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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
Keley Cristina Carneiro
Prof.
o
orientador: Dr. Élio Cantalício Serpa
Goiânia
2005
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KELEY CRISTINA CARNEIRO
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em
História, da Faculdade de Ciências Humanas e
Filosofia da Universidade Federal de Goiás, para
obtenção do título de Mestre em História.
Área de concentração: História, Meria e
Imaginários Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa
Goiânia
2005
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KELEY CRISTINA CARNEIRO
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
Dissertação defendida e aprovada em____ de ________ de 2005,
pela Banca Examinadora constituída pelos professores:
____________________________________
Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa
Presidente da Banca - FCHF - UFG
_____________________________________
Prof. Drª. Libertad Borges Bittencourt
FCHF - UFG
_______________________________________
Prof. Dr. Marlon Jeison Salomon
FCHF - UFG
_________________________________________
Prof. Dr. Noé Freire Sandes
FCHF – UFG
(suplente)
À Sofia,
Que desde a prova da seleção do mestrado estava em
meu ventre sem que eu soubesse, passamos por tudo,
juntas, disciplinas, seminários, orientações, idas e vindas.
Ao Suerley,
Companheiro, cúmplice, amante, incentivador,
colaborador...
Às mulheres,
Que são esposas, mães, filhas, donas de casa,
profissionais, e ainda, estudantes, guerreiras, que lutam
pelos seus direitos, pelo seu espaço e são felizes.
AGRADECIMENTOS
A você que esteve comigo nesta caminhada contribuindo de uma forma ou
de outra. Os nomes são vários: Sofia, Suerley, Odete, Oscar, Gracielly, Frank,
Alysson, Elizabeth, Silene, Suelina, Lucyene, Marielle, Rogério, Guilherme,
Gabriel, Leidimar, Geralda, Madalena, Divina Célia, Enery, Bené, Maria das
Graças, Leosmar, Regina, Maria Elisete, Ivany, Mônica, Fátima Cançado, Martha,
Clovis, Viviane, Leandra, Robson, Osmar, Jorge, Lívia, Tomaz, Célio, Elder,
Antônio, Maria...
Agradeço especialmente:
Aos professores: Libertad, Noé, Marlon, Cristina, Andréa, Pedro Paulo
luzes no meu caminho;
Ao Prof. Dr. Élio Cantacio Serpa – distante e tão presente;
A eterna amiga, in memoriam, Eliana Aparecida Sersocima - ausente e tão
próxima.
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
06
RESUMO 07
ABSTRACT 08
INTRODUÇÃO 09
1. GOIÁS: CARTOGRAFIAS DE FUNDAÇÃO E
MONUMENTALIZAÇÃO
15
1.1. O cartógrafo em Goiás: histórias e ressentimento 15
1.2. Suportes de Memória: o passado e o futuro 27
1.2.1.
Passado: Produção de Monumentos 27
1.2.2.
Futuro: Valor ao Turismo 40
2.
GOIÁS: CARTOGRAFIA DE UMA TRADIÇÃO
51
2.1. Uma Tradição: A Festa da Procissão do Fogaréu.
52
2.1.1.
A Procissão é uma festa. 56
2.1.2.
A (re)invenção da tradição. 61
2.1.3.
Dramatização e trajeto 66
2.1.4.
Um ritual dentro do Ritual 71
2.1.5.
A imagem do farricoco 74
2.1.6.
O ritual entre o sagrado e o profano 77
3.
POLIFONIA DA CIDADE DE GOIÁS: FRAGMENTOS DA MEMÓRIA
87
3.1. Olhares diferentes sobre o mesmo objeto: a Procissão do Fogaréu
sob a ótica de uma folclorista e de um historiador.
88
3.1.1.
Regina Lacerda e A Procissão do Fogaréu 88
3.1.2.
Paulo Bertran e A Procissão do Fogaréu 92
3.2. As Memórias: outro lado da história 95
3.2.1.
As Memórias e o Patrimônio da Humanidade 96
3.2.2.
As Memórias da Procissão do Fogaréu 100
CONCLUSÃO 108
BIBLIOGRAFIA 113
ANEXOS
119
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 01 - Casa de Cora Coralina – dia 45
Foto 02 - Casa de Cora Coralina – noite 46
Foto 03 - Artesanato – farricocos de barro 48
Foto 04 - Artesanato – panelas de barro 48
Foto 05 - Artesanato – pinturas nas pedras 48
Foto 06 - A Procissão do Fogaréu 66
Figura 01 - Roteiro da Procissão do Fogaréu 71
Foto 07 - Os farricocos 76
RESUMO
A finalidade desse estudo é compreender por que parte da população da
cidade de Goiás, as a transferência da capital para Goiânia, tornou-se
ressentida e por que algumas pessoas pertencentes a determinadas entidades ou
associações ou instituições amenizaram seus ressentimentos, buscando uma
valorizão do seu passado histórico e de suas tradições a ponto de tornar a
cidade Patrimônio da Humanidade. É, também, objetivo desta pesquisa mostrar
uma das grandes festas de Goiás, que atrai inúmeros turistas, a Procissão do
Fogaréu, inserida nos rituais da Semana Santa. Os resultados obtidos mostraram
que não é a cidade toda que se tornou Patrimônio da Humanidade, mas apenas o
“centro histórico”, enquanto outras partes da cidade ficam à deriva. E, também,
como conclusão desta pesquisa, percebem-se as vozes dissonantes no que se
refere às tradições. Goiás se apresenta, diante do mundo, como Patrimônio da
Humanidade, contudo, há uma outra história, não-dita pela história oficial.
Palavras-chave: Patrimônio, Tradição, Turismo, Festa, Memória.
ABSTRACT
This study aims at understanding why part of people of Gos city felt
resentful after the transfer of the capital to Goiânia and why some people who
belong to certain entities, or associations, or institutions softened their
resentments by seeking for the valorization of their historical past and of their
traditions that became the Goiás city a Patrimony of the Humanity. This research
also aims to show one of the great religious celebrations that attract many tourists:
the procession of the “Little Flame”, inserted in the Holy Week rituals.
Its results showed that the whole city didn’t become Patrimony of the
Humanity, but just only the downtown did, while other areas of the city adrift. To
conclude, it’s possible to perceive the dissonant voices that refer to the traditions.
Goiás comes out to the world as a Patrimony of Humanity, however, there is
another history that isn’t recognized by the official history.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
CARNEIRO, K. C.
INTRODUÇÃO
A pesquisa se desenvolverá em forma de cartografia
1
, não no sentido de
mapa, mas no sentido de descrição/mapeamento da história de uma cidade, cujas
tradições se fazem marcantes. Rolnik (1989, p. 68/69) caracteriza o papel do
cartógrafo,
...o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. (...) Todas as
entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o
cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não
escritas e nem teóricas (...) O que ele quer é se colocar, sempre que
possível, na adjacência das mutações das cartografias (...) o que quer é
apreender o movimento que surge da tensão fecunda entre fluxo e
representação: fluxo de intensidades e escapando do plano de
organização de territórios, desorientando suas cartografias,
desestabilizando suas representações e, por sua vez, representações
estancando o fluxo, canalizando intensidades, dando-lhes sentido...
O cartógrafo é aquele que acompanha todas as transformações da
paisagem, enquanto produz sua representação.
Para produzir a cartografia a documentação pode ser vasta ou escassa.
Cabe ao historiador saber aproveitar informações, manuseá-las, ousar, interrogar
e lapidar, trazendo à tona tudo que considerar importante para resolver sua
problemática de pesquisa. Le Goff (1994, p. 107) deixa claro que a matéria-prima
para a escrita da história deve ser os documentos escritos, mas se estes não
existirem, a escrita pode tamm ser feita com tudo que a engenhosidade do
historiador permite utilizar...”
Esse trabalho de pesquisa é uma cartografia produzida por meio de
bibliografias e documentos variados como jornais, cartas, dossiês, artigos e
1
A idéia de trabalhar como cartografia veio do livro: ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. SP:
Estação Liberdade, 1989.
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PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
CARNEIRO, K. C.
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outros. Entrarão na composição dessa narrativa histórica as lembranças de
pessoas da cidade de Gos, por meio da hisria oral. Vale ressaltar que o
recurso utilizado para a coleta de dados foi a entrevista, gravada em fita k-7,
posteriormente transcrita e analisada. Montenegro (1994, p.19) mostra o valor da
oralidade e da construção da narrativa, dizendo que:
a história se refaz, se reformula, a partir de novas perguntas realizadas
pelo historiador ou mesmo da descoberta de outros documentos ou fontes.
A história opera sempre com o que está dito (...) Desses elementos o
historiador constrói sua narrativa, sua versão, seu mosaico.
Por muito tempo, só se fazia a história por meio de documentos escritos, os
quais registravam apenas aquilo que consideravam grande acontecimento para a
história, a dos vencedores, a história “oficial”. A partir da Nova História”
2
ou do
grupo dos Annales
3
da França, surgiu uma nova historiografia que abriu espaço
para novos campos da pesquisa, valorizando a história dos que não tem voz.
Preocuparam-se em enfatizar a História Social, a História das Mentalidades e a
História Oral, além de outras Histórias. A chamada micro-história, as minorias, os
excluídos, a vida cotidiana, as representações, a cultura do povo, as festas, enfim,
a história que estava silenciada passa, a partir de então, a ser estudada. Le Goff
(1994, p. 109) mostra mais uma vez como se deve fazer a História:
Faço também notar que a reflexão histórica se aplica hoje à ausência de
documentos, aos silêncios da história. Michel de Certeau analisou com
sutileza os “desvios” do historiador para as zonas silenciosas” (...) “a
feitiçaria, a loucura, a festa (...) Falar dos silêncios da historiografia
tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a
documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os
esquecimentos, os hiatos, os espaços brancos da história. Devemos fazer
2
Esta expressão foi popularizada por Le Goff. A História Nova passou por 3 gerações : A primeira
teve como fundadores Lucien Febvre e Marc Bloch, que sentiram a necessidade de uma nova
abordagem historiográfica. Na segunda, destaca-se Braudel, que delineia a Escola dos Annales,
nesta fase novos métodos como o tempo da longa duração, a estrutura e a conjuntura são
definidos. A terceira geração engloba mulheres historiadoras e figuras conhecidas na história
contemporânea: Duby, Le Goff, Philipphe Áries, Michel Volvelle e outros.
3
Revista criada por Febvre.
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11
o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos
documentos e das ausências de documentos”.
A idéia inicial deste trabalho foi descrever o evento da Procissão do
Fogaréu, desde sua origem em Goiás até a atualidade. Por meio das pesquisas foi
possível perceber que era praticamente impossível realizar tal tarefa pela
inexistência de fontes, inclusive a oral. Muito pouco se sabe sobre o início da
Procissão e como ela era até 1967, quando foi (re) inventada pela Organização
Vilaboense de Artes e Tradições - OVAT.
Diante das dificuldades, decidiu-se investigar sobre a referida Procissão
apenas a partir de 1967. Do decorrer das pesquisas, as fontes foram mostrando
uma série de tramas, ressentimentos, jogos de interesse e bairrismo, fatos que
fizeram o objeto de estudo se alargar, a traçar rumos que até então eram
impensáveis, redefinindo a problemática de pesquisa.
O que levou Goiás, pós-transferência da capital a valorizar o seu passado
histórico e evocar tradições? Por que Gos se tornou, a partir da década de 60,
um repositório” de tradições? Dentre tantas tradições por que se destaca a
Procissão do Fogaréu? Essas são algumas perguntas que serão respondidas, na
medida do possível, a partir da pesquisa.
Esta dissertação tem o intuito tamm de envolver o ritual da Procissão do
Fogaréu e os seus sujeitos na “paisagem” da cidade de Goiás com suas histórias,
suas imagens, seus encantos e desencantos, seu patrimônio arquitetônico e
natural, em meio a jogos de poder na luta para a manutenção e produção de
tradições e do turismo vilaboense, delineando uma outra história ao fazer uso das
fontes orais, cujos estilhaços de memória trazem à tona os silêncios que denotam
adesão ou não às ditas tradições de Gos.
O trabalho divide-se em três capítulos: No primeiro, a Cidade de Goiás, a
cartografia de sua fundação e monumentalização de sua cultura ganharão
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PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
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relevância. No segundo, Goiás: Cartografia de uma Tradição”. No terceiro,
Polifonia da Cidade de Goiás: Fragmentos da Memória”.
No primeiro capítulo, será mostrado que a cartografia da cidade de Goiás
traz alguns estigmas. O principal deles vem da transferência da capital para
Goiânia. Goiânia surgiu em 1937. Era considerada, de acordo com o discurso dos
progressistas da época, como o “esplendor da modernidade”, cidade planejada,
nova capital com os padrões do progresso, o oposto de Goiás.
Em Goiás, após a mudança, ficou o abandono, a economia desestruturada,
as famílias que pertenciam ao grupo anti-mudancista, o inconformismo das
pessoas que permaneceram na cidade, traumas, mágoas, enfim, restou vários
sentimentos negativos geradores de ressentimentos. “É preciso considerar os
rancores, as invejas, os desejos de vingança (...), pois são exatamente estes os
sentimentos e representações designados pelo termo ressentimento” (Ansart,
2001, p.15).
Nietzsche elaborou a noção de ressentimento, o qual seu conceito é
enigmático, evocou a redefinição do bom e do mau, do bem e do mal, que se
operam no ressentimento. As vítimas que foram prejudicadas por outros indivíduos
o pessoas boas, justas e inocentes, que ficam sempre procurando o culpado
pelo seu sofrimento, são ressentidos, desejam vingança, mas ficam na
passividade, semão.
Ansart (2001) faz uma abordagem sobre o ressentimento partindo de
Nietzsche, baseado na obra A Genealogia da Moral. Mas vai além do que diz
Nietzsche, propondo e incorporando as reflexões de Max Scheler e Robert K.
Merton
4
. Max Scheler se opõe ao niilismo de Nietzsche, para ele o ressentimento
4
Obras citadas por Ansart:
SCHELER, Max. L’Homme du ressentiments (Vom umsturz der werte [1912] ). Paris: Gallimard,
1958.
MERTON, Robert K. Elements de théorie et de méthode sociologique. [1953]. Paris: Librairie Plon,
1965.
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cria valores, sendo assim os indivíduos ressentidos e com o desejo de vingança
partem para a ação em busca da autoridade perdida e da auto-estima.
Em Goiás, algumas décadas depois da transferência da capital, para
atenuar os ressentimentos e para vingar a humilhação experimentada, grupos
elitizados da cidade partiram para a ação, buscaram revalorizar o passado
histórico e as tradições da antiga capital. Isso a fez tornar-se Patrimônio e cidade
turística, será mostrado como se deu todo o processo no decorrer do capítulo.
Cora Coralina, poetisa da cidade, previa o futuro de Goiás ao dizer queuma nova
esperança acena no horizonte. Com a expansão de Goiânia, (...) Goiás será, sem
dúvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do país.” (Coralina, 1983,
p.476).
No segundo capítulo, será feito um estudo sobre a Procissão do fogaréu.
Por que a Procissão do Fogaréu? Por ser uma das mais famosas tradições em
Goiás, a única realizada no Brasil. A Procissão do Fogaréu é um exemplo
concreto de (re) invenção das tradições, de criação de valores culturais, de
estratégias, de articulações, de jogos de poder que as permeiam. É o marketing
de Goiás. Sua imagem representa Goiás - Cidade e Estado - pelo Brasil e pelo
mundo. É o orgulho da elite vilaboense, “a menina dos olhos” do grupo
organizador.
A Procissão do Fogaréu é uma festa de aspecto paralitúrgico que acontece
todos os anos no decorrer da Semana Santa. Sua representatividade é a Paixão
de Cristo, cuja celebração apresenta os principais protagonistas, homens
encapuzados, os farricocos, que acompanham a procissão, tocando trombeta de
vez em quando e com tocha na mão. Estas figuras enigmáticas são destaques do
cortejo. Será abordado como a Procissão foi (re) inventada, como é organizada,
pois para a realização do ritual todo um “cenário, onde se destacam as
tradições, para que a festa seja apresentada e vivenciada como uma tradição na
era da imagem, do vídeo e do simulacro...” (Flores, 1997, p. 14). Será destacada,
também, a importância do trajeto da Procissão para a cidade e para os fazedores
da festa” e o sentido sagrado e profano do evento que suscita jogos de poder.
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O terceiro capítulo abordará as várias vozes a respeito de Goiás. Serão
apresentadas, inicialmente, apenas duas vozes na forma de escrita, cartografias
da Procissão do Fogaréu, da folclorista Regina Lacerda e do historiador Paulo
Bertran.
Posteriormente, serão delineadas as memórias do povo vilaboense e o
outro lado da história, depoimentos de cidadãos “de nome” e “sem nome” da
Cidade de Goiás. Diversas vozes sobre a cidade, em especial sobre: o Patrimônio
e a Procissão do Fogaréu, que provavelmente revelarão dados omitidos pela
história escrita. A memória será o fio condutor, via História Oral, visto que, de
acordo com Amado; Ferreira (1996, p. XV), “na história oral, o objeto de estudo do
historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes, a
instância da memória passa, necessariamente, a notar as reflexões históricas...”
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1. GOS: CARTOGRAFIAS DE FUNDAÇÃO E MONUMENTALIZAÇÃO
1.1. O cartógrafo em Goiás: histórias e ressentimento
Realizar pesquisa sobre a cidade de Goiás significa explorar território.
Explorar no sentido de buscar, de mexer, de aventurar nas coisas de Goiás, ”que
para algumas pessoas da cidade são consideradas intocáveis.
Várias cartografias registram que a colonização de Goiás iniciou com a
“descoberta” da região que era habitada pelos índios Goyazes, os quais foram
explorados e exterminados. A terra dos índios foi Arraial de Sant’Anna e
transformou-se em vila, Vila Boa de Goiás. A capitania de Goiás foi criada em 1739,
dez anos depois Vila Boa de Goiás tornou-se a capital da capitania de Goiás, quando
foi empossado o primeiro governador de Goiás, Dom Marcos de Noronha, futuro
Conde dos Arcos. O encantamento dos bandeirantes pelo lugar veio por causa do
brilho do ouro surgido às margens do Rio Vermelho.
Cartografias afirmam que Goiás formou-se como região a partir do ouro.
Segundo Sandes (2002, p. 24), “pensar a formação de Gos como região exige um
movimento de síntese capaz de compactar a experiência social e política que
organizou a região em torno da descoberta do ouro (...) do século XVIII”. Goiás
passou a existir para “o centro” da nação, a partir da mineração e em função da
mineração.
Existem cartografias que registram decadência e atraso. Com a decadência da
mineração, a capitania passou por uma crise em sua economia. As atividades
agrárias, em alguns momentos da fase mineradora, foram estimuladas como forma
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de ajudar a manter a população da região. A economia agro-pastoril coexistiu com a
mineração, sem predominância de uma delas.
Diversos historiadores
5
mostram que a escassez aurífera levou Goiás a ser
denominada cidade decadente e atrasada. Tais denominações vêm desde o caminho
dos viajantes europeus que ao passar por este território, fizeram relatos baseados no
progresso do mundo que conheciam, sobre o desenvolvimento, sobre a máquina a
vapor e a alta produção. Goiás ficou sendo o lugar distante dos centros comerciais,
de difícil acesso e considerada sem condições propícias à saúde pública. Chaul
(1999, p. 288/9) afirma que “problemas de toda a ordem, mazelas de todos os tipos,
doenças em todos os cantos, falta total de créditos no banco esperança, espaço sem
crescimento. Daí a idéia de atraso, de isolacionismo, presentes na historiografia
goiana. Nesse enfoque, Gos ficou marcada como uma cidade precária para se
viver e com o estigma do atraso. De acordo com Sandes (2001, p.20-21), “não
razão para duvidar dos cronistas que insistem em descrever estradas abandonadas,
(...) receitas em queda. O imaginário da crise está colado ao movimento de refluxo,
refazendo, sob a imagem de ruína, o desejo de inserção na esfera da economia.”
Chaul (1997, p.21) opõe-se as cartografias do atraso e da decadência,
“...aponta para outro rumo: quer construir uma outra história...” Para ele, realmente
houve a escassez aurífera, mas a sociedade subsistiu com a economia agro-pastoril.
Ele mostra que a discussão do atraso era estratégia política de alguns grupos que
desejam o progresso.
O referido autor aborda também como os progressistas rotulavam Goiás e
desejavam o moderno. É o que mostra em seu artigo na revista ICOMOS – BRASIL:
5
BERTRAN, Paulo. Formação Econômica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978.
CAMPOS, Francisco Itami. Mudança da Capital: uma estratégia de poder. Cadernos do Indur, estudos
urbanos e regionais, Goiânia, n.2, nov. 1980.
_________. Coronelismo em Goiás. Goiânia: Cegraf, 1982.
PALACIN, L. Fundação de Goiânia e desenvolvimento de Goiás. Goiânia: Oriente, 1979.
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Goiás não foi apenas o berço de nossa história, terra e inspiração de Cora
Coralina; foi também a pedra no de Pedro, contra ela uma torrente de
argumentos pesaram para lhe tirar a primazia de ser a capital. Goiás era
símbolo dos Caiado, como se fosse possível que tivesse dono ou não fosse
de todos nós. Era acusada de falta de progresso como se este fosse tão
desejado mais do que havia (...) Goiânia seria o espelho inverso. Mas Goiás
resistiu, reclamou, quase inviabilizou a mudança. Mas as forças dos
poderes eram maiores que sua vontade e tudo era enorme, tudo era
desfavorável (...) Foram muitas as lutas, difíceis os caminhos, refutáveis os
aceites. Saía a capital, ficava a cidade histórica...(Chaul, 1997, p. 288-9).
Os políticos progressistas, como cartógrafos, em seus discursos, justificavam,
também, que a Cidade de Goiás estava impossibilitada de crescer em função de sua
posição geográfica, por isso, a necessidade de construir uma nova sede política para
o Estado. Cora Coralina (1987, p.15) afirmou que “Goiás era encravada às margens
do rio Vermelho, num vale cercado por colinas, impossibilitada fisicamente de
expandir-se, a cidade acabou por assumir um ar romântico imposto por
contingências históricas e por força de sua situação geográfica. A cidade é
localizada no fundo de um vale, cercada pela Serra Dourada, tem sua topografia toda
acidentada.
De acordo com Arrais (2003, p.100), as notícias, os boatos comaram a
circular pela cidade de Goiás sobre a construção da nova capital, a tática encontrada
pela “velha capitalfoi ignorar o assunto, não comentar nada a respeito, “a lógica era
simples: o que não se fala, se esquece, se perde e desaparece...” Os jornais da
cidade, tamm passaram a o publicar nada que se referisse à nova capital, não
noticiaram a aprovação do projeto e nem o local escolhido. A estratégia adotada não
funcionou, Goiânia estava sendo construída. Arrais (2003, p.107) mostra ainda como
a antiga capital se sentiu ameaçada e de que forma foi a construção,
... tudo de uma forma tão brusca, tão insólita que a população da antiga Vila
Boa só se dera conta da importância do ocorrido quando as obras já
estavam iniciadas. Os privilégios advindos do status de centro político
regional, de capital de estado estavam agora ameaçados.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
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Goiânia é considerada, pelo discurso dos mudancistas e por diversos
historiadores, como o contrário de Gos. Nascia com ruas largas, terreno plano,
justamente para garantir a sua expansão. Foi projetada nos anos trinta do século
passado, por Pedro Ludovico Teixeira, para ser a nova capital, simbolizando o
progresso e a modernidade para o Estado, conforme afirma Chaul (1997, p.208):
Pedro Ludovico rotulava Goiás de centro “oligárquico, decaden-
te e atrasado”. Goiânia seria seu inverso. Decadência e atraso eram,
então, argumentos recuperados no momento para reforçar a neces-
sidade do novo. O estigma da decadência, que permeou a Província
de Goiás na época da pós-mineração, e do atraso, que simbolizava
Goiás ao longo da Primeira República, foram retomados para refor-
çar a representação de sua antítese, ou seja, a modernidade ex-
pressa na construção de Goiânia.
A capital foi transferida para Goiânia, de acordo com Gomide (2003, p.39),
“porque não havia mais espaço para as “conversadeiras”, pois o tempo lento das
ruas não servia mais de modelo para um projeto político progressista.” Não havia
espaço para o projeto político progressista”, daí a necessidade da mudança, de
partir para um lugar diferente, para uma capital nova e distante, que não era tão
distante assim, que fugisse das amarras dos políticos tradicionais, dos domínios da
família Caiado
6
.
No sentido de ter sido planejada e em relação à sua estrutura arquitetônica,
Goiânia era moderna para a época, porém, dizer que havia uma distância extrema
entre as duas cidades e que era o inverso uma da outra são idéias produzidas
socialmente, não nenhum abismo entre as duas cidades, visto que a distância
entre Goiás e Goiânia é cerca de 140 Km. Como poderia Goiânia, em 1937, ser o
esplendor da Modernidade? Para a construção utilizaram carros de boi, as ruas eram
6
“O percurso político dos Caiado sempre esteve vinculado aos setores conservadores a que
pertencem, defendem e, sempre que possível, compõem a direção política. (...) Quando falamos em
Caiado, a qualquer tempo, a marca registrada é a defesa dos interesses do latifúndio e de seus
aliados...” ( Ribeiro, 1998, p.317).
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CARNEIRO, K. C.
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de terra, em que tudo se encobria de poeira. Goiânia foi colocada como se
aparecesse de forma estrondosa. Houve um exercício de exagero.
Mesmo tendo clareza de que as diferenças entre Goiás e Goiânia não eram
tão acentuadas, sabe-se que se produziu um discurso memorável. Nos vilaboenses
7
que não se mudaram para Goiânia restou o incorfomismo, o sentimento de perda, o
trauma causado pela forma como se deu o processo de mudança. Isso resultou em
grandes dificuldades políticas, econômicas e sociais para os que permaneceram na
cidade. Era como se tivessem perdido tudo, não só pelo fato de ser sede política,
mas o poder, o status de capital, o comércio, a mudança de parentes e amigos. A
transferência foi, enfim, um drama para a população, ferida em seu orgulho e
mutilada em seus interesses, Gomide (2003, p.40) afirma que “não foi possível evitar
a transferência da capital e, (...) os moradores que permaneceram na antiga Vila Boa
se sentiram ressentidos com a decisão e efetivação da mudança.”
Transferir a capital para Goiânia demandou um esforço hercúleo, por parte
dos progressistas. Tal transferência exigiu que os órgãos públicos tamm se
mudassem. Além disso, houve pressões de formas variadas, como mostra Arrais
(2003, p.105), “... o governo decreta aumento do salário dos funcionários públicos
que se transferissem para Goiânia...” E ainda, Arrais (2003, p.112), “a resistência,
entretanto era grande. Principalmente aquela advinda dos funcionários federais que
tiveram que ser convencidos através da ordem direta do próprio presidente da
República...”
Ainda hoje a transferência da capital faz parte da memória coletiva dos
vilaboenses. Cada um dos que vivenciaram aquele momento histórico tem sua
história para contar, mesmo os que não presenciaram o fato histórico contam
histórias ouvidas pelos seus pais ou avós. O abandono, o descaso por Goiás, o
marasmo em que Goiás se transformou é uma das mágoas descritas por quase todos
os entrevistados dessa pesquisa, os quais afirmam que a economia foi
7
Denominação dada ao povo nato da Cidade de Goiás - antiga Vila Boa, daí o termo vilaboense.
Grande parte da população vilaboense é bairrista.
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desestruturada, que o comércio virou um caos e que os comerciantes possuíam
poucos consumidores. Assim, os depoentes mostram seu ressentimento por meio de
entrevistas, poemas, músicas.
Pelos fragmentos das memórias transcritos a seguir, percebe-se nitidamente o
ressentimento das pessoas, o choro, a tristeza, quando falam sobre a transferência
da capital:
Querida Cidade Crucificada!! Tiraram tudo de sua vida tão cheia de
significação!! Homens insensatos soprando arrotos de indigestão política.
Ambos os lados o pensavam que Vila Boa não merecia aquele
tratamento.
Brigaram, brigaram!! Mataram uma cidade para a construção de outra,
dentro do pauperismo da primeira. (Daher apud Delgado, 2003, p.403).
O discurso dos mudancistas em relação à Cidade de Goiás ficou impregnado
em cada mente. Com isso, uns preferiram mudar, mas a idéia de mudar o é tão
simples assim, aqueles que se mudaram foram por medo do pauperismo a que
Goiás estava sujeita ou por imposição.
A cidade ficou vazia, os ricos foi quase tudo embora, a família dos Caiados
ficou, porque eles era contra a mudança, contra Pedro Ludovico. Os outros
que tinha a situação mais ruim, alguns foram tamm em busca de
emprego, o meu irmão e minha irmã mais velha foram também, eles
ganharam um lote e foi, porque lá tudo era novo, eles queriam trabalhar e ter
uma vida melhor.
8
Eu me lembro do caminhão levando tudo do Fórum, eu vi tudo daqui de
casa: os caminhões saindo, o povo chorando e a banda da música tocando
o dobrado. Eu tinha 19 anos. Eu me lembro bem. Teve uma decadência
muito grande.
9
Alguns moradores de Goiás preferiram mudar para fazendas, outros
preferiram até mesmo destruírem seus bens, pois tinham a certeza de que seus
8
Joaquim Peixoto dos Santos Sobrinho - 85 anos – entrevista feita pela autora em 15 de março de
2003.
9
Olímpia de Azeredo Bastos entrevista feita por Andréa Delgado em 15 de novembro de 2001. In:
DELGADO, A. F. Op. cit. p. 403.
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imóveis não mais lhes dariam lucros, então, para eles, não havia mais motivo para
permanecer em Goiás, a descrença pairava pela cidade.
Muita gente quase morreu de raiva quando Goiânia passou a ser a capital.
O meu marido quis ir para o sítio que ele comprou, porque Goiás não ia
prestar mais, porque ele gostava de fazer negócios (...) Chorei muito. Teve
muitas velhas chorando no dia da festa da mudança.
10
Eu sou filha daqui. Nasci e me criei aqui, meu pai era português, ele possuía
113 casas aqui. Ele alugava, e uma casa era a residência dele, ele
transformou em hotel, hoje é a Pousada do Sol, lá era nossa residência.
Então, com a mudança (...) estas casas ficaram desocupadas, e para não
pagar impostos delas, ele era muito genioso, ele derrubou, doou, jogou fora,
acabou com tudo, com quase todas. Ele teve convite do Dr. Pedro para ir
construir lá em Goiânia, ele não quis (...)
Eu me lembro tamm, quando (...) minha mãe chorando acompanhando o
caminhão até lá na saída, sabe, chorando, (...) não precisava ter feito isso,
tirou tudo, acabou com a cidade.
11
A maioria dos vilaboenses que foram para Goiânia deixou Goiás, inicialmente,
com um certo pesar. Isso pode ser percebido no lirismo presente no texto a seguir:
Eu vou contar nestes versos um caso sentimental
Que fez sofrer muita gente lá da velha capital
Que vivia tão contente até o dia fatal
Quando saiu da cidade a capital do Estado
Deixando a velha Goiás de glorioso passado
O povo ficou tão triste que até hoje tem chorado.
Eu ainda bem me lembro da dor que todos sentiam
Os funcionários saindo, de tudo se despediam
Goiás inteira chorava por seus filhos que partiam (...)
Cada casa abandonada, que ficou lá na cidade
Recorda um tempo passado, de amor e felicidade(...)
Adeus terra tão querida, vou separar-me de ti
Levo minh’alma ferida, meu coração deixo aqui
Hei de viver sempre amando a terra onde eu nasci.
12
As pessoas que mudaram de Goiás diziam estar em busca de melhores
condições de vida, sentiam que em Goiás seria complicado continuar residindo.
10
Dona Noêmia – 104 anos – entrevista feita pela autora dia 18 de setembro de 2003.
11
A entrevistada não quis ser identificada. Entrevista concedida a Odiones de F. Borba.
12
VEIGA JARDIM, Henrique César da e CURADO, Moacir Fleury. A Mudança da Capital. In: O
Popular. Caderno 2. Goiânia, 05-jul de 1997.
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Diante do fato consumado, não lhes restava outra saída senão defender os
interesses dos mudancistas. É o que mostra Arrais (2003, p.122): Desabitada por
muitos, destituída de seus privilégios, amaldiçoada pelos ex-moradores que agora
viviam na nova capital, Vila Boa tornara-se alvo de crítica de todos aqueles que
desejavam ser agradáveis aos olhos do interventor”.
excessos ao se tratar da Antiga Vila Boa. Brigas, disputas políticas
existiram, mas o a ponto de declarar a morte de Goiás para a construção de
Goiânia. Goiás não morre, pelo contrário, mesmo diante de um estado caótico, que
não se pode negar como mostraram os depoimentos a Cidade de Goiás estava
viva, com pessoas resistentes a mudanças: por questões políticas, por falta de
condições financeiras ou por falta de coragem para encarar o que parecia ser o novo.
Alguns jornais da época publicaram reportagens e textos variados em defesa
da antiga capital, tentavam estimular os moradores que ficaram. O jornal A RAZÃO,
por exemplo, foi um periódico que comou a circular dizendo-se portador de certa
neutralidade, depois se declarou anti-mudancista, sempre defendendo a antiga
capital. Era necessário, naquele momento, defender e honrar a antiga capital, mostrar
que mesmo diante de tanta humilhação e maus presságios, seria uma cidade
honrada.
...Despojada violentamente de suas vestes de capital e de suas prerrogativas de
município livre, Goiás de hoje, [restrita] aos seus próprios recursos continuará
impávida e serena o seu caminho dentro da vida coletiva do Estado, tudo
fazendo dentro da sua maior felicidade e crescente grandeza.
A Cidade se ergue, entretanto, nas chapadas de Campinas, bem poderia ter
colhido, para argamassa de seus alicerces, as energias harmoniosas e não as
lágrimas de uma geração humilhada! (A RAZÃO, 18-07-1937).
Por meio da expressão “As lágrimas de uma geração humilhada”, percebe-se
que, mesmo em busca do consolo, é impossível não enfatizar o choro, representante
da tristeza e da humilhação.
A cada comentário e boato que surgiam a respeito de Goiás sobre crise
econômica e decadência, os jornais publicavam imediatamente algum artigo
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encorajando seu povo, dando esperança, tentando tirar a “descrença” que estava
arraigada em cada habitante da cidade,
O tempo, supremo e máximo catalizador das cousas e dos fenômenos
sociais econômicos encarregou-se de desmentir o pessimismo exagerado e
nos mostrou que em Goiáz tudo ainda está virgem no terreno das
possibilidades econômicas.
Tudo há renovado.
(...) As casas comerciais abrem-se em novos ramos, num desdobramento
compensador.
(...) Goiáz caminha ligeiro na sua e para a sua curva ascencional!
(CIDADE DE GOIÁS, 26-05-1940).
Mesmo diante da tentativa de reconstituir a honra e o orgulho da cidade, Goiás
passa a ser denominada de “Goiás Velha”, expressão que não é muito bem aceita
pelos moradores da cidade. Os depoimentos mostram que a não aceitação do nome
pelo qual a cidade é conhecida, tamm, é em razão do rancor pela perda da capital.
É o que se pode perceber nos depoimentos abaixo:
Não concordo de jeito nenhum com o Goiás Velho, o “Velho” foi criado na
época da mudança da capital, é pejorativo e para a Cidade de Goiás ficou
somente o velho, o ultrapassado. (Hercival de Castro)
Não concordo com Goiás Velho, onde está a Goiás Nova? Até que se
falasse a capital velha, eu concordaria. (Arthur da Costa Ferreira)
13
Para Nora (1993, p.9), a memória é a vida, sempre carregada por grupos
vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento. A memória é um femeno sempre atual, um elo
vivido no eterno presente.” Além de Nora, Gondar (2001, p.41) também mostra a
relação do esquecimento com a memória: ...é entre a lembrança e o esquecimento
que se instala o desejo da memória.” O silêncio, o esquecimento e até os
ressentimentos fazem parte da memória. Esta fica guardada, só se desperta quando
é de interesse, principalmente particular, ou quando é provocada, mas pode ficar
13
Jornal O Vilaboense, Goiás, ano de 1985, pág. 03.
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24
eternamente silenciada ou esquecida. O esquecimento facilita prosseguir em busca
do novo, da felicidade. Segundo Nietzsche (1978, p. 47-48), “eis a utilidade do
esquecimento, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz,
da etiqueta: como o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade,
esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento”. Mas, o não esquecimento gera
ressentimentos, como mostra Gondar (2001, p.43),
Nietzsche valorizará mais radicalmente esta dimensão criadora do
esquecimento. Sem ele, a memória se reduz a uma doença que paralisa a
atividade, incentivando o ressentimento
14
(...) Sem o esquecimento o homem
estaria acorrentado às suas feridas passadas e, presa de suas próprias
ruminações, se encontraria impossibilitado de agir. A memória só poderia
favorecer a ação e a criação ao combinar-se com o esquecimento. Sem ele,
nos diz Nietzsche, a memória se torna uma função odiosa, e “a lembrança uma
chaga purulenta”.
15
Em Goiás, o trauma da mudança da capital desperta a memória, às vezes, traz
à tona o que está guardado no inconsciente: os sentimentos de inveja, mágoa, ódio,
rancores, desejo de vingança, enfim, o ressentimento, pois, ficou apenas o “mito da
cidade degradada”, conforme Gomide (2003, p. 39).
Para o cartógrafo que trabalha tamm o campo da sensibilidade cabe a
questão: Como definir a categoria ressentimento? Nietzsche (1978) define
ressentimento como um conceito enigmático, “a palavra ressentimento fornece uma
indicação rigorosa: a reacção deixa de ser agida para se tornar qualquer coisa de
sentido”. Deleuze (s/d, p.168) se apropria dos conceitos de Nietzsche para explicar o
ressentimento dizendo que “o ressentimento é uma reacção que, simultaneamente,
se torna sensível e deixa de ser agido”. Afirma, também, que o ressentimento es
ligado diretamente a moral judaico-cristã de culpa, “...o homem do ressentimento,
essencialmente doloroso, procura uma causa para o seu sofrimento. (...) O
ressentimento dizia “é por culpa tua” (...) o seu objetivo é que toda a vida se torne
reactiva ...” (Deleuse, s/d, p.197-98)
14
Grifo meu.
15
GONDAR, Jô.Op Cit. p. 43.
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25
Nessa perspectiva, o ressentimento dos moradores de Goiás está associado à
“culpa tua”, isto é, a culpa de uns e de outros”. Por culpa dos outros: “decadência”,
“atraso”, mudancistas ou progressistas e transferência da capital, daí o
ressentimento. É como se o devir histórico estivesse ligado a essa questão.
Para Nietzsche, o ressentido é passivo, não cria valores, prefere ser vítima, se
julga o melhor, puro, íntegro, não luta e deseja uma vingança que não sai do
imaginário. Ansart (2001, p.19) tamm se baseia em Nietzsche para explicar que “o
ressentimento é reforçado pelo desejo de reencontrar a autoridade perdida e vingar
da humilhação experimentada” Ansart (2001, p.21) deixa claro como é difícil saber
qual a manifestação do ressentimento: “a questão essencial, às vezes de difícil
resposta, é a necessidade de compreender e explicar como o ressentimento se
manifesta, a quais comportamentos serve de fonte e que atitudes e condutas inspira,
consciente ou inconscientemente.”
O devir histórico de Goiás está relacionado ao ressentimento no sentido de
“vingança da humilhação experimentada, no resgate da “autoridade perdida”, do
amor-próprio ferido e da auto-estima em baixa. Entretanto, foi uma vingança que saiu
do imaginário, se opondo a teoria nietzschiana. Ansart (2001, p.18), mostra que há
outras definições que ampliam a de Nietzsche:
...pela desconstrução do conjunto de teses nietzschianas, que se dedicaram
autores que procuraram reter apenas a significação do conceito de
ressentimento.(...) Max Scheler separa-se, no essencial, das teses
nietzschianas, opondo ao niilismo de Nietzsche sua filosofia de valores.
Max Scheler (apud Ansart, 2001, p.21) se opõe a Nietzsche: “Max Scheler
assinala esta dinâmica do ressentimento como criadora de valores, ou seja, de
finalidades sentidas como desejáveis pelos indivíduos e que eles buscam realizar.”
Em Goiás, determinadas pessoas da população local demonstram não ter ficado na
passividade, o que ocorre é exatamente ao contrário, ocorrem reações e delas se
criam valores. O início da reação pode ser percebido nos depoimentos abaixo:
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26
A cidade sempre sofreu o trauma, a síndrome da mudança. Os que
ficaram, os que permaneceram, foi por opção. Os que ficaram, ficaram por
amor, aqueles que permaneceram passaram a dedicar grande amor pela
cidade. Após o trauma da mudança, eles elegeram a cidade como principal
referencial cultural. Permaneceram grandes intelectuais.
16
Depois do período da mudança da capital, quando teve um resfriamento
com a mudança da capital, que a cidade cresceu mais culturalmente, eu
acredito que para amenizar o sofrimento da mudança. (...) Foi o período que
teve os carnavais mais animados, com marchas de carnaval compostas
aqui. (...) Na parte cultural foi criado o Goiás Clube, uma associação de
moças e senhoras. Foi reação da mudança.
17
Outras reações são visíveis. A partir da década de 50, do século XX, alguns
monumentos históricos em Goiás comaram a ser tombados pelo IPHAN
18
, mas foi
somente a partir da década de 70 que alguns moradores comaram obter lucros de
bens imóveis, devido ao tombamento centro histórico de Goiás. Inconscientemente,
como forças reativas do ressentimento, os vilaboenses se apegam ao seu passado
colonial, na valorização de seus monumentos, nas tradições, na ritualização do
poder. Goiás deixa de ser capital, mas passa a ser o “repositório das tradições. De
acordo com Delgado (2003, p.419) Categorias como tradição, arte, cultura e história
o arroladas para compor o passado que o discurso propõe que seja ‘resgatado’
para construir o futuro da Cidade de Goiás.”
Goiás, que parecia ter caído “no esquecimento - esquecimento que,
ironicamente, a preservaria o suficiente para ser de novo lembrada, mas, agora, não
mais pelos goianos, mas por e para toda a humanidade,”
19
torna-se, uma cidade
turística e, em 2001, Patrimônio da Humanidade, sendo assim, alguns moradores, os
elitizados, grupos, famílias tradicionais, reencontram a autoridade perdida e vingam
da humilhação experimentada.
16
Hercival Alves de Castro. Entrevista concedida à Andréa Delgado em 14/11/2001. In: DELGADO, A.
F. Op. cit. p. 404.
17
Elder Camargo dos Passos. Entrevista concedida à Andréa Delgado.In: DELGADO, A. F. Op. cit.
p.418.
18
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
19
Extraído do texto: Cidade de Goiás: Patrimônio da Humanidade. Sem autoria.
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27
As mágoas, os ressentimentos e os estigmas ficam atenuados, silenciados,
pois a vida, o cotidiano do “povo”
20
, praticamente em nada se altera, pelo contrário, a
maioria das pessoas passa a sentir o “peso” de carregar um título de Patrimônio da
Humanidade. Têm consciência de que o explorados, mas aceitam com
passividade.
1.2. Suportes de Memória: o Passado e o Futuro
1.2.1. Passado: Produção de Monumentos
Será analisado nesta sub-seção um breve histórico do IPHAN, , do Patrimônio
Histórico e Artístico da Humanidade e do FICA
21
. Este breve histórico tem o objetivo
de mostrar como foi resgatado o passado histórico em Goiás.
Segundo Magnani (1986) apud Borba (1998, p.26) “O termo patrimônio
significa, etimologicamente, herança paterna, o que evoca a idéia de transmissão e,
no caso de uma coletividade, transmissão não de pai para filho, mas de uma geração
a outra”. Fonseca (s/d, p.58) considera que "a idéia de posse coletiva como parte do
exercício da cidadania inspirou a utilizão do termo patrimônio para designar o
conjunto de bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nação, ou
seja, do conjunto de todos os cidadãos”.
No Brasil, os bens de valor cultural, que foram tombados tornaram-se
Patrimônio da nação a partir da Revolução de 30, com o Estado Novo.
20
Ver o terceiro capítulo.
21
Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, que acontece anualmente na cidade de Goiás.
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28
Tombamento é um conjunto de ações realizadas pelo poder público com o
objetivo de preservar, através de aplicação de legislação específica, bens
culturais de valor histórico, artístico, arquitetônico, arqueológico e ambiental
de interesse para a população, impedido que venham a ser demolidos,
destruídos ou mutilados.
22
Em 30 novembro de 1937, pelo mesmo Decreto que rege o tombamento n
o
.
25, amparado pela Constituição Federal em seu artigo n. 216, foi criado um órgão
federal responsável pela preservação do patrimônio histórico artístico brasileiro,
denominado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN. A criação
desse órgão foi decorrente da ação de intelectuais modernistas, entre eles Mário de
Andrade, que se preocupavam com a conservação da cultura brasileira, inclusive
havia preocupação com o Patrimônio Imaterial. Sobre a criação do SPHAN, Fenelon
(1992, p. 30) afirma: “... a política de preservação deste órgão constitui talvez o
exemplo mais fecundo de interveão governamental na área da cultura, empenhada
em construir uma memória e uma identidade nacionais”. Desde a sua criação aa
década de 60, o SPHAN ficou sob a direção de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Em 1946, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SPHAN
tornou-se Diretoria, passando a ser denominado DPHAN, período em que foram
tombados alguns bens isolados na Cidade de Gos. Em junho de 1970, pelo
Decreto n. 66.967, passou a ser Instituto
23
IPHAN as modificações não vieram
apenas na sigla, mas numa nova medida de tombamento, que não seria mais de
bens isolados, mas de conjuntos arquitetônicos e urbanísticos. Borba (1998, p.27/8)
afirma que a criação do instituto “... culminou numa rie de reavaliações de
diretrizes e práticas deste órgão. (...) Reconstrução das Cidades Históricas (...)
restauração de sítios, monumentos e cidades históricas com a finalidade de
implementar a exploração turística destas áreas”. A realidade, porém, foi outra.
Poucos eram os recursos financeiros, muita burocracia e raras restaurações.
22
O tombamento federal é regido pelo Decreto-Lei n
o
. 25 de 30 de novembro de 1937, pelo decreto-lei
n
o
.3.866 de 29 de novembro de 1941 e pela Lei n
o
. 6.292 de 15 de dezembro de 1975. In:
PATRIMÔNIO CULTURAL..Boletim Informativo Bimestral da 14
a.
coordenação Regional do IBPC. Ano
I , n
o
2 , nov/dez 1991, p. 2.
23
SPHAN/Pró-Memória. Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória.
Brasília: MEC, 1980, p. 31.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
29
Em 1979, retornou a sigla SPHAN, sendo extinta em 1990, nesse período foi
criado o Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural - IBPC - até 1994. Em 1994
retorna
24
o Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional – mais uma vez
IPHAN, que ainda hoje conserva esta sigla.
Pode-se dizer que o início da consagração de Goiás como Patrimônio foi a
partir do tombamento de alguns bens imóveis e monumentos, que se iniciou em
1950
25
, pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), neste
ano foram tombados: Igreja de N. Sr
a
da Abadia, Igreja de N. Sr
a
do Carmo, Igreja de
Santa Bárbara
26
, Igreja de São Francisco de Paula
27
, Imagem de N. Sr
a
do Rosário,
Igreja de N. Sr
a
da Boa Morte (Museu de Arte Sacra da Boa Morte
28
) e Casa do
Antigo Quartel da II Companhia (Quartel do XX Batalhão de Infantaria). O
tombamento continuou em 1951 com a Casa de Câmara e Cadeia (Museu das
Bandeiras
29
), Palácio Conde dos Arcos
30
, inclusive as armas de Portugal e dois
bustos de pedra.
O tombamento na década de 50 o foi visto com bons olhos pela população
local, que ainda o aceitava a idéia da transferência da capital. Para eles, Gos
poderia tornar-se uma cidade grande, desenvolvida. o era fácil aceitar a idéia de
que seus prédios públicos se tornariam meramente museus, imóveis a serem
preservados e que suas casas não poderiam ser modificadas sem autorização. Tudo
isso seria atraso para Goiás e não progresso.
Os depoimentos
31
abaixo mostram a resistência ao tombamento:
24
Setembro de 1994 - Medida Provisória n
o
. 610.
25
Consta na publicação dos Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, 1994.
26
Ver foto no Anexo A
27
Ver foto no Anexo B
28
Ver foto no Anexo A
29
Ver foto no Anexo C
30
Ver foto no Anexo A
31
Trechos extraídos da entrevista concedida à Andréa Ferreira Delgado, em 19/08/1999.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
30
... o termo tombamento simbolizava o atraso, Goiás ficaria estagnada,
impedida de se desenvolver, impedida de crescer, impedida de progredir .
O IPHAN tombar a cidade, você não poder construir (...) a visão que se
tinha de tombamento era essa, estaríamos permanentemente condenados.
O sonho de Goiás era asfalto (...) era se igualar a Goiânia. (Hercival Alves
de Castro)
Eu fui contrário ao tombamento nos primeiros anos, liderado por um grupo
que não via a preservação com estímulo ao futuro de Goiás. Seria um
atraso para a cidade, você não poderia mudar a fachada (...) você não
mandaria na sua casa. (...) Inclusive o termo tombamento liga à queda, à
deterioração. (Elder Camargo dos Passos)
O tombamento em Goiás, inicialmente dos bens isolados, em quase nada
alterou a vida cotidiana dos vilaboenses, não atraiu a visitação pública, não chamou
atenção dos turistas. A preservação não teve muito significado, os bens o foram
restaurados, inclusive o Quartel do XX Batalhão de Infantaria teve fins diversos, “em
março de 1950 foi arrendado, passando a funcionar como hotel Hotel Carrascoza.
Até setembro de 1976 serviu ao Hospital Dr. Brasil Caiado...
32
Somente na década de 70 que alguns grupos de vilaboenses, principalmente
da elite
33
, passam a perceber o valor do Patrimônio para a cidade e a contribuir na
sua preservação. Fundaram entidades civis - como a Organização Vilaboense de
Artes e Tradições (OVAT) e Fundação Educacional da Cidade de Goiás (FECIGO),
criada por Frei Simão Dorvi - com intuito de defender a identidade cultural
vilaboense. Os fundadores da OVAT e da FECIGO perceberam a importância do
tombamento e do Patrimônio para a cidade de Goiás, conscientizaram-se de que o
passado conservado não seria atraso. De acordo com o Boletim Informativo do
IPHAN (1995, p.2): É sempre bom lembrar que o tombamento não traz apenas
restrições aos proprietários de imóveis e usuários da cidade...” como pensavam
muitos moradores de Gos na década de 50. “O tombamento pode trazer, também,
benefícios econômicos, sociais e financeiros, contribuindo inclusive para o
crescimento e desenvolvimento da cidade.”
32
SPHAN/Pró-Memória .Quartel do vinte. Goiás-Go. Memórias de Restauração, s/d, n
o
5, p.3.
33
Elite intelectual, financeiras, filhos das “famílias tradicionais”.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
CARNEIRO, K. C.
31
Uma das formas encontradas para gerar riquezas no município foi
desenvolver o turismo. “Através do turismo cultural
34
e ecológico, por exemplo
desde que bem planejado e organizado – (...) têm aumentado a arrecadação e
ampliado o índice de emprego, entre outras vantagens.”
35
Apenas em 1978, foram tombados: a Praça Brasil Caiado, Largo do Chafariz,
rua da Fundição e Conjunto Arquitetônico e Urbanístico (extensão de tombamento)
do centro histórico da Cidade de Goiás, que foi tombado como monumento
histórico.
36
Logo, torna-se Patrimônio Hisrico e Artístico Nacional.
Com a Lei Estadual n
o
8915, de 13 de outubro de 1980, os bens tombados
como Patrimônio do Brasil passam a ser protegidos pelo Estado. A partir da década
de 80 do século XX, Goiás foi contemplada com recursos federais, estaduais e de
iniciativas privadas, destinados a restauração dos bens tombados, privilégio de
poucas cidades brasileiras.
Percebe-se que os bens tombados, os monumentos que passaram a ser
preservados em Goiás fazem parte da memória do Estado: palácio, câmara e cadeia,
centro da cidade, o qual era a sede administrativa do Estado; da Igreja Católica,
enfim da “elite econômica”, a conservação é de ordem simbólica que expressam uma
ritualização do poder. Para serem mantidos como tal, todo um trabalho de
manutenção, conscientização e resgate do Patrimônio que é feito pelo IPHAN.
O escritório do IPHAN
37
se instalou em Goiás em 1983, sob a direção do
arquiteto Gustavo Coelho a1986. A atuação do IPHAN em Goiás é resguardada
pela 14
a
. Superintendência Regional, com sede em Brasília. Na cidade, é
representado pela 17
a
. Sub-Regional II, que realiza a fiscalização, a análise e o
34
O turismo cultural é motivado pela busca de informações, de novos conhecimentos, de interação
com outras pessoas, comunidades e lugares, da curiosidade cultural, dos costumes, da tradição e da
identidade cultural.
35
PATRIMÔNIO CULTURAL..Boletim Informativo da 14
a.
coordenação Regional/IPHAN. Ano 5 , n
o
5,
dez/1995, p. 2.
36
Tombado pela União conforme Processo 345-T-42. Livro: Belas Artes. Vol.I . N
o
da folha:97. N
o
de
Inscrição: 529. Data:18/09/1978.
37
Ver foto no Anexo C
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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acompanhamento dos processos de intervenção arquitetônica e urbanística na área
tombada.
Apenas parte da população local - elite intelectual - havia se conscientizado do
valor do patrimônio, tanto é que um dos trabalhos iniciais do IPHAN em Goiás foi de
conscientização da população que habitava o centro histórico e seu entorno. De
acordo com Delgado(2003, p.444) as pessoas,
...passavam a ter que respeitar a legislação federal que regula a proteção
do patrimônio e ime aos proprietários que qualquer modificação dos
imóveis deva ser previamente discutida e aprovada pelo IPHAN, estando
sujeita a uma série de restrições a fim de evitar a descaracterização do bem
tombado.(...)
Diante da indignação das pessoas que chegavam lhe dizendo que a
casa é minha, porque não posso mexer ?” Gustavo Coelho considera que o
fundamental foi mostrar disposição para dialogar, explicar as razões das
restrições e negociar até chegar num consenso.
A arquiteta Maria Cristina Portugal assumiu a direção da 17
a
. Sub-Regional
do IPHAN em 1986 a1997. Na sua gestão, destaca a implantação do projeto de
educação patrimonial Conhecer para Preservar, Preservar para conhecer’, com o
objetivo de estimular a difusão e a apropriação do conhecimento contido e gerado
pelo patrimônio cultural” (Delgado, 2003, p.446). Este projeto é realizado todos os
anos em parceria com a Secretaria de Educação do Estado de Goiás. O público alvo
o alunos da 1
a
. fase do Ensino Fundamental, são desenvolvidas rias atividades
artísticas e de pesquisa que levam os alunos não só a valorizar, como tamm
conhecer tudo que se refere ao Patrimônio: passeio pelo centro histórico, visitação
ao museus, oficinas, exposições em sala de aula, etc.
Dentro deste Projeto foi desenvolvido o “Projeto Fogareuzinho”
38
(réplica da
Procissão do Fogaréu) pela Escola Letras de Alfenim, que também tem como lema a
Educação Patrimonial que visa conhecer para valorizar e preservar a história e a
cultura local.
38
Ver Anexo H.
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Salma Saddi Waress de Paiva, vilaboense e historiadora, em 1997, assumiu
a direção da 17
a
. Sub-Regional do IPHAN. Salma passou a ter, além das
responsabilidades normais do cargo, o compromisso de lutar pela causa da
conquista do Patrimônio da Humanidade para Gos, fazendo parte do Movimento
Pró-Cidade de Goiás Patrimônio da Humanidade. O Movimento Pró-Cidade de Goiás
foi formado por pessoas interessadas em transformar Goiás em Patrimônio da
Humanidade, composto por 40 entidades vilaboenses, como: igrejas católicas e
evangélicas, maçonaria, grupos de jovens, museus, IPHAN, prefeitura e governo do
estado, foi concretizado em novembro de 1998. Brasilete Caiado foi aclamada
presidente, vice-presidente o empresário Leonardo Rizzo, Antolinda Baía Borges
com João Domingos Pereira, os tesoureiros e Jane de Alencastro Curado, a
secretária.
No início da década de 90, do século XX, o ex-prefeito da cidade de Goiás,
João Batista Valim, teve idéia de transformar Goiás em Patrimônio da Humanidade.
Posteriormente, o escritor Bernardo Élis, com a mesma idéia entregou um ofício ao
ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, numa visita que o então
presidente fez a Goiás. Bernardo Elis solicitou que o presidente abraçasse a causa.
Tanto o prefeito quanto Bernardo Elis tiveram iniciativas mais isoladas, contrariando
a elite local, os empresários, membros de Entidades que resgatam as tradições
locais e que não “abraçaram a causa”, por isso, não obtiveram sucesso.
Suzana Sampaio, representante do Conselho Internacional de Monumentos e
Sítios (ICOMOS)
39
no Brasil, visitou Goiás, em 1997, sugerindo à diretora do IPHAN,
Maria Cristina Portugal, que fizesse uma campanha em prol de Goiás, com o objetivo
de torná-la Patrimônio da Humanidade. A idéia foi acatada e Suzana foi considerada
a “fada madrinha” do Movimento Pró-Cidade de Goiás. Em 1998, o então governador
39
O ICOMOS é uma associação civil, não governamental, ligada a UNESCO, Com sede em Paris,
conta com 5.480 associados em 87 países, organizados em 89 comitês nos cinco continentes. No
Brasil o ICOMOS atua desde 1978. Nos países membros, o ICOMOS desenvolve ampla atividade nos
campos doutririos formação, publicações, turismo cultural e arqueologia, entre outros -, além de
desenvolver técnicas, princípios e políticas de conservação, proteção e reabilitação do patrimônio
Cultural.
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do Estado de Goiás, Marconi Ferreira Perillo Júnior, solicitou formalmente ao ministro
da Cultura, a candidatura de Goiás na UNESCO. Neste mesmo ano:
1. Foi realizado em Goiás o 1
o
. Seminário Cultural, turístico e
Ambiental, o qual é considerado o embrião do Movimento Pró-Cidade de Goiás. O
objetivo do seminário foi conscientizar as pessoas da Cidade de Goiás sobre as
potencialidades turísticas, culturais e artísticas da antiga capital e tamm apontar os
pontos negativos que deveriam ser corrigidos.
2. Em dezembro de 1998, Siron Franco criou a logomarca do
Movimento Pró-Cidade de Goiás Patrimônio da Humanidade, que simbolizava a
Serra Dourada nas cores da Bandeira do Estado.
Em 1999, é liberada para Goiás uma verba de R$ 140 mil reais, pelo
Ministério da Cultura e R$ 100 mil reais pelo governo do Estado, por meio da
Agência Goiana de Cultura, para elaboração de um Dossiê, exigência do ICOMOS,
com inventário dos bens móveis e imóveis da Cidade de Goiás. O documento,
“Dossiê - Proposição de Inscrição da Cidade de Goiás na Lista do Patrimônio da
Humanidade” foi “um trabalho realizado com a sociedade vilaboense e a participação
institucional da Prefeitura Municipal, do Movimento Pró-Cidade de Goiás Patrimônio
da Humanidade, do Governo do Estado de Goiás e da 14
a
. Superintendência
Regional do IPHAN.”
40
Maria Cristina Portugal diz que “a comunidade colabora muito,
preocupa-se com a preservação e tudo isso contribui para a cidade manter-se como
está.”
41
Na realidade, sabe-se que não é bem a sociedade vilaboense ou que a
comunidade colabora muito, pois, sociedade, significa a população no geral e
comunidade pressupõe toda a sociedade que tem a mesma identidade e que
comunga as mesmas idéias. Não foi o que aconteceu com a Cidade de Goiás,
quando do projeto, o qual tornou-se um discurso laudatório, que as pessoas da
periferia e mesmo do centro histórico, não sabiam sequer o que estava se passando
na Cidade.
40
Folder: Goiás, um Patrimônio da Humanidade. 14
a
. Sub-Regional do IPHAN, 2000.
41
Depoimento extraído do Jornal O Popular. Goiânia, 28-jun-2001.
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Mesmo assim, os grupos da Cidade prepararam e formalizaram, junto à
UNESCO, o pedido para obtenção de título Patrimônio Histórico e Cultural da
Humanidade, sendo entregue ao Órgão Mundial os seis volumes do Dossiê em junho
de 1999 pelas mãos do ex-superintendente regional do IPHAN, Marco Antonio
Galvão.
O Dossiê documento-relatório abordou diversos aspectos da cidade de
Goiás: históricos, culturais, geográficos, cartográficos, religiosos, patrimoniais,
memoriais. Conforme (Delgado, 2003, p.447), “No Dossiê de Goiás, (...) configuram-
se diversas séries discursivas que compõem o campo do patrimônio e circunscrevem
a ação do IPHAN em Goiás.” Apresenta-se no seu menu principal:
1
o
. Formulário da UNESCO
2
o
. ANEXO I: A - Cartografia antiga e atual;
B - Zona Tampão Paisagem Serra Dourada
C - A Vila – Fotos Antigas e Atuais
3
o
. ANEXO II: A - Goiás e a ocupação do Brasil Central;
B - Goiás: história e cultura
C - Evolução urbana da Cidade de Goiás
D - Viajantes
E - Legislação
F - Bibliografia
4
o
. ANEXO III: A - Inventário dos bens imóveis
B - Inventário dos bens móveis e integrados
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5
o
. ANEXO IV: Inventário Nacional de Referências Culturais
Neste último anexo Inventário Nacional de Referências Culturais, estão 13
entrevistas das 90 que foram realizadas sobre o contexto sócio cultural da cidade.
Não apresentam o critério da escolha, mas os escolhidos são membros de alguma
Entidade ou Instituição ou Associação da Cidade, como OVAT, Associação dos
artesãos, Igreja Católica, da Educação, Associação Beneficente de Santa Luzia,
além de uma moradora da antiga casa de Bartolomeu Bueno, um médico e um
historiador (que não é vilaboense e nem reside na cidade). Os entrevistados foram:
Frei Marcos, Dr. Aderson Coelho, Brasilete Caiado, Jaime Costa, Paulo Bertran,
Elder Camargo, Maria Abadia, Marlene da Veiga, Seila Vieira, Marlene Vellasco,
Alice Noronha, Evandira da Glória e Goiandira do Couto. Muitos destes o os
gestores das Organizações Culturais da Cidade. Cada entrevistado mostrou a sua
versão sobre Goiás, fazendo com que o Dossiê apresentasse alguns valores
culturais em detrimento de outros que não consideram importantes. “Os
entrevistados relatam sua vivência cotidiana de costumes, tradições, as histórias e
lendas que guardam na memória, os sentimentos e opiniões sobre a área tombada e
o ambiente natural.”
42
Em meio as entrevistas selecionadas, está a figura de uma grande artesã da
cidade, Dona Alice Noronha, que responde a pergunta do entrevistador sobre o
Patrimônio:
_ Acha que a cidade deve ser Patrimônio Mundial da UNESCO? Por quê?
_ Eu acho sim, (...) o povo daqui tá tendo consciência que será uma boa
pra cidade. Só que eu acho que tem que ser mais divulgado. O pessoal que
está trabalhando pra que Goiás receba este tulo tem que sair e conversar
com o pessoal mais humilde e falar o valor deste título...
43
42
Dossiê Proposição de Inscrição da cidade de Goiás na Lista de Patrimônio da Humanidade.
IPHAN e FUPEL. CD- Room.1999. Inventário Nacional das Referências Culturais - Apresentação, p.
01.
43
Dossiê – Op. Cit. Inventário Nacional de Referências Culturais – Entrevistas Selecionadas – Alice
Noronha. p. 15/16.
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É com muita sensatez e clareza que Dona Alice Noronha comenta que os
grupos organizadores precisam divulgar os acontecimentos, principalmente, ao
“pessoal mais humilde”, com isso, mostra que as pessoas não têm tanta consciência
da importância do título de Patrimônio da Humanidade. Mas o mais interessante do
diálogo é perceber que o pessoal que está trabalhando” corresponde aos grupos
que “cuidam da cultura vilaboense” , ou seja, “da cultura da elite vilaboense”.
Sobre a concentração do projeto nas mãos de grupos elitizados, Cancline
(1997, p.160/1) afirma:
“... o patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos
setores oligárquicos (...) Foram esses grupos (...) os que fixaram o alto valor
de certos bens culturais: os centros históricos, a música clássica, o saber
humanístico. Incorporaram tamm alguns bens populares sob o nome de
folclore”.
Para obter o título de Patrimônio da Humanidade, além do Dossiê, outras
exigências tiveram que ser atendidas pela Cidade de Goiás, tais como: sinalização
urbana e turística, fiação subterrânea, aplicação de poticas de conscientização
ambiental, e acolhimento, através de eventos, de uma quantidade mínima de turistas
e visitantes a cidade.
Como forma de atender todas as exincias da UNESCO, foi criado um
evento para atrair um número considerável de turistas, então, em 1998, foi pensado
e projetado O Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental o FICA, fruto do
projeto idealizado por Luís Felipe Gomes, Jaime Sautchuk e Adnair França.
Colocado nas mãos de Nasr Chaul, o então presidente da Agência Goiana de
Cultura, que fez questão de transformar a idéia em realidade, num verdadeiro painel
multicultural de Goiás. Esse se tornou um dos projetos prioritários do Governo do
Estado de Goiás.
O projeto foi apresentado à comunidade vilaboense 30 dias antes da
realização do evento, em reunião na secretaria Municipal de Cultura, da qual
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participaram representantes da comunidade e da equipe indicada para trabalhar em
sua produção. Apesar de não ter havido um trabalho de envolvimento e divulgação
junto à comunidade, o primeiro FICA acabou gerando expectativas no comércio e no
meio cultural local. Mas aconteceu, meio alheio à população local tornando a Cidade
de Goiás apenas um palco de apresentações artísticas.
A primeira edição do Festival foi realizada no inicio do mês de junho de 1999,
durante as comemorações da Semana do Meio Ambiente. O Festival fomenta a
criação cinematográfica voltada para a preservação do meio ambiente e, ao mesmo
tempo, estimula a criação regional na área de cinema e vídeo.
O FICA é mais que um evento, é um verdadeiro encontro das aspirações
humanas:o talento da alma e o respeito pelo ambiente em que vive. Por
isso, o cinema que tem como temática o meio ambiente é uma arte
diferenciada, de compromisso, de responsabilidade atual e de futuro.
44
No dia 27 de junho de 2001, na sede da UNESCO, em Paris, foi feita a
concessão para Gos receber o título de Patrimônio Artístico e Cultural da
Humanidade. A proposta foi avaliada por 8 membros, em reunião fechada. Neste
mesmo dia, deram o parecer favorável – Goiás recebeu o tão esperado título.
No ano de 2004, na VI edição do FICA, foi estabelecida uma parceria entre a
AGEPEL e o IPHAN com a finalidade de delinear regras para evitar a poluição visual
do Patrimônio da Humanidade, mantendo a integridade visual do Centro Histórico da
Cidade de Goiás critérios como o tamanho e os locais para fixação de material
publicitário. Esse acordo ficou estabelecido em legislação.
45
Além disso, o teatro São
Joaquim também recebeu melhorias. Nele foi instalado um novo projetor que
pertenceu ao Palácio das Esmeraldas e ao “cinemão”, o espaço foi ampliado para
comportar 800 pessoas.
44
FICA e cidade de Goiás são patrimônios nossos. Jornal O Popular. Goiânia, 6-jun-2001, p.2.
45
AGEPEL:Agencia Goiana de Cultura publicado em seu caderno de imprensa.
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39
Enfim, O festival inaugurou uma nova era para o Estado e também para a
cidade de Goiás, tendo como foco central o cinema com caráter ambiental, mas é
também um acontecimento de múltiplas dimensões. Mobilizam todas as ramificações
da cultura, tornando-se um amplo espaço onde circulam informações, arte e muita
gente que vive uma rotina, de modo que a história e o presente se encontram em
uma prazerosa ebulição,
46
tornando mais visível a inserção da Cidade de Goiás no
mundo globalizado. Isso fez que o sonho de alguns vilaboenses de se tornarem
modernos como Goiânia se realizasse confrontando o passado com a modernidade,
o lento com o rápido, o velho com o novo.
O Festival atingiu vários objetivos, como:
Completar dois dos quesitos exigidos pela UNESCO para pleitear o título
de Patrimônio da Humanidade: trazer para Goiás um grande número de
turistas e visitantes e concretizar a população da protão ambiental.
Valorizar a Cultura do povo vilaboense e goiano.
A citação abaixo destaca a importância do FICA:
Se o fossem todas as questões de necessidade de conscientização
acerca do problema ambiental no mundo, sobre o quanto os impactos
ambientais nos afetam cotidianamente, (...) ainda assim teríamos “n”
motivos para a realização do Festival Internacional de Cinema e Vídeo
Ambiental (FICA). O investimento ultrapassa o Festival porque se trata de
investimento em gente. (...) Pessoas que respeitam o passado, gostam e
preservam suas raízes.
E, a cada vez que a sua cultura é manifesta, pode-se perceber quem
é essa gente. Por isso o FICA não é só um festival. É de vídeo e de cinema.
É artístico. É ambiental. Mas é ainda mais... é mais um caminhar no rumo
do crescimento intelectual e humano. (...)
O FICA é, sem dúvida, um grande feito, mas tem sido realizado
mediante uma política (...) que se desenvolve em duas frentes: cultural e
ambiental
47
. (...) pre o resgate das raízes culturais, o investimento no
potencial cultural, a interiorização e descentralização da cultura, incentivos
culturais, preservação do Patrimônio Histórico e Artístico, respeito e
preservação dos costumes e tradições...
48
46
AGEPEL op cit.
47
As partes em negrito são grifos meus, para que se perceba a importância do valor cultural durante o
FICA.
48
IDENTIDADE e a vida de um povo. Jornal O Popular. Goiânia, 6-jun-2002, p.2.
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40
1.2.2. Futuro: Valor ao Turismo
Turismo vem do latim tournos dando a idéia de giro, viagem circular, de
alguém que sai e volta ao ponto de partida.” A palavra turismo “foi empregada pela
primeira vez na Inglaterra por volta de 1760. A esta, foram acrescentadas os sufixos
“ISTA”, para designar pessoa e “ISMO”, para movimento”, conforme considerações
de Leandro (1996, mimeo).
Os turistas viajam de um lado para outro por motivos diversos, desde que não
seja para exercer atividades remuneradas. O que hoje se chama de turismo surgiu a
partir da Revolão Industrial. O caos provocado pela industrialização, no séc. XIX,
nas grandes cidades européias, como Londres e Paris, levou não só a burguesia,
mas também o operariado a buscar o descanso, o lazer nas rias longe de suas
residências.
Estamos na era da Globalização, que tem transformado o mundo. De acordo
com Harvey (1992), houve uma compressão do tempo e do espaço”, significando
que as distâncias e o tempo se encurtaram, pois em alguns segundos podemos
comunicar em qualquer parte do mundo ou amesmo atravessar o mar em algumas
horas.
A globalizão, as inovações tecnológicas e as comunicações sociais são
motivadoras e/ou facilitadoras à atividade turística, ou seja, um mundo com fronteiras
diluídas, transnacionais, facilita aos turistas atuais deslocarem-se para outros locais
do mundo. O turismo representa 13% dos gastos dos consumidores de todo o
mundo, é uma das atividades do setor terciário que mais cresce no planeta,
movimenta cerca de U$ 3,5 trilhões. Alguns países perceberam o potencial do
turismo como gerador de emprego e renda. Conforme Dutra (2003), “é o meio lícito
que mais movimenta dinheiro(...). Tal ramo é de fundamental importância para o
profissionalismo do setor turístico e necessário para a economia do Brasil, ps com
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excelente potencial Turístico”. Desse modo, o turismo poderá ser uma das principais
atividades humanas deste novo século.
As pessoas saem em busca da natureza, onde encontram ambientes naturais,
o verde, a montanha, os rios, as cachoeiras, o mar, as trilhas ecológicas e muitos
outros atrativos. Hoje grande procura pelos hotéis fazenda. Este tipo de turismo
pode ser denominado de turismo rural ou ecológico. Buscam não só a natureza como
outras cidades, principalmente do interior, fugindo dos centros urbanos e atraídos
pelo exótico. Ainda conforme Dutra (2003), “a tendência da humanidade, nos últimos
séculos, é de se concentrar nos grandes núcleos urbanos, e, assim, criou-se a (...)
procura de uma ‘fuga’ do cotidiano caótico das cidades em busca de uma paisagem
paradisíaca ou bucólica...”
Mesmo em um mundo globalizado ainda sobrevive a cultura de cada lugar e
cada vez mais se pensa no local, nos diferenciais, sendo uma das formas de manter
seus costumes e de resistir à modernidade. Canclini (1998) apud Maia (2001, p.148),
afirma quenem a modernização exige abolir as tradições, nem o destino dos grupos
tradicionais é ficar fora da modernidade.”
Nas cidades, os turistas buscam cada vez mais um produto diferenciado, a
cultura. De acordo com Castroggiovanni (2001, p.7), as cidades,
...são espaços privilegiados quanto à concentração de atrações, serviços,
simbolismos e produções culturais. O papel que assumem na etapa pós-
industrial e da globalização econômica tem possibilitado (...) revitalização
de áreas adormecidas, mas com grande expressividade na formação
histórica dos lugares.”
Trabalhar o trinômio: cidade, cultura e turismo, segundo Gastal (2001, p.38),
envolve aspectos que levam a cidade de Goiás, uma cidade histórica a valorizar a
sua cultura, suas tradições e que, como foi dito, em 2001, tornou-se Patrimônio da
Humanidade. ...cada cidade é singular, oferece um espetáculo diferenciado,
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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centraliza uma série de possibilidades que criam um grande poder de sedução.” E a
cidade como “...integração de produtos turísticos responde ao crescente interesse
pelas questões culturais e patrimoniais.”(Castroggiovanni, 2001, p.8). Assim,
percebe-se o caráter turístico da Cidade de Goiás, foi se desenvolvendo lentamente
pós-transferência da capital.
Em 1965, na cidade de Goiás, um grupo de amigos, mais especificamente de
alguns estudantes, filhos de famílias tradicionais, elite, alunos da professora e artista
Goiandira Aires do Couto, faziam reuniões para discutir os costumes da cidade, as
tradições, queriam que a cidade fosse realmente reconhecida, precisava
(re)conquistar espaço nacionalmente e atrair turistas. De acordo com depoimento da
referida professora, a formão do grupo foi pela amizade e pelo idealismo. Mas por
trás desse idealismo existem os próprios interesses econômicos -. O grupo tomou
forma e foi denominado de Organização Vilaboense de Artes e Tradições OVAT
entidade civil, estatutária e privada. Conforme Delgado (2003, p.418), “os fundadores
da OVAT consideram-se herdeiros do movimento antimudancista e a concebem
enquanto institucionalização do ‘movimento de ação cultural’ organizado na esteira
da ‘reação da mudança da capital para Goiânia.” Como foi destacado
anteriormente, pode-se dizer que no inconsciente dos vilaboenses está o desejo de
reencontrar a autoridade perdida e vingar da humilhação experimentada” com a
transferência da capital.
Um dos principais fundadores da Organização, Elder Camargo dos Passos
49
,
registrou em uma de suas obras o papel da OVAT, que valoriza as tradições em
função do turismo e da renda que gera.
Em 1965, juntamente com outras pessoas devotas à cultura, criamos a
OVAT, (...) com objetivo de estudar, levantar, realizar e divulgar as tradições
de Vila Boa, visando tornar nossa cidade um pólo turístico, explorando a
parte histórica e cultural que somente nós detemos, por ter sido o início da
colonização de nossa terra e ter sido capital até 1937. Com isso tudo
49
É advogado, segundo Delgado: “...notabilizou-se como “historiador”da cidade ao proferir palestras,
escrever livros, organizar folders turísticos, além de fornecer informações para trabalhos a respeito da
Cidade de Goiás.”(Delgado, 2003: 421)
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43
permanecia intacto, precisando apenas organização e exploração,
propiciando uma nova arrecadação com base no turismo e promovendo
uma maior comercialização do artesanato e gastronomia, criando uma nova
fonte de renda para o município e seus habitantes (Passos, 1997, p.18).
O Departamento de turismo da Prefeitura de Goiás, espécie de secretaria do
governo municipal, foi criado em 01/03/1967, com objetivo de explorar as vastas
potencialidades turísticas daquela região. O sr. Sebastião Peleja foi designado diretor
do Departamento e o sr. Octo Marques seu secretário.”
50
Antes mesmo de Goiás se
tornar Patrimônio Nacional havia a preocupação com o turismo local. Alguns bens
isolados tinham sido tombados na década de 50, mas somente no final da década de
60 e início da década de 70, que membros da população local, como a OVAT, se
despertaram para o interesse ao turismo, perceberam que poderiam aproveitar das
riquezas arquitetônicas e culturais da antiga Vila Boa e transformá-la em cidade
turística, é o que mostra Borba (1998, p. 89),
Enquanto cidade histórica, o turismo veio como conseqüência do processo
de resgate da arquitetura colonial aí existente.
Associado ao aspecto arquitetônico, as festas tradicionais da cidade (o
carnaval, a Semana Santa, entre outras) completam o atrativo para o
desenvolvimento do turismo.
O ano em que foi implantado o departamento de turismo em Goiás é o mesmo
ano em que se inicia, aos moldes atuais, a famosa Procissão do Fogaréu, será
trabalhado com maiores detalhes no decorrer dos próximos capítulos, que é uma das
encenações que ocorre na Semana Santa da cidade, sobre a Paixão de Cristo, (re)
inventada pela OVAT e que foi amplamente divulgada pelos meios de
comunicação
51
. Com isso, pode-se dizer que o turismo em Goiás está amplamente
50
Jornal O Popular. Goiânia: 02-mar-1967.
51
Foi publicado em 1967 nos diversos jornais do Estado, consegui cópia de O Popular e Folha de
Goiás, divulgando que a “Semana Santa em Goiás terá comemorações em nôvo estilo”. Inclusive em
um dos jornais com a matéria intitulada “Goiás prepara história ao vivo da Paixão para a Semana
Santa”, diz que dois dos organizadores da Procissão do Fogaréu falariam naquele dia na TV
Anhanguera. (O Popular 02/03/67) significa que membros da OVAT estariam divulgando a Procissão
do Fogaréu e a cidade.
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44
relacionado à questão patrimonial e cultural, tanto no que tange ao Patrimônio
Material como Imaterial.
Goiás se insere num contexto nacional, quando, justamente, na década de 70,
houve uma mudança na idéia que se tinha de Patrimônio, que não seria apenas os
monumentos, o material, mas também a cultura do povo, o imaterial. Conforme
mostra Mariani (1999, p. 165/6),
A partir dos anos 70, as manifestações populares, culturais e artísticas,
passam a figurar entre o conjunto de bens representativos da identidade
nacional, e selecionados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional.
..........................................................................................................................
Com a mesma perseverança com que na fase heróica do Patrimônio se
perseguia a proteção dos monumentos arquitetônicos, nesse novo
momento partiu-se para a mobilização dos sujeitos sociais portadores das
tradições e dos fazeres populares que, em sua diversidade, construiriam a
nação. (...) Um projeto pela mobilização, conscientização das comunidades
em torno de seus valores e tradições e, finalmente, pela inserção dessas
práticas na vida social e econômica, tornando-as vivas e duradouras.
A OVAT passou a se responsabilizar por tudo que envolvesse as artes e as
tradições da cidade. Dessa forma concretizariam seus sonhos de preservar a cultura
e impulsionar o turismo. Como destaca Delgado (2003, p.404) “...os membros dessa
instituição aparecem como pioneiros das iniciativas de fomentar o turismo,
disputando com o IPHAN o poder de instaurar os efeitos materiais e simlicos da
instituição do patrimônio da Cidade de Goiás.” É o que diz o ex- presidente da OVAT:
E assim foi, uma série de (...), comemorações, centenário (...) da morte de
Veiga Valle (...) de um artista tal. E nós fomos comando a mostrar, trazia
recitais, pessoal para apresentar nas igrejas e isso foi dinamizando tudo, foi
criando essa ambiência que hoje temos aí: a cidade como pólo turístico,
cultural, bem desenvolvido, bem, bem mostrado...(Passos apud Delgado,
2003, p. 426)
Outro referencial, símbolo da cultura vilaboense e goiana, de atração turística
em Goiás é a Casa de Cora Coralina. A partir de 1985, ano da morte de Cora
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45
Coralina, foi criada a Associação Casa de Cora Coralina, entidade civil e privada,
assim amigos, familiares e admiradores da poetisa mobilizaram-se para manter viva
sua memória, suas idéias e sonhos”.
52
Cora Coralina foi poetisa, escritora, doceira.
Reconhecida nacionalmente, recebeu diversos prêmios, inclusive da União Brasileira
de Escritores.
A Casa de Cora Coralina, a Casa velha da Ponte, foi restaurada em 1989, no
ano do centenário de Cora Coralina, tornando-se um museu e um grande centro
cultural da cidade, “...os valores culturais atribuídos à Casa de Cora Coralina, (...)
o heterogêneos. (...) valores ao acervo da Casa de Cora, aos eventos culturais que
nela acontecem, às obras da poetisa, à poesia que ela escreveu e à casa em que ela
viveu”(Moraes, 2002, p.109).
Após a sua inauguração, a Casa de Cora Coralina em um ano recebeu mais
de 150 mil pessoas.
53
Além de todo seu valor cultural, a Casa em si, ao lado da
ponte, e quase dentro do Rio Vermelho tem uma estética especial, que atrai muitos
olhares.
52
Dossiê – Op. Cit. História e Cultura, p. 60.
53
Ibidem.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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46
Fotografias: Dossiê Goiano.
Cora Coralina mostra, em seus escritos, que, no final da década de 70 e início
de 80, Goiás recebia turista, mas não estava pronta para ser Cidade Turística,
faltava toda uma preparação, tanto em termos de conscientização havia um certo
preconceito da população local, em relação ao turista quanto em termos de infra-
estrutura: não havia guia-turístico, museus e igrejas eram fechados, não havia rede
hoteleira, faltava restaurante, enfim, diversos problemas. Os moradores se sentiam
invadidos pelos turistas. É o que escreve Cora Coralina em Reflexões de Aninha (A
cidade e seus turistas):
A cidade de Goiás, sendo um conjunto social tradicionalista
E fechado, não entendeu nem justificou o turista.
Acostumada a receber visitas, dispensar atenções e cortesia
Aos que chegam, não o entende e se surpreende, com esse tipo novo
E suas atitudes desatentas, longe do padrão aceito e requerido.
Quem faz visitas tem praxe e um protocolo, mesmo modesto,
de apresentação, estatuído e conservado.
Traz um laço remoto com a terra, com a cidade e suas famílias.
Estranho que seja tem uma linha definida e aceita.
Já o turista foge a esse padrão.
É diferente e indiferente.
Descontraído, displicente, impessoal, chiclete.
Entra porque a casa está aberta, costume de Goiás. (...)
Portas abertas. O turista vai entrando como em terra de ninguém.
Indiferente a uns tantos princípios.
Abragou de normas sociais corriqueiras. (...)
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
47
É um passante, anônimo, genericamente turista,
De curiosidade despolida
Que agride a falia tradicional, não muito flexível
E que qualifica esta atitude de displante. (...)
Tem mais: a liberdade que tomam de invadir.
Vão entrando, salas, quartos, cozinha, quintal.
Nem cumprimentaram a dona da casa presente.
Tudo com a liberdade indiferente de um passante
sem nome e sem retorno.
Não ligam ao juízo que possam fazer desta conduta inédita
nos reinados de minha Cidade.
Afinal que o turista vem e vai.
Nem abrem caminho ao turismo informativo e social,
que muitos procuram. E como a cidade ainda não tem seus guias
como em todas as partes, eles não se limitam
ao que Goiás oferece publicamente.
Igrejas e museus de portas fechadas e falta de guias.
Vale muito aqui o artesanato comercial,
bem amplo do pátio interno
do Convento Dominicano,
que mantém uma cooperativa em benefício de artesãos,
espalhados ao acaso da cidade. (...)
Nenhuma censura nesta análise. Tempos novos,
Gente nova, desligada de práticas remotas e de um passado
distante.(Coralina, 1987, p.158/9)
Analisando o poema Reflexões de Aninha”, vê-se que o era fácil aceitar a
figura do turista, despojado, livre de qualquer preconceito e amarras locais, é
“chiclete, pois “gruda” no morador a fim de obter todo tipo de informação sobre o
passado histórico. E Goiás é uma cidade tradicional, dita de “famílias tradicionais”,
aceitar o turista era um pouco complicado, sentiam invadidos, só mesmo os
moradores que tinham seus interesses e que se diziam “ter visão de futuro”.
A cidade não tinha condições estruturais para atender a pequena demanda de
turistas ocasionais - que buscavam a história da cidade e o lazer. Tais turistas não
causavam grandes preocupações para que ocorressem modificações na cidade de
forma a atendê-los, pois a maioria deles estava em excursões diárias, alguns
pernoitavam na cidade, e não tinham necessidades de gastar. No máximo
almavam no restaurante e compravam alguma lembrança de artesanato. Havia
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
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também os turistas do tipo sazonais, os quais só aparecem em eventos promovidos
na cidade, como o carnaval e a semana santa, atualmente, também o FICA.
Quando algum evento na cidade é que se tem uma certa preocupação em
relação aos serviços prestados aos turistas, são feitas reservas em hotéis, maior
procura nos restaurantes e compra significativa de produtos do artesanato.
O turista é o maior consumidor das peças de artesanato, “...chega uma
caravana com 40 pessoas, dessas, 30 compram cerâmicas. Aqui em Goiás tem
muitas pessoas que mexem com cerâmica, todos sobrevivem, não para ficar
rico...”
54
São vários tipos de objetos fabricados por artesãos na antiga Vila Boa e
expostos para serem comercializados no salão do Convento da Igreja do Rosário e
em outras lojas de artesanato espalhadas pela cidade.
Fotografias: Dossiê Goiano.
54
Dossiê Op. Cit. Inventário Nacional de Referências Culturais Entrevistas Selecionadas Alice
Noronha. p. 07.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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49
Canclini (1993, p.11)) aborda sobre a estratégia de mercado e os objetos com
os quais o turista se depara:
A estratégia do mercado: enxergar os produtos do povo, mas não as
pessoas que o produzem, valorizá-los apenas pelo lucro que geram, pensar
que o artesanato, as festas e crenças “tradicionais” são resíduos de formas
de produção pré-capitalistas.
O que vê o turista: enfeites para comprar e decorar seu apartamento
(...), mbolos de viagens exóticas a lugares remotos (...) A cultura é tratada
de modo semelhante à natureza: um espetáculo...
Em função da sazonalidade do fluxo de turista não ter trazido a rentabilidade
esperada, todas as ações em prol do desenvolvimento econômico, devem ser feitas
por meio de um planejamento sustentável, que favoreça todos os lados:
empreendedores, população receptora e os turistas. Pensar em novos
empreendimentos e em publicidade pode ser importante, mas deixar de pensar na
comunidade local tamm pode colocar tudo a perder.
Cora Coralina termina suas “Reflexões” afirmando que o turista é um tipo novo
na cidade, indiferente, “gente nova, desligada de práticas remotas e de um passado
distante. Cora deixa claro o tipo de cultura e de tradição que se deve proporcionar
ao turista; é preciso pasteurizar as formas de vida locais, os modos de existência, as
formas de conduta, de relacionamento para que a cidade histórica possa se tornar
um produto cultural. É preciso desterritorializar os modos imateriais de existência, -
isto que Cora chama de “conjunto social tradicionalista, na primeira linha do poema -
de sua realizão moral, ou seja, da cidade do ponto de vista arquitetônico e urbano,
para que possa se tornar um produto cultural.
Pelas “Reflexões de Aninha”, mostra-se como o plano subjetivo teve que se
transformar para que o turismo se constituísse em Goiás. Tal transformação se deu
lentamente, pois seu presente e futuro dependeram e dependem de seu passado
histórico, o qual envolve suas tradições.
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50
Passado histórico e tradições que foram constituídos por determinados
segmentos da sociedade impulsionados pelos seus ressentimentos, pela vontade de
trazer à tona a identidade vilaboense, que parecia ter sido perdida com a
transferência da capital. Tais segmentos da sociedade criaram e se envolveram com
suportes necessários para que a cidade deixasse de ser meramente a antiga capital
e passasse a ser cidade de Goiás - sem clichês - Patrimônio da Humanidade.
Um dos suportes criados será trabalhado no próximo capítulo, a Procissão do
Fogaréu, uma tradição da cidade que foi (re)inventada. Tem suas características
próprias que permeiam a uma série de articulações que merecem ser discutidas.
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51
2. CARTOGRAFIA DE UMA TRADIÇÃO
Após a transferência da capital, percebe-se na antiga Vila Boa não só a
valorização ao passado histórico, mas a busca pelas tradições. No jornal Diário da
Manhã foi publicado:
Alfredo Conti, argentino representante da Unesco que veio visitar a cidade
para fazer um relatório técnico, em 1999, reconheceu que, além das
construções típicas do peodo da exploração do ouro e do traçado da
cidade, Goiás tinha outros tesouros para mostrar ao mundo: “Aqui
aconteceu um fato raro quando se trata de cidades históricas. O povo de
Goiás foi capaz de preservar também valores culturais e manter qualidade
do meio ambiente. As autoridades e o povo estão determinados em manter
esse patrimônio.
55
Os tesouros a que se refere o Diário da Manhã estão ligados à cultura da
cidade, como por exemplo, as festas religiosas (Semana Santa) ou profanas
(carnaval). São formas de resgate aos valores locais. Rita do Amaral (1998), mostra o
papel das festas, que está ligado às tradições: “As festas, (...) por motivos vários ao
longo da história, desempenharam um papel muito mais importante em nossa cultura
do que costumamos admitir (...) podem comemorar acontecimentos, reviver
tradições...
A maioria das festas em Goiás faz parte das tradições da antiga capital. Goiás
deixou de ser capital e passou a ser o “repositório das tradições”. Flores (1997,
p.135), afirma que “tradição é uma versão do passado que se deve ligar ao presente
e ratificá-lo. O que ela oferece, na prática, é um senso de continuidade.”
Membros da população vilaboense ressentidos com a transferência da capital
sentiram uma crise de identidade”. Elder Camargo dos Passos, lembra que, depois
que a cidade deixou de ser a capital, perdeu a proeminência que havia conquistado
55
Jornal Diário da manhã em 30/06/2001.
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52
(...) e essa situação os deixou preocupados. Decidiram realizar eventos que
atraíssem a atenção das pessoas.”
56
Assim, ao longo dos anos, foram criando valores
culturais e fixando tradições. Isso conferiu a Goiás uma identidade.
57
“O povo de Goiás foi capaz de preservar também valores culturais”, que são
as obras de Arte Sacra de Veiga Valle, os poemas de Cora Coralina, os quadros de
Goiandira Aires do Couto, pintados com areias da Serra Dourada, as músicas
goianas, a gastronomia vilaboense com o empadão goiano, arroz com pequi, suco de
frutas do cerrado, como o de cajazinho e várias tradições como as festas: Carnaval,
junina, folia de Reis, do Divino, de Nossa Senhora do Rosário, Semana Santa com a
Procissão do Fogaréu, símbolo da cultura goiana, além de eventos como o FICA
Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental.
Para melhor compreensão da importância das tradições em Goiás, a seguir
será trabalhada uma das mais marcantes e mais conhecidas tradições da cidade pelo
Brasil, que contribuiu para o resgate da identidade vilaboense, cuja imagem
representa Goiás – Cidade e Estado a Procissão do Fogaréu.
2.1. Uma Tradição: A Festa da Procissão do Fogaréu
... foi criada uma tradição que cresceu como uma árvore frondosa,
oferecendo a todos sua sombra acolhedora nesta cidade de tão grande
fertilidade espiritual: E a nossa Semana Santa se tornou famosa. Sua
irradiação foi facilitada pelo fato de nossa cidade ser a capital do Estado e a
sede da única Diocese que existia então em Goiás. Mudou a capital, mas
a fama de nossa Semana Santa não mudou.
58
56
TRABALHO pioneiro criou identidade. In: Revista Goiás Agora. Goiânia, ano I, n. 2, abril de 2001,
p.23.
57
Ver Anexo J.
58
Trecho extraído de uma MENSAGEM. Equipe de Publicidade da Semana Santa.[1978?]
Os grifos são meus.
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53
A Procissão do Fogaréu em Goiás esinserida na maior tradição religiosa da
cidade: as celebrações da Semana Santa. Para melhor compreendê-la, faz-se
necessária uma breve abordagem sobre a Semana Santa em Goiás.
A Semana Santa é considerada um dos principais rituais litúrgicos da Igreja
Católica e acontece quarenta dias depois da quaresma. Burke (1989) afirma que,
“Segundo a Igreja, a Quaresma era uma época de jejum e abstinência (...) a própria
palavra ‘Quaresma’ significa tempo de privação”. Em Goiás, não se sabe exatamente
quando começou a Semana Santa, a primeira informão que se tem é que a Igreja
Matriz Catedral foi reconstruída para as celebrações da Semana Santa em 1745.
Isto foi mostrado no programa da Semana Santa em Goiás de 1995:
O primeiro dado registrado pelos historiadores sobre a realização da
SEMANA SANTA na Cidade de Goiás é o seguinte...
“Em 1743 a Igreja Matriz de Sant’ Ana por ameaçar cair, foi demolida
e depois levantada sob a orientação do padre Dr. João Perestelo de
Vasconcelos Espínola, tendo funcionado para a Semana Santa de 1745...”
Assim, documentalmente está registrado que ela vem acontecendo desde
essa época fazendo nesse ano de 1995 250 anos de comemorações
desse evento de fé e movimentação cristã.
No século XIX, Johann E. Polh era um dos integrantes da expedição de
cientistas naturais austríacos, que percorreram o Brasil entre 1818 e 1821. Pohl,
além de médico, era mineralogista e botânico, passou pela Capitania de Goiás e
descreveu o que viu por estas terras no livro Viagem no Interior do Brasil. Há no livro
diversos registros de como era a antiga capital, suas ruas, casas, o rio Vermelho, as
festas e a Semana Santa em Goiás. Interessante observar que, na citação abaixo,
Polh (1976, p.143), descreve os visitantes na Cidade de Goiás durante a Semana
Santa e a Procissão com uso de tochas na sexta-feira, mas nada comenta sobre
Procissão com farricocos:
A Semana Santa, por exemplo, figura entre as mais notáveis. Para assistir a
essas solenidades religiosas vem gente de regiões longínquas, de até 30
léguas de distância
59
. Na Quinta-Feira Santa (...) procede o lava-pés de
doze meninos. O altar-mor, onde está exposto o Santíssimo, cercado de
muitas luzes, forma um grande palco, ornado com quadro da Santa Ceia.
59
Desde o século XIX a Semana Santa em Goiás atrai visitantes para assistirem as solenidades.
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54
(...) Faz-se um sermão sobre o lava-pés. Seguem-se, depois, as chamadas
trevas (...) Em regra geral, na sexta-feira da paixão todos usavam traje de
luto na Igreja. Esse dia é muito respeitado e considerado como dia de jejum
geral. (...) À tarde é pronunciado outro sermão, havendo uma grande
procissão à luz de tochas, (...)
No Domingo de Páscoa havia uma procissão ao nascer do sol, seguida de
missa e sermão (...). Todas as pessoas de distinção, eclesiástica e leigas,
dirigiam-se em seguida à sala de audiência do palácio para desejarem Feliz
Páscoa ao Governador, com o que terminava a festa.
A Semana Santa em Goiás sempre atraiu muitos visitantes, como descreve
Polh. O único objetivo dessas pessoas era a religiosidade. Numa Mensagem feita
pela OVAT, no final do culo XX, referência de que anteriormente as pessoas
que assistiam a Semana Santa era por fé, por devoção: “Nosso povo, cheio de fé,
vinha de todos os lados para assistir os atos da Semana Santa e era preciso atender
ao seu desejo de viver santamente este tempo sagrado.”
A Semana Santa inicia-se no Domingo de Ramos, domingo anterior ao da
Páscoa, é neste dia que a Igreja celebra a entrada de Cristo na Cidade Santa,
Jerusalém, e os Ramos representam a aclamação ao Senhor, a esperança
messiânica. Os celebrantes da missa, trajados de parâmentos vermelhos reforçam a
lembrança de que Cristo é o Rei do Universo. Conforme Brandão (2004, p. 233), “O
que importa é multiplicar ritos que misturem imagens, gestos, símbolos e sentidos
revestidos de (...) significado”.
Em Goiás, a Semana Santa começa na Igreja do Rosário, seguindo em
Procissão (de Ramos) para a Catedral. Neste mesmo dia, Procissão e Missa
também na Igreja Santa Rita.
Os três primeiros dias da Semana Santa são marcados mais intensamente
pela preparação da Páscoa. A liturgia é uma restituição dos últimos momentos
vividos por Cristo em sua vida terrena. Em Goiás, na segunda-feira santa, é dia de
penitência e vigília. Na terça-feira santa, há tem encenação da “Vida, Paixão, Morte e
Ressurreição de Cristo”. Na quarta-feira santa, antigamente era chamada das
Trevas, realiza-se a missa dos santos óleos na Catedral e às 24:00 horas a
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55
Procissão do Fogaréu”. Na quinta-feira santa, missa do Lava-Pés e da Santa
Ceia do Senhor, inicia-se o que a Igreja denomina Tríduo Pascal da morte e
ressurreição do Senhor Jesus, “durante essa cerimônia, são executadas pelo côro da
Catedral, as belas melodias do canto do LAVA-PÉS, de autoria do goiano José do
Patrocínio Marques Tocantins, c. XIX.”
60
Do domingo de ramos até a quinta-feira
santa completa-se o chamado retiro quaresmal. A sexta-feira Santa, dia da Paixão e
morte de Cristo, dia do Canto do Perdão
61
na Igreja N. S. da Abadia e na Igreja o
Francisco de Paula, adoração da Cruz na Catedral, descendimento da Cruz no
Chafariz e a procissão do enterro. Nos Programas da Semana Santa de todos os
anos é descrito o ritual do “Descendimento da Cruz e da “Procissão do Enterro”:
...no Lago do Chafariz, cerimônia dramatizada do DESCENDIMENTO DE
CRISTO DA CRUZ, com os figurantes vestidos à caráter. Homilia das SETE
PALAVRAS, intercalada com trechos musicais, das “sete palavrase “Via
Sacra”do compositor Mons. Pedro Ribeiro da Silva. Logo após sairá a
PROCISSÃO DO ENTERRO, percorrendo as ruas da cidade, ostentando as
figuras bíblicas do velho e do novo Testamento (...) ao lado do esquife do
Senhor Morto. Durante todo o percurso da procissão, são ouvidos,
espaçadamente, os cantos melancólicos e sentidos da Verônica e Heus,
que choram a morte de Cristo; (composição do séc. XIX, de Basílio Martins
B. Serradourada)...
62
Após uma sexta-feira carregada de cerimônias e rituais, vem-se o sábado
santo, dia de “silêncio, retiro e oração”, com Penitência e Vigília Pascal. No Domingo
da Páscoa é celebrada a missa da Ressurreição, a Páscoa não é simplesmente
uma festa entre outras: é a ‘festa das festas’, a ‘solenidade das solenidades’. É tão
grande que precisamos de 50 dias para celebrá-la. Nela os cristãos fazem núcleo da
60
Programa da Semana Santa na cidade de Goiás.
61
O tradicional Canto do Perdão, em Goiás, é apresentado por 22 moças que cantam estrofes sobre o
marrio de Cristo e pede-lhe perdão pelas ofensas que sofrera. Esta cerimônia tem sua letra tirada de
um livro antigo e foi musicado por Frei Ângelo, um dominicano francês, conforme consta no Programa
da Semana Santa na cidade de Goiás de 2004.
62
Programa da Semana Santa na cidade de Goiás de 2004..
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56
sua fé, ou seja a ressurreição do Senhor..”
63
, logo após, a queima do Judas.
Neste dia, também tem a saída da tradicional Folia do Divino.
Como foi afirmado anteriormente, a “Procissão do Fogaréu” é realizada na
quarta-feira da Semana Santa na Cidade de Goiás. A palavra procissão originou-se
do latim processione, que significa 1.cortejo religioso: pompa, 2. longo desfile de
pessoas: longus ordo.” (Ferreira Júnior, 1986, p.555). E Fogaréu vem de fogo,
archote. Em Goiás a Procissão do Fogaréu é um cortejo com archotes nas mão ou
tochas de fogo, é um ritual, uma festa tanto para o povo da cidade como para os
turistas, uma miscelânea entre o sagrado e profano. Conforme Souza (1996, p.30),
“as procissões (...) são muito freqüentes nas festas dos padroeiros e santos das
cidades e, de maneira especial na Semana Santa”.
2.1.1. A Procissão é uma festa.
Inicialmente, para melhor compreensão do estudo, faz-se necessário percorrer
algumas escritas cartografias sobre festas. Não se pode apontar a partir de
quando se inicia a festa que é de difícil precisão. Vovelle (1991, p.246/7) afirma
que “... a festa é para o historiador: momento de verdade em que um grupo ou uma
coletividade projeta simbolicamente sua representação de mundo, e até filtra
metaforicamente todas as suas tensões.
O que nos interessa são os estudos sobre as festas. A cerimônia e a
festividade são duas extremidades por onde transitam as festas. Para Durkheim
(2003), o aspecto recreativo da religião e a cerimônia religiosa é, em parte, um
espetáculo. Este caráter ambíguo pode ser tomado como a primeira definição de
festa, um objeto sagrado ou sacralizado que tem necessidade de comportamentos
63
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL CNBB. Roteiros Homiléticos Tempo da
Quaresma. Ano C. “Pascoa: Vida Nova”. Brasília: 2004, p, 5.
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profanos. Durkheim (2003, p. 417), diz que toda festa, mesmo quando puramente
laica em suas origens, tem certas características de cerimônia religiosa...
Segundo Amaral (1998, p.42/3) a definição de festa dada por Jean Duvignaud,
é dividida em dois tipos: Festas de Participação e Festas de Representação. As
Festas de Participação são as cerimônias públicas, das quais todos podem participar.
Neste caso, podem ser incluídas as festas de santos que ocorrem por quase todo
interior do Brasil, em que todos participam. Primeiro realiza-se o ato religioso, missa
ou novena, em seguida, os festejos, os leilões, a fartura, a comilança. As Festas de
Representação são aquelas que têm atores e expectadores. Os atores são em
número reduzido, que atuam na festa organizada para os expectadores que são em
número elevado, principalmente, quando propaganda na mídia sobre a festa,
geralmente, são as festas comemorativas. A Procissão do Fogaréu pode ser
exemplificada neste caso. Na atualidade, existem as festas intermediárias, que ficam
entre estas duas categorias formuladas por Duvignaud, que são ao mesmo tempo
festas de participação e de representão.
No Brasil, os principais estudos sobre festas devem-se aos folcloristas,
sociólogos e antropólogos. Tais festas, lentamente, vêm se difundindo como objeto
da história, hoje se destacam alguns historiadores que as estudam como: Mary
Del Priore, João José Reis, Jaime de Almeida, Martha Abreu, José Ramos Tinhorão,
Maria Bernadete R. Flores e outros
64
. Os estudos das festas no Brasil estão em sua
maioria relacionados à religião.
64
As obras destes historiadores que se destacam são:
ABREU, Martha.O Império do Divino: Festas religiosa e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
ALMEIDA, J. de. Todas as festas, a festa? In: SWAIN, Tânia Navarro. (org). História no Plural.
Brasília: EdUnB, 1994.
DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
REIS, J. J. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
TINHORÃO, J. R. As Festas no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000.
FLORES, M. B. R. Oktoberfest: Turismo, Festa e Cultura na Estação do Chopp. Florianópolis: Letras
Contemporâneas, 1997.
_________. A Farra do Boi: Palavras, sentidos, ficções. Florianópolis: Editora da UFSC,1997.
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58
As festas religiosas representativas do ideário religioso do catolicismo vieram
para o Brasil junto com as naus portuguesas que deportaram no Novo Mundo. No
decorrer da viagem, os tripulantes europeus celebravam os dias santos e todas as
comemorações do calendário litúrgico, costumes de suas terras, do velho mundo,
que transportaram para o Brasil.
65
O primeiro ato festivo no Brasil pós “descoberta” foi espontâneo, ocorreu com
o encontro entre os portugueses e os indígenas, mas o primeiro ato festivo oficial
foram as solenidades de celebração da primeira Missa e o ato de fincar a Cruz de
Cristo nas terras brasileiras como marco da conquista espiritual e temporal.
Conforme Tinhorão (2000, p.7/8) “... da parte dos jesuítas encarregados da
evangelização da gente da terra, a imposição não apenas da “fé católica” (...), mas
de todo ritual criado para a encenação do culto, com a reprodução exata da sua
música...” O cristianismo foi imposto aos povos nativos com todos os seus símbolos,
simulacros e pompa, sem respeitar seus costumes e cultura, ...fenômeno de
oportunismo lúdico, em um meio social cuja simplicidade favorecia em tudo o
controle...(Tinhorão, 2000, p. 7/8). As festas religiosas aumentaram e sofreram
modificações consideráveis após o Concílio de Trento, pois tinham a função de
catequizar indígenas de acordo com os princípios do catolicismo tridentino, passando
a ter inúmeras procissões seguidas de festas e as “danças tornaram-se um elemento
para enriquecer e ornar as formas externas do culto católico” (Del Priore, 1994, p.55).
O Brasil colônia era espaço privilegiado para os colonizadores se afirmarem
como donos do território. Divulgavam o poder real pelas vilas e pelos engenhos, por
meio dos monumentos que se erguiam, na ordenação do espaço e nos vários
acontecimentos sociais que ocorriam na rua, como as festas e procissões. De acordo
com Furtado (2000, p.12/13), os senhores de engenho no cotidiano da fazenda
reproduziam os costumes, a religião e as festas portuguesas.
65
MICELLI, Paulo. O Ponto Onde Estamos.Viagens e Viajantes na História da Expansão e da
conquista. (Portugal – séc. XV e XVI). Campinas; Ed. Unicamp, 1997.
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59
As festas na sociedade brasileira colonial apresentavam as diferenças sociais,
as pessoas exibiam-se nas ruas, praças e igrejas. A igreja expressava o exagero, as
contradições entre o sagrado e o profano, entre o homem católico e o entregue ao
prazer, pode-se dizer que eram as festas barrocas. Havia as festas oficiais,
realizadas pela Igreja, associações religiosas ou pelo Estado e as populares, que
eram espontâneas realizadas pelas classes populares e escravas. As danças
populares eram uma junção das tradições indígenas, africanas e portuguesas,
geralmente, eram acompanhadas pelo som do batuque.
Muitas festas do período colonial surgiram por iniciativas das Irmandades
66
,
principalmente, as religiosas. Cada irmandade era devota a um santo e realizava os
festejos para cultuá-lo. Distinguiam-se pela ordem nas procissões e pelo tipo de
roupa que usavam. Os irmãos que pertenciam a qualquer uma das irmandades
deveriam respeitar o estatuto e pagar taxa anual.
Segundo Furtado (2000), em função da proibição da instalação das ordens
eclesiásticas, as irmandades foram responsáveis por tudo a que se referisse a Igreja,
como organização das missas, sacramentos, difusão do culto aos santos, construção
das Igrejas e procissões.
A procissão no período colonial fazia parte das festas religiosas. De acordo
com Del Priore (1994, p.49), “festas e procissões, na Colônia ou no Velho
Continente, permitiam sem dúvida, a todas as camadas sociais o divertimento, a
fantasia e o lazer.”
Ainda conforme Del Priore (1994), as festas eram controladas e financiadas
pelas Câmaras, suas atas passaram a ser interessantes fontes documentais para o
historiador. Nas comemorações do calendário religioso, as Câmaras pediam
inventários dos preparativos da festa, “registram-se também os pedidos de
66
Associação de pessoas que têm por objetivo honrar algum santo ou atributo a Cristo, Deus ou à
Virgem; de caráter religioso; confraternidade; unem-se pela devoção e pelo auxílio mútuo; confraria.
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60
procissões que mais parecem um pretexto para a irrupção de um novo
acontecimento festivo” (Del Priore, 1994, p.26).
Em Goiás, não foi diferente, foram várias as procissões no período colonial. A
colonização se deu mais tarde, no século XVIII, com a mineração. Juntamente com
os colonizadores, as igrejas iam se espalhando pela Vila, foram construídas oito
igrejas: Capela de Sant’Anna (1729), Igreja São Francisco de Paula (1761), Igreja de
Nossa Senhora da Boa Morte (1779), Igreja de Santa Bárbara (1780), Igreja de
Nossa Senhora do Carmo (1786), Igreja de Nossa Senhora da Abadia (1790), Igreja
de Nossa Senhora do Rosário (1761), Igreja de Nossa Senhora da Lapa (1794), esta
última foi destruída pela enchente do Rio Vermelho em 1839, e assim, as festas, as
irmandades e as procissões, que se identificavam e se inseriam no contexto histórico
brasileiro.
Desde o século XVIII, diversas festividades foram e ainda são realizadas em
Goiás, especialmente as festas religiosas, como a da padroeira, de Santa Rita, do
Divino, a Folia de Reis, da Semana Santa, de Nossa Senhora da Boa Morte, entre
outras. “As festas conservam a maioria dos rituais tradicionais e despertam profunda
contrição no espírito do povo.”
67
Rita do Amaral (1998, p.6) afirma que no Brasil tudo acaba em festa”. Para
não fugir à regra, na Cidade de Goiás mal acaba uma festa e está se preparando
para outra, como foi dito, são costumes que m desde o período colonial,
inclusive a Procissão do Fogaréu que faz parte das festividades da Semana Santa.
“... a Cidade de Goiás segue preservando suas tradições representadas tamm
pelas festas que se constituem, em sua maioria, em celebrações religiosas
mescladas a elementos profanos do folclore local.
68
O ritual da Procissão do Fogaréu é uma “Festa de Representação” de duplo
sentido, visto que constituiu um espetáculo de cunho religioso e que se transforma
67
Dossiê – Op. Cit. Goiás: História e Cultura – Aspectos Culturais, p. 75.
68
Ibidem.
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61
em festa profana. Os farricocos atuam como atores da festa organizada pela OVAT
para os espectadores, que são todas as pessoas que comparecem em massa para o
evento, a comunidade local e os turistas.
No Brasil Colônia, as cerimônias religiosas passaram a ser dramatizadas,
houve teatralização das histórias sagradas do Evangelho. Conforme Tinhorão (2000,
p.68), havia necessidade de aproveitar nas igrejas a tendência à participação
coletiva, característica dos ritos pagãos (...), estava destinada com suas encenações
de episódios bíblicos (...) a passar às ruas sob a forma de procissões espetaculares.
De acordo com Brandão (2004), “acontecimentos rituais de envolvimento
coletivo são quase sempre ligados às festas dos ciclos católicos, em Goiás.” E
segundo Bertran (1999), é através da coisa da festa que acontece a socialização da
cultura. “...o povo é festeiro, tem festa todos os dias na cidade (...) a festa é uma
categoria muito forte. Meu Deus, como esse povo é festeiro.”
69
Bertran se refere ao
povo da Cidade de Goiás.
Silva (2000, p.16) aponta a festa “como objeto legítimo, é uma importante
oportunidade para se analisar uma sociedade...”. É o caso de Goiás que,
investigando suas festividades, detectam-se, ainda segundo a referida autora,
“elementos importantes para compreendermos a cultura, as relações de poder, de
memória e de identidades.”
69
Extraído do Dossiê – Op. Cit. Inventário Nacional de Referências Culturais – Entrevistas
Selecionadasn.37, Paulo Bertran.
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2.1.2. A (re) invenção da tradição
A Procissão do Fogaréu dramatizada iniciou-se a partir de 1967. Antes disso,
sabe-se muito pouco como era, o escassos os documentos. Os depoimentos e o
que está escrito em folders, cartazes, panfletos e programas da Semana Santa
apresentam a Procissão do Fogaréu, anterior à de 1967, como um ritual de tradição
européia trazida para o território goiano em 1745 por um padre espanhol chamado
João Perestelo de Vasconcellos Espíndola.
70
A OVAT começou a levantar as festividades religiosas. (...) nós
descobrimos que o fundador da Irmandade dos Passos, (...) foi o Pe
Perestelo de Vasconcellos Espíndola, um espanhol. Durante essa história,
saiu a Procissão do Fogaréu, com encapuzados e tal, que deixou de ser
levada, desapareceu com o tempo e tal. E nós começamos a reviver isso
historicamente e pegamos que o Pe Perestelo tinha estado aqui
justamente neste período de 1745. Então foi presumido que seja ele o
introdutor de toda essa cerimônia que, se você comparar com a tradição
espanhola vai bater. (...) Aí então atribuímos a ele, sabemos que ele foi o
fundador da Irmandade dos Passos. Tamm pusemos a data da
irmandade em 1745 e a procissão iniciando nesta data. Tudo começando
em 1745, que era um marco que s tínhamos, um marco inicial
registrado...
71
O depoimento acima, estratégia de legitimão do discurso, justifica a data e a
história da origem da Procissão do Fogaréu, que é escrita nos folders por deduções
dos membros da OVAT. O único marco inicial registrado é um documento escrito a
respeito da inauguração da Catedral de Santana para a Semana Santa. O
depoimento mostra também que a Procissão do Fogaréu desapareceu no século
XIX. Inclusive um folder de 2004, escrito pela OVAT, diz que: “Em Goiás (a
Procissão) foi introduzida pelo Padre João Perestelo de Vasconcelos Espíndola em
70
Os produtores dos folders fazem tal afirmação por dedução, associam a data com o registro que se
tem a respeito da inauguração da Catedral para a Semana Santa.
71
Depoimento de Elder Camargo dos passos feito à Andréa Delgado.
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63
1745, desaparece no século XIX. (...) foi reintroduzida em 1966
72
nas comemorações
da Semana Santa...”
73
Um recibo
74
do livro de receita e despesas da Irmandade do Senhor dos
Passos, de 29 de março de 1871, apresenta pagamento feito a um farricoco. A
existência de tal recibo esclarece algumas lacunas e abre outras. Fica evidente que
antes existia a figura do farricoco que era pago e que a responsabilidade era da
Irmandade do Senhor dos Passos. A Procissão não parou no século XIX, talvez
apenas a participação dos farricocos, pelo fato de ficar oneroso, não desaparecendo
a Procissão com tochas. O trecho descrito por Pohl apresenta a Procissão com
tochas no século XIX e num diário escrito por uma cidadã vilaboense, Anna
Joaquina
75
, mostra que havia a Procissão do Fogaréu no final do XIX e início do
século XX.
Interessante destacar que são somente alguns integrantes da OVAT que
afirmam o desaparecimento da Procissão do Fogaréu. De acordo com depoimento
da Profa. e artista Goiandira Aires do Couto e de Frei Marcos esta Procissão nunca
acabou por completo. Recordam que viam seus pais preparando as tochas com cera
de abelha para a Procissão do Fogaréu. Eram crianças, portanto, não assistiam.
Goiandira ainda afirma que antes da Procissão com os farricocos, como é hoje,
saiam apenas uns 5 homens vestidos normalmente com tochas nas mãos correndo
pelas ruas, representando a perseguição a Cristo. Ela confirmou que mesmo sendo
muito fraca, a Procissão nunca desapareceu por completo. Podendo, então, ser
aquela descrita por Pohl.
72
uma divergência de datas: este folder apresenta 1966, mas encontrei jornais com reportagens
de 1967, divulgando o primeiro ano da Procissão do Fogaréu – a Paixão de Cristo em novo estilo.
73
Folder Semana Santa em Goiás. A Procissão do Fogaréu. Produzido pela OVAT. Distribuído em
2004, mas não consta data, com certeza pelo fato de que poderão distribuir em outros anos.
74
Único documento encontrado na Irmandade Nosso Senhor dos Passos a respeito de farricoco, nada
encontrei a que se referisse a Procissão do Fogaréu.
75
Encontrei o diário no Instituto de Pesquisas e estudos Históricos do Brasil Central IPEHBC de
uma cidadã vilaboense, Anna Joaquina da Silva Marques, sem grandes prestígios, irmã de uma
professora da cidade: Mestre Nhola. Anna Joaquina em seus escritos que são de 1880 a 1930, coloca
a partir de 1899 que na quinta feira santa após a missa do lava pés havia a Prociso do Fogaréu, fez
tal registro nos anos de 1899, 1902, 1908 e 1927.
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Pelo que apresentam os membros da OVAT, fizeram uma (re)invenção da
tradição da Procissão do Fogaréu, que está relacionada com o próprio surgimento da
Organização. Nas reuniões que faziam, perceberam que era preciso resgatar a
Procissão que ...foi reintroduzida em 1966
76
nas comemorações da Semana
Santa...”
77
Em Goiás, existem grupos que se dizem responsáveis pela cultura e pelas
tradições na cidade, é o caso da OVAT, Associação da Casa Cora Coralina e o
Movimento Pró-Cidade de Goiás. Hatzfeld (1993) destaca que a tradição é confiada a
um “chefe”, a porta-vozes oficiais, aos guardiões. Em Goiás, “... um pequeno grupo
controla o patrimônio e gerencia a política cultural de Goiás, além de participar de
negócios ligados ao turismo”(Delgado, 2003, p.427). Sobre a importância dessas
pessoas Martins (2002, p.61) afirma que “o Espaço Cultural da sociedade necessita
assim ser administrado pelos indivíduos tanto pelo ponto de vista de decisão
particular que cada um é chamado a tomar a todo instante, como da realidade
histórica empírica em que todos estão imersos.”
Quase todos que se dizem reorganizadores da festa, da Procissão ainda são
participantes ativos, é o caso de Elder Camargo dos Passos, Antolinda Baía Borges,
Marlene Gomes de Vellasco, o atual presidente ber R. Rezende Júnior. Delgado
(2003, p.427/8), mostra como o grupo se identifica:
Esse grupo se auto-representa como guardião da cultura vilaboense e
portador de virtudes que são compartilhadas por todos os membros e que
os singulariza em relação aos outros moradores da cidade, evocando o
trabalho pioneiro realizado nas entidades culturais e o pertencimento às
“famílias tradicionais” da cidade, cujos antepassados se destacaram que
nas artes, quer na política desde tempos remotos e cujo descendentes não
abandonaram Goiás.
Justamente para preservar a cultura e, num sentido mais amplo, como foi
dito, de atrair turistas para Gos, a OVAT comou a pesquisar e a estudar tudo que
76
uma divergência de datas: neste folder apresenta 1966, mas encontrei jornais com reportagens
de 1967 divulgando o primeiro ano da Procissão do Fogaréu – a Paixão de Cristo em novo estilo.
77
Folder Semana Santa em Goiás. Op Cit.
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estivesse relacionado à Procissão do Fogaréu, em livros, em depoimentos de
pessoas mais velhas, por meio da memória e pela Bíblia, em capítulos que os
evangelistas escreveram sobre a perseguição de Cristo.
A Bíblia não foi a fonte primária que inspirou a OVAT a configurar a encenação
da Procissão do Fogaréu tal como hoje é encenada. A inspiração surgiu a partir da
leitura de notícias em jornais sobre as comemorações do aniversário da cidade do
Rio de Janeiro. Após dois anos de estudos fizeram da ficção uma realidade, o
desenho estava traçado, a OVAT começou a confeccionar as vestes coloridas, capuz
e tochas, sem preocupação com o significado das vestimentas.
A OVAT demonstra ter (re)inventado a Procissão do Fogaréu. E também, de
acordo com seus discursos, a “invenção da tradição”
78
foi do Pe Perestelo. Segundo
Giddens (1997), todas as tradições são inventadas, então, pode-se dizer, que a
Procissão implantada pelo referido padre foi também uma “invenção da tradição”,
pois era impossível fazer uma transposição da festa espanhola. Logo, para a OVAT,
a atual Procissão foi uma (re)invenção da tradição, como destaca a cssica obra de
Hobsbawm (1997, p.9) que, a partir da definição de tradição inventada, coloca as
tradições como sendo de um passado próximo.
Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem
bastante recente e algumas vezes inventadas, (...) significa um conjunto de
práticas (...) de natureza real ou simlica, visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através de repetição , o que implica
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (...) um
passado histórico apropriado.”
Pode-se, também, associar a Procissão do Fogaréu à teoria de Hobsbawm,
pois os grupos envolvidos se apropriam do passado histórico. Segundo Almeida
(1994, p.171/2), existe o ritualismo (...): a festa retoma o passado à sua maneira,
revivendo-o como história manipulada, reajustada”.
78
Título da obra de: HOBSBAWM, E. & RANGER T. A Invenção das Tradições. RJ: Paz e Terra,
1997.
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Fotografia: Dossiê Goiano
A Procissão do Fogaréu em Goiás constitui um Show ao vivo, teatro pelas
ruas, folclore, tradição, espetáculo, nostalgia, exotismo, ritual, religião. Para as
Ciências Humanas pode ser conceituada em uma rie de categorias, mas
resumindo, pode ser definida como uma “Arte” ou “Cultura”. Geertz (2000, p.178)
define o que é “Arte”: “A arte, diz meu dicionário, (...) é a produção consciente, ou
arranjo de cores, formas, movimentos, sons ou outros elementos de uma forma que
toca o sentido de beleza”. Geertz (1989, p.4) busca conceituar também a “Cultura”:
O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico
79
.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise; portanto, (...) uma ciência interpretativa, à procura do
significado.
A Procissão do Fogaréu pode ser considerada ainda como um “evento” em
que a cada novo acontecer das coisas existentes, muda-se a forma e tamm
significado do evento. De acordo com Santos (1990, p.116), “os eventos mudam as
coisas, transformam os objetos dado-lhes, ali mesmo onde estão, novas
características”. Sahlins (1984) define evento como um acontecimento
estruturalmente relevante e dotado de significado. Transforma-se, dessa forma, o
significado de cada monumento à reordenação da utilização dos espaços dentro da
cidade histórica, tornando-a um espaço globalizado, recebendo turistas de diversas
partes do mundo. O evento tem um valor simbólico para Goiás, é uma tradição (re)
79
A semiologia tem por objeto qualquer sistema de signos :imagens, gestos, vestuários, ritos, etc.;
mesmo que semiótico.
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67
inventada. Para Passos (2003), Toda a reestruturação do evento busca preservar e
divulgar suas tradições culturais e fortalecer o turismo”.
80
Não é preciso dizer que, a partir do novo estilo de procissão, a Cidade de
Goiás viu surgir um novo ciclo de turistas, modificando suas bases econômicas e
culturais. Nota-se que um desenvolvimento com ritmo particular, sustentado pelos
interesses turísticos e econômicos, mas tamm pelo incentivo da OVAT.
Introduziram novos elementos no ritual, “interesses estiveram e estão em jogo,
como os interesses da OVAT, que são além de manter as tradições, também o
de gerar lucros, renda para a cidade. Interessante observar que alguns dos membros
da OVAT são donos de pousadas, restaurantes, etc. São empresários da cidade.
Pode-se, portanto, observar a introdução de novos valores no sistema do
ritual estéticos e econômicos que colocam em questão as novas presenças na
procissão, sejam elas a dos turistas, da mídia, das empresas interessadas no
consumo que o ritual desperta. A projeção da Procissão do Fogaréu era feita
principalmente no contexto local, religioso, tradicional, da qual ela retirava seu próprio
sentido. Atualmente este universo foi modificado e, embora alguns lamentem a
invasão do turista, outros vêem nela um elemento positivo, que permite a inserção de
parte da população no contexto nacional da qual se considerava distanciada. Assim,
Procissão do Fogaréu, hoje, é uma das imagens de Goiás projetada no Brasil e até
mesmo em outros países.
80
Elder Camargo dos Passos – entrevista concedida à Ana Pinheiro em 26/07/03.
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2.1.3. Dramatização e trajeto
O mito do Cristo, dos santos, dos mártires (...) são representações que
fascinam, atraem, exaltam, juntam multidões em intermiveis jornadas de
celebrações representadas.
81
Durante a Procissão do Fogaréu é feita a dramatização da perseguição e
prisão de Cristo pelos soldados romanos, os algozes de Cristo, que são
representados pelos farricocos.
Somente depois que todos os preparativos para a Procissão do Fogaréu
ficaram prontos, como a confecção das roupas e das tochas, a OVAT pediu
autorização ao Bispo, D. Abel, para que os homens com tochas nas mãos saíssem
de farricocos na Procissão do Fogaréu. Em 1967, foi dada a permissão para saírem
na quinta-feira santa às 23h, juntamente com a Procissão de Nosso Senhor dos
Passos. Inicialmente saíram em torno de cinco
82
farricocos, posteriormente, foi
aumentando o número. Hoje são 40 e passou a ser realizada na quarta-feira santa,
às 24h, por ter uma programação religiosa extensa na quinta-feira.
O ritual coma a ser reconhecido nacionalmente a partir de 1967, pois a
Procissão do Fogaréu passou a fazer parte da Programão
83
da Semana Santa em
Goiás, daí em diante encontram-se diversos registros sobre a procissão.
A Procissão inicia-se às 24h da quarta-feira Santa com a cidade às escuras.
Os protagonistas são: farricocos, que carregam a fanfarra, e povo, os quais saem,
silenciosamente, ao som dos tambores, descalços e em passos rápidos com tochas
nas mãos.
81
DUVUGNEAUD, J. A Festa. In: SANTOS, M. H. & LUCAS, A. M. R. Antropología Paisagens, sábios
e selvagens. Porto: Porto Editora, s/d, p.447.
82
Número variável, não registro do n
o
. exato, mas cada integrante comenta um mero. A única
certeza é que foi gradativamente aumentando e hoje conserva os 40 farricocos.
83
Ver programação – ANEXO D e E
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69
Os farricocos e os acompanhantes partem da Igreja da Boa Morte em direção
à Igreja do Rosário, que simboliza o cenáculo, local onde realizou - se a Santa Ceia
do Senhor. Na Igreja do Rosário, param e encenam a procura por Jesus. Nesse
instante, há um pequeno diálogo entre o dono do cenáculo (o hospedeiro) e os
farricocos:
- A quem procurais?
- A Jesus de Nazaré.
- Por que o procurais?
- Porque Ele é um falso profeta e se diz nosso Rei.
- Um falso profeta? Mas não esteve Ele entre vós, curando os enfermos,
dando vista aos cegos, ressuscitando os mortos e com seus
ensinamentos guiando vossos passos pelos caminhos da vida?
- Mas Ele blasfemou, dizendo-se Filho de Deus e Rei de todos nós.
- Mas o seu reino não é deste mundo, é de um reino que está para vir,
um reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de
justiça, amor e paz.
- Mas onde está Jesus de Nazaré?
- Eu o sei! Andem pelas ruas e procurem-no entre os simples, entre os
puros de coração, e entre os homens que o ouviram e descobrirão
talvez um verdadeiro profeta, quem sabe o Filho de Deus
84
Depois desse diálogo são entoadas músicas de estilo barroco local: Os
Motetes dos Passos, que são do século XIX, e em seguida continuam o trajeto,
iluminados apenas pelas tochas, para a Igreja de São Francisco, que representa o
Monte das Oliveiras, onde é feita a prisão de Cristo. Ao toque de clarins e tambores,
um dos farricocos levanta o estandarte de linho no qual o corpo açoitado de Cristo foi
pintado obra de Veiga Vale. Atualmente é utilizada uma plica pintada por Maria
Veiga. Nesse momento, uma música é tocada. Furtado (2000, p.27) mostra o valor
da música desde o Brasil Colônia:
A música era componente indispensável para imprimir um clima diferente,
artificial e de encantamento. A estética barroca criava um cenário
audiovisual em que o ilusório e o inesperado estavam sempre presentes;
daí o uso constante de estampidos, tambores, apitos, clarins (...). A música
se desenvolveu na colônia, (...) foram construídos teatros, onde se
apresentavam músicos locais e estrangeiros. Tamm proliferou a música
sacra, tocada nas igrejas...
84
Boletim informativo Semana Santa de Goiás.
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70
A prisão do Cristo é um dos pontos altos da procissão. Após um breve
silêncio, inicia-se a homilia do bispo, que dura aproximadamente 30min. E em
seguida, a procissão parte para a Igreja da Boa Morte, que representa o lugar do
julgamento de Cristo pelos sumos sacerdotes Caifás e Anás. Tal Igreja é a última
instância da procissão.
A realização das procissões e festas nas ruas é comum desde o período
colonial. Os espectadores escolhem, à sua maneira, o melhor lugar para assistir o
espetáculo, ocupando os espaços das ruas da cidade. A rua é pública e de todos,
sem distinção de raça, sexo e poder aquisitivo. A rua é um espaço de sociabilidade.
Silva (2000, p.46) cita Brandão e destaca a importância da rua:
As procissões, os fogos, as cores e o brilho parece que, ao longo da
história, compuseram o quadro de muitas festas populares. (...) A rua era e
ainda é um espaço de convivência muito intensa durante estes festejos e
representou bem o que Brandão sugeriu: um ilusório espetáculo de
combinação de corpos, de gestos, de vestimentas e seria um local a onde
se vai e onde se transita entre os seus lugares simbolicamente definidos por
personagens, cerimônias e símbolos...
Furtado (2000, p.25) aborda que muitas festas públicas, civis ou religiosas,
culminavam ou se resumiam em procissões, que ondulavam pelas estreitas ruas
coloniais e que o trajeto destas indicava os melhores lugares da vila, ou seja, o
centro, em detrimento dos subúrbios e bairros populares.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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71
Fonte: O Popular On-line.
Na cidade do Porto, em Portugal, no século XVI e XVII, a Procissão das
Endoenças tinha itinerário circular igual ao trajeto da Procissão do Fogaréu em
Goiás. No Porto, a Procissão era realizada pela Confraria da Misericórdia. É o que
mostra Sousa (1992, p.112/3) em seu artigo sobre a Procissão,
A procissão de Quinta-Feira Santa promovida pela Misericórdia da cidade
do Porto era, porém, longa e demorada. (...) com um itinerário
propositadamente extenso, com várias paragens em diversas igrejas,
estabelecendo um percurso largamente circular que procurava promover
uma circunvalação em torno do centro da cidade, recordando as
representações dos Passos da Paixão de Jerusalém (...) a procissão
terminava geralmente de noite, pelo que era mesmo necessário transportar
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
CARNEIRO, K. C.
72
fogaréus e lanternas que a Misericórdia distribuía (...) assinalavam os
trajectos principais, os espaços em que se concentrava o comércio urbano
e em que habitavam as famílias de extracção social superior. (...) De
qualquer forma, estes cortejos pocessionais parece terem jogado um papel
fundamental na unificação do espaço urbano, valorizando seus centros
cios-econômicos, as suas vias estruturantes e os seus principais templos
religiosos, contribuindo ainda para valorizar determinadas especializações
arquitetônicas das habitações...
Nota-se, pela citação acima, que, em Porto, a procissão que representava a
Paixão de Cristo também tinha a presença dos fogaréus, mas não referência a
farricocos. O destaque da referida procissão na cidade do Porto é o seu trajeto
circular, que valoriza o centro comercial da cidade e as habitações da elite.
Em Goiáso é diferente. Como foi descrito, todo o trajeto da Procissão do
Fogaréu é circular. Ele valoriza todo o cenário da cidade histórica, as ruas estreitas
do Patrimônio da Humanidade. O roteiro da Procissão do Fogaréu circula entre os
pontos turísticos do centro da cidade, desde o ponto de partida, que é o mesmo da
chegada e todos os pontos de passagem e parada no transcorrer da caminhada,
“lugares simbolicamente definidos”. Isso faz valorizar os “seus principais templos
religiosos, contribuindo ainda para valorizar determinadas especializações
arquitetônicas das habitações(Sousa, 1992, p.113). A partida é do Museu da Boa
Morte, passando pela praça do Coreto - onde situa também o Palácio Conde dos
Arcos pela Cruz do Anhanguera, pela ponte do Rio Vermelho, pela Casa da Ponte
de Cora Coralina, sendo que a primeira parada é na Igreja do Rosário, com estilo
gótico e denominada de igreja da “Irmandade dos Pretos. A procissão parte, então,
para a Igreja São Francisco, pequena igreja, em que o teto foi pintado em estilo
barroco. O fogaréu termina museu de Arte Sacra, lugar onde iniciou.
Além dos pontos turísticos, o cortejo perpassa pelos seus centros sócios-
econômicos, as suas vias estruturantes”, ou seja, por todo o centro histórico, onde
está grande parte do comércio local: restaurantes, bares, supermercados, hotéis,
artesanatos e outros, e onde reside a maioria das famílias mais abastadas da cidade,
as famílias tradicionais, tais como: Passos Camargo, Fleury, Caiado, Castro, Ortiz de
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73
Camargo, Vellasco, Saddi, Curado, Rizzo, Veiga Jardim, Ramos Jubé, Couto e
outros - e “os fazedores do ritual que tamm fazem parte das famílias tradicionais.
Segundo Flores (1997, p.63), a cidades turísticas, “Cidade dentro da cidade” é
o sentido exato de quanto o centro histórico em Goiás tem o seu valor para: os
“fazedores do ritual” ou tutores da cultura vilaboense, famílias tradicionais,
comerciantes e turistas. Mesmo depois de tornar-se Patrimônio da Humanidade, a
cidade de Goiás parece se resumir ao centro, como se os subúrbios não fizessem
parte da cidade e nem do Patrimônio. Isso pode ser percebido não só pela paisagem
geral da cidade, mas tamm pela imagem da mídia e por muitos vilaboenses que
sentem o preconceito e o não “pertencimentoao Patrimônio da Humanidade. ... A
Cidade de Goiás merece ser vista como um todo (...) sua riqueza e valor vão muito
além do Centro Histórico. “
85
2.1.4. “O ritual dentro do Ritual”
O ritual pode ser uma festa. Segundo Burke (1989, p.204) “discutir festas é
necessariamente discutir rituais. Ritual é um termo de difícil definição; (...) ele se
referirá ao uso da ação para expressar significados, em oposição às ações mais
utilitárias e também à expressão de significados através de palavras ou imagens”.
Para a realização da Procissão do Fogaréu há um ritual, seria um “ritual dentro
do ritual”, pois é feita uma preparação com antecedência, a procissão precisa estar
em ordem. Ordem tanto no sentido de festa organizada como na questão do que
simboliza os farricocos, estes são considerados os mantenedores da ordem. Isso
pode ser confirmado por meio do rito legítimo que, conforme Canclini (1997, p.163)
85
Extraído do Jornal MOVIMENTO PRO-AGUAS VILABOENSES/ PROAVI. Ano II, n. 01, mar 2005.
Trimestral.
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74
“os ritos legítimos são os que encenam o desejo de repetição e perpetuação da
ordem”.
A celebração acontece à meia noite. Para que se realize com sucesso, há toda
uma organizão, a ordem da festa, “... o ritual assume explicitamente tal princípio
organizatório”(Da Matta, 1997, p.44), que é sempre feito pela OVAT desde a sua (re)
invenção. Os preparativos iniciavam com o ritual feito por Dona Olinda Messias
Miranda, que lavava e passava as vestimentas dos farricocos para a OVAT desde
1980. Em 2005, com seus 69 anos, deixou o trabalho por orientação médica. Disse
que só estava deixando por ser obrigada e que não havia deixado antes por amor ao
que fazia, por prazer e por tradição.
“O princípio organizatório continua, é o ritual do ensaio da procissão que
acontece na própria quarta-feira santa às 19h. O ex-presidente da OVAT, - Elder
Camargo dos Passos e o atual presidente, Héber R. Rezende Júnior, fazem a
chamada dos homens que se vestem de farricocos, depois eles conferem com cada
um qual será a cor da roupa, geralmente a mesma dos anos anteriores.
De acordo com os depoimentos, há unanimidade em frisar que nunca houve a
participação de mulheres na Procissão e que ainda hoje não participação
feminina. Em entrevista feita ao ex-presidente da OVAT, Ele argumentou que só
participam os homens para seguir a tradição, mas caso haja necessidade e, se tiver
alguma mulher interessada, não terá problema de participar, por enquanto o vê
necessidade. Diz ainda que não é por preconceito. É bom lembrar que antigamente
as mulheres eram proibidas amesmo de assistirem a procissão. depoimentos
de algumas mulheres que confessaram que, às vezes, assistiam a Procissão do
Fogaréu pelas frestas da janela do quarto.
Elder Camargo descreve os requisitos para ser farricoco:
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CARNEIRO, K. C.
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Para viver a experiência de farricoco, não muita exigência, diz Elder
Camargo de Passos, uma espécie de gerente dos preparativos da
Procissão do Fogaréu. “Mantenho uma lista dos interessados e vou
substituindo na medida da necessidade. A única condição é que a pessoa
tenha no mínimo 1,70 m de altura, que é para suportar bem a túnica”, diz.
Aí, a chance fica aberta a quem estiver atento ao único ensaio do roteiro,
realizado sempre no fim do dia da prociso. Quem falta, perde o lugar. Não
é necessário ser morador da antiga capital, mas quem é leva vantagem.
86
Percebe-se com isso o rigor do ensaio, tudo dentro da ordem, Mantenho uma
lista dos interessados e vou substituindo na medida da necessidade... A falta de um
dos componentes durante o ensaio significa a substituição dele. O ex-presidente diz
que Não é necessário ser morador da antiga capital, mas quem é leva vantagem...”
em se vestir de farricoco, só que todos os integrantes que se vestem de farricoco são
vilaboenses, alguns não residem mais em Goiás, mas todo ano vêm para participar.
A participação da maioria dos homens que se vestem de farricocos está ligada
aos sonhos de criança. Eles se envolvem na prática do espetáculo pela tradição.
Dentre os homens que se vestem de farricocos 52% têm menos de 10 anos de
participação e 48% mais de 10 anos. Muitos deles disseram que se sentem como
atores de um espetáculo, obedecem às ordens sem reclamão e se dedicam de
“corpo e alma”. Para suportar o calor provocado pela roupa e pelas tochas durante a
procissão e pés descalços, realmente tem que gostar muito do que faz. A dedicação
é tanta que um dos farricocos diz que todo ano, às vésperas da Procissão, faz
regime para emagrecer, pois assim a roupa ficará melhor em seu corpo. Além da
vaidade, respeitam o sentido do ritual.
86
Jornal O Popular. Goiânia: 07-abr-2004.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
76
2.1.5. A imagem do farricoco
A imagem do farricoco é o destaque da Procissão do Fogaréu, nem a beleza
das tochas na escuridão, nem o toque dos tambores ou do clarim, nem a
dramatização supera a marcante presença dos farricocos.
As vestimentas dos farricocos são espécie de túnicas de diversas cores, com
apenas uma branca, com faixas largas de cor bege na cintura, capuzes em forma de
cone com babado até os ombros da mesma cor da túnica. Nas cidades espanholas,
em que saem os farricocos na Semana Santa, cada cor representa uma irmandade
ou confraria, em Goiás as cores são apenas para embelezar, o m significado.
Segundo Del Priore (1994, p. 53), “Presente tamm nas procissões coloniais estava
a Coca ou o farricoco vestido de camisola preta, tendo na cabeça um capuz do
mesmo pano que lhe cobria o rosto, com dois buracos no lugar dos olhos. (...) a Coca
inspirava temor e admiração.
Fotografia: Dossiê Goiano
Os farricocos representam os soldados romanos perseguidores de Cristo, só
que os soldados romanos vestiam uma espécie de saia curta, com coletes de
armadura e escudo nas mãos. Será que, se na Procissão do Fogaréu os
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
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perseguidores vestissem como os soldados romanos chamariam tanta atenção?
Acredita-se que não, pois perderia todo o requinte. Furtado (2000, p.30) fala sobre o
vestuário, “vestir-se com pompa significa ostentar os elementos que indicavam a
importância de cada um.
Durante a dramatização da perseguição de Cristo, os farricocos são os
perseguidores, os algozes de Cristo. Na realidade a imagem do farricoco retoma
vários sentidos: dos carrascos que, na Idade Média, levavam os hereges da
inquisição ao cadafalso, e ainda, como está no folder de 2004 sobre a Procissão do
Fogaréu, “o FARRICOCO que aparece nessa manifestação é uma figura encapuzada
que antigamente conduzia a tumba da misericórdia aos irmãos falecidos. Tamm
acompanhava procissões de penitência e cortejos de execução”.
Segundo Figueiredo (1980)
87
, havia em Braga Portugal “a ronda dos
fogareos temido bando popular...” que saiam aos gritos pelas ruas trajados de
penitente, a cabeça em elmos de viseiras cerradas”, acusando todas as pessoas da
cidade por qualquer ato que tinham cometido, “roubos praticados em confrarias,
heranças descaminhadas, (...) adultérios, amores de padres e de freiras; tudo o que
se sabia, tudo o que se dizia (...) era apregoado em frente ás casas (...) Tudo se
dizia!! Era a calumnia mascarada...” O bando precedia a Procissão das Endoenças,
na Quinta-feira Santa, à noite. “Passado o bando (...) apparecia a silenciosa
procissão. Empunhando tochas, passavam os irmãos da mizericórdia cobertos com
os capuzes das suas opas negras...” Era a procissão da penitência, que é muito
semelhante com a do fogaréu em Goiás. Interessante que o nome fogaréu é dado ao
bando anterior, que era muito temido pela população, enquanto a procissão das
Endoenças era muito respeitada. “... passavam farricocos vestidos de roxo com
cordas á cinta e pés descalços, (...) chamando á penitência os que não tinham ainda
á desobriga da confissão quaresmal.” As vestimentas não eram coloridas como
87
FIGUEIREDO, Antero de. A Procissão dos Fogareos (Braga Antiga). In: Braga Antiga A Procissão
dos Fogaréus. Braga: ASPA – Associação para o Estado, Defesa e Divulgação do Patrimônio Cultural.
CÂMARA MUNICIPAL DE BRAGA, 1980.
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78
em Goiás. As cores eram negras e roxas, - cor da irmandade da misericórdia - mas a
túnica, o capuz, a corda e os pés descalços são iguais.
Diante dos trechos acima, nota-se que havia dois tipos de Procissão em
Braga, ambas consideradas das endoenças: uma era a ronda dos fogaréus e a outra,
também com tochas, havia a figura do farricoco. As procissões eram de homens
vestidos de penitentes, com túnicas. Como foi descrito também por Regina
Lacerda
88
, em Portugal, na quinta-feira santa, era a Procissão das Endoenças, que
era de Penitência e, posteriormente passou a representar a Perseguição de Cristo.
Daí a permanência dos participantes vestidos de farricocos, mudou-se o sentido da
procissão, mas não os trajes. Essas características relacionam-se com a Procissão
em Goiás, que representa a Paixão de Cristo e os participantes o os farricocos
com vestimentas de penitentes.
O vestuário de cores fortes dos farricocos, a cidade às escuras, iluminada
apenas pelas tochas, fazem com que Goiás adquira um cenário de imagem
inigualável. As luzes das câmaras fotográficas e filmadoras misturam com o fogaréu.
Muitos querem registrar tudo que se passa em um rito de rara beleza, para que não
fique apenas na memória, principalmente, dos turistas, pois, para eles, significa um
espetáculo cultural diferente de muitos que ocorrem no país e no mundo.
2.1.6. O ritual: entre o sagrado e o profano
A Procissão do Fogaréu é um ritual de caráter religioso, porém, mais
tendencioso às características profanas
89
do que às sagradas. O ritual passou a ser
88
Ver no próximo capítulo.
89
Entenda-se que a palavra profano será utilizada no sentido daquilo que não está no campo religioso
e que inclui o folclórico, o cultural e o turístico.
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79
visto como um folclore ou tradição da cidade depois de algum tempo de sua
realização. Segundo Frei Marcos
90
“a Procissão do Fogaréu pouco ou nada altera em
relação às questões religiosas, a não ser valores culturais e sociais”. Tal afirmação
mostra que, se a referida procissão não existisse nada alteraria as cerimônias
litúrgicas da Semana Santa, ou seja, não interferiria no aspecto religioso, mas
abalaria todo o valor cultural, inerente à cidade de Goiás. Frei Marcos revela, ainda
que, “o Fogaréu é o cartão-postal da Semana Santa em Goiás.”
Mesmo diante do profano, do valor cultural e da atração turística, onde fica o
sagrado em relação à Procissão do Fogaréu? Já que ela representa a Paixão de
Cristo. Um ato religioso. Como é descrito por Durkheim (2003: p.18):
... a religião (...) é um todo formado por partes; é um sistema mais ou
menos complexo de mitos, de dogmas, de ritos, de cerimônias. (...) É mais
metódico, procurar caracterizar os fenômenos elementares dos quais toda
religião resulta (...). É o caso dos que constituem matéria do folclore.
Diante do exposto por Durkheim, salienta-se que, mesmo o profano, tem o
seu aspecto religioso, então, não se deve deixar de lado o sagrado. Brandão (2004,
p.235) mostra o valor cerimonial das comemorações:
...o cerimonial do Drama da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo é
de tal sorte relido, que alguns sentidos dados aos que se comemora
parecem de fato invertidos aos olhos de uma Igreja mais conservadora.
Todo um feixe seqüente de acontecimentos de um passado da história
humana profana e religiosa (...) é rememorado (...) hoje. Pelo que significa
na história presente e entre os homens de agora.
Pinheiro (2004, p. 76) trabalha um tópico denominado “A Procissão do
Fogaréu sob o olhar dos católicos vilaboenses”. Por meio de pesquisa de campo,
entrevistou católicos vilaboenses ao saírem da missa de um domingo, dia
18/01/2004, às 10h 30min, com intuito de investigar o caráter religioso e cultural da
Procissão do Fogaréu. Foram entrevistados somente católicos e praticantes. O
resultado de sua pesquisa foi de que a maioria considera o ritual mais religioso que
90
Entrevista realizada com Frei Marcos em Goiás no dia 11/05/04.
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cultural. Mas esta maioria deve ser questionada diante dos números apresentados:
35% Religioso, 19% Cultural, 18% Religioso/ Cultural/ Folclórico, 12% Folclórico,
10% Cultural/ Religioso e 6% Religioso/ Folclórico.
91
Diante do resultado encontrado
por Pinheiro, em sua etnografia, percebe-se que apenas 35% do entrevistados
consideram o evento estritamente religioso, 34% consideram religioso juntamente
com outro aspecto, como folclórico ou cultural e 31% não consideram nada de
aspecto religioso na Procissão. Os próprios dados revelam a mistura entre o valor
sagrado e profano do ritual, não sendo, portanto, a maioria que considera
estritamente sagrado. Sem desmerecer a pesquisa da referida autora, acredita-se
que se a entrevista fosse realizada no dia da Procissão do Fogaréu, na quarta-feira
santa, com certeza o resultado seria outro, pois haveria presença de antigos
moradores da cidade, turistas e até mesmo os moradores da cidade, que em sua
maioria, vão às ruas apenas para assistir ao espetáculo. A autora também o nega
o aspecto profano, “não estamos aqui negando os aspectos folclóricos da procissão,
apenas seu caráter predominante” (Pinheiro, 2004, p.89), o que difere é fruto dos
olhares sobre o mesmo objeto.
Para os católicos praticantes, por exemplo, a é o foco principal da
procissão. Enquanto membros do clero como Frei Marcos e Frei Célio não
consideram o aspecto religioso como predominante no fogaréu. De 33 faricocos
entrevistados, 67% afirmaram que participam da Procissão do Fogaréu para manter
a Tradição da cidade, os outros 27% participam mais por gostarem do evento e 6%
declararam ser por fé, é o mínimo que posso fazer para mostrar minha gratidão a
Cristo”, afirma um dos farricocos mais velhos. Apenas 3% deles pretendem
abandonar a representão, nos próximos anos, por motivo de mudança. Os 97%,
porém, afirmaram que participarão enquanto tiverem vida. Um total de 6% deles
declararam morar fora e que vêm todo ano só para participar da tradição. Percebe-
se, claramente, como mostra a pesquisa, que os principais componentes da
Procissão participam pela tradição, ou seja, o caráter do ritual para eles é profano.
91
Fonte: PINHEIRO, A. A Dádiva no Ritual da Procissão do Fogaréu. Goiânia: Dissertação de
Mestrado da Universidade Católica de Goiás, 2004, (mimeo), p. 76.
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É o caso do vendedor Sandro Almeida Barbosa, 32, que veste a túnica do
perseguidor do Cristo 16 anos. Mesmo se dizendo “católico não
praticante”, ele enfrentou quase 300 quilômetros, percorridos de
motocicleta, entre Barra do Garças (MT) e Goiás, somente para participar
mais uma vez da prociso. “Não é bem uma coisa religiosa. Eu gosto de
estar aqui, de participar”, esclarece.
92
Como afirma um dos farricocos entrevistados, participar da Procissão do
Fogaréu é vontade de quase todo vilaboense. É o cartão-postal da cidade. É um
meio de gerar capital para a cidade.” O Estado faz questão de investir em
propaganda, em divulgar a Procissão do Fogaréu e a cidade. Isso se relaciona com o
que afirma Martins (2002, p.62), “a política de gestão da sociedade institucionalizada
em Estado e a atividade econômica, regulada primariamente pelo mercado,
pertencem também ao âmbito das relações sociais e culturais”.
Quanto ao mercado, Gos hoje é uma cidade turística pelas suas
características patrimoniais singulares. Como foi dito, os turistas comparecem em
maior quantidade quando algum evento. Nesses dias, a cidade se transforma e é
preparada para receber elevado mero de visitante. Mas, esta preparação, porém,
não é feita apenas pelos órgãos públicos, como a prefeitura, é feita também, por
várias entidades. Para Mathews (apud Martins, 2002, p.68) “a cultura particular ou
grupal é moldada e manipulada pelo Estado ou pelo mercado. Quando se refere ao
mercado, Pinheiro (2004, p.76 e 83) que afirma ser a Procissão de caráter religioso,
mas levando em consideração o aspecto profano diz que,
...é nesta dinâmica de mercado que encontramos a procissão do fogaréu.
Esta é uma mercadoria que deve ser cada vez mais polida, para ser
vendida aos turistas. (...) O recolhimento e a intensificação do sagrado, são
aspectos secundários. O importante é o mero de reservas nos hotéis, o
número de turistas, enfim, a arrecadação monetária final.
Sabe-se que hoje a organização de todo o evento é feita pela OVAT, exceto a
homilia que é de responsabilidade da Igreja. Segundo D. Eugênio,
93
as relações
entre a Igreja e a OVAT atualmente o harmoniosas, sem grandes problemas. A
92
Jornal O Popular de 10 de abril de 2004.
93
Bispo D. Eugênio em entrevista concedida à autora em 25/06/04.
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Igreja procura não interferir nas decisões relacionadas aos eventos paralitúrgicos,
que são de responsabilidade da OVAT. Qualquer alteração, porém, a mesmo
durante a homilia, a OVAT reage. É o caso do ano de 2004, em que o bispo
autorizou, que no final da homilia, fosse cantada pelo coral a música Planeta Água de
Guilherme Arantes, referente ao tema da Campanha da Fraternidade. Todos os
presentes cantaram juntos. O grupo organizador não gostou e comentou
posteriormente com o bispo. Divergências como essa são comuns em eventos
tradicionais e culturais. É o que afirma Amaral (1998, p. 36):
No Brasil, as relações entre ritual e comportamento comunicativo são
estreitas, tendo as festas, em geral, as duas finalidades. A grande maioria
delas permanece sendo de caráter religioso, embora tamm mantenham
aspectos bastante secularizados, que chegam a criar conflitos com a Igreja,
pois muitas vezes a participação popular se mais pelo aspecto turístico,
do divertimento e alegria, do que pelo aspecto religioso propriamente dito
do evento. Além disso, disputas pelo controle político e econômico da festa
também são freqüentes. Isto acontece no catolicismo popular,
intensamente praticado em cidades do interior do país.
Na década de 70 do século XX, houve um grande embate entre o presidente
da OVAT, Elder Camargo dos Passos, e o bispo da diocese, D. Tomaz Balduíno. A
OVAT não queria interferência da Igreja nos rituais preparados pela organizão.
Assim, assumiria toda parte folclórica e a Igreja ficaria responsável apenas pelas
atividades litúrgicas durante toda a Semana Santa. O presidente da OVAT afrontou o
bispo em declaração pública por meio de um artigo em jornal de circulação estadual,
que no outro dia foi respondido pelo bispo, o qual mostrou seu poder eclesiástico
diante do público leitor.
D.Tomaz
94
afirma que a tensão se deu por causa das transformações ocorridas
na Igreja, pois passou a seguir instruções do Concílio Vaticano II. A elite local o
concordava com as novas pregações dos padres e dos bispo na Igreja, que estavam
voltadas para a Teoria da Libertação, ou seja, estavam mais preocupados com as
causas sociais do que com os ritos em si. Isso preocupou a elite local, pois as
celebrações, segundo D. Tomaz, passaram a ter pé de igualdade – peão com patrão,
94
D. Tomaz Balduíno em entrevista concedida à autora em 17/06/04.
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83
daí os problemas com a OVAT. Na verdade, ficam evidentes as disputas pelo poder,
o embate discursivo entre o clero e a elite tradicional: a OVAT divulgava cada vez
mais a tradição da Semana Santa, por meio de propagandas, sempre em busca de
um elevado número de turista e a Igreja preocupava-se com as dimensões não
religiosas que estavam tomando as festividades da Semana Santa.
Em abril de 1977, D. Tomaz organizou um encontro com uma coordenação
geral para fazer revisão da Semana Santa em Goiás. Nesse encontro havia
representantes de diversos órgãos e instituições da cidade: escolas, Prefeitura,
sindicatos, quartel, OVAT e outros, foi a maneira encontrada para tentar contornar a
situação conflituosa.
O encontro
95
se desenvolveu em três momentos: 1. Levantamento de dados,
dos problemas que a Igreja e sua tradição estavam atravessando; 2. Análise dos
dados, tentando ver o porquê de tal situação; 3. Possíveis soluções.
No levantamento de dados, detectaram diversos problemas: a cidade, sendo
turística, atrai “jovens marginais”, que provocam abusos; o consumo intenso de
bebidas alcoólicas e drogas; um “falso turismo”, predatório, com clima de
libertinagem; alguns jovens transformam a Semana Santa, que é um evento religioso,
em carnaval; o povo de Goiás quase não participa, que recebe hóspedes em suas
casas; as propagandas feitas o esvaziadas de conteúdo atrativo; pouca
participação das pessoas de Goiás nas celebrações litúrgicas; as festividades
parecem ser automatizadas e vazias; a falta de unidade na programação cria
confusões. Talvez o problema principal seja o da coordenação, de modo que se
preparasse um ambiente religioso que não fosse atrativo turístico.
Após o apontamento dos dados acima, a equipe fez uma análise e em seguida
levantaram propostas para solucionar os problemas. Dentre elas, destacam-se:
conscientização da sociedade por meio programa para escolas e famílias; não insistir
na Semana Santa como elemento turístico; necessidade de uma programão
95
Extraído do Relatório de Revisão da Semana Santa da Cidade de Goiás de 1977.
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conjunta; promover uma pesquisa, para saber as impressões do povo na Semana
Santa, incluindo questões abertas sobre o que pensam da religião.
A Diocese de Goiás solicitou ao Departamento de Artes e Arquitetura da
Universidade Católica de Gos a realização de uma pesquisa sócio-religiosa com o
objetivo de descobrir as causas e as conseqüências que estariam perturbando a vida
citadina e as manifestações religiosas. A pesquisa foi realizada sob a orientação do
sociólogo professor Pedro Wilson Guimarães com a participação dos alunos da
disciplina Sociologia Urbana por ele ministrada.. Trabalharam no segundo semestre
de 1977.
96
Para a pesquisa da UCG, foram entrevistadas 447 pessoas dos diversos
setores da cidade de Goiás, das quais 50% residem mais de 11 anos na cidade e
mais de 50% são naturais desta cidade. O resultado da pesquisa mostrou que a
maioria dos entrevistados sugeriu uma Semana Santa mais religiosa do que turística.
Foi pedida maior orientação para o povo da cidade e, principalmente, para os turistas
sobre o sentido religioso da Semana Santa. Por outro lado, a necessidade de se
acabar com o comércio explorador, bebedeiras e marginais que, para muitos, estão
desvirtuando a religiosidade da festa.
Outros dados
97
, como a existência de correspondência entre fé e as
festividades da Semana Santa na Cidade de Gos, fatos positivos e negativos da
festa, tamm estão na pesquisa. A título de exemplo foi perguntado para os
entrevistados: quais os pontos positivos e negativos que chamaram a atenção
durante a Semana Santa. A maioria das respostas revelou que a Procissão, as
solenidades, as celebrações, o turismo constituem aspectos positivos. as
bagunças e as bebedeiras, desrespeito à tradição da igreja, turismo-turistas foram
apontados como aspectos negativos.
96
DIOCESE vê desvirtuamento de festa religiosa. O Popular, Goiânia, 13 dez. 1977. Cidade/ Estado.
97
Ver o questionário Sócio-Religiosa realizada pela Universidade Católica de Goiás no ano de 1977 -
ANEXO F.
Ver publicação da análise estatística da Pesquisa - ANEXO G.
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85
Em dezembro de 1977, foi feita outra reunião com as várias entidades: civis,
religiosas, sociais e culturais da cidade, as quais analisaram o resultado da pesquisa
e se conscientizaram dos resultados. Um dos grandes problemas era a Semana
Santa estar se tornando um evento turístico e não mais de e a falta de união entre
a OVAT e Igreja, que inclusive foi outro rio problema detectado.
A partir da pesquisa de 1977, que se estendeu por mais dois anos, com os
mesmos objetivos, foram tomadas algumas medidas: divisão de tarefas entre a Igreja
e a OVAT, diminuição de propagandas feitas pela OVAT sem mensagem, maior
envolvimento dos integrantes para a programão, proibição de bebidas alcoólicas e
principalmente campanha de conscientização das pessoas do valor e do verdadeiro
sentido da Semana Santa. Tudo para evitar o desvirtuamento da na Semana
Santa. Muitos problemas, contudo, persistem na atualidade, principalmente, depois
que Goiás tornou-se Patrimônio da Humanidade. Os turistas comparecem em massa
e a fica, cada vez mais, em segundo plano. As coordenações, porém, não
desistem, continuam se reunindo para distribuição das tarefas no decorrer da
Semana Santa.
De acordo com Elder Camargo dos Passos, um dos fundadores e presidente
da OVAT até 2002, em publicação no Jornal Papyrus, de abril de 1983, a Procissão
do Fogaréu foi revalorizada seus aspectos religiosos e culturais, sendo que as
atividades foram divididas, ficando as de cunho religioso com a Igreja Católica e as
encenações com a OVAT.
A questão do poder em Goiás está além da Semana Santa e da Procissão do
Fogaréu. As relações conflituosas pelo poder não são apenas com a Igreja. As
divergências, ocorrem tamm entre os moradores da cidade e os dirigentes das
entidades culturais “pelo controle do conjunto de eventos que compõem o cotidiano
da cidade, pela gestão do espaço urbano e pela definição das políticas públicas”
98
98
DELGADO, A. Op. Cit. p. 428.
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86
O próprio ex-presidente da OVAT declara que o grupo que compõe a OVAT
tem opositores, “...na cidade tem uma parte que não gosta, que acha que nós
queremos ser donos de tudo, mandar em tudo. Por que? Porque nós temos visão,
(...) organização,(...) arregaçamos as mangas e pegamos e fazemos.(...) tem os que
criticam e não realizam...”
99
Como se vê, o grupo tem consciência de que não é bem
visto por parte da sociedade e que é considerado “donos da cidade.”
A auto-gestão – prática comum em Goiás gera conflitos e prejuízos ao
Patrimônio, pois os lucros são mais pessoais do que da comunidade. o há
dúvidas de que os gestores do patrimônio são bem intencionados. Segundo Flores
(1997, p.51),
o homens que exercem certa influência no seio da população (...),
homens públicos, empresários com raízes locais, homens de cultura,
educadores, etc. São sujeitos que encaram desafios, solucionam
problemas, enfrentam opositores (...) e implantam eventos.
Porém, tais gestores, não mais ressentidos com a transferência da capital,
parecem não compreender com profundidade o sentido de patrimônio. Preservam
aquilo que a eles interessa e aquilo que pensam ser um bem de valor cultural, em
detrimento de outros bens como a capoeira, o candomblé, as igrejas protestantes, as
festas católicas dos bairros, como a famosa “festa da Ritinha” (Santa Rita de Cássia),
as festas juninas feitas nas ruas e outros. A cidade toda com seus bens imateriais
precisa ser valorizada e reconhecida.
Percebe-se, então, que a Procissão do Fogaréu contribuiu para mostrar a
existência de Goiás como uma cidade que valoriza além de seu passado, também as
suas tradições, enfim, contribuiu no resgate de uma identidade em crise, Goiás
deixou de ser conhecida como a antiga capital do Estado. Porém, para a maioria da
população a Procissão do Fogaréu tem pouco significado. Essa questão será
discutida no próximo capítulo.
99
Depoimento de Elder Camargo dos Passos. In: DELGADO, A. Op. Cit. p. 428.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
3. POLIFONIA DA CIDADE DE GOIÁS: FRAGMENTOS DA MEMÓRIA
...Não creio no Deus que está sempre
ao lado dos que acham no poder (...)
Não creio no Deus do turismo que
busca celebrações folclóricas; nem no
Deus que é mero objeto de nossas
tradições. (...)
Não creio no Deus feito de mentiras,
que abençoa organização hipócrita que
oprime, nem creio no Deus de falsa
justiça que deixa o fraco ainda mais
fraco...
100
Este capítulo tem por objetivo ouvir as várias vozes do povo de Goiás, o qual
expressará o que pensam sobre a cidade em que vivem, sobre o Patrimônio e sobre
a Festa da Procissão do Fogaréu. São vozes dissonantes que deixam transparecer o
sentimento ou ressentimento por meio dos fragmentos de suas memórias,
constituindo, desta forma, uma polifonia que, no seu conjunto, representa uma
cartografia de Goiás.
Foram realizadas entrevistas com vilaboenses de camadas sociais diferentes.
Nessas entrevistas, os informantes responderam questões que abordavam sobre
quais as vantagens e as desvantagens de se morar em uma cidade Patrimônio da
Humanidade. Como é viver em uma cidade turística e como as relações de poder
o perceptíveis na Cidade.
Flores (1997, p.10) mostra o sentido de questionamentos dos mitos, No
questionamento de mitos, apontam a historicidade da festa, mostram as linhas de
força que a constituíram, destroem sua naturalidade. Mostram num mosaico de
vozes, (...) personagens atuantes, a história sendo feita.” Os questionamentos
podem mostrar tamm ‘a historicidade’ do Patrimônio, da Cidade, com todos os
100
Parte do sermão proferido pelo Bispo D. Tomaz Balduíno, na cidade de Goiás, após a cerimônia da
cescida da Cruz, na sexta-feira santa, em abril de 1974. O sermão na íntegra está no ANEXO I.
CARTOGRAFIA DE GOIÁS:
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CARNEIRO, K. C.
88
jogos de poderes e interesses, enfim, a versão dos depoentes, “o outro lado da
história.
Antes disso, porém será descrito o tratamento que alguns autores como
Regina Lacerda e Paulo Bertran dão à Procissão do Fogaréu.
3.1. Olhares diferentes sobre o mesmo objeto: a Procissão do Fogaréu
sob a ótica de uma folclorista e de um historiador.
3.1.1. Regina Lacerda e A Procissão do Fogaréu
Em 1964, é criado no Estado de Goiás o Instituto Goiano do Folclore, mas
somente a partir de 1972 que foram feitas publicações sobre o folclore, pela “Revista
Folclórica” com tiragem trimestral.
Regina Lacerda
101
representava o Estado de Goiás nacionalmente no que se
refere às suas publicações sobre o folclore, é considerada uma grande folclorista de
Goiás. Publicou, na área de folclore, vários livros e ensaios, tais como Cerâmica
popular (1957), Papa Ceia (1968), Traços da Cultura Portuguesa em Goiás (1968),
Cadernos de folclore (1977), Cantigas e cantares (1978), Folclore brasileiro: Goiás
(1977). Regina Lacerda pode ser considerada como um dos símbolos da cultura
101
Regina Lacerda nasceu na cidade de Goiás, no dia 25 de junho de1919. Mudou-se para Goiânia
em1949. Fez curso de Orientação Educacional na Faculdade Santa Úrsula no Rio de Janeiro, curso
de Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas. Em Goiânia, formou-se ainda pela Escola de
Belas Artes da Universidade Católica de Goiás. Foi uma das criadoras do Instituto Goiano de Folclore,
foi uma das fundadoras da Escola Goiana de Belas Artes, do Conservatório Goiano de Música e da
Escola de Arquitetura da UCG. Foi grande escritora, principalmente sobre o folclore goiano. Além de
membro da Comissão Nacional do Folclore, União Brasileira de Folclore, União Brasileira de
Escritores de Goiás e da Academia Goiana de Letras. Foi agraciada com diversos prêmios. Escreveu
várias obras e faleceu em Goiânia, 14 de dezembro de 1992. (Dicionário de Folcloristas Brasileiros.)
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PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS
CARNEIRO, K. C.
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goiana, assim como Cora Coralina. Escreveu tamm sobre algumas festas goianas
como a Festa do Divino em Pirenópolis, Festa do Divino Pai Eterno em Trindade e
sobre a Procissão do Fogaréu:
O FOGARÉU
De repente
rufar de tambores.
Passos apressados
quebram o silêncio sagrado.
Profunda escuridão
na silenciosa noite
da quarta-feira.
Mil archotes ardentes
empunhados por farricocos
misteriosos, encapuzados
afastam o que era escuro.
O Fogaréu.
O povo procura um justo
com fúria, o povaréu.
Em súbita parada da grande correria
um som corta o céu.
feito prisioneiro
o homem perseguido.
O fogaréu se apaga
o povaréu se cala.
foi crucificado
Aquele que veio para redimir o mundo.
(Regina Lacerda)
No Anuário da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás de 1979/1980
Regina Lacerda escreveu um artigo sobre a Procissão do Fogaréu, ao qual analisou-
a por meio de analogias, procurando compreender as convergências e as
divergências com outras procissões semelhantes. Nesse artigo, conta que em uma
de suas viagens a Recife, no museu Franciscano de Arte Sacra, conheceu o
historiador Fernando Pio, que a presenteou com um livro: “Imagens, Arte Sacra e
Outras Histórias.”
No livro do referido historiador, a folclorista encontrou informações sobre a
Procissão do Fogaréu: sua existência em Portugal, a vinda para o Brasil, e sua
ocorrência em Pernambuco e outros locais.
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A partir da leitura do livro de Fernando Pio, Lacerda (1979/80) descreve como
era o Fogaréu em Portugal:
A Procissão dos Fogaréus, (no plural e não no singular como dizemos
nós)..., era realizada em Lisboa pelos irmãos da Santa Casa de
Misericórdia era a Procissão das endoenças. Saía no dia próprio
Quinta-feira Santa para visitar as igrejas onde estivesse o Santíssimo
exposto no “santo sepulcro”, como era costume denominar uma urna onde
o Santíssimo permanecia encerrado toda à noite para visitas e vigílias de
adoração.
A organização da Procissão em Portugal obedecia ao regulamento ou
Compromisso da Irmandade. Este regulamento explica como os tocheiros deveriam
ser conduzidos para que durante o trajeto do cortejo, as tochas não se apagassem.
Percebe-se que era, uma das famosas procissões de penitência, pois na sua
realização os fiéis usavam os mais estranhos objetos de autoflagelação. Trata
também da presença de disciplinadores para socorrer as pessoas com hemorragias,
caso precisassem, tudo isso devido ao exagero das flagelações. A disposição das
pessoas na procissão simbolizava a qual irmandade o fiel pertencia, ou seja, de qual
irmandade era a procissão, como a Irmandade de Misericórdia, que tinha sua forma
própria de sair em procissão pelas ruas. Lacerda (11979/80) mostra como era o ritual
da Irmandade de Misericórdia:
...devia sair à frente do cortejo a bandeira da Irmandade ladeada por dois
irmãos conduzindo tocheiros, tendo ainda à sua frente um homem vestindo
de azul e dois outros irmãos conduzindo varas pretas, vindo atrás, dois
clérigos cantando ladainhas.
Após esse grupo, seguiam as insígnias da paixão de Cristo, cada uma
com a mesma guarda da bandeira. Mais atrás seguiam os penitentes
flagelando-se e duas alas de irmãos com varas pretas e quarenta outros
conduzindo tocheiros. O crucifixo da Irmandade seguia por último,
transportado pelo Escrivão da mesma, assistido por quatro tocheiros. À
frente do crucifixo, antecedendo o Provedor, seguiam os capelães.
Quanto à devoção no Brasil, Regina Lacerda escreve que a primeira procissão
do fogaréu no Brasil foi num povoado na Bahia, o qual existia desde 1618. Depois
identificou-se outra na Paraíba em 1726. Supõe-se que existia tamm no Recife. A
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91
autora faz citação do Pe Fernando Cardin: “A procissão foi devotíssima com muitos
fachos e fogos, disciplinando-se a maior parte dos índios que dão em si
cruelmente”.
102
Era a procissão de penitência, os índios se autoflagelavam.
Primeiramente, percebe-se que o objetivo da devoção era de penitência,
depois passou a ter outro sentido, que seria a representação da procura de Jesus
pelos judeus armados de varapaus, sob a luz dos archotes, guiados pela figura de
Judas, conforme Mario Sette, citado por Fernando Pio” (Lacerda, 1979/80).
Regina Lacerda (1979/80) destaca que a Procissão, em Recife, foi extinta
com a chegada de um novo bispo:
O aspecto da procissão era, (...) considerado na Corte como verdadeiro e
quase alucinante desfile de penitência, mais tarde desvirtuada, tornando-se
um misto de lúgubre na organização como grotesca na execução.” Nesse
desvirtuamento, chegando a verdadeiro desvairio, os grupos entrando e
saindo apressadamente das igrejas, o que era devoção foi-se degenerando
em farras, bebedeiras e desatinos até que, de acordo com informações de
antigos moradores de Olinda, um bispo recém-chegado ali, desconhecendo
talvez a tradição popular e assustado com o fato tão inusitado, expulsa a
turba do templo onde oficiava as endoenças, terminando assim com os
“Fogaréus” em Recife.
Lacerda (1979/80) descreve, enfim, a Procissão do Fogaréu na Antiga Vila
Boa de Gos e compara-a com a de Recife. Diz que não há notícias da data do
início do evento religioso e cultural e nem que tenha sido de penitência. Abaixo,
serão descritos alguns registros importantes apontados por Lacerda sobre a
Procissão do Fogaréu em Goiás:
o se tem notícia de que em algum momento tenha sido organizada pela
igreja, dentro de rituais litúrgicos, ou por alguma irmandade. Nem a
Irmandade dos Passos tem registro de tal obrigação. “Foi encontrada nota
de pagamento de farricocos, talvez por participação em outras procissões
de obrigação da Irmandade.
102
A autora não apresenta as referências bibliográficas de tal citação.
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Representa a busca e a prisão de Cristo;
Na representação, não existe o Judas à frente e sim os farricocos,
encarregados de manter a ordem. Um traz um chicote, outro um clarim e o
restante as tochas;
Hoje, os tocheiros, de fabricação artesanal, utilizam óleo diesel, antes de
1967 usavam “archotes” de cera de abelha;
Sai na quarta-feira e não na quinta-feira santa;
Antigamente as mulheres não podiam assistir.
A autora mostra, também, como é realizada atualmente a Procissão do
Fogaréu, na quarta-feira, evidenciando todo o seu trajeto e como é feita encenação.
Conclui seu artigo, dando mais informões sobre a Procissão do Fogaréu em Goiás:
Assemelha-se a uma torrente que escorre como larva incandescente
pelas vias estreitas em declive, espraia-se em pequenas praças, comprime-
se nas passagens apertadas das pontes, sempre acelerada, ao som do
tambor, um tanto lúgubres.
Graças à divulgação que tem sido feita pelos diversos meios de
comunicação, esta devoção vem se transformando em mais uma atração
lamentável, pois assim corre o risco de ter o mesmo fim da de Olinda em
Pernambuco (Lacerda, 1979/1980).
3.1.2. Paulo Bertran e A Procissão do Fogaréu
Paulo Bertran é historiador e escritor goiano, se autodenomina o único escritor
do Planalto Central que vive do que escreve, não é professor. Escreveu várias obras,
entre elas: Formação Econômica de Goiás (1978), Uma Introdução à História
Econômica do Centro-Oeste do Brasil (1988), História da Terra e do Homem no
Planalto Central (1994), Notícias Geral da Capitania de Goiás em 1783 (1997), e
outros.
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93
Bertran faz parte dos entrevistados selecionados para o Dossiê Goiano
103
. No
roteiro das entrevistas, a pergunta de nº. 12 é: Quais os acontecimentos mais
importantes da cidade durante o ano? (festas, feiras, festivais, etc.)”
Paulo Bertran falou, em sua resposta, sobre diversas festas, mas considera
como principal festividade em Goiás a Semana Santa, que tem uma das mais
expressivas procissões, a Procissão do Fogaréu. Acrescenta ainda, que a Procissão
do Fogaréu teve origem quando o padre Perestrello, natural da Ilha da Madeira veio
para a Capitania de Goiás com grandes poderes para instalar um bispado na região,
onde encontra um grupo muito bem articulado com o poder local (principalmente os
descendentes do fundador da Capitania, Bartolomeu Bueno da Silva). Assim, a
mara dos Vereadores comprou uma briga com o bispo, conseguindo que dois
médicos locais atestassem a insanidade mental do bispo. Este atestado afirmava que
o bispo variava de acordo com as fases da lua, sendo, portanto, um lunático (teoria
em voga na época), incapaz para exercer a função a que fora designado. Expulsam
o bispo da cidade. Ele se refugiou em Pirenópolis (cidade que tem uma longa
tradição de rivalidade com Goiás). De escreveu para São Paulo pedindo
orientação e esta chegou juntamente com um destacamento militar. Concederam-lhe
amplos poderes a fim de instalar uma inquisição na cidade de Goiás. Mais de cem
pessoas foram arroladas, e destas, todos os descendentes de Bartolomeu. Na época
as pessoas mais abastadas mandavam buscar fora, em São Paulo ou na Europa,
tecidos, roupas prontas e jóias de todos os tipos, e era, principalmente, durante as
procissões que exibiam todo o fausto e luxo. O bispo, então, como punição, ordenou
que nenhum dos indiciados poderia mais vestir com fausto nas procissões, sendo
obrigados, a partir de então, trajarem-se com burel e o estamento, que nada mais é
que o traje até hoje usado pelos farricocos. Duas cidades sofreram esta mesma
punição. A Cidade de Goiás e Braga em Portugal, sendo que as duas mantêm até
hoje a tradição da Procissão do fogaréu.
104
103
Dossiê – Op. Cit.
104
Dossiê Op. Cit. Inventário Nacional de Referências Culturais Entrevistas Selecionadas n.37,
Paulo Bertran,
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Diante do exposto acima por Paulo Bertran, há documentos
105
que mostram a
briga do referido bispo com a Câmara dos Vereadores. Uma carta escrita pelo
Senado, e não por vereadores, enviada ao padre Perestrello dizia que era blico o
sentimento de indignação do povo a seu respeito, pois não cumpria as obrigações
paroquiais e o tratava bem seus irmãos eclesiásticos e nem os populares. Daí o
motivo da carta, para que se lembrasse das obrigações. O padre foi advertido de que
se não aceitasse a ponderação ou seo rompesse os excessos particulares, ficaria
justificada perante Deus e Sua Magestade qualquer ação que o povo obrar.
O referido padre respondeu à carta do Senado dizendo que o provedor da
Irmandade do Senhor dos Passos, que é Ouvidor Geral, pediu-lhe licença para expor
o Santíssimo Sacramento na festa de Santa Cruz no altar ao lado do andor do
Senhor Crucificado, mas por parecer mais decente concedeu que fosse exposto na
Tribuna do Altar Mor. Tal despacho fez com que reunissem imediatamente a Câmara
e o povo, resultando daí a carta que foi enviada. Disse ainda que não lhe parecia ter
cometido perturbação alguma e que a Câmara, como representante do povo, deveria
apaziguá-lo e que não aceitaria nenhuma ponderação, ficando para Deus, para sua
Magestade e para sua Excelência Reverendíssima qualquer ação que o povo obrar.
Respondeu a todos que era um pecador diante de Deus, não um defeitor e que
sempre agradou ao povo.
Percebe-se pelo teor das cartas que a briga realmente existiu e pode ter se
estendido, gerando a expulsão do padre de Vila Boa.
A seguir será feita uma abordagem das memórias dos vilaboenses em relação
a Goiás e suas tradições.
105
Encontrei na Fundação Frei Simão Dorvi a Carta que o Senado enviou em nome do povo ao padre
João Perestrello, vigário da matriz de Goiás em 26 de abril de 1749 e a resposta do padre ao Senado
em 28 de abril de 1749.
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3.2. As Memórias: outro lado da história
Fragmentos de memórias dos vilaboenses serão narrados para mostrar o que
o povo pensa a respeito de Goiás ter se tornado Patrimônio da Humanidade e sobre
a Procissão do Fogaréu. O recurso metodológico utilizado é a entrevista, o qual
constitui uma das melhores formas para se evidenciar a história oral. De acordo
com Montenegro (1994, p.24), “A fala do entrevistado – transcrita – estabelece
campos narrativos e possibilita estudar de forma detalhada as identidades e
diferenças do mundo das memórias.”
As perguntas da entrevista foram direcionadas no sentido de colher das
lembranças, de pessoas idosas da Cidade de Goiás a experiência individual de cada
um. Houve, também, a procupação de selecionar pessoas influentes na cidade e
pessoas de pouca (ou nenhma) influência a fim de estabelec o contraponto entre as
memórias. Na memória individual es imbuída a memória coletiva, como diz
Halbwachs (1990, p.53) no trecho abaixo,
... admitamos todavia que haja, para as lembranças, duas maneiras de se
organizar e que possam ora se agrupar em torno de uma pessoa definida,
que as considere de seu ponto de vista, ora distribuir-se no interior de uma
sociedade grande ou pequena, de que elas são outras tantas imagens
parciais. Haveria então memórias individuais e, se o quisermos, memórias
coletivas. (...) De um lado, é no quadro de sua personalidade, ou de sua
vida pessoal, que viriam tomar lugar suas lembranças (...) De outra parte,
ele seria capaz, em alguns momentos, de se comportar simplesmente como
membro de um grupo que contribui para evocar e manter as lembranças
impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo...
Écléa Bosi (1987, p.23), enfatiza a importância da memória das pessoas
idosas e mostra a coerência no pensamento de Halbwachs ao afirmar que “há
momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da
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sociedade,(...):neste momento da velhice social resta-lhe uma função própria: a de
lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade.”
3.3.1. As Memórias e o Patrimônio da Humanidade
Na memória coletiva, o fato de Goiás ter se tornado Patrimônio da
Humanidade gerou sentimentos diferentes nos vilaboenses. O título fez bem para a
auto-estima de muitos cidadãos vilaboenses, em especial, para a elite intelectual e
para as famílias tradicionais, que são os mais ressentidos com a transferência da
capital. Os vilaboenses de famílias não tradicionais não sentem orgulho do título da
cidade, pelo contrário, sentem o peso de viver numa cidade turística mundialmente
reconhecida.
A maioria dos entrevistados mostra que não foi a Cidade de Goiás que se
tornou Patrimônio da Humanidade, o título é da Cidade, mas apenas o centro
histórico é preservado. Segundo eles, a periferia parece não fazer parte da Cidade:
“O centro foi mais beneficiado que a periferia, o pessoal reclama, apesar de
que moro no centro, o pessoal de fora, do João Francisco
106
e outros bairros,
reclamam que foram esquecidos, parece que a Cidade de Goiás é o centro.”
107
A
entrevistada acrescenta que, mesmo para os moradores do centro, existem
problemas pelo fato de Goiás ter se tornado Patrimônio da Humanidade, visto que
“... supermercado subiu assustadoramente, não se pode mais ir a um bar ou
restaurante com a família ou com amigos senão seu salário fica todo . (...) tudo é
para os turistas que vêm e m dinheiro”. Vários moradores da cidade já perceberam
a preferência dos comerciantes pelo turista. O centro histórico tornou-se palco para
106
João Francisco é um dos maiores bairros de Goiás, conhecido por todos os moradores. É como se
fosse um anexo a Goiás ou uma “cidade satélite” que faz parte do entorno de Goiás. Nada tem de
histórico. As casas foram e são construídas como em qualquer outra cidade, sem interferência do
IPHAN.
107
Enery S. da Silva Assis - 52 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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os turistas, é parte da cidade em que os casarios estão sempre em restauração,
boa iluminação, enfim, aparenta ter uma boa infra-estrutura. O centro da cidade é
digno, portanto, de receber o título de Patrimônio da Humanidade. Várias outras
entrevistas destacam aspectos negativos do título de Patrimônio Mundial:
Eu acho que os bairros não são Patrimônio da Humanidade, não teve
mudança nenhuma, mesmo o centro da cidade é que mudou, (...) o que
mudou muito foi às coisas se tornarem mais caras, parece que tudo
aumentou.
108
Goiás não mudou nada não, parece que a mesma coisa ou pior, (...) não
teve benfeitorias. Num a beira do Rio Vermelho
109
? Não deixaram fazer.
(...) a cidade, antiga capital do estado de Goiás, era tombada e não tinha
nada de Patrimônio da Humanidade, era a mesma coisa, não vi nada de
diferença.
110
Outros depoentes destacam que houve supervalorização de imóveis somente
no momento da notícia de Goiás ter se tornado Patrimônio:
A mudança veio acontecer mais nessa parte histórica da cidade, porque
nos bairros mais afastados a cidade continua do mesmo jeito e talvez até
pior. (...) No início houve sim até uma mudança, uma valorização maior das
coisas, dos imóveis, mas foi só ilusão, de repente caiu o preço das casas e
não vale mais nada. (...) As outras coisas passaram a ser mais caras,
pensaram que ia ter maior influência dos turistas, gente que tivesse dinheiro
para gastar na cidade, foi muito pelo contrário, porque o turista está
sumindo da cidade.
111
A seguir, serão listados alguns trechos de entrevistas que abordam questões
pertinentes em relação a Goiás – Patrimônio da Humanidade:
108
Laura Torquato da Cruz - 61 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
109
A depoente se refere à enchente do rio Vermelho que ocorreu no início do ano de 2002, que
destruí toda a margem do rio no centro da cidade, levando pontes, casas residenciais e comerciais, foi
uma verdadeira catástrofe. E ainda, pleno ano de 2005,muito que reconstruir e restaurar.
110
Olinda Messias Miranda - 69 anos – entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
111
Vanderley J. da Silva - 38 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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98
Com Goiás Patrimônio da Humanidade muita coisa mudou: os buracos das
ruas aumentaram, excesso de inflação, tudo muito caro e nada tem valor,
na época tudo valorizou demais, depois caiu tudo, voltou à estaca zero.
112
Goiás mudou completamente, principalmente na parte financeira, ficou mais
difícil e tem o desemprego.
113
Nós não estamos com a base do turismo muito boa aqui em Goiás, tá muito
pouco sabe? O Patrimônio da Humanidade é mais no centro.(...)E
precisando serviço para juventude.
114
Goiás era bom, virou um Patrimônio da Desumanidade, o é da
Humanidade, (...) eu falando assim é para ofender mesmo, aqui tinha
sossego, não tem mais, tinha respeito, não tem mais, é uma
desumanidade...
115
Os depoentes acima são unânimes em afirmar que houve aumento no custo
de vida na cidade, além de especulação imobiliária no auge do recebimento do título
e elevado número de turista em relação ao que era antes.
O que ocorreu foi um surto, uma variação brusca em vários setores: hotelaria,
restaurantes, comércio em geral e mesmo no cotidiano dos moradores da cidade.
Inicialmente parecia que tudo estava acontecendo para melhorar a cidade: casas
foram extremamente valorizadas, havia turistas pela cidade, surgiram alguns
empregos, etc. Depois de 4 anos que Goiás adquiriu o título de Patrimônio da
Humanidade, o que se vê, o que se fala e que se ouve dos moradores da cidade é
que pouco mudou na realidade. Não houve aumento na oferta de emprego e
trabalho, os jovens precisam mudar da cidade para trabalhar. Outros saem da cidade
para estudar em outros centros, que os curso oferecidos nas Faculdades locais
o poucos. Os turistas diminuíram consideravelmente e os que visitam Goiás não
consomem o suficiente para corresponder às expectativas do comerciante, além de
ter havido desvalorização dos imóveis.
112
Antonio Eustáquio Botelho - 53 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
113
Paulo Roberto de Oliveira - 54 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
114
Maria Joana Pereira - 55 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
115
Francisco Alves de Lima - 73 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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99
A população vilaboense propriamente dita o se envolve diretamente nos
assuntos relacionados ao Patrimônio, ou seja, não participa de organizações,
entidades ou instituições que zelam pela preservação do Patrimônio da Humanidade.
As pessoas que zelam da preservação o vilaboenses, mas o são considerados
“povo”. Os guardiões do patrimônio buscam meios para resolver diversos problemas,
pois são diretamente atingidos principalmente pela falta de turistas, por isso, fazem
a divulgação dos grandes eventos para atraí-los.
Delgado (2003) entrevistou Brasilete Ramos Caiado
116
, uma das principais
integrantes de várias entidades culturais em Goiás. Delgado comenta a incoerência
de seu discurso, quando ela diz que o tulo de Patrimônio da Humanidade é a
conquista de uma minoria e um trabalho da comunidade. Afinal quem é a
comunidade na visão da entrevistada? Os grupos aos quais pertence ou é um
discurso criado, falseado, garantia de poder, questiona implicitamente Delgado
(2003, p.431):
Ao historiar o “processo de Goiás Patrimônio da Humanidade”, a professora
Brasilete enfatiza que quem tem trabalho sempre é um grupo pequeno”,
citando a OVAT, a Casa de Cora, o PROLER e o IPHAN.
Contraditoriamente, em vários momentos, ela menciona que o título
pertence a “comunidade”, pois “foi um trabalho em comunidade”, e institui o
discurso que costuma repetir na mídia: “todos têm participação e todos se
consideram pai ou mãe da história.”
As entidades culturais em Goiás dominam o campo do Patrimônio na cidade
tornando, segundo Le Goff (1984, p.46) “um instrumento e um objetivo do poder”. Os
“lugares da memória” são controlados por alguns agentes, que, por variadas
estratégias, “produzem determinada interpretão do passado a partir da imposição
dos signos que pretensamente representam a memória coletiva” (Delgado, 2003,
p.432).
116
Brasilete Ramos Caiado concedeu entrevista à Andréa Delgado em 16/11/2001.
Brasilete veio a falecer em 2003.
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100
3.3.2. As memórias da Procissão do Fogaréu
Neste ano de 2005 foi feita uma propaganda da Procissão do Fogaréu na
Rede Globo de televisão, a cada hora do dia é feita uma chamada despertando
turistas para o evento, uma forma muito interessante de convite: no som dos
tambores aparece apenas a imagem da tocheira com uma fala, transmitindo a hora,
o dia, o local do evento e a mensagem: “Não deixe apagar a chama dessa história”.
Assim convida as pessoas a participarem de uma cerimônia que tem tradição, tem
história e para que isso se conserve e fique na memória é preciso a presença de
cada um.
Segundo De Decca (1992) a memória coletiva também se encontra
resguardada em lugares não tão nítidos, preservada por meio de rituais e
celebrações. A produção dos “lugares da memória” é feita pela impossibilidade da
memória espontânea, daí grupos e minorias formarem seus próprios arquivos,
preservando-os por meio de organização das celebrações e dos rituais.
A Procissão do Fogaréu é um lugar da memória”. A OVAT faz do ritual um
“lugar da memória”, uma vez que produziu seus próprios arquivos, registros e
histórias. Para Pollak (1989, p.10) a produção de arquivos é o enquadramento da
memória”, é a memória coletiva imposta, construída pelo discurso do grupo, o
“trabalho de enquadramento da memória tem seus atores profissionalizados,
profissionais da história das diferentes organizões de que são membros...
Os membros da OVAT constroem o “discurso oficial. Prova disso é que a fala
é a mesma entre os seus membros, contam a mesma história sobre a origem da
Procissão. A comunidade reproduz o “discurso oficial”, mas existem tamm vozes
dissonantes a este discurso.são as vozes silenciadas. Não atrapalham o discurso
monopolizado, “oficial” porque são maioria. Alguns preferem deixar os fatos como
estão. Outros por comodismo ou por falta de interesse às tradições locais são alheios
aos eventos. Outros, ainda, por receio, medo de perseguições, dizem que preferem
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101
não ir contra aos “manda-chuvas”, pois podem prejudicar suas vidas na cidade. Para
Le Goff (1994, p.426), “os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores
desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. O silenciamento, em
Goiás, é, então, produto dos mecanismos de manipulação da memória coletiva.
A OVAT pouco divulga para a comunidade local o que a Procissão representa,
que a maioria desconhece seu significado. Em entrevistas feitas com os
moradores da Cidade de Goiás foi perguntado: O que representa a Procissão do
Fogaréu? O que ela dramatiza? As respostas foram variadas, mas quase todas
mostram que os vilaboenses desconhecem o verdadeiro sentido.
Quando foi perguntado para uma das entrevistadas o que representa a
Procissão do Fogaréu, ela respondeu: Uai, eu não tô sabendo responder.”
117
A
depoente ficou constrangida, porque assistia a procissão todo ano e não sabia o que
ela representa. Fato interessante em relação a essa entrevistada é que ele disse que
daria entrevista se não fosse identificada, pois sendo moradora da cidade desde
que nasceu, todos dali a conheciam, então, contaria o que sabia, mas sem que as
pessoas soubessem quem era ela. Contou que recentemente foi entrevistada por
uma moça, quando viu que tudo que disse tinha sido gravado pediu que “por favor”
não a identificasse, porque tinha medo, pois é amiga de todas as pessoas da cidade
e não queria problemas e nem inimizade com “o pessoal” que organiza tudo na
cidade. Depois de passar estas informações ela autorizou ligar o gravador para fazer
a entrevista. Ao perguntá-la se em Goiás existem pessoas que são beneficiadas com
os eventos que acontecem todo ano, como a Procissão do Fogaréu na Semana
Santa, o FICA e outros, a depoente respondeu: “Eu acho, vou falar baixinho, são os
comerciantes, os donos de pousadas, restaurantes”. Ao dizer que ia falar baixinho,
olhou para o rumo da porta da sala, pois poderia estar passando alguém,
principalmente uma dona de restaurante, que passa a pela calçada de sua porta
todos os dias e se ouvisse não ficaria bem para ela, que era uma pessoa querida por
todos. Disse que a importância da Procissão para a cidade era pelo fato de atrair
117
Dona Maria nome fictício não quis ser identificada 70 anos entrevista feita pela autora dia
07/01/05.
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102
turistas e render muito dinheiro, só que a renda era para poucos. Ao terminar a
entrevista disse que tinha falado demais, ainda bem que não seria colocado o nome
dela.
Outra depoente declarou: Eu o gosto [da Procissão do Fogaréu], tenho
medo, parece aqueles KU KLUX KLAN.
118
Completou sua fala, dizendo que se
realmente a Procissão do Fogaréu fosse a perseguição de Cristo seria algo mais
ameno. Para ela, a Procissão tinha um significado próprio, os farricocos são iguais
aos Ku Klux Klan. Na realidade, a única coisa em que os farricocos se assemelham
aos Ku Klux Klan é na forma de se vestirem ou talvez pelo fato de causarem nico
nas pessoas, como é o caso da entrevistada. “...aqueles tambores horrorosos,
aquele povo com aquelas coisas horrorosas [as vestimentas], eu acho horrível, tenho
medo daquilo.” Ao perguntá-la sobre a importância da Procissão do Fogaréu para a
Cidade de Goiás, ela respondeu que “... o negócio é só comercial (...) porque religião
mesmo, acho que ninguém vai por religião o.” Segundo Montenegro (1994, p.20)
“a memória coletiva ou individual, ao reelaborar o real, adquire uma dimensão
centrada em uma construção imaginária e nos efeitos que essa representação
provoca social ou individualmente.”
Outros entrevistados, tamm, mostraram não ter clareza do significado da
Procissão do Fogaréu:
O Sr. Paulo Roberto afirmou: “Pra mim ela num significa nada, porque nos
meus estudos da Bíblia (...) não tem significado nenhum.”
119
O depoente não
consegue entender onde es a semelhança da Procissão do Fogaréu com a
passagem bíblica da Paixão de Cristo. Isto mostra a falta de esclarecimento da
relação entre o evento e o fato bíblico para a população local, o depoente
demonstrou ter um certo conhecimento da Bíblia sobre a Paixão de Cristo, mas não
118
KU KLUX KLAN - Organização Terrorista Secreta Norte-Americana. Vestem-se idênticos aos
farricocos.
Entrevistada: Enery S. da Silva Assis - 52 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
119
Paulo Roberto de Oliveira - 54 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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sentido na existência dos farricocos. Ele acrescenta que Cristo deveria ser preso
por soldados e conclui:“Pode até ser uma atração turística”.
Outra disse: Eu não sei, porque é uma bagunça, tem muita gente de fora e a
maioria vem é pra beber e fazer farra.”
120
Ao dar esta resposta, a depoente completou
dizendo que isso não era bom para a cidade, embora existam os beneficiados,
“porque tem umas ‘panelinhas’, eles que têm as vantagens.” Ela se referiu aos
organizadores dos eventos, ou seja, a OVAT, não deixou claro, mas ficou implícito na
sua fala.
D. Valdice, uma depoente, afirmou que a procissão “é comovente.”
121
Ela
deixou transparecer que preferia o falar, mas que sabia muita coisa. Disse que a
Procissão do Fogaréu para ela era cultural e que respeitava, apesar de o saber o
seu significado. Sabe que é muito bom para a cidade este tipo de evento: “é bom
para alegria de todos, todos que estão na cidade sente bem”. Coloca também que “é
um chama de pessoal para a cidade”, mas existem alguns que levam mais
vantagens: “tem uma turma aí, do centro por exemplo, a equipe é grande, assim o
nome deles no geral eu não sei explicar.”
D. Maria Joana, outra pessoa entrevistada, declarou que a procissão “é uma
lenda que veio de Portugal, são os Judas procurando Jesus, é mesmo um
folclore.”
122
Esta depoente tem uma certa noção do significado da procissão, entende
que é a perseguição de Cristo, mas não sabe bem quem é o perseguidor e considera
como uma lenda de Portugal e um folclore em Goiás. Sabe da importância da
Procissão do Fogaréu para a Cidade, diz que é necessária para atrair turistas, gerar
emprego e renda para a cidade. Enfatiza tamm que “alguns” lucram mais do que
outros. É importante destacar que, ao fazer denúncia, logo em seguida diz que não
deveria falar, mas continuou falando. Os entrevistados são unânimes ao falarem das
vantagens de um grupo em relação aos eventos da cidade. No caso desta depoente,
120
Ivany do Rosário Vidigal - 51 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
121
Valdice Divina das Dores - 60 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
122
Maria Joana Pereira - 55 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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ela tinha consciência de que não deveria falar, mas não ficou preocupada com o seu
depoimento:
A Procissão do Fogaréu é importante porque Goiás não tem indústria, não
tem emprego, então o que gera mais divisa, divisa que é o dinheiro é isso
sabe, vem do turismo, então, é por isso que tem que ter. (...) que tem
esse povo assim, que são da panelinha (mais uma vez o termo
“panelinha”) de turismo, mais panelinha num podia nem falar, é esse grupo
de turismo, uns beneficia mais do que os outros, sabe esse povo da
alta mesmo, nós não beneficiamos nada não.
Em outra entrevista foi dito que a Procissão do Fogaréu “é uma coisa histórica
que vem de muitos anos atrás.”
123
Este depoente se demonstrou bastante revoltado
com a existência da Procissão do Fogaréu na cidade. Contou que 16 anos parou
de participar dela. Ia todo ano na procissão e ajudava na organização durante a
realização pelas ruas, pois achava tudo muito bonito e gostava, até que um dia, na
porta do Teatro São Joaquim, queimou-se todo pelo fogo das tochas:
Problema né? As chamas derramaram em mim e me incendiaram, não sei
se foi por que quis ou se foi acidente, (...) fiquei pelado no meio da rua, eu
ia cair no Rio Vermelho, mas me pegaram, eu tava a carne viva (...)
queimadura esquisita, passei 46 dias enrolado na paia.
O depoente acrescentou que, em Goiás, “tem gente que quer ser dono da
cidade toda, tudo que vem eles é que toma conta”. Ele referiu-se aos organizadores
do evento. Interessante perceber que em momento algum na História da Procissão
do Fogaréu fala-se de algum acidente ou incêndio. O depoente fez um depoimento
trágico, contando sua própria história de maneira espontânea. É possível perceber
que o discurso do depoente foge ao discurso oficial”, pois da mesma forma que
“a memória enquadrada”, há tamm discurso sem medo, em que os autores do
discurso falam tudo que pensam, sem temor às conseqüências, pois se sentem
penalizados com as injustiças que passam no cotidiano. O depoente mostrou
constantemente que nada tinha a perder, por isso não tinha mais receio em falar:
“aqui eu tenho uma turma, que me persegue aqui, tem justiça para quem não
123
Francisco Alves de Lima - 73 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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precisa, eu queria era que fosse gravado isso era para o Goiás Urgente, Goiânia
Urgente...”
As memórias da Procissão do Fogaréu estão entrelaçadas às memórias das
festividades da Semana Santa em Goiás. Diante dos depoimentos feitos pelos
entrevistados na Cidade de Gos, percebe-se que as festividades da Semana Santa
e as procissões realizadas com caráter exclusivamente religioso estão na memória
coletiva. Quase todos os entrevistados, porém, dizem que hoje a procissão tem
caráter diferente, não é mais puramente religioso, pois a maioria dos participantes é
turista, como foi mencionado em capítulo anterior. O depoimento a seguir deixa
claro queum duplo caráter do evento: o profano e o sagrado, mas o sagrado está
em segundo plano:
A Prociso do Fogaréu pra mim ela representa a questão religiosa (...) mas
eu vejo que o turista que vem para a Cidade de Goiás na época da
Procissão do Fogaréu é por causa da mídia, da questão das tochas de
fogo, por apagarem as luzes da Cidade, uma coisa que é diferente de
qualquer outro lugar, a beleza em si.
A Procissão do Fogaréu tem que continuar como está sim, porque vem a
questão da fé, ainda tem gente que vem pra Goiás, muita gente de família
tradicional, que é coisa antiga, que vem pra Goiás pela questão da fé, da
religiosidade e por outro lado é a questão que atrai turista, que vem pra cá e
gasta (...) querendo ou não deixa dinheiro na cidade, então beneficiam
comerciantes, pessoas donas de hotéis, que alugam casas, é por aí.
124
O depoente afirma que ainda há o aspecto religioso, destaca a beleza do
ritual, o espetáculo, tochas de fogo pela escuridão da cidade. Daí o grande atrativo,
divulgado pela imprensa. Ele mostra também que prevalecem, em Goiás, pessoas
que são visitantes e não nega a importância do turismo, apesar de deixar claro que
os turistas na cidade beneficiam apenas “alguns”, como foi declarado pela maioria
dos entrevistados.
O depoimento abaixo mostra que as festividades atuais da Semana Santa têm
mais aspecto profano do que religioso e anteriormente era o contrário:
124
Vanderley J. da Silva - 38 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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De primeiro era festa religiosa, mas hoje ta acabando tudo, as procissões
não são as mesmas mais (...) Semana Santa não respeitam, os turistas vem
numa baderna, não é mais como antigamente.
Antigamente era tudo bonito demais, tinha os andores, o povo ia contente,
hoje não, acabou aquela procissão, de primeiro o povo ia mesmo ali, com
fé.
(...) era mais gente da cidade mesmo, não existia turista, vinha gente de
fora, mas era pela fé.
125
A depoente não se referia à procissão do Fogaréu, e sim às procissões que
acontecem no decorrer da Semana Santa, que eram respeitadas. A devoção
religiosa predominava, tanto é que destaca a presença dos visitantes, entretanto, sua
presença na cidade era em romaria, devoção, fé. Tais visitantes o podem ser
considerados turistas pelo fato de participarem apenas pelo ritual sagrado,, eles são
os peregrinos.
Conforme Pinheiro (2004, p.78) o peregrino é aquele que associa a
caminhada à busca de satisfação e conforto espiritual, (...) não medem sacrifícios
para acompanhar a procissão, vivenciando o sofrimento e a gratuidade de Cristo.”
Desse modo, percebe-se que a Procissão do Fogaréu atrai não só o turista, mas
também o peregrino. O que difere, então, o peregrino do turista, é a motivação e as
relações capitalistas. O primeiro busca aumentar sua santidade pessoal, obtenção de
benção e curas. Já o segundo busca o bem estar, a satisfação de lazer e o consumo.
Assim, pode-se afirmar que Goiás vive dois tempos no mesmo momento: o tempo
sagrado para os peregrinos e para os moradores de e o tempo profano para os
turistas.
126
O depoimento abaixo é de um poeta que possui deficiência degenerativa nas
pernas. A entrevista era para ser feita com sua mãe, uma senhora idosa, benzedeira,
lúcida e que ainda cuida do filho, mas ela pediu para que a entrevista fosse feita com
o filho que sabia muito. Nada a convencia de ser entrevistada, queria que fosseo
filho, falava com bastante orgulho. O entrevistado pareceu um pouco confuso diante
125
Dona Maria – nome fictício – o quis ser identificada – 70 anos – entrevista feita pela autora dia
07/01/05.
126
PINHEIRO, A. Op. Cit. p.78.
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das inúmeras leituras que faz constantemente em diversas áreas do conhecimento,
desde a matemática até aos clássicos da sociologia e da filosofia. Sua fala porém,
mostra uma certa coerência em relação à Procissão do Fogaréu. Foi perguntado a
ele se a Procissão do Fogaréu era uma festa religiosa ou atrativo para turista? Assim
ele respondeu:
Hoje, na vida do mundo capitalista tudo tem referencial de capital e todo
mundo tenta, de alguma forma, angariar somatórios de divisa. Na verdade
ela tem dois quesitos pra avaliar, o quesito religiosidade que é mantido pelo
segmento mais antigo, alguns moradores que agregam o centro da cidade e
tem o quesito da exploração financeira, que não deixa de ser uma coisa
positiva, levando sim em conta o turismo. É fundamental a exploração
econômica em cima de uma atividade que não deixa de proporcionar
emprego...
127
O depoente conseguiu estabelecer e diferenciar dois aspectos opostos e
necessários em relação à Procissão do Fogaréu. O aspecto religioso é positivo
porque suscita a das pessoas, principalmente, das mais antigas e do centro da
cidade. O aspecto profano tamm é positivo porque atrai turista, gera emprego, é
bom para o mercado, para a cidade.
Como foi possível perceber nos depoimentos, num mesmo espaço histórico,
que possui bens patrimoniais, como a tradição da Procissão do Fogaréu, convivem
discursos divergentes. Tal fato é previsível, que cada um fala do lugar social que
ocupa, de acordo com o ângulo que possui o objeto. Um dos discursos, por gozar de
maior poder, instaura-se como “história oficial”, como memória coletiva. O outro
discurso, embora seja unânime às maiorias, constitui a história extra-oficial”.
127
Divino Damaceno Almeida - 47 anos - entrevista feita pela autora dia 07/01/05.
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CONCLUSÃO
“Os arautos de 30 em Goiás
subestimaram a tradição, negaram o
passado histórico e propuseram uma
completa ruptura, acreditando que
incorporavam o novo, o moderno, em
nome do progresso.
(Chaul, 1997, p.156).
O discurso dos políticos da década de 1930 criou um imaginário sob a égide
dos ideais progressistas, de que Goiânia, que estava sendo construída para ser a
nova capital, era o símbolo da modernidade em contradição a Gos, capital até
então, que expressava a imagem do velho e do atraso. Ficou mentalizada a imagem
do contraste, porém, a realidade mostrava que não havia tanta diferença entre as
duas cidades. Goiânia foi edificada por meios considerados tradicionais, quando
foram construir (...) Goiânia, (...) estavam os carreiros, arrastando pedras, abrindo
valas, erguendo paredes, ‘fazendo comissão de frente com seus bois, trazendo,
contraditoriamente, o progresso para Gos” (Deus, 2000, p. 156). Os contrastes
permaneciam nos discursos, mas Goiânia não passaria de “capital do sertão”.
Entretanto, “Naquela altura dos acontecimentos, a maior parte dos habitantes
da velha Goiás pensava tratar-se apenas de uma jogada política de Pedro Ludovico
que o se efetivaria. Era, de fato, uma jogada, mas se efetivaria (Chaul, 1997,
p.203/04). Como se efetivou. Em 1937, a capital foi transferida para Goiânia. Em
Goiás, restou uma população traumatizada, magoada, ressentida.
Os ressentimentos, segundo Nietzsche, geram a passividade, o comodismo.
No entanto, uma minoria de vilaboenses, filhos das famílias tradicionais de Goiás,
entraram em contradição com teoria do autor supra citado, baseando-se, então, no
conceito de Max Scheler, de que o ressentimento pode criar valores. Dessa forma,
algumas cadas depois da transferência da capital, valorizar o seu passado
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histórico e suas tradições, era exatamente o que não havia em Goiânia, “era preciso
afirmar-se como uma cidade sem história, sem tradições, sem conchavos familiares.
Goiânia, como utopia, seria uma cidade sem dono, e ao mesmo tempo, propriedade
de todos” (Arrais, 2003, p.130). Já que Goiânia era uma Cidade sem Passado”, por
que não resgatar o passado da antiga capital, que era “uma Cidade com Passado”?
Inicialmente, de forma inconsciente e, com certa resistência, aos poucos algumas
pessoas da cidade foram trazendo à tona o passado de Goiás para assim alcançar
um futuro, ficando os ressentimentos atenuados.
Quanto ao passado, em 1950, começa a ser tombado pelo Patrimônio
Histórico alguns bens imóveis isolados e, na década de 70 o conjunto arquitetônico
de Gos, tornando o centro da cidade Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Neste meio tempo, uma retomada aos valores culturais da cidade, são formados
grupos da comunidade local e organizações, em prol do resgate das tradições.
Reiniciaram a Procissão do Fogaréu em novo estilo e, no mesmo ano, 1967, é criado
o Departamento de Turismo na Prefeitura. Percebe-se, então, a relação do resgate à
tradição com o turismo.
Quanto ao futuro, a ênfase às tradições, ao passado histórico é, não apenas,
no sentido de valorizar a cultura, mas principalmente como meio de atrair turistas e
reerguer a economia da cidade. Os organizadores das tradições são os mais
interessados no desenvolvimento do turismo e na renda gerada por ele, são
considerados os “donos da cidade”, herança e descendência do coronelismo em
Goiás, com seus “mandos e desmandos”, e isso envolve disputas pelo poder,
embates políticos e religiosos. Em 2001, Goiás conquistou o título de Patrimônio da
Humanidade e, juntamente com o título, uma explosão de turista. O futuro continua
sendo a esperança da “elite” vilaboense de cada vez mais retorno de lucros para a
Cidade.
A cidade tornou-se, então, um “repositório” das tradições. Inserida nesse
contexto esa Procissão do Fogaréu, uma festa com especificidades próprias, o
qual foi reorganizada pela OVAT em 1967, a procissão oscila entre o sagrado e o
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profano, expressa o aspecto religioso pela sua representação a Paixão de Cristo,
porém, maior tendência de expressar o profano devido ao modo como é
articulada, divulgada pela mídia, fato que a forma uma festa mercadorizada, com
objetivo de cada vez mais atrair turistas. A direção capitalista que prende o
pensamento dos organizadores da festa, os estrategistas, faz com que a procissão
se torne um “produto” para o consumo dos turistas que buscam a cultura como
diversão, o evento turístico-religioso é organizado, é ensaiado e realizado em torno
do centro histórico da cidade, Patrimônio da Humanidade, local dos monumentos
históricos, do comércio e dos casarios geminados das famílias abastadas da cidade.
Flores (1997, p.23) mostra o rumo que a festa toma quando intensifica a
demanda de turista, nesse aspecto a festa da Procissão do Fogaréu se assemelha à
festa
128
trabalhada pela referida autora:
...o grande afluxo de turistas que invadem, “desvirtuam” e causam uma
rie de problemas com as bebedeiras e atos de violência, percebe-se um
claro descontentamento da população local, que sente a perda de
significados das suas antigas festas, mais familiares, lugares de
rememoração, (...) uma queixa que não questiona o caráter de invenção da
tradição, mas, tão somente, a sua utilização para fins comerciais. Mas é
justamente aí que se realiza o sentido desta festa-espetáculo-mercadoria.
A confirmação do que Flores diz é visível em Goiás, em que, a maioria dos
vilaboenses, que não são beneficiados com a festa, sabem que a festa foge ao
sentido religioso e, até mesmo, do valor à tradição, pois, tornou-se um “produto”
comercial, com retorno financeiro para poucos.
Assim, os organizadores, a classe dominante, sobressaem economicamente e
elevam o nome da cidade para além da Serra Dourada. Gos, “repositório” das
tradições, o Patrimônio da Humanidade, a antiga capital é destacada. Os ressentidos
provaram que a cidade existe, que é “o berço da cultura goiana”. No presente, Goiás
128
Oktoberfest – festa realizada no mês de outubro em Santa Catarina.
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tem sua forma moderna de ser, realizando o velho sonho, dos moradores
tradicionais, de se igualar a Goiânia, a capital “moderna”. O Dossiê encaminhado à
Unesco quando da candidatura de Goiás à Patrimônio da Humanidade retrata este
aspecto de uma forma saudosista:
Assim são os Vilaboenses. Retiram do passado, da experiência coletiva
fixada no tempo, a substância primordial que funda e que organiza a
continuidade de sua singular trajetória cultural. À velocidade do tempo atual
agregam-se os ritmos locais que, como varinhas mágicas, tocam a
modernidade produzindo, como que por encantamento, a forma Vilaboense
de ser moderno. Tudo se passa como se ao rememorarem, constante e
reiteradamente o passado, pudesse, no presente, exorcizar do futuro os
imponderáveis derruidores de seu patrimônio cultural.(Dossiê Inventário
das Referências Culturais, 1999, p.30/31).
Em contradição ao que diz o doss a maioria da população vive alheia a
esses “sonhos”, ao resgate de valores culturais, sabe que não tem espaço. Seus
limites o geograficamente demarcados, no entorno do centro histórico de Gos,
ultrapassam as linhas divisórias meramente como expectadores das festas ou
consumidores no centro comercial.
Esses moradores vivem cotidianamente uma outra realidade e contam uma
”outra história”, bem diferente da Cidade que a mídia conhece: alto custo de vida,
jovens sem trabalho, bairros sem infra-estrutura adequada a uma cidade que é
Patrimônio da Humanidade, as pessoas sentem que são exploradas e assim se
tornam cada vez mais ressentidas, não mais só pela transferência da capital, agora
em relação aos grupos dominantes da cidade, os mesmos que promovem eventos e
realizam as festas ligadas às tradições da cidade.
As tradições são discutidas e avaliadas pelas vozes do povo vilaboense. A
Procissão do Fogaréu, por exemplo, é vista como mero marketing da cidade, festa de
atração turística.
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Percebe-se, na fala dos vilaboenses certa “descrença, certo
descontentamento ou revolta, a ponto de um dos entrevistados considerar Goiás
“Patrimônio da Desumanidade.”
A memória passa a ser escrita evitando assim o esquecimento e afirmando os
vários sentidos de uma mesma história, “Contra o trabalho do esquecimento, (...) o
texto (...) cartografa o espaço e desenha, a um só tempo, (...) o mapa da memória
coletiva da Cidade de Goiás, (...) que inventa o passado, o presente e o futuro da
cidade histórica e turística” (Delgado, 2003, p.474).
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ANEXOS
A
ANEXO A
1. FOTO DA IGREJA SANTA BÁRBARA
2. MUSEU DE ARTE SACRA DA BOA MORTE E PALÁCIO CONDE DOS
ARCOS
B
ANEXO B
3. FOTOS DA IGREJA SÃO FRANCISCO DE PAULA:
C
ANEXO C
4. MUSEU DAS BANDEIRAS
5. ESCRITÓRIO DO IPHAN EM GOIÁS – ANTIGA CASA DO BISPO.
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