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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE MESTRADO
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÀO
RENATO DE ASSIS GONÇALVES
A Morte de Deus: Uma Crítica ao Modelo Ético-Moral da Civilização
Ocidental.
S
ÃO
P
AULO
2008
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RENATO DE ASSIS GONÇALVES
A Morte de Deus: Uma Crítica ao Modelo Ético-Moral da Civilização
Ocidental.
Dissertação apresentada ao Programa de pós-
graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
parte dos requisitos para obtenção do título de
mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges
Pereira
S
ÃO
P
AULO
2008
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GONÇALVES, Renato de Assis.
A Morte de Deus: Uma Crítica ao Modelo Ético-Moral da Civilização
Ocidental.
PPGCR-UPM / SP, 2008.
148 f.
Dissertação apresentada ao Programa de
pós-graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie,
como parte dos requisitos para obtenção do
título de mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira.
Palavras-chave: Deus – Ética – Nietzsche – Cultura - Religião.
A Morte de Deus: Uma Crítica ao Modelo Ético-Moral da Civilização
Ocidental.
Dissertação apresentada ao Programa de pós-
graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
parte dos requisitos para obtenção do título de
mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira.
Aprovado em de de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr.
Prof. Dr. Prof. Dr.
Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho
Carlos Ribeiro Caldas FilhoCarlos Ribeiro Caldas Filho
Carlos Ribeiro Caldas Filho
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Universidade Presbiteriana MackenzieUniversidade Presbiteriana Mackenzie
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr.
Prof. Dr. Prof. Dr.
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
Leonildo Silveira CamposLeonildo Silveira Campos
Leonildo Silveira Campos
Universidade Metodista de São Paulo
Universidade Metodista de São PauloUniversidade Metodista de São Paulo
Universidade Metodista de São Paulo
A Deus, Honra, Glória e Louvor.
Aos meus pais, pessoas simples
que me ensinaram a encontrar a felicidade
nas pequenas coisas da vida.
Aos meus irmãos Marcos
e Matheus, por partilharem alegrias
e momentos difíceis.
À Igreja Presbiteriana da Praia do
Recreio, por compreender a necessidade
da minha formação e permitir que eu
estivesse tão ausente.
A
GRADECIMENTOS
A Deus, pela força e disposição recebidas para poder vencer os
obstáculos em que muitas vezes pareciam intransponíveis, principalmente os
da distância entre Rio e São Paulo.
Ao Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira, que foi, ao longo da
caminhada, não só um orientador, mas um incentivador, e mesmo a despeito do
tema, aceitou-o e me ajudou a parir a dissertação ora em mãos.
À Igreja Presbiteriana da Praia do Recreio, por compreender a
necessidade da minha formação e permitir que estivesse tão ausente.
Aos amigos, Lamartine Gaspar, Daniel Justiniano, de fato, amigos fiéis.
Amigos de sempre.
Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie, através do Departamento de
Bolsas e do MackPesquisa Fundo Mackenzie de Pesquisa, pela expressiva
contribuição no apoio financeiro a este trabalho, sem os quais, com certeza,
não obteria o êxito alcançado.
Oração ao Deus Desconhecido
“Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais,
elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares festivos, para que, em
cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre estes altares estão gravadas em fogo estas palavras: Ao Deus desconhecido.
Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos.
Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a serví-lo.
Eu quero Te conhecer desconhecido.
Tu que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Te conhecer, quero servir só a Ti.”
(Friedrich Wilhelm Nietzche).
R
ESUMO
O presente trabalho refletirá sobre o conceito de morte de Deus lançado
pelo filósofo Friedrich Wilhem Nietzsche no século XIX, buscando resgatar a
idéia original da aplicação deste conceito. Caminhar-se-á através das sendas
filosóficas criadas por Nietzsche, buscando-se compreender, inclusive, que
suas experiências familiares e seu envolvimento pessoal com a cristã que
deu-se desde sua infância até, sua chegada à escola de Pforta onde por
influência de renomados professores, inicia seu apreço pela filosofia oriental
rompendo com a cristã, contribuíram para sua concepção de religião, e,
conseqüentemente, para seu ataque à religião e moral cristãs.
Não obstante, observaremos que em sua filosofia, suas missivas dirigem-
se não à metafísica cristã; o filósofo não busca provar que Deus não existe.
Deste modo, sua filosofia não pode ser considerada como uma apologia ao
ateísmo, Nietzsche não atacou a Deus, antes, ao discurso sobre Deus. E como
filólogo que era, buscou encontrar a intenção fundamental neste discurso, ao
mesmo tempo tencionou desvelar e denunciar seu estratagema. Uma vez que
seu autor é bem conhecido da experiência pregressa do filósofo em sua
família possuíra três gerações de pastores a autoria deste discurso cabe
somente à igreja, que é a instituição que fala em nome de Deus. Ao criticar a
igreja, Nietzsche busca encaminhar esta critica de forma holística como
criticando toda a civilização ocidental, que formou sua cultura, sua moral, sua
política, sua ética, sobre esta base comum chamada cristianismo, que encontra
na igreja sua fiel representação.
Buscar-se-á demonstrar que o filósofo, com suas críticas, não buscou
destruiu a religião; antes, propôs uma nova religião através da transvaloração
do sagrado, encontrando na educação as bases para uma nova civilização, a
partir do conhecimento do homem que é capaz de aprender a superar a si
mesmo.
Palavras-chave: Deus – Ética – Nietzsche – Cultura – Religião
.
A
BSTRACT
The present research will reflect on the concept of death of God launched
for the philosopher Friedrich Wilhem Nietzsche in century XIX, searching to
rescue the original idea of the application of this concept. It will be walked
through the philosophical footpaths created by Nietzsche, searching to
understand, also, that its familiar experiences and its personal envolvement with
the Christian faith that was given since its infancy until, its arrival to the school of
Pforta where for influence of famous professors, initiates its appraise for the
eastern philosophy breaching with the Christian faith, had contributed for its
conception of religion, and, consequently, for its attack to the Christian religion
and moral.
However, note that in their philosophy, their dispatches that they are not
the Christian metaphysics, the philosopher does not seek to prove that God
does not exist. Thus, his philosophy can not be regarded as an apology to
atheism, Nietzsche attacked not for God, rather, to talk about God. And that was
philologist, we find the fundamental intent in this speech, while intended to
uncover and expose their ruse. Since its author is already well known from past
experience of the philosopher - in his family had three generations of preachers
- the authorship of this speech it is only the church, which is the institution that
speaks in the name of God. In criticizing the church, Nietzsche looking forward
this criticism in a holistic manner as criticizing the entire Western civilization,
which formed its culture, its morale, its politics, its ethics, based on this common
call Christianity, which finds its faithful representation in the church.
One will search to demonstrate that the philosopher, with its critical, did
not search destroyed the religion; before, it considered a new religion through
the transvaliation of the sacred one, finding in the education the bases for a new
civilization, from the knowledge of the man who is capable to learn to surpass
itself exactly.
Keywords: God - Ethics - Nietzsche - Culture - Religion.
S
UMÁRIO
I
NTRODUÇÃO
...................................................................................................
12
C
APÍTULO
1
A
BUSCA
PELO
NIETZSCHE
PERDIDO
...................
15
1.1 A
E
SCOLA DE
P
FÖRTA
...............................................................................19
1.2 A
I
NFLUÊNCIA DE
F
EUERBACH
....................................................................19
1.3 NIILISMO
E
CULTURA...........................................................................21
1.4 A
DESVALORIZAÇÃO
DOS
VALORES.................................................26
C
APÍTULO
2
A
TRANSVALORAÇÃO
.....................................
...................33
2.1
A
M
ORTE DE
D
EUS
....................................................................................66
C
APÍTULO
3
NIETZSCHE,
A
ÉTICA
E
A
MORAL
DE
UMA
NOVA
GERAÇÃO..........................................................
................................
98
3.1
A
C
ONCEPÇÃO DA
N
OVA
R
ELIGIÃO EM
N
IETZSCHE
...................................
137
C
ONCLUSÃO
...................................................................................................
186
Referências Bibliográficas
........................................................................... 202
12
INTRODUÇÃO
Nossa proposta versa buscar os elementos constitutivos do filósofo Nietzsche e
entendê-los como grandes influenciadores que plasmaram conceitos fundamentais da cultura
ocidental, inclusive uma nova idéia sobre “Deus” e “religião”.
Para compreender-se o significado do pensamento e filosofia de Friedrich Willhem
Nietzsche, é mister realizar um movimento de retorno e acompanhamento, ao nascedouro e
contexto deste pensamento e a partir daí acompanhar o gradual desenvolvimento e
amadurecimento de tal pensamento. Entende-se ser este trabalho de difícil execução, no
entanto, é a possibilidade de alcançar-se com maior êxito a percepção da gradual mudança de
paradigma de uma das mentes mais inquietantes e que mais influenciaram o pensamento
moderno, a mente e filosofia de Nietzsche. Aceitando-se ou não, a realidade de uma divindade
real e transcendente denominada: “Deus”, na filosofia nietzscheana, este conceito será tratado
de forma quase exaustiva, buscando-se através de sua discussão, um repensar daquilo que
envolve a realidade do discurso sobre Deus e suas respectivas ramificações de cunho
ideológico, social, religioso e cultural, repousando sobre esta última o ponto fulcral de toda
sua crítica.
Nietzsche, é um dos grandes influenciadores do pensamento moderno
ocidental(TARNAS,2000), tal influência nasce principalmente a partir de suas críticas
dirigidas à sociedade moderna que atacam a religião cristã, que é a base comum formadora da
cultura ocidental(TARNAS, 2000) buscando a partir da crítica dos valores éticos e morais
atingir seu objetivo que seria uma crítica profunda e aberta à cultura moderna ocidental.
Ao resgatar-se a história pregressa do filósofo, estaremos buscando um resgate do seu
pensamento que inicia-se em um contexto de grande intimidade e envolvimento com o
cristianismo de cunho protestante, em uma bucólica cidade do interior e desenvolve-se através
de perdas de bases familiares e religiosas extremamente inquietantes para o filósofo ainda em
13
seu período de infância até o início de sua juventude. O objetivo fundamental no esforço de
resgatar esta realidade religiosa e familiar onde Nietzsche se inseria, não é outro senão poder
perceber que sua mente muda e seus referencias serão transformados como momento inicial
do pensamento do Nietzsche que declara a “Morte de Deus”. Atribui-se este momento de
transformação a partir da entrada de Nietzsche na tradicional e reconhecida escola de Pförta,
onde começa o seu contato com a filosofia oriental.
Portanto, no primeiro capítulo, buscaremos resgatar o Nietzsche infante e demonstrar
sua devoção pessoal ao Deus cristão, seguido por seus pais e a gradual maturação de seu
pensamento, afastando-se do cristianismo e, por fim, atacando-o, mas não como um ateu,
antes como alguém que traz uma nova proposta de Deus e religião. Caberá ainda neste
capítulo, um confronto inicial entre as idéias apresentadas pelo Nietzsche da infância e o
Nietzsche maduro.
No segundo capítulo proporemos uma análise mais definida do método utilizado por
Nietzsche, tanto o genealógico quanto o perspectivismo estarão presentes buscando
compreender que a morte de Deus, foi uma crítica de todos os valores, buscando criar novos
valores. A isso chamamos de transvaloração. É a transvaloração a peça fundamental no
arcabouço nietzscheano para atingir seu Übermensch, sua independência em vida e a
destruição do cristianismo institucionalizado, como forma de negação e aniquilação do
homem.
Por fim, será no terceiro capítulo que proporemos nossa tese de afirmar que Nietzsche
não era um ateu, antes, criticou o cristianismo com motivações religiosas. Estas mesmas,
levaram-no a uma proposta ousada: a criação de uma nova “religião” a partir de um novo
homem e de novos valores.
Não temos a pretensão de esgotarmos este assunto, nem a arrogância de nos
pretendermos a uma defesa de Nietzsche, nosso intuito é tão somente buscar caminhar com o
pensamento do filósofo da morte de Deus e através de suas plagas, propormos num diálogo
com ele o que entendemos ser a novidade desta pesquisa, a saber: a constatação de uma
religiosidade “não convencional”em Nietzsche, a partir de seus ataques ao cristianismo.
Portanto, não nos delongaremos nesta parte introdutória, entendendo que nosso
conteúdo completa o intuito a que se pretende. No entanto, reafirmamos que este estudo está
14
longe de ser o ponto final sobre a religiosidade de Nietzsche, nossa proposta é apenas a de
poder contribuir de alguma forma com todo o bojo do estudo sobre Nietzsche, nos isentando
de qualquer pressuposto pessoal que nos fizesse contrariar o que percebemos ser o real
pensamento do filósofo, ainda que isso fosse contrário aos nossos pressupostos pessoais de
e ideal.
15
CAPÍTULO 1 – A BUSCA PELO NIETZSCHE PERDIDO
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade
próxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram
pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira, mas com o
passar do tempo esta idéia fora abandonada e substituída pelo emprego da filosofia e filologia,
tal mudança, como veremos, deu-se principalmente a partir da perda de seu pai e irmão e de
sua entrada na escola de Pförta.
Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram, este fato, marca decisivamente a vida de
Nietzsche e sua compreensão religiosa, principalmente pela importância que o filósofo
atribuía a seu pai, que pode ser constatada a partir de uma biografia de sua vida escrita por ele
próprio, quando tinha apenas quatorze anos de idade. O adolescente Nietzsche refere-se assim
ao seu pai:
Meu pai era pregador em Röken e dos povoados vizinhos Michlitz e Bothfeld. O
modelo perfeito de um clérigo do interior. Dotado de espírito e coração, adornado
com todas as virtudes de um cristão, teve uma vida tranqüila e humilde, mas feliz.
Foi querido e respeitado por todos quantos o conheciam. Seus modos finos e seu
ânimo sereno embelezavam as reuniões a que era convidado.(NIETZSCHE, 1997,
p.1)
1
Este modo de encarar seu pai e o ministério pastoral impactava em sua própria vida e
consciência, Nietzsche era um menino sensível e doce, conhecia os princípios cristãos e
professava fé no Deus de seus pais, na verdade este era o seu Deus, o Deus cristão, revelado a
partir da Bíblia, a mesma que seu pai usara para pregar durante anos à fio. Nietzsche não
apenas seguia os passos de seu pai, antes tinha uma idéia muito presente e real sobre Deus,
que se evidencia em alguns poemas e no relato de sua infância, feito pelo próprio filósofo
como fora supracitado. Portanto, a idéia de Deus estava intimamente ligada ao exemplo e
virtude de seu pai. Com a morte de seu pai, Karl Ludwig, levando-se em conta que sua morte
1
. Tradução do autor, a partir da tradução para o espanhol de Luis Fernando Moreno Claros, que recebeu como
título: Sobre minha vida, escritos autobiográficos da juventude(1856-1858), Valdemar, Madrid, 1997.
16
ocorreu gradualmente e sua família o viu pouco a pouco padecer, instaurou-se uma crise sem
precedentes na vida do menino Nietzsche, conforme podemos observar em sua autobiografia:
Até então sempre nos havia sorrido a fortuna e a felicidade, nossa vida transcorria
sossegadamente como um ensolarado dia de verão; mas imediatamente se formaram
negras nuvens, os raios tomaram o espaço e o céu descarregou seus golpes
demolidores.( Nietzsche, 1997, p.3)
Seu pai finalmente falecera após meses de suplício em 27 de julho de 1849, nesta
época Nietzsche era uma criança com apenas cinco anos de idade, chorando com sua família a
perda de seu pai. Mas suas perdas não pararam por aí, a descrição feita pelo jovem é
extremamente emocionante e poética para mencionar a perda de seu pai e as feridas abertas
por esta abrupta separação e logo a seguir a perda de seu irmão: “toda a alegria, abandonou
nossos corações, dominando-nos uma profundíssima tristeza. Quando apenas começaram a
cicatrizar as feridas, de novo foram dolorosamente abertas.”(NIETZSCHE). Desta forma, a
tristeza pela perda daqueles a quem se ama foram pouco a pouco moldando o caráter do
jovem Nietzsche.
Entende-se como tarefa precípua desta pesquisa alcançar ao máximo a compreensão
do pensamento nietzscheano, para tal empresa buscar-se-á seus primórdios e seu contexto
inicial, através de sua infância e adolescência, até a sua maturação na juventude. Portanto
lança-se o olhar de forma crítica ao próprio pensamento do autor sobre suas experiências
pregressas vividas na infância e adolescência como forma exaustiva, até quando for possível,
de compreendermos ao máximo a constituição e transformação de seu pensamento. Neste
propósito, outra interessante pista que é dada é a forma com que o filósofo conta sobre um
sonho anunciando a morte de seu irmão, conforme segue:
Sonhei que ouvia música de órgão na igreja, como a que se toca nos funerais. Ao
tentar averiguar sua causa, se abriu de pronto uma tumba e vi sair de meu pai,
envolto em seus trajes moribundos. Ele entrou apressadamente no templo e em
seguida voltou a sair com um pequeno menino em seus braços. A tampa da sepultura
se abriu, meu pai entrou e a tampa fechou outra vez a sepultura. Neste mesmo
instante a música do órgão cessou e eu acordei. O dia que seguiu a esta noite, o
pequeno Joseph se sentiu mal de repente, começou a ter espasmos e morreu depois
de poucas horas. Nossa dor foi imensa. Meu sonho se havia cumprido por inteiro.
Além de que, o pequeno corpo pôde ser depositado nos braços de nosso
pai.(NIETZSCHE, 1997, p.3)
17
É digno de nota esta referência para que se perceba a ruptura clara entre o Nietzsche
da infância e o adulto, que busca através da filosofia com golpes de martelo abrir espaço para
sua filosofia, um outro homem racional e cético para todas as conceituações fenomenológicas,
compreendendo apenas no espírito humano e em sua liberdade a resposta para todos os
questionamentos de sua existência(DOSTOIÉVISKI). Nesta época, o menino buscava na
transcendência sua explicação e esperança, em sua fase adulta, encerra-se a busca pelo
transcendente, a procura pelo que está fora do homem se torna inócua. O homem deve buscar
dentro de si aquilo que é maior do que ele mesmo, o além homem, com que poderá se superar.
Esta diferença será marcante em Nietzsche, pois a totalidade de seu pensamento não seria
completa sem aquilo a que ele mais venerava e respeitava, o que era sustento e esperança para
si em sua infância, a saber: Deus. Conforme podemos observar neste fragmento ao referir-se
ao duplo e fúnebre desfecho das vidas de seu pai e irmão, dirigindo-se a Deus em sua breve
oração declara ser ele, a divindade cristã, o seu amparo: “O Deus celeste foi o único amparo e
consolo que tivemos nesta dupla desgraça.”(NIETZSCHE, p.3).
Quer-se estabelecer qual o envolvimento de Nietzsche com a cristã porque o que se
destaca à medida que o Nietzsche da infância emerge de seus escritos autobiográficos é algo
desconhecido ou pouco divulgado sobre a totalidade do pensamento deste filósofo. Pois, fica
evidente que o filósofo da “morte de Deus” se envolveu pessoalmente com a nesse Deus
pessoal transcendente, sendo ele mesmo seu seguidor, chegando a expressar sua por meio
de poemas dirigidos e este Deus cristão, exaltando inclusive a relação que existe entre ele e
Deus, afirmar tão somente que Nietzsche era ateu, parece ser um equívoco, a priori, pois é
necessário levar-se em conta toda a história da formação de seu pensamento e descobrir o
exato momento em que ocorre esta mudança de paradigma. Não se pode estabelecer até que
18
ponto Nietzsche fora um cristão convencional
2
, mas ao entrar em contato com alguns de seus
poemas podemos afirmar que ele cria nesse Deus, como nos revela seu poema de título “Ao
Deus desconhecido
3
”, conforme segue:
Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar à frente uma vez mais,
elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares festivos, para que, em
cada momento, Tua voz me pudesse chamar. Sobre estes altares estão gravadas em
fogo estas palavras: Ao Deus desconhecido.
Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos.
Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a serví-lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero te conhecer, quero servir a ti.
(BOFF, 2002, p.45)
Estes escritos tão somente corroboram com a teoria de que Nietzsche combate o
cristianismo quando chega à idade adulta com motivações claramente religiosas, ele não era
um ateu por instinto alguém que nunca crera em Deus, suas motivações eram quase opostas,
na verdade ele possuía um sentimento de repulsa sobre o modo com que a igreja enganava
seus fiéis, isto a partir do comportamento de seus clérigos que pregavam um determinado
estilo de vida e viviam falseadamente(moralina), sua indisposição e crítica é dirigida à
instituição eclesiástica, que é o instrumento para a disseminação do engano sobre Deus,
conforme nos advertem os autores do livro: O que Nietzsche realmente disse, como segue
abaixo:
Vemos Nietzsche não como um ateu por instinto como ele reivindica ser em seus
escritos, antes o vemos como um ávido religioso. Se entendermos por religião o
esforço de integrar alguém àquilo que é maior do que si mesmo, compreenderemos
que Nietzsche rejeita o cristianismo por razões religiosas. Suas críticas sobre a
ideologia de que a igreja cristã tem enganado seus membros expressa sua convicção
de que isso é danoso para nossa habilidade de amar e sermos sensíveis ao próximo
2
. Por cristão convencional, quer-se referir ao modelo tradicional de cristãos acolhidos nas igrejas de seu tempo.
Ou seja, o fiel que segue os parâmetros definidos pela igreja comungando com a mesma e sendo por ela
considerado seu membro fiel.
3
. Referência ao apóstolo Paulo em sua visita à Atenas apresentando aos seus cidadãos a mensagem do
evangelho cristão. Esta referência encontra-se no texto bíblico do livro de Atos dos Apóstolos capítulo 17, verso
23, que diz: Porque, passando eu e vendo os vossos santuários, achei também um altar em que estava escrito:
AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio.”
19
no mundo e à natureza. Além de crítico, também é um investigador nato, e ele
acreditou que sua sociedade tinha uma necessidade desesperada de um novo enfoque
espiritual.(HIGGINS; SALOMON, 2000, p.242).
Nietzsche segue como cristão até pouco tempo depois de seu ingresso na escola de
Pförta, onde gradualmente sua idéia e convicção sobre Deus e a igreja serão gradualmente
alteradas até serem completamente desconhecidas diante daquele menino que escrevia
poemas para Deus. Averiguar até que ponto seu pensamento substitui ou elimina o conceito
de Deus, nos leva a um novo ponto de percepção que tem como início a escola de Pförta.
1.1 A ESCOLA DE PFÖRTA: O INÍCIO DA RUPTURA
Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de Pförta,
onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas
leituras de Schiller (1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa
influência e a de alguns professores, Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo, mas
antes de concluir este movimento de afastamento ele se enamorou pelo pensamento do
teólogo Feuerbach(1804-1872) que possuía um entendimento social de Deus.
1.2 A INFLUÊNCIA DE FEUERBACH
O filósofo e teólogo alemão Feuerbach (1804-1872), antigo aluno de Hegel, reduziu
"a teologia à antropologia"(FEUERBACH). Para ele a religião era apenas uma projeção da
razão humana, a objetivação da sua essência. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo
homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu
espírito, a sua alma e o que é para o homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também
o seu Deus, conforme nos diz o próprio Feuerbach:
Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma
revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais
íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor.
(FEUERBACH, 2000, p.55-56)
20
Em Feuerbach, a razão é o critério último de toda a realidade é a “medida de todas as
medidas". Deus é uma entidade criada pelo homem à imagem de sua razão, conforme nos
atesta o teólogo:
Como tu pensas Deus, pensas a ti mesmo a medida do teu Deus é a medida da tua
razão. Se pensas Deus limitado, então é a tua razão limitada; se pensas Deus
ilimitado, então a tua razão não é também limitada (...) No ser ilimitado simbolizas
apenas a tua razão ilimitada. (FEUERBACH, p. 82. vd. p. 158).
Karl Marx (1818-1883), interpretando a concepção de Feuerbach, diz que este
"resolve o mundo religioso na essência humana." (MARX, 1974, p.58). Acrescenta:
"Feuerbach não vê, pois, que o próprio ânimo religioso é um produto social e que o indivíduo
abstrato, analisado por ele, pertence a uma esfera social determinada." (Ibidem, p. 58).
Mais tarde, em 1862, o mesmo Feuerbach escreveu em sua obra, O Mistério do
Sacrifício, o seguinte:
A teoria dos alimentos é de grande importância ética e política. Os alimentos se
transformam em sangue, o sangue em coração e cérebro, em matéria de pensamentos
e sentimentos. O alimento humano é o fundamento da cultura e do sentimento. Se
quereis melhorar o povo, em vez de pregações contra o pecado, dai-lhe uma
alimentação melhor. O homem é aquilo que come. (MONDIN, 1983, p. 94, v.3)
Esta forma extravagante e extremamente imanente de pensar, atrai a atenção de
Nietzsche que cogita e chega a iniciar seu curso de teologia em Bonn, assim que terminou
seus estudos em Pförta, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses
estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia. Ritschl considerava a filologia
não apenas história das formas literárias, mas estudos das instituições e do pensamento.
Nietzsche seguiu-lhe as pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio
(séc. III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi nomeado, em 1869,
professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A filosofia somente passou
a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de
Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, e como já
21
havia se enamorado por Feuerbach atribuindo ao conceito de divindade aspectos pragmáticos
e imanentes, recebe em Schopenhauer o ingrediente final para assumir o seu pensamento de
forma mais ousada.
A partir deste ponto, Nietzsche desenvolverá o niilismo e sua concepção de Deus,
abrirá espaço cada vez maior para uma crítica de todos os valores com o objetivo final de
atingir a cultura ocidental. Conforme será analisado no próximo tópico.
1.3 NIILISMO E CULTURA
Nietzsche foi quem diagnosticou o niilismo como a “doença do século” e o tomou
como eixo temático e problema capital expresso na “morte de Deus”. Para responder o que é o
niilismo? Explica: “Falência de uma avaliação das coisas, que dá a impressão de que nenhuma
avaliação seja possível”(NIETZSCHE, 2002, p.49). “Niilismo: falta a meta; falta a resposta
ao “por que?”; o que significa niilismo? que os valores supremos se desvalorizam.”(Ibidem,
p. 49).
Visto como um longo processo, o niilismo alcança seu auge na morte de Deus. Que
marca o momento de constatação da perda de sentido e validade por parte dos valores
superiores da cultura no Ocidente. Representa assim, o fracasso de uma interpretação da
existência que por muito tempo auxiliou o homem a suportar a dor.
Deus morreu! Deus continua morto! E nós o matamos!! Como nos consolaremos,
nós, os assassinos dos assassinos? O que o mundo possui de mais sagrado e possante
perdeu seu sangue sob a nossa faca. O que nos limpará deste sangue?... Este evento
enorme está a caminho, aproxima-se e não chegou ao ouvido dos homens... É
preciso tempo para as ações, mesmo quando foram efetuadas, serem vistas e
entendidas. (NIETZSCHE, 1981, p.125)
A morte de deus é a constatação do niilismo da modernidade, é o diagnóstico da ausência
cada vez maior de Deus no pensamento e nas praticas do Ocidente moderno. O homem
moderno é o responsável pela perda da confiança em Deus, pela supressão da crença no
22
“mundo verdadeiro”, originário da metafísica e do cristianismo. Ao substituir a teologia pela
ciência, o sonho teológico pelo sonho antropológico, o ponto de vista de Deus pelo ponto de
vista do homem, provocou uma ruptura com os valores absolutos, com as essências, com o
fundamento divino. É aqui que se percebe que toda verdade que se acreditou até então não
passa uma de ilusão. Isso é o niilismo, o esvaziar o mar, a esponja que apaga o horizonte, o
romper a corrente que liga esta terra ao sol. Na consciência do europeu do final do século
XIX, se vive a morte de Deus. E o que ainda não haviam percebido era que a morte de
Deus implicava na desvalorização dos valores morais: o fim do Deus cristão será o fim da
moral por ele sancionada e de todos os substitutos secularizados do cristianismo. O niilismo
enquanto desvalorização dos valores faz surgir o niilismo enquanto desvalorização da
existência. A existência é apenas dor, e dor sem sentido. É este fenômeno que Nietzsche
consegue ler no pessimismo filosófico do século XIX. O homem do niilismo será agora uma
consciência infeliz: ele sabe que o mundo, tal como deveria ser, não existe, e sente que o
mundo que existe não deveria ser.
Se por um lado o niilismo é a falência dos valores que sustentaram nossa civilização, a
morte de Deus abre um oceano de possibilidades para a existência que não podia ser
vislumbrado antes:
O mais importante dos recentes acontecimentos o fato de “que Deus está morto”,
de que a no Deus cristão está enfraquecida, começa a projetar na Europa suas
primeiras sombras (...) para que possa saber o que vai afundar, agora que es
minada essa fé, tudo que se erigia, se apoiava, se vivificava: por exemplo, toda nossa
moral européia. (...) Com efeito, nós, filósofos e “espíritos livres” frente à nova de
que “o Deus antigo está morto” sentimo-nos iluminados por uma nova aurora, nosso
coração transborda de reconhecimento, de espanto, de apreensão, de expectativa...
Enfim o horizonte nos parece livre, admitindo mesmo que não esteja claro ... O
mar abre-se novamente diante de nós e talvez nunca tenha havido um mar tão
“pleno. (Ibidem, p.343)
23
O anuncio da morte de Deus representa muito mais que o devaneio de um louco em
combate com a religião. É expressão da constatação do grande erro trilhado pela cultura
ocidental e que, como o escorpião picado pelo próprio ferrão, se auto-aniquila. Esse erro que
sempre quis ser “a verdade” não consegue mais se sustentar e leva junto com ele todas as
“verdades” como se nenhum outro sentido fosse possível. Mas, mesmo diante do “em vão”
que quer a todo custo ancorar em nosso horizonte, podemos contemplar também um enorme
oceano que se abre novamente diante de nós. Em outras palavras, se a morte de Deus é a
falência do sentido e dos valores que até hoje acreditamos, podemos supor que nenhum
sentido seja possível, ou podemos criar outro sentido e novos valores. Esta superação do
niilismo não será equivalente ao encontro de uma nova "meta da existência", um novo
"sentido" para o sofrimento. Não será uma reedição do cristianismo. A verdadeira superação
do niilismo será antes de tudo o desenraizamento daquilo que tornava o cristianismo
desejável: a sua apreensão da existência como sendo uma fonte de sofrimento.
No segundo semestre de 1888, o filósofo planejou atingir o ponto fulcral de sua obra
capital denominadaTransvaloração de todos os valores”, esta obra seria uma tetrologia
formado pelos seguintes livros: Primeiro livro: “O Anticristo. Ensaio de uma crítica do
cristianismo, segundo livro: “O Espírito Livre. Crítica da filosofia como movimento niilista”,
terceiro livro: “O Imoralista. Crítica da mais Fatal espécie de ignorância, a moral”, quarto
livro: “Dionísio: Filosofia do Eterno Retorno”. Como se sabe, Nietzsche só chega a escrever o
primeiro livro, onde ataca o cristianismo, mas de forma mais consiste busca confrontar o
múnus da linguagem usada pelo cristianismo pois entende a linguagem como elemento capaz
de moldar a consciência pois assim como a linguagem, a consciência se desenvolve conforme
a necessidade de comunicação que se estabelece entre um ser humano e outro. Desse modo,
todo o ideal de conhecimento e verdade que moveu a civilização é reconsiderado sob uma
24
perspectiva que o antes de mais nada como uma espécie de instrumento a cumprir certas
funções(por exemplo, de dominação).
Por isso o autor de Zaratustra entende que a morte de Deus é apenas um capítulo de
uma história bem mais longa: a morte do “mundo-verdade”, ou seja, o fim do platonismo. “O
pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro dogmático: a invenção
platônica do puro espírito e do Bem em si”(NIETZSCHE, 2003). Esse “Bem” ideal
concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no “verdadeiro mundo”,
inacessível ao conhecimento dos sentidos, os quais revelariam o aparente e irreal. A teoria
socrático-platônica início a uma verdadeira mutação no entendimento da existência. Com
Sócrates inaugura-se a época da razão e do homem teórico, quando se estabelece a distinção
entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e
sensível. A filosofia se coloca como tarefa “julgar a vida”, opondo a ela valores
pretensamente superiores como o “Divino”, o “Verdadeiro”, o “Belo”, o “Bem” medindo-a
por eles, impondo-lhe limites, condenando-a.
Esses mais sábios possuíam entre si algum acordo fisiológico para se colocar frente
à vida da mesma maneira negativa - para precisar se colocar frente a ela desta forma.
Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser em última
instância verdadeiros: eles possuem valor como sintoma, eles podem vir a ser
considerado enquanto sintomas. Em si, tais juízos são imbecilidades. É preciso
estender então completamente os dedos e tentar alcançar a apreensão dessa finesse
admirável, que consiste no fato de o valor da vida não poder ser avaliado. Não por
um vivente, pois ele é parte, mesmo objeto de litígio, não um juiz; não por um
morto, por uma outra razão. (NIETZSCHE, 1984, p. 1)
O marco inicial deste processo, o germe de onde nasce esse niilismo será a teoria
socrático-platônica e sua tarefa de transformar a razão em juíza da vida, como se algo que
vive pudesse julgar a vida. Por transformar a razão em dominadora dos afetos e única fonte
para corrigir os erros da existência, e assim, garantidora do convívio social, Sócrates e Platão
são considerados tipos decadentes, como sintomas de declínio, cansados da vida. “O próprio
Sócrates disse ao morrer: ‘viver significa estar muito doente eu devo um galo a Asclépio
25
curador’ o próprio Sócrates estava enfastiado da vida. O que isso demonstra?”(Ibidem, p.1)
O que Nietzsche pretende mostrar com sua crítica a teoria socrático-platônica é que ela
trás o germe do niilismo ao inventar um mundo real e condenar este mundo das aparências
como mundo de ilusões e que a verdade pode ser encontrada em outro lugar, no mundo das
idéias. Se esse mundo das coisas em si não existe, toda a filosofia desenvolvida em nome dele
é um erro e termina por chegar ao niilismo do homem moderno. Esse caminho começa com o
julgamento do mundo que existe, que não deveria ser assim, e vai até a constatação de que o
mundo como deveria ser, não existe. Com a morte de Deus, sucumbe toda interpretação moral
do mundo e da vida, o niilismo se radicaliza após esse evento.
Para Nietzsche, o processo de desvalorização dos valores é a marca mais profunda
da evolução histórica do pensamento europeu, que é assim, a história de uma
decadência. O ato gerador dessa decadência tem sua base na doutrina dos dois
mundos de Sócrates e Platão, vale dizer, na proposta de um mundo ideal,
transcendente, em si, que como mundo verdadeiro, está subordinado ao mundo
sensível, considerado mero mundo aparente. (VOLPI, 1998, p. 56)
Se Nietzsche entende a morte de Deus como o momento de uma crise da cultura, cabe
então investigar todo o processo de desenvolvimento dessa cultura niilista para compreender o
sentido a que esses valores apontavam e o que lhes dava sustentação. O niilismo do homem
moderno é fruto de um erro da filosofia... O erro da crença na verdade! A morte de Deus
marca o fim da metafísica. O fim da concepção de realidades imutáveis que possam fornecer
uma chave para a compreensão do mundo em geral. Tal concepção se assenta “na
pressuposição da igualdade das coisas, da identidade de uma mesma coisa em diferentes
pontos do tempo(NIETZSCHE), reconhece “cada objeto em si, em sua própria essência, como
um objeto idêntico a si mesmo, portanto existente por si mesmo e, no fundo, sempre igual e
imutável, em suma, como uma substancia” (NIETZSCHE, 2004, p.51). A metafísica se tornou
a ciência dos erros fundamentais do homem, como se esses fossem verdades fundamentais. A
26
moral atuou como antídoto ao niilismo, apoiando-se no ideal de verdade. “Não passa de um
preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a aparência”(NIETZSCHE). A morte
de Deus marca o fim do dualismo entre mundo sensível e supra-sensível, e o mundo que
sobrou parece falso e sem valor. Ao eliminar o “mundo-verdade” a morte de Deus põe fim
também ao “mundo das aparências” e ao mais longo erro da humanidade. Se o mundo
verdadeiro não existe, tudo o que se acreditou era uma mentira, a vontade do homem moderno
é uma vontade que quer o nada. A morte de Deus cria um vazio que pode ser acentuado pelo
último homem, para quem não mais valor, ou preenchido pelo super-homem
4
, produto da
criação de novos valores.
1.4 A DESVALORIZAÇÃO DOS VALORES
Ao se perguntar pelo sentido do ideal ascético, Nietzsche constatará que esse foi o único
sentido para o animal homem até hoje, e que qualquer sentido é melhor que nenhum. O
homem é um animal que sofre com a ausência de sentido. E para fugir dessa falta de sentido
inventou os valores superiores.
Porém, no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa
o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui [horror ao vácuo]: ele
precisa de um objetivo – e preferirá querer o nada a nada querer. – Compreendem?...
Fui compreendido?... Absolutamente não, caro senhor! então comecemos do
início. (NIETZSCHE, 2004, p. 1)
A grande pergunta de Nietzsche é qual o sentido da vida, do mundo, do homem? E sua
resposta: não tem sentido. "Se a existência tivesse algum [objetivo], então ele deveria ter
sido alcançado"(NIETZSCHE, 2002). O homem é um animal cansado da vida e precisa
encontrar um alivio... Transfere suas esperanças para um outro mundo, que não esse daqui,
onde poderá gozar a felicidade que parece impossível aqui. Prefere o nada à falta de sentido
4
. Considero aqui “super-homem” para traduzir “Übermensh” pois além de o termo já ter o uso consagrado na
língua portuguesa, segundo Roberto Machado é o que melhor parece indicar que o sentido de “super-homem” é
dado pelo processo.
27
algum. O que adoece o homem é a falta de um motivo para o sofrer e não o sofrer mesmo. O
que essencialmente está em jogo na interpretação ascética do mundo e da vida é sua
perspectiva de valor diante da “vida” e de tudo aquilo que faz parte da vida dos homens, a
natureza, o mundo, o devir. Aqui, a vida vale como uma ponte para uma outra existência... “A
longa história da moralização surge de uma vontade que se volta contra a vida e contra si
mesma, tendo como conseqüência a doença, a perda de sentido, o niilismo”.(ARALDI, 2004,
p.77).
Por isso a grande tarefa de nosso autor é desmontar toda a filosofia ocidental e sua
busca pela verdade, mostrar que toda verdade é uma ilusão, que os valores morais do
Ocidente são juízos de homens esgotados da vida, cansados da existência, numa busca doentia
por salvação. O homem moderno é um animal domesticado e doente que não tem forças para
suportar a vida. Esses últimos homens, esgotados, querem a felicidade, o repouso, o que
não é difícil, não são capazes de criar. Faltam-lhes a força e o vigor para encarar a vida de
frente em toda sua crueldade e sofrimento. O homem é um animal doente. O nome dessa
doença? Cristianismo. A religião da compaixão domesticou o homem com o argumento de
civilizá-lo, e hoje ele espera pela morte e sua redenção... No nada!
Para mim tratava-se do valor da moral... do valor do não-egoísmo, dos instintos de
compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schoppenhauer havia dourado,
divinizado, idealizado, por tão longo tempo que afinal eles lhe ficaram como
“valores em si”, com base nos quais ele disse não à vida e a si mesmo. Mas
precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim uma desconfiança cada
vez mais radical, um ceticismo cada vez mais profundo! Precisamente nisso
enxerguei o grande perigo da humanidade, sua mais sublime sedução e tentação a
que? Ao nada? precisamente nisso enxerguei o começo do fim, o ponto morto, o
cansaço que olha para trás, a vontade que se volta contra a vida, a última doença
anunciando-se terna e melancólica: eu compreendi a moral da compaixão cada vez
mais se alastrando, capturando e tornando doentes até mesmo os filósofos, como o
mais inquietante sintoma dessa nossa inquietante cultura européia; como o seu
caminho sinuoso em direção a um novo budismo? A um budismo europeu? A um
niilismo?... (NIETZSCHE, 2004, p.5)
Perguntar-se pelo valor da moral é querer saber para onde apontam os valores morais,
que tipo de homem eles descrevem, qual a qualidade do querer desse sujeito que valora. “São
28
indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a
plenitude, a força, a vontade de vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?”(NIETZSCHE).
A religião da compaixão se transforma na modernidade em moral da compaixão, ganha
estatuto de “valor em si” até mesmo os filósofos, Nietzsche se decepciona com
Schopenhauer, posto que justamente sobre o não-valor da compaixão os filósofos estavam até
agora de acordo. “Platão, Spinoza, La Rochefoucauld e Kant, quatro espíritos tão diversos
quanto possível um do outro, mas unânimes em um ponto: na pouca estima pela
compaixão”(NIETZSCHE). – esses valores apontam para o grande cansaço, indica um querer
o nada, uma negação da vida. De modo que a moral seria o perigo entre os perigos. O perigo
de uma vida guiada pela vontade de nada!
Toda essa crítica se funda, numa hipótese global de interpretação da existência: o
conceito de vontade de poder. E numa teoria do conhecimento que dele decorre, o
perspectivismo. Pensada desse modo, a natureza é uma infinita multiplicidade de forças em
relação, como um incomensurável campo de forças, cuja essência consiste em sua efetivação
integral, a cada instante. Partindo dessa interpretação global de existência a vontade de
poder, entendida como a luta infindável entre os impulsos, como condição de todo o acontecer
Nietzsche quer avaliar em que medida as interpretações morais, como sintomas de um
instinto dominante, expressam uma decadência fisiológica.
Com o perspectivismo, articula a desconstrução sistemática de toda pretensão à
objetividade, toda pretensão dogmática de apreender a estrutura ontológica do real. A verdade
é como a pele, mostra algo na superfície e ao mesmo tempo encobre uma profundidade que
dissimula e subtrai o olhar. Ou seja, toda perspectiva é injusta por que como um campo de
visão, nunca consegue apreender o todo, mas somente aquilo que está em mira. Portanto, toda
pretensão de dar conta da realidade como um todo é ilusão. Assim, tomará toda avaliação
como uma interpretação – ocasionada por uma pressão organizadora de uma perspectiva
29
decorrente do indelineável feixe de impulsos em batalha no corpo dessa eterna peleja se
expressam e se fazem conhecer nossas próprias apreciações valorativas como um sintoma de
plenitude ou de decréscimo da vontade de poder. Pois a vida é aquilo que sempre deve superar
a si mesmo, onde há vida há vontade – vontade de poder!
O que valem os nossos juízos de valor e as nossas tabelas de valores como tais? O
que decorre de sua dominação? Para quem? Em relação a quê? Resposta: para a
vida. Mas o que é a vida? Aqui se torna necessária, portanto, uma nova versão,
melhor definida, do conceito “vida”: minha fórmula para isso reza: vida é vontade
de poder. O que significa o próprio ajuizar valores? Aponta ele para um outro
mundo metafísico, por trás ou por cima? Assim como Kant ainda acreditava (o qual
se localiza antes do grande movimento histórico). Em suma: onde surgiu isso? Ou
não surgiu? Resposta: a avaliação moral é uma exegese, um modo de interpretar. A
própria exegese é um sintoma de determinados estados fisiológicos, assim como de
determinado nível espiritual de juízos dominantes. Quem interpreta? Nossos
afetos. (NIETZSCHE, 2002, p. 190)
Se todo valor nasce de uma perspectiva que avalia, Nietzsche vai então distinguir em
toda avaliação moral, duas perspectivas diversas e até mesmo opostas: a moral dos senhores e
a moral dos escravos. Essas duas grandes óticas valorativas observadas remontam a tempos
imemoriáveis e formam o pano de fundo para se investigar criticamente a proveniência dos
valores morais. Não significam aqui concebê-las como signo de diferença entre classes sociais
predeterminadas, mas como diferentes maneiras de avaliar a existência: “enquanto toda moral
nobre nasce de um triunfante dizer Sim a si mesma, já de inicio a moral escrava diz Não a um
“fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador”(NIETZSCHE). Entende que
a tarefa do filosofo do futuro é estabelecer uma hierarquia dos valores; a questão que deve ser
colocada nas mais diversas perspectivas: o que valem esta ou aquela tábua de valores, esta ou
aquela moral? O que querem esses valores? Obstruir ou promover o crescimento do homem?
A moral é uma interpretação da vida e indica nessa mesma interpretação uma qualidade do
querer: uma afirmação ou uma negação da vida.
A perspectiva de avaliação senhoril atribui o valor bom apenas a si mesmo, às suas
vitórias e conquistas e que encontra sua felicidade no sentimento “de que uma resistência foi
superada”(NIETZSCHE). Como elemento derivado, posterior e subsidiário da noção de bom
30
aparece então o conceito de ruim, como aquilo que deve ser desprezado. Na perspectiva dos
escravos, acontece o contrário, o que o homem despreza é que possui estatuto fundador. Seu
primeiro movimento, sua noção primordial é mau, conferida primeiramente ao senhor, e
posteriormente a todo não-eu que poderia maltratá-lo, e em decorrência desta concepção de
mau, “elabora como imagem equivalente, um bom ele mesmo!” Retomaremos essas
formas de avaliação mais adiante para compreender a virada dos valores de escravos na
avaliação moral, aqui nos interessa discutir o valor da moral e o valor da verdade.
Afirmar a vida é se insurgir contra a possibilidade de um julgamento da vida a partir
de um critério de verdade. A criação de valores superiores, como “bem” e “verdade”, expressa
um tipo especifico de vontade de poder: uma vontade negativa, que pode ser reduzida a juízo
de homens esgotados. A crença no valor absoluto e no parentesco entre a verdade e a
divindade é o que faz Platão negar todo esse mundo em que vivemos em favor de um outro
mundo, imaginário, mas que será tido como “verdadeiro” por comportar as idéias perfeitas e
imutáveis, que servirão de raiz para toda a filosofia posterior. Acreditar que a verdade tenha
mais valor que a aparência, é um preconceito moral. “O caráter errôneo do mundo onde
acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que o nosso olho pode
apreender.”(NIETZSCHE, 2004, p.34)
Os valores constituem estimativas por meio das quais um grupo avalia um bem, uma
ação, designando-o como bom ou mal segundo a perspectiva de sua condição de vida,
portanto, o valor dos valores não pode ser o mesmo para todos os grupos, que as condições
de vida não são as mesmas para todos os homens. É preciso levar em conta que, ao dizer “isto
é bom” ou “isto é mal”, cada grupo estaria denunciando sua postura perante o próprio existir.
A força da vida consiste em expressar nessa avaliação a vontade de poder, e a fraqueza em
voltar-lhe as costas. Daí Nietzsche ter sido tomado de “assalto” pela mais terrível suspeita: de
31
que tudo que até esse momento se chamava filosofia, religião e moral não passaria de um
envenenamento da vida. (FINK)
Tomava-se o valor desses “valores” como dado, como efetivo, como além de
qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao
”bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção,
utilidade, influencia fecunda para o homem. E se o contrario fosse verdade? E se no
“bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno,
um narcótico... de modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se
alcançasse o supremo brilho e potencia do tipo homem?(NIETZSCHE, 2004, p.6)
A importância deste questionamento se mostra ao perceber que os valores morais são
responsáveis pelo niilismo que se alastra na modernidade. O homem é lançado em um vazio
existencial, sem referenciais e diante do nada(niilismo), as críticas contundentes de Nietzsche
fizeram ruir o fundamento da moral da cultura ocidental e não foi Deus quem de fato morreu,
mas a instituição que fala em nome de Deus, a igreja. Nietzsche não pretende acabar com os
valores, sua intenção é propor uma transvaloração de todos os valores, sua intenção era
desconstruir para pôr algo em seu lugar, conforme atestou o teólogo protestante e filósofo
Paul Tillich:
O Deus tradicional ainda está vivo e o próprio Nietzsche criou um outro Deus, o ser
divino e demônico que ele chamava de vida. (...) Por certo, jamais foi ateu no
sentido absurdo e popular do termo. Seu Deus, porém, é diferente do Deus da
tradição religiosa, especialmente da tradição cristã. Difere também da tradição
religiosa asiática (...) Contudo, eu diria que sua negação pressupõe certa consciência
da eternidade, constantemente presente em seu pensamento como, aliás, em
qualquer outro ser humano.(TILLICH, 1986, p. 195)
Portanto pode-se afirmar que Nietzsche não intentou apenas inverter os valores
cristãos mediante valores “anticristãos”, que o seu mais caro interesse consiste, em última
análise, em favorecer o surgimento de uma escala de valores apta a reconduzir o valor
humano ao seio da própria efetividade. Para compreender o que Nietzsche combate no
32
cristianismo, é preciso em última análise, ascender à compreensão da crítica aos valores por
ele elaborada.
O cristianismo eclesial é criticado justamente por não compreender e desfigurar a
personagem a partir da qual ele se denomina, a saber: Jesus, conforme o próprio Nietzsche
declara: “A igreja é exatamente aquilo contra o que Jesus pregou e contra aquilo que ele
ensinou os seus discípulos a lutar.”(NIETZSCHE, 1887). O plano desbravador de revelar as
condições de surgimento da moralidade cristã, pretende realizar algo ainda mais ousado:
despojar Jesus de Nazaré das características alheias que lhe foram enxertadas pela tradição,
com o intuito de tornar flagrante o contraste entre Jesus de Nazaré e tudo aquilo que
posteriormente se chamou cristianismo.
No próximo capítulo daremos início a demonstrar o processo desconstrutor de
Nietzsche, processo através do qual o filósofo desmascara as instituições e suas pretensões
propondo uma nova conceituação das coisas, a partir de novos valores. A este processo
chamaremos: transvaloração.
33
CAPITULO 2
A TRANSVALORAÇÃO
(Umwerthung aller Werthe
5
)
Para nós que vivemos a partir de valores sedimentados pelas instituições sociais e
acabamos por transformá-los em algo de suma importância para o bom desenvolvimento das
nossas vidas e da sociedade em geral, o que faríamos se percebêssemos que muitos deles
não garantem nossa segurança existencial? Certamente iríamos rapidamente redimensioná-los
ou, talvez, construir outros. Bem, parece que é esse o dilema aqui. Afinal de contas, o
parâmetro sagrado que movia os comportamentos ou os julgamentos sobre eles já não vive
mais. Toda uma comparação feita a partir da idéia de Deus e seus mandamentos entrou em
crise. Essa instabilidade não foi provocada pelo filósofo. Ele apenas a identificou e chegou à
conclusão de que tais concepções valorativas precisavam ser transvaloradas para que o
homem pudesse retomar sua vontade de viver. Se Deus morreu, é certo que morreram junto
d'Ele todas as suas tábuas morais. De que moral tratamos? Daquela regida por uma no
além, a partir da qual todo um comportamento era mensurado. Mas, se assim é, por que ela
ainda se faz presente em nosso meio para além de sua validade, isto é, com sua "validade
vencida"? Ora, o ser humano viveu muito tempo amarrado e, agora, tem dificuldade para
viver livre. Ante não possuir nada de seguro, prefere carregar um "morto"
6
.Quem sempre
5
Este seria o subtítulo caso existisse a obra '^Vontade de Potência", de punho do próprio Nietzsche.
'Transmutação de todos os valores". Daí a importância deste capítulo para nossa dissertação, pois, no quarto
capítulo, trataremos da vontade de potência como o novo "sentido" do filósofo. "(...) Nos interessa perguntar se
Nietzsche teria realmente a intenção de escrever uma grande obra sistemática: 'A vontade de poder,
transvalotação de todos os valores'. O certo é que o mesmo Nietzsche tem falado dessa intenção (...)". Cf. G.
COLLI e M. MONTINARI. El estado de íos textos de Nietzsche. In: Ramon Peres MANTILLA. Eco - Revista
de Ia cultura de Occidente, p, 748, Veremos, portanto, que existe um livro com tal título. Uma compilação,
bastante criticada, realizada por sua irmã EHsabeth, mas que pode ser utilizada, não enquanto parâmetro
organizado, pois os próprios especialistas Colli e Montinari falam da péssima montagem da irmã do filósofo e de
seus préstimos ao nazismo. Contudo, de certa forma, muitos aforismos estão lá. Na verdade, não estamos
realizando aqui uma apologia da obra e sim afirmando que os aforismos podem ser utilizados após resgatarmos
Nietzsche do equívoco nazista.
6
Falamos aqui daqueles que, apesar da "morte de Deus", vivem como se nada tivesse acontecido. Não
entenderam a vida. por isso ainda buscam segurança. Nem que esta se ampare num "cadáver".
34
dependeu de valores criados por outrem, tem dentro de si uma dependência enorme. Além do
que, ao ter que criar seus próprios caminhos, ocorre-lhe que precisa ser forte. Isso exige uma
reorganização de sua visão de mundo. Na realidade, todos nós estamos diante de um
confronto conosco mesmos. Como se alguém nos perguntasse: - E agora? Todos sabem que
carregam um "peso morto" quando percebem que suas medidas não servem para medir
mais nada. No entanto, aqueles que insistem em uma nostalgia. Já diz o adágio que "o pior
cego é aquele,que não quer ver". Se s crescemos, não podemos continuar a querermos a
roupa que não nos serve mais. Antes, éramos guiados como rebanho. Agora, não somos
mais ovelhas. Estas obedecem a voz do pastor, mas este não tem mais o que falar. Adiar o
processo de transvaloração é querer perpetuar a morte em vida,
É hora de perguntar: o que se esconde por trás de um valor?
"Por trás de cada feito e seu significado descobrir-se-á a perspectiva e
a vontade que o valorizam', toda descrição, ainda que seja
fenomenológica, é uma interpretação, organização do que é dado por
uma vontade que exerce seu poder"
7
Nietzsche propõe-se a investigar a moral não simplesmente para entender seu
mecanismo. Seu plano é maior porque, praticamente, objetiva suplantar todos os valores que a
sustentam. Entenda-se por moral coisas positivamente avaliáveis, isto é, boas e ligadas ao
espírito. Mas o que é bom e o que é o espírito.
8
A questão é que, durante muito tempo, tais
coisas estiveram vinculadas a uma versão dualista de mundo onde a supremacia passou a ser
das qualidades "puramente espirituais", em detrimento da vida como vontade de potência. A
7
André GLUCKSMANN, Premiditaciones nietzscheanas, In: Ratnon Peres MANTILLA (org.). Eco - Revista
dela cultura de Occidente, p. 654. Tradução nossa. Obs.: mesmo que partamos de outro viés, ou seja, de que é o
poder que se manifesta na vontade (cf. afirmação deleuziana) e que os dois não se separam, concordamos que
todo valor é interpretação da vontade de poder e, se assim é, a transvaloração não atua na "periferia". Ela age
diretamente na criação. São vontades de poder (cf. linguagem martoniana) que se digladiam. É uma luta de
"deuses". Nesse aspecto, todo valor é "divino". Aqui já deixamos claro o que nos espera no quarto capítulo desta
dissertação.
8
Cf, Nicola ABBAGNANO. Dicionário de filosofia, p. 652.
35
negação desempenhava o papel da afirmação. Um véu obnubilava toda interpretação de cunho
não platônico. A existência teria sido censurada por padrões comportamentais que, muitas
vezes, expressavam a hipocrisia de certos criadores de valores. O impulso vital começou a ser
olhado com desprezo e vergonha. O sentimento de culpa tornou-se, então, a garantia da
perpetuação de determinadas avaliações e a condição sacrifical de seus seguidores, um
modelo. O julgamento das ações humanas transformou-se numa classificação variável entre
bem e mal. A partir de uma dada vivência, podia-se obter o sofrimento ou a alegria. A moral
baseava-se num dualismo existencial e este foi o maior golpe da rebelião dos escravos para
imporem seu ponto de vista. O escravo pensava-se sujeito sobre um objeto, quando, na
realidade, essa era mais uma forma de dissimulação. O nobre, o senhor, nunca se pensaria
sujeito. Afinal, sabe que nunca é aquilo que vê. Noutras palavras, não estabelece dualidades.
A "moral do senhor" tem o bem e o mal como "Gleichniss”
9
, pois para além deles esconde-se
um "pathos" que é a própria vontade de potência. Nesse sentido, não existe dualismo. O
problema é que todo dualista, escravo de sua própria linguagem por pensar-se sujeito, não se
conta de que não é ele quem interpreta. "Não se tem direito a perguntar quem é e, por
conseguinte, quem interpreta. É a interpretação mesma, forma da vontade de poder. Aqui se
marca o que separa o pensamento de Nietzsche de toda 'filosofia do sujeito'"
10
. Na "moral do
nobre" não existe senão uma razão que conhece o seu lugar somente enquanto inserida no
contexto da vontade de potência. Nada mais que isso. O que tínhamos antes? Um "Deus
Pessoa" e, derivada daí, uma moral que levava em consideração o sujeito e este era colocado
entre o bem e o mal. Nietzsche veio para acabar com isso. Aqui não precisamos de meias
palavras. Transvalorar é mais que inverter. É suplantar. De tal modo que o filósofo põe diante
do homem o "além-do-homem".
9
Cf. André GLUCKSMANN. Premeditaciones nietzscheanas. In: Ramon Peres MANTILLA (org.). Eco -
Revista de Ia cultura de Ocidente. p. 667. A palavra alemã refere-se à "metáfora".
10
André GLUCKSMANN. Premeditaciones nietzscheanas. In: Ramon Peres MANTILLA (org.)- Eco -
Revistadela cultura de Occidente. p. 666.
36
A desorientação significava o afastamento das normas estabelecidas e indicava uma
vida desregrada. O indivíduo foi relegado a segundo plano e teria que buscar respostas para
suas necessidades apenas dentro de uma tabela de valores. A coletividade fez-se primazia,
apesar de sempre estar ocultando a manifestação de um poder bastante pessoal. Nessas
circunstâncias, o filósofo combate a massificação. O pastor difere de suas ovelhas. As
desgarradas são aquelas que mais necessitam de orientação para vagarem sob o comando de
uma voz poderosa. O escravo não viveria sem seu senhor e nem o rebanho sem o seu pastor
11
.
O que chamamos de senso moral não passa de uma domesticação frente às regras do
grupo. Talvez mesmo porque a sobrevivência deste dependa fortemente daquele "sentido"
12
.
O que era construção humana, ganhou "status de natural" e tornou-se difícil de ser
questionado. As pessoas começaram a agir como se as ditas avaliações (juízos) tivessem uma
conotação "Sagrada". Desobedecer e pecar estreitaram-se como sinônimos. Por isso, se
quiséssemos de fato ter consciência moral, nossa ética estaria mais próxima de uma filosofia
que comparasse e questionasse as leis, os mandamentos. Nesse caso, surgem às dúvidas com
relação àquilo que é posto como inquestionável. Em tal sentido, transvalorar sempre remete o
indivíduo
13
ao estado de perturbador da "ordem". Ele vai mexer com as instituições, em
11
Na realidade, estamos tratando do "escravo-senhor" que, como pastor, comanda outros escravos. Como é esse
"escravo senhor"? É aquele que impõe sua interpretação aos demais escravos. Ele é um criador, por isso também
é senhor, mas que perde sua nobreza quando submete-se à sua criação. Nesse caso, a vontade de potência que
interpreta criou uma ilusão e tal fantasma passou a ser a sombra das relações entre as forças. Noutros dizeres, "a
criação voltou-se contra o criador" e tomou-se uma cópia da vontade de poder, porém absoluta e pessoal, É o
Deus apregoado entre os escravos.
12
O "animal doméstico" não percebe que "o sentido é sempre muitos sentidos". Cf. Maurice BLANCHOT.
Nietzsche y Ia escritura fragmentaria. In: Ramon Peres MANTILLA. Eco - Revista de Ia cultura de Ocidente,
p.687. Obs.: no terceiro capítulo de nosso trabalho, veremos que o sentido encontrado por Nietzsche não é, de
modo algum. único. Não se diz no singular: vontade de potência. O que está por trás da "unidade" é a
pluralidade.
13
"É necessário compreender a 'pessoa' como um engano" (Fragmentos não publicados: W I 3, 68). Cf. G.
COLLI y M. MONTINARI. El estado de los textos de Nietzsche. In: Ramon Peres MANTILLA (org.)- Eco -
Revista de Ia cultura de Ocidente. p. 745. Lembrar sempre que, no recorte nietzscheano, indivíduo é sempre um
centro de forças em relação. Um centro organizado, hierarquizado, porém nunca equilibrado. A tensão é própria
desse indivíduo. O ponto máximo a que este pode chegar é perceber que ele é um "pathos". Aí, então,
representará maior perigo para tudo o que é instituído. Por que isso? Ora, não se trata mais de ser ou não-ser,
mas de vir-a-ser. É o auge da transvaloração. Transvalorar é ir para além dos "fatos", pois tudo é interpretação, é
devir. Voltando ao raciocínio: o indivíduo que se capta como interpretação, está para lã de qualquer
reducionismo. Por isso, seu "egoísmo" é salutar. Não deseja que o mundo gire em tomo de si. Seu "egoísmo" é
sua força, seu combate. Ora "perde", ora "ganha", entretanto sabe que só há a luta.
37
primeiro lugar, e poderá promover rebeliões. Isso atrairá para si todo um aparato repressivo
que, a todo custo, pretende manter suas "verdades morais". Em segundo lugar, mexerá
consigo mesmo e o turbilhão dar-se-á no fundo de sua alma
14
. É sempre perigoso quando
colocamos o que acreditamos na possibilidade do descrédito, pois uma série de sentimentos
provocados por essa crença poderá atingir o clímax do avesso; isto é: mostrar cruamente o
que estava escondido em nós. As intenções podem mudar de direção e o desejo de ser feliz
vai aflorar de outra forma. A felicidade poderá estar mais próxima da existência e todo um
relacionamento com ela terá que ser redimensionado. Novamente o poder estará em jogo,
porém, mais claramente. Sentiremos que ele brota das profundezas do nosso espírito. E será
poder contra poder
15
. Só que, de agora em diante, os responsáveis por toda pugna não estarão
mais fora ou dentro de nós. Porque, simplesmente, não haverá mais responsáveis. A única
coisa que se pretenderá é viver, apenas isso. É preciso ver que a vida é uma relação de forças.
É que, até agora, enganamo-nos no que diz respeito à palavra poder e transferimos isso para a
vontade de poder.
"Vontade de poder não quer dizer vontade que quer o poder. Vontade
de poder não implica qualquer antropomorfismo, nem na sua origem,
nem na sua significação, nem na sua essência. A vontade de poder
deve ser interpretada de um modo completamente diferente: o poder é
aquilo que quer na vontade. O poder é na vontade o elemento genético
e diferencial. É por isso que a vontade de poder é essencialmente
criadora. É também por isso que o poder não se mede nunca com a
representação: não pode ser representado, nem sequer interpretado ou
avaliado, pois é 'o que' interpreta, 'o que' avalia, o que é a força
ontológica do ser.”
16
14
"Na realidade, eu tenho aprendido (...) que é necessário que o espírito livre seja eremita" (GA XVI 95, 600).
Cf. G. COLLJ y M. MONTINARI. El estado de los textos de Nietzsche. In: Ramon Peres MANTILLA (org.).
Eco - Revista de Ia cultura de Ocidente. p. 743. O filósofo entende que é na solidão que se encontra a "arena"
onde se dá a batalha para que um espírito consiga sua liberdade mais íntima e, por isso, mais autêntica. Nesse
espaço, dá-se a transvaloraçâo que faz do indivíduo, respeitando aqui todos os limites do vocábulo, ir além de si
mesmo. Tal como a relação "além-do-homem" e homem. Só o transvalorado é capaz da "transvaloraçâo de todos
os valores".
15
Até poderíamos afirmar: vontades de potência em jogo. forças em relações diversas
16
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 128-129,
38
Não depende de nós que tenhamos essa força vital, pois ela é da natureza. Contudo,
existe por essa força criadora a nossa pequena razão e é ela que nos possibilita ter consciência
desse sentir em nós mesmos esse poder que almeja, na vontade, o viver. Para nós, é isso que
nos assusta. E mais assustados ficamos quando pensamos que Deus morreu porque o
correspondia a essa realidade da nossa existência. O Deus que não vive mais, jamais
existira
17
. Era um esforço da nossa pequena razão em querer controlar aquilo mesmo que a
movia: à vontade de poder ou do querer na vontade. Somos os privilegiados da vida. Talvez
sim ou talvez não. Depende do que fazemos com o nosso raciocínio e dos valores que criamos
a partir dele. Se for visto como a "razão em si", aí o problema já começou. E piora ainda mais
quando queremos impor isso aos outros
18
. Por outro lado, é assim que o "sujeito" se constrói:
crendo-se como a referência de tudo. Pois mesmo quando fala com outro sujeito, não é este o
principal. A razão é, acima de tudo, interesseira
19
.
O juízo de valor, em termos morais, acaba correspondendo a normas que as pessoas
impõem-se umas às outras. Julgar é dizer a outrem aquilo que ele deve ser. O bem e o mal são
especificados segundo determinados interesses. Esse conjunto acaba formando dados que vão
influir muito na vida cultural, pois "ensinará" muitos a amarem algumas ações e detestarem
outras. O que terá merecimento de respeito ou não, portanto, ligar-se-á a uma perspectiva de
vida. O problema nesse processo se efetiva entre o que é naturalmente necessário ao ser
17
Então, tínhamos uma identidade que não era identidade. A "morte de Deus" abre o espírito para todas as
possibilidades, pois a nossa "alma" é vir-a-ser. " (,..)Eu desatualizo meu eu atual ao querer-me em todos os
demais eus (...)". Para novamente chegar ao que sou. Assim funciona a "transvaloração do eu" no eterno retorno
do mesmo. O mesmo enquanto devir. Cf. Pierre KLOSSOWSKI. Sobre el eterno retorno. In: Ramon Percs
MANTILLA (org.). Eco - Revista de Ia cultura de Occidente, p. 622.
18
É que, no fundo, é a vontade de potência querendo ser mais nessa forma determinada de crença. Não há nada
que não seja vontade de potência, inclusive a ideia ou as idéias de Deus, Tudo é relação de forças. Mas, então,
para que transvaloração? Para que perspectivismo, genealogia e vontade de potência se coadunem em nós. Para
chegarmos a sermos o que somos. E o que somos? Já dissemos: vontade de potência no plural.
19
Não porque quer assim, mas por ser uma pequena razão que quer ser mais... O que é isso?
Vontade de potência subjacente. Dominação, conquista, são próprios dessa vontade. Divinas
forças. Por que divinas? Por serem não somente conquistadoras, mas criadoras. E, para
criarem, são capazes de destruir. Trans valorar, novamente, é a palavra.
39
humano e o que assim se torna devido ao tipo de contato que ele estabelece com a natureza
(os sentidos que dão a ela); esse é o dado cultural. Não existem, a partir desse pressuposto,
valores em si. Dessa forma, indicar a moral como natural é prescindir da ética propriamente
dita enquanto uma filosofia da moral, já que esta é uma construção histórico-cultural
20
.
"Todos os filósofos têm em seu filosofar esta falta comum: partem do
homem atual e crêem, ao fazer suas análises, alcançar seu objetivo.
Involuntariamente, 'o homem' se lhes aparece como uma eternas
veritas', como um elemento fixo em todos os movimentos, como una
medida segura das coisas. Porém tudo o que o filósofo enuncia sobre
o homem não é, no fundo, mais que um testemunho sobre o homem de
um espaço de tempo muito restrito. A falta de sentido histórico é o
pecado original de todos os filósofos; muitos, inclusive, tomam, sem
sabê-lo, a forma mais recente do homem, tal como se produz sob a
influência das religiões determinadas, embutido de acontecimentos
políticos determinados, como a forma fixa de que se deve partir. Não
querem saber que o homem, que a faculdade de conhecer também é o
resultado de uma evolução; enquanto alguns deles fazem até derivar o
mundo em sua totalidade desta faculdade de conhecer. Assim: toda a
essência do desenvolvimento humano tem sucedido em tempos
remotos, muito antes desses quatro mil anos que nós mesmos
conhecemos pouco ou mais ou menos; nesses anos, o homem não
pode haver mudado muito. Porém, então, o filósofo 'instintos' no
homem atual e admite que esses instintos pertencem a dados imutáveis
da humanidade, e portanto podem dar a chave para a inteligência do
mundo em geral; toda a teleologia está edificada sobre o feito de que
se fala do homem dos últimos quatro mil anos como de um homem
eterno, com o qual todas as coisas do mundo têm desde seu começo
uma relação natural. Porém, o todo tem evoluído; não feitos
eternos, do mesmo modo que no há verdades eternas. Por isso, a
filosofia histórica é de agora em diante uma necessidade, e com ela a
virtude da modéstia”
21
Nietzsche é claro a respeito daquilo que "eternizou" o ser humano (ser filho de Deus),
desde o judaísmo até os dias atuais do cristianismo. Por isso, seu conflito com essas religiões,
20
E acaso existe uma outra ética? Nietzsche nao cita dessa maneira, mas nós podemos citar sem contradizê-lo,
ou seja, não colocando nele o que ele não disse. "Amor fati": na realidade é uma "ética da vida" ou a vida como
ética e esta corno vontade de potência. "Amor fati" é não querer ser outra coisa senão a própria vida com tudo o
que ela possui dentro daquilo que denominamos de bom e de ruim. Estar além de bem e mal é saber que a vida
não está sujeita a nenhum tipo de valor. Ela é que é parâmetro. Viver é a "chave" no "amor ao destino". É a
"ética" possível.
21
MA/HH. I parte, § 2, p. 42.
40
especialmente a última, é tão intenso. O homem foi congelado num ideal cultural que, ao
invés de aproximá-lo da natureza, transformou a pequena razão da vida (ele próprio) na razão
absoluta. O seu lado racional também se alienou de si para depositar a origem num Deus
Supremo. A vida é muito mais do que a existência humana, mas foi esta que pretendeu
apoderar-se daquela. A partir disso, todos os valores passaram, cada vez mais, a serem
invertidos
22
. A vida mesma devia, para os cristãos, tornar-se outra e, nesse aspecto, eles se
fizeram os exemplos de um típico platonismo. O além-mundo é valorizado e a Terra é vista
como imperfeita nessa versão. Logo, o homem deve buscar a perfeição em Deus para garantir
para si a "vida eterna". Além disso, não existe nenhum tipo vital que não seja criado por Deus
na tradição judaico-cristã. Até mais que isso. Todos que ouviram falar do "criacionismo",
sabem do que se trata.
O comportamento moral correto no cristianismo é aquele que se pauta no amor a Deus
e ao próximo. Mas, se Ele significa apenas a idéia que se faz do bem, o amor ao outro acaba
em simples ideal nunca alcançado ou somente atingido com a destruição de si em nome de
Deus
23
. Ora, a vida não é nada romântica e, até por não concebê-la assim, muitas pessoas
fazem dela o que não é. está uma explicação do porquê sentem-se numa situação muito
difícil ao ter que amar o próximo. Não é próprio delas. Essa questão cultural acaba a
degenerando em hipocrisia. O outro raramente é amado no teor proposto pelo Evangelho
24
.
22
Lembramos, porém, que o filósofo não se contenta com uma inversão da inversão. Ele até poderia cair num
outro tipo de cristianismo, caso o fizesse. Nietzsche quer mais: a transvaloração. Aproveita o niilismo deixado
pela ''morte de Deus" para Droclamar a transmutação de todos os valores ÍUmwerthung aller Werthe).
23
Acaso alguém chegará à perfeição? Isto seria equivalente a Deus, Àquele Deus Pessoal? Então, realmente,
qualquer que seja a pessoa, nunca chegará a isso. Caso tal coisa acontecesse, ela seria sua própria negação
enquanto vivente. E quem, dentro do cristianismo institucional, permitiria que a criatura se tornasse Criador?
algo de errado com a "Verdade". O "amor pela verdade" (Die Liebe zur Wahrheit) precisa de múltiplos olhares
(perspectivismo). Mas, qual o critério da verdade? O devir, a "potencialização do sentido de
potência"(Steigerung des Machtgefuhs). E o que é isso? Vontade de potência. Cf, Fermccio MAS INI. Por una
filosofia de los extremos. In: Ramon Perez MANTILLA (org.). Eco - Revista de Ia cultura de Ocidente
. p. 590.
24
Aqui não se faz uma apologia do "amor ao próximo" com base no Evangelho, como pode parecer. A questão é
outra. É afirmá-lo como impossível. " 'Nosso próximo não é nosso vizinho, mas o vizinho dele' - assim pensa
cada povo". In: JGB/BM. § 162, p. 81.
41
Agora, no que diz respeito ao primeiro mandamento, mais que um grande afeto a Deus (amá-
lo), muitos terminam por terem, isso sim, medo dele.
O motivo é simples: está em jogo o julgamento final e a entrada ou a exclusão do
Paraíso. Estamos, na verdade, diante de um juiz e de uma sentença
25
. Com esse pensamento, o
cristianismo vem dominando por séculos a fio a maneira de agir de muita gente. Sem isenção,
logicamente, de todo constrangimento que ocasiona. Até mesmo a própria "ética" do
igualitarismo cristão se opõe aos indivíduos e lhes é violenta, desprezando as relações de
forças que existem entre os diferentes
26
.
A realidade é que, pretender controlar a vontade de potência, sempre acaba em algum
tipo de sublimação. A "docilidade" humana é uma farsa. Mesmo os santos não foram
violentos consigo? A ética, como filosofia da moral, indica que a pequena razão ainda tem
uma capacidade para pôr em prática, a qual é não se submeter ao poder do outro, a não ser que
se tome para si a "moral do escravo" como "verdadeira libertação". O que é chamado de
virtude ética necessita de problematização. Virtude de quem e para quem? Está em cena a
passividade e a atividade. Milhares de pessoas optam pela primeira. Por que fazem isso? Por
medo, ressentimento para com a vida, acomodação e cansaço mesmo de viver, de lutar. Não
querem sentir o lado dionisíaco em si mesmas, pois ele é um vulcão ativo. Mais fácil que
transvalorar, é colocar-se sob as rédeas dos valores impostos por alguns que oferecem
"segurança". E até essas pessoas submissas crêem que são ativas por controlarem
"definitivamente" suas paixões, seus medos. Quem sabe acreditam-se livres, autônomas.
25
Por mais que se dê destaque ao perdão no Novo Testamento, ainda prevalece a idéia apocalíptica de justiça.
Assim, todos que temem, querem fazer parte do rebanho. Além do que, a noção de um Deus de justiça do Antigo
Testamento parece seguir firme. Mas, mesmo os "eleitos" têm medo pelas suas obras e pensamentos. Por que
isso acontece? Ainda permanece em cena um Deus violento, mesmo para fazer justiça, por mais que se afirme o
contrário.
26
O que está, de fato, por trás da questão dos "eleitos"? Não é uma diferenciação? Tudo indica que sim. A
"comunidade" dos "Atos dos Apóstolos" que visa uma expansão, o que é? O que é o próprio proselitismo?
Continuando a nota anterior, trata-se também de violência. A "justiça", agora, está nas mãos dos que crêem. E
dá-se toda uma hierarquia que culmina em Deus"
42
A ética não pode ser indiferente à natureza, por isso se ela se pretende pura (em si),
está se afastando daquilo com o qual realmente devia lidar. Não é novidade alguma que na
natureza fortes e fracos. Duro mesmo é a filosofia da moral encarar isso para comparar os
ditos valores morais. Toda moral é uma instituição advinda de uma construção social. Pode,
às vezes, ser convenção. Às vezes, manipulação e controle. Estamos mais no segundo caso.
Então, acaso não pode haver uma ética dos fortes? Os semelhantes, e não os iguais, se
respeitam porque possuem força mútua. Nesse sentido uma "moral dos senhores".
Entretanto, os fracos transmutaram-se em bons e passaram a denominar de maus aqueles com
os quais não podiam disputar
27
. O ressentimento tomou conta deles nessa inversão e, então,
ética virou sinônimo do reflexo de sua construção cultural e social. Tornou-se inadmissível
falar de uma "moral dos fortes" entre eles. Caracterizá-la de imoral foi à única saída.
Na transvaloração, o objetivo é reverter o quadro social no qual o que é coletivo
possui valor. Na verdade, a própria noção de valor entra em questão. Assim, é que dentro de
uma comunidade sempre transmutações que a põe em situação de risco. Por isso, ela
sempre resiste ao novo e o persegue. Evitar o vir-a-ser é uma característica da "moral de
rebanho". E quando a própria noção de valor é posta em questão? É isso que o filósofo faz.
Modificando-se o conceito de valor, transmuta-se todos os valores. O novo valor chama-se
vida terrena. Toda moral que pretende dominar a vontade de potência e contra a existência e
cai defronte àquilo que construiu, assistindo sua própria ruína. Ela perde seu pedestal e passa
a ser imoral em relação à vontade de poder. Aí, tudo se inverte para ir mais longe que a
própria inversão e a palavra para isso é superação. É importante frisar, nesse contexto, que a
vida é amoral, mas a pequena razão é que faz algo ser moral ou imoral. Mesmo que o amoral
27
Aqui falamos a respeito da genealogia da palavra nobre, ou seja, como o que era bom transformou-se em mau.
Como o "escravo" se apodera dessa inversão: "Com o pretexto hipócrita de espalhar a compaixão por trás das
mais infames calúnias". Cf.: Friedrich NIETZSCHE. Fragmentos póstumos inéditos [28(59)]. In: Ramon Peres
MANTILLA (org.). Eco - Revista de Ia cultura de Occidente
. p. 475. Obs.: assim a "moral dos nobres" tornava-
se "imoral". Era necessário que a "moral dos escravos" se justificasse: uma moral da utilidade contra a pressão da
própria existência (Cf. JGB/BM. O que é nobre? # 260, p. 174). Para Nietzsche, bondade e estilóides passaram a
ser sinônimos (Cf. Ibid., 175).
43
seja a referência (a vida no caso), todos os valores que surgirem a partir dela serão morais ou
imorais dependendo da ótica.
A tradição moral enquanto verdade é traspassada.
"Um passo a mais dentro da psicologia da convicção, da Faz
muito tempo, eu propus que se considerasse se as convicções não são
acaso inimigos mais perigosos da verdade que as mentiras. Desta vez
quisera fazer a pergunta decisiva: existe em absoluto uma antítese
entre mentira e convicção? Todo mundo o crê; porém o que é aquilo
no que não c todo mundo! Cada uma das convicções tem sua
história, suas formas prévias, suas tentativas e falhas: transforma-se
em convicção depois de não sê-la durante longo tempo, depois de
apenas sê-la durante um tempo, todavia, mais longo. Como é que entre
essas formas embrionárias da convicção não poderia estar também a
mentira? Às vezes, a única coisa que se requer é uma simples troca de
pessoas: no filho transforma-se em convicção o que no pai era,
todavia, mentira. Eu chamo mentira a não querer ver algo que se vê, a
não querer ver algo tal como se o vê: carece de importância que a
mentira tenha lugar ante testemunhas ou sem testemunhas. A mentira
mais habitual é aquela pela qual alguém mente a si mesmo; o mentir a
outros é relativamente o caso excepcional. Bem, esse não-querer-ver o
que se vê, esse não-querer-vê-lo tal como se o vê, é quase a condição
primeira para todos os que são, em qualquer sentido, um partido: o
homem de partido se converte, por necessidade, em um mentiroso"
28
.
Nietzsche, portanto, considera que a repetição da mentira pela história acaba tornando-
se verdade. Uma consolidação da opinião deste ou daquele grupo. Foi enfático ao dizer que o
homem defensor da parte estará sempre agindo em detrimento do todo plural. Mesmo uma
comunidade pode agir contra outras comunidades
29
.
28
AC/AC, § 55, pp. 94-95.
29
Afinal, poderíamos perguntar se, realmente, existe alguma comunidade no sentido original do termo? Tanto
em se tratando de pequenas ou grandes ou, ainda, da "grande comunidade". A idéia de comunidade, pode-se ver,
é estranha a Nietzsche. Ele a contesta veementemente. Tem o significado de rebanho. Então, que espécie de todo
o filósofo defende? Aquele que traz em si a marca da pluralidade. Como o cosmo que é uno e múltiplo ao
mesmo tempo. Por que nosso crítico se lança contra a "parte", se não faz apologia da "comunidade"? É que a
parte quer se fazer o todo, quando este é plural. A parte quer fazer-se una, quando ela mesma tem a pluralidade
dentro de si. O "homem de partido" não entende isso.
44
O platonismo também fez isto. Dividiu o indivíduo em duas partes e privilegiou uma
delas
30
. Desprezou o corpo para enaltecer a idéia como absoluta. Ora, forças apolíneas e
dionisíacas existem no interior humano para que possa haver um certo "equilíbrio”
31
. Como
se Apólo pudesse dançar livremente diante de Dionísio e este conseguisse notar que, afinal,
não existe uma grande, mas sim uma pequena razão fazendo parte da vida. Essa é a maior
tensão presente em todas as pessoas e, por tal condição, alguém viver também em
comunidade e suprimindo o seu lado de indivíduo não é bom. Haverá algum desvio para que
a complexidade humana seja deturpada. O homem da moral tradicional é o exemplo disso.
Desse modo, o destino de quem não age conforme a tradição, é a solidão. Nesse contexto, é o
que prefere o filósofo. É dessa forma que a vida em comum torna-se mera ilusão.
A luta de Nietzsche pauta-se sempre contra o dogmatismo. Pois o dogma vive de
crença e não permite o questionamento. Nós podemos imaginar o que significaria abalar uma
crença dentro de uma comunidade. Mas, o que é uma crença? Ela é derivação de um conceito
que acabou se afastando do valor da existência enquanto a própria vida. A vida não é uma
interpretação, é vontade de potência. a crença, justifica-se apenas pela e esta não passa
de uma postura que se dá a partir de convicções ou "verdades". Assim também são os
dogmas. No caso da Igreja, eles se identificam ao longo de sua História, com as decisões das
autoridades eclesiásticas. Daí, principalmente, o conflito entre o filósofo e a instituição
mantenedora desses "valores". Houve uma época (a da Reforma) em que Roma poderia ter
sido derrotada. Contudo, Lutero perdeu a chance de destronar o cristianismo. Ao fim, o
espírito vingativo de um sacerdote falou-lhe mais alto. Resolveu, então, vingar-se da Terra
30
O platonismo é dualista, mas privilegia o ideal e o transforma em modelo. O que se
pretende? O todo. O "Bem". Pura metafísica. Uma aspiração pelo "Absoluto" por meio do
dual.
31
Nietzsche mesmo nunca fala em equilíbrio nesse aspecto. Entre as relações de forças pode
haver hierarquia, equilíbrio jamais, pois a tensão é contínua. Nesse aspecto, o que são os seres
"equilibrados"? Uma tensão disfarçada. Ao tratar de "harmonia universal", trata do cosmo, da
vida, enfim de toda coisa, enquanto conflito que tudo possibilita (Cf. GT7NT, capítulo í, p.
31). Transformação, devir. Vale a máxima heraclitiana de "Tudo muda". Nós dizemos que se
equilibrar é tentar viver no meio desse turbilhão, que é a própria existência.
45
por meio da irrupção do protestantismo. Ao invés de captar a essência do Renascimento, o
qual, mesmo sob o teto da Igreja, falava-lhe contra, o monge vingativo não fez outra coisa
senão reconduzir o cristianismo, de novo fortalecido, frente ao que lhe era contrário: a marca
da autenticidade do indivíduo e não mais do coletivo (esse foi o propósito renascentista).
Claro que, com algumas modificações, as quais retiravam o sacerdote católico como
intermediário máximo entre o indivíduo e Deus. Entretanto, o problema da num além
mundo continuava. E, nesse ponto, Lutero pecava contra a vida. De uma certa forma,
também, possibilitou à Igreja Romana um restabelecimento fruído com a Contra-Reforma.
Ao se tocar no assunto da transvaloração, não se deve deixar o Renascimento de fora.
Apesar do grande "em vão" proferido por Nietzsche
32
, foi um acontecimento em que os
valores passaram pelo crivo da própria vida. A noção mesmo de ética tomou a seguinte
conotação: quem se conhece enquanto força faz a ética. Pois a instabilidade foi à característica
da época da Renascença e a filosofia dos valores lhe era intrínseca. A própria idéia de justiça
relativizou-se em meio a tantas mudanças. Ao invés de ser universal, puro conceito,
individualizou-se. Da condição estática de um mundo centrado na religião cunhada pelos
teólogos medievais, passava-se para as relações dinâmicas ocasionadas pelo vir-a-ser
constante que corresponde ao próprio ser humano. A "Cidade de Deus" não podia ser o
parâmetro, pois as pessoas voltavam-se para si mesmas e sua pluralidade na própria Terra
("Cidade dos Homens"). A vontade de afirmação da vida começa a ecoar com maior firmeza
no homem renascentista. Até a obediência à Igreja por parte dos artistas famosos foi até o
ponto em que o mecenato lhes correspondia e, mesmo assim, suas obras expressavam a
releitura de valores. O importante no Renascimento é que a decisão passa para a esfera
humana e individual. Outra transformação muito especial foi a de transferir a felicidade de um
estado metafísico para um caráter experimental. Até o ascetismo cristão é colocado em
32
Cf. AC/AC. § 61, pp. 107-108.
46
questão, tendo em vista a perspectiva renascentista da moderação, a qual reinterpretou a
versão clássica que via o homem moderado do ângulo daquele que tudo consumia e o fazia
equilibradamente. O ser humano da Renascença tomou para si como meta não as normas da
polis (tudo em nome da cidade-estado) ou da ascese, mas sim o autêntico sentimento de
autonomia e liberdade em que a própria pessoa escolhe seu equilíbrio
33
. Quem sabe,
Nietzsche poderia dizer assim: o humano situa-se numa relação de forças entre o apolíneo e o
dionisíaco. Tal relação é tensa. Tudo reside agora não no conceito de felicidade, mas na sua
experiência concreta (o prazer). No olhar nietzscheano, porém, é preciso não confundir o
entendimento do sofrimento como parte do sentimento vital enquanto masoquismo. Ser feliz
diante da vida dá-se em tal nível em que até toda dor pela qual passa uma pessoa não é,
jamais, compreendida como empecilho para que ela ame o seu destino: o de viver plenamente,
em meio às intempéries existenciais, nunca se furtando às condições inerentes ao seu existir
de fato. Em torno disso tudo está presente uma forte interpretação de liberdade, diferente
daquelas outras (livre-arbítrio e subseqüentes), e esta é a que toma para si o centro das
discussões e não mais a felicidade. No fundo, ser livre é que vai possibilitar ao homem a
busca pela sua completude. Por isso, é sem receios que citamos:
“A liberdade estava a tomar-se uma categoria tão central para a ética
moderna como a felicidade o fora para a ética antiga. Se fosse ainda
possível falar de um 'bem supremo', os filósofos éticos modernos
certamente diriam: 'a liberdade é o bem supremo”
34
33
O que, por sua vez, não tem nada a ver com a "doutrina do livre-arbítrio" oriunda do cristianismo dos
sacerdotes para que os homens pudessem, por isso, serem julgados "livres" ou "pecadores". Conceito este que
estendeu-se inclusive à Revolução Francesa por rodo do lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", pelo qual
cabe ao coletivo ditar para o indivíduo qual deve ser a sua escolha. Ou ele se submete às convenções sociais ou a
sociedade o exila. Na realidade, tal idéia de liberdade não faz outra coisa senão ludibriar o indivíduo. Dessa
forma, quando crítico, só lhe resta uma saída: afastar-se das instituições para não ser devorado pelo coletivo.
Assim é que se cresce na solidão, "A igualdade defendida por religiões ou defendida por correntes políticas é
uma. astúcia. Contudo, Nietzsche não faz uma crítica essencialmente política, mas sim valorativa..
34
Agces HELLER. O homem do Renascimento. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 233. Apesar do cunho
marxista da discípula de Georg Lukács, ela faz uma abordagem sobre a liberdade a partir da Renascença. Não é
uma "enquadramento". Sabemos o que Nietzsche pensa da liberdade e da felicidade (mostramos nas entrelinhas),
assim como conhecemos a que tipos ele se refere. De tal forma é que dissemos no texto que não receamos nossa
citação.
47
Nietzsche viu no Renascimento uma grande oportunidade para que o cristianismo
fosse retirado do "trono de Roma" e devidamente fulminado. Sabia também que esse período
histórico podia questionar a idéia do "Bem" em Platão e seu princípio dualista, favorecendo o
"viver virtuosamente" (conforme a razão; aqui também contextualiza-se Aristóteles) como
felicidade. Era cônscio dos "prós e contras" entre um e outro. Mas o filósofo via nesse recorte
da História uma possibilidade abortada de desbancar o "centro cristão". Enfim, a Renascença,
também, foi mais que um resgate dos clássicos, pois ofereceu novas perspectivas. A sua
grande contribuição para a discussão aqui é que ela forneceu todo um aparato para que a
tradição fosse questionada. Sua ética implantou-se como a do indivíduo que não mais ficaria
subserviente ao coletivo. Outro ponto crucial desse contexto histórico foi o de ter colocado o
mundo teocêntrico como problema, instaurando uma confusão que levou o homem desse
período a repensar seus valores. A ética, como tal, atingia seu real estado de uma filosofia
desses mesmos quadros vaíorativos. Por outro viés, uma nova força cristã (A Reforma) e a
readequação da Igreja (Contra-Reforma) conseguiram seus espaços para encamparem as
mudanças. Contudo, outras épocas viriam e, junto com elas, o niilismo. Esse que se tornou o
inimigo mortal da supremacia de "Deus". Não tardaria para que a "morte do Supremo" fosse
anunciada. Dessa forma, o filósofo até poderia rever o seu proferido "em vão" a respeito do
Renascimento
35
. Afinal, o processo de secularização continuou, ainda que as "instituições
sagradas" lutassem contra isso. A teimosia na concepção dualista da existência não levou a
outro desfecho senão ao caos, o que abriu a porta para o nada entrar no âmago do ser humano.
Muitas dessas considerações estarão devidamente abordadas no capítulo seguinte dessa
dissertação.
35
Opinião estritamente nossa.
48
Quando o filósofo refere-se à transvolação, significa que os valores enquanto fachadas
são problematizados a partir da existência em seu devir, estando a mesma na base de todos
eles. Nietzsche sabia do esforço humano em querer cristalizar algumas avaliações para
transformá-las em dogmas e também a respeito da falsa objetividade a respeito destes, pois
haviam sido constituídos sob a forma de um simulacro. Então, na realidade, simulavam
experiências distantes da vida real para alcançarem um tipo de vida entendida como "pura" e
sem conflitos. Por isso, o filósofo desmascarou estes "valores objetivos" para mostrar que não
passavam de uma falsa consciência de si.
49
"Ao opor-se à vida alienada, ao regressar à criação esquecida que está
na base de todos os sistemas de valores, Nietzsche contempla a
própria vida. E esta afigura-se-lhe como vontade de domínio que no
eterno retorno percorre o círculo do tempo. Por detrás de todo o
mundo dos valores está a 'vida' que é o grande jogador”.
36
Principalmente, é à objetividade cristã dos valores como engodo que ele alude. Ele não
concebe a vida de maneira dual, mas de forma completa. Não quer se esconder daquilo que
nela se faz assustador. Aqui, o ser humano é aquele que não foge de sua realidade e que, com
ela, está disposto a vencer ou a fracassar. Sem medo. Tudo gira em torno da força e fraqueza
da própria existência; ou seja, isto lembra a constante construção e destruição presente no
processo circular do eterno retorno. A única saída para o homem que não suporta aquilo que
realmente é, está na sua auto-superação
37
. É o "Übermensch" que será capaz de não
enfrentar essa condição inerente da vida mesma, como também poderá amá-la. Nada de
romântico, localiza-se, apenas, o segredo de bem viver sem negar o processo vital.Nesse
aspecto, tanto a filosofia em sua história, assim como a religião e toda a moral se equivocaram
com relação à sua própria sustentação: a vida
38
. Especialmente a filosofia que, preocupada
com a ontologia, não fez outra coisa senão constituir valores também; daí, muitas decisões
morais se originaram e a própria filosofia confundiu-se com a moral. A teologia soube
aproveitar-se disso para garantir uma razão a seu serviço
39
. A religião "dominou" sobre a
36
Eugen FINK. A filosofia de Nietzsche, p. 132.
37
Vamos entender sempre a auto-superação como a morte do homem para o surgimento do "além-do-homem".
l'm tipo de transcendência na imanência, em que, uma vez realizada, elimina-se a "ponte" que estava entre o
animal e o "Übermensch". Aliás, é assim que Nietzsche define o homem (Cf. Introdução, IV. In: Za/ZA. I parte,
P- 11).
38
Definindo a transvaloração a partir da vida temos o seguinte: 'Tem-se uma nova maneira de valorar, nao uma
troca de valores, não uma mudança abstraía ou uma inversão dialética; senão uma troca e uma inversão no
elemento do qual se deriva o valor dos valores: uma transmutação de valores". Cf. Gilles DELEUZE. Nietzsche
e a dialética. In: Ramon Peres MANTILLA (org.). Eco - Revista de Ia cultura de Qccidertte, p. 618. Somente
desse modo é que podemos tratar da transvaloração como inversão, ou seja, quando a vida é posta como "valor
dos valores". Mas vida enquanto vontade de potência. Nesse sentido, Deleuze nos deixa abordar uma inversão do
platonismo. Não é uma simples mudança. O valor é deslocado do "Ideal" para a vida.
39
“Há em Nietzsche, uma crítica da profundidade ideal, da profundidade da consciência, que
ele denuncia como invenção dos filósofos; esta profundidade seria a busca pura e interior da
verdade", Cf. Michel FOUCAULT. Nietzsche, Freud, Marx. In: Ramon Peres MANTILLA
(org.). Eco - Revista de Ia cultura de Occidente. p. 639. Daí foi um passo para a teologia
apossar-se da filosofia.
50
existência, mas esta continuava como vulcão ativo coberto por uma película. O que acontece
quando ele explode? O niilismo tem o predomínio, mesmo porque as supostas avaliações não
haviam sido tomadas tendo como princípio fundante a vida real. O trágico retorna com toda a
força e aqueles que se esconderam não têm mais para onde correr. E o fim do humano e o
início do além-do-homem. O auge da transvaloração. E se aqui uma transcendência, ela
acontece na própria imanência.
Nietzsche chegou a um desfecho que indica dois tipos básicos de avaliação, perante os
quais todos podem fazer suas escolhas e arcar com as conseqüências. Um deles reforça a idéia
de fraqueza, pois busca enfraquecer a vontade de potência no humano ou, pelo menos,
sublimá-la. É a fuga do real para o "mundo ideal". Logo, os fracos são os que percorreram tal
caminho, O outro tipo é aquele que parte da vida sem considerá-la um empecilho para o
crescimento do espírito. Deste último surgem os fortes, na concepção de que tomam como
fator propulsor para todas as suas ações a vida como ela é. O filósofo e aqueles que vivem
plenamente a tragédia da vida a ponto de ultrapassá-la, são denominados nobres. O nobre é
aquele que foi trágico e aprendeu a estar acima dessa condição. Dessa forma, ele é um
afirmador da vida.
"O fato de haver sofrimento na vida significa para o cristianismo que a
vida não é justa, que é mesmo essencialmente injusta, que paga pelo
sofrimento uma injustiça essencial: é culpada na medida em que sofre.
Significa também que deve ser justificada, quer dizer, resgatada da sua
injustiça ou salva, salva pelo próprio sofrimento que ela acusava: deve
sofrer, na medida em que é culpada”
40
O cristianismo foi muito hábil em construir esse paradoxo que acaba sempre em
sofrimento. mudou uma coisa: ele acrescentou o sentido de culpa
41
. Aqui podemos notar
que viver neste mundo é equivalente a sofrer, pois é um lugar de expiação.
40
Gilles DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p. 25.
41
Aliás sobre o sofrimento, o filósofo completa: "Não se deixar levar por nenhum sofrimento
ou crer na
51
A idéia é a de que o homem sofre por causa de seus pecados. Uma visão que tentou
explicar a vida em sua tragicidade por meio de um modelo que, em sua concepção, é justo. Os
cristãos procuraram uma justificativa que não podia ser encontrada na própria existência, pois
esta não está vinculada a qualquer noção de justiça. Afinal, era duro para o ser humano ter que
ficar desamparado frente às "mazelas" da vida. Então, começou a ver em seus ideais que ela
era corruptível mas passível de salvação.
De que ela, a vida, deveria ser salva? De sua corruptibilidade originada num ato de
desobediência a Deus. Daí, ficara mais fácil para o homem aceitar o sofrimento como
caminho para sua libertação.
Porém, é interessante notar que o ser humano sempre buscou livrar-se do sofrimento.
Outro exemplo disso é o budismo
42
. Quando Nietzsche tomou contato com os escritos de
Schopenhaeur, admirou-se de não haver nele uma concepção de Deus pessoal a controlar o
universo. No lugar desse Ser Supremo havia uma Vontade que a tudo dominava. Por outro
lado, também percebeu a influência que ele recebera do Oriente no sentido de querer
esquivar-se do sofrimento. A idéia de nirvana é clara nesse ponto. O budismo é uma doutrina
pessimista com relação à vida
43
. Viver se reduz a sofrer.
"O budista busca uma felicidade total além deste mundo (...). Nossa
natureza humana, segundo a crença budista, está constituída de tal
maneira que diz estarmos satisfeitos com a facilidade .completa, a
segurança completa. Porém, não podemos encontrar nenhuma delas
neste mundo mutante (...), As quatro nobres verdades: (...) 1) (...) A
nobre verdade do mal: o nascimento é mal, a decadência é má, a
enfermidade é má, a morte é (...). 2) (...) A nobre verdade da
segunda navegação (expressão proverbial em que vinha indicada a navegação por falta de
vento; Nietzsche rechaça neste fragmento a teoria de Schopenhauer, segundo a qual os
sofrimentos da vida seriam, com respeito à ascese, precisamente a segunda navegação para se
chegar à negação da vontade). Rechaçar o sofrimento como castigo e prova", [28(31)]. Cf.
Friedrich NIETZSCHE. "Fragmentos póstumos inéditos". In: Ramon Peres MANTILLA
(org.). Eco - Revista de Ia cultura de Occidente, p. 471. Parênteses de COLLI e
MONTINARI.
42
Por sinal, o filósofo trata o cristianismo e o budismo como religiões niilistas.
43
Esta conclusão não é nossa, mas de Schopenhauer e de Nietzsche também.
52
origem do mal: é aquele ânsia que leva ao renascimento (...). 3) (...) A
nobre verdade do término do mal: é a completa extinção dessa ânsia
(...). 4) A nobre verdade dos passos que levam ao término do mal: é
este sagrado ' caminho óctuplo que consiste em boas crenças, boas
intenções, boas palavras, boa conduta, boa vida, bom esforço, bom
pensamento, boa concentração. A meditação sistemática sobre as
quatro nobres verdades, assim como sobre os fatos básicos da vida, é
uma tarefa central da vida budista"
44
.
Para sair do ciclo dos sucessivos renascimentos ("samsara"), somente por meio da
meditação capaz de alcançar um estado de libertação ("moksha"). para compreender, por
exemplo, porque mais tarde Nietzsche também vai se distanciar de Schopenhaeur
45
.
Voltando ao caso do cristianismo e da culpa, o ser humano havia encontrado uma
causa na sua angústia: o pecado. Uma forma de livrar-se dele seria restabelecer-se perante o
Absoluto via castigo. A exaltação do sofrimento passou a tomar o lugar da vida em seu todo.
A mortificação foi intensificada como forma de penitência. A existência fora colocada de
"cabeça para baixo": de referencial de todo e qualquer valor, tornou-se avaliada por outros
valores que não mais se baseavam nela mesma. O ponto de referência desviou-se para o além-
vida, o além-mundo, a justiça divina na pessoa do próprio Deus. Sem dúvida, essa foi uma
grande transvaloração
46
feita pelo homem. Por meio do cristianismo, ele negou a vida como
ela é e justificou-a pela dor. Noutras palavras, o ser humano vingou-se da vida. A partir disso,
entrou em decadência.
Nietzsche não precisaria ter proposto outra transvaloração, entretanto viu o equívoco
pernicioso da primeira. Quem sabe, nesse espaço, seja possível apontar para a via
44
Edward CONZE. El_budismp:_su esencia y su desarrojlo. pp.27; 56-57.
45
Nietzsche se afasta de todo pessimismo schopenhauriano no sentido de "viver é sofrer" (este é o título de um
dos capítulos da obra "O mundo como vontade e representação")- Mas ele também não se deixa levar pelo
oposto. O filósofo evita qualquer dualismo. E quando trata de bem e mal, do lado apolíneo e do lado dionisíaco,
refere-sc não a um teor dual, mas sim a um modo diferente de tratar de uma realidade única que não tem esses
tipos de definições. É à vontade de potência que nos referimos. Ela está além de bem e mal, está tanto em Apolo
quanto em Dionísio. E, se Nietzsche utiliza tais nomes e conceitos é, justamente, para desfazer os equívocos
dualistas. Na realidade, ele sempre mostrou como os "seres humanos" (isto não é nietzscheano) começaram a
separar as coisas. Entretanto, o bem e o mal ainda estavam situados nesta vida. Com Platão e com o cristianismo,
tudo se inverte.
46
O eixo do valor foi transferido da vida para o "além-vida".
53
nietzscheana, não como uma transvaliação, mas sim como um resgate de um ato valorativo
que tomava a vida como parâmetro antes da noção de pecado, sem negá-la no prazer e na dor.
Para o filósofo, o homem para se fazer "forte", fez-se fraco. "Porque quando me sinto fraco,
então é que sou forte”
47
.
Uma inversão
48
de valores, onde aqueles que não acreditavam nisso passaram, para os
cristãos, à categoria de "fracos". Ainda mais para eles, pois entre os próprios cristãos os fracos
eram aqueles que não sabiam dar o exemplo da renúncia. Mas então, como Paulo disse
aquilo? Para mostrar que o homem depende de Deus. Quando ele chega a essa conclusão,
solidifica-se em sua fortaleza. Ou seja: de qualquer maneira todos os caminhos têm que levar
a Deus. Nietzsche, nesse aspecto, justifica a vida egoísta (aquela que se ama, que não é
narcisista porque não adora apenas um reflexo de si na água. Narciso comete um engano:
troca a realidade pela imagem). Parece que o espírito narcíseo toma conta de nós quando
também adoramos os reflexos de nossos pensamentos como se fôssemos nós mesmos.
Como escapar da armadilha das imagens se somos criadores? Sendo sensíveis o
suficiente para percebermos se transferimos nossa capacidade criativa para as projeções.
Desconfiança é a palavra. Com os valores, costumamos atuar ao contrário: com confiança em
demasia neles. Ora, os valores que ensinam o homem a odiar a si mesmo, a não sentir prazer
em sua existência e a nada desejar, no mínimo, devem ser revistos. "A voluptuosidade, o
desejo de domínio, o egoísmo: estas três coisas foram denegridas até hoje; são estas três
coisas que quero pesar humanamente bem”
49
. É preciso tomar cuidado quando estamos diante
do espelho. Uma coisa é adorar o reflexo, outra a si e outra, ainda, a vida. O egoísta
nietzscheano é aquele que não quer negar a si como vontade de potência. Para isso, é
necessário afirmar a vida e, mesmo doente, não perder a vontade de domínio. Para Nietzsche,
a vida é vontade de potência e, se perdermos isso, estaremos cometendo suicídio. Se o reflexo
47
II Coríntios 12,10.
48
Já tratamos dessa questão de suando é aue podemos tratar de inversão em Nietzsche.
49
"Os três males", L In: Za/ZA, III parte, p. 143.
54
nos induz a tal coisa, ele está bem distante da existência. Se a própria pessoa não consegue
atingir o seu âmago, jamais poderá amar a si mesma. Enfim, se a manifestação concreta da
vida em todos os níveis não nos convencer a uma comparação, estaremos diante de uma
distância ainda maior entre a imagem, a individualidade e o estado vital como um todo.
Nietzsche revela-nos a arte da interpretação como essencialmente humana. Voltando
ao perspectivismo, podemos dizer que um problema nesse nível encontra-se na perspectiva
em que nos posicionamos. Pois para nós, ela não será nada relativa. Agora, se não nos
responsabilizamos por nossas criações, estamos nos "desumanizando”
50
. É bom lembrar que
a relativização é boa para quebrar preconceitos e para colocar valores à prova, mas não para
despertar conclusões do tipo da relatividade da vida. A vontade de potência que proporciona
o relativizar qualquer coisa não é, ela mesma, relativizável. Todos os conceitos podem ser
reavaliados, a existência não. Mesmo assim, nós fazemos isso e, assim, nascem todas as
nossas questões. A transvaloração nietzscheana argumenta a favor da vida e da interpretação,
mas indica a primazia da primeira. Por isso, todo ato interpretativo que deseja fazer o
contrário está negando sua própria origem. O pensamento é exclusivamente humano, porém a
vida não. Quando, portanto, aparecer escrito a nosso respeito como "pequena razão", é
simplesmente isso: a razão não é absoluta. É verdade que ela também é uma força entre
outras e que, sendo assim, procura dominar.
"Qualquer força é apropriação, dominação, exploração de uma
quantidade de realidade. Mesmo a percepção nos seus diversos
aspectos é a expansão de forças que se apropriam da natureza. Quer
dizer que a própria natureza possuiu uma história. A história de uma
coisa, em geral, é a sucessão das forças que dela se apoderam, e a
coexistência das forças que lutam para dela se apoderar. Um mesmo
objeto, um mesmo fenômeno muda de sentido consoante a força que
dele se apropria".
51
50
Pois nem mesmo conseguimos cuidar de nossa "pequena razão". É preciso tomarmos
cuidado com o termo
"desumanizacão". Tal soa estranho em Nietzsche.
51
Gilles DELEUZE. A filosofia de Nietzsche. v. 9.
55
A história é pluralidade de sentidos que se sucedem. Sempre chamando a atenção de
que é melhor falarmos em natureza do que em natureza humana, pois esta é fruto daquela.
Logo, a história da natureza está envolta numa relação de forças; isto é, a natureza possui
história porque tais forças se fazem presentes nela e a movimentam. O próprio homem faz
parte dessas forças. Tal pluralidade de forças em relação é o que podemos chamar de vontade
de potência.
Se há história é porque também existe cultura. Esta, por sua vez, é o modo de viver de
um grupo que se expressa em seus pensamentos e ações. A cultura é formadora de sentidos e,
sendo assim, ela diz respeito diretamente à relação do ser humano consigo mesmo, com os
outros e com o mundo. A formação cultural de um indivíduo ou de um povo é uma amarração
de valores, os quais, por sua vez, originam outros. Desse ponto de vista, a transvaloração é
uma desconstrução cultural para a emergência de uma nova cultura. Na realidade, a filosofia
do porvir de Nietzsche está mais para um renascimento do que outrora fora o homem. Esse
antes descarta a cultura cristã. Porém, o filósofo acrescenta novos dados que estarão presentes
como qualidades de seu "Übermensch". Aliás, a figura central da transvaloração situa-se
nesse "super-homem". É super porque está acima da decadência humana que dualizou a
existência do seu corpo e da sua mente como se fossem distintos. O homem cristão-platônico
sofre, a partir do foco nietzscheano, uma transcendência que termina no "além-do-homem".
Mas que fique claro: é um transcender imanente, como fora dito em outra parte desse
capítulo. Pois esse "além" já estava dentro do próprio homem concreto em sua vida terrena. O
filósofo age como aquele que desperta o ser humano de um pesadelo no qual encontrava-se
mutilado em corpo e alma.
Transvalorar-se implica em ultrapassar valores estabelecidos, em quebrar correntes.
Significa pôr em questão todas as medidas que tentam segurar todo potencial humano.
56
"A medida nos é estranha, confessemos a nós mesmos; o comichão
que sentimos é o do infinito, imensurado. Como um ginete sobre o
corcel em disparada, deixamos cair as rédeas ante o infinito, nós,
homens modernos, semibárbaros; e temos a nossa bem-aventurança ali
onde mais estamos em perigo”
52
.
A transvaloração coloca-nos diante de muitas possibilidades de criação, aguça nosso
perspectivismo. Contudo, não impede que possamos tomar uma posição, desde que ela não
seja posta como única dentro de uma infinítude. Todo problema que uma determinada cultura
pode gerar num indivíduo é fazê-lo pensar que ela é capaz de preservá-lo das forças que estão
em luta dentro dele e de todo o universo. Cedo ou tarde, uma montagem cultural assim se
desmorona. Cai porque cria no ser humano a ilusão de que ele pode viver dentro de uma
redoma. Utopia das utopias, isso ocupa o centro de nenhum lugar. Não existe.
E o homem que prefere acreditar na mentira de que está imune às condições mais
adversas da existência, ou que as atravessa temporariamente em busca de um porto seguro,
faz-se como aquele que tem olhos mas que não quer ver. A melhor atitude perante a vida não
é a de um "avestruz".
Se Nietzsche tivesse permanecido estático
53
em sua época e se conformado com toda
a vasta tradição cristã que recebera de seus próprios pais, não teria proporcionado a todos nós
uma filosofia tão profunda de todos os valores. É como se ele estivesse dizendo para nós não
nos contentarmos com aquilo que nos ensinaram a respeito do que é ou não o sentido de
nossas vidas. Nós mesmos devemos procurar e sentir que ninguém pode responder isso em
nosso lugar. Nenhuma vida humana pode ser desmerecida
54
. Nossa vida não pode ser
desacreditada por outrem se nós acreditarmos nela. Desmerecer uma interpretação é uma
52
JGB/BM,§224,p. 130.
53
Um leitor de Herãclito jamais permaneceria assim. Junto ao pré-socrático, Nietzsche se sente melhor que com
outro grego, como ele mesmo diz (Cf. El nacimiento de Ia tragédia, § 3. In: EH/EH, p. 70).
54
Isso é marca nossa, pois Nietzsche diria que a vida não pode ser desvalorizada, e não a vida "humana". Não
que sejamos reducionistas. é uma força de expressão. Afinal, somos humanos.
57
coisa e não valorizar a vida é outra. O pior que nos pode acontecer é decretarmos valores
perante os quais sintamo-nos acima de nós mesmos. Exemplo bem prático de tal coisa é
quando a pessoa segue enganando a si mesma ao querer ser perfeita nos moldes do
cristianismo-platônico. Seria preferível interpretar a "perfeição" como a vivência que se tem
aqui e agora, sem fugas num outro mundo que desqualifique este.
"Nietzsche tem acreditado assumir o drama total do homem e do
mundo moderno. Tem assumido realmente o drama do indivíduo
moderno, as contradições do indivíduo, tanto que estas contradições
são atualmente insolúveis. Tem posto fim, em certo sentido - com suas
críticas e com sua vida, à tranqüilidade da consciência burguesa dos
'filisteus cultivados'. Sua filosofia tem feito cessar, numa certa medida,
um bom número de bromas ideológicas: a organização kantiana e
racionalista do conforto interior, os sistemas universitários ecléticos e
tranqüilizadores. Da leitura de Nietzsche, sai-se confirmado na
convicção de que as formas podem ser as inimigas do conteúdo; e que
o racionalismo é o inimigo da razão vivente, o espiritualismo inimigo
do espírito, o cientificismo inimigo da ciência. Ainda que não haja,
sem dúvida, alcançado o conteúdo renovado e vivente, tem combatido
admiravelmente com freqüência a forma abstrata e morta”
55
.
O filósofo mexeu com toda uma organização social amparada por aqueles que queriam
e ainda querem ser os donos do mundo. O cristianismo-platônico foi-lhes útil ao fazer uma
grande maioria de pessoas disputar entre si o espaço do além. Por mais que o filósofo tenha
criticado o povo em geral, na realidade estava-lhe apontando a ignorância que o fazia escravo.
Não que a burguesia fosse nobre, porque ela também não soube ler acerca de seu grande erro
de reduzir tudo a uma "ética capitalista". O burguês também é escravo (do dinheiro). Bem, se
tivéssemos que classificar o filósofo diante de quem a sociedade dividida em classes,
diríamos que ele não pertence a nenhuma delas. E mais, não é por simples omissão. É mais
por querer ser livre de espírito (não entender aqui o desvinculo dualista de corpo e espírito).
A transvaloração pode vir pelas mãos de quem está descontente com sua época.
Nietzsche, inclusive, não via com bons olhos a leitura que faziam dos gregos. Descobre que a
55
Henri LEFEBVRE. Nietzsche, p. 133-134.
58
serenidade helênica é mais uma ilusão inventada pelos teóricos (os que têm prazer no
conhecer pelo conhecer), os quais projetaram sua euforia racionalista na antiguidade grega,
além de seu ideal vulgar de vida "normal”
56
. O filósofo, através da tragédia, leu as
profundezas do espírito grego e conseguiu reviver os estados apolíneo e dionisíaco como a
realidade humana, que não estava dividida como na modernidade. A paixão e a violência dos
homens conviviam com sua razão. Na tragédia, a moral ainda não havia se estabelecido para
condenar o lado dionisíaco do ser humano. Tudo isso, como já sabemos, começou com
Sócrates e subseqüentemente com Platão.
Em seu contexto, Nietzsche sentia-se um extemporâneo. Pois o cristianismo, e também
o cientificismo, partiam o indivíduo em e razão. Os dois brigavam entre si, mas tinham em
comum o fato de serem dogmáticos
57
. Mesmo o positivismo criticando a religião e a
metafísica no fim, criou ele mesmo, sua religião cientificista. E ainda que a ciência
(positivista) tenha se voltado para o corpo, viu nele apenas um objeto da mente. Ora, o ser
humano é um conflito ambulante onde corpo e razão possuem diversos centros de forças em
constante contato que, às vezes, provocam o equilíbrio e, outras, o desequilíbrio. Nietzsche
aprendeu que o homem, no seu todo, é vontade de potência. Assim, ele enxergou a
necessidade de um novo homem, ao qual ele chamou de "super-homem". O "Übermensch" é o
transvalorado. Com ele todo o dualismo não serve mais para designar a existência. O
"além-do-homem" veio para ser uma afirmação da vida em sua totalidade. E, é importante que
se diga, não exclua deste mundo porque é parte concreta dele, O "super-homem" é aquele que
sente prazer na diferença, sendo contrário à dialética
58
.
56
Henri LEFEBVRE. Nietzsche,
P
.
73
57
Tanto a ciência como a religião acabaram concedendo à metafísica um privilégio, sendo que a primeira deu
continuidade ao paradigma metafísico, o que é antinaturaí. Por isso, toda "revolução positivista" esteve longe de
ser uma transvaloração de todos os valores. Ainda estava em pauta a "vontade de verdade". Cf. José Ignacio
GALPARSORO. Lavolonté de puissance chez Nietzsche. In: Revue - Les études philosophiques, p. 461.
58
O antagonismo que aparece em Nietzsche e que gera uma suspeita de dialética, desaparece
quando o próprio
filósofo afirma que a contradição existe somente para haver a luta, pois esta última é
realidade da relação entre
59
"O 'sim' de Nietzsche opõe-se ao 'não' dialético; a afirmação à negação
dialética; a diferença, à contradição dialética; o gozo, o prazer, ao
trabalho dialético; a leveza, a dança, à gravidade dialética; a bela
irresponsabilidade, às responsabilidades dialéticas. (...) Mais ainda,
devemo-nos perguntar: o que é que quer o próprio dialético? O que é
que quer esta vontade que quer a dialética? Uma força esgotada que
não tem a força de afirmar a sua diferença, uma força que não é
ativa, mas reage às forças que a dominam: apenas uma tal força faz
passar o elemento negativo para o primeiro plano na sua relação com
o outro, nega tudo aquilo que ela não é e faz desta negação a sua
própria essência e o princípio da sua existência”.
59
Com o seu "Übermensch", o filósofo acredita na diferença e não na sua negação.
Somente não quer submeter-se a nenhum dos que lhe são diferentes porque descobriu seu
próprio caminho. Cada um tem que trilhar o seu. Nietzsche não está interessado em se
reconciliar com os diferentes ou, noutras palavras, em promover uma síntese dos contrários.
A transvaloração é algo que está acima disso, de uma contradição resolvida. Transvalorar é
firmar a própria posição sem achar que ela é exclusiva no mundo. Mesmo porque também o
filósofo sabia que teria os seus diferentes sempre presentes. O "super-homem" é sua postura
diante do eterno retorno do mesmo.
Então, qual o motivo para ele ter designado o homem como o que tem que ser
ultrapassado
60
? O ser humano vem representar aquele tipo que buscou estar acima da
as forças e que se denomina vontade de potência, "É importante que eu seja luta, êxito, fim e
contradição dos
fins. Ai! Aquele que prevê a minha vontade prevê também os caminhos tortuosos que precisa
seguir. Seja qual
for a coisa que eu criei e o amor que lhe dedique, em breve serei o adversário do meu amor:
assim o deseja a
minha vontade". Cf.: "Da vitória sobre si mesmo". In: Za/ZA. II parte, p. 88. O prazer da
diferença é o prazer da
luta. A "contradição" em Nietzsche dista da contradição dialética. Esta última tem uma
finalidade. A do filósofo
não.
59
Gilies DELEUZE. Nitzsche e a Filosofia. p. 17.
60
"Com a palavra 'super-homem', Nietzsche não quis significar um ser fabuloso e maravilhoso, senão o homem
enquanto aquele que sai do que tem sido até agora: (...) determinado pelo platonismo". Cf. Martin
HEIDEGGER,La voluntad de potência como arte. In: Ramon Peres MANTILLA (org.). Eco - Revista de Ia
cultura de Occidente, p. 563.
60
existência e este foi o seu maior equívoco. Para isso, ele usou a religião e a ciência. Com a
primeira (especialmente o cristianismo-platônico), resolveu que este mundo era inferior e que,
por isso, merecia todo o seu descaso. Com a segunda, pensou ter chegado ao estágio final de
sua humanidade e esqueceu de sua intimidade artística, a qual está para além de qualquer
julgamento cientificista. Na arte está presente o espírito e com ele não se faz pouco caso, pois
é nosso próprio sangue
61
. E, com as duas, enganou-se por ter postulado valores para
condicionar todo o comportamento humano. Mais ainda: o homem nunca entendeu direito o
que é a ética
62
.
"Naturalmente, uma teoria geral da moral não partiria de um empenho
preventivo em face de uma determinada tábua de valores: o seu
empenho seria simplesmente o de considerar a constituição das tábuas
de valores que se oferecem ao estudo histórico e sociológico da vida
moral e descobrir, se possível, as condições formais ou gerais de tal
constituição”
63
.
Se ele buscar comportar-se de acordo com seus costumes e tradições, poderá ficar
reduzido a um repetidor e não se realizar como criador que é. Nesse caso, será domesticado
pelo seu meio. Agora, se colocar em questão que todo quadro valorativo advém de interesses,
não conseguirá ter a ética a não ser em vista de uma problematização de toda instituição que
dita regras (aí instaura-se uma filosofia dos valores, capaz de compará-los com outros
"ethos"). Não é somente isso: o "ethos" nunca vem separado das disposições naturais das
pessoas, o que de início para perceber que por trás de cada "valor" existe uma intenção
com relação à vida. Aqui, voltamos à pergunta sempre posta por Nietzsche: é a existência o
fundamento de todo valor? Para ele, deve ser assim. Então, o problema ético é de caráter
existencial e do que, perante a própria história, o homem sentiu como vida, e não o que
idealizou. Não se trata de teoria, mas da ética como necessária à sobrevivência. O filósofo
61
Introdução, X. "Ler e escrever". In: Za/ZA. I parte, p. 30.
62
Talvez tenha se aproximado dela no Renascimento, como já vimos.
63
Nicola ABB AGNANO. Dicionário de Filosofia, p. 367.
61
concebeu duas éticas: a do senhor e a do escravo
64
e cada qual procurou sobreviver ao seu
modo. Mas, o primeiro não precisou negar esta vida para fazê-lo.
O "super-homem" (o transvalorado) é também um artista que se forjou a si mesmo,
criou-se a si mesmo. Tal arte revela a potência criadora que é a saúde do espírito. Mas, nesse
ínterim, é bom esclarecer que mesmo na doença o ser humano é capaz de criar. É possível ter
saúde na doença e isto não é contraditório. Quantas vezes o próprio Nietzsche exerceu sua
arte, sua poesia no escrever, estando num estado que lhe exigia, cada vez mais, um repouso.
Sua criação o movia. O importante no filósofo é sua revelação que nada no homem é estático.
Contudo, quando o ser humano abandonou sua criação num além e pôs-se a procurar uma
estabilidade na vida, a qual é, ao contrário, sempre vir-a-ser, congelou-se como artista. O
filósofo resolveu taxá-lo de decadente e erigir um outro que seria mais "humano”
65
. Daí ser o
"Übermensch" apenas o humano potencializado e não mais aquele tipo que, vivo, se fazia
de morto. O "além-do-homem" (uma superação do homem sem coragem de ver-se tal e qual)
sabe que, para viver, a arte lhe é intrínseca. Inclusive a arte do pensar. Na natureza, o ser
humano necessita de maiores cuidados em relação aos outros animais. Para isso, ele possui a
razão. Esta tem o objetivo de uma compensação, o que não significa que deva imperar sobre
os instintos. São forças que diferem uma da outra em sua manifestação e, por isso, o ser
humano precisa de ambas para sua própria sobrevivência.
Nietzsche é sensível o suficiente para perceber que a própria crença tem em seu
fundamento uma necessidade profunda do humano em sobreviver. Entretanto, o filósofo o
admite que se transforme a criação em algo mais importante que a própria vida, pois esta é
que está na base de todo ato criativo, de todo criador. Deus, por exemplo, seria um desvio
64
A "ética do senhor" baseia-se na "ética da vida" e a "ética do escravo" fundamenta-se como "ética do além-
vida".
65
Não confundir com um "demasiado humano". Humano aqui, no sentido de mais ligado à vida enquanto
vontade de potência. Nada mais que isso. Aliás, tal condição não é somente humana, mas ao homem nos
dirigimos pela sua "pequena razão", a qual também é vontade de potência. O pensamento é vontade de potência,
é luta, é devir. fazem parte da mesma realidade. Só não podemos conceber um Deus ideal acima de tudo. Toda
idéia é apenas um acaso das relações entre as forças. Em Deus, a verdade foi "congelada", e, daí, a moral.
62
absoluto. Ele representa a criação invertida. Porém, a perspectiva da arte é extramoral, o que
não quer dizer que o homem não busque a verdade
66
. É que verdade e moral costumam estar
atreladas. Assim é que o Deus dos cristãos tomou a dimensão de ser a verdade e a vida. A
transvaloração vem abalar essa noção cristã. O problema do cristianismo foi querer
transformar a atividade em passividade ou, pelo menos, quis tirar o mérito do humano de
criar pelo viés do perspectivismo e ver que uma sua criação não deve ser congelada e
pretender-se a única.
Qual seria a relação íntima do ser humano com a verdade e a mentira? "O homem não
ama necessariamente a verdade: deseja suas conseqüências favoráveis. O homem também não
odeia a mentira; não suporta os prejuízos por ela causados. O que se prescreve, o que não se
aceita e não se deseja é o que é considerado nocivo: são as conseqüências nefastas tanto da
mentira quanto da verdade. A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as
conseqüências nefastas da mentira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem
permitida"
67
. O ser humano não gosta de admitir que é hipócrita, mas a hipocrisia faz parte de
sua arte advinda da necessidade de continuar vivendo. É isso que o filósofo mostra o tempo
inteiro: que qualquer "valor" tem uma referência: a vida. Eis a dimensão crítica da sua
filosofia, da sua transvaloração de todos os valores. Quando os valores cristãos se
autodenominaram eternos, imutáveis e inquestionáveis, nenhuma outra perspectiva foi
admitida. Nietzsche, então, vem mostrar para nós que o cristianismo não é "a interpretação", é
apenas mais uma diante da enorme capacidade humana de criar, a qual lhe é inseparável à sua
própria forma de vida que é vontade de potência. O fato é que essa pequena razão (nós
66
O que é a verdade? "Chamais 'desejo de verdade' ao que vos impulsiona e incendeia, a vós, os mais sábios. (...)
Eis aqui toda a vossa vontade, sapientíssimo, como uma vontade de poder; e ainda que faleis do bem e do mal e
das apreciações de valores". Cf. "Da vitória sobre si mesmo"'. In: Za/ZA. II parte, p. 86, Nietzsche reconhece a
"vontade de verdade" como vontade de potência também. O problema está em não se perceber que o que se
busca é a afirmação da própria vontade <ie domínio. Verdade aqui não tem a conotação de redenção e nem tem
privilégio nobre a mentira. Deus não é vontade de potência. mas uma interpretação desta. Verdade e mentira
67
Roberto MACHADO. Njetzschee a verdade, p. 38.
63
mesmos) é altamente criativa. Somos os grandes artistas do universo, o qual já era vontade de
potência antes de nós. Esta parte será explicitada melhor na cosmologia nietzscheana.
Por que Nietzsche firma-se na transvaloração de todos os valores? Porque ele sabe que
esta é uma lógica de nossos ideais em querer criar valores superiores, e que o perigo disso
está em desvalorizar a própria vida. É o caso de quando emitimos o juízo do "valor em si". Dá
a impressão de que ele é sua própria causa. Aqui localiza-se a pugna do filósofo com relação
à metafísica.
"Percebendo a problemática de uma filosofia intrinsecamente
metafísica e moral como constituindo o âmago do niilismo, a filosofia
de Nietzsche é, antes de tudo, uma luta contra a filosofia, ou melhor,
contra o platonismo da filosofia - o que significa para ele a mesma
coisa - a partir da qual a perspectiva trágica, dionisíaca critica os
valores metafísicos, morais, epistemológicos que vigoram na
modernidade. Se, como interpreta Nietzsche, o platonismo é a
doutrina dos dois mundos, em que o mundo sensível e mutante é o
mundo da aparência e o mundo supra-sensíveí e imutável o mundo
verdadeiro, a refutação do platonismo assume no discurso
nietzschiano pelo menos duas posições estratégicas: tanto inverter
quanto superar a oposição de valores por ele criada; tanto afirmar que
o mundo sensível é o mundo verdadeiro e o supra-sensível o mundo
aparente, quanto se insurgir contra a dicotomia de dois mundos e a
oposição metafísica entre a verdade - identificada ao bem e à beleza -
e a aparência. O mais importante porém é que, em qualquer um dos
casos, a característica fundamental do projeto de transvaloração é opor
aos valores superiores, e mesmo à negação desses valores, a vida
como condição do valor, propondo a criação de novos valores, que
sejam os valores da vida, ou melhor, propondo a criação de novas
possibilidades de vida”
68
O que Nietzsche coloca-nos é que não permaneçamos presos a uma moral, a uma
maneira de ver o mundo e façamo-nos, com isso, artistas limitados em nossa capacidade de
expressão. Não tenhamos medo de nossa própria agitação. Não fujamos de nós mesmos.
68
Roberto MACHADO. Nietzsche c a verdade, pp. 86-87.
64
Como o homem sente-se mediante o vasto campo aberto da vida?
“No fundo de suas agitações e transbordamentos - pois, ao mesmo
tempo, está inquieto e sem norte, como em um deserto, eleva-se o
ponto de interrogação de uma curiosidade cada vez mais perigosa.
'Não se poderiam volver todas os sinais? E o bem não poderia ser o
mal? E Deus não ser mais que uma invenção e uma face do diabo? Em
última análise, não poderíamos ser também, por isso, enganadores?
Será preciso também que sejamos enganadores?' Eis os
pensamentos que o guiam e o extraviam, levando-o cada vez mais
adiante, mais longe. A solidão, essa temível deusa e mãe 'saeva
cupidinum', retém-no em seu círculo e em seus anéis, cada vez mais
ameaçadora, mais asfixiante, mais opressiva; porém quem sabe hoje o
que é a solidão?”
69
O transvalorado é aquele que, em sua solidão, alcança um amadurecimento do espírito.
Uma espécie de autofagia que leva a própria pessoa a por-se nu diante de si. E o momento em
que todas as máscaras caem e despontam as raízes de todo o pensamento. O artista reconhece
suas criações e que pode manipulá-las. Mas se tudo não passa de criação humana no que
tange a qualquer valor, então tudo é relativo? Não é isso. Podemos ser relativos sim, mas não
façamos uso do erro grosseiro em lógica: o da generalização. Se dissermos, por exemplo, que
somos parte do cosmo, aí não nada de relativo. Assim, um ponto de vista pode ser relativo
ou, também, pode ser à parte de algo maior
70
. Lembrando, outra vez, que nesse ponto habita a
diferença entre relativismo e perspectivismo. Certamente, os valores que mais se aproximam
da vida são os que não a negam por ela ser dura conosco. A pergunta para a transvaloração
poderia ser esta: - Acaso, não estamos enfraquecidos demais por "valores" que nos fizeram
crer que estávamos acima da nossa existência concreta? É um fator crucial este que nos leva à
69
MA/HH. Prefácio, § 3,p. 36.
70
Ou até mesmo esse algo maior não existe. É apenas uma pluralidade de vontade de
potência. O todo o que é?
Somente partes e nada mais. O que existe são perspectivas diferentes e cada diferença não é
nem um pouco
relativa a si mesma.
65
conclusão de que Deus era diabo. Se olharmos dessa forma, a palavra ateísmo pode trilhar por
outras sendas.
Quanto ao fato de Nietzsche ser tratado como niilista, o mesmo crê que esse "nihil"
revela-se na face de uma vontade de potência negativa. É o caso do cristianismo e sua moral,
a qual é uma vontade manifesta de niilismo com relação à vida. Nesse aspecto, o filósofo
prefere chamar de vontade de potência aquilo que não se opõe ao processo vital, que pulsa em
nós e em outras formas de vida. A obra que é um verdadeiro ensaio de transvaloração dentre
todos os escritos de Nietzsche é "O anticristo".
"A vida mesma é para mim instinto de crescimento, de duração, de
acumulação de forças, de poder: onde falta a vontade de poder,
decadência. Minha asseveração é que a todos os valores supremos da
humanidade falta-lhes essa vontade, - que são valores de decadência,
valores niilistas, que, com os nomes mais santos, exercem o
domínio"
71
Para o estudo dessa dissertação, entender a transvaloração é fundamental, pois as
balizas da genealogia e do perspectivismo resultam nessa transvaloração em que Nietzsche,
de vez, posiciona-se como o próprio anticristo. Pois todos os valores cristãos foram
bombardeados por ele com as armas do seu procedimento genealógico (que possibilitou vê-
los na raiz da inversão da vida em prol de uma "outra") e de seu olhar perspectivista
(ampliador das visões de mundo; um olhar que mostrou que o cristianismo é apenas um
dentre muitos olhares). A partir disso, o filósofo pôde realizar sua filosofia que comparou os
valores não com base neles mesmos. Não há, para ele, valores em si (conforme vimos), O
ponto de referência para todo valor tem que ser esta vida aqui e agora. Na realidade,
Nietzsche acabou fazendo uma filosofia da avaliação. Se existem valores, eles vieram de
alguma forma de avaliação. O filósofo desconfiou e acusou o referencial cristão de ser a fonte
71
AC/AC. § 6, p. 30.
66
de toda a negação da vida, deslocando o eixo vital para um além interpretado por ele como
fruto do platonismo. Então, fez a opção por um mundo sem Deus.
As perguntas que precisam ser respondidas a partir de agora são as seguintes: - Se a
morte de Deus traz o niilismo sobre nós, o que o filósofo vem propor em seu lugar, que
nossa pequena razão não se contenta em ficar sem resposta para sua própria existência? -
Teria Nietzsche destituído-nos de todo sentido e de toda religião? E, como foi que Deus,
Todo Poderoso, morreu?
2.1 A MORTE DE DEUS: UMA RUPTURA
"...Blasfemar contra Deus era o maior dos absurdos; porém Deus morreu...".
72
Uma dura
afirmação diante de dois mil anos de cristianismo e muito mais ainda frente ao judaísmo. Mas
aqui o que interessa é a leitura cristã, pois é essa que Nietzsche tem em consideração quando
anuncia tal fim. Aquele Criador, Divindade Pessoal, Princípio e Fim de todas as coisas. Sem
Ele, tudo carece de sentido. O ser humano vive para Deus e deve procurar nele a saída para todos
os seus sofrimentos e, se sofre, pode fazer isso pelo Onipresente. Esperar em Deus é a solução
para quem não confia mais nos homens e aguardar pelo Paraíso é a saída para este mundo de
perdição. Assim se fizeram os cristãos ou platônicos.
73
alguém com muita ousadia arriscaria proclamar que a "Tábua de Salvação" da
humanidade acabou. Não há mais esperança em Deus. Algo de terrível deve ter acontecido para
que o Senhor, que se fez carne por meio de Jesus Cristo
74
, terminasse assim. Os crisos ficaram
72
"Introdução". In: Za/ZA. I parte, III, p. 10.
73
Sim, pois para o filósofo cristianismo e platonismo são uma única coisa. Apenas que o primeiro é uma versão
mais grosseira. "(...) Cristianismo é platonismo para o povo (...)". In: JGB/BM. Prólogo, p. 8. E, antes disso, ele
afirmara que isso se dera pela "pressão cristã-eclesiástica de milénios". "Cristo é platonizado e Platão
cristianizado". In: Leon KOSSOVITCH. Signos e poderes em Nietzsche, p. 47.
165
Isso faz parte da Crença
cristã, que chegou ao veredito após uma triagem de "heresias".
74
"Em Assim Falou Zaratustra, a morte de Deus não é apenas um anúncio, mas um desenvolvimento que
perpassa toda a obra. (...) No posterior O Anticristo, obra que enfoca mais especificamente o tema da religião,
Nietzsche teceu vigorosas críticas que pôde reunir contra o cristianismo. (...). Ele não estava brincando
67
óros e perdidos na Terra, porque toda a moral deles assentava-se no "amor a Deus" e no "amor
ao próximo". O que lhes amparava em suas limitações era justamente a grandiosidade e a
infinitude daquele que fez o mundo. A vida eterna, tão pretendida, agora se tornava utopia
segundo a etimologia da palavra (em lugar algum). Essa vida, que seria num além, e que não
conheceria mais a corrupção da carne, es totalmente destruída. Não restou pedra sobre pedra do
trono celestial, pelo menos nas críticas nietzscheanas.
Todos os que o cristianismo, durante séculos e séculos, tomou fortes, voltam à sua
fraqueza dantes. Perderam seu escudo. o podem mais se esconder e o podem mais
dominar aqueles que o o cristãos. Perderam o rumo, pois as promessas do Grande Deus
o são passíveis de serem cumpridas. A confiança inabalável abalou-se. A ruiu. No lugar do
amor, veio à ria; a verdadeira identidade daqueles que nunca aprenderam a caminhar sem um
amparo que os fazia transcender essa realidade nua e crua. A proteção divina lhes era essencial
na trajetória de sua existência terrena. Os pregadores da "Boa Nova" não cansavam de dizer-lhes
que o dia do Juízo Final chegaria e que eles seriam os escolhidos para viverem plenamente no
Reino Etemo da Luz. Consideravam a existência aqui como uma experiência horrenda nas
Trevas. Esse mundo era governado por seu príncipe, senhor das profundezas e de todo o mal.
Mas em nome do Salvador (o Cristo), tudo suportavam. Criam na vitória final que estava
traçada pelas os de Deus.
75
levianamente com assuntos rios, nem tampouco querendo criar fama como um teólogo de ideias ultrajantes".
In: Richard Elliot FRIEDMAN. O desaparecimento de_Deus, cap. 8, pp. 191-192.
75
"Deus representa a ordem, principalmente na tradição religiosa ocidental. Deus forma,
impõe leis". In: Richard Elliot FRIEDMAN, O desaparecimento de Deus, cap. 8, p, 213. Mas
Aquele que sempre separou 'luz e trevas", o "joio do trigo", foi engolido pela própria
dinâmica da vida. Por que Deus morrera? Acaso por ser Eie estático em demasia no turbilhão
do vii-a-ser? Afinal, o que é eterno? Para Nietzsche, certamente, eterna é a vida sem fugas no
além. A vida como movimento, como vontade de potência e não como algo totalmente
idealizado, longe deste mundo em nome de um outro. Quem morre é a oposição vida/aiém-
vida, pois somente esta última, durante longos séculos, é que ganhou destaque em relação à
"vida mundana". Vida c mundo, portanto, não podiam ser sinónimos. Quando Deus morre,
com ele vai à falência toda uma interpretação milenar. O que permanece? A luta entre as
forças. Disso trataremos mais adiante. Precisamente, no segundo tópico deste capítulo. E no
quarto capítulo, veremos o quanto Nietzsche acredita na vida. Nesta vida.
68
Por que o filósofo defronta-se com toda a tradição cristã? Ao descobrir que os
fundamentos cristãos tornavam o ser humano apropriado à domesticação, percebeu que não era
boa coisa fazer parte do aprisco. Aquilo que critica é justamente a condição servil expressa
no cristianismo, que sufoca a busca do homem a tornar-se cada vez mais forte, mais guerreiro,
mais dominador de si e do outro. É na luta que se forja tudo isso e os conselhos cristãos o
contra essa constatação. Pior ainda o os sacerdotes, que utilizam a ascese como meio de
fortificação; principalmente para seu "rebanho". O cristianismo, no seu âmago, prega a fortaleza
do espírito em detrimento dessa vida aqui e agora. O desprezo a este mundo é a resposta e o
o poucos os que seguiram por tal caminho. Em cima dessas iias foi erguida a instituição
Igreja, a qual passou a ser o ponto de referência para os fiéis. Mas o motivo que se faz implícito é
que os valores anteriores ao cristianismo, em especial os dos gregos pré-socráticos, foram
deturpados. E aquilo que era bom fez-se ruim. Isto será tratado um pouco mais à frente.
Nietzsche mexe com a moral, a morada dos valores. Ele reconhece a necessidade dela,
porém a combate enquanto uma espécie de moral que conduz a vida humana à decadência. Ser
decadente é possuir um pessimismo em relação à complexidade do ser humano, a ponto de
efetuar na sua existência um corte profundo que exalta o seu lado racional, "puramente
espiritual". O homem passa a ter vergonha de seu pprio corpo. O pecado entra em cena
e
nesse ponto, o filósofo acusa a racionalidade a serviço da rencia à ppria vida.
Dominar os prazeres e julgar aqueles que se deixam levar pelas atrações mundanas
serão o alvo do cristianismo. Tudo aquilo que escapa aos valores cristãos de renunciar a si
mesmo e ao mundo passa a ser visto como pecado. A própria sobrevivência do humano
fica à mercê dessa moral. Nesse caso, o ser humano tornou-se inviável.
76
76
Fomos acostumados ao medo em relação à vida (entendida no sentido nietzscheano: vida como luta, como
vontade de potência, sem "porto seguro"). Desse modo, inviabilizamo-nos.
69
Não há dúvida de que o homem é somente uma corda entre o animal e o além-
do-homem
77
. Esse homem que acredita em Deus, na religião, na moral daí decorrente, fica
sem direção ao ver suas crenças abaladas. Ele não pode viver como os animais. Está
acima deles pelo desenvolvimento da inteligência; mas, ao mesmo tempo, é imposvel
permanecer numa situação na qual se vê mergulhado no nada, quando da
desestruturação de seu próprio baluarte: a sua fé naquele Alguém. Ou perecerá ou
conseguirá superar-se. Da segunda hipótese é que surge o Übermensch.
O super-homem é aquele que é mais do que o humano, pois este nem possui
mais razão de ser
78
.
Até o presente momento foi feito um resumo a ser retomado. Começando pelo
problema de crates, onde está o cerne da questão moral. Esta se ampara na teoria, na
razão grega representada pelo socratismo. O filósofo mestre de Platão é um censurador
que nega a tragédia grega. Com ele vem a pretensão do conhecimento enquanto estrutura
de domínio da existência. A poesia é relegada a segundo plano
79
. A razão é identificada
como a luz que ilumina a vida, mas que, na verdade, quer apossar-se dela. Nesse
aspecto, Sócrates é posto lado a lado com os sofistas e quem faz isso é Aristófanes. Com
a antropologia entrando pelas veias da Grécia trágica, o homem passará a ser o centro das
atenções. Sua rao e seu discurso estarão em alta. No pensamento socrático, a dialética
começa a tomar forma e, com ela, a separação entre o que antes era inseparável. O lado
lúdico do humano é colocado como seu opositor. Apoio coma a sobrepor-se a Dionísio.
Por outro lado, com Sócrates, em busca de definições, do conhecimento, vem à versão
77
Cf. "Introdução". In: Za/ZA, Parte I, IV, p. 11.
78
Dessa forma é que podemos fazer uma abordagem de uma transcendência na própria imanência. Apesar de
utilizarmos a linguagem dual, pretendemos chegar à conclusão de que o "além" está descartado.
79
Porque a poesia não é teoria, não se deixa "engessar". A poesia dança. Aliás, aqui gostaríamos de mencionar o
quanto aprendemos com a leitura dos textos do poeta Waldecy Tenório. A poesia escapa à repressão, dentro da
qual, muitas vezes, é submetida. In: (do autor citado). A bailadora andamza
. Claro que discordamos de algumas
coisas, afinal ninguém está isento da vontade de potência. Nem nos, nem o poeta. Nisso, concordamos com
Nietzsche. Afinal, tratamos de "coisas sutis". Cremos que, disso, a poesia está sempre "grávida". Em tal parte,
falamos o mesmo idioma.
70
grega de aliar o conhecer a uma espécie de medicina da alma, que serviria para apontar os
erros da exisncia. Nasce a iia do verdadeiro conhecimento”, sempre baseada nesse
“iluminismo grego". O único dom admirável na natureza seria o do homem ser capaz de
elaborar conceitos, encadear idéias, fazer juízos, deduzir. O socratismo vai transformar o
conhecimento numa "fortaleza". E somente por meio da sua razão o ser humano seria capaz de
atingir o clímax de conseguir dirigir moralmente seus atos. Aí, a moral passa a ter ligação com o
lado teórico. No fundo, vigorou em Sócrates a essência da lógica, a qual impunha seus ditames
em todos os campos da complexidade humana. O otimismo da ciência vem daí. Somente o
conhecimento traz a salvação para a humanidade. Isso passará a fazer parte da tradição
ocidental, que o pensamento grego vai ganhar fortes bases com o dispulo que muito escreveu
sobre o mestre.
"A Sócrates, porém, parecia que a arte trágica nunca 'diz a verdade':
sem considerar o fato de que se dirigia àquele que 'não tem muito
entendimento', portanto não aos filósofos: daí um duplo motivo para
manter-se dela afastado. Como Platão, ele a incluía nas artes
aduladoras, que não representam o útil, mas apenas o agradável, e por
isso exigia de seus discípulos a abstinência e o rigoroso afastamento de
tais atrações, tão pouco filosóficas; e o fez com tanto êxito que o jovem
poeta trágico chamado Platão queimou, antes de tudo, os seus
poemas, a fim de poder tornar-se dispulo de Sócrates
80
No conceito nietzscheano, a filosofia socrática converteu a vida em algo mais para ser
conhecido do que vivido. Ela foi à criadora do homem teórico. Com ela passa a valer mais a
noção abstrata da existência. O que vale são os conceitos. Esse humano da teoria implantou a
idéia de serenidade conseguida por meio da razão. Dessa maneira, sentimentos fortes e
trágicos foram sufocados e reapareceu na forma de ressentimento, ódio à vida e como uma
vontade de aniquilamento pela ascese. Isso foi chamado de cristianismo. Na realidade, o
cristão passou a ser visto como uma pessoa serena quando, de fato, no seu íntimo, era um
80
GT/NT.pp- 87-88.
71
vulcão ativo. Porque a vida o se reduz à teoria que acabou vigorando após crates. Forjou-se
um tipo de vida que não existe. A moral estabeleceu-se como fator purificador da alma e, d
em diante, tudo se perdeu nas malhas da hipocrisia. Mas é isso que é chamado de "normal",
o qual não é outra coisa senão sinal de decadência. A ordem e a forma apolíneas, sob a luz da
razão exacerbada, passam a ser parâmetros. Apoio é o deus sereno. Dionísio c o deus conturbado.
A filosofia soctica combate o ardor dionisíaco em nome da aparente calma aponea.
Nesse resgate de leitura sobre Sócrates, Nietzsche acaba por revelar como a serenidade
henica era apenas uma farsa. No entanto, essa falsidade vicejou por todo o Ocidente durante
dois milênios. O cristianismo deu-se muito bem com o lado aponeo dos gregos. Os cristãos
fizeram-se defensores do socratismo. O ideal do homem "correto". Moral e razão caminham,
assim, lado a lado. O dionisíaco é trágico, provoca dores e, portanto, tem de ser afastado.
Sofrimento passa a ser visto como algo que não faz parte da boa existência e a "verdadeira vida"
é aquela que es isenta de todo mal. O caminho para exorcizar o destino do ser humano na Terra
vai se formando
81
.
Assim como os gregos sentiram a via dolorosa de vida e da morte e o caos da
existência e procuraram refugiar-se no apolíneo que lhes tranqüilizava, também os cristãos irão
proteger-se desse sentimento niilista por meio de sua crença numa outra vida na qual a harmonia,
a paz, estaria sempre presente. O estudo nietzscheano consegue recuperar o drama vivido pelos
gregos, o qual se entre a visão apolínea e a dionisíaca. O classicismo, inclusive de He
gel
82
, que representa somente as faces harmoniosas, belas e perfeitas dos gregos, cai por terra. "O
nascimento da tragédia" é um trabalho que desfaz esse equívoco da interpretação classista. A
filologia é a base para isso. Desde muito cedo, seu autor indica como se trabalha com a
81
O filósofo vai na direção oposta, porém não como conformismo ao destino. Seu lema é "amor fati".
82
Apesar de os dois, Hegel e Nietzsche, serem leitores de Heráclito, o primeiro segue a
primazia da ideia e coloca sua dialética a seu serviço. o segundo, prefere distar de qualquer
caminho de contradição para se chegar a uma síntese e assim por diante. O vir-a-ser
nieízscheano faz a diferença. pois
}
de resto, tudo é vontade de potência. Além do mais,
Nietzsche não trabalha na esfera "das ideias" como algo absoluto.
72
genealogia. Ele vai atrás das origens, para fazer suas análises. Percebe que um conflito
interior ao ser humano é posto para fora, onde é criado um dualismo decadente. Pois o dualismo
presente dentro de cada um continua atuando como o todo da vida.
"Esta relação entre aponeo e dionisíaco é acima de tudo uma relação de
forças no interior de cada homem (...) e que funciona no
desenvolvimento da civilização como a dualidade dos sexos na
conservação daespécie”
83
.
Ou seja, Sócrates acabou por separar na teoria o que é inseparável na prática, e a crítica
nietzscheana tenta mostrar que Dionísio está presente. O esforço é tremendo, afinal Apoio teve
toda a primazia no Ocidente. A leitura soctica predominou.
A inovação nietzscheana é colocar a moral na mira da filosofia e rever-lhe o
fundamento. Ela não existe sem valores. O problema está na nomenclatura valor.
Questionando-se a sua origem, questiona-se todo um modo de ver a vida. O filósofo sabia
tamm que Deus sustentava-se por tais avaliações e que se tornara Ele próprio uma
referência para elas. Porém, quando não fazem mais sentido, o referencial deixa de existir
porque sua moral morreu. A visão de mundo na qual o ser humano submergiu apenas trouxe-lhe o
desgaste, porque fez tudo em nome de nada. Tal estado de niilismo significa que o homem
acaba sempre se encontrando com sua situação singular: uma existência diante do caos e é isto
que mais lhe incomoda. É a partir dessa situação que o olhar nietzscheano consegue distinguir
duas morais: a do forte (ou do senhor) e do fraco (ou do escravo). O forte não reclama da vida,
vive-a simplesmente
84
. O fraco é um descontente e, por isso, tem inveja do forte. Assim é que o
cristianismo veio dar alento aos fracos: dizendo que eles eram fortes porque seu Deus era Todo
83
Giauni VATTÍMO. Introdução a Nieizsche. p. 18.
84
O forte sabe que a vida é luta e, por isso, desde cedo aprende a ser um guerreiro e todos os seus valores
passam pelo crivo do seu próprio sangue. Ele não despreza a vida e nem é masoquista. Apenas procura vivê-la
intensamente. Já o fraco é aquele que, não conseguindo travar combates, põe-se a pensar em outras saídas. É um
esperto, sern dúvida, mas seus valores são outros. Por isso, a única luta que se dá na fraqueza é a luta contra a
vida e não aquela que entende a própria como pugna. Vejamos quão diferentes são tais postaras. Um afirma a
vida e vive; o outro, nega para viver. Este é o problema.
73
Poderoso e que Ele era a vida. Na verdade, todo um arcabouço teórico teve que ser montado
para que a dureza da vida mesma pudesse ser suportada e "vencida". Porém, os "vencedores"
o conseguiram vencer a si mesmos. Todas as paixões internas vieram à tona, pois estavam
apenas anestesiadas por determinadas idéias. O que acaba retornando é o eterno conflito que
anima a humanidade. O caminho heraclitiano desponta novamente e chama todos para a luta
queo cessa. O Deus que organizou o mundo, a moral que controlou os cristãos, a
esperança que, a cada dia, alimentava-os, cessaram suas funções
85
. O fraco volta a ser o que
era e, com ele, vem também o seu desespero diante da vida. Os fortes que haviam caído na
tentação de acreditar nesse Deus, viram-se, de novo, às voltas com seus antigos instintos
guerreiros, prejudicados que foram pelo cristianismo, e ainda acreditam na vida. E a moral que
morre é a cristã
86
. O plano mirabolante de vencer o mundo acabou no avesso. O que restou dentro
de todos seo aquilo que movia os gregos: o embate do apolíneo com o dionisíaco. Tudo o
que é construído em desacordo com a natureza, cedo ou tarde, acaba ruindo
87
. A única
esperança que resta é aprender da própria existência o como existir. Se não for assim, a
necessidade da mentira de um outro mundo continuará a persistir na mente daqueles que ainda
optam com exclusividade por Apoio.
Considerando que Sócrates iniciou esse grande estrago, a ele primeiro é que se dirigem as
duras acusações nietzscheanas. Ele teria começado o assassinato era massa de toda a
humanidade ao desconsiderar seu lado dionisíaco. Não bastasse isso, alguém lhe seguiria os
passos e ampliaria a desgraça de apartar o ser humano de sua concretude. Platão seria outro
85
A essência metafísica que havia sido construída num "a priori" acabou num nada, pois a essência nunca
existira. Tal essência teria sido o modelo perfeito, de cunho platónico. Um modelo que relegava a existência a
segundo plano (cópias imperfeitas). Mas... se a referência não passava de uma imagem, dada a partir de uma
interpretação da vontade de potência (portanto, interpretação da interpretação: o ser humano já é uma
interpretação), então a essência, de fato, não existiu e não existe, Eis o que era Deus. Com o declínio do
platonismo, esse Deus declinou e tudo aquilo que fazia sentido n'Ele esvaziou-se.
86
Não valor "em si". Todos os valores não baseados na vida enquanto vontade de potência são antivalores. A
moral cristã prega o antivalor. E qualquer valor com fundamento na vida está, assim como ela, exposto ao vir-a-
ser, porque as forças não param de se relacionar. Uma morai que nega a vida como devir não poderia sustentar-
se. Ademais, uma força nunca nega a outra. Elas apenas afirmam-se como forças. Cf. Scarlett MARTON.
Nieízsche e Hegel. leitores ds Heráclito. In: Resista Discurso, n. 21. o. 32.
87
Acima da 'natureza humana' estará sempre a natureza.
74
grande responsável por aquilo que nas considerações nietzscheanas será abominado: o
idealismo. O platonismo criaraízes o fortes no cristianismo que as duas esferas fundir-se-ão
para garantir a exisncia do Bem. As denominações seriam trocadas, mas significariam a mesma
coisa. Platão foi aquele que aprofundou a teoria em detrimento da realidade. Não se considerou
um sofista, mas o era em sua capacidade de vender ilusões. Além disso, deixou tudo por escrito, e
é por meio de seus próprios registros que é possível fazer a leitura dualista tão presente em suas
idéias e, posteriormente, no cristianismo.
Com o seu "mito da caverna"
88
, Plao realizou uma grande invero. Transformou o
mundo em que todos vivem numa mentira, e do seu mundo de mentira fez a verdade. O
"mundo das idéias" seria sinônimo de perfeição. Este outro, o seu antônimo. Dessa maneira,
ficaria mais cil para explicar a causa de tantas desordens e a aspiração do homem ao
"Supremo Bem". Esse mundo imaculado criado por ele teve outras repercussões. Exemplo disso
é a dualidade entre corpo e alma. O corpo, enquanto imperfeição, seria apenas um cárcere
para a alma em busca de seu "verdadeiro" mundo. A realidade concreta tornar-se-ia impedimento
da realização do espírito. O platonismo não fez a apologia socrática como também criou as
bases para um distanciamento ainda maior do lado dionisíaco da vida. Associou também a luz
à idéia e aquele que estivesse fora dessa associação não poderia viver de outra maneira senão
em trevas. Dessa forma, ele representa o mundo real como uma caverna escura. Tudo o que se
em seu interior são sombras do mundo "verdadeiro" e, por isso, o correspondem à
realidade. Ainda vai mais longe quando diz que só a luz que vem de fora da caverna é que liberta
os seus habitantes. Aqueles que conseguem sair desse lugar, sentem-se na obrigação de voltar
numa missão de resgate dos outros. Corre grande risco, porque os que vivem nas trevas
dificilmente entenderão a palavra de quem vem da luz.
88
PLATÃO. A Reoúbljca, pp. 229-261.
75
Uma alegoria muita bem estruturada e que serviu adequadamente para o cristianismo.
Esse mundo de luz passa a ser representado como sendo o céu e o Bem passa a ser
representado por Deus. A missão de resgate é dada a Jesus Cristo, o Salvador. Tudo se ajusta
perfeitamente e o idealismo platônico alastra-se por dois milênios. A metafísica se realiza
junto ao cristianismo. O Ser é identificado com Deus. E os valores são divididos em
mundanos e celestiais. A aversão peia vida na Terra só aumenta. O objetivo é uma vida no além-
mundo, diante da face de Deus. Jesus Cristo é visto como a prova final do choque entre esses dois
mundos. A ascese toma seu lugar para purificar a alma do jugo do corpo. A noção de pecado é
reforçada para a criação da consciência, o que causa dependência com relação ao ascetismo.
Quanto mais pecado, mais o corpo tem que ser penalizado. A má consciência tortura a alma e o
sentimento de culpa é instalado. Tais são as armas do cristianismo para prender seus fiéis.
Cada vez mais se fala de , pois é preciso que a convicção seja o ancoradouro do cristão.
Quanto mais ele acreditar, mais forte ficará o cristianismo. Nietzsche identifica tanto platonismo
e cristianismo que chega a emitir a afirmação de. que
M
O
cristianismo é um platonismo para o
povo
89
.
O filósofo que se faz anticristo é, antes disso, um antiplatônico. Isso não quer dizer
que o cristianismo está isento. Acha-o pior, pois é uma versão eclesiástica. E a moral é
depósito de valores nos quais essa ilusão de um outro mundo fora vendida. Diante desse
quadro, toda uma confusão estabeleceu-se. Mas o cristianismo venceu diante da insegurança
humana. Pelo menos, até os seus próprios dogmas serem colocados em questão pela própria
dinâmica da existência. O mundo criado pelos cristãos respondia às angústias daqueles que
procuravam uma saída desse mundo atribulado. Como não é fácil tornar-se um guerreiro,
melhor é se colocar sob a proteção de um Deus que sentido a tudo e para Quem tudo é
possível. Aquele que acredita nisso, não outra opção para viver. Deus é a vida. O ser
89
Cf. já vimos e reafirmamos aqui. In: JGB/BM. Prólogo, p. 8. O grifo é nosso, pois aqui se resume o que é o
cristianismo para o filósofo.
76
humano, então, pode voltar suas preocupações para outras coisas e deixar que o Absoluto cuide
dos problemas da existência. De uma certa forma, o cristianismo acomoda as pessoas. Também
as manm resignadas a respeito dos acontecimentos. O final está garantido para aquele que
crê. Todos, na verdade, estão querendo o paraíso
90
.
Destacando mais a herança platônica de desprezo pelo corpo, o fardo contra a
vida ditado pelo cristianismo envolve a necessidade do estar só (não consigo mesmo,
mas com Deus), do jejum (que depaupera a estrutura física, principalmente no caso
da ascese exagerada) e da abstinência sexual (um controle sobre uma das mais
vigorosas forças da vida). A negação do mundo pede a negão do corpo, pois é ele que
amarra a alma. Com isso, o que há por trás é a negação da vontade. Junto a esse rol está o
sacrifício. Sacrificar-se e santificar-se. As pessoas não medem esforços para se
oferecerem a Deus. Na verdade, o espíritoo confia mais em si, no Absoluto.
Sacrifício acaba significando automutilação. Pom, sacrificar-se não é em vão. O pmio
é a tão sonhada liberdade. Morrer para viver, eis o lema. O amor à Verdade vem sempre
com recompensa. O homem superior é aquele que se liberta dessa vida. O egoísmo é
refutado por ele, porque não quer salvar-se sozinho. Faz questão de mostrar-se gido
consigo mesmo. Entretanto, "quem já não se sacrificou alguma vez pela ppria
“reputão?
91
São esses tipos de contradição que aparecem nesses” bons homens ““.
Nietzsche combate veementemente à religião cristã porque nela uma supressora
da vontade de potência, a qual também é vida. O que o cristianismo faz ao ser humano é
deixá-lo incapaz de viver por si só. À medida que sua vontade de viver mingua, esta vida
"diminui"; a vida mesma se lhe toma um obstáculo. Isso, para o filósofo, é uma questão
90
Sabemos das origens judaico-cristãs do messianismo, do milenarismo. Termos que, depois, generalizaram-se
entre s e que servem de explicações para vários tipos de movimentos históricos. De uma certa forma, vários
povos apresentavam essa busca de um paraíso (lembrar da 'Terra sem males"), por mais que estivessem
próximos da natureza. Prova de que a "pequena razão" (a consciência humana) busca segurança. Talvez esteja
o motivo de suas fantasias: um apoio para viver com esperança
91
JGB/BM, § 92, p. 71.
77
doentia. Somente quem está muito doente e o entendeu o processo vital (de que
adoecer faz parte dele) é que deseja morrer. Ser cristão, em sua opinião, é ter o corão
fraco demais para a vida. Assim, define-se como anticristão. Nietzsche é "pagão", mas não
é um ateu
92
.
Até agora, o cristianismo está em foco e, perante ele, Nietzsche é um ateu. Mas
o maior problema veste pelo filósofo está mais em São Paulo do que propriamente no
Cristo. Aqui surge algo muito interessante, pois Jesus Cristo é tido como alguém do qual
se tirou proveito para que fosse fundados o cristianismo tal e qual
93
. "Para Nietzsche, São
Paulo transforma a prática da vida do coração puro numa Igreja com milagres,
sacerdotes, com um sistema de recompensas e de castigos e faz de Jesus o Filho de
Deus que se sacrifica pelo pero dos pecados do mundo. São Paulo inventa o Além, o juízo
final, a ascensão e todas as outras” coisas supremas
································································································································································································································
··················································································”.
O filósofo anticristão considera que o cristianismo é desonesto porque distorce a
existência. O cristão é algm que fecha os olhos a si mesmo, porqueo consegue olhar para sua
própria falsidade. É sobre ela que assenta toda sua moral. Nesse caso, menos motivo ainda
para se levar a moral cristã a sério. No fundo, se o cristão possui uma vontade é a de tudo
destruir. O cristianismo e seus seguidores são niilistas por essência. Outra questão levantada é
que o ódio transmitido à realidade acaba num sentimento oposto: de amor cristão. Essa maneira
de amar significa tirar do outro toda a capacidade que ele tiver de viver bem essa vida sem a
necessidade de um "socorro espiritual". O amor ao próximo, em tais circunstâncias, acaba em
92
Disso trataremos especificamente no quarto capítulo. Aliás, Nietzsche admira muito as festas pagãs. "Na festa
estão incluídos: orgulho, exaltação, desenfreada alegria; a burla de toda classe de seriedade e probidade
burguesas: uma divina afirmação de si mesmo feita de plenitude e de perfeição animais - condições puras às
quais o cristão não pode, honradamente, dizer sim. A festa é o paganismo por excelência" (La voluníad de
potência, n. 916). Friedrich NIETZSCHE, extraído de Martin HEIDEGGER. La voluntad de potência como arte.
In: Ramon Peres MANTILLA (org.). Eco - revista de Ia cultura de Occidente, p. 552.
93
A afirmação é muito diferente do que possa parecer. O filósofo não faz uma defesa de Cristo e, no mesmo
parágrafo, reafirmamos isso.
78
amor àquilo em que se acredita. Na verdade, o próximo aí é o que vem por último em termos de
importância.
Recuperando-se Plao, poder-se-ia dizer que ele acabou criando uma boa notícia
expressada pelo seu mundo ideal Boa notícia para todos os que estão cansados de viver. O
Evangelho é uma "Boa Nova" para quem estava desesperado nessa vida. Tudo traz uma
conotação de salvação, muito bem acolhida quando o espírito fraqueja. O Reino de Deus é o
objetivo daqueles que não conseguem lutar pelo seu próprio espo. Um consolo, mesmo que
para isso seja preciso esperar para depois da morte. Quanto mais o cristianismo espalhou essa
notícia de que ainda havia salvação para os fracos, tanto mais foram crescendo em torno dessa
crença. Até alguns que tendiam para serem fortes, acabaram prestando seus serviços para
servirem a Deus com exclusividade. Multiplicaram-se os mensageiros do Reino, pois, de
agora em diante, uma igualdade deveria ser implantada na Terra. O cristianismo associou-se à
pregação da "verdade". Todos os que se sentiam salvos puseram-se como obrigação estender a
"salvação" para todos. E a melhor maneira de conseguir adeptos era mostrar qual a vantagem
do cristão perante todas as alternativas. De outra forma, despertar o medo do julgamento final, do
castigo, tornou-se o outro módulo de ação missionária. A compaixão seria o antídoto, porém
o antes da conversão. Como é possível notar, às avessas, a idéia de imperialismo está presente.
Para quem, como São Paulo, era o fundador da Igreja e que havia lutado pelo imperialismo
romano, a diferença foi apenas de conteúdo e de método. A "Boa Nova", segundo o
filósofo, morreu na cruz. O que a partir desse instante se chama evangelho era já a
antítese do que ele havia vivido·: uma má nova, um disangelho. ·Percebe-se aqui,
novamente, como é forte a rixa de Nietzsche com São Paulo.
Para delinear nesse contexto a morte de Deus no fisofo, foi necessário recuperar o
sentimento nutrido por ele em relação a Sócrates e a influência, praticamente, dos dois no
cristianismo. Toda formulação que o mesmo levou para a afirmação em questão reside num
79
apanhado da filosofia trágica. A briga de Nietzsche é com todo tipo de conceito que impede a
compreensão da vida enquanto vontade de potência
94
. O platonismo desloca tal vontade para
um plano inferior, em nome de um mundo imaginário. Pois se dominar é parte intrínseca da vida
terrena e esta não tem valor perante Sócrates e Platão, o que sobrou foi confiar todo o poder que
existe a algo que está para além de tudo o que existe concretamente, O abstrato passa a significar
a própria realidade.
A versão nietzscheana não aceita que uma moral, a qual tenha suas raízes nessas
dimensões que ela chama de metafísica, passe a rotular o que é o bem e o mal. Logicamente, o
Bem platônico começa com vantagem sobre qualquer outro que venha a feri-lo em sua
constituição conceituai. Acontece que o Deus do cristianismo ampara esse tipo de moral com
respaldo metafísico. E, pior ainda, é que consegue fazer com que seja grande o mero de
crentes no além-mundo, em detrimento deste mundo real.
Pertinente é a proposta de ver que o filósofo fez uma constatação de um niilismo para,
depois, decretar que Deus estava morto.
95
Ele observou a Europa do século XDI em todas as suas
transformações para proclamar que seus ídolos estavam morrendo. Não se crê mais num Reino
de Deus próximo. Para muitos isso não passa de uma utopia. O positivismo presente
considera ultrapassadas a religião e a metafísica. Confia naquilo que pode ser comprovado
cientificamente. A ciência irá, mais e mais, conquistando seu espaço e, muitas vezes, a se
colocando como a "nova crença". Porém, ela também o responde aos problemas mais
íntimos do fórum existencial. A crise se instala. Surgem novas possibilidades de avaliações a
respeito do que é a vida. Uma transição se instaura e ela é demorada. Traz conseências
94
"Nietzsche não condena os filósofos por terem exprimido seus preconceitos, critica-os por terem escondido,
de si e dos outros, que as suas teorias são um comentário de seus preconceitos - isto é, de suas avaliações. O
essencial da doutrina da vontade criadora, da vontade que interpreta o mundo, é que ela não é um meio para
mascarar uma existência insuportável, mas um meio para realçar um sentimento de força. O essencial deste
'novo caminho para o sim', da filosofia que Nietzsche nos apresenta, é estabelecer a relação entre arte, vida e
pensamento". In: Rosa Maria DIAS. Interpretação e vontade criadora no pensamento de Nietzsche (DM), p. 80.
Aqui, complementamos, está bem explícito o que o filósofo denominava de "amor fati". Tudo deve ser visto pela
ótica da vida.
95
A parte grifada chama a atenção para o contexto em que Nietzsche enconírava-se e que leitura conseguiu
fazer.
80
dolorosas. Provoca insegurança. Sinal de que Deuso está mais oferecendo tudo aquilo de que
o homem necessita. O cristianismo revela-se como mais uma interpretação que não deu certo. No
entanto, grande é o esforço para que sua perspectiva continue sendo privilegiada.
A secularização é a mais nova ordem instituída. Resquícios ainda do século XVIII
com os chamados iluministas. Porém, mais do que isso. Na modernidade, o centro é a
industrialização.
"O homem moderno se embriaga de dissipação. Abuso de velocidade,
abuso de luz, abuso de nicos, de estupefacientes, de excitantes (...)
Abuso de freqüência nas impressões; abuso de diversidade; abuso de
ressonância; abuso de facilidades; abuso de maravilhas; abuso desses
prodigiosos meios de desencadeamento, por cujo artifício imensos
efeitos são colocados ao alcance da mão de uma criança
···
Hoje, o discurso da pós-modernidade é o desta pluralidade que faz o ser humano sentir-
se perdido em seus paradigmas. Crise de identidade, crise de tudo. muito que a morte de
Deus vem sendo tratada. O filósofo a fez de uma forma mais radical, mas isso não tira o
rito daqueles que tamm anteviram ou leram esse resultado de choque de valores. Campo
rtil, sem vida, para o niilismo, porque esse se toda vez que os valores tradicionais o
postos em xeque. De outro ângulo, no entanto, esse "nada" configura-se no princípio de uma
nova era, com outros valores ou, no nimo, os valores que estão devem passar por uma
enorme transformão.
Por isso, o que o filósofo fez foi uma leitura de que o cristianismo apenas vinha
exercendo uma função de repressão. Chegou à hora de tudo aquilo que estava reprimido vir à
tona. Nietzsche aproveitou a ocasião para denunciar os falsos valores cristãos. O ser humano,
numa situação dessa, pode seguir por dois caminhos: colocar a tecnologia acima de si e
continuar, desse modo, escravo de sua própria criação, ou enveredar-se para um
fundamentalismo religioso assumido ou disfarçado em opções religiosas mais "abertas"
(porque uma vez religioso, liga-se novamente a um tipo de transcendência, de metasica, de
81
crença e, enfim, continua criando para si um "porto seguro" em meio a tantas mudanças).
Parece, então, que Nietzsche tentou resolver o problema colocando mais um: a do além-do-
homem
96
, o qual é possível nessa situão da morte de Deus. o como desvinculá-los, pois
um está inteiramente ligado ao outro.
Se a proclamação nietzscheana deu-se após essa percepção do "nihil", isso não lhe tira a
coragem de fazê-lo tornando-se, muitas vezes, um "bode expiatório". Deixando claro que ele
mesmo nunca sentiu assim. Até se assumiu na sua obra "O anticristo". Mas que muitos se
esconderam atrás do filósofo, isso sim. Alguns religiosos até resolveram jogar a culpa em cima
dele. Basta analisar a obra de Copleston, a qual tem em seu último capítulo a seguinte citação:
"Nas mãos de Nietzsche, a filosofia da vida, apesar da aparência
superficial do contrário, torna-se, continuo a afirmá-lo,
fundamentalmente pessimista e cai naquele 'não' à vida que a mesma
filosofia pretende denegrir e repudiar (…)
97
Ora, para Copleston dizer não ao Deus Cristão é dizer não à vida, e tudo o que decorre
daí é pura detrão contra o cristianismo. Porém, o que ele fez ao longo de sua obra foi
justificando-se e tentar manter em pé não o que o filósofo destruiu, mas o que estava ruindo por
si. O ser humanoo poderia viver para sempre somente com seu lado apolíneo. É este dualismo
que Nietzsche sempre combateu desde o início, do seu filosofar. Este foi o seu "martelo". Mas
ele também teve suas limitões, e uma delas foi tentar encontrar um respaldo científico ao seu
eterno retorno do mesmo.
Nietzsche e os metafísicos se digladiam porque, para estes, o niilismo é obra do
filósofo e, para o próprio, o "nihil que se estabelece com a morte de Deus é responsabilidade da
96
No entanto, o filósofo é bem claro e mostra quanto respeito nutre pelo ser humano, apcsai de suas fortes
críticas e de, praticamente, decretar também a morte do homem. Como? "um homem e não me sigas; é a ti
que deves seguir, é a ti!". In: FW/GC, § 99, pp. 116-117. Liberdade e autenticidade é o que ele promove. Seu
"além-do-homem" não aceita aquele tipo subjugado, que aao honra a si mesmo.
97
Frederick COPLESTON. Nietzsche: filósofo da cultura.
82
metafísica. Acontece que ela vigorava na condição platónica de inversão da realidade, sendo
que esse fruto mítico negativo passou a vigorar no lugar do mundo real. A transcendência,
nesse aspecto, leva para o nada. O cristianismo-platônico criou uma espécie de mundo que não
necessitaria mais de um "vir-a-ser", pois ele era perfeito. Não foi outra coisa isso tudo senão
uma artimanha conceituai. Deus passa a habitar esse nada, transformando-se Ele mesmo num
nada. Pois eslonge do cotidiano existencial. Deus torna-se um mbolo de descrença perante a
vida na Terra
98
.
Esse "Deus nada" não pode criar, não pode possuir vontade, justamente por o existir de
fato. Foi a vontade do cristianismo (aqui, sempre identificado com o platonismo) que quis
prevalecer sobre a vida com o intuito de tê-la sob seu controle. Como o homem vive
constantemente em mudança, foi grande a procura por algo para se estabelecer
definitivamente em seu inlucro. Tal condição livraria-o de qualquer outro esforço em busca de
sentido, segurança ou de uma melhoria em seu carãter. Tudo viria como que
automaticamente pela fé nesse Deus. O melhor já estava dado e era o Próprio, associado ao Ser.
Diante disso, o Ser fez-se distante do mundo eterno do devir, o qual é a própria concretude
da exisncia. Ao distanciar-se, porém, acabou o respondendo mais às angústias que não
paravam de sondar o ser humano. Esse Deus (ou o Ser, como querem os cristãos metasicos-
platônicos) morreu e, com Ele, seria decretada a morte de todos que continuassem teimando em
sua crença. Essa é a real perdição dos crentes em além-mundo.
É possível ver, nesse ínterim, que não existe somente um niilismo negativo. Para o
filósofo conhecido como niilista por excelência, cair nesse nada é uma oportunidade para
acordar do sono profundo da metafísica. Fica claro que a morte de Deus é um dado cultural.
Nesse sentido, Copleston tem razão em indicar Nietzsche como fisofo da cultura, apesar de não
concordar com a análise dele. O olhar nietzscheano é genealógico e isso facilita o entendimento
98
No parágrafo aqui indicado, notamos o porquê um Deus assim poderia morrer. Na verdade, seria melhor
dizer que Ele já nasceu morto, pois surgiu sem vida.
83
dos conceitos que estão a interpretar a realidade, pois eles são atingidos sempre na origem
99
.
Como foi visto, o conhecimento começa sua desvirtualizão com crates. Para Nietzsche, é
necessária uma abordagem que ponha em questionamento o abstracionismo.
Assim, a própria definição do homem como animal racional torna-se-lhe
insuficiente
100
. Als, a noção mesma de humano é decadente, porque está sustentada nas
graças da metafísica detratora da realidade. Um tipo de homem que pretende morrer para a
vida, para sua própria constituição natural enquanto ser vivo, só pode querer destacar-se pelo seu
lado exageradamente apolíneo. Aqui, o filósofo propõe o seu bermensch" como superação
dessa espécie em extinção.
Ainda sobre o niilismo, pode-se tratá-lo em fases. A primeira ocorreu quando a moral
cristã estabeleceu-se como quadro de valores para colocar o seu Deus no centro de tudo.
Antes Dele, era o caos. A própria vida, em seu devir junto ao mundo, não existia para Ele (o
Criador). Mas o homem, em sua desobediência, conseguiu mostrar seus sucessivos estados de
corrupção. Daí, o Deus incorruptível, perfeito, como contraponto. A "verdade" estabelece-se
como imutável, porque a perfeição não tem necessidade de transformações. O ponto inicial é
também o ponto final (Alfa e Ômega). Tudo está fechado num sistema acabado, o qual o
precisa mais de questionamentos. Somente de fé, esta entendida como maneira de se aderir a tais
ideias renunciando toda crítica latente. Nesse homem da fé, a crítica deve direcionar-se somente
àqueles que, como o filósofo, visam destruir-lhes o "paraíso". Eis o cristianismo. Entretanto,
sustentar esse "ídolo oco" não surtiu efeito, porque ele se fazia presente apenas como ilusão, que
se desfez mediante a própria complexidade humana, na qual o dionisíaco foi reprimido ou o ser
99
Equivalem a uma constituição teórica sempre a partir de uma avaliação (valor). É isso que denominamos
origem tios conceitos.
100
Giorgio PENZO e Rosino GIBELLINI. Deus na filosofia do século XX. p. 31. Para ele, a razão não pode ser
o referencial da vida humana. O que em nós é uma espécie de organização de um centro de forças e que,
assim se repete, em cada ser humano. Nossos pensamentos, nossa razão, são impulsos em luta (fluxo de forças).
Melhor ainda: ao que damos o nome de razão é o resultado de um combate. Cf. FW/GC, § 111, p. 132. É disso
que nos vangloriamos e cremos que, por tal constituição, fazemo-nos superiores. Ora, são vários os centros de
forças e, no fundo, fazemos parte de uma mesma realidade de relações entre essas forças. Desse modo,
preferencialmente. Nietzsche designa de "pequena razão" aquilo que temos por nossa essência.
84
humano foi amputado no seu todo. A segunda etapa consiste em dizer que foi ocasionada pela
moral cristã ao dominar o Ocidente durante dois mil anos. Tornou-se, basicamente, a
interpretação exclusiva. Mas ela caiu na sua própria armadilha ao dizer que tudo que fugia de
seus ditames era mentira. Ora, o devir o parou porque é a real esncia do mundo, e o lado
humano desprezado por essa moral acabou ressurgindo. O resultado foi a crise dos valores
ensinados durante todos esses culos. O mundo sem fim e sem objetivo retornou. Melhor
ainda: a máscara da metafísica cristã-platônica caiu. O nada voltou para ficar enquanto parte
do processo do vir-a-ser. entra Nietzsche para dizer que uma outra postura é possível diante
desse niilismo. Tal atitude é dizer sim à vida como ela é. Tornar-se aquilo que se é. O sentido da
vida é vivê-la em plenitude, o que significa não buscar fora dela um motivo para viver outra vida.
A função da transcendência não deve ser a de desvalorizar a existência. A felicidade é sentir que
no todo da vida alegria e sofrimento. Assim é que, por várias vezes em suas obras, o filósofo
sempre dizia que, mesmo quando estava doente, nunca esteve tão saudável. Ser feliz é não
entender a vida como obstáculo.
Desse ângulo, compreende-se melhor o que é a morte de Deus para Nietzsche. o é o
fim da vida. É o retorno a ela. O seu além-do-homem -se nesse mundo, que Platão designou
como o mundo ilusório. O "Übermensch" é o ser humano capaz de passar incólume, diversas
vezes, pelo niilismo.
"(...) A menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor
suspiro, tudo o que pertence à vida voltaainda a repetir-se, tudo o
que nela de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno
(...)
101
A morte de Deus está ligada ao aparecimento do "super-homem" e este está
intimamente ligado ao eterno retorno do mesmo, no qual somente os fortes são capazes de
101
FW/GC. § 341, p. 219.
85
continuarem vivos (no sentido de que não necessitam de uma "muleta existencial").
Portanto, se a concepção moral cristã e seu Deus não tivessem ruídos por si mesmos, o filósofo
certamente seria aquele que desferiria o "golpe fatal", enquanto um alerta diante da vida tal e
qual. Porque, ao final, é ela quem acaba vencendo. Não esquecer, então, que vida é vontade de
potência.
A morte de Deus também faz o homem retornar à concepção trágica da vida.
Porém,
não com pessimismo. Trágico é sinónimo de tudo aquilo que diz respeito à condição da
existência. O ser humano de antes de Sócrates e Platão acaba por retornar, porém melhor
ainda. Na idade trágica dos gregos, o pessimismo era marcante. Era com a tragédia que eles
conseguiam driblar a dura exisncia. Agora, com o novo humano cunhado por Nietzsche (seu
além-do-homem), é apenas um afirmador que não quer mais ser pessimista. Herdou dos
gregos o lado trágico, mas soube fazer dele a ponte para sua aprendizagem. Acima de tudo, é
preciso que se viva. Esta é a máxima. E todas as respostas nunca devem ser procuradas fora de
si, fora da vida (o que aconteceu com o cristianismo-platônico).
"A perspectiva trágica o consiste de modo algum em fazer brilhar
no horizonte do desejo um algo inacessível, objeto de uma 'falta' e de
uma 'busca' eternas, cuja história se confunde com a história da
'espiritualidade' humana. Ela faz aparecer uma perspectiva exatamente
inversa: mostra ao homem como o ser a quem, por definição, nada falta;
donde sua necessidade trágica em se satisfazer com tudo aquilo que tem,
pois ele tem tudo"
102
Diante da morte de Deus, fica estampada a filosofia de Nietzsche: a filosofia do porvir e
da experiência. Quando ele se refere a ela, é sempre como vivendo-a, experienciando-a. Tudo o
que era estranho à vida, o filósofo denomina de moral (entendendo sempre que, para ele, esta
sempre representou a inversão dos valores vitais) e liga-a estreitamente ao cristianismo
enquanto platonismo e metasica. E bastante específica. Em sua concepção, o querer viver não
102
Clément ROSSET.Lógica do pior p. 44
86
pode dar-se de outra maneira que não seja a vontade de domínio. Viver é, realmente, dominar. O
oposto também é válido: quem não domina, não vive. Por isso, era tão avesso a Schopenhauer. A
visão schopenhauriana do mundo é pessimista e, por decorrência, da vida também. Para esse
filósofo do pessimismo, quem renuncia a vida é porque não vive como quer. Nietzsche não
aceita isso, pois a vontade de poncia não sabe o que é render-se. Quer ao fim e, porque
assim é, não desiste de viver. Se a concepção schopenhauriana acolhe o suicídio, porque é isto
que está por trás do não querer viver (autodestruição), a nietzscheana tem como meta a
afirmação da vida. Em Schopenhauer, a vontade é um mau e uma fonte de destruição. Para seu
opositor, a vontade é vontade de poncia e, por isso, é realização sempre. A vontade de
domínio não pára de querer e aqui está o segredo da manutenção da vida. Realmente, todos
o de convir que, até mesmo numa forma simplista, quando alguém o deseja mais nada, aí
começa sua decadência. No mundo, o que tudo move é o vir-a-ser. É o devir que é eterno. A vida
dentro desse devir, o pode ser diferente. Viver, portanto, é sempre um vir-a-ser.
Continuando a falar da moral, esta despreza o lado dionisiaco da vida
103
. A moral é
racionalista. Isso Nietzsche notou desde a formação de suas raízes e posicionou-se
coerentemente.
"Por exemplo, eu não sou de modo algum um espantalho, um
monstro de moral; sou, inclusive, uma natureza antitética dessa
espécie de homens venerada até agora como virtuosa. Dito entre s,
parece-me que justamente esta forma parte de meu orgulho. Eu sou um
discípulo do filósofo Diosio, preferiria ser um sátiro do que um
santo
104
.
103
É pela embriaguez causada pelo dionisiaco que chegamos a sentir a vida. O que é isso? Com Dionísio, há um
sentimento de expansão das forças. O que podemos aprender desse deus? Que o nosso contexto existencial é um
"pathos". Com isso, tanto o mundo aparente quanto o mundo "verdadeiro" do platonismo se desfaz. Cf. Martin
HEIDEGGER. La voluntad de potência como arte. In: Ramon Peres MANTILLA (org.). Eco - revista de Ia
cultura de Occidente. p. 566. Nietzsche apela para Dionísio por ver nele uma saída da supressão de nossas
emoções, de nossos impulsos criadores. Uma "porta aberta" diante do racionalismo que acabou por enquadrar a
moral contra uma "ética da vida", pois esta é desmascaradora de nosso pseudo-viver.
104
EH/EH. Prólogo, § 2, p. 16.
87
Ele critica a santidade porque esta sempre veio dissociada deste mundo. Mas a moral elevou os
desprezadores do corpo, dos prazeres (parte importantíssima da vida), à categoria de homens
mais pximos da perfeão. A partir do foco nietzscheano, a santidade é uma doea. Outra leitura
que Nietzsche realiza é a do filósofo dionisiaco, sendo que a tradição filosófica coloca-se mais ao
lado do apolíneo. Ao fazer isso, ele quis emitir o "equibrio”
105
que estava faltando à filosofia.
Durante muito tempo de dominação de Apoio, é preciso agora um tempo considerável da
dominação de Dionísio. Por longa data, a filosofia submeteu-se aos mandamentos da
razão e, depois, da
106
. É hora de perceber a vida em sua plenitude. Se pensar é ser, certamente
ser o é pensamento. Inclusive, nesse ponto, uma superação da perspectiva cartesiana.
Pensar é apenas uma característica da vida.
o rias análises presentes a respeito de um mesmo assunto, para que, ao final, opte-se
por uma perspectiva mais convincente, porque dinâmica. Aqui está localizado também o
perspectivismo de Nietzsche
107
. Sem ele e sem seu procedimento genealógico, a percepção da
desconstrução de Deus ficaria mais difícil de se entender. O filósofo não adotou nenhum
sistema filosófico para construir seu próprio caminho. Ele dava muito valor à autenticidade, pois
esta se liga intimamente ao poder da criação. O Nietzsche filósofo sofreu alguns "encaixes"
por conta da História da Filosofia, porém muitos reconhecem que ele atuava mesmo era por
aforismos. Era o seu modo de expressão
108
.
Desconstruir o Absoluto foi o objetivo do filósofo, o qual o podia considerar como
sendo a Verdade aquilo que teria sido invenção humana. Porque também todo tipo de criação que
não acompanhasse este Ser, acabaria sendo obra de pura heresia. Tudo, por longos séculos,
105
Devemos entender bem a palavra em destaque. Equilíbrio, para o filósofo, não significa nunca ausência de
atritos. Até é necessário que eles existam para que haja vida. Significaria, outrossim, uma aderência à
complexidade humana.
106
É preciso tomar muito cuidado com a questão da fé. Afinal de contas, ela também está associada a valores.
107
E o perspectivismo é 2 condição fundamental da vida, tratava Nietzsche. Cf. Martin HEDDEGGER, La
voluntad de potência como arte. In: Ramon Peres MANTILLA (org.). Eco revista de Ia cultura de Occidente. p.
567, São várias as perspectivas, porque são muitos os centros de forças.
108
Cf. Scariett MARTON, Nietzsche e a celebração da vida: a interpretação de Jõrg Salaquarda^ In: Cadernos
Nietzsche 2. p. 8.
88
tornou-se submisso a um Criador. Este o poderia jamais ter uma causa, pois Ele estava no
início de todas as coisas. E quando alguns homens puseram-se a montar todo um sistema moral
a partir dessa crença numa ideia como realidade, umabua de valores passou a ditar normas para
uma existência que levasse em consideração apenas a alma. Tais pessoas tornaram-se pastores
de um rebanho. Os que ousavam quebrar as regras, logo eram vistos como pecadores. Mesmo
que não se dispusessem a sê-lo. O resultado imediato, apesar de se dizer o oposto, foi o ódio
contra todos aqueles que se orientavam pelos seus próprios valores. Também foram relatados
casos de "ovelhas" rebeldes. Isso era ainda pior, pois chamavam para si todo o desprezo da
"comunidade". Dessa forma, Nietzsche conseguir apenas ver a decadência nesse tipo de cultura.
O texto bíblico passou a ser referência no lugar do próprio texto da realidade. Como um filogo,
ele aprendeu a ler lentamente. Degustava as palavras a fim de sentir o "sabor" por trás de cada
uma delas. Nesse trabalho, descobriu o Absurdo amparando o cristianismo. Procurou e achou a
falsificação presente na maquiagem da língua. Seu procedimento foi, sem dúvida, genealógico. A
etimologia, para quem atentamente seus livros, é uma constante. Petrificada em conceitos,
encontrou todas as ideias ligadas à Ideia xima. Uma interpretação danosa tomava conta de
todo o universo. A Terra, um equívoco no meio dela. Enfim, para chegar-se à seguinte
conclusão: o Perfeito criou o imperfeito. Voltando-se a pronunciar aqui: o Absurdo dominava.
Para o aparato bíblico foi erigido um outro para sustentá-lo. As instituições cresceram e
acabaram por se impor. O filósofo e filólogo concluía que a desonestidade seria o princípio do
cristianismo. Ocultar ao ser humano sua potencialidade para amansá-lo, torná-lo
domesticável. Construir um rebanho exige, por parte dos comandados, uma obediência cega. Se
assim não fosse, a liderança estaria em perigo. Que espécie de mentalidade corre às
escondidas? Certamente é a de domínio. Aqueles que dominam querem atacar a vontade de
poncia para que o tenham opositores à altura ou até melhores
109
. Sempre have rebanhos
109
Se soubessem o quanto estão repletos de vontades de potência (no plural, como preferimos). O que querem
está, então, mais próximo de quererem destruir tais vontades nos outros. Impossível. O mundo é vontade de
89
nessa situação. A meta, inclusive, é para que haja um só rebanho. A disputa entre os pastores se
faz presente, pois cada um quer para si a exclusividade de ser o representante do Grande Pastor.
Uma confusão instaura-se até entre aqueles que dizem almejar a perfeição porque Deus é
Perfeito. Colocam-se dentro do velho padrão de imperfeição, o qual foi estabelecido pela
conotação cristã-platônica. Uns acham-se mais próximos do comportamento moral exigido.
Entram numa enorme contradição, na qual não enxerga a hipocrisia quem não quer, ou
quem ainda está tomado pela cegueira de um Amor queo existe.
Tal tradição esde tal forma arraigada nas mentes, que o é difícil perceber quando
alguém se vê, apesar do esforço em desmascarar todo esse contexto, envolvida em tal
armadilha. A moral encarna-se num discurso que transforma palavras vazias em medida de
comportamento. Essa condição a torna forte. A religião faz isso.
Ainda com relação às influências citadas, Nietzsche recorre sempre ao problema da
interpretação para mostrar como se manipulam as coisas.
"O modo como um teólogo, o mesmo em Berlim e em Roma, interpreta
uma palavra da Escritura' ou um acontecimento, uma vitória do
exército de sua tria, por exemplo, à luz superior dos salmos de Davi, é
sempre tão audaz, que um filólogo, ao ver isso, sobe pelas paredes. E
que fará quando os pietistas e outras vacas da Suábia atarem essa
mísera cotidianeidade e essa habitão cheia de humo que é sua
existência com o 'dedo de Deus', e a transformarem num milagre da
'graça', da 'providência', das 'experiências de salvação?”
110
Para além das "letras puras", enxerga a força teologal sempre em busca de
justificação conforme a conveniência. Um filólogo assim podia autodenominar-se
potência, conforme estudaremos na segunda divisão deste capítulo. E se há mando e obediência, por isso existem
centros de forças; também não podemos esquecer que tudo está num incessante movimento. O devir.
110
AC/AC, § 52. p. 90.
90
como o "anticristo
111
. Fez, pelo que se nota, questão de enfrentar os hipócritas detratores da
existência, sempre escondidos atrás de seu Deus.
O que se pretendeu ao anunciar com mais veemência a morte foi também mostrar que um
determinado tipo de uso dos conceitos estaria em declínio e, junto com ele, sua utilidade em
servir de instrumento para que o cristianismo pudesse manipular mais o homem, em face da
visão dual de corpo e alma, daí para a frente. A repercussão cultural do mundo cristão pôde,
então, ser questionada. A própria Bíblia também, em função de interesses diversos, mostrou que
es aberta a uma rie de interpretões, algumas exageradas e extremamente forçadas,
conforme mostrou, na citação acima, o próprio filólogo. Mais problemático ainda foi o Novo
Testamento ter, praticamente, encaixado-se ao Antigo. Testemunhando a transformação e a
apropriação realizada pelo cristianismo diante dos olhos do judaísmo. O Apocalipse é bem
enfático e, claro, acaba mostrando uma vitória final, a qual não deixa de ser a de um povo eleito
segundo as promessas cristãs. Isso reforça tremendamente a esperança numa virada do jogo da
vida a favor daqueles que aprenderam a depositar sua confiança no além-mundo do platonismo.
Assim sendo, quem amou este mundo tal qual ele é, ou que ainda o faz, só pode aguardar para si
a condenação eterna. Porque a própria vida enquanto vontade de potência está condenada. Um
golpe e tanto, mas que, com o niilismo provocado pelos valores cristãos, acabou voltando-se
contra estes mesmos
112
. A vontade de domínio continua reinando e é preciso que as pessoas
111
Não só isso. Nietzsche possuía outras autodenominações exclusivas, as quais, por sinal,
caem-lhe muito bem.
'"Eu não sou um homem, sou dinamite". In: "Por qué soy un destino". EH/EH. § 1, p.123.
Dinamite mesmo,
porque somente assim é que pode pôr-se de frente com uma tradição milenar e questionar-lhe
as mais profundas
raízes. É este o filósofo que propõe a transmutação de todos os valores. Ele sabia o que estava
fazendo e a
dimensão do seu alcance.
112
Estamos fazendo a abordagem do cristianismo como "platonismo para o povo". De onde vem a "morte de
Deus" e, diga-se claramente, de uma certa religião? "O traço distintivo daquilo a que chamarei o ponto de vista
metafísico e objetivista da transcendência, que vindo da ontologia platónica chega ao realismo empírico tio
positivismo (a atitude que inspeciona e ajuíza da efetiva presença dos seres), institui dicotomias rígidas no
interior da experiência religiosa". Cf.: Aído Giorgio GARGANI. A experiência religiosa como acontecimento e
interpretação. In: Jacques DERRTDA e Gianni VATTIMO (orgs.). A religião
. 138. Esse dualismo de raízes
platónicas acabou por desfigurar o sentido de religião que retomaremos no quarto capítulo. Com isso, tudo o que
91
tenham consciência disso, pois, de outro modo, podem cair na tentação de outras dimensões
do tipo cristã-platônica. Negar a vida como ela é, significa renunciar a si mesmo. Ora, se
existe uma renúncia necessária, é a do homem idealista. Nesse âmbito, o além-do-homem é a
superação daquele que está. E o que é chamado de egoísmo do Übermensch nada tem a ver
com aquele egoísmo desse humano decadente, pois é um egoísmo que diz sim à vida terrena.
Permanecendo mais na crítica aos valores criados pelo cristianismo, o filósofo
endereça um ataque frontal aos mentores da institucionalização judaica-cristã, segundo ele
mesmo:
"A realidade, no lugar dessa mentira digna de comiseração, disse: uma
espécie parasitária de homem que prospera â custa de todas as formas
s de vida, o sacerdote, abusa do nome de Deus: a um estado de coisas
em que o sacerdote é quem determina o valor das coisas o mesmo o
chama 'o reino de Deus'; aos meios com que se alcaa ou mantém-se
em esse estado, chama-o 'a vontade de Deus'; com um frio
cinismo se am, ao valorar os povos, as épocas, os indivíduos, ao
grado em que haviam sido úteis ou tinham-se opostos à prepondencia
dos sacerdotes (hipocrisia)
113
É possível entender o porquê de Nietzsche pretender uma transvaloração dos valores.
É contra a Igreja, e também contra o Estado, que ele atua, porque, durante muito tempo, viu na
uno desses dois ídolos a construção de uma moral que lhes favorecesse a continuidade. Sua
"filosofia do martelo" presta-se a destruir tais exemplos e toda idolatria que eles acarretam. É
preciso deixar bem claro, portanto, que a morte de Deus interfere profundamente na Igreja e no
Estado, ainda que este seja separado daquela. A religo é o desvio da vontade de potência,
daí se originou podia cair no "nihil", visto que a natureza não é dual. O ser humano, como natureza, também
não pode ser perpassado pelo dualismo. Essa metafísica platónica e a separação positivista entre fatos e
interpretação (" há fatos": característica positivista) têm seu problema numa única base; "a vontade de
verdade", endossada pelo "ideal ascético". Tanto que a crítica do filósofo faz-se única, tanto com relação à
metafísica como com relação à ciência advinda do positivismo. s diríamos, noutras palavras, que a metafísica
matou Deus e, durante todo tempo nas obras de Nietzsche. pudemos perceber que seu obietivo foi acabar de
destronar um dualismo que, por si só, já estava em decadência. Como já afirmamos noutras considerações: com a
metafísica tudo nasce sem vida. As teorias dualistas não entendem da vida. Por isso, desde Platão, foi necessário
criar um "além-mundo". No cristianismo, um "além-vida", ou uma vida eterna que em nada corresponde à
eternidade da vida, desta vida,
113
AC/AC. § 26, p. 53. Os parênteses são nossos, para dar destaque à hipocrisia contra a vida. Nietzsche sempre
faz alusão à esperteza do sacerdote, digamos assim, à sua "má-fé".
92
enquanto faz recorrência a um "Deus Todo Poderoso" para se consolidar. Os ídolos (Igreja e
Estado) utilizam a religião para mascarar sua própria vontade de poder, e fazem isso (e aí, mais
a Igreja) negando essa mesma vontade. A cruz e a espada sempre foram bons aliados para
obterem privilégios. Atuando ora em nome de um poder no além que lhes justificava, ora como
representante de uma comunidade ou nação, acabavam por desempenhar um papel de
formadores de servos para si. Nisso tudo, a moral sempre foi fundamental.
Mas, com a morte de Deus, o tipo humano atual vê-se diante de algo queo deu certo e o
que, habitualmente, vinha tendo como o seu eu, acabou por desmoronar. O Estado procura
readequar-se; a Igreja também. Todos sentiram o baque da desestruturação. A vida, no
entanto, continua plena de vontade de potência. Ela não é uma construção como a cultura,
principalmente não faz parte de uma decadência cultivada por milénios (mais propriamente, dois
mil anos). Uma "realidade" forjada tão distante da vida foi o corolário de certa linguagem
moral, que foi a pedra angular de uma fé. Deus foi assentado sobre esse jogo de língua em que a
ficção tomou o lugar do real. E, por meio dessa instituição fantasiosa, muitos foram batizados. O
batismo funcionava como selo, garantindo às pessoas uma "identidade" que lhes projetava para
fora do mundo, mesmo estando enraizados nele. Batizar, na verdade, tornou-se um ato pelo qual
se adulterava a vida, porque servia como senha presente num ritual para oficializar a sacralização
dos homens como filhos de Deus. Com a morte d'Ele, uma multio ficou órfã. estava nessa
condição bem antes, apenas retornara ao niilismo anterior ao estabelecimento do Criador
114
. Não
foram poucos aqueles que se dispuseram como criaturas de um fantasma denominado
"Senhor". O tipo humano cunhado pela tradição judaica-cristã é o próprio retrato do desespero
diante do trágico. Parece não terem aprendido nada com os gregos da tragédia.
O filósofo traçou o caminho da nova aprendizagem que vai do "Nascimento da
Tragédia" até seus escritos póstumos. No lugar de Deus (ou do nada), resgatou o que sempre foi
114
Para escapar de uma sensação de vazio, muitos caíram na armadilha da metafísica (simulacro do "nihil"). Daí
surgiu um Deus, que agora morre.
93
e continua sendo a fonte de toda criação: a vontade de potência. A vida, enquanto tal, habilita o
ser humano a ser criador. A filosofia de Nietzsche é experimental, na propriedade de
experimentar o mundo. É isso que ele pretende realizar quando evoca a vontade de potência.
Também, muito além do platonismo, o sentido do mundo como uma única coisa que
possibilita inúmeras perspectivas, pois elao é estática.
"Evidentemente, Nietzsche o visa a unidades fechadas e sem janelas,
mas a unidades de duração breve; não substâncias, antes, simples ondas
no mar. E também houve precursores na história da filosofia, desde a
'amizade' e a 'discórdia', de Empédocles, até a concepção de um Ser
Absoluto, perpassado pelo sofrimento da finitude e pela enorme
potência do negativo, e que se restabelece após todas as divisões e
todos os dilaceramentos, atingindo a fórmula hegeliana da 'sexta-feira
santa-especulativa'. São numerosas, na história, as afirmações sobre o
mundo que colocam, ao mesmo tempo, unidade e multiplicidade,
identidade e diferença, oposição entre fenómeno e essência, de maneira
dialética ou mística, em fórmulas explosivas, mas em parte alguma
pode-se esclarecer o fenómeno de um mundo único, que o cessaria
de se despedaçar a si mesmo”
115
.
O que seria Deus para o filósofo? Um conceito nada inocente. Revela valores que
tornaram capaz a manifestação de um ídolo em detrimento da realidade
116
. A conceituação, como
se pode notar na morte do "Supremo", é imprescindível para o esclarecimento da polémica.
Tal idolatria conseguiu mostrar o cansaço do homem diante das dificuldades encontradas na
Terra. Interessante que, além de tudo o que foi visto, esta questão idolátrica indica o conceito
como ídolo recheado de valores (pois ele não se cria a si mesmo). Portanto, criadores de
ídolos e, respectivamente, existem idólatras. Os dados conceituais precisam de ateão especial,
porque o ideias fixando-se para serem idolatradas. Nesse ponto, Nietzsche abriu caminho para
que as pessoas o se deixassem mais serem joguetes de fundadores de religiões. O filósofo é
115
Eugen FINK, Nova experiência do mundo em Nietzsche^ In; Nietzsche hoje? Seleção e apresentação de
ScarlettMARTON, p. 184.
116
Vale dizer: deste mundo como uma monstruosidade de forças, conforme o estilo nietzscheano.
94
destruidor de ídolos no sentido de remover as caricaturas dos mesmos, as quais não passam de
vies deformadas da realidade, pois esta não cria nenhuma moral. O real é vontade de potência
enquanto vir-a-ser. Como são os criadores de valores que interpretam o mundo, pois neles
é que paira a análise nietzscheana. Ela foi uma reinterpretação da "morte de Deus", a fim de
que fosse realizada uma constatação: a de que o apenas uma interpretação do mundo
117
. A
idolatria cristã-platônica es diretamente ligada a uma versão e é isto que a filosofia de Nietzsche
combate.
A idolatria cristã é contra a natureza e, conseqiientemente, seus "altos" valores caem no
niilismo. Por isso, o estudo nietzscheano é uma filosofia da cultura e, especificamente, da moral.
Na realidade, o que acaba acontecendo é que o filósofo localiza os sintomas de um determinado
ídolo enraizado culturalmente, o que mexe com o comportamento de grupos e pessoas.
Pensamentos estranhos aos costumes acabam gerando um desconforto. O instituído é posto à
prova e o perigo de uma tonalidade crepuscular vai se fazendo presente, É o "martelo" de
Nietzsche. A "blasfémia" nietzscheana é medida pelo impacto que causa ao afrontar o que es
estabelecido como sagrado. É o olhar cultural que age na qualificação ou desqualificação das
pessoas. Também é segregador em relação ao bem e ao mal, isso moralmente falando. Toma-se
um parâmetro numa ênfase idolátrica para se dizer o que é verdade e o que é mentira.
Com isso, fica melhor a compreensão que se pode ter da forte crítica nietzscheana a respeito do
cristianismo e de seu Deus platónico. Por tal desfecho, é que o bermensch" do filósofo vem
por um fim ao humano decadente. O homem pensa a si mesmo sem sentido algum longe da
escatologia; eno, merece ser ultrapassado pelo seu "além" na própria Terra.
117
Esta é uma crítica específica ao cristianismo. Ao platonismo, é claro. "(…) A tradição
metafísica que, segundoNietzsche, dominou , após Platão, sobre o pensamento ocidental". Cf.
José Ignacio GALPARSORO. La volonté de puissance chez Nietzsche, In: Revue - Les études
philosophiques, p. 458. Para o filósofo, lembramos, toda a questão teórica começou com
Sócrates, seguiu com a metafísica de Platão e culminou, religiosamente, em São Paulo (o
fundador do cristianismo, seeundo já tratamos).
95
Nietzsche golpeia tremendamente aquela exclusividade de uma teologia, que via nos que
atuavam fora de sua linha de alcance uma ameaça idólatra, quando, na realidade, esse mundo
teologal escondia sua própria idolatria. Ele justamente por meio do silêncio imposto pelos
temores morais. Num mundo de aparências, é sempre bom desconfiar da verdade. Esta pode ser
apenas um rol de preconceitos no qual toda uma teoria é fundamentada. Por isso, o filósofo
muita importância à questão da interpretação.
O que entra em cena agora é a correspondência entre quem cria e o que é criado. A
criação pode ser vista de ângulos diferentes numa relação de criadores e, melhor, quanto
maior o número de perspectivas pelas quais um criador puder olhar aquilo que existe, porque
assim pode compreender a grande foa criadora da vida, da vontade de poncia. Privilegiar um
olhar é possível porque antes a relatividade fez parte do percurso. Assim é o
perspectivismo. Outra coisa é querer congelar a vontade num olhar estreito: é um grande
equívoco, pois ela está intrinsecamente ligada ao devir. Porque eterno é somente o vir-a-ser e
dele faz parte a vontade de potência e seu tempo é infinito. É dessa maneira que o foco
nietzscheano volta-se para uma explicão cosmológica da exisncia, porque, afinal sua base o
é, como já foi visto, utópica. Razão e mundo não devem se opor, pois a primeira é apenas parte do
segundo. Eis a pugna com Platão e com toda teologia daí derivada. A razão que nega seu impulso
es negando-se a si mesma. Por trás da racionalidade es a vontade de poder. Domínio é a
palavra-chave. No fundo, volta-se ao problema moral, e o que é esta senão a demonstração de
relações de força no ser humano. Por isso ela é controladora, dominadora.
"E quase sempre um sintoma daquilo que falta nele próprio, quando um
pensador sente em toda 'conexão causa' e 'necessidade psicológica' um
quê de coação, exigência, obrigação de seguir, pressão, não-liberdade:
estas são impressões delatoras; a pessoa se trai"
118
118
JGB/BM. § 21, p. 27.
96
A vida é necessidade de se satisfazer. O que significa que também a própria moral não
passa disso, com uma diferença: mascara-se a fim de justificar que seu domínio não faz parte da
vontade potência. É nela que o cristianismo se ampara, com o intuito de negar aquilo que
também é: a isso se denomina hipocrisia. A moral não deixa de ser um querer estampado
dentro da vontade, o que ela nega a todo instante. Alegar inocência o parece o mais
adequado para também se colocar acima de bem e mal, para dizer aos outros o que é bem e mal.
Aqueles que se apoiaram nesse tipo de postura e pretenderam criticar o filósofo em sua
transvaloração, na verdade acabaram por fazer pior: inverteram o ponto de apoio de toda
avaliação, que é a própria vida enquanto nossa existência concreta. Dessa inversão partiram para
a elaboração de novos valores distantes da realidade. encontraram uma outra vida. Pois, de
algum modo, perceberam que a própria vida enquanto concretude ou conceito é o motivo de
todo e qualquer valor ou desvalor. Se esta incomodava tanto aos criadores da moral cristã-
platônica, era preciso que uma esperança baseada na crea de uma eternidade melhor lhe
tomasse o lugar. A partir disso, todo valor anterior passava a ser negado. Somente aqueles
antecedentes que serviam para confirmar a "nova ordem" é que seriam bem-vindos. Exemplo
claro disso: o Antigo Testamento, que fornecia a base para o Novo.
Nisso tudo, Nietzsche propõe que sejamos francos e que assumamos nós mesmos a
responsabilidade pelas nossas construções e desconstruções. Se o filósofo expressou seu
projeto para viver melhor a eterna criação que a vida possibilita, sem negá-la em instância
alguma, é porque sentiu que dessa forma poderia dedicar-se ao humano sem dualismos.
Inclusive, é isso que faz com aquilo que chamou de apolíneo e dionisíaco no homem. São
formas de uma mesma realidade. Nós possuímos nossas forças apolíneas e dionisíacas. Ora
exaltamos uma, ora outra;, no entanto, elas o eso à mercê de uma escolha nossa de querer
anular qualquer uma delas. A existência o nos pede se queremos que ela se assuma nossos
97
sonhos, mas responde com toda energia quando tentamos substituí-la por uma visão que não
corresponda àquilo que ela é. As mudanças existem, contudo nunca fora da natureza. Caso
contrário, cairíamos novamente na definição de utopia como "em lugar algum". E o olhar
nietzscheano, nesse sentido, não é utópico.
Com ou sem Deus, o homem está condenado a viver? Diante deste questionamento
somos levados ao terceiro capítulo de nossa pesquisa buscando respondê-lo de forma satisfatória.
98
C A P Í T U LO 3 - NIETZSCHE, A ÉTICA E A MORAL DE UMA NOVA GERAÇÃO
Num comentário necessário a respeito da primeira parte da dissertação, a qual
terminou no tema da transvaloração, podemos dizer que colocamos também a genealogia e o
perspectivismo, antes de falarmos na cosmologia nesta terceira parte, porque todos eles
estarão presentes no olhar cosmológico e serão as matrizes nietzscheanas que reunirão
condições para responder à problematizaçao sobre a desconstrão de Deus, a qual foi
possibilitada pelos elementos matriciais já citados e trabalhados, tendo em vista um outro ponto
de vista religioso aqui em nosso trabalho, que chamaremos de "a nova religo". É certo que
faremos uso das definições de Eliade
119
no que tange ao assunto. Por que somente no fim? Por
querermos demonstrar que existem outros meios para justificar a polemica que levantamos nesta
pesquisa e, entre eles, eso inclusive os do próprio fisofo. Porém, a perspectiva eliadiana nos é
importante; afinal, ela revelará traços congruentes no que diz respeito à versão da religião
como sentido existencial
120
. O estudioso das religiões, adiantamos, não nos servirá de endosso ao
que pretendemos. O objetivo é outro: conseguir mostrar que a visão de religo pode ser ampliada.
Nisso, ele colabora. Nietzsche, como veremos, não escapa à sua condição religiosa; apenas sua
"religo" se completamente outra. Mas o iremos entrar em detalhes agora. Escrevemos
isso com a intenção de indicar que o estudo da cosmologia nietzscheana não auxilia num
melhor entendimento do procedimento genealógico, do perspectivismo e da transvaloração, como
também justifica o que vem substituir o Deus que morreu. A discussão sobre se Ele morreu ou
o, nem é nosso alvo. partimos, no início da segunda parte, da constatação do fisofo
sobre Sua morte. Entretanto, Nietzsche abriu o caminho da "dissecação". Digamos que ele
119
Apesar de ser um fenomenólogo (atendo-se a um dualismo sujeito-objeto),
consideramos que ao comentarmos o assunto "religião", não podemos deixar de fora um dos
que mais se dedicou a ele. Porém, não nos deteremos somente em Eliade. Inclusive, no
próprio Nietzsche encontramos nosso respaldo. Por estranho que possa parecer.
120
Isso consta do nosso obietivo.
99
pode ser, e muito bem, o “legista do conceito ocidental de Deus”
.
A cosmologia, além da
contribuição dita no parágrafo anterior, remeter-nos-á à compreensão mais ampla da inversão
dos valores, a qual ocorreu na relação do fraco mediante o forte. Falaremos por meio do conceito
nietzscheano de força.
“A força reativa, mesmo quando obedece, limita a força ativa, impõe-
lhe limitações e restrições parciais; está possuída pelo espírito do
negativo. É por isso que a própria origem comporta, de qualquer
maneira, uma imagem invertida de si: vista do lado das forças
reativas, o elemento diferencial genealógico (a vontade de potência)
aparece invertido, a diferença tornou-se negação, a afirmação tornou-se
contradição. Uma imagem invertida da origem acompanha a origem: o
que é 'sim' do ponto de vista das forças ativas torna-se 'o' do ponto de
vista das foas reativas, o que é afirmação de si torna-se negação do
outro”
121
Assim, para entender a grande imporncia do procedimento geneagico. E o que vem
a seguir mostrar-nos-á ainda mais esse lado, o que somente o enfatiza e fortalece sua
imprescindibilidade.
O que é a cosmologia nietzscheana? Em prinpio, uma nova visão de um mundo sem
Deus
.122
No mundo que o mais era criação de um a priori, restava ser visto com uma nova
perspectiva. Num olhar cosmológico amplo, porém finito, é que Nietzsche procurará assentar uma
genealogia diferente. Na origem de tudo está um conjunto de foas ativas e reativas, mas não sem
uma vontade de potência afirmativa ou negativa. Ou seja, a existência de todas as coisas é dada
por um viés energético e não pelo átomo, apesar de as forças se constituírem em disputa que dão
forma ao que existe, e de darem a parecer que são os átomos que se organizaram para que
121
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 85. Os parênteses são nossos, pois o elemento diferencial -
vontade de potência - indica o "quantum" de força nos fortes (ativos) e nos fracos (reativos).
122
O motivo do grifo: em princípio sim, porque, depois, tomaremos uma direção de que existe uma conotação
divina no mesmo. Isso não significa que estaremos circundando novamente a existência de um Deus pessoal.
muitas possibilidades de deuses. A propósito, isso não é novidade para nós. O novo girará em torno da vontade
de Potência sob uma ótica diferente.
100
surgisse isso ou aquilo. A teoria atomística definitivamente o faz parte do cosmo
nietzscheano, nem a de Demócrito nem a de Leucipo. Pelo filósofo, tudo nos leva a crer que o
o os átomos os fundadores e transformadores do universo. Aliás, seria melhor falar em outros
termos, pois para Nietzsche o universo não foi criado ou fundado. As forças enquanto vontades
de potência sempre estiveram aí, no seu vir-a-ser. A marca genealógica, portanto, não está nos
átomos e genealogia aqui não quer dizer simplesmente origem no sentido de "início", mas
origem enquanto a descoberta nietzscheana do conteúdo cosmológico. que tal "essência"
não é ontológica e unitária. Ela é um devir-plural. Poderíamos pensar assim: até os átomos não
passam de vontade de potência, a efetivação das forças. Mas o que são tais forças? São todo o
poder do cosmo presente de forma múltipla. E as vontades de poder ou de potência? São aquelas
que permitem as relações entre as forças (o poder). Uma não se realiza sem a outra porque "(..,) o
poder é aquilo que quer na vontade
123
(a vontade, por si, não aspira ao poder, o é ela que o
quer). Aqui aparece um outro problema nietzscheano. Se há aquilo que quer algo, tal coisa é o
sujeito? "E o que é ainda antropomórfico neste texto deve ser corrigido pelo princípio
nietzscheano segundo o qual existe uma subjetividade no universo que, precisamente, já o
é antropomórfica mas cósmica"
124
. Seguindo a leitura deleuziana, é possível perceber que
não existe um sujeito à nossa moda. Tal "subjetividade cósmica" não representa mais que
vontades e forças manifestando-se de maneira múltipla e, ao mesmo tempo, formando o "todo"
do cosmo. Não devemos confundir isso com uma "Razão Universal"
125
. Lembramos, aqui, que
"Deus está morto". O cosmo é, a um só tempo, uno e múltiplo. E sua "subjetividade" não implica
numa consciência. o é algm que quer, mas algo. Também não o vontades cegas, porque
elas moldam as forças e tamm são moldadas por estas. Noutras palavras, se tivesse que haver
123
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 128.
124
Ibid., p. 69.
125
Entretanto, para nós, Deleuze possibilita certas confusões ao leitor, as quais se dissiparão mais adiante quando
começarmos a mostrar a diferença entre ele e Marton. A verdade é que Deleuze abre um espaço ontológico e a
filosofia caminha pelo vir-a-ser. s preferimos a visão do autor, mas fazemos algumas conciliações. Achamos
também muito interessante o surgimento de uma nova ontologia, não mais do ser mas do devir. Cf. JoIgnacio
GALPARSORO. La volonté de puissance chez Nietzsche. In: Revue - Les études philosophiques. p. 479.
Contudo, é sempre problemático tocar no termo ontologia (onto=ser).
101
um sujeito, não haveria. Existiria, sim, por trás de todo poder uma vontade, da qual seu sujeito
o aparece, pois é a foa que quer. Então, ela é sujeito? Não como pensamos, pois não o
finalidades ou consciência, porque as forças coexistem com e na vontade em todos os seus
momentos. É da natureza delas o querer mais potência na potência, enquanto potência
efetivada. Resumindo, a força não se efetivaria sem a vontade e esta não teria plasticidade sem
aquela. Mas, já que é assim, não há um querer autonomo? Não somente isso, como também tal
querer é diverso e toda existência é um simples acaso. Nada mais que isso.
Sem vida, muitos estudiosos depararam-se com enormes dificuldades para
esclarecerem a cosmologia do filósofo. No nosso caso, aproveitamos as reflexões
desenvolvidas por Deleuze, mesmo ele usando o singular "vontade de potência"; mas iremos um
pouco mais à frente dele nas análises de Scarlett Marton, que prefere utilizar o plural
"vontades de potência". Isso não impedirá de ora usarmos o singular e ora o plural
126
.
Acreditamos, porém, que na escalada martoniana menos espaço para a metafísica.
Entretanto, vemos que para o entendimento de fundo tão complexo, não será essa dissertação que
respondeoutras dúvidas que possam surgir nesse âmbito. Mesmo Nietzsche lutou muito para
ser mais objetivo e científico na sua abordagem, e o conseguiu. o esqueçamos que ele
introduziu em sua visão o "eterno retorno do mesmo".
"Hoje é unânime entre os comentadores de Nietzsche a convicção de
que o pensamento do eterno retorno, em sua dimensão cosmológica, é
pelo menos contestável. Isto talvez não ponha em risco a cosmologia
que o filósofo arquiteta enquanto um todo; o desqualifica, por certo,
os esforços que faz no sentido de embasá-la cientificamente. Na
biologia, ele busca subsídios para elaborar o conceito de vontade de
potência; na física, encontra elementos para construir a teoria das forças.
Não se pode ignorar o interesse que sempre nutriu pelas cncias da
natureza
127
126
Como, por exemplo, usa-se o conceito de ser humano e de seres humanos, numa
alternância para falar da mesma coisa una e plural. "Jogaremos" com Deleuze e com Marton.
127
Scarlett MARTON. O eterno retomo do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético?. In:
Adauto NOVAES. Ética. p. 215.
102
Bem, podemos notar que Nietzsche parte de observações práticas e, sem dúvida, de suas
intuições. Contudo, o preconceito não deve caber aqui pelo claro motivo de que o esforço do
filósofo o se completou devido ao que todos sabem (sua saúde). Muito pelo contrário, sua
meta principal foi alcançada: pôr em questão a verdade e os valores nas suas próprias bases; ou
seja, como, de fato, foram avaliados na origem. Quanto ao trabalho de ordem física, a ciência
continua seu caminho; e quantas verdades suas já não foram ultrapassadas por ela mesma?
Para nós, a validade do trabalho de Nietzsche acerca da sua cosmologia é a de fornecer
suporte para um novo sentido na existência. É o que bastara nesta parte. Tendo falado sobre isso,
é possível prosseguir sem aquela preocupação de querer explicar tudo numa justificativa científica
a respeito de sua versão do cosmo. O teor do nosso trabalho está localizado numa filosofia da
religião, como deve ter ficado claro pelas diversas colocações anteriores. Caso isso ainda o
tenha acontecido, ainda mais o que dizer no último capítulo.
Voltando, pois, à questão das forças e das vontades de potência, cremos que, se
procuramos uma "consciência", devemos saber que, para o filósofo, ela acontece pelas
forças reativas. A consciência é constituída, na relação de forças, pelas que obedecem e que são
necessárias para aquilo que chamamos de adaptação. Tendo em vista adaptarem-se às forças
dominadoras, as que o inferiores devem "saber" disso (um instinto) e que apenas
desempenham seu papel na hierarquia universal. Para exemplificar, podemos citar o corpo
humano que é mais do que aquilo que chamamos de consciência e que esta é apenas a reação às
foas que agem nele. "A atividade das forças necessariamente inconsciente, eis o que faz do
corpo qualquer coisa de superior a todas as reações, e em particular a esta reação do eu que se
chama consciência"
128
. Isto é, as forças ativas o se localizam na consciência, mas sim as
128
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 65.
103
reativas. Se o corpo é um acaso, a consciência é outro maior ainda. Por isso, nosso lado
consciente não consegue responder às suas perguntas mais profundas sobre as causas da
existência. Em Nietzsche, o esse lado da causalidade. Predomina a idéia de acaso. Ora,
então poderíamos chamar a consciência de insuficiente? O filósofo nunca despreza a parte,
como o o faz com o "todo". O que não pode acontecer é a consciência estabelecer-se como
centro de tudo. É dessa forma que age a razão humana. Um equívoco, na perspectiva
nietzscheana. E, para os racionalistas, um irracionalismo do filósofo. Mas não seria, para o
logocentrismo, muita pretensão em sermos a medida racional? Como, então, podemos acusar
Nietzsche de egoísta (pejorativamente falando)? É o ilógico da nossa lógica.
O que significa ser ativo para o filósofo? Plasmar tudo o que está à frente de si.
Dominar é a outra palavra usada. A consciência o se apropria porque é reativa. Quando
pensamos que estamos agindo, na realidade estamos reagindo, pois a própria consciência é
dominada pela inconsciência (as forças vitais). Mas o que o mesmo essas tais forças vitais?
Energias transformadoras, nunca, contudo, independentes. Existe uma interdepenncia entre as
forças (ativas e reativas) e as vontades (afirmativas e negativas). O que faz a diferença entre
as forças é a quantidade e a qualidade (ligada a ter mais ou menos força que outra). Ativa é
toda força que está dominando; outrossim, situações em que as forças reativas dominam e
nem por isso são ativas. Como? Elas o fazem roubando parte das forças ativas. Exemplo
concreto disso na filosofia de Nietzsche -se quando o escravo inverte a hierarquia das coisas e
transforma-se em "senhor". Na verdade, ele continua escravo porque não fez mais que reagir,
e a reação (vinda do ressentimento) é própria o do senhor, do nobre, e sim do próprio
escravo, plebeu
129
. As forças ativas não dominam para responder a algo, mas porque são
mais fortes por natureza. Eis a diferença, pois os escravos, por não conseguirem dominar sobre
os fortes diretamente, fazem-no por outras formas. Ressentem-se, pois gostariam de ser
129
Não confundir este termo com as designações da Roma Antiga, onde há diferenças entre o escravo e o plebeu.
104
realmente fortes. Em verdade, toda força (ativa ou reativa) quer dominar. Foas e vontades de
poncia estão juntas.
"A diferença de quantidade é a essência da foa, a relação da força com a força
130
.
Portanto, não igualdade de forças e sempre, também, existe a hierarquia. A natureza es
hierarquicamente constituída, mas todas as coisas presentes nela dependem umas das outras.
Dominar não quer dizer, em hipótese alguma, matar. Mesmo que na natureza haja morte a
partir dessa decorncia. Não se trata de causa e efeito. Assim como matar o é um objetivo. As
forças são diferentes e estão sempre agindo e reagindo. Reagir, em tal contexto, não implica
em fazê-lo para com a ação do outro, mas pelo que o outro é. Um bom exemplo para explicar
isso é a questão da inveja. Quem reage (em termos, agora, de seres humanos) o faz porque não
tem em si o que é o outro. Logo, toda condenação moral do fraco sobre o forte é apenas
hipocrisia (quem sabe, astúcia). A moral dos fracos, em geral, é uma máscara. O que está em
jogo? A quantidade de foas que vai gerar a qualidade de forte e de fraco nos centros de forças.
Nada acontece, porém, sem o eixo disso tudo, que se chama relação. As forças precisam estar
sempre em movimento e relacionando-se umas com as outras. Nietzsche, vejamos bem, não
es interessado em medir as forças em vista de sua utilidade. Ele procura esclarecer por quê as
forças são diferentes. Em última instância, a que remete qualquer pensamento que vise
eliminar as diferenças? Ao niilismo, pois as forças o visam o equilíbrio, mas a hierarquia.
Forças reativas, entretanto, o niilistas ao retirarem parte das forças ativas a fim de dominarem
num pseudo-equilíbrio. Indiretamente, querem estabelecer uma "igualdade" quando nenhuma das
foas se iguala. Nesse caso, assim que os escravos vencem- e tomam o poder em nome da
igualdade, o que está presente é a demagogia. Isto é, a equidadeo existe. O niilismo aqui refere-
se a desprover a força do seu real sentir.
130
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 67-68.
105
Percebamos que Nietzsche aplica sua teoria das forças no campo social. Não é por
acaso que inimigos seus vêem em sua filosofia uma defesa da burguesia
131
. Mas o filósofo o
quer ser nem burguês, nem socialista, nem anarquista ou algo parecido. Teoricamente é um
aristocrata, mas, na prática, nunca defendeu nenhum tipo de Estado em seu auge filosófico.
Por sinal, para ele, quando este está em alta, a cultura está em baixa e torna-se servil. Forças
ativas: isto está no plural e o Estado pretende-se "uma" força ativa. Há vários centros de forças
atuando ao mesmo tempo e em todo o universo. Assim acontece também com o Estado. Ora
um chama mais a atenção, ora outro. Em todos os centros, porém, já está havendo quem manda e
quem obedece e a pluralidade deles é que chamamos de diferentes perspectivas, nas quais é
claramente perceptível que a genealogia, o perspectivismo e a cosmologia o íntimos em sua
ligação. Ou seja: como pode haver a tão proclamada "unidade"? Não há. Nem no cosmo, nem
no Estado. O filósofo nunca deixou de criticar os nacionalistas, por exemplo. Sem a visão
cosmológica nietzscheana, não poderíamos dizer que o procedimento genealógico e o olhar
perspectivista estariam presentes como balizas essenciais para uma transvaloração dos
valores, o ponto para o salto do homem decadente para o "super-homem". Forte filosofia da
cultura. Dessa maneira, só tal superação daria ao ser humano as condições para que pudesse viver
sem traumas dentro da concepção cosmológica do filósofo. O novo sentido da Terra é aquele
que faz o caos não ser mais problema, não porque deseja o caos. O "Übermensch" não é niilista,
porém sabe lidar com o niilismo. Mas, resgatando algumas linhas acima, quem atentamente
poderia perguntar se o houve desvio do assunto sobre o posicionamento político de Nietzsche.
o foi esta a intenção. Ele, o que para notar nas entrelinhas de seus escritos, que a
história deu-se pela reação, pois inicialmente o homem vivia mais livre para experimentar suas
131
Só para lembrar, um grande teórico inimigo da filosofia de Nietzsche e que o pensa como
alguém a serviço das ideologias burguesas é Georg Lukács, o marxista húngaro falecido na
década de setenta. Sem falar em inúmeros outros, inclusive os panfletários do livro "Por que
não somos nietzscheanos". Aliás, quem os denomina assim é a própria Scarlett Marton. Cf.: A
terceira margem da interpretação. In: Wolfgang MULLER-LAUTER. A doutrina da vontade
de poder em Nietzsche, nota de rodapé 17, p. 20.
106
foas ativas e, com o avanço de suas organizações sociais e políticas, essas tiveram que se
adequar ao grupo cada vez maior. Contudo, as forças ativas não morrem e a vontade de domínio
no ser humano sempre s em perigo qualquer organização que teimasse em se eternizar. Para o
filósofo, o tempo é infinito e todas as outras coisas são finitas. O movimento possibilita a
construção e a destruição de forma sem fim, mas ação nunca se confundirá com reação, mesmo
que as duas possam causar bens e danos semelhantes: construir e destruir. Por que, então, a
história seria reação? Por colocar-se como consciente e, aí, basta lembrar das explicões
anteriores sobre consciência. A história é pequena diante do cosmo. Assim, o filósofo não é
favorável a tudo que se aproxime de qualquer forma política que acabe perto do coletivismo, do
"universal", ou, ainda, de tudo o que denote um controle cultural. Em suma, se ele é a favor da
existência do senhor e do escravo, sugere uma sociedade escravocrata, mas, de outro lado, fornece
todos os meios para uma sociedade dita livre (não sem conflitos). Liberdade o é sinônimo de
equilíbrio. para terminar esse recorte aqui, politicamente o filósofo tem servido tanto aos
interesses da direita quanto aos da esquerda
132
. A nós, para emitir uma opinião, parece-nos que
Nietzsche é ambíguo nessa parte e, se tivéssemos que o classificar, diríamos que ele "é"
uma espécie de anarquista que o tende para o coletivismo. Com certeza, porém, ele é um
perturbador da "ordem".
De volta ao assunto específico entre forças e vontades de potência na cosmologia
nietzscheana, temos que, sobre estas últimas, as mesmas podem ser complemento das forças. o
como predicados destas. As foas nunca querem, a o ser nas vontades. Nenhuma delas é
sujeito da outra. Vontade de poder (no singular, como prefere Deleuze) é
132
Ele mesmo "não se pretende teórico do poder, no sentido estrito da palavra, e tampouco se
quer analista político. Intimamente ligadas em seu pensamento, moral, política e religião
integram um campo de investigação mais amplo: são objeto da crítica dos valores". Cf.
Scarlett MARTON. Nietzsche e a Revolução Francesa. In: Revista - Discurso, n. 18, p. 85.
Também nós, mesmo emitindo uma opinião, temos ciência da preocupação central do
filósofo. Tanto que tratamos, desde o início do nosso trabalho, sobre os pontos principais
considerados por ele em seu projeto de transmutação de todos os valores ("Umwerthung aller
Werthe").
107
"(…) o elemento genealógico da força, simultaneamente diferencial e
getico. A vontade de poder é o elemento de onde dimanam
simultaneamente a diferença de quantidade das forças postas em
relação e a qualidade que, nessa relação, marca cada força
133
A vontade de poder explica a genealogia das forças, pois ela mesma é intrínseca a elas.
As forças existem e sem a vontade de potência elas se autodestruiriam
134
. o se pode pensá-las
sem seu caráter diferencial e getico. É diferencial na medida em que, por -las na vontade,
fazem-nas disputar pela quantidade. Mas as forças ativas o incorporam as reativas, apesar de
manterem relações com estas. As reativas, por sua vez, pela vontade de poncia negativa, o
capazes de usar parte das forças ativas para a dominarem (conforme vimos). As reativas agem
por inversão e as ativas por superação. Em certo sentido, a vontade de poder sintetiza as forças
sem misturá-las. Por que isso acontece?
portanto sempre pela vontade de poder que uma força se abate sobre
outras, as domina ou as comanda. Mais do que isso: é ainda a vontade
de poder que faz com que uma força obedeça numa relação; é por
vontade de poder que obedece
135
Como explicar isso? A vontade de potência afirma as forças ativas e a vontade de
potência negativa permite que as forças reativas obedeçam. Que vontade é essa que nega? É
uma vontade de nada ("nihil"). Contudo, para entendermos como as forças ativas obedecem às
reativas, quando parte delas é apropriada por estas, é preciso percebermos que, na realidade, elas
dominam na facção que lhes cabe, sem terem a noção de que auxiliam as foas reativas a
dominarem numa inversão. Assim, por exemplo, é que muitos nobres passaram a acreditar em
Deus, o símbolo máximo da expressão reativa. o esqueçamos que na reação toda vitória
acontece pelo "arrebanhamento" e pela "cooptação". A força ativa em meio às forças reativas age
em função dessas até que se liberte. Existem dois poderes em relação, os quais o o ativo e o
133
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 77.
134
Noutras palavras: não poderiam se efetivar. E as forças não existem isoladamente.
135
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 79.
108
reativo. Agora, é preciso prestar bastante atenção, pois não é uma relão dialética de tese e
antítese. Afinal, uma força precisa da outra para dominar ou para obedecer. O caso é que a força
ativa consegue tanto obedecer quando dominar, enquanto a reativa tem dificuldades para
obedecer. No fundo, as foas ativas resistem mais aos obstáculos
136
e, com isso, crescem em
potência; ao passo que as reativas, para crescerem, necessitam da eliminação de qualquer
resisncia
137
. Pom, as forças o se excluem e nem se fundem. Há apenas relões. Logo, a
vontade de poder também precisa ser vista assim. uma vontade que cria e afirma e uma
vontade que nega e destrói. E as duas são a nese de efetivação das foas ativas e reativas.
Porém, a que cria também destrói, mas o faz para criar. E a que destrói não cria, somente
imita
138
. Entre afirmação e negação não dialética, apesar dos termos indicarem isso. A
vontade que é negativa o nega a vontade criadora e que afirma. Ora, então o que é que se
nega? A condição das forças serem reativas. Noutras palavras: o que é reativo não se pretende
reativo, por isso reage. Por estranho que pareça é isso, porque mesmo o servo pretende ser
senhor. Ou seja, as forças reativas manifestam-se pela vontade de poder negativa para
poderem estar no lugar das forças ativas. Vamos lembrar, outra vez, que a vontade possui, nela,
o poder que quer algo. E os fracos querem ser fortes. Porém, os fracos não sabem fazer
outra coisa senão reagir, ao passo que os fortes agem. Quando os fracos dominam, tomam
conta no poder, junto com eles, sua vingança, sua inveja, seu ressentimento, e, portanto, eles se
realizam negando porque reagem. Os fortes não precisam reagir, pois são eles o alvo dessa
vingança e dessa inveja dos fracos. Por que não reagem? Reagir significaria jogar com as
mesmas "armas" dos fracos. Mesmo que tomem o poder de volta, não estarão reagindo;
136
A linguagem nietzscheana é de que o obstáculo é um estímulo. Quando usamos a expressão "resistir mais",
referimo-nos ao fato de que para resistir é preciso querer mais. Portanto, nesse aspecto, a resistência identifica-se
com o estímulo. Somente neste caso, esclarecemos.
137
Entendendo aqui o seguinte: destruir a resistência é fazê-la passar para o outro lado. As forças ativas
enfrentam e as forças reativas dissimulam, mas ambas estabelecem relações. Como também centros de forças,
que são vontades de potência, entram em contato. É que Deleuze uma vontade de potência que afirma e outra
que nega; entretanto, ao final de suas análises, entende que somente a que afirma é que resiste ao eterno retorno
do mesmo, como, por sinal, identificaremos.
138
Aqui tratamos de como isso acontece no campo dos valores. A força criadora é a do "super-homem": uma
nova cultura, novos valores (a transvaloração).
109
apenas agindo para serem o que já são: afirmação do poder que domina não para vingar-se ou por
invejar o poder de reão. Enfim, todos os exemplos dados aqui ilustram como no cosmo, de uma
maneira em geral, as forças estão sempre negando ou afirmando. Essa é a abordagem da teoria das
forças. Daí utilizarmos Deleuze em suas explicitações sobre o que é negativo e o que é afirmativo,
ou reativo e ativo. Na realidade, para nós, a explicação em termos de ação e reação narra
simplesmente o movimento das foas; ou, como preferimos denominar: seu vir-a-ser. E fica
muito mais simples quando tratamos o que esem pauta com as palavras senhor e escravo. É
mais próximo da nossa condição humana.
Ainda sobre a vontade de poder, quem es por trás dela? Quem é que quer? Pois o
problema do sujeito ainda incomoda. Ora, se a força para se manifestar precisa da vontade e a
vontade o existe sem ela, a resposta está numa circularidade (lembrar, aqui, do poder que quer
na vontade). E a força "quem" quer e, nesse sentido, a vontade é também complemento seu e
qualquer coisa de interna a ela
139
. E o fundamento da força, a qual não é sujeito da ação ou
reação, porque é ela própria as duas coisas. Isso é o que Deleuze afirmara, numa outra citação,
sobre uma "subjetividade cósmica". Esem todos os lugares. Repetindo: o "sujeito" está em
todos os lugares e, por isso mesmo, em lugar algum. O que parece ser uma "Razão Universal"
o é pensamento puro. Tudo só pode ser ação ou reação e nada mais, "Verbo intransitivo". Não
uma força, mas uma pluralidade delas (ativas e reativas). Este parágrafo é só para confirmar a
impossibilidade do antropomorfismo da subjetividade.
Na realidade, tudo nos indica que Nietzsche montou uma espécie de círculo vicioso.
"Como é isso então? - Perguntei a mim mesmo. Que é que decide o
vivo a obedecer, a ordenar, e a ser obediente, mesmo dando ordens?
Escutai a minha palavra, sapientíssimos! Examinai atentamente se
penetrei no coração da vida! Onde quer que encontrasse o que é vivo,
encontrei a vontade de domínio até na vontade do que obedece
encontrei a vontade de ser autoridade"
140
139
Cf. Gilles DELEUZE. A filosofia de Nietzsche, p. 76.
140
"Da vitória sobre si mesmo". In: Za/ZA. II parte, p. 87.
110
Para o filósofo, afirmativa ou negativa, é a vontade de poder que impera e ela é, a um
tempo, a "origem" das forças e o como de ntese das mesmas (não como fusão). Pensando
dessa forma, temos que não como separá-las, apesar de se definirem particularmente. Sem a
vontade de poder, a força não pode querer a si mesma e, sem ela, a vontade não promove nem a
afirmão e nem a negão. Eis algo que Nietzsche percebeu quando arquitetou suas
explicações cosmológicas: o difícil caminho da compreensão ao pretender-se separar o
insepavel. Por isso, o há dualismos em suas formulações. O uno também o é a suma das
individualidades, mas a presença de todas elas sem juntarem-se para resultar numa espécie de ser
totalizante. Mas o que acontece no cosmo, também -se nas partes. o começo e nem fim.
Não adianta, como vimos, buscar o início da vontade de potência. Nem há espo para tal
empreita. Contudo, existem duas maneiras de abordá-la. A primeira é -la como o próprio
princípio plasmador de tudo. A segunda é tomá-la no vir-a-ser e, aí, o etemo movimento não tem
"primeiro motor" (lembrando Aristóteles), porque é etemo. Isso significa que alguns tomaram
Deus como a vontade de potência e outros disseram não ao ser e sim à vontade de poncia
enquanto devir.
No parágrafo anterior, o filósofo fala que aquele que manda também precisa saber
obedecer. Mas, atenção! Isto não quer dizer a exclusiva obediência a outrem. Ele próprio
afirma: "Todo ser vivente é obediente (...). Ordena-se ao que não sabe obedecer a si mesmo (...).
E quando se ordens a si próprio também tem que expiar sua autoridade, ser juiz, vingador e
vítima de suas próprias leis"
141
. Aqui não lugar para a vingança do fraco; este vinga-se do
forte. A idéia principal de Nietzsche nunca deixa de ser, no entanto, a vontade de potência. Pois,
ele reconhece que no fraco também há vontade de poder; mas não deseja o fraco.
Não balanceamento na análise nietzscheana e sim uma espécie de negação capaz de
criar, ou uma destruição positiva. Negar e destruir o quê? O fraco. No entanto, tal coisa parece
141
"Da vitória sobre si mesmo". In: Za/ZA. II parte, p. 87.
111
contradizer o que tratamos aagora. É porque ainda o estudamos o etemo retomo. o é o
filósofo que quer "matar" o escravo, mas este mesmo o passará pelo crivo da seleção do
"tempo circular". O próprio escravo é que se matará. Passando pelo anel cósmico, todos os
valores reativos e negativos chegam ao niilismo, do qual passam ao poder de crítica de si
mesmos. Porque não existe eterno retorno sem destruição e construção incessantes, e é
exatamente nesse último ponto que destruir torna-se algo criativo. É como se destruíssemos
algo com alegria, sabendo que tal destruição é parte de nossa agressividade criadora. O
homem que quer ir até o seu próprio fim: é desse que despontará o "super-homem”
142
. Vale
142
Vamos esclarecer bem o parágrafo em questão até o ponto indicado por esta nota. Se
Nietzsche propõe o "amor fati" e, com ele, diz-se um afirmador e alerta-nos que sua única
negação seria apenas desviar o rosto em relação a tudo que o contradiz ("Não quero fazer a
guerra ao feio". Cf. FW/GC, § 276, p. 174), então como pode querer acabar com o fraco? Esta
idéia também não sugeriria aquilo do qual o nazismo fez uso? Por isso, precisamos tomar
muito cuidado. Não é nada disso. O "fraco" equivale ao homem mesmo, o qual precisa ser
suplantado pelo "Ubermensch". É que a palavra "destruir" é muito forte. Nem assim a
evitamos, bastando justificar o seu uso. Não podemos esquecer que o estilo aforismático do
filósofo está repleto de metáforas. Aqui é que nos apegamos. Nietzsche, no fundo, fala-nos
que tudo aquilo que torna o "ser humano" (isto é nosso) decadente atrapalha seu futuro de
"espírito livre" (o forte, o nobre). Não se trata de pregar, como é possível notar, a ideologia de
uma raça superior no molde "nazi". Superior, no filósofo, é quem consegue ir além de si
mesmo e conviver com seus limites (doenças, sofrimentos etc) sem nenhum problema. O que
caracteriza um forte? 'Dureza e serenidade". Cf. JGB/BM, § 269, p. 183. Diríamos,
simplesmente, que não está muito longe do que chamamos de uma pessoa "calejada". Que é
capaz de enfrentar seus próprios abismos, suas próprias tragédias e que tem como amparo a si
mesmo. Aquela pessoa que fez experiências consigo mesmo e cresceu, suplantando-se. Mas
como fica a consideração de que o filósofo nega o fraco? Nega, sim. No seguinte viés: ele não
quer para si mesmo a condição do fraco, do escravo, do "plebeu". Assim, propõe-se a destruí-
la com seus ataques. Mas tal destruição não passa de pistas, por meio dos termos que
emprega, para um "novo homem". Porém, numa determinada altura de sua vida, ele mesmo
conclui (como vimos na Gaia Ciência) que cada um deve percorrer o seu caminho, apesar de
sua proposta de uma nova cultura, da transvaloração de todos os valores. Nietzsche não quer
interferir: eis o sentido de não fazer "guerra ao feio". Entretanto, ele sabe que a vida enquanto
vontade de potência, exige de todos estar em constante pugna. Espera que cada um aprenda
por si mesmo o que significa vir-a-ser, devir. O "pathos", como vontade de potência, é a
realidade mais íntima presente em todos os cantos do mundo. Inclusive, mais adiante,
esclareceremos também como Nietzsche diferencia tal "pathos" do ser e do devir, o que, a
primeira vista, parece outra contradição. Porém, o é. Ora, se, até agora, estamos
identificando vontade de potência com o devir, como ficam nossas análises? Também ficam
como estão. É necessário entender o porquê dessa afirmação do filósofo. muitas
armadilhas em seus escritos? Sem dúvida, mas há, por outro lado, maneiras de abordagem
que, muitas vezes, escapam a uma lógica simplista e reducionista. Veremos, ao fim, que não
112
afirmar que a vontade de potência, em tal caso, é crítica e não poupa nem a si mesma.
Diferentemente de Kant, em Nietzsche a crítica não se dá da razão para com a própria razão. Ela
acontece em algo subjacente à própria razão, pois esta não pode ser o seu próprio juiz quando,
na realidade, ela não depende de si. Está submissa à vontade de potência. Por isso, para o
filósofo da teoria das foas, criticar os valores estabelecidos por uma ordem puramente
racional é o caminho para a criação de novos valores. É nisso que pensa todas as vezes que diz
sobre a importância de legislar para a filosofia, pois tal ato é criador. E quem cria, segundo ele,
acaba comandando. Quem manda, não o faz para si, porque sabe separar dele o que é para os
outros. Superar-se (entre isso, dar ordens a si mesmo) é outra coisa. É preciso não misturar as
condições.
Superação é uma prática difícil. E o que acontece quando não fazemos outra coisa
senão suportar a vida? Quando ela é tida como peso é a vontade de nada que se apropria de nós.
Estamos sob o império das forças reativas. Dessa forma, o ascetismo é a base de toda religo
niilista. Mas nem todo ascetismo, como veremos ao final deste parágrafo. O problema é que esse
teor ascético tomou conta da moral e, depois, da ciência. se esconde o perigo e passamos a
pensar que estamos afirmando a vida, quando, na realidade, a negamos. A existência o é
virtual; logo, se achamos que ela é ruim, que moral e que ciência originar-se-ão disso? O
princípio cósmico, orienta toda a nossa vida. Por esse olhar, o asceta é aquele que se
extingue, que vive para o nada e representa a reação triunfando sobre a ação. Para sempre?
o. Nesse ínterim, o filósofo coloca-se frontalmente contra o cristianismo e todas as religiões
do "nihil". comentamos muito sobre o assunto na primeira parte da dissertação, quando
esclarecemos a respeito dos caminhos que levaram Nietzsche ao seu mundo sem Deus. A
contradição entre vir-a-ser, "pathos" e vontade de potência. Por sinal, o desafio de chegar
até isso foi enorme para nós. Mas acreditamos em novas possibilidades de interpretação
porque também acreditamos no perspectivismo. Não se trata, queremos reforçar esta nossa
posição, de pôr nos escritos de Nietzsche o que ele não escreveu. Mas trata-se, sim, de
explicarmos o que é a "paixão da diferença".
113
saber: a genealogia e o perspectivismo (inerentes à sua cosmologia), donde a transvaloração é
o auge dessas vias e é, ela mesma, um caminho para o homem do porvir: o "super-homem" (o
transvalorado). Em tal processo, transvalorar é suprimir o solo nos quais o socratismo e o
platonismo foram assentados. Aqui podemos compreender porque o anticristianismo
nietzscheano é o veemente. O desprezo deste mundo liga-se ao desprezo da vida. Contra esse
niilismo levanta-se o bermensch". Quem tem que ser desprezado é o homem que nega o
mundo e a vida em nome da idéia. É possível interpretar o radicalismo de Nietzsche contra a
humanidade, contra os racionalistas, como uma grande luta para afirmar que o ser humano e sua
razão não são o centro de tudo, porém o deixam de ser uma parte na qual o todo se espalha.
Por tudo isso, cuidado com a "verdade"! Ela não passa da legitimação de um valor. Assim é que
o filósofo favorecia o erro para questioná-la. Se negamos a nossa vida, então é hora de
aprendermos a criticar a nós mesmos. A filosofia dos valores visa nos afligir, mas se é dessa
maneira que crescemos... Eis a ascese da "filosofia trágica".
Passamos, neste parágrafo, a tratar da questão do devir na cosmologia. As forças
reativas, ao apoderarem-se de uma força ativa, fazem esta última acabar voltando-se contra si,
porque uma cisão é provocada; isto é, a força ativa é separada das outras forças ativas e passa a
fazer parte do quadro das forças reativas. o as forças reativas que provocam uma explosão de
energia nas ativas, ao afastá-las. E as forças reativas, então, triunfam? Não. Porque quando
aquelas forças ativas, as quais se viraram contra si e puseram-se como reativas, acabam
interagindo com as reativas. Como assim? Indo, como "reativas", ao ximo da vontade de
nada e, assim sendo, ao extinguirem em si toda a reação, terminam com todo o devir-reativo e
transformam a negação em afirmação. É o devir-ativo que triunfa. Onde isso ocorre? No
processo de selão do eterno retorno.
"O eterno retorno é o ser do devir. Mas o devir é duplo: devir-ativo, e
devir-reativo, devir-ativo das foas reativas e devir-reativo das forças
114
ativas. Ora, só o devir-ativo tem um ser; seria contraditório que o ser do
devir se afirmasse de um devir-reativo, quer dizer, de um devir ele
próprio niilista
143
Aí, o negativo não tem vez. As forças reativas o resistem e a tal força ativa
incorporada a elas é que passa por essa "prova de fogo”
144
. Noutras palavras, ao final a força ativa
efetiva-se como vontade de potência afirmativa. Avançando mais na explicação, é o seguinte:
todo o centro de forças reativas (incluindo aí aquela força ativa dominada) passa pelo niilismo e
somente quem for capaz de se efetivar com um sim ao "fatum" ("amor fati") é que se afirmará e
acabará sendo selecionada como força ativa advinda do centro reativo. Logo, o eterno
retorno funciona como uma espécie de filtro de forças
145
. Um estado de libertação para as
forças ativas submetidas às forças reativas. A vontade de nada passa, nelas, à categoria de
vontade de potência (afirmativa, no caso). Apesar de Deleuze não pensar conforme essa
pergunta, ousamos fazê-la: - Então, como o "mesmo" retorna
146
? Retorna até este ponto a seguir,
ou seja: o processo sempre acontece, sempre retorna. Enfim, no nosso entendimento sobre isso, o
que retorna é o processo do vir-a-ser. E, continuando sobre o assunto das foas ativas e reativas,
temos que "ativo e reativo são as qualidades das forças que dimanam da vontade de poder. Mas
a própria vontade de poder possui qualidades, “sensibilia
147
, que o como que devires das
143
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 108.
144
Nesse ponto é preciso salientar que no ser humano existem forças ativas e reatívas em luta. Quando as ativas
imperam, temos o "super-homem". Esta nota aiudará a compreendermos o desfecho do parágrafo discorrido.
145
Porém, gostaríamos de colocar a noção de que o eterno retomo do mesmo revela as
diferenças presentes no cosmo. E toda repetição é somente repetição dessas diferenças. Logo,
"o mesmo" são elas mesmas em sua dinamicidade. Assim sendo, tudo é devir, tudo é vontade
de potência. Para Deleuze, quem retorna é a vontade afirmativa- Mas, enfim, quem retorna é
sempre a vontade de potência enquanto relação, vir-a-ser na nossa opinião. "A diferença, jogo
do tempo e do espaço, é o jogo silencioso das relações". Cf. Maurice BLANCHOT. Nietzsche
y la escritura fragmentaria. In: Ramos Peres MANTILLA (org.). Eco - revista de la cultura de
Occidente. p. 701. O que vale é que as forças são diferentes entre si e essas diferenças são
movimento. Pluralidade de forças, diríamos. Vontades de potência, relações. Enfim: "jogo de
forças", devir.
146
Para Gilles Deleuze o eterno retorno nunca é o do mesmo, porque o que retorna é a
diferença.
147
Um "pathos" que toma as forças impulsivas, sensíveis, dinâmicas.
115
forças”
148
. Como uma foa pode, na verdade, relacionar-se nisso tudo? À medida em que a
vontade de poder faz-se presente, a força torna-se sensível e, por essa sensibilidade, é que
"percebe" o que está ao seu redor para ser assimilado. Desse modo é que muitos devires
acontecem e também toda a hierarquia entre as forças. Na linguagem nietzscheana, o
falamos em causa e efeito, mas numa transformação constante devido à corresponncia entre
vontade de poder e foa determinarem-se mutuamente
149
. Dessa forma cosmológica, podemos
compreender o homem como reativo e, por isso mesmo, não suportando o vir-a-ser eterno; e
o "além-do-homem" como aquele superou-se dessa condição para encontrar-se como devir e
afirmá-lo. O seu devir é afirmativo pelo "amor fati". Assim, ele é o único que resiste ao eterno
retorno do mesmo. Que passa pela seleção.
Baseado em sua cosmologia, Nietzsche propõe que toda interpretação é tarefa da
genealogia. Pois o é simples interpretar porque existe a necessidade de conhecer como
funciona o cosmo
150
. Melhor ainda, o genealogista é comparado a alguém que sabe
diagnosticar o que acontece.
"Julgar a própria afirmação do ponto de vista da própria negação, e a
negação do ponto de vista da afirmação; julgar a vontade afirmativa do
ponto de vista da vontade niilista, e a vontade niilista do ponto de
vista da vontade que afirma: é essa a arte da genealogia, e o
genealogista é médico"
151
.
148
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 97.
149
Na teoria das forças não existe a noção de causa-efeito, pois nas suas relações elas não tem
objetivo. O "querer" das forças é um "pathos" (por meio do que se sua efetivação: vontade
de potência), um sentimento forte de "querer ser mais". Porém, isso não é um objetivo porque
não sujeito. Também não causa e efeito porque tudo é vontade de potência. Não há,
também, livre-arbítrio. Até, por conta disso, é necessário chegar-se ao "amor fati". Pois o que
é mundo em Nietzsche senão uma "monstruosidade de forças". Nada além disso. E, grifamos,
para reforçar tal colocação.
150
E mesmo a capacidade de interpretar da "pequena razão" é vontade de potência. Também somos um "pathos".
Daí Nietzsche sempre apelar para Dionísio. Nossa exacerbação apolínea ainda é demasiada. Cremos, muitas
vezes, que nosso raciocínio é independente. Não é. Nossos pensamentos vêm no meio de um fluxo de impulsos.
até ouvimos falar nisso de outras formas (neurôuios, sinapses etc). Somente não identificamos isso com a
vontade de potência. O genealogista é alguém que consegue captar isso e, por essa via, capta a proveniência de
um valor, de uma avaliação.
151
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, pp. 102-103.
116
Logo, praticar a genealogia não é sinônimo de expor um dualismo (afirmativo-
negativo), como pode parecer; é, sim, observar que diferenças no todo e que elas estão em
relação constante, gerando aí sua própria inconstância pelo devir. Para ficar mais claro: afirmar
e negar faz parte desse "todo", o qual não é senão uma multiplicidade de centros de forças. E
cada centro está sempre percebendo tudo o que está ao seu redor a partir de sua perspectiva.
Porém, variadas perspectivas porque muitos o os centros. É por isso que as vontades
negativas
152
vêem as vontades afirmativas o a partir destas, mas de si mesmas. Somente pela
genealogia é que alguém sente que não fatos. A vontade de poder, que determina e é
determinada pela força, é que interpreta o que se afirma e o que se nega. Enfatizamos que não se
pela razão em si, mas por um "pathos", o qual também está presente na razão humana. Nesse
aspecto, notamos que para uma pessoa praticar a genealogia, ela precisa sentir as forças que agem
e reagem em seu próprio corpo, ao seu redor, para daí poder dizer algo sobre a origem de
qualquer coisa e, principalmente, para o pretender fazer de sua interpretão a única do
universo, pois assim como é movida pela vontade de poder a afirmar ou negar, tem que notar
que vontades espalhadas por todo o cosmo. O que, então, chamamos de "fato", o passa de
pura relação de forças interpretada pela vontade de poder.
associamos a genealogia e o perspectivismo com a cosmologia. Vamos dedicar o
espaço agora mais ao eterno retorno. Em Deleuze, que viemos seguindo de perto, ele (o eterno
retomo) o é. o "do mesmo".
"O eterno retomo, segundo Nietzsche, o é de modo algum um
pensamento do idêntico, mas um pensamento sintético, pensamento do
absolutamente diferente que reclama fora da ciência um princípio novo.
Esse princípio é o da reprodução do diverso enquanto tal, o da repetição
da diferença: o contrário da adiaforia'
153
152
De um "centro reativo": dominado por forças reativas.
153
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 72. Sobre a "adiaforia", seria ter-se uma mesma coisa sob
diferentes formas.
117
O olhar deleuziano enxerga que é a pluralidade em mudança que volta no tempo infinito
da teoria nietzscheana. Se a diversidade retorna, o que se mantém uno é o próprio eterno retorno.
Nele não início nem fim e, deste modo, é que se faz a ntese de tudo. Unidade e
diversidade ao mesmo tempo. Nesse sentido, o presente tem que ser passado e futuro. Parece,
assim, que o instante prevalece. Mas como o presente coloca-se perante o devir?
Bem, é justamente aí que Deleuze afirma tornar-se possível acreditar num ser do próprio
devir
154
. O vir-a-ser não foi e nem será, ele é sempre devir. Na realidade, ele é uma totalidade
154
Uma ontologia do devir. Mas Deleuze, ao introduzir a questão do ser do devir, unifica as
forças, assim como
unifica as vontades de potência. Mesmo afirmando que quem retoma é a diferença? Sim, pois
o ser da força
plural, que não o ser no singular, continua sendo uma categoria metafísica. Claro que
dissimulada, isto é:
Deleuze refere-se à diferença, quando, na realidade, está preocupado em firmar a questão do
ser. Ora, para nós,
se o ser, não o vir-a-ser. Como pode, então, existir uma "metafísica nietzscheana"?
Tudo o que menos
Nietzsche queria era aproximar-se de qualquer metafísica. Eis o motivo pelo qual ficamos
com Marton. E,
quando ouvirmos ou lermos algo como "o ser do devir", entenderemos como, simplesmente,
uma força de
expressão. "Para Nietzsche, o mundo natural é um 'continuum (Cf. FW/GÇ § 112: 'Causa e
efeito - trata-se de
uma dualidade que decerto nunca existirá; assistimos, na verdade, a uma continuidade da qual
isolamos as
partes; do mesmo modo que, do movimento, nunca percebemos mais do que pontos isolados,
não o vemos,
concluímos pela sua existência. A rapidez com que se fazem notar certos efeitos induz-nos
em erro; mas essa
rapidez existe para nós. Nesse segundo de rapidez uma multidão de fenômenos que nos
escapam')- Cf. José Ignacio GALPARSORO. La volonté de puissance chez Nietzsche, In:
Ramos Feres MANTILLA (org.). Revue -Les elude;* philqsophiques, p. 478. E continuando
com nossa explicação, plural ou singular não há o ser. Há sempre o vir-a-ser e este é plural. A
unidade passa, assim, a ser uma aparência ("Schein"). Em outras palavras, Deleuze acaba
abrindo um grande espaço para, novamente, cairmos no problema da metafísica pela via da
ontologia. Como ele faz tal coisa? Por meio do seu "ser do devir", estabelece-se uma conexão
com o abstrato e,dessa forma, a ontologia ganha um "status" metafísico e, mesmo diante da
pluralidade, somos "tentados" ao
pensamento da unidade. Logo, o que também ganha mais força enquanto hipótese é a
118
que possibilita o movimento de todas as coisas num tempo infinito. É garantidor da unidade na
diversidade. Porém, longe do que podemos pensar como uma única hipótese clica, há
também ciclos coexistentes; por isso, um único movimento circular está excluído nessa
versão. Além de existir a diferença no ciclo, existem diferentes ciclos. Tal ser é, portanto, uno e
múltiplo. Por outros termos, Deleuze essencializa todos os devires. Esclarecendo mais,
significa que o que volta é sempre a diferença contínua presente em cada ciclo e entre eles,
sendo que tal movimento é eternizado pelo tempo. Um devir absoluto da diferea num tempo
infinitamente absoluto
155
.
por isso que podemos compreender o próprio eterno retorno
como expressão de um princípio que constitui a razão do diverso
e da sua reprodução, da diferença e da sua repetição. Um tal
princípio, Nietzsche apresenta-o como uma das descobertas mais
importantes da sua filosofia. Dá-lhe um nome: vontade de poder."
156
a qual permanece no infinito do tempo (eterno retorno). Tudo é tão somente fruto dessa
vontade que favorece a relação entre as forças como aquelas que expressam o poder enquanto
aquilo que quer na vontade. A vontade mesma poderia ser vista como veículo desse poder, daí a
confusão de pensar que ela é que quer. Tais relações entre as forças é que se perpetuam no
eterno retorno, pois tudo está constantemente fazendo-se e desfazendo-se. Tal é o caráter do ser
como devir na leitura deleuziana; este ser não é um absoluto imuvel, pois as
transformações acontecem nele mesmo e o próprio assume faces diversas num presente
existência de um Ser. A isso nós não queremos chegar, mas Deleuze pode abrir espaço para
tal interpretação,
155
Aqui. neste "devir absoluto". está a noção de "ser do devir".
156
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 76. Sem vontade de potência, não eterno retorno, porque não
a repetição da diferença. Se o tempo é infinito é por conta do movimento instaurado pelas diferentes forças
em relação, mesmo sendo elas finitas. Ou seja, na sua finitude o devir torna-se infinito. Nesse processo é que as
diferenças repetem-se sem cessar. Vejamos como tudo acaba interligando-se. Pathos, vontade de potência,
forças, devir.
119
contínuo do eterno retorno. Se este é a síntese, a vontade de potência é o que está na raiz de tudo
o que é possível, ou do cosmo, como bem podemos citar na condição do "uno plural".
O que faz com que o vir-a-ser cosmológico manifeste-se como movimento é o
conjunto de devires que acontecem em seu interior. Assim também o eterno retorno como
repetição das diferenças abre margem para que o devir reativo das forças possa tornar-se
ativo, pois o que volta, segundo Deleuze, o é o mesmo e sim o diferente. É a mudaa que
retorna. Inclusive, nesse ínterim localiza-se a dificuldade do homem que deseja perpetuar-se
diante do eterno retorno "do mesmo". Ele o suporta ver-se nesse devir constante. Aqui é
importante frisar que Marton tem uma outra leitura em que o mesmo retorna não somente
como diferença, mas exatamente tal e qual (por ser diferente, volta com tudo o que existe) e isso
o homem comum tamm não suporta, pois seus sofrimentos retornariam a cada instante também,
bom ou ruim. O importante é que para ambos, baseados em Nietzsche, o "super-homem" é a
solução diante da decadência humana em não querer ver a vida como vontade de potência. Mas
como explicar a conciliação do eterno retomo como processo de seleção das forças, sendo que as
forças são finitas e o tempo é infinito? Como afirmar que o "super-homem" não é uma
escatologia? Quanto à primeira interrogação, a plausibilidade da resposta encontra-se nas
configurações das próprias forças. Na verdade, tudo é vontade de potência. Os adjetivos reativo e
ativo são apenas as variantes de uma realidade múltipla de forças efetivando-se dessa ou
daquela maneira aà adequação ao tempo infinito, e é isso que se denomina "seleção". No
exemplo existencial humano dá-se assim: o homem tem que se adequar, enquanto
"Ubermensch", à sua realidade de vontade de potência no eterno retorno. E o ser humano que
atingir tal estado, nunca mais será o mesmo. O que vale, portanto, é a sua dinamicidade enquanto
aquele que está sempre com possibilidades de mudança. Parece que para Deleuze o "amor fati"
estabiliza o homem como "super-homem", porém, estabiliza-o como ser-devir eterno. Finito
(enquanto forças) e eterno (enquanto devir no tempo infinito). O ser humano "reativo" deve
120
cessar, pois o "amor fati" garante-lhe a afirmação definitiva com relação a tudo o que existe.
Quem não for capaz disso não ultrapassará os "portais" do eterno retorno. Ou seja, também num
mesmo tempo, homem e "super-homem" estarão existindo. Uns, os últimos, serão os
selecionados, e os outros não. Mas o "além-do-homem" nunca voltará, repetimos, a ser o
homem que era antes. Eis como o devir-reativo (o domínio dos homens) passa para o devir-ativo
(o domínio dos "super-homens"). Desse ângulo, fica melhor para entender Deleuze. Porém,
especificamente lembrando a segunda interrogação, não é o "Übermensch" um estado final?
o enquanto isento de mudanças, pois ele é o próprio devir das forças. Que estado final seria
esse no qual o que lhe confere a existência é o vír-a-ser? Logo, qualquer forma escatológica
está fora de cogitação. As forças estão em constante pugna. Este "fim" não é aquele fim linear.
É rotativo e eterno. Em Marton, que prefere não tratar o vir-a-ser como ser, o mesmo retorna.
Por que isso acontece? Justamente pelo motivo exposto anteriormente: as forças são finitas e o
tempo é infinito. Mas isso quer remeter à ideia de que tudo é eterno. Não precisamos desejar
uma vida eterna, esta vida é assim tal e qual em suas variadas formas. E as "forças reativas"
sempre serão aquelas que não conseguirão perceber o eterno retorno do mesmo (vejamos aqui
novamente o princípio da "seleção" das forças). Por que é assim? Justamente porque o eterno
retorno do mesmo acontecerá não uma única vez, mas sempre e sempre. Quem passa pela
seleção? As forças ativas. O "super-homem", aquele que diz sim e declara seu "amor fati". O
que há por.detrás dessas duas interpretações, a deleuziana e martoniana? Perspectivas diferentes
sobre uma mesma coisa. É o próprio perspectivismo em ação. Para ele, denomina-se ser e, para
ela, jamais o será. E ambos vão à Nietzsche, que traduz o mundo como vontade de potência e
nada mais. Fique claro isso: nada mais... Nisso, eles o discordam um do outro. -se pelos
seus escritos.
A cosmologia nietzscheana, como é posvel perceber, supera o homem cristão que
acredita numa outra vida e que crê na escatoíogia. O "super-homem" é, pois, mais que uma
121
inversão praticada pelo crístianismo-platônico. o porque retorna à Terra, mas também
porque a como si mesmo, um vir-a-ser ou um "ser-devir". Ele é o único que pode chegar à
transvaloraçao de todos os valores, na qual a negão transmuta-se em afirmação (Deleuze): a
"metamorfose dionisíaca". Ainda sobre os devires ativo e reativo, lembrando novamente
Deleuze, temos que, ao final, o seu "ser do devir" acaba priorizando um devir: o ativo; e,
dessa maneira, este filósofo chega onde Nietzsche quer. É necessário que a afirmação reine.
Fixando melhor as reflexões, resgatamos que é para isso que o eterno retorno é selecionador.
Seleciona quem o afirma. Na realidade, para Gilles Deleuzeo um tempo linear, por mais que
pareça ser sua interpretão uma escatologia, na qual a seleção final redunda no "super-homem".
Voltando ao assunto, para frisar, por que não é uma leitura escatológica? Por dois motivos, sendo
o primeiro baseado no próprio eterno retorno do filósofo de Zaratustra e o segundo que diz ser
possível somente o retorno do afirmativo, que na seleção circular o negativo não resiste. "A
lição do eterno retorno é que o retorno do negativo. O eterno significa que o ser é seleção.
retorna o que afirma, ou o que é afirmado
157
. Realmente, somente o "além-do-homem" é
capaz de ficar frente a frente com o eterno retorno, por isso ele retorna dessa experiência. O
homem ainda não teve tal vivência ou não quis vivenciá-la, logo não tem como voltar do que não
pode enfrentar. Assim fica melhor para entendermos. Entretanto, por mais que os escritos
deleuzianos afirmem somente haver seleção, muito mais uma noção de superação. Basta
lembrarmos que é o próprio Nietzsche quem diz ser o homem uma ponte que precisa ser
ultrapassada
158
. No fundo, acreditamos que este inrprete do filósofo da vontade de potência
até tratou disso, mas de outra forma. De qualquer maneira, toda meta dá-se no eterno retorno e,
portanto, por mais que haja uma finalidade, a mesma não pode ser linear. Nisso Deleuze tem
toda razão. O tempo, para ele, expulsa o negativo e acaba prevalecendo no lugar do homem, o
que, na verdade, é o seu superador a saber: o "super-homem".
157
Gilles DELEUZE. Nietzsche e a filosofia, p. 282.
158
Cf. Introdução. In: Za/ZA. I parte, p. 11.
122
Mas de uma forma geral, como resolveremos a proposição: "O que é a vontade de
poder? 'Não é um ser, nem um devir, senão um pathos': a paixão da diferença"
159
. Nossa
resposta: o "pathos" é um forte impulso que o deixa nada ficar estático. Ele relaciona as
diferentes forças, pois é a própria relação. Assim, tal "pathos" é o fundamento do devir, ou
melhor, o devir é a aparência ("Schein", o termo alemão mais apropriado) do "pathos" e, ao
mesmo tempo, o próprio. Não tratamos de coisas diferentes: vontade de potência, "pathos", devir
o a mesma coisa. Sem o impulso o devir e sem o devir não pulsação alguma. Não
vida. Ser é um absurdo e o o-ser também. Resumindo, temos que, na expressão, Nietzsche
quer evitar o dualismo não entre o ser e o não-ser, pois, para ele, isso já está descartado.
Ele quer evitar um novo dualismo: entre o ser e o vir-a-ser, afinal, para o filósofo, só há mesmo o
devir, que, com um golpe de maestria, ele intitulou de "pathos" ou, como quisermos, vontade de
poncia. "Pathos" é a saída da dialética, que liberta o devir da mesma.
Contudo, começa a despontar um problema. Se a leitura deleuziana auxiliou-nos até
agora, precisamos mostrar que nos aproximamos mais daquela feita por Marton. De princípio,
desponta uma diferença básica, a qual tratamos anteriormente: o vir-a-ser nunca é o ser na
concepção martoniana. Além disso, para ela a compreensão do eterno retorno acontece de
forma que é o do mesmo. Logo, o homem mesquinho também retorna e todo o mecanismo de
superação que termina no "além-do-homem" retornará sempre, pois existirá eternamente a
possibilidade de intervir-se no círculo do eterno retorno para modificar o presente, mudando
assim também o passado e o futuro, já que não se trata de um tempo linear; isto é, o
"Übermensch" sempre será alguém fruto dessa intervenção e nunca faltará entre nós um
Zaratustra, esse interventor. É notório que Scarlett Marton traça um outro caminho e nós
vamos por ele até um certo ponto de onde vi nossa novidade na dissertação: a vontade de
159
Maurice BLANCHOT. Nietzsche y Ia escritura fragmentaria. Tn: Ramcm Peres
MANTILLA (org.). Eco -
revista deja cultura de Occidente.
D
.
699. O autor trabalha com uma citação implícita de
Nietzsche.
123
potência como deus que habita todo o cosmo e se manifesta no ser humano antes e depois da
transvaloração. Porém, somente o transvalorado é capaz de uma "religiosidade" da afirmação
nessa ordenação cosmológica, não isenta de niilismo. No entanto, deixaremos isso para o
último capítulo. Esta amostra foi só para ilustrar até onde estamos com Deleuze e com
Marton.
Nietzsche sempre persegue a mesma ideia, mesmo que de pontos de vistas múltiplos ao
longo de sua vida produtiva. De Schopenhauer até si, o valor e seus pressupostos é algo que
está continuamente presente. É por essa razão que ele chega à transvaloração. O
perspectivismo e a genealogia foram seus instrumentos, os quais eso implícitos em sua
cosmologia. Sem eles ficaria difícil de compreender, por exemplo, a vontade de poncia. Se tais
balizas estão na base de um mundo sem Deus, são elas também que fornecem o caminho para o
entendimento de um novo sentido que nós tratamos como "religioso". O que "religa" o homem
ao cosmo (enquanto "super-homem") é essa vontade de potência. Ou como prefere Scarlett
Marton: vontades de potência, no plural. Tal conceito, cosmológico por essência, pauta todo o
pensamento de Nietzsche. Toda vida, por conseguinte, no entender nietzscheano, deriva-se da
vontade de potência. O ser vivo afirma-se por resistência e encontra-se a "dedução" do
filósofo (feita pela experiência e observação, logo pela indução) de que viver é dominar,
apropriar-se. Assim acontece em todo o cosmo. Por outro lado, o mundo o é feito somente de
vencedores. Tais batalhas contribuem para que haja uma hierarquia no universo. Marton,
em seus escritos, privilegia a luta e é isso que se na vontade orgânica (entre todos os seres
vivos). Se Deleuze diz do vir-a-ser como ser
160
, ela deixa-o como eterno devir e nada além disso.
É o que permite a mudança das coisas e o que faz com que as hierarquias jamais sejam
definitivas. A ordem cosmológica realiza-se por ordens diversas. De uma para a outra existe
sempre o caos e ele é mesmo inerente ao processo de organização.
160
A ontologia do devir que cede campo para uma interpretação metafísica, absoluta.
124
o faz sentido (estaremos enfatizando, agora, a leitura martoniana), portanto, pensar
numa razão criadora, porque toda razão não se dissocia do organismo: "Presentes nos
numerosos seres vivos que compõem o organismo, pensamento, sentimento e vontade
apareceriam como indissociáveis"
161
. Mas a vontade mesma não se reduz a um complexo do
sentir e pensar, pois um "afeto de mando”
162
é a sua característica. Assim, ela permite ao poder
efetivar-se. O antropocentrismo também não faz sentido nessa perspectiva, afinal o homem não
é o centro pela sua razão como pensam muitos, pois esta encontra-se em cada microorganismo
onde a vontade se movimenta, estando com ela todo sentir e pensar. Noutros dizeres, é como se
cada célula pensasse. Marton é firme nessa posição. E se existe uma razão cosmológica, ela não
é outra coisa senão a pluralidade das razões espalhadas pelo mundo. Para os que inferem que
necessidade de um sujeito por trás de toda vontade, é correto que essa concepção psicológica
(de um "eu" centrado) não procede do teor nietzscheano. O que parece ser o sujeito é apenas
efeito de tal vontade. Assim, o um sujeito racional, e aquele que num momento pode estar
ocupando posição de mando, em outro esta obedecendo. Por que o próprio Nietzsche trata da
"pequena razão" que somos nós?
"Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas (...).
L'effect c'est moi: ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem
construída e feliz, a classe regente se identifica com os êxitos da
comunidade. Em todo querer a questão é simplesmente mandar e
obedecer, sobre a base, como se disse, de uma estrutura social de muitas
'almas
?
(,..)”
163
Bem, cada vez fica mais claro porque Scarlett Marton prefere usar o plural no lugar do
singular
164
. Uno e ltiplo eso intimamente ligados, mas a nossa tendência é de pretender
161
Scarlett MARTON. Nietzsche, cosmologia e genealogia (TD), p. 37.
162
O que não significa que ela não saiba, também, obedecer.
163
JGB/BM, §19.p. 25.
164
Podemos apelar para outro autor sobre o uso de vontades de potência (plural). "Pois que o
mundo natural é composto de uma multiplicidade de vontades de potência em constante
combate; a presença de uma vontade de potência não relacionada com as outras vontades de
125
enxergar a unidade, talvez porque exista em s uma busca pela estabilização das coisas. É o
grave problema que impede nosso perspectivismo de vir à tona. O ser humano, sem dúvida, está
e pensa; mas afirmar a partir disso que ele é o centro de tudo não faz mais sentido após o que
foi apresentado aqui, O centro está em toda parte, e, assim sendo, só o cosmo é esse "centro". O
que existe, na realidade, o centros de forças (ativas e reativas). dois equívocos na ideia
de sujeito: o de pensar-se que é causa e o de entender-se comomade.
O que Deleuze como vontade afirmativa ou negativa, Marton lê como forte ou
fraca. E isso opera-se em todo o organismo. "Não se pode perder de vista o dinamismo dos
processos orgânicos: um estímulo, que prevalece sobre os outros, conjugando-se com os de
disposição concordante e sobrepondo-os aos que lhe são antagônicos, vem a coordená-los e a
impôr-lhes uma direção clara e precisa - o que acarreta uma 'vontade forte'; mas os ltiplos
estímulos, que, oscilando, continuam a lutar e o chegam a agregar-se, acham-se
descordenados e desprovidos de direção - o que faz surgir uma 'vontade fraca.
165
Certamente, diferenças com as interpretações deleuzianas, as quais não englobam
explicões sobre uma espécie do que podemos chamar de vontades desorientadas (ou fracas).
Aqui nós entendemos que pode haver uma confusão, pois como fica quando os fracos tomam o
poder? Segundo Deleuze, eles não perdem sua identidade de escravos e, até por esse motivo,
ficam ressentidos. Para Marton, também os escravos continuariam intimamente ligados à sua
origem, mas poderiam mandar. Enfim, nesse ponto, parece que nos dois autores o mando
coincide. Onde, então, fica a resposta para a pergunta? O problema localiza-se no fato da
desorientão dos fracos, a qual pode cessar ao atingirem a posição de comando (mais pelo viés
martoniano, pois o deleuziano nem trata da desorientação dos estímulos). De qualquer
potência é excluída". Cf. José igancio GALPARSORO. In: Revue - Les études
philosophiques, p. 465.
165
Scarlett MARTON. Nietzsche. cosmologia e genealogia (TDV n. 42.
126
forma, o principal não foi abalado: o de que tudo se constitui por forças e vontades.
Essencial ao menos aqui, para nossa dissertação.
É imprescindível indicar que tudo ocorre nos fenômenos da existência. Não existe
abstração quando se apresenta neste estudo a vontade de potência. Entendamos bem: tudo
pretende ser encaminhado para longe de qualquer dualismo. Interessante, dentro dessa
concepção, é a análise que Marton faz a respeito do prazer e do desprazer. Partindo do
filósofo, ela mostra que o existe oposição entre os dois. Estão interligados, porque para
qualquer prazer acompanha-se sempre um desprazer e vice-versa, inclusive num mesmo ato.
Numa relação sexual, por exemplo, temos esse caso bem claro da ligação entre prazer e
desprazer; até de como se sucedem e se interdependem
166
. O que se constata é que
em
qualquer contato uma luta está presente e os lugares alteram-se (vencedores e
vencidos), e, portanto, não existem dualismos. Assim como tudo pode acontecer, e
acontece, num único e mesmo corpo ou na relação entre corpos. O prazer nunca vem
desacompanhado do desprazer, seu complemento, assim como vale o contrário. Uma
verdadeira ciranda. Voltamos ao velho esquema de que as coisas oferecem resistência; eis
o motivo de toda luta. Se está havendo combate é porque a resistência marca presença.
Isso vai do mais ínfimo ser vivo até o ser humano. Não nada melhor para as vontades
de potência do que os obstáculos. Dessa forma é que as forças relacionam-se como
vontades. Sem a relação, melhor dizendo, não existe vontade alguma, pois esta está
sempre em movimento. É justamente na relação que tudo acontece e isso nunca pára. A
vontade de potência tem sua razão de existir na superação. Eis a importância dos
obstáculos, das resistências.
Um organismo somente age ou reage mediante aquilo que acontece nele. Nesse
sentido, podemos dizer que nos somos também um "campo de batalha". Tudo na
166
Cf. Ibid.,p. 46.
127
existência quer prevalecer sobre o outro e o que decorre daí
é
apenas efeito de uma
vontade de potência insaciável. Mas, com isso, pensamos que a autoconservaçao é um
objetivo. "A vontade de potência é desprovida de qualquer cater teleológico (,..)”
167
.
Dessa maneira é bom esclarecermos que o esforço para manter o que ela domina, o que
pode acontecer ao procurar vencer obstáculos, o faz dela um sujeito que possui meta,
pois a mesma só tem sua ação ou reação a estímulos (a ação dá-se quando visa ultrapassar
o que lhe barra o caminho e a reação acontece quando ela sofreu uma ação na relação
entre as forças). Ação como resposta ao estímulo da resistência do obstáculo; reação
enquanto resposta a um estímulo promovido ao acaso por uma ação. Por exemplo: o
obsculo reage por haver nele vontade de potência tamm. Voltando, porém, à
questão central, temos que não existe uma finalidade, porque toda a vida precisa
exercer-se e apenas isso. Portanto, não há instinto de conservação para a leitura do
filósofo
168
. Marton faz sua análise a partir de dados biológicos para compreender melhor as
forças e as vontades de potência. Se Deleuze é mais abstrato em suas explicações, ela é
bem mais concreta
169
. "Como os animais, os homens se conhecem comparando-se uns
aos outros, de modo que tudo o que sabem a propósito de si mesmos é aprendido na relação entre
sua foa de ataque e defesa e a força dos outros
170
. Como a explicitão deleuziana, Marton
considera profundamente a questão da relação, pois é nela que a vontade de potência se realiza,
e é pela vontade de potência que as forças se efetivam, conforme nos indicou Deleuze. O
fundo de toda reflexão passa pelo vir-a-ser. Quem pretende a conservação é porque não
deseja a impermanência, e isso é impossível, pois a realidade mais próxima e a mais distante
167
Scariett MARTON. Nietzsche, cosmologia e genealogia (TD), p. 51.
168
"O que rege o mundo natural é, portanto, a vontade de potência e não uma vontade de conservação". Cf.: José
Ignacio GALPARSORO. La volonté de puissance chez Nietzsche. In: Revue - Les études philosophiques. p.464.
O que há dentro da vontade de potência é uma "inspiração" por mais potência. Somente isso.
169
O grifo visa o seguinte: Marton não fica “rodeando” tentando chegar onde pretende. Não queremos, em
hipótese alguma. Dizer que ela é pragmática. É apenas mais clara.
170
Scarlett MARTON. Nietzsche. cosmologia e genealogia (TD), p. 53. Talvez o termo mais
apropriado nem seria o de sobrevivência. Pois no filósofo, somente o viver a partir da vida
como vontade de potência.
128
havia sido constatada em Heráclito. Poderíamos, então, considerar as vontades de
potência como fluxos num eterno devir. Todas as relações o tensas porque as foas estão
sempre em disputa, seja agindo ou reagindo. Contra a autoconservação, Nietzsche faz uma crítica
a Espinosa e ao darwinismo, pois o instinto vital não visa a preservação de si
simplesmente luta
para se efetivar mais e mais. Com relação a esse assunto, não é a autoconservação a
responsável pela luta da sobrevivência
171
. Na existência tudo é um jogo; entretanto, ganhar o
significa eliminar o outro. Esse é o sentido da dominação. Mais do que luta pela vida, é luta para
firmar-se (o que é diferente de preservar-se).
Contudo, Marton nos mostra que Nietzsche e Darwin se aproximam em algo, isto é, na
noção de "concorrência vital". Ao modo nietescheano, porém, ela acontece no interior de cada
organismo. Ele vai mais à raiz. A noção de competição realiza-se pela exteriorização das
forças e, nisso, a vontade de potência contribui. Agora, vejamos que a lei de seleção natural não
serve para o filósofo, porque toda luta, segundo ele, se realiza por mais potência e o por
conservação da espécie. Nietzsche não é darwinista. Nele, é o acaso que impera e isso serve
tanto aos fracos como aos fortes. Nietzsche também considera que a astúcia pode substituir a
foa de um homem sobre outro com vantagem. Dessa forma, por exemplo, é que o fraco pode
dominar o forte (o escravo ao senhor). É assim que a perspectiva nietzscheana considera a
astúcia do cristianismo e vai ao seu encontro para desmascará-la. Em toda a obra "A Genealogia
da Moral", tal percurso faz-se tido. Há outra coisa: mais do que adaptação ao meio, os seres
vivos tentam mesmo é ven-lo, dominá-lo. Viemos notando o quanto Marton até o presente
estudo vem ligando vida à vontade de potência. Assim, no ser humano o pensamento
corresponde a uma luta de impulsos vitais. O que é o nosso pensar? Resultado de um combate em
nosso interior
172
. É aquilo que chamamos de "lógico". Na sua origem registra-se uma luta
entre instintos. Por isso, para o filósofo é um absurdo o homem classificar-se como
171
Cf. FW/GC, § 349, pp. 232-233.
172
Cf. FW/GC. §111. p. 132.
129
racional e pôr a sua razão como desvinculada de seu corpo num a priori. Nietzsche não se
cansará de atacar o platonismo por ter estabelecido esse dualismo de maneira preponderante.
Um lado da "perfeição da ideia" e um outro de caos, ilusão. Para o nosso fisofo, tal concepção
é de grande hostilidade à vida e o cristianismo seguiu o caminho de Platão, essencialmente na
sua face paulínea. Ora, para o filósofo da vontade de potência, sentimentos e pensamentos
localizam-se no mesmo plano beligerante dos instintos e a luta é o caráter da vida.
"Enquanto vontade de poncia, a vida é mandar e obedecer; é portanto lutar
173
. Se o
homem, no seu âmago, prima pelo domínio, o que faz quando fracassa? Tenta buscar um
novo combate, porque sente sua potência. Na realidade, está sempre tentando ser mais
potente. Nós somos vontade de potência. Tudo o que vive deseja o poder. Lembrando
Deleuze, esse poder é aquilo que quer na vontade. Voltando à definição da vida como vontade de
potência, isso não quer dizer que esta última reduz-se aquela. A vontade de potência está em
tudo e em todo lugar. Está no cosmo, ou poderíamos concluir que o cosmo é vontade de
poncia em pluralidade (vontades). O interessante é que Nietzsche também o opõe morte à
vida, porque na morte está o início da vida (nada de cristão está presente aqui). O filósofo
quer, simplesmente, ampliar o conceito de vontade de potência. O ser vivente não é diferente da
natureza. Orgânico e inorgânico participam do mesmo princípio. Tudo o que existe é força, mais
nada. Para Marton, inclusive, força e vontade de potência até poderiam aproximar-se como
sinónimos (o queo acontece em Deleuze). Mas ela cita:
"Esse conceito vitorioso de força, graças ao qual nossos físicos criaram
Deus e o mundo, tem necessidade de um complemento; é preciso
atribuir-lhe um querer interno que denominarei vontade de potência [ 36
(31) de junho/julho de 1885]. Com a teoria das forças, (Nietzsche) é
levado a ampliar o âmbito de atuação do conceito de vontade de
potência; se, quando foi introduzido, ele operava apenas no donio
orgânico, a partir de agora passa a atuar com relação a tudo o que
173
Scarlett MARTON. Nietzsche, cosmologia e genealogia (TD), p. 67. Aqui, mais uma vez, notamos a ênfase
dada à questão de fonte heraclitiana em Nietzsche. O destaque para a luta.
130
existe. A vontade de potência diz respeito assim ao efetivar-se da
força
174
Nesse caso, a autora aproxima-se do foco deleuziano e, o que antes parecia-lhe poder
chegar a ser a mesma coisa, agora aparece distintamente; isto é: força e vontade de potência.
Também, como vimos, para Deleuze a força se efetiva pela vontade de potência. A
diferença fundamental, a nosso ver, entre Marton e Deleuze continua sendo aquilo que
comentamos anteriormente a respeito do vir-a-ser. No último (Deleuze) este é um ser, e para ela
o ser nunca se constitui. São abordagens diferentes, apesar de noutras leituras eles se
aproximarem bastante. Isso é bom, pois são dois grandes comentadores de Nietzsche.
Continuando com a peculiaridade martoniana, ela nos passa a ideia de que o filósofo
opta pela enertica. Na cosmologia nietzscheana, a matéria é substituída pela força. O que
refletir a partir disso? uma superação das teorias de Leucipo e Demócrito. A força é o que
existe de fato e tudo é energia. Nesse viés, Nietzsche parece chegar a uma concepção da sica
posterior a ele. Entretanto, o vamos enveredar por esse caminho, que é longo e exigiria uma
pesquisa específica e aprofundada com especialistas no assunto. A s basta ver que o
filósofo o segue por um antropomorfismo, excluindo-se a ideia de sujeito. O mundo não é
senão pluralidade de forças, energias em disputas, as quais agem e resistem umas em relação às
outras. "As forças efetivam-se, manifestando um querer-vir-a-ser-mais forte, irradiando uma
vontade de potência”
175
. É importante que se diga sobre as forças e as vontades de potência que
ambas fazem parte do mesmo processo de um eterno vir-a-ser; por isso, elas o possuem
origem nem fim. Estão sempre em transformação, em movimento (devir constante). Dito isto,
notamos a conotação diferente com relação a Deleuze, o qual quer pôr o vir-a-ser como o ser de
Nietzsche. Se Marton não concorda com ele, qual é nossa posição? Somos favoveis apenas a
conceber a vontade de potência como um "princípio divino", que o tem "alfa e ômega" porque
174
Scarlett MARTON. Nietzsche,. cosmologia e genealogia (TD) p. 77.
175
Scarlett MARTON. Nietzsche, cosmologia e genealogia (TD), p. 79.
131
é os dois ao mesmo tempo. Porém, o "deus vontade de potência", para nós, é um deus pagão
que se manifesta em todos os lugares do cosmo, possibilitando o efetivar de toda energia,
inclusive da humana. Não existe pessoalidade nesse caráter "divino", mas ele é uno e plural,
concomitantemente, e encontra-se em todo o devir. Ele está no vir-a-ser, mas nunca foi e será
nada, pois já é tudo. Em tal recorte, distanciamo-nos de Deleuze e também de Marton. É a nossa
marca nessa dissertação, a qual estará fundamentada no último catulo deste trabalho. E que
antes precisamos perseguir todos os caminhos que originaram o mundo sem Deus do filósofo.
Genealogia, perspectivismo e transvaloração eso presentes no cosmo de Nietzsche. Deus
morrera. Nesse ínterim de Sua morte, o que houve? Olhamos para o sentido profundo da
existência nietzscheana e constatamos que se o Deus cristão não mais explica as coisas, a
vontade de potência o faz
176
. Não por si, mas pelas palavras do próprio filósofo que rias
vezes apontou que, por ela, tudo se concretiza e também se desfaz. Aqui cabem o caos e o
cosmo, o niilismo e a organização em combate (o devir).
Teoricamente, precisamos tanto de Deleuze quanto de Marton
177
como
base para,
depois, percorrermos nossa própria senda. "Na biologia, o filósofo buscou
subsídios para elaborar seu conceito de vontade de potência; na física, encontrou
elementos para construir sua teoria das forças"
178
. Se Nietzsche tivesse vivido mais,
certamente poderia ter completado suas pesquisas. Contudo, já em sua época ele
conseguira tomar emprestado das ciências físicas e biológicas as pistas para aquilo que
desejava. Para nossa dissertação, é de grande contribuição essa outra citação de Scarlett
Marton a respeito do filósofo: "A vontade de poncia, que diz respeito ao efetivar-se
da forca, é femeno universal e absoluto
(Cf.
JGB/BM, § 22); em outras palavras,
'Esse mundo é a vontade de poncia - e nada am disso!
1
F38 (12) de junho/julho de
176
A parte grifada refere-se ao nosso obietivo principal: o novo sentido da existência em Nietzsche.
177
Especialmente da filósofa, afinal, para nós, o vir-a-ser não é um ser. Portanto, como dissemos antes,
aproximamo-nos mais dela.
178
Scarlett MARTON. Nietzsche. cosmologia e genealogia (TD), p. 80.
132
18851"
179
- Com o auxílio dos aforismos tardios de Nietzsche e das obras de seu
último período, pudemos, até por outros intérpretes seus, chegar à noção que elaboramos
da vontade de potência como "deus cosmológico". Alguém poderia nos perguntar: se ela
(a vontade de potência) está no vir-a-ser, como pode ser algo? Apesar de Deleuze ter
tratado disso, conforme nossos estudos anteriores, fazemos aqui a nossa interpretação.
O vir-a-ser é, com a vontade de potência, absoluto
180
. Assim, não compreendamos
o "ser de Nietzsche" como aquele ser metafísico, mesmo porque absoluto e existente é o
devir. E não é possível, nietzscheanamente falando, tratar da vontade de potência sem nos
referirmos ao vir-a-ser e vice-versa. Contando ainda que tal devir não está no "além",
simplesmente porque, para Nietzsche, o am é apenas mais uma interpretação e só. Na
realidade, o que ele propõe? Uma nova maneira de abordagem do mundo e, logo, de
tudo, e que não é uma a mais. A vontade de potência é aqui o que possibilita toda
transformação universal. É vir-a-ser e está no vir-a-ser, pois o mundo está, e em
contínua mudança. Parece complicado, mas não é. O cosmo e o caos não passam de um
grande jogo. Se quisermos dizer de outra forma: o universo é um acaso. O caos possui
as foas, sem organização; já o cosmo as tem em relação hierárquica via vontade de
potência que as permite efetivarem-se. Daí, o mundo ser vontade de potência. Mas como
esse mundo é eterno? Por causa do eterno retomo. "Finito, mas eterno: é o quanto basta
para Nietzsche formular a doutrina do eterno retorno"
181
. A vontade de potência é eterna
pelas suas relações entre as forças finitas dentro de um tempo infinito. Ela não é um ser,
porém essempre presente e, por isso, é (não foi e nem será). Melhor elaborando, a
179
Ibid., p. 80. O grifo é nosso.
180
''No devir absoluto a força não pode jamais ser imóvel, nem jamais ser não-força (aforismo v, 2, 11 [ 281] de
KGW)". Cf. José Ignacio GALPARSORO. La volonté de puissance chez Nietzsche. In: Revue - Les études
phílosorihiques, p. 465. Portanto, lugar para uma definição de vontade de potência que se encaixe nesse
devir absoluto, pois as forças aí estão. Isso para não abordamos assim: com o devir, elas "são".
181
Scarlett MARTON. Nietzsche, cosmologia e genealogia (TD), p. 83. Ora, porque também
o eterno retorno não é finito, mas eterno? Porque tem a ver com as forças e suas relações, tem
a ver com o devir.
133
vontade de potência não pode ser, pois está no processo de mudança do vir-a-ser. Ela
é algo mais distinto e presente: é um deus que não tem o ser
182
. Eis
a novidade também.
Ainda mais: a vontade de potência, da qual não sabemos nem o início e nem o fim, é que
possibilita todo o processo ao estar nele. Vontade de potência e vir-a-ser, assim como
vontade de potência e força, acabam por ser um só. Por que é assim? O que essendo
destacado é a relação, é por isso. O processo é o importante. Ao relacionar as forças
entre si para que as mesmas se efetivem, ela (a vontade de potência) acaba tomando-se
um forte "pathos". Deleuze diria: de afirmação ou de negação. s preferimos emitir
isso da seguinte maneira: um "deus" que pode afirmar ou negar. Mas vejamos que esse
"deus" não é um "sujeito" e a esse respeito (sobre o sujeito) já fizemos as nossas
possíveis considerações.
"Pulsões cósmicas, apolíneo e dionisíaco são aspectos que o conceito de
vontade de potência recobre. Dionisíaco é o princípio que quebra barreiras, rompe
limites, dissolve e integra; apolíneo, aquele que delineia, distingue, forma. Ora, por
seu caráter intrínseco, as forças querem sempre mais; da luta entre elas, surgem novas
formas, outras configurações
183
.
Certamente, nesse aspecto, Marton é mais clara que Deleuze e fornece-nos dados
para que possamos conceber o universo não como um dualismo apolíneo-dionisíaco, mas
como uma coisa. Esses dois princípios, juntos, trabalham na eterna destruição e na
eterna reconstrução do cosmo. Não são dialéticos porque não se contrapõem, mas, sim,
integrara-se. Fazem uma síntese, mas esta não provém da tese e da antítese. Dão-se
integralmente no vir-a-ser como síntese constante, por mais que possamos nos esforçar
para separá-los. Onde está um, está o outro, e não há uma terceira via que se origina deles.
182
Aqui lembramos a obra de Jean-Luc Marion: "Dieu sans 1'être", a qual citaremos
apropriadamente no
capítulo seguinte da nossa dissertação.
183
Scarlett MARTON. Nietzsche. cosmologia e genealogia (TD) p. 81.
134
Coexistem sem haver o primeiro e nem o segundo em termos de importância. Como
tratara a análise deleuziana, não adianta procurar a diatica em Nietzsche. Tudo isso faz
o dinamismo do cosmo, onde existe um infinito sucede-se por conta do apolíneo e do
dionisíaco. Quando em algum lugar do mundo algo se desintegra, noutro está havendo
integração. O movimento é contínuo, um suceder-se sem fim. Mesmo porque onde
alguma coisa desapareceu, outra surgirá e vice-versa. É a riqueza cosmológica. Na
realidade, são as mudanças que se sucedem umas às outras. Nesse devir não início e
nem ponto de chegada. Não existe descanso. Por isso, o ser humano que o quer aceitar
o universo tal e qual, na concepção nietzscheana do "amor fati", é um cansado. Fica nesse
estado de cansaço com a vida e começa a procurar refúgio em algo que procure cessar tal
turbilhão. Dessa maneira, surgem religiões estáticas. Elas procuram criar um véu sobre o
vir-a-ser, o qual é sempre rasgado e não percebe esse acontecimento quem teima em
fechar os olhos. Nesse aspecto, é inconcebível para o filósofo um deus que não saiba
dançar nesse
cosmo
184
. Somente o próprio "pathos" é capaz disso. Assim sendo,
concordamos com Marton de que o universo no seu todo e na sua pluralidade não
constitui um sistema. Tanto quanto a vontade de potência, o mundo não é um ser. É,
antes, um processo eterno, onde as relações
entre as forças não se esgotam.
"Todos os dados são conhecidos: finitas são as forças, finito é o
número de combinações entre elas; mas o mundo é eterno.
Portanto, tudo existiu e tudo tornará a existir. Processo circular
que não tem fim, o mundo é concebido 'como força por toda parte,
como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e
múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando,
um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias,
eternamente mudando, eternamente recorrendo, com descomunais
anos de retorno' [38 (12) de junho/julho de 1885]. Enquanto
184
O propósito de vir deus que dança, também temos a leitura de que, "para a
atualidade, o pensamento de Nietzsche, pela elegância e acuidade, faz a razão bailar". In: António José Romera
VALVERDE. Roteiro de leitura para o livro "Nietzsche: a transvaloracão dos valores", de Scarlett Marton, Ed,
Moderna, Col. Logos. s/data.Texto apostilado. Para nós, entretanto, a razão baila porque também é vontade de
potência.
135
hipótese cosmológica, a doutrina do eterno retorno acha-se
estreitamente vinculada à teoria das forças e ao conceito de vontade
de poncia
185
Nessa consideração, seguiremos Marton de perto e não Deleuze, por entendermos
que ela é mais convincente em sua interpretação; por sinal, já comentamos a esse
respeito em espaço precedente a este. Para poder haver ura retomo do mesmo é certo
que um tempo infinito precisa ser necessário, e ele terá que dizer respeito ao espaço
finito. Uma hipótese, porque nem mesmo Nietzsche conseguiu solucionar tal problema.
Marton levanta uma possibilidade de que o fisofo haveria se inspirado em
Schopenhauer e Lange
186
. Do primeiro, houve recorrência à obra "O Mundo como
Vontade e Representação", onde uma pessoa destemida conseguiria ver sua vida repetir-
se infinitamente, até entender que "viver é sofrer", optando assim pelo aniquilamento
total. Desse final, Nietzsche se afasta. Do segundo, Lange, retira a ideia da repetição de
mundos como possível, sendo finitos os elementos constitutivos dos mesmos. Na
verdade, a originalidade não é do filósofo de "Zaratustra", Ocorre que ele uniu o eterno
retorno do mesmo às forças e, à vontade de potência. Mas é bom
que se compreenda o
seguinte; como disse Marton, as forças são finitas e o mundo é eterno. Logo, a vontade de
potência é eterna e, por ela, as forças finitas efetivam-se em todas as suas relações possíveis. Mas
essa inter-relação nunca cessa, é eterna porque é a própria vontade de potência. Assim, o
universo é eterno com tudo o que nele há de finito. O "jogo" das forças é infinito. Daí o "finito,
mas eterno" que Marton cita baseada em Nietzsche, no que tange ao eterno retomo do mesmo.
Para nós, é o que basta para o entendimento do movimento circular sem fim, num tempo
igualmente infinito, em que toda energia apenas refaz-se desta ou daquela forma, isto é; nas
suas variadas relações como forças. A energia (forças) é finita, porém "renovável
187
O filósofo, no arauto do "super-homem" (Zaratustra), revela esse que ele diz ser o
mais profundo dos seus pensamentos. "Sobe, pensamento impetuoso, sai da minha
profundidade! (...) Eu, Zaratustra, o confirmador da vida, o confirmador da dor, o confirmador do
círculo, chamo-o a você, o mais profundo dos meus pensamentos!”
188
. De que fala Nietzsche?
185
Scarlett MARTON. Nietzsche, cosmologia e genealogia (TD), p. 83.
186
Cf. IDEM. O eterno retomo do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético? In: Adauto
NOVAES (org).
Ética. p. 215.
187
Entenda-se o "renovável" aqui como o retomo do mesmo.
188
"O convalescente", I. In: Za/ZA. III parte, p. 166.
136
Do eterno retorno do mesmo, o qual é sinónimo do movimento circular sem fim no qual a vida
retorna tal como se faz. Por que é tratada a questão da dor? Para mostrar que nada deve ser
negado na existência. Ratificar a dor, o sofrimento, significa o querer excluir a vida do seu
todo para idealizá-la. Nesse sentido, Deleuze tinha razão ao expor o eterno retorno como
seleção, ou seja, quem desejar compartimentalizar essa vida não estará apto a vivê-la em toda
sua dimensão o fraco). Por isso, o homem precisa ser ultrapassado (ele é apenas ponte). Por
essa perspectiva, o "Übermensch" é inseparável, pois es no conjunto com o eterno retorno.
"Tudo vai, tudo volta; a roda da vida gira sem cessar. Tudo morre;
tudo volta a florescer; correm eternamente as estações da vida. Tudo
se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da
existência. Tudo se desagrega, tudo se saúda outra vez; o anel da vida
conserva-se eternamente leal a si mesmo. A todos os momentos a vida
principia; ao redor de cada aqui, gira a bola acolá. O centro está em
toda a parte. O caminho da eternidade é tortuoso!”
189
Nessa citação, o filósofo aborda claramente o eterno retorno do mesmo e sua ligação
com a dimensão cosmológica. Porém, fazemo-nos uma pergunta a respeito disso tudo. Como
pode existir o vir-arser se tudo retorna sem cessar? Algo nos soa da seguinte forma: o que já foi,
voltará a ser e o que é tamm. O próprio futuro é conhecido, pois o movimento circular leva a
essa conclusão. Porém, o que foi, o que é, e o que será, têm um nome: vir-a-ser, sempre.
Extinguir-se e voltar a ser para extinguir-se de novo não forma o ser. A resposta encontra-se no
próprio "absurdo". Noutras palavras, o que existe de fato é o vir-a-ser e tudo o mais significa
modalidades das forças efetivadas pelas vontades de potência. Tal é o sentido de "extinguir-se e
voltar a ser". Eterno é o devir. Morrer também não quer dizer não-ser, é apenas parte do
processo incessante (transformação connua). Nem ser, nemo-ser, mas vir-a-ser. O centro não
está aqui ou lá, porém tudo é o centro. Lembramos aquilo que é denominado de "Axis
mundi"
190
, que pode estar em todo o cosmo já que, para Nietzsche, o centro está em toda parte.
Daquilo que até aqui discorremos, gostaríamos de acrescentar que o filósofo ainda escreve
em outras partes de suas obras sobre o eterno retorno. Contudo, é necessário indicarmos que
189
"O convalescente". II. In: Za/ZA. Hl parte. p. 167.
190
Cf. Mircea ELIADE. Lo sagrado y Io profano, p. 41. Trad. Rogério Fernandes.
137
no escrito "Da visão e do enigma”
191
, ele é expresso de forma rica por meio das metáforas de
Nietzsche. E, finalmente, posicionando-nos ao lado de Scarlett Marton, é que tentaremos ir
além dela, porque este nosso trabalho toma sua verdadeira face no quarto capítulo. Alguém
poderia questionar porque já não fomos direto ao assunto. Mas nós fomos. Começamos por tudo
aquilo que nos levou ao mundo sem Deus de Nietzsche, indicando o propósito de um novo
sentido existencial: a própria vida enquanto vontade de potência. E mais uma vez citamos
Marton para, depois, seguirmos nosso próprio caminho:
"Em vez de esperar que um poder transcendente justifique o mundo, o
homem tem de dar sentido à própria vida: em vez de aguardar que
venham redimi-lo. deve amar cada instante como é. E o afirmação
maior da existência que a afirmão de que tudo retorna sem cessar
192
Daqui em diante, apesar de trabalharmos com a filosofia, separaremo-nos dela para
tratarmos do novo sentido que Nietzsche indiretamente construiu. Por isso dizemos que ele o
concebeu, mas não o constatou.
3.1 – A CONCEPÇÃO DA“NOVA RELIGIÃO” EM NIETZSCHE
Seria uma ousadia afirmar que Nietzsche é um religioso no sentido mais lato do termo? E
quanto ao asserto de que ele aponta para a possibilidade de um novo tipo humano com uma
"nova religo"? É certo, pelo menos, que não visamos encontrar no filósofo algo de sobrenatural
e nem pretendemos inferir de determinadas premissas uma conclusão, tal qual estamos
acostumados a fazer no silogismo de Aristóteles. Não queremos partir de uma afirmação
"universal" para encaixarmos nela o caso particular daquele que, mais do que deduções,
elaborou uma filosofia experimental. Isso não remete também ao dualismo dedução-indução.
191
Cf. Za/ZA. IH parte, pp. 118-122.
192
Scarlett MARTON. Nietzsche: a transvaloração dos valores, pp. 67-68. O grifo é nosso.
138
Aquilo que interessa para nós é indicar que o autor de "Assim falava Zaratustra" (esse novo
evangelho que contém a "alma" do ímpeto religioso nietzscheano) não quer entrar nas armadilhas
da metafísica que ele tanto combateu. Tudo o que se aproxima da relação transcendência-
imanência não lhe diz respeito. Pelo menos quando são tratadas tradicionalmente.
Noutras palavras, quando falamos de filosofia experimental queremos dizer que
Nietzsche não separa razão e corpo. Experiência, para ele, vai além da categoria empirismo.
É como se houvesse uma necessidade de renomear as coisas, pois sempre pensamos algo em
contraposição a outro. Por exemplo, o empírico é a contramão do "a priori" e vice-versa. Tal
coisa adentrou fortemente na filosofia e na linguagem científica. O ser humano construiu
sistemas e esquemas. Já conhecemos a resposta nietzscheana do "martelo", pois tudo isso
transformou-se em idolatria: os filósofos tornaram-se teólogos, a ciência quis ser idolatrada e
todos os caminhos levavam para um espírito religioso e moral nesse sentido. Por quê? Por causa
da vontade de verdade. Foi em busca dela, da "verdade", que os homens construíram suas
convicções. Nietzsche vem desmascarar, portanto, a pretensão de propriedade dessa
"verdade". Não estamos aqui para emitir um juízo, mas é inevitável entendermos que em nome
de dogmas, muitas vidas foram desperdiçadas, muitos espíritos acabaram dilacerados por
minios a fio. E a teologia, a filosofia e a ciência colaboraram para esse desserviço. O olhar
nietzscheano prefere outras perspectivas. A transvaloração não é qualquer coisa. Ao nosso ver, a
contribuição de Nietzsche é muito grande como uma crítica da cultura humana, mesmo que ele
não tenha escapado, ao que parece, totalmente dela. Tudo leva a crer que tenha criado sua
perspectiva privilegiada; poderíamos proferir aqui a palavra "dogma". A diferença é que não o
impôs (seu "dogma") aos outros; apesar de ter manifestado a inteão de levar os ensinamentos
do "Zaratustra" para serem interpretados nas cátedras
193
193
"Por que escribo tan buenos libros". In: EH/EH. § 1, p. 55.
139
Retornando mais especificamente ao assunto do tema do capítulo, temos que
considerar que, se partirmos da etimologia "re-ligare", encontraremos eco na tradição. Qual é,
então, o sentido de "nova religião"? Eliminar do vocábulo religião todo aspecto de
relacionamento dual. Faz-se plausível? Sim. É exatamente as veredas pelas quais trilhamos até
agora quando tratamos do procedimento genealógico, do perspectivismo, da
transvaloração, da morte de Deus e da versão cosmológica do filósofo, a qual abre espaço para
seu novo "re-ligare". Até agora utilizamos muitas vezes a "religião" de Nietzsche entre aspas
para diferi-la do que normalmente conhecemos por religião. Entretanto, desde que citamos
Eliade, tentamos nos desvencilhar de sua fenomenologia para, simplesmente, trabalharmos com
sua definão de religião como sentido, a qual mostraremos adiante. Nossa intenção o é
submeter Nietzsche às noções do estudioso em religiões, e sim mostrar como a palavra em
questão pode ganhar uma maior abrangência, inclusive com a perspectiva nietzscheana. É isso
que queremos afinal, pois o foco do filósofo vê essa razão na própria vida, sem subterfúgios. Uns
dirão que tal abordagem não passa de imanentismo. Uma maneira de ver de quem é dualista.
Outros dirão que a inversão da metafísica também é a própria.
Bem, nesse caso, diremos que no vocabulário nietzscheano um ferrenho ataque à
metafísica, mas ele o a descarta enquanto vontade de poder
194
. Não que a adote, tanto que em
sua análise não simples inversão. Aliás, ele nem passa como desavisado pela armadilha.
Como dissemos, Nietzsche o está propenso a dualismos. Por que não fez uma inversão, pois
acaso não passa essa ideia quando inverte-se o platonismo? Passa, porém é uma etapa para que, de
volta, a este mundo tal equívoco possa ser percebido. Depois disso, extingue-se toda conotação
dual comentada. Contudo, em nosso trabalho, operamos com a palavra transcendência na
194
A vontade de poder está nas diversas perspectivas dos variados centros de forças. Não
podemos negar que a
metafísica é uma interpretação que quer dominar. "Toda interpretação é uma interpretação
força". In: Leon KOSSOVITCH. Signos e poderes em Nietzsche, p. 82. Ou seja: existem
forças por trás de cada interpretação, presentes como vontade de potência. Uma interpretação
sempre luta para crescer em força.
140
própria imanência. O motivo não é outro senão utilizar o verbo transcender na direção de
uma superação do homem por si próprio, o que resulta no "am-do-homem". Nesse aspecto, a
relação do ser humano é consigo mesmo. Não existe, em tal viés, aquela noção de
Transcendente como um ente superior à sua própria criação. O "além" de Nietzsche é
estritamente ligado a sua concepção de ultrapassagem do esrito decadente (metafísico).
Nada que diga respeito ao além como um outro mundo ideal, por exemplo. Para quem prefere
usar uma linguagem dualista, o além nietzscheano acontece na imanência, porque ela e o
cosmo é imanente. A ontologia, em geral, faz-se estranha. O filósofo não trabalha com o
"ser", mas com o vir-a-ser.
Para Nietzsche, enfim, o que é religo?
"Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se o apenas o lo de
pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou
subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho
perdido, o homem. (...) Agora, graças ao evangelho da harmonia
universal, cada qual se sente não unificado, conciliado, fundido com
o seu próximo, mas um só, como se ou de Maia tivesse sido rasgado e
reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial
195
Aqui está o cerne da questão do "re-ligare" enquanto um "ligar de novo". O ser humano
que tratava a natureza como exteriora a si, estranha, começa a descobrir o real sentido de tudo. E
muito distante do romantismo naturalista de Rousseau, Nietzsche o julga o que é natural. A
natureza está além de bem e mal. Noutros dizeres, a natureza não necessita do bem e do mal, ela
precisa apenas se afirmar com seu poder. Por que é justamente sob a tutela do dionisíaco que isso
acontece? Por o cair nas idiossincrasias do racionalismo ou dos racionalistas. A razão criou
uma natureza humana para sobrepor-se à natureza mesma. O homem não mais deve dominar
essa natureza, mas realizar suas conquistas com ela e, mais ainda, enquanto ela própria. Sendo
assim, o que antes estava separado como sujeito-objeto cai por terra. Não se deve falar mais em
195
GT/NTcap. 1 p. 31
141
sujeito ou objeto por tratar-se do "Uno-primordial" (o universo como vir-a-ser). Sempre
"primeiro" enquanto devir. Pelo motivo de todas as coisas estarem em permanente mudança,
o fim, assim como não começo. O "primordial" revela, necessariamente, o tempo
presente do cosmo. Longe daquela dualidade de princípio e término. A primazia é sobre o
passado e o futuro, para falarmos em mensuração temporal. o importa o que foi ou será, mas
o que está acontecendo. A ão contínua. Também não é o ser, pois este já é (condição
metafísica). Quem sabe poderíamos dizer entre aspas que o "ser" do filósofo é o seu vir-a-ser. O
que é, de outro ângulo complementar, o tal "evangelho da harmonia universal"? É a "boa nova"
de que o homem tornou-se um com a natureza. Houve uma fusão. Aliás, ela já existia, mas o ser
humano não aceitava. O que estava ligado e o dualismo separou, agora é "re-ligado".
Inclusive, de pessoa para pessoa, tudo é natureza.
Alguém é diferente do outro pela quantidade e qualidade de forças que interagem
nele. Quanto à disposição natural, o que vale é a proximidade. Até poderíamos arriscar que "amar
o próximo" é vê-lo e senti-lo como natureza. Tal como nós somos, os outros também são. Eis a
unificação tão propalada pelo filósofo. A sua "religião" promove essa conciliação. É diferente
daquele "re-ligare" no qual Deus permanece Ele mesmo e o homem, sua criatura, como ente à
parte. Diga-se de passagem que essa última religação não é bem o que deveria ser. o que
precisasse haver fusão, mas por tentar "re-ligar" o que nem era ligado antes, porque o
dualismo é a própria imagem da religião metafísica na qual, por mais que o homem se una ou
"re-una" a Deus, o que vigora é uma separão entre existência e ideal ou am. Ou pior, uma
religião que põe o ser humano como culpado em relação à vida terrena "imperfeita". "Re-
ligare" soa mais como coação por meio dos vocábulos culpa, imperfeição e outros. Que
espécie de religião tornaria o mundo como lugar de expiação e faria do ser humano um
prisioneiro que busca sua libertação pela sua morte? Somente uma religo niilista. É esse tipo que
142
o filósofo combate. Além do mais, Nietzsche o admite dualismos e nada que detrate a vida tal
qual ela é.
Voltando à definição do termo religião, existe uma bem interessante e que é retirada de
um dicionário de Teologia Católica:
"A religião compõe-se de três elementos: 1- o reconhecimento de um
poder ou de poderes que não dependem de nós; 2- um sentimento de
dependência em respeito a esse ou esses poderes; 3- o entrar em relações
com esse ou esses poderes
196
Conforme referência feita antes, não pretendemos adequar o filósofo a alguma
premissa, porém, se fosse esse o caso, conseguiríamos. Vejamos: se reconhecermos que a
vontade de potência existe eo depende de nós querermos ou não, já atingimos o primeiro
elemento. Se sentirmos que dependemos dela, mesmo porque somos ela, estaremos considerando
que nossa "pequena razão" o é auto-suficiente; então balizamos aqui uma reflexão
próxima ao segundo elemento. E se nós mesmos somos relações entre tais vontades de
potência, chegamos ao terceiro elemento. Noutras palavras, isso significa que, mesmo não
querendo, nós até utilizamos uma definição clássica aceita pela dogmática cristã, que poderia
muito bem ir além dos próprios dogmas cristãos. Por que fazemos esse tipo de jogo com as
definições? Para mostrarmos o poder da interpretação e que existem pontos de vista diferentes
sobre uma mesma coisa (perspectivismo).
Acaso não estamos novamente às voltas com o problema inicial da "nova religião"? Ou seja: se
for mesmo religião e no que ela inova. Esse é o objetivo no momento. O "nova" aqui pode
levar-nos a perspectivas queo havíamos pensado. Essa questão atinge a esfera da interpretação,
ou melhor: de mudança de avaliação do termo religião. Optamos pelo "re-ligare" sob outro
enfoque que, consoante esclarecimento precedentes, pode encontrar-se no próprio filósofo. o
196
Morris JASTROW. In: A. VACANT, E. MANGENOT, É. AMANN et alii. Dictionnaire de Triéologie
Çfltlípíkrae. Tomoa XIII. p. 2184. Trad. nossa.
143
teria transvalorado o conceito de "re-ligare"? Pois é isso que estamos tentando elucidar.
"Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele
desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelo ares
197
. O ser
humano, para Nietzsche, tem que esquecer de sua tradição racionalista-metafísica para
reaprender a viver na "comunidade superior" que é o cosmo repleto de vontades de potência.
Essa é a dimensão religiosa que sua filosofia vem trazer. "Só a religião pode destruir a
religião"
198
. Nosso trabalho não visa fazer uma guerra conceitual, entretanto não podemos omitir
opiniões fortes. Concordamos com Mário Santos que, ao comentar os aforismos de "Vontade de
Potência”
199
, considera que o problema da religião é ela própria. Isto é, o podemos tratar da
mesma sem adentrarmos à tradição. O que não quer dizer submeter-se aos costumes, e sim
ultrapassar muitas de suas limitações expressas em determinadas perspectivas.
Na sua própria nota, Mário comenta de Nietzsche que os crentes nunca iriam acabar com a
religião, apesar de suas religiões. Não que o filósofo estivesse referindo-se a uma religião
absoluta, mas ao próprio sentimento religioso do homem. Ele mesmo não é um ateu, porque
acredita numa religião da vida e do cosmo enquanto vontades de poncia.
Certamente, surgi o seguinte questionamento: - Se tudo é vontade de potência, o que
estará sendo religado? Ou ainda: - Se não existe "natureza humana", só a natureza, qual é o "re-
ligare"? Como pode algo religar-se a si mesmo? Para tais perguntas, cabe uma resposta:
o dualismo o lógica em Nietzsche porque ela o ameaça. Porém, se quisermos entender
como o fisofo opera com a religo a partir de um resgate do homem pela natureza, quando o
mesmo dá-se conta da sua razão como essa natureza também, fica mais fácil entendermos. Mas
o nosso "porém" não pára por aí. Pois se notarmos que no vir-a-ser cosmológico as forças
como vontades de potência estão numa contínua aproximação umas das outras, havendo luta e
uma consequente hierarquização por parte de quem vence e de quem perde, veremos que as
197
GT/NT.cap.l.p.31.
198
Mário D. Ferreira SANTOS. In: "VP" II livro. II parte. Aforismo 102, nota de rodapé número 1, p. 177.
199
O livro forjado pela irmã de Nietzsche. mas que. convenhamos, continha muitos dos fragmentos do filósofo.
144
vontades de potência religam-se em várias perspectivas e que uma força nunca é a outra. Como
se religam? Porque ligaram-se em vários centros de forças. É a cosmologia nietzscheana, a
qual não se reduz a uma relação dual entre as forças, mas múltipla. Por isso, para um dualista, é
difícil compreender a versão do universo em Nietzsche. Foi daí que partimos para uma
leitura religiosa no filósofo. E tudo o que escrevemos nos capítulos anteriores es
intimamente ligado a tal visão. Genealogia, transvaloração e a morte de Deus precisam ser lidas
tendo como referência a cosmologia. Portanto, para quem pensava que não havia um conjunto no
filósofo, pode-se perceber como tudo se encaixa. Nietzsche mostrou-nos como devemos fazer
para desconstruir e construir alguma coisa. Principalmente sistemas, conceitos e... religião. Ele
tem o seu "dogma", mas, diferentemente dos outros, oferece ferramentas perigosas acontra si.
Por que ele age assim? Por não temer a tragédia, porque foi capaz do "amor fati" (sobre isso já
comentamos no corpo desse trabalho). Não seria, inclusive, tal postura que o teria levado a estar
"am de bem e mal"? Reflitamos...
Nietzsche não quer uma religião de ressentimentos, pois com ela vem a má
consciência. O bem e o malo medidos a partir da culpa e por detrás de toda tragédia sempre um
culpado é procurado para que tudo seja justificado. O filósofo deseja que o homem seja forte e
livre diante do tgico. Afasta-se de uma religião do medo. Ele a explica como surgiu uma
religião baseada em sacrifícios e na relação do devedor para com o credor:
"O temor ao antepassado e ao seu poder, a consciência de ter dívidas
para com ele cresce necessariamente, segundo esta espécie de lógica, na
exata medida em que cresce o poder da estirpe mesma (à qual ele
pertencia), na exata medida em que esta é cada vez mais vitoriosa,
mais independente, mais venerada, mais temida. E não ao contrário!
(...) Os antepassados das estirpes mais poderosas acabam fatalmente
assumindo, graças à fantasia própria do crescente temor, proporções
gigantescas e a adquirir a a obscuridade de uma temeridade e
irrepresentabilidade divinas: - o antepassado acaba inevitavelmente
transfigurado num deus”
200
200
GM/GM II Tratado, § 19, pp. 101-102. O parênteses explicativo é nosso.
145
Segundo o filósofo, toda idéia de um deus que exige cultos sacrificiais teria se originado
de um sentimento de terror imaginário por mecanismos mentais, que levavam à associação de
qualquer bem ou mal como oriundos do cumprimento ou o dos deveres ou do "pagamento das
vidas", com relação ao ancestral. O poder de um deus media-se pela quantidade de eventos
bons ou ruins que pudesse promover contra os inimigos de seu povo. Nesse ponto, Estado e
Religião uniam-se. A proporção da grandeza do deus estava ligada ao poderio da população
que o engrandecia. Podemos dizer: pelo menos, agora, de seus chefes guerreiros. Poder e
religião estavam intrinsecamente juntos. Entretanto, não esqueçamos: foi o medo que
engendrou a existência desse tipo de deus. Vejamos que o próprio Deus do Antigo
Testamento é o "Senhor dos Exércitos". O judaísmo cresceu junto com seu Deus.
Tudo isso implicou em quê? No reforço das instituições via Estado.
"Os comportamentos das forças são alterados, pois, gesto inédito, o
Estado é organizado de tal maneira que o retorno às pulsões livres,
anárquicas, torna-se impossível. Doadores de forma, os fundadores do
Estado também são envolvidos pela malha: o Estado é uma teia de que
não é mais possível libertar-se”
201
.
Como também vimos em capítulo próprio, a genealogia auxilia no entendimento da
formação dos valores e de como eles podem ser invertidos na origem. No caso que estamos
tratando agora, o procedimento genealógico também é imprescindível. Revela-nos que os
criadores das instituições acabaram suprimidos pelas mesmas. Pois toda instituição reprime e
é controladora em nome de valores que lhe foram afixados nas suas regras. Como nos diz
Kossovitch, em outras palavras, perdemos o controle sobre o Estado
202
. Por que falamos
nisso? É que as religiões institucionalizaram-se e muitas cresceram. Terminaram por controlar
muitas pessoas. Os valores, assim, tomaram "vida própria". Ora, temos que voltar à nossa
condição de criadores. Não é por mera coincidência que Nietzsche ataca o Estado e a Igreja
201
Leon KOSSOVITCR Signos e poderes em Nietzsche. pp. 41-42.
202
Isso equivale não somente ao Estado, mas a toda instituição que se organiza e cresce.
146
como formadores de "rebanhos". Contudo, ele não é favorável ao anarquismo. Acredita na
hierarquia, pois as forças agem desse modo. Mas todos precisam aprender não a mandar; a
obedecer também. Existem ocasiões em que o mando é necessário e vital. O mesmo ocorre
com a obediência. É a forma de funcionamento dos centros de forças, sujeitos à sua própria
dinâmica; pois as vontades de potência são o vir-a-ser. Toda e qualquer organização, nesse
aspecto, está sempre em mudança. Ninguém escapa do devir. A Igreja escapará? O filósofo
bate direto em Roma, pois seu alvo é o cristianismo e o seu nascedouro
203
. Ele enxergou que a
metafísica institucionalizou-se e, com ela, o dualismo e um tipo de religião. Adentrou ao
espaço político do assunto. Porém, acabou privilegiando o indivíduo. Aliás, Nietzsche não
pensa do público para o privado, mas do privado para o público. Sua religião, em nossa
constatação, tem essa dimensão bem particular. Não será, o "religioso nietzscheano",
determinado pelo grupo. Compreendendo o funcionamento cosmológico das vontades de
poncia, agirá naturalmente sabendo a hora de mandar e de obedecer. Isso pode ser chamado de
"eticidade", pois é a exigência da dissociação entre sociedade e natureza que se operou ao longo
da história. Tal "religioso" só almeja o máximo de vida para si dentro das possibilidades
de relões entre as forças. É assim, inclusive, que atua para manter o equilíbrio de seu
corpo em eterna luta. Do contrio, não poderia fazer uso nem de sua "pequena razão".
Essa ligação total à vida como vontade de potência fez de Nietzsche um filósofo
trágico, o qual "(...) pode assim se definir: um pensador submerso pela alegria de viver, e que,
ainda que reconhecendo o caráter impensável desse júbilo, deseja pensar ao máximo sua
impensável prodigalidade”
204
. Em nossa reflexão, ele é um trágico feliz. A tragédia, para o seu
tipo de pessoa, não se transforma em obstáculo ao viver. Ao invés disso, faz aumentar o desejo
de superação. A existência passa a ser o maior valor dentre todos, ou dito de outra maneira: ela é
a base mesma para a avaliação de todos os outros valores. A "nova religião" é, assim, uma
203
Basta a lembrança do § 61 do AC/AC.
204
Clément ROSSET. Lógica do pior, p. 55.
147
religião dessa vida em toda sua completude. O filósofo supera aquela espécie de pensamento
trágico pessimista, ou seja, ele vai além da tragédia grega que serviu-lhe de inspirão. Alegre
com a vida, quer ser um doador de suas descobertas. Tal qual fez Zaratustra ao descer da
montanha
205
as ter crescido em sua ppria caverna. O fisofo é um anunciador da nova tragédia
que faz do ser humano um nobre, um forte. O trágico passa a ser sinimo da afirmação da vida
em todas as circunstâncias.
"A perspectiva trágica não consiste de modo algum em fazer brilhar no
horizonte do desejo um algo inacessível, objeto de uma 'falta' e de uma
'busca' eternas, cuja história se confunde com a história da
'espiritualidade' humana. Ela faz aparecer uma perspectiva exatamente
inversa: mostra o homem como o ser a quem, por definição, nada falta -
donde sua necessidade trágica em se satisfazer com tudo aquilo que tem,
pois ele tem tudo”
206
Somente quem possui algo é que pode doar, maso doa por compaixão e sim porque tem
de mais. Essa é a conotação da "partilha" no filósofo: "Sirvam a vossa inteligência e a nossa
virtude no sentido da terra, meus irmãos, e o valor de todas as coisas será restaurado por vós.
Para isso deveis ser criadores”
207
O que ele oferece às pessoas é aquilo que descobriu e está
farto de saber: que cada um precisa ser seu próprio médico para ter o máximo de potência
vital. Vida é vontade de potência e esta é sua grande contribuição para todos.
O "re-ligare" de Nietzsche é exposto pela supressão da moral tradicional. A natureza
não fala esta linguagem de bem e mal. É a "pequena razão" que cria a moral. Então, é possível
erigir uma que seja mais natural e dizer que o bem é tudo aquilo que está mais próximo de
uma existência sem dualismos e o mal é o que diz respeito ao afastamento deste mundo em
prol do refúgio numa suposição de um outro. Mas essa nova moral não seria dualista, como
toda moral é? Seria, na realidade, uma espécie de vacina que aplica o aspecto dual da
205
Cf. Za/ZA. Introdução, H, p. 8.
206
Clément ROSSET. Lógica do pior, p. 44.
207
"Da virtude dadivosa". In: Za/ZA. II parte, p. 59.
148
mentalidade moral-metafísica contra ele mesmo. É como se uma moral fosse utilizada para
suprimir a própria moral. Até que o homem consiga chegar ao perspectivismo, o qual dar-lhe-
á condições de enxergar as coisas por diversos ângulos de visão. Aí, o que se deseja é extrair
do ser humano toda ideia de culpa para que ele viva bem. Lembramos que, por outro lado,
todo questionamento nietzscheano é exercido sobre o dualismo platônico. A moral do filósofo
é a da ultrapassagem de si mesmo ou do difícil superar-se. A existência vale mais que
qualquer conceito. E devemos sempre lembrar também que a dor faz parte do existir.
Construir não se dissocia do destruir. Para lá de bem e mal estão os segredos do cosmo.
"Se o movimento perpétuo da vida é de ultrapassamento e auto-
superação, então esse criar para além do alcançado tem que ser
inseparável da destruição e do sofrimento. Para tal compreensão da
vida, faz-se necessário sobretudo a coragem para aventurar-se em
todos os abismos e labirintos da alma”
208
Tal é a moral do nobre, pois o escravo sempre precisa de um amparo, de um "deus
muleta". O escravo teme as profundezas do espírito, por isso necessita da comunidade-
rebanho e não gosta de estar só.
A "nova religião" vem se delineando por estes escritos. Não é, conforme notamos,
uma religião da multidão. Para entendê-la, pede-se que a pessoa fique desarmada de
preconceitos com relação ao seu corpo e penetre nele. Que não conclame aos outros para
seguirem o caminho que ela mesma tem que seguir. Que não busque um modelo para si,
quanto mais um arquétipo no além-mundo. Para o filósofo, toda idolatria é prejudicial. Ele
quis, assim, acabar com a tirania do cristianismo. Senão, como prepararia o terreno para o
seu "re-ligare"? Não é por outra razão que ele criou Zaratustra, o arauto do "super-
homem". É esse o alvo de Nietzsche, que faz parte de sua proposta:
208
Oswaldo GlACOIA JR. Labjnntos_da_alma- P- 167.
149
"Aos homens que em algo me interesso desejo o sofrimento, o
desamparo, a doença, os maus tratos, a humilhação, - desejo que o
profundo desprezo de si mesmo, as torturas das próprias desconfianças,
as misérias do vencido o lhes permaneçam desconhecidas: não me
compadeço delas, porque lhes desejo a única coisa que possa mostrar
hoje se alguém tem valor ou não, a saber: se é capaz de mostrar que tem
fibra..."
209
Mais uma vez podemos perceber o que significa para o filósofo ter uma alma
nobre,um espírito robusto. Viver em plenitude, por esse ângulo, quer dizer não
desprezar a capacidade de resistência de si mesmo. Porém, é um resistir em combate
para que os obstáculos não se transformem em empecilho para a própria vida. Aqui
encontra-se a ascese nietzscheana que nada tem a ver com o ascetismo contra a
existência, presente nas religiões, pelo menos na maioria delas. Por essa análise, vemos a
possibilidade do alargamento do significado do "Übermensch". E por que não
mencionar esse tipo de "religioso" que conhece, por experiência, os "altos e baixos"
do cotidiano. Sem a necessidade de se compadecer, pois a vida não tem compaixão de
ninguém. Nós é que precisamos crescer como viventes em todas as direções. A "nova
religião" apresenta-se com disciplina suficiente para que o ser humano seja livre, até
pelo motivo de que essa mesma disciplina não vem de fora para dentro e não equivale a
uma repressão social, institucional. Ela simplesmente se sucede no jogo das forças via
vontades de potência que se efetivam. Não é estática porque o devir é a sua realidade.
Eis a riqueza do resgate ou do "re-ligare" executado pelo filósofo: faz o homem sentir de
novo e de corpo inteiro todo o movimento do cosmo com uma melodia
210
. Que seja,
como poderia dizer alguns, uma religião da imanência, porque nela a transcendência
acontece aqui mesmo nesta Terra, sem a necessidade do Transcendente. Evitamos o
209
"VP", §447, p. 401.
210
Lembramos aquela passagem do "Nascimento da Tragédia" que citamos para justificar a noção do "re-ligare"
em Nietzsche.
150
dualismo, conforme explicamos. Não é próprio do filósofo. Entretanto, dando o
sentido de "transcendência na imanência", dizemos que o "super-homem" é o homem
que se auto-superou. Esta sim, é a linguagem nietzscheana: auto-superação.
Aproximamo-nos da transvaloração e sabemos que por detrás de cada conceito se
esconde um valor ou desvalor. Também conhecemos, no filósofo, qual deve ser o
parâmetro para qualquer avaliação.
O que nos leva à afirmação de que o fisofo tem uma determinação religiosa? Afora o
princípio do "re-ligare", quando averiguamos suas obras e detectamos sobre elas que toda sua
crítica à religião dirige-se essencialmente ao cristianismo. Concede, no entanto, uma abertura ao
chamado "paganismo".
"Não omitimos aqui, porém, um tipo de homem religioso, o pagão? O
culto pagão não é uma forma de ação de graças e afirmação da
vida? Seu representante supremo não teria que ser uma apologia e uma
divinização da vida? Tipo de espírito bem sucedido, encantadoramente
exuberante... Tipo que acolhe em si e redime o problemático e as
contradições da existência? - Aqui colocamos eu e o Diosio dos
gregos: afirmão religiosa da vida (..,)
211
Especialmente nessa parte, Nietzsche mostra que a religião não está descartada desde
que exalte a vida em sua totalidade, sem a necessidade de forjar uma outra vida (a "espiritual").
Mas, por que justamente o culto pagão grego e a escolha de Dionísio? Talvez pela razão de, na
Grécia do Olimpo, os deuses não morarem fora da Terra; e a opção por um deus específico é por
ser, entre as divindades gregas, o mais humano. Como assim? Por trazer à tona as profundezas
do homem, seus instintos, seus desejos, sem os quais ele seria apenas uma caricatura da vida.
Por ser um deus que torna o ser humano alegre e cheio de potência, com vontade de crescer. O
211
Nachgelassene Fragmente. Fr. Número 14 (89); in: KSA, vol. 13, p. 265s. In: Oswaldo
GIACOIA JR.
Labirintos da alma, p. 185.
151
que, por sinal, lembra muito bem a expansão das forças enquanto vontades de poncia.
Prossigamos com o filósofo:
"E quantos deuses novos são ainda possíveis! Em mim, em quem o
instinto religioso, quer dizer criador de deus, anima-se por vezes num
momento intempestivo, quão diferentemente se me tem revelado o
divino! (...) Não duvidaria de muitas espécies de deuses (...) - E para
invocar a autoridade de Zaratustra que não.saberíamos por demais
exaltar neste caso: Zaratustra chega a afirmar de si mesmo: 'Somente
poderia crer num deus que soubesse dançar...' Ainda uma vez: quantos
deuses novos são ainda possíveis! (...)”
212
É notável o quanto Nietzsche refere-se ao seu entendimento do divino e da religião
como instinto. Como chamá-lo de ateu? Seria reduzir o próprio termo e até cometer uma
injustiça com o filósofo. Para ele, não tem validade aquela ideia de um deus estático, conforme
até indicamos. O que nos diz sobre um deus dançarino? Parece que no bojo dessa expressão
ele retorna com o devir que o acompanha em seus escritos. Um deus que se move de um lado
para o outro, um deus que vibra, um deus "pathos". E tem mais, pois Nietzsche não fecha a
questão. Oferece a possibilidade de novos deuses. Pelas suas próprias letras, seus tradutores
captaram nele sua condição divina. O que é o divino para o filósofo? Forças que não cabem em
si e, por isso mesmo, manifestam-se-lhe de forma repentina, intempestiva. Certamente, ainda
entre muitos de s, esse teor religioso é incompreensível (para o dizer inaceitável).
Acreditamos, porém, que a experiência religiosa não pode ser confinada em determinados
conceitos. Corre-se o risco de limitar uma multiplicidade de hierofanias. Por que, o
questionamento nosso que cabe aqui, o sagrado não pode manifestar-se sob variadas formas? Por
tal motivo, observamos que o autor que estudamos concebeu uma religião, mas não a constatou.
212
“VP”, § 4gQ
5
p 4ig Os
grifos são nossos. Obs.: ainda que tal aforismo tenha sido recolhido
por Elisabeth Foerster-Nietzsche, entre tantos outros, para que ela publicasse essa obra capital
denominada "Vontade de Potência", a escolha do mesmo não invalida sua legitimidade. De
resto, somos conscientes da reputação da irmã do filósofo; não misturamos os
aforismos com ela e, principalmente, os que têm amparo em outros escritos de Nietzsche.
Após este esclarecimento, para evitar más interpretações, continuamos em nossa reflexão.
152
Quem sabe, por o querer fazê-lo propositadamente. Procuramos ler esse seu lado nas linhas e
entrelinhas de seus pensamentos e, assim, encontramos nosso respaldo para a escrita dessa
dissertação. Daí entendemos que o deus de Nietzsche, que esem Dionísio, que está em todos
nós, que está na vida, no cosmo enfim, é um deus chamado vontade de potência. o
neste parágrafo, já deixamos algumas pistas sobre o assunto, mas esclareceremos melhor
como isso se um pouco mais adiante.
Noutras considerações, abordamos a crítica nietzscheana sobre o cristianismo;
contudo, trataremos agora acerca do que a "nova religião" dista dessa outra. Começamos por
Israel.
"Os judeus são o povo mais notável da história universal, já que,
enfrentados os problemas do ser ou não ser, têm preferido, com
uma conscncia absolutamente inquietante, o ser a qualquer preço: esse
pro foi a falsificação radical de toda natureza, de toda naturalidade, de
toda realidade, tanto do mundo interior como do mundo exterior inteiro.
Os judeus (...) têm infortunado sucessivamente, e de uma maneira
incurável, a religião, o culto, a moral, a história, a psicologia,
convertendo essas coisas na contradição de seus valores naturais. Com
esse mesmo fenómeno voltamos a nos encontrar uma vez mais, e em
proporções indizivelmente agigantadas, porém somente como cópia: -
em comparação com o 'povo dos santos' (Cf. Êxodo 19,6: "Sereis para
mim um reino de sacerdotes e um povo santo"), a Igreja cristã carece de
toda originalidade. Os judeus são, justamente por isso, o povo mais
fatídico da história universal (,..)
213
Ou seja, o monoteísmo judaico terminou por colocar em contraposição Deus e a
natureza. E isso foi reforçado pelos cristãos que, como antijudeus, não se reconhecem
como uma consequência judaica
214
. Como diz o filósofo: os cristãos são pias. A Igreja
cristã deu continuidade à separação entre religião e natureza ou entre Deus e ela, com
um judeu à frente (o apóstolo Paulo). Ora, para Nietzsche, não deve existir uma religião
213
AC/AC. § 24. p. 50.
214
Ainda cf. AC/AC. § 24, p. 50.
153
separada da natureza. Porém, se juntarmos a divindade e a natureza não teremos um panteísmo?
É o que pode parecer, mas não é o caso. Também isso será explicitado mais adiante.
Antes de continuarmos esse assunto, para que não haja nenhum desvio com relação à fala
do filósofo sobre os judeus, como já houve, e muito (conhecemos os casos drásticos na própria
história), resolvemos dizer de que forma o próprio Nietzsche trata os anti-semitas: com
desprezo, imputando-lhes a decadência do espírito alemão pelo excessivo nacionalismo regido
por meio da frase "Deustschland, Deustschland iiber Alies" ("Alemanha, Alemanha sobre
todos")
215
Retornando às diferenças da "nova religião" com o cristianismo. Para o filósofo, a
chave para o entendimento da "vontade de Deus" está no sacerdote, o grande manipulador. A
casta sacerdotal manda em todos e "obedece" a "Deus". De certo, um golpe de maestria.
o é à toa que as farpas nietzscheanas sobre o "rebanho" são muitas. Na "religião do novo
homem" (do "super-homem")o há lugar para pastores e para padres. No "re-ligare" de
Nietzsche os intermediários estão de fora. Muito menos ele se considera um sacerdote. É
apenas um anunciador do "além-do-homem", principalmente pela boca de Zaratustra. O
filósofo interessa-se mais pelo sim que cada um pode dar à vida tal e qual. Nisso, a moral
criso tem contribuído. Vamos à matriz.
"Se os problemáticos herdeiros da moral crista-européia o
demasiado virtuosos para ainda prestar ouvidos a qualquer 'lei moral
acima de nós', é porque essa moral se auto-suprimiu, cumprindo,
desse modo, o destino de todas as coisas respeitáveis que existiram
sobre a Terra (...). Permanece, pois, como problema aquele 'oculto Sim',
mais forte que 'todo Não e Talvez' (...). Que crença é essa que nos
obriga, a nós imigrantes, que abandonamos para sempre nossa pátria
moral, ao nos desobrigar do dever de obediência aos seus imperativos?
Nessa crença se revela o engajamento moral da crítica nietzscheana
da moral: é a crença na possibilidade do Além-do-Homem, em novas
possibilidades para o tipo homem, presságios que se delineiam à sombra
assustadora do niilismo extremo”
216
215
Cf. GM/GM. m Tratado, § 26, p. 181.
216
Oswaldo GIACOIA JR. Labirintos.da alma. pp. 147-148.
154
Por outras palavras, somente quem vai até o mais profundo de suas experiências é que
pode superá-las. O filósofo entendeu o homem-cristão-moral-metafísico até a sua raiz e
procedeu genealogicamente para, daí, erigir o seu "Übermensch", esse advento. Nietzsche
levou essa moral, que se enraizou na Europa, até as últimas consequências, isto é, até enxergar
e sentir o seu esvaziamento. A partir disso, em meio ao estado de "nihil" que se instalou, ele
abriu as portas para um novo tipo de homem, de religião e de moral. Por que pode ser uma
nova moral? Nós concordamos com Giacoia Jr. em sua escrita citada aqui e que, para nós, vai
além disso. O "super-homem" é moral no sentido de libertar o homem de sua degeneração
pela moralidade. Ou então, podemos dizer do modo como o filósofo trata: a "moralina
217
"
degenera. Mas sendo levada até o extremo e sendo destruída ("auto-supressão da moral”
218
),
abre campo para aquela afirmação nietzscheana da vida.
A genealogia perpetrada por Nietzsche à moral e à religião tradicionais funcionou
como uma desconstrução de valores a partir de uma dada perspectiva. Contra que tipo de
valor o seu procedimento se direcionou? Àquele que encontrava em nosso mundo terreno
adjetivos como enganador, sedutor e mesquinho e que procurava na "coisa em si", num deus
oculto, as condições para avaliarem todas as coisas
219
. O filósofo não considera que possa
haver um ser-essência em condições de servir de origem para o bem, despertando o mal no
seu lado oposto. Se isso acontecesse, seria como crer na existência de uma razão universal,
absoluta, controladora de tudo. Aqui, ele esbarra também no dogma teológico do
criacionismo, questionando-o. Pois, para ele, o vir-a-ser (no qual acredita) não tem origem
nem fim e toda criação acontece dentro do processo das forças em movimento. Contrasta com
o nomeado Deus, que assim é definido: nunca muda porque é o Perfeito, mas coroou o mundo
com a constante transformação. Logo, genealogicamente, essa Terra não serviria mais. Seria
217
Um conceito nietzscheano de falsa moral ou moral superficial.
218
Subtítulo da obra de Giacoia Jr. Utilizada por nós
219
Cf. JGB/BM. 5 2. p. 10.
155
preciso imaginar outra, "perfeita". O platonismo foi bem-vindo e o cristianismo foi o
"aperfeiçoamento" daquilo que o judaísmo iniciou. De que maneira, se o filósofo acusou-o de
cópia do monoteísmo judaico? E que Nietzsche, ironicamente, acaba dizendo que o
cristianismo conseguiu piorar as coisas e foi nisso que tal religião saiu-se "melhor" que sua
predecessora. Mais ainda, no corrente parágrafo é perceptível a contradição desse "Deus
criador" que, para livrar-se de todo mal ao qual deu origem (afinal, trata-se de monoteísmo),
deu ao homem o livre-arbítrio. Origina-se, nesse caso, um forte dualismo. Talvez o
maniqueísmo tenha sido mais honesto. Sem dúvida, o procedimento genealógico tem a força do
"martelo nietzscheano".
"Por isso, a genealogia ensina ao filósofo rir das 'solenidades da origem',
posto que ao verificar a proveniência hisrica da origem e constatar sua
vulgaridade e mesquinharia, o filósofo-genealogista poderá, ao mesmo
tempo em que se aproxima da origem - num procedimento
microscópico - manter-se à distância, a fim de diferenciar-se dela,
protegendo-se dela pelo riso, deplorando-a, afastando-a e
eventualmente destruindo-a. Contra a pesquisa metafísica, a genealogia
rastreia a história para trazer à tona as relações de poder - as
violências, as torturas, o derramamento de sangue, os castigos, as leis
penais etc, tudo o que enfim evidencia os mecanismos que deram origem
à fabricão de grandes ideais
220
Parece que no caso cristão, não sobrou muita coisa da "martelada nietzscheana" na
"espinha dorsal" de sua metafísica. Nietzsche, de acordo com os estudos efetuados noutro
capítulo nosso, anunciou a morte de Deus e se não o matou, "empurrou o caixão ladeira
abaixo". Seria, então, preferível dizer que em seu procedimento genealógico, no que diz
respeito aos valores cristãos, cabe a parte da citação, feita aqui, condizente ao exercício de sua
eventual destruição. A mão do filósofo desferiu o golpe de seu martelo. E muitas readequações e
novos discursos surgiram dentro do cristianismo, até porque o duro ataque nietzscheano não foi
o único. De dentro do próprio cristianismo surgiram novas propostas de um novo Deus, mas
220
Angela Zamora Guimarães CILENTO. Uma reconstituirão da genealogia da moral de Nietzsche (DM), p. 28.
156
que permaneceria uma divindade cristã. Não é o nosso caso e nem estamos nessa pesquisa e
reflexão para professarmos a nossa fé, ou dizermos se a possuímos ou não. Não queremos nada
mais do que mostrar como o filósofo procedeu para chegar a um novo sentido de vida. Sua
"nova religião".
Afirmamos que o filósofo abre espaço para uma "religião privada", o que não quer
demonstrar que isso esteja imbuído de egocentrismo. Trilhar o próprio caminho sem pretender
empurrar para os outros a própria responsabilidade não está nem um pouco próximo do
egoísmo vulgar.
"Que importância tenho eu! - Eis o que está escrito na porta do pensador
do futuro' (M/A 547, 258). A crença na imortalidade da alma, própria de
épocas passadas, fazia depender do conhecimento da verdade das coisas a
salvação eterna; mas hoje, que tal crença está ultrapassada, o enigma da
realidade não deve ser resolvido apressadamente por cada um: a
humanidade pode ter em vista desígnios de tal modo grandiosos que
nas épocas passadas teriam parecido loucura e desafio aou e ao inferno
(M/A 501. 239)”
221
Nietzsche não está preocupado em estabelecer a verdade, mesmo porque não a tem
presente. Ele entende daquilo que experienciou e também o com o intuito de impor aos
outros suas buscas e descobertas. A salvação é outro tema que passa ao largo de sua filosofia,
quanto mais a eterna. Ele só alertou-nos para que não ficássemos presos em nosso pequeno
mundo interior, ou procurando no além uma explicação poderosa para a origem de todo o
universo. Que não nos enganássemos como titulares guardiães de uma "verdade absoluta". O
filósofo apontou esse mesmo problema na ciência, isto é: no tocante a uma vontade de
verdade que faz obnubilar toda grande experiência. Por que essa postura com a religião e a
ciência? Para quebrar o egoísmo que encerra todo espírito numa prisão, colocando-lhe uma
venda, diminuindo ao máximo sua perspectiva. Portanto, a sua "religião particular", a qual nós
221
Gianni VÀTTÍMO. Introducão_a Njetzsche. p. 38-39.
157
detectamos, tem o seu "dogma" ou um ponto de vista próprio. Mas é um "dogmatismo”
222
que não
tem em si uma promessa de seguridade ou que ofereça uma certa estabilidade na qual todos nós
vivemos e morremos. Aliás vida e morte fazem parte da vida como vontade de potência. Tudo
es em uma constante destruição e construção, construção e destruição. É o vir-a-ser. E isso, o
"dogma nietzscheano", baseia-se no devir. Que outro dogma é assim? Desconhecemos ainda,
mesmo porque não é qualquer vir-a-ser esse do fisofo. o vontades de potência em contínuas
relações de poderes. Portanto, essa "nova religião" exige da pessoa uma auto-superação que não
cessa. O "super-homem" superou o homem porque vive a superar-se. Vejamos o quão distante
isso está do egoísmo mesquinho que faz o homem pensar-se como centro de tudo. Como
comentamos outrora, para Nietzsche é impróprio o uso da expressão "natureza humana". Ele
prima simplesmente pela natureza. E desta como vontade de potência, como devir enfim. "A sua
intenção central, portanto, está sempre noutro lugar (que o o nosso 'tempo'), na 'suspeita' em
relação ao ser e à sua verdade, orientado ao longo da linha que segue a genealogia das verdades
de que é feito o mundo”
223
.
Com tantas idas e vindas assim no pensamento do fisofo, já paramos muitas vezes e,
muitos tamm o fazem para olhar "a luz no fim do túnel"(cf. um dito do cotidiano). Ou seja,
onde vamos chegar com isso? Entrementes, traçamos nossa leitura e concordamos em partes com
a seguinte citação: "Segundo Jaspers (...), o pensamento de Nietzsche, muito próximo do de
Kierkegaard, oscilaria entre a blasmia e uma religiosidade dicil de definir”
224
. Em parte, pois
discordamos do termo "blasfêmia" por ser teologal demais, excessivamente cristão. Estamos de
acordo no que se refere a Kierkegaard, somente na valorização que este faz da "vivência da
religiosidade". E quanto à dificuldade de se ver uma religiosidade no filósofo, consideramos que
isto é possível desde que não nos prendamos à questão do ser na religião ou à outras categorias
222
Está entre aspas porque não tem nada a ver com aquele dogmatismo que "possibilita" ao homem atingir a
verdade absoluta, dando uma suposta segurança. Isso pode ser dito, por exemplo, em relação ao niilismo pós
morte de Deus, ou da perda desse suposto sentido existencial
223
Gianni VATTIMQ. Introdução a Nietzsche, p. 121.
224
Ibid. p. 108
158
tradicionais. Mas exceções e isso nós trouxemos à tona no início deste capítulo. Sobre
Karl Jaspers, bem... ele era um existencialista cristão. E entre os cristãos, especialmente teólogos,
não foram poucos os que quiseram ter Nietzsche ao seu lado, por mais que desprezassem nele
certas colocões. É o caso de Frederick Copleston, que disse ter o mundo perdido, no filósofo,
um "verdadeiro guia e amigo”
225
. Ele ainda, tal jesuíta, a entender que a culpa disso é dos
próprios cristãos (mais ao fim de sua obra). Jordi Corominas vai mais longe ao utilizar a obra "O
Anticristo" como inicião ao cristianismo
226
. E entre filosofia e teologia, temos a obra "Deus na
filosofia do século XX" (ver bibliografia), muito rica com as contribuições nietzscheanas logo
ao início. E, nos ditos "pós-modernos", encontramos o próprio Vattimo, de quem utilizamos
citações. Enfim, o muitos os exemplos. Entretanto, para nós, as veredas são outras. Se outros
leram possibilidades cristãs no filósofo, ou reflexões que auxiliaram o cristianismo a crescer
em sua abertura para a realidade em todos os níveis, a nossa leitura atenta para um outro
recorte, o qual é plauvel em Nietzsche para um "novo tipo religioso". Fizemos uma
interpretão e, de uma certa forma, apropriamo-nos dos escritos do filósofo. A nossa
intenção nunca foi de convertê-lo, pois ele não precisa disso e, mesmo se precisasse, isso não
cabe a nós. É que, logo mais, trataremos de todos os pontos de seu pensamento que nos levaram
a encontrar nele algo de implícito e que, em determinados momentos, ele faz vir à tona. Na
verdade, estamos montando um quebra-cabeça diferente, pois quando dá-se a impressão de se
ter colocado a última peça, aí tudo recomeça. O que queremos dizer com isso? Que entramos no
turbilhão nietzscheano do vir-a-ser e, por isso, o nosso próprio texto tem essa dimensão de "ir e
vir". E foi de dentro desse emaranhado que enxergamos as possibilidades de uma "nova
religião". É uma experiência de viver o texto pela via do perspectivismo para, depois, fazer-se a
elaboração de mais uma dimensão que já estava lá, dentre as outras. E nisso reunimos o que há
225
Cf. Frederick COPLESTON. Nietzsche: filósofo da cultura, p. 285.
226
Cf. Jordi COROMINAS. El anticristo de Friedrich Nietzsche como propedêutica de Ia fe
cristiana. In: Revista
Latinoamericana de Teologia, v. 16. n. 46.
159
de mais caro para Nietzsche: a teoria das forças e da vontade de poder sob o auspício do "além-
do-homem", junto ao eterno retorno do mesmo, com sua grande resposta à vida: "amor fati". E
isso tudo passa necessariamente por Zaratustra, a personagem-filosófo e poeta que só é capaz
de crer num deus dançarino. A música que Nietzsche ouviu de Dionísio está na partitura de todas
as suas obras para que possa ser entoada inúmeras vezes. Como é possível perceber, pois é
demais notável, entre tantas coisas, essa citação fez-nos ver as variadas linguagens do
filósofo, seus esgios como ser humano, para "concluirmos" (sem fechar a questão) pela sua
força religiosa: "Eu aprendi a andar; conseentemente corro. Eu aprendi a voar; logicamente não
quero que me empurrem para mudar de local. Agora sou leve, agora vôo; agora vejo por baixo de
mim mesmo, agora salta em mim um Deus”
227
. Se "Deus está morto", que Deus é esse? Para nós,
a corrida começou com perguntas como esta que aqui está, E muitas eram as peças do quebra-
cabeça que sempre, depois de montadas, embaralhavam-se novamente. A vida é assim. o é
fácil dizer: "amor fati"; e esa "chave" de tudo. É preciso escalar montanhas. "O que escala
elevados montes sorri de todas as tragédias da cena e da vida”
228
. O único modo de entender o "re-
ligare" de Nietzsche é estar acima do comum no aspecto de não ser tragado pelo espírito de
rebanho. faz sentido o que é adquirido pela vivência; afora isso, todo o resto é surdez para a
alma
229
Escapar de um Deus que promete um lugar seguro, à primeira vista, parece uma enorme
insensatez. Não querer abrigo nas moradas celestiais é, para o crente no Deus metafísico,
sinônimo de perdição perante a eternidade. Eis um outro problema. O homem procura dar-se
bem para sempre, pelo menos é o caso de muitíssimos. A "vida eterna" é a maior promessa que
um Deus poderia fazer ao seu fiel. É a maior moeda no mercado da fé.
Pom, o pode ser qualquer infinvel existência. que ser aquela em que haja paz, o
que significa ficar livre de todo o sofrimento. O que crê não deseja sofrer. Por isso, aquele que
227
Os discursos de Zaratustra: Ler e escrever". In: 2a/ZA. I parte, pp. 31-32. O grifo c nosso.
228
Ibid.
229
Cf. “Por que escribo tan Buenos libros”. In: EH/EH,§ 1. p.57
160
pode dar "vida em abunncia" é que deve ser idolatrado, porque não maior bem. Quem é
capaz de tal realização só pode equiparar-se ao "Sumo Bem". Parece que as pessoas esperam tal
coisa de seu Deus e, nessa esperança, o servem. Isto é, obedecem àquilo que ficou instituído
como sendo de Deus ou aos Seus "representantes". Novamente entra em campo de atuação a
tradição. Muitos dão a própria vida por ela. Na verdade, estão trocando-a por uma de "valor
maior", porém temem de pensar em não terem crédito mediante o "Grande Credor". E o
filósofo não vê outra solução para essa cultura perpetrada pelo cristianismo a não ser a
transvaloração de todos os valores. O cristão é alguém repleto de expectativas quanto ao
além; entretanto, ele também fraqueja frente a qualquer argumento que lhe põe em dúvida o que
diz respeito à sua crença. Desse modo, sua maior força é o aumento de sua fé. Não são poucos,
contudo, os que viram ruir seus pontos de referência. O nome disso é niilismo. Nietzsche
não é niilista porque sabe do perigo, mas aprendeu a enfrentá-lo (ao "nihil"). Viu que a
metafísica lançou o homem moderno num paradoxo, pois este mundo começou a ter maior
importância. Por outro lado, onde ficariam as promessas de "segurança" e de "vida eterna"? O
ser humano quis livrar-se de seu "Senhor", quis ser ele mesmo senhor, mas perdeu-se num
grande vazio. E o filósofo observava o andamento das coisas. Realmente, é difícil sair da
metafísica. Não é simples desvencilhar-se do Transcendente. Por que isso acontece? Pelo medo,
o homem é vencido. E quem avança dessa condição, o deve olhar para trás. Fazê-lo é perder
a chance da transvaloração e de tornar-se um "super-homem". É necessário passar pelo
niilismo, pois nele o ser humano pode ser o seu próprio criador e transformar-se na sua própria
promessa.
Nesse fio condutor introduzimos a idéia que o nada não existe (e nem o ser). Então, tudo
é questão de avaliação ou, como queiramos, do valor dos valores. E baseamo-nos nas pesquisas
que dizem que, para Nietzsche, valor está sempre associado à existência
230
. Não são valores em si.
230
Cf. Rosa Maria DIAS. Interpretação e vontade criadora no pensamento de Nietzsche (DM), p. 70.
161
São desprovidos de realidade ontológica; são interpretações num determinado contexto histórico
bem situado. Tudo isso ocorre porque o homem é vontade de potência. "Viver o é apenas se
adaptar às circunstâncias externas: a vida é antes de tudo uma atividade criadora"
231
. Aqui
está expressa a insuficiência da explicação darwinista da acomodação da espécie ao ambiente.
A seleção nietzscheana é outra, ou seja, não é de simples adaptão: é de criação. Por
que o filósofo enfatiza constantemente que é necessário chegarmos às profundezas do
espírito? Porque somente dando o máximo de si é que alguém se supera. Ser profundo é sentir
vontade de potência. De outra ótica, não podemos esquecer a grande aproximação que existe
entre o filósofo e Dostoievski
232
, apesar de Nietzsche reconhecer em que se distancia dele.
Qual a admiração pelo escritor russo? É que ele penetrava nas ideias de solidão que o filósofo
priorizava para que alguém pudesse enfrentar a si mesmo e crescer "espiritualmente".
Especialmente o termo "subterrâneo" chamava-lhe a atenção. Um livro de Dostoievski que
também lhe atraiu muito foi "O Idiota".
"Naquele mesmo ano (1887) em que descobriu Dostoievski numa
livraria, Nietzsche começou a usar a palavra idiota em diversos
contextos de seus livros e cartas. Usou-a, por exemplo, em referência
a Jesus, a Kant e a si próprio. De fato, a passagem em que Nietzsche
se refere a si próprio como um idiota aparece num parágrafo em que
falava sobre Dostoievski (Cf. "Carta a Brandes", de Turim, a 20 de
outubro de 1888
233
)”
234
Enfim, é possível ficar estendendo mais comentários sobre a relação
Dostoievski-Nietzsche, porém deixaremos isso para quem se interessar melhor pelo
assunto. Nossa meta é outra: evidenciar que das suas mais profundas experiências, o
231
Ibid., p. 76.
232
Cf. Richard Elliot FRIEDMAN. O desaparecimento de Deus, cap. 7. O autor aponta, em
várias citações de Nietzsche, a semelhança com Dostoievski e a influência deste último sobre
o filósofo a partir de ''Memórias do Subterrâneo".
233
Georg Brandes foi um crítico dinamarquês que reconheceu a importância de Nietzsche
ainda quando o
filósofo estava vivo e lúcido.
234
Cf. Richard Elliot FRIEDMAN. O desaparecimento de Deus, cap. 7,p. 175. Os parênteses são nossos.
162
filósofo erigiu um novo sentido de vida, o que chamamos de sua "nova religião". Às
vezes, perguntamo-nos de que forma uma pessoa como ele, que sofreu tanto,
conseguira produzir textos tão repletos de projetos e análises. E, lendo suas obras,
encontramos numa delas uma resposta especial: "O que não me mata, fortalece-me.
Nosso autor, pelo que consta, era o próprio vir-a-ser; a ponto de conceber os
conceitos que formaram sua cosmologia em torno da teoria das forças e vontades de
potência. Ao contrário daqueles que, como Copleston e Friedman, justificam a loucura
de Nietzsche sobre o embate com Deus, ou até discriminam seus textos por isso, s
enfatizamos o que grandes estudiosos do filósofo, entre eles a Professora Scarlett
Marton, dizem sobre esse assunto: em termos gerais, devemos levar mais a sério a
grande contribuição de Nietzsche e não nos sujeitarmos a "manobras ideológicas"
(sejam elas políticas, religiosas ou outras).
Depois dos comentários que estabelecemos no corrente capítulo, chegou o
momento de colocarmos, agora de forma nítida, a nossa teoria. A "nova religião" que
lemos no filósofo em como base o livro "Assim falava Zaratustra", pois de uma
maneira bastante apropriada (por metáforas principalmente), com um estilo bem pximo
ao Evangelho
235
, apresenta-se a "boa nova" nietzscheana. Não que a linguagem por
parábolas seja determinante. A questão não é essa, mas sim o motivo que deve ter
levado Nietzsche a escrever assim. Para que ele usaria o jaro religioso e cristão? Para
entrar mesmo por dentro da mensagem cristã a fim de suplantá-la. Vê-se que
conhecendo muito bem as escrituras, pois não são poucas as aproximações em
toda sua vasta produção, o filósofo faz-se realmente portador de uma nova
abordagem religiosa que vem findar o cristianismo em sua base dualista platónica.
235
Cf. Scarlett MARTON. Nietzsche e a celebração da vida: a interpretação de Jórg
Salaquarda. In: Cadernos Nietzsche 2, p. 8.
163
Não obstante, é bom inteirarmo-nos de que existem autores que defendem nessa
obra uma "nova metafísica". Para s, a única análise que se nos aproxima é a de Pierre
ber-Suffrin, isto é, o modo como ele a palavra metafísica é o mesmo em que nós
desenvolvemos o trato com o conceito transcendência. "(…) Uma nova metafísica, cujo objeto
o se situaria 'além' do concreto físico, mas seria esse mundo físico (...)
236
- Mas nós não vamos
com ele até a parte na qual nos escritos nietzscheanos uma ontologia. Sempre, em nossas
reflexões, primamos pelo vir-a-ser. Inclusive, não cremos que Deleuze, ao identificar os dois
como um (vir-a-ser é o ser e vice-versa), tenha pretendido utilizar a ontologia clássica. Talvez
ele procurasse uma maneira de evitar novos dualismos. Mas já comentamos sobre isso e
demonstramos nossa opção por Scarlert Marton. Há somente o vir-a-ser. E, depois, fomos nos
distanciando dela; o nisso, que é essencial. Nossa novidade foi colocar esse vir-a-ser como
próprio da vontade de potência e esta como um "novo deus" (aqui já estamos longe da
filósofa, com quem aprendemos muito). Por que em "Zaratustra" o fundar de uma "nova
religião"? Porque o filósofo quer uma nova cultura. Eis o que se esconde por trás da
transvaloração de todos os valores da qual o "super-homem" é o sinal. Nietzsche vinha
demonstrando sua opção desde "O Nascimento da Tragédia", conforme comentamos
noutras páginas desse trabalho. Mesmo antes de terminar o "Zaratustra", na "Gaia Ciência" ele
dizia da possibilidade de criar novos valores
237
. Anterior à sua obra máxima, em meio à sua
elaboração e após ela, Nietzsche tem um firme "fio condutor". O fundamento da cultura
ocidental crisesteve o tempo todo na sua mira. O que não significa que ele adote a cultura
clássica, pois também vai am dela. "Zaratustra nos é logo apresentado (no parágrafo um do
Prólogo) como o anunciador de uma completa transformação cultural, o profeta de uma nova
236
Pierre HÉBER-SUFFRIN. O "Zaratustra" de Nietzsche. p. 37.
237
Cf. FW/GC, § 58, p. 84. Aliás, o parágrafo em pauta na referência tem por tema "Só
criando". Criação e
transvaloração estão juntas.
164
civilizão, nem grega, nem cris, radicalmente nova”
238
. Em nossa teoria, mostramos que o
seu "re-ligare" leva o homem de novo para aquilo do qual ele tinha se apartado pelo seu excesso
racional, pom apontamos que o novo no filósofo é que nisso ele coloca a vontade de potência.
Nietzsche o foi somente o que Copleston afirmou no título de sua obra "Nietzsche:
filósofo da cultura". Ora, ele ultrapassou a crítica. Ele criou o sentido de uma nova cultura. O
jesuíta quis colocá-lo mais no rol dos reformadores. Não é o caso. Em nossa opinião, a "nova
religião" não vem desligada de um teor cultural original. Cultura e religião são bastante íntimas,
até numa condição sem igual como a que estamos declarando. Alguém poderia afirmar que essa
leitura de que cultura e religião estão interligadas não tem nada de novo, então o próprio filósofo
o estaria sendo original. Será? o nos esqueçamos que tais termos em Nietzsche o
avaliados de uma perspectiva originalíssima, que não nos cansamos de repetir: vontade de
potência. Quanto ao entrelaçamento entre eles, é bom lembrarmos também que na
interpretação nietzscheana tudo se relaciona a partir das relações entre as forças via vontades
de potência ou a efetivação das mesmas. O que é isso? Estamos dizendo, de novo, que a
referência mudou. Não podemos mais avaliar cultura e religião na dimensão antropocêntrica,
pois o próprio ser humano é um complexo de forças se relacionando. Então, não é possível fazer
de conta que dá na mesma. O resultado é bem outro, o qual sabemos por estas linhas.
Entramos na órbita dos conceitos e falando deles falamos, sem vida, de valores. E o
mesmo acontece com uma palavra bastante difícil: Deus. Já fazendo os devidos recortes,
vamos à seguinte citação: "Se 'Deus' compreende em seu conceito a alienação (Feuerbach,
Skinner, Marx), ou uma figura sutil da vontade de potência (Nietzsche), então ele contém,
inclusive, no seu desaparecimento as consequências desse conceito”
239
. A partir disso,
lançamos a nossa ideia de uma forma bem mais fundamentada em termos epistemológicos. O
autor, um filósofo francês, talvez o o saiba, deu-nos o que queríamos. Daí avançamos num
238
Pierre HÉBER-SUFFRIN. O "Zaratustra" de Nietzsche. p. 34.
239
Jean-Luc MARION. Dieu sans 1'être. p. 45. Tradução nossa. O grifo também c nosso.
165
deus denominado vontade de potência. Sim, porque em nosso viés central, a "nova religião"
(essa é exclusivamente nossa na maneira como a estamos apresentando), fazemos questão de
colocar que, até por detrás de Dionísio (o deus músico, dançarino), encontra-se o deus mesmo de
Nietzsche: a vontade de poncia. Claro que uma religião o precisa ter um deus. Temos o
exemplo do budismo em suas origens e das leituras budistas atuais mais próximas delas.
Ocorre que, para nós, o filósofo deixou sua religiosidade flor da pele" e não escondeu a
possibilidade de crer num deus que soubesse dançar ( citamos isso). Nós somente ocupamos
esse espaço e interpretamos a tal daa como a leveza (não é estática) do vir-a-ser, da vontade de
potência que está em tudo que é destruído ou construído. A vontade de potência é esse próprio
fluxo. o um qualquer, mas um fluxo de energias. São as forças. O que nos autoriza também,
entre outras afirmações que fizemos no decurso da nossa dissertação, a nomeá-la como o deus
de Nietzsche? Certamente não é no sentido do Deus ou dos deuses conhecidos como seres que se
distinguem do homem de alguma forma, pois desses o filósofoo precisa e afirma isso.
Principalmente, para Nietzsche, não deve haver nenhum tipo de deus que faça do ser humano
sua criatura, assim como de todas as coisas. "Deus é uma suposição: contudo eu desejo que a
vossa suposão o vá além do que a vossa vontade criadora
240
. Como ele próprio também
alerta que não poderíamos criar "criadores" tais como Deus e deuses, logo nos propõe criar o
"super-homem”
241
. Por que age de tal maneira? Por o ver possibilidade desse Deus ou desses
deuses serem reais, o que não acontece com o "Übermensch". E, conforme citação deste
pagrafo, o fisofo o pretende que a vontade criadora presente em nós, por sermos ela, possa
transformar-se num deus imaginário. Sim, pois somos criadores enquanto forças que se efetivam
(vontades de potência). Sem o fluxo de energias, mencionado acima, o há criação alguma.
Entendamos que também, pela citão, não existe nada além da vontade de poncia. Por isso
dissemos antes que Diosio é vir-a-ser, é a vontade de potência em seu agir contínuo. Onde
240
"Nas ilhas bem-aventuradas". In: Za/ZA. II Darte.
D
.
63.
241
Cf. ibid.
166
Nietzsche encontrou a vontade de poder? Na própria compreensão do real. "Compreender
uma coisa é distinguir nela uma vontade de poncia (,..), todas as coisas são potência que quer
(...)"
242
. Ora, se não são as coisas que querem a potência, então, realmente, tudo o que existe
é vontade de potência. "Este mundo é o mundo da vontade de potência e nada mais! E vós
também sois esta vontade de potência e nada mais...”
243
Apesar de encontrarmos ao longo
desses nossos escritos motivos suficientes para investirmos na vontade de potência como o deus
do filósofo, melhor seria apontarmos isso nele mesmo e nessa tarefa, por meio de nossas
pesquisas, encontramos a abertura que nos completaria dentro da tese de doutoramento de
Scarlett Marton que, claramente, ao tratar da cosmologia em Nietzsche, diz:
tamm a partir de sua cosmologia 'científica' que repensa a ideia de
Deus. Nessa medida, emprega o termo para referir a uma específica
configuração de forças revelando um máximo de potência. 'A única
possibilidade de manter um sentido para a noção de Deus', sustenta um
fragmento póstumo, 'seria: Deus como força que impulsiona, mas Deus
como estado ximo, como uma época: um ponto no desenvolvimento
da vontade de potência [ (250) 10 (138) do outono de 1887]
244
Depois disso, pensamos que vontade de poncia como plural (vontades de potência),
enquanto relações de forças por mais poder, é que revela a nova ideia de um deus-força,
efetivando-se e formando um período marcante, sendo ele esse mesmo período. Nesse
ínterim, deus torna-se também plural e, na realidade, poderíamos pronunciá-lo como deuses, ou
seja: tudo acontece da mesma forma em todos os centros de forças. Em tal aspecto, deus acaba
virando sinónimo de luta. Mas, o que significa "deus como uma época"? E a leitura de que ele
faz-se "onipresente", sendo que nada é possível fora do seu tempo. Que tempo é esse? É o do
devir como próprio movimento das forças. Entretanto, a explicação de deus como "um ponto no
desenvolvimento da vontade de potência", não reduz o divino? Não, pois é a título de "estado
242
Pierre HEBER-SUFFRIN, O "Zaratustra" de Nietzsche, p. 125.
243
"VP",§385,p.371.
244
Scarlett MARTON. Nietzsche. cosmologia e genealogia (TD), op. 306-307
167
ximo". Ou seja, é como se um centro de forças fosse crescendo e engolindo os outros,
aumentando sua potência a tudo tornar-se um único centro. Pom, a pluralidade o estaria
extinta e o "uno" poderia sê-lo pela multiplicidade das forças. Na verdade, voltamos ao início
da explicitaçao martoniana sobre tal ideia: "uma configurão de forças". Vale dizer: todas as
forças em suas relações corresponderiam a tal deus, o que nos leva ao pensamento de que cada
relação é deus. Por isso, deus é plural, mesmo pelo seguinte motivo: não para separar forças
de vontades de potência. Logo, a grande configuração (deus) nada mais é que relações plurais.
Até por que tal configurar-se muda interna e externamente. É assim a dinâmica das forças.
"Não o um, apenas multiplicidades se reunindo, se separando”
245
. O conceito do deus
nietzscheano como mônada não existe. O que é deus? É a multiplicidade. Assim como usamos
vontade de potência no singular, também fazemos o mesmo com a palavra deus. Contudo,
todos nós sabemos (e Marton sabe muito a esse respeito da pluralidade, pois s tiramos
dela) que o correto é: vontades de potência. Deuses.
Portanto, está descartada qualquer possibilidade de panteísmo. Além do que, vontade de
potência ultrapassa o conceito de panteísmo naturalista. O mundo, segundo o parágrafo anterior,
o é a "manifestação" de um ser superior. No viés panteísta, "Deus" é visto como a soma de
tudo o que existe. Em Nietzsche , na parte o todo está presente. De que forma o maior pode
caber dentro do menor? o é esta a questão. É que na parte temos a potência que quer ser mais
poncia, e no todo também. De que maneira "deus" está presente tanto na parte como no todo?
Enquanto vir-a-ser, que acontece nas contínuas relações de forças. Agora, é preciso ter cuidado
para não pensar a parte como uma gota de uma mistura homogênea. O raciocínio não vai por
esse caminho. A ideia de microcosmo e macrocosmo pode causar equívocos. A quantidade de
foas que faz parte de um centro não faz parte de outro. E são muitos os pontos de vontade de
potência. Aqui esclarecemos melhor que o cosmo é "uno" e ltiplo ao mesmo tempo, no
245
Wolfgang MÚLLER-LAUTER. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. p. 152.
168
processo do devir. Cremos que é posvel entender que, para Nietzsche, o cabe a figura
daquele Deus absoluto, nosso velho conhecido.
Já dissertamos acerca do porq de "nova religião" e demonstramos o deus do
filósofo; entretanto, ainda devemos falar o que mais o "livro sagrado", "Assim falava
Zaratustra", traz como boa nova. Conjugaremos, agora, análises sobre o "super-homem" e o
"eterno retomo do mesmo"
246
. Com a "morte de Deus", Zaratustra que é chegada a hora de
apresentar o novo sentido da Terra. É o próprio bermensch". Quem é ele? É o
transvalorado, o "religioso" por excelência, o não dualista, aquele que também é deus porque é
vontade de potência, criador de uma nova cultura sem a culpa da tradição cristã e o que não teme
o niilismo por este fazer parte da destruição e da construção de novos valores, o único capaz de
dizer "amor fati" frente ao eterno retorno do mesmo, o eterno afirmador da vida. Em suma, é o
grande projeto nietzscheano em que o homem supera-se a si mesmo e atinge o mais alto estado de
espírito onde nada mais o abala. Nada tem a ver com indiferea. Ao inverso, é amor ao extremo.
"(...) Nietzsche (...), com a doutrina do retorno, exige o máximo dos fortes (...)"
247
. O "além-do-
homem" ou o homem que transcendeu-se a si mesmo na imanência
248
é um forte. Aqui
podemos lembrar quantas barbaridades a má-fé e o mau uso da linguagem sobre os escritos de
Nietzsche proporcionaram. O nazismo foi o pior, ao identificar o "super-homem" com um "novo
tipo biológico", uma "nova raça". Se existe uma "nova raça" no filósofo, esta é relacionada
àquela que diz "amor fati". Porém, nos dias de hoje, ainda temos leituras destoantes como a que
diz que Nietzsche trouxe um messianismo desprezador do homem por meio do seu "super-
homem", no qual ele ensina mesmo um o à humanidade
249
. Por sinal, tais interpretações que
"depauperam" o vigor de um espírito livre e que constam do livro "Por que não somos
246
Cf. FW/GC. § 341; Nietzsche faz uma boa exposição sobre o eterno retorno do mesmo.
247
Wolfgang MÚLLER-LAUTER. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. p. 139.
248
Fazemos uso dessa linguagem dualista - transcendência/imanência - exatamente para mostrarmos que não
dualismo.
249
Cf. André COMTE-SPONVILLE. A besta-fera, o sofista e o esteta. In: Alam BOYER et alii. Por que não
somos nietzscheanos. pp. 67-68.
169
nietzscheanos" mereceram a crítica de Scarlett Marton. "De modo geral, o livro peca por falta de
reflexão filosófica e excesso de estados psicológicos, relatos autobiográficos. Mas, para além da
aparente catarse, tem um objetivo político muito preciso: demarcar território, conquistar espaço
no cenário intelectual francês
250
. Marton não ra por ai.
"Reivindicando a exigência ancestral do racionalismo, alguns
pensadores da nova geração francesa quiseram pensar com
Nietzsche contra o nietzschianismo; melhor ainda, contra determinada
utilização das ideias do filósofo. E pensar com Nietzsche, em princípio,
deveria significar levar a rio suas afirmações. Mas o propósito que
declaravam perseguir não impediu que fizessem comentários arbitrários
nos textos (caso de André Comte-Sponville) ou se apoiassem em
citações extraídas da Vontade de potência, sem levar em conta que este
foi um livro inventado pela irmã do filósofo (em Pierre-André
Taguieff). De fato, combatendo o que julgaram ser uma
apropriação ideológica, a de apresentar Nietzsche como o mestre da
suspeita, limitaram-se a substituir uma imagem sua por outra. E com a
agravante de que esta nova imagem, na verdade, reeditou outras bem
mais antigas: a de Nietzsche racista e anti-semita ou, na melhor das
hipóteses, a de Nietzsche comprometido com o pensamento
tradicional"
251
Bem, acreditamos que após tais comentários está desfeito todo e qualquer "engano" ou
propulsão ideológica que a obra dos franceses procurou realizar. Quanto à utilização de
"Vontade de Potência", da qual também fazemos uso, gostaríamos de afirmar que tomamos todo
cuidado e verificamos que aquilo que utilizamos, em localização de parágrafos diferentes
daquelas de Colli e Montinari, não foge às ideias principais do filósofo e, além disso, o
tradutor a que recorremos
252
alertou-nos para qualquer eventual "deslize". E sempre que
citamos "Vontade de Potência" nas notas de rodapé, fazemos isso entre aspas, pois a
organizadora do livro (composto por alguns fragmentos do filósofo) foi a irmã de Friedrich
Nietzsche. É necessário frisarmos a importância destes esclarecimentos, afinal também
250
Scarlett MARTON. A terceira margem da interpretação. In: Wolfgang MÚLLER-LAUTER. A doutrina da
vontade de r>oder em Nietzsche. p. 20. nota n. 17.
251
Ibid.,p.21.
252
Mário D. Ferreira Santos fez a tradução, um prólogo e muitíssimas notas explicativas, 350
170
ocupamo-nos com o conceito nietzscheano de "super-homem" dentro, primeiro, da
interpretação do autor mesmo, para, somente depois, darmos o nosso ponto de vista a respeito
dele como um "novo tipo religioso". Afinal, a "nova religo", a qual fundamentamos no
próprio filósofo, inclusive, é a "religião do transvalorado" ou do "além-do-homem". Diga-se de
passagem, é a nossa marca na presente dissertação. Nossa perspectiva e originalidade.
Prossigamos, portanto, nas reflexões concernentes ao "super-homem" e ao eterno retorno do
mesmo.
O eterno retomo do mesmo está para o "Übermensch" como uma possibilidade de
afirmação. "O que conta é o produto do martelo: o 'para além do homem'. Mas este 'para
além', este 'superior', é um tipo novo, uma força nova e, por isso, um sentimento novo”.
253
Isto
é, o "super-homem" é possível pela transvaloração dos valores e esta não se sem o
"martelo" de Nietzsche. quem passa por essa mudança de foco de avaliação da própria
noção de valor, está apto a enfrentar o "círculo" do eterno retorno. Pois aquilo que serve para
paralisar o homem comum é apenas um estímulo para o "super-homem", o qual captou em si e
em todas as coisas o vir-a-ser que, em realidade, é o que se repete eternamente. "A repetão
inscreve-se no devir como uma fatalidade
254
. Logo, para o "além-do-homem" a espera da
chegada de um "Reino de Deus" é inadmissível. Sua "religiosidade" caminha no vir-a-ser não
como escatologia, mas sim enquanto processo infinito. Não começo nem fim. E assim que, na
vontade de potência como deus, não "alfa e ômega" ou eles existem apenas para
configurar que o devir é eterno. Eis a diferea, inclusive, entre "princípio e fim" do Deus-Ser e
do deus-devir. Para um novo homem (o "super-homem"), uma nova religião com novos valores.
Uma religo sem culpa.
"Se como interpretação global da existência, o cristianismo a
contaminou com o veneno da culpa e da expiação, transformando o
253
Leori KOSSOVITCH. Signos e poderes em Nietzsche, p. 99.
254
Ibid..p. 103.
171
castigo em ótica geral da vida, o Anticristo cumpre a função da
transvaloração, ao resgatar a inocência do existir, proclamando a
insubsisncia de toda culpabilidade”
255
O "Übermensch" assume essa própria condição ao ser um transvalorado que se
transvalorou a si mesmo e se redimiu de toda culpa perpetrada pelo cristianismo. Ele é a própria
criança que representa, agora, a religião da inocência. O deus vontade de potência não vem,
como o Outro, cunhado com o dizer "Supremo Bem". Está para de bem e mal. O "super-
homem" não se submete à tradição cristã porque é a manifestação da própria vontade de poncia.
Mas, essa "hierofania" é diferente. Esse deus-devir manifesta-se nesse novo homem quando ele
-se conta de que é a própria vontade de potência e percebe o vir-a-ser acontecendo em si; ou
seja: ele torna-se um com o seu deus. É essa a condição hierofânica do "super-homem". Ela não
se efetiva por força do além, mas pela transvaloração, pelo homem se auto-superando. Onde
entra, aí, o eterno retorno do mesmo? É que diante de todo niilismo sobreviverá aquele que
também, sem cessar, diz sim à existência por ela mesma, ou que não busca o seu sentido fora
dela. O amor máximo que nasce junto com a "nova religião" é o "amor fati". Deste ninguém se
torna digno e capaz a não ser o "além-do-homem". Nesse aspecto, o eterno retorno seleciona,
separa o novo homem do homem decadente que não subsiste ao niilismo e quer morrer. O
mundo, para o "super-homem'', deixa-o feliz tal como é: em eterna destruição e construção,
porque o devir é que o define. Ele exige uma nova postura.
"Como hipótese ética a ideia (da doutrina do eterno retorno) significa
apenas que, se se pensasse na possibilidade de cada momento da nossa
vida se tornar eterno e se repetir ao infinito, teamos um exigentíssimo
critério de avaliação: só um ser perfeitamente feliz poderia querer uma
tal repetição eterna. Por outro lado, porém - e é este o sentido mais
completo que a ideia assume em Nietzsche, ligando-se à não de
niilismo —, apenas num mundo que deixasse de ser pensado no quadro
de uma temporalidade linear seria possível uma tal felicidade plena
256
255
Oswaldo GIACOIA JR. Labirintos da alma, p. 122.
256
Gianni VATTIMO. Introdu£ão_a Nietzsche. p. 70.
172
O eterno retorno possibilita também que o "super-homem" seja um "trágico feliz”
257
, no
qual o sofrimento, inerente à vida, não é visto mais como obstáculo. O transvalorado não é um
masoquista, é somente aquele que aprendeu a viver unindo-se à própria vida, não a
enxergando como "dom" ou "castigo". A vida é pura inocência e, assim, precisa ser o novo
homem. Nietzsche opõe o sentido cristão do sofrimento à visão trágica, a qual oferece
condições para o homem auto-superar-se sem a necessidade de recorrer a uma explicação
metafísica de um Deus que purifica pelo castigo. O filósofo é veementemente contra a ideia de
culpa.
O que mais o princípio do eterno retorno do mesmo pode trazer para a concretização de
um novo tipo religioso? "Nietzsche não era ateu no sentido mais vasto. Negava o Deus que os
homens haviam criado à sua imagem, como negava o homem que havia sido criado à imagem
de um Deus falso, refutado
258
. O fisofo, portanto, não no "super-homem" o máximo do
antropocentrismo, ou o mesmo refletido num conceito metafísico que justificaria a primazia
humana. O "religioso nietzscheano" é smico no sentido em que o ponto de refencia não é
mais a razão, mas a vontade de potência espalhada por todo o universo. O "além-do-homem" não
se apega a si mesmo, à sua "pequena razão", pois sente o pulsar das forças dentro dele e que esta
é sua realidade íntima, seu deus, seu porquê. Este é um caráter hierofânico onde o
bermensch" faz-se um com a vontade de potência. É o seu "pathos" profundo. Tal
sentimento, tal paixão, é cósmica, e está num incessante devir porque o "pathos" é dinâmico.
Nisso, o novo homem encontra sua eternidade, o aquela de uma alma cansada da vida e que
procura descansar no além. Eterna é esta vida como vontade de potência. A existência é
divina e o "super-homem" é o que entendeu onde encontra-se, em si, sua divindade. A vida é
"sagrada" por ser uma configuração que as forças assumem no cosmo, esse espaço que não é
257
Referimo-nos ao contexto da "Lógica do Pior", obra de Clément Rosset.
258
Mário D. Ferreira SANTOS. O homem que foi um campo de batalha. In: "VP". p. 46.
173
outra coisa senão o espaço de suas relações: vontades de potência. Esta é a dimensão da
hierofania na vida e dentre tudo o que é vivo, também na vida daquele que criou o seu "re-
ligare". Esse novo tipo smico é o tipo religioso do transvalorado. Todos os outros valores
religiosos foram transvalorados em nome da vontade de potência. É com tal sentido original que
o filósofo anuncia em seu "livro sagrado" (o "Zaratustra"), como vimos no corpo da
dissertação, qual é a nova razão da Terra.
"Decifrei (...) em que sentido uma espécie mais forte de homens
deverá imaginar, necessariamente, a elevação e a ascensão do
homem em outra direção; seres superiores que se encontrariam além do
bem e do mal, além dos valores que não podem mais negar sua origem
(desses mesmos valores) na esfera do sofrimento, do rebanho e da
maioria, - busquei na história os ensaios dessa formação de um ideal às
avessas (os epítetos 'pagão', 'clássico', 'nobre', descobertos de novo e
postos à luz)
259
Nietzsche, nesta citação, diz-nos de onde retirou seu bermensch" e completamos que o
seu "estado religioso" já recebeu referência em nosso trabalho algumas ginas atrás: o "tipo
religioso pagão". No caso, agora, não como um a mais por tratar-se, com exclusividade, da
vontade de potência. Eis o diferencial na "nova religo". Quanto ao eterno retorno do mesmo, era
a explicação (com suas limitações, conforme indicadas no interior do terceiro capítulo -a
respeito da cosmologia nietzscheana) que o filósofo precisava para garantir a eternidade da
finitude das forças.
"Chama-se 'ciclo' à combinação exaustiva das forças. Finitas, a
combinação delas no interior de um ciclo, excluindo-se a sua repetição,
é também finita ou, ainda, este ciclo constitui-se num tempo finito. Mas,
num tempo infinito, o número de combinões é também infinito,
pois é finito o número e a intensidade das forças. Segue-se que o
número de ciclos também é infinito. Outra conclusão: a própria ordem
259
"VP", § 476, pp. 415-416. O parênteses referente aos valores é nosso.
174
segundo a qual as forças se combinam de modo que uma distribuição
determinada delas no interior de um ciclo deve reaparecer nos
restantes
260
Noutras palavras: é por meio da explicitação cosmológica que surge, em Nietzsche, todos
os dados para o seu "re-ligare". O próprio "super-homem" só existe em função do "amor fati", o
qual por sua vez está ancorado no eterno retorno do mesmo. Ao perspectivismo também é
garantida a infinitude, já que as forças sendo finitas, infinitas são as suas perspectivas. E o
transvalorado sabe que sua perspectiva o é a única, mas o se ressente por isso, porque seu
deus é o deus do conflito, no qual o um e o ltiplo convivem (os deuses estão em guerra
eternamente). É o devir, eterno vir-a-ser. "A repetição é o poder de eternização”
261
tudo isso, a
conclusão a respeito de uma "finalidade" para o "além-do-homem", ou de um estado final para o
mundo atingir, o nosso filósofo em questão responde: "O próprio fato de que o 'espírito' é um
devir, demonstra que o mundo o tem finalidade, nenhum estado final, que é incapaz de
'ser
262
Por este ângulo, a "nova religo" o é uma religião do ser. Daí também deduz-se que o
"super-homem" é um novo tipo religioso. Por que é assim? Conforme verificamos, a base
dessa nossa elaboração vincula-se estritamente à compreensão nietzscheana do cosmo,
condicionada à "morte de Deus". No que tange à hierofania que descrevemos aqui, o próprio
Nietzsche auxiliou-nos afirmando que onde ele encontrou vida, encontrou a vontade de
potência
263
. Entretanto, ter um tato apurado é imprescindível para uma fina manifestação como a
que está sendo tratada. Em outra obra sua, o filósofo também colaborou bastante para que
desenvolvêssemos tal pensamento. Lá, ele profere as seguintes palavras: "O mundo visto de
dentro, o mundo definido e designado conforme o seu 'caráter inteligível' - seria justamente
'vontade de poder', e nada mais
264
Novamente confirmamos que a hierofania da "nova
260
Leon. KOSSOViTCH. Signos e poderes em Nietzsche. pp. 103-104.
261
Ibid.,p. 105.
262
"VP". § 380. p. 366.
263
Cf. "Da vitória sobre si mesmo". In: Za/ZA. II parte, p, 88.
264
JGB/BM. § 36, p. 43.
175
religião" deve ser lida nas entrelinhas devido ao seu grau de sutíleza. Com o tempo, ela se
torna mais clara. E alguém poderia questionar se não seria muito esforço para perceber algo
que não existe. Nesse caso, o nosso procedimento dar-se-ia em dois planos: o primeiro, pedir
para a pessoa ler o parágrafo três de "Assim falava Zaratustra" no "Ecce homo", onde
Nietzsche explica claramente o que ele entende por intuição, revelação, êxtase e, numa
palavra, inspiração. É de que extraímos o devido comportamento para ser lido como uma
manifestação de forças poderosíssimas, conforme o próprio autor. O segundo plano, ler a canção-
epílogo de "Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro" e, em especial, o
contexto deste destaque: "Somente quem muda pertence ao meu mundo". Pois o tempo todo
falamos do que chamamos "um deus-devir" ou a própria vontade de potência. Após isso,
esperamos também que possamos ter espelhado a nossa intenção de redimensionar certos
conceitos a partir da proposta de transvaloração nietzscheana de ver na vida o seu próprio
sentido enquanto vontade de potência.
Bem, praticamente abordamos os temas essenciais à "nova religião", porém ainda
vamos prosseguir escrevendo um pouco mais sobre o "livro sagrado" do filósofo. "Esta obra
ocupa um lugar absolutamente à parte
265
. É o "corão" de todas as suas obras, afinal é em
"Assim falava Zaratustra" que ele conjuga a "morte de Deus" com o advento do "super-
homem" e, antes de enfocar a transvaloração dos valores em "O Anticristo", exaltar-la,
principalmente, na terceira parte desse seu livro "evangélico”
266
"Das Antigas e Das Novas
buas", assim é que mostra para que veio e qual o significado máximo do verbo transvalorar em
seu viés nietzscheano. "Só o que cria o fim dos homens e o que dá o sentido e o futuro à Terra,
265
"Así habló Zaratustra", § 6. In: EH/EH, p. 101.
266
O termo equivale àquele que nos referimos várias vezes: o de "boa nova". O
"evangelho" da superação ou
como Peter Gast teria denominado: o "quinto evangelho", o que aliás o próprio Nietzsche
teria dito a seu editor
em 13/02/1883: "É uma poesia ou um quinto 'Evangelho' ou algo para o qual ainda não existe
nome" (cf. Jõrg
Salaquarda. A concenção básica de Zaratustra. p. 17. In: Cadernos Nietzscbe 2).
176
esse cria o bem e o mal de todas as coisas”
267
Na realidade, o filósofo vem abolir uma ordem
para instaurar outra. Mas não é simplesmente uma troca. Vamos lembrar que ele apresenta o
"Übermensch" como saída para o niilismo que o próprio homem provocara ao matar seu Deus e
cair na "vontade de nada". Ou seja, Nietzsche ainda combate, em seu "Zaratustra", a sombra de
Deus que os homens ainda carregam. Por isso, sua "filosofia do martelo" quebra as antigas
tábuas. Entretanto, diante de sua "missão", como ele se sente? "(...) Ningm me conta coisas
novas; consequentemente, narro-me eu a mim mesmo”
268
. Imaginamos a dificuldade desse profeta
do "além-do-homem". Contudo, todo obstáculo o o desanima. Pelo inverso, o fortifica. O que
ele tem para dizer é importante. Após Deus e Sua sombra vem o "Grande Meio-Dia" (o
"Ubermensch"). O filósofo vai escrevendo ao longo dos itens desse subtítulo da terceira parte do
seu "livro sagrado": "O homem é algo que deve ser superado". Uma incitação à superação, à
transvaloração. E, durante todo seu percurso reflexivo, ele continua a atacar o dualismo que
despreza este mundo, que maltrata a vida. "A vida é um manancial de alegria! Mas para quem
deixa o estômago sobrecarregado falar da tristeza, todos os mananciais estão envenenados."
269
Ele equipara o esrito ao estômago e fala do ro" dos crentes em além-mundos, os
quais transformam o "alimento" (a existência concreta) em veneno. Nietzsche segue em
frente em suas críticas, sem deixar de lado seu projeto. Ele destrói construindo. Está repleto do
vir-a-ser: a vontade de potência pulsa-lhe pelo que escreve e diz. O que o filósofo quer do
homem? "Por que serei tão rude? -disse um dia o diamante ao carvão comum. - Não somos
parentes próximos?"
270
. Aqui ele deixa claro qual é sua meta. O "super-homem" está dentro de
cada ser humano. Exige-se uma decisão: para que um nasça, o outro tem que perecer. Afinal, o
próprio ser humano chega aà sua decadência máxima quando começa a crer que nada mais
267
"Das antigas e das novas tábuas", II. In: Za/ZA. III parte, p. 150. Percebamos aqui de onde
surge a noção de uma nova moral em Nietzsche. Em princípio, não dualista, pois o "super-
homem" reconhece que as outras perspectivas também são vontades de potência
268
"Das antigas e das novas tábuas", I. In: Za/ZA. III parte, p. 150.
269
"Das antigas e das novas tábuas", XVI. In: Za/ZA. III parte, p. 150.
270
"Das antigas e das novas tábuas", XXIX. In: Za/ZA. III parte, p. 164.
177
vale a pena na existência e sua vontade de nada passa a ser minada para um nada de vontade. O
homem quer morrer. Na verdade, o filósofo indica-nos que os homens, nesse estágio, estao
matando-se enquanto "reativos" para se tornarem o que ele lhes anuncia: "Quero ensinar aos
homens o sentido da existência, que é o super-homem, o relâmpago que surge da tenebrosa
nuvem-homem”
271
. Mas todo profeta sempre tem um problema: que lhes escutem. Com
"Zaratustra" não é diferente. Entretanto, a "nova religo" e seus objetivos eso dados. Tudo está
preparado para a transvaloração. O "livro sagrado" foi uma revelação da própria vontade de
potência. o como um "Ente" exterior que dita as "santas palavras" para o seu interlocutor; mas,
sim, como um deus-devir que, muito sufocado pelo dualismo metafísico, "explode" toda sua
grandeza naquele que primeiro o compreendeu, porque este o sentiu dentro de si e quis livrar-se
de toda culpa e de todo peso da moral tradicional embasada no cristianismo. Quem é este? O
próprio Nietzsche que, em seu "re-ligare", traz a "boa nova" de uma religião da inocência, do
sim à vida, à Terra. A inspiração que guia o nosso filósofo, da qual ele mesmo falta (ver
pagrafo anterior), pode vir de forças poderosíssimas. Ela mesma é a vontade de potência.
"Assim falava Zaratustra" o é qualquer obra porque traz consigo o segredo do cosmo, o qual
esteve oculto de nós por nossa própria condição de negadores desta vida em nome do além. O
"evangelho nietzscheano" discorre sobre o único além, o qual dá-se aqui mesmo no mundo: é o
"além-do-homem". Alguns dirão novamente que isso significa a transcendência na própria
imanência. Tudo bem! Contudo, não é mais necessária uma explicação dualista. O nome é auto-
superação. O conteúdo ápice do "livro sagrado" traz em seu âmago a ideia da afirmação total da
vida expressa pelo eterno retorno do mesmo. Vejamos nas palavras do seu autor:
"Vou contar agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental
da obra, o pensamento do eterno retorno, essarmula suprema de
afirmação a que se pode chegar em absoluto,- é de agosto do ano de
271
Za/ZA. I parte. Introdução. VIL p. 16.
178
1881: se encontra anotado em uma folha, em cujo final está escrito:
'A 6000 pés além do homem e do tempo
272
Daí, apenas lembramos que o "super-homem" e o "eterno retorno do mesmo" fundem-se
no "amor fati".
Tudo o que procuramos ao longo desse texto do quarto capítulo foi evidenciar que o filósofo,
ao fazer a desconstrução do sentido religioso-metafísico, acabou por criar um sentido
diferente de religião. Noutras palavras, ao deslocar o eixo de análise do homem para o cosmo,
Nietzsche pôs a importância de todas as coisas nas relações entre as forças. Chamou isso de
vontade de potência. Praticamente, ele acabou por absolutizar a sua perspectiva e criou um
"dogma", pois nada existe que não seja "Der Wille zur Macht" (Vontade de Potência). Além
do que, sabemos que todo o seu esforço para tornar científica sua cosmologia não foi
suficiente. A própria doutrina do eterno retorno exigiria muito dele. Sua tentativa foi
aproximar as ciências do espírito e da natureza
273
. Enfim, a sua filosofia tomou o rumo de
fazer experiências com o pensamento a partir da sua própria vida. Não queria confundir-se
com um teórico. Em que consiste, então, o "dogmatismo nietzscheano"? Em privilegiar uma
visão em detrimento das outras. Mas e o seu perspectivismo? Realmente, ele chega à sua
concepção não de uma única perspectiva, mas de várias. O que dizemos é que há uma
convergência para um ponto central de suas ideias. Tal procedimento é bastante coerente com
aquilo que vimos nesse trabalho: cada centro de forças quer fazer prevalecer a sua
interpretação. Sem dúvida, Nietzsche é um criador e, como tal, deixou suas fortes marcas.
Possuía a "virtú" do Renascimento sem ter se transformado num defensor do
antropocentrismo. Isso quer dizer que, com seu "dogma”
274
, o filósofo soube caminhar entre
272
"Así habló Zaratustra", § 1. In: EH/EH. p. 93.
273
Cf. Scarlett MARTON. Nietzsche. cosmologia e genealogia (TD), p. 8.
274
Falar de "dogma" em Nietzsche somente tem validade no que tange aos seus conceitos principais, os quais
não são, para ele, nem um pouco relativos. Deles se compõe sua cosmologia, diante da qual o homem
transvalorado (o "super-homem") supera toda morai decadente, proveniente de uma religião da culpa, da má-
consciÊncía. 0 "dogma nietzscheano" é um paradoxo, pois liberta o ser humano de outros dogmas, das crenças
179
outros. Justamente porque sua postura perspectivista evitara que ele se fechasse em si mesmo,
pois todos os valores estavam em jogo. Nietzsche foi alguém que soube ler o niilismo
presente em seu contexto para propor um ângulo de visão. A transvaloração entra no cenário.
Foi capaz de fazer uma filosofia comparativa dos valores para apresentar sua solução: o
"Übermensch". Nascia o "sentido da Terra" e o sentido de tudo enquanto vontade de potência.
O valor da vida não podia mais ser mensurado. Ela era o parâmetro como "Wille zur
Macht"(vontade de potência). Transvaloração não é uma simples inversão do platonismo,
conforme percebemos no item fora do comum que o filósofo introduziu: a sua teoria das
forças, sua "teoria vital". O vir-a-ser assumiria plenamente porque, agora, nenhuma
perspectiva escaparia ao fundo nietzscheano (a vontade de potência em incessante
movimento). Para nós, o novo sentido está dado e, com ele, o novo deus de Nietzsche. Um
deus dançarino (deus-devir), um deus que chamamos de vontade de potência.
Nossa proposta é esta: nenhum ser humano vive sem um sentido e o nosso filósofo não
é exceção. Se o homem caíra no niilismo com a "morte de Deus", é necessário torná-lo forte,
não dependente do além e nem de qualquer teoria consoladora. Ora, mas a ideia de um novo
sentido não consola, mesmo sendo tal a vontade de potência? está a diferença. O objetivo
não é mais fornecer um apoio para quem está cansado ou desesperado, mas é fazer do cansaço
e do próprio desespero um estímulo para que esse alguém resista e se fortaleça. É o caminho
mais difícil, pois desafia o homem habitar as alturas do seu espírito. O “amor fati” conduz a
isso por ser o canal do novo “re-ligere”. Novo pelo fato de o homem perceber, assim como
Nietzsche, que tudo é vontade de potência. Logo, ele se liga novamente e de forma ímpar ao
cosmo enquanto “Wille zur Macht. É o “novo tipo religioso”, esse “Übermensch”.
dualistas e metafísicas para inserí-lo na "nova fé" de que ele mesmo é seu bem e seu mal. Deixa-se de acreditar
em valores niilistas para se acreditar na vida aqui e agora, sendo ela , como vontade de potência, a referência
para qualquer novo valor. No entanto, é um dogma paradoxal porque fornece à "pequena razão" humana
condições de conviver com o devir eterno. O cosmo é, ao mesmo tempo, destruição e construção. Nesse aspecto,
não é mera crença. É a de que existem infinitas interpretações no mundo. Noutras palavras, é um "dogma da
pluralidade" e para "espíritos livres". A vida não depende mais de uma crença. Viver é crer e não o contrário.
É dizer o sim de Nietzsche. É "amor fati".
180
Buscar também a "nova religião" como novo sentido foi possível por meio de nossas
leituras sobre Mircea Eliade, apesar dele caminhar em outra direção analítica. É que certas
afirmações suas que justificam o nosso trabalho acerca de como Nietzsche concebeu e não
constatou uma "nova religião". Que fique claro, porém, que se quiséssemos um endosso
totalmente eliadiano, teríamo-lo pelo viés de como ele trata a religião enquanto sentido. Nossa
preocupação, no entanto, foi além disso. Mesmo assim queremos demonstrar essa
possibilidade de trabalhar com o estudioso das religiões ainda neste parágrafo, apesar de
existirem outras. "O fato de o homem tomar consciência de seu próprio modo de estar e o de
assumir sua presença no mundo constituem conjuntamente uma 'experncia religiosa
275
.
Assim, falando de uma possibilidade para nós, a relação que o filósofo estabeleceu entre a
"pequena razão" e o mundo, colocou-nos qual a maneira de tomar consciência que ele optou por
meio do seu "super-homem". Posicionou o mesmo como natureza, fazendo-o "sagrado". Ora, tal
relação é de uma profunda religiosidade com a Terra e o cosmo, conforme atesta-nos Eliade na
citação que aqui fizemos. Se também, falando de outra condição possível, "(...) toda religião tem
um 'centro', por outras palavras, uma concepção central que anima toda a coleção de mitos,
rituais e crenças (,..)”
276
, é certo que o "Zaratustra" de Nietzsche é o "centro" da "nova
religião", no qual orbita o eterno retorno do mesmo (o "mito"), o "ritual" da auto-superação do
homem e toda "crença" resultante da vontade de potência. dissemos noutra ocasião deste
catulo, que é o "livro sagrado" do filósofo. Ainda há mais. É conveniente tocarmos no
assunto, o qual também já exploramos, do lado nietzscheano de resgate do ser humano.
Resgatá-lo em sua dimensão de totalidade, isto é: longe de qualquer dualismo, foi a dura missão
de Nietzsche. Trabalhamos com esse assunto no "Nascimento da Tragédia". E o que nos diz o
estudioso das religiões? "(...) O homo religiosus representa o 'homem total' (,..)
277
. Damos,
então, nossa contextualização dessa frase. Nosso "Anticristo" nunca quis ser um homem
275
Mircea ELIADE. Origens: história e sentido na religião, p. 24.
276
Ibid
277
Ibid.,p.22.
181
dividido. Corpo e espírito são uma coisa. Dessa forma, o "super- homem" é o sentido da
Terra, pois sabe-se vontade de potência tal como é todo o cosmo. Não é mais preciso que o
mundo seja justificado pelo "além". "A consciência de um mundo real e com um sentido está
intimamente relacionada com a descoberta do sagrado
278
. Por tal viés, o filósofo "niilista", pelos
seus próprios caminhos, descobriu a sacralídade manifesta em sua realidade. Este é o nosso
"ateu". Isso tem uma sonoridade irônica, por certo. Mas é justamente com a intenção de fazermos
um alerta quanto às leituras que transformam Nietzsche em um pessimista e em um
propagador da falta de sentido. Na verdade, o seu "re-ligare" pede o ximo de cada um no
que diz respeito a acreditar que esta vida, e não outra, é sagrada. Por fim, a questão do sentido
da existência pode referir-se a uma experiência religiosa e disso o filósofo não se privou. Ela
apenaso tem, para ele, nenhuma base no "além". Religião é um termo que precisa ser
definido e entre as suas definições, preferimos aquela em que Eiiade coloca-a relacionada com
a ideia de sentido
279
. No que toca à questão do ser, Deleuze diz que o devir é o ser de Nietzsche.
É um vs que conseguiu o respeito acadêmico. Contudo, s preferimos, como Marton, pelo
menos nesse ponto, manter o vir-a-ser em sua originalidade. Sobre a perspectiva da "verdade
nietzscheana", ela só tem uma expreso: "Wille zur Macht".
As forças são finitas, mas as relações entre elas, pelas quais se efetivam, geram um
processo infinito no "mar do eterno retomo". A vontade de potência está em constante
movimento pela própria dinamicidade das forças. Esse é um caso em que criação e destruição
são da ordem da divindade. São um processo de sua infinitude. Nesse caso, o sentido de tudo
explica-se por um deus que chamamos de vontade de potência, infinito em seu devir. Todas ás
coisas estão constantemente se transformando. O finito, então, torna-se infinito. Energia e vir-
a-ser: o segredo do cosmo. Assim, Nietzsche elaborou sua cosmologia. O que é o mundo? Um
fluxo de forças. Ele não disse que o mundo era deus.s dizemos: não o mundo em si. Porque,
278
Mircea ELIADE. Origens; história e sentido na religião. Prefácio, p. 9.
279
Cf. Ibid. Obs.: logo no primeiro parágrafo, o autor faz questão de evitar reducionismos.
182
o que de fato existe é a vontade de potência em seu plural. Por isso, voltamos a Eiiade. "Der
Wille zur Macht" parece-se com o "Axis mundi", o pilar smico que une o que es debaixo
da terra, na superfície e no céu.
É o "centro do mundo" que es em toda parte, logo: tudo é sagrado
280
. rios são os
centros de forças e várias as perspectivas. "A multiplicidade, até mesmo a infinitude dos
Centros do Mundo não traz quaisquer dificuldades para o pensamento religioso”
281
. Pois o espaço
é sagrado.
"O que eu digo é que num período de crise religiosa não se podem
prever as respostas criativas e, como tal, provavelmente
irreconhecíveis, dadas a semelhante crise. Am de que não é posvel
prever as expressões de uma experncia do sagrado potencialmente
nova”
282
Parece que o estudioso das religiões disse tudo agora. A "morte de Deus" abre um enorme
campo de possibilidades religiosas. Nós o identificamos e lemos no filósofo uma nova
experiência, um novo sentido existencial. Nietzsche é um homem religioso porque ele não
recusa a sacralidade do mundo, pois é isso que distingue o ser humano como religioso
283
; ou
ainda: "(...) todo o mundo é, para o homem religioso, um 'mundo sagrado
284
. Parece que ao
dizermos que, para o filósofo, esta vida, este mundo, são sagrados e não outras vidas e outros
mundos no além, estamos afirmando onde eso sentido da existência nele; ou, se quisermos: a
sua "religião". Ainda com o auxílio de Eliade, prosseguimos: "(...) o sagrado é o real por
excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e de fecundidade
285
. Ora, se
280
Mircea ELIADE. Lo sagrado v Io profano, pp. 41-42. Trad. Rogério Fernandes. Explicação nossa: quando
tudo é sagrado, o centro está em todas as partes. Isso não é relatívismo. Pelo contrário, é a ampliação total do
espaço sagrado- já que tudo é. de faio. sagrado.
281
Mircea ELIADE. Lo sagrado v Io profano, p. 61.
282
IDEM. Origens: história e sentido na religião. Prefácio, p, 12.
283
Cf. Mircea ELIADE. Lo sagrado v lo profano, p. 28.
284
Ibid., p. 34.
285
Mircea ELÍADE. Lo sagrado v lo profano,
D
.
33.
183
olharmos desse ponto de vista teremos que as vontades de potências o sagradas; nelas es o
poder que quer;o eficientes enquanto efetivação das forças (a luta entre elas da qual tudo se cria
e se destrói); são "fontes" de vida porque esta é vontade de potência; e a fecundidade dá-se no
próprio devir (vir-a-ser). Só acrescentamos que, no olhar nietzscheano, sagrado e profano são
da mesma realidade, assim como caos (destruição ou desorganização) e cosmo (construção e
organização), pois tudo é vir-a-ser; entretanto, fizemos essa colocação para que houvesse o
destaque em relação a Eliade, para quem o território do profano não se mistura com o do
sagrado mas é potencialmente sacro. Em Nietzsche, poderíamos dizer que o essa
necessidade dual. Para o filósofo o cosmo é sagrado e inclui tudo; ou seja, o o "profano".
O caos, por exemplo, é apenas um movimento no "ir e vir" das forças enquanto vontades de
potência, assim como a organização ou hierarquização das forças é um outro movimento. Tudo é
devir. Voltamos, porém, a concordar com o estudioso das religiões a respeito do "homem
religioso" (para este, tudo é sagrado - e completamos: inclusive o profano, que não passa de
um excesso provocado pela nossa "pequena razão" no seu esforço por "secularização").
Gostaríamos de dizer que seguiríamos ainda por um longo percurso
eliadiano. Contudo,
como manifestamos no início deste parágrafo, fizemos o endosso da "nova religo"
pela ótica de Eliade. Não que isso fosse necessário, mas acreditamos ser bastante
curioso para nossas pesquisas e, de tal forma, nos propusemo-nos a isso. Até mesmo,
esperamos que agora tenham ficado mais claros todos os momentos em que tocamos no
termo hierofania
286
. Era o sagrado se "revelando" enquanto mundo. Somente isso. A
aprendizagem dessa situação é lenta mediante os desmandos do racionalismo, embora
286
Mesmo para Eliade, hierofania não é mais do que aquilo que está expresso em sua
etimologia: "Algo sagrado que se nos mostra" (cf. Mircea ELIADE. Lo sagrado v Io profano.
Introducción, p. 19).
184
"(...) a existência humana seja ela própria uma iniciação
287
" . Parece-nos que o tempo
todo Nietzsche esteve se iniciando até ter chegado a hora da visão do eterno retorno do
mesmo, o qual pediu um "novo
homem" (o "super-homem") capaz de amar o "fatum". No
próprio "Übermensch" encontra-se o caráter hierofânico, justamente por ele ter em si tal
amor ("amor fati"). Por assim ser, pôde
tornar-se o sentido da Terra.
A "nova religião" foi apresentada e, consequentemente, os significados que nela
ocupam a vontade de potência, o niilismo, o eterno retorno do mesmo e o super-homem.
Pela genealogia, desde o primeiro capítulo, o filósofo chegou até a raiz das religião e
moral decadentes. Viu onde estavam assentadas as velhas tábuas. Depois,
introduziu o perspectivismo para enxergar além dos valores da tradição judaica-cristã ou
para vê-los de outras perspectivas. Mesmo não falando de esperança, o que aliás o é
uma característica sua, acabou fornecendo uma alternativa quando da "morte de
Deus". Em Nietzsche, a metafísica é sinônimo de crise. "Em outras palavras, a crise
torna-se a dimensão do pensamento pós-metafísico e, portanto, a dimensão fundante do
divino pós-metafísico
288
. É esse divino que procuramos nele e encontramos. O seu
absoluto é diferente daquele outro que estamos acostumados a ver, pois é totalmente
plural e é
,
também, o lugar da diversificação. Paradoxo? o. Apenas um absoluto vir-a-
ser, um novo deus repleto de deuses. Por essa razão, não é fechado em si mesmo. O que
é, realmente, o absoluto no filósofo? Um fluxo incessante de forças. Dessa forma, tanto o
fluxo como a efetivação das forças em movimento eterno são deuses. Finitude (foas) e
eternidade (devir) não se separam. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que aceita a
contradição, mas não pelo princípio da dialética. O seu forte é a pluralidade, não o
287
Mircea ELIADE. Lo sagrado y lo profano, p. 203. O grifo é nosso e indica que o verbo foi
adaptado ao
contexto.
288
Giorgio PENZO. Introdução. In: Giorgio PENZO e Rosino GIBELLINI (orgs.) Deus na
filosofia do século XX. n. 14.
185
dualismo. O que seria, então, a unidade para o filósofo? Uma organização dos
diferentes, na qual cabe a a desorganização. No cosmo organização e
desorganização
o se sucedem como ocorrem simultaneamente. Não esqueçamos: são vários os centros de
forças. Então, qual é, enfim, o "dogma nietzscheano"? Em uma palavra, denomina-se "risco".
"O pensar pós-metasico que Nietzsche anuncia é, essencialmente, um pensar trágico”
289
.
Porém, não é pessimismo. Ele faz-se um "trágico feliz", conforme vimos. Qual é, nesse
contexto, a qualidade do "novo tipo religioso"? Tomar a crise como parte essencial da
existência e não como um obstáculo para essa. O "deus-devir" não promete nada e é um
provocador de crises. Por isso, o homem que busca estabilidade vai na direção oposta à sua
própria superação. Na verdade, tal homem não ama esta vida como ela é (pura transformão,
incluindo a morte). Nesse caso, esse ser humano decadente e fraco necessita ultrapassar-se. É o
"além-do-homem" de Nietzsche. A partir daqui, abrimos espaço para um filósofo marxista que
descobriu tal coisa. Henri Lefebvre diz: "O sobre-humano de Nietzsche é o humano"
290
. Um
outro humano, é claro. E continua a dizer sobre o "filósofo da cultura" e seu projeto: "A grande
cultura do porvir deve integrar o cósmico no humano, o instinto na consciência. Será a cultura do
homem total"
291
. A esse respeito fizemos comentários no "re-ligare nietzscheano".
"Nietzsche tem definido admiravelmente um problema fundamental; a reconciliação do homem
com o mundo, a elevação da natureza - instinto e vida espontânea -ao nível do e s p í r i t o
292
.
Espírito, para Nietzsche, não é sinônimo de razão autônoma, porque ela própria inscreve-se nos
quadros das vontades de potência. Quantas e quantas relações de foas foram necessárias para
que um pensamento se manifestasse...
289
Giorgio PENZO. Introdução. In: Giorgio PENZO e Rosino GIBELLINI (orgs.). Deus na filosofia do século
XX. p. 19.
290
Henri LEFEBVRE. Nietzsche, p. 192. Tradução nossa.
291
Ibid.
292
Ibid.,p. 173.
186
"A razão" precisa entender-se nesse processo para o cair na ilusão de
que é algo à parte. Podemos perceber o alcance da cosmologia
nietzscheana e notar onde "Zaratustra" inscreveu o "sentido da Terra",
o seu "Übermensch". Por tudo isso caminha a "nova religião".
"Nietzsche está íntegro em seu devir. Sua verdade es em seu
movimento
293
Esta é a possibilidade eterna do filósofo e o que o impele à transvaloração dos valores.
Uma coisa faz-se mais certa para nós e para outros também: "Da leitura de Nietzsche se sai
confirmado na convicção de que as formas podem ser inimigas do conteúdo; e de que o
racionalismo é o inimigo da razão vivente, o espiritualismo inimigo do espírito, o
cientificismo inimigo da ciência
294
. Como toda "boa nova", a de Nietzsche também
incomoda.
CONCLUSÃO
Neste momento do trabalho, em que dirigimos nosso olhar para o que foi realizado,
sentimos que pudemos oferecer, agora, um balanço do mesmo. Certamente foram muitas as
leituras que ora nos aproximavam e ora nos afastavam do que tínhamos por pesquisar,
conforme nosso tema: "A morte de Deus: Uma crítica nietzschena a cultura ocidental." Pois
eram muitos os autores que trabalhavam o filósofo e que se diferenciavam em suas
perspectivas. Ainda é assim. Porém, ativemo-nos ao que de comum havia entre eles. E,
imprescindível, foram as obras de Nietzsche que chegaram até nós por meio de traduções
diversas. Isso tudo levou-nos à descoberta de um nicho teórico e foi, apartir daí, que
elaboramos esta dissertão que se proe a contribuir para os estudos das Ciências da
Religião e da Filosofia.
293
Ibid. p. 141.
294
Ibid. p. 134
187
Desde uma ótica perspectivista, a qual quer levar em conta outras abordagens, fizemos vir
à tona uma reflexão que, em primeira instância corre pelo "terreno académico" e, noutra, pode
muito bem ser acessível a todos aqueles que se sentem familiarizados com os livros do autor de
"Assim falava Zaratustra", ainda que fora da academia. Em termos gerais, jamais desconfiamos
daquilo que anda pelas sombras, até porque, para nós, o próprio filósofo que estudamos fez seu
anúncio de uma nova condição valorativa após anos de crescimento no interior de uma
caverna
295
. Muitas vezes, pareceu-nos que o chegaríamos até aqui, porque eram muitas as
possibilidades junto aos escritos de Nietzsche. Mas nossa obstinação aliou-se à exigência do
mestrado. Então, realizamos o recorte necessário para nossos objetivos e procuramos não
reduzir o que é tão rico. Tanto que, um pouco mais adiante, tocaremos noutros assuntos que
poderão ser explorados em outras pesquisas. Optamos, dessa maneira, por trabalhar numa certa
lógica sistemática, sem, contudo, cairmos nos reducionismos dos sistemas. Até pelo motivo de
que nosso filósofo também o queria fechar-se neles. Seu estilo é muito mais aforismático. E
hoje muitos já sabem o quão sério foi sua produção intelectual,o ousando colocarem-no como
um não-filósofo. Entretanto, respeitamos os teimosos. Nós resolvemos atuar nas veredas
nietzscheanas, que fazem experiências com o pensar. Aprendemos muito com ele sobre isso. A
aprendizagem foi acontecendo ao lermos suas obras e ao elaborarmos cada capítulo que
resultou no que ora se "conclui".
Porém, qual teria sido nossa novidade maior? Simplesmente, foi chamar a atenção para
a existência de uma religiosidade em Nietzsche. Sem bases a priori, mas partindo de seus próprios
escritos. Se chegamos a citar Eliade para direcionarmos a religião como sentido, esclarecemos,
também, que o seria necessário. O próprio filósofo conjuga o seu "deus dançarino", do qual
teremos uma indicação ao rmino deste texto, com o que de mais sagrado: a existência,
que tem seu sentido nela ppria. E não são poucos os dizeres do filósofo a respeito
295
Cf. "Introdução. T". In: Za/ZA. I Parte.
D
.
7.
188
daquilo que denominamos de "um novo sentido religioso" nele mesmo. Até o presente,
havíamos encontrado muito material tratando de uma religião em Nietzsche, mas em forma de
um silogismo: se religião é tal coisa, Nietzsche tem isso, logo ele é religioso. Não, não foi assim
que agimos. Talvez até alguns colegas nossos esperassem por isso. Porém, tentamos mostrar-
lhes que o sentido da vida espara além de qualquer palavra, de qualquer "verdade" e, que
sendo assim, não optávamos por nenhum partido religioso. E quem aguardava em nós uma
leitura metafísica, também se frustrou. Talvez o que ninguém imaginava, é que colocaamos a
versão de um "dogma nietzscheano", não inquestionável, é claro. Mas como uma perspectiva
filosófica e religiosa de Nietzsche nada relativa. Aqui o vale o conteúdo de Dostoievsky de
que tudo é permitido.
Em nossa filosofia experimental, que, em realidade, é mais do filósofo do que nossa,
fomos além de uma singularidade religiosa do tipo "monolítica". A intenção, se ainda não
ficou clara o suficiente, era e é a de ultrapassar fronteiras. Ousadia? Pode ser. Isso é até
apropriado para quem Nietzsche e trabalha com ele. Por sinal, sem tal postura nem teríamos
conseguido ver no filósofo um novo sentido religioso. Diante de uma transvaloração dos
valores, nada pode ficar imune: nem a ciência, nem a religião e nem a filosofia. Enxergamos
nas fontes do "anticristo" alguém que ousou transmutar culturas, tradições. Assim,
reafirmamos a proposta de que é necessário sempre repensarmos todas as coisas. Foi essa a
nossa cota de esforço junto a muitas outras existentes. Mas, ainda, o que é novo aí? De que a o
inesperado pode ser transvalorado. Como? Justamente, acabando com a ansiedade
existencial. Isso está fortemente impcito em Nietzsche. O posicionamento é que muda diante das
coisas e o modo de fazermos filosofia, religião e ciência não deve distar de tal proposta, pois
posturas plurais estão presentes nela e é necessário não estarmos ansiosos diante das mesmas. O
segredo de tudo parece ser a luta. Eis a questão, por fim: Nietzsche o convida ninguém a seguí-
lo, ele apenas pretende que cada um siga o seu caminho e, nesse caso, pode ser junto a ele.
189
E o que não aventamos em hipótese alguma? O fato de mostrar Nietzsche como
um
cristão ressentido ou um religioso à moda antiga (politeísta, dualista). Se ele não foi
monoteísta, constatamos que também não pode ser politeísta, mesmo que tenha se
mostrado
simpático ao politeísmo grego. Por uma simples razão: seus deuses o as
próprias vontades de potência. O próprio Dionísio é esse "pathos", que são as tais
vontades. Portanto, ele não
cabe em nenhum estereótipo conhecido. É original. Mais
detalhes sobre isso virão a seguir.
E se Nietzsche mostrou-nos as sendas para uma leitura
sobre a "morte de Deus", também nos apontou essa possibilidade religiosa. O Deus pessoal do
cristianismo era pura essência. O filósofo, então, combateu a metafísica que, para ele, vinha
desde Platão sob a forma de um forte dualismo, em detrimento do corpo, da natureza, da vida
e de tudo aquilo que a versão nietzscheana caracterizou como vontade de potência ("Wille zur
Macht"). Portanto, não era mais possível que a vida continuasse sufocada pelos auspícios de
um ser absoluto que se indicava para ela enquanto uma forte referência existencial. A própria
existência fora relegada a um plano inferior em vista de tal essência. E, nisso tudo,
platonismo, cristianismo, metafísica e Deus tornaram-se conceitos da mesma importância a
priori. O filósofo, em seu estilo experimental e de forte tendência heraclitiana
296
, no que toca
ao devir, não podia calar-se.
Não bastasse isso, devido ao mesmo problema denominado "vontade de
verdade"
("Wille zur Wahrheit"), e que ele encontrara na expressão idealista
platônica e em sua
consequente versão popularizada, o cristianismo; a ciência
também se enveredava pelo
mesmo caminho e o cientificismo passou a ser a marca de
uma "religião da ciência". Para que servem os três estágios comtianos, senão para
conciliar dogmatismo e ciência, em que os fatos "falariam" por si. O "em si" como
296
Se um estilo em Nietzsche, é mais o de uma "filosofia da vida", não de vida (sejamos claros), do que outra
definição. Portanto, preocupamo-nos com a relação vida-devir e, dessa forma, distanciamo-nos da metafísica e
da ontologia; a não ser nos casos em que veio à tona a possibilidade de uma ontologia do devir. Acreditamos ser
uma forte expressão para o vir-a-ser tomasse o lugar do ser, O devir como ser. Apesar, contudo, de não
concordarmos com essa expressão. Ela pode gerar muitas confusões. Preferimos, simplesmente, o vir-a-ser.
190
"verdade", novamente vem à tona. Nietzsche, como crítico da modernidade racionalista,
enxergou longe o desfecho de uma razão que agia como mensuradora e controladora
daquilo que, como devir, não caberia, jamais, na estreiteza dessa visão. Logo, se a ciência
revelou-se inicialmente promissora, ao questionar a metafísica, caiu, depois, na mesma
armadilha. Ocupou-lhe o lugar. Na realidade, religião-metafísica-ciência, transformaram-
se numa só coisa. Diante disso, novamente o filósofo o podia ficar quieto.
Para ele, a filosofia, a ciência e a teologia sofriam do mesmo modo as pressões da
fraqueza humana, como a busca de segurança numa existência que transmite inseguraa.
Desse modo, continuamos com um outro hisrico desta nossa pesquisa., porque, frente a
tais questões, deparamo-nos com o relativismo e o perspectivismo. O filósofo, num primeiro
momento, levou-nos a relativizar todas as situações. Somente, após muito nos atermos à
sua noção de "experiência de vida
297
, é que conseguimos, num segundo momento, desatar o no
que aproximava os dois termos. O relativismo desestabiliza tudo e o seu vazio torna-se
absoluto. É o auge do niilismo a que o ser humano chega quando nada mais faz sentido.
o perspectivismo distancia-se desse "nada". É, apenas, a capacidade de perceber que há
várias perspectivas sobre uma mesma coisa e que cada uma delas o é, de forma alguma,
relativa para quem nela está. Desse modo, o filósofo conclui que a sua perspectiva não é a
única, mas não abdica da mesma. Trata-se do caráter experimental de sua filosofia, que tanto
tratamos, em que viver cada perspectiva é experimen-la. Uma vivência o é nada
"tagarela"
298
. Disso, Nietzsche conseguiu forças para, à sua maneira, proclamar que
o cristianismo não era também a única instância de interpretação e que, se ela não respondia aos
anseios existenciais, existiriam outras. O recado nietzscheano é claro: a "morte de Deus" gera
um niilismo, que, para o perspectivismo, não significa desespero. Aliás, ao contrário do que
297
Escreva com sangue e aprenderá que o sangue é espírito". In: "Ler e escrever". Za/ZA. I
parte, p. 30. Isso não é nada relativo. É uma perspectiva, dentre muitas, mas é a de Nietzsche.
298
Cf. "Incursões de um intempestivo". In: GD/CL § 26. p. 98.
191
tantos pensam, no filósofo a característica perspectivista salva-lhe de todo arcabouço niilista. Os
niilistas são aqueles que tendo chegado ao outro extremo do ser, não suportam o não-ser ou
que não haja o ser. A realidade de Nietzsche é outra: a do devir. Assim, ele compreende que
sua filosofia é do porvir, além das pobrezas religiosas e racionalistas. o é por acaso que nosso
autor considera-se póstumo, um extemporâneo.
Mas qual a abertura religiosa alardeada no início desse texto conclusivo, se é que
temos o direito de utilizarmos a categoria conclusão. Afinal, a nossa é mais uma perspectiva.
Que nos é cara, com certeza. Mas, como aprendemos, é uma dentre muitas reflexões a
respeito do filósofo em pauta. Ela é muito importante para nós e, por esse motivo, avançamos
no tocante à sua viabilidade. E, agora, voltando ao assunto deste parágrafo, afirmamos que
notamos uma "soteriologia" em Nietzsche. Dessa fonte, brotou o novo sentido religioso tão
assediado por nós. Como chegamos até esse ponto? Por meio de um outro momento, que se
seguiu ao procedimento genealógico e ao perspectivismo. O nome? 'Transmutação de todos os
valores" ("Umwerthung aller Werthe"). Essa proposta nietzscheana corresponde a um novo olhar
cultural. Trata-se do projeto que inclui o "super-homem" ("Übermensch"). É uma nova avaliação
para que o "homem decadente" (o niilista) sofra uma transfiguração e seja, mesmo, suplantado.
s preferimos usar a expressão "homem novo" em certos instantes do nosso trabalho, para
deixarmos claro que é isso o que entendemos por "além-do-homem" a partir de Nietzsche. Não
mais lugar, consoante o filósofo, para o homem niilista perante a vida, A esse "homem
novo", denominamos de a transcendência na imanência
299
. Se, durante milênios, a separação
entre corpo e espírito levou o homem a um cansaço de viver, é chegada a hora de um basta.
Corpo e espírito reconciliam-se como vontade de potência. Não se trata de um equilíbrio, mas
de uma relação em que fluxos de energia se reconhecem. A imanência nietzscheana é um
"pathos". Ela não se deixa ser agarrada pelo materialismo, como não fora pelo idealismo. O que
299
Sem expressões dualistas, pois ao final sobra somente a imanência.
192
acontece? Por que mencionamos a palavra "soteriologia"? Chegamos até aqui porque
percebemos em Nietzsche um caráter "salvacionista" e, diga-se de passagem, "místico". E, aí,
nos sentimos tranquilos para tratarmos de uma "nova religião". Nova, sim, pois o seu
"salvacionismo" e o seu lado "místico" têm uma tonalidade dessemelhante.
Onde se encontra a "salvação" no filósofo? Bem, é bom esclarecermos que nada tem a
ver com aquela noção de salvação que nos remete a uma outra realidade. Queremos frisar o
não-dualismo nietzscheano. A conotação ou a significação implícita é a de salvar o ser
humano de ser um fraco perante a vida. Salvá-lo de sua "humanidade". O "demasiado
humano" ("Allzumenschliches") acabou por colocar-se como o centro de tudo e pensou que
assim seria forte. Bastou "Deus morrer" para o homem querer ser absoluto, pois essa era sua
vontade desde o início da era moderna (antropocentrismo). O humanismo foi o outro extremo
do Deus-metafísico e também escolástico. "Salvação" também o tem ligação nenhuma com o
romantismo, pois Nietzsche o es interessado em superar as crises do racionalismo. Nem
romantismo, nem racionalismo. A "salvação", a partir do filósofo, desemboca na liberdade de ver-
se enquanto devir. Noutras palavras, o homem, agora como "além-do-homem", não necessita
mais de refúgios. Capaz de amar a si mesmo e a tudo como um eterno vir-a-ser, não mais se
desespera na existência. Está pronto, assim, para amar essa vida como ela é e quantas vezes for
necessário
300
. Esse é o aspecto "salvacionista" a que nos referimos. Profundamente, o que
queremos demonstrar é que por trás disso uma preocupação latente em Nietzsche de
querer a
salvação. Porém, o esforço de salvar-se cabe a cada um. A "nova religião" é
demasiadamente privada; não é egoísta, o que difere muito.
Como é esse salvar-se nietzscheano? Bem, significa "tornar-se o que se é”
301
. Para
salvar-se de quê? Da miséria de querer ser o centro de tudo, quando se é apenas vontade
de potência. Também, de querer buscar uma salvação que representa estar num paraíso
300
Referimo-nos ao "eterno retomo do mesmo" e ao "amor faíi". Sem o segundo, é impossível enfrentar o
primeiro.
301
"Como se Ilega a ser Io que se es". In: EH/EH. Alusão ao subtítulo da obra.
193
do além. Ou, ainda, de pretender-se o eleito de um Deus que mora fora deste mundo.
Mas, o salvar-se não remete, de qualquer forma, a ir para longe de todo o sofrimento?
Nada disso, pois tanto o sofrer como o alegrar-se fazem parte da vida em toda a sua
sacralidade. Não é, desse modo, que o filósofo trata de salvar-se. A sua é uma salvação
de si mesmo, porém, ao mesmo tempo, de enfrentamento consigo próprio. Um paradoxo?
Claro que não. Transformar-se naquilo que se é tem o sentido de superar-se. Salvar-se
de si para si. Como já foi tratado, buscar-se enquanto "além-do-homem". Nietzsche
quer salvar-se do homem que existe nele. Para tal empreitada, enfrenta seu
precipício. "Vai até a beira do abismo insaciável e esforça-te por apreender a vio
(...). A redeão é um círculo: fecha-o”
302
. O que quer dizer fechar esse
círculo?
Transvaliar-se.
Nesse ínterim, aparece algo mais, que é a noção de uma "ascese
nietzscheana
303
.
Muito distante da ascese do sacerdote-cristão-platônico, a qual nutre
um
" (...) ódio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais
ainda contra o material, essa repugnância frente aos sentidos, ante
a razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, essa sede de
separar-se de toda aparência, troca, devir, morte, desejo, sede
mesmo - tudo isso significa, atrevamo-nos a compreender, uma
vontade de nada, uma aversão à vida, um rechaçar dos
pressupostos mais fundamentais da vida, porém é, e não deixa de
ser, uma vontade!... E repetindo ao final o que disse no
princípio: o homem prefere querer o nada a não querer
304
302
Nikos KAZANTZÁKIS. Ascese: os salvadores de Deus, p. 82.
303
"Seria engano supor que Nieízsche opõe-se completameute às práticas ascéticas, pois a espécie de grandeza
que ele aprecia requer sacrifício e autodiscipíina". In: Keith ANSELL-PEARSON. Nietzsche como pensador
político: uma introdução, p. 154
304
GM/GM, III Tratado, § 28. pp. 185-186.
194
A ascese do filósofo não é niilista. Representa a vontade de potência em sua
afirmação à vida. Mas, para se chegar ao "amor fati", é necessária uma disciplina
rigorosa. Para o filósofo, não se chega à liberdade de espírito sem uma rígida austeridade.
preciso testar-se a si mesmo (...). Não se prender a uma pessoa
(...). Não se prender a uma pátria (...). Não se prender a uma
compaixão (...). Não se
prender a uma ciência (...). o se prender
ao seu próprio desligamento, ao voluptuoso abandono e afastamento do
ssaro que ganha sempre mais altura, para ver mais e mais coisas abaixo
de si (...)”
305
O "escrever com sangue" de Nietzsche é sem dúvida a sua ascese salvadora
306
. Muito
diferente do martírio e do lento aniquilamento cristão, a "ascese nietzscheana" não despreza os
sentidos, não despreza o devir, não despreza a vida como vontade de potência. É uma ascese
que torna o homem forte em sua complexidade, em seus abismos e, principalmente, para
consigo mesmo. Uma liberdade que ri de toda tragédia, mas não em vista de uma outra vida. A
disciplina do filósofo está na base de um espírito livre. Para isso, é imprescindível:
"uma que salva: a virtude da felicidade é uma espécie de beatitude
àqueles que m na a sua virtude... e o nas almas mais sutis, cuja
virtude consiste numa profunda desconfiaa diante de si próprias e de
qualquer virtude. No fim de contas, ainda neste caso, é a "fé que salva!" e
o, note-se bem, a virtude”
307
A "ascese nietzscheana" faz o ser humano acreditar em si mesmo, em sua capacidade de
ultrapassar-se e chegar ao ponto ximo de um "homem novo", um "super-homem".
305
JGB/BM.8 41.p.46.
306
Não te dignes a perguntar: 'Venceremos ou seremos vencidos?'. Luta". Ao praticar sua
pugna, Nietzsche salva seu próprio deus e salva-se, pois "bom é o que se arroja para o alto e
ajuda Deus a subir. Mau, o que pesa e puxa para baixo, impedindo a ascensão de Deus". In:
Nikos KAZANTZÁKIS. Ascese: os salvadores de Deus, pp. 122 e 134. O filósofo busca seu
espírito divino, seu "espírito livre", na sua própria experiência de vida.
307
FW/GC§214,p. 163.
195
Ainda nos falta uma outra leitura: fazer uma abordagem da "mística nietzscheana". Ora,
se considerarmos que, para ele, tudo é vontade de potência, o homem vivência sua grande
experiência quando se sente também uma pluralidade de forças. Quando faz essa descoberta de
que ele não é o mundo, mas de que tem nele não as mesmas forças, porém também forças.
Desse modo, havendo fluxos de energias no cosmo; no homem não é diferente, apesar desses
fluxos o serem os mesmos. Bem, essa "fusão" do ser humano com seus "deuses", em que ele
torna-se tais deuses (as vontades, de potência), se a "mística nietzscheana". Não existe, a
partir disso, mais distinção entre homem e vontade de potência. Vontade de potência é uma
maneira singular de nos atermos àquilo que é plural. O "Uno primordial" que o filósofo
reconhece quando Apoio e Dionísio aprendem a falar a mesma linguagem
308
o significa um
uno absoluto; outrossim, é pluralidade. Por isso, o apolíneo-dionisíaco nietzscheano o é um
dualismo. É que o homem separou-se em Apólo e Dionísio, quando, na realidade, ele era e é toda
uma complexidade enertica. E, se tratamos tanto de "energia", é porque Nietzsche não fala do
ponto de vista do materialismo. Ele diz, sempre, "vontade de potência", "pathos". Todo
"pathos" é energia, relações de forças, conforme Deleuze tanto comenta em "Nietzsche e a
filosofia". O ser humanoo é o resumo do cosmo. Talvez, o filósofo seja o único a conceber que
na parte esteja o todo. Não é síntese. O todo se espalha na parte porque ambos são interpretações
das vontades de poncia. O que mesmo denomina-se "pathos”
309
. Nosso entendimento é de
que chegamos a um ponto em que não podemos prescindir de uma identificação profunda entre o
homem e o vir-a-ser. É essa a "mística" de que tratamos. É esse o "uno" do filósofo: um
impulso
310
Há um novo sentido religioso em Nietzsche. Eis nossa constatação. Seo colocamos nos
capítulos desse nosso trabalho referências diretas aos termos utilizados aqui nessa pretendida
308
Cf. GT/NT. Itens 1 e 21. pp, 31 e 129-130.
309
Aqui está uma leitura que fizemos da interpretação martoniana de Nietzsche.
310
Ou, se ainda quisermos de outra maneira: "A essência do nosso Deus é a luta". In: Nikos KAZANTZÁKIS.
Ascese: os salvadores de Deus, p. 101
196
conclusão em aberto, tais como "salvação" e "mística", pois da ascese fizemos uma pequena
abordagem, é porque indiretamente já se fazem presentes. O que vem refoar, sem dúvida, o que
chamamos de "nova religo".
O filósofo, também, chega ao seu mundo sem Deus e, quem sabe, melhor seria dizer: a um
mundo que não se problematiza mais entre um dualismo do ser e do não-ser, consoante
mencionamos outrora. Sem, portanto, aquele Deus, Nietzsche conseguiu construir sua
cosmologia, donde retirou todas as palavras que utilizamos em nosso texto, a saber como:
vontade de potência, forças, eterno retorno do mesmo, pathos. Concebe, então, um outro
sentido para tudo. O de que em todas as coisas estão os seus próprios sentidos.
Para nós, Nietzsche não obteve sucesso para eliminar a noção de sentido da existência.
Fez, contudo, algo melhor. Isto é, misturou os dois conceitos. Ele escapara de todos os outros
dogmas que visavam "amparar" a vida. É certo que criara um dogma também, mas o mais
absoluto no ponto de vista de ter que ser imposto aos outros. Digamos que seu dogma é
natural, porque a vida é o sentido de si mesma. Desse modo, o fosse encontrarmos em seus
escritos a fundamentação para mencionarmos termos como um "novo deus", uma "nova
religião", jamais teríamos escolhido um tema tão complicado para nossos estudos. O filósofo
o aceitava mais um "monótono-teísmo
311
, que pusera um "u de Maia" sobre o mundo. Por
isso, pôs-se a rasgá-lo. Como para Heráclito, para ele tudo está em constante movimento. "Tudo
flui". Não podia ser diferente vermos o seu dogma terminando em pulsações. O "deus
nietzscheano" é um deus que dança. E cada vontade de potência pode ser esse deus. Contudo,
isso no singular é aparência ("Schein"), tal como o "Uno". Se quando ele menciona o "Uno" é
sob a ótica da pluralidade, assim faz também com a vontade de potência. Isso o é
panteísmo
312
, uma forma de declarar que tudo é deus? Gostaríamos de enfatizar que esse o é
311
Cf. AC/AC. § 19, p. 44.
312
Mesmo não sendo nossa meta discutir o panteísmo, deixamos aqui algumas pistas para
quem se interessar pelo assunto. Por exemplo, caracteriza-se por ser a soma de tudo o que
197
nosso objeto, porém nunca ninguém encontrou em seus escritos um "Deus sive Natura".
Nietzsche não é Espinosa. Sua originalidade é de que não nada que o seja vontade de
potência e de que elas não se constituem em soma de tudo quanto existe para formar a unidade
natureza, o deus-natureza. Além do mais, o "pathos" nietzscheano é criador e a destrói para
criar. Também há outras questões. Por exemplo, se em Heráclito há um equilíbrio do mundo por
meio da luta dos contrários, o estilo heraclitiano em Nietzsche tem limites. A luta -se entre
forças, não contrárias, mas diferentes e plurais. E não objetivo de equilíbrio na batalha
313
.
Outro exemplo: se também Schopenhauer influenciou o filósofo que estudamos com sua noção
de que uma vontade cega e absoluta controla o mundo que é sua representação, ele se distanciou
muito dele em sua "teoria das forças", em que não existe uma vontade absoluta, mas vontades de
poder ("Wille zur Macht"). E, em Nietzsche, a vontade o quer se perpetuar como em
Schopenhauer. Ela tem nela um poder que quer mais poder, Autoconservação não é um conceito
nietzscheano. Repetimos, destarte, que Nietzsche não é Herácíito, nem Espinosa e nem
resulta na afirmação de que o mundo é um deus. Na realidade, isso pressupõe que as partes
não independem do todo. Deus só se realiza na totalidade, na unidade composta pela soma das
partes. Outra coisa: no panteísmo também uma teofania, ou seja, deus manifesto em tudo.
Daqui, reforçamos que Nietzsche está distante, quando tratamos de uma "hierofania" da
vontade de potência. Então, que espécie de hierofania é essa que destacamos no filósofo? É
um impulso sagrado ou o sagrado como impulso que, uma vez manifesto, interpreta sua
própria manifestação. Noutros termos: tudo o que existe é interpretação desse "pathos", sendo
tudo o mesmo. Porém, interpretação no plural. Correto seria usarmos mais "hierofanias" (no
plural). E, nessa manifestação, não mais diferença entre homem e natureza, assim como
não há "a natureza". Tudo se "unifica" sob uma pluralidade imensa. Dessa maneira, a vontade
de potência funde-se na sua manifestação e ela transparece nas aparências. Homem e deus são
"um". Mundo e deus são "um". Veja-se bem as aspas e descobrir-se-á que não existe
panteísmo em Nietzsche. Por isso, a "mística" utilizada por nós é bastante particular. A união
de um homem com a vontade de potência não é a união de outro homem com outra vontade
de potência, o que também acontece. Não nos aprofundaremos mais na questão panteísta,
como dissemos: não é de nosso "métier". Deixamos a quem se preocupa com isso, algumas
dicas nessa nota. Só levantamos possibilidades, o que consideramos nosso modo de atuar.
313
"As forças que atuam dentro de mim, as forças que me impelem a viver e a morrer, são certamente as
mesmas". In: Nikos KAZANTZÁKIS. Ascese: os salvadores de Deus, p. 68. Isso não lembra Nietzsche? Mas...
as mesmas forças em suas diferenças. E, na vida como na morte, elas não param de se conflitarem. É pertinente
afirmar: não é uma relação dual, porém plural.
198
Schopenhauer
314
. Também reafirmamos que nossa meta não é discutir o panteísmo, pois isso
exigiria de nós uma outra pesquisa, com outro recorte. Não é o caso.
E, voltando à religião que detectamos em Nietzsche, não podemos deixar de
especificar mais o "eterno retorno do mesmo" e o "amor fati". O que retorna é o mesmo como
diferença. Parece contraditório, mas não é. O antes e o depois são sempre o agora
315
. Quem
seria capaz, então, de amar esse destino, essa vida como ela é e para sempre: luta entre forças,
pluralidade, devir? Nossa tese diz que somente um novo tipo religioso teria a qualidade
explícita no texto e não enxergaria a vida como peso, como sofrimento. Para nós, é o
transvalorado ou o "super-homem", ou ainda, aquele que chegou ao máximo do amor: "amor
fati". Com isso, inclusive, Nietzsche consegue chegar ao ápice do distanciamento em relação a
Schopenhauer, para o qual "viver é sofrer”
316
314
Aqui, apenas pontuaremos uma diferença entre o panteísmo e o pantelismo
schopenhaueriano, para vermos que Nietzsche não se encaixa em nenhum dos dois. Bem,
representação não remonta ao mundo como Deus. no panteísmo, o mundo não representa
Deus, ele é Deus e vice-versa. Mas,, se, por outro lado, existe uma teofania (de acordo com a
nota anterior): não seria esta uma representação? Para Schopenhauer, a vontade vê-se a si
mesma, mas "nega aquilo que afirma" (Cf. Artur Schopenhauer. O mundo como vontade e
representação, p. 219). Por que isso acontece? Porque a inteligência, a razão, ganha
autonomia sobre a vontade e, sendo assim, muda a natureza da vontade. Isso é possível
somente no homem, que é um privilegiado (Cf. Ibid.. p. 221V Desse modo, o fenómeno
distancia-se daquilo que representa e aquela vontade absoluta não se reconhece mais, até
porque pode ser negada. Contudo, "o caráter não pode nunca, é verdade, modificar-se nos
pormenores" (Cf. Ibid., p. 220). Somente, pois, quando a inteligência reconhece a vontade
absoluta, é que suspeita de seu livre-arbítrio. Porém passa a acreditar numa "conversão da
vontade" (Cf. íbid., p. 220). O cristianismo faz assim... Mas está errado. No fim, tudo o que o
homem conseguiu foi eliminar a representação da vontade e não a própria. Disto feito, temos
que não teofenia em Schopenhauer, como pode haver no panteísmo. O fenómeno é pura
ilusão e jamais reconhecerá a essência sem exterminar-se (essa, inclusive, é a situação
humana). Essa essência é cega, mas prevalece. Na verdade, o que chamamos de nada é o que
existe e o que "existe" é o nada "real" (Cf. Ibid., p. 231). O que são os fenómenos? Vontade
objetivada ou o "querer viver" objetivado. O mundo é, essencialmente, vontade (pantelismo) e
não a sua objetividade (panteísmo). Eis a metafísica da vontade em Schopenhauer.
315
Reportarão-nos a ideia do círculo no filósofo. Nele não há espiral. O eterno retomo é do mesmo, com todas as
diferenças que contém. Obs.: o grifo é para destacar o "círculo". E poderíamos parafrasear o poeta: "Onde
vamos? Não me perguntes! Sobe e desce. Não existe começo, não existe fim. O que existe é o momento, cheio
de amargor e de doçura, e eu o desfruto por inteiro". In: Nikos KAZANTZÁKIS. Ascese: os salvadores de Deus,
p. 57. Quem amaria o agora?
316
Longe também está do pantelismo schopenhaueriano, que afirma a vontade como sendo tudo. Se Nietzsche o
tomou como referência no início, como vimos, depois distanciou-se dele e criticou-o, apontando que nele
uma metafísica da vontade. Schopenhauer oferece margem para outras existências, outros mundos.
199
Em Nietzsche, a vontade de potência também não é um "querer viver". É, pois, um
"querer ser ou ter mais". Porque ter mais poder é ser mais e o contrário também vale. O
importante, assim, não é ter ou ser, mas o movimento que aumenta o poder. É a luta, o vir-a-ser.
Apesar de a quantidade de forças, as quais formam o cosmo, serem limitadas, o devir não cessa.
o como, nem fim. Por isso, para nós, o "pathos" funde-se com esse devir onde reina a
pluralidade das forças em relação umas com as outras. É a realidade da nossa
denominação de um "deus nietzscheano"(ou deuses, como ficaria melhor). Os nomes mudam,
mas os deuses estão aí. Aqui cabe uma versão de hierofania.
Porém, os deuses estão em constante pugna entre
SI
.
É o "baile sagrado", em que o
segredo está no contato. Daí "pátrios". A "nova religião" passa a existir a partir do momento em
que essa dança acontece e ela se sempre. O que faltava para o ser humano? Constatar o que
nele se fazia presente ("re-ligare"), para sentir-se divino. A vida é sagrada, mas o sagrado
o é a vida como a conhecemos. Isto é, a vontade de potência está em tudo, como
afirmamos consoante o filósofo. Eis o sentido genérico da vontade de potência como deus (a
"unidade" é a pluralidade, consoante estamos exaustivamente afirmando, por ser
importante em nosso trabalho).
Enfim, o "dogma nietzscheano" é mesmo esse que diz não existir nada fora da vontade de
potência e nenhuma vontade de potência pode ficar isolada de outras. mais ou menos
potência entre os deuses, mas o caráter sagrado está em todos. E onde eso sentido de todas as
coisas? Nelas próprias. A "nova religião" não separa tudo numa linguagem dual e nem fecha
tudo numa pseudo-unidade. Amplia a noção de sentido, o que leva o homem a o mais fugir do
turbilhão e do abismo que é ele mesmo. Agora, o "novo homem" (aquele que percebeu isso)
pode conviver com seus "monstros". Ele não busca mais um deus, porque sabe-se a
manifestação do sagrado enquanto vontade de potência e também não pretende mais, como
outrora, ser o centro do mundo, pois não encerra em si todas as foas do cosmo. E não é um
200
microcosmo, pois jamais pode isolar-se. Não micro e nem macro. vontades de
poncia para todos os lados. Assim, nossa perspectiva é ímpar para nós e, apesar disso, abrimo-
nos a outras. É na relação que crescemos.
Levantamos, como o leitor atento pôde notar, várias questões sobre outras vinculações.
Mas cremos que, por ora, o é nosso objetivo entrarmos em maiores delongas. Sabemos que é
possível explorar mais o estudo comparativo Schopenhauer-Nietzsche, por exemplo. Tal como
muito o que pesquisar sobre cosmologia e religião (a nossa pesquisa foi somente uma
versão). O assunto a respeito do sofrimento também chamou-nos muito a atenção e merece
um estudo à parte. Ligado a isso, um trabalho sobre o suicídio seria de enorme contribuição
para as pessoas, pois é um tema inesgotável. Tantas são as dúvidas em tomo dele.
Muitos assuntos que permeiam os capítulos podem ser resgatados. Dentre eles, um
estudo mais detalhado sobre o budismo pela ótica de Nietzsche, já que ele toca nisso.
Também fizemos incursões pelo Renascimento e o são poucas as possibilidades de adentrar
com viés nietzscheano nesse contexto histórico. Por várias vezes, o filósofo refere-se a ele.
pensamos, inclusive, em tratar de ética na Renascença. Afora isso, é possível tratar do tema
ética na condição pós-moderna e a relação com Nietzsche. Deixamos muitas dicas espalhadas em
nosso texto. Por exemplo, sobre o relativismo e o perspectivismo ainda muitas
controvérsias que merecem ser aprofundadas. A respeito da vida como vontade de potência, um
outro exemplo, a refleo poderia ficar mais delimitada também, pois aqui ela está muito
gerica. O que desejamos, afinal, é incentivar novas pesquisas.
para aqueles que querem ver em Nietzsche um "cristão desgarrado", aconselhamos a
leitura da obra "Acreditar em Acreditar", de Gianni Vattimo. Nela, podemos perceber até que
ponto as críticas nietzscheanas transformaram-lhe. Ele mesmo reconhece isso. E suas atuais
críticas ao filósofo são as críticas de um "novo cristão". Claro que sua experiência não se reduz
à leitura de Nietzsche, mas o "anticristo" marcou-o muito. Queremos nos remeter à seguinte
201
análise: Vattimo o considerou Nietzsche com um cristão desgarrado e sim a ele mesmo.
Talvez, seja o caso de quem pense assim a respeito do filósofo.
Aquela "metafísica engessada", longe dos nossos abismos, também não nos diz
respeito. No fundo, para Nietzsche, o problema acerca de se Deus existe ou o nunca lhe
perturbou. Mas se algum deus existe para ele, como seria? Isso sabemos dizer...
"EU SÓ PODERIA CRER NUM DEUS QUE SOUBESSE DANÇAR
317
317
"Ler e escrever". In: Za/ZA. 1 parte, p. 31.
202
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Centroamericana JoSiméon Canas, v. 16, n. 46, jan-abril, 1999.
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