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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE-UFF
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA PPGEO UFF
AQUI O MEU BOI VAI URRAR! Uma leitura espacial do bumba-meu-boi na cidade de
São Luís (MA)
Daniel Cunha de Carvalho
NITERÓI - RJ
2009
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DANIEL CUNHA DE CARVALHO
AQUI O MEU BOI VAI URRAR! Uma leitura espacial do bumba-meu-boi na cidade de São
Luís (MA)
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação de Geografia
da Universidade Federal Fluminense PPGEO/UFF, como parte dos
requisitos para a obtenção do grau de Mestre em Geografia
Ordenamento Territorial
Orientador: Profº Dr. Nélson da Nóbrega Fernandes
NITERÓI - RJ
2009
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C331
Carvalho, Daniel Cunha de
Aqui o meu boi vai urrar: uma leitura espacial do bumba-meu-boi
na cidade de São Luís (MA) / Daniel Cunha de Carvalho. – Niterói :
[s.n.], 2009.
193 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal
Fluminense, 2009.
1.Bumba-meu-boi. 2.Cultura popular. 3.Folclore brasileiro.
4.Espaço geográfico. I.Título.
CDD 306.484098121
A Raimunda, Carvalho, Fernanda, Karlla, Yan, Preta e Netinho
Ao Gaguinho, jovem e próspero cantador do boi da Madre Deus falecido em 2008
Ao saudoso Coxinho, inspiração não só para os boieros, mas para os pesquisadores
E a Deus por me colocar no espaço certo e no tempo certo
Quadro de Carlos Scliar, Bumba-meu-boi, 1950.
AGRADECIMENTOS
Para a realização do presente trabalho, contamos com muita ajuda, estímulo, incentivo
e torcida de um glorioso batalhão. Muitas pessoas e instituições foram fundamentais para a
realização de um sonho que não é só meu, mais um sonho de uma família que mostra a garra
e a força de vontade de vencer e superar todas as adversidades que sempre aparecem no
caminhar da vida. Essa pesquisa tem cara dos meus queridos pais, Raimunda e Carvalho, que
sempre me ensinaram a suportar os pesos e cargas de todas as dificuldades e realmente lutar
pelo que se quer.
Agradeço a minha família, Raimunda (mãe), Carvalho (pai), Fernanda (irmã), Karlla
(irmã) e Yan (sobrinho/afilhado) pelo apoio incondicional durante toda a empreitada, e pelo
estimulo dado, pois tanto esses como eu sabem das dificuldades de sair do Maranhão para
estudar no Rio de Janeiro.
Também agradeço especialmente ao meu orientador, lson da Nóbrega Fernandes,
que é literalmente um orientador no sentido público da palavra, dando sugestões, cobrando,
mostrando dedicação, atenção e disponibilidade, inclusive de fazer um campo na o Luís
boiera, mesmo com a intensa carga de trabalho. Realmente é um cara que travou a batalha
conosco e nunca desistiu.
Foi de suma valia a ajuda da CAPES, que realmente veio amenizar as dificuldades
financeiras de se viver em cidade com o custo de vida bastante alto como Niterói, pois o
paitrocínio” era insuficiente. Fica aqui então registrado os nossos agradecimentos.
Não tinha como deixar de agradecer também ao Programa de Pós-Graduação de
Geografia e ao seu corpo docente de uma maneira geral, - especialmente aos professores Ruy
Erthal, Márcio e Barbosa que qualificaram a minha pesquisa -, por me dar a oportunidade de
concretizar um sonho de família e que, com certeza, é de muitos geógrafos maranhenses que
saem da graduação e esperam ter a oportunidade em um dia estudar numa Universidade de
ponta da Geografia brasileira.
Não tenho como deixar de agradecer a professora Zulene da Universidade Estadual do
Maranhão, me acompanhando desde a monografia de graduação, que com todo o seu
conhecimento me ajuda a amadurecer academicamente agora no mestrado.
Meu agradecimento a Tia Eliane pela leitura crítica da minha pesquisa.
Agradeço o companheirismo e a assistência de Silvana, que, mesmo de longe da
cidade de São Luís renovava o meu estímulo para continuar esta difícil empreitada com as
suas palavras de afeto, admiração e carinho.
Ao grande amigo Sérgio que, muito mais que a elaboração dos mapas dessa pesquisa,
me ajudou a escrever a minha trajetória de geógrafo desde a graduação nas pesquisas, estudos
e trabalhos em grupos. Em nome do meu grande amigo também agradeço a todos que o
cercam, por torcer pela minha vitória, sejam parentes ou amigos, muito obrigado: Wanderson,
Marcone, Márcio, Samuel, Rogério, Dona Dalila, Artêmio esbórnia.
Também ao grande amigo Moysés, “velhocompanheiro das viagens aos Congressos
de Geografia pelo Brasil, no qual não medíamos esforços para ir a alguns dos muitos eventos
longe do Maranhão, mesmo que fosse de ônibus pirata, levando o nosso mochio.
Ao amigo “maranhense-recifense” Saulo pela dedicação no debate das iias da
pesquisa.
A minha comadre Patcia, a minha afilhada Andressa e a sua família, deixo não só os
meus agradecimentos pelo incentivo, mais as minhas desculpas pela ausência em muitos
momentos familiares, justamente pelo compromisso que tinha com a pesquisa e coma escrita
da dissertação.
A minha galera querida da Rua 13 do Cohatrac IV e proximidades, que não são
somente vizinhos, mas meus amigos, sejam das brincadeiras de futebol na rua, as conversas
sérias de futuro da vida, sejam dos mais novos aos mais experientes. Meu muito obrigado aos
meus contemporâneos de geração: Diogo, Alan, Júnior, Eduardo, Diniz, Leonardo, Loreno,
Neto, Roberta, Gláucia, Nana, Anderson, Bia, Cristina... E também muito obrigado aos mais
experientes: Dona Ivone, Dona Marrom, Seu lio, Seu rgio, Dona Haideé, Seu Zequinha,
Dona Gorete, Dona Socorro, Cacá, Dona Erotildes, Seu Osvaldo e a todos de suas famílias.
Agradeço muito e muito aos iluminados que passaram na vida, Gonçalo, Eleuses,
Bacardi e família que cruzaram o meu caminho e me deram abrigo na belíssima cidade de
Niterói, possibilitando realizar os meus estudos. Isso foi literalmente uma obra do destino...
eles sabem porquê.
O que falar então do grande incentivo da minha eterna turma de Geografia que está no
meu coração, que é a turma de Geografia da Universidade Estadual do Maranhão ao qual
estudei, e que periodicamente se encontra para lembrar do que ocorreu nos anos de 2001 a
2005. É com todo meu carinho que agradeço a Eline, Valéria, Valdir, Wilton, Márcio Gino,
Albert, Liziana, Dani, Leonardo, Oquerlina, pela amizade e o amadurecimento a mim dado.
Meu diploma será de todos vocês!
Com muito reconhecimento, agradeço ao corpo docente e administrativo de Geografia
da Universidade Estadual do Maranhão pela assistência e o pelo aprendizado que alicerçou a
minha chegada ao mestrado, em nome dos professores Sampaio, Cláudio José, Kédma, da
secretária Dona Rosa e Ezequiel estendo o meu agradecimento a todos da Geografia / UEMA.
Registro minha gratidão ao corpo docente e amigos do curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão que me amadureceram muito enquanto pessoa e
pesquisador das questões sociais. Agradeço todos os professores em nome do professor
Marcelo Carneiro, e agradeço a todos meus amigos das Ciências Sociais em nome de Luiz
Carlos Júnior, que também é um cohatraqueano.
Pela relação amiga, divertida e acadêmica, agradeço a minha turma do mestrado de
Geografia 2007. Obrigado: Salgadinho, Léo, Deize, Charles, Nina, Renata, André, Pedro,
Roosevelt, Felipe, João, Juliana, Jorge, Taís, Cris, Rosângela, Astro, Rafael, Mendel.
Aos alunos do Programa de Qualificação do Docente PQD/UEMA de Colinas,
Viana, Balsas, São João dos Patos, Bernardo do Mearim -, agradeço pela relação de confiança
e de ensino/aprendizagem mútuo entre professor e aluno e por me ensinarem que a força de
vontade consegue superar as barreiras da vida.
Agradeço aos meus queridos tios de São Paulo que sempre me abrigaram e me
“baldearampara a rodoviária do Tietê a fim de pegar o ônibus rumo a Niterói depois das
viagens de dois dias em ônibus de turismo vindo do Maranhão. Os meus tios Zé Maria, Zezé e
Floriano e suas famílias, que me receberam com todo o amor do mundo em suas casas nos
intervalos das viagens de ida e vinda a São Luís, enfrentadas para economizar dinheiro diante
das passagens caras de avião.
Meu muito obrigado as minhas queridas madrinhas Maria José e Cema que me
ensinam nas poucas vezes que nos vemos em São Paulo o significado da palavra “humildade”
e perseverança”. A elas peço mil desculpas pela minha ausência em manter um contato mais
direto e rotineiro.
Viva e obrigado aos batalhões madredivino e maiobeiro, em que seus boieros me
acolheram de braços abertos para pesquisar, perguntar e observar estes dois belos bumbas
seculares. Fica aqui meus agradecimentos a Inaldo, presidente do bumba da Maioba, e a
Herberth Santos, presidente do boi da Madre Deus, por facilitarem a minha inserção no
campo de pesquisa, bem como todos os outros que me abraçaram para tentar compreender o
urrar do boi em São Luís.
E, para finalizar agradeço a Deus, a Santo Antônio, a São João, a o Pedro e São
Marçal por me proteger, por possibilitar agradecer e por proteger os boieros do nosso querido
Estado do Maranhão.
RESUMO
O bumba-meu-boi se constitui como a maior festa da cultura popular da cidade de São Luís e
do Estado do Maranhão. É uma manifestação cultural construída e organizada por sujeitos
sociais subalternos oriundos da periferia urbana e/ou da zona rural da cidade datada pelo
menos desde o culo XIX segundo registros em fontes escritas. No século XIX até os anos
1950 o bumba-meu-boi sofreu um grande processo de repressão perpetrado pela elite local
que proibia a presença destas manifestações na zona urbana da cidade. na década de 1960
aos dias atuais há uma aceitação e interferência maior da elite dirigente ludovicense no bumba
que passa a frequentar constantemente a zona urbana de São Luís. A presente pesquisa tem
como objetivo geral explicar como os sujeitos celebrantes do bumba-meu-boi “se viram” para
manter e prolongar a vida do novilho, a sua trajeria existencial, de modo a percorrer e a
marcar os espaços da cidade de São Luís, tornando-se como um importante agente para a
vitalidade do urrar do boi na cidade, indo para além (não descartando mais complementando)
do papel da mercantilização cultural e do Poder Público dando visibilidade ao bumba. O que
construímos na nossa análise foi enfatizar as “redes de sociabilidade” e o “compromisso do
boiero reforçando ainda mais o entendimento do processo de espacialização do urrar do
bumba colocado na obra de Carvalho, M. (1995) como movimento cultural que aciona a
identidade de celebração e espetacularização. A nossa contribuição foi identificar que a
vitalidade e a existência do bumba se dão também pela trajetória de lutas, astúcias e
negociações dos sujeitos celebrantes, tanto a vel interno junto a outros boieros, como a nível
externo junto a classe dirigente e dominante. De um modo geral, na presente pesquisa
traçamos os caminhos e as perspectivas necessários para estabelecer um entendimento do
urrar do boi do Maranhão por meio da posição e da sua trajetória no espaço urbano, seguindo
os caminhos trilhados pelas pessoas comuns que fazem o bumba.
Palavras-chaves: Bumba-meu-boi; cultura popular; sujeitos celebrantes; espaço.
ABSTRACT
The bumba-meu-boi is seen as the biggest party of the popular culture of the city of St. Louis
and the State of Maranhão. It is a cultural event organized and built by subaltern social
subjects come from the urban periphery and / or rural town dating from at least the second
century records in written sources. In the nineteenth century until the 1950s, the Bumba-meu-
boi has a great process of repression perpetrated by the local elite which prohibited the
presence of these manifestations in the urban area. Already in the 1960s to the present day
there is a greater acceptance and interference of the ruling elite in Ludovicense bumba which
shall constantly attend the urban area of São Luís This research aims to explain how the
general subject of the celebrants bumba-meu-boi "found themselves" to maintain and prolong
the life of the bull, the existential pathway in order to go and mark the spaces of the city of St.
Louis, becoming as important an agent to the vitality of the roaring bull in the city, going in
addition to (not discarding more complementing) the role of cultural commodification and the
Government giving visibility to bumba. What we construct in our analysis was to emphasize
the "sociability" and "commitment boiero" further enhancing the understanding of the spatial
distribution of the howl of bumba put in the work of Carvalho, M. (1995) as a cultural
movement that triggers the identity of celebration and spectacle. Our contribution was to
identify the existence and vitality of Bumba is also give the long struggle, deceit and
negotiations of subjects celebrants, both internally with other boiero, and externally with the
ruling class and dominant. In general, this research traced the paths and perspectives needed
to establish an understanding of the roaring bull Maranhão by the position and its history in
urban space, following the paths taken by ordinary people who do bumba.
Keywords: Bumba-meu-boi, popular culture; subject celebrants; space.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 01
Os personagens “Mãe Catirina” e Pai Franciscodo grupo bumba-meu-boi
de Morros..........................................................................................................
Foto 02
Imagem de São Marçal nas ruas do bairro do João Paulo em meio as
bandeirinhas das Festas Juninas........................................................................
Foto 03
O bumba-meu-boi da Maioba recebendo a proteção de uma de suas
madrinhas durante o batizado.............................................................................
Foto 04
Couro do boi da Maioba apresentado para as festas juninas de 2008
carregando no seu lombo a imagem de seus ilustres brincantes que
faleceram............................................................................................................
Foto 05
A índia do bumba-meu-boi de Catanhede puxando o novilho para o
sacrifício, componente básico do ritual de morte...............................................
Mapa 01
A Geografia “Oficial” dos sotaques no bumba-meu-boi do Maranhão.............
Foto 06
Zabumbeiro do bumba-meu-boi de Zabumba de Guimarães.............................
Foto 07
Pandeirões do boi da Madre Deus sotaque de matraca colocados na mesa da
sua sede..............................................................................................................
Foto 08
Personagem do bumba-meu-boi sotaque de Cururupu tocando o pandeiro
com a costa da mão............................................................................................
Foto 09
Brincante de um bumba-meu-boi maranhense sotaque da baixada fantasiado
e batendo matraca...............................................................................................
Foto 10
Evolução do bumba-meu-boi de Morros no arraial do bairro do Cohatrac, ao
fundo a orquestra de percussão do bumba........................................................
Foto 11
Arquibancadas semicirculares ocupadas pelo público no Viva Maioba,
localizado na periferia da cidade de São Luís...................................................
Foto 12
Boi da Maioba sob o sol escaldante do meio-dia na festa de São Marçal
2005, bairro do João Paulo - São Luís (MA)....................................................
Foto 13
Boi da Madre Deus bailando no arraial da Polícia Militar no bairro
Renascença, no São João de 2008.....................................................................
Foto 14
Casarão que compõe a paisagem do Centro Histórico de São Luís...................
Mapa 02
Espaços tolerados e espaços o-tolerados para as manifestações culturais
subalternas no século XIX seguindo os limites da zona urbana da cidade de
São Luís.............................................................................................................
Mapa 03
Mapeamento da evolução do tecido urbano na cidade de São Luís (MA)
áreas de expansão..............................................................................................
Mapa 04
Mobilidade espacial dos grupos de bumba-meu-boi na 1ª metade do século
XX......................................................................................................................
Mapa 05
Distribuição espacial das apresentações do boi da Maioba na cidade de São
Luís no período junino do ano de 2008..............................................................
Mapa 06
Distribuição espacial das apresentações do boi da Madre Deus na cidade de
São Luís no período junino do ano de 2008......................................................
Foto 15
Ruas estreitas e apertadas que comem a paisagem do bairro da Madre
Deus................................................................................................................
Foto 16
Paisagem característica de uma moradia que come o bairro da Maioba
ressaltando a vegetação ao fundo......................................................................
SUMÁRIO
pg.
UMA INTRODUÇÃO PARA O URRAR DO BOI...........................................
15
1
QUADRO TEÓRICO-CONCEITUAL NECESSÁRIOS AO
ENTENDIMENTO DO URRAR DO BOI DO MARANHÃO.........................
22
1.1
Uma leitura da festa como suporte e mbolo de sociabilidade dos sujeitos
subalternos nas cidades........................................................................................
22
1.2
Cultura popular, identidade e espaço: evidenciando o papel das “redes de
sociabilidade”........................................................................................................
32
2
FAZENDO UMA DESCRIÇÃO DENSA DO BUMBA-MEU-BOI E DA
CIDADE BOIERA DE SÃO LUÍS......................................................................
43
2.1
A celebração do boi nos festejos juninos do Maranhão....................................
43
2.2
Os espaços do urrar do boi e a cidade boiera de São Luís (MA).....................
68
3
FORMAÇÃO, PROCESSO DE RESISTÊNCIA E PODER DE
NEGOCIAÇÃO DOS SUJEITOS CELEBRANTES DA CULTURA
POPULAR DO MARANHÃO............................................................................
83
3.1
Indicadores da formação da cultura popular no espaço urbano de São Luís
pela ação dos sujeitos celebrantes (séc. XVI a 1ª metade do séc. XX).............
83
3.2
A modernização da cidade de São Luís e a construção da cultura popular
maranhense pela ação dos sujeitos celebrantes (a partir da metade do
séc. XX)..................................................................................................................
99
4
O URRAR DO BOI DO MARANHÃO POR UMA LEITURA
ESPACIAL............................................................................................................
116
4.1
Da periferia ao centro: resistência, “redes de sociabilidade” e formação do
bumba-meu-boi como elemento central da cultura popular maranhense
(século XIX 1950)...............................................................................................
116
4.2
Da periferia ao centro, do centro a periferia: manutenção e consolidação do
bumba-meu-boi como elemento central da cultura popular maranhense
(1960 aos dias atuais).........................................................................................
132
4.2.1
“Madre Deus eu não deixo a coluna do teu batalhão se quebrar”:
compromisso do boiero e redes de sociabilidades do bumba-meu-boi da
Madre Deus...........................................................................................................
142
4.2.2
“A Maioba Querida”: compromisso do boiero e redes de sociabilidades do
bumba-meu-boi da Maioba..................................................................................
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................
180
REFERÊNCIAS....................................................................................................
184
15
UMA INTRODUÇÃO PARA O URRAR DO BOI
Lá vem meu boi urrando,
Subindo o vaquejador.
Deu um urro na porteira,
Meu vaqueiro se espantou.
E o gado da fazenda,
Com isso se levantou!
Urrou, urrou!
Urrou, urrou!
Meu novilho brasileiro,
Que a natureza criou.
(LETRA DE COXINHO, BOI DE PINDARÉ).
Ao estudarmos as continuidades e descontinuidades na produção do bumba-meu-boi
em meio a construção da identidade maranhense, expomos o pensamento de que a vitalidade
do bumba depende do papel ativo dos seus sujeitos celebrantes
1
, não no intuito de resistir,
mais para manter e projetar o seu legado cultural, os seus costumes.
Demonstramos por meio de um intenso estudo do “mundo e da realidade” cotidiana
dos sujeitos celebrantes do bumba, evidências, fatos, diálogos, mostrando que as “pessoas
comuns” são tão responsáveis quanto outros agentes, como, por exemplo, o Poder Público,
em dar vitalidade para o urrar do boi, e consequentemente, na sua elevação junto a cena
pública da cidade ludovicense
2
.
Refazemos na pesquisa os caminhos e a trajetória do urrar do boi na cidade de São
Luís a partir dos valores dos sujeitos celebrantes do bumba. Identificamos nas entrevistas
realizadas, nas reportagens de jornais colhidos junto as pessoas que organizam os grupos e na
1
Ao longo do trabalho chamamos de sujeitos celebrantes, as pessoas que além de brincar, organizam
diretamente e estão a frente das atividades do boi, trabalhando nos seus bastidores, podendo ser ou não membros
da diretoria. Já o que chamamos de boiero é aquela pessoa que brinca e celebra o bumba sem trabalhar e fazer as
articulações dos bastidores.
2
Ludovicense remete ao que é próprio da cidade de São Luís (MA). É aquele que nasce nesta cidade.
16
Biblioteca Central do Estado do Maranhão, nos depoimentos transcritos das obras boieras, nas
fotos tiradas, nos mapas construídos ou coletados e nas observações in loco, muitas
possibilidades de pontuar que a condição objetiva do urrar do boi se faz também sob a
perspectiva de atuação de seus sujeitos celebrantes, tanto nos momentos de intensa
adversidade a sobrevivência do bumba, como nos momentos cotidianos em que não uma
ameaça a vida do boi, mais uma tentativa de fortalecimento da brincadeira.
Lembramos que as nossas entrevistas e a pesquisa de campo in loco se deram em meio
aos sujeitos celebrantes do boi da Madre Deus e do Boi da Maioba, representantes de grupos
apontados como grupos tradicionais, seculares e grandiosos no universo boiero do Estado do
Maranhão, no período de março a julho do ano de 2008 e 2009.
Ao longo do trabalho utilizamos a opção metodológica em analisar o bumba a partir da
história das mentalidades estudando as “mediações e a relação dialética entre, de um lado, as
condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como eles narram e mesmo
como a vivem” (VOVELLE, 1987, p. 24). Coube então como tarefa maior na pesquisa
estabelecer as conexões entre as entrevistas e as fontes de jornais em meio as condições
objetivas de sobrevivência do boi, convertendo tais conexões em uma agenda de estudos.
Realizar essa agenda de estudos não era fácil e tivemos que converter as dificuldades
em instrumentos de pesquisa. A minha condição de morador da cidade de São Luís, que se
transforma num grande reduto para os bois urrarem todos os anos, como também a minha
posição de ser um brincante mesmo que o muito assíduo , que nos ensaios e nos festejos
juninos leva nas mãos um par de matracas
3
para ajudar o boi a urrar fazem com que tenhamos
muito cuidado com o tratamento do universo de estudo, tendo que exercer um olhar de
estranhamento para o cairmos em pré-noções, assim não correndo o perigo de levá-las
debaixo do braço” para o resto da pesquisa.
Temos plena consciência de que o fato de brincar todos os anos o bumba-meu-boi na
Ilha durante as festas juninas, não é um argumento plausível de que a proximidade seja uma
garantia de saber tudo o que passa na produção de um bumba. Com isso, tomamos o cuidado
de não confundir a relevância social do objeto a ser pesquisado com uma relevância científica,
pois, um objeto que tenha notoriedade pública ou proximidade com o pesquisador, não
garantias de êxito na reflexão científica (BOURDIEU, 2003).
Para abandonarmos as pré-noções e os juízos de valor, precisamos saber que “para
construir o objeto científico é preciso por em causa os objetos pré-construídos” (BOURDIEU,
3
As matracas são duas madeiras polidas que quando batidas produzem um som que faz parte da percussão do
urrar do boi sotaque de Ilha e sotaque da baixada.
17
op. cit., p. 21), desconfiando de qualquer pré-construção que possa haver no inconsciente e a
mesmo no consciente. Na nossa pesquisa uma pré-noção bastante arraigada e que foi posta em
discussão é a de que o bumba do Maranhão é fruto incondicional do processo de
mercantilização cultural da cidade, não sendo uma manifestação elaborada de acordo com
interesses dos seus sujeitos celebrantes aos quais obedecem inquestionavelmente as diretrizes
do Poder Público com o “receio de não poder mais brincar o bumba se assim não for. A
partir do questionamento e resultados dessa premissa vimos que se faz necessário sermos
sujeitos do nosso objeto de estudo, e não deixar que o nosso objeto de estudo nos atravesse
(BEAUD; WEBER, 2007).
Depois da tarefa pesada de estranhar, vejo que outra tarefa pesada foi aproximar a
Geografia da temática do bumba. Uma vez não encontrado nenhum trabalho de lego
(dissertações e teses) com abordagem geográfica sobre o bumba-meu-boi do Maranhão, além
de constatar que a Geografia maranhense não tem uma tradição em torno dos estudos
espaciais da cultura popular, constatamos que não seria cil nos situar nessa temática.
A saída utilizada para contornar a situação foi construir a pesquisa a partir de uma
bibliografia interdisciplinar, explorando as discussões apresentadas por pensadores de
diversas áreas de conhecimento, principalmente a História e a Antropologia, para auxiliar a
compreensão do nosso campo de análise.
Aproveitamos que a separação da Geografia de outras ciências humanas é uma linha
muito tênue, tomamos autores de outras áreas do campo científico para travar uma discussão
do boi a partir da ótica espacial. Uma discussão fundamental para incitar uma reflexão
espacial na pesquisa foi o posicionamento do bumba na cidade de São Luís entre boi
doméstico vinculação do boi com a tradição - e o boi espetáculo vinculação do boi com a
sociedade global, a partir da obra “Matracas que desafiam: é o bumba-boi do Maranhão” de
Carvalho, M. (1995), principalmente se levarmos em conta os espaços de atuação do urrar do
boi nesta cidade a partir de uma descrição geral da cidade boiera de São Luís.
Dialogamos diretamente com Carvalho, M. (op. cit.) no nosso trabalho,
complementando o seu raciocínio sobre a temática de inserção do bumba na cidade
enfatizando com mais evidência o papel do espaço na vitalidade, atualização e existência do
urrar do bumba, ressaltando além do “compromisso” do boiero, bastante tido e bem
abordado na sua pesquisa, as chamadas “redes de sociabilidade” construída pelos sujeitos
celebrantes, levando em conta a relevância do espaço no urrar do boi, uma vez que tais redes
só podem ser entendidas por meio da difusão espacial do bumba na cidade.
18
Na conclusão de sua pesquisa Carvalho, M. (op. cit.) diz que os rumos do bumba
dependem do tempo, da dinâmica da história e da luta da gente do boi para existir e resistir.
No decorrer do trabalho complementamos esta abordagem inferindo explicitamente a
importância do dimensão do espaço, dizendo que os rumos do bumba-meu-boi dependem do
tempo, do espaço, da dinâmica da história e da luta da gente do boi.
Ao trabalhar com o eixo tradição/modernidade no urrar do boi, objetivo central do seu
estudo, Carvalho, M., (op. cit.) coloca esse eixo mais como posições situacionais do boi na
cidade de São Luís, sendo que ora o boi aciona a identidade doméstica de celebração, e ora o
boi aciona a identidade espetáculo para atender as exigências do mercado consumidor. O que
nós fizemos foi reforçar a sua análise de existência desse eixo, o destacando
fundamentalmente o processo de chegada em seus polos como ela enfatiza, e sim
mencionando mais claramente o movimento entre esses polos através das redes de
sociabilidade” e a sua importância na construção identitária do boi junto a cidade, além do
compromisso” do boiero em celebrar o bumba.
O que construímos na nossa análise foi reforçar e legitimar ainda mais o entendimento
do processo de espacialização do bumba implícito na grande obra de Carvalho, M. (op. cit.),
apontando o boi não como um simples híbrido sem tensões e nem como um marca identitária
“ferrada” pelo turismo que ameaça a existência do conteúdo popular. Acreditamos que uma
das nossas contribuições foi identificar que a vitalidade e a existência do bumba se dão
também pela trajetória de lutas, astúcias e negociações dos sujeitos celebrantes, tanto a nível
interno junto a outros boieros, como a nível externo junto a classe dirigente e dominante.
Para nós foi importante notar que os dominados ainda são capazes de elaborar e
projetar novos sentidos e valores para a cultura popular vinte anos depois de Maria Michol
Carvalho fazer a sua pesquisa do bumba no Maranhão, uma vez que vem crescendo as
análises que colocam o processo de degradação do bumba-meu-boi por meio de sua
orientação para o mercado consumidor, dando a idéia de que o povo com a sua cultura são
convertidos somente em reprodutores das relações sociais dominantes, beneficiando sem
precedentes a prática do lucro.
Não somos hicritas de dizer que não uma mercantilização cultural em torno do
bumba, mais devemos admitir que existe a interferência dos sujeitos celebrantes na trajetória
do bumba de modo também a atender os seus interesses.
No contexto atual surgem muitos estudos que evidenciam cada vez mais o boi
elaborado a partir dos interesses da elite, principalmente retratando o uso do bumba para
benefício da imagem de poticos que dão sustentação ao projeto de mercantilização cultural
19
da brincadeira como em Oliveira (2003), Cardoso (2008) e Nogueira (2004). O nosso objetivo
o é anular tais estudos bem construídos que colocam o poder dominante resignificando seu
capital simbólico e potico por meio do usufruto da tradição popular, porém, segundo a nossa
pesquisa, o é exagero dizer que os sujeitos celebrantes também manobram essa elite ao seu
favor a fim de atender a sua missão de botar o boi na rua, pois, como a própria Carvalho, M.
(op. cit., p. 165) fala: “concebe-se que o imaginário popular tem a capacidade de incorporar
também os signos da cultura de massa”.
Reconhecemos que o bumba-meu-boi assume outro papel, outra identidade que se
molda ao formato de produto cultural e de espetáculo de consumo institucionalizado pelo
governo do Estado (NOGUEIRA, op. cit.), mais também temos que reforçar o movimento
contrário que não pode estar ainda em vias de extinção e diluído sem uma abordagem mais
contundente, já que é importante ver a milincia desses sujeitos celebrantes, ressaltando o boi
o somente como produto turístico do Maranhão, mais também como produto de um
interesse existencial das pessoas comuns”.
Cremos acima de tudo que uma cidade moderna como São Luís, pela perspectiva da
inserção do bumba-meu-boi, além de revelar o interesse da classe dominante, revela a
militância e a criatividade das pessoas subalternas em defender também com muita luta,
malícia e estratégia os seus interesses que estão em jogo.
A ameaça que o bumba vem sofrendo ao se submeter as exigências do turismo não
leva o boi a cair totalmente para o lado da modernidade e deixar o tradicional de lado no
deslocamento em torno desse eixo. Na nossa pesquisa, vemos que os próprios sujeitos
celebrantes do bumba criam uma situação para estar frequentando o eixo da modernidade a
fim de manter o eixo da tradição e vice-versa, mantendo a visibilidade e a existência do
bumba dentro da cidade de São Luís.
Ao ressaltar o papel dos sujeitos celebrantes não estamos querendo agradar os
dominados, e sim correlacionar a posição desta classe com as características de produção do
bumba em São Luís a partir de um conjunto de regularidades em torno desta produção do
urrar do boi.
Do ponto de vista teórico que deu sustentação a pesquisa do urrar do boi, procuramos
nos embasar em conceituações e definições que evidenciam a importância dos sujeitos
celebrantes nas manifestações festivas, produzindo a cultura popular bem como suas
construções identitárias.
Por meio da escrita do capítulo 01, item 1.1, compreendemos como a manifestação
festiva pode se constituir como suporte e símbolo de sociabilidade dos sujeitos subalternos
20
nas cidades, inclusive na cidade moderna de produção capitalista. Realçamos que a festa ao
ser algo próprio da sociedade em coletividade, além de trazer a tona à renovação de uma
cidade estafada do cotidiano, alimenta a união e os laços de solidariedade entre os indivíduos
e o povo por mais dispersos que estejam, em virtude da degeneração da vida causada nas
relações diárias que lhe são massacrantes.
Ainda no capítulo 01, mas que agora no item 1.2, ressaltamos a relevância em se
cruzar informações pertinentes em relação ao entrelaçamento do conceito entre cultura
popular, identidade e espaço, evidenciando o papel das redes de sociabilidade” na produção
cultural do povo. Expomos toda uma consistência dos estudos do espaço nos fenômenos
identitários e culturais na medida em que compreendemos a existência da sociedade a partir
de fronteiras borradas, permitindo ler a cultura popular não como classificações descontínuas
da organização social vigente, e sim organizada a partir de interligações que acionam os
processos de resistências, manutenções e ascensões identitárias.
Depois de realizado um processo de revisão teórica, realizamos uma descrição densa
do bumba e da cidade boiera de São Luís através do capítulo 02. Entendemos a grande
importância da descrição densa uma vez que os dados da pesquisa não são retirados de
maneira bruta do mundo social, existindo uma convivência íntima entre o pesquisador e o
tratamento desses dados, a fim de retirar das informações um conjunto de regularidades,
tornando a descrição cientificamente significativa (GEERTZ, 1997). No capítulo 02, item 2.1,
fizemos uma descrição da celebração do boi nos festejos juninos do Maranhão, apresentando
a sua articulação junto aos valores étnicos, religiosos, ticos, rituasticos e celebrativos.
no item 2.2, apresentamos uma leitura da cidade boiera de São Luís classificando os espaços
da arte do bumba a partir de tipos ideais ao qual chamamos de “espaços espetacularizados” e
espaços simbólicos” do urrar do boi.
No capítulo 03, por meio de uma breve exposição no item 3.1, ressaltamos como o
povo emerge se forma - na cena blica da cidade de São Luís, colocando o processo de
clivagem cultural na cidade, primeiro com os índios e depois com os negros, em detrimento
com os brancos da elite ludovicense, expondo a construção de uma cultura da classe
subalterna na cidade, não somente como processo de resistência, mas também pelas
capacidades de estratégia e negociação dessa classe. Em relação ao item 3.2, retratamos a
expansão do tecido urbano de São Luís e sua interferência na produção da cultura popular
maranhense, porém ressaltando o papel dos sujeitos celebrantes e sua capacidade de projetar o
legado de sua cultura diante das novas condições de desenvolvimento moderno, ao qual não
suprimiu a continuidade da produção cultural por parte dos setores populares.
21
E por último, no capítulo 04, que é o capítulo central da nossa pesquisa, analisamos
toda a trajetória e caminhada do bumba na cidade de São Luís a partir da perspectiva dos seus
sujeitos celebrantes enfatizando a construção das “redes de sociabilidade” e o compromisso”
do boiero em celebrar o boi e botá-lo na rua. Ressaltamos isso em dois momentos
diferenciados na trajetória do bumba: o primeiro momento séc. XIX aos anos 1950 -
colocamos a importância dessa perspectiva no processo de resisncia e formação do bumba-
meu-boi como elemento central da cultura popular maranhense; e no segundo momento dos
anos 1960 aos dias atuais com a fixação de um boi urbano e aceito em toda a cidade
(inclusive pela elite dirigente), colocamos a importância dessa perspectiva de ação do sujeito
celebrante como um grande elemento responsável pela manutenção do bumba na centralidade
da cultura popular maranhense.
De um modo amplo, na presente pesquisa traçamos os caminhos e as perspectivas
necessários para estabelecer um entendimento do urrar do boi do Maranhão por meio da
posição e da trajetória do boi na cidade, seguindo os caminhos trilhados pelas pessoas comuns
que fazem o bumba, fazendo, em linhas gerais, uma opção metodológica de não se trabalhar
com o viés da Geografia Cultural, e sim com o fenômeno da cidade e da urbanização, falando
da festa num sentido mais amplo.
22
1. QUADRO TEÓRICO-CONCEITUAL NECESSÁRIOS AO ENTENDIMENTO DO
URRAR DO BOI DO MARANHÃO
1.1 Uma leitura da festa como suporte e símbolo de sociabilidade dos sujeitos
subalternos nas cidades
A gente tem um grupo, um grupo diversificado, a gente sabe que pode contar com
aquele grupo, ali tem o pedreiro, tem o maconheiro, mas tem o doutorado, tem o
professor, enfim é uma categoria diversificada entendeu, mas todos ali com um
objetivo, fazer a festa do bumba-boi pela cidade (...) (SR. INALDO, entrevista
em 10/03/2009).
As festas ocupam um lugar muito importante na vida do homem e da sociedade
contemporânea. Ano após ano, em datas fixas ou não fixas, as pessoas enchem as ruas, as
praças, as orlas marítimas, ou até mesmo as suas casas para praticar o ato de festejar, seja no
Brasil ou em qualquer outro país do resto do mundo. Nas cidades brasileiras, por exemplo,
todo ano paramos para festejar o Carnaval no início do ano, as festas juninas no meio do ano e
o Natal no final do ano.
Diante dessa conjuntura festiva na sociedade, o é exagero afirmar o homem como
um ser festejante”, mesmo existindo pessoas que digam não gostar de festas e preferem ficar
em casa descansando. Querendo ou não, a festa sempre acompanhou o homem, que em todos
os anos é levado a praticar algum ritual festivo como: fazer o bolo do aniversário, comemorar
a passagem para o vestibular, celebrar com seus amigos a promoção no emprego, celebrar a
passagem do ano e por aí vai.
Reconhecendo a presença do cenário e do homem festivo é que, ao longo do presente
item, vamos delinear alguns pontos relativos a uma teoria da festa, servindo como um
23
instrumento de suma importância para dar apoio à nossa pesquisa que fala sobre a festa do
bumba-meu-boi na cidade de São Luís (MA).
Trilhar os caminhos de uma teoria da festa se faz necessário para desenvolver o
presente estudo, porém, não é uma missão fácil desenvolver um quadro conceitual sobre a
festa, na medida em que “é um termo vago, derivado do senso comum, que pode ser aplicado
a uma ampla gama de situações sociais concretas” (GUARINELO, 2001), na qual pode gerar
uma diversidade de significados. Como bem diria Heers (1987, p. 11) “a festa, reflexo duma
civilização, símbolo, veículo de mitos e de lendas, não se deixa apreender com facilidade”.
para citar exemplo, no nosso universo de estudo, o bumba-meu-boi, a festa pode
significar tanto uma brincadeira, uma diversão, um lazer, quanto o seu oposto, como algo que
deve ser conduzido com seriedade, com muito trabalho e disposição. Conforme relata a
expressão abaixo, o boi não é somente uma diversão, mais uma brincadeira séria:
Eles [os boieros] são, na verdade, homens e mulheres abnegados que durante o ano
todo se integram de corpo e alma em busca de uma coisa, a principal, mais
importante colocar a sua brincadeira na rua. A brincadeira mais séria do mundo, pois
é executada com, respeito e abnegação (...) (REIS, J. R., 2003, p. 104).
Mesmo com as polêmicas postas para saber se o significado da festa é sério e/ou
divertido, os pesquisadores vem tentando cada vez mais reduzir as ambiguidades
características do termo festa (GUARINELO, op. cit.). Um dos pesquisadores que reduzem
tais ambiguidades é Durkheim (1989) ao colocar as festas (também chamada de creas) e a
sua capacidade de manter a sociedade em comum”, demonstrando que as representações
festivas são um produto da sociedade em coletividade.
As festas são coletivas, trazendo as formas de renovação da própria sociedade na
medida em que tenta recriar outro formato de cidade (BEZERRA, 2007) para o povo que,
estafado da vida ordinária, vai às ruas para brincar e/ou festejar. Não vidas de que em
certos períodos ou horas nas cidades, devido as festas, sempre costumamos entrar em uma
moratória do cotidiano” (MAQUARD, 1998, p. 39), ou “em um estratagema de regeneração”
(PRADO, 2007, p. 254), revigorando nossas energias das pressões do dia-a-dia.
Mais essa moratória e regeneração são postas em cima da existência de um cotidiano
diferente do momento festivo, e não a parte desse momento festivo. Tal condição nos leva a
crer que se não existisse esse cotidiano não existiria o sentido festivo tal qual conhecemos
como regeneração. Por isso “a festa não se dissocia nunca de um contexto social que a
segrega, lhe impõe os seus impulsos e as suas máscaras” (HEERS, 1987, p. 26).
24
Reconhecer a festa enquanto experiência humana em sociedade é um passo
fundamental para reafirmarmos o seu poder de unir os indivíduos, sendo interpretado como
um revigoramento da coletividade, da consciência coletiva.
(...) toda festa, mesmo que seja puramente laica em suas origens, tem certos
caracteres da cerimônia religiosa, pois, em todos os casos, ela tem como efeito
aproximar os indivíduos, colocar em movimento as massas, e suscitar, assim, um
estado de efervesncia, às vezes ade delírio (DURKHEIM, 1985apud PEREZ,
2002, p. 23).
Vale dizer que a festa é “efervescência coletiva(DURKHEIM, 1989), aproximando
os indivíduos, sendo um fundamento essencial para a produção de identidades coletivas,
justamente por unir e juntar pessoas, o que faz gerar sociabilidades.
Se a festa evoca sociabilidades e formas identitárias, podemos inferir que ela não pode
se dissolver em simples funções como lazer, diversão, sexo, descanso, sendo muito mais do
que isto. Na verdade, a festa é um estado de manutenção do espírito coletivo, de celebração,
independente se é descanso ou se é coisa séria.
A festa enquanto um dado social tem como questão essencial a noção do estar-junto,
permitindo afirmar que as pessoas, a aliança, a comunhão e o compromisso é muito
importante junto aos elementos da festividade (MAFESOLI, 1987 apud PEREZ, 2002). Como
a festa traz consigo a apelação para uma vida associativa, para a comunhão, aqui uma
implicação embutida de reordenar um estoque simbólico para a coletividade (MAGNANI,
2003; 2008) que faz parte da regeneração da vida em aliança, ou seja, repúdio a iia de
morte na festa. “Se se deseja evitar que a vida, ela própria se torne impotente, faz-se mister
o só preservar como também criar esses momentos extra-“ordinários” de que as festas são o
exemplo mais acabado” (PRADO, op. cit., p. 257).
O significado da festa repudia a idéia de fim, de algo que se acaba, evocando a força
de uma sociedade e de uma comuna, que diferente do cotidiano, não desgasta, não degenera, e
sim enfatiza, revitaliza a vida (PRADO, op. cit.). A festa tem como significado a noção de
tudo para despertar da letargia e desenvolver a fecundidade” (PEREZ, 2002, p. 24).
A festa quando apela os sujeitos para a vida desperta nesses a importância de
desenvolver uma vida pública e uma identidade entre os sujeitos, não sendo meramente um
escapismo do cotidiano, mas uma celebração da união, do sentimento coletivo, circunscrito
o somente na contemporaneidade, e sim por toda a história da humanidade.
25
(...) Portanto, apesar da vasta dimensão que a terminologia [festa] atinge, assim
como a grande diversidade desse tipo de manifestação, a literatura indica que a festa
acompanha o homem em todos os tempos e civilizações.
Quando o homem ainda não estava tão separado da natureza, as festas aconteciam
celebrando essa união, demonstrando os mais diversos sentimentos: veneração,
amor, terror e/ou gratidão (MAIA, D., 2003, p. 161).
Com efeito, dos tempos remotos até os tempos atuais, a festa desperta o homem para a
sociabilidade, sendo essa capacidade de aglutinar e de celebrar a vida coletiva que, para nós, é
o ponto central para se desenvolver os estudos sobre esta temática. É esse homo festivus”, o
homem que celebra as festas (HUIZINGA, 2007) que nos desperta atenção em notar a festa
do bumba-meu-boi do Maranhão por meio do seu sujeito celebrante, e não pela festa e pelo
objeto festivo em si que é o boi.
Quando estudamos o bumba na cidade de São Luís, elevamos a festa como um campo
privilegiado de estudos mostrando a sociabilidade dos sujeitos como uma possibilidade de
leitura e construção espacial da referida cidade. Com isso, reafirmamos o pensamento do
espaço festivo como “suporte e símbolo de sociabilidade” (MAGNANI, 2008).
É interessante inferir o espaço festivo revelando as ironias e contradições na vida da
cidade moderna, [trazendo o] inesperado, momentâneo e inmodo encontro entre
personagens de mundo separado (MAGNANI, op. cit., p.02), os sujeitos celebrantes e a
classe dirigente do capitalismo. Assim, colocamos que a sociabilidade existe mesmo em meio
a sociedade dos contatos virtuais, da vida em frente ao aparelho de televisão e MP3, da vida
em condomínios fechados com muros e cercas elétricas, entre outros aparatos relacionados a
vida cotidiana em meio a sociedade urbano-industrial.
Se refletirmos sobre a teoria da festa e a sua presença em meio à modernidade das
cidades com o seu meio técnico-científicoinformacional, não seria um exagero afirmar,
principalmente na contemporaneidade, que a festa é indestrutível usando a expressão de
Bakhtin (2008). É neste sentido que citamos ao longo da pesquisa o contexto contemporâneo
da cidade de São Luís festejando intensamente todos os anos o bumba-meu-boi, apesar da
intensa modernização que a cidade vem sofrendo, especialmente desde a década de 1970, em
meio as transformações sócio-espaciais.
Nessa direção de indestrutibilidade da festa em meio a cidade, Mumford (1965)
comenta a predisposição da cidade para a festa no momento em que ela é um lugar de
residência fixa, um lugar de encontro no qual as pessoas se cruzam incessantemente, que
querendo ou não, não tem como deixar de fazer contatos, de se reunir para qualquer finalidade
simbólica. A aptidão da cidade para celebrar as festas ressalta a inseparabilidade da cidade
26
como suporte e símbolo da sociabilidade - aqui podendo se colocar como suporte para as
festas.
O primeiro germe da cidade é, pois, o ponto de encontro cerimonial, que serve de
meta para a peregrinação: sítio ao qual a família ou os grupos de clã são atraídos, a
intervalos determinados e regulares, por concentrar além de quaisquer vantagens
naturais que possa ter, certas faculdades espirituais ou sobrenaturais, faculdades de
potência mais elevada e maior duração, de significado cósmico mais amplo do que
os processos ordinários da vida (MUMFORD, op. cit., p. 16).
O que nos chama atenção é que a festa consegue ser maior que os processos ordinários
presentes na cidade no sentido de não conseguir ser superada pela dita vida oficial e ordinária.
Isso nos leva a refletir que as instâncias decorrentes do processo de globalização são
insuficientes para acabar com a existência das festas dentro da organização e da ordenação
social. No pensamento de Heers (1987, p. 11) isso está tido, falando que a festa “apresenta-
se como o reflexo duma sociedade e de suas intenções políticas”.
Segundo Perez (2002, p. 46) a predisposição da cidade moderna para festa se dá
quando a cidade, é por suas origens, o espaço próprio da mestiçagem e das coisas [mesmo
sendo a cidade moderna] o lugar das máscaras, dos papéis sociais vividos como
representações teatrais”. As festas afirmam que existe sociabilidade na cidade, independente
das relações capitalistas.
As festas e o seu caráter de sociabilidade podem fazer a cidade como “um mundo
interpretado, elaborado simbolicamente, que, portanto, tem um sentido diverso do meramente
factual (SILVA, A. F., 2005, p. 220), em muitos sentidos, principalmente enquanto
celebração, indo para além da vida ordinária de substância econômica, de mercado e
consumo, que não são as únicas características que tornam possível sua existência enquanto
cidade.
Com isso, não podemos dizer que o contexto urbano está perdendo a sua função de ser
lugar de encontro de pessoas, de celebração e de efervescência coletiva, dando margem
somente a um papel de mercadoria, substituindo esta união celebrativa por um valor de troca
em detrimento a um valor de uso
4
. Visto que “a centralidade urbana tem como marca maior
acolher os produtos e as pessoas” (LEFEBVRE, 2001, p. 130), a cidade não é o consumo,
mais também é celebração.
4
Ao distinguir que as mercadorias se diferem por seu aspecto técnico-material e por seu aspecto social, Marx
(1987) elabora as noções de valor de troca e de valor de uso. O valor de troca tem como objetivo produzir
acumulação de valores; já o valor de uso tem como intuito satisfazer as necessidades humanas, sendo explicado
por uma relação de pertencimento.
27
O interessante a ser colocado neste marco teórico sobre festas é que a cidade, mesmo
tendendo a reabsorver o valor de uso como um valor de troca, evidencia que o valor de uso
ainda consegue resistir na centralidade da vida urbana. Isto é enfatizado por Lefebvre ao
apontar a irredutibilidade e a resistência da dimensão do valor de uso:
é bem conhecido o duplo caráter da centralidade capitalista: lugar de consumo e
consumo do lugar. Os comércios se densificam no centro, que atrai os comércios
raros, os produtos e gêneros de luxo. Essa centralidade se instala com predileção nos
antigos núcleos, nos espaços apropriados. Pode dispensar isso tudo. Nesses lugares
privilegiados, o consumidor também vem consumir o espaço; o aglomerado dos
objetos nas lojas, vitrinas, mostras, torna-se razão e pretexto para reunião das
pessoas; elas vêem, olham, falam, falam-se. E é o lugar de encontro a partir do
aglomerado de coisas. Aquilo que se diz e se escreve é antes de mais nada o mundo
da mercadoria, a linguagem das mercadorias, a glória e a extensão do valor de troca.
Este tende a reabsolver o valor de uso na troca e no valor de troca. No entanto, o uso
e o valor de uso resistem obstinadamente: irredutivelmente. Esta irredutibilidade do
centro urbano desempenha um papel essencial na argumentação [grifo nosso]
(LEFEBVRE, op. cit., p. 130-131).
A festa revela a face polissêmica da cidade, sendo escrita não somente por segregação,
pobreza, consumo, mercado e mazelas sociais, elementos já conhecidos e de pertinente
análise, mas tamm a cidade é revestida por elementos de união e celebração. Com isso,
podemos dimensionar que as cidades, ao mesmo tempo em que vêm desorganizar a
personalidade (SIMMELL, 2005), evocam os indivíduos e grupos a reorganizarem sua
dimensão coletiva de grande comunidade, justamente pelas festas.
agora a festa se revela como uma possibilidade de estudos para se entender a
cidade. Ela (a festa) foi por um longo tempo uma “terra ingnita” dentro dos estudos das
cidades devido a racionalidade do pensamento moderno que entendia estas (as cidades) como
sinônimo de trabalho e produtividade, anulando as festas e o hedonismo.
Há um antagonismo inconciliável entre trabalho/produtividade e a festa/hedonismo
[no qual] a técnica e a racionalidade inviabilizam ações sociais voltadas para a
magia, a tradição e o ritual [... em que] com o império da razão instrumental seria
cada vez menor a possibilidade da existência do espaço na cidade para os rituais
festivos (FERNANDES, N., 2001, p. 28).
Os intelectuais modernos, em meio ao caos da vida urbana, primeiramente vieram
traçando o rumo de que a cidade pela sua lógica de trabalho - iria destruir as “ociosas”
festas. Roger Cailois (apud QUEIRÓZ, 1992, p. 207) em 1950 afirmava que “a vida regular,
ocupada com trabalhos cotidianos, tranquila, enquadrada por um sistema de interdições, toda
composta de precauções, em que a máxima quieta non movere mantém a ordem do mundo, se
opõe a efervescência da festa”.
28
depois uma crítica a esta postura modernista que prega uma antítese entre festas e
trabalho em meio às inúmeras evidências mostrando a cidade pródiga em festividades, apesar
das festas ganharem dimensões inusitadas com a razão instrumental capitalista em torno da
cultura do homem do “povo” (FERNANDES, N., op. cit.).
Não é exagero afirmar que o se consegue negar completamente o sentimento de
coletividade de um grupo, mesmo com uma racionalidade capitalista. A cidade não tem o
poder de desenraizar o homem enquanto um ser capaz de produzir sociabilidade, por mais que
a pressão da objetividade capitalista seja avassaladora. Com isso o podemos dizer que na
cidade tudo é festa, mas podemos dizer que há festa em todas as cidades.
Como mostra Magnani (2003) a grande cidade é recortada de manchas, circuitos,
trajetos e pedaços festivos construídos pela classe popular subalterna como: espaços punks,
hippies, de torcedores de futebol, dentre outros que dão forma e corpo a uma sociabilidade
coletiva, afirmando a cidade não somente como o mundo do trabalho.
Por um longo tempo houve teorias que assinalavam a visão destrutível das festas por
entender que as formas e as funções urbanas prevaleceriam no final das contas (CORRÊA, R.
L., 2003), o que dificultava assinalar a emergência das festas na cidade.
Quando as festas não foram “teoricamente desmatadas”, elas emergiram
intelectualmente combinadas com o papel de re-produção da classe dominante na sociedade.
Neste sentido de reflexão, a festa não era reconhecida como coisa do povo, passando a ser
vinculada com a re-produção da elite social por meio de duas formas: primeiro pela potica
de pão e circo retratando que a sua existência serve para “acalmar” o povo e; segundo pela
mercantilização cultural.
Com uma extremização da visão marxista, por um longo tempo as festas foram vistas
como uma variável associada a uma superestrutura da sociedade, sendo parte integrante da
reprodução desigual das relações sociais existentes, construindo não mais a tragédia e a morte
social do povo pelo trabalho, e sim de morte em si de uma classe, a da classe dos sujeitos
subalternos, que perdiam a sua pureza”.
Passados os anos 1950 a 1970, anos ferozes de industrialização mundial e da quebra
na crença do progresso, inclusive nos países subdesenvolvidos como o Brasil, a festa passou a
ser reconhecida como uma “moral do povo” como bem diria Gramsci (1978).
A associação das criações festivas aos interesses das classes sociais subalternas é
abordada não de agora mais desde os tempos medievais, associado a um caráter irreverente
que tinha por objetivo tecer críticas a uma dada conjuntura social vivida pelo homem
comum”. Sobre tal consideração Heers (op. cit., p. 23) aponta que:
29
(...) em pontos determinados, a festa reúne-se a toda uma corrente satírica burlesca,
obviamente muito viva, mais em evidência nesses tempos que nos outros, e que
conhecemos, quase por algumas escapadas aos esquecimentos, farsas, fábulas, sótias
e moralidades, estas mais sérias (HEERS, 1987, p. 23).
Esse movimento de irreverência festivo era um instrumento estratégico da classe
subalterna para expressar profundas críticas sobre um processo de opressão implementado
pela classe dirigente e elitista das cidades medievais, representados pela Igreja Católica e pelo
Estado Feudal:
Todos esses ritos e espetáculos organizados a maneira mica apresentavam uma
diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação ás
formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal.
Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente
diferentes, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos
quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos
quais eles viviam em ocasiões determinadas (BAKHTIN, 2008, p. 04-05).
Autores como Bakhtin e Heers destacavam a festa como uma coisa do povo antes
mesmo de Gramsci, retratando que o segundo mundo criado pelos sujeitos festivos medievais
na verdade era uma forma de expressão do povo diante da opressão da classe dominante,
criando uma segunda vida que renovasse as suas angústias cotidianas. Porém, a grande
contribuição de Gramsci (op. cit.) foi que ele conseguiu enxergar o papel ativo das pessoas
comuns” no meio da cidade moderna, sendo o pioneiro em reabrir as discussões de que o
povo existe e resiste em meio a modernização.
Com a grande contribuição de Gramsci ao dizer que a festa vai existir mesmo na
cidade moderna, surgem pesquisas no Brasil que apontavam os sujeitos subalternos
celebrantes se fazendo presentes na cidade, principalmente se falando do carnaval brasileiro,
mais especificamente o carnaval carioca.
Da mesma forma que na cidade medieval, na cidade moderna encontramos uma ação
dos sujeitos subalternos criando as festas para tecer críticas a sociedade oficial. Nos carnavais
brasileiros, o riso irônico festivo era uma forma dos sujeitos sociais celebrantes subalternos de
encarar e expressar críticas a vida ordiria e aos agentes que conduziam a vida ordiria,
usando a figura dos “sujos”, elemento integrante do bloco de sujos” para ironizar os valores
da sociedade oficial:
Os sujos, assim, pedem para renascer socialmente, pois representam os párias, os
mais baixos entre os mais baixos, os que estão no fim da linha social: onde a
30
natureza e a cultura se confundem, útero e cloaca, esgoto e porão (...). O sujo nega,
pela sua fantasia, seu cater rotineiro na ordem social (DA MATTA, 1997, p. 127).
A estreita ligação do ato de festejar com a classe subalterna social não inspira uma
criação festiva em si, mas cria a festa para si. Vemos nos exemplos do homem festivo
medieval e do homem festivo moderno - representado pela figura do “sujo - uma grande
lição levada para a nossa pesquisa que é a capacidade que os sujeitos sociais subalternos têm
em dialogar (in)tensamente - com as relações sociais vigentes implementadas pela classe
dominante, mostrando toda sua estratégia e criatividade para continuar celebrando.
Assim respondemos uma grande pergunta: se as festas criticavam a elite dominante e a
conjuntura social como pode esta elite tolerar” as festas? Cremos que a existência das festas
sempre se deu com uma negociação tensa entre estes diferentes sujeitos, e não por uma
simples aceitação da classe dominante que deixava os subalternos bater na sua cara.
A partir dos anos 1980 há um grande reforço de estudos que mostram a festa não
somente reproduzindo os interesses da classe dominante, mais também os interesses da classe
dominada. Dentro da literatura da Geografia basta notar como na cidade do Rio de Janeiro as
escolas de samba nascem no início do século XX de uma estratégia posta não somente pelos
agentes intelectuais, mais também por seus sujeitos celebrantes que teceram estratégias para
poder brincar o carnaval, diante das repressões da elite dirigente (FERNANDES, N., op. cit.).
Dentro do contexto contemporâneo de mercantilização cultural, esta visão do ato de
festejar como negociação de diferentes classes se torna mais difícil de ser visto e, por causa
disso, existem muitos estudos que abordam a festa fugindo do controle dos sujeitos
celebrantes que a criaram, como mostra o estudo de Bezerra (2007) ao falar das vaquejadas no
sertão nordestino e a sua captura pelo poder público promovendo a espetacularização na
cidade de Mossoró (RN).
Não descartamos a visão de Bezerra (op. cit.), achando pertinente essa sua abordagem
que traz a tona o uso abusivo da festa popular pela classe dominante, porém a festa é mais
complexa que isso ao revelar que a sociedade o é tão encaixada assim e apresenta
contradições em torno do oficial, possuindo outra face da moeda, que é a manipulação que os
agentes subalternos realizam sobre os agentes dominantes.
As classes abastadas ou dominantes têm um importante e decisivo papel na
organização e produção do espaço festivo ludovicense, mas esta produção e organização
espacial posta pela classe dominante, não é em todo sentido oposta e não anula enfoques que
direcionam a produção e organização festiva pela classe subalterna, já que esta classe
consegue ter um poder através da mobilização” (ALLEN, 2003).
31
O paradoxo das relações sociais - aqui pela festa - era dito por Hetherington (1997)
inferindo que todo tempo as coisas aparecem fora do lugar, desafiando o senso de ordem e de
fixidez, revelando a ambivalência dos lugares pela multiplicidade de significados sociais,
carregando e trocando frequentemente de significado, podendo ser abertamente contestados.
Desta forma, o perfil das festas é constantemente retocado pelo embate político
“negociável” entre sujeitos subalternos e elite local, em meio a uma sociedade clivada como a
brasileira e, por conseguinte, como a ludovicense, conforme expressamos na nossa pesquisa.
A festa não se encontra deslocada do lastro social que a gerou, por isso, no trabalho,
fazemos questão de ver o que se encontra por baixo da barra
5
de um boi ou de um chapéu de
um caboclo de pena e de fita
6
. Compreendemos que a festa do bumba-meu-boi resvala em
questões conjunturais negociáveis e tensas no meio social que vem interferir no significado e
na produção das festas.
Não ofuscar a visão da classe subalterna e o seu poder de negociação com a classe
dominante é o grande objetivo dessa pesquisa por nós desenvolvida ao estudar o bumba-meu-
boi, vendo que o sujeito celebrante boiero por meio de suas resistências, projetos e
criatividades pode ter o papel ativo na produção e vitalidade da festa do bumba, não sendo
propriamente o aparato oficial, o Poder Público e a classe dominante, os únicos protagonistas
da existência do bumba do Maranhão.
Dito e reconhecido que as festas não são indestrutíveis e permeiam uma sociabilidade,
uma efervescência coletiva nas cidades, a maior polêmica nos estudos das festas gira em torno
de saber a que e a quem servem a sua construção no meio urbano, especialmente se levarmos
em conta que na cidade há intensas disparidades entre sujeitos sociais.
Quando perguntamos a que e a quem serve já a festa, estamos pressupondo uma
questão fundamental, que é a seguinte: a construção festiva é permeada por relações de poder.
Afirmamos que as festas não são formadas por um contexto vazio, sem poder e com plena
harmonia, uma vez que a tensão entre sujeitos dominantes e dominados na produção festiva é
dinâmica e não se dá de forma vertical, pois há estratégias desenvolvidas em ambos os
grupos.
Na nossa pesquisa privilegiamos destacar o papel da classe dominada, dos sujeitos
celebrantes na construção da festa do bumba-meu-boi evidenciando que a festa na cidade
contemporânea é também re-inventada em função dos interesses da classe dominada e que o
5
A barra do boi é “a tira de fazenda trabalhada, que serve de acabamento para a cobertura do Boi, alongando-se
até o chão com a função de cobrir o Miolo [a pessoa que fica debaixo do boi].” (REIS, J. R., 2005, p. 33).
6
O caboclo de pena e o caboclo de fita são personagens integrantes do cordão do bumba sotaque de matraca. A
descrição destes dois personagens é definida no capítulo 02, item 2.1.
32
contexto oficial, apesar de ser um fator relevante na produção festiva do bumba, não anula a
presença ativa destes sujeitos que constroem o bumba.
Essa nossa preocupação se em função de que quando se pensa a inserção do bumba
na cidade há uma grande tenncia de se afirmar “a prostituição do boi” e o seu servir a classe
dominante ludovicense, sem mencionar detalhadamente as estratégias delineadas pelos
sujeitos celebrantes do bumba para fazer o boi urrar.
Colocar a presença ativa dos sujeitos celebrantes na construção das festas do bumba
- não é dizer que o popular é monopólio dos setores populares (CANCLINI, 2006a; 2006b),
muito pelo contrário, é afirmar que a sociedade é contradiria e paradoxal como coloca
Hetherington (op. cit.), sendo justamente a existência desse caráter paradoxal revelador da
militância e da habilidade do sujeito celebrante em construir o boi para si e não somente
visando atender a classe abastada que vai obstinadamente atrás do lucro.
Diante dessa ligação da festa como efervescência coletiva e celebração em meio a
sociedade do trabalho, e como algo que também diz respeito ao papel ativo dos agentes
subalternos em meio a sociedade dominante, por meio de uma extensa revisão teórica
entendemos que a cidade, a sociedade urbana, nos instiga cada vez mais a enten-la como
uma “zona crítica” cheia de ambiguidades e incertezas como diria Lefebvre (2004),
especialmente se pensarmos a “cidade festiva” como um “jogo e não como “imposição”,
mostrando a versatilidade e o compromisso do sujeito festivo o povo - em celebrar e
perpetuar a sua festa.
1.2 Cultura popular, identidade e espaço: evidenciando o papel das redes de
sociabilidade”
[Os espaços] o são simplesmente suportes da memória funcional [função
residencial, comercial e etc.], eles tomam frequentemente uma forma simbólica [de
construções identitárias e culturais] (CLAVAL, 2001, p. 84).
Numa pesquisa, os aportes teóricos e conceituais permitem organizar, selecionar toda
uma forma de se penetrar em um tema a ser pesquisado. Compreender o entrecruzamento
33
entre os aportes teóricos e conceituais são necessários na medida em que um conceito
ganha sustentabilidade e definição a partir de outros conceitos (FOUCAULT, 1985).
Bauman (2001) já nos advertia sobre a importância de revisitar mais de um conceito e
entrecruzá-los, uma vez que nos permite reciclar constantemente as noções ao qual nos
apoiamos, servindo como fonte de reflexão para abrirmos possibilidades de novas abordagens
e novos horizontes de estudo.
É preciso viver, visitar, conhecer intimamente mais de um desses universos para
descobrir a invenção humana por traz da estrutura impositiva e aparentemente
irredutível de qualquer universo, (...). tudo isso é preciso para se reunir ao final, a
audácia e a determinação para juntar-se, conscientemente [grifo do autor], a esse
esforço cultural, ciente de seus riscos e armadilhas, mas também do ilimitado de
horizontes (BAUMAM, op. cit., p. 237).
Como todos os conceitos, cultura popular, identidade e espaço podem ser atravessados
por elementos constituintes comuns definidos segundo uma visão do pesquisador, ligados
entre si apesar de aparecerem no campo científico como conceitos independentes. É com este
intuito que promovemos no presente item o esforço de relacionar tais conceitos, desenhando
através de um breve comentário, como demarcamos novos horizontes de estudo para o bumba
do Maranhão através da interrelação entre estes conceitos. Começamos dissecando o conceito
de cultura popular, para depois relacioná-lo com identidade e por fim com o conceito de
espaço.
Se nos ativermos a temática cultural, esta tem sido objeto de profundo debate
acadêmico, principalmente se levarmos em conta a cultura tradicional constrda pelo povo”,
através do que chamamos cultura popular. Destacamos como ponto de partida para nossa
análise o conceito de cultura popular como a existência de uma “moral do povo (GRAMSCI,
1978), sendo as condutas práticas e os costumes produzidos pelos sujeitos que se encontram
em posição subalterna na sociedade.
A grande polêmica em torno do debate sobre cultura popular é a dificuldade de
reconhecer o povo diante dos novos fluxos e experiências contemporâneas que colocam o
mercado como legislador dessa produção cultural, sacrificando os pobres (FEATHERSTONE,
1995). Para nós, essa polêmica em meio ao debate sobre cultura popular mostra como os
grupos marginalizados se defrontam com situações adversas e adotam táticas e estratégias que
se situam entre o eixo de sua arte e a vida cotidiana.
O nosso entendimento é que a produção da cultura popular “oferece mais um
caleidoscópio que uma abordagem estruturada” (CLAVAL, 2001, p. 43) no sentido de não ter
34
propriamente uma tendência certa em permanecer intocável na arte ou transformar seus
valores a partir das tenncias do cotidiano, havendo sim um deslocamento entre o eixo de
sua arte e os valores da vida cotidiana.
O deslocamento constante entre o permanecer e o transformar na cultura popular,
faz com que o entendimento deste conceito cultura popular - gire em torno de um paradoxo
e não na opção segura em optar por um polo deste eixo. Diante desse paradoxo que envolve o
entendimento de cultura popular, concordamos com a definição de Pereira; Gomes (2002, p.
15) inferindo que “a cultura popular a que nos referimos se apoia num princípio em que
interagem os anseios de preservação e transformação”.
Quando reconhecemos que um eixo que vai das permanências até as
transformações em torno da cultura popular, falamos implicitamente que o há uma
coerência e linearidade na produção desta, e sim falamos da existência de múltiplos usos que
se dá, sobretudo, pelo processo de negociação que vem mostrar a cultura popular a partir de
organizações dinâmicas e parciais. Defendemos que o deslocamento neste eixo é feito a partir
da “negociação” (in)tensa dos sujeitos celebrantes da cultura com os agentes dominantes da
modernidade, havendo a tentativa de concretização de interesses de ambas as partes.
Nos estudos de cultura popular, esta conjuntura paradoxal permite compreender que,
tanto pelo lado do povo quanto pelo lado dos agentes dominantes, existem estratégias
operadas para manipular as suas “vontades” diante do outro sujeito social oposto. Claro que
tais estratégias, em ambos os grupos são operadas por meio de regras que giram torno da
ordem social moderna.
A modernidade é uma sombra que a tradição não consegue se livrar, porém o que
temos a fazer é entender como a tradição do povo- cultura popular - consegue conviver com
esta sombra moderna.
A simultaneidade de transformar/permanecer faz com que a cultura popular não seja
puramente uma resistência do povo, e nem o seu oposto, uma “prostituição do povo
conforme evidencia o movimento em torno do eixo que se desloca ininterruptamente entre o
resistir e o mudar em meio a sociedade moderna.
A cultura popular não é, num sentido “puro”, nem as tradições populares de
resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o
qual as transformações são operadas.
No estudo da cultura popular, devemos sempre começar por aqui: com o duplo
movimento de conter e resistir, que inevitavelmente se situa em seu interior (HALL,
2006, p. 232-233).
35
Na cultura popular do bumba-meu-boi do Estado do Maranhão, nosso objeto de
estudo, esse movimento em torno do eixo resistir/transformar se manifesta de um modo bem
claro para nós. O movimento de transformar pode ser presenciado na fala de um sujeito
celebrante retratando que o bumba não pode ficar parado no tempo e tem que funcionar de
acordo com a época.
Acho que o negócio tem que funcionar de acordo com a época. E hoje tão na
cabeça da gente uma porção de coisa que não tinham ainda vez entre os antigos. A
vida mudou, tá bem diferente de uns tempos atrás (...). Sabe, a gente não pode parar,
ficar de braços cruzados, é preciso tocar pra frente apesar de todas essas danação de
coisa nova (apud CARVALHO, M., 1995, p. 106).
o movimento de resistir em torno da cultura popular do bumba-meu-boi pode ser
observado na fala do Sr. Calça Curta (entrevista em 15/03/2009), sujeito celebrante do
bumba-meu-boi da Madre Deus, mencionando que “o bumba não pode ser inimigo da
tradição (...) muitos bois tá ferindo o ritual que era dado antigamente e devemos lutar para não
mudar”.
Diante do eixo definidor dos termos da cultura popular no movimento de
resistir/transformar, percebemos a dimensão política da cultura através da definição de cultura
popular como “jogo de usos” (CANCLINI, 2006b), reafirmando nas entrelinhas a tese de que
a construção dos valores populares é indissociável de um processo de “negociação”.
O conflito entre tradição e modernidade não aparece como o sufocamento exercido
pelos modernizadores sobre os tradicionalistas, nem como a resistência direta e
constante de setores populares empenhados em fazer valer as suas tradições. A
interação é mais sinuosa e sutil: os movimentos populares o interessados em
manter o tradicional, ou parte dele, como referente histórico e recurso simbólico
contemporâneo. Ante a necessidade recíproca, ambos se vinculam mediante um jogo
de usos [grifo nosso] do outro nas duas direções. A assimetria continua existindo
mais é mais intrincada do que aparenta o simples esquema antagônico entre
tradicionalistas e modernizadores, subalternos e hegemônicos (CANCLINI, op. cit.,
p. 277).
Se há todo um jogo de usos, uma movimentação em torno do eixo resistir/transformar,
entendemos que então “diferentes modos y ritmos de inserción de las poblaciones y sus
culturas [populares] en la modernidad” (BARBERO; GAUTIER, 2005, p. 182).
No bumba-meu-boi, estes diferentes ritmos dado pelo eixo resistir/transformar
podem ser visualizados no seguinte depoimento de um sujeito celebrante do bumba retratando
que inovações no boi podem atrapalhar ou ajudar na celebração do bumba: é, com o tempo
agente começou a perder alguns costumes e a botar umas coisas novas no boi; sei lá, tem uma
36
influência boa e má, umas ajuda, outras atrapalha”. (apud CARVALHO, M., op. cit., p. 81).
Esta interlocutora quer inferir que ora o sujeito celebrante do bumba tem que apelar para
inovação quando a inovação ajuda, e ora o sujeito celebrante do bumba tem que apelar para
a resistência quando a inovação atrapalha.
A cultura popular, ao atravessar o contexto da modernidade, mostra como o povo é
colocado a operar sob a perspectiva de intensa criatividade, de multiplicidade de escolhas,
com novas formas de conexões, processando muitas trocas criativas, sendo decisivo no
contexto atual para a produção das identidades em torno das tradições populares (SILVA, C.
B., 2007).
É através do deslocamento no eixo permanência/transformação que uma cultura
popular pode ser construída como uma identidade, algo fundamental para compreender os
contornos que mobilizam, aglutinam ou despertam a criatividade das pessoas comuns” na
sua produção cultural.
Hall (2000), ao afirmar que a identidade opera sob rasuras, critica não uma
operação sobre o entendimento de cultura popular como algo original, integral e unificado,
mas abre a perspectiva da possibilidade de evidenciar o papel das estratégias como ponto
significativo na produção cultural e identitária. Assim, a identidade, ao sustentar um discurso
rasurado”, assume o seu lado performativo da cultura, inclusive da cultura popular.
Na análise do bumba do Maranhão, esse entendimento de identidade operando sob
rasuras foi relevante para compreendermos as posições dos seus sujeitos celebrantes no
interior das resignificações e do processo de vitalidade do urrar do boi, dentro do jogo de
poder que sempre rodeou esta brincadeira, evidenciando “jogos de usos” por parte desses
sujeitos celebrantes, e não somente por parte da oficialidade.
Se tem rasuras, as identidades operam sob a maneira como constantemente nos
tornamos e não pela maneira como somos, porque se operar pela maneira como somos,
admitimos erroneamente uma relevância nos estudos sobre identidade, buscando elementos
que explicam uma suposta essência da cultura popular, levando esta a uma perspectiva de
anacronismo, não levando em conta as transformões sociais, espaciais e temporais.
Elas [as identidades] têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos
da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos,
mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não com as questões “quem nós
somos” ou “de onde nós viemos” (...) (HALL, op. cit., p. 109).
37
O caráter rasurado e não essencial como marca registrada do que seja a identidade é
explorado também por Canclini (2006b), mostrando toda a sua crítica a todos aqueles que m
a pretensão de estabelecer as identidades como puras”, “autênticas” e essenciais.
Os estudos sobre narrativas identitárias (...) mostram que não é possível falar das
identidades como se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las
como a essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos movimentos
identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes
épocas (...) (CANCLINI, op. cit., p. xxiii).
Esta condição de tornar” na construção dos elementos identitários fez na pesquisa
vermos o bumba-meu-boi fundamentalmente como uma “reinvenção da tradição”
(HOBSBAWN; RANGER, 2003), apresentando a cultura popular não como algo que se
sustenta pelo passado, mais também pelo presente e pelo futuro, manipulado pelos
especialistas da produção cultural, incluindo os sujeitos celebrantes do bumba.
Reforçando ainda mais a discussão que evidencia um processo de manipulação e
operação dos agentes e sujeitos em torno do que vem a se tornar identidade, Castells (2006)
aponta que a identidade é um processo de construção social com base em atributos culturais e
de poder.
Podemos destacar que a identidade se assentada sob uma condição social, tendo a
característica fundamental de ser conflitante devido ao fato de estar submetida às condições
de uma pluralidade de significados sociais e demarcadas por um poder social regulatório. É
sob está condição desigual dos sujeitos sociais que Castells (op. cit.) objetivou três formas
distintas e complementares de como os agentes da sociedade operam os seus significados
identitários.
I. Identidade legitimadora: construída pelas instituições dominantes da sociedade,
com a intenção de reproduzir, expandir e racionalizar sua dominação perante aos
atores sociais;
II. Identidade de resistência: construída pelos atores sociais que se encontram em
posições subalternas, não com o intuito de salvaguardar seus valores, mais de
questionar os valores dominantes;
III. Identidade de projeto: é uma identidade construída de modo resignificado pelos
atores sociais subalternos que procuram sair da posição de defesa perante os
valores dominantes, adotando uma estratégia que venha favorecer uma redefinição
de sua posição dentro da sociedade.
38
Estas três inferências sobre o que venha constituir a dinâmica de construção da
identidade foram muito valiosas para a nossa pesquisa na medida em que permitiu
desenvolver uma análise muito mais segura, criteriosa e objetiva sobre como os sujeitos
celebrantes operam a construção identitária do bumba-meu-boi do Maranhão.
Esta proposta analítica que se assenta sobre uma tade da noção de identidade se faz
fundamental para enxergarmos que pode haver mais de um agente na construção identitária:
as instituições dominantes e os agentes subalternos; como também pode haver várias
finalidades em torno do processo de construção identitária.
Tais “finalidades” não se encontram uma descolada das outras, pelo contrário, elas se
entrelaçam constantemente dentro da sociedade, fazendo parte de um movimento dinâmico e
de incessante construção identitária, longe de serem ordens rígidas e fechadas que não se
transformam:
Obviamente, identidades que começam como resistência podem acabar resultando
em projetos, ou mesmo tornarem-se dominantes nas instituições da sociedade,
transformando-se assim em identidades legitimadoras para racionalizar sua
dominação. De fato, a dinâmica das identidades ao longo desta sequencia evidencia
que, do ponto de vista da teoria social, nenhuma identidade pode constituir uma
essência, e nenhuma delas encerra per se, valor progressista ou retrógrado se estiver
fora de seu contexto social (...) (CASTELLS, op. cit., p. 24).
Em meio a estes três referenciais de construção identitária, notamos dois pontos
fundamentais para desenvolvermos a presente pesquisa: o primeiro ponto é que existe a
presença do poder regulatório (o controle social dominante); e o segundo ponto é que o poder
regulatório produz sujeitos de diferentes interesses e estratégias que se caracterizam por
escolhas e intencionalidades. Ao falar da identidade como um processo de “escolhas” e
“intencionalidade” surgiu um grande insigth para compreendermos o papel ativo dos sujeitos
celebrantes na formação do bumba.
Posto esta questão fundamental de dinamismo, de movimento, de rasuras sobre o
conceito de identidade, ressaltando a operação dos sujeitos celebrantes, pretendemos agora
situar como a categoria espaço se cruza com tais questões fundamentais chaves para a
pesquisa.
O conceito de espaço e identidade se cruzam para enfatizar a importância dos sistemas
de representação na sociedade, principalmente se pensarmos a noção de comunidade. Se
entendermos a comunidade como uma coletividade localizada e inserida no interior da
sociedade, resgatamos implicitamente a relevância do espaço na medida em que a
comunidade só consegue se assentar se a definirmos em um lugar.
39
As identidades se fazem inerentes ao espaço porque esta - a identidade - tem o poder
de resignificá-lo a partir de uma reaproprião simbólica, delineando as suas novas esferas de
sociabilidade (BÁRBERO, GAUTIER, op. cit.). o espaço se faz inerente a identidade uma
vez que é na demarcação de um espaço imaginário e/ou concreto que se cria e se forja
uma identidade que, no mínimo, precisa ter as suas geografias imaginárias, seu senso de lugar,
casa e lar (HALL, 2005).
Em Haesbaert (2002) encontramos o que há de comum entre a noção espaço e a noção
de identidade enquanto estratégia e jogo de uso, quando este diz que a identidade é
transportada para uma dimensão espacial, não apenas por ser um referencial material e
simbólico que indica longevidade dos aspectos identitários, mais também por ser um
instrumento de manipulação no livre jogo da invenção identitária.
Fazemos a ressalva de que a identidade relacionada ao espaço é muito mais do que
compreender um ponto cultural de um grupo localizado no mapa, e sim o espaço é a maneira
de a identidade ganhar um sentido concreto, sendo além de uma referência, o suporte para a
construção da dimensão identitária. No nosso estudo, vemos a festa do bumba se elevando a
símbolo identitário coletivo tanto por existir espaços de referências como: os locais de danças,
as igrejas e capelas dos santos juninos, avenidas e ruas da cidade; como também por ser uma
referência espacial, associando a cidade de São Luís e o Estado do Maranhão como sinônimo
do bumba.
Voltamos a Haesbaert (op. cit.) quando admitimos o espaço como instrumento de
manipulação no livre jogo da invenção identitária, reconhecendo a presença de “redes de
sociabilidade” em torno de uma construção identitária e também da cultura popular. As “redes
de sociabilidade” são uma maneira de inferir que a identidade é um mecanismo de
apropriação e construção de espaços coletivos partilhados pelos mesmos valores celebrados.
Assim, o domínio e controle identitário é associado as conexões e articulações tecidas pelos
agentes da cultura a partir de fluxos e deslocamentos, porque este movimento, de um maneira
mais extrovertida, pode borrar e tornar negociável as barreiras existentes entre classes
dominadas e dominantes, ou mesmo, de uma maneira mais introvertida, pode fortalecer o
vínculos entre as diversas classes dominadas.
No bumba-meu-boi do Maranhão, as “redes de sociabilidade” são costuras feitas para
fortalecer os laços simbólicos e de solidariedade coletiva de um modo alternativo ao sistema
dominante, porém fazemos a ressalva que nem sempre é algo que se oe por antítese ao
sistema dominante.
40
As “redes de sociabilidade” tendem a descentrar os sujeitos e não elevar a figura de
um sujeito em si a classe dominante ou a classe dominada. A fragmentação dos sujeitos se
faz evidente nas muitas “costuras”, na diversidade de moldagens que podem enfraquecer,
solapar ou revitalizar uma identidade cultural.
Se fosse algo próprio de uma classe específica, as redes de sociabilidade” se
revelariam mais por uma linearidade e imposição do que por costuras e usos de estratégias.
Portanto, “uma geografia do próprio homem [do povo]” (CLAVAL, 2003) que deve ser
levada em conta nas análises das questões sócio-culturais.
É nesse sentido de entender o espaço em dialética com a cultura e a identidade, não
por originalidades, e sim a partir da construção de redes que Gupta; Ferguson (2000, p. 41)
mencionam sobre a inserção do espaço nos estudos culturais, não com intenção de estabelecer
um estudo de uma relação dialógica entre sociedades geograficamente distintas, [pelo
contrário, quer se] explorar os processos de produção da diferença [em torno da produção
cultural popular] em um mundo de espaços cultural, social e economicamente
interdependentes e interligados”.
O perfil identitário da cultura popular não é circunscrito a um espaço exótico e,
mesmo em contato com a sociedade, com o outro, não se configura somente como um espaço
de alteridade, e sim o espaço deste perfil se faz a partir de nós e linhas, ou seja, por meio de
uma ampla rede de relações sociais - negociáveis e tensas - entre sujeitos diferentes que
simultaneamente se abrem e se fecham.
Uma ampla “rede de sociabilidade” - de relações sociais - mostra que estamos em um
espaço contínuo, conectado e atravessados por relações de poder desigual, em que os sujeitos
sociais que constroem a cultura, dentre eles os sujeitos celebrantes o povo subalterno -,
produzem uma potica de sustentação de sua alteridade e de seus simbolismos não
simplesmente por encarceramento espacial, e sim por uma interligação espacial com o outro
que pode parecer desconexo socialmente, mais que pode ser um “parceiro”. Vamos mostrar
isso na pesquisa quando o sujeito celebrante do bumba estreita sua ligação com a classe
dirigente do Estado para conseguir alguma ajuda para fazer o urrar do boi.
As redes de sociabilidademostram a incapacidade do espaço identitário ser tratado
como um dado, que longe disso, se revela como uma construção sociopolítica capaz de ser
(re)inventada, (re)imaginada pelos sujeitos sociais celebrantes da cultura popular (o povo):
(...) A capacidade das pessoas [do povo] de confundir as ordens espaciais
estabelecidas, mediante movimentos físicos ou por meio de atos políticos de
reimaginação, significa que espaço e lugar nunca podem ser “dados”, e que o
41
processo de sua construção sociopolítica deve ser sempre levado em consideração.
Uma antropologia [e também uma geografia cultural] cujos objetivos não são mais
concebidos como automática e naturalmente ancorados no espaço precisará dar
atenção especial ao modo como lugares e espaços são construídos, imaginados,
contestados e impostos (GUPTA; FERGUSON, op. cit., p. 44).
O sujeito celebrante, na medida em que tece as redes de sociabilidades”, revela que o
espaço demarcatório de uma cultura está envolvido por intensas contradições, no sentido de
que pode haver uma “união” de grupos socialmente conflitantes, no qual os sujeitos
subalternos se utilizam de criatividade e malícia” para não se verem aprisionados diante das
transformações da modernidade.
Entender o espaço por meio de processos interativos é compreender que as culturas
populares não ocupam espaços naturalmente descontínuos e sim estão em meio a um campo
de possibilidades circunscrito na sociedade. Se a sociedade é um jogo de poder temos que ter
em mente que um constante re-significação da cultura pela captura de outros valores que
ali não eram agregados, a partir de operações e manipulações.
A politização do espaço geográfico induzirá um projeto de entendimento em torno da
cultura popular calcado em “não dissolver os conflitos de ordem política em uma unidade
cultural(CARVALHO, R., 2000, p. 97).
Preferimos entender a relação entre espaço e identidade numa “classificação com base
em múltiplos eixos, [que] não produz tipologias rígidas porque não opera com espaços e
significados [culturais] unívocos, e sim com sistemas de relações [tensas]” (MAGNANI,
2008, p. 03) entre sujeitos celebrantes e classe dominante.
Isso nos permitiu colocar durante a pesquisa que a cultura popular maranhense do
bumba-meu-boi existe e sobrevive até os tempos atuais por rasuras provocadas entre espaços
socialmente diferenciados mais conectados espaço da mercantilização e espaço da
celebração -, que são os “nós” contemporâneos do espaço do urrar do boi na cidade de São
Luís.
Porém, as linhas que formam essas redes são os jogos de estratégias que tem uma
participação dinâmica dos sujeitos celebrantes do boi e não somente dos agentes dominantes
como vamos enfatizar no capítulo 04. Desta forma, os rumos do bumba-meu-boi resultam de
um árduo e persistente esforço dos sujeitos celebrantes em borrar a lógica espacial oficial de
centro e periferia, fazendo desse embaraço espacial os rumos para traçar um espaço vivido
para o boi.
No bumba vemos que a comunidade boiera e a localidade do boi não é um espaço
encarcerado, sendo além de um espaço enraizado, um espaço que alastra seus tentáculos de
42
modo a capturar e se conectar a outros espaços, longe de ser um produto nativizado, em que o
espaço que foi capturado por tais tentáculos volta para resignificar essa raiz. Para Paul Claval
(2002, p. 172):
O jogo da autoctonia e da etnicidade como princípios de base da identidade dos
grupos e da articulação dos espaços não desapareceu; mas outras dimensões se
delineiam. A partir do momento em que os contatos se multiplicam e as células
sociais estão em relações constantes, sua identidade não resulta apenas mais da
interiorização de normas próprias. Ela provém da imagem que os outros fazem dela,
e que ela reflete e devolve (...).
Dentro da nossa perspectiva de estudo, por meio dessa assertiva, vemos que trocas
entre o bumba e as experiências mercadológicas, porém não podemos interpretar o bumba
como uma causa perdida para a mercantilização cultural, pois os sujeitos celebrantes do
bumba também podem absolver do seu modo as tenncias do capitalismo.
Podemos crer assim que as fronteiras sociais entre sujeitos celebrantes e classe
dominante foram borradas não somente para a globalização capturar uma manifestação local
como o boi, mas o boi e seus sujeitos celebrantes também podem capturar a globalização e
serem os protagonistas em abrir “brechas” e “oportunidades” nestas fronteiras em favor de
uma recuperação de sua própria cultura e tradições populares.
Desta forma, fomos em direção a entender como as fronteiras espaciais clivadas são
borradas para conferir uma sustentação identitária a cultura popular do bumba-meu-boi na
cidade de São Luís, revendo o processo de resistência, ascensão e manutenção do urrar do boi
a partir das redes de sociabilidade” delineadas pelos próprios sujeitos celebrantes, apontando
que mesmo numa cidade de intensa urbanização como São Luís, os agentes subalternos não
são incondicionais prisioneiros do poder político-ideológico da classe dominante.
43
2. FAZENDO UMA DESCRIÇÃO DENSA DO BUMBA-MEU-BOI E DA CIDADE
BOIERA DE SÃO LUÍS
2.1 A celebração do boi nos festejos juninos do Maranhão
(...) o boi pode sair depois que vai pra rezadeira, se fizer todo ritual direitinho de
batismo até na morte, tem que fazer tudo como a tradição pede (...) (SR. CALÇA
CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Os festejos juninos do Maranhão são alimentados por várias manifestações culturais
oriundas das classes populares como: o tambor de crioula que é uma manifestação folclórica
de matriz africana marcadas por tambores de três tamanhos tocados por homens, geralmente
dançado pelas mulheres; a dança do coco originada das rodas das quebradeiras de coco; o
cacuriá, dança comandada pelo ritmo da batida das caixeiras da Festa do Divino Espírito
Santo, dentre outros mais tipos de folclore. Porém, mesmo com toda essa diversidade
reconhecida e verificada in loco nas festas juninas, o carro-chefe dos festejos juninos da
cidade de São Luís e do Estado do Maranhão é o bumba-meu-boi que ocupa boa parte das
celebrações do mês de junho.
A nossa inteão neste item é apresentar o bumba-meu-boi do Maranhão para aqueles
leitores que não conhecem como tal manifestação cultural é composta. Apresentar o bumba
o é uma missão muito fácil, visto que é uma manifestação cultural popular complexa, de
muitas variações de região para região, de lugar para lugar, ou mesmo de grupo para grupo
dentro do Estado.
Apesar de reconhecida uma complexidade ritual e celebrativa do bumba, colocamos
alguns pontos de apresentação comuns que acompanham a festa do boi do Maranhão. O ritual
44
e a cerimônia do boi mostram como cada traço boiero tem o seu valor na economia simbólica
total do total do novilho.
Ressaltamos inicialmente que o bumba-meu-boi é reinterpretado comunitariamente em
rias partes do Brasil, possuindo variantes no Maranhão, Piauí, Pará, Amazonas, Ceará,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas, dentre outros estados, seja no ciclo joanino, seja integrado ao
ciclo natalino do Reisado, tendo também comunidades que o apresentam no carnaval
(BUENO, 2001).
Mesmo sendo “o bicho nacional por excelência”, como bem diria Mário de Andrade
(1982), por encontrar-se em rios estados do Brasil de Norte a Sul, é no Estado do Maranhão
que o bumba-meu-boi envolve um maior número de sujeitos celebrantes na construção do seu
urrar. No Estado do Maranhão são mais de trezentos grupos de bumba cadastrados junto a
Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão (SECMA), fora os inúmeros grupos não-
oficiais que são formados nos vários povoados rurais
7
situados no interior, o que nos permite
afirmar a grande notoriedade e a força da brincadeira do bumba para os maranhenses.
Se levarmos em conta a quantidade de grupos, entendemos os motivos de o bumba-
meu-boi ser classificado como o folguedo do Maranhão e dos maranhenses, a mais ampla,
bela e dramática de todas as manifestações da cultura popular do Maranhão, sendo o
entretenimento de maior representatividade do Estado” (REIS, J. R., 2003, p. 16),
mobilizando uma grande quantidade de pessoas para reali-lo.
O boi, como todo tipo de ritual festivo, articula-se em torno de objetos focais, que
podem ser um ente real ou imaginário, um acontecimento, um anseio ou satisfação coletiva
que atua como motivação da festa, podendo ser sagrado ou profano, antigo ou recente,
estimulando diferentes sensações como euforia, fé, libertação, construção, superação e êxtase
(GUARINELLO, 2001).
Como é um folguedo que possui uma complexidade em si com a existência de vários
objetos focais, o bumba do Maranhão transita em torno de mais de um ponto central de ritual,
mito e celebração, passando pela devoção as entidades da encantaria, aos santos católicos,
indo até a lenda de Mãe Catirina e Pai Francisco ao Sebastianismo, dentre outros pontos a se
destacar. É diante de toda essa diversidade de combinação celebrativa e ritual que Cavalcanti
(2000, p. 14) fala que o Boi do Maranhão é sempre um conjunto de elementos muito mais
amplo e não se confunde com nenhuma dessas partes isoladas”.
7
Os povoados rurais são pequenas vilas localizadas geralmente no interior do Estado, aos quais se encontram
pouco afastadas de sede do município que pertencem, sendo a agricultura familiar pela plantação de ra a base
de subsistência de seus habitantes, como também um dos elementos que garantem o elo comunitário.
45
Uma vez que o bumba-meu-boi está calcado em mitos, sustentado por tradições e
rituais, sempre é importante apontar todas essas dimensões celebrativas e regulamentações
cerimoniais presentes nesta manifestação da cultura popular maranhense. Começamos pelo
chamado auto do boi de Mãe Catirina e Pai Francisco”, representados na foto 01 abaixo
colocada.
Foto 01 Os personagens “Mãe Catirina” e Pai Francisco” do grupo bumba-meu-boi de
Morros.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha, 25/06/2009.
O auto do boi no Maranhão, como também no resto dos Estados do Brasil que tem o
novilho, é uma dramaturgia teatral que ressalta o processo de mestiçagem cultural do país,
enfatizando a presença de todas as raças da sociedade brasileira. A presença dos índios,
negros e brancos na narração mítica da história de Mãe Catirina e Pai Francisco enfatiza o
somente o processo de mestiçagem, também revelando informações históricas, etnográficas,
sociológicas, jurídicas e sociais, denunciando, costumes, ideias, mentalidades, decisões e
julgamentos (CASCUDO, 1998).
Esta história não se confunde plenamente como um fenômeno sobrenatural, ou seja,
um fenômeno “em que a ordem das coisas vai além do alcance do nosso entendimento (...) um
mundo do mistério, do incognoscível, do incompreensível” (DURKHEIM, 1989, p. 54). O
auto do bumba se faz colado a um determinado contexto, que é o contexto colonial brasileiro,
46
sendo uma profunda sátira construída pela classe subalterna (negros e mestiços), contestando
o poderio dos homens dominantes do período colonial (representado pelos fazendeiros
portugueses).
Assim Pai Francisco rouba o mais bonito touro do seu patrão e quando está no
início da matança é descoberto. Logo se constitui enorme tristeza, pois o novilho
mais querido do fazendeiro está praticamente morto. Tomando a ciência do
acontecimento, o patrão manda apurar o caso. De imediato, os vaqueiros apontam
Chico como o autor da façanha. Um grupo é formado para prender o acusado, que,
ao ser localizado reage, luta e se recusa ir a presença do patrão, sendo necessária a
formação de uma equipe de índios, logo mobilizados. Assim, dominam Pai
Francisco e, despojado de suas armas é conduzido até o patrão. Preso, o negro
Chico, este terá de dar conta do boi, sob a pena de pagar com a própria vida. Pai
Francisco passa por violento interrogatório e, de início, nega qualquer
envolvimento com o roubo do novilho. Mas, finalmente, resolve confessar o crime.
Em virtude disto, toda a fazenda foi mobilizada para salvar o boi. Então, são
chamados os pajés, doutores que finalmente conseguem ressuscitar o animal, para a
alegria de todos da fazenda, pois o homem e o boi estavam salvos (REIS, J. R., op.
cit., p. 117-118).
A história da ousadia do “Pai Francisco” em desafiar o “dono da fazenda” nas
apresentações do bumba sempre foi contada por um caráter de irreverência, de um modo
engraçado e satirizado. Para quem não conhece lembra um pouco o casamento do noivo e da
noiva apresentado nas quadrilhas que se apresentam em muitas festas juninas do Brasil,
principalmente na região Nordeste.
Vemos cenas dos agentes subalternos - Pai Francisco e da Mãe Catirina - zombando
frequentemente dos agentes dominantes da sociedade - do fazendeiro e de seus capatazes,
desafiando todo o poder dominante ao roubar a ngua do boi mais bonito da fazenda. Esta
situação de ironia, riso jocoso presente na encenação do auto do boi lembra o organização
cômica das festas medievais, com os bobos e bufões que desafiam a lógica oficial, parodiando
a vida ordinária conforme coloca Bakhtin (2008).
Além do mito de Mãe Catirina e Pai Francisco, outra história de misticismo muito
importante para a dramaturgia do boi do Maranhão é a lenda do Sebastianismo. Além do boi,
esta lenda tem como personagem principal o rei Dom Sebastião, último rei de Portugal no
final do século XVI antes da unificação das coroas ibéricas, morto pelos mouros em 1578 na
batalha de Alcácer-Quibir, norte da África.
No bumba-meu-boi um forte culto ao sebastianismo, na crença de que El Dom
Sebasto é o rei que a qualquer momento pode vir surgir na terra e assim salvar as pessoas de
todas as mazelas e injustiças do mundo, sendo uma espécie de messias, tal como Jesus Cristo.
47
Apesar de se relacionar a uma figura importante da igreja católica que é Jesus, a lenda
do sebastianismo tem uma maior ligação com as religiões afro-maranhenses. É na crença do
poder de justiça de Dom Sebastião que muitas pessoas na temporada junina vão aos terreiros
afros pedir a proteção desse e de outros encantados contra qualquer tipo de ameaça,
principalmente os amos dos bumbas que temem o mal olhado diante da grande exposição a
que se submetem no período junino.
A encantaria é bastante presente em tudo que é bumba-boi, esses cantador tudinho
aí, tudinho, não tem um, eles só sai pra cantar com a ajuda de um encantado, se não
não canta, porque se não for a voz falha, pega uma doença, um mal-olhado e tudo de
ruim que não deixa ele brincar no São João (SRª ZEFINHA, entrevista em
22/04/2009).
A ligação estreita entre bumba, o sebastianismo e a encantaria pode ser observada nas
músicas do bumba-meu-boi que são chamadas de toadas. Muitas toadas são inspiradas na
figura de Dom Sebastião e o grande touro reluzente com uma estrela na testa, com olhos de
fogo, com o couro coberto de pedras preciosas e chifre de ouro que ele não deixa despertar
para não afundar a Ilha de São Luís, segurando este touro junto a Ilha dos Lençóis, no
município de Cururupu, localizado no litoral ocidental do Maranhão.
Ele é Sebastião
Vem no rolo do mar, ah, ah,...
Vem no rolo do mar, ah, ah,...
Ele é pai do terreiro,
Na guma imperiá, ah, ah,...
Na guma imperiá, ah, ah,...[grifo nosso]
Sebastião tem tesouro
Na sua mina de ouro
Ele pode, ele manda
Amansá seu touro [grifo nosso]
(SANTOS, P. B., 1983, p. 26 apud FERRETI, 2002, p. 220).
Foi assim que a “lenda de Dom Sebastião se tornou um dos contos que mais
entranhadamente penetrou na alma maranhense, inspirando muito os cantadores de bois”
(MORAES, 1980, p. 20 apud FERRETTI, op. cit., p. 216), preenchendo junto ao imaginário
popular em torno do bumba a sua ligação com a cultura africana, associando o novilho com a
encantaria que se manifesta nos terreiros de culto afro existentes na cidade de São Luís.
Além da religião de matriz africana, o bumba é preenchido fortemente pela religião de
matriz europeia representado pela religião católica. Na verdade, a ligação do bumba com a
religião católica é amplamente conhecida e difundida se compararmos com a ligação desse
48
junto a religião afro-maranhense que é pouco mencionada quando se fala do bumba
maranhense, principalmente se nos referirmos a sua divulgação nos meios de comunicação.
Para Sanches (2003), a religião de matriz africana é pouco difundida se comparada
com a religião católica, porque a ligação do boi com a matriz religiosa afro-maranhense se faz
nos bastidores do bumba, em detrimento a religião católica que está claramente associada ao
bumba pela ligação com os santos juninos celebrados.
É o catolicismo como religião oficial que prevalece aos olhos [no bumba] e da
sociedade em geral. Não um catolicismo ortodoxo, eclesial, mas sim popular,
sincretizado. É nos bastidores do boi que a influência afro-religiosa se apresenta, se
faz presente, sendo isso um assunto que não se comenta com qualquer pessoa. Essa
influência pode aparecer, muitas vezes nas entrelinhas das toadas que homenageiam,
agradecem ou solicitam proteção das entidades cultuadas no tambor de mina, bem
como no transe mediúnico que acontece nas apresentações dos grupos, na ida de
alguns deles em terreiros de mina (...) (SANCHES, op. cit., p. 106-107).
O bumba-meu-boi do Maranhão possui um caráter religioso ligado estreitamente e
claramente a celebração junto aos santos da igreja católica conforme vemos. Os santos
homenageados pelo bumba do Maranhão em meio aos festejos juninos são: Santo Antônio (13
de junho), São João (24 de junho), São Pedro (29 de junho) e São Marçal (30 de junho).
Diferente do resto do país, somente no Estado do Maranhão São Marçal é
homenageado dentro da celebração das festas juninas. Apesar de “São Marçal, [ser] agregado
aos festejos juninos no Maranhão, não santificado pela igreja católica, figurando apenas no
martírio romano, por estar na relação de bons cristãos” (LIMA apud REIS, J. R., 2003, p. 90),
a sua importância é enorme para a celebração do bumba no Maranhão, de modo a atualizar o
papel da religião como sustentação na celebração do bumba, principalmente se pensarmos que
é a sua data o desfecho das festas juninas do Estado, e não o dia 29 de junho como no resto do
Brasil. A comemoração do dia desse santo é realizada no bairro do João Paulo, na Avenida
São Marçal, sob as benções de sua imagem que se encontra em um lugar estratégico nas ruas
do referido bairro (ver figura 02).
49
Figura 02 Imagem de São Marçal nas ruas do bairro do João Paulo em meio as
bandeirinhas das Festas Juninas.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha, 30/06/2008.
Também é por meio do catolicismo popular que temos mais um mito sobre a origem
da festa do bumba-meu-boi no Estado do Maranhão, reforçando o entrelaçamento dos santos
juninos em meio a manifestação cultural do bumba. Este é um mito profano religioso narrado
da seguinte forma:
São Jo quando andava sozinho pelo mundo tinha um boizinho de estimação
brincante e dócil, que se fazia a grande atração a cada ano no aniversário do santo.
Todos os que chegassem para cumprimentar o santo no dia 24 de junho ficavam
maravilhados com seu boi, que demonstrava compartilhar a alegria geral,
movimentando-se junto as pessoas como se também dançasse.
Mas aconteceu certa vez, após a data do aniversário, de vir ao encontro de São João
o amigo São Pedro, que queria emprestado o novilho. São Pedro soube, as vésperas
de seu próprio aniversário, que os músicos convidados não poderiam comparecer, e
temeu pelo sucesso da festa. Queria levar o boizinho para ser a atração também no
seu dia. São João recusou a prinpio, explicando sua ligação afetiva com o animal,
que era visto pela comunidade no dia 24, mas terminou por ceder diante da
insistência e temor do amigo.
Na festa de São Pedro, dia 29 de junho, para a surpresa geral, estava o boizinho
de São João, com sua estrela na testa, obra da natureza. Veio toda a população,
50
afoita por vê-lo, e logo veio também São Marçal, propondo a Pedro emprestá-lo.
Pedro explicou a João que tinha que devolvê-lo no dia seguinte mas comoveu-se
pela situação de Marçal, também aflito. E cedeu o novilho para fazer uma visita a
essa nova festa e retornar. Ao chegar lá, foi tamanha a repercussão que São Marçal
se distraiu e se descuidou. E o boizinho de São João foi conduzido
inadvertidamente de festa em festa, de arraial em arraial.
Até que, pela manhã, encontrando-se desprotegido em canto qualquer, foi abatido e
feito refeição por uns pobres coitados que nem sabiam de sua natureza maravilhosa.
São João entristeceu-se com a notícia e, diante da oferta de um outro boizinho,
retirou-se transtornado.
Ano após ano, então, as famílias e comunidades m tentando recuperar aquele
encanamento que havia, bordando couros de Boi feitos com veludo preto,
canutilhos, miçangas e lantejoulas que, moldados em armação de madeira e vime
serão conduzidos por manipuladores especializados chamados „miolos‟, em meio a
cortejos alegóricos de personagens guardiães, raptores e curadores, cantores e
músicos. Tudo pela alegria da festa de São João e, se possível, caso o santo goste
do boizinho refeito, pela concessão de uma nova graça [...] (BUENO, 2001, p. 31-
32).
Podemos considerar que esse mito tem como objetivo maior associar a brincadeira do
bumba com uma devoção dos brincantes aos santos católicos, estreitando os laços da
dimensão do profano com a dimensão do sagrado. É assim que se construiu a celebração do
“boi de promessas”, criando o boi para se pagar dividas com o poder divino, aumentando a
devoção junto aos santos, especialmente a São João, constituindo o bumba como um centro
gerador de religiosidade e misticismo baseado na tradição cristã, reforçando a presença da
igreja católica na sociedade ludovicense e maranhense (OLIVEIRA, A., 2003). É desta forma
que o Sr Calça Curta (entrevista em 15/03/2009) diz que: no boi tem uma raiz, tudo tem raiz,
eu não brinco para fulano de tal, eu não brinco pra „a‟, pra „b‟ e pra „c‟, eu brinco é pra o
João me proteger (...)”.
A ligação do bumba com a tradição cristã católica vai para além da devoção aos santos
católicos e do “boi de promessas”, se manifestando no seu ciclo de vida (do bumba) em meio
aos rituais de batismo e de morte. O ritual de batismo acontece segundo a tradição do bumba
da noite do dia 23 para o dia 24, na data em que se homenageia São João; já o ritual de morte
é realizado sem uma data fixa no mês de julho, agosto ou setembro, em um final de semana
ou em uma semana inteira. Estes dois rituais são celebrados junto a missas acompanhadas por
um padre da igreja católica que, junto com os padrinhos do bumba, dão as bênçãos ao boi que
nasce e que morre, utilizando água benta e um ramo de oliveira (conferir a foto 03 abaixo
relacionada).
51
Foto 03 O bumba-meu-boi da Maioba recebendo a proteção de uma de suas madrinhas
durante o batizado.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha, 23/06/2008.
O batizado do bumba é um ritual de passagem que marca a ida do novilho para as
fontes da vida, introduzindo o grupo ao mundo e a sociedade, enfim, é o nascimento do boi. O
batizado do boi é uma cerimônia católica, realizada por um padre através de uma missa em
homenagem a São João, padroeiro maior das festas juninas. No final da missa o boi é batizado
e colocado sob as bênçãos dos seus padrinhos e madrinhas, recebendo o sinal da cruz (em
nome do pai, do filho e do espírito santo) na sua testa estrelada. Em seguida, o boi que está
todo coberto por sua barra em uma mesa é descoberto para o seu couro ser apresentado ao
público. A apresentação do couro do boi é sem vida um dos momentos mais aguardados no
ritual do batismo, pois todos querem saber o que o bumba vem carregar no seu lombo a cada
ano. O couro do boi é todo bordado no veludo com canutilhos, miçangas, paetês, lantejoulas,
apresentando um novo desenho: de pessoas (ver foto 04), de paisagem, de objetos dentre
outras coisas mais.
52
Foto 04 Couro do boi da Maioba apresentado para as festas juninas de 2008 carregando no
seu lombo a imagem de seus ilustres brincantes que já faleceram.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha, 23/06/2008.
O ritual do batismo, com a sua dimensão sagrada, faz com que o boi o saia para as
ruas pagão e sem purificação. Se o bumba não for batizado São João o vai proteger na sua
temporada junina, o que torna os boieros e, principalmente os sujeitos celebrantes, vulneráveis
para quaisquer adversidades, saindo tudo errado para o grupo. Segundo Humberto Maracanã,
amo do boi de Maracanã, tem que seguir a risca o que pede a tradição boiera sobre o batizado:
O boi pagão não presta. O pandeiro o esquenta, a gente fica com a voz ruim e as
coisas não saem direito. Antes de ser cantador, quando eu era ajudante, saí com o
boi sem batizar e foi isso que aconteceu. O batizado é um momento tocante, forte,
onde a gente sente a presença de São João (O ESTADO DO MARANHÃO,
23/06/2000 apud REIS, J. R., op. cit., p. 67).
no outro extremo temos o ritual de morte do bumba-meu-boi, marcando a ida do
novilho para o campo espiritual, demarcando simbolicamente a despedida do boi no ano. Este
ritual é simultaneamente um momento de tristeza por deixar todos os boieros com o
saudosismo da temporada junina que se passou, e um momento de alegria por se conseguir
colocar mais um ano o boi para urrar, saindo de cabeça erguida, cumprindo mais um ano esta
árdua e prazerosa missão.
53
Foto 05 A índia do bumba-meu-boi de Catanhede puxando o novilho para o sacrifício,
componente básico do ritual de morte.
Fonte: www.catanhede.ma.gov.br, retirado em: 25/10/2009.
Como o boi vive um ciclo de vida, é necessário que este morra depois de um período
“sujando a barra”
8
pelos arraiais. Os arraiais são construções criadas em áreas abertas,
especialmente em terrenos públicos ou comunitários, circundado por barracas de madeira, de
palha ou de armação de alumínio, colocadas uma ao lado da outra de forma retangular, e
dentro deste retângulo fica o local para receber os grupos juninos.
No bumba a morte não necessariamente significa um fim e sim um fechamento para
um futuro recomeço. A ideia do recomeço provém da inspiração do auto do boi de Mãe
Catirina e Pai Francisco que conseguem ressuscitar o novilho depois de morto ao ser retirado
a sua língua.
O tema morte no bumba-meu-boi está presente tanto no ritual de morte
propriamente dito enquanto momento de fechamento de um ciclo de apresentações,
como também, no auto queorigem a esta festa, quando Pai Francisco mata o boi
preferido da fazenda para tirar-lhe a ngua e oferecer a sua esposa Mãe Catirina,
satisfazendo seu desejo de mulher grávida (VIANA, R., 2006, p.107).
8
Na linguagem do universo do bumba, “sujar a barra” significa que o boi foi intensamente usado para as
apresentações nos vários arraiais da cidade entre o ritual do batismo e o ritual de morte.
54
Como a morte significa a renovação, a possibilidade de reencarnar uma nova vida, não
um fim e não propriamente um término sem volta, então mais um reforço em explicar a
simultaneidade do caráter alegre e melancólico em torno deste ritual. Este ritual se caracteriza
como um até logo e um motivo maior para fazer uma brincadeira melhor ainda para o
próximo ano, esperando que esse período sem as festas com o bumba passe o mais rápido
possível, para que o boi possa ressurgir (ressuscitar) novamente.
O ritual de morte, da mesma forma que o ritual de batismo, é cercado pelos valores da
igreja católica, envolvido por missas e bênção de um padre, além de intensas festas regadas
o somente ao bumba, mais a muito reggae de radiola
9
e bandas de forró, marcando este
ritual em meio a “mestiçagem de identidades culturais” (SILVA, C. B., 2007).
Da mesma forma que o ritual de batismo, o ritual de morte tem que ser realizado a
risca para nada de errado acontecer com o boi, seus boieros e sujeitos celebrantes. O boi que
o foi morto, geralmente costuma assombrar aquelas pessoas que o comandaram, só parando
essa assombração quando realizado o ritual de morte.
Quando não se realiza o ritual de morte do bumba, este pode vir assombrar qualquer
pessoa envolvida por fazer a brincadeira (...). então no primeiro ano que João
[Câncio] fez o boi [de Pindaré], que a gente fez o boi, a gente não matou o boi, o
boi vivia na casa de finado Teixeira, um que era estivador marítimo que morava aqui
na Vila Passos viu, no girau
10
, lá na casa dele, aí quando foi um belo dia, se
aproximando de abril pra maio né, fomos começar negócio de ensaiar o boi, aí
quando foi um dia ele saiu com de navio pra, de navio, aí ele, quando ele chegou em
casa era assim pra meia noite né (...) tinha um corredor pra ir pro quintal né, quando
se abriu a porta do quarto pra ir pro corredor o boi tava embaixo, a armação do boi
tava embaixo né, ele tinha escutado aquele urro do boi né, porque não tinha matado,
naquele negócio ficou logo aquele calafrio nele, orou, mandou chamar a
gente (...) e contou o que tinha acontecido, nessa mesma hora nós fomos no
Turu, na casa do finado Negreiro que era um curador que tinha viu, e ele
contou sobre o significado né, é porque vocês não mataram o boi (...) tem que
matar o boi, não mataram o boi né, teve esse problema, teve que fazer um
ensaio pra puder matar o boi (...) (SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Para fugir do paganismo, dos maus espíritos, dos espíritos que podem atormentar,
pedindo proteção a São João e aos outros santos juninos, um boiero e um sujeito celebrante
o podem deixar jamais de realizar o ritual de morte do bumba-meu-boi, sendo por isso
importante seguir os procedimentos da tradição boiera.
9
No Maranhão o reggae predominantemente é curtido por meio da radiolas que são grandes paredões de som,
tocadas por um DJ em áreas especialmente destinadas a esse ritmo musical, os chamados clubes. É algo mais ou
menos conduzido de forma similar ao funk carioca.
10
Girau é um móvel feito de maneira artesanal com talas da folha de palmeira, usado para lavar louças, tendo a
função de uma pia.
55
Entre o ritual de batismo e o ritual de morte encontramos o momento mais importante
na celebração do bumba que é a vida do boi, o momento de “vadiar”, de sair do seu terreiro,
circulando por vários lugares para urrar. A vida do boi, assim como nos rituais de batismo e
de morte, é simultaneamente profana e sagrada, como veremos no item a seguir analisando os
espaços do urrar do boi na cidade de São Luís.
Depois do batismo e antes da morte, o boi, juntamente com seus boieros sai às ruas
para ir brincar nos arraiais, fazendo uma verdadeira procissão de veículos pelas ruas, indo de
arraial em arraial entre os dias 13 a 30 de junho de todos os anos, época dos festejos juninos
do Maranhão.
Chegando num arraial, os grupos de bumba têm todo um procedimento de organização
e celebração para a sua apresentação ao público e assim vadiar. Nos arraiais, os grupos de
bumba-meu-boi se apresentam seguindo uma sequência “padronizada” de músicas, chamadas
de toadas, com a finalidade de organizar os boieros e o enredo do boi do início ao fim da
apresentação.
Vindo em ônibus alugados, se deslocando de arraial para arraial, os boieros, ao
descerem do transporte dispersam-se por vários motivos como: muitas pessoas nos locais de
apresentação, por esperar a vez de se apresentar porque outro grupo está se apresentando, para
ir a barraca mais próxima e experimentar aquela cachaça da terra, e outros motivos mais.
Quando está perto de começar a apresentação, para reunir os boieros que estão dispersos, o
amo pega o microfone, sacode o maracá e apita, de modo a avisar a todos que o boi vai
começar a urrar. Feito isto, o amo começa a cantar a toada de guarnicê”, que é a toada para
reunir os boieros, avisando ao público que a apresentação vai começar.
Deus é fiel, ele é maravilhoso
Fez o sol fez o luar, o céu e a lua, o vento e as estrelas
Fez o homem para a natureza comandar,
E a mãe a eterna companheira,
E é por isso que eu voltei para te defender,
Madre Deus querida, vamos guarnicê [grifo nosso]
(LETRA DE MIGUELZINHO, BOI DA MADRE DEUS, 2008).
Com todo batalhão reunido depois da toada de guarnicê, o amo do boi começa uma
sequência de toadas com fuões específicas. Logo em seguida é apresentada a „toada de
vai‟, alertando através da cantoria que o boi vai começar para valer. Essa toada, além de ser
identificada como a segunda toada cantada, é também reconhecida pela presença da expressão
“lá vai” na sua letra.
56
Lá vai, lá Vai soberano da Ilha,
Boi da Maioba tanto pesa como brilha,
Passei o ano inteiro fazendo toada pra vocês
Sei que você preparou também para me receber
Contrário sai da frente eu só aviso uma vez
Lá vai Maioba o pesadelo de vocês [grifo nosso]
(LETRA DE CHAGAS, BOI DA MAIOBA, 2008).
Após a “toada de lá vai” é cantada a “toada de chegada”, também chamada de “toada
do cheguei”. Nesta toada, o cordão do boi, ou seja, a roda composta pelos brincantes do
bumba com indumentária, já está completamente preenchida para a apresentação da tropeada,
celebrando e agradecendo o boi, as festas juninas e o organizador do arraial. A “toada de
chegada” do bumba-meu-boi é identificada pela palavra chegueina letra:
Cheguei guerreiro acostumado
Com o meu batalo
O mesmo do ano passado
Vou sacudir a vizinhança
E vem comigo brincar (...) [grifo nosso]
(LETRA DE CHAGAS, BOI DA MAIOBA, 2007).
Na sequencia vem a „toada de saudaçãoque é cantada para louvar os santos juninos,
especialmente São João, o dono do arraial e das festas do mês de junho, mostrando que o boi
apresentado foi criado em sua devoção e para pagar uma promessa. Essa toada tem também a
função de anunciar o início do auto do boi de Mãe Catirina e Pai Francisco. Observe uma
toada de saudação” do bumba:
São João, meu São João,
Eu vim pagar a promessa
De trazer este boizinho
Para alegrar a sua festa
Olhos de papel de seda com uma estrela na testa
Chora chora
Chora Boi da Lua
Vem pedir uma esmola
Pra aquela boneca de anil
Mamãe eu vi Boi da Lua dançar no planeta do Brasil
Mamãe eu vi Boi da Lua dançar no planeta do Brasil [grifo nosso]
(LETRA DE CÉSAR TEIXEIRA, BOI DA LUA, s/d).
Depois da apresentação do auto, o amo canta a “toada do urrou”, uma das toadas mais
importantes da sequência, enfatizando que todos da fazenda, do coro do boi e do público
estão alegres pelo milagre que trouxe o bumba de volta a vida depois de seu sacrificado com
um corte na língua. A “toada do urrar” significa que o boi está pronto para retomar as
festividades após o ressuscitamento. Essa toada é identificável pela palavra urrou” na letra:
57
Lá vem meu boi urrando,
Subindo o vaquejador.
Deu um urro na porteira,
Meu vaqueiro se espantou.
E o gado da fazenda,
Com isso se levantou!
Urrou, urrou!
Urrou, urrou!
Meu novilho brasileiro,
Que a natureza criou [grifo nosso]
(LETRA DE COXINHO, BOI DE PINDARÉ, s/d).
Mais à frente são cantados as “toadas de salão”, também chamadas de toadas
temáticas”, que são um conjunto de toadas retratando temas vigentes na pauta de discussão da
opinião pública podendo ser: meio-ambiente, futebol, violência, e por vai. Um exemplo é a
toada abaixo mencionada, falando da trajeria da seleção brasileira de futebol nas Copas do
Mundo e a busca pelo hexa em 2006:
Em 2006 na Alemanha a Copa vai rolar
Vamos botar a corrente
Para o hexa o nosso escrete conquistar
Foi na Suécia onde tudo começou
Em 58 o primeiro título se conquistou
Em 62 voltou a repetir com Garrincha, Pelé e companhia
No Chile foram buscar o bi
Em 70 no México foi um show de exibição
Deu Brasil na cabeça, seleção de ouro tri-campeão
Os brasileiros agradecem os nossos craques
Por conquistar em definitivo a taça Jules Rimet
A nossa taça cobiçada que os bandidos levaram para derreter
Nos Estados Unidos em 94 foram pra luta nossos atletas
Com fibra e muita raça de lá trouxeram o tetra
Em 2002 foi um grupo formado por Felipão
E foram buscar o penta no Japão
O penta é nosso e ninguém pode nos tomar
No outro lado do mundo seleção canarinho foi buscar
(LETRA DE CHAGAS, BOI DA MAIOBA, 2006).
Dentro das toadas de salão ainda existem as toadas de homenagens”, que são
cantorias realizadas retratando a importância de uma pessoa viva ou falecida que foi ou é
fundamental para a existência da brincadeira, ou mesmo para homenagear uma cidade,
exaltando um lugar. Foi assim que Humberto Maracanã criou a toada “Maranhão meu tesouro
meu torrão” homenageando e exaltando as riquezas naturais e culturais do Estado:
Maranhão meu tesouro meu torrão
Fiz essa toada pra ti Maranhão
Terra do babaçu que a natureza cultiva
Essa palmeira nativa que me dá inspiração
Na Praia dos Lençóis tem um touro encantado
E o reinado do Rei Sebastião
58
No mês de junho tem o Bumba-meu-boi
Que é festejado em Louvor a São João
O amo canta e balança o maracá
As matracas e pandeiro é que faz tremer o chão
Esta herança foi deixada por nossos avós
Hoje cultivada por nós pra compor tua história Maranhão (...)
(LETRA DE HUMBERTO MARACANÃ, BOI DE MARACANÃ, 1986)
Nas toadas de salão, as mais importantes são as chamadas “toadas de pique”, aos quais
os grupos expõem as rivalidades em torno do bumba. Estas todas são cantadas ironizando
outros amos de boi e/ou outros grupos com o intuito de afirmar a superioridade perante seu
rival que no boi são chamados de “contrários”. Eis uma “toada de pique” cantada por Chagas,
amo do boi da Maioba, desprezando seu contrário”, Humberto Maracanã (conhecido como o
O Guriatã”), amo do boi de Maracanã:
Não troco o Boi da Maioba pela jóia falsa de ninguém
Porque fibra e garra sei que maiobeiro tem
Guriatã passou do tempo e para de sonhar
Sonhando acordado não vai despertar
O teu batalhão de ouro não tem nada (...)
(LETRA DE CHAGAS, BOI DA MAIOBA, 2006).
Por fim, chegando a hora de encerrar a apresentação do urrar do boi, o amo do bumba
canta a “toada de despedida”, agradecendo o público e ao coordenador do arraial pela
acolhida, dando adeus, e pedindo a São João para voltar no próximo ano. Atoada de
despedida” é cantada no tom de que o boi infelizmente tem que ir embora.
Adeus garota eu vou embora
Eu disse adeus e já vou me arretirar
Já é muito tarde
Eu tenho que ir
Levo o número do teu celular
Eu vou ligar pra ti
(LETRA DE MANÉ ONÇA, BOI DA MADRE DEUS, 2008).
Quando estamos num arraial esperando ver um bumba urrar, nos deparamos com
rios tipos diferentes de boi. Essa diversidade em se celebrar o bumba-meu-boi mostram os
diversos ritmos e configurações de estilos que estão presentes no bumba do Maranhão
denominados de “sotaques”.
No bumba do Maranhão, de um modo detalhado, “sotaque” é a definição utilizada
para caracterizar peculiaridades em torno do novilho como: o estilo, o local de origem, a rica
das toadas e sua maneira de cantar, a instrumentação musical e a sua maneira de tocar e a sua
indumentária com a maneira de dançar e atuar (AZEVEDO NETO, 1997; BUENO, op. cit.).
59
Em torno dessas peculiaridades, convencionou-se classificar o bumba-meu-boi do
Estado do Maranhão por meio de cinco tipificações ideais distintas que procuram sintetizar a
sua diversidade e estilização, ressaltando principalmente o lugar de origem e o instrumento de
percussão do bumba.
A maioria das pessoas, que está atualmente envolvida no universo do Bumba-boi no
Maranhão, classifica os estilos ou sotaques em cinco campos distintos e básicos, que
são: 1 Bois de Zabumba (Zabumba); 2 - Bois da Ilha (Matracas e Pandeirões); 3
Bois de Orquestra do Munim (Orquestra do Munim e imitadores); 4 Bois da
Baixada (Bois de Pindaré e outras regiões) e; 5 Bois de Cururupu (Costa-de-mão)
(REIS, J. R., op. cit., p. 123).
Tais tipos ideais representados pela definição dos sotaques mostram a espacialização
dos sotaques como um requisito para se apresentar as peculiaridades do bumba maranhense.
Esta espacialização se assenta sobre o mapa do Estado do Maranhão em regiões específicas
por nós chamados de “Geografia Oficial dos Sotaques no bumba-meu-boi do Maranhão”
conforme podemos observar no mapa 01 abaixo relacionado.
Mapa 01 A Geografia “Oficial” dos sotaques no bumba-meu-boi do Maranhão.
60
O sotaque apresentado no mapa pela cor vermelha é o sotaque de Zabumba, também
conhecido como sotaque de Guimarães por ter sua origem no povoado quilombola de
Damásio no município de Guimaes, localizado no litoral norte do estado do Maranhão e a
oeste da Ilha de São Luís. O que se destaca nesse sotaque em relação aos outros, além do
lugar de origem distinto, é a zabumba como um dos instrumentos principais de percussão que
ritmo ao boi. A zabumba é um tambor feito com aro de madeira e coberto com couro de
cabra. Por isso esse sotaque também é denominado por sotaque de zabumba (ver foto 06).
Foto 06 Zabumbeiro do bumba-meu-boi de Zabumba de Guimarães.
Fonte: www.vimarense.zip.net, retirado em: 25/10/2009.
Marcado pela cor amarela temos o sotaque de Matraca, assim chamado devido as
matracas, duas madeiras lisas que quando friccionadas produzem um som estridente, ser um
instrumento de destaque dentro da percussão do boi. Chamamos também este sotaque de
sotaque da Ilha, pelo fato da Ilha de São Luís ser o berço dos grupos que celebram o boi
matraqueiro. Além das matracas se destacam nesse sotaque o pandeirão instrumento feito de
aro de madeira com raio de aproximadamente 40 cm (quarenta centímetros) coberto com
couro de cabra (ver foto 07 abaixo) e o tambor onça - um instrumento feito com aros de
madeira e couro de cabra ou couro de cobra, que é parecido com a cuíca, porém produzindo
um som grave.
61
Foto 07 Pandeies do boi da Madre Deus sotaque de matraca colocados na mesa da sua
sede.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha, 21/06/2008.
Em destaque no mapa pela cor azul temos a área de origem dos bumbas sotaque de
Costa-de-Mão, que, na atualidade é o sotaque com menor quantidade de grupos, sendo
somente cinco cadastrados junto a Secretaria de Cultura do Maranhão em 2008.
Convencionou-se chamar este sotaque por Costa-de-Mão porque o pandeirão, instrumento
importante de percussão, é tocado com a costa da mão, conforme podemos ver na
representação artística feita com material de buriti do cururupuense Nhozinho
11
demonstrada
na foto 08 abaixo. É também conhecido por sotaque de Cururupu devido a cidade de
Cururupu, localizado no litoral ocidental do Estado, a aproximadamente seiscentos
quilômetros da capital São Luís, ser o local de origem deste sotaque.
11
Antônio Bruno Pinto Nogueira, mais conhecido como Nhozinho, nasceu em Bacuripanã, povoado do
município de Cururupu, em 17 de maio de 1904. Era artesão popular maranhense conhecido pela confecção de
rodas de boi feitas material de buriti. Com doze anos sofreu uma enfermidade que deformou seus pés, os,
pernas e braços, provocando a perda da visão e a paralisação dos seus membros, porém a força da sua arte levou-
o a adaptar ferramentas de trabalho trazendo esmero no acabamento e sutileza de detalhes a objetos como
barquinhos, brinquedos e figuras da cultura popular maranhense, em especial os brincantes de bumba-meu-boi.
Por ser natural de Cururupu costumava representar o boi sotaque Costa-de-mão com origem em sua terra natal
(Site: http://averequete.blogspot.com/2009_03_01_archive.html).
62
Foto 08 Personagem do bumba-meu-boi sotaque de Cururupu tocando o pandeiro com a
costa da mão.
Fonte: Site: http://averequete.blogspot.com/2009_03_01_archive.html, acessado em: 25/10/2009.
Dentro do mapa 01, apresentado pela cor verde se encontra o sotaque da Baixada,
assim batizado por ser a microrregião da Baixada Maranhense e suas proximidades, localizada
a sudoeste da Ilha de São Luís, o local de origem do referido sotaque. É conhecido também
por sotaque de Viana e/ou sotaque de Pindaré devido a consagração dos grupos do Boi de
Viana e o Boi de Pindaré no cenário boiero do Estado do Maranhão, tendo grande repercussão
no cenário boiero ludovicense. Este sotaque também utiliza a matraca como instrumento de
percussão, porém a matraca é tocada de um modo bem mais cadenciado se comparado aos
bois sotaque de Matraca. Também se difere do sotaque de matraca por serem os personagens
fantasiados do cordão do boi, e não as pessoas apaisanas (sem fantasias), os percussionistas
desse estilo boiero (ver foto 09).
63
Foto 09 Brincante de um bumba-meu-boi maranhense sotaque da baixada fantasiado e
batendo matraca.
Fonte: http://nossomaranhao.files.wordpress.com/2009/12/matraca-terra-brasileira.jpg. Acessado em 25/10/2009.
Por último, destacado no mapa acima pela cor laranja, temos o sotaque de Orquestra,
considerado o estilo boiero de criação mais recente, datado desde a década de 1960. Chama-se
orquestra por ter nos instrumentos de corda e sopro - pistão, o banjo, o saxofone, o trompete e
outros -, encontrados nas orquestras e bandas musicais, o seu ritmo musical celebrativo como
podemos conferir na foto 10 abaixo com o bumba-meu-boi de Morros. Denomina-se também
este ritmo boiero de sotaque do Munim por ser a região do vale do Rio Munim, localizado a
leste da Ilha de São Luís, como os municípios de Rosário, Axixá, Morros e Nina Rodrigues
(só para citar alguns lugares) o local de origem dos bumbas do referido sotaque.
64
Foto 10 Evolução do bumba-meu-boi de Morros no arraial do bairro do Cohatrac, ao fundo
a orquestra de percussão do bumba.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha de, 25/06/2009.
Mesmo tendo se estabelecido tipos ideais em torno da diversidade do bumba pelo
sotaque, é muito complexo ainda explicar e caracterizar o boi. muitas polêmicas
levantadas por outros pesquisadores e/ou funcionários públicos da área da cultura que
afirmam existir outros sotaques além dos cinco conhecidos oficialmente. Estes falam que a
configuração atual do boi em cinco sotaques o abarca a diversidade de ritmos e estilos do
bumba no Estado do Maranhão.
Segundo Jandir Gonçalves, pesquisador do Centro de Cultura Popular Domingos
Vieira Filho, existe uma diversidade de estilos de bumba-meu-boi desconhecidos na
capital. São bois como o do município de Caxias, que se utiliza de um instrumento
chamado “palma”; como os de Matões, Parnarama, Milagre do Maranhão, Mata
Roma, Santa Quitéria e São Bernardo para citar alguns. É uma diversidade que
não se conhece nos termos sotaque [oficial] ou auto. Elas o o representam, não
sabem o que é (SOUZA, 2001, p. 11).
Ao não se contemplar os grupos de bumbas do Leste Maranhense (mais
especificamente da área do Baixo Parnaíba na fronteira com o Piauí), que utilizam a palma
como instrumento de percussão, fica evidente a insuficiência da atual classificação em tentar
abarcar os estilos e a diversidade do bumba do Estado do Maranhão.
65
Mencionamos também a existência dos chamados “grupos alternativos”, sendo os
bumbas assim classificados por não se encaixarem nos cinco sotaques oficiais. Muitas vezes
estes grupos são julgados e definidos como “parafolclóricos”, acusados de não fazerem parte
da tradição da cultura popular maranhense, por não estarem representando um sotaque oficial.
Não concordamos com essa denominação de parafolclóricos, uma vez que tais grupos
representam a brincadeira do bumba-meu-boi apesar das suas diferenças em relação aos ditos
sotaques oficiais.
Além da complexidade celebrativa do boi mostrada na noção de sotaque, ainda se faz
mais difícil explicar a configuração do bumba do Maranhão se levarmos em conta “os
personagens” presentes no cordão do boi, que variam de sotaque para sotaque, e até muita das
vezes dependendo do sotaque, variam de grupo para grupo dentro de um mesmo sotaque.
que a nossa intenção o é fazer um estudo aprofundado do bumba como
celebração ritual e tica, descrevemos somente os “personagens” que compõem o bumba-
meu-boi sotaque de matraca. Escolhemos destrinchar os personagens” deste sotaque devido
ao nosso campo empírico de pesquisa ter sido dois bois deste sotaque: o boi da Maioba e o boi
da Madre Deus. Os “personagens” são os seguintes:
a) Mãe Catirina Esposa do Pai Francisco. Mulher grávida que deseja comer a ngua
do boi. Pode ser representado por um homem ou uma mulher que possuem um
enchimento na barriga para simular que está grávida, tendo o rosto pintado de preto
para representar a raça negra. A Mãe Catirina é mais evidente na celebração do auto;
b) Pai Francisco Negro escravo marido da Mãe Catirina. Homem apaixonado pela
esposa que acaba roubando a ngua do boi para satisfazer a gravidez da amada. O Pai
Francisco aparece com mais evidencia no auto do boi, e é facilmente identificável por
portar um facão em sua o;
c) Cantador/Amo - No auto o amo do boi é o dono da fazenda. Na apresentação do boi
é identificado como cantador por entoar as toadas, portando um apito no pescoço e um
maracá na mão com o intuito de comandar a apresentação do grupo. Sua indumentária
é composta por um chapéu de vaqueiro coberto de canutilhos e miçangas, muitas vezes
escrito com o seu nome e/ou com o nome do grupo ao qual comanda;
d) Rajados ou caboclos de fita Representam os vaqueiros da fazenda. A sua
indumentária é composta por coletes coloridos e enfeitados com canutilhos e
miçangas, mas o que se destaca mesmo são os chapéus enfeitados por longas fitas dos
mais variados tons e cores que batem até perto da canela. Os rajados fazem parte do
coro de dança do boi;
66
e) Caboclos reais ou caboclos de pena - É o personagem do bumba que visualmente
chama mais atenção nas apresentações, devido portar na sua indumentária um gigante
chapéu coberto de penas de ema das mais variadas cores, de mais ou menos 1,50
metro de diâmetro, chegando a pesar até 20 quilos. O caboclo real tamm veste em
sua indumentária braceletes, tornozeleiras, joelheiras feito com penas. No auto do boi
o caboclo real está serviço do fazendeiro na busca pelo Pai Francisco que foge da
fazenda;
f) Índias São elementos que não tem participação bastante efetiva no auto se
comparado a outros personagens, mais na evolução do bumba se destacam bastante
pelo seu bailado e pela quantidade de integrantes. A sua indumentária é composta por
um arco e flecha na mão, vestido por roupas feitas de pena como: o cocar, os
braceletes, as tornozeleiras, os peitorais e a saia;
g) Burrinha Estiliza o animal burro, sendo um personagem de pequeno porte para
o apagar a figura do boi que é o personagem principal da festa. Este personagem é
feito com armação de madeira de buriti coberta por panos estampados na sua barra. A
burrinha é conduzida por um brincante que entra em seu miolo e a segura por meio de
suspensórios, prendendo junto a si pelo ombro. O movimento da burrinha no coro
do bumba é girar ao redor do boi acompanhando o seu bailado;
h) O Boi É a prenda mais bonita da fazenda, o principal personagem da festa. Com
estrutura feita de madeira, o couro de veludo, enfeitado por desenhos e nomes feitos de
miçangas, lantejoulas, canutilhos e outros materiais, o bumba-meu-boi é a principal
atração do espetáculo, ficando no meio do cordão e do arraial nas apresentações. É o
personagem principal do auto, que é em torno dele que se desenrola a história de
Mãe Catirina e Pai Francisco. O boi é conduzido por uma pessoa que fica embaixo de
sua armação chamado de “miolo”.
No universo boiero do Maranhão, o bumba-meu-boi sotaque de matraca, além de ter
personagens específicos como o caboclo de pena, possui como peculiaridade a sua ligação
como um “boi para a massa"
12
, no sentido de valorizar muito não só qualidade mais a
quantidade de pessoas para acompanhar o urrar do boi. Os outros sotaques se preocupam mais
na qualidade, valorizando as pessoas que estão no cordão do boi incorporando personagens,
o aceitando pessoas apaisanas (sem fantasia) no meio da apresentação. No boi sotaque de
12
Dizemos que o bumba é uma “brincadeira para a massaquando se preocupa em trazer uma grande quantidade
de brincantes para o seu grupo como fazem os bois sotaque de matraca e; mais frente dizemos que o bumba é
uma “brincadeira de massa” quando atende as necessidade do consumo e do turismo.
67
matraca vemos pessoas apaisanas tocando matraca e pandeirão. É por essa característica
marcante que se diz que “no boi [sotaque] da Ilha entra todo mundo” (VIANA, A., 1999, p.
27).
No bumba-meu-boi sotaque da Ilha há uma rivalidade intensa entre os grupos que não
é somente exposta nas toadas de pique como já fora explicado. Até os anos 1950 essa
rivalidade chegava as agressões físicas, conforme veremos no capítulo 04 (item 4.1), mais a
partir dos anos 1960 aos dias atuais a rivalidade é mais dada por uma questão de torcida,
havendo na época dos festejos juninos, identificações por determinados grupos, no qual as
pessoas tem o(s) seu(s) bumba(s) preferido(s).
O boi é que nem torcida de futebol, cada um tem o seu. Cada um torce para seu
time, é Flamengo, é Vasco, é o Paulo, é Corinthians, é Moto, é Sampaio. No boi
tem maiobeiro, tem gente que gosta do Maracanã, de Sítio do Apicum, de Ribamar,
da Madre Deus, de Iguaíba, é isso (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
É a rivalidade entre os bumbas que intensifica as discussões sobre como
operacionalizar a tradição de um bumba, em que um grupo exprime por comparação a outro
grupo contrárioas suas divergências na condução do urrar do boi em relão ao outro rival
(ALBERNAZ, 2004).
Acompanhamos na nossa pesquisa junto aos bumbas da Madre Deus e da Maioba as
rivalidades por meio de comparações tecidas como: a quantidade de pessoas que acompanham
o boi, a qualidade no tocar dos instrumentos, o julgamento do melhor cantador e por vai.
Nesse processo de rivalidades, os bumbas e seus boieros do sotaque de matraca procuram
exprimir as suas “vaidades” e “orgulhos” a partir de uma comparação com o contrário”.
Para se destacar do “contrário”, os madredivinos falavam nos seus ensaios “o que
interessa é qualidade e não quantidade, o nosso som sai redondo e o deles [dos rivais] não tem
coordenação”. Por sua vez, para se destacar de seus contrários, os maiobeiros nos ensaios
falavam que: “o boi da Maioba é mesmo o melhor, o nosso é gigante enquanto os outros
têm uns peladinho, por isso não tem pra ninguém”
13
.
Este breve resumo sobre o urrar do bumba do Maranhão, visou compor o boi
mostrando alguns elementos que demarcam o aspecto ritual, lúdico e celebrativo do boi do
Estado do Maranhão, sendo algo indispensável para entender tal manifestação como uma
13
Como a rivalidade entre os bumbas é algo sério, e muita das vezes não é levado na brincadeira, preferimos não
mencionar os nomes das pessoas e dos boieros que falaram e “desprezaram” seus contrários nos seus ensaios
realizados.
68
tradição popular. Se fosse mais dissecada poderia compor amplamente uma pesquisa em torno
do bumba.
2.2 Os espaços do urrar do boi e a cidade boiera de São Luís (MA)
Antigamente o boi era coisa de pobre e de bêbado, de pessoa que o tinha limite,
hoje todo mundo gosta do boi, até mais o rico, todo mundo quer ver o boi e brincar o
boi. A cidade toda se transforma para brincar o boi em junho louvando nosso
protetor São João (...) mais para chegar a isso os nossos antepassados lutaram muito
(SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
A atividade do turismo vem crescendo maciçamente no mundo contemporâneo, sendo
colocado como uma grande saída para o desenvolvimento econômico das cidades por atrair
riquezas junto com as pessoas que vem consumir o espaço. Neste sentido de se preparar para
o turismo, no início do s de junho, o Poder Público enfeita as principais vias de circulação
de pessoas e carros da cidade São Luís com: bandeirinhas coloridas feitas de papel, balões
feitos de armão de madeira de bambu, grandes chapéus de caboclos de fita e de pena e
boizinhos retratados, enfatizando a presença das festas juninas ludovicenses e maranhenses. É
por meio destes adereços e outras propagandas que o Poder Público constrói uma paisagem
boiera na cidade, anunciando as festas juninas e a sua atração maior, o bumba-meu-boi, de
modo a incentivar o turismo.
O slogan da campanha [das festas juninas] para as revistas e vinhetas de TV diz: “o
Brasil tem muitas brincadeiras de São João. O Maranhão tem todas elas”. Todo o
investimento em divulgação [em 2001], o maior realizado no Estado para este
fim, tem a clara intenção de estimular o turismo (...) (OLIVEIRA, A., 2003, p. 49).
Na cidade de São Luís, as festas juninas reúnem milhares de pessoas em cada espaço
festivo da cidade conhecido como arraial. Por ter muitos arraiais espalhados pela cidade, se
diz que São Luís “transforma-se num grande arraial”, ou em outras palavras, a cidade fica
repleta de locais destinados às brincadeiras juninas e especialmente ao urrar do boi, desde a
periferia até a região central, passando pelo bairro carente em assistência do Poder Público ao
bairro de “nobre”. Segundo a dia local, no ano de 2008 foram cadastrados na cidade de São
69
Luís, junto a Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão (SECMA), trinta e dois arraiais
espalhados por vários bairros da cidade.
Os arraiais, que são construções criadas em amplos espaços abertos especialmente
feitos em terrenos públicos ou comunitários, se preparam para receber os grupos juninos e um
público para prestigiar as festas juninas. Os arraiais possuem uma disposição espacial
retangular se assemelhando a disposição espacial das comunidades rurais do interior do
Estado do Maranhão.
O arraial parece querer evocar esse espaço e tempo rurais perdidos, com uma aura de
romantismo apropriado. Neste sentido, qualquer lugar serve para fazer um arraial,
qualquer praça, qualquer terreno baldio, em qualquer bairro, por mais distante seja.
Às vezes, quanto mais dentro do mato e distante, melhor. Por isso São João se
espalha por toda a cidade e não apenas em seus espaços mais urbanizados. Em
praticamente todos os bairros abrem-se arraiais, muito deles freqüentados pela
vizinhança (ARAÚJO, E., 2001, p. 47).
É interessante pontuar que os arraiais o se localizam somente em áreas de terrenos
pertencentes à comunidade ou ao Poder Público, se localizando também junto as formas
urbanísticas s-modernas criadas especificamente para a apresentação das manifestações
culturais maranhenses, que são os chamados “Vivas”.
Os Vivas, ver foto 11, são arenas de forma circular ou semi-circular, envolta por
arquibancadas de concreto para abrigar pessoas sentadas, possuindo quiosques padronizados
para a venda de produtos, principalmente de bebidas. Os Vivas foram criados
majoritariamente nos bairros da cidade de São Luís e em cidades do interior do Estado nos
redutos em que se concentram os grupos de bumba-meu-boi e outras atividades da cultura
popular maranhense. Assim, temos os Vivas em sua maior parte na área periférica de São Luís
como: o Viva Madre Deus, o Viva Maioba, o Viva Maracanã, o Viva Liberdade, o Viva
em Deus, o Viva Monte Castelo, o Viva Anjo da Guarda, Viva Vila Embratel, Viva Bairro de
Fátima, Viva Cidade Operária e muitos outros mais. Devido a isso, a grande maioria dos
Vivas são mantidos e zelados pelos sujeitos celebrantes das manifestações culturais, que
cuidam e cobram o cuidado das autoridades dessas praças culturais.
70
Foto 11 Arquibancadas semicirculares ocupadas pelo blico no Viva Maioba, localizado
na periferia da cidade de São Luís.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha de, 21/04/2008.
A presença dos “Vivas” na cidade de São Luís, idealizado pelo Poder Público Estadual
a partir do Governo Roseana Sarney, trouxe uma visibilidade desta governante junto a cultura
local e o incremento da perspectiva do turismo (CARDOSO, 2008). Porém a presença dos
Vivas na cidade também pode ser compreendido como um reconhecimento oficial das
manifestações culturais através de uma marca definitiva impressa no espaço geográfico da
cidade, consolidando especialmente a manifestação do urrar do boi. Em outras palavras
estamos inferindo que a difusão dos Vivas” em São Luís na visão da classe dominante pode
até ser uma maneira de se legitimar diante os produtores culturais, mais para a visão dos
sujeitos celebrantes é um reconhecimento de uma luta sua em colocar ano após ano o boi para
urrar.
A construção do Viva Maioba para nós foi muito importante. Isso mostra que o boi
da Maioba e a nossa luta é importante para a cultura do Maranhão. Quanto mais
Viva construir por mais mostra a importância do boi para a cidade. Quem um
Viva lembra logo da festa junina com um boi que a gente faz com todo carinho
independente se foi “a” ou b que construiu o Viva (SR. RIBINHA, entrevista em
15/02/2009).
A citação acima mostra que a construção material espacial dos Vivas atendem a
demanda dos sujeitos celebrantes do boi além da demanda do turismo, mostrando que as
71
culturas tradicionais não vivem somente por meio dos interesses do “reconhecimento oficial”.
Assim parafraseamos Canclini (2006a, 2006b) colocando que o popular não pode ser
estritamente confundido como monopólio da indústria cultural e como massa de manobra da
classe dominante.
Mesmo reconhecendo o bumba e o seu redimensionamento contemporâneo como
objetos de consumo, fazendo parte de um processo maior de mercantilização da cidade com o
uso dos espaços do urrar destinados ao turismo, inferimos que o enraizamento comunitário do
boi não é totalmente substituído pelas leis de mercado e pelo turismo.
A brincadeira de pobre se tornou mercantilivel, uma “brincadeira de massa”, no
sentido de promover o consumo de massa, basta olharmos a grande concentração de pessoas
que lotam e engarrafam as ruas e calçadas próximas aos arraiais, enfim, toda uma
movimentação de pessoas para consumir a festa. O problema é que na maioria das vezes não
nos colocamos no papel dos sujeitos celebrantes do bumba e tendemos a reduzir o papel e a
atuação desses agentes nos arraiais da cidade apenas para atender as finalidades do consumo e
o para atualizar a fuão de celebração do bumba.
Se pensarmos que o maior de todos os objetivos de um sujeito celebrante do bumba é
fazer com que o boi viva e não deixe morrer, reconhecendo e transmitindo para a sociedade
todo um legado passado de geração para geração, a presença do novilho nas ruas, nos Vivas e
arraiais confirma esta manifestação cultural como uma dramatização dinâmica de experiência
coletiva baseada em experiências prévias (tradicionais), que respostas e vincula-se com o
contexto social vigente moderno (CANCLINI, 2006a).
É neste sentido, sem qualquer medo de crítica que possa ser tecida conosco, que
podemos chamar também os arraiais de “espaço da arte” do bumba, já que, além de atender a
finalidade do turismo, ajuda a reafirmar simbolicamente o bumba como sinônimo de
“maranhensidade”, conforme enfatizam seus sujeitos celebrantes:
Quando brincamos no arraial nós nos sentimo orgulhoso e muito motivado, porque
ali tamo mostrando para todo mundo a nossa cultura, tamo carregando a bandeira do
Maranhão. É bonito ver o boi dançando naquele movimento todo, aí vem uma
alegria toda, viu (...) (SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Não estamos fazendo nenhuma apologia a face do consumo que ronda o bumba, e que
de certa forma trouxe e traz ainda muitas modificações bastante polêmicas em torno do urrar
do boi e na produção do popular. Porém, como nossa pesquisa visa entender e difundir que
existe o outro lado da mesma moeda, a produção popular pelos sujeitos celebrantes e não
72
somente o papel legitimador” da classe dominante, colocamos que os produtores culturais do
boi podem também se deixar capturar pela modernidade para reelaborar a situação de seu
grupo no cenário boiero e também, de um modo geral, continuar reproduzindo o bumba em
toda a cidade de São Luís.
Então, da mesma maneira que o arraial com o turismo ali embutido possibilita a
dinamização das economias locais da cidade, concentrando muitas finanças para a elite
ludovicense, também um grande estímulo para a vida da produção cultural do povo, na
medida em que o boi também se interessa pelo cachê que permite tocar a brincadeira.
O cachê é fundamental para todos os grupos. Quanto mais dançarmos melhor, pois
assim ganhamos mais recursos para cobrir as despesas do boi que não são baixas,
pelo contrário, são muito altas. Para fazer o boi mais bonito e sem problemas mais
dinheiro é preciso (...) (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
Podemos dizer então que os arraiais para a vitalidade do bumba, bem como para o
interesse dos sujeitos celebrantes, realizam dois objetivos fundamentais que são: a atualização
(reafirmação) simbólica e a prosperidade econômica (financeirização). Desta forma,
mencionamos que os arraiais são necessários para o bumba se manter financeiramente
ganhando um cachê, e também para celebrar e difundir a brincadeira do boi mantendo a
tradição boiera no imaginário de toda a cidade.
Queremos deixar claro que esta definição em torno do urrar do boi não é uma leitura
idealizada por nós, e sim baseada na proposta de Carvalho, M. (1995) e sua classificação do
bumba entre o boi doméstico” e em “boi espetáculo”, mostrando a capacidade de os sujeitos
celebrantes do boi acionarem identidades tanto a nível celebrativo de modo a seguir com o
ritual do boi, como a nível de espetáculo se tornando uma atração para o turismo. Esta autora
chama esse caminhar entre o polo doméstico e o polo espetáculo de jogo de cintura:
Tudo parece indicar que um “jogo de cintura” onde o boi doméstico familiar
do Santo, que ligado a Ele tem o seu ciclo anual de vida e morte convive com o
boi espetáculo, que está sempre pronto a representar a cultura popular do Maranhão
funcionando o ano todo como uma atração turística [grifo nosso] (CARVALHO, M.,
op. cit., p. 110).
Afirmamos que nos arraiais não somente a face do “boi espetáculo”, mais tamm
do boi doméstico”, que, além de atender o princípio da atração turística atende o princípio de
celebração. Colocar o boi no arraial é colocar o boi para urrar, ou como dizem os brincantes, é
“botar o boi na rua”, e esse estar na rua, fora do seu terreiro de origem, faz parte do ciclo
celebrativo do boi, de sua vida, não se reduzindo a um simples espetáculo, pois a apresentação
73
no arraial não é uma apresentação deslocada, e sim é feita com o orgulho e identificação de
ser um boiero como vimos no depoimento dado linhas atrás pelo Sr. Calça Curta.
Na nossa visão, o arraial não tem a finalidade somente de converter um bumba em
mercadoria, atendendo exclusivamente as expectativas econômicas da classe dominante de
transformar a cultura em bem de consumo, pois o espetáculo do bumba no arraial alimenta a
celebração em torno do bumba.
Quando o boi vai para o arraial ganhar cachê, entendemos que o boi não está se
prostituindo”, pois qual é o boi que o vive ou já não viveu sem cachê? Em 1891, numa
época dos primeiros registros escritos sobre o bumba no Maranhão, vemos os sujeitos
celebrantes do “boi da Madre de Deus” cobrar porta de entrada para a apresentação do seu
bumba, conforme consta na seguinte nota do jornal “A Pacotilha”.
Viva o Boi da Madre de Deus.
Respeitável público!
Vinde domingo às 5 horas da tarde, na casa do administrador do Matadouro Público,
ver o mais popular folguedo do bumba-meu-boi.
Vinde passar umas horas divertidas e alegres, assistir aos altos feitos do jocoso Pai
Francisco e as joviais graças da espirituosa mãe Cathirina: Vinde que o boi da
Madre de Deus está na ponta.
Haverá uma banda de música que com seus maviosos accordes deleitará ao público.
A entrada será a seguinte:
Cadeira..........................400
Banco............................240
O encarregado,
Raimundo Nonato Pereira Leal.
O cachê é algo indispensável a vida de um bumba que precisa ter certos insumos que
o são adquiridos de graça. Até os anos 1970, os recursos financeiros podiam ser recolhidos
de outra forma que não fosse pelo dinheiro em si, mas por outros tipos de “moedacomo o
fornecimento de bebidas e alimentos a serem pagos por alguém que queria a apresentação do
bumba na porta de sua casa. Essa troca da apresentação por este tipo de cachê que já foi
bastante comum e hoje se de maneira escassa, pode ser vista nas palavras de Prado (2007,
p. 132) relatando a brincadeira de bumba num povoado do município de Guimarães nos anos
1970:
Cabe ao dono do boi, primeiramente, anunciar a “boiada” e mandar convocação para
seus ensaios. Estes se realizam em frente da casa onde mora o empresário, de modo
que ele deva suprir a alimentação dos brincantes que se deslocam muitas vezes de
outros povoados. Oferece farinha d‟água, bolo, cachaça, conhaque, guaraná. No
mínimo gasta cinqüenta cruzeiros em cada ensaio, o que explica que se o dono não
possuir o capital inicial para fazer movimentar a empresa acabará perdendo, por não
ter conseguido agradar os brincantes inicialmente convocados. Temos exemplo de
um dono que chegou a vender uma vaca, matou o boi, se desfez ainda de outras
74
reses, tudo para poder conseguir pagar as despesas. Mas estas não dizem apenas
respeito aos gastos imediatos despendido nos ensaios mas, igualmente, aos gastos
referentes à montagem do Bumba enquanto tal: a confecção do boi, a fabricação da
parte instrumental e o arranjo da indumentária [grifo da autora] (...).
Nos dias atuais, a renda obtida com as apresentações é muito importante para dar
continuidade a manifestação cultural do bumba-meu-boi que tem muitas despesas e custos
com materiais de reposição das indumentárias e instrumentos, bebidas, lanches, aluguéis de
ônibus, contas de água e luz da sede e outras coisas mais.
(...) o boi precisa de dinheiro para urrar, sem dinheiro não para fazer o que o boi
necessita que é comprar penas para a manutenção de roupas e para fazer mais
roupas, comprar bebida para dar pro pessoal já que o boi não pode ficar seco,
comprar merenda para as meninas que saem de índia e para as senhoras, precisamos
de dinheiro para reparar os instrumentos, para dar um agrado para o amo e os outros
cantadores e assim por diante (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
Fica então difícil tomarmos como referência que ganhar dinheiro nos arraiais é um
elemento incondicional de degeneração do bumba, já que ganhar cachê sempre foi e deve ser
encarado como algo fundamental para a existência dos grupos de boi no seu urrar na cidade
de São Luís.
Mesmo comprovando os arraiais como “espaço da arte” para o bumba, a sua referência
maior enquanto ato de festejar nesses espaços é calcada na “festa de representação que
apresenta “a divisão entre atores e espectadores, [no qual] os atores são os que participam
diretamente da organização da festa [instrumentistas e brincantes do cordão do boi], os
espectadores, os que participam indiretamente [o público]” (DUVIGNAUD, 1983 apud
CORRÊA, A. M., 2005, p. 150).
A emergência do ato festivo de representação nos força tipificar idealmente os espaços
do urrar do boi na cidade de São Luís em dois espaços: um espaço festivo mais orientado para
a celebração e outro espaço festivo mais orientado para o público. Aqui o classificados os
espaços do urrar do boi em São Luís em “espaços simlicos”, portadores de referências
simbólicas celebrativas e rituais e; “espaços espetacularizados”, portadores de referência para
um público.
Destrinchando mais os tipos espaciais do urrar do boi, os “espaços simbólicos” são
aqueles em que os sujeitos celebrantes têm como referencia maior, mais não única, a
prestação de contas com o ritual o batizado, a morte do bumba, os santos juninos e as
entidades afro-maranhenses. Já os “espaços espetacularizados” são aqueles em que os sujeitos
75
celebrantes m como referência maior, mais não única, o público que espera o boi para
brincar e olhar a apresentação trocada para receber um cachê.
Quando colocamos a palavra referência maior” queremos dizer que possibilidades
de o público poder vir penetrar nos “espaços simbólicos”, e tamm as celebrações podem
estar presentes nos ditos espaços espetacularizados”. Estas classificações são apenas tipos
ideais construídos para entendermos a organização dos espaços do urrar do bumba na cidade
de São Luís.
Inferimos então que na construção da cidade boiera de São Luís espaços que se
destacam pelo status de ser um espaço simbólico” para o urrar do boi, como também
espaços que se destacam pelo status de ser um “espaço espetacularizado” para o urrar do boi,
sendo esta classificação um elemento fundamental para mostrar os “nós” que comem a rede
complexa do urrar do boi
14
.
Essa classificação evidencia que os sujeitos celebrantes têm que se desdobrar para que
o bumba seja simultaneamente celebração e tradição de um lado, contrato e compromisso
oficial de outro lado. Deste modo, ressaltamos que no período festivo junino, a cidade boiera
de São Luís se faz simultaneamente como fonte de peregrinação dos boieros exaltando os
santos, as entidades e os rituais e; sendo mais ainda, o local de apresentação para o público
desfrutar do boi.
O espaço simbólico” do urrar do boi em São Luís se faz na preparação do seu reduto,
lugar de origem da manifestação cultural, para a realização do ritual sagrado do batismo e de
morte do bumba; no urrar do boi em um terreiro afro-maranhense se apresentando para o
encantado a ser pedido a proteção; na dança em frente ao altar na capela de São Pedro
localizada no bairro da Madre Deus agradecendo ao santo por mais uma temporada junina; no
desfile da festa de São Marçal no bairro do João Paulo urrando para homenagear a ligação
entre o bumba, o santo e o povo (ver foto 12), dentre outras situações do urrar do boi na
cidade.
14
As linhas desses nós, ou seja, os movimentos do boi entre tais nós são mostrados, sobretudo, no capítulo 04
que trata com mais ênfase o processo de construção das redes de sociabilidadedo bumba desde o surgimento
até os anos 1950, e depois dos anos 1960 aos dias atuais.
76
Foto 12 Boi da Maioba sob o sol escaldante do meio-dia na festa de São Marçal 2005,
bairro do João Paulo - São Luís (MA).
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha de, 30/06/2005.
O festejo de São Marçal é uma dos mais antigos da cultura popular maranhense,
surgida no ano de 1928. É a festa que encerra o calendário junino maranhense, realizada todos
os anos no dia 30 de junho no bairro do João Paulo em homenagem a São Marçal, reunindo
aproximadamente mais de 200 mil pessoas que acompanham desde a madrugada até o final
do dia o desfile dos bumbas sotaque de matraca que convergem para este bairro.
São em “espaços simbólicos” do urrar do boi da Festa de São Marçal que verificamos
intensamente, por exemplo, a dimensão celebrativa do boi, a fé e a devoção dos boieros para
com os santos e os rituais, reafirmando o ato de festejar enquanto participação e, sobretudo,
enquanto congregação de uma comunidade boiera sem distinções maiores de público e
boieros.
A festa é muito sacrificante pelo sol, mas o sentimento da gente pela festa é maior, a
gente sente orgulho de tá lá, porque é uma diversão, a gente com toda crença e
e muito amor [a São Marçal], quando a gente vai pra lá o sangue da gente ali fica
batendo forte, a gente quando entra vê aquela multidão de gente e carros se
arrepia, quem não vai no João Paulo não é boiero mesmo (...) é bonito, pulsa no
coração mesmo aquilo ali, a gente fica ali, é um esfoo da gente, compensando toda
aquela hora desgastante, a gente passa muita fome, calor demais, a gente fica
sufocado, mais vale a pena por São Marçal (SR. RIBINHA, entrevista em
15/02/2009).
77
Fica evidente que o bairro do João Paulo na festa de São Marçal se faz como um
espaço simlico” do urrar do boi na cidade de São Luís na medida em que tem como
significação maior cumprir a função ritual de atualizar um dos mitos de origem do boi, que
tem São Marçal como um dos protagonistas” (ALBERNAZ, 2004, p. 53). Por isso, a
homenagem a São Marçal se repete ano após anos com muito sacrifício e sem reclamação por
parte dos brincantes que aguentam o sol escaldante de São Luís, convertendo o espaço da
festa em lar, em espaço celebrativo de participação simbólica (CARVALHO, D., 2006) sem
promover uma distinção clara de espectadores.
A ligação do boi com a tradição e celebração é confirmada pela maior frequência junto
aos espaços sagrado da cidade nos festejos juninos, especialmente se falando das igrejas
católicas e o terreiro afro. Nas igrejas realizam-se missas, geralmente lotadas, sob proteção a
Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal, em que são feitas muitas promessas de
boieros rezando fantasiados com os trajes típicos do período junino. Nesse período junino
muitos grupos de bumba também entram nas igrejas da cidade, inclusive nas igrejas do seu
bairro de origem, pedindo proteção aos santos dançando em frente ao altar.
nos terreiros aumentam substancialmente a frequência de pessoas boieras pedindo
ajuda contra o mau-olhado, doenças, morte e outras mazelas para poder brincar no período
junino, como diz Dona Zefinha, Mãe-de-Santo do Terreiro Santa Bárbara no bairro do Quebra
Pote.
No terreiro aqui [terreiro de Santa Bárbara] perto de chegar o tempo do boi no mês
de junho aumenta e muito o movimento, mais por causa do pessoal que é ligado a
algum boi que vem pedir um trabalho. Movimento maior mesmo na nossa festa
no Dia de Santa Bárbara que vem gente de tudo quanto é lugar (...) (SRª. ZEFINHA,
entrevista em 22/04/2009).
nos “espaços espetacularizados” o público é a referência porque os sujeitos
celebrantes precisam do cachê para construção do bumba. São em tais espaços que os sujeitos
celebrantes do bumba admitem que a interação comercial com a sociedade, além de projetar o
mercado cultural, pode melhorar economicamente um grupo cultural fortalecendo as suas
relações internas (CANCLINI, 2006b).
A necessidade de se ter o cachê para fortalecer as relações internas fazem os sujeitos
celebrantes do bumba empreender uma grande força mobilizadora em meio a sociedade,
sendo convidado para dançar mediante uma troca financeira, acionando tanto o Poder Público
(o Estado, o Município), mas também os sujeitos institucionais de caráter privado - as grandes
78
escolas, as universidades, as empresas, os sindicatos, os hotéis, os comércios dentre muitos
outros mais que constroem seus arraiais.
Foi assim que os sujeitos celebrantes do boi da Madre Deus conseguiram articular
junto ao comando Geral da Polícia Militar uma apresentação no arraial dos policiais, visando
ganhar um cachê ao urrar para as famílias que freqüentam o arraial do Batalhão, de modo a
suprir suas necessidades financeiras. Desta forma, os boieros madredivinos se deslocaram
para o bairro do Calhau no dia 21 de junho, na alta temporada junina, dançando durante uma
hora no “Arraial da Pocia Militar”, conforme mostra a foto 13.
Foto 13 Boi da Madre Deus bailando no arraial da Polícia Militar no bairro Renascença, no
São João de 2008.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha de, 21/06/2008
A abertura do bumba em meio aos “espaços espetacularizados” é fundamental para
captar recursos. E “tecer contatos” é a melhor maneira de um grupo de boi dispor de mais
recursos financeiros necessários ao seu urrar, sendo este procedimento bastante usado pelos
sujeitos celebrantes do bumba como afirma o Sr. Zé Inaldo, presidente do boi da Maioba.
Tocar um boi é complicado viu. O cac que recebemos das apresentações dos
arraiais ligados ao Governo é bom mais é insuficiente para tocar um boi que tem
muita despesa como a Maioba. (...) A gente tem que trabalhar o tempo todo para
conseguir captar alguma janela extra, conseguindo mais apresentações que a gente
79
sabe que vai ter com a Secretaria de Cultura (...) (SR. INALDO, entrevista em
10/03/2009).
Ter mais apresentações além daquelas que são oferecidas pelo Poder Público faz parte
da habilidade e criatividade do sujeito celebrante do bumba em costurar canais de
comunicação junto a sociedade, que por nós é chamada durante a pesquisa de redes de
sociabilidade”.
Esse “ecletismo” do bumba em se mover entre “espaços simbólicos” e “espaços
espetacularizados” geram intensos conflitos, que os sujeitos celebrantes têm que acionar
constantemente faces identitárias com finalidades bem opostas, frequentando espaços tão
diferentes entre si. Dizemos em outras palavras que o boi enquanto celebração e o boi
enquanto contrato oficial se atritam identitariamente entre as perspectivas de tradição e
modernidade, gerando muitas tensões no seu situar entre o dilema simbólico e o dilema da
financeirização, provocando diversas opiniões sobre a movimentação e a chegada em torno
desses dois nós espaciais.
Em virtude das conflituosidades identitárias, existem boieros e/ou intelectuais que
tecem diversos protestos contra a chegada do bumba aos espaços espetacularizados”, sendo
contrários ao processo de encomenda” do bumba como mercadoria de apresentação, falando
da descaracterização do seu compromisso como celebração. Basta observar o protesto em
torno dessa situação por meio dos versos do poeta José Chagas (apud OLIVEIRA, 2003, p.
93-94) escrito em 1973, criticando a modernização e turistificação do boi:
Um turismo de poiera,
de cinzas do que se foi
sobre a amostra derradeira
de uma caveira de boi,
de um boi que morreu de tanto
ser forçado a carnavais, que são aqui o encanto
das áreas oficiais.
Boi que às vezes ressuscita,
que for do tempo dança,
e vem como uma alma aflita,
que, invocada em pajelança,
atua nos visitantes
e em quem é bom que se agrade,
mas sem ser o que era antes,
na sua autenticidade.
Boi fora de seu motivo
deturpado em festivais,
e às vezes até cativo
de farsas eleitorais
80
Boi para uso de quem,
num turismo de encomenda,
encobre o nada que tem
com o mito que se desvenda.
E assim a cidade é vista
pelos que chegando vão.
Pela cara do turista
improvisa-se a atração.
Turismo feito a minuta
como prato em restaurante;
cuxá de cozinha bruta,
para um tempo ruminante.
Existem também boieros e/ou intelectuais não concordando com as críticas inferidas
sobre a deturpação do boi”, colocando que o bumba se apresenta enquanto uma celebração
dentro do mundo da contemporaneidade, e que a inserção deste (do bumba) no contexto de
o-autenticidade cultural possibilitou o boi se multiplicar e não perecer. Segundo Godão,
diretor do Boizinho Barrica, as constantes mudanças no bumba são processos inevitáveis e
aceitáveis na sua constituição:
O Boi sempre pariu outros Bois na prostituição das cidades. Transformou-se dentro
de si. Adaptou-se às novas realidades. Os nascidos na Ilha ganharam matracas e
caboclos de pena. Os de Pindaré, cazumbas e rajados. Os de Guimarães, zabumbas e
tapuias de ráfia. Os de Rosário, orquestras e novos bailados. Os de Cururupu, uma
batida de costa de os. Os de Tutóia, um outro dobrado. E aí, quem prostituiu
quem? Os da Ilha? Os do Interior? Os do Litoral? Ou foi mesmo uma suruba danada,
pois até Parintins Garantido deu um Boi Caprichoso do ventre maranhense soprado!
Ou ainda que muitos dos nossos novilhos de hoje reapresentam a volta do vento
Norte às origens, mesmo distantes dos ares passados!
Foi assim que o Boi um dia surgiu e na calada da noite multiplicou-se nos prados.
intelectualidade “pata-cega” é que o tinha olhos pro Boi e a imprensa “tapada” é
que ignorava os seus “atos”. Mas, ao descobrirem o Bumba-meu-boi, quiseram
entendê-lo num passe de mágica. E fizeram o retrato do Boi que conheceram outro
dia, o modelo-padrão de autenticidade. Como se a vida da gente fosse um instante
sem outro, distante do mundo, da contemporaneidade. É a doutrina do “folclorismo”
dando regras ao Boi, ferrando o Boi, prendendo-o no lo. O que sai fora desse
curral é o que denominam “Prostituição do Boi”, Prevaricação do Boi”,
“Avacalhação do Boi”... É preservação e preservativo demais no pau da boiada!
(apud JORNAL PEQUENO, 2004, p. 01)
A polêmica que se constrói é que o “boi celebração” é colocado em detrimento ao “boi
compromisso oficial”, interferindo no entendimento sobre o que vem a ser uma continuação
da tradição e o que a ser uma fuga da tradição, por meio da sua inserção junto ao contexto
social vigente.
No nosso estudo de campo em meio ao boi da Maioba e o boi da Madre Deus,
presenciamos esta polêmica materializada no tipo de pandeirão ao qual o boiero deve
81
esmurrar”
15
. Há uma grande tensão em torno das opiniões dadas pelos sujeitos celebrantes do
boi da Madre Deus que defendem o uso do pandeirão tradicional de couro, em detrimento aos
sujeitos celebrantes do boi da Maioba que defendem uma abertura para o uso do pandeirão
moderno de nylon.
Os maiobeiros justificam que com o pandeio de nylon não precisariam mais
esquentar o instrumento, e assim não perderiam tempo nos arraiais para preparar a fogueira e
ficar sem gente tocando na percussão do boi, além de o atrapalhar a batida do bumba no
período chuvoso quando fica difícil de acender uma fogueira:
A gente usa pandeio de nylon para não gastar mais com couro que toda hora tinha
que ser reposto, agente agora não precisa mais carregar peso com a madeira, os
pandeireiros não precisam mais ficar um tempão sem tocar para poder esquentar,
assim a gente tem uma batida mais firme no boi, e quando vem chuva não temos
problema nenhum (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
Por sua vez os madredivinos criticam veementemente o uso pandeies
industrializados, defendendo o uso incondicional dos pandeirões de couro com justificativas
de defender uma tradição junina da fogueira de São João, que é a fogueira santa que estica o
couro dos pandeies:
Eu me reservo o direito de sugerir a muitos grupos que estão desvirtuando a
tradição, uma tradição muito importante que é a fogueira do boi, a fogueira do boi
de matraca principalmente, a fogueira que tem constar porque, porque ali que está a
homenagem que se faz a São João, padroeiro do bumba-boi e um elemento
fundamental da beleza que ajuda a boa coreografia do boi que é som do pandeiro
primitivo de couro (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/09).
Nesse momento, podemos dizer que os dois elementos, tanto o pandeirão de nylon
quanto o pandeirão de couro, podem e devem ser usados simultaneamente nas festas juninas,
uma vez que o primeiro se adapta melhor as novas situações de apresentações dos grupos, e o
segundo elemento preserva a figura de São João, padroeiro maior dos festejos juninos.
Essa coexistência nada pacífica entre “mudar” e “não mudar” não é uma discussão
contemporânea, muito pelo contrário, é uma discussão que acompanha o bumba muito
tempo, pelo menos comprovadamente desde o século XIX quando vemos o cronista
abolicionista João Pereira Domingos Sacramento no Jornal “O Semanário Maranhense” em
1868 preocupado com as mudanças no boi, sendo saudosista com um passado que estava
sendo perdido.
15
Esmurrar na linguagem boiera significa bater, batucar e tocar o pandeirão do bumba-meu-boi.
82
(...) Se essa razão do atrazo não é convincente, prezumo que se pode inventar a do
progresso, que tem feito a imaginação popular, e verdadeiro progresso à moderna,
vai isto dicto semintenção que caminha para peior.
Effectivamente as legenrias figuras do bumba d‟este anno não deram
especimens d‟aquele antigo sainete do boi dos tempos em que eu e vós leitores
moços éramos ainda crianças. na extravagância do vestuário eram exactas a
parecidas às de outr‟ora; as mesmas casacas velhas com enfeites de pedaço de papel
com excepção porém do caboclo guerreiro, que com certeza não tinha o brilho nas
pennas, o garboso cocar, o leve e ligeiro do enduape do caboclo antigo, que era em
tudo semelhante aos heróis indígenas do nosso poeta Gonçalves Dias.
Introduziram na folgança deste anno um repinicado de matracas com
acompanhamento de uns gritos estólitos dissonantes, que me arrepiavam as cannes
ao ouvil-os, sem a mínima lembrança de que outr‟ora uzassem de tais cousas na
figura do boi (...) (In: COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE, 2007, p. 14).
Atualmente, vemos que a existência e frequencia nos diferentes espaços do urrar do
boi incitam muitas tensões em torno do bumba. São os “espaços simbólicos” e os “espaços
espetacularizados” que motivam os sujeitos celebrantes do bumba negociar os dilemas entre
tradição e modernidade movendo-se pelo eixo que fica entre estes dois los, delineando suas
estratégias de sobrevincia junto aos espaços do urrar do boi na cidade de São Luís.
Se o bumba tem que se movimentar entre espaços de celebração” e espaços
espetacularizados”, as estratégias de sobrevivência inscritas por seus sujeitos celebrantes são
ligadas nas negociações entre permanecer e/ou modificar, já que estes diferentes espaços
alimentam percepções diferentes sobre o boi, pois, respectivamente, podem suscitar respeitos
e resistências nos espaços de celebração e excessos com negociações junto as
características da sociedade vigente nos espaços espetacularizados.
São essas negociações para transitar junto a este eixo espacial que revelam a
criatividade e a habilidade dos sujeitos celebrantes não em conduzir, mais em manter viva
a tradição do bumba-meu-boi do Maranhão. Essa movimentação em torno deste eixo faz do
bumba um sincretismo criativo e dinâmico, uma des-ordem em meio ao caos e a tensão da
luta pela vida. É no movimento espacial (in)tenso que os grupos sociais boieros vão buscar
elementos constitutivos de sua criatividade.
Concebemos que foi esse “sincretismo espacial”, a mistura tensa entre espaços
simbólicos” e espaços espetacularizados”, a força motriz dos confrontos e negociações entre
sujeitos celebrantes do bumba e a classe dominante, vindo estimular movimentos, mudanças,
resistências, novas alternativas e criação de estratégias.
83
3 FORMAÇÃO, PROCESSO DE RESISTÊNCIA E PODER DE NEGOCIAÇÃO
DOS SUJEITOS CELEBRANTES DA CULTURA POPULAR DE SÃO LUÍS
3.1 Indicadores da formação da cultura popular no espaço urbano de São Luís pela
ação dos sujeitos celebrantes (séc. XVI a 1ª metade do séc. XX)
É a longa história do confronto e da coabitação entre os atores sociais [dominantes e
subalternos] do início do período colonial em diante que é a chave do problema
[para se entender a formação da cultura popular do Maranhão] (ASSUNÇÃO, 1999,
p. 12).
Antes de os franceses chegarem a cidade de São Luís em 1612, sendo os primeiros
europeus a fundarem um núcleo urbano e a dar o nome a cidade, as terras ludovicenses eram
habitadas pelos índios tupinambás. Yves D‟Evreux (2002, p. 116), padre capuchinho francês
que fez parte da primeira expedição a São Luís, assim relata o convívio e as comparações de
vida dos franceses com os indígenas nos primeiros anos de fundação da cidade em carta ao rei
da França:
Os nossos tupinambás nunca tiveram idéia alguma da civilização ahoje: eis a
razão por que eles se esforçam, por toda a forma, de imitar os nossos franceses,
como direi depois.
(...) Aos Tupinambás, depois de dois anos de convivência com os franceses, estes
lhe ensinaram a tirar o chapéu, a saudar a todos, a beijar as mãos, a cumprimentar, a
dar os bons dias, a dizer adeus, a ir à igreja, a tomar água benta, a ajoelhar-se, a r
as mãos, a fazer o sinal da cruz na testa e no peito, a bater no peito diante de Deus,
a ouvir missa e sermão, ainda que nada disso compreendam, a levar o agnus dei, a
ajudar o sacerdote à missa, a assentar-se à mesa, a estender a toalha diante de si, a
lavar suas mãos, a pegar a carne com três dedos, a cortá-la no prato e a beber em
comum, e breve farão todos os atos de civilidade e delicadeza, que se costumam a
praticar entre nós, e se acham tão adiantados, a ponto de perceberem ter sempre
vivido entre os franceses.
84
Toda essa tentativa de fazer com que os Tupinambás assimilassem os valores dos
franceses do século XVII relatadas por Yves D‟Evreux se constituem como o primeiro indício
escrito de um processo de aculturação em São Luís, através da tentativa de imposição de
valores de um grupo dominante sobre um grupo subalterno.
Essa postura dos franceses em iniciar um processo de aculturação dos indígenas
tentando-os levar ao grau de civilidade” por meio de uma classificação de seu estágio como
“bárbaro”, entendemos como a primeira tentativa de impor uma cultura uniformena cidade
a partir dos valores dominantes e desprezando os valores do ditooutro”.
O mesmo processo de barbarização dado com os indígenas aconteceu intensamente
com os negros vindos da África para exercer o trabalho escravo no século XVIII em meio às
políticas pombalinas vigentes nas colônias brasileiras, inclusive em São Luís. Com a vinda
maciça de negros nas terras ludovicenses com as políticas pombalinas, vai haver um aumento
da densidade demográfica pela inserção de negros na cidade, provocando uma intensificação
das clivagens sociais e culturais que outrora já existia com os índios.
A presença do negro trouxe valores culturais diferenciados dos portugueses, o que fez
aflorar construções identitárias diferenciadas em relação a estes sujeitos dominantes. Assim, a
presença do negro em São Luís implicou em um processo ainda maior de formão de uma
cultura subalterna, em detrimento de uma cultura civilizada, devido a emergência do forte
contraste entre culturas que a cidade começava a experimentar. Desta forma, qualquer gesto
de manifestaçãodiferente” incomodava muito os membros da elite branca local.
Devido a este contraste cultural, tanto os negros quanto a elite local desenvolviam
estratégias para manifestar seus valores em detrimento do “outro”. Os negros no séc. XVIII
utilizavam as ruas para manifestar sua cultura, especialmente no período noturno, já que não
existia uma vigilância na rua por parte dos brancos, pois estar na rua a noite significava
promiscuidade” de acordo com os valores da elite dominante (MARTINS, A. A., ibid.). Em
São Luís, as ruas do atual Centro Histórico, área urbana da cidade neste século, se fazia como
espaços utilizados pelos negros manifestarem sua cultura.
A rua nesse período reforçava a segregação social existente na sociedade brasileira,
pois é nela que se manifestavam as hierarquias sociais. Nas ruas de cidades brasileiras como
São Luís podíamos ver a condição sub-humana do escravo como: objeto a ser vendido, como
o-de-obra do senhor no comércio, como lugar para as pessoas “proscuas”, e até mesmo,
como um local de açoite, servindo como o espaço da publicização de todos atos de clivagens
85
sociais, que condicionavam a condição subalterna do negro, e a condição dominante do
branco.
No que se refere à elite dominante branca e suas estratégias de construir as clivagens
sociais, estes usavam seus casarões, que atualmente compõem o patrimônio arquitetônico da
cidade (ver foto 14), como espaço da reclusão de suas famílias para não se “misturaremcom
os negros, guardando sua “integridade” sócio-cultural. Era no espaço das casas, nas grandes
salas, que estes faziam suas festas pomposas, recebiam suas visitas importantes, pois o
podiam estar na rua que era o espaço da “promiscuidade”.
Foto 14 Casarão que come a paisagem do Centro Histórico de São Luís.
Fonte: CARVALHO, Daniel Cunha de, 12/06/2009.
Por isso, narrativas históricas que falam das damas de sociedade desta época se
deslocando pelas ruas do atual Centro Histórico de São Luís, por meio de carruagens cobertas
carregadas por cavalos ou escravos, com o intuito de não se expor num universo de
promiscuidade”, pois a mulher que andava pela rua era considerada uma prostituta (LIMA,
C., 1981).
A simbolização da rua “promíscua” era interpretada de outra maneira pelos negros
como uma “brecha” para implementar estratégias de resistências diante da grande perseguição
dos brancos, aproveitando que a rua representava um universo da o intimidade para estes
grupos dominantes. Em virtude dos portugueses “amolecerema vigilância noturna nas ruas
86
durante o século XVIII, os escravos aproveitavam estes espaços para fazerem dele um local
de reunião para celebrar sua cultura.
no culo XIX, entre o período colonial e imperial brasileiro, com a intensificação
das atividades agrícolas, portuárias e comerciais em São Luís, uma necessidade cada vez
maior da elite dirigente estar na rua, o que faz desmoronar toda estratégia de resistência
utilizada pelo negro para se manifestar culturalmente tal qual vinha sendo feita no século
XVIII. Tal situação faz com que a elite dominante local monte mecanismos de controle social
e de clivagens culturais para se distinguir do negro, evitando o “inesperado, momentâneo e
incomodo encontro entre personagens de mundo separado” (MAGNANI, 2008, p. 02).
Diante disso, a elite local adotou regras, escreveu os códigos de postura” que tinha
por intuito evitar a circulação dos negros na cidade por motivos que não fossem de interesse
destes. O principal mecanismo para a coerção dos negros era a concessão do seu status
cultural a uma “agressão social” que deveria ser proibida, evitando qualquer ato de reunião
em determinados espaços da cidade (LIMA, C., op. cit.).
Domingos Vieira Filho (1978), importante folclorista e historiador maranhense que
fundou a Subcomissão Maranhense de Folclore rgão ligado a Comiso Nacional de
Folclore) nos anos 1940 junto com Antônio Lopes, comenta na Revista Maranhense de
Folclore sobre o código de Postura que vigorava em São Luís com a Lei 775 de
04/07/1866, artigo 124, ao qual proibia a realização de batuques fora do espaço designado
pelo Poder Público local.
Coibir atos como a reunião de negros e mestiços para não manifestarem sua cultura
próxima a elite ludovicense fazia parte do conjunto de estratégias para manter as clivagens
sociais e culturais, através do uso de demarcações espaciais entre “espaços tolerados” e
espaços não tolerados” para a manifestação cultural subalterna.
O controle social, representado pela polícia municipal, não admitia que quatro ou
mais escravos se reunissem em quitandas, onde se vendessem as chamadas bebidas
espirituosas (alcoólicas), ou nas ruas para tocarem tambores e fazerem suas danças.
Havia lugares específicos onde eram toleradas, geralmente nas áreas portuárias ou
nas periferias da cidade (MARTINS A. A., op. cit, p. 76).
O espaço demarcado servia para se realizar uma vigilância social e cultural na cidade
de São Luís, formando comunidades imaginadas
16
, ou seja, grupos separados de negros e
brancos. Assim, a elite ludovicense procurou confinar os negros em espaços que havia pouca
16
Comunidades imaginadas são grupos circunscritos em identidades coletivas geralmente construídas a partir da
rápida da expansão dos povos que criam uma conexão essencial entre lugar e cultura para o “misturar” as
várias culturas (GUPTA; FERGUSON, 2000).
87
circulação de seus membros, principalmente nas periferias e áreas subalternizadas da cidade,
distantes do espaço que se localizavam os grandes casarões residenciais da classe dominante.
O mapa 02 abaixo, adaptado a partir da planta de São Luís de 1844 que evidencia por linhas
cruzadas (quadrados) o entorno urbano padronizado por quadras da cidade, mostra, por meio
de uma visão holística da cidade, a demarcação de espaços como uma estratégia desenvolvida
pelas elites locais para marcar uma alteridade cultural, reduzindo os negros e mestiços as
áreas longe do eixo urbano, representado pela cor azul, não podendo estes agentes subalternos
frequentar o espaço central da cidade, representado pela cor vermelha.
Mapa 02 Espaços tolerados e espaços não-tolerados para as manifestações culturais
subalternas no século XIX seguindo os limites da zona urbana da cidade de São Luís.
Espaço não-tolerado (centro) Espaço tolerado (subúrbio e zona rural)
Zona suburbana (1) Madre Deus, Goiabal, Desterro...
Zona suburbana (2) Monte Castelo, Liberdade...
Zona rural - João Paulo, Anil, Maioba, Maracanã...
Caminho Grande
Fonte: Planta de São Luís de 1844 adaptado para o presente estudo, in: Burnett, 2008, p. 117
88
No centro de São Luís do século XIX estavam as áreas mais valorizadas e planejadas
da cidade, se destacando a divisão do espaço em quarteies, os casarões com os seus
sobrados, acompanhados de elementos que traziam um nível maior conforto para as
populações abastadas como galerias para a coleta de águas pluviais com dois metros de altura,
lampiões a óleo para a iluminação pública, chafarizes com águas canalizadas, dentre outros
elementos que garantiam a inserção de uma população de classe alta naquele espaço urbano
(BURNETT, 2008).
o subúrbio e a zona rural mostrados são mostrados no mapa acima por um vazio,
sem as linhas quadriculadas, de modo a evidenciar que não havia um planejamento moderno
espacial na periferia da cidade. eram vistos as construções residenciais feitas de taipa
(parede de barro e telhado de palha seca) que já eram proibidas no centro da cidade; animais
circulando no meio das ruas; ruas não calçadas; problemas de abastecimento de água público
e iluminação pública, dentre outros elementos que comprometiam o padrão de higiene e
ordem que não se tinha conforme a elite local s no centro de São Luís (MARTINS, A. A.,
op. cit.). Bairros que atualmente são considerados Centro da cidade como: Madre Deus,
Goiabal, Desterro, Apicum eram a periferia suburbana, assim como os bairros ao longo do
Caminho Grande como Vila Passos, Monte Castelo, Liberdade (círculo verde do mapa
acima); os outros lugares, a partir do João Paulo (fim do Caminho Grande), eram
considerados zona rural (círculo marrom do mapa acima).
Pelos espaços de frequência e não-frequência das manifestações culturais afros e
mestiças seguindo a delimitação urbana da cidade, podíamos ver uma ideologia que associava
os sujeitos celebrantes subalternos a algo anti-higiênico e que retrataria a desordem em São
Luís. Por isso, por exemplo, nesse século o se houve falar em terreiros na área central
elizada da cidade, no máximo nas periferias próximas a entrada do centro como no bairro da
Madre Deus, com a Casa da Minas e Casa de Nagô, terreiros afros que persistem até os dias
atuais.
Em meio a circunstâncias espaciais desfavoráveis que dificultavam a existência de sua
manifestação cultural, os negros passaram a encontrar outras “brechas” de resistência para
continuar celebrando a sua cultura. Uma das estratégias utilizadas pelos negros foi entrar nos
espaços do branco sem serem notados, sincretizando a sua cultura junto com elementos da
cultura do branco, principalmente se levando em conta os negros escravos que viviam na área
urbana sob a tutela do seu dono.
89
Nas cidades brasileiras, como na São Luís do século XIX, os negros e mestos
desenvolveram intensamente o processo de mestiçagem cultural que tinham duas finalidades:
exercer um papel de ação social com críticas implícitas ao sistema colonial e defender tais
populações dos excessos do sistema escravocrata (DEL PRIORI, 2000).
Esta estratégia de “sincretismo cultural borrou as fronteiras em torno das culturas
clivadas - entre cultura subalterna e cultura dominante - a ponto de confundir o controle social
sobre estes sujeitos celebrantes que se encontravam em posição desfavorecida na sociedade.
Diante dessa “con-fusão” cultural dado pelo sincretismo, a elite local interpretava de várias
formas as manifestações da cultura negra, ora vendo como elemento nocivo a sociedade, ora
vendo como algo inocente, sem nenhum perigo a sociedade.
Os diversos sentidos e as várias formas da festa no mundo da escravidão
frequentemente confundiam os responsáveis por seu controle. Senhores,
autoridades políticas, policiais e eclesiásticas com freqüência discordavam no que
fazer diante dela. Por um lado, podiam encará-lo como ensaio para a revolta,
prejuízo a produtividade escravista, costume bárbaro e assim algo inteiramente
pagão. Por outro, podiam vê-la como elemento pacificador das tensões do
escravismo, distração saudável da faina escravista, acomo direito adquirido do
escravo, sempre que estas festas não passassem de folguedos honestos e inocentes
(REIS, J. J., 2001, p. 340).
Neste sentido analítico, Del Priori (op. cit.) fala que culturas específicas como a negra,
a índia e a ocidental se fecundaram mutuamente, fazendo circular de uma para outra, de
acordo com a intensificação do controle social, novos símbolos e produtos culturais nas
cidades brasileiras, revelando o processo de resistência implementado pela classe subalterna
criando a cultura popular, aqui no nosso caso específico a cultura popular na cidade de São
Luís.
No século XIX, São Luís continuava ainda marcada por traços culturais distintos
postos por uma cultura da elite em detrimento de uma cultura do negro e mestiço como no
período pombalino do século XVIII. Porém como vimos, este período diferencia-se do século
XVIII através da complexificação do uso de estratégias delineadas por meio da luta pela
sobrevivência das culturas subalternas na medida em que um cruzamento maior entre tais
sujeitos sociais díspares junto ou próximo a zona urbana da cidade de São Luís.
A tensão entre negros e brancos se intensificou e se acirrou ainda mais no século XIX
na cidade de São Luís através da consolidação urbana com a formação de uma classe
comercial burguesa enriquecida pela próspera atividade algodoeira do Estado. Assim é
retratada a áurea fase algodoeira no Maranhão:
90
A guerra de Secessão nos Estados Unidos (1860-1865) e a libertação dos escravos
americanos (1862-1865) privaram a Inglaterra do maior fornecedor de algodão à
sua importante indústria de tecidos. Tal fato provocou vertiginosa alta de preços,
vindo a beneficiar de modo excepcional os produtores maranhenses. O preço da
arroba subiu de 3$500 para até 30$000 (LIMA, C., op. cit., p. 166).
Em virtude do enriquecimento da elite ludovicence com a venda de algodão para a
Inglaterra nos anos 60 do século XIX em meio a guerra de Secessão nos Estados Unidos,
implantou-se na cidade uma construção ideológica que reforçava os valores dominantes
perante os valores subalternos, de modo a elevar a cultura erudita como aspecto identitário da
cidade através da chamada “Atenas Brasileira”. Com uma grande circulação de riquezas, com
a criação de uma burguesia letrada que estudou na Europa, a classe dominante ludovicense
começou a forjar a identidade de São Luís como a Atenas Brasileira, colocando a imagem de
um pequeno grupo de contemporâneos do escritor Gonçalves Dias como o retrato da cidade
letrada, mesmo com a maioria da população sendo iletrada.
Um dos fundamentos que corroborou com esta construção de uma identidade forjada
da Atenas Brasileira foi resignificar a fundação de São Luís não mais pelos portugueses e sim
pelos franceses, o que interessava muito a elite local, que a França e a sua capital Paris,
eram os maiores sinimos de civilidadeerudita no mundo durante o culo XIX. Foi nesse
contexto inventado que reconheceram oficialmente” um fundador francês para São Luís,
passando de Jerônimo de Albuquerque, chefe da expedição portuguesa que expulsou os
franceses de São Luís no século XVII, para o fidalgo francês Daniel De La Touche Senhor De
La Ravardière, chefe da expedição francesa a Ilha em 1612, o reconhecimento como fundador
da cidade (LACROIX, 2000).
A definição da cidade como Atenas Brasileira no século XIX exacerbava ainda mais
as clivagens culturais existentes em São Luís, colocando a identidade erudita em detrimento a
uma cultura negra e mestiça considerada bárbara. Diante desse constructo, o sistema de
vigilância sobre a cultura subalterna foi intensificado para se impor cada vez mais os valores
europeus modernos, realçando ainda mais a subalternização dos “não eruditos” na cidade.
Com a imagem constrda da Atenas Brasileira, a noção de civilizar a sociedade
ludovicense passou a ser a palavra de ordem a partir da segunda metade do século XIX,
aumentando ainda mais a repressão aos subalternizados da sociedade. O que o seguia o
padrão cultural europeu passou cada vez mais a ser perseguido ou ainda mais severamente
confinado em espaços demarcados para não se misturar com a cultura erudita posta pela elite
local.
91
A intenção era reforçar os “costumes modernos europeus” para a população como um
todo, reafirmando ainda mais os códigos de posturas calcados em uma racionalidade moderna
de limpeza, proibindo a presença de animais na rua, forçando a pintura das casas pelo menos
uma vez por ano, a periódica restauração da fachada das casas, a limpeza diária das áreas em
frente às residências até o meio da rua, tudo isso com o intuito de melhorar o padrão estético
da cidade (MARTINS, A. A., op. cit.). Assim, os agentes dominantes visavam reforçar a
civilidade, os costumes e crenças eruditas de uma “francesa bela” junto a cidade.
Essa situação de limpeza dos espaços da cidade também passava por “varrer” mais do
que nunca os costumes do negro e mestiço da zona urbana da cidade, reforçando as leis e a
vigilância policial blica, coibindo com mais repressão o acesso da cultura subalterna nas
principais ruas da cidade, com intenção de “melhorar” a imagem de São Luís.
A situação de limpeza espacial era uma estratégia potica nacional implementada a
partir do período imperial brasileiro para afastar os sujeitos subalternos das áreas centrais das
cidades, revelando a intenção de padronizar a sociedade brasileira aos moldes da civilização
europeia (CHALHOUB, 1996 apud FERNANDES, N., 2001), se difundindo muito em São
Luís com os ares ideológicos franceses e atenienses.
O ato de civilizar tecido pela elite ludovicense no século XIX reforçando a intenção de
proclamar São Luís como cidade cultural “moderna” persistiu ainda no contexto social de
desagregação da ordem escravocrata que se passava pelo Brasil em meio a Proclamação da
República, emergindo e aflorando muitas contradições sociais.
O progressivo fechamento do cerco contra a escravidão mexeu muito no ego das elites
locais que passaram a vigiar mais tudo aquilo que ameaçasse a sua posição social, os seus
hábitos e os seus valores, principalmente se falando das manifestações culturais afro e a sua
ameaça” a ordem social.
Diante de um início de uma desagregação dos componentes escravocratas, com alguns
negros conseguindo comprar a carta de alforria que dava sua liberdade, com os idosos negros
o podendo ser mais escravos, com a maior circulação de negros livres pelas ruas da cidade,
aumentou-se a vigilância policial para que seus atos não incomodassem a elite local.
Com o icio da ascensão do capitalismo no Brasil nas últimas décadas do século XIX,
houve um processo de “desencontros” entre os membros da classe dirigente urbana no que diz
respeito ao protecionismo dado pela elite ao sistema escravista, especialmente se pensarmos
na figura do abolicionista, agente social que defendia o fim da escravidão para a inserção do
país nas bases progressistas do capitalismo.
92
Essa situação de racha” na elite durante a abolição da escravatura foram insuficientes
para mudar a conjuntura sócio-cultural adversa do negro e mestiço apesar da nova ordem
social vigente. Sobre esta “nova e velha” conjuntura, pensando a situação de São Paulo o
sociólogo Florestan Fernandes (1978, p. 16) falou que o negro e o mestiço
17
na verdade “não
passava de um aríete, usado naquele momento como massa de persuasão pelos brancos que
combatiam o antigo regime” [em que] mesmo os abolicionistas mais íntegros e tenazes o
puderam ser seus porta-vozes válidos”.
Em cidades brasileiras como São Luís, apesar da queda definitiva da escravatura no
final do século XIX, os negros ainda surgiam como agentes sociais desprivilegiados,
principalmente no que tange a sua produção cultural. A sociedade urbana brasileira “largou o
negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a possibilidade de reeducar-se e de
transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento
do trabalho livre e do capitalismo” (FERNANDES, F., op. cit., p. 20).
Na cidade de São Luís as dificuldades se deram pelo fato do novo burguês capitalista
da eminente indústria têxtil ser outrora o senhor da atividade agrária, sendo ainda o detentor
do poder econômico e político local, continuando a difundir seus valores culturais em
contradição aos valores culturais dos negros e mestiços.
No início do século XX, as grandes transformões econômicas com a inserção da
indústria têxtil na cidade, junto a imersão de São Luís no capitalismo comercial formando um
proletariado urbano, foram insuficientes para apagar as clivagens e a mentalidade colonial
sobre a cultura e a sociedade.
Apesar da nova fase do capitalismo comercial e concorrencial, a sociedade ainda
encontrava-se dividida entre valores culturais dos negros separados dos valores culturais da
elite dominante criados em meio à colonialidade brasileira. Os mesmos preconceitos, medidas
e estratégias de clivagens culturais postos pela elite local contra a cultura negra no período
escravocrata, ainda persistiam até boa parte da primeira metade do século XX. O Poder
Público assentado na lei era constantemente acionado para coibir qualquer tipo de
manifestação atrelada as classes subalternas neste período.
Durante a primeira metade do século XX medidas típicas do período colonial, como
enclausurar espacialmente as culturas de origem africana, continuavam sendo práticas
17
Mesmo encontrando, a partir do final do século XIX e início do século XX, negros e mestiços na elite, estes
eram exceções que a sua posição social ainda ficava à margem do processo apesar das novas relações de
produção capitalista nos centros urbanos das cidades brasileiras, como em São Paulo. Em suma, o negro ainda
surgia como figura deslocada na sociedade. Basta ver a obra “A Integração do Negro na Sociedade de Classes
(FERNANDES, F., 1978).
93
“legais” escritas em leis e sujeito ao policiamento estatal - postas pela elite. O componente
espacial, através da demarcação de espaços tolerados e não tolerados para os batuques afros,
ainda era o principal mecanismo utilizado para separar as culturas de laços africanos da
sociedade.
Na primeira metade do século XX “como no caso dos batuques negros, existia [ainda]
então uma lógica espacial que refletia as relações de poder entre autoridades e classes
subalternas, opondo um centro civilizado” onde não se tolerava tais barbaridades, às
periferias onde era difícil impedi-los” (ASSUNÇÃO, op. cit., p. 11). Mais também passava a
ter situações que até mesmo na zona rural a cultura do negro e mestiço continuava sendo
perseguida (FERRETTI, M., 2002).
A “segregação espacial” era uma medida típica da elite brasileira para conter o avao
da cultura negra nas cidades brasileiras. Pesquisando sobre o surgimento das escolas de
samba, Fernandes, N. (2001) e Maia, C. (2003) colocam também que houve delineamento de
estratégias espaciais pela elite local do Rio de Janeiro no início do século XX a partir do
ideário modernista da belle époque, realocando a ralé” (compostas por muitos sambistas)
para os morros da cidade e outras áreas segregadas, com o intuito de distanciar os agentes
subalternos das áreas centrais da cidade habitados pela elite dominante carioca.
Confinar e imobilizar espacialmente as culturas negras e mestiças em locais longe da
presença da classe social dominante, reduzindo estes as áreas periféricas e rurais eram práticas
recorrentes utilizadas pela elite ludovicense através de uma cuidadosa vigilância policial para
que tais manifestações culturais não chegassem aos olhos e ouvidos dos abastados nos
espaços nobres da cidade. Foi neste contexto do início do século XX, mais precisamente
durante os anos 1920 a 1940, no governo estadual de Paulo Ramos, que a grande maioria das
casas de culto afro e mestiça foram gradativamente deslocadas para a zona periférica da
cidade, em virtude das constantes investidas da Força Policial (FARIAS FILHO, 2003).
A zonificação dos espaços urbanos para se ter ou não ter as manifestações de cultura
afro permitia a inserção prática do discurso de sanear a urbe dos elementos que traziam algo
que era tido como desagradável a cidade, inserindo a sociedade ludovicence nos ditos moldes
modernos, que tais culturas populares subalternas escandalizam e perturbavam a sossego
público e, mais ainda, comprometiam o desenvolvimento da cidade como mostra a
reportagem de 30 de junho de 1915 do jornal “A Tarde”, mostrada por S. Ferretti (2008, p.
04).
94
[o bumba-meu-boi] percorreu as ruas da capital naquela algazarra infernal...
escandalizando a nossa civilização e perturbando o socego público. Há tempos que
essa [e outras] brincadeira para os pontos afastados da urbe, de vida menos intensa e
agitada e de menor progresso e desenvolvimento [...]
Neste lapso de tempo havia um grande inmodo sentido pela sociedade que habitava
a zona urbana central da cidade com o barulho provocado pelos tambores das casas de cultos
e outras manifestações de cunhos afros (como o bumba), sendo usado constantemente o
aparelho público para “calar a boca” do povo classificado como desordeiros”, forçando os
líderes das casas de culto e a fecharem seus terreiros a abandonarem suas Casas dentro da
zona urbana (FARIAS FILHO, op. cit.), como também a deslocarem os boieros para a
periferia pouco intensa não agitada da cidade” em virtude da forte repressão policial.
Porém vemos resistências e estratégias de divulgação da cultura subalterna para a
cidade que excluía com os sujeitos celebrantes subalternos ao desafiarem as normas do Poder
Público da cidade, como os boieros que iam ao Centro proibido colocar o boi para urrar no
meio da Praça João Lisboa, um dos lugares de maior movimento da zona nobre de São Luís
do início do século XX, ainda na continuação da reportagem de 30 de junho de 1915 do jornal
“A Tarde”, mostrada por S. Ferretti (op.cit., p. 04).
[...] Mas agora o boi investiu contra a cidade e vai a Praça João Lisboa [na área do
Centro], ao nosso principal salão público, ponto mais central, mais cuidado do
município [de São Luís] e aí volta a exibir a sua grotesca e brilhante ruideza. Coisas
da época.
Outro exemplo são as Casas centenárias de culto afro que permanecem até hoje na
área do Centro de São Luís e proximidades, que estão ali porque os seus sujeitos celebrantes
souberam no início do século XX encontrar “brechas” de resistência e de diálogo com a elite
dirigente que “liberava” seus espaços para continuarem batucando sem conseqüências
maiores das repressões policiais, mesmo com as leis excludentes existentes e a sociedade
ainda bastante clivada moralmente.
O exemplo mais contundente a ser citado é a Casa das Minas, localizada na Rua de
São Pantaleão no bairro da Madre Deus, próximo ao Centro da cidade, que em meio a uma
onda de despejos das Casas de Culto afro do Centro e proximidades nos anos 1930, evitou o
seu fechamento por meio da habilidade de seu sujeito celebrante, Mãe Andressa,
estabelecendo uma rede de relações com o então Governador do Estado do Maranhão Paulo
Ramos.
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A Casa das Minas foi uma atingida nessa parte. Ficaram uma temporada sem tocar
os tambores e tinha toda festa interna, mas não tocando tambor. Como Mãe
Andressa foi de família de escravos que pertenceram a família de Paulo Ramos
não sei porque, se era por isso, os nomes das pessoas nessa época, pertenciam aos
senhores é que ela tinha o sobrenome da família de Paulo Ramos, Andressa Maria
de Souza Ramos.
Ela [Mãe Andressa], conversou com ele, pediu uma entrevista, queria falar com ele
sobre a Casa das Minas. Foi como deliberou para tocar o Tambor e nem o pouco
mudar do meio da cidade (...) nessa época todos os terreiros que eram mais
próximos, que não tiveram uma boa comunicação com o Governador, o ficaram.
Porque ela [Mãe Andressa] falou pela Casa das Minas, e também influenciou logo a
Casa de Nagô, porque era uma casa ligada com a outra, então ficaram estas
colocadas na cidade (MARANHÃO, 1997, p. 93-96 apud BARROS, 2007, p. 10-
11).
Esta estratégia de resistência e diálogo construída por Mãe Andressa, que dirigiu a
Casa das Minas de 1914-1954, mostrava a importância da criatividade e habilidade dos
sujeitos subalternos em negociar com os agentes dominantes a permanência da cultura
popular na sociedade, por mais adversas e precárias que fossem as condições de inserção
sócio-espacial.
Ao não reagir passivamente as condições adversas delineando estratégias de
sobrevivência, os sujeitos celebrantes das Casas das Minas se tornaram fundamentais para a
sua cultura persistir ainda nos dias atuais, mesmo sendo constantemente acusados de
curandeirismo, bruxaria e magia”, sofrendo perseguições policiais e sócio-modernas.
A Casa das Minas testemunham a resistência do negro (...) A Casa das Minas, de
São Luís (MA) conseguiram chegar aos nossos dias continuando muitas tradições
africanas e preservando muitos aspectos da língua, culto, mitologia, música, dança, e
outros tantos elementos da cultura de seus ancestrais africanos (FERRETTI, S., 1996
apud FERRETTI, M., 2002, p. 16).
As resistências se faziam com as habilidades e criatividades dos negros e mestiços que
eram líderes dos terreiros, desenvolvendo objetivos e estratégias para que o seu legado
cultural permanecesse no meio social, conforme mostra a situação posta em relação a Casa
das Minas.
A resistência também se fazia ao som de muito batuque nos tambores. A batucada
exprimia e retratava a fé, a revolta e o júbilo dos negros e mestiços, que não ficavam acuados
diante das adversidades enfrentadas, procurando espalhar para o resto da cidade o seu legado
cultural (BARROS, op. cit.), a partir da musicalidade contagiante.
Os negros tornam-se então agentes decisivos para assinalar no Maranhão um período
cheio de contradições e muitas ambiguidades, ao resistir uma opressão por sua batucada e ao
circunscrever uma “negociação” com a elite dirigente ludovicense que a excluía em meio ao
96
contexto sócio-espacial adverso da primeira metade do século XX. Essa ambiguidade se
construía, simultaneamente, em meio a muitas perseguições junto a um processo de
identificação da cultura popular e negra como algo da “maranhensidade” (BARROS, op. cit.).
Dentro de uma perspectiva das “relações exteriores” ao mundo das manifestações de
cultura afro, ressaltamos a importância dos intelectuais para ocorrer a gradual” abertura da
cultura subalterna e sua valorização junto a uma identidade nacionalista e regionalista. É
inegável, como exemplo maior, o valor das ideias freyrianas de mestiçagem
18
, reconhecendo o
negro na formação social brasileira, sendo um grande difusor da sensibilidade para com a
cultura subalterna na formação das cidades brasileiras (ORTIZ, 2006a; 2006b), inclusive em
São Luís. Porém esse contexto não pode negar que a permanência da cultura de origem afro
na sociedade se deu somente por esse momento ideológico nacional e regional de se buscar
uma essência identitária, sem mencionar as resistências e as estratégias de existências próprias
das “relações interiores” dos sujeitos celebrantes.
Claro que a coisa é tão complexa chegando ao ponto de que não podemos negar a
relevância do papel da elite intelectual na legitimação da cultura negra de modo a consagrá-la
como identidade maranhense, vendo Domingos Vieira Filho, Fulgêncio Pinto e Astolfo Serra
e Antônio Lopes, membros importantes da elite política e intelectual da primeira metade do
século XX defendendo a cultura negra e mestiça, tentando integrá-la junto a identidade local
pelos seus estudos em torno da formação histórico-regional do Maranhão (BARROS, op. cit.;
MARTINS, A., 2003).
Mais o que queremos também é enfatizar todo um processo de resistência e existência
do povo implementado pelos agentes subalternos que o podem ser desprezados e nem
tampouco substituídos pelo papel dos intelectuais na emergência da cultura do povo. Tem que
ser considerado relevante tão quanto o papel dos intelectuais de inspiração freyriana.
Mostramos que no embate de um campo de forças, os sujeitos celebrantes da cultura
popular desenvolveram várias estratégias indispensáveis para sair dessa condição adversa ao
qual se encontravam, garantindo a condição existencial de suas manifestações. Uma das
estratégias desenvolvidas era contrariar a demarcação cio-espacial (im)posta pela elite local
18
Sobre o entrelaçamento da fábula freyriana das três raças (mestiçagem) junto a criação do Estado Moderno
brasileiro Ortiz (2006b, p. 38) conta o seguinte: A ideologia do Brasil-cadinho relata a epopeia das três raças
que se fundem no laboratório das selvas tropicais. Como nas sociedades primitivas, ela é um mito cosmológico,
e conta a origem do moderno Estado brasileiro, ponto de partida de uma cosmogonia que antecede a própria
realidade”. Esse processo lento de aceitação da cultura popular no Maranhão coincide com o momento
ideológico de um processo de aceitação da cultura do povo em todo o território brasileiro, o que nos permite
dizer que a formação da “maranhensidade” assumia e integrava o projeto nacional de busca por identidades
elaboradas em meio a cultura brasileira.
97
rompendo as fronteiras e os limites sócio-espaciais que assinalava a cultura do povo como
algo próprio da periferia da cidade, fazendo-a emergir na cena pública da cidade.
Cremos que os sujeitos celebrantes dos terreiros afros faziam questão de ficar
próximos à zona urbana da cidade, já que a periferia delineava uma condição de confinamento
ao qual desvinculava a cultura negra da relevância social, relegando-a como uma espécie de
ópio social”. Dizemos que o negro e o mestiço, através da sua intenção em se garantir junta a
zona urbana valorizada da cidade, negavam completamente sua condição existencial adversa,
testemunhando uma resistência com vistas a traçar um projeto identitário com perspectivas de
afirmarem à sociedade a importância do seu legado cultural.
É assim que na primeira metade do século XX, sobretudo a partir dos anos 1930, as
classes populares subalternas brasileiras, para construir seu mundo em condições adversas,
resignificaram, filtraram e organizaram o que veio da cultura hegemônica de modo a
encontrar um futuro favorável, travando uma luta cotidiana para ocupar a cena do espaço
público, garantindo a vitalidade da cultura popular pela construção e disputa de espaços
geográficos estratégicos na cidade (FERNANDES, N., 2007).
Vamos ver que a presença das pessoas “comuns” no espaço urbano mostra as
resistências, os projetos identitários, as habilidades, os ritmos, as vivências e, sobretudo, o
poder de negociação destes com as elites locais como suportes importantes para trazer à tona a
cultura popular como identidade celebrada na cidade de São Luís. Foi a conquista e a
permanência no espaço urbano um dos elementos que possibilitariam o início de uma queda
das impressões negativas em torna da cultura negra e mestiça.
Quando os grupos populares resistiam e existiam nos espaços urbanos centrais, houve
um passo essencial para uma fixação de símbolos identitários negros e mestiços como
símbolo da identidade ludovicense, pois a cultura subalterna estando aos olhos de todos faz
com que seja mais fácil de ser imaginada, vivenciada e experimentada.
Os anos 1920-1940 foram momentos fundamentais para se delinear uma identidade
regional pelo uso da cultura do povo, através de um caráter processual de conquista
empreendida por estes sujeitos sociais celebrantes, longe de ser uma conquista dada por uma
condição natural própria das circunstâncias (BARROS, 2006), sendo sim uma conquista
construída.
O que houve foi uma intensa e tensa negociação do povo com os agentes dominantes.
A nova mentalidade da estrutura urbana dada a partir dos anos 1920 por meio do trânsito entre
os diferentes grupos, através da melhoria progressiva dos serviços urbanos em meio a
instalação dos primeiros bondes (tração animal), melhoria das vias rumo ao centro da cidade,
98
especialmente no trecho Centro povoado do João Paulo em meio a Estrada chamada de
Caminho Grande, trouxe além do início de uma “integraçãocentro e periferia, uma tensão e
um processo de negociação das classes subalternas e dominantes, que penetrando na malha
urbana, revelou a habilidade dos sujeitos celebrantes do povo em estruturar a sua cultura
popular como uma identidade regional do maranhense.
A nova conjuntura urbana que se deu na primeira metade do século XX de inclusão
precária da periferia nas ações do espaço urbano desencadeou muitas negociações no sentido
de a cultura subalterna penetrar na centralidade física e simbólica da cidade, que como
veremos mais a frente com o boi, foi decisivo para os sujeitos celebrantes tecerem
coletivamente as redes de sociabilidade aos quais garantiram a condição existencial da cultura
do povo.
Por enquanto, por meio deste item, mencionamos que se não interessasse aos sujeitos
celebrantes que criam a cultura popular garantir a presença de seu legado cultural no mundo
como modo de dar sentido as suas vidas, certamente não estaríamos hoje falando de cultura
popular (CANCLINI, 2006b) mesmo com a existência do processo de mercantilização que
tende a cooptar os valores do povo.
Em virtude de tal situação, reafirmamos que não podemos dizer que a cultura popular
em São Luís chegou a este grau de legitimidade e reconhecimento devido somente ao papel da
elite dominante, intelectual ou não-intelectual, que passou a reconhecer o simbolismo cultural
das pessoas comunsna identidade local e regional.
Quando mostramos o povo na nossa abordagem, não queremos negar o papel dos
sujeitos da classe dominante na produção cultural, e sim mostrar a existência de outra via
analítica que venha colocar que o povo existe e atua - e não somente a classe dominante - na
produção do espaço cultural popular ludovicense em sua trajetória de evidência social e
simbólica.
O que nos interessa é mostrar daqui para frente que, afinal de contas, o povo existe,
resiste, faz e projeta sua cultura, não sendo este (o povo) uma mera massa de manobra ao bem
dizer da classe dominante, como muitos podem pensar ao ver a cultura popular negra
recriminada no passado que de uma hora para outra passou a ser mercantilizada e fonte de
lucro para os agentes privilegiados.
Fica aqui registrado neste item o recado de Barros (2008b), mostrando a importância
dos sujeitos celebrantes no caso aqueles ligados ao boi em fazer com que o bumba
chegasse a cena blica da cidade, e lógico, além da evidência social, a sua sobrevivência
enquanto um legado cultural:
99
Se não se pode superestimar, também não se deve subestimar o fato de que a
resistência histórica [colocamos aqui também geográfica] dos populares diante dos
processos de repressão perpetrados pelas elites levou parte significativa da
população maranhense, em geral ligada a grupos subalternos, a manter ligações
profundas com os bumbas-meu-boi, e isto deu condições de possibilidade para que
essa produção cultural sobrevivesse. Se, posteriormente, indivíduos como
intelectuais, por exemplo, selecionam, a partir de suas próprias perspectivas,
determinadas produções culturais como temas de tradições regionais, isso se torna
possível porque diversos atores e sujeitos sociais contribram, ao longo da história,
para a efetiva existência dessas produções (BARROS, op. cit., p. 14).
Chegar à cena blica da cidade não foi fácil! Mas as resistências dos sujeitos
celebrantes foram o primeiro passo essencial para existir uma forte presença da cultura
popular em São Luís, sendo estes sujeitos protagonistas para incitarem um processo
existencial de difusão positiva do legado cultural negro e mestiço na sua ascensão como
símbolo de identidade da capital e do Estado do Maranhão, especialmente se levarmos em
conta a busca insistente pela ocupação no espaço público central da cidade.
3.2 A modernização da cidade de São Luís e a construção da cultura popular
maranhense pela ação dos sujeitos celebrantes (a partir da 2ª metade do séc. XX)
A cidade de São Luís era uma rua, pode-se dizer. ia até o canto da Fabril, o
chamado Caminho Grande. Tudo era no escuro. Isso aqui era mangue, apicum: a
maré alta levava tudo. Assim era o mar na Terra. A Vila Passos só tinha o nome de
Passos, pois até carro puxado a burro não podia entrar, era só água.
Onde era o campo de Nhozinho Santos era um cemitério chamado cemitério dos
Passos. A partir de 1960 houve um certo desenvolvimento (...) (SANTOS, C., 1999,
p. 51).
Antes dos anos 1960, o tecido urbano de o Luís resumia-se ao seu núcleo original,
área ao qual se localiza atualmente o Centro da cidade (tom cinza claro do mapa 03), e a
alguns bairros que se localizavam próximos a estrada do Caminho Grande, ou seja, os bairros
que comem naquele momento o corredor Centro-Anil como: Liberdade, Vila Passos, Areal
(atual Monte Castelo), João Paulo, Jordoa, Outeiro da Cruz e Anil (tom cinza escuro do mapa
03). Daí advém a memória do Sr. Canuto Santos, sujeito celebrante do Boi de Zabumba da
Vila Passos, expressa acima, relatando o quanto era pequeno o tecido urbano da cidade de São
100
Luís até os anos 1960, vindo a expandir intensamente a partir dessa década (representado
no mapa abaixo pela cor branca).
Mapa 03 - Mapeamento da evolução do tecido urbano na cidade de São Luís (MA) áreas de
expansão.
Fonte: BURNETT, 2008, p. 140.
Era o chamado Caminho Grande a via de circulação ao qual possibilitava ligar a
chamada zona urbana junto a zona rural da cidade de o Luís. Pelo Caminho Grande que se
fazia o trajeto do Centro aos povoados rurais como a Maioba, São José de Ribamar, Turu, São
José dos Índios, Rio São João, Mocajituba, Iguaíba, dentre muitas outras áreas que também
eram chamadas de vilas e/ou tios, além da denominação de povoados. Essa via de circulação
servia para a entrada de vários produtos horti-fruti-granjeiros produzidos nos tios que
vinham abastecer os mercados principais localizados no trecho do Anil ao Centro da cidade,
principalmente a feira do bairro do João Paulo, do Areal (atual Monte Castelo) e o Mercado
Central (localizado no Centro), conforme podemos verificar no relato da trajetória de vida do
sujeito celebrante do boi madredivino, o Sr. José Costa de Jesus, em que o próprio discorre de
101
sua saída da zona rural da Maioba para vender cheiro-verde (chamado de mato cheiroso ou
coentro) nas maiores feiras de São Luís dos anos 1960.
Eu era de família pobre aqui na Maioba. Sempre gostei de brincar. Nós somos três
irmãos: eu, José e Júlio. Júlio morreu. Trabalhei desde cedo, ajudando minha mãe.
Íamos nós três vender mato cheiroso e verduras duas, três vezes por semana no
bairro do Monte Castelo, antigo Areal. O caminho da Maioba era esquisito, mas
saíamos a até o Anil, onde pegávamos o bonde chamado de cara-dura [tração
animal]. (...) Ia a casa da irmã dela para apanhar mato cheiroso e verduras para levar
para a cidade (JESUS, 1999, p. 161)
Somente a partir dos anos 1960, com a fase de modernização da cidade de São Luís,
especialmente pelas ações do governo José Sarney (1966-1970), é que o tecido urbano da
cidade começa a se expandir para além do corredor Centro-Anil. A inserção da cidade dentro
do processo de internacionalização do capital foi decisiva para a ampliação desse tecido
urbano, uma vez que houve a necessidade de “aproximar” o centro a periferia da cidade,
demandando os espaços “vazios” (sem população) para a inserção de conjunto habitacional de
trabalhadores e de complexos industriais.
A partir dos anos 1960, São Luís assume um papel de cidade projetada e condicionada
para a concentração de atividades produtivas de internacionalização do capital no interior do
seu espaço urbano. Produzir o espaço urbano ludovicense significava orientá-lo para uma
melhor eficácia produtiva, principalmente em relação a intensificação do processo de
industrialização.
O intenso processo de urbanização de São Luís foi decorrente fundamentalmente de
um processo que se inicia a partir da aliança entre o Estado Brasileiro e o capital estrangeiro
industrial na década de 1960 através da inserção das chamadas empresas multinacionais
(DINIZ, 2005). Em São Luís houve um incentivo dado pelo Poder Público para a instalação
de empreendimentos públicos /privados como a: Alumar (produção de alumínio), Companhia
Vale do Rio Doce (extração do ferro), Estrada de Ferro Carajás (transporte do ferro de Carajás
(PA) até São Luís), Porto do Itaqui (escoamento do alumínio para o mundo) e Porto da Ponta
da Madeira (escoamento do ferro para o mundo), vindo a marcar a cidade no período da
década de 1960/70 como um espaço estratégico de reorganização da economia em um
processo de internacionalização do capital.
A malha urbana de São Luís começou a se espraiar na medida em que se abriam novos
corredores viários e ocupações habitacionais ligando o centro da cidade a outras áreas com
poucos ou sem habitantes. Foi nesse contexto que se construiu a Barragem do Rio Bacanga
permitindo a ocupação do sudoeste da Ilha para a inserção de uma zona industrial, como
102
também para a criação de vários conjuntos habitacionais como o Anjo da Guarda e
adjacências. Ressaltamos também a construção da Ponte do São Francisco ligando o Centro a
Ponta do São Francisco, abrindo passagem viária para o litoral da Ilha que antes era
possível chegar de barco, produzindo um espaço de alta especulação imobiliária, bastante
valorizado financeiramente. E ainda temos a abertura da Ponte do Caratatiua possibilitando a
concretização da construção dos primeiros projetos de conjuntos habitacionais para
trabalhadores como: Ipase, Maranhão Novo, Cohama e Vinhais.
Essa expansão da área urbana de São Ls começava a provocar muitas modificações
em torno da cultura popular na cidade. A população e o legado cultural de redutos de
manifestações populares de São Luís viriam então a se dispersar para as novas localidades que
estavam sendo constrdas, chagando até mesmo a se perder nos bairros mais antigos:
(...) nos meados da década de 60. As pessoas [foram] se espalhando e perdendo os
moradores dos antigos bairros, nos quais os moradores e os próprios bairros tinham
suas manifestações particulares e regionais. Eles foram se perdendo, se dividindo, se
subdividindo e, até, às vezes, se aniquilando (...) (IN: ARAÚJO, 1984, p. 54).
A área urbana de São Luís que se resumia ao corredor Centro-Anil até 1965 comava
agora da mesma forma a se espraiar e atingir uma periferia que não era urbana, e sim
caracterizada pelo modo de vida rural. Com o crescimento do tecido urbano da cidade, a vila
ou tio, maiores redutos das rias manifestações culturais dos sujeitos celebrantes da cultura
da Ilha, passando agora a ser um bairro de subúrbio. Como exemplo, temos as áreas do
Bacanga urbanizadas pela construção da Barragem do Rio Bacanga que antes eram somente
compreendidas por sítios.
Entrevistador Havia muitos sítios em São Luús?
José Jansen
19
- Sim, havia muitos, no Bacanga o BASSON que em uma certa época
foi do meu irmão, tinha o antigo Cazuza Lopes, tinha o Santa Amália, tinha um
outro defronte que não me lembro o nome (...) nós brincávamos feito Tarzan,
trepando nas árvores frutíferas (JANSEN, 1997, p. 143).
A dimensão rural das manifestações culturais populares oriundas dos sítios podia ser
visualizada quando se colocava que os sujeitos celebrantes da cultura popular eram aqueles
caipiras, os matutos que vem do interior do Estado, como também dos lugares mais distantes
19
Jo Jansen, nascido em 1904 e falecido em 1991 foi um importante escritor, professor e teatrólogo
maranhense. Essa entrevista faz parte do livro “Memória de velhos 03” que visa colher depoimentos sobre as
transformações da cultura popular maranhense.
103
da Ilha
20
. O Sr. Inaldo (entrevista em 10/03/2009) diz que o boiero, a coureira, o tocador
de tambor de crioula não é mais o caboclo, o roceiro, o pescador, agora é mais o trabalhador
autônomo, o feirante, a empregada doméstica, o pedreiro, o funcionário público”.
Feito esse panorama da evolução da expansão do tecido urbano de São Luís, trazemos
uma reflexão sobre o processo de modernização da cidade e sua interferência na produção da
cultura popular maranhense, porém ressaltando o papel dos sujeitos celebrantes e sua
capacidade de projetar o legado de sua cultura diante da nova conjuntura modernizante.
Mostraremos como o desenvolvimento moderno não suprime a continuidade da produção
cultural por parte dos setores populares.
Mesmo com o processo de modernização e advento do turismo que se passava em São
Luís, no nosso caso estudado se tratando do estreitamento entre os grupos culturais e a elite
dirigente da cidade, encontramos depoimentos nos anos 1960 - contexto colocado por muitos
autores como de intensificação do processo de mercantilização cultural - relacionando a
cultura popular como uma construção marcada pela intensa participação do povo e da gente
humilde, em detrimento da condição burguesa que a cidade estava experimentando, conforme
visualizamos nas palavras do Sr. Eyder Paes em sua reportagem no Jornal Pequeno do ano de
1966, relacionando o bumba-meu-boi como a “imagem do povo”.
O bumba-meu-boi é tradição maranhense, costume da gente humilde dêste estado
nordestino. le está presente o sentimento do povo, a alma da terra (...). Expressão
vigorosa do nosso folclore (...). É manifestação folclórica retratando a imagem do
povo (PEQUENO, Jornal, 1966, p.02).
O que para autores do modernismo poderia ser o contexto da destruição do conteúdo
popular - com os aspectos urbanos compreendido como um princípio homogeneizador
cultural - vai ser a condição que reforçou a permanência das tradições populares da gente
subalterna na cidade de São Luís. Com a emergência da modernização da cidade, a cultura
popular assume e consolida de vez a sua passagem do rural para o urbano, e os bens
simbólicos culturais oriundos do dito povo não são somente negociados ao ritmo da cidade,
mas agora fariam parte da representação da cidade de São Luís comombolo.
No ano de 1968, em uma reportagem para o Jornal O Imparcial, o interlocutor Haroldo
Moura destaca essa passagem das manifestações culturais populares saindo das áreas rurais e
adentrando com força e legitimidade na área urbana ludovicense, ressaltando que enquanto a
20
Eyder Paes na reportagem Bumba-meu-boi do Jornal Pequeno (1966, p. 02) diz que “é a festa que vêm dos
nossos caipiras que vêm do interior e dos lugares mais distantes da Ilha heróica, a Ilha Grande de Japiaçu, o mais
nobre e bravo guerreiro tupinambá (...). O bumba-meu-boi é o entusiasmo do matuto, nas expansões de sua alma
festiva”.
104
fogueira queima e as brincadeiras juninas especialmente o bumba-meu-boi - alegram o
período junino em São Luís, na cidade de Fortaleza fazem de tudo para acabar com a cultura
popular.
Nos outros Estados do Nordeste a festa junina vai de ano em ano fugindo para o
interior deixando o asfalto. Em Fortaleza, por exemplo, é expressamente proibido
“soltar balões” dado o perigo porque se passam as fábricas, as indústrias (...) “A
fogueira está queimando...” Porém o São João está morrendo. Mas no Maranhão a
brincadeira é imortal. Tem sentido. (...) Os bacamartes explodem estusiasticamente
(...). Não fôsse o “Bumba-meu-boi” a mais categorizada brincadeira junina do
Maranhão, a que plano estaria relegado êsses festejos (...) (O IMPARCIAL, Jornal,
1968, p. 05).
Apesar de o depoimento acima ser romântico e “bairrista” caracterizado pela busca de
uma suposta essencial da identidade maranhense, bem como pode haver um exagero
comparativo ao falar de uma suposta decadência da cultura popular junina em Fortaleza, serve
para dimensionarmos como as manifestações culturais populares continuariam fortes e
assentadas em São Luís por meio da sua situação junto ao tecido urbano da cidade. Mesmo
com as bruscas mudanças na dinâmica sócio-espacial - brasileira e maranhense - por meio das
transformações dirigidas pelo processo de internacionalização do capital, vemos que a ida
para o asfalto para o mundo moderno que se intensificava avassaladoramente - não abalou a
sobrevivência das brincadeiras juninas aqui existentes.
O processo de fortalecimento da cultura popular no tecido urbano acontecia em outras
cidades brasileiras como em João Pessoa na festa das vaquejadas. Maia, D. (2003) defende a
tese de que as vaquejadas tão populares nos grandes centros nordestinos vão para além das
atividades econômicas, se mantendo nos costumes e na tradição dos habitantes da zona urbana
e não mais somente na zona rural.
Ir para o asfalto, habitar o espaço urbano denominado pelo senso comum como
cidade”, significava enfrentar uma facilidade de deslocamento para os bairros centrais
urbanos antes proibidos como o João Paulo, o Monte Castelo ou o Centro, como também
significava agora que o tecido urbano passaria a incorporar os redutos dos grupos culturais
populares, transformando as antigas áreas rurais em cidadezinhas”
21
a partir dos anos 1960.
Quando o tecido urbano atinge a área rural, temos uma maior facilidade de circulação de
21
Este termo “cidadezinha” foi usado algumas vezes pelo Sr. Ribinha, sujeito celebrante do boi da Maioba, para
se referir como o lugar sofreu transformações que a caracterizavam como área rural, passando a ser área urbana.
Isso é mais explicitado no item 4.2.1 que fala sobre o compromisso do boiero e redes de sociabilidades do
bumba-meu-boi da Maioba”.
105
pessoas e valores culturais na medida em que as vias e os transportes encurtam as grandes
distâncias.
Nesse contexto as brincadeiras juninas e seus sujeitos celebrantes começam a penetrar
nas áreas centrais da cidade pela maior acesso ao sistema de transportes, não mais fazendo o
deslocamento a conforme faziam até meados dos anos 1960. Essa mudança da dinâmica
urbana atuando nas manifestações culturais populares é rememorada por Odinéia, Reginaldo e
Teotônio, filhos (os dois primeiros) e amigo do Sr. Newton Martins, fundador do boi do
Bairro de Fátima falecido em 1994, ao retratar a introdução do uso de ônibus pelos boieros.
Odinéia O rapidão seguro deles era seguro como uma tropeada. O Boi hoje
anda de ônibus, vo o boi andar.
Teotônio Andávamos a pé a noite inteira pela cidade.
Reginaldo Nesse tempo não existia luz elétrica em todos os bairros; levávamos
lampiões. (In: MARTINS, N. 1999, p. 38)
Assim, a partir dos anos 1960, pela facilidade de movimentação dos grupos culturais
populares de São Luís, o legado cultural do povo intensifica um processo de legitimação
simbólica por toda a cidade e não somente com o lugar de origem, por meio da difusão de
brincantes do boi pela Ilha.
Se uma brincadeira vai brincar na Estiva, no Maracanã, no Cohatrac, no Anjo da
Guarda, e o pessoal que reforça a nossa fileira são de vários bairro, pode dizer que o
boi não é mais somente do lugar, o lugar é onde surge, o boi é patrimônio da
nossa cidade (SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
A abertura de novas vias de circulação permitiu uma difusão maior dos bens
simbólicos, das atividades culturais e dos sujeitos celebrantes das manifestações populares.
As brincadeiras da cultura popular, que desde oculo XIX tinham a rua como palco principal
e o deslocamento em forma de cortejo como sistemática de atuação para brincar
especialmente o bumba -, ganham maior força com a intensificação da produção do espaço
geográfico com características modernas que tem como princípio fundamental facilitar a
circulação, não de mercadorias, mais, sobretudo, de pessoas, e essa vantagem de
movimentação foi amplamente utilizada pelos sujeitos celebrantes como estratégia para
difundir suas manifestações culturais para além da periferia.
O novo tecido urbano da cidade permitia novos fluxos e experiências que tornaram
bem visíveis e próximos outros sujeitos sociais antes relegados ou limitados de movimentação
como os sujeitos celebrantes da cultura popular. Esta conjuntura fez os sujeitos celebrantes
imprimirem a sua luta e o seu sentimento pela valorização e ampliação das tradições
106
populares como experiência cotidiana da cidade, fazendo de São Luís um lugar de encontro
para as mais variadas manifestações culturais populares.
As transformações em São Luís serviam de alicerce para os sujeitos celebrantes
traçarem trajetórias eficientes para colocar em evidencia a cultura popular na cidade. A
abertura de grandes corredores ligando o centro à periferia, o surgimento dos conjuntos
habitacionais, a melhoria gradativa do sistema de transportes a partir da década de 1960,
foram forte aliados na construção das redes de sociabilidade desses sujeitos junto a zona
urbana.
Os sujeitos celebrantes participam do processo de construção da cultura popular como
referência da cidade de São Luís quando aproveitam e se utilizam do aparato moderno para
circularem e se impregnarem em pontos estratégicos do espaço urbano central. Foi assim que
no final da década de 1960 as brincadeiras juninas se fixariam na Praça Deodoro - Centro da
cidade - como uma forma de ganhar maior visibilidade e afirmação simbólica junto a cidade
de São Luís, deixando nos próximos anos estrategicamente o bairro do João Paulo como
referência espacial maior das festas juninas.
[Em 1966 os bumbas] brincavam pela madrugada adentro, a o sol raiar,
concentrava-se no bairro do João Paulo, buscando a ramagem frondosa das grandes
mangueiras que sombreavam o seu velho largo. Hoje as festas juninas realizam-se
na Praça Deodoro. O João Paulo deixou de ser um ponto de concentração [maior]
dos bumbas-bois, vivendo somente das glórias do passado (PEQUENO, Jornal,
1966, p.02).
A mudança da referência espacial junina maior do bairro do João Paulo para o Centro
da cidade faz parte de uma trama estabelecida pelos sujeitos celebrantes da cultura popular
visando estabelecer uma negociação para consolidar a cidade na festa junina e a festa junina
na cidade. Sendo um lugar de grande comércio, de órgãos públicos e instituições privadas,
ponto de maior fluxo dos veículos da cidade, local de passagem dos bondes que
posteriormente seriam extintos, toda essa estrutura fazia parte da construção de uma rede de
relações que colocava o Centro de São Luís como elemento fundamental para a redefinição,
consolidação e centralização do significado simbólico da cultura popular subalterna, uma vez
que era esse local o maiorponto encontro” da cidade.
A Praça Deodoro por um longo tempo, da década de 1960 até a década de 1980,
tornou-se a principal referência espacial do urrar do boi na cidade de São Luís. A intenção da
ocupação do Centro da cidade mostra como o bumba foi sendo produzido a partir dos valores
e exigências urbanos, se coadunando com certas normas e interesses postos no contexto
107
vigente (CARVALHO, M., 1995, p. 72), sendo tais exigências interpretadas de maneira bem
particular pelos sujeitos celebrantes.
As brincadeiras da cultura popular maranhense, originadas, sobretudo, na periferia da
Ilha e no interior do Estado, fluíam cada vez mais do seu terreiro de origem em direção ao
centro da cidade para manifestar o seu legado, gozando de grande prestígio e atendendo agora
uma demanda da classe média e alta que queria ver no boi, presenciar o tambor-de-crioula,
prestigiar a dança do coco e etc.
A modernização da cidade de São Luís e seus arredores, principalmente levando-se em
conta os novos acessos viários do interior a capital a partir dos anos 1960, transformaram o
sentido festivo da cultura popular tornando-a eminentemente urbana, na medida em que esta
produção sócio-espacial moderna proporcionou a migração maior das manifestações culturais
e de seus sujeitos celebrantes para a cidade, conforme podemos verificar em relação ao
bumba-meu-boi.
Se antigamente quando o Maranhão o tinha estrada e tudo que era de preto e pobre
era proibido de dançar no Centro e vinha muita brincadeira do interior por via
marítima, imagina como passou a vir muita brincadeira do interior depois da
construção das estradas para São Luís e quando acabou a proibição de dançar no
Centro. Fizemos de tudo para não deixar a peteca cair (...) (SR. ZÉ INALDO,
entrevista em 10/03/2009).
Vir para a capital significava que a cidade de São Luís era parte integrante da trama de
representação do boi como símbolo de maranhensidade, sendo um instrumento essencial para
dar fôlego a qualquer brincadeira que saia do interior no sentido de achar um lugar no
universo da cultura popular do Estado.
A migração de grupos e/ou sujeitos celebrantes da cultura popular do interior do
Estado para a grande cidade que se modernizava e dinamizava economicamente a partir da
década de 1960 em virtude da implantação e euforia com os grandes projetos industriais, fez o
legado popular penetrar no tecido urbano, mais também fez a realidade urbana ter um contato
com o mundo rural. Isso é reforçado nas palavras de Dona Zelinda Lima ao rememorar que os
brincantes do boi sotaque da Baixada brincavam em São Luís de modo a reviver as
lembranças do espaço rural ao qual vivenciavam no passado.
O bumba-meu-boi era uma brincadeira que se espalhava por vários municípios e
seus povoados, levado [para São Luís] por aqueles que mudavam de terra e sentiam
vontade de brincar São João (...). Assim, ia o boi se adaptando aos costumes locais e
ao gosto do povo (...). Os brincantes desse sotaque [sotaque da baixada],
dissemos, são pessoas egressas da Baixada, saudosas e que se reúnem para brincar o
108
São João (...) desejosas de reviver suas lembranças dos bois de suas terras (LIMA,
Z., 2004, p. 04-05).
A cultura popular na cidade de São Luís nos anos 1960 já representava o encontro do
rural com o urbano e do urbano com o rural. Porém, “embora [a cultura popular] seja
manifestação de origem rural, parece estar mais desenvolvido no ambiente urbano, que hoje
se expande com o afluxo das populações do campo” (FERRETTI, S., 1996, p. 05). A
modernização da cidade de São Luís, que trouxe sujeitos celebrantes do interior para a
cidade grande”, adicionou a sua malha urbana pessoas que passariam a querer produzir e
expandir a sua cultura rural junto ao ambiente urbano ao qual muito valorizavam e
prestigiavam.
Os aparatos modernos da cidade são usados pelos sujeitos celebrantes populares para
difundir e sustentar sua cultura, mostrando que os agentes do Poder Público e os mecanismos
de coerção do capitalismo mercantil não são os únicos a se aproveitarem da situação posta
pela rua. As ruas, além de serem suportes para a situação logística do capital, são símbolos e
suportes das redes de sociabilidade dos grupos culturais e populares.
Não negamos influência de agentes externos em meio às manifestações culturais
populares, uma vez que reconhecemos a emergência de uma racionalidade capitalista e esferas
administrativas regulando o comportamento dos indivíduos e grupos culturais, integrando a
cultura popular como bem de consumo e algo que deve ser sujeito a uma institucionalização
moderna e burocrática.
A institucionalização da cultura no Estado do Maranhão surgiu e ganhou força no
contexto de modernização da cidade de São Luís, numa tentativa de vincular cultura popular e
turismo, a partir dos anos 1960. Órgãos executivos como: o Departamento de Cultura (anos
1960), a Empresa Maranhense de Turismo Maratur - (anos 1970) a Fundação Cultural do
Maranhão FUNCMA (anos 1970) e a Secretaria de Estado da Cultura - SECMA - (anos
1980 aos dias atuais), além de serem criados com o discurso de servir como sustentação às
produções culturais, tendo como função básica o desenvolvimento cultural e a preservação do
patrimônio cultural (ALBERNAZ, 2004), serviam como suporte para ligar arte do povo ao
mercado do turismo.
Porém, vemos que o espraiamento das manifestações culturais populares junto ao
tecido urbano da cidade de São Luís não retira e nem suplanta a hipótese da nossa pesquisa,
mostrando aos pesquisadores que empenho e as estratégias dos sujeitos celebrantes em
produzir a sua cultura.
109
A implantação e ampliação do aparelho burocrático estatal trouxeram
contraditoriamente a cena primordial os sujeitos subalternos das classes populares que
produziam a cultura. Ao mesmo tempo em que se exercia um maior controle social e
econômico necessários a uma difusão cada vez mais ampliada da condição capitalista
dominante pelo uso da cultura do povo, contraditoriamente se produzia com a modernização
da cidade um processo de institucionalização cultural próprio dos sujeitos celebrantes das
manifestações culturais populares para defender seus interesses.
Os sujeitos celebrantes da cultura popular começavam a se organizar em classe, de
acordo com a sua cultura celebrada, para defender a causa de existencial da cultura popular.
Em meados dos anos 1960, além da consolidação do aparelho burocrático por parte dos
óros administrativos blicos, também houve a criação de associações e fundações por
parte dos sujeitos celebrantes da cultura popular atuando junto as instituições governamentais
que dão assistência a cultura. Surgem então várias entidades de proteção a cultura popular
como a Federação de Umbanda e Cultos Afros do Maranhão em 1964, oferecendo suporte e
colaboração aos terreiros a ela vinculada; a Federação Centro de Defesa dos Proprietários dos
Grupos Folclóricos no ano de 1972, instituição que defendia os interesses dos sujeitos
celebrantes do bumba-meu-boi, dentre outros órgãos de caráter e iniciativa cultural popular.
As brincadeiras da cultura popular, agora espalhada por toda a cidade, buscam o tecido
urbano central da cidade como espaço de referência, e se institucionalizam para assegurar o
interesse dos sujeitos celebrantes em manifestar e difundir sua cultura, passando a ser
reconhecida por um blico, tornando-se identidade cultural de São Luís. Assim, as
manifestações folclóricas foram se reconfigurando as novas exigências da cidade, se
apresentando para umblico consumidor, porém sem deixar de lado a importância dessa arte
como uma cosmovivência para o grupo celebrar a sua condição de vida.
Ao se apresentar como algo para consumo, coma a existir um interesse por parte do
Estado e empresários em se aproximar da cultura popular. Esse interesse se exe a partir do
novo movimento de reorganização da economia nacional que passava por uma reorganização
dos bens simlicos junto a um crescimento do parque industrial que aglutinava na sua
produção o mercado interno de bens materiais e culturais (ORTIZ, 2006a), atingindo
intensamente o Estado do Maranhão, principalmente a cidade de São Luís.
Os estímulos de mercado começam a invadir e a atuar junto aos bens simbólicos
culturais das classes populares, e as trajetórias da arte do povo existente na cidade de São Luís
estaria agora vinculadas às transformações modernas que intensificavam a produção cultural
para o consumo, consolidando de vez a partir dos anos 1960 a passagem da identidade
110
cultural maranhense da cultura erudita para a cultura popular no que se refere a orientação das
ações do Estado e a legitimidade como símbolo da cidade (ALBERNAZ, 2004).
Nesse momento, o tecido urbano da cidade vai ganhando mais pontos espaciais
destinados a fixação da cultura popular, como o Parque do Folclore no bairro do Outeiro da
Cruz, uma arena construída para ser espaço de referência as brincadeiras juninas de São Luís.
O Parque do Folclore foi cantado em toada nos anos 1970 pelo Boi de Pindaré como retrata
Figueiredo (1999, p. 118):
O nosso cartão de visita
Tá lá no Outeiro da Cruz
Quem mora no Anjo da Guarda
Observa a claridade da luz
Um colorido das cores
Rosa e azuis
Parece que vem do céu
E guiado por Jesus
Foi obra de João Castelo
Que Deus te abençoe
E a paz sempre te conduz
A participação do aparelho burocrático estatal moderno é um importante fundamento
para se compreender a arte do povo respondendo a ordem social vigente como brilhantemente
aborda Ortiz (2006b) no debate sobre cultura de mercado. Porém, como ele mesmo diz, há um
descompasso dessa ordem social vigente, que interpretamos na nossa pesquisa sobre cultura
popular como contradições de um sistema que abre possibilidades para se traçar uma trajetória
dos sujeitos celebrantes, que são geralmente dados como excluídos das tramas da sociedade.
O significado da criação do Parque do Folclore colocado por Zé Toinho (entrevista em
14/03/2009) dimensiona bem o sentido de presença e interferência do sujeito celebrante nos
rumos da cultura popular na cidade de São Luís.
O parque do Folclore foi criado por João Castelo, mais foi uma vitória nossa, de
todos que brincavam no boi, tanto os que estão aqui como os que já se foram,
mostrando que quem gosta de boi tinha e tem seu lugar na cidade. Ali é
maravilhoso, é a casa de todos nós da cultura popular do Maranhão. Foi a
importância do boi que fez aquilo ser criado e não só a mão de um político (...)
Mesmo com uma vivência intensa no contexto da modernização, de interferência
maior do Estado nos rumos da cultura popular, o sujeito celebrante compreende e identifica a
sua participação como elemento fundamental para a trajetória de evidência da sua cultura
celebrada. Assim, a modernização da cultura não significa um afastamento e exclusão dos
111
sujeitos da cultura popular como vimos ao buscar os significados em torno da construção
modernista como o Parque do Folclore.
A cultura popular circunscreve agora com bastante força a cidade de São Luís. Com o
advento de programas de turismo, os sujeitos celebrantes da cultura passam a frequentar os
nos espaços do tecido urbano da cidade que foram surgindo. A arte do povo freqüenta os
novos bairros, os novos conjuntos habitacionais com o objetivo de tecer redes de
sociabilidade que alimentam a dinâmica interna dos grupos populares para se apresentar a um
público que o requer, como também para capturar outros brincantes e/ou brincantes que o
moram mais no lugar de origem (nascimento) da cultura celebrada.
Quando a cidade de São Luís era pequena o boi ia nas proximidades do terreiro
[lugar de origem]e no sentido do Anil ao Caminho Grande, até no máximo no Monte
Castelo que era o Areal. Aí a cidade foi crescendo [a partir de 1960], acabou a
discriminação e o boi alcançou o Centro e também as áreas de periferia ou bairro de
classe média que cresceram e surgiram como o Cohatrac, Bairro de Fátima, Cohab,
Cohama, Vinhais, Vila Embratel e daí em diante onde tem arraial ou onde alguém
contrate (...) O boi e outras brincadeiras não vai somente se apresentar nos outros
bairros, mais também tem brincantes, a Maioba por exemplo, como eu disse, tem
gente no João Paulo, Cohatrac, Anil, Forquilha, Sacavém (...) (SR. INALDO,
entrevista em 10/03/2009).
O espaço periférico, distante dos pontos comerciais e empresariais e ausentes de infra-
estruturas básicas, tornava-se lugar relevante para a reorganização da cultura popular em São
Luís, que proporcionou novos los de desenvolvimento de manifestações culturais. O
surgimento de novos bairros atraiu muitos sujeitos celebrantes da cultura popular para estas
novas áreas do tecido urbano da cidade que não existiam manifestações culturais, e no novo
local de moradia, muitos desses sujeitos começariam a fundar grupos de bumba, se
desvinculando dos grupos ao qual atuavam, e assim multiplicando as brincadeiras na medida
em que crescia o tecido urbano da cidade.
Especialmente se falando do bumba-meu-boi, o fenômeno urbano, ou melhor,
suburbano, possibilitou o surgimento dos denominados “Boi de Bairro”, assim chamados em
detrimento dos antigos e centenários grupos de bumba vindo das áreas que antes eram rurais e
hoje são também áreas suburbanas denominados de “Bois de Sítio”. Essa condição aconteceu,
sobretudo, no sotaque de Boi da Ilha.
(...) surgem novas manifestações, o boi da Ilha, que tinha origem eminentemente
rural, aparece agora nos bairros periféricos provocando um fenômeno, o chamado
Boi de Bairro, concorrendo com os antigos chamados Bois de Sítio. Na Festa de São
Marçal todos eles estão presentes (...) [grifo nosso] (MARTINS, P., 2007, p. 87).
112
A emergência de uma rede de grupos de bumba em novos bairros de São Luís é um
exemplo de como a cultura popular estava se alastrando pela cidade de São Luís por iniciativa
de seus sujeitos celebrantes. Foi assim que surgiram grupos sotaque da Ilha - os Bois de
Bairro - dos anos 1970 até os dias atuais como: o Boi do Barreto (Barreto), Boi do João Paulo
(João Paulo), Boi do Coroado (Coroado), Boi do Maiobão (Maiobão), Boi Unidos Ilha
(Cohab), Boi do Bairro de tima (Bairro de tima), e bumbas de outros sotaques como o
Unidos de Santa (Boi de Zabumba), que apesar de não serem chamados de “bois de
Bairro”, surgem dentro desse contexto de expansão do tecido urbano da cidade. O aumento
dos grupos de bumba pela cidade para além dos Bois de Sítio - é um exemplo para mostrar a
intensidade da difusão cio-espacial da cultura popular em São Luís, entendendo a elevação
da arte do povo como símbolo de São Luís no contexto da modernidade.
A difusão cio-espacial do legado cultural popular mostrou o caráter negociável da
identidade do povo a partir interações destes com o espaço geográfico moderno. Os sujeitos
celebrantes ajustavam-se ao ritmo dinâmico e encaminhava para metas mais novas e mais
amplas, a ponto de o se fechar no seu espaço de origem, e sim tendo uma versatilidade
espacial de se estender para outros espaços da cidade. Desta forma, o símbolo cultural e a
visibilidade da cultura popular foram se disseminando por uma penetração espacial na cidade
de São Luís, tanto no centro quanto na periferia suburbana que estava se formando.
Claro que não tem como negar que a modernidade, mesmo favorecendo a
dinamização, consolidação e difusão da cultura popular como símbolo do ludovicense pelas
ações dos seus sujeitos celebrantes, o consistiu em uma redução da opressão e a satisfação
dos interesses dos agentes dominantes da cidade junto as manifestações construídas por estes
sujeitos e brincantes da arte do povo. O Sr. João Jode Souza Machado fala como o bumba
ao se ligar as pessoas da classe média e alta modificou o sentido do seu urrar de maneira a
atender mais o empresariado que o contrata.
Eu acho que a ligação da classe média para a alta acaba escangalhando a brincadeira.
Naquela época [com ligação somente com a classe pobre], existia sua riqueza... Se
eu quisesse mais pessoas no meu boi, colocava dinheiro para pagar. Então virou um
comércio. Hoje em dia pobre não pode ver o boi porque o mais barato nessa região,
segundo seu dono, cobrou 600 mil por uma apresentação (MACHADO, 1999, p.
133-134).
Mesmo reconhecendo ainda e muito a existência de uma opressão do agente
dominante para com o dominado - o que é importante ser aprofundado por outros estudos -,
isso não anula as estratégias dos sujeitos celebrantes no novo contexto e junto aos agentes de
113
poder maior da modernidade. A cultura popular na modernidade, ao mesmo tempo em que
veio se tornar mercadoria a ser usada, consegue se legitimar e legitima uma cultura que tem
sua origem na periferia da cidade, evidenciando que a cultura popular e seus construtores do
povo têm lugar no mundo”. Como já dizia o Sr. José Inaldo Ferreira (1999, p. 155) o povo é
quem faz, cada qual, a política de sua brincadeira”, o que nos faz ressaltar o papel dos sujeitos
celebrantes na visibilidade da cultura popular no contexto atual.
Para nós, as ramificações da cultura popular, ao se espalhar por toda a cidade,
constatam a “luta” dos sujeitos celebrantes em compor o cenário de São Luís “com suas
matracas, batuques e ritmos”. Em virtude disso, para penetrar nas malhas urbanas no contexto
moderno foi preciso conquistar os administradores públicos, fazê-los de amigos” para
conseguir algum benecio, e não fugir da classe dominante e dirigente da cidade como relata
Maria Lúcia, filha do boiero Antero Viana, ao refletir sobre a produção do bumba-meu-boi.
Recebia ajuda dos amigos e outras ajudas [dos representantes políticos], porque
ninguém vive sem política. Quem diz que vive fora da política é louco porque todos
nós [dos grupos de bumba-meu-boi] vivemos em função da política (in: VIANA,
1999, p.25).
Nos anos 1980/1990, com a intensificação das poticas de financiamento para a
cultura popular, por meio de órgãos públicos como as Secretarias Estaduais e Municipais de
Cultura e Turismo, especialmente na gestão da governadora Roseana Sarney de 1995-2002, e
sua iniciativa discursiva e potica de “recuperar o brilho e o prestígio das manifestações da
cultura popular do Maranhão” (NOGUEIRA, 2004, p. 02), a proximidade entre os sujeitos
celebrantes e o Poder Público aumentava e muito.
A dimensão espacial se torna mais relevante na análise da modernização e o seu
relacionamento entre Poder Público e cultura popular se levarmos em conta que foi na década
de 1990, por intermédio da materialidade espacial, com a construção das praças culturais
próprias para os festejos juninos e carnavalescos denominado de “Vivas” - arenas
permanentes feitas majoritariamente em bairros que abrigam algum tipo cultural popular
maranhense -, que se estreitou ainda mais uma comunicação direta entre sujeitos celebrantes e
o Poder Público local.
Essa iniciativa de construção dos Vivas nos bairros periféricos como Anjo da Guarda,
Liberdade, Maioba, Maiobão, Maracanã e outros bairros culturais populares, não somente
reforçou a imagem de mecenas, de protetora da cultura local em torno da governadora,
conforme trata Nogueira (op. cit.), mais também abriu uma janela para os grupos populares
114
conseguirem o seu prestígio moral e potico e outras conquistas como mostra o exemplo
abaixo com o Bloco carnavalesco madredivino Fuzileiros da Fuzarca
22
, uma vez que
estreitavam ainda mais os seus laços (dos grupos populares) com os agentes do Poder Público
e o poder barganha com estes:
Depois da construção do Viva aqui da Madre Deus, a nossa amizade com Roseana
aumentou. Foi Roseana [Sarney] e Jorge Murad [seu marido] que fez os Fuzileiros
conseguir aqui essa casa que você agora, a nossa sede, foi ela que deu viu pro
bloco, que ela gosta demais, ah demais, por isso que a gente consegue alguma coisa
com ela [...] Esse Viva como foi o primeiro faz ela de vez em quando vir aqui (SR.
CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Esse estreitamento, essa “amizade”, desenvolve-se, sobretudo nos anos 1990 pelo
incremento maior da potica do turismo na cidade de São Luís, que, além da estetização
espacial da cidade com a construção de Vivas e/ou de arenas temporárias (arraiais) em quase
todos os cantos da cidade, trouxe outras implicações sócio-espaciais simbólicas a cidade que
amadurecia dia após dia a sua imagem cultural popular, principalmente se falarmos sobre o
marketing da cidade em cima da cultura do povo.
Até mesmo o mecanismo moderno do marketing, que é colocado como elemento de
poder do dominante e subordinação do dominado por conseguir forjar uma opinião pública, se
faz como arma tática, sendo um mecanismo contraditório de afirmação do sujeito celebrante
subalterno para alimentar o seu legado e a sua importância simlica sobre a cidade, e assim
ter o poder de conseguir benfeitorias ao boi mais também para o bairro de origem, como
verificamos nas palavras do Sr. Inaldo (entrevista em 10/03/2009), sujeito celebrante do
bumba-meu-boi da Maioba.
Quanto mais aparecermos na televisão, nos jornais e nas revistas é melhor para nós
todos porque está divulgando a nossa cultura, mostrando a todos a nossa riqueza, a
nossa raiz que veio da periferia da cidade, fazendo a alma de nossa cidade se
alimentar pela cultura popular maranhense (...) É um modo de chegar a mente e ao
coração das pessoas quando observam a nossa magia. É um modo de temos
repercussão e assim conseguir as melhorias que o bairro pode ter, foi pela fama de
nosso boi [da Maioba] que conseguimos muitos benefícios que hoje a Maioba tem
em infra-estrutura.
Isso mostra que a intensificação da complexa combinação de papéis poticos entre os
sujeitos celebrantes e a classe dominante é um elemento fundamental de sobrevivência da
cultura popular na modernidade, permitindo um reposicionamento desta cultura e sua maior
22
Os Fuzileiros da Fuzarca são um Bloco Tradicional de carnaval surgido no ano de 1937 no bairro da Madre
Deus. Os Blocos Tradicionais são compostos por pessoas fantasiadas, caracterizadas por utilizar grandes
tambores tocados com as mãos num ritmo cadenciado.
115
inserção junto à cidade no sentido de renegociar sua exisncia e resistência nela. Daí,
discordamos de Azevedo Neto (1997, p. 98) ao falar que sempre que o bumba procura os
políticos para suprir suas necessidades “em busca de segurança que lhe garantam a
subsistência, inocentemente deixa que o corrompam também”. Na nossa pesquisa não
conseguimos ver sujeitos celebrantes tão inocentes e apáticos.
A modernidade e as modificações em torno da cultura popular, principalmente com a
expansão cio-espacial da arte do povo através da interlocução maior de hábitos urbanos
junto aos rurais (e vice-versa), atestou a sua capacidade multiplicadora e existencial dessa
cultura da gente humilde por suas ações conforme enfatiza Hollanda (1995 apud MARQUES,
1999, p. 83) em citação no livro “São João em São Luís” de José de Ribamar Reis (2003).
Os saudosistas protestam e fazem previsões catastróficas. Entendem que as
mudanças em curso acelerado terminarão determinando de nossas mais importantes
manifestações de cultura popular.
(...) Trata-se, com certeza, de avaliação exagerada. A cultura de um povo que vive,
não morre jamais. Transforma-se, isto sim. Como sempre aconteceu, ao longo dos
tempos imemoriais. E isso é salutar, porque atualiza e ajusta as expressões de nossa
alma lúdica ao tempo e as circunstâncias a que pertencem. Atesta, de maneira muito
auspiciosa, o vigor, a riqueza e a capacidade multiplicadora da cultura popular
maranhense.
Mesmo atestando que nem sempre acontecem mudanças salutares em torno da cultura
popular conforme deixou de mencionar o nosso interlocutor acima, inferimos que o contexto
moderno da cidade de São Luís, bem como de todas as cidades e sociedades urbanas
brasileiras, por mais que oprima os sujeitos celebrantes, é constituído a partir das iniciativas
dos indivíduos e dos grupos culturais populares que podem se encontrar limitados, mas não
determinados pela problemática e atuação do meio urbano.
Com isso, estes indivíduos e/ou grupos do povo são e estão conscientes da situação
social concreta, mais mesmo assim buscam um objetivo, que é legitimar a sociedade
ludovicense de acordo com seu objeto celebrado, a sua cultura popular. Foi dessa forma
também, por ação dos sujeitos celebrantes, que a cultura popular e suas festas se urbanizaram
- passando do rural para o urbano -, pois a cultura do povo sempre foi em busca de prestígio
moral e potico traçando estratégias para inserção na centralidade e não mais somente em
relação a estar no Centro da cidade. Vejamos ambas as dimensões busca pelo Centro e pela
centralidade analisando profundamente a trajetória do bumba na cidade de São Luís no
próximo capítulo.
116
4 O URRAR DO BOI DO MARANHÃO POR UMA LEITURA ESPACIAL
4.1 Da periferia ao centro: resistência, “redes de sociabilidade” e formação do bumba-
meu-boi como elemento central da cultura popular maranhense (século XIX 1950).
Eu tenho a impressão de que incomodava o povo antigamente (...) No São João, no
Centro da cidade de São Luís, tocavam fogos, foguetes, mas o havia boi, porque
não podia passar (JESUS, 1999, p. 168).
Os bois viviam cada um seu lugar no interior da Ilha, quando foi nos anos 1940 o
boi da Maioba veio até o Anil, perto do Lítero, tinha a casa de um determinado
senhor que recebia mercadorias que vinham de fora, e lá o boi fazia apresentação e
todo mundo voltava a pés. Quando chegou nas proximidades dos anos 50 o boi da
Maioba foi para o João Paulo, todo mundo ia a pés, depois fomos ao Monte Castelo
brincar perto da barrigudeira (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
O breve trecho do depoimento ao falar que “o boi é da gente, somos nós que faz com
luta e sacrifíciodado a Carvalho, M. (1995, p. 84), sintetiza um pouco o que abordamos no
presente item sobre a nossa análise acerca da cultura popular do bumba-meu-boi, cujo
objetivo central é relacionar papel do sujeito celebrante na produção da centralidade do boi
por meio da conquista da cena pública rumo ao Centro da cidade.
Resistir e fortificar a cultura dos setores populares foi o grande dilema dos sujeitos
celebrantes ao enfrentarem obstáculos de repressão e segregação postos pela elite ludovicense
até a primeira metade do século XX, como veremos objetivamente ao tratarmos da trajetória
da conquista do bumba na cena (espaço) pública da cidade.
Neste sentido, percebemos que por detrás do tulo dado atualmente pela classe
dominante local e difundido na cidade pelo contexto do turismo, colocando São Luís como a
117
“ilha do bumba”
23
revela algo para além da presença da mercantilização cultural no boi, mais
sim um intenso e tenso processo de negociação com participação ativa dos sujeitos
celebrantes.
Antes de ser “um arraial a céu aberto”, conforme costumam colocar os moradores
ludovicenses, a imprensa e os boieros da cidade ao ver a grande quantidade de arraiais que
existe atualmente em São Luís no período junino, o bumba-meu-boi com seus sujeitos
celebrantes sofreram, lutaram, resistiram e se lançaram com afinco para tornar possível que
São Luís fosse esse grande arraial.
Iniciamos nossa discussão com o recorte do bumba a partir do século XIX, época em
que surgiram as primeiras fontes escritas e outros relatos que referenciam a presença do
novilho na cidade de São Luís. Não sendo aceitos pelas elites locais, no século XIX, os
grupos de bumba-meu-boi com seus sujeitos celebrantes eram enquadrados em Códigos de
Postura que tinham como intenção maior limitar a atuação dos grupos por meio de leis
oficiais, elevando a brincadeira a criminalização, especialmente no período escravocrata.
O boi bumbá não era folguedo comum como tantos outros profano-religiosos, por
isso o era permitido e tolerado. Era um folguedo insólito, agressivo, que derivava
frequentemente em baderna, com ação e atuação de capoeira motivando, desta
forma, a repressão policial e seu enquadramento no código de posturas municipais
que proibiam ajuntamento de escravos [como também de descendentes de
escravos] para qualquer fim, inclusive o de divertir-se (...) (SALLES, 1971 apud
PRADO, 2007, p. 177).
Mesmo sendo um ato criminal, o urrar do boi se fazia intensamente nos mais variados
locais da Ilha de São Luís no início do século XIX, com muitos novilhos próximos ao Centro
da cidade se manifestando e gerando bastante incômodo aos membros da elite ludovicense
que viam no bumba “uma perigosa assembleia marcial”, tenebrosa a sociedade.
(...) Existe pelo menos uma referência mais antiga [do bumba] que encontrei num
jornal maranhense. Trata-se de uma carta enviada para um jornal no final dos anos
1820, que contém uma breve descrição na qual o Bumba-meu-boi era pintado como
uma perigosa assembléia “indígena” noturna (uma maloca de 40-50 pessoas), que
tinha um caráter marcial (as pessoas estavam “armadas com instrumento de fogo”),
quanto um caráter festivo e alegre, e estava explicitamente associada a ameaça de
“revolução” (ASSUNÇÃO, 1999, p. 11).
Essa notícia acima que é o registro mais antigo que se tem do bumba-meu-boi no
Brasil, encontrado por Assunção (op. cit.) no jornal “Farol Maranhense” do ano de 1820,
23
Estes dizeres podem ser encontrados nas camisas vendidas aos turistas no mercado da Praia Grande, localizado
no Centro Histórico da cidade de São Luís.
118
mostra a aversão da elite local em relação as manifestações culturais oriundas dos sujeitos
subalternos, representados, sobretudo, pelos negros e mestiços descendentes ou escravos,
alertando para o perigo das festas culturais boieras e uma possível eminência de uma
revolução social.
Da mesma forma, em 1840, o Padre Lopes Gama em Pernambuco na sua crônica “A
estultice do boi afirmou implicitamente que o bumba deveria ser extinto da sociedade, mais
o por uma ameaça “marcial” como na citação anterior, e sim por ser uma ameaça e ofensa
aos valores e costumes oficiais, remetendo indícios de primitivismo e barbárie.
De quantos recreios e folganças e desenfadados populares há nesse nosso
Pernambuco, eu não conho um tão tolo, tão estúpido, e destituído de graça, como
o aliás bem conhecido bumba-meu-boi. Em tal brinco o se encontra um enredo,
nem verossimilhança, nem ligação: é um agregado de disparates (CASCUDO, 1984,
p. 427 apud SANCHES, 2003, p. 46).
Diferente da primeira metade do século XIX em que víamos notícias de barbarismo e
perigo na cultura boiera, na segunda metade do século XIX encontramos noticiários que
flexibilizam a reação da população dominante em relação ao bumba, havendo opiniões de
defesa da existência da brincadeira do bumba na sociedade. Havia membros da elite local - os
abolicionistas - que o se sentiam incomodados com a presença do boi na sociedade,
contrastando com a maioria da classe dominante ludovicense que tinha uma reação contrária.
Basta observarmos o jornal abolicionista “O Semanário Maranhense” de 1868 na crônica de
João Domingos Pereira do Sacramento e a sua exaltação as festas juninas maranhenses com a
presença do urrar do boi:
Nesta última quinzena, que é contada de 12 de junho até o dia do corrente mez o
chronista tomou nota de mais uma sabia resolução da autoridade policial e do
renascimento de uma antiga usança que já parecia prescrita pelos nossos costumes,
para o fim de louvar ambas as coisas. Hurrah pelo acto da policia e viva o Bumba!
Se o o tivéssemos como passariam insolsas, mornas e silenciosas as festivas e
estrepitosas noites dos três sanctos fogueteiros do mez de junho!
Nos tristes dias que atualmente vão correndo, perdida toda a lembrança do raivoso
busca pé, e como que extincta gloriosa geração do rapazio, denodado e cruel, que se
derramava por essas ruas a soltar fogo de limagem clara e de ronco assustador;
aferrolhada e criançada, que era tão alegue na chuva incandescepte das rodinhas e no
giro caprichoso das bichinhas corribeiras; banidas as pistolas de balas o azues e
lindas como nos havíamos de divertir, sem a clássica berraria do bumba?
No Maranhão do final do século XIX, Aluísio Azevedo - escritor abolicionista -
remetia a presença do bumba-meu-boi e seus boieros nas ruas da cidade em passagens do
119
livro „O Mulato‟, publicado em 1881, como uma forma de aclamar que os sujeitos subalternos
negros se faziam existentes na composição da sociedade ludovicense.
Deu uma hora. Vários caixeiros retiravam-se já com um maço de cartas, que
entregariam pela manhã; algumas famílias, vestidas de preto, despediram-se com
beijos, pedindo desculpas por não ficarem até a hora do enterro. O armador
martelava na sala. A noite caía no silêncio; ouvia-se um ou outro busca-pé
retardado. Na rua grupos pândegos passavam em troça para o banho de São João;
do Alto da Carneira vinha um sussurro longínquo de “Bumba-meu-boi” [grifo
nosso] (AZEVEDO, 1994, p. 132).
Mesmo havendo opiniões que aclamavam a presença do bumba-meu-boi junto a
sociedade ludovicense da segunda metade do século XIX, contestando aqueles que criticavam
e agrediam a presença do seu bailado, a expressão um sussurro longínquo” de Azevedo (op.
cit.) revelava a distância do bumba das ruas principais da cidade de São Luís freqüentadas
pela elite ludovicense.
A palavra “longínquo” supõe não somente uma distância no sentido físico, mais acima
de tudo, uma distância de caráter simlico, mostrando a construção de um espaço para o
urrar do boi no século XIX por meio das clivagens sociais e culturais existentes entre os
grupos de posições diferenciadas na sociedade ludovicense.
O bumba-meu-boi se confundia com as pessoas e os grupos que os organizavam. Os
bumbas ao se originarem nas periferias, zonas rurais e subúrbios da cidade de São Luís do
século XIX, mostravam a sua ligação como coisa do povo negro e mestiço, criado distante da
área espacial urbana central destinada a elite local. Como representante de uma cultura
subalterna, considerado como coisa de preto, de mestiço e de pobre, o bumba-meu-boi com
seus sujeitos celebrantes sofreram intensas e rígidas perseguições, repressões e discriminações
durante o século XIX e boa parte do século XX (CARVALHO, M., 1993).
A imagem “bárbara” e “marcial” do bumba foi extremamente difundida no culo XIX
e primeira metade do século XX pelas constantes brigas travadas entre grupos quando se
cruzavam nas ruas, inclusive pelos próprios boieros ao relatar a brincadeira e a sua dimensão
de rivalidade embutida.
A ignorância era muito grande. Certa vez, sentado na porta de Antero, defronte a
Igreja de São Benedito. Conferi dezoito cavalos que vinham do Iguaíba, carregando
cacetes e foices para a briga com o boi da Maioba. Hoje em dia o há mais isso,
mas aquele povo antigo não sei o que passava pela cabeça deles. Quebravam a
cabeça, levavam na rede, pois não havia carro (...) (JESUS, 1999, p. 167-168).
120
Tais imagens “bárbaras” e “marciais” em torno dos grupos de bumba eram
justificativas de uma intensa punição pelas autoridades institucionais do Poder Público que
classificavam esta manifestação cultural como estúpida, imoral, oposto a boa ordem a
civilização e a moral (CARVALHO, L., 2004).
Devido a essa imagem de violentos e bárbaros acompanhado de uma intensa
perseguição, repressão e discriminação, os grupos de bumba foram circunscritos a certos
limites espaciais para se manifestarem culturalmente, reduzindo a sua atuação à periferia da
cidade, longe das áreas centrais. Quando tinham origem perto do centro, estavam urrando em
áreas bastante degradadas, sem nenhum tipo de infraestrutura ou qualidade de vida social,
como as insalubres zonas portuárias.
Oriundos da zona periférica da cidade de São Luís, os grupos de bumba-meu-boi, até o
início do século XX, podiam brincar somente numa extensão que equivalia à zona rural e a
área suburbana da cidade de São Luís. Travados e fixados espacialmente, sem oportunidades
de se movimentar para a zona urbana central da cidade, as brincadeiras de bumba urravam
predominantemente no seu terreiro de origem e em localidades próximas, sendo diferente
somente em situações especiais quando conseguia autorização do Poder Público conforme
mostra Assunção (op. cit., p. 11):
Outras fontes recentemente encontradas (...) indicam que, pelo menos entre 1876 e
1913, os donos de bois depositavam requerimentos pedindo autorização para ensaiar
a brincadeira e sair nos dias dos festejos juninos. A Secretaria de polícia, no entanto,
somente concedia tais licenças para os lugares situados fora do centro da cidade.
Com a imposição de limites espaciais para que o bumba-meu-boi não incomodasse a
elite local, os grupos podiam sair do terreiro de origem através de uma autorização da
delegacia policial (ALBERNAZ, 2004), componente fundamental para dimensionarmos a
condição social segregada que vivia os sujeitos celebrantes que faziam a brincadeira urrar.
A construção de limites espaciais proibindo o urrar do boi em meio ao século XIX e
início do século XX, tinha como meta principal implementar distinções entre as classes sócio-
culturais existentes na cidade de São Luís. Fazia-se isso porque o bumba-meu-boi não
agradava a classe dominante que, como vimos, se sentia fisicamente e simbolicamente
ameaçada em torno do seu espaço.
Esta prática de expulsar a cultura subalterna da dita zona civilizada se deu não
somente na manifestação do bumba, mais em todas as manifestações populares através de
121
toda la historia, [em que] cada sociedad [dominante] se arregló para colocar lo bárbaro fuera
de sus fronteras” (CANCLINI, 2005, p. 70).
O confinamento espacial dos bois nas áreas periféricas favorecia e difundia a produção
de uma alteridade cultural negativa da brincadeira, criando uma visão excluída da cultura
negra e mestiça do bumba em detrimento de uma cultura erudita” posta pela classe dirigente
ludovicense. A tentativa de imobilidade espacial, a distância do urrar em relação ao centro da
cidade ameaçava a existência dos grupos, uma vez que reforçava a simbolismo oficial em
sacrifício ao simbolismo subalterno dentro da sociedade.
Esse processo de demarcação espacial com limites, intrinsecamente reunido a uma
demarcação simbólica clivando diferentes grupos e conteúdos sócio-culturais, associava de
um modo amplo o bumba para além do perímetro urbano ludovicense “civilizado”, colocando
em um perímetro ludovicense associado ao “barbarizado”, ao suburbano, não dotado de infra-
estrutura necessário a cidadania moderna (BARROS, 2005).
A reação da elite ludovicense em relação aos boieros não era nada branda. As batidas
policiais além de proibir a brincadeira, quase sempre eram acompanhadas da quebra de
instrumentos, da prisão dos integrantes, e até mesmo da agressão física aos boieros
(ASSUNÇÃO, op. cit.), denotando a sua situação de ilegalidade e marginalidade pela
oficialidade.
Além da repressão policial circunscrita quando um boi se aproximava do Centro da
cidade que era a área restrita do civilizado, havia também as vezes repressão ao bumba na
periferia da cidade, com a intolerância e proibição dos seu urrar mesmo nas áreas suburbanas
e rurais da Ilha de São Luís (ASSUNÇÃO, op. cit.).
Os sujeitos celebrantes do bumba-meu-boi não ficavam acuados diante dessa repressão
posta pelo Poder Público ludovicense, resistindo e traçando estratégias com um conteúdo
crítico ao sistema social adverso. Os boieros se manifestavam por um movimento de
irreverência, expondo em meio à sua alegria festiva, a insatisfação diante da violência e
discriminação sofrida, selecionando alguns membros da elite local que os recriminavam para
transmitir a sua mensagem de insatisfação com o que era posto na sociedade vigente, sendo o
“jornal” que levava as notícias das condições de vida degradantes das classes subalternas
urbanas.
O bumba-meu-boi era criticado pelas elites locais e rechaçado pelo forte conteúdo
satírico, irreverente e contestador de suas mensagens, dirigidas principalmente
contra as figuras mais eminentes da sociedade, o boi chegou até a ser reprimido
pela polícia (PRADO, 2007 apud CARVALHO L., op. cit., p. 384).
122
A irreverência festiva da brincadeira do bumba-meu-boi dialogava com um contexto
social e cultural bastante marcado por repressões, discriminações e violências, expondo todo
um processo de resistência e reivindicação dos sujeitos celebrantes que não aceitavam as
contradições sociais existentes. Tal irreverência se expressa como um jogo de forças sociais
vigentes na sociedade (CARVALHO, M., 1993).
O núcleo festivo do bumba-meu-boi não podia (e nem pode até hoje) ser entendido
como algo puramente artístico. O boi enquanto evento festivo situou-se na fronteira entre a
arte e a vida”
24
, como um instrumento para os sujeitos celebrantes dialogarem criticamente
com as estruturas desiguais das relações sociais vigentes na sociedade ludovicense. Em meio
a esta reivindicação social vinha toda uma retaliação perpetrada pela elite local.
Para o sujeito celebrante, o bumba era uma festa cheia de ritmos e belezas, mas
também, e tão importante quanto esse aspecto, o bumba era uma apelação que convoca os
sujeitos celebrantes para renovar o mundo, em meio às adversidades sociais existentes,
reapresentando os boieros para uma nova vida.
Afastar legalmente (por meio de leis) os bois do Centro da cidade de São Luís era uma
maneira de impedir que os sujeitos celebrantes renovassem o mundo, ou melhor, criassem a
cidade de acordo com sua vivência. Esse impedimento do urrar do boi no Centro da cidade
impedia um acesso dessa cultura na centralidade urbana, revelando os intensos conflitos e
contradições em torno do processo de consolidação do urrar do bumba em São Luís. Antes da
trégua” entre sujeitos celebrantes e Poder Público alcançadas nos anos 1960, em que uma
interferência do Estado na produção do urrar do boi, houve um papel relevante dos sujeitos
celebrantes na exisncia do bumba.
A intensa perseguição e discriminação aos grupos de bumba-meu-boi motivaram a
elaboração de estratégias de sobrevivências implementadas pelos sujeitos celebrantes do boi,
tentando driblar as condições adversas em torno do urrar, principalmente no sentido de
reverter as demarcações espaciais que proibiam o bumba de frequentar certos espaços, que
consequentemente os inibiam do seu movimento espacial no tecido urbano central da cidade.
Os sujeitos celebrantes e os boieros desafiavam a demarcação espacial (im)posta
ignorando as proibições oficiais, muitas vezes acarretando-lhes a perda de suas licenças para
urrar pela ousadia de passar por cima das leis. Com exemplo temos o boi da Madre Deus que
24
Sobre a irreverência festiva e o seu situar ente a arte e a vida Bakthin (2008) falava que o núcleo festivo não
era puramente artístico, pois apresenta elementos que reapresentam o sujeito para a própria vida, para um mundo
novo sem contradições.
123
em 1939, teve sua licença cassada por ter desobedecido a portaria que proibia o urrar no
perímetro urbano de São Luís (BARROS, 2008a).
Uma pergunta a ser respondida era porque o Poder Público desprendia grandes
energias em confinar o bumba nas áreas afastadas do Centro? A resposta é dada por Barros
(op. cit.) mencionando que o grande caráter inerente de movimentação dos bois e de seus
sujeitos celebrantes junto a ilha de São Luís durante os festejos juninos exigia rigor e medidas
no controle do seu urrar.
A movimentação do bumba por São Luís causava tensão e assincronia entre os valores
dominantes da sociedade em detrimento do caráter da brincadeira que tinha como
peculiaridade se deslocar espacialmente atrás de boieros e capim” (recursos financeiros) para
a sua sustentação, principalmente nas proximidades do Centro da cidade.
O movimento espacial do boi no final do século XIX e no século XX evidenciava a
importância da tessitura de uma cadeia de contatos, ou seja, das redes de sociabilidadena
vitalidade dos grupos. Isso mostra que a vida do bumba era atrelada a conquista de outros
espaços para além dos seus terreiros de origem, no intuito de manter viva a tradição, uma vez
que precisavam de mais boieros, dinheiro, cachaça, material para a indumentária, e outros
elementos necessários ao seu urrar que só podiam ser conseguidos com alguma barganha.
A movimentação espacial do bumba começava pelo seu reduto e proximidades,
tecendo perto de seu terreiro suas redes de sociabilidade” junto as pessoas de maior poder
aquisitivo do local, indo de casa em casa, de localidade em localidade atrás do “patrãoque
solicitava o boi para urrar no seu “quintal”.
Relembro das coisas de outrora: o boi vem descendo a ladeira; a fogueira põe as
telhas de luz na noite escura; em frente a igreja estão as infalíveis bancas de laranja,
as lamparinas iluminam pobremente o caminho, criando um clima de intimidade e
mistério (...). O boi vai a duas ou três casas de pessoas que fizeram promessas e
volta para o rebanho onde ficará até o raiar do dia, encantando as estrelas que
tardam a se recolher com saudade (LIMA, Z., 2004, p. 09).
A construção dessas “redes de sociabilidade” também se estendiam para além do
bairro e circunvizinhanças. Ferreira (1999, p. 153), brincante falecido do boi da Maioba falava
que “desde quando me entendi, e acompanhava Boi pela cidade, saíamos daqui às quatro
horas da tarde, a pé, com os bois nas costas”, rumo aos lugares que tinham contratantes.
A movimentação do boi comandada por seus sujeitos possibilitou a difusão da imagem
positiva do bumba pela cidade, redefinindo pouco a pouco a sua posão adversa perante a
124
sociedade. A movimentação espacial do bumba na primeira metade do século XX foi
permitindo a sua reprodução social como sinônimo de “maranhensidade”.
Contudo, apesar de toda aquela propagada violência sobre o boi [uma das
justificativas de repressão], em 1940, as festas juninas e os grupos de bumba-
meu-boi são pintados em páginas e descritos em poemas que definem a
maranhensidade, são instituídos como uma magnífica poesia que se constrói por
ocasião de sua realização, um tempo de „fogueiras crepitantes‟, estrelas faiscando
no céu, a terra plena de cantares, de ruídos e de danças (BARROS, 2005, p. 06).
Devido a esse caráter de movimentação, a perseguição da elite ao bumba estava ainda
mais (in)tensa, especialmente durante os anos 1930 até 1950, período em que houve maior
preocupação de legalizar políticas blicas” para o bumba-meu-boi o adentrar no Centro
da cidade da São Luís.
Tudo indica que, ao longo do século XX, o único momento em que houve uma
política regular e em médio prazo proibindo que os bumbas freqüentassem o centro
da capital maranhense foi do Estado Novo a início dos anos 1950, mais
precisamente, de 1938 a 1952 (BARROS, 2008a, p. 05).
Foram exatamente nesses anos de potica regular proibitiva para o boi não urrar em
certos espaços da zona urbana da cidade que os sujeitos celebrantes procuraram tecer e
solidificar ainda mais as suas “rede de sociabilidade” com boieros que habitavam em
localidades mais próximas da entrada do espaço urbano central da cidade, começando a trilhar
com mais ênfase o caminho que ligava o rural ao urbano dentro da Ilha - o chamado Caminho
Grande - em busca da ajuda necessária.
Esse caráter descentralizador e flexível do espaço de atuação do urrar do boi mostrou o
papel atuante dos sujeitos celebrantes na configuração e no compromisso na condução da
brincadeira, claramente atrelado a força expansionista de uma conquista espacial durante a
primeira metade do século XX.
A movimentação do boi dinamizava as suas redes de sociabilidade”, uma vez que
foram construídas em torno desses deslocamentos do bumba pela cidade pontos espaciais de
referência, bairros e/ou arraiais que serviam como demarcações identitárias no espaço para o
urrar do boi na cidade, como foi o bairro do Anil aaproximadamente os anos 1930.
(...) as apresentações das brincadeiras de bumba-meu-boi do Sítio de Apicum e São
José dos Índios eram no bairro do Anil, local aonde costumavam brincar aquela
data, ano de 1927, devido a estas manifestações não serem bem aceitas na
sociedade daquela época, e poderem ser apresentadas na periferia da cidade (...)
(OLIVEIRA, L., 1997., p. 02).
125
A grande pergunta para desvendarmos as redes de sociabilidade por uma produção
espacial do urrar do boi consistia em saber por que os sujeitos celebrantes do bumba
constituíam o Anil como principal referência identitária para o boi? Respondemos que o Anil
era a principal referência espacial identitária para o bumba por ser a localidade limite entre a
zona rural e a zona urbana de São Luís até os anos 1920, facilitando costurar as redes de
sociabilidade” rumo ao Centro da cidade, o que viria facilitar a difusão do boi rumo a uma
centralidade na cidade.
Como o boi não podia ir rumo ao Centro proibido, os sujeitos celebrantes se
posicionaram ali estrategicamente para empreender a conquista do espaço público central da
cidade, facilitando com que as pessoas do Centro urbano chegassem ao bumba no Anil, e ir
pouco a esta área urbana valorizada. Assim, muita gente da cidade pegava a sua locomoção
movida por animal, saindo do Centro, cortando o chamado “Caminho Grande” passando pela
localidade do Areal (atual bairro do Monte Castelo), depois do João Paulo, chegando até a
localidade do Anil para brincar e/ou ver o boi (BARROS, op. cit.).
Ocupar espaços públicos estratégicos sempre fez parte do processo de difusão espacial
do boi na construção de suas “redes de sociabilidade” junto a cidade, mostrando a capacidade
da população subalterna em desenvolver estratégias importantes para a resignificação a
identidade boiera.
No final da década de 1920 houve uma penetração maior do boi rumo ao Centro da
cidade, saindo do Anil indo se fixar mai perto do Centro no bairro do João Paulo, de modo a
demarcá-lo como um novo ponto de refencia espacial. A mudança referencial do espaço do
urrar do bumba para o bairro do João Paulo envolveu bastantes conflitos em meio a uma
tensão e polêmica construída pela sociedade dominante local.
Pelo menos desde os anos 1930 se afirmava que “o povo se acostumou com o
João Paulo, onde poderia “viver e sentir aquelas expansões bem próprias do nosso
caboclo e do negro da Ilha”. A passagem do Anil ao João Paulo foi acompanhada
por uma série de discussões na imprensa, e parece ter envolvido diferentes grupos de
bumba-boi, setores da imprensa, chefes de polícia e alguns intelectuais (BARROS,
op. cit., p. 08).
Mesmo contra a vontade de uma boa parte dos setores dirigentes do Poder Público
ludovicense, os sujeitos celebrantes do bumba obtiveram sucesso na sua passagem do
povoado do Anil para o João Paulo, porque tinham ampliado as suas “redes de
sociabilidade” com sujeitos boieros importantes do bairro como os comerciantes, fazendo
126
com que a classe dominante “aceitasse” o boi brincar de vez nessa localidade. Martins, A. A.
(1999, p. 02) mostra a tessitura das redes de sociabilidade” entre os sujeitos celebrantes do
bumba com pessoas “de peso” que habitavam o bairro do João Paulo, como os comerciantes,
que eram os patrocinadores da vinda do bumba ao bairro:
Naquele local, na estrada que ligava o interior da cidade ao Centro, antigo Caminho
Grande [atual bairro do João Paulo], existia no início do século o povoamento da
Quinta do João Paulo das Chagas e seu centro social no largo de São Roque, onde
estava erigida a capela de o Roque, meio caminho entre o urbano e o rural.
Devido a origem rural da brincadeira do boi de matraca, havia muitas restrições
para que os grupos de bumba-meu-boi se manifestarem na cidade, somente se
apresentando em lugares de pagamento de promessas, sem juntarem dois ou mais
deles devido a intensa rivalidade. Até 1927 procuravam limitar-se ao bairro do Anil
e outros interiores da Ilha de São Luís, mas em 1928 alguns comerciantes do João
Paulo patrocinaram o encontro dos bois do Sítio do Apicum e São José dos Índios
para brincarem no largo de São Roque no dia de São Marçal, sendo que nos anos
seguintes somavam-se as brincadeiras que desfilavam no corredor folclórico,
sempre com uma paradinha para as toadas no lugar do Largo.
O bumba foi amadurecendo sua centralidade na cidade com a afirmação da festa do
boi no bairro do João Paulo que, a partir dos anos de 1930, veio não somente ser um ponto de
referência central para o urrar do boi na cidade, mais o foco de uma festa de massa, de uma
festa com a presença de um grande contingente populacional vindo de rias partes da cidade
(BARROS, 2008a).
A ida dos bois ao bairro do João Paulo foi essencial para dar vitalidade e conquistar
passo a passo a centralidade em torno da cidade, visto que mais habitantes do Centro proibido
passaram a brincar no bumba e apreciar suas apresentações devido a facilidade de locomoção
para a localidade com o transporte do bonde elétrico que tinha um ramal João Paulo Centro.
Assim, Lopes Bogéia conta o São João que presenciou na cada de 1930 no bairro do João
Paulo com a vinda maciça de pessoas do Centro para vadiar no boi:
O povo da cidade [do Centro] afluía em massa para o bairro do João Paulo para
assistir as brincadeiras do Bumba-meu-boi. O transporte mais usado era o bonde
elétrico de preferência o “Caradura”. Estes veículos, na época da festa rodavam até o
outro dia aparecer, carregando o povo (In: PEQUENO, Jornal, 1970, p. 04).
Com o avançar dos sujeitos celebrantes do bumba para o bairro do João Paulo, o limite
espacial tolerado para o urrar do boi estabelecido por lei passava a ser o referido bairro.
Porém, ainda víamos que o boi era uma justificativa para operar demarcações de posições
sociais, estando relacionado ao espaço anti-civilizado que, por conseguinte, não poderia
127
frequentar as principais ruas de São Luís por se associar as pessoas pobres, rbaras, negras e
mestiças, mesmo muita gente da classe dominante já brincando em suas fileiras.
Apesar das festas do bumba no João Paulo já serem celebradas por pessoas que
habitavam o Centro da cidade, ainda persistia em boa parte dos anos 1930-1950 o a
segregação social e o confinamento espacial que impunha limites precisos e bem definidos
para o urrar do boi, existindo ainda muitos obstáculos para que os sujeitos celebrantes do
bumba o incomodassem a elite da sociedade ludovicense, que não aceitava amplamente a
brincadeira. Poderíamos dizer que “o bumba-meu-boi não tocava fora de lugar ou de hora, os
burgueses da elite não deixavam o boi brincar, havia muita recriminação(SR. INALDO,
entrevista em 10/03/2009).
Mesmo a localidade do João Paulo dispondo de uma ligação direta com o Centro da
cidade por meio de transportes modernos, na década de 1930 o urrar do boi era “tolerado
pelas elites por este bairro ser considerado no plano espacial da cidade como uma zona rural,
com características diferentes do dito meio urbano ludovicense, tendo nesta época certa
imagem interiorana.
Os moradores do bairro eram chamados de “Gente do Barro Vermelho”, porque na
época a via era de barro bruto, não havia calçamento nem asfalto. O largo, como a
via chamada “Caminho Grande” também era de barro bruto, socado com os pés da
nossa gente humilde que ali habitava. Na praça existia uma igrejinha que tinha como
patrono São Roque (...) (PEQUENO, Jornal. op. cit., p. 04).
A localidade do João Paulo ainda era uma zona de sombra da cidade (ALBERNAZ,
2004), uma área de periferia e, portanto, se era de periferia, “aceitava-se” ser espaço do boi,
permanecendo ainda o sentido de indiferença da classe dominante para com o boi, que
continuava a reprimir fortemente qualquer “abuso” destes grupos.
Apesar de enfrentar esse paradoxo de proibir/não proibir, houve nesta época uma
massificação da festa dos bois no bairro do João Paulo graças a localidade ser na década de
1930 na verdade um bairro suburbano e não mais rural, facilitado não somente pela presença
do bonde elétrico transporte mais moderno da época mais também por ser habitar de uma
grande classe subalterna de operários que logo se identificariam com o boi.
Assim, comamos a visualizar em meio a massificação da festa e a presença do boi
no bairro do João Paulo, um movimento decisivo para a resignificação do bumba em que o
urbano captura o boi e o boi captura o urbano. Isso mostra os primeiros indícios do boi
fazendo parte da cidade e a cidade se fazendo representada pelo boi.
128
Pesquisando o entrudo, Fernandes, N. (2001) nos coloca uma situação bastante similar
ao que era posto no boi dentro da cultura popular carioca ao ressaltar um contexto de
ambiguidades, retratando a simultaneidade entre aversão e aproximação das elites em relação
a brincadeira subalternizada do entrudo. Este expressa essa situação como uma curiosidade na
festa do Brasil, pois a mesma elite que celebrava as festas era a mesma que proibia as festas.
(...) o entrudo foi alvo de proibições através de alvarás e portarias (...). Curioso país
o Brasil, país da festa e do carnaval, mais também país que proibiu e declarou fora
de lei, por todo o sempre e para sempre, a sua mais longeva festa. Uma festa da qual
participavam todas as suas classes sociais (FERNANDES, N., op. cit., p. 66).
Essa situação contraditória mostra o efeito colateral” que tais proibições vinham
causando, na medida em que incentivavam ainda mais os sujeitos celebrantes a buscar e a
dinamizar instrumentos para conquistar a cidade, chegando ao Centro e a centralidade urbana,
demonstrando a vontade do boi de colocar os chifres no mundo.
amos um bumba se fazendo bastante desobediente a oficialidade, “ignorando os
limites espaciais tolerados para o seu urrar como mostrava Jode Jesus da Costa, mais
conhecido com Paú, ao falar do boi avançando para além do bairro do João Paulo, indo
para a localidade do Areal (atual Monte Castelo), como objetivo cada vez de chegar mais
próximo do Centro ludovicense.
Em 1939, pela primeira vez que o boi foi para a cidade, no caso ao Anil, e
voltou; em 1940, o boi foi ao bairro do Areal [atual bairro do Monte Castelo] a
pé, brincou na barrigudeira, no comércio de um senhor, depois seguiu para uma
casa e retornou (JESUS, 1999, p. 168-169).
Claro que na sua “andança rumo ao Centro o boi não vai do nada, de supetão,
somente para desafiar as proibições da elite local, e sim o boi extrapolou o bairro do João
Paulo indo para o Monte Castelo porque já tinha expandido mais ainda as suas redes de
sociabilidade” com moradores do bairro que lhe deram abrigo, que neste caso também foram
os comerciantes.
A maior intenção dos boieros em chegar ao Centro da cidade o era incomodar a elite
local, e sim conseguir abrigo e dar vitalidade ao boi que queria urrar sem problemas, que
procurava a qualquer custo ser reconhecido, se aproximando do Centro da cidade não somente
para a brincadeira resistir, mais também para brincadeira existir.
O esforço empreendido pelos sujeitos celebrantes dos grupos de bumba-meu-boi em
tentar chegar pouco a pouco ao Centro, e consequentemente, a centralidade da cidade de São
129
Luís, conquistando espaço por espaço, o espaço público ludovicense, além de mostrar a
resistência do bumba, mostra principalmente a habilidade, estratégia e criatividade destes
sujeitos celebrantes em “negociar” a posição do bumba junto com a sociedade que
majoritariamente vinha excluindo a brincadeira.
Esta trajetória espacial tecida pelos sujeitos celebrantes do bumba na metade do
século XX, conforme podemos visualizar no mapa 04 na página seguinte, evidenciam o
caminhar dos grupos de bumba saindo das áreas rurais (região da Maioba, Maracanã e São
José de Ribamar) ou áreas suburbanas portuárias (bairro da Madre Deus), passando por
bairros suburbanos ligados pelo Caminho Grande que eram meio caminho entre a zona urbana
e zona rural nos anos 1930 (bairro do Anil e João Paulo), se aproximando ainda mais do
Centro pelo último bairro suburbano que era o Monte Castelo, até finalmente chegar a área
Central de São Luís.
A chegada ao Centro ludovicense se constituia como um fator fundamental para a
sobrevivência dos grupos de bumba, uma vez que possibilitava ir costurando próximo aos
agentes dominantes o direito do boi a cidade e a centralidade urbana, usufruindo os espaços
públicos e simultaneamente garantindo maior inserção, visibilidade e sociabilidade do novilho
junto a sociedade ludovicense como um todo.
Esta trajetória espacial do urrar do boi mostra o mérito dos sujeitos subalternos em
fazer com que o bumba existisse, não fosse extinto, e ganhasse vitalidade, retratado pela
vontade do boi em ser um cidadão. Este movimento espacial dinamizado pelos sujeitos
celebrantes e boieros é representativo para mostrar a habilidade e a relevância da “gente
humilde” em construir e tecer uma ampliação de sua identidade celebrativa para toda a cidade.
Nos anos 1930-1950, já amos a aproximação do bumba junto a uma centralidade
urbana, elevando aos poucos esta manifestação cultural como sinônimo de “maranhensidade”,
dissolvendo lentamente a noção de assembléia marcial e de barbaridade” construída desde o
século XIX.
Embora, no período recortado, os grupos de bumba-meu-boi ainda sejam lidos
como “violência” e “barafunda” numa terra que era significada como límpida e
branca por mitos, como a Atenas Brasileira e a fundação francesa de São Luís,
capital do Estado, e continuavam a ser proibidos e disciplinados pela força policial,
já comavam a ser taxados como produtores de som harmônicos e levados ao texto
que definiam a maranhensidade (BARROS, 2005, p. 06).
130
Mapa 04 Mobilidade espacial dos grupos de bumba-meu-boi na 1ª metade do culo XX.
131
Para nós, a progressiva “aceitação” forçou aos poucos uma aproximação do bumba e a
sociedade ludovicense, e consequentemente o início de uma eminente construção do urrar do
boi como símbolo da “maranhensidade”.
Foi então a partir do início da segunda metade do XX, com a consolidação de vinte
anos da festa do bumba no bairro do João Paulo e a sua visibilidade também no bairro do
Monte Castelo (antigo Areal) que de vez começava a ser rompida, nos anos 1950, todas as
portarias e alvarás proibitivos que impediam o bumba de circular pela rego Central da
cidade, começando-se a visualizar intensamente os bumbas urrando no Centro.
Na época em que fui brincar com na Belira e tive essa briga com Leonardo [anos
1950, mais precisamente em 1956], as brincadeiras de Bumba-boi estavam sendo
liberadas para brincarem no Centro da cidade. Antes dessa liberação, nós saíamos
andando pelo Caminho da Boiada entrávamos no Belira. Brincávamos também na
Camboa que era subúrbio. Não podíamos passar do Galpão para aquele bloco de
ruas considerado Centro da cidade: Passeio, Praia Grande, Rua Grande (ALMEIDA,
1999, p. 77-78).
Ganhando de vez o Centro de São Luís, o boi comava ganhar a centralidade na
cidade, havendo a partir dos anos 1960, uma “abertura” em torno da negociação do seu urrar
entre os sujeitos celebrantes e o Poder Público/elite local que passa a aceitar de vez o urrar do
boi, havendo de ambos os lados uma tessitura na construção do bumba como símbolo maior
da cultura popular maranhense.
De um modo geral, notamos que o movimento espacial do bumba, a conquista do boi
de espaço em espaço, serviu como uma estratégia importante para resignificação de uma
“nova era” para a brincadeira, permitindo botar o boi na rua sem problemas de perseguição.
Os grupos de bumba-meu-boi consolidaram então o direito de cidadania na cidade de
São Luís, iniciando um processo de sua identificação como algo ludovicense e maranhense
em muito graças as resistências e processos de construções identitárias postos pelos sujeitos
celebrantes do bumba diante dos processos de repressão perpetrados pelas elites. A represo
e proibição fizeram os sujeitos subalternos que organizam o boi entenderem que a conquista
da cidade seria fundamental para a existência do bumba.
Da mesma forma que no Rio de Janeiro, “se o samba hoje desce o morro é porque
subiu antes” (COSTA, 1984 apud MAIA, 2003, p.189), parafraseamos na cidade de São Luís
que o boi hoje frequenta o Centro da cidade e a centralidade da cidade porque antes teve que
enfrentar todas as dificuldades de habitar a periferia da cidade excluída da sociedade.
132
4.2 Da periferia ao centro, do centro a periferia: manutenção e consolidação do
bumba-meu-boi como elemento central da cultura popular maranhense (1960 aos dias
atuais)
O boi não é mais como no tempo dos meu antepassado que existia para os
brincantes que moravam no sítio, (...) o brincante do boi da Maioba o é só aquele
que mora na Maioba, é aquele que mora também em outros lugares (SR. BIRITA,
entrevista em 16/02/2009).
Vimos que até o início dos anos 1960 o Poder Público e a classe dominante tentavam
afastar legal e oficialmente os bumbas do Centro de São Luís, e consequentemente da
centralidade urbana, não dando para a brincadeira o status de cidadania. Porém, ao vermos
que houve momentos paradoxos em torno do urrar do boi indo para localidades proibidas e
abrindo caminhos para a vitalidade do novilho, notamos a capacidade de negociação dos seus
sujeitos celebrantes e o seu papel fundamental para a existência do boi.
Neste presente item, que tem como recorte analítico os novos arranjos de organização
e construção do urrar do boi a partir do estreitamentoe maior diálogo entre elite e sujeitos
celebrantes, mostramos que mesmo com este estreitamento, ainda não pode haver uma
desconsideração do papel ativo dos sujeitos celebrantes no processo de existência do bumba,
de modo que o podemos verticalizar uma análise de que a presença do bumba na cidade se
deve a interferência e aceitação do Poder Público junto a brincadeira.
Como os anos 1960 marcam de vez não somente a ida do bumba a cidade, mas o
reconhecimento oficial da elite dirigente sobre a brincadeira, grande parte da literatura sobre o
bumba, bem como seus sujeitos celebrantes, retratam momentos de “aproximação” entre os
boieros e o Poder Público, como se estivessem demarcando um recorte temporal para inferir
que a partir daí estes dois segmentos sociais o se degladiavam mais e começavam “a se
entrelaçar” na produção da cultura popular.
Achamos relatos desse início de entrelaçamento quando o boi veio na década de 1960
dançar para o então Presidente da República João Goulart, o Jango, em uma visita oficial feita
a capital maranhense como relata brevemente JoCosta de Jesus, vulgo Paú, brincante
falecido do boi da Maioba e boi da Madre Deus.
133
Numa ocasião, quando João Goulart estava na presidência, veio aqui; o boi da
Maioba apresentou-se no Palácio dos Leões; o boi era de Hilário. Em 1960,
chegaram os caminhões, mas era muito caro. Padilha foi quem começou a levar o
boi [para o Palácio] (JESUS, 1999, p. 170).
Outro episódio muito relatado pelos intelectuais que pesquisam o bumba evidenciando
a “aproximação” entre sujeitos celebrantes e classe dirigente local foi a narrativa da dança do
boi no Palácio em 1966. A oradora dessa narrativa foi a Srª Zelinda Lima, ex-secretária da
Empresa Maranhense de Turismo (Maratur) durante o Governo Estadual de João Castelo a
partir de 1971, que também era uma pessoa bastante ligada ao governador José Sarney nos
anos 1960.
A história da dança do boi no Palácio foi contada publicamente diversas vezes em
palestras e congressos pela Srª Zelinda, inclusive no 10º Congresso Brasileiro de Folclore
realizado na cidade de São Luís no ano de 2002. Assim foi transcrita depois de gravada a fala
da Srª Zelinda Lima pela antropóloga Albernaz (2004, p. 45 - 46):
Mas houve um fato muito triste, que foi uma prisão que houve com Leonardo.
Leonardo do boi foi preso, espancado, tomaram o dinheiro todo, aquelas coisas de
polícia, né? Daquele tempo...(...) E ele, por azar da polícia, ele era muito amigo de
Sarney. Sarney freqüentava muito a casa dele. [Sarney] quando soube, transferiu o
delegado e me chamou: „Como é que se acaba isso?‟ „Como é que faz pra dar um
jeito nisso?‟... Então houve uma comitiva de fora, Odylo Costa Filho, uma rie de
pessoas. Eu aconselhei que ele convidasse umas brincadeiras pra o Palácio [dos
Leões], né? E aí com isso o governador gostou. Todo mundo gosta, mas fica
calado... Aí começou devagarinho a irem descendo, né? E foi... Foi assim uma coisa
muito. O pessoal de fora aplaudiu muito, tinha fotógrafo, a imprensa de fora. E foi
muito apreciado. começou devagar, toda vez que chegava uma pessoa... Depois
Abreu Sodré, foi governador, era governador de São Paulo, veio aqui também, foi
apresentado várias coisas pra ele. Ele ficou encantado. E aí a coisa foi quebrando, foi
quebrando... Até que acabou mais ou menos... Porque sempre existe uma, ficou,
custou muito a passar essa perseguição policial, custou muito... Eles vinham com
desculpa de pegar arma, porque realmente eles andavam muito armado, né? Então,
até com revólver, toda festa ali na Maioba tinha facada, tinha tiro... Hoje... Eu acho
até que ainda tem, começa a beber... Não dos brincantes, mas das pessoas que estão
assistindo... Tinha muita rivalidade entre os grupos de boi, quando eles se
encontravam, era muita cacetada, terminava em facada, era um desespero. Então isso
foi um trabalho de muitos anos, da gente conseguir desarmar, através de muita
paciência, de muita falação na cabeça deles, de grupo em grupo, toda vez que iam se
apresentar a gente ia lá antes, a gente conversava, ia eu, meu marido... De forma que
foi assim um trabalho muito longo, de muitos anos. Não é coisa que se mude uma
mentalidade, inda mais de agressividade, de um dia pro outro, né?
A narradora conta que com a permissão para o boi se apresentar diante das autoridades
se acabava a discriminação da sociedade perante do bumba e o início de um processo de
inserção da brincadeira na centralidade da cidade, marcando duas mudanças fundamentais que
vieram a facilitar o urrar do boi em São Luís: o fim da perseguição policial e a dissolução da
imagem de um folguedo de bárbaros.
134
Ela na sua oratória parece querer nos deixar implicitamente a mensagem de que se não
fosse esse reconhecimento da elite dirigente dificilmente haveria uma inserção do boi na
centralidade urbana da cidade de São Luís, sendo naquele momento a atitude do Poder
Público o princípio que marcava de vez a virada do bumba de modo a ti-lo do status de
marginalidade e de discriminação.
Nessas duas narrativas, a dança do boi para Jango e a dança do boi no Palácio,
evidenciamos claramente a existência de uma abertura maior do bumba e seus sujeitos
celebrantes junto a uma interferência e atualização da brincadeira pelo Poder Público.
Contudo, o que não podemos fazer é interpretar tais narrativas incondicionalmente como o
início de processo de cooptação do bumba, não anulando o papel dos sujeitos celebrantes na
vitalidade e exisncia do boi desde os anos 1960 até os dias atuais.
Claro que o popular não é uma produção do povo, mais também está longe de ser
uma produção constrda somente pela classe dominante e Poder Público. Para nós as
seguintes narrativas podem nos revelar os focos menos óbvios que conm nas pesquisas, que
são as negociações e estratégias implementadas pelos sujeitos celebrantes do boi junto a
classe dirigente local.
Dissecando mais a narrativa da dança do Boi no Palácio por ter maiores detalhes de
informação e de diálogo, o que nos chama atenção está logo no começo da narrativa quando a
Srª Zelinda Lima fala da existência de uma proximidade entre o governador JoSarney e
Leonardo, sujeito celebrante do boi da Liberdade, bumba de um bairro periférico de São Luís.
A proximidade entre estes dois agentes socialmente distantes pode dar margem para
argumentar que Sarney estava se aproximando do sujeito celebrante Leonardo para tentar
capturar o boi e articulá-lo a uma mercantilização cultural. Não negamos isso, mais também
acreditamos também que poderíamos dizer que Leonardo queria se aproximar do Poder
Público para conquistar benefícios para o urrar do seu bumba.
Vemos nessa história contada que Leonardo representava ali todos os sujeitos
celebrantes do bumba que sempre lutaram pelo direito de conquistar a cidade, e se utilizavam
de suas habilidades para costurar suas “redes de sociabilidade”, inclusive junto as elites locais,
se aproximando do Poder Público de modo a garantir a visibilidade e os recursos necessários
aos bumbas.
Não estamos querendo dizer que nessa “aproximaçãose romperam as assimetrias de
poder, ou mesmo que não há uma tentativa de cooptação do boi pela elite local. Inferimos que
a narrativa do boi no Palácio da mesma forma mostra (sem querer mostrar) a capacidade do
135
sujeito celebrante em resolver seus problemas, ao acionar o seu contatocom o agente do
Poder Público.
Se aceitarmos que houve o início de uma era incondicional de cooptação da classe
dominante querendo consolidar seus interesses mercantis sobre o urrar do boi, anulamos num
piscar de olhos” todo um processo de resistência e existência projetados pelos sujeitos
celebrantes e suas ações em busca de uma afirmação no cenário da cidade em meio a intensa
repressão, opressão e discriminação que sofriam até a década de 1950. Cremos que se o boi
foi aceito e o Poder Público se abriu para uma negociação e ajuda foi porque o sujeito
celebrante tamm pensou em uma aproximação com estes agentes para tentar assegurar seus
interesses e a sobrevivência do urrar do bumba. Então, o cuidado que devemos ter é que não
podemos transformar versões oficiais como a “verdade incondicional”, mais sim apenas mais
uma razão analítica para entender os processos de construção do bumba na cidade de São Luís
(ALBERNAZ, op. cit.).
Por que não complexificarmos mais a reflexão dizendo que essa “nova era” a partir
dos anos 1960 para o bumba em sua trajetória foi resultado também de resistências e projetos
identitários postos pelos sujeitos celebrantes, se valendo de estratégias e criatividades
próprias, estendendo as suas “redes de sociabilidade” junto a classe dominante local?
Para conseguir benefício ou ser patrocinado junto ao Poder Público, os grupos de
bumba, a partir dos anos 1970, tiveram que evoluir de agrupamentos de bairro para formações
jurídicas como associações, entidades e sociedades, brincando para a Maratur mediante
contrato e pagamento de cachê. Essa mudança não significou que o Poder Público passava de
agora em diante a dar incondicionalmente o suporte necessário ao urrar daqui para frente, nem
tampouco fez os seus sujeitos celebrantes se livrarem de um peso e preocupação de ter que se
virar e conseguir recursos financeiros para produzir a brincadeira.
Pelo contrário, os sujeitos celebrantes do boi, suas estratégias e “jogos de cintura”
ainda se faziam como um elemento primordial para a sobrevivência do urrar dos muitos
grupos de bumba existentes na cidade de São Luís. Em muitos casos se o sujeito celebrante
o utilizasse de sua habilidade para “conversar” com o Poder Público muitas vezes ficava
sem dinheiro necessário para comprar os insumos de produção do boi.
A procura do sujeito celebrante do bumba em negociar com a classe dirigente é posta
em situações como estas nas quais muitos desses sujeitos, como José de Jesus Figueiredo (Zé
Olhinho) e Alauriano Campos Machado, buscavam aproximação com a Srª Zelinda Lima,
presidente da Maratur no início dos anos 1970, no intuito de conseguir algum proveito e
136
benefício necessário a organização do seu grupo de bumba, para não deixar o seu bumba sem
sair ou ficar “feio”.
[Nos anos 1970] cheguei a ver o Boi de Pindaré muito bem organizado, muito bem
situado. Ainda não cheguei com esse aqui [boi Unidos de Santa Fé], não cheguei
onde quero, mas vou conseguir. Dona Zelinda prometeu ajudar e sei que ela vai me
ajudar (FIGUEIREDO, 1999, p. 114).
Por último, chegou a notícia de que ando puxando saco de Dona Zelinda. Estou
me incomodando! Por que eles não vão onde ela está? Acho que a porta está aberta
para todos (MACHADO, 1999, p. 141).
Assim, as “redes de sociabilidade” necessárias ao urrar do bumba orquestradas pelos
sujeitos celebrantes se fazem valer do contato com a elite dirigente local, procurando o
representante do Poder Público para tentar reforçar o batuque do seu grupo. Essa situação fica
ainda mais clara a partir do momento em que o vemos a insistência e presença do sujeito
celebrante em freqüentar e dialogar junto aos espaços públicos institucionais, visando buscar
recursos para o boi até os dias atuais. então uma iniciativa dos próprios sujeitos
celebrantes do boi em reforçar a “dependência” de sua cultura com o Poder Público.
As “redes de sociabilidade” dos sujeitos celebrantes do bumba junto a elite dirigente
local não livrou o bumba de enfrentar muitos momentos tensos a partir da segunda metade do
século XX. Temos ainda alguns exemplos de repressão da classe dominante com os sujeitos
celebrantes do bumba em certos momentos no período pós anos 1950, como no caso do
tempo da ditadura brasileira em que os boieros eram presos quando pisavam a caada do
Exército no bairro do João Paulo durante a festa do boi realizada no final do mês de junho no
referido bairro.
Quando vinha de lá [da Maioba e do Bonfim] parava no João Paulo, tinha a feira do
João Paulo, ali onde é a pracinha, e parava em frente ao cinema, nem podia pisar
na calçada do quartel, antes não podia pisar na calçada. Se tivesse com uma matraca,
com um pandeiro, com a roupa do boi, não podia pisar na calçada do quartel que
mandava prender (...) (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
Houve ainda inúmeras outras situações de desencontros entre a classe dominante e
boieros nesta época. Depois do período ditatorial a intolerância definitivamente deixou de ser
um problema para o boi urrar, passando a ser o maior problema a inserção do bumba no
contexto de uma centralidade da sociedade contemporânea, e a ampla associão de sua
imagem junto ao Poder Público, levando a um processo de degradação das ditas tradições:
137
(...) a Maratur ajudou a acabar com o auto nas apresentações, porque se o boi o
tem auto a brincadeira não tem história (VIANA, A., 1999, p. 26).
Eu acho que a ligação [do boi] coma classe média e com a classe alta acaba
escangalhando a brincadeira (MACHADO, 1999, p. 133)
Porém, se persistisse as situações de “desencontros” entre sujeitos celebrantes do boi e
Poder Público, expondo interesses verticalizados dos agentes dominantes, isso afetaria tanto o
boi como as instituições públicas, uma vez que não somente os boieros precisavam das
instituições para se reproduzir, mas as instituições públicas precisam também dos boieros para
legitimar sua existência. Isso define que o campo de forças em torno da construção do bumba
é flexível, ora tendendo a uma definão construtiva pelo interesse do dominante e ora
tendendo para o interesse dos sujeitos celebrantes.
A partir dessa premissa colocamos que é muito importante observar a capacidade de
negociações entre os vários agentes em torno do urrar do boi, se referindo atentamente ao
papel dos setores populares em se beneficiar destas instituições de acordo com a sua posão
na estrutura social, e não só o papel de patrão” e ideológico do Poder Público.
Além da capacidade de negociação, outro fundamento importante para se pensar o
alicerce existencial do boi ainda destacando o papel ativo dos sujeitos celebrantes se
através do compromisso” do boiero em celebrar o boi mesmo com muitas dificuldades. É o
sujeito celebrante do bumba o homem de frente nessa batalha permanente de botar o novilho
na rua, encarando as dificuldades, a falta ou a insuficiência de verba, fazendo do boi não uma
mera brincadeira, mais um compromisso sério.
Quando saímos da sede há despesas (...) a brincadeira é dispendiosa, mas se
olharmos para o lado das dificuldades, o nos divertimos, quer dizer, colocamos os
outros para se divertirem, porque, no meu caso, não estou brincando, estou
trabalhando, e duro! (...) Mas compensa, me sinto gratificado brincando o boi
(FIGUEIREDO, 1999, p. 113).
Se o Poder Público fosse amplamente dado como o agente incondicional da
visibilidade e da vitalidade do bumba, este não conseguiria urrar com tanta eloquencia, dada a
escassa verba patrocinada pelo Estado para cobrir as altas despesas. Por isso estes colocam
que a sua “teimosia” é bem maior do que o suporte financeiro que o Estado oferece.
Nossa arte está sendo reconhecida porque a gente é teimosa. Deus ajuda, a gente
sempre cria as coisas e sempre tem pessoas que gosta e quer. Porque senão não
estava mais. O dinheiro que entra o é nem tanto para sobreviver. que se tem
138
prazer de estar criando aquela coisa [o bumba-meu-boi], riscando, cortando (ABEL
TEIXEIRA
25
apud BARBOSA, J., 2004, p. 84).
A “teimosia” com a insistência e a luta dos sujeitos celebrantes em continuar e querer
colocar para frente o legado herdado de seus antepassados, explica e muito ainda a
continuidade da existência do urrar do boi através do que chamamos de “compromisso”.
Situamos de forma geral que no período pós - anos 1950, a teimosia e a
“habilidade”, ou em outras palavras, a “compromisso” e as “estratégias” ainda faziam parte do
processo de existência do urrar do boi para não deixá-lo morrer, da mesma forma como
também acontecia no período anterior aos anos 1950 quando o havia uma aproximação
entre os sujeitos celebrantes e o Poder Público na construção do urrar do boi.
Porém agora, as “redes de sociabilidade” e o compromissomostram que o bumba
o somente conquistou a cidade e a centralidade urbana. É mais do que isso, o bumba
também foi conquistado pela cidade, no sentido de que o boi conseguiu fortalecer suas
relações internas por se adaptar as estruturas urbanas macrossociais, usando o aparelho
burocrático público institucional e o fluxo maior em meio a cidade para ganhar e reforçar
condições de legitimidade e validade em São Luís e no Estado do Maranhão.
Como um ente urbano, o bumba se tornou versátil a partir de uma tessitura junto
com os valores da vida urbana, principalmente no que diz respeito a garantir uma visibilidade
e popularidade. E o boi ganhou visibilidade e popularidade, respectivamente, com a
financeirização e a atração de boieros para os grupos, negociando com os dirigentes do Poder
Público e adentrando nas malhas da cidade para celebrar o boi e capturar boieros conforme
veremos nos próximos itens.
Sem financeirização não tem como sustentar o objeto celebrado, o bumba, e sem
brincante (boiero) o boi não tem celebração e efervescência coletiva que é outro elemento
fundamental para dinamizar os grupos.
É atrás dessa batalha de buscar a sustentação e a condição existencial do urrar do boi
que os sujeitos celebrantes tecem suas redes de sociabilidade” com o intuito de re-organizar
a brincadeira em meio às novas demandas postas diante das mudanças e reordenamento da
cidade, como também firmam o seu compromissoe a teimosia para continuar celebrando o
boi que faz parte de suas vidas.
Em meio à construção dessas brincadeiras, vemos então que aquele boi que antes fazia
o movimento periferia centro até a década de 1950 atrás de uma aceitação social ampla da
25
Abel Teixeira é integrante do boi da Floresta, do município de São Luís, pertencente ao sotaque de Zabumba.
139
classe dominante para não ser discriminado, vai agora (dos anos 1960 aos dias atuais)
também do centro a periferia no intuito de consolidar os componentes modernos a favor da
sua sustentação que antes eram encontrados no Centro ludovicense como: o financiamento
público e privado para ajudar o bumba através de articulações com a classe dominante e; se
espraiar pela cidade, indo além do seu terreiro de origem para não perder e/ou conquistar mais
brincantes que se espalharam por toda São Luís depois da modernização urbana da cidade.
Atualmente, um bumba só consegue se legitimar e se validar enquanto cultura popular,
o estando alheio às estruturas macrossociais urbanas, construindo-se junto a malha urbana
da cidade, penetrando no tecido urbano de São Luís. Os mapas 05 e 06, pontuados nas duas
páginas a seguir, mostram o espraiamento do boi da Maioba da Madre Deus durante o período
junino no ano de 2008, se deslizando praticamente por toda a cidade nos mais distintos tipos
de espaço: no Centro; áreas nobres como Renascença e São Francisco; bairros periféricos
carentes de infra-estrutura como Vila Embratel, Bairro de Fátima; e povoados rurais como:
Rio São João, São José dos Índios.
diferenças na distribuição espacial dos referidos bumbas mapeados, em que o boi
da Maioba se espraia mais pela cidade, se comparado ao boi da Madre Deus devido a uma
crise profunda no boi madredivino pela fragmentação de grupos de boieros, indícios históricos
de corrupção, brigas judiciais que vieram prejudicar na construção do compromisso do boiero
e na produção das suas redes de sociabilidade (ver item 4.2.1), ao contrário do boi da Maioba
que conquistou um momento glorioso pela eficiência nas estratégias e redes de sociabilidade
delineadas por seus sujeitos celebrantes, de modo a contornar até a imagem pejorativa que se
tinha do maiobeiro, facilitando o seu alcance maior na cena pública da cidade (ver item 4.2.2).
Com certeza, estes dois momentos diferenciados interferem atualmente bastante nas
diferenças da distribuição espacial destes dois bois na cidade de São Luís.
Porém, o que interessa pontuar nesse item é que a conquista das ruas da cidade pelo
bumba e, consequentemente, da cena pública aliado a um maior poder de penetração nos
espaços urbanos de São Luís dependeu e depende da tessitura das redes de sociabilidade” e
do “compromisso” do sujeito celebrante em colocar o boi para urrar.
A tessitura das redes de sociabilidade” e o compromisso” dos sujeitos celebrantes do
bumba revelam que o bumba-meu-boi em São Luís circula e amarra espaços de referência
para o seu urrar, de modo a garantir a “integridade” e “vitalidade” da brincadeira, conforme
mencionamos nas análises sobre o boi da Madre Deus e o boi da Maioba nos itens a seguir.
Na nossa análise destes dois bois salientamos a relevância do entendimento do boi em São
Luís a partir da perspectiva de seus sujeitos celebrantes.
140
Mapa 05 Distribuição espacial das apresentações do boi da Maioba na cidade de São Luís no período junino do ano de 2008.
141
Mapa 06 Distribuição espacial das apresentações do boi da Madre Deus na cidade de São Luís no período junino do ano de 2008.
142
4.2.1 “Madre Deus eu não deixo a coluna do teu batalhão se quebrar”: compromisso
do boiero e redes de sociabilidades do bumba-meu-boi da Madre Deus
Fazer um bumba não é e muito menos nunca foi fácil. Quero ver quem diz que é. O
boi não é feito de supetão como se pensa, hoje além de muita vontade tem que ter
muita estratégia (...). A frase da toada “Madre Deus eu não deixo a coluna do teu
batalhão se quebrar” coloca bem o papel que fazem e constroem essa manifestação
popular do nosso bairro (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
O bumba-meu-boi da Madre Deus é considerado um dos grupos seculares de bumba
do Estado do Maranhão e da cidade de São Luís. Mesmo tendo uma exisncia secular, é
difícil de datar um ano de origem para o referido bumba, sendo uma missão quase que
improvável, pois não vestígios claros de origem da existência da brincadeira, e sim
somente vestígios orais e/ou escritos que comprovam a sua existência secular, mas não o
momento exato em que se iniciou.
O presidente do boi da Madre Deus, Sr. Herberth, nos contou um depoimento que
coletou numa conversa com Igarapé, antigo amo do boi madredivino, nascido em 1891 e
falecido em 1990, dizendo que “desde quando se entendia como gente, ele havia já
encontrado o boi da Madre Deus (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
Não sendo somente um sujeito celebrante, mas um pesquisador da cultura popular e do
folclore, o Sr. Herberth achou evidências escritas no jornal abolicionista “A Pacotilha”,
comprovando a existência secular do bumba-meu-boi da Madre Deus, mencionando a notícia
veiculada sobre o convite para a morte do boi madredivino no ano de 1891.
Viva o Boi da Madre de Deus: Respeitável público! Vinde domingo às 5 horas da
tarde, na casa do administrador do Matadouro Público, ver o mais popular folguedo
do bumba-meu-boi. Vinde passar umas horas divertidas e alegres, assistir aos feitos
do jocoso pai Francisco e as joviais graças da espirituosa Catharina (...) Vinde que
o boi da Madre de Deus está na ponta (A PACOTILHA, Jornal, 1891, p. 02).
O bumba-meu-boi da Madre Deus está localizado no bairro de mesmo nome, um
bairro com ruas estreitas e bem apertadas (ver foto 15), com boa parte das casas sem quintais
e terraços, recheado de residenciais antigas sem espaços para garagem de carro. O bairro
situa-se próximo do Centro da cidade de São Luís em uma área bastante acidentada, com um
terreno cheio de inclinações, ocupado por pessoas sem muito poder aquisitivo. Hoje a Madre
143
Deus pertence ao Centro da cidade, mais no passado era considerado como uma área
suburbana.
Foto 15 Ruas estreitas e apertadas que comem a paisagem do bairro da Madre Deus.
Fonte: CARVALHO, Daniel, 24/04/2008
O bairro da Madre Deus é identificado como “reduto cultural de São Luís”, “berço de
cultura da cidade” (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009). Esta é uma afirmação
pertinente se considerarmos a grande quantidade de manifestações da cultura popular
maranhense ali existente, compondo 62 (sessenta e duas) brincadeiras culturais populares,
indo desde as manifestações ligadas ao carnaval, passando aquelas ligadas ao período junino,
até chegar às manifestações culturais relacionadas ao período natalino. A Escola de Samba
Turma do Quinto, Bumba-Meu-Boi da Madre Deus sotaque da Ilha, Casa de Culto Afro Casa
das Minas e Casa de Nagô, Bloco Tradicional Fuzileiros da Fuzarca, Bloco Tradicional Bicho
Terra, Cantata Natalina, Boizinho Barrica, Bloco Tradicional Carnavalesco Os Ritmistas,
Bloco Tradicional Carnavalesco Os Foliões, Bloco Carnavalesco Máquina de Descascar Alho,
Grupo de Samba Trem das Onze, Grupo de Samba Regional 310, são apenas alguns exemplos
de manifestações culturais ali existentes e bastante conhecidas por toda a cidade pela sua arte.
A identidade que entrelaça cultura popular e especo geográfico do bairro é notada nos
elementos discursivos dos sujeitos celebrantes do bumba local associando a Madre Deus
como “Madre Divina berço de cultura” (SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009),
remetendo o seu espaço como “um referencial para a cultura popular maranhense” (SR.
144
BRUXELAS, entrevista em 04/04/2009), em meio a quantidade significativa de brincadeiras
do lugar.
Essa ligação estreita entre o bairro e a cultura popular traz um orgulho imenso para as
pessoas que ali residem, especialmente aquelas que são envolvidas com algum tipo de arte
popular no bairro. É com muito “bairrismoque o Sr. Calça Curta, sujeito celebrante do boi
da Madre Deus, infere o seu bairro como melhor que outros devido as festas e a cultura ali
amplamente existentes.
Eu sou da Madre Divina berço de cultura, em São Luís não tem pra ninguém. Esse é
o melhor lugar de toda a cidade. Duvido se tem um lugar igual por aí. Não tem
nenhum lugar igual. Quando o pessoal quer se divertir todo mundo corra pra Madre
Deus. Madre Deus é Madre Deus, aqui sempre tem festa (SR. CALÇA CURTA,
entrevista em 15/03/2009).
Fazendo um breve passeio no bairro, nos deparamos com materialidades espaciais aos
quais confirmam a sua fama de reduto cultural da Ilha” (SR. HERBERTH, entrevista em
22/04/2009). No limite do bairro com a estrada do Anel Viário encontramos a sede da
“Associação Folclórica e Beneficente Bumba-meu-boi da Madre Deus”; subindo a rua de
esquina da Praça do Coreto indo em direção ao Largo do Caroçudo encontramos a sede dos
Fuzileiros da Fuzarca; no Largo do Caroçudo encontramos a Sede da Companhia Barrica, o
Conselho Cultural da Madre Deus e o barracão da Escola de Samba Turma do Quinto;
entrando na Rua São Pantaleão está o Centro de Produção Artesanal do Maranhão
(CEPRAMA) e o Terreiro Afro Casa das Minas e; na parte alta do bairro, no Largo da
Saudade encontramos o abrigo de agremiações como o bloco “Príncipe de Roma”.
A fama e a diversidade cultural do bairro correm por toda a cidade de São Luís, o
somente pelas brincadeiras, mas também por ser o grande corredor do Carnaval da cidade que
se concentra oficialmente nas suas ruas, sendo parte integrante do circuito Deodoro - o
Pantaleão - Madre Deus, abrigando os blocos tradicionais, os blocos afro, tribos de índios,
blocos organizados, fofões e outras mais atrações do carnaval ludovicense.
As ruas do bairro são também conhecidas por ser fonte de inspiração da literatura
como na obra de Josué Montello (1975) que se utilizou do cenário madredivino e de sua
cultura, mais especificamente da Casa das Minas, para escrever o livro “Os Tambores de São
Luís”, retratando a saga dos negros na sociedade maranhense do início do século XX. Eis uma
passagem do livro que descreve as ruas do bairro:
145
(...) Ele mora ali defronte, do lado da rua Madre Deus, na casa das Galvão. Aliás,
quando moço, morou também ali. Depois se mudou para o Palácio do Bispo.
Agora, voltou ao ninho antigo. É naquela meia-morada baixa, com luz no corredor
(...) (MONTELLO, op.cit., p. 193).
O caráter popular do bairro é também revelado pela vida dos seus habitantes em
trabalhos históricos como pescadores e operários de fábrica. Esse trabalho é rememorado por
moradores antigos, como pelo Sr. Zé Toinho (80 anos), ex-presidente de muitas manifestações
culturais do bairro, inclusive do bumba por nós pesquisado:
Os nossos pais, avós, os nosso antepassado eram tudo trabalhador nas fábrica, nas
Fábrica de Cânhamo e São Luís, tinha uns que era pescador e estivador, eu mesmo
pesquei muito, esse pessoal tudinho que tá aqui na praça, esses bem eram
pescador e brincante do boi, hoje tão tudo aposentado (SR. ZÉ TOINHO, entrevista
em 14/03/2009).
O trabalho operário no bairro se dava nas grandes fábricas extintas, como a Fábrica
de Fiação de Tecidos de Cânhamo, a Fábrica de Tecelagem São Luís, a Fábrica de Tecelagem
Martins, que produziam tecidos e, principalmente, estopa, grandes sacos para se armazenar
alimentos em grãos, como o arroz e a farinha vindos do interior do Estado. Assim Marciano
Viera Passos relembra a presença das fábricas no cenário espacial do bairro da Madre Deus:
Ta lá a Fonte do Bispo. Mas tem a Fábrica de nhamo e a Fábrica São Luís. Tem
um portão grande dividindo, daí pra é a Fábrica São Luís, até no terminar do
muro, é uma pegada na outra. Aí é duas fabricas. É dividido. Lá na Fonte do Bispo,
pertence a Fábrica São Luís. Agora aqui a Susana [nome da descida que tinha
atrás da Fábrica de nhamo] pertence pra Fábrica de Cânhamo, entende?
(PASSOS, 1997, p. 71).
No final da primeira metade do século XX, época de profunda crise financeira no
Estado do Maranhão (LACROIX, 2004), essas fábricas fecharam, deixando boa parte das
pessoas desempregadas, causando um terrível transtorno a sobrevivência dos moradores do
bairro madredivino que eram em grande parte operários.
Com os trabalhadores operários sem emprego devido ao fechamento das fábricas,
restava somente a pesca como alternativa para a sobrevivência dos madredivinos. É diante
deste contexto que o Sr. Marciano Viera Passos afirma enfaticamente haver pescadores no
final dos anos 1940 e início dos anos 1950 no bairro da Madre Deus:
Entrevistador: A Madre Deus, naquela época [mais ou menos 1947, cinqüenta anos
antes da realização da entrevista em 1997], a população toda, os homens, eles
trabalhavam em quê?
Marciano: Eles trabalhavam em pescaria.
146
Entrevistador: Só em pescaria?
Marciano: Só em pescaria.
Entrevistador: Não tinha estivador?
Marciano: Não, não tinha estivador, não senhor, era só pescador.
Entrevistador: Naquela época praticamente todo o pessoal que morava nesses
bairros ou era pescador ou era operário das fábricas. Não havia estivador,
funcionário público... Essas coisas o havia?
Marciano: Não, era puro pescador. Pescador e algum agiota que vendia peixe.
Como o finado Rafael, finado Filadelfo, finado João, esse pessoal (PASSOS, op.
cit., p. 74-75).
É a partir dessa descrão inicial da composão sócio-espacial do bairro que
começamos a analisar mais profundamente o bumba-meu-boi da Madre Deus, um boi secular,
mostrando como as pessoas comuns”, os sujeitos celebrantes do bairro, contribuíram
decisivamente para a trajetória do urrar do bumba madredivino, tanto nos momentos bons
como nos momentos de crise do boi.
Por um longo tempo o boi do bairro da Madre Deus foi tocado por pessoas
humildes”, pescadores e operários de fábricas, que nos seus momentos de lazer faziam o
bumba para brincar. O boi era feito com muito sacrifício, dedicação e espírito coletivo
(comunitariamente) já que seus sujeitos celebrantes não dispunham de dinheiro suficiente para
injetar no bumba, pois davam o o duro na vida” e mal tinham dinheiro para se alimentar.
Quem fazia o boi era gente que era pescador, gente que vendia peixe, gente que
trabalhava nas fábrica daqui da Madre Deus, os estivador, esses eram as pessoa que
mais fazia e ainda faz na sua maioria o boi, eram eles que botava a brincadeira na
rua com toda união que tinha mesmo com dificuldade, que tinha mal o de comer
(SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Se o boi é ou foi feito por “gente sem muito poder aquisitivo”, a sua existência corre
no fio da navalha e qualquer deslize ameaça a sua existência, dado a vida precária de seus
sujeitos celebrantes. Dizemos que a condição existencial do bumba da Madre Deus dependeu
e muito do compromisso e da teimosia de fazer existir a brincadeira, botando o boi para urrar,
que dificuldades de produzi-la nunca faltaram. Foi neste sentido de dificuldades enfrentadas
que o Sr. Herberth (entrevista em 22/04/2009) nos disse que “na história do boi da Madre
Deus houve anos de o boi não sair e anos de o boi voltar com toda garra e coragem dos
boieros que colocaram o boi pra vadiar”.
Os momentos de paralisação do bumba madredivino são constantemente rememorados
por seus sujeitos celebrantes, especialmente se tratando da interrupção do urrar do boi que
durou do ano de 1951 a 1963 depois de ocorrer alguns problemas internos. Esses problemas
são contados em duas versões em que: primeiro a interrupção do boi se deu por causa da
147
morte de um importante sujeito celebrante; e segundo, a interrupção se deu por causa de
brigas com boieros rivais aos quais não se toleravam:
O boi ficou parado doze anos de 1951 a 1963. Ele parou porque os cantadores
velhos todos morreram; os outros que ficaram muito velho, o pessoal que brincava
não tinha resistência pra guentar muita coisa. Agora, esse pessoal morreu, mais a
brincadeira não morreu, fez falta esses anos todos, mais a questão é que nós
ficamos com a semente do pessoal antigo, então ainda não podia, não tinha força,
s éramos muito novo [diz o Senhor Tabaco] (ARAÚJO, M., 1984, p. 63).
O boi da Madre Deus ficou antes de 63 muitos anos parado por causa da fama de
brigador que tinha, essa época qualquer coisa entrava em briga, aí teve a morte de
uma pessoa em quarenta e pouco durante a matança do boi e a polícia não deixou
mais o boi sair (SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Depois de resistir a repressão dos anos 30 e 40, o boi da Madre Deus deixou de
brincar durante alguns anos na década de 50, por causa de confusões na brincadeira,
mas voltou com toda força em 1963 (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
Depois de um período de doze anos sem urrar, a partir do ano de 1963 houve a
retomada das atividades do bumba. Com o retorno do boi, os sujeitos celebrantes do bumba
da Madre Deus provavam que não deixaram a brincadeira se consumir no tempo, não fazendo
esta cair num processo de esquecimento. Esse é um ponto essencial para dizer que o urrar do
boi depende do “compromisso” do boiero em botar o novilho para vadiar.
O retorno do bumba madredivino se deu após uma reunião de um grupo de pescadores
do bairro, depois de uma cansativa jornada de trabalho que, em meio as conversas e diálogos,
resolveram colocar um “boi de cofo que foi o embrião para reerguer o referido bumba,
mostrando a vontade dos sujeitos celebrantes em organizar novamente o novilho.
Geralmente essas coisa sempre vem do principal da coisa que se chama-se boi de
cofo. O boi da Madre Deus voltou assim em 63 pelo boi de cofo, onde os pescador
queriam brincar novamente o boi aqui e não mais em outro lugar. Aí fizeram
primeiro um boi de cofo, pegava um cofo né, botava uma poção daquele papelzinho
pendurado, um negócio de um pedaço de pano, enfiava o pau ali no cofo pra dizer
que era o chifre do boi,pegava o crepom e fazia a barra, aquele negócio todo né,
viu, aí depois pegaram o embalo e fizeram um boi mesmo grande e bonito (SR.
CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
A montagem de um simples “boi de cofo” mostra como a improvisação, por mais
singela que seja, também pode ser o instaurador e catalisador para reatar os laços entre os
sujeitos celebrantes, boieros e bumba. Foi a partir dessa improvisação que se iniciou toda uma
desenvoltura essencial para que o boi vingasse novamente, podendo se dizer que mesmo com
boi de cofo, com toda sua simplicidade de criação, conseguiu-se aglutinar os sujeitos
celebrantes para colocar o boi da Madre Deus para urrar novamente.
148
Porém, para o boi de cofo amadurecer novamente como um boi grande, era necessário
ter a seriedade e o compromisso de construir o bumba e botá-lo na rua. Essa seriedade e
compromisso de botar o boi na rua como característica fundamental da brincadeira pode ser
identificado na fala do Sr. Pedro Reis que, em meio a uma reunião de “bastidores” para a
organização do bumba da Madre Deus, alertava a todos os presentes que “antes de brincar o
boi é necessário fazer o boi, brincar é diferente de botar o boi na rua” (SR. PEDRO REIS,
depoimento em 18/04/2009).
Não podia ser diferente, mesmo sendo uma festa, lembramos que o boi não é
diversão, exigindo um trabalho de seriedade e compromisso, de muita mão-de-obra, de um
intenso trabalho, de dispêndio de energia e tempo por parte de cada sujeito que o constrói”
(SR HERBERTH, entrevista em 22/04/2009). Foi com esta “seriedade” e “compromisso” que
os sujeitos celebrantes reconstruíram o boi da Madre Deus a partir do boi de cofo.
Anos depois de recolocar o boi madredivino para urrar, com a construção da barragem
do Bacanga e do Anel Viário no ano de 1967 durante o governo Estadual de José Sarney,
houve novamente uma ameaça de se quebrar o elo entre os boieros e o boi da Madre Deus,
com a possível desvinculação de boieros que estavam saindo do bairro do bairro diante das
transformações espaciais modernas. Com as construções modernistas no bairro, muitos
boieros foram expulsos de suas moradias na extinta praia da Madre Deus, sendo realocados
para morar no novo conjunto habitacional do Anjo da Guarda depois que viram suas
residências darem lugar a um aterro.
Essa época de transformações espaciais do bairro da Madre Deus é terrivelmente
lembrada pelos moradores/boieros que viveram nesses anos de bruscas mudanças,
especialmente no que diz respeito a perca do potencial pesqueiro e o aumento da dificuldade
de se sobreviver no bairro, como mostra Araújo (1984, p. 53-54) a partir um depoimento
coletado:
A cidade foi invadida por uma série de valores, por todo um processo de
especulação imobiliária. A influência da ponte do São Francisco que abriu a cidade
de um lado, a barragem do Bacanga que abriu por outro, tudo foi nos meados da
década de 60.
Não acabaram com a praia [da Madre Deus], acabaram praticamente com o modo
de vida, a fonte de renda dos moradores que era a pesca, porque fizeram várias
avenidas, barragem, anel viário. Os caras tiveram que encontrar uma outra
atividade profissional para se manter.
Toda essa “violência espacial” proporcionava elementos fundamentais de
desarticulação na celebração dos boieros junto ao boi da Madre Deus. Antes da barragem, os
149
boieros, que eram pescadores, contribuíam com peixe que depois de cozido servia de merenda
para o pessoal aguentar passar a madrugada “vadiando” com o bumba-meu-boi, servindo
também de atrativo para as pessoas se unirem e celebrar o bumba. Sem o peixe os boieros
podiam dar dinheiro, que não era o suficiente, pois estes não dispunham de grandes condições
financeiras.
O rio Bacanga era um canal piscoso. Como a comunidade era toda de pescadores
basicamente, todos os boieros contribuíam com alguns quilos de peixe quando se
tinha o ensaio. Como a construção da barragem em 67 afetou o potencial pesqueiro
do bairro, muitos foram obrigados a deixar a pesca, o que modificou o modo de
contribuir. Hoje o pessoal faz cota porque não mais para dar o peixe como
antigamente. E mesmo assim é difícil dar um dinheiro significativo porque
ninguém tem para dar, a maioria das pessoas não tem condições financeiras (SR.
HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
Até mesmo outras festas realizadas no bairro da Madre Deus relacionadas diretamente
ao bumba-meu-boi foram intensamente prejudicadas com a construção do Aterro e da
Barragem do Bacanga. A Festa de São Pedro (realizada no dia 29 de junho) que tem como
ponto alto a procissão marítima em homenagem a um dos padroeiros juninos foi perdendo
público com tais obras, devido a modificação da referência simbólica espacial da Capela de
São Pedro como local de saída das embarcações já que a Praia da Madre Deus estava extinta.
Antes da barragem aqui era melhor de que hoje (...), pra mim foi a maior besteira
(...), pra mim foi viu, porque não fez como no São Francisco uma ponte? (...) na
época viu, antes de ter essa barragem viu, desde da Festa de São Pedro era uma
beleza o espetáculo, hoje você , viu, a procissão marítimo, viu, é uma negação, é
uma decepção, você olhava lindo, porque?, porque tinha tudo quanto era
embarcação que tava aí no porto antes da barragem, tudo cheio meu peixe, o senhor
entendendo, quer dizer, entendendo, eu cansei viu, viu, de toda vez quando a
lancha ou as lanchas (...), a hora que cortava no trapiche quebrava, jogava era
mulher dentro [do mar] que dava gente que tinha que tá carregando a mulher pra
não morrer afogada, aquele negócio todo, hoje tem pouca gente (SR. CALÇA
CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Porém, em vez de a modernização sucumbir as identidades, ela (a modernização) criou
um efeito contrário neste contexto adverso de mudaas no bairro da Madre Deus,
provocando choques e exacerbando as identidades no grupo dos boeiros. Entendemos que
exacerbou as identidades no sentido de formar uma consciência ainda maior dos boieros em
torno do pertencer ao bairro com as suas festas.
É nesta perspectiva de busca de uma essência identitária que o Sr. Herberth (entrevista
em 22/04/2009), pertencente a uma das famílias que sofreu a desapropriação de sua residência
indo morar no novo bairro do Anjo da Guarda, fala que: Sarney [então governador
150
responsável pelas obras] me expulsou do bairro, mas não me afastou da comunidade e das
festas”.
No seu estudo sobre o boi da Madre Deus, Arjo (op. cit., p. 55) enfatiza uma
entrevista colocando que as transformações e expules promovidas pela modernização no
espaço do bairro foram insuficientes para quebrar os vínculos das pessoas com a culturalidade
e identidade madredivina, mesmo entre aquelas pessoas que não moravam mais no referido
bairro.
A gente pensava que aquilo [a destruição da praia] ia significar uma catástrofe para a
Madre de Deus, na verdade, foi uma desagregação, mas esse fato é interessante
registrar com muita alegria porque houve uma consciência muito grande que
permitiu com que a transferência física das pessoas não mudasse.
A Madre de Deus é uma base física, mas, sobretudo, um estado de espírito [grifo
nosso]. Eu diria que a Madre de Deus hoje, é uma referência geográfica [física] na
região, onde a gente conhece, mas é também outras coisas, que é esse compromisso
cultural que a pessoa tem com ela.
Ser Madre de Deus não é mais necessariamente hoje, morar lá, mas é participar
daquele espírito de resistência cultural, tanto das pessoas que se moraram e se
mudaram para as mais diversas regiões da cidade e continuam fiéis a Madre de
Deus, como também por um grupo de pessoas que nem nunca morou lá, mas se
associou a esse espírito de valorização cultural de nossa cultura de resistência [...]
De modo que Madre Deus tanto pode ser na Cohab, Cohajap ou no Anjo da Guarda,
ou em qualquer outro bairro de São Luís.
Compreendemos que ser madredivino não é somente está fisicamente no bairro, morar
no bairro ou nascer na Madre Deus, e sim é compartilhar os seus valores e símbolos ali
característicos e celebrados, aderindo a cultura e a tradição das festas que está circunscrita
como “estado de espírito”. A noção implícita de “estado de espírito”, também de ser
dimensionada nas palavras do Sr Herberth Santos (entrevista em 22/04/2009) se julgando
madredivino por participar intensamente das brincadeiras do bairro e não simplesmente por
morar no bairro.
A paixão pela Madre Deus o vem pelo fato de morar no bairro e sim pelo fato de
viver as tradições do bairro, inclusive você me vê, eu to falando de brincadeira, de
todo um entendimento que aprendi dos meus antepassados que gostavam, o mais
importante é o boi e as outras tradições daqui da Madre Deus.
O “compromisso” com a celebração cultural popular tem o poder de aglutinar e
alicerçar as identidades dos sujeitos celebrantes junto ao bairro da Madre Deus, não somente
aqueles diretamente envolvidos no bumba-meu-boi, mais também envolvidos em outras
brincadeiras.
151
Pensar a Madre Deus não era (e nem é) compreender um bairro circunscrito dentro de
limites espaciais físicos que separa esse bairro de outros bairros vizinhos como: a Areinha, o
Caminho da Boiada. Pensar na Madre Deus é compreender, sobretudo, os vínculos que unem
as pessoas no e junto ao bairro da Madre Deus e não nas pessoas em si que habitam o bairro.
Porém, mesmo reconhecendo o “compromisso” das pessoas em celebrar o boi e as
festas do bairro, se fez fundamental entender como os vínculos em torno do bumba foram
tecidos ressaltando o papel dos sujeitos celebrantes em fazer com que não “a peteca da cultura
popular não deixasse cair” enfrentando todas as adversidades. No entendimento da
permanência da vitalidade do bumba madredivino, não podemos deixar de crer que as
estratégias de sobrevivência delineadas pelo povo, chamadas por nós de redes de
sociabilidade”, também se fizeram fundamentais para a vida do bumba.
Depois destas obras que modificaram a vida do morador/boiero do bairro da Madre
Deus, os sujeitos celebrantes do bumba tiveram que desenvolver estratégias para não deixar o
boi morrer, fazendo com que este continuasse urrando após essa violência espacial causada
pela expansão do capitalismo moderno que estava se circunscrevendo na cidade de São Luís.
Tais transformações espaciais acionaram as habilidades e criatividades dos sujeitos
celebrantes do bumba-meu-boi madredivino, sendo procedimentos fundamentais para não
deixar o seu bumba cair no esquecimento e no perecimento. A saída encontrada dos sujeitos
celebrantes para não perder seus boieros foi estreitar os seus laços com o novo bairro para
onde os boieros foram realocados.
Neste contexto de modernização do espaço ludovicense ocorrido a partir da segunda
metade da cada de 1960, os boieros madredivinos sentiram a necessidade de estender o
urrar do boi para além do limite de seus bairros e proximidades para não perder o contato com
aqueles que saíram do bairro da Madre Deus. Foi a partir desse momento que os sujeitos
celebrantes do bumba desenvolviam mais as suas redes de sociabilidade”, passando a se
integrar com as pessoas de outros bairros para brincar no seu bumba.
A nossa ligação com o bairro do Anjo da Guarda era muito grande, depois que o
pessoal foi expulso por Sarney daqui da Madre Deus a gente brincava muito e
muitos deles vinham para cá. Depois a gente começou a ter brincantes não do
Anjo da Guarda, mais da Vila Maranhão, da Vila Embratel e de outros lugares ali
perto (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
Diante da nova conjuntura da cidade e do bairro, os sujeitos celebrantes madredivinos
foram aos poucos costurando toda uma conquista espacial para além do bairro de origem.
Outros lugares que não possuíam o seu boi, começando com o bairro que havia madredivinos
152
antigos como o Anjo da Guarda, depois se espalhando por lugares próximos ao Anjo da
Guarda como Vila Maranhão e Vila Embratel, foram requisitados para filiar suas pessoas na
“vadiagemjunto ao boi da Madre Deus, por meio de um contato entre os sujeitos celebrantes
do bumba e lideranças dos bairros.
Para dar continuidade a ligação do boi com os boieros é patente que houve uma
atualização do bumba madredivino de acordo com as novas condições de vida que
permeavam o bairro da Madre Deus, e que só o compromisso e a seriedade não bastavam para
o boi continuar urrando, pois nem sempre o brincante, apesar de estar com a cabeça na Madre
Deus, tinha condições de estar no bairro para brincar, fazendo-se então necessário muitas
vezes o boi ir ao bairro como uma estratégia de sobrevivência.
Era necessário arrumar finanças para poder deslocar espacialmente os brincantes do
bairro da Madre Deus para o Anjo da Guarda e, principalmente, do bairro do Anjo da Guarda
para a Madre Deus, que era primordial estes boieros de fora do bairro participar do boi,
uma vez que o boi sotaque de matraca precisa de grande quantidade de pessoas integrando as
suas fileiras, e assim não se podia perder nenhum boiero.
Em virtude da necessidade do dinheiro e outros insumos, os sujeitos celebrantes
madredivinos construíam suas redes de sociabilidade” junto a classe dominante e dirigente
da cidade, estreitando uma aproximação para obter a renda que queriam. Desta forma era que
os sujeitos celebrantes da Madre Deus aceitavam” na sua brincadeira os Deputados, a fim de
estreitar suas relações com estes, mesmo que não soubessem tocar pandeiro e/ou
atrapalhassem a sua brincadeira:
Se um deputado (...) ta no boi, vai brincar no ensaio. Brincar, beber cachaça,
fica atrapalhando a brincadeira porque ele não sabe tocar. Então ele chega para
um caboclo daquele e pede o tambor, e ele dá, porque é Deputado! É o doutor que
chega lá, né! É filho do Home! É um cara conhecido (In: ARJO, 1984, p. 65).
Araújo (op. cit.) coloca este depoimento na sua dissertação sobre o boi da Madre Deus
interpretando que o poder dominante entra no boi para satisfazer seus interesses. Para nós,
essa interpretação não é errada, porém ela dar margem ao entendimento do outro lado da
moeda mencionando que os sujeitos celebrantes também estavam querendo atender seus
interesses em tentar conquistar algum apoio para tocar o urrar do seu boi ao se relacionar com
uma figura da política mesmo a contragosto.
É claro que estava havendo um processo intenso, conflituoso e cheio de tensões em
torno da produção do urrar do bumba ao sujeito celebrante se relacionar com a classe
153
dirigente local, exemplificado na citação acima pelas palavras de desentendimentos e falta de
afinidades. Mas por detrás dessas desafinidades e desentendimentos um processo de
negociação, mesmo envolvendo um contexto de tensões.
As redes de sociabilidade” construídas em torno do bumba-meu-boi da Madre Deus
através da conquista de novos espaços hegemônicos - dialogando com a classe dirigente - e
o-hegemônicos - entrando em diálogo com os potenciais boieros - faziam (e ainda fazem)
parte do movimento de vitalidade do urrar do boi madredivino, e foram relevantes para o
referido bumba ter um período glorioso, apesar de muitas as tensões enfrentadas.
Depois que o boi da Madre Deus foi colocado na rua novamente, vemos o bumba
madredivino atravessando uma fase áurea na cena pública da cidade de São Luís, sendo
considerado durante a década de 1970 até meados da década de1980 “o maior boi da Ilha”, o
boi que arrastava o povão” (SR. ZÉ TOINHO, entrevista em 14/03/2009).
Neste período, o boi da Madre Deus ganhou muitos títulos nos famosos concursos
promovidos pela Rádio Timbiras (rádio blica estadual) e pela comiso organizadora dos
desfiles de bumbas do João Paulo, numa época em que existiam campeonatos entre os
bumbas sotaque da Ilha no qual eram premiados os melhores após apresentações para uma
comissão julgadora.
um título mais lembrado emais festejado por seus sujeitos celebrantes que
vivenciaram essa fase áurea do bumba que foi um título conseguido na década de 1970, após
uma competição no Parque do Bom Menino (Centro da cidade), que era então o principal
local de encontro dos bois da cidade naquele período.
Tu sabe quem era o boi da Madre Deus? Viu, viu, viu. Naquela época tinha o
finado Cupertino ali no arco-íris, aqui mesmo no Parque do Bom Menino, saiu
justamente aquela toada: “Maioba e Maracanã / fizeram selão / pra querer me
ganhar / eu to com meu batalhão / a mesa julgadora é quem vai julgar”. Quer
dizer, saiu nessa época de setenta, quando me entendi ouvia falar na força da
turma da Madre Deus viu. Foi aqui no parque do Bom Menino no Gdam, é que tava
lá e Madre Deus chegou viu, aí tava Madre Deus, Maioba e Maracanã, aí se
juntaram Maioba e Maracanã pra querer derribar a Madre Deus, aí o menino
chegou e diz assim na toada, tirou em primeiro lugar (SR. CALÇA CURTA,
entrevista em 15/03/2009).
Estes momentos gloriosos no parque do Bom Menino e no João Paulo renderam um
enorme prestigio ao bumba madredivino no universo boiero e na cena pública da cidade,
fazendo com que este boi fosse o primeiro grupo a gravar um disco em 1971, por ser
considerado o “melhor boi da Ilha durante sete anos consecutivos” (SR. HERBERTH,
entrevista em 22/04/2009), do final da década de 1960 até meados de 1970.
154
A partir do final da década de 1980 o “compromisso” e as “redes de sociabilidade”
construídas pelos sujeitos celebrantes do bumba da Madre Deus foram sendo dissolvidas
devido as inúmeras crises impactantes sofridas. Dizemos que essas crises foram impactantes
porque os sujeitos celebrantes desse bumba não estavam mais conseguindo manter estável a
vitalidade do bumba e articular de maneira eficaz as suas redes de sociabilidade.
A estabilidade do referido bumba estava ameaçada, a partir da década de 1980 até os
dias atuais, ano após ano, por causa de inúmeros fatores como: as desavenças entre os
brincantes, denúncias de corrupções, formação de grupos paralelos com uma oposição
desconstrutiva e outros motivos mais que marcariam a partir de então uma crise profunda de
ameaça a condição existencial do grupo de boi madredivino. Assim, cada vez mais foi se
tornando difícil colocar o boi na rua para urrar.
No ano de 1988 houve um acontecimento marcante que culminou num momento de
profunda crise do bumba que foi a divisão do boi da Madre Deus em dois grupos: o “boi de
cima” e o “boi de baixo”. Estes dois grupos foram criados após a dissidência de pessoas que
saíram do bumba madredivino descontentes com as decisões e com a falta de rotatividade no
cargo da presincia, fundando outro grupo de bumba no bairro chamado de “boi de cima”,
em detrimento ao grupo que já existia ao qual recebeu a denominação de boi de baixo”.
A história dessa divisão foi a seguinte, é porque tinha na época viu, uma época
que tinha uma confusão viu (...) por esse motivo de coordenação né, que
agradava um e desagradava outros, (...) teve desavença e o pessoal que era de
baixo se afastaram né, hehein. tinha o senhor Roseno viu, aquele senhor bem
aqui nessa foto, ele brincava no boi, puxava onça, tocava pandeiro, o pessoal
todo dia vinha na porta dele viu, ele, Seu Toinho, aí todo dia o pessoal vinha na
porta de Seu Roseno, disseram: “Seu Roseno umbora fazer um boi ao menos pra
gente tomar um grode pra não ficar parado sô, que nós o vamo mais botar
boi pra sair e tal”, foi esse mesmo pessoal que queriam botar o boi pra brincar no
bairro que decidiram fundar um outro boi que foi o boi de cima que hoje é o
representante da Madre Deus (SR. CALÇA CURTA, entrevista em 15/03/2009).
Desde o período em que houve a divisão entre dois bois e até os dias atuais, o bumba
da Madre Deus nunca mais saiu da crise que vem afetando a sua condição existencial. Este
período do boi de cima e do boi de baixo é apontado como o início sintomático para explicar
o desenvolvimento da crise que este ainda atravessa e que vem ameaçando o seu urrar ainda
hoje.
De 88 para teve poucos momento bom, mais na verdade o boi nunca mais o
mesmo de como era. O boi de pra sempre veio desmantelado, ninguém nunca
cuidou mais direito do boi como devia ter cuidado. Não compraram nada, mais nada
155
pro boi, por isso que o boi hoje o tem quase nada (SR. CALÇA CURTA,
entrevista em 15/03/2009).
Esse período de vida simultânea de dois grupos de bumba-meu-boi no bairro foi
rompendo a referência identitária dos boieros com o bumba no sentido de que foi quebrando a
“irmandade”
26
entre os membros do grupo. Com a “irmandade” do grupo quebrada, as esferas
de solidariedade coletiva e de sociabilidade entre os boieros foram abaladas, e o bairro se
transformou literalmente em duas zonas territoriais que fragmentavam o sentimento comum
que antes se tinha pelo bumba.
Quando a Madre Deus passou a ter dois bois, o boi de baixo e o boi de cima, a casa
do boi de baixo passou a ser a praça do Capela e a casa do boi de cima era o Largo
[do Caroçudo] em cima, quem era do boi de baixo brincava somente lá na praça,
e quem era do boi de cima brincava no Largo, naquele tempo não tinha coisa de
brincar lá e cá, ou era lá ou era cá (SR. BRUXELAS, entrevista em 04/04/2009).
Por meio dos intensos conflitos e disputas para ser o legítimo representante do bairro
da Madre Deus, os dois bois entrincheiraram-se em espaços distintos para manifestar o seu
urrar no bairro no final dos anos 1980. Enquanto o “boi de cima” urrava na parte alta do
bairro no Largo do Caroçudo, o “boi de baixourrava na parte baixa do bairro no Largo
de São Pedro.
Estas clivagens territoriais criaram dois grupos “inimigos” e um campo de conflito no
qual um bumba procurava enfraquecer o seu contrário, tentando anular a atuação do oposto
dentro de seu espaço de referência junto ao bairro, buscando a sua legitimidade perante o
esfacelamento do “contrário”. Os boieros simpatizantes do “boi de baixodesenvolveram um
abaixo assinado para retirar o “boi de cima” do Largo do Caroçudo no ano de 1989, tentando
abalar o grupo oposto pela quebra da sua fixação junto ao seu espaço de referência no bairro
como mostra a reportagem do “jornal O Imparcial” do ano de 1989:
A partir do próximo sábado serão reiniciados os ensaios do Boi Capricho do Povo
[o boi de cima], no bairro da Madre de Deus, apesar do abaixo-assinado enviado
para a Secretaria de segurança por algumas famílias solicitando o fim dos ensaios
no largo da Madre de Deus, uma praça no centro do bairro. Ontem o jornalista
Herberth Santos, um dos fundadores do boi, informou que os ensaios continuarão a
acontecer no mesmo local após a elaboração de outro abaixo assinado com cerca de
mil assinaturas pedindo que a secretaria não proibisse os ensaios.
Herberth Santos contou que o abaixo assinado solicitando o fim dos ensaios foi
programado por Franklin de Sousa e possuía apenas cinco assinaturas, das quais
algumas eram falsas. A razão do documento, teria sido porque Franklin é padrinho
26
Para Goodenough (1965, p. 21 apud Prado, 2007, p. 140) a irmandade é “sempre que um grupo é concebido
como uma unidade possuidora de um status distinto dos status dos indivíduos que constituem seus membros (...)
o grupo é uma corporação enquanto permanecer a relação na qual ele goza de status.
156
do boi da Madre de Deus [boi de baixo] e tem a intenção de acabar com o boi
Capricho do Povo, mas a comunidade do bairro está satisfeita coma decisão do
secretário Carlos Salim Dualibe em ter reconhecido a legalidade do boi, após o
manifesto de cerca de mil pessoas que se revoltaram com a atitude tomada por uma
minoria, em função de alegações com o barulho provocado pelo ensaio.
Por outro lado, Franklin Costa nega que tenha qualquer envolvimento com o boi da
Madre de Deus ou o boi de baixo, como é mais conhecido e justifica a elaboração
do abaixo assinado devido ao grande incômodo aos moradores próximos a praça
onde se realizam os ensaios. Segundo ele, os ensaios iniciam às 21 horas de sábado
e só terminam na manhã do dia seguinte, quando as casas amanhecem com urina e
dejetos em suas portas. “Não sou contra o boi, apenas acho o local inadequado para
os ensaios”, afirmou, ele declarou ainda que o abaixo assinado que organizou
possui 16 assinantes de pais de família enquanto que o outro tem assinaturas de
moradores de uma mesma casa (O IMPARCIAL, 1989, p. 07).
Durante três anos, de 1988 a 1990, havia dois bois representando o bairro da Madre
Deus, até que aos poucos, o “boi de baixo”, que era o bumba mais antigo dos dois, foi
perdendo terreno com saída gradativa de brincantes que se debandavam para o “boi cima”, e o
“boi de baixo” não conseguiu mais se segurar e se acabou, elevando o “boi de cima”,
chamado de Capricho do Povo, como representante do bairro.
Mesmo após o bairro ter novamente umboi de matraca com o Capricho do Povo, os
sujeitos celebrantes do bumba madredivino não conseguiram mais construir os “anos
dourados” e a vitalidade do boi que existia outrora. Nos anos 1990 todas as estratégias
utilizadas para revitalizar o compromisso e as redes de sociabilidade em torno do bumba
foram ideologicamente alicerçadas pelo discurso de novamente unirem-se e lutar para que o
bumba-meu-boi da Madre Deus volte aos tempos gloriosos e de prestígio:
Herberth afirma ainda que este ano, a Associação estará trabalhando com a
preocupação de fazer com que o Boi da Madre Deus recupere o prestígio de boi
mais pesado da ilha. “Queremos retomar esse prestígio. Nas décadas de 60 e 70
éramos assim reconhecidos”, lembra (O IMPARCIAL, 1997, p. ??).
“É um momento glorioso para o batalhão da Madre Deus” comemora o jornalista,
pesquisador e membro da diretoria da Sociedade Cultural Boi da Madre Deus,
Herbert de Jesus Santos. “Estamos primando pela união de toda comunidade em
favor da revitalização do boi, para devolver a ele a fama de batalhão mais poderoso
da ilha” (O ESTADO DO MARANHÃO, 2000, p. 03).
O discurso darevitalização do bumba”, a convocação para que os boieros “não
deixem a coluna do batalo da Madre Deus se quebrar”
27
se construiu como a nica de uma
argumentação e justificativa implementada pelos sujeitos celebrantes para resgatar a “joia
preciosa do bairro da Madre Deus” (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
27
A expressão Madre Deus eu o a coluna do meu batalhão se quebrar está na toada composta pelo jovem
cantador falecido Gaguinho, fazendo parte do repertório de músicas do boi durante o ano de 2008.
157
Com a crise dos últimos anos, o “compromisso” e as “redes de sociabilidade” do
bumba continuariam instáveis porque ainda existiam muitas acusações de corrupção e má
gerência dos recursos, desentendimentos entre membros da diretora, e até brigas judiciais em
busca de se retornar as eleições para a diretoria do bumba travadas no Ministério Público.
Após ser autorizada, sexta-feira passada pela promotora de Fundações e Entidades
de Interesse Social, Sandra Elouf, tomou posse na tarde de ontem uma junta
governativa que dirigirá o centenário bumba-meu-boi da Madre Deus, no lugar da
diretoria que estava há dois meses sem mandato. Em audiência no Ministério
Público entre o ex-presidente da Sociedade Folclórica e Cultural do Boi da Madre
de Deus, (...) e brincantes notáveis da manifestação folclórica, foram constatadas
irregularidades, como falta de prestação de contas, sem quadro social para realizar a
eleição, quando a promotora pública deferiu petição do advogado Josemar Pinheiro,
patrono do Movimento Salve o Boi da Madre Deus, (...) [formando] a junta
governativa [até as eleições] (PEQUENO, Jornal, 2007, p. ??).
É diante desse quadro de instabilidade que muitos boieros largaram de brincar e vadiar
no bumba madredivino depois de muitos anos, e até mesmo os poticos se afastavam do
bumba não mais patrocinando o urrar da brincadeira insatisfeitos com os rumos de crise ao
qual vinha abalando o boi.
Depois dessa brigalhada toda pelo boi nos últimos tempo, até mesmo aquelas
pessoas de raiz, os pescadores que eram faticos pelo boi, não são tão mais fanático
como era antigamente, agora quase que tudinho saiu do boi e não brinca mais, ficam
na praça conversando, mais não vai mais pro boi (...) até mesmo os políticos
não acreditavam no boi e se rejeitavam em ajudar (SR. TOINHO, entrevista em
14/03/2009).
Também nos últimos anos, outros fatores causaram instabilidades em torno do bumba,
desencadeando uma crise profunda no seu urrar. Há algum tempo não está havendo um
compromisso”, uma congregação dos moradores do bairro com o bumba madredivino, em
que tanto a juventude, como as lideranças culturais viriam abandonar gradativamente o
bumba, respectivamente, para dançar em outro grupo mediante um dinheiro e para montar
outros grupos.
O Boi da Madre Deus enfraqueceu porque formou-se muito grupos de artistas aqui
na Madre Deus que corre atrás do dinheiro, foram relaxando o boi, então hoje
você tem que fazer o que, pensar melhor como fazer o boi (...) A juventude hoje, o
bairro também, muito deles por falta de emprego, pensam em só ser artistas aqui na
Madre Deus (...) (SR. ZÉ TOINHO, entrevista em 14/03/2009).
Essa “fuga” de jovens e antigos boieros abala com a premissa básica de toda a cultura
popular em transmitir o legado da brincadeira, passando-a de geração para geração. Quando
158
o se tem os jovens e antigos brincantes, afetam-se o “compromisso” com a celebração do
bumba, pois dificilmente as pessoas o adquirem o habitus que é passado pelas pessoas que
vadiam no boi.
As “redes de sociabilidade” necessárias para construir a vitalidade do bumba também
foram muito afetadas na medida em que o boi da Madre Deus foi perdendo o contato junto
aos boieros de outros bairros, que pela falta de presença nos seus bairros foram se abrigar em
outros grupos de bumba da cidade de São Luís.
(...) não se conseguindo mais pessoa no mato [zona rural da cidade] para brincar
no boi há algum tempo. Isso mostra que o boi caiu bastante (...) nós temos uma raiz
muito grande no Anjo da Guarda, mas tá todo mundo fora e ninguém de lá vem mais
pro boi, nem do mato que fica perto do Anjo da Guarda. O pessoal de agora
brinca em outros terreiros (...) (SR. TOINHO, entrevista em 14/03/2009).
(...) o boi da Madre Deus é um boi de respeito que o pessoal foi se afastando, e
principalmente no Anjo da Guarda que é um de nossos redutos, até porque o Anjo da
Guarda é da raiz da Madre Deus (...) se afastaram por falsas promessas né, prometeu
o que não podia cumprir o que na verdade faziam afastar os brincantes porque não
cumpriam com a palavra (SR. HERBERTH, entrevista em 22/04/2009).
Consciente da importância das “redes de sociabilidade” para a vitalidade do bumba-
meu-boi da Madre Deus, a atual diretoria do bumba comandada pelo Sr. Herberth tenta traçar
uma potica de re-captura (re-conquista) dos espaços que foram perdidos, de modo a trazer de
volta os boieros perdidos pelo boi Madre Deus.
(...) nós estamos voltando a fazer as visitas que se fazia antigamente nos nossos
maiores redutos. Nós tínhamos brincantes em todo interior da Ilha, é esse pessoal
que nós perdemos, nós queremos resgatar justamente porque o boi da Madre Deus é
um boi que sempre houve muitos brincantes fora da comunidade, é por envolver boa
parte de São Luís que a Madre Deus fez seu nome grande (SR. HERBERTH,
entrevista em 22/04/2009).
Na nossa pesquisa de campo fomos junto com alguns membros da diretoria em busca
da “re-captura espacial” destes boieros situados nos outros bairros. Pegamos uma kombi velha
de um senhor conhecido como Mulão que presta serviço ao boi indo em direção a zona rural e
peririca da Ilha para conquistar brincantes para o boi madredivino. Chegando ao povoado de
Coquilho, na zona rural da Ilha, a caravana ao qual estava presente se deparou com um diretor
do boi do Sítio do Apicum que chegou antes e já havia capturado aquele povoado para brincar
no seu boi. Mas seguindo no nosso caminho em meio a trilha de terra rumo a outros
povoados, os sujeitos celebrantes do bumba da Madre Deus conseguiram tecer as suas “redes
159
de sociabilidade” com boieros do povoado de Caracueira e do Quebra Pote, aos quais
firmaram o “compromisso” de engrossar as fileiras do batalhão do período junino.
Este processo de tecer as “redes de sociabilidade” junto aos espaços boieros que
haviam sido perdidos como em Caracueira, não foi construído somente por base de conversas
e diálogos com as lideranças dos povoados, mais também por “agrados” como comprar
cachaça e cerveja para melhor se entrosar novamente com o grupo perdido em épocas
anteriores. Por conseguinte, as pessoas do povoado visitado deram como resposta alguns
sinais da disposição de brincar de novo com o boi madredivino, colocando no meio da roda de
conversas e diálogos pandeiros e tambores-onça, sinais de simbolização da nova união junto
ao bumba da Madre Deus.
Atualmente no bumba da Madre Deus, essa tentativa de re-captura das “redes de
sociabilidade” se estende a um contato maior junto aos sujeitos sociais dominantes, em
especial, no que se refere as classes dirigentes da sociedade. Foi nesse envolvimento que
tínhamos com o referido bumba que fomos convidados pelos sujeitos celebrantes
madredivinos a comparecer na sede do boi, numa segunda-feira do mês de maio de 2008, para
reforçar as frentes do batalhão numa audiência com um deputado federal que poderia ajudar o
grupo.
Até a nossa posição de estudante de mestrado era utilizada para tecer novamente o que
chamo de redes de sociabilidade” do bumba madredivino. Foi assim que os sujeitos
celebrantes do boi pediram para eu comparecer no Quartel Geral da Pocia Militar em uma
audiência com o comandante geral Francisco Mello no intuito de pedir uma cabine policial
para o bairro, especialmente para atender a segurança durante os ensaios do boi, sendo para as
pessoas vadiarem junto ao novilho.
Os sujeitos celebrantes da Madre Deus visavam costurar o mais rápido possível as
suas “redes de sociabilidade” em meio a crise profunda que o bumba vinha atravessando.
Porém, mesmo fazendo tentativas de tecer novamente as “redes de sociabilidade” e o
incentivo ao “compromisso” do boiero para com o bumba, o trabalho para revitalizar o boi da
Madre Deus vai ser longo, pois existem elementos que ainda na atualidade causam
instabilidade na proposta de botar o boi para urrar, especialmente levando-se em conta os
atritos entre grupos que denunciam graves acusações de corrupção.
O que atualmente também causa muita instabilidade é a multiplicação de brincadeiras
juninas no bairro, afastando as pessoas do secular boi da Madre Deus. Cremos que este
sentimento particular de instabilidade a multiplicação de brincadeiras - é compartilhado
implicitamente pelo Sr. Herberth (entrevista em 22/04/2009) ao colocar que a comunidade já
160
é pequena mesmo com o nome grande, mas não podemos deixar a comunidade ficar pequena
para o boi”, conclamando todos do bairro a revitalizar o bumba.
Em meio a esse contexto de crise que se segue hoje em dia no bumba da Madre Deus,
este não consegue mais contaminar o imaginário coletivo em torno de si, mesmo estando-se
no “bairro berço de cultura” da cidade. É diante desse “desânimo” que os próprios boieros em
conversas informais conosco falavam da necessidade de superar essa fase do bumba, uma
vez que: “o boi da Madre Deus está morrendoe “se o boi da Madre Deus continuar assim
o vai durar muito”, daí a necessidade de ter que se “revitalizar o boi urgente para não se
acabar”.
Não é de hoje que esta crise do bumba madredivino pode ser dimensionada, mas sim
na cada de 1990 como relata a presente crônica intitulada “Pobre Boi da Madre Deus”,
lamentando a situação que se encontra o bumba secular, no qual o crítico vem mostrando um
saudosismo de um tempo passado glorioso que nunca mais retornou, e frustração de um
presente de insucessos.
Antes de mais nada, aproveitando os anseios de muitos que, como eu, gostam da
brincadeira junina, queria que alguém me explicasse como um boi famoso como o
da Madre Deus não está conseguindo se parecer nem de perto como aquele que
aprendemos a admirar. participei, como sempre faço, de ensaios e pelo que
observei a situação do Boi da Madre Deus não é das melhores, com uma
participação fraca de brincantes e do público em geral.
Alguma coisa pode estar andando errada, pois alguns meses estava se
sabendo de uma propalada reunificação do Boi, com a volta de um bom número de
brincantes, moradores antigos do bairro, que estão em outros grupos de bumba-boi
da Ilha. Ao que parece pessoas da diretoria do Boi o estão querendo o melhor
para sua brincadeira. Uma pena! Deixar fracassar o conjunto que os mais velhos
consideravam por um bom tempo o mais pesado da Ilha, não é querer a continuação
de nome respeitado que ele sempre teve.
Quem gosta de participar dos ensaios e acompanhar o Boi da Madre Deus, de
algum modo dando sua contribuição, como eu faço, que faço isso toda vez que é
possível, deve estar lamentando a fase crítica que ele atravessa (...)
28
Em meio a série de problemas enfrentados desde o final dos anos 1980 até o período
atual, a fama constrda pelo batalhão da Madre Deus ainda ecoa no universo boiero, sendo
este grupo ainda colocado como um dos maiores grupos de bumba sotaque da Ilha existentes
na cidade de São Luís, junto com outros grupos como a Maioba, Maracanã e São José de
Ribamar. Mas a algum tempo a sua fama de batalhão pesado vem sendo questionada por
alguns sujeitos celebrantes de outros bumbas.
28
Esta é uma nota do Jornal tem por título: “Pobre Boi da Madre Deus” de autoria de JoRaimundo Nogueira
Gomes. Não conseguimos saber de qual jornal e em que data precisa veio esta nota. Sabemos que é da década de
1990, segundo informação de um sujeito celebrante da Madre Deus que nos passou a nota do jornal.
161
Em torno dessa crise que atravessa o bumba-meu-boi da Madre Deus há um paradoxo
que nos chama bastante atenção. O paradoxo reside no momento em que os sujeitos
celebrantes do boi revelam uma grande teimosia em não renunciar a brincadeira do bumba
mesmo com todas as dificuldades enfrentadas. Vemos assim uma intensa vontade dos sujeitos
celebrantes em segurar o bumba pelo rabo para não escapar, não deixando a coluna do
batalhão da Madre Deus se quebrar.
As poucas pessoas que ainda vivenciam e vadiam o boi, além de “não entregar os
pontos”, de ter o “compromisso”, procuram desenvolver estratégias e usar suas habilidades
para contornar a crise vigente. Assim, não é exagero afirmar que ameaçar a existência do boi
se constitui no mesmo que desqualificar todo um processo de vida que explica a existência
íntima de cada indivíduo com o novilho. É nesse embalo que o bumba madredivino ainda
quer trilhar seus caminhos, buscando a vitalidade do seu urrar por meio de trabalho e ações
intensas de seus sujeitos celebrantes.
4.2.2 “A Maioba Querida”: compromisso do boiero e redes de sociabilidades do
bumba-meu-boi da Maioba
Quando o meu touro se levantou
reuni alguns parceiros e fui passear
para encontrar o coração da Maioba
e o povo da Ilha conquistar
Plantei carinho, colhi afeição
ainda hoje sou alvo de sedução
a minha última conquista deu o que falar
foi a francesa bela São Luís do meu Mará
Foi no Aterro que com ela [a Maioba] me abracei
Fui a Praia Grande e no Reviver me encontrei (...)
(LETRA DE CHAGAS, BOI DA MAIOBA, 2006).
O bairro da Maioba, local de origem do boi de mesmo nome, tem uma composição
sócio-espacial diferente dos bairros classificados oficialmente pelo Poder Público Estadual
como zona urbana da Ilha de São Luís. A Maioba oficialmente se enquadra dentro da
chamada zona rural da Ilha, por ainda desenvolver alguns trabalhos de agricultura e horta, ser
162
cortada por estradas carroçantes
29
, possuindo “espaços verdes” circunscritos em: áreas
ambientais, terrenos “livres” cobertos por vegetação de capoeira e casas com quintais e
terraços arborizados (ver foto 16).
Foto 16 Paisagem característica de uma moradia que compõe o bairro da Maioba
ressaltando a vegetação ao fundo
Fonte: CARVALHO, Daniel, 13/05/2008.
O bairro da Maioba, por possuir certas áreas de paisagem verde, é costumeiramente
chamado por seus moradores como povoado”, em alusão comparativa as vilas características
do interior rural do Estado do Maranhão. Essa imagem de povoado é reforçada ainda se
pensarmos que ali as áreas verdes servem para separar um “povoado” do outro, em que apesar
de todos pertencerem a Maioba, cada “povoado” tem um nome específico como: Maioba
sede, Maioba Porto, Maioba Mocajituba, Itapiracó, Bacuritiua. Porém, como diz Ferreira
(1999, p. 157), sujeito celebrante falecido do bumba, “da Forquilha até o Porto de Itaituba,
tudo é Maioba”, ou seja, todos os povoados circunscrevem o que chamamos de Maioba.
Em relação ao bairro da Maioba, como a maioria dos bairros que se situam no
contexto atual nos limites dos municípios que comem a Ilha
30
, uma indefinição oficial a
29
O que chamamos de estradas carroçantes são estradas dadas por aberturas na mata, caracterizada por ter um
assoalho coberto por areia. No Maranhão são conhecidas como estradas carroçais.
30
Os municípios que compõem a Ilha de São Luís, também chamada de ilha do Maranhão são: São Luís, Paço
do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa.
163
qual município seja pertencente o referido lugar. Não se sabe se a localidade da Maioba está
exatamente no município de São Jo de Ribamar ou no município de Paço do Lumiar como
demonstra o sujeito celebrante do boi maiobeiro, o Sr. Ribinha.
(...) a gente não sabe aqui onde a gente localizado, não sabe se é Ribamar, se é
Paço do Lumiar, aqui a gente não sabe onde a gente tá, a gente ta numa divisa aqui,
num marco aqui se em Paço do Lumiar ou Ribamar, essa sede aqui a gente não
sabe onde tá, porque o colégio bem é Ribamar, esse Posto de Saúde bem aí é
Paço do Lumiar, aqui não se sabe onde é, não sabe, a gente fica aí, porque a gente
pede uma coisa pra um lado, ah não é comigo (SR. RIBINHA, entrevista em
15/02/2009).
Hoje o bairro da Maioba é bastante reconhecido na cidade de São Luís em função da
existência do bumba-meu-boi da Maioba, considerado como uma das maiores manifestações
da cultura popular existentes no Estado do Maranhão. Diferente da Madre Deus que é
reconhecida por possuir várias manifestações culturais, a Maioba é um bairro reconhecido
somente pelo boi da Maioba, a única brincadeira da cultura popular que conseguiu sobreviver
e não caiu no esquecimento celebrativo na presente localidade.
(...) eu quando garoto aqui tinha urso na Maioba, tinha outras brincadeiras de fala,
tinha rede, tudo isso acabaram, e hoje a cultura da Maioba gira em torno do boi, e
hoje só ta vivendo o boi na Maioba, tinha turma de samba, escola de samba, tinha a
Maioba do Samba que se acabou (...) aqui hoje tem só o boi da Maioba que ta firme
e forte (SR. RIBINHA, 15/02/2008).
O boi da Maioba é um dos bois mais tradicionais da Ilha, levando-se em conta sua
existência secular. A origem do novilho é datada oficialmente desde o ano de 1897, tendo,
portanto, 112 anos de existência, podendo ser considerado um dos batalhões de bumba mais
antigos do Estado do Maranhão.
Pessoas do bairro afirmam que o boi da Maioba é mais antigo que a data oficial
registrada e divulgada. pessoas no bairro como o Sr. Ribinha (entrevista em 15/02/2009),
sujeito celebrante do referido boi, dizendo que “os mais velhos como Mãe Rita
31
já contava
que seus antepassados já faziam boi na Maioba”.
Mãe Rita, esta com a idade de 106 anos, conta que teve dois bois: no Durico era de
Simplício. Depois vieram o boi do Piri, perto da Pindoba, e da Trizidela, do avô de
Raimundinho, o do Estirão, em que meu avô brincou; depois veio o do senhor Pedro
31
Mãe Rita, que veio a falecer nos anos 1990 com mais 100 anos de idade, é uma das figuras idolatradas no boi
da Maioba, por ser uma pessoa que ajudou a construir e brincava no bumba. Ela enfrentava a discriminação em
torno do universo boiero que, até nos anos 1960, era caracterizado como uma brincadeira eminentemente
masculina.
164
Botijão, que era da minha família do meu tataravô, por aí... Não sei diretamente
onde era (...) (JESUS, 1999, p. 63)
32
.
também uma toada do boi da Maioba abordando a longevidade do referido bumba,
mencionando que Mãe Rita, aos 104 anos de idade, dizia ter encontrado o bumba maiobeiro
desde quando ela nasceu na localidade durante o final do século XIX, em um lugarejo que
ainda se chamava Bom Negócio da Maioba.
Com uma latinha cheia de pedra
foi que formou o maracá
Com um arco de madeira coberto com couro de bicho e dois pedaços de pau
veja a festa que aí es
Esse ritmo gostoso que ninguém sabe de onde veio
que a Maioba conservou
Mãe Rita com 104 anos conta pra quem duvidou
quando ela nasceu já encontrou
Nascida na Maioba no sítio grande se criou
a festa de bumba-boi na Ilha a mais de cem anos na Maioba começou
(LETRA DE CHAGAS, Boi da Maioba, 2000).
Vamos ver agora que a trajetória do boi da Maioba reforça o movimento de construção
do bumba como um movimento popular, evidenciando como os seus sujeitos celebrantes
tiveram a capacidade de redefinir e também de reelaborar a posição do urrar do seu boi em
meio a negociação de modo a marcar uma presença do tecido urbano na sociedade
ludovicense.
Antes de transformar o Caminho do Fio em Estrada da Maioba, até o início dos anos
1960, o boi maiobeiro brincava majoritariamente dentro de sua localidade, circulando nos
seus vários povoados. Urrando nesses povoados, o boi era identificado por ser “proprietário”
de uma determinada pessoa residente em um povoado ali existente, mudando de dono” ano
após ano através de um leilão em que a pessoa que comprava a cabeça do boi no dia de sua
morte seria o seu proprietário no ano seguinte. Assim, o novilho não era propriamente
conhecido como “boi da Maioba”, e sim como boi de “fulano de tal”.
Antes não existia localidade certa pra se fazer os Bois. Cada dono fazia em sua
casa, quer dizer, um fazia aqui nesse ano, outro [no ano que vem]. Não havia
mesmo um lugar próprio: Alemão fez dois bois no Itapiracó. Mas todos os que a
gente fazia representavam a Maioba (FERREIRA, 1999, p. 149)
32
O Sr. JoCosta de Jesus, popularmente conhecido como Zé Paú, foi sujeito celebrante tanto do boi da
Maioba como do boi da Madre Deus, ambos os bois por nós pesquisados. Por isso vemos suas citações tanto no
item 4.2.1, como no item 4.2.2.
165
A brincadeira era assim, suponhamos: aqui, nesse local onde moro, fazia-se. Para
outro ano, uma pessoa pegava a cabeça do boi e fazia na frente; continuou assim.
De uns tempos pra cá, mudou (JESUS, 1999, p. 163).
O bumba maiobeiro organizava-se e movimentava-se em torno dos povoados
existentes dentro da localidade da Maioba, e somente quando eram requisitados em outros
bairros de São Luís, os boieros saíam a da Maioba rumo a atender o chamado do “pato
que contratava a sua apresentação, porém não iam as áreas urbanas proibidas ao urrar do boi
na cidade até os anos 1950.
O deslocamento espacial do bumba da Maioba tanto nos seus povoados como para
outros bairros - mostrava a importância das redes de sociabilidade” tecidas pelos sujeitos
celebrantes maiobeiros na sustentação do urrar do seu boi. Por meio de um deslocamento, o
bumba conseguia projetar a sua brincadeira para outros lugares, bem como conseguia obter
apoio, principalmente dinheiros e mantimentos (bebidas e alimentos), aos quais eram
condições fundamentais para a manutenção do bumba num tempo que o Poder Público não
financiava e sim excluía o boi da sociedade.
Se se fixasse espacialmente somente num certo povoado, o bumba da Maioba não teria
como se manter, dado a pequena quantidade de boieros que habitavam um único povoado
vindo a descaracterizar um boi que é voltado para a massa, com também prejudicando e
limitando o financiamento do bumba pelo pouco poder aquisitivo dessas pessoas que eram
pobres e não podiam ajudar muito o bumba.
Assim, para ter vitalidade e o morrer, o bumba não ficava parado no terreiro do seu
dono, fazendo o seu movimento espacial nos povoados da Maioba todos os anos nas festas
juninas, “saindo do Itapiracó para o Mocajituba, do Mocajituba para a Trizidela, da Trizidela
para o Estirão” (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009), e outros lugares mais, para desta
forma ir “tocando” a existência da brincadeira.
Na década de 1950 até o início dos anos 1960, o boi da Maioba sofreu uma enorme
crise, ficando durante oito anos sem sair por causa das constantes “brigas que havia no
encontro com outros grupos” (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009). O momento em que
o boi da Maioba ficou alguns anos sem urrar é retratado pelo já falecido João Francisco do
Espírito Santo, mais conhecido como João de Chica:
Na “parte de baixo, foi o local da Maioba que mais teve Boi. encontramos Boi
lá. Quem fazia era “Joaquim Cabrito”, avô da minha esposa e dono do terreno.
Aqueles queriam vinham fazer com ele.
Depois desses Bois, parece que, por uma temporada de uns oito ou dez, Maioba não
teve boi (...) (ESPÍRITO SANTO, 1999, p. 148).
166
No ano de 1960, os sujeitos celebrantes do boi da Maioba criavam então um “boi de
cofo”, improvisando um boi simples no intuito de fazer novamente a brincadeira que estava
parada na localidade. No ano seguinte, em 1961, a Maioba tinha um boi organizado não
mais por adaptações com o uso do cofo.
Em 1960, ele [Da na Vó] estava em Ribamar, cantando um Boi de Domingos, filho
de seu Deobílio. Ele me chamou e pediu que eu fizesse um Boi para ele cantar.
Eu disse:
- “Da na Vó”, eu não vou fazer Boi, porque não tenho condições de fazer.
Ele insistiu:
- “Não, você vai fazer o seguinte: vai fazer um Boi para eu cantar e nós fazemos um
Boi de cofo, para “metermos cachaça”.
- Mas eu não tenho condição.
- Não, mais vovai ter de fazer.
Entrou para a roda do Boi, pegou o apito, parou a brincadeira e anunciou que, no
ano seguinte, eu é que ia fazer o boi. Então eu afirmei:
- Mas, rapaz, eu não tenho condição.
- Mas, nós vamos meter “cachaça”.
E de para cá, a gente ficou nesse negócio de meter cachaça. O Boi ficou, se criou
mesmo e ainda não parou [desde 1961] (ESPÍRITO SANTO, op. cit., p. 148).
Em 1961, o boi da Maioba voltou a urrar por meio de uma gestão de organização
cooperativa e associativa sob a responsabilidade de um grupo coordenador, composto por
Calça Curta (Jo Raimundo dos Santos Ferreira), João de Chica (João Francisco do Espírito
Santo), Papeira e Pedro Boca Aberta, aos quais ficariam a frente do bumba durante os
próximos vinte anos.
Ainda nos anos 1960, os repinicados
33
de matraca, pandeirão e tambor-onça do boi da
Maioba eram ouvidos predominantemente dentro de sua localidade e comunidades vizinhas, e
poucas vezes ouvido fora do bairro, visto que suas redes de sociabililidade” ainda se
circunscreviam majoritariamente no seu reduto e proximidades, apesar de já extintas as
portarias proibitivas que impediam o boi urrar na área central da cidade. Dona Irene, brincante
do bumba, dizia que nessa época “era um costume também a realização dos ensaios e das
apresentações nos terreiros de casas de diversos povoados próximos” (COMISSÃO
MARANHENSE DE FOLCLORE, 1997, p. 01), principalmente para pagar promessas a São
João.
Até a década de 1960, a mobilidade espacial do bumba na construção de suas redes
de sociabilidade” se davam na dimensão intra-bairro. A sustentação do urrar do boi se dava
em desenvolver estratégias de aliciamento” das pessoas do bairro e proximidades para
33
Os repinicados significam os sons dos instrumentos de percussão do boi.
167
brincarem no boi, além de estreitar os laços com as pessoas de maior poder aquisitivo da
localidade para conseguir o patrocínio” e bancar as despesas do bumba.
Chegava o momento em que o local não conseguia mais sustentar o grupo e a
estratégia de sobrevivência do bumba se fazia mais pela ampliação do espaço de vivência do
boi para além do seu local de origem. Isso podia ser conquistado ampliando o espaço de
vivência do bumba cada vez mais para os povoados próximos.
A ampliação do espaço de vivência do bumba para os povoados próximos pode ser
vista na citação abaixo, ao mencionar a chegada do boi da Maioba a um destes povoados
atendendo o chamado de uma pessoa que convocava a brincadeira. Quando o cortejo de
boieros chegava havia todo um ritual de preparação do espaço para receber a brincadeira e
fazer o boi urrar.
A pessoa chamava a brincadeira e colocava seis, oito faróis no terreno, porque
quando chegava o boi iluminava mais. Era muito grosseira a brincadeira pelo
seguinte: um boi desse, para chegar numa porta, o brincante tinha que ser raçudo.
Porque colocavam grande quantidade de bombas, besouros e busca-pés e, às vezes,
não tinha condições de entrar no terreiro, o agüentava. Quando apareceram as
roupas de pena, molhava-se dava-se banho no capacete e se entrava. Isso era para
saber qual era o boi forte. Soltavam em cima da gente. Se não molhasse a pena, não
brincava no terreiro era covarde. A pessoa pagava, mas o boi tinha que enfrentar
tudo isso. Quando o boi terminava de brincar, ficavam no local dois palmos de
fundura, porque era pé no chão (JESUS, 1999, p. 164).
Todo esse processo de preparação do espaço para receber o boi aponta que um ritual,
para se articular como função reguladora de uma brincadeira, necessita de um ordenamento
espacial. O espaço da brincadeira só ganhava sentido para a pessoa que recebia o grupo e para
os boieros quando se organizava o viveiro para a apresentação colocando faróis, bombas,
besouros e busca-pés no espaço do urrar do boi, servindo este espaço para mostrar a virilidade
dos brincantes.
Este processo de organização do espaço para receber o bumba evidencia certas
características, mostrando que o boi era coisa de cabra macho no passado” (SR. BIRITA,
entrevista em 05/04/2008)
34
, longe do alcance das mulheres, que somente serviam de
mutucas
35
,reforçando um caráter construído de masculinidade em torno da brincadeira.
34
A masculinidade da brincadeira do bumba era tão forte que até os papéis de mulheres como a Mãe Catirina
eram feitas por homens, já que os amos não gostavam de ter mulher como brincantes no seu boi, dizendo que as
mulheres não aguentavam o duro batente de dançar brincar e cantar (CARVALHO, M., 1996).
35
As mutucas eram as esposas ou namoradas dos participantes das brincadeiras que acompanhavam os grupos de
bumba, o para brincar como nos tempos atuais, mais para ajudar o seu companheiro carregando seu
instrumento, ou uma bebida, e até mesmo para socorrê-lo quando estivesse bêbado.
168
A brincadeira do bumba da Maioba continuava tecendo suas redes de sociabilidade”
predominantemente no vel intra-bairro, em grande parte devido ao “isolamentodo lugar e
as dificuldades de acesso para outros bairros o que dificultava a movimentação do bumba pela
cidade. Até meados dos anos 1960, a Maioba se resumia somente a algumas poucas famílias
boieras que se encontravam “isoladas” do resto de São Luís, tendo como único acesso o
“Caminho da Maioba”, uma trilha de terra que não contribuía para o deslocamento dos
moradores a outras localidades. O “isolamentoera explicado pela dificuldade de locomoção
até a Maioba, pois a estrada de acesso cortava um terreno arenoso: a Maioba tinha muita
areia, (...) não podia andar, e os carros ficavam atolados” (ESPÍRITO SANTO, 1999, p. 147).
Assim, até na década de 1960, a Maioba era composta por um restrito grupo de
famílias destacados pelos seus sobrenomes, que se misturaram e constituíram a população
local por um longo período. Somente na década de 1960, com a passagem periódica de
quinas abrindo o Caminho do Fio transformando em Estrada da Maioba (ainda com
condições precárias) é que o referido bairro começa a ganhar habitantes de outras famílias.
(...) essa comunidade aqui faz parte muita gente da família, é porque tem Ferreira,
tem Lavra, tem Rubim viu e tem Ferreira, tem Lavra, tem Rubim e outra que
esqueci o nome agora. Então ali vai entrando Ferreira pra um lado, Lavra pro outro,
ta tudo misturado viu, eu sei que a família aumentou e todo mundo aqui da
Maioba era parente porque é Ferreira, é Lavra, é Rubim, aí mistura tudo né, e
começou. Hoje é que tem muita gente hoje que não é destas família aí (SR.
RIBINHA, 15/02/2009).
As famílias “pioneiras” da Maioba - os Lavras, os Rubins, os Ferreiras sobreviviam
na localidade por meio de atividades rurais, marcadas pelo trabalho de agricultura familiar,
extração vegetal
36
e pesca no Rio Paciência. Em virtude deste legado rural, a Maioba era uma
localidade da Ilha do Maranhão costumeiramente chamada de “sítio”, expressão alcunhada
em meio a uma comparação oposta em relação ao espaço urbano de São Luís.
O nosso sítio era muito bonito, me lembro muito na minha infância, quando saia
com o pessoal de casa pra pegar peixe, a água do rio era pra horta, a gente ai no
mato pra pegar muita juçara, muito buriti, era tanto que estragava, vixe era muito
mesmo (...) (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
A Maioba era [chamada de] um sítio porque tinha casa, gente sem estudo, tinha
lavrador, era isolada, era toda aquela calmaria que parece de interior (SR. BIRITA,
entrevista em 16/02/2009).
36
As atividades extrativas eram ligadas principalmente a extração de frutas nativas, se destacando aqueles frutos
dado pelas palmeiras como: o babaçu, o buriti e a juçara (também conhecida fora do Estado como açaí).
169
Até os anos 1970, o tioda Maioba exercia uma vocação e um estilo de vida rural
composto não somente pelos pequenos produtores rurais, mais também por comerciantes que
vendiam os seus excedentes agrícolas nas principais feiras da cidade de São Luís. Eram esses
agricultores e feirantes os boieros e os sujeitos celebrantes do bumba-meu-boi da Maioba.
O perfil daquele que fazia o boi da Maioba antigamente era o do caboco, como o
meu pai que acompanhava o boi. Não só meu pai mais todas as pessoas que
acompanhava o boi da Maioba eram quase tudo agricultor, feirante, tudo gente que
sempre foi humilde (SR. RIBINHA, entrevista 15/02/2009).
A vida rural trazia para o bairro da Maioba uma rotina diferente de um cotidiano
citadino. Para a população local, os finais de semanas e os feriados eram os dias de maiores
trabalhos, já que eram os melhores dias para comercializar os excedentes rurais com os
feirantes da cidade de São Luís. A segunda-feira, que geralmente era um dia de trabalho para
a maioria da população ludovicense, para os habitantes da Maioba era um dia de descanso.
Eu era garoto né. Na Maioba dia de segunda-feira era feriado pro pessoal. Por quê?
Eles trabalhavam na lavoura a semana inteira. Quando chegava domingo iam
vender as mercadorias na feira e na segunda-feira era folga. as pessoas se
concentravam, iam tomar cachaça, cerveja, sei lá, e faziam o comentário da semana
do futebol, disso e daquilo. Então essa era a vida cotidiana da Maioba, e eu garoto,
meu pai me levava pra ir tomar banho no rio, a gente ficava lá também com os
outros (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
Esse era o cotidiano do bairro da Maioba predominantemente até a década de 1970,
um bairro baseado no modo de viver rural, com o trabalho caracterizado pela agricultura de
subsistência, como também pela pequena lavoura de hortas e frutas a serem comercializadas
nas feiras, seguindo uma rotina de trabalho diferente do horário comercial das cidades.
No início dos anos 1970, o bairro da Maioba revelava um caminho ainda inadequado
para o tráfego de veículos em sua direção. As pessoas que comercializavam suas verduras e
frutas nas feiras de São Luís, bem como as pessoas que estudavam no Centro da cidade,
ambas enfrentavam um caminhar a até o bairro da Forquilha para pegar um transporte
público que passava pelo Anil, João Paulo antes de chegar ao Centro da cidade.
A dura jornada de se deslocar rumo ao Centro da cidade após uma longa caminhada a
é contada por Inaldo, atual presidente do boi da Maioba, rememorando a sua
adolescência de estudante, que de segunda a sexta-feira, tinha que ir ao colégio localizado no
Centro, e depois da aula voltar depressa para pegar o ônibus de volta a Forquilha:
170
Eu estudei aqui no Centro da cidade com dificuldades para vir, acordava quatro
horas da manhã pra puder chegar sete horas no colégio entendeu, tinha um carro
cinco horas da manhã e só tinha um carro meio-dia, e era o veículo da Maioba, e
depois só passou a ter linha de sair quando a gente andava de pau-de-arara, isso nos
anos setenta, setenta e cinco por aí. Depois que passou a ter linha de ônibus,
também identificado com os horários, aí chegou um determinado momento que
esse ônibus só funcionava, a última viagem seis horas do Mercado Central pra cá, e
quando a gente foi estudar a noite tivemos um problema que o ônibus não ia até a
Maioba, a gente vinha a pés lá da Maioba, nos encontrávamos com outras
pessoas, aí vinha a procissão, na Forquilha pegávamos o ônibus via Aurora,
íamos pro Centro. Eu estudava na Academia de Comércio em frente ao Jornal
Pequeno e nessa época a parada de ônibus era na [praça] Deodoro, em regra geral a
última aula eu não assistia, na última aula eu saia e vinha voado, quando eu
chegava no sinal, ali no inicio da Deodoro, que eu olhava ali perto do Centro
Caixeral já, olhando ali o ônibus passando, cara eu ficava ali, eu chorava, eu
tinha que recorrer a casa de um colega para dormir para puder vir embora de
manhã, isso não aconteceu comigo mas com outras pessoas (SR. INALDO,
10/03/2009)
Na década de 70 a localidade da Maioba passou por uma melhoria de sua estrada
principal possibilitando a entrada maior dos transportes no bairro. Aquele lugar isolado, que
possuía um caminho muito esquisito, fechado, de mato escuro” (JESUS, 1999, p. 165), que
mesmo depois de aberto ainda constituía uma péssima estrada de terra, se transformou em
uma estrada de piçarra
37
, “facilitando” o deslocamento das pessoas do bairro e para o bairro.
A abertura da estrada de piçarra trouxe muitas transformações no gênero de vida dos
moradores da Maioba em relação aos traços rurais. O governo estadual de José Sarney (1966-
1971), ao incentivar a modernização espacial na cidade de São Luís
38
colocando a cidade em
“nova rodada de transnacionalização do capitalismo
39
(BARBOSA, Z. 2002), trouxe a partir
de intensas transformações, modificações no sentido de superações do gênero de vida rural na
cultura das pessoas que habitavam o bairro.
Com uma potica de organização espacial privilegiando a expansão horizontal da
cidade e a estruturação do espaço atendendo uma demanda de produção industrial, as
experiências sociais e as estratégias de sobrevivência da população da Maioba (como também
de toda a periferia o urbana de São Luís) em torno de uma vivência rural foram sendo
gradativamente extintas.
37
Estrada de piçarra é feita com pedras batidas bem quebradas, vindo dificultar o nascimento do capim que
possa tomar conta novamente do espaço na qual a estrada foi construída.
38
A modernização de São Luís no governo Sarney foi dada pela construção de vias de acesso que
possibilitassem a expansão horizontal da cidade para am do corredor Centro-Anil, com as criações das pontes
do São Francisco e da Barragem do Bacanga, que vieram a incentivar a povoação da periferia da Ilha, atingindo
a Maioba.
39
Quando se diz que a cidade está entrando em uma “nova rodada de transnacionalização do capitalismo”,
queremos dizer que o seu espaço está sendo reestruturado para receber os grandes projetos de indústrias
multinacionais de mineração, que iriam explorar as jazidas da região amazônica, começando a direcionar os
trabalhadores da cidade para fazer parte direta ou indireta da inserção destes grandes projetos. Basta ver a
pesquisa de Barbosa, Z., (2002).
171
Ao mesmo tempo em que estrada abria as possibilidades de deslocamento das pessoas
para sair e frequentar a localidade, trouxe sérias transformações que afetaram gravemente a
sobrevivência em torno da atividade da plantação agrícola, principalmente por causa do
processo de especulão imobiliária e da destruição do meio-ambiente.
Ao romper-se de um “isolamento espacial, a Maioba sofreu um processo de
especulação imobiliária, em que os agentes do capitalismo passaram a investir nas compras de
muitas terras ali existentes para projetar presentes ou futuras moradias, ou mesmo para
revender a um preço bem maior, ocasionando um aumento da populão da localidade.
Até perto de 70 não tinha quase nada aqui, aqui a gente conferia as casas viu, a
estrada era carroçal, de ano em ano é que passava uma máquina para tirar areia.
Com o passar dos tempos, com a estrada, aí foi chegando mais pessoa, aí foi
multiplicando, com essa estrada melhor para a Maioba, aí aumentou mesmo as
pessoas da Maioba (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
Com a vinda dos especuladores imobiliários, a paisagem que antes era composta por
amplos espaços abertos começou a ganhar cercas, muros, pequenos e médios condonios,
loteamento de terrenos, sítios luxuosos para descanso e lazer, sufocando os espaços que antes
eram destinados a agricultura.
Outro momento grave afetando o gênero de vida rural da localidade foi a destruição
dos recursos naturais existentes na Maioba. Com a modernização da Maioba, mas
principalmente do seu entorno onde foram criados gigantescos conjuntos habitacionais, houve
um processo de degradação dos recursos naturais ali existentes, especialmente a destruição do
Rio Paciência, que era o principal abastecedor de água para a agricultura local.
Antes de adoecer eu era lavrador, mas parei. Vivemos cercados desses esgotos:
Maiobão, Cohatrac, Cohab, todos passam aqui. A água ficou tão poluída que não se
pode mais trabalhar com lavoura. A maior parte do povo largou, mas aqui, todo
mundo trabalhava com verduras e cada qual vendia a suas. Vendemos a lavoura por
causa da água (ESPÍRITO SANTO, op. cit., p. 158).
Com o lançamento de esgotos no canal do rio Paciência, o plantio como estratégia de
sobrevivência se tornou praticamente inviável para os maiobeiros, e daí não teve outra
solução se não vender parte de seu “pedaço de chão” no intuito de obter algum dinheiro e
tocar a vida de outra forma.
Parafraseando Diniz (2005), pensando não a Maioba mais a periferia rural da Ilha
de São Luís de um modo geral nos anos 1970, podemos falar que a especulação imobiliária e
172
a agressão ao meio-ambiente foram um retrato do processo de ocupação e expansão que
estabeleceu um novo padrão para a formação dos subúrbios da Ilha.
Os moradores então modificaram pouco a pouco suas estratégias de sobrevivência
diante das mudaas ocorridas na localidade, trabalhando nas áreas centrais de São Luís, no
comércio atacado e varejista, exercendo o ocio de vendedor em lojas; as mulheres como
domésticas; os homens em empregos mal remunerados como vigias e pedreiros,
especialmente nos bairros vizinhos maiores como o Cohatrac, Cohab e Forquilha. Os
maiobeiros que ainda permaneciam na lavoura foram aqueles que tiveram condições de
financiar tecnologias na sua terra, instalando um sistema de irrigação com água encanada.
Antes o pessoal todo trabalhava na lavoura. Mais com a poluição do rio que
cheio de esgoto, sujeira, o pessoal começou a trabalhar de outras coisa: empregado,
caseiro, pedreiro, marceneiro, nesses bairro grande aqui perto como no Cohatrac e
também lá pro Centro, pro João Paulo (SR. BIRITA, entrevista em 16/02/2009).
Compro carne e vendo-a na feira; planto e vendo verduras, tenho horta no
Bacuritiua, onde moro a quarenta e cinco anos, Mas, agora a água do rio ficou tão
escura e o povo está largando a lavoura, para trabalhar com empregado, negociante,
ou trabalhar com água encanada (FERREIRA, op. cit., p. 157).
Em virtude dessa nova situação de bairro periférico suburbano, abrigando
trabalhadores urbanos e o mais agricultores, tendo uma circulação de veículos e de pessoas
que saem e entram no bairro que veio junto ao aumento do número de residências, de terrenos
cercados, a Maioba veio de encontro a modificar a sua imagem de “sítio”, comando a
circunscrever uma imagem de “cidadezinha em sua feição espacial.
A Maioba não é mais o sítio de antigamente, agora uma cidadezinha. A Maioba
hoje é uma cidade por que o Cohatrac bem e tem tudo, tem posto de saúde,
tem escola, tem estrada, carro e ônibus toda hora. Não mais aquele lugar sem
movimento como era a Maioba antes. Antes a gente conseguia conferir as casas
daqui, a estrada era carral, e não tinha nada aqui. O que tinha mal era a escola de
primário (...) (SR. BIRITA, entrevista em 16/02/2008).
Os processos de transformações sócio-espaciais do bairro da Maioba vão de encontro a
constituir o referido bairro como uma cidade suburbana, um subúrbio dormitório, abrigando
trabalhadores que depois de uma dura jornada de trabalho em outros lugares da cidade de São
Luís, regressam a Maioba para descansar depois de um dia estafante.
É dentro desse contexto de mudaas ocorridas no bairro da Maioba no final da
década de 1960 e início da década de 1970 que o urrar do boi local ganhou novos contornos
173
em sua trajetória, evidenciando a habilidade e a criatividade de seus sujeitos celebrantes na
construção do urrar do bumba.
Com a mudança na estratégia de sobrevivência dos maiobeiros, muitos
moradores/boieros que habitavam a Maioba deixaram o bairro para morar e/ou trabalhar em
outras localidades da cidade. Por terem adquirido uma habilidade para agricultura sabendo
lidar com produtos horti-frutis, os maiobeiros que viram suas lavouras se acabar começaram a
sair do bairro para trabalhar em algo próximo como nas feiras de São Luís, principalmente na
feira do João Paulo, que era uma das maiores feiras da cidade nos anos 1960.
Foi nesse contexto de transformações do bairro no final dos anos 1960 que, por
exemplo, Luís Gonzaga, conhecido como Danavó, amo/cantador do boi da Maioba, deixou de
morar no local ao vender sua terra, seguindo a vida como feirante no bairro do João Paulo.
Em virtude dessas novas circunstâncias de “fugade boieros, os sujeitos celebrantes
do boi maiobeiro sentiram a necessidade de tecer suas “redes de sociabilidade” junto aos
boieros que saíram da Maioba e foram habitar o bairro do João Paulo, no intuito de não perder
seus brincantes ilustres que não mais moravam e não podiam ir a Maioba com frequência.
Até porque Danavó [ao falecido do boi da Maioba] era feirante no bairro do João
Paulo, e os feirantes não podiam sair no boi né, e então o que aconteceu? o
pessoal que organizava o boi sentiu a necessidade de passar também a fazer o boi lá
no João Paulo (...) (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
Daí em diante a passagem do boi da Maioba pelo bairro do João Paulo passou a ser
quase que obrigatória, e nas décadas de 1960 até 1980, o bumba passou a urrar
constantemente em frente a feira do bairro do João Paulo, e os boieros que habitavam neste
bairro manteram o seu “compromisso” em integrar as fileiras do batalhão, vadiando no boi
mesmo com a nova e dura rotina ao qual estavam sujeitos em meio ao trabalho da feira.
Esse nculo do boi maiobeiro com o bairro do João Paulo permanece até hoje. O Sr
Ribinha (entrevista em 15/02/2009) fala que “há muito tempo o grupo de gente maior do boi
da Maioba é o bairro do João Paulo”. Ferreira (op.cit., p. 154) por sua vez reforça a presença
de boieros maiobeiros no bairro do João Paulo mencionando que “o povo que mais “arreia”
para a Maioba é do João Paulo (...)”.
Não estamos aqui inferindo que o boi da Maioba saiu do seu terreiro somente nos anos
1960, já que antes mesmo desses anos o boi urrava em outros bairros da cidade de São Luís,
mesmo com as proibições de vadiar em certas áreas urbanas. Pom, com as mudanças do
tecido urbano, a modernização e a suburbanização da periferia da cidade de São Luís, houve
174
uma fuga dos boieros do bairro e, consequentemente, uma maior necessidade de ampliar as
redes de sociabilidades espaciais para além do bairro de origem do bumba. Sem esta estratégia
expansiva seria difícil manter o “compromisso” do boiero junto ao urrar do boi.
Os sujeitos celebrantes do boi da Maioba foram notando que a vivência do novilho
estaria cada vez mais atrelada também ao urrar fora dos limites do bairro, já que muitos
boieros estavam saindo do local para tocar a sua vida em outros bairros, culminando assim
com a reconstrução de uma nova espacialidade para o urrar do boi da Maioba por meio de
uma nova tessitura de suas “redes de sociabilidade”. É dentro desse contexto que, além do
bairro do João Paulo, os sujeitos celebrantes do bumba da Maioba também passariam a
desenvolver seus vínculos com o bairro do Anil, uma vez que outros boieros saíram da
localidade e foram morar no Anil, havendo, portanto, a necessidade reaproximá-los do boi.
A gente tem uma ligação com o pessoal do Anil muito forte que não é de hoje, é
desde que o pessoal saiu da Maioba e foi morar aqui. Você vê aqui o meu primo, ele
mora aqui faz tempo. E assim quando o pessoal saiu da Maioba a gente procurou
ir atrás para eles o perderem o vínculo com o boi assim como aconteceu no João
Paulo (SR. INALDO, entrevista em 10/03/2009).
O espraiamento do boi em meio as “redes de sociabilidade” construídas mostra que o
espaço do urrar do boi da Maioba não seria mais predominantemente aquele espaço contiguo
restrito ao bairro da Maioba, que os limites circunscritos ao bairro não eram mais
suficientes para a manutenção e produção do boi.
Esta situação de sobrevivência do boi da Maioba pela flexibilização de atuação em
torno do espaço ludovicense mostra o equívoco em se associar as culturas integralmente
enraizadas em um espaço fixo. O espaço do bairro da Maioba continuava como referência
identitária para o bumba, mais não significava um enclausuramento do boi, e sim era apenas
um nó central de uma ampla “rede de sociabilidade” e compromisso” do boiero tecidos.
A tessitura de redes de sociabilidade” do bumba em outras localidades para além da
Maioba realizou-se em muitos outros mais bairros, e não somente no Anil e no João Paulo.
Como o boi sotaque de matraca vive por meio de uma grande quantidade de brincantes,
sempre foi preciso muita habilidade chamada por Ferreira (op. cit.) de camaradagem - dos
sujeitos celebrantes para se conquistar novos boieros de outros bairros, geralmente boieros da
periferia de São Luís, e assim continuar alimentando e dinamizando as suas redes construídas.
Para fazer Boi, muitas dificuldades. É preciso muito conhecimento, muita
camaradagem, porque tudo é a peso de dinheiro, tudo é caro e nada chega. Pago pelo
carro, 80, 100, 200 mil. Coloco carro para Ribamar, Olho D‟água, até para aquele
175
lugar que tem o Rio Jaguarema poluído: Canavieira, Sítio do Apicum. Agora não
tem mais Sítio do Apicum, mas restam: Tirirical Turu, Boa Vista, Tapera, Porto de
Mocajituba. Carro para buscar gente em todos estes lugares (FERREIRA, op. cit., p.
153).
A “camaradagemnão era utilizada somente para conquistar brincantes, mais tamm
era utilizada para conquistar o empresário, conseguindo um preço menor do aluguel dos
ônibus que iam buscar os boieros de outras localidades acima mencionadas como: Olho
D‟água, São José de Ribamar, Canavieira, Turu, Tirirical, Tapera, Porto de Mocajituba.
Tecendo suas “redes de sociabilidade” pelo tecido urbano da cidade, cada vez mais, a
partir da década de 1960, o boi da Maioba foi criando “maiobeiros” para vadiar com o seu
bumba, em meio a uma negociação da sua identidade boiera em outros bairros de São Luís.
Nessa conjuntura há um papel ativo do sujeito celebrante na produção do boi da
Maioba ao tecer suas redes de sociabilidade” em meio as transformações da cidade de São
Luís. Assim como ocorreu com o boi da Madre Deus - conforme vimos no item anterior -, no
boi da Maioba também o processo de modernização da cidade foi insuficiente para
desvincular as pessoas do universo boiero, fazendo do boiero maiobeiro não necessariamente
aquele que mora no bairro da Maioba.
A trajetória do boi da Maioba foi marcada pelo dilema do bumba em “botar os seus
chifres no mundo”, fazendo com que os boieros mesmo estando fora do bairro não se
desgarrassem do novilho, espalhando para outras localidades de São Luís o legado de sua
celebração.
Na década de 1990, o boi da Maioba se transformou no maior grupo de bumba sotaque
de matraca do Estado do Maranhão devido a eficiência nas inúmeras estratégias, habilidades e
criatividades de seus sujeitos celebrantes em penetrar nos vários “espaços” da cidade e
estabelecer diálogos e negociações exitosas.
Estes anos gloriosos do bumba-meu-boi da Maioba trouxeram enormes prestígios e
popularidade para o grupo no universo boiero e na cena blica da cidade de São Luís,
dissolvendo toda uma conotação pejorativa em torno da imagem do “maiobeiro” como
rbaro e o-civilizado. Segundo o Sr. Inaldo (entrevista em 10/03/2009) até pouco
tempo a Maioba era tido como lugar de gente braba e de -rachado, havendo muita
discriminação, devido a forte imagem de tio que sempre carregou consigo”.
A expressão “maiobeiro” na cidade de São Luís até o início da cada de 1990
também remetia a imagem das pessoas do bairro como doidos, arruaceiros, bagunceiros
reforçados pela noção de pejorativa “sítio”, trazendo a tona um conteúdo de “primitivismo”.
176
A Maioba era sítio, porque antigamente nego tinha medo ade vir na Maioba,
quando falava em Maioba nego dizia: “eh rapá, tu é doido, eu não vou na
Maioba, só tem gente brabo”, aí o pessoal via agente assim como lugar de brabo, de
doido que faz arruaça e bagunça (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
A identificação de “barbarismo para com o “maiobeiro” foi construída em meio a
conjuntura cio-espacial do bairro que sofria com um estigma histórico negativo de
dificuldade com transportes e estrada precária, no qual as pessoas se deslocavam por meio de
pau-de-arara antes da vinda do ônibus, como também pelo trabalho de feirante e produtor
rural, remetendo a feição do “maiobeiro” como homem que porta facão e carrega cofo:
Eu vivi toda essa dificuldade de que nós éramos discriminados. Diziam que era o
maiobeiro aquele que andava de pau-de-arara, que tem o rachado, a faca na
cintura, a carga no cofo, a carga no ombro ou na cabeça, essa era a nossa
identificação pra dizer que a Maioba é lugar de gente braba (SR. INALDO,
entrevista em 10/03/2009).
O boi da Maioba ao ganhar status atual de maior grupo de bumba-meu-boi sotaque de
matraca do Estado do Maranhão, especialmente a partir dos anos 1990, conseguiu dissolver as
conotações pejorativas em torno do que é ser maiobeiro. Hoje o maiobeiro é reconhecido e se
sente orgulhoso pela repercussão do bumba na cidade.
Eu me sinto orgulhoso em dirigir o bumba que quebrou um tabu, de discriminação.
Eu vivi isso, nós éramos discriminados. O boi da Maioba fez essa luta pró-
modificação, e graças a Deus, hoje quando se fala no maiobeiro, o cidadão que nem
conhece a Maioba bate no peito e se diz orgulhoso de dizer que é maiobeiro porque
torce para o boi da Maioba, porque é matraqueiro do boi da Maioba, é pandeireiro
do boi da Maioba, ele é integrante do grupo, eu entendo que essa foi a grande
contribuição do boi da Maioba (...) mudamos o conceito das pessoas em ver a
Maioba (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
A imagem do maiobeiro como rústico e primitivo foi gradativamente apagada nos
anos 1990 com o início da fase de grande popularidade do boi da Maioba no universo boiero
do Estado do Maranhão. Porém, devemos enfatizar que o boi veio se tornar evidente devido a
tessitura de suas redes de sociabilidade junto aos espaços centrais e periféricos de São Luís.
O bumba da Maioba começou a percorrer os espaços centrais” da cidade tecendo
vínculos de sociabilidade com a classe potica e dirigente do Estado, especialmente com a
então governadora Roseana Sarney, chamando-a diversas vezes para ser madrinha do bumba.
A Maioba foi a pioneira de uma prática que veio a se repetir por outros grupos que
posteriormente também começaram a chamar a governadora para ser madrinha. Foi nessa
177
aproximação e estreitamento de vínculos com a governadora que os sujeitos celebrantes do
bumba obtiveram ganhos como a construção do Viva” e a compra de terreno próximo a sede.
A festa que fizemos do centenário [em 1997] sacudiu a cidade que inclusive a
governadora Roseana, então governadora foi na Maioba (...) o Zé Reis [então
membro da diretoria do bumba] teve uma grande participação nisso [e disse:]
- “eu vou trazer a Roseana”.
(...) eu não acreditava, quando chegou domingo da morte do boi [Zé Reis
disse:]
- ”Zé não deu pra ela vir hoje, mais ela vai vir na quarta-feira” (...).
“Eu preciso eu preciso saber certo pra gente poder se organizar Zé Reis, as
coisas não pode ser assim jogado como tu pensa” [colocou Inaldo] (...)
Aí quando foi na terça na hora do almoço lá na morte do boi [Zé Reis disse:]
- “Rapaz, a mulher confirmou que vem, eu falei com a assessora dela” (...)
Aí eu reuni a diretoria e falei:
- “Olha, amanhã cada um vai trazer um prato” (...)
na parte debaixo, em frente onde é o Viva hoje fizemos um mesão assim,
um mesão porreta. Aí ela chegou na morte da burrinha, agradecemos a
presença dela, aí levei ela lá pra baixo, jantarzão porreta e aí vai conversa.
eu disse pra ela:
- Não temos nada, a gente precisa de tudo, a gente precisa de tudo, nós o
temos nada e gente precisa de tudo, fica até ruim dizer por onde começar.
Aí ela disse:
- “Vamos fazer um Viva, vamos fazer o Viva Maioba” (...).
Quando foi no ano seguinte ela inaugurou o Viva né, e a partir daí eu
convidei ela pra ser madrinha do boi, a partir de 99, ela foi madrinha do boi
três anos consecutivos (...) depois que a levei para ser madrinha do boi, os
outros também passaram a levar (...)
Depois ela passou a gostar da Maioba (...) ela foi em 98 de novo, ela
disse:
-“ Zé, me arranja uma roupa de pena”
- Qual é a cor de sua preferência? [disse Zé Inaldo].
- É vermelha [disse Roseana].
Aí mandei pegar, dei uma roupa de pena completa para ela, vermelha
- Quanto é? [disse Roseana]
- Não, não é nada não, presente da Maioba para a Senhora [disse Zé Inaldo].
- “Zé, mais é muita gente” [disse Roseana].
- “A Senhora pra ter uma idéia ta no meio da festa e a casa não comporta
o pessoal, a Senhora imagina como tava isso no domingo” [disse Zé Inaldo].
- “Qual é a solução?” [disse Roseana].
- A gente precisa duma área pra fazer o anexo do Viva [disse Zé Inaldo].
- Procura uma área para comprar [disse Roseana].
Aí eu procurei uma área depois, foiem frente (...) comprei o terreno e botei
no nome da Associação, ta o terreno que ela deu (...) (SR. INALDO,
entrevista em 10/03/2009).
Trazemos este depoimento acima colocado não como uma apologia a família Sarney,
como também não negamos que houve uma sedução por parte da governante para com os
maiobeiros. O que ressaltamos nesse momento foi a habilidade dos sujeitos celebrantes do boi
da Maioba, mais precisamente do Sr. Inaldo, em negociar com a classe dominante
dirigente a aquisição de equipamentos fundamentais para a sustentação do urrar do seu boi.
O que achamos interessante pontuar foi a habilidade do sujeito celebrante em
conquistar uma autoridade pública, passando pela costura de atos “maiorescomo viabilizar o
178
contato, aa costura de atos “menores” como a preparação de uma mesa de jantar e a doação
de uma roupa de pena como presente para o dirigente público. Mostramos então que o povo
tem iniciativa própria em negociar sua projeção identitária com a classe dominante e não
somente dentro do seu próprio núcleo festivo. Isso faz do Estado não um mero instrumento de
uso da classe dominante, podendo paradoxalmente também servir a classe subalterna boiera.
Até mesmo as possíveis crises que poderiam abalar o urrar do boi maiobeiro foram
contornadas por ação de seus sujeitos celebrantes e não por uma intervenção governamental.
A saída do cantador João Chiador, que era um grande atrativo da brincadeira do boi da
Maioba até meados de 1990, fez os sujeitos celebrantes do boi ficarem desconfiados e
preocupados porque achavam que a Maioba iria cair [e que] não teria a mesma força [para
subir]” (RIOS, 2005), mais não impediu o uso de iniciativas destes para resolver o problema.
A saída de João Chiador foi contornada pela implantação de uma inovação no bumba
que era ensaiar fora do bairro de origem. Fazer o peodo pré-junino de ensaios fora do
terreiro da Maioba, segundo o Sr. Inaldo (entrevista em 10/03/2009) “foi uma inovação
fundamental para salvar o boi da Maioba, uma vez que manteve a visibilidade do grupo que
poderia ser perdida”. A narrativa da saída de João Chiador e o surgimento da iia do sujeito
celebrante Inaldo em ensaiar fora e evitar uma queda do referido bumba, em à tona a
importância das habilidades de um sujeito celebrante em construir a existência de um bumba.
Autor - Queria que você falasse em relação aos ensaios fora, como foi que surgiu
essa idéia? Zé Inaldo - Rapaz, essa idéia surgiu em função da sda de João
Chiador, na verdade quando Chiador saiu da Maioba de forma prematura (...) o
pessoal foi saindo aos poucos, ficaram chateados (...) depois da saída de Chiador
decidimos fazer um ensaio no sábado de Aleluia com Chagas, no dia que Chiador
foi apresentado em Ribamar. Daria certo? Não daria certo, e a Maioba foi em
peso pra cara (...) quando o caminhão do Ribamar chegou foi todo mundo, o meu
povo foi todo embora (...), mas mesmo assim fizemos um ensaio com pouca gente
(...) Antes de terminar o ensaio eu digo: Chagas tu vai dizer agora que no sábado tal
dia o ensaio vai ser na sede da Agape [arrendado para uso do boi] no Aterro do
Bacanga (...) aí foi um pressão do escambal pra cima de mim dizendo que eu queria
mandar no boi. Eu dizendo: ou a gente faz isso ou o boi vai acabar cara (...) ih
confusão da porra (...) mas mesmo assim fomos a Agape (...) Eu fui pegar um
pessoal e chegando nem conseguia entrar, lotado (...) os diretores contrário a
mim , aí chegaram, me abraçaram, me levantaram (...) Aí eu disse: “vai porra, vocês
não sabem fazer boi, rapaz, vão dormir embaixo da minha rede porra”. E ali eu
salvei o boi, salvei a Maioba” (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
Assim, o boi da Maioba, não saiu de seu viveiro somente para atender aos interesses e
exigências impositivas de um mercado consumidor. O boi saiu de seu viveiro para continuar
sendo querido, e ao se movimentar pela cidade, como nos ensaios fora, teceu ainda mais as
suas “redes de sociabilidade”, projetando ainda mais a sua brincadeira na cidade, continuando
179
com o projeto iniciado por seus antepassados de botar o boi para urrar pelas ruas como forma
da brincadeira ganhar evidência social.
A vitalidade do bumba da Maioba se deve e muito ao papel ativo dos seus sujeitos
celebrantes em contornar os problemas. Se os problemas o forem contornados, o bumba
fatalmente pode se desestabilizar como ocorre atualmente com o boi da Madre Deus (visto no
item anterior). Com isso cremos que os sujeitos celebrantes são responsáveis pela existência
do urrar do boi tão quanto o Estado, tanto nos momentos “bons, como nos momentos “ruins”.
O bumba da Maioba nos dias atuais continua preenchendo suas “redes de
sociabilidade” junto a áreas da periferia de São Luís, buscando boieros por toda a cidade. Os
caminhões e ônibus alugados para servir o boi da Maioba ainda vão em direção ao subúrbio
de São Luís nos rios povoados da Maioba, no bairro do Anil, João Paulo, Coroadinho,
Sacavém, e muitos outros bairros, buscando mais maiobeiros para vadiar no boi. Houve um
espraiamento tão grande de boieros maiobeiros que atualmente o boi da Maioba é composto
mais por pessoas de outro bairro que do bairro da Maioba.
Hoje a maioria do boi é de pessoal de fora da Maioba, a comunidade de maiobeiros
hoje é da Raposa, Turu, Ribamar, vários, Bairro de Fátima. Então a gente arrebanha
esse pessoal e leva pra pro boi, hoje o maior grupo de gente é do João Paulo, do
Anil, Cohatrac aqui, mas Maioba mesmo tem poucas pessoas, os nossos ônibus vão
mais pra outros lugar do que pra Maioba (SR. RIBINHA, entrevista em 15/02/2009).
O boi da Maioba se movimenta espacialmente por São Luís não somente para cumprir
compromissos que atendam as exigências de um mercado consumidor agradando aos de
fora” e indo atrás do cachê ou mesmo da autoridade pública ou privada que possa lhe
financiar e ajudar. O boi se desloca também para “arrebanhar”
40
brincantes.
Assegurar a condição existencial do boi da Maioba não foi uma missão tão fácil
quanto se possa pensar. Não é pelo sentido mercadológico que o boi da Maioba sobrevive
firme e forte e é tido como um “batalhão pesado”, mais também graças ao papel ativo dos
sujeitos celebrantes em ter o compromissocom o boi e delinear as redes de sociabilidade”
necessárias em viabilizar a inserção do boi na cidade. Ficamos com a mensagem do Sr.
Inaldo mostrando o compromissoe as “estratégias” (jogo de cintura) do sujeito celebrante
como procedimento fundamental para manter o boi firme ao mencionar que foi e é duro
botar o boi na rua, tendo que ter muito compromisso e paixão pelo boi para ter esse sacrifício
todo e superar todos os problemas que existem (...) tem que ter muito jogo de cintura
[estratégia] (SR. ZÉ INALDO, entrevista em 10/03/2009).
40
Os sujeitos celebrantes falam arrebanhar no sentido de conquistar.
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É assim que “aqui o meu boi vai urrar”...
A expressão que trouxemos como título para o nosso trabalho: aqui o meu boi vai
urrar” é um grande indicativo para concluirmos a presente pesquisa, na medida em que o
termo “aqui”, enquanto um advérbio de lugar, expressa a base existencial do bumba enquanto
uma construção identitária que sustentada por meio de uma condição espacial.
Esperamos ter demonstrado que o boi requer o somente uma complexificação, mas
uma “geografização em sua análise, não se resumindo unicamente como um assunto
interdisciplinar ou mesmo de mérito de outras ciências que não tenham a “tradição nos
estudos culturais do povo como a Geografia, mas sim evidenciar que uma manipulação da
estrutura existencial do boi por meio de uma inserção na dimensão cio-espacial e não
somente cultural.
Neste sentido, os setores subalternos (os sujeitos celebrantes) que constroem a cultura
do povo nos mostram a importância metodológica o somente do “descrever” como
costumam fazer os geógrafos empiristas positivistas, mas também de “ouvir” os boieros e a
sua percepção de representação identitária e cio-espacial em torno do bumba, evidenciando
os limites de uma descrão que por si só não consegue captar as teias, as redes relacionados à
espacialização do urrar do boi. Como bem diria Foucault (2008), as palavras em seus
significados e objetivações não podem estar tão deliberadamente ausentes.
Durante a pesquisa, fomos compreendendo a importância e os significados de uma
leitura espacial para o urrar do bumba, a partir do momento em que verificamos a tessitura das
redes de sociabilidade” e o compromisso” dos sujeitos celebrantes em botar o boi para
urrar, associado a uma penetração e movimentação junto a malha urbana de São Luís.
181
A cidade boiera de São Luís mostra que a emergência do povo como dono” do meio
urbano o é uma utopia. O bumba-meu-boi se mostra como um movimento popular de
resistências diante a opressão que posteriormente se transformou em um projeto identitário
consolidado na cidade, não no sentido de subverter a lógica da produção de hegemonias
culturais, e nem por se entregar aos ditames da classe dominante, e sim por “negociar” a
produção cultural do povo junto aos agentes hegemônicos através da ampliação das redes de
sociabilidade” junto a classe dominante e a elite dirigente,o se estendendo somente a outros
sujeitos subalternos na sua posição de assegurar a sobrevincia do novilho.
Evidentemente reconhecemos as pesquisas que referendam o bumba por aspectos
relacionados ao processo de mercantilização cultural e intensificação do turismo, porém, no
nosso trabalho, buscamos analisar o lado mais difícil que é ressaltar a relevância do sujeito
celebrante o somente na produção, mais acima de tudo, na existência contemporânea do
boi. A habilidade e criatividade do sujeito celebrante em colocar o boi para urrar demonstram
que estes operam significativamente na construção identitária do bumba no contexto atual da
cidade de São Luís na medida em que dão suor” para conseguir lançar o bumba na conquista
da cena blica da cidade, tendo plena capacidade de redefinir a posição do novilho na
sociedade por suas ações. Estes sujeitos que estão nos bastidores do bumba são relevantes
para que o boi consiga a projeção no espaço geográfico da cidade, seja para negociar com a
elite, seja para capturar bairros e formar boieros que possam reforçar os seus grupos.
Ao longo do trabalho, não pregamos de modo algum que há uma autonomia estrita dos
sujeitos celebrantes do bumba na construção do seu objeto celebrado, o bumba-meu-boi, e sim
queremos colocar que mesmo posicionando-se em um campo de forças amplamente desigual
em relação ao poder dominante, os sujeitos celebrantes mostram uma capacidade em delinear
estratégias e manejar procedimentos visando a ocupação da cena blica da cidade de São
Luís, satisfazendo seu interesse maior, botar o boi na rua.
Quando o bumba se movimenta para além dos limites do terreiro de origem circulando
por toda a cidade, notamos que as condições de vida objetiva de um boi estão diretamente
ligadas a redimensionamento deste junto a cidade, como também a cidade passa a ser revelada
sob uma “nova” leitura identitária boiera.
Na cidade boiera de São Luís momentos de vida extra-ordiria, vindo revelar que
a cidade pode ser (re)vitalizada pelo povo e para o povo em suas festas, não sendo somente
uma expressão de trabalho e desgaste.
É exagero verticalizar “o boi completamente se prostituindo”, e entregando a sua
alma” ao apelo consumista do mundo capitalista mercantilizado. É fundamental ressaltar as
182
contradições e paradoxos do capitalismo não no sentido de subverter a ideologia dominante,
mas no sentido de implementar uma manutenção da tradição boiera a partir dos interesses
daqueles que constroem a brincadeira.
Com a atual mudaa de paradigma da financeirização do bumba fica fácil
desconstruir o popular” como diz Hall (2006). Porém o “aqui”, a inserção do boi na cidade,
mostra-nos que o popular tem literalmente o seu lugar em São Luís, na medida em que
converte o espaço da cidade como o lugar de encontro do povo, afirmando o boi como
símbolo representativo da cultura, e materialmente como “um grande arraial a céu aberto”, no
sentido de ser um ponto de encontro dos boieros em sua performance identitária, e não
somente ponto de encontro para um rede de consumidores do boi.
Cremos que a maior contribuição da pesquisa para o pensamento geográfico é
demonstrar que a cidade o espaço geográfico dinâmico- é elemento incondicional do
processo de formação da cultura popular. Vimos que o bumba, seus sujeitos celebrantes e
boieros se fazem literalmente existentes ao se situarem, (re)vitalizarem, (re) negociarem e
(re)significarem sua presença na malha urbana de São Luís, contornando suas tensões
referentes à sua inserção na realidade sócio-espacial da cidade.
Este aspecto é fundamental para ressaltarmos que para o pensamento geográfico a
urbanização não é necessariamente um processo que percorre do centro para a periferia, mas
também percorre da periferia para o centro, uma vez que os sujeitos celebrantes do bumba, e
o somente o capital, organizam, estruturam, encontram soluções estratégicas e dinamizam a
brincadeira séria por meio da inserção e uso do espaço geográfico, das redes, demarcações e
fluxos espaciais.
Inferimos que é o aqui do boi”, o situar do novilho no espaço da cidade, não é
somente a base material, mas a base existencial que dinamiza o boi e mobiliza a população
para celebrar a sua festa, motivando levar o bumba do bairro periférico para o centro da
cidade não apenas por dinheiro como se pode pensar no atual contexto em que tudo se
transforma em mercadoria.
Encerro esta pesquisa com as palavras de Godão, diretor do grupo Boizinho Barrica,
em um artigo feito para criticar aos puristas que pregam o atual processo de “prostituição do
boi”, colocando que a finalidade do bumba, ao requerer a cena (o espaço) pública da cidade, é
viver e não morrer, pois é “botando o chifre no mundo” que o boi não vem negar a sua
condição de estar situado no contexto dos “excluídos”, encontrando os caminhos e abrigos
para a sua vitalidade.
183
O Boi vai botando os chifres no mundo e aprendendo a soltar os seus urros, pela
sua dignidade, pela valorização dos seus produtores, artistas, brincantes e
comunidades, e não mais à exploração pitoresca institucionalizada. Não mais ser
miolo de livros de “pesquisadores” antropófagos, que pregam a morte do Boi e
comem o seu auto, roubado. Assim é que o Boi não quer mais só capim. O Boi quer
caminhos, abrigos e vitalidade! (GODÃO, 2004, p. 01).
Então, cremos que é pelo compromisso dos boieros e pelas redes de sociabilidades
tecidas pelos sujeitos celebrantes que o boi mostra porque em São Luís aqui o meu boi vai
urrar”..., já que é pela ação desses agentes no espaço que o bumba incessantemente construiu
e constrói caminhos, abrigos e vitalidade necessários a sua condição existencial.
184
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