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ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA
TRANSPASSADA PELOS IDEAIS DO SÉCULO XIX E PELA DOR
DE EXISTIR
Por
Lusia de Fátima Feijó Machado
Dissertação de Mestrado em Literatura
Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro UERJ 109p.
Linha de Pesquisa: Literatura Portuguesa e
outros campos
do saber
Orientadora: Prof.ª Dra. Nadiá Paulo Ferreira
2º semestre
2005
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Aos meus filhos, Alexandra, Elaine e Marcos, com
todo o amor ao Wladimir companheiro querido,
por sua solidariedade e paciência. A minha avó
materna, pelas histórias que me contava sobre
a Ilha de S. Miguel.
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AGRADECIMENTOS
A Maria Balbina Pereira, primeira professora, que me ensinou o amor pelo saber, pelos mestres e pelas
letras, o meu carinhoso reconhecimento;
À Profª. Nadiá Paulo Ferreira, minha orientadora, por sua generosidade, carinho e
afeto sem igual, por ter me ensinado que é possível estar no lugar certo na hora certa e com
quem pude dividir o amor ao saber e a paixão pela literatura portuguesa e pela psicanálise.
A Rosane Melo, colega querida, pelo apoio intelectual, por sua paciência
cumplicidade, incentivo, amizade e por tudo que aprendi ao longo dos anos de trabalho a
seu lado.
A Márcia Cristina pelo carinho e paciência, com que lia meus textos.
A Vera Apolo e Clara Inen, pela ajuda, apoio, sugestões e incentivos preciosos no
começo dessa trajetória.
A Sonia Alberti, pela indicação da orientadora e a firme confiança com que acreditou
no meu amor ao saber.
A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem
par e bom humor.
Aos professores Marcos Alexandre Motta, Maria do Amparo Tavares Maleval, Sérgio
Nazar David, Maria Cristina Batalha, pela solidariedade e respeito na transmissão do
ensino.
Aos colegas de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro, pelos
ensinamentos e por dividirem comigo o amor à psicanálise.
A Patrícia, por sua disponibilidade e dedicação para ler e rever o meu trabalho.
Aos colegas do grupo do Mestrado de Literatura Portuguesa, pela convivência e
companheirismo, esperando a continuação do estreitamento desses laços.
SINOPSE
Estudo da obra de Antero de Quental a partir da psicanálise, visando rastrear o
que sua escrita revela sobre a dor de existir e sobre o fracasso dos ideais, que
sustentaram as lutas políticas e sociais no século XIX, em Portugal e na Europa
.
SUMÁRIO
1- 1- INTRODUÇÃO.........................................................................................06
2- ANTERO DE QUENTAL E OS IMPASSES DE SUA ÉPOCA......................09
2.1- PORTUGAL EM RELAÇÃO À EUROPA NO SÉCULO XIX..............17
3- AS INFLUÊNCIAS DOS AUTORES EUROPEUS.........................................33
3.1- HARTMAM..............................................................................................34
3.2- HEGEL......................................................................................................46
3.3- MICHELET...............................................................................................52
3.4- PROUDHON.............................................................................................57
4- OS MESTRES PORTUGUESES.....................................................................63
4.1- CASTILHO................................................................................................63
4.2- HERCULANO...........................................................................................72
5- ANTERO DE QUENTAL E CHARLES BAUDELAIRE: O ENIGMA DO
FEMININO..............................................................................................................76
6- UMA TRAJETÓRIA: DA PARTIDA AO RETORNO TRÁGICO...................85
CONCLUSÃO.....................................................................................................99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................102
RESUMO............................................................................................................108
ABSTRACT........................................................................................................109
1 – Introdução
O presente trabalho tem por objetivo investigar a trajetória de Antero de
Quental, visando apreender os efeitos do processo de escrita em sua vida.
Abordaremos a sua atuação política e literária, em Portugal, além de tentar
desvendar o que sua escrita revela sobre a dor de existir. O tormento do ideal, o
Elogio à morte e o Inconsciente são poesias que nos remetem ao seu espírito errante
e à dor lancinante que o acossava no decorrer de sua produção. Tentaremos ainda
percorrer a obra de Antero de Quental para inquirir questões sobre sua história, que,
por vezes, se encontra e entrelaça com a cultura portuguesa do final do século XIX.
Antero de Quental chega a Coimbra em plena juventude e fica inebriado pela
vida universitária, surpreendendo a todos com seu poder de liderança e ousadia,
passando a ser chamado de o Príncipe da Mocidade. Ele mesmo, alguns anos
depois, reconhece que praticou muita irreverência e excessos. Fazia parte de um
grupo de jovens que não queria saber da academia e nem dos acadêmicos, que não
eram católicos, nem monarquistas e que estavam mais interessados em Michelet,
Hegel, Proudhon e Hartmann do que nos ensinamentos tradicionais. O certo é que da
Escola Coimbrã saíram os maiores talentos da literatura nacional.
Nosso trabalho enfoca a obra de Antero e o século XIX em sete divisões. No
segundo capítulo, abordamos o escritor Antero de Quental em relação a Portugal,
tentando entender as influências da cultura portuguesa na sua obra. Também
abordaremos as diferenças culturais de Portugal em relação à Europa, a importância
das Conferências do Cassino e a mobilização de Antero e seu grupo para que em
Portugal fossem criadas formas de despertar o interesse do povo pela ciência, pela
arte e pela política, já que eles consideravam que essa era a forma de renovar e de
revolucionar a nação portuguesa, colocando-a de novo no circuito europeu de
desenvolvimento econômico político e cultural.
O terceiro capítulo desenvolve a influência de autores europeus no pensamento
e na obra de Antero. Examinamos a obra de Hartmann, filósofo alemão que criou a
Filosofia do Inconsciente e que foi muito estudado e admirado por Antero.
Analisamos inclusive uma poesia intitulada O Inconsciente, entre outras, que nos
possibilitou que apreendêssemos a influência de Hartmann na obra anteriana. Hegel,
que Antero reconhece como a Catedral do pensamento, também foi muito admirado
por ele. Antero tinha algumas dúvidas sobre a obra hegeliana, tal como podemos ver
em uma carta que escreve a seu tradutor alemão Wilhelm Storck: “(...) não sei se o
entendi bem, nem a independência do meu espírito me consenti ser discípulo: mas é
certo que me seduziram as tendências grandiosas daquela estupenda síntese”.
1[1]
Tentamos nos aproximar um pouco do que Antero entendeu da obra de Hegel,
utilizando também a leitura da psicanálise através de Jacques Lacan. Antero chega
inclusive a encontrar-se com Michelet por quem fica impressionado, Michelet
através da proposta de desenvolvimento para a sociedade e idéias impregnadas de
esperanças em relação à busca de harmonia para a humanidade, seduzirem o jovem
Antero. O corte que Michelet fez na abordagem histórica é uma inovação para a
época. A história não é mais determinada só pelos heróis, mas também por um povo
e pela forma como se dá a organização da sociedade. Outro autor com o qual Antero
se identificava era Proudhon, que direcionava seu estudo e questionamento para as
reformas sociais e tinha obras com nomes polêmicos e revolucionários como, por
exemplo: A Propriedade é um roubo, Filosofia da Miséria. Estas e outras obras o
influenciaram tanto que chegou a conjurar em beneficio da União Ibérica.
O quarto capítulo nos levou aos dois mestres portugueses de Antero. Tecemos
com nossa pesquisa uma breve análise em torno deles e da influência que tiveram na
obra anteriana, tentando entender o que se mostrou mais relevante para nós. Duas
questões principais nos pareceram interessantes: Quais os destinos dos mestres e
como fica a relação aluno-mestre no momento em que o aluno chega ao mesmo grau
1[1]
ANTERO, apud BANDEIRA, 1942, p.3.
de respeitabilidade na vida intelectual? No caso de Antero, foi o impasse com
Castilho e a generosidade de Herculano que suportou fazer par com o discípulo.
O quinto capítulo aborda as obras de Antero e Baudelaire e as suas posições
diante do enigma do feminino. Recorremos à psicanálise para discutir essas
posições.
O sexto capítulo é consagrado aos fatos biográficos de sua vida e aos
desdobramentos destes para o fim trágico de Antero: o retorno a Ponta Delgada e as
conseqüências dessa volta na tragédia anteriana.
No estudo da obra de qualquer artista, vários trajetos são possíveis. No caso da
obra de Antero não poderia ser diferente. Estamos conscientes de que poderíamos
ter seguido outro caminho, mas esperamos ter contribuído para um aprofundamento
no entendimento da vida e da obra de Antero, mapeada pelo espírito do século XIX
em Portugal e na Europa.
2 - Antero de Quental e os impasses de sua época
Como acomodava eu este culto pelas doutrinas do
apologista do Estado prussiano, com o radicalismo
e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon?
Mistérios e incoerência da mocidade! O que é certo
é que, revestido com essa armadura mais brilhante
do que sólida, desci confiado para a arena: queria
reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a
meio do caminho da formação de mim mesmo!
(Antero de Quental)
2[2]
Acreditamos que para entender o poeta e o filósofo Antero de Quental, depois
de dois séculos, devemos rastrear não só os significantes que marcaram sua vida, sua
história e seus ideais, mas também os enganos e os impasses de sua época.
Tudo o que ele produz e realiza é endereçado aos seus pares, aos grandes
amigos — a amizade é vital para ele —, ao povo português e às idéias que defende.
Ele está sempre se dirigindo aos representantes do Outro: ancestrais (o avô André da
Ponte de Quental
3[3]
; o tio–bisavô Padre Bartolomeu de Quental
4[4]
; o pai Fernando
de Quental
5[5]
e o tio Filipe de Quental
6[6]
), professores, figuras do governo,
2[2]
QUENTAL apud BANDEIRA, 1942, p.31.
3[3]
André da Ponte de Quental era poeta e amigo íntimo de Bocage. Este não só dedicou vários poemas a
André, mas também fez referências a fatos vividos com ele. Como é o caso dos versos em que alude a prisão
dos dois pela polícia de Pina Manique: “Olhou-me com meigo aspecto, / Com branda, amigável fronte, / E fui
logo acareado / Com o amável Ponte” (CARREIRO, 1981, p.32) Conta-se que André, Bocage e outro amigo,
o Bento Ribeiro, chegaram a correr terras, cantando satíricas de viola em punho, pedindo em troca da
exibição, a hospitalidade nos conventos e a pousada aos fidalgos. Quando eram presos por algum exagero de
suas sátiras às ordens religiosas e governamentais, os dois tomavam para si a individualidade da respectiva
obra, assim se livravam das acusações. André participou da revolução liberal, em 1821, chegando a ser
deputado às cortes. Nos últimos anos de sua vida, tornou-se um misantropo, recolhendo-se à ilha natal, onde
queimou todos os seus versos. Antero sempre lamentou não ter conhecido a obra do avô.
4[4]
Padre Bartolomeu do Quental fundou a Congregação do Oratório em Portugal (1668-1672). Os seus
escritos, sobretudo os sermões, lhe valeram um lugar ao lado de Padre António Vieira. Ele teve muita
influência como reformador dos costumes e dos estudos na corte e nas províncias.
5[5]
Fernando de Quental nasceu em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores, em 10 de maio de 1815, e faleceu
nessa mesma cidade em 1873. Saiu de S. Miguel com o posto de cadete, na expedição dos Bravos de
Mindelo: 7 500 homens implantaram o sistema liberal a favor de D. Maria II. Entusiasta da revolução liberal,
mandou picar o brasão de sua casa; ajudando os operários com as próprias mãos.
escritores, poetas, filósofos, etc. Enfim, Antero se interessa por praticamente todos
aqueles que estão criando novas idéias e novas formas de transformações sociais.
No século XIX, ao contrário da Europa, que está no auge das mudanças
políticas, econômicas e culturais, Portugal se encontra totalmente estagnado e avesso
ao liberalismo. O grupo a que Antero pertence desde a época da faculdade de
Coimbra está inebriado com os ideais que circulam pela Europa. Ele está ávido, tal
como os grandes pensadores do século XIX, por novos conhecimentos e reformas
liberais. Sem dúvida, estamos diante de uma época em que prolifera uma
multiplicidade de sistemas especulativos, que advoga a igualdade social e o fim da
exploração do homem pelo homem. Nesse quadro, alguns homens vivem de acordo
com as idéias que postulam.
Em Rumo à Estação Finlândia, Edmund Wilson exemplifica com Karl Marx a
fidelidade dos grandes homens do século XIX às suas idéias. A família de Marx
chegou a passar fome, tendo inclusive alguns filhos que morreram de desnutrição;
ele viveu na pele a sua menos valia. Sua esposa descreveu o despejo da família por
falta do pagamento na época em que eles moravam em Dean Sreet, uma rua pobre
do Soho na Inglaterra:
No dia seguinte, tivemos que deixar a casa. Estava frio, chovia; foi
terrível. Meu marido tentava encontrar um lugar para morarmos, mas
ninguém nos queria quando dizíamos que tínhamos quatro filhos. Por
fim, um amigo nos acudiu, pagamos e rapidamente vendi todas as
minhas camas, para saldar as dívidas com o boticário, o padeiro, o
açougueiro e o leiteiro, que haviam ficado assustados com o escândalo
da chegada do oficial de justiça e vieram afobados apresentar suas
contas. As camas que eu havia vendido foram retiradas da casa e
colocadas numa carroça — sabe o que aconteceu? Já passava muito da
hora do pôr-do-sol, e na Inglaterra é ilegal transportar mobília tão
tarde. O senhorio chamou a polícia, dizendo que podíamos estar
fugindo para o estrangeiro. Menos de cinco minutos depois, já havia
6[6]
Filipe de Quental foi o herdeiro da enorme biblioteca paterna. Formou-se em Filosofia e Medicina na
Faculdade de Coimbra onde foi professor. Também se destacou como ator cômico, representando no Teatro
Acadêmico. Segundo testemunhos da época foi um artista cômico admirável. Antero morou com o tio quando
estudou direito. Filipe e Antero eram grandes amigos e mantinham uma admiração mútua.
umas duzentas pessoas em frente à nossa porta, toda a gentalha de
Chelsea. As camas tiveram que voltar para dentro de casa – só
poderiam ser entregues aos compradores no dia seguinte, após o nascer
do sol ” (...) Isso nos mostra um caso curioso. Karl Marx pouco fazia
para ajudar a si próprio. Uma das mais notáveis “contradições” de toda
a carreira de Marx é o fato de que o homem que, mais do que ninguém,
chamou a atenção para a motivação econômica, era incapaz de fazer o
que quer que fosse para ganhar dinheiro. Essa resistência à idéia de
ganhar a vida talvez, ao menos em parte, se devesse ao impulso de
evitar ao máximo a acusação de comercialismo que era sempre dirigida
aos judeus. Quando jovem, Marx afirmava “O escritor tem de ganhar
dinheiro para poder viver e escrever, mas ele não deve jamais viver e
escrever a fim de ganhar dinheiro
7[7]
.
Esses homens viviam fazendo sacrifícios por suas causas: Karl Marx é um
exemplo disso, implicou nesse sacrifício sua própria família.
Diante desse panorama, Antero se junta a um grupo
8[8]
que valoriza mais o
futuro do que os grandes feitos do passado, apostando no intercâmbio com outros
povos. Em relação a esse grupo, Antero apresenta algumas características peculiares:
exacerbação dos ideais e interesse peculiar pelas questões históricas. Ele não olha
para o passado de forma saudosista, mas para entender as conseqüências dele no
presente. Antero acredita que se deve levar a cultura ao povo, contribuindo assim
para a transformação da nação portuguesa. Afirma que “a Poesia moderna é a voz da
Revolução”
9[9]
, ou seja; a poesia e a filosofia instigam o desejo de mudanças e
revoluções.
Sobre as comemorações do dia de Camões, em junho de 1880, 3º centenário da
morte do poeta, Antero critica a elite portuguesa em carta a Oliveira Martins:
Esquecia-me dizer-lhe que a grande comissão dos literatos, depois de
grave meditar, resolveu celebrar o centenário com uma procissão! Isto
é curioso, até no ponto de vista biológico, porque mostra o poder do
7[7]
WILSON, 1989, p. 200.
8[8]
Os principais integrantes desse grupo são: Antero de Quental, Alberto Sampaio, Eça de Queirós, Gomes
Leal, João de Deus, Moniz Barreto, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro.
9[9]
ANTERO. apud. SARAIVA, 1975, p. 930.
atavismo. Aos netos dos frades que lhe há de lembrar se não
procissões?
10[10]
Em outro momento, afirma: “A burguesia portuguesa pode, por ostentação,
levantar uma estátua a Luís de Camões, mas o povo português, esse não sabe
soletrar o título do poema que o poeta consagrou às suas glórias”.
11[11]
Antero dá um valor muito especial à história. Há um poema enorme de 1865,
todo dedicado à história, do qual citaremos apenas alguns trechos:
À História
Mas o homem, se é certo que o conduz,
Por entre as cerrações do seu destino,
Não sei na mão direita d‘amor e luz
Lá para as bandas dum provir divino...
Se, desde Prometeu até Jesus,
O fazem ir – estranho peregrino,
O Homem, tenteando a grossa treva,
Vai... mas ignora sempre quem o leva!
Antero não acredita cegamente no destino do homem como estranho peregrino
nas cerrações da história:
Já que vamos, é bom saber aonde...
O grão de pão, que o simoun levanta,
E leva pelo ar e envolve e esconde,
Também, no turbilhão, se agita e espanta,
Também aonde vai e d‘onde
O traz a tempestade que o quebranta...
E o homem, bago d‘água pequenino,
Também tem voz na onda do destino!
10[10]
ANTERO. apud. MARTINS, 1986, p.221.
11[11]
ANTERO. apud. MARTINS, 1986, p.223.
E talvez seja bom saber aonde vamos e de onde viemos para que se tenha a
possibilidade de decidir algo sobre nosso destino. Para não nos levar, quem sabe, a
onda de algum mar sombrio.
O! a História! A Penélope sombria
Que leva as noites desmanchando a teia
Que suas mãos urdiram todo o dia!
O alquimista fatal, que toma a Idéia!
E, nas combinações da atroz magia,
Só extraia Pó! A fúnebre Medêa
Que as flores de luz do coração
Compõe seu negro filtro – a confusão!
12[12]
É a história da velha senhora Penélope que sempre se apresenta; e nesse fazer e
desfazer produz as combinações mais seculares das raças, construindo e
reconstruindo tronos, religiões, impérios e novas idéias e ideais. Para Antero o
passado tem que ser elucidado e analisado a fim de que se possa avançar no
presente. Antero sempre defendeu a tese de que não há acaso, e sim causas e efeitos.
Por exemplo, a razão pela qual Portugal está em descompasso com a Europa deve
ser buscada no passado. Esse retorno ao passado em momento algum deve ser
confundido com o saudosismo. Esta postura, inclusive, faz com que os portugueses
emigrem porque desistiram de criar as condições para a transformação de Portugal.
Antero nunca aceitou ser um desistente, como a grande maioria do povo português.
Sabemos que durante anos e anos os portugueses, sem ensino profissionalizante e
com governos desastrosos, para fugir à rotina rudimentar das lavouras e ao atraso
das indústrias, só viam como saída o mar. O velho mar português que sempre se
apresenta como esperança de terras nunca dantes navegadas e, na maior parte das
vezes, não passa de uma ilusão. Procurar soluções no mar é a repetição desse povo
diante da impotência de organizar o país
.
12[12]
ANTERO, 1924, p.15.
Mar Português
Ó mar salgado, quando o teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães chorem,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu
13[13]
Como nos revela a poesia de Pessoa: os portugueses vislumbram outro destino
fora de sua terra, presos à crença que passar além do Bojador é ir para além da dor
de existir, só que há um equívoco, pois essa dor irá doer em qualquer mar que o céu
espelhar.
Eduardo Lourenço, em Labirinto da Saudade, exemplifica a imigração
portuguesa na contemporaneidade: “Aventura de pobre é sempre dos que buscam
em longes terras o que em casa lhes falta.(...) Pobres saímos agora de casa para
servir a povos mais ricos e organizados que nós.”
14[14]
Criou-se, no imaginário
português, a ilusão de que a falta, a qual desde Lacan faz parte da estrutura do
falante, só pode ser preenchida em outras terras. Então não há como contornar o
vazio a não ser atravessando o mar.
Essa incapacidade de se fixar no seu torrão natal reforça a crença de que a
nação tem um destino escolhido por Deus a ser cumprido, dificultando a
possibilidade de criar alguma coisa que rompesse ou acrescentasse algo diferente do
vaticínio. Na carta de 1887, a Wilhelm Storck, Antero fala de sua angústia frente à
tarefa que ele e sua geração propõem fazer em relação à tradição: “Achei-me sem
direção, estado terrível de espírito, partilhado por quase todos os da minha geração,
13[13]
PESSOA, 1977, p.82
14[14]
LOURENÇO, 1988, p. 124.
a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada
da tradição”.
15[15]
Só que essa geração não percebeu que o rompimento com o passado e as lutas
por mudanças foram uma operação para substituir a separação, necessária e sempre
dolorosa, dos pais. Talvez a geração de 70 tenha encontrado uma outra maneira de
lidar com a ferocidade de uma educação, fundamentada na religião e na culpa, que
dificultava o rompimento com os valores estabelecidos e deixava poucas saídas para
a construção de novas subjetividades. A geração de 70 abriu outros caminhos além
do mar e do exílio. Aqueles que não acreditaram nem no destino, nem na nação
portuguesa emigraram. Mas Antero, por acreditar em seu país, não suportava o
exílio:
A.M.C.
“Pátria pátria!”
Garrett Camões
Terra do exílio. Aqui também as flores
Têm perfume e matiz; também vicejam...
Rosas no prado, e pelo prado vicejam
Zéfiros brandos suspirando amores
!
O poeta não se deixava enganar pela ilusão de que em outras terras haveria
coisas que não se encontrariam em Portugal. Todos os lugares têm flores e
perfumes. E se não os tivesse, o escritor pode criá-las em sua poesia.
Também cá tem a terra os seus primores
Pelos vales as fontes rumorejam
Tem a noite seus sopros, que bafejam,
E o céu tem sua luz e seus odores.
Em toda a natureza há amor e cantos,
Em toda a natureza Deus se encerra...
15[15]
QUENTAL, apud VELOSO, 1950, p. 298.
E contudo esta é a causa dos meus prantos!
Eu sou bem como a flor que não descerra
Em clima alheio. Que importam teus encantos?
Não és, terra do exílio, a minha terra!
16[16]
Algumas plantas só florescem em sua terra natal. Era assim que Antero se
sentia, mesmo reconhecendo que seu exílio era subjetivo. “A terra que nos dá o pão
há de ser sempre uma boa mãe.” Talvez a dificuldade esteja na separação da terra-
mãe. A impossibilidade de elaborá-la se desloca para a sensação de ser um exilado
em sua própria pátria.
Antero sonha com a transformação de Portugal. Muito tempo depois, esse
sonho é sustentado por Fernando Pessoa, quando afirma: “Tudo vale a pena / Se
alma não é pequena”
17[17]
Justamente por isso, Antero acena com algumas soluções
para a transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa,
podendo ser feita com a abertura de uma tribuna para os trabalhadores exporem
suas idéias. Isso possibilitaria o despertar de novas propostas.Também propõe inserir
Portugal no mundo moderno, e defende uma literatura que se responsabilize pelo
destino do povo.
Desde a época de Coimbra, aqueles que fazem parte do grupo de Antero
acreditam e se deixam seduzir pelo discurso revolucionário. Eça de Queiroz é um
deles. In MEMORIAN, Eça recorda seu encontro com Antero numa noite, na
escadaria de Coimbra, onde ele discursava para um grupo que o escutava
embevecido.
Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por
entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
É o Antero!..
[...] Mas era um devoto (o termo não excessivo) do poeta das “Odes
Modernas”. Todos, desde então, esperávamos dele a renovação de um
16[16]
ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 249.
17[17]
PESSOA, 1977, p.82.
mundo, do nosso pequeno mundo, para nós imenso e imenso na
verdade porque uma simples alma é um vasto mundo, e a sua
renovação, no sentido da justiça ou da bondade, uma vasta obra.
Antero não era só um chefe mas um Messias. Ninguém jamais possuiu
um Verbo de tanta solidez, harmonia, finura e brilho.
18[18]
Antero, com seu discurso inflado, defendia que as mudanças dependiam do
exercício da vontade e da ação renovadora de cada um. Naturalmente, o abandono
da Pátria não era o caminho. É preciso a conscientização de que uma nação é obra
dos homens. Sem abrir mão dessa aspiração, o Príncipe da Mocidade, como é
chamado em Coimbra, apresentava-se a seus pares e à nação portuguesa de forma
eloqüente, altiva, polêmica e destemida, causando desejos e esperanças.
2-1 Portugal em relação à Europa no séc. XIX.
Tenho uma dor chamada Portugal
País defunto talvez tanto para nações vivas
Portugal meu país de desistentes
[...]
Desde o tormento metafísico de Antero
Até os dias irae
19[19]
destes dias
Em que mãos desabrocha algum possível
Portugal?
20[20]
Vamos estabelecer a diferença de Portugal em relação à Europa, partindo da
premissa de Ausguste Stärcke: não existe evolução, mas sim revolução. Starcke,
médico e psicanalista holandês, foi discípulo de Freud. Em 1952, codificou algumas
leis sociais de forma peculiar e original, criando inclusive as leis da retrogênese: “O
18[18]
QUEIROZ. 1993, p.483.
19[19]
Primeiro verso, de um canto litúrgico da Quaresma, da época medieval, com o significado de dia da ira,
no sentido de fim do mundo.
20[20]
BELO apud FREIRE, 1996, p.9.
desenvolvimento não é um produto de evolução, mas da revolução. Tal
desenvolvimento não se efetua no ponto mais alto alcançado, mas reverte para um
estágio anterior e mais primitivo do desenvolvimento.”
21[21]
Sem dúvida, concordamos com Stärcke, já que consideramos que as
sociedades são constituídas por possibilidades e impossibilidades. A linearidade não
é uma tônica nem nos indivíduos, nem nos grupos e muito menos nas nações. Desde
a pré-história, a humanidade caminha com avanços e retrocessos, repetindo e
produzindo novas criações e elaborações.
Michel Foucault, no livro O que é um autor?, diz que, ao longo do século XIX,
apareceram autores com grandes singularidades, o que possibilitou a criação de
obras como “instauradoras de discursividade”. Foucault se refere a Freud e a Marx
como “fundadores de discursividade”:
(…) o que os instauradores da discursividade tornaram possível
(como, por exemplo, Marx e Freud, porque penso que são
simultaneamente os primeiros e os mais importantes) foi uma coisa
completamente diferente daquilo que um autor de romance torna
possível. (…) Em contrapartida, quando falo de Marx e Freud como
“instauradores de discursividade”, quero dizer que eles não só
tornaram possível um certo número de analogias como também
tornaram possível (e de que maneira) um certo número de diferenças.
Eles abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no
entanto, pertence ao que eles fundaram.
22[22]
Isso significa que tanto Marx quanto Freud instauraram algo tão original que
marcaram um antes e um depois na história da civilização. Sempre que abordarmos
o marxismo e a psicanálise nos remeteremos aos nomes de Marx e de Freud.
O século XIX teve a honra de abrigar esses dois pioneiros e, junto com eles,
outros que, embora não tivessem realizado atos inaugurais, deram grandes
21[21]
STÄRCKE, 1982, p.367.
22[22]
FOUCAULT, 1992, p. 59.
contribuições, apesar dos ideais exacerbados em relação ao amor, à liberdade, à
fraternidade e à igualdade social.
Sem dúvida, o século XIX é considerado por alguns historiadores a época das
grandes ilusões: acreditava-se que as mudanças na organização política, econômica
e social produziriam uma sociedade perfeita e organizada, onde pudesse reinar a paz
e a felicidade. A maior parte dos intelectuais e artistas acreditava que o homem é
bom por natureza e é a sociedade que o corrompe. Ou seja: a castração não estava no
homem. Era o mundo que impedia o homem de atingir sua plenitude. Em O mal-
estar na civilização, (1930 [1929]), Freud afirma:
Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por
nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de se
experimentar. O sofrimento nos ameaça de três direções: de nosso
próprio corpo, condenação à decadência e à dissolução, e que nem
mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de
advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com
forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de
nossos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que provém
dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.
Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito,
embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o
sofrimento oriundo de outras fontes.
23[23]
Freud não acredita na inocência do homem, já que a tendência para a crueldade
faz parte do seu aparelho psíquico:
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em
nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros,
constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso
próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio de [energia].
Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres
23[23]
FREUD, 1929-1930, p. 95.
humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de
desintegração.
24[24]
Para Freud nunca abrimos mão da agressividade. Lacan, retomando a obra de
Freud, afirma que a agressividade faz parte da constituição do eu, o qual se funda
antes da aquisição da palavra (verbalização). Lacan trabalhou o conceito de eu, em
artigo de 1949, intitulado O estádio do espelho como formador da função do eu tal
como nos é revelada na experiência psicanalítica. Nesse momento de sua obra, ele
teoriza minuciosamente a relação especular e a matriz imaginária do eu ligadas à
rivalidade. Mais tarde, no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud, ele retoma
essas questões vinculando-as com a natureza do desejo, que é desejo do desejo do
Outro.
Antes que o desejo aprenda a se reconhecer — digamos agora a
palavra — pelo símbolo, ele só é visto no outro. Quer dizer, não tem
outra saída — Hegel no-lo ensina — senão a destruição do outro.
O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de
uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao
objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num
sujeito, essa alienação primordial, se engendra a mais radical
agressividade — o desejo do
desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.
25[25]
Stärcke formula essa questão de outra forma, afirmando que o
desenvolvimento não se efetua até o ponto mais alto, mas reverte sempre para o
estágio mais primitivo. Isto nos leva a concluir que todas as vezes que o eu se
relaciona com o outro, sem mediação simlica (a palavra), não resta outra saída
senão a destruição do outro. Toda vez que fracassa a função simbólica,
inviabilizando qualquer possibilidade de pacto, entra em cena a agressividade
24[24]
FREUD, 1929-1930, p.134.
25 LACAN, 1986, p.1997.
humana com maior ou menor intensidade, dependendo da posição do sujeito frente à
castração.
Mapeando essas leis estruturais e os fatos históricos, podemos deduzir que os
séculos XIX e XX não foram menos destrutivos do que os anteriores. Apesar das
sofisticações da vida moderna com seus computadores, seus gadjetes, suas potentes
armas “cirúrgicas”, a sociedade humana em relação à agressividade continua
perigosa e ameaçadora para todos.
Caminhamos com o delírio de liberdade, com o capitalismo e seus imperativos
de mais-gozar: consumir e ser consumido. Abandonamos os reagrupamentos
ideológicos do século XIX e no seu lugar se coloca o self-made-man do século XXI.
Enfim, a contemporaneidade nos deixa sem a menor esperança diante dos
“progressos”, como nos ensina Camões:
Busque Amor novas artes, novo engenho
para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Pois mal me tirará o que eu não tenho.
26[26]
Ao contrário da Europa, não havia acontecido nenhuma revolução na
sociedade portuguesa. Desde a época da epopéia marítima de 1500, nenhuma
mudança significativa havia ocorrido e o povo português, frente às dificuldades,
repete a velha tradição de sair de Portugal. No passado, o sucesso dessa saída
dependia da navegação: mapas precisos, homens que acreditassem mais nos
cosmógrafos e nos mapas geográficos do que em fábulas. Sem dúvida os
portugueses foram os desbravadores do mar. Conseguiram superar os antigos nessa
arte. Mas se navegar é preciso, por que viver não é preciso? O verbo precisar não só
significa carência, urgência, necessidade de alguma coisa, mas também exatidão de
cálculos, rigor, funcionamento sem falhas, perfeição. Quando os portugueses
perderam o desejo de navegar, perderam o desejo de investir na precisão. A glória
26[26]
CAMÕES, 1970, p.7.
do grande império se tornou passado a ser recordado de forma nostálgica. Os
portugueses não encontraram novas formas de investimento na precisão. Não
acompanharam, portanto, as grandes revoluções que aconteceram na Europa:
Revolução Francesa, Revolução Industrial na Inglaterra, etc. Em História concisa
de Portugal, José Hermano Saraiva se refere à decadência de Portugal:
No meado do século XIX, Portugal não tinha ainda estradas. A única
estrada de tipo moderno, isto é, macadamizada, era a que ligava Lisboa
a Coimbra. Foi construída por D. Maria I, antes das invasões
francesas; foi com essa estrada que surgiu a primeira carreira
comercial, uma diligência de quatro lugares, duas vezes por semana.
Mas a carreira acabou em 1804 por falta de passageiros. Passados
quarenta anos, a idéia de um comboio entre e o Porto foi considerada
quimérica, porque não havia passageiros que a justificassem. Os
políticos desde há muito denunciavam a falta de transporte como
principal causa da estagnação econômica: “Sem estradas,os frutos e
objetos da indústria são quase perdidos, porque o transporte excede
muitas vezes o preço das mercadorias” escrevera Fernandes Tomás em
1821. Há muitas outras afirmações desse gênero. As narrativas dos
viajantes estrangeiros em Portugal mostram assombro perante o estado
dos caminhos.Um deles escreve, em 1860, enquanto, lá fora ninguém
se espantava com ver passar um comboio , ainda aqui a passagem da
diligência fazia sensação.
27[27]
Se as estradas e os transportes eram tão precários, as coisas não eram
diferentes com a educação e a cultura. A educação em Portugal, no século XIX, era
algo catastrófico. A edição de livros e compêndios escolares era praticamente nula.
Quase não havia professores e os que existiam possuíam uma formação deficiente.
Eis o depoimento de D. António da Costa, em seu livro História da Instrução
Pública em Portugal:
Vimos que a verdadeira escola do século XIX é desconhecida entre
nós pela carência de livros próprios que são instrumento do método;
que as bibliotecas populares estão ainda por nascer. O magistério sem
27[27]
SARAIVA, 1978, p. 304.
habilitações, quase sem vencimentos e absolutamente sem
carreira.
28[28]
Até 1815, só existia uma escola pública em Portugal, dedicada ao sexo
feminino. Além disso, segundo esse autor, havia um certo medo de que o ensino
prejudicasse a moral e os bons “costumes” portugueses. Em especial, a educação
não podia contrariar os interesses do governo vigente. António da Costa se refere às
forças conservadoras, que assumiram o governo português em 1823 e revogaram
uma lei sobre a educação de 1820, um pouco mais liberal. Para ele:
O medo à liberdade do ensino foi tamanho, que a restauração se deu
pressa em aboli-la para que se não ensinasse alguma doutrina contrária
aos bons costumes e aos princípios dos governos.
Foi um dia de luto aquele dia. Todas as escolas livres
fecharam...incluindo-se naquele número as de ensino primário.
29[29]
Qual a esperança e a possibilidade de mudanças para um povo que não tem
direito à educação e, portanto, ficou privado de escolha? Sabemos que, desde a
Grécia antiga, a transmissão do saber é de grande valor para a polis. Qual é o futuro
de uma nação que condena a transmissão do ensino e o tem como ameaça aos
valores morais, religiosos, sociais e políticos? Talvez ainda haja em Portugal
pessoas arraigadas aos valores morais e religiosos, que acreditam que a educação
escolar e o saber são os responsáveis pelos “desvios” de conduta do indivíduo ou de
um grupo.
Os portugueses cultuam as tradições e têm orgulho dos valores legados por
seus ancestrais através dos séculos. Talvez tenha sido essas características que os
levaram a ficar, durante anos, hipnotizados pelo mar e sua imensidão e a esperar das
terras além do horizonte o sentido para as suas vidas.
28[28]
COSTA, 1871, p.219.
29[29]
COSTA, 1871, p. 244.
Assim, Portugal dava as costas para a Europa e para tudo o que poderia
representar um enriquecimento através de trocas culturais com outras nações.
Continuava saudoso do passado glorioso da época das navegações e cultuava o
delírio do rei morto na batalha de Alcácer Quibir, D. Sebastião
30[30]
, o rei que viria
montado em seu cavalo branco, em um dia encoberto de nevoeiro para salvar a
gloriosa nação portuguesa. Esse mito do rei Salvador engendrava um discurso
fazendo com que os portugueses se sentissem mais confortáveis com o passado do
que com o presente.
Em O mal-estar na civilização, Freud nos aponta que os sintomas individuais
se articulam com os mecanismos usados pela civilização. No caso de Portugal, o que
pode ter acontecido, que levou grande parte do povo, em determinada época da
história, a se submeter ao passado, e ao poder religioso e ao poder político, por mais
absurdo que eles fossem?
Sabemos, desde Marx, que a religião é o ópio do povo. Freud também nos
ensina que a religião é um dos agentes mais bem sucedidos para a realização do
recalque. Para ele, todo ser humano nasce no desamparo e este sempre volta, com
menor ou maior intensidade, no decorrer da vida. O que a religião promete não é
pouco: Deus, Pai todo poderoso, ama todos os homens, assegurando-lhes a Sua
proteção. Se Deus é nosso pai, somos todos irmãos. E como tais, devemos amar ao
próximo como a nós mesmos.
Antero era um poeta que ora se impressionava com a idéia de Deus, ora se
interrogava sobre a criação dos deuses: “Mas os deuses, com voz ainda mais triste,/
Dizem: Homens! porque é que nos criastes?”
31[31]
30[30]
D. Sebastião foi um rei português morto na batalha de Alcacer-Quibir, em 1578. Foi personagem de um
movimento místico –secular em Portugal na segunda metade do século XVI. Por não deixar herdeiros, o trono
português terminou nas mãos do rei espanhol Filipe II. Apesar do corpo do rei ter sido removido para Belém,
o povo nunca aceitou o fato, divulgando a lenda de que o rei encontrava-se ainda vivo, apenas esperando o
momento certo para volver ao trono e afastar o domínio estrangeiro. Seu mais popular divulgador foi o poeta
Bandarra que produziu incansáveis versos clamando pelo retorno do desejado. Até o Padre Antonio Vieira
aderiu ao movimento. Em 1640, pelo golpe restauracionista liderado pelos Braganças, no Porto, Portugal
voltou a ser independente. O sebastianismo traduz uma inconformidade com a situação política vigente e uma
expectativa de salvação, ainda que miraculosa, através da ressurreição de uma morte ilustre.
31[31]
QUENTAL, apud SERGIO, 1962, p. LXXVIII.
Freud, ainda em o Mal-Estar na Civilização, nos chama a atenção para a
religião na vida do homem comum. Ele cita uma poesia de Goethe: “[‘Aquele que
tem ciência e arte, tem também religião: o que não tem nenhuma delas, que tenha a
religião!’] – Goethe, Zahme Xenien IX (Gedichte aus dem Nachlass).
32[32]
Antero,
quando questiona o afastamento do homem português da ciência e da arte, deduz
que esse afastamento faz com que ele vá procurar conforto para as sua dores na
religião. Com isto acentua-se mais a distância entre Portugal e as nações que
investem na ciência e na arte. Freud afirma que é preciso criar satisfações
substitutas, para suportar a vida como ela se apresenta:
Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos
fazem extrair luz da nossa desgraça; satisfações substitutivas, e
substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é
indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente quando terminou
Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a
atividade científica constitui também um derivativo dessa espécie. As
satisfações substitutivas, tal como oferecidas pela arte, são ilusões, em
contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos
eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida
mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e alteram a sua
química. Não é simples perceber onde a religião encontra o seu lugar
nessa série.
33[33]
Antero é um homem do século XIX, apesar de ser influenciado pelos ideais
dessa época, em alguns momentos de sua reflexão ele fica dividido entre a tradição e
a revolução: “(...) o último dos homens para combater sou eu. A natureza em mim é
conservadora: só o espírito é que é revolucionário.”
34[34]
Ele tentava apaziguar seus
conflitos agarrando-se à ciência e à arte. Tal como nos aponta Freud, a ciência e a
arte são recursos que possibilitam um apaziguamento frente ao desamparo. Quando
há empobrecimento desses recursos para lidar com o sofrimento, as religiões
32[32]
FREUD, 1929-1930, p.93.
33[33]
FREUD,1929-1930, p. 93.
34[34]
QUENTAL, apud CARREIRO,1981, p. 294.
proliferam já que ajudam a recriar o mundo interno de forma mais adequada,
substituindo o que é mais insuportável, ou seja, a morte, pela promessa de vida
eterna.
Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra
ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo,
que cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um
paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela
elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade Conceda-
se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma
certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um
remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um
considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem
ser classificadas entre esses delírios de massa desse tipo. È
desnecessário dizer que todo aquele que partilha de um delírio jamais o
reconhece como tal.
35[35]
Para Freud, a religião é um delírio compartilhado, que protege o homem do
sofrimento e do desamparo.
Qualquer escolha levada a um extremo condena um indivíduo a se
expôr a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida
como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como um negociante
cauteloso evita empregar todo o seu capital num só negócio, assim
também, a sabedoria popular nos aconselha a não buscar a totalidade
de nossa satisfação numa só aspiração.
36[36]
Antero nos aponta isso de forma brilhante em sua conferência do Cassino
Lisboense Causa da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, na
noite de 27 de maio de 1871. Ao esclarecer quais eram as causas da decadência,
35[35]
FREUD, 1929-1930, p. 100.
36[36]
FREUD, 1929-1930, p. 103.
Antero cita alguns fenômenos que, segundo ele, tinham sido vitais para a alienação
da nação portuguesa no século XIX:
Ora esses fenômenos capitais são três; e de três espécies: um moral,
outro político, e outro econômico. O primeiro é a transformação do
Catolicismo, pelo conselho de Trento
37[37]
. O segundo, o
estabelecimento do Absolutismo
38[38]
pela ruína das liberdades locais.
O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas. Estes três
fenômenos assim agrupados, compreendem os três aspectos da vida
social, o pensamento, a política e o trabalho, indicando claramente que
uma profunda e universal revolução se operou durante o século 16.º,
nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima.
Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto
contemporâneo muito simples: esses três fenômenos eram exatamente
o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora
cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e
tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores
foram liberdade moral, conquista pela Reforma ou pela Filosofia: a
elevação da classe média, instrumento de progresso nas sociedades
modernas, e directora dos reis, até o dia em que os destronou: a
indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que
veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o
trabalho à força, o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade
moral, apelando para o exame e a consciência individual, é
rigorosamente o oposto do Catolicismo do concílio de Trento para
quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus:
a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes seu
espírito, é o oposto do Absolutismo, esteiado na aristocracia e só em
proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do
Espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.
39[39]
37[37]
O Concílio de Trento foi estabelecido pela Igreja Católica em 1545 para combater a Reforma religiosa da
época. Ela marcou o início da Contra-Reforma, cujo principal intuito era trazer de volta para a igreja o grupo
de protestantes influenciados por Lutero e suas teses contra o papado. O Concílio de Trento durou oito anos e
leva esse nome por ter sido realizado por questões políticas da Igreja e na cidade de Trento, capital de
Trentino, Alemanha.
38[38]
Absolutismo: sistema de governo no qual o poder é centralizado na figura do governante, típico da
Europa dos séculos XVII e XVIII. A hegenomia está nas mãos dos reis, que realizam a centralização
administrativa, constituem exércitos permanentes, criam a burocracia e a padronização monetária e fiscal,
procuram estabelecer as fronteiras de seus países, promovem políticas mercantilistas e coloniais.Também
institucionalizam a justiça, acima do fragmentado sistema judiciário feudal.
39[39]
QUENTAL apud SIMÕES, 1962, p.179-180.
Essa abordagem da história feita por Antero destaca a transformação do
Catolicismo pelo Concílio de Trento, o estabelecimento do Absolutismo, o
desenvolvimento das conquistas longínquas, que se contrapunha aos caminhos que
as nações progressivas estavam seguindo. Na Europa, a filosofia e a ciência
contribuíram para essas mudanças. Em Portugal, acontecia totalmente o contrário:
tínhamos uma sociedade que vivia sob a proteção e a vigilância do Estado e da
Igreja. O Estado diz o que se deve fazer e a Igreja o que se deve crer. Assim a
singularidade subjetiva fica difícil de ser exercida, pois todos devem pensar e agir de
acordo com as imposições do Estado e da Igreja.
Antero, nessa mesma conferência, concorda que outras formas de governo
também sujeitavam o povo. Mas, por outro lado, ajudavam no progresso,
possibilitando o surgimento da burguesia. A burguesia era, para ele, a classe mais
civilizadora, porque incentivava a indústria, a ciência e o comércio. A península
vivia em função da nobreza. Quando o governo deu liberdade para o povo, estava
tão despreparado que não a compreendeu, nem a soube usar. Logo o povo se voltou
para a religião. Dessa forma o povo português continuava adormecido, ignorando as
revoluções que ocorriam à sua volta.
As conferências do Cassino são interrompidas por ordem do Primeiro-Ministro
da defesa, Marquês D’Ávila. Antero, diante da intransigência e da intolerância do
Ministro, escreve uma carta com tamanha determinação, que até hoje nos
impressiona por sua coragem, por seu caráter revolucionário, pela clareza das idéias
e pelo excepcional talento de escritor. Ele a termina com um apelo à prosperidade:
Nem eu nem V. Ex. passaremos à história: e muito menos as ineptas
portarias que V. Ex. faz assinar a um rei sonâmbulo. Mas, supondo por
um momento que algumas destas coisas possa passar ao século XX,
folgo de deixar aos vindouros, com este escrito, a certeza de uma
coisa: que em 1871 houve em Portugal um ministro que fez uma ação
má e tola, e um homem que teve a franqueza de lho dizer.
40[40]
40[40]
QUENTAL, apud SIMÕES, 1962, p. 223.
Com esses escritos e poesias, Antero tenta convocar Portugal a acordar do
marasmo em que se encontra. Ele identificava a acentuação da decadência
portuguesa no começo do século XVII. Data dessa época a decadência da
inteligência, da política, do trabalho, da economia social e da indústria. Através de
tratados, Portugal quase virou uma província da Inglaterra.
A dimensão e a seriedade política de Antero são realçadas na obra de Vitorino
Nemésio:
Por seu intermédio os Açores partilharam das mais graves e nobres
inquietações da Europa contemporânea. E se pôs sempre em primeiro
plano o problema de lata solução, encarando as necessidades da
sua pátria em função das necessidades da Península, do
Ocidente e até do mundo, nem por isso foi patrioticamente um
transviado.
41[41]
Vitorino Nemésio reconhece que Antero foi uma voz forte e participativa nas
questões do seu tempo, interagindo com seus contemporâneos, sem esquecer jamais
de procurar soluções para os problemas que Portugal atravessava.
Antero sempre se mostrava incisivo em referência às causas da decadência e
suas conseqüências. Enfatiza as questões da causalidade, já que para ele havia
sempre uma causa determinando um fato. Nesse momento, essas questões não
permeavam o pensamento da nação portuguesa, onde tudo era determinado pelo
Estado, Deus e o Destino. Se os homens não podiam interferir, porque tudo já estava
determinado, então, se repete a máxima: viver não é preciso. O povo português
ainda se via como o povo de Moisés: o povo “escolhido” para levar o cristianismo às
paragens mais distantes do mundo e salvar os “selvagens” do fogo do inferno. Esse
ideal cristão dava força para o povo seguir no caminho da salvação. Claro que este é
41[41]
NEMÉSIO. 1932, p.139.
só depois da morte. Para quê se preocupar em olhar para a terra, se o futuro está no
céu e no mar. E a morte é a única coisa precisa. Viajar, partir, emigrar é uma das
marcas do povo português; assim ele inscreve seu nome na história, com
determinação quase religiosa diante do mar por vezes sombrio, e nem sempre de
amplos horizontes. As províncias ultramarinas estavam lá para confirmar o orgulho
histórico dos valorosos homens do mar. Não havia muito que mudar, nem que
questionar, só reverenciar o canto de Camões:
CANTO IV
Aclamado João, de Pedro herdeiro,
Convoca Leonor ao Castelhano;
Opõe-se Nuno, intrépido guerreiro;
Dá-se batalha, vence o Lusitano:
Quem a Aurora buscar tentou primeiro
Pelas túmidas ondas do Oceano;
E como ao Gama coube esta alta empresa,
Por afirmar a glória Portuguesa.
CANTO VIII
Vêm-se da Lusitânia os fundadores,
E aqueles que por feitos valorosos,
De alta memória são merecedores,
Como de Calecu os Regedores
Consultam os Arúspices famosos,
E corruptos com dádivas possantes,
Tratam de destruir os Navegantes.
42[42]
42[42]
CAMÕES, 1970, p.1453.
Antero propõe uma revolução na estrutura teórica e moral da nação. Mesmo
que essas idéias e as da geração de 70
43[43]
não promovam mudanças, elas apontam
para um diálogo intelectual que faltou no decorrer da história cultural de Portugal.
Era preciso olhar o passado para entender o presente, sem se deixar seduzir
completamente pelos seus erros e acertos, para que fosse possível fazer novas
escolhas.
Oliveira Martins, em História de Portugal, nos dá um exemplo interessante
dessa ancestralidade atávica dos povos:
Todos reconhecem hoje a indestrutível tenacidade das populações
primitivas. Raízes profundas que nenhuma charrua destrói apesar de
revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas
e troncos pelo tropear dos cavalos de guerra, depois queimados e
reduzidos a cinzas pelos incêndios das invasões; embora se lancem
novas sementes à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes
profundas tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu,
e afinal convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um
modo obscuro e lento, mas invencível, as plantas intrusas.
A permanência dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje
indiscutível, permite fazer – consinta-se-nos a expressão – história ao
inverso: julgar de hoje para ontem, inferir do atual para o passado.
44[44]
O que é possível fazer com as marcas do que foi vivido na história humana que
fica e insiste sempre em se apresentar em vários registros, mesmo depois de tudo
reduzido a cinzas pelos incêndios, pelas invasões e pelas guerras? Essas marcas
sempre voltam e podem ter vários destinos possíveis: transformam ou exterminam.
Por isso faz sentido, na Conferência das causas da decadência dos povos
peninsulares, Antero procurar entender o presente pelas marcas deixadas na cultura
e na política do passado ibérico.
43[43]
A Geração de 70 foi um marco em Portugal, dela saíram alguns dos maiores escritores portugueses do
século XIX como, por exemplo: Antero de Quental, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins,
Teófilo Braga (é a esse grupo, somando alguns outros, que se convencionou chamar de Geração de 70).
44[44]
MARTINS apud LIMA, 1994, p.20.
Apesar de alguns especialistas atuais e da época afirmarem que tenha faltado
mais embasamento teórico, acerca do assunto da causa da decadência dos povos
peninsulares, eles são unânimes em reconhecer a ousadia das idéias anterianas,
expostas com coragem e, sobretudo com paixão, como era o seu estilo. Até aquele
momento, na sociedade portuguesa, ninguém tinha abordado com tanto desejo de
decifrar e ao mesmo tempo refazer o destino português. Talvez um pouco utópico e
sem muito eco, a não ser entre os integrantes da Geração de 70, Antero tentou
despertar o povo para a cultura, a política e a curiosidade científica. O povo
português dessa época não demonstrava o menor interesse por essas questões, só se
interessando pela religião e por assuntos militares. E não tinha a menor idéia a
respeito do que estava acontecendo à sua volta, como comenta Antero, com ironia,
na já citada carta ao Primeiro-Ministro da defesa Marques D’Ávila:
Portugal, dizia-se há anos, é o país mais liberal da Europa! A Europa,
diziam os correspondentes dos jornais provincianos, invejam a nossa
sorte, e acha-a única! A Europa, diziam no Grêmio os jogadores de
bilhar, estuda com afinco as nossas instituições, e duvida se chegará a
imitá-las. A Europa quase que não compreende a nossa fenomenal
liberdade de pensamento! Somente, meus senhores, ninguém se
lembrava de pensar. Um dia decidiu-se alguém pensar livremente. O
Sr. Marquês D’Ávila pôs logo o seu chapéu ensebado em cima da
liberdade de pensamento.
45[45]
As conferências do cassino são a tentativa de demonstrar o abismo político,
econômico e industrial de Portugal em relação à Europa. Assim a geração de Antero
tentou que Portugal acompanhasse o “desenvolvimento” do mundo moderno e
tivesse maior intercâmbio com as outras nações, para que fosse possível uma
revolução em Portugal. Esses eram os ideais do grupo do cenáculo inebriado pelas
mudanças, que estavam acontecendo na cultura européia. Eça de Queirós confirma
essas influências, In Memoriam, livro dedicado a Antero pelos seus pares e amigos:
45[45]
ANTERO, apud SIMOES, 1962, p. 216.
Pelos caminhos de ferro que tinham aberto a Península, rompiam cada dia,
descendo de França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas
novas, idéias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses
humanitários (..) Cada manhã trazia a sua revolução como um sol que fosse
novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, Vigo, e Proudhon, Hugo, tornado
profeta e justiceiro de reis; Balzac, com seu mundo perverso e lânguido; e
Goethe, vasto como o Universo; e Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e
quantos outros.
46[46]
Essas estéticas novas seduziam esse grupo de doutores dessa inebriante
Coimbra de 1870, pela forma revolucionária com que abordava os problemas
sociais. Assim, essa geração seguia fascinada pelos ideais de renovação das
estruturas de pensamento e de ação da sociedade. E elegem como líder o talentoso e
revolucionário Antero de Quental.
3- A influência dos autores europeus
Antero acreditava na formação política, intelectual, e científica do povo.Para
ele uma revolução implicava sempre uma evolução. Claro que, em algumas
especulações, havia mais curiosidade intelectual do que conhecimentos históricos.
Mas ele tinha sensibilidade para elaborar algumas questões de forma
impressionante. Este é o caso quando afirma que não existe mais instinto no homem
e que isso cria impasses
:
Decididamente, a inteligência humana é fraca e acanhada de mais para
poder compreender, dominar e governar coisa tão complexa como é o
homem. O instinto, afinal, valia muito mais para esse fim. Infelizmente, o
período do instinto passou e é nisso justamente que está em crise: substituir,
na direção das coisas humanas, o instinto, que era suficiente, pela
46 ANTERO, IN MEMORIAM, 1993, p. 485.
inteligência, que parece insuficientíssima. Não vejo saída a este beco
escuro. (Cartas 258-9)
47[47]
Sem dúvidas alguns autores vieram ao encontro do seu espírito questionador e
inquieto: tais como Hartmam (a elaboração sobre o inconsciente) Hegel (fazer com
paixão) Proudhon ( a construção de uma sociedade mais justa) e Michlet (uma nova
história).
3.1- Hartmann
(...) E já prostrado
E estúpido à força de fadiga,
Fito inconsciente as sombras visionarias,
Enquanto pelas praias solitárias,
Ecoa, ó Mar, a tua voz antiga.
48[48]
Eduard Von Hartmann, autor de Philosophia do Inconsciente, tem uma
considerável influência na obra de Antero de Quental. Podemos constatar isso em
uma carta a Oliveira Martins, quando, em 1876, o poeta escreve: “Vou percebendo
que o pessimismo de Hartmann se parece singularmente com o meu optimismo.
Estou morto por ler alguma obra mais extensa deste simpático filósofo. Talvez eu
tenha inventado a Filosofia do inconsciente sem saber!”
49[49]
Esse autor, discípulo de Schopenhauer, impressionou-o de tal forma que
Antero escolhe o inconsciente para tema de uma de suas poesias:
O Inconsciente
O espectro familiar que anda comigo
Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,
47[47]
CIDADE, Hernani, 1988, p.73.
48[48]
QUENTAL apud VELOSO, 1950, p.45.
49[49]
QUENTAL apud MARTINS, 1985, p.195.
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muito ansioso espreito e sigo,
É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto...
Ante esse vulto, ascético e composto,
Mil vezes abro a boca... e nada digo.
Só uma vez ousei interrogá-lo:
-“Quem és (lhe perguntei com grande abalo)”.
Fantasma a quem odeio e a quem amo?
-“Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos”,
Chamam-me Deus, Há mais de dez mil anos...
Mas eu por mim não sei como me chamo...
50[50]
A filosofia do inconsciente, além de influenciar a obra poética de Antero,
contribui também para sua formação filosófica. A metafísica de Hartmann não
admite um Deus dotado de consciência. Se Deus tivesse consciência, o
desenvolvimento do mundo seria uma inutilidade absurda. Para esse filósofo, Deus é
inconsciente e, como tal, não tem nenhuma maldade.
Será que o “espectro familiar”, que acompanha o poeta, às “conversas mal
disposto”, diante do qual ele fica “mudo”, sem a mínima possibilidade de
dialetização, e o “fantasma a quem odeio” correspondem ao inconsciente de
Hartmann?
O inconsciente de Hartmann é totalmente diferente do inconsciente freudiano.
Roudinesco, no Dicionário da Psicanálise, afirma que “No período romântico na
Alemanha, o termo inconsciente foi definido como um reservatório de imagens
mentais e uma fonte de paixões cujo conteúdo escapa à consciência”.
51[51]
Em Nota
Sobre o Conceito de Inconsciente em Psicanálise, Freud afirma:
50[50]
QUENTAL apud BANDEIRA, 1988, p. 261.
51[51]
ROUDINESCO, 1998, p. 375.
Desejo expor em poucas palavras e tão simplesmente quanto possível
o que o termo inconsciente veio a significar para a Psicanálise e
somente nesta. (...) Adquirimos hoje a convicção de que há algumas
idéias latentes que não penetram na consciência, por mais fortes que
possam haver-se tornado. Assim chamamos as idéias latentes do
primeiro tipo pré-consciente, enquanto reservamos o termo
inconsciente (propriamente dito) para o último tipo que viemos a
estudar nas neuroses. O termo inconsciente, que foi empregado antes
no sentido puramente descritivo, vem agora implicar algo mais.
Designa não apenas as idéias latentes em geral, mas especialmente
idéias com certo caráter dinâmico, idéias que se mantêm à parte da
consciência, apesar de sua intensidade e atividade. (...) ao invés de
concordar com a hipótese de idéias inconscientes, das quais nada
sabemos, é melhor presumir que a consciência pode ser dividida, de
modo que certas idéias ou atos psíquicos possam constituir uma
consciência separada, que se tornou desligada e separada da massa de
atividade psíquica consciente.
52[52]
Freud refere-se ao filósofo, no capítulo VII de A Interpretação dos sonhos,
1990, com a finalidade de marcar as diferenças em relação ao conceito de
inconsciente, dedicando-lhe uma extensa nota de rodapé, que foi redigida vinte e
quatro anos depois:
Foi somente mais tarde que minha atenção foi atraída para o fato que
Eduard Von Hartmann assume o mesmo ponto de vista sobre esta
importante questão de psicologia: Ao discutir o papel desempenhado
pelo inconsciente na criação artística, Eduard Von Hartmann (1890), 1,
Seção B Capítulo V, faz uma clara afirmação da lei segundo a qual a
associação de idéias é dirigida por idéias intencionais inconscientes,
embora não se dê conta do alcance da lei. Ele dispõe a provar que
“toda combinação de apresentações sensoriais, quando deixada
puramente ao acaso, mas conduzida a um fim definido exige auxílio do
inconsciente” [ibid., I, 245: tradução inglesa, 1984, I, 283] e que o
papel desempenhado pelo interesse consciente é estimular o
inconsciente e selecionar a idéia mais apropriada entre as incontáveis
possíveis. È o inconsciente que faz a escolha apropriada de um
propósito para o interesse e isto “é valido para a associação de idéias
52[52]
FREUD, 1980, p. 330. V. XII. O grifo é nosso.
no pensamento abstrato quanto para a imaginação sensorial e a
combinação artística” e a produção de chistes [ibid., I, 247: tradução
inglesa, I, 285 e seg.]. (Por esta razão, uma limitação de associação de
idéias a uma idéia excitante e uma idéia excitada no sentido de uma
psicologia de associação pura) não pode ser defendida. Tal limitação
poderia ser justificada “apenas se houvesse condições na vida humana
em que o homem se achasse livre não somente de todo o propósito
consciente, mas também da influência ou cooperação de todo o
interesse inconsciente, todo o estado de ânimo passageiro. Contudo,
esta é uma condição que dificilmente ocorrerá, porque, mesmo se em
aparência abandonarmos completamente nossa seqüência do
pensamento ao acaso ou se nos entregarmos inteiramente aos sonhos
involuntários da fantasia, sempre outros interesses principais,
sentimentos e estados de ânimo dominantes prevalecerão mais numa
ocasião do que na outra, e eles exercerão sempre uma influência sobre
a associação de idéias”.[ibid., I, 246: tradução inglesa, I, 284.] “Nos
sonhos semiconscientes, ocorrem sempre apenas aquelas idéias que
correspondem ao principal interesse [inconsciente] do momento.” [loc.
Cit.] A ênfase assim colocada na influência dos sentimentos e estados
de ânimo sobre a livre seqüência de pensamentos torna possível
justificar completamente o procedimento metodológico da psicanálise,
do ponto de vista da psicologia de Hartmann. (Pohorilles, 1913.) Du
Prel(1885, 107) refere-se ao fato de, após havermos em vão tentado
relembrar um nome, ele amiúde vem-nos de novo à cabeça
subitamente e sem qualquer aviso. Ele conclui disto que um
pensamento inconsciente, mas nem por isso menos intencional se
realizou e que seu resultado ingressou subitamente na consciência.
53[53]
Neste capítulo dedicado ao esquecimento, Freud discute algumas questões
impostas por autores dos quais ele discordava. Entre elas, o lugar mítico e
inacessível do inconsciente, como se ele fosse uma espécie de instância negra do ser,
invadindo e comandando todas as ações humanas. Freud defendia um inconsciente
dinâmico e com leis próprias, afirmando que ele não é mítico, mas sim uma
instância psíquica submetida às leis da condensação e do deslocamento.
Já Lacan, no Seminário XI, discordando dos autores que adotam essa
concepção mítica do inconsciente, cita Hartmann:
53[53]
FREUD, 1900, p. 563, v.5
O inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente
romântico da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da
noite. Sem dúvida que isso não deixa totalmente de ter relação com o
lugar para onde se volta o olhar de Freud — mas o fato de Jung, relé
dos termos do inconsciente romântico, ter sido repudiado por Freud,
nos indica bastante que a psicanálise introduz outra coisa. Do mesmo
modo, para dizer que o inconsciente tão intrometido, tão heteróclito,
que durante toda a sua vida de filósofo solitário Eduard Von Hartmann
elaborou, não é o inconsciente de Freud, também não seria preciso ir
muito longe, pois Freud, no sétimo capítulo da Ciência dos Sonhos,
refere-se, ele próprio, a isto, em nota — quer dizer que é preciso olhar
isso mais de perto para designar o que, em Freud, se distingue.
54[54]
Ironicamente Lacan afirma que não existe um inconsciente tão intrometido
quanto o do filosofo solitário Eduard Von Hartmann, dando voz aos esclarecimentos
de Freud sobre essas diferenças. Para Hartmann o inconsciente é imaginário e fixo
para Freud e Lacan ele é dinâmico.
Antero, apesar de ser religioso, tinha uma inquietação e um desejo sobre o
saber que iam além de sua fé religiosa. Vimos que Hartmann coloca o inconsciente
como Deus; e, em seu poema, Antero duvida, mas não descarta essa hipótese. Parece
que Deus não é para ele uma questão de fé, todavia apontando para algo ainda não
formalizado e de existência a ser pesquisada:
Virou-se para Deus minha alma triste!
Amortalhei na fé o pensamento
E achei a paz na inércia e no esquecimento...
Só me falta saber se Deus existe!
55[55]
No decorrer de sua obra, há dois significantes que sempre comparecem: Deus e
a morte. Significantes que lhe trazem questões e que permeiam toda sua obra lírica,
54[54]
LACAN, 1964, p. 29.
55[55]
ANTERO, apud CARVALHO, 1981,p. 217.
retornando sempre com grande intensidade. Outro poema, no rastro da filosofia do
inconsciente de Hartmann, é o soneto Elogio da Morte:
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acorda em susto.
56[56]
Pode-se perceber a diferença da visão de Antero para a de Freud, em A
Interpretação dos Sonhos. Para Freud, o que nos acorda de um sonho não é o
inconsciente, muito pelo contrário, é a consciência. É justamente no momento em
que algo é intolerável pela consciência que o sonhador desperta. O sonho tem duas
funções: a primeira é nos manter dormindo e a segunda é a realização de desejo, que
é sempre edípico e infantil. Sonha-se para continuar dormindo. Se algo nos desperta
não é o Inconsciente, mas a incompatibilidade de nossos desejos inconscientes com
a censura da consciência. No soneto, que acabamos de citar, percebe-se o confronto
do sujeito com um desejo intolerável para o seu eu:
Talvez seja pecado procurar-te,
Mas não sonhar contigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser único absoluta...
57[57]
Esse “Ser único absoluta” impulsionado para a morte, era incongruente com os
ideais de Antero, o homem que levantou um auditório de mais de trezentas pessoas
nas Conferências do Cassino. Estamos diante de duas coisas que não combinam: a
morte e o homem que lutava com paixão pelos seus ideais, mobilizando as pessoas,
a fim de que tomassem consciência e participassem das mudanças necessárias à
sociedade portuguesa. É a própria ambivalência psíquica em ato que Antero, com
toque de mestre, nos apresenta o tempo inteiro. Um ser dividido e trágico que afirma
em outro momento:
56[56]
ANTERO, apud CARVALHO, 1981, p.218.
57[57]
Id. ibid.
Só males são reais, só dor existe:
que sempre o mal pior é ter nascido!
58[58]
Lacan, no Seminário 7, A ética da psicanálise, referindo-se à morte de
Antígona, cita as palavras que Édipo proferiu quando se deparou com sua própria
tragédia: “— Oh, jamais ter nascido...” Antígona, ao não ceder do seu desejo, não
tem outra escolha se não seguir o destino trágico dos LABDÁCIDAS: “Como falar
de conciliação num tal registro”.
59[59]
Eis aí a difícil tarefa de Antero: de um lado
um homem com os ideais exacerbados sonhando mudar um povo, uma nação, e do
outro lado, um ser seduzido pela morte. Há na história de sua vida uma tragédia
anunciada.
Vamos encontrar nitidamente a influência de Hartmann, no poema “Os
Vencidos”. Segundo Ruy Galvão de Carvalho, esse poema se assenta nas teorias de
Hartmann, aquele que Antero escolheu para Mestre. Aliás, Ruy afirma inclusive que
todos os admiradores de Antero irão identificar as fontes hatmannianas no referido
poema.
Para Hartmann: as formas reais e possíveis da ilusão e da felicidade
são três: a felicidade é alcançável no presente, ou na vida trans-terrena,
ou na humanidade, como termo do progresso, gerando cada uma destas
formas três juízos reais de desilusão: a existência real é má; a vida
futura uma quimera; a conquista da ventura pelo progresso e
perfectibilidade da humanidade, um sentimento estéril e um valor a
que se deve renunciar. Foi esta morfologia que inspirou a poesia Os
Vencidos, uma das poesias destruídas por Antero, na qual três
cavaleiros, símbolos das respectivas formas de ilusão, confessam em
diálogo amargurado e desiludido — a derrota traiçoeira e
pavorosa.
60[60]
58[58]
ANTERO, apud LIMA, 1991, p. 239.
59[59]
LACAN. 1959, p.303.
60[60]
CARVALHO. 1950, p. 94.
Para Hartmann, além dessas formas de felicidade, o inconsciente podia ainda
ser concebido, sem qualquer insinuação de imperfeição humana, como uma
atividade cósmica, que se apresenta segundo os moldes evolutivos do panteísmo
histórico. Essas formas reais da ilusão e da felicidade e as outras formas de
representação do inconsciente de Hartmann não dialetizam e não se inscrevem no
simbólico, mas sim no imaginário. Essas formas são pessimistas, não há nelas
nenhuma possibilidade de mudanças na subjetividade. Essa filosofia, que lhe deu
tanta inspiração, veio ao encontro da sua opção trágica, que era a forma que
encontrou para falar de sua angústia, do seu horror e de sua verdade.
Antero, em vez de se colocar como agente de sua própria história, se situa no
lugar de vítima do Outro. Logo, seria difícil criar questionamentos sobre a sua
subjetividade. O destino do herói trágico é ultrapassar os limites do humano através
de um ato. Não é em vão que esse ato é nomeado de proeza. Justamente por isto
Antígona não abre mão do seu ato: todos os dias, com suas próprias mãos, cobre
com terra o corpo do irmão morto, mesmo sabendo que esse gesto lhe custaria a
própria vida. Antero poderia ter traçado outro destino, se tivesse elaborado o luto da
queda dos seus ideais. Mas isso não foi possível e ele fracassa. O testemunho desse
fracasso nos é dado em um dos seus mais belos poemas, inspirado na filosofia do
solitário Hartmann,
Os Vencidos:
Três cavaleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cai a noite do céu, pesadamente.
Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Tem os corcéis poentes e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhes cai o sangue, em gotas.
A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As frontes lhes curvou, com mão potente.
No horizonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.
E o primeiro dos três, erguendo os braços,
Diz num soluço: “ Amei e fui amado.
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!
Com largo vôo, penetrei na esfera
Onde vivem almas que adorem,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna Primavera.
Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu hábito rude e queimador!
A flor rubra e olorosa da paixão
Abre lânguida ao raio matutino,
Mas seu profundo cálix purpurin
Só ressuma veneno e podridão.
Irmãos, amei-amei e fui amado...
Por isso vago incerto e fugitivo,
Corre lentamente um sangue esquivo,
Em gotas, meu peito alanceado”.
Responde-lhe o segundo cavaleiro,
Como o sorriso de trágica amargura:
“Amei os homens e sonhei ventura”,
Pela justiça heróica, ao mundo inteiro.
Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
Caminhando entre raças oprimidas,
Fi-las surgir, como um clarim fremente.
Quando há-de vir o dia da justiça?
Quando há-de vir o dia do resgate?
Traiu-me o gládio em meio do combate
E semeei na areia movediça!
As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de púrpura real.
Irmãos, amei os homens e contente
Por eles combati, com mente justa...
Por isso morro à mingua e a areia adusta
Bebe agora sangue, ingloriamente.”
Diz então o terceiro cavaleiro:
-Amei a Deus e em Deus pus alma em tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro.
Invoquei-o nas horas afrontosas
Em que o mal e o pecado dão assalto,
Procurei-o, com ânsia e sobressalto,
Sonhado mil ciências duvidosas.
Que vento de ruína bate muros
Do tempo eterno, o templo sacrossanto?
Rolam, desabam, com fragor e espanto,
Os astros pelo Céu, frios e escuros!
Vacila o sol e os santos desesperam...
Tédio ressuma a luz doa dias vãos...
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que crêem! ai dos que ainda esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...
Por isso vago sem conforto e incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um copo exangue e uma alma moribunda.
E os três, unindo a voz num ai supremo,
E deixando prender as mãos cansadas
Sobre as armas inúteis e quebradas,
Num gesto inerte de abandono extremo.
Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidável
Sumiram-se na selva impenetrável,
E no palor da noite silenciosa.
61[61]
Esse poema foi destruído pelo autor e recuperado pelo seu melhor amigo,
Oliveira Martins. Ruy Carvalho mais tarde reproduziu o poema na íntegra em seu
livro Antero Vivo. Vamos abordá-lo como forma de repensar e de criar algum saber
sobre a sublimação: realmente é possível haver algum apaziguamento na dor de
existir através do processo de criação?
Privilegiando essa poesia e interligando seus significantes, temos três
cavaleiros desiludidos ao cair da noite. Eles vacilam e, dessa forma, vão tecendo
“hamletianamente” a tragédia do ser. Desde Freud, sabemos que fazer da vida uma
fatalidade banal é o modo pelo qual podemos suportar a tragédia de nossa frágil
existência humana. Grande parte dos poetas e filósofos do século XIX abraça com
entusiasmo as suas idéias, defendendo-as até as últimas conseqüências. A arte não
imita a vida, mas as duas são vividas com a mesma intensidade e na dimensão
trágica, não há lugar para a banalidade.
Hartmann encontra eco na poesia de Antero através da trajetória dos três
cavaleiros do apocalipse. Na estrada erma e pedregosa, vai deslizando aos nossos
olhos o amor pela mulher, o amor pelos homens e o amor por Deus. O diálogo entre
eles é amargurado e impregnado de desilusão. Nesse percurso apocalíptico, a solidão
é esgarçada ao extremo.
Essa poesia nos faz lembrar uma cantiga de roda:
Terezinha de Jesus deu uma queda foi ao chão
Acudiu três cavaleiros todos três de chapéu na mão
O primeiro foi seu pai
O segundo seu irmão
O terceiro foi aquele que Teresa deu a mão.
61[61]
ANTERO, apud CARVALHO, 1950, p. 94.
Talvez a dificuldade de Antero em amar as mulheres fosse por associá-las em
demasia à figura materna, nunca erotizando-as. Os seus amores sempre foram
platônicos. A mulher com essa dimensão maternal fica interditada para o desejo
sexual. Não percebemos um deslizamento da mãe para a mulher. Há sempre uma
hesitação do poeta com a mulher, o que não deixa, de certa forma de ser uma
atitude infantil diante do enigma da diferença sexual. Será que o poeta agia assim
porque não suportava o fato de que todo encontro amoroso é sempre faltoso? Não
seria insuportável para ele, tão impregnado de ideais, se deparar com tamanha
falta? Essa falta para a psicanálise constitui a castração.
Em “Os Vencidos”, o primeiro cavaleiro diz:
(…) Irmãos, amei — amei e fui amado...
Por isso vago incerto e fugitivo
.
A fuga não dá a mínima possibilidade de conciliação: “só ressuma veneno e
podridão.” Enfim o encontro amoroso foi verdadeiramente devastador. Já o segundo
cavaleiro representa os ideais fraternos, morais e heróicos:
“Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heróica, ao mundo inteiro”.
Aqui o amor pelos irmãos e o desejo de justiça colocam novamente o poeta
diante de algo totalmente impossível. Esse sintoma de reformador do mundo é uma
constante nos grandes homens do século XIX.
Por isso morro à mingua e a areia adusta.
Bebe agora meu sangue, ingloriamente
.
O terceiro cavaleiro também não encontra sentido para sua existência:
Irmãos amei a Deus, com fé profunda...
Por isso vago sem conforto incerto,
A desilusão também foi tão profunda, que se tornou insuportável para o poeta:
Que vento de ruína bate os muros
Do templo eterno, o templo sacrossanto?
Se até Deus, a quem ele entregou sua alma, está em ruínas, a quem o poeta
pode apelar? Agora, os três cavaleiros mergulharam na “selva impenetrável” e
desapareceram para sempre. Não há, portanto, nenhuma possibilidade que o ideal se
cumpra.
3.2-Hegel
Ai de mim! Ai de mim! E quem sou eu?
62[62]
Antero considerava a obra de Hegel a Catedral do pensamento e se interessava
por todas as concepções desse filósofo: “O hegelianismo foi o ponto de partida das
minhas especulações filosóficas, e posso dizer que, foi dentro dele que se deu minha
evolução intelectual.”
63[63]
Porém, em alguns momentos, Antero era ambivalente em relação a Hegel.
Classifica o seu pensamento de naturalista, para em seguida afirmar que não há
62[62]
ANTERO, apud VELOSO, 1950, p. 87.
63[63]
ANTERO,apud BANDEIRA, 1944, p. 31.
dissociação entre ser e saber. Antero desconfiava da “inteligência” separada das
pulsões e das paixões, incluindo nela os ideais e as necessidades do coração.
O naturalismo ainda o mais elevado e mais harmônico, ainda o de Goethe ou
de Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o
sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. “No fundo não
é mais de que paganismo intelectual e requintado.
64[64]
O mesmo homem que colocava Hegel em equivalência com Deus, em outros
momentos discordava dele, considerando-o pagão e naturalista.
Em seu livro Antero Vivo, Ruy Galvão de Carvalho denomina assim a
inquietação singularíssima de Antero pelo saber:
Com efeito, ele se detinha na teia espessa de abstrações, sistemas
metafísicos, ora se engolfava no “mar tumultuoso do transcendentalismo
búdico, ora, se enamorava da clara Filosofia helênica, ora, finalmente, se
sentia como que deslumbrado com a Res cogitans de Descartes, com a
Mónada
65[65]
de Leibniz, com a Substância de Espinosa, com o número de
Kant, com a idéia de Hegel, com a vontade em Schopenhauer e com o
inconsciente de Hartmann.
66[66]
O Poeta-Filósofo defendia a aliança do pensamento com a ação, admirava os
alemães, principalmente, pelo individualismo acentuado, independência de
pensamento e desejo de inquirir a verdade. Para ele, a verdade só pode ser definida
com muito rigor. Os alemães, em especial Hegel, tinham essa inquietude com o
saber. Pode-se até pensar que Antero era um niilista como filósofo e anarquista
como político. Talvez essa diversidade de mestres, levou-o a criar uma obra de
grande singularidade, obra que levou Fernando Pessoa mais tarde a afirmar:
“Portugal como nação independente, adormeceu com Gil Vicente e metade de
64[64]
ANTERO, apud VELOSO, p. 229.
65[65]
Mónada: Filos segundo Leibniz, cada uma das substâncias simples de um número infinito, de natureza
psíquica (dotada de apercepção e apetição), e que o tem qualquer relação umas com as outras, que se
agregam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se
compõe; enteléquia.
66[66]
CARVALHO.1950, p. 65.
Camões e despertou com Antero... Antero é discípulo da filosofia alemã, porém a
poesia de Antero não é discípulo de coisa alguma.”
67[67]
Mas, a minha impaciência, na minha impetuosidade, saltava dali e a
linguagem abstrusa, o formalismo, a extraordinária abstração de Hegel não
me assustava nem repeliam; pelo contrário: internavam-me com audácia
aventureira pelos meandros e sombras daquela floresta formidável de idéias,
como um cavaleiro andante por alguma serra encantada à procura do grande
segredo do grande fetiche, do Santo Graal, que para mim era a Verdade, a
verdade pura, estreme absoluta.
68[68]
Antero acredita que existe a verdade absoluta, não percebendo que a verdade
tem estrutura de ficção e de não-toda. Reconhecemos, a partir da psicanálise, que a
crença na verdade absoluta é uma forma de negar a castração. A busca pela verdade
pura acaba se tornando uma obsessão, que se estende para a busca do objeto do
desejo.
Este, com valor de fetiche, vem reforçar a negação da castração na mãe, e com
isso inviabilizar a sua relação com as mulheres, cujo gozo é enigma para o homem.
Será que o poeta buscava um gozo–a–mais? Desde Freud, tornou-se claro que
as singularidades e o caráter parcial do gozo provocam mal–estar na civilização. Em
cada época, os sujeitos criam formas de lidar com o proibido imposto pela
civilização. O proibido diz respeito às leis morais que regulam a vida do homem,
impondo renúncia às exigências das pulsões. Além disso, essas exigências têm a
função de velar a castração, na medida em que encobrem a natureza parcial de todo
gozo. Dessa natureza, nasce a suposição de que haveria um gozo-a-mais. Assim,
tanto o gozo quanto a verdade se caracterizam pela parcialidade e pelo não-todo. A
Mulher, se ela existisse, seria aquilo que completaria o desejo de um homem. Mas o
objeto do desejo é justamente o que falta. E é justamente dessa falta que Antero não
quer saber. Justamente por isto, ele responde ao mal-estar que a falta lhe causa,
67[67]
PESSOA, apud LIMA,1983, p.77.
68[68]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.240.
acreditando que pode descobrir a Verdade. O caminho que irá seguir para buscar
essa Verdade será trilhado com os ideais do patriotismo exaltado pelos românticos
(Michelet), com os valores originais do cristianismo, com a filosofia idealista, com a
ciência e com o progresso.
Razão, irmã do amor e da justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz de um coração que te apetece,
De uma alma livre, só a ti submissa.
69[69]
Assim, como quase todos os escritores do século XIX, Antero tenta negar o
impossível, o que é uma das formas de negar a castração. Para permanecer na
ignorância do seu desejo, abraça os ideais e defende atos que ele considera
revolucionários.
Tudo que é, diz Hegel, é verdadeiro. Mas Hegel fala destas coisas como um
filósofo: demonstra. Se a cabeça se convence, no coração, esse é que não
pode consolar-se com um silogismo. Eu tenho no peito do infeliz mais bela
e clara metafísica. Leio nos olhos da mulher, que chora uma demonstração
de lógica eterna. E na lágrima que lhe escorrega das faces pálidas, brilha-me
uma luz tamanha que me parece astro mais belo que nenhum visto ainda no
céu. É o sol da imortalidade!
70[70]
A mulher, como objeto de amor é exaltada ao máximo. O poeta se esquiva do
encontro sexual e amoroso com as mulheres, porque espera o encontro verdadeiro
com A Mulher. Encontro este que deixaria de ser faltoso e lhe daria como prêmio
nada mais nada menos que o gozo-a-mais.
José Hermano Saraiva em se livro História concisa de Portugal questiona a
leitura de Hegel pela Geração de 70: “Ora esses jovens liam as Origens do
Cristianismo, de Renan, a História de França de Michelet, os poemas de Vitor Hugo,
69[69]
ANTERO, apud CARVALHO, p. 190.
70[70]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.299.
e conheciam, embora confusamente e através de traduções francesas ou
simplesmente de citações, o pensamento do filósofo Hegel”.
71[71]
É possível que eles
saibam pouco sobre Hegel, mas apontaram de forma contundente para a sua
importância. Lacan retoma Hegel através da leitura de Kojève:
Se Hegel ultrapassou um certo individualismo que fundamenta a existência
do indivíduo em sua face a face único com Deus, foi ao nos mostrar que a
realidade, se é que se pode dizer isto, de cada ser humano está no ser de
outro.(...) O domínio está inteirinho do lado do escravo, porque ele elabora
seu domínio contra o senhor. Ora, essa alienação recíproca tem de durar até
ao fim. Imaginem quão pouca coisa será o discurso elaborado junto àqueles
que se divertem com jazz no bar da esquina. E até que ponto os senhores
aspiraram a ir ter com eles. Enquanto que, inversamente, os outros
conciderar-se-ão uns miseráveis, umas nulidades, e pensarão – como o
senhor é feliz em seu gozo de senhor! – Creio que é justamente aí, no limite
derradeiro, que Hegel nos leva.
Hegel está nos limites da antropologia, Freud saiu delá. Sua descoberta é
que o homem não está exatamente no homem.
72[72]
Para Hegel, há um outro sem alteridade, sem mediação simbólica. Esse outro
se constitui, segundo Lacan, no primeiro momento do “estágio do espelho”. Nesse
tempo, trava-se uma luta de vida ou morte, na medida em que o “eu é o outro”. Para
Hegel, não há outra saída senão a morte do outro, na dialética do senhor e do
escravo. Estamos diante de um impasse: o senhor não reconhece o servo com
autoconsciência autônoma, exigindo que ele seja apenas mediador de sua ação no
mundo. O servo não tem uma objetividade. Em Hegel, não há dialetização na
relação entre o senhor e o escravo, porque não há a intervenção da palavra como
mediadora, excluindo, dessa forma, o simbólico. Lacan esclarece que entre Hegel e
Freud há o advento do mundo da máquina e da energia. “Não se encontra nenhuma
utilização de cálculo energético na utilização dos escravos. Nunca se estabeleceu a
mínima equação ao rendimento deles. Catão nunca o fez. Foi preciso que se tivesse
71[71]
SARAIVA, 1981, p. 328.
72[72]
LACAN, 1985, p. 96.
máquinas para saber que era preciso alimentá-las”.
73[73]
Freud partiu da noção de
energia. Acreditava, inclusive, que a máquina representa a tentativa do homem de
reproduzir o funcionamento do seu psiquismo.
Entretanto, por mais interesse que Antero tenha tido pela obra hegeliana,
faltou-lhe recursos para uma melhor compreensão dela. Como nos diz Saraiva, o
entendimento que o grupo da Geração de 70 tinha de Hegel era confuso. Mas Antero
reconheceu na obra do mestre algo que ficará para sempre: “Hegel, ao enquanto
formulou metafisicamente a lei do devenir na Natureza, ou Evolução, fez uma obra
sólida e que há-de, entendo eu, ficar para sempre.”
74[74]
Antero serviu-se de Hegel
para tentar tornar inteligível o destino da nação portuguesa, foi hegeliano na forma
de apresentar um trajeto essencial na cultura portuguesa, uma lógica, uma
racionalidade e Hegel era para ele uma floresta de idéias, um Graal.
Entre 1865 e 1874, escreve uma poesia intitulada de “Pantheismo”, que é
dedicada a Hegel:
Aspiração ... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida; e, deste modo,
Que mais importa a forma? Silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Em homem igualmente e astro e rosa!
A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da devesa,
Por certo entrevê Deus – seu olho baço
Foi feito para ver brilho e beleza...
E se ruge, é que agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!
(...)Ó profunda visão! Mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
73[73]
LACAN,1985, p. 99.
74[74]
ANTERO apud CARREIRO, 1981, p. 258.
Invisível está... sendo tamanho!
Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!
Surgir! Surgir! – é a ânsia que nos impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguemos a pasmosíssima Babel!
Surgir! Ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! Atração e pensamento!
Um mesmo nome e tudo está escrito
............................................................
Eis quanto me ensinou a voz do vento.
75[75]
O que a voz de Hegel e de Antero nos ensina até hoje não houve vento que
levasse. Hegel ainda ecoa no mais íntimo de nós, quando afirma que o desejo do
homem é o desejo do Outro. Antero, com suas idéias e formas incompletas, mas
com clamor e coragem, afirma que a morte existe em um país que a negava com
veemência, acreditando, inclusive, no retorno de um rei que, depois de muitos
séculos, apareceria, em uma manhã de nevoeiro, montado em seu cavalo branco,
para salvar Portugal. O poeta não se cansou de afirmar: não há salvador, só homens
com determinações e ideais.
3.3- Michelet
Razão irmã do amor e da justiça,
mais uma vez a minha prece é a
voz de um coração que te apetece,
de uma alma livre, só a ti
submissa.
76[76]
75[75]
ANTERO,1924, p.7.
76[76]
ANTERO. apud CARREIRO, 1981, p. 237.
Antero se entusiasma sempre que toma conhecimento da obra de algum autor
que acredita na razão e nas revoluções. Assim ele se interessou por Michelet,
historiador e filósofo francês que cria uma nova forma de fazer história.
Michelet é influenciado pelo historiador italiano Vico, o qual promoveu um
corte na abordagem histórica. Para Vico, a história não é mais dos grandes heróis,
mas a história dos povos com sua singularidade, geografia, sociedade e sobretudo,
como cada povo absorve e cria a forma de se organizar, tendo em vistas as
condições geográficas e os recursos naturais das terras que habitam. Com essa nova
concepção a importância dos líderes é diluída e se resgata a história do povo.
Michelet ficou tão impressionado com Vico que até estuda italiano para melhor
o compreender. Após esse estudo, propõe combinar a história com a filosofia e o
questionamento dos mitos que a perpassam.
Nas sombras há menos monstros; heróis e deuses evaporem-se. O que
vemos são homens tal como conhecemos. Os mitos que nos fizeram
sonhar são projeções de uma imaginação humana como a nossa. Até
então, a história sempre fora escrita como uma série de biografias de
grandes homens, ou como uma crônica de acontecimentos notáveis, ou
como um grande préstito comandado por Deus. Mas agora podemos
ver que o desenvolvimento de uma sociedade foi afetado por suas
origens, seu contexto; que assim como os seus indivíduos, as
sociedades passam por fases regulares de crescimento.
77[77]
Michelet vinha de uma família pobre, mas muito culta, de tradicionais
impressores. Seu pai trabalhou até o fim de sua vida com ele na elaboração do livro
sobre a história da França. Para eles o oficio de impressor era como uma religião.
Impregnado pelo espírito da época e pelas crenças que permeavam os discursos
dos seus contemporâneos, Michelet apresenta ao século XIX uma inovadora maneira
de contar e recontar a história.
77[77]
MICHELET. apud WILSON, 1989 ,p. 10.
No livro O que é um pai?, Nadiá de Paulo Ferreira tece alguns comentários
sobre as crenças que predominavam no século XIX:
(...) os volumes escritos sobre a história da França por Jules Michelet
1824-1874), as obras de Kant (1724-1781), principalmente, A Crítica
da Razão Prática, temos armado o palco onde serão encenadas as
grandes esperanças do século XIX. A França, substituindo o papel que
a Itália teve do Renascimento, passa a pregar para o mundo. Michelet,
escreve, nas calçadas em chamas, segundo suas próprias palavras, Uma
Introdução à História Universal, onde afirma que a história é o registro
de um conflito que nasceu com o mundo, de uma guerra que só há de
terminar com o mundo: a guerra do homem contra a natureza do
espírito contra a matéria, da liberdade contar a felicidade. A
permanencia viva do pensamento iluminista e os ideais inflamados
recalcam da memória a guilhotina suja de sangue, para reter as
promessas de Liberdade, Felicidade e Progresso, que, apesar de tão
apregoada passavam longe da vida cotidiana, cujo cenário era a
miséria e a injustiça. Se estas chagas sociais ainda existiam,
desapareciam num futuro próximo, porque, desde os iluministas até
Kant, os homens tinham desenvolvido umtodo de reflexão que iria
sustentar uma nova prática política que mudaria o curso da história,
eliminando o sofrimento humano.
78[78]
Os ideais de Liberdade, Felicidade e Progresso recalcam todo o passado
sangrento da história, negando que o sofrimento humano é, na maior parte das vezes,
causado por cada um de nós.
Antero, ao tomar conhecimento da obra de Michelet, começa a estudá-la e a
discutir suas idéias com o grupo do Cenáculo. Mais tarde irá a Paris fazer uma
experiência proletária, trabalhando como tipógrafo. Aliás, nessa época ele se
encontra com Michelet em Paris, entregando-lhe uma carta e um exemplar de “Odes
Modernas”. Nesse encontro fica tão emocionado que chega a omitir sua verdadeira
identidade, apresentando-se com um nome falso e se fazendo passar por mensageiro
e amigo dele mesmo. Michelet, mais tarde, responde a essa carta de forma gentil e
coberta de elogios. Antero guardou a carta o resto de sua vida:
78[78]
FRERREIRA, 1997, p.49.
Carta de Michelet:
Paris, Rue de L’Ouest. 44. 2 août 67.
Nom, Monsiour, le midi n’est pas mort, puisqu’il y reste de tels espirits,
jeunes, puissants, féconds.
Votre lettre est, certes, la plus belle que j’ài recue depuis long-temps.
Quoi! Vous avez douze hommes! Mais c’est beaucoup. Il faut moins pour
changer le monde. Votre charmant ami que j’ai vu avec grand plaisir, m’a
traduit plusieurs de vos chants qui me semblent admirables.
J`apprendrais sur le champ le portugais si je n’étais encore rivé au dernier
volume de L`Histoire de France (commencée em 1830). – Elle será, du
moins – la plus complete de toutes, elle comprend la révolution, e va
jusqu’en 1795.
Je suis fort touché des belles choses que vous dites sur l’âlme ailée de la
France et sur as puissante (sic) d’interprétation.
Le midi ira loin. Il n’est point alcoolisé, narcotisé comme le nord, envahi de
ce fatal songe. Puísse le grand espirit de la Perse, lê labeur héroique, lê
génie (... ...)1, la puissance de (...) lui revenir. Son avenir est lá.
Je vous serre la main três tendrement, ainsi qu’à votre ami.
J. Michelet
79[79]
Michelet reconhece o valor epistolar de Antero, afirmando que é a carta mais
bela que recebeu nos últimos tempos. Antero tem uma atividade epistolar muito
intensa e é famosa a sua carta “testamento”, endereçada ao seu tradutor e editor
alemão Wilhelm Storch, na qual faz uma análise de sua trajetória política,
revolucionária, poética e filosófica.
Antero escreveu vários artigos sobre a obra de Michelet e se considerava um
de seus discípulos portugueses. Em 1865, escreve um ensaio crítico, que ficou
incompleto, sobre a Bíblia da Humanidade. Esse livro é um estudo sobre a origem
das religiões. Em 1877, escreve outro texto enlevado de admiração e de respeito,
sobre Michelet:
79[79]
ANTERO, apud MARTINS,1985, p. 131 O que está pontilhado e entre parênteses são palavras que
Oliveira Martins afirma que estão inteligíveis.
(...) grande e simpática personalidade literária”, dotado de “o espírito
de um vidente e a erudição de um sábio”, agitado pelo “Espírito da
humanidade”, um humilde, um monge, um santo”—pela sua existência
nobre e pura ate à santidade”, pela sua obra – “ uma das mais vastas
deste século, uma das mais ricas de originalidade criadora, de intuição
e profundeza, ao mesmo tempo de assombrosa erudição renovadora e
variadissima.
80[80]
Sem dúvida, a paixão de Antero por Michelet produz um texto, cuja eminência
faz parte da estratégia que costuma usar para mobilizar a opinião pública. Por
ocasião da morte de Alexandre Herculano, seu amigo e mestre, Antero foi
convidado pela Revista Dois Mundos (a mesma que publicou o texto do Michelet)
para escrever um artigo sobre Herculano. Não aceitou e comenta o assunto em carta
de 4 de Agosto a Oliveira Martins:
Um artigo sobre o Herculano não é a mesma coisa que um artigo sobre
Michelet: neste podia dizer o que quisesse e até onde quisesse;
algumas frases bonitas e aqui e ali, um aperçu, uma sugestão, era o
que se me podia e o que bastava para o público português. Agora o
caso é outro. EU não posso escrever sobre o Herculano senão um
artigo sério, um verdadeiro estudo, que envolva um verdadeiro juízo:
apreciar o escritor, o homem público e o homem em si e em relação á
época, tanto no seu país como na Europa. É um belo programa, mas
para realizar de uma maneira digna de EU o subscrever precisava de
uma contensão que excede às minhas forças atuais.
81[81]
Ele é bastante perspicaz para perceber a responsabilidade e a diferença entre
Michelet e Herculano. O francês era já bastante conhecido, não necessitava do
empenho dele para ser reconhecido na Europa, ao passo que Herculano estava mais
desprovido de reconhecimento na Europa e precisava de um apelo maior; por ser
80[80]
ANTERO, apud CARREIRO,1981, p. 71
81[81]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.71.
“português” tinha que legitimar seu talento e isso teria que ser apresentado com
muito rigor.
Antero queria criar um estilo:
“A nós que não somos Michelets, convém-nos um estilo impessoal,
puramente racional e crítico, que não pode deixar de ser um pouco
éffacé, mas que é seguramente preferível a uma meia–distinção ou
uma distinção pobre, como pobre e mediana a individualidade que nele
se reflete.”
82[82]
A escrita para ele é uma necessidade, talvez uma busca para recobrir a
castração ou o indizível de sua “verdade”; para isso recorre aos mestres, aos amigos
e a seus pares, como auxiliares nesse saber que ele interroga ao Outro.
3.4- Proudhon
“Fonction du Poète”.
Le poèta en de jours impies
Vient prèparer des jours meilleures;
Iles l`homme des utopies,
Les pieds ici, lês yeux ailleurs.
(Vitor Hugo)
83[83]
No artigo “ Proudhon e Antero de Quental e o “mal” do século XX” Jaques
Alibert, acordando com as previsões do mal social do século XX, anunciandas por
Antero e Proudhon, afirma:
A nossa época será salva no dia em que quiser voltar os olhos para
aquele que, em França, desprezaram, tratando-o de utopista, e para o
homem que em Portugal, desenvolveu a Idéia do seu mestre. Seja
82[82]
ANTERO, apud CARREIRO, p. 46
83[83]
HUGO apud CARVALHO, 1950, p.126.
como for, o certo é que os nomes de Proudhon e de Antero de Quental
ficarão para sempre ligados na História do Pensamento Humano.
84[84]
Por volta de 1850 os livros de Proudhon começam a chegar a Portugal com
seus titulos sugestivos e revolucionários: Sistemas das contradições filosóficas
econômicas: Filosofia da miséria, Toda a Propriedade é um Roubo. Esses livros
fascinaram o jovem Antero, causando nele uma impressão profunda e duradoura. A
frase célebre de Proudhon “Deus era um mal”, era repetida pelo grupo do
Cenáculo
85[85]
. Proudhon foi o mestre que apostava na possibilidade de justiça na
sociedade civil e eclesiástica. Nada mais tentador para aquele grupo de jovens
ansiosos por mudanças, esse grupo era composto pelas cabeças mais brilhantes de
Portugal dessa época e eles se apropriavam das teses proudianas para questionar
as tradições religiosas e morais. As idéias de Proudhon vinham ao encontro dos
ideais do líder do grupo, o poeta-filósofo Antero de Quental, que, entre os seus
desejos mais ardentes, possuia os de justiça social, tão defendidos pelas palavras de
Proudhon: “eu desejo o fim dos privilégios, a abolição da escravatura, a igualdade
de direitos, o reino da lei. Justiça, nada senão Justiça; tal é o resumo de meu
discurso; deixo a outros o encargo de disciplinar o mundo.”
86[86]
Impregnado por
esse discurso, Antero queria a fusão do pensamento pela ação. Pertencem a essa fase
os poemas que clamam por um mundo melhor. Exemplo:
Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe – e um alto monte
84[84]
Texto publicado no número 256 (fasc. IV. Abril de 1947) da revista Estudos, de Coimbra, Jacques
Alibert recordou as previsões do “mal social” do século XX feitas por Proudhon e Antero.
85[85]
Cenáculo: grupo formado por escritores e intelectuais da chamada Geração de 70, que, após terem
estudado juntos em Coimbra, passados alguns anos voltam a reunir-se em Lisboa, para discutir assuntos que
os mobilizavam..Alguns dos freqüentadores do Cenáculo: Antero de Quental, Eça de Queiroz, Germano
Vieira Meireles, Salomão Sáraga, Manuel de Arriga, Ramalho Hortigão, Guerra Junqueiro e João de Deus.
O Cenáculo começou na Travessa do Guarda-Mor, onde Batalha Reis tinha um quarto. Antero de Quental
também morou lá. Aliás, com a chegada dele é que surgiu a idéia das “Conferências do Cassino”. Esse grupo
se formou espontaneamente e ficou conhecido por sua irreverência, fervor revolucionário, e por abrigar os
intelectuais mais representativos da época.
86[86]
PROUDHON, 1997, p. 23.
Aonde se abra à luz o nosso ninho.
87[87]
Proudhon acredita que as idéias podem transformar a sociedade. Filho de
Claude-François Proudhon, tanoeiro cervejeiro, natural de Chasnans, Proudhon tinha
orgulhou de ser filho e neto de agricultores: “Meus avós por parte de pai e mãe,
todos agricultores livres, isentos de corvéias e de mãos-mortas desde um tempo
imemorial”.
88[88]
Proudhon durante algum tempo trabalhou como tipógrafo, possuía orgulho de
seus ancestrais e, sobretudo, vivia de acordo com os ideais que postulava: “A
Revolução sou eu”.
89[89]
E o que Proudhon é? Uma mistura de realismo com utopia,
mas com grande determinação de transformar o mundo num lugar melhor não só
para ele, mas para as gerações presentes e vindouras. Esse filósofo tinha em comum
com Antero o orgulho de sua família e dos seus ideais. Eles são dois exemplos entre
vários desses valorosos “Homens” do século XIX. Antero num dos seus últimos
artigos, “O Socialismo e a Moral de 1889,” diz que “coisa alguma grande e
duradoura se fundou ainda no mundo senão pela moral”; e recorda a frase de
Proudhon: “o mundo só pela moral será libertado e salvo.”
90[90]
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud nos alerta que tudo que se relaciona
com a submissão da lei moral reforça as exigências mais cruéis do supereu. Essa
agressividade das idéias contra as idéias e as leis estabelecidas contribui para a
criação de novas possibilidades de organização da sociedade. Justamente por isto a
submissão do sujeito ao rigor da lei moral do supereu é sempre desastroso. Antero,
às vezes, entra em crise, com medo de desistir dos seus ideais. Eis o que escreve a
um amigo:
Pensa que renego as nossas grandes verdades, filosóficas e morais?
Engana-se. Vejo-as tão bem como nunca. Simplesmente vejo-as: nada
87[87]
ANTERO, apud CARVALHO, 1981, p. 229.
88[88]
PROUDHON, 1997,p. 10
89[89]
PROUDHON, 1848, p. 39.
90[90]
ANNTERO, 1962,p.54.
mais. Ora a gente não é segundo o que vê, somente, mas ao mesmo
tempo segundo o que sente, dos fatalistas segundo a direção para que
vai por uma tendência que é a expressão, exata do eu de cada qual.
Percebe esta trapalhada? Creio que é imoralissima. Em todo o caso
moral ou imoral, é isto que se dá em mim: ora, segundo Hegel, tout ce
qui est, est raisonnable. Seja como for, o que é certo é que neste
momento estou atacado de náusea da realidade. Não sei quanto tempo
demorara o ataque. Não é o primeiro: é uma das minhas alternativas,
conforme predomina um ou outro dos dois fatores da minha vida
moral. Peço-lhe que me diga francamente uma coisa: julga-me
incurável? Diga, sem receio de me afligir, o que lhe parecer, porque eu
cheguei à impassibilidade interior;
91[91]
Reconhece em si mesmo alguma coisa irracional que lhe dá náuseas. O
imperativo da lei moral, sob a forma de supereu, tem para ele um valor mortal. As
poucas ideologias dezenovescas que vingaram — apesar delas terem sido
preciosas para repensar o processo civilizatório — custaram grandes sacrifícios a
seus autores. Alguns inclusive pagaram com a própria vida, como é o caso de
Antero. Para Nadiá Paulo Ferreira, referindo-se aos ideais dezenovescos:
No século XIX, os álibis que velam a Castração têm a função de negá-
la (denegação) e, na contemporaneidade, têm a função de excluí-la
(foraclusão).
Os discursos, que constituem o painel cultural do século XIX,
engendram a exaltação moral de um individualismo heróico, que se
sustenta na Promessa de Felicidade, quer pela via da Razão, do Amor
ou do trabalho. Erige-se um ideal que implica não só a renúncia ao
gozo, o que Charles Melman apresenta como uma situação onde um
certo masoquismo era apreciado 4: mas também a inscrição do desejo
nos conflitos edípicos, onde desejar se torna sinônimo de dizer não a
uma ordem que se apresenta na contramão ao caminho que conduziria
à felicidade.
92[92]
91[91]
ANTERO, apud CARREIRO, p.253.
92[92]
FERREIRA,1997, p.52-53.
Na verdade: Nadiá Paulo Ferreira nos chama a atenção sobre as promessas de
Felicidade enquanto uma forma de velar a castração, denegando-a, e de fazer com
que o sujeito permanecesse alienado de sua verdade. Eles acreditavam que a fusão
da burguesia com o proletariado produziria a uma nova classe social. Antero era um
socialista, cauteloso em relação às novas teorias. Alertava os seus companheiros:
“cuidado com o Banco do Povo! É o que temos que aproveitar com a experiência de
Proudhon”
93[93]
O Banco do Povo era uma proposta de Proudhon para reformar as
instituições de crédito e foi uma das idéias que lhe custou muito. Por sua causa foi
motivo de escárnio, de ultrajes, objeto de desprezo, de ódio. Essa, entre outras
idéias, convertera-o na França no que ele mesmo se denomina de “Homem-terror”.
As diretrizes para o Banco do Povo eram as seguintes:
El Banco del Pueblo sería propriedad de todos los los que utilizaran
sus servicios, quienes a su vez lo finaciarían co su capital em caso de
que lo considerasen necesario; de esta forma los clientes se
beneficiarían co créditos baratos y el banco lles quedaria agradecidos.
O Banco Del Pueblo trabajaría en beneficio de sus clientes, sin
cobrarles intereses o comisiones: solo percibiría una retribucion
mínima para pagar los salários y los gastos . Entonces, el crédito sería
GRATUITO! Uma vez puesto em prática, el proceso de desarrollaría
hasta el infinito.
94[94]
Essas teses custaram a Proudhon desafetos humilhações e até pedidos de seu
afastamento da Assembléia Nacional da França, quando foi deputado. Mais tarde ele
chega inclusive a ser preso e exilado.
As dificuldades passadas por Proudhon levaram Antero a refletir sobre os
efeitos de suas teses filosóficas na política. Passou a ser mais cauteloso em relação
aos efeitos que essas idéias promoveriam no social. É lógico que algumas das idéias,
tanto de Proudhon quanto de Antero, eram utópicas. Entretanto, eles não se
consideravam utópicos, acreditam que um homem revolucionário é sobretudo um
93[93]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.368.
94[94]
PROUDHON, 1983, p. 119.
homem de ciência e de crítica. Proudhon inclusive afirmava que “as reformas
deviam acontecer sempre, as utopias jamais.”
Antero postulava que é essencial tentar pôr em prática as idéias de liberdade,
igualdade e justiça. O socialismo deveria abrir a porta para um mundo novo. Sem
essa prática não haveria revolucionários. Mas, sempre advertido para a dificuldade
de mobilizar as massas, cita o exemplo de Proudhon na França:
O grande Proudhon, depois de trinta anos de trabalho e martírio,
desenganado da política das revoluções, chegava finalmente, numa das
ultimas paginas que escreveu, chegou a esta conclusão: ‘O mundo só
pela moral será libertado e salvo’. É com estas palavras de oiro que
fecharei este pequeno artigo.
95[95]
Interessante pensar que as idéias de Proudhon influenciaram tanto Antero que
ele inclusive chega a propor a União Ibérica. Hoje temos a União Européia. Em um
dos manifestos, em que se apresenta como um homem de ação social e política,
Portugal perante a Revolução de Espanha, Antero caminha na direção de uma
União Ibérica. Esse manifesto iberista, analisado por Simões, acaba se diluindo:
A união Ibérica afigura-se-lhe a solução política ideal para a
Península. Chega a pensar a instalar-se em Madri onde irá trabalhar
num jornal de democratas castelhanos. É então que encontra os antigos
companheiros de Coimbra: Lobo de Moura, Faria e Maia, Santos
Valente, Manuel de Arriaga, Jaime Batalha Reis, entretanto, na
redação da Gazeta de Portugal,travava-se com o autor dos folhetins
estapafúrdios publicados nesse jornal que por então abalava a opinião
pública de Lisboa. Ia nascer o Cenáculo. (...) Reagrupam-se os
membros da “escola de Coimbra”, agora, para todos os efeitos, “escola
de Lisboa.
96[96]
Assim Antero abandona a idéia da União Ibérica para se dedicar às discussões
no Cenáculo, que vão culminar nas Conferências no Cassino.
95[95]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 115.
96[96]
ANTERO, apud SIMÕES, 1962, p. 42.
4 - Os mestres portugueses
Antero teve dois grandes mestres: António Feliciano de Castilho, com quem
estudou desde a infância, e Alexandre Herculano em cuja obra se iniciou com
apenas dez anos de idade. Herculano lhe causou profunda impressão, fazendo com
que ele o admirasse de forma irrestrita por toda a vida. Já com Castilho, teve alguns
conflitos, cujo desfecho culminou com a carta Bom Senso e Bom Gosto que
provocou a polêmica que inaugurou o Realismo
em Portugal
4.1-Antonio Feliciano de Castilho
Nenhuma aprendizagem evita a viagem... Parte: sai. Sai
do ventre de tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela
casa paterna... lá fora, faltam todos os abrigos. A viagem
dos filhos, eis o sentido despido da palavra grega
pedagogia. Apreender provocar a errância. Partir em
bocados para se lançar num caminho de saída incerta
exige um tal heroísmo que, sobretudo a infância não é
capaz de oferecer e, portanto, é preciso seduzi-la para a
comprometer. Seduzir: conduzir para o outro lado...
enveredar-se por um atalho que conduz a um lugar
novo...partir, sair... tornar-se em vários, enfrentar o
exterior, bifurcar em qualquer direção. Porque não existe
aprendizagem sem exposição, muitas vezes perigosa ao
outro. Jamais saberei o que sou, onde estou, de onde
venho, para onde vou, por onde avança... exponho-me
aos outros, às singularidades.
97[97]
Michel Serres
Todos partirmos de um ponto de origem; mal nascemos e já o trem da vida
começa a trilhar por nossas heranças familiares, às vezes tão arcaicas, que nem dá
para alcançá-las. Marcas mnêmicas e significantes nos colocam num movimento
97[97]
SERRES, Michel,1990, p.23.
contínuo de sonhos, desejos, amores, ódios e angústias. Essa é a bagagem que
levamos até à última estação. Da viagem pouco sabemos: estações, encontros,
desencontros, projetos realizados e não realizados, etc. Para alguns a viagem é
breve, para outros mais longa. Torná-la mais interessante depende de sabedoria,
capacidade de criar e recriar. Certo é que desde o início estamos avisados sobre qual
é a última estação. Para nos deslocarmos de um ponto ao outro é necessário que
tenhamos sido amados e desejados pelo Outro, lugar em princípio ocupado por
nossos pais e todos aqueles que permearam nosso universo infantil. Mais tarde os
desejos são voltados para os objetos do mundo, tendo como matriz os significantes
que constituíram a subjetividade. Os mestres estão entre os elos mais importantes, à
medida que eles se tornam o suporte dos laços, que atualizam, pela via da
transferência, o que foi apreendido dos pais na infância.
Em 1914, Freud, no artigo Algumas reflexões sobre a psicologia escolar
texto que foi escrito para o jubileu do liceu, onde ele tinha sido aluno —, destaca a
escola como o primeiro lugar de convívio social depois da família. É nesse ambiente
de socialização que se reeditam as questões e os sintomas infantis.
Caminhando pelas ruas de Viena — já de barbas grisalhas [em 1914,
ele ainda não tinha sessenta anos] e vergados por todas as
preocupações da vida familiar — podíamos encontrar inesperadamente
algum cavaleiro idoso e bem conservado, ao qual saudávamos
humildemente, porque o reconheceramos como um de nossos antigos
professores. Mas depois parávamos e refletíamos: ‘Seria realmente
ele? Ou alguém muito semelhante? Será possível que os homens que
costumavam representar para nós protótipos de adultos sejam
realmente tão pouco mais velhos do que nós?’
98[98]
Para Freud os mestres parecem muito mais velhos do que realmente são, como
se nos fossem inacessíveis. Isso acontece porque substituímos o pai pelos mestres.
“De todas as imagens (imagos) de uma infância que, via de regra, não é mais
98[98]
FREUD, 1914, V. XIII p.285.
recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do
pai”.
99[99]
Nessa transferência, a imago paterna converge para o mestre, colocado-o
no lugar de pai ideal, ora para ser exaltado, ora para ser denegrido pelo próprio
sujeito. Essa, ambivalência faz parte de um processo, no qual serão reeditados, todos
os afetos destinados ao pai: amor, ódio e rivalidade.
Antonio Feliciano de Castilho é o primeiro mestre de Quental. Conheceram-se
quando Castilho, entre 1847 a 1850, se mudou para Ponta Delgada. Antero e
Castilho moravam na mesma rua, que, mais tarde, passou a se chamar Rua do
Castilho. Vizinhos, Quental costumava brincar com os filhos de Castilho. Como o
francês era a língua corrente na casa de Castilho, foi com ele que o poeta aprendeu
essa língua.
Com a chegada de Castilho, a Ilha de S. Miguel nunca mais foi a mesma. Ele,
que era professor, poeta e escritor, leva, do Continente para o silêncio de Ponta
Delgada, a literatura e a música. Promove festas, e saraus poéticos, introduz seu
método de leitura repentista, cria escolas e funda associações, como a de Agricultura
e a de Amigos das Letras, despertando, assim, a juventude para o desejo de saber.
Após esta experiência, Castilho passa a se dedicar cada vez mais à educação,
publicando uma série de trabalhos nessa área. Tendo como lema “todo homem serve
para alguma coisa”
100[100]
, a casa de Castilho era freqüentada pela elite da ilha e por
aqueles que se interessavam pelas artes e pela pedagogia. Seu filho, Julio de
Castilho, descreveu as mudanças ocorridas na ilha com a estadia do seu pai, em
Memórias de Castilho:
No verão deste ano de 1884, ia a Ponta Delgada desusado alvoroço nas
classes altas. Estava de todo conhecido o poeta português......
Freqüentava a casa dele quase toda a gente (Entre os mais íntimos
figurava Filipe de Quental, então com 24 anos. Castilho convidou-o
para padrinho de uma filha que nasceu em S. Miguel); estimavam-no
todos; e insensivelmente ia-se-lhe formando em volta um grupo de
99[99]
ibid. p. 287.
100[100]
CARREIRO,1981, p.84.
estudiosos. À sua volta, às suas instâncias e ao seu exemplo, aqueles
mancebos, estagnados até então na vida ociosa de uma cidade de
província e entregues aos frívolos passatempos da caça, do jogo, da
maledicência talvez (que essa habita quase sempre terras pequenas),
olharam com certo amor para os livros que tinham em casa e abriram-
nos. Todas aquelas famílias vinculares possuíam livrarias. (...) A
ortopedia do grande cirurgião métrico ensinou-lhes a corrigir os erros;
afoitaram-se; depuseram o medo; e, como a fera perde as iras, “e se
estranha de ter coração”, eles perderam a preguiça e estranharam de
ter talento!
101[101]
Castilho não só movimentou a vida cultural da Ilha, mas também marcou
profundamente a vida de Quental. O livro de Castilho Felicidade pela Agricultura,
editado em Ponta Delgada, em 1849, foi um dos primeiros livros adquirido por
Antero. Mais tarde, nos sete artigos sobre Leituras Populares, recomenda Felicidade
pela Agricultura como obra civilizadora. Em 1852, Quental parte de Ponta Delgada
para Lisboa, onde passa a freqüentar o Colégio do Pórtico, de António Feliciano de
Castilho, retomando, dessa forma, a amizade que começou com a estadia do mestre
em S. Miguel. Parece que a partida dos Açores para Lisboa foi muito dolorosa. Mais
tarde, ele se refere a essa partida, em uma conversa com Artur de Quental:
(...) quando Antero estava para sair da Ilha, ao ir fazer as despedidas, o
pai, para lhe experimentar o espírito de obediência, envergou-lhe a sua
casaca, metendo-lhe as mangas para dentro, calçando-lhe umas luvas,
mandando-o seguir neste lindo traje e vindo para uma das varandas ver
a figura que o desgraçado pequeno ia fazendo. Este desceu a rua cheio
de vergonha, muito vagarosamente, olhando para ver se o pai se
condoia e o chamava; (...) O pai ria à gargalhada quando contava a
partida que tinha feito ao pequeno e a atrapalhação deste. Antero ao
comentar esse fato ‘Pois eu atrevia-me lá a desobedecer ao Pai! Nunca
me passou pela cabeça desobedecer-lhe em coisa alguma’
102[102]
101[101]
CARREIRO, 1981, p. 85.
102[102]
CARREIRO, 1981, p. 101
Raras vezes encontramos na obra de Quental comentários sobre seu pai.
Entretanto, esse relato do pai rindo dele, filho humilhado, na hora da partida para o
Continente, deve ter tido conseqüências. Mais tarde, Quental deixa entrever as
marcas de sua relação com o pai, mas, em momento algum, faz referência ao papel
que o pai teve na sua vida e a sua posição de filho obediente e humilhado. Desloca,
então, para os humilhados e os injustiçados a sua revolta contra o pai. Aliás, a sua
identificação com o povo português se dá a partir do significante oprimido.
Quisera, por último, que Portugal como povo pequeno oprimido, mas
cônscio e zeloso da sua dignidade, procurasse na – Federação – com os
outros povos peninsulares, a força, a importância e a verdadeira
independência que lhe faltam na sua escarnecida nacionalidade.
103[103]
Da submissão à revolta, Antero se transforma em um rebelde que luta para
mobilizar o povo português. Ele não é mais o filho obediente. Justamente por isto,
reagiu de forma violenta contra Castilho.
Por volta de 1862 ou 1863, Castilho apareceu em Coimbra com seus saraus e
eventos literários. Quental, que na época era estudante de direito, comparecia aos
eventos:
O sarau parecia um chilreio de passarinhos em manhã de maio”. Surge
no palco o Antero com sua revolta cabeleira fulva como a juba de um
leão, e começou a ler umas estrofes em oitavas hende cassilábicas. A
admiração dos ouvintes foi crescendo progressiva até à explosão dos
aplausos retumbantes de todo o auditório.
104[104]
Castilho se mostrou muito admirado com o talento do seu ex-aluno e não lhe
poupou elogios, porém, quando promoveu outro evento, no Teatro Acadêmico,
103[103]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 14.
104[104]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 15
pediu ao tio de Quental, seu amigo e compadre, Filipe de Quental, que o
convencesse a não comparecer. Antero de Quental concordou com o pedido do tio,
porém não obedeceu e se apresentou. Desde esse dia sua poesia ficou célebre em
toda a Coimbra.
Em 1863, quando terminou Odes Modernas, Quental procurou Castilho para
saber sua opinião. Depois das habituais palavras afetuosas, o mestre considerou o
seu antigo aluno do colégio um revoltado, sem vocação poética. Antero, percebendo
a falta de sinceridade nas observações do mestre, disse que não queria elogios, mas
críticas construtivas para melhorar. Começa a partir daí a querela entre Antero e
Castilho, que irá desembocar na famosa Questão Coimbrã. Depois de Castilho ter
escrito um artigo, criticando os poetas da “escola literária de Coimbra”, Quental
revida com a carta Bom Senso e Bom Gosto. Segundo os meios literários da época,
esse debate causou a maior polêmica na história literária portuguesa. Quental
publicou-a na Imprensa da Universidade, em 2 de Novembro de 1865. Eis alguns
trechos da polêmica carta:
BOM-SEMSO E BOM-GOSTO
Carta ao Excelentíssimo Senhor Antonio Feliciano de Castilho.
Ex
mo
. Sr. — Acabo de ler um escrito (No livro do Sr. Pinheiro Chagas
– Poema) de v. ex.ª, onde, a propósito de faltas de bom-senso e de
bom-gosto, se fala com áspera censura da chamada escola literária de
Coimbra, e entre dois nomes ilustres (Teófilo Braga e Vieira de
Castro) se cita o meu, quase desconhecido e sobretudo desambicioso.
(...) Eu tenho para falar mais fortes motivos. Um é a liberdade absoluta
que a minha posição independentíssima de homem sem proteções
literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com
frieza e com boa-fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo infinito
na brilhante falange das reputações contemporâneas, é por isso que,
estando de fora, posso como ninguém avaliar a figura, a destreza e o
garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão.
(...) Porque é uma ação desonesta. O que se ataca na escola de
Coimbra – talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque há malévolos
inocentes e inconscientes — o que se ataca não é uma opinião
literária menos aprovada, uma concepção poética mais atrevida, um
estilo ou uma idéia. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se à
independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o
seu caminho, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A
guerra faz-se ao escândalo inaudito de uma literatura desaforada que
cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos
grão-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade destes hereges das
letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices,
porque, ao que parece, ainda a luz de cima não lhe escreveu nas fontes
o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e
ser só responsável por seus actos e palavras...
(...) O ideal quer dizer isto: desprezo das vaidades; amor
desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do grande e do bom;
desdém do fútil, do convencional; boa fé; desinteresse; grandeza de
alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberaníssimo
bom senso... tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras— Ideal.
Por isso que v.ex.ª faz muito bem em o destruir; a esse pobre diabo do
ideal; e o pôr fora de casa aos bufões; de o banir das suas obras, que
não há de ver por lá nem a mais leve sombra dele. Agradam a todos
assim. O verso de v.ex.ª não tem ideal – mas começam por letra
pequena. As sua criticas não tem ideais – mas têm palavras quanto
bastem ao dicionário de sinônimos.
(...) Por isso Lisboa não cai como caíram Atenas e Roma, por causa
das suas idéias, e Jerusalém e outras cidades inferiores, cujos poetas
tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só coisa ficou delas: uma
memória de grande, honrosa, nobilíssima. Caíram mas deram ao
mundo um espetáculo raro – espírito e a consciência humana
triunfando da matéria e brilhando no meio das ruínas como a chama
que se alimenta da destruição da lenha donde saiu e que a gerou.
(...) V. ex.ª aturou-me em tempo no seu colégio do Pórtico, tinha eu
dez anos, e confesso que devo à sua muita paciência o pouco de
francês que hoje sei. Lembra-se, pois, da minha docilidade e advinha
quanto eu desejaria agora podê-lo seguir humildemente nos seus
preceitos e nos seus exemplos, em poesia e filosofia como outrora em
gramática francesa, na compreensão das verdades eternas como em
outro tempo no entendimento das fábulas de La Fontaine.
(...) Concluo que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a
natureza das idéias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e
cinco anos têm-me as verduras de v. ex.ª convencido valeram pelo
menos os seus setenta. Posso, pois falar sem desacato. Levanto-me
quando os cabelos brancos de v.ex. ª passam por diante de mim. Mas o
travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas
que saem dele confesso não merecem nem admiração, nem respeito,
nem a minha estima. A futilidade de um velho desgosta-me tanto
quanto como a gravidade numa criança. V.ex.ª precisa menos
cinqüenta anos de idade, ou então mais cinqüenta de reflexão. É por
estes motivos que lamento do fundo da alma não poder confessar,
como desejava, de v.ex. ª
Nem admirador nem respeitador
Antero de Quental
105[105]
João Gaspar Simões, no livro Antero de Quental vida pensamento e obra,
comenta a posição de Quental na questão Coimbrã:
O homem impulsivo que ele era, confundindo, facilmente, atitudes
literárias com atitudes morais, explica em parte, a violência desse
escrito e até certo ponto a sua jactância injusta. De fato Castilho
exercia um pontificado ridículo nas letras portuguesas. Mas quem
eram os poetas e os intelectuais sobre que ele exercia esse pontificado?
106[106]
Na verdade, era a primeira vez que alguém ousava criticar publicamente o
talento “literário” de Castilho. Quental abre um precedente, em um momento de
extrema fragilidade do mestre, que está já muito velho e quase cego. As opiniões se
dividem. E, se nos reportamos ao texto de Freud, decerto a questão não era com
Castilho, mas com seu pai. Para sustentar o pai, ao nível do ideal — ou seja: registro
imaginário do pai —, é preciso degradar a imagem do mestre. Portanto, ele se volta
contra o mestre. Antero agora desafia o mestre, já que tinha se submetido ao pai. Na
transferência, ele desloca o ódio, que tinha pelo pai — aquele que o humilha diante
dos outros para mostrar a obediência do filho, para Castilho, tornando possível um
rompimento com o “pai que decepciona”. Freud nos chama a atenção:
O pai é identificado como o perturbador máximo da nossa vida
pulsional; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também
105[105]
SIMÕES, 1962, p. 145 a 162. (grifo nosso)
106[106]
SIMÕES, 1962, p. 31.
a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante,
os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado,
muitas vezes até ao fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de
anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos
contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de
ambivalência emocional
107[107]
.
No momento em que Castilho representa ao nível imaginário um perigo para
Quental, ele reage com toda a agressividade. Assim os ressentimentos recalcados
contra o pai retornam. Essa bela carta, escrita com tanto Bom Gosto e pouco Bom
Senso, entrou para a história da literatura portuguesa, assinalando o início do
Realismo em Portugal. Essa carta de Quental causou abalo na cidade, que foi palco
dos amores e da tragédia da imortal Inês de Castro. Tudo começou com a leitura de
poemas, que iriam compor o livro Odes Modernas, o qual inaugurou um novo
caminho e novas diretrizes para a literatura nacional.
Quental, na famosa carta-testamento, de 14 de maio de 1887, dirigida ao seu
tradutor e editor alemão Wilhelm Storck, concordando que houve exageros em sua
mocidade, refere-se a dois episódios: a carta para o Ministro Marquês de Ávila, que
fez com que o Marquês perdesse o cargo, e a Questão Coimbrã. Eis um trecho da
referida carta:
O velho Castilho, o Árcade póstumo, como então lhe chamavam,
viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura anacrônica.
Houve em tudo isso muita irreverência e muito excesso; mas é certo é
que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído de idéia, não
podia preceder, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e
antes de tudo aspirava a uma nova direção, a orientar-se como depois
se disse nas correntes do espírito da época.
108[108]
107[107]
FREUD,1914 V. XIII, p. 287.
108[108]
BANDEIRA, 1942, p. 33.
Em verdade, Quental, desde sua chegada a Coimbra, não se cansava de liderar
manifestos e levantamentos estudantis, suscitando amor e ódio com grande
intensidade.
4.2- ALEXANDRE HERCULANO
Eu já vi numa ilha arremessada
Às solidões do mar, entre dois mundos,
Vestígios de vulcões que hão sido extintos
Em não-sabidos séculos
109[109]
Alexandre Herculano esteve nos Açores em 1832, para se reunir à expedição
liberal que saiu de S. Miguel para o Mindelo, da qual fazia parte também o pai de
Antero de Quental. Herculano mais tarde faz referência à estadia na ilha, no poema
acima citado Tristezas do Deserto. Nessa época, Antero ainda não era nascido, mas
essa diferença de idade não impediu que mais tarde se estabelecesse uma grande
amizade e admiração entre Quental e Herculano.
Alexandre Herculano tem grande importância para a literatura portuguesa. Seu
romance Eurico, o Presbítero é um dos mais lidos no romantismo português. Além
disso, escreveu Lendas e Narrativas entre outros. António Sergio no livro Breve
interpretação da História de Portugal chama Alexandre e Antero de:
Os Inadaptados.(...) Herculano, como disse Antero de Quental (o seu
mais puro continuador nessa atitude de protesto) não é apenas um
grande escritor: é um grande homem, na acepção completa desta
palavra. Nascido em Lisboa em 1810, estudou no colégio dos
Oratorianos, oponentes dos Jesuítas em questões de pedagogia .
Adepto do liberalismo em 1835 emigrou para a França. Embarcou em
Isle, e combateu no Porto. D. Fernando (marido da rainha D. Maria II)
nomeou-o bibliotecário da Biblioteca da Ajuda. Escreveu novelas e
contos históricos, a monumental História de Portugal (que passou de
109[109]
HERCULANO, apud CARREIRO, 1981, p. 73.
D. Afonso III), a Origem e Estabelecimento da Inquisição em
Portugal, e uma série de Opúsculos, dos quais muitos consagrados a
questões econômicas e políticas. A sua História (1846-1853) e o
Verdadeiro Método de Estudar de Verney (1747) são os dois livros
capitais da cultura portuguesa depois da Época do Renascimento. Ele
próprio caracteriza a obra, quando lhe chama “a primeira tentativa de
uma história crítica de Portugal”. (...) A revolta de Antero de Quental e
de outros moços de Coimbra (Terceiro Romantismo, 1870-1890) que
lhe fizeram companhia na sua polêmica contra Castilho (a chamada
“questão Coimbrã”, ou “do bom senso e do bom gosto”, 1865),
significa um impulso para o prosseguimento na revolução crítica de
Herculano.
110[110]
Com dez anos Antero conheceu a poesia de Alexandre Herculano e ficou
impressionado. Aos dezenove anos dedica-lhe uma poesia:
As Campas.
Ao Senhor Alexandre Herculano
Ao Filósofo – Homem de bem
Respeito.
Ao sábio – Ao Poeta
Adesão e amizade.
Quando a mão que obedece ao impulso
De um afeto, procura outra mão
E em silêncio eloqüente se apertam:
É que em troca outro afecto responde...
É que as almas lá têm seu quinhão!
111[111]
Quando Antero conclui em Dezembro de 1863 As Odes Moderna, antes de as
levar ao editor em Lisboa, procurou Herculano em sua casa perto da Ajuda e este ao
contrário de Castilho, ficou encantado com os versos revolucionários. Na questão
Coimbrã, Herculano se manteve sempre do lado de Antero, assim como na época em
110[110]
SERGIO, 1978, p.118. (o grifo é nosso).
111[111]
CARREIRO, 1981, p. 143.
que o governo proibiu as Conferências do Cassino, exerceu o seu prestígio para
clamar com sua escrita a liberdade de idéias em Portugal. Em relação ao grupo do
Cenáculo, Herculano sempre defendeu Antero com admiração. Eis a opinião de
Herculano sobre a intervenção da política nas Conferências do Cassino Lisboense:
O que é grave em si, como tendência, e como sintoma, é a intervenção
política preventiva nesta questão: é a política violando um direito
anterior à lei positiva, o direito da livre manifestação das idéias... O
governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos
está acima e além das prevenções da polícia. Dizer-se que se respeita a
liberdade do pensamento, sob a condição de não se manifestar, é
pueril. Na manifestação a que reside a liberdade, porque só actos
externos são objeto do direito e a liberdade de pensar em voz alta é um
direito originário, contra o abuso do qual não pode haver prevenção,
mas unicamente castigo.
112[112]
Além da defesa de Herculano, Antero e Jaime Batalha Reis entraram com um
requerimento e apelaram para a Câmara dos Deputados. Mesmo assim, As
Conferências do Cassino não voltaram a acontecer e a partir daí o grupo do
Cenáculo começou a se diluir.
Eduardo Lourenço, em Labirinto da Saudade, afirma:
Antero não teve Pátria não consentia soluções lúdicas, por ser a
primeira manifestação realmente trágica que um português assumiu.
Talvez o ser açoriano o tenha ajudado a distanciar-se do lado
idolátrico característico das outras formas de patriotismo do nosso
século XIX. Mas é uma mera hipótese, o seu açoreanismo podia ter
pedido, como no caso de Teófilo ou outros açorianos ilustres, uma
necessidade mais ainda de enraizamento pátrio. Não parece ter sido o
caso. Antero não tem pátria, mesmo enquanto passado glorioso – como
Garrett ou Herculano – só a tem como Futuro, pois só nele antevê a
conciliação e a superação da aparência intolerável do Portugal seu
contemporâneo e a sua idéia, que devendo muito à mitificação
medievalizante de Herculano mais deve à idéia de uma evolução geral
da humanidade para um reino de fins incompatíveis com a marca da
112[112]
CARREIRO, 1981, p. 425.
divisão dos povos que as “pátrias” todas representam. Da sua geração
foi o único que em dado momento foi iberista federalista
convicto.
113[113]
Eduardo Lourenço, tecendo comentários sobre o episodio do Cassino, afirma
que esse acontecimento possibilitou que aparecessem escritores como Herculano,
que reedita o passado por causa do presente, e como Antero, que não se conforma
com o presente e o passado, mas almeja o futuro. Antero, segundo Eduardo
Lourenço, quer ir além do mestre, embora respeitem as suas descobertas. Não se
deixa seduzir por nenhum passado glorioso, quer glórias no presente e esperança no
futuro.
No ensaio sobre Antero e Herculano, Vitorino Nemésio descreve a influência
de Herculano na obra de Antero:
Nenhuma poesia mais própria para harmonizar de súbito as massas
incoerentes de sons, fugas, aspirações rolando na sua alma de ilhéu.
Herculano cantava a revelação de Deus por um jogo de forças
esplêndidas e cegas, magnificadas, no silêncio ferindo com insistência
as notas predominantes de um clima anterior de Antero, tão fortemente
consoante com o do seu cenário atlântico......Como um novo Vergílio,
Herculano guiava este Dante insular através de os abismos do inferno,
apurando-lhe o ouvido para o dramático sussurro das esferas:
Sobre o invisível eixo range o globo:
O vento o bosque ondeia.
114[114]
Herculano foi para Antero o mestre respeitado e admirado, que devia ser
seguido como exemplo: “É um escritor o velho, e há-de ainda ser lido quando já
ninguém nos ler a nós”.
115[115]
Herculano, ao contrário de Castilho, suportou, além
de ser mestre, ser um dos pares de Quental. Castilho aceitava alunos e admiradores,
mas não parceiros. Antero reagiu à altura. Se nos reportarmos ao texto de Freud
113[113]
LOURENÇO, 1991, p. 95.
114[114]
CARREIRO, 1981, p. 96.
115[115]
CARREIRO, 1981, p. 499.
Algumas Reflexões Sobre a Psicologia Escolar, em que ele afirma que a
ambivalência vivida na infância em relação ao pai pode perdurar durante toda a vida,
afirmaríamos que, no caso de Antero, essa ambivalência se desloca para os seus
mestres, fazendo com que a admiração exaltada por Herculano e por Castilho se
transformasse em amor e ódio, respectivamente.
5-Antero de Quental e Charles Baudelaire: o enigma do
feminino
Em uma carta de 30 de dezembro de 1857, Baudelaire afirma:
(...) o que eu sinto é um imenso desânimo, uma sensação de
isolamento insuportável... uma ausência total de desejos, uma
impossibilidade de encontrar qualquer distração. O êxito estranho do
meu livro e os ódios que provocou, interessaram-me por durante certo
tempo. Mas logo a seguir deixei-me trair outra vez .
116[116]
Em uma carta a uma amiga, Antero de Quental se queixa:
(...) Estou doentíssimo daquela doença que faz um ano nos atacou; que
dilata o cérebro, dissolve as idéias, relaxa a fibra e a vontade; e nos faz
ver o mundo através de um fundo de garrafa, Baco e de desusada
catadura. Essa doença é a inércia.
117[117]
Através dessas passagens observamos que ambos tinham graves crises
depressivas. Baudelaire confessava que durante essas crises sofria de uma ausência
total de desejos e Antero de Quental dizia que era tomado pela inércia.
116[116]
BAUDELAIRE, apud SARTE, 1947, p. 31.
117[117]
ANTERO, apud. MARTINS, 1988. p. 25.
Antero sempre se esquivou de falar sobre sua vida privada, embora no artigo
Pátria reconheça a importância de suas experiências infantis: “(...) as primeiras
emoções (vividas) quase ainda no berço, dura enquanto dura a vida em todas as
fases dela, e não só no infortúnio mas no meio da prosperidade e da riqueza ; tão
puras e poderosas elas foram”.
118[118]
Apesar desse reconhecimento jamais
estabeleceu relações entre sua doença “nervosa” e sua história familiar. Anos mais
tarde, em outro texto intitulado “Espontaneidade”, ele indaga: O que há de
voluntário na obra humana? O que há de fatal, de inconsciente?”
119[119]
Vale ressaltar que essas interrogações não levaram Antero a reconstruir sua
história. A frustração dos seus ideais e a decepção com o Mundo (Outro) levaram-no
a um intenso sofrimento, alimentado pelo sentimento de culpa:
Se nada há que me aqueça esta frieza,
Se estou cheio de fel e de tristeza,
É de crê que só eu seja culpado.
120[120]
Antero se martiriza, revolta-se contra o Mundo (Outro) e critica as
instituições arcaicas e a atuação da Igreja Católica em Portugal. Baudelaire não se dá
ao luxo de ter “bom gosto e bom senso”; ele torna público seus conflitos com
mulheres e sua conturbada relação com seus pais:
Estou doente, doente. Tenho um temperamento detestável, por culpa
de meus pais. Desfaço-me por causa deles. É o resultado de ser filho
de uma mãe de 27 e de um pai de 72. União desproporcionada
patológica e senil. Vê bem: quarenta e cinco anos de diferença. Dizes-
me que estás a estudar fisiologia com Claude Bernard. Pergunta então
ao teu professor o que pensa do fruto arriscado de um acasalamento
deste gênero.
121[121]
118[118]
ANTERO, apud SIMÕES, 1962, p. 15.
119[119]
ANTERO, apud LIMA, 1994 p. 40.
121[121]
SARTRE, 1947, p. 47.
Esse depoimento foi dado durante um julgamento, em que estava sendo
acusado de ter falsificado alguns documentos. Baudelaire não só adultera a idade de
seu pai, aumentando-a em dez anos, mas também se coloca na posição de vítima,
como se permanecesse uma criança que depende do poder e da vontade paternas.
Aliás, durante toda a sua vida, Baudelaire irá sempre culpar os pais, principalmente
sua mãe, por tudo que lhe acontece de ruim, como se ele próprio não tivesse
contribuído para seus infortúnios.
Antero admira Baudelaire e o homenageia em uma de suas poesias:
A Carlos Baudelaire
( Autor das flores do mal )
O’Carlos Baudelaire! Ó poeta impassível!
Fino lábio a sorrir, sob um estranho olhar!
Tua boca descreve o criminoso, o horrível,
Enquanto a tua voz parece só cantar...
122[122]
Mas não deixa de ser ambivalente a sua visão sobre a obra de Baudelaire.
Freud nos ensina que a ambivalência se caracteriza pelo investimento de amor e de
ódio dirigidos ao mesmo objeto.
Sim, descer onde tu desceste – na primavera.
Ver só o insecto vil, que roe a bela flor –
(Em despeito do estylo e da rima assevera)
Não se faz sem soffrer...Tu conheces a dor!
123[123]
Sem dúvida Antero se identifica com o sofrimento de Baudelaire. Em outro
momento do mesmo poema, com o pseudônimo de Carlos Fradique Mendes e com a
122[122]
ANTERO, apud MARTINS, 1985, p. 138.
123[123]
ANTERO, apud MARTINS,1985, p.138.
ressalva “Paris dia do enterro de Baudelaire: 7 de Setembro de 1867”, o poeta fala
de sua identificação com Baudelaire a partir de sua tristeza:
Somos todos assim – um triste olhar que chora
E encobre, chocarreira, a luneta do tom...
Um esqueleto frio e horrível – mas por fora
Irreprochablemant vestido á Benoiton!.
124[124]
...
Antero escreve um poema do lado de um poema de Baudelaire, escrito na
página 186 do livro As Flores do Mal. O título do poema que Antero escreve é
Versos, e o do poema de Baudelaire é Duellum. Interessante associar que Antero
teve alguns duelos, os mais sérios foram com Castilho e Ramalho Ortigão. Com esse
último, que era amigo e discípulo de Castilho, o duelo podia ter custado a vida de
um dos dois. O episódio deve-se ao fato de que Ramalho Ortigão veio em defesa do
mestre Castilho e publicou A Literatura de Hoje, obra na qual são feitas duras
críticas a Antero. Este, por sua vez, inflado pelos amigos, e num arrebatamento da
juventude, vai ao Porto para um duelo com Ramalho Ortigão.
Felizmente não há maiores conseqüências; apenas um arranhado no braço de
Ramalho Ortigão. Já o Duellum para Baudelaire parece significar um duelo apenas
literário:
(Baudelaire) DUELLUM
Dois inimigos se enfrentaram; suas armas
O ar tingiram de sangue e de ébrios esplendores.
Estes metais em duelo ecoem como alarmas
Da juventude exposta a impúberes amores.
Foram-se os gládios! Como a nossa juventude,
Querida! Mas as unhas e os dentes afiados
Logo vingam a espada e a adaga falsa rude.
- Ó coração em fúria e pelo amor magoados!
124[124]
ANTERO,apud MARTINS, 1985, p. 138.
Na ravina apinhada de onças e leopardos
Rolaram os heróis, um ao outro abraçados,
E sua pele há de fazer florir os cardos.
- Pois este abismo é o inferno por tantos povoado!
Nele rolemos sem remorso, cruel parceira,
A fim de que o ódio nos aqueça a vida inteira!
125[125]
Versos
Escrito num exemplar de “Flores do Mal”
As flores que nossa alma descuidada
Colhe na mocidade com mão casta
São belas, sim: basta aspirá-las, basta
Uma vez, fica a gente enfeitiçada.
Nascem num prado ou riba sossegada,
Sob um céu puro e luz serena e vasta;
Têm fragrância subtil, mas nunca exausta,
Falam D”Amor e Bem à alma enlevada...
Mas as flores nascidas sobre o asfalto
Dessas ruas, no pó e entre o bulício,
Sem ar, sem luz, sem um sorrir do alto,
Que têm elas, que assim nos endoidecem?
Têm o que mais as almas apetecem...
Têm o aroma irritante e crê do Vício! P.(186).
126[126]
Antero toma a poesia de Baudelaire como um desafio, apropriando-se do
significante flor para produzir a sua versão sobre a mulher. No poema de Baudelaire,
as mulheres são desumanas (cruéis), provocando nos homens o ódio; esse afeto que
alimenta a eterna guerra entre homens e mulheres. Já no poema de Antero, as
125[125]
BAUDELAIRE, apud JUNQUEIRA, 1985, p.186.
126[126]
ANTERO, 1955, p.155.
mulheres, como objeto-causa de desejo do homem, são apresentadas não só como
enigmáticas, mas também como signos do vício, ou seja, causas de perdição.
Esta diferença nos remete para o modo pelo qual Antero e Baudelaire, a partir
de suas singularidades, lidaram com as mulheres e com o espírito do seu tempo.
Antero vivia em Lisboa e fazia parte da geração de 70, a qual estava muito
preocupada com o atraso cultural e social de Portugal em relação à Europa.
Baudelaire, ao contrário, vivia em Paris, cidade que tinha a mesma importância que
Roma tivera para cultura ocidental na época clássica.
Antero pertencia a uma família conservadora. Quando seu pai morreu, ele já se
encontrava com 31 anos, e sua mãe não voltou a casar de novo. Antero admirava
muito seu avô paterno, um homem de muitas façanhas, amigo e companheiro de
Bocage. Esse avô, que também era escritor, queimou todos os poemas que escreveu.
Antero lamentava não ter conhecido a obra desse avô. Baudelaire perdeu seu pai
com apenas seis anos de idade. Ele viveu algum tempo só com a mãe. Após esta se
casar novamente, Baudelaire é colocado num colégio interno. Essa separação lhe
causou feridas profundas na alma. Como podemos perceber em suas cartas
endereçadas à mãe, parece que essa separação foi vivida de maneira drástica pelo
poeta: “Eu vivi sempre em ti, tu eras exclusivamente minha. Eras ao mesmo tempo
um ídolo e um camarada (...)”.
127[127]
O casamento de sua mãe e sua ida para o
internato causaram-lhe intensos sofrimentos, que iram repercutir em sua obra e em
sua vida amorosa. No poema Oração de Fusées, Baudelaire reza e evoca seu pai,
Edgar Alan Poe, o qual ele admira muito, e sua criada Mariett. Segundo Baudelaire,
eles são seus intercessores: “Fazer todas as manhãs as minhas orações a Deus –
reserva de toda a força e justiça – a meu pai, a Mariett e a Poe, como
intercessores”
128[128]
Que proteção ele esperava receber de suas orações? Será que a
intercessão seria para que Deus, seu pai e as pessoas que ele admirava o ajudassem a
127[127]
BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 16.
128[128]
BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 145.
criar um certo distanciamento da mãe, já que a relação entre eles era muito intensa e
de muito sofrimento?
Antero e Baudelaire sabiam que a ciência não explicava a dor de existir.
Apresentavam uma posição semelhante diante da medicina e do saber médico.
Antero, em 1888, na carta a Oliveira Martins, afirma: “A verdade humana não é a
verdade científica”.
129[129]
Em Petits Poémes, Baudelaire escreve: (...) “o espírito de
mistificação...conta por muito...neste humor histérico segundo os médicos, satânico
segundo os que pensam um pouco melhor que os médicos, sem resistências, para
uma data de ações perigosas inconvenientes”.
130[130]
Eles escrevem que os médicos
da época os chamavam de histéricos, e Antero inclusive tratava com tom de
brincadeira o diagnóstico dado por Charcot, afirmando que sempre achou que tinha
útero, enquanto Baudelaire considera que pensa melhor do que os médicos.
Deduzimos que sabiam que a ciência não explicava a dor que a vida impõe,
lançando mão da criação para ironizar e questionar os diagnósticos.
Freud assinala que os poetas produzem de forma antecipada um saber sobre a
existência humana. No final da Conferência sobre a Feminilidade afirma: “Querem
saber mais sobre as mulheres? perguntem aos poetas.”
No texto O tema dos três escrínios, Freud recorre à literatura para desenvolver
as questões ligadas à relação dos homens com a mãe e com a mulher.
131[131]
Nesse
texto Freud aponta para a dificuldade dos homens de se separar da mãe, o primeiro
objeto de amor e de desejo.
Antero nos previne sobre o que Freud considera uma tarefa difícil: um sujeito é
capaz de dar até o seu orgulho de homem para continuar débil criança a fim de que
possa continuar sob o amparo materno:
129[129]
BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 161.
130[130]
BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 161.
131[131]
Freud, usa exemplos da literatura para questionar a relação dos homens com sua mãe e a mulher; como
“Mercador de Veneza” da obra de Shakespeare, “Gesta Romanorum”, uma compilação de histórias de autoria
desconhecida , e a nona história dos “Contos de Fada de Grimm”, a que tem o nome Os Doze Irmãos, e outra
ainda de Grimm Os Sete Cisnes além da mitologia e citações de outras obras. Abordaremos aqui apenas o
“Mercador de Veneza”.1913, p. 365.
Mãe ...
Mãe – que adormente este viver dolorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido...
Que me leve consigo adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...
Eu dava o meu orgulho de homem – dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,
Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio
Se tu fosses, querida, a minha mãe!
132[132]
Não tem limites o sacrifício que um sujeito possa fazer pelo amor de sua mãe.
Muitas vezes esse amor é usado como modo de evitar a castração e o desejo erótico
pelas mulheres. Diz-nos a propósito Nadiá de Paulo Ferreira:
O herói romântico, enquanto ideal do próprio escritor, é aquele que encontra
no sofrimento o seu inferno gozante e na ironia a sua tisana. Em momento
algum a desavença entre o sujeito e as leis sociais remete para o mal–estar
freudiano. Não se trata da sexualidade humana, traumática, e, muito menos
da existência do objeto do desejo. Muito pelo contrário, a concepção de
amor romântica se sustenta na promessa de que há um objeto que iria ofertar
a tão decantada Felicidade. Trata-se de um discurso que recalca a castração
pela via da denegação.
133[133]
Antero de Quental se refere ao amor “infantil” como sendo um amor em que
não comparece nenhuma falta, a infância é imaginada como descuidada, feliz, dócil,
e desprovida de sexualidade. A psicanálise, todavia, desde os Três Ensaios Sobre a
132[132]
ANTERO, 1955, p. 66.
133[133]
FERREIRA, 2003, p. 104.
Teoria da Sexualidade, afirma que a criança tem sexualidade, instigando-nos a
questionar esse ser débil e dócil de que nos fala o poeta. Mas o poeta revela saber
disto, tanto que no final do poema revela o desejo denegado, que é o desejo
incestuoso por sua mãe: “Se eu pudesse dormir sobre o teu seio, / Se tu fosses,
querida, a minha mãe!”.
Por outro lado, nos poemas de Baudelaire as mulheres, ao serem abordadas
como objeto-causa de desejo do homem, são rebaixadas e degradadas.
As duas boas irmãs
A orgia e a morte são duas jovens graciosas,
Fartas de beijos e de frêmito incontido,
Cujo ventre engastado em ancas andrajosas
Jamais logrou um fruto em si ter concebido.
Ao poeta infausto, hostil às famílias virtuosas,
Favorito do inferno e cortesão falido,
Caves e tumbas oferecem, generosas,
Um leito em que o pesar jamais foi recebido.
A sepultura e a cova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez como duas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.
s de enterrar-me, Orgia em tuas covas fundas?
Quando virás, ó morte, envolta em negras vestes,
Sobre mirtos em flor plantar os teus cipestres.
134[134]
As poesias de Antero têm em excesso o que falta em Baudelaire, ou seja: a
mulher como o objeto de amor nos é apresentada como substituta da mãe. Ao
contrário, nas poesias de Baudelaire as mulheres despertam os desejos frêmitos e
134[134]
BAUDELAIRE, apud JUNQUEIRA,1985, p. 400.
incontidos do homem: “Cujo ventre engastado em ancas andrajosas / Jamais logrou
um fruto em si ter concebido”. Em suas poesias, Baudelaire se refere às mulheres
com um certo horror, o que faz com que associe o gozo sexual à morte: “Hás de
enterrar-me, Orgia, em tuas covas fundas?”.
As mulheres como objeto-causa do desejo provocam medo em Antero. Desse
medo nasce a angústia insuportável, que leva o poeta a desejar a morte: “Quando
virás, ó Morte, envolta em negras vestes, / Sobre os mirtos em flor plantar os seus
ciprestes? Será que o poeta supõe a morte como solução de sua dor? Antero também
é chamado o poeta da morte, porque em várias poesias a morte surge para acabar
definitivamente com o sofrimento.
6 - Uma trajetória: da partida ao retorno trágico
Quanto ao fato de eu escrever, digo (...) que
estou desiludida. É que escrever não me
trouxe o que eu queria, isto é paz. Minha
literatura não sendo de forma alguma uma
catarse que me faria bem, não me serve como
o meio de libertação. Talvez de agora em
diante eu não mais escreva, e apenas
aprofunde em mim a vida. Ou talvez esse
aprofundamento de vida me leve de novo a
escrever.”
135[135]
O fragmento, que escolhemos como epígrafe desse capítulo, nos mostra como
Clarice Lispector está desiludida com o que a escrita lhe ofereceu. Escrever não lhe
serviu nem como catarse. Embora ela não descarte a possibilidade de voltar a
135[135]
Clarice Lispector questiona isso numa palestra “Literatura de vanguarda no Brasil”, feita por ela em
1963 no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, no Texas. (O Globo
Prosa & Verso, 3 de julho de 2005).
escrever, já que o ato de escrever é para ela um “aprofundamento de vida”, ela sabe
que a escrita não lhe deu e nem lhe dará nunca a paz, ou seja, a completude.
Por que a escrita como sublimação não possibilita o apaziguamento da dor de
existir? Essa foi a questão que permeou o nosso trabalho. Como a relação com a
escrita se faz caso a caso, perguntamo-nos: Por que a escrita não sustentou a vida de
Antero? Ou: A escrita é que permitiu Antero viver até aos cinqüenta anos? Até que
ponto o processo de criação apazigua o tormento ou a dor da alma, já que sabemos
pelo nosso embasamento teórico e clínico que, para alguns, a criação dá sentido, e
para outros tem a função de nome do pai suplência. Será que a desilusão teria
provocado uma ferida narcísica tão profunda e levado o poeta ao suicídio? Será que
os ideais tinham para ele uma função tão vital que, quando caíram, não houve nada
que o amparasse? Isso é o que ele nos diz na já citada poesia Os Vencidos.
Para alguns escritores o processo de criação literária é um recurso para lidar
com a angústia. Na obra de Antero, o sofrimento psíquico se manifesta de forma
explícita. Para esse controvertido poeta, “doente dos nervos” e absorvido pelos
seus ideais, o inconsciente talvez seja o espectro que ele ama, odeia e persegue ‘sem
o saber’, de forma obstinada, desde o manifesto de Coimbra, que provocou a
destituição do Reitor. E mais: Por que essa aproximação do escritor com o “saber
inconsciente” não possibilitou o direcionamento de suas pulsões de forma mais
apaziguadora?
Numa carta a uma amiga o poeta escreve: [...] “Estou doentíssimo daquela
doença que faz um ano nos atacou; que dilata o cérebro, dissolve as idéias, relaxa a
fibra e a vontade; e nos faz ver o mundo através de um fundo de garrafa, Baco e de
desusada catadura. Essa doença é a inércia”.
136[136]
Que inércia era essa que, apesar da queixa, ainda permite que continue em
contato com alguns de seus amigos até os últimos momentos do ato final? Chama-
nos atenção o fato de o poeta ter mantido os laços sociais e de trabalho, durante toda
a sua vida. Sua vasta correspondência nos confirma isso. É certo que, no final, já não
136[136]
ANTERO, apud MARTINS, 1985, p. 25.
era mais o jovem que queria mudar Portugal através da filosofia e da poesia. Há um
reconhecimento a respeito de seu engano em relação às utopias defendidas com
afinco. Mas, mesmo assim, ele ainda endereça cartas aos amigos, como no caso de
Oliveira Martins, em 15 de março de 1887:
[...] “Tive um certo prazer em tornar a ver a minha terra, ainda que
não sei porque, e talvez só por instinto, pois deve haver uma profunda
relação entre o homem e a terra em que nasceu e se criou. Ou será
talvez que este isolamento num canto do mundo, que é já uma meia-
morte ou uma morte antecipada, convenha muito ao humor em que há
tempo me sinto. Como quer que seja, confesso-lhe que gostaria de me
fixar aqui definitivamente”
·
137[137]
Por quê a ligação entre a morte e a terra na qual nasceu e se criou? Por que
Antero, com o decorrer do tempo, transforma o ideal em um tormento?
O Tormento do Ideal
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como que na serra
Mais alta que haja, olhando aos pés da terra
E O mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
Minguar, fundir-se sob a luz que jorra;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra.
Ao por do sol e sobre o mar discorre.
Pedindo à forma, em vão, a idéia pura,
Tropeço, em sombras, em matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.
Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
137[137]
ANTERO apud MARTINS, 1985, p. 301.
Para sempre fiquei pálido e triste.
138[138]
Freud, em texto de 1908, Escritores criativos e devaneios, afirma que o
escritor apresenta sua fantasia inconsciente para o mundo. As fantasias de Antero
propõem mudanças significativas no espírito intelectual de sua época e na sociedade
portuguesa. Mais ciência, arte, revolução e menos religião são as máximas
defendidas pelo poeta.
Aos quinze anos, em Lisboa, escreve: “eu por mim nunca me pude conformar
com a idéia de interpor as vastas solidões do Oceano entre mim e a terra que me viu
nascer”.
139[139]
No começo de sua vida, já se fazia anunciar sua sensibilidade às
separações e seu apego às experiências da infância, nos Açores, que irá chamar,
mais tarde, de emoções, no seu artigo Pátria, “ [...] as primeiras emoções (vividas)
quase ainda no berço, dura enquanto dura a vida em todas as fases dela, e não só no
infortúnio mas no meio da prosperidade e da riqueza ; tão puras e poderosas elas
foram”
140[140]
. O que da infância e das primeiras impressões vividas nas distantes
ilhas dos Açores teria marcado o espírito de luta e de revolução, do poeta-filósofo?
Que ele passará pelo resto de sua vida perseguindo? Ilhas em que, segundo alguns
autores, em conseqüência do seu isolamento, ainda se falava o português arcaico, do
teatro de Gil Vicente. Freud denomina as primeiras impressões da infância de
marcas mnêmicas. Estas irão influenciar o nosso estar no mundo para sempre. Quais
teriam sido essas marcas que o poeta chama de emoções? Para Lacan seriam os
primeiros significantes, os quais determinam o destino. Se, como nos diz Freud, o
artista precede o psicanalista, podemos supor que Antero ratifica essa premissa,
tanto em grande parte de sua obra, quanto em seu modo de questionar a cultura e a
sociedade. É o que vimos em seu poema já citado O Inconsciente.
Seguindo este raciocínio, podemos deduzir que Antero sabia se movimentar na
direção do inconsciente. Freud, ao ler Gradiva de Jensen, conclui:
138[138]
ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 175.
139[139]
ANTERO, apud SIMÕES, 1962, p. 15.
140[140]
ANTERO, apud SIMOES, 1962, p. 15.
[...] Assim fiquei bastante surpreso ao verificar que o autor de Gradiva
publicada em 1903 baseara sua criação justamente naquilo que eu
próprio acreditava ter acabado de descobrir a partir das fontes de
minha experiência médica. Como pudera o autor alcançar
conhecimentos idênticos aos dos médicos – ou pelo menos comportar-
se como se os possuísse.
141[141]
Assim como o autor de Gradiva, Antero já apontava para o Inconsciente em
1887, com a poesia O Inconsciente. Freud só apresenta o inconsciente ao mundo em
1900 com A interpretação dos sonhos. Antero, para indicar a existência do
Inconsciente, faz poesia. Freud teoriza e cria a psicanálise. Antero sonhava com a
poesia e com a filosofia, com vistas a mudar um povo, uma nação. Freud cria uma
prática clínica que se baseia na cura pela palavra. Só que nossa experiência teórica e
clínica nos ensina que sofrer os efeitos do inconsciente não é a mesma coisa que
uma experiência de análise, que permite uma elaboração do sofrimento, uma
retificação subjetiva para que haja um suporte para as quedas dos ideais. Antero,
mesmo sofrendo os efeitos do “saber” inconsciente, tornou-se vítima dos ideais de
sua juventude.
Freud, na segunda teoria do aparelho psíquico, define o ideal do eu
como uma instância do eu, resultante da convergência do narcisismo
com as identificações com os pais. Estas, por sua vez, serão
substituídas pelos ideais coletivos. Enquanto instância diferenciada, o
ideal do ego “constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-
se.
142[142]
A partir da definição freudiana do ideal, exploramos em vários textos as
identificações do poeta–filósofo com seus antepassados, os quais se destacaram por
seus ideais liberais e pelas lutas de independência. Abordamos seu avô paterno,
André da Ponte de Quental da Câmara e Sousa; seu pai, Fernando de Quental, seus
141[141]
FREUD, 1906/1907, p. 60.
142[142]
LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 222.
mestres, optando por aqueles que tiveram uma maior influência em sua obra e vida;
dos alemães Hartmann e Hegel; dos franceses Michelet e Proudhon; dos portugueses
Castilho e Alexandre Herculano, além de permearmos o texto com as opiniões de
seus amigos e pares que acompanharam este estudante açoriano em Coimbra, até
que se tornasse um dos homens mais importantes de sua geração. Para alguns
estudiosos da literatura portuguesa sua obra está à altura das obras de Bocage e de
Camões. Será que, nesse sentido, podemos afirmar que se cumpriu algo do seu
ideal? Freud, no texto Introdução ao Narcisismo, escreve:
(...) uma parte da auto-estima é primária e provém do resíduo do
narcisismo infantil; outra parte decorre da onipotência que é
corroborada pela experiência (a realização do ideal do eu); uma
terceira parte provém da satisfação da libido objetal.
O ideal do eu impõe severas condições à satisfação da libido por meio
de objetos, pois ele faz com que alguns objetos sejam rejeitados,
porque se apresentam incompatíveis com o ideal. Onde não se formou
tal ideal, a tendência sexual em questão aparece inalterada na
personalidade, sob forma de uma perversão. Tornar a ser seu próprio
ideal, como na infância, no que diz respeito `as tendências sexuais não
menos do que as outras – isso é o que as pessoas se esforçam por
atingir como sendo sua felicidade.
143[143]
Talvez nesse esforço de seguir na direção dos seus ideais, Antero elegeu a arte
como bandeira. Ele desejava que sua poesia fosse “verdadeira” e conclamava que
“A arte é a única santa da humanidade”, “a arte – a verdade feita vida”.
144[144]
Que
verdade ele esperava encontrar na vida e na arte? Será que esse esforço na direção
da “verdade” seria o de se tornar seu próprio ideal, como no diz Freud, e atingir a
“felicidade”? Ainda no texto Introdução ao Narcisismo, Freud escreve sobre o ideal
do eu e a sublimação:
143[143]
FREUD, 1914, p.118.
144[144]
ANTERO, apud COIMBRA, 1952, p,332.
Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal do
eu, nem por isso foi necessariamente bem sucedido em sublimar seus
instintos libidinais. É verdade que o ideal do eu exige tal sublimação,
mas não pode fortalecê-la; a sublimação continua a ser um processo
especial que pode ser estimulado pelo ideal do eu, mas sua execução é
inteiramente independente de tal estímulo. A formação de um ideal
aumenta as exigências do eu constituindo o fato mais poderoso do
recalque; e a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual as
exigências podem ser atendidas sem envolver o recalque
145[145]
.
Sublimar é, segundo o texto de Freud, uma forma de desvio da pulsão sexual,
sem passar pelo recalque. Então a sublimação seria uma forma que o sujeito
encontrou para atender as demandas de suas pulsões.
Antero lutou muito para introduzir uma outra forma de pensar em Portugal. Ele
foi admirado por alguns filósofos e escritores de sua época, mas o “reconhecimento”
de seus pares, como Eça de Queiroz e Oliveira Martins, não o tranqüilizou,
tampouco de mestres como Alexandre Herculano. Antero tentou de forma original
produzir sentido para a sua vida, mas nada era suficiente. Havia algo de onde ele não
conseguia se mover. Havia alguma coisa que não permitia que ele mudasse seu fado.
O poeta do Elogio à Morte deixou marcas num país que negava a tal ponto a
morte que até depois de mais de um século do desaparecimento do rei D. Sebastião
o povo português ainda acreditava que ele voltaria como salvador. Antero, ao
afirmar a morte, conclamava os vivos a não esperar um salvador, mas a despertar
para a conquista. Não vinda do mar, nem de outras terras, mas de suas próprias vidas
e possivelmente com isso tentava sair, sem saber sabendo, do lugar de morto.
Em 1838, sua mãe teve um filho ao qual deu o nome de Antero Traquínio de
Quental, um bebê que morreu três meses depois, e em seguida nasceu a irmã Maria
Hermelinda e quatro anos mais tarde nasce “outro” bebê, Antero Traquínio de
Quental. O lugar do morto estava ocupado; mas não sem conseqüências. Quais? Só
sabemos sobre isso nos rastros deixados na obra de Antero Traquínio de Quental. Os
145[145]
FREUD, V.XIV. 1914, p. 112.
versos de seus poemas nos apontam contundentemente para a divisão entre o desejo
de viver e o de ocupar o lugar do morto. Exemplo:
LOGOS
Ao Sr. D. Nicolas Salmeron
Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
E, o que mais, dentro em mim – que me rodeias
Com um nimbo de afectos e ideais,
Que são o meu princípio, meio e fim...
Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas contigo e me passeias
Em regiões inominadas, cheias
De encanto e de pavor... de não e sim...
És um reflexo apenas da minha alma,
E, em vez de te encarar com fronte calma
Sobressalto-me ao ver-te e tremo e escoro-te...
Falo-te, calas... calo, e vens atento...
És um pai, um irmão, e é um tormento
Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!
146[146]
Esse estranho que passeava com ele calado, pois um morto não fala, era um
tirano. Talvez fosse o pai, só que adorado como irmão. Freud nos alerta que a
mudez no sonho deve ser interpretado como um sinal de estar morto. Seriam esses
desejos que impulsionavam os temas de amor e morte ?
(...) Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: “Eu sou a Morte!”
Responde o cavaleiro: “ Eu sou o Amor!”
147[147]
146[146]
ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 233 (grifo nosso).
147[147]
ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 222.
Interessante pensar sobre o que seu mais reverenciado biógrafo, Bruno
Carreiro, nos chama a atenção, considerando um fato curioso, inclusive vindo de
uma ilha em que, naquela época, quase todas as pessoas se conheciam e a
curiosidade pela vida alheia era uma forma de dinamizar o social. O fato é sobre o
pai de Antero, e eis o que causa estranhamento em Carreiro:
Não deixa de ser notado o facto de em toda a sua obra e
correspondência de Antero não haver uma única referência ao pai. Ao
partir para Paris em 1866, para trabalhar como tipógrafo, foi à mãe que
se dirigiu para S. Miguel, a fazer as últimas despedidas à família. Terá
essa resolução determinado uma quebra ou tensão de relações entre
Antero e seu pai? Nenhuma informação conseguimos recolher em S.
Miguel, entre as pessoas que ainda conheciam Fernando de
Quental.
148[148]
O pai de Antero morreu em 8 de março de 1873. No começo de abril, Antero,
que estava em Lisboa, volta para ver a família em Ponta Delgada. Um amigo, que o
esperava, tem dele a seguinte impressão: “(...) reapareceu aqui em 1873, avergado,
como ao peso de anos sob a inexorável tirania de uma fatal doença já”.
149[149]
Podemos perceber por essa opinião que Antero ficou bastante abatido com a morte
do pai, mas ele não menciona isso em momento algum. Outra carta a Oliveira
Martins de Abril de 1873, em que participa a sua chegada a S. Miguel, comenta
sobre o estado das mulheres da família, mas nem uma palavra sobre a morte do pai.
Aqui estou agora no meio de aflitas mulheres, aflito eu com elas, por
ver a pobreza de consolações de escassamente dispõe a fria
inteligência em face das reais irrefletidas. Não sei se me explico bem.
Quero dizer que a espécie particular de pensamentos, puramente
racionais, que a mim me consolam, ainda desconsola mais os corações
148[148]
ANTERO, apud CARREIRO,1981, p. 493.
149[149]
ANTERO, IN MEMORIA, 1993, p. 77.
que só sentem e não reflexionam. Triste condição da filosofia! Ou
então triste condição dos sentimentos humanos.
150[150]
Nenhuma referência objetiva à morte do pai, só aos efeitos na família. Não é à
toa que Antero tem dúvidas se está se explicando bem. O mesmo não aconteceu
anos mais tarde, com a morte da mãe e com a doença e morte do irmão, que morreu
louco e internado em Rilhafoles. Essas mortes são comentadas por Antero que,
inclusive pede aos amigos que o consolem. O fato é que, comentada ou não, a morte
do pai traz consigo um agravamento do seu estado emocional. Antero começa a
procurar médicos para a sua doença nervosa, que passa a ser motivo de grandes
preocupações para ele e para todos o que convivem com ele, pois escreve e fala
sobre ela com a mesma intensidade que produz sua obra.
Antero, depois de consultar vários médicos, em Portugal, no ano de 1877,
vai a Paris consultar o que ele chama de oráculo:
Este sábio – Diz em carta de 20 de julho de 1877 a Lobo de Moura – é
le premier homme de France pour les maladies nervouses”. Depois
de competentes interrogatórios e apalpões eis o que saiu do oráculo: -
On s’est trompé; vous n’avez rien à l’epine: vous avez une maladie
de femme, transpotée dans um corps d’homme; c’est l’hyst´risme”. E
receitou hidroterapia. Diz ele que isso cura fácilmente.(...) Mestre
Charcot diz que vou melhorar, e assegura tão terminantemente que me
há-de por bom, dando-lhe eu um tempo, que não ouso recusar-lhe essa
condição, apesar do medo que me mete o inverno, que já quer
começar.
151[151]
Antero vinha sendo diagnosticado pelos médicos portugueses como tendo
várias doenças orgânicas, entre elas, doença na espinha e refluxo. Náuseas e enjôos
também foram uma constante entre as queixas que fazia de sua doença. Charcot faz
o diagnóstico de histeria e promete a cura nas duas vezes que Antero o procurou, só
150[150]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.494 (grifo nosso).
151[151]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 68.
que não conta com a rebeldia do doente para com o Mestre. Procurar um mestre e
admirá-lo não significa que se vá obedecer. Será que no lugar de Charcot Antero
tivesse encontrado com Freud, o seu destino teria sido outro? Isso é uma resposta
impossível de obter!
A partir daí, Antero muda várias vezes de casa e de lugar, confessando que
não pode voltar para S. Miguel. Ele sabe, sem o saber, que viver fora de sua terra-
mãe, era uma forma de se manter vivo, ainda que reclamando: “Estou cansado
desta vida errante. Mas para onde ir? Não vou para Casa senão em tendo
arrefecido o suficiente para encarar serenamente as misérias de família. A ilha é
por ora um espectro com que não posso encarar”.
152[152]
Esse espectro e as
misérias da família só podiam estar na vida do poeta se uma certa distância fosse
mantida, ou o poeta só pode viver na errância?
Antero vai parar um pouco com a vida errante quando, em 1879, morre seu
amigo Germano Meireles e Antero adota sua família. Albertina e Beatriz, filhas de
Germano, juntamente com a mãe, vão morar com ele no ano seguinte em Vila do
Conde. Em 1885, morre a mulher de Germano Meireles. Antero fica só, com
Albertina e Beatriz, internando-as no Colégio das Doroteias do Porto e continua
morando em Vila do Conde, sempre visitando as pupilas no internato. Também
recebe seus amigos, por vezes em sua casa e por vezes hospedando-se em suas
casas. Nessa época, escreve alguns trabalhos e poemas e é eleito presidente da Liga
Patriótica do Norte, no Porto.
Em 9 de Setembro de 1890, faz seu testamento, e deixa em 1891 Vila do
Conde, indo se instalar em Lisboa, na casa da irmã, Ana, com as filhas adotivas.
Nesse mesmo ano, decide enfrentar o que ele “sabe” que é fatal para ele: o espectro
da Ilha de S. Miguel. Então vai morar lá com a irmã e as filhas adotivas. Todavia,
Ana não consegue se adaptar aos Açores, pois, também, não está se relacionando
bem com Albertina e Beatriz. Então ela decide retornar a Lisboa. Antero, no entanto,
resolve também retornar ao Continente, no dia 18 de setembro, deixando para trás as
152[152]
ANTERO, apud SAMPAIO, p.15
filhas adotivas por achar melhor para elas a vida nos Açores. Parece que isso se
torna insuportável e Antero fica dividido, extrema divisão, tão forte que ele não
consegue equacionar, quer ficar e quer ir, então se mata em frente ao convento da
Esperança.
Porque Antero não consegue continuar vivo como os companheiros do grupo
de Coimbra e do Cenáculo? O bem humorado grupo dos Vencidos da Vida, como
eles se auto denominavam, reunia-se para questionar a arte, a política a sociedade e
até a si mesmos, mas já suportando a queda dos ideais exarcebados da juventude.
Reuniam-se para jantar e fazer humor. Como por exemplo, quando em 1884 foram
jantar no Palácio de Cristal e escreveram num leque essas bem humoradas citações,
sobre a matilha que formavam:
Os latidos
I Quem muito ladra pouco aprende. Antero de Quental
II Escritor que ladra não morde. Oliveira Martins
III Dentada de crítico cura-se com pêlo do mesmo crítico.Ramalho Ortigão
IV Cão lírico ladra à lua; cão filósofo aboca o melhor osso. Eça de Queiroz.
V Cão de letras – cachorro! Guerra Junqueiro
ENVOI
São cinco cães, sentinelas
De bronze e papel almaço;
De bronze as canelas,
De papel o regaço.
(assinado) A matilha
153[153]
Inclusive houve um jantar de despedida no restaurante Tavares, antes da última
viagem de Antero para os Açores. Talvez se Antero continuasse no Continente, onde
153[153]
MAGALHÃES, 1998, p. 115.
conseguiu tantas glórias e reconhecimento, o destino pudesse ter sido outro. Quem
sabe um destino no qual as angústias pudessem ser mais aplacadas por algumas
satisfações? O que comenta na carta a Wilhelm Storck nos permite entrever outro
destino que não o suicídio:
Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direção definitiva
do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina busca do
espírito humano. Morrerei, também, depois de uma vida moralmente
tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais
íntimas aspirações da alma humana, e, como dizem os antigos, na paz
do Senhor! – Assim o espero.
154[154]
Porém, o coração feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,
Respondeu: Desta altura vejo o amor!
Viver não foi em vão, se é isto vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor
155[155]
Interessante pensar que Antero em alguns momentos não estava tão disposto a
levar até as ultimas conseqüências seus ideais, as revoluções etc, mas afirmava, de
forma irônica, que é preciso eleger-se qualquer sistema:
Todos os sistemas são equivalentes – todos os sistemas são bons,
porque todos os sistemas são maus . A obra do Ser-coletivo
‘Humanidade’ há-de fazer-se infalivelmente: está-se fazendo nesse
momento; estamos nós todos a fazê-la sempre, e, se não somos nós,
alguém será. Não nos desesperemos. Todos os sistemas são
equivalentes. Mas é preciso ter um sistema, qualquer que seja.
156[156]
154[154]
ANTERO, apud BANDEIRA, 1942 p. 40.
155[155]
ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p.246.
156[156]
ANTERO, apud CARRREIRO, 1983, p. 335.
Assim encerramos esse percurso com a convicção de que o poeta muito nos
ensina, com suas formas e sistemas incompletos, sobre a trajetória humana, que
sempre está entre a tragédia anunciada de viver e morrer, sabendo-se que a morte
provocada ou não será nossa última morada, de seres errantes. Nesse universo de
planetas e constelações, um dia a mãe-terra nos acolherá como último exílio.
Evolução
A Santos Valente
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onde espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiqüíssimo inimigo...
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombre urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...
Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...
Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade”
157[157]
157[157]
ANTERO, apud CARREIRO,1981, p. 234.
7- Conclusão
A vida de Antero foi transpassada pelos ideais do século XIX. Podemos dizer
que ele foi mesmo um protótipo dos grandes homens desse século. O seu olhar se
dirige para o liberalismo europeu, e sua pena visa ir além da tradição fundamentada
na religião e na culpa. Abrindo caminhos para além do mar e do exílio, a geração de
setenta vislumbra outras saídas. Mas Antero torna-se um errante na própria terra, um
exilado na própria subjetividade. Portugal, no século XIX, permanece dando costas à
Europa e restringe as trocas culturais com outras nações, permanecendo saudoso do
seu passado glorioso (grandes conquistas na navegação) e cultuando a idéia de que
viria um salvador. Os reis sonâmbulos, a decadência, a religião, a falta de arte e de
ciência na cultura do povo inquietam o espírito revolucionário de Antero. Ousado e
apaixonado, até mesmo utópico, Antero tenta despertar o Portugal adormecido,
assinalado por Pessoa, conclamando o povo à liberdade em suas epístolas, seus
manifestos e, sempre que possível, em suas poesias.
Embora com dificuldades de colocar em prática suas idéias revolucionarias,
Antero encontra seus pares causando neles admiração e poder de liderança. O
Cenáculo foi testemunha desse tempo. Inspirado por autores como Hartmann, Hegel,
Michelet e Proudhon, e mestres como Castilho e Alexandre Herculano, Antero
segue sua trajetória niilista como filósofo e anarquista como político, criando uma
obra de grande singularidade e deixando entrever seu amor à verdade. Constituíram
as trilhas para esse caminho em direção à verdade os ideais do patriotismo exaltado
dos românticos, os valores originais do Cristianismo, com a filosofia idealista, a
ciência e o progresso. Antero esperou mais do que seria possível dos ideais, da
filosofia, da poesia, da política e da verdade. Consideramos que foi um grande
engano acreditar que com esse conjunto de saber seria possível mudar um povo e
uma nação.
Talvez para não encarar o que ele chama de misérias familiares e o espectro
imaginário da Ilha de S. Miguel, o qual ele diz que só pode encarar arrefecido,
tentou fazer semblante com a filosofia, a poesia e outras criações. Será que foi em
vão? Essa é uma pergunta que permanece incógnita no nosso trabalho. A não ser
quando nos reportamos a Fernando Pessoa, quando afirma que “tudo vale a pena se
alma não é pequena”
158[158]
. Sem dúvida essa alma não foi pequena e entrou para a
história portuguesa através de sua obra.
O processo anteriano de criação não eximiu esse sujeito da angústia, tampouco
de estados conturbados de alma. É plausível supor que a escrita tenha amenizado a
dor de existir, mais suportável para ele do que a divisão subjetiva em relação ao
próprio desejo. Esse processo pode ser apreendido em muitas de suas poesias e
cartas, tal como a carta que endereça ao amigo Oliveira Martins:
(...) A contenção terrível do meu pobre espírito, amarrado,
acorrentado, como num proto como numa cruz, à dedução das idéias
que o trabalho do meu livro vai erguendo diante de mim (vendo
abismos de um lado, vendo muralhas de outro), numa palavra, estado
de parto, e está tudo dito, essa contenção chega em momento de
produzir em mim (que sou fraco do cérebro) uma coisa semelhante à
imbecilidade. Com os olhos num ponto único, arregalados num esforço
violento para penetrar a forma de uma idéia que não quer sair do vago,
não vejo mais nada, e o que de tudo mais entendo é como que pelo
tacto, como que às apalpadas.
159[159]
Podemos constatar que, para formular suas idéias, Antero fazia um esforço,
segundo ele, violento, para sair do vácuo do pensamento. Considerando-se até em
estado de parto, que não deixa de ser um índice do desejo de se perpetuar após a sua
morte. A obra não deixa de ser uma forma que o artista encontra para se
imortalizar.E Antero faz parte da história da Literatura Portuguesa..
158[158]
PESSOA, 1977,p. 82.
159[159]
ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 498.
8- Referências Bibliográficas
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Resumo
Esta dissertação tem como objetivo investigar a trajetória política, filosófica e
poética de Antero Quental e a implicação de sua obra no apaziguamento da dor de
existir.
Influenciado pelas obras dos estrangeiros Hartmann, Hegel, Michelet,
Produdhon, e de alguns portugueses, como Castilho e Herculano, Antero não só
defende novas formas de organização político-social, mas também a renovação
artístico-cultural de seu país. Justamente por isto, ele, através de cartas, manifestos e
poesias, conclama o povo para participar das reformas necessárias à modernização
de Portugal. Ele sabia que encontraria pela frente uma forte resistência, já que a
maioria do povo português arraigava-se à religião, à tradição e às saudades de um
passado glorioso.
A luta pelas reformas e a realização de uma obra não foram suficientes para
dar sentido à vida desse homem. Antero suportou a dor de existir até aos cinqüentas
anos. A derrocada dos ideais levou-o ao suicídio, deixando, como rastro de sua
passagem pelo mundo, uma escrita poética, filosófica e revolucionária.
Palavras-chaves: ideal, morte, inconsciente, realismo, dor, existência,
revolução, evolução e fracasso,.
Abstract
This dissertation intends to investigate the life of the poet and philosopher,
Antero de Quental, analysing his work in the political, philosophical and poetical
aspects and the role of these aspects in the placation of his ´suffering of human
existence`.
Under the influence of the works of foreigners such as Hartmann, Hegel,
Michelet, Proudhon, and of some portuguese such as Castilho and Herculano,
Antero not only defends new forms of organization in culture, literature and politics,
but also the cultural and artistical renovation of his country. In this way, it is through
letters, manifests and poetry, that he conclams the people to participate on the
necessary reforms to modernize Portugal. He knew, however, that he would find a
strong resistence to this task, since most of Portuguese people were deeply attached
to religion, to tradition and longing for their glorious past.
His struggle for these reforms and the realization of an important body of work
seemed not to be enough to give sense to this man´s life. Antero only supported the
´sufferering of human existence´ until he was fifty years-old. The fall of his ideals
lead him to commit suicide, however not without leaving, as a testimony for his
passage through this world, an important body of poetical, philosophical and
revolutionary writting.
Key-words: ideal, death, unconscious, realism, pain, existence, revolution,
evolution and failure.
ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA
TRANSPASSADA PELOS IDEAIS DO SECULO XIX E PELA DOR DE
EXISTIR.
Por Lusia de Fátima Feijó Machado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras, área de concentração em
Literatura Portuguesa, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre.
Aprovado em: _____________________________________________________
Banca examinadora:
_________________________________________________
Prof.ª Dr ª. Nadiá Paulo Ferreira (Orientador) - UERJ
_________________________________________________
Prof.
a
Dr ª. Denise Maurano - UFJF
_________________________________________________
Prof.
a
Dr ª. Maria do Amparo Tavares Maleval - UERJ
Suplentes:
_________________________________________________
Prof.
o
Dr º. Marcus Motta - UERJ
_________________________________________________
Prof.
a
Dr ª. Angela Maria Dias Brito Gomes - UFRJ
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