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O soldado de Mangado se instalou de costas no beliche, encostou a arma ao pescoço,
disse Boa noite, e a metade inferior da cara desapareceu num estrondo horrível, o
queixo, a boca, o nariz, a orelha esquerda, pedaços de cartilagens e de ossos e de
sangue cravaram-se no zinco do tecto tal as pedras se incrustam nos anéis, e agonizou
quatro horas no posto de socorros, estrebuchando apesar das sucessivas injecções de
morfina, a borbulhar um líquido pegajoso pelo buraco esbeiçado da garganta.
O tipo sem rosto agoniza numa agitação incontrolável, amarrado à marquesa de ferro
que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões, gemendo pela lepra
de ferrugem das juntas. Ventas curiosas espreitam das janelas, um pequeno cacho
acumula-se à porta para assistir, fascinado e em pânico, ao sangue e à saliva que
borbulham pela garganta inexistente, aos sons indefiníveis que o que sobeja de nariz
emite, aos olhos que a pólvora rebentou como os ovos cozidos que explodissem. As
ampolas de morfina sucessivamente injectadas no deltóide parecem esporar cada vez
mais o corpo amarrado que se rebola e torce, e o petromax multiplica nas paredes em
sombras que confluem, se sobrepõem e se afastam, formando uma dança frenética de
manchas na geometria suja do estuque. Apetece-me abrir a porta de golpe, abandoná-
lo, sair dali, tropeçar ao acaso, cá fora, nos cães do quartel e nos miúdos espantados
que se nos enrodilham nas pernas, respirar o algodão húmido do ar de África, sentar-
me nos degraus de uma velha casa de colono, de mãos no queixo, vazio de indignação,
de remorso, de piedade, a lembrar as íris cor-de-capim da minha filha nos retratos que
de Lisboa, pelo correio, me mandam, e imaginar-me a vigiar-lhe o sono, dobrado para
os panos do seu berço num desvelo comovido. Queria estar a treze mil quilómetros dali,
a vigiar o sono da minha filha nos panos do seu berço, queria não ter nascido para
assistir àquilo, à idiota e colossal inutilidade daquilo, queria achar-me em Paris a fazer
revoluções no café, ou a doutorar-me em Londres e a falar do meu país com a ironia
horrivelmente provinciana do Eça, falar na choldra do meu país para amigos ingleses,
franceses, suíços, portugueses, que não tinham experimentado no sangue o vivo e
pungente medo de morrer, que nunca viram cadáveres destroçados por minas ou por
balas. O capitão de óculos moles repetia na minha cabeça A revolução faz-se por
dentro, e eu olhava o soldado sem cara a reprimir os vómitos que me cresciam na
barriga, e apetecia-me estudar Economia, ou Sociologia, ou a puta que o pariu em
Vincennes, aguardar tranquilamente, desdenhando a minha terra, que os assassinados a
libertassem, que os chacinados de Angola expulsassem a escória cobarde que
escravizava a minha terra, e regressar, então, competente, grave, sábio, sócio-
democrata, sardónico, transportando na mala dos livros a esperteza fácil da última
verdade de papel.
O sujeito imobilizou-se por fim num estremeção derradeiro, o que restava da garganta
cessou o seu borbulhar ansioso, o cabo do petromax deixou pender o braço e as
sombras estenderam-se no soalho numa vergonha de cachorros, subitamente imóveis.
Ficámos muito tempo a contemplar o cadáver agora em sossego, as mãos molemente
cavadas sobre as coxas, as botas que se me afiguravam dilatadas de um recheio de
palha, quietas na placa de ferro branco, mal pintada, da marquesa. Os que espreitavam
pela janela sumiram-se dos caixilhos na direção da caserna, o pequeno grupo apinhado
dissolveu-se devagar num murmúrio indistinto, e eu, sabe como é, dava o cu para estar
longe dali, longe do gajo morto que mudamente me acusava, longe das ampolas de
morfina que se amontoavam, vazias, no balde de pensos, no meio da gaze, do algodão,
das compressas.
Os soldados julgavam-me capaz de os acompanhar e de lutar por eles, de me unir ao
seu ingênuo ódio contra os senhores de Lisboa que disparavam sobre nós as balas
envenenadas dos seus discursos patrióticos, e assistiram enojados à minha passividade
imóvel, aos meus braços pendentes, à minha ausência de combatividade e de coragem, à
minha pobre conformação de prisioneiro. Os soldados acreditavam em mim, viam-me
trabalhar na enfermaria os seus corpos esquartejados pelas minas, viam-me à beira dos
beliches se tiritavam de paludismo nos lençóis defeitos, de modo que, sabe como é, me