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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Jonathan Santos Fontenelle
O NARRADOR ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Rio de Janeiro
2008
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Jonathan Santos Fontenelle
O NARRADOR ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Literatura
Portuguesa.
Orientador: Prof. Marcus Alexandre Motta
Rio de Janeiro
2008
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
A636 Fontenelle, Jonathan Santos.
O narrador António Lobo Antunes / Jonathan Santos Fontenelle.
– 2008.
86 f.
Orientador: Marcus Alexandre Motta.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. Antunes, Antônio Lobo, 1942- . Memória de elefante Teses.
2. Antunes, Antônio Lobo, 1942- . Os cus de Judas – Teses. 3.
Antunes, Antônio Lobo, 1942- . Conhecimentos do inferno – Teses.
I. Motta, Marcus Alexandre. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 869.0-95
Jonathan Santos Fontenelle
O NARRADOR ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Literatura
Portuguesa.
Aprovado em 31/03/2008
Banca Examinadora:
____________________________________
Prof. Marcus Alexandre Motta (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
__________________________________
Profª Ana Cristina de Rezende Chiara
Instituto de Letras da UERJ
___________________________________
Prof. Sérgio Bugalho
Instituto de Letras da UFF
Rio de Janeiro
2008
AGRADECIMENTOS
É preciso agradecer a muitos, pois creio que sem toda ajuda que recebi esta
dissertação não passaria de um sonho. Agradeço, em primeiro lugar, a Deus por não
acreditar que a soma de eventos que me trouxeram até aqui tenha sido mero acaso e
também por ter-me dado forças para superar todos os problemas enfrentados.
Agradeço à minha família por todo amor e por serem sempre minha sustentação:
minha mãe Otacília, meu pai Nelinho e meus queridos irmãos Jefferson e Nicolas.
Preciso agradecer também a professores que me ensinaram, ainda na graduação,
a dar os primeiros passos no difícil caminho do estudo da Literatura: professora Maria
do Amparo Maleval, professora Maria Helena Sansão, nosso saudoso professor José
Carlos Barcellos e, com vital importância pelo carinho e por sempre acreditar em mim,
a professora Ana Cristina de Rezende Chiara.
No percurso deste mestrado, ao meu orientador Marcus Motta, pelo olhar
perspicaz com que orientou meu trabalho, por sua defesa e pela paciência comigo. E
também aos membros da banca que, gentilmente, aceitaram avaliar meu trabalho:
professor Sérgio Bugalho e professora Ana Cristina de Rezende Chiara.
E, em meio a todo processo, agradeço a pessoas muito especiais que me
ajudaram muito e de muitos modos diferentes: Fabiana Farias, Rogério de Medeiros
Francisco, Rosalyn Lannes de Freitas, Thatiana Carvalho, Nilton Carvalho, Deivison
Cunha, José Ricardo Martins Machado, Alcilene do Nascimento, Isabel Cristina de
Oliveira, Luciana Barbosa, Andreza Nora, Nina Barbieri, Ivi Barile, Luís Cláudio
Sezures Vasquez, Jefferson Eduardo Bessa, Daniela Lima de Mesquita, Aretuza
Pacheco, Michele Coelho, Simone Serafim e Marília Fernandes.
Sou uma pessoa psicótica e tenho profundas perturbações.
António Lobo Antunes
RESUMO
FONTENELLE, Jonathan Santos. O Narrador António Lobo Antunes. 86 f. Dissertação
(Mestrado em Literatura Portuguesa.) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
A presente dissertação trata dos romances Memória de Elefante, Os Cus de
Judas e Conhecimento do Inferno do escritor português António Lobo Antunes. Para tal,
a perspectiva assumida foi tentar entender as obras por parâmetros detectáveis nas
mesmas e em outros meios pelos quais o autor dirige-se ao público como crônicas e
entrevistas. Essa perspectiva permitiu destacar um aspecto essencial da obra do autor que
a crítica em geral chama de “uma certa tendência à autobiografia”. Esse caráter
autobiográfico não só é afirmado por Lobo Antunes como ele propõe sua expansão a
todos os livros; só não se sabe se exclusivamente os literários ou não. A partir dessa
expansão e de experimentações que algumas falas permitem é possível dissociar a idéia
do autor estudado da idéia de autobiografia tradicionalmente demarcada que é estudada
por Philippe Lejeune em Le Pacte Autobiographique. Além do que se torna aceitável
dizer que, para o escritor português, autobiografia seria uma escrita que provasse a
existência de um narrador. Baseando-se na hipótese de que Lobo Antunes deseja, de um
modo geral, garantir sua existência e, desse modo, marcar a presença do humano no
planeta, a dissertação buscou estabelecer uma outra autobiografia possível deste
narrador a fim de destacá-lo e destacar o humano que ele expõe.
Palavras-chave: Romance. Autobiografia. Narrador
ABSTRACT
This dissertation deals with the novels Memória de Elefante, Os Cus de Judas
and Conhecimento do Inferno from the portuguese writer António Lobo Antunes. To that
end, the view taken was to try to understand the work by parameters detectables in the
same and others ways by which the author turns to the public like chronicles and
interviews. That prospect highlights an essential aspect in the work of the author, that
criticism in general calls "a certain tendency toward autobiography." This
autobiographical character is not only claimed by Lobo Antunes as he proposes to expand
to all books, but it is not known whether only the literature, or not. From this expansion
and experimentation that allowed by some discourses is possible to separate the idea of an
author studied from the idea of autobiography traditionally demarcated this subject is
studied by Philippe Lejeune in Le pacte Autobiographique. In addition to what is
acceptable to say, for the portuguese writer, autobiography is a writing that would prove
the existence of a narrator. Based on the hypothesis that Lobo Antunes want, in general,
ensure their existence and thus mark the presence of humans on the planet, the dissertation
sought to create another possible autobiography of this narrator to highlight it and the
humans he explains.
Keywords: Novel. Autobiography. Narrator
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................9
1 O NARRADOR ANTÓNIO LOBO ANTUNES.......................................................33
1.1 Natal..............................................................................................................................33
1.2 Peregrinação.................................................................................................................48
1.3 Fuga...............................................................................................................................62
2 CONCLUSÃO..............................................................................................................75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................83
9
INTRODUÇÃO
Não. Não devo dizer coisa
1
alguma. Devo apenas silenciar-me diante da obra de Lobo
Antunes. Digo isso por escutá-lo: “Os leitores são umas putas, amam-nos e depois deixam-nos.”
2
Tomando isso como parâmetro, penso que se quero ser um leitor que ele aceite, um leitor de
Lobo Antunes, não posso deixá-lo também. Essa atitude pode significar, a meu ver, ler todos os
romances do autor ou ler somente esses romances ou até, numa perspectiva da apreensão do
narrado, não buscar explicações para eles em “outros”.
Essa última possibilidade estaria em sintonia com algumas declarações do autor sobre
esses “outros”: “Numa coisa estou de acordo com o Borges, a função do crítico não é dizer ‘isto é
bestial’, mas ajudar a pessoa a ler a porcaria do livro.” (Expresso, 07 de novembro de 1992)
3
Nessa declaração, Lobo Antunes, a meu ver, pretende desestabilizar a figura da crítica ao
dizer que sua função não é julgar, mas executar uma outra função que, de certo modo, é
subordinada. Digo isso porque, enquanto encarregada de sua função de avaliar, a crítica,
teoricamente, não se submeteria a qualquer tipo de interesse; porém, se atuar como quer Lobo
Antunes, servirá apenas de elo entre escritor e leitor.
O ataque à crítica, porém, não pára por aí; já que até sua capacidade de leitura é
questionada:
1
Utilizo o termo “coisa” nesta escrita em sua acepção mais simples. Segundo o dicionário Houaiss “coisa” é “tudo aquilo quanto
existe ou possa existir, de natureza corpórea ou incorpórea”. (2001, p. 756)
2
Não me foi possível ter em mãos todas as fontes aqui citadas, o meio pelo qual tomei conhecimentos de algumas foi através de
sites na rede mundial de computadores, a Internet. Por algo que posso considerar sorte, foi preciso consultar apenas um a fim de
inserir nesta escrita: www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes. Logo, todas as citações de entrevistas retiradas de
jornais e periódicos foram retiradas dele.
Sei que isso pode gerar algumas questões como a dúvida de se é válido teoricamente construir minha argumentação a partir de
informações de uma página na Internet, já que se pode alegar que a Internet é um espaço livre onde qualquer informação pode ser
afirmada sem qualquer responsabilidade, além de que estaria depositando a responsabilidade da qualidade e fidelidade das
referências a outros. Digo apenas que corro o risco, porque confio na página em questão. Além disso, outro risco tenho que
aceitar: a possibilidade da página não indicar quando e onde um comentário foi feito. E isso ocorre justamente com a declaração
referida por esta nota.
3
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
10
Faz-me imensa confusão a polémica crítica versus escritores. Para o problema é muito
simples: a maior parte dos escritores não sabem escrever e a maioria dos críticos não
sabe ler. E também há muita ignorância e má-fé de parte a parte. A sensação que tenho é
que ando há que tempos a ensinar os meus críticos a ler e eles não há meios de
aprenderem. (Visão, 26 de setembro de 1996)
4
Não falarei sobre o que Lobo Antunes diz a respeito da “maior parte dos escritores”, até
porque não há como saber de quem se trata; no entanto, sobre o que falou dos críticos é possível
fazer alguns comentários.
O que se destaca, numa primeira instância, é a acusação de ignorância e má-fé a quem tem
por função julgar, pois, pela responsabilidade assumida, essas seriam características inaceitáveis.
Contudo, a acusação mais grave, a meu ver, é de que eles não sabem ler. Será que “a maioria dos
críticos” serve apenas como força de expressão e, com isso, a idéia desejada seria a da totalidade
deles? Ou se sua utilização seria apenas um meio de tentar não generalizar? Ou será que, para ele,
ainda há críticos que sabem ler?
Seja qual for sua intenção, fica um questionamento: por que Lobo Antunes declara, de
modo tão enfático, que os críticos não sabem ler? Naturalmente por discordar do que eles
escrevem em suas colunas sobre seus romances. Não haveria, nessa discordância, um sentimento
excessivo de autoridade do autor para com seus livros? Se for isso, qualquer fala sobre a obra de
Lobo Antunes será, de imediato, negada e o responsável por ela, acusado de mau leitor. Um
escritor teria tanto poder sobre sua produção escrita? Para Lobo Antunes parece que sim, por isso
é preciso continuar com suas palavras.
Acusar a crítica de não saber ler permite algumas indagações, a começar por: o que seria,
para o autor em questão, ler? O que a crítica faria que impediria sua leitura? Por outro lado, o que
ela não faria? Qual seria o jeito correto de ler? Será que ele não estaria, na verdade, falando de
outro modo de leitura?
A indicação que, no momento, o autor nos dá é de que há tempos tenta ensinar os críticos,
mas eles não aprendem. Como seria essa tentativa de ensinamento? A resposta seria, a meu ver,
por meio de seus romances devido ao fato de que se ele opta por produzir esse tipo de obra é
4
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
11
porque crê ser a melhor forma de comunicar o que quiser. Mas também, de modo preliminar,
poderia pensar que suas entrevistas talvez trouxessem algum ensinamento, só que para realmente
aceitá-las (e permitir a validação desta escrita), essa percepção deverá ser confirmada
posteriormente.
Se o ensinamento estiver realmente em suas palavras, o erro cometido pelos críticos seria
ignorá-las? Se assim for, o grande problema da crítica estaria em julgar todos os livros a partir de
valores próprios, dispensando toda e qualquer intenção, ponto de vista ou perspectiva do autor?
Se for correto pensar dessa forma, a desautorização total da crítica por Lobo Antunes seria um
modo de reivindicar, apenas para si, a autoridade para falar de suas obras.
No mesmo sentido, ele ataca outro grupo que, igualmente, exige ter autoridade sobre a
Literatura: “Mas houve livros chatos como o da Agustina Bessa-Luís e o do Virgílio Ferreira que
os académicos e os universitários devem achar muito bons, eu, como não sou nem académico
nem universitário acho-os terrivelmente chatos.” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano III, n.77,
1983/1984)
5
O alvo maior desse comentário não é Agustina Bessa-Luís ou Virgílio Ferreira, mas o
meio acadêmico. Pois, se o comentário fizesse referência apenas aos escritores, não passaria de
uma questão, digamos, de gosto. Só que citar os acadêmicos coloca em pauta o estudo
universitário de Literatura, o estudo que é considerado científico.
A partir disso, Lobo Antunes sugere uma oposição entre o escritor, produtor de Literatura,
e o acadêmico, o estudioso. Oposição que é, historicamente, “vencida” por este, que determina,
de acordo com suas conclusões, uma lista de eleitos denominada Cânone Literário.
Atacar escritores canônicos e quem os elegeu seria um modo de atacar o Cânone
Literário? Se for essa intenção, o Cânone poderia ser dispensado de todo? Toda uma tradição
crítica? Pode-se dizer que sim, pois, para Lobo Antunes, constitui-se de uma tradição de não-
escritores julgando escritores. Portanto, o legado dessa citação seria, desautorizar o cânone e todo
estudo com esse sentido; trazendo, juntamente com a citação anterior, toda responsabilidade, toda
a autoridade para si. Haveria justiça em acatar as críticas a esses “outros” e atender a seus
desejos? Para esta escrita sim.
5
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
12
Algumas considerações podem ser feitas a respeito disso, mas todas, é preciso lembrar,
exteriores a ele. Por que Lobo Antunes deseja tanto controle sobre a apreensão de sua obra?
Talvez porque nem a crítica, nem os estudiosos tenham conseguido atender às suas expectativas
de leitor e talvez por isso ele, realmente, acredite que só fazendo do seu jeito essas expectativas
serão atendidas. Por outro lado, um crítico ou estudioso pode alegar que essa atitude não passaria
de autoritarismo talvez motivado por, dentre outras possibilidades, medo de que algum
comentário desvende, desfaça ou reduza sua obra.
De qualquer modo, a atitude de exigir o controle da leitura para si está em desacordo com
o que fala Theodor W. Adorno em “Posição do Narrador no Romance Contemporâneo”. Para o
teórico, o gesto do narrador desta época é de revogar seu próprio discurso, já que sua intenção
seria de “uma tomada de consciência contra a mentira da representação”. (2003, p.p.55-63) Dessa
forma, no momento em que narra, esse mesmo narrador esforça-se em mostrar que o narrado não
teria ocorrido. Por esse aspecto, os romances de Lobo Antunes não teriam um narrador
contemporâneo? Se a resposta for afirmativa, que tipo de narrador seria, então? Um narrador
semelhante ao do século XIX?
Não encontro resposta do autor para essa questão; mas, se houver alguma defesa contra
essa possível acusação, posso pensar que uma delas seria que talvez Lobo Antunes não se guie
pela tendência que Adorno detecta; só que isso é só especulação, porque todas essas
considerações são, como já disse, estrangeiras em relação à linha de ação desta escrita e não
devem ser esmiuçadas.
Logo, se quero render-lhe tributo, não devo proceder como os “outros”; mas seguir,
exclusivamente, suas palavras: agarrar-me a elas, tê-las como único foco, único objetivo. Isso
seria, segundo conceito de Maurice Blanchot em O Espaço Literário (1987), fazer silêncio.
Para o teórico, escrever seria o interminável, o incessante, porque quem o faz nunca sabe
se a obra está realmente realizada. O que colocaria um fim, ou seja, a delimitação do escrito num
livro seriam circunstâncias exteriores como o editor. No entanto, considerando seu feito
inacabado, o escritor continuará sua obra em outro livro. (BLANCHOT, 1987, p.p.11-12).
Nesse sentido, o teórico conclui que:
[...] o autor pertence à obra, mas o que lhe pertence é somente um livro, um amontoado
mundo de palavras estéreis, o que há de mais insignificante no mundo. O escritor que
13
sente esse vazio acredita apenas que a obra está inacabada, e crê que um pouco mais de
trabalho, a chance de alguns instantes favoráveis permitir-lhe-ão, somente a ele, concluí-
la. Portanto, volta a por mãos à obra. Mas o que quer terminar continua sendo o
interminável, associa-o a um trabalho ilusório. (BLANCHOT, 1987, p.13).
Esse trabalho incessante, segundo Blanchot, romperia o vínculo que uniria a palavra ao
“eu”, vínculo que teria por fim falar para “ti”. E nisso, retiraria a palavra do curso do mundo,
retiraria dela “o poder pelo qual, se eu falo, é o mundo que se fala, é o dia que se identifica pelo
trabalho, a ação e o tempo”. (BLANCHOT, p.p.16-17).
Então, a palavra escrita, desligada do “eu”, passaria a ser a palavra do “ele”, que seria o
universal. Sendo que, esse deslizamento do “eu” ao “ele”, do individual ao universal só seria
possível porque “proporciono a essa fala incessante a decisão, a autoridade do meu próprio
silêncio.” (BLANCHOT, 1987, p.17) Portanto, fazer silêncio seria ação do escritor que abdicaria
de sua própria voz em favor do universal e, por essa perspectiva, abdico da minha em favor de
Lobo Antunes. Logo, penso que ler, para o escritor português, segundo essa linha de raciocínio,
seria fazer esse tipo de silêncio.
Dessa forma, qualquer teoria só pode ser testada se Lobo Antunes apontá-la de alguma
forma e só deverá ser aceita se a argumentação for coerente com suas palavras. Por isso, só posso
afirmar que a teoria de Blanchot de que a escrita seria um trabalho incessante e de que o escritor
faz silêncio em favor do universal também ocorre com o autor em questão, se ele indicar. Cabe,
então, a pergunta: há alguma indicação?
Penso na seguinte fala:
Todos nós, homens e mulheres, não somos, de facto, tão diferentes, senão aquilo que
escrevemos ou pintamos não teria nenhum impacto nos outros. Afinal, o que nos faz
aderir a um livro é pensar “É mesmo isto que eu sinto e não era capaz de exprimir”, não
é? (O Jornal, 30/10/1992 )
6
Por essa declaração, é possível perceber no autor a crença de que existe um princípio
comum em todos os homens e mulheres, o qual pode ser chamado de “o humano”, ou até “o
universal” e seria esse princípio que permitiria a adesão a algum livro. Sendo assim, pode-se
6
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
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afirmar que, para Lobo Antunes, sua escrita tende ao universal sim; mas se isso é algo pelo qual
se luta ou se é apenas conseqüência de qualquer escrita, não há indicação.
Sobre a recepção do leitor, o autor ainda fala:
Tenho a sensação de que o público não tem a noção de que um livro nos custa os olhos
da cara. Apanham a obra feita e não têm a noção do trabalho que aquilo levou. Passam
por cima de uma frase, de um parágrafo que nos levou dias a apurar, e não dão por isso.
Isto é um ofício de trevas...(Jornal das Letras, Artes e Ideias, ano V, número 176,
novembro de 1985)
7
Por que “ofício de trevas”? “Trevas” estará fazendo referência apenas à falta de
conhecimento do leitor em relação a todo esforço do escritor? E, assim, ele estaria sempre “nas
trevas”, enquanto que o livro “na luz”? Se a resposta a essa pergunta for afirmativa, Lobo
Antunes estaria chamando atenção para si, estaria exigindo do leitor uma atenção para ele
mesmo. Aliás, chamar atenção para a própria vida é algo que Lobo Antunes parece esforçar-se
muito em fazer.
Digo isso porque qualquer pessoa que ler os três primeiros romances do autor (a saber:
Memória de Elefante, Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno) e compará-los com o que diz
sobre sua vida em crônicas, entrevistas e declarações percebe grande proximidade.
Como entender isso? Lobo Antunes teria colocado sua vida em seus romances? Se assim
o fez, em tudo “verdadeiro” ou tornando ficcional? Posso ler uma indicação que nos dá um
direcionamento: “Nunca consigo conceber uma história onde as personagens não tenham carne. E
se eu partir de uma carne já real para mim, torna-se muito mais fácil”. (Expresso, 7/11/1992)
8
O que seria uma personagem com carne? Seria uma personagem muito parecida a uma
pessoa? Mas, como medir isso? Que parâmetros utilizar? Ou seria uma personagem com algum
lastro de vida realmente vivida? É possível captar esse lastro? E a carne real a que se refere, seria
a carne da sua própria vida? O que, se a resposta for afirmativa, poderia justificar a opinião
corrente de que seus livros são autobiográficos. No entanto, se os livros são autobiográficos como
poderiam ser romances, que é a indicação dos responsáveis pela edição?
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Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
8
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
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Como observar isso? Acho ser possível pensar essa questão a partir de uma fala presente
no livro Conversas com António Lobo Antunes (2002) da jornalista espanhola María Luisa
Blanco. O livro é uma compilação de entrevistas que a mesma realizou com o autor e parece
servir, numa perspectiva global, como mais uma forma de reiteração de tudo que há em seus três
primeiros romances.
A fala que me interessa, no momento, aparece da seguinte forma no livro de Blanco:
- No entanto, esses textos, as suas crónicas, são Lobo Antunes. Os seus traços
autobiográficos são transparentes, a sua forma de olhar a realidade...
- É, claro, mas penso que todos os livros são autobiográficos[...](BLANCO, 2002,
p.114)
A princípio, pode-se perceber que a fala da jornalista nem era sobre o aspecto
autobiográfico em seus romances, era sobre suas crônicas. Por que essa mudança no assunto? A
não ser que não tenha havido mudança, porque talvez Lobo Antunes, de algum modo, considere
que crônica e romance sejam partes de um mesmo grupo denominado, de modo geral, livro. Se
considerarmos esse entendimento, como aceitar a generalização apresentada? Como pensar que
todos os livros sejam autobiográficos?
9
Primeiramente, é preciso pensar o que seria uma autobiografia. Para tal, observo esse
termo a partir do estudo do francês Philippe Lejeune em Le Pacte Autobiographique. O autor
trata a questão a partir de um entendimento comum: “Récit rétrospectif en prose qu’une persone
réelle fait de sa prope existence, lorsqu´elle met l´accent sur sa vie individuelle, en particulier sur
l’ histoire de sa personalité.”(Lejeune, 1975, p. 14)
10
Se autobiografia serve exclusivamente para falar da vida de quem a escreve, como aceitar
que todos os livros sejam autobiográficos? Se ficarmos apenas com os romances de Lobo
Antunes, creio já existir um problema, quanto mais em relação a todos os outros livros.
No entanto, é possível ainda arriscar, de modo ligeiro, uma explicação: talvez o autor
acredite que, com maior ou menor intensidade, todos os escritores insiram fatos que teriam
vivenciado em seus romances, o que permitiria entender que existiriam traços autobiográficos em
9
Todos os livros ou somente todos os livros do autor? Penso que a resposta seja a primeira alternativa, senão ele faria uso de um
pronome possessivo.
10
O equivalente em Língua Portuguesa seria “Uma narração retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, quando acentua sua vida individual, particularmente a história de sua personalidade” (tradução nossa)
16
suas obras. Lejeune, no entanto, não aceita uma obra contendo apenas traços da vida de quem a
escreveu em meio a traços “não-vividos”. A questão, para ele, é tudo ou nada, ou seja,
“identidade” ou apenas “semelhança”. Ele apresenta esses conceitos na tentativa de definir
parâmetros que garantissem a um texto o status de autobiográfico e inicia sua investigação
analisando, digamos, categorias que depreende do conceito já apresentado.
Segundo o teórico, o conceito é sustentado por quatro categorias: forma da linguagem,
assunto tratado, situação do autor e posição do narrador. Cada categoria apresentaria formas
precisas para que o texto possa ser enquadrado na condição de autobiográfico, os quais seriam
narração em prosa como a forma da linguagem; a vida individual, sobretudo, a história de uma
personalidade como o assunto tratado; identidade do autor e do narrador, sendo que autor
remeteria a uma pessoa real como situação do narrador e, por último, na posição do narrador, a
exigência da identidade entre narrador e personagem principal, além de perspectiva retrospectiva
da narração. O afastamento dessas formas permitiria a classificação do texto, dependendo de qual
forma apresentada for o afastamento, como: Memórias, Biografia, Romance em primeira pessoa,
Poema autobiográfico, Diário Íntimo, Auto-retrato ou Ensaio.
Uma simples análise das categorias mostra a importância da “identidade” em todo o
processo. Penso que o sentido desse termo é equivalência entre planos diversos e, no caso, entre
três instâncias que podem ser depreendidas de uma obra: autor, narrador e personagem, e uma
quarta que só a autobiografia traria que seria o “modelo” a partir do qual é construída, ou seja, o
“autobiógrafo”. Se não houver essa identidade total, restará apenas “semelhança” e não haverá
autobiografia.
Entretanto, o próprio Lejeune questiona se seria possível “construir” uma identidade entre
o modelo e as outras instâncias a partir de um texto e, no sentido de entender se isso pode ocorrer,
investiga se haveria algum elemento textual que permitiria ou propiciaria tal coisa. Sua análise
começa pelo pronome pessoal e para entender as especificidades e possibilidades desses
pronomes (ele aceita autobiografias escritas na segunda ou terceira pessoa), o teórico francês
utiliza os estudos de Benveniste sobre o assunto. No entanto, sua conclusão é de que eles não
garantiriam coisa alguma, os pronomes pessoais do texto apenas remeteriam a um enunciador
materialmente marcado pelo nome próprio contido na capa do livro.
17
Dessa forma, passa a investigar se o nome próprio poderia garantir a identidade. Só que
logo percebe ser outra tentativa em vão devido a exemplos de heróis de romances que possuem o
mesmo nome do enunciador contido na capa sem que o livro tenha qualquer intenção
autobiográfica e também por autobiografias declaradas em que há conflito entre os nomes. Isso,
segundo o teórico, seria prova suficiente para mostrar que não haveria qualquer força ou poder de
ligação no nome próprio.
Desse modo, ele parte para uma análise comparativa entre autobiografia e romance
autobiográfico, e autobiografia e biografia. As experimentações levam Lejeune a duvidar de que
haja qualquer elemento textual que garanta a identidade; mas, ao mesmo tempo, permite a ele
destacar alguns termos como “pacto autobiográfico”, “pacto romanesco”, “pacto referencial” e
“pacto fantasmático”, (definições que creio serem desnecessárias a esta escrita) e a noção de
“contrato social” do nome próprio. Esses termos mostrariam que todas as formas só funcionam
por acordos firmados implicitamente; e, assim, também ocorreria com a autobiografia. Ela
dependeria, segundo ele, de uma atitude em conjunto: um pacto entre autor, editor e leitor. Um
pacto em que os primeiros apostariam e o último aceitaria, mesmo que os fatos descritos na obra
não sejam comprováveis por documentação. Assim, identidade seria uma convenção.
Nos romances de Lobo Antunes aqui estudados haveria o pacto? Haveria essa
“identidade” convencionada? Não, porque a indicação do autor e dos responsáveis pela edição é
de que os livros são romances. E quanto a traços autobiográficos na obra? Pode ser; mas, penso
que assim seria apenas “semelhança” do livro para com o modelo e, além disso, creio que Lobo
Antunes teria falado que todos os livros possuiriam apenas “traços autobiográficos”.
De outra forma, é possível imaginar, então, que talvez o autor acredite que todo escritor
esteja preso a seu modo de vida e a seu sistema de valores, por isso seus romances seriam
resultado de sua experiência de vida; desse modo, as obras teriam um “sentido autobiográfico”.
Penso, porém, que esse sentido autobiográfico seria uma qualidade detectável também em livros
não-literários; uma vez que, se alguém escreve sobre Matemática, estará refletindo um grau de
importância que essa ciência possui na sua vida. Lobo Antunes estaria falando de todos os tipos
de livro ou apenas os literários?
De qualquer forma, as possibilidades cogitadas até aqui permitiriam aos livros, quaisquer
que sejam, uma articulação, mesmo que tênue, com a Historiografia; algo que o conceito
18
defendido por Lejeune também admite. É de um sentido autobiográfico que Lobo Antunes fala?
É preciso perguntar a ele e, para tanto, utilizo os romances aqui já citados: Memória de Elefante,
Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno. Utilizo-os por estarem no centro da polêmica, ou
seja, porque a crítica em geral sobre o autor considera-os com maior conteúdo autobiográfico de
toda sua obra e quero estar em pé de igualdade com eles.
Penso em analisar, a princípio, estruturalmente os romances, pois seriam, segundo as
indicações do autor, autobiográficos. Em Memória de Elefante, o foco narrativo é, digamos,
flutuante, já que a narração alterna entre primeira e terceira pessoa sem que, por vezes, essa
flutuação seja bem delimitada ou sequer avisada; havendo também inserção de diálogos. Já em
Os Cus de Judas, a narração ocorre, exclusivamente, na primeira pessoa, no entanto, o narrador
não está de frente para o leitor, mas de lado ou de costas, porque conta sua história,
aparentemente, para uma mulher com quem conversaria; e, dessa forma, o leitor seria, na
verdade, um intruso, um espectador não-convidado. Só que não há a contrapartida dessa ouvinte-
primeira, pois suas falas, questionamentos ou simples respostas não são transcritas; o que pode
provocar a suspeita de que não existe ninguém a ouvi-lo, de que fala sozinho. Conhecimento do
Inferno tem narração semelhante ao primeiro, ocorrendo apenas um aumento considerável dos
diálogos.
Em cada romance, há um personagem principal, no entanto, eles são tão parecidos que é
possível vê-los como se fossem o mesmo: um homem que recentemente voltou de Angola onde
participou das Guerras Coloniais
11
, recém-divorciado e é médico psiquiatra. Sua história de vida
parece perpassar os três romances, sendo a situação em que narra diversa em cada romance e o
enfoque, igualmente, único em cada. A saber: no primeiro, a narração segue o homem durante um
dia na sua vida e fala, fundamentalmente, de seu cotidiano após voltar da guerra e se separar da
esposa; no seguinte, o encontro se dá durante toda uma noite e expõe seus dias na guerra;
enquanto que, no último, a narração ocorre durante uma viagem de carro que o homem faz e
trata, sobretudo, de sua experiência profissional.
Será que a situação narrativa influencia, de algum modo, o enfoque de cada livro? Ou será
que o enfoque impõe a situação da narrativa? Ou foram apenas escolhas do autor? De qualquer
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Esse é um dos nomes atribuídos ao conflito armado entre Portugal e suas antigas colônias africanas que desejavam sua
independência.
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forma, pode-se perguntar por que o autor escreve três livros sucessivos sobre, provavelmente, um
mesmo personagem. Seria uma busca de totalidade, ou seja, uma tentativa de retratar o máximo
da vida dele? Uma declaração de Lobo Antunes pode não apenas invalidar essa idéia, como
também apresenta uma perspectiva interessante:
Há temas que são retomados nos livros, como se fossem versões sucessivas do mesmo
romance, até eu chegar a uma fórmula que me agrade. Durante dois meses agrada-me. A
seguir acho que posso ir mais longe. Cada livro corrige o anterior, daí aparentemente
episódios e temas se repetem. (COELHO, 2004, p. 98)
Por essa declaração, o autor pede que não olhemos sua obra como uma continuação ou
repetição, mas como correção. Assim, o olhar não pode ser lançado sobre os três romances ao
mesmo tempo em busca de qualquer entendimento, mas sobre um de cada vez. Sabendo que em
cada já estão expostas todas as suas intenções, quaisquer que sejam, e que, no seguinte, elas
estarão aperfeiçoadas. O que permite pensar se não seria mais produtivo ler seu romance mais
recente, pois lá suas intenções estariam mais próximas do seu desejo, como o mesmo diz: “Por
vezes, releio algumas passagens e fico muito surpreendido, mas geralmente orgulhoso. Penso que
avancei nos meus livros posteriores, que depurei o estilo e que estou mais perto do romance que
quero fazer (...)” (BLANCO, 2002, p. 68)
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Entretanto, o caminho até o mais recente seria extremamente longo, pois exigiria desta
escrita que se estendesse muito ao comentar mais de vinte livros. Não poderia também ir
diretamente ao último, a meu ver, porque a leitura deve seguir, passo a passo, a correção do autor.
Além disso, como ficou claro, em Memória de Elefante já existe todo o conceito de autobiografia
de Lobo Antunes; logo poderia trabalhar apenas com ele, mas escolhi seguir com mais duas
correções. Preciso, somente, continuar firme em meu caminho para tentar entender a perspectiva
do autor.
Assim, vejo o que diz sobre sua relação com a escrita: “Quando escrevo, penso apenas em
exorcizar certas emoções, descrevê-las, vivê-las. O leitor é um acto secundário, penso nele nos
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Diante disso, pode surgir a indagação de se algum dia ele conseguirá ou a morte será a circunstância exterior, como diz
Blanchot, que irá impor o fim de seu intuito? De qualquer forma, o último que publicar terá, para ele, a responsabilidade de toda
sua obra.
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últimos acabamentos do livro, quando sinto que isto ou aquilo não está inteligível.”(O Jornal, 30
de outubro de 1992)
13
Ele diz que, ao escrever, tem por intuito exorcizar, descrever e viver certas emoções. O
que significa isso? A forma como a declaração foi escrita (ou pronunciada?) é importante para a
significação total da declaração? Se for, o uso de duas vírgulas para separar os verbos teria a
única função de separar graficamente orações justapostas? Por que não utilizar uma conjunção
aditiva “e” entre as duas últimas como é o mais corrente em enumerações?
É possível ver algumas intenções, tais como observar as pausas representadas pelas
vírgulas como escadas para a significação e, se assim for, na sua escrita ocorreria um processo
em que seria preciso, em primeiro plano, exorcizar as emoções, o que geraria, de algum modo, a
descrição delas e produziria, como resultado final, viver as tais emoções. Como esse processo
ocorreria? Não tenho meios para responder.
De outro modo, as vírgulas podem ser entendidas como sinais matemáticos que indicam
igualdade e, com isso, escrever seria, a um só tempo, exorcizar, descrever e viver as emoções.
Como essas três ações ocorreriam na escrita de Lobo Antunes de forma a tornarem-se
equivalentes? Outra pergunta que não consigo responder.
Contudo, qualquer que seja a alternativa correta e o modo como o processo for
desenvolvido, é certo que a escrita permite ao autor viver as emoções e, nisso, vejo uma polêmica
em relação ao conceito de Lejeune, já que para esse a autobiografia poderia, no máximo, fazer
com que o autor “revivesse as emoções”. E, por essa simultaneidade entre as ações destoar do
conceito de Lejeune, que apresenta a escrita como posterior à vida, pode-se perceber
definitivamente que Lobo Antunes entende autobiografia de modo diverso. Por isso, penso em
abandonar o teórico francês e avaliar atentamente a citação anterior.
É possível viver enquanto se escreve? Talvez os trechos a seguir possam remeter a um
entendimento aceitável sobre essa questão:
Trabalho todos os dias, não tenho nenhum entretenimento, nenhuma distração. Não
bebo, não vou a bares, já não vou a concertos nem a espetáculos, não saio à noite. Estou
tão mergulhado no meu trabalho que só penso como fazê-lo bem [...] (BLANCO, 2002,
p. 66)
13
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
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Se um dia não escrevo, sinto-me como se me tivesse vestido sem ter tomado banho. Se
não escrevo, invade-me uma sensação de ausência e de vazio profundo. Se não escrevo,
assalta-me um sentimento de enorme culpabilidade que nunca deixei de sentir. O meu
ritmo é infernal, trabalho doze horas por dia. Quando viajo para apresentar um livro e
tenho de fazer entrevistas e tudo o que implica a sua promoção, recupero o tempo
perdido durante a noite e escrevo até ás duas ou ás quatro da madrugada. É-me
indiferente estar na Alemanha, na Áustria ou em Espanha ou que me levante muito cedo
ou estar cansado, eu tenho de escrever todos os dias, preciso disso para não me sentir
culpado. (BLANCO, 2002, p.26)
Por que ele afirma, de modo tão enfático, que passa todo o tempo escrevendo? Será que
ele deseja afirmar que escrever é a única ação não-essencial à sobrevivência (isto é, propriamente
humana) que realiza em sua vida pós-guerra? Se assim for, a escrita seria seu único indício de
vida humana, ou melhor, escrever seria, para ele, a única forma de viver. Por esse prisma, caberia
dizer que autobiografia, para Lobo Antunes, seria a escrita de quem tem essa ação como única
atividade essencialmente humana.
Creio, porém, que esse entendimento não se adapte a todos os escritores como é condição
para o autor, além do que o entendimento pode induzir à idéia de que Lobo Antunes só passaria a
escrever após voltar da guerra, o que se percebe falso por inúmeras declarações iguais a esta feita
a Tereza Coelho, autora da Fotobiografia de Lobo Antunes, quando ela pergunta qual teria sido o
momento em que a escrita teria se tornado permanente em sua vida:
Foi sempre permanente. Durante o curso, escrevia, não estudava. Durante a guerra,
fechava-me no quarto e escrevia. Nesse tempo não dizia a ninguém. Depois ia com os
papéis para o consultório, se havia uma falta escrevia durante aquela hora. Se chegasse
dez minutos antes a um encontro, escrevia. (COELHO, 2004, p.p.141)
Como entender isso, então? Entender uma temporalidade tão ligada ou até determinada
por sua atividade de escrita? Vejo um caminho no que ele diz ser o princípio dessa
temporalidade:
Uma das minhas recordações mais nítidas é o dia em que decidi que ia ser escritor.
Foi no dia 24 de dezembro, tinha sete anos, ia num táxi e, de repente, tive como que uma
revelação “vou ser escritor”, pensei. E quando cheguei a casa, pus-me imediatamente a
escrever. E foi assim, exactamente como lhe conto.
Esse foi o momento da tomada de consciência, o momento em que pensei que o meu
desejo podia converter-se num projecto de vida, mas antes disso eu já escrevia há algum
tempo. Comecei muito, muito cedo, com quatro ou cinco anos. A minha mãe diz, que
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desde sempre, se recorda de mim a escrever, porque era ao que dedicava todo o tempo.
(BLANCO, 2002, p. 24)
Esse trecho é, na verdade, a resposta à primeira pergunta contida no livro de Blanco,
pergunta esta que é: “Que recordações tem da sua infância?” (BLANCO, 2002, p. 24) E a
recordação tem a ver, justamente, com a sua carreira de escritor, o fator, no final das contas,
motivador da entrevista.
Essa resposta, no entanto, parece-me apropriada até demais, pois creio que uma das
maiores curiosidades do leitor em relação a um escritor é saber o que o teria motivado a começar
a escrever e Lobo Antunes oferece isso de imediato. Não levantaria, a meu ver, qualquer suspeita,
se a pergunta fizesse referência a quando teria começado na escrita; no entanto, a pergunta de
Blanco é bastante genérica ao pedir somente recordações de sua infância.
Lobo Antunes planejou essa resposta? É possível duvidar dele agora? Após afirmar tanto
que seguiria suas palavras até o fim? Penso aqui numa afirmação de Coelho: “António Lobo
Antunes por várias vezes disse que uma entrevista é um exercício de vaidade, com o entrevistado
a posar e o entrevistador a tentar que ele corresponda à imagem que já tem pronta.” (COELHO,
2004, p. 211)
14
Logo, se acreditar na autora e essa for a opinião dele, Lobo Antunes duvida da entrevista
como meio de elucidação. Então, por que pensar que suas respostas neste tipo de situação seriam
verdadeiras? Não é que ele minta (senão, esta escrita não se sustentaria), mas ele pode responder
às perguntas com fins específicos.
Se assim for, a resposta a Blanco pode sugerir o seu nascimento como escritor, o qual
tenta atrelar ao nascimento como indivíduo, já que aos sete anos teria sido só “a tomada de
consciência” tal como “a tomada de consciência como indivíduo”, pois já seria escritor só não
sabia ou tinha certeza. Tal seria sua intenção em dizer isso que até mesmo no período de tempo
de sua existência ao qual não tem acesso, devido ao problema ou especificidade humana de não
conseguir lembrar-se de fatos ocorridos quando muito novo, recorre ao testemunho de alguém
que teria esse acesso: sua mãe.
14
Coelho cita as palavras de Lobo Antunes indiretamente, provavelmente, por tê-lo ouvido falar, mas não ter conseguido a
referência; senão elas lá estariam diretamente transcritas porque a Fotobiografia contém fotos, entrevistas que realizou com ele e
com seus familiares, além de trechos de seus romances e de entrevistas.
23
Há também a possibilidade de que se entenda esse episódio como nascimento mesmo
como escritor, enquanto que o período anterior seria visto como um estágio embrionário dessa
vida. Isso pode ser justificado pelo fato de que uma “revelação” que ocorre a 24 de dezembro
lembra, obrigatoriamente, o maior de todos os nascimentos para o Ocidente: o nascimento de
Cristo.
Essa situação toda teria sido meticulosamente criada para esse fim? É possível, mas não
vejo problemas nisso já que não busco verdades, apenas meios de ler Lobo Antunes. Logo, se ele,
realmente, produziu a situação, foi com algum sentido e devo tentar, ao máximo, entendê-lo.
A situação que teria instaurado seu nascimento como escritor é, em certas ocasiões,
descrita como a viagem que fez a Pádua para fazer a primeira comunhão. Ter essa noção permite
identificar uma passagem de Memória de Elefante como esclarecedora:
[...] como quando cheguei de África e não sabia o que fazer, e me achava em corredor
muito comprido e sem nenhuma porta, e tinha uma filha e mulher grávida e um vasto
cansaço nos ossos chocalhados por demasias de picadas. Reviu mentalmente o túmulo
do Zé do Telhado em Dala e a casa com tecto de capim do senhor Gaspar no meio das
árvores altas em que pulava um enorme macaco domesticado, de focinho branco, preso
por uma trela a um poste de ferro, reviu a morte do cabo Pereira no incêndio do
unimogue e o fantástico das queimadas noite fora: desde que me levaram a Pádua a fazer
a primeira comunhão, pensou, o médico, já andei um bocado. (ANTUNES, 1979, p.116)
Só para fim de contextualização, digo que esse trecho está no final de um dos últimos
capítulos do romance, aquele cujo eixo temático é sua participação numa sessão de análise em
grupo. Pode-se dizer que o trecho serve como conclusão ao capítulo e parece também revelar um
percurso: Pádua, Angola e retorno a Portugal.
Ir a Pádua seria a primeira viagem, talvez o momento de percepção do mundo, ou melhor,
momento em que teria percebido que ele não se limitava ao, por maior que fosse, reduzido espaço
da convivência familiar. Só que, como já foi dito, esse momento está atrelado a seu nascimento
como escritor. Teria a expansão de seu mundo contribuído para a sua decisão, ou seja,
nascimento? Ou seria mera coincidência? Não acredito em coincidências em Lobo Antunes; mas,
por suas próprias indicações, em uma intencionalidade.
24
Enquanto que a volta de Angola teria sido o fim dessas viagens, algo que, de algum modo,
teria permitido a publicação de Memória de Elefante: a concretização de seu desejo. Essa relação
entre as viagens e o “tornar-se escritor” é válida? O que se pode inferir dela?
O período que posso chamar de “entre-viagens” teria sido o necessário para o aprendizado
essencial ao seu intuito? Ou as viagens ensinaram-lhe o que precisava? Ou talvez essa relação
entre viagem e a escrita indique mais que um nascimento, revele uma postura de vida. Essa
percepção é possível porque entendo que a fala expõe, em última instância, a idéia de que ir a
Pádua teria orientado tudo o que veio a seguir, toda sua vida e, assim, provocado todo seu
sofrimento. Se Pádua direcionou toda sua vida, seria correto dizer que a escrita teria direcionado
toda sua vida?
Se esse entendimento for aceitável, quais as implicações possíveis de toda uma vida
direcionada pela/para a escrita? Passar todo o tempo possível com lápis e papel (ou coeficientes)?
Deixar de fazer qualquer coisa somente para escrever? Essas ações Lobo Antunes diz realizar,
mas com qual intenção? Afirmar ser escritor em tempo integral? Durante toda a vida? Se assim
for, creio que afirma uma postura de vida como escritor. Essa postura seria, a meu ver, o mesmo
que dizer que ele esforça-se em declarar-se exclusivamente o narrador Lobo Antunes. Dessa
forma, creio que para ler Lobo Antunes é preciso ter isso em mente.
Qual seria a intenção de Lobo Antunes afirmar-se narrador? Declarar-se um escritor
extremamente dedicado? Ou servir de exemplo a quem deseje ser escritor alegando que, para
isso, seria preciso viver unicamente para esse fim? Seria válido dedicar-se tanto à Literatura?
Haveria algum retorno? Qual a perspectiva de ele ser narrador para o entendimento da
autobiografia? Quais as conseqüências finais de ler Lobo Antunes? Qual será a mensagem do
narrador Lobo Antunes? Quais perspectivas são admitidas a partir dele? Poderia retomar algumas
perguntas anteriores, pois, afinal, não há como invalidá-las.
15
Afirmar ser apenas narrador seria um modo de declarar-se um escritor extremamente
dedicado? É possível. Mostrar que qualquer um que deseje ser escritor deve empregar todo seu
esforço unicamente para esse fim? Talvez, mas por que tanto empenho com a Literatura? Ela
15
Aliás, todas as perguntas formuladas nesta escrita que não foram invalidadas de imediato ou posteriormente, mas que não
foram aproveitadas no meu raciocínio são perfeitamente aceitáveis na busca de entendimentos, precisando apenas o seu
desenvolvimento em alguma escrita.
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possibilitaria algum retorno? De imediato, penso em fama, glória e eternidade. Lejeune levanta
essa questão em relação a seu entendimento de autobiografia. Será por esse viés que
autobiografia e romance estariam igualados, segundo opinião de Lobo Antunes? Não posso negar
que ambos os tipos de texto permitem fama, mas é isso que o narrador em questão deseja?
Sendo ou não, fica claro que até aqui o entendimento do narrador Lobo Antunes permite a
ocorrência ainda de uma vida extra-literária do autor: mesmo que mediada, direcionada,
manipulada pelo intuito de ser narrador; mas vida vivida. No entanto, se for possível observar a
idéia de narrador apresentada numa acepção extrema, seria possível entender que ele sempre foi o
narrador e não o indivíduo António Lobo Antunes. Assim, não haveria qualquer vida realmente
vivida, mas apenas vida literária.
É possível mesmo descartar a existência de uma vida extra-literária de Lobo Antunes? E
por que, aparentemente, ele teria chamado tanta atenção para ela? Penso que o autor propõe, na
verdade, uma indistinção total entre o que seria sua vida e o que seria sua obra em favor dessa
vida literária. Tomar esse caminho permite uma aproximação do que Lobo Antunes desejaria de
sua escrita e do que Emerson exigiria da sua. Leio Emerson a partir do filósofo americano
Stanley Cavell, mais precisamente, por seu texto traduzido para o espanhol “Extrañados,
reajustándonos (Descartes, Emerson, Poe)”
16
Para iniciar sua análise, Cavell toma um trecho do ensaio Auto-Confianza (Self-Reliance)
de Emerson: “ El hombre es apocado y se deshace en disculpas; ya no se mantiene erguido; no se
atreve a decir ‘yo pienso’, ‘yo existo’, sino que cita a algún santo o sábio.” (CAVELL, 2002,
p.181)
Para o filósofo americano, as expressões “yo pienso”, “yo existo” são, necessariamente,
uma retomada da proposição “Penso, logo existo” de René Descartes. Proposição que seria, para
o filósofo francês, a resposta para o questionamento que faz sobre a existência ou não do homem.
A retomada de Emerson mostra a Cavell que a proposição em si não daria garantias suficientes da
existência humana; mas, de outro modo, já seria essa garantia.
A crítica à resposta cartesiana está no modo de representar o “eu existo” contido em
ambas as declarações. Em Descartes, o que parece importar é a capacidade de pensar que ele diz
16
O tradutor põe em nota o seguinte comentário: “En el inglés, este capítulo (junto com los tres Apêndices al mismo) aparece
bajo el encabezamiento: ‘ At Stanford. Conference: << Reconstructing Individualism>>’.
26
ter. No entanto, para Emerson, apoiar-se no pensamento seria perigoso por ser algo que não pode
ser comprovado. Mesmo assim, Cavell especula: se for possível crer que Descartes exista porque
disse que pensa, como garantir a existência dos outros? Crer que, por analogia (já que, por
convenção, todos seríamos seres humanos e teríamos as mesmas funções físicas e psicológicas),
eles também pensem? Se assim for, ter o pensamento como meio de existir exigiria que se
pensasse o tempo todo, já que parar de pensar significaria deixar de existir. Logo, haveria a
exigência de uma mente que pense o tempo todo.
Segundo Cavell, Emerson duvida desse pensamento, digamos, em moto contínuo; duvida
até da existência de qualquer pensamento materialmente comprovável. Desse modo, crê que os
homens vivam numa espécie de ceticismo como se fossem meros espectros. Essa existência
“espectral” seria, para Cavell, uma saída para o literário.
O literário seria a resposta para essa demanda filosófica? Cavell responde
afirmativamente por ter em mente que Emerson retoma a proposição cartesiana enfatizando o ato
da produção. Em sua posição cética, Emerson diz que o homem não se atreve a dizer “eu penso”,
“eu existo”: o existir não depende do pensamento, mas da fala. Falar poderia garantir a existência
de alguém?
Cavell diz que o autor de Auto-Confianza exige de suas palavras que o “façam”. Logo, se
o modo como fala é por sua escrita, convém entender que a existência comprovada é a fala
escrita, que, materialmente, é a que permanece. A escrita não poderia, porém, garantir a
existência, de fato, física (a qual Emerson já teria dito ser impossível garantir), mas a existência
do narrador Emerson, o qual teria por único corpo suas palavras. Por esse prisma, a existência
humana seria apenas possível em âmbito literário. Desse modo, a proposição “Penso, logo existo”
não possibilitaria a existência de Descartes por se acreditar que ele pense, porém, permite a
existência do narrador chamado René Descartes por ele enunciar em sua obra a proposição.
Seria essa a percepção de Lobo Antunes? De que sua existência não seja possível
comprovar e, por isso, insiste tanto em dizer que é unicamente narrador? Seria correto dizer que
Lobo Antunes compartilha do ceticismo de Emerson? Seria justo, observando sob uma
perspectiva global, ler o autor sob esse viés filosófico?
Não posso fazer isso por ser algo exterior a Lobo Antunes, mas posso especular. É
possível crer que Lobo Antunes exista? Sim, mas baseado em quê? Na crença que me permito ter
27
a partir de um número de indícios como fotos, entrevistas e vídeos atribuídos a ele. E se não me
for o suficiente, posso viajar a Portugal para vê-lo e acompanhar sua rotina de escrita para atestar
que aquele indivíduo é mesmo o autor daquelas obras. Entretanto, quem não possuir a mesma
disposição para acreditar?
17
Ou até, daqui a alguns anos, quando as provas de sua existência
forem apenas circunstanciais (como fotos, vídeos, entrevistas, testemunhos de pessoas que
alegarem tê-lo conhecido e até um túmulo), quem poderá ter certeza absoluta de sua existência?
Alguém poderá até argumentar que Lobo Antunes seria apenas um nome, uma fachada que uma
ou mais pessoas teriam utilizado para escrever sem que nenhuma dessas pessoas tenha qualquer
relação com a vida atribuída a ele. E os indícios de vida? Qualquer um poderia ter forjado.
Com uma possibilidade de argumentação desse tipo, alguém poderia crer, sem dúvida
alguma, que António Lobo Antunes teria existido? Somente alguém com fé e disposição para
isso.
Contudo, do outro lado da história, alguém pode dizer que as tais provas circunstanciais
seriam provas de sua existência, argumentando que todas as entrevistas, declarações, fotos,
vídeos, o livro Conversas com António Lobo Antunes e sua Fotobiografia contam uma história
apenas, a história de um indivíduo, alguém que, por mais que queira afirmar seu caráter de
narrador, seria extra-literário.
Devo, porém, lembrar que todos os indícios só surgem após a curiosidade do público
exigi-los, ou seja, só após a publicação de Memória de Elefante. Logo, tudo que, nesses indícios,
combina com os romances pode servir apenas para reforçar uma imagem do narrador criada
naquele romance. Assim, qual seria a verdadeira vida de Lobo Antunes? As dissonâncias entre a
obra e o que é atribuído à sua vida? Não há como saber, já que tudo aparece após a existência do
narrador de Memória de Elefante. O que permitiria pensar que o Lobo Antunes insiste tanto em
dizer que é e sempre foi apenas narrador não só pelo motivo de uma dedicação total à escrita, mas
também porque é unicamente um narrador para o seu leitor. Com isso, ser somente o narrador
Lobo Antunes justifica a idéia dessa vida literária formada por seus romances e todo o restante
ligado a seu nome. Essa idéia justificaria também a forma como venho construindo esta escrita
tomando no mesmo patamar os romances e as outras manifestações dessa vida literária. Por esse
olhar, digo que Lobo Antunes vive pela escrita, que ele é unicamente suas palavras.
17
Afinal, ninguém é obrigado a acreditar no que quer que seja.
28
Por tudo isso, penso ser inútil tentar investigar fatos de uma possível vida vivida pelo
indivíduo Lobo Antunes e me afasto definitivamente da teoria de Lejeune. Não devo buscar
também qualquer outro que siga sua tradição ou que considere a existência de uma vida extra-
literária.
18
Por fim, o que seria autobiografia para Lobo Antunes?
Se todos os livros são autobiográficos, penso que seria uma escrita que garantiria a
existência de um narrador. É possível que esse narrador corresponda a alguém, digamos, do
mundo extra-literário? Não se pode dizer, apenas digo que há quem escreve. Qual a relação da
vida vivida desse que escreve com a vida do narrador? Não se pode saber, o caminho entre eles
parece-me definitivamente vedado ou, talvez seja melhor dizer, “borrado”.
A partir de tudo isso, penso que provocar a indistinção entre vida e obra, diferentemente
do que a crítica em geral considera, serve para mostrar, junto à idéia de narrador, que só é
possível ao autor uma vida literária, outra não se pode garantir ou delimitar.
Maria Alzira Seixo em Os Romances de António Lobo Antunes (2002), livro que tem por
objetivo analisar a obra do autor de Memória de Elefante a Que Farei Quando Tudo Arde?,
apresenta conclusão semelhante, só que fundamentada pela idéia de “identidade”. No entanto,
apesar de utilizar o texto de Lejeune em sua argumentação, seu entendimento de identidade não
me parece ser igual ao do teórico francês. Para Lejeune, identidade significa equivalência entre
planos diversos; já, para Seixo, refletiria a soma de, digamos, caracteres físicos e psicológicos
próprios a um indivíduo.
A fim de aplicar essa noção, a autora inicia seu estudo alegando que agirá de forma
diferente do restante de seu livro ao trabalhar, na parte em que fala de autobiografia, não apenas
os romances como também as crônicas, que seriam como uma espécie de reflexo da existência
civil ou biológica dele.
Em vista disso, observa as aproximações entre o narrado nos romances e nas crônicas
como uma indicação de que se poderiam perceber os escritos de Lobo Antunes como
“sociotextos”, ou seja, textos que admitiriam tanto uma perspectiva ficcional quanto uma que
engloba dimensões socioculturais, político-sociais e sócio-históricas. Assim, ela diz que: “[...]
18
Para quem desejar, porém, consultar essas obras, há um estudo interessante que tenta rastrear as tendências atuais: GALLE,
Helmut. “Elementos para uma nova abordagem da escritura autobiográfica.” In: Matraga. Rio de Janeiro, ano 13, n.18, 2006, p.
64-91.
29
nem as crônicas são inteiramente autobiográficas, nem os romances se confinam à construção
ficcional [...]” (SEIXO, 2002, p. 482) E vê isso como uma autorização para analisar qualquer
elemento textual com um sentido para além dele.
Para ela, os romances de Lobo Antunes seriam sobre o tempo. O aspecto temporal, por ser
construído a partir de vários planos da memória, não permitiriam, segundo ela, uma continuidade
existencial do sujeito; apenas convocaria outros lugares. Esses lugares “presentificados” pela
narração, que não existiriam realmente, estariam no lugar de outro; trazendo assim a “pura
ausência”, a “impossibilidade”. Logo, se o lugar convoca “outros lugares” que não existem, o
personagem também convocaria outros personagens que não existiriam.
Sua conclusão é de que Lobo Antunes quer desmanchar qualquer possibilidade de fixar
uma “identidade” no mundo, digamos, extra-literário. E, desse modo, autobiografia seria: “o que
se pretende dar (comunicar, partilhar) da vida que se escreve [...]” (SEIXO, 2002, p. 497) Logo,
como não haveria possibilidade de fixar uma identidade no mundo extra-literário, a autobiografia
fixaria uma no mundo literário.
A autobiografia serviria para criar uma “identidade” em determinada obra? Identidade
textual seria o mesmo que vida literária? A meu ver não, porque creio que identidade, segundo
Seixo, relaciona-se a um tipo de sujeito apresentável e a vida literária, que até admite isso, tem a
ver com a existência desse sujeito em âmbito literário.
Em vista disso, qual seria a importância da escrita autobiográfica, segundo o
entendimento de Lobo Antunes? Não acredito que a função seria somente garantir a existência de
alguns narradores, o que refletiria um desejo de fama ou glória. Não se narra (ao menos, na
maioria dos casos) frivolamente, mas para transmitir conhecimento humano e, por isso, vejo a
autobiografia como uma forma de marcar a presença do “humano” no planeta. Aqui a questão de
Blanchot retorna: a Literatura como autobiografia trataria do humano.
A partir de tudo isso, como tratar a obra de Lobo Antunes? Investigar de que modo esse
narrador diz “eu existo”? Investigar como ele faz o humano, do mesmo modo, falar “eu existo”?
Como fazer isso sem deixar de fazer silêncio? A meu ver, se continuar seguindo sua
recomendação e não o deixar, ou seja, continuar consultando apenas a ele, posso construir uma
outra autobiografia de Lobo Antunes. Seria possível fazer isso? Seria aceitável? Creio que sim,
30
pois estarei utilizando somente suas palavras e, assim, obedecendo a seus desejos e, em
conseqüência disso, a minha postura de escrita.
Para realizar essa autobiografia, recorto trechos dos romances que já me propus a
estudar(Memória de Elefante, Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno) e os disponho de
outra forma, utilizo-os a partir de uma outra ordem. Se assim proceder, continuo meu estudo e, ao
mesmo tempo, o meu silêncio. Qualquer palavra minha será interferir demais; logo, o máximo de
intervenção aceitável ocorrerá na montagem do texto, ou melhor, remontagem. Ao fazer isso, não
trabalho com a idéia tradicional de citação, uma vez que utilizar aspas e indicar as páginas em
que os trechos são encontrados tornaria o texto extremamente sobrecarregado; utilizo apenas o
modo tradicional de afastamento em relação à página, tamanho da fonte e espaçamento. Penso
que essa opção formal permite o livre estabelecimento da autobiografia e reforça seu caráter de
texto e, assim, sua relativa autonomia.
No entanto, é aceitável remontar os romances de Lobo Antunes? Sim, no sentido de que
se o narrador quer apenas que o leiamos, essa é uma maneira aceitável de ler o que é Lobo
Antunes, pois utiliza apenas suas palavras. E, assim, configura-se uma autobiografia possível do
narrador por expor seu corpo, seu nome, ou seja, por afirmar a existência desse narrador.
Desse modo, meu procedimento é semelhante a uma escritura, segundo o conceito
desenvolvido por Jacques Derrida em A Farmácia de Platão (1997). Uma escritura seria, para o
teórico, um suplemento, que afirmaria o texto referido; já outros tipos de texto seriam um
complemento, pois anulariam os textos aos quais fariam referência. O complemento, por tentar
explicar, destruiria; enquanto que o suplemento, que não tentaria isso, seria apenas uma cópia,
um duplo e, se for possível entender do mesmo modo, minha autobiografia afirmaria essa vida
literária Lobo Antunes.
Se pretendo fazer uma autobiografia, é preciso entender que métodos utilizar? Como
remontar os trechos? Existiria um tema gerador, um guia? Penso que devo agir, o máximo
possível, no interesse do narrador. Desse modo, se sua escrita é sua vida, minha autobiografia terá
como objetivo destacar essa vida; logo, penso em construir um único capítulo que será observado
por, digamos, estágios detectáveis de uma existência: nascimento, vida e morte. Cada um desses
termos, porém, precisa ser definido claramente, porque se trata da vida de um narrador e não de
31
um indivíduo. E, como se verá, cada definição possibilitará o desenvolvimento de um movimento
na autobiografia.
O primeiro movimento é o nascimento, o qual já foi aproximado pelo narrador ao de
Cristo, evento que seria a pedra fundamental do Cristianismo, uma das bases do pensamento
ocidental. Por isso, se o momento responsável por revelar o nascimento do narrador foi o natal,
talvez seja preciso avaliar todas as alusões que faz à festa religiosa a fim de entender toda a
perspectiva de seu nascimento e possíveis desdobramentos. Essa será a preocupação da primeira
parte da autobiografia, sendo, por esse aspecto, nomeada “Natal”.
Esse nascimento traria, de algum modo, à vida do narrador um sentido cristão? Se eu
levar em consideração as inúmeras referências que ele faz de outras fontes e perceber uma
intenção nas referências cristãs, pode-se pensar que haveria para o narrador um modelo
19
de vida
em Cristo, modelo esse que pertence, em geral, a todo Ocidente.
No entanto, esse modelo é, em grande parte das passagens, desvirtuado como se o
narrador desejasse provocar na sua vida, na verdade, um modelo anticristão. Seria intenção do
narrador sugerir uma vida anticristã? Por qual motivo? Talvez mostrar que só há essa
possibilidade de vida? De qualquer forma, posso pensar a autobiografia a partir desse modelo,
sabendo que, ao longo do texto, será desvirtuado. O modelo que posso seguir, obedecendo a
possibilidade de três movimentos, é nascimento, visita dos Reis Magos, ou melhor, peregrinação
até Cristo recém-nascido e fuga para o Egito a fim de escapar de Herodes.
Logo, o modelo que orienta minha autobiografia, permite ter “Natal” que fala do
nascimento do narrador e de seus desdobramentos; “Peregrinação”, no qual estará exposto seu
andar pela vida e “Fuga” como a ida para Angola a fim de participar das chamadas Guerras
Coloniais.
Esse será o ponto de partida para minha autobiografia, o critério inicial que utilizo como
parâmetro de cada movimento, já o conteúdo em si será construído aos poucos e justificado num
texto que a acompanha. Além disso, creio ser necessário manter uma separação entre os
romances e faço isso pela formatação: os trechos de Memória de Elefante estão no padrão
normal, os pertencentes a Os Cus de Judas estão em itálico e os de Conhecimento do Inferno, em
19
“Modelo” aqui possui o sentido de exemplo, enquanto que no estudo de Lejeune é o sujeito, aquele que serve de matéria para a
autobiografia.
32
negrito. Essa atitude permite, ao leitor desta escrita, perceber o grau de proximidade entre os
romances e seu caráter de, como quer Lobo Antunes, correção da obra. O capítulo único que farei
poderia ter vários nomes como “Autobiografia Possível de Lobo Antunes” ou “Vida Literária
Lobo Antunes”; mas penso que será melhor chamá-lo simplesmente de “O Narrador António
Lobo Antunes”.
É possível realmente remontar o narrador sem traí-lo? Sem “ler-me” em Lobo Antunes
em vez de lê-lo? Creio não haver leitura totalmente isenta: por mais que siga o autor, é minha
leitura de suas indicações. E mesmo tentando interpor-me o mínimo possível entre autor e obra,
acho necessário justificar minhas escolhas em pequenos andamentos, pequenos textos que
surgem em meio à autobiografia . A função desses pequenos andamentos é demonstrar como faço
minha leitura e também desfazer possíveis incoerências que a autobiografia pode, de algum
modo, permitir. Nesse sentido, a autobiografia pode ser entendida como uma longa citação e os
pequenos andamentos seriam apenas norteadores de minhas escolhas; logo, não se pretendem
explicativos.
Em vista disso tudo, a postura de seguir apenas Lobo Antunes permitiu-me entender que,
para ele, sua escrita é sua vida; não só no sentido de uma dedicação total, mas também de que é
sua única vida comprovável. É possível entender isso pela percepção de que romances e indícios
de uma vida extra-literária muito parecidos indicam que todo texto, a princípio, literário é
autobiográfico. Mas, diferentemente do que a tradição entende do sentido do termo, autobiografia
não significaria a escrita sobre uma vida extra-literária, e sim a escrita que seria uma vida
literária. Sendo essa vida literária o narrador da obra, que seria apenas suas palavras escritas.
Esse entendimento trava, assim, uma aproximação com a demanda filosófica da existência
humana: a autobiografia garantiria essa existência, só que apenas em perspectiva literária; e por
esses pressupostos, penso ser essa a forma de trabalhar a obra do autor: lendo-a. Se ler, para ele, é
seguir suas palavras, é aceitável fazer uma autobiografia possível a fim de destacar, realçar essa
vida literária António Lobo Antunes.
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1. O NARRADOR ANTÓNIO LOBO ANTUNES
1.1. Natal
O Hospital Miguel Bombarda, antigo convento de relógio de junta de freguesia na
fachada, pátio de plátanos oxidados, velho edifício decrépito perto do Campo de
Santana, das árvores escuras e dos cisnes de plásticos do Campo de Santana, perto
do casarão húmido da Morgue. Ex-convento, ex-colégio militar, ex-Manicómio
Rilhafoles do Marechal Saldanha, é corredores e corredores onde os passos e as
vozes ganhavam inquietantes amplidões de caverna, salas enormes, repletas de
mulheres imóveis instaladas em cadeiras de espaldar, mirando-o na fixidez das
estátuas de cera plasmadas em atitudes de espera, e das freiras que deslizavam sem
som nos ladrilhos do soalho, ondeando de leve as câmpulas sobrepostas das saias, e
os cumprimentavam inclinando a goma das toucas num murmúrio de reza.
20
Se Lobo Antunes deseja que apenas o leiamos, esse é meu modo de lê-lo: construindo esta
autobiografia possível a partir, segundo ele, da primeira versão de sua autobiografia e de suas
duas correções imediatamente posteriores.
Esta autobiografia torna-se possível para os padrões do autor no sentido de que expõe
suas palavras, seu nome e, desse modo, ajudam a garantir sua existência como narrador.
Lembrando, é claro, que a existência desse narrador constitui-se, principalmente, a garantia da
presença humana no planeta.
Tendo isso em vista, foi preciso estabelecer uma coerência na autobiografia. Busquei essa
coerência em, digamos, dois níveis ou talvez posso chamar de “ritmos” narrativos: um que se
organizou pelo viés da vida desse narrador e outro que caminhou por uma via temática em busca
de entendimentos.
A partir do primeiro ritmo que posso chamar de “externo”, apontei movimentos dentro da
autobiografia que correspondem, em certo grau, à vida do narrador. Tendo definido esses
movimentos como os estágios dessa vida (nascimento, vida e morte), chamo-os de,
respectivamente, “Natal”, “Peregrinação” e “Fuga”. Já o outro ritmo que posso chamar de
20
Com o intuito de não sobrecarregar o texto da autobiografia, não indico as páginas de onde os trechos são retirados. No entanto,
indico os livros a que pertencem: os trechos em padrão normal foram retirados de Memória de Elefante, os trechos em itálico
foram retirados de Os Cus de Judas e aqueles que estão em negrito são de Conhecimento do Inferno.
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“interno” é construído a partir de entendimentos que a própria autobiografia permite. E o
primeiro desses entendimentos é o estabelecimento de um conteúdo que seria ideal para retratar
o nascimento do narrador nesta parte inicial da autobiografia.
Como o nascimento do narrador possui forte relação com a data religiosa Natal, sendo até
o nome deste movimento, penso se não seria interessante analisar essa data em todos os livros
estudados, já que a percepção desse nascimento ocorreu apenas por Memória de Elefante e por
outras fontes do autor. É preciso, no entanto, fazer essa análise observando o princípio,
estipulado pelo autor, da correção, o que possibilita o pensamento de que em Conhecimento do
Inferno a idéia desse nascimento estará mais próxima da vontade de Lobo Antunes.
Desse modo, observo em Os Cus de Judas uma longa passagem comparativa entre o natal
na guerra e o natal durante a infância, este como festivo e aquele como afastamento de qualquer
festividade, um esvaziamento completo do seu significado tradicional. No seguinte, há
novamente um esvaziamento, mas é acrescido um valor:
O Natal não era o beijo embrulhado na fita vermelha do after-shave dos tios nem as
criadas apinhadas à volta das travessas numa agitação de insectos, não eram as primas do
Brasil e a sua trémula amabilidade de ciprestes, nem os padres debruçados para os doces
num apetite eucarístico [...] o Natal era a casa de saúde perto de Lisboa e as suas
mulheres imobilizadas em contorções patéticas. (ANTUNES, 1999, p.p. 19-20)
21
Assim, se o natal indica o nascimento do narrador, essa seqüência permite entender que,
para ele, o nascimento teria ocorrido em meio à loucura, por isso esta parte da autobiografia trata
de suas palavras sobre a loucura.
No pátio do hospital, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de
calmantes, adolescentes disformes que se babavam em bancos de pau abrindo e
fechando terríveis bocas sem dentes, velhas de bibe a requebrarem-se em acenos de
cocotte, o som inlocalizável de um piano vertical hesitando uma valsa, a arrancar
penas a Chopin como a um frango vivo. As octogenárias pousavam nele os olhos
descoloridos de vidro, ocos como aquários sem peixes, onde o limo ténue de uma ideia
se condensava a custo na água turva das recordações brumosas.
A enfermeira-chefe, a cintilar os incisivos de saldo, pastoreava aquele rebanho artrítico
enxotando-o a mãos ambas para uma saleta em que o televisor se avariara num hara-kiri
21
Essa citação pertence ao meu texto e não à autobiografia.
35
solidário com as cadeiras coxas encostadas às paredes e o aparelho de rádio que emitia,
com sobressaltos felizmente raros, longos uivos fosforescentes de cachorro perdido na
noite de uma quinta. As velhas tranquilizavam-se a pouco e pouco como galinhas salvas
da canja na capoeira de novo em sossego, mastigando a pastilha elástica das bochechas
em ruminações prolixas sob uma oleografia piedosa na qual a humidade devorara os
biscoitos das auréolas dos santos, vagabundos antecipados de um Katmandu celeste.
22
Produzo, de início, uma ambientação desse movimento com a descrição do hospital. Ela
ocorre do exterior ao interior, do físico ao humano como se a escrita percorresse um caminho,
como se fosse uma busca. E, no princípio desse caminho, o humano apresenta-se apenas como
deformidade.
Por esse aspecto, seria possível dizer que, para Lobo Antunes, o humano seria
deformidade? Não sei se há indícios suficientes para afirmar tal coisa, contudo penso que, nesta
escrita, o termo “humano” já serviu para nomear um princípio comum entre homens e mulheres.
Logo, se o humano é o comum, vejo que a deformidade só é percebida por um olhar, por uma voz
que narra imbuída desse aspecto comum. Isso, a meu ver, é uma indicação de que narrador e
leitor devem compartilhar pressupostos e valores e, assim, que a escrita literária exige o leitor,
afinal Lobo Antunes já disse “[...] escreve-se para se ser lido, se não não se escrevia.” (Diário de
Notícias------)
23
Nunca mais esqueceria a casa de saúde na periferia de Lisboa que visitava com os
pais no Natal. Esse natal inesperado como o fórceps que o expulsara da paz de aquário
uterina à laia de quem arranca um dente são da comodidade da gengiva, de forma que,
anunciavas minha velha, o meu filho mais velho é maluco às visitas para desculpar as
(para ti) bizarrias do meu comportamento, as minhas inexplicáveis melancolias, os
versos que às ocultas segregava, casulos de sonetos para uma angustia informe.
24
22
Nessa passagem, há predominância de trechos em padrão normal, pois foram retirados de Memória de Elefante, mas também há
trechos em negrito por serem de Conhecimento do Inferno.
23
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
24
Nessa passagem, há predominância de trechos em padrão normal, pois foram retirados de Memória de Elefante, mas também há
trechos em itálico retirados de Os Cus de Judas e que estão em negrito por serem de Conhecimento do Inferno.
36
A seguir, o natal, nascimento do narrador, é confrontado à descrição de um nascimento
semelhante ao de um ser humano. Como entender esse aparente paradoxo em minha dissertação?
Neste instante, avalio apenas o fato de que, pelos parâmetros já estabelecidos, o narrador não
nasceria daquela forma por ser somente palavra escrita e, por isso, é possível dizer que sua
primeira “respiração” seria as primeiras palavras de Memória de Elefante: “O hospital em que
trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai (...)” (1979, p.11)
Primeira respiração pode ser considerada nascimento? Se assim for, já no primeiro romance
haveria a indicação do nascimento no hospício, algo que, pelo processo da correção, ficou mais
visível aos meus olhos somente em Conhecimento do Inferno.
Nesse sentido, estabeleço um clima, que considero aceitável por iniciar Memória de
Elefante e ser preponderante em Conhecimento do Inferno, de uma consulta entre médicos e
pacientes.
A Psiquiatria é a mais nobre das especialidades médicas.
Cona da mãe! Cona da mãe, meditou ele, que exclamação mais adequada.
Os médicos chegavam ás onze horas, examinavam clinicamente a língua do rio
pelas varandas fechadas à chave, um rio aprisionado também nos caixilhos, azul e
plano como as férias grandes, comungavam cafés rituais nos seus confessionários
laicos separados por estreitas divisórias de tabiques, aumentavam ou diminuíam as
doses dos remédios consoante o frenesim das pacientes, e entravam por fim, em
grupo, na sala de jantar, distribuindo em volta sorrisos de tratadores. Cada sorriso
gritava Eu sou saudável e tu és maluca mas se te portares bem talvez possa fazer
alguma coisa por ti, conseguir que te tornes tão normal como nós, tão normal
normal como nós, tão normal normal normal como nós, três pílulas ao pequeno
almoço, três pílulas ao almoço, três pílulas ao jantar, as doentes aquietavam-se em
silêncio, os internos disseminavam-se estrategicamente na plateia, Faz de conta por
um bocadinho que somos todos iguais, o assistente instalava-se voltado para o
público com a indulgência bondosa de um ministro num sarau de província,
cruzava a perna e entre a meia e a calça reluzia um pedaço de carne peluda
idêntica à gelatina das gordas flores marinhas de Sesimbra, e sempre nesse
momento, no exacto instante em que a sessão principiava, apetecia-me levantar-me
latindo para morder aquele naco redondo de canela, a canela do Poder que oscilava
como um pêndulo o sapato de verniz numa serenidade paciente. Não havia saída: a
enfermeira, de braços cruzados, guardava a porta, e ele pensou olhando os colegas
O sonho destes tipos é serem psiquiatras por direito divino, terem razão por
infabilidade papal, imporem a sua pomposa e melancólica ordem à desordem
alheia, determinarem eles próprios, a traços de cal, os voláteis limites do sofrimento
e da alegria. Se eu abocalhar a canela que preside, ladrando a quatro patas a
minha indignação raivosa, o cónego limitar-se-á a tocar-me no ombro uma
palmada amável e a sugerir Você não está bem: porque é que não faz análise?, com
a amistosa compreensão dos carrascos. A camisa de dormir de algodão calou-se de
repente (a meio de uma sílaba?) a perna perguntou:
37
- Alguém quer comentar a acta?
- O que é que há de inquietante no orgasmo?, inquiriu o psicanalista com um
sorriso de eleito, um sorriso de bispo.
- Estes gajos estão doidos, estes gajos é que são mesmo os doidos.
- Falismo adolescente, exibicionismo, desenfreada competição com o imago
paterno_ discursou ele.
- Pavor de castração.
- O que o quê?
- Pavor da castração_ repetiram em coro, como na escola, os aprendizes de
psicanalistas durante a pausa do café. Estes gajos estão de facto doidos, de todos os
médicos que conheci os psicanalistas, congregação de padres laicos com bíblia,
ofícios e fiéis, formam a mais sinistra, a mais ridícula, a mais doentia das espécies.
Enquanto os psiquiatras das pílulas são pessoas simples, sem veredas, meros
carrascos ingénuos reduzidos à guilhotina esquemática do electrochoque, os outros
surgem armados de uma religião complexa com divãs por altares, uma religião
rigidamente hierarquizada, com os seus cardeais, os seus bispos, os seus cónegos, os
seus seminaristas já precocemente graves e velhos, ensaiando nos conventos dos
institutos um latim canhestro de aprendizes. Dividem o mundo das pessoas em duas
categorias inconciliáveis, a dos analisados e a dos não analisados, ou seja, a dos
cristãos e a dos ímpios, e nutrem pela segunda o infinito desprezo aristocrático que
se reserva aos gentios, aos ainda não baptizados e aos que se recusam ao baptismo,
a estenderem-se numa cama para narrarem a um prior calado as suas íntimas e
secretas misérias, as suas vergonhas, os seus desgostos. Nada mais existe para ele no
universo além de uma mãe e de um pai titânicos, gigantescos, quase cósmicos, e de
um filho reduzido ao ânus, ao pénis e à boca, que mantém com estas duas criaturas
insuportáveis uma relação insólita de que se acha excluída a espontaneidade e a
alegria. Os acontecimentos sociais limitam-se aos estreitos sobressaltos dos
primeiros seis meses de vida, e os psicanalistas continuam teimosamente agarrados
ao antiquíssimo microscópio de Freud, que lhes permite observar um centímetro
quadrado de epiderme enquanto o resto do corpo, longe deles, respira, palpita,
pulsa, se sacode, protesta e movimenta.
25
A autobiografia cresce pela inserção de diálogos, algo comum às autobiografias aqui
estudadas; mesmo em Os Cus de Judas, pois sugere a existência de uma interlocutora. Os
diálogos nos romances provocam um ritmo próprio à narração: por vezes, tratam de um assunto
circunstancial e, por outras, perseguem um significado, seja pelo acúmulo de idéias ou por
destruição progressiva de uma apenas. Sendo pelo último modo que as duas primeiras falas
apresentadas são estabelecidas, pois uma traz a idéia e outra serve como ataque, tentativa de
destruição.
Sem falar que a constituição da segunda ocorre em tom que une o agressivo ao formal, o
que resulta numa espécie de “pompa jocosa”. Esse tipo de atitude comum ao narrador pode ser
25
Nessa passagem, há predominância de trechos em negrito por serem de Conhecimento do Inferno. No entanto, surgem também
trechos em padrão normal, pois foram retirados de Memória de Elefante.
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entendida a partir da seguinte afirmação: “Eu penso que em literatura não há palavrões.” (Jornal
de Letras, Artes e Ideias, 05 de abril de 1988)26 Isso, a meu ver, nivelaria todos os tipos de
linguagem como se a dizer que todos os tipos possuíssem a mesma função nos romances: talvez
atacar um certo status que a Literatura teria ou, simplesmente, constituir o narrador, seu corpo, o
índice de sua existência.
Lembrou-se de quando chegou ao Hospital Miguel Bombarda com um papel no
bolso, uma guia de marcha como na tropa, era Junho de 1973 e suava de calor sob
o casaco, a camisa, a gravata, a farda laica, civil, que vestia. Parou a olhar a
fachada do hospital que as folhas devolviam de tronco em tronco e de copa em
copa, como investida numa lâmina trémula de água, e um sujeito pequenino, calvo,
de camisa aos quadrados, apareceu a gingar de um cubículo de vidro e pendurou-
se-lhe efusivamente do braço, de cara aberta em duas pela ferida enorme do
sorriso:
- Raios me partam se não é o filho do senhor professor.
E ele recordou-se de em miúdo acompanhar o pai ao laboratório, cheio de frascos,
de vasos cúbicos em que flutuavam cérebros gelatinosos, de tubos de ensaio, de
microscópios, de bicos de gás, e de ficar empoleirado num banco giratório a assistir
às conversas do pai com aquele homem então mais novo, mais grande, mais hirsuto,
vestido de fato-macaco, de boné na cabeça, que ocupava por inteiro uma atenção
que ele exigia fosse sua.
- Como está o paizinho, menino? Como está o paizinho, menino?, perguntou alto no
Harry’s bar para as mesas desertas, para o empregado que limpava copos ao fundo
por detrás da trincheira do balcão, para os candeeiros apagados como pupilas
vazias. O sujeito voltou-se para o cubículo de vidro sem lhe largar o braço, e
chamou de mão em pala ao lado da boca à maneira dos pregoeiros dos jornais:
- Dona Alzira, venha ver quem está aqui. Raios me partam se não é o filho do
senhor professor.
Uma mulher de bata preta assomou a rebolar as varizes, de mãos postas no peito
imenso numa surpresa enlevada:
- Eram tão pequeninos, tão loiros, tão bonitos. Percebia-se logo que o senhor
professor se babava pêlos filhos.
- Nunca foi de mariquices_ argumentou o porteiro, indignado, tomates pretos,
grandes, ali no sítio.
- E agora o menino um malutão, hã? Chiça, vou beber um martini ao Varela à pala
disto.
De facto, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de
avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me
esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o frágil prazer da alegria
infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me
parece escutar, sabe?, de tempos a tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua
deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça.
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26
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
27
Nessa passagem, há predominância de trechos em negrito por serem de Conhecimento do Inferno. No entanto, surgem também
trechos em itálico, pois foram retirados de Os Cus de Judas.
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Pelo desenrolar da cena uma perspectiva que se faz interessante é uma intensa mobilidade
temporal provocada pelo trabalho com a memória. Em vista disso, a narrativa é estruturada,
basicamente, em dois planos temporal: o tempo em ocorre a narração e o da memória. Os planos
alternam-se de tal forma que sustentam uma continuidade entre si, o que poderia sugerir um
andamento múltiplo do tempo ou, talvez, como defende Maria Alzira Seixo, uma ausência de
tempo.
No entanto, um entendimento que María Luisa Blanco sintetiza traça um outro caminho:
Dela [a guerra] ficou lhe, segundo a sua própria reflexão, uma nova concepção do tempo
que impregna toda a sua obra: essa idéia linear em que não existe passado nem futuro,
só o imenso presente que engloba tudo” e que é uma idéia chave no momento de nos
confrontarmos com a prosa do autor. ( BLANCO, 2002, p. 64)
28
Como entender esse “imenso presente”? Penso que ele sugere um tempo único, o tempo
da narração. Esse entendimento é valido pela medida do narrador Lobo Antunes, ou seja, se o
narrador for apenas palavra escrita, o tempo também o será. Seria como dizer que os fatos, por
terem sua seqüência percebida somente devido ao aspecto temático, indicassem que não seria
necessário uma seqüência baseada no tempo, pois “realizados” ou “lembrados”, os fatos seriam,
unicamente, narrados. E, assim, os planos temporais no nível interior da narração, o narrado,
seriam apenas construídos pelo tempo único da superfície da escrita.
De início nem reparei nos internados, só na claridade coada e doce dos plátanos, no
verde-escuro dos plátanos contra o verde-claro do céu, mais pálido no ponto onde
tocava as casas e a linha irregular de ameias dos telhados, como se torna branca a
pele que um dedo prime. Cuidara-se num casarão de província habitado pelos
fantasmas de Fellini: escorado por muros que escorriam de humidade pegajosa, e
começou a subir as escadas que conduziam ao gabinete do director do internato,
onde os médicos novos se juntavam, perto de uma secretária com uma flor de
plástico no tampo, em pequenos gruposmidos de caloiros. Eis-me no reino das
flores de plástico, verificou acariciando com o polegar as orgulhosas pétalas
postiças, no meio dos sentimentos de plástico, das emoções de plástico, da piedade
de plástico, do afecto de plástico dos médicos, porque nos médicos quase só o
horror é genuíno, o horror e o pânico do sofrimento, da amargura, da morte.
Quase só o horror sangra nos que se debruçam para a angústia alheia com os seus
instrumentos complicados, os seus livros, os seus diagnósticos cabalísticos, como em
28
Essa citação pertence ao meu texto e não à autobiografia.
40
pequeno eu me inclinava para os moluscos na praia, virando-os com um pauzinho
para espiar, curioso, o outro lado. No andar de baixo, no imenso corredor de lajes
do andar de baixo, um homem invisível gritava a aflição dos porcos na matança, de
pescoço golpeado pela grossa lâmina das facas. Talvez seja por isto, calculou, que
põem flores de plástico nas jarras, porque as flores de plástico são como os bichos
empalhados: assistem numa indiferença absoluta ao espectáculo da dor: nunca
conheci nenhuma flor de plástico que se comovesse diante de um cadáver.
- Um cigarro um cigarro um cigarro
ganiam implorativamente os pijamas pulando à sua roda como canhices sequiosos.
Um doente de cabeça minúscula, incapaz de falar, procurava beijar-lhe as mãos
num arrebatamento de cuspo. Outro, de joelhos, farejava-lhe o umbigo
introduzindo o nariz húmido por um intervalo da camisa. O porteiro do martini,
vindo em seu socorro, afastava-os de mãos estendidas como os perus no Natal,
brandindo uma cana imaginária, porque não saio a correr o portão e me especializo
em dentista, ou pediatra, ou fisioterapeuta, ou clínico geral, ou otorrino, qualquer
coisa de concreto com doenças concretas, tranquilizadoras, sólidas, compactas,
reais, cáries, tumores, desvios da coluna, sinusites, hérnias, anginas, porque catano
entro com os outros no gabinete escuro do director do hospital, onde nos aguarda,
de pé, protegido por uma secretária enorme com um enorme tinteiro de vidro em
cima, a decepá-lo pela cintura e a reproduzir-lhe o busto invertido como os reis de
copas, um senhor de cabelos brancos que ajeita a gravata, tosse para
presidencializar a voz, apoia os vértices dos dedos no rectângulo do mata-borrão, e
afirma
- A Psiquiatria é a mais nobre das especialidades médicas, com a pompa de quem
oferece ao mundo uma descoberta genial.
Estou em Auschwitz, pensou, estou em Auschwitz, fardado de SS, a escutar o
discurso de boas-vindas do comandante do campo enquanto os judeus rodam lá
fora no arame a tropeçarem na própria miséria e na própria fome, estou bem
barbeado, bem engraxado, bem alimentado, bem vestido, pronto a aprender a
cumprir o meu ofício de guarda, pertenço à raça superior dos carcereiros, dos
capadores, dos polícias, dos prefeitos de colégio e das madrastas das histórias das
crianças, e em vez de se revoltarem contra mim as pessoas aceitam-me com
consideração porque a Psiquiatria é a mais nobre das especialidades médicas e é
necessário que existam prisões a fim de se possuir a ilusão imbecil de ser livre, de
poder circular na praça de Albufeira esporeado por uma esposa autoritária,
apavorado com o sábado depois do jantar em que ela me devorará na cama, com as
gigantescas mandíbulas da vagina, obrigando-me a suar sobre a geleia do seu corpo
a ginástica do desânimo conformado.
Tinha força: tinha mulher, tinha filhas, o projecto de escrever, coisas concretas, bóias de
me aguentar à superfície. Se a ansiedade me picava um nada, à noite, sabes como é, ia ao
quarto das miúdas, àquela desordem de tralha infantil, via-as dormir, serenava: sentia-me
escorado, hã, escorado e a salvo. E de repente, caralho, voltou-se-me a vida do avesso,
eis–me barata de costas a espernear, sem apoios, amparou-se à mesa e principiou a dizer:
- Quero ser internado porque estou maluco.
- O que se passa?
no tom competente e distraído dos médicos de serviço.
Interne-me imediatamente interne-me imediatamente interne-me imediatamente.
E comecei a chorar em silêncio diante do psiquiatra, sentindo as lágrimas
descerem-me pela cara como as gotas de humidade que procuram caminho nos
azulejos da parede, babando atrás de si rastos pegajosos de caracol.
41
- Labilidade emocional_ verificou com desprezo o cachimbo como se me observasse
à lupa_ Manifesta labilidade emocional.
29
Essa percepção do andamento do romance somente por via temática, permite observar um
percurso que o narrador parece desenvolver: apresentar-se como médico e chegar ao fim do
romance como mais um paciente. Memória de Elefante inicia-se com o personagem chegando
para trabalhar no hospital e, quase no fim, participa de uma sessão de análise de grupo; em Os
Cus de Judas é algo sutil, mostrando o sujeito como médico que não consegue ter uma vida
regular de forma alguma e em Conhecimento do Inferno a metamorfose é total quando ele se vê
analisado e castrado como que num delírio.
- Estes doentes têm muitas vezes reacções imprevisíveis _ explicou o médico_ Nunca
convém falar com eles a sós. Comover-se é o menos mas com a agressividade não se
brinca. Ainda outro dia levei um pêro de surpresa no corredor.
- Vai-te embora_ gritávamos_ vai-te embora vai-te embora _, para o homem que
cambaleava entre os resposteiros, de óculos em punho, com a papada luzidia de
suor a estremecer de indecisão. Vai-te embora, repetíamos, vai-te embora vai-te
embora, até que um enfermeiro surgiu do corredor, puxou o internado pelo casaco
seboso, e o arrastou para longe de nós num raspar de solas de borracha no soalho
encerado. Murmúrios de ultraje percorriam ainda a assembléia (um internado
atrever-se a interromper a reunião dos médicos) quando o socialista democrático
revolucionário que presidia, acolitado por dois doutores socialistas democráticos
revolucionários que tomavam notas pausadas informou que por unanimidade se
havia decidido a participação activa dos doentes na gestão do hospital, e os
psiquiatras se ergueram entusiasmados para saudar esta socialista, democrática e
revolucionária medida com um temporal de aplausos. Ria-me ao pensar nos
argumentos absurdos com que tentavam conciliar o marxismo e a psiquiatria, isto
é, a liberdade e a sua condição de carcereiros, ria-me das invenções que descobriam
para apaziguar a sua má consciência, Psiquiatria Social, Sectorização, Psiquiatria
Democrática, Anti-Psiquiatria, das suas justificações e dos seus subterfúgios.
- Senta-te aí_ disse o psiquiatra examinando uma ficha.
A única cadeira livre era a cadeira dos malucos, do outro lado da mesa: assim que
eles se começarem a agitar atire-lhes com a secretária para cima, recomendava um
especialista de Santa Maria aos seus internos, a maneira de lidar com eles é atirar-
lhes a secretária contra o corpo e chamar imediatamente a enfermeira de serviço;
esmagá-los como percevejos, percebe? Isto parece uma brincadeira de mau gosto,
pensou ele, dá idéia que o percevejo sou eu.
- Como te davas em pequeno com os teus pais?
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Nessa passagem, há predominância de trechos em negrito por serem de Conhecimento do Inferno. No entanto, surgem também
trechos em padrão normal, pois foram retirados de Memória de Elefante.
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Pensei que nunca soubera de facto mostrar-lhes quanto gostava deles, por timidez ou
por pudor, e a ternura tantos anos reprimida trazia-me à boca o sabor amargo do
remorso e o desgosto de haver frustrado as suas pequenas esperanças ao transformar a
minha vida numa sucessão sem nexo de cambalhotas desastrosas.
Foi em África, no país dos Luchazes, que eu soube que em Lisboa não existia a
noite. O país dos Luchazes é um planalto vermelho, mil e duzentos metros acima do
mar, em que o pó cor de tijolo atravessa a roupa para nos aderir à pele, se nos
enredar nos cabelos, nos obstruir as narinas do seu odor de terra, próximo do odor
ácido e seco dos mortos.
O país dos Luchazes, quase despovoado de árvores, é um país de leprosos e de
trevas, um país de vultos inquietos, de rumorosos fantasmas, de gigantescas
borboletas emergindo dos seus casulos do escuro para cambalearem, em busca das
lâmpadas, numa obstinação desesperada de raiva, É o país onde os defuntos
assistem sentados aos batuques, frenéticos da presença invisível dos deuses,
arregalando de prazer as órbitas côncavas como tinteiros de escola, repletas de
densas lágrimas de alegria. É um país magro de mandioca e de caça, embaciado de
nevoeiro, que os espíritos desertam a caminho das florestas do Norte, tão tocadas
de vida como o despertar, em Maio, das maçãs. Nesse país de pequeninos rios
estreitos como pregas na pele, minúsculos como cicatrizes ou como vincos de
sorrisos, encontrei amigos entre os pobres negros da PIDE, Chinóia Camanga,
Machai, Miúdo Malassa, os chefes da tropa laica que a PIDE arregimentara para
combater os guerrilheiros, e que saíam para a mata ao alvorecer a fim de lutar
contra o MPLA e a UNITA, silenciosos e rápidos como animais de sombra. Eram
homens corajosos e altivos enganados por uma propaganda perversa, pelas
garantias cruéis, pelas promessas mentirosas do regime, e eu costumava conversar
com eles, à tarde, nas suas casas de adobe, acocorados num tronco, olhando a
mancha branca do quartel no alto, onde os faróis dos jipes produziam uma
indecifrável dança de sinais. Cães esqueléticos latiam das moitas gemidos aflitos de
menino, as galinhas procuravam abrigo nas esteiras, Machai, o irmão da
professora, trazia uma cadeira para mim, dizia:
- Tumama tchituamo, Muata
e ficava ao meu lado a contemplar o seu país em guerra, as queimadas do cacimbo,
a chegada das trevas com o seu cortejo de fantasmas, ficava a contemplar o seu país
com a expressão impassível dos Luchazes, ou ensinava-me pacientemente a sua
língua estranha com um brilho divertido nos olhos. Às vezes, António Miúdo
Catolo, o Muata dos Muatas, o chefe dos chefes, vinha ter connosco à cubata de
Machai na colina do hospital civil, junto ao quimbo de Sandindo e de Bartolomeu,
os caçadores de crocodilos, que me garantiam que ao abrir um jacaré se topavam
diamantes e areia na barriga, diamantes grossos como órbitas despedindo reflexos
de sangue na gelatina azul dos intestinos.
- A noite em Lisboa é uma noite inventada_ disse eu_ , uma noite a fingir. Em
Portugal quase tudo, de resto, é a fingir, a gente, as avenidas, as casas, os
restaurantes, as lojas, a amizade, o desinteresse, a raiva. Só o medo e a miséria são
autênticos, o medo e a miséria dos homens e dos cães.
Só em 1973, quando cheguei ao Hospital Miguel Bombarda para iniciar a longa
travessia do inferno, verifiquei que a noite desaparece de facto da cidade, das
praças, das ruas, dos jardins e dos cemitérios da cidade, para se refugiar nos
ângulos das enfermarias, como os morcegos, nos globos do tecto das enfermarias e
nos velhos e esbeiçados armários de medicamentos, nos aparelhos de electrochoque,
nos baldes de pensos, nas caixas de seringas, até os internados regressarem em
silêncio do refeitório e ocuparem as camas de ferro por pintar, o servente rodar o
comutador da luz e ela desdobrar o feltro nojento das asas, o feltro nojento e
pegajoso das asas sobre os homens deitados que a fitam de entre os lençóis numa
irreprimível náusea.
43
- Porque camandro é que não se fala nisto?
- O senhor doutor perguntou-te como te davas em pequeno com os teus pais.
Em pequeno com meus pais era pequeno demais para lembrar-me. Havia Lagos e
não me recordo de Lagos, do mar, da minha mãe jovem. Pessoas intemporais
passeiam-me vagamente na memória, a figueira sobre o poço oscila ainda os ramos
desfocados, a criada do abade, de mãos cruzadas sobre o avental, sorri. Não,
espere, o meu irmão caiu um dia ao tanque, debatia-se nos limos, entre os peixes.
Comecei a gritar. Vestiam-nos de igual antes da longa e dolorosa saga de herdar a
roupa dos tios. A costureira que lá ia a casa comia em cima da máquina, num
tabuleiro, de costas curvadas para o prato.
- Não se tira muito mais dele hoje_ informou o psiquiatra para os carcereiros
estagiários que inscreviam aplicadamente nos seus blocos sugestões e dúvidas. Um
deles sublinhava certas palavras com o lápis que segurava atravessado nos dentes,
como um freio. _ Quando as gotinhas começarem a fazer efeito repetimos a
entrevista. Vocês vão ver como tudo isto sai diferente.
Querem mudar-me a infância, pensou ele, torná-la asséptica, despovoada,
inabitável. Querem roubar-me os bibelots do passado, a comunhão solene, a
primeira masturbação, os Três Vintes clandestinos das férias grandes, transformar-
me a vida num quarto de hotel impessoal e feio, com flores de pano na mesa de
cabeceira e a espiral apagada do radiador num canto: afasta-se a cortina e a Filipe
Folque, lá em baixo, mira-nos com as inexpressivas, ocas órbitas murchas das
estátuas. As cabeças das pessoas vistas do alto, as calvícies, as raízes grisalhas do
cabelo. A merda branca dos pássaros no tejadilho dos carros, nos telhados. As
árvores lívidas, fatigadas, da manhã. Querem roubar-me a ansiedade, o medo, a
alegria, oferecer-me ao fim-de-semana um maço de cigarros pequenos, mata-ratos,
que penetram nos pulmões numa chuva de lâminas agudas, venenosas.
- O que estás a sentir?
Cheguei ao fundo. Ao fundo do fundo dos fundos e não tenho a certeza de conseguir sair
dos limos onde estou. Não tenho mesmo a certeza de que haja sequer saída para mim,
percebes? Às vezes ouvia falar os doentes e pensava em como aquele tipo ou aquela tipa
se enfiavam no poço e eu não achava forma de os arrancar de lá devido ao curto
comprimento do meu braço. Como quando eu estudantes nos mostravam os cancerosos
nas enfermarias agarrados ao mundo pelo umbigo da morfina. Pensava na angústia
daquele tipo ou daquela tipa, tirava remédios e palavras de consolo do meu espanto, mas
nunca cuidei vir um dia a engrossar as tropas.
- Não quero ser boi, não quero ser legume, não quero deitar-me lá fora ao sol como
os cadáveres dos desastres alinhados nos carris. Não quero as visitas aos domingos,
os passeios ao Jardim Zoológico, o programa de Natal na televisão. Não quero
jogar as damas com os defuntos.
- Esquizofrenia? _ inquiriu o cachimbo ao assistente, erguendo uma sobrancelha
sábia. Durante o curso estudara com certeza os apontamentos todos, decorara
dezenas de sintomas, e esforçava-se agora por os articular, sem sucesso, num
mosaico coerente.
- Linguagem estranha, absurda, sem contacto com a realidade_ apoiou o Freud. _
Fala de legumes e de bois.
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Nessa passagem, há predominância de trechos em negrito por serem de Conhecimento do Inferno, mas também há trechos em
padrão normal, pois foram retirados de Memória de Elefante e trechos em itálico retirados de Os Cus de Judas.
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Determinar-se “louco” pode causar no leitor uma percepção negativa em relação ao
narrador, no entanto pode vazar dessa autodeterminação perspectivas interessantes a Lobo
Antunes, pois certa vez disse: “No fundo, o que é enlouquecer? É sair de determinada norma, não
é? É preciso muita coragem para se ser realmente louco.” (O Jornal, 30 de outubro de 1992)31 Se
for preciso coragem para ser o narrador Lobo Antunes, a loucura terá sido o meio pelo qual
adquiriu essa coragem.
Em outra ocasião, ele estabelece mais uma perspectiva sobre o tema:
Um amigo meu, o Daniel Sampaio, talvez o melhor psiquiatra português, costumava
dizer que só os psicóticos são criadores. Você fala com um neurótico e são tipos que não
são nada, que são chatos, repetitivos. Os psicóticos são espantosos, dizem frases
espantosas, estou-me a lembrar de uma que era “aquele homem tem uma voz de
sabonete embrulhado em papel furta-cores.” Isso é uma frase do caraças. (Expresso, 07
de novembro de 1992)
32
O ponto que creio ser o mais importante nessa declaração é a descrição da habilidade
criativa entre psicóticos e neuróticos. É possível adquirir uma perspectiva interessante se
observarmos essa questão e levarmos em consideração que em Conhecimento do Inferno (terceira
versão da autobiografia e, por isso, a que está mais próxima da vontade do autor dentre os livros
analisados) o saldo final é a sensação de que todos no hospício, independente de sua posição,
estão loucos.
Se, como ele disse na declaração acima, a capacidade verbal indicar uma capacidade
criativa, observar as declarações daqueles que são apresentados no hospício permite dizer que o
narrador seria um psicótico e os médicos, neuróticos. E, talvez seja esse o motivo (ou um dos)
para declarar “Sou uma pessoa psicótica e tenho profundas perturbações.” (Público, 18/
10/1992)
33
- Não pode haver um médico esquizofrénico_ declaro em volta procurando
desesperadamente, por cima dos copos, uma aprovação que não chega. Sou
31
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
32
Essa citação pertence ao meu texto e não à autobiografia.
33
Citação retirada da página na Internet: < www.citi.pt/cultura/literatura/romance/lobo_antunes >
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médico_ informei num murmúrio._ Sou médico aqui. Trabalhamos juntos,
participamos juntos em reuniões comunitárias, herdei doentes teus.
- Actividade delirante actividade delirante actividade delirante_ grasnou o
cachimbo num júbilo.
O admirador de Freud uniu as cabeças dos dedos e desceu as pálpebras com unção
recolhida:
- Introjecta por incapacidade de competir. Este homem é uma personalidade oral.
- Oral ou não vamos dobrar-lhe a dose_ resolveu o psiquiatra premindo a
campainha.
- O António não quer dizer o que está a sentir?
- Sou médico, estou inscrito na Ordem, pago as quotas_ argumentou de mão
estendida para o maço de cigarros da gravata. Kayak mentolado: tira a tesão. De
qualquer das maneiras se me dobram a dose perco-a na mesma: os remédios do
hospital capam um exército inteiro, transformam as pessoas em tristes bois
castrados e pacientes, mugindo na cerca a sua mágoa mansa. Talvez que lhes
apetecesse ganir, uivar, latir, estrangular os enfermeiros, quebrar os vidros das
janelas. Talvez que lhes apetecesse morrer mas os remédios do hospital capam até a
simples, raivosa, natural, quase agradável vontade de morrer, param o sangue nas
artérias, suspendem os gestos, engelham os sorrisos, reduzem os passos a um
cambaleio hesitante de criança: os manicómios não passam de hortas de repolhos
humanos, de miseráveis, grotescos, repugnantes repolhos humanos, regados de um
adubo de injecções. Os chinelos de lona apertavam-me os pés, os testículos
comichavam. Alguém me roubara a roupa, os atacadores, o cinto. A costura do
pijama doía-me nos rins, a brandir uma muleta de inválido urrava:
- Fodo os cornos do primeiro que se aproximar
.
- Alternâncias características de agressividade e submissão_ observou o psicólogo
do cachimbo, chupando, de bochechas cavadas como godês, o fornilho apagado.
- Graves problemas de identificação com a imagem paterna_ sugeriu o coelho.
Nunca sairei do hospital: os sócios a quem se dava alta desciam a alameda a
caminho do Campo de Santana, olhavam as casas, as rolas, as pessoas, os
automóveis, e regressavam à pressa ao manicómio apavorados por uma cidade a
que se desabituaram, pela complicação do trânsito, pela atrapalhação sem possível
saída das ruas, pelo rio ao fundo que era como que um abismo sobre o qual
houvessem estendido uma folha de papel azul a imitar a domesticada tranquilidade
das águas, um abismo que os podia engolir em cada esquina, porque em cada
esquina o rio espreita-nos, aguarda-nos, insinua sob os pés uma toalha traiçoeira de
lodo. Regressam ao hospital e escondem-se a tremer nos corredores dependurando-
nos do casaco os punhos suados de medo. O ano passado um doente chegou aos
Mártires da Pátria, desceu ao urinol subterrâneo, fechou-se numa retrete, regou-se
de petróleo, acendeu um fósforo, e transformou-se do pescoço para cima num
torresmo horrível, numa estátua calcinada, num leve pedaço de madeira onde luzia
a coroa de prata de um dente. De outra ocasião, num dos seus dias de serviço, um
homem jogou-se da janela da 7ª. Enfermaria, e esmagou-se cá em baixo, de braços
abertos, como um sapo: O delírio, explicavam os médicos, Um impulso epiléptico,
explicavam os médicos, e assinava-se a certidão de óbito numa segurança,
tranquilo: ninguém tem culpa.
E no entanto crescia em mim uma espécie de vergonha, ou de aflição, ou de
remorso, sempre que preenchia um boletim de internamento e aferrolhava no
manicómio as íris surpreendidas e tímidas que me fitavam. Ninguém tem culpa e eu
preciso de comer, obtive este emprego do Estado, procedi a exames, concursos,
testes de cruzadinhas, provas públicas, pago renda de casa, electricidade, gás,
aluguer de telefone, gasolina, e justifico os vinte contos que ganho aprisionando
pessoas no asilo, escutando desatento as suas inquietações e as suas queixas,
chegando tarde ao dispensário para consultas apressadas (Que mal faz se os
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doentes esperam por mim das nove ao meio-dia, que mal faz se em cinco minutos os
oiço e os despacho, que mal faz se me preocupam mais as pernas cruzadas da
estagiária do que a angústia dos que me procuravam?) entrando e saindo no asilo
numa pressa de cuco de relógio. Os gajos matam-se porque se matam, porque o
delírio, porque a epilepsia, porque a psicose, declaram-me Não sei que volta hei-de
dar à minha vida e eu penso E à minha que volta darei eu, que volta darei à minha
vida na noite plana, imensa, sem limites do Alentejo, que parece anunciar-me
constantemente, no zunir dos insectos e no Setembro das árvores, o segredo de uma
mensagem indecifrável.
Os asilados comiam em silêncio como as vacas nos estábulos, presos por argolas que
se não viam aos azulejos da parede, entornados nos pijamas à maneira de bonecos
de cera em rígidos moles de cotão. Comiam em pratos de folha, em púcaros de
folha, com talheres de folha, comiam e olhavam para mim, enquanto mastigavam
de queixo rente à pedra da mesa, com a expressão implorativa e medrosa dos cães
debruçados para as tigelas de arroz junto ao tanque de lavar roupa do quintal. São
homens, pensava eu, homens destruídos pelas pastilhas, pela miséria, pelos seus
tristes fantasmas, homens que a pouco e pouco se parecem com esquisitos bichos,
com desesperados, obedientes, estranhos bichos girando na cerca à laia dos animais
nas grades do Jardim, de expressões trituradas pelo desinteresse e pelo medo. Uma
espécie de repugnância, de nojo, de zanga crescia em mim numa onda de marés, e
apetecia-me empurrá-los, Joana, apetecia-me bater-lhes, apetecia-me enxotá-los na
direcção do portão, apetecia-me insultá-los até que recuperassem a insolência, o
desafio, o orgulho, o desprezo, a firmeza, até que levantassem o queixo da mesa e
me fixassem, no refeitório naseabundo e húmido, sorrindo de altivez e de sarcasmo.
- Com um feitio assim hás-de acabar sozinho como um cão.
Sempre estive isolado, Sofia, durante a escola, o liceu, a Faculdade, o hospital, o
casamento, isolado com os meus livros por demais lidos e os meus poemas pretensiosos
e vulgares, a ânsia de escrever e o torturante pânico de não ser capaz, de não lograr
traduzir em palavras o que me apetecia berrar aos ouvidos dos outros e que era Estou
aqui, Reparem em mim que estou aqui, Oiçam-me até no meu silêncio e compreendam,
mas não se pode compreender, Sofia, o que se não diz, as pessoas olham, não entendem,
vão se embora, conversam umas com as outras longe de nós, esquecidas de nós, e
sentimo-nos como as praias em Outubro, desabitadas de pés, que o mar assalta e deixa
no baloiçar inerte de um braço desmaiado. Sempre estive sozinho, Sofia, mesmo na
guerra, sobretudo na guerra, porque a camaradagem da guerra é uma camaradagem de
generosidade falsa, feita de um inevitável destino comum que se sofre em conjunto sem
de facto se partilhar, estendidos no mesmo abrigo enquanto os morteiros estoiram como
os ventres repletos de ferro ferido dos cancerosos nas enfermarias do hospital,
apontando ao tecto narizes agudos de pássaros que apodrecem, sozinho, mesmo na
missão abandonada, sentado com o tenente no banco traseiro do jeep sob as acácias, a
escutar os insectos e os pássaros e o ensurdecedor silêncio de África, sozinho na
enfermaria no meio dos feridos que gemiam, e choravam, e chamavam por mim noites a
fio, dobrados pelo medo e pelas dores.
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Nessa passagem, há predominância de trechos em negrito por serem de Conhecimento do Inferno, mas também há trechos em
padrão normal, pois foram retirados de Memória de Elefante e trechos em itálico retirados de Os Cus de Judas.
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Em outra perspectiva, pude testar o conceito depreendido de autobiografia. O narrador (e
personagem principal) do romance é nomeado tal qual o nome presente na capa do livro. Esse
fato, que ocorre em Conhecimento do Inferno em mais de uma ocasião
35
reforçaria o caráter
autobiográfico da obra para aqueles que tomam o conceito de autobiografia pelo entendimento
comum, pois a coincidência dos nomes seria indício de equivalência entre o narrador e o ser
extra-texto que escreve o livro. No entanto, pelo que já foi visto, a coincidência entre os nomes é
aceitável, mas não é necessária. Isso pode ser justificado pelo fato de que a autobiografia,
segundo medida detectada, não leva em consideração um ser fora do texto.
- Quando eu andava na escola, a professora, que cheirava mal dos pés aliás tortos,
mandou-nos desenhar os bichos do Zoológico e eu fiz o cemitério dos cães, lembras-te
como é? O Alto de São João dos caniches? Dá-me idéia às vezes que Portugal todo é um
pouco isso, o mau gosto da saudade em diminuitivo e latidos enterrados debaixo de
lápides pífias. Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho, de uma cidade
afogada de casas que se multiplicam e reflectem umas às outras nas fronteiras de
azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, porque o céu é
feito de pombos próximos, consiste numa magra fatia de rio que os gumes de duas
esquinas apertam, e o braço de um navegador de bronze atravessa obliquamente num
ímpeto heróico. Não, a sério, policiaram-me o espírito, em suma, e reduziram-me a
geografia aos problemas dos fusos a cálculos de amanuense cuja caravela de aportar às
Índias se metamorfoseou numa mesa de fórmica com esponja em cima para molhar os
selos e a língua.
O seu domínio fora sempre o do sonho confuso e vagueante, sem tábua de logaritmos
que o descodificasse, e acomodava-se a custo à ideia de uma ordenação geométrica da
vida, dentro da qual se sentia desorientado como formiga sem bússola. Daí a sua
sensação de existir apenas no passado e de os dias deslizarem às arrecuas como os
relógios antigos, cujos ponteiros se deslocam ao contrário em busca dos defuntos dos
retratos, lentamente aclarados pelo ressuscitar das horas.
Em todo caso a medicação atira-o bastante abaixo, diz o enfermeiro, dormiu
quarenta e oito horas só com uma seringa.
- Mais alguma informação? _ perguntou a perna balouçando sempre.
Procuro esconder a ternura de que me envergonho e o afecto que me apavora, talvez
porque desde o princípio tenhas topado que sob o desafio, a agressividade, a arrogância,
se ocultava um apelo aflito, um grito de cego, a mirada lancinante de um surdo que não
percebe e busca em vão decifrar, nos lábios dos outros, as palavras apaziguadoras de que
necessita.
- Informo que vocês estão loucos _ apeteceu-me dizer em voz alta. _ Informo que
tudo isto, esta reunião, este asilo, esta merda científica são a prova acabada da
vossa estupidez, da vossa inutilidade, da vossa loucura, informo que estou a
enlouquecer com vocês e quero que me levem daqui antes que me torne numa
camisa de dormir de algodão recheada de pastilhas, a vaguear aos domingos de
manhã pelas jaulas do Jardim Zoológico.
35
Há, em certo momento, uma nomeação total: “- Este é António Lobo Antunes_ disse o Zé Manel na sua voz afectuosa e doce
que transformava as palavras em ternos bichos de feltro.” (ANTUNES, 1999, p. 77)
48
Nunca mais esqueceria a casa de saúde na periferia de Lisboa que visitava com os
pais no Natal. Nunca se esqueceria da criatura de farripas incolores e longos dedos
tão brancos como os das infantas nas criptas, disparada da moldura de uma porta
para lhes declamar, nos gestos desarticulados das marionetas, os versos de William
Butler Yeats
When you are grey and old and full of sleep
num timbre irreal que conferia a cada palavra a vertiginosa fundura de um poço.
O Natal não era o beijo embrulhado na fita vermelha do after-shave dos tios nem as
criadas antigas na cozinha apinhadas à volta das travessas numa agitação de
insectos, não eram as primas do Brasil e a sua trémula amabilidade de ciprestes,
nem os padres debruçados para os doces num apetite eucarístico, não era a timidez
do caseiro a dobrar o boné nas mãos enormes, não era a chuva lá fora, no pátio,
nítida contra a trepadeira do muro, desfolhando a frágil tristeza das glicínias: o
Natal era a casa de saúde perto de Lisboa e as suas mulheres imobilizadas em
contorções patéticas numa luz poeirenta de capela, semelhantes ao perfil prostrado
dos sobreiros no Alentejo, por entre os quais flutuam, de tempos a tempos, olhos
pálidos de bichos.
36
1.2.Peregrinação
As pessoas afirmavam
- É preciso fazer qualquer coisa
De modo que nas tardes livres cavalgava o pequeno automóvel amolgado e procedia
com método à verificação da cidade, bairro por bairro e igreja por igreja, em
peregrinações que terminavam invariavelmente na Rocha do Conde de Óbidos, da qual
largara um dia para a aventura imposta e com quem mantinha, apesar de tudo, a
intimidade respeitosa e masoquista que as vítimas reservam aos carrascos reformados.
Por vezes o trânsito trambulhava nas suas costas, empurrando pelas mangas imperiosas
dos sinaleiros empoleirados em peanhas de circo, domadores dotados de gestos aéreos de
bailarinos. Lojas de pássaros esvoaçavam entre casas de comida e drogarias com molhos
de vassouras pendurados do tecto como frutos peludos, e algumas mansardas subiam
também, verticalmente, no céu, a golpes de régimes da roupa que secava de varanda a
varanda, asas de camisas desbotando-se contra as bochechas das fachadas. Os comboios
do Cais do Sodré arrastaram para o Estoril os primeiros jogadores e os últimos turistas,
noruegueses de indicador perdido no mapa da cidade, e as ruas e o rio principiavam a
confluir na mesma paz de verão, horizontal, que as fábricas do Barreiro coloriam de
fumo vermelho operário, antecipação do poente. Um barco de carga subia a barra
perseguido por uma coroa de gaivotas vorazes, e o psiquiatra pensou em como as filhas
36
Nessa passagem há quase uma equivalência: os trechos em padrão normal foram retirados de Memória de Elefante, os trechos
em itálico foram retirados de Os Cus de Judas e aqueles que estão em negrito são de Conhecimento do Inferno.
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apreciariam estar ali com ele naquele momento, agitando-se numa chuva de perguntas
extasiadas.
37
A peregrinação feita pelos Reis Magos teria ocorrido, segundo a Bíblia Sagrada, em busca
do filho de Deus. Pode-se dizer que, de um modo geral, os Reis Magos seriam os primeiros fiéis
de Cristo e, por essa perspectiva, sua ação estaria estabelecendo uma espécie de exemplo, um
guia de comportamento para todos os fiéis: peregrinar até Cristo. Isso demarcaria toda vida sob
influência do Cristianismo: o sentido da eterna busca.
Se há um modelo cristão em Lobo Antunes, o modo como pude estabelecer o estágio de
sua vida que chamei de “vida” foi a partir da busca que é, a meu ver, evidente no narrador.
Compreende? Os minúsculos rostos delas possuíam o doloroso contorno do seu remorso,
que aos fins de semana tentava em vão subornar de permissibilidade excessiva e de
ternura viscosa, rei mago pródigo em chocolates que lhe não exigiam. Saber que à noite
não estaria com elas para o beijo do adeus, pesado já da lassidão do sono, que não iria
em pontas dos pés afugentar-lhe os pesadelos segredando-lhes ao ouvido as palavras de
amor do vocabulário secreto comum ao Pato Donald e à Branca de Neve, que de manhã
a sua ausência na cama de casal se transformara num hábito aceite sem surpresa,
tornava-o culpado do pavoroso crime de as abandonar. Podia apenas, durante a semana,
espreitá-las às ocultas como um espião, ser o José Matias de duas Elisas
irremediavelmente perdidas, que prosseguiam trajectos divergentes do seu, pequeninas
parcelas do seu sangue que acompanhava, dilacerado, de uma distância cada vez maior.
Decerto que a sua deserção as decepcionara e confundira, que esperava ainda o seu
regresso, os passos na escada, os braços abertos, o riso de outrora. A mais velha,
principalmente, assustava-o: receava a fragilidade das suas fúrias intempestivas, os seus
múltiplos medos, os tensos e atentos olhos verdes no rosto de Cranach: por estar na
guerra em África nunca a sentira mover-se no ventre da mãe e ele representara para ela,
durante meses, um retrato na sala que lhe designavam com o dedo, desprovido de relevo
e de espessura de carne. Nos beijos fugidios que trocavam morava como que um resto
desse ressentimento mútuo, contido a custo à beira da ternura.
A frase do pai rodopiou-lhe em espiral pela cabeça:
- A única coisa de que tenho pena é das tuas filhas.
Carregada da contida emoção com que se adivinhava nele o pudor do afecto que só
depois da adolescência aprendera a conhecer e a admirar, e achou-se reles e maligno
como um animal doente, reduzido às asfixiantes proporções de um presente sem futuro.
Fizera da vida uma camisola de forças em que se lhe tornava impossível mover-se, atado
pelas correias do desgosto de si próprio e do isolamento que o impregnava de uma
amarga tristeza sem manhãs.
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37
Nessa passagem, há a predominância de trechos em padrão normal por serem de Memória de Elefante, mas há trechos de
Conhecimento do Inferno em negrito.
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Nessa passagem, há a predominância de trechos em padrão normal por serem de Memória de Elefante, mas há pequeno trecho
de Os Cus de Judas em itálico.
50
Por esse aspecto, percebo que a intensa movimentação física aponta, principalmente, para
a busca de um interlocutor, alguém que o ouça, o que, no sentido de Lobo Antunes, seria
unicamente o leitor. Como já foi visto anteriormente, isso indicaria o entendimento de que, para o
narrador, a escrita literária exigiria o leitor.
No entanto, é preciso estar atento para o fato de que, em citação utilizada na Introdução, o
autor deixa claro que o leitor é apenas um “acto secundário”. Como entender essa declarada
necessidade de um leitor e, ao mesmo tempo, relegá-lo a segundo plano? Talvez isso demonstre
que o leitor é exigido, mas ele não poderá interferir de modo algum.
Penso, apenas em caráter especulativo, duas formas de interferência possíveis ao leitor:
uma pautada no próprio leitor e a outra dependente da ação do narrador. Na possibilidade que se
aplica exclusivamente ao leitor, penso que seria, como foi possível depreender de Lobo Antunes,
não procurar explicações de sua escrita em outros e, no outro lado da questão, o narrador não
poderia, de modo algum, realizar sua ação com o intuito de agradar ao leitor.
Um relógio qualquer bateu a meia das quatro horas: se conduzisse suficientemente
depressa chegaria a tempo para a saída da escola, acto libertador por excelência, vitória
do riso sobre a estupidez cansada: algo nele, vindo do mais remoto da memória, teimava
em garantir-lhe, contrariando o terrível peso oficial das tabuadas, que existe um quadro
preto em qualquer parte, quem sabe se no sótão do sótão ou na cave da cave, a afirmar
que dois e dois não são quatro. Como é difícil educar os adultos, tão pouco atentos à
importância vital de uma pastilha elástica ou de uma caixa de plasticina, e tão
preocupados com a ninharia idiota dos bons modos à mesa, adorando escrever
mensagens obscenas no mármore dos urinóis e detestando inofensivos riscos a lápis na
parede da sala.
O passeio enchia-se de alunos pastoreados pelas mãos que os enxotavam para casa como
os vendedores de perus da Praça da Figueira na véspera do Natal. Nisto avistou as filhas
no meio de um grupo de meninas uniformizadas de saia de xadrez, os cabelos loiros e
lisos da mais velha, os caracóis castanhos da mais nova, abrindo caminho uma atrás da
outra, seus intestinos, de repente demasiado grandes para o umbigo, incharam dos
cogumelos da ternura. Apetecia-lhe correr para elas, segurar-lhes na mão e partirem os
três, como no final do Grand Meaulnes, a caminho de gloriosas aventuras. E o médico
pensou com melancolia: o tempo trouxe-nos a sabedoria da incredulidade e do cinismo,
perdermos a franca simplicidade da juventude com a segunda tentativa de suicídio, em
que acordámos num banco de hospital sob o olho celeste de um S. Pedro de
estetoscópio, e desconfiamos tanto da humanidade como de nós mesmos, por
conhecermos o egoísmo azedo do nosso carácter oculto sob as enganadoras aparências
de um verniz generoso.
Quando principiara a masturbar-se a mãe, intrigada, fora mostrar ao marido uma mancha
nas cuecas, na sequência do que recebera convocatória formal para se apresentar no
51
escritório, altar-mor da casa onde o pai estudava interminavelmente de cachimbo nas
gengivas doenças estranhas em livros alemães. Ser chamado ao escritório constituía por
si só o acto mais solene e terrível da sua infância, e penetrava-se no augusto local de
mãos atrás das costas e língua a enrolar-se já de desculpas, numa resignação de vitelo no
matadouro. O pai que escrevia sobre uma tábua nos joelhos escorreu para ele um soslaio
severo como um vestido preto onde se entrevia a renda da saia de baixo de uma espécie
de compreensão furtiva, e disse na bela voz profunda com que recitava os sonetos de
Antero durante as anginas dos filhos, sentado na borda da cama, de livro na mão, solene
como se cumprisse um ritual iniciático:
- Vê se tens cuidado e se te lavas.
E fora a primeira vez, em que se apercebera fisicamente que o pai houvera sido novo, e
se confrontara, olhando-lhe a cara magra e séria, lavrada de ossos, e as órbitas agudas de
um pardo fosforescente, com a evidência angustiante de ter de por seu turno tropeçar de
metamorfose em metamorfose na direcção do insecto perfeito que não alcançaria nunca.
Percebe? Não vou ser capaz não vou ser capaz não vou ser capaz repetia-se ele parado
no tapete do escritório, fitando a silhueta de quacker do pai, inclinado para o papel em
atenções de bordadeira. O futuro surgia-lhe sob a forma de um ralo escuro e sôfrego
pronto a sugar-lhe o corpo pela garganta ferrugenta, trajecto de cambulhada de esgoto
em esgoto rumo ao mar intratável da velhice, deixando na areia da vazante os dentes e
os cabelos das decrepitudes sem majestade.
Eu masturbava-me no quarto sob a fotografia colorida da equipa do Benfica, na
esperança de vir a ser um dia o Águas da literatura, que de cócoras, ao centro,
desafiava o universo com orgulho de mármore de um discólubo triunfal. Planos
grandiloquentes, em que Freud, Goethe e S. Francisco de Assis convergiam e se
combinavam.
39
Em vista de uma melhor apreensão da busca como forma de vida, observo a prática da
masturbação. Essa prática é apontada diversas vezes nos romances estudados e pode assumir as
mais variadas funções, no entanto reflete uma função comum e muito significativa nos momentos
apresentados nesta parte da autobiografia.
A masturbação, de um modo geral, é uma prática que surge do desejo sexual; contudo, nas
situações utilizadas, o componente sexual parece não existir, parece haver outros desejos. No
primeiro momento, pela negação, detecta-se o desejo de crescer e ser tal como o pai e, no outro,
deseja uma espécie de poder que a Literatura poderia conferir-lhe.
Essa perspectiva permite pensar que seria um exagero ou, no mínimo, uma inadequação
falar dessa prática ao comentar desejos não-sexuais. Entretanto, se for possível entender que essa
prática é, de um modo geral, motivada por um desejo que não “alcança” o objeto desejado, penso
que ela refletiria e até reforçaria o caráter de impossibilidade percebido nas situações.
39
Nessa passagem, há a predominância de trechos em padrão normal por serem de Memória de Elefante, mas há trechos de Os
Cus de Judas em itálico.
52
A “impossibilidade” pode ser entendida, de um modo geral, como um elemento que
permeia toda a busca de Lobo Antunes; pois, ao desejar ser um bom marido, um bom pai e até
bom filho, admite imediatamente não ser capaz.
Tendo isso em vista, observo que há certa incoerência no que desejaria da Literatura com
o que já foi estipulado anteriormente. Na Introdução, a linha argumentativa permitiu-me pensar
que Lobo Antunes escrevesse em vista de fama, glória, eternidade. Naquele momento, disse ser,
em algum sentido, aceitável; mas percebi que outras perspectivas eram mais interessantes ao
autor e neste momento penso o mesmo.
Talvez a impossibilidade não se dê em relação a ser o “Águas da Literatura” ou em
relação a qualquer coisa que a Literatura poderia trazer ou até a percepção de que ela não traria
coisa alguma, mas seria a constatação de que a própria Literatura seja impossibilidade, apresente
um caráter “masturbatório”. Essa perspectiva, a meu ver, traria o entendimento de que, na
Literatura, os fatos não aconteceriam, seriam apenas narrados.
Assim, pode-se dizer que a peregrinação de Lobo Antunes seria a própria escrita e, por
esse aspecto, esta parte da autobiografia tenta observar essa peregrinação de buscas afetivas
(tentativa de sentir-se bem, tentativa de ser um bom marido, etc.) para entender buscas
significativas ou busca de uma narratividade.
Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute com a mesma atenção
ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo do fogo. Quando
eu era mais novo, lembrou-se, tinha a certeza que nunca nenhuma mulher se interessaria
por mim, pelo meu queixo largo, pela minha magreza; encalhava sempre de timidez gaga
se me fitavam, a sentir-me corar, lutando contra o desejo violento de desaparecer a
galope: aos catorze-quinze anos levaram-me pela primeira vez ao cem da Rua do
Mundo, eu nunca tinha estado no Bairro Alto à noite, naquela acumulação de sombras
estreitas e de vultos imóveis, e entrei na casa de passe ao mesmo tempo curioso e
aterrado, com a vontade de fazer chichi dos exames a embaraçar-me a marcha. Sentei-
me numa sala de espelhos e de cadeiras ao lado de uma mulher em combinação que fazia
crochet e nem sequer levantou o queixo das agulhas e em frente de um sujeito idoso que
aguardava vez de pasta nos joelhos (e distinguia-se na pasta o relevo dos termos do café
com leite do almoço) e de repente vi-me multiplicado até à náusea nos espelhos
biselados, dezenas de eus aflitos mirando-se uns aos outros em pasmo de pavor: claro
que a pila se me reduziu nas cuecas ao tamanho com que ficava ao sair do banho de água
fria, harmónio de pele engelhada capaz quanto muito de mijadela oblíqua, e desapareci
corredor fora em trote humilde de cão expulso na direção da porta onde a patroa, de
varizes a sobrarem dos chinelos, discutia com um soldado bêbado que atravessara no
umbral a bota coberta de geleia de vomitado.
53
Escute, deixe-me abraçá-la devagar, sentir a sua pele de encontro à minha, o flanco, a
curva leve da cintura. Gosto do sabor da sua boca, de tocar com a língua a placa dos
dentes que me garante uma maravilhosa perecibilidade, de ver as pálpebras descerem
quando seus lábios se aproximam, de assistir à morna entrega inteira de seu corpo. Esta
cama é uma ilha à deriva no mar de prédios e telhados de Lisboa, os nossos cabelos, as
farripas das palmeiras ao vento, as falanges que se procuram, uma reptação ansiosa de
raízes. No momento em que seus joelhos se afastarem docemente, os cotovelos me
apertarem as costelas e o seu púbis ruivo descerrar as pétalas carnudas numa húmida
entrega de valvas quentes e macias, penetrarei em si, percebe, como um cachorro
humilde e sarnento num vão de escada para tentar dormir, procurando um aconchego
impossível na madeira dura dos degraus.
Um pouco nu, o andar? Tem razão, faltam-lhe quadros, livros, bibelots, cadeiras, a
sábia desordem de revistas e papéis, de roupa ao acaso sobre a cama, de cinza no chão,
em suma, que nos asseguram continuarmos a existir, a agitar-nos, a respirar, a comer, a
sacudirmo-nos em vão sob as estações indiferentes e a silhueta distraída do anúncio
Sandeman, que do alto dos telhados do Rossio nos propõe, ora aceso ora apagado, um
brinde escarninho; mas, se abro o meu cacifo não encontro nunca uma carta, um
prospecto, um simples papel com o meu nome que me prove que existo, que habito aqui,
que de certa maneira este lugar me pertence. Não imagina como invejo a segurança
tranquila dos vizinhos, a decisão familiar com que abrem a porta, o sobrolho
proprietário com que consideram os títulos do jornal enquanto aguardam o elevador, a
cúmplice amabilidade dos seus sorrisos: existe sempre em mim a suspeita tenaz de que
me vão expulsar, de que ao entrar em casa encontrarei outros móveis no lugar dos meus
móveis, livros desconhecidos nas estantes, uma voz de criança algures no corredor, um
homem instalado no meu sofá a erguer para mim um olhar de perplexidade indignada .
Uma noite, há pouco tempo, ao atender o telefone, perguntaram-me se falava de um
número completamente diferente do meu. Julga que desfiz o engano e desliguei? Pois
bem, dei por mim a tremer, de palavras enroladas na garganta, húmido de suor e de
aflição, sentindo-me um estranho numa casa estranha, a invadir em fraude a intimidade
alheia, uma espécie de gatuno, percebe, do universo doméstico de um outro, pousado na
borda da cadeira num excesso de cerimónia culpada.
Era em momentos desses, quando a vida se torna obsoleta e frágil como os bibelots que
as tias-avós distribuem por saletas impregnadas do odor misto de urina de gato e de
xarope reconstituinte, e a partir dos quais refazem a minúscula monumentalidade do
passado familiar à maneira de Cuvier criando pavorosos dinossauros de lascas
insignificantes de falangetas, que a recordação das filhas lhe tornava à memória na
insistência de um estribilho de que se não lograva desembaraçar, agarrado a ele como
um adesivo ao dedo, e lhe produzia no ventre o tumulto intestinal de guinadas de tripas
em que a saudade encontra o escape esquisito de uma mensagem de gases. As filhas e o
remorso de se ter escapado uma noite, de maleta na mão, ao descer as escadas da casa
que durante tanto tempo habitara, tomando consciência degrau a degrau de que
abandonava muito mais do que uma mulher, duas crianças e uma complicada teia de
sentimentos tempestuosos mas agradáveis, pacientemente segregados.
E todavia, percebe?, é desse modo que ela permanece em mim apesar da usura dos anos
e do azedume das reconciliações frustradas, das feridas das mentiras mútuas e do
desencanto do afastamento definitivo: a rapariga morena e magra, de grandes olhos
graves, que conheci na praia, a observar as ondas na majestade longínqua dos
carnívoros indiferentes, que parecem de súbito ausentar-se em meditações dolorosas e
imóveis, enxotando-nos para o canto de sombra das inutilidades esquecidas. Meu amor,
falou dentro de si mesmo apalpando a gravata, sei que isto não alivia nem ajuda mas de
nós dois fui eu o que não soube lutar: e vieram-lhe à memória longas noites na praia
desfeita dos lençóis, a sua língua desenhando devagar contornos de seios iluminados de
uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert Desnos a agonizar de tifo
num campo de prisioneiros alemão murmurando- É a minha manhã mais matinal, a voz
54
de John Cage a repetir Every something is an echo of nothing, e a forma como o corpo
dela se abria em concha para o receber, vibrando tal as folhas dos cumes dos pinheiros
agitados por um vento invisível e tranquilo.
Tempo, necessito imperiosamente de tempo para me vestir de coragem, colar todos os
meus ontens no álbum de retratos (“who´d think to find you in a photoghaph, perfectly
quiet in the arrested chaff”), ordenar as feições do meu rosto, verificar ao espelho a
posição do nariz, e seguir para o dia que começa com a sólida determinação de um
vencedor. Tempo para te esperar à saída do ministério, subir contigo as escadas, meter a
chave à porta e cambulhar abraçado a ti, sem acender a luz, para a cama vagamente
aclarada pelos ponteiros fosforescentes do despertador eléctrico, atrapalhado pelo
excesso de roupa e pelos soluços de ternura, reaprendendo o Braille da paixão.
- Pertenço irremediavelmente à classe dos mansos refugiados em tábuas, reflectiu ele, a
classe dos mansos perdidos refugiados em tábuas a sonharem com o curro do útero da
mãe, único espaço possível onde ancorar as taquicárdias da angústia. Classe dos mansos
perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos.
Podes parecer-lhe esquisito mas sempre vivi rodeado de fantasmas numa casa antiga
que era como que o espectro de si mesma, desde o portão flanqueado por ananases de
pedra à mala dos ossos de Anatomia, que aguardava, arrecadada, a minha vez de a
estudar, num perfume doce de incenso e de gangrena. Gatos vadios escondiam-se nos
ramos da figueira do quintal como frutos furtivos, cujos olhos pingavam, leite verde de
uma desconfiança rápida, nos vidros da salamandra crescia a claridade opala dos
versos de Cesário, e na sala o retrato de Antero, de uma dolorosa beleza que o génio
calcinava, opunha aos bigodes modestos dos avós o oceano em desordem da sua barba
loira, onde naufragavam os destroços quebrados de tercetos. O meu pai, magro e
anguloso como um mórmon, viajava à deriva na poltrona, impulsionado pela chaminé
de navio do cachimbo. A sombra inchava volumes geométricos nos prédios vizinhos,
desenhada por um Soulages triste.
A mãe acreditava pouco nele como indivíduo crescido e responsável: tomava tudo o que
ele fazia como uma espécie de jogo, e mesmo na relativa estabilidade profissional do
filho suspeitava a enganadora tranquilidade que antecede os cataclismos. Costumava
contar que acompanhara o médico no acto do exame de admissão ao liceu de Camões, e
que, ao espreitar pela janela da sala, vira todos os miúdos inclinados para o ponto,
compenetrados e atentos, à excepção do psiquiatra, que de queixo no ar, inteiramente
alheio, estudava distraído a lâmpada do tecto.
- E por essa amostra percebi logo o que ia ser a vida dele, concluía a mãe com o sorriso
triunfalmente modesto dos Bandarras com pontaria.
Para ficar de paz com a sua consciência, no entanto, procurava combater o inelutável
solicitando todos os anos ao director de ciclo que colocasse o filho numa carteira da
frente, "mesmo diante do professor", a fim de que o médico bebesse à força os eflúvios
da decomposição dos polinómios, a classificação dos insectos e outras noções de
utilidade indiscutível, em lugar dos versos que escrevia às escondidas nos cadernos dos
sumários, porque para o psiquiatra o manuseio das palavras constituía uma espécie de
vergonha secreta, obsessão eternamente adiada.
- Enquanto o não fizer posso sempre acreditar que se o fizer o faço bem, explicou ele, e
compensar-me com isso das minhas muitas pernas mancas de centopeia coxa, enxergas?
Mas se começar um livro a sério e parir merda que desculpa me fica?
O psiquiatra recordou-se de uma frase da mulher pouco antes de se separarem. Estavam
sentados no sofá vermelho da sala, sob uma gravura do Bartolomeu que ele apreciava
muito, enquanto o gato buscava um espaço morno entre os quadris de ambos, e nisto ela
voltara para ele os grandes e decididos olhos castanhos e declarara:
- Não admito que comigo ou sem mim você desista porque eu acredito em si e apostei
em si a pés juntos.
E lembrou-se de como isso o aguilhoara e lhe doera e de como enxotara o bicho para
abraçar o corpo estreito e moreno da mulher, repetindo GTS, GTS, GTS, numa emoção
55
aflita: fora ela a primeira pessoa a amá-lo inteiro, com o peso enorme dos seus defeitos
dentro. E a primeira (e a única) a encorajá-lo a escrever, pagasse o preço que pagasse
por essa quase tortura sem finalidade aparente de meter um poema ou uma história num
quadrado de papel.
- Ando vazio de ideias, percebe, estava cá a magicar que escrever é um bocado fazer
respiração artificial ao dicionário de Moraes, à gramática da 4ª classe e aos restantes
jazigos de palavras defuntas, e eu ora cheio ora vazio de oxigénio, aparvalhado de
dúvidas.
- Andas vazio de tudo.
Esta vertiginosa certeza de vazio o visitava com mais frequência nas horas matinais,
quando se reagrupava penosamente em torno de si próprio nos movimentos pastosos e
engordurados de explorador que regressa de percursos estelares para se achar, rameloso,
em dois metros de lençol em desordem, acordo de manhã com ciática na alma, porque o
campo dos projectos que se não realizam nunca era um pouco a sua pátria, o seu bairro,
a casa de que conhecia de cor os mínimos recantos, as cadeiras coxas, os insectos, os
cheiros íntimos, as tábuas que estalavam.
- Quantos anos tenho?_ interrogou-se ele procedendo à periódica verificação de si
próprio que lhe permitia um entendimento precário com a realidade exterior, substância
viscosa em que os seus passos se afundavam, perplexos, sem destino. As filhas, o bilhete
de identidade e o lugar no hospital ancoravam-se ainda ao quotidiano mas por tão finos
fios que prosseguia pairando, sementinha peluda de sopro em sopro, a hesitar. Desde que
se separara da mulher perdera lastro e sentido: as calças sobravam-lhe da cintura,
faltavam-lhe botões nos colarinhos, principiava pouco a pouco a assemelhar-se a um
vagabundo associal em cuja barba cuidadosamente feita se detectavam as cinzas de um
pretérito decente. Ultimamente, observando-se ao espelho, achava que as próprias
feições se desabitavam, as pregas do sorriso davam lugar às rugas do desencorajamento.
No seu rosto havia cada vez mais testa: em breve faria a risca na orelha e cruzaria sobre
a calva seis ou sete farripas pegajosas de fixador, numa ilusão ridícula de mocidade.
E lembrou-se da história tormentosa do seu nascimento, criança roxa sufocada de
secreções ao lado da progenitora com eclampsia. Logo à nascença te quase matei de
eclampsia, tirado a ferros de ti, de modo que formávamos a cada jantar a anti-Última
Ceia, o desejo comum de não morrer constituía, percebe?, a única fraternidade possível,
eu não quero morrer, tu não queres morrer, ele não quer morrer, nós não queremos
morrer, vós não quereis morrer, eles não querem morrer.
A tristeza depois do jantar substituía as palavras cruzadas do jornal, e entretinha-me a
preencher os quadradinhos em branco de trabalhosas elucubrações oscilando entre o
idiota chapado e o vulgar profundo, limites aliás entre os quais o pensamento lusitano
se condensa, equivalentes metafísicos dos versos dos cravos de papel. Compreenda-me:
pertencemos a uma terra em que a vivacidade faz as vezes do talento e onde a destreza
ocupa o lugar da capacidade criadora, e creio com frequência que não passamos de
facto de débeis mentais habilidosos consertando os fusíveis da alma à custa de
expedientes de arame.
40
Em meio a buscas e fracassos, desejo e impossibilidade; ressurge a questão do nascimento
semelhante ao de um indivíduo, o que pode gerar um certo conflito, pois como Lobo Antunes é
narrador não lhe seria possível esse tipo de nascimento. Por outro lado, a enunciação desse
40
Nessa passagem, há uma equivalência em padrão normal por serem de Memória de Elefante e Os Cus de Judas em itálico.
56
nascimento poderia sugerir que, em algum nível, ele seria uma pessoa. E posso até pensar numa
justificativa norteada pela idéia de que houvesse dois planos na narrativa: o da narração “onde”
há o narrador e o do narrado “onde” é o espaço do personagem. E, com o intuito de resolver isso,
penso ser preciso entender o que seriam as categorias de narrador e personagem, segundo Lobo
Antunes.
Seria tentador avaliar essa questão de forma abrangente como, por exemplo, ver o estudo
de Walter Benjamin sobre o narrador. Para ele, narrador é aquele que, em consonância com a
tradição oral, utilizaria seu próprio corpo em seu ato e, nesse processo, estabeleceria uma relação
direta com seu ouvinte. Já na escrita, narrador seria apenas aquele que conseguisse manter, em
algum nível, as características que o teórico alega serem próprias à narração oral e toma como
exemplo máximo o objeto de seu estudo Nikolai Leskov.
Por isso, no romance não haveria o narrador, apenas o romancista, pois ele não beberia da
fonte da tradição oral e nem a alimentaria: seu trabalho seria o de um homem isolado a um leitor
isolado e, por isso, o conteúdo ficaria encerrado no livro.
Haveria uma funcionalidade na narração: aconselhar. Esse aconselhamento teria como
base a experiência adquirida diretamente pelo próprio narrador e por outros que, anteriormente,
teriam narrado a ele. Já o romance não ensinaria coisa alguma e seduziria o leitor pela “esperança
de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro”, uma vez que o romance seria a busca
do sentido de uma vida a partir de sua morte. (BENJAMIN,1985, p.p.197-201)
Seria possível dizer que Lobo Antunes deseja ser esse narrador tradicional por forjar, nos
romances, situações narrativas em que um personagem conta a história a partir do que teria
vivido? Se assim fosse, essa seria uma exemplificação no interior do livro do que ocorreria em
seu, digamos, exterior.
Antes de afirmar qualquer coisa ou discutir o que seria “experiência” ou até se haveria a
possibilidade de transmiti-la, digo que não posso afirmar coisa alguma por ser uma perspectiva
estrangeira ao autor e, mesmo assim, se houver alguma disposição para crer na possibilidade que
apontei, ela se desfaz pela perspectiva de que, pelo que foi apreendido, no autor em questão não
haveria possibilidade de estabelecer uma vida vivida, logo não haveria possibilidade de que Lobo
Antunes escrevesse a partir de sua vida vivida.
57
Outra idéia sedutora ocorre a partir do texto, já citado anteriormente, “Posição do
Narrador no Romance Contemporâneo” de Theodor W. Adorno. Esse texto, que parece ser uma
resposta ao de Benjamin por utilizar alguns parâmetros, aparentemente, iguais como a
experiência, continua a discussão. Para o teórico, a experiência e a vida contínua em si mesma
teriam desintegrado, pois o que as garantiria, a postura do narrador, teria sofrido um grave abalo
causado pelo modo de vida burguês.
Aspectos da sociedade burguesa como o “mundo administrado”, a “estandartização” e a
“mesmice” impediriam que alguém tivesse tempo para dedicar-se ao processo de ler uma história.
Além do que o romance teria perdido a maioria de suas funções como, por exemplo, a de contar
uma história para a reportagem e para os meios da indústria cultural como o cinema.
Essa perspectiva teria levado o romance a buscar novos meios de se expressar e, segundo
ele, Joyce teria conseguido tal feito ao rebelar-se contra a linguagem discursiva. No entanto, a
ação do narrador, no romance contemporâneo, seria provocar afastamentos e aproximações
excessivas entre o narrador e a matéria narrada; trazendo, segundo o teórico, a Literatura para o
nível de si mesma, ou seja, ela não almejaria tratar do mundo extra-literário. (ADORNO, 2003,
p.p.55-63)
Seria possível dizer que, de algum modo, Lobo Antunes tenta fazer isso? Pode-se pensar
que a proximidade entre o que diz ser sua vida vivida e a obra fosse esse jogo de afastamento e
aproximação. No entanto, pelo que já foi exposto, ele desconsideraria qualquer possível vida
vivida. Por essa perspectiva, desconsiderar o extra-literário seria um modo de dizer que a
Literatura não teria relação com o exterior a ela? E, assim, estaria no nível de si mesma? Segundo
Adorno, esse processo para chegar a tal coisa causa ao leitor desconforto. É possível dizer o que
seria esse desconforto? Um conceito específico ou algo mensurável pela dificuldade da leitura?
Se essa última opção for a idéia de Adorno, a leitura de Lobo Antunes seria, de algum modo,
desconfortável?
A resposta a essa questão, a meu ver, é que será variável, pois dependerá do leitor: se mais
experiente nas obras do autor, irá superar com mais rapidez as dificuldades impostas pela
estrutura dos romances e identificará a linha narrativa. Devido ao fato de ser possível identificar a
linha narrativa, Lobo Antunes seria um narrador do século XIX? Ou será que o desconforto não
estaria relacionado à uma dificuldade de leitura e sim à uma sensação que a leitura causaria? Não
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encontro respostas que me pareçam suficientes, por isso parto para Lobo Antunes e, mesmo se
achasse repostas, deveria assim fazer.
Nos livros do autor, narrador e personagem alternam-se sucessivamente, um ocupa o lugar
do outro. Qual a função disso? Não haveria uma distinção de ambos? Se assim for, qual o sentido
disso? Já ficou definido que narrador não teria uma vida semelhante à de um indivíduo, o
personagem teria o mesmo status? Se assim for, posso especular o fato de que o personagem
talvez seja apenas um desdobramento do narrador. Desse modo, o personagem teria vivido
alguma coisa? Creio que não, pois haveria apenas a escrita, a narração. E, assim, estariam
igualados narrador e personagem.
Tendo isso em vista, o que pensar do nascimento semelhante ao de uma pessoa que o
narrador/personagem afirma ter tido? Não teria ocorrido, pois o personagem é objeto/criatura da
Literatura. E, se fosse possível pensar que esse nascimento narrado, permitisse que o personagem
fosse visto como um indivíduo, os entendimentos até aqui eliminariam essa possibilidade. E,
assim, não haveria relação entre aquele que escreve e o narrador ou o personagem principal.
Mas, como a Literatura narra o humano se não há relação entre aquele que escreve e o
narrador? Aquele que escreve é uma pessoa, discordar desse fato seria duvidar do mundo como
ele é e, por essa premissa, creio que Lobo Antunes possa me ajudar quando fala do aspecto
autobiográfico de seus livros: “[...] penso que todos os livros são autobiográficos [...] Porque não
se inventa nada, a imaginação é a maneira como se arruma a memória. Tudo tem a ver com a
memória.” (BLANCO, 2002, p.114)
Se autobiografia é o modo de atestar a existência e de marcar a presença do humano, a
memória seria a marca do humano. O narrador seria, dessa forma, para Lobo Antunes, uma
memória humana e isso explicaria o modo como estrutura seus romances: um narrador que narra
enquanto lembra.
Nunca teve vontade de se vomitar a si própria? À medida que envelheço e que a
necessidade de sobreviver se vai tornando menos urgente e aguda, apercebo-me com
maior nitidez e pousava-lhe a cabeça no colo para que os dedos dela, ao tocarem-lhe a
nuca, lhe apaziguassem as raivas sem motivo e o desejo sôfrego de ternura: nunca topei
corpo para mim como o teu, disse-se o médico, tão à medida das minhas humanas e
desumanas medidas, as autênticas e as inventadas que nem por o serem o são menos,
nunca topei uma tão grande e boa capacidade de encontro com outra pessoa, de absoluta
59
coincidência, de se ser entendido sem falar e de entender o silêncio e as emoções e os
pensamentos alheios, que me foi sempre milagre o termo-nos conhecido na praia onde te
conheci, magra, morena, frágil, o teu antiquíssimo perfil sério pousado nos joelhos
dobrados, o cigarro que fumavas, a cerveja no banco à tua ilharga, a tua perpétua atenção
de bicho, os muitos anéis de prata dos teus dedos, minha mulher dele sempre e minha
única mulher, minha lâmpada para o escuro, retrato dos meus olhos, mar de setembro,
meu amor. Sempre encontrara nas mulheres, na sua ternura, no seu olhar mudo e
na acidez da sua pele, qualquer coisa que não achava sozinho e que constituía como
que um indecifrável complemento de si próprio, a fracção de luz, de claridade de
fruto, de jubiloso gosto de laranja de que ansiosamente carecia.
Nasci e cresci num acanhado universo de croché, croché de tia-avó e croché manuelino,
filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram-me à pequenez do bibelot,
proibiram-me o canto nono de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com
o lenço em lugar de partir. Continua a parecer-me, a mim, que pertenço à dolorosa
classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre,
qualquer coisa de tão abstracto e estranho como a inocência, a justiça, a honra,
conceitos grandiloquentes, profundos e afinal vazios que a família, a escola, a catequese
e o Estado me haviam solenemente impingido para melhor me domarem, para
extinguirem, se assim me posso exprimir, no ovo, os meus desejos de protesto e de
revolta.
Às vezes sentava-me nos degraus de pedra do quintal, junto à janela da rua, e
apetecia-me chorar, percebe, sem motivo: chorar. Tinha seis, sete, oito anos, não sei
bem. O que os outros exigem de nós, entende, é que os não ponhamos em causa, não
sacudamos as suas vidas miniaturais calafetadas contra o desespero e a esperança, não
quebremos os seus aquários de peixes surdos a flutuarem na água limosa do dia-a-dia,
aclarada de viés pela lâmpada sonolenta do que chamamos virtude e que consiste
apenas, se observada de perto, na ausência morna de ambições.
Lembrou-se de súbito do suspiro saudoso da mãe:
- Os meus filhos são tão bonitos até aos trinta anos.
E desejou desesperadamente retornar à linha de partida, em que as promessas de vitória
são não apenas permitidas mas obrigatoriamente desejáveis.
- Tu matas a tua mãe.
E mato-te ou mato-me minha velha que durante tanto tempo pareceste minha irmã,
pequena, bonita, frágil, pastorinha de vitral e bruma do Sardinha, de horário distribuído
entre o Proust e o Paris-Match, parideira de herdeiros machos que te deixaram intacta no
enxuto das ancas e no arame fino dos ossos? Herdei talvez de ti o gosto do silêncio, e as
sucessivas barrigas não te consentiram o espaço de me amares como eu necessitava,
como eu queria, até que ao darmos pela existência frente a frente um do outro, tu minha
mãe e eu teu filho, era tarde demais para o que, na minha forma de sentir, não tinha
havido.
O gosto do silêncio e o fitarmo-nos como estranhos separados por distância impossível
de abolir, que pensarás de facto de mim, da minha vontade informulada de te reentrar no
útero para um demorado sono mineral sem sonhos, pausa de pedra nesta corrida que me
apavora e que do exterior se me diria imposta, enfrenesiado trote da angústia na direcção
do repouso que não há. Mato-me, mãe, sem que ninguém ou quase ninguém o note,
baloiço pendurado na corda de um sorriso, choro por dentro humidades de gruta, suor de
granito, secreto nevoeiro em que me escondo.
Cá fora escurecia: estava na faixa lateral da avenida da República, atrás de uma
camioneta de carga, e trepidava de impaciência olhando o trânsito que corria
perpendicularmente a si, vindo do Campo Pequeno, desconforme mesquita de tijolos,
catedral dos cornos. O sinal passou a verde e imediatamente o táxi por trás dele buzinou,
imperioso: porque raio é que os chóferes de táxi, perguntou-se, são as criaturas mais
azedas do mundo? Talvez que circular por Lisboa o dia inteiro atire as pessoas para uma
espécie de epilepsia explosiva, talvez que esta cidade dê raiva e nojo a quem por
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obrigação a percorre em todos os sentidos, talvez que o próprio indivíduo seja a
exaltação assassina em franjas e andemos por aqui, nós os comedidos, a fingir
amabilidade que não temos. Atravessou uma rua de garagens e estacionou junto a uma
loja de móveis que fazia esquina entre a avenida Óscar Monteiro Torres e a rua Augusto
Gil, exibindo cómodas detestáveis e óleos ovais de flores em molduras de talha. Como
de costume vou chegar atrasado à sessão de análise. Nos últimos tempos, a seu ver,
andava a comer porrada a mais do analista como quando em pequeno o castigavam por
faltas que na sua opinião não lhe pertenciam, e crescia nele um grande pressentimento
contra o outro que parecia comprazer-se em destruir-lhe uma a uma as balofas (mas
necessárias?) arquitecturas das suas quimeras: um gajo anda aqui como boi manso no
matadouro, reflectiu o médico, a levar alfinetadas nos guissos de magarefes sádicos,
E se aguenta é na esperança de que depois a carne se lhe torne mais tenra; um gajo anda
aqui a aprender a viver ou a ser domesticado, capado, desmiolado, transformado em
sãozinha laica por dois contos e tal ao mês. Que porra de lavagem à cornadura é esta que
saio daqui torcido como um velho com reumático, lumbago, ciática, bicos de papagaio e
dor de dentes, alma de rafeiro a ganir a caminho de casa, e no entanto volto, volto
pontualmente dia sim dia não para receber mais trolha ou uma indiferença total e
nenhuma resposta às minhas angústias concretas, nenhuma ideia acerca de como sair
deste poço ou pelo menos visionar um nada de ar livre lá em cima, nenhum gesto que me
mostre a direcção de uma certa tranquilidade, de uma certa paz, de uma certa harmonia
comigo: Freud da puta judia que te pariu vai levar no cu do teu Édipo. Abriu a porta do
grupo e em vez de declarar Merda para todos disse Boa tarde e foi sentar,
disciplinadamente, na única cadeira livre da sala.
O grupanalista principiou a dar corda ao relógio e o médico sentiu-se como a Alice na
assembleia dos animais presidida pelo Dódó: que estranha mecânica interna rege isto
tudo, pensou ele, e que subterrâneo fio condutor une as frases desconexas e lhes confere
um sentido e uma densidade que me escapam? Estaremos no limiar do silêncio como em
certos poemas de Benn, em que as frases adquirem peso insuspeitado e a significação a
um tempo misteriosa e óbvia dos sonhos? Ou será que como Alberti sinto esta noite,
feridas de morte, as palavras, e me alimento do que nos intersícios delas cintila e pulsa?
Quando a carne se transforma em som aonde a carne e aonde o som? E aonde a chave
que possibilite descodificar este morse, torná-lo concreto e simples como a fome, ou a
vontade de urinar, ou a ânsia de um corpo? Abriu a boca e disse:
- Tenho saudades da minha mulher. Tenho saudades da minha mulher e não sou capaz
de o dizer a ela nem a mais ninguém a não ser a você.
- Porquê?, perguntou inesperadamente o grupanalista como se regressasse à sucapa de
longa travessia pelos gelos de si próprio. A voz dele abria como que um espaço
agradável à sua frente, onde apeteceu ao psiquiatra deitar-se.
- Não sei, respondeu rapidamente no medo de que a receptividade que conseguira
desaparecesse e se achasse defronte de oito rostos aborrecidos ou hostis. Não sei ou sei,
é conforme, acho que me apavora um bocado o amor que os outros têm por mim e eu por
eles e receio viver isso até o fim, inteiramente, entregar-me às coisas e lutar por elas
enquanto tiver força, e quando a força se acabar arranjar mais força para prosseguir o
combate.
- Porque é que você se detesta,
- Sou um cagado a pedir socorro, disse ele, tão cagado que nem me aguento nas canetas.
A pedir mais uma vez a atenção dos outros sem dar nada em troca. Choro lágrimas de
crocodilo puto que nem a mim me ajudam e se calhar é só em mim que penso.
- Experimenta ser homem para variar, Experimenta ser homem um bocadinho que seja:
pode ser que te aguentes no balanço.
- É muito fodido ser homem.
Escuta, articulou o psiquiatra dentro de si, escuta: existes tão fundo em mim, com tão
numerosas, e musculadas, e violentas raízes que nada, nem eu mesmo, as poderão jamais
cortar; e quando eu conseguir vencer a minha cobardia, o meu egoísmo, esta lama de
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merda que me impede de dar-te e de me dar, quando conseguir isso, quando conseguir de
facto isso, voltarei.
Separámo-nos, sabe como é, numa paz feita de alívio e de remorso, e despedimo-nos no
elevador como dois estranhos, trocando um último beijo em que morava ainda um resto
indigerido de desespero, sem grandeza nem glória, após vários meses lancinantes de
reencontros e separações, que me retalharam de angústia os destroços de um longo
inverno de aflição. A gente, entendes, quero dizer eu e ela, gostava muito um do outro,
continua a gostar muito um do outro e os tomates desta merda é eu não conseguir por-me
outra vez direito, telefonar-lhe e dizer
- Vamos lutar, porque se calhar perdi a gana de lutar, os braços não se movem, a voz não
fala, os tendões do pescoço não seguram a cabeça. E foda-se, é só isso que eu quero.
Acho que nós os dois temos falhado por não saber perdoar, por não saber não ser
completamente aceite, e entrementes, no ferir e no ser ferido, o nosso amor (é bom falar
assim: o nosso amor) resiste e cresce sem que nenhum sopro até hoje o apague. É como
se eu só pudesse amá-la longe dela com tanta vontade, catano, de a amar de perto, corpo
a corpo, conforme desde que nos conhecemos o nosso combate tem sido. Dar-lhe o que
até hoje lhe não soube dar e há em mim, congelado embora mas respirando sempre,
sementinha escondida que aguarda. O que a partir do início lhe quis dar, lhe quero dar, a
ternura, percebes, sem egoísmo, o quotidiano sem rotina, a entrega absoluta de um viver
em partilha, total, quente e simples como um pinto na mão, animal pequeno assustado e
trémulo, nosso.
- Nenhum de vocês arranja uma pessoa como o outro, disse, nenhum de vocês arranja
uma pessoa tão um para o outro, tão de acordo com o outro como o outro, mas tu
castigas-te e castigas-te numa culpabilidade de alcoólico.
Se regressasse vertical, jurava eu a mim mesmo num fervor de peregrino de
Compostela, afadigar-me-ia a construir, a partir do meu nada confuso, a digna estátua
de bronze do marido e do filho ideais, talhado segundo o modelo das pagelas dos
mortos no missal da avó, criaturas repletas de qualidades e virtudes à Santa Teresinha e
das quais conhecia apenas os sorrisos resignados. Talvez até que me inscrevesse nos
escuteiros a fim de pastorear, de apito, calções e autoridade paciente, um grupo de
adolescentes borbulhosos através do Museu dos Coches, ou vagueasse pelas esquinas à
cata de anciões de bengala com dificuldades de atravessar. Far-me-ia irmão do
Santíssimo, clarinete de filarmónica, coleccionador de dentaduras postiças no intuito de
expulsar do insuportável sossego dos serões o meu eterno e deletério desejo de evasão.
Calaria para sempre a vozinha interior que na cabeça me reclama, teimosa, proezas de
Zorro. E ao termo de dolorosa enfermidade suportada com resignação cristã e
confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja, ingressaria por meu turno no
panteão do missal da avó a juntar-me a uma extensa galeria de chatos bondosos,
apontado como exemplo a netos indiferentes, que considerariam com enfado a absurda
mornidão da minha existência.
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Nessa passagem, há a predominância de trechos em padrão normal por serem de Memória de Elefante, mas há trechos de Os
Cus de Judas em itálico e em negrito por serem de Conhecimento do Inferno.
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1.3. Fuga
Em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas bichas de soldados a
caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando de felicidade
assassina:
- Com os queixais da gajada não vai o colega ter problemas_ berrava-me ele,
encostado à sua cadeira horrenda, reluzente de satisfação e de suor, a enterrar o
maçarico em chamas da broca num maxilar apavorado.
Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do
convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas furriéis. Em Tomar, onde
os peixes sobem do Mouchão para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes
cintilantes, construí Jerónimos de paus de fósforo admirados pelas escleróticas
amarelas dos pára-quedistas com hepatite.
Em Elvas, à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de
um prato, desejei evaporar-me na muralhas da cidade à maneira dos violinistas de
Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas
mangas militares, até pousar em Paris para uma revolução de exílio feita de quadros
abstractos e de poemas concretos, a que o Diário de Notícias da Casa de Portugal
forneceria o lastro lusitano de anúncios de casamentos castos como notários
hipermétropes, e de missas do sétimo dia adoçadas pelo sorriso sem carne dos mortos.
Eu via desfilarem diante de mim os rapazes de Elvas que o Exército convocara,
chamara, arregimentara para defenderem em África os fazendeiros do café, as
prostitutas e os negociantes de explosivos, os que mandavam no País em nome de
ideais confusos de opressão.
Eu aguardava o meu próprio embarque e via, sentado à secretária, desfilarem
diante de mim os rapazes de Elvas no ginásio fechado, que o fedor das virilhas, do
excesso de pessoas e das roupas abandonadas no chão, empestava como o de um
curro trágico e triste. Levantei-me a pretexto de urinar, o sargento encarregado
dos testes para os daltónicos continuou a exibir os seus cartões de pintas coloridas,
e saí para uma espécie de claustro onde os alferes e os aspirantes ensinavam o
manejo de armas aos recrutas, auxiliados por furriéis que trotavam pelotões
adentro como cães de pastor pelos rebanhos. Estive alguns momentos, de mãos nos
bolsos, a observar os exercícios a pensar que me haviam mandado a Elvas não para
salvar pessoas da guerra mas para as enviar para a mata, mesmo os coxos, mesmo
os marrecos, mesmo os surdos porque o dever patriótico não excluía ninguém,
porque as Parcelas Sagradas do Ultramar necessitavam do sacrifício de todos,
porque o Exército É O Espelho Da Nação, porque O Soldado Português É Tão Bom
Como Os Melhores, porque o caralho da cona do minete do cabrão do broche da
puta que os pariu, estive a ver, encostado a uma coluna de pedra rugosa como as
árvores antigas, os futuros heróis, os futuros mutilados, os futuros cadáveres, voltei
para o ginásio, sentei-me à secretária, levantei a cabeça e o meu nariz encontrava-
se à altura de dezenas de pénis que rodeavam a mesa aguardando que os
observasse, os medisse, os aprovasse para a morte.
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Nessa passagem, há uma equivalência entre trechos de Os Cus de Judas em itálico e de Conhecimento do Inferno em negrito,
além de trechos em padrão normal por serem de Memória de Elefante,
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Em primeiro lugar, é preciso entender a adequação do estágio da vida do narrador
apresentado como “morte” ao modelo cristão, utilizado na autobiografia, a fim de estabelecer o
conteúdo desta parte. Essa tentativa de entendimento parece, a princípio, problemática devido ao
fato de que a fuga cristã teria ocorrido para fugir da morte e não para ir a seu encontro. No
entanto, indica que a morte não é trabalhada nesta escrita sob termos humanos.
Em termos humanos, a morte seria, por aspecto biológico, a incapacidade do corpo em
manter-se funcionando e, por aspecto cristão , a ida para uma outra vida. O narrador comenta em
determinados momentos que teria, de algum modo, morrido; só que, exatamente como o
nascimento narrado, não vale muito no sentido de algum entendimento. E até, digo que, por não
ser um indivíduo e sim palavra escrita, sua morte seria, a meu ver, a cessão de sua voz, da
narração.
O meio pelo qual inicio meu pensamento sobre a morte é a partir da declarada ação de
deslocamento: Cristo teria ido ao Egito e Lobo Antunes a Angola. O efeito do deslocamento é
apontado como brutal para narrador português, pois parece não ser somente a guerra que lhe faz
mal, mas a sensação de não pertencer àquele lugar. Seria essa sensação de não-pertencimento, de
“estrangeiridade” uma espécie de morte? Se assim for e se, pelo depreendido nesta escrita, todo o
narrado atenderia a um plano narrativo, digo que “Fuga” seria uma escrita que narraria um
sentimento de inadequação em relação ao meio circundante. Como essa sensação é narrada,
sobretudo, em relação a Angola, este movimento trata dos momentos lá apontados.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da
menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de
Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico
de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de
garfo em punho do catecismo.
- Sigam descansados que nós na rectaguarda permanecemos vigilantes.
A essa hora, na minha cidade castrada pela polícia e a censura, as pessoas
coagulavam-se de frio nas paragens dos autocarros, a soprarem adiante da boca o
vapor de água dos balões das legendas de uma história de quadradinhos que o Governo
proibia. Em tronco nu, o meu pai devia barbear-se ao espelho do quarto de banho nos
gestos rápidos e precisos do costume, dentro do útero da minha mulher uma criança
prestes a nascer socava às cegas as grades de carne da sua prisão, a minha mãe
estendia o braço sonolento para o tabuleiro do pequeno-almoço, na grande cama preta
que sempre constituiu para mim como que o símbolo do lar.
- Todos mortos.
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Nessa passagem, há apenas trechos de Os Cus de Judas em itálico.
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Por esse viés, esse movimento inicia-se com antecedentes da guerra. Isso é narrado,
sobretudo, a partir da relação estabelecida entre as pessoas e a guerra. O último grupo
apresentado, porém, parece não manter qualquer relação com ela, só que a disposição de certas
expressões permite suspeitar do contrário.
A seqüência “cidade castrada”, “censura”, “coagulavam de frio” e “história de
quadradinhos” sugere um plano de sentido acerca de uma crescente imobilidade das pessoas.
Logo, observando todo o quadro, é possível estabelecer uma divisão, a partir da guerra, das
pessoas narradas: aqueles que combatem, aqueles que financiam e aqueles que, imobilizados,
ignoram-na.
Não, palavra, oiça: quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de
tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo agradecida ao Governo que me
possibilitava grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo,
num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anónima
semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria
morte, sabe com é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais
atenuado de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e
imóveis da despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes do espanto, com Lisboa a
afogar-se na distância num suspiro derradeiro de hino.
Ao segundo dia alcançámos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas a
flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio da tarde. Agora,
percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do
colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do
Equador, mole e quente como, sabe, conhece o inferno?
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O resultado da estruturação do mundo narrado por esse princípio, permite caracterizar a
fuga e, conseqüentemente, a morte pela seguinte passagem: “[...] estendido no convés numa
cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do
Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador [...]” (ANTUNES, 2003, p.p.22)
A situação em que essa frase é enunciada pelo narrador evoca, a meu ver, a descida ao
inferno, ao mundo de Hades por alguns heróis gregos. Segundo o mito grego, Héracles, Ulisses e
até Psiquê teriam descido ao inferno, ao mundo dos mortos, ainda vivos e essa descida ocorreria
por barco. Tendo isso em vista, pode-se dizer que o trecho parece revelar o momento preciso da
descida ao inferno, ou seja, o primeiro momento em que teria sentido o afastamento de seu
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Nessa passagem,apenas trechos de Os Cus de Judas em itálico.
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mundo e a chegada a outro. Assim, essa fuga, essa sensação de “estrangeiridade”, essa morte
pode ser considerada o inferno.
A noite surge depressa demais nos trópicos, após um crepúsculo fugaz e desinteressante
como o beijo de um casal divorciado por mútuo consentimento. As palmeiras que
bordam a baía acenavam as régimes das folhas em voos preguiçosos, as traineiras
abandonavam o cais arrotando o gasóleo do jantar, o néon dos cabarés da Ilha piscava
as pálpebras demasiado pintadas, em cujo chamamento ansioso ecoavam os apelos das
mulheres das barracas de tiro do Parque Mayer, cujas vozes roucas me povoaram os
sonhos, na adolescência, de crocitos apavorantes. O calor vestia-nos os gestos de
algodão pegajoso, e a água chegava a ferver dos canos num assobio de geiser.
Morríamos nos cus de Judas uns após os outros, tocava-se um fio de tropeçar, uma
granada pulava e dividia-nos ao meio, trás!, o enfermeiro sentado na picada fitava
estupefacto os próprios intestinos que segurava nas mãos, uma coisa amarela e gorda e
repugnante quente nas mãos, o apontador de metralhadora de garganta furada
continuava a disparar, chegava-se sem vontade de combater ninguém, tolhido de medo,
e depois das primeiras baixas saía-se para a mata por raiva na ânsia de vingar a perna
do Ferreira e o corpo mole e de repente sem ossos do Macaco. Quem veio aqui não
consegue voltar o mesmo, explicava eu ao capitão de óculos moles e dedos
membranosos colocando delicadamente no tabuleiro, em gestos de ourives, as peças de
xadrez, cada um de nós. Afinal é este o aspecto da nossa morte: Lisboa, os Americanos,
os Russos, os Chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os
cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de
Judas de pó vermelho e de areia.
Se você soubesse o que é acordar com vontade de urinar a meio da noite numa noite
sem lua, vir cá fora mijar e nada existir em torno, nenhuma luz, nenhuma caserna,
nenhum vulto, só o ruído do seu chichi invisível e as estrelas congeladas na meia
laranja do céu, afastadas demais, inacessíveis demais, prestes a desaparecer porque a
manhã surge de repente e é dia adulto, acordar a meio da noite e sentir na quietude e no
silêncio, percebe? O sono inumerável de África, e nós ali de pernas afastadas, em
camisa e cuecas, minúsculos, vulneráveis, ridículos, estranhos, sem passado nem futuro,
a flutuar na estreiteza assustada do presente, coçando a flor-do-congo dos testículos.
A guerra tornou-nos em bichos, percebe, quando se amputou a coxa gangrenada ao
guerrilheiro do MPLA apanhado no Mussuma os soldados tiraram o retrato com ela
num orgulho de troféu. Bichos cruéis e estúpidos ensinados a matar, não sobrava um
centímetro de parede nas casernas sem uma gravura de mulher nua, masturbávamo-nos
e disparávamos, o mundo-que-o-português-criou são estes luchazes côncavos de fome
que nos não entendem a língua, a doença do sono, o paludismo, a amibíase, a miséria, à
chegada ao Luso veio um jeep avisar-nos que o general não consentia que dormíssemos
na cidade, que expuséssemos na messe as nossas chagas evidentes. Não somos cães
raivosos, berrava o tenente de cabeça perdida para o enviado do comando de Zona,
diga a esse caralho do catano que nós não somos cães raivosos, um alferes ameaçava
baixinho destruir a messe com as bazookas Fodemos aquela porra toda meu tenente,
não sobeja um cabrão sequer para nos enconar o juízo, Um ano no cu de Judas não nos
dá o direito a dormir uma noite numa cama argumentava em sentido o oficial de
operações, o tenente espalmou um murro enorme no capot Diga ao nosso general que
vá levar na anilha, Nós não éramos cães raivosos quando chegámos aqui disse eu ao
tenente que rodopiava de indignação furiosa, não éramos cães raivosos antes das cartas
censuradas, dos ataques, das emboscadas, das minas, da falta de comida, de tabaco, de
refrigerantes, de fósforos, de água, de caixões, antes de uma berliet valer mais do que
um homem e antes de um homem valer uma notícia de três linhas no jornal, Faleceu em
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combate na província de Angola, não éramos cães raivosos mas éramos nada para o
Estado de sacristia que se cagava em nós e nos utilizava como ratos de laboratório e
agora pelo menos nos tem medo, tem medo da nossa presença, da imprevisibilidade das
nossas reacções do remorso que representamos que muda de passeio se nos vê ao longe,
evita-nos, foge de enfrentar um batalhão destroçado em nome de cínicos ideais em que
ninguém acredita, um batalhão destroçado para defender o dinheiro das três ou quatro
famílias que sustentam o regime.
Morava dentro dele uma piedade raivosa, uma ternura zangada pelo seu país
descarnado e estranho que recordava, quando longe, não por intermédio de
paisagens, de fragmentos de cidade, de estátuas, de ruas, de pessoas, mas através de
um som, um único som, o sopro de búzio de vento nas copas dos pinheiros,
chamando-o em segredo para misteriosas aventuras. Em Londres, na Madeira, em
Angola, ao deitar-se em camas desconhecidas nos hotéis que os monta-cargas
percorriam de contínuo do seu assobiozinho de cometas, essa vibração múltipla,
magoada, distraída e dolente obrigava-o a sentar-se, completamente desperto, nos
lençóis, cuidando-se na vivenda dos seus pais na praia, em Setembro, quando o
equinócio faz tremer do leste uma asma suave de criança. Há quanto temo de facto
não consigo dormir? Se fecho os olhos, uma rumorosa constelação de pombos levanta
voo dos telhados das minhas pálpebras descidas, vermelhas de conjuntivite e de
cansaço, e a agitação das suas asas prolonga-se nos meus braços em tremuras
hepáticas, apenas capazes de um tropeçar desajeitado de galinha, as pernas enrolam-se
na colcha numa humidade de febre, por dentro da cabeça uma chuva de Outubro tomba
lentamente sobre os gerânios tristes do passado.
O quê? A guerra de África? Tem razão, divago como um velho num banco de jardim
perdido no esquisito labirinto do passado, a mastigar recordações no meio de bustos e
de pombos, de bolsos cheios de selos, de palitos e de capicuas, movendo continuamente
os queixos como se premeditasse um escarro fantástico e definitivo.
O ataque começou do lado da pista da aviação, no extremo oposto à sanzala, luzes
móveis acendiam-se e apagavam-se na chana num morse de sinais. Ninda. Os eucaliptos
de Ninda nas demasiadamente grandes noites do Leste, formigantes de insectos, o ruído
de maxilares sem saliva das folhas secas lá em cima. A Lua enorme aclarava de viés os
pré-fabricados das casernas, os postos de sentinela protegidos por sacos e toros de
madeira, o rectângulo de zinco do paiol; à porta do posto de socorros, estremunhado e
nu, vi os soldados correrem de arma em punho na direção do arame, e depois as vozes,
os gritos, os esguichos vermelhos que saíam das espingardas a disparar. Estendido
numa cova à espera que o ataque acabasse, olhando as hirtas silhuetas de chapéu alto
dos eucaliptos idênticas a fúnebres testemunhas de duelo, de G3 inútil no suor das mãos
e cigarro cravado na boca como palito em croquete, descobri-me personagem de Becket
aguardando a granada de morteiro de um Godot redentor. Os romances por escrever
acumulavam-se-me no sótão da cabeça à maneira de aparelhos antiquados reduzidos a
um amontoado de peças dispares que eu não lograria reunir, as mulheres com quem me
não deitaria ofereceriam a outros as coxas afastadas de rãs de aula de Ciências
Naturais, onde eu não estaria para as esquartejar com o canivete ávido da minha
língua, o filho por nascer constituiria apenas a cristalização improvável de uma distante
tarde de Tomar, num quarto de messe de oficiais de janela escancarada para a praça,
com o sol coalhado nas acácias e nós celebrando na cama a liturgia ardente de um
desejo cedo demais desaparecido e tal como costumava fazer diante do sofrimento, da
angústia e da insónia, pôs-se a imaginar o mar.
Na tarde de 22 de Junho de 71, no Chiúme, em que me chamavam ao rádio para me
anunciar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da minha filha. Quando eu
chegar que sorriso farei?, perguntei alto, os alferes voltaram-se espantados para mim e
o capitão estendeu o braço para a garrafa de uísque, como de manhã, gorduroso de
sono, se palpa a mesa de cabeceira à procura do esguicho horrível do despertador para
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a sua campainha dolorosamente estridente, a furar-nos os ouvidos com a lâmina
imperiosa de um berro de metal.
Minha filha acaba de nascer. Acaba de nascer e a essa hora as senhoras do Movimento
Nacional Feminino devem estar pensando em nós sob os capacetes marcianos dos
secadores dos cabeleireiros, os patriotas da União Nacional pensam em nós comprando
roupa interior preta, transparente, para as secretárias, a Mocidade Portuguesa pensa
em nós preparando carinhosamente heróis que nos substituam, os homens de negócios
pensam em nós fabricando material de guerra a preço módico, o Governo pensa em nós
atribuindo pensões de miséria às mulheres dos soldados, e nós, mal agradecidos, alvos
de tanto amor, saímos do arame em que apodrecemos para morrer por perversidade de
mina ou emboscada, ou deixamos negligentemente filhos sem pais a quem ensinam a
apontar com o dedo o nosso retrato ao lado da televisão, em salas de estar onde tão-
pouco estivemos. O alferes Eleutério, pequenino e enrugado, com quem fora ter à mata,
numa Mercedes, quando um dos seus homens perdera a perna numa antipessoal e se
torcia, ainda consciente, na areia, pousou a mão, sem falar, no meu ombro, e foi essa,
percebe?, uma das raras vezes em que até hoje me achei acompanhado.
O que fizeram do meu povo, O que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta
paisagem sem mar, presos por três fieiras de arame farpado numa terra que nos não
pertence, a morrer de paludismo e de balas cujo percurso silvado se aparenta a um
nervo de nylon que vibra, alimentados por colunas aleatórias cuja chegada depende de
constantes acidentes de percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo
invisível, contra os dias que não se sucedem e indefinidamente se alongam, contra a
saudade, a indignação e o remorso, contra a espessura das trevas opacas tal um véu de
luto, e que puxo para cima da cabeça a fim de dormir, como na infância utilizava a
bainha do lençol para me defender das pupilas de fósforo azul dos meus fantasmas.
- Como é que eu morri? _ espantou-se ele a procurar dentro da cabeça uma agonia
de que se não lembrava.
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A perspectiva desse inferno parece ser uma espécie de narração sem fim, como se sempre
houvesse mais a contar. Isso talvez ocorra devido ao entendimento de que só narrando viveria,
mesmo que seja uma vida no inferno. O desejo de viver é perceptível pela seguinte passagem de
uma crônica: “- Não escrever é estar morto[...]” (Crônica, Visão, 11/09/2003 apud_ COELHO,
2004, p. 70)
Pulara sem transição da comunhão solene à guerra, pensava eu a abotoar o camuflado,
obrigaram-me a confrontar-me com uma morte em que nada havia de comum com a
morte asséptica dos hospitais, agonia de desconhecidos que apenas aumentava e
reforçava a minha certeza de estar vivo e a minha agradável condição de criatura
angélica e eterna, e ofereceram-me a vertigem do meu próprio fim no fim dos que
comiam comigo, dormiam comigo, falavam comigo, ocupavam comigo os ninhos das
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Nessa passagem, há a predominância de trechos em itálico por serem de Os Cus de Judas, mas há também trechos em padrão
normal por serem de Memória de Elefante e, de Conhecimento do Inferno em negrito.
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trincheiras durante o tiroteio dos ataques. Um roldão de lembranças em desordem
subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha
mais velha silabado pelo rádio para o destacamento onde se achava, primeira maçãzinha
de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria improvisada debruçado para a
agonia dos feridos, sair exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e
encontrar cá fora uma repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a voz a repetir-
lhe dentro –Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a
chegada às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente
sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de humidade
pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar
com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada. Nomes
mágicos: Quito-Quanavale, Zemza do Itombe, a Baixa do Cassanje coberta pelas altas
pestanas dos girassóis em manhãs limpas como ossos de luz, bailundos empurrados a
pontapé para as fazendas do norte, São Paulo de Luanda imitando o Areeiro encostado à
valva da baía.
- Merda de país de merda.
Em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença
aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil
combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. Sempre apoiei que
se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao escarro, escarro-
busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de Estado, escarro-equestre,
algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português: gabava-
se de fornicar e escarrava. Quanto à filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de
fundo do jornal, tão rico de ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que,
de cérebro exaurido por raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às
refeições a fim de conseguir pensar.
É a altura de fugir daqui. Movia-se aos saltos entre a janela e a porta, idêntico a um
esquilo obeso, de medalhas e emblemas a tilintarem no peito num ruído de lata,
como os automóveis dos noivos arrastam atrás de si uma comprida cauda de
panelas. As madeixas ralas e soltas do cabelo ondulavam em desordem sobre as
orelhas vermelhas, a barriga oscilava e vibrava como pele de tambor percutida por
baquetas invisíveis.
Lá fora, um céu de estrelas desconhecidas surpreendia-me: assaltava-me por vezes a
impressão de que haviam sobreposto um universo falso ao meu universo habitual, e que
me bastaria romper com os dedos esse cenário frágil e insólito para reingressar de novo
no quotidiano do costume, povoado de rostos familiares e de cheiros que me
acompanhavam com a fidelidade dos cachorros. Jantávamos na cidade em esplanadas
sórdidas repletas de soldados, entre cujos joelhos circulavam de cócoras engraxadores
miseráveis, lançando-lhes às botas soslaios veementes de paixão, ou indivíduos sem
pernas que estendiam timidamente manipanços esculpidos a canivete, equivalentes às
Torres de Belém de plástico do meu país natal. Sujeitos brancos sebentos, de pasta sob
o braço, trocavam dinheiro português por dinheiro angolano num vagar sabido de
agiotas; ruas, que se pareciam todas com a Morais Soares, aproximavam-se e
afastavam-se num labirinto atrapalhado a caminho da fortaleza; néon provinciano
espalhava-se nos passeios em poças piscas de estrabismos alaranjado. Ancorado na
baía, o navio que nos trouxera duplicava o reflexo na água preparando a partida: ia
regressar sem mim ao Inverno e ao nevoeiro de Lisboa onde tudo prosseguia
irritantemente na minha ausência com o ritmo do costume, permitindo-me imaginar,
despeitado, o que se seguiria de modo inevitável à minha morte e que era, afinal, o
prolongamento da indiferença morna e neutra, sem entusiasmo nem tragédias, que eu
tão bem conhecia, feita de dias cosidos uns aos outros numa fúnebre burocracia
desprovida de inquietações de labareda. Acredita nos sobressaltos, nos grandes lances,
nos terramotos interiores, nos voos planados de êxtase? Desengane-se, minha cara,
tudo não passa de uma mistificação óptica, de um engenhoso jogo de espelhos, de uma
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mera maquinação de teatro sem mais realidade que a cartolina e o celofane do cenário
que a enformam e a força da nossa ilusão a conferir-lhe uma aparência de movimento.
De modo que a pouco e pouco a usura da guerra, a paisagem sempre igual de areia e
bosques magros, os longos meses tristes do cacimbo que amareleciam o céu e a noite do
iodo dos daguerreotipos desbotados, haviam-nos transformado numa espécie de
insectos indiferentes, mecanizados para um quotidiano feito de espera sem esperança,
sentados tardes e tardes nas cadeiras de tábuas de barril ou nos degraus da antiga
administração de posto, fitando os calendários excessivamente lentos onde os meses se
demoravam num vagar enlouquecedor, e dias bissextos, cheios de horas, inchavam,
imóveis, à nossa volta, como grandes ventres podres que nos aprisionavam sem
salvação. Éramos peixes, percebe, peixes mudos em aquários de pano e de metal,
simultaneamente ferozes e mansos, treinados para morrer sem protestos, para nos
estendermos sem protestos nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro,
nos cobrirem com a Bandeira Nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos
navios, de medalha de identificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de um
berro de revolta.
- Porque é que as pessoas se matam?
- Os animais presos_ disse eu_ preferem muitas vezes morrer e nós não passamos
de animais presos: nunca nos deixarão sair daqui. Têm medo, em Luanda, que a
gente saia daqui: com que cara os tipos bem fardados, bem alimentados, bem
dormidos nos enfrentariam? Somos o remorso deles.
- As pessoas matam-se porque estão fartas_ disse o furriel enfermeiro a abrir a
tampa de uma garrafa com os dentes._ Fartas de não perceberem porque é que
morrem.
Eu estava farto de guerra, Sofia, farto da obstinada maldade da guerra e de escutar, na
cama, os protestos dos camaradas assassinados que me perseguiam no meu sono,
pedindo-me que os não deixasse apodrecer emparedados nos seus caixões de chumbo,
inquietantes e frios como os perfis das oliveiras, farto de ser larva entre larvas na
câmara ardente da messe que o motor da electricidade aclarava de vacilações
hesitantes de desmaio, farto do jogo das damas dos capitães idosos e das melancólicas
piadas dos alferes, farto de trabalhar, noite após noite, na enfermaria, molhado até aos
cotovelos do sangue viscoso e quente dos feridos.
- A gente mata-se porque somos os mendigos desta guerra_ declarei eu. _ Até os
que já estão mortos se matam.
Eu estava farto, Sofia, e todo meu corpo me implorava o sossego que apenas se
encontra nos corpos serenos das mulheres, nas curvas dos ombros das mulheres onde
podemos descansar o nosso desespero e o nosso medo, na ternura sem sarcasmo das
mulheres, na sua macia generosidade, côncava como um berço para a minha angústia
de homem, a minha angústia carregada de ódio de homem só, com o peso insuportável
da própria morte no dorso.
- Já estou morto_ disse ele. _ Morri no Mussuma, no Leste, quando encostei à
cabeça o indicador direito e disparei. Vocês não calculam o estampido de um dedo
ao disparar.
- De qualquer forma_ disse o furriel enfermeiro_ o tipo aqui ao lado é a segunda
vez que morre. Não sabia que os mortos se matavam.
- Os mortos gostam de morrer_ disse eu_, gostam de tornar a sentir os sobressaltos
desesperados da agonia.
- Nós os mortos somos muito estranhos_ declarou o alferes pendurando o espelho
no seu prego. _ Qualquer dia levo de novo o dedo à tempora e disparo.
Eram cinco horas da manhã e o suicida acabara de morrer depois de muito tempo
de desesperadas convulsões diante dos nossos olhos espantados. Dentro em breve os
coxos, os magros cães da tropa principiariam a inquietar-se na parada, anunciando
a claridade turva do cacimbo em que o sol surgia molhado pelo sumo do nevoeiro,
idêntico a uma laranja esborrachada.
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O soldado de Mangado se instalou de costas no beliche, encostou a arma ao pescoço,
disse Boa noite, e a metade inferior da cara desapareceu num estrondo horrível, o
queixo, a boca, o nariz, a orelha esquerda, pedaços de cartilagens e de ossos e de
sangue cravaram-se no zinco do tecto tal as pedras se incrustam nos anéis, e agonizou
quatro horas no posto de socorros, estrebuchando apesar das sucessivas injecções de
morfina, a borbulhar um líquido pegajoso pelo buraco esbeiçado da garganta.
O tipo sem rosto agoniza numa agitação incontrolável, amarrado à marquesa de ferro
que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões, gemendo pela lepra
de ferrugem das juntas. Ventas curiosas espreitam das janelas, um pequeno cacho
acumula-se à porta para assistir, fascinado e em pânico, ao sangue e à saliva que
borbulham pela garganta inexistente, aos sons indefiníveis que o que sobeja de nariz
emite, aos olhos que a pólvora rebentou como os ovos cozidos que explodissem. As
ampolas de morfina sucessivamente injectadas no deltóide parecem esporar cada vez
mais o corpo amarrado que se rebola e torce, e o petromax multiplica nas paredes em
sombras que confluem, se sobrepõem e se afastam, formando uma dança frenética de
manchas na geometria suja do estuque. Apetece-me abrir a porta de golpe, abandoná-
lo, sair dali, tropeçar ao acaso, cá fora, nos cães do quartel e nos miúdos espantados
que se nos enrodilham nas pernas, respirar o algodão húmido do ar de África, sentar-
me nos degraus de uma velha casa de colono, de mãos no queixo, vazio de indignação,
de remorso, de piedade, a lembrar as íris cor-de-capim da minha filha nos retratos que
de Lisboa, pelo correio, me mandam, e imaginar-me a vigiar-lhe o sono, dobrado para
os panos do seu berço num desvelo comovido. Queria estar a treze mil quilómetros dali,
a vigiar o sono da minha filha nos panos do seu berço, queria não ter nascido para
assistir àquilo, à idiota e colossal inutilidade daquilo, queria achar-me em Paris a fazer
revoluções no café, ou a doutorar-me em Londres e a falar do meu país com a ironia
horrivelmente provinciana do Eça, falar na choldra do meu país para amigos ingleses,
franceses, suíços, portugueses, que não tinham experimentado no sangue o vivo e
pungente medo de morrer, que nunca viram cadáveres destroçados por minas ou por
balas. O capitão de óculos moles repetia na minha cabeça A revolução faz-se por
dentro, e eu olhava o soldado sem cara a reprimir os vómitos que me cresciam na
barriga, e apetecia-me estudar Economia, ou Sociologia, ou a puta que o pariu em
Vincennes, aguardar tranquilamente, desdenhando a minha terra, que os assassinados a
libertassem, que os chacinados de Angola expulsassem a escória cobarde que
escravizava a minha terra, e regressar, então, competente, grave, sábio, sócio-
democrata, sardónico, transportando na mala dos livros a esperteza fácil da última
verdade de papel.
O sujeito imobilizou-se por fim num estremeção derradeiro, o que restava da garganta
cessou o seu borbulhar ansioso, o cabo do petromax deixou pender o braço e as
sombras estenderam-se no soalho numa vergonha de cachorros, subitamente imóveis.
Ficámos muito tempo a contemplar o cadáver agora em sossego, as mãos molemente
cavadas sobre as coxas, as botas que se me afiguravam dilatadas de um recheio de
palha, quietas na placa de ferro branco, mal pintada, da marquesa. Os que espreitavam
pela janela sumiram-se dos caixilhos na direção da caserna, o pequeno grupo apinhado
dissolveu-se devagar num murmúrio indistinto, e eu, sabe como é, dava o cu para estar
longe dali, longe do gajo morto que mudamente me acusava, longe das ampolas de
morfina que se amontoavam, vazias, no balde de pensos, no meio da gaze, do algodão,
das compressas.
Os soldados julgavam-me capaz de os acompanhar e de lutar por eles, de me unir ao
seu ingênuo ódio contra os senhores de Lisboa que disparavam sobre nós as balas
envenenadas dos seus discursos patrióticos, e assistiram enojados à minha passividade
imóvel, aos meus braços pendentes, à minha ausência de combatividade e de coragem, à
minha pobre conformação de prisioneiro. Os soldados acreditavam em mim, viam-me
trabalhar na enfermaria os seus corpos esquartejados pelas minas, viam-me à beira dos
beliches se tiritavam de paludismo nos lençóis defeitos, de modo que, sabe como é, me
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cuidavam um deles, pronto a encabeçar a sua zanga e o seu protesto, assistiram à
minha entrada na caserna onde um homem se trancara brandindo uma catana e
ameaçando matar toda a gente e a si próprio, e viram-me sair com ele, momentos
depois, a soluçar no meu ombro abandonos de bebé disforme.
O tipo de Mangando e todos os tipos de Mangando e Marimbanguengo e Cessa e
Mussuma e Ninda e Chiúme, pensou ele, se ergurão no interior de mim nos seus caixões
de chumbo, envoltos em ligaduras sangrentas que esvoaçam, exigindo-me, nos
resignados lamentos dos mortos, o que por medo lhes não dei: o grito de revolta que
esperavam de mim e a insubmissão contra os senhores da guerra de Lisboa, os que no
quartel do Carmo se cagavam e choravam vergonhosamente, tontos de pânico, no dia
da sua miserável derrota, perante o mar em triunfo do povo, que arrastava, no seu
impetuoso canto, como o Tejo, as árvores magras do Largo. Os tipos de Marimba que
recusaram o refeitório e o rancho do jantar e permaneceram formados na parada, com
o cabo mais antigo ao lado, um homem loiro, sério, sem palavras, em sentido na
parada, até o oficial de serviço, à minha frente, o desfazer de tareia com a pistola, o
cabo caía, levantava-se, punha-se de novo em sentido, sangrava pelo nariz, pelos
sobrolhos, pela boca, a companhia, formada, olhava fixamente para diante, o oficial
pontapeava o corpo de gatas que buscava alcançar a boina para a colocar ainda na
cabeça, e que repetia Meu alferes meu alferes meu alferes numa indestrutível teimosia
paciente, e por fim a companhia marchou lentamente para o refeitório e aceitou a
lavadura do rancho. Não era o rancho que estava em causa, percebe, todos comíamos o
mesmo alimento turvo, quase podre, que as crianças da sanzala, munidas de latas
ferrugentas, desejavam com grandes órbitas côncavas de fome penduradas
suplicantemente do arame, era a guerra, a cabronice da guerra, os calendários imóveis
em intermináveis dias, fundos como os tristes e suaves sorrisos das mulheres sozinhas,
eram as silhuetas dos camaradas assassinados que rondavam as casernas à noite
conversando connosco na pálida voz amarela dos defuntos, fitando-nos com as pupilas
magoadas e acusadoras dos esqueléticos cães vadios do quartel.
Angola, pesou ele, na guerra as coisas são simples: trata-se de tentar não morrer,
de tentar durar, e lembrou-se regressar da guerra de África para conhecer a filha,
numa dessas madrugadas de Novembro tristes como a chuva num pátio de colégio,
durante a lição de Matemática.
O empregado da Alfândega, magrinho intolerante que suspeitou decerto em mim o
guerrilheiro em embrião, vasculhou-me a mala num azedume minucioso em busca de
metralhadoras libertárias.
- Trago um feto de oito meses escondido no meio das camisas_ informei-o amavelmente
para lhe aguçar a irritação e o zelo. Possuía o aspecto desiludido e frenético de quem se
estende ao lado de uma esposa frígida, que apenas o pulmão de aço do folhetim do
rádio mantém viva.
Sempre que se examina exageradamente as pessoas, elas começam a adquirir,
insensivelmente, não um aspecto familiar mas um perfil póstumo, que a nossa fantasia
do desaparecimento delas dignifica. A simpatia, a amizade, uma certa ternura até,
tornam-se mais fáceis, a complacência surge sem custo, a idiotia ganha a sedução
amável da ingenuidade. No fundo, claro, é a nossa própria morte que tememos na
vivência da alheia e é em face dela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes.
- Vocês vêm de Angola convencidos que são uns grandes homens mas isto aqui não é o
mato, seu tropa.
- Se fosse, dava-lhe um tiro nos tomates.
Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de
Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo
reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de cinquenta anos da
guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos
administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhe
desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio
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despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas
de napalm, das raparigas grávidas espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as
rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão,
do desespero?
Que sabe este palerma de África, interrogou-se o psiquiatra, para além dos cínicos e
imbecis argumentos obstinados da Acção Nacional Popular e dos discursos de seminário
das botas mentais do Salazar, virgem sem útero mascarada de homem, filho de dois
cónegos explicou-me uma ocasião uma doente, que sei eu que durante vinte e sete meses
morei na angústia do arame farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a
quase morrer do falciparum, assisti ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje
dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de
palmeiras dos túmulos dos reis Gingas, parti e regressei com a casca de um uniforme
imposta no corpo, que sei eu de África?
Veio-lhe de súbito à memória o dia 13 de Outubro de 1972, em Marimba, na Baixa
do Cassanje, Angola, quando os oficiais empurraram os três negros para o posto de
socorros e os obrigaram a estender-se no chão, lado a lado, no exíguo espaço entre a
marquesa e a parede. Eram os três negros que roubavam a roupa, o dinheiro, os
objectos pessoais dos alferes ao longo desse comprido segundo ano de guerra,
durante o qual as chuvas destruíram as picadas, cortaram as comunicações,
abriram fundas valas nas estradas, tombando raivosamente, em espessas faixas de
cotão, na terra saturada. Os relâmpagos estalavam de contínuo num fedor acre de
enxofre. O novo administrador observava pela janela o lago de alumínio em que o
campo de futebol se transformara, e para onde as mangueiras debruçavam os altos
ombros musculosos das copas, em que espreitavam as pupilas míopes dos
morcegos. Os três negros levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa, o
dinheiro, os objectos pessoais dos alferes, murros, chibatadas, insultos da
companhia inteira, exausta por muitos meses de guerra, dos soldados a quem se
haviam tirado as armas para que se não assassinassem uns aos outros na caserna,
depois das últimas cervejas, lá em baixo, num toldo de bambus, junto ao canhão
protegido por uma gabardina de oleado. Faltava dinheiro, faltavam calças,
faltavam camisas, apodrecíamos de parasitas, de paludismo, de água choca, de
medo, e os três negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços das pauladas,
eram os culpados dos tiros, da angústia, da injustiça, da estupidez da guerra, e
como tal desatámos a deixar tombar sobre os seus peitos, sobre os seus ventres,
sobre as coxas, pontas acesas de cigarro, fósforos a arder, morrões de cinza, que
pregueavam a pele de bolhas translúcidas que se elevavam e estalavam.
- Quietos_ gritávamos-lhes nós aos pontapés.
- Já viste o estado em que eles ficaram? O que se faz agora a estes gajos?
- Chama-se um fazendeiro do café para lhes dar um tiro_ respondi eu a sacudir-
me._ Levantem-se seus cabrões_ disse eu. Aqueles meses de guerra haviam-nos
transformado em pessoas que não éramos antes, que nunca tínhamos sido, em
pobres animais acuados repletos de maldade e de terror. No fundo dos nossos olhos
amarelos uivava um medo pânico de infância, um pânico calado, tímido, embaciado
de hesitação e de vergonha.
- Vocês deviam ter tido mais cuidado_ aconselhou amigavelmente o pide
examinando os corpos em úlcera dos negros. _ Há maneiras de fazer as coisas sem
se deixar marcas.
Sorria da nossa ingenuidade, da nossa inexperiência: há maneiras de se fazer as
coisas sem se deixar marcas.
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Nessa passagem, há a predominância de trechos em itálico por serem de Os Cus de Judas, mas há também trechos em padrão
normal por serem de Memória de Elefante e, de Conhecimento do Inferno em negrito.
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Outra ação do narrador é apresentar datas. A data é uma perspectiva do tempo humano, no
entanto surge o problema de o tempo, sob a perspectiva do narrador como apenas palavra escrita,
ser um tempo único da escrita. Por esse entendimento, para a narração, essa data nunca existiu,
foi apenas uma escolha da narrativa. Desse modo, nenhum evento ocorreu, foi apenas narrado.
Só que, mesmo a narração sendo somente palavra escrita, ela revela o humano por ser
memória humana. Isso permite perceber há que uma correspondência, ainda que tênue, com a
história humana, ou seja, o mundo extra-literário e talvez por isso existam fatos na narração que a
Historiografia contempla.
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Vinte e cinco meses de guerra nas tripas, vinte e cinco meses de comer merda, e beber
merda, e lutar por merda, e adoecer por merda, e cair por merda, nas tripas, vinte e
cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas, de tal jeito ridículos que, por
vezes, à noite, no jango de Marimba, desatávamos de súbito a rir, na cara uns dos
outros, gargalhadas impossíveis de estancar, observávamos as feições uns dos outros e
a troça escorria-nos em lágrimas de piedade, e de escárnio, e de raiva, pelas bochechas
magras, até que o capitão, com a boquilha sem cigarro entalada nos dentes, se sentava
no jeep e principiava a buzinar, espantando os morcegos das mangueiras e os insectos
fantásticos de Angola, e nos calávamos como as crianças se calam em torno numa
surpresa imensa.
Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas
tripas, de modo que nos divertíamos mordendo-nos como os animais se mordem nos
seus jogos, nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos, furibundos, numa
raiva invejosa de cães, nos espojávamos, latindo, nos charcos da chuva, misturávamos
comprimidos para dormir no uísque da Manutenção, e circulávamos a cambalear pela
parada, entoando em coro obscenidades de colégio. Dias antes, três camaradas nossos
haviam morrido num acidente de unimogue, uma árvore inesperada saiu da mata e
plantou-se, vertical, ao centro da picada, diante da viatura que largara do comércio da
Chiquita, a seguir a umas cervejas moles no balcão das fazendas, e encontramos os
corpos disseminados no capim, de crânio fracturado, com as formigas vermelhas de
África a treparem, obstinadas, pelos braços inertes. Dias antes, os nossos últimos
companheiros assassinados partiram, embrulhados em lonas, para as urnas de
Malange, que exalavam um odor repugnante e fétido apesar do chumbo soldado e da
madeira, e os rostos defuntos deles, estendidos lado a lado no armazém de géneros do
quartel, tinham adquirido uma serenidade de paz sem sobressaltos, a amável
indiferença distraída dos jovens que me esquecera que eram, envelhecidos por um
sofrimento sem razão. Invejei-os, percebe, entre os sacos de batata e de farinha, as
garrafas de refrigerante, os volumes de tabaco, a enorme balança que se aparentava a
um aparelho de tortura medieval, invejei a sua tranquilidade vazia de medo e a
esperança baça que se escapava, vaga, das pálpebras mal cerradas, invejei o voltarem a
Lisboa primeiro que eu, com a tatuagem de uma flor de sangue seco na testa.
Começo a pensar que o milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não
existiram nunca e lhe estou contando uma espécie de romance de mau gosto impossível
de acreditar, uma história inventada.
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Penso aqui os termos de modo muito simplificado: história como a passagem do tempo para o homem com todos os fatos que
lhe ocorreram, enquanto Historiografia seria a ciência que estudaria a história.
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- Para a próxima_ sugeriu o pide_ arreiem-lhes só na planta dos pés. O efeito é o
mesmo e não se topa._ Não pensem mais nisso_ disse o pide._ Quem é que se
importa com pretos?
Os guias negros, acocorados no chão, assemelham-se a figuras de mural desenhadas
no painel castanho e verde das árvores, coçando os grossos dedos amarelos dos pés
com a palidez das unhas, ou desenhando com pedaços de pau riscos ao acaso na
areia. Estes caraças desconfiam de nós como o diabo, pensava eu, o nosso coração
não se contrai ao mesmo ritmo, não conhecemos o que os preocupa, o que os
interessa, o que os assusta. Viemos de metralhadora em riste, partimos de
metralhadora em riste, e chamamos-lhes irmãos enquanto lhes comemos as
mulheres nas esteiras deles, e os tipos esperam lá fora, encostados às estacas das
lavras, a esconderem na mão o cigarro de liamba. A gente sai para o luar a apertar
a breguilha e ouve contra a nuca
- Boa noite, nosso tropa
sem zanga nem revolta, tranquilamente, ouve,
- Boa noite, nosso tropa
e uma forma oblíqua some-se no escuro a assustar as galinhas e os cabiris à medida
que nos afastamos, a tropeçar nas raízes como nadadores com barbatanas, a
caminho do arame do quartel.
Pertenço sem dúvida a outro sítio, não sei bem qual, aliás, mas suponho que tão
recuado no tempo e no espaço que jamais o recuperarei. Não te pertenço nem me
pertences, tudo em ti me repele, recuso que seja este o meu país, eu que sou homem de
tantos sangues misturados por um esquisito acaso de avós de toda a parte, suíços,
alemães, brasileiros, italianos, a minha terra são 89000 quilómetros quadrados com
centro em Benfica na cama preta dos meus pais, a minha terra é onde o Marechal
Saldanha aponta o dedo e o Tejo desagua, obediente, à sua ordem, são os pianos das
tias e o espectro de Chopin a flutuar à tarde no ar rarefeito pelo hálito das visitas, o
meu país, Ruy Belo, é o que o mar não quer.
Lembrei-me quando o director do Hospital Militar de Tomar mandou chamar-me e
anunciou O meu amigo foi mobilizado para Angola, era em Agosto e a claridade da
manhã fervia, verde, nas janelas, a cidade flutuava na luz, o reflexo do Mouchão tremia
na água, mobilizado para Angola num batalhão de Artilharia, Pai, fui mobilizado para
Angola num batalhão de Artilharia, na voz pequenina com que comunicava as
reprovações na Faculdade.
- Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.
Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente
recuso: um solteirão melancólico a quem se não telefona e cujo telefonema ninguém
espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher a
dias acabará por encontrar sentado na cadeira de baloiço em camisola interior, de boca
aberta, roçando os dedos roxos no pêlo cor-de-novembro da alcatifa.
O que seria de nós, não é, se fôssemos, de facto, felizes? Já imaginou como isso nos
deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma
desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa
de colégio? Viu por acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem
segundos pensamentos, se nos entrega, como não suportamos um afecto sincero,
incondicional, sem exigência de troca? A esses, os Camilos Torres, os Guevaras, os
Allendes, apressamo-nos a matá-los porque o seu combativo amor nos incomoda,
procuramo-los, de bazzoka ao ombro, raivosos, nas florestas da Bolívia,
bombardeamos-lhes os palácios, colocamos no seu lugar sujeitos cruéis e viscosos, mais
parecidos connoscos, cujos bigodes nos não trepam pelo esófago refluxos verdes de
remorso.
48
48
Nessa passagem, há a predominância de trechos em itálico por serem de Os Cus de Judas, mas há também trechos de
Conhecimento do Inferno em negrito.
75
2. CONCLUSÃO
O que fazer diante da obra de Lobo Antunes? Ler? Analisar? Criticar? Adotar algum outro
procedimento?
Ter em vista tantas possibilidades permite, de um modo geral, uma liberdade de escolha;
no entanto, a postura assumida nesta escrita não me permite escolher qualquer ação a priori no
confronto com a obra do autor. A própria enumeração dessas possibilidades foi-me, de algum
modo, imposta; pois, antes de tudo, tenho de observar a validade de minha postura e os
desdobramentos advindos dela.
Sendo assim, digo que há muitos modos de estabelecer uma de linha de análise de uma
obra literária. Pode-se, por exemplo, filiar-se a uma corrente crítica e adotar seus métodos de
investigação ou é possível também eleger uma ciência a fim de utilizar seus parâmetros como
medida de análise. Ambas as possibilidades são perfeitamente aceitáveis na busca de
entendimentos, no entanto desejei fazer o caminho, digamos, inverso: em vez de olhar a obra de
fora para dentro, observo apenas dentro dela mesma. Isso significa: ter Lobo Antunes como único
guia para qualquer entendimento sobre sua obra.
Por essa postura, qualquer escolha prévia seria uma violência por indicar um
direcionamento meu perante a obra do autor, direcionamento que, possivelmente, influenciaria
todo o entendimento que viesse a adquirir. Até mesmo a formulação de uma pergunta,
aparentemente, ingênua como, por exemplo, “Como ler Lobo Antunes?” seria em si uma resposta
(ou princípio de), já que a pergunta poderia indicar a eliminação das outras possibilidades de
entrada na obra ou que teria estipulado uma hierarquia entre elas. Além disso, nem poderia, como
se espera de um estudo teórico, definir o significado dos termos “ler”, “analisar”, “criticar” ou
qualquer outro que surgisse para fins desta escrita.
Contudo, a escolha da minha postura não foi aleatória, nem ingênua; pois, ela pretendia
atender à uma demanda do autor que, ao atacar quem fala de sua escrita, permite que se entenda
um desejo de exigir, para si, o controle total sobre a recepção de sua obra pelo leitor. Logo, meu
procedimento é uma tentativa de atender às suas expectativas de leitor.
76
Foi satisfatório optar por esse caminho? Caminho que, a meu ver e até onde sei, ninguém
havia seguido? Creio que sim, porque me proporcionou uma perspectiva interessante. Só que, é
preciso dizer, não foi uma estrada fácil ou confortável, pois havia o perigo de que, a qualquer
instante, eu escapasse do seu controle e passasse a andar por conta própria. Aliás, não há qualquer
garantia de que isso não tenha ocorrido, por isso entendo que, por mais esforço que faça, posso
somente tentar evitar minhas interpretações.
Vejo essa tentativa como um apagamento da minha própria voz em favor de Lobo
Antunes, o que, a meu ver, constitui-se de um processo semelhante a que Blanchot diz ser a ação
do escritor: fazer silêncio. Não poderia dizer, porém, que esta escrita pretende-se literária ou
estaria utilizando conceito de um outro. Blanchot serve apenas como exemplificação, algo a que
me aproximo e me afasto de imediato.
Foi preciso agir dessa forma, porque outros não poderiam ser aceitos nesta escrita devido
à postura assumida. Nem mesmo aqueles que se debruçaram especificamente sobre a obra de
Lobo Antunes puderam ser consultados. No entanto, quem desejar consultar seus estudos pode
procurar por alguns indicados nas Referências.
Minha postura levou-me a algo que a tradição crítica chama de uma certa tendência à
autobiografia. “Autobiografia” é um termo com sentido, tradicionalmente, bem demarcado como
a inserção, em livro, de acontecimentos da vida vivida de quem o escreve. Foi possível chegar a
essa tendência a partir da percepção de que há uma proximidade muito forte entre o que Lobo
Antunes diz ser sua vida e o narrado nos seus três primeiros romances Memória de Elefante, Os
Cus de Judas e Conhecimento do Inferno. E essa possível tendência é vista, em geral, de modo
estranho, porque o autor diz produzir romances, tipo de texto em que se considera formulado,
num sentido final, por situações inventadas.
Quando essa questão é apresentada ao autor, ele não só afirma que seus livros são
realmente autobiográficos, como também expande esse aspecto a todos os outros. A todos os
livros realmente ou só os literários? Isso não foi possível depreender.
De qualquer modo, a expansão provocada por Lobo Antunes exigiu-me a busca de
qualquer entendimento possível. Em vista disso, analisei o estudo sobre autobiografia de Philippe
Lejeune: Le Pacte Autobiographique. Esse estudo atribui grande importância ao conceito de
“identidade”, algo que, segundo Lejeune, ligaria as instâncias de autor, narrador e personagem
77
principal ao modelo da autobiografia. Contudo, nenhum elemento textual como o pronome
pessoal ou o nome próprio poderia garantir essa identidade; ela só seria possível por um pacto
proposto por autor e editor, e aceito pelo leitor.
Não me pareceu, porém, que esses preceitos estariam de acordo com os livros de Lobo
Antunes, menos ainda com todos os outros. Só para ficar com os de Lobo Antunes, os quais
servem de parâmetro para a idéia: não há o pacto, porque a indicação das edições é de que os
livros são romances. Também não poderia falar apenas de traços autobiográficos pelo simples
fato de, se assim fosse, o autor usaria a expressão “traços autobiográficos” e não teria feito como
Blanco expõe em seu livro. Esse seria um argumento sólido? Basear-se em minúcias? Creio que
sim, pois, se há uma intencionalidade em suas declarações, cada detalhe deve ser levado em
consideração.
Em vista disso, concluí que Lobo Antunes deveria ter outro entendimento de
autobiografia e para tentar entender qual seria, só poderia perguntar diretamente a ele, ao que dele
posso ter dele: suas crônicas, suas entrevistas e seus romances, mais precisamente, aqueles que
me dispus a estudar: Memória de Elefante, Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno.
Essas fontes de Lobo Antunes permitiram-me experimentar várias possibilidades do que
seria o entendimento de autobiografia do autor. Nesse sentido, dentre todas as possibilidades
depreendidas, a única que não pôde ser invalidada aproxima-se, a meu ver, em algum grau, a
entendimentos que o filósofo americano Stanley Cavell expõe sobre o que acredita ser a retomada
da proposição “Penso, logo existo.” de René Descartes por Emerson.
Para Cavell, Emerson mostra que a única possibilidade de garantir a existência humana
ocorre por via literária. Só seria possível provar a existência do narrador Emerson, pois a prova
que Descartes oferecia, o pensamento, não é algo materialmente comprovável.
Observando esse estudo como orientação, percebi ser admissível pensar que a
proximidade entre o que Lobo Antunes diz ter vivido e o que narra nos livros aqui estudados
indica uma intenção em declarar-se apenas um narrador. Essa intenção, se tomada por um viés
extremo, permite entender que afirma ser o narrador Lobo Antunes e não o indivíduo Lobo
Antunes. Isso, a meu ver, retiraria qualquer importância de uma vida extra-literária, uma vida
realmente vivida.
78
Esse fato pode ser entendido no sentido de que tudo o que se “sabe” do indivíduo Lobo
Antunes só surge, para o mundo, após a publicação do primeiro romance. E, assim, todas as
indicações dessa vida vivida já estariam marcadas, “manchadas” ou talvez até moldadas pela
imagem de vida que o romance expõe.
Lobo Antunes teria moldado tudo o que diz ser sua vida para reforçar uma imagem
apresentada em um romance? Talvez, e se assim procedeu, terá sido porque tem ciência de que
sempre será apenas um narrador para o leitor e para o mundo, em geral. Assim, por que revelar
uma vida diversa? Se tudo o que queria dizer já o fez em seus romances (senão, teria, a meu ver,
escolhido outros meios), mais valeria reforçar suas mensagens, expô-las ao máximo. E, assim,
pode-se dizer que António Lobo Antunes seria, na verdade, uma vida literária, ou seja, apenas
palavras escritas.
Em vista dessa vida literária de Lobo Antunes, como ficaria a questão da autobiografia? A
autobiografia não seria escrita da vida de um indivíduo, mas de um narrador. Mais ainda, seria
seu próprio corpo e, assim, seria a prova da existência desse narrador. Qual seria a importância
desse entendimento de autobiografia? Pensar que todos os livros são autobiográficos e, também
que, se a expansão provocada por Lobo Antunes englobar livros não-literários, até os livros
considerados autobiográficos pelo entendimento estudado por Lejeune serão autobiografias por
serem a única existência totalmente comprovável deles. Penso, porém, que a autobiografia não
serve somente para garantir a existência de alguns poucos narradores e sim para garantir a
existência do humano no planeta, pois tudo o que é narrado é humano. Desse modo, o humano
ocorreria em nível literário.
Se seus livros são autobiografias porque revelam/garantem a existência do narrador Lobo
Antunes, o que fazer dessa vida? Nos primeiros instantes da Introdução ficou definido, a partir de
declarações do escritor português, que seria preciso “ler” sua obra, o que significaria estar
inteiramente atento às suas palavras ou, como se pode dizer observando as conclusões desta
escrita, a ele mesmo.
Estar atento às suas palavras pode significar, segundo o entendimento adquirido, utilizá-
las inteiramente. Por isso, estabeleci uma outra autobiografia de Lobo Antunes. Esse processo
consistiu em recortar trechos de seus romances aqui estudados e os remontar a partir de uma
outra ordem. Isso seria obedecer ou trair Lobo Antunes? Não posso responder com firmeza, digo
79
apenas que é uma autobiografia possível por expor suas palavras e ajudar a garantir a existência
desse narrador e que a realizei no sentido único de obedecer-lhe, mesmo tendo consciência de
que não há qualquer garantia disso.
Não seria justo, porém, remontar os trechos de forma aleatória, pois isso seria destruir o
narrador. Assim, tive de buscar um modo pelo qual esta autobiografia ressaltasse da melhor
forma possível essa vida literária.
Observei, então, uma vida por três, digamos, estágios pelos quais qualquer coisa que
existe ou existiu, sendo ela “real” ou “imaginária”, passa: nascimento, vida e morte. Penso que,
apesar de trabalhar com três romances, é somente uma vida que ali se desenvolve; logo, acreditei
ser necessário construir apenas um capítulo composto desses três estágios ou três movimentos. E,
além disso, por essa vida ser de um narrador, e não de uma pessoa, tive que determinar como
cada um dos estágios seria construído.
Nesse sentido, percebi, acompanhando a idéia anteriormente exposta do nascimento do
narrador, um sentido de vida cristã, ou melhor, anti-cristã pela contínua degradação a esse
modelo que o narrador faz. Assim, foi-me possível formar os movimentos dentro do capítulo
único como “Natal”, “Peregrinação” e “Fuga”: o primeiro tratando de seu contato em diversos
níveis com a loucura; o outro revelando suas buscas, ou seja, tentativa e fracasso em ser bom
filho, bom marido, bom pai, bom médico e bom cidadão e, o último, a narrar sua participação nas
Guerras Coloniais.
A fim de entender como construí o eixo temático de cada movimento da autobiografia,
tive de acompanhar a “remontagem” dos trechos com pequenos andamentos, pequenos textos.
Esses andamentos aparecem em meio à autobiografia e servem também para desfazer possíveis
incoerências que surgirem. Desse modo, não pude utilizar a forma tradicional de citação: os
trechos que compõem a autobiografia estão com tamanho da fonte, o espaçamento e o
afastamento em relação à página tal qual as normas exigem; mas não há indicação de onde eles
foram retirados como uma citação direta exige. Há somente uma leve referência a quais livros
pertencem devido a um trabalho com a formatação da fonte: os trechos retirados de Memória de
Elefante estão em padrão normal, aqueles que pertencem a Os Cus de Judas aparecem em itálico
e os de Conhecimento do Inferno surgem em negrito.
80
Faço isso no sentido de evitar que a autobiografia fique visualmente sobrecarregada, sem
falar que isso permite a ela um pleno desenvolvimento e afirme com maior grau o seu caráter de
texto. Sendo assim, posso dizer que a autobiografia serve como uma longa citação por momentos
interrompida por meus pequenos andamentos, que não se pretendem explicativos, apenas
elucidativos de minha ação. É óbvio que essas elucidações acabam permitindo alguns
entendimentos que até ampliam a discussão sobre o entendimento de narrador segundo Lobo
Antunes, mas digo que são apenas impressões; aliás tudo nesta escrita é apenas impressão, pois
tudo o que Lobo Antunes quis dizer já o fez em seus romances e refez outras tantas vezes quando
julgou ser necessário.
Tendo isso em vista, digo que não utilizei a estrutura padrão que é comum a um texto
teórico, mas assim fiz com intuito de obedecer a uma postura de escrita, uma postura de estudo.
Como não pude falar de Lobo Antunes, estive à margem dele em Introdução, pequenos
andamentos em meio à autobiografia e Conclusão. Logo, a Introdução precisou ganhar em
proporção e assumir mais funções que normalmente teria; os pequenos textos apresentam função
acessória e a Conclusão pretende resumir o modo como cheguei ao entendimento de minha linha
de ação nesta escrita e, além disso, fazer algumas considerações acerca de sua validade.
Antes, porém, de partir para esse caminho reafirmo que essa autobiografia possível só me
diz o que os romances já me disseram, ou seja, só existe em função de Lobo Antunes: tanto em
âmbito estrutural quanto temático. Assim, esta escrita possui, em sentido geral, um caráter de
“espelhamento” em relação à obra do autor.
Em vista de tudo isso, pergunto: é possível duvidar da validade desta escrita? Essa
pergunta, no entanto, pressupõe uma outra: validade em relação a quê? Naturalmente, em relação
a uma escrita teórica, ao que se espera dela.
Como se sabe, por constituir-se o resultado de uma pesquisa filiada a um programa de
Pós-Graduação, esta escrita deve respeitar a certas normas de padronização. Essas normas
garantem, de antemão, uma respeitabilidade e servem, a meu ver, para tornar mais simples e clara
a apuração das conclusões e a consulta de quem se interessar.
Não questiono a qualidade dessa padronização, sua funcionalidade ou necessidade, esta
escrita não serve de crítica alguma a ela; aliás, no “exterior” à autobiografia respeitei todas as
81
normas prescritas. O modo como estabeleço minha escrita está baseado, tão-somente, em
entendimentos que é possível obter a partir de meu objeto de estudo: António Lobo Antunes.
Esses entendimentos guiaram minha ação, tornaram-se os pressupostos de meu estudo.
Logo, questionar esta escrita é o mesmo que questioná-los. Seria aceitável questioná-los? Seria
aceitável fazer isso com quaisquer outros? Quais motivos seriam suficientes para fazer isso?
Penso, de um modo geral, que todo entendimento é sustentado em pressupostos e isso
ocorre em todos os níveis ou campos do conhecimento. Para ficar apenas naquele em que esta
escrita está estabelecida, julgo ser fácil perceber que todo estudo organiza-se a partir de conceitos
e idéias que o autor apresenta a seu leitor como seus pressupostos, assim, por exemplo, um estudo
que alegue uma tendência autobiográfica em determinada obra deve, em primeiro lugar,
perguntar-se o que seria autobiografia e enunciar seu entendimento do termo a fim de evitar
imprecisões ou incorreções.
No entanto, é possível que o autor tenha certeza de que o leitor compartilha de seus
entendimentos e não ache necessário explicitar seu significado. E, mesmo esses entendimentos
compartilhados, servem de pressupostos para seu estudo.
A partir disso, penso que os pressupostos são meios de “instrumentalizar” uma pesquisa e
a minha não foge à essa perspectiva, pois trabalho exclusivamente com pressupostos
depreendidos de declarações da obra do autor analisado e minha ação, ou seja, o estabelecimento
da autobiografia possível constitui-se uma resposta aceitável a esses pressupostos.
Além disso, se eles são utilizados a fim de buscar entendimentos, minha escrita também
“alcança” entendimentos. Logo, não vejo motivos para invalidar esta escrita sem invalidar meus
pressupostos. É possível invalidá-los? Existem motivos suficientes para tal coisa?
Se houver, quais seriam? Por eles terem levado a uma ação que fere as normas, talvez seja
possível dizer que os pressupostos não seriam bons e, assim, diria que a conclusão tornaram-nos
inaceitáveis. Outra idéia possível é de que eu teria errado ao escolher a postura de minha escrita,
pois ela permitiu que utilizasse respostas de entrevistas e trechos dos romances em vez de seguir
estudos de teóricos e críticos. Aceitar essa perspectiva seria dizer que existem fontes menos
aceitáveis que outras.
Esses argumentos não me são satisfatórios, logo não vejo motivos para invalidar meus
pressupostos. Tendo isso em vista, se penso que eles “instrumentalizamminha pesquisa, ou seja,
82
instituem uma base a ela, não acredito que a inadequação à norma, um fator técnico, seja motivo
suficiente para invalidar toda esta escrita.
Dessa forma, posso dizer que o narrador Lobo Antunes vive por sua escrita, ela é sua
autobiografia e estabelecer uma outra autobiografia possível é uma forma de aceitável de ler essa
vida literária. Pois, meu trabalho tende mais à narração que à explicação, tende mais à busca que
a certeza de qualquer coisa. Só há explicação sobre minha ação e não sobre o que é Lobo
Antunes. Há explicação de como pude ler Lobo Antunes e não do que se deve ler em Lobo
Antunes.
Concluo esta escrita afirmando que tudo que há nela busquei apenas Lobo Antunes a
partir de parâmetros que pude depreender do que ele disse; e, mesmo assim, tenho consciência de
que o entendimento não pode ser considerado o mais verdadeiro: é apenas aquele que Lobo
Antunes ofereceu-me.
83
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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