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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A LIBERDADE
EM ESPINOSA
Wander Ferreira Rezende
NATAL
2006
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WANDER FERREIRA REZENDE
A LIBERDADE
EM ESPINOSA
Dissertação apresentada como requisito parcial
à obtenção do grau de Mestre em Filosofia,
Programa de Pós-graduação em Filosofia,
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Orientador: Prof. Dr. Markus FIGUEIRA
NATAL
2006
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“O essencial para a nossa felicidade é nossa condição íntima e dela
somos senhores.”
Epicuro
Para Cauã e Tainã.
AGRADECIMENTOS
Um estudo desta magnitude é sempre fruto da ação conjunta de muitas pessoas, que,
de formas diversas, mas guardando a mesma importância, contribuíram para se atingirem os
resultados apresentados. Nesse sentido, agradeço ao professor Markus Figueira, que, de forma
generosa e profissional, soube exercer seu papel de orientador, com sabedoria e amizade
epicuristas. Agradeço também ao professor Juan, que, em uma longínqua e significativa aula,
de forma generosa e apaixonada, soube reconhecer em mim um espinosista. Agradeço
igualmente à professora Marilena Chauí, cujos trabalhos tanto me inspiraram.
Finalmente, agradeço a todos os professores, colegas e funcionários, como também a
minha companheira, que, de alguma forma, contribuíram para essa caminhada.
RESUMO
A dissertação que apresentamos sob o título de “A liberdade em Espinosa” propõe
demonstrar, pela análise crítica das principais obras de Espinosa – em especial a ÉTICA –,
como, a partir de uma insatisfação empírica, ele retifica o conceito de liberdade. Constatando
que vivia em uma sociedade cujos humores estavam à mercê das paixões dos homens que a
constituíam e que o ordenamento dado por essas paixões dependia dos objetos destas, aos
quais os homens se uniam por amor e que, naquele momento histórico, como também
acontece hoje, essa união estava causando enormes convulsões sociais na jovem e frágil
República Holandesa, Espinosa identificou que isso ocorria pelo fato de os homens não
conhecerem o processo de formação natural dessas paixões, agindo como se fossem agentes
morais, baseados no dogma da liberdade da vontade. Assim, a partir de uma idéia adequada
que origina toda a realidade, Espinosa subverte tal concepção, demonstrando que a vontade
não é uma faculdade da alma humana que possibilita supostas decisões livres, mas que essa
palavra é um nome geral para desejos singulares determinados pelos objetos de tais desejos.
Portanto esse filósofo identifica liberdade com necessidade e diz que o segredo da liberdade
humana consiste em conhecer essa necessidade, à qual nos deveremos unir por amor, para,
assim, termos o nosso verdadeiro quinhão de Beatitude.
ABSTRACT
The essay that we introduce beneath the title of “The Freedom in Espinosa” propose to
demonstrate, by critique analysis of main Espinosa’s writings and at particular the ethics, how
beginning from one empirical dissatisfaction, he rectify the freedom concept. Espinosa
understood that was living in a society whose humour was under men passion that to establish
it, and the ordination given by these passion depended from yours objects which the men
joined by love and, that historical moment, how too at present, this union was the reason the
enormous social problem in the youth and fragile Dutch Republic. Espinosa identified this
occurs by the fact of men didn’t understand the natural process formation of these passion,
acting as if they were a moral agent, basing in the freedom dogma his will. Thus, at the
beginning one adequate idea which had been originate everything Espinosa subvert such
conception, demonstrating that the will isn’t a one faculty of human soul that it makes
possible supposed free decision but, this word is a general name for singulares desires
determinate by objects from such desires. Therefore, this philosopher identifies freedom with
necessity and say the freedom human secret consist on to know this necessity, which we must
joined by love so as to we will have our honest portion of freedom beatitud.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
1 CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS................................................................................12
2 ANÁLISE DO TRATADO DA REFORMA DO ENTENDIMENTO.............................24
2.1 Crítica aos modos do entendimento......................................................................28
2.2 Definição da idéia vera.........................................................................................30
3 DA SUBSTÂNCIA ...........................................................................................................39
3.1 Da ordem ..............................................................................................................45
3.2 Da imagem............................................................................................................50
4 DA ALMA.........................................................................................................................52
4.1 Dos corpos............................................................................................................56
4.2 Das idéias..............................................................................................................60
5 DAS AFECÇÕES..............................................................................................................65
5.1 Da potência das afecções......................................................................................69
6 DA LIBERDADE..............................................................................................................77
6.1 Da liberdade do corpo...........................................................................................77
6.2 Da liberdade da alma............................................................................................80
7 CONCLUSÃO...................................................................................................................83
8 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................86
8
INTRODUÇÃO
Suspeita-se que a filosofia nasça do espanto, do susto e do medo que o homem tem
quando constata a incongruência entre os “fatos” e os discursos que tentam explicá-los.
Portanto a filosofia seria filha de um sentimento de perplexidade proveniente da dúvida que
ocorre entre o hiato do ser e a tradução desse hiato na forma de pensamento/linguagem. Sendo
assim, a filosofia é, em essência, paradoxalmente, certeza de que há algo, a priori, que não
pode ser dito, e o ente que filosofa é um ser construído sobre os alicerces da dúvida.
Ora, nesse sentido, o homem, por uma questão de existência, procura dirimir a
incerteza, tentando dar um certo grau de veracidade ao seu discurso, no sentido de que
detenha um mínimo de segurança, mas, de antemão, já sabe que essa segurança será sempre
frágil. Parece que o filosofar é um adentrar em um espaço vazio cujos limites estão para além
das possibilidades do intelecto humano. Mas, o que nos apresenta como paradoxal, pode ser o
início de uma primeira certeza indubitável, pois, se temos a evidência efetiva do filosofar
podemos concluir que o espaço não é tão vazio e ilimitado assim, e que ele é condição de
possibilidade daquele, e essa condição o compreende, já que um só se desenvolve em função
da possibilidade da existência do outro, pois que a filosofia só pode abrir espaços no espaço.
Ora, a intuição dessa verdade se faz no tempo, que é outra palavra para o espaço, e tempo
pode acumular-se na memória, que é história, ou seja, o desenvolver, muitas vezes
idiossincrático, do filosofar.
Espinosa é um sujeito moderno, fruto do seu tempo e, como tal, vive a angústia e a
melancolia filosófica dessa condição, tal como assinalou Marsilio Ficino, na villa Carregi, em
suas leituras de Platão a Cosimo de Medici
1
. O tempo e o espaço de Espinosa são cheios de
vicissitudes de toda ordem, pois estamos nos umbrais de uma nova era, que é a modernidade.
Ser um sujeito moderno significa posicionar-se como agente de um empreendimento em que o
explicitar da dúvida filosófica é uma construção no espaço, como o compreende o homem
renascentista, mas e sobretudo, e aqui está a grande subversão espinosana, com o
reconhecimento de que o filosofar só tem significado real se for ele mesmo o próprio real.
1
Em 1439 Cosimo de Medici, o chefe da família Medici, consegue atrair para Florença um grande concílio
ecumênico que tinha como objetivo terminar com as tensões entre as igrejas Católica e Ortodoxa e unir os
Cristãos contra os Turcos Otomanos. Esse evento foi significativo já que os membros do concílio vindos do
Oriente traziam, em sua bagagem, toda a riqueza da cultura grega, que durante séculos fora preservada em
Constantinopla. Em função disso, em breve, Florença tornou-se o centro do humanismo e experimenta o viscejar
da língua, da literatura e principalmente da filosofia dos gregos, especialmente Platão. De posse desse material
Cosimo funda em 1459 a Academia Platônica e coloca em sua direção o filósofo Marsilio Ficino. Rose-Marie e
Rainer Hapen. Os segredos das Obras-Primas da Pintura.
9
Se o homem renascentista já havia reconhecido a natureza e buscado explicitá-la em
suas artes, expressando-a na beleza dos seus detalhes, resta ao homem moderno construir
agora a metáfora moderna da odisséia, que é o voltar-se para casa, o refletir-se na natureza,
reconhecendo-se como parte dela. Mas, em se tratando de dúvida filosófica, em Espinosa,
essa metáfora é duplamente paradoxal, já que ela tem que ser não só a tradução literal do real
como também esse mesmo real; é uma metáfora literalmente denotativa.
Espinosa, pela sua circunstância temporal, constrói sua metáfora barrocamente: linhas,
que são proposições, são abruptamente entrecortadas, criando tensões, e há uma onipresença
de espaços vazios que se chocam entre definições e axiomas em um rebuscado jogo de
volumes assimétricos supostamente geométricos, de seus corolários decorativos, os quais
serão preenchidos e resolvidos na unidade singular de seu pensamento. Por fim, esse filósofo
demonstra o que Nicolau de Cusa sugerira: que, no absoluto, na eternidade, ocorre a
identificação dos contrários, ou seja, tirando-se toda grandeza, o máximo e o mínimo se
identificam, pois, nesse instante, todo ente é um centro de ação singular, em consonância com
a necessidade
2
, e isso faculta um assenhorar-se de sua ação, já que se reconhece como uma
parte da potência infinita e, como parte dessa potência, pode transformar toda paixão em ação
livre, pois se torna o princípio dela. Sendo o centro da ação, pode irradiar certezas, pela
adequação de suas idéias, pertinente a sua finitude, dentro da infinitude imanente do real.
Assim, pode entender-se o homem como um silêncio ou um momento na eternidade e
que em sua ação de sempre traduz essa necessidade em Liberdade, pois esta é tradução
mesma de sua essencialidade, enquanto desejo de existência. A tradução de Espinosa, ou seja,
sua Liberdade, é feita em um manancial rico de várias influências filosóficas, das quais
podemos citar algumas, como o neoplatonismo renascentista de Nicolau de Cusa e Giordano
Bruno e seu heróico furor
3
; o epicurismo, em relação à obtenção de uma eudemonia, pela
ratificação do prazer no esposamento do corpo; a identificação da razão universal dos estóicos
com a imanência das idéias adequadas na substância única; como também a presença de um
certo conhecimento salvífico, que nos identificaria, dentro do limite humano, com Deus
como, de certa forma, é apresentado pelo pensamento gnóstico
4
; e ainda podemos sentir um
2
A Douta Ignorância. Cusa Nicolau de.
3
Giordano Bruno defende que a elevação cognoscitiva nos leva à identificação com o todo uno plotiniano, que
seria uma forma de “divinização”, que é furor de amor, desejo de ser uma só coisa com o objeto desejado.
Giordano Bruno. Dos heróicos furores.
4
Gnosis, termo grego que designa “conhecimento” ou “ciência”. Pensamento gnósticos são as várias doutrinas
sectárias no interior do Cristianismo que se traduz pela convicção de que a dinâmica do ser coincide com a
dinâmica própria do pensamento humano. Para os gnósticos, a reprodução mental do “fazer-se da realidade ou
do Cosmos” constitui a única forma de ligação da energia interior a toda a natureza, que tudo faz tender para a
reconversão ao que está na sua verdadeira origem e pela qual se podem superar todas as forças tendentes à
10
resguardo do aristotelismo judaico e árabe e da filosofia moderna de Descartes. Assim,
podemos perceber a riqueza da filosofia de Espinosa e a sua singularidade, já que ele
consegue fazer uma síntese sui generis de tão amplos pensamentos.
Essa síntese é feita de forma radical, pois o filósofo percebe que só há uma resposta
para todas as dúvidas, ou seja, a resposta que explicite a existência em sua totalidade. A
palavra “existência” é a chave da filosofia de Espinosa, já que ele entende que ela traduz de
forma ontológica a idéia de uma certeza evidente. Ora, se há um conhecimento indubitável,
que é a existência, a inferência a que essa premissa nos remete é que esse conhecimento, ou
seja, essa certeza, foi feita no plano da pura horizontalidade, ou imanência; dessa forma, há
idéias no homem (e o homem é uma “fábrica” de idéias, sejam estas sentimentos como medo,
angústia, desejo) que exprimem algo que não é passível de dúvida.
Tendo-se essa certeza, fica evidente que um discurso que construa a forma de ser
dessa existência trará o máximo de liberdade ao homem, pois será uma ação pautada no
conhecimento das ordens operativas da existência, às quais, pela imanência da idéia, o homem
não pode furtar-se, já que é ele uma existência, e não “a” existência. Ora se há diferença entre
uma existência e “a” existência, é lógico que esta é anterior e abarca aquela, ou seja, é causa
dela (a não ser que exista algo ou alguém que queira despoticamente dizer que é a causa dele
e do mundo, o que obviamente é um mero jogo de palavras).
Mas qual é a causa da existência de todas as existências? Ora, a causa de todas as
existências só pode ser sem causa; se não fosse assim, ela seria uma causa, e não poderia ser a
causa de todas as existências. Assim, a existência, que não se determina mas determina todas
as coisas, é autocausante, ou seja, é causa sui, causa de si; é a eternidade ou uma qualidade
absoluta que possibilita seres ou determinações.
Espinosa entende que a existência causa sui é sempre compreendida ou explicitada
nessas determinações sendo a existência condição de possibilidade delas. A liberdade é uma
determinação, ou seja, é uma afirmação de uma vontade ou desejo que, portanto, é uma idéia
e, em assim sendo, está presente no intelecto que a conhece. Assim, fica implícito que
Espinosa desconhece qualquer vontade ou desejo, que não tenha uma causa real, ou seja, seu
objeto, pois a vontade ou desejo é sempre a idéia que o intelecto afirma. Não há, portanto,
desagregação. O “conhecimento” constitui não só o meio, mas é mesmo a única forma de autêntica salvação
humana. Um tal conhecimento, embora entendido como acto mental de aplicação aos objetos, diverge da
reflexão filosófica para se ligar fundamentalmente a uma “experiência de revelação” em que a recepção da
verdade, sagrada e secreta por natureza, se dá por iluminação interior e não pela demonstração ou atividade
racional. O objeto da “Gnosis” é, em última instância Deus; na medida em que dá a conhecer Deus faz com que
o homem se conheça realmente naquilo que é e leva-o a participar na existência divina e mesmo a assimilar-se
com o ser supremo. Francisco Vieira Jordão; Sistema e interpretação em Espinosa. p. 77 e 78.
11
uma vontade abstraída da causa que a provoca e, se é possível falar de vontade ou liberdade,
enquanto um possível espaço vazio a ser preenchido por alguma coisa, pelo livre arbítrio, isso
ocorre só no plano da linguagem deslocada do real, ou seja, forçadamente substantivada, pois
quem deseja, deseja sempre algo, e nisso está explícita uma relação de dupla via. Portanto a
liberdade, compreendida como espaço do silêncio que pode ser afirmado de modo singular
por uma determinação conseqüente, é algo que só faz sentido quando em consonância com a
absoluta realidade e amplitude do objeto desejado.
O intuito desta dissertação é demonstrar, passo a passo, ou definição por definição,
axioma por axioma, proposição por proposição, como Espinosa desconstrói a idéia de Deus,
ou seja, a existência absoluta, feita pelo conhecimento imaginativo, que quase sempre se
caracteriza por uma apreensão imediata do real, o que leva à antropormofização dessa
existência, colocando nela as características humanas, tais como vontade, desejo, intelecto,
etc... Espinosa inverte tal concepção demonstrando o que pertence a cada existência. Revelar
isso significa apoderarmos-nos do funcionamento da realidade e do que é facultado ao
homem, enquanto ação livre, dentro dessa realidade necessária.
A dissertação tentará explicitar como Espinosa realiza isso, a qual consistirá em seis
partes. A primeira abordará as circunstâncias históricas que levaram esse autor a fazer de seu
pensamento uma ode à ação livre ou ética. A segunda consistirá na análise da obra Tratado da
Reforma do Entendimento, na qual ele faz a demonstração de como se obter a idéia vera,
diferenciando-a das idéias fictícias e falsas. A terceira parte tratará da análise crítica do
conceito de “substância” (Deus), que é idéia básica na filosofia de Espinosa, pois é o
conhecimento dessa idéia, que se desdobra em conseqüências necessárias postas pela sua
existência, que nos facultará a revelação do posicionamento do homem nesse desdobramento
e a sua relação necessária com essa mesma existência. A quarta parte abordará a origem e
constituição da alma humana e a quinta compreenderá o entendimento dos modos como
existências dependentes da existência necessária, ou seja, as afecções e suas potências em
relação ao modo homem. Finalmente, a sexta parte colocará, de forma específica, dentro do
que foi tratado anteriormente, a questão da liberdade, não mais como livre-arbítrio, mas como
ação necessária. Essa seqüência, a partir da substância, é a mesma ordem que segue a obra
máxima de Espinosa, a Ética, o que se justifica pelo fato de o pensamento espinosano
pretender ser genético, ou seja, de haver uma relação real entre suas definições, axiomas e
proposições e a realidade. Assim o desejo de se fazer livre torna-se sinônimo de desejo do
necessário. Entender essa equação aparentemente anacrônica é responder ao que Espinosa
compreende como liberdade humana.
12
1 CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS
Era inverno, 21 de fevereiro de 1677, um ano relativamente calmo, se contraposto aos
anteriores vivenciados na nova e frágil República das Províncias Unidas dos Países Baixos.
Fora um domingo ordinário, cuja manhã de céu acinzentado prenunciava uma ligeira garoa, a
qual se fez presente ao entardecer, quando um grupo de amigos saía da casa n° 72 do
Pavilljoensgracht, em Haia, levando um tosco e humilde caixão. Em seu interior, jazia Baruck
de Espinosa ou simplesmente Espinosa. Este havia falecido às quinze horas, quando estava
em companhia de seu amigo médico Georg Hermam Schüller, pois os Vander Spijks,
senhorios de Espinosa, haviam ido à igreja luterana, como era de costume. O cortejo fúnebre,
composto de alguns poucos coches, seguia em marcha vagarosa para a igreja nova de Haia
1
,
em Spuy, onde Espinosa foi sepultado, próximo ao túmulo de Jan de Witt
2
, sem quaisquer
sacramentos religiosos.
Espinosa nascera em Amsterdã, em 24 de novembro de 1632, filho de Miguel e Hanna
Débora d´Espinosa
3
. Aos seis anos, perdeu sua mãe, vítima de tuberculose. Fez seus primeiros
estudos na escola da sinagoga Etz Aim, recebendo uma educação judaica tradicional, a qual
consistia no estudo do hebreu, das Sagradas Escrituras, do Talmude
4
, e da filosofia hebraica –
1
A igreja nova foi uma das principais igrejas protestantes construídas na Holanda (1649-56) e foi, de fato,
inteiramente nova, planejada como uma celebração da Reforma. Hoje em dia, a igreja nova é utilizada para os
mais diversos acontecimentos culturais em Haia. DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa.
2
Jan de Witt, filho de Jacob de Witt, burgomestre de Dordrecht, recebera deste uma educação esmerada, tanto
que aos 25 anos foi eleito pensionário (principal magistrado) de Dordrecht e representante dessa província nos
Estados Gerais das Províncias Unidas. Em fevereiro de 1653, esse organismo nomeou-o grande pensionário da
República. De Witt aplicou todas as suas forças nesse cargo. Assim, foi reeleito em 1658, e novamente em 1663.
Era membro do partido republicano, representante dos burgueses mercadores. Sua casa era o centro da cultura
holandesa. Ali, a poesia misturava-se à política, discutiam-se ciência e filosofia. Essa prática o tornou amigo e
leal protetor de Espinosa. A tragédia de De Witt, foi acreditar na razão em detrimento das paixões, ou seja, não
seguir a filosofia de seu amigo. No momento em que a República se tornou alvo dos ataques impiedosos do
ganancioso Luís XIV, De Witt foi visto pelo povo como causador dos infortúnios destes. Em 4 de agosto de
1672, De Witt renuncia ao cargo de grande pensionário. Seu irmão Cornelis, que com ele partilhara os
emolumentos e as responsabilidades do cargo, foi preso e torturado no dia 19 do mesmo mês. De Witt foi visitá-
lo na prisão de Gevangenport e logo se reuniu na porta uma multidão hostil aos irmãos, que, a despeito da
guarda, a qual não opôs resistência, invadiu a prisão se apossou de Jan e Cornelis, arrastou-os para fora e matou-
os a pauladas. Seus corpos foram mutilados, suas cabeças dependuradas nos postes de iluminação pública. A
República Holandesa estava morta com eles: a casa de Orange retorna ao poder e continua até hoje; pelo menos,
formalmente. DURANT, Will. A era de Luís XIV.
3
A origem de seus antepassados pode ser encontrada na cidade de Espinosa, perto de Burgos, na província
espanhola de León. Eram judeus que, provavelmente para escapar à inquisição espanhola, emigraram para
Portugal. Depois de um período de resistência em Vidigueira, perto de Beja, o avô e o pai de Espinosa mudaram-
se com a família para Nantes, na França, e dali, em 1593, para Amsterdã. O Tratado de Utrecht garantia
liberdade religiosa nas províncias unidas. Em 1628, o avô foi nomeado chefe da comunidade dos judeus
sefardins, e o pai foi por várias vezes diretor da escola judaica e presidente das instituições de assistência da
sinagoga portuguesa de Amsterdã. CARVALHO, Joaquim de. Sobre o lugar de origem dos Antepassados de
Espinosa.
4
Talmude: doutrina e jurisprudência da lei mosaica. Dicionário Aurélio.
13
especialmente Abraão Ibn Ezra
5
, o qual assinalara, entre outras coisas, a polêmica que existia
em relação a atribuir-se a Moisés a autoria de partes do Pentateuco; Maimônides
6
, que propõe
interpretações alegóricas de passagens da Bíblia, as quais, em outro sentido, seriam
incompreensíveis, e havia sugerido também algumas dúvidas sobre a imortalidade do
indivíduo e sobre a criação do mundo em face de sua eternidade; Hasdai Crescas
7
, que havia
5
Abraão Ibn Ezra – (1092-1167) – Filósofo judeu neoplatônico. Seus comentários bíblicos contêm um grande
número de excursos filosóficos de cariz panteísta. “Deus é o um; Ele fez tudo e Ele é tudo. Ele é tudo e dele vem
tudo. Ele é o um e não há ser senão apegando-se a Ele” – comentário a Gênese 1:26; Êxodo 23:21. Ezra sustenta,
outrossim, que as substâncias inteligíveis são compostas de matéria e forma – comentário a Êxodo 3:15; Daniel
11:12. Diz, ainda, que a imortalidade da alma não é mero ascenso ao mundo inteligível, porém é uma
reunificação com a alma do mundo – comentário a Gênese 25:8; Salmos 49:16. Ezra, influenciado pelo
aristotelismo islâmico, fala de um conhecimento divino, que se estende apenas à essência geral, às leis formais
dimanantes de Deus, que governa todas as substâncias, sendo o particular incluído nesse conhecimento somente
na medida em que é um elo nessa corrente de causalidade formal – comentário a Gênese 18:21. GUTTMAN,
Julius, A Filosofia do Judaísmo.
6
Moisés ben Maimônedes, Rambam – (1135 – 1204). Nasceu em Córdova, onde seu erudito pai servia como
juiz na corte rabínica. Depois de conquistada a capital almorávida pelos almôadas, em 1148, Maimônedes vai
com sua família para Fez, no norte da África. Em 1165, estabelece-se em Fostat, perto do Cairo, onde exerce a
medicina. Sua extraordinária erudição talmúdica o torna guia espiritual e chefe político dos judeus egípcios. Seu
magnum opus filosófico é o Guia dos Perplexos, de 1190, no qual Rambam afirma que o conhecimento histórico
da fé tradicional apreende seus objetos de uma maneira externa e indireta, mas o conhecimento filosófico torna
possível uma apreensão imediata dos objetos da fé. Diz também que, a partir do mundo dos sentidos, podemos
claramente inferir a existência de um mundo supra-sensível, remontando até a sua divina causa última. Para isso
exige-se não só a perfeição do intelecto, mas ainda a purgação e purificação da personalidade humana inteira, o
que facultaria o conhecimento metafísico como uma intuição das essências eternas. Rambam empenha-se em
dissociar a prova da existência de Deus da controversa questão acerca da origem temporal ou eterna do mundo.
Suas provas da existência de Deus pressupõem a eternidade do mundo, para demonstrar que, mesmo nessa
hipotética suposição, a existência de Deus é certa. Rambam parte da prova aristotélica da existência de um
primeiro motor e acrescenta o argumento dos aristotélicos árabes, no sentido de que, em si, o existir de coisas
meramente possíveis pressupõe um ser de existência absolutamente necessária. Esse conceito positivo de
existência necessária encontra-se em Avicena, segundo o qual a existência, que é, em todas as outras substâncias
uma determinação acidental acrescida à essência destas, é no caso de Deus, idêntica a sua essência. Em outro
ponto, Rambam tece uma crítica sobre os atributos de Deus, demonstrando a impossibilidade de predicar-lhe
atributos positivos, pois, na medida em que o dualismo sujeito e objeto envolve, em toda proposição, uma
pluralidade de determinações conceituais, a absoluta simplicidade do uno excluiria qualquer proposição
predicativa, já que as propriedades que atribuímos a Deus não podem ser diferentes de sua essência; se fossem, a
unificação da essência e dos atributos implicaria a pluralidade em Deus. No entanto basicamente em dois
sentidos, é impossível a definição da essência divina: no estrito, a redução do conceito, definindo suas condições,
só pode ser aplicado a um ser contingente, e Deus não o é; ao passo que uma definição que demonstra
características particulares só pode ser aplicada a uma entidade composta. Tampouco Deus é definível por sua
relação com outras coisas, já que a diferença absoluta de espécie entre a essência divina e a de todas as outras
coisas exclui qualquer comparação. Além disso, a auto-suficiência de seu ser, voltado para si próprio, elimina
qualquer relação entre Ele e as outras coisas. O único enunciado positivo que se pode fazer acerca de Deus
refere-se aos efeitos dele oriundos. Rambam lança, a despeito da impossibilidade de efetuar enunciações
positivas em relação a Deus, o alicerce para a doutrina dos atributos do atuar divino. Esse atuar multiforme das
ações divinas, de modo algum implicava a pluralidade do princípio divino ativo. Dessa forma, os vários aspectos
dos atos divinos são atributos do atuar. Assim, as expressões antropormórficas da escritura pertencem à mesma
categoria; não apenas a ira, mas o amor e a vontade são simples descrições de seu atuar. Enfim, Rambam
defende, ainda, que os relatos miraculosos da Bíblia são explicados por meio de uma exegese alegórica ou,
então, pela interpretação das histórias como experiências e fantasias da imaginação profética. GUTTMAN,
Julius. A filosofia do judaísmo, Moisés vem Maimônedes. Guia dos Perplexos.
7
Hasdai Crescas – (1340-1410) – Rabi-mor das comunidades judaicas aragonesas. Seu opus magnum foi Or
Adonai (A luz do Senhor), divulgado em 1410. Nessa obra, Crescas tece uma crítica à doutrina aristotélica sobre
o espaço e o lugar de um corpo, sendo que o espaço é o limite entre o seu conceito de infinitude. Em oposição a
Aristóteles, Crescas mantém a possibilidade do vácuo. Aristóteles não diferenciava o espaço e o lugar de um
14
atribuído uma extensão a Deus e rejeitado todas as tentativas de provar, pela razão, o livre-
arbítrio e a sobrevivência da alma; e Levi Ben Gerson
8
, que reduzira os milagres bíblicos a
razões naturais e subordinara a fé à razão.
Entre os primeiros professores de Espinosa estavam o rabi ortodoxo Saul Morteira, e o
liberal Manasseh Ben Israel
9
. Estes eram os líderes intelectuais da comunidade judaica,
corpo: o espaço seria o limite entre o continente e o conteúdo. Para Crescas, o espaço não era mera relação de
corpos, mas deveria ser anterior aos corpos. Todo corpo ocupa um lugar, que é equivalente a sua extensão. Essa
extensão consistiria na verdadeira essência do espaço. A extensão, por si, seria primordial em relação ao corpo
extenso. A partir dessa concepção, Crescas conclui que o espaço é infinito. Um limite absoluto para o espaço é
impossível, porque, além de um limite assim, deve estender-se um espaço ulterior. Crescas também não faz
objeção à tese de que a existência material estende-se infinitamente. Assim como sustentava a infinitude do
espaço, defendia também a infinitude em relação ao tempo e ao número. A assunção de um infinito não significa
que algo finito cessa, de súbito, de ser finito, depois de alcançar certa posição, e então se torna infinito, mas que
transcende todos os limites possíveis. Para Crescas, um real infinito existe, o qual, no entanto, só poderia ser
concebido como uma grandeza intérmina e que nunca poderia ser alcançada por uma extensão ilimitada do
finito. Crescas defende que a existência de um ser cuja essência coincidisse necessariamente com a existência
deveria ser assumida como a primeira causa do mundo e, em sendo causa do mundo, seria causa do todo. Sendo
assim, todos os seres derivam do necessário ser de Deus, inclusive a matéria. Assim, Deus é a causa absoluta e
única do mundo, mundo este que poderia ser eterno, já que Crescas, em contraposição a Rambam, escreve que a
causalidade voluntária e a causalidade necessária não são termos contraditórios. A essência do querer divino
precisa ser apenas uma conseqüência necessária da essência do agente querente. Com relação ao problema da
conciliação da liberdade humana com a onisciência e a onipotência de Deus, Crescas responde com a teoria da
conciliação do livre-arbítrio com a lei da causalidade. Os argumentos tradicionais em favor do livre-arbítrio são:
a possibilidade implantada na essência da vontade para escolher entre alternativas, a falta de sentido de todo
esforço humano se as ações humanas fossem predeterminadas e a impossibilidade de compreender, a partir de
um ponto de vista determinista, que ao homem foi dada uma lei divina por cuja vigilância é responsável. Contra
tudo isso, os argumentos em prol do determinismo constituem simples variações da idéia de que toda ação tem
uma causa. Crescas concorda com o indeterminismo, na medida em que aceita seus pressupostos básicos
referentes à possibilidade de eventos. Pode-se dizer que um evento é possível se for considerado simplesmente a
partir da essência do objeto particular. De conformidade com sua essência, a vontade humana pode decidir de um
modo ou de outro e, nesse sentido, é correta a caracterização da natureza da vontade humana. De maneira
similar, o fato de existirem mandamentos éticos também pressupõe que a natureza da vontade humana não
prescreve o seu modo de ação, que a escolha humana não é predeterminada. Por outro lado, o determinismo é
correto se centrarmos nossa atenção não na essência de particulares, porém nas causas que atuam sobre eles. A
vontade humana como tal tem a possibilidade de escolher entre inúmeras alternativas, mas as causas que operam
sobre a vontade determinam claramente o caminho a escolher em qualquer dado momento. Se dois homens
estivessem colocados em condições internas e externas idênticas, suas decisões seriam as mesmas. Por
comparação com as causas que determinam eventos de todos os lados, o conceito de possibilidade perde toda
validade. O fato de os atos humanos serem condicionados não invalida a recompensa do justo ou a punição do
iníquo, na medida em que ambos seguem necessariamente o comportamento dos seres humanos, assim como a
queimadura segue o contato com o fogo. A bem-aventurança eterna consiste na comunhão com Deus, que
procede necessariamente do amor a Deus. (Hasdai Crescas, Or Adonai). GUTTMAN, Julius. A Filosofia do
Judaísmo.
8
Levi ben Gerson, Gersônides – (1288-1344). Nasceu em Bagnols, sul da França. Escreveu Milkhamot Adonai
As Guerras do Senhor –, onde defende que Deus inclui dentro de si a totalidade da forma e, do mesmo modo,
está subsumida dentro do intelecto ativo a ordem das formas do mundo terrestre; portanto, o intelecto que
governa o mundo tem conhecimento da ordem celeste. Os milagres, nessa ordem, são produzidos pelo intelecto
ativo, que os incorpora na ordem imanente do mundo. Os conceitos que adquirimos no processo do pensar
possuem uma interconexão unitária, e esta, que compõe o intelecto infinito, é imortal. Levi ben Gerson Sefer
Milkhamot Adonai. GUTTMAN, Julius. A Filosofia do Judaísmo.
9
Manasseh ben Israel, nascido em La Rochele, de pais marranos, ainda na infância foi levado a Amsterdã, onde
estudou hebraico, espanhol, português, latim e inglês. Escreveu El Conciliador, no intuito de harmonizar
supostas discrepâncias na Bíblia. Manasseh era cabalista e idealista místico, conservador na política, na religião
e na moral. GUTTMAN, Julius. A Filosofia do Judaísmo.
15
mestres no Talmude e na Cabala
10
, respectivamente. Fora da escola, Espinosa estudava
matérias seculares, pois o pai desejava que cuidasse dos negócios da família.
Aos vinte anos, Espinosa entrou na escola de latim de Frans Van den Enden, que o
colocou em contato tanto com a filosofia escolástica quanto com a filosofia de Descartes,
Bacon e Hobbes, como também com a ciência moderna.
Era, então, mais do que esperado que esse espírito sensível, altivo e extremamente
inteligente começasse a questionar as interpretações bíblicas que recebera da tradição judaica.
Essas indagações, depois da morte de seu pai, em 1654, vieram a público, o que se tornou um
problema para a sinagoga, já que os chefes da comunidade judaica
11
não podiam suportar
heresias que atacassem os princípios cristãos bem como a crença judaica. Ainda repercutia na
comunidade a heresia de Uriel da Costa
12
, que fora um caso paradigmático e de grande
repercussão. Os judeus gozavam, na República Holandesa, de liberdade religiosa, que lhes era
negada em outras partes do mundo cristão; mas essa liberdade podia ser-lhes retirada se não
cumprissem o acordo que possibilitava a permanência deles. Em função disso, Saul Monteira
convoca Espinosa e lhe pede que abandone suas críticas referentes aos ensinamentos da
sinagoga, mas este se mostra convencido de que a razão está do seu lado e não retrocede.
Então, os chefes da sinagoga oferecem a Espinosa uma pensão anual de mil gulden para que
10
Cabala – Tradição mística do judaísmo à qual estão associados ensinamentos esotéricos. A religião dos judeus,
como seu caráter, sofreu com a pobreza, o confinamento e as ofensas da vida no gueto. Os rabinos, que na Idade
Média eram homens de coragem e sabedoria, tornaram-se devotos de um misticismo que fugia ao inferno das
perseguições da penúria para entrar num sonho de recompensas inefáveis. O Talmude, na Idade Média,
substituirá a Bíblia como alma do judaísmo; agora, a Cabala substituía o Talmude, tradição secreta dos místicos
medievais judeus, que acreditavam ter encontrado a revelação divina oculta no simbolismo dos números, das
letras e das palavras, sobretudo das letras que formam o nome inefável de yahueh. Dicionário Aurélio.
11
A comunidade judaica de Amsterdã havia sido constituída a partir de 1593, quando os primeiros judeus
marranos (judeus convertidos ao cristianismo à força) ali chegaram, fugindo da inquisição portuguesa. Quatro
anos depois instalaram uma sinagoga. Em 1615, as autoridades permitiram formalmente o estabelecimento de
comunidades judaicas, concedendo-lhes liberdade de culto, mas proibindo casamentos com cristãos e ataques à
religião cristã. A partir desse fato, a comunidade prosperou a ponto de se constituir como centro do comércio de
livros judaicos na Europa cristã. Obviamente, a comunidade se mantinha em um severo regime de vigilância
contra quem pervertesse a fé posta à prova por tanto sofrimento. DURANT, WILL. A era de Luís XIV.
12
Uriel da Costa – (1585-1640) filósofo e livre pensador. Nascido em uma família marrana, de pai católico
devoto e mãe secretamente judia, estudou na universidade de Coimbra e, depois de entrar para o serviço
eclesiástico, converteu sua família ao seu judaísmo, fugiu da Inquisição, instalou-se em Amsterdã para praticar
livremente sua religião e descobriu que o seu judaísmo diferia sensivelmente do judaísmo rabínico. Ele criticava
a rigidez e o ritualismo dos “fariseus de Amsterdã” e discutia a doutrina da imortalidade da alma. Em 1624, da
Costa publica Exame de Tradições Farisaicas confrontadas com a Lei Escrita e é excomungado, forçado à
retratação pública, e tem seu livro queimado. Foge, busca reconciliar-se com a comunidade judaica, em 1633,
prometendo “tornar-se um macaco entre os macacos”. Junta-se novamente à sinagoga, mas depressa recomeça a
duvidar, indagar se a lei de Moisés é realmente de origem divina e se as religiões não são invenções humanas.
Abandona os ritos judaicos e é excomungado pela segunda vez. Em 1640, une-se novamente à sinagoga,
renuncia publicamente às suas opiniões, recebe 39 chicotadas e se encolhe para ser pisoteado na porta da
sinagoga. Profundamente angustiado, redige algumas páginas de sua autobiografia e se mata, não sem antes
esperar e atirar em seu irmão que o havia denunciado. ALBIAC, Gabriel. Senão nascer e morrer. Um conflito
judaico no Amsterdão Pré-Espinosano.
16
se cale. Mas isso era impossível para um genuíno filósofo, e Espinosa responde com um
opúsculo: “Apologia para justificar a ruptura com a sinagoga”. O herem foi a resposta oficial
dos chefes da comunidade judaica, o qual fora proferido em 27 de julho de 1656. Com esse
ato, Espinosa era banido da sinagoga. A sentença assinada por Saul Morteira assim dizia:
“Excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa, ninguém deve
dirigir-lhe a palavra ou prestar-lhe qualquer serviço ou ler seus escritos ou chegar a quatro
côvados de distância dele”. Morteira comparece perante as autoridades de Amsterdã, notifica-
as das acusações e do “herem” e pede a expulsão de Espinosa da cidade.
Espinosa vai, então, para OuderKerk, aldeia próxima a Amsterdã. Em pouco tempo,
retorna, já que, por esse tempo, tinha vários admiradores e amigos fora do meio judaico.
Depois da filosofia, a amizade foi o principal suporte da vida desse filósofo, que assim
comentou:
“De todas as coisas que se acham acima de minhas forças, nada há que mais
aprecie que me ser permitida a honra de estabelecer elos de amizade com
pessoas que amam sinceramente a verdade, pois, das coisas que se acham
além de minhas forças, creio nada haver, no mundo, que possamos estimar
com tranqüilidade, salvo tais homens”. Éthica, Espinosa, p. 118.
Em 1660, Espinosa muda-se para a aldeia em Rijnsburg, perto de Leiden, onde passa a
viver com a família do colegiante
13
Herman Homan. Nessa humilde morada, o filósofo
escreveu o “Breve tratado sobre Deus, o homem e seu bem-estar”, o “Livro I da Ética”, o
opúsculo “Intellectus Emendatione”, como também, em latim, uma exposição da metafísica
de Descartes.
Após o rompimento com a comunidade judaica, Espinosa passa a ter uma vida secular
voltada para as questões político-ideológicas de seu Estado. Naqueles tempos de afirmações
exacerbadas das monarquias absolutistas, fruto da necessidade de convergência do núcleo de
poder político nas mãos dos reis, empurrados pela nova ordem econômica imposta pela
burguesia comerciante na passagem do feudalismo à modernidade, os Países Baixos
14
estão,
nesse cenário, em uma situação singular, já que, formados pela união de pequenos reinos, não
tinham uma tradição histórica de reis que tivessem poder bastante para unificar a todos. Dessa
forma, assim que se fizeram livres do jugo espanhol
15
, as sete províncias se viram em intenso
13
Colegiante – Calvinista moderado, tolerante, contrário às instituições eclesiásticas e à confissão doutrinária
codificada em dogmas e catecismo; buscava mais uma religiosidade interior.
14
Países Baixos – Reino dos Países Baixos, conhecido como Holanda. Está situado no noroeste da Europa, tem
uma superfície de 41.526km
2
. Limita-se ao norte e oeste com o mar do Norte, a leste com a Alemanha e ao sul
com a Bélgica. Foi criado pela união de sete reinos medievais entre os quais, Holanda, Zelândia e Utrecht.
Enciclopédia Mirados.
15
Jugo espanhol – Em 1519, Carlos V (I da Espanha), uniu os territórios borgonheses herdados de seu pai,
Filipe, o Belo, as coroas de Castela, Aragão e Navarra, às possessões partrimoniais da casa de Hasburgo e ao
17
debate interno, a fim de definir qual seria o paradigma a ser seguido: seriam as províncias
unidas uma nova Atenas ou Roma? por que não a tão sonhada e esperada nova Jerusalém, ou,
então, os exemplos mais recentes da República de Veneza ou a calvinista Genebra?
Formados por uma população essencialmente diversificada, nos Países Baixos havia
uma riqueza de concepções possíveis. Mas, basicamente, duas forças se contrapunham: o
partido da nobreza, tendo à frente a família Orange Nassau
16
, apoiada pelo clero calvinista
ortodoxo
17
e intolerante – chefiado por Gomar –; e o partido republicano, constituído pela
burguesia comercial e financeira, apoiada pelo clero calvinista moderado e tolerante –
chefiados por Arminius.
É nesse intenso e contraditório reino das paixões que Espinosa, talvez no intuito de se
sentir um pouco mais seguro, muda-se, em junho de 1663, para Vorburg, próximo a Haia,
onde, além de suas reflexões sobre sua opus magnun, (Ética), exercia o ofício de polidor de
lentes, do qual tirava seu sustento. Nesse ínterim, Espinosa publica anônimamente, em 1670,
o Tratado teológico-político, obra em que faz uma exegese crítico-histórica da Bíblia no
sentido de demonstrar os argumentos advindos da tradição dos judeus, povo, que, desde a
Diáspora, luta por um Estado judeu. Espinosa demonstra que o Estado judeu antigo foi
fundado sob leis advindas da imaginação de seus profetas e que deu uma resposta histórica, e
não universal.
Baseando-se nas exegeses dos filósofos judaicos anteriores, Espinosa assinala que, em
várias passagens bíblicas, repete-se a mesma história – algumas vezes com as mesmas
palavras, outras em diferentes versos, o que, no primeiro caso, sugere empréstimos de vários
manuscritos anteriores e, no segundo, deixa dúvidas sobre qual seria a verdadeira palavra de
Império Alemão. Os Países Baixos, cujo governo foi confiado a Maria da Hungria, sofreram uma forte pressão
fiscal, destinada a financiar a política imperial de Carlos V, o que provoca crescente descontentamento na
população local. Logo se expandiu o movimento protestante, como ideologia da oposição antiespanhola. Carlos
V perseguiu duramente os rebeldes e os protestantes holandeses. O ultracristão ortodoxo, Filipe II, filho de
Carlos V, exacerbou a política de ferro e fogo de seu pai. Os rebeldes se fortaleceram nas províncias marítimas e
em 1544, nomeiam Guilherme I príncipe de Orange e Nassau (o taciturno) como seu stad houder (governador de
província) da Holanda e Zelândia, que lidera o movimento de independência do jugo espanhol, o qual se faz
vitorioso em 1648, quando a Espanha reconhece a independência das Províncias Unidas, pela paz de Münster.
DURANT, Will. A era de Luís XIV.
16
Casa de Orange – Nassau, cuja origem remonta ao século VIII, no antigo condado e depois principado de
Orange, um pequeno território da Provença, no sudeste da França. No começo do século XVI, Filiberto de
Orange, fiel ao imperador Carlos V, perdeu para o rei da França as terras do principado. Para compensá-lo pela
perda, Carlos V concedeu-lhe novas possessões nos Países Baixos. Enciclopédia Mirador.
17
Clero calvinista – Segunda reforma protestante ocorrida no século XVII, que na Holanda se apresenta com a
divisão dos protestantes calvinistas em dois blocos: os ortodoxos, cujo líder foi Gomarius, e os remonstrantes,
liderados por Arminius. A cisão ocorre por divergências dogmáticas referentes à recusa dos remonstrantes em
aceitar a predestinação e a graça como dogmas, como também no plano da organização eclesiásticas da nova
igreja. CHAUÍ, Marilena. A nervura do real.
18
Deus. Havia, também, imprecisões e contradições cronológicas, de forma que tudo isso
gerava confusão nas interpretações, o que, na maioria das vezes, inspirava os teólogos em
suas irrefletidas conclusões. Os milagres narrados na Bíblia eram verdadeiras interferências
de Deus no curso da natureza. Os pecados dos homens trazem o castigo, e suas preces eram
capazes de acalmar a ira divina. Espinosa diz que tais histórias eram usadas pelos profetas
para que os gentios alcançassem, pela imaginação, uma idéia do divino capaz de submetê-los
à obediência e à devoção:
“Quando, portanto, a Bíblia diz que a terra é árida por causa dos pecados
dos homens ou que os cegos se curam pela fé, não lhe devemos dar mais
atenção do que quando diz que Deus se enfurece com os pecados dos
homens, que está triste, que se arrepende do bem que prometeu ou fez, ou
que, vendo um sinal, se lembra de algo que havia prometido; essas
expressões e outras semelhantes são lançadas poeticamente ou relatadas
segundo opiniões e preconceitos do autor. Podemos estar absolutamente
certos de que todo acontecimento verdadeiramente descrito nas escrituras
forçosamente se verificou, como tudo mais, segundo as Leis Naturais; e se
há, ali, algo escrito que se possa provar em termos estabelecidos e que
contradiz a ordem da natureza ou dela se deriva, devemos acreditar que foi
introduzido sub-repticiamente nos escritos sagrados por mãos irreligiosas;
pois o que quer que seja contrário à natureza é contrário à razão, e o que
quer que seja contrário à razão é absurdo”
18
.
Isso foi uma punhalada no corpo judaico-cristão, que jamais perdoou Espinosa, uma
verdadeira declaração de liberdade em relação aos pensamentos dos teólogos, calcados no
imaginário e na ignorância da plebe. Se a Bíblia não podia ser interpretada de forma literal,
em que sentido, ela refletia a palavra de Deus? Espinosa responde que só no modo de um
código moral para os que estavam cegos pelo pragmatismo, ou incapazes de uma apreensão
intelectual do divino, as narrativas bíblicas podem representar um benéfico auxílio à virtude
moral. Bastava a crença em “um Deus, ou seja, em um ser supremo que ama a justiça e a
caridade, e cujo culto adequado consistia, na prática da justiça e do amor ao próximo”;
19
nada
mais seria necessário.
Espinosa demonstra também a ruptura entre fé e razão:
“Entre a fé, ou teologia, e a filosofia não há relação ou afinidade. (...) A
filosofia não tem outro fim senão a verdade; a fé (...) nada procura senão a
obediência e piedade. (...) A filosofia, portanto, concede-nos maior latitude
nas meditações filosóficas permitindo-nos, sem censura, pensarmos o que
quisermos sobre qualquer aspecto, e somente condenando, como hereges e
18
Espinosa, Tratado teológico-político. Cap. VI.
19
Ibid. Cap. XIV.
19
cismáticos, os que expressam opiniões que tendem a produzir ódio, cólera e
guerra”.
20
“Isso evidencia a necessidade do Estado, enquanto expressão da liberdade
em forma de razão, manter-se no controle moderador das atividades
externas da fé. O exercício público da religião deve estar sujeito aos
cuidados da razão, que se expressa no Estado, pois, embora a religião seja
força vital para formar a moral da plebe, o Estado tem que permanecer
supremo nas questões que afetem a vida pública”.
21
Obviamente, Espinosa fala das ritualizações exteriores, e não do culto interior. Com
esse grau de agudez crítica para com a ordem estabelecida, a obra foi rechaçada pela
comunidade cristã e, em 30 de junho de 1670, o conselho da igreja de Amsterdã protestou,
junto ao Grande Pensionário da Holanda, contra a permissão da circulação de um livro tão
herético em um Estado cristão. Num sínodo realizado em Haia, pediu-se que fossem proibidos
e se confiscassem tais livros. Sentindo-se ameaçado, Espinosa, nesse mesmo ano, mudou-se
para Haia, permanecendo durante um ano na casa da viúva Van Velen e, mais tarde foi morar
na casa de Hendrik Van der Spyck, no n
o
72 do Pavillioensgracht, de onde só saiu na fatídica
tarde chuvosa de 21 de fevereiro de 1677, à qual nos reportamos inicialmente.
Inferimos, pela narrativa, que o momento histórico em que Espinosa viveu foi
profundamente dominado pelas paixões, que levantavam suas asas e reinavam solenes sob as
mentes de seus concidadãos. Nesse caleidoscópio de opiniões contraditórias, Espinosa, livre
pensador, faz de sua filosofia um pensamento para a ação, com o fim da libertação do humano
frente às vicissitudes da vida errante. Em uma contemporaneidade em que poderíamos
encontrar vários pontos de convergência com os tempos de Espinosa, tais como a ortodoxia
religiosa por parte de islâmicos e judeus, por um lado, e, em função disso, de islâmicos e
cristãos, por outro, podemos constatar como se fazem presentes as mesmas causas das
atribulações do humano, ou seja, vivemos ainda sob a ordem das paixões e dos encantos do
imaginário.
Portanto, em um momento de crise metafísica, nada é mais acalentador e instigante
que podermos estudar um filósofo que faz juz a tal palavra, pois Espinosa não recusa
enfrentar de forma sincera e concreta todas as problemáticas importantes do seu tempo, indo
ao encontro das questões fundamentais do pensar filosófico, tais: qual a causa primeira da
realidade? quais seus desdobramentos? e qual a relação do homem com ela? Percorrendo o
caminho que Espinosa trilhou a fim de responder a essas questões, podemos tentar obter a
20
Ibid. Cap. XIV.
21
Espinosa, Tratado teológico-político. Cap. XIV.
20
definição de “liberdade”. Nossa cultura judaico-cristã define “liberdade” baseando-se no
dogma do livre-arbítrio
22
, o qual surge a partir de uma relação de transcendência com o real
entre substâncias heterogêneas.
Espinosa demonstra, em seu pensamento, a incongruência de tal concepção, e começa
essa demonstração quando, no Tratado da Reforma do Entendimento escreve: “Decidi, enfim,
inquirir se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e somente pelo
qual, todos os demais rejeitados, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que,
descoberto e adquirido, me fizesse fruir pela eternidade a contínua e suma liberdade”.
23
Com
essa passagem, percebemos que Espinosa não reclama uma tradição filosófica ou um suposto
saber de algo superior, pois, enfim, nos traz a idéia de um presenciar o cotidiano que sempre
mostra as almas dilacerando-se como em um teatro de paixões antagônicas. O filósofo decide
enfrentar essa situação, já que não suporta mais ver e sentir tanto sofrimento: “Com efeito as
coisas que mais ocorrem na vida e que pelos homens são estimadas como sumo bem, pelo que
se pode coligir de suas obras, se reduzem a estas três: riquezas, honras e libido, com as três a
mente se distrai”.
24
Dessa forma, Espinosa nos diz que, na maioria das vezes, a mente se coloca sob a
ordem de algo exterior, ou seja, em uma ação in alio, motivada por um fruir algo que se
apresenta como bem, pois, o desejamos, mas que se revela inútil para o propósito inicial que
seria fruir algo que desse a contínua e suma liberdade.
Portanto esses objetos dos desejos dos homens são sinônimos de escravidão, e não de
liberdade. Qual seria, então, o objeto do desejo que se traduziria em liberdade se fosse
desejado?
22
Livre-arbítrio. Concepção de liberdade enquanto poder de autodeterminação ou autocausalidade. Sua primeira
expressão encontra-se em Aristóteles: “voluntário é aquilo que é princípio de si mesmo” e prossegue: “Mas
coisas em que a ação depende de nós a não-ação também depende; e nas coisas em que podemos dizer não
também podemos dizer sim, de tal forma que realizar uma boa ação depende de nós e também dependerá de nós
não realizar má ação.” (Et. nic., III, 5, 1113b10). Em Epicuro, a noção de liberdade tinha o mesmo significado de
autodeterminação, que, para ele, começava nos átomos, aos quais atribuía o poder de desviar-se da própria
trajetória. Prof. Markus Figueira, em seu livro Epicuro. Sabedoria e Jardim à p. 109 – “Sabedoria no agir,
Equilíbrio e Autárkeia”, ratifica tal concepção mas: “Enquanto depende do homem ter o princípio da ação nele
mesmo, não há necessidade de viver com a necessidade, isto é, o sábio não projetará o sentido da sua ação para
além dela, nem se privará de agir quando a possibilidade e a liberdade de agir se mostrarem claras em seu
pensamento, nem tampouco agirá a partir de uma causa que não seja a sua própria deliberação; ou seja: agirá
sempre a partir de si mesmo.” Esse conceito foi transmitido durante toda a Idade Média. Orígenes foi o primeiro
a defendê-lo no mundo cristão, esclarecendo-o no sentido de que a liberdade consiste não só em ter em si a causa
dos próprios movimentos, mas também em ser essa causa. (De princ. III, 5). Santo Agostinho, em De Libero
arbítrio diz: “Sente que a alma se movimenta por si só quem sente em si a vontade”. E, para São Tomás,” o livre-
arbítrio é a causa do movimento porque pelo livre-arbítrio o homem determina-se a agir (Contra Gent., II, 48).
Portanto a noção de livre-arbítrio é baseada na autonomia da vontade como faculdade da alma, que é livre para
assentir em uma coisa, ou um desejo, entre vários.
23
Espinosa, Tratado da Reforma do Entendimento. p. 32.
24
Ibid.
21
O caminho trilhado por Espinosa para dar resposta a tal pergunta é influenciado pelos
acontecimentos ocorridos desde o trecento, que foi um reposicionamento do homem frente ao
real, ocasionado por uma mudança do olhar em relação à natureza. Espinosa faz uma correção
nesse olhar, já que, como polidor de lentes, subverte-o. O olhar advindo do Renascimento,
que tem sua expressão máxima em Descartes, é um olhar em perspectiva, cujo ponto focal é
um contraponto do sujeito que olha o real, o que ratifica a liberdade desse sujeito, enquanto
livre-arbítrio, já que é um posicionamento de afastamento do real sob a gerência do sujeito. O
olhar em perspectiva de Espinosa não desloca o sujeito de sua gênese: com isso, posiciona o
homem como algo dentro da perspectiva, e não fora dela. Espinosa intui o real in toto. É um
olhar abarcador, que vê as relações necessárias das partes que constituem esse todo. O cogito
espinosano é gênese de si mesmo e de tudo, extremamente diferente do cogito de Descartes,
reflexo da perspectiva cristã e que, portanto, se mostra apenas como um ponto ôntico-
psicológico incapaz de ser gênese ou sustentação do real. Esse olhar subvertido de Espinosa
significa um movimentar-se dentro do real, encará-lo não como a realização de essências
gerais em um substrato indeterminado da matéria, mas sim como uma “rede” de elementos
ativos “causal” conectados operando de forma necessária.
Dessa forma, Espinosa demonstra que a estrutura finalista da mundividência
aristotélico-cristã, cuja expressão se compunha de formas criativas dotadas de propósito
operando teologicamente, só fará sentido se esse operar for plantado na ordem que orienta
todo o real, pois aquela é este. A noção de leis nas ciências naturais torna-se, assim, o axioma
da intelecção metafísica, substituindo o aristotélico conceito de substância.
25
Espinosa
compreende que é preciso ter-se uma conduta para a realização do fim ao qual se almeja e,
esta só pode advir de um conhecimento de algo que seja expressão do verdadeiro, que em se
possuindo, seja a ordenação para o agir, pois esse filósofo não separa a ética da metafísica,
como fizera Aristóteles.
26
Com isso, a ética, que é metafísica, só é possível se partir de algo
que a origina onticamente, ordenando toda a realidade. Esse algo é uma idéia verdadeira que
exprime todo o real, já que este é uma ordenação da verdade ontológica daquela. Essa idéia
verdadeira é claramente apreensível por outra idéia verdadeira, expressão daquela, pois há um
25
Substância é a principal categoria do ser em Aristóteles, o qual apresenta dez: substância, qualidade,
quantidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, ter e fazer. Isso significa que o ser ou é substância ou é
qualidade. Substância é o substrato ao qual aderem os predicados.
26
Aristóteles dividiu as ciências em três ramos:
as ciências teoréticas, que procuram o saber pelo saber, são: a metafísica, a física e a matemática;
as ciências práticas, que usam o saber com a finalidade da perfeição moral – a ética e a política;
as ciências poéticas, que se resolvem na produção de determinadas coisas.
22
nexo lógico-causal das idéias entre si enquanto verdades em si mesmas. Essa interconexão
natural é a ordem ontológica imanente que coincide com a ordem intuída pela ação do
intelecto humano, posto que este é um nexo resultante da ação do real. Mas, para que essa
intelecção seja a causa de uma ética imanente com e a partir do real, é preciso reconhecer a
primeira causa como uma intuição ôntica, que, posta, ordene a realidade em uma dedução
lógica necessária a partir de sua existência.
Assim, a intuição dessa existência deve conter em si a existência de Deus, pois, nessa
idéia, o pensamento encontra a certeza absoluta e, portanto, um ponto in toto real para a
dedução concatenável dessa existência. Com isso, tem-se a certeza de que a inter-relação de
suas definições corresponde à inter-relação das coisas e, assim sendo, é capaz de liberar o
homem das vicissitudes da ordem comum da natureza. Espinosa, nesse ponto, é influenciado
pelos escolásticos: embora com outra finalidade, ele usa o conceito de ens realissimun como
os escolásticos fizeram, o diferencial é que estes, baseados em Aristóteles, tiram uma
conclusão transcendente da relação do homem com o ser; Espinosa, ao contrário, conclui em
uma relação imanente, já que o ens realissimun torna-se o princípio da ordem causal em que
todas as conexões causais estão radicadas.
Fazer com que a ação do pensar coincida com a ordem causal de conexões necessárias
significa estar na possibilidade de realização da liberdade humana, pois, assim, o
conhecimento humano torna-se uma parte necessária do conteúdo do infinito conhecimento
divino. As idéias-causas apreendidas pelo intelecto humano são parte da interconexão delas
mesmas, cuja fonte é o intelecto divino. A forma possível de sermos livres coincide com o
fato de estarmos aptos a deduzir a essência comum das coisas, isto é, a ordenação imanente do
real a partir de Deus.
27
Temos, assim, renovada, embora de forma diferente, a interconexão do conhecimento
humano com o divino, tal como primeiro concebeu Aristóteles. Em ambos os casos, o
conhecimento do homem alicerça-se em sua participação na mente divina. Espinosa, porém,
retira a idéia de uma absorção, pelo intelecto humano passivo, do conhecimento fruto da ação
do intelecto divino ativo, como ocorre no aristotelismo, para um conhecimento autônomo
espontâneo, fruto da ação da mente, que reconhece a sua interconexão na rede de causas
imanentes, pois a mente humana é uma idéia imanente à mente divina, capaz de obter infinitas
27
A asserção de Espinosa de que a mente humana tem uma compreensão adequada da essência de Deus está em
oposição radical à doutrina neoplatônica, que defende a incompreensibilidade absoluta da essência divina. Tais
concepções ligam-se diretamente às teorias que postulam diferentes derivações do mundo a partir de Deus. A
teoria emanacionista do mundo aceita um desconhecido divino uno. Em oposição, se concebermos Deus como o
princípio da ordem a partir da qual toda existência é derivada por necessidade dessa mesma existência, sua
essência deve estar aberta à compreensão imanente das existências derivadas.
23
outras idéias. Portanto a liberdade humana consiste em realizar uma depuração dessas
infinitas outras idéias, já que a grande maioria delas são apenas representações da mente, de
dados empiricamente colocados. A ação constante da mente a partir da idéia suprema que
coloca a ordem necessária das conexões causais, já que esta é a própria realidade, pode
libertar-nos de um ordenamento feito a partir de idéias externas a mesma. A livre ação do
pensar é a fonte da liberdade ética.
Em Espinosa, a liberdade ética não possui status independente além do entendimento
teórico, pois neste está contido, assim como o querer, o empenhar-se e o sentir estão também
contidos na intelecção. Espinosa transfere a exigência de um conhecimento isento de valor
para o domínio da ética, e dá a si mesmo a tarefa de tratar das “ações e paixões humanas do
mesmo modo que trataria de linhas, planos e corpos”.
28
28
Espinosa. Ética, Cap. III. Pensadores, p. 276.
24
2 ANÁLISE DO TRATADO DA REFORMA DO ENTENDIMENTO
O conceito de liberdade em Espinosa tem sempre a denotação de um conhecimento
salvífico, ou seja, uma gnosiologia feita pela ação conseqüente da virtu do Conatus
29
, no
sentido de dar-lhe uma ordenação necessária a partir do ato de intelecção da idéia Vera, que
nos une à realidade totalizante, o que significaria o alcance de um estado livre de
condicionamentos contingentes feitos tanto pela ordem externa da complexidade da natureza
naturada quanto pelo efeito interno dessa mesma ordem na psyché do conatus. A intelecção da
idéia Vera não seria uma relação de conjunção certa entre objeto e idéia, mas como que o
reconhecimento genético do real, ou seja, a idéia da idéia como objeto da virtu do conatus, no
intuito de busca-apreensão da idéia real, que se reconhece como tal e forma, a partir daí, a
base de ordenação, com nexos causais, da realidade absolutamente necessária.
Para isso, é preciso definir de forma essencial qual é a idéia absolutamente necessária
que, posta como fundamento de toda a realidade, eleva o conatus de um conhecimento
ordenado pela imaginação
30
ao conhecimento ordenado pelas noções comuns
31
e então ao
“salto” do conhecimento feito pela intuição das essências
32
.
Mas, para se chegar a essa intuição fundante, há que se percorrer toda uma
“purificação” ou “depuração” das “incrustações” milenares de que essa idéia está impregnada,
ou seja, os vícios do conhecimento imaginativo, dados pelas afecções corporais
33
, as quais nos
falam mais de nosso corpo do que da realidade objetiva em si e por si. Essa idéia Vera é Deus,
ou a substância
34
, cuja essência é a existência necessária, absoluta e infinita
35
. A liberdade
29
Conação (lat. conatus). Com esse nome, quer se dizer, no Renascimento, a hormé estóica (DIOG. L VII, 85),
ou seja, o instinto ou a tendência de todo ser à própria conservação. Em Espinosa, “O esforço de conservar-se é a
própria essência da coisa” (ET, IV, 22, cor.) Seria o modo humano de ser enquanto união dos modos finitos
mente e corpo dos respectivos atributos pensamento e extensão. Recebe o nome de “vontade” quando se refere
ao modo mente, e “apetite” quando se refere ao modo corpo dos respectivos atributos dos quais são
modificações.
30
Conhecimento a partir das idéias enquanto afecções do modo corpo, por imagens – na maioria das vezes –
desconexas, levando a um conhecimento inadequado da realidade.
31
Conhecimento pela ação do intelecto, que, assim, apreende as relações necessárias entre os atributos e os
modos infinitos imediatos e mediatos como também as relações necessárias dos modos finitos. Nesse sentido, as
noções comuns não são idéias abstratas, mas idéias gerais de relações reais, comuns, pois são relações para toda
realidade, base para o conhecimento de segundo gênero, já que é das noções comuns que o intelecto desprende a
explicação necessária do real a partir da idéia realíssima e que com isso possibilitará a passagem ao terceiro
gênero de conhecimento que é o conhecimento pelas essências individuais (Ética, II, prop. 37 a 40).
32
Conhecimento por excelência, pois reflete o próprio real mais que isso, é o próprio real, na sua expressão
necessária e totalizante.
33
Idéias inadequadas oriundas da união mente/corpo; imagens desconexas do encontro aparentemente fortuito
dos corpos com nosso corpo.
34
A existência necessária, única, por conseguinte livre. Fundamento de toda a realidade, pois é causa sui,
realidade realíssima.
35
A própria realidade total sem delimitações ou fim, em sentido espacial ou existencial.
25
humana torna-se, então, sinônimo de conhecimento dessa idéia necessária, pois é a existência
dessa idéia absolutamente real, clara e distinta que dá a ordenação do real. Sendo o modo
finito do atributo pensamento expressão necessária dessa idéia absoluta, ele tem de
“percorrer” a via de ordenação pelo método da reflexão, tendo como objeto a idéia da idéia.
Por ser a substância idéia da liberdade absoluta, já que única, torna-se imperativa a
necessidade de o modo finito conhecer essa idéia, para, a partir dela obter a liberdade
enquanto modo dessa substância. O método, para esse fim, consiste na separação dos
conteúdos da mente do modo finito do atributo pensamento, enquanto afecções do modo
extensão, para as idéias do atributo pensamento em si, e não como conjunção dos atributos
(pensamento e extensão), ou seja, conatus. As afecções são resultado da relação do modo
mente enquanto objeto do modo corpo, que, enquanto tal, recebe toda e qualquer
movimentação dos corpos exteriores
36
e gera uma ordenação inadequada da realidade, uma
ordem imaginária. As idéias do atributo pensamento são idéias essências reais, fruto da
expressão da substância enquanto atributo pensamento.
Com o aprofundamento do método, podemos passar de uma ordem imaginária para
uma ordem dada pelas noções comuns, ou seja, conhecimento, via idéias universais, das
relações reais dos entes conseqüentes da substância, entendida pelo modo finito do atributo
pensamento e que, assim, dão uma proximidade do real, já que é o conceito pela causa
eminente que forma uma rede conceptual de cariz inteligível.
No Tratado da Reforma do Entendimento (TRE), Espinosa começa a expor sua
filosofia, no sentido de esclarecer a via que nos levará à liberdade. Ele nos diz que a
retificação do intelecto consiste em se deparar, através da reflexão, com idéias colocadas de
forma errônea, como, por exemplo, a idéia de bem, de mal, de perfeito, etc. ..., como um
processo de substantivação de entes de razão, que, com efeito, de nada se constitui, bastando,
para verificar tal fenômeno, a repetição até sentir-se a sua desnadificação. O processo de
substantivação posto sobre a natureza humana, como algo separado da totalidade, se mostra
falso, já que esta nada mais é do que o conhecimento da união conseqüente que a mente
possui com a natureza na sua totalidade. O que se chamaria natureza humana é apenas um
modo específico da natureza enquanto totalidade, sem contradição entre ambas.
O Tratado da Reforma do Entendimento aponta quatro modos de conhecimento:
conhecimento que temos pelo ouvir dizer; conhecimento por experiência vaga; conhecimento
em que a essência de algo se infere de outra essência de forma inadequada, ou seja, se infere a
36
Corpos exteriores em relação aos modos do atributo pensamento, os quais seriam corpos desse atributo tal
como os corpos do atributo extensão.
26
essência das coisas pelos efeitos delas, de forma abstrata; e, por fim, conhecimento pela
intuição de sua essência real, ou mediante a percepção de sua causa próxima.
Na Ética, Espinosa nos fala do conhecimento pela via dos afetos, pela via das noções
comuns, e do conhecimento pela intuição das essências. Inicialmente não devemos confundir
efeitos de uma realidade como sendo essa mesma realidade. Por exemplo, Espinosa diz que
uma coisa é conhecer a relação mente-corpo pela sensação dessa união; outra coisa é conhecer
essa mesma relação pelo conhecimento certo da própria essência da mente e do corpo, e daí
inferir o real. Embora, às vezes, possa haver uma verossimilhança, haverá sempre uma
diferença conseqüente ao entendimento a que um ou outro conhecimento nos levará. Fica
evidente que o conhecimento que nos leva à liberdade será o quarto do TRE, ou o terceiro da
Ética, pois ambos são o conhecimento pela essência da coisa, o que é, por conseqüencia, a
própria coisa.
Mas como ter a certeza do conhecimento do real e no real? Espinosa nos responde que
é somente a imersão na própria mente com a força natural desta que nos facultará a obtenção
da idéia Vera, cujo índice de verdade é a expressão dela mesma, pois de outra forma não seria
verdade. Portanto o método é a própria reflexão/conversão da razão sobre a idéia, gerando a
idéia da idéia. É clara, a diferença entre a idéia e o seu ideado, já que, por exemplo, a idéia de
um livro evidentemente não é feita de papel. Com isso, podemos inferir a independência e a
inteligibilidade da própria idéia e a possibilidade de esta ser objeto de pensamento de outra
idéia, o que nos remeterá à infinidade dos nexos das idéias.
Nesse sentido, fica evidente que o método só se realiza a partir de uma idéia e que
também não será qualquer idéia que ordenará a realidade no sentido de uma seqüência
necessária; teria que ser uma idéia que abarcasse a totalidade, possibilitando, de um só
“golpe” do intelecto, livrar-se das idéias inadequadas. Portanto a reforma do entendimento se
faz de forma eminentemente necessária, pois se reconhece que a cultura ocidental está
pautada em concepções inadequadas que geram problemáticas insolúveis.
Tradicionalmente, a questão do conhecimento sempre foi baseada na dicotomia
sujeito-objeto. Nesse sentido, fica o questionamento: as idéias que se encontram em nosso
espírito têm correspondência com a realidade ou, então, de modo cartesiano: as idéias que
estão em nós correspondem a algo existente fora do nosso espírito?
Para Espinosa isso se constitui em uma quimera
37
, porque o erro está em que a
pergunta parte de uma idéia inadequada da relação corpo-mente, ou seja, uma idéia a partir do
37
Ser cuja existência não é necessária, lógica. Está posto no sentido de que tal problemática não tem o porquê
dentro do pensamento espinosano.
27
conhecimento abstraído do real. O erro consiste em inferir a essência de algo pelos efeitos
desta, gerando uma ordenação insustentável para uma simples reflexão. No caso, o erro
consiste na substantivação da consciência individual, tomando-a como o ponto de referência
38
para a mundividência. A partir do cogito espinosano, devemos inferir que o pensamento é
uma realidade como atributo e como modo da substância, e o aprofundar reflexivo do modo
no atributo do qual é parte tornará possível que esse modo possa retirar a realidade, inclusive
a que não é pensamento, já que a ordem e a conexão das coisas são as mesmas que a ordem e
a conexão das idéias
39
, pois o atributo é a expressão de uma única substância.
Dessa forma, o conhecimento que leva à liberdade tem sempre como referência a
totalidade: só é possível conhecer as partes a partir do todo ou, ao menos, integrada ao todo.
Deixar de realizar isso é refletir com entes de razão
40
que não correspondem à realidade.
Espinosa verifica que há uma tendência do espírito humano a dar substancialidade às idéias
advindas da exterioridade na imaginação, ou mesmo nas idéias como ação do espírito, no
sentido de compreensão da realidade a partir de idéias inadequadas,
41
tais como: verdade,
erro, bem, mal, bonito, feio, alma, vontade, etc. ... São também desse gênero as idéias de uma
vontade independente do intelecto, de um Deus criador, transcendente à sua criação. Nesse
sentido, Espinosa diz: “Tudo quanto na vida corrente é com freqüência vão e fútil; e, tendo
observado que nada do que direta ou indiretamente provoca temor era em si mesmo bom ou
mau, a não ser enquanto afetava o espírito, decidi, por fim, inquirir se havia algo que
constituísse o verdadeiro bem”.
42
Espinosa percebe também que as coisas que as pessoas julgam como supremo bem,
como riquezas, honra e prazer, na maioria das vezes trazem como conseqüência de sua posse
perdição e ruína, quando são procuradas por si mesmas e não como meios para outros fins
mais nobres. Portanto, “felicidade ou escravidão consiste apenas na qualidade do objeto, ao
38
O ponto de referência seria a inflexão do real, a partir do qual se poderia transformar a mundividência.
39
Sendo o atributo expressão de uma única substância, é lógico que esta é expressa de uma forma idêntica, seja
como extensão seja como pensamento.
40
Entes que correspondem apenas à realidade dos pensamentos finitos do modo finito que é nosso intelecto.
41
Idéia inadequada – idéia das afecções do corpo. A idéia inadequada é como uma conseqüência sem as suas
premissas (Ética, II, prop. 28, dem.). Ela é separada de suas causas, ou seja, a formal e a material, pois não se
explica pela sua própria causa, atendo-se a uma ordem de encontros fortuitos ligados pela memória dos afetos
que causa. Há, portanto, algo de positivo nas idéias inadequadas, que são esses afetos. É que elas envolvem a
nossa imaginação, não se explicitando por si: “O espírito não incorre em erro porque imagina, mas somente
enquanto está considerado como privado da idéia que exclui a existência das coisas que imagina presentes. Pois,
se o espírito, ao imaginar como presentes as coisas que não existem, soubesse ao mesmo tempo que elas não
existem realmente, encararia essa potência de imaginar como uma virtude da sua natureza, e não como um vício”
(Ética, II, prop. 17, esc.)
42
Quase in comuni vita frequenter occurrunt, vana et futilia esse: cum viderem omnia, a quibus, et quae
timebam, nihil neque boni, neque mali in se habere, nisi quatenus ab iis animus movebatur, constitui tandem
inquirere, aliquid daretur, quod verum bonum (TRE. p. 23).
28
qual aderimos por amor”.
43
Mas não pode ser amor por coisas perecíveis, de cuja posse não se
tem certeza, já que se esvaem na duração, “e sim o amor por uma coisa eterna e infinita que
alimenta a alma de pura alegria”.
44
Dessa forma, no TRE, Espinosa ainda demonstra que a
liberdade, a felicidade, e a salvação da alma
45
só ocorrerão quando “reconhecermos que tudo
quanto se faz é de acordo com a ordem eterna da natureza”,
46
sendo, portanto, a liberdade
humana o conhecimento da união que a mente possui com a natureza na sua totalidade e o
fruir dessa união na ordem da necessidade.
Com o intuito de adquirir a ordem dessa natureza, como um espelho para a mente,
Espinosa se lança no desafio de demonstrar de que forma isso será possível tanto para si
quanto para outros que assim desejarem. Assim, reconhece que primeiro é preciso haver uma
reforma do entendimento, liberando-o das incrustações impostas por uma ordem feita a partir
de idéias inadequadas: “Acima de tudo, é necessário descobrir um modo de sanar o
entendimento e, na medida em que isso se torne possível, de o qualificar para que facilmente
compreenda as coisas sem erro e o melhor possível”.
47
Porém Espinosa por uma questão pragmática determina uma moral provisória, a fim
de que se possa conviver com seus pares de uma forma que haja o mínimo de perturbação
nessa empreitada, qual seja:
I. falar de acordo com o senso comum;
II. fruir dos prazeres apenas o suficiente para a boa saúde;
III. procurar dinheiro ou qualquer outro bem tanto quanto seja suficiente para sustentar
a vida, e conforme a moral da sociedade.
48
2.1 Crítica aos modos do entendimento
Postas as regras da boa convivência, Espinosa nos remete à crítica aos modos de
conhecimento, nos quais nos deteremos amiúde.
43
Quod tota felicitas, aut infelicitas in hoc solo sita est; videlicet, in qualitate objecti, cui ad haeremus amore
(TRE P, 27).
44
Sed amor erga rem eternam, et infinitiam sola Iaetitia pascit animum (TRE, p. 27).
45
Em Espinosa, essa expressão não tem conotação religiosa, ou seja; alma que se salva dos erros pela graça
divina em uma redenção escatológica. Salvar a alma, para Espinosa, significa ratificar a existência, de forma
melhor possível, de acordo com sua virtu natural.
46
Praesentim, post quarn noverimus, omnia quae fiunt, secundum aeternum ordinem et naturae (TRE, p. 29).
47
Sed ante omnia excogitandus est modus medendi intellectus, ipsunque, quantum initio licet, exporgandi, ut
faciliterres absque errore, et quam optime intelligat (TRE, p. 31).
48
I – Ad captum vulgi logui.
II – Delicius in tantum, frui, in quantum ad tuendam valetudinem.
III – Denique tantum nummorum, aut cujus cunque alterius rei quaerere, quantum suficit ad vitam et
valetudinem sustentandam, et ad mores civitatis (TRE, p. 31).
29
Como já foi ressaltado, Espinosa reconhece quatro modos de conhecimento, quais
sejam:
I. a percepção por ouvir dizer ou por qualquer sinal arbitrariamente designado (por
exemplo: o dia do nascimento);
II. a percepção que adquirimos por uma experiência vaga, isto é, uma experiência não
determinada pelo entendimento; designa-se, assim, só porque se dá ao acaso e, não
havendo nenhum outro experimento que se lhe oponha, mantém-se para nós inabalável
(por exemplo: o conhecimento da morte necessária);
III. a percepção em que a essência de uma coisa se infere de outra, embora
inadequadamente – é o que acontece quando de um efeito inferimos a causa ou quando
uma conclusão se tira de alguma propriedade. (por exemplo: da sensação do corpo
inferir-se uma união alma-corpo, sem que se possa compreender de modo absoluto o
que seja tal união;
IV. por fim, a percepção em que uma coisa é percebida apenas mediante a sua
essência, ou mediante o conhecimento da sua causa próxima.
49
Assim, como Espinosa já havia determinado o seu objeto de conhecimento e desejo,
que seria o eterno, ou seja, coisas cujo conhecer o levaria à liberdade, fica evidente que
apenas o quarto modo de percepção, é adequado ao intento pretendido, já que os outros não
conseguem exprimir a coisa em sua essência.
Espinosa nos remete, agora, para o caminho, ou seja, o método para adquirirmos o
quarto modo de percepção, que seria a expressão necessária do real. Esclarece que não se trata
de descobrir ad infinitum. “O melhor método de descobrir a verdade, não se faz necessário
outro método além do próprio método de descoberta da verdade”.
50
Como o método é
genético o ato de “criação” da idéia remete à sua verdade ou certeza pois que não há melhor
forma de reconhecer a verdade que sua própria geração pelo sujeito cognoscente.
Em seguida o autor nos demonstra a diferença entre a coisa e a idéia dessa coisa, com
o intuito de fazer perceber que há um saber verdadeiro e inteligível, independente e diverso da
coisa quando ela é percebida pelo afectus do corpo e é inadequadamente substancializada. “A
49
I - Est Perceptio, quam ex auditu, aut ex aliquo signo, quod vocant ad placitum, habemus.
II Est Perceptio, quam habemos ab experientia vaga, hoc est, ab experientia, quae non determinatur ab
intellectu; sed tantum ita dicitur, quia casu sic occurrit, et nullum aliud habemus experimentum,quod hoc
oppugnat, et ideo tanquam incocussum apud nos Manet.
III
Est Perceptio, ub essentia rei ex alia re concluditur, sed non adaequate; quod fit, cum vel ab aliquo effectu causam
colligimus, vel cum concluditur ab aliquo universali, quod semper aliqua proprietas concomitatur.
IV Denique Perceptio est, ubi res percipitur per solam suam essentiam, vel per cognitionem suae proximae
causae.
50
Optima methodus verum investigandi non opus est alia methodus veri investigandi investigetur (TRE, p. 29).
30
idéia verdadeira (pois temos uma idéia verdadeira) é algo de diverso do seu ideado. Com
efeito, uma coisa é o círculo, outra a idéia de círculo”.
51
Os argumentos são postos para melhor compreendermos o método, já que este é um
processo de aprofundamento do modo pensamento sobre si mesmo, com isso reconhecendo:
a independência e realidade das idéias essências enquanto tais;
o encadeamento lógico dessas idéias, tornando-as objetos de idéia, ou seja, idéias da idéia;
na ordem dos nexos causais das idéias, a intuição da idéia de todas as idéias, isto é, a idéia
que, tomada como base, é a ordenação necessária de todas as outras, a idéia Vera por
excelência;
que o índice de verdade é a própria gênese da idéia, pois, evidenciada, esta é expressão de
sua verdade, já que não há uma inadequação do sujeito pensante duvidando (Descartes),
mas uma conexão real de idéias reais que se auto-exprimem.
“Daí é evidente que a certeza nada mais é do que a própria essência objetiva. Isto é, o
modo como sentimos a essência formal é a própria certeza. Donde é novamente evidente que,
para a certeza da verdade, mais nenhum sinal é necessário além da posse da verdadeira idéia,
pois, como ficou demonstrado, não é necessário saber que eu sei que sei”.
52
Dessa forma, o método é a reflexão da idéia e, obviamente, para se iniciar, tem
necessariamente que haver uma idéia verdadeira e, se possível, essa idéia deve ser a que
melhor nos dê a ordenação de nosso intelecto, qual seja, a idéia que nos ordena partir da
totalidade, poupando-nos de uma ordenação a partir de idéias verdadeiras, mas parciais e, de
fato, não muito úteis para alcançarmos, o mais breve possível, o nosso intento, ou seja, a
liberdade.
2.2 Definição da idéia vera
Definido o fim para o qual vale a pena dirigir nossos pensamentos, em seguida a
melhor percepção para obtermos esse mesmo fim e, por último, demonstrado o caminho que a
mente deve trilhar com vistas a esse fim, resta-nos aprofundarmos a crítica da investigação
tanto da idéia verdadeira, já que é o ponto inicial do método, quanto dos modos de percepção
51
Idea vera (habemus enim ideam veram) est díversum quid a sua ideato: Nam est orculus, alívil idea cirali
(TRE, p. 41).
52
Hinc patet, quod certitudo nihil sit praeter ipsam essentiam objetivam; id est, modus, quo sentimus essentiam
formalem, est ipsa certitudo. Unde iterum patet, quod ad certitui dinem veritatis nullo alio signo sit opus quam
veram habere ideam: Nom, uti ostendimus. nom opus est, ut sciam quod sciam me scire (TRE, p. 43).
A verdade é forjada pela idéia geratriz dela, portanto não há a priori o sujeito que reflete sobre a realidade, e sim
o pensamento gerador imanente dessa realidade.
31
dessa idéia: “Comecemos, então, pela primeira parte do método, que consiste em distinguir e
separar a idéia verdadeira das idéias falsas, as ficções e as idéias duvidosas”.
53
Sobre a idéia fictícia, Espinosa demonstra que ela tem origem no desconhecimento da
necessidade da idéia, sendo, contudo, possível. Em compreendendo-se a necessidade da idéia,
que é expressão da sua realidade, não haveria possibilidade de a pessoa enganar-se com idéias
fictícias, mesmo que estas não implicassem contradição na possibilidade de sua existência.
Por outro lado, bastaria um exame mais minucioso de um encadeamento dedutivo
dessa idéia para denunciá-la como fictícia. Além disso, as idéias fictícias não são simples,
pois advêm de uma inadequação de idéias como parte de uma totalidade: “Se a idéia é de uma
coisa perfeitamente simples, não poderá ser senão clara e distinta; pois essa coisa terá de
conhecer-se, não parcialmente, mas na totalidade ou, então, de nenhum modo se conhecerá”.
54
Portanto a idéia de existência possível é, uma idéia abstrata, isto é, a aplicação da idéia do ser
ou da existência a objetos de imaginação que também são abstratos.
Os termos gerais, ou as idéias gerais, como a idéia do ser, são abstrações, ou seja,
idéias inadequadas, pois são o resultado do processo que consiste em construir imagens gerais
das coisas por meio de imagens particulares, em sentido psicológico, mas são também idéias
inadequadas em sentido ontológico, pois buscam atribuir realidade ao que, por estar separado
do todo, não pode ser real. Portanto o real está nos nexos causais de idéias reais: “Quanto
menos a mente conhece e quando mais percebe, mais é capaz de ficção; quanto mais
conhecimentos claros tem, mais esse poder diminui”.
55
As ficções relativas às essências das coisas provêm do fato de tomarmos como
conhecimento os dados dos sentidos, as percepções, sem atentarmos para a natureza de tais
percepções:
“A mente que se aplica atentamente a essa idéia falsa em sua natureza para
examiná-la e conhecê-la, e que deduz na ordem justa o que é necessário
deduzir, demonstrará facilmente a sua falsidade; e se a coisa forjada é
verdadeira em sua natureza, quando a mente se aplica atentamente a ela
para conhecê-la e começar a deduzir na ordem justa o que se segue,
continuará com sucesso e sem interrupção alguma”.
56
53
Incipiamus itaque a prima parte methodi. quae est distinguere et separare ideam veram... ne falsas, fictas, et
dúbias cum veris confundat (TRE, p. 47).
54
Si Idea sit alicujus rei simplicissimae, e a non nisi clara, et distincta poterit esse: Nam res illa nom ex parte,
sed tota (TRE, p. 61).
55
Hoc maxime uenit considerandum: quod quo mens minus intelligit, et tamem plura percipit eo maiorem
habeat potentiam fingendi et quo plura intelligit, e o magis iila potentia diminuatur” (TRE, p. 66).
56
Mens, cum ad rem fictam, et sua natura falsam attendit, aut eam pensitet, et intelligat, Goneque ordine ex ea
deducat, quae sunt deducenda, facile falsitatem pate faciet; et si res ficta sua natura sit vera, cum mens ad eam
attendit, ut eam intelligat, et ex e a bono ordine incipit deducere, quae inde sequentur, feliciter perget sine ulla
interruptione (TRE, p. 66).
32
Isso significa que, se uma idéia for verdadeira, ela e as deduções que dela se fazem se
inserirão naturalmente e sem dificuldade na ordem universal das essências; se for inadequada,
ela e as deduções que dela se façam não podem estar contidas na ordem universal, pois se
trata de idéias falsas.
A diferença entre a idéia fictícia e a falsa decorre do fato de à última não serem
oferecidas causas para ratificação, sendo, portanto, não “mais do que o sonhar de olhos
abertos, ou seja, em estado de vigília”
57
e também de as idéias fictícias serem conscientes; ou
seja, há uma construção consciente das idéias fictícias, enquanto isso não ocorre com as idéias
falsas. Quanto ao modo de nos desvencilharmos de tais idéias, ocorre em ambas o mesmo
processo, qual seja: basta relacionarmos a existência com a essência e atendermos à ordem
necessária, da qual não sairão absurdos se a idéia não for falsa ou fictícia. “Com efeito, as
idéias das coisas que se concebem clara e distintamente ou são simplicíssimas ou compostas
de idéias perfeitamente simples, isto é, deduzidas de idéias perfeitamente simples”.
58
As idéias
falsas, na maioria das vezes, ocorrem por as compormos por meio de percepções confusas de
coisas existentes na natureza: “Que os homens creiam que nas florestas, nas imagens, nos
animais existem divindades; que há corpos de cuja simples combinação pode nascer o
entendimento; que os cadáveres raciocinam, andam, falam, que Deus se engana, ou coisas
semelhantes”. ...
59
O engano de tais idéias acontece pela combinação de sensações, de
imagens, entre as quais não se pode inferir nenhum elo racional.
Além disso as idéias simples sempre serão verdadeiras, já que são expressões de sua
própria essência, não indo além do conceito delas mesmas; portanto “A falsidade consiste
apenas em afirmar, de alguma coisa, algo que não está contido no seu conceito”.
60
Com isso,
podemos concluir que as idéias simples ou que são deduzidas de idéias simples e que também
sejam claras e distintas são verdadeiras; e também que a idéia é sua própria verdade; ou seja,
“a essência da idéia verdadeira deve estar contida na própria idéia verdadeira e deve depender
da força e natureza do entendimento”.
61
57
“Quam oculis apertis, sive dum vigilamus somniare” (TRE, p. 67).
58
Nam ideae rerum, quae clare et distincte concipiuntur, sunt vel siniplicissirnae vel compositae ex ide is
simplicissimis, id est, a simplicissimide is deductae (TRE, p. 67).
59
“Cum hominubus persuadetur, in silvis in imaginibus, in brutis, et caeteris adesse numina, dari corpora, ex
quorum sola compositione fiat intellectus; cadavera ratiocinari, ambulare, Loqui: Deum decipi, et semilia...”
(TRE, p. 68).
60
Quare falsitas in hoc solo consist, quod aliquid de aliqua re affirmetur, quod in ipsius, formavimus, conceptu,
non continetur (TRE, p. 69).
61
Quare id, formam verse cogitationis constituit, in ipsa eadem cogitatione est quaerendum, et ab intellectus
natura deducendum” (TRE, p. 69).
33
Aqui é bom esclarecer que a idéia simples é aquela que expressa a gênese da coisa, a
qual, obviamente, pode ser composta, desde que expresse a ordem causal necessária da coisa
na realidade total. O erro está, quase sempre, em formarmos, em nossa mente, combinações
de idéias desconexas do conjunto que constitui a ordem e a conexão do real. “O erro provém
também de que, do fato de não se conhecerem os primeiros elementos de toda natureza, e
procedendo, por isso, sem ordem e confundindo a natureza com axiomas abstratos, ainda que
verdadeiros, traz o homem em si mesmo a confusão e perverte-se a ordem da natureza”.
62
Quanto às idéias duvidosas, Espinosa diz: “Falo da verdadeira dúvida na mente, e não
daquela dúvida que se encontra apenas na linguagem, que é possível se pôr em dúvida, ainda
que a mente não duvide”.
63
Nesse sentido, as idéias duvidosas só serão possíveis para aquela
mente que não concebeu uma idéia verdadeira, pois não a gerou, restando-lhe a dúvida de sua
existência. “A dúvida nasce sempre do fato de que as coisas são estudadas sem ordem”.
64
Quando a idéia se põe na ordem de sua própria gênese, a conseqüência é que saímos das
abstrações e deparamos com a essência das coisas e os seus encadeamentos lógicos e
ontológicos necessários, possibilitando o libertar de nosso espírito de idéias parciais e
inadequadas, ou seja, de idéias fictícias, falsas e duvidosas, utilizando, para isso, o método
que consiste no aprofundamento da reflexão da mente sobre si mesma, a partir de uma idéia
verdadeira, que seria a idéia da idéia. No sentido de nos aprofundarmos nessas questões, no
intuito de entender melhor o que significa a reforma do entendimento, cujo conhecimento é
tão importante para nos facultar um olhar diferente do conceito de liberdade impresso em nós
por nossa própria cultura, temos que, de acordo com Espinosa, dissecar a natureza e as
propriedades de nossa mente, já que o método é a reflexão dela sobre ela mesma. Para isso,
devemos sempre lembrar: é necessário ter idéias claras e distintas, ou seja, idéias que sejam
frutos apenas da ação do pensar, e não dos encontros fortuitos do corpo com outros corpos.
Forçoso é ordenar tais idéias com a finalidade de que se reduzam a uma só, de forma que
possamos reproduzir em nossa mente o encadeamento necessário do real e, com isso, nos
libertemos de ordens que não são necessárias.
65
62
Oritur denique etiam ex e o, quod prima elementa totius naturae non intelligunt; unde sine ordine
procedendo, et naturam cum abstractis, quam vis sint vera axiomata, confundendo, se ipsos confundunt,
ordinem que naturae pervertunt” (TRE, p. 74).
63
Loquor de vera dubitatione in mente, et non quam passim videmus contingere, ubi sciliet verbis, quam vis
animus non dubitet, dicit quis se dubitare..” (TRE, p. 76).
64
Quod dubitatio semper oritur ex eo, quod res absque ordine investigentur (TRE, p. 77).
65
Scopus itaque est claras, et distinctas habere ideas, tales videlicet, quae ex pura mente, et non ex fortuitis
motibus corporis factae sint. Deinde, omnes ideae ad unam ut redigantur, conabimur eas tali modo concatenare
et ordinare, ut mens nostra, referat objective formalitatem natura (TRE, p. 83).
34
Concluímos que, na nossa mente, encontramos idéias que vêm dos movimentos e
encontros dos corpos, que dão origem às sensações e imaginações, e idéias que são
provenientes da ação da mente em si. Naquelas, a mente seria passiva, nestas, a mente seria
ativa e depararia com idéias que são essências, ou seja, auto-suficientes, ou então com idéias
que não são auto-suficientes mas cujo conceito está em uma causa próxima. Isso favorece
evitarmos idéias abstratas, parciais, que nos tirariam da ordem necessária: “Dos axiomas
universais o entendimento não se pode descer às coisas particulares, pois tais axiomas se
aplicam a coisas infinitas e não determinam que a inteligência considere certa coisa particular,
e não uma outra”.
66
Dessa forma, Espinosa elimina tanto as idéias advindas dos sentidos, que
correspondem ao primeiro e segundo modos de conhecimento, quanto os conceitos abstratos,
ou seja, as idéias enquanto axiomas universais. “É o conhecimento feito pelas noções comuns
e as idéias adequadas apenas das propriedades das coisas, idéias claras e distintas e, se
devemos rejeitá-las, é que existem só no intelecto”.
67
Espinosa ainda nos remete para a
ordenação de idéias claras e distintas a partir de uma ordem necessária que nos daria o
conceito genético das idéias particulares. Enfim, não é suficiente que as idéias sejam claras e
distintas; é necessário que elas façam parte de um nexo infinito a partir da idéia do ser
perfeitíssimo, expressão total da realidade: “Perverteremos necessariamente a concatenação
das idéias que deve reproduzir no intelecto a concatenação da natureza”.
68
Como obter, então, a idéia perfeitíssima que ordena a realidade? Espinosa demonstra
que basta aplicar o método, ou seja, partir de uma idéia verdadeira e não sair da série dos
nexos necessários que ordena as idéias verdadeiras:
“Obter sempre todas as nossas idéias das coisas físicas,
69
dos seres reais,
progredindo na medida do possível, segundo a série das causas, de um ser
real a outro ser real e isso sem cair para as coisas abstratas e universais,
evitando também concluir dessas coisas qualquer coisa de real, porque tanto
uma coisa como outra interrompem o verdadeiro progresso do
entendimento”.
70
66
Nam ab axiomatibus solis universalibus non potest intelectus ad singularia descendere, quando quidem
axiomata ad infinita se extendunt, nec intellectum magis ad unum, quam ad aliud singulare contamplandum
determinant” (TRE, p. 84).
67
Unde nunquam nobis licebit, quandiu, de inquisitione rerum agimus, ex abstractis aliquid concluedere et
magnopere cavebimus ne misceamus sunt in inlellectu, cumiis quae sunt in re in re” (TRE, p. 84).
68
Si autem has praetermittimua, necessario concatenationem inlellectus, quae naturas concatenationem
refeare debet, pervetemus..” (TRE, p. 85).
69
A palavra “física” não se refere a significado moderno; está no sentido etimológico de phýsis, ou natureza, tal
como os gregos compreendiam.
70
nobis esse necessarium, ut semper a rebus physicis, sive ab entibus realibus omnes nostras ideas deducamus,
progrediendo, quod, eius fieri potest, secundum seriem causarum ab uno ente reali ad aliud ens reale, et ita
35
Essas idéias são fixas e eternas e seriam explicitadas no modo do atributo pensamento.
Enfim, as idéias fixas e eternas são a realidade em si e constituem, exatamente, a ordem
universal das essências. Mas como termos certeza de que estamos na ordem da necessidade?
Para responder essa pergunta, devemos sempre lembrar que o método se constitui de
um exame permanente da idéia e da conexão dedutiva real dessa idéia. “Examinar
cuidadosamente e deduzir da idéia verdadeira, a boa ordem. No caso de falsidade, esta se
descobrirá; se, ao contrário, for verdadeira, então se continuarão com facilidade a deduzir
dela, sem interrupção, coisas verdadeiras”.
71
É também lícito dizer que podemos, a priori,
partir de qualquer idéia, já que temos que operar com o que é dado à consciência e, aí sim,
aplicar o método para ver a veracidade de tal idéia, sempre com o intuito de obtermos, por
uma análise regressiva, a idéia primeira, da qual deduziremos a totalidade: “Quando tivermos
alcançado a idéia total, possuiremos um princípio do qual podemos deduzir nossos
pensamentos e um caminho pelo qual o entendimento poderá chegar ao conhecimento das
coisas eternas”.
72
Fica, então, implícito que o método não se constitui em uma inferência lógica, mas
sim em uma retomada de consciência, que se dá no aprofundamento dessa mesma
consciência, o que levará, por conseguinte, a uma transposição da consciência psicológica na
consciência do “intelecto puro”,
73
com suas idéias essências e seus nexos necessários,
evidenciando o ordenamento do real. Esse processo faz com que, a partir de então, o nosso
entendimento tenha como objeto as idéias fixas, necessárias e percorra o seu encadeamento de
forma natural, libertando-se da contingência, da qual não se tem o menor controle. “A
essência de nossa liberdade consiste no conhecimento e no desejo desse conhecimento, cujo
princípio e fundamento é a idéia absolutamente livre, ou seja, Deus”.
74
quidem, ut ad abstracta, et universalia non transeamus, sive ut ab iis aliquid reali non concludamus, sive ut ea
ab aliquo reali non concludantur, utrumque enim verum progreasum inlellectus interrumpit” (TRE, p. 85)
71
Ubi mens ad aliquam cogitationem attendit, ut ipsam perpendat, Gonoque ordine ex era deducat, quae
legitime sunt deducenda, si ea falsa fuerit, falsitatem deteget sin autem vera, tum feliciter perget sine ulla
interruptione ers veras inde deducere” (TRE, p. 85).
72
Hac enim acquisita fundamentum habebimus, a quo nostras cogitationes deducemos, et viam qua intellectus,
prout eiusfert capacitas, perveniere poterit ad rerum aeternarum cognitionem, habita nimirum ratione virim
intellectus” (TRE, p. 87).
73
O intelecto puro não significa algo abstraído do real, o que faria pertinente a crítica de Kant; pelo contrário, é o
intelecto como o próprio real, operando com o que é dado aos sentidos tanto no atributo extensão quanto no
atributo pensamento e evidenciando através da virtu do Conatus a geração mesma do real.
74
Ética, V, Prop. 36, escólio.
36
Ainda no intuito de um melhor esclarecimento sobre os modos de percepção, que será
a base para a conversão do intelecto, passemos a analisar também o Breve Tratado
75
, no qual,
Espinosa diz:
“o método significa a intuição do concreto pelas idéias verdadeiras no
aprofundamento da mente sobre si mesma, o que nos dará a visão da
totalidade que é causa sui e, ainda, os modos que nos são conhecidos em
primeiro lugar, a saber, certos conceitos ou a consciência do conhecimento
de nós mesmos e das coisas que existem fora de nós”
.
76
Fica evidente a relação de igualdade entre o Breve Tratado e o Tratado da Reforma do
Intelecto, já que ambos partem do que é dado à consciência; ou seja, os seus conteúdos não-
reflexivos, como: a consciência
77
do eu e do diverso desse mesmo eu
78
são os conteúdos da
mente em uma primeira consciência dela, então, o que é dado aos sentidos, embora não sejam
exatamente conhecimento, são o conteúdo que expressa uma realidade, pois, para Espinosa, o
pensamento é sempre o pensamento de alguma coisa diversa do próprio pensamento; diferente
de Descartes, que pressupõe erro na relação desigual entre vontade e pensamento, já que
entende que a vontade pode ser livre do objeto pelo qual se sente vontade, ou seja, a vontade é
anterior ao intelecto e infinitamente maior que ele. Em Espinosa, não existe o pensamento do
objeto sem a existência desse objeto.
Portanto, tanto quanto Espinosa faz no TRE, também, no Breve Tratado, ele inicia
com a ordenação de idéias, conteúdos da mente, em relação ao conhecimento do objeto
colocado inicialmente, o qual nos facultará a liberdade, pois essa ordenação nos permitirá
75
O Breve Tratado de Deus, do Homem, e do seu bem-estar, é a primeira obra de Espinosa, escrita antes de
1660.
76
Breve Tratado, Parte II, Cap. 24.
77
Consciência – Capacidade da idéia de duplicar-se, de se desdobrar ao infinito: idéia da idéia. A idéia se
apresenta de duas formas: como realidade objetiva do atributo pensamento e como representação formal de si
mesma em outra idéia que a representa (Ética, II, prop. 21). Disso, pode-se inferir que a consciência tem a
capacidade de: 1. reflexão, ou seja, a consciência não é a propriedade moral de um sujeito, mas a característica
física da idéia; ela não é reflexão do espírito sobre a idéia, mas reflexão da idéia no espírito; 2. concatenação, ou
seja, a consciência é sempre a idéia segunda da idéia primeira, que pode ser tanto afecção do atributo extensão
quanto do atributo pensamento; 3. correlação, ou seja, a relação da idéia da alma está para a própria alma assim
como a alma está para idéia do corpo e suas afecções (Ética, II, prop. 21). Veja-se que a idéia da alma é apenas
uma idéia na infinitude das idéias no intelecto infinito, portanto, antes de Freud, Espinosa já infere o
inconsciente, pois a alma está inteiramente mergulhada nele. Assim, não temos consciência das idéias que estão
em Deus, das quais somos apenas uma; dessa forma, “não temos consciência das idéias que compõem nossa
alma, nem de nós mesmos e de nossa duração; só temos consciência das idéias que exprimem o efeito dos corpos
exteriores sobre o nosso, idéias de afecções” (Ética, II, prop. 9).
78
Espinosa admite demonstrar a extensão a posteriori, isto é, a partir dos modos desse atributo, pois, como tais
modos são atingidos pelos sentidos, é lógico afirmar que esse autor tem no que é dado aos sentidos a razão da
existência dos modos no atributo extensão.
37
passar da percepção de idéia como simples estados de consciência para essências idéias
reais.
79
Assim, no Breve Tratado, Espinosa coloca o primeiro modo de percepção como
opinião, ou seja, conhecimento que temos pelo fato de termos repetido o que nos foi legado
pela tradição, ou então, por generalizarmos, a partir de alguns dados particulares todo o
processo de verificação da idéia vera.
No primeiro caso, trata-se apenas de uma repetição; já no segundo, um raciocínio
indutivo, do qual por alguns exemplos tiramos um universal. Veja-se que Espinosa já
reconhece, antes de Hume ou Kant, o problema do conhecimento indutivo.
80
Em segunda
instância, Espinosa nos fala do conhecimento como crença, que equivale ao terceiro modo do
TRE. Trata-se do conhecimento pelo raciocínio, da depuração do lógos, que, como tal, nos dá
razões a partir de princípios verdadeiros. E, então, temos o terceiro modo, ou quarto do TRE,
que é a intuição clara do real. Se o segundo modo de conhecimento parte de princípios
verdadeiros, e o terceiro de idéias claras e reais, conseqüentemente também verdadeiras, qual
seria, então, a objeção de Espinosa ao segundo modo de conhecimento, fruto da razão
discursiva, do raciocínio a partir de princípios verdadeiros? Para respondermos a tal questão,
temos que notar que o real, para Espinosa, é equivalente ao real enquanto phýsis, e não o real
apenas da razão, ou seja, forma de aferir conhecimento por proximidade da causa do modo
finito do atributo pensamento. O segundo modo de conhecimento é verdadeiro para a razão
enquanto lógica operativa de aproximação do real, mas não é exatamente o real: “As coisas
que apreendemos somente pela razão não são vistas por nós, mas nos são conhecidas por uma
convicção que se faz no espírito, convicção que nos diz que tal coisa deve ser assim e não de
outro jeito”.
81
O que caracterizaria o conhecimento racional seria a ausência da idéia como
ente real, ou seja, seria o conhecimento das propriedades gerais abstraído da concretude
enquanto essência. A razão tem como instrumento idéias gerais, seres de razão, que não
proporciona o conhecimento da coisa em si e suas relações necessárias com a totalidade.
Podemos verificar isso quando Espinosa diz: “Para que possamos dizer o que seja o
bem e o mal, iniciamos assim: ‘Certas coisas existem em nosso entendimento e não na
natureza; elas não são, assim, mais do que a nossa própria obra e não servem senão para
79
O método de conhecimento do real consiste no estudo, na reflexão, sobre a phýsis como mente humana, modo
do atributo da substância, portanto realidades correlatas.
80
Por mais conhecimentos particulares que tenhamos, não podemos estar certos, absolutamente, de que se trata
de um conhecimento universal, ou seja, válido em qualquer circunstância. Pois pode tratar-se apenas de uma
relação psicológica, e não de uma relação causa-efeito pertinente aos fatos naturais reais convalidados com a
totalidade.
81
Breve Tratado, p. 103.
38
concebermos distintamente as coisas; entre elas compreendemos todas as relações que dizem
respeito às diferentes coisas que chamamos seres de razão”.
82
Com isso, Espinosa nos diz também que não basta a intelecção distinta das coisas, que
não é suficiente termos a idéia clara, tal como em Descartes; é preciso dar ainda um “salto
nesse tipo de conhecimento: não a idéia enquanto um ser de razão no nosso intelecto e sim a
idéia da idéia, coisa real. Esse tipo, nos diz Espinosa, “tem o conhecimento mais claro,
dispensando o ouvir dizer, a experiência e por conseguinte a arte de tirar juízos”.
83
E ainda
conclui: “Este conhecimento nem imagina nem crê: Ele vê a própria coisa, não por alguma
outra coisa, mas por ela mesma”.
84
É importante salientar que o nível de conhecimento do real, para Espinosa, é
diretamente proporcional à aproximação das idéias com a realidade, ou seja: os primeiros
níveis de conhecimento, tanto no TRE quanto no Breve Tratado e também na Ética são idéias
extremamente abstraídas do real, pois, neles existe uma separação abissal entre sujeito e
objeto. Já no modo de conhecimento pelas noções comuns, entes de razão, se está ainda em
estado de abstração, ou seja, fora do real, mas com uma proximidade infinitamente superior à
que ocorre nos outros modos iniciais, tanto que esse tipo de conhecimento nos mostra como o
real deve ser, proporcionando-nos um saber bastante seguro do real, mas ainda não nos diz o
que é o real. Isso acontecerá somente com o último modo de conhecimento: este, sim, nos
deixa frente a frente com o real, pois é conjugado com a totalidade da qual é modo.
Consideramos, portanto, feita a retificação do intelecto, para, agora sim, podermos
caminhar no plano da realidade necessária, ou seja, a partir de idéias genéticas, que expõem
em sua gênese a sua realidade e a realidade necessariamente conseqüente, a qual está
implicada pela sua explicitação, demonstrando, assim, a tessitura do real.
82
Breve Tratado, p. 94.
83
Ibidem, p. 102.
84
Ibidem, p. 102.
39
3 DA SUBSTÂNCIA
Antes de definirmos a idéia da substância, que nos dará a ordenação da totalidade, é
preciso discorrermos sobre tal ordem, que, sendo posta, desprende uma disposição inerente à
sua existência. Ora, Espinosa nos diz que a definição do objeto tem que ser a expressão deste
enquanto realidade em si e para si, pois essa definição é a explicitação genética dele. Assim,
há uma ordem que é a razão de si em sua explicação adequada e total a qual nos permite
deduzir as conseqüências imanentes a ela. Espinosa quer demonstrar que essa ordem não pode
ser vista sob o ângulo da imaginação, que havia sido posta pelos filósofos anteriores
85
como
uma disposição hierárquica de entes locados por níveis de perfeição, em disposição de mando
e controle, numa concordância entre gêneros e espécies, e sim em uma expressão regulada
pela existência que imanentemente se desdobra em suas conseqüências.
Observe-se que o que se desdobra é exatamente a ordem, e não a coisa em si, pois
Espinosa não é emanacionista, ou seja, da substância única nada emana, tal como no
neoplatonismo, em que do uno emana o intelecto, alma universal, alma individual, etc. Para
Espinosa, o que há é uma ordem “dada” pela substância única através dos atributos, que,
assim, geram os modos. Essa ordem é geométrica não porque o real o seja: aqui, Espinosa se
utiliza da geometria apenas porque lhe parece que é o conhecimento humano que mais se
aproxima da ordem que põe a realidade, já que essa ciência, ao modo de Euclides, se
apresenta em forma de definições, axiomas e escólios, que explicitam o objeto posto como
também suas conseqüências a partir de sua definição. Então, qual seria a idéia primeira cuja
explicação põe a realidade em ordem? Só há de ser a idéia da totalidade, pois, quando posta,
gera a realidade inclusa na sua definição, que é uma ordem para o todo. Essa idéia é a
substância definida no livro I da Ética, que se inicia com as seguintes definições: “Por causa
de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja
natureza não pode ser concebida senão como existente”.
86
Entender essa definição é fundamental para o conhecimento do pensamento
espinosano. O que Espinosa quer dizer com ela? Quer dizer que a essência da existência não
tem causa, pois, em sendo existência causa sui, corresponde a ter como essência a existência
85
A Escolástica, fundamentalmente, que, utilizado-se da filosofia de Aristóteles, hierarquiza a realidade de
acordo com o grau de aproximação com o ente supremo em matéria, animais, homens, santos, anjos, arcanjos,
etc.
86
Ética, parte I.
40
incausada. Nesse caso, existência e a essência são o mesmo, não há separação, pois não há
causa da existência, mas sim a própria existência sem causa.
A segunda definição diz: “uma coisa é finita no seu gênero quando pode ser limitada
por outra coisa de mesma natureza”.
87
Aqui, Espinosa antecipa a unicidade da substância, já
que algo só é finito na medida em que é limitado por outra coisa de mesma natureza a que
possa se contrapor, pois suas naturezas são iguais. A terceira definição é: “por substância
entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do
conceito de outra coisa da qual deva ser formado”.
88
Essa definição é o desdobramento da
primeira, sendo apresentado pelo ângulo da substância, pois substância, por essa definição, é
causa sui já que só se concebe por si e em si, ou seja, sua existência é sua essência, a qual se
autoconcebe, não precisando de outro para ser. A quarta definição diz: “por atributo entendo o
que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela”.
89
Nessa definição, Espinosa coloca a razão da multiplicidade na essência da substância,
pois esta tem em sua existência essências que a exprimem em seu gênero, tal como havia
posto na definição segunda. Os atributos são ordens que exprimem a substância em sua
totalidade, e nessa ordem. A diferença existente entre substância e atributo é que a substância
é o todo dos atributos, ou seja, são os infinitos atributos que compõem a substância, enquanto
o atributo é a substância expressa em sua totalidade sob a ordem de um atributo, ou seja, de
uma essência, que é a substância no seu gênero. Portanto a diferença entre atributo e
substância é apenas de razão, e não de essência.
A quinta definição diz: “Por modo entendo as afecções da substância, isto é, o que
existe noutra coisa pela qual também é concebido”.
90
Essa definição é o contraponto da
primeira, pois nela Espinosa está definindo a existência que não é causa sui, ou seja, a
existência que não é essência, a existência que é dependente de outra, a existência que tem
uma causa, causa essa que são as modificações da existência/essência posta pelos atributos.
Portanto, existência por empréstimo, in alio, e que se concebe pela explicação da causa.
87
Ética, parte I; Pensadores, p. 149. Definição que expressa a origem da multiplicidade pela existência da
unicidade constituída por gêneros que a exprimem.
88
Ibidem, p. 150.
89
Ibidem. Por essa definição, pode-se dar crédito a alguns intérpretes de que o atributo não seria real, pois
Espinosa diz “que o intelecto percebe da substância”, como se a noção de atributo fosse subjetiva para o intelecto
percepiente. A questão é que, em sendo o atributo auto-expressivo aquilo em que ele se expressa, implica uma
relação de entendimento entre ambos, necessariamente.
90
Ibidem. É importante entender a relação substância-modos, pois há nesta a “passagem” de infinito para finito.
Os modos são modificações reais concebidas dentro dos atributos dos quais são modos. Portanto há uma
univocidade dinâmica entre atributos e modos, univocidade esta que garante necessariamente que os modos têm
uma existência e uma essência próprias, mas, dentro da ordem que é o atributo dos quais são modos. Os atributos
explicam os modos, diretamente pela essência e indiretamente pela existência, a qual depende dos infinitos
outros modos. Assim, os modos são infinitos pela essência, mas finitos pela existência.
41
A sexta definição é apenas uma constatação semântica, já que é a introdução da idéia
de Deus como a descrição do que já se havia concebido nas definições III e IV: “Por Deus
entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos,
cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita”.
91
Espinosa explica o
absolutamente infinito para demarcar a diferença entre substância e atributo, já que este é
infinito em seu gênero e aquela infinita absolutamente.
A sétima definição é a ratificação das outras, vista sob o ângulo da liberdade, e diz:
“livre é o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é
determinado a agir e dir-se-á necessário, ou mais propriamente coagido, o que é determinado
por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira”.
92
Isso define o que é
liberdade em absoluto, pois só é livre o que é causa sui, o que age pela necessidade de sua
existência/essência. Com isso, conclui-se que só a substância que tem a existência idêntica à
essência e, portanto, é causa sui, é livre. As outras existências, que não têm suas existências
idênticas às suas essências, e sim são existências causadas, dependentes dessa causa, operam
pela determinação dessa ordem. Essas existências in alio são os modos que só existem em
função da ordem imanente da substância.
A oitava definição é: “por eternidade entendo a própria existência enquanto
concebida como seqüência necessária da mera definição da coisa eterna”.
93
Ao definir a
existência causa sui, Espinosa está a explicitar a própria eternidade, já que esta, sem causa, só
pode ser definida como eterna.
Em seguida, Espinosa coloca sete axiomas
94
, que representam as regras de operação
do intelecto na intelecção da substância. O primeiro recoloca a diferença entre substância e
modo, sendo que a substância existe por si e em si, e o modo existe em outra coisa, pela qual é
concebida. O segundo repete o primeiro de forma contrária: o que não pode ser concebido por
outra coisa deve ser concebido por si; mas ressalta a concepção da intelegibilidade da
diferença entre modo e substância. O terceiro axioma demonstra a concatenação das causas
em ordens determinadas, já que “de uma causa determinada segue-se necessariamente um
efeito; se não existe qualquer causa determinada, é impossível seguir-se um efeito”.
95
91
Ética, parte I.
92
Ibidem, p. 151.
93
Ibidem.
94
1º) Tudo o que existe, existe em si ou noutra coisa;
2º) O que não pode ser concebido por outra coisa deve ser concebido por si;
6º) A idéia verdadeira deve convir ao seu ideato.
95
Ética, parte I. – Isso parece contradizer a definição primeira, pois, que sem causa, ou seja, causa sui, não
poderia seguir nenhum efeito. Mas acontece que, nesse ponto, Espinosa está a falar da existência com causa, que
são os modos, e não da existência incausada.
42
No quarto axioma, Espinosa reafirma a intelegibilidade da rede de conexões
necessárias, já que “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e
envolve-o”.
96
Dessa forma, no conhecimento da causa já está impresso o conhecimento do
efeito, pois a causa envolve o efeito; em outras palavras, na causa existe a ordem do efeito. O
quinto axioma tem relação direta com a segunda definição, que se refere a independência dos
gêneros: “coisas que nada tenham em comum entre si também não podem ser entendidas
umas pelas outras, ou, por palavras diversas, o conceito de uma não envolve o conceito da
outra”.
97
Com esse axioma, Espinosa demarca a incomunicabilidade dos atributos, já que cada
um é uma essência que exprime a substância em seu gênero. O axioma sexto é paradigmático,
pois nele o autor desfaz a noção de verdade como relação de adequação da idéia ao objeto, o
que a tornaria verdadeira. Espinosa subverte tal conceito, pois não está a refletir sobre idéias
(imaginação) que, como tais, só existem no intelecto como representações, mas sim sobre a
idéia que é o próprio ideato, pois é efeito necessário da causa que a exprime. Por isso ele diz
que a idéia verdadeira deve convir ao seu ideato. O verbo convir explicita a não-distinção
entre idéia e ideato, pelo que, nesse caso, são a mesma coisa e, por isso, verdadeira. Isso
significa que toda vez que houver a idéia verdadeira esta será índice de verdade por si mesma,
já que a idéia verdadeira nada mais é que a presença do ente real.
98
O sétimo e último axioma remete à primeira definição, que fala da existência como
essência e à quinta definição, que fala da existência por outro: “A essência do que pode ser
concebido como inexistente não envolve a existência”.
99
Com esse axioma, novamente
Espinosa define os modos, pois eles são existência não por essência, ou seja, suas essências
não envolvem a existência, tanto que eles podem ou não existir; dependem de uma causa. Em
seguida, o filósofo passa às proposições, suas demonstrações e escólios, que são explicitações,
amiúde, no sentido de um melhor entendimento das definições e axiomas. Da proposição I à
VIII, Espinosa demonstra a unidade da substância, já que a proposição primeira faz referência
à anterioridade da substância em relação às suas modificações; o que é lógico, pois só pode
haver existência contingente a partir da existência necessária, o contrário se mostra absurdo.
As proposições segunda, terceira e quarta demonstram que as substâncias se diferenciam
96
Ética, parte I.
97
Ibidem.
98
As idéias verdadeiras são idéias adequadas, porque se referem às idéias enquanto modos dos atributos. No
TRE Espinosa demonstrou-nos que o método de reconhecimento da idéia verdadeira é reflexivo, pois não visa, a
priori, nos fazer compreender algo exterior, mas sim reconhecer que somos capazes de auto-conhecimento
gerando a idéia da idéia, ou seja, a idéia adequada da modificação da substância.
99
Ética, parte I, Axioma VII.
43
pelos seus atributos, pois estes constituem a essência dela pela definição quarta. Isso nos leva
a perceber que, se elas tiverem atributos diversos, nada terão entre si; portanto, no que diz
respeito às coisas, que nada têm em comum entre si, uma não pode ser a causa da outra, pois
isso envolveria contradição em relação ao quarto e ao quinto axioma, o que resulta na quinta
proposição, que demonstra que, se não há diferença entre substâncias que tenham os mesmos
atributos, não pode haver duas substâncias. Portanto uma substância não pode produzir outra,
pois seriam a mesma coisa, já que não se distinguiriam pelos atributos; e, não podendo ser
produzidas por outra substância, ocorre que “À natureza da substância pertence o existir”,
100
e, se o seu existir é sem causa ou causa sui, sua existência é necessariamente infinita; portanto
“Toda substância é necessariamente infinita”.
101
Espinosa acha difícil essa passagem para os que insistem em não ter a adequação de
suas idéias pelas suas causas primeiras, o que não causaria dúvidas, pois poderiam diferenciar
das substâncias as suas modificações.
“Com efeito, por substância entenderiam o que existe em si e por si é
concebido, isto é, aquilo cujo conhecimento não carece do conhecimento de
outra coisa; e, por modificação, o que existe noutra coisa e cujo conceito é
formado pelo conceito da coisa na qual existem, por cuja razão podemos ter
idéias verdadeiras de modificações não existentes, pois embora estas não
existam em ato fora do intelecto, a essência delas, não obstante, é
compreendida noutra coisa pela qual podem ser concebidas”.
102
Espinosa enfatiza a distinção entre existência necessária e existência contingente, ou
seja, dependente da causa que a concebe. Com isso, ele esclarece a unicidade da substância e,
conseqüentemente, a impossibilidade de a liberdade ser um confronto de substancialidade, em
que existiria uma relação de mando e obediência. Nas proposições seguintes, Espinosa
explicita o conceito de atributo, pois um ser tem tanto mais realidade quanto mais atributos
lhe são próprios e estes são concebidos por si, já que constituem a essência da substância. Isto
é, o atributo, princípio da multiplicidade, constitui uma essência, ou seja, uma ordenação da
substância, que está limitada entre outras ordenações, embora sejam infinitas em suas
expressões. Os atributos são substâncias em seu gênero, pois cada um exprime uma ordem
eterna e infinita da substância, portanto não há distinção entre substância e atributo pela
essência, mas sim, e somente, no fato de que a primeira consta de infinitas ordens que a
100
Ética, parte I, prop. VII.
101
Ibidem, prop. VIII.
102
Ibidem, escólio da proposição VIII. Seguindo o método, facilmente diferenciaríamos as essências e
existências da substância e dos modos, pois estes só podem ser concebidos naquela. Por exemplo: os corpos só
podem existir porque pressupõem a extensão, atributo da substância.
44
exprimem, enquanto o atributo é apenas uma dessas infinitas ordens. Isso se comprova na
proposição XI, que diz: “Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe
necessariamente”.
103
No intuito de romper a metafísica da transcendência, na qual há várias
substâncias, Espinosa ratifica a unicidade dessa metafísica, demonstrando que, se for possível
negue-se a proposição acima, contrária ao axioma sétimo – “A essência do que pode ser
concebido como inexistente não envolve a existência” como também a proposição sétima –
“À natureza da substância pertence o existir”. Portanto a existência da substância é essencial,
pois não há nada tanto nela quanto fora dela que possa impedir sua existência em infinitos
atributos.
Em seguida, Espinosa apresenta duas provas da existência da substância a posteriori:
a primeira fala que, se o que existe agora são entes finitos, estes teriam que ter mais potência,
já que existem, do que algo infinito que não existisse, o que é contraditório; a segunda segue o
mesmo raciocínio, mas no sentido da potência para a realidade de algo absoluto, que, em si,
resguardaria a infinita existência em absoluto. Espinosa relembra o seu método orgânico e
genético àqueles que insistem em ordenar seus pensamentos por causas externas ou a partir de
representações, tendo dificuldade para entender algo cuja causa é uma extensão de si mesma.
A seguir, Espinosa demonstra outra particularidade da relação atributo-substância: os
atributos não dividem a substância, já que são a essência desta. Isso nos leva à conclusão da
indivisibilidade da substância. Novamente, Espinosa subverte a metafísica da transcendência,
colocando-nos a extensão como atributo da substância, pois ela não pode dividir-se em seus
atributos, já que estes constituem a essência dela, que é infinita, portanto, indivisível: “Tudo o
que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”.
104
Portanto a
extensão e o pensamento, que, pela definição quarta, são algo que o intelecto percebe, só
podem ser atributos da substância, que é única.
103
Ética, parte I, prop. XI.
104
Ibidem, prop. XV. Deleuze, em seu livro Espinosa Filosofia Prática, na p. 59, diz que o atributo
“multiplicidade formal puramente qualitativa, permite identificar uma substância para cada atributo. A distinção
real entre atributos é uma distinção formal entre “quididades” substâncias últimas. A nosso ver, essa
interpretação contradiz frontalmente a proposição XII – “Não se pode conceber, verdadeiramente, qualquer
atributo da substância do qual resulte que a substância pode ser dividida”, como também a proposição XIII – “A
substância absolutamente infinita é indivisível” (Ética, I).
45
3.1 Da Ordem
Uma vez definida a unicidade da substância, seus atributos e suas afecções, Espinosa
mostra a diferença da ordem intuída, por uma concatenação necessária, para uma ordem
imaginada.
“Há quem imagine que Deus, à semelhança do homem, é composto de
corpo e alma, sujeito a paixões, mas das demonstrações precedentes resulta
quanto tais pessoas estão longe do verdadeiro conhecimento de Deus.
Deixo-as, porém, de lado, pois todos os que têm considerado, por pouco que
seja, a natureza divina, negam que Deus seja corpóreo; o que provam
muitíssimo bem com o fato de entendermos por corpo qualquer quantidade
com comprimento, largura e altura, limitada por alguma figura, e isto é a
coisa mais absurda que dizer se possa de Deus. Todavia, por outras razões,
mediante as quais se esforçam por demonstrar a mesma coisa, mostram
claramente que removem totalmente a substância corpórea ou extensa da
natureza divina. Ignoram, porém, por que potência divina ela poderia ter
sido criada”.
105
Conceituada a substância e suas essências, Espinosa começa, a partir da proposição
XVI, a demonstrar a concatenação lógica necessária da ação da substância, primeiro nos
modos infinitos imediatos e, em seguida, nos mediatos. “Da necessidade da natureza divina
devem resultar coisas infinitas em número infinitos de modos, isto é, tudo o que pode cair sob
um intelecto infinito”.
106
Definida geneticamente uma coisa, dela se devem desprender as conseqüências
necessárias, que constituem a essência de sua definição; então, se foi definido que a
substância é única e indivisível e que tem infinitas essências que a exprimem em uma
determinada ordem infinita em seu gênero, portanto, da definição da natureza divina tem que
resultar o que é de sua natureza: já que infinita, infinitos também são os seus modos. É
premente lembrar que essa proposição coloca a atividade eterna da substância nas suas
conseqüências, ou seja, nos seus modos infinitos, pois a ação é atividade infinita e,
conseqüentemente, eterna. A substância age nos e pelos modos.
105
Ética, parte I, escólio da prop. XV.
106
Ibidem, prop. XVI; Pensadores, p. 171. Os modo,s tanto imediatos quanto mediatos, são infinitos por suas
causas e não por suas propriedades (Ética, parte I; prop. XXI e XXII). O modo infinito imediato compreende as
partes gerais das essências individuais; por exemplo: as essências de corpo e idéias como parte tanto do atributo
extensão quanto do atributo pensamento, respectivamente. O modo infinito mediato seriam as relações em que os
modos finitos atuariam e poderiam vir a existir.
46
“Daqui resulta que Deus é causa eficiente de todas as coisas que podem cair sob um
intelecto infinito”.
107
Resulta também que Deus é causa por si mesmo, e não por acidente,
como também que é absolutamente causa primeira. Novamente, Espinosa trata da univocidade
da substância, que é concausa dos modos; ou seja, estes são expressões ordenadamente
necessárias dadas pela existência eterna de sua causa, coextensivas a eles. Na proposição
XVII, ocorre a ratificação da definição sétima, a qual diz que liberdade é causa sui, ou seja,
age segundo suas leis sem constrangimentos. Tal proposição é fundamental para o nosso
intento, pois nela Espinosa subverte os conceitos vulgares de intelecto e vontade, isto é,
respectivamente, determinação da idéia pelo objeto e liberdade de escolha, expondo
claramente a sua posição de desmantelamento da definição imaginária de Deus, já que o poder
de Deus não constitui um poder fazer possível ou a liberdade de opções contingentes, mas sua
atuação é infinita e necessariamente livre, pois ele é único e, por isso, age somente pela
necessidade de sua natureza, ou seja, pela única necessidade eterna de sua existência causa
sui.
Portanto qualquer pensamento que possa engendrar um possível está a pensar na
temporalidade das existências imaginativas, ou seja, não-gerativas, assim agiriam tanto o
intelecto quanto a vontade como modos dos atributos da substância, ensejando possibilidades
de erros e acertos, pois suas ações operariam sob a égide necessária de sua causa, que, no
caso, é imaginária.
A onipotência de uma existência sem causa corresponde à sua necessária identidade
em ato, causando, coextensivamente, em sua atividade, as conseqüências necessárias dessa
existência. Assim, “Deus é causa imanente de todas as coisas, e não causa transitiva”.
108
Essa
proposição trata da realidade enquanto substância e modos; em outras palavras, só existem as
existências necessárias sem causa e as conseqüências desta em forma de modos ou afecções
dos atributos da existência sem causa.
As proposições XXI, XXII e XXIII demonstram a necessidade das existências dos
modos infinitos imediatos e mediatos, pois são afecções diretas da essência dos atributos ou
modificações dos modos infinitos imediatos, respectivamente; portanto não sofrem afecções
de outros modos, mas derivam da definição do atributo que é infinito, já que substância. Os
modos infinitos imediatos resultam da natureza absoluta de qualquer atributo de Deus, que
107
Ética, parte I, corolário I da prop. XVI.
108
Ibidem, prop. XVIII.
47
deve ter existido sempre e ser infinito, ou, por outras palavras, é eterno e infinito pelo mesmo
atributo, enquanto que os modos infinitos mediatos são conseqüências de qualquer atributo de
Deus, enquanto é modificado por uma causa-modo que, em virtude do mesmo atributo, existe
necessariamente. Os modos infinitos tanto imediatos quanto mediatos “devem ser resultado,
necessariamente, ou da natureza absoluta de qualquer atributo de Deus, ou de qualquer
atributo afetado de uma modificação que existe necessariamente e é infinita”.
109
Pela definição quinta, os modos são existências in alio, ou seja, por outro, e esse outro
é existência sem causa. Como esses primeiros modos são eternos e infinitos, essas
propriedades só podem advir dos atributos que assim o são – a modificação primeira,
portanto, imediata, que ocasiona a segunda, por conseguinte mediata. Os modos, por terem a
existência em outro, não possuem em suas essências a existência, como confirma a proposição
XXIV.
110
“A essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência,
portanto, não são livres absolutamente, pois que não existem pela única
necessidade de sua natureza, o que resulta também que suas existências
começam e perduram em função da existência necessária já que esta não é
parte da essência dos modos. Deus não é somente causa eficiente da
existência das coisas, mas também da essência delas”.
111
Como a essência dos modos não pertence à existência, aquela é posta pela existência
necessária, o que resultará na seqüência da rede causal da essência dos modos, enquanto
conatus, ou desejo de perdurar na existência, que, como ação da existência não-necessária, é
determinada pela existência necessária tanto pela via de outros conatus quanto pela via da
essência da existência não causada, que, em sendo substância única, é livre para se auto-
determinar, o que não ocorre com os modos, já que estes são expressões certas e determinadas
dos atributos divinos: “Uma coisa que é determinada por Deus para qualquer ação não pode
tornar-se a si própria indeterminada”.
112
Portanto a ação dos modos é determinada pela
essência que a constitui e, em sendo essência, não pode ser modificada. Essa ação é
não-modificável enquanto essência e não enquanto ordem da ação, esta sim, extremamente
109
Ética, parte I, prop. XXIII.
110
A essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência. (Ética, I, prop. XXIV).
111
Ética, parte I, prop. XXV.
112
Ibidem, prop. XXVII.
48
flexível, dependente da relação que o agente tem com o objeto da ordem, que coloca a
imanência da ação, a qual dará resultados os mais diferentes possíveis.
“Qualquer coisa singular, ou, por outras palavras, qualquer coisa que é
finita e tem existência determinada, não pode existir nem ser determinada à
ação se não é determinada a existir e a agir por outra causa, a qual é também
finita e tem existência determinada, e, por sua vez, esta causa também não
pode existir nem ser determinada à ação se não é determinada a existir e a
agir por outra causa, a qual também é finita e tem existência determinada, e
assim indefinidamente”.
113
Nessa proposição, Espinosa demonstra a diferença entre os modos, que são produzidos
imediata ou mediatamente da essência dos atributos divinos e que, portanto, são eternos e
infinitos, já que são únicos, e os modos que são finitos e que, portanto, devem
necessariamente ser resultado de algum modo finito, já que nada existe além da substância e
dos modos, pelo axioma I e que os modos são apenas afecções dos atributos divinos pela
proposição XXV. A dificuldade dessa proposição mostra-se no fato de que ela trata da
passagem do infinito ao finito. Tal dificuldade pode ser esclarecida se retornarmos à definição
segunda: “uma coisa é finita no seu gênero, ou seja, quando pode ser limitada por outra coisa
da mesma natureza”.
114
Dessa forma, os modos que resultam não de Deus enquanto causa
imediata, mas dos modos que em seu gênero são limitados por outros, esses sim são as causas
da limitação de ambos, portanto a existência necessária continua sendo infinita, para esses
modos que são finitizados pela presença de outros modos, que são tanto causa de sua
existência como também de sua finitude. Na verdade, tudo é eterno, pelo ângulo da
substância, tornando-se finitizado apenas enquanto contraposto a outros modos.
“Na natureza nada existe de contingente; antes tudo é determinado pela necessidade da
natureza divina a existir e a agir de modo certo”.
115
Essa proposição ratifica as anteriores:
pois, tudo que existe em Deus, que, pela proposição XXI, é um ser necessário e único, e os
modos, que são afecções dessa existência necessária, devem, portanto, agir de forma
determinada pela ação dessa substância, da qual são modos. Por conseguinte, são
determinados tanto os modos que procedem necessariamente da ação absoluta da substância,
quanto os modos que são determinados a existir e também a operar pela ação da substância.
113
Ética, parte I, prop. XXVIII.
114
Ibidem, definição II.
115
Ibidem, prop. XXIX.
49
No escólio dessa proposição, Espinosa define o que irá chamar de natureza naturante,
ou seja, a substância e seus atributos, e natureza naturada, que são os modos resultantes da
ação dos atributos da substância. Essa demarcação é importante, pois, com ela, Espinosa passa
a referir-se às coisas que pertencem à natureza naturada – em outras palavras, aos modos.
Antes, porém, o autor se reporta à reforma do entendimento, a qual analisamos
anteriormente. Ele define que a idéia verdadeira deve convir com seu ideato, portanto aquilo
que é manifesto objetivamente no entendimento deve necessariamente existir na natureza,
pois ela é única, conforme a proposição “O entendimento, seja em ato finito ou infinito, deve
compreender os atributos de Deus e as afecções e nada mais”.
116
Há, por conseguinte, a
inteligibilidade da substância, de seus atributos e modos, pela ação de um modo imanente a
ambos, sejam eles finitos ou infinitos, já que a finitude é só uma relação entre os modos.
O entendimento em ato, quer seja finito quer infinito, assim como a vontade, a
apetição, o amor, etc. devem ser referidos à natureza naturada, e não à natureza naturante.
Sendo existência causa sui, única e eterna, a substância não pode ter vontade, intelecto,
apetição, amor, ódio, etc., como algo inerente à sua essência, pois, tudo isso são movimentos
que, em assim sendo, demandam o outro enquanto referência de tais movimentos. Assim, tais
coisas só podem pertencer à natureza naturada, ou seja, aos modos. Portanto, a vontade, em
sendo um modo da substância, não é causa sui, ou seja, sua existência se constitui in alio, o
que a coloca como não “sendo causa livre, mas somente necessária”.
117
Essa proposição é
fundamental para nosso trabalho, já que, com ela, Espinosa desfaz a possibilidade de uma
vontade inerente à substância, que agiria pela liberdade de sua vontade, portanto a vontade é
um modo do atributo pensamento, é natureza naturada, por isso opera pela necessidade do
atributo do qual é modo. Isso resulta em “que Deus não efetua coisa alguma por liberdade da
vontade, e em que a vontade e o intelecto estão para a natureza de Deus na mesma relação que
o movimento e o repouso, e, de maneira geral, todas as coisas naturais devem ser
determinadas por Deus a existir e a agir de certo modo”.
118
116
Ética, parte I, prop. XXX. Devido à univocidade dos atributos, as idéias que são modos estão adequadas em
Deus, e esses modos se interligam adequadamente, portanto um modo pode fruir em um conjunto regular da
idéia dele, da idéias dos outros, nesse conjunto que é a idéia de Deus, que a tudo contém. Dessa forma, pela
potência do modo do atributo pensamento, este se conhece e se compreende dentro de uma ordem, pois é uma
das expressões dessa ordem, o que faculta a inteligibilidade desta.
117
Ibidem, prop. XXXII.
118
Ibidem, corolário I e II da proposição XXXII.
50
Com efeito, a vontade, como tudo o mais, carece de uma causa pela qual seja
determinada a existir e a agir de certo modo. E, embora, de uma vontade dada ou de um
intelecto dado, resulte uma infinidade de coisas, nem por isso se pode dizer que Deus age pela
liberdade da sua vontade, como não se pode dizer, tendo em vista que do movimento e do
repouso resultam certas coisas, que Deus age pela liberdade do movimento e do repouso.
Dessa forma, intelecto e vontade são modos do atributo pensamento tal como
movimento e repouso são do atributo extensão e, por isso, são carentes de uma causa tanto
para existir quanto para operar. “As coisas não podiam ter sido produzidas por Deus de
maneira diversa e noutra ordem do que tem”.
119
Nessa proposição, é tratada a não
possibilidade de uma ação de Deus, senão como necessária, já que da essência de sua
constituição não faz parte qualquer movimento direcional, seja na extensão seja no
pensamento que reporte ao outro. Sendo assim, a sua ação é apenas a expressão de sua
existência causa sui, o que nos remete à proposição “A potência de Deus é a sua própria
essência”.
120
Assim, a existência necessária é agora definida como potência, ou seja, ação eterna
que a tudo concebe como existência necessária, o que se traduz como uma ação sempre
producente de um efeito, desde a natureza naturante à naturada, pois da potência de Deus, que
é causa de todas as coisas, resulta sempre algum efeito.
Em relação a isso, Espinosa afirma que a potência imanente da substância que chega
aos modos deve produzir uma ação causal com algum efeito. Essa ação que constitui a
essência do modo deve ter, enquanto causa, algo que a determine em uma ordem, de forma a
libertá-la da ação dos infinitos outros modos.
3.2 Da imagem
Tendo exposto a natureza de Deus, sua existência necessária, sua unicidade, e sua
ação, que consiste na expressão dessa mesma natureza, que, em sendo causa livre de todas as
existências in alio, determina-as, pela sua potência eterna e infinita, e não por um irrestrito ato
livre contingente, Espinosa faz uma pequena crítica aos modos de percepção voltados para os
entes de imaginação, que colocam o mundo em um sentido teleológico.
119
Ética, parte I, prop. XXXIII.
120
Ibidem, prop. XXXIV.
51
“É isto que antes de mais passarei a examinar, indagando, em primeiro
lugar, a causa por que quase toda a gente dá aquiescência a tal preconceito,
a seguir mostrarei a falsidade dele e finalmente direi como daí nasceram
prejuízos acerca do bem e do mal, do mérito e do pecado, do louvor e do
vitupério, da ordem e da confusão, da beleza e da lealdade, e outros do
mesmo gênero”.
121
Como já nos reportamos a tal problemática na discussão do TRE, diremos apenas que
tal propensão é causada pela natureza da mente humana, que será adiante melhor detalhada, a
qual propicia um entendimento imaginativo das coisas feitas para um fim, e que esse fim se
relaciona a um ente transcendente, que a tudo ordena e dispõe, por uma vontade livre, tal
como a liberdade imaginativa dos homens, que têm a opinião de que são livres, por estarem
conscientes de suas vontades e de seus apetites, mas não têm a menor idéia das causas que os
dispõem a apetecer e a querer. Por isso
“as noções com que o vulgo costuma explicar a natureza são apenas
modos de imaginar, as quais nada dão a saber acerca da natureza do
que quer que seja, mas apenas sobre a constituição da imaginação e,
porque têm nomes (bem, mal, ordem, confusão, frio, beleza, louvor,
vitupério, pecado, mérito, etc. ...), como se fossem entes existentes
fora da imaginação, chamo-lhes entes da imaginação, e não entes da
razão”.
122
121
Ética, Parte I, Apêndice.
122
Ibidem, Apêndice: Pensadores, p. 198. “O conhecimento não é a operação de um sujeito, mas afirmação da
idéia na alma; “Não somos nós quem afirma ou nega jamais nada de uma coisa, mas é ela mesma que em nós
afirma ou nega algo de si mesma” (Breve tratado, II, 16,5). O conhecimento é sempre a explicitação da idéia,
seja essa idéia duplicação da idéia enquanto modo, como idéia da idéia, ou a idéia enquanto duplicação das
afecções do corpo, o que determina os sentimentos dos conatus que varia entre uma maior ou menor potência, de
acordo com a adequação das idéias dos afetos do corpo com a idéia deste, ou então, tendo o modo idéia enquanto
causa de suas ações. Nas condições naturais da existência humana, esta é propensa a ter idéias inadequadas que
geram paixões do tipo angústia devido a não-compreensão imediata de sua existência, o que se resolve pela
ordem da imaginação. Considerando que a consciência recolhe os efeitos das afecções dos corpos, ela suprirá a
ignorância deste invertendo a ordem das coisas, tomando os efeitos pelas causas (ilusão das causas finais), como
também que esses efeitos são ações finais do corpo exterior sobre ela, assim ela se toma como causa das ações
do corpo (ilusão do livre-arbítrio)”. Ética, parte I, Apêndice.
52
4 DA ALMA
Para definir a alma, Espinosa passa a explicar a natureza naturada, ou seja, a existência
causada. As definições dizem respeito aos modos, tanto no atributo extensão quanto no
atributo pensamento:
“Por corpo entendo um modo que exprime, de maneira certa e determinada, a essência
de Deus enquanto esta é considerada como coisa extensa”.
123
O resgate que Espinosa faz do
corpo nessa definição é fruto da conseqüência necessária da unicidade da substância que
subverte a filosofia platônico-cristã, a qual tem o corpo como algo menor, que gera as
inconseqüências e erros do intelecto. Nesse caso, o corpo é considerado como uma expressão
necessária da substância, ou seja, um modo do atributo extensão.
“A essência de uma coisa é algo que, sendo dado, faz com que a coisa exista, e que,
por ela, seja concebida”.
124
Essência é a própria coisa concebida sob a ótica da existência
necessária. “Por idéia entendo um conceito da alma que esta forma pelo fato de ser uma coisa
pensante”.
125
A ação do modo alma se constitui na formação de idéias, já que a alma é
determinada a operar de acordo com o atributo do qual é modo, que, nesse caso, é o
pensamento.
“Por idéia adequada entendo uma idéia que, enquanto é considerada em si mesma, sem
relação com o objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma idéia
verdadeira”.
126
A idéia adequada é o próprio modo, que é chamado de idéia apenas enquanto
é a ação de um modo do atributo pensamento, a cujo produto dá-se o nome de idéia.
123
Ética, Parte II, definição I. Os modos são afecções dos atributos da substância (Ética, I, prop. 25, cor.). Isso
significa que, embora os modos difiram em essência e existência da substância, diferem no que há de comum,
que é o atributo. Apenas na substância o atributo é a essência dela; no modo o atributo o envolve, ou seja, é a
condição de possibilidade do modo. “Deus produz uma infinidade de coisas numa infinidade de modos”. (Ética,
I, prop. 16); é por isso que o corpo é um modo do atributo extensão, pois este pressupõe aquele.
124
Ibidem, definição II. É importante salientar a diferença de essência enquanto essência da substância que,
nesse caso, se identifica com a existência, e a essência parte da potência da substância, nos modos expressa pelos
atributos. “A potência do homem, enquanto se explica pela sua essência atual é uma parte da potência infinita,
isto é, da essência de Deus, ou seja, da natureza”. (Ética, parte IV, prop. 4, dem.).
125
Ibidem, definição III. É preciso distinguir a idéia enquanto modo da substância e as idéias representativas, que
são conceitos formados pela ação do modo idéia, portanto há que se diferir a idéia que um corpo é das idéias que
ele tem: aquela está em Deus adequadamente, estas são representações dos afetos do corpo.
126
Ibidem, definição IV.
53
“A duração é a continuação indefinida da existência”.
127
Essa definição se reporta à
segunda definição da parte I, que trata da existência finita apenas no gênero, ou seja, nos
modos que se finitizam na duração, pois sua causa eficiente é infinita, por isso não se pode
suprimi-la.
“Por realidade e por perfeição, entendo a mesma coisa”.
128
Realidade é a própria
existência absolutamente necessária e infinita.
“Por coisas singulares entendo as coisas que são finitas e que têm uma existência
determinada”.
129
Definição dos modos que têm uma duração finita não pela causa, mas pelos
outros modos e cuja existência é determinada pela ordem do atributo do qual é modo.
“A essência do homem não envolve a exisncia necessária; isto é, da ordem da
natureza tanto pode resultar que este ou aquele homem exista como que não exista”.
130
Esse
axioma define o homem como modo cuja existência não é necessária, pois os modos têm
existência causal, existem em função dos outros modos que os causam e dos atributos que os
concebem, portanto podem ou não existir.
“Homem pensa”.
131
– axioma que determina o modo homem como modo do atributo
pensamento.
“Os modos de pensar, como o amor, o desejo ou qualquer outro
sentimento da alma, qualquer que seja o nome por que é designado,
não podem existir num indivíduo senão enquanto se verifica neste
mesmo indivíduo uma idéia da coisa amada, desejada, etc. Mas uma
idéia pode existir sem que exista qualquer outro modo de pensar”.
132
Esse axioma é fundamental, pois nele Espinosa distingue modos como ação do pensar
do modo alma, que resultam em sentimentos desta, e modos como idéia ente real, que,
127
Ética, parte II, definição V. Duração é uma existência causada, portanto uma existência dos modos, existência
que tem um começo na sua causa. (Ética, parte II, prop. 8, corolário). “Daí se segue que, na medida em que as
coisas singulares não existem, a não ser enquanto compreendidas nos atributos de Deus, o seu ser objetivo, isto
é, as suas idéias, também não existem, a não ser enquanto existe a idéia infinita de Deus e, sempre que se diz que
as coisas singulares existem, não somente enquanto compreendidas nos atributos de Deus, mas enquanto se diz
que elas têm uma duração, as suas idéias envolverão também uma existência, em virtude da qual se diz que elas
têm uma duração”. Assim, quando um modo passa à existência, pela ação de outro modo, esse modo já não está
somente nos atributos, mas na duração, ou seja, sua essência passa a ser desejo ou tendência a durar na existência
(conatus). Dessa forma, nem a essência do modo nem sua causa determinam sua duração. O fim de sua duração,
ou seja, a morte, provém dos encontros inadequados com outros modos, que decompõem a relação, ou seja, a
razão que perdurava na existência (Ética, parte III, prop. 8; IV, prop. 39).
128
Ibidem, definição VI.
129
Ibidem, definição VII.
130
Ibidem, axioma I.
131
Ibidem, axioma II.
132
Ibidem, axioma III. Diferença entre as idéias enquanto modos de pensar, e as idéias enquanto afecções da
substância: aquelas sempre carecem de uma realidade da qual são representações; estas, por serem a própria
realidade, podem apenas existir nos atributos.
54
enquanto é desejado, amado, produz na alma do desejante aqueles sentimentos. Dessa forma,
a idéia pode existir sem que suscite qualquer outro modo de pensar.
“Sentimos que um determinado corpo é afetado de muitas maneiras”.
133
Sendo o
corpo modo do atributo extensão, é afetado por infinitos outros modos do mesmo atributo.
“Não sentimos nem percepcionamos outras coisas singulares além dos corpos e dos
modos de pensar”.
134
Esse axioma posiciona o homem como participante de dois atributos, já
que só percebemos os modos do atributo extensão e os modos do atributo pensamento.
“O pensamento é um atributo de Deus; em outras palavras, Deus é uma coisa
pensante”.
135
Percepcionados os pensamentos singulares ou as coisas singulares, que, pelo
corolário da proposição XXV da parte I, são apenas afecções dos atributos divinos, Espinosa
conclui que tanto o pensamento quanto a extensão são atributos divinos.
“A extensão é um atributo de Deus; por outras palavras, Deus é uma coisa extensa”.
136
Essa proposição remonta aos corolários I e II da proposição XXXII, da parte I, nos
quais Espinosa demonstrou que a potência de Deus é igual à sua essência, ou seja, sua
existência é a potência que a tudo coloca na existência in alio, portanto “existe
necessariamente em Deus uma idéia tanto da essência como de tudo que necessariamente se
segue da sua essência”,
137
o que remete à proposição XVI da mesma parte, que diz: “Deus
age em virtude da mesma necessidade pela qual se compreende”.
138
Nessas proposições, Espinosa identifica a idéia à essência, existência, potência divina,
da qual seguem necessariamente coisas infinitas em infinitos modos e diz que estas são
formadas pela ação da idéia única apenas pelo fato de ser uma coisa pensante.
“Os modos de cada atributo têm por causa Deus apenas enquanto ele é considerado
sob o atributo de que eles são modos, e não enquanto é considerado sob outro atributo”.
139
Há independência entre cada atributo e seus respectivos modos, que seguem necessariamente
da essência da substância em cada um de seus atributos.
“A ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas”.
140
Cada atributo exprime, em seu gênero, a substância, portanto a diferença dos atributos
não está na ordem e nas conexões, pois, em qualquer atributo, estas serão as mesmas, já que
todos exprimem a mesma coisa, ou seja, a substância, que é única.
133
Ética, parte II, axioma IV.
134
Ibidem, axioma V.
135
Ibidem, prop. I.
136
Ibidem, prop. II.
137
Ibidem, prop. III.
138
Ibidem, escólio da proposição III.
139
Ibidem, prop. VI.
140
Ibidem, parte I, prop. VII.
55
“As idéias das coisas singulares ou modos, que não existem, devem estar
compreendidas na idéia infinita de Deus da mesma maneira que estão contidas nos atributos
de Deus as essências formais das coisas particulares, ou seja, dos modos”.
141
Essa proposição
demonstra que apenas alguns modos, dentre os infinitos modos contidos na idéia infinita de
Deus, existem enquanto duração, pois a existência in alio dos modos depende de causas que
são outros modos.
“A idéia de uma coisa singular, existente em ato, tem por causa Deus,
não enquanto ele é infinito, mas, enquanto é considerado como sendo
afetado pela idéia de outra coisa singular existente em ato, idéia de
que igualmente Deus é causa, enquanto é afetado por uma terceira e
assim até ao infinito”.
142
Essa proposição ratifica a precedente, pois, os modos que têm existências causadas por
outros modos ad infinitum não têm como causa de sua existência Deus enquanto natura
naturas, e sim enquanto natura naturada, que se afetando mutuamente se torna a causa
infinita dos modos infinitamente – vale lembrar que a palavra “infinito”, nessa proposição,
tem um cariz temporal.
“À essência do homem não pertence o ser da substância; em outras palavras, a
substância não constitui a forma do homem”.
143
O homem, que é um modo, tem a existência enquanto tal, ou seja, a sua existência não
é sem causa, e sim causada por outros modos, portanto o modo homem existe na medida das
relações infinitas da natura naturada. Essa proposição mostra qual o lugar do homem na
realidade: define-o como uma existência modal, que opera de acordo com as ordens dos
atributos dos quais é modo, portanto sua liberdade de ação está condicionada a essa ordem.
Espinosa, mais uma vez, desfaz a possibilidade de o homem ser uma substância tal como
posto na metafísica da transcendência, pois as definições da substância como causa sui – a
infinitude, a imutabilidade, a indivisibilidade, etc. – não fazem parte da essência da existência
dos modos e, por conseguinte, não é o homem um ser necessário, mas sim um ser cuja
existência causal depende das infinitas relações dessas causas.
“A primeira coisa que constitui o ser atual da alma humana não é senão a idéia de uma
coisa singular existente em ato”.
144
A essência do homem, que, pelo axioma II, é um modo
do atributo pensamento, cuja ação é pensar, e que nesse ato se percebe constituinte, por alguns
141
Ética, parte I, prop. VIII.
142
Ibidem, prop. IX.
143
Ibidem, prop. X.
144
Ética, parte II, prop. XI.
56
modos provenientes dos atributos divinos, de todos esses modos – a idéia é o primeiro, e em
sendo dada, os outros modos são conseguintes a esse primeiro modo. Portanto, a idéia é a
primeira coisa a que chega o modo em sua ação imanente do pensar e se expressa de maneira
certa e determinada.
Isso mostra a ligação direta da idéia enquanto ato de operação do modo, cujo atributo
é o pensamento, com a substância, através dos modos infinitos mediatos e imediatos e seus
respectivos atributos. A ação do modo leva às idéias adequadas, pois estas se auto-exprimem
em sua existência intuída pela ação do modo enquanto natureza humana. Mas ocorre também
que a natureza da alma humana sofre a ação de outros modos, ou seja, outras idéias, o que
abre a possibilidade de uma concepção das idéias de forma inadequada, pois pode-se conceber
algo não por ela mesma, mas através de um outro modo, o qual imprime uma inadequação na
concepção das idéias, que passariam a ser psicológicas, e não mais ontológicas.
“Tudo o que acontece no objeto da idéia que constitui a alma humana
deve ser percebido pela alma humana, por outras palavras: a idéia
dessa coisa existe necessariamente na alma, isto é, se objeto da idéia
que constitui a alma humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse
corpo que não seja percebido pela alma”.
145
A proposição acima trata da ligação da alma com o objeto de sua referência, que, no
caso, é o corpo, pela idéia deste, que é correlato do modo corpo no atributo pensamento não
como modo desse atributo, mas como objeto-idéia da idéia, que é a primeira coisa da ação do
modo do atributo pensamento.
“O objeto da idéia que constitui a alma humana é o corpo, ou seja, um modo
determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa”.
146
Nessa proposição, Espinosa
explica a relação corpo e alma e, pelas demonstrações e escólios, sente a necessidade de
definir o corpo, pois, em sendo ele objeto da alma, esta terá mais realidade se ele em melhores
condições estiver.
4.1 Dos corpos
Espinosa divide os corpos em simples e compostos. Os simples se diferenciam pela
quantidade de movimento que possuem, e não pela substância.
145
Ibidem, prop. XII.
146
Ibidem, prop. XIII.
57
“Todos os corpos estão em movimento ou repouso; todo corpo se move, ora mais
lentamente, ora mais rapidamente”.
147
Os corpos compostos são constituídos por uma união
de corpos simples, que irá constituir o indivíduo como sendo uma razão equânime dos
movimentos destes. Portanto o corpo composto é uma relação de movimentos participados
entre corpos simples, de forma que, em mantendo essa relação, qualquer corpo pode participar
dos corpos compostos. Essa composição pode seguir ad infinitum, desde que não modifique
essa equação.
“A alma humana é apta a perceber um grande número de coisas, e é tanto mais apta
quanto mais o seu corpo pode ser disposto de um número maior de maneiras”.
148
Sendo o corpo objeto da alma, esta recebe todas as afecções a que aquele é submetido
pelos outros modos, corpos, do atributo extensão. Por essa razão, “a idéia que constitui o ser
formal da alma humana não é simples, mas sim composta de um grande número de idéias”.
149
Sendo o corpo humano composto de outros corpos simples, a alma a estes também se
refere. Nesse sentido, “a idéia de qualquer modo, pelo qual o corpo humano é afetado pelos
corpos exteriores, deve envolver a natureza do corpo humano e, ao mesmo tempo, a natureza
do corpo exterior”.
150
Essa proposição evidencia que a idéia enquanto afecção dos corpos
exteriores na alma reflete tanto a natureza do corpo exterior quanto a do corpo afetado,
portanto tentar conceber a realidade pela afetação dessa idéia em nossos corpos é dizer mais
sobre o corpo afetado do que sobre o afetante.
“Se o corpo humano é afetado de um modo que envolve a natureza de
um corpo exterior, a alma humana considerará esse corpo exterior
como existente em ato ou como lhe sendo presente, até que o corpo
seja afetado por uma afecção que exclua a existência ou a presença
desse corpo”.
151
A proposição acima é importante, pois, por ela, Espinosa demonstra o problema do
erro na concepção do real pela imaginação, não pela virtude que a alma tem de imaginar
coisas presentes enquanto ausentes, mas por tentar estabelecer uma ordem de conhecimento
147
Ética, parte II, axioma I e II. O indivíduo exprime uma essência, que é uma relação eterna que, por causas
infinitas, vem à existência enquanto duração. Portanto o corpo passa à duração quando sua essência “controla”,
em uma relação eterna, os corpos simples. Assim, vida e morte é uma relação de adequações de potencialidades.
“Os graus de potência, que convêm todos uns aos outros enquanto constituem as essências de modos, entram
necessariamente em luta na existência, na medida em que as partes extensivas que pertencem a um, em
determinada relação, podem ser retomadas por outro, numa nova relação (Ética, parte IV, prop. XXXIX e
escólio).
148
Ibidem, prop. XIV.
149
Ibidem, prop. XV.
150
Ibidem, prop. XVI.
151
Ibidem, prop. XVII.
58
pela ausência da existência real da coisa imaginada. A imaginação não é exatamente um erro;
pelo contrário, é um tipo de conhecimento que tem sua própria ordem.
“Se o corpo humano foi uma vez afetado simultaneamente por dois ou vários corpos,
sempre que, mais tarde, a alma imaginar qualquer deles, recordar-se-á imediatamente dos
outros”.
152
Essa é um proposição explicativa da memória, que seria uma ordem concatenada de
afecções na alma.
“A alma humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que este existe, senão
pelas idéias das afecções de que o corpo é afetado”.
153
Essa proposição demonstra, ao mesmo tempo, a relação corpo-alma como também a
inteira independência dos atributos, pois o modo do atributo pensamento só conhece o modo
do atributo extensão pelas afecções a que o corpo se submete dos outros modos que refletem
na idéia/corpo enquanto esta é objeto da alma.
“Existe em Deus uma idéia ou conhecimento da alma humana, o qual resulta em Deus
da mesma maneira e está em Deus na mesma relação que a idéia ou conhecimento do corpo
humano”.
154
Como a ordem é única em todos os atributos, há em Deus uma idéia da alma humana
pelo atributo pensamento, como há também uma idéia do corpo pelo atributo extensão.
“Essa idéia da alma está unida à alma da mesma maneira que a própria alma está unida
ao corpo”.
155
A idéia da alma em Deus tem como objeto a alma, assim como esta tem como objeto o
corpo, portanto a idéia da alma é a própria alma, como também a idéia do corpo é o próprio
corpo. A diferença apenas está em que a mesma coisa é expressa por atributos diferentes.
“A alma humana percebe não apenas as afecções corpo, mas também as idéias dessas
afecções”.
156
Sendo a substância única, algo que se expressa em infinitos atributos, os modos
desses atributos, tanto no pensamento quanto na extensão, são percebidos pela alma humana
ou como idéia das afecções do corpo ou como idéias dessas afecções no atributo pensamento,
como constituinte deste, já que a ordem das idéias é a mesma que a ordem das coisas.
152
Ética, parte II, prop. XVIII.
153
Ibidem, prop. XIX.
154
Ibidem, prop. XX.
155
Ibidem, prop. XXI.
156
Ibidem, prop. XXII. Os modos são modificações nos atributos. Ora, sendo a alma uma modificação do
atributo pensamento que tem como objeto a modificação do atributo extensão que é o corpo, percebe não só as
afecções deste, como também as idéias dessas afecções, pois elas estão em uma relação em Deus, enquanto este
constitui a alma humana, de modo equivalente a como a alma está para o corpo.
59
“A alma não se conhece a si mesma, a não ser enquanto percebe as idéias das afecções
do corpo”.
157
Sendo a alma atividade constante de relação intrínseca ao corpo, não tem como
escapar à possibilidade de ser objeto de si mesma sem o corpo, portanto só com as afecções
deste é que ela se concebe.
“A alma humana não envolve o conhecimento adequado das partes que compõem o
corpo humano”.
158
O conhecimento da idéia do corpo na alma é apenas uma unidade de
razão equânime dos corpos simples que compõem o corpo composto, e não a idéia dos corpos
simples individuais, de que apenas em Deus há o conhecimento, pois este é afetado ad
infinitum por aqueles que o exprimem de modo certo e singular.
“A idéia de qualquer afecção do corpo humano não envolve o conhecimento adequado
do corpo exterior”.
159
Como já foi ressaltado, o conhecimento adequado da coisa exterior só
ocorrerá pela via em que a idéia da coisa exterior advém de sua própria expressão em Deus, e
não quando passa pelo corpo, cujo conhecimento se dá mais sobre si mesmo do que sobre a
coisa exterior.
“A alma humana não percebe nenhum corpo exterior como existente em ato, a não ser
pelas idéias das afecções do seu próprio corpo”.
160
A alma é sempre uma atividade cujo
objeto é o corpo, portanto ela só percebe um corpo exterior pela afecção deste no objeto de
sua atividade, ou seja, o corpo.
“A idéia de qualquer afecção do corpo humano não envolve o conhecimento adequado
do próprio corpo humano”.
161
Uma afecção do corpo é sempre uma ordenação parcial na qual
a alma se coloca, não sendo, portanto, conhecimento da totalidade do corpo humano.
“As idéias das afecções do corpo humano, consideradas apenas na sua relação com a
alma humana, não são claras e distintas, mas confusas”.
162
As idéias das afecções do corpo
são sempre representações do próprio corpo para a alma, são como simulacros, pois não
envolvem a expressão de si mesmas. Assim, o conhecimento por essa via é um conhecimento
imaginativo, feito por representações do real a partir do corpo, conclusões sem premissas,
157
Ética, parte II, prop. XXIII. A idéia que a alma é, no atributo pensamento, não é conhecida por ela de forma
espontânea; é preciso uma gênese da idéia da idéia para que esta se reconheça: “Pois nós não temos a idéia que
somos, pelo menos imediatamente: ela está em Deus, enquanto ele é afetado por uma infinidade de outras idéias.
(Ética, parte II, prop. 11, cor.). “O que temos é a idéia do que acontece ao nosso corpo, a idéia das afecções do
nosso corpo, e é apenas por tais idéias que conhecemos imediatamente nosso corpo e os outros, nosso espírito e
os demais”. (Ética, parte II, prop. 12-31). Como a substância é única, as idéias das afecções têm uma
correspondência, já que as idéias das afecções do corpo representam as idéias enquanto modos do atributo
pensamento.
158
Ibidem, prop. XXV.
159
Ibidem, prop. XXVI.
160
Ibidem, prop. XXVII.
161
Ibidem, prop. XXVII.
162
Ibidem, prop. XXVIII.
60
conhecimento inadequado, enquanto expressão do real. O conhecimento adequado passa pela
atividade de reconhecimento do modo enquanto gerado de outros modos, concatenados
necessariamente nos atributos.
“A idéia da idéia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve o
conhecimento adequado da alma humana”.
163
Como a alma não tem a si mesma como objeto,
apenas pode ter um conhecimento confuso de si, pois, só se percebe pelas afecções do corpo,
portanto conhecimentos advindo do exterior, os quais dizem mais respeito ao corpo do que a
alma.
“Não podemos ter, da duração do nosso corpo, senão um conhecimento extremamente
inadequado”.
164
Sendo o modo uma existência causal, a duração deste depende das relações
com outros modos. Assim, a alma, tendo as afecções desses modos, não pode ter uma idéia
adequada de sua duração, pois envolve infinitas causas, que estão na ordem comum da
natureza, ou seja, na natureza naturada, que se constitui de modos que se finitizam; portanto
também “não podemos ter da duração das coisas singulares que existem fora de nós, senão um
conhecimento extremamente inadequado”.
165
É o que Espinosa chama de contingente, pois
não se têm uma idéia adequada de sua duração.
4.2 Das idéias
“Todas as idéias, enquanto se referem a Deus, são verdadeiras”.
166
As idéias, que são
modos necessários da existência causa sui são verdadeiras, por a expressarem, não tendo nada
que as contradiga nem que as falseie. Toda idéia que em nós é absoluta, isto é, adequada e
perfeita, é verdadeira. Quando intuímos a idéia pela sua expressão necessária, percorremos o
caminho das idéias enquanto modos dos atributos divinos, significando tê-las em suas
essências.
“A falsidade consiste numa privação de conhecimento que envolve as idéias
inadequadas, isto é, mutiladas e confusas”.
167
A falsidade e o erro são conseqüência de
termos idéias advindas não da essência delas mesmas, ou seja, pelo caminho a que nos
163
Ética, parte II, prop. XXIX. Isso acontece pela ordem comum da natureza humana, que apenas espelha a força
da afecção em seu espírito.
164
Ibidem, prop. XXX.
165
Ibidem, prop. XXXI.
166
Ibidem, prop. XXXII.
167
Ibidem, prop. XXXV.
61
referimos anteriormente, e sim pelas representações que envolvem mais aspectos de
percepção do modo corpo do que a idéia em sua expressão necessária dos atributos divinos.
No escólio dessa proposição, Espinosa dá o exemplo da possibilidade do erro quando
os homens imaginam ser livres, por terem a consciência das suas ações, embora ignorem as
causas destas. Usam a palavra “vontade” para se referirem a essas causas, o que demonstra
sua ignorância, pois não têm a menor idéia do que seja a vontade nem de como ela age sobre
o corpo. Portanto o erro da idéia da liberdade consiste em agirmos pelos efeitos das coisas
sobre o nosso corpo, e não pelo encadeamento ontológico dos elos que consistem nas idéias
necessárias dos atributos divinos.
“As idéias inadequadas e confusas resultam umas das outras com a mesma
necessidade que as idéias adequadas, isto é, as idéias claras e distintas”.
168
As idéias
inadequadas e confusas assim o são quando vistas pela ótica da singularidade parcial da alma
humana permeada pela confusão entre os modos corpo e alma, e não pela necessidade
absoluta de expressividade dos atributos divinos, portanto, em essência, não há idéias
inadequadas e confusas.
“O que é comum a todas as coisas e existe igualmente no todo e nas partes não
constitui a essência de nenhuma coisa singular”.
169
Espinosa, com essa proposição e as
seguintes, demonstra o porquê de termos noções comuns, ou seja, conhecimentos de segundo
gênero, comuns a todos, pois a existência comum das coisas não constitui, como é óbvio, a
essência particular dessas coisas. Assim, se as coisas que são comuns existem tanto no todo
quanto nas partes, elas só podem ser concebidas adequadamente, mesmo pelas partes da qual
são comuns.
“Daquilo que é comum e próprio ao corpo humano e a certos corpos exteriores, pelos
quais o corpo humano é habitualmente afetado, e é comum e próprio a cada uma das suas
partes, assim como o todo, a idéia existirá adequadamente na alma”.
170
Essa proposição
demonstra a conveniência da adequação das idéias entre os modos.
“Todas as idéias que resultam, na alma, das idéias que nela existem adequadas são
também adequadas”.
171
No escólio dessa proposição, Espinosa demonstra o erro advindo do
segundo gênero de conhecimento, que cria os universais, fruto da dificuldade que tem a alma
humana de se ordenar pela ordem necessária da substância, seus atributos e modos, pois o que
existe são substância e seus modos. Qualquer conhecimento que tenta encontrar nexos
168
Ética, parte II, prop. XXXVI.
169
Ibidem, prop. XXXVII. Ver nota 31.
170
Ibidem, prop. XXXIX.
171
Ibidem, prop. XL.
62
universais entre tais coisas opera no ordenamento dos entes de razão, tais como: ser, homem,
liberdade, etc. Tais universais correspondem à possibilidade de um referencial comum à
infinitude dos modos, que, obviamente, supera a capacidade que a força da imaginação possa
perceber “efetivamente a alma não pode imaginar o número exato dos singulares”.
172
Disso
resulta que temos percepções e noções universais das coisas singulares que os sentidos
representam mutiladas, confusas e sem ordem para a inteligência. Dos sinais e dos fatores de
que ouvimos falar ou das palavras e das coisas as quais recordamos, formamos idéias
semelhantes àquelas pelas quais imaginamos as coisas, que nos dão o conhecimento de
primeiro gênero. Também das noções comuns tiramos o conhecimento de segundo gênero.
“Além desses dois há um terceiro gênero, que resulta do conhecimento que procede da idéia
adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da
essência das coisas”.
173
“O conhecimento de primeiro gênero é a única causa da falsidade, ao contrário, o
conhecimento do segundo e do terceiro gêneros é necessariamente verdadeiro”.
174
Como já
discutimos, apenas o segundo e terceiro gêneros de conhecimento partem de idéias adequadas,
seja pelas noções comuns dadas pela substância comum a todos, seja pela intuição adequada
dos modos necessários dos atributos; por isso o conhecimento do segundo e o do terceiro
gêneros, e não o do primeiro, ensinam a discernir o verdadeiro do falso.
“Aquele que tem uma idéia verdadeira sabe, ao mesmo tempo, que tem uma idéia
verdadeira e não pode duvidar da verdade da coisa”.
175
Como se trata da imanência da
substância única com relação aos seus modos, não há por que o modo duvidar, ou mesmo não
reconhecer, uma idéia verdadeira, pois ela é a expressão necessária dos atributos divinos,
portanto comum aos modos, sendo índice de verdade em si mesma.
“É da natureza da razão considerar as coisas não como contingentes, mas como
necessárias”.
176
Essa proposição apresenta a razão como a possibilidade eminente de
percepção da substância, pois opera sob a ótica da eternidade. Obviamente, a razão da qual
Espinosa fala não é a razão como discurso dialógico ou reflexão subjetiva de um eu
172
Ética, parte II, esc. I da prop. XL.
173
Ibidem, esc. II da prop. XL.
174
Ibidem, prop. XLI.
175
Ibidem, prop. XLIII. Nosso entendimento explica-se como parte integrante do entendimento divino. (Ética,
parte II, prop. XI, cor.). Sendo o entendimento infinito um modo, é unívoco com os modos conseqüentes.
Portanto a idéia adequada ou verdadeira é adequada tanto nos modos finitos quanto nos modos infinitos, pela
univocidade dos atributos.
176
Ibidem, prop. XLIV. As noções comuns são sempre as relações necessárias e eternas dos atributos e modos e
dos modos entre si.
63
hipostasiado, mas a razão como sinônimo de intuição de uma ordem necessária tal que,
definido um modo, tem-se necessariamente o outro a partir da definição do primeiro.
“Qualquer idéia de um corpo qualquer, ou de uma coisa singular existente em ato
envolve necessariamente a essência eterna infinita de Deus”.
177
É preciso separar, para um
melhor entendimento, o conceito de existência. Espinosa usa a palavra “existência” não como
duração de algo, ou seja, uma temporalização quantificável que é causada e finitizada por
infinitos modos, mas a existência não causada, que é imanente da subsncia e seus atributos
aos modos e que, portanto, é eterna e comum a todas as coisas singulares. Disso se deduz
“que o conhecimento da essência eterna e infinita de Deus que cada idéia envolve é adequado
e perfeito, e que também a alma humana tem um conhecimento adequado da essência eterna e
infinita de Deus”.
178
Sendo a alma humana um modo dos atributos divinos, ela participa da existência
comum a todas as coisas. Essa existência é a substância que está tanto no todo quanto nas
partes, que possibilita um fruir do modo alma enquanto conhecimento adequado de si mesma
para outros modos comuns perpassados pela substância através de seus atributos a todos os
modos. Será exatamente esse fruir que nos trará liberdade.
“Na alma não existe vontade absoluta ou livre, mas a alma é determinada a querer isto
ou aquilo por uma causa que também é determinada por outras, e essa outra, por sua vez, por
outra, e assim até ao infinito”.
179
Essa proposição é fundamental para o nosso intuito, já que,
com ela,. Espinosa demonstra que o que chamamos de vontade é apenas um nome para a
infinidade de afirmações ou negações que a alma faz. A vontade não constitui uma faculdade
da alma – isso é uma idéia inadequada da existência causal – como também não há uma alma
cognoscente ou concupiscente, como afirma a tradição judaico-cristã.
Sendo uma existência causal, o que é chamado vontade é um modo do atributo
pensamento que se identifica com a causa ou idéia da qual é efeito, portanto a vontade é a
própria força de existência do modo que procura afirmar-se no objeto do seu desejo.
“Na alma, não existe nenhuma faculdade absoluta de querer e não querer, mas
somente volições singulares, isto é, esta e aquela afirmação, e esta e aquela negação”.
180
Incapaz de diferenciar as infinitas articulações dos modos externos que geram o querer ou não
querer, a alma usa um recurso mnemônico ao qual dá o nome de vontade. Com o uso, esse
ente de razão passa, através da imaginação, a figurar como algo independente dos atos
177
Ética, parte II, prop. XLV.
178
Ibidem, prop. XLVI e prop. XLVII.
179
Ibidem, prop. XLVIII.
180
Ibidem, demonstração da prop. XLIX.
64
singulares de afirmação do modo no atributo pensamento. Espinosa demonstra que, tratando-
se de um ente de razão, a vontade se identifica com a idéia que é o próprio modo.
“A vontade e a inteligência são uma só e mesma coisa”.
181
Como dantes exposto,
vontade e intelecto não são faculdades da alma, mas sim modos do atributo pensamento, que,
enquanto vistos pelo ângulo do modo alma, são uma só e mesma coisa, já que ambos tratam
de afirmar ou negar idéias singulares. Com isso, Espinosa põe por terra a afirmação cartesiana
de que o erro ocorre pelo fato de que a vontade seria infinita, enquanto o intelecto finito. O
autor diz, no escólio:
“concebo que a vontade é mais extensa que a inteligência, se por
inteligência se entendem apenas as idéias claras e distintas, mas nego
que a vontade seja mais extensa que as percepções, por outras
palavras, que a ‘faculdade’ de conceber... pois que com a mesma
‘faculdade’ de querer, podemos afirmar uma infinidade de coisas,
assim também, com a mesma ‘faculdade’ de sentir, podemos sentir ou
conceber uma infinidade de corpos”.
182
Portanto não há diferença entre querer e conceber, pois ambos são infinitos: o que
quero é o que eu concebo. Nesse sentido, Espinosa coloca em xeque a questão de se conceber
a vontade como algo fora do concebido, algo que pode absolutamente indeterminar-se, para,
em seguida, determinar-se.
“A vontade é algo de universal que se predica de todas as idéias e que
significa apenas o que é comum a todas as idéias; por outras palavras,
ela é a afirmação de que a essência adequada assim concebida
abstratamente deve existir em todas as idéias e, sob esse ponto de
vista somente, é a mesma em todas, mas não enquanto é considerada
como constituindo a essência da idéia, pois, nesse ponto de vista, as
afirmações diferem entre si, tanto como as próprias idéias”.
183
O que Espinosa quer deixar claro é a diferença de ordenamento da alma quando ela
confunde universais com singulares, entes de razão e as representações com os modos
necessários pela imanência dos atributos.
181
Ética, parte II, cor. da prop. XLIX.
182
Ibidem, parte II, escólio da prop. XLIX. A grande subversão da Ética é demonstrar que a vontade nunca é
livre; está sempre vinculada ao objeto em relação ao qual se tem vontade ou querer: “a vontade não pode ser
nomeada causa livre, pois finita ou infinita, é sempre um modo que é determinado por outra causa ainda que essa
causa seja Deus”. (Ética, parte I, prop. XXXII e Demonstração). Assim, sendo a vontade objetivação do objeto
na mente, aquele determina esta. Mas, como o modo é uma essência, a qual significa potência de ação dada pela
substância este pode-se tornar livre pelas idéias adequadas tanto essas significando noções comuns (2º gênero de
conhecimento) quanto essências adequadas pela univocidade dos atributos nos modos (3º gênero de
conhecimento).
183
Ibidem, Escólio da prop. XLIX.
65
5 DAS AFECÇÕES
Nessa fase, Espinosa demonstra que as afecções da natureza humana são dedutíveis da
ordem total e imanente da natureza. A filosofia platônico-cristã, na maioria das vezes,
desdenha e ridiculariza o homem, por julgá-lo como um ser de vontade livre e, portanto, fora
da totalidade à qual se contrapõe, tendo, dessa forma, a possibilidade de dar a essa totalidade
um ordenamento estranho a ela e, por conseguinte, sendo ele mesmo algo que deva ser
mudado pela força dessa mesma vontade livre. Suas paixões, supostamente “negativas”, são
expressões de sua fraqueza de espírito, e não algo imanente à própria condição do modo
homem, como exporá Espinosa. Sendo a substância única e anterior aos seus modos, as
reações destes não estão fora daquela, ou seja, o modo homem não é um império num
império. Com isso, Espinosa resgata a naturalidade do homem, colocando-o em um
posicionamento adequado tanto para um ordenamento conseqüente dentro da totalidade
quanto para uma compreensão das afecções do modo homem como reações necessárias desse
mesmo ordenamento.
“Nada acontece na natureza que possa ser atribuído a um vício desta;
a natureza, com efeito, é sempre a mesma, a sua virtude e a sua
potência de agir são unas e por toda parte as mesmas... Portanto, as
afecções de ódio, de cólera, de inveja, etc., consideradas em si
mesmas, resultam da mesma necessidade e da mesma força da
natureza que as outras coisas singulares, por conseguinte, é possível
também falar dessas coisas à moda dos geômetras”.
184
Assim o filósofo diz: “Chamo causa adequada aquela cujo efeito pode ser claro e
distintamente compreendido por ela, chamo causa inadequada ou parcial aquela cujo efeito
não pode ser percebido por ela”.
185
Espinosa esclarece que a causa adequada é aquela cujo
efeito está contido nela mesma, ou seja, o efeito é apenas a explicitação do que já está na
causa.
“Digo que somos ativos quando se segue da nossa natureza, em nós
ou fora de nós, qualquer coisa que pode ser conhecida clara e
distintamente apenas pela nossa natureza. Mas, ao contrário, digo que
somos passivos quando em nós se reproduz qualquer coisa ou
qualquer coisa se segue da nossa natureza, de que não somos senão a
causa parcial”.
186
184
Ética, parte III.
185
Ibidem, definição I.
186
Ibidem, definição II.
66
A ação é sinônima de causa adequada, a paixão é sinônima de causa inadequada; ou
seja, quando um efeito celebra a explicitação de sua causa, temos uma ação ou causa
adequada; quando não, temos paixão.
“Por afecções, entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse
corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias dessas
afecções”.
187
É o conceito de afecções enquanto páthos,
188
ou seja, mudança na força de ação
do modo, afecção da substância, tanto no sentido de aumentá-la, (páthos positivo), quanto no
sentido de diminuí-la (páthos negativo). Obviamente, isso ocorre nos dois atributos, ou seja,
na extensão e no pensamento.
“A nossa alma, quanto a certas coisas, age, mas quanto a outras sofre, isto é, enquanto
tem idéias adequadas, é necessariamente ativa em certas coisas, mas, enquanto tem idéias
inadequadas, é necessariamente passiva em certas coisas”.
189
Essa proposição demonstra a
naturalidade tanto da causa adequada como da inadequada, portanto a alma possui
necessariamente idéias inadequadas ou parciais. As adequadas decorrem do efeito necessário
de uma idéia dada em ato, que, portanto, está adequada tanto no modo, pois é ela mesma,
quanto em Deus, já que essa idéia é o encadeamento infinito necessário de outras idéias nos
atributos da substância. As inadequadas são necessárias, pois são infinitos modos dos
atributos da substância e estão adequadas apenas na substância, mas inadequadas nos outros
modos.
“Nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo ao
movimento ou ao repouso, ou a qualquer outra coisa”.
190
Trata-se da ratificação da independência dos atributos. A substância é expressa por
infinitas ordens, que são diferentes quanto à qualidade, mas iguais quanto à ordem, pois
expressam todas a mesma coisa. Na demonstração dessa proposição, Espinosa comenta a
ignorância que temos de nosso corpo, já que temos a falsa idéia de que ele é governado pela
alma.
187
Ética, parte III, definição III.
188
Páthos – Sentimento, estado da alma. Os afetos, enquanto sentimento, são os estados que o conatus apresenta
quando lhe é impressa alguma afecção exterior. Essas afecções determinam a consciência. “O conatus tornado
consciente de si sob este ou aquele afeto chama-se desejo, sendo este sempre desejo de alguma coisa. (Ética,
parte III, demonstração da proposição IX, p. 284).
189
Ética, parte III, prop. I. É importante salientar que a ética espinosana é toda baseada na virtude, entendida esta
como ação em si do conatus. Portanto a potência do conatus dependerá de quanto de idéias adequadas possui,
pois, com estas, o conatus se expandirá de forma conveniente, já que se expressará com um mínimo de afecções
negativas ou contrárias à sua existência.
190
Ibidem, prop. II.
67
“Daí resulta que a maioria julga que a nossa liberdade de ação existe
apenas em relação às coisas que desejamos. A experiência demonstra
facilmente que o corpo, as mais das vezes, age independente de nossa
vontade, como no caso do sonâmbulo ou quando vemos o melhor e
fazemos o pior. Ignorantes das causas pelas quais são determinados,
os homens se julgam livres apenas porque são conscientes das suas
ações. Além disso, as decisões da alma nada mais são que os próprios
apetites, e, por conseguinte, variam conforme as variáveis disposições
do corpo”.
191
Com isso, Espinosa leva-nos à conclusão de que a alma opera tal como opera o corpo,
não é superior a este. Dado qualquer modo frente ao modo homem, este agirá,
simultaneamente, tanto no atributo extensão quanto no pensamento em ato.
“As ações da alma nascem apenas das idéias adequadas; as paixões dependem apenas
das idéias inadequadas”.
192
As idéias adequadas são automoventes ou autoconseqüentes, pois, a uma causa
determinada, segue-se necessariamente um efeito. Quando não se tem uma idéia adequada,
fica-se na dependência de idéias advindas de outros modos, expressão dos atributos da
substância.
“Nenhuma coisa pode ser destruída, a não ser por uma causa exterior”.
193
Essa
proposição ratifica a infinitude das coisas, na natureza naturante, que se finitizam apenas no
nível da natureza naturada, pois, nesse nível, se contrapõem mutuamente, já que “são
singularidades de natureza contrária, isto é, não podem coexistir no mesmo sujeito, na medida
em que uma pode destruir a outra”.
194
“Toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”.
195
Essa é a definição de existência no nível dos modos ou da natureza naturada, que não é
por si, então está sendo, por isso deseja a existência que é.
“O esforço pelo qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência
atual dessa coisa”.
196
Tal proposição apresenta a essência da existência causal ou modal
191
Ética, parte III, escólio da proposição II.
192
Ibidem, prop. III.
193
Ibidem, prop. IV.
194
Ibidem, prop. V.
195
Ibidem, prop. VI. Sendo o conatus consciência dos afetos do corpo, este torna-se dependente dessas afetos
para se manter na existência; portanto, quanto mais os afetos são adequados, mais potencializam a existência do
conatus. “O conatus é, pois esforço para aumentar a potência de agir ou experimentar paixões alegres, ou seja
ações”. (Ética, III, prop. XXVIII).
196
Ibidem, prop. VII. “A potência do homem, enquanto se explica pela sua essência atual, é uma parte da
potência infinita de Deus ou da natureza”. (Ética, parte IV). O esforço de se preservar na existência, que é
conatus, é a consciência da manutenção da relação essencial, que é o modo, pelos afetos ou sentimentos que as
68
como um esforço ou desejo de perpetuação na existência não-causal, o que é uma tradução
necessária no nível dos modos da existência infinita, e a torna necessária, pois é causa
adequada pela própria substância. “O esforço pelo qual cada coisa tende a perseverar no seu
ser não envolve tempo finito, mas um tempo indefinido”.
197
“A alma, quer enquanto tem idéias claras e distintas, quer enquanto tem idéias
confusas, esforça-se por perseverar no seu ser por uma duração indefinida e tem consciência
do seu esforço”.
198
Sendo a essência do modo o esforço indefinido de perpetuação na existência infinita,
esse esforço ocorre independente de esta ter ou não idéias adequadas. No escólio, Espinosa
diz que esse esforço, visto apenas pelo atributo pensamento, chama-se vontade e, quando
referido ao mesmo tempo aos dois atributos, chama-se apetite. Portanto é, “apetite” o nome
para o esforço do homem, pois essa palavra traduz as ações necessárias do homem no sentido
de sua conservação. Não há também diferença entre apetite e desejo, a não ser que o desejo se
aplique aos homens quando têm a consciência do seu apetite. Chegamos, assim, à definição de
homem: desejo consciente.
“Uma idéia que exclui a existência do nosso corpo não pode existir na nossa alma,
mas é-lhe contrária”.
199
Tudo que existe é positivo por si mesmo, sendo negativo apenas em
relação ao outro ao qual se contrapõe; portanto, na alma, não existe uma idéia, em essência,
que a exclua.
“Se uma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência de agir do nosso
corpo, a idéia dessa mesma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência de pensar
da nossa alma”.
200
Como a ordem das coisas é a mesma em todos os atributos e o corpo é a primeira idéia
da alma, não há como não ser potencializado em um atributo e despontencializado noutro,
tendo uma só idéia enquanto causa.
No escólio, há uma outra idéia das afecções, agora sob a ótica do conceito de
perfeição, no sentido de aproximação ou não da realidade enquanto facilitação da manutenção
do esforço do modo na existência. Sob essa ótica, as afecções podem ser genericamente
divididas em dois grandes grupos – as que facilitam a existência do modo, e são chamadas de
alegria, e as que dificultam e são chamadas de tristeza: “Por alegria, entenderei a paixão pela
afecções causam no mesmo. Portanto essa consciência em ato torna-se a essência do modo, já que, este passando
à existência, “abre-se à possibilidade máxima a ter aptidão para ser afetado”. (Ética, parte IV, prop. XXXVIII).
197
Ética, parte III, prop. VIII.
198
Ibidem, prop. IX.
199
Ibidem, prop. X.
200
Ibidem, prop. XI.
69
qual a alma passa a uma perfeição maior, por tristeza, ao contrário, a paixão pela qual a alma
passa a uma perfeição menor”.
201
Espinosa, portanto, define três afecções primárias: alegrias, tristezas e desejos. A partir
destas, ele define quase todo o grupo de páthos possíveis, tais como: “o amor não é senão a
alegria acompanhada da idéia de uma causa exterior, e o ódio não é senão a tristeza
acompanhada da idéia de uma causa exterior”.
202
Além disso: “a alma esforça-se, tanto
quanto pode por imaginar as coisas que aumentam ou facilitam a potência de agir no
corpo”,
203
pois, sendo ela ação indefinida de existência modal, procura agir (imaginar) as
coisas que possibilitam sua existência e excluir as que dificultam.
“Se a alma foi afetada uma vez, simultaneamente, por duas afecções, sempre que, a
seguir for afetada por uma delas, será também afetada pela outra”.
204
Essa é a explicação para a simpatia ou a antipatia, já que as afecções dizem mais
respeito ao nosso corpo do que aos corpos exteriores. Sendo a ação imaginativa recordação
das afecções do corpo, sempre que tivermos uma recordação, a relacionaremos a outra que
tivemos simultaneamente àquela. Assim pode acontecer de “uma coisa qualquer ser, por
acidente, causa de alegria, de tristeza ou desejo.
205
Nas proposições seguintes, Espinosa explica as mais variadas manifestações de páthos
da alma, na medida em que ela é envolvida por esta ou aquela idéia, resultando em um
complexo de situações psicológicas, fruto da ação imaginativa da alma sendo afetada por
infinitos corpos exteriores. Assim, temos: orgulho, comiseração, esperança, medo, segurança,
desespero, etc. ...
5.1 Potência das afecções
Passemos, agora, à análise da força das afecções sobre a natureza humana. Definida
anteriormente a paixão como uma idéia confusa pela qual a alma afirma a força de existir,
maior ou menor, do seu corpo ou de uma parte deste, e na presença dessa idéia confusa na
alma esta é levada a pensar em tal coisa em detrimento de outra, sendo alternadamente
conduzida pela excelência do objeto causa desta idéia confusa.
201
Ética, parte III, escólio da proposição XI.
202
Ibidem, escólio da prop. XIII. Veja-se os afetus sempre são acompanhados de uma causa real. Isso se fará
importante para entendermos a liberdade, já que ela ocorrerá por um afeto a algo realíssimo.
203
Ibidem, prop. XII.
204
Ibidem, prop. XIV, p. 287. Ibidem, prop. XV.
205
Ibidem, prop. XV.
70
Nessa parte, Espinosa expõe oito definições, que encadeiam o entendimento imanente
de bem e mal, já que por isso o filósofo entende, respectivamente, aquilo que temos certeza de
nos ser útil e aquilo que nos impede de ter o que julgamos útil à preservação de nossa
existência.
A terceira definição diz respeito às coisas singulares, cuja existência é contingente, ou
seja, que existem não pela necessidade da natureza naturante, mas pelas relações contingentes
da natureza naturada. Claro que esta opera de acordo com a necessidade da substância
enquanto natureza naturante, pois os modos são expressões naturais e necessárias de seus
atributos: “Chamo contingentes às coisas singulares, enquanto, considerando nós somente a
sua essência, nada encontramos que ponha necessariamente a sua existência, ou que
necessariamente a exclua”.
206
A quarta definição é a diferenciação do conceito de possível em relação a contingente:
este é visto pelo aspecto da essência da coisa particular e aquele visto no âmbito do intelecto
cognoscente, que identifica as causas que produziram tal coisa particular: “Chamo possíveis
as mesmas coisas singulares, enquanto, atendendo nós às causas pelas quais devem ser
produzidas, ignoramos se elas são ou não determinadas a produzi-las”.
207
Espinosa, nesse estágio, reporta-se aos modos. Faz-se necessário, assim, distinguir o
que é contingente do que é possível. Este se diz da existência percebida não pela essência,
mas sim pelas causas que podem ou não produzir tal coisa particular; aquele diz respeito à
existência como necessidade lógica de sua essência, ou seja, que não envolve nenhuma
contradição.
A quinta definição diz respeito ao conceito de afecções contrárias, que seriam idéias
confusas, contrárias por acidente e não em suas essências, tais como: gula e avareza, que são
tipos de uma afecção mais geral, no caso, o amor: “Por afecções contrárias entenderei as que
arrastam o homem em sentidos opostos, embora sejam do mesmo gênero – como a gula e a
avareza, que são espécies de amor – e que não são contrárias por natureza, mas por
acidente”.
208
A sexta definição nos remete à não-temporalização das afecções, que são sempre
presentes, mesmo que na temporalidade tenha ocorrido um intervalo, ao qual damos o nome
genérico de “tempo”. Portanto o tempo não necessariamente anula a força de uma afecção;
206
Ética, parteIV; Pensadores, definição III.
207
Ibidem, definição IV.
208
Ibidem, definição V.
71
apenas a torna um pouco confusa pelas imagens de outras afecções, mas ela pode ser
resgatada, como se estivesse presente.
“O homem experimenta pela imagem de uma coisa passada ou futura a mesma afecção
de alegria ou de tristeza que pela imagem de uma coisa presente”.
209
A penúltima definição dessa parte trata do apetite, que é a paixão sob a égide do
corpo, em vista de um fim, que o movimenta: “Por fim, em vista do qual fazemos alguma
coisa, entendo o apetite”.
210
Na última definição, é colocada a sinonímia entre virtude e potência como sendo a
expressão da essência da coisa dada, que age conforme à sua natureza.
“Por virtude e potência entendo a mesma coisa; quer dizer, a virtude, enquanto se
refere ao homem, é a própria essência ou natureza do homem, enquanto tem o poder de fazer
algumas coisas que só podem ser compreendidas pelas leis da própria natureza”.
211
Postas essas definições, que nos facultam o entendimento da potência das afecções,
Espinosa lança mão de apenas um axioma, no qual afirma: “não existe, na natureza, nenhuma
coisa singular tal que não exista uma outra mais poderosa e mais forte que ela. Mas, dada uma
coisa qualquer, é dada uma outra mais poderosa pela qual a primeira pode ser destruída”.
212
Esse axioma é fundamental para o assunto que estamos abordando, pois gera sempre uma
possibilidade, senão de sermos livres absolutamente, mas de operarmos nossa virtude
(potência = existência) no sentido de não estarmos à mercê das orientações das paixões.
Como isso ocorre é o que veremos a seguir.
Em primeiro lugar, Espinosa diz que a potência das paixões só acontece na medida em
que o intelecto não segue a ordem necessária dos encadeamentos dentro do atributo
pensamento, pois “nada do que uma idéia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do
verdadeiro, enquanto é verdadeiro”.
213
Portanto não é a presença da verdade que suprimirá o
falso, pois, neste sentido – apenas da idéia enquanto afecção do corpo –, a idéia falsa é
também verdadeira, ela é um ente de imaginação formado na alma, em função de que esta
recebe todas as afecções do corpo e forma as idéias a partir deste, o que a torna verdadeira, no
plano do conhecimento imaginativo. Obviamente, ela não suportará um desenvolvimento
ontológico necessário, que é a prerrogativa das idéias adequadas, pois de suas existências não
será possível um desdobramento genético de outras existências, o que demonstra a sua
209
Ética, parte III; proposição XVIII.
210
Ibidem, parte IV; definição VII.
211
Ibidem, parte IV; definição VIII.
212
Ibidem, parte IV; axioma I.
213
Ibidem, prop. I.
72
falsidade. Isso ocorre pelo fato de sermos um modo da substância e, assim, termos sempre as
afecções dos outros modos que nos afetam no atributo pensamento a partir do atributo
extensão, pelo modo corpo. Com isso, podemos perceber o quanto é limitada a força de nosso
conatus frente aos infinitos outros modos.
Portanto o que nos resta, já que somos parte imanente da natureza, é nos atermos às
idéias adequadas que nossa natureza pensante nos faculta, pois será por elas que poderemos
obter um mínimo de liberdade, já que a força das paixões não depende de nossa persistência
na existência, mas da existência de um modo externo, que nos causa paixões. Por conseguinte,
a paixão é uma necessidade imanente à nossa condição de modo da substância, dentre
infinitos outros modos. Em função disso, não podemos “refrear nem suprimir nossas afecções,
a não ser por outra afecção mais forte”.
214
Já que a alma afirma sua existência através de idéias, quando estas são fruto do
encontro fortuito com os modos exteriores, afirmaremos nossa existência de modo confuso e
inadequado, visto que operamos com idéias advindas das representações dos modos
exteriores, que dizem mais sobre nossos corpos e, assim, podem, dependendo das
circunstâncias do corpo, aumentar ou diminuir o poder de ação desses corpos. Com isso,
Espinosa define, na proposição VIII, o que podemos entender como bem ou mal, como sendo
aquilo que favorece ou atrapalha a ação do conatus, respectivamente. Por serem idéias
confusas e inadequadas, elas são operadas pela mente na temporalidade da imaginação, que
fará com que uma afecção imaginada como presente seja mais forte do que uma imaginação
em um tempo vindouro. Assim, “uma afecção que imaginamos necessária é mais forte que
uma que imaginamos como contingente e não necessária”
215
é uma proposição interessante,
pois aponta para uma liberdade pelo desejo das afecções necessárias, ratificada pela
proposição que afirma:
“não é o conhecimento da verdade pura e simplesmente capaz de
refrear uma paixão, a não ser que esse conhecimento se faça também
paixão forte o suficiente para fazê-lo. Como também, que as afecções
têm uma força maior quando presentes do que se tratando de algo
futuro ou de coisas contingentes”.
216
214
Ética, parte IV, demonstração da proposição XIV.
215
Ibidem, prop.XI.
216
Ibidem, prop. XIV e demonstração da prop. XII.
73
Com isso, Espinosa considera explicadas as causas da impotência e da inconstância
humanas, ocasionadas pela força das afecções. Ele passa, nesse ponto, a discorrer sobre o
porquê de os homens não observarem os preceitos da razão, como também sobre quais são os
ditames desta e quais afecções estão de acordo com ela. Assim, Espinosa coloca dois
preceitos da razão, que seriam:
“O fundamento da virtude é o próprio esforço por conservar o seu ser, e a felicidade
consiste em o homem poder conservar o seu ser”.
“A virtude deve ser desejada por si mesma e não existe nada de preferível a ela ou que
nos seja mais útil, por causa do qual ela deveria ser desejada”.
217
Espinosa passa a demonstrar a coincidência do desejo guiado pela razão, que reza os
preceitos naturais de conservação de seu ser com a procura do que lhe é útil para essa mesma
conservação, sem que isso seja um ato de impiedade ou não-virtude.
Pela sua natureza individual, o homem julga o que lhe é bom ou mal pelos afetos,
tendo consciência das afecções externas. Aquele que busca conservar o seu ser a partir das
afecções que lhe causam alegria aumenta cada vez mais sua virtude ou potência.
“Quanto mais cada um se esforça e pode procurar o que lhe é útil, isto é, conservar o
seu ser, tanto mais é dotado de virtude e, inversamente, quanto mais cada um omite conservar
o que lhe é útil, isto é, conservar o seu ser, tanto mais é impotente”.
218
Esse esforço é a
própria essência do homem, que se traduz em um desejar ser feliz, agir bem e viver bem a sua
existência em ato e, em sendo sua essência, nada lhe é anterior, pois o incremento da virtude
traduz-se em aumento da força do conatus em se preservar cada vez mais.
Sendo o homem afeito a idéias inadequadas, incorre em erro quando afirma sua
potência a partir dessas idéias. Portanto só a partir do conhecimento de segundo e terceiro
gêneros é que o homem pode fazer com que idéias inadequadas que geram paixões possam ser
recolocadas, a partir da ação do conatus, no sentido de se tornarem adequadas, e isso será o
princípio de autonomia do seu esforço de ser, agir e viver. Pelo ângulo da alma, esse esforço
se traduz em adquirir cada vez mais conhecimento que possa guiá-la, no intuito de sempre
conservar o seu ser através de idéias adequadas. E qual é a idéia adequada suprema que pode,
com absoluta certeza, conduzir a alma no caminho da bem-aventurança? Resposta à
proposição: “o bem supremo da alma é o conhecimento de Deus, e a suprema virtude da alma
217
Ética, parte IV, escólio da prop. XVIII.
218
Ibidem, prop. XX.
74
é conhecer a Deus”.
219
Espinosa define o desejo supremo da alma, que é o conhecimento da
existência absolutamente infinita, causa de todo ente e que lhe é extremamente útil, pois é a
resposta de suas indagações quanto à sua origem, sua relação com o todo e o seu fim, e como
pode, através desse conhecimento, manter-se cada vez mais na conservação de sua existência,
já que, “de posse” desse conhecimento, fica extremamente mais fácil agir no sentido de ser
cada vez mais livre, pois age conhecendo as regras dessa existência.
Uma dessas regras é posta na proposição que nos diz: “as coisas são más para nós, na
medida em que nos são contrárias, e não pelo que têm de diferente de nossas naturezas, que,
no caso, nos seriam indiferentes”.
220
Com isso, Espinosa se refere a nossa condição natural
de, estando afeitos às paixões, podermos divergir, sendo, portanto, causa de aumento ou
diminuição do conatus de outrem, como também de nós mesmos, dependendo da forma em
que sejamos afetados, em cada momento, por diversos objetos. Só sairemos desse conflito
constante quando agirmos sob a égide da razão, que se traduz no desejo da existência causa
sui.
“Na medida em que os homens vivem sob a direção da razão, só nessa medida eles
concordam sempre necessariamente em natureza”.
221
Neste ponto, Espinosa identifica a razão
como algo comum aos homens e considera que, só agindo sob sua direção, é que eles
poderiam alcançar algum acordo, já que estariam a agir por uma ordem comum a todos. Mais
que isso: sendo a virtude o desejo de existência, desejar algo comum que pode ser possuído
por todos torna-os iguais, e não mais contrários, pois só as paixões fazem os homens adversos
uns para com os outros. Assim, não haveria essa contrariedade, já que o bem mostrado pela
razão, que se traduz em conservação, é um bem comum: “O bem supremo daqueles que
seguem a virtude é comum a todos e todos podem igualmente alegrar-se com ele”.
222
Espinosa
conclui:
219
Ética, parte IV, prop. XXVIII.
220
Ibidem, prop. XXX. As coisas são más na medida em que podem estar em uma relação que destrói outras, ou
seja, as essências dos modos mantêm as partes extensas em uma relação de movimento ou repouso, que pode ser
contrária a uma outra relação de movimento e repouso.
221
Ibidem, prop. XXXV. É bom lembrar que a razão não é algo frio, calculista; pelo contrário, a razão da alma,
pela definição das afecções, é desejo, sendo este a própria essência da alma, portanto a razão da alma será dada
via afetos do conatus, ou seja, pela alegria ou tristeza que os objetos do desejo trazem a este.
222
Ibidem, prop. XXXVI.
75
“a verdadeira virtude não é outra coisa que viver apenas sob a direção
da razão, e, por conseguinte, a impotência consiste só em o homem se
deixar conduzir pelas coisas que estão fora dele e em ser determinado
por elas a fazer aquilo que a constituição comum das coisas externas
reclama e não o que reclama a sua própria natureza, considerada só
em si mesma”.
223
Viver sob o reclame da razão não é senão viver sob a égide dos reclames da natureza
comum, tais como “alimentar-se e recrear-se com comida e bebida moderadas e agradáveis,
assim como com os perfumes, a amenidade das plantas verdejantes, o ornamento, a música, os
jogos desportivos, os espetáculos e outras coisas do gênero, de que cada um pode usar sem
dano algum para outrem”.
224
Além disso, Espinosa demonstra também “que todas as paixões que são ações
determinadas por uma afecção, podem e devem ser determinadas pela razão, transformando-
se em ações propriamente ditas”.
225
Isso ocorre pela ação constante do conatus, com o fim de
termos sempre idéias adequadas que concebemos clara e distintamente. E tais idéias sempre
correspondem à totalidade de nosso corpo, diferentemente das idéias inadequadas, que
privilegiam as partes em detrimento do todo.
“O desejo que nasce da razão não pode ter excesso”,
226
pois, é a própria ação do
conatus no sentido de produção de sua existência por si mesma; não pode, portanto, exceder-
se. O que Espinosa está demonstrando é que a ação constante da razão como uma reflexão
autoproducente do agir é a forma de se fazer livre, pois entre agir e pensar não há diferença, já
que o pensamento é natural, tal como a ação, sempre no sentido daquilo que lhe é útil e
primordial à conservação racional de sua existência. Não há nem mesmo lugar para pensar a
morte, já que “o homem livre em nada pensa menos que na morte, e a sua sabedoria não é
uma meditação da morte, mas da vida”.
227
Em seguida, Espinosa traz algumas proposições sobre o homem livre, que sempre age
pelos ditames da razão. Assim, evitando ser alvo de ações geradas a partir das paixões tanto
223
Ética, parte IV, escólio da prop. XXXVII.
224
Ibidem, escólio da prop. XLV.
225
Ibidem, prop. LIX.
226
Ibidem, prop. LXI. O desejo que nasce pela razão nasce da produção do conatus em si mesmo. Portanto, são
idéias cujos afetos são alegrias, pois nasce tendo a alma enquanto ação do pensar, como causa e assim sendo,
tem uma causa adequada via noções comuns ou pelas essências.
227
Ibidem, prop. LXVII. Livre é sinônimo de ação constante do conatus, que é desejo pela égide da razão que se
traduz pelos afetos de alegria, portanto, não há lugar para pensar a morte, que seria uma ação do conatus pela
ordem das afecções do medo, impotência, etc... Nada de culpa ou remorso.
76
interiores quanto exteriores, ele diz: “o homem livre, que vive entre os ignorantes, procura,
quanto lhe é possível, evitar os seus favores”,
228
já que, com isso, pode pôr-se como causa das
afecções de outro que não se sentir agradecido por tais favores.
“A virtude de um homem livre revela-se tão grande quando evita como quando supera
os perigos”. Espinosa não vê nenhuma contradição entre fugir de uma situação adversa ou
enfrentá-la, desde que essa ação seja sob os auspícios da razão, que, nesse momento, mostra
qual o melhor caminho para manter a existência. E finaliza dizendo “que a amizade entre
homens livres é o maior bem a que um homem pode aspirar, pois só os homens livres são
gratos uns para os outros, assim como só estes agem sempre de boa fé”.
229
Mas é preciso que
sua ação sempre seja deferida no plano do entendimento da ação universalizável, pois comum
a todos é a razão, que traz o conhecimento necessário dos acontecimentos, das coisas;
portanto o homem livre, que sabe dessa necessidade, não vê neles motivos para julgar algo
como horrendo, ímpio e injusto, pois essa ação provém do fato de termos idéias inadequadas,
ou seja, perturbadas, mutiladas e confusas. O homem dito livre se esforçará por conceber as
coisas como são em si, evitando os afetos que podem tirá-lo do reto caminho da necessidade.
Como isso será possível veremos a seguir.
228
Ética, parte IV, prop. LXX.
229
Ibidem, demonstração da prop. LXII.
77
6 DA LIBERDADE
6.1 Da liberdade do corpo
Finalmente, podemos adendrar amiúde na questão principal deste trabalho, que é a
definição de liberdade no pensamento espinosano.
Depois de percorrermos as questões referentes à substância, seus atributos e modos,
suas relações recíprocas necessárias, como também as origens e definições de alma, afecções
e suas forças, podemos agora discorrer sobre a força da alma frente às afecções, ou seja, qual
é o método que podemos seguir para nos fazermos “livres” da natureza naturada.
Espinosa indica, em primeiro lugar, que precisamos compreender que somos parte da
natureza naturada, portanto não temos um império da vontade sobre as afecções, como
achavam os estóicos, Santo Agostinho, ou mesmo Descartes.
230
A força da alma reside na
ação desta na busca constante de idéias adequadas dentro do atributo do qual é modo, pois
um atributo não pode interferir no outro, como foi propagado erroneamente pela tradição
judaico-cristã. Mas é evidente, pelo que foi posto, que, sendo o corpo objeto da alma, as
idéias, que são afetos do corpo na alma, podem ser substituídas, quando se passa a agir
somente pelas idéias que estão no atributo pensamento, do qual a alma é um modo.
“Se no mesmo sujeito, são excitadas duas ações contrárias, deverá necessariamente
produzir-se, em ambas ou numa só, uma mudança, até deixarem de ser contrárias”.
231
Esse
axioma coloca a relação necessária de que em se contradizendo duas afecções, há que existir
mudança nelas, já que é impossível para o sujeito conviver com tal contrariedade em ato.
Assim, pela proposição VII da parte II, a ordem e a conexão das coisas são as mesmas que a
ordem e a conexão das idéias nos respectivos atributos, pois são expressões de uma única e
absoluta ordem, que é a substância. Assim, também, na alma, a ordem e conexão das idéias
(idéias enquanto afetos do corpo, por ser este objeto da alma) se produzem segundo a ordem e
230
Todos esses filósofos colocam a vontade como algo exterior ao intelecto. Concebem a vontade como uma
faculdade da alma capaz de reprimir os desejos. Descartes, por exemplo, considera que o erro consiste em que a
vontade é infinitamente maior que o intelecto: “E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais
são meus erros, descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe
em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre-arbítrio; isto é, de meu entendimento e, conjuntamente, de
minha vontade. Não posso tampouco lastimar-me de que Deus não me tenha dado um livre-arbítrio ou uma
vontade bastante ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está
encerrada em quaisquer limites. Mas, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de
uma extensão muito pequena e grandemente limitada”. (Meditação Quarta, Do Verdadeiro e do Falso.
Meditações, p. 301. Pensadores). Santo Agostino no Livre-Arbítrio, fala da subordinação do corpo, ou seja, da
alma concupiscente à alma racional entendida esta como a boa-vontade. (Livre-Arbítrio, parte II).
231
Ética, parte V, axioma I.
78
o encadeamento das afecções do corpo. Dessa forma “se nós separarmos pelo pensamento
uma comoção da alma, ou seja, um afeto da sua causa externa e a ligarmos a outros
pensamentos, então o amor ou o ódio para com a causa externa, assim como também as
flutuações da alma, que nascem destes afetos, serão destruídos”;
232
ou seja, removida a causa
dos afetos, que era uma idéia externa, retiramos as conseqüências dessa causa.
“Um afeto, que é paixão, deixa de ser paixão no momento em que dela formamos uma
idéia clara e distinta”.
233
O ato de formarmos idéias adequadas, ou seja, pela sua causa, nos
impede de termos idéias confusas, já que estas originam-se pelo fato de não sermos causa
delas. Os afetos são idéias das modificações do corpo que se formam na alma pelo fato de este
ser objeto da alma. Dessa forma, só resta à alma gerar uma idéia clara dessa afecção,
procurando sua origem, destacando a sua força; ou seja, desmistificá-la pela ação do
pensamento, no sentido de compreendê-la e, assim, formar um conceito adequado na alma,
livre das idéias ocasionadas pela afecção do corpo.
“Não há nenhuma afecção do corpo de que nós não possamos formar um conceito
claro e distinto”.
234
Assim, podemos, pela ação do pensamento, “operar uma desconexão”
entre a afecção no atributo pensamento e sua causa externa, ou seja, da afecção do corpo, e
associar-nos a idéias mais adequadas, o que é a atuação do próprio pensamento. Portanto a
ação do pensamento, que consiste em formar idéias adequadas, é a chave de nossa liberdade,
já que, com isso, saímos do ordenamento pelos afetos do corpo na alma, que geram paixões, e
vamos para o ordenamento da própria ação do pensamento, que é sinônimo de libertação.
“Na medida em que a alma conhece as coisas como necessidades, tem maior poder
sobre as afecções, por outras palavras, sofre menos por parte delas”.
235
O reconhecimento da necessidade das afecções coloca a alma em situação de menos
paixão em relação às afecções. É importante ressaltar que há afecções que são oriundas de
idéias adequadas, ou seja, da razão e “que, portanto, devem ser ratificadas pelo pensamento.
Temos também que estar atentos e sempre voltados para os afetos de alegria, que nos faculta
sermos mais resistentes às vicissitudes das paixões. Isso se consegue tendo-se regras básicas
232
Ética, parte V, prop. II.
233
Ibidem, prop. III.
234
Ibidem, prop. IV.
235
Ibidem, prop. VI. A idéia absoluta, origem de todas as coisas por necessidade de sua essência, pode e deve
auxiliar no apaziguamento de nossas paixões, já que ela sempre nos lembra de que tudo tem uma razão
necessária de ser e, como nada, está fora das conseqüências da explicação da idéia absoluta, “Tudo o que existe,
existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido” (Ética, I, prop. XV).
79
de vida, tais como: “o ódio se vence pelo amor, e a ordenação dos nossos pensamentos e
imaginação deve atender sempre àquilo que há de bom em cada coisa”.
236
Espinosa afirma também: “A alma pode fazer que todas as afecções do corpo, ou seja,
as imagens das coisas, se refiram à idéia de Deus”.
237
A idéia absoluta, causa sui, e seus encadeamentos neutralizam as afecções singulares,
já que tem uma necessidade que tanto as coloca no plano das afecções exteriores quanto nos
possibilita o entendimento de suas próprias afecções, pois elas podem ser encadeadas pela
ordem divina.
“Aquele que se compreende a si mesmo e às suas afecções distintamente, ama a Deus,
e tanto mais quanto mais se compreende a si e às suas afecções”.
238
O amor para com a idéia
absoluta, que coloca todo o ordenamento, faculta o entendimento das afecções, já que estas
são modos naturais de todo esse ordenamento. Portanto, esse amor para com Deus se traduz
em conhecimento de toda a realidade, relevante para que possamos fazer-nos livres, pois
nossa ação será consoante com a ordenação necessária.
“Este amor para com Deus deve ocupar a alma acima de tudo”.
239
Sendo Deus a idéia adequada por excelência e esta estando presente em nossa alma,
nos possibilita uma ação livre, já que, por um lado, compreendemos os encadeamentos
necessários dessa idéia adequada e, por isso, sendo ela a totalidade, não nos remeterá a
nenhum ente em particular, deixando-nos, assim, livres para que, sem paixão alguma (já que a
idéia de Deus não causa nenhuma paixão particular, pois se trata do todo), possamos ter
nossas forças voltadas para o que seja mais útil à nossa conservação.
“A idéia de Deus, que existe em nós, é adequada e perfeita e, por conseguinte, na
medida em que contemplamos Deus, agimos”.
240
Agimos impulsinados pelo que amamos, e o
que amamos é a necessidade absoluta que, assim, nos faculta a liberdade.
Pelo que foi dito, Espinosa pode, então, resumir assim o poder da alma sobre as
afecções: 1. no próprio conhecimento das afecções; 2. em que a alma separa a afecção do
pensamento da causa externa, que nós imaginamos confusamente; 3. no tempo, graças ao qual
as afecções que se referem às coisas que nós compreendemos triunfam das que se referem às
coisas que nós concebemos confusamente, ou seja, de maneira multilada; 4. na enorme
236
Ética, parte V, escólio da prop. X.
237
Ibidem, prop. XIV.
238
Ibidem, prop. XV. Veja que essas proposições estão nos preparando para a mudança efetiva de como nos
libertar de nossas afecções. 1º) pelo entendimento da ação do modo, o que nos dá a certeza da separação entre o
modo e suas afecções; 2º) que essas afecções são necessárias pela univocidade da substância através dos
atributos.
239
Ibidem, prop. XVI.
240
Ibidem, demonstração da prop. XVIII.
80
quantidade de causas pelas quais as afecções, que se referem às propriedades comuns das
coisas ou a Deus, são alimentadas; 5. finalmente, na ordem em que a alma pode ordenar as
suas afecções e encadeá-las entre si”.
241
Ainda na seqüência de tal escólio, Espinosa completa afirmando a possibilidade da
liberdade a partir do conhecimento da idéia adequada que é o encadeamento da alma sob os
auspícios do terceiro gênero de conhecimento, ou seja, aquele que coloca a alma na
necessidade: “Depois, deve notar-se que as doenças do espírito e os infortúnios tiram,
sobretudo, a sua origem do amor excessivo para com uma coisa que está sujeita a muitas
mudanças e de que nunca podemos ser senhores”.
242
Espinosa demonstra, assim, o “objeto” que vale a pena nos unir por amor, aquele que
ele se punha a buscar no Tratado da Emenda do Intelecto. Entretanto isso se refere à liberdade
das afecções do corpo, que se reflete na alma, por ser aquele objeto desta. Mas qual é a
liberdade da alma sem relação ao corpo?
6.2 Da liberdade da alma
“A alma não pode imaginar nada, nem recordar-se das coisas passadas senão enquanto
dura o corpo”.
243
A alma, que tem o corpo por objeto, refere-se a este só enquanto ele existe e gera na
alma suas afecções, ou seja, suas memórias, experiências, etc. ... Mas, na natureza naturante,
há a idéia de todos os corpos, que não se extingue quando o corpo enquanto modo ou natureza
naturada se desfaz, portanto tanto a idéia de corpo como a idéia de alma na natureza naturante
não se extinguem, pois são a causa delas.
“A alma humana não pode ser absolutamente destruída juntamente com o corpo, mas
alguma coisa permanece, que é eterna”.
244
A compreensão da parte eterna da alma vem exatamente do que já havia sido posto
pelo conhecimento do terceiro gênero, conhecimento esse que intui as coisas pelo ângulo da
eternidade, e é exatamente essa evidência que nos coloca o lado eterno da alma.
241
Ética, parte V, escólio da prop. XX.
242
Ibidem, escólio da prop. XX.
243
Ibidem, prop. XXI.
244
Ibidem, prop. XXIII.
81
“O esforço supremo da alma e a suprema virtude são compreender as coisas pelo
terceiro gênero de conhecimento”.
245
Essa proposição diz definitivamente em que consiste a
liberdade: consiste em entender-se a realidade sob o ângulo das essências eternas, que são
idéias claras e distintas na substância; mais que isso: significa amar, desejar os modos
necessários que põem a realidade. Perceba-se que Espinosa passa da liberdade enquanto
entendimento das relações necessárias da substância, seus atributos e modos conseqüentes
explicitados pelas noções comuns, para assumir, no terceiro gênero de conhecimento, que é o
conhecimento pelas essências a verdadeira e em última estância, a liberdade, já que, com o
terceiro gênero de conhecimento, esse filósofo ratifica a essência do homem como desejo
consciente de uma realidade realíssima objeto desse desejo. Pelas noções comuns, não é
possível uma liberdade, ou seja, pelo entendimento, simplesmente, não se pode ser livre; é
preciso amar o objeto desse conhecimento.
“Desse terceiro gênero de conhecimento, provém o maior contentamento da alma que
pode existir”.
246
O contentamento íntimo, que se consegue pelo conhecimento de Deus,
através do terceiro gênero de conhecimento, se traduz no máximo de liberdade a que o
homem pode aspirar, pois, este tem por si o ordenamento do real, e as suas conseqüências
necessárias, ou seja, um conhecimento, que permite transitar no meio dos infinitos modos
como um Deus, já que possui a idéia que adequada a todas as idéias.
“Tudo que a alma compreende, do ponto de vista da eternidade, não o compreende
porque concebe a existência presente atual do corpo, mas porque concebe a essência do corpo
do ponto de vista da eternidade”.
247
O terceiro gênero de entendimento nos revela o eterno, e tudo que é concebido pelo
ângulo do eterno é adequado, é o ordenamento necessário, ou seja, é a própria existência sem
causa ou causa sui. Portanto, quando a alma caminha pela idéias eternas é conduzida pelo que
é, então percebe que esse caminhar imanente na substância, através dos modos e seus
respectivos atributos, corresponde à liberdade à qual o homem pode aspirar. Essa liberdade
dada por esse gênero de conhecimento gera cada vez mais uma alegria, ou uma maior
perfeição, que faz com que haja mais desejo ou amor por tal conhecimento. Esse desejo que
nasce da alegria pelo conhecimento do eterno, Espinosa chama de amor intelectual a Deus.
“O amor intelectual de Deus, que nasce do terceiro gênero de conhecimento é
eterno”.
248
O amor intelectual a Deus é a beatitude da alma humana, e a sua liberdade, pois é
245
Ética, parte V, prop. XXV.
246
Ibidem, prop. XXVII. As noções comuns, sendo idéias adequadas, nos levam necessariamente a Deus. Ética,
II, prop. 45 e 46. Mas essa idéia, concebida pelo intelecto, não traduz, ou seja, não é perfeitamente adequada à
essência do modo homem, enquanto conatus, que, pelas proposições VII e VIII da parte III e demonstrações, é
desejo consciente, ou seja, consciência do esforço de preservação na existência. Portanto somente e idéia de
Deus concebida pelo 3º gênero de conhecimento é perfeitamente adequada à idéia do modo homem, e com isso
lhe proporciona um maior contentamento.
247
Ibidem, prop. XXIX.
248
Ibidem, prop. XXXIII.
82
um entendimento pelo plano do eterno, livre das afecções do corpo enquanto afeto de outros
corpos ou de infinitos modos.
“Deus ama-se com um amor intelectual e infinito”.
249
O amor intelectual a Deus é o
entendimento que Deus tem de si mesmo explicado pela essência da alma humana, que é um
modo de Deus. “Por estas coisas compreendemos claramente em que consiste a nossa
salvação, ou seja, a nossa felicidade ou liberdade, a saber, num amor constante e eterno para
com Deus; por outras palavras, no amor de Deus para com os homens”.
250
Portanto, o movimento em direção a Deus, ou seja, pelo desejo do eterno, é uma ação
constante que nos faculta o máximo de perfeição, um estar junto a Deus, um querer ser Deus;
em outras palavras, ser ação sempre no intuito da eternidade, pois “quanto mais perfeição uma
coisa tem, tanto mais age e menos sofre e, inversamente, quanto mais age mais perfeita é”.
251
Assim, é o exercício constante da inteligência que nos proporciona ser e, com isso, ser
livre não como julga o vulgo, “que acredita ser livre na medida em que lhe é permitido
obedecer às suas paixões, e que renuncia ao seu direito na medida em que é obrigado a viver
segundo as prescrições da lei divina”,
252
por estar com medo das conseqüências criadas pela
própria imaginação.
“A felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude, e não gozamos dela
por refrearmos as paixões, mas, ao contrário, gozamos dela por podermos refrear as
paixões”.
253
A felicidade consiste no amor para com Deus, amor este que nasce do terceiro
gênero de conhecimento e, por conseguinte, esse amor, na medida em que age, deve ser
referido à alma, e por conseqüência, é a própria virtude. A ação que é o amor intelectual a
Deus, é a própria virtus do sábio. Essa virtus é a felicidade, pois, é a busca pela necessidade, a
qual põe a liberdade de todas as afecções, já que é o amor eterno do todo.
“Se o caminho que eu mostrei para a liberdade parece árduo, pode
todavia ser encontrado. Com certeza deve ser árduo aquilo que muito
raramente se encontra. Como seria possível, com efeito, se a liberdade
estivesse à mão e pudesse encontrar-se sem grande trabalho, que ela
fosse negligenciada por quase todos? Mas todas as coisas notáveis são
tão difíceis como raras”.
254
249
Ética, parte V, prop. XXXV.
250
Ibidem, parte V, escólio da prop. XXXVI.
251
Ibidem, parte V, prop. XL.
252
Ibidem, escólio da prop. XLI.
253
Ibidem, prop. XLII.
254
Ibidem, parte V, prop. XLII.
83
7 CONCLUSÃO
A filosofia de Espinosa demonstra que é possível a liberdade, não a liberdade no
sentido vulgar desse termo, entendido como a possibilidade que temos de escolher, entre
várias opções, aquela que melhor nos aprouver. Nesse sentido, estaremos sempre presos a
essa possibilidade, já que o fato de termos consciência da escolha não demonstra o porquê
dessa mesma escolha. Portanto esse modo de entender a liberdade como livre-arbítrio é um
equívoco da nossa consciência imaginativa, que não nos remete às causas de tais escolhas,
operando na temporalidade das ações contingentes. Espinosa nos faculta o entendimento da
realidade na qual existimos, colocando-nos em um ordenamento, a partir da idéia adequada,
que é a existência causa sui e seus desdobramentos necessários. Essas conseqüências são os
modos dessa existência causa sui. De posse desse conhecimento intuitivo, adquirido após ter
sido retificado o intelecto, Espinosa nos demonstra as relações dos modos dentro da existência
causa sui, suas forças inter-relacionadas, e quais as possibilidades que nós, enquanto força
modo, temos, frente às afecções em nossa alma, advindas dos outros modos; ou seja, Espinosa
faz-nos trilhar o caminho que projeta a nossa liberdade como uma ação do pensamento, no
sentido de que essa ação gere idéias adequadas, que constituem o real.
Essas idéias, por serem eternas, são a priori sem paixões, pois são reais, já que as
paixões que nos escravizam nascem de idéias confusas, inadequadas, que formamos por
sermos naturalmente apensos a elas, já que são imagens que temos na alma advindas do
corpo, pois este é objeto daquela. Somos escravos quando fazemos dessa ordem, ou seja, a
ordem imaginativa, a ordem das paixões, nossa direção. Nesse caso, não seremos livres, pois,
mesmo que escolhêssemos, sempre estaríamos sob a égide dessa idéia externa, inadequada,
confusa, qualquer, porque ela não é fruto de nossa ação enquanto intelecto atuante no sentido
de nos tornarmos autônomos, geradores de nossas próprias idéias necessárias.
Essa ação constante e necessária, geratriz de idéia, nos faculta a intuição de que
estamos a fruir a partir da eternidade, da necessidade, e isso nos faz fortes e
conseqüentemente felizes, já que o pressuposto básico de nossa existência é mantermo-nos o
máximo possível nessa existência. Essa felicidade gera um desejo por mais felicidade,
portanto a liberdade é agora definida como sendo o amor pela eternidade, que traz mais e mais
virtude, ou seja, nos faz ser o máximo possível. Liberdade não é poder escolher entre
84
possíveis, mas amar o que faz com que se seja o mais possível. Dessa forma, Espinosa desfaz
a contradição aparente entre necessidade e liberdade, já que esta não é uma ação de uma
vontade que independa do objeto do qual se origina; pelo contrário, pelo fato de estarmos
imersos na infinitude dos modos, e sendo também um desses modos, estamos sempre
experenciando as mudanças de afetos de nosso ser nas relações imanentes com os outros
modos.
Espinosa, de certo modo, retoma o conceito grego de Anánke
255
, ou seja, a
necessidade da realidade, expressa de forma indubitável na unicidade da substância e nas
conseqüências imanentes e necessárias de sua expressividade em atributos e modos, que, se,
por um lado, são realidades necessárias da substância, por outro são uma parte da força
imanente dessa substância e, portanto, podem e devem fazer valer essa força, no sentido de
serem o início de ações também necessárias.
Assim, podemos e devemos ser heróis, pois a Anánke, ou o destino, não determina a
ação dos modos (homens) em todos os seus detalhes; sempre há o espaço da ação do modo
que, de forma imanente, pode imprimir uma ordem singular nos outros modos, por aspirar à
necessidade. É esse espaço-modo que se torna possível a ação heróica, ética, portanto livre, já
que a ação movida pelo amor que visa à necessidade torna o modo mais resistente aos afetos
naturais, aos quais está sujeito, pela condição de horizontalidade imanente aos outros modos,
expressividades necessárias da substância única. Por conseguinte podemos até mesmo ser
livres diante do inevitável, como a morte, tal como fora Heitor ao enfrentar o imbatível
Aquiles.
256
A vida tem que ser a expressão da sua própria liberdade, da sua singularidade, da
sua força-modo, que, imprimindo uma ação pelo desejo do necessário, faz o diferente.
Espinosa demonstra de forma categórica que nossa alma não é superior ou melhor do
que o corpo, como entende a tradição platônico-cristã. O corpo, tal como a alma, pode fruir,
no seu atributo, nas apreensões intuitivas necessárias do real que se traduzem nos afetos de
alegria. Espinosa resgata o corpo, tornando-o também via de conhecimento. O modo corpo,
assim como a alma, age no nível do terceiro gênero de conhecimento quando não há
255
Anánke – Na história das idéias ocidentais, a necessidade foi representada por figuras místicas. As três parcas
ou moiras, representavam a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte.
Uma das parcas ou moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o
cortava, simbolizando nossa morte. Dicionário de Mitologia Greco-Romana.
256
Ilíada, Homero – Heitor, mesmo sabendo que inevitavelmente seria morto por Aquiles, no momento
adequado o enfrenta.
85
interferência do modo pensamento, já que, apesar de independentes, são interativos e
simultâneos os modos, pela unicidade da substância.
Mas o homem é desejo, ou seja, é uma força desejante de ser, pois sua existência é
uma existência causada. Portanto a consciência de ser desejante se revela nos objetos dos
nossos desejos. Dessa forma, Espinosa demonstra que desejo/vontade não é um ente real
quando colocado fora de sua expressão objetiva; nesse caso, é apenas um ente de razão, ou
seja, uma generalização para os infinitos desejos singulares. Assim, agir sob essa ordem é agir
como escravo, que tem apenas consciência dos seus desejos mas não de suas causas. É por
isso que se faz necessário ter o conhecimento da geração da totalidade que constitui o real por
idéias gerativas dela e não por idéias representativas, para que, assim, possamos aumentar a
nossa força-modo enquanto ação singular dessa mesma totalidade.
Assim, a liberdade não é exatamente um conceito ou uma escolha; é a própria ação do
modo enquanto força viva prenhe de amor pela necessidade e na necessidade.
86
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