por cada pessoa, conforme
concluiu Sandra Graham: “a casa podia ser um local de injustiça, punição ou trabalho
excessivo, enquanto a rua podia ser procurada como um local de maior liberdade”
64
.
Onde e como moram os pobres?
Na década de 1870 teve início no Recife a alteração dos nomes de algumas ruas da
cidade, pois o espaço público, de acordo com Raimundo Arrais, deveria participar na
formação dos indivíduos. Assim, ao passar os olhos a sua volta, homens e mulheres do século
XIX, deveriam ler, diariamente as lições emanadas da ciência, das letras e das artes”
independente da camada social a que pertencia.
65
Dentro desta perspectiva os antigos nomes dos logradouros foram substituídos por
uma nova “nomenclatura de feitos, heróis e períodos da história brasileira com o objetivo de,
segundo a comissão composta pelo Instituto Arqueológico Histórico Geográfico
Pernambucano e de dois vereadores, inscrever o patriotismo no espaço da cidade.”
66
Locomover-se na cidade, apenas com indicação dos novos nomes deve ter causado confusão
na cabeça das pessoas. Neste sentido, o jornal América Ilustrada publicou um artigo, tratando
justamente das dificuldades de orientação dos moradores, por conta das novas designações
das ruas do Recife:
... desde os seus remotos avoengos a ouvirem pronunciar – Rua Nova
Rua das Cruzes Rua do Queimado Rua do Rangel nunca mais
a poderão familiarisar com uma inversão geral dos nomes das ruas
da sua capital e nem se esquecerão d’aqueles que lhe recordam
sempre o Recife de outras eras, hoje transformado em uma nova
63
Beattie, Peter M. Ser homem pobre, livre e honrado: a sodomia e os praças nas Forças Armadas brasileiras
(1870-1930). In: Nova História Militar Brasileira, (Orgs.) Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay, Rio de
Janeiro : Editora FGV, 2004, pg-275.
64
Graham, Sandra. Proteção e Obediência. Op. Cit. Pg-16.
65
Arrais, Raimundo. O ntano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX, SP:
Humanitas/ FFLCH/USP, 2004.
66
Idem, pg-342.
46
cidade. Não motivo que autorisasse esta quase geral mudança dos
nomes das ruas. Pôr a população em difficuldades, obrigar os nossos
criados a decorar uma immensa nomenclatura de ruas, dizer que a
taberna onde se costuma comprar não é mais na Rua Direita, mas sim
na de Marsílio Dias que o padeiro não mora mais na Rua do
Rangel, e sim na do – Visconde de Inhaúma.
67
Apesar dos novos nomes dos logradouros, como mostra a notícia acima, as pessoas
persistiam em chamar algumas localidades como faziam seus avós. No caso de Donata, o
endereço da menor causava confusão entre as testemunhas, que as vezes referencia-se ao seu
endereço ora como Rua Henrique Dias ora como Beco dos Açouguinhos, como Theotônio da
Fonseca Sena, de 24 anos, mestre de refinaria e que também fora inspetor de quarteirão; as
testemunhas Roberto Geminiano Ferreira Vilarim, 30 anos, negociante; Samuel Tiburcio
d’Oliveira, 25 anos, negociante e Urbano José Carneiro, 24 anos, proprietário responderam
que a menor morava no Beco dos Açouguinhos.
O beco era o local onde havia a concentração de moradores de baixa renda. “O sentido
original do termo, de natureza mais propriamente topográfica, de rua estreita, com ladeira e
aberta no curso natural de uma expansão urbana não planejada, na passagem do século
XVIII para o século XIX, cede lugar a uma designação, estética e higiênica”.
68
Pela pena do
cronista do Jornal da Moças, sabemos que eles aconteciam atos indecentes. Esses relatos
acabavam contribuindo na construção de um imaginário de que “cousas de beccos nunca são
boas
69
. Era nesses espaços que se atribuía a realização das cenas mais baixas, território de
pessoas com comportamentos perigosos ou de práticas de crimes como as ofensas feitas em
uma moça de nome Francelina residente no Beco do Pombal
70
·, contudo, não podemos
esquecer que conhecemos esse beco guiados pela mão do escrivão da polícia.
O beco, enfim, era visto como reduto de vagabundos e prostitutas e por isso era um
lugar que as moças honestas deveriam manter distância. Esse espaço aparecia no registro das
páginas policiais, como o Beco da Lama onde “se achava um soldado […] com um punhal na
mão a provocar...”
71
A vizinhança, sempre pedia providências a polícia sobre os
comportamentos reprováveis dos moradores dos becos, olhados com certa desconfiança pelas
pessoas das redondezas.
67
APEJE - América Ilustrada, A transformação da cidade, 22 de outubro de 1871.
68
Pesavento, Sandra Jatahy. Uma outra cidade – o mundo dos excluídos no final do século XIX. São
Paulo:Companhia Editora Nacional, 2001.
69
APEJE - Jornal das Moças, Recife, 25 de setembro de 1885.
70
APEJE - RCP, Subdelegacia de polícia da Freguesia da Boa Vista 24 de outubro de 1865.
71
APEJE - RCP, Delegacia do 1º distrito da capital 29 de outubro de 1886.
47
A mãe de Donata deve ter buscado residir no Beco dos Açouguinhos ou na Rua
Henrique Dias porque esta localidade encontrava-se numa área próxima ao porto e do
comércio. Provavelmente, ela queria também morar perto das oportunidades de trabalho,
tendo a vantagem de não ter custos com o transporte.
Para outros pobres residentes no centro do Recife em meados do século XIX, que
exerciam tarefas menos qualificadas e conseqüentemente ganhavam pouco dinheiro, era
difícil ser proprietário de uma casa e por isso o mais comum era morarem em habitações
coletivas. Essas moradias consistiam em um tipo de residência, que abrigava sob o mesmo
teto famílias ou pessoas distintas.
72
Foi assim com Adolpho Rodrigues, com idade de 19 anos, calafate que conhecia
Donata 3 meses, justamente o tempo no qual ele junto com sua mulher, compartilhavam
com ela a morada no 25 do Beco dos Açouguinhos, onde residiam também Donata, sua
mãe e uma outra mulher que vivia amancebada. Em uma mesma casa poderiam residir
pessoas sem nenhum laço familiar, com hábitos e gostos diferentes. Esta era uma das
alternativas para se driblar a carestia ou a falta de recursos para pagar o aluguel. Pois, para
aqueles que moravam nas áreas centrais da cidade, a locomoção para o trabalho ficava mais
fácil, naquela região onde a oferta de empregos/ocupações era maior, porque os pobres na
época não tinham poder aquisitivo suficiente para utilizar regularmente a maxabomba.
Outra forma de eliminar do orçamento os custos com a moradia consistia em residir na
casa dos patrões. Foi o que fez Rita Maria retirando-se da sua casa no Beco dos Açouguinhos
para morar na do seu patrão ma Rua Imperial. Se de um lado havia diminuição das despesas,
pois uma das vantagens do trabalho doméstico era receber casa e comida, por outro lado, esse
acordo entre patrão e empregada deixava a última numa posição de dependência. que este
ajuste havia sido concedido como um favor. Por outro lado, o fato de passarem a viver na
mesma moradia tornou a relação de trabalho mais íntima. Depois das notícias do possível
defloramento de Donata, pelo patrão de sua mãe, passou-se, inclusive, a comentar pelas ruas e
tavernas que eles formavam uma família.
Dividir a moradia com outras pessoas ou residir em habitações muito próximas uma
das outras, onde podia-se escutar tudo o que acontecia na casa vizinha, não permitia às
pessoas pobres viverem muitos momentos de privacidade. Exemplo dessa sociabilidade tão
72
Carvalho, Lia de Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro 1886-1906.
Dissertação de mestrado UFF, Niterói, Rio de Janeiro, 1980.
48
estreita apareceu no depoimento de Antonio Marques d’Oliveira, 43 anos, viúvo, português e
negociante. Ele disse que as pessoas residentes junto à casa de Donata, no Beco dos
Açouguinhos, escutavam as discussões havidas entre Donata e as mulheres conhecidas como
prostitutas, com as quais dividia o lar, onde usava-se de linguagem bastante indecente,
segundo o depoente.
Portanto, os pobres livres das áreas urbanizadas, em geral, habitavam as casas térreas,
os sobrados ou sobradinhos de aluguel ou o que Freyre nomeou como sobrados cortiços
73
,
embora a designação proposta de cortiço, para as residências dos populares pernambucanos da
segunda metade dos oitocentos, não seja comum nos registros por nós pesquisados. O termo
utilizado com freqüência era o de “loja de sobrado”, “sobrado”. Falava-se ainda em “morar
no fundo da casa” ou em correr de casas, sendo todos esses espaços compartilhados por
muitas pessoas.
74
Este tipo de morada acompanhou o crescimento populacional da Cidade do Recife, ou
melhor, das freguesias centrais, que cresceu por conta da migração do campo para a cidade, a
qual aumentou a demanda por locais de moradia. A migração para cidades urbanizadas foi
uma constante através dos tempos. Marcus Carvalho apontou alguns elementos que
aceleraram essa atração na primeira metade do século XIX; como a abertura dos portos em
1808 e a Independência. Além dos fatores econômicos, para o autor, a dinâmica da vida
urbana era um atrativo para as pessoas livres ou libertas
75
partirem para os centros urbanos
como o Recife. No final do império, de acordo com Noemia Zaidan, entre 1870 e o início do
século XX, o fluxo de imigrantes para o Recife, oriundos do interior de Pernambuco e de
regiões vizinhas chegou ao número de 35% a 39% da população. Esses imigrantes eram
segundo o Relatório do Inspetor de Saúde Pública de 1879:
73
Acreditamos que Freyre em alguns dos seus comentários estabeleceu uma correspondência entre as habitações
coletivas dos populares recifenses dos oitocentos com o cortiço Cabeça de Porco do Rio de Janeiro, famoso por
sua superpopulação. Para o Recife, acreditamos que o mais comum eram casas (sobrado ou casa térrea)
subdivididas para alojar muitas pessoas aparentadas ou não. E que talvez não tenham sido construídas para
depois serem alugadas, mas tiveram esse fim após a mudança dos antigos moradores. Essas residências não
exerciam a função de uma pensão, na qual um modo do imóvel era alugado, e sim o espaço construído na sua
totalidade era habitado por diversas pessoas ao mesmo tempo. Por outro lado, um terreno em que é construída
uma sucessão de casinhas em torno de um pátio onde uma aglomeração de pessoas no espaço habitado e o
proprietário se dispõe a sublocar é por nós considerado um cortiço.
74
Freyre, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano.
edição, Rio de Janeiro: José Olympio; Recife Câmara dos Deputados: Governo do Estado de Pernambuco:
Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes, 1981, pg- 166.
75
Carvalho, Marcus J. M. de. Liberdade Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850, Recife:
Editora Universitária da UFPE, 2001, pgs- 76/77.
49
Milhares de múmias ambulantes, cobertas de andrajosos
trapos, eram trazidas das províncias do Norte e Sul, além de turmas
não interrompidas, que aqui entravam por todas as entradas e eram
aboletadas em casarões, que na ocasião se pôde por à disposição
delas, a fim de que, ao menos abrigadas das intempéries, pudessem
matar a fome, e curar-se das grandes moléstias que lhes havia
produzido a falta de alimentação.
76
As pessoas que deixaram as áreas rurais em busca de melhores oportunidades
econômicas ou aqueles que saíram de seu local de origem em decorrência da seca,
principalmente, aquelas dos anos de 1877 e 1878 passaram por algumas agruras. Como foi o
caso de uma retirante que teria sido estuprada no Hospital de Santa Thereza em meados de
1878, pelo funcionário do dito hospital, Cupertino Martins de Araújo
77
. A capital não tinha
condições de absorver essa mão-de-obra imigrante, até porque não havia expandido suas
atividades econômicas na mesma proporção, assim larga parcela da população oriunda do
interior passou a morar cada vez mais em residências características de gente pobre.
78
Esta procura por habitações no centro do Recife, possivelmente, fez com que os
valores dos aluguéis subissem. Talvez para o aumento do valor da locação de um imóvel,
tenha contribuído os melhoramentos urbanos; como o calçamento das ruas, a iluminação
pública e a implantação de um sistema de transporte coletivo nessa área central da cidade que
atendia um número maior de pessoas. Esse último ponto influenciou na escolha do novo
endereço de várias famílias, as quais foram morar em casa de taipa ou de tábuas
79
ao longo
dos percursos por onde passava o transporte urbano, afastando pouco a pouco no final do
século XIX os pobres das habitações do centro da cidade.
Por outro lado, os escravos baianos residentes em áreas urbanizadas em meados dos
oitocentos moravam em casarões que abrigavam diversas famílias. Alugavam-se quartos nos
fundos das casas ou habitava-se em construções modestas. As condições de moradia dos
escravos que não moravam com seus senhores ou empregadores eram semelhantes a dos
76
Relatório do Inspetor de Saúde Pública, Recife, 1879, pg-5 In: Zaidan, Noemia Maria. O Recife nos trilhos de
bondes de burro, 1871 – 1914. Dissertação de Mestrado UFPE, 1991, pg- 19.
77
IAHGP – 1879, Habeas corpus de Cupertino Martins de Araújo (Recife).
78
Idem, Noemia Maria Zaidan Op. Cit , pg- 4. A nota não é do relatório, mas da dissertação de Noemia Zaidan.
79
Nas Leis Provinciais de 1873 uma determinação da Câmara Municipal exigia que qualquer edificação,
reedificação, demolição ou conserto tivesse sua licença para ser realizada; permitia que, nas ruas recentemente
abertas nos arrabaldes, fossem construídas casas de taipa ou tábuas e regulava que a altura das casas guardassem
uma relação com a largura das ruas. Lei nº1129. Recife 26 de junho de 1873, art. 75, 93, 105 e 106. In: Leis
Provinciais do ano de 1873, Pernambuco, Tipografia de Manoel de Figueroa Faria & Filhos, 1873. In: Zaidan,
Noemia. Op. Cit pg- 52.
50
pobres livres, que precisavam residir na cidade para ficarem próximos das oportunidades de
trabalho e acabavam ocupando locais de qualidade precária ou habitações multifamiliares.
80
Para as áreas rurais, as casas dos pobres livres, segundo a descrição de Freyre, eram
“geralmente de acanhadas dimensões, baixas, edificadas ao nível do solo, e munidas de um
pequenissímo número de janelas: muitas vezes são destituídas de assoalho e têm por
cobertura a telha”. Freyre disse que esse tipo de moradia era uma habitação mais decente
onde morava o “pessoalzinho melhor”. Outras moradias poderiam ser de barro, com piso de
terra úmida e pegajenta. O teto poderia ser coberto por folha-de-zinco.
81
Essas residências eram chamadas de mucambo
82
, palhoça ou casa de taipa. A
descrição que aparece em um processo fornece-nos informações a respeito de um dos
materiais empregados nas edificações; nele Joaquim José Ribeiro, agricultor de 34 anos, diz
ter chamado sua filha Felismina de 12 anos, para o local denominado Salinas no Distrito da
Muribeca, à noite, para “virar” palhas de coqueiros que pretendia utilizar para fazer a
cobertura da casa que estava levantando
83
. Nessas casas, como podemos observar na foto a
seguir, eram utilizados, na sua construção, palha de coqueiro, mas podiam ser usado também
palha de cana, capim, pedaços de flandres, e madeira com barro amassado.
80
Costa, Ana de Lourdes Ribeiro da. Moradia de escravos em Salvador no século XIX. In: Revista Clio, Série
História do Nordeste, n° 11, Recife, Universidade Federal de Pernambuco.
81
Freyre, Gilberto. Op. Cit. Pg- 180.
82
A palavra mukambu em Kibumdu significa pau de fileira e também “pau com que dois carregadores
transportavam ao ombro coisas pesadas, ou suporte”. No Brasil os cativos fugitivos levavam, seus mucambos
nos ombros procura de um novo local de moradia. Para uma melhor compreensão desse tipo de casa ver:
Robert Slenes Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil,
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pg- 173.
83
IAHGPE Tribunal do Júri Apelação crime entre partes, Apelada a Justiça, Apelante Joaquim José
Ribeiro, 1863.
51
Rodolpho Lindemann. Arredores de Salvador, 1880. Acervo do Instituto Moreira Sales. Ermakoff, George. O
Negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio de Janeiro: George Ermakoff Casa Editorial, 2004.
Fotógrafo não identificado. Menina negra posa na varanda de sua casa, Pernambuco. Société de Géographie,
Paris. Ermakoff, George. O Negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio de Janeiro: George Ermakoff
Casa Editorial, 2004.
52
Esse tipo de casa é semelhante às descrições recolhidas por Robert Slenes a respeito da
moradia dos escravos casados. Baseado nos depoimentos de cronistas, obras historiográficas e
de imagens, o autor disse que o barraco dos escravos, retratado por viajantes na segunda
metade do século XIX, eram moradias de pau-a-pique e cobertas de palha. E talvez
poderíamos pensar que esse tipo de espaço construído seguia um padrão de construção
brasileiro que refletia, é claro, a herança africana, a indígena, a européia e o material
disponível.
Em suma, a população pobre de Pernambuco vivia aboletada em casebres, em
sobrados subdivididos, em casas térreas, no local de trabalho, em mocambos ou em correr de
casas. Essas habitações eram associadas à condição de pobreza. Alguns desses locais de
moradia eram estigmatizados por abrigarem, como se queixavam algumas pessoas nos
jornais, gente de reputação duvidosa. A noção de casa para os populares não deve ter sido a de
espaço de intimidade e privacidade. Nesse ambiente ocorria uma esgarçamento das fronteiras
do público e do privado, uma vez que, cômodos alugados dentro de casa ou nos seus fundos
proporcionava um convívio intenso entre os diversos inquilinos. Essas moradias
identificavam os pobres na segunda metade do século XIX.
Samba: local de diversão da gente miúda.
Era de conhecimento das pessoas das proximidades que a casa no Beco dos
Açouguinhos, onde Donata morava com sua e, era freqüentada por muitas pessoas e que
nela aconteciam noites dançantes com violões ou como foi dito por seu vizinho Antonio
Marques; “algumas vezes até havia sambas nos quais Donata tomava parte”.
Os sambas aconteciam tanto em casas de comércio, casas particulares ou em locais
específicos como as “casas de batuque” ou “casas de sambas”. No Recife, além dos lugares
mencionado, os sambas realizavam-se nos mocambos e em casas térreas que tinha seu
funcionamento regulamentado pelas posturas municipais.
84
84
Maia, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-
1915. Tese de Doutorado, UFPE, Recife, 2001, pgs-23-47.
53
Para Clarissa Nunes Maia, as posturas municipais
85
foram criadas com o intuito de
coibir, entre outras atividades cotidianas, os ajuntamentos comuns a homens e mulheres de
poucas posses e escravos. A Postura Municipal foi um mecanismo adotado pelas autoridades
para exercer um controle social que abrangesse esses dois grupos. As penas propostas não
faziam referencias “a figura do escravo, referindo-se as posturas […] genericamente a
“infratores”, pessoas”, “indivíduos”, acompanhando, assim, o processo de abolição
gradual que estava ocorrendo no império por meio da Lei.”
86
Apesar de terem de condições jurídicas diferentes, livres e cativos compartilhavam
uma realidade socioeconômica semelhante, pois, os pobres livres não tinham condições muito
superiores a dos escravos. A matiz da pele era outro fator que aproximava essa população, que
tornava aparentemente idêntico a cor dos livres que circulavam nas ruas proporcionando aos
escravos serem confundidos com os outros habitantes da cidade.
87
O mundo dos livres como
nos lembra Hebe Mattos, na segunda metade do século XIX, “não era mais monopólio dos
brancos”,
88
mas compreendia homens e mulheres de cores variadas.
Os sambas reuniam escravos e pessoas pobres livres e esses últimos poderiam ser
negros, pardos, brancos ou semi-brancos. Clarissa Nunes Maia com relação ao controle social
de livres e cativos, sem deixar de lado o governo exercido pelos senhores de escravos,
acredita que o controle social exercido pelas autoridades locais era dirigida de forma
semelhante a pobres livres e escravos. Os livres, independente de sua cor tinham uma
participação substancial no montante da população total da Província de Pernambuco, nas
décadas que antecederam a abolição, à população de livres vinha aumentando, no censo de
1872 os habitantes livres de Pernambuco chegaram a 83%
89
e como mencionamos, os dois
grupos sociais misturavam-se impedindo distingui-los com um rápido passar de olhos.
90
85
Maia, Clarissa Nunes. Sambas, Batuques, Vozerias e Farsas Públicas: o controle social sobre os escravos
em Pernambuco no século XIX (1850 1888), Dissertação de Mestrado, UFPE, Recife. A autora, através da
análise das Posturas Municipais, observou o cotidiano e a disciplinarização das atividades exercidas pelos
escravos.
86
Maia, Clarissa Nunes. Op. Cit. pg-151.
87
De acordo com Sidney Chalhoub, principalmente, na área urbana, era possível aos escravos serem
confundidos com os livres. Pois, para os primeiros que “viviam sobre si”, isto é, longe de seus senhores em
cortiços e casebres habitados por um turbilhão de pessoas pretas, pardas e brancas, livres ou libertas se misturar a
eles não era uma tarefa tão difícil. Chalhoub, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas
da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
88
Mattos, Hebe. Op. Cit. Pg-99.
89
Dias, Maria Odila Leite da Silva. Sociabilidades sem História: votantes pobres no Império, 1824-1881. In:
Freitas, Marcos Cezar (Org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva, 4ª edição, São Paulo: Contexto, 2001, pg-
59.
90
Olivares, Guilhermo de Jesus Palácios Y. Revoltas Camponesas no Brasil escravista: a “Guerra dos
Maribondos” (Pernambuco, 1851 – 1852). Revista Almanack brasiliense, n° 3, maio 2006. A revolta ocorreu em
54
Os dados de que dispomos acerca da classificação racial das jovens vítimas de crimes
sexuais contidos nos processos-crime, são informações que não aparecem em todos os casos.
Deste modo, não temos a possibilidade de aprofundarmos a compreensão sobre os
significados que a cor teve nessas querelas.
A declaração da cor das meninas aparecia, com maior freqüência, em duas partes
específicas dos processos; nos autos de qualificação e nos exames de corpo de delito.
91
A
referência à cor da pele aparece distribuída da seguinte forma:
TABELA Nº 3.
COR DAS VÍTIMAS NOS PROCESSOS DE CRIME SEXUAL (1863-1886)
Cor Quantidade Porcentagem
Parda ou semi-branca 9 31,05%
Branca 3 10,34%
Preta 1 3,44%
algumas comarcas das zonas decadentes da produção de algodão Paudalho, Nazaré e Limoeiro; das comarcas
açucareiras Água Preta, Gameleira, Escada; e também as freguesias de Jaboatão, Cabo, Muribeca, Vitória de
Santo Antão, Ipojuca e Serinhaém; e no começo do Sertão – Comarca de Garanhuns.
A população pobre da Província de Pernambuco era pluriétnica sendo por isso, difícil demarcar as
fronteiras entre o mundo da escravidão e dos pobres livres de cor. Acreditamos nessa questão porque em décadas
anteriores o evento denominado Guerra dos Maribondos, que foi um levante de pobres livres, ocorrido no
interior da Província, em meados do século XIX. A camada pobre da população ficou amedrontada com a
promulgação do Regulamento do Registro dos Nascimentos e Óbitos e a Lei do Censo de 1851. Esse registro foi
apelidado de Lei do Cativeiro, sendo essa uma das leituras realizadas pelos populares a respeito da medida do
Governo Imperial.
A Guerra dos Maribondos foi resultado também de algumas mudanças que começaram a ocorrer por
volta de 1850, uma delas foi a Lei Eusébio de Queiroz, que determinava o fechamento definitivo da entrada de
mão-de-obra africana no Brasil. Em 1851, os populares atentos aos falatórios sobre o censo, acreditavam ser o
mesmo destinado para escravizar os homens e mulheres pobres livres, pois, esta Lei coincidia sintomaticamente
com a Lei de 1850.
Guilhermo Palácios afirma que apesar das fontes ministeriais se referirem a revolta como o movimento
de “homens de cor”, seria apressado concluir que os pobres livres de Pernambuco, de meados dos oitocentos,
seriam majoritariamente negros e mulatos. De acordo com as fontes do período, o iminente cativeiro atingiria, de
forma abrangente, os pobres livres
90
. De modo geral, podemos dizer que a população livre do interior da
Província de Pernambuco, no período indicado, era pluriétnica e compartilhavam a baixa condição financeira,
estando separados apenas pelo atributo jurídico da liberdade ou da escravidão.O que chamou nossa atenção na
Revolta dos Maribondos foi a crença de boa parte da população pobre livre do iminente perigo da sua possível
redução ao cativeiro para substituírem os escravos no trabalho compulsório. Esse evento sugere que no mínimo
ser considerado não-branco e viver uma situação econômica sofrível eram elementos que aproximava o mundo
dos escravos e dos pobres livres.
91
Os autos de qualificação continham informações sobre o acusado como nome ou apelido; filiação, local de
nascimento e residência e esclarecimentos sobre a denúncia. O Corpo de delito era “a demonstração judicial da
existência do crime ou facto que se considera criminosos, com todas as circunstancias, que devem ser
cuidadosamente examinadas e descriptas, pois que esse todo é base do procedimento criminal.” BFDR –
Uflacher, Augusto. O Livro do Promotor Público, Promotor Público da comarca de Santo Ângelo na Província
do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, B. L. Garnier – Livreiro Editor, 1880, Págs- 79/80.
55
Não mencionada 16 55,17%
Total 29 100
Como podemos observar pela tabela 3 na maioria dos processos não se fez
referência à cor das meninas. Quando houve dificuldades em obter esse dado procuramos
outros caminhos, como as características biológicas como a referência a cabelos pretos e
crespos ou pela cor com que seus pais eram identificados. Por vezes chegamos a designação
da cor das meninas através dos depoimentos das testemunhas contidos nos autos.
Por outro lado, ter acesso ao registro sobre a cor das menores não foi tão esclarecedor,
e acabava criando situações em que uma mesma pessoa podia ser enquadrada como
pertencente a grupos raciais distintos, como no caso de Anisia Maria da Conceição, de 13
anos e empregada no serviço doméstico que teria sido raptada por Neco do Valle, na noite do
dia 25 de agosto de 1882
92
. Anisia recebeu três classificações para identificar a matiz da sua
pele. No seu registro de batismo, anexado ao processo, a menor é dita como de pele “branca”.
No laudo pericial, feito pelos doutores diplomados Estevão Cavalcante de Albuquerque e José
Joaquim de Sousa, ela recebeu a designação imprecisa de “semi-branca”. a testemunha do
réu, Augusto Pater, de 50 anos, casado, natural de Pernambuco e que vivia de suas agências,
93
disse em seu depoimento que Anisia era “mulatinha”. Branca, semi-branca, parda, crioulinha,
mulatinha ou preta são apenas algumas das variadas terminologias utilizadas para identificar a
cor da tez das menores. Pensamos que a atribuição da cor não se dava numa completa isenção
de quem a determinava; a diversidade “cromática” presente nos processos dependia dos
“olhos” de quem as identificasse.
Por conta de episódios como este e tendo em vista os dados sobre a imprecisão da
classificação da cor constantes na tabela nº3, que chegam ao expressivo percentual 55,17%
fica difícil discutirmos se o encaminhamento das queixas e os resultados dos processos
podiam ser ou não determinados pela cor das “vítimas”. Como fez Martha Abreu e Sueann
Caulfield em seus trabalhos, os quais apontam uma relação entre a maioria dos processos
92
IAHGP - 1883 2º Cartório do Crime/ Denúncia AA- Justiça RR- Manoel do Valle.
93
Ao mesmo tempo em que a cor deixa de ser critério fundamental para definir o lugar social, de acordo com
Hebe Mattos, as expressões “viver de” para os homens livres em oposição aos escravos que “serviam” a alguém
começam a perder sentido. Porque gradualmente ao longo do século XIX as designações profissionais passam a
ser um dado bastante freqüente. A qualificação profissional passa a ser designadora de status social. A
testemunha Augusto Pater estava ainda ligado ao critério cor como elemento para a diferenciação social. In:
Mattos, Hebe Maria. Das cores do silêncio Os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século
XIX. 2ª edição, Editora Nova Fronteira, 1998, pg-96.
56
considerados improcedentes às mulheres negras e pardas. Ao contrário dos casos que
envolviam mulheres brancas, o que nos levar a pensar o quanto seria difícil para as meninas
pobres de cor recorrerem a polícia e a justiça quando vítimas de crimes sexuais.
94
O fato de não podermos definir a cor das mulheres e também dos homens num
percentual significativo de processos é um desafio que se colocou ao trabalho do Historiador,
principalmente, daquele interessado na discussão das relações raciais e dos papéis de
gênero.
95
Hebe Mattos é uma das estudiosas que se dedicaram a investigar a inexistência da
declaração da cor nos processos abertos em fins do século XIX
96
. A autora em seu trabalho
observou que, a partir da segunda metade do culo XIX, a menção a cor passou a ser menos
registrada dos processos. Para ela, esta ausência estava associada ao fato de que a cor não era
mais o único determinante para definir o status social de um indivíduo. A posse ou não de
uma propriedade passou a servir cada vez mais de referência para indicar a situação social de
uma pessoa. Neste período, cresceu o número de negros e mestiços livres, o tráfico
transatlântico foi extinto por lei
97
e, ao longo da segunda metade dos oitocentos, a escravidão
enquanto instituição se arrecefe. A cor, neste contexto, deixa de ser uma referência
automática do lugar social do indivíduo, e passa então a ser silenciada.
O sumiço do registro da cor nos processos criminais demonstra como estava intricado
o mundo das pessoas brancas e não-brancas pobres em seus mais variados âmbitos, inclusive,
nos momentos de lazer. A referência a batuques e a sambas mostra que as tradições religiosas
e rítmicas ligadas à herança africana estavam presentes no cotidiano da população pobre
98
. O
samba era o tipo de local onde era quase impossível assinalar quem dos seus freqüentadores
pertencia a determinado status jurídico, pois, entrava gente de ambos os sexos, cativos e
livres, para festejar. Conhecemos um pouco mais desse reduto de lazer do universo popular
94
Esteves, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Bélle
Époque, Paz e Terra, 1989, pg-111. Caulfield, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação
no Rio de Janeiro 1918-1940. Campinas, SP: Ed. da Unicamp/Cecult, 2000.
95
Para termos acesso a cor dos homens a dificuldade foi ainda maior, pois, eles não passavam por exames de
corpo de delito, nos casos por nos estudados, e apenas em alguns poucos autos de qualificação e através dos
depoimentos das testemunhas obtivemos essa informação.
96
Mattos, Hebe Maria. Das cores do silêncio.
97
Apesar do tráfico internacional de escravos ter sido extinto pela lei em 1850 ocorreram ainda desembarques de
africanos em terras brasileiras. Uma melhor discussão sobre o assunto será encontrada no livro de Jaime
Rodrigrues O Infame Comércio, Editora da Unicamp, 2000 e o artigo de Beatriz Mamigonian O Direito de ser
Africano Livre, In: Direitos de Justiças no Brasil, Editora da Unicamp, 2006.
98
Filho, Walter Fraga. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910),
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, pg-298.
57
através da obra a Emparedada da Rua Nova.
99
No desenvolvimento dessa trama o autor
apresenta a personagem Sinhá Nenê, uma parteira de Jaboatão, cuja casa foi iluminada com
lanternas de papel de diversas cores para a realização de um samba.
Em sua residência as comemorações acabavam quase sempre em sambas ruidosos e
barulhentos. Vez por outra as danças eram interrompidas por brigas, por “facas que haviam se
batido em duelo, ferindo mais de uma barriga e fazendo correr mais sangue do que vinho.”
100
Essas cenas, contudo, o implicavam no fim desses encontros. Sinhá Nenê gozava da
amizade das autoridades policiais, os quais faziam vista grossa a esses distúrbios.
Situação semelhante apareceu em uma denúncia do jornal O Tempo, de 1883:
Samba Moradores das intermediações das ruas do Marquez do
Herval e Detenção são incommodados todas as noites por um terrível
samba, que dura até o amanhecer do dia. Parece que isto não devia
acontecer, morando perto dos sambistas um inspector de quarteirão e
agentes da guarda cívica. Mas dá – se o contrário; esses policiais não
se incommodam, a dar a menor providencia, que se torna
inacreditável, é que a maior parte dos sambistas são, segundo somos
informados, soldados de polícia e de linha. Ao Senhor subdelegado de
São José pedimos as medidas convenientes, para que aquelles
moradores se livrem de semelhante incommodo.
101
Nessas reuniões festivas de cativos e livres era servido cerveja, vinho e outras bebidas
espirituosas com direito a uns músicos para animar a noite. Os convidados conversavam,
davam risadas e quando a música tocava, dançavam bastante com direito á gritos de
Quebra, minha dengosa! e – Quebra meu bem!
102
Locais, como o acima mencionado, fizeram parte do enredo de trajetórias de vida de
alguns populares, como no caso de Donata e de Augusto. A testemunha Antonio Marques
comentou que Donata se divertia em sambas, mas não era somente isso, ele fez questão de
enfatizar que era habitual nesse samba a presença das prostitutas com as quais a menina
dividia a morada
103
. Tanto essa testemunha, como as notas dos jornais e o literato Carneiro
Vilella em suas narrativas construíram suas impressões sobre o lugar, entre elas que o samba
era um local “terrível” e barulhento; lugar que dava todo tipo de gente da classe mais baixa,
99
Vilela, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. (Org.) Lucilo Varejão Filho, 4ª edição, Recife, Ed. Do
organizador, 2005.
100
Idem, pg-161.
101
APEJE - O Tempo, Samba, 1 agosto 1883.
102
Vilela, Carneiro Op. Cit., pg-165.
103
Nos jornais era noticiada a presença de meretrizes em sambas, como um realizado em Buíque, no qual houve
um espancamento. APEJE - A Província, Buíque, 11 de julho de 1876, fl.3.
58
como escravos e meretrizes. E também era um lugar onde a diversão acabava sempre em
brigas e desavenças.
Por outro lado, nem Augusto, nem outras testemunhas apontaram em seus
depoimentos que o samba fosse um ponto de encontro, o qual Donata não devesse ir. Eles
deveriam ter o samba como espaço para partilhar seus problemas, para divertirem-se e para
namorar.
Os participantes dos sambas, que eram reconhecidos como gente miúda,
provavelmente, pensavam esse espaço de outra forma, empregando, construindo outros
sentidos para esse ponto de encontro. O depoimento da testemunha presente no caso de
Donata apresentou sua versão sobre esse espaço de lazer, mas o silêncio dos demais permite
pensar que existiram compreensões múltiplas a propósito desse local de diversão.
Vendas: locais de encontro.
Na venda de Augusto assim era conhecido o ponto comercial do negociante
português Augusto Moreira da Silva, - localizada na Rua Imperial, no qual deveria ocorrer um
ajuntamento de pessoas para comprar e conversar, pois, era uma área de grande movimento da
cidade.
Nessa mesma rua no nº. 53, morava o alfaiate José Tertuliano dos Santos. No nº. 167
“vivia de negócio” Roberto Geminiano Ferreira Vilarim. Nela estava também estabelecido o
senaleiro Ulysses Benjamin da Rosa e Lima. Eram vizinhas de Augusto a parteira Anna Maria
das Mercês e a viúva Margarida Martinelle, ambas moradoras do nº. 55.
“Viver de negócio” permitia um relacionamento bastante próximo com a
movimentação da cidade. Não é a toa que muitos negociantes eram chamados para depor
como testemunhas em diversos casos, pois, fazia parte do metiê dos mesmos cativar seus
clientes, ouvindo suas reclamações, conversando sobre os acontecimentos da redondeza e por
vezes escutando gracejos. Provavelmente, eles teriam boas informações para apresentar a
respeito do comportamento das pessoas envolvidas em querelas judiciais.
Então, entremos loja adentro, tentando descobrir como esse espaço pode dar-nos
indícios de como viviam os populares na Cidade do Recife e em outras localidades nas
últimas décadas do século XIX.
As vendas de secos e molhados marcavam a paisagem dos mais variados endereços no
Brasil nos tempos do Império. Era um espaço onde todos podiam entrar, homens e mulheres
59
de variados níveis de riqueza e escravos e escravas. Esse local era principalmente,
freqüentado por pessoas de parcos recursos. Nas tabernas aconteciam mais que transações de
compra e venda, poderiam acontecer acertos de trabalho, brigas, momentos de lazer e de
amores. Local de encontro entre amigos ou espaço para se fazer novas amizades por meio de
longas conversas.
O entra e sai nas vendas era constante, como mostra essa imagem. A Venda no Recife. RUGENDAS, João
Maurício. Viagem Pitoresca Através do Brasil. São Paulo: Martins/Ed. Universidade de São Paulo, 1972.
O burburinho sobre o defloramento de Donata foi tema de conversas realizadas nas
vendas mesmo, dois meses, aproximadamente, após o ocorrido. Das conversas trocadas entre
as pessoas, naquele ambiente era possível saber o que acontecia na vida do outro. Ulysses
Benjamin da Roza e Lima, de 22 anos e senaleiro, vivenciou essa situação quando entrou na
loja do funileiro Theotônio na Rua Imperial. ouviu dizer”
104
, não se lembrando de quem,
que Augusto tinha deflorado a filha de sua ama de nome Donata. Dias depois desse evento
Benjamin o senaleiro, encontrou-se com outro Benjamin, esse era caixeiro do réu, o qual lhe
disse que tinha sido despedido pelo seu patrão. Isso porque tinha falado mal da família dele.
Ulysses Benjamin perguntou: - Que família é essa? O caixeiro respondeu: - A filha da ama-
seca do acusado e mais tinha certeza que Augusto tinha deflorado a menina. Provavelmente,
o senaleiro Benjamin fazia uso dos serviços da venda de Augusto, onde comprava os gêneros
que precisava e encontrou-se com o réu e tiveram uma conversa. Benjamin mal entrou na
104
Filho, Walter Fraga. Encruzilhadas da Liberdade. Op. Cit. As atitudes dos homens e mulheres pobres livres
assemelhavam-se com o modo como os ex-escravos se comportavam ao prestarem depoimentos, como pontuou
o autor, eles na impossibilidade de fazer uma critica aberta a seus superiores, os mesmos teriam inventado o
“discurso oculto”, ou seja, o “ouvir dizer” por meio do qual questionavam os superiores sem sofrer represálias.
60
venda, bateu palmas como se tivesse acabado de assistir a um espetáculo e disse
105
: - Bravo
senhor Augusto, o réu no mesmo tom de caçoa respondeu: - Não é de sua conta, faço com
você o que fiz nela. As tabernas eram locais de encontro e diversão, isto quando não
aconteciam desentendimentos como o mencionado, o qual oportunizava aos homens
exercitarem sua masculinidade.
Nesses estabelecimentos, as pessoas poderiam escolher os produtos que estivessem
necessitando e compravam-os mesmo tendo pouco ou nenhum dinheiro. As mercadorias
vendidas eram as mais variadas. Ali se vendia vinho em copo e cachaça, além de “itens
básicos da alimentação diária, alguns enlatados, como sardinhas, peixe, azeitonas; utensílios
domésticos, como vassouras, gamelas, cordas, fósforos, velas, peneiras e miudezas”.
106
A transação de compra e venda, nesse período, poderia ser realizada sem o pagamento
imediato. Era prática na Província de Pernambuco e em outras províncias do país, se abastecer
a casa com diversas mercadorias e se combinar o pagamento para depois, isto é, comprar a
crédito. Segundo Maria Luiza Ferreira de Oliveira, essa prática, abria uma rede de relações de
crédito, que começava com a venda feita a fiado, aquelas anotadas nas cadernetas de balcão, e
terminava no negociante que também comprava à crédito no atacado aos seus fornecedores.
107
O Subdelegado de São José, José Hermógenes de Oliveira Amaral, passou a residir
defronte ao estabelecimento de Augusto e começou a ser seu cliente. Como era de costume o
Subdelegado recorria à venda sempre que precisava de gêneros alimentícios ou quando queria
beber algo, comprando a crédito, e assim, o seu fiado estava crescendo em demasia. Augusto
foi cobrar a dívida, “em termos os mais convenientes que não podia, portanto [continuar]
com o fiado”. Porém, o Subdelegado considerou o aviso uma ofensa.
Vender ou negociar exigia de Augusto um tempo de dedicação para preparar os
produtos a serem comercializados, o que variava de acordo com o tipo de mercadoria, além,
do tempo disponibilizado para o atendimento aos fregueses. O ato de negociar envolvia muita
conversa, muitas vezes demorada, para convencer os clientes mais exigentes.
Quando da cobrança da conta do subdelegado Amaral, a relação antes amistosa entre o
proprietário do estabelecimento e o freguês, ou melhor, entre vizinhos, se rompeu. E deu
inicio a uma inimizade muito tempestuosa e cheia de perseguições. Cobrar não era uma tarefa
fácil e ser cobrado podia despertar receio como notou um observador da época:
105
Aqui estamos especulando baseados nos documentos.
106
Oliveira, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização:
São Paulo, 1850 – 1900. São Paulo: Alameda, 2005.
107
Idem. pg 137.
61
Se a Moda Pega...
...
Antehontem, no arrabalde Apipucos, o mascate italiano chamado
João, cobrando ao crioulo Fabrício, a quantia de 11 mil réis que lhe
estava este a dever, e dissera-lhe não poder pagal-a presentemente,
foi bastante esta resposta para que o referido italiano lançasse mão
de uma faca que consigo trazia e ferisse Fabrício na cabeça.
...
Se a moda pega, dentro em pouco os devedores não poderão andar
descançados...
108
Cobranças de dívidas deviam mesmo ser situações rotineiras nas tavernas e nas vendas
do Brasil do século XIX. O jornal A Província de 20 de setembro de 1876 informou-nos que
esses locais eram freqüentados por pessoas como Chico Damnado condenado por crime de
homicídio, o qual era conhecido como o terror da Torre”
109
. Nessa mesma nota temos o
relato do procedimento do “terror da Torre” no local que era uma das opções de lazer dos
populares, tanto das áreas urbanas quanto rurais:
Damnado, sempre desalmado, entrava nas vendas, havia nelas o de
que precisava; e felizes julgavam-se os donos das tabernas em servil-
o grátis. Não muitos dias, em uma venda, e em presença de três
policiais fardados, puchava elle comprida faca, e com ella ameaçava
céus e terra, sempre impune.
110
(grifo no original)
O foco desta nota do jornal não era comentar sobre os fatos ocorridos no interior das
vendas ou tabernas, mas, fazer uma denúncia a respeito da impunidade do “desalmado”
Chico Damnado que continuava a cometer suas proezas. Como no dia 2 de setembro de 1876,
em plena luz do dia, “forçava uma mulher na Estrada Nova”. Contudo, a pessoa que narrou
os crimes cometidos por Chico, figura conhecida das notícias dos jornais, acabou por se tornar
um cronista de alguns espaços comuns no cenário de diversas cidades do Brasil, como a
venda. O autor da denúncia colocou que nesse espaço era habitual, se nos firamos nesse
cronista, a presença de pessoas perigosas.
Esse espaço de sociabilidade, embora tenha dado lugar a crimes e cizânias, permitiu
aos homens e mulheres pobres construírem relações harmoniosas, possibilitando a integração
entre essas pessoas. Um dia comum na vida desses homens e mulheres, provavelmente, tinha
como palco as tabernas, pois, era também, ponto de venda de alimentos, notadamente, para a
população de baixa renda. Talvez, como usuários constantes das tabernas e vendas, em suas
108
APEJE - Jornal do Recife, Se a Moda Pega...,1885.
109
APEJE - A Província, Custa a crer!..., 20 de setembro de 1876, fl.1.
110
Idem.
62
conversas ao redor de uma mesa ou ao lado de um balcão, estivessem construindo, pouco a
pouco, noções de pertencimento a um determinado grupo. Nos momentos de confraternização
com os amigos ou quando compravam produtos para abastecer seus lares iam impondo sua
forma distinta e ao mesmo tempo diversificada de ocupar esse local.
As tavernas e vendas permitiam aos pobres, em suas diversas hierarquias, vivenciarem
seus hábitos cotidianos, como os ajuntamentos para conversar. É importante notar que, esses
encontros/ajuntamentos não eram permitidos aos escravos e para os livres os horários eram
limitados,
111
por poder ser um possível foco de futuras revoltas, de aproximações para
atividades ilícitas ou de planejamento de fugas de escravos. Acreditamos que as pessoas,
responsáveis pelo controle social dos populares, temiam que os mesmos tivessem assimilado
as lições de rebeldia dadas pelos cativos, naquele período ou em décadas anteriores; da
Província de Pernambuco e de outras províncias do Brasil noticiados pelos jornais e tema das
conversas nos locais de encontro.
Em estudo sobre o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro das primeiras
décadas republicanas, Sidney Chalhoub mostrou que o controle social compreendeu todas as
situações cotidianas e nesse ponto dialogamos com sua idéia. Para o autor, o controle era
exercido desde a tentativa de disciplinarização rígida do tempo e do espaço nos momentos de
trabalho; na normatização das relações amorosas e familiares dos trabalhadores e também, na
vigilância contínua do botequim e da rua, espaços do lazer popular.
112
As meninas pobres e o namoro.
Freqüentar sambas, tavernas e ter a sua casa como espaço para a realização dos
encontros dos casais de namorados, eram práticas que marcavam as experiências de grande
parte das jovens dos segmentos populares. Elas viviam relações amorosas flexíveis, distantes
das regras estabelecidas para as moças honestas e bem comportadas.
Qual o comportamento, ou como deveriam proceder as moças bem comportadas? Das
moças de bom comportamento não se ouviria falar em casa da vizinhança “algo que
depusesse contra a sua honra”. Os vizinhos estavam sempre presentes e eram observadores
dos acontecimentos ocorridos nas redondezas. Antonio Geminiano de Carvalho, 19 anos,
111
Essas limitações não excluem a oposição desses segmentos as medidas impostas.
112
Chalhoub, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque, 2ª edição, Campinas, SP:Editora da Unicamp, 2001.
63
encadernador e morador a Rua Padre Floriano. Com mais ou menos 10 anos de idade,
Geminiano conheceu Donata pelo apelido de Santa, pois a mesma devia comportar-se como
uma moça virtuosa e inocente, e isso a testemunha pode afirmar desde “que ela andava na
escola, há 9 anos”. Devem ter crescidos juntos, ou pelo menos eram vizinhos de rua,
permitindo Antonio Geminiano saber ter tido ela “sempre muito bom comportamento durante
todo esse tempo” e ser moça virgem no momento da saída de sua casa na Rua Antônio
Henrique. Outra testemunha Thereza Maria de Jesus, ama de 40 anos, disse nunca ter
presenciado namoro de Donata. Qual a intenção Thereza quando chama atenção para este
fato? Voltaremos a essa questão mais adiante.
O namoro de meados do século XIX não tem correspondência direta com as práticas
contemporâneas. Referências a namoros o aparecem com freqüência entre os
relacionamentos amorosos presente nos processos - crimes analisados. Algumas das uniões
entre as pessoas envolvidas nos casos de rapto e defloramento
113
são descritas como não-
formais ou seria o que poderíamos nomear como o fazer côrte, isto é, a troca de sinais de
interesse entre o casal, a exibição como, por exemplo, “estar em roupa de namorado”
114
, a
aproximação por meio de conversas com espaço para juramentos e que algumas vezes ia mais
longe propiciando ao casal momentos para se tocar e se beijar.
Seja no começo de um relacionamento amoroso ou em um “namoro velho e de
fiança”, isto é, com mais de um ano de duração
115
, existiam práticas distintivas que
caracterizavam esses tipos de relacionamentos.
Vamos observar esse tipo de envolvimento amoroso pelo caso de Maria Theodora,
apresentada anteriormente na introdução, conhecida por ser uma menina namoradeira. No ano
de 1886, ela veio de Recife, onde morava com um tio, para passar as festas de fim de ano com
seus pais em São Lourenço. Theodora deixou para trás um namorado, porém, não se demorou
em arrumar outro no inicio do novo ano de 1887. Ela contou em seu depoimento ao juiz como
eram os seus namoros, pontuando as diferenças entre um namoro de fiança e um namorico.
No namoro sério os pais deveriam ser avisados e também deveriam consentir o
relacionamento. Era permitido conversar na casa dos pais da moça, sempre nos horários mais
113
Em nossa análise, nesse tópico, selecionamos os casos de raptos e defloramentos para reconstruir o que seria
o namoro do século XIX. Por nos possibilitar ter acesso as experiências amorosas dos casais implicados nos
processos. Excluímos o crime de estupro, pelo motivo de não encontramos relatos de relacionamentos amorosos
entre homens e mulheres, além, de se ter o uso de violência.
114
APEJE - Jornal das Moças, Recife, 25 de setembro de 1885.
115
Referência feita por Maria Theodora em seu depoimento, presente no processo já citado.
64
convenientes. Podia-se conversar também pela janela ou pela cerca, com o cuidado de se ter
sempre alguém observando e por esta tarefa até os vizinhos eram responsáveis. Nesse tipo de
namoro recebia-se e escrevia-se cartas, as quais os pais tinham que estar atentos ao conteúdo.
O pai de Theodora, ao ler uma das cartas do namorado de sua filha, a respondeu escrevendo,
que sua filha era muito nova para se casar. Pedidos de casamento e flores estavam presentes
entre os galanteios dos namorados. Para um namoro ser considerado sem reservas e de boas
intenções todos deveriam saber da relação entre o casal.
Fazia parte do namoro, de algumas meninas pobres, manter encontros sexuais.
Constatamos haver, nas experiências vividas no universo amoroso de parcela das pessoas
pobres, uma flexibilidade no controle dos seus movimentos por parte de seus familiares. As
meninas utilizavam as mais variadas estratégias para contornar a vigilância, como realizar
encontros amorosos quando os seus parentes estavam trabalhando ou descansando e também
quando elas mesmas iam à rua trabalhar ou comprar algum objeto.
116
Os namoricos, por outro lado, eram envolvimentos sem conhecimento dos pais.
Quando estes eram avisados por parentes ou vizinhos tratavam logo de observar se o
pretendente passava pelas redondezas ou vinha a sua casa. A moça que namorava todo mundo
que lhe passava pela porta, conversando até alta noite e chamando a atenção dos caminhantes
estava realizando um namoro considerado “safado” e “indecente”.
117
O controle e vigilância dos relacionamentos amorosos de suas filhas fez alguns pais
abrirem processos judiciais como o instaurado em Escada no ano de 1874. Nesse caso a
queixa foi dada como crime de sedução, porém, o juiz despronunciou o réu sob o fundamento
de que nos autos contava que ‘entre o réu e a vítima houvesse apenas um simples namoro e
que este não era crime previsto no Código Criminal.’
118
Essa sentença levou Tobias Barreto a
escrever neste mesmo ano o seguinte poema:
Namoro não é crime
(a um juiz de Escada)
Considerando que as flores
Existem para o nariz,
116
Esse tipo de comportamento de parte das meninas pobres foi observado por Cristina Cancela em Belém no
final do século XIX. Cancela, Cristina Donza, Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres
das camadas populares na Belém do final do século XIX e início do XX, Dissertação Mestrado, Campinas, SP,
1997.
117
APEJE - Jornal das Moças, Recife, 25 de setembro de 1885.
118
Azevedo, Thales de. O cotidiano e seus ritos: praia, namoro e ciclos de vida. Recife: Editora Massangana,
2004, pgs-120/121.
65
E as mulheres para os homens,
Na opinião do juiz;
Considerando que as moças,
Ariscas como o perdiz,
Devem ter seu perdigueiro
Na opinião do juiz;
Considerando que a gente
Não pode viver feliz
Sem fazer seu namorico,
Na opinião do juiz;
Amemos todos, amemos,
É Cupido quem o diz;
Pois namoro não é crime,
Na opinião do juiz.
119
Nos namoros ditos honestos, o melhor seria que o casal não desfrutasse de momentos
de intimidade. Eles deveriam ter seus encontros estreitamente vigiados por amigos e parentes.
A falta de um controle por parte das mães e dos pais, com relação aos movimentos e aos
namoros de suas filhas ou tuteladas, foi visto por uma parcela das testemunhas, dos juízes, dos
promotores e dos advogados como um dos elementos facilitadores da ocorrência de
defloramentos. Se tomarmos como referência os namoros das moças da elite desse período, a
namoros das camadas populares eram mais flexíveis, pois neles o casal tinha mais momentos
a sós em seus encontros e as meninas transitavam constantemente pela rua o que lhes dava
maior liberdade para marcar encontros com os seus pretendentes.
Para as meninas da elite, sair sozinha era quase impossível diante da vigilância mais
acirrada de seus pais e responsáveis, os quais queriam evitar situações como a apresentada por
José de Alencar, em seu romance Lucíola, de 1862. Nele o autor aponta uma das
compreensões sociais vigentes no período, a de que uma mulher que saísse de casa sozinha
correria o risco de ser considerada uma prostituta. Essa situação é descrita numa cena do livro
que é a do encontro na igreja dos personagens Paulo e Lúcia:
Quem é essa senhora? Perguntei a Sá.
A resposta foi um sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de
bonomia e de fatuidade, que desperta nos elegantes da Corte a
ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades
sociais.
- Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-
la? ... Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana que
confundira a máscara hipócrita do vicio com o modesto recato da
119
Idem.
66
inocência. Só então notei que aquela moça estava só e, que a ausência
de um pai, de marido ou de um irmão, deviam-me ter feito suspeitar a
verdade.
120
Esse diálogo corrobora com uma idéia corrente também em Pernambuco nos tempos
imperiais, de que uma mulher circulando sozinha pela rua poderia ser considerada uma
“perdida”. E por isso sua honra não necessitava ser resguardada por nenhum parente ou tutor.
Mas, para aqueles que tomaram como uma das funções da missão paternal, a guarda
da honra de suas filhas, a leitura de livros poderia ser utilizado como um entretenimento e
também como um meio de aprendizado de lições sobre moral e casamento, auxiliando na
educação oferecida às filhas. O comportamento recatado de parte das meninas honestas da
elite poderia ser apreendido por meio da leitura de obras, com função educadora, destinadas
ás jovens, como o livro A Moça Perfeita. Segundo a apreciação do Deão Dr. Joaquim
Francisco de Faria, publicada no Diário de Pernambuco de 18 de fevereiro de 1869, todo pai
de família, que zelasse pela educação de suas filhas, deveria se apressar para comprar um
exemplar, pois estaria dando-lhes um valioso presente.
121
O livro A Moça Perfeita estava na segunda edição e era composto de três volumes, os
quais versavam sobre os deveres a serem cumpridos pelas moças e as virtudes que as mesmas
deveriam exercitar como filhas, irmãs, esposas e mães, amas ou senhoras esse livro serviria
como um orientador de condutas para as suas leitoras. De acordo com essa obra, A Moça
Perfeita seria a menina virgem, inocente, a qual executaria bem as tarefas domésticas,
possuindo instinto maternal e estivesse procurando atingir o status de mulher casada. Para
tanto, na obra é apresentada a vida de Nossa Senhora, que deveria ser um modelo de virtude a
ser seguido pelas jovens leitoras.
Mas voltemos a Donata e, através do depoimento de Thereza, ficamos sabendo que
Rita Maria, possivelmente, não convivia com problemas para regular as relações amorosas de
sua filha, pois, como disse a testemunha “nunca se tinha visto namoro da menina”. Porém,
isso não significava menos atenção com os passos da menina. Vigilância ou zelo era outro
requisito para compor o modelo da boa moralidade. A educação deveria ser austera. Donata
era castigada por sua mãe “sempre pela menor falta”. Deixá-la ir à rua sozinha era evitado.
Quando Rita foi ser ama seca do acusado, isso ela disse em seu depoimento, voltava a
120
Alencar, José de. Lucíola, 1862,In: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/587 acessado em 29 de
julho de 2007.
121
APEJE - Diário de Pernambuco, Avisos Diversos - Obra de Educação de Jovens patrícias, 18 de fevereiro de
1869, Fl. 3.
67
tardinha, mas nem por isso deixava a filha só, levando-a e trazendo-a em sua companhia,
sempre que possível, ou a deixava sob a guarda de vizinhos.
O comportamento de Donata, de acordo com o relato de Rita, era típico de uma moça
recatada, ela era guardada sob os olhos vigilantes de amigos e vizinhos. Essa lembrança era
significante nas contendas de honra, pois, o procedimento das mulheres nos espaços públicos
era um elemento importante para compor o modelo de moça honesta.
Donata: uma moça honesta ou uma menina perdida?
Voltemos ao caso de Donata do ponto relatado no início desse capítulo. Vejamos ainda
alguns detalhes da noite do dia 23 de junho de 1885, véspera de São João. Uma possibilidade,
formulada com base novamente na documentação e também em especulações, pode ser a
seguinte: Ao encerrar o expediente, no dia 23 de junho, Augusto fechou o seu estabelecimento
e recolheu-se ao interior de sua casa. Possivelmente encontrou Donata realizando algum
serviço doméstico. Talvez, ela estivesse arrumando o quarto do patrão de sua mãe ou apenas
estava em algum espaço da casa que os permitiu ficarem a sós. Nesse momento travaram uma
conversa, na qual o taverneiro poderia ter prometido presentes e até desposá-la.
122
Ao longo
da prosa Augusto perguntou a Donata se ela era “moça virgem” e ela respondeu que sim. Eles
aproveitaram desse momento de intimidade e acabaram por fazer daquela noite,
provavelmente, um marco em suas vidas. Para Augusto, exercer sua virilidade estava de
bom tamanho, contudo, iniciar uma jovem na vida sexual parecia ser uma situação que
acentuava sua masculinidade. Para Donata, aquela poderia ser a chance de galgar uma
situação privilegiada. Ela poderia, dali por diante, ser esposa de um comerciante e ser dona de
uma casa, mesmo que modesta. Talvez, essa casa fosse melhor do que aquela do Beco dos
Açouguinhos, a qual era compartilhada com outras pessoas. Algumas criadas domésticas
casavam ou se amasiavam com seus patrões, como o caso publicado no Jornal O Tempo de
1883, onde um advogado abandonou a mulher para viver com a criada.
123
Donata pode ter
escutado histórias como essa quando conversava pela janela ou até pode ter visto passar pela
rua alguma mulher que vivia essa situação. Mas não vamos reduzir tudo ao interesse da menor
122
A promessa de casamento foi um dos artifícios mais freqüentes utilizados pelos acusados para conseguirem
realizar o defloramento. Do mesmo modo, as “vítimas” argumentavam terem sido seduzidas por meio de afagos
e promessas de casamento. Essas falas aparecem como elementos agenciados por essas mulheres, para reforçar o
modelo de inocência e para se construírem como moças honestas.
123
APEJE – O Tempo, Parece Impossível!, 27 de outubro de 1883.
68
de mudar de vida. E por que não pensar que Augusto poderia ser motivo dos suspiros de
Donata.
Depois de sabermos que Donata foi deflorada por Augusto ou de pelo menos, temos
conhecimento de um encontro sexual do casal vejamos às explicações do taverneiro. O
acusado não negou ter, no dia 23 de junho, mantido relações sexuais com Donata, porém,
alegou não ser a menina mais virgem por saber que outros homens tiveram relações sexuais
com ela e por isso não cabia tal acusação. Para Augusto a suposta ofendida é uma mulher
perdida e ele “apenas fez o que os outros faziam”.
Para os homens de algumas posses ou remediados era habitual à sedução de escravas e
agregadas da casa para possíveis contatos sexuais. Se por um acaso as promessas e
juramentos não dessem certo poder-se-ia recorrer ao uso da força física. Até porque o abuso
sexual poderia ser justificado sob o pretexto de que eram as mulheres que seduziam os
homens.
124
Um beijo na cozinheira de casa, América Ilustrada, Ano XI, nº31, 01 de outubro de 1881, fl.04.
124
Carvalho, Marcus J. M. de. Pátria, liberdade e espaço doméstico na primeira metade do século XIX.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – RIHGB, 163 (414): 119-132, jan./mar., 2002.
69
De acordo com Marcus Carvalho, uma prática nunca explícita, mas quase sempre
latente, “é a que havia uma situação intermediária entre a prostituição e o trabalho
doméstico. Entre as práticas sexuais ilícitas da rua e as rotinas da casa de um homem
solteiro ou até casado, mesmo que essa não fosse à intenção inicial das jovens que procuravam
trabalho nos sobrados do Recife. E nada impedia a venda posterior da amante (voluntária ou
não), ou sua demissão sumária, caso livre”
125
.
Trabalhar na casa de um homem solteiro deixava muitas vezes a empregada doméstica
à mercê de uma investida do patrão que exigia favores sexuais dessas mulheres, independente
de sua cor ou condição legal. Será que a mãe de Donata estava ciente dessa situação?
Provavelmente sim, nos anúncios de jornal do período em foco algumas mulheres ao se
oferecerem para desempenhar tarefas do serviço doméstico deixam claro, apenas, estarem
dispostas a trabalhar na casa de uma família honesta. Já outros anúncios pontuam a escolha de
outras mulheres, as quais estavam dispostas a trabalhar para um homem solteiro, porém, isso
não quer dizer que estas mulheres além de lavar e engomar, dormissem com os patrões.
Talvez, quisessem apenas trabalhar numa casa com menos atividades para serem realizadas
durante o expediente de trabalho.
126
O caso de Donata e Augusto passou de uma queixa na delegacia para se tornar um
processo no Tribunal da Relação. O resultado não agradou ao acusado que apelou da pena.
Porém, não foi atendido. Augusto foi condenado no máximo do artigo 219 do Código
Criminal
127
e a pagar as custas do processo. Como estava pronunciado no dito artigo, teria
também que pagar a fiança de 1:500$000 (um conto e quinhentos mil réis) para não ser preso
na Casa de Detenção. Foi o que ele procurou fazer. Como não tinha essa quantia disponível
arrumou um fiador, aliás, dois, porque o primeiro não pôde prosseguir na tarefa de ajudá-lo e
ele precisava pagar essa fiança para ser expedido um contra mandado de prisão. Desse sufoco,
Augusto, provavelmente, não ia se esquecer nem tão cedo. E Donata ia circular pela
vizinhança por um bom tempo, com a fama de moça honesta.
125
Idem.
126
O dia de trabalho de uma criada doméstica não era pré-definido, não havia horas fixas. A maioria das criadas
tinha um dia de trabalho muito pesado e bem longo. Hill. Bridget. Algumas considerações sobre as
empregadas domésticas na Inglaterra do século XVIII e no terceiro mundo hoje. In: Vária História, Belo
Horizonte, nº 14, setembro/95, pgs- 22 – 33.
127
Código Criminal do Império Dos Crimes Contra a Segurança da Honra - Artigo 219 Deflorar mulher
virgem, menor de 17 anos. Pennas: de desterro para fora da comarca em que residir a deflorada, por um ou três
annos, e de dotar a ofendida. Seguindo-se o casamento, não terão logar as pennas.
70
A narrativa do caso de Donata é importante, pois, as informações que a mesma contém
contém permitem-nos acompanhar o cotidiano de trabalho e lazer das mulheres dos
segmentos populares. As informações colhidas em processos de crimes sexuais guardam, em
alguns casos, referências valiosas sobre essas jovens como a cor, idade, estado civil e
profissão. Além disso, esse episódio mostra a justiça como uma alternativa disponível às
jovens pobres do dezenove para resolver suas querelas.
É sob essa perspectiva que analisaremos, no capítulo seguinte, a manipulação das
representações sociais e as estratégias utilizadas na luta por direitos que as meninas dos
segmentos populares acreditavam que lhes cabiam na província pernambucana das últimas
décadas dos oitocentos.
71
“Amiaçou-o com a justiça”: os usos da justiça pelas
mulheres das camadas populares.
É nosso interesse, neste capítulo, analisar como um segmento específico da população,
as mulheres pobres livres, faziam uso do direito como instrumento de defesa de seus
interesses. Procuramos compreender quais os significados que esse grupo atribuiu à Justiça
quando reclamaram o que concebiam como seu direito. Selecionamos casos de crimes sexuais
ocorridos na Província de Pernambuco, entre as décadas de 1860 e 1880, que propiciaram
estudar esse campo de análise.
Nossas reflexões sobre os usos do direito pela população pobre tiveram a decisiva
influência das questões formuladas por E P Thompson no ponto intitulado “O domínio da
lei”, que compõe o seu livro “Senhores e Caçadores”. O autor enfatizou que a lei não pode ser
localizada apenas no aparato judiciário e legislativo, mas perpassa as relações sociais, por
exemplo, quando as pessoas se apropriavam das leis e as transformavam em um campo de
conflitos e disputas, permitindo aos segmentos populares auferir alguns ganhos:
128
Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar
nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe
alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua
função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a
manipulação flagrantes e pareça ser justa.
129
O autor acentua que o sistema judiciário para legitimar-se aos olhos dos diversos
segmentos sociais necessitava apresentar-se como uma instituição potencialmente autônoma.
Ele destaca também, em suas reflexões, que devemos compreender o Direito como palco de
128
Thompson, ao analisar os conflitos, ocorridos na metade do século VXIII, na Inglaterra, entre os caçadores
negros e a aristocracia proprietária de terras a cerca do usufruto das florestas, observou que esses conflitos teriam
dado origem a Lei Negra, a qual proibia o acesso freqüente aos produtos das florestas. O autor demonstra como
os camponeses e foreiros passaram a utilizar a lei como um campo de forças acessível a diversos setores sociais e
cujo resultado não era pré-determinado. As lutas na Justiça podiam ou não ser vitoriosas para as pessoas de
poucas posses ou abastadas. Thompson, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1987. Sobre essa discussão de Thompson ver também: Fortes, Alexandre. O direito na obra de E. P.
Thompson. In: Revista História Social, Campinas – SP, nº 2, 1995; e Campos, Adriana Pereira. Uma introdução
à História do Direito Moderno. In: Velhos temas, novas abordagens: História e Direito no Brasil, (Org.) Adriana
Pereira Campos, Vitória, PPGHis, 2005.
129
Thompson, E. P. pg-354, In: Ferreira, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e
criminalidade num ambiente rural, 1830-1888. São Paulo: Editora UNESP, 2005, pg-26.
72
conflitos e isso implica em imputar a condição de sujeitos ativos aos setores populares.
Reduzir os pobres a vítimas seria obscurecer o significado de suas ações e caracterizá-los
como pessoas sem capacidade de pensar, de forma intencional, seus próprios atos. Uma crítica
a essa visão sobre os populares foi formulada por Thompson, pois, para o autor, as suas ações
não podem ser entendidas como respostas meramente instintivas a determinadas situações de
penúria ou sofrimento, inclusive as físicas, como a fome. Elas devem ser compreendidas
como atitudes escolhidas e decididas
130
.
É nesse campo que nossas reflexões irão caminhar. Ao focalizarmos os crimes sexuais,
acreditamos que, para os homens e mulheres pobres livres, o uso do poder judiciário, como
espaço de negociação e barganha foi uma realidade em Pernambuco imperial. Dessa forma é
que podemos pensar o caso ocorrido em 1871, envolvendo Maria Francisca da Conceição,
costureira, moradora de Escada. Vítima de abuso sexual ela apresentou ao Promotor Público
uma queixa contra o negociante Antonio Tenório de Albuquerque, por tê-la deflorado. Em seu
depoimento, ficou assim registrado o porquê da ofendida recorrer à justiça àquela altura:
... depois de um anno vendo que elle não realizava o cazamento
promettido, amiaçou-o com a justiça (...) até que finalmente vendo
que não podia fazer com que seo offensor reparasse a sua honra
queixou-se a autoridade
131
Maria Francisca teve sua demanda atendida. Antonio Tenório foi condenado a dois
anos de desterro para fora da comarca, a dotar a deflorada e a pagar as custas do processo.
Nas semanas que se seguiram ao acontecido, possivelmente, o fato deve ter sido tema de
discussões calorosas em tabernas e esquinas a respeito daquela sentença. Talvez, até a própria
Maria Francisca tenha comentado com seus clientes, quando conferia suas medidas para
costurar, sobre o fato de serem ouvidas e beneficiadas pela justiça as queixas de moças de
poucas posses. Outras mulheres pobres, provavelmente, não tiveram a mesma sorte que Maria
Francisca ao procurarem a justiça e pleitearem direitos, mas a existência deste caso demonstra
130
Thompsom, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Costumes em Comum:
estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. Sobre os usos que os
populares fizeram das instituições jurídicas iremos dialogar com o Historiador Ivan de Andrade Vellasco através
de seu livro As Seduções da Ordem: violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais
século XIX. EDUSC/ ANPOCS, 2004. Thompson em um estudo sobre os camponeses e os motins da fome do
século XVIII na Inglaterra, formulou questões sobre as ações e conflitos vividos por homens e mulheres diante
de sua realidade. Ao invés de tomar as ações dos populares aprioristicamente, como reações naturais e
inevitáveis, o autor observou as possibilidades de manipulações e escolhas individuais que embora seguissem a
sua realidade normativa não determinavam os comportamentos dos indivíduos.
131
IAHGPE, 1871, caixa 1, Tribunal do Júri Processo crime a requerimento do Doutor Promotor Público da
Comarca José Antonio da Silva. Autora: A justiça/ Réo: Antonio Tenório Cavalcanti de Albuquerque.
73
que os tribunais não eram espaços destinados a acolher exclusivamente as denuncias da elite e
a aplicar sentenças de seu agrado.
O tema na historiografia.
São recorrentes na historiografia as afirmações de que o acesso a Justiça seria
franqueada, somente, as pessoas de posses. Nas últimas décadas do século XX, os estudos
sobre crimes ou comportamentos criminosos; sobre a escravidão e a liberdade passaram a
colocar os escravos, os homens e as mulheres livres e pobres como pessoas capazes de
demandar por Justiça representando uma mudança no modo como essa temática é abordada.
Ainda recentemente, alguns trabalhos continuam a insistir que o recurso à Justiça foi
privilégio de poucos, enquanto outros, mais recentemente, vêm contestando esse tipo de
abordagem.
132
O trabalho do cientista político Andrei Koerner, do ano de 1998, no capítulo em que
discutiu o poder judiciário no Império, levantou questões relativas ao tema da Justiça e os
pobres livres. Para o autor, o poder judiciário era um espaço de resultados pré-determinados e
que beneficiavam apenas os homens de posses. Ele afirmou, em seu livro, enfaticamente, que
os pobres e livres apareciam nos registros judiciais, predominantemente, como acusados e até,
quando eram vítimas de crimes, lhes era negado o direito de recorrer à justiça. A fim de
ratificar a sua tese, apresenta para discussão um episódio que foi acatado por um juiz, nesse
caso constava que “a denuncia de um caboclo, sem responsabilidade moral, menos ainda
social, um trabalhador boçal de enxada, que não tem nome, nem posição, e nem reputação a
zelar”
133
. Para o autor, essas considerações, sobre o queixoso, apontavam para o não
reconhecimento de seu status de cidadão com direitos. Dentro de uma linha historiográfica, o
fato do juiz ter aceitado a queixa do caboclo, um homem pobre, significou o seu
reconhecimento como um homem com direitos a serem resguardados pela instituição
judiciária. A percepção de Koerner era de que independentemente das ações dos homens e das
mulheres pobres, na arena judiciária, os rumos dessa empreitada já seriam anteriormente
determinados de acordo com as hierarquias sociais.
134
132
Bretas, Marcos Luiz. O Crime na Historiografia Brasileira: Uma revisão da pesquisa recente. BIB, Rio de
Janeiro, 32, semestre de 1991 e Grinberg, Keila. Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil do século
XIX. In: Direitos e Justiças no Brasil.
133
Koerner, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. Editora HUCITEC, USP,
São Paulo, 1998, pgs-56/57.
134
Esse trabalho de Andrei Koerner teve como base de análise das fontes (processos judiciais) e de suas
considerações sobre o funcionamento da justiça, as obras de Sergio Adorno Os Aprendizes do poder: o
74
Ao contrário da percepção apresentada, o estudo de Celeste Zenha apontou o poder
judiciário tendo como uma de suas funções a de intermediar os conflitos entre homens e
mulheres livres. Mostrando o funcionamento da máquina administrativa, entre os anos de
1841 e 1890, no Município de Capivary no Rio de Janeiro. Seu trabalho teve influência nas
análises de Historiadores que pautaram suas pesquisas na preocupação com os usos da justiça
por parte da população pobre. Ela afirmou ainda que o poder judiciário foi compreendido, por
muitos populares, como espaço para arbitrar os seus desacordos e, cada vez mais, acessível a
essa parcela da população. Seu trabalho avançou na discussão dos usos da justiça pelo fato de
ter realizado um trabalho de exploração das fontes, verificando a flexibilização do pressuposto
de uma dominação absoluta dos potentados locais. A autora não foi em busca de uma visão
inteiramente oposta da apresentada, por parte da historiografia, ela apenas observou que os
populares aparecem também como solicitantes da intervenção da justiça.
135
A partir da década de 1980, os estudiosos do tema da escravidão ampliaram a
discussão sobre a justiça e seus usos. Os historiadores procuraram fontes nas quais pudessem
perceber as tensões e ambigüidades que permearam o universo do cativeiro. Observou-se, no
conjunto das fontes oficiais para o estudo da escravidão, especificamente, nos autos criminais,
vantagens significativas para a análise social. Em termos legais, as percepções ambíguas que
cercavam a figura dos escravos, e por vezes dos próprios libertos que eram tratados como
seres judicialmente incapazes, a Justiça criminal foi obrigada a corresponder, em alguns
sentidos, a tal orientação, mas sobretudo a contorná-la, conferindo plena responsabilidade aos
réus escravos.
136
A via judicial foi uma das estratégias utilizadas por parte dos cativos na
busca da liberdade, onde ganharam e também perderam, mas imprimiram um outro
significado a esse espaço junto aos existentes naquele período e o transformaram em um lugar
para receber as suas reivindicações. Tais ações são reveladoras de que os resultados não
estavam condicionados somente aos interesses senhoriais. As pesquisas sobre a justiça e seus
bacharelismo liberal na política brasileira, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998 e Maria Sylvia de Carvalho Franco
Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Unesp, 1997.
135
Zenha, Celeste. As Práticas da Justiça no cotidiano da pobreza. In: Revista Brasileira de História, São Paulo,
vol.5, nº 10, 1985.
136
Wissenbach, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas escravos e forros em São Paulo
(1850-1880) e Gizlene Neder, João Pinaud, Márcia Motta, Ronald Raminelli e Silvia Lara Os estudos sobre a
escravidão e as relações entre História e o Direito, Revista Tempo, vol.3, nº 6, dezembro de 1998.
75
usos ganharam fôlego, tomando por base a discussão da historiografia da escravidão que se
ocupou dos usos e das reivindicações dos escravos por seus direitos.
137
Mesmo considerando outro aparato legal no período republicano, as obras das autoras
Martha de Abreu e de Sueann Caulfield possibilitaram-nos pensar as camadas populares. O
Livro de Martha Abreu Esteves, Meninas perdidas os populares e o cotidiano do amor no
Rio de Janeiro da Belle Époque, através da utilização de processos referentes a crimes sexuais
defloramento, estupro e atentado ao pudor investiga como, por meio das punições
imputadas aos acusados, o aparelho jurídico ampliava sua interferência na vida dos
trabalhadores. Em sua pesquisa, a autora encontrou casos que envolviam mulheres dos
segmentos populares as quais no momento de resolução das querelas sofreriam uma tentativa
de controle dos seus comportamentos e enquadramento aos valores sexuais da elite. Apesar de
participarem do exercício do poder judiciário, ainda assim, as mulheres pobres estavam atadas
a lógica da dominação, pois, não faziam o uso da justiça a seu favor, apenas lutavam para
manter sua cultura chamada de popular expressa através de seus valores sexuais. Se
pensarmos que parte das queixas de crimes sexuais eram dadas pelas mulheres pobres outro
significado pode ser vislumbrado para as suas ações. No mínimo havia um cálculo e uma
expectativa no recurso à justiça podendo elas enxergar em seu uso garantias de seus direitos,
assim, não foram somente objetos inertes da ação do controle social.
Outros trabalhos vêm revelando diversos sujeitos ditos excluídos da capacidade de
demandar justiça e negociar os seus conflitos. Uma dessas obras é o livro de Sueann
Caulfield, Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, obra
que dá prosseguimento à pesquisa realizada por Martha de Abreu. Tal obra preocupa-se com a
importância da honra no cotidiano da população carioca dos anos de 1918 até 1940. Para
Caulfield, as vítimas, os réus e as testemunhas pertencentes à classe trabalhadora, e os
advogados de defesa, promotores e juízes compartilhavam uma linguagem comum sobre
honra e relações de gênero. Baseada em fontes, como processos criminais, relatórios policiais
e de saúde, inquéritos de crimes sexuais e jornais, a sua intenção é entender o papel que a
honra desempenhou no debate público de modernização, moralidade e construção da nação,
bem como os vários sentidos que a mesma teve para os diferentes sujeitos históricos. A autora
através dos depoimentos das moças pobres envolvidas nos casos, descreveu estratégias
empreendidas pela família ou pela vítima para resolver uma situação de conflito, ou seja,
137
Chalhoub, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
76
estavam negociando, fazendo uso da justiça a seu favor e reconheciam o poder judiciário
como espaço para auferir alguns ganhos
Mais recentemente, Ivan Vellasco, no livro As Seduções da Ordem, segue a vertente
de estudos históricos que trabalham com as questões dos usos sociais da justiça. O autor
procurou reconstituir histórias de vida de homens e mulheres pobres que se utilizaram do
poder judiciário em Minas Gerais nos oitocentos. A preocupação de seu trabalho está voltada
de um lado à construção das agências de controle e de exercício do poder e, de outro lado,
para o funcionamento da justiça e o seu significado para os demandantes pobres. Bem como a
percepção do judiciário como lugar de efetivação da cidadania para aqueles que se viam
distantes dos direitos civis. O livro de Ivan Vellasco tornou-se, um referencial importante à
compreensão das funções assumidas pela justiça no Império.
138
Nossa pesquisa sobre os usos da Justiça pelas mulheres pobres na segunda metade do
século XIX insere-se no bojo dessa historiografia que, respaldada em fontes judiciais, tem
demonstrado que os pobres não tiveram acesso á Justiça como poderiam sair dos tribunais
vitoriosos em suas demandas. Quanto a isso, o nosso trabalho distancia-se daquela perspectiva
de análise que vê no campo jurídico apenas um espaço de representação dos interesses
dominantes de uma classe, gênero e grupo racial.
O Código do Processo Criminal e os crimes sexuais
Ciente de que tinha direitos, Antonia Maria, menor de 14 anos, através da Justiça,
apresentou, no dia 8 de junho de 1874, queixa contra Policarpo da Silva Araújo por tê-la
estuprado. Esse fato ocorreu no dia 30 de maio de 1874, na Rua da Cobra na Vila de Itambé,
por volta das 2 ou 3 horas da tarde, quando o réu foi à casa de Antonia, que se encontrava na
sala, cosendo uma camisa de homem. Naquele instante ele percebeu ser aquele um momento
propício para realizar seu objetivo, pois a mãe da menina se encontrava descansando no
quarto, não estando a tima sob a vigilância de ninguém. Nesse momento, relembrava
Antonia em seu depoimento, Paulino a chamou para conversar no quintal e, quando lá
chegou, foi surpreendida com os gestos bruscos do acusado, foi jogada no mato e na lama,
conforme ficou registrado nos autos depois que seu vestido de chita verde sujo foi
apresentado como prova do crime. Apesar de ter reagido, Antonia foi imobilizada pelo
138
Vellasco, Ivan de Andrade. Op. Cit. As Seduções da Ordem.
77
agressor e lhe foi “roubada sua honra”. As autoridades policial e judiciária foram informadas
do crime e se procedeu ao corpo de delito. O exame foi feito por duas parteiras, sendo
constatado que houve cópula carnal com violência.
139
A cena que acabamos de narrar, e outros casos tratados mais adiante neste capítulo,
revelam as noções de crime sexual estupro, rapto e defloramento vigentes em meados do
século XIX no Brasil, os quais iremos explorar a partir dos relatos da partes diretamente
envolvidos nos casos e dos profissionais da Justiça. Além disso, os episódios que
analisaremos também nos permitirão ter acesso as noções de feminilidade dominante na
sociedade e presentes nas falas dos acusados e vítimas de crimes sexuais.
O Código Criminal do Império definia como crime sexual praticado contra as
mulheres o estupro, o defloramento e o rapto. O defloramento não aparecia no código como
um crime e secção específica, mas combinado ou associado aos delitos mencionados.
Contudo, a identificação do delito, realizado pelas autoridades, indicam que o defloramento
era tipificado nos processos como um crime independente dos demais. A tabela a seguir
ilustra os tipos de delitos sexuais que apareceram nos processos analisados:
TABELA Nº 4.
CRIMES ENCONTRADOS NOS PROCESSOS DE CRIME SEXUAL (1863-1887)
Crimes Sexuais Quantidade Porcentagem
Defloramento 10 34,48%
Estupro e Defloramento 10 34,48%
Estupro 5 17,24%
Rapto 3 10,34%
Rapto e Defloramento 1 3,44%
Total 29 100
Em meados dos oitocentos, o estupro, foi compreendido como uma relação sexual
forçada, em oposição ao contato sexual consentido, realizada com o uso de violência física.
As queixas de estupro contra crianças ou jovens, que atualmente nomeamos como
139
IAHGP – 1875, Apelação crime do Juiz de Itambé apelante- Policarpo da Silva Araújo / apelada - a justiça.
78
adolescentes,
140
eram mais freqüentes, particularmente, entre mulheres com idades que
variavam dos 13 aos 17 anos. Ocorrências com menores eram mais habituais por serem os
homens adultos superiores em força física e assim as meninas seriam agredidas facilmente
seduzíveis por serem jovens e ingênuas. Essa seria também a faixa etária onde se encontrava o
maior número de mulheres virgens e uma jovem deflorada poderia ter maiores dificuldades
para ingressar com melhores chances no mercado matrimonial, como disse Vigarello “uma
jovem ‘deflorada’ torna-se inevitavelmente uma mulher ‘perdida’
141
. Um maior número de
queixas de estupro de crianças e adolescentes exprimiu o que Vigarello nomeou como uma
sensibilidade da violência sexual e que demarcava para essas vítimas o lugar da inocência.
142
O Código Criminal do Império reconhecia essa distinção quando colocou limites de idade
para se recorrer à Justiça Pública. O estupro de uma mulher jovem era mais condenado do que
o perpetrado numa mulher adulta, pois, sobre a última, pairava sempre a suspeita de a mesma
haver consentido no ato sexual. De fato, a violência sexual contra menores apareciam nas
notícias dos jornais com muito destaque, como fatos horrorosos, monstruosos, ou como um
crime medonho
143
. Esse tipo de notícia publicada nos jornais, era lido por pessoas das mais
diversas camadas sociais, inclusive, pelos pobres e analfabetos.
Como foi observado em Campinas por Denise Moura, acreditamos também que para
Pernambuco os anúncios de trabalho estampados nos jornais, sugeriam o acesso dos pobres
livres ao jornal
144
, seja como leitores ou leitores-ouvintes. E quando eles procuravam os
140
Compreendemos o adolescente, para a metade do século XIX na Província de Pernambuco, como aquele
que tem início com a idade entre os 12 aos 17 anos. Levamos em consideração para estabelecer a faixa etária
correspondente à adolescência, o Código Criminal do Império que determinava a idade de até 17 anos como a
idade limite para a intervenção da Justiça nos casos de crimes sexuais, as fontes pesquisadas e a bibliografia
sobre o tema. O início da adolescência com a idade de 12 anos sofreu influência dos trabalhos de alguns
estudiosos como o de Maria Cristina Luz Pinheiro para ela a criança escrava é aquela que tinha a idade de até 12
anos, ver: O trabalho de crianças escravas na Cidade de Salvador 1850-1888. Afro-Ásia, 32 (2005), 159-183.
Ver também a introdução do Livro História dos Jovens onde estão às considerações dos organizadores a respeito
das dificuldades de definir a juventude, recomendando observar a qual época, sexo e classe social pertence esse
jovem. Ao contrário do que sugeriram os autores, definimos limites para a época da vida em uma fase, que
sabemos nada estável, entre a dependência infantil e da autonomia da idade adulta. O limite de uma faixa etária
que compreenda a juventude tem um valor apenas, indicativo, com o objetivo de deixar menos complexa essa
questão. Levi, Giovanni & Schimitt, Jean-Claude (Org.). História dos Jovens – da Antiguidade à Era moderna,
vol 1, Cia das Letras : SP, 1996.
141
Vigarello, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998.
142
Vigarello, Georges. Idem.
143
APEJE - Jornal o Desespero, “Facto Horroroso!!, domingo 14 de novembro de 1880 nº 18 fl.3/4.
144
Na segunda metade do século XIX, nos anúncios procurando criados domésticos, se percebia o aumento da
procura por forros ou pessoas livres. Zaidan, Noemia. Op. Cit. Pg- 31.
79
serviços ali oferecidos deviam, vez por outra, passar os olhos ou ouvidos nas matérias para se
informar dos acontecimentos.
145
As notícias sobre raptos, defloramentos e estupros de menores apareciam com certa
freqüência na imprensa pernambucana. Algumas queixas registradas nas delegacias tiveram
início em notícias publicadas nos jornais de grande circulação como O Tempo, A Província,
Jornal do Recife e o Diário de Pernambuco, mas também nos jornais pequenos que tinham a
sua circulação mais restrita. Uma das vantagens de publicar queixas nos jornais era que elas
seriam conhecidas mais rapidamente pelas autoridades e conseqüentemente, as providências
relativas ao caso também poderiam ocorrer na mesma velocidade.
Foi por causa das notas publicadas no Jornal do Recife, dos dias 12 e 13 de junho de
1878, com a epigrafe Nem Barbaria –, que foram realizadas as diligências sobre o suposto
defloramento de umas moças retirantes do interior do Ceará.
146
O jornal atuava, ou pelo menos, tentava atuar, como um meio de introdução de valores
servindo para podar e/ou regulamentar as práticas dos indivíduos. A imprensa divulgava as
normas sexuais ditas corretas, não com o intuito de atingir os envolvidos nos casos, mas
como também todos que tomassem conhecimento das histórias.
Nesse sentido, as notícias apresentadas nos jornais sobre crimes sexuais lidas ou
ouvidas nas conversas cotidianas, não passavam em branco das fofocas feitas nas ruas, nas
vendas, nos sambas e rapidamente eram espalhadas pela mobilidade física dos homens e
mulheres livres.
Observando no cotidiano dessa época percebemos como era corrente o acesso à
informação pelos jornais, tanto que o subdelegado disse ao taverneiro português Augusto,
apresentado no capítulo, que se lembrasse do exemplo de José Ferreira Campos, conhecido
por José Progresso. Esse caso foi noticiado pelos jornais da cidade noticiaram, com certa
insistência:
José Ferreira Campos Este deflorador, que temos acusado
energicamente pelo crime que acaba de commetter em Afogados,
consta-nos que pretende fugir porque o crime que praticou é de
estupro e não admite fiança.
Cumpre à polícia vigial- o.
147
145
Moura, Denise. Op. Cit., pg-82
146
APEJE – Repartição Central de Polícia, Delegacia de Polícia do 1º distrito da capital em 17 de junho de 1878.
147
APEJE – O Rebate, José Ferreira Campos, 1883.
80
Assim como Augusto, José Ferreira Campos também era português e estava
estabelecido com uma loja de fazendas no Largo da Paz em Afogados. Ele foi acusado de ter
deflorado Josepha Maria da Conceição, menor de 11 anos, isso no dia do falecimento de
sua mulher.
Bem não vamos deter-nos nos detalhes do caso de José Progresso e Josepha Maria,
mas podemos pensar qual o impacto que tinha uma história como a deles, pois, o assunto foi
tema de matérias de jornal e continuou sendo assunto de conversas anos após o ocorrido.
Em determinados momentos, mesmo não sendo intencional, a imprensa auxiliava a
disciplinar os comportamentos não das mulheres, mas dos homens também. Esses não
podiam exercer sua masculinidade a torto e a direita. A imprensa tentou incutir na vivência
desses homens e mulheres livres outras regras para administrarem suas relações amorosas e
sexuais.
Acontecimentos dessa natureza eram denunciados pelas folhas públicas para que na
intenção de não deixar cair no esquecimento os crimes cometidos contra meninas ou donzelas,
bem como para pressionar as autoridades a tomarem providências legais para vingar a honra
de uma filha do povo.”
148
Do ponto de vista da imprensa, uma das principais missões dos
magistrados seria salvar a honra das meninas, o pudor e o recato das famílias.
149
a sua
obrigação estava em denunciar e cobrar da justiça o cumprimento de seus deveres.
Durante o andamento das investigações, dos inquéritos policias e dos processos
criminais, fazia-se necessário um levantamento sobre a vida das jovens e seu comportamento
pregresso, visando analisar as suas atitudes e comportamentos no dia a dia. A partir dessa
investigação, algumas mulheres podiam ser suspeitas de uma “vida de devassidão”, como
gostava de afirmar a defesa de grande parte dos acusados. Caso se constatasse tal suspeita,
abria-se a possibilidade de atenuação da pena dos agressores ou o arquivamento do processo.
Por outro lado, as autoridades supunham, quase sempre, que mulheres adultas, ou seja,
as maiores de 17 anos, por terem atingido a maturidade estariam em melhores condições de se
defenderem e se prevenirem de um assalto sexual, ao contrário das menores de idade. De todo
148
APEJE - Jornal A Província, Publicações Solicitadas - Ao Sr. Dr. juiz de órfãos, 20 de agosto de 1875 fl.2.
Na seção Publicações Solicitadas do jornal A Província, eram enviadas cartas assinadas por seus autores, com
pseudônimos ou cartas anônimas contendo queixas ou denúncias sobre os mais diversos problemas do cotidiano,
desde barulho produzido por um vizinho, do marido que batia na mulher, sobre as posturas municipais e crimes
sexuais, todos pedindo providências das autoridades competentes. Uma leitura sobre o uso dos jornais como um
veículo de denúncias e busca de melhorias no cotidiano por parte da população pobre ler: Silva, Eduardo. As
Queixas do Povo, Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988.
149
APEJE - Jornal A Província, Justiça da subdelegacia do Recife, 28 de agosto de 1875 fl.4.
81
modo, fossem elas consideradas maduras ou jovens, deviam comprovar a violência física de
que foram vítimas e a sua incapacidade, física ou de outra natureza, de reação aos seus
agressores. No caso daquelas, tidas como conscientes ou lúcidas no ato da agressão, era muito
difícil não lhes atribuir a condição de desonestas, o que complicava bastante a sua sorte nos
tribunais.
O conceito de mulher honesta compreendia a forma de se comportar socialmente
aceito para o gênero, o tipo de trabalho e os lugares que freqüentava. E todos esses elementos
eram muito importantes, para medir a intensidade da pena aplicada aos homens acusados de
estupro. A pena de estupro, portanto, variava de acordo com um fator bem subjetivo - a
honestidade da mulher -, ou seja, dependia do perfil da vítima. Entretanto, a honestidade da
vítima não era pré-requisito para a caracterização do crime de estupro, mas o estupro sofrido
por uma prostituta, por exemplo, faria seu agressor ser condenado num grau menor do artigo
222 do Código Criminal do Império.
150
Os casos mais freqüentes de estupro, por nos estudados, foram aqueles em que
vizinhos, parentes ou os próprios pais aparecem como os principais agressores. É o amigo que
faz uma visita à casa da família ou da vítima, geralmente, menina, para um encontro acertado
ou pulando à janela que, na ausência ou descuido dos responsáveis, cometem os crimes. O
patrão que leva a menina para um cômodo de sua casa para molestá-la ou mesmo, o pai que
entra no quarto de sua filha e a violenta, foram alguns destes encontros que desaguaram em
casos de justiça.
Estas histórias são descobertas depois de algum tempo, em razão das vítimas e das
testemunhas serem ameaçadas ou vítimas de castigos físicos, por parte dos criminosos. Outras
levam menos tempo para tornarem-se públicas, como o estupro coletivo sofrido por duas
irmãs, Maria Ângela da Conceição de idade ignorada e Virtuosa Ângela Maria da Conceição
de 15 anos. No dia 16 de abril de 1885, quando elas já estavam agasalhadas em suas camas e
dormindo, uma delas ouviu um barulho vindo da rua. Era a voz de homens falando alto,
parecendo embriagados. Estes, então, começaram a bater na porta e um deles chamou por
Maria Ângela. Em seu relato, Virtuosa respondeu que sua irmã não estava em casa e uma voz,
logo depois, intimou-lhe: abra a porta, senão boto-a abaixo”. A ameaça não tardou a
150
Tinoco, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brazil annotado.Ed.fac-sim., Brasília :
Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, pggs- 403/404. Art. 222. Ter pula carnal, por meio de violência ou
ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas: máximo – 12 annos de prisão simples e dotar a offendida; médio-
7 annos e 6 mezes, idem, idem; mínimo- 3 annos, idem, idem. Se a violentada for prostituta. Penas: máximo- 2
annos de prisão simples; médio- 1 anno e 15 dias, idem; mínimo- 1 mez, idem.
82
acontecer, seis homens armados de facas e revólveres arrombaram a janela da casa das irmãs
Conceição e as violentaram sob ameaças e ofensas físicas, sendo seus corpos, no dizer do
processo, transformado num “teatro da mais audacioza e revoltante cena de depravação e
libidinagem”, ainda mais em razão de uma das irmãs ter sofrido violação também “pela via
escretora”, segundo os autos ato sexual reprovado, que, em geral, provocava muita
indignação. Mas logo ao amanhecer, do dia seguinte ao crime, a vizinhança havia tomado
conhecimento do abuso sofrido pelas irmãs e mobilizando as autoridades competentes para
apurar o caso.
Os processos de crimes de estupro possuíam um encaminhamento que seguiam
algumas regras básicas, semelhante aos dos outros crimes sexuais. O primeiro deles dizia
respeito a provar a existência do crime, pois, o estupro costumava ser praticado, geralmente,
longe de olhos observadores, em locais ermos como matas ou em ambientes reservados.
Devido a isso, as testemunhas inquiridas sobre o fato, tanto as da defesa quanto as de
acusação, podem emitir sua opinião, muitas vezes, baseadas no que ouviram dizer sobre
fatos anteriores ou posteriores ao crime. Despontando como poucas, as ocasiões em que
testemunhas, pegando o agressor em flagrante, pudessem provar a realização do crime por
seus depoimentos.
Mas o exame de corpo de delito costumava funcionar como uma prova concreta da
violência sexual para os casos de estupro, notadamente, se a vítima da agressão fosse virgem.
E por vezes, o debate em torno da execução e dos resultados desse exame tornavam-se uma
das partes mais importantes da batalha judicial. A execução e os resultados do corpo de delito
eram minuciosamente analisados pelos advogados de defesa dos acusados, visando observar
possíveis falhas no procedimento, o que poderia vir a invalidá-lo como prova do crime. Como
em um caso, no qual o exame foi realizado, na fala do advogado, por “duas mulheres velhas e
analfabetas e quase mendiga.,
151
Em vista disso foi questionada a credibilidade do exame
pelo fato de não ter sido realizado por um profissional diplomado, o que inviabilizava o
exame como prova científica.
152
Os debates em torno dos exames médico-legais (corpo de
delito) eram discutidos em todos os seus pormenores, pois, para os homens acusados, caso o
151
IAHGP – 1875, Apelação crime do Juiz de Itambé apelante- Policarpo da Silva Araújo / apelada - a justiça.
152
Sampaio, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura – As diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial.
Campinas, SP : Editora da Unicamp, 2001.A trama do livro de Gabriela Sampaio se passa no Rio de Janeiro dos
tempos do Império e é, nesse cenário que ela discute como os vários tipos de exames médicos e curas eram
exercidas por pessoas que haviam adquirido o conhecimento sobre o corpo e a saúde no cotidiano. Essas práticas
conviveram com a medicina científica, durante todo século XIX, apesar de todo o esforço de legitimação e luta
pelo monopólio do exercício da medicina pelos médicos diplomados.
83
exame confirmasse o desvirginamento da menina seria preciso argumentos muito coerentes e
convincentes para responsabilizar a ofendida pela trama que teria o levado a efetuar o ato
delituoso
153
.
O exame de corpo de delito era também um elemento que tornaria possível reconhecer
se uma menina era ou não virgem, representando um componente imprescindível para
configurar o crime de defloramento. Esse delito era entendido, segundo a lei, como o primeiro
contato sexual de uma mulher antes do casamento, muitas vezes, realizado com a anuência da
vítima. Na documentação pesquisada, apareceram relatos sobre sangramentos, resultado da
ruptura do hímen, os quais deveriam servir como prova do crime. Era uma descrição utilizada,
portanto, para atestar o estado anterior de virgindade da menina e constava como uma
referência significativa para determinar a ocorrência de um defloramento.
O defloramento era concebido, pelo Código Criminal do Império, como o
desvirginamento de uma moça honesta por violência ou por sedução. Vejamos, nos ofícios
policiais, a história do defloramento de Rosita uma imigrante portuguesa. Esse caso teve
início com a petição enviada pela tia da ofendida, a senhora Maria José da Silva, ao Cônsul de
Portugal e que tinha “o intuito de evitar a perda da honra de sua sobrinha.”
154
Logo após o
recebimento da petição, o Cônsul Português dirigiu um ofício ao Chefe de Polícia pedindo as
devidas providências para a ocorrência.
A tia comunicou à autoridade portuguesa ter servido de mãe à Maria Roza da Silva,
donzela, menor de 17 anos, e, como uma mãe que zelava por sua filha, lhe cabia “evitar a
consumação de um atentado contra a inocência”.
155
A menina estava sob sua guarda, mais ou
menos, desde 1873, quando a trouxe de Portugal para o Brasil. Primeiro moraram alguns anos
no Maranhão e depois mudaram-se para Pernambuco, vivendo Maria Rosa sempre no recato e
honestamente, garantido a tia que a honradez da vítima poderia ser confirmada por pessoas de
ambas as províncias.
Como o defloramento era, na maioria das vezes, uma violação por meio de promessas
e demonstrações de carinho, as recordações sobre o comportamento do sedutor eram
enfatizadas para provar a honestidade das jovens defloradas e a sua confiança no “Don Juan”.
Em seu depoimento Maria José, de 48 anos, portuguesa, casada, costureira e engomadeira, e
153
Duarte, Cláudio Luiz. Representações da Virgindade. Cadernos Pagu (14) 2000. Nesse artigo o autor expõe
algumas argumentações dos acusados para desacreditar resultados de exames de corpo-delito.
154
APEJE Delegacia de Polícia da Capital, 7 de julho de 1879. Cópia da petição da súdita portuguesa Maria
José da Silva ao Cônsul Português, Recife, 1º de julho de 1879.
155
Idem.
84
que não sabia ler e nem escrever, recordou que o acusado tinha “desinquietado” a sua
sobrinha “entretendo com a dita (...) ativas correspondências amorosas”,
156
algumas até de
conteúdos indecentes.
Para ser considerada honesta era preciso provar que Rosita tinha perdido a virgindade
com o acusado. Quando foi interrogada pelo Delegado, Maria José disse que, mais ou menos
um mês antes do envio da petição ao Cônsul, a sua sobrinha se enamorou do acusado e que
pouco tempo depois encontrou a roupa de Rosita “nodoada de sangue e de outra substancia,
nodoas indicativas de haver sido ela desvirginada”
157
. Mas, para ter reconhecida a condição
de moça honesta e iludida, não bastava se provar a virgindade da vítima, era preciso, ainda,
comprovar uma postura correspondente a essa condição. Para tanto, eram feitas inquirições as
partes envolvidas e as testemunhas, para se obter informações sobre o comportamento ilibado
da vítima.
Esse procedimento, de avaliação dos comportamentos cotidianos das menores,
acabava sendo muito bem utilizado pelas vítimas ou os seus representantes ao irem à Justiça.
Outros elementos também eram utilizados pelas ofendidas e suas famílias. Em sua petição, a
referida tia invocou alguns elementos do direito positivo para confirmar o defloramento de
sua sobrinha: a idade, a sua virgindade e a sedução com o uso de promessas amorosas,
atribuindo ao acusado toda a responsabilidade no envolvimento sexual entre ambos. Nesse
tipo de representação, as mulheres sempre apareciam apresentadas como submissas, como
vítimas da superioridade emocional e intelectual dos homens. Portanto, além dos profissionais
das leis, os responsáveis pelas vítimas ou elas mesmas, se valiam também dessa estratégia
discursiva para obter sucesso nas suas demandas.
158
Se as meninas e seus familiares compareciam as delegacias para dar queixa munidos
de uma argumentação estrategicamente bem planejada, podemos imaginar que os acusados
agiam do mesmo modo. Porém a estratégia de defesa destes não se reduzia somente a um
meio de livrar-se das acusações. As suas declarações revelavam um sistema de valores
dominantes em relação ao gênero feminino e, para estes homens, as vítimas dos crimes que
lhe imputavam estavam longe do perfil (ideal) de mulher honesta dominante, que era o de
mulher casta, passiva e dependente. A questão, portanto, não era de mera simulação em favor
de sua defesa, mas de crença do acusado em um modelo ideal de comportamento feminino
156
APEJE – Delegacia de Polícia da Capital, 7 de julho de 1879. Auto de Perguntas feitas a Maria José da Silva.
3 de julho de 1879.
157
Idem.
158
Duarte, Cláudio Luiz. Representações da Virgindade.
85
que destoava daquela mulher com quem ele manteve relação sexual e o acusava de roubar-lhe
a honra. O acusado Antonio Rodrigues de Sampaio, de 36 anos, natural de Lisboa, solteiro,
artista dramático que sabia ler e escrever negava ser autor do defloramento da lusitana pelo
fato de Maria Rosa muito tempo ter dito a ele e a muitas pessoas não ser virgem e ter a
mesma exercido o ofício de cabeleireira em casa “duvidosa”. A noção de honra estava ligada
à opinião pública assim, a citada Rosita não era, aos olhos do suposto agressor e do seu
sistema de valores reputada como honesta. As suas testemunhas também, todos seus patrícios
da comunidade portuguesa, asseveraram que a menor “já era mulher”
159
muito tempo, ou
seja, que ela não era mais virgem, contribuindo os seus depoimentos para por em dúvida a
autoria do delito.
Quando estava quase montada a cena da moçinha enganada e do vilão, segundo os
relatos de Maria José a tia da menina deflorada. Essa trama, que tinha tudo para acabar com
pelo menos o estabelecimento de um dote que seria pago pelo acusado em favor da vítima, o
caso tomou um rumo inesperado. E esse percurso distinto não se deu por causa dos
argumentos taticamente estudados e apresentados pela tia e nem pela defesa, o acusado ou as
suas testemunhas. Coube a própria Rosita mudar o rumo do inquérito policial, ao negar ter
sido vítima de sedução e ao acusar a sua tia de ser muito implicante e de viver a persegui-la,
simplesmente por ela ter saído de casa e “considerar-se livre e capaz de governar-se”
160
.
Naquele período Rosita havia mudado de ofício, tornado-se uma artista dramática que vivia
de seus ordenados e independente para fazer o que bem quisesse com seu dinheiro. A
sobrinha dizia-se incomodada pela insistência da tia (implicância) em tentar controlá-la e aos
seus ganhos.
Maria José, ao que parece, pode ter procurado a Justiça para continuar dispondo
gratuitamente dos serviços da sobrinha ou do seu dinheiro. Pelo menos é o que revela o
depoimento de João Rodrigues, que disse ter visto nos últimos dias a própria menina
contratando os seus serviços de palco, tarefa que antes era desempenhada pela sua tia. A
própria Rosita estava fechando seus contratos de trabalho, inclusive, um deles na companhia
dramática que o acusado Sampaio era o dono e trabalhou representando nas peças por 2 meses
na Cidade do Recife.
159
APEJE – Delegacia de Polícia da Capital, 7 de julho de 1879. Depoimento de João Rodrigues dos Passos.
160
APEJE – Delegacia de Polícia da Capital, 7 de julho de 1879. Depoimento de Maria Rosa da Silva.
86
O Delegado designado para o caso considerou-o encerrado, pois, não havia crime, pelo
fato de Rosita ser considerada “mulher livre”
161
. Com essa história percebemos como era
valorizada socialmente um conjunto de práticas comportamentais para as mulheres, as quais
deveriam ser castas, discretas e submissas. Ela também revela que era possível as vítimas e
suas famílias utilizarem com astúcia essas imagens sobre o feminino como forma de alcançar
seus intentos. Por outro lado, meninas como Rosita, ao recusaram-se a usar deste recurso e se
responsabilizarem por suas atitudes e desejos, talvez estivesse mentindo para proteger o
namorado ou não achasse que seu comportamento fosse reprovável ou ainda não pretendiam
pressionar seus parceiros a assumirem publicamente o seu relacionamento. Ter seu “direito”
reconhecido pelas autoridades e julgados de acordo com a lei, era também uma forma das
autoridades judiciais tentarem controlar o comportamento futuro das meninas e dos rapazes
envolvidos em crimes sexuais e, das pessoas próximas a eles. Quando a vítima expunha
publicamente os seus conflitos teria limites à liberdade de ação, experimentada antes dos
tramites processuais começarem, e sua reputação seria, por um bom tempo, atentamente
observada pelos vizinhos.
162
O sucesso de tais estratégias rendeu muitos frutos, seja a realização do casamento ou a
consecução de um dote, e incitaram algumas famílias a prestar queixas as autoridades. O
andamento dos processos de crimes sexuais seguia a trajetória burocrática própria da
instituição judiciária. E havia uma série de exigências para a configuração do delito e o seu
posterior encaminhamento por parte dos profissionais da polícia e do judiciário. Da queixa ao
resultado do processo se levava algum tempo, em média 1 ano. O processo começava, quase
sempre, com uma queixa levada à Delegacia. Nessa ocasião iniciavam-se as diligências para
apurar informações sobre o caso, como recolher depoimentos, realizar exame de corpo de
delito, fazer o auto de qualificação do acusado e da ofendida, além do levantamento da vida
pregressa do casal, por meio das testemunhas ou por comentários de outras pessoas que, às
vezes, não tinha a identidade revelada. Era a voz “voz pública” ou ouvir dizer” que guiava
o caso, sendo à base do mesmo apenas a apreciação de informantes “anônimos”. A força
dessas “vozes públicas” eram reconhecidas e levadas em consideração pelas autoridades, em
uma cultura onde a oralidade era bastante presente, e “os boatos (…) sólidos circuitos de
161
APEJE – Delegacia de Polícia da Capital, 7 de julho de 1879.
162
Boyer, Richard. Honor Among Plebeians – Mala Sangre and Social Reputation, In: JOHNSON, Lyman L.;
LIPSETT-RIVERA, Sonya (org.) The faces of honor: sex, shame and violence in colonial Latin America.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 1998.
87
informação”
163
. Após esses encaminhamentos para comprovar ou refutar a existência do
crime de defloramento, por fim, um relatório era emitido pelo Delegado ou Subdelegado.
Caso tivesse sido constatado o crime, os profissionais do judiciário passariam a conduzir o
processo, isso para todos os delitos sexuais por nós estudados.
Os casos de rapto que se encontravam na instância policial ou judicial nos oitocentos
eram apresentados em duas situações diversas que caracterizavam o crime de rapto o rapto
por força, em geral, ligado ao crime de estupro ou o rapto por sedução, que poderia servir
como uma tática para burlar a oposição para a realização do matrimônio pelas famílias do
casal fugitivo.
Nos casos de rapto por sedução
164
, para provar a existência do delito, era necessário
demonstrar que o acusado cobria de promessas a moça cortejada. As referências a afagos,
galanteios e presentes eram constantes também nesse tipo de delito. Em 1886, Josepha Maria
da Conceição acusava Epaminondas Serafim de Mello de ter tentado retira-la da casa de seu
pai para fim libidinoso. Pelo depoimento da menina conseguimos saber quais foram às
estratégias de sedução do acusado. Ele mandou recados por duas pessoas perguntando “se ela
queria com ele se casar” e teria lhe mandado um lenço.
165
Os presentes como dinheiro e
cortes de tecido serviam para vencer a resistência das moças.
Nos raptos por sedução os raptores não usavam de violência em momento algum, mas
sim de afagos, mimos e promessas para tirar da casa de seu pai, mãe ou responsável alguma
mulher virgem ou reputada como tal”
166
, para fins libidinosos depositando-a em outro lugar.
Declarações do tipo perdi minha virgindade” ou tendo sido criada com recato” aparecem
nos casos estudados para aludir a virgindade das meninas antes da sedução. Nas ações
judiciais de rapto por sedução, geralmente, as donzelas raptadas diziam que haviam
consentido a realizar as relações sexuais após, promessas de casamento. João Calisto de
Mello, em 1872, teria se aproveitado da amizade que tinha com a família para seduzir Bárbara
Lins. O acusado freqüentava a casa dos tios da jovem, onde teve oportunidade, de acordo com
o relato do Promotor Público, de seduzi-la “alimentando afeição até o fingimento de um amor
163
Moura, Denise A. Soares de. Sociedade Movediça: economia, cultura e relações sociais em São Paulo, 1808
– 1850. São Paulo : Editora UNESP, 2005, Pg-185. A autora em seu trabalho sobre a formação da Cidade de São
Paulo na 1ª metade do século XIX, discute como o boca-a-boca e os mexericos eram importantes veículos de
informação numa sociedade de um grande número de analfabetos.
164
Algumas investidas masculinas a la Don Juan , quando não correspondidas resultaram em raptos por força.
165
IAHGP – 1888, Apelação crime do júri da Comarca de Timbaúba. Apelante – José Tomé Ferreira Apelada- A
Justiça.
166
Código Criminal do Império. Crimes Contra a Segurança da Honra.
88
um tanto exaltado com promessas de casamento”. A promessa de casamento e o cortejamento
amoroso criavam a expectativa de quê, em breve, o casamento seria realizado e a relação
sexual pré-marital era apenas a antecipação de um dos deveres da mulher para com seu
marido.
167
O crime de rapto poderia ser determinado pela retirada de uma moça de casa por
sedução ou pela força, mas existiram ainda outras modalidades de rapto, como se no
processo de rapto que envolveu o casal João Pedro e Joanna
168
. Esse caso foi configurado
como um delito sexual, além de, envolver questões ligadas à propriedade privada. Em dias de
fevereiro de 1886, foi comprovado o desvirginamento da parda Joanna pelo exame de corpo
de delito. O médico afirmou ter encontrado ela com sinais de defloramento”, 26 dias após a
concretização do rapto. A menina tinha 14 anos de idade e acreditamos que era pobre, pois,
era agregada da casa de Luis Correa de Queiros, para onde tinha ido desde os 9 anos de idade
e ficado sob a guarda desse senhor, que era trabalhador e morador em terras do Engenho
Mussepe
169
.
Esse rapto não foi um rapto comum. Ele não se encaixa nas duas noções mais comuns
para este crime. Não houve rapto mediante força e coação, ou seja, não foi contra a vontade
da pessoa raptada. Nem foi o caso em que o objetivo era forçar um casamento e para tanto as
meninas fugiram com seus amores. A fuga espontânea do casal foi um expediente utilizado
mesmo entre os segmentos populares e por isso não podemos pensá-los como destituídos de
qualquer interdito familiar. A fuga do casal ocorrido no Engenho Mussepe também não foi
somente um rapto realizado mediante promessa. E nem tão pouco foi um rapto romanceado,
onde o único objetivo era fugir para forçar aos parentes a aceitar a realização do casamento.
Nesse caso a palavra “rapto” adquire outro sentido, misturado aos apontados. Ele passou a
ser a esperança de arrebatar uma nova vida. Esse rapto não foi semelhante a outros, porque ao
invés de duas pessoas, três partiram em fuga.
Para entender melhor o que foi esse rapto e a partir daí também compreender outros
possíveis entendimentos para este delito, teremos de narrar por um instante o desenrolar dessa
história. Por volta das 8 horas da noite de 18 de janeiro de 1885, o retirante e então
167
IAHGP 1873, Apelação crime vinda do júri da Vila de Barreiros, Apelante- O Promotor Público Apelado-
João Calisto de Mello.
168
IAHGP 1885 cx-10, Comarca Especial de Igarassú Tribunal do Júri. Autora- A Justiça / Réus João
Pedro da Costa Barrozo e João Moyses, escravo de Luis Correia de Queiros.
169
Mussepe - Engenho do Município de Igarassú, fundado antes da invasão holandesa por João Lourenço
Francos.Galvão, Sebastião de Vasconcellos, 1865 Dicionário corográfico, histórico e estatístico de
Pernambuco, 2ª edição, Recife:CEPE, 2006, pg-395.
89
trabalhador do Engenho Mussepe João Pedro da Costa, de 32 anos levou Joanna Quitéria, de
14 anos, com o próprio consentimento da menor da casa onde ela morava, junto com o
escravo Moyses, de 13 anos, pertencente ao senhor Joaquim Coelho Leite.
As trajetórias e as esperanças dessas três personagens cruzaram-se e tiveram início três
meses antes do dia marcado para a fuga. Foi quando João Pedro saiu da Paraíba à procura de
melhorias de vida. Ele deixou para trás sua mulher e quem sabe filhos. Chegando ao Engenho
Mussepe ele empregou-se como trabalhador alugado e logo depois pôs os olhos em Joanna.
Ela, provavelmente, não saía de seus pensamentos. O problema estava em conseguir
aproximar-se da menina. Mas a solução foi rapidamente encontrada, João Pedro conheceu o
escravo Moyses e conseguiu um aliado para seu objetivo. De acordo com o Promotor Público,
Francisco Xavier Paes Barreto, o moleque tinha encarnado algumas qualidades de um deus
romano servindo “de Mercúrio de João Pedro e Joanna”. Quando o promotor fez menção e
estabeleceu uma relação entre Moyses e o deus romano Mercúrio
170
, queria pintar com cores
fortes e fantásticas as atitudes o escravo. Moyses era o responsável por levar os recados de
João Pedro para a menina convidando-a para sair da casa onde se achava, a fim de com ele
se casar”.
O escravo Moyses viu no planejado rapto de Joanna, algo de seu particular interesse,
no caso a sua chance de se livrar do cativeiro. Nessa empreitada, João Pedro prometeu
conduzir o escravo Moyses para um lugar desconhecido do seu senhor, onde ele talvez
pudesse viver em liberdade. Esse foi o caminho encontrado por Moyses para conquistar sua
liberdade e uma nova vida longe de toda sorte de humilhações dirigidas aos cativos. Joanna
170
Mercúrio, na mitologia romana, era o deus encarregado de levar as mensagens de Júpiter. Era filho de Júpiter
e de Maia e nasceu em Cilene, monte de Arcádia. Os seus atributos incluem uma bolsa, umas sandálias e um
capacete com asas, uma varinha de condão e o caduceu. Quando Proserpina, foi raptada, tentou resgatá-la dos
infernos sem muito sucesso. Era o deus da eloqüência, do comércio, dos viajantes e dos ladrões, a personificação
da inteligência. Correspondia a Hermes na Grécia,deus protetor dos rebanhos, dos viajantes e
comerciantes:muito rápido, era o mensageiro. Proserpina (correspondente na Grécia a Perséfone) era filha de
Júpiter com Ceres, uma das mais belas deusas de Roma. Enquanto colhia flores, foi raptada por Plutão, que fê-la
sua esposa. Sua mãe, desesperada com o desaparecimento da filha, caiu numa fúria terrível, destruindo as
colheitas e as terras. Somente a pedido de Júpiter, acedeu a devolver a vida às plantas, exigindo, no entanto, que
Plutão lhe devolvesse a filha. Como, por um ardil deste último, Proserpina havia comido um bago de romã, não
poderia abandonar o submundo de forma definitva. Acabou por se encontrar uma solução do agrado de todos:
Proserpina passaria metade do ano debaixo da terra, no submundo, na companhia do marido - corresponde essa
época, ao Inverno, quando Ceres, desolada, descuida a Natureza, deixando morrer as plantas - e a outra metade
do ano à superfície, na companhia da mãe - corresponde ao Verão, quando a Natureza reansce, fruto da alegria
de Ceres. Àquela deusa os romanos dedicavam um festival realizado no dia 31 de maio. Acessado no site :
Wikipédia.
90
também tinha expectativas de mudar de vida. Ela viu no seu rapto expectativas de um futuro
melhor. Talvez, o fato de não querer viver de favor em propriedade alheia, ter sua própria casa
e não ser mais uma dependente. Ela poderia também querer livrar-se de sofrer maus tratos,
nem submeter-se mais a realizar trabalhos na casa de seu “protetor”. Não podemos esquecer
que a prática de tomar meninos e meninas para criar era um costume bastante difundido,
sendo um mecanismo muito usado para se obter uma criadagem ou se adquirir mão-de-obra
não remunerada naquele tempo
171
. De qualquer modo, deve ter havido uma razão muito forte,
para fazer Joanna sair do lar da família que lhe havia acolhida desde a morte de sua mãe e
com a qual teria dívidas de gratidão. Contudo, o plano dos três fugitivos, que tinham como
destino o Sertão, não foi bem sucedido. Naquela noite, mesmo dia da fuga, um grupo de
homens foi no rastro dos fugitivos. Os três foram detidos, quase de manhã, no meio do
canavial onde estavam descansando. Depois de surpreendidos e das explicações dadas por
todos para aquela situação, foram os três levados à delegacia.
A menina quando inquirida pelo Delegado disse que: “se arrependeu do passo que
deu e recussou a seus [de João Pedro] libidinozos desejos.” Na tentativa de evitar represálias
por parte de seus responsáveis a respeito do seu “passo”, tomou para si as idéias sobre o
feminino apregoadas pelos profissionais do campo jurídico, a de que as mulheres honestas,
em meados dos oitocentos, deviam ser submissas e cordatas. Em outras palavras, ela valeu-se
da estratégia de dizer o que eles queriam ouvir.
Ainda na delegacia, depois de recolhida todas as informações sobre a “raptada” e
sobre o escravo Moyses; os dois foram enviados para casa. A atenção voltou-se então para o
acusado, ele afirmou no seu depoimento para o auto de qualificação e para o interrogatório
estar envolvido no delito. O Delegado reuniu os elementos para levá-lo ao tribunal e ser
julgado, finalizando a primeira etapa desse processo nos seguintes termos:
... e sabendo que o crime de sedução e tirada de escravo do
poder de seu Senhor é hoje um acto applaudido como philantropico,
voltou Joanna e Moyses para a casa do apelante e remeteu João
Pedro ao Doutor Juiz de Direito da Comarca para que este
deliberasse se João Pedro devia ou não ser processado pelo rapto da
menor e tirada do escravo do appelante.
172
(grifo no original)
171
Botin, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos, moleques e juízes em Campinas (1866 1899), Revista
Histórica, edição 19 de fevereiro de 2007. Revista on-line do Arquivo Público do Estado de São Paulo
www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/ acessado em 27 de março de 2007.
172
IAHGP 1885 cx-10, Comarca Especial de Igarassú Tribunal do Júri. Autora- A Justiça / Réus João
Pedro da Costa Barrozo e João Moyses, escravo de Luis Correia de Queiros.
91
A partir dessa explicação da autoridade pudemos perceber o momento em que esse
episódio se desenrolou e nos remeter a um ponto que se sobressaí na história desse rapto a
fuga do escravo junto ao casal. Não podemos esquecer que essa fuga e rapto aconteceu em
1885, em um contexto de perda crescente de legitimidade da escravidão. Será que
encontramos um exemplo da amplitude do movimento de homens e mulheres contrários a
empresa escravista?
173
Isso não sabemos ao certo, contudo, o senhor do escravo fujão sabia
que o envolvimento de homens livres na liberdade de cativos era uma questão presente em
seu cotidiano, bastando ler os jornais para constatar-se o fato. A propaganda abolicionista
com a divulgação de alforrias na imprensa e as fugas de escravos era uma constante na década
de 80 do século XIX. E por isso o proprietário do escravo exigiu medidas impositivas para o
caso.
Cumprida as exigências processuais o veredicto é dado pelo Juiz. João Pedro da Costa
Barrozo foi pronunciado com a pena máxima do artigo 227 do Código Criminal, e o escravo
Moyses no mesmo artigo, no grau mínimo, combinado com o artigo 35 do mesmo código
174
.
A pena dos réus foram as seguintes: Barrozo foi condenado a 2 anos de prisão e de dotar a
ofendida. Moyses à 8 meses de prisão e também de dotar a ofendida. O senhor Joaquim
Coelho Leite não concordou com a imputação que foi feita a seu escravo e solicitou que sua
pena fosse convertida em açoites. Senhores, como o proprietário de Moyses, afligiam-se com
os apuros de seus escravos, dada a grande dependência do seu trabalho além, do moleque ser
seu investimento. Era comum que os senhores mandassem as autoridades policiais quando
prendessem seus escravos, os acoitarem como forma de punição por uma fuga
175
. Ele, porém
foi preso, tirando-o de sua rotina de trabalho. Tal pedido foi considerado impróprio pelo
Promotor Público envolvido no caso e também não foi aceito pelo Tribunal do Júri.
O encaminhamento dado a histórias como a dos nossos protagonistas precisavam mais
do que um drama envolvendo questões de respeito à propriedade, reputação, transgressões
sexuais e disputadas relacionadas à honra para se tornarem um processo-crime. Era preciso
cumprir uma exigência formal do Código Criminal para a configuração do delito de
173
Machado, Maria Helena. O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição, Rio de Janeiro :
Editora UFRJ, EDUSP, 1994. A autora notou um movimento abolicionista composto por engajados de estratos
sociais diversificados, com uma participação ativa dos setores populares.
174
Tinoco, Antonio Luiz. Código Criminal do Império do Brazil Annotado, Ed. fac-sim., Brasília : Senado
Federal, Conselho Editorial, 2003, pg-67. Artigo 35 “A complicidade será punida com as penas da tentativa, e
a complicidade da tentativa com as mesmas penas desta, menos a terça parte, conforme a regra estabelecida no
artigo antecedente.
175
Azevedo, Elciene. O direito dos escravos. Campinas, SP, 2003, pg 105. Casos semelhantes de punição de
cativos, foram estudados pela autora na Província de São Paulo na 2ª metade do século XIX.
92
defloramento e rapto para a intervenção da justiça nesses casos, a idade, a qual trataremos
detalhadamente a seguir.
Idade
A partir dos dados referentes á idade, observamos um percentual avultado de crimes
sexuais praticados contra vítimas na faixa etária entre 14 e 17 anos. A idade das mulheres era
um fator que facilitava a incursão do agressor ou sedutor contra as timas por serem eles
superiores em força física a elas, ou com maior capacidade de convencê-las a manterem uma
relação afetivo-sexual. A tabela seguir apresenta os dados referentes a idade da jovens
vítimas de crimes sexuais:
TABELA 5
FAIXA ETÁRIA DAS VÍTIMAS NOS PROCESSOS DE CRIME SEXUAL
(1863-1887)
Faixa etária Quantidade Porcentagem
8 – 13 11 36,67%
14 – 17 16 53,34%
18 – 25 1 3,33%
Não sabe a idade 2 6,66%
Total 30 100%
* Nessa tabela acrescentamos mais um caso, no qual a idade da vítima foi registrada no processo.
A menor Francisca Maria, de 11 anos de idade e que tinha por ocupação o serviço
doméstico, em dias de julho de 1881, foi à casa de sua irmã Justina que se encontrava doente
e precisada de sua ajuda para cuidar de seus dois filhos pequenos. Sua história serve como
exemplo para discutirmos a relação entre a idade e a percepção da prática de crimes sexuais.
No trajeto para a casa de sua irmã Maria Francisca foi atacada e estuprada por seu
cunhado o qual a estava conduzindo para o seu destino. No desenrolar do processo que se
abriu para averiguar o caso, iniciou-se um debate entre defesa e acusação a respeito da
existência ou não da ingenuidade das mulheres jovens. O acusado declarou em seu
93
depoimento que “vulgarmente se diz, suprindo a idade a malicia”
176
, Dessa forma, ou
melhor, com essas palavras, a defesa do acusado procurou pontuar os limiares de
responsabilização e entendimento dos menores sobre seus atos. Para o acusado, a mulher
menor de 17 anos e algumas até mais novas, possuíam o discernimento e tinha alguma
responsabilidade na sua defloração, conforme previsto no Código Criminal do Império, que
previa a idade de até 17 anos como a faixa etária limite da inocência e onde caberia,
legalmente, a intervenção da justiça. Por outro lado, o Promotor Público coloca que a pouca
idade por si tem como característica a falta de discernimento e por isso o ato mesmo que
voluntário das menores para a consumação do ato sexual não pode ser condenado. E declarou
sua visão a respeito da infância e, mais do que isso, expressou seu entendimento ou um
consenso que parecia estar estabelecido sobre os crimes sexuais ou os contatos sexuais de
pessoas adultas com menores:
Na criança de 11 anos, a quem falta, até desenvolvimento
físico, que ainda não atingiu a idade da puberdade, que ainda não é
mulher na frase vulgar, o defloramento é mais do que defloramento, é
o estupro, na verdadeira significação desta palavra...
177
(grifo no
original)
A noção do Promotor Público de uma sensibilidade mais acentuada para o estupro de
crianças coincide com os números apresentados na tabela número 2, a qual aponta a presença
considerável de crianças como vítimas de delitos sexuais. A maior incidência de mulheres
jovens vitimadas por delitos sexuais ocorria também, porque os profissionais do direito
procuravam punir as pessoas que poderiam afetar as chances dessas jovens de contrair um
casamento por não serem as mesmas virgens.
Portanto, pouca chance deveria ter a mulher, que não fosse menor de 17 anos, de ver
reparado o mal pelo casamento, pelo recebimento de um dote ou pela condenação do acusado
que havia roubado “o único tesouro que ela possuía a sua honra”
178
. A idade era umas das
formalidades exigidas pelo Código Criminal do Império para se configurar o crime de
sedução, defloramento e de estupro. Dito de outro modo, quanto mais novas as mulheres,
maiores eram as chances de elas terem a sua queixa atendida pela justiça, que existia uma
176
O acusado e seu advogado acreditavam que à medida que se avançava na idade às pessoas iam ficando mais
maliciosas, ou seja, a partir de uma determinada etapa da vida não seria mais crível que uma mulher pudesse ser
enganada e a confiança excessiva numa promessa deveria ser bem explicada.
177
IAHGP 1883, cx-3, Apelação crime do juizo de direito de Jaboatão desta Província, digo crime do júri da
comarca de Jaboatão desta Província Apelante Isaias Francisco Bento, Isaias Bento das Candeias Apelada a
justiça.
178
APEJE- A Província, nº 667, Justiça da Subdelegacia do Recife , 28 de agosto de 1875, pg-4.
94
crença de que as mesmas, se adultas, poderiam, tanto ter consentido na consumação do ato
sexual quanto possuírem condições de defesa de um ataque masculino. Para a comprovação
da idade se recorria às certidões de batismo.
Dificilmente algum deflorador seria punido se a moça não fosse menor de acordo com
a lei. Essa situação foi exposta por Aluízio de Azevedo em seu romance, Casa de Pensão de
1884. O personagem Coqueiro a fim de instaurar um processo para “reparar” a honra de sua
irmã Amélia, deflorada pelo nortista Amâncio, procura um advogado e assim transcorre o
diálogo das personagens:
- Ela ficou Pejada?
- Não senhor.
- É menor ?
- Tem vinte e três anos respondeu o queixoso, triste porque a sua
irmã não tinha menor idade.
179
Apesar de sua irmã ser maior de idade, o processo contra o nortista foi iniciado. O
acusado foi preso e seu advogado utilizou o argumento da idade para inocentar Amâncio. O
bacharel via Amélia como mulher responsável pelos seus atos, por ser maior de idade. O
advogado afirmou que seu cliente foi vítima da arbitrariedade, pois, o delegado teria o
mandado recolher à prisão, porque ele nada mais fez do que deflorar mulher virgem maior de
17 anos, o que perante a lei criminal do período não se constituía crime, portanto a prisão não
deveria ter sido efetuada.
180
A noção de uma idade intermediária entre a infância e a idade adulta para os
contemporâneos dos dezenove é percebida visivelmente, pelo modo como essas meninas
aparecem nos processos, sendo citadas, com certa freqüência, usando-se as expressões como
ofendidas, meninas e menores. Mas dependendo de quem produzia a opinião outras
referências vinham à baila. Para os promotores e testemunhas das ofendidas, elas eram
apresentadas como “moça”, “menina” e “moça honesta”, guardando todos esses termos
179
Pejada - Tornar-se grávida. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa,
edição. Ver. Ampliada, RJ: Nova Fronteira, 2000.
180
Azevedo, Aluízio, Casa de Pensão, 1884, Ed. Scipione Ltda, São Paulo, 1995, p-165. Para compor Casa de
Pensão, Aluízio de Azevedo partiu de um caso conhecido na Corte, o “caso Capistrano”. “O caso Capistrano
ocorrido no Rio de Janeiro nos anos de 1876/77, caso que envolveu dois amigos estudantes da Politécnica: João
Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira. Ocorreu que Júlia Clara Pereira, viúva professora de piano,
para sustentar os seus dois filhos: Antônio Alexandre e Júlia moça de 20 anos, a professora passa a alugar
cômodos da sua casa. João Capistrano, paraense aluga um dos quartos; do convívio cotidiano, Principia o
namoro entre João Capistrano e a jovem Júlia. Na noite de 13 para 14 de janeiro de 1876, estoura o escândalo:
João teria violentado Júlia. Ante a pressão da família, o jovem paraense promete casamento, mas desaparece, a
família entra com queixa crime e é aberto o processo. O advogado da moça exige 50 contos de réis de
indenização.”
95
ligação com as qualidades positivas reservadas às mulheres, como castidade, ingenuidade e
honestidade. Por outro lado, na fala dos acusados, dos seus advogados e das suas testemunhas,
as referências a elas são feitas pelos termos “mulher”, “menina perdida” ou “prostituta”.
Podemos pensar também, que a predominância de mulheres jovens como vítimas de
crimes sexuais se deu por estarem elas mais expostas as situações cotidianas que possibilitaram
a efetuação desses crimes. Particularmente, em momentos que as meninas não tinham ninguém
para zelar por sua segurança. Casos como o divulgado no Jornal O Rebate com o título Infame
defloramento, onde a protagonista nessa matéria era a borralheira de 13 anos, órfã de pai e
mãe, que não tinha príncipe nem fada madrinha e que de semelhança com o conto de fadas
existia apenas, o fato de ser encarregada do serviço doméstico. A nossa borralheira trabalhava
na casa do ex-condutor de bonde da Companhia Ferro Carril, Raymundo Correia de Almeida o
qual, depois de a ter deflorado, expulsal-a para o meio da rua, deixando-a completamente ao
desamparo, sem honra e sem abrigo”
181
, segundo o articulista do jornal. O fato de não ter
alguém que a auxiliasse no seu sustento, como no caso mencionado a pouco, forçava as
meninas pobres a buscarem ainda muito jovens formas para garantir a sua sobrevivência. O
serviço doméstico, categoria genérica que poderia englobar diversas ocupações, era a atividade
predominante entre as meninas livres e pobres da segunda metade do século XIX. Essas
meninas transitavam com freqüência no espaço da rua por conta, principalmente, de suas
atividades de trabalho. Mas ao mesmo tempo, essa liberdade de movimento propiciada pelos
constantes ires e vires cotidianos das atividades de trabalho poderiam despertar a
desconfiança com relação à honestidade das meninas. O universo do trabalho é apenas um
pedaço de suas vidas que encontramos nos processos crimes junto a histórias de encontros e
desencontros amorosos, experiências difíceis de serem conhecidas de outra forma.
O resultado dos processos poderia sofrer influência dos pré-conceitos existentes no
período sobre as ocupações desenvolvidas pelas meninas como vimos no 1º capítulo e a
pouco, e também por outra variável, a matiz da sua pele. Vejamos essa questão a seguir.
181
Como na matéria não é mencionado o nome da menina e por isso, usamos o termo borralheira que é uma
adjetivação da palavra borralho. Borralheiro- 1. que gosta de ficar junto ao borralho, na cozinha 2. que sai pouco
de casa. Borralho- braseiro coberto de cinzas ou quase apagado. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda,
Miniaurélio Século XXI Escolar. 4ª edição. Ver. Ampliada –RJ: Nova Fronteira, 2001.
96
Preto é preto!Branco é branco! Nada de confusões!
182
Tendo por base as análises de Hebe Mattos e nossas considerações sobre a ausência do
registro da cor das meninas apresentadas no primeiro capítulo, acreditamos também, que
quando a cor apareceu nos processos pesquisados tinha como uma das suas funções racializar
os comportamentos dos sujeitos não brancos, na intenção de manifestar os vícios
comportamentais atribuídos à cor escura. Embora, certamente, quando a cor era mencionada
não tinha esse único significado, podendo servir também como um recurso para facilitar a
identificação das mulheres envolvidas nos casos e também, nos dá indicações a respeito das
representações que circulavam sobre mulheres e homens de cor nesse período.
As representações sobre a população afro-descendente, no século XIX, apontavam
para uma inferiorização desse grupo, certamente, porque tivessem uma proximidade com um
passado ou antepassado escravo
183
. Foi esse o caso de um processo de defloramento no qual,
visualizamos uma situação onde a cor da pele foi mencionada para situar as pessoas não
brancas nos extratos mais baixos da hierarquia social. Nesse episódio, uma testemunha
declarou que o acusado estava no seu ou defloramento, mas “quando é acusado por
esses fatos, responde que negro e mulato não tem honra.”
184
Esse tipo de relato atribui as
mulheres pardas e mulatas
185
imagens carregadas de esteriótipos e as associam como
naturalmente possuidoras de uma sexualidade desenfreada e portadoras de vícios da
escravidão e da pobreza,
186
o que as distanciava da imagem de mulher honesta, a qual se
associava a boa mãe e esposa.
Para uma mulher vítima de crime sexual ser considerada mulata, poderia dificultar-lhe
ser atribuída à condição de honesta como foi o caso de Anisia Maria da Conceição, de 13 anos
182
Avevedo, Aluízio. O Mulato, pg-198, Rio de Janeiro, Ediouro, s.d. (Prestigio) Texto proveniente da
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Esse trecho faz parte do diálogo
entre Sebastião Campos e Casusa sobre Raimundo, personagem conhecido como mulato no romance. A
conversa girava em torno de Campos não aceitar casar sua filha de cor branca com um homem mulato.
183
Faria, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998.
184
IAHGP - Apelação crime do júri da Cidade do Recife, apelada: A Justiça, apelante: Augusto Moreira da
Silva, 1886.
185
Ser identificado como de cor parda, devida à imprecisão que esta terminologia indicava, não estabelecia uma
correspondência exata com ser branco, mas também não podia ser considerado negro. A cor parda era ampla o
suficiente para ser usada, dependendo de quem falava e em que lugar era falado, para produzirem significados
conflituosos ora destacando a sensualidade ora destacando a aproximação com os ideais de honra e pureza. Por
outro lado, precisar quem seria efetivamente mulata era difícil como vimos pelo caso de Anisia presente no
capítulo, página 52. Mas ser considerada mulata tornava mais crível sua associação com a cor negra e com a
herança africana o que possuía significados depreciativos.
186
Abreu, Martha. “Sobre Mulatas Orgulhosas e Crioulos Atrevidos”: conflitos raciais, gênero e nação nas
canções populares (Sudeste do Brasil, 1890-1920), Tempo, Rio de Janeiro, nº 16, pg- 18.
97
e empregada no serviço doméstico que em 1882 foi raptada
187
. Anisia como salientamos no 1º
capítulo, recebeu três classificações para identificar a matiz da sua pele. Em uma dessas
classificações foi apontada como mulata o que acabou sendo desvantajoso para a menina,
pois, os estereótipos raciais poderiam determinar o quanto uma pessoa era virtuosa e
consequentemente, honrada ou não.
188
É provável que o significado do termo “mulato”
atribuído a Anisia fosse o mesmo da palavra dicionarizada por Antonio de Moraes Silva;
mulato seria o filho do cavalo com a burra, transpondo essa relação para os seres humanos
assim seriam nomeados os filhos da relação entre brancos e pretos.
189
Animais e escravos
ocupavam posições similares o que acabava equiparando-os no status legal e nas
representações sociais. Numa sociedade escravista, por exemplo, a maneira que se fazia
referência aos cativos na literatura do período colocando-os com comportamentos
semelhantes aos dos animais como no romance A Carne de 1888 que tem em uma das suas
cenas, a sua protagonista Lenita uma jovem branca que observava a cópula de um touro com
uma vaca. Momentos depois, ela presencia o encontro amoroso de um jovem casal de
escravos. Para Lenita, o que havia ocorrido entre os cativos era semelhante ao que tinha se
passado entre os animais. Associar escravos a animais mostrava-os como seres sexualmente
desregrados.
190
A categoria mulato traduzia as hierarquias sociais e poderia expressar como
observamos a inferioridade das pessoas de cor e que provavelmente teriam alguma ligação
com o cativeiro. Os pardos, segundo Moraes eram os indivíduos que tinham a cor entre o
branco e o preto, como a do pardal, muitas vezes como definir a cor não era uma tarefa fácil
poderia também indicar um mulato. Havia ainda mais um exemplo para o termo pardo: “o ar
pardo era de manhã, antes de esclarecer o dia”
191
, isto é, o alvorecer, o encontro entre a noite e
o dia. A designação pardo era bastante tênue, dependendo da situação ou de quem atribuía a
cor a outrem se poderia deslizar para um dos pólos das categorias básicas de classificação -
preto ou branco – e aí a confusão poderia se estabelecer.
O tom da pele, como já ressaltamos, em meados dos oitocentos não era o único critério
para definir o lugar de uma pessoa na base da pirâmide social, embora a cor escura ou a
187
IAHGP - 1883 2º Cartório do Crime/ Denúncia AA- Justiça RR- Manoel do Valle.
188
Assis, Nancy Rita Sento Sé de. Baianos do Honrado Império do Brasil: Honra, Virtude e Poder no
Recôncavo (1808-1889), Tese de doutorado, UFF, 2006, pg-117.
189
Santos, Jocélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil
dos séculos XVII-XIX. Afro-Ásia, 32 (2005), pg-118.
190
Slenes, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pg- 134.
191
Idem pg- 122.
98
ligação anterior com o cativeiro pudessem ser elementos que marcassem a população de cor
como inferiorizada, outros critérios como a pobreza
192
poderiam ser utilizados para tanto.
Esse estereótipo racial pode ser confirmado pelo relato do subdelegado designado para
investigar o caso referente ao rapto de Anisia. A informação registrada pela autoridade, foi
por nós, considerada importante para essa discussão. Ele disse o seguinte:
... achando-me em exercício do cargo de subdelegado do
distrito desta freguezia, e me constando que a menor Anizia, filha de
Antonia Maria da Conceição tinha sido espancada e deflorada por
Severino, amasio desta, e que havia Antonio Soares, avô da mesma
menor e que se achava doente sucumbido de disgosto, por ter sido a
sua neta assim espancada por um homem que tinha sido escravo e por
esse fim vergonhoso e triste, mandei chamar a minha presença a
mesma Anizia...
193
(grifo nosso)
Os processos de crimes sexuais nos possibilitam ter acesso a algumas das atitudes das
camadas populares relativas à classificação da cor da pele. O fato do avô de Anisia ter
“sucumbido de disgosto” indica que os populares reconheciam e validavam as hierarquias e
os esteriótipos raciais sobre a população de cor. Não foi á toa à menção de Severino ser um
liberto. O pai desgostoso entendia que a união de sua filha com um homem não-branco
poderia trazer desvantagens para sua família. Pode ser que o avô de Anisia compartilhava das
mesmas idéias de Dona Quitéria um personagem do romance O Mulato, para quem: um
escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía por si um crime.”
194
Acreditamos que o avô de Anizia movimentava-se ainda pelas analogias gidas de escravo =
negro e livre = branco e teria o mesmo percebido que sua filha havia perdido uma chance de
mobilidade social pelo casamento. Mas é importante lembrar que, a ascensão social, através
do matrimônio, não governava sozinha a escolha dos parceiros dos enlaces entre libertos e
brancos livres como pudemos perceber por essa história.
Embora não seja tarefa fácil o entendimento da complexidade das identidades
construídas para homens e mulheres afro-descendentes dos oitocentos
195
, os documentos
192
Nossas reflexões sobre a pobreza no século XIX foram discutidas no 1º capítulo desse trabalho.
193
IAHGP - 1883 2º Cartório do Crime/ Denúncia AA- Justiça RR- Manoel do Valle.
194
Azevedo, Aluízio. O Mulato, pg-34.
195
As mulheres de cor, em seus variados matizes, carregavam o fardo mais pesado das hierarquias sociais,
raciais e de gênero. A pele escura podia ser associada, embora não automaticamente, a lassidão moral. Essa idéia
ou memória foi divulgada por Gilberto Freyre, quando disse: “a branca é para casar, a mulata é para f... e a
preta é para trabalhar.” In: Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, 18ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio,
1977, pg-10. Essa perspectiva não é a única possível de ser encontrada, mas, as palavras de Freyre mostram que
na década de 1930 antigos valores eram acionados para marcar as hierarquias sociais pela cor.
99
relativos a crimes sexuais nos levam a concluir que a cor poderia ser tomada como critério
para determinar a moralidade, honra ou distinção social de alguém à época.
Entre “Moças Honestas” e “Meninas Perdidas”.
Transpor os conflitos vividos por homens e mulheres encontrados nos processos
crimes apenas em números não conta da complexidade dos episódios de amor ou de
violência que fizeram parte das experiências de vida das jovens pobres, por nós estudadas o
que deve ter despertado nelas os mais diversos sentimentos, como a vergonha, o medo, a
esperança, a alegria e a tristeza. Mas pelo menos, essa incursão, realizada no e no
capítulos, nos ajudou a ter uma dimensão de quem eram as mulheres vítimas de crimes
sexuais que levaram suas questões à Justiça.
Dentro da nossa proposta de trabalho, de combinar os dados quantitativos com a
análise qualitativa, procuramos aqui repensar e contestar a idéia de que as mulheres pobres
não teriam acesso à justiça para defender seus interesses. Porém, também é do nosso interesse
observarmos os usos da justiça feitos por estas mulheres. Dito de outro modo, importa
sabermos também, de que modo e de que forma as mulheres se apropriaram da Lei e
utilizaram os tribunais em favor dos seus interesses e demandas. A última parte deste capítulo
está direcionada para esta questão, matéria que trataremos a seguir.
O Poder Judiciário espaço para “potentados” e “pobres desvalidos”.
Desta verdade que está na consciência de todos é mais uma
prova irrepregavel o prezente julgamento em que forão desathendido
os mais sagrados princípios de justiça, os mais puros preceitos de
direito e da razão demonstrando assim mais uma vez que se os ricos,
os potentados achão cumpre naquelle Tribunal a água baptismal que
os lava dos mais escandalosos attentados, o pobre, o desprotegido da
fortuna basta ter a desventura de não agradar a todos para ver-se
aniquilado sob o peso da injustiça.
196
Com essas palavras Vilardo Justiniano, acusado pelo crime de estupro e defloramento,
expõe suas críticas ao funcionamento do Poder Judiciário que vem ao encontro, como vimos,
196
IAHGP – Apelação crime vinda do júri de Goiana nesta Província. Apelante- Vilardo Justiniano Carneiro da
Cunha / Apelada – A Justiça.
100
do que afirmou durante algum tempo a historiografia.
Segundo ele, apenas uma minoria da
população, os ricos, se beneficiariam quando acionassem a Justiça para resolver seus litígios.
E para os demais, as pessoas pobres, perseguir seus objetivos pela via da lei, quando não
resultasse em nada poderia até lhes ser prejudicial e lhes render outros ou novos problemas
como prisões arbitrárias ou aplicação de penas mais rigorosas.
Mas não podemos nos deixar levar somente por este tipo de argumento apresentado
por Vilardo sobre a Justiça, idéias como as expostas anteriormente, junto a um modelo teórico
apriorístico condicionaram o ponto de vista adotado pela historiografia por um bom tempo.
Diferente dessa opinião manifestou-se outro personagem da nossa história, em 1887,
Claudino Eloy do Nascimento. Com 60 anos de idade, viúvo e tendo por ocupação o serviço
de lavar roupas e fazer costuras este acusado de crime de defloramento, disse o seguinte em
juízo:
Mas é que à esses não se pode impor, por que o modo de
cumprir a lei é diverso do modo por que se cumpre com os
desfavorecidos da fortuna; pelo menos é o que praticam as
autoridades policiais nesta cidade. Felismente existem (SIC) o poder
judiciário que é a garantia dos pobres desvalidos, e é para elle que
recorro.
197
(Grifo nosso)
A crença de que poderia resolver o seu litígio recorrendo à instância jurídica e, além
disso, sua afirmativa de que a reconhecia como um espaço no qual os pobres desvalidos”
teriam voz, pelo menos, é o que pudemos inferir de suas palavras. Porém, devemos ponderar
estas considerações, pois o mundo das leis, embora abrisse uma brecha para os pobres
fazerem valer seus direitos, tinha certos limites. Afinal, nem tudo era um mar de rosas para os
populares em sua luta na justiça. A pressão da camada dominante, dos funcionários do
Estado ligados às camadas dominantes, das leis produzidas por um parlamento
majoritariamente senhorial, tudo terminava por tornar difícil a vitória dos populares nos
tribunais. Porém, seria equivocado não tomarmos a instância judiciária, particularmente à dos
tribunais, como uma arena aberta ás negociações e lutas dos dominados e dos dominantes.
Homens e mulheres de poucas posses esperavam da Justiça um mínimo de probidade, pelo
menos, encontramos os registros do acatamento de suas solicitações.
Ao considerarmos estas duas impressões sobre a justiça, teremos visões conflitantes a
respeito do funcionamento da mesma. No entanto não podemos adotar como válida apenas
197
IAHGP – 1887 cx 9, Recurso crime de hábeas corpus do Juízo de Direito da Comarca de Jaboatão,
Recorrente – O Doutor Juiz de Direito / Recorrido – Claudino Eloy do Nascimento.
101
uma delas e construirmos uma imagem apressada, arbitrária e unilateral do papel da Justiça na
sociedade oitocentista. O argumento de um não exclui o do outro.
Para analisarmos como as mulheres pobres souberam utilizar a seu favor a Justiça,
relembremos o caso de mulheres como a jovem Francisca, apresentada ao leitor no início
desse capítulo, e acrescentemos alguns detalhes para pensarmos a questão dos usos da justiça
pelos populares. Ela era uma menina pobre, tinha 14 anos e era costureira. No seu registro de
batismo constava como “filha natural de Senhora Maria”, que em 1871 encontrava-se
aleijada e dependente da cria. Francisca era uma moça sem posses, criada sem a presença do
pai, mas tida como proba por algumas testemunhas, por possuir uma característica necessária
para obter sucesso na Justiça – a de ser honesta.
Francisca, que foi considerada por outras testemunhas como uma mulher desonesta,
pois “mantinha relações ilícitas com o acusado, buscou através de suas testemunhas
construir o lugar social da honestidade para si. E a maior parte dos depoentes que se
encontravam a seu favor declararam que, o próprio Antônio havia relatado batendo nos
peitos”, na presença de três pessoas, o fato de ter sido ele o autor daquele defloramento.
Disseram ainda que a menor sempre foi honesta e vivia com ele a mais de um ano e era visto
pela vizinhança como dono da casa que a jovem morava com a mãe.
Na época, a definição de honra estava associada não apenas à virgindade e ao
comportamento sexual honesto ou desonesto. A honra era também expressão de outras
virtudes pessoais, palavras como respeito, estima, boa fama, crédito, compunham a gama de
significados do comportamento tido como honroso.
198
Em resposta aos que falaram da honra de Francisca, as testemunhas de Antônio
buscaram encontrar nas atitudes de Francisca prova de sua desonestidade. Neste sentido
afirmaram que o acusado freqüentava a casa de Francisca, mantivera vários encontros sexuais
com ela, além de sustentá-la com um único intuito, o de caracterizá-la como “tão estradeira”,
isto é, trapaceira.
A certa altura do processo diversos depoimentos de vizinhos sobre o comportamento
de Francisca vieram a corroborar com o seu pedido para ver quitada, a “divida de honra” do
acusado para com ela. Nestes testemunhos se alegava que era de mais de um ano o
relacionamento entre Francisca e Antonio e que, mesmo inexistindo um casamento de “papel
198
Silva, Maciel Henrique. Delindra Maria de Pinho: uma preta forra de honra no Recife da primeira metade
do século XIX. Afro- Ásia, 32 (2005), 219-240.
102
passado”, isso não significava falta de direitos e obrigações de fidelidade por parte de
Francisca e nem de assistência por parte de Antonio
Francisca colocou que sua união era marcada pela existência de um projeto de vida em
comum, pois o casamento seria realizado assim que [Antônio] melhorasse de condição”.
Que compartilhavam uma vida em comum, era coisa reconhecida pelas pessoas da redondeza,
pois de Antônio dizia-se que “tinha tanta liberdade que [casa de Francisca] entrava a
qualquer hora do dia e da noite”, além de pagar as despesas de alimentação e vestuário da
menor.
O casal estava “vivendo amasiado”
199
e nesse consórcio se esperaria dos cônjuges, como
no matrimônio legal, fidelidade. Antônio brigou com Francisca por que viu um homem em
sua casa e, por conta disso, interrompeu as relações com ela, dizendo que não se casaria
mais, e que tinha [um] chicote para ela”. A ameaça do uso do chicote tinha a intenção clara
de amedrontá-la, mas também humilhá-la, pois, tal castigo associava-se ao cativeiro. Como
estas uniões assemelhavam-se às regras dos casamentos legais, demonstrando a divisão de
responsabilidades e compromissos mútuos, a transgressão desse pacto (a “descoberta” da
infidelidade conjugal), permitiria ao “marido traído” atitudes passionais, além de também
assinalar a construção de uma representação de mulher desonesta em contraposição a de
honesta.
Francisca teria recorrido a Justiça para não perder o homem que amava ou estava
assim procedendo para manter uma situação material de vida que não teria condições de
conservar sozinha? Isso nós não podemos saber com certeza, mas podemos imaginar que,
sendo Antônio um pouco mais velho que Francisca e dono de um comércio, teria maiores
possibilidades de lhe oferecer algum favor ou recursos.
200
Em casos como este, as mulheres pobres, no século XIX, utilizaram a própria Justiça,
ou seja, o aparelho normatizador, mobilizando representações de “moça honesta” associada
aos papéis pré-determinados sobre o feminino como a inocência e a dependência. Era
utilizando-se desta tática que as mulheres pobres conseguiam levar a melhor sobre os homens
nos tribunais, ou seja, através da construção de uma imagem de suas vidas de acordo com as
expectativas e representações relativas ao seu gênero dominante na sociedade, elas
199
Os amasiamentos seriam uniões que não eram legalizadas e podia caracterizar relações de amantes que não
viviam sob o mesmo teto e também casais que viviam um relacionamento estável, independente da duração, e
possuindo muitas vezes filhos em comum.
200
A experiência de mulheres jovens em casarem com homens mais velhos é discutida por Slenes com relação
aos índices de nupcialidade escrava em Campinas. Slenes, Robert. Na senzala uma flor.
103
conseguiram defender a sua honra e obter dos juizes veredictos e conciliações favoráveis as
suas demandas.
Por fim, em 5 de novembro de 1871, Antônio Tenório foi condenado a dois anos de
desterro para fora da comarca, de dotar a ofendida além de pagar as custas do processo por
ter “por meio de afagos e promessas de casamento” deflorado a menor Maria Francisca da
Conceição.
Cabe lembrar, contudo, que algumas mulheres procuraram à Justiça quando outros
recursos para solucionar as suas questões haviam se esgotado. Antes disso, uma gama de
outras possibilidades para resolver o problema, podiam ser acionadas por elas para solução do
problema, como por exemplo, uma boa conversação, pressão familiar ou intimidação violenta
dos familiares da ofendida ao ofensor. Vimos, mulheres pobres, pardas e brancas usando o
Poder Judiciário como meio de solucionar conflitos envolvendo crimes sexuais. Foi via
intermediação do poder público que mulheres pobres tiveram seus direitos como cidadãs
reconhecidos. O exercício da cidadania
201
pelo recurso à lei esteve associado à resolução dos
problemas concretos da vida cotidiana dos segmentos menos favorecidos, mas muitos deles
estavam ligados à preservação de costumes e entre eles uma das posses mais zeladas entre os
populares: a honra.
202
E por esse motivo, a partir de seu entendimento das leis, que algumas
mulheres recorriam à Justiça, para reparar sua honra conforme a lei determinava.
Seguindo o percurso de alguns autores
203
e os casos analisados, verificamos que os
usuários do sistema de justiça, em meados dos oitocentos, pertenciam a grupos sociais bem
distintos e que muitos deles eram pessoas sem posses. Homens e mulheres tinham consciência
e recorreram à Justiça com um lculo, mais ou menos refletido, acerca das possibilidades de
resultado de sua ação.
O papel da Justiça no cotidiano dessas pessoas era o mais diverso e podia ser utilizada
para efetuar uma vingança, para reclamar a honra denegrida ou para que os rituais e resultados
201
As mulheres pobres eram reconhecidas pela lei (Constituição e Código Criminal) como cidadãs, isto é, elas
eram contempladas na noção de que todos eram iguais perante a lei. Contudo, as mulheres não se beneficiavam
do mesmo modo que os homens. Por exemplo, elas poderiam exercer os direitos civis. Os direitos políticos
estavam reservados aos homens, inclusive, aos pobres, pois, a maioria da população trabalhadora ganhava mais
de 100 mil réis por ano e a lei permitia o voto dos analfabetos. O valor de 100 mil réis para qualificar votantes do
turno vigorou até o ano de 1880 depois, esse valor sofreu aumento. Em 1881 era permitido participar dos
pleitos eleitorais os homens alfabetizados. Ver discussão sobre a cidadania no século XIX: José Murilo de
Carvalho. Cidadania no Brasil – o longo caminho. edição, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2002.
202
Moura, Denise. Sociedade Movediça.
203
Hunold, Silvia Lara. E Mendonça, Joseli. (Org.) Direitos e Justiças no Brasil: ensaios de história
social.Editora da Unicamp, Campinas SP, 2006. Ivan de Andrade Vellasco através de seu livro As Seduções
da Ordem e Caulfield, Sueann no seu livro Em defesa da honra.
104
do Poder Judiciário servissem como uma lição para os acusados no caso dos demandantes não
poderem resolver com as próprias mãos.
Os populares, homens e mulheres, incorporaram a lei e o campo jurídico às suas outras
estratégias de sobrevivência. Esse é um argumento apresentado por Boris Fausto quando
analisou episódios de crimes sexuais em São Paulo nas primeiras décadas republicanas. O
autor observou famílias de gente pobre recorrendo à polícia na tentativa de realizar o
casamento de suas filhas defloradas, mas quando havia algum impasse um acordo pecuniário
era cobrado como forma de resolver a situação. Fausto levanta a seguinte questão: Quais
seriam os objetivos desse recurso?
E enfatiza que nem sempre histórias de defloramentos
surgiam como um desastre para suas vítimas.
204
Episódios semelhantes, encontrados em nossa pesquisa, também chamaram a nossa
atenção para esta questão. As meninas e as suas famílias, apesar das especificidades das suas
trajetórias de vida, observamos na leitura de alguns processos, a aspiração por melhorar suas
condições cotidianas é que as levavam a valerem-se do recurso à Justiça como meio de
subsistência e de ascensão social. E essa melhoria poderia se dar através de ganhos em
dinheiro advindas de dotes alcançado ao fim das contendas judiciais. Dos 29 casos
selecionados para análise, em 10 deles encontramos informações sobre a determinação de se
dotar à ofendida. E em um caso houve até essa mesma deliberação para uma família em que a
menina havia falecido antes do processo ter sido iniciado. Mas se levarmos em conta os
casos que os réus foram condenados, de acordo com os artigos 219 e 222, que previam o
pagamento de um dote para a menina deflorada ou estuprada, os números subirão para a casa
dos 20!. O que é um mero bastante expressivo, se levarmos em conta que três homens se
encontravam presos aguardando o andamento do processo, dois casaram e, por conseguinte,
tiveram suas penas revogadas e os casos encerrados. Em dois casos foram considerados
improcedentes as acusações e, finalmente, em dois processos não tivemos conhecimento das
penas aplicadas.
205
De certo modo, os números apresentados a pouco reforçam a nossa impressão sobre o
fato da escolha do recurso pela via judicial ter sido pensado, também, como um modo para
conseguir ganhos financeiros. Principalmente para os conflitos em que a defesa da honra
204
Fausto, Boris. Crime e Cotidiano. Pgs – 224/225.
205
Fonte: processos criminais 1863-1887.
105
estava sendo reclamada, pois, são episódios nos quais a tradição legitimava “lavar com
sangue”, isto é, por meio de violência física.
206
As mulheres pobres, portanto, quando se dirigiam a Justiça poderiam ter como uma de
suas principais expectativas à possibilidade de obter algum ganho material ou social. Havendo
da parte delas uma inteligibilidade nas escolhas de parceiros para uniões afetivo-amorosas,
uma preocupação de avaliar cuidadosamente as “qualidades” do parceiro com quem
pretendiam partilhar a vida. Como no caso de Maria Theodora, que soube muito bem explicar
a uma amiga a escolha do homem com quem resolvera fugir de casa:
...dizendo Francisca nesta ocasião que era melhor fugir com
Carvalho do que com outro homem, porque o dinheiro corria na mão
de Carvalho – e só fugiu com este por causa deste dito de Francisca =
e que ela fugiu com Carvalho sem que este vez alguma falasse em
casamento e nem ela respondente lhe falou em tal coisa e fugiu
para viver com Carvalho.
207
Esta história é exemplar também para demonstrar o conhecimento das leis e
procedimentos legais por parte das mulheres pobres quando recorriam á Justiça, pelo menos, é
o que podemos inferir do pouco que os nossos “olhos” conseguiram enxergar neste registro:
...quando foi busca-la sua mãe que ela respondente em casa
de Manoel Gomes, dormia com a mulher deste, que procurou saber se
João Baptista a tinha deflorado, ocasião em que se via sua roupa
ensangüentada aconselhando-a que não lavasse o que não fez tanto
assim que ainda veste a mesma roupa digo ainda está com a mesma
roupa.
208
Esse relato demonstra como os populares estavam atentos e manejavam certos
aspectos legais dos procedimentos utilizados pelos aparatos policial e judicial. O acesso a esse
conhecimento do mundo das leis e dos elementos específicos para poder prestar uma queixa,
era um componente importante para ter sua solicitação levada adiante. As informações sobre
crimes sexuais e os resultados dos mesmos eram estampados nos jornais, pelo disse-me-disse
realizados nas visitas costumeiras feitas a vizinhos ou parentes, como também nas conversas
nos estabelecimentos comerciais. Nos processos-crimes, as testemunhas, em boa parte dos
casos diziam ter sabido sobre o acontecido quando estavam encostados ao balcão de uma
206
Histórias como as de Antonia e Francisca se repetiram por toda a década de 1860 consolidando uma tendência
que se intensificou durante a década de 1880. Talvez impulsionados pela idéia de que o judiciário era um espaço
legítimo de reivindicações de “direitos”.
207
IAHGP - 1880 cx 3, Segundo cartório do crime Recife Queixa, Apelada A Justiça / Réu- João Baptista de
Carvalho.
208
Idem.
106
taberna, próximos de da sua porta ou quando tinham ido comprar algum objeto ali. Do mesmo
modo o conhecimento das leis se processava não apenas dentro dos tribunais, mas também em
diversos espaços de sociabilidade.
APEJE – Jornal América Ilustrada, nº4, ano XII, 22 de janeiro de 1882.
Outro indício, encontrado na documentação policial aponta para as questões
relacionadas à mobilidade social, através da escolha de parceiros, as quais não eram apenas
guiadas visando ganhos pecuniários
209
. Um rapaz, provavelmente de cor branca, quando foi
interrogado pelo Delegado, disse que a acusação de defloramento que lhe foi imputada era
uma “noticia toda caluniosa, e que a deflorada era filha de uma mulher liberta, de condição
inferior a sua”
210
. Talvez a jovem deflorada tivesse conseguido reunir no seu parceiro de
entreteres amorosos todos os critérios de seletividade: a pessoa amada e o homem que
deixaria um pouco mais distante a marca de um passado escravo na cor da pele de seus filhos.
209
Em nossa pesquisa encontramos dados de que os contemporâneos percebiam que os homens poderiam estar
sendo vítimas da “esperteza” de algumas mulheres. Em um processo de 1887 o Advogado do acusado disse o
seguinte: “os anais judiciários contam muitos casos de simulação de virgindade, dos quais foram vitimas, aliás,
de esfera intelectual superior ao do recorrente”.
210
APEJE – Delegacia de Polícia do 1º Distrito do Termo da Cidade do Recife, 8 de junho de 1864.
107
Fosse buscando melhorias materiais ou sociais, o certo é que encontramos expressos
em alguns processos o desejo de mudar de vida por parte das meninas. Esse anseio
impulsionou algumas mulheres a se apresentarem na Justiça como vítimas de crimes sexuais.
Para algumas meninas, a vida de trabalho duro e de muitas necessidades no dia a dia
seria atenuada, talvez em longo prazo, através de uma melhoria ocupacional que lhe
garantisse maiores recursos. Para outras, o recurso a um casamento mesmo que via justiça
com um homem em uma situação financeira melhor que a sua, ou a consecução de um dote
pelo mesmo caminho, representavam uma possibilidade real e estratégica de “subir” na
hierarquia sócio-econômica e assim encurtar o percurso da ascensão social.
211
As ocupações dos réus casadoiros eram bem variadas, se compararmos com as
atividades exercidas pelas meninas. Vejamos a tabela abaixo:
TABELA Nº 6
OCUPAÇÃO DOS RÉUS NOS PROCESSOS DE CRIME SEXUAL (1863-1887).
Ocupação Quantidade Porcentagem
Agricultores 11 32,35%
Negociantes 9 26,47%
Militar
(Alferes – Cabo de Polícia –
Sargento-Soldado)
4 11,76%
Tanoeiro 1 2,94%
Sapateiro e fogueteiro 1 2,94%
Empregado no
melhoramento do porto
1 2,94%
Trabalhador alugado 2 5,88%
Chefe da Estação
Camaragibe
1 2,94%
Criado 1 2,94%
211
Santos, Lucimar Felisberto dos. Cor, Identidade e Mobilidade Social: crioulos e africanos no Rio de
Janeiro (1870 – 1888), dissertação de mestrado, UFF, Rio de Janeiro, 2006.
108
Empregado da empresa da
linha de Limoeiro
1 2,94%
Caixeiro 1 2,94%
NI 1 2,94%
Total 34 100
A ocupação dos acusados era também, em sua maioria, especializada o que os
tornavam candidatos preferenciais para uma vida marital. Isso deve ter sido critério observado
pelos pais e pelas vítimas de crimes sexuais. A escolha do cônjuge era uma tarefa importante
e nesse cálculo entravam diversas variáveis, notadamente, àquelas ligadas às possibilidades de
sobrevivência material e de ascensão social.
O leque ocupacional dos homens acusados era, em sua maioria, de atividades de
rendimentos modestos. Apesar de encontrarmos 9 negociantes, a categoria mais representativa
desse grupo foi a dos donos de pequenos estabelecimentos, como tabernas. A ocupação mais
apontada com 32,35% foi a dos agricultores. Nesse grupo estão incluídos os trabalhadores do
campo das áreas rurais do interior da província e dos trabalhadores de localidades próximas a
capital. O universo ocupacional dos homens apresentados na tabela 3, lhes permitiam
auferir renda para pelo menos, garantir o atendimento das necessidades básicas como
alimentação, moradia e quem sabe algum conforto.
212
Não quero dizer com isso que não existiram casos de violência sexual ou de amor
entre os envolvidos, contudo, se o resultado de uma querela judicial fosse favorável às
acusadoras muitas delas não hesitavam em encerrar o processo naqueles termos. A tese
defendida aqui é de que se apresentar como vítima de crime sexual oferecia uma oportunidade
viável de mobilidade social para as mulheres pobres e para os seus familiares. A tática para
tanto, primeiramente, seria uma negociação amigável com o acusado tentando arranjar o
casamento. Caso tal intento não fosse atingido, como apresentamos no capítulo anterior e nas
histórias de vida contempladas nesse capítulo, o jeito seria, a parte interessada recorrer à
polícia e aos tribunais.
212
Farias, Juliana Barreto; Gomes, Flávio dos Santos & Soares, Carlos Eugênio Líbano. No labrinto das nações:
africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : Arquivo nacional, 2005. Ver capítulo sobre
ocupações dos escravos africanos: Os últimos malungos: moradia, ocupação e criminalidade entre libertos
africanos, 1860 1900. Sobre os ganhos financeiros conquistados pelos escravos e forros com ocupações,
possibilitando a alguns comprar a alforria.
109
Pensar a questão da mobilidade para Pernambuco de meados dos oitocentos, de uma
forma geral, obedeceu às circunstancias presentes na sociedade imperial. A possibilidade mais
conhecida para subir alguns degraus sociais para as mulheres em geral, era pelo casamento.
Afinal é notável para meninas pobres devido aos baixos índices de escolaridade, alfabetização
e pelas expectativas conferidas a atuação das mulheres como o papel de mãe e dona de casa,
ascender na vida pela dedicação aos estudos ou trabalho era muito mais difícil.
O matrimônio era um espaço privilegiado para construir alianças sociais, trocas e
solidariedades, a associação entre os cônjuges, via casamento ou não, era com freqüência uma
empreitada onde os parceiros se uniam para lutar pela sobrevivência. Semelhante sentido pode
ser extraído da história de Maria
Francisca da Conceição, apresentada no inicio desse capítulo. O fim do seu
desenlace poderia significar a perda de ganhos alcançados através de sua união com o
comerciante Antonio. Para Francisca viver em companhia de um homem que protegia e a
sustentava e a sua mãe, que lhes garantiam roupas, alimentos e as diferenciavam de tantas
outras mulheres pobres, representava uma conquista e um movimento positivo na condição
social de ambas.
O argumento que vem sendo construído neste trabalho, relativo a casos de ganhos na
Justiça por parte de mulheres pobres vítimas de crimes sexuais, é que algumas delas, na sua
luta por direitos, acabaram conquistando melhorias nas condições de vida e até de ascensão
social. Desse modo, os nossos questionamos, formulados a partir da categoria gênero, nos fez
repensar a classificação de vítima atribuída a essas mulheres, pois as mesmas não podem ser
apresentadas como pessoas sem capacidade de calcular seus próprios atos. E como vimos,
elas não foram passivas, mas sujeitos ativos de sua própria história. Na verdade, muitas delas,
acionaram representações recorrentes de mulher honesta e recatada de acordo com as suas
necessidades e utilizaram o aparelho judicial a seu favor.
213
E o mais surpreendente: muitas
delas tiveram sentenças favoráveis as suas causas.
213
Santiago, Silvana. Tal Conceição, Conceição de Tal. Classe, gênero e raça no cotidiano de mulheres pobres
no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Dissertação de Mestrado Unicamp, Campinas,
SP:[s.n.], 2006.
110
Família pobre: arranjos domiciliares, relações
familiares e honra.
Este capítulo analisa a composição dos arranjos domiciliares familiares das meninas
pobres, vítimas de crimes sexuais em Pernambuco, no período compreendido entre as décadas
de 1860 e 1880. Tomou-se por base para esse estudo, a documentação constituída dos
processos-crimes do Tribunal da Relação e dos ofícios produzidos pela Repartição Central de
Polícia, além da historiografia que privilegia os arranjos domiciliares para a compreensão dos
núcleos familiares. Entendemos arranjos domiciliares
214
como o conjunto das pessoas que
residiam numa mesma casa, com ou sem vínculos consangüíneos
215
. Por vezes, encontramos
arranjos multifamiliares, isto é, mais de um grupo familiar residindo sob o mesmo teto e,
optamos pela noção de família articulada a de domicílio.
A composição dos domicílios no qual as meninas residiam variou bastante
dependendo do conjunto de pessoas que viviam. Os domicílios podiam, por exemplo, ser
compostos por pessoas com laços de parentesco em qualquer grau; por empregados
domésticos e seus empregadores, ou seja, por pessoas sem nenhum laço de parentesco. No
dicionário de Antônio de Moraes e Silva, do século XIX, a palavra família aparece definida da
seguinte maneira: “as pessoas de que se compõe a casa, e mais propriamente os
subordinados aos chefes, ou pais de famílias e por outro lado é formada também, pelos
“parentes e aliados”
216
. Em suma, o termo família, nesse sentido, inclui parentes, agregados e
criados, os quais seriam as pessoas que compõem uma casa e, como explicitou Moraes,
também aqueles subordinados ao chefe da família. Nos domicílios, um membro é classificado
como uma pessoa de referência, ou seja, como chefe do domicílio. Esse homem ou mulher,
geralmente era uma pessoa mais velha identificada por sua autoridade de pai, de mãe ou de
pessoa responsável pela educação e cuidados dos membros da família, ocupando o cume da
214
Berquó, Elza. Arranjos familiares no Brasil: uma visão demográfica. In: Fernando Novaes (coordenador
geral da coleção) & Lílian Schwarcz (coordenadora do volume). História da Vida Privada no Brasil: contrastes
da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998.
215
Família compreende o conjunto de pessoas que se reconheçam como parentes independentes do local de
residência dessas pessoas. A idéia de família que iremos abordar coincide com o grupo residente em uma casa,
pois, as nossas fontes referem-se a esse tipo de organização familiar. Foram poucas as informações sobre
membros da família que não coabitavam mas, que continuavam mantendo convivência intensa.
216
IHAGP – Silva, Antonio de Moraes e. Dicionário de Língua Portuguesa, 1815.
111
hierarquia do grupo dos residentes em uma casa. Como chefe de família era ele ainda o
principal provedor da manutenção da residência ou o proprietário da habitação.
Neste trabalho, a identificação da chefia dos domicílios ou das famílias pobres
dependeu das informações presentes na documentação. Através delas, foi possível identificar
essa chefia através das referências feitas aos seus dependentes, que aparecem na
documentação como o que “vive na casa de”, “foi criada na casa de” ou é “sustentada por”.
Para análise dos arranjos domiciliares familiares, dividimos os mesmos em três
categorias. Tomamos por base para essa divisão as fontes pesquisadas e a classificação usada
por Maria Luiza Marcílio,
217
a saber: a família conjugal, isto é, a constituída de um casal mais
os filhos, com ou sem netos; aquela composta do chefe de domicílio, sua família, agregados
e/ou tutelados e, por fim, as famílias cujas mulheres solteiras ou viúvas eram chefes de
domicílio onde residiam com seus filhos.
O tema na historiografia.
Os estudos sobre a família brasileira, num primeiro momento, centraram-se no modelo
da família patriarcal, o qual teria obscurecido outras formas de arranjos familiares que
existiram em todo território brasileiro. Dentro dessa perspectiva, quando essas outras
estruturas familiares foram vislumbradas na historiografia, apareciam sempre como apêndices
da família patriarcal.
A família patriarcal brasileira foi pioneiramente o objeto de pesquisa de Gilberto
Freyre, embora ele a tenha distinguido outras formas de organizações familiares. Esse autor,
na década de 1930, entendia a organização familiar como o centro de formação da sociedade
brasileira, caracterizando-o como um grupo social extenso composto pela família nuclear
(formada pelo marido, sua esposa e pela prole legítima), ao qual se atrelavam afilhados,
parentes, agregados e escravos, todos vivendo em um sistema hierárquico, onde a autoridade
do patriarca, na casa-grande ou na senzala, prevalecia.
218
No entanto, desde o final dos anos 80 do século XX, a historiografia brasileira tem se
dedicado a pesquisar a família de forma mais sistemática e sob outra perspectiva. Alguns
217
A classificação proposta por Maria Luíza Marcílio que nós utilizamos está descrita no livro de Kátia Mattoso:
Família e Sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo, Corrupio; Brasília, CNPq, 1988.
218
Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala Formação da Família Brasileira sob o regime da economia
patriarcal. Rio de Janeiro : José Olympio Ed. 1987. A primeira edição dessa obra foi do ano de 1933.
112
estudos sobre a história da família foram discutidos a partir da demografia histórica. Tal
metodologia foi importante para o desenvolvimento do tema e acabou identificando tipos
familiares diferentes da família extensa/patriarcal, que prevalecia até aquele momento na
historiografia brasileira
219
. Os trabalhos de demografia histórica permitiram a mensuração de
mudanças populacionais, mobilidade, natalidade, mortalidade, índices de nupcialidade e o
conhecimento do tamanho das famílias, mediante a utilização de registros paroquiais
(batismo, casamento e óbito), listas nominativas de habitantes ou censos. Seus resultados
apontaram estruturas familiares semelhantes, mas também diferentes daquela extensa
proposta por Freyre.
Desde então o conceito de família patriarcal de Gilberto Freyre sofreu críticas por
conta da generalização espacial, temporal e social presente no trabalho desse autor. Segundo
Eni Samara, o conceito de família patriarcal tinha um forte caráter ideológico, chegando a
obscurecer uma multiplicidade de experiências familiares de segmentos sociais diversos. Com
base em pesquisa documental, a autora encontrou em São Paulo um número expressivo de
famílias matrifocais e altos índices de ilegitimidade e concubinato. O resultado de suas
pesquisas apresentou variações nos arranjos familiares, os quais coexistiram no mesmo tempo
e espaço com a família patriarcal.
220
Outros estudos, particularmente, possibilitaram a
compreensão da família escrava.
A discussão referente à família escrava no Brasil insere-se em um movimento
historiográfico mais amplo que ganhou força no período das comemorações do centenário da
abolição da escravidão. Momento este, marcado pela produção de uma série de publicações
sobre as temáticas mais diversas, envolvendo uma nova abordagem da vivência dos escravos,
com destaque para o desenvolvimento da família escrava A estabilidade conjugal da família
escrava e as possibilidades de criar laços de parentesco e solidariedade foram aspectos
trabalhados por esta historiografia
221
.
Os estudos sobre a família escrava tiveram também importância por impulsionarem o
conhecimento acerca de mais uma faceta da família brasileira. Além de focalizar as grandes
219
Eni Samara, Iraci Nero Del Costa e Maria Luiza Marcílio são alguns dos Historiadores que trabalham com
demografia histórica.
220
Samara, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo : Brasiliense, Coleção Tudo é História 71, 1998.
221
Livros que discutem a família escrava no Brasil: Alaniz, Anna Gicelle García Ingênuos e libertos: estratégias
de sobrevivência familiar em épocas de transição, 1871-1895. Campinas: Centro de Memória – Unicamp, 1997;
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Rocha, Cristiany Miranda. Histórias de Famílias
escravas: Campinas, século XIX. Campinas : Unicamp, 2004.
113
famílias, da classe senhorial, os Historiadores passaram a investigar também organizações
familiares de segmentos mais pobres da população em diversas regiões brasileiras. Esses
estudos deram visibilidade a unidades domiciliares chefiadas por mulheres e a existência de
diferentes arranjos familiares para além do modelo patriarcal.
Dentro dessa perspectiva, o trabalho de Maria Luiza Marcílio reconstituiu as vivências
familiares de grupos não associados à economia de exportação. Para isso, ela se utilizou das
listas nominativas de habitantes e da metodologia da demografia histórica.
222
Na obra O
Caiçara, a autora investigou, entre outras questões, os ciclos e a variedade de organizações
familiares dos caiçaras do litoral norte paulista, uma comunidade de camponeses-pescadores
pobres, no período colonial.
Kátia Mattoso também se utilizou da demografia histórica no seu estudo sobre a
família baiana dos oitocentos. No seu livro a Família e Sociedade na Bahia do século XIX,
analisou, com base nos registros eclesiásticos e nos testamentos, as tipologias familiares a
partir de diferentes categorias como o grupo social, o tipo de matrimônio, parentesco,
estratégias matrimoniais e relações sociais.
O Historiador Luciano Raposo Figueiredo, na mesma direção, investigou o cotidiano
familiar da sociedade colonial mineira do século XVIII. O autor tomou como base de sua
análise fontes eclesiásticas, como as devassas e os livros de visitas diocesanas. Observando o
que os visitadores informavam sobre a vida familiar dos mineiros “desclassificados”, ele
concluiu que a coabitação, a violência, o afeto, as uniões ilegítimas e os filhos fruto de uniões
consensuais faziam parte da vida familiar, em Minas Gerais do século XVIII.
223
Maria Odila Dias investigou as mulheres que lutavam pela sua sobrevivência e muitas
vezes a de sua família, em São Paulo, em fins do século XVIII até as vésperas da abolição da
escravidão. A autora encontrou mulheres com maridos ausentes ou solteiras, livres e escravas,
com filhos ilegítimos e chefiando suas famílias. Esse tipo de organização familiar, ligada a
uniões consensuais, segundo suas conclusões, ocorreu em função da migração do cônjuge
para áreas urbanas em busca de trabalho. Para a autora, tal situação tornaria favorável a
organização de grupos domésticos encabeçados por mulheres, por vezes residindo com
distintas gerações (avós, filhas, tias e primas).
224
222
Marcílio, Maria Luiza. Caiçara: Terra e População Estudo de Demografia Histórica e da História Social
de Ubatuba. 2ª ed., São Paulo : Edusp, 2006.
223
Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas Famílias vida familiar em Minas Gerais no século
XVIII. São Paulo, Editora Hucitec, 1997.
224
Dias, Maria Odila L. S. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo : Brasiliense, 1995.
114
Já Cristina Donza Cancela, em sua tese de doutorado, discutiu o casamento e a
multiplicidade de relações familiares em Belém, entre 1870 a 1920. A autora investigou o
casamento entre diversos segmentos sociais, mas dedicou atenção para analise do casamento e
das uniões consensuais entre as famílias de pessoas pobres, destacando a importância das
relações de parentesco, amizade do grupo e suas estratégias de ajuda mútua para enfrentar as
dificuldades da vida.
225
Outro livro relevante sobre o tema da família é o de Paulo Eduardo Teixeira, que
aborda a questão da chefia feminina em domicílios de Campinas, na primeira metade do
século XIX. Para tanto, o autor reconstruiu histórias de vida de mulheres pobres e abastadas,
de faixas etárias, etnias e estados matrimoniais diversos, com base nos censos populacionais.
Neste trabalho ele procurou ressaltar que famílias chefiadas por mulheres não é um fenômeno
unicamente contemporâneo, mas sim observável no Brasil desde o período colonial.
226
Tomando por base a nossa pesquisa documental e a rica produção historiográfica sobre
a família no Brasil, buscamos aqui identificar as relações familiares entre os componentes dos
domicílios encontrados nos processos-crimes coletados, os quais nos permitem apresentar
outros aspectos como a intimidade e os sentimentos compartilhados entre parentes. A análise
dos arranjos familiares nesse trabalho é importante por eles terem afetado os embates na
justiça. Nas falas dos profissionais da polícia e da justiça, como na dos depoentes apareceram
referências feitas às condutas precedentes da família e das meninas vítimas de crimes sexuais,
as quais poderiam influenciar no julgamento dos casos, fazendo com que os réus fossem
condenados ou absolvidos. Argumentava-se que a vigilância e zelo de pais e mães seriam
decisivos para determinar o bom procedimento e a honra de suas filhas, pois, uma moça
honesta pertenceria a uma família respeitável o contrário também era verdadeiro e é o que
vamos mostrar mais adiante.
Histórias de vida familiar das moças honestas e das meninas perdidas.
Iniciemos, nossa tarefa de observar as trajetórias dessas famílias pela análise da
história de um casal que deixava o mundo dos solteiros para adentrar ao universo dos casados.
No dia 14 de agosto de 1883, um padre dava as bênçãos matrimoniais ao casal Antonio e
225
Cancela, Donza Cristina. Casamento e Relações Familiares na Economia da Borracha (Belém 1870
1920). Tese de Doutorado, Usp, São Paulo, 2006.
226
Teixeira, Paulo Eduardo. O outro lado da família brasileira. Campinas : Ed. da Unicamp, 2004.
115
Izabel. O noivo, apreensivo, esperava junto com as testemunhas a sua futura esposa, na
capela, para o início da cerimônia. A jovem nubente estava ansiosa, não somente pela
realização do casamento, mas pela trajetória percorrida de fevereiro daquele ano até ali. A
celebração ocorreu na Capela da Casa de Detenção e, nesse mesmo dia, Antonio, que se
encontrava preso, foi solto como determinava o artigo 225 do Código Criminal do Império.
Segundo ele se o réu cassasse com a vítima, no caso de estupro e defloramento, teria sua
sentença suspensa.
227
O casamento na prisão não foi decorrência de uma história de amor. Estava longe
disso. Ele foi resultado de uma história de violência. De acordo com o promotor público,
assim teve início o caso: no dia 9 de fevereiro de 1883, Izabel Maria da Conceição, de 12
anos, saiu de casa com sua irmã Severina, de 10 anos, para visitar uma conhecida nas terras
do Engenho São Joaquim, onde elas também moravam. Quando as duas regressavam do
passeio, passaram próximo a uma plantação de canas e foram vistas pelos agricultores Manoel
Joaquim de Oliveira, de 15 anos, e por Antonio Pereira de Souza, de 30 anos. Nesse
momento, os réus encontravam-se trabalhando nas canas, junto a outros trabalhadores, e se
retiraram dizendo que iam resolver qualquer coisa em casa. Caminharam rapidamente, pois
haviam acertado de “pegar as meninas”, que surpreendidas, por aquela abordagem foram
arrastadas pelos réus para dentro do canavial. Gritaram, choraram e lutaram para não serem
agredidas. Izabel, apesar de resistir, teve suas roupas rasgadas e acabou violentada e deflorada
por Souza. Enquanto isso o comparsa deste, Oliveira, tapava a boca de Severina impedindo-a
de gritar. Depois de consumado o ato criminoso, os réus fugiram pelos matos e as meninas
correram para casa. Ao chegar ao seu lar, Izabel estava “ensangüentada” e disse o ocorrido a
sua mãe, que logo mandou chamar o pai, o mesmo tratou de resolver a questão e “tomar
satisfações” com os acusados.
O que se passou desse dia até a celebração do matrimônio entre Izabel e Antonio a
documentação não faz referência. Supomos que o casamento foi à solução encontrada pelo
réu para se livrar da prisão e para a tima era um meio de reparar a sua honra. Mas podemos
imaginar também, que essa opção poderia estar ligada à vivência experimentada pelo grupo
familiar ascendente de Izabel, que talvez a tenha formado para seguir o modelo de vida
227
IAHGP Denúncia Juízo Substituto do Distrito, autora promotor público/ u Antonio Pereira de
Souza. Artigo 225 do Código Criminal do Império Não haverão as penas dos três artigos antecedentes dos
réus que casarem com as offendidas. Ver artigos anteriores no anexo.
116
conjugal estável da sua família. A menina estuprada pertencia a um núcleo familiar formado
por pai, mãe e irmã: (quadro 1):
QUADRO 1 – FAMÍLIA DE IZABEL.
Essa família possuía vínculos estáveis, notadamente, se levarmos em conta a idade do
pai, 35 anos e a idade da filha mais velha, 13 anos, apontando para um relacionamento
conjugal, de mais de 13 anos. Um dado curioso nesse caso é o modo como foi registrado, ao
longo do processo, o estado civil do pai da vítima. No início, ele apareceu como solteiro,
embora no decorrer da querela, tenha ficado claro a existência de uma união duradoura entre
ele e Maria Tereza, a semelhança do que se esperava que acontecesse com os casamentos “de
papel passado”. Assim, apesar de tido como ilegítimo, o relacionamento consensual e
duradouro apresentado no quadro 1 não deixava de merecer o reconhecimento e respeito da
sua vizinhança, e também dos seus próprios membros. Tal reconhecimento devia-se a o fato
de Germano ter assumido publicamente a sua parceira e as duas filhas, além de haver
demonstrado zelo, junto com sua mulher, para com sua prole. Tal conduta imprimia certa
respeitabilidade ao casal no seu meio, que os reconheciam como “esposos” e grupo familiar.
Além da estabilidade da união, a noção de pertencimento desse núcleo foi engendrada por
meio do convívio familiar sólido, formado longe do casamento, ou seja, as famílias de
pessoas livres e pobres iam se estruturando e ao mesmo tempo adquirindo respeitabilidade
Pai - Germano Cosme
(35 anos)
Mãe - Maria Thereza
Filha – Izabel
(13 anos)
Filha – Severina
(10 anos)
117
social, independente dos laços matrimoniais formais e sacramentados, conforme observou
Luciano Figueiredo em seus estudos.
228
Outra estrutura familiar vinculada à noção de domicílio, vivenciada pelas meninas, era
a de vínculo de dependência, como o de agregada, com as pessoas do seu grupo familiar e que
muitas delas fizeram parte, conforme se nos processos analisados. Esse foi o caso da parda
Severina, de 15 anos, que foi estuprada em 1876. Ela era “sobrinha por afinidade” de
Francisco Silvestre, chefe do domicílio, e sobrinha de sangue de Umbelina Maria da
Conceição. Severina era agregada da casa de seus tios, pois havia incorporado-se a esse
domicílio constituído e tinha um relacionamento bastante próximo com eles, visto ser
considerada cria da casa e“sua filha”
229
.
O agregado, de acordo com Kátia Matoso, podia ser o irmão ou a irmã dos conjuges,
parentes afastados ou pessoas com vínculos espirituais, como os de afilhados.
230
Os
agregados, geralmente, eram sustentados pelo chefe do domicílio, mas por vezes colaboravam
também no sustento da casa. O termo agregado não se referia apenas a pessoas
desafortunadas, pois ele poderia ser do mesmo segmento social do chefe do domicílio como,
por exemplo, um irmão que atuava como mão-de-obra auxiliar para a manutenção do grupo
doméstico
231
. A prática costumeira de agregar dependentes era também compartilhada por
pessoas pobres, as quais agregavam outras pessoas para suprir a sobrevivência do próprio
núcleo familiar agregador. Severina estava inserida em um grupo familiar de pessoas pobres
livres da área rural, constituída de não-proprietários de escravos, passando a atuar como
contribuinte do orçamento familiar, e por isso ficou encarregada de vender lenha na feira
junto a seus primos José, de 13 anos e Manoel, de 10 anos.
Pelos depoimentos contidos nos autos, em um dia de trabalho na feira, Severina foi
acender um cachimbo na casa da mendiga Izabel. Quando ela estava abaixada tirando fogo”
na cozinha, Severina sentiu umas mãos fortes sobre si e viu que era o sargento Candido
Guedes. Ela o rejeitou e ia começar a reagir, mas o sargento lhe disse que a mataria se gritasse
ou resistisse “ameaçando de transpassa-la com uma faca”. A menina amedrontada e
ameaçada, acabou cedendo, ficando com um braço doente pelo arrojo do sargento”. A
228
Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida. Op. Cit. A vida conjugal vislumbrada nas fontes pesquisadas pelo
autor apresentam uniões consensuais que muitas vezes, eram tão estáveis quanto aquelas oficializadas pela
igreja.
229
IAHGP – 1876, Apelação crime do jury Itambé A Justiça/ Izabel Maria da Conceição.
230
Op. Cit. Matoso, Kátia de Queirós.
231
Idem.
118
jovem terminou grávida e, sem perspectiva de casar-se ou outra solução para o caso, pôs um
fim trágico a sua história. No sábado dia 18 de setembro de 1876, pela manhã, ela passou pelo
quarto de sua tia Umbelina e despediu-se dizendo-lhe: “adeus até o dia do juízo”. Depois
cortou um cipó e entrou na mata. Ao amanhecer do domingo, seu tio, um primo saíram a sua
procura. Ao final de sua busca encontraram o seu cadáver pendurado em uma árvore.
Martha Abreu no seu estudo sobre gênero na capital da República na Bellle Epoque,
ressaltou as dificuldades das moças pobres adquirem a respeitabilidade de mulher honesta,
pelo fato de circularem bastante pelas ruas por conta de seu trabalho e sobrevivência.
Concluindo, algumas delas almejavam realizar um casamento legítimo, apesar das uniões
consensuais gozarem de relativa respeitabilidade pública. Mesmo trabalhando com um
período posterior ao do nosso trabalho, as argumentações da autora sobre o casamento formal
entre as mulheres das camadas populares serve-nos de guia para compreendermos as atitudes
das mulheres por nós pesquisadas com relação ao matrimônio legal:
…não se pode negar que nas atitudes das moças pobres do
Rio de Janeiro, descritas nos processos, os valores da ordem moral,
ligados ao casamento e à virgindade, não estejam presentes. Para
muitas, a realização desses ideais talvez trouxesse ganhos sociais de
maior respeitabilidade na vizinhança ou de melhor emprego.
A triste história de Severina, além de permitir-nos notar que o casamento legítimo foi
uma prática almejada entre os populares, também nós a oportunidade de observar uma
família conjugal, compreendida pelo casal mais seus 5 filhos, que se expandiu incluindo a
sobrinha órfã. Tal atitude, reflete um forte traço de solidariedade existente entre a maioria das
pessoas pertencentes às camadas empobrecidas, cujas dificuldades materiais e a vontade de
minorá-las acabavam por incorporar pessoas aparentadas ou não sob o mesmo teto, como foi
o caso de Severina.
As testemunhas arroladas no processo acrescentaram alguns detalhes, não sobre a
menina suicida, mas também da sua família. Nas palavras de um dos depoentes, ela pertencia
a uma “família paupérrima, mas de mulheres honradas”. Tal consideração demonstra que,
apesar da realidade das famílias dos segmentos populares distanciarem-se do modelo das
camadas abastadas, os valores ligados à noção de honra, como a fragilidade feminina,
castidade das mulheres e uniões legalmente estabelecidas, eram valores compartilhados por
diferentes grupos sociais que os agenciavam de acordo com as necessidades cotidianas. Em
119
contrapartida o relevo dado à questão da pobreza nesse e em outros processos nós dá indícios
de como as camadas populares eram representadas por uma parcela da sociedade, em meados
do século XIX: como pessoas com uma formação moral negativa e desregrada. Assim, como
a honra manifestava-se na virtude das mulheres, a qual era um patrimônio familiar, caso o
comportamento delas não condissesse com os costumes esperados por seu grupo, como por
exemplo, o contato sexual pré-marital, essa atitude poderia ocasionar à maculação moral de
toda sua linhagem. Isso foi bem compreendido pelo tio de Severina, Francisco Silvestre que,
como pessoa de referência do domicílio, não deixou de frisar ser homem honesto, pacífico e
trabalhador, de modo que a partir dessa declaração, ele queria fazer com que os seus pares, os
profissionais do campo jurídico e policial, todos reconhecessem ele e a sua família, como
pessoas devidamente respeitáveis e honradas. E não deveria ser de outro modo, que os
indivíduos identificavam-se sempre em relação ao grupo de apoio e construíam marcas
valorativas pela trajetória individual e pela história das gerações ascendentes, como foi
destacado por algumas testemunhas, que apontaram as mulheres da família de Severina como
honradas. A família cabia a transmissão de costumes e valores aos seus membros, servindo
também como critério de distinção entre as camadas populares, pois a honra também era uma
característica a ser passada para as gerações sucessivas como um patrimônio, que teria sido
acumulado pela história da família e poderia ser utilizada como um bem pelos descendentes.
O vínculo familiar, portanto, conferia aos seus membros estabilidade além de influir no status
e na classificação social, mais ainda, no caso de quem não tinha nada a exibir além da
honra.
232
Meninos e meninas órfãos ou abandonados eram enviados para ficarem sob a guarda
de uma família, que se comprometia a cuidar deles, alimentá-los, vesti-los, educá-los e tratar
de suas enfermidades
233
. O tutor deveria assumir as obrigações esperadas de um pai para com
o filho e cuidar do bem-estar físico do seu tutelado. Mas, por vezes, crianças tutoradas eram
exploradas, nos centros urbanos, como criadagem gratuita nas residências dos seus tutores e,
232
Chegamos a essa conclusão observando a documentação e as discussões presentes no livro de Giovanni Levi
acerca da transmissão do pai para seu filho do prestigio, do poder, da autoridade sobre um grupo, ou seja, a
transmissão de uma herança imaterial. Tal poder, era entendido pelo autor como um patrimônio fluído feito de
reservas concretas, mas, imateriais. Levi, Giovanni. A Herança Imaterial Trajetória de um exorcista do
Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
233
Botin, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos, moleques e juízes em Campinas (1866 1899), Revista
Histórica, edição 19 de fevereiro de 2007. Revista on-line do Arquivo Público do Estado de São Paulo
www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/ acessado em 27 de março de 2007.
120
nas áreas rurais, no trabalho da lavoura
234
. Assim como Severina outras crianças e jovens
passavam seus anos formativos longe de seus pais vivendo na companhia de seus tutores.
Uma delas foi Theodora Correa de Amorim, pardinha”, órfã, de 15 anos, que residia na casa
de José Targino Gonçalves Fialho, de 41 anos, farmacêutico dono de uma botica na Rua da
Imperatriz, casado mais que não vivia com sua esposa. Nos autos Theodora, foi identificada
como desempenhando o serviço doméstico, dividindo as atividades de trabalho realizadas
com a escrava Albina e com outro menino também tutorado pelo farmacêutico identificado
como João “molatinho”. A vida das crianças, nesses lares, que deveriam servir de amparo a
elas, através de sua incorporação em uma nova família, foi marcada, algumas vezes, pelo
excesso de trabalho e por violências sexuais,
235
como relatou a escrava Albina, referindo-se à
história de vida de Theodora na casa de seu tutor:
... estando uma noite com Theodora tutelada de seu senhor, na
cozinha este a chamara as dez horas da noite para hir ao quintal
guardar uns craveiros
236
e que chegando Theodora se demorou
seguramente uma hora, e que no dia seguinte indo ella respondente
ao quintal encontrara uma saia branca ensangüentada (...)
respondera Theodora ser della
237
No processo o tutor de Theodora é acusado do defloramento da sua tutelada. A
violência sexual praticada pelo tutor não foi um caso isolado na história das meninas pobres.
Pelo contrário, nos processos encontramos parentes e pais de sangue também como
agressores. Á estas jovens restavam poucas opções: uma delas era a sujeição as agressões,
como fez Theodora por um tempo, ao permitir que o seu tutor, frequentemente, entrasse por
volta de meia noite no quarto que ela dividia com a escrava Albina para molestá-la, conforme
o relato da cativa que disse ter aconselhado a Theodora que não deixasse a porta [do
quarto] aberta, e que ela estava vendo tudo o que se passava que não fallava era por ser
234
Moura, Vera Lúcia Braga de. Pequenos Aprendizes: Assistência à infância desvalida em Pernambuco no
século XIX. Dissertação Mestrado UFPE, Recife, 2003.
235
Azevedo, Gislane Campos. Sebastianas e Geovanis o universo do menor nos processos dos juízes de
órfãos da cidade de São Paulo (1871 1917). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
Mestrado em História, 1995. Ver capítulo sobre a tutela de menores e o envolvimento dos mesmos nos
afazeres domésticos e como vítimas de violência física e sexual praticadas pelos tutores.
236
O craveiro que a escrava Albina faz referência poderia ser a e flor (cravo) utilizada, talvez, para fazer
medicamentos. Ou, seria a palavra craveira que seria um padrão para medir a altura das pessoas o qual poderia
ser usado pelo farmacêutico, pois nesse período boticários, farmacêuticos e parteiras exerciam a prática da
medicina. Ver: Ferreira, Aurélio, Buarque de Holanda. O minidicionário da língua portuguesa. edição ver.
Ampliada, Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2001.
237
IHAGP cx 6, 1874, Recurso crime interposto de Juízo de Direito substituto do Distrito Crimnal desta
Cidade e Comarca do Recife. Recorrente – Jozé Targino Gonçalves Fialho/ Recorrida- A Justiça.
121
escrava.” Outra solução para escapar do assédio era a fuga. Foi isso que fez Theodora, para
por fim à violência cotidiana sofrida na casa do seu “protetor”.
Muitas vezes as crianças ou jovens estavam sob a guarda de pessoas que sequer
desempenhavam legalmente a função de seus tutores, mas que eram tidas como seus pais
espirituais, como padrinhos e madrinhas, integrando assim outro tipo de estrutura familiar.
Alguns padrinhos e madrinhas se declararam nos processos e nos inquéritos policiais como as
pessoas responsáveis pelas menores. Alguns deles não assumiram apenas o dever de cuidar do
bem-estar espiritual dos seus afilhados, mas também compartilharam com os pais deles dos
cuidados materiais dos mesmos. Isso porque existia um consenso social de que os padrinhos
eram as pessoas destinadas a substituir os pais ausentes e/ou falecidos dos afilhados, ou,
porque, simplesmente, os padrinhos tomavam esse compromisso para si, em razão de sua
situação financeira remediada ou boa
238
. Este foi o caso da menor Maria Nazara, a qual vivia
sob a guarda de sua madrinha. A quem coube a queixa de seu rapto e defloramento as
autoridades. O promotor, designado para o caso, ouviu da vítima o seguinte relato:
respondeu que fora tirada da casa de sua madrinha por
Manoel Rodrigues, e que não foi ele quem a deflorou e foi por um
outro rapaz deflorada [...] disse mais que não queria casar porque
seu gênio não pedia que fosse casada, e sim queria viver na vida de
prostituição sem ter pessoa alguma que pudesse por um paradeiro em
seus desatinos, e que não queria voltar para a companhia de sua
madrinha, e sim continuar no lupanar em que está.
239
Esse relato não deve ser interpretado, simplesmente, como uma negação dos valores e
papéis socialmente prestigiados e legitimados por parte de Nazara. É possível que ela tivesse
observado na experiência conjugal de outras mulheres, situações de violência e subordinação,
o que poderia tê-la inspirado o desejo de viver sem ninguém para “por paradeiro em seus
desatinos”, ou seja, ser independente da tutela de um marido. Diante da situação a madrinha,
como parente espiritual e que participava efetivamente dos assuntos da vida de Nazara,
preocupando-se com o futuro e o bem-estar da menina, interveio na defesa da honra da sua
238
Arantes, Antonio Augusto. Pais, padrinhos e o Espírito Santo: um reestudo do compadrio. In: Vários
autores, Colcha de Retalhos: Estudos sobre a família no Brasil. Brasiliense, São Paulo, 1982. & Freire, Jonis.
Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG) (1838-1888). Trabalho
apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-MG Brasil,
setembro 2004.
239
APEJE- Série Promotores de Justiça, vol- 10 (1876). Ofício do promotor público Jo Novaes de Sousa
Carvalho, para o presidente da província João Pedro Carvalho de Moraes. Jaboatão, 15 de fevereiro de 1876,
Fls19/19v.
122
afilhada, procurando casá-la a todo custo com o soldado Manoel Rodrigues. A vontade da
madrinha diretamente oposta a de Nazara indica que, embora as práticas e os relacionamentos
conjugais predominante entre os grupos abastados pretendessem moldar o comportamento dos
grupos populares, nem sempre o conseguiam. Notando-se, neste caso, diferentes formas de se
vivenciar as relações afetivo-amorosas dentro de um mesmo grupo: os dos pobres livres.
A partir deste conflito, ficamos sabendo que a madrinha de Nazara ficou responsável
pela criação de sua afilhada como se fosse a sua mãe. Talvez a genitora da menina tivesse
falecido ou, por qualquer outro motivo, o vínculo entre mãe e filha houvesse sido rompido,
que a menina fazia referência, apenas, ao nome do seu pai. Quem sabe, ao referir-se sempre a
figura paterna quisesse esconder sua condição de filha de mãe solteira? Isso não sabemos.
Mas os laços de apadrinhamento, como observamos anteriormente, não se restringiram apenas
a dimensão religiosa, mas tinham múltiplos significados no campo social e funcionavam
como uma forma de ampliar os laços familiares e de proteção entre as pessoas. Para além do
seu significado católico, o sacramento do batismo formava um vínculo de trocas de favores e
o estabelecimento de alianças e de uma ampla rede de solidariedade não só entre padrinho e
afilhado, mas também entre a família do afilhado e seu padrinho. Nesse tipo de parentesco,
conhecido como compadrio, esperava-se auferir alguns benefícios como a proteção ou um
ganho material, mesmo entre os pobres. Além disso, o critério para a escolha dos padrinhos
baseava-se também na amizade e na confiança, pois, o sacramento do batismo permitia que
esses laços fossem estreitados e ampliados ainda mais.
240
Além dos núcleos primários formados por pais e filhos, podemos observar também, a
presença de avós. Algumas meninas contavam com laços familiares mais extensos,
constituídos pela presença de avós, como podemos observar através do caso ocorrido por
volta das 4 horas da tarde do dia 15 de março de 1872 em Água Preta. Nesse dia, Senhorinha
Maria da Conceição, de 9 anos de idade, depois de botar água em casa, foi arrancar umas
vassouras
241
numa capoeirinha próxima de sua residência, quando então foi surpreendida pela
presença de Manoel Mathias Bizerra, de 40 anos. Nessa ocasião, ela foi atacada e estuprada
240
Brügger, Silvia Maria Jardim. Escolhas de padrinhos e relações de poder: uma análise do compadrio em
São Joãodel Rei (1736-1850). In: Nação e Cidadania no Império: novos horizontes. Organizador José Murilo de
Carvalho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
241
Segundo Luis da Câmara Cascudo, a vassoura já era usada pelos indígenas antes que os portugueses
trouxessem outras de diversos tipos. Várias plantas Malváceas, Sida acuta, Burm, Escrofulariáceas e Rubiáceas
eram chamadas de vassoura ou vassourinha, denunciando o emprego da espécie. O molho de suas folhas que são
ásperas era amarrado a um cipó e utilizado para limpar o chão. Informação acessada no dia 28 de junho de 2007
no site da revista eletrônica Jangada Brasil:
http://www.jangadabrasil.com.br/outubro/pa21000c.htm. Ver:
CASCUDO, Luís da Câmara. Superstições e costumes
123
pelo acusado e “como não podia sofrer calada deu alguns gritos” que chamaram a atenção
de Joaquim Ferreira Salgado e de outras pessoas da vizinhança, terminando o episódio na
prisão de Manoel Mathias. Em meio a tudo isso, Senhorinha procurou a sua mãe (Totonia)
para se proteger, numa manifestação de afetuosidade e confiança. Um dado curioso nesse caso
é a relação estabelecida entre as mulheres envolvidas nesse evento. Os laços familiares entre
senhorinha e Totonia não era de mãe e filha e sim, de neta e avó. O fato de ser criada pela avó
deve ter levado a menina a chamá-la de mãe e o seu companheiro, Joaquim Ferreira Salgado,
de avó
242
. Isso não significa, contudo, que a menina não conhecesse os pais, como podemos
observar pelo quadro abaixo:
QUADRO 2 – FAMÍLIA DE SENHORINHA.
Senhorinha pertencia a uma família que ia além do núcleo primário, sendo formada
por três gerações. Não sabemos se a avó de Senhorinha era da parte materna ou paterna, o que
poderia ter influenciado com qual avó ficou confiada os cuidados da menina. Essa informação
não vem descrita no processo, o que nos impede de um exame mais minucioso, mas
desconfiamos que a avó fosse mãe de Antônio Sabino, por conta das práticas de nomeação em
meio a pessoas com relações de parentesco. Totonia poderia ser um apelido do nome Antônia
e seu nome, na forma masculina, poderia ter sido o escolhido para ser transmitido ao filho.
Emprestar o nome as crianças da família mantinha de forma simbólica os vínculos que uniam
242
IAHGP 1873, Apelação crime do Júri da Vila de Água Preta, Apelante Manoel Mathias Bizerra/ Apelado
– O Juízo.
Marido da avó – Joaquim
Ferreira Salgado
Avó - Totonia
Mãe – Calú
Pai – Antonio Sabino
Senhorinha Maria da
Conceição
124
familiares de gerações diferentes. Entre os escravos era comum que as crianças herdassem os
nomes dos parentes das gerações ascendentes.
243
Concluindo, pelos processos, percebemos que grande parte das famílias que
recorreram ou estiveram sob o crivo dos Juízes, era formada por casais com uniões estáveis,
mas não sabemos se eram de fato sacramentadas pela Igreja Católica. O modelo ideal de
família para a Justiça era o de uma família conjugal legítima que deveria ser sustentado e
gerenciado pelo pai ou por uma figura masculina nos embates na justiça que analisamos.
Havia a predominância dos arranjos familiares que se enquadravam dentro dos padrões de
família nuclear, com pais e a respectiva prole, mas outros arranjos também não faltaram,
revelando as trajetórias das meninas timas de crimes sexuais e variadas formas de como
poderiam ser compostos e vividos as relações familiares entre os segmentos populares.
Mulheres chefes de domicílios e honradez.
Na cidade do Recife estivesse chovendo ou fazendo sol a criada doméstica Rita Maria
de Cássia saía para trabalhar na casa do taverneiro Augusto Moreira da Silva. As criadas eram
responsáveis por fazer as refeições do dia, arrumar a casa ou executar as mais diversas
atividades da faina doméstica cotidiana, como apresentamos no capítulo. Era com esse
trabalho que Rita Maria pagava o aluguel da residência, na qual ela morava com a filha. O
local e o valor do aluguel eram divididos com mais algumas pessoas. Antes de começar a
jornada de trabalho na casa de seu patrão, Rita Maria ainda dava as orientações daquele dia
para sua filha Donata Caetana, dizendo que se cuidasse e tivesse bom comportamento, além
de lhe lembrar as tarefas domésticas a serem realizadas pela menina. Isso tudo quando a
criada não levava a filha consigo para o seu trabalho.
244
A cena que acabamos de narrar, de uma mulher saindo para trabalhar e dirigindo sua
casa e filha, sem parceiro masculino residente, parece tirada de um jornal atual, contudo,
mulheres chefiando famílias não é um fenômeno recente. Estudos demonstram a ocorrência
243
Teixeira, Maria Heloisa. Reprodução de famílias escravas em Mariana (1850 1888). Dissertação de
Mestrado USP, São Paulo, 2001, pg-121.
244
IAHGP 1887, Apelação crime do júri da Cidade do Recife, apelada: A Justiça, apelante: Augusto Moreira
da Silva.
125
de mulheres chefes de famílias para o período colonial e imperial no Brasil.
245
Tomamos
como parâmetro para identificar a chefia feminina de domicílio, as mulheres com trabalho
remunerado, aliado à ausência de um marido ou um parceiro masculino co-residente para
ajudar no sustento da família. As mulheres chefes de domicílio assumiam assim grande parte
da responsabilidade de provedora de sua família.
Uma das estratégias de sobrevivência utilizada por pobres, como mulheres solteiras,
viúvas e alguns casais com filhos, era a de dividir o aluguel de um local de moradia para não
pesar em uma renda diminuta. Também se notou que esse tipo de moradia propiciou o
surgimento de outros arranjos familiares, como a coabitação de mais de um chefe de família
em um domicílio. A família, além de ser um grupo de indivíduos ligados pela hereditariedade
e pelo sangue, se unia também por questões de sobrevivência, de amizade e de
solidariedade.
246
E essa ligação ocorria através da vivencia cotidiana em casa, da alimentação
compartilhada que acabava criando uma intimidade típica de pessoas com vínculos familiares.
Para falarmos deste tipo de família, vamos mais uma vez nos debruçar no caso de Donata,
abordado no 1º capítulo.
O relacionamento entre o pai e a mãe de Donata, deve ter sido passageiro, pois não
encontramos nenhum registro de proximidade do pai com a filha, nem de reconhecimento da
paternidade pelo genitor. Ficamos sabendo da existência do pai da vítima através de uma
testemunha, que o identificou como um boticário de nome Carvalho, cujo estabelecimento
situava-se no Pátio do Terço. Com quem Rita Maria manteve um envolvimento amoroso
efêmero. Tal consideração, de que a mãe de vítima não era casada, embora tivesse um
parceiro, poderia pesar contra a honra da menina e favorecer o seu agressor. Ao longo do
processo, mulheres como Rita Maria forão tidas pelas testemunhas como uma mulher sem
respeito e incapaz de formar uma filha honesta. Essa informação também é significante
porque as mulheres eram reconhecidas como a base da família. Embora os comportamentos
afetivo-sexuais fossem mais flexíveis nos segmentos populares era preferível para eles uniões
legalmente estabelecidas. Mulheres como Rita Maria eram tidas, por algumas testemunhas,
como uma pessoa que o sabia mostrar a sua filha o melhor caminho a ser seguido, por não
ter moral para educar e dar o melhor exemplo de virtude a sua filha que logo deveria se tornar
245
Samara, Eni de Mesquita. Mulheres chefes de família e de domicílio no Brasil: séculos XIX e XX. In: (Org.)
Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura & Vera Lúcia Amaral Ferlini. História Econômica: agricultura, indústria
e populações. São Paulo: Alameda, 2006. Ver também: Teixeira, Paulo Eduardo. Op. Cit.
246
Spinosa, Vanessa. Pela navalha Cotidiano, moradia e intimidade (Belém 1930). Dissertação de Mestrado,
Puc, São Paulo, 2005, Pg-76.
126
esposa e mãe. As circunstâncias que cercaram a relação amorosa experimentada por um casal,
influenciavam na passagem ou não do status de honrado para a criança fruto desse intercurso
sexual.
247
Por isso, a história amorosa de Rita Maria poderia colocar dificuldades para a
transmissão do status de honrada para sua filha.
A história de Donata e de sua mãe desafia-nos a pensar qual a noção de honra
compartilhada pelos pernambucanos em meados do século XIX. O fato de Donata ter sido
identificada como uma menina desonesta por algumas testemunhas, durante o andamento do
processo, não foi determinado somente pelas circunstâncias do seu nascimento, fruto de uma
união ilegítima e passageira, apesar da, condição do nascimento e da cor distinguirem os
indivíduos na hierarquia social. A honra era tida como um atributo herdado das gerações
antepassadas e também era uma característica conquistada no dia-a-dia, a qual precisava ser
demonstrada publicamente, através das normas estabelecidas para manter um estado honrável.
Para o advogado do acusado do defloramento de Donata a história de vida da menina
deflorada, fruto de uma união ilegítima, e que “desde a infância testemunha a corrupção
materna” e mais, ouvia e observava os exemplos “pouco edificantes” das suas companheiras
de residência, tidas por prostitutas, e tudo isso com a anuência de sua mãe. Para o advogado, a
residência onde Donata morava, com pessoas promíscuas, era um ambiente depravado e
responsável por despertar as “naturezas ígneas” da vítima, isto é, seus comportamentos
infames. Argumento este que aumentou as suspeitas em torno da honra de Donata e deu
subsídio a defesa do acusado.
As questões de honra eram públicas e os indivíduos nunca eram sujeitos autônomos,
pois, constituíam-se como membros de famílias, linhagens, bairros ou de algum grupo de
convívio, como organizações de trabalho, de lazer ou de vizinhança. Dentro desta perspectiva
os indivíduos representavam a honra de uma coletividade, a qual poderia ser comprometida
ou preservada pela ação de um de seus componentes. Mas, as ações individuais trazem
conseqüências públicas, claro que, nestas questões de honra existiam diferenças entre as
representações sociais dos gêneros. A honra masculina era entendida como diversa da honra
feminina e isso implicava em expectativa de condutas diferentes para os homens e para as
mulheres na sociedade. Um homem honrado era corajoso, deveria defender a sua honra e a da
sua família e agir com probidade nos negócios e nas atividades de trabalho. Da mulher era
247
Twinam, Ann. The Negotiation of Honor Elites, Sexuality, and Illegitimacy in Eighteenth Century
Spanish America. In: Johnson, Lyman L.; Lipsett-Rivera, Sonya (Org.) The faces of honor: sex, shame and
violence in colonial Latin America. Albuquerque: University of New Mexico press, 1998.
127
esperada a conservação de sua virtude sexual, porque lhe cabia proteger a reputação e a
pureza da sua linhagem familiar.
248
No caso das mulheres, segundo Maria Lúcia Rocha-
Coutinho, o modelo de família burguesa, dominante no século XIX, centrada na educação das
crianças, deixou a cargo das mulheres esta responsabilidade. E a dedicação das mães as suas
filhas determinava o futuro honesto e tranqüilo das mesmas.
249
Mas como poderia Rita Maria criar a sua filha de acordo com os padrões da Igreja e da
Justiça se não era uma mulher casada? Sabemos que esse tipo de união gozava de relativa
aceitação social, pois as uniões estáveis não assentadas em base legal mereciam
respeitabilidade. Esta deferência, contudo, no caso em discussão, foi contestado no
julgamento por uma testemunha que rebateu a idéia da honradez da vítima, justamente por ela
ser filha de mãe solteira e, portanto, ter uma má reputação.
É importante, contudo, ressaltarmos que embora o casamento formal fosse valorizado
e almejado pelas pessoas das camadas populares, as uniões consensuais não deixavam de
merecer respeito em seu meio. Esta aceitação das relações consensuais se dava somente em
caso de uniões duradouras dessas mulheres com um único parceiro. Mas, nos momentos de
conflitos, as uniões consensuais passadas ou presentes eram sempre lembradas e eram
levantadas dúvidas pelos defensores dos acusados como um indício do caráter pouco honrado
das mulheres amasiadas e de suas filhas.
Viver amasiado fazia parte da vida dos pobres. Para a Bahia no século XIX, Kátia
Mattoso encontrou um percentual expressivo destas uniões livres entre pessoas pouco
abastadas, sendo tal ocorrência atribuída aos altos preços cobrados para a realização do ritual
matrimonial, além do fato de não haver muita reprovação da comunidade com relação às
uniões não oficializadas. Segundo Mattoso 62,7% das uniões eram deste tipo na Cidade de
Salvador. Um número, portanto, bastante expressivo
250
Eni Mesquita Samara destaca como uma das características das uniões conjugais
das camadas populares a maior maleabilidade nos relacionamentos, propiciado em grande
parte pela ausência de patrimônio, entre os cônjuges o que facilitaria o termino e o início de
248
Graham, Sandra Lauderdale. Honor among slaves, In: Johnson, Lyman L.; Lipsett-Rivera, Sonya (org.) The
faces of honor: sex, shame and violence in colonial Latin America. Albuquerque: University of New Mexico
Press, 1998.
249
Rocha Coutinho, Maria Lúcia. Tecendo por Trás dos Panos – A Mulher Brasileira nas Relações Familiares.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994
250
Mattoso, Kátia de Queirós. Op. Cit. Pgs- 149-159.
128
seguidas experiências amorosas. Para ela a questão do matrimônio desse segmento da
população, foi assim considerado:
Carinho e amor são aspectos relevantes nos casamentos dos
pobres e libertos. Talvez, por isso, se desfizessem com facilidade essas
uniões. Os padrões de moralidade eram mais flexíveis e havia pouco a
se dividir e oferecer numa vida simples. Enquanto prevalecesse o
estímulo inicial, existiam razões para preservar a união, que, no
plano social, a separação ou um novo concubinato não teriam graves
repercussões.
251
Ainda a propósito das especificidades das uniões conjugais dos segmentos populares,
Sandra Graham concluiu que, no Rio de Janeiro do século XIX, as criadas domésticas, apesar
das dificuldades de organizar a sua vida familiar seguindo os modelos ideais de família
conjugal e de casamento legal, conseguiram, com muito esforço, constituir “um lar” a
semelhança dos seus patrões casados de acordo com as circunstâncias.
Elas também formavam suas famílias: arranjavam amantes
ou maridos, viviam a experiência da gravidez e criavam suas
crianças. Ás vezes podemos entrevê-las como filhas ou irmãs. Embora
desejassem reproduzir os modelos da vida familiar aprovados pela
cultura, a pobreza restringia sua capacidade de fazê-lo ou moderava
suas razões de tentar. Em vez disso, essas mulheres ajustavam os
padrões tradicionais às circunstâncias da pobreza e do serviço
doméstico.
252
A manutenção do domicílio encabeçado por mulheres pobres e amancebadas, além de
ser provido por seus rendimentos, dependeu também de uma rede de colaboração e apoio das
pessoas que com elas compartilhavam a morada, dividiam o aluguel e, lhes socorriam no
cuidado de sua prole, principalmente, quando elas se ausentavam de casa para trabalhar. A
colaboração para a manutenção da família de Rita Maria, por exemplo, teve o apoio também
de seu patrão, o qual cedeu a sua casa para ela e a sua filha residirem. Deste modo, tanto
patrão como a empregada ganharam com a mudança, pois ela implicou em diminuição de
gastos para ambos e no convívio mais intenso entre mãe e filha.
A rede familiar formada por laços de consangüinidade ou de aliança atuava como um
mecanismo de auxílio do sustento de seus membros. A importância da ajuda mútua fazia-se
sentir, com maior peso, ao pensar-se como sobreviveria um idoso sem força para trabalhar, as
251
Samara, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. Op. Cit. , pg-103.
252
Graham, Sandra L. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860 1910). São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, pg- 86.
129
crianças órfãs ou ainda as criadas domésticas, caso ficassem doentes e tivessem de afastar-se
do trabalho, num tempo em que as leis não garantiam ao empregado enfermo o recebimento
de nenhum auxílio do empregado por parte do empregador. Assim eram as estruturas
familiares e as redes de solidariedades tecidas entre estas pessoas pobres que as protegiam de
inúmeros infortúnios.
Os domicílios com arranjos multifamiliares eram ainda mais importantes para aqueles
que não estavam em condições de manter seu lar. Esse foi o caso de uma família de retirantes
cearenses, que veio para o Recife fugindo da seca de 1878, em busca de melhores dias
253
. Ao
chegar a seu destino, pediram ajuda ao senhor Felix José Marques Bacalhão, um empregado
do trem do Caxangá, morador da Rua Corredor do Bispo nº10 que enfatizou a sua condição de
homem honrado e respeitador, por estar casado mais de 14 anos. Esse seu perfil será o
mesmo construído por ele, mais tarde, para livrá-lo da acusação de crime sexual contra a
honra da filha deste casal de retirantes, denunciado no Jornal do Recife, dos dias 12 e 13 de
junho de 1878, com a Epigrafe Nem Barbaria.
254
O articulista do jornal expôs que o acusado Felix Bacalhão teria cedido seu sítio, em
Beberibe, para o grupo de migrantes cearenses, com a intenção de manter um
relacionamento amoroso com uma das filhas de Marcolino, aproveitando-se da difícil situação
dessa família, tanto em termos financeiros, como também a saúde do seu chefe. Segundo se
sabia, Marcolino José Rufino, agricultor de 59 anos de idade, migrou, com sua mulher e mais
três filhas, sendo duas donzelas, Felismina e Francisca, e uma terceira, de nome Maria, casada
mas, abandonada pelo marido, todas vivendo “debaixo de suas vistas”, como depôs
Marcolino na delegacia.
Mas os componentes dessa família não deixarão o Sertão sozinhos. Estavam
acompanhados de outra família, a de Felix José de Mello, também agricultor de 25 anos de
idade, com sua mulher e seu filho. A mesma origem e a migração realizada em conjunto,
devem certamente ter contribuído para que esses cearenses aparentados ou não, adotassem,
como estratégia de sobrevivência, o compartilhamento de moradia para enfrentarem as
253
Júnior, Antonio Otaviano Vieira. O Açoite da Seca: Família e Migração no Ceará (1780-1850). Trabalho
apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto,
Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. Os anos de 1877 até 1879 foi um período de um grande
surto migratório de sertanejos, notadamente de cearenses, por causa da seca. Sobre a migração de cearenses no
período da seca ver: Moura, Denise Aparecida Soares de. Andantes de Novos Rumos: A Vinda de Migrantes
Cearenses para Fazendas de Café Paulistas em 1878. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 17, 34,
p. 119-132, 1997.
254
APEJE RCP, Delegacia de Polícia do Distrito da Capital em 17 de junho de 1878. Essa notícia é
comentada no citado ofício policial.
130
adversidades da vida urbana no Recife. A amizade mantida pelos migrantes não deve ter tido
início na Província de Pernambuco, apontando para vínculos anteriormente estabelecidos,
pois, Felix José de Mello declarou saber que as moças filhas de Marcolino, eram “de bom
procedimento”. Um julgamento que seria bastante valioso para a Justiça, pois para ela a boa
reputação de uma pessoa dependia da avaliação feita pelos integrantes da sua comunidade.
Do mesmo modo que para um casal de pessoas pobres, para as viúvas e solteiras
sustentar uma família não deveria ser também tarefa fácil. No caso de morte do esposo, a
situação financeira de sua família ficava ainda mais difícil. A viuvez poderia dar mais
autonomia àquelas mulheres, que, com a diminuição da renda da sua unidade doméstica
acabaram assumindo o posto de chefes de família, passando, além, de gerenciar seu lar e
também a sustentar sua família.
É bem verdade que as mulheres viúvas pobres poderiam contar também, com o vigor
dos filhos para ajudá-las no sustento da casa. Mas o recrutamento militar sempre esteve a
ameaçar a contribuição financeira desse filho, arrimo de família”. Nos ofícios policiais, não
faltam casos deste tipo, como o do recruta Pedro Alexandrino da Motta, filho único de mulher
viúva. Sua e como muitas outras apresentou documentos para solicitar a sua dispensa.
255
Claro que o argumento da sua viuvez e da dependência do trabalho do filho, poderia ter sido
um subterfúgio utilizado por ela para poupá-lo do recrutamento, mas não como negar que
muitos dos rapazes pobres eram realmente as garantias de sobrevivência de suas mães
desamparadas, seus pais inválidos ou de seus irmãos órfãos, tanto que muitos foram
dispensados do recrutamento, conforme estabelecia a lei.
Geralmente à mãe pobre e viúva caberia a responsabilidade de prover material, e
moralmente seu lar. Em termos morais elas deveriam zelar pela honra dos filhos, educá-los e
orientá-los, inclusive, na escolha dos seus parceiros de casamento. No caso da viúva Maria
Thomé do Espírito Santo, de 32 anos de idade, moradora em Apipucos, sua tarefa foi ainda
maior, pois teve de reparar na Justiça a honra de sua filha Josefa Cecília do Espírito Santo, de
17 para 18 anos de idade, solteira. A jovem havia fugido da sua casa, em Apipucos, a procura
de Pedro Rodrigues Branco, de 35 anos, natural de Alagoas, viúvo e soldado do corpo de
polícia e com quem ela “desejava viver”.
Foi na tentativa de reparar a honra de sua filha que Maria Thomé foi à polícia prestar
uma queixa contra Pedro Rodrigues Branco. Mas, no decorrer do inquérito policial, quando
255
APEJE RCP, Delegacia de Polícia do primeiro Distrito do Termo da Cidade do Recife, 17 de junho de
1867.
131
Cecília foi chamada a depor, revelou a todos que não era mais virgem acerca de 2 anos, ou
seja, antes do seu suposto defloramento denunciado por sua mãe. O seu deflorador havia sido
Laurentino um rapaz que foi seu vizinho a havia pedido em casamento, mas que não chegou a
desposá-la. O acusado Pedro Rodrigues Branco, quando chegou para depor disse que Cecília
não era virgem e que nunca teve a intenção de casar-se com ela. Podemos pensar que em
casos como estes estava selada a sorte da vítima e marcada a previsibilidade de destinos
reservados as moças como Cecília. Poderíamos pensar que os destinos mais comuns para as
moças pobres desvirginadas não amparadas pela justiça seria tornarem-se mães solteiras,
amantes, amásias, prostitutas ou simplesmente desprezadas depois de seduzidas.
256
Mas o
caso em questão teve outro desfecho. Após expor a história do seu passado, Cecília não foi
desprezada pelo seu amado que declarou na delegacia, estar “disposto a casar-se no caso dela
proceder bem em sua companhia”. Outras mulheres pobres devem ter tido o mesmo destino,
de acordo com a opinião de um advogado do período para alguns homens pobres o passado
sexual de sua futura esposa era algo pouco importante:
Todos sabemos que nas ínfimas camadas sociais salvo
algumas excepções, o valor da honra desce a zero, pouco ou nada
influindo para a aquisição de marido que são em geral pouco
escrupulosos não fazendo questão por um erro passado.
257
A associação feita pelo advogado entre pobreza e falta de moralidade deve ser aqui
destacada. Na verdade, o que motivava as famílias pobres das vítimas de crimes sexuais a
enfrentar judicialmente seus agressores era o desejo de preservar talvez seu único bem: a
honra. No universo de pessoas sem posses a honra quando reconhecida publicamente, poderia
ser um capital importante a ser preservado e utilizado para obter respeito, reputação e
prestígio onde viviam
258
. Como bem observou Peter Beattie:
A desonra maculava não a vítima, mas também seus
protetores. Se deixada sem vingança, essa desonra podia tornar as
vítimas e seus pares, empregadores e famílias alvo de boatos
256
Assis, Nancy Rita Sento Sé de. Baianos do Honrado Império do Brasil: Honra, Virtude e Poder no
Recôncavo (1808 – 1889). Niterói, Tese de Doutorado em História, UFF, 2006, Pg- 158.
257
IAHGP 1886, cx 2, Apelação crime vinda d júri de Goiana nesta Província. Apelante Vilardo Justianiano
Carneiro da Cunha/ Apelada – A Justiça.
258
Pitt-Rivers, Julian. A Doença da Honra. In: A Honra: imagem de si ou o dom de si um ideal equívoco.
Organização de Nicole Czechowsky, Porto Alegre: LP&M, 1992.
132
ultrajantes ou formas ainda mais patentes de ridículo público,
minando suas pretensões a respeitabilidade, oportunidade e apoio.
259
Seguindo a mesma linha de raciocínio do referido autor, para Leila Mezan a honra
feminina apresentava-se não como um bem pertencente à mulher, mas era propriedade da
família, além de um bem público que colocava em jogo a preservação dos bons costumes e do
código moral.
260
As mulheres chefes de domicílio, viúvas, solteiras ou abandonadas pelo
companheiro, tinham uma reputação dentro dos seus núcleos familiares e precisavam
preservá-los. Além de buscarem o trabalho como meio de sobrevivência, assumiam os
cuidados da vida dos seus filhos e, por vezes precisavam recorrer ao Poder Judiciário para
resolver questões de honra que afetava a um membro de sua família, e que tinha repercussão
sobre todos os seus integrantes.
Portanto, acreditamos que a presença de mulheres encabeçando suas famílias foi uma
realidade expressiva como podemos observar neste e em outros estudos referentes a distintas
regiões do Brasil.
261
Nas investigações de Donald Ramos sobre Vila Rica em 1804, o autor
encontrou, da mesma forma, domicílios chefiados por mulheres casadas e solteiras,
constatando a presença de mulheres em posição de liderança em suas famílias, tanto na área
rural quanto urbana. Nos centros urbanos, as mulheres desenvolveram atividades as mais
variadas como de costureiras, criadas ou engomadeiras e de vendeiras. Já nas áreas rurais suas
ocupações se restringiram ao trabalho da lavoura de subsistência ao lado dos homens.
262
Famílias pobres, mas Honradas.
A família que tem sua honra atingida através de um dos seus membros precisava
restabelecê-la. Nos casos de mulheres vítimas de crimes sexuais o seu grupo de convívio, isto
é, sua família, recorria às autoridades policial e judicial para provar sua honestidade. Nos
casos de crimes sexuais, uma das finalidades da investida na Justiça, era evitar que fosse
259
Beattie, Peter Martin. Ser homem pobre, livre e honrado: a sodomia e os praças nas Forças Armadas
brasileiras (1860-1930). In: Nova História Militar Brasileira. (Org.) Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik
Kraay. Rio de Janeiro : Ed. FGV, 2004.
260
Algranti, Leila Mezan. Honradas e Devotas: mulheres na colônia condição feminina nos conventos e
recolhimento no sudeste do Brasil, 1750 – 1822. Rio de Janeiro : José Olimpio, 1993, pg-113.
261
Ver referências em Eni de Mesquita Samara. Mulheres chefes de domicílio no Brasil séculos XIX e XX. Op.
Cit.
262
Ramos, Donald. União consensual e a família no século XIX: Minas Gerais, Brasil. Estudos Econômicos,
vol. 20, nº 3, 1990.
133
manchada a reputação dos componentes de sua família, o que poderia ser uma empreitada
arriscada, que algumas famílias não tiveram sua honra reparada ao final do processo. Mas
essa empreitada era levada a sério pelos populares que entendiam a honra como um elemento
de diferenciação social no seu meio. Como pontuou Arlette Farge:
Existe um espaço onde se situam a honra e a reputação pessoais, que
permitem nomear-se uns aos outros, fugir ao vulgo, existir numa
essência e numa posição próprias. Coisas que se pode perder
rapidamente, pois baseiam-se na palavra do outro e em sua vontade
de também se distinguir dos demais.
263
A autora colocou também que a má reputação tem conseqüências econômicas nefastas
para a pessoa difamada, como o descrédito social entre seus pares. Segundo ela, a
reputação acarretaria também dificuldade para se conseguir uma ocupação e sustento,
notadamente, nos casos das mulheres sozinhas com filhos, entorno das quais poderiam
circular opiniões difamatórias. A origem e a trajetória familiar, como observamos, eram
critérios de distinção e de identificação do status de honrado entre indivíduos pertencentes a
qualquer segmento social. Nos anúncios dos jornais, do período estudado, os empregadores
gostavam de ressaltar as características que esperavam das pessoas que deveriam trabalhar
dentro de seus lares. Além das habilidades voltadas para o desempenho das atividades
ocupacionais, exigia-se das pretendentes ao posto bons comportamentos morais
264
. A
demanda por criadas de bons costumes existia, principalmente, se o patrão pretendesse
empregá-la no seu lar, junto aos seus familiares, como se vê no anúncio seguinte:
APEJE, Anúncio, Diário de Pernambuco, 1881.
Da mesma forma que as criadas, outras mulheres tiveram seus procedimentos
amorosos condenados e foram punidas com a perda de seu emprego. Esse foi o caso de uma
263
Farge, Arlette. Famílias. A honra e o sigilo. In: História da vida privada Da Renascença ao Século das
Luzes, Vol. 3, (Org.) Roger Chartier, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
264
SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de vendeiras e
criadas no Recife do século XIX (1840-1870). Dissertação de Mestrado, Recife: UFPE, 2004.
134
professora régia do alto sertão seduzida e deflorada pelo engenheiro Dombre. A professora
devia ministrar as mais variadas disciplinas a meninos e meninas em idade escolar, mas
depois de verificado “o seu estado interessante”
265
ela perdeu seu emprego. Afinal, umas das
asseverações da educação moral oitocentista, apregoadas em manuais e nos jornais femininos,
era o papel do exemplo na formação do caráter das crianças e dos jovens.
266
Uma mulher
solteira e grávida não estaria neste caso.
Sueann Caulfield, em seu trabalho sobre as noções de honra para o período
republicano, afirmou serem os debates jurídicos acerca da honra e das relações entre homens e
mulheres um recurso dos juristas visando “ressaltar seu papel coletivo de poder público.”
267
Nossas conclusões apostam nesta mesma direção para o Império.
Os bacharéis colocavam-se como as pessoas responsáveis por elevar o Brasil, no
século XIX, ao rol das nações civilizadas e tomaram para si a tarefa de refletir e propor um
projeto de organização da sociedade brasileira
268
. Assumiram a postura de guardiões da
Justiça, a Moral, a honra das famílias e o interesse social”
269
, principalmente, das pessoas
pobres tidas aos seus olhos como carecedoras de proteção do Estado.
Os representantes da lei se elegeram como responsáveis para diminuir a destruição da
ordem moral, ameaçadora a formação de famílias honestas, sendo estas tomadas como uma
importante peça para a constituição de um Estado civilizado. Portanto, o judiciário através de
seus advogados e juízes interferiam nos casos de crimes sexuais tomando para si a tarefa de
educar a população pobre com o intuito de garantir a ordem, como bem pontuou, em um caso
de estupro e defloramento, o promotor público João Agostinho Carneiro Bezerra Cavalcante,
utilizando-se das palavras de um autor, do século XIX, Blanche:
.... a honra de uma orphã é tão precioso bem, interessa tão
essencialmente à moral pública, à segurança e à constituição das
265
O estado interessante a que a notícia se refere é a gravidez da professora. APEJE - A Província, Mais uma
victima da libertinagem!, 8 de março de 1876 fl.3
266
Muaze, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do Retrato: família, riqueza e representação social no Brasil
oitocentista (1840 – 1889). Rio de Janeiro/Niterói, UFF, Tese de Doutorado em História, 2006, pg- 265.
267
Caulfield, Sueann. Em Defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Editora da Unicamp/ Cecult, Campinas/ SP, 2000.
268
Sociedade que obedece a uma organização hierárquica dos indivíduos de acordo com as diferenças de classe,
gênero e etnia.
269
IAHGP. Apelação crime do júri da Cidade do Recife, apelada: A Justiça, apelante: Augusto Moreira da Silva.
Neste processo o promotor público querendo demonstrar a improcedência da apelação usa o argumento citado
acima.
135
famílias, que os tribunais devem defendel-a, punindo rigorosamente
os violentadores.
270
Aos olhos dos juízes, promotores e subdelegados os crimes sexuais como os raptos,
estupros e defloramentos que, por vezes, ganhavam uma publicidade nos jornais e nas
conversas cotidianas ameaçavam a formação de famílias honestas. Seus temores e a apreensão
eram que depois de consumado o contato sexual pelo casal, eles não procurassem legitimar a
união e o comportamento desregrado fosse se generalizando e proliferando entre as pessoas
pobres. E esse temor não era sem fundamento, pois, os processos criminais que trabalhamos
indicam que os homens e mulheres pobres viviam em uniões consensuais, contrariando o
projeto civilizador idealizado pelas elites.
Assim, a Justiça, ao julgar os crimes sexuais, tentava disciplinar a constituição de
famílias, estimulando o casamento do réu com sua vítima, como solução reparadora do crime
e suspensiva da pena prevista em lei. Por outro lado, a prática de concessão de dotes pelo
Estado para moças órfãs
271
e vítimas de crimes sexuais da mesma forma fazia parte da política
de incentivo à realização de matrimônios. O recebimento dos dotes, eventualmente, serviria
para estimular que outros parceiros casassem com as meninas vítimas de crimes sexuais.
Mas, apesar dos esforços empreendidos pela Justiça, poucas meninas vítimas de
crimes sexuais casaram com seus “ofensores”, mas isso, não significou que elas
permaneceram solteiras. Elas podem ter se casado ou mantido um tipo diverso de
relacionamento conjugal com outros parceiros. Apesar dessa possibilidade, o discurso dos
profissionais do campo jurídico insistia na necessidade do casamento e na busca de consolidá-
lo, de modo a evitar que meninas pobres fossem “bater na porta de algum alcouce”. Essa foi
a justificativa utilizada pelo recrutado João Batista de Mendonça quando pediu dispensa para
se casar com a órfã Leopoldina Maria de Souza. Ela teria sido uma pobre vítima da fraqueza
270
IAHGP Apelação crime vinda do júri de Goiana nesta Província, Apelada A Justiça/ Apelante Vilardo
Justiniano Carneiro da Cunha.
271
As meninas órfãs que tivessem sido educandas do Colégio das Órfãs quando saíssem da instituição para
contrair matrimônio teriam o direito de receber um dote e um enxoval para iniciar a vida de casada. Nem todas
as órfãs receberam logo o pagamento do legado como determinava a Lei dos dotes de junho de 1855 ou pela
alterada de maio de 1864. Esse foi o episódio ocorrido entre o casal Carlos Alberto Ferraris e Maria Clementina
de Souza Pimentel ex educanda do Colégio das Órfãs que reclamava o direito ao dote de 400$ primeiro a Santa
Casa e depois à Assembléia Provincial. Gerência de Arquivo e Preservação de Patrimônio Histórico do
Legislativo – GAPPHL, Petição Cx 137P, 24 de março de 1873, autor: Carlos Alberto Ferraris.
136
do rapaz recrutado, que caso fosse mantido preso e mandado para longe Leopoldina comeria
“o pão amargo do seu crime” além de, dar mal exemplo a moral pública.
272
APEJE - Anúncio do Jornal A Província, 20 de setembro de 1876, fl.3.
O discurso de promotores e juízes, sobre a honra das mulheres jovens e aqueles
veiculados nos livros Jurídicos, foram uma constante durante o século XIX. Alguns autores,
moralistas ou juristas, eram sempre citados nos tribunais em socorro das vítimas, como o
marquês de Maricá, a quem se atribuía a máxima seguinte: “tres coisas não se recuperão
quando perdidas: credito, vergonha e virgindade” (grifo no original).
273
Essas e outras
referências, algumas destas até em francês e latim, estavam presentes nas falas dos
magistrados, cujo fim era introjetar comportamentos e valores morais nas pessoas
pertencentes aos segmentos populares. Assim, estes profissionais tentaram orientar e controlar
as relações afetivas das pessoas pobres os quais deveriam seguir os modelos e valores
272
APEJE – Petições Recrutamento – Recrutamento de João Batista de Mendonça. Peticionário o próprio.
Recife, 29 de novembro de 1873, Fls. 232/234.
273
IAHGP 1886, cx 2, Apelação crime vinda d júri de Goiana nesta Província. Apelante Vilardo Justianiano
Carneiro da Cunha/ Apelada – A Justiça.
137
prescritos pelas camadas abastadas.
274
Pois como disse Chalhoub “as lições de amor e sexo,
paternidade e maternidade também são transmitidas por meio do aparato jurídico e da
imprensa.”
275
Nem sempre, entretanto, obtiveram sucesso nesta tarefa.
Em suma, os crimes sexuais, os comportamentos afetivo-sexuais desregrados, as
uniões consensuais e os filhos ilegítimos eram realidades que os profissionais do campo
jurídico procuravam controlar e mesmo acabar. Para eles os defloradores, estupradores e
raptores representavam perigo à ordem pública, pois levavam para os ambientes de trabalho,
para o lar e às ruas condutas perniciosas que comprometiam a formação de famílias. E a
desonra do lar era entendida como a desonra de algo muito maior: a da Nação.
Neste sentido foi que o Jornal o Rebate, de novembro de 1884, alertava para o perigo
representado pelos defloradores, à sociedade:
Ouça o publico a historia que vamos contar e horrorise-se.
Um individuo de crápula, estabelecido com loja de ouvires a
rua do Imperador, junto da typografia do Jornal do Recife, chamado
Machado, tendo lançado sua própria mulher aos ponta-pés para fora
de casa, vivendo essa pobre e infeliz sem abrigo de espécie alguma,
entendeu o monstro Machado, que devia cahir no mundo para
deflorador e prostituir a inexperientes crianças, que levadas pela
fome entregam-se a esse bandido e larapio de corpo e alma, e mais
tarde choram de suas desgraças.
E o assassino sem consciência vai fazendo as victimas, e toca
a se gabar de actos infames, e que para elle é uma cousa grandiosa.
Tendo Machado raptado uma menor da companhia de seus
pais, e depois de illudir a infeliz creança com uns brincos de pouco
valor e uma caçoleta de cobre deflorou-a, vivendo amasiado com ella
na rua das Cruzes, e agora devido ao nosso clamor, mudou-se para o
Recife, alugando uma casa no Becco do capim onde vive amasiado
com a referida menor.
No entretanto Machado veio das brenhas, furtar bastante, e o
seu dinheiro já dá para comprar a Justiça e magistrados d’essa terra.
Miséria!....
E o povo pernambucano tudo isso tolera, e consente que essa
pústula que veio para aqui Deus sabe como, roube a honra de suas
patricias distribuindo dinheiro com a polícia, afim de não ser
perseguido nos seus crimes.
Cada qual se acaute-le
Machado está em sua faina trabalhosa de prostituir, e diz que
tem agentes espalhados por toda essa cidade, para agenciar creanças
para semelhante fim.
274
Cancela, Cristina Donza. Adoráveis e Dissimuladas: As relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. Campinas/São Paulo, Unicamp, Dissertação de
Mestrado em Antropologia Social, 1997.
275
Chalhoub, Sidney. Op. Cit.
138
Cuidado com o assassino da honra alheia.
Cuidado com o monstro social.
276
A partir dessa noção de malefício causado pelos homens que não respeitavam a Lei, o
aparelho jurídico definia-se como espaço para expansão e monopólio legítimo de controle da
criminalidade e da violência, que se constituía como uma arma capaz de ditar uma norma de
comportamento sexual e amoroso projetada e definida para os homens pobres e notadamente
para as mulheres pobres, da Província de Pernambuco no século XIX.
Esta preocupação aumentou mais ainda à medida que o escravismo entrava em crise e
fazia-se necessário a construção de uma nova ética do trabalho no país. Nesse momento
destacou-se a preocupação dos empregadores em redefinir a noção de trabalho e a conduta
dos trabalhadores livres, visando introjetar-lhes valores como a disciplina do trabalho fixo e
sistemático.
277
Dentro deste contexto, “o Estado, além de pai dos povos, apresentava-se como
um corpo natural, uma entidade orgânica de que a família era, simultaneamente, apêndice e
útero.”
278
Não podendo assim haver diferença entre a família e o Estado pois, ambos faziam
parte de uma mesma unidade. O progresso da Pátria estava, portanto, em relação direta com o
aperfeiçoamento físico e moral dos indivíduos exigindo, por conseguinte, um novo código de
comportamento.
Deste modo, a ordem médica higiênica unida ao Judiciário produziu papéis sociais
voltados para disciplinar os comportamentos dos indivíduos e colocá-los a disposição do
Estado. Naquele momento, meados do século XIX, difundiram-se esteriótipos de: mulher =
mãe, homem = pai, pobre = perigoso e bom cidadão = trabalhador.
Foi com base nestas representações divulgadas pelos homens da lei, que meninas
defloradas e seus familiares procuraram a Justiça, com o intuito de proteger a honra
desacatada, mas, como vimos, não era somente a honra sexual ligada a “um mau passo dado”
que suas famílias estavam procurando ser portadoras, contudo reivindicavam uma honra que
permitisse ás meninas ser usada como instrumento para distingui-las de uma massa de pessoas
sem posses, a fim de arrumarem e permanecerem no trabalho, pensaram também em obter
ganhos financeiros ou ficarem ao lado do homem com quem “desejassem viver”.
276
APEJE – O Rebate, Mais um infame defloramento, novembro, 1884, fl.1.
277
Engel, Magali. Meretrizes e Doutores O Saber Médico e a Prostituição na Cidade do Rio de Janeiro.
(1845-1890), 1985.
278
Costa, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 148.
139
Considerações Finais:
Tomando por base as idéias discutidas nos capítulos anteriores, vimos que o
argumento, presente em alguns estudos
279
, e apoiado em um modelo teórico apriorístico,
refere-se ao Poder Judiciário como um instrumento de dominação e espaço inacessível para os
segmentos populares. Tal assertiva nos parece, em parte, equivocada. Notadamente, quando
observamos ao longo do nosso trabalho, que os pobres livres e, mais especificamente, as
mulheres pobres livres levaram ao tribunal da Relação ou as autoridades policiais queixas
contra violências sexuais sofridas, procurando fazer valer os direitos que consideravam
possuir. Pareceu-nos necessário fazer uma discussão sobre o acesso e os usos da Justiça por
parte dos populares.
Não negamos que o Poder Judiciário servisse para reproduzir hierarquias sociais, mas,
ainda assim, na atuação de juízes e promotores transparecia a existência de um espaço aberto
às negociações. Os resultados não eram pré-determinados, mas sim poderiam ser previsíveis e
manejáveis, a fim de, por vezes, reforçarem uma hierarquia social. Em nosso trabalho
vislumbramos o Poder Judiciário não somente como instrumento de dominação e as jovens
ofendidas, de seu lado, não eram tão-somente vítimas. Essas jovens pobres e seus familiares
eram capazes de agir por iniciativa própria e refletiram sobre o que acontecia a sua volta,
observando que recorrer à justiça poderia ser vantajoso, pois, algumas tiveram as suas
expectativas realizadas seja através da punição do acusado, da realização do casamento ou da
concessão de um dote. Observamos também ao descrever os trâmites e os meandros dos
processos de crimes sexuais, que as meninas e seus familiares conseguiram operar
formalidades jurídicas e agenciar as representações sociais femininas de fragilidade e
dependência, as quais nem sempre correspondiam com sua vivência cotidiana.
Ao buscar caracterizar as mulheres pobres livres da Província de Pernambuco na
segunda metade do século XIX, estivemos mapeando os espaços de sociabilidades das
meninas vítimas de crimes sexuais e conhecemos um pouco do mundo do trabalho, do lazer,
das noções de honra, dos relacionamentos amorosos e familiares das jovens pobres. Foi
possível também, conhecer um pouco mais da História de Pernambuco da segunda metade
dos oitocentos. Mostraram-se os locais de moradia e diversão, como as vendas e os sambas,
279
Entre estes estudos destacamos o de Andrei Koerner. Judiciário e Cidadania na Constituição da República
Brasileira. Editora HUCITEC, USP, São Paulo, 1998
140
espaços de convívio de pobres livres e escravos. Esses ajuntamentos para se conversar ao
redor de uma mesa ou ao lado de um balcão, depois de cumpridos o expediente de trabalho,
foram pontos de encontros de homens e mulheres pobres.
Podemos traçar o seguinte perfil, para um número significativo de jovens que tiveram
uma parte de suas histórias de vida registradas em algum processo de crime sexual, entre as
décadas de 1860 e 1880: elas tinham, em sua maioria, idade entre 14 e 17 anos, eram brancas
e pardas, caminhavam cotidianamente nas ruas, comprando objetos e gêneros alimentícios nas
vendas, lavando roupa ou buscando água nos chafarizes, pois, possuíam ocupações ligadas ao
serviço doméstico e foram vítimas de crimes de estupro, rapto ou defloramento.
A vida dessas mulheres pobres foi marcada desde muito cedo pelo trabalho, embora
não se reduzisse apenas à lide. Por meio dos processos de crimes sexuais enxergamos como
algumas meninas das camadas populares tinham ainda que enfrentar as barreiras impostas
pela cor da pele que dificultava, mas, não impedia o conquista do status de honrada. E
também observamos não os sujeitos diretamente envolvidos nas querelas, como também,
vizinhos e parentes, os quais moravam próximos ou na mesma casa e que pela proximidade se
tornavam referências importantes para atestar a boa reputação das meninas.
Os arranjos familiares descritos mostram a complexidade das experiências familiares
entre os populares. Alguns desses arranjos não estavam acomodados nos padrões de
conjugalidade dominantes, mas, as fontes dão indícios de que as uniões consensuais
apresentavam-se, muitas vezes, tão estáveis e, por isso mesmo considerada respeitáveis no
meio em que viviam quanto àquelas oficializadas pela igreja.
Na análise dos confrontos na justiça observamos que nem sempre o fato da menina ser
virgem era determinante para o estabelecimento da união matrimonial. Apesar do casamento
ser valorizado por todos os segmentos sociais, como argumenta Cristina Cancela, o que
prevaleceria seria a imagem de moça honesta apresentada pela menina no meio que ela vivia e
circulava
280
. Assim, o fato das meninas terem tido ou não relações sexuais não determinava
sua desonra; outras virtudes compunham a representação da moça honesta como, o
comportamento recatado em lugares públicos e em casa, a boa fama das suas amizades, a cor
da sua pele, os lugares que freqüentavam, além de gozar da boa opinião pública a seu respeito
e de sua família. A honra era um importante elemento de diferenciação social no universo dos
despossuídos. Em seu estudo, Denise Moura mostra que as camadas populares
280
Cancela, Cristina Donza, Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX, Dissertação Mestrado, Campinas, SP, 1997, pg-157.
141
compartilhavam referenciais hierárquicos e ser honrado era um elemento de distinção no meio
em que viviam
281
. Por isso, os conflitos presentes nos processos de crimes sexuais, levados
aos tribunais por essas jovens, constituem-se em um momento ímpar para a análise sobre a
constituição de mulheres e famílias honradas. Nesse momento, os familiares procuravam
realizar a passagem do status de honrado(a) entre os membros de uma família, ou seja, do seu
proprietário para seu herdeiro, baseadas em construções argumentativas, às vezes bem
sucedidas, às vezes não, na tentativa de assegurar a posse de um bem ou, como diria
Geovanni Levi, de uma herança imaterial. As conclusões de nossa pesquisa apontam nesta
mesma direção.
282
O fato de um maior número de processos de crimes sexuais está concentrado entre as
décadas de 1860 e 1880, em comparação com a metade do século XIX, nos faz pensar na
constituição de um processo civilizador, o qual estava presente na fala dos articulistas dos
periódicos pernambucanos, dos homens da lei e de parte dos populares, e que se constituía na
preocupação com a moralidade pública. Nas últimas décadas do Império, delineava-se a
construção e a divulgação de comportamentos higiênicos e disciplinados, incluindo o
comportamento sexual e amoroso entre homens e mulheres da Província de Pernambuco em
fins dos oitocentos.
Por fim, as experiências de Donata, Theodora, Maria Francisca e tantas outras jovens
pobres foram narradas com a intenção de observar mais de perto seu cotidiano e conhecer
seus amigos, suas famílias e o modo como viviam. Essa análise mais “micro” foi privilegiada
em virtude das fontes utilizadas, os processos crimes, onde pudemos perceber que a condição
de honrada encerrava percepções e experiências sociais variadas. As trajetórias dessas jovens
são reveladoras dos embates desenvolvidos por uma parcela da população pobre, mas que
ativamente utilizou a justiça e procurou para si o status de honrada. Com isso, as jovens das
camadas populares procuraram criar fraturas na ordem patriarcal estabelecida, criando novos
significados para seus comportamentos, que apesar de freqüentarem a rua, as tavernas, os
sambas e não viverem, muitas vezes, em uma família nuclear, requerem para si a sua honra e
com isso buscam uma melhor posição na hierarquia social existente nos últimos anos do
Império.
281
Moura, Denise A. Soares de. Sociedade Movediça Economia, cultura e relações sociais em São Paulo.
São Paulo: Editora da UNESP, 2005, pg- 298.
282
Levi, Giovanni. A Herança Imaterial – Trajetória de um exorcista do Piemonte do século XVII. Rio de
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142
Fontes:
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Joaquim José Ribeiro.
1864 Apelação crime do júri da Vila de Garanhuns Província de PE Província de
Pernambuco, Apte- João Cavalcante de Albuquerque Apda- a justiça pública.
1864 Jerônimo Inácio dos Santos Alferes do Batalhão de infantaria 2 acusação de
defloramento.
1864 Apelação crime do júri de Àgua Preta Comarca de Palmares, Apte- o promotor,
Apdo- José Marques de Lima.
1868 Apelação crime do juízo de Bonito, Apte- João Thomaz da Silva, Apda- a
justiça.
1871 Tribunal do Júri Processo crime a requerimento do Doutor Promotor Público
da Comarca José Antonio da Silva. Autora: A justiça/ Réo: Antonio Tenório
Cavalcanti de Albuquerque.
1873 Apelação crime do Júri da Vila de Água Preta, Apelante Manoel Mathias
Bizerra/ Apelado – O Juízo
1873 Apelação crime vinda do júri da Vila de Barreiros, Apelante- O Promotor
Público Apelado- João Calisto de Mello.
1873 Apelação crime do júri de Barreiros, Apte Antônio Felix da Silva, Apda a
justiça.
1874 Recurso crime interposto de Juízo de Direito substituto do Distrito Crimnal
desta Cidade e Comarca do Recife. Recorrente – Jozé Targino Gonçalves Fialho/
Recorrida- A Justiça.
1875 Apelação crime do Júri de Itambé apelante- Policarpo da Silva Araújo / apelada
- a justiça.
1876 Apelação crime do júri. Itambé, A Justiça/ Isabel Maria da Conceição.
143
1876 Apelação crime do júri desta Cidade e Comarca do Recife. Apelante- Manoel
Joaquim do Espírito Santo/ Apelado- O Juízo. (AJ)
1879 Habeas corpus de Cupertino Martins de Araújo (Recife).
1879 Recurso de habeas corpus vindo do juízo de direito do Cabo, Recorrente- o juízo
Recorrido- Manoel Antônio da Silva.
1879 Recurso crime de habeas corpus vindo do juízo de direito de Goiana, Recorrente-
o juízo, Recorrido- Manoel Antônio do Nascimento.
1880 Segundo cartório do crime Recife Queixa, Apelada A Justiça / Réu- João
Baptista de Carvalho.
1880 cartório do crime Recife / Queixa Juízo de direito do distrito criminal
Recife, Dona A- Anna Alexandrina Bandeira de Mello, R- Antônio Pereira de
Magalhães.
1880 Apelação crime do júri da Vila de Pesqueira Comarca de Cimbres, Apte –
Antônio Francisco dos Santos, Apda – a justiça.
1880 Apelação crime do júri da Comarca de Jaboatão, Apte Manoel Idalino do
Nascimento, Apda – a justiça.
1883 2º Cartório do Crime/ Denúncia AA- Justiça RR- Manoel do Valle.
1883 Apelação crime do juízo de direito de Jaboatão desta Província, digo crime do
júri da comarca de Jaboatão desta Província Apelante Isaias Francisco Bento, Isaias
Bento das Candeias Apelada – a justiça.
1883 Denúncia Juízo Substituto do Distrito, autora promotor público/ réu
Antonio Pereira de Souza.
1884 Apelação crime do júri da Comarca de Buíque, Apte – o juiz de direito, Apda – a
justiça, réu condenado a gáles perpetuas Américo Pereira de Andrade conhecido por
mata-mulheres.
1885 Apelação crime vinda do júri da Cidade do Recife, Apte Capitão Affonso
Henriques Rodrigues da Silva, Apdo – Manoel Joaquim de Castro Madeira.
1885 Comarca Especial de Igarassú Tribunal do Júri. Autora- A Justiça / Réus
João Pedro da Costa Barrozo e João Moyses, escravo de Luis Correia de Queiros.
1885 2º cartório do crime Recife/ denúncia, AA- Justiça, R- José, menor de 10 anos.
1886 Apelação crime do júri desta Cidade do Recife, Apte Antônio José Barbosa de
Lima, Apda – a justiça.
144
1886 Apelação crime do júri da Comarca de Paudalho, Apte Francisco Antônio
Gomes / conhecido por Chico Grande, Apda – a justiça.
1886 Apelação crime do júri da Cidade do Recife, apelada: A Justiça, apelante:
Augusto Moreira da Silva.
1886 Apelação crime vinda d júri de Goiana nesta Província. Apelante Vilardo
Justianiano Carneiro da Cunha/ Apelada – A Justiça.
1887 Recurso crime de hábeas corpus do Juízo de Direito da Comarca de Jaboatão,
Recorrente – O Doutor Juiz de Direito / Recorrido – Claudino Eloy do Nascimento.
1887 Apelação crime do Júri de Goiana, Apte o juiz de direito, Apdo Manoel
Damásio.
1887 Apelação crime do júri da Cidade do Recife, Apte o juiz de direito, Apda
Sebastião Ferreira Lima.
1888 Apelação crime do júri da Comarca de Timbaúba. Apelante José Tomé
Ferreira Apelada- A Justiça.
(APEJE)
Petições recrutamento (1848-1894)
Série Repartição Central de Polícia (1860-1888)
1- Ofícios à Presidência
2- Delegacia de Polícia do 1º e 2° Distrito da Capital.
Série Promotores de Justiça (1860- 1888)
Documentos impressos:
(APEJE)
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A Província
Diário de Pernambuco
O Tempo
O Desespero
Jornal das moças
América Ilustrada
O Rebate
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Anexo:
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