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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SEMENTES DA ESPERANÇA: FLORESCE A “SANTA RELIGIÃO” EM SOLO
CATARINENSE
Elementos Formadores do Messianismo no Contestado
JAIR DE ALMEIDA JÚNIOR
São Paulo
2009
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2
JAIR DE ALMEIDA JÚNIOR
SEMENTES DA ESPERANÇA: FLORESCE A “SANTA RELIGIÃO” EM SOLO
CATARINENSE
Elementos Formadores do Messianismo no Contestado
Dissertação de Mestrado apresentada a
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Ciências da Religião.
ORIENTADOR: Prof. Dr. João Baptista Borges
Pereira
São Paulo
2009
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A447s Almeida Júnior, Jair de.
Sementes da esperança : floresce a “santa religião em solo
catarinense - elementos formadores do messianismo no
Contestado / Jair de Almeida Júnior 2009.
210 f. ; 30 cm.
1 CD-ROM
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.
Bibliografia: f. 206-210.
1. Monges. 2. Messianismo. 3. Guerra do Contestado.
4. Religiosidade Popular. I. Título.
LC BL2592
CDD 398.5
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JAIR DE ALMEIDA JÚNIOR
SEMENTES DA ESPERANÇA: FLORESCE A “SANTA RELIGIÃO” EM SOLO
CATARINENSE
Elementos Formadores do Messianismo no Contestado
Dissertação de Mestrado apresentada à
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Máspoli de Araújo Gomes
Universidade Presbiteriana Mackenzie
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz
Universidade de São Paulo - USP
5
Aos meus pais por terem cuidado de mim.
À minha amada esposa por continuar cuidando de mim.
6
Agradeço:
a Deus, acima de tudo, pelo dom da vida e a oportunidade de concluir este trabalho;
à família, por ser “ninho”, refúgio e sustento;
aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e os integrantes de minha “banca”, pelo conhecimento compartido;
ao meu orientador, mestre e amigo, Professor Dr. João Baptista Borges Pereira, pelo
incentivo, convívio e conselho, privilégios que me lembrarei com saudades.
7
RESUMO
A Guerra do Contestado, ocorrida entre 1912 a 1916, foi um fenômeno de causas
sociais, viabilizado pelo religioso. No Oeste Catarinense do início do século XX,
predominava a mentalidade monárquica. Com a Proclamação da República, os políticos
lotearam a área, distribuindo terras ocupadas pelos campesinos àqueles de seu interesse.
Soma-se a isso a construção da Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande, assumida pela
Brazil Railway. Segundo o contrato, tinha o direito de exploração da faixa de terra
correspondente a 15 quilômetros marginais, em ambos os lados da ferrovia, por todo o seu
trajeto, o que justificou a criação de uma madeireira para explorar a grande quantidade de
madeiras nobres que cobria o Oeste Catarinense. Assim, mais campesinos se viram
desalojados de suas terras. É chamado “Contestado” pois quase todo o Oeste Catarinense
tornou-se área disputada por Paraná e Santa Catarina, instigando a belicosidade a já
tumultuada sociedade sertaneja. Paralelamente ao caos social que ia se estabelecendo,
surgiu o primeiro monge, João Maria de Agostini, um eremita devoto de Santo Antão, que foi
tido como curandeiro e milagreiro. Perto de seu desaparecimento, surgiu o segundo monge,
João Maria de Jesus, cujo nome verdadeiro era Atanás Marcaf. Trilha o caminho de seu
antecessor, com algumas nuanças peculiares. É visto apoiando os revoltosos da Revolução
Federalista. Por fim, o terceiro monge, José Maria, dizendo-se irmão de João Maria, teve
liberdade para trabalhar seu personagem. Os dois João Maria preferiam o nomadismo e a
solidão, enquanto o último monge admitiu seguidores e tornou-se líder militar. Morto em
combate, o movimento organiza-se política e religiosamente. A liderança fundada no
prestígio começa a dar lugar à coerção. Estabelece-se o “virgenato” e os “meninos-deus”,
videntes que recebiam orientações diretas de José Maria. Percebem-se elementos da
religiosidade negra e índia no messianismo Contestado, amalgamadas no catolicismo
popular. Falando-se genericamente, influenciaram com o modelo de possessão e certa
medida de animismo. Especificamente, contribuíram com algumas crenças, ritos e
cerimônias. A resistência dos caboclos provocou reações cada vez mais enérgicas por parte
do Exército Brasileiro, apoiado por vaqueanos contratados. À medida que o fim se
aproximava, mais o religioso era substituído pelo barbarismo. Como legado religioso, nota-
se a adoração de João Maria no catolicismo popular dos três estados sulistas e sua
assimilação como um dos principais santos dos Kaingang. Mesmo o MST sofreu sua
influência, podendo ser descrito como a causa Contestada secularizada.
Palavras chave: messianismo, monge, cultura negra, cultura índia, catolicismo popular.
8
ABSTRACT
The Contestado War, 1912-1916, was a guerrilla war for lands between settlers and
landowners. It was a phenomenon sparked by social causes, and feasible by religious reasons.
At the beginning of 20
th
century, at the West of Santa Catarina state, monarchic ideas were
predominant. Within the context of a recent Brazilian Republic proclaimed, politics started dividing
an occupied land by subsistence farm workers. In addition, a railroad connecting São Paulo to
Santa Maria, in Rio Grande do Sul state was been built by a north-American Brazil Railway
Company. According to an agreement, the company obtained from the government the right to
explore a strip of land 15 km wide on each side of the railroad. The concession guaranteed also
the opening of a company to extract rich wood throughout Santa Catarina West. This means that
subsistence farm workers were suddenly driven out from their lands. The name “Contestado”
refers to an inland region contested by the States of Paraná and Santa Catarina, prompting the
spirits to war. Previous to this social caos, the Contestado received influence from three monks in
the region. The first, João Maria de Agostini. He was a devout to Saint Anthony, who wandered
as a healer and miracle performer. The second appeared right after João Maria, who also
adopted the alias of João Maria, although his real name was Atanás Marcaf. He walked in the
same path as his predecessor, but having his own nuances. Marcaf was seen as someone
supporting the Federalist Revolution. The third monk, José Maria, self-proclaimed João Maria´s
brother, attract to himself people's admiration and confidence. The first two ones preferred a
nomad and lonely life, whereas the third had many followers and became even a military leader.
José Maria was killed in combat, and his followers settle themselves politically and religiously.
Soon their leadership became intimidation. As a result of visions the “virgenato” and the
“meninos-deus” are established. They were groups who were receiving direction straight from
José Maria. We can realize religious elements from Africa and from native Indians in this kind of
messianic movement amidst the Contestado. Of course, all of these were blended within a
popular Catholic Church environment. Generally speaking, this last group gave rise to an
embrionary model of local animism and possession of spirits. Specifically, their contribution in the
religious scenario was with rites, beliefs and ceremonies.
A constant resistance from the subsistence farm workers brought over them a military
intervention. Federal troops, supported by local cowboys, were sent to the region to crush the
rebellion. Close to the end of the war the religious feeling started being supplanted by a kind of
barbarian behavior. As a result the South of Brazil experiences a religious legacy of reverence to
João Maria in the popular Catholicism of three South states. This legacy goes beyond, reaching
the Kaingangs, a native American ethnic group, and even contemporary minority movements as
MST.
Keywords: messianism, monk, African culture, Native culture, popular Catholicism.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 - ASPECTOS GERAIS ....................................................................... 16
I. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 16
II. ESTEREÓTIPOS SENSACIONALISTAS .......................................................... 17
III. INFORMAÇÕES “PRÉ-HISTÓRICAS” ............................................................. 18
III.1 Étnico ......................................................................................................... 19
III.2 Ambiente Social ......................................................................................... 19
III.3 A Religiosidade da Terra ............................................................................ 21
IV. ROTA MESSIÂNICA ........................................................................................ 22
IV.1 O que Leva ao Messianismo? .................................................................... 22
IV.2 Breves Considerações Sobre o Messianismo no Brasil.............................. 23
V. TEORIZANDO .................................................................................................. 25
V.1 Esperanças: Moribundas ou Vitais .............................................................. 25
V.2 Sociedades Primitivas ................................................................................. 30
VI. CRONOLOGIA DO FENÔMENO ..................................................................... 31
CAPÍTULO 2 - A ANÁLISE DO SOLO: A PRIMEIRA FASE DO MOVIMENTO ...... 37
I. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 37
II. A CONTRIBUIÇÃO INDÍGENA ......................................................................... 37
II.1 Xokleng ....................................................................................................... 39
II.2 Kaingang ..................................................................................................... 42
II.3 Tupi ............................................................................................................. 42
II.4 Elementos emprestados .............................................................................. 44
III. A CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO ...................................................................... 59
III.1 População Negra na Colonização do Estado .............................................. 59
III.2 A Condição Peculiar do Negro em Santa Catarina ..................................... 60
III.3 Miscigenação e Sincretismo ....................................................................... 66
III.4 Elementos Emprestados ............................................................................. 70
10
IV. O CATOLICISMO ............................................................................................ 79
IV.1 Monge João Maria ..................................................................................... 79
IV.2 Catolicismo Popular ................................................................................... 89
CAPÍTULO 3 - A ECLOSÃO DA SEMENTE E SEU CRESCIMENTO: A SEGUNDA
FASE DO MOVIMENTO ...................................................................................................... 94
I. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 94
II. A CRISE SOCIAL ............................................................................................. 95
II.1 A Concessão de Terras ............................................................................... 96
II.2 O Interesse Estrangeiro ............................................................................... 97
II.3 A Estratificação Social ................................................................................. 98
II.4 O Abandono Religioso ............................................................................... 100
III. SURGE JOSÉ MARIA .................................................................................... 101
III.1 Informações Biográficas ........................................................................... 101
III.2 Sertanejos Crentes e Descrentes ............................................................. 106
III.3 Crenças e Práticas ................................................................................... 108
III.4 Influência Carolíngia ................................................................................. 114
III.5 A Morte de José Maria ............................................................................. 122
CAPÍTULO 4 - A ÁRVORE DA VIDA: A TERCEIRA FASE DO MOVIMENTO ...... 125
I. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 125
II. A SANTA RELIGIÃO ....................................................................................... 125
II.1 “Mediunidade”: Exclusiva, Orientada e Disputada ..................................... 126
II.2 O Êxodo .................................................................................................... 130
II.3 Ritos Crenças e Objetos Sagrados ............................................................ 134
II.4 Desejo Monárquico .................................................................................... 150
II.5 Militarismo Religioso .................................................................................. 153
II.6 Coragem e Glória ...................................................................................... 155
II.7 Os Santos Venerados ............................................................................... 157
II.8 Continuidade e Descontinuidade com o Catolicismo ................................. 159
III. AS REGRAS DA COMUNIDADE ................................................................... 160
11
III.1 Uma Autêntica Comunidade ..................................................................... 161
CAPÍTULO 5 - O FRUTO PROIBIDO: DECADÊNCIA E TÉRMINO DA SANTA
RELIGIÃO A QUARTA FASE DO MOVIMENTO ........................................................... 164
I. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 164
II. A DESCARACTERIZAÇÃO DA FÉ ................................................................. 164
II.1 Estabelece-se a Inquisição ........................................................................ 165
II.2 O Mito e o Medo ........................................................................................ 168
II.3 O “Vaticano” Contestado ........................................................................... 169
II.4 Uma Falsa República ................................................................................ 171
II.5 Saques e Piquetes .................................................................................... 172
II.6 Crenças Religiosas .................................................................................... 174
II.7 Um “Huno” no Contestado ......................................................................... 177
II.8 Caem os Últimos Redutos ......................................................................... 179
II.9 Desrespeito ao compadrio ......................................................................... 181
III. A CONTINUIDADE DA FÉ NO MONGE ........................................................ 182
III.1 João Maria “Forever” ................................................................................ 183
III.2 Os Lugares Sagrados ............................................................................... 185
III.3 Assimilação Kaingang .............................................................................. 186
III.4 Catolicismo Popular Atual ......................................................................... 191
IV. BREVE COMPARAÇÃO COM O MST .......................................................... 194
IV.1 Ideais Secularizados ................................................................................ 195
IV.2 Política ao Invés de Religião .................................................................... 198
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 202
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 207
12
INTRODUÇÃO
O tema de nossa pesquisa delimita-se nas possíveis contribuições das crenças
ameríndias, especialmente Kaingang e Xokleng, e negras, amalgamadas no sincretismo do
catolicismo popular, gerador do messianismo no Contestado. O período pesquisado tangerá
a pré-história” da Guerra, levantando dados etnográficos da região. Tocaremos a época da
colonização da área, focando o intervalo no qual a Guerra se processou, a saber, 1912 a
1916. Os reflexos do movimento na atualidade não serão desprezados. De forma geral,
nosso objetivo é contribuir com o estudo do messianismo no Brasil mostrando as intrincadas
relações existentes entre religião e sociedade. De forma específica, demonstraremos os
fatores sociais e culturais que geraram e modelaram o messianismo no Contestado,
auxiliando na compreensão de movimentos sociais posteriores envolvendo a posse de terra,
baseados ou não em crenças religiosas. Nosso método terá como trilho a abordagem
histórico-descritiva. A partir do estudo da religiosidade indígena e negra, realizaremos a
releitura das principais obras sobre o Contestado, reconhecendo elementos comuns e
contribuições.
Atualmente morador do Estado de Santa Catarina, confesso que a Guerra do
Contestado, ocorrida entre os anos 1912 e 1916 no chamado Planalto Catarinense”, em
uma sociedade sertaneja estratificada (fazendeiros, agregados e sertanejos) marcada por
miscigenação e sincretismo, na região contestada pelos Estados do Paraná e de Santa
Catarina, erame totalmente desconhecida. A princípio, julguei minha ignorância sobre o
assunto um indício da pouca expressão do movimento. Todavia, tive a curiosidade
despertada para conhecer um pouco mais sobre o tema, descobrindo, então, que tal revolta
foi de grande vulto e expressão, certamente uma das maiores convulsões sociais que se
deu em nosso solo pátrio. O assunto atrai a atenção por vários motivos. As condições de
sub existência e de miséria em que viviam os sertanejos, forçados ainda mais para as serras
e as matas, comovem aqueles que se interessam por conhecer a história. A doação de
terras devolutas do Estado para alguns privilegiados conhecedores dos políticos, bem como,
a maior preocupação dos fazendeiros com a produção, não tolerando mais os campesinos
em suas terras, literalmente “tirou o chão” das populações pobres que ocupavam, havia
algum tempo, a região Contestada. O senso de injustiça contra os menos favorecidos gera
solidariedade quanto à tamanha atrocidade social. Ademais, a concessão da construção e
exploração de uma ferrovia que cortava toda a atual região centro-oeste catarinense, desde
o Paraná até o rio Grande do Sul, área litigada por paranaenses e catarinenses, a uma
13
empresa estadunidense de nome Brazil Railway Company, suscita alguma revolta por ver
que foi roubado de brasileiros o país que eles conheciam e viviam.
Além das causas econômicas, políticas e sociais, diluídas, de certa forma, naquilo
que acabamos de descrever, há também a questão religiosa, que realmente fascina o
estudioso da religião. Primeiramente, percebe-se a existência de um “messianismo” peculiar
do centro-oeste catarinense. Ali, este fenômeno da popular não ocorreu, simplesmente,
como um impulso à personificação das esperanças presentes em um místico específico. Na
Guerra do Contestado, um mesmo “messias” foi reconhecido em três personagens
diferentes, que foram percebidas, na consciência religiosa dos caboclos, como duas
manifestações do mesmo messianismo. Pela ordem cronológica temos: João Maria (houve
dois) e José Maria. Ao estudar o assunto, chama-nos a atenção a presença de negros no
movimento e a proximidade e interação dos caboclos com índios da região. A grande
miscigenação envolvendo essas etnias desperta a pesquisa quanto à contribuição desses
grupos, habitantes daquelas paragens e originadores dos sertanejos, na concepção do
messianismo do Contestado. Acreditamos que é impossível não ter havido tal influência. Os
índios foram, e ainda eram, habitantes daquela região, e conviviam com os campesinos. Os
negros, por sua vez, foram levados como escravos, embora em contingentes menores se
compararmos com outras regiões, como o Sudeste e o Nordeste. Porém, outros “desceram”
para a fronteira Sul do território nacional, ainda no tempo da escravidão, fugindo da senzala.
Discriminados nas cidades, muitos preferiam as distantes fronteiras, e quanto mais distante
melhor. Além disso, deve-se considerar, como fator da presença africana no sul do país, a
alforria que recebeu o negro que lutasse na Guerra do Paraguai. Fator histórico de grande
importância para nossa pesquisa é o deslocamento de considerável população negra para a
região Contestada para trabalhar na construção da linha férrea.
Embora o que nos propomos fazer não seja um estudo de caso por se tratar de fato
ocorrido bom tempo, a abordagem histórico-descritiva nos permitirá transitar entre a
teorização e a narrativa, oportunizando certo dinamismo. Nosso viés de pesquisa implica re-
interpretação de labutas anteriores, uma releitura ensaística de fenômenos amplamente
estudados, debatidos e explorados. Tais esforços produziram autores clássicos na
consideração do messianismo da Santa Religião. Temos consciência, portanto, que a
natureza de nossa empreitada é cheia de riscos e dificuldades, um tapeceiro que tece com
linhas de pensamento do colorido de vários estudiosos. Sobre os “ombros” daqueles que se
levantaram para pesquisar a Guerra do Planalto Catarinense, podemos olhar mais longe.
Suas reflexões, permanecendo incólumes, servem de “cabeça de ponte” para novas
investidas. Por isso, reconhecemos nosso débito para com os que nos precederam. Uma
pesquisa nas bibliotecas das universidades brasileiras mostrará que muitos foram aqueles
que estudaram a “Guerra do Contestado”. Todavia, as abordagens foram principalmente no
14
âmbito geral, social ou cultural. A importância científica daquilo que propomos está na
pesquisa do movimento através de um viés pouco explorado: o religioso. Deverá se
aproximar bastante da abordagem antropológica religiosa. Em nossos dias, podem ser
encontrados nas universidades, centros de estudos de áreas gerais focando assuntos
específicos, como é o caso do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de
Santa Catarina, que tem um centro de estudos de Antropologia da Religião. Nossa pesquisa
deverá se associar aos estudos da religião, tendo a antropologia como base. Tomamos
como fundamento a obra de Maria Isaura Pereira de Queiroz, doutora pela École Pratique
des Hautes Études da Universidade de Paris, dedicada aos estudos sociais rurais e
urbanos: “Messianismo no Brasil e no Mundo”. A metodologia da eminente antropóloga foi
estudar o Contestado abordando-o sob a ótica dos vencidos, ao invés da dos vencedores.
Outra obra que servirá de base para o presente estudo, é de Maurício Vinhas de Queiroz,
sociólogo, que foi chefe de pesquisa na USP, intitulada Messianismo e Conflito Social”.
Obra fundamental para o entendimento do messianismo caboclo, o autor narra com
simplicidade os intrincados fatos que compuseram a consciência do sertanejo sulista.
Mostra o movimento conseqüente de uma crise estrutural, alienado, desligado do corpo
social, e autista. Não poderia deixar de destacar a importância de Duglas Teixeira Monteiro,
em sua obra “Os Errantes do Novo Século”, um clássico sobre a Guerra do Contestado.
Trata-se da publicação de sua tese de doutorado, no antigo departamento de Ciências
Sociais da USP. Euclides J. Felippe, no “Ultimo Jagunço” relata vários contos, rezas e
práticas religiosas colhidas de sobreviventes do Contestado, que foram de grande valia.
Roger Bastide, em sua obra “As Religiões Africanas no Brasil” deu-nos base para o estudo
da religiosidade negra, e Pierre Clastres, em “Arqueologia da Violência”, muitos
fundamentos para a compreensão da cultura ameríndia.
O primeiro capítulo lançará alguma base teórica, especialmente sobre os conceitos
de “messianismo”, “esperança” e “sociedade primitiva”, pertinentes à nossa pesquisa. Para
tanto, Henri Desroche na sua obra “Sociologia da Esperança”, em seu estudo sobre a
esperança religiosa, E.J. Hobsbawm em seu livro “Rebeldes Primitivos”, na sua análise dos
movimentos sociais, e Maria Isaura Pereira de Queiroz, no clássico sobre messianismo
citado acima, também alicerçam o presente estudo. Nos quatro capítulos seguintes,
dividiremos o evento estudado em quatro fases, iniciando com a pré-história do movimento.
Esclarecemos que, embora, tecnicamente, os termos cerimônias”, eminentemente
confirmatórias e comumente constituídas de ritos, e “rituais” que trazem sempre a idéia de
transformação, sejam conceitualmente diferentes (TURNER, 2005, p. 139), no presente
trabalho são utilizados de forma intercambiável. No decorrer de nossa pesquisa, deve ser
observado que utilizo o adjetivo “Contestado”, em ambos os gêneros, com inicial maiúscula,
para denotar aquilo que era peculiar ao movimento (p. ex: “religião Contestada”). Por ser um
15
fenômeno que envolve a questão da terra, para um país que ainda é grandemente agrícola
e onde as disputas de terra são freqüentes, o estudo dos elementos geradores do
messianismo no Contestado contribuirá para se entender as conseqüências sociais que os
vários e diferentes interesses pela terra podem causar.
16
CAPÍTULO 1 - ASPECTOS GERAIS
I. INTRODUÇÃO
Este é um capítulo introdutório. Nele trataremos, de forma geral, de alguns temas
basilares para o nosso estudo. Abordaremos o assunto utilizando uma metáfora temática
que engloba as idéias religiosa e social. Inaugurando as Escrituras Cristãs, logo após a
descrição do evento criativo, segue-se o episódio da “queda” de Adão, ou, em outras
palavras, a reprovação definitiva do gênero humano pelo Criador, que, a partir de então,
necessitaria de redenção, ato assumido por Deus em favor do homem. A derrocada do ser
feito à “imagem e semelhança” da Divindade aconteceu por ter Adão fracassado no teste
que lhe foi dado, uma prova de submissão e obediência, a qual lhe proibia o acesso ao fruto
da árvore do conhecimento do bem e do mal. Infere-se que apenas a sua aprovação
credenciaria o gênero humano a assumir a condição definitiva de aliado do Criador,
receptáculo do favor de Deus, portador da eternidade. Tomamos essa narrativa
metaforicamente, aplicando-a ao episódio histórico do Contestado, distinguindo quatro fases
distintas: 1) A análise do solo Abordando figuradamente o ambiente edênico cristão,
podemos dizer que a gênese da Santa Religião também se deu em solo santo”. A terra se
tornou sagrada para o campesino. Assim, neste estágio, trataremos do período de
formulação das idéias que se tornariam fundantes para os crentes dos redutos, isto é, a pré-
história do movimento. Para tanto, pesquisaremos elementos das culturas indígena, negra e
conceitos do catolicismo popular. 2) A eclosão da semente e seu crescimento Embora no
Éden seja impossível determinar se as árvores “nasceram prontas” ou germinaram a partir
de sementes (“quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”), tomamos a idéia natural da
eclosão do grão para denotar o surgimento da Santa Religião e sua concretização como
causa do sertanejo Contestado. Diz respeito ao espaço de tempo correspondente ao
surgimento do monge José Maria, alegado irmão de João Maria, até sua morte na batalha
do Irani. Estudaremos aspectos biográficos do último monge, algumas alterações entre as
concepções de João Maria (o primeiro e o segundo) e José Maria, bem como, o
estabelecimento da Santa Religião propriamente dita no primeiro acampamento de
Taquaruçú, e sua posterior dissolução na Batalha do Irani, onde perece o monge. 3) A
árvore da vida Agora, a analogia com a Bíblia se torna explícita. Nas Escrituras cristãs, o
consumo do seu fruto caracterizava-a como genealógica para a eternidade. No caso da fé
Contestada, esta etapa da causa terá como matéria a época da militarização da Santa
Religião, na qual se evidenciam, de forma mais elaborada, as suas crenças messiânicas.
17
Esse é o momento da estruturação do movimento, fornecendo padrões gerais que
perdurariam até a queda do último reduto. Vê-se o surgimento de uma estrutura de poder, e
a utilização da coerção como ferramenta de dominação. As vilas erigidas, chamadas de
“redutos” ou “Quadros Santos”, cada uma delas tinha o status de “cidade santa”, habitação
que garantiria a participação no reino de José Maria. 4) O fruto proibido Essa é a fase do
desmoronamento das “cidades santas”. O ideal religioso entra em decadência cedendo
espaço ao banditismo que ascendia. Versaremos sobre os fatores que contribuíram para a
dissolução da causa, tais como as severas privações a que foram submetidos os adeptos, a
resistência das forças governamentais, mas, especialmente, a degeneração dos ideais
originais. Destaca-se a figura de Adeodato, o último e mais violento líder da causa, e sua
postura não-conformista quanto aos padrões éticos e morais do sertanejo Contestado.
Minha assertiva, a saber, que a religiosidade do Contestado é fruto do catolicismo
popular, com forte influência índia e negra, embora nos tenha ocorrido primeiramente, foi
depois constatada no pensamento de Duglas Teixeira Monteiro, quando, ao comentar a
cosmovisão do “caboclo” do Contestado, afirma: “Ao lado dos riscos naturais e das tensões
da violência humana, sempre pronta a explodir, sofria com os temores do sobrenatural,
legado de uma tradição indígena, portuguesa e, secundariamente, africana” (MONTEIRO,
1974, p. 83). É difícil apontar exatamente, mas, junto com índios e fazendeiros paulistas,
começaram a se difundir naquela que seria a região Contestada, os ancestrais dos caboclos
que esculpiriam, mais tarde, crivando com balas e a golpes de facão, a expressão da sua fé.
Eram indivíduos e famílias que se “perdiam” no sertão, esquecidos do mundo, muitos
outrora peões, ou silvícolas que fugiam dos grilhões de ferro e de cultura, além de negros à
procura da sua “terra sem males”, isto é, sem açoite e senzala. Na verdade, uma turba
miscigenada, um suco batidos de várias etnias, cujos respingos foram juntados pela solidão
e a casualidade nos sertões do meio-oeste catarinense (BLOEMER, 2000, p. 51).
II. ESTEREÓTIPOS SENSACIONALISTAS
Renato da Silva Queiroz adverte quanto ao sensacionalismo e os estereótipos pré-
concebidos e preconceituosos com os quais comumente se trata os surtos sócio-religiosos.
Tal concepção demonstra, ainda, certo antagonismo, e mesmo, tensão, entre a cidade e o
campo. A primeira é sinônimo de civilização, modernidade, ordem e progresso, enquanto o
segundo é tido como a pura expressão do atraso, desordem, ignorância e pobreza
(QUEIROZ, 1995, pp. 28, 31, 32). Certamente, a reprovação prévia de um movimento
determinará a forma como será tratado. Os adeptos da Santa Religião eram fanáticos? Na
opinião de Cabral a luta não teve motivações religiosas, mas eminentemente sociais. Afirma
que em determinada fase do movimento tornou-se comum reconhecer como sua gênese a
18
distorção da católica que teria sido levada a cabo por um ignorante, der de ignorantes,
que saudavam o retorno da monarquia, que modelada pelo religioso, tornou-se messianismo
(CABRAL, 1979, p. 14). Conclui que se fosse observado que a causa real do movimento era
social, poderiam ter sido tomadas atitudes que evitariam a hecatombe: “A campanha do
Contestado foi uma luta de marginais, de desajustados, portanto uma luta de fundo
eminentemente social, e que, por incompreendida no seu início, não teve o remédio
imediato que teria evitado a sua continuação e os sacrifícios que determinou” (CABRAL,
1979, p. 18). Embora seja inegável que a causa social seja originadora do movimento, é
nossa opinião que é um de seus pilares, mas não todo o alicerce. A religiosidade latente
tornou-se não apenas o meio da realização do anseio social, mas, junto com este, uma de
suas causas.
Uma religião, para ser reconhecida como tal, deve ter um número representativo de
indivíduos que a pratica. Portanto, ao procurarem a vida social em pequenos grupos,
favoreceram o ajuntamento de todos nas mesmas atividades religiosas. Em outras palavras,
todos participavam juntos dos mesmos ritos. A religião, neste caso, mostra-se como grande
fator integrador. No Contestado, a idéia de viver uma comunidade tão peculiar, ou seja, o
povo que aguarda a concretização de uma “cidade santa”, forma e cristaliza o social. O
motivo de habitarem os redutos era, em grande e para a maior parte, religioso. Diferente dos
indígenas da região, os sertanejos se curvavam à obediência, primeiro dos coronéis, e,
depois, dos líderes dos redutos. Todavia, percebe-se que tal sujeição se dava em função de
necessidades básicas para a existência. Assim foi quanto à submissão prestada aos
fazendeiros e, posteriormente, aquela vista nos redutos. Aparentemente, o sobrenatural foi
suficiente para sujeitá-los, gerando também a lealdade. A promessa de uma sociedade
paradisíaca terrena foi o bastante para garantir-lhes obediência. A perspectiva de receberem
tal dádiva se encaixava perfeitamente ao sonho sertanejo de, ao invés de “campos”,
“planaltos” e “serras” Elíseos. A obediência religiosa estava atrelada ao alcance do benefício
pretendido e almejado por todos.
III. INFORMAÇÕES “PRÉ-HISTÓRICAS”
Antes da eclosão da Santa Religião, podem ser percebidos vários fatores que
prepararam o terreno para a semeadura da esperança Contestada. Dentre eles,
destacamos:
19
III.1 Étnico
A formação do homem do Contestado tem a indiscutível marca indígena, não apenas
no que diz respeito à cultura, mas, ainda, quanto à própria aparência. Nilson Thomé, em sua
tese de doutorado, afirma que os novos mamelucos das terras catarinenses, conhecidos
como os de “geração do caboclo pardo”, são herdeiros diretos dos Kaingang e dos Xokleng
nas características físicas, como a cor parda, poucos pêlos, cabelos negros, prega
mongolóide, e estatura média. Além disso, trazem em seu sistema de pensamento as
antigas tradições, linguagem, usos e costumes, e ainda, crenças e hábitos. Entrevistando
vários de seus alunos, curiosamente, nenhum havia assumido a descendência ameríndia
anteriormente, o que não desabona a expressiva marca de 12,5%, no final do século
passado (THOMÉ, 2007, p. 71 nota). Quando os adeptos do monge se viram
pressionados a abandonar aquilo que pretendiam, agiram com os indígenas, com violência e
truculência, buscando na religião criada por eles o aval e a esperança. A vida comunal dos
índios é um dos princípios da vida nos redutos. Todos deveriam entregar seus bens para
uma administração “pública”, responsável por geri-los para o bem comum. Eram irmãos,
uma única família. O reduto era visto como a grande casa onde todos moravam.
Na época da Guerra do Contestado, União da Vitória tinha como principal morador o
mazombo, os filhos de imigrantes europeus miscigenados com os habitantes originais. Tal
influência se viu, também, na arquitetura, produzindo casas com telhados agudamente
apontando para o céu. A principal etnia era a polonesa. Entretanto, eram vistos, em menor
número, alemães e portugueses. Outro exemplo de perda da identidade original é visto em
Rio Negro. Em 1829, o governador de São Paulo assentou trinta e uma famílias alemãs no
ponto onde a estrada que ligava Rio Grande a Sorocaba cortava o Rio Iguaçu. relatos
que contam que tal colônia havia perdido todos os traços de sua cultura original, ou, que
houve mútua aculturação, reciprocidade cultural, entre os alemães e o sertanejo da região
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 40, 42). Neusa Maria Lens Bloemer conta que o
intercâmbio comercial entre paulistas e mineiros com fazendeiros gaúchos, contribuiu,
também, para povoamento da região, atraindo para ali com suas tropas de peões,
paraguaios e uruguaios. Mesmo bolivianos e chilenos foram contados como moradores da
área, possivelmente, antigos radicados na Argentina (BLOEMER, 2000, p. 49).
III.2 Ambiente Social
Insegurança: Telêmaco Borba descreve ataques de Kaingang na região de Palmas e
Guarapuava, mostrando que era comum utilizarem emboscadas e a traição. Assim, tanto os
camponeses como viajantes e tropeiros desavisados eram súbita e impiedosamente
atacados. Contudo, aqueles que se precaviam eram capazes de impor aos indígenas
20
consideráveis baixas. Com o passar do tempo, as retaliações se tornaram comuns. Os
moradores da região passaram a se organizar, a fim de enfrentar o inimigo que vinha das
matas (BORBA, 1908, p. 5). Neste caso, os camponeses eram capazes de forçar severas
perdas aos seus oponentes. Curiosamente, os sertanejos do Contestado comumente
procuravam o refúgio das florestas, no abrigo dos troncos das árvores. Atacavam e, ao fogo
inimigo, recuavam, até outro ponto onde acreditavam poder surpreender, novamente, o
oponente. A influência indígena no povo que habitava a região Contestada pode ser
percebida já na tática que utilizavam nos combates. Tal constatação é mais do que
suficiente para considerarmos, também, a interação das crenças religiosas Kaingang e
Xokleng na religiosidade do homem do Contestado.
Neusa Maria Lens Bloemer mostra o clima de insegurança que predominou na região
de Lages por ocasião do estabelecimento de fazendas e de rota de tropeiros, por não se
tratar de terra desabitada, mas relativamente densa em povoação indígena. Assim, os
embates foram constantes, e, alguns, sangrentos. Os guerreiros mostravam-se
especialmente notívagos, embora não desprezassem aparições diurnas que aterrorizavam
principalmente as mulheres que buscavam nos riachos lugar para lavar as roupas de suas
famílias. Tão-somente, continua a autora, no início do século passado é que os ataques à
região recuaram (BLOEMER, 2000, p. 50). Thomé informa que muitos dos indígenas que
sobreviveram ao etnocídio promovido pelos bugreiros, acabaram mesclando-se com o
“homem branco” (THOMÉ, 2007, p. 71).
Compadrio: Duglas Teixeira Monteiro (MONTEIRO, 1974, pp. 62-71) mostra que o
compadrio exerceu forte papel social na comunidade do Contestado. Sendo uma sociedade
estratificada, o batismo dos filhos tenderia a acontecer intraclasses, isto é, pelo convite de
alguém de mesma classe para o apadrinhamento do filho. Contudo, descobriu-se ser este
um ótimo meio de rompimento com a realidade social indesejada, uma espécie de rito de
passagem, inserindo o homem e sua família a um novo patamar de relacionamento social.
Atribuiu-se ao batismo do primogênito grande distinção e honra, sendo esta a base para se
oferecer tal deferência àqueles que estão em classe superior. Dessa forma, o batismo
intraclasses viu-se rivalizado e preterido em favor do extraclasses, isto é, foi secundado
pelas vantagens do compadrio com o patrão. Destarte, o casal, ao ter o primeiro filho,
metamorfoseia-se socialmente. No caso do compadrio intraclasses, o batismo do
primogênito concedia nova identidade ao casal. A subordinação etária devida a pais e avós
-se rompida, resultante do estabelecimento de novos laços sociais, pelo compadrio.
uma nova consciência de si, um senso de autonomia, calcados em um novo patamar de
relacionamentos na esfera mística religiosa. Quanto ao compadrio interclasses, a relação
com o patrão, fortemente marcada pelo “hiato” do social, lugar ao “ditongo” da adesão,
um novo contato que rompe a ordem antiga, aproximando as classes pela ponte do ato
21
religioso do compadrio. Contudo, a preferência pelo batismo do monge, na opinião de
Monteiro, trouxe certa crise à prática ao apadrinhamento. Ao invés do coronel ou do patrão,
o monge assume o papel de padrinho daqueles que batizava, apadrinhando, literalmente,
grande extensão regional, isto é, boa parte do Oeste-Catarinense. Assim, através do elo
místico, houve a incorporação de enorme contingente, resultando fraternidade baseada no
sobrenatural, uma nova consciência do “eu” coletivo, a irmandade dos compadres e
afilhados do monge.
III.3 A Religiosidade da Terra
A terra impõe suas exigências, fato que interage com, e, até mesmo, modela, a
religião praticada. Fatores climáticos e geográficos trazem dificuldades para quem vive do
cultivo do solo ou da exploração das matas. Portanto, é comum achar nas religiões crenças
relativas ao favor da(s) divindade(s) para o melhor manejo da terra. Mesmo na tradição
judaico-cristã, que tem como seu pilar a necessidade de expiação de pecados para o
recebimento do favor de Deus, constam de seu calendário litúrgico veterotestamentário
festas que celebram o favor de Yahweh domando as intempéries, garantindo, assim, as
colheitas. Das três principais festas dos hebreus, apenas a Páscoa tem caráter prioritária e
eminentemente libertário, enquanto Pentecoste e Tabernáculos o são apenas
secundariamente, comemorando o compromisso inalienável do Deus do Pacto na
manutenção do povo, durante o êxodo. Foram contextualizadas posteriormente, quando
as Doze Tribos já haviam se estabelecido em Canaã, passando a comemorar as boas
colheitas. Ainda no período do Velho Testamento, os povos do antigo Oriente Próximo e
Médio, praticavam religiões de fertilidade, que tinham como foco, assim o seu designativo
bem atesta, a garantia da fecundidade da terra. Quando os comparamos com os moradores
da região Contestada, abandonados ao próprio destino, tinham que resistir às mesmas
dificuldades, o que os irmanava na busca de favores divinos que viabilizassem o cultivo da
terra. Elas parecem impor à religião forte teor utilitarista, isto é, buscava-se aquilo que
resolvesse o problema. A preocupação principal não era a ortodoxia quanto ao catolicismo.
Na verdade, ao invés disso, havia abertura a ritos, cerimônias e crenças, que se
propusessem a solucionar os problemas com a terra pela via religiosa. Parece-nos que esse
foi o motivo que levou à aglutinação e à assimilação dos conceitos que formaram a Santa
Religião.
À questão de seu surgimento é adicionado um outro elemento: a capacidade de
absorção de crenças pelos sertanejos, continuamente crédulos do sobrenatural, e o
catolicismo popular sempre aberto, sempre sincrético. Aparentemente, eram facilmente
persuadidos diante da necessidade. No caso, “a ocasião faz a religião”, pois a assimilação
22
dos conceitos se mostrava eminentemente pragmática. Havia inúmeras crenças que se
aproximavam mais da superstição do que da religião propriamente dita. Entendemos como
“religião” os rituais e as cerimônias que constituem um conjunto de crenças maior,
encontrando, nestas, seu significado e propósito. Por “superstição aludimos o misticismo
independente, importado isoladamente de outra religião ou desenvolvido, individual ou
coletivamente, desconecto da religião oficial ou daquela que se pratica. Não se trata,
exatamente, de sincretismo, se entendermos que este não é apenas um processo de
assimilação, mas de adequação e composição com as crenças estabelecidas. A nosso
ver, a grande marca da superstição é sua existência independente, desligada e autônoma,
quanto à religião já estabelecida. Destarte, se o gado ficasse doente, chamava-se um
benzedor. Dentre as várias magias que eram utilizadas para curar bicheiras, por exemplo,
havia uma que se iniciava com a frase: “Faraó tinha 19 filhos. Morreu um e ficaram 18”.
Então, se subtraía filho a filho, acrescentando: “morreu mais um e ficou 17”, assim,
sucessivamente, até zerar a descendência. A conclusão da reza era: “De um morreu um e
ficou sem nenhum. Assim os bichos desta bicheira hão de morrer de um a um. Até que não
fique mais nenhum. Amém” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 29). De igual forma, usava-se
crenças mágicas para encontrar uma rês perdida. Entretanto, agora não seria necessário
um “profissional religioso, cabendo ao responsável pela busca o ato mágico. Para tanto,
deve encher abundantemente a palma da mão esquerda com saliva e bater, com força, com
a mão direita. Para o lado que as secreções espirrassem é a direção em que se deve
encontrar o animal fugidio (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 29). Certamente, reconheciam
em tais práticas “soluções” simples e imediatas para os problemas comuns do quotidiano.
IV. ROTA MESSIÂNICA
IV.1 O que Leva ao Messianismo?
Comentando as causas do Surto Messiânico-Milenarista do Catulé, Renato Queiroz
cita o depoimento do Padre Jorge Lopes, no qual o sacerdote menciona o desejo da
salvação fácil, a livre hermenêutica das Escrituras praticada pelos adeptos e a carência de
pessoas gabaritadas para expor o texto de forma coerente, como os fatores causadores da
tragédia que pôs fim àquele movimento. Por fim, o depoente católico arremata: “Se tivessem
continuado católicos isso não acontecia” (QUEIROZ, 1995, p. 56). Assassinato é crime com
ou sem a busca de alguma legitimidade em motivação religiosa. É certo que a Bíblia pode
ser usada para manipular massas ingênuas. Todavia, a despeito do que afirma o sacerdote
romano, práticas do mesmo naipe foram percebidas em pessoas que confessavam o
catolicismo. No entanto, sua avaliação quanto à livre interpretação e o despreparo parece
23
ser procedente. Da mesma forma que alguém desqualificado para praticar a medicina ou o
direito não está apto a exercer tais funções, da mesma forma um líder religioso deve ter um
mínimo preparo para não exceder suas atribuições e causar grande dano. A Santa Religião
do Contestado parece ser um bom exemplo disso.
Os movimentos messiânicos são caracterizados pela inversão social. É uma contra-
cultura que busca em crenças latentes e modeladas, a plausibilidade para transtornar a
ordem social que predomina, ocasionando a ascensão e a obtenção daquilo que o grupo,
até então marginalizado, anseia (MONTEIRO, 1974, p. 11).
IV.2 Breves Considerações Sobre o Messianismo no Brasil
O “messianismo” é um fenômeno religioso popular que recebeu seu nome da
tradição judaico cristã. Deriva-se do termo “messias” que, em hebraico quer dizer “ungido”.
A rigor, todos os reis do Estado teocrático de Israel, depois Judá, receberam esse
designativo, algo que pode ser comparado a uma espécie de título, como César, Faraó ou
Czar, mas de cunho temporal e espiritual. Embora o rei messias do Antigo Testamento não
fosse divinizado em nenhuma medida, diferente do que aconteceu em Roma e no Egito,
tinha a responsabilidade de manifestar Deus através de seus atos, pela obediência e
fidelidade à aliança mosaica e davídica. A necessidade que os reis fiéis tinham de tributar
glória à divindade, tirando o foco de si mesmos, é, possivelmente, o fator que contribuiu para
que estes “messias” não se tornassem imperadores. Eles não agiam por si mesmos, mas
orientados por Deus. Portanto, a terra que governavam era um reino dedicado e
estabelecido sobrenaturalmente por e para a divindade. Como a extensão do reino era
dada, por assim dizer, sob medida, qualquer tentativa expansionista seria tida não apenas
como desobediência, mas como cobiça e a busca de engrandecimento pessoal, a
usurpação da glória que deveria ser prestada unicamente ao Senhor. Embora haja pistas
que movimentos messiânicos antecederam aquele formulado nas Escrituras judaico-cristãs,
foi esta vertente que popularizou o conceito.
Aparentemente, foi no ambiente do exílio babilônico que a concepção hebraica de
messias assimilou contornos definitivos. Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, partindo
de textos como o de Isaías 9.2 e 6: “O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que
viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz... Porque um menino nos
nasceu, um filho se nos deu; o seu governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”, mediante as
dificuldades do exílio, a crença no messias não foi reforçada, mas, de certa forma,
ampliada (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p. 25). Certamente o conteúdo da revelação
profética recebida e anunciada por Isaías foi sendo aclarado mediante as circunstâncias
24
experimentadas e vividas pelo povo. O conceito messiânico judaico sofreu interferência das
expectativas geradas pelas ansiedades e sofrimentos do exílio. A chamada “esperança
messiânica” acabou por dar formato ao rei previamente anunciado. Poderíamos dizer que o
Messias prometido não se ajustava ao messias pretendido. A tentativa de modelar o rei que
viria resgatar a glória terrena do Antigo Israel predominou até o Novo Testamento, motivo
básico da discordância do Cristo manifestado em Jesus e aquele ansiado pelos estudiosos
judeus da época. Na opinião de Queiroz, o cristianismo fundiu a concepção messiânica
hebraica com a idéia do juízo final, fazendo do Cristo não apenas o Messias salvador, mas o
guerreiro que retornará para vencer o Anticristo, personificação de todo mal (PEREIRA DE
QUEIROZ, 1977, p. 26). Todavia, com o desenvolvimento das ciências sociais,
especialmente do estudo comparado das religiões, alguns “bandeirantes do saber
excursionaram para além das fronteiras estabelecidas pelo molde do messianismo cristão,
estudando o fenômeno de forma abrangente. Originalmente, foi grande a confusão e a
discordância entre os estudiosos, ávidos por estabelecer normas e categorias para o estudo
do messianismo, sendo que, possivelmente, a única que se chegou inicialmente foi que não
era um fenômeno circunscrito ao cristianismo ou peculiar a momento histórico específico
(PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, pp. 26, 27).
No estudo abrangente do messianismo, percebe-se que não nenhuma ligação
obrigatória entre a noção de um único deus, que é em si fonte de moral perfeita, com a idéia
de um “messias” salvador de um mundo imperfeito. casos nos quais o salvador não
possui as qualidades éticas valorizadas pelo grupo, podendo demonstrar, simultaneamente,
interesses egoístas e altruístas. Não pode ser resumido às religiões monoteístas, e há
também exemplos de cristos múltiplos. Ademais, nota-se que o fenômeno não está ligado
unicamente à instabilidade política ou ao desejo de avivamento espiritual de uma
comunidade, pois mitos messiânicos anteriores ao contato do branco com povos
primitivos, período em que eram independentes. Possivelmente, isso mostre que causas
internas, geradoras de profunda insatisfação, sejam o “caldo de cultura” motivador de uma
terra melhor, um reino perfeito viabilizado por um enviado divino. No Brasil, excetuando-se o
messianismo indígena, os movimentos messiânicos são classificados como “movimentos
messiânicos rústicos”, eminentemente ligados à vida rural (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977,
pp. 37, 38, 216). Além do Contestado, Maria Isaura Pereira de Queiroz lista os principais
movimentos messiânicos brasileiros (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, pp. 220-305):
1) A Cidade do Paraíso Terrestre: fenômeno religioso iniciado por volta de 1817, em
Alagoas e no sul de Pernambuco, por um ex-soldado de nome Silvestre José dos Santos,
que recebia a alcunha de Profeta”. Formou um vilarejo que congregava cerca de
quatrocentos seguidores.
25
2) O Reino Encantado: originado por João Antonio dos Santos, em Pernambuco, que
em 1836 começou a proclamar a vinda de São Sebastião que distribuiria riquezas a todos os
adeptos.
3) Os Muckers: liderado por Jacobina, na região de Sapiranga, no estado do Rio
Grande do Sul, a partir de 1872. Ela declarava ser a reencarnação de Cristo.
4) O Império de Belo Monte: fundado por Antonio Vicente Mendes Maciel, ou,
“Antonio Conselheiro”, o idealizador de “Canudos”, que, a partir de 1873 começou
peregrinação pelo norte da Bahia, constituindo-se no movimento messiânico mais conhecido
do nosso país.
5) A Cidade Santa: movimento promovido pelo Padre cero, em Juazeiro, por volta
de 1872, no Ceará, que se tornou de grande expressão principalmente na região Nordeste.
6) O Beato do Caldeirão: originado pelo Beato José Lourenço, que era afilhado do
Padre Cícero, que, após a morte deste, pretendeu ser sua reencarnação ou enviado.
7) O Povo do Velho Pedro: iniciado por Pedro Batista da Silva, em 1942, que
perambulava por Alagoas, Sergipe e Pernambuco, fazendo curas e assumindo penitências.
V. TEORIZANDO
V.1 Esperanças: Moribundas ou Vitais
Como “esperança” é um termo recorrente à religiosidade, e, particularmente, ao
nosso estudo já a partir do título, examinaremos o conceito sobre ele desenvolvido por Henri
Desroche. Conquanto o conceito de esperança esteja, geralmente, ligado à teologia e os
fenômenos que a elucidam sejam eminentemente religiosos, é possível abordá-la através de
outros vieses. Para tanto, Desroche elege fenômenos da imaginação coletiva, “expressões
utópicas, milenaristas e utópico-milenaristas” (DESROCHE, 1985, p. 11). Por ser a
esperança uma ocorrência universal, é mister a delimitação da população a ser estudada.
Uma vez feito isso, a esperança deve ser discernida entre os sonhos sociais, os anseios e
expectativas de um grupo, que pulsam em sua consciência como se fossem recordações de
infância. Segundo o autor, ela é uma poderosa energia noética, grávida de malefícios e
benefícios, resultantes, respectivamente, da sua desintegração e da sua utilização para fins
26
pacíficos. Quanto às religiões, nem todas são percebidas como devoções de esperança.
Desroche refere-se àquelas da esperança obstruída e as da esperança evaporada. A
primeira, diz respeito, especialmente, às religiões da antiguidade, onde há uma identificação
da sociedade com a própria religião. A sociedade se torna o templo; os deuses, o fecho da
abóbada; e a cidade, o seu sustentáculo. A esperança era detida por um indivíduo, ou por
uma ou várias classes, em detrimento da população geral. Como exemplo, cita o Egito
antigo, onde faraó monopolizava a esperança. Por ser “deus”, era a ponte entre os deuses e
os homens. Além disso, alude às religiões indo-européias, estratificadas, onde às camadas
inferiores da população era negado o culto. Assim, arremata Desroche, a plebe
caracterizava-se por uma multidão sem esperança (DESROCHE, 1985, pp. 15, 16).
No caso das religiões de esperança evaporada, explica o autor, ela é a ratificação de
um Além que contesta toda oposição nesta terra. Se a esperança obstruída é exemplificada
com religiões antigas, a evaporada é ilustrada à luz de religiosidade moderna. A partir do
século XIX, desenvolveu-se uma esperança social que focava a redistribuição das classes
sociais e novas formas de propriedade, conseqüente do domínio do homem sobre a
natureza. A religiosidade conviveu com tais expectativas, que, argumenta Desroche, logo se
mostraram frustradas. Destarte, surge a esperança que se desespera dos deuses, lançando
sua confiança nas ciências e em um socialismo prático conhecido como “cientificismo”.
Todavia, para toda ação uma reação. Começa a se cristalizar uma esperança religiosa
que nada espera da esperança científica. Partindo de vários escritos de Leão XIII, mostra
que a esperança religiosa foi, então, proclamada, o verdadeiro remédio contra aquela “peste
mortífera”, pois não considerava as condições materiais humanas. O “mau rico” é
condenado, enquanto o “bom pobre” recebe os lauréis da felicidade eterna. Diferentemente
do socialismo que insufla o não-conformismo, a esperança religiosa inclina os homens à
aceitação de suas condições. Ser pobre não é ser indigno. Enfatizando-se a essência
humana, a dignidade se reveste do “ser”, não das “posses”. Do rico, espera-se a
generosidade na administração dos seus bens. Assim, o primeiro será salvo por sua
paciência, e, o segundo, pela sua liberalidade. É esperança evaporada, pois está fundada
em um sistema de crenças onde a desigualdade social é confirmada e necessária, condição
imposta pelo pecado de Adão. Desroche menciona, ainda, o metodismo inglês que pregava
a conformação à realidade social. Todavia, foi anulado pelos sindicatos da época, que
instigavam a impaciência. Também o budismo é apontado pelo autor como exemplo da
esperança evaporada, com sua pregação de aniquilamento do desejo como forma de
alcançar o nirvana. Assim, conclui, espera-se que a religião da esperança não seja vedada
ou evaporada, mas que projete em seu imaginário uma sociedade que, tanto cultural (novos
céus) como socialmente (nova terra), constitua-se como sociedade alternativa (DESROCHE,
1985, pp. 16-18). O autor parece sugerir que a religião que verdadeiramente traz esperança
27
é aquela que se mostra diferente do status quo e acessível a qualquer indivíduo. Esta é
ântropo e socialmente aprovada. É a participação do sujeito como agente religioso, não
apenas como expectador. Assim, “é esta forma de experiência religiosa que se observa em
fenômenos tão numerosos e diversos como: cultos de possessão, matrizes das religiões de
salvação, utopias sociorreligiosas, milenarismos com ou sem messianismo,
„pentecostalismos‟ contestatários, teatralizações sociais de tipo político e/ou estético”
(DESROCHE, 1985, p. 18).
Frase de autoria indeterminada questiona: “Que vem a ser a esperança? O sonho de
um homem em vigília”. Quando se aborda a esperança do ponto de vista morfológico, a
espera pode envolver tanto o que se quer, como o que não se quer. Em outras palavras,
embora o se queira alguma coisa, as circunstâncias podem nos levar a esperá-las, como
algo inevitável. Quando falamos de “sonho”, segundo Desroche, fala-se de uma categoria
mental exageradamente subjetiva. No entanto, argumenta, se suavizarmos os limites entre a
realidade e o sonho então o conceito se mostrará útil. Assim, a necessidade da
formulação de hipóteses que atribuam à realidade não apenas o que é vivido, mas também
o que é sonhado. Segundo o autor, sonhos que precedem, anunciam e comandam a
realidade, passando, finalmente, a constituí-la. Portanto, o sonho não está longe da
esperança (DESROCHE, 1985, p. 19). Outro conceito da esperança é aquele que a concebe
como ideação coletiva, uma idéia emprestada de Durkheim. Dialogando com este estudioso,
Desroche mostra que, para Durkheim, a religião é muito mais do que um sistema de
crenças, constituindo-se, antes, em sistema de forças, pois o indivíduo que vive
religiosamente não apenas é dominado por ela, mas, também, potenciado, elevando-o e
fazendo-o transcender a si mesmo, isto é, a vencer suas limitações e superar as
capacidades que a si mesmo impõe. Tal fenômeno pode ser entendido em três níveis. No
primeiro, refere-se estritamente ao sistema de crenças ou idéias, por isso, a camada mais
frágil e efêmera, que se dedica a dar plausibilidade à existência humana, explicando o que é
o homem e o mundo. Portanto, nisso se percebe, segundo Durkheim que a religião é uma
sociedade sem ciência. Assim, o pensamento científico se apresenta como uma forma mais
elaborada e precisa do pensamento religioso. Conseqüentemente, à medida que o primeiro
se desenvolve vai, paulatinamente, substituindo o segundo. Dá-se, então, ocasião às
formulações humanas ou a das “logias” científicas. A “antropo”, “sócio” e psico” logia, e
outras, substituem totalmente a “logia” religiosa, isto é, a teologia. O terceiro nível é
categorizado como “consistente e perene”. Desroche o chama de uma “urgia” (liturgia). Trata
especificamente do fenômeno “cúltico”, quando a religião toca o eterno. É descrito como o
momento no qual, influenciados pelo evento coletivo, os homens são levados a práticas nas
quais nem mesmo eles próprios se reconhecem. Para Durkheim, diz Desroche, a função da
religião não é fazer-nos pensar ou enriquecer o nosso conhecimento, mas levar à ação,
28
desempenhando o papel de auxílio para a vida. Essa é a “influência dinamogênica” que
exerce na sociedade. o nível dois é o da transição. Segundo Desroche, se o primeiro
pode ser descrito como o sistema de idéias sem força, o terceiro seria o de forças sem
idéias. Estabelecendo-se no trânsito entre os dois níveis, o segundo seria definido, então,
como o das “idéias-forças”, ou seja, exatamente o das “ideações coletivas”. Importa
elementos da ciência e da fé. Por ser aquela sempre incompleta e de progresso lento, a vida
não pode esperar. A urgência da existência impõe ao homem a necessidade de forças para
viver, de potência para agir, por isso, abastece-se da fé. Tal capacidade dinâmica está muito
aquém daquilo que a ciência pode conceder. Destarte, as idéias que levam a ação e dão
base para a vida, necessariamente passam à frente da ciência, compondo o cabedal de
princípios humanos, completando antecipadamente a lacuna deixada por esta (DESROCHE,
1985, pp. 23, 24).
Para Durkheim, comenta Desroche, uma sociedade não pode viver sem suas
ideações, pois são seus próprios reflexos. Esse é o motivo de as religiões, mesmo as mais
elaboradas, jamais passarem sem alguma forma muito particular de especulação, que,
conquanto pretenda os mesmos alvos da ciência, não pode ser classificada como
estritamente científica. Desroche conclui que, se religião, na concepção de Durkheim, é -
esperança que “remove montanhase concede ao homem força e base para viver, levando
o sujeito a ser sustentado pelo que o domina, não passa de conceitos construídos no ar,
cuja validade não é decorrente de sua capacidade de explicação, mas do seu poder de
mobilizar e animar: “Se as esperanças e seus mitos portadores são ideações coletivas, são
ao mesmo tempo muito mais e muito menos que ciências. Muito menos: são um vazio.
Muito mais, entretanto, são uma plenitude” (DESROCHE, 1985, p. 25).
Outra concepção de esperança Desroche extrai de seu diálogo com Marcel Mauss e
Jean Lacroix, classificando-a como “espera efervescente”, na qual o conceito de
“expectativa”, eminentemente psicológico, assume proeminência. Partindo do pensamento
de Mauss, analisa a elaboração feita deste pensador por Lacroix, na qual destaca alguns
conceitos expressos de forma dialética. Reconhece duplo nível na expectativa: “de um lado
um nível de aspiração ou de espera de um ideal desejável e desejado tal qual este desejo o
investe numa vontade; por outro lado, um nível de expectação ou de espera de uma
realização possível tal qual aparece circunscrita por capacidades" (DESROCHE, 1995, p.
27). A esperança se torna dialética, ou seja, o espaço entre o que se deve fazer para
concretizar o desejo subjetivo e o que se pode fazer para além das possibilidades que se
apresentam. Conquanto Lacroix descreva esse vazio de forma marxista clássica, o ponto de
Desroche é a “efervescência” que a espera pode causar, assemelhando-se ao conceito de
plenitude reconhecido na análise de Durkheim. Todavia, a esperança efervescente pode
causar reações diametralmente opostas, descritas como espera inibidora e espera
29
exaltante. Esta diz respeito à esperança que inflama a sociedade em direção daquilo que
pretende, apresentando-se “mobilizadora, motivante, criadora de „coalescências‟,
unificadora, desagregadora, fomentadora de energias, de novos impulsos, de resistências,
de êxodos e hégiras, revoltas e cruzadas, influente no despertar, determinante do caminhar
das etnias, grupo sociais, nações ou Igrejas, corporações ou seitas que ela ergue acima de
si mesmos numa criatividade cultural inédita”. No entanto, casos quando a espera leva a
efeitos totalmente contrários, sendo “inibidora, desmobilizadora, multiplicadora, por vírus
anemiante, das fragilidades de uma sociedade anêmica, desintegradora, prenhe de
renúncias e derrotas, idealizadora das degenerescências ou distensões de uma trama
social, postuladora e sacralizadora de uma eutanásia”. Todavia, sempre a possibilidade
da espera inibidora se transformar ou voltar a ser espera exaltante (DESROCHE, 1985, pp.
28, 29).
Para tratar da “esperança como utopia generalizada”, Desroche dialoga com A.
Gramsci. Este é um estudioso que não aceitou sem críticas a distinção feita entre o que se
chamou se socialismo “utópico” e socialismo “científico”, talvez por se tornar tão vulgarizada.
Como não poderia deixar de ser, uma vez estabelecidas distinções, surgem aqueles que
procuram o seu contrário, especialmente se são apresentadas como axiomas, no caso, os
elementos utópicos da “ciência” e os elementos científicos de tal “utopia”. A “ciência” mostra
sua arrogância absolutista, tendendo à relativização. É fato que os elementos intangíveis da
experiência humana, como o transe, o sonho, e até a loucura, também os mitos e as
utopias, embora sejam óbvias modalidades de comportamento não-racionalizados e
irracionais, ainda se conservam como procedimento humano que pode se enquadrar em
outros tipos de racionalidade ou de “ciência”. O socialismo utópico, que se emoldura como
matriz sociocultural do socialismo moderno, está ligado ao conceito de “esperança” no
milenarismo. Citando Roger Bastide, Desroche reconhece a dificuldade daqueles que
separam o homem em pé ou sentado, do homem deitado e sonhando. Ainda que peculiares,
todas as coisas que são vivenciadas pelo ser humano compõem a sua experiência. Quanto
às aspirações do sujeito, aparentemente, a utopia e a esperança são irmãs gêmeas: “Em
utopia, esperança de outra sociedade. Em esperança, utopia de outro mundo. Em uma e
outra, estratégia e alteridade” (DESROCHE, 1985, pp. 29, 30). Desroche, reconhecendo o
cruzamento entre esperança e utopia, identifica a falha de entender a esperança como
utopia bem-sucedida, e utopia, como esperança frustrada, por tais conceitos não permitirem
oposição estrita. Opta por um viés de definição religioso, a saber, definindo a utopia como
religião secularizante e a religião como utopia sacralizante (DESROCHE, 1985, pp. 31, 32).
Falando do vazio da Esperança, Desroche destaca quatro assertivas: 1) “O vazio de suas
condições ou a esperança frustrada” enfatizando que o homem enfrenta algumas
condições sociais que se mostram insolúveis, o que leva, necessariamente, a esperanças
30
frustradas; 2) “O vazio de seus trampolins ou a esperança esvaziada” a sensação que faz
parecer que o ideal se tornou a própria realidade, vai regressivamente perdendo a
intensidade causada pelo momento de crise que gerou tal percepção, fazendo desbotar a
imagem da realidade esperada de volta àquela preterida; 3) “O vazio de suas fases ou a
esperança burlada” a esperança se apresenta como uma estratégia de transição entre o
Próprio e o Outro, pois as situações são essencialmente mutantes, não apenas podendo,
mas, devendo, ser outras; 4) “O vazio de sua essência ou a esperança inesperada” pois a
esperança geralmente não confere aquilo que se almejava por completo, mas, por outro
lado, resulta no que não se esperava, contendo sempre um aspecto surpreendente
(DESROCHE, 1985, pp. 33-49).
V.2 Sociedades Primitivas
Outro conceito que nos interessa teorizar é relativo aos movimentos sociais
categorizados como “primitivos”. Hobsbawm indica alguns elementos comuns a eles.
Primeiramente, destaca a centralidade das formas de iniciação, cerimônias às quais se
submetem homens e mulheres capazes de escolha, geralmente, após a puberdade. Serve
como ritual aglutinador, dando legitimidade à inclusão do indivíduo ao grupo, concedendo-
lhe espaço e pertencimento. Comumente, são realizadas em atmosfera mágica e solene,
que objetiva infundir no aderente o significado de seriedade e importância do passo que está
sendo dado. É possível que o candidato passe por algum tipo de prova. A cerimônia alcança
seu clímax em algum ato mágico específico, ou, simplesmente, no voto solene do iniciado
vinculando-o às responsabilidades do grupo. Uma vez membro “oficial”, vêm os cerimoniais
públicos periódicos, que têm como objetivo não apenas reafirmar o compromisso de todos,
mas, também, preservar a unidade grupal. São vistos na forma de “assembléias, procissões,
práticas coletivas de devoção e coisas do gênero”. Seguem-se, então, o que se pode
chamar de “rituais práticos”, isto é, a chave que autoriza o exercício das funções específicas
do indivíduo dentro do grupo, como sinais secretos, formas de identificação e senhas. Por
fim, emerge o simbolismo que, nas sociedades primitivas serve para dar forma e conteúdo.
Nos movimentos modernos, geralmente assimila os contornos de emblemas, bandeiras,
figuras simbólicas, etc. Se é o caso de tomar símbolo tradicional ou de estar ligado a
organizações passadas, geralmente assume a forma de acessório emocional que instiga os
adeptos às causas do movimento (HOBSBAWM, 1970, pp. 191-193).
Segundo Hobsbawm, o “caldo de cultura” de movimentos sociais primitivos no século
XIX tinha como base uma de duas situações: primeiramente, poderiam ser organizações
que eram ou foram secretas, ou, cujos objetivos revolucionários exigiam um grau
excepcional de coesão; em segundo lugar, grupos que, tendo ligações com organizações
31
congêneres do passado, mostram-se sucessores ou portadores de tradições antigas,
impondo intensa continuidade com o passado primitivo (HOBSBAWM, 1970, p. 193). A
análise de Hobsbawm se mostra bastante oportuna no caso do Contestado. Embora a
Guerra Santa seja movimento do século XX, figura-se, ideologicamente, ainda no século
anterior. Prova disso é o anseio pela monarquia que, no Brasil, havia perdurado até a
penúltima década do século XIX. Além disso, o sucesso do romance carolíngio “A História
de Carlos Magno e os Doze Pares de França” concedia algum ar medieval ao movimento.
Assim, se classificássemos o Contestado como uma sociedade primitiva que mostrou
grande coesão devido à necessidade da causa revolucionária, observaremos que a
descrição de Hobsbawm quanto ao formalismo desse tipo de movimento se assemelha ao
que se sabe a respeito dos Quadros Santos. Havia ritual de iniciação, onde o adepto
assumia seu espaço no reduto, bem como, as normas que deveriam ser seriamente
respeitadas. O aspecto mágico do rito pode ser visto na mudança de nome, indicando
transformação e nova realidade. As cerimônias periódicas eram constantes. As chamadas
“formas” reuniam, pelo menos duas vezes ao dia, todos os habitantes do reduto para os
exercícios devocionais coletivos. Quanto aos chamados “rituais práticos”, talvez possam ser
reconhecidos nas rezas e patuás, uma vez que a sua posse foi, até mesmo, utilizada para
distinguir o sertanejo adepto da Santa Religião daqueles que não assimilaram a nova fé.
Quanto ao simbolismo, é vasto e rico na Guerra do Contestado, na forma de vestimenta,
adereços, bandeira, etc. Todavia, reconhecemos apenas semelhança, uma vez que o
conceito de “sociedade primitiva” se aplica estritamente a pequenos grupos e a sociedade
sem estrutura de governo, diferente do que percebemos na Santa Religião. Pode ser que
divisemos no Contestado um legítimo representante de dois “mundos”, uma sociedade de
transição, constituído de vários elementos da “sociedade primitiva”, mas, fora de seu tempo,
valendo-se de alguns conceitos modernos.
Na opinião de Durkheim, o sistema de proibições se origina na própria noção do
sagrado. O respeito que é gerado pelo sagrado impõe em si mesmo inibição àquele que o
experimenta. Assim, leva a repelir qualquer tipo de representação que se levante contrária,
mesmo que em parte. O mundo do sagrado é antagônico ao mundo profano (DURKHEIM,
1989, p. 383).
VI. CRONOLOGIA DO FENÔMENO
Os fatos narrados abaixo são quase uma transcrição da cronologia constituída por
Duglas Teixeira Monteiro, em sua obra “Errantes do Novo Século” (MONTEIRO, 1974, pp.
269-276). Optamos por reescrevê-los objetivando dar um formato mais textual à narrativa.
32
1844 Surge em Sorocaba, interior de São Paulo, João Maria I. Nasceu em
1801, em Piemonte, Itália. Tendo permanecido cerca de três anos em
Sorocaba, inicia sua peregrinação, atravessando os estados do Paraná e
Santa Catarina, alcançando o Rio Grande do Sul. Em Santa Maria, erige
uma capela sobre um morro dedicada a Santa Antão, perto de uma
nascente. Sua fama percorreu grande distância, atraindo notável
contingente. Temendo mais um movimento de “fanáticos religiosos”,
comuns no Brasil da época, o presidente da província prende e ordena a
transferência do monge para o Rio de Janeiro. Livre da prisão, retorna a
Sorocaba, de onde seguiu para a Lapa, no Paraná. Muitos dos lugares por
onde passou tornaram-se sagrados, destino de milhares de pessoas até os
nossos dias. Seu fim é incerto. Pode ter morrido em Sorocaba, ou, em
Araraquara, pois relatos do surgimento de um João Maria na cidade em
1906.
1893 Surgem informações que dão conta do aparecimento de outro João
Maria, perambulando pelas paragens entre o Iguaçu e o Uruguai. Sua
presença é confirmada entre os combatentes sertanejos do Vale do Rio do
Peixe, portando uma bandeira do Divino, branca, com uma pomba vermelha
ao centro. Pediu licença para tocar, com ela, os feridos nos combates, pois
acreditava ter poderes curativos. Era partidário da causa federalista, aberto
apoiador de Gumercindo Saraiva. De tal forma o promovia, que, morto em
combate, chegou a profetizar a sua ressurreição, à frente de um exército de
anjos. Segundo consta, o nome real do monge era Atanás Marcaf,
possivelmente de origem Síria, o que denunciava o seu sotaque
estrangeiro. No encontro que teve com o Frei Rogério Neuhaus, sua fala,
quanto às suas origens, foi: “Nasci no mar, criei-me em Buenos Aires, e faz
onze anos que tive um sonho, percebendo nele, claramente, que devia
caminhar pelo mundo durante quatorze anos, sem comer carne nas
quartas-feiras, sextas e sábados, e sem pousar na casa de ninguém. Vi-o
claramente”.
1897 Quando Hercílio Luz governava em Santa Catarina, aparece um
grupo de fiéis em Entre Rios, município de Lages, atraídos por um novo
monge, que dizia ser irmão de João Maria. Liderava-o um comerciante
chamado Francelino Sutil de Oliveira, funcionando como um tipo de deão. O
“coronel” Henrique Rupp denuncia o grupo ao governo, acusando os seus
integrantes de insurgentes. Assim, sofrem o ataque de um destacamento de
Santa Catarina, apoiado pelos capangas do citado caudilho. Derrotados na
demanda, outra expedição catarinense é enviada com o mesmo objetivo,
comandada pelo Tenente Coronel Gastão Cotrim. Todavia, antes da
chegada da nova brigada, o movimento havia sido desmantelado pelas
forças do Rio Grande do Sul, comandadas pelo Coronel Bento Porto. Esse
rápido surto messiânico ficou conhecido como “Canudinhos de Lages”.
1908 João Maria II já havia desaparecido por completo. relatos
inconclusivos quanto à sua morte. Pode ter ocorrido em um hospital da
cidade de Ponta Grossa, no Paraná, ou então, sepultado em Lagoa
Vermelha, no Rio Grande do Sul. Todavia, na crença popular, ele não pode
morrer. Sua retirada foi estratégica para provar a que possuíam seus
seguidores. Acreditavam que se encontrava “encantado”, habitando no
morro do Taió. Sua permanência ali é temporária, pois deverá regressar
“para pôr tudo em ordem”. Na vacância da função monacal, vários tentaram
assumi-la, intitulando-se sucessores, ou mesmo, o próprio João Maria
ressurrecto.
1911 Boatos atiçam o imaginário sertanejo, falando da iminência da volta
de João Maria.
33
1912 José Maria surge em Campos Novos, desenvolvendo sua carreira
de curandeiro. Depois de curar a moribunda esposa de um rico fazendeiro,
conta-se que este lhe ofereceu como retribuição muitas terras e ouro, que
foram sumariamente recusados pelo monge. Contudo, diferente de João
Maria I e II, estabelece-se nas suas terras, o que levou à grande
concentração de sertanejos no local. O fazendeiro contribui para a
manutenção do grupo, mandando abater um boi diariamente. Todavia, o
incremento de fiéis, que não paravam de chegar, levou o monge a transferir
o acampamento para outro lugar da fazenda. José Maria tinha pouco mais
de 40 anos à época. Antes de manifestar sua messianidade, atuou como
curandeiro na cidade de Lages e na localidade conhecida como Irani,
município de Palmas. Não era leviano em seu ofício. Mostrava algum
estudo, sabendo ler e escrever, o que lhe conferia a capacidade de munir
seus “pacientes” de receitas escritas de próprio punho. Tinha o hábito de ler
a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, valendo-se dela,
também, para entreter a multidão. Esta obra se tornou a bíblia” do
Contestado.
6 de agosto José Maria chega a Taquaruçú, município de Curitibanos,
para a participação na Festa do Bom Jesus. Como celebração religiosa,
catalisou a esperança de grande contingente, especialmente, por causa da
violência que passaram a sofrer da parte da Southern Lumber e da Brazil
Railway. A chegada do monge é vista como a vinda de um libertador.
Aglutina-se grande multidão ao seu redor, estabelecendo-se o primeiro
acampamento do movimento, uma espécie de protótipo dos futuros redutos.
Havia religiosidade diária, composta de rezas, leitura pública do citado
romance carolíngio, bem como, a organização dos primeiros Pares de
França.
Outubro O coronel Albuquerque atiça as forças catarinenses contra os
religiosos. Percebendo a ameaça que se avizinhava, José Maria cruza
Curitibanos e alcança os campos do Irani, onde reconhecia haver melhor
aceitação. No entanto, por causa da questão dos limites, a chegada de um
grande contingente procedente de Santa Catarina em terras controladas
pelo Paraná, leva à mobilização do Regimento de Segurança para o fim
específico de expulsar os invasores.
22 de Novembro: Dia do combate do Irani, quando o acampamento é
atacado pelo contingente paranaense, dispersando o ajuntamento. Perecem
José Maria e o Coronel Gualberto. As baixas do Regimento de Segurança
do Paraná foram severas.
1913 Convulsiona-se a política em Curitibanos, resultado da oposição
entre os partidários dos “coronéis” Albuquerque (situação) e Henriquinho de
Almeida (oposição). Começa a surgir a crença escatológica, na região de
Perdizes Grandes, da vinda do Exército Encantado e do início da Guerra de
São Sebastião. O monge militar José Maria também retornaria, conforme
teria prometido. Possivelmente em algum dia de agosto ou setembro, a
jovem Teodora, neta de Eusébio, inicia o “Virgenato” proclamando seus
primeiros contatos com José Maria através de visões. Eram, na verdade,
orientações do monge para os seus seguidores.
1 de Dezembro: A religiosidade estimula a formação de novo ajuntamento
em Taquaruçú, liderado por Eusébio, seu filho vidente Manuel e Chico
Ventura. Todavia, o prestígio religioso de Manuel dura pouco, depois de
tentar valer-se dele para alguns privilégios sensuais. É substituído pelo neto
de Eusébio, de apenas onze ou doze anos.
29 de Dezembro: Fracassa o ataque ao reduto, realizado por tropas do
exército, da polícia catarinense e vaqueanos, deixando para trás certa
quantidade de armamentos.
1914 3 de Janeiro: Praxedes é assassinado na cidade de Curitibanos. O
reduto, agora já com cerca de seiscentos habitantes, mostra intensa
34
atividade religiosa, exercícios militares e organizam-se os Pares de França.
A liderança espiritual continua a cargo de Joaquinzinho, o menino-deus.
6 de Janeiro: O reduto de Caraguatá começa a tomar forma, resultado da
soma de elementos locais com combatentes vindos de Taquaruçú.
8 de Fevereiro: O reduto de Taquaruçú é novamente atacado, desta feita,
com uso de maior contingente e armamento pesado: setecentos soldados,
duas metralhadoras, um pelotão de cavalaria e dois canhões. A destruição é
completa. Os remanescentes vão para Caraguatá. Eusébio é secundado na
liderança, preterido em favor de Elias Moraes, antigo juiz de paz do agreste.
Liderando cem combatentes, chega Venuto Baiano. Maria Rosa,
adolescente de quinze anos, assume a liderança espiritual como Virgem.
Começa a surgir nas proximidades novo reduto, Perdizinhas. Estabelecem-
se os primeiros contatos com Aleixo Gonçalves.
9 de Março: As forças do governo são derrotadas no ataque que
preconizaram em Caraguatá. Neste reduto, ao final do mês, surge epidemia
de tifo. Começa a mudança para Bom Sossego, no Vale do Timbozinho,
onde é composto novo reduto: Pinheiros. Deslocaram-se para duas mil
pessoas e seiscentos bois. Foi aí que Wolland apareceu pela primeira vez.
Abril: O comando das operações do governo contra a Santa Religião é
assumido pelo General Carlos Frederico de Mesquita. Tendo atacado locais
quase desabitados, desocupados pelos rebeldes, sem destruir nenhum
dos redutos principais, acredita ter cumprido sua missão e recolhe suas
guarnições, deixando apenas um contingente de duzentos homens, tendo à
frente o Capitão Mattos Costa. Este atua como pacificador e procura
intermediar uma solução pacífica para a Guerra. Depois de ir ao Rio de
Janeiro, procura contato com a Virgem Maria Rosa, entrando sob disfarce
no reduto. Possivelmente, por ter sido descoberta a sua conversa com o
oficial, Maria Rosa cai em desgraça e é substituída por Francisco Alonso de
Sousa.
Junho: Por causa de conflitos políticos na cidade de Canoinhas, tornam-se
opositores Bonifácio Papudo, Antônio Tavares Júnior, e, em destaque,
Aleixo Gonçalves, que fundam seus próprios redutos às margens dos rios
Paciência e no alto rio Itajaí do Norte. Devido à intensificação da luta política
em Curitibanos, muitos aderem à causa Contestada, transferindo-se para
Bom Sossego.
Agosto Setembro: O núcleo principal desloca-se de Bom Sossego para
Caçador.
5 de Setembro: Os rebeldes atacam as estações de Calmon e São João.
6 de Setembro: Perde a vida o Capitão Mattos Costa, em refrega junto à
linha férrea. Pouco depois, morre Venuto Baiano pelas mãos de seus
próprios companheiros por razões não esclarecidas.
11 de Setembro: O Comandante da XI Região Militar, o General Fernando
Setembrino de Carvalho, chega a Curitibanos com a responsabilidade de
acabar com a revolta.
14-20 de Setembro: normaliza-se o movimento de trens interrompido pelos
combates.
26 de Setembro até o fim de Outubro: O General Setembrino em vão apela
aos revoltosos para que deponham as armas. Um piquete ataca a vila de
Curitibanos, tendo como comandante Agostinho Saraiva, vulgo
“Castelhano”, saqueando-a e incendiando-a em parte. Salseiro é tomada
por Aleixo e Tavares ataca as colônias estrangeiras de Iracema e Moema.
Agostinho Saraiva é incumbido de atacar propriedades do município de
Lages. Todavia, pouco mais tarde, Castelhano abandona a luta e é
substituído por Chico Ventura, que é capturado e morto quando tentava
fugir para do Rio Grande do Sul.
26 de Outubro Salseiro é liberta pela ação do exército brasileiro.
2 de Novembro Morre Francisco Alonso de Souza, em ataque a uma
colônia polaco-germânica, localizada às margens do Rio das Antas.
8 de Novembro Fracassa o ataque rebelde a Canoinhas.
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16 de Novembro Regressa o batalhão que havia partido de Canoinhas
com o objetivo de tomar o reduto de Paciência, que estava sob a liderança
de Bonifácio Papudo.
20 de Dezembro Novo contingente parte de Canoinhas, agora, com o
intuito de ocupar o reduto de Piedade. Contudo, os rebeldes o
abandonaram sem impor resistência.
23 de Dezembro Data de novo ataque a Canoinhas. Conquanto os
rebelados tenham sido repelidos, impuseram importantes estragos.
25 de Dezembro O Major Paiva ataca o reduto de Taquaruçú à frente de
cavalaria composta de trezentos soldados. Surpreendidos durante uma
procissão, a vila é novamente destruída. Foi neste mês que novas
comunidades foram erigidas na região de Santa Maria, formando um
sistema de grandes redutos, escalonados e guarnecidos por postos de vigia
e pequenos redutos.
28 de Dezembro Setembrino de Carvalho faz novo apelo e Wolland se
rende, ladeado de duzentos ou trezentos combatentes, bandeando-se para
o lado do Exército. O mesmo pareceu querer fazer Tavares, por meio de
carta.
1915 8 de janeiro: O reduto liderado por Tavares é tomado, obrigando-o a
fugir. Durante todo este mês, houve várias refregas nos campos da fazenda
do Guarda-Mor, próxima a Curitibanos, onde os jagunços iam arrebanhar
gado. Aperta-se o cerco ao redor dos rebelados, causando enormes
privações, o que tornou as deserções muito freqüentes. Começam as
chacinas de prisioneiros jagunços por vaqueanos que lutavam a favor do
governo. Pela primeira vez no Brasil, aviões são usados para fins militares,
sobrevoando, para observação, o vale do Timbó. Dos dois, um deles se
acidentou e o outro regressou em segurança.
Fevereiro: São destruídos os redutos de São Sebastião e Pinheiros por uma
força mista formada de duzentos soldados e quinhentos vaqueanos, tendo à
frente o Capitão Potiguara, após resistir bravamente em sua surtida. Aleixo
Gonçalves, depois de atacado em seu reduto em Colônia Vieira, retira-se
com sua gente para engrossar as fileiras de Santa Maria, sendo recebido
com festa.
8 de Fevereiro: Acontece o primeiro ataque a Santa Maria, mas as tropas
comandadas pelo Tenente Coronel Estillac não conseguem transpor um
desfiladeiro defendido pelos revoltosos.
Março Nova tentativa de tomada de Santa Maria, agora, pelo uso de
obuses. No entanto, novamente, não conseguem vencer as dificuldades
impostas pelo penhasco. Mais para o final do mês, um pelotão liderado pelo
Capitão Potiguara com seiscentos homens é aprontado para atacar Santa
Maria. O oficial avança, combatendo por treze dias, com os jagunços
oferecendo intensa e ininterrupta resistência. Embora tenha conseguido
invadir o reduto central, fica isolado com os sobreviventes de seu
destacamento. Vendo a situação se agravar ainda mais, consegue enviar
mensagem a Estillac, que, até então, o conseguira atravessar o
desfiladeiro. Contudo, sem encontrar resistência, une-se a Potiguara. É o
fim de Santa Maria. Julgando ter se encerrado o movimento, o General
Setembrino ordena a retirada do grosso da tropa, deixando para o rescaldo
o Coronel Sebastião Basílio Pirro.
Abril-Maio: Adeodato reorganiza o movimento e os combates se reiniciam.
Sucedem-se os redutos de São Miguel, Pedras Brancas e São Pedro.
17 de Outubro: O reduto de Pedras Brancas é tomado e seus sobreviventes
fogem para São Pedro. A guerra se transforma em caçada tanto para os
soldados e vaqueanos, como para os jagunços.
17 de Dezembro: Cem vaqueanos surpreendem o reduto de São Pedro.
Adeodato se torna foragido por alguns meses.
1916 Adeodato é preso.
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A Guerra do Contestado é geralmente analisada do ponto de vista social.
Examinando o contexto religioso, nossa abordagem assimila contornos antropológicos.
Como expressão de uma sociedade primitiva, costurou, junto às suas flâmulas religiosas, a
própria fé. No entanto, mesmo regada pelo sangue de milhares, a semente da esperança
Contestada, que tantos lutaram e labutaram para materializar, não deu o fruto esperado. No
decorrer dos próximos capítulos veremos com mais vagar seu desenvolvimento, ápice e
derrocada.
37
CAPÍTULO 2 - A ANÁLISE DO SOLO: A PRIMEIRA FASE DO
MOVIMENTO
I. INTRODUÇÃO
Aquilo que chamamos de “Primeira Fase do Movimento” diz respeito ao período de
formulação das crenças que serviriam para o desenvolvimento da religião Contestada, como
ela se deu, bem como, seu messianismo. Estudaremos aqui vários elementos das religiões
indígena, negra e do catolicismo popular. O messianismo do Contestado foi formado pela
contribuição de fatores religiosos emprestados dos povos que habitavam a região, e, ainda,
daqueles que para se transferiram. Deve-se salientar que os dados que listamos neste
capítulo podem não caracterizar todo o movimento, mas apenas uma de suas fases.
II. A CONTRIBUIÇÃO INDÍGENA
Na análise da religião ameríndia, seguiremos o pensamento de Pierre Clastres,
alguém que vê certo padrão cultural nas tribos sul-americanas. Quando as expedições
ibéricas chegaram à América, não encontraram um deserto verde. Ao contrário do que
geralmente se supõe, o continente era quase todo habitado. Eram povos antiqüíssimos.
Entender esses povos é essencial para compreendermos os ameríndios posteriores.
Contudo, é certo que a antiguidade, o contingente populacional, a extensão da área
habitada, sugerem farta diversidade cultural e religiosa. A paisagem cultural quase
predominante dos ameríndios era a plantação, embora existissem agricultores sedentários
(Andes), agricultores que se valiam das queimadas das florestas, e ainda, caçadores e
coletores errantes. Por causa disso, tendo tal argumento como base, é capaz de afirmar
que, em vez de uma variedade infinita de culturas, observa-se um enorme bloco
homogêneo de sociedades com modos de produção semelhantes” (CLASTRES, 1982, p.
64). Todavia, pesa contra a homogeneidade cultural o desmembramento lingüístico sem
precedente ou comparação, o que resulta alguma atomização cultural. Deve-se ressaltar
que unidade cultural não denota, necessariamente, coesão política. Exemplificam esse fato
as tribos tupi-guarani que, embora participando de um mesmo modelo cultural, não
constituem uma única e grande nação, havendo, antes, constantes guerras entre si: “Em
suma, haverá tantas configurações culturais e, conseqüentemente, sistemas de crenças,
quanto línguas” (CLASTRES, 1982, p. 65).
38
Os europeus, porém, logo foram capazes de distinguir os povos ameríndios sul-
americanos: de um lado, estavam os povos dos Andes, dentro do modelo político e
reorganizacional extremamente complexo; de outro, estavam os demais povos, habitantes
das florestas, das savanas e dos pampas. Traçou-se uma linha divisória entre os índios da
América do Sul: os povos andinos, chamadas de Civilizados, e os demais, considerados
como os “outros”, classificados como “selvagens”. Tradicionalmente, a divisão é feita
categorizando-os como altas culturas em contraste com as civilizações florestais. Segundo
Clastres, a diferença cultural e mesmo a religiosa estão ligadas ao funcionamento político,
bem como, ao modelo de produção econômica. Destarte, sensível diferença quanto às
crenças e mitos, entre os povos caçadores e os agricultores, mas que, por seu turno,
resultam um bloco cultural harmônico quando comparados aos andinos. Por questões
metodológicas, Clastres aborda conjuntamente a religiosidade dos povos agricultores e dos
caçadores (CLASTRES, 1982, pp. 66, 67).
No extremo sul do Brasil, nas margens do Uruguai e nas Missões, o índio era tomado
como peão assalariado. Todavia, a visão geral que se tinha dele era de um escravo, sendo
comuns os roubos de índios das missões para serem empregados com este fim e, até
mesmo, para povoamento da região (CARDOSO, 2003, p. 74). Falando-se estritamente do
Oeste Catarinense, devemos considerar que, antes da chegada do homem branco, o
Planalto era território selvagem, na melhor expressão do termo. Era mata virgem e pura,
habitada pelo homem nativo, que se beneficiava da mata sem a ganância natural dos de
fora. Portanto, não era um deserto verde, mas região consideravelmente habitada. Havia
dezenas de tribos ali, hoje classificadas por seus troncos lingüísticos: a) Guarani
moradores das terras baixas, ocupavam a área que se estendia do rio Iguaçu ao Uruguai; b)
Guainá ou Tapuia do tronco Gê, eram habitantes das terras altas. Tais índios foram os que
dominaram a vasta extensão florestal da região Contestada, recebendo vários designativos:
Kaingang, Xokleng, Xocrén, Patachô, Botocudo, Cren, Bugre, Bituruna e outras. Os Guarani
foram extintos na região, vitimados, especialmente, pelas bandeiras paulistas escravistas.
Do grupo definiram-se apenas dois grupos: os Kaingang e os Xokleng. Os últimos foram
os mais resistentes e arredios ao contato com o “homem civilizado”. Quando a Guerra do
Contestado eclodiu, havia na região “os Xokleng puros, ainda em estado selvagem, isolados
em porções das matas fechadas da Floresta da Araucária, os Kaingang puros, aldeados
com alguns Guarani, estes também chamados de Coroado, nas regiões de campos e em
fase de catequização; os cafusos, confinados no Toldo do Quati; e os mamelucos, em
processo de aculturação e convivendo com os caboclos” (THOMÉ, 2007, p. 68, 69). Nilson
Thomé constata que muitos dos indígenas, na sua maioria caboclos, que sobreviveram ao
etnocídio promovido pelos bugreiros, acabaram mesclando-se com o “homem branco”.
Geralmente, se dava pelo coito do caboclo com a índia, às vezes através de estupros,
39
outras, com o consentimento feminino, motivado pelo sentimento de inferioridade que
vitimava as índias (THOMÉ, 2007, p. 71). Por serem inimigos dos Guaranis e por não
tolerarem os catequistas, os Kaingang conseguiram desviar de si mesmos a atenção
predatória dos bandeirantes. Para garantir isso, utilizaram como estratégia a aliança,
franqueando-lhes não apenas passagem por seu território, mas, ainda, servindo de guia até
as missões jesuítas no extremo Sul (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 19, 20). A exploração
predatória das matas praticada pelos invasores desconsiderou o habitat e o meio de
sobrevivência dos povos indígenas da região, empurrando-os paulatinamente para o interior
e limitando gradativamente seu território. O que nos cabe ressaltar, no momento, é que os
índios eram parte integrante da mistura étnica que formou o homem do Contestado.
A influência ameríndia na constituição do habitante do Planalto Catarinense pode ser
percebida até mesmo no seu biótipo atual. Os denominados de “geração do caboclo pardo”
são herdeiros diretos dos ameríndios, tendo como características a cor parda, poucos pêlos,
cabelos negros, prega mongolóide, e estatura média. Além disso, trazem em seu sistema de
pensamento as antigas tradições, linguagem, usos e costumes, e ainda, crenças e hábitos.
Nilson Thomé apresenta dados interessantes de uma pesquisa da qual participou, tendo
como foco vários grupos de estudantes, entre os dezoito e vinte e quatro anos de idade,
tomados dos calouros da Universidade do Contestado, em Caçador e Fraiburgo. O período
da coleta de dados foi o correspondente aos anos de 1994 a 1997 e tinha como objetivo
averiguar as suas origens e etnias. Conclui que dos duzentos alunos pesquisados,
dezesseis declararam que seus pais tinham alguma ascendência de índios da região, no
máximo, até a terceira ou quarta geração. (THOMÉ, 2007, p.71 nota). Ao percebermos a
interação das raças, torna-se óbvia a troca cultural entre as etnias, dentro de nosso
interesse específico, a interação das crenças religiosas Kaingang e Xokleng na religiosidade
do homem do Contestado. Todavia, tal miscigenação, paradoxalmente, aconteceu em meio
a muitos conflitos entre índios e colonos, fazendo com que a própria gênese do sertanejo da
região produzisse um povo acostumado à violência (BLOEMER, 2000, p. 50; BORBA, 1908,
p. 5).
II.1 Xokleng
Os Xokleng são conhecidos também por outros nomes, como Bugre (termo
geralmente depreciativo), Botocudo, Aweikoma, Xokrén e Kaingang. Bugre denota qualquer
etnia indígena do sul do Brasil. Botocudo está relacionado ao enfeite labial utilizado pelos
homens adultos. Aweikoma é fruto de um mal entendido e da corrupção do termo que
convida uma mulher para a cópula. Xokrén significa taipa de pedra, como, também,
Xokleng. A designação de Kaingang é fruto de uma confusão com outro grupo, e que
40
significa, tão-somente, “homem”. Segundo Silvio Coelho dos Santos, a organização social
dos Xokleng era constituída de vários grupos, constando de cinqüenta a trezentos
indivíduos. Por ser cultura extrativista, vivia basicamente da caça e da coleta, especialmente
do pinhão, o que justificava as suas vastas extensões de terra. Todavia, pressionados pelo
desmatamento e atraídos pelos utensílios, especialmente, metálicos, dos brancos,
passaram a saquear casas de colonos (SANTOS, 1973, p. 30, 32, 33, 100, 102), prática
adotada, posteriormente, pelos redutos Contestados.
Embora os dois povos sobreviventes da região, Kaingang e Xokleng, pertencessem
ao mesmo tronco lingüístico macro-Gê, apresentavam diferenças culturais perceptíveis. Os
Xokleng eram indubitavelmente mais agressivos. Atacavam freqüentemente os Kaingang,
especialmente para roubar-lhes mulheres e hostilizavam os brancos, sendo freqüentes os
assaltos às frentes pioneiras que invadiam seu território. Mesmo entre eles, havia renhidas
lutas internas, sendo comuns a vendeta e a morte atraiçoada, esta, especialmente pela
embriaguez do “convidado”. Tamanha era a desconsideração do próximo que é possível
dizer que se tratava de uma sociedade que tendia à própria aniquilação. Eram habitantes
das matas e praticavam a camuflagem com maestria, sendo extremamente difícil descobrir-
lhes e visualizá-los quando emboscados (SANTOS, 1973, pp. 63, 64; THOMÉ, 2007, p. 76).
A intransigência dos Xokleng que, inicialmente, funcionou como mecanismo de preservação,
posteriormente, custou-lhes a quase extinção.
Evans-Pritchard, estudando a comunidade sudanesa dos Nuer, mostra que era a
guerra o fator de união daquele povo, tão faccionado e dividido entre si. Tal povo, uma vez
retalhado, cada parte procurava se unir a outra maior ou menor, produzindo um quadro
social todo próprio e mutante. A ocorrência da vendeta estabelecia a compensação, embora
nunca realmente satisfatória para a família do assassinado (EVANS-PRITCHARD, 1978, pp.
162ss). Aparentemente, este quadro social se assemelha não apenas aos Xokleng, mas,
também, aos Kaingang. Tão violento comportamento intra e extratribal, talvez explique, um
pouco, a frieza com que o “caboclo” miscigenado matava seu oponente no Contestado.
Também, vale a pena lembrar que um dos elementos sociais que sofreram mudança por
ocasião da Guerra foi o compadrio. É possível que a disjunção familiar motivada por
conflitos, até então um elemento cultural “adormecido”, tenha sido despertada pelos
estampidos das carabinas, constituindo-se elemento facilitador da quebra do compadrio por
parte dos sertanejos adeptos da Santa Religião.
evidências de que suas atividades eram sazonais, dividindo-as entre verão e
inverno. No inverno, permaneciam nos planaltos, buscando as calorias dos pinhões, base de
sua alimentação neste período. No verão, desciam para o vale. Era quando aconteciam os
eventos sociais mais importantes para a comunidade Xokleng. Construíam seus ranchos em
formato de semicírculo, voltados para uma praça central. Era nela que realizavam suas
41
principais cerimônias, como os ritos de iniciação, casamentos, ritos funerários e festas de
confraternização. Quando terminava o ciclo dos rituais, o inverno se avizinhava, levando-os
a procurar a vizinhança da floresta das araucárias, isto é, de volta ao planalto. Ao nascer
uma criança, davam o nome de um antepassado notável. Sendo do sexo masculino, como
sobrenome, era-lhe designado o prenome do pai, acrescentando, ainda, um conjunto de
nomes que representavam a família extensa do pai, à qual o menino passaria a pertencer.
Se fosse o caso de uma menina, observar-se-ia o mesmo processo, contudo, substituindo o
pai pela mãe. O ritual fúnebre significa ruptura social para o Xokleng, levando o cônjuge à
obrigatória reclusão e a imposição de restrições alimentares e rituais de purificação. Para
voltar ao convívio da comunidade, o viúvo ou viúva tinham que se submeter, ainda, a
algumas práticas ritualísticas, como corte de cabelo e unha, cânticos, danças e pinturas
corporais que envolviam a comunidade. Para os adultos não havia sepultamento. Ao invés
disso, eram cremados. O sepultamento era reservado às crianças, pela crença que
possuíam que elas haveriam de retornar ao ventre da mãe, para renascerem. É por causa
disso que a criança gerada pela sua mãe na próxima gestação receberia o nome da que
faleceu. O ritual de iniciação era o principal evento da vida infantil. Para os meninos, dava-
se entre os três e os cinco anos, constando da perfuração do lábio inferior para a inserção
do “botoque”. Quanto às meninas, acontecia na mesma faixa etária, processando-se na
pintura da perna esquerda, logo abaixo do joelho. Quem submetia às crianças à perfuração
e às pinturas eram os padrinhos, que assumem tal responsabilidade logo após o nascimento
do bebê, pois cabe a eles enterrar o cordão umbilical do recém-nascido. Os padrinhos
acompanhariam o desenvolvimento da criança até a fase adulta. O “afilhado”, por sua vez,
mostra-se ligado ao padrinho até a morte, cabendo-lhe a “honra” de providenciar a sua
cremação. Os homens adultos desenvolviam um tipo de “confraria”, conhecida como
“companheiros de caça”. Atingiria a plenitude da hombridade quando assumiam a condição
de Waikayú, tendo como pré-requisito ter filhos e possuir algum combate em seu
“currículo” (WIIK, 2001, p. 8).
Os Xokleng mostraram-se, ainda, herméticos à catequização, ferramenta de domínio
e “domesticação”. Embora sendo determinada pelo império em 1876, mostrou-se
completamente infrutífera. Os colonos, por sua vez, defendiam-se como podiam. Os
primeiros grupos criados originalmente apenas para afugentar os índios, transformaram-se
em milícias, e, depois, grupos de extermínio, chamados “bugreiros” especializados em
“erradicar” índios. Tanto as colônias, como também, viajantes, tropeiros e agrimensores
eram clientes desses especialistas em exterminar índios (SANTOS, 1973, pp. 68, 78, 79, 83,
138). Fica evidente que tais enfrentamentos serviram para treinar as gerações seguintes nos
costumes da mata e no manuseio de armas brancas e de fogo.
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II.2 Kaingang
Depois da quase eliminação dos Tupi, a região centro-oeste dos estados do Sul do
Brasil tornaram-se, praticamente, exclusivamente Kaingang. O seu território compreendia os
antigos campos de Palmas, alcançando as margens do Uruguai ao Sul. A Oeste ia até a
fronteira com a Argentina. Eram terras antigamente jurisdicionadas pela província de São
Paulo até 1853, ocasião do desmembramento de sua parte meridional, dando ocasião à
Província do Paraná. Coube a esta uma vasta área, que se tornava ainda mais expressiva
se considerarmos a terra disputada com Santa Catarina, cujo litígio terminou, apenas, em
1917. As regiões setentrional e ocidental do território Contestado correspondiam
historicamente aos Kaingang. Além disso, se estendiam aos Campos de Guarapuava no
Paraná, e uma boa parte do Rio Grande do Sul (THOMÉ, 2007, p. 71). O mito tribal
Kaingang é, também, o seu mito heróico. Decompostos em partes, apresenta os episódios
do dilúvio, da formação dos aspectos geográficos, da origem dos animais, e, por fim, o
surgimento das danças e dos cantos (BECKER, 1999, p. 306).
II.3 Tupi
A região Contestada recebeu influência indígena não apenas dos Kaingang e dos
Xokleng, de ascendência distinta, mas, também, dos Guarani, etnia que deve ser
considerada separadamente por suas peculiaridades (CLASTRES, 1982, p. 67). Isto se
deve, não apenas, por estes também terem habitado a região centro-oeste catarinense
antes de sua expulsão, mas, ainda, devido à influência indígena fortemente presente nos
“gaúchos” que subiram do extremo sul brasileiro. É provável que a destruição e o abandono
das reduções jesuítas dos Sete Povos e a expulsão dos Guaranis que habitavam a Banda
Oriental do Uruguai ocasionaram certo nomadismo especialmente entre os índios
catequizados, compondo o contingente que se deslocou mais para o norte, para o planalto
catarinense. É fato notório que eram em sua maioria caboclos, isto é, resultado da mistura
racial entre o branco e o índio Guarani (THOMÉ, 2007, pp. 59, 62, 63). Os Tupi-Guarani,
analogamente às demais sociedade do mundo ameríndio, estavam centrados na pajelança,
isto é, xamãs-médicos. Eram guardiões das normas e práticas dos heróis míticos (Maíra,
Monan, o Sol, a Lua, etc.), garantindo a unidade social. A diferença para com os outros
povos, segundo Clastres, está na amplitude dos fenômenos religiosos testemunhados neles
por portugueses e franceses, na época do descobrimento. Em sua opinião, não
messianismo entre os Tupi-Guarani, mas profetismo”, elemento distintivo dessa cultura.
Reputa como erro crasso reconhecer-se ali messianismo, uma mostra de flagrante
desconhecimento do ofício profético. Seu argumento repousa na gênese da religiosidade
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Tupi: não nasceu do embate com os brancos, por isso, não possui o aspecto “redentivo”,
sendo anterior ao contato com o homem branco (CLASTRES, 1982, p. 97).
Outra peculiaridade é a distinção entre os pajés e os profetas. Clastres adverte
contra o risco de confundir os profetas, ou karai, que não tinham papel ritualístico nem
sacerdotal, área de atuação específica dos Xamãs ou pajés. Os profetas eram “homens do
discurso”, semeadores exclusivos no campo das palavras, espalhando a mensagem que
afirmavam terem sido vocacionados a proclamar. Apresentavam-se como filhos de uma
mulher com uma divindade, a fim de se colocarem do “lado de fora” da sociedade, uma vez
que esta era patrilinear entre os Tupi-Guarani (CLASTRES, 1982, p. 98). Possivelmente, tal
auto-exclusão era vista como uma necessidade do ofício que tinham, portadores imparciais
de uma mensagem. O profetismo Tupi-Guarani talvez explique, em parte, o aparecimento de
anacoretas nos sertões brasileiros, tão característicos no catolicismo rústico. De igual forma,
considerando que os Tupis dividiam, no passado, o terreno catarinense com os povos do
tronco Gê, pode ser que isso ajude a entender a enorme abertura e aceitação de profetas
populares por aquelas paragens.
O discurso dos profetas tupi-guaranis era uma espécie de “contra-cultura”, uma
mensagem diferente das tradições, normas e valores impostos pelos ancestrais míticos.
Abordando pessimista, maligna e negativamente o presente, asseveravam a necessidade
da busca de um mundo melhor. A tristeza deste mundo envolto em constante mesmice era
conseqüente das forças malignas que ativamente operavam a sua destruição. Por outro
lado, toda a esperança se voltava para as “boas novas” anunciadas, a saber, a
transformação paulatina e vagarosa da sociedade (CLASTRES, 1982, pp. 99, 100, 101).
Percebem-se na pregação profética Tupi-Guarani elementos apocalípticos e escatológicos,
os mesmos ingredientes que observamos na pregação dos monges Contestados, como a
necessidade de outra “terra”, boa e farta, contrastando com a atual. O profetismo entre os
Tupi-Guarani é, em si mesmo, um anúncio: a derrocada da sociedade conforme eles
conheciam. Os profetas vaticinavam a “Terra sem Mal(ywy mara eÿ), um paraíso imune a
presente existência (ywy mba’emegua “terra maligna”) que deve ser repudiada. É o local
de descanso dos deuses, onde as caças são alvejadas voluntariamente por flechas que a si
mesmas se disparam, onde o milho nasce e cresce sem a agência humana, terra habitada
por videntes e não existem alienações. Era o “Éden perdido”, onde residiam os homens
antes do dilúvio que destruiu a primeira humanidade e privou-a da morada comum com os
deuses. No entanto, a essência da pregação ia além da destruição do mal, mas assimilava
contornos “anarquistas”, levantando-se contra toda norma ou regra. Ao contrário do paraíso
concebido praticamente por todas as culturas, que indica a morte como única forma de
acesso, a Terra sem Mal é um lugar real e concreto, acessível na presente vida. Situava-se,
geograficamente, a leste, onde nasce o Sol. Assim, sempre liderados por profetas, a partir
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do ocaso do século XV, muitas expedições, com milhares de índios, abandonaram suas
aldeias, rumo à aurora. Digno de nota é que a migração de Tupis que partiam do Paraguai
só cessou em 1947 (CLASTRES, 1982, p. 102; QUEIROZ, 2005, p. 134). Tal fato coloca tais
ameríndios em trânsito, até mesmo, na região Contestada.
II.4 Elementos emprestados
II.4.1 Abertura Sincrética
A abertura sincrética, a nossa ver, pode ser vista em dois fatores principais: a) o
“arrombamento” religioso, causado pela imposição do catolicismo dos invasores, e b) o ideal
procurado, especialmente, pelos Tupi-Guarani. Em ambos os casos, por espontaneidade ou
por obrigação, os ameríndios conviveram com a necessidade da aceitação de idéias
totalmente estranhas ao seu arcabouço natural. Utilizando a conveniência como critério de
seleção, assimilaram crenças e contextos, mesclando-os com os que já possuíam.
II.4.2 O “Gênesis”
A sociedade Kaingang é modelada pelo seu conjunto de crenças e mitos fundantes.
Para os Kaingang, a origem do universo se resume ao surgimento do homem, tendo saído
da terra. O mito de origem, na cultura Kaingang, se confunde com o do dilúvio. Neste
percebe-se certa associação ou semelhança do homem com o animal, uma vez que os
primeiros Kaingang eram homens e macacos ao mesmo tempo. Aqueles que durante o
dilúvio se refugiaram no cume de Krinjijimbé, uma provável referência a Serra do Mar, são
os descendentes dos homens, enquanto aqueles que permaneceram nas árvores
assumiram definitivamente a forma mia. Ítala Becker considera que, falando-se
genericamente, o mito de origem dos Kaingang não difere substancialmente daquele
encontrado no Livro do Gênesis da tradição cristã: nele, o homem também veio da terra
(BECKER, 1999, pp. 274, 307). Todavia, estritamente falando, são narrativas bem
diferentes. O mito do dilúvio Kaingang se distingue daquele encontrado nas Escrituras
cristãs a partir de sua motivação: não foi produto da ira dos deuses, ou do Criador contra
a criatura. Para eles, simplesmente houve uma enorme inundação que cobriu toda terra,
deixando de fora, tão-somente, o cume da montanha Krinjijimbé (BORBA, 1908, p 23). Os
kairurucré e os Kamé afogaram-se exaustos pelos esforços de tentarem se salvar a nado.
Suas almas foram habitar o centro da terra. Porém, o contingente que alcançou o alto da
montanha, conseguiu se salvar. Todavia, a numerosa multidão fez com que o espaço do
topo fosse insuficiente, o que levou boa parte a buscar lugar nas árvores. Ilhados e famintos,
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acreditaram ser o fim. Porém, quando abraçados pelo desespero, ouviram o canto de
saracuras, que traziam no bico cestos carregados de terra, despejando-os nas águas a fim
de aterrá-las. Ouvindo os insistentes pedidos dos Kaingang, saracuras e patos se
apressaram a remover mais terra, a fim de formar um açude. Represadas as águas,
puderam, finalmente, deixar o lugar. Foi nesse momento que se deu a transformação
daqueles que se encontravam refugiados nas árvores em macacos, os curutons em bugios.
Devido à engenharia saracura ter adotado o todo de aterrar do poente para o nascente,
todos os rios adotaram o caminho do Oeste, desaguando no Paraná. O mito de origem
Kaingang pode ser considerado como em contraste com a morte. Isso podemos perceber
nas palavras de um chefe Kaingang: “A terra pariu-nos e come-nos” (BECKER, 1999, pp.
277, 280).
Faz parte da explicação das origens, também a desavença com os Tupi. Quando
saíram da Serra, acabado o dilúvio, os Kaingang mandaram os curutons (Tupis) ir buscar
cabaças e as cestas. Entretanto, desobedeceram por preguiça. Por isso, todas as vezes que
encontram um deles, o fazem escravo. Mesmo a estrutura dicotômica da organização social
dos Kaingang é espelhada no mito do dilúvio/origem. Os dois personagens míticos
criadores: Kaiurucré e Kamé são apresentados em “oposição harmoniosa”, uma espécie de
complementação tua, quase maniqueísta. Assim, a atividade criativa deles acontece em
relação de oposição e equilíbrio. Enquanto o primeiro cria seus animais, o segundo cria
outros com o objetivo de combatê-los. Todavia, explica-se a sociedade dualista, falando-se
da amizade posterior entre os grupos, seus descendentes, possibilitando a vida comunitária
(BECKER, 1999, pp. 278, 279).
II.4.3 Liderança Espiritual pelo Prestígio
A liderança religiosa era peculiar. Foi especialmente dirigindo rituais coletivos que os
pajés mostravam a extensão de seu prestígio. Alguns velhos afirmavam receber mensagens
boas e más. Segundo Borba, a principal motivação era alcançarem prestígio suficiente para
serem amparados na velhice adiantada (LARAIA, 2005, p. 9; BORBA, 1908, p. 8). É curioso
que os monges do Contestado, assim como na liderança religiosa indígena, assumiram o
estereótipo de velhos, portadores de mensagens sobrenaturais. Ganhavam atenção e
alguns benefícios do povo, suficientes para a subsistência. Especialmente José Maria
buscou revelar ao povo o que era necessário para a sobrevivência deles: a derrota dos
invasores. Em nossa opinião, como foi aventado, pode-se comparar a sociedade original
da Santa Religião, formada ao redor de José Maria, a uma “sociedade primitiva”, rótulo um
tanto pejorativo colocado nas sociedades indígenas e africanas. Embora o Pajé não fosse o
cacique, na Religião Contestada parece que ambos os ofícios se concentram na figura do
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monge. Clastres afirma que o chefe da tribo não era um monarca. Ser chefe índio não é ser
chefe de Estado. Não tem nenhum poder ou direito de autoridade que emana de seu ofício,
nem mesmo pode, através de coerção, fazer cumprir qualquer ordem. Em sua opinião, “o
espaço da chefia não é o lugar do poder” e a figura do chefe nada tem a ver com a idéia de
um déspota. Ao invés de autoridade, ele dispunha de “prestígio”, uma forma de respeito que
lhe qualificava para servir como pacificador entre questões internas do grupo (CLASTRES,
2003, pp. 222, 223). Aparentemente, a sociedade Contestada, no período em que foi
liderada pelo monge José Maria, tinha um modelo indígena, conforme descrito acima. E,
exatamente como ocorre nas tribos, é apenas nas ocasiões de guerra que o chefe assume
autoridade de mando. Ocupará tal papel enquanto houver combates. Finda a guerra,
reassume sua função de prestígio, esvaziado de poder. Aparentemente, foi a guerra que
concedeu ao monge a assunção ao poder político. No entanto, morto o monge no combate
do Irani, a liderança de prestígio teve que sofrer alguma acomodação e adaptações. Com o
passar do tempo, os ideais espirituais deram lugar a várias ambições, o que levou o
movimento a assumir uma estrutura estatal, isto é, o estabelecimento de uma cadeia de
comando e a coerção, às vezes, em paralelo ao poder espiritual.
Na comunidade indígena, o líder sempre está condicionado à aprovação popular. É a
sociedade o verdadeiro lugar de poder, não o indivíduo. Destarte, torna-se impossível ao
chefe manipular a sociedade visando qualquer benefício pessoal. Estabelecendo paridade
com a Sociedade do Contestado, provavelmente, explique o porquê de Manoel ter perdido
seu prestígio quando propôs dormir com duas virgens, o mesmo ocorrendo com Eusébio,
Joaquim e Querubina, por elevarem-se ao patamar de “santos”. Ao procurarem ascender à
posição de santos, o povo interpretou nisso uma tentativa de usurpação e de poder.
Prestígio não se impõe; sempre é dado. Sendo esta forma de sociedade o verdadeiro lugar
de poder, é ela quem exerce soberania. Muito interessante, ainda, seguindo o pensamento
de Clastres, é que todo guerreiro esdestinado a morrer, pois nas sociedades primitivas o
prestígio é ambição maior do que o próprio poder (CLASTRES, 2003, pp. 224, 227). Prefere-
se a morte ao ostracismo. No caso do monge, devido à “mediunidade” das virgens e dos
videntes, o monge continuou “vivo” mesmo depois de morto, mantendo e, até mesmo,
aumentando o seu prestígio, algo vital para a continuidade e o ansiado sucesso do
movimento. Na verdade, a expectativa do campesino modelou o monge. Qualquer desvio
pessoal desse ideal coletivo seria prontamente rechaçado.
II.4.4 Curandeirismo/Xamanismo
O xamã é portador de grande conhecimento, resultado de longa preparação para o
exercício de tão importante ofício. Não havia qualquer dom específico ou hereditariedade.
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Bastava desejo e preparação, e qualquer membro alcançaria o “grau” xamã. O contato do
aprendiz com o mundo dos espíritos, acontece por meio de transe, situação na qual as
almas reconhecem-no como xamã e, simultaneamente, identifica um ou mais espíritos como
sendo o seu guardião ou espírito protetor, entidade(s) que o auxiliará(ão) em todas as suas
tarefas curativas. É nessa ocasião que também aprenderá o canto que marcará todas as
suas atividades terapêuticas. O ideal poderia ser despertado por um suposto sinal, tais
como sonho, visão, ou uma ocorrência estranha. Outro motivo seria o prestígio. A fama dos
feitos de um xamã percorreria longas distâncias e épocas. Contudo, a motivação maior,
provavelmente, envolveria o aspecto guerreiro. O xamanismo implicava guerra, não contra o
sangue e a carne, mas contra um inumerável exército de demônios, almas e espíritos.
Assim, a possibilidade de exercer domínio, sagrando-se vencedor contra esses poderes tão
temidos, parecia ser o que mais atraía. O xamã, reconhecido como médico, ocupava lugar
central na comunidade indígena. A ele cabia a enorme responsabilidade de garantir que
todos os membros da tribo permaneçam saudáveis. Não obstante, é importante frisar que,
na concepção ameríndia, as doenças não têm causas naturais, mas, sempre sobrenaturais.
Destarte, pode ser a agência de um espírito de um morto recente, ou mesmo, um espírito da
natureza. Pode, igualmente, ser o ataque de algum xamã inimigo, e, ainda, o resultado da
quebra de algum tabu, deliberada ou involuntária (CLASTRES, 1982, pp. 74, 75, 76, 77).
Para o ameríndio da região Contestada, as causas das moléstias eram: a) perda temporária
da alma cativa por um ser sobrenatural que a aprisiona, variando as possibilidades de
recuperação e natureza dos sofrimentos conforme o “ente” que a rouba; b) ataques por
monstros sobrenaturais que poderiam ter como explicação a introdução de objetos vários no
corpo do indivíduo; c) vingança por um espírito do mundo natural (BECKER, 1999, pp. 281,
282).
A pajelança era uma experiência de “morte”, isto é, fazia-se necessária a
mortificação do corpo como ticket de passagem para viajar ao mundo dos espíritos. É o
desencarnar, um transe, para assumir condição semelhante aos espíritos, a fim de encontrar
a alma levada cativa e trazê-la de volta ao “lar”, equilibrando novamente a existência
humana: o corpo e a alma. Para operar isso, são comuns jejuns, insônias, ingestão de fumo
e outros flagelos (CLASTRES, 1982, p. 77, 78). O ato da cura é encenado estando o xamã
em transe, à procura da alma do enfermo em lugares longínquos, até mesmo, no Sol,
dançando e cantando ao redor do doente, que se encontra sentado ou deitado. Na maioria
das culturas ameríndias, como entre os Kaingang, ele “embala” seu rito valendo-se de um
chocalho que assume o papel de voz dos espíritos com os quais parlamenta. É nesse
ambiente que, sob o domínio da entidade, por vezes, sente a necessidade de assumir a
forma” de um animal, segundo a peculiaridade do “poder” que procura, podendo ser uma
onça, um pássaro, uma serpente, etc. Faz parte integrante da cena, interromper sua
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coreografia para baforar fumaça, geralmente de tabaco, para massagear e sugar a parte do
corpo onde se sente dor, “comprovando” a cura ao retirar espinhos, pedaços de madeira,
pedriscos, penas e outros objetos antecipadamente acondicionados em sua boca. uma
lógica nisso. Acredita-se que quando o espírito leva cativa a alma do enfermo, ele preenche
o lugar com algum objeto, que é exatamente aquele que é mostrado pelo xamã ao final da
cura. Tal é a prova de que a alma se reintegrou ao corpo. Portanto, ao apresentar o
fragmento extraído, a competência do xamã é manifesta. É por isso que, em todas as
culturas, o sopro e a saliva do xamã são tidos em alta conta, acreditando-se encerrarem
grandes poderes (LARAIA, 2005, p. 9).
Entre os Kaingang, para curar, o pajé se servia do sobrenatural, utilizando animais,
mesmo selvagens. Sob seu comando, sugavam feridas e enfermidades sem causar dano ao
“paciente”, voltando posteriormente às matas. A importância curativa dos animais está
ligada ao mito do dilúvio, que é também o mito de origem, e ainda, o mito do Jaguar,
particularmente para as doenças mais difíceis. O felino, ao contrário da concepção Tupi que
o via como personificação do mal, para o Kaingang poderia agir beneficamente (BORBA,
1908, pp. 12, 13; BECKER, 1999, pp. 293, 294, 298, 308; CLASTRES, 1982, pp. 78, 79). Os
xamãs eram exímios conhecedores das plantas, distinguindo as venenosas, para as pontas
das flechas, e as não-venenosas, para fins terapêuticos. Possivelmente, aprenderam o uso
terapêutico observando aquilo que os animais consumiam quando doentes. As substâncias
naturais eram utilizadas pelos pajés em seus rituais curativos, que muitas vezes não se
limitavam, apenas, à administração oral ou externa, esta, em forma de emplasto. Além
disso, eram capazes de fazer pequenas incisões, escarificações, sangrias e mesmo talas
para fraturas (BECKER, 1999, p. 281, 283). Percebe-se que o xamã tem papel libertador,
um tanto “redentivo”. É ele quem trava a batalha pela alma da pessoa, resgatando-a do
cativeiro espiritual, guiando-a novamente ao seu corpo. Quanto a isso, encontra paralelo ao
oferecimento da libertação total oferecida pelo monge, no reino de São Sebastião.
O pajé, contudo, não era um cargo isento de perigos. Por deter o poder sobre a vida
e a morte, qualquer episódio que trouxesse mortandade sobre a tribo, seria considerado sua
falha, ou pior, intenção. Assim, respeitado e temido, pode, rapidamente, ser odiado e
desprezado. O fracasso continuado poderia render-lhe a morte (CLASTRES, 1982, p. 76).
Quanto a isso, a Religião Contestada, aparentemente, não atribuía as empreitadas
malfadadas a quaisquer dos monges. Os insucessos eram reputados, via de regra, ao
“pecado” humano. Dessa forma, quando o movimento começou a fracassar, possivelmente,
pela ação do Exército Brasileiro, os depoimentos mostram que, invariavelmente, o motivo
que alegavam para a tragédia, foi o abandono da fé. É interessante observar que a Santa
Religião distingue-se dos demais movimentos messiânicos brasileiros exatamente pela
reaparição do mesmo personagem. O surgimento do segundo João Maria e de José Maria
49
tem em comum a prática do curandeirismo. Pode ser que o desejo do xamã indígena seja o
mesmo encontrado nesses monges. Da mesma forma que os xamãs não tinham entre si
nenhuma ligação necessária de parentesco ou organizacional, parece que aqueles que
assumiram o papel de monge mostravam a mesma independência. Cabia ao pajé, ainda, a
interpretação de sonhos e sinais, bem como, a assessoria como conselheiro de guerra.
Neste caso, também atuava como feiticeiro, lançando maldições contra os inimigos. O
objetivo era minar o seu poder espiritual, antes da batalha, infringindo-lhes flagelos, como
doenças, ou mesmo, morte. Em todas as atividades ritualísticas o xamã exerce papel
preponderante (CLASTRES, 1982, p. 79). A interpretação de sinais, sonhos ou ocorrências
que pudessem ser consideradas como um “chamado” era comum na religiosidade dos
sertanejos da região. De forma análoga, aparentemente, na Santa Religião as batalhas
eram precedidas por uma espécie de preparação espiritual. O quotidiano dos adeptos era
religioso. A causa pela qual lutavam estava fundamentada na crença no sobrenatural. Os
combatentes acreditavam que o exército encantado era aliado nas pelejas. O xamã
realizava importante papel social, sendo um provável elemento agregador daqueles que
estavam sob seus “cuidados”. Ele era um mediador entre os poderes invisíveis e o reino dos
homens, atuando em benefício do grupo que representa (LANGDON, 1997, p. 195). No
Contestado, tal função é muito próxima da dos monges, enquanto vivos, e das virgens e dos
meninos-deus, depois deles.
II.4.5 Religiosidade
Falando-se genericamente, muitos tentaram, imbuídos do afã missionário, descobrir
uma divindade preponderante nas culturas ameríndias, o “germe embrionário da unicidade
divina”. No entanto, é peculiar a esses povos desenvolverem sua religiosidade sem que haja
divindade catalisadora ou centralizadora da devoção. No caso nos indígenas que habitavam
a região Contestada, eram inspirados religiosamente, especialmente, por fenômenos
meteorológicos, algo que exigia conhecimento muito além da compreensão deles. Em
outros termos, a vida religiosa percebida em sua realização ritual, desenrolava-se em um
espaço exterior àquilo que o pensamento ocidental está acostumado a denominar esfera do
divino. Os “deuses” encontram-se ausentes dos cultos e ritos que os homens celebram
porque eles não lhes são destinados. Designam aquilo que está além da sociedade, do
Outro da cultura, ou seja, alteridade cósmica dos céus e dos corpos celestes e alteridade
terrena da natureza próxima. Sobretudo alteridade originária da própria cultura. A ordem da
Lei, como instituição do social (ou do cultural) é contemporânea não dos homens, mas de
um tempo anterior aos homens, herança de grandes ancestrais ou dos heróis culturais. Com
acentuada freqüência, os deuses são nomeados com base na ordem cultural ao invés da
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natureza, como por exemplo: “fundadores míticos da civilização, inventores da agricultura,
heróis culturais que algumas vezes são destinados a se tornarem corpos celestes ou
animais, uma vez cumprida sua tarefa terrena os Gêmeos, heróis míticos das tribos tupi-
guaranis, abandonam a Terra para se transformarem em Sol, outro em Lua”. O sol assume
a função de nosso irmão mais velho. Embora exerça papel preponderante nos Guarani de
nossos dias, não lhe tributam qualquer honraria cúltica especial. A frieza desse
relacionamento com tal divindade longínqua é, também, a frieza legal, garantia da ordem
social praticada e que, simultaneamente, impõe a sua observância e conseqüente
continuidade (BECKER, 1999, p. 296; CLASTRES, 1982, p. 69, 70). A única defesa diante
do medo do incompreensível sobrenatural era a prática do culto. Havia extrema
religiosidade, não individual, mas social, uma vez que regula as relações da sociedade dos
vivos com o Outro espiritual, o mundo dos mortos (BECKER, 1999, p. 320; CLASTRES,
1982, p. 70). Entendemos, destarte, que a religião ameríndia é eminentemente coletiva,
significando o contato da comunidade viva com a dos que já morreram, visando,
estritamente, o bem plural.
Os Kaingang acreditavam apenas na existência de um ser bondoso, a quem
chamavam de Tupén. Caberia a ele guiá-los na vida futura, a terra da caça abundante, lugar
isento de qualquer trabalho ou sofrimento. Entre os Kaingang da região de Misiones,
crença semelhante. Depois da morte, a alma se dirige para um lugar de descanso, ócio e
livre de inimigos. As entidades malignas não têm acesso à vida por vir, tendo sua atividade
limitada à existência presente. São os espíritos dos mortos recentes que vagueiam errantes,
incapazes de ir para o lugar das almas, fantasmas que se manifestam em coisas
inexplicáveis para os Kaingang, podendo, ainda, freqüentar sonhos e visões. Acreditam,
também, no Caapora, um maligno espírito da floresta (BECKER, 1999, p. 297). Para os
ameríndios em geral, os mortos recentes, junto com alguns dos espíritos da floresta,
tipificavam o “mal”, contrastando com os ancestrais e os heróis mitológicos que se revestiam
da concepção do bem. Destarte, percebe-se que as idéias de bem e mal estavam presentes
na cosmovisão ameríndia. No entanto, é melhor dizer o “bom” e o “ruim”, pois “bem” e “mal”
não estavam ligados a princípios de ética e moral, mas à concretização ou não daquilo que
se busca. Mesmo a natureza reveste-se do sagrado, levando plantas e animais a serem
considerados, em alguns casos, naturais e sobrenaturais simultaneamente. As ocorrências
que envolvem a natureza são interpretadas não como ocasionais, mas resultado de ataques
de espíritos da floresta, espíritos dos mortos e ou pajés hostis (CLASTRES, 1982, p. 68-70).
A religiosidade do ameríndio do Contestado se reduz a poucas idéias. Meramente
crêem na vida futura e sentem-se seguros na perspectiva de desfrutar dela. Tupén, tomado
emprestado dos Guarani, não é invocado por eles, pois acreditam desfrutar do seu favor
por serem habitantes dos seus domínios. O termo Tupén, que designa Deus, vem do Tupi-
51
Guarani Tupã. Foi igualmente uma intromissão do pensamento católico. Além disso,
fenômenos meteorológicos, especialmente raios e trovões, eram reconhecidos como
intervenções sobrenaturais da ira dos deuses. Destaca-se que, ao contrário dos povos
andinos, os demais índios sul-americanos, com raras exceções, não traduzem seus deuses
em imagens, sejam ídolos ou pinturas. É interessante notar que os caboclos do Contestado
reconheceram como ação do Exército Encantado de São Sebastião, a tempestade que
desbaratou as guarnições do Exército quando Caraguatá, já esvaziada, foi atacada e
“tomada”. Fruto da catequização jesuíta, os Kaingang criaram um termo para designar o
inferno: det korégn ndyadgmã, que literalmente significa “coisa ruim morada”, ou seja, a
morada do coisa ruim (CLASTRES, 1982, p. 70; BECKER, 1999, pp. 297, 298, 303).
O culto aos mortos é central na experiência ameríndia, especialmente visível nos
índios da região Contestada, devido à crença no terrível poder que acreditam exercer sobre
os vivos. Quando vivo, participava da sociedade. Uma vez morto, está fora de controle,
agindo individualmente. Os rituais fúnebres têm como principal finalidade separar
definitivamente dos vivos, as almas dos falecidos. A libertação da alma na morte libera
poderes malignos e agressivos, que impõem aos vivos a necessidade de se proteger deles.
As almas são “espíritos territoriais”, ou seja, recusam-se a deixar as cercanias da aldeia
onde habitava. São preferencialmente notívagas e procuram, de forma especial, os pais e os
amigos, para os quais representa grande perigo, trazendo doença e morte. Os mortos
temidos são, assim, os da própria comunidade. Com isso, percebemos que não apenas a
vida era coletiva, mas, também, a morte do indivíduo. Era um problema “social”, pois o
morto se voltaria contra todo o ajuntamento. Acreditavam que o morto corria entre as ocas e
é peçonhento, exigindo sua expulsão urgente, antes que cause dano, como doenças e
morte. Literalmente, no melhor estilo do “quem canta, seus males espanta”, executam o
Veingréinyã, uma festa composta de cantos e danças em que são participantes homens e
mulheres, tendo como único objetivo a expulsão da alma do falecido (CLASTRES, 1982, p.
71; BECKER, 1999, p. 323, MELATTI, 2007, p. 180).
Clastres adverte quanto ao risco de confundir o culto dos ancestrais com o culto dos
mortos. Na mente indígena nítida distinção entre esses dois grupos, como duas
categorias completamente distintas. Os primeiros podem ser chamados de “mortos antigos”,
enquanto os últimos, de “mortos recentes”. A relação da sociedade dos vivos com a dos
ancestrais é estabelecida de forma diacrônica, na ruptura do tempo, para se materializar na
história, de forma sincrônica, na continuidade dos princípios e tradições. Em outras palavras,
para o ameríndio, os seus ancestrais habitam o tempo primordial, anterior ao próprio tempo,
o cenário dos eventos míticos e da fundação da sua própria cultura. Assim, através de
xamãs e líderes, a sociedade, estabelecida pelos ancestrais, reafirma-se constantemente,
reconstituindo seu ser cultural, forçando-se ininterruptamente para dentro dos contornos do
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molde das leis e princípios legados. Essa é a razão pela qual os ancestrais recebem
honrarias através de rituais, distinguindo-se dos mortos recentes: são os reais pilares da
sociedade. Nesse ponto percebemos que a diferença entre mortos e antepassados chega a
colocá-los em lados opostos no relacionamento com os vivos. Os antepassados possuem
uma marca positiva, pois são personagens fundantes da sociedade. Dessa forma, são bem-
vindos à proximidade de seus “descendentes”. Os mortos, por outro lado, possuem signo
negativo, devido a serem potenciais destruidores da sociedade. Tamanha é a aversão dos
vivos para com estes, que chegam mesmo a se perguntarem: “como nos livraremos deles?”
Uma das formas mais extremas de “eliminar definitivamente” o morto é o endocanibalismo,
como encontrado entre os Yanomami, habitantes da Floresta Equatorial, e os Guayaki, do
Paraguai. Embora, a princípio, possa parecer, tão-somente, um ato de absorção dos mortos
pelos vivos, a principal intenção para com os familiares era extinguir completamente
qualquer ligação deles com o mundo dos vivos. Para tanto, até mesmo suas posses, como
casas e plantações, eram queimadas (CLASTRES, 1982, pp. 71, 72, 73, 74). os Tupi
devoravam com especialidade, os seus adversários, a ponto de ser considerada a carne
humana real alimento, constituindo-se em preferência especialmente para as velhas índias
(DE LÉRY, 1980, p. 198). Pode-se concluir que há, também, outro princípio que rege o
canibalismo: certa paridade entre o homem e o animal. Na mitologia indígena, o animal
pensa e fala como homens. O animal é visto, em alguns casos, como ser superior, como é o
caso quando os xamãs buscam transformar-se” em animais, visando o poder para derrotar
o espírito contra o qual luta.
O culto centrado nos mortos é algo que estabelece uma ponte direta com a adoração
da Santa Religião. A crença nos monges, e, mais do que isso, a idéia de que alguns
“profetas” tinham mensagens diretas da parte destes, está mais ligada à religiosidade
indígena e negra do que ao cristianismo propriamente dito. É prática mais “espírita” do que
cristã, e seus oráculos são trazidos por pessoas que parecem ser mais “médiuns” do que
profetas. Além disso, prevaleceu a noção positiva quanto aos mortos recentes, incluindo
uma certeza latente de encontrá-los em breve na ressurreição operada por José Maria em
seu retorno. A noção do mal era voltada inteiramente ao combatente inimigo, reconhecido
como realmente maligno e servo do diabo. Dessa forma, a atuação nefasta das almas dos
mortos e dos espíritos da floresta, caberia aos exércitos inimigos, embora composto de
vivos. Aparentemente, certa semelhança entre a concepção da morte formulada pelos
ameríndios e aquela da Grécia antiga. Sabe-se que os gregos acreditavam em dicotomia
entre o corpo e alma, sendo a ocasião da morte a libertação da alma boa, do corpo,
essencialmente ruim, que a aprisionava. Embora o corpo não pareça ter caráter tão
depreciativo como aquele atribuído pelos filósofos clássicos, os ameríndios viam a morte
como o momento de maior magnitude, abolindo o corpo, dando ocasião ao ser autônomo,
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isto é, à alma (CLASTRES, 1982, p. 71). No entanto, nos indígenas da região Contestada,
acharam-se indícios da crença na ressurreição, provável influência da catequese cristã, um
possível desdobramento da idéia original reencarnacionista. As armas e o fogo que
acompanham o morto são indícios da crença de que, um dia, “o sopro”, isto é, a alma,
retornará para o corpo que é temporariamente abandonado (BECKER, 1999, p. 325). Essa
hipótese é interessante, e faria de tal crença mais um elemento preparatório para os
elementos da fé Contestada.
Faz-se necessário entender uma grande diferença entre a busca dos mortos,
efetuada pelos índios, e aquela realizada pelo sertanejo do Contestado. A noção ameríndia
de adoração dos antepassados levava-os à contemplação do passado remoto. Já o passado
recente, representado pelos mortos contemporâneos, precisava ser esquecido.
Aparentemente, o passado que traziam à memória era aquele constituído dos mitos,
longínquo e distante. Por mais que forçassem seus mitos ao presente, parece permanecer o
abismo entre a vida real e o irreal imaginado. Sem os mortos recentes não há história. Como
se tornou comum dizer: “um povo que não considera o seu passado, não tem futuro”. O
futuro que aprenderam a esperar era a contínua volta ao passado. Ao esquecer os seus
mortos, conseqüentemente, não havia história a construir, apenas o vazio cultural, algo
morto nos conceitos recebidos. Desconsiderando os que se foram, não o registro dos
seus feitos nem qualquer contribuição para as futuras gerações. Provavelmente, essa é a
razão da inércia existencial, o conformismo quase autômato que parece caracterizar as
sociedades ameríndias. Como expectativa futura, restava a habitação com os corajosos do
passado longínquo no paraíso concebido em sua religiosidade, os ancestrais e os heróis
mitológicos. Porém, os adeptos da Guerra Santa olhavam para um passado recente e um
futuro iminente. A morte de José Maria foi, tão-somente, uma preparação para o Dia de São
Sebastião, quando viria para decretar a vitória definitiva à causa dos crentes. A idéia da
ressurreição põe os mortos à frente, não atrás. Estes precederam os vivos na glória e se
encontravam prontos para o retorno. Enquanto na fé indígena a morte pode ser descrita
como um “rito” de passagem, para o sertanejo do Contestado era um “ritual” de retorno
garantido. Para o ameríndio, o futuro era um olhar para trás, para as mesmas normas de
ancestrais distantes e o sentenciar contínuo dos parentes mortos ao esquecimento. Por
isso, é possível que Baldus, citado por Schaden, esteja correto ao associar a vida sedentária
da tribo ao culto aos mortos (SCHADEN, 1959, p. 107). A morte caracteriza aqueles que
ficaram para trás. Aparentemente, o grande referencial deles estava naquilo que
aconteceu, tendendo à passividade e à falta de expectativa, e não naquilo a fazer, ou seja, o
que estava por vir. Todavia, a esperança escatológica da ressurreição era o motor que
movia o crente em José Maria entregar-se à morte pelo sucesso da causa. A atividade e a
busca eram estimuladas, pois o futuro, estava, literalmente, à frente. Por certo, essa é,
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também, a grande distinção do profetismo entre os Tupi: havia o novo e a esperança de
melhora.
O sepultamento é visto como um rito de passagem. Não havendo mais nada a fazer
pelo moribundo, constatada sua morte iminente, os parentes e amigos passavam a consolá-
lo, em meio ao choro das mulheres. Assumiam o compromisso de providenciar-lhe um bom
enterro, com colares e um bonito arco e flecha feitos que seriam providenciados pela mulher
e filhos. Pode ser que a crença na imortalidade da alma o seja natural ao Kaingang, mas
inserida pela catequese dos jesuítas no século XIX, por ocasião da chegada destes aos
Campos de Guarapuava. Aparentemente, foi a partir daí que passaram a colocar ao do
cadáver um facho acesso, cujo objetivo era iluminar o caminho da alma ao céu. As almas
dos covardes, chamada vaecopri, habitarão o chão, se alimentando de minhocas e insetos.
São muito temidas pelas mães, pois acreditam que freqüentemente raptam a alma de
recém-nascidos para lhes fazer companhia (BORBA, 1908, pp. 7, 8, 34; BECKER, 1999, p.
317, 318). A crença de que as almas dos covardes estavam fadadas a viver de minhocas e
insetos, mais do que um castigo pela falta de coragem, possivelmente ilustra o resultado
daquele que não lutou pelo interesse coletivo, a existência de seu povo, e não defendeu o
que queria. Seu destino, certamente, será a penúria. Não viverá do esforço do outro.
Quando nos lembramos que, no ambiente Contestado, os campesinos foram expulsos de
suas terras, empurrados mata adentro, o mesmo pode ser visto. Mais do que as privações
causadas pelo exílio na selva, havia, ainda, o sentimento de profunda frustração e derrota,
por ter abandonado pacificamente aquilo que criam lhes pertencer. Se havia alguma
reminiscência do pensamento ameríndio do destino do covarde, o que é possível não
pela presença deles na região, mas, especialmente, devido ao cruzamento das raças, seria
o equivalente a viverem literalmente o “inferno” na terra. Aparentemente, a negação do
fracasso material e a “virada de mesa”, saindo da posição de malditos para assumirem o
status de benditos, foi viabilizada pelo desenvolvimento da esperança Contestada, a crença
no monge que lhes devolveria a dignidade material e espiritual. Se a apatia significaria
ostracismo, por outro lado, a luta e a defesa dos interesses coletivos trariam o paraíso e o
suprimento abundante, lugar de exuberância e grande fartura.
Os ameríndios da região Contestada acreditavam numa espécie de reencarnação.
Após a morte de um velho (chegavam a matá-los quando significavam estorvo, também
crianças defeituosas), ele nasceria como jovem. Morrendo segunda vez, nasceria como
inseto, geralmente mosquito ou formiga cortadeira. Por esta causa, não matam tais insetos.
O motivo de especificarem-nos como apropriados para a reencarnação” talvez seja o fato
de serem encontrados em abundância em seus cemitérios, como é o caso daquele
escavado no Toldo de Lontras. Perecendo terceira vez, tornam-se nada. A criança que
morre, continua a crescer normalmente na sepultura até a fase adulta, quando, então,
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assume o mesmo destino do morto homem, voltando a ser jovem (SCHADEN, 1959, p
107; BECKER, 1999, p. 280; MELATTI, 2007, p. 179). Aparentemente, aqui uma crença
no retrocesso. O rejuvenescimento parece trazer como idéia principal não a idade, mas o
tamanho, a diminuição, assim como as crianças são menores que os adultos. Tal idéia se
torna clara na acentuada redução, após a segunda morte, tornando-se um inseto, e este,
uma vez morto, chega-se ao completo aniquilamento. Parece que a primeira vida tem o
poder de se reencarnar integralmente, realidade diferente da primeira reencarnação que
volta como inseto. uma perda acentuada de existência, uma involução. Nisso,
percebemos a “doutrina” da reencarnação do avesso. No alto espiritismo a reencarnação
pressupõe uma evolução em direção ao espírito cada vez mais iluminado. Apenas no caso
de ter a vida caracterizada pelo mal é que a reencarnação será uma redução. No caso dos
Kaingang, segundo o que vemos citado por Schaden, a morte sempre tenderá ao nada. Se
essa é a condição relativa à morte na religiosidade deles, vemos Nietzsche de cocar. A
existência caminha para o nada, como uma espécie de niilismo das matas, desencorajando
e esvaziando o ser humano do desejo de projetos e realizações. Neste caso, ficaria ainda
mais evidente o marasmo e a apatia como peculiares à vida dos Kaingang, como falamos
pouco.
Digno de nota é a prática do compadrio entre os Xokleng, associado à cerimônia de
iniciação da criança. Tal prática encontraria paralelo quase perfeito, não fosse o rito, com
aquilo que era praticado pelo sertanejo no Contestado. Ao invés de botoque e pintura, o
sertanejo batizava. Os vínculos sociais resultantes são, basicamente, os mesmos. Outro
conceito que deve ser destacado é a ligação do homem com a terra. Quando morria a
criança, somente ela era enterrada, possivelmente devido à crença de que o homem saiu da
terra. Esta é a “mãe” da humanidade. Para que a criança pudesse renascer, teria que ser
colocado no seu “ventre” escavado ao chão. Idéia análoga encontramos no nascimento: o
cordão umbilical tinha que ser enterrado pelo padrinho, o que sugere algo semelhante ao
sepultamento, ou seja, o “plantar” uma nova vida. Havendo resquícios dessas crenças na
mentalidade cabocla, a ligação do homem com a terra, provavelmente, se intensificaria.
Veremos que o adepto da Santa Religião cria na terra como sua mãe, conceito que está em
linha com essa concepção ameríndia. Destratá-la era como destratar a própria mãe. O que
poderia ser dito do seu abandono?
A vingança era muito praticada entre os ameríndios do Contestado, constituindo-se,
assim, em uma das causas mais freqüentes de morte. O assassinato era sempre punido,
tendo a Lei do Talião como única norma a ser observada: “Quem mata deve ser morto”.
Tratando-se de uma sociedade não organizada com meios coercitivos, a justiça era
praticada pessoalmente, tanto quando a causa era individual como quando era grupal.
Assim, toda vida tirada seria cobrada, às vezes, “com juros e correção monetária”. Não raro,
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eram utilizados requintes de crueldade, alcançando mesmo aqueles que não tiveram ação
direta nos atos geradores da vingança. Assim, comumente, velhos, mulheres e crianças
eram chacinados como ato de vingança de uma para outra tribo. O empalamento de
mulheres foi verificado entre os Kaingang. A traição também era utilizada como excelente
recurso para “acertar as contas”. Houve casos nos quais regiões se tornaram semidesertas
pela quase extinção de povoados inteiros, como foi o caso dos Campos de Paiquerê, onde,
depois das comemorações e da conseqüente embriaguez, recolhidos os índios às suas
ocas, os que queriam se vingar reconheceram ser a ocasião ideal para incendiar toda a
tribo. Aqueles que escaparam do calor das labaredas, foram mortos, e seus corpos deixados
para o repasto dos carnívoros (BECKER, 1999, p. 322). A traição foi vista na Religião
Contestada especialmente em sua última fase, degenerada em banditismo, como foi o
caso da morte de Venuto Baiano. Retornando do saque a São João, é interceptado por um
grupo de jagunços, os quais afirmavam terem ordens, aparentemente sigilosas, para lhe
entregar. Conduzindo-o algumas dezenas de metros para longe do bando que liderava,
mataram-no à traição, descarregando nele uma garrucha (FELIPPE, 1995, p. 172). Além
disso, as atrocidades praticadas por Adeodato se coadunam à frieza calculista daqueles que
gostam de traiçoeiramente surpreender àqueles que lhe são próximos.
II.4.6 Modelo de Vida
O nascimento é visto como um evento cósmico, que desperta forças malignas contra
a criança. Tais potências malignas podem ser anuladas protegendo o recém-nascido
através de alguns ritos. a maioridade pode ser assumida pela observância do
adequado rito de passagem. A significância está na morte para o mundo infantil como
condição necessária para que se possa receber o mundo de adulto. É necessariamente o
saber da própria sociedade, saber que lhe é imanente e que, como tal, constitui a própria
substância da sociedade, seu Eu substancial, aquilo que ela é nela mesma. No rito iniciático,
os jovens recebem da sociedade, representada pelos ordenadores do ritual, o saber daquilo
que a constitui e a institui como tal: o universo de suas regras e de suas normas, o universo
ético-político de sua lei. É o ensino da lei que exige a prescrição da fidelidade a esta lei, na
medida em que ela assegura a continuidade, a permanência do ser da sociedade
(CLASTRES, 1982, pp. 80, 81, 82). Tanto os ameríndios quanto os africanos estavam
acostumados com ritos de iniciação e de passagem, algo que caracterizou, também, a
Religião Contestada. Ritos de passagem são, também, ritos de iniciação. O princípio que
rege tais cerimônias é conceder ao iniciado o conhecimento necessário, isto é, conduzi-lo do
estado de ignorância para o descortinar da verdade e a posse do saber. Ritos de
passagens, funcionando como rituais de iniciação, têm como objetivo conceder aos moços o
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conhecimento da sociedade que está para recebê-los. Todavia, não é mera teoria, mas
essência e existência.
Uma religião, para ser reconhecida como tal, deve ter um número representativo de
indivíduos que a pratica. Portanto, ao procurarem a vida social em pequenos grupos,
favoreciam o ajuntamento de todos nas mesmas atividades religiosas. Em outras palavras,
todos participavam juntos dos mesmos ritos. A religião, neste caso, mostra-se como grande
fator integrador. Enquanto entre os índios se percebe o social cimentando os laços
religiosos, no Contestado, a idéia de viverem uma comunidade tão peculiar, isto é, um povo
que aguarda a concretização de uma “cidade santa”, dá forma e cristaliza o social. O motivo
de viverem nos redutos era, em grande e para a maior parte, religioso. Quando os adeptos
do monge se viram pressionados a abandonar aquilo que pretendiam, agiram como os
indígenas, com violência e truculência, buscando na religião criada por eles o aval e a
esperança. A vida comunal dos índios é um dos princípios da vida nos redutos. Todos
deveriam entregar seus bens para uma administração “pública”, responsável por geri-los
para o bem comum. Os ameríndios da região Contestada não tinham residência fixa. O
nomadismo de suas tribos era diretamente proporcional aos recursos naturais de sustento.
Aparentemente, mudavam-se anualmente, à medida que iam escasseando os meios de
subsistência do local. Se encontrassem caça abundante, tratavam de se estabelecer ali,
edificando ranchos de vinte e cinco a trinta metros de comprimento, sem nenhuma divisão
interna, cobertos com folhas de palmeira. Nas extremidades, deixavam pequenas aberturas,
estreitas a ponto de permitir a passagem de apenas uma pessoa abaixada por vez, pelas
quais entravam e saíam. No seu interior, acendiam fogueiras para as famílias. Cada uma
tinha a sua, ao redor das quais dormiam sob cascas de árvores, distribuindo-se os adultos e
as crianças sem separação, sempre com os pés voltados para o fogo. Nunca varriam os
ranchos. Ao perceberem que havia muita sujeira ou que pulgas haviam tomado o recinto,
incendiavam a moradia e faziam outra (BORBA, 1908, pp. 8, 9). Nisso percebemos alguns
traços que ligam estas práticas aos habitantes dos redutos no Contestado. A construção de
ranchos era comum nos redutos, embora fossem menores e individuais, mais semelhantes
às ocas. A prática de abandonar um local em busca de outro que possa prover sustento,
pode encontrar alguma semelhança na fácil transferência das vilas em busca de lugares
mais protegidos, deixando os antigos desertos.
A alimentação ameríndia era extrativista, acrescida de algum cultivo do solo. Fazia
parte da dieta: peixes, frutas, caça, milho, abóbora e feijão (BORBA, 1908, p. 10).
Certamente, os redutos adotaram forma análoga de sobrevivência, acrescida, tão-somente,
do gado “confiscado” das fazendas próximas e de farinha. A semelhança com os povos
indígenas está, ainda, na forma de subsistência. O sertanejo plantava mandioca, arroz e
banana, sendo o milho a principal cultura. Também o feijão mostrou suas vagens ali, junto
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com a abóbora e a melancia. Plantava-se em pequenos espaços, geralmente aberto
literalmente “a ferro (afiado) e fogo”. A fabricação da farinha de milho foi aprendida com os
Kaingang. O menu do homem da mata foi ainda acrescido da erva mate e de algum palmito
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 36, 37). Percebe-se em tal cardápio praticamente tudo o
que freqüentava as ocas dos índios da região: os Kaingang que cultivavam a terra e os
Xokleng que viviam da mata e dos pinheirais. A influência religiosa indígena pode, também,
ser vista de forma indireta. Segundo o que afirma Maurício Vinhas de Queiroz, diferente dos
bandeirantes que empreendiam longas viagens, se embrenhando na mata, à procura de
índios, os pioneiros da região Contestada que não se adaptaram com a prática pastoril
tornaram-se habitantes das florestas, objetivando, especialmente, a extração dos ervais. Ao
encontrar uma região produtiva trabalhavam incansavelmente até tornar o erval produtivo
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 32). Ao se enselvarem, assumiam um modo de vida não
muito diferente dos índios. Talvez possamos entrever uma religiosidade que brota da terra.
Embora os indivíduos de culturas diferentes tenham cosmovisões distintas, o desejo
religioso latente no ser humano o impulsionará a reagir “espiritualmente” aos desafios que a
terra lhe oferece. Diante de situações que lhe escapam ao controle, o indivíduo tende ao
sobrenatural, na expectativa de ver suas dificuldades solucionadas, ao menos, diminuídas.
O fato de se tornarem verdadeiros eremitas, monges em suas próprias casas, afastados da
assistência religiosa oficial, bem como, muitas vezes, até dos de sua própria cultura, os
pioneiros necessitavam de uma explicação religiosa para os acontecimentos. Tal poderia
ocorrer pela percepção e assimilação do entendimento ameríndio. Sob a influência da
mesma terra, veriam alguma coerência nas respostas dadas pelas crenças indígenas. Em
outros casos, talvez tivessem como norma: “não custa tentar”. A religião das matas pode,
ainda, ser percebida no que segue: enquanto os jesuítas procuravam “branquear” o índio, as
florestas, especialmente os ervais “amarronzavam” o colono, em um processo de
“indianização”. Os ervateiros são descritos como povo seminu, cuja metade tinha como
calçado padrão as sandálias e sapatos rústicos e a outra descalça e andrajosa, “gente
acostumada à mata” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 35). Haveria definição mais simples
de um índio do que “gente que vive na selva”? Os pioneiros do mate se tornaram índios em
certa medida. Portanto, é plausível que o assimilar da mesma vida contribua para a
assimilação das mesmas crenças. Certamente, não é o caso de haver uma completa
metamorfose, tão-somente, grande influência. Neste contraste de cores, o sertanejo se
localizava em algum ponto cultural e religioso no degradê estabelecido entre as culturas.
59
III. A CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO
III.1 População Negra na Colonização do Estado
Desde o início da colonização da região Sul, em 1725, negros compuseram a frota
de João Magalhães. Passaram a ser empregados no cuidado da lavoura de subsistência,
mas também como tropeiros, serviçais em pousadas, criados e trabalhadores domésticos
em estâncias (CARDOSO, 2003, pp. 59, 60; VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 23). Sua
presença ali é incontestável, embora inferior à vista nas regiões Sudeste e Nordeste.
Todavia, focar os olhos em grandes contingentes pode causar a ilusão de que onde
menos concentração, seja, necessariamente, pouco, como se nos acostumássemos a
grandes quantidades. Talvez, este seja o caso do negro nos Estados meridionais. Mas, o
contingente de negros nas áreas austrais da nação seria tão irrisória, a ponto de ser
desconsiderada a sua influência? Osvaldo Cabral, historiador catarinense, parece trilhar
este caminho. Segundo ele, na região Sul do país faltou o negro. Explica que isso se deu
pela falta de senhores de terra capitalizados suficientemente para a aquisição e a
manutenção de latifúndios e de escravos (CABRAL, 1979, pp. 76, 77). No entanto,
conquanto a sua presença tenha sido mais discreta, foi representativa. A população do Rio
Grande em 1780, segundo levantamento feito pelo Tenente Córdova, dão conta de 9.433
brancos, 3.388 índios, 5.102 negros. os dados populacionais apresentados por Aurélio
Porto, informam que, em 1787, para cada grupo de mil habitantes, havia 526 brancos, 285
negros e 189 índios. em 1814, temos o seguinte: brancos: 32.300; indígenas: 8.566;
livres: 5.399; escravos: 20.611; recém-nascidos: 3.691. Conquanto esses números sejam
questionáveis, a proporção observada de negros em alguns lugares não deixa dúvida da
sua participação determinante na formação da população, incrementada, especialmente, por
causas econômicas, no caso, pela indústria do charque. Pela carência de braços negros, os
estancieiros tentavam suprir a falta valendo-se da migração dos índios que transitavam pela
região (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 23; CARDOSO, 2003, pp. 57, 61, 62, 74). Tal fato
ilustra uma das formas pelas quais se deu a interação entre índios e escravos negros, no
Sul do país.
Margeando a costa em direção ao Desterro, encontramos a colonização açoriana.
Pobres, não tinham como investir e gerar riquezas e o seu “preconceito profissional” os
impedia a lida. Osvaldo Cabral cita Gilberto Freire avalizando uma de suas mais famosas
expressões, que constrói um colonizador híbrido, não apenas português, mas luso-africano,
com corpo negro e o rosto branco barbudo do lusitano: este era a cabeça que comandava
os braços daquele (CABRAL, 1979, pp. 76, 77). As grandes lavouras do Brasil cresceram
regadas pelo suor africano. Porém, embora o açoriano estivesse interessado na
prosperidade material, no enriquecimento que a exuberância do Novo Mundo prometia,
60
recusava-se ao trabalho braçal, por rotulá-lo peculiar ao escravo, vexatório e insuportável. O
conceito de “liberdade”, para eles, opunha-se ao trabalho na lavoura, e, por sua vez, o labor
no campo era o estigma mais forte da escravidão. Tornaram-se profissionais e prestadores
de serviços, como mecânicos, construtores, balconistas, soldados, etc. Mesmo o trato do
gado não lhes caía bem. Contudo, mesmo em número comparativamente diminuto em
Santa Catarina, a presença do negro pode ser percebida pela ocorrência do termo
“quilombo” para designar seis localidades no Estado já na primeira metade do século
passado. Subindo a Serra do Rio do Rastro, alcançando o Planalto Catarinense, nos
deparamos com a presença negra na exploração dos ervais e diluída na miscigenação com
o branco, especialmente pelo contingente de negros e mestiços, oriundos de São Paulo, a
partir do inicio da construção da Ferrovia que atravessou a região Contestada (CABRAL,
1979, p. 78; BASTIDE, 1985, p. 131 nota; THOMÉ, 2007, p. 78). Provavelmente, o negro
chegou ao Oeste Catarinense com a fundação de Lages, cidade que se tornou a principal da
região, trazido na comitiva de Antonio Correia Pinto de Macedo. Essa é a razão pela qual,
das primeiras povoações fundadas por aquelas paragens, apenas Lages teve um
pelourinho, erigido a 22 de maio de 1771. Um dos motivos dessa bandeira foi desafogar as
propriedades paulistas do excedente das forças de defesa, constituída de agregados e
mestiços livres. O acréscimo de novos escravos, bem como sua multiplicação e
mestiçagem, incrementaram sensivelmente a população local (LEMOS, 1977, p. 59;
VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 38; BLOEMER, 2000, p. 47, 49, 50; CABRAL, 1979, pp. 88,
89).
Os habitantes de Lages em 1820 eram 6.772: 1.195 eram escravos. Por simples
operação matemática, percebe-se que a porcentagem de negros chegava a
aproximadamente 18%. É difícil supor que seja, percentualmente, um número tão
inexpressivo, como costuma se afirmar. Depois de Lages, a inserção do negro no Planalto
Catarinense se deu, primeiro, pela chegada de algumas famílias paulistas. Posteriormente,
aproximadamente 1788, houve importante aumento pela compra de escravos que se
encontravam no litoral sul catarinense, por famílias de fazendeiros e por tropeiros que
cruzavam a região (BLOEMER, 2000, p. 51 nota).
III.2 A Condição Peculiar do Negro em Santa Catarina
III.2.1 As Tendências Abolicionistas
As várias tendências abolicionistas perceptíveis no Brasil na segunda metade do
Século XIX foram, também, percebidas na região Contestada. na composição de Lages,
a chegada dos agregados mestiçados causou certa integração com os escravos. Seus filhos
61
brincavam juntos, e, depois, na idade adulta, trabalhavam juntos nas lides da fazenda,
fortalecendo a solidariedade iniciada no berço, que seria rompida com a morte. A menor
proporção de negros no sul do país fez com que o preconceito com o trabalho agrícola fosse
atenuado (CABRAL, 1979, p. 78, 88, 89; LEMOS, 1977, p. 62). Isso quer dizer que o homem
do Contestado tinha menos escrúpulos em arregaçar as mangas e lançar mão da enxada.
Conseqüentemente, não evitava ladear o escravo em tais funções, ocasionando maior
interação e simpatia. Vale lembrar o pensamento de Durkheim sobre o poder dos laços
profissionais (DURKHEIM, 2005, pp. 416ss). Propõe como agência de regulação social uma
entidade trabalhista, baseada no princípio de identidade e pertencimento resultantes do
trabalho conjunto. Assim, podemos supor que o desenvolvimento de laços fraternais seria o
resultado, na maioria dos casos. Servimo-nos desse argumento para mostrar que, embora o
negro não fosse simplesmente aceito como “igual”, não era visto como alguém
essencialmente “diferente”. Por viver em ambiente pluri-racial, é provável que o habitante da
região dispusesse de um senso de alteridade mais desenvolvido. No Oeste Catarinense, o
colono era forçado a ter contato com os índios. Embora, inicialmente os embates fossem
constantes, deu-se início a um processo de miscigenação que criou, com o passar do
tempo, uma população inter-raças. O negro, nesse ambiente, seria visto como mais um
ingrediente na “sopa” genética que originou a população do Contestado. Portanto, não
enfrentando barreiras tão definidas, mesmo ainda como escravo, o negro foi recebido com
certa abertura para expor sua cultura e religião. Prova disso é a existência de “espiritismo”
quando da eclosão da revolta, termo utilizado por Nhôca em seu depoimento (QUEIROZ,
1982, p. 164). Destarte, conclui-se que a discreta, mas incontestável, presença do negro em
Santa Catarina, não resultou menos influência. Ao contrário, parece ter-lhe aberto as portas
para um maior convívio e interação social. Possivelmente menos disposto às barreiras
étnicas e sociais, o habitante do Contestado mostrava-se aberto e sincrético a novas idéias.
Uma das formas mais rudimentares e menos ideológicas de tendência abolicionista
eram os repentes de consideração e bondade para com os negros por parte de moribundos
senhores. O senso da justiça divina parecia pesar na consciência de alguns, todavia,
apenas depois de explorá-los todo o tempo que podiam. Outro fator que contribuiu para a
libertação de negros em Santa Catarina foram guerras e revoluções. A Guerra do Paraguai,
de certa forma, acelerou o processo abolicionista no Brasil. Descobrindo que o braço negro
não servia apenas para o serviço pesado, mas, também, para segurar firmemente as armas,
o desejo de vitória levou o governo brasileiro a equiparar o combatente afro-descendente ao
soldado branco. Com a criação do corpo de “voluntários da Pátria”, em 2 de outubro de
1867, estabeleceu-se que o negro escravo ganharia liberdade definitiva ao se alistar no
exército, ainda que não viesse a passar no exame médico e sumariamente dispensado. Os
que sobrevivessem à Guerra teriam a alforria como prêmio, assumindo o status de “negros
62
libertos” (THOMÉ, 2007, p. 82, p. 83; SACHET, 1997, p. 62). Na Revolução Farroupilha,
concordando em lutar na refrega, os escravos recebiam o mesmo benefício daqueles que
lutavam no exército imperial. O fato é que os negros já libertos não aceitavam lutar ladeados
por escravos. Destarte, por ocasião da assinatura do tratado de Poncho Verde, o
comandante das tropas imperiais, o então Barão de Caxias Luís Alves de Lima e Silva,
acedeu à solicitação dos sulistas de manter o pacto de alforria com os escravos-soldados
que lealmente lutaram pela causa.
Outro exemplo da boa vontade para com o negro é visto na atitude do Major Matheus
José de Souza e Oliveira, fazendeiro de Campos Novos. Em 1877, acometido por grave
moléstia, resolveu lavrar seu testamento, doando uma invernada a escravos e alforriados de
seu relacionamento. Com o final do ano veio também o fôlego final do doador, abrindo-se,
então, o seu inventário (THOMÉ, 2007, p. 86). Certamente, tal disposição não significa
ausência de discriminação e racismo, ou, ainda, atitude igualitária. Todavia, ainda assim, é
possível divisar nas entrelinhas algum favor e alguma consideração, bastante diferente das
regiões brasileiras marcadamente escravistas. Em plena época de escravidão foi sendo
gerado um Brasil antiescravocrata. Isso se deu por causas sócio-econômicas. Para que um
dono de terra pudesse ter escravos para a lavoura, era necessário que possuísse recursos
financeiros para adquiri-los em quantidade suficiente. Em tempo de trabalho braçal, poucos
escravos não dariam, nem mesmo, para a manutenção da fazenda. Outra possibilidade,
especialmente para os menos favorecidos, seria a busca de compras de ocasião pelos
sertões. Aqueles que percebiam pouca possibilidade de “tocar” sua pequena propriedade
agrícola tornavam-se pecuaristas. Diferente de nossos dias, naquela época tal atividade era
eminentemente secundária e menos rentável. Como resultado, áreas pouco agricultáveis,
peculiarmente criadoras de gado, tornaram-se antiescravocratas, ou, no mínimo,
indiferentes a isso (FREYRE, 2008, p. 93). Portanto, por não se beneficiar diretamente do
trabalho negro, nada lhes barrava a simpatia. Isso nos ajuda a compreender por que o negro
foi mais tolerado e, por vezes, tratado com certa parcimônia, no Sul do país. Com isso, a
influência das crenças e das práticas religiosas se manifestaria no seu contexto mais
poderoso: o quotidiano. Na lida diária, ao lado dos peões de catolicismo rústico, o escravo
negro clamaria por seus deuses, mostraria suas mandingas, interpretaria o mundo e os
acontecimentos à luz de sua cosmovisão religiosa. Afeito ao sincretismo, o sertanejo logo
encontraria uma forma de absorver tais crenças e práticas ao seu universo espiritual.
Com isso, o próprio povo via o negro com mais humanidade do que em outros
lugares do Brasil. Qualquer atrocidade praticada contra o escravo era reprovada pela
sociedade cabocla. Os algozes tornavam-se merecedores dos piores vaticínios, “cumpridos”
nos infortúnios que se abatiam sobre eles (LEMOS, 1977, p. 60). A disposição favorável ao
negro pode também ser observada na prática da concessão de “liberdade condicional” aos
63
escravos logo quando começou a surgir no Brasil as idéias abolicionistas, bom tempo antes
da Lei Áurea. Tal “liberdade” estava “confinada” à obrigação de prestar qualquer trabalho
que o “antigo proprietário” viesse a necessitar. Outra prática que mostra uma noção de
alteridade mais igualitária por parte dos colonos do Planalto Catarinense para com os de
cútis escura é a doação de terras e permissão para casamento (LEMOS, 1977, p. 70). Sobre
isso diz Zélia de Andrade Lemos:
Quanto ao casamento, embora fosse proibido aos negros, notamos pela
escritura que alguns eram casados realmente, pois os filhos são tidos como
legítimos. Outro motivo que nos leva a crer que os escravos tinham aqui
melhor tratamento do que em outras regiões, são as afirmações do escritor
alemão Ave Lalleman que em 1855 viajou do litoral catarinense para o
planalto, e hospedando-se numa grande fazenda, à beira da estrada, (São
Joaquim) observou que os negros eram tratados com uma certa
humanidade; o fazendeiro ao aprontar os cavalos para a viagem com o
alemão, “ralhava” com os negros por que estavam muito vagarosos “por
terem passado a noite do sábado dançando o fandango”; notou ele também
que os filhos do patriarca obedeciam ao pai e os trabalhos eram feitos em
comum com os escravos, com muita naturalidade (LEMOS, 1977, p. 62).
Qual seria o limite da disposição favorável dos donos de escravos? Ou, mais
especificamente, será que isso incluía o exercício de sua religiosidade? A resposta,
aparentemente, é afirmativa. Temos notícia de um Juiz Municipal que não apenas apreciava
as “festas” dos escravos, como, também, consentia que sua família as observasse, embora
à distância. Tais festividades deveriam acontecer em clareiras mais afastadas, para que o
batuque dos tambores não incomodasse aos seus ouvidos. As suas festas eram permeadas
de crenças religiosas, o que nos leva a crer que eram cerimônias e rituais em meio a
músicas da religiosidade negra. A maior abertura ao negro é visível, ainda, na adoção de
algumas crenças pelo sertanejo. Não apenas conheciam e “veneravam”, por exemplo, o
“neguinho do pastoreio”. Alguns fazendeiros faziam questão de apear da montaria e
homenagear o seu “túmulo”, acendendo velas àquele que os ajudava a localizar as reses
extraviadas. A soltura de negros era concedida por escritura, conhecida como “Carta de
liberdade”. Elas foram conferidas no Planalto Catarinense, mesmo alguns anos antes da
promulgação da Lei Áurea em 1888. Em tais documentos percebe-se que alguns dos
escravos não eram “puros”, mas mulatos e pardos. A diluição do preto pela mistura com o
branco parece ter, ainda, contribuído para a diluição do preconceito. A facilidade da união do
branco com a escrava foi significativa, a ponto de rarear a oferta de escravos com o passar
do tempo. Essa foi a gênese do caboclo do Contestado: o trabalhador da fazenda, peão e
capataz, homem de confiança do patrão; o parente por compadrio ou por casamento; a
massa política, pelo voto (LEMOS, 1977, p. 62, 63, 64-67).
64
Notou-se certo conflito social entre o caboclo, o agregado” do senhor, que era o
peão e o capataz, e o negro, relegado ao desprezo social, no subsolo da pirâmide social.
Todavia, aquilo que sustenta toda uma estrutura, não raro, encontra-se invisível, soterrado
sobre muitos elementos históricos e sociais. Conquanto o negro fosse colocado no subsolo
social, transformou-se em alicerce de toda sociedade brasileira. No modelo de escravidão
predominante em outras regiões do país, o tratamento do senhor de escravos para com o
negro era ambivalente, às vezes, paradoxal. Assumindo duas personalidades bastante
distintas, não imiscíveis ou simultâneas, viam-se nele as faces do senhor e a do feitor,
tratando o negro ora com certa parcimônia, dando-lhe a bênção ao cair da tarde e
permitindo-lhe as danças rituais noturnas, mas sempre com o chicote à cintura para que a
atitude aparentemente benéfica não viesse a ser entendida como igualitária. O
estreitamente do relacionamento entre o branco e o escravo chegava ao “apadrinhamento”.
Embora não seja religioso como o compadrio do Contestado, era uma instituição que visava
a proteção do escravo, que se popularizou. Um representante branco, uma espécie de
procurador informal, atuava na defesa do negro em caso de lhe pretenderem a surra, bem
como, evitando-lhe uma pesada correção em situação de fuga malfadada. Isso gerava, por
parte do escravo, sentimentos antagônicos que conviviam juntos. O ódio era mirado contra o
feitor, enquanto o respeito, dedicado ao senhor branco: água e óleo em um mesmo
recipiente (BASTIDE, 1985, p. 115, 116, 252). É sugestivo perceber que semelhante
estratificação social caracterizava o Contestado, embora não tão acentuada. O mesmo
sentimento dúplice dominava o coração do campesino quanto aos fazendeiros. Estes eram,
por um lado, mantenedores, mas por outro, os que estavam muito acima deles. Algo que
também deve ser destacado é que o negro e o mestiço foram como que preparados para o
ambiente da Santa Religião. O primeiro, trazido para o Brasil acostumado às divisões étnico-
religiosas, debaixo do mesmo jugo, foi forçado a aceitar a estratificação social. O mulato,
produto nacionalizado, foi gerado dentro de tal estrutura. Como brido não se via acima
do negro, mas, igualmente, discriminado pelo branco. Assim, a ruptura das divisões étnicas
fez com que negros e mestiços chagassem a região Contestada inseridos no ambiente de
divisões de classes, de exploração social, preparados para assumir as mesmas dores da
população local. Quando dispensados do trabalho na ferrovia, submetidos a condições
severamente adversas, os “nunca incluídos” e ignorados protestaram com violência contra a
condição a que foram relegados. Contudo, quando falamos de um sentimento mais
favorável para com o negro, certamente, não queremos dizer total aceitação ou ausência de
episódios de brutal racismo, como o evento que ficou conhecido como “Massacre dos
Porongos”, ao fim da Revolta dos Farrapos, atesta. Certamente, o Brasil estava e ainda está
bem longe de ser o que pode ser chamado de “democracia racial” (FERNANDES et.al.,
2005-2006, p. 172).
65
III.2.2 Incremento Populacional
A. Guerras e Revoltas
É preciso lembrar que a Guerra do Paraguai, bem como, a Revolução Farroupilha e,
depois, a Federalista, atraíram milhares de refugiados e desocupados, expandindo, ainda
mais, a influência da cultura gaúcha (THOMÉ, 2007, p. 56). Muitos eram ex-escravos que
ganharam sua liberdade por lutarem pelo governo nas duas insurreições, fato relevante
quando consideramos que o Rio Grande do Sul dispunha de uma maior concentração de
escravos do que Santa Catarina. Esta constatação é importante para incluir em nossa
análise a influência do Batuque, como vertente da religiosidade negra. Tal argumentação é
útil para entendermos não a ausência do negro, mas sua presença ainda maior do que se
supõe normalmente, especialmente na época e na região do Contestado.
B. Os Trabalhadores da Ferrovia
Fato de suma importância para nosso estudo é a migração que houve de negros e
mulatos, como trabalhadores livres, no advento da construção da Estrada de Ferro São
Paulo Rio Grande. Eram homens a quem faltava o trabalho, alguns com problemas com a
polícia. Vinte anos depois do término da escravatura, muitos eram negros à procura de uma
oportunidade profissional. Todavia, em solo catarinense, sofreram violenta exploração que,
em muitas coisas, não diferia das condições experimentadas pelos seus pais e avós nas
senzalas. Tinham que conviver com a falta de pagamento, assaltos e desmandos,
subjugados pelo Corpo de Segurança da Lumber, empresa para quem trabalhavam.
Utilizavam como dormitório treze barracões espalhados ao longo da ferrovia. Serviço
caracteristicamente braçal e pesado, dificilmente seria realizado por brancos naquela época,
ainda mais quando consideramos a grande população negra despejada na sociedade pela
Lei Áurea. Eram originários de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de
Janeiro e São Paulo. Algumas cidades são indicadas, tais como Santos, São Paulo, Rio de
Janeiro e Salvador, locais que, ainda hoje, tem forte religiosidade de origem africana. A
princípio, foram estimados em quatro mil homens, alcançando o dobro entre 1908 e 1910,
quando da construção do trecho União da Vitória (PR) a Marcelino Pires (RS). Deve-se
salientar que esse número pode ser maior, pois, devido ao tempo de permanência e à
distância, muitos se deslocaram com suas famílias. Sendo assim, acreditamos que uma
grande parte da influência negra na religião do Contestado é originária desse tão expressivo
contingente. Procedente de regiões densamente povoadas por africanos de diferentes
etnias, trouxe para a Região Contestada, praticamente todos os seguimentos religiosos
negros encontrados no país. Depois da construção da ferrovia, essa massa de gente foi
simplesmente largada no local, sem condições de regresso, vindo a compor os exércitos
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revoltosos da guerra que se aproximava. Na opinião de Setembrino de Carvalho, o general
que teve sucesso na campanha do Contestado, esses homens foram responsáveis por
profundo agravamento da situação posterior (THOMÉ, 2007, pp. 79, 80; VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 71, 72; MOURA, 2003, p. 31).
III.2.3 O Relacionamento com o Imigrante
A imigração dos europeus, especialmente alemães, no período pós-escravatura, deu
aos negros a oportunidade de certa desforra. Trabalhar ladeado a brancos, aparentemente,
não elevou a condição social do negro, mas rebaixou a dos brancos. No entendimento
deles, não foram eles que se igualaram ao branco, mas o branco ao negro. Destarte,
referiam-se aos imigrantes como “escravos brancos” e sentiam-se, de alguma forma,
vindicados e satisfeitos. O campo, outrora monocromático, agora se assemelhava a um
tabuleiro, exigindo estratégias de convivência. Quando havia alguma revolta por parte dos
imigrantes e os negros eram chamados para extirpar o levante, faziam-no com extrema
satisfação. Tinham prazer em massacrá-los. Era a oportunidade de desforra, impessoal,
mas racial. Seriam eles agora que dariam o xeque-mate. A introdução do elemento
imigrante azedou um pouco mais o relacionamento entre o branco e o afro-descendente.
Aparentemente devido a sua tecnologia mais desenvolvida, o europeu mostrava-se melhor
sucedido nos trabalhos artesanais, desbancando os negros e mulatos, que, até então, se
destacavam em profissões da área (BASTIDE, 1985, pp. 116, 147). Seria possível que na
consciência coletiva do negro e do “caboclo” miscigenado do Contestado sobrevivessem
reminiscências do ódio ao branco do escravo? Embora alguns dos integrantes da Santa
Religião já fossem descendentes de alemães e polacos, integraram-se perfeitamente à
causa dos mestiços do negro e do índio, debaixo do mesmo dossel social. Porém,
certamente, o colono estrangeiro logo foi visto como pior do que um competidor, real
invasor, alguém que veio tomar-lhe as terras.
III.3 Miscigenação e Sincretismo
A África se miscigenou no Brasil. Sob o mesmo dossel social e subjugadas pelo
látego, as etnias afrouxaram suas amarras, permitindo casamentos “internacionais”. O
resultado foram filhos sem apego à religião espefica, ou, ainda, a prevalência de crenças
comuns e genéricas dos povos. No Brasil existem mulatos, não nos Estados Unidos. Aqui, o
mulato pôde, com o passar do tempo, se inserir na sociedade, marcadamente mais
amestiçada do que a americana, onde uma gota de sangue africano era suficiente para
qualificá-lo como “negro” (BASTIDE, 1985, pp. 159, 237). A tendência inicial do mulato de
67
“clarear o máximo a sua pele” para se identificar com o branco, como acontecia pouco
tempo, parece ter se tornado diametralmente contrária. Talvez não haja exemplo mais claro
disso do que Barak Obama, filho de uma alva mulher branca, com um negro azulado. A
globalização tem modificado a concepção brasileira. Em nossos dias, tornou-se raro se ouvir
o designativo “mulato”, preterido em favor do “negro”. A atual tendência anti-racismo
incentiva e favorece, com benefícios sócio-econômicos a identificação negra, a ponto de
pessoas claras e com traços caucasianos se apresentarem como afro-descendentes
(ALMEIDA, 2009/B, p. 7; BORGES, 2000, p. 7). Miscigenação e o conseqüente sincretismo
foi uma espécie de “caldo de cultura” que fez das etnias indígena e negra a base do Brasil
que conhecemos em nossos dias. O surgimento do povo não se deu por uniões legais,
matrimônios estabelecidos e assumidos nos moldes da sociedade de tradição cristã. Antes,
se deu através do sexo livre, no intercurso com índias nas matas, e dos senhores com suas
negras e mulatas. Esse “gene sheik” de etnias não apenas as misturou, mas recombinou-as
sem nenhuma receita. A promiscuidade popularizou as doenças venéreas, especialmente a
sífilis, a ponto de Gilberto Freire chamar de sifilizada a civilização brasileira original. As
marcas da sífilis eram exibidas como troféus pelos adolescentes, provas de suas
experiências e proezas, puro sexismo juvenil (FREYRE, 2008, pp. 110, 111). Tal realidade
contrasta com a moralidade do puritanismo da tradição católica vista no sertanejo,
especialmente o do Contestado. Na opinião de Gilberto Freyre, o negro foi o grande elo
entre o índio e o branco. Foi a cultura africana, abrasileirada do outro lado do Atlântico,
assumindo o papel de mediadora, que foi capaz de unir culturas tão opostas e díspares
quanto a ameríndia e a européia (FREYRE, 2008, p. 116). Na verdade, como veremos, a
cultura negra foi a verdadeira responsável pela unidade nacional. O índio estava nas matas,
o branco nas cidades e fazendas. O negro era o único que estava em todos os lugares, uma
ponte trocando influências entre, e, com ambas, as culturas.
III.3.1 Índios
Os quilombos foram encontrados em quase todo o país, perto e longe de cidades.
Interiorizaram-se procurando o abrigo das matas distantes, comumente entrando em contato
com os índios. Como resultado, a interação racial e religiosa foi inevitável. O negro se
espalhou por todo território nacional, sendo encontrado especialmente às margens dos rios
da Amazônia. Portanto, onde se esperava encontrar o índio puro ou o híbrido com o
português, também chegou o negro, “bandeirantes escravos”. Verificaram-se embates
entre negros e índios. Todavia, foi maior a integração do que a rejeição. Lutando contra um
inimigo comum, logo se viram irmanados na causa, na carne e no sangue. Sempre que o
negro foi assimilado entre os índios, percebeu-se a submissão destes para com aquele, até
o nível da escravidão, classe oprimida que se torna opressora. Outros tantos foram os casos
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quando o negro era alçado à liderança política ou religiosa. Para evitar que somassem
forças e por conveniência, o branco procurava levá-los à mútua oposição. Assim, quando
havia ódio entre o negro e o índio era, geralmente, causado pelo branco. Eram estes que
formavam grupos de ameríndios para rastrear negros fugitivos e, da mesma forma,
comitivas de negros para caçar ameríndios. Negros e índios se mesclavam naturalmente
nos quilombos, havendo, inclusive, preferência das índias pelo africano, em detrimento dos
de sua própria etnia. Mesmo o mais famoso dos quilombos, Palmares, apresentava certo
sincretismo com elementos indígenas (BASTIDE, 1985, p. 114, 129, 131, 132, 136;
FREYRE, 2008, p. 108). A miscigenação entre negros e índios também pôde ser percebida
na Região Contestada. Por ocasião da construção da Estrada de Ferro em 1906, o traçado
dos trilhos alcançou São João dos Pobres, uma pequena vila constituída originalmente de
negros. Contudo, por terem se misturado com os Xokleng, poucos resquícios restaram de
sua população inicial. Deram origem ao primeiro grupo identificado de cafuzos catarinense.
É nesta ocasião que se juntam a este grupo os ex-operários da construção da ferrovia que
optaram por se internar no agreste, ao invés de retornar às suas localidades de origem.
(THOMÉ, 2007, p. 84).
III.3.2 Catolicismo
Os quilombolas, embora fossem integrantes de um movimento contrário à dominação
européia, misturavam elementos católicos às suas próprias cerimônias nativas e outras
inventadas por eles, causando a gênese de novas religiões (BASTIDE, 1985, p. 130). É
curioso observarmos que existe exatamente esse debate sobre a Religião Contestada. Era
ela uma nova religião ou uma forma de catolicismo rudimentar? Maurício Vinhaz de Queiroz
acredita que a Santa Religião se configurava como nova vertente religiosa, isto é, que não
poderia ser enquadrada como catolicismo”, enquanto outros autores, como Márcia Janete
Espig, objetam, mostrando o contrário (ESPIG, 2008, p. 109). Trataremos dessa questão em
momento oportuno. No campo, homens livres e escravos viam-se isolados devido às
grandes distâncias. Conseqüentemente, as visitas de sacerdotes católicos eram raras e
custosas. A preocupação dos brancos para com os negros era primordialmente com o
corpo, não com a alma. Concebiam-lhes como ferramentas vivas para o trabalho. Na cidade,
o negro camuflava-se na noite para o exercício de seus batuques, uma sobrevivência de sua
herança africana. Os brancos, embora assistidos pelos padres, tinham vida secularizada.
Destarte, relaxavam a responsabilidade de catequizar os escravos, negligência oportuna
para que o negro perpetuasse sua própria religiosidade. O catolicismo imposto ao negro era,
na verdade, um verniz sobre suas raízes. Tornou-se-lhe religião sobreposta, paralela às
suas crenças naturais. Destarte, fosse o negro mulçumano ou o fetichista, mesmo
submetendo-se ao batismo, continuava mulçumano ou fetichista. O negro orava aos santos
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católicos identificando-os com os seus orixás. Conquanto, no início, a prática do catolicismo
servia de disfarce para a prática das religiões africanas, com o passar do tempo, a máscara
modelou a sua fisionomia, causando real sincretismo (BASTIDE, 1985, pp. 183, 184, 201,
229). Em outras palavras, os santos se tornaram negros no catolicismo praticado pelos
africanos e seus descendentes escravos.
III.3.3 Islamismo
O islamismo negro não apenas se diluiu no contato com outras religiões, mas,
praticamente, desapareceu. Esqueceram Alá e seu principal profeta, e assimilaram os
deuses e o cerimonial de outras nações. Mais uma vez, fica patente o apenas a abertura
sincrética acentuada, mas a tendência à assimilação. Além disso, outro fator que contribuiu
para a sua extinção foi a sua truculência. A herança mulçumana fez dos negros islamitas os
mais revoltosos, e, conseqüentemente, os que mais morriam. Os sobreviventes tinham
dificuldade de propagar sua religião à busca de prosélitos. Na verdade, não havia
preocupação missionária, apresentando-se, antes, sectária e discriminatória, acreditando
serem superiores às demais etnias negras apegadas ao animismo fetichista. O resultado foi
o afastamento e o isolamento. Derradeiro motivo para o fracasso do islamismo em nosso
país é a idéia que passou a ser recorrente, de que a conversão ao catolicismo equiparava o
negro à condição do branco, livre e soberano. No Brasil, nos “confrontos das religiões”,
percebe-se que ocorreu o contrário do que se viu na África. Enquanto lá o islamismo
superou o fetichismo e mesmo o cristianismo das missões, em nosso país ele desapareceu,
e a liderança religiosa foi transferida para o gêge-nagô ou ao cristianismo (BASTIDE, 1985,
pp. 207, 208, 217, 218).
III.3.4 Forças Contrárias
É curioso observar que a história, ao “bater” a massa das culturas causando a mútua
interação, ao mesmo tempo, exerce sobre elas forças contrárias e distintas. Podemos dizer
que exerce força centrífuga, que compele para fora da própria cultura, tendendo à
aculturação. Todavia, outra força que incide na cultura, a centrípeta, atua contrariamente
àquela, fazendo com que tenda ao centro ou eixo de rotação. De igual forma, embora toda
interação entre culturas tenda à mistura, ao mesmo tempo, tende à fixação dos seus valores
e práticas peculiares. Provavelmente seja isso o que Bastide quer dizer quando afirma: “O
sincretismo é sempre mais ou menos „contra-aculturativo‟, e a aculturação mais ou menos
„sincrética‟”. Assim, várias insurreições “estouraram” no Brasil nitidamente contrárias à
dominação, não apenas física, mas religiosa do branco. A insurreição de 1809 na Bahia,
quando haussas se associaram aos nagôs unindo escravos urbanos e rurais, foi uma revolta
contra os brancos, tendo como base a religião. Certamente, esse foi o mesmo “mecanismo”
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da Santa Religião. Mostrando contexto opressor semelhante, poder-se-ia dizer que, além
das causas sócio-religiosas, também houve ali algum elemento racial? Aparentemente, o
que era um tipo de complexo de inferioridade, transforma-se em ódio racial. O branco
passou a ser uma espécie de ícone do inimigo, o protótipo dos “peludos”, o não adepto da
Santa Religião. Mesmo o branco não era completamente favorável à catequese do negro,
concebendo-a, provavelmente, como “um mal necessário”, pois, embora pretendessem
“amansar” com ela os escravos, temia-se que pela imposição da religião dos brancos,
viessem a se imaginar iguais (BASTIDE, 1985, pp. 139, 148, 149, 182). As insurreições
promovidas pelos negros geralmente eram causadas pelos islamizados.
III.4 Elementos Emprestados
Vejamos, agora, alguns elementos encontrados nas crenças e práticas religiosas dos
negros, que encontram igualdade ou semelhança na fé Contestada. Nossa intenção deve
ficar clara. Não temos o objetivo de determinar uma lista de elementos que causaram
influência direta, embora seja possível que tal tenha acontecido em um ou outro caso.
Antes, pretendemos mostrar como os elementos da cultura negra, presentes no Oeste
Catarinense, podem se enquadrar na composição das concepções religiosas que afloraram.
III.4.1 Quilombos X Redutos
De início, podemos fazer alguma analogia entre os quilombos e os redutos. Embora
tal tema possa parecer não estar em linha com o a religiosidade, ambos eram viabilizados
pelo religioso. Os primeiros, bem como, os chamados mocambos, eram o resultado de
grupos de negros fugitivos que se organizavam, formando repúblicas “africanas” no Brasil.
Isso lhes concedia oportunidade de reassumir vários dos costumes tribais aprendidos com
os pais, traços que foram forçados a maquiar em suas fisionomias, mas que, ali, podiam ser
exibidos em toda exuberância. A religião foi um deles (BASTIDE, 19985, p. 118).
Analogamente, podemos dizer que os redutos compuseram o “reino” de José Maria. Eram
lugares onde o sertanejo podia exteriorizar toda extensão das suas crenças. Tinham leis
próprias, autônomas da Federação, “promulgadas” segundo a interpretação religiosa. Como
nos quilombos e nos mocambos, nos redutos os exercícios religiosos eram constantes.
Percebe-se, portanto, que para um negro ou mestiço que havia ouvido histórias de seus
antepassados nas “repúblicas negras”, possivelmente reconheceria nos redutos um projeto
semelhante. É certo que os quilombolas não ansiavam por um paraíso terrestre, como os
revoltosos da Santa Religião. Todavia, é incontestável que, assim como estes, buscavam na
religião forças para viabilizarem a sociedade no interior das matas.
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III.4.2 Contato com os Mortos
Na época colonial, as celebrações religiosas dos negros foram proibidas no Brasil
por serem confundidas com feitiçaria, algo ilegal em Portugal. Composta de danças
extenuantes e crises de possessão representavam para os cristãos algo demoníaco. A
abertura dos portos em 1810 começou a esboçar alguma liberdade religiosa na Colônia. Os
primeiros beneficiados foram os protestantes, que se viam obrigados a realizar seu culto
“sob o compasso das ondas”, isto é, a bordo das embarcações. Finalmente, puderam
desembarcar a adoração em terra firme (ALMEIDA JR, 2009/A, p. 196). Na constituição de
1823, sob o Império, estatuiu-se que outras religiões seriam toleradas, desde que
realizadas em casas especiais, sem nenhuma caracterização estética religiosa (BASTIDE,
1985, pp. 194, 195). A vagarosa, mas, consistente abertura religiosa, o avanço da
mentalidade iluminista e, por fim, positivista, foi amolecendo a enrijecida consciência
religiosa brasileira, chegando a despertar, como vimos, até mesmo o interesse de alguns
brancos pelas celebrações dos escravos.
A religião dos negros era religião de possessão. Quanto a isso, especialmente a
mulher negra era reverenciada como portadora de poderes especiais, sensibilidade mística
que extrapolava, em muito, a dos homens. Por isso, em alguns casos, era a preferência na
liderança religiosa. Destarte, foi africana a liturgia e a mitologia do sacerdotalismo e do
curandeirismo encabeçado por negros no sincretismo das matas (BASTIDE, 1985, p. 136).
Em outras palavras, os ameríndios, de certa forma, se viram herdeiros dos sacerdotes e dos
curandeiros africanos. A paridade com a Religião Contestada é óbvia. As virgens e aos
meninos-deus comumente recebiam recados dos monges, alguns deles, no modelo de
possessão. Através de convulsões e mudança de voz, arrojados ao chão, atestavam o
recebimento da mensagem. Um negro ou um mestiço, acostumado a tais coisas, que
presenciasse essa forma de “recebimento”, não estranharia nada. A “possessão” fez parte
da Santa Religião como óbvio elemento extracatólico.
III.4.3 “Orixismo”
Criamos esse neologismo para nos referir a possível influência da crença em um
espírito guerreiro como protetor e guia, algo muito semelhante àquilo que passou a fazer o
monge José Maria após a sua morte, na mentalidade Contestada. É muito interessante que
orixás são tidos como espíritos de notáveis ancestrais que, uma vez tornados divinos,
assumiram a forma de rios, árvores, pedras, e outros elementos naturais. A função deles era
intermediar o contato do ser humano com os poderes naturais e sobrenaturais. Portanto, o
ideal africano era o de homens de grande feitos, assim como teriam sido os orixás aos quais
se consagravam. Tal concepção, como veremos, foi um elemento facilitador da assimilação
do catolicismo pelos negros, uma vez que os “santos” católicos desempenham a mesma
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função no romanismo. Quando examinamos o papel dos monges na Santa Religião,
observamos que, embora tivessem o status de santos, também assumiam a mediação entre
o povo e aqueles herdados do catolicismo popular que praticavam, pontífices mesmo até ao
próprio Deus. Talvez seja por isso que, nos quilombos, criou-se o costume de “cantar as
vitórias” ou os feitos dos bravos guerreiros. Eram destacados, exaltados e distinguidos em
dignidade, prováveis sombras dos orixás. É sugestiva a observação feita por Bastide quanto
aos cânticos dos feitos dos negros dos quilombos. Segundo ele, as canções dos africanos
eram semelhantes àquelas da gesta de Carlos Magno e os Doze Pares de França
(BASTIDE, 1985, p. 139), a literatura que possivelmente influenciou a Religião Contestada.
Nada mais próprio para uma sociedade do que exaltar os atos de bravura e heroísmo dos
seus notáveis por meio do conto e dos cantos. Percebe-se que a ficção romântica encontra
certa ligação com a mitologia heróica das religiões africanas no Brasil, bem como, daquela
praticada pelos sertanejos catarinenses, pois, também entre estes os feitos nas batalhas
eram tidos como sobrenaturais, comparados àqueles atribuídos a Carlos Magno e os Doze
Pares na defesa da fé católica.
Os homens emprestam os poderes e atributos de suas divindades para serem
exaltados como super-homens, capazes de grandes proezas. Por conseguinte, uma vez
partilhando o poder, supõem-se, também, merecedores de compartir a glória divina,
garantindo um bom lugar no reino sobrenatural. Nos quilombos, aparentemente, os líderes
eram os únicos a possuir arma de fogo. Os demais muniam-se de arcos e flechas, punhais e
cimitarras (BASTIDE, 1985, p. 125). Se acontecia ali o mesmo que na religião Contestada, a
utilização de armas “brancas” não relegaria o seu portador à inferioridade, mas, ao contrário,
exaltaria ainda mais os feitos alcançados. Entre os combatentes do reduto, especialmente
os Doze Pares, a utilização dos facões de pau era preferível, pois conferia àquele que o
manuseava maior glória na vitória. Talvez, indício mais forte de uma possível “encarnação”
de orixá no Contestado seja o que vemos em José Olegário Ramos. Olegário, como ficou
conhecido, era um negro gaúcho cujas incursões e piquetes se tornaram notórios. Sendo
gaúcho, sugere ter crenças do Batuque, seguimento religioso herdeiro dos mesmos orixás
do Candomblé. À frente de cerca de vinte capangas, aterrorizava qualquer um que não
aderisse à causa. No entanto, a peculiaridade que o distinguia era que trazia à destra uma
lança, arma tradicional africana, empunhando uma bandeira branca na outra mão. Destarte,
percebe-se que a aspiração guerreira africana à semelhança dos notáveis antepassados se
adaptaria à Santa Religião. Veremos em momento oportuno que é possível que os Pares de
França, “apóstolos de São Sebastião”, tivessem como pano-de-fundo não apenas os
cavaleiros do romance carolíngio, mas, também os anjos. A singularidade do bando liderado
pelo negro Olegário nos faz pensar se não se trata de uma tentativa de criar um tipo de
Pares Negros, “cavaleiros d‟África”, guerreiros que se associavam mais aos orixás do que à
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idéia cristã de “anjo”. Sua presença na região Contestada talvez se explique por um fato
histórico. Negro, gaúcho, cavaleiro que empunhava lança, é o estereotipo do pelotão
formado pelos negros Porongos, por ocasião da Revolução Farroupilha, massacrados,
possivelmente atraiçoados pelo próprio chefe Davi Canabarro, depois de terminados os
combates. Após o cerco e o morticínio ocorrido no Cerro de Porongos, os sobreviventes se
encheram de desejo de vingança (CARVALHO, 2007, pp. 261-264). Aliada à sua fé, pode
ser que isso explique o ímpeto impiedoso demonstrado por Olegário na liderança de seu
piquete.
III.4.4 Animismo, Festas e Rituais.
A. Animismo
O negro possuía uma cosmovisão muito diferente da dos seus senhores brancos.
Para eles, a terra era algo espiritual e místico; a natureza era religião; o relevo, arquitetura
da morada dos espíritos. Percebe-se certa relação desta noção ecológica com a crença
Contestada da “Casa Verde”, morada do monge, o lar defendido e ansiado pelo caboclo.
Digno de nota é atribuição do monte do Taió à morada de João Maria, muito semelhante à
crença negra das colinas como habitação dos espíritos. Mesmo nos quilombos pode-se
reconhecer comemorações que envolviam a “terra”. Outra possível paridade ou contribuição
do negro para com a religião dos rebelados do centro-oeste catarinense é a adoração da
Terra-Mãe, culto africano anterior e suplantado pelo dos orixás. Nos mandamentos do
Monge relativos à natureza, acha-se explícita referência à Mãe-Terra como uma entidade
divina. Portanto, é provável que a divinização da terra não soasse estranha aos ouvidos de
negros puros ou descendentes miscigenados. Outra semelhança pode ser encontrada na
crença no poder mágico atribuído à água. Tendo o catolicismo como via de trânsito e ponto
de contato, ambas as crenças reconheciam nela enorme poder místico. Para os africanos e
seus descendentes, tal preceito era observado, até mesmo, se tratando da água benta do
catolicismo. Disputavam a frente do sacerdote que as aspergia, pretendendo receber a
maior quantidade de borrifos, pois criam que tal líquido conferia proteção (BASTIDE, 1985,
pp. 120, 148, 162, 226). Praticavam o culto das águas, embora extinto na África. Quanto a
isso, a importância central da água para o negro está em sintonia com a Religião
Contestada, especialmente quanto à utilização da água pelo Monge João Maria. Para o
primeiro João Maria, a simples ingestão da água das fontes santificadas por ele já produzia
curas e milagres.
B. Sepultamento
O sepultamento revestia-se de grande importância para o negro, um tipo de ritual de
separação entre vivos e mortos. As almas dos mortos se uniam à família espiritual, aos seus
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ancestrais, do outro lado do oceano. Destarte, a morte era verdadeira alforria, não apenas
da escravidão, mas da condição de estrangeiro, a stica passagem transatlântica de volta
para a casa. Os brancos, por seu turno, tinham preocupação quase que exclusivamente
sanitária quanto ao sepultamento dos escravos. Se era um escravo produtivo, era o bolso
que “pranteava”. O negro era um objeto. Se islâmico, o sepultamento incluía vesti-lo de
vestiduras brancas, pendurar-lhe um cordão ao pescoço, igualmente ndido, e pôr-lhe um
gorro na cabeça, peculiarmente cerimonial. Como não podiam celebrar seus enterros
exatamente segundo os seus costumes, compensavam a lacuna celebrando duas vezes ao
ano a festa dos mortos (BASTIDE, 1985, pp. 185, 186, 210).
C. Festas
Líderes de negros de confrarias católicas realizavam sacrifícios e danças ritualísticas
nas chamadas “casas da sorte”, que nada mais eram que templos de religiosidade negra
eufemisticamente camuflados. Na Bahia era comum conceder aos negros o direito de
efetuarem suas festas religiosas, especialmente aos domingos, sempre sob a presidência
de um chefe escolhido. Embora não levados em conta pelos brancos, tais celebrações
incluíam ritos preparatórios de combate, uma espécie de batalha espiritual prévia para
destruir o poder dos senhores inimigos (BASTIDE, 1985, p. 149, 200). É possível
reconhecer algo semelhante na religiosidade Contestada, especialmente na rotina ritual. As
formas matutinas e vespertinas, os períodos de rezas, aparentemente, não tinham a
devoção como principal motivação, mas, a garantia da proteção e da vitória contra os
inimigos. Conquanto isso não tenha sido tão forte no início, com a intensificação dos
combates, tornou-se a “ordem do dia”.
III.4.5 Fetichismo e Mandingas
Nas insurreições, como aquela acontecida em 28 de maio 1807, promovida pelos
haussas em Salvador/BA, tendo sido descoberta a revolta antes de sua deflagração, foram
encontradas entre as posses dos seus líderes, além de armas, “mandingas”, fórmulas que
acreditavam tornar o corpo invulnerável a qualquer dor ou injúria. Os próprios negros
atribuíram a tais magias e a seus praticantes os termos “mandinga” e “mandingueiros”,
respectivamente. Dentre os adereços utilizados pelos haussas em Salvador, podiam ainda
ser encontrados fitas, mantos e bandeiras, objetos também achados na Contestada. A
maior e mais notória das revoluções negras planejadas aconteceria nos dias 24 e 25 de
janeiro de 1835, arquitetada por uma coligação de mulçumanos e fetichistas de Salvador.
Denunciada a tempo de ser desbaratada, o chefe de polícia narrou alguns fatos sobre o
episódio. Quase todos sabiam escrever em vernáculo desconhecido ao branco, semelhante
ao árabe, pelo qual mestres instruíam como diagramar a revolta. Foram encontrados vários
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livros religiosos que tinham como base citações do Alcorão, junto com preceitos de crenças
desconhecidas. Os negros islâmicos eram destacados dos outros negros especialmente
pelo reconhecimento do poder de sua magia, a utilização de amuletos e outros símbolos
religiosos de reconhecida força mística, e ainda, o uso de versos do Alcorão trazidos em
pequenas bolsas, geralmente penduradas no pescoço. Pregavam que a posse de tais
inscrições livraria os seus portadores da morte, motivo pelo qual foram encontrados muitos
deles nos cadáveres. Eram rezas que prometiam tornar o corpo invulnerável às armas de
fogo. Tais escritos também foram encontrados envolvendo um punhado de terra, para
guardar os caminhos e libertar de qualquer cerco, bem como, contendo símbolos ou
assinaturas, utilizados para arregimentar pessoas com garantia de proteção (BASTIDE,
1985, pp. 148, 149, 151, 152, 213, 214).
Bastide descreve a insurreição dos haussas e nagôs, ocorrida no início do século
XIX na Bahia, como uma verdadeira guerra santa dos mulçumanos contra os cristãos
(BASTIDE, 1985, p. 153). A mesma expressão “Guerra Santa” é atribuída à Guerra do
Contestado. Isso nos base para identificar ambos os movimentos como viabilizados e
motivados (também) por questões religiosas. Outra paridade notável é a utilização de rezas,
tanto em patuás como em pedaços de papel mal-escritos, dirigidas aos monges e aos
santos preferidos da Santa Religião. A maioria delas objetivava fechar o corpo”, isto é,
tornar o combatente invulnerável às armas inimigas. É notável que a utilização dos “patuás”
era eminentemente de negros islamitas, pois foram especialmente eles os que dispunham
de capacidade para ler e escrever. Tal fato corrobora, ainda mais, a possibilidade da
ocorrência da influência negra islâmica na Religião Contestada, uma vez que não se
encontra o uso de patuás no catolicismo ou na prática religiosa ameríndia. Se o “fechar o
corpo” foi uma legítima contribuição dos negros islamizados para o cangaço nordestino
(Bastide), parece ser uma prova concreta de que também foi a “fonte” de tal prática na
região Contestada. (BASTIDE, 1985, pp. 152, 153). Ademais, considerando que boa parte
do contingente de trabalhadores da Ferrovia São Paulo Rio Grande veio exatamente do
Nordeste, tal conclusão vê-se ainda mais corroborada. O comportamento cangaceiro
nordestino é análogo ao do caboclo da região Contestada.
Percebe-se, portanto, que a escrita ocupou lugar de destaque tanto na fé islâmica
negra quanto no Contestado. Possuíam escola em Salvador, na cidade baixa, onde os
negros islamizados aprendiam a ler e escrever. No Planalto Catarinense, um amanuense
era de grande valia, pois o sertanejo, diferente dos negros islamizados, era iletrado em sua
grande maioria. Todavia, apegados à mesma crença do “corpo fechado”, necessitavam de
rezas escritas, mesmo que não soubessem ler, pois não era apenas a recitação importante;
o papel, uma vez escrito, tornava-se amuleto, objeto religioso tido de grande valor entre
eles. A religião poderosa era aquela que reunia os elementos e crenças que melhor
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atendiam à necessidade do povo. Para dar base à sua existência, o negro foi capaz de
sincretismo, até mesmo, entre cristianismo e islamismo. Na tenda do alufá Dandara foram
encontrados uma túnica guerreira, um rosário preto sem cruz, tábuas e papéis com
caracteres árabes, bem como, saquinhos de couro que eram utilizados como amuletos
(BASTIDE, 1985, p. 152).
Quando falamos de magia e amuletos, precisamos nos lembrar que o português era
tão supersticioso quanto o negro e o índio. Foi por isso que o lusitano sentia-se atraído pela
magia praticada pelo escravo. A magia desenvolvida pelo africano foi, antes de qualquer
coisa, um meio de garantir segurança ante as agruras e dificuldades da servidão em terra
desconhecida. O curioso disso é que o português se viu acometido do mesmo sentimento e
necessidade. Buscou nos encantamentos a esperança para suplantar os desafios que a
nova terra impunha. Essa é a religião dos homens. Indivíduos de diferentes crenças,
culturas e tradições, se vêem irmanados nos mesmos meios sobrenaturais, premidos por
iguais dificuldades. Dessa forma, a relação do branco com o negro se mostra ambivalente,
quase paradoxal. Por um lado, é reputado como estranho e diabólico, feiticeiro agourento.
Por outro, será exaltado por seu conhecimento medicinal e elixires amorosos que
remoçavam o vigor sexual de senhores brancos. Mal-amados e apreciados, simultânea ou
alternadamente, viviam emoções em opostos diametrais, dependendo das intenções de
seus senhores. Enquanto uns eram presos, condenados pelo uso de feitiçaria, outros
recebiam o reconhecimento oficial de seus serviços mágicos, como foi o caso do soldado
Antônio Rodrigues, que recebeu uma pensão de 40 $, por ordem de D. João VI. A franca e
aberta aceitação do ocultismo africano pelo português causava estranheza aos estrangeiros
cristãos que desembarcavam no Brasil. Quanto a isso, digno de nota é que o negro, por seu
curandeirismo, se tornou mais valorizado no campo do que na cidade, devido à falta de
médico e de remédios no agreste (BASTIDE, 1985, pp. 188, 189). Dessa forma,
percebemos certa similitude com a aceitação dos monges na região Contestada, tendo
como principal “marketing” as curas que realizavam.
III.4.6 Os “Pelados”
Quando examinados o Batuque, a expressão religiosa negra que predominou no Rio
Grande do Sul, encontramos um rito de iniciação que, possivelmente, explica o motivo do
sertanejo do Contestado denominar-se “pelado”, em contraste com os adversários da
federação, chamados de “peludos”. No Batuque, a cerimônia de iniciação de um filho ou
filha de santo inclui o corte do cabelo, momento no qual conheceria seu novo nome, o nome
de culto, dois dos itens mais importantes do rito. O primeiro princípio exigido nas “leis da
comunidade” do Contestado ordenava: “I Todos os crentes do sexo masculino devem
trazer a cabeça raspada. (Em sinal de adesão ao grupo. Por isso foram apelidados de
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PELADOS, “a cuja alcunha revidavam, intitulando os profanos de PELUDOS.)” (FELIPPE,
1995, p. 133). A semelhança com a prática Contestada da raspagem do cabelo, bem como,
do rebatismo, é explícita. É notável que nenhuma dessas atitudes religiosas encontra
respaldo no catolicismo, sendo, aparentemente, claras inserções sincréticas. Assim,
ressalta-se a “impureza” dos “peludos”, reconhecidos como não beneficiados pelas
promessas dos monges. Comparando-se o Batuque do Sul com o candomblé baiano, se
excluirmos as diferenças entre as etnias, serão identificados, praticamente, os mesmos
orixás. Nos batuques, as salas tendem a ser menores se comparadas aos candomblés
baianos. Devido ao menor espaço, o altar católico é substituído por quadros religiosos,
como os de São Jorge abatendo o dragão e Maria com o menino Jesus (BASTIDE, 1985, p.
290, 292, 293, 296). O santo citado, como veremos, é um dos mais populares entre os
sertanejos aderentes da Contestada. Maria e Jesus são personagens sempre presentes,
se não em cena, nos bastidores da religiosidade cabocla, pressupostos necessários para o
ambiente de catolicismo.
III.4.7 Sociedade Religiosa
É indubitável que o marxismo mostra seu valor ao associar a importância do regime
econômico e o teatro da luta de classes à esfera religiosa. Todavia, argumenta Bastide “o
sagrado torna-se uma simples ideologia, flutuando acima das estruturas sociais, mais que
nelas fixada, acompanhando externamente suas flutuações”. É certo que a resistência se
torna religiosa, tão-somente, quando a via política se torna interditada por outros interesses,
bloqueando todas as possíveis saídas. Destarte, conclui o citado estudioso, “o esquema
marxista continua válido, mesmo se nossa definição das revoltas de escravos, como
revoltas culturais, é certa”. Curiosa e oportunamente, um dos fatos históricos que Bastide
lança mão para ilustrar sua afirmação, é, exatamente, a Guerra do Contestado. Segundo
ele, movimentos messiânicos como o Contestado e Canudos aconteceram depois de
malfadadas as tentativas de solução política, devido à conveniente apatia dos governantes
devido a interesses de grupos poderosos ou pela mera inabilidade política. É interessante
notar que, segundo o referido autor, a religião africana não foi “ópio do povo”, nem mesmo
produziu messianismos no Brasil. A razão é que não era um simples instrumento de
negação, acomodação ou contestação, mas de afirmação, ascensão e busca da igualdade
social: “o homem de cor não procurou uma fuga da realidade ou uma compensação a
suas desgraças; fazia dela simplesmente um canal de ascensão, um meio de melhorar seu
status de todos os dias” (BASTIDE, 1985, pp. 220, 221, 223).
Se por um lado, a escravidão foi uma condição social que “exigia” a recomposição
religiosa para viabilizar a existência do negro na condição de escravo no Brasil, por outro
lado, a abolição impôs igual realidade. Isso se explica pela continuidade das enormes
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dificuldades sociais que o negro enfrentava. Saiu da senzala, onde vivia da conveniência e
da vontade do branco, para habitar as ruas e as cercanias das cidades, para viver sob o
desprezo e o favor do branco. Isso motivou a muitos buscarem em locais distantes e
isolados lugar de existência. Destarte, uma das causas da continuidade da prática da
religião negra no Brasil foi a dificuldade de colocação do negro no mercado de trabalho,
após a Lei Áurea. Indubitavelmente, um grave problema social. Aparentemente, buscou nas
crenças antigas a sustentação e a viabilização da nova condição. Para se ter uma idéia, em
1882, cerca de metade da população livre do país era constituída de pessoas sem ocupação
definida, isto é, trabalhadores de ocasião (PEREIRA, 1981, p. 195; BASTIDE, 1985, p. 235
nota). Tal informação avaliza o nosso argumento das várias influências que convergiram à
região Contestada por ocasião da construção da ferrovia que cortava o território.
III.4.8 Imposição do Catolicismo
A influência católica na religiosidade do negro é tão antiga quanto a própria
escravidão. É importante compreender que, embora houvesse um muro de contenção em
torno da cultura e religiosidade africanas, os intensos vagalhões de uma sociedade
ambientada no catolicismo romano transbordaram as barreiras impostas, misturando, tal
qual turbilhão, seus conceitos cristãos àqueles dos negros. Assim, orava aos santos
católicos como se fossem os seus orixás. A assimilação do catolicismo pelo negro foi
facilitada por alguns elementos comuns, especialmente, de ordem estrutural. Afirma-se a
existência de um Deus soberano que reside “no céu”. Além disso, por ser transcendente,
exige que vários intermediários se apresentem como acessos. Destarte, Jesus Cristo, o
Filho, Maria, a Mãe de Jesus, e, abaixo deles, ainda uma multidão de santos, cada qual com
sua especialidade peculiar, constituía uma teodicéia semelhante àquela concebida pelas
religiões africanas, onde Olodum ou Zambi era o Deus Supremo ou divindade celeste,
intermediado em seu relacionamento com os homens através de Orixás, de Voduns, de
ancestrais divinizados. Tal analogia estrutural abriu a porta para sincretismo aprofundado,
na paridade e no reconhecimento entre os santos e as entidades africanas (BASTIDE, 1985,
pp. 157, 201, 228).
Aparentemente, a imposição do catolicismo ao negro não visava, prioritariamente, a
preocupação do senhor branco com a espiritualidade do escravo. Mais provável é que se
tornou uma ferramenta de domesticação”, um instrumento de sujeição e desarmamento do
negro. Todavia, de certa forma, “o chicote vergou e talhou a mão do capataz” (ou “o tiro saiu
pela culatra”), pois a massa negra se amoldou à forma que lhe foi imposta, transformando o
catolicismo em ferramenta de identidade étnica e reivindicação social (BASTIDE, 1985, pp.
163, 164). Não se pode dizer com isso que o catolicismo foi benéfico para os negros, mas,
que tiraram o proveito possível da situação a que foram submetidos. De certa forma, algo
79
semelhante aconteceu à Contestada. Quer discordemos ou não de Maurício Vinhas de
Queiroz, tendo sido ou não uma modalidade de catolicismo popular, a Santa Religião usou o
catolicismo adaptando-o à sua realidade, produzindo uma nova vertente (ou religião?) para
produzir a condição social que almejavam. Conquanto a utilização que o negro fazia do
romanismo era paliativa em sua expectativa, isto é, uma tentativa de amenizar o abismo
social entre branco e negro por causa da escravidão, diferente do sertanejo catarinense que
pensava ter ultrapassado em muito a condição dos “peludos”, ambos tiraram proveito da
religião da classe dominante para ascensão social.
IV. O CATOLICISMO
IV.1 Monge João Maria
IV.1.1 João Maria de Agostini Influência Tridentina
Oswaldo Cabral descreve o João Maria I da seguinte forma: “Houve um anacoreta de
cabelos longos e grisalhos, a barba longa e o olhar manso, que desejava a solidão e o
isolamento, a quietude e as durezas da vida contemplativa, as horas longas passadas em
orações e em êxtases, tal como o haviam feito muitos outros que fugiram ao convívio dos
homens para se aproximarem de Deus” (CABRAL, 1979, p. 107). Eis a lenda de João Maria:
Segundo antiga lenda, o profeta vinha da Galiléia. Seu nome hebraico era
Joannah Jeshona. Aos 20 anos teria raptado Aischa, uma jovem e linda
mulçumana com quem se casou. Logo em seguida teve de ir combater
como soldado em Alexandria, contra o Exército expedicionário francês,
onde foi feito prisioneiro. Ao ser repatriado recebeu a infeliz notícia que sua
formosa esposa que tanto amara, havia falecido. Estava Joannah com 33
anos. Sumamente amargurado, resolveu empunhar o bastão de peregrino,
com a promessa de percorrer o mundo mais de 77 anos... (é mais provável,
até os 77 anos), por uma revelação que tivera” (AUGUSTO WALDRIGUES,
Apud FELIPPE, 1995, p. 19).
Daqui, facilmente podemos reconhecer alguns elementos da imaginação dos crentes
posteriores. De início, destaca-se a forte influência do cristianismo, mormente o catolicismo
que conheciam: o profeta vem da Galiléia, uma clara sobreposição do Messias anunciado
nas Escrituras Cristãs. Além disso, seu segundo nome “Jeshona” e os 33 anos como o início
das suas peregrinações (idade da morte de Jesus), são alusões ao Cristo Bíblico. Fica
implícita sua origem israelita, pelo nome que lhe é dado. Em seguida, um romance que
parece ter sido composto com elementos da História de Carlos Magno e os Doze Pares de
França, tais como uma linda jovem mulçumana, exército francês e a guerra. Há, por fim,
uma evidência do catolicismo, ao assumir uma promessa, algo típico da religião romana.
80
A. Surge um Eremita
A vida de João Maria é descrita como a de um andarilho. Os relatos a seu respeito
se iniciam pouco depois da Guerra do Paraguai. Afirma-se que perambulou por vasta região,
que vai desde o interior do Rio Grande até o sul de Mato Grosso, de forma especial a região
de campos e das florestas de araucárias, onde nascem os afluentes do Iguaçu e do Uruguai.
Eram comuns os relatos de pessoas que testemunharam uma “aparição” do monge,
surgindo, repentinamente e sem aviso prévio, pelo meio de algumas ramagens ou em uma
picada, longa barba grisalha e servindo-se de um bordão. “Monge” é o equivalente sulista de
“beato” do nordestino. O comportamento de João Maria obedecia a certo padrão, coisa
típica da religiosidade: não aceitava pouso nas casas, antes, procurava acolhida sob as
copas de árvores, geralmente próximo a uma corrente de águas, onde armava sua tenda e
acendia a fogueira, esta indispensável para o chimarrão. Foi notado primeiramente em
Sorocaba, tido como um eremita, habitante de uma caverna local. Foi descrito como alguém
simples, piedoso e de vida extremamente regrada. Quando a noite caía e calava os labores
humanos, suas rezas e cantoria alcançavam considerável distância, provocando reações
dissonantes entre os moradores locais. Alguns o consideravam louco. Outros, um religioso
autêntico. O personagem João Maria foi costumeiramente acusado de ser louco e o maior
responsável pela carnificina resultante da guerra. Tal concepção pejorativa contrasta com a
concepção do sertanejo catarinense, em toda a sua simplicidade, signo das suas
esperanças e ícone de sua fé. Definitivamente, este personagem tão controvertido na
História foi definitivamente canonizado no imaginário rústico (VINHAS DE QUEIROZ, 1981,
p. 48; CABRAL, 1979, p. 107).
Todavia, deve-se esclarecer que este “monge”, ou, simplesmente, São João Maria,
foi, na verdade, produto da vida de dois homens. Este, sem dúvida, é o caso mais literal de
dupla personalidade. O homem que deu nome ao personagem se chamava João Maria de
Agostini (ou “Agostinho”). Sabe-se que nasceu em 1801, em Piemonte. Os acontecimentos
relativos ao período que antecedeu sua vinda ao Brasil são praticamente desconhecidos,
mesmo sua chegada. O que se sabe concretamente é que esta se deu no Pará, onde
embarcou no dia 19 de agosto de 1844 para o Rio de Janeiro, no vapor Imperatriz. Em
dezembro do mesmo ano, apresentou seus documentos na Câmara Municipal de Sorocaba,
Província de São Paulo. Era véspera de Natal. Estava para nascer um messias” italiano no
Brasil. Afirmou ser solteiro e ter como profissão solitário eremita”, residente e domiciliado
nas matas das cercanias do município, especificando o morro da Fábrica Ipanema. No seu
registro, Procópio Luis Leitão Freire descreveu o monge como tendo estatura baixa, cútis
clara, grisalho, olhos castanhos, tendo a boca e o nariz regulares. Sua barba era cerrada e
tinha rosto comprido. Apresentava um “defeitofísico que o identificava: era aleijado de três
81
dedos na mão esquerda (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 48; CABRAL, 1979, pp. 108,
109).
O modelo de vida do primeiro João Maria estabeleceu certo padrão, que foi imitado,
em parte, pelo João Maria II e por José Maria. A vida simples dos monges caracterizava sua
atividade como doação, mais do que troca. Fernando Santos Granero, tratando a respeito
do sistema político Amuesha, povo da América Andina, reconhece que o fato dos
sacerdotes não receberem benefícios como retribuição dos seus serviços, colocava-os em
vantagem sobre os seus liderados. Estes sentiam-se sempre em débito para com aqueles.
O poder moral exercido pelos sacerdotes, segundo o autor, é muito mais eficiente do que o
poder coercitivo exercido em outras sociedades. Um dos mais flagrantes exemplos naquela
comunidade era a negação da poligamia para os sacerdotes. Aparentemente, o prazer
sensual era tido como elemento contrário ao sagrado ou sobrenatural. Destarte, conclui que,
possivelmente, representava alguma troca, o prazer sensual pelo prazer de ser obedecido,
praticamente, venerado (GRANERO, 1993, p. 222). No Contestado percebemos algo
semelhante. Os três monges são apresentados como sexualmente abstêmios. Mesmo José
Maria, que parece ter querido se casar e viveu maritalmente por algum tempo, desfrutava da
mesma condição de “santo”, não envolvido com os prazeres carnais. Percebemos que,
enquanto José Maria era vivo, o poder exercido sobre a comunidade dos rebeldes era
moral. O respeito a ele era devido pelos seus seguidores. Após sua morte, os que o
sucederam não eram considerados santos doadores, não estabelecendo dívida do povo
para com eles. Destarte, o poder deixou de ser prestigioso e passou a ser coercitivo,
chegando a excessos, à medida que o movimento se aproximava de seu final.
É possível reconhecer ênfases na vida dos três monges, que não apenas os
distinguem, mas nos ajudam a compreender o processo que levou à eclosão da Guerra. Em
João Maria I, realça-se a influência do catolicismo tradicional. Por ter nascido na bota da
velha senhora”, apresentava religiosidade marcadamente tridentina. Aparentemente, era
exemplo de algum tipo de modelo excêntrico do catolicismo ortodoxo. Freqüentava
regularmente a missa celebrada na Capela da Fábrica de Ferro, costumando dirigir a
palavra aos presentes ao término do trabalho oficial. Não pretendia a criação de alguma
seita. Não era sismático ou herético, o que comprovam franquearem-lhe a prédica e o
acesso à capela da fábrica e as rezas que fazia ali pelo Padre Antônio Dias de Arruda. Sua
era autenticamente católica, ortodoxa, o que explica o porq de nunca receber qualquer
censura eclesiástica. Ainda em Sorocaba, constatamos seu hábito de “plantar” cruzes, como
foi, possivelmente, o caso da que existiu entre Araçoiaba da Serra e Tatuí, à margem da
estrada. Mais notável foram as 14 cruzes fincadas na encruzilhada próxima a Sorocaba.
Segundo se conta, foi erigida pelo solitário morador de Pedra Santa, auxiliado por alguns
sitiantes. João Maria de Agostini era devoto de Santo Antão, “pai” do monasticismo,
82
habitante dos desertos do Egito, bastante popular na Europa, especialmente no folclore e
nas benzeduras, todavia, quase desconhecido no Brasil. Como Santo eremita, exerceu
papel importante na formatação da e das crenças de João Maria de Agostini. Segundo
Oswaldo Cabral, teria sido o contato ocasional do monge com um ídolo de seu santo devoto
que teria lhe despertado o desejo de edificar-lhe e consagrar-lhe uma capela. É indiscutível
que o conhecimento que possuía sobre a vida do personagem monástico não foi recebido
em terras brasileiras. Certamente, era sua bagagem intelectual e religiosa de quando
desembarcou em nosso país (CABRAL, 1979, pp. 112, 125, 127, 128).
Fato é que transitou até o rio Grande do Sul, atravessando Paraná e Santa Catarina
por itinerário desconhecido. No entanto, relatos de ter sido visto na Lapa, no Rio Negro,
em Lajes e em Santa Maria. Sabe-se que, deixando Sorocaba, partiu pelo agreste até
alcançar o Paraguai, de onde se dirigiu a São Borja e, depois, estabeleceu-se em Santa
Maria, passando pelas Missões. É possível que a associação a „Marianão seja ocasional.
O monge, que tem em seu nome o antropônimo da própria “mãe de Deus”, decide fixar
residência em cidade que destaca a peculiaridade de sua vocação maternal: “Santa Maria”.
Não é possível determinar se isso era consciente. Contudo, mesmo que inconscientemente,
parece que tal fator influenciava o seu destino messiânico. Essa suposição ganha ainda
mais força quando nos lembramos de que dizia estar em missão sagrada, cumprindo uma
promessa feita à Santa Mãe de Deus. Haveria de servir-lhe de filho? Digno de nota é que
João Maria de Agostini não procurou a popularidade, embora, devido às suas práticas
piedosas e “miraculosas”, esta a perseguisse (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 51;
CABRAL, 1979, p. 113, 114, 118).
Sabe-se que procurou uma audiência com o General Soares de Andréia, em Porto
Alegre, presidente da província do Rio Grande. Seu objetivo era resgatar uma imagem de
Santo Antão que soube estar abandonada nas ruínas dos Sete Povos das Missões.
Pretendia erigir-lhe uma capela onde residia, no Campestre de Santa Maria. Ali, em um
morro, estabeleceu o templo, realizando, diariamente, serviços religiosos, nos quais se dizia
inspirado por Deus. Ao longo da encosta plantou cruzes que conduziam ao topo, onde
descansava a capela idealizada, dedicada a Santo Antão, no interior da qual residia a
imagem que foi buscar nas citadas ruínas. Nesse seu lugar espiritual havia uma fonte de
águas cristalinas, às quais se atribuíam poderes curativos, uma espécie de catolicismo em
versão rural. Sua conduta irrepreensível, aliada à sua prática do bem e aos milagres que lhe
foram impingidos, renderam-lhe a alcunha de “santo”. Ao ser divulgada sua fama, passou a
atrair devotos e peregrinos. Afluíam oriundos o apenas de Santa Catarina, Paraná e São
Paulo, mas também argentinos e uruguaios. A partir daí, o eremita dá lugar ao líder
religioso. O isolamento foi abandonado em detrimento de uma vocação messiânica.
Contudo, continua a pregar em linha com o catolicismo ortodoxo, anunciando a palavra do
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Evangelho reconhecido pelo catolicismo e as práticas devocionais em harmonia com Roma,
todavia, muito mais do que mero devoto. A simples utilidade de um objeto ou animal, por
parte do monge, poderia ocasionar um milagre. Há o relato de Joaquim Borges que ilustra o
fato. Tendo chegado de longa viagem a pé, e, após o pouso daquela noite, foi-lhe cedida
uma montaria que o conduzisse até a cidade da Lapa. O fato lendário é relativo ao animal
que o transportava. Reza o conto que ele manquejava e, ao deixar o monge em seu destino,
voltou para a fazenda sem o defeito que marcava suas passadas (CABRAL, 1979, pp. 115,
116, 124, 125, 135).
Entretanto, sua popularidade trouxe apreensões, especialmente ao presidente da
província. O General Andréia, consciente da ascensão do monge ao imaginário popular,
enviou um grupo de médicos para investigar cientificamente a fonte de Campestre, tida
como miraculosa. O laudo foi que a água tinha propriedades excelentes, mas nada
sobrenatural. Contudo, uma vez que a fé no monge persistia, temendo que o grupo se
tornasse uma multidão de fanáticos incontroláveis, ordenou sua prisão e posterior traslado
para o Rio de Janeiro. Joaquim Silveira interpreta isso como perseguição ao monge,
especialmente por se portar como curandeiro. Adepto de uma espécie de curandeirismo
utilizava ervas que, associadas com suas rezas, cria-se resultar cura dos que o procuravam.
Certamente, tal prática, embora muito comum pelos rincões da nação, associada à
aglomeração de devotos, não era bem vista pela medicina, pelo governo e pela religião
formal. Não se sabe quanto tempo permaneceu na Capital do Império. Porém, em 1851
estava no Paraná. Aparentemente, em algum período posterior a 1862, retorna a Sorocaba.
Tem-se notícia que em 1865, conforme Aloísio de Almeida, ou 1870, pelo depoimento de
João Lourenço Rodrigues, sumiu, sem deixar vestígios (CABRAL, 1979, pp. 135, 138, 139).
IV.1.2 João Maria de Jesus Influência rústica
É bem plausível a hipótese da existência de outros que se intitularam João Maria. O
nome era bem conhecido e anacoretas com pretensões maiores não faltavam na região.
Assim, aparentemente, o monge se tornou um personagem mítico, sobre quem repousava a
crença de aparições místicas. Tal fato poderia facilmente levar os sertanejos a chamar “João
Maria” qualquer pregador maltrapilho itinerante. Possivelmente, essa é a explicação para
que reconhecessem o “João Maria” que surgiu durante a Revolução Farroupilha (1835
1845) no indivíduo que apareceu quase cinqüenta anos depois, durante a Revolução
Federalista (1893 1895), algo certamente impossível se fosse a mesma pessoa (ESPIG,
2008, p. 100) Certamente a fé leva a certezas atemporais, validando mesmo um “deutero”
João Maria. Podemos especular se não havia algum resquício da idéia de reencarnação na
crença das aparições do monge, uma vez que fazia parte das crenças indígenas presentes
na região. O segundo João Maria, o “de Jesus”, pôde ser rastreado a partir da Revolta
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Rio-Grandense de 1893, quando foi visto apoiando os combatentes maragatos no Vale do
Rio do Peixe. Empunhava uma bandeira do Divino Espírito Santo, muito comum na região,
uma flâmula branca com uma pomba vermelha ao centro. A crença na magia deste símbolo
não era originária, ou mesmo, exclusiva do segundo monge. Na festa quando se coroava o
Imperador do Divino, para dar sorte, era costume passar a bandeira nos lombos dos cavalos
que participariam da corrida, e, até, nas camas das prostitutas (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, p. 51). Vemos aqui forte influência do catolicismo rústico, isto é, um emblema da
religião oficial vulgarizado e adaptado à simplicidade do sertanejo, que modela o sagrado
por sua concepção não teológica, mas, eminentemente, prática da religião. É notável que
não se preocupavam com qualquer norma religiosa do catolicismo tradicional, mas com o
resultado obtido. A religiosidade do homem do Contestado não era baseada em preceitos
doutrinários sistematizados, mas na prática de ritos e cerimônias fanáticas que viabilizaria
sobrenaturalmente aquilo que buscavam.
Nisto percebemos uma mudança e um avanço no processo que levou à eclosão da
Guerra. Enquanto a ênfase do primeiro João Maria era o catolicismo ortodoxo, ainda que
salpicado de excentricidades, João Maria de Jesus está mais ligado à rusticidade das
crenças caboclas. Neste, percebemos uma transição em direção à assimilação da
expectativa do campesino Contestado. O messias está sendo modelado não apenas pela
imaginação, mas pelo anseio popular. evidências suficientes para acreditarmos que o
nome verdadeiro de João Maria de Jesus era Atanás Marcaf. É interessante perceber que,
para exercer qualquer obra religiosa no agreste brasileiro, seria imperioso a mudança do
seu nome. Matuto e supersticioso que era o homem simples do Contestado, afeito a
apelidos e chacotas, seria virtualmente impossível a não associação de “Atanás” com
“Satanás”, a “antiga serpente” (Ap 12.9), o líder bíblico da oposição a Jesus Cristo. Por isso,
possivelmente, escolheu para si nomes que aludem à história de Jesus Cristo: João é
repetido, acrescentando o designativo “Jesus”, e Maria, a mãe do Redentor bíblico. Pode ser
que, para enfatizar ainda mais sua messianidade, tenha acrescentado o predicativo “de
Jesus”. Acreditamos que seria muita coincidência alguém que assumiu prerrogativas
messiânicas escolher tal nome ao acaso. Acrescentando à mistura a sua fama de realizador
de milagres, os ingredientes messiânicos se juntam compondo um forte sabor religioso.
Segundo Maurício Vinhas de Queiroz, tinha sotaque estrangeiro acentuado, denunciando
provável origem Síria. Dizia-se nascido no mar, e que havia residido na Argentina (VINHAS
DE QUEIROZ, 1981, p. 52).
Em 1904, um jornalista catarinense, possivelmente Crispim Mira, saiu à procura do
monge e o encontrou perto da casa de um sertanejo, lugar que havia escolhido para pouso.
Viu-o sentado em um tronco derrubado, de fronte à fogueira, com um ramo em uma das
mãos e o cajado de dois metros na outra. Em entrevista, disse que, após a Guerra do
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Paraguai, andava pelo mundo para cumprir uma promessa. No lugar onde havia sentado,
algumas mulheres acenderam velas, cantando louvores a Maria. O fato é que os que
habitavam no agreste da região Contestada viam na figura do monge um curandeiro. Seu
poder não estava atrelado ao toque, exigindo a presença física do doente. Era suficiente que
alguém da família ou algum conhecido fosse procurá-lo, rezasse e levasse para o enfermo a
“receita” manipulada por ele. O “princípio ativodo remédio do monge era, geralmente, à
base de vassourinha, planta comum na região. A crença recorrente não relacionava a magia
apenas à planta, que poderia ser colhida a qualquer momento, mas, de forma especial, à
bênção do monge. A vassourinha do monge era vista como um elemento catalisador do
poder do “santo”, “varrendo”, amesmo, os inimigos. A conselho do monge, na Revolução
Federalista, os guerreiros de Gumercindo Saraiva colocaram um ramo da planta em seus
chapéus e partiram para a batalha, antevendo a vitória (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp.
49, 50).
Grande parte da crença desenvolvida não partiu de seus ensinamentos, mas de
tendências religiosas pré-estabelecidas. Acreditava-se que tudo o que fosse utilizado pelo
monge, tocado por ele, assimilava sua magia. Aparentemente, isso não ilustra, apenas, uma
tendência inata para o desenvolvimento da religiosidade, mas as necessidades do homem
simples, privado de médicos e de instrução, que encontrava na e nas superstições sua
única esperança. No caso, o desenvolvimento de tais crenças mágicas era essencial para a
plausibilidade da própria existência. Mais do que: “eu quero crer”, o lema fortemente
estabelecido no inconsciente coletivo daquela gente era: “eu tenho que crer”. Assim, as
cinzas das fogueiras feitas por João Maria eram disputadas pelos habitantes das cercanias
onde havia pousado. Costumava-se acondicioná-la em patuás, um pequeno objeto feito por
costura, e utilizá-lo pendurado ao pescoço para livramento de infortúnios. As fontes ou
riachos onde o monge havia bebido se tornam santos. Suas águas assumem a capacidade
de operar milagres, fazendo com que “garrafas e garrafas” fossem enchidas, cheias mais de
misticismo do que de líquido, e transportadas, até, para regiões distantes. Outro sinal
atribuído ao monge eram as cruzes de cedro erigidas nos locais onde o religioso
pernoitasse. Por aproveitarem como mastro central um tronco não arrancado do chão, era
comum brotar e reassumiam sua forma arbórea. A madeira, embora convertida, à força, à
religiosidade rústica, transformada em símbolo religioso, insistia com sua vocação original
de árvore. Tal era visto como um sinal do monge, constituindo-se em mais um lugar sagrado
para o sertanejo, preferido para as suas rezas (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 50).
João Maria II assumia o papel de um sacerdote: “dirigia rezas coletivas e cânticos
religiosos. Muitos sertanejos deixavam os filhos anos a fio sem batismo, à espera que um
dia aparecesse o monge. Ele não batizava; também casava e dava bons conselhos.
Benzia as roças e o gado”. O batismo de João Maria não necessitava de padrinho ou
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madrinha. Ele mesmo se constituía padrinho. Declarava o nome do batizando,
acompanhado de uma reza, com a imposição de uma das mãos sobre a cabeça da pessoa.
Não era preciso a utilização de água ou vela. Na mente popular, sua intensa atividade
religiosa estabelecia uma ponte entre o homem simples dos campos e das matas com a
divindade, ou, melhor ainda, àquilo que queriam na esfera do sobrenatural. Todavia, seu
papel preponderante no movimento não estava no auxílio e promoção da religiosidade
rústica, mas no profetismo. Vaticinando pragas e a própria guerra, estimulou e aguçou as
crenças messiânicas quanto à sua própria pessoa. Uma de suas mais famosas “profetadas”
aconteceu quando da derrota e morte de Gumercindo Saraiva, o líder dos revoltosos.
Anunciou o seu retorno glorioso, à frente de um exército de anjos (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, pp. 50, 51; FELIPPE, 1995, p. 25). João Maria II reflete uma consciência coletiva que
parece transparecer maior tensão social. Seus oráculos quanto à guerra mais parecem a
simples constatação de que a sociedade estratificada, baseada na sujeição das massas aos
senhores de terras e procurava alguma compensação no compadrio extraclasse, tornou-se
insuportável ao sertanejo. Tendo a existência ameaçada, diante do total descaso do Estado,
resta a religião como único meio de se alcançar a vida pretendida.
As profecias escatológicas foram um ponto forte do segundo João Maria. Atanás
Marcaf pregava a iminência do fim do mundo, precedido por muitos flagelos, como pragas
de gafanhotos e de cobras, chagas, escuridão de três dias, e uma guerra que faria correr um
rio de sangue, tudo isso, cerca de vinte anos à frente. Para escapar destes castigos divinos,
desenvolveu-se a crença que a recitação das muitas rezas atribuídas ao monge ou a posse
de patuás pendurados no pescoço contendo sua versão escrita, poderia trazer livramento
pessoal. Outra característica marcante de João Maria II foi a exigência de penitências
severas e constantes dos seus ouvintes. Por elas também se poderia escapar às desgraças
dos últimos dias. Quanto a tal prática, Anastás Marcaf era o maior exemplo. Submetia-se a
penitências com freqüência, provavelmente, como forma de aliviar sua consciência religiosa
quanto a culpas passadas. Havia o boato de que esse seu comportamento era devido a
algum crime que havia praticado em sua terra natal, que gerou uma espécie de “consciência
[pesada] coletiva”, ou seja, possível exemplo de transmissão de seus próprios pesares para
aqueles que o ouviam. Também recomendava a utilização de velas benzidas por ele para
espantar a escuridão final que se aproximava. Em seu famoso encontro com o Frei
Neuhaus, afirmou: “Jesus disse a São Pedro que o mundo havia de existir mil anos, mas
não outros mil” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 61, 62).
João Maria de Jesus enfatizava a Monarquia, afirmando ser a verdadeira ordem de
Deus, enquanto a República era, nada menos, que a ordem do demônio. Aparentemente,
esta preferência monárquica não tem a ver, principalmente, com a forma de governo, mas
com o que elas historicamente representaram para o sertanejo. Durante o período do
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Império, não havia disputas acentuadas de terras, possibilitando a habitação tranqüila nos
rincões da nação. Com o estabelecimento da República, viu-se o início de processo político,
entenda-se, desenvolvimento da política e da politicagem, ou seja, da necessidade” de
favorecer aqueles que interessavam não apenas para o poder, mas, igualmente, para os
próprios interesses. Além disso, a autonomia concedida aos Estados, transferindo-lhes o
direito de administrar a doação das terras devolutas da União, aliada ao progresso
econômico, acentuaram os anseios locais daqueles que detinham poder e influência. Assim,
as concessões de extensas faixas de terra começaram a ocorrer, sem levar em conta os
que já a povoavam, não apenas os colonos, mas, ainda, os indígenas. A República foi a
grande causadora da crise Contestada. Portanto, a monarquia representava a saudade do
tempo onde inexistia a grande tensão social que a República estabeleceu (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 62; MONTEIRO, 1974, p. 25; BLOEMER, 2000, pp. 54, 57).
Para vencer os desafios da vida e a própria pobreza, João Maria de Jesus indicava o
trabalho. Ao invés de meramente estimular o lamurio e o reclame, teria dito: “Deus disse:
Faze que te ajudarei. Cuida, por isso, do teu corpo e trabalha” (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, p. 62). Nisso se percebe a crença rústica da necessidade da bênção de Deus sobre o
trabalho. O suprimento da vida não seria dádiva divina, destituída do esforço humano. É
interessante notar que o paraíso do Contestado não era um lugar de ócio, de descanso do
trabalho, mas um lugar onde se pode plantar e colher. Na discussão doutrinária que teve
com o Frei Rogério Neuhaus, confrontado com os dogmas católicos, quanto à necessidade
da missa e da confissão auricular, diferentemente da prática do João Maria I, afirmou que a
sua reza valia tanto quanto uma missa. Diante da réplica de seu contendedor, que disse que
nem mesmo as intercessões de Maria teriam o mesmo efeito que uma missa, pois, nesta,
Cristo desceria sobre o altar, sua tréplica foi, apontando para sua caixinha de oração: “Para
aqui também vem” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 51). Nisto se percebe o descrédito com
que a religião oficial já era vista pelos sertanejos. Embora um verdadeiro “apóstolo do
agreste”, a dedicação e altruísmo do Frei Neuhaus nem sempre conseguiam anular a má
fama dos sacerdotes católicos, especialmente quanto ao descaso dos menos favorecidos e
a confortável ligação com os coronéis. Outra constatação interessante percebida neste
episódio é a equiparação e transposição da religião rústica à oficial. Qualquer verdade
doutrinária do catolicismo institucional poderia encontrar paralelo na religião informal. Isso
era favorecido pela abertura sincrética, o dinamismo e a capacidade de adaptação e, até, de
absorção, da religiosidade popular.
O segundo monge João Maria desapareceu por completo por volta de 1908, talvez
morto em um hospital de Ponta Grossa/PR ou sepultado em Lagoa Vermelha/RS. Contudo,
na crença popular ele havia, apenas, se retirado. Os que acreditavam na sua imortalidade
diziam que estaria no morro do Taió, em estado de encantamento, aguardando o tempo de
88
restaurar todas as coisas, uma vez que a morte, para ele, não era um problema. João Maria
resumia em sua pessoa toda a expectativa sobrenatural latente no povo. Não era
comparado a qualquer místico dentre a população. Abaixo de Deus, estava ele na terra
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 52, 56, 63). Grande parte dessa devoção popular se devia
ao modo de vida frugal característico do personagem. O fato de não aceitar dinheiro pelos
favores sobrenaturais que prestava, distribuindo até os presentes que ganhava aos
incontáveis afilhados que não cessava de acumular, conferia-lhe ar de “santidade”. Nas
Escrituras Cristãs, a aparência profética estava associada à simplicidade. O ensinamento de
Jesus advertindo contra os falsos profetas, afirmando “que se vos apresentam disfarçados
em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores” (Mt 7.15 - Bíblia), não tem apenas a
intenção de apresentar a antítese presa predador, mas mostrar que mesmo os falsos
profetas se vestiriam como aqueles tidos como verdadeiros, uma vez que comumente estes
trajavam peles de animais, o tipo de roupa mais simples que havia. Outras características
deles seriam a exploração e o oportunismo. Enquanto aquele que cuida do rebanho é
chamado “pastor”, o falso profeta é comparado ao predador, àquele que se alimenta do
rebanho. Portanto, via de regra, os que tiram proveito da religião, para o próprio
enriquecimento, se enquadrariam naquilo que o Cristo estabeleceu, sobre os falsos profetas,
tanto tempo, na Bíblia. Curiosamente, como elemento comum nos dois monges que
assumiram esse nome, João Maria evitava qualquer tipo de riqueza material.
Digno de nota é que o monge foi adorado por aqueles que buscavam, exatamente, o
bem material, a posse da terra. A promessa de um paraíso terrestre estava latente no
messianismo do Contestado. Almejavam uma terra de prosperidade, dos monges e não dos
coronéis, da monarquia e não da república, dos “pelados” e não dos “peludos”. No entanto,
mesmo tal desejo material não era egoísta, mas coletivo. O suprimento viria para todos, o
alcance da “prosperidade social”. O desenvolvimento econômico de uns poucos em
detrimento da maioria era estratificação, algo associado ao demônio. A vida comunal dos
redutos era antitética a tal modelo. Faz parte do sonho Contestado, não apenas um lugar de
prosperidade, mas o nivelamento social, onde todos são iguais nas posses e na dignidade.
Diferente dos fazendeiros que estabeleciam limites claros e definidos entre sua casta e a
“ralé” pela afirmação do poder econômico, na Cidade Santa todos eram irmãos. João Maria,
o primeiro e o segundo, mais do que José Maria, com sua forma despojada de ser,
contribuíram para essa noção humilde do movimento.
A João Maria, o personagem, são atribuídos vários milagres, como, por exemplo, a
bancarrota de um fazendeiro que lhe deu um queijo podre, e, ter permanecido seco o solo
onde dormiu durante grande temporal. Então, o que se deu com João Maria I ocorre
também com seu sucessor. A construção mitológica do personagem é chamada por
Maurício Vinhas de Queiroz de processo de assunção de personalidade mítica”. Nele,
89
uma interação do mito e o real. O João Maria histórico vai paulatinamente incorporando o
formato mítico que lhe dão, não deixando, contudo, de ser quem ele é na verdade. Desta
forma, há uma constante realimentação do mítico no histórico, concedendo dinamismo,
expandindo e edificando, cada vez mais, o personagem (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp.
59-61). Não era comum ao sertanejo da região em litígio fazer a distinção entre os dois
homens que assumiram a identidade de monge João Maria. A opinião geral considerava
apenas o personagem, o mito. Tal conceito reconhecia nele um santo, o São João Maria,
homem pacífico, que realizava o bem ao próximo. Além disso, o homem do agreste
catarinense não o via como distanciado da Igreja majoritária da época, mas em continuidade
com ela. João Maria de Jesus, conquanto não promovesse a igreja romana, não se
dedicava a desacreditar os sacerdotes ou a Igreja oficial. O povo o tinha como cumpridor
dos mandamentos da igreja. Certamente, abandonados dos oficiantes religiosos oficiais e do
próprio estudo, poucos sabiam da doutrina pregada pelo Catolicismo. O que chamavam de
mandamento da Igreja era, na verdade, principalmente um rigorismo ético e moral. A prática
religiosa de João Maria, enquanto personagem unificado, incluía a imposição de duras
penitências aos transgressores. Sua pregação continha forte teor apocalíptico, predizendo
flagelos e a própria guerra que viria, baseando-se em interpretações livres e
descomprometidas com a literalidade do texto bíblico.
IV.2 Catolicismo Popular
IV.2.1 Superstição e Sincretismo
Assim como a cultura indígena foi o elemento predominante no sincretismo
encontrado nos estados da região norte do Brasil, pois ali a sua presença era maciça, talvez
possamos usar o mesmo argumento para concluir o mesmo na região Contestada. Embora
o quadro religioso brasileiro sempre tenha paisagem católica, as faces que compõem a tela,
geralmente, tem traços étnicos dominantes. Segundo Bastide, tal não apenas é possível,
como se torna uma necessidade especificar qual o “tronco” cultural principal no qual são
enxertados elementos de outra cultura, ramificando o sincretismo. Assim, por exemplo,
destaca a importância de saber distinguir entre a religião popular de origem indígena e a
religião popular de origem africana (BASTIDE, 1985, p. 243). Por ter sido o negro, como
dissemos, o grande condutor interculturas, deixou sua marca em tudo o que tocou. Sua
participação no teatro religioso não se deu como expectador, mas como ator e assistente de
produção. Em outras palavras, mesmo nas expressões religiosas de prevalência indígena,
há toques de contribuição africana.
90
Aparentemente, o negro foi o grande fator de unidade nacional. É indiscutível que o
catolicismo introduzido em todas as culturas encontradas no Brasil colonial (portugueses,
índios e negros) funcionou como ponto de contato entre elas. No entanto, os índios livres
estavam nas matas. Quanto àqueles que foram escravizados, seu número foi muito menor
do que os africanos. Portanto, havia um abismo cultural entre ameríndios e portugueses,
que encontrou como principal ponte a cultura negra, isto é, a cultura brasileira teve o preto
como contorno. Usando o espectro do colorido das raças, era o preto que transitava, com
certa facilidade, entre brancos e “marrons”. Era ele que estava presente na cidade, no
campo, nas matas, e, até mesmo, em muitas aldeias. Essa “onipresença” negra fez de sua
cultura o veículo do catolicismo aberto e sincrético, ao mesmo tempo sugando e
disseminando crenças e práticas religiosas por onde passava. Conquanto haja muitas e
grandes diferenças entre as mitologias do índio e do negro, a interação entre elas se deu,
especialmente, pelo fato de ambas serem religiões de possessão, caracterizadas pela
descida do deus ao corpo. (PEREIRA, 1981, p. 198; BASTIDE, 1985, p. 253). Tomando
esse argumento, pode-se perceber que, além do catolicismo, como ambiente que une a
religiosidade negra e índia em seus sincretismos, na Religião Contestada ambas encontram
respaldo na atividade “profética” das virgens e dos meninos-deus, em seus transes e
possessões.
No ano provável do desaparecimento de João Maria de Jesus, 1908, ocorreu no
município de Palmas, um exemplo de fanatismo que ilustra o ambiente religioso da época.
Dois curandeiros, Custódio Machado e Manuel Preto acreditaram que uma negra, chamada
Eugênia Matungo, estava possuída por Satanás. Determinados a exorcizá-la, usaram como
método surras diárias e, por vezes, colocaram-na em um estrado sobre uma fogueira. Como
era de se esperar, a mulher veio a óbito, e ambos foram presos e responderam
criminalmente pela atitude. A partir de 1913, estabelece-se um pequeno movimento
messiânico em Lages, encabeçado por Paulo Daniel de Liz. Era assessorado por um negro
“especialista em feitiços e curas com raízes” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 54, 55).
Muito interessante é o uso inteligente que o Frei Neuhaus faz do seu contexto, como
autêntico missionário. Afeito à medicina alternativa, percebendo o quanto o povo que lhe foi
confiado cria no curandeirismo, clara influência do xamanismo, pediu que lhe enviassem
uma pequena farmácia portátil de ervas, passando a atender a gente simples do sertão da
forma como estavam acostumados. Tal fato chegou a gerar no povo a crença de que ele
fosse, também, uma espécie de monge, levando alguns a tratá-lo como “paizinho”. Assim,
assumindo um formato “curandeiro”, informal e direto, conquistou a atenção e a admiração
do povo. Adquirindo sua confiança pela estratégia da cura informal, tentou conduzi-los à
ortodoxia católica. A disputa entre o catolicismo oficial e o rústico se com clareza na
tentativa de Neuhaus “ganhar” o sertão. Empreendeu uma verdadeira “cruzada”, dedicando-
91
se incansavelmente em seu ofício: batizava, pregava, assistia os necessitados, ameaçava
com o inferno os casais que não haviam se unido no religioso e exorcizava. Na opinião de
Mauricio Vinhas de Queiroz, por considerável tempo o frei conseguiu fazer frente a João
Maria. Todavia, acabou por perder a disputa de influência, devido, especialmente, à
desconfiança da população geral por causa da cobrança pelos serviços religiosos, prática
comum no catolicismo oficial, o que distinguia João Maria como santo, homem não apegado
a dinheiro (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 57, 58). Assim, o povo não se via em dívida
com os padres, pois compravam os seus serviços.
IV.2.2 Rezas e Amuletos
O caboclo, ainda peão nas fazendas, além de ervateiro tolerado pelo fazendeiro,
morava em alojamentos conhecidos como “casa de peões” e utilizavam os galpões para, em
seus momentos de folga, mormente à noite e ao redor da fogueira, algo quase ritualístico,
falar dos feitos de outrora, seus “causos”, submerso no quente e amargo mate. Esse
também era o momento da composição de cantos e dos repentes em forma de trova.
Inspiravam-lhe os riscos naturais, as causas mal-resolvidas que explodiam em violência e os
temores do além, legado cultural indígena, português e africano. O universo do campesino
habitante das terras altas catarinenses era um mundo gico, permeado de mistério, e até
mesmo, idéias européias medievais. Ainda em nossos dias, ruídos no telhado são
identificados como a presença da alma do “compadre bugre”, a quem se reza para se evitar
problemas. O compadrio é utilizado como forma de conquistar-lhe o agrado, uma
ferramenta de aproximação. Nitidamente, assimilaram o conceito ameríndio do retorno da
alma dos mortos para causar problemas aos vivos. Além disso, utilizavam rezas fortes que
poderiam ser enunciadas ou carregadas escritas em patuás, como amuletos junto ao peito.
Nisso, percebe-se uma influência da religiosidade negra, de onde vem o tradicional uso das
fórmulas para “fechar o corpo”. As ações de Deus e do diabo se confundem na religiosidade
rústica. O acesso ao sobrenatural era, às vezes, visto como uma dádiva divina, outras, como
uma concessão do diabo. Assim, uma mulher, respeitada por uns, reconhecida como uma
benzedeira ou uma beata a serviço de Deus, poderia ser vista por outros como uma
mandraqueira, bruxa, pactuada com Satanás. O fato de ser associada ao maligno não
diminuía a sua clientela. Tal fato nos faz avançar no entendimento das crenças do homem
simples do Contestado. Sua religiosidade incluía tudo o que fosse mágico, não importando,
nem mesmo, que entidade usaria para concretizar seu intento. É certo que nem todos
buscariam o “favor” do diabo com uma bruxa, por temer o mal. Pressionados pelas
necessidades, buscavam no sobrenatural a estrutura, se não real, imaginária, para conviver
com o abandono e a miséria (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p. 97; THOMÉ, 2007, p. 63;
92
MONTEIRO, 1974, pp. 83, 95 nota 13; VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 53, 54, 56;
MOURA, 2003, pp. 33, 34).
Muitos se apresentavam como competentes para produzir, através de alguma prática
sobrenatural, o benefício pessoal buscado pelo caboclo, através do controle dos fenômenos
naturais, capazes até de interferir diretamente no subjetivo do ser humano. É interessante
notar que esse tipo de crença, diferente do messianismo, tende a ser individual e egoísta,
uma vez que, não raro, aquilo que se busca resulta o dano de alguém do próprio grupo
social. Destarte, tal contingente de especialistas do mundo mágico era composto de: a)
Benzedores: especialistas na cura de animais, utilizando quase sempre de fórmulas
mágicas. b) Benzedeiras: tinha método semelhante ao dos seus pares masculinos, com a
diferença que tratava de humanos. c) Curandeiros ou curadores: uniam o místico ao
medicinal, fazendo uso de rituais, conjugados à aplicação de ervas medicinais. d)
Carimbambas: eram vistos como médicos, por disporem de algum conhecimento
homeopático. e) Entendidos: pessoas que não eram dedicadas exclusivamente às rezas e
aos rituais, mas que, procuradas, sempre sabiam indicar e orientar o que fazer. f)
Intendentes: acumulavam a função de parteiras ou comadres e a de benzedeiras, indicando
rezas para esconjurar enfermidades e atrair a sorte. g) Mandraqueiras: mulheres
reconhecidas como praticantes de ocultismo ou magia negra, que procuradas, utilizavam
bruxaria para alcançar o desejo daquele que a elas recorriam. h) Capelães leigos e
puxadores de terço: mais próximos do catolicismo, detinham-se mais em rezas conhecidas,
celebrando batismos e casamentos (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 53). A influência de
crenças ameríndias e negra é evidente em praticamente todas essas “especialidades”.
Considerando que os santos venerados no catolicismo popular são os mesmos da
Santa Religião que trataremos mais à frente, limitar-nos-emos apenas a indicar que, para o
campesino habitante do Contestado, à época da iminente eclosão da Guerra, tinha como
santos mais populares São Sebastião, São Jorge e São Miguel, que se somavam aos
personagens centrais do catolicismo, que são Deus ou o Pai, Jesus Cristo e Maria.
IV.2.3 Ascetismo
Analisando o surto messiânico-milenarista do Catulé, Renato Queiroz lança mão do
pensamento de Eunice T. Ribeiro, que reconhece como característica do catolicismo rústico
certo rigorismo ético, uma espécie de puritanismo sertanejo modelado pelos antigos
costumes do catolicismo. Além disso, tal disposição forjava um rijo caráter, apegado à
honra, disposto a defendê-la mesmo pelo uso da violência. É assim que se explica a
existência de tantos dignos valentes. Segundo o autor, esse foi um dos motivos que facilitou
a acolhida do Adventismo em comunidade tão simples do agreste mineiro, local onde
ocorreu o surto messiânico. Tal disposição, embora parte integrante do catolicismo popular,
93
era incompatível com a nova fé, sendo necessária a renúncia da valentia, do ímpeto e da
agressividade (QUEIROZ, 1995, p. 69). Certamente, o mesmo tipo de vida caracterizava o
Contestado. Contudo, é necessário observarmos alguma dualidade comportamental no povo
dos rincões brasileiros. Se considerarmos o ambiente descrito por Gilberto Freyre, sobre o
que nos referimos, a gênese do nosso povo aconteceu em meio a grande promiscuidade.
Talvez possamos dizer que o contexto ético e moral do campesino nacional era marcado por
fortes padrões éticos e morais, legado do catolicismo. Todavia, esses eram os preceitos, o
ideal, praticado, contudo, à medida das situações, sujeitos a várias pressões de ordem
social e psicológica. O ocorrido no Catulé é um exemplo disso. Em meio ao rigorismo,
surgiram comportamentos diametralmente opostos não apenas à antiga fé católica, mas à
nova fé Adventista.
Não eram poucos os que levavam os ritos católicos a sério na sociedade brasileira.
Observa-se, por exemplo, que o abuso de jejuns por motivação religiosa chegou a ser uma
das causas da deficiente condição nutricional de indivíduos que dispunham de recursos.
Ainda no tempo da escravidão, por serem os braços da produção, certamente, aos negros
não faltava a comida. Embora sem nenhum primor culinário, o “menu” incluía milho, toucinho
e feijão, alimentos abundantes e apropriados para o esforço diário. É provável que o negro,
ainda que submetido a um cardápio deficiente, tenha sido aquele que melhor foi nutrido nos
períodos colonial e imperial da História do Brasil (FREYRE, 2008, p. 104, 107). Certamente,
expulsos das terras que habitavam, jejum passou a ser a necessidade não religiosa do
habitante do Contestado.
O solo Contestado se mostrou extremamente fértil culturalmente. Possuindo
elementos culturais indígenas, posteriormente recebeu o incremento das culturas negra e
portuguesa. Muitos dos caboclos sertanejos eram mamelucos, mulatos e subprodutos de
suas misturas. O velho João Maria surge como anacoreta despretensioso, mas em época de
grande expectativa social. Substituído por João Maria II, o personagem começa assimilar os
contornos da principal causa social, a saber, a questão da posse da terra. Quando
comparamos a religiosidade negra à Santa Religião, são perceptíveis suas influências,
especialmente, nos patuás e na cerimônia de iniciação. De forma geral, a crença em
“espíritos intermediários” e a “possessão” também compuseram a religiosidade Contestada,
como legados das religiões negras. Falando-se da religiosidade indígena, vê-se a
“santidade” da terra, como “casa verde” e habitação do monge em provável continuidade
com a crença indígena. Além disso, as possessões e o curandeirismo ameríndios mostram-
se heranças para os caboclos da Santa Religião. Foi neste “solo sagrado” que germinaram
as sementes da esperança Contestada, verdadeira “árvore da vida” que almejavam.
94
CAPÍTULO 3 - A ECLOSÃO DA SEMENTE E SEU CRESCIMENTO: A
SEGUNDA FASE DO MOVIMENTO
I. INTRODUÇÃO
Chamamos de segunda fase do movimento, o período que começa com o
surgimento do monge José Maria, alegado irmão de João Maria, até sua morte, na batalha
do Irani. Tido como santo pelo sertanejo, encarnou as suas esperanças mais latentes,
naquele momento histórico-social. Agregando um respeitável contingente de soldados e
adeptos, organizou e liderou a defesa do grupo que encabeçava, contra soldados do
Paraná. Os governantes paranaenses supunham que se tratava de uma invasão
catarinense do território disputado pelos dois Estados. A liderança do monge aconteceu pelo
“prestígio”, isto é, o povo se submetia a ele por acreditar em sua santidade e poder. A
Questão dos Limites serviu para dar uma atmosfera constantemente belicosa à região. Com
a emancipação do Paraná, elevado à condição de “província” separando-se de São Paulo,
os limites com Santa Catarina começaram a ser questionados. No século XVIII, os
excedentes de agregados das fazendas paulistas se deslocaram para o Sul, à procura de
terras onde se estabelecer. Um exemplo disso no Planalto Catarinense foi a fundação de
Lages, que se tornou a principal cidade da região na época. Como anteriormente formavam
uma única província com os paulistas, parece que tal fato deu aos paranaenses a impressão
de que seus domínios se estenderiam muito mais ao sul daquilo que costumeiramente se
alegava. Como se tratava de região muito rica na extração de madeira, não queriam abrir
mão daquilo que julgavam ser seu direito. Com o embrutecimento das partes, houve a
politização da causa, pela interferência dos coronéis” fazendeiros optando pelo lado que
melhor atendia aos seus interesses. Com isso, vários foram os sertanejos treinados na
utilização de armas de fogo, uma prevenção para a eventual eclosão da guerra pelos limites
dos Estados. Tal capacitação foi amplamente utilizada, não para o estabelecimento de
fronteiras pela imposição das armas, mas na deflagração da Guerra Santa.
A região respirava o cheiro de pólvora. É impressionante o quão instável era o seu
ambiente. As revoltas Farroupilha e Federalista afetaram diretamente os campesinos do
meio-oeste catarinense, e ainda a Guerra do Paraguai. no início do século XX,
percebemos que a razão de se acelerar a construção da ferrovia ligando São Paulo ao Sul
do país foi, também, a guerra iminente. Em 1910, um telegrama pouco amistoso entre os
governos da Argentina e do Brasil colocou os dois países à beira do enfrentamento armado.
A ferrovia daria ao país rapidez no deslocamento de tropas para o front, caso a guerra
estourasse. Para que alcançasse a proximidade da fronteira com o Uruguai, diante da
95
urgência da conclusão das obras, foram recrutados trabalhadores no norte do Rio Grande
do Sul. Porém, premidos pela necessidade de grande contingente de trabalhadores, o
governo deportou para a região toda espécie de bandido e mau elemento, todos os que
eram recolhidos em batidas policiais: criminosos, desocupados, todos os que eram
reprováveis aos olhos da sociedade da época, foram recolhidos e enviados para trabalhar
na ferrovia. Estes eram submetidos ao trabalho, sem possibilidade de fuga. Outros, “homens
livres” tentados pela promessa de excelentes salários, transferiram-se para a região para
trabalhar no assentamento dos trilhos. Apenas para as margens do Rio do Peixe, fala-se no
expressivo contingente de dez mil pessoas, o que pode ser explicado pelo fato de alguns
irem com suas famílias. Embora possa parecer um montante exagerado, se harmoniza aos
relatos de que o vale no qual corriam, placidamente, as águas, inóspito e quase desabitado,
repentinamente se tornou densamente populoso, uma necessidade para que os trabalhos
da ferrovia não fossem interrompidos. Com tudo isso, percebe-se o quanto o ambiente do
oeste-catarinense era beligerante e violento, à época da eclosão da Santa Religião. Não
apenas as guerras e seus rumores contribuíram para isso, mas o banditismo que tomou
conta da região. Os sertanejos nativos do oeste-catarinense, que se alistaram para trabalhar
na ferrovia pela atraente oferta salarial, em dia de pagamento temiam pela própria vida, pois
eram comuns as emboscadas para o latrocínio. Para se ter uma idéia da intensidade da total
insegurança, a própria ferrovia teve que compor um corpo de segurança de 200 homens,
para prevenir o roubo de “seus cofres” na hora do pagamento (CABRAL, 1979, pp. 100, 101,
102).
Outro fator que contribuiu para que a mistura transbordasse o caldeirão foi as
atrocidades cometidas pelo capitão Palhares, comandante do referido Corpo de Segurança
da construtora da estrada de ferro. Porfírio Dias narra que, sob as ordens do facínora, os
posseiros surpreendidos nas terras que lhes foram expropriadas em benefício da
construtora, eram assassinados, mulheres e filhas violadas diante de pais e maridos
amarrados, e todos degolados sumariamente, para não desperdiçar balas (FELIPPE, 1995,
p. 81). Instaurou-se o terror em favor da companhia, verdadeira ditadura do medo. O ódio
que se acendeu contra a empresa, bem como o contra o governo que a contratou e aqueles
que se beneficiavam dela, foi o estopim para a ferocidade sertaneja que se seguiria.
II. A CRISE SOCIAL
A chegada de elementos de fora e a sociedade caótica que se instaurou, trouxeram
um novo sistema de vida e práticas de costumes pouco conhecidos, interferindo nos pilares
da religião, promovendo aculturação. Podemos dizer que a aculturação é para a
antropologia o que o sincretismo é para o campo específico das ciências da religião:
96
basicamente uma relação de troca, percentualmente determinada pelas necessidades e
anseios do meio social vigente. O caos social causado pela insegurança descrita acima
seria ainda mais intensificado. O contrato firmado entre a Brazil Railway e os trabalhadores
vindos de outros estados, continha uma cláusula na qual a construtora ficaria responsável
pelos deslocamentos dos operários, não apenas trazendo-os de seus lugares de origem,
mas levando-os de volta ao término dos trabalhos (CABRAL, 1979, PP, 102, 103; FELIPPE,
1995, p. 81). No entanto, quando os dormentes finalmente “acordaram” ao som dos pesados
vagões carregados de madeira, o suor derramado, vertido em abundância no defloramento
da mata, secou pela falta de trabalho e pela quase inanição. Desterrados, impossibilitados
de retorno, desabrigados, desempregados, sem sustento, viram-se repentinamente ao
relento. Tal contingente logo se esperançou das mesmas expectativas do sertanejo crioulo,
posseiros escatológicos de uma terra prometida a outros, mas aberta a todo o que estivesse
disposto a acreditar nas palavras de João e José Maria. Os movimentos messiânicos são
caracterizados pela inversão social. É uma contra-cultura que busca em crenças latentes e
modeladas, a plausibilidade para transtornar a ordem social que predominava, ocasionando
a ascensão e a obtenção daquilo que o grupo, até então marginalizado, ansiava
(MONTEIRO, 1974, p. 11; QUEIROZ, 2005, p. 138). Assim, fica fácil entender o surgimento
do messianismo no Contestado, por ocasião do clímax da tensão social. Alguns elementos
devem ser destacados para entendermos as reais proporções da crise que ali se
estabeleceu.
II.1 A Concessão de Terras
Muitos campesinos não buscaram a legalização de suas posses, simplesmente, por
não acharem isso necessário. A propriedade informal era seriamente respeitada, a ponto de
serem negociadas e herdadas sem contestação. Especialmente neste caso, a consciência
do direito de posse se somava ao senso de hereditariedade, tornando a luta pela terra algo
mais do que matéria de justiça, legítima questão de legado e honra. Faz-se necessário
compreender que a vida do sertanejo da região era farta antes de serem expulsos da terra.
Conquanto eminentemente rudimentar, tinham suas roças de milho e feijão, criavam
galinhas e porcos, e, além disso, ao menos, uma vaca leiteira. Sob os cascos dos cavalos
trotavam pessoas e cargas. Dispunham, também, de caça abundante, principalmente de
porcos do mato e gado bovino sem dono (FELIPPE, 1995, p. 16).
O confronto pela posse da terra iniciou-se com o despertar repentino pela exploração
da erva-mate e a intensificação da extração da madeira. Até então, os fazendeiros
toleravam a presença de famílias em suas terras, que exploravam livremente a extração do
mate. Todavia, com a alta do preço da erva, a livre exploração pelos peões e camponeses
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passou a ser alvo de disputa com os fazendeiros. A ingestão da bebida à base de tais
folhas, aparentemente, foi costume assimilado pelos brancos dos Guarani e Carijó. Quando
escravizaram tais índios, os moradores da região de Curitiba “descobriram” o chá. os
paulistas e portugueses, provavelmente adotaram o hábito pelo contato com os espanhóis
do Prata e os indígenas dos Sete Povos. Embora chamada de “erva”, o mate, na verdade, é
extraído de uma pequena árvore, que pode alcançar até dez metros. Suas folhas escuras
são processadas para produzir a bebida, bastante apreciada no Sul do país, nos países
platinos e no Paraguai. Araucárias eram abundantes. Imbuais, cujos troncos podem chegar
a um metro e meio de diâmetro, também compunham os bosques (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, pp. 18, 31), alvo do interesse de muitos. Soma-se a isso a inescrupulosa atividade da
Lumber, madeireira do mesmo proprietário da Brazil Railway, a empresa encarregada pela
construção da ferrovia. Estabeleceram-se vários “lados” na disputa: os campesinos,
desterrados e abandonados à triste sorte; o interesse estrangeiro, representado pelas
empresas citadas; os políticos, interessados em benefícios regionais e pessoais, e os
fazendeiros, que se dividiam quanto à presença estrangeira, atraídos pelo “negócio”, mas
temendo a diminuição do poder que exerciam no modelo social estratificado que
predominava até então. Em meio a tudo isso, a terra até então habitada pelo campesino foi
loteada pelo governo para a exploração estrangeira e o favor político dos mais chegados.
II.2 O Interesse Estrangeiro
No ano do desaparecimento de João Maria II, 1908, a Estrada de Ferro São Paulo
Rio Grande ligava a capital paulista a União da Vitória, tendo sido inaugurada a ponte
sobre o Rio Iguaçu. Havia cerca de dois anos, a concessão pertencia a um grupo francês,
que acabou cedendo seus direitos a uma companhia estadunidense, aparentemente,
constituída especificamente para isso, chamada Brazil Railway Company, sediada em
Portland, Estado do Maine. Pertencia a um dos maiores conglomerados mundiais de
empresas da época. Também passou a controlar ou ter ingerência sobre outros trechos da
malha ferroviária brasileira, como a rede ferroviária gaúcha, a Sorocabana, a Paulistana, a
Mogiana, a Vitória Minas, a Madeira-Mamoré, além de portos como o Port of Pará e a
Companhia do Porto do Rio Grande do Sul. Certamente, o conceito de monopólio era
desconhecido dos governantes da época. Na ferrovia que atravessava a região Contestada,
o governo federal concedeu à empresa a posse de vastas áreas de terras, correspondente a
quinze quilômetros em ambos os lados da ferrovia, sem considerar os que ali habitavam.
Como se não bastasse, a fim de se apropriar do máximo de terra, o traçado da ferrovia se
tornou deliberada e exageradamente sinuoso. Diante de tão vasta região a explorar, a Brazil
Railway criou uma subsidiária chamada Southern Brazil Lumber and Colonization Company.
98
Comprou cento e oitenta mil equitares ao sul do Rio do Peixe e fez contratos de exploração,
também, com os fazendeiros da região, que lhe forneciam os pinheiros e as madeiras de lei
que se encontravam em suas propriedades. Assim, escolheu o município de Três Barras
para estabelecer uma grande serraria e outra menor em Calmon, ao lado da Estrada de
Ferro São Paulo Rio Grande (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 69, 71, 73, 74).
II.3 A Estratificação Social
Na segunda metade do século XIX, as fazendas eram verdadeiros “caldo de cultura”
de brasilidades. Muitas das mãos que eram colocadas à obra eram negras, tanto na lavoura
quanto no trato doméstico. Junto com eles, moravam os peões, indivíduos que se
distinguiam dos escravos domésticos tão-somente na aparência, pois trabalhavam pela
comida e pelo abrigo, portanto, não remunerados, dormindo nos cantos dos galpões. Entre
eles estavam alguns índios “branqueados” pelos jesuítas, antigos moradores de missões.
Muitos dos peões se transformavam em agregados. Estes eram aqueles que se casavam e
constituíam família e passavam a residir na fazenda trabalhando para o proprietário.
Recebiam em troca, uma gleba, que, por sinal, vivia semi-abandonada pela sua absoluta
falta de tempo, absorvido pelo trabalho da fazenda. Quem cuidava da terra era a mulher. Os
relacionamentos pessoais no agreste Contestado eram fortemente marcados por uma
inflexível hierarquia social. Na verdade, era uma forma de sociedade nuclear, onde
indivíduos e famílias inteiras de gente simples orbitavam, cada qual, seu fazendeiro. A
concentração de renda significava e determinava acúmulo de poder. Aparentemente, a
disparidade ou “abismo social” entre patrão e empregado era tamanho que se assemelhava
a de senhor e escravo. Cabe ressaltar que os agregados desempenhavam papel
importantíssimo para os grandes fazendeiros: além da enxada e do laço, manuseavam as
armas, compondo genuínas forças para-militares. Os fazendeiros metamorfosearam-se em
autênticos caudilhos. Além de ricos, tornaram-se chefes armados na defesa de seus
territórios. Não tinham escrúpulos em ordenar o uso de violência, mesmo ao custo de
algumas vidas (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 29, 43; MONTEIRO, 1974, p. 19;
BLOMER, 2000, p. 50).
Os agregados compunham uma grande família. Era comum os senhores
dispensarem-lhes, bem como, às suas famílias, os mesmos cuidados que mostravam a seus
próprios filhos. Também, os grandes senhores de terra costumavam ampliar seu círculo de
influência, estendendo sua proteção a pequenos proprietários e vizinhos em dificuldades,
criando “pequenas federações” que lhe devotavam total lealdade. Assim, o benefício do
fazendeiro era o benefício de todos. Lutava-se e defendia-se a fazenda como sua própria
casa e família. Geralmente, os senhores de terras repartiam algum benefício com os
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agregados, mas nunca na medida dos infortúnios. Jamais chegava a ser associado do
fazendeiro. Contudo, quando qualquer desgraça se abatia, não era apenas a família
consangüínea, pequena se comparada à “família” maior que sofria, mas atingia a todos,
sendo mais sentida pelos “parentes distantes”. Se uma crise financeira obrigava o senhor a
vender seus escravos, quanto ao agregado, meramente o dispensava. Tal fenômeno, dentro
dessa sociedade estratificada, produzia uma população “sem-terra”, sem gado, sem o
necessário para a simples sobrevivência, um povo de pobreza permanente. Assim, diante
das dificuldades, o fazendeiro tendia a se desfazer de seus agregados mais chegados, mas
jamais de algum pedaço de suas grandes extensões de terra. A conseqüência inevitável é a
constante insegurança social.
A estratificação social tenderia à extinção pela fragmentação das grandes
propriedades nas heranças aos filhos, não fosse a atitude dos fazendeiros para evitar que
tal acontecesse. Aparentemente preocupados com a posse de suas terras em benefício de
sua família mesmo após a sua morte, elegia o filho mais capaz nos negócios da fazenda,
passando-lhe a propriedade integral, tentando consolar os outros com a doação de bens
menores. O agregado, por sua vez, não recebia nenhuma herança. A única forma de obter
alguma terra seria por sorte, dinheiro ou prestígio, coisas incomuns em seu universo.
Dependente totalmente do fazendeiro, na época próxima à eclosão da Santa Religião, a
precisão não poderia ser satisfeita pela busca de novas oportunidades em outras fazendas,
devido ao excedente de peões. O flagelo seria o seu companheiro. Não encontrando lugar
para se estabelecer com a família, demandaram o sertão, indo se estabelecer em lugares
longínquos, em terras do governo ou das quais se desconheciam os donos. Habitavam em
pequenos ranchos construídos por eles mesmos. A vida deles era semi-indígena. Viviam da
caça e da pesca, da extração do mate, plantando uma pequena roça para subsistência e
para troca com algum bem necessário, tais como sal, farinha querosene, munição e peças
de roupa (CABRAL, 1979, pp. 89, 93, 94; MOURA, 2003, p.29).
Quanto à consciência de si mesmo, o sertanejo se via como um povo formado por
muitas etnias. Mostra-se atônito, sem explicação para seu infortúnio, pois se consideravam
herdeiros sanguíneos não apenas dos povos que formam o alicerce do brasileiro (português,
africano e ameríndio), mas, também, dos povos enxertados posteriormente no tronco étnico
da nação. Aparentemente, o pertencimento e o direito à terra, por que não, à própria
existência, é buscado na tentativa de estabelecer alguma identidade. Ter direito a terra era
ser identificado cidadão na nação. O verso abaixo, pertencente ao ambiente da época,
demonstra frustração latente, o reclame pelo reconhecimento de ser brasileiro.
Quem somos nós?
Semo puros brasileiro
Português com africano,
100
Nosso sangue tem mistura
De alemão com intaiano,
Mais de bugre e polomês
Banderante e paulistano”
(FILIPPE, 1995, p. 13).
É curioso observar que na percepção deles, uma das primeiras influências de
sua própria formação étnica é o africano.
II.4 O Abandono Religioso
A pobreza que se instaurou na região Contestada não devia fazer contraste com os
vigários que por ali passavam, uma vez que eram exclusivamente da ordem franciscana,
conhecida por sua opção não apenas pelos pobres, mas pelo estilo de vida simples e frugal.
É de se estranhar as cobranças, às vezes, aparentemente abusivas, feitas pelos sacerdotes,
pelos serviços que prestavam, embora autorizados para tal, a ponto de suscitar o descrédito
e a desconfiança da caboclada. Quanto ao que se dizia de José Maria, não havia coro entre
o povo e os padres. Embora franciscanos na doutrina, mostravam-se uníssonos gregorianos
quando o assunto era o último monge. Não havia, nem mesmo, uma “segunda voz”:
afirmavam-no do pior caráter, propalando seus supostos desvios morais e a exploração do
povo simples. Euclides J. Felippe, ironizando os padres, utiliza refinado cinismo para
mostrar que a toada popular tinha outra melodia e letra (FELIPPE, 1995, pp. 66-71). A
Região Contestada era um universo sertanejo. Era o mundo dele. Cabia-lhe providenciar por
si mesmo tudo o que fosse necessário à vida. Os campesinos não dispunham de médicos
ou remédios, carentes mesmo de palavras de alento nos constantes reveses. Os vizinhos
eram os que auxiliavam de alguma forma, indicando alguma erva ou simpatia conhecida.
Assim, a morte era vista com naturalidade, como algo do dia-a-dia. Se um filho enfermava, a
mãe se responsabilizava pelos seus cuidados na rusticidade de seus meios e
conhecimentos, chás e emplastros, enquanto o pai assumia o mínimo irredutível da lide
doméstica. Diante da aflição da piora, buscava-se um benzedeiro, às vezes à grande
distância. O mais, era aguardar com resignação a melhora ou a morte. No entanto, ao invés
de uma consciência fragilizada, via-se a frieza de um povo de emoções calejadas pelos
constantes atritos com a própria existência de abandono. A assistência dos padres era mais
que insipiente. O sertanejo, geralmente analfabeto, conhecia da religião católica algumas
coisas retidas na mente, por algum encontro ocasional com padres nas fazendas ou nas
cidades. Estes eram geralmente estrangeiros, de compreensão sofrível para o homem
simples. Assim, a religiosidade campesina era herdada. Os conceitos e narrativas dos
santos eram repassados por “tradição oral”, o que oportunizava certo dinamismo nas
reformulações, atualizações e re-interpretações. O fato de ser a religião sertaneja uma
101
confissão sem “cânon”, não escrita, dava ao seu portador não apenas o senso de posse,
mas, igualmente, de soberania quanto ao seu conteúdo. O teor deste era a sua
interpretação. Novos princípios e práticas religiosos emprestados de outras culturas, como a
ameríndia e a negra, poderiam ser assimilados, amalgamados àquilo que compunha a
religiosidade deles. Sob a pressão dos acontecimentos, poderia rapidamente ser moldada,
acrescida ou adaptada dos elementos necessários para responder às demandas do
momento. Isso nos ajuda a compreender como tão facilmente surgiram movimentos
religiosos como o do Contestado (CABRAL, 1979, pp. 96-98).
III. SURGE JOSÉ MARIA
III.1 Informações Biográficas
Alguns acontecimentos anunciam a chegada de um novo profeta. Em 1911 houve
um boato que João Maria havia aparecido novamente, agora nas cercanias de Campos
Novos. Aquele foi um ano muito difícil para o homem do campo. Os taquarais não floriram,
e, conseqüentemente, não houve semente. Pela escassez de alimentos, as ratazanas do
campo invadiam paióis, plantações, e, até mesmo, as casas, à procura de cardápio
alternativo àquele habitual, trazendo grande transtorno. Além de tamanha praga, aquele foi
o ano que marcou o início das primeiras expulsões daqueles que ocupavam as áreas
marginais da Ferrovia São Paulo Rio Grande, de propriedade da Brazil Railway. Dezenas
de ações de usucapião contra a expulsão dos colonos foram negadas pelo governo de
Santa Catarina (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 72, 73). Foi exatamente onde
supostamente João Maria havia retornado a Campos Novos, que, cerca de um ano depois,
surge seu sucessor Miguel Lucena Boaventura, vulgo José Maria de Santo Agostinho. É
descrito como mestiço, cabelos compridos e barba espessa. Vestia roupa rudimentar, a
base de brim, e, como era costume do sertanejo, às vezes descalço, ou, calçando tamancos
e meias grossas com as quais prendia a boca das calças. Fumava fartamente cachimbo, o
que lhe dava uma coloração escura aos dentes. Tinha a cabeça coberta com um boné de
jaguatirica, que se assemelhava ao de João Maria, mas adornado com penas e fitas. Um
médico o descreveu como tendo o biótipo caboclo: lábios grossos, nariz achatado e
avantajado, zigomas salientes, fronte curta, orelhas grandes, baixa estatura, mas
corpulento, grande cabeça em desproporção aos membros curtos (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, pp. 77, 103). Nos idos de 1912, iniciou seu “ministério”, percorrendo a área em disputa
por Paraná e Santa Catarina (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 14).
José Maria compareceu à Festa de Bom Jesus do Taquaruçú, que iniciou as
comemorações no dia 6 de agosto de 1912. Disparos de armas de fogo, como primitivos
102
fogos de artifício, pipocavam seus estampidos, atraindo gente de todos os lados, homens
mulheres e crianças. Fluxos de pessoas “escorriam” para o centro da Vila, como um grande
formigueiro remexido. Como era comum em tais festejos, trovadores, repentistas do Planalto
Catarinense, cantavam suas rimas e desafiavam-se mutuamente. O povo reunido
aguardava o embate entre dois famosos repentistas, Juca Teles e Alvim Alves. No meio da
disputa cantada, Alvim dispara:
Monarquia é lei de Deus
Que pra nóis foi a premera,
E será a derradera
Que por fim triunfará:
- Quem falô foi João Maria
- Que as lei repubricana
- Feita por gente tirana
- Poco tempo hão de dura
(FELIPPE, 1995, p. 78).
Teles, revida saindo em defesa do monge:
João Maria nunca falô
Contra as lei Repubricana
Só falô, é que os sacana
O Brasir iam sufocá:
- Ele viu que novas era
- De tristeza e sofrimento,
- Iam muda rumo do vento
- Nóis devia se acautelá
(FELIPPE, 1995, p. 78).
Ao final da trova, entre palmas e gritos que abafavam os últimos acordes das
sanfonas cansadas, ouviram-se referências positivas à monarquia, pica do habitante do
sertão totalmente alheio à preferência republicana, acostumado à monarquia. Esse foi o
argumento utilizado pelo Cel. Albuquerque para incitar o governo federal contra os caboclos
catarinenses (PEREIRA DE QUEIROZ, 1957, p. 18). Tal estratégia como meio de abafar
movimento messiânico retrocede ao Messias Bíblico. Conforme as Escrituras Cristãs, o
Cristo foi condenado pelos romanos acusado pela liderança judaica de ser um insurgente
(Mt 27.11 Bíblia), inimigo do Império Romano. Por isso, em sua cruz foi pregada, pelos
romanos, a epígrafe em grego, latim e hebraico: Jesus Nazareno, O Rei dos Judeus (Jo
19.19, 20 blia). À mistura fervente, foram acrescentados novos ingredientes. A toda
circunvizinhança foi anunciado que José Maria estava em Taquaruçú distribuindo remédios,
aguardando o retorno iminente de seu irmão João Maria (FELIPPE, 1995, p. 80). Tais
notícias soaram como o sinal tanto ansiado e esperado.
Por admitir abertura e liberalidade não encontradas em seus predecessores,
inicialmente foi identificado, mas com certa desconfiança, ao ancião João Maria. Quando
questionado se era, de fato, irmão de velho monge, utilizando o espírito matuto do sertanejo,
respondia com evasivas, mas, aparentemente, sem jamais negar o fato. Isso não precisa ser
103
entendido como atitude de “má fé”. É possível que José Maria acreditasse realmente herdar
o espírito dos monges, uma espécie de parentesco espiritual com o profeta anterior
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 80, 81). É provável que a identificação como irmão de
João Maria seja deliberada. A adoção do nome “José” pode ser uma alusão proposital ao
nome do padrasto de Jesus, eminentemente messiânica, o que sugere a composição com
“Maria”. Esta adição, que aproxima bastante o nome do antropônimo de seu antecessor,
pode ter como base a prática comum nos sertões de dar nomes parecidos aos filhos. Dessa
forma, “José Maria” bem que poderia ser irmão de “João Maria”. Além disso, a designação
“de Santo Agostinho”, assumida por José Maria, liga-o diretamente ao primeiro monge João
Maria, chamado “de Agostini” ou “de Agostinho”. Isto seria uma espécie de sobrenome que
vincularia diretamente o último monge ao primeiro. Possivelmente, tinha consciência que
sua concepção de monge diferia consideravelmente do “irmão mais velho” e famoso. Pode
ser que pretendesse ter um outro tipo de “ministério”, talvez mais afeito ao inconformismo
com a situação que o sertanejo enfrentava. Por ser antigo soldado, é provável que não
tivesse o longo pavio do primeiro João Maria. Certamente, o fato de ter liderado o combate
do Irani mostra até onde ia a sua disposição. Assim, por se apresentar como irmão de João
Maria, pode querer deixar implícita a sua associação, mas não igualdade. Parece ter
consciência das diferenças inerentes ao seu projeto monacal, se comparado ao antecessor.
Assim, como uma espécie de simbionte, necessitava preservar vivos o mito e a memória de
João Maria. Se foi deliberado, José Maria mostrou muita argúcia em seu método. Herdou a
fama, mas com a liberdade de trabalhar sua personagem. Tal estratégia parece ter sido vital
para sua aceitação como monge, e, conseqüentemente, para explicar e validar as
diferenças em relação a João Maria. Pode ser que a afirmação de que José Maria era irmão
de João Maria tenha sido produto de um mal entendido. É possível que a informação de que
era irmão de João Maria tenha sido uma confusão causada pelo seu uso comum de se
referir ao primeiro monge como “nosso irmão”. Aliado a isso, o fato de ter aparecido em
Campos Novos à época em que estava marcado o retorno de João Maria e a adoção de um
nome semelhante, parece ter levado à identificação parcial com João Maria, originando um
novo monge (FELIPPE, 1995, pp. 73, 75). Todavia, se foi esse o caso, é estranho que não
haja registros de insistentes desmentidos, de sua parte, de tais crenças. Aparentemente,
ainda que não tenha originado as crenças, ao menos as aceitou de bom grado, assimilando
novo personagem. Mesmo que tenha sido o caso de ser o povo o verdadeiro produtor do
parentesco entre João e José Maria, é bem provável que o último “tolerasse”
convenientemente tal associação.
É igualmente possível que a transformação de Miguel Lucena Boaventura em Monge
José Maria tenha ocorrido de maneira gradativa. Podemos considerar a seguinte
possibilidade. Sendo curandeiro por profissão, teria tentado “ganhar a vida” com tal prática.
104
No entanto, a fama de monge” certamente o favoreceria enormemente. Talvez não tivesse,
de fato, ganância, mas o desejo de ser conhecido e respeitado pelo que fazia. Assim, pode
ser que tenha visto na “encarnação” de um novo monge a forma de tornar notório o trabalho
que parecia dedicar a vida. Era um especialista na prática de algo semelhante ao
xamanismo. Maurício Vinhas de Queiroz nos informa que era hábil médico “homeopata”,
dispondo de um caderno de anotações, onde catalogava as ervas por seu efeito e eficácia,
chegando a compor uma farmácia popular. Cobrava de quem podia pagar, mas, segundo
consta, para assistir a necessitados. Em suas receitas, produzidas por amanuenses que o
auxiliavam, a presença do número sete e seus múltiplos era freqüente, motivada pela crença
comum no agreste catarinense de que tal número continha força mágica. É provável que
haja aí a influência do catolicismo, uma vez que o “sete” é número emblemático nas
Escrituras Cristãs, especialmente no Livro de Apocalipse. Percebemos que a partir de
suas receitas, a idéia escatológica transparecia. Informa-nos o mesmo autor que eram
comuns na região rezas escritas que eram cosidas em patuás e utilizadas para “fechar o
corpo” e coisas do gênero, algo que, em sua opinião, leva à conclusão que as receitas de
José Maria passaram a ter o mesmo tratamento (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 81).
III.1.1 Monge Quer Casar
Ainda em 1911, José Maria mostra uma vocação que definitivamente o diferencia de
seus antecessores: viveu maritalmente com uma jovem, com quem tinha a clara intenção de
contrair núpcias. Foi nesse ano que reaparece na casa dos pais da moça, ladeado por ela,
depois de conviver algum tempo, tendo-a como companheira em seu santo ministério. Na
verdade, os fatos ocorridos dão conta de que, ao passar pela região para fazer orações,
havia algum tempo, “fugiu” com a filha de um tal João Alemão. É importante lembrar que tal
“rapto” era costume campesino da época, que ainda hoje é visto com certa naturalidade em
algumas regiões do Brasil. Na visita do casal aos pais da moça em novembro de 1911, foi
preso para averiguação. Investigados os fatos, em depoimento na delegacia, a jovem
declarou que o acompanhava de livre vontade, tendo ambos manifestado o desejo do
matrimônio. Não vendo nada a desabonar a atitude do homem, o delegado o mandou soltar,
o que mostra a probabilidade da jovem ser maior de idade (VINHAS DE QUEIROZ, 1981,
pp. 79, 80). Tal fato se reveste de certo interesse em nossa análise de José Maria. A grande
marca distintiva da santa missão de José Maria era sua maior proximidade do povo, não
apenas física, ao conviver com os seus adeptos, mas, também, sua “humanidade”. Fazia
parte do mito dos monges atribuir a estes alguma parcela de divindade: eram santos.
Contudo, a ênfase no aspecto sobrenatural, conquanto gerasse no povo a confiança no
poder e nas promessas que faziam, paradoxalmente causava distanciamento, claro exemplo
do medo que o sagrado impõe ao homem rústico. Contudo, a maior abertura e proximidade
105
do último monge impingiu-lhe enorme carisma entre a população, que, ao invés de
recriminar sua “humanidade”, aparentemente, percebia nela real empatia, a sacralização da
vida simples que viviam. Assim, ao invés do sagrado se impor ao secular, possivelmente se
deu o contrário.
O romance monástico se tornou público e ferramenta na mão dos inimigos de José
Maria, que procuravam denegrir sua imagem. Contudo, na mente do povo ficava patente
que o monge santo era como um deles. É interessante notar que a alegria monacal durou
pouco. Não se sabe o motivo, mas o matrimônio jamais se concretizou. Seria essa uma
pista que, na mente do sertanejo, o distanciamento do sagrado é mais importante do que a
aproximação secularizada? Fernando Santos Granero nos mostra algo curioso. Nos líderes
da sociedade cornanesha, a liberalidade e a generosidade na distribuição dos bens não
eram compensadas com a poligamia, como é típico nas comunidades ameríndias. Não
significa que a prática de se ter várias esposas fosse desconhecida deles, pois outras
pessoas de destaque na comunidade, como os xamãs, eram, comumente, poligâmicas.
Todavia, os sacerdotes não podiam imitá-los, exatamente por motivos religiosos. “Com
efeito, a abstinência ou moderação sexual, junto com outras práticas ascéticas, eram
consideradas como facilitadoras do contato do homem devotado com a esfera divina”. O
relacionamento do líder cornanesha com seus liderados era sempre assimétrico. O fato de
ser-lhes negada a poligamia submetia o povo a uma condição de devedores. A renúncia da
experiência poligâmica, na verdade, objetivava o acúmulo de poder. Trocavam o prazer
sexual pela satisfação de serem plenamente obedecidos. Algo semelhante pôde ser
percebido entre os sacerdotes Amuesha. A dedicação “exagerada” deles no benefício do
povo contribuía para a construção de um poder moral. Aparentemente, o que Granero quer
acentuar, é que tanto a proibição da poligamia para os líderes cornanesha, bem como, as
doações generosas e a notável dedicação dos sacerdotes Amuesha contribuíam para
reforçar neles a noção altruísta e sacrificial, gerando um débito moral do povo para com
eles. Na opinião do autor, a intensidade dessa desproporção é tamanha que gera um poder
maior do que aquele exercido pela força, ou seja, o poder moral é mais forte do que o poder
coercitivo (GRANERO, 1992, p. 221, 222). Curiosamente, João Maria I e II não eram
abstinentes, como repassavam ao povo os donativos que recebiam. A idéia de colocar o
povo em “dívida”, em relação assimétrica, parece se encaixar no procedimento destes
monges. no caso de José Maria, é possível que o casamento diminuísse
acentuadamente tal “débito”, forçando-o à atitude contrária. O sagrado se tornaria
excessivamente secular. Deve ser, ainda, considerado, se colocaria em condição de
inferioridade aos padres do sertão, que, teoricamente celibatários, espalhavam muito mais
do que sementes do evangelho. É fato que esse comportamento foi um dos fatores
causadores do descrédito do catolicismo oficial. Por esta argumentação, é possível que
106
paire como possibilidade para a malfadada experiência amorosa do monge, sua opção pelo
poder moral em detrimento do prazer conjugal.
III.2 Sertanejos Crentes e Descrentes
Para grande parte dos sertanejos roubados de suas terras, José Maria torna-se
inquestionável. Pegando carona na influência dos negros islamitas vista nos patuás com as
rezas para “fechar o corpo”, poderíamos dizer que, para os adeptos da Santa Religião seu
lema quanto a José Maria, enquanto ainda vivo, bem poderia ser: “João Maria é o nosso
santo, e José Maria, seu único profeta”. Embora José Maria fosse crescendo na concepção
popular como “santo”, seu personagem tinha sentido na ligação com João Maria. Uma
das evidências disso, veremos mais à frente: a crença que sobreviveu foi a no primeiro
monge. O último monge não se tornou relevante. Em paralelo à “canonização” popular e
informal do monge por grande parte do habitante dos sertões do Contestado, havia uma
parcela da população que se mantinha incrédula (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 104). Da
mesma forma que, para os crentes, o mito positivo do monge aumentava suas supostas
realizações sobrenaturais, ditos, promessas, etc., na parte incrédula muitas coisas foram
ditas contra a conduta e as intenções de José Maria, em alguns casos, uma tida tentativa
de desaboná-lo. O mito “negativo”, o valor modular contrário ao positivo, era gerado na
parcela que não foi contagiada pelo messianismo. De certa forma, falando-se de religião, na
medida que cresce a aceitação de um líder religioso por uma parte da população,
simultaneamente aumenta na mesma proporção a rejeição na descrente. Talvez os fatos
narrados na Bíblia quanto àquilo que ocorreu com o Cristo seja um bom exemplo disso.
III.2.1 Uma Religião “Contestada”
Na tentativa de fazer coagular e secar rapidamente o sangue derramado por causa
da penúria imposta à maioria dos sertanejos do Planalto Catarinense, o movimento logo foi
rotulado como “fanatismo”, um termo que, na verdade, tem a intenção de transmitir o sentido
de “hereges”, “foras da lei” não apenas dos homens, mas de Deus. Pintar um quadro
aterrador dos adeptos era indispensável para desacreditar a causa, especialmente nas
sociedades urbanas do país. Desta forma, avaliando a reação jagunça tendo como pano-de-
fundo a metrópole, julgaram a expressão da fé popular e sertaneja do Contestado, isto é,
suas crenças, ritos e práticas, à luz do que se pensava e se cria nas cidades. Era uma
análise do “superior” para com o “inferior”, perpetrada por jornalistas, militares e formadores
de opinião (ESPIG, 2008, p. 95). A Santa Religião foi, em todos os sentidos, uma religião
“contestada”. Rotulada de “fanatismo” pela religião oficial e “insurreição” pelo governo, foi
preterida e maldita por boa parte da população que não aderiu ao movimento. Certamente,
107
sua rejeição não foi resultado, tão-somente, de reprovação religiosa e governamental, mas
do temor de ver muitos interesses afetados. É verdade que, posteriormente, naquilo que
chamamos de “quarta fase do movimento”, a religiosidade se degenerou, dando lugar à
insanidade e barbárie. Porém, o motivo da revolta não foi o fanatismo, mas a exclusão e a
não aceitação do movimento por parte de indivíduos que o via como uma ameaça ao
domínio socioeconômico que tinham. Então, pressionados a desacreditarem daquilo que
pretendiam ser a redenção da terra, os campesinos foram instigados a pegar em armas e
impor à o resultado esperado. Do ponto de vista dos vencedores, o principal culpado foi
os monges, João e José Maria. Acusados de serem pregadores de doutrinas subversivas,
teriam despertado em gente rústica e inculta o misticismo que serviu de base para a guerra.
com o primeiro João Maria, houve quem o acuse de ser o grande causador da crise que
se instalou na região, por incentivar uma espécie de fanatismo, estimulando a crença
sincrética e a prática de crendices. Esse discurso é encontrado de forma especial naqueles
que defendiam a ortodoxia católica, como os poucos padres que, embora em número
reduzido, eram ouvidos como fiéis expositores dos acontecimentos e da Religião
Contestada. Muitos relatos inverídicos e fantasiosos surgiram, levando a informações e
conclusões contraditórias, dispares, e, mesmo, antagônicas (VINHAS DE QUEIROZ, 1981,
p. 58; CABRAL, 1981, pp. 5-7). Tal exagero mostra a tendência de culpar apenas uma das
partes.
Portanto, “contestada” não foi apenas a região disputa por Paraná e Santa Catarina.
Contestada também foi a religião desenvolvida pelos insurgentes. Além da parcela de não-
aderentes da população do oeste-catarinense, havia a opinião pública, manipulada por
interesses políticos, econômicos e religiosos, tendo na imprensa da época forte aliada.
Destarte, os comentários que foram expressos pelos de fora da região Contestada, tanto
durante a Guerra como logo após o seu fim, davam conta de “rebeldes” e “fanáticos”.
III.2.2 “Desmitodemonização” de José Maria
Euclides J. Felippe parece sugerir a necessidade de uma “desmitodemonização” de
José Maria. Na verdade, transparece que em seus esforços, o demônio, tão-somente, muda
de lado. Assim, o Cel. João Gualberto, líder das forças do Paraná, é “demonizado” no
conflito do Irani. Conquanto haja registros da estranha” atuação do militar, qualquer
tentativa de enfatizar culpa traz grande risco. Acreditamos ser difícil saber se o demônio
está de um lado ou de outro. Provavelmente, em ambos, instigando o conflito e o maior
número de baixas. O autor, em defesa do monge guerreiro, registra depoimentos favoráveis.
Certamente, é provável que várias calúnias tenham surgido como conseqüência da
reprovação política e religiosa do movimento, fazendo-o alvo de muitos impropérios.
Todavia, em sua empreitada, Felippe parece construir um santo ideal, o protótipo da
108
Contestada, uma espécie de canonização histórica do último monge: a) não aceitava
dinheiro; b) nenhum dos retratos apresentados de José Maria é dele estereótipo de
caboclo malandro, ladeado de virgens vestidas de branco farsa maldosa; c) não entrava
nas barracas para manter relações sexuais com as virgens o povo o surraria; d) não teria
sido afeito a profecias. Conforme o autor, grande parte das inúmeras obras que tratam do
movimento trazem informações fantasiosas sobre a verdadeira atuação do último monge.
Mesmo a suposta profecia, atribuída a José Maria, quanto à sua morte e seu retorno, após
um ano, com o exército de São Sebastião, são igualmente, em sua opinião, invencionices
(FELIPPE, 1995, pp. p. 86, 116-119, 122). Também registra o depoimento de Petrolino
Ferreira de Almeida, filho do coronel Francisco de Almeida, que afirmava que José Maria
não era nenhum sedutor, ou explorador, muito menos, pessoa de maus conselhos: “Essa
estória de farmácia, de meninas virgens, de facões de pau, de Pares de França e outras
sandices que ainda andam por acerca de José Maria surgiram depois de um ano do
entrevero do Irani”. Além disso, diz nunca ter ouvido falar que ele era irmão de João Maria,
que não se apresentava como monge, e que era, tão-somente, um exímio curandeiro.
Argumenta que “se José Maria fosse só a metade do que inventaram dele após a sua morte,
teria há muito sido espantado do lugar” (FELIPPE, 1995, p. 73). Além disso, Felippe afirma a
veracidade de que José Maria passou cerca de um mês em Taquaruçú, pois o confirmam
vários sertanejos com os quais teve contato. Todavia, que ele dirigia terços, fazia narrativas
sacras, contava trechos da História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, que
estabeleceu para si uma guarda de 24 homens com o nome de Doze Pares de França em
cavalos brancos (onde os acharia?) e procissões com virgens-anjinhos vestidas de branco,
nada disso corresponde aos fatos (FELIPPE, 1995, p. 81). Diante de tal argumentação
podemos concluir duas coisas: 1) dificilmente, seria o caso, considerando tantos relatos e
estudos sobre o Contestado, de acreditarmos que todos esses elementos não passam de
invencionice; e 2) mesmo que fosse o caso, assimilados no imaginário religioso dos
adeptos, não faria a menor diferença.
III.3 Crenças e Práticas
III.3.1 Ressurreição
O início do “ministério” de José Maria foi marcado por um milagre-sinal. Conta-se
que, na presença de numerosa multidão, teria ele restaurado a vida a uma jovem que todos
davam como morta. Se este prodígio o possui registro mais detalhado e confiável, não
é o caso de outro célebre acontecimento: a cura da mulher de Francisco de Almeida, velho
fazendeiro da região, que, segundo conta, estava desenganada pelos médicos. Estes
109
milagres trazem um significado comum: morte e vida. Embora não sejam “ressurreições”
literais, possivelmente assimilaram este significado no imaginário popular. O fato de estarem
à beira da morte, “sentenciadas” pelos médicos, estabelece a morte como certa, sendo o
expirar um mero detalhe. Quando José Maria as cura, equivale dizer que as trouxe de volta
à vida. Um dos mais notáveis mitos quanto à volta de José Maria foi protagonizado por um
senhor, combatente do Irani, que percebeu ter sido alvejado cinco vezes apenas no final do
combate, ao sentir o sangue colando em sua espada de madeira empunhada e as primeiras
dores. Afirmou que a morte de José Maria foi seguida por sua fuga para as nuvens em um
cavalo. Devido a relatos como esses que, mesmo cinqüenta anos após a batalha do Irani,
ainda havia quem cresse que José Maria não havia morrido realmente, mas desaparecido,
sendo seu verdadeiro paradeiro desconhecido. Outra crença bastante forte que logo tomou
a imaginação popular foi a da ressurreição do monge combatente. Luiz Ferrante, segundo-
tenente que havia sido enviado ao conflito junto com o Cel. João Gualberto, sendo
farmacêutico, se dirigiu ao lugar da batalha para cuidar de feridos e constatar se, realmente,
o monge havia morrido. Em seu depoimento, conta que encontrou um jagunço de José
Maria que o guiou, confiando que tinha intenções pacíficas. No diálogo que se deu no
caminho, teve confirmada a morte do monge, mas, também, a notícia que seu corpo não
havia sido enterrado, mas deitado em uma profunda cova, escavada no local que tombara.
A intenção declarada é que pudesse ter facilidade para se erguer e sair no momento de sua
ressurreição, algo que julgavam iminente. Chegando ao local, percebeu que algumas tábuas
cobriam o que parecia ser uma cova. Apeou, levantou as tábuas e pode ver o corpo de José
Maria, em decomposição. Antes mesmo de soltá-las, se viu cercado por meia dúzia de
jagunços que lhe questionaram o que fazia. Percebeu que estavam sob o efeito de forte
fanatismo, crendo firmemente que se tratava de um santo, que fazia milagres de todo tipo e
que a qualquer momento ressuscitaria (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 77, 104, 105;
ESPIG, 2008, p. 94). É neste momento que a crença se robustece rompendo a barreira do
razoável. Diante da morte de José Maria, apenas duas possibilidades restavam: a admissão
do fracasso, não apenas do movimento, mas da própria fé que tinham, ou, o
desenvolvimento de crenças adicionais que viessem a reinterpretar os acontecimentos,
explicando-os e adaptando-os à luz de novas concepções religiosas, repotenciando o
movimento. A segunda opção foi a que exerceram. Nesse momento, as esperanças
robustecidas pela re-interpretação e a resultante re-elaboração dos acontecimentos, passam
a incorporar as expectativas escatológicas do povo.
O personagem central do movimento, o monge, torna-se um messias. O sertanejo
imprime-lhe aquilo que esperava para o futuro e à própria vida. O monge haveria de
ressuscitar, pois era o que desejavam para todos os que haviam morrido na batalha, bem
como, para eles mesmos, se igualmente tombassem. Viria com os exércitos de São
110
Sebastião vencer o Armagedom do Sertão”. Assim, o monge cede espaço a um novo
personagem, que, na opinião de Maurício Vinhas de Queiroz, inexplicavelmente surge para
dar sentido à esperança: São Sebastião, liderando um exército encantado. O sebastianismo
conhecido no sertão, reinterpreta e remodela a crença. O monge, agora, encontra sentido
em crenças portuguesas antigas. A ressurreição seria marcada pela vinda desse santo, e a
morte era, simplesmente, passar para o lado dos que estão com João Maria (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, pp. 108, 109). O autor acredita que a formulação do exército encantado de
São Sebastião pode ser uma tentativa de materializar o poder caboclo, ou, em suas
palavras, “a representação coletiva que a comunidade dos crentes fazia de sua capacidade
de luta”. Isso seria explicado, arrazoa, pela necessidade de ter um suporte transcendente
para o movimento. Um povo que se via sempre em inferioridade precisaria de um poder
externo, de características irresistíveis, para levar adiante a idéia do sucesso da causa
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 110).
A crença na ressurreição é de suma importância para a teologia rústica do
Contestado. O poder sobre a morte é, provavelmente, a idéia “vital”, que significado e
conteúdo à busca do sertanejo. Não importa viver ou morrer, a vitória está garantida.
Contudo, na ressurreição, conforme crida no esquema religioso dos adeptos de José Maria,
não está claro se os ressuscitados serão transmudados em um padrão imortal. Certamente,
o sertanejo não suporia que voltassem a morrer. No entanto, na teologia cristã,
“imortalidade” não é a impossibilidade de morrer, mas a essência do corpo ressuscitado. Os
ressuscitados terão corpos espirituais, isto é, serão refeitos pelo Espírito Santo. Embora seja
o mesmo corpo, há, nitidamente, uma mudança de essência, o que o apóstolo Paulo chama
de “incorruptibilidade”. O sentido disso é que o corpo ressuscitado é um “corpo de glória”, ou
seja, um corpo que recebeu a graça da ressurreição de Cristo, não podendo envelhecer ou
sofrer dano algum “incorruptível”. Tomando a figura do plantio de uma semente, ilustra o
sepultamento humano como a plantação de um corpo na terra. Assim como a semente
necessita morrer para que possa brotar nova vida, assim são os que crêem em Jesus Cristo:
“Pois assim também é a ressurreição dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupção,
ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória. Semeia-se em
fraqueza, ressuscita em poder. Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual. Se
corpo natural, também corpo espiritual” (1 Co 15.42-44 - Bíblia). Tal elaboração parece
sofisticada demais para o simples anseio Contestado. Possivelmente, pensavam, tão-
somente, como nova vida em lugar de felicidade.
Além disso, o que acontecerá aos que estiverem vivos quando do retorno glorioso
dos monges? Novamente, na tradição cristã afirma-se a transformação dos vivos, no mesmo
padrão de incorruptibilidade daqueles que estão voltando da morte, pois “a carne e o sangue
não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção” (1 Co 15.50 -
111
Bíblia). Na teologia cristã, a natureza humana, tal qual é hoje, não está habilitada a desfrutar
da glória futura, exigindo sua transformação ao padrão da incorruptibilidade, momento da
morte da morte, quando deixará de existir em toda Criação. Não está claro se, na
concepção do sertanejo, a vinda gloriosa de São Sebastião junto com os monges inclui uma
transformação dos que estiverem vivos para a herança da imortalidade. Aparentemente,
quando se fala de um reino sem fim, está implícita a participação ininterrupta dos seus
súditos. A crença na ressurreição inaugura a escatologia do movimento. Se José Maria não
morresse, não poderia voltar em glória. Embora isso ocorra dentro de uma re-interpretação
do passado, inserindo nele “profecias” que dêem base ao novo significado, o objetivo era a
formatação do futuro pretendido. Assim, morto o monge, era o sinal na História de que o
final se aproximava. O foco principal da atenção não era a parúsia de José Maria,
propriamente dita, mas a consumação da glória ansiada. Por causa disso, acreditamos ser
lícito dizer que, com a morte do derradeiro monge, inauguram-se os últimos dias” do
movimento Contestado. Essa expressão deve ser tomada em seu sentido espiritual, mas,
também, literal, uma vez que tal crença levaria à consumação do movimento. Buscariam a
concretização da fé que possuíam através de escaramuças e combates cada vez mais
intensos, conduzindo o movimento ao seu final. Se a Guerra Santa fosse bem sucedida e
grande extensão de terra fosse conquistada, diante da demora da ressurreição de José
Maria, provavelmente haveria uma nova re-interpretação do movimento. Possivelmente,
surgiria algum profeta vaticinando que o monge, teria voltado, mas espiritualmente, não
visível, e que teria adentrado a algum reino espiritual, permanecendo em estado de
encantamento. Pode ser que alguém surgisse afirmando ter recebido a coroa de João ou
José Maria, reivindicando o trono Contestado. Todavia, as dificuldades impostas pelos
combates, a carestia e as doenças, a confiança cega na vitória mística em detrimento da
organização nas batalhas, a falta de preocupação quanto a armas e estratégias mais
eficientes, e as intrigas internas, especialmente devido à liderança de Adeodato,
“profetizavam” o desastre. A esperança escatológica do sertanejo se viu completamente
frustrada, embora ainda houvesse quem acreditasse, mesmo depois da derrota e da
dissolução dos ajuntamentos, que o monge permanecia no Taió, existindo em algum estado
mágico.
III.3.2 A Conquista da Terra Prometida
Da mesma forma como a habitação na terra prometida viria com luta na saga bíblica
dos hebreus, assim também a batalha de São Sebastião significava guerra para os crentes
do Contestado. Percebe-se, nitidamente, que em meio às festas e às fogueiras, estava não
apenas o religioso, mas, também, o militar (FELIPPE, 1995, p. 91):
112
01
No lugá Taquaruçú
Vamo embora, não é longe
Lá se encontra Zé Maria
O irmão do Santo Monge
02
Tudo diz que João Maria
Bem loguinho há de vortá
Nesta Terra abençoada
Nada mais há de fartá
03
Diz que lá é Terra Santa
Os arroio são de azeite,
Tudos os morro é de cus-cúiz
E os rio, café com leite.
04
Quem quisé vencê na vida
Muito tem o que lutá,
Expursando os inimigo
O recurso é bataiá.
05
Bem por isso, nosso povo
Vamo tudo se juntá
Já que o sór nasceu pra todos
Há de tê pra nóis lugá
06
Todos que nos tempos ido
De suas posse foro expurso
Se quisé recuprá
Se arregasse e mostre purso.
07
Carecemo dum bom chefe
Há de sê Seu João Maria
Ele tudo há de acertá
N‟alguns mais ou menos dia.
08
Tudo nóis se encordoando
Nada há o que nóis torça;
No dizê dos nosso antigo;
É a união que faiz a força
A disposição para a guerra está clara: há necessidade da expulsão dos inimigos para
se alcançar a posse da terra. A expectativa da volta de João Maria e a doação de uma Terra
Prometida encontram paralelo na promessa a Abraão do “paraíso terrestre” que emana leite
e mel, (Êx 3.8, 17; 13.5; Lv 20.24; Nm 13.27. 14.8 Bíblia), contextualizando-a geográfica e
culturalmente em riachos de azeite, morros de cuscuz e rios de café com leite. Na
perspectiva do sertanejo do Contestado, é provável que João Maria pudesse, ainda, dividir o
mar (Êx 14.21 - Bíblia), fazer chover pão do céu (Êx 16.35 - Bíblia) e sair água da rocha (Nm
20.8 - Bíblia). À semelhança de Moisés, a figura do monge, João ou José Maria, traria a
libertação do sofrimento e da privação, e os guiaria a uma terra de prazeres e suprimento
inesgotável. Todavia, da mesma forma que os israelitas tiveram que lutar pela terra, eles
também teriam. Tinham certeza da vitória.
III.3.3 O Terço
José Maria liderava o povo na prática do terço (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 92).
A religião praticada no Contestado era, de certa forma, oportunista ou “parasita”. Da mesma
forma, como já vimos, que o frei Neuhaus descobriu na associação com o curandeirismo um
forte ponto de contato com o povo e se aproveitou disso como uma estratégia de
aproximação e conquista da confiança do sertanejo, parece que o monge José Maria
utilizava alguns elementos do catolicismo para validar” a sua religião. Afinal de contas, era
parte da religião aprendida. Assim, era comum liderar a reza de terços, prática
eminentemente católica, que para alguns do povo passou a ser chamado “missa”.
113
Certamente, não é nossa intenção sugerir que a religião incentivada por José Maria não
fosse uma forma de catolicismo popular, apenas destacar que o monge procurava
elementos religiosos reconhecidos para dar maior consistência ao seu personagem e
agenda religiosa. Além disso, a identificação do terço que realizavam com a missa, mostra
não apenas uma substituição, mas a legitimação da religião dos monges como sendo a
“religião oficial do sertão”, uma vez que apenas os padres, representantes legais do
catolicismo, poderiam rezar a missa. Aparentemente, na mentalidade Contestada começou
a se instalar a idéia de que José Maria era o religioso oficial do Contestado.
III.3.4 O Compadrio
Na sociedade sertaneja, o compadrio é uma prática muito comum. Tendo origem no
batismo cristão, sofreu adaptações no catolicismo rústico, assumindo importante papel na
estrutura social estratificada do Contestado. Tornou-se um meio de aproximação das
classes, especialmente entre os agregados e seus fazendeiros. Ao oferecer um filho para
ser batizado pelo senhor de terras, o agregado fortalecia enormemente seus vínculos,
causando certa ascensão social. O patrão, por sua vez, no topo da pirâmide social, via-se
“corretamente” considerado, tendo sua “nobreza” destacada. Esse batismo acontecia em
paralelo com o da igreja, ocasionando, até mesmo, a possibilidade de vários padrinhos. A
figura do monge causou uma importante mudança, pois, ao invés dos grandes da sociedade
ou pessoas de afinidade, o campesino passou a procurar o compadrio com o anacoreta. Ao
entregar o filho para ser batizado pelo monge, este se tornava “compadre”. Tal condição se
revestia de grande dignidade. O batismo cristão, adaptado pelo social, é, agora,
reinterpretado pelo religioso para causar ainda maior ascensão. Se pelo batismo da igreja,
do ponto de vista doutrinário, a criança passa a pertencer a um Corpo Místico, com o
batismo do monge ela se integra a um outro Corpo Místico, primeiramente igual, mas
depois, antagônico a ele. O batismo da igreja, como rito de incorporação, cria a fraternidade
entre todos: patrões e subordinados, “coronéis” e agregados, espoliadores e espoliados.
Como rito de passagem, estabelece o compadrio interclasses. Busca, pela mediação de um
“terceiro”, garantir o equilíbrio em relações sociais notoriamente assimétricas. No batismo do
monge, a incorporação se faz em uma comunidade que se está forjando, onde as distinções
econômicas tendem a diluir-se na busca de uma fraternidade de base mística. Como rito de
passagem conduz à formação de um mundo de adultos, na condição de iguais.
Fundamenta-se na aliança de um novo nós, livre das ambigüidades inerentes à situação
anterior (MONTEIRO, 1974, p. 71; MOURA, 2003, p. 31).
Assim, no batismo e no compadrio se vê a ligação entre a esfera natural e a
sobrenatural, a geração da carne, profana e pecaminosa com a regeneração espiritual e
sagrada. Além disso, a identificação da irmandade como santa leva à outra conseqüência:
114
uma vez que ela é polarizada como sagrada, o seu inverso, os não-adeptos, são vistos
como demoníacos. É impossível auferir se houve sistematização definitiva das crenças e
práticas da Santa Religião. Ao contrário, entendemos que é religião mutante, aberta a novas
doutrinas e práticas. A idéia constante do sobrenatural presente e as novas revelações
trazidas pelas virgens oportunizavam a fácil e rápida remodelação do movimento a novas
realidades (MONTEIRO, 1974, p. 71, 73, 74). Aparentemente, havia apenas um dogma: a
luta para estabelecer o reino do monge na região Contestada. Pode ser que o compadrio se
limitasse a João Maria, pois em todos os anos que andou pelo agreste catarinense, Euclides
J. Felippe afirma ter encontrado várias pessoas que se diziam compadres ou afilhados de
João, mas nenhum de José Maria (FELIPPE, 1995, p. 82).
III.4 Influência Carolíngia
Embora geralmente se atribua a José Maria a leitura da História de Carlos Magno ao
sertanejo do Contestado, Felippe garante que foi somente um ano após o combate no Irani
que a obra chegou à Santa Religião. Testemunha que, percorrendo a região por 45 anos,
nunca ouviu nem mesmo uma referência ao livro, levando-o a acreditar que José Maria nem
mesmo o teria conhecido. Segundo o autor, teria sido introduzido, junto com o Quadro Santo
e as formas, como preparação para a crença no retorno de José Maria, ressuscitado à frente
do exército encantado (FELIPPE, 1995, pp. 63, 64, 81). Na opinião de Maurício Vinhas de
Queiroz é impossível se estabelecer se os Doze Pares de França foram introduzidos como
influência da obra História de Carlos Magno”, que era a mais popular no sertão, ou se
decorre das muitíssimas “cavalhadas”, festejo comum no qual os “cristãos” se denominavam
“pares” ou “cavaleiros” da Távola Redonda. Márcia Janete Espig transcreve um extrato de
matéria publicada no dia 26 de março de 1914, na “Folha do Comércio” de Florianópolis,
onde o articulista declara: “Acreditamos que a leitura demasiada do pândego Carlos Magno,
que existe em profusão pelas casas sertanejas, ocasionou o desequilíbrio desta pobre
gente, que no dizer de Euclides da Cunha, está atrasada 400 anos em civilização”.
Particularmente, optamos que o mais provável é que a obra seja a verdadeira origem da
idéia. relatos que nos dão conta que José Maria freqüentemente lia para a tropa trechos
dessa literatura. O seu passado militar, agora associado ao extremismo religioso,
enquadra-se ao conteúdo da obra. Pode, ainda, ser aventado contra a origem nas
“cavalhadas” a dificuldade de locomoção imposta pela distância que separava as
propriedades, inviabilizando constantes ajuntamentos. Todavia, pesa contra a “nossa” opção
a grande incidência de analfabetismo entre os sertanejos (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p.
185; ESPIG, 2008, pp. 96, 113). Em favor da popularidade do livro, ainda podemos buscar
evidências no próprio contexto religioso do Contestado. É preciso lembrar que, além da
115
escassez de sacerdotes romanos para oficiar os serviços religiosos do catolicismo regular,
mais raro ainda era encontrar uma tradução da Bíblia em Português. É verdade que os
protestantes já haviam iniciado sua atividade no país, o que incluía a distribuição de Bíblias.
No entanto, o trabalho era ainda insipiente, e se concentrava nas grandes cidades e
cercanias. Considerando a pouca escolaridade e o analfabetismo que predominavam, a
gesta de Carlos Magno se mostraria, possivelmente, mais fácil de compreensão e mais
atraente do que a própria Escritura Cristã, repleta de doutrinas que precisam ser explicadas.
A estória carolíngia, ao contrário, sua simples leitura não apenas seria facilmente
compreendida, como traria verdadeiro assombro ante ouvidos atentos, como supomos
serem os do campesino. Maria Isaura Pereira de Queiroz reconhece a centralidade do
romance carolíngio na fé Contestada, referindo-se a ele como livro sagrado” para o
sertanejo rebelado. Seria a “Bíblia Contestada” (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p. 278).
Os Doze Pares foram inicialmente um conselho deliberativo que, com o crescimento
da beligerância e a intensificação dos combates, tornaram-se piquetes armados. Uma vez
estabelecidos, sofreram mudanças no decorrer da campanha. Desde Caraguatá,
assimilaram o papel de “tropa de elite”, especializados em armas brancas, que intervinham
no combate corpo-a-corpo em momentos decisivos da batalha. Armados de facões e
garruchas, empunhavam na mão esquerda, a bandeira branca com a cruz verde ao centro.
A finalidade da flâmula não era, apenas, emblemática. Servia também para atrapalhar o
adversário, ao lançar-lhes em face, procurando, nesta distração, melhor ocasião de ataque.
O comando não era verbal, mas perceptivo. À atitude do líder seguiam, por intuição os
liderados. Eram formados sempre por vinte e quatro homens, incluindo o comandante,
excluindo-se o tamboreiro. A utilização do facão era a peculiaridade do grupo (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 185; ESPIG, 2008, p. 113). Nota-se a glória buscada por estes
cavaleiros. O enfrentamento na luta corporal, sem a utilização de arma de fogo, era tido
como a expressão da maior honra, pois exigia a grande coragem. Os feitos dos pares eram
depois cantados”, exaltando a dignidade daqueles que tão brava e heroicamente lutaram.
Nisso, novamente, destaca-se a prevalência do livro sobre a festa. É no livro que os atos
dos pares são exaltados como heróicos e sobrenaturais, associados, explicitamente, ao
favor de Deus. Junge-se ainda o fato que, durante essa época, popularizou-se o nome de
alguns dos pares conhecidos no livro, tais como Urgel, Ricarte ou Oliveiros, fato contrariado
por Felippe (FELIPPE, 1995, p. 82).
Todavia, ao mesmo tempo em que parece demonstrar descrença quanto à influência
do livro na Santa Religião, Felippe indica quem, quando, como e onde, teria se dado sua
introdução. Relata que Eufrásio Marcondes, um professor particular vindo de Laguna, foi
quem trouxe um exemplar do romance carolíngio em versos, entre os seus pertences.
Chegou a Taquaruçu cerca de um ano depois da morte de José Maria. Segundo o autor,
116
partiu dele a idéia, aparentemente, despretensiosa, de ler aos sertanejos a estória do
imperador carolíngio, causando assombro e admiração por parte dos ouvintes (FELIPPE,
1995, pp. 81, 127). O fato é que havia na Religião Contestada uma guarda de elite
denominada “os Doze Pares de França”, o que transparece que o caboclo, expulso de sua
vida de então, latente em fé, creu que estes soldados eram dotados de habilidades
sobrenaturalmente garantidas pelo monge, um precioso recurso para motivá-los e garantir-
lhes à vitória. Para o sertanejo a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França não
era ficção, mas aquilo que eles mesmos faziam pela fé em João e José Maria, na
companhia dos santos “guerreiros”: São Sebastião, São Jorge e São Miguel.
Temo fé no Santo Monge
E também em Zé Maria,
Mais São Jorge e São Migué,
São Bastião que nóis confia.
(FELIPPE, 1995, p. 129).
Dentro da “tese” defendida por Euclides J. Felippe sobre o desconhecimento do
Monge José Maria da História de Carlos Magno, e, ainda, dos quadros santos, uma de suas
citações parece desdizê-lo. Transcreve extratos do anuário da Província Franciscana do ano
de 1912, página 77, como segue:
... No mês de setembro veio o pseudo-profeta a Taquaruçú. ... Nossos
padres COMBATIAM-NO CONFORME PODIAM. (O gr. é nosso) pois
espalhava orações supersticiosas, difamava o sacramento da confissão e
dava sinais inequívocos de suas perversas intenções. ... armou doze pares
de homens com sabres e winchesters ... e animou-os para a luta,
assegurando-lhes que estariam com o corpo fechado; ... se tombassem,
toda a pena seria paga; ... que ele, profeta, “ressuscitaria ao terceiro dia”
(FELIPPE, 1995, p. 72).
Se tomarmos a assertiva de Filippe como verdadeira, é no mínimo intrigante como os
padres, em 1912, o ano da aclamação popular de José Maria, tivessem informações
quanto ao estabelecimento dos Doze Pares, a menos que entendamos que o anuário foi
escrito bom tempo depois. Contudo, como se diz, “onde fumaça, houve, ou haverá
fogo”, paira alguma névoa sobre as declarações às vezes, apresentadas de forma tão
inequívoca pelo autor. Duglas Teixeira Monteiro registra o depoimento de Benedito Pedro de
Oliveira, nascido em 1886, na cidade de Campos Novos, em uma localidade chamada
Butiazinho, combatente e adepto da Santa Religião, relata que José Maria era quem fazia a
leitura da História de Carlos Magno (MONTEIRO, 1974, p. 235).
Na opinião de Maurício Vinhas de Queiroz, é possível que Euzébio Ferreira dos
Santos, aquele que portava os distintivos de José Maria e pregador da ressurreição do
monge, e Rocha Alves, valendo-se do grande número de parentes que possuía e a vasta
117
ligação pelo compadrio que haviam alcançado, teriam sido mentores da re-elaboração do
movimento. Possivelmente seriam os responsáveis pela propagação da idéia do Exército
Encantado e o anúncio da iminente Guerra Santa, demonstrando, também, a influência
determinante de conceitos milenaristas. Segundo depoimento colhido, os dois amigos
afirmavam que em breve se completaria os mil anos da Guerra de Carlos Magno. O
passado é profeticamente reinterpretado. Duglas Teixeira Monteiro explica que a tão
impossível ligação do movimento a Carlos Magno, é a tentativa jagunça de construir um
passado plausível, que garantisse o futuro pretendido. É como o político que, pretendendo
lançar bases no passado para dar idéia de continuidade, inaugura, como se fosse sua,
grande obra que demandou governos anteriores para ser concluída. O campesino encontrou
em Carlos Magno um universo ideológico, base “histórica” para o cumprimento das
promessas que eles mesmos formularam. Nos Pares encontramos exemplo claro de
elementos religiosos de tradições distintas, característica de toda religião Contestada, como
temos sugerido neste trabalho. Tinham o status de “apóstolos” e eram, ainda, tratados como
“nobres cavaleiros de São Sebastião”. Portavam patuás, com orações que consideravam
fortes para “fechar o corpo”. Acreditavam que elas não apenas evitavam as balas, mas
otimizavam suas espadas, consagrando-as e protegendo-as (VINHAS DE QUEIROZ, 1981,
pp. 111, 186; MONTEIRO, 1974, p. 114). Ficam patentes as influências do catolicismo
(apóstolos) e da religiosidade negra islamizada (patuás).
III.4.1 Breves Considerações Sobre a Obra
No Romance Carlos Magno e os Doze Pares de França percebemos vários pontos
de contato com a Contestada. A aura mística do romance, onde os cavaleiros estão em
ambiente de cruzada, contando com o constante milagre na luta contra os islâmicos,
harmoniza-se perfeitamente com a luta dos “pelados” contra os “peludos”.
A. Exaltação da Monarquia e Nivelamento Social
Desde o início da obra a monarquia é exaltada como nobre e relacionada às
Escrituras Cristãs. Na verdade, era a teocracia. A impressão para o leitor é que a única
religião aprovada por Deus é o Catolicismo Romano. Constituindo-se sozinha um dos ramos
majoritários daquilo que é comumente chamado “cristianismo”, a Igreja Católica “cheira”
monarquia. O motivo óbvio é a crença no papado, uma espécie de governo teocrático de
Deus através de um escolhido, Sumo-Pontíficie, que em si mesmo constitui-se ligação do
homem a Deus. O papa é reconhecido como aquele que se assenta no trono de Pedro,
habitando a basílica que leva o mesmo nome. Tendo o seu modelo de governo
“monárquico”, falar de catolicismo é, de certa forma, afirmar este regime como preferencial.
118
Sendo o “messianismo” eminentemente monárquico, e, a sabida pregação da monarquia na
crença dos sertanejos do Contestado, a afirmação desse regime e da religião católica no
livro em questão certamente não apenas se harmonizavam, mas verdadeiramente,
incentivavam tal idéia na mente dos adeptos. A aplicação do romance carolíngio ao
messianismo Contestado daria a devida base para que a monarquia buscada fosse o
exercício do poder temporal, isto é, não apenas religioso, mas civil e governamental. A obra
toma como pano-de-fundo o contexto histórico real dos personagens. Portanto, para chegar
ao grande monarca, a estória começa com o primeiro rei cristão da França Clóvis,
rapidamente alcançando o vigésimo quarto, Pepino, genitor de Carlos Magno. Embora ainda
vivesse Hilderico, rei dedicado à religião, Pepino foi aclamado rei pela chancela papal
(FLAVIENSE, 19--, pp. 15, 16).
No romance, afirma-se que o livro mais apreciado pelo Imperador era “A Cidade de
Deus, de Agostinho”, obra que contrasta a sociedade concebida segundo os ditames dos
homens com aquela que reflete os ideais do catolicismo. Esse é mais um ponto de contato
entre a gesta carolíngia e a Santa Religião: ambas projetavam sociedades ideais,
alicerçadas no sobrenatural, em oposição à comunidade dominante. Eram reinos teocráticos
que traziam o nivelamento social. O relacionamento social apresentado no livro, descreve o
trato entre superiores e inferiores. No entanto, o contato entre eles acontece como entre
iguais ou “potencialmente iguais”. Um exemplo disso é que, ao menos duas vezes, Roldão
desobedece A Carlos Magno, sendo que, em uma delas passa da mera discussão ao
combate. Transparece, analogamente, grande autonomia dos barões quanto ao imperador,
tornando-o, algumas vezes, quase uma figura decorativa. Como vimos acima na questão do
compadrio, no livro, a aceitação da fé católica trazia ao aderente o status de igual, ainda que
seja a conversão de um inimigo. Era o batismo, centrado no ex opere operatum, que
procederia a transformação social (FLAVIENSE, 19--, p. 19; MONTEIRO, 1974, pp. 114,
116).
B. Radicalização da Fé
Este ponto decorre do primeiro. no início da obra, transparece que a necessária
fidelidade a Jesus Cristo, vista nos votos de Clotildes, é, na verdade, radicalização à fé
católica. Isso pode ser percebido pelo exalar de doutrinas do romanismo no decorrer da
estória. Depois de algum tempo casada, Clotildes deu à luz um filho, a quem batizou, a
contra-gosto de seu esposo “pagão”. Todavia, o filho morre ao terceiro dia. Questionada
pelo marido, que preferia ter oferecido a criança aos seus deuses, a mãe afirma sua crença
na salvação do filho, exatamente por causa do batismo, rendendo graças a Deus por ter
recolhido ao seu reino o primeiro fruto de seu ventre. Pode-se especular que na referência
ao terceiro dia alusão à ressurreição de Cristo, o que sugeriria vida além da morte. Na
119
derrota do el-rei Clóvis diante dos cristãos, estes são chamados explicitamente “católicos”
pelo autor. Se admitirmos que José Maria fazia uso deste livro em suas orientações ao
povo, a ênfase maciça no catolicismo seria mais um fator que o ligaria à religião oficial,
ainda que não se alinhasse ou se aliasse aos padres. A afirmação do batismo católico é
garantia do favor de Deus. No caso do recebimento deste sacramento pelo el-rei Clóvis, é
dito acontecer uma espécie de pentecoste, quando uma pomba desce sobre ele com uma
redoma de óleo santo no bico. Submetidos a esse conto, os sertanejos poderiam descansar
no batismo do monge como sendo a garantia de vida eterna no seu reino. Também Carlos
Magno é coroado pelo papa. Ao invés de impulsionar-lhes à no “Sumo Pontífice”,
provavelmente, tão-somente, os levaria a acreditar que o governo deles tinha o aval
sobrenatural, isto é, reconhecer que possuíam autoridade divina para o exercício do
governo. Essa radicalização era a garantia do favor do alto, como ocorreu na bem sucedida
campanha de Carlos Magno contra os turcos que haviam tomado a Terra Santa.
Manifestam-se os milagres de Deus em favor dos católicos. Assim, os católicos
conseguiram livrar os lugares santos (FLAVIENSE, 19--, pp. 12-15, 16, 22). Tal atitude
assemelha-se ao comportamento radical visto no combatente da Santa Religião.
C. Vitória Sobrenatural e Glória na Morte
A “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”, como conto
épico e heróico, de histórico parece ter, apenas, o nome do ilustre personagem. Os feitos
narrados na obra são, em sua maioria, atos impossíveis, sobre-humanos e sobrenaturais.
Deus ou um dos santos estão sempre presentes, uma espécie de garantia de vitória. Os
combates se dão sempre em esmagadora desproporcionalidade, estando os cristãos
constantemente em menor número. A realização do improvável é o ambiente necessário
para o milagre, como se expressa na conversão ao catolicismo do rei pagão Clóvis, que
perdeu a batalha para os cristãos mesmo tendo mais que o dobro de combatentes em suas
fileiras. Tal feito se torna de pouca expressão, perto do que fizeram, mais à frente, Carlos
Magno e seus Doze Pares. A morte chegará em batalha como expressão da vontade divina
e será honra e glória. Carlos Magno era, freqüentemente, dirigido pelo divino. Na aventura
para libertar a Terra Santa das mãos dos turcos, buscou o favor de Deus. Em oração junto a
uma árvore, o imperador recebeu a resposta pelo bico de uma ave, que dizia: “Carlos
Magno, a tua petição é ouvida pelo Onipotente Deus”. Tal sinal, presenciado por todos,
serviu como tônico incomparável para suas forças, arremessando todo exército em busca da
vitória certa. Tais vaticínios, comuns na religião Contestada, traziam empenho semelhante,
mas, nem sempre, o mesmo resultado sobrenatural. Em tudo o milagre é evidenciado. As
relíquias que Carlos Magno recebeu quando da libertação de Jerusalém das mãos dos
turcos, a saber: um cravo da crucificação de Cristo, uma parte da cruz, o Santo Sudário,
120
uma camisa de Maria e um pano que envolvia o infante Jesus nos braços de Simeão,
causavam milagres (FLAVIENSE, 19--, pp. 13, 22, 24). Como vimos, a crença em objetos
“mágicos” também se encontra entre os sertanejos de José Maria.
O ambiente stico envolvia, também, os Doze Pares de França, cavaleiros cristãos
(católicos) que alcançavam vitórias tão ou mais grandiosas que o próprio imperador. A
submissão dos cavaleiros ao comandante era cega, e, a lealdade, até a morte. As
discordâncias, como citamos acima, não diminuía o empenho na defesa de Carlos Magno.
Tal pode ser constado em situações um tanto inusitadas. Um dos guerreiros dos turcos
chamado Febrabás veio até o exército de Carlos Magno para desafiar os seus afamados
cavaleiros, até quatro de uma vez. Conscientes quem era o desafiante, homem descrito
como de grande estatura e destreza, nenhum dos Doze Pares se dispôs ao combate.
Contudo, Oliveiros, um dos mais heróicos cavaleiros, dispôs-se à luta, mesmo estando
ainda seriamente ferido. Diante dos esforços de seu escudeiro, pretendendo demovê-lo de
tal atitude, disse-lhe: Faze brevemente, Guarim, o que te mando; pois não se deve estimar
a vida quando se espera ganhar grande honra, grande fraqueza seria a minha se o Turco se
fosse sem batalha, e não é justo deixar ao imperador em tanto aperto e injúria”. Alguns
deles são nomeados: Roldão, Oliveiros, Tietri e Urgel, nomes que se tornaram comuns no
oeste-catarinense (FLAVIENSE, 19--, pp. 25, 29).
A guerra santa não poderia ser recusada. O patriarca de Jerusalém, combatido pelos
turcos, se viu impelido a solicitar ajuda militar do imperador. Alguns dos conselheiros do
religioso propuseram-lhe que abandonasse a cidade, o que, prontamente é tachado como
“covardia”, homens que temeram mais a vida do que desejaram a honra. A honra era
reconhecida como tesouro a ser protegido às expensas da própria vida. Quando da
introdução dos Pares de França no movimento do Contestado, ocasião quando a causa se
tornou explicitamente uma revolta armada, morrer em batalha foi considerado privilégio. A
luta deveria se dar pelos seus ideais e não pelo retorno financeiro ou material. Depois de
vencer os turcos, Constantino, imperador de Constantinopla, e o patriarca de Jerusalém,
reconhecendo o grande feito em benefício de suas cidades, quiseram gratificar Carlos
Magno com grandes riquezas, o que, prontamente, foi recusado. Disse o imperador da
França: “Que não tinha ido aquela empresa por riquezas senão por serviço de Deus,
exaltação da santa católica e restauração dos Lugares Santos; porque não era justo que
estivessem possuídos pelos turcos” (FLAVIENSE, 19--, pp. 19, 20). Sob a liderança do
último monge, a luta para a implantação do reino de José Maria era o ideal supremo dos
adeptos do movimento. Embora buscassem uma vida de abundantes suprimentos, não era
o objetivo dos sertanejos o acúmulo de riquezas, uma vez que repartiam o que possuíam.
Fazia parte da crença no sobrenatural, não apenas a proteção nas batalhas, mas,
ainda, a cura para os ferimentos sofridos. Quando a morte na batalha, enfim, chegasse,
121
seria a expressão da vontade divina, para a honra e glória do combatente. No Contestado
isso foi visto com freqüência. Acreditavam que destruiriam os inimigos com o mero agitar de
suas bandeiras sagradas ou com brados de “vivas” a José Maria. Criam que eram como que
revestidos de um poder invencível. Sobre Oliveiros é dito que, sozinho, enfrentou uma
cavalaria de cinqüenta mil turcos causando tamanha mortandade entre eles que fugiram
espavoridos. Acerca dele se diz que poderia, sozinho, destruir metade de um exército. A
ignorância sertaneja fazia dos fanáticos destituídos de discernimento para entender que
narrativas como essas eram de todo fictícias. O resultado é que achavam poder imitar esse
tremendo feito no campo de batalha. Certamente, eram mais modestos. Acreditavam que só
poderiam tombar em batalha se matassem ao menos quatro “peludos(FLAVIENSE, 19--,
pp. 42, 49, 52 MOURA, 2003, pp. 44, 45). A vitória, garantida sobrenaturalmente e a
crença de que os mortos iam para junto do monge, foram molas mestras que impulsionaram
a fé Contestada.
D. Guerra Santa
É provável que não existisse na época uma obra tão propícia à Religião Contestada
quanto essa. Nela afirma-se a guerra como meio de propagação da fé católica. A cruz de
Roma poderia ser estilizada como a sombra de uma espada fincada na terra. O papa
Adrianino combatia ferozmente “aos infiéis, aumentando a fé de Cristo e destruindo as
heresias, constituindo igrejas e mandando fazer imagens à representação dos santos bem-
aventurados e tudo para corroborar e aumentar a de Cristo”. Ainda mais explicitamente,
observamos: “E também não cessava de fazer guerra aos infiéis, que com ele confinavam
fazendo-lhes muitas destruições e tudo ao mesmo intento de exaltar a católica”.
Certamente, isso teria sido de grande proveito para reforçar o fanatismo no Contestado. A
luta armada contra os infiéis seria vista como agradável a Deus e peculiar à verdadeira
religião. Teria sido fácil mirar os mosquetões dos “pelados” contra os “peludos”, agentes do
maligno. Além disso, sendo recurso legítimo e contando com a aprovação de Deus, os
favores sobrenaturais estariam garantidos. A religião cimentava, também, a própria
irmandade. A fidelidade à fé católica ocasionava e estabelecia lealdade inquebrável entre os
súditos. Os filhos do Carlos Magno e os Doze Pares, juntamente com o imperador, juraram
lealdade à católica e, assim, uns para com os outros. A busca de absoluta coesão entre
os componentes do movimento era indispensável para a vitória (FLAVIENSE, 19--, pp. 16,
17). Analogamente, a unidade de crenças e objetivos dos fanáticos do Contestado traria a
necessária solidariedade entre eles. Semeada a mesma fé, pela pregação da vinda do reino
sobrenatural de José Maria, cresceria a esperança messiânica dos sertanejos. Nela
enraizada, a religião Contestada frutificaria a união esperada. Assim foi, até que a crença
122
dos fanáticos, tal qual muralha intransponível invisível e sobrenatural, se viu estilhaçada
pela pesada artilharia do exército e pelas balas dos vaqueanos.‟
As agruras e privações da guerra deveriam ser enfrentadas. Na marcha para
expulsar os turcos do “solo sagrado”, o exército de Carlos Magno foi atacado por animais
selvagens e monstros mitológicos, causando desvio do caminho e perda da rota. Tais
dificuldades impuseram outros imprevistos que intensificaram o desgaste, sendo os
soldados descritos como cansados, turbados e sem mantimento”. Situações como essas,
comuns em toda a obra, serviam de lenitivo e incentivo aos sertanejos durante as privações
sofridas durante toda a campanha Contestada. A ociosidade era tida como contrária à
religião por causa da necessidade de obras para o mérito diante de Deus, e, ainda, para que
não cedesse à obra do diabo. Especialmente a guerra contra os infiéis era vista como
sublime labuta. Diante da ameaça dos turcos de tomar Jerusalém, Carlos Magno apregoou
por todo seu reino a necessidade de voluntários que se dispusessem a livrar a Terra Santa.
O resultado é que muitos, nobres e homens do povo, atenderam ao chamado, deixando
família e bens (FLAVIENSE, 18, 19, 21). Algo muito semelhante aconteceu no Contestado,
quando famílias inteiras se mudaram para os redutos. Fazendas, pequenas propriedades,
choupanas, segundo o nível social de cada um, foram abandonadas. Quando ameaçados
nos redutos por contingentes inimigos, era comum despedirem as mulheres e filhos para
partirem para a peleja sozinhos.
III.5 A Morte de José Maria
João Gualberto, aparentemente, estava psicologicamente, desequilibrado. Não se
sabe se seu problema era alguma espécie de despreparo emocional para a batalha ou
excesso de vontade combativa. Sabe-se que José Maria não queria o combate e pediu
prazo para que se dispersassem pacificamente. O coronel fez exatamente o contrário,
mandando desembaraçar as cordas levadas para amarrar os prisioneiros. Decidido a atacar
naquela mesma noite, teria que amargar, antes mesmo do combate, sua primeira baixa: a
metralhadora, caída na água, quando tentavam se aproximar do acampamento na
escuridão, provável obra de um adepto da Santa Religião infiltrado. De qualquer modo,
parece que seu destempero levou a atos impensados, imprudentes e, possivelmente, a sua
própria morte. Ele mesmo reconheceu seu descontrole. Na leitura cabocla, o comandante
militar estava possuído de “sete espíritos” malignos. Quando amanheceu o dia, houve troca
de tiros dos soldados da vanguarda com um grupo de sertanejos que foi se retirando. Na
verdade, tratava-se de estratégia, pois, em lugar propício, derrotaram o grupo do Coronel
composto de 64 homens. Entre os mortos, se contaram os dois líderes: João Gualberto e
123
José Maria tombaram em Irani (FELIPPE, 1995, p. 115, 116, 121; VINHAS DE QUEIROZ,
1981, p. 100).
É provável que os combatentes sertanejos sentiram-se como retirantes, como os
israelitas quando aguardavam no deserto o momento de possuir a terra. Era um intervalo
sofrível e choroso, que antecedia a concretização de seus anseios. A comparação com o
Êxodo bíblico novamente é evocada (FELIPPE, 1995, pp. 124, 125):
.
Chorando Chorando
Nossos terrero Por nossas Terra
Aqui nascero Fazemo guerra
Os pai e irmão; Cá no sertão
Zé Maria foi nosso chefe
Que tombo lá no Irani,
Não magoando o Paraná
Nós queria ficá aqui;
- Se essas posse Deus nos deu
- Não podemo mais saí.
Chorando Chorando
Por essas fonte O sol nascendo
Por esses monte E se escondendo
E os coxíião Na escuridão
Nossas arma é as ferramenta,
Po trabáio temos as mão;
O Governo é traiçoeiro
Nos vendeu p‟outra nação:
- Semo agora expatriado
- Deus nos dê sua compaixão.
Chorando Chorando
Nossas lembrança Nossos amores
As nossas dança Nosso lovores
E as tradição E as devoção
Deus proteja nossas vida
Nas filera de S. João
No exército Encantado
Que formo São Sebastião:
Vem nos dá a liberdade
Nóis livra da escravidão!
Chorando Chorando
Vamo levando Aqui perdido
Aqui cantando Temo ferido
Esta canção O coração!
A situação que viviam logo após o primeiro ajuntamento de Taquaruçu é vividamente
descrita. Sentiam-se não apenas expropriados de suas terras, mas expatriados, preteridos
em favor de estrangeiros. Sua condição de vida é concebida como escravidão, cujo
sofrimento urge libertação.
124
Nesta fase do movimento fica patente a causa social do movimento. As privações
ocasionadas pelo favorecimento dos coronéis e do interesse estrangeiro fizeram dos “sem-
terra” do Oeste Catarinense, crentes em José Maria. Embora não tivesse ambições de
conquista, o último monge se viu obrigado à vocação militar quando acossado pelas forças
paranaenses. No seu pouco tempo de “ministério”, percebe-se nitidamente a trajetória do
messias modelado pelo povo. Inicialmente apenas um curandeiro, foi assimilando o formato
das esperanças populares, até se tornar o monge José Maria. Assim, as sementes da
esperança eclodiram, e começaram a crescer mesmo tendo perecido o monge. Na verdade,
foi exatamente sua morte que viabilizou o messianismo, que geralmente tem em seu bojo a
no retorno sobrenatural do líder. Veremos a seguir como a Santa Religião se
desenvolveu.
125
CAPÍTULO 4 - A ÁRVORE DA VIDA: A TERCEIRA FASE DO
MOVIMENTO
I. INTRODUÇÃO
Aquilo que chamamos de terceira fase do movimento diz respeito à revolta armada,
levada à cabo, especialmente, pelo terceiro monge, o José Maria, reconhecido como
verdadeiro messias. Abordaremos a estruturação do movimento como se deu em sua maior
parte. Este período é marcado pela modificação do comando, vendo-se, em paralelo ao
prestígio religioso, o surgimento de uma estrutura de poder e de comando, e o uso da
coerção como ferramenta de poder. Serão destacadas, ainda, as crenças desenvolvidas
com respeito a ressurreição do monge, seu exército celestial, a batalha (final) de São
Sebastião, e o estabelecimento de um paraíso monárquico na terra. É agora que surgem os
ajuntamentos conhecidos como “redutos”, comunidades de fiéis que acreditavam constituir
uma “cidade santa”, habitação que garantiria a participação no reino de José Maria. De
pacífica comunidade, onde cada um realizava suas tarefas para o bem comum, transformou-
se rapidamente em exército de ferozes combatentes. Hábeis conhecedores do terreno, por
vezes inóspito, e da mata densa, sua religião não apenas os converteu à nova fé, mas,
também, ao cangaço. Como fabulosos guerrilheiros, ofereceram impressionante resistência
às forças federais que sistematicamente os atacaram (CABRAL, 1979, p. 3). Portanto, a
terceira fase do movimento é a época na qual se a Guerra do Contestado propriamente
dita, isto é, o período imediatamente posterior à batalha do Irani. Quando a religião que se
tem não corresponde às aspirações, trata-se logo de modificá-la, assimilando novas
influências, criando-as, ou, tão-somente, deixando aflorar tendências cujas sementes
estavam plantadas em solo fértil no subconsciente do homem da região. Portanto, a religião
praticada pelo jagunço do Contestado era um desvio do catolicismo ortodoxo.
II. A SANTA RELIGIÃO
Vejamos suas principais características.
126
II.1 “Mediunidade”: Exclusiva, Orientada e Disputada
II.1.1 A Virgem Teodora
As “aparições” de José Maria, tudo indica, começaram a ocorrer cerca de dois meses
após o combate o Irani. Eusébio Ferreira dos Santos, homem assaz religioso, pequeno
fazendeiro, estivera com José Maria em Taquarucú, tendo regressado à sua casa depois
que o monge resolveu partir para o Paraná. Segundo seu neto, ele era o guardião dos
distintivos de José Maria, crente fervoroso em sua ressurreição. Aparentemente, couberam
a Eusébio e a Rocha Alves a re-elaboração das crenças Contestadas. O segundo contava
com grande número de parentes, bem como, dispunha de vasta compadragem, algo que
garantia sua influência para a rápida disseminação da fé no monge. Assim, os conceitos do
“Exército Encantado” e da “Guerra Santa” passaram a circular, bem como a associação
milenarista com Carlos Magno, que foi tratada no capítulo anterior. De volta a Pedras
Brancas, quando faltavam exatos dois meses para o aniversário da batalha do Irani, uma
neta de onze anos, que era criada por Euzébio, chamada Teodora, disse ter visto três
homens em um barracão nas cercanias, e que um deles era o monge. Na cosmovisão
Contestada, a virgindade, peculiar às crianças, estava atrelada à pureza e à santidade. Para
os adultos, era impossível ver a santidade da glória na qual o monge se encontrava, mas, as
meninas, devido ao fato de serem intocadas, estavam aptas para tal. Meninas videntes não
eram desconhecidas na região Contestada, tendo ocorrido fenômeno análogo nas cercanias
de Lages, poucos anos antes. Quando Teodora publicou sua visão, a agitação tomou conta
do local. O retorno do monge havia acontecido, o que significava a materialização dos
sonhos campesinos. Assim, se dirigiram apressadamente para o local indicado, em meio a
muitas rezas. Ao entardecer, teriam visto uma luz que subia no céu. Nesse momento, a
jovem médium pediu para que parassem de rezar, pois, do contrário, o monge se retiraria.
Afirmou que apenas ela poderia ver José Maria. Tal ocorrência foi mais do que suficiente
para reacender, com maior intensidade, a devoção a José Maria no interior do Contestado.
Antigos adeptos e curiosos passaram a se organizar em romarias, para visitar o local
da aparição. Os relatos de milagres não tardaram. Levado um doente à presença de
Teodora, ela se embrenhava no mato e logo voltava com uma xícara cheia de sangue, que,
segundo ela, havia tirado com uma faca da perna de José Maria (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, p. 112). Certamente, sangue traz a idéia de morte. O sangue fora do corpo” significa
ausência de vida, daí a idéia de derramamento de sangue” ou “sangue derramado”. Nos
sacrifícios vistos nas Escrituras Cristãs, o sangue derramado significava a expiação da
culpa, isto é, através da substituição do pecador pela vítima imolada, a morte devida a este
recai sobre ela. Todavia, para aquele que “recebe” o sangue, isto é, aquele que dele se
beneficia, o sangue significa “vida”. Além do impacto espiritual do ato de Teodora,
127
provavelmente, havia uma outra intenção, talvez a principal. Ao trazer o sangue de José
Maria para curar o enfermo, não apenas se provaria a atuação e a presença do monge com
os adeptos, mas a sua vida, isto é, ele estava inexplicável e fisicamente presente. Ao trazer
seu sangue está implícita a idéia da sua ressurreição. Embora isto não tenha sido
claramente explorado, é difícil fugir da ênfase “orgânica” do ato. É provável que não se
tenha ido além disso, pois logo questionariam o porquê do monge não se juntar visivelmente
a eles. Entretanto, para a turba excitada pelo sobrenatural, o místico parece ser mais forte
mesmo que uma “prova” material.
Maurício Vinhas de Queiroz teve a oportunidade de entrevistar a idosa Teodora, que
residia em Lebon Régis, antiga Trombudo. Confirmou o que já era sabido: suas visões eram
uma farsa; repetia aquilo que os mais velhos lhe diziam. Contudo, concordamos com o
autor, quando conclui que não era difícil para a criança “ver” José Maria, em um ambiente
místico e fanático, alguém que ela conhecia. Pode ser que aquilo que os velhos lhes diziam
não fosse “uma cartilha para ser lida”, mas apenas sugestões e estímulos que ela,
psicologicamente sensível, captava, transformando em visão. De qualquer forma, havia
certa insipiência nas “revelações”, o que acarretou a perda de autoridade espiritual da
suposta “médium” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 112, 113).
II.1.2 Manoel o Menino-Deus
Quando a virgem Teodora perdeu o “aço”, Euzébio, tudo leva a crer, aconselhado
por sua mulher, apressou-se por substituí-la por seu filho, Manoel, agora intitulado “menino-
de-deus”, que seria, doravante, o único porta-voz autorizado de José Maria. Era um rapaz
adolescente, dos seus 16 a 18 anos, que a si mesmo se apresentou como portador do dom
da revelação de José Maria, a partir de então o único canal de comunicação com o monge.
uma informação não confirmada que foi combatente no Irani e que teria ouvido as
últimas palavras do moribundo José Maria, comissionando-o como seu sucessor.
Justamente quando as visões de Teodora perdiam seu efeito sobre o povo, Manoel disse ter
conferenciado com José Maria no meio da mata. O monge teria lhe dado ordens expressas
para comunicar ao pai a chegada da guerra de São Sebastião, exigindo a urgente
mobilização dos combatentes. Com isso, muitos passaram a considerá-lo, de fato, um
profeta de Deus (FELIPPE, 1995, p. 126; VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 113).
Manoel, praticamente, “convivia” com o monge, tão constantes foram os alegados
encontros que teve com ele no mato. Aqui, talvez, percebamos algo indígena na
Contestada. Embora Teodora tivesse “avistado” o monge, pela primeira vez, em um galpão,
era na mata que ia buscar o seu sangue. Isso acontecia todas as vezes que alguém
aparecia doente: entrava na floresta, trazendo uma xícara de sangue, uma espécie de
garantia do milagre iminente. Manoel lançava mão da mata todas as vezes que
128
conferenciava com José Maria. É certo que a floresta concedia o ambiente perfeito para
“viabilizar” revelações e outros atos pretendidos. Se entendermos, por exemplo, que
Teodora repetia literalmente o que lhe mandavam, seria óbvia a suposição de que alguém
lhe “serviu” as xícaras com sangue. A mata, portanto, poderia ocultar as estratégias
daqueles que intentavam interferir e manipular a fé sertaneja. Todavia, para o índio era um
lugar místico, habitação de espíritos bons e maus. Muitos das crenças e dos mitos indígenas
eram conhecidos pelos campesinos, diversos deles mamelucos ou descendentes de
ameríndios. Daí vieram-lhes muitas superstições. Portanto, no imaginário sertanejo, os
encontros na mata com José Maria, certamente, se beneficiavam desse aspecto místico,
herança da cultura indígena latente na região.
Uma das primeiras ordens de José Maria teria sido a mudança para Taquaruçu,
levando consigo todos os pertences que conseguissem levar. Euzébio, dando o exemplo,
vendeu tudo o que tinha e colocou a soma à disposição da irmandade, afirmando que em
Taquaruçu nada lhes faltaria. Foi, na prática, o primeiro mantenedor do movimento.
Afirmava-se que ali seria o lugar da edificação de uma cidade santa, onde o monge haveria
de ressurgir dos mortos e se manifestar a todos os crentes. Certamente, a idéia de conviver
com o santo glorificado foi mais do que atraente para aqueles que criam. É provável que
Manoel começou a utilizar ilusionismo para convencer o povo de seus supostos poderes.
Assim, mostrou um canivete, provavelmente, um pequeno tubo, que se podia ver, através de
uma lente, a figura de uma cidade. O sertanejo não conseguia entender como uma cidade
poderia caber dentro de algo tão pequeno, interpretando nisso o sobrenatural. Destarte,
houve grande ansiedade por chegar logo à tão glorioso e místico lugar. Entretanto, sabe-se
que não chegaram ao local no prazo previsto, a tempo do primeiro aniversário da morte de
José Maria, quando deveria acontecer o seu retorno maravilhoso. Acreditamos que algumas
causas incidentais tenham concorrido para isso, como as dificuldades logísticas para
organizar o deslocamento da multidão com seus pertences, e ainda, a própria viagem em si.
Porém, é possível que nisso se veja outro traço da esperteza do matuto Manoel, pois, se
chegasse a tempo do dia da ressurreição do monge, teria que explicar a sua não aparição.
Curiosamente, nenhuma explicação foi dada para a ausência de José Maria. Talvez, na
simplicidade do pensamento do campesino a explicação seja o óbvio obtuso: “veio, e não
encontrou ninguém”. Dentre as diversas crenças desenvolvidas, ligadas ao reaparecimento
de José Maria, estava, também, o rejuvenescimento. pelo final de 1913, o velho Manoel
Alves de Assumpção Rocha apareceu descalço, com as calças arregaçadas até os joelhos.
Tal atitude juvenil foi explicada pela proximidade da guerra de São Sebastião, onde os
velhos ficarão moços e onde imperará a felicidade (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 114).
Nisso, algo da crença indígena também pode ser divisado. vimos que acreditavam que o
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morto voltava como jovem, um conceito que, embora possa ser inferido do cristianismo, não
é comum nem enfatizado. É possível que a crença ameríndia seja sua verdadeira fonte.
Em Taquaruçú, o reduto se organizou nas seguintes bases: a devoção e a confiança
na liderança e nos atos de José Maria, que se revelava ao enviado de Deus, o seu
profeta Manoel, em encontros constantes e secretos mata adentro. Todavia, seu papel nos
parece se assemelhar mais a um “mediador” do que simples profeta. Aparentemente,
estabelece uma ponte de mão dupla no relacionamento dos campesinos com o falecido
José Maria, juntando ao profetismo o sacerdotismo. Como ele se encontrava com o
monge, de certa forma, representava o povo nestes “contatos imediatos”. Nesse caso, o
papel dos monges, e, depois de alçados ao sagrado, assumido pelos seus porta-vozes,
assemelha-se à função mediatória, peculiar ao xamã ameríndio. É papel do mediador ditar
as normas da comunidade com base nas supostas revelações que teve, um legislador,
embora não tenha se mostrado tão sofisticado em sua elaboração. É sugestivo o nome
desse mediador, pois Manoel é uma simplificação do nome que as Escrituras Cristãs
aplicam ao Messias: “Emanuel”, que quer dizer “Deus conosco” (Mt 1.23). Se a origem do
nome fosse sabida, certamente traria ainda mais “autoridade” ao mediador, diante de todo
misticismo que pairava na Cidade Santa. A aura sobrenatural que foi sendo construída ao
redor de Manoel pode ser vista na capacidade que lhe atribuíam de reconhecer e indicar os
gravetos nos quais o monge havia tocado, os quais se tornavam sagrados. Manoel foi
revestido do sagrado, passando a serem santos os lugares por onde passava. (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 116). Todavia, ratificamos que o modelo de “revelação” da religiosidade
Contestada não é cristão, mas das religiões de possessão, algo que se aproxima daquilo
que é conhecido hoje como “espiritismo”. As virgens” e os “meninos-deus” agem como
“médiuns”, entrando em contato com um morto, José Maria, de quem recebem instruções.
Essa prática não encontra respaldo nas Escrituras Cristãs, sendo, eminentemente, fruto de
sincretismo.
Algum temor se abateu sobre o acampamento, devido aos constantes avisos da
aproximação do efetivo militar. Assim, Manoel foi ao mato ouvir o que José Maria tinha a
dizer. Voltou revelando que, se fossem atacados, viria o monge com todos os que haviam
morrido na batalha do Irani, e venceriam o combate por eles. Na verdade, os vivos não
precisariam, nem mesmo, lutar. Contudo, tal anúncio não evitou que se preparassem para a
guerra. Na opinião de Maurício Vinhas de Queiroz, a profecia servia mais para dar-lhes a
força que precisavam do que para o relaxamento confiante. Contudo, eram parcos os meios
de combate que dispunham, constando, na sua grande maioria, de armas artesanais. Conta
o autor que eram treinados militarmente por um negro chamado Manecão Teixeira, desertor
do exército, vindo de Pernambuco (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 120). Lembremo-nos do
que já tratamos quanto à influência da religiosidade negra.
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Em ao menos um episódio relacionado a Manoel fica clara a influência das religiões
de possessão, como são categorizadas as culturas negra e ameríndia. Regressando da
mata, onde disse ter recebido recados diretos de Deus (ou de José Maria), convocou os fiéis
no Quadro Santo e comunicou que estava na iminência de ser arrebatado em espírito, por
entre nuvens, para prosear face a face com os santos. Despediu a multidão, entrou em um
galpão e começou a se debater ao chão, até que se aquietou. Permaneceu em transe por
cerca de meia hora e retornou. Assentado, com aspecto desfigurado, com olhos
arregalados, bocejou bem alto, estendeu os braços e proclamou sua revelação em alta voz.
Disse ter recebido uma ordem de José Maria para que dormisse com duas virgens: “Só
assim „seu‟ Maria agarra força pra ressuscitar”. Percebendo que sua motivação não era
sono, imediatamente o depuseram, substituindo-o por Joaquim, neto de Euzébio, ou
Quinzinho, garoto de onze anos. A subida de Manoel às alturas precedeu sua queda ao
ostracismo, uma vez que, depois de uma surra de vara de marmelo para “tirar o diabo do
corpo”, ordenada pelo seu tão jovem sucessor, desapareceu, não sendo jamais visto. A
atitude de Manoel mostra que superestimou seu prestígio, agindo com excesso de
segurança. Ao propor “dormir” com duas virgens, feriu um dos pontos principais da
Contestada: o rigorismo ético, básico para o favor de Deus. Talvez a sem-vergonhice
atribuída a José Maria, de conduzir para as barracas as virgens para com elas coabitar,
tenha se originado em Manoel (FELIPPE, 1995, pp. 131, 133; VINHAS DE QUEIROZ, 1981,
p. 121).
II.2 O Êxodo
II.2.1 As Batalhas e o Abandono de Taquaruçú
O primeiro ataque a Taquaruçú foi um fiasco total. Arquitetado por Lebon Regis,
então Secretário Geral do Estado de Santa Catarina, as forças deveriam atacar
simultaneamente, partindo de locais diferentes, a saber, Caçador, Campos Novos e
Curitibanos. Ao todo, eram 210 praças, somados de alguns piquetes de civis e guias
recrutados na área. O destacamento de Campos Novos, espavorido, fugiu, antes mesmo de
encontrar o adversário. O que vinha de Caçador, debandou depois de rápida escaramuça. O
mesmo se deu com o que partiu de Curitibanos. Aparentemente, o comandante deste
tentava amansar” a jagunçada, enviando a Taquaruçú bentinhos e retratos de santos,
comprando a parcimônia em caso de ser aprisionado. Do lado dos “pelados”, a “batalha” foi
comandada pelo menino-deus Joaquim. Fortalecidos por sua retumbante vitória, os adeptos
da Santa Religião continuaram viver vida tranqüila em Taquaruçú. Pela declaração de dois
espiões enviados ao reduto, havia lá cerca de 600 pessoas, das quais a metade era
131
constituída de combatentes. Continuavam entusiasmados com as próprias crenças e afeitos
à monarquia. Joaquim permanecia “em contato” com José Maria, transmitindo suas ordens
aos Doze Pares, também conhecidos como “apóstolos de São Sebastião”. Além disso,
relataram que era intento dos adeptos construir um palácio no alto de um monte próximo na
propriedade do Coronel Francisco de Albuquerque, onde o menino-Deus Joaquim seria
proclamado chefe de governo (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 121-125).
No início de janeiro de 1914, Quinzinho recebeu um dos “telegramas do céu”, no qual
José Maria dava ordens expressas e urgentes para o abandono de Taquaruçú e a
transferência da cidade e do Quadro Santo para Caraguatá, pois era iminente um ataque do
governo que não poderiam suportar. Destarte, O menino-deus, Euzébio e Chico Ventura
deixaram o reduto, e se transferiram para Caraguatá. Junto com eles, metade do povo que
estava em Taquaruçú, inclusive, quase todo o contingente armado. Os que permaneceram,
ficaram sob o comando de Anacleto Ribeiro, assessorado por um negro chamado Antonio
Linhares. Além de conselheiro, este também fazia dispor o filho, agraciado também com as
capacidades de “menino-de-deus”, para o benefício dos que decidiram ficar (FELIPPE,
1995, pp. 140, 146; VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 123, 124). Se admitirmos que o
modelo de possessão era permitido, o filho de Antonio Linhares poderia encontrar uma
perfeita sinergia do seu encargo com a religião de seus pais. Se a primeira tentativa de
atacar o reduto se mostrou malfadada, a segunda foi uma hecatombe. A maior parte dos
que preferiram não ir para Caraguatá era constituída de mulheres e crianças. Muitas delas
integravam as famílias dos combatentes que foram para o novo reduto, acreditando que as
forças federais não atacariam população quase indefesa. Aparentemente, esse era o
pensamento dos que ficaram, pois mesmo avistando as forças inimigas, continuaram
calmamente na lide diária. No entanto, o medo e o risco da emboscada provavelmente eram
maiores do que o receio de causarem um massacre. Mesmo não percebendo nenhuma
movimentação hostil, apenas o som de crianças brincando e cachorros latindo, despejaram
pesada artilharia sobre o arraial.
Durante a destruição de Taquaruçu, em 8 de fevereiro de 1914, os canhões do
exército brasileiro despejaram 175 tiros de granadas explosivas sobre o reduto. Fustigados
pelo pesado fogo inimigo, os habitantes, isto é, mulheres e crianças, portanto, aqueles que
não podiam combater, deixaram as suas casas e buscaram refúgio na igreja, no centro do
povoado, dedicada a José Maria. Entrincheirados, os poucos combatentes campesinos que
haviam permanecido no reduto, não conseguiam erguer a cabeça para fora do refúgio
escavado, devido às salvas de metralhadora que não davam trégua (VINHAS DE QUEIROZ,
1981. p. 131). A igreja, ao invés de refúgio seguro, tornou-se sepultura coletiva para o que
ali esperavam pelo livramento. A certeza da participação no reino celestial do monge e na
ressurreição certa era, provavelmente, o combustível da fé que demonstravam,
132
exteriorizadas nos gritos e salvas. Em chamas, a igreja veio a desabar, silenciando as vozes
dos adoradores que iam perecendo. Os gritos de Santo José Maria foram diminuindo e
escasseando. O clamor da sertaneja foi sufocado, confinado às gargantas. Onde era a
igreja, agora, só escombros. O crepitar das chamas foi a única coisa que se passou a ouvir,
nos intervalos dos estampidos das armas. Os jagunços, por sua vez, combatiam da forma
que podiam. Fanatizados, interpretavam mesmo o revés como mostra de vitória iminente.
Com armas em número e capacidade inferiores ao inimigo, não representaram risco aos que
os atacavam. Foi um massacre, não um combate. Os parcos projéteis disparados pelos
combatentes do reduto, devido à grande distância, quase não alcançavam o front
adversário, e, quando chegavam, estavam já em final de trajetória. A única esperança
estava na ação sobrenatural. Assim, desfraldavam suas bandeiras brancas ao ar,
descrevendo três vezes a cruz, pois acreditavam que, cada vez que completavam este rito,
cinqüenta soldados adversários tombavam mortos. No dia seguinte, percebendo que os
poucos sobreviventes haviam abandonado o local, os soldados invadiram o reduto. O
cenário era de completa destruição. As únicas coisas vivas que encontraram foram cães
desnorteados e porcos do mato fuçando os cadáveres (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p.
131; FELIPPE, 1995, p. 142). O massacre de Taquaruçú acendeu o ódio do sertanejo contra
as forças federais. A partir de então, procurariam a vingança, que se manifestaria
inclemente e implacável.
II.2.2 A Cidade Santa
Aparentemente, logo se encontrou uma explicação espiritual para legitimar a derrota
em Taquaruçú: os que ficaram não teriam crido na profecia de Joaquim, o menino-Deus,
sobre a necessidade do abandono da localidade que cairia destruída, bombardeada pela
força federal. A derrota se torna a afirmação da fé. As ameaças de enfrentamento
impunham ao povo a necessidade de sair à procura da “terra prometida”. Nisto, os
sertanejos do Contestado se assemelhavam não apenas aos hebreus, fugidos do Egito,
mas, ainda, aos Tupi, à procura da “Terra sem Males”. Caraguatá, o novo reduto, foi
fundado Cidade Santa de São Sebastião. Aparentemente, tal homenagem idolátrica era
mais do que honraria, talvez um artifício. Vinculando o nome da cidade ao santo, era sua
honra que estava em jogo na continuidade e proteção da cidade, algo semelhante aos
caminhoneiros hodiernos que estampam a figura da Nossa Senhora ou de Jesus Cristo à
frente do veículo, uma espécie de “escudo espiritual”. Se é ou o deliberado, o que fica é:
eles que se cuidem, pois, em caso de colisão, são eles que “vão” primeiro. Assim, destruída
Taquaruçu, as atenções se voltam para o reduto de Caraguatá, na área de Perdizes
Grandes. Para havia se dirigido o Exército de José Maria, que teria chegado em
meados de janeiro de 1914, antes da destruição de Caraguatá. O objetivo era participar da
133
Festa de São Sebastião, marcada para iniciar em 20 de janeiro. Entretanto, as festividades
tiveram que ser suspensas, pois Perdizes, localidade contígua a Caraguatá, era lugar aberto
e descampado e pairava o medo de que pudessem ser atacados pela força inimiga, durante
as festividades. Tal fato ocasionou o fortalecimento do reduto, que passou a concentrar o
movimento e tornou-se o maior baluarte da crença no monge. Todavia, o incremento
populacional logo trouxe problemas de infra-estrutura e abastecimento. (FELLIPPE, 1995, p.
140; VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 133).
II.2.3 Surge Maria Rosa
O surgimento da virgem Maria Rosa se deu em meio a uma “possessão”. Era filha de
Elias de Souza, grande devoto de João Maria e admirador de José Maria. Tinha em sua sala
de visitas, em lugar privilegiado, um altar erigido por sua esposa, todo enfeitado com
papeizinhos coloridos, dispondo também de velas e paramentos. Ali estavam, ainda, figuras
de João Maria, São Miguel, São Sebastião e São Jorge. Todos os dias, reuniam-se para
prestar culto aos seus santos. Foi em meio a um deles, em plena oração, que Maria Rosa,
adolescente de 15 ou 16 anos, caiu ao chão, em transe. Amparada pelos pais, desfigurada,
fala como se fosse José Maria, o qual anuncia que ela seria, doravante, a sua virgem
preferida. A ordem incluía a continuidade da devoção diária naquele recinto, vaticinando a
iminência de acontecimentos muito importantes. Com o passar dos dias, a virgem
determinou a seus pais a urgência em se mudarem para Caraguatá, local onde ela receberia
orientações vitais para a continuidade do movimento (FELIPPE, 1995, p. 148).
Chegando ao reduto, logo lhe foi atribuído o prestígio profético, e, assim, ascendeu à
liderança espiritual. O moral do Exército de José Maria andava baixo. Visivelmente abatidos,
necessitavam de uma “recarga” de ânimo. Tal se deu, porque o líder do exército, o velho
Euzébio jamais ficou curado do ferimento na perna da primeira batalha, e Joaquim, o
menino-Deus, também não conseguiu recuperar sua credibilidade profética. Caraguatá
passou a receber importantes incrementos de contingente, como foi o caso de Venuto
Baiano e Conrado Grober, este, um alemão acaboclado, ambos com seus capangas. Além
disso, aparentemente, a maior parte dos que sobreviveram ao massacre de Taquaruçu,
refugiou-se naquele reduto. Curiosa era a forma de recrutamento utilizada por Baiano.
Anunciava ser portador de ordens expressas de José Maria e São Sebastião para fazer
guerra contra o governo e a polícia. A recusa à adesão ao movimento resultaria
experimentar trevas por três dias (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 134, 137, 143). O uso
de “maldições” para “encorajamento” assumiu contornos bastante definidos, especificando o
governo estabelecido como o inimigo a ser vencido.
É provável que a Virgem Maria Rosa não tivesse vocação celibatária. quem diga
que a visita do Capitão Matos Costa ao reduto do Bom Sossego, sob disfarce de adepto do
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movimento, causou lhe certo frisson. Era homem íntegro, que gozava do bom testemunho
daqueles que o conheciam. Sob o comando de 200 homens, responsáveis por proteger os
trabalhos de construção da ferrovia, tinha aguçado discernimento para distinguir entre os
maus elementos oportunistas e o sertanejo sincero que buscava amparo em sua fé rústica.
Tendo planejado visitar o reduto, procurou o bodegueiro José Lima, que comerciava com os
revoltosos, para acompanhá-lo em sua visita. Cabelo raspado, indumentária adequada e fita
branca em chapéu de pano, lá foi o valente oficial. Dirigindo-se à casa de Eliazinho, embora
seu vocabulário o denunciasse, seus modos logo inspiraram a confiança do seu anfitrião.
Confessando sua real identidade, patente e intenções, tentou costurar um armistício com o
pai da virgem, se é que o movimento, tão esfarrapado em sua liderança e propósitos, o
permitia. Certamente, para a tão moça e virgem Maria Rosa, o contato com o jovem capitão,
no mínimo, lhe causou muito boa impressão. Acostumada com o trato rude e, muitas vezes,
tosco, do sertanejo do Contestado, o contraste com a polidez e a instrução do oficial
dificilmente não entusiasmaria seus sentimentos. Contudo, tal encontro acabou por se
mostrar danoso para ambos os lados. O sumiço repentino dos “mascates”, após o
parlamento com Eliazinho e a virgem, despertou grande desconfiança no matuto sertanejo.
Logo, o Moraes e o Eusébio despacharam um piquete ao encalço deles, com a missão de
rastreá-los e prendê-los. Sob o comando de Chico Alonso, homem truculento e impiedoso,
não conseguiu interceptá-los ainda na fuga, mas conheciam onde o bodegueiro José Lima
morava. Não encontrando o oficial no local, assassinou o caixeiro, saqueou e incendiou o
estabelecimento. De regresso ao reduto, Chico afirmou ter recebido uma revelação de João
Maria, junto a uma cruz de cedro que havia mandado fazer em seu lugar de pernoite, junto a
uma fonte. Precedido por tal informação, sua chegada ao Quadro Santo foi a recepção a um
“apóstolo de João Maria”. Aparentemente, tão crente quanto ingênuo, Elias Moraes, o pai da
virgem, o exaltou Comandante Geral de todos os redutos (FELIPPE, 1995, pp. 167-169).
Assim, o prestígio e a influência de Maria Rosa foram, de vez, sepultados.
II.3 Ritos Crenças e Objetos Sagrados
II.3.1 Ausência de Imagens
Sabemos que João Maria I foi devoto de Santo Antão. Chegou até a resgatar uma
grande imagem desse santo nas ruínas das Missões sulistas. José Maria, por sua vez, tinha
distintivos (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 111), possivelmente adereços, tidos como
sagrados, utilizados pelo monge. Também, é conhecido que já no período da guerra, houve
em um reduto uma grande estátua de São Sebastião. A adoração posterior incluiu um
retrato atribuído a João Maria, colocado em uma caverna para sua adoração. Todavia,
135
durante a guerra, não notícias de estátuas do monge carregadas nas procissões ou, até
mesmo, nas batalhas. Fotos atribuídas ao primeiro monge circulavam na Região
Contestada, e serviam como amuleto. Enquanto o retrato tornava-se catalisador da fé, o
ídolo traria a identificação com o santo em pessoa, como se o próprio estivesse ali. Isso
pode ser concluído da prática do sertanejo do Contestado, de beijar as estátuas de santos,
clara superposição do mbolo à “pessoa”. Porém, não se tem notícia de um ídolo de João
ou José Maria naquela época. Talvez, isso possa ser explicado por algum dos seguintes
argumentos. O primeiro é o silêncio do ídolo. No catolicismo, a estátua não costuma falar
com aquele que reza, apenas responde seus pedidos. Isso não bastava para um exército
que precisava contatar seu general na glória. Eles acreditavam depender das orientações de
José Maria para o sucesso das batalhas. Portanto, o ídolo não supriria esta necessidade.
Outro argumento é a crença na presença constante do monge, através de seu profeta-
médium. O ídolo não é páreo para a versatilidade e o dinamismo da revelação direta.
vimos que o relacionamento “oficial” com o monge era exclusivo de pessoas que tinham tal
“dom”: as virgens e os meninos-deus. Sempre ligados aos líderes dos redutos, funcionavam
como fator legitimador vital e indispensável para avalizar o poder dos que estavam à frente.
O monge estava vivo” neles. Conquanto a estátua não falasse, era necessário mantê-la
assim. Embora não seja comum no catolicismo a comunicação do ídolo com o devoto, em
outras culturas igualmente idólatras, tal acontecia. Fato curioso relacionado a isso é a
possível origem do ventríloquismo, prática utilizada na Grécia Antiga para fazer com que o
ídolo pronunciasse seus oráculos. Pode ser que um ídolo do monge franqueasse
experiências místicas, suscitando o descontrole da informação, o que levaria pessoas “não
autorizadas” a receberem revelações diferentes, minando a centralização do comando.
Provavelmente, tanto a exclusividade da informação quanto a presença “pessoal” do monge,
possam ser inferidas da necessidade dos “médiuns” receberem suas orientações,
geralmente, na mata ou em lugares ocultos. Maria Isaura Pereira de Queiroz afirma que as
experiências extáticas e transes não eram estimulados, sendo próprios apenas às Virgens
místicas, cujo poder fosse reconhecidamente manifesto (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p.
278). Talvez sejam esses os motivos que levaram o sertanejo a eleger outro objeto religioso
para denotar a presença do santo: a “medida de São João Maria”, um pedaço de barbante
de 1,70m, que simbolizava a companhia do monge (ESPIG, 2008, p. 99).
Além disso, havia a crença no retorno iminente do monge, à frente do exército
celestial. A feitura de sua imagem poderia dar a idéia, como nos demais ídolos, de alguém
cuja vida se deu em passado remoto, muito distante da experiência e da realidade do povo,
ou alguém que necessitasse ter a memória “materializada” em ídolo, para evitar o
esquecimento. José Maria não era assim. Era alguém que eles conheciam, cuja morte foi
apenas uma “retirada estratégica”, com o objetivo de reunir seu exército nos céus,
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composto, também, por aqueles valorosos combatentes que haviam tombado pela causa
Contestada. O seu retorno era iminente. Estava para chegar a batalha de São Sebastião,
quando a Cidade Santa seria estabelecida de uma vez por todas. O retorno iminente de
José Maria significava, ainda, a ressurreição dos queridos, perdidos em combate.
Aparentemente, um ídolo era uma idéia estática demais para a celeridade daquilo que
buscavam. A ausência de ídolos vista no início, pode ser uma influência ameríndia, pois era
peculiar a essa cultura.
II.3.2 O Quadro Santo, a Forma e o Terço
Aparentemente, o “Quadro Santo” era a delimitação da área central dos redutos
fundados pela Santa Religião. Tinha em suas extremidades cruzes que marcavam a área.
Por estabelecer os limites sagrados do ajuntamento, a expressão é utilizada para designar o
próprio reduto. Claramente, no imaginário sertanejo, tratava-se de lugar não apenas santo,
mas inexpugnável. Com base em suas dimensões, realizava-se a “forma”. As cerimônias ou
ritos religiosos eram diários. Mesmo quando não havia procissão, não deixavam de passar
um único dia sem a realização da forma, uma reunião de todos os moradores, dispostos em
fileiras, organizadas por sexo e idade. Assim, proferem-se vivas a São Sebastião, a José
Maria e à monarquia. Todas as tardes era realizado o quadro, rito no qual rezava-se ao
monge, depositando e renovando as expectativas dos adeptos nas promessas atribuídas a
José Maria. Parece que, com a intensidade dos combates, passaram a realizar ao menos
dois desses ritos por dia. O “layout” da cerimônia era o seguinte: o povo se organizava,
formando um quadrado. Em frente à igreja, localizada bem no centro do arraial, ficava o
comandante, dispondo os homens à sua esquerda e as mulheres à sua direita. As crianças
mesclavam-se entre os grupos. Os Pares de França ficavam do lado oposto à igreja. Ao final
da tarde, aproveitavam o crepúsculo para insuflar ainda mais o misticismo dos crentes. Em
Taquaruçú, Manoel apontava para o céu e perguntava se não viam José Maria. aqui
um forte elemento messiânico, pois a figura do monge manifesto nas nuvens não estimula a
idéia do paraíso celeste, mesmo porque, para a religião Contestada, era eminentemente
terreno, mas apontava para o seu retorno, imitando o Cristo bíblico que virá nas nuvens,
voltando pelo mesmo caminho pelo qual foi assunto aos céus, quando uma nuvem o
encobriu (Mt 24.30; At 1.9 - Bíblia). Se alguém confessasse que não conseguia enxergar o
monge, era taxado “incrédulo”. Tal falta não passaria sem a devida correção. Manoel
determinava o castigo, geralmente através de chibatadas ou de sovas de espada de
madeira. Mesmo leves infrações à poderiam acabar em espancamento (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 117; MOURA, 2003, p. 54; PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, pp. 277, 278;
PEREIRA DE QUEIROZ, 1957, p. 122).
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Nos momentos específicos no dia, um pela manhã e outro ao cair da tarde, para a
reunião de toda população do reduto, especialmente para a forma e o terço, o líder passava
em revista e distribuía as tarefas diárias. Depois do terço, sempre vinha um serão ou a
leitura do “livro sagrado”, que era a obra Carlos Magno e os Doze Pares de França. Havia,
ainda, outro rito, que ocorria duas vezes na semana, as sextas e domingos, que terminava
com o beijar das imagens que havia na igreja. Havia, ainda, ritos de iniciação, que se
assemelhavam ao batismo, que incluíam o recebimento de um novo nome. Para ser um dos
Pares de França era necessário rito especial. Existiam, também, ritos de expulsão ou de
saída, para aqueles que fugiam dos redutos, contra os sentenciados à morte, e mesmo com
relação a objetos considerados imundos, neste caso, a incineração. Completam a lista, ritos
de casamento e cerimônias fúnebres (PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p. 278).
II.3.3 O Rebatismo
No exercício da Santa Religião, havia uma espécie de ritual de iniciação para o novo
adepto. Para fazer parte do “Exército de José Maria”, quer os que o desejavam
espontaneamente, quer aqueles arregimentados à força, eram submetidos a uma cerimônia
de batismo, e, posteriormente, entregues aos Pares de França. O campesino se colocava de
joelhos, mãos estendidas e olhos voltados para o céu, e clamava o perdão para os seus
pecados a todos os santos e a José Maria. Além disso, praticava-se a troca de nomes.
se preservariam os antropônimos originais daqueles que tivessem nomes de santos
reconhecidos (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 190). Na tradição judaico-cristã, a mudança
de nome ocorria como um ato de Deus, designando uma nova fase, quase uma nova vida,
para a pessoa. Tal aconteceu com Abrão, que quer dizer na ngua hebraica, pai exaltado”.
Teve seu nome alterado para Abraão “pai de muitas nações”. Outro patriarca que passou
pela mudança de nome foi o seu neto, que de Jacó (Hebraico: “aproveitador”), passou a ser
Israel (“o que lutou com Deus”) (Gn 32.28 - Bíblia).
O batismo nos redutos, diferente daqueles realizados pelos dois primeiros monges,
tinha uma forte ênfase corporativa. Aparentemente, a idéia de purificação, presente a
partir do próprio símbolo utilizado: a água, aliava-se ao principal, o ingresso na fraternidade.
Quanto à administração do rito propriamente dito poucas informações. Sabe-se que,
anteriormente, foi ministrado com boa freqüência pelos monges, especialmente por João
Maria. Procurava-se água corrente e a fórmula batismal mostrava acréscimo àquela
tradicional e cristã: “em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, de São Sebastião e de
São João Maria” (MONTEIRO, 1974, p. 74). Como em todo acréscimo e em toda novidade,
a eles são dadas a maior atenção e a ênfase. No acréscimo está o grande distintivo do
movimento. Não destaque na religião Contestada à Trindade ou mesmo a uma de suas
pessoas. Aparentemente, estavam ocultas no senso comum. Nos redutos, destacam-se
138
João Maria e São Sebastião, tanto nos brados, quanto nas revelações. É notável que o
dinamismo da liderança espiritual, especificamente através da revelação do sobrenatural,
não permitiu a cristalização e a sistematização de um corpo doutrinário ou dogmas
monolíticos, e, conseqüentemente, o surgimento de heresias dentro do próprio movimento.
Embora mantivessem um certo padrão de comportamento, os redutos possuíam liderança
espiritual própria, fontes de revelação independente, o que favorecia várias “denominações”.
Talvez, possamos exemplificar essa tendência com a multiplicidade de igrejas
neopentecostais atuais, que têm lideranças carismáticas diferentes, mantendo,
basicamente, a mesma crença com poucas mudanças. Embora o moderno panorama
religioso brasileiro, marcado por movimentos pneumáticos”, mostra-se faccionado e
dividido, o mesmo não aconteceu com os redutos. Monteiro indica esta verdade quando fala
da convivência quotidiana com o sagrado”. Tratando especificamente da última fase do
movimento, a orientação sobrenatural que os “crentes” recebiam das virgens ocasionava
uma constante mutação e readaptação das práticas às diferentes e novas realidades,
embora amarradas e baseadas em algumas crenças comuns que permeavam todo o
movimento do Contestado (MONTEIRO, 1974, p. 74).
É impossível auferir se houve sistematização definitiva de crenças e práticas no
Contestado. Certamente, tal abrange toda a “confissão de fé” Contestada. Era religião
mutante, constantemente aberta a novas doutrinas e práticas. A idéia do sobrenatural
presente e as novas revelações trazidas pelas virgens garantiam uma fácil e rápida
remodelação do movimento a novas realidades. Aparentemente, havia apenas um dogma: a
luta para estabelecer o reino do monge na região Contestada. A necessidade do rebatismo
mostra certa descontinuidade com a Igreja Católica. Evidenciava o descrédito da religião
oficial e o reconhecimento da religião Contestada e de seus monges como a única e
verdadeira resposta aos anseios campesinos. A mudança de nome, por sua vez, significa
um total rompimento não apenas com a vida pregressa. Aparentemente, a idéia é de ser
“nova criatura”, uma outra pessoa e nova vida. É nesta fase do movimento que se vê, com
especialidade, que a antiga lealdade peculiar aos laços do compadrio é subjugada pela
lealdade ao monge glorificado, sobrepujando, inclusive, os laços de sangue . Digno de nota
é a importância institucional que davam ao batismo ou rebatismo. Todos os que se
submetiam ao rito eram registrados em livro próprio. Apenas em um deles, foram
encontradas mais de mil anotações de batismos de homens, mulheres e crianças
(MONTEIRO, 1974, pp. 73, 74; VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 45). Com a utilização do
compadrio, cimentava-se a unidade espiritual dos redutos entre os adeptos, e entre estes e
o monge glorificado. Curioso é o batismo realizado pela virgem Maria Rosa, fora dos moldes
do catolicismo, que não admite mulheres oficiantes.
139
II.3.4 O Ascetismo
A Santa Religião também mostrava certo ascetismo associado ao conceito de
santidade que possuíam. Viam-se em forte contraste com os de fora. Enquanto atribuíam a
si mesmos a santidade, os não-crentes, bem como, tudo o que possuíam, eram vistos como
impuros. Tal concepção os levava a desprezar qualquer coisa que pudessem aproveitar dos
despojos dos vencidos. Assim, com o desenrolar da guerra, nas vitórias obtidas contra as
tropas federais, não se apropriavam de seus mantimentos, diferente da atitude para com as
fazendas da região, alvo de seus costumeiros saques. Aparentemente, consideravam todos
os bens da região, isto é, tudo o que estava na terra reivindicada, como pertencente à
monarquia deles. Ressalta-se aqui a autoridade do monge sobre tudo o que estava na
jurisdição Contestada (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 187). Quanto à prática de queimar
os pertences dos derrotados, pode ter alguma ligação com a crença ameríndia de queimar
os bens pessoais do falecido. Embora as concepções difiram, pois para os revoltosos era
questão de impureza e para os indígenas significava ligação com o morto, ambos evitam o
“mal” pela queima dos objetos.
II.3.5 Rituais Fúnebres
O menino-de-deus Joaquinzinho, ainda em Taquaruçú, havia predito que os que
morressem em combate pela causa da Santa Religião haveriam de ressuscitar. Agora, em
Caraguatá, surgiu o temor entre os sertanejos que o Dragão pudesse fazer o mesmo com os
soldados mortos. Assim, nasceu a idéia de desenterrar os soldados e desmembrar seus
cadáveres, espalhando seus “pedaços” a dezenas de metros de distância pela mata.
Pretendia-se, com isso, confundir o Dragão, no caso de tentar trazê-los de volta à vida. O
resultado foi um surto fulminante de febre tifóide (FELIPPE, 1995, p. 158).
II.3.6 O Domínio da Natureza
Depois que os sertanejos haviam abandonado o reduto de Caraguatá e se
embrenhado mais para o sertão, houve uma investida do exército contra o reduto vazio.
Ignorando que encontrariam um punhado de ranchos desertos, avançando sem óbvia
resistência, à tarde foram surpreendidos por uma terrível tormenta. Transbordaram os
riachos e a ventania dobrava os taquarais, trazendo grandes dificuldades para as manobras
das divisões. A leitura que o sertanejo fez de tal acontecimento não poderia ser outra: o
exército encantado “botou os soldados para correr” (FELIPPE, 1995, pp. 161, 162):
Entra em ação o exército encantado
01 04
Vindo as Força do Governo De repente pelos mato
Pra investi Caraguatá, Um alarido que zunia
140
O Exército Encantado Era uns ronco dos diabo
Foi o que encontraro lá, Uma loca ventania
Não dexando a Coluna Arvoredo se dobrava
Mais um passo avançá Gaiarada se torcia.
02 05
Os guerrero invisive Taquará que se tramava
Do oficiar São Sebastião, Foiarada que caía
Estendero suas filera Os cipó se entrelaçavo
Pelos arto e pelo chão, Mato baxo se urdia,
Cercaro a tropa toda Foi armado um tar sarcero
Numa grande escuridão Te as Pedra se mexia
03 06
Imposive i pra frente As copada se quebrava
Nada dava d‟enxergá, Ao caí o chão gemia
Os carrero se fecharo Os penhasco desabava
Impedindo de avançá, Em abismo se abria,
Se arguém enveredasse Ao redó inté de longe
So topava inhapindá De pavor tudo tremia.
Arremetem S. Jorge e S. Miguel
07 08
S. Migué e mais S. Jorge Dando estralo nos rebenque
Em cavalos muito branco, Pelo céu traçavo risco
Galopeavo entre as nuve Dava raio, davo estrondo
Dando espora nos potranco, E sortava mir corisco,
Iam deixando a sordadesca A Coluna encangaçada
Uns bem torto e otros manco. Se azulô, sumiu no cisco.
09 10
Nossas Força Encantada Os guerrero lá do arto
São aqui quem Manda Chuva: Combatio em revoada;
- Rasto atráis, vão-se de vorta Se juntavo em nuve escura
- E se espaiem pelas buva, E roncavo vê trevoada,
- Tá lançado o desafio Estralavo seus rebenque
- Se são home, junte a luva Despencava a chuvarada.
A retirada
11 12
Lá no chão fico a luva; Bem por isso redobremo
Se escaparo sem demora. Nossa fé em Zé Maria;
Já vorvero meia vorta O Exército Encantado
Num repente dero o fora: Nossos passo ele alumia
- “Se queremo ficá vivo O São Jorge e São Migué
- É mio nóis i simbora”. Tão conosco noite e dia!
O conceito de santos guerreiros cridos como comandantes da natureza é uma
concepção que se assemelha bastante à crença negra dos orixás e aos espíritos da floresta
da fé ameríndia.
141
II.3.7 Orações Fortes
A crença em orações poderosas, concebidas como “fórmulas mágicas” que bastam
ser recitadas, é prática antiqüíssima da humanidade, compôs a religiosidade de egípcios,
caldeus, gregos, judeus e cristãos medievais, alcançando o Brasil amorenada pela religião
africana, com sotaque lusitano do catolicismo popular português. Acreditava-se que, para
que sua eficácia fosse garantida, deveria ser escrita e portada junto ao corpo. Possuir uma
“oração forte” era algo vital para garantir a segurança pessoal. Causaria uma espécie de
constrangimento na divindade resultando preservação frente a qualquer ameaça. As
orações de poder são vistas ocorrendo associadas à tradição dos patuás. Estes eram
objetos religiosos comuns nas religiões africanas que “clandestinamente” vieram nos navios
negreiros. No Contestado, foram nada mais do que pequenos recipientes ou “saquinhos”
que armazenavam, bem cosidos, as rezas preferidas. O seu poder era otimizado pelo
mistério, talvez, o próprio ineditismo. Quanto mais secreta fosse a mandinga, mais poder se
atribuía a ela. Contudo, se por qualquer motivo o patuá fosse aberto ou desfeito, a oração
perdia, compulsoriamente, a sua força. Neste caso, restavam apenas as opções de
reescrevê-la, acondicionando-a novamente em patuá fechado, ou buscar o novo, elegendo
outra reza. Comumente, na expressão de popular, as orações fortes são utilizadas para a
obtenção de benefícios sobrenaturais principalmente, na conquista do amor e no livramento
da morte (ESPIG, 2008. p. 97). Curiosamente, em nossos dias, além da prática religiosa das
religiões afro-brasileiras, as orações fortes são vistas, paradoxalmente, no veio religioso
mais improvável, os evangélicos, os que mais se opõem aos conceitos da cultura negra.
Ocorrendo especialmente entre os chamados neopentecostais, passaram a ser chamadas
“oração de poder”. Ocorrem, todavia, “sem embalagem”, isto é, sem patuás. A ênfase está
na sua proclamação vigorosa e não na sua posse escrita, compondo uma espécie de
messianismo atual (ALMEIDA JR., 2008, pp. 157, 162).
A. Orações Escritas
Estas orações buscavam o favor mais que individual, estritamente pessoal.
Aparentemente, como promissórias místicas assinadas pelo santo, eram “nominais” ou “ao
portador”. A ênfase na oração escrita pode ser explicada pelo analfabetismo reinante na
região. Embora fosse possível, e, de fato, ocorria, a memorização da reza, o analfabeto
atribuía ao patuá com a oração, poderes mágicos. Acreditamos ser acertada a afirmação
que, acondicionada ao patuá, a oração forte passava a ser, muito mais, um amuleto do que
uma reza (D„ASSUMPÇÃO, 1917, p. 259). Portanto, embora pudesse ser recitada, seu
poder estava associado a estar hermética em seu recipiente, constituindo-se em objeto
místico, exatamente como os patuás dos negros islamizados, como vimos. O fato de
142
serem iletrados também exaltou a capacidade dos alfabetizados, na melhor expressão do
ditado: “em terra de cego, quem tem um olho é rei”. A necessidade de portarem orações
escritas levou à exaltação da capacidade de escrever quase no nível do sagrado. Os
campesinos adeptos da Santa Religião, ignorantes da escrita, recorriam aos alfabetizados
para que registrassem em palavras as rezas prediletas. Tal fato era tão importante que
independia, até mesmo, se o amanuense era “irmão” ou não. Não sendo, desfrutaria do
favor dos “pelados”, como foi o caso de Ana Júlia Kopecki, habitante de um distrito de
Canoinhas, que, sendo copista para os campesinos, desfrutava de respeito e privilégios,
como o de sua casa ter sido poupada dos saques (ESPIG, 2008, pp. 98, 99).
Márcia Janete Espig, citando Maria Isaura Pereira de Queiroz, mostra que as
orações fortes, em seu aspecto “protetor”, podem ser classificadas como terapêuticas”,
para cura de pessoas ou animais, e “preventivas”, neste caso, com o objetivo de “fechar o
corpo” contra qualquer mal exterior. Baseada em testemunha ocular, informa-nos, também,
que os sertanejos traziam o patuá pendurado ao pescoço, bem costurado em couro,
contendo várias orações de São José Maria e outros santos populares do sertão. Valiam-se,
ainda, de “bocós”, pequenos sacos de couro nos quais levavam as rezas e outros papéis
que julgassem importantes. Os patuás tinham, ainda, um papel preponderante na
escatologia Contestada. A Guerra de São Sebastião vaticinada por João Maria, que viria em
meio a cataclismos, vinte anos após a última aparição do monge, traria a tragédia pessoal
para todo e qualquer que não possuísse, preso ao pescoço, as rezas que ensinava e
distribuía aos seus devotos. Após o início das escaramuças, o uso das rezas se tornou tão
popular que passou a ser, praticamente, padrão para os cangaceiros. Assim, o patuá se
tornou adereço religioso, amuleto necessário para sair ao combate. Disseminou-se, então,
como a “reza das rezas”, aquela que ficou conhecida como a “bênção do Santo Monge”,
possessão obrigatória para o combatente, a ponto de ser critério utilizado pelas forças
federais para identificar o campesino adepto, capturado nas batalhas (ESPIG, 2008, p. 99,
100, 101).
B. Influências
Catolicismo Ortodoxo. Embora possuidoras de características peculiares, fruto da
influência religiosa de outras culturas, as orações do Contestado preservam a raiz da
ortodoxia católica. Isso pode ser observado, especialmente, pelas constantes evocações da
Virgem, dos Santos, de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, que são encontradas. Além disso,
há, ainda, os temas recorrentes ao catolicismo ultramontano, como é o caso da súplica pelo
perdão divino pelos pecados cometidos (ESPIG, 2008, p. 106). A nosso ver, tais referências
parecem ser mais do que naturais, talvez deliberadas. Elas identificam e ligam a religião
praticada pelos campesinos do Contestado àquela que eles sempre conheceram. Sem as
143
referências aos personagens do catolicismo e às Pessoas da Trindade, seria uma outra e
nova religião, algo que claramente não pretendiam. Possivelmente, as adaptações e
inclusões que ocorreram, aconteceram por um dispositivo comum do catolicismo rústico, a
abertura sincrética, ferramenta para inclusão de novos ritos e crenças, porém, que mantinha
o status e o reconhecimento de ser a mesma religião que conheciam. Portanto, acreditamos
que não se trata de nova religião, mas da adaptação da religiosidade popular àquilo que
pretendiam.
Outro exemplo é a conhecida oração atribuída a São José Maria. Nela, em
linguagem bastante cabocla, a ordem expressa para não abusar da religião católica e
fala-se do purgatório. Ela foi encontrada dentro de um patuá bem cosido, e foi construída
sob forte alegação de poder sobrenatural, qual seja, de ter sido achada na sepultura de
Jesus Cristo. Nela percebe-se forte ênfase milenarista, antevendo um terrível porvir para
aqueles que não vivessem de forma aprovada ou ferissem a religião católica. Outro
elemento que se destaca é a importância de ter copiada esta oração dentro das casas, para
evitar os flagelos futuros. É provável que tal dispositivo tenha sido criado para facilitar a
crença de um grande contingente analfabeto que não poderia lê-la (ESPIG, 2008, p. 108). A
referência aos cataclismos futuros, como fender a terra e labaredas de fogo que se levantam
das fissuras, enfermidades, escuridão no céu, concede contornos apocalípticos a esta
oração, que, por sua vez, evocam os temas das pragas do Egito (FIORENZA, 1991, pp. 73,
93). É muito sugestivo que o livro de Apocalipse, último da Escritura Cristã, tenha
exatamente como tema a justiça final de Deus e o estabelecimento de uma comunidade
justa. Na expectativa da consumação final do reino de Jesus Cristo, ensinada e estimulada
pelo próprio Messias no “venha o teu reino” da Oração Dominical, percebe-se o mesmo
anseio por uma comunidade justa e final vista no reino de São José Maria. Outra
semelhança entre o Apocalipse cristão e a crença escatológica Contestada é a exortação ao
arrependimento como forma de evitar o sofrimento que virá.
Influência Carolíngia. Muito interessante, também, são os temas da gesta carolíngia,
recorrentes nas orações:
[...] Esta oração foi achada no pescoço de um fidalgo turco que milagre
mostrou com estas letras seguintes BiRiPiBiRiKiR. Todas as pessoas muito
se admiraram do grande milagre e o Rei dos Doze Pares de França mandou
descrever com palavras do Santo Evangelho. E mandou distribuir com o
povo para servir de remédio e defesa. Se alguém tiver saído sangue pelo
nariz ou seja ferido de faca, o Sangue de pronto estancará e no seu corpo
faca não entrará com estas palavras Berulem Berulo tem berumehente Beru
Suburanho ruminhante Jesus Maria José José Jesus Maria. Esta foi
aprovada por S. José Maria, esta oração defenderá de padecimentos. A
mulher que tiver em perigo por causa do Parto, o marido ou a parteira deve
colocar ao lado direito que terá um parto feliz. E tendo esta Oração em sua
Casa será abençoado de Deus e da Virgem Maria. Quem sair de Viagem
leve para sua defesa que Deus lhe ponhará sua santa bênção. Amém
144
Jesus. Esta pertence ao Sr. Jerônimo (D‟ASSUMPÇÃO,1918, pp. 305-307
APUD ESPIG, 2008, pp. 111, 112).
A introdução de temas carolíngios nas orações é, na verdade, uma re-interpretação
da monarquia nos moldes da Santa Religião. Ela é afirmada, mas em termos milenaristas e
com forte contorno de sebastianismo.
C. Rezas Coletivas
Aparentemente, não desfrutando da magnitude das orações escritas, havia as
orações recitadas e em forma de canto, praticadas, como vimos, em caráter diário. Se
utilizarmos alguma linha divisória entre religiosidade e superstição, a nosso ver, parece que
os momentos de devoção coletiva nas suas vilas eram mais relativos à primeira, enquanto
que os patuás, à segunda. Nas rezas diárias havia uma prática notadamente mais
elaborada, compondo um rito. nas rezas escritas, acondicionadas nos patuás e nos
bocós, atribuía-se a magia, ou seja, em si tinham poder de conceder ao portador a
segurança pretendida, sem a necessidade de ritual. As orações faladas ou cantadas se
confundiam, de certa forma, com as saudações e vivas dados a José Maria e aos santos do
panteão Contestado, que eram dados nos mesmos momentos das rezas, pela manhã e à
tarde, das oito as nove e às quatro horas, respectivamente (ESPIG, 2008, p. 103).
D. Motivos das Orações
Sucesso no Combate. Com base nas orações encontradas com Roberto Serafim de
Oliveira e Jerônimo Antônio Pereira, percebemos um padrão: inicia com uma invocação
contendo referência a uma espada resplandecente, como “luzerna” ou “elétrica”,
identificando imediata e nominalmente o portador da reza, isto é, o único beneficiário do
milagre resultante. Ambos se denominavam cavaleiros ou apóstolos de São Sebastião.
Possivelmente, trata-se de uma oração especial de posse dos “Pares de França”. É provável
que isso explique a referência à espada flamejante, equipagem do combatente. Participar do
seleto grupo da “Ordem de São Sebastião” era influência certa do contato com o sagrado
(ESPIG, 2008, p. 105). Vale a pena considerar a hipótese de os “Doze Pares de França”,
espiritualizados “apóstolos de São Sebastião”, terem como modelo os anjos encontrados
nas Escrituras Cristãs, como soldados do Messias. Além disso, é curioso que as principais
referências blicas que aludem mística e figuradamente à “espada”, são relativas ao Éden
(Gn 3.24 Bíblia Sagrada), ao Espírito Santo (Ef 6.17 Bíblia Sagrada) e ao Messias
glorificado (Ap 1.16, 19.15 blia Sagrada).
No paraíso de onde o primeiro casal da Bíblia foi expulso, a espada é símbolo da sua
interdição à humanidade, motivo dos maiores suspiros e anseios pela volta à sua habitação,
145
talvez o lócus da Nova Jerusalém escatológica e eterna anunciada pelo cristianismo
(ALMEIDA JR, 2007, pp. 79 82). A paridade dos “apóstolos de São Sebastião” aos anjos
pode, também, ser inferida em outra oração, encontrada junto ao cadáver de Oliveira, que
rogava por invisibilidade diante do inimigo, a fim de não poder ser atingido. Como seres
espirituais (Hb 1.14 Bíblia Sagrada), é peculiar aos anjos passarem desapercebidos dos
seres humanos. Embora o óbvio nem sempre se confirme, neste caso, é notável que os
temas relativos a crenças recorrentes em tradições religiosas interligadas conduzam aos
mesmos símbolos. Falta-nos documentação suficiente para averiguar se nomes tão
expressivos como Roberto Serafim de Oliveira (Oliveiros?) e Jerônimo Antônio Pereira eram
os reais nomes destes homens, ou nomes recebidos na cerimônia de iniciação, quando
eram trocados nomes de pouca expressão ou significado, substituídos por nomes de santos
populares na região contestada. De qualquer forma, vimos que os nomes originais
eram preservados no re-batismo se correspondesse a algum dos santos da devoção
Contestada. Certamente, não se permitiria que qualquer dos Doze Pares portasse um nome
indigno, e seria o novo nome, provavelmente, aquele que constaria da oração portada por
estes guerreiros tão especiais.
Corpo Fechado. Outra característica buscada através das orações era, como
vimos, o “corpo fechado”, e isso, não apenas quanto a ser atingido, mas, também, quanto à
privação da liberdade. Na oração da Pedra Cristalina, bastante utilizada pelos combatentes,
faz-se referência à Trindade, à Virgem e à hóstia consagrada, a fim de evitar o
aprisionamento por parte do inimigo. Especialmente a última, mbolo da essência física de
Cristo, parece relacionar o tema corpo” à proteção mística divina. Muito sugestiva é outra
oração bastante popular, a Oração de São Jorge, orientada ao mesmo tema, a liberdade.
Nela o santo guerreiro se compromete à proteção física do fiel, impedindo ferimentos e a
captura no campo de batalha. referências a Jesus, à falange do Divino Espírito Santo,
mas o centro da expectativa da súplica repousa no Glorioso São Jorge (ESPIG, 2008, p.
106). Esse fato se reveste de importância ao nosso estudo, uma vez que São Jorge é um
dos santos mais populares na religiosidade negra, mesmo em nossos dias.
E. A Casa Verde
Os monges, personagens itinerantes nas matas, geraram no imaginário popular uma
espécie de crença ecológica, bastante próxima do conceito da religiosidade negra e índia.
Isso pode ser percebido nas seguintes estrofes aplicadas a João Maria (FELIPPE, 1995, p.
107):
Chorando Chorando
Eu vô-me embora Cas vista rasa
Carrero a fora A verde casa
146
Pelo sertão Do meu São João
Defendemo a Casa Verde
Esta é nossa Nação.
João Maria que é de Deus
Que nos dê sua proteção
- Ele mesmo decreta
- Que aqui é nosso Torrão
Chorando Chorando
Por nossas roça As nossas lida
Elas são nossa E as nossas vida
E as prantação O nosso chão
Zé Maria reuniu o povo
E rumo pro Contestado
Nós queremo nossas lei
O governo é detestado
- Invadiu a Casa Verde
- Donde fomo escorraçado
Chorando Chorando
O meu ranchinho Eu me martrato
Fiz com carinho Por estes mato
Só de rachão E os recovão
O que é a Casa Verde
É os mato do sertão
Ela é nossa por direito
Nóis nascemo neste chão
- Casa Verde é Propriedade
- Deste povo nosso irmão.
Chorando Chorando
Eu me despeço Vô me findando
Com este verso Está sangrando
Esta canção Meu coração!
A mata é apresentada como uma espécie de santuário, a verde casa de São João
Maria. Aparentemente, transparece a idéia de que o governo detestado, assume o papel de
profanador do lugar santo. Afirma-se uma ligação mais do que afetiva, efetivamente
religiosa, do sertanejo com o chão que o viu nascer. Como a relva que morre sem sua terra,
o elo entre o homem e seu solo é descrito como vital, não apenas para a manutenção e o
suprimento de seu corpo, mas também para o alimento espiritual de sua alma. Sem terra
não vida: a religião é da terra. A interação entre o homem e a terra parece extrapolar os
limites da dependência, assimilando contornos de unidade vital. Segundo a narrativa bíblica
e o mito de origem ameríndio, o homem vem da terra.
É espantosa a importância, quase central, dada ao cuidado da natureza.
Provavelmente isso se deva a influências ameríndia e negra recebidas, pois ambas têm
conceitos animistas associados à presença de espíritos nas florestas e em acidentes
geográficos. vimos que os sertanejos catarinenses acreditavam que as matas eram a
morada do monge, semelhante à crença ameríndia dos espíritos das matas, bem como, que
criam que estava encantado habitando o morro do Taió, análogo à concepção negra dos
orixás, habitantes de colinas. Quanto ao trato das matas, foi ordenado:
147
1) Não se deve queimar folhas, cascas e nem palhas das plantações que
dão mantimento. O que a terra dá emprestado, quer de volta.
2) É errado jogar palhas de feijão nas encruzilhadas. É o mesmo que comer
e virar o coxo. A terra se ofende.
3) Ao cortar uma árvore ou de mato, não se deixa mamando. Se corta
por inteiro. Enquanto as plantas agonizam, os negócios da gente também
vão abaixo.
4) Quem descasca a cintura das árvores para secá-las, também vai
encurtando sua vida. Árvore é quase bicho e bicho e quase gente.
5) As casas e as propriedades de quem incendeia as matas, um dia
também hão de virar cinzas.
6) A terra é nossa mãe. A água é o sangue da terra-mãe. Cuspir e urinar na
água, é o mesmo que escarrar e urinar na boca de sua mãe.
7) O Pai da Vida é Deus; A Mãe da Vida é a terra. Quem judia da terra é o
mesmo que estar judiando da própria mão que o amamentou.
8) Quem não sabe ler o Livro da Natureza, é “analfabeto de Deus”.
9) As horas de chuva, são as horas de Deus. É quando a Mão-Natureza
vem trazer água para seus filhos na Terra.
10) O cavaleiro que passar perto de lagoa ou cruzar uma corrente de água
e não der de beber ao animal, morrerá com a garganta seca.
11) Bicho do mato é filho da terra. Só se matam os danosos.
12) Bicho do mato não traz marca de gente. Pertence à e Natureza.
Quem caça por divertimento, caça o alheio. É criminoso. Será punido.
13) Não permita que seus filhos matem passarinhos. É malvadez.
14) Não se chama nomes feios à criação. Ela obedece ao instinto que é a
linguagem da Mãe Natureza.
15) Quem encilha animal com „mata‟ no lombo... cuidado com as costas.
16) Não se tira leite, sem deixar um teto cheio ao terneiro.
17) Não se tira mel, sem deixar alguns favos para as abelhas.
18) Rogar pragas é chamar o diabo para si.
19) Quer morrer novo? Não respeite os velhos!
20) Desempenha o que prometer. A palavra dada é sagrada. Quem não a
cumpre, trocado por m... é caro.
21) O velhaco (caloteiro) deve a Deus, mas paga ao diabo. Te livres de tal
credor.
22) Do vadio, até o rasto é feio.
23) O ladrão é sócio do tinhoso. O roubo é repartido no inferno.
24) Da baba do capeta é cheia a boca do mentiroso.
25) A pobreza não é defeito; a sujeira, sim!
26) Trata bem o teu hóspede para seres bem tratado.
27) Quem usa a arma da boa conduta, ama e obedece a Deus.
28) Respeita a família dos outros, para que respeitem a tua.
29) Não é preciso ser santo; mas é preciso ser respeitado (FELIPPE, 1995,
pp. 36, 37).
A partir do mandamento 18, percebemos miles éticas peculiares aos
relacionamentos sociais. Embora não sejam “mandamentos da natureza”, mantivemo-los
com o fim de demonstrar como a idéia do cuidado e respeito para com a natureza fazia
parte integrante da vida Contestada. Mais do que isso, tais exortações mostram verdadeira
veneração por uma natureza personificada. Ela pode, até mesmo, se ofender. É equiparada
ao genitor Deus como mãe dos homens, vista, ainda, como “terra-mãe”. Esta concepção é
semelhante àquela encontrada em religiões africanas, bem como, na crença dos Xokleng do
Planalto Catarinense. Também os animais são exaltados ao patamar quase humano,
148
apresentados como semelhantes ao homem. Assim, há uma hierarquia ontológica do que foi
criado: as árvores são quase animais, e estes, quase homens. Afirma-se a existência de
uma “teologia natural”, expressa no conhecimento da natureza. É dito explicitamente que é
necessário saber ler o “Livro da Criação”, isto é, entendê-la como deusa e honrá-la,
aprendendo como lidar com tudo o que a ela pertence. A água é descrita como sangue da
terra, destacando o respeito que se deve ter com sua utilização. Às chuvas, por sua vez, é
dado o caráter de dádiva especial, momento da bênção de Deus sobre os homens, trazida
pelas maternais mãos da Natureza a todos os seus filhos.
À primeira vista, tal abordagem parece uma modalidade de panenteísmo, como se
houvesse uma alma por trás da natureza que compõe, conjuntamente, um único ser dual. A
associação da terra com os animais e a sua ação alegada e peculiarmente instintiva,
parecem situá-la como uma parte irracional material no ser divino. Contra isso pesa a
identificação com os homens. Provavelmente trate-se de uma estrutura de pensamento
menos complexa, uma possível forma de animismo. Destarte, ao mesmo tempo em que ela
é deificada e vista como mãe dos homens, assume papel irracional, semelhante aos
animais, sendo dito a seu respeito que age por instinto. Certamente, é uma tentativa
deliberada de identificá-la, também, com eles, estabelecendo, assim, base para as inúmeras
ameaças para aqueles que fizerem mau uso de quaisquer elementos naturais: a terra se
ofende; maltratar as plantas é ir à bancarrota; as árvores são semi-humanas; incendiar as
matas é condenar sua própria casa às chamas; as águas são o sangue de nossa mãe-terra
e todo destrato que lhe é feito, é como se fosse contra nossa própria genitora; caçar por
divertimento trará punição e o que descuida dos animais que servem ao ser humano deve
se precaver do pior. Portanto, abusar da natureza em qualquer medida é violentar algo
divino. Pairam sobre o transgressor muitas “maldições”. Se a terra assume papel de mãe,
jamais poderia ser abandonada ou desprezada. Percebe-se que o apego do sertanejo à
terra foi algo além do desejo de posse, assimilando possíveis contornos místicos e, até
mesmo, sentimentais. É curiosa a ênfase dada à natureza, jungida de uma minoria de
ordenanças de cunho mais social. Talvez, porque a vida em sociedade é vida no mundo
criado por Deus, que tem na natureza o ambiente familiar no qual o homem deve viver.
Portanto, a ecologia é um dos temas fundamentais da crença da Santa Religião.
II.3.8 Oferendas
Tendo como motivo central da formulação da Contestada a “posse da terra”, não
para lucro por seu loteamento, mas para a sobrevivência com o seu fruto, a noção de
fertilidade estava presente. Especialmente as refeições eram vistas como sagradas. Nestes
momentos, fazia-se oferendas a José Maria na forma de alimentos, certamente, as melhores
149
iguarias, que eram levadas a ele através de seu mediador, o profeta-médium Manoel. Por
esse rito, percebe-se que creditavam ao monge a bênção do mantimento, isto é, a
dependência material. Aparentemente, requeriam de José Maria aquilo que o Cristo bíblico
ensinou a pedir a seu Pai: “o pão nosso de cada dia -nos hoje” (Mt 6.11 Bíblia). Assim,
diariamente, Manoel se dirigia ao mato, lugar “sagrado” para o encontro com o monge,
afirmando que José Maria consumiria os alimentos oferecidos. A bandeja voltava sempre
vazia, e, certamente, o mediador muito mais nutrido (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 117).
Ao observarmos que a religião Contestada tinha como único foco, a manutenção e a
sobrevivência, torna-se interessante a comparação com as religiões de fertilidade, conforme
vistas na Palestina Antiga. No Antigo Testamento, as religiões praticadas pelos cananeus
eram classificadas assim, pois eram impulsionados à adoração das suas divindades para
garantir o sustento pela fertilidade da terra. Incluem-se aí as condições climáticas favoráveis
à plantação e à colheita. A instabilidade política dos povos, tanto interna quanto externa,
impunha constante insegurança às populações, fato que destaca o óbvio: a necessária
posse da terra, sem a qual não se poderia plantar. Tendo como expectativa as colheitas
fartas, a fertilidade era o tema preponderante na adoração dos cananeus. Para denotá-la na
adoração, erotizaram o culto, praticando a religião através de relações sexuais. Achados
arqueológicos mostram o ídolo da deusa Astarote com os seios e a genitália em evidência.
Por outro lado, outros acreditam que os postes-ídolos erigidos pelos adoradores, ao redor
dos quais praticavam sua religião com as prostitutas cultuais, pretendiam lembrar o membro
sexual masculino.
O que devemos perguntar é: por que a religião do Contestado não se degenerou em
algo semelhante, uma vez que objetivava, praticamente, a mesma coisa? Certamente, havia
o conceito da santidade da virgindade, ou, negativamente, que o sexo era, de alguma forma,
impuro. Soma-se a isso o rigorismo ético, herança do catolicismo tradicional, que
estabelecia alto padrão de conduta moral como necessidade para os favores de Deus.
Todavia, mesmo em comunidades com forte puritanismo ético, como foi o caso dos
adventistas do Catulé, conhecidos por seu rigorismo moral, um surto messiânico levou a
comunidade à prática das maiores atrocidades, entregando-se a atos imorais. Acreditavam
que não precisavam mais ter vergonha, pois estavam todos no Éden. O frenesi religioso
culminou com o espancamento e o assassinato de crianças, nas quais acreditavam estar o
diabo. Avisadas as autoridades, os policiais prenderam os fanatizados nus, enquanto
tomavam banho todos juntos em meio à histeria. É curioso que é exatamente neste
ambiente edênico que ocorreram as inversões no Catulé: liderança leiga, masculina e
adulta, passa a ser religiosa, feminina e infantil; nomes de batismo são trocados por nomes
bíblicos; sexualidade contida dá lugar à práticas inconvenientes; apego aos bens materiais é
substituído pela destruição das próprias posses; o cuidado com as crianças é secundado,
150
dando lugar ao espancamento e morte por causas espirituais; ao invés do vínculo com o
mundo terreno, a ascensão à cidade celeste; da linguagem comum, passa-se para a
linguagem cifrada; recato no vestir é abandonado em favor da nudez; fala-se mais no diabo
do que em Deus; o dinheiro, antes guardado e querido, agora é eliminado; dinheiro deixa de
ser nculo e passa a ser perversão, algo demoníaco (QUEIROZ, 1995, pp. 141, 142). Nota-
se algumas dessas inversões presentes no Contestado. O comportamento libidinoso
atribuído a José Maria bem poderia ser real, embora a instantânea reprovação a Manoel,
quando teve a “revelação” de que duas virgens deveriam lhe “assistir”. Na comparação com
o Catulé, concluímos que é possível que a Santa Religião não tenha invertido os padrões de
sua moral porque os adeptos não tinham a consciência de que já experimentavam o
paraíso. Conquanto Caraguatá tivesse o status de “cidade santa”, apenas a vinda de São
Sebastião traria a realidade “perfeita”. Comparando com as antigas religiões de fertilidade,
percebemos que estas visavam garantir chuvas e condições climáticas ideais para o plantio,
realidade diferente da região do Contestado, conhecida por suas terras férteis. A
preocupação com a produtividade do solo não era prioritária na adoração de José Maria,
mas a garantia da terra, que já era fértil, para o plantio.
II.4 Desejo Monárquico
Herdeiros do século XIX, os sertanejos do Contestado não viam a República com
bons olhos. Os positivistas do Rio de Janeiro esqueceram de consultar as grandes massas
espalhadas pelo território nacional se preferiam o regime republicano. Além disso, a
monarquia estava ligada à religião. O próprio messianismo era a afirmação de um rei, de um
regime monárquico. Destarte, o jagunço Contestado tinha como meta o estabelecimento de
uma monarquia sobrenatural na terra, um reino místico de José Maria. A conseqüência
inevitável é que percebiam a República como um regime diabólico, que deveria ser
exterminado. Ainda sobre isso, é importante considerar a influência social na opção
monárquica. Para os cangaceiros dos monges, a República significa o regime que apoiava
os coronéis que os haviam expulsado e preteridos na posse da terra. A monarquia trazia aos
“nunca incluídos” a lembrança de uma época quando ninguém os incomodava na vida
simples do campo.
No período no qual os redutos foram constituídos, a idéia monárquica foi ainda mais
fortalecida. Certamente, a intenção era fazer da autoridade espiritual, a temporal, isto é,
caracterizar a liderança humana com o poder sobrenatural e a orientação do Santo
guerreiro. Chico ventura, em carta, afirma sobre o reduto de Caraguatá, que ali não era
lugar para os que temiam a morte, pois estavam cumprindo as ordens do “rei José Maria”.
Qualquer ataque seria rechaçado, pois confiavam em Deus que havia de livrá-los. Explica
151
que o motivo da aglomeração era a formação de uma irmandade que tinha como único
objetivo obedecer à “santa religião”. Portanto, as únicas ordens que obedeciam eram
aquelas encontradas na lei do governo do céu”. A lei que Deus deixou no mundo” era a
monarquia. Esta era a singular forma de governo celestial (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp.
138, 139). Quando vemos tal afirmação, devemos entender que a sacralização da
monarquia não era fruto de uma regra fanática, um princípio estabelecido por alguém, mas
que era a forma de governo conhecida, avalizada pelo catolicismo rústico que sempre
praticaram. Nas Escrituras cristãs, o único regime de governo encontrado é a monarquia.
Além disso, esta também é o claro pressuposto da teocracia pretendida. É curioso que a
democracia, conforme entendida hoje, também foi fruto de religião, especialmente dos
protestantes americanos. Embora os princípios republicanos remontem à teoria de Platão e
à prática de Marco Aurélio, foram o pensamento e forma de governo protestantes que
influenciaram diretamente o modelo democrático americano, que se tornou um tipo de
padrão para o mundo. Eram religiões extremamente democráticas, que tinham como centro
forte senso igualitário. Isto também explica o seu rápido florescimento na antiga colônia
inglesa (HATCH, 1989, pp. 3-11).
Embora não seja sempre esse o resultado, percebemos um possível papel da
religião: o estabelecimento de uma forma de governo oposta à opressora. Antes de
migrarem (fugirem) da Inglaterra para os Estados Unidos, os protestantes puritanos haviam
vivido o chamado Interregno, um período quando o país ficou sem rei, tendo como governo
o parlamentarismo puro. Oliver Cromwell foi o primeiro ministro. Portanto, a forma de
governo estabelecida foi diametralmente oposta ao governo de um só. Agora, era um
número considerável de pessoas que governava a nação, sem o absolutismo de um
monarca. Embora no estabelecimento da “Nova Inglaterra”, os puritanos perseguidos pela
monarquia britânica, ainda estivessem sob seu domínio, buscaram, posteriormente, a
“liberdade”. Esta passou a ser a “virtude das virtudes”, idolatrada na ilustre estátua da mais
famosa dama, doada pelos franceses no estabelecimento do governo republicano, em linha
com as tendências mundiais da época, iluministas e anti-absolutistas. No Contestado,
vemos o mesmo fenômeno, mas na contra-mão do que aconteceu na Inglaterra e nos
Estados Unidos. Sacralizaram a monarquia, exatamente o oposto da forma de governo que
foi estabelecida no Brasil. Tal fenômeno parece demonstrar que a forma de governo não é o
principal, mas os princípios fundantes que o regem, real garantia da concretização dos
anseios de um povo.
Provavelmente, a opção monárquica não é ideológica, mas prática. Os sertanejos
não pretendiam o estabelecimento de uma monarquia, por considerar que tal forma de
governo fosse superior à República, mas pelo simples fato de que, no passado recente
deles, quando ainda imperava a monarquia, eles vivam tranqüilos no sertão, realidade
152
transtornada pelos vários interesses da República. Conforme se expressa Maurício Vinhas
de Queiroz, o sertanejo deu uma resposta mística contrária à República, um regime que
apoiava os coronéis e os interesses estrangeiros, em detrimento do habitante da terra
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 139). O conceito de monarquia que tinham, portanto, era
pragmático: para eles, ela havia funcionado melhor. Uma vez que a república foi o regime
que trouxe o mal físico e material, nas constantes privações a que foram submetidos,
quando a Santa Religião foi finalmente firmada, tal sistema de governo logo foi identificado
como sendo do diabo, diferente da monarquia, que, para eles, passou a ser o governo do
céu. É possível enxergar uma nuance interessante, comparando o estabelecimento do
protestantismo americano com o Contestado brasileiro. Max Weber, afirma que o
capitalismo foi incrivelmente incentivado pela secularização da ética do trabalho, conforme
concebida originalmente pelos protestantes, especialmente, os calvinistas. O trabalho era
visto como sagrado, feito para a “glória de Deus”. Assim, as primeiras gerações, embora
acumulando muitos bens pela dedicação no trabalho, viviam de forma não opulenta,
aplicando parte dos recursos que possuíam em obras religiosas e de assistência. Todavia,
as novas gerações foram se secularizando, abandonando os princípios religiosos originais,
porém, preservando o mesmo empenho no trabalho. Assim, o acúmulo de riquezas sem a
contrapartida da humildade religiosa, gerou a ganância e a ostentação (WEBER, 1999, pp.
123-125).
Aparentemente, a organização e a prosperidade americanas deram base para o
colono se estabelecer e se “esquecer” de Deus, enquanto no Contestado, a desorganização
geral e o caos social levaram o sertanejo na direção exatamente oposta: viu no sagrado a
sua única esperança. Nisso se percebe que o grande clamor não era por um reinado
espiritual, mas um reino terreno, garantido pelo sobrenatural. Para o campesino dos redutos,
a monarquia não significava um retorno ao passado, mas o estabelecimento do reino da lei
de José Maria, futuro e superior mesmo à experiência monárquica passada (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 140). Portanto, devemos compreender que não era a intenção do
movimento, em nenhuma medida, entronizar o descendente do imperador destituído no
Brasil ou criar nova dinastia. Com “monarquia”, idealizavam a sociedade terrena e perfeita,
garantida pelo sobrenatural. A idéia da monarquia encontrava, ainda, forte apoio na
mentalidade popular. Como vimos, a popularidade da obra “A História de Carlos Magno e os
Doze Pares de França”, que destacava as idéias abraçadas no movimento, tais como o
reinado, a nobreza, a valentia, a fidelidade religiosa, a castidade, etc, exaltava esse regime
de governo como sendo superior e o único relacionado a Deus. Além disso, as festas do
Divino e do São Bom-Jesus, que incluíam a coroação simbólica de alguém, contribuíam
para preservar na memória popular idéias e conceitos monárquicos (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, p. 141).
153
II.5 Militarismo Religioso
O uso da violência pela igreja remonta a Agostinho, em sua controvérsia donatista.
Donato foi um bispo sismático de Cartago (313 347), que liderou berberes e sem-terras
contra as elites católicas. Os donatistas enfatizavam, sustentados pelo pensamento de
Tertuliano e Cipriano, o papel substancial do sacerdote ao oficiar os sacramentos, não
apenas instrumental, como defendiam Agostinho e o catolicismo em geral. Muito apegados
às Escrituras cristãs, não toleravam aqueles padres que, por causa de perseguição,
ofereceram libações ao imperador ou entregaram Bíblias para serem queimadas.
Chamavam-nos de hereges ou traditores. Acreditavam que os tais poderiam reassumir
suas funções se fossem rebatizados. A oposição dos donatistas não se limitou à
controvérsia, mas se materializou em violência (MARKUS, 1999, pp. 284-287; WALTER,
1988, pp. 493, 494). Foi neste contexto que Agostinho admitiu o uso da força para proteção
da igreja. Lançadas as bases para a repressão, a igreja pôde valer-se de exércitos
seculares, o que se viu posteriormente, de forma especial, no advento das cruzadas, no
intento de libertar a Terra Santa. Para garantir que continuariam em poder cristão, ordens
militares foram criadas, como os templários e hospitalários (READ, 2001, p. 119). Até
mesmo exércitos papais foram, também, constituídos. Cabe ressaltar que conflitos religiosos
se perpetuaram até os nossos dias, como são os casos do IRA (Irish Republicam Army), na
guerra entre católicos e protestantes que divide a Irlanda, e os inúmeros conflitos dentro, do
cada vez mais, faccionado islamismo. Além disso, há a “eterna” disputa por Jerusalém, entre
maometanos e judeus. Portanto, historicamente, a religião foi causa e meio de muitas
guerras e conflitos, verdadeiro estímulo para a violência.
Quando examinamos o Contestado, percebemos que o advento do monge militar
José Maria é a tentativa de perpetrar uma revolução social. O papel do coronel, marcado
pela lealdade de homens que deviam executar cegamente as suas ordens como obediência
a um chefe de guerra (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 44), é espiritualizado e assumido por
José Maria, transformando-se em esperança messiânica e escatológica. O poder de
coerção social exercido pelos fazendeiros sobre o homem simples é substituído pela
liderança religiosa do monge. Pela fé no messias do Contestado, a terra pretendida passa a
ser a “terra prometida”, isto é, a terra garantida através da esperança escatológica.
Radicam-se e radicalizam-se na nova fé. O encontro com o Frei Neuhaus, quando de sua
tentativa de evitar o confronto iminente em Taquaruçu, mostra que, nesta fase do
movimento, a religião Contestada passou a se opor ferozmente aos representantes da
religião tradicional. O prestígio religioso de Manoel lhe conferia, à época, poder absoluto
no reduto. Diante da ameaça, o respeito religioso transforma-se em liderança militar. Trata o
154
Frei Rogério da forma desrespeitosa e ofensiva, chamando-o de corvo” e de “cachorro”.
Explica que respeita os padres de bem, mas que tal reconhecimento não cabia a ele,
acusando-o de ladrão de dinheiro e freqüentador de baile. Houve quem afirmasse que os
padres não tinham mais valor para eles (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 118).
Certamente, o que vemos aqui é uma “guerra de prestígio”. Por um lado, o frei faz
uso de sua aura religiosa oficial tentando subjugar os sertanejos à obediência da religião
tradicional. Por outro lado, Manoel percebe nisso uma intromissão e uma ameaça ao poder
que havia conquistado pela religião. Não estava disposto a deixar o padre reconquistar
admiração entre os adeptos do reduto. A estratégia de difamação é arma bastante eficaz
nestes casos. Diante da consternação do sacerdote romano, Euzébio proclama a liberdade
do novo século, com a espada em riste (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 119). Esse
“Ipiranga Contestado”, mostra o grito de independência de um povo que não mais queria
estar subjugado aos ditames de governantes federais que nunca haviam pisado naquelas
terras. Para eles, o padre estava ali associado à República, enquanto o grito de liberdade
ecoava a monarquia que havia sido recentemente extinta. A referência a um novo século,
possivelmente, evoque a noção milenarista de um mundo novo, ou, no mínimo, a iminência
dele. É possível que na mente de Manoel estivesse mais a figura de um império do que de
um reino. O primeiro pressupõe conquista, enquanto o segundo se tem por direito.
Aparentemente, em Manoel, assim como veremos depois em Adeodato, “embriagados” com
o poder que detinham, tendiam a exagerar as atitudes, usurpando a “liderança” mística dos
monges. A idéia da conquista é, em si mesma, agressiva, estimulando a violência. A
monarquia, quer despótica ou não, promove o militarismo. Diferente do regime republicano,
onde o governante depende do voto, no absolutismo o monarca é garantido pelo seu
exército. Não raro, o rei ou imperador acompanha seus soldados às batalhas. Por esta
argumentação, quando foi formulada a idéia de “reino”, a idéia de um exército parece
necessária. Logo se elegeu São Sebastião ou São Jorge como o grande general. Quando o
militarismo religioso assume papel de “polícia”, torna-se inquisição. No próximo capítulo
veremos como isso afetou o Contestado.
O militarismo religioso no Contestado está presente até nas roupas que trajavam. Os
homens vestiam uma espécie de “fardamento”, chapéu de pano adornado de fitas brancas e
cabelo cortado tipo escovinha” (ESPIG, 2008, p. 101). Outro elemento interessante da
religiosidade Contestada desta fase é a utilização de tambor para convocar o povo para a
“forma”. Tratava-se de um velho tambor de pele de carneiro. Embora esta cerimônia tivesse
um pano de fundo “militar”, não devemos nos esquecer que, tanto para negros quando para
índios, era um instrumento ritual. A utilização do tambor soa como a convocação para uma
guerra santa, jungindo o religioso ao militar. Em Taquaruçu continuava o fanatismo. Quando
a noite começava a chegar, olhavam freneticamente para as nuvens e viam castelos, torres,
155
igrejas e, ainda, o exército de São Jorge e São Sebastião. Alguém que nada visse era
repreendido por não ter fé. Havia uma hierarquia militar espiritualizada. Não se tratava de
ser mero “oficial”, mas um der apoiado pelo sagrado. Alexandre de Souza, o Xandoca, por
exemplo, era “intendente de São Sebastião” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 129, 138). A
existência de uma “tropa de elite”, os Doze Pares de França, também comprova a união do
religioso ao militar, na mentalidade Contestada. Eram vinte e quatro combatentes escolhidos
a dedo, entre os mais capazes e mais corajosos. No romance carolíngio, eram doze homens
contados em pares. Todavia, na mentalidade do sertanejo era questão de matemática, não
de organização. Havia real espiritualização dos tais cavaleiros no movimento. Também
conhecidos por “apóstolos de São Sebastião”, eram ponto de intersecção entre a tradição
carolíngia e o catolicismo rústico do sertão catarinense. Como guerreiros revestidos de
armadura espiritual, tinham como armas não apenas os facões e as garruchas, mas,
também, suas rezas. Como eram os mais hábeis no combate corpo-a-corpo, eram os que
acumulavam o maior mero de mortes de peludos”. Possivelmente, isso, na concepção
dos adeptos em geral, era evidência contundente que as rezas deles tinham maior poder
(ESPIG, 2008, p. 102). Em Caraguatá, o sertanejo utilizou tática de guerra índia. Como o
único meio de se chegar ao reduto era através de um mato alto, cheio de “unhas de gato”,
os caboclos “prepararam” picadas para que os soldados passassem, atraindo-os, assim,
para uma emboscada. Segundo o depoimento de Eduardo Honorato, tal estratégia era
utilizada pelos “bugres” (FELIPPE, 1995, p. 155).
Ainda associado ao militarismo religioso, havia no Contestado os “bombeiros”, a
“agência de inteligência” da Guerra Santa. Era um grupo de sertanejos, adeptos do
movimento, que se infiltravam nas comunidades vizinhas, até mesmo, em destacamentos do
Exército enviados contra os redutos, responsáveis por informar os planos e a movimentação
do inimigo. Provavelmente, foi um destes bombeiros que, recrutado localmente para lutar
contra Taquaruçú, “acidentalmente” assustou o animal que puxava a carroça que carregava
a metralhadora do General Gualberto, mergulhando-a no riacho poucas horas antes do
início da refrega. Foram muito atuantes durante toda a Guerra. Sua mera existência
beneficiava os revoltosos, pois gerava desconfiança no exército para com a população local,
dificultando o levantamento de informações (MOURA, 2003, p. 52).
II.6 Coragem e Glória
O rito do batismo trazia forte impacto psicológico, a necessidade de transformação, o
que, especialmente para os homens, na fase belicosa do movimento, impunha uma nova
dimensão, guerreira e sacrificial. Assumiam a valentia daqueles que foram transmudados
em soldados de João ou José Maria. Sob esta entregavam-se às batalhas, como quem
anseia pela morte para herdar a verdadeira vida. Tal segurança sobrenatural, causada pela
156
certeza da vitória, não raro, ocasionava o descuido e a falta de planejamento nos combates,
especialmente no calor da batalha, quando as emoções afloravam. O repente abaixo deixa
transparecer o ímpeto do combatente Contestado.
Com o coro dum Peludo
Fiz colera pra cachorra
Aparei o quengo d‟otro
Co facão feito tesora,
Fui às guampa dotro quebra
No mundão botô a bocorra,
Quem tem medo do barúio
Limpe o eito, logo corra,
Ao redó ficou limpinho
Não resto nenhuma borra,
Quem não é de nossa gente
É mio que logo morra...
Eu saí de lombo liso,
Tô aqui ca vida forra!
(FELIPPE, 1995, p. 139)
Os sentimentos para com os soldados do governo eram ambivalentes.
Consideravam-nos brasileiros, como apelo psicológico de fazer pesar na consciência deles
a morte de outros verdadeiros brasileiros. O soldado era aquele que combatia a mesma
raça, em favor de estrangeiros. Outra estratégia psíquica, provavelmente para minar o
ânimo da soldadesca, era a alcunha de traidores do próprio povo. Não devemos esquecer
que a “gota” que fez transbordar o caldeirão social efervescente foi, não apenas a chegada
da Brazilian Railway e a Lumber, ambas americanas, mas, também, a postura que tomaram,
desconsiderando, maltratando e matando a gente simples, arrancando-a do próprio solo. A
oposição oferecida pelos soldados é vista como uma tentativa de escravizá-los “novamente”.
A leitura que faziam é que o exército lutava a favor do estrangeiro, em um processo que os
forçaria para ainda mais baixo das camadas sociais, retirando o único valor sobre o qual
repousava a sua dignidade e orgulho: a liberdade. Isso ratifica o papel da religião, utilizada
como ferramenta social para livrá-los da condição à qual foram relegados. A afirmação de
serem cristãos sobrepõe a Santa Religião ao catolicismo, reconhecendo-a como a
verdadeira religião (FELIPPE, 1995, p. 141):
01 07
De quem é que tu descende E quem são, vocêis sordado?
Ó soldado nosso irmão? Otro sangue, otra raça?
Vindo cá perdê a vida Vossos pai e vossas mãe
A cacete e a facão? São acaso dotra massa?
02 08
E quem são os nossos pai Quando aqui se levantemo
Nossas mãe, nossos irmão? Na defesa dos direito,
Não é tudo a mesma gente Também temo defendendo
157
Brasileiros e cristão? Os de vocêis do mesmo jeito
03 09
Defendemo o que é nosso Qe destino é esse nosso
E também seus interesse, Se matando como uns bicho?
Diz que semo bandolero E depois nem sê enterrado
Nesse tanto nóis não desce. Como cisco, como lixo?
04 10
Resistimo aqui nos mato Bem por isso bano à luta
Por sê livre, por se bravo; O brigá é nossa lei;
Morreremo rosto erguido Se trazê mióra ao mundo
E jamais seremo escravo! Ou piora, eu não sei!
05 11
Vocêis são como nóis semo Meus sordados se acordem
Brasilero restoiado; Sem matá os seus irmão,
Só porque les dão a farda Não sejamo mais escravo
Vem mata os desgraçado? Dos gatuno da Nação.
06 12
Por voceis temo brigando Os que tão erguendo a arma
E por seus pai e suas famíia: Pr‟atirá num brasileiro,
Nossa e vossa liberdade Tão armando o próprio laço
Das muié e vossas fíia Pra si mesmo, um cativero!
II.7 Os Santos Venerados
Em Taquaruçú, resistindo à tentativa do Frei Rogério Neuhaus de levar à celeuma
uma solução pacífica, os campesinos acreditavam que os soldados não teriam coragem de
ir até lá, pois estavam sob a proteção da Virgem Maria, cumprindo ordens expressas de
Deus. O santo tradicional mais evocado pelo sertanejo adepto do movimento, por razões
óbvias, era São Sebastião (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 119). Percebemos que os
principais personagens do catolicismo oficial, Deus, Jesus Cristo e a Virgem Maria, estavam
nos bastidores da Contestada, cujo palco era praticamente monopolizado pelo papel dos
monges. A intenção do Frei Rogério de desmobilizar os adeptos, quase o levou à tragédia
pessoal. No dia seguinte, na missa para a qual convidou todos os componentes do reduto,
não compareceu ninguém. Confabulavam o que fazer com ele, se chicoteavam, degolavam
ou castravam (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 120). Os santos da preferência sertaneja
são vistos, também, na prática do terço. Era puxado por uma espécie de capelão, iniciado
com preces e cantos no melhor estilo caboclo, defronte o altar. Como intermediários são
aclamados São João, Bom Jesus, o Espírito Santo, e a Virgem Maria. A ética religiosa é a
mais simples possível: “Deus manda fazer o bem”. Quanto aos acontecimentos da vida:
“Deus sabe o que faz”. A devoção extrapola os momentos e as paredes da igrejinha,
levando os adoradores a se juntarem em pequenos grupos para que os ensinamentos do
monge fossem relembrados, a leitura da Décima de São João Maria, especialmente por
158
parte dos mais velhos para a instrução dos jovens (FELIPPE, 1995, p. 34). Depois de São
Sebastião, é provável que os santos mais aclamados sejam São Jorge, especialmente por
sua luta e vitória contra o dragão, símbolo de todo o mal, bem como, São Miguel (FELIPPE,
1995, p. 150).
01
Nosso irmão José Maria
Toma a espada e vem lutá,
Vem ao lado de São Jorge
Com sua lança pelejá:
O Dragão ta fumaceando
Se aprontando pr‟avançá
02
Lá no seu cavalo branco
O São Jorge vem montado
Com sua lança comandando
O Exército Encantado.
O Dragão ta fumaceando
Ta roncando o condenado.
03
O São Jorge vem nas nuve
Tráiz corisco e ventania
Junto às Forças Encantada
Lá se vê José Maria.
O Dragão ta fumaceando
Ta rugindo noite e dia
04
Junto vem o São Miguel
Empunhando sua espada,
E mais São Sebastião
Abrindo nossa estrada.
O Dragão ta fumaceando
Avancemo camarada.
Embora houvesse predileção pelo santos guerreiros por razões óbvias, foram
também buscados São João Batista (identificação com o trabalho pastoril), São Benedito
(santo negro que conseguiu ascender socialmente e ser adorado por brancos), o Divino
Espírito Santo (simbolizado em uma pomba, mas muito poderoso) e, por fim, Santa Bárbara
e São Jerônimo (santos invocados nas tempestades) (CABRAL, 1979, p. 98). Chama-nos a
atenção que todos os santos do panteão Contestado eram buscados no agreste brasileiro,
achando nas religiões negras orixás equivalentes.
159
II.8 Continuidade e Descontinuidade com o Catolicismo
Como já ficou claro, é indubitável que a religião praticada pelos sertanejos do
Contestado não se harmonizava com o catolicismo institucional, conforme defendido pelos
padres. Contudo, há certa controvérsia quanto ao nível de rompimento, se foi total ou
parcial. Maurício Vinhas de Queiroz classifica a Santa Religião como uma outra religião, não
se enquadrando ao catolicismo, nem mesmo no seu modelo rústico. Indica como evidência
disso a diferença da Santa Religião para com o catolicismo popular praticado até o início do
movimento em 1912. Para ele, diferia tanto do catolicismo oficial como do rústico, tanto
litúrgica quanto doutrinariamente. Afirma que, a partir de certo momento, o Deus do
sertanejo não é mais Jesus Cristo. Toma o depoimento de Chico Ventura, que teria dito que
tirava seu chapéu para José Maria, chamando-o de “nosso Deus”. Para o autor, quando há
a mudança do núcleo de uma religião, percebe-se a gênese de uma nova. Assim, a Santa
Religião não seria heresia, pois, para ser, necessitaria reter alguns dos pilares principais do
cristianismo, que, a seu ver, foram removidos (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 260, 261).
Márcia Janete Espig cita as conclusões de Maurício Vinhas de Queiroz, indicando a
possibilidade de ser o contrário. Para a estudiosa, está claro que a religião praticada pelos
rebeldes não estava em linha com o catolicismo institucional, o que a expulsão do Frei
Neuhaus o comprova. Contudo, acredita ser questionável que o adepto concebesse a sua
prática religiosa como uma completa ruptura (ESPIG, 2008, p. 109). Talvez, a questão não
repouse na possibilidade da Santa Religião ser catolicismo popular, mas se as modalidades
de catolicismo popular podem ser chamadas de catolicismo, ou, ao invés disso, devem ser
classificadas como modalidade religiosa amorfa, uma categoria que abarque as expressões
religiosas rústicas que possuem elementos católicos representativos. Uma vez que o
modelo popular da religiosidade brasileira é completamente aberto ao sincretismo, como
especificar seus limites? Há limites? É nossa opinião que, uma vez que se admite o
sincretismo, restarão elementos da religião original, acrescidos de elementos importados. A
Religião Contestada, embora não sendo Católica Romana, é católica rústica, sincrética e
aberta.
A continuidade entre a Santa Religião e a Católica pode ser vista na referência a
várias entidades adoradas e valores espirituais comuns em ambos os seguimentos: Divino
Espírito, Jesus Cristo, Virgem Maria, Pai, Deus, hóstias, Mãe Santíssima. Na opinião de
Márcia Janete Espig, embora muitas das crenças dos campesinos do Contestado de fato
fossem repudiadas como espúrias pelo Catolicismo ultramontano, não eram vistas assim,
em nenhuma medida, pelos praticantes da Santa Religião. Pelo contrário, sugere que, para
estes, era, antes, uma purificação das deturpações do catolicismo oficial do que a sua
160
corrupção ou degeneração. Destarte, era mais uma tentativa de reforma do que de
rompimento (ESPIG, 2008, pp. 109, 110).
III. AS REGRAS DA COMUNIDADE
Como temos visto, houve um grande número de “salmos” sertanejos. Aqueles que
compõem os cinco livros dos salmos dos hebreus, que, juntos, originaram o Livro dos
Salmos das Escrituras Cristãs, todos foram compostos originalmente metrificados para
serem cantados. Tinham como função a adoração a Deus e o ensinamento do povo.
Aparentemente, por suas trovas, o sertanejo Contestado pretendeu algo semelhante.
Embora não dispusessem de uma “confissão de fé”, onde sua doutrina fosse
sistematicamente apresentada, cantava sua crença. Resumiam nelas os ensinamentos de
João Maria. Em uma delas notamos os seguintes temas: a) A reprovação da mentira, b)
exortação contra o ódio, c) contra a inveja, d) contra o engano e o roubo, e) a proibição da
calúnia, f) da avareza, g) o cuidado e o respeito da família, h) a condenação do assassinato,
i) da morte injustificada e maus-tratos de animais, j) a necessidade do trabalho honesto e
responsável, k) a importância de ser exemplo para os filhos para sua boa educação, e l) o
bom trato dos empregados (FELIPPE, 1995, p. 26).
Para regular a vida social, foram promulgadas as seguintes leis:
I Todos os crentes do sexo masculino devem trazer a cabeça raspada.
(Em sinal de adesão ao grupo. Por isso foram apelidados de PELADOS, “a
cuja alcunha revidavam, intitulando os profanos de PELUDOS.)
II O Arraial de Taquaruçú é declarado CIDADE SANTA. (Não conhecemos
sua extensão e nem seus limites.) É de propriedade comum.
III Ninguém pode sair da Cidade Santa, sem ordens superiores. (Há casos
em que a desobediência deste artigo foi punida com espancamento.)
IV A Bandeira da Cidade Santa se constitui de um pano branco
quadrangular, com uma cruz verde ao centro.
V Todos os habitantes da Cidade Santa, ao saírem, (principalmente os
homens) devem usar uma fita branca nos chapéus, com o laço pendente na
parte posterior.
VI Todos os homens adultos devem trazer uma espada à cintura. (Em
falta de espadas, usavam facões de aço ou entalhavam facões de pau.)
VII A área cercada da igreja e cemitério, centro da Cidade Santa, terá a
denominação de “Quadro Santo”.
VIII Todos, sem exceção, uma vez por dia a determinada hora, deverão
comparecer no Quadro Santo e postarem-se em forma de cortejo, para
aguardar a eventual chegada de José Maria à vanguarda do Exército
Encantado. À frente da forma as crianças e a seguir as moças e mulheres.
IX Tudo, na Cidade Santa pertence a todos, menos os objetos de uso
pessoal. Os negócios se efetuarão à base de trocas e permutas. O dinheiro
da República só terá valor para “a compra das coisas de fora”.
X Toda a justiça será pessoalmente distribuída pelo legítimo
representante de José Maria (FELIPPE, 1995, pp. 126, 127).
161
de se observar semelhanças no funcionamento da Cidade Santa e dos
Quilombos, como a proibição de sair da cidade mediante severas ameaças, a vida comunal
que praticavam na sociedade, o comércio através de escambo, e o comércio exterior” em
benefício da comunidade.
III.1 Uma Autêntica Comunidade
É fato que os redutos eram organizados de forma a prover ao adepto as condições
necessárias para o ambiente social. Contudo, as instituições eram todas espiritualizadas.
Como temos asseverado, o governo era estribado no religioso. Eram celebrados
casamentos, em moldes semelhantes aos que eram praticados pelos padres. Os batismos
eram registrados em livro próprio. O ingresso na comunidade era, praticamente, irreversível.
Uma vez membro da irmandade, era quase impossível a retirada. A todo admitido no reduto
eram exigidas fidelidade e devoção absolutas, não apenas no que diz respeito à ordem
estabelecida, mas a todos os seus símbolos religiosos. Provas à fidelidade do adepto foram
criadas na admissão dos novos membros, bem como, outras para testar a dos que
fazem parte da comunidade. Um exemplo disso foi o “beija pé”, isto é, a exigência de beijar
os pés de Manoel. Embora inicialmente um rito de iniciação, passou a ser a prova diária da
fidelidade e em José Maria (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 116). Em Caraguatá a
utilização dos bens era comunal e compartilhada. O que se trazia para o reduto era
administrado e distribuído de forma igual entre todos. A no messias sertanejo causava a
tendência a uma espécie de nivelamento social. Toda espécie de diferenciação era
severamente combatida. Atribuía-se a tal igualitarismo o poder de cimentar a unidade do
reduto contra os inimigos. A ânsia pelo reino místico levava os crentes a abandonar seus
pertences, carregando apenas o que podia para os redutos. Em alguns casos, deixaram
para trás a casa aberta e, até mesmo, criação presa em curral. Contudo, na precisão,
voltavam para buscar o que fosse útil para o suprimento. A barganha era permitida, mas
qualquer venda era punida com a morte. Embora houvesse o compartilhamento das posses,
algumas diferenças hierárquicas permaneciam. A chegada de grupos aos redutos,
significava, também, a chegada de líderes ou chefes. Estes não eram completamente
diluídos entre os soldados, mas, freqüentemente, preservavam alguma autoridade. Os que
mostravam habilidade no discurso, e, de forma especial, se possuíam prática em rezas e
benzimentos também logo se distinguiam (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 142, 143).
Percebemos a forte influência das religiões indígena e negra, tão presentes no sincretismo
do catolicismo popular brasileiro. Isso faz lembrar a prática índia e quilombola, de franquear
a utilização dos bens objetivando o suprimento coletivo.
162
A centralidade da fé era visível, até mesmo, na disposição das choças no reduto.
Certamente, influenciados pela idéia católica, construíam uma igreja bem ao centro do
reduto ou “Quadro Santo”, ao redor da qual as cabanas seriam construídas (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 116). O modo de vida dos sertanejos lembrava bastante o indígena. Os
sertanejos defloravam a mata, erigindo seus redutos e gerando o modelo de vida do
Contestado. Pela descrição que dispomos, aparentemente, assemelhavam-se mais a
aldeias do que a vilas. Moravam em choças com, no máximo, uma repartição. Seus leitos
eram, também, emprestados da floresta. Eram “tarimbas”, estrados de taquaras inteiras,
dispostas no mesmo sentido do corpo, amarradas com cipó, suspensas por quatro
forquilhas do chão (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 178). Fato interessante, que distingue a
Religião Contestada, é o papel de destaque dado à mulher na liderança religiosa,
especificamente, às Virgens. Embora fosse ofício em grande parte emblemático, é inegável
a proeminência de tal cargo. Godelier, ao estudar a sociedade baruya, povo da Nova Guiné,
caracterizada pela dominação masculina e a exploração feminina, mostra que a única forma
das mulheres alcançarem alguma projeção de liderança era através do prestígio “espiritual
(GODELIER, 1986, p. 9). Há, ainda, semelhança com a religiosidade negra. Como vimos,
a mulher era vista mais inclinada ao poder místico. Fato que distingue o papel das Virgens
no Contestado, é que elas assumiam, de fato, o lugar de poder, exercendo alguma
autoridade coercitiva, como no caso de determinar o castigo daqueles que julgavam
merecer.
Em Taquaruçu surge uma liderança negra no reduto. Euzébio e seu neto menino-
Deus são substituídos por Antônio Linhares e seu filho, ambos negros, sendo este chamado
de menino-vidente (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 127, 128). A assunção de negros à
liderança do movimento reforça a tese da influência negra não pela quantidade, mas pela
tendência “não-racista” de uma população miscigenada de aceitar os que eram
etnicamente marginais. Tal fato se torna muito significativo ao nosso estudo, uma vez que,
durante o breve tempo que estiveram à frente de Taquaruçu, entre a derrocada de Euzébio
e seu neto e o massacre final, aparentemente, os dois deram um modelo “afro” à
religiosidade do Contestado. A mata como meio de revelação continua presente, elemento
animista que caracteriza tanto as religiões negras quanto as indígenas. Assim, todas as
manhãs o garoto-vidente ia ao mato conversar com José Maria, trazendo frescas palavras
do monge para o povo. O garoto é descrito como um menino de dez anos, que não levava
as revelações” diretamente aos adeptos, mas as entregava, antes, ao pai e a um “preto
velho”, de setenta anos de idade. Destarte, Linhares e o idoso eram os que transmitiam as
ordens ao conselho dos Doze Pares, que, por sua vez, retransmitiam ao povo. A figura do
“preto velho” é mítica nas religiões africanas. Possivelmente, fosse a real liderança espiritual
reconhecida por Linhares, uma espécie de filtro e conselheiro, motivo pelo qual submetia os
163
vaticínios do filho a seu escrutínio. Maurício Vinhas de Queiroz é da opinião que tal estrutura
de poder tinha como objetivo uma espécie de fiscalização dos oráculos recebidos, algo que
teria sido motivado pela desastrosa revelação anunciada por Manoel (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 128).
Nesta fase a Santa Religião é estabelecida. Algumas mudanças se processam em
decorrência da morte de José Maria. Como crença, são acrescidas as noções do retorno
deste, junto com o exército encantado de São Sebastião, um curioso cruzamento de
sebastianismo com a fé rústica do Oeste Catarinense. O movimento se estrutura e se
organiza. Sem o ícone religioso no comando, era necessário que houvesse uma liderança
estabelecida nos moldes do monge, não para substituí-lo, mas para revelar sua vontade.
Surgem as “Virgens” e os “meninos-deus”. Uma árvore da vida é firmemente estabelecida
nos redutos, signo da promessa de vida paradisíaca da Santa Religião. Todavia, alguns
sinais começaram a surgir, que impossibilitariam a sua frutificação. Veremos a seguir a parte
final da causa Contestada, sua ruína, bem como, seu legado para os nossos dias.
164
CAPÍTULO 5 - O FRUTO PROIBIDO: DECADÊNCIA E TÉRMINO DA
SANTA RELIGIÃO A QUARTA FASE DO MOVIMENTO
I. INTRODUÇÃO
Chamamos de “quarta fase” o período da derrocada religiosa do movimento,
coincidindo, em sentido contrário, com a ascensão do banditismo. Abordaremos os fatores
que contribuíram para a dissolução da causa, tais como as severas privações a que foram
submetidos, a resistência das forças governamentais, mas, principalmente, a degeneração
dos ideais originais. Destacaremos as atrocidades cometidas por Adeodato, o final da
“Guerra Santa”, e a continuidade da crença até nossos dias. Secundada a fé, aquilo que
mantinha a unidade espontânea e a harmonia por princípios éticos e morais, tomaram a
primazia os interesses pessoais e certa disputa de poder. Embora não seja muito fácil traçar
a linha divisória entre a terceira e a quarta fase, sugerimos que a destituição da Virgem
Maria Rosa seja tomada como a transição para a última. Certamente, enquanto ela estava à
frente, a orientação do movimento ainda era voltada à religião. Todavia, depois que os
sertanejos acusaram-na de hospedar e conferenciar com o capitão Matos Costa, perdeu o
prestígio, e, conseqüentemente, o poder.
II. A DESCARACTERIZAÇÃO DA FÉ
Maria Rosa, que detinha a liderança espiritual de Caraguatá, é descrita como uma
adolescente de uns quinze anos, loura, pele alva, cabelos crespos, e muito expansiva. Era
completamente analfabeta, mas falava com bastante desenvoltura. Sua indumentária parece
repleta de simbolismo: vestido branco (virgindade e pureza), enfeitado de fitas azuis (toque
celestial) e verdes (as matas?), e, ainda, penas de várias cores, em grande quantidade
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 151). Maria Rosa era um ícone” da religião do
Contestado, da miscigenação, e sua versão religiosa, o sincretismo. A cútis branca e os
cabelos loiros lembram a colonização alemã caucasiana; os cabelos encaracolados dão
pistas de alguma acaboclagem; a caracterização com as penas indica alguma influência
negra ou indígena. Diferentemente dos profetas/médiuns anteriores, Maria Rosa não recebia
as orientações de José Maria em conferências espirituais nas matas, mas na reclusão de
seu quarto. Percebe-se, ainda, a legitimação da religião como instrumento de manipulação.
Maurício Vinhas de Queiroz nos informa que Francisco de Castro, jagunço bastante
experimentado e ativo no reduto de Caraguatá, afirma que os chefes se reuniam com Maria
165
Rosa às noites para ditarem-lhe o que deveria dizer no dia seguinte, durante a forma
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 151). Percebe-se também outra diferença quanto ao
modelo que anteriormente predominava. Até então, os videntes passavam as ordens de
José Maria aos chefes, que, por sua vez, retransmitiam ao povo. A derrota em Taquaruçu
parece ter impingido uma maior preocupação estratégica ao movimento, fortalecendo o
conselho e a liderança dos chefes. Assim, Maria Rosa passou a falar diretamente aos
adeptos os recados de José Maria. Tal estratégia transmitiu ao povo ainda maior segurança
espiritual, ouvindo o oráculo diretamente da sua portadora. Dessa forma, ao se omitirem da
intermediação da mensagem, os chefes assumiram a função de manipuladores, orientando
a virgem aquilo que deveria dizer. Em um espetáculo, a direção e a produção são tão
importantes quanto os próprios atores.
II.1 Estabelece-se a Inquisição
A mudança de sentido no comando parece ter surtido efeito. O status que Maria
Rosa tinha entre os adeptos era a de “santa”, e sobre ela era dito que “tudo sabia”.
Desfrutando dessa consideração popular, os adeptos se sujeitavam ao seu comando e nada
era questionado. O fortalecimento do prestígio religioso mostra assimetria exagerada na
“troca”, freqüentemente ocasionando o estabelecimento da coerção. Sendo, não apenas, a
única porta-voz autorizada do monge no momento, mas, também, aquela que lhe sondava a
mente, nomeava e destituía os que detinham cargos. Além disso, cabia-lhe, o poder de
sentença, julgando a legitimidade da conversão daqueles que chegavam ao reduto, pois
poderiam ser espiões. Uma “inquisição sertaneja” se estabeleceu, tendo como delegada,
tão-somente, a adolescente. A vitória no combate do Caraguatá em muito fortaleceu o
movimento, inclusive, a legitimidade para a barbárie para com os não-aderentes. O êxito
cimentou a confiança na causa e na aprovação divina do movimento. Assim, o terror se
espalhou no sertão, como ondas de uma maré que não parava de subir. Mais e mais
adeptos chegavam em meio a brados de “viva a monarquia”. Exigiu-se, dos de fora, o
pagamento de tributo. Fazendas eram saqueadas e o gado levado para o reduto. Seus
donos, às vezes mortos, outras, levados para serem julgados. Quando achados culpados,
poderiam ser apenas surrados, ou, até mesmo fuzilados. A diferença de punições aproxima,
ainda mais, da inquisição medieval, a prática dos adeptos. A aplicação de castigos físicos
sugere alguma forma de expiação de culpa, como os flagelos religiosos impostos pela
inquisição sobre aqueles que eram considerados pequenos ofensores da religião. Todavia,
exatamente como acontecia na Idade Média, aos que era atribuída a culpa por práticas
intoleráveis, como a heresia ou a bruxaria, na religião do Contestado, os que eram rotulados
de “inimigo dos pobres” ou “da Santa Religião” não sofriam apenas torturas, mas a morte.
166
Contudo, percebe-se uma diferença quanto ao método. A utilização da fogueira na
inquisição medieval tinha por objetivo “purificar”, isto é, dar ocasião ao arrependimento
através de terrível sofrimento, ou seja, viabilizar a libertação do fogo do inferno pelas santas
chamas da igreja. Porém, no Contestado, aparentemente, não havia a condição do
condenado ver sua culpa expiada para receber, através da morte, aquilo que recusou em
vida: o reino de José Maria. O fuzilamento sugere punição sem oportunidade de
arrependimento. Como não havia nenhuma ocasião de salvação para o sentenciado à
morte, a execução parece mais um ato judicial do que religioso, propriamente dito.
Provavelmente orientada pelos líderes precavidos, Maria Rosa revela a necessidade
de mudar o reduto mais para o interior, para a região de Bom Sossego, uma localidade
chamada Pedras Brancas. Era exatamente essa a motivação: tranqüilidade, pois, conforme
a virgem, um novo destacamento militar seria enviado para combater em Caraguatá. Tal
deslocamento serviu bastante à causa do movimento, pois concentrou maior população,
uma vez que, pouco ao norte de Bom Sossego, no Vale do Timbozinho, havia outro reduto
estabelecido, com apreciável contingente. Este novo Quadro Santo imitava as cerimônias
religiosas anteriores e permitiu que fossem, praticamente, padronizadas. Aparentemente, a
liderança religiosa foi mais incrementada. Havia um jovem vidente, Antoninho, de cerca de
vinte anos, que era, também, o comandante geral desse acampamento, que, junto com o
comandante de briga e com o comandante de forma, compunha a liderança do reduto.
Parece que dividia o ofício religioso com a virgem Sebastiana Rocha. Na verdade, eram os
meios de revelação reconhecidos, pois, havia o que podemos chamar de “liderança ritual”
exercida por dois “padres”, Sebastião Romão e Pedro Barbeiro, que dirigiam rezas de
manhã e à tarde. Possivelmente, estas foram um tipo de “missa” dos adeptos. Por serem
diferentes da celebrada no Catolicismo Romano, não centrada no sacrifício de Cristo, mas
na fé nos favores do monge, talvez seja este o motivo de não serem chamadas “missa”.
Contudo, a idéia de “rezar missa” parece ser muito semelhante àquilo que pretendiam. Outro
fato curioso quanto a tal liderança é que um dos “padres”, Sebastião Romão, era negro
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 154). Percebe-se a assimilação do negro aparentemente
sem nenhum racismo por parte dos campesinos, mostrando a abertura que se dava para a
influência religiosa africana no movimento.
Aqueles ideais iniciais de um grupo de religiosos que queriam, sob a liderança de
José Maria, tão-somente, praticar a sua crença em Taquaruçú, foram substituídos por
planos de guerras de conquista. Um pouco mais a leste de Bom Sossego, Ignácio de Lima,
que tinha sido comandante de piquete no redutomor, estabeleceu um pequeno reduto,
cerca de 100 casas, que ficou conhecido como Pinheiros. Foi nessa época que os adeptos
tomaram a Vila Nova do Timbó, lugar dominado pelo Paraná. Novos ajuntamentos se
espalharam pelas margens do Timbozinho e do Tamanduá. Toda a região tornou-se alheia à
167
Federação, predominando os interesses da Santa Religião. Henrique Wolland, o
“Alemãozinho”, militar desertor, aventureiro de biótipo germânico, embora de baixa estatura,
chegou a Pinheiros e logo se firmou como “comandante”. Sua astúcia e valentia se tornaram
notórias. A confirmação de seu posto trouxe Maria Rosa ao reduto. Nesta visita, como
autoridade suprema do reduto-mor, a Virgem declara suas pretensões expansionistas. Lavra
documento, uma portaria de nomeação de Alemãozinho como comandante dos Doze Pares
de São Sebastião daquele acampamento, conferindo-lhe amplos poderes. Recebe ordens
para ampliar os domínios da Santa Religião, atacando Papanduva, Iracema, Lucena e Rio
Negro, onde deveria interditar os acessos, fechando as estradas. Chegaria, assim, aos
municípios de Joinville e Blumenau, localidades distantes do foco do movimento no Planalto
Catarinense. Deveria fazer guerra a todos os “peludos” que encontrasse. Além disso,
precisava “confiscar” tudo o que acreditasse ser de utilidade para a causa, especialmente
armas. Seus poderes incluíam a nomeação de sua hierarquia de comando, atribuindo
cargos de sub-comandante àqueles que julgasse serem mais capazes. O documento se
encerra com palavras de encorajamento e fé, incentivando-lhe à “fé em Deus e S. Sebastião
e S. José Maria de Agostinho e São José de Maria, que tudo é nada” (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, pp. 154, 155). Assim, o clima de terror ameaçava extrapolar os limites da
região Contestada. O pavor ia se estabelecendo em todo Estado de Santa Catarina e no
Paraná. A única forma que as cidades tinham de evitar o desastre iminente era a aceitação
da Santa Religião e a transferência dos seus habitantes e bens para os redutos.
A “inquisição” é vista, a partir de então, como ferramenta da Santa Religião, sendo
praticada até o fim da Guerra. Enquanto o movimento se disseminava e crescia, costumava-
se respeitar as posses dos aderentes e, mesmo, dos simpatizantes da causa Contestada. A
empatia destes nem sempre era voluntária, pois a norma que regia o trato com os não
alinhados era a queima de suas propriedades. Não apenas as posses eram alvo da fúria
religiosa, mas também as pessoas. Havia a prática de seqüestro e escravidão. Contaram-se
casos de fazendeiros que, depois de testemunhar suas propriedades se converterem em
cinzas, foram levados presos para os redutos, surrados com varas de marmelo e colocados
para trabalhar (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 181). Aparentemente, a idéia que rege tal
procedimento é muito similar à da inquisição medieval: o flagelo do corpo para a purificação
da alma. As feridas causadas pela agressão, associadas à preservação da vida, quando não
eram achados passíveis de morte, sugerem uma chance para abraçar a causa, tornando-se
um adepto. Em outras palavras, era o homem quem decidia o destino eterno do condenado.
Se fosse julgado apto ao castigo físico, teria a chance não apenas de viver, mas de
converter-se à fé Contestada e, assim, participar de suas promessas espirituais. Caso fosse
condenado à morte, não apenas perderia sua presente vida, mas perderia a herança
espiritual do movimento. Houve casos nos quais o direito de exercer juízo contra os
168
descrentes assimilou requintes de crueldade. Um tal Chicuta Thives, um antigo bugreiro,
fornecedor da Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande, odiado pelos sertanejos, foi
sentenciado à morte na estaca. Tal execução concedia aos “carrascos” o prazer do
espetáculo. Consistia em fincar uma estaca pontiaguda no queixo do condenado manietado,
em pé, firmando-a ao chão. Com o cansaço, seu peso fazia com que a estaca fosse
gradualmente penetrando em sua cabeça (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 181). Tendo o
maxilar pressionado em sentido contrário ao seu habitual movimento, serrava-lhe os dentes,
impedindo a formulação mesmo de um grito de dor. A melodia de seu sofrimento era um
agonizante “boca-quiuza”.
II.2 O Mito e o Medo
por volta de abril de 1914, o comando das tropas derrotadas em Caraguatá é
assumido pelo General Carlos Frederico de Mesquita. O mito contamina os soldados
federais. O comandante, veterano de Canudos, passava em revista às tropas, tentando
“remendar” os seus farrapos, depois de ter sido retalhada na batalha do Caraguatá. O
destemor estampava os símbolos e mitos no pano-de-fundo Contestado, colocando em
destaque, e em cores vívidas, a ilimitada disposição dos campesinos, despertando o medo e
os piores pensamentos nos soldados da Federação. Reputavam aos adeptos da “Santa
Religião” o status de invencíveis, e, seus feitos, passaram a ser descritos de forma
hiperbólica, “super-heróicas”. Para estremecer ainda mais os militares, aliada ao receio do
mito, estava a carestia real. Em plena campanha do Contestado, o General Mesquita
reclama da falta de apoio do governo, especificamente, do Ministro da Guerra, a ponto de
levar a tropa para perto de um motim (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 156). Certamente, as
dificuldades se somam. É notável como espaço no homem para a incerteza quanto aos
seus conceitos religiosos. Se é fato que “todo homem tem seu preço”, poderíamos dizer que
“toda crença tem sua força”. Submetido a condições adversas, o ser humano vê suas
convicções de fé abaladas. Necessita encaixar tais situações dentro da sua estrutura de
pensamento, pois, do contrário, tenderá à sua reformulação, procurando construir uma base
intelectual que possa assimilá-la. Se ficar com uma “peça” nas mãos que não se encaixa no
seu quadro de referência, sua cabeça “quebrará”. Isso parece estabelecer um axioma:
quando alguém se depara com o mito, ele é explicado pelas crenças que se possui, ou
assimilado, no caso de não se enquadrar nesse sistema, um ou outro, mesmo que
parcialmente. Na verdade, a assimilação mais do que mudança por negação ou diminuição,
implica acréscimo ou soma. À estrutura antiga adicionam-se novas idéias (VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, pp. 156, 157).
169
A Guarda Nacional foi contratada pelo General Mesquita para intervir em Poço Preto,
próximo do canteiro de obras da Estrada de Ferro, um pouco à frente de Porto União.
Embora a coluna tenha obtido algum sucesso, como a tomada dos redutos de Santo Antonio
e São Paulo, sofreu graves perdas, o que forçou sua retirada. Foi o tipo de situação onde
ambos os lados se proclamam vitoriosos. O general, após os combates retirou-se, por
acreditar que havia concluído sua missão. Pediu sua baixa, declarando que não lhe
competia mais acompanhar as forças federais à caça de bandidos. Do lado caboclo,
cantaram uma fácil vitória, o que reforçava sua crença na misteriosa atuação do Exército
Encantado a seu favor. Foi esse senso de invulnerabilidade que atraiu, ainda mais, hordas
de marginais e assaltantes que perambulavam na vizinhança. Mesmo capangas de
“coronéis do mate” passaram a aderir ao movimento. Daí em diante, o ideal religioso cedeu
lugar à sina jagunça, trazendo grande desgosto e frustração àqueles que buscavam na
causa Contestada um sincero refúgio religioso. De forma especial, foram a virgem Maria
Rosa e seu pai Eliazinho os que mais sofreram. Com isso, os vaticínios da vidente não
eram tão esperançosos, transformando-se em anúncios lúgubres e desanimadores
(FELIPPE, 1995, pp. 163, 164).
II.3 O “Vaticano” Contestado
Com a saída da Virgem, o “lugar de poder” é assumido por homens que se faziam
obedecer pela ordem e pela força. Embora o religioso ainda se fizesse presente, podemos
dizer que, se antes o movimento era dirigido principalmente pelo prestígio, agora o era
especialmente pela coerção. Estabelece-se uma espécie de Estado Religioso. Pode ser que
a causa principal da destituição de Maria Rosa não tenha sido, principalmente, seu encontro
com o Capitão Matos Costa. Sua “queda” não seria possível se seu posto de “Virgem” já não
se encontrasse ameaçado. É provável que ela mesma tenha causado sua deposição
quando trouxe a visão expansionista ao movimento. Ao dar ares “imperiais” ao reino da
Santa Religião, fortaleceu exageradamente o uso da força e da coerção, fazendo concentrar
poder nas mãos dos comandantes, despertando cobiças. Falando-se “ideologicamente”, o
empreendimento, aparentemente, se tornou grande demais para uma adolescente sem
experiência de combate. Destarte, sua entrevista com o referido militar do Exército teria
sido, tão-somente, a ocasião propícia, a desculpa necessária, para retirar-lhe o poder. A
destituição da Virgem Maria Rosa coincidiu com a ascensão de Francisco Alonso de Souza,
vulgo Chiquinho Alonso. Desconsiderando a, até então, liderança da Virgem, organizou um
piquete e saqueou o armazém de Jose Gaspar dos Santos, na Campina dos Pintos,
localidade próxima a Timbó. Depois de atravessar o rio que leva o mesmo nome, espetou no
chão uma cruz, alegando ter recebido recado de João Maria. A partir de então, foi aclamado
170
comandante geral. Tendo ascendido novo personagem à cena, as cortinas se fecham para a
Virgem. Nem mesmo nos bastidores ela encontra função. Aparentemente, reconhecendo a
total perda de deu prestígio, anuiu à mudança de comando, aconselhando o povo a seguir o
novo líder, afirmando, não ter mais nada com isso (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 163). É
curioso observar que o houve disputa de poder, mas, tão-somente, o reconhecimento de
sua posse e de sua privação, isto é, a resignação imediata àquele que o detém. Poderíamos
especular se a virgem pretendeu preservar a integridade do movimento ou a sua própria. De
qualquer forma, a política havia trocado de mãos. Das delicadas e suaves mãos da Virgem
adolescente, passou às rudes e ásperas mãos de um cangaceiro. Assim, a procissão foi
vencida pelo piquete. A “queda” de Maria Rosa mostra que os ideais religiosos davam sinal
de fraqueza. Inferiorizado o “virgenato”, parece que buscaram compensar o necessário
aporte espiritual, anteriormente garantido pelas videntes, intensificando as rezas diárias. O
intermediário espaço ao contato imediato. O povo foi incentivado a rezar diretamente a
José Maria e aos demais santos da predileção sertaneja. Talvez isso tenha sido deliberado,
o “golpe de misericórdia” na liderança espiritual. Diluindo o poder religioso, centralizava-se o
poder “militar” do líder e estabelecia-se a coerção. A intensificação da reza individual
produziu rezadores contumazes, como foi o caso de Bernardino José Luiz (ESPIG, 2008, p.
103; D„ASSUMPÇÃO, 1918, p. 297).
Na implantação de uma estrutura de dominação vê-se a gênese do Estado,
entendido como estrutura declarada e definida de poder, que utiliza a coerção como
ferramenta de governabilidade. A religião foi secundada, assumindo o papel de instrumento
legitimador. Aparentemente, passa a ser a “lente” que foca o poder. Em outras palavras, a
religião torna-se o canal através do qual flui a dominação. Além disso, a delimitação do
espaço e do tempo dos adeptos, através das formas e da programação religiosa diária,
sujeita o corpo à docilidade que o Estado impõe e exige (FOUCAULT, 2008, pp. 117-142).
Assim, os objetivos políticos da “Guerra Santa” foram se definindo e se intensificando. O
capitão João Teixeira de Matos Costa, militar cuja humanidade e nobreza conferiu-lhe,
posteriormente, o martírio, advogou a causa estrita dos campesinos, não exatamente suas
crenças ou seus meios. Reconheceu a tremenda injustiça praticada contra eles pelo
governo federal ao deixar-lhes, literal e figuradamente, “sem chão”. Procurando evitar o
conflito armado, enviou uma embaixada ao reduto de Bom Sossego, que lhe trouxe, por
escrito, suas reivindicações, que baseavam-se no “extermínio”
1
dos coronéis, sendo
1
É provável que tal reivindicação primava pela literalidade, ou seja, que fossem, não apenas
“depostos”, mas fuzilados, uma vez que o “coronelismo” não era cargo oficial, mas lideranças locais
não institucionalizadas. Acreditamos que pouca dúvida de que os próprios adeptos da Santa
Religião fariam isso, se tivessem oportunidade. A expressão que utilizaram é “liquidados os coronéis”
(PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado Episódios e Impressões. Rio de Janeiro, 1916, p.
229, apud: QUEIROZ, 1981, p. 161).
171
nomeados: Arthur de Paula, Fabrício Vieira, Chiquinho de Albuquerque, Amazonas
Marcondes, Affonso Camargo, Pedro Vieira, Pedro Ruivo, os irmãos Michinicovsk, e outros,
e, ainda, exigiam uma “indenização”
2
pela morte das mulheres e das crianças no ataque e
destruição do reduto de Taquaruçu (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 161). Certos do direito
que tinham à terra, garantido pelas crenças que adotaram, negociavam com o governo de
igual para igual.
II.4 Uma Falsa República
Quando os “irmãos” estavam ainda em Taquaruçú, provavelmente querendo atiçar
ainda mais a fogueira, os inimigos da Santa Religião, interessados no extermínio daquela
população, produziram uma carta manifesto de independência, proclamando a monarquia
Sul Brasileira. Tratava-se de tentativa deliberada de orientar as forças federais contra os
seguidores de José Maria. Documento bem elaborado, dificilmente seria produto da pena do
iletrado Manoel Alves de Assunção Rocha, a quem colocaram como autor. O sertanejo
protestou contra essa manobra ardilosa, entendendo claramente que estavam manipulando
as tropas do governo contra o sertão. Em resposta a isso, produziu-se os seguintes versos
(FELIPPE, 1995, p. 137):
01 04
Essa escrita de peludo Só queremo as Lei de Deus
Dita carta à nação? São só essas verdadera;
Não fazemo essas burrage São as Lei da Natureza
Muito menos o Assunção, Que pra nóis foi as primeira;
Tar não passa de picuinha Pelas quar levamo a vida;
Ou carqué maquinação As da Carta são bestera.
02 05
Monarquia não entendemo, Só queremo é se dono
Só as Lei de João Maria; Desta terra que nascemo;
Nossas Lei são brasilera Aqui tamo em liberdade
Estrangera não se cria, Bem por isso nóis lutemo;
Nóis aqui semo irmandade Esse chão é nosso berço
Tudo o mais só é folia. Isso nunca esqueceremo.
03 06
Não queremo lei nenhuma A coroa que nóis queremo
Que se vende a estrangero; Na cabeça é o chapéu;
Vem de fora e toma as terra A bandera que já temo
Quando nosso é o terrero; É a luz do sór e o azul do céu
Os curpado é os Governo Nossas Lei é a liberdade,
Assassinos traiçoero. Pr‟apanhá não semo réu!
2
Aparentemente é isso que querem dizer quando pedem a restituição das vidas das mulheres e das
crianças”, conforme afirmado por Demerval Peixoto, citado por Maurício Vinhas de Queiroz (1981, p.
229).
172
Como já foi notado anteriormente, predomina a repulsa ao governo federal por
reconhecerem que beneficiava o interesse estrangeiro em detrimento do nascido na terra.
Contudo, o reclame explícito contra a tentativa de culpá-los de fundar nova república. É
interessante notar que o motivo disso, aparentemente, não é o fato de procurarem a
separação da Federação, mas, a falsa acusação. De fato, explicitam o desejo de se
separarem e estabelecer sobre eles, tão-somente, as leis de João Maria. O estabelecimento
de uma república é contrário à expectativa que tinham do reino que o monge traria. Para
serem coerentes, os adeptos deveriam proclamar um reino ou império, não uma república. É
estranho que o redator do documento tenha pretendido culpá-los da formação de outra
república, acrescentando-se a isso a atribuição do título de “imperador” e o tratamento “dom”
a Manoel Alves de Assunção Rocha, incompatíveis com o regime republicano. Seria uma
tentativa de atribuir alguma confusão aos sertanejos? Ou, quem sabe, um esforço para
instigar ciúmes nos republicanos?
II.5 Saques e Piquetes
Embora anulada, parece que ainda havia partidários de Maria Rosa no movimento,
especialmente os que eram mais apegados à religião do que ao cangaço. Todavia, aqueles
que eram mais moderados e conciliadores não foram ouvidos. Foi planejada, no início de
1914, uma grande ofensiva jagunça. Fato importante e coincidente, é que, justamente nesta
época, pela paralisação da construção da Estrada de Ferro São Francisco, mais de mil
operários foram dispensados. Por não terem para onde ir, a maioria aderiu ao movimento
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 164). A causa se degenerou em ataques e saques às
cidades e vilas. Matos Costa, tentando, por todos os meios conduzir a refrega a um fim
pacífico, retorna da capital da República, onde fora parlamentar com o Ministro da Guerra e
outras autoridades. Tomou ciência do caos que assolava o sertão, com as estações de São
João, Três Barras, Canoinhas e, ainda, outros locais, sendo atacados e incendiados. De
volta ao Contestado, no comando de 60 homens, embarcou para a estação de João
Calmon, local saqueado por Venuto Baiano à frente de 600 jagunços. Embora
estabelecendo a referida parada como destino, este o surpreendeu cerca de três
quilômetros antes. Sua cautela se mostrou sua mazela. Desembarcando com 40 soldados
na referida distância, foi à frente da locomotiva, andando pelos trilhos. Subitamente
emboscados, vendo-se sob intensa saraivada de balas, o maquinista em pânico, deu
marcha à na composição, desamparando o capitão de armas, munição e escudo. Sem
balas e sob fogo intenso, se viram cercados pelos jagunços que, a facão os despedaçaram
(FELIPPE, 1995, pp. 171, 172). Com a morte do pacificador, a hecatombe sertaneja se
173
tornou inevitável. Pelo enrijecimento das partes, a intensidade da fé Contestada se tornou
ainda mais pujante, gerando o desejo de morte ao adversário. A tranqüilidade daqueles que
foram, outrora, pacíficos campesinos, deu lugar à ferocidade de quem acredita ter licença
para matar, avalizada e suportada pela necessária base religiosa.
Os ataques, como o efetuado contra Canoinhas, eram realizados em meio a gritos e
vivas a João Maria, a São Sebastião e à Monarquia. Para evitar a morte iminente, quando
percebiam que seriam invadidos, mostravam-se aderentes da Santa Religião. Este foi o
caso da Vila de Papanduva que, sob ataque dos jagunços, seus habitantes hastearam
bandeiras brancas e os chamaram de “irmãos”. Como resultado, os cangaceiros não os mal
trataram. Contudo, “solicitaram” os víveres que precisavam, em nome de São João Maria
(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 168). Percebemos aqui duas coisas. Primeiramente, fica
evidente a crença da propriedade por direito de divindade”, atribuída por eles ao monge.
Em outras palavras, tudo pertencia a João Maria. É interessante que, diferente do conceito
católico romano de “veneração” aos santos, pois “adoração” é dada apenas a Deus, os
campesinos parecem reconhecer “divindade” em João Maria, uma vez que a posse, por
direito de criação, é atributo divino
3
. Possivelmente, os adeptos da Santa Religião não
reconheceriam como “roubo” a sua atitude, pois criam que João Maria tinha autoridade e
direito sobre todas as coisas. Duglas Teixeira Monteiro afirma que nos saques não
pretendiam espoliar o que era dos outros, mas se apropriar daquilo que lhes pertencia
(MONTEIRO, 1974, p. 15). Assim, estribados na autoridade inquestionável do monge,
recebiam aquilo que pensavam ser deles por direito. É curioso que, com o passar do tempo,
temos a sensação que é João Maria, ao invés de José Maria, que assume a predominância
como objeto de fé. Embora jamais tenham sido competidores, aparentemente, a base de
se volta para suas origens. Podemos especular se isso tem a ver com a mudança na
estrutura de poder do movimento. Embora fosse José Maria o monge militar, enquanto os
dois João Maria mostraram-se mais pacíficos (mais o primeiro do que o segundo), o último
monge estava mais ligado aos primeiros líderes espirituais do povo. Até Maria Rosa, era
José Maria quem dava o recado do além. Seria o caso de, na fase mais belicosa do
movimento, recorrerem ao pacífico João Maria mais do que ao “general” José Maria? Pouco
provável. O que é uma hipótese remota nesse momento histórico é fato incontestável
posteriormente, pois o monge que se tornou “santo” no catolicismo rústico foi o João Maria
(PEREIRA DE QUEIROZ, 1977, p. 274). Isso trataremos no devido momento.
Observamos que não discriminavam os negros também quanto à violência. Negros e
brancos tinham o mesmo tratamento. Arraial dos Pobres, uma vila que distava meia légua
da estação São João, era uma vila de negros. O único branco da cidade, um negociante de
3
“Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” (Sl
24.1 Bíblia Sagrada).
174
nome Liberato, tentou utilizar a estratégia de mostrar-se favorável ao movimento, saindo ao
encontro do piquete que invadia a vila, com uma bandeira branca na o, gritando vivas à
Monarquia e a José Maria. Foi sumariamente alvejado. Depois de revistar algumas casas
sem nenhuma resistência, pois os homens da cidade haviam fugido, respeitando as
mulheres e crianças que permaneceram, foram embora (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p.
170). Curiosamente, o artifício de Liberato não funcionou. No decorrer do conflito, os
arrebanhamentos para alimentação dos redutos foram rareando, especialmente devido ao
bloqueio imposto pelas tropas federais. Com a escassez de alimento, a privação assaltou os
redutos, o que tentavam atenuar com incursões às suas antigas moradas, o que chamavam
de “imigração”. Esgotado tal recurso, assumiam vida eminentemente silvícola, semelhante à
vida indígena. Assim, em tempo de miséria, quando a carne e o sal escasseavam, passaram
a comer frutinha de imbuia bem torrada; não se pode comer crua porque tem cica. Coziam
bolo e beiju de jerivá, que é uma espécie de palmeira. Alimentavam-se, também, assada na
brasa, da fruta do butiá. Comiam os brotos da samambaia de cruz, o caruru do mato e a
batata silvestre, que parecia batata-doce. Deglutiam ainda o miolo do xaxim, o qual se dizia
que não era bom e até causava mortes. Recorria-se, mais freqüentemente, à caça e à coleta
do mel das abelhas do mato (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 190). Pressionados pelo
Exército e por maragatos contratados, o povo se viu em flagelo. A fome rugia em suas
mentes amplificando o roncar dos seus estômagos.
II.6 Crenças Religiosas
II.6.1 Espiritismo
Observa-se a ocorrência de espiritismo entre os sertanejos. Chiquinho Alonso
entrara no movimento nos tempos de Caraguatá. Era moço dos seus 25 anos, magro,
alto, de boa aparência e casado. Era conhecido por sua valentia nos combates, o que lhe
conferiu logo a chefia de piquetes. Todavia, seus dotes guerreiros mostraram-se
insuficientes para galgar patamares elevados na estrutura de comando que se desenvolveu.
Era necessário o aval espiritual, mais propriamente, “mediúnico”. Nhôca, que testemunhou a
sua ascensão, afirma que foi através de espiritismo que Francisco Alonso chegou ao poder.
Por ter como padrinho João Maria, foi o próprio São Sebastião, não “em carne e osso”, mas
“em alma e espírito”, isto é, pessoalmente, quem lhe designou a liderança (in: VINHAS DE
QUEIROZ, 1981, p. 164). É curioso que o próprio depoente, personagem da história,
classifique a prática como “espírita”. Isso mostra, com clareza, não apenas a nossa
percepção atual de que influência africana e ameríndia na religiosidade Contestada, mas
que eles mesmos a reconheciam. Mais do que isso: eram capazes de “traduzir” tal
175
experiência mística dentro dessa categoria religiosa, mostrando que conheciam
razoavelmente essa modalidade de crença na sociedade em que viviam. Nova ocorrência
“espírita” pode ser encontrada, atestada em um trágico acontecimento. Na Vila de
Curitibanos, os rumores de ataque jagunço iminente, levou seus habitantes, seguidas vezes,
a buscarem esconderijo na mata, a cerca de meio quilômetro da igreja. Como retirantes
notívagos, despojados de seus aposentos, buscavam hospedagem no bosque, tendo
travesseiros e cobertores nas mãos. Assim iam os homens, alertas, seguidos pelas
mulheres e as crianças. Em uma dessas noites, um homem, armado de sua espingarda, ao
ver um vulto se aproximar, julgando ser um jagunço, disparou um tiro certeiro. Fez tombar
seu irmão de sangue. Inconsolável, buscou alento na vingança contra si mesmo. Achando-
se imerecedor da vida, queria o suicídio, sendo necessária constante vigilância para que
não o concretizasse. Contudo, converteu-se ao espiritismo e assumiu o papel de médium, o
que lhe franqueava o diálogo com o irmão falecido (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 173).
Aparentemente, impedido de ir ter com o irmão através da morte, procurou a crença que
oferecia uma ponte entre os vivos e os mortos. Chama-nos a atenção o fato de ser corrente
tal vertente religiosa, a ponto de se mostrar uma opção viável. Mais do que isso: a
tradicional aversão à religiosidade africana que se viu até pouco tempo em nossa sociedade
parece estar ausente na sociedade campesina na qual floresceu a religião Contestada.
II.6.2 Gritos
Suas táticas de combate incluíam o uso de gritos, reverberando vivas a São
Sebastião e a São João Maria, e morte aos peludos. Geralmente, partia das bocas de
adolescentes levados ao entrevero especialmente para isso. Na opinião de Maurício Vinhas
de Queiroz, tinha por finalidade dar a impressão de maior número (VINHAS DE QUEIROZ,
1981, p. 184). Acreditamos que outro fator psicológico envolvido. A presença dos
adolescentes nas batalhas mostra o destemor daquele povo, deixando claro que mesmo os
mais jovens não temiam a morte na guerra. Além disso, deixa clara a disposição de
sacrificar, até mesmo, aqueles que não alcançaram a idade adequada para o combate.
Talvez, haja, ainda, por parte dos matutos campesinos a intenção de constranger o exército,
dando a impressão que atirava em “crianças”. Sendo este o intento, geraria nos soldados do
governo um dúbio sentimento, mesclando ao dever e à coragem a comoção e a covardia.
Quando em maioria, os combatentes de José Maria atacavam frontalmente, reproduzindo o
mesmo vozeril, empunhando bandeirolas brancas, tendo ao centro, uma cruz azul. Falando-
se de São Sebastião e São João Maria, parece que, à medida que o tempo avançava, a fé
radicava-se mais para fora do catolicismo tradicional. Prova disso é que a tradicional fórmula
trinitária cristã “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, é modificada, passando a ser
formulada “Deus, São Sebastião e São João Maria” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, pp. 184,
176
191). É certo que esse movimento de afastamento perdurará até a derrocada no último
reduto, quando então, paulatinamente, retornará aos limites da devoção comum do
catolicismo rústico brasileiro. Trataremos mais detidamente do assunto em momento
próprio.
II.6.3 A Concepção da Terra
A quarta fase do movimento também mostra crenças religiosas que, aparentemente,
envolviam o conceito que tinham da terra. Ao encontrar túmulos de soldados recém-
sepultados, desenterravam-nos, deixando os corpos apodrecerem ao relento. Essa foi a
prática dos cangaceiros até o fim dos combates (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 187). Na
Bíblia, tal atitude estava associada à maldição de Deus, isto é, evidência de seu desagrado
(Dt 28.26; Jr 7.33, 16.4, 19.7 - blia). Todavia, nas Escrituras Cristãs, cadáveres insepultos
não denotavam a agência humana, mas, exatamente, a falta dela. Em outras palavras,
significava que os corpos seriam repasto de animais, para destacar que não restaria quem
os enterrasse. Era ocasião emblemática, a quebra da aliança, o desfavor de Deus, a
derrota, evidenciados na impossibilidade, até mesmo, de sepultar os seus mortos. Outra
vertente religiosa onde também vemos tal prática, embora ainda na tradição cristã, é o
catolicismo medieval. A inquisição não poupava, nem mesmo os mortos. Se um morto fosse
acusado de alguma prática condenável, como eram os casos da heresia ou bruxaria, era
julgado pelo tribunal da inquisição, e, se condenado, teria seus ossos exumados, e
queimados na fogueira. Todavia, a prática Contestada talvez fosse motivada, ainda, pela
crença na santidade da terra. Para eles, a terra era uma posse dada por São Sebastião,
associada às agências dos monges. Embora física e ainda deste mundo, era
essencialmente espiritual. Isso pode ser visto, por exemplo, de forma restrita, nos redutos.
Eles tinham suas fronteiras claramente delimitadas com cruzes, e a igreja no centro do
arraial. De forma extensiva, parece que tal pensamento se aplicava à terra que davam
como sua. Sendo ela santa, não comportaria corpos de “peludos”, pois eram da parte do
diabo. Eles não faziam parte da monarquia milenar que acreditavam experimentar. É
possível que se possa reconhecer mais um ingrediente, agora ameríndio. Os Xokleng
enterravam o umbigo do recém-nascido, estabelecendo forte ligação do indivíduo com a
terra natal. Como parte do rito de iniciação, parece evidenciar uma interação entre o homem
e a terra. Faz lembrar as Escrituras cristãs, quando em Gênesis o Criador toma a terra
(Hebraico: adamah) para fazer o homem (Hebraico: Adam), mostrando mais do que ligação,
real derivação. É o caso do mito de origem indígena, que mostra o ser humano saindo da
terra.
Maurício Vinhas de Queiroz confessa ser difícil concluir quais as razões que levaram
os adeptos da Santa Religião a desenterrar mortos, ou, simplesmente, não enterrar os
177
cadáveres, deixando-os para os urubus e porcos do mato. Denominando-a “atividade
mágico-guerreira”, alude a testemunhos que afirmam que os “peludos” o mereciam o
sepultamento, pois eram tidos como “cães”, ou que seus corpos jazeriam sob o firmamento
“em desagravo da santa religião”. Em ambos os casos, estabelece-se o contraste entre a
“santidade” do movimento e a “impureza” dos de fora da comunidade. Sepultá-los,
possivelmente, implicaria profanação da terra. Curiosamente o autor parece dar mais crédito
a um efeito, provavelmente inconsciente, de tal atitude: infundir o pavor. Mesmo os
vaqueanos, segundo ele, temiam mais ficarem insepultos do que a própria morte, pois
acreditavam que se os seus cadáveres não fossem “plantados” a sete palmos sob o chão,
não acessariam o paraíso. Até o purgatório lhes seria vedado. Continua sua argumentação
afirmando que mesmo os adeptos eram ameaçados com tal flagelo póstumo. A deslealdade
para com a causa agravaria a punição para além da morte. A seriedade dada à negação de
enterro aos inimigos era tamanha, que se flagrassem algum adepto sepultando adversários,
sofreria imediatamente aquilo que tentava evitar ao cadáver. Aqueles que eram penalizados
nos redutos, seus cadáveres eram arrastados para longe e abandonados ao relento, sendo
proibido, até mesmo, o enterro de suas ossadas (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 187).
Embora seja inegável o terror que tal prática causava nos seus oponentes, acreditamos que
a verdadeira motivação era religiosa, sendo o efeito aterrador um elemento secundário.
II.6.4 Menino-deus, Virgem e Padres
A liderança espiritual continuou a existir na forma de “videntes”. Já próximo do fim do
movimento, no reduto de São Sebastião, aglomerando mais de 500 ranchos, exercia o
comando a família Machado. O líder espiritual de maior preeminência era Antoninho, rapaz
de 20 anos, que diziam ter “um adivinhão do bolso”. Em paralelo, atuava uma Virgem,
Sebastiana Rocha, muito respeitada em suas predições. Muito interessante o cruzamento
com a liderança católica neste reduto. Como citamos anteriormente, houve ali a ordenação
de dois padres, e, curiosamente, um deles era de cútis escura: o negro e caolho Sebastião
Romão, e Pedro Barbeiro. Assim dividiam o ofício: o primeiro se especializou em
casamentos e batizados, enquanto, o segundo, radicou-se nos enterros. Não se exigiam as
confissões (FELIPPE, 1995, p. 175).
II.7 Um “Huno” no Contestado
A proximidade do fim do movimento trouxe, também, uma acirrada disputa de poder.
Ao saber da aclamação de Chico Alonso ao cobiçado comando geral de todos os redutos,
Venuto Baiano se encheu de ciúme e indignação. Servindo a causa havia mais tempo,
julgando-se sobejamente gabaritado, não disfarçou sua insatisfação com o estratagema do
178
rival. Séria desavença se viu entre Alonso e Baiano, bem como entre este e Elias Moraes, o
que lhe rendeu o assassinato, à traição, pelos seus próprios irmãos. Assim, mais retalhada
se tornou a unidade outrora tecida em flâmula religiosa. Mal se conseguia se divisar nela a
imagem de João, ou mesmo, de José Maria. Em 26 de setembro de 1914, um piquete com
mais de duzentos combatentes invade e saqueia Curitibanos, esvaziada de sua
população. No dia 02 de Novembro do mesmo ano, Chico Alonso, juntamente com
Adeodato Manoel Ramos e um grupo de ex-posseiros, atacaram a sede da colônia do Rio
das Antas. Em resposta, os colonos revidaram, vingando a morte de cinco dos seus, ficando
ainda com saldo positivo de mais sete. Dentre os que tombaram dos atacantes, estava
Chico Alonso, que foi queimado ainda vivo, amontoado aos cadáveres, depois de receber
um tiro de chumbo mostarda no rosto que lhe vazou os olhos (FELIPPE, 1995, pp. 172,
175).
Átila, o huno, ficou conhecido na história como “o flagelo de Deus”. Tal designativo
se deu devido às suas formas cruéis e cruentas de lidar com inimigos. Uma delas era
despedaçá-los, amarrando os membros superiores e inferiores a cavalos, fazendo com que
os animais disparassem em direções opostas. Marcando a última liderança dos redutos,
houve um homem que, por demonstrar maldade desvairada, recebeu a mesma alcunha.
Seu nome era Adeodato, sobrevivente do ataque no qual pereceu Chico Alonso. Com o
falecimento de Chico Alonso, a vacância no cargo de Comandante Geral trouxe alguma
celeuma entre os redutos. A morte atraiçoada do Baiano permanecia latente na memória
dos sertanejos. Além disso, os líderes menores, aqueles que chefiavam os redutos,
pareciam favorecer mais uma liderança espiritual do que militar, inclinados a estabelecer no
cargo Antoninho, que funcionava como uma espécie de juiz em São Sebastião, devido
aos seus “poderes”. No entanto, tal preferência não agradava em nada a Elias Moraes e a
Eusébio, preferindo, aparentemente, a força das armas à intensidade da fé. Anunciaram
Adeodato para o cargo, achando-o mais bem preparado. Sertanejo ladino, “Leodato”,
aparentemente valendo-se de falsa modéstia, achou-se indigno de tamanha
responsabilidade e honraria. Na verdade, foi uma estratégia declarada. Não queria ser, tão-
somente, um líder militar “nomeado por homens”. Era preciso o aval do santo monge.
Destarte, anunciou a necessidade de ir a Butiá Verde para resolver algumas pendências. Na
verdade, ali reuniria os antigos comparsas que o acompanharam no confronto do Rio das
Antas. Ia matutando caminho à fora como simular um sonho, no qual João Maria lhe
aparecesse fisicamente, ordenando-lhe assumir o comando geral. Se houvesse o aval e o
apoio dos companheiros, a estória, certamente, “pegaria” entre o povo. E assim se fez. Ao
chegar em Butiá Verde, empunhando uma bandeira do Quadro Santo desfraldada, entrou no
povoado reverberando alucinadamente o “sonho” que havia tido. Sua representação foi de
179
tal magnitude, que o povo acedeu à suposta revelação que anunciava (FELIPPE, 1995, p.
176).
Assim, de volta a Bom Sossego, saiu à frente do bando, produzindo uma entrada
triunfal. Em galope, atravessava o reduto, empinando sua montaria e gritando, pretendendo
que o povo o tivesse como “tocado” e “agarrasse a fé”. Moraes e Eusébio, como verdadeiros
incendiários políticos, trataram de recebê-lo com as honrarias que o seu cargo merecia,
apoiando-o diante dos sertanejos. Os métodos bárbaros de Adeodato imediatamente foram
percebidos. Decidido a não ter qualquer possibilidade de oposição, sua primeira atitude
como Comandante Geral foi ordenar a prisão do menino-de-deus Antoninho em São
Sebastião e seu traslado para o reduto de Caçador, onde seria decapitado. O assassinato
do jovem se deu quando estava desapercebido. Atacaram-no pelas costas, dando-lhe uma
“bondosa” paulada na nuca, a fim de não ver seu fim. Da mesma forma, algum enviado foi
ao reduto de São Sebastião para silenciar a “virgem” Sebastiana (FELIPPE, 1995. p. 176).
Na opinião de Maria Isaura Pereira de Queiroz, a ascensão de Adeodato ao poder põe um
fim definitivo à época das Virgens e da separação entre poder religioso e civil (PEREIRA DE
QUEIROZ, 1977, p. 279).
II.8 Caem os Últimos Redutos
Sabendo que as forças do governo estavam cercando a região de conflito, Adeodato
ordenou a retirada do local, transferindo o reduto-mór para Santa Maria, lugar de difícil e
sinuoso acesso. Em sua entrada, foram erigidas cruzes e levantadas pequenas capelas.
Provavelmente, tratava-se de uma forma de “proteção” mística. A população ali foi estimada
em cerca de 5 mil habitantes. O General Setembrino tinha consciência que muitos
sertanejos desejavam se entregar. Assim, em 28 de dezembro de 1914, apela a Adeodato
para que abandonassem as armas e confiassem nas garantias que o governo lhes oferecia.
Em 08 de fevereiro de 1915, três destacamentos atacaram em ação coordenada e
simultânea o Vale de Santa Maria: Pelo Vale do Timbozinho, desceu pelo norte o Capitão
Tertuliano Potiguara; pelo leste, acossou os revolucionários o bando de Aleixo Gonçalves; a
Coluna Sul subiu a Santa Maria, partindo de São Sebastião. É fato que o oficial brasileiro
não estava satisfeito em ter que combater seus próprios compatriotas. Todavia, Adeodato
impunha o terror, assassinando seus próprios irmãos de causa, se desconfiasse, mesmo
que levemente, que tencionavam desertar. Assim, durante a forma, ordenava àqueles a
quem supunha ter tal pretensão, que dessem um passo à frente. À vista de todo o povo,
recebiam uma bala e tombavam. Em uma única forma, chegou-se a ver cinco e até seis, que
deram aquele último passo. As tropas do governo avançaram o cerco, reduzindo cada vez
mais a área de saque dos jagunços. A fome se tornou o pior inimigo dos sertanejos
180
amotinados. Em Santa Maria, embora abatessem cerca de dez a doze bois por dia, ficava
muito aquém da necessidade do reduto. As crianças, semelhantes a chacais, lambiam o
sangue do chão, dos animais mortos para o consumo. Se chegassem às carnes, comiam-na
crua, mesmo as tripas. Em março as forças de Potiguara lograram êxito nos combates e
destruíram os redutos de Timbó Grande e Caçador, extirpando também o reduto que
abrigava a virgem Maria Rosa. Ela nunca mais foi vista (FELIPPE, 1995, p. 179-182).
O desaparecimento de Maria Rosa fez surgir uma nova Virgem e um novo reduto,
Rosa Maria dos Anjos e Tomazinho, respectivamente. O predicativo “dos Anjos” que
compõe o seu nome é deliberado, pois, diferente das “virgens” que a antecederam, esta
conversava com os anjos. Percebe-se que “Virgem” não era condição sexual, mas cargo e
título, uma vez que Rosa Maria era casada e mãe de dois filhos. Possivelmente a “base
religiosa” para a aceitação de tal idéia é o conceito católico da perpétua virgindade de outra
Maria, a mãe de Jesus. A Virgem era muito respeitada, a ponto de os líderes não saírem ao
combate antes de ouvi-la. Fato curioso é que a Guerra do Contestado marca a primeira
utilização de aviões de combate no Brasil. O governo decide enviar aviões para observação
do reduto de Santa Maria. Obviamente, a leitura que os caboclos amotinados fizeram, foi
que eram cruzes voadoras, a manifestação visível do Exército Encantado. Como resultado,
as rezas foram intensificadas, acrescidas de festas e formas especiais. Com a chegada de
dois bombeiros espavoridos, recebem a informação que as cruzes eram máquinas do
governo. Foram subitamente acometidos de grande assombro, dissipado por uma profecia
de Rosa Maria, que dava a entender que o perigo havia passado. Pouco antes de Potiguar
atacar Santa Maria, Rosa Maria havia predito a necessidade de abandonar o reduto.
Invadido Santa Maria, o capitão se viu cercado no centro da vila, sob pesado fogo inimigo,
durante toda a noite. Com muitas baixas e grande número de feridos, emprestava ânimo aos
seus combatentes afirmando que lutaria até o fim, mesmo que com arma branca. Espalhada
a notícia do vaticínio de Rosa Maria, mesmo a contragosto de Adeodato, a maior parte da
população pegou cada qual seus pertences e abandonaram Santa Maria, dirigindo-se para o
reduto de São Miguel. Apenas combatentes permaneceram. Organizando um piquete,
Potiguar consegue furar o cerco e contatar a Coluna Sul que lhe socorre com dois mil
homens. Cai o reduto de Santa Maria (FELIPPE, 1995, pp. 182, 185-187).
Acreditando que a Guerra havia chegado ao fim, as forças do governo são
recolhidas. Todavia, novos redutos são organizados: Barra do Timbó, Tamanduá, Pedra
Branca, e outros cujos nomes se perderam no tempo e na História. Em São Miguel, Elias
Moraes continuava comandando a forma, e Adeodato cada vez mais violento, se dizia a seu
respeito que estava “com o diabo no corpo”. Com a morte de Chico Alonso no ataque a Rio
das Antas, Adeodato assumiu relação adulterina com a viúva, quebrando o rígido código de
ética sertanejo. Para ajeitar a situação, sabendo que tal condição lhe traria desconfiança,
181
durante uma das formas pára diante da própria esposa, chamada Maria Firmina, e, depois
de ordenar-lhe um passo à frente e ouvir a sua indagação inocente, disparou-lhe um tiro
certeiro que lhe atravessou o coração literal e figuradamente. Ordenou seu sepultamento, no
que foi prontamente atendido. Como São Miguel mostrava-se extremamente vulnerável ao
ataque, ordenou nova mudança, agora, para as margens do rio Timbó, abrindo uma clareira
de grandes proporções na mata. Àquele lugar denominou São Pedro. Deu prazo de uma
semana para que o reduto fosse completado com a cruz, igreja e o Quadro Santo. A loucura
de Adeodato alcançou o clímax, chegando a executar famílias inteiras sem nenhum motivo
aparente. O único reduto que permanecia, além de São Pedro, era o de Pedras Brancas,
que caiu diante de uma força combinada de vaqueanos civis e soldados de Santa Catarina,
sendo destruído por completo. Em dezembro de 1915, cai o reduto de São Pedro, tomado
de surpresa e desguarnecido. Adeodato foge com Mariazinha e seu pequeno cunhado,
abandonando os adeptos à própria sorte e destino. Posteriormente, acampados no mato, ela
viu seu príncipe heróico transformar-se em monstro. Enroscando o em um cipó, seu
pequeno irmão, acidentalmente, derramou a bebida de seu amante que ainda estava no
fogo. Sacando a arma, disparou contra a criança, sendo o tiro desviado, a tempo, pela irmã.
Chamada de “vadia”, Mariazinha recebeu dobrado o que evitou a seu irmão. Alvejada duas
vezes na testa, seu corpo permaneceu insepulto no mato, tendo como mortalha alguns
galhos e folhas, única coisa que seu infante fraterno podia fazer. Desbaratado o último
reduto, o movimento nunca mais voltou a se organizar (FELIPPE, 1995, pp.188-192). A
estimativa de envolvidos na Guerra apontam 20.000 campesinos e cerca de 5.000 mortos
(MENEZES, 2009, p. 10).
II.9 Desrespeito ao compadrio
Existe discrepância de informações entre Duglas Teixeira Monteiro e Euclides L.
Felippe. Para o primeiro, um dos feitos mais inescrupulosos de Adeodato foi o assassinato
de seu padrinho Chico Alonso, assumindo relacionamento com a mulher do falecido. Para o
segundo, Adeodato testemunhou a morte de seu comandante no ataque aos colonos do Rio
das Antas, como relatado anteriormente (FELIPPE, 1995, p. 175). Certamente, para Duglas
Teixeira Monteiro, estigmatizar Adeodato como o assassino de seu padrinho confere muito
mais força a seu conceito da quebra do compadrio. Mesmo que aliviada do peso do
argumento da morte do padrinho pelas mãos do sobrinho, a “tese” de Monteiro permanece,
embora em bases mais modestas, estribada no adultério de Adeodato, visto como incesto,
devido aos laços do compadrio. De qualquer forma, as atitudes do “flagelo de Deus”
visavam a caracterizá-lo não como “fora”, mas, “acima” da lei, alguém intocável e que não
poderia se submeter a ninguém. É possível que a selvageria e a desumanidade que
182
caracterizavam Adeodato fossem algo deliberado, objetivando a confiança dos crentes no
movimento. Talvez, acreditasse que seu comportamento gerasse nos adeptos a certeza de
que “ninguém poderia com ele”, garantindo, assim, a vitória da causa Contestada.
Entretanto, quem diga exatamente o contrário. Duglas Teixeira Monteiro registra o relato
de um ex-jagunço que afirma que foi exatamente tal comportamento que causou a
derrocada final da causa, atribuindo ao relacionamento impróprio de Adeodato com a
esposa de seu padrinho assassinado o principal motivo da derrota (MONTEIRO, 1974, p.
75). Na verdade, o assassinato de seu padrinho e o “incesto” com a viúva atingiram dois
pilares da ordem social Contestada: o compadrio e o matrimônio. No caso, não houve
alteração, substituindo uma antiga ordem por uma nova. Ao invés disso, simplesmente se
eliminou os seus alicerces, o que enfraqueceu, em muito, a estrutura social do movimento.
Quando isso acontece, incerteza e insegurança entre os seus componentes. A Santa
Religião estava calcada no bem comum e dependia grandemente dos vínculos familiares até
para alicerce de sua organização. A atitude de Adeodato ameaçou a própria existência do
reduto. Especialmente quando os fatores sociais são vestidos com o sagrado, a sua
profanação leva, também, ao esfriamento da religião, no caso do Contestado, combustível
necessário para dar a expectativa da vitória. Talvez seja exagero afirmar que no
comportamento de Adeotado esteja a causa da derrota do movimento. Certamente, os
adeptos já haviam sofrido muitas perdas e a privação assolava o reduto. era uma causa
decadente. Todavia, é indiscutível que a atitude daquele que assumiu a liderança das
hordas teve papel determinante na derrocada completa da revolta.
III. A CONTINUIDADE DA FÉ NO MONGE
A época imediatamente posterior ao fim da Guerra impôs severos sofrimentos aos
sobreviventes da Guerra Santa. A esperança do reino de João Maria e a esperada vinda do
Exército de São Sebastião não se concretizaram. Como conseqüência imediata, agravou-se
a condição social do sertanejo Contestado, pois não apenas se viram de volta à dura
realidade de não-incluídos, mas, agora, também fugitivos. Mesmo terminado o movimento,
muitos, ainda, foram mortos. Qualquer grupo de campesinos maltrapilhos que fosse achado
perambulando à procura de lugar no sertão, passou a ser identificado como agressores à
espreita que pretendiam o saque e o reinício da Santa Religião. Há relatos de várias
chacinas, mesmo de mulheres e crianças, praticadas por grupos de civis, vaqueanos e
maragatos. Além disso, após a Guerra do Contestado, com o estabelecimento das
comunidades italianas na região, viu-se o fenômeno de segregação racial e discriminação
religiosa. Os caboclos, com suas crenças rústicas e sincretizadas, eram vistos pelos
católicos europeus como praticantes de crendices, adeptos de crenças espúrias. Aqueles
183
que acreditam serem adeptos de religião superior concebem-se, também, a si mesmos,
essencialmente superiores. O caboclo foi relegado novamente à inferioridade,
aparentemente a típica situação onde a discriminação religiosa leva ao racismo. Brasileiros
discriminados em sua própria terra por estrangeiros (MENEZES, 2009, pp. 13). De positivo
para o sertanejo catarinense, a Guerra do Contestado trouxe apenas um resultado: atraiu a
atenção do governo para a questão da terra.
III.1 João Maria “Forever”
Certamente, a queda de São Pedro e a prisão de Adeodato, conquanto tenham
colocado um ponto final à Guerra e à Santa Religião, com seus Quadros Santos, não
puseram fim à devoção direcionada, especialmente, a João Maria. O fanatismo que levou o
sertanejo à luta armada, ainda hoje é visto na região Contestada, preservado na busca dos
lugares, tidos como sagrados por estarem ligados a João Maria. Oswaldo Rodrigues Cabral,
embora tenha escrito a três décadas, analisa que em sua época a crença em João Maria era
real e patente, visto na reverência com que o homem simples se referia ao monge, temendo
castigo pela incredulidade. Além disso, procuravam advertir aos descrentes que qualquer
ofensa à memória do santo monge seria acompanhada de rigorosas punições. Na opinião
do autor, embora a crença em João Maria ainda persistisse naquela época, não era
suficiente para levar o sertanejo novamente às armas (CABRAL, 1979, p. 9). É curioso que
a devoção que se eternizou foi ao primeiro monge, isto é, o personagem João Maria, que
inclui o I e o II, não a José Maria. Possivelmente, isso se deu devido a alguns fatores.
Primeiramente, é provável que esteja relacionada ao número enorme de locais santos
atribuídos a João Maria. Aparentemente, José Maria não se preocupou em deixar suas
próprias marcas, ao contrário do primeiro monge que erigia cruzes e usava fontes e cursos
de água como elementos místicos e sobrenaturais. Isso nos leva a outro fato: o tempo,
produto da soma dos “ministérios” dos dois anacoretas que assumiram o nome João Maria,
é muito maior do que o período que José Maria teve para desempenhar sua liderança
monacal. Embora o povo o tivesse também como “santo”, parece que não teve tempo
suficiente para que seu mito se tornasse tão denso na fé popular quanto seu antecessor e
“irmão mais velho”. Além disso, a mudança de procedimento do personagem João Maria
para José Maria também interferiu na quantidade de lugares sagrados. O primeiro monge
era um eremita, desenvolvendo seu ministério sempre sozinho, pernoitando em cavernas e
sob copas de árvores. Tais lugares foram sacralizados pelos sertanejos. José Maria, ao
contrário, admitiu seguidores e morou com eles, tornando muito mais difícil o
desenvolvimento de tais crenças relacionadas a ele. O mito se beneficia e se desenvolve
com maior facilidade quando um vazio que oportuniza o imaginativo. O isolamento de
184
João Maria desperta e estimula a criatividade religiosa e a explicação mística dos eventos
relacionados a ele. Quanto mais solitário, mais misterioso, e, por conseguinte, mais
poderoso. Sua chegada é, praticamente, uma aparição ao invés de presença. Por isso, até
hoje, inúmeros lugares para onde concorrem devotos de João Maria. Mesmo entre os
Kaingang, não é José, mas, João Maria o santo devoto.
Outro fator que pode ter contribuído para a predominância do primeiro monge é visto
na diferença de ênfases quando comparado ao “monge militar”. Enquanto João Maria
apresentava-se, sempre, como um nômade curandeiro, José Maria tornou-se um líder
revolucionário. Em 1916, com o fim da Guerra Santa, embora alguns pequenos grupos de
cangaceiros ainda persistissem por algum tempo, a expectativa do estabelecimento do reino
de José Maria foi se desvanecendo. Terminada a guerra, o monge militar perde a sua
função. Contribuiu, também, para isso a maior atenção por parte do governo federal para a
questão da terra, grande fator social motivador da guerra. Assim, os clamores se voltaram
para os problemas corriqueiros da vida, como a necessidade de curas, das chuvas para a
garantia da colheita, etc., algo, indiscutivelmente, mais associado ao velho João Maria do
que ao belicoso José Maria. Colocando em outros termos, é perceptível que a em José
Maria era a fé na conquista da terra através da guerra. O “exército” estava mais ligado a
José Maria, não a João Maria. Aparentemente o interesse do campesino no monge militar
estava na sua ênfase combativa, mais de acordo com o rumo para o qual o movimento se
encaminhou desde a sua origem. Porém, terminadas as querelas, a se voltou para o
originador da crença, o monge João Maria. Por fim, faz-se necessário compreender que
José Maria, por mais central que pudesse ser à Guerra como o monge militar e como aquele
que nutria mais vigorosamente as expectativas milenaristas do movimento, ladeando o
próprio São Sebastião na batalha final, estava ligado e recebia significado de João Maria. Ao
eclodir a Guerra do Contestado, os sertanejos reconheceram nisso o cumprimento da
profecia de João Maria. Em outras palavras, de certa forma, José Maria era visto como
enviado do primeiro monge, tendo como responsabilidade realizar aquilo que João Maria
vaticinara e prometera. O monge guerreiro conduziria os crentes ao reino pretendido.
Destarte, José Maria era entendido à luz de João Maria, emprestando dele sua importância
e popularidade. Lembremo-nos que o surgimento de José Maria se deu em meio a boatos
de que João Maria estava de volta, tonificados pelo contexto social de carestia e o
agravamento da questão da terra. O sertanejo procurava compensar a inferioridade físico-
material com a crença no sobrenatural imune às balas. Foi nesse ambiente que se levantou
um curandeiro que se intitulava, ou o rotularam, irmão de João Maria: o José Maria (ESPIG,
2008, pp. 95, 102).
185
III.2 Os Lugares Sagrados
É curioso que, mesmo malfadada a Guerra do Contestado, foi depois que cessaram
os combates que João Maria foi definitivamente “canonizado” no catolicismo popular. Já em
1939, pouco mais de 20 anos após o conflito, acontecia a festa de São João Maria. Havia a
imagem de Bom Jesus e a estampa de “são” João Maria. A devoção pessoal incluía acender
uma vela para o São João do lado de lá, isto é, o santo católico, e outra para o “SeuJoão
do lado de cá, ou seja, o monge Contestado (FELIPPE, 1995, p. 33). Nas palavras de Tânia
Welter, “tudo o que, supostamente, pertenceu ou foi tocado por João Maria, no passado, foi
transformado em símbolo e espaço sagrado”. Podem ser lugares onde o monge tenha
supostamente pousado, ou que contenha algo relacionado a ele, como fontes, grutas,
árvores ou cruzes. Quanto às águas sagradas de João Maria, acredita-se que ela jamais
seca. Associado a isso está a idéia de “vida, purificação, salvação e cura”. Embora as fontes
não devessem secar ou diminuir, por garantia sobrenatural, isso às vezes acontece, o que é
prontamente explicado como sendo “castigo de São João Maria”, devido a algum pecado
cometido. Digno de nota que, a exemplo do que disse anteriormente, João Maria encontrou
seu espaço entre os santos católicos, sendo promovido por membros praticantes do
catolicismo institucionalizado. Faz parte dessa religiosidade, acender velas ao santo monge,
bem como, confiar em objetos que se atribui a ele, tais como rezas, cópias de orações de
sua autoria, medidas de João Maria”, e utensílios que se acredita ter lhe pertencido, como
castiçal, panela, cachimbo, pedaço de barraquinha, talheres e bastão. Não poderia faltar a
“famosa” vossourinha, o principal princípio ativo” de suas receitas. A magia está associada
à crença em sua estatueta, que pode curar e trazer uma boa colheita, sua “medida”, que traz
proteção pessoal e a casa, e o bastão, vara de cerca de meio metro que deve ser colocado
atrás da porta do quarto, útil para acalmar tempestades. A posse de orações escritas
também garantia proteção (WELTER, 2007, pp. 137, 138, 142-145).
São muitos os lugares catalogados como “sagrados”, relativos a João Maria: São
Paulo Sorocaba (a gruta, capela e águas santas); Paraná Lapa (cruzeiro, gruta, águas
santas e pouso); Tibagi: mangueirinha (águas santas); Santa Catarina Fazenda Perdizes
(águas santas e pouso), Herciliópolis (águas santas e pouso), Porto União (águas santas,
pouso e gruta), Canoinhas (pouso), Mafra (cruzeiro), Papanduva (pouso), Cruzeiro (águas
santas), Cerro Negro (gruta), Herval Velho (águas santas e pouso), Campos Novos (pouso),
Serra da Esperança (árvore, águas santas e pouso), Lebon Régis (águas santas e pouso),
Curitibanos (águas santas e capela), Lages (capela), Índios (pouso), Painel (águas santas)
(MENEZES, 2009, p. 11).
Tânia Welter nos conta que, quanto à iconografia, imagens de João Maria são
bastante populares, especialmente estilizando o seu único e famoso retrato: idoso,
186
seguramente com mais de 60 amos, assentado, com as pernas e mãos cruzadas, longa
barba branca, de sandália de tiras, chapéu de jaguatirica, calça e casaco, vestimenta
sempre bem surrada. É identificado de várias formas: “Prophéta João Maria de Jesuz, 180
anos”, “João Maria de Jesuz, Prophéta com 188 anos”, “João Maria de Agostinho, Propheta”
ou “Monge João Maria de Agostinho”. A obtenção da imagem mostra o desejo de
materializar o personagem, conferindo-lhe realidade”, bem como, meio de incentivar a
devoção ao santo. O devoto, por vezes, deseja mostrar a preciosidade do ídolo que possui,
associando-o a alguma herança, destacando sua antiguidade, ou, talvez, suscitando algum
mistério, ao contar que a adquiriu de algum viajante desconhecido. Às vezes, a compra da
imagem é narrada de forma a transmitir o esforço feito, e, conseqüentemente, a intensidade
da fé de seu possuidor. Estatuetas do monge podem ser compradas em lojas de artigos
religiosos, papelarias, supermercados, secretarias de santuários e até mesmo, em igrejas
católicas (WELTER, 2007, pp. 132, 134). O fato de ser encontrada em igrejas mostra o
processo de assimilação que falamos há pouco.
III.3 Assimilação Kaingang
Em Ibirama/SC, desenvolveu-se uma comunidade de cafuzos, que nada mais eram
que negros remanescentes da Guerra do Contestado que, por serem sem-terra, foram
“conduzidos” para a partir da década de 40 do século passado. No entanto, a condição
social que experimentavam antes da Guerra parecia perpetuar-se, pois tornaram-se mão-
de-obra agrícola barata, submetidos a trabalho quase escravo. Foi apenas em 1991 que
foram transferidos para terras cedidas pelo INCRA. Falando-se dos Xokleng, em nossos
dias, grande parte da responsabilidade dos xamãs de operar curas sobrenaturais, foi
transferida para pastores evangélicos nativos, que expulsam demônios. Seus atos lembram
os rituais de possessão realizados pela antiga pajelança. Percebe-se a intromissão da
liturgia pentecostal, pois, durante o culto, os crentes aplaudem, elevam as vozes, pulam e
“incorporam” animais. Como mais um paradoxo religioso, embora a inserção do
pentecostalismo seja óbvio elemento estranho aos Xokleng, representou um retorno ao
misticismo original, “o vínculo religioso e ritual com os fenômenos de doença, que pareciam
ter desaparecido após o contato” com a cultura do homem branco (WIIK, 2001, p. 4, 12).
O xamanismo atual dos Kaingang distingue o pajé tradicional, o kujã, de outros
religiosos introduzidos em sua cultura. O primeiro é categorizado como o xamã possuidor de
saber não-guiado”, que não são assistidos por homens, mas por outros seres, como, por
exemplo, um animal auxiliar. aqueles adeptos de práticas “importadas”, são conhecidos
como curandeiros que têm o conhecimento “guiado”, isto é, auxiliado pelos santos do
panteão do catolicismo rústico regional. Destacam-se, dentre vários, Nossa Senhora
187
Aparecida, São João Maria, Menino Jesus, Divino Espírito Santo, que assumem o mesmo
papel do animal auxiliar dos kujã. Além disso, as orações das igrejas evangélicas, que
eles acreditam atuar em benefício deles no enfrentamento de dificuldades da vida
(CRÉPEAU, 2002, p. 118). João Maria passou a ser considerado a principal referência ética
e soteriológica entre este grupo ameríndio. Acreditamos que, provavelmente, João Maria
assumiu, definitivamente, o papel de “espírito da floresta”, pois não apenas passou a
concorrer com os animais nas curas (o saber não guiado”), como também encontrava-se
“pessoalmente” com indivíduos da região, sendo tal ocasião o ambiente de iniciação de
muitos dos curadores. Era o momento quando o monge transmitia o conhecimento
necessário para os procedimentos terapêuticos. (WELTER, 2007, p. 147; OLIVEIRA, 1997,
pp. 69, 70). Robert Crépeau, em anotações feitas por Tânia Welter, conta que havia uma
família com uma pessoa enferma. Ao saberem que João Maria estava nas redondezas,
saíram ao seu encontro. Localizando o monge, este lhes revelou o conhecimento necessário
para recuperar a saúde do querido, mas vocacionou-lhes para a prática xamã. Em linha com
o ofício dos pajés do passado, parece que os curandeiros de “saber assistido” também
assumem importante papel social. O “dom” que recebiam deveria ser aplicado em favor do
grupo. Crepéau também conta de uma benzedeira que afirma ter recebido o sangue de João
Maria por transfusão, procedimento que teria sido feito pelos guias animais do monge. A
explicação, bem como, justificativa da índia para tal prática, foi que o sangue do monge era
santo, sem pecado, diferente do seu, exigindo a necessidade de troca. A partir daí foi
capacitada a ser uma curadora (WELTER, 2007, pp. 147, 148). Percebe-se como a
religiosidade Kaingang assimilou a abertura sincrética do catolicismo rústico. Até mesmo
práticas da medicina tradicional, a transfusão de sangue, algo originalmente desconhecido
pelos povos ameríndios, foi agora espiritualizada, para integrar uma vocação xamã
moderna. Outros meios de chamado eram sonhos ou mesmo a mera invocação do santo em
ambiente de necessidade (WELTER, 2007, 145).
Fokâe, Kaingang entrevistado por Maria Conceição de Oliveira, conta como se deu o
início de sua carreira de “curandeiro”:
Eu nunca soltei uma má palavra. Então por si a gente tem essa consciência
de não ofender nem o remédio, nem a pessoa, nem os guia, nem os santo.
(...) como eu, eu pra pegar isso dái, eu me criei no batismo católico e um
dia quase morri, tava quase morrendo (...) tava passando mal, tinha ido
pro céu, eu são assim como pessoa, fui pro mato, subi rio acima, numa
cabeceira e de lá descobri uma serra alta, fui na ponta e tava uma palmeira
alta e uma escada (...) tinha um buraco em cima, tinha uma palmeira e
uma cruz, pulei dentro (...) taquara meio amarelo, capim deste de folha
miúda e pinheiro deste bem baixinho e me encostei e fiquei olhando um
chão branco e um mato de erva, palmeiral e eu olhando de pé, tava meio
garoando (...) cheguei na roça, milho branco, tirei duas espigas (...) pisei o
palmeiro, desci pra baixo, desci pela escada (...) era a passagem daí
voltei, quando acordei eu tava em casa, quanto eu voltei encontrei um
188
homem barbudo, diz –“eu fui te buscá”, como se diz kujá. Então esse
barbudo era dessas coisa. Quando eu cheguei tava o curandor, que tinha
ido me buscar e me chamando, a minha alma descer de volta, eu disse
“por quê?” e, diz o curandor “as minhas guia mandaram eu te buscar”. Ele
tinha a guia de o João Maria. Diz ele: “tu vai viver muito tempo ainda (...)
pra salvar a vida das pessoa e fazer batismo.” (OLIVEIRA, 1997, pp. 64,
65).
Analisando o discurso dessa cura e chamamento, percebemos vários elementos
importantes. Primeiramente, destaca-se a necessidade de uma vida aprovada ética e
moralmente, segundo os princípios estabelecidos por João Maria, basicamente aqueles
vistos no sertanejo do Contestado. Exalta-se o auto-respeito, bem como, “às pessoas, aos
remédios, aos guias, aos santos e ao seguimento da dieta”. Na verdade, o que se é que
o habilitado a curar tem que refletir as qualidades e o procedimento atribuídos a João Maria.
Somente se identificando ao monge é que terá o seu aval para o ministério terapêutico. A
ascensão mística de Fokâe ao “céu”, alude a elementos naturais de suma importância para
o Kaingang, como a palmeira, os bambus, o pinheiral e a roça de milho nativo. Era deles
que a comunidade extraía seu sustento, fazia suas casas e produzia utensílios para o uso
doméstico. Depois de tal arrebatamento, regressa com novo status: levar salvação e
ministrar batismos (OLIVEIRA, 1997, pp. 65, 66). É notável que a descrição de sua
experiência que resultou em seu chamado, já é, em si mesma, uma “viagem” peculiar de um
xamã. Distingui-se por não ter sido aquele que busca, mas sim, aquele que foi buscado. A
experiência xamã pressupõe, como já vimos, a mediação entre o reino dos homens e o dos
espíritos, ou, o natural e o sobrenatural. Nitidamente, o monge foi introjetado e assimilado
na cosmologia original dos Kaingang, especialmente quanto ao aspecto soteriológico e
quanto à continuidade histórica (OLIVEIRA, 1997, pp. 68, 69).
É extraordinário que o velho monge do Contestado tenha sido adotado pelos
Kaingang como um santo devoto. É provável que tal assimilação tenha ocorrido exatamente
pela sua “especialidade” ou área de atuação: a luta pela terra, que se tornou a grande causa
dessa sociedade ameríndia no transcorrer do século XX (TOMMASINO; FERNANDES,
2001, pp. 29, 30). Poderíamos dizer que, de certa forma, a causa Contestada passou a ser a
causa Kaingang.
III.3.1 Papel de Destaque
O Monge João Maria é figura principal para os Kaingang do Xapecó. Possuem vários
locais de fontes sagradas, localizadas ao lado onde o santo teria pernoitado. As suas águas
são utilizadas para várias finalidades, tais como: batismos, remédios, para unção e na
preparação de chás feitos que podem ser feitos com folhas de arbustos que crescem
junto às fontes. Tal bebida serve para curar, especialmente, doenças conseqüentes de
feitiços. Digno de nota é que o próprio CIMI, autarquia ligada ao Catolicismo, distribui
189
retratos de João Maria. Juntando o mítico ao histórico, João Maria se constitui como um dos
elementos presentes tanto da Casa de Culto, como na Igreja da Saúde. Acredita-se que ele
“ainda anda pelo mundo”, realizando seu ministério itinerante, pregando, curando e
batizando (OLIVEIRA, 1997, p. 70). É muito interessante o relato da iniciação de Ivanira. Ela
o descreve em termos de transformação.
Meu corpo foi preparado pra isso e eu tenho de fazer minhas oração, pra
modo de eles vir no meu corpo, porque da minha sai fora, porque o meu
corpo agora, o meu feitio por fora é pessoa, agora o meu sangue não
é de pessoa (...) porque agora eles operaram o meu corpo*, foi entregado
o meu corpo pra Deus (...) então to fazendo cura com isso (...) eles
operaram com as oração deles (...) porque é uma igreja pura da parte da
saúde (...) todo mundo tão sabendo por aí, do divino mestre [grifos da
autora] (OLIVEIRA, 1997, pp. 73, 74).
O seu relato deixa transparecer certa integração dos santos ao seu corpo, uma
quase possessão, ou, talvez, uma “simbiose”. Isso significa que o símbolo assume papel
preponderante em sua vida, a vivência se torna religiosa ou “ritualística” (OLIVEIRA, 1997,
p. 74). Parece que a integração com os santos tem que ser constante. Em outras palavras,
para que os santos estejam nela nos momentos das operações espirituais, devem estar
constantemente ligados a ela. Nesse sentido, aparentemente, a idéia de “possessão”, parte
integrante da religiosidade ameríndia, lugar à idéia cristã de “templo” onde a divindade
habita.
A. A Igreja da Saúde
A Igreja da Saúde foi fundada em 1995, na Aldeia de Chapecó/SC, tendo como
curadores presidentes Fokâe e Karói, e Ivanira a curadora dos “trabalhos mais fortes”. Sua
padroeira é Nossa Senhora Aparecida. O fato de ser a padroeira do Brasil, na opinião de
Maria da Conceição Oliveira, estimula o sentimento de pertencimento pátrio, pois ser
Kaingang passa a significar, também, ser brasileiro. Somam-se a ela dois padroeiros.
Primeiramente, eram devotos do Divino Mestre (alusão ao Espírito Santo), e, como os
sertanejos do Contestado, observavam a festa do Divino. Ao seu lado estava Santo Antônio,
santo bastante popular entre eles. Trazendo a devoção para o sentido mais pessoal e
particular, tratavam Nossa Senhora de “madrinha”, Santo Antônio de “padrinho” e o Divino
era o singular “protetor”. Ivanira utilizava ervas em suas curas, mas aquelas “do mato
virgem”. Acredita que a exposição ao sol ou ao olhado das pessoas enfraquece o poder
curativo dos ramos. A utilização de ervas religa a natureza ao sagrado como elemento
restaurador de forças. A liturgia tem início sob a fala, em forma de sermão dos presidentes:
primeiro Karói, depois Fokâe, porque na mitologia Kaingang o Kamé e mais forte e tem
precedência sobre Kairu. O rito assume aspecto análogo à missa. É agora que João Maria
190
assume destaque, pois alguns tratamentos são realizados, apenas, com as águas santas de
suas fontes. A estátua de João Maria deve repousar ao lado da Flâmula do Divino. É
provável que nisso haja a intenção de denotar o mestre São João Maria ao lado do
Divino Mestre o Divino Espírito Santo, uma vez que João Maria II costumeiramente
portava uma bandeira do Divino, utilizando-a em sua curas (OLIVEIRA, 1997, 73, 75, 76).
B. Soteriologia Escatológica
A importância de João Maria para a moderna religiosidade Kaingang também se
destaca quanto tratamos da escatologia. Reconhece-se no cumprimento de profecias
atribuídas ao monge a chegada de um novo século. São elas: a) a perda e a promessa da
retomada de terras; b) o degenerar da ética no trato familiar; c) abandono de grande parte
de suas tradições; d) a volta a algumas práticas passadas como meio de inverter o processo
(OLIVEIRA, 1997, pp. 76, 77). Eis o depoimento de Folkâe sobre João Maria:
Pois quando os povos conheceram ele já tava no mundo: Ele anda ainda
pelo mundo. (...) então o São João Maria disse assim sobre nossas terras,
um dia a terra de vocês (...) Ele contou que naquele tempo o nosso Imbu,
nossa área, ia virar Ipurungo, e que depois ia voltar de volta pra nós,
naquele tempo do Contestado. (...) A história dele é que deixou a palavra
“Comunidade”, algum tempo vai acontecer, pai, mãe não ter respeito, irmão
um pelo outro. (...) Vai vir um século, haverá muita coisa ruim, pai com o
filho, mãe, matam um a outro. (...) Vai chegar um tempo que vai ser muito
bonito, muita gente vai durar... Então depois de ser batizado, na católica,
então virar madrinha, virar padrinho, vai chegar o respeito (OLIVEIRA, 1997,
p. 77).
Na opinião de Maria Conceição de Oliveira, percebe-se que a soteriologia de João
Maria se aplica à recuperação de territórios perdidos, ao retorno de valores familiares e de
princípios no trato da natureza. O revés é o que representa o tempo presente, isto é, o
século profetizado pelo Monge. É possível vislumbrar que o conceito de redenção final
traspassa os limites do individual, tornando-se eminentemente social. As curas se somam à
chegada de uma nova ordem de coisas, a recuperação da terra. O histórico simbólico, o
Contestado passado, se materializa na realidade presente, pois o monge continua “andando
pelo mundo”. Portanto, o „Contestado‟ Kaingang é uma luta que não acabou” (OLIVEIRA,
1997, p. 78). Por isso, entendemos que a Igreja da Saúde é, também, um memorial dos
costumes e das tradições, pois significa o retorno ao passado que ficou para trás,
reafirmando a ética das relações pessoais vaticinadas por João Maria muito, que têm
nele o modelo e se faz presente, pois o próprio monge está “no meio das pessoas”. O
conceito milenar desse messianismo índio é ratificado pelos sinais atribuídos a João Maria.
A cada cura que se processa, a crença do cumprimento da promessa futura é confirmada.
Outro aspecto interessante da escatologia influenciada pelo monge é a necessidade de
191
começar a cultivar os alimentos tradicionais do cardápio Kaingang, o milho cateto, o milho
branco, a abóbora, porque o pinhão (colhido das araucárias) e as “comidas modernas” vão
acabar (OLIVEIRA, 1977, pp. 77-80).
A influência de João Maria entre os Kaingang se resume ao que segue:
Em suma São João Maria por todas as características apontadas é o
principal referendum ético e soteriológico. Para os curadores Kaingáng por
nós estudados, as „coisas do final dos tempos‟ não se traduzem por uma
hecatombe apocalíptica radical, mas ganham expressão em fatos mais
pontuais, tais como a quebra dos valores básicos dentro das famílias o
respeito entre seus membros; ou como a perda „recuperável‟, segundo as
previsões do Monge, de seus territórios. O milenarismo de João Maria tem
como fator central a restauração da ética nas relações, do respeito ao
convívio e às tradições, onde a palavra „comunidade‟ por ele deixada seja
parte de um cotidiano exemplar e os curadores encontram na IS espaço
genuíno para colocá-lo em prática (OLIVEIRA, 1997, p. 80).
Destarte, a atual religiosidade Kaingang mistura messianismo, xamanismo e
catolicismo. Do guia animal tradicional da pajelança, passou-se também para o guia São
João Maria. Karói conta que mantêm encontros constantes com o Monge em suas fontes
sagradas. Algo, como dissemos, semelhante aos encontros com os espíritos da floresta
da cultura ameríndia.
III.4 Catolicismo Popular Atual
Embora, como vimos, João Maria I iniciou suas atividades em Sorocaba, interior de
São Paulo, a devoção a ele como santo limitou-se, quase que exclusivamente, ao norte do
Rio Grande do Sul, o centro-oeste catarinense e sul do Paraná (MENEZES, 2009, 5 - nota).
Atualmente, como acontece com a expressão popular da religiosidade nacional, o sagrado e
o profano dão as mãos” nas danças e comemorações das festas do catolicismo rústico
brasileiro. Portanto, como não poderia deixar de ser, tais festejos também marcam a
chegada dos romeiros para celebrações religiosas ligadas à antiga Santa Religião. Seguindo
o relato de Celso Vianna Bezerra de Menezes, que compareceu a uma Romaria da Terra,
percebemos uma das formas em que se processa a fé hodierna em João Maria. Uma vez
aprontado o palco e o cenário, passa-se à “peça”. A fertilidade é evocada, quando casais
vestidos de branco, dão algumas voltas pelo palco para, depois, mergulhar em poças de
água. Depois de ludicamente espirrá-la para os lados e uns nos outros, misturam-na com
terra e enchem vasos cerâmicos, dispondo-os, junto com flores, em forma circular. A
fertilidade é evocada em pares geradores”, homem-mulher e terra-água, o que parece se
tornar visível quando crianças (o fruto humano), com roupas vermelhas e coroas de flores (o
fruto da terra), saem a correr pelo palco. Repentinamente, a cena é alterada: a vida dá lugar
192
à morte. Homens empunhando armas expulsam os pequeninos e arrojam as bandeirolas
coloridas ao chão. Então, um trator com arado, destrói a cena: arco-íris de de serra, as
flores, as bandeirinhas e os vasos, fazendo perder a água. Para dar a tonalidade específica
do desfecho que teve o Contestado, os homens armados retornam, erigem bandeiras pretas
e cercam o palco com arame farpado. Porém, as esperanças são renovadas, quando a cruz
de cedro, mas com toro feito de eucalipto, é restaurada. O ato final acentua a crença em
futuro promissor, quando uma mulher, acompanhada de sua família, sai de um casebre,
toma uma Bíblia e entrega-a a outra mulher que lê pequeno trecho diante da cruz. Agora, o
público “entra em cena”, elevando suas vozes em canto. Em procissão, tomam a cruz para
plantá-la junto a uma pequena igreja na cidade de Tamarana (MENEZES, 2009, pp. 65, 66,
67). A Romaria da Terra passou a ser realizada anualmente nos Estados da região Sul
(MENEZES, 2009, p. 66).
No município paranaense da Lapa, a fé em João Maria permanece viva. A fonte que
existe na Gruta do Monge, mesmo com a placa avisando que a água não é mais potável,
ainda assim as pessoas não apenas a bebem, como passam em feridas e nos locais que se
acredita estar afetado por doença. Também levam em garrafas, por acreditar em seu poder
miraculoso. O mesmo acontece com a água da bica de Ponta Grossa. Também o barro
tomado do lado da nascente é terapêutico. Acredita-se que esfregá-lo na ferida, atua como
cicatrizante. Relativos aos lugares sagrados, alguns rituais que servem para transmitir
valores, sanar e estreitar relacionamentos sociais. Aparentemente, são compostos de atos e
ditos semelhantes (MENEZES, 2009, pp. 76, 77). Uma das orações que estão na bica de
água da Dona Antonia, em Ponta Grossa/PR, é a que segue:
Oração do Profeta João Maria
Deus fez o homem para ser sua imagem, e isto está escrito na tábua de sua
lei. Quando vieres a Tua mesa estendas a Tua toalha, ali estará a minha
semelhança. Pelo amor do Nosso Senhor Jesus Cristo e a proteção do
Profeta João Maria. Que nos livre de Nossos inimigos, carnais e espirituais,
das guerras, dos ladrões e assassinos, da fome e de doenças, dos raios,
cheias e secas. Que o Profeta João Maria guie minha vida. Nossa Senhora
do Carmo me cubra com seu manto Sagrado, assim como estava o menino
Jesus aguardando nove meses no ventre da Santíssima Mãe de Deus e das
três pessoas da Santíssima Trindade. Assim Seja (MENEZES, 2009, p. 78).
Analisando esta oração percebe-se que a teoria da “vara de bambu” parece se
aplicar ao catolicismo rústico. Em momentos de crise, como foi o do Contestado, toma-se as
crenças mais rudimentares do catolicismo, vergando-as para o lado que se deseja,
introjetando conceitos religiosos de fora, a fim de acomodar os objetivos a serem
alcançados. No entanto, terminado o processo, diminui a tensão, o que leva as crenças no
caminho reverso, de volta às suas origens, assim como um bambu que é envergado e
largado. João Maria, embora mantendo elementos que o ligam ao momento da gênese de
193
seu personagem, como a proteção da guerra, fome e doenças, é também espiritualizado e
acondicionado a fim de se alinhar com o Catolicismo oficial. Na religião das cidades,
diferente das marchas relacionadas às questões do campo, a fé Contestada parece fechar o
seu ciclo: iniciou-se ainda ligada ao catolicismo tradicional, com João Maria I; afastou-se, em
direção à religiosidade rústica, com João Maria II; tornou-se genuína expressão de
catolicismo popular com José Maria; abriu-se a toda forma de sincretismo, re-interpretando a
em termos messiânicos e milenaristas, afastando-se quase que completamente do
catolicismo oficial: alcançando o ponto máximo de tensão, malfadada a guerra, começa sua
volta, encontrando lugar em um modelo muito mais “ortodoxo”. Outros bilhetes afixados na
bica da Dona Antonia trazem súplicas por curas, prosperidade e amor. Percebe-se nova re-
interpretação, agora para as questões do quotidiano (MENEZES, 2009, pp. 79-81). Embora
não tenha sido canonizado oficialmente, encontra lugar de destaque na fé católica de
cidades que, de alguma forma, tiveram contato com as crenças no monge.
A escolha de João Maria como santo de devoção é individual, estabelecendo fortes
vínculos de relacionamento pessoal. O devoto adquire uma estátua e geralmente erige um
altar em sua casa, um oratório onde figurará como imagem central o velho monge. Esse
espaço sagrado, construído à medida que vai se adquirindo as imagens, poderia ser usado,
ainda, para momentos de adoração coletiva. Ocupava lugar de destaque na casa, aberto ao
convívio de todos. Os elementos litúrgicos eram aqueles comuns do catolicismo rústico:
preces espontâneas ou aquelas cuja autoria se atribuía ao santo, compromissos de
promessas ou o seu pagamento, o terço e a novena. Na verdade, tratando-se de religião
aberta, pode assimilar qualquer rito que se acredite adequado para o momento. Muitas das
orações eram cantadas. A devoção pessoal inclui ida a lugares de devoção pública de João
Maria, como aqueles anteriormente descritos. Digno de nota é que a própria Igreja Católica
utiliza tais locais para programações oficiais, como suas novenas, terços, missas, etc
(WELTER, 2007, pp. 149, 152). Como expressão de gratidão das graças alcançadas,
publica-se o feito através de atos penitenciais, festas, ou seja, qualquer coisa que chame a
atenção para aquilo que foi realizado. Digno de nota é o papel profético de João Maria.
Colocado como fonte de profecias para seus devotos, no estilo Pentecostal, transforma-se
em meio de expressar sentimentos e vontades, explicações que amenizam situações
difíceis, bem como, de ratificar a ética e a moral. Trata, também, de questões relacionadas à
tecnologia atual, e por vezes, assume teor escatológico e apocalíptico, isto é, a destruição
da ordem presente e o surgimento de um novo mundo. João Maria assume duplo papel: ao
especificar quem haveria de se salvar no cataclismo final, mostra que determina os que hão
de sofrer. Coloca-se, portanto, como “salvador”, mas, ao mesmo tempo, o “juiz” (WELTER,
2007, pp. 156-188).
194
IV. BREVE COMPARAÇÃO COM O MST
Provavelmente, possamos reconhecer como ponto de intersecção entre a
religiosidade, herdeira do Contestado, e os modernos sem-terra, a Primeira Romaria da
Terra, que aconteceu em 1986, em Taquaruçú, um distrito do município de Fraiburgo, em
Santa Catarina. Celso Menezes, citando o artigo “Imagem e Pedagogia, da Cruz de Cedro
Renasce uma Cidade”, nos informações preciosas sobre esse evento. Promovida pela
Comissão Pastoral da Terra, reuniu cerca de 20.000 pessoas. Mostrou-se um autêntico
movimento político religioso, pois, embora organizado pelo religioso, este mostrava-se
grandemente secularizado. Prova disso é que a multidão que compareceu, vindas não
apenas do Estado anfitrião, mas também de seus vizinhos ao norte e ao sul, era composta
de grupos como as Comunidades Eclesiais de Base, pastorais operárias e de jovens,
Central Única dos Trabalhadores, Partido dos Trabalhadores, Conselho Indigenista
Missionário, em meio a bandeiras, estátuas de santos padroeiros, camisas de “Che”
Guevara, chapéus, fitas na cabeça, botons e palavras de ordem, como “Reforma Agrária
Já”, “Terra é Vida, lutaremos juntos”, “Da luta pela terra, brota a vida”, Terra não se ganha,
se conquista”. O objetivo da Romaria era celebrar a luta e a fé do homem do campo e da
cidade, a luta dos caboclos no Contestado, demonstrar a força da organização e dar a
conhecer, melhor, as condições do trabalhador campesino. A Romaria foi marcada por
quatro atos”, encenações de episódios da luta do Contestado tendo a carroceria de um
caminhão como palco. Foram selecionados locais representativos. Também recriaram a via
sacra, fincando 14 cruzes que relembravam o martírio de Jesus Cristo. Chega, então a hora
de mostrar João Maria: primeiramente, um grupo de remanescentes da Guerra Santa entra
em cena, portando uma pequena cruz de cedro e o estandarte de João Maria.
Simultaneamente, o narrador trazia à memória dos presentes os acontecimentos que se
deram ali. Em seguida, pessoas representando os sertanejos da época, entram no palco,
segurando enxadas, facões e laços. Na seqüência, surgem outros, no papel de coronéis,
ordenando a dispersão do povo. Surge então o monge ator, que vai em direção ao “povo”,
distribuindo ervas, tratando feridas, aglomerando todos ao seu redor. Canta-se Ave Maria
em versão cabocla. O narrador conta que João Maria tinha o hábito de plantar cruzes para a
proteção do povo contra a fome, as doenças e a própria guerra. Complementa a narrativa,
falando do papel “profético” do anacoreta, denunciando a exploração levada a cabo pelos
coronéis. Tais coisas são expostas como os motivos que levaram à Guerra do Contestado.
Imediatamente, o narrador traz a lume os eventos que marcaram o início da Guerra: a Festa
do Senhor Bom Jesus, de 6 de agosto de 1912. Homens, representando soldados “atacam”,
enquanto outros, como sertanejos da Santa Religião, tombam no palco. Assim, a terra se
tingiu de sangue, dá a entender o narrador. (MENEZES, 2009, p. 54-56).
195
IV.1 Ideais Secularizados
Christine de Alencar Chaves, examinando o MST no Brasil, mostra como tal
movimento, que teve como um de seus incentivadores a Pastoral da Terra, portanto, uma
motivação religiosa, transformou a tradicional romaria em direção ao lugar sagrado, em
passeata rumo aos centros políticos do país. Arrazoa que o processo de renovação da fé,
mediante o sacrifício do esforço de peregrinar rumo aos lugares santos, encontrando a
comunhão com o sagrado, foi substituído por uma caminhada que fortalece a expectativa
comum na união de todos, e reivindicada diante do poder temporal. Explica que:
“Transfigurada em luta por reforma agrária, essas novas caminhadas realizaram a
passagem da esperança messiânica de uma terra que é promessa para a esperança política
de uma terra que deve ser conquistada. Passagem da noção da graça divina individual que
se quer receber à de direito de todos que se deve cumprir” (CHAVES, 2000, pp. 21, 22). A
esperança messiânica que a autora se refere, aparentemente, é aquela afirmada nos
cânones católicos de Roma. o messianismo do catolicismo popular, sincrético e
assimilador, como foi aquele do Contestado, não cabe, exatamente, na comparação. Talvez
o MST possa, até mesmo, ser descrito como a secularização da Santa Religião. Assim
como a Revolução Francesa, resumida em seu lema “liberdade, igualdade, fraternidade” foi,
de certa forma, a secularização do religioso, isto é, do calvinismo dos huguenotes franceses
(KUYPER, 2004, p. 51), o MST parece ser a expectativa pela terra desvestida da garantia
religiosa. Destarte, percebe-se na Santa Religião a marcha, pois todos os deslocamentos
grupais eram feitos em procissão, em meio a manifestações religiosas. Além disso, um dos
mais fortes pilares do movimento estava no benefício coletivo, baseado na crença espiritual,
não em convicções políticas. É provável que o surgimento do MST seja uma espécie de
decepção com a religião, procurando através da mobilização política aquilo que,
anteriormente, se buscava através do sobrenatural.
Além disso, assim como no Contestado, o MST desenvolveu uma estrutura de
liderança, possivelmente refletindo a própria organização religiosa que o apoiou no início, a
Comissão Pastoral da Terra. Outro fator que parece ratificar tal correlação, isto é, a
secularização do messianismo gerado por questão da terra como o do Contestado, é visto
na seqüência do raciocínio de Christine: é a atitude confrontadora e ilegal dos Sem-Terra.
Agindo de forma planejada e, muitas vezes, secreta, arquiteta suas ações. Através de
invasões, especialmente de órgãos públicos, procura pela via da ilegitimidade conquistar
visibilidade e legalidade. “O MST inscreve-se na cena política mais abrangente integrando o
seu campo de forças através de ações consideradas transgressoras, embora dotadas de
forte caráter expressivo”. No Contestado, o desejo pela terra alcança legalidade na
196
sobreposição do princípio religioso, originário da crença no sobrenatural, à ordem legal
estabelecida. A secularização de tal atitude resulta a prática dos Sem-Terra. Busca-se força
na união do próprio homem, amalgamando solidamente os integrantes de um mesmo
campo social, impondo a justaposição desse seguimento sobre as leis que regem a ordem
estabelecida. A idéia sacrificial continua presente como a única forma de vencer o cansaço
e as dificuldades que se interpõem como barreiras a serem vencidas para se alcançar o alvo
pretendido. Todavia, ao invés da esperança baseada no transcendente, conjuga-se
“disciplina e efervescência”, pretendendo a habitação do natural, com ou sem o sobrenatural
(CHAVES, 2000, p. 24). Certamente, seria um exagero dizer que não religioso no MST,
como fator que auxilia nas expectativas pessoais de conquista. Porém, mostra-se muito
mais individual e assessória ao movimento.
Os acampamentos dos Sem-Terra muito se assemelham a “redutos” secularizados.
É um lócus específico, um organismo social fixo. Isso significa dizer que possuem território
determinado, organizados política e socialmente, e, ainda, orientados à produção. Isso os
torna uma espécie peculiar de unidade social rural brasileira. Se hoje, a reforma agrária é
vista como uma questão não apenas social, mas, igualmente, moral, podemos dizer que no
Contestado também o foi. Em nossos dias, o governo se premido pela necessidade de
modernizar a agricultura para alcançar a maior produção possível. Porém, tal intento
pressupõe grandes extensões de terra. Quanto ao aproveitamento da área, a produção
diluída em pequenos sítios é menor do que a de grandes latifúndios. Além disso, a aquisição
de maquinário de última geração para uma pequena propriedade é completamente inviável,
não apenas porque o sitiante não possui recursos para isso, mas porque tornaria o produto
excessivamente caro, favorecendo o conceito de grandes propriedades. Por outro lado,
sobre nossas autoridades pesa a responsabilidade moral de dar condições de vida e de
produção para a população rural de baixa renda, recolocando-a de forma adequada no meio
agrário. Portanto, se o sem-terra vive sob a intimidação da mecanização agrícola, o caboclo
do Contestado via-se ameaçado pela mecanização do transporte, a ferrovia. Embora
houvesse interesses escusos na construção da estrada-de-ferro, é inquestionável que traria
grande benefício para a região, especialmente a escoação da madeira e gado, bem como,
uma “rápida” conexão com o extremo Sul e o Sudeste. Portanto, se os meios utilizados para
a sua construção foram condenáveis, descartando a população rural, o seu objetivo não
apenas era legítimo, mas louvável (TURATTI, 2005, pp. 16, 18, 19).
O quotidiano dos acampamentos do MST era marcado por uma dominação enérgica,
em alguns casos, arbitrária. O sem-terra vive em condições precárias de subsistência,
enfrentando, ainda o “nomadismo” das invasões e desocupações. Cada vez que tal ciclo se
completava, novamente penhorava sua vida à procura da fixação final. Empurrava para
frente o anelo da terra sonhada, prometida em suas esperanças. Analisando a Guerra do
197
Contestado, observamos a mesmíssima realidade. As condições de vida variavam segundo
os saques que realizavam e as dificuldades causadas pelo exército. Obrigados a abandonar
um reduto pela ameaça ou pela destruição, o sertanejo catarinense ia, compelido por suas
esperanças, à procura do lugar onde poderia se fixar, esperando o cumprimento da
promessa de José Maria. Os integrantes dos acampamentos do MST são pessoas que não
têm ligações passadas, mas que se vêem irmanadas, do “dia para a noite”, na mesma
causa, juntando-se na lida diária necessária para a manutenção do acampamento. Em
alguns casos, tais funções eram assumidas por pessoas próximas e conhecidas, resultando
núcleos de sociabilidade mais próximos, dentro da estrutura maior Os sem-terra são, em
grande parte, pessoas que flertaram com as cidades, mas não lhes conquistaram os
amores. Percebendo claramente que não pertenciam à área urbana, procuraram o
pertencimento naquilo que mais se harmonizava com o que eram: homens e mulheres do
campo (TURATTI, 2005, pp. 19, 26, 36). No grande “tanque” do meio rural brasileiro, o
rombo causado pela distribuição de terras cria um turbilhão social que suga todos os
desfavorecidos, fazendo-os convergir ao mesmo ponto. Essa metáfora se aplica não apenas
à aglutinação de indivíduos que têm como única identidade a quase miséria, mas à
impossibilidade de, nesse contexto, tal não acontecer. São compelidos a esta atitude pela
própria sobrevivência. O mesmo fenômeno social se percebe na guerra cabocla catarinense.
Viram-se unidos pelas mesmas necessidades, fazendo-os literalmente lutar pelas mesmas
soluções.
A terra surge como questão não só de existência, mas de honra. A sua posse
significava para eles auto-estima, valor próprio e dignidade (TURATTI, 2005, p. 40).
Certamente, percebe-se realidade análoga no caso do Contestado. Viver o reino de José e
João Maria era muito mais do que a mera prosperidade. A conquista da terra era o resgate
existencial, o “girar da roda”, o movimento da gangorra que os elevaria do patamar de
subsistência miserável para a dignidade de alguém que experimenta a prosperidade,
sinônimo da verdadeira vida almejada. O MST surge, assim, como a “estrutura de
plausibilidade” sem-terra. Antes mesmo de encontrar, no campo, a “sua terra”, o sertanejo
atual está à procura de “seu espaço” na sociedade, onde sua voz possa ser, finalmente,
ouvida e considerada. Assim, modernamente reformulada, a tradição campesina encontra o
seu pertencimento e significado no Movimento dos Sem-Terra, metafisicamente estribada na
combinação de princípios políticos e religiosos, cimentando os integrantes em um ideal
monolítico, o ser um “sem-terra” (TURATTI, 2005, p. 21, 37). O relacionamento com a
liderança dos acampamentos é apresentado como dúbio. Segundo Maria Cecília Turatti, ao
travar relacionamento com sem-terras, percebeu que inicialmente, os integrantes dos
acampamentos demonstravam aprovação dos seus líderes. Na verdade, o elogio não era
propriamente da capacidade de gerenciar a comunidade, mas à abertura ou livre acesso
198
que tinham com eles. Externaram que podiam ir ter com a liderança e expor, sem maiores
dificuldades, suas causas e sugestões. Percebeu, no entanto que, com o passar do tempo,
tal discurso mostrou-se deliberadamente uníssono, fruto de cautela para com os de fora.
Todavia, a convivência trouxe liberdade para expressar aquilo que realmente passava na
cabeça do sem-terra. Ouviu comentários ácidos, como a desconfiança de desvio de verbas
do INCRA, queixas de viagens excessivas, favorecimentos e ameaças de expulsão diante
de críticas à liderança (TURATTI, 2005, pp. 41, 42). É interessante notar que, na Guerra
Santa, especialmente na última fase do movimento, qualquer expressão contrária à
liderança, receberia violenta retribuição. Nas fases anteriores, enquanto as virgens e os
meninos-deus mantiveram intacto o seu prestígio espiritual, suas ordens jamais seriam
questionadas. Contando com o apoio de todo o reduto, qualquer que criticasse os meios de
revelação de José Maria, certamente, não seria bem aceito. O trabalhador rural, aspirante à
terra, sente-se desamparado dos seus governantes, desconsiderado em suas
necessidades. Embora espere que o governo aja em benefício deles, os integrantes do MST
vêem nisso muito mais o que gostariam que acontecesse do que a realidade que se
concretiza, vez após vez, na vida deles. Reclama da pouca efetividade e da demora nos
assentamentos (TURATTI, 2005, p. 45). Tal sentimento de abandono estava no cerne da
consciência do homem do Contestado.
IV.2 Política ao Invés de Religião
A questão da terra deixou de ser questão social de governo, tornando-se questão
política. Aparentemente, com a finalidade de seduzir votantes para os seus candidatos, o
Partido dos Trabalhadores foi o maior explorador desse nicho. Apoiando publicamente o
movimento, logo conquistou a atenção e o ideal do campesino (TURATTI, 2005, p. 46).
Maria Cecília Turatti conta que, em sua estada em acampamento do MST, um rapaz que
dizia ter 37 anos foi lhe procurar, acreditando ter muito a contribuir com o seu estudo. Disse
ter sido marinheiro, chegando ao posto de cabo, e arrendatário de pequena propriedade,
a qual devolvida, causou-lhe ostracismo. O fato curioso com respeito a ele, narra a autora,
foi seu relato quanto ao nascimento “sobrenatural” de seu filho, grande anseio do casal uma
vez que tinha filhas. Depois de algum tratamento, o médico sentenciou-lhe o revés: sua
esposa não poderia mais conceber. Naquela noite disse ter tido um sonho, no qual Jesus
lhe disse duas coisas: a) que para seu filho nascer, alguém famoso teria que morrer a
vítima foi o Airton Senna mas afirma que depois do nascimento do filho, o piloto lhe
apareceu, garantindo-lhe que estava feliz e bem, principalmente por saber que o garoto
seria o seu sucessor; b) que deveria colocar no menino o nome Abrasaic, que teria como
significado “pai e filho unidos em um só espírito”. Aparentemente, seu filho seria uma
199
espécie de reencarnação “compartilhada” de Senna. -nos a impressão que acreditava
que, embora a alma do falecido piloto ainda existisse desencarnada, ao mesmo tempo
estava, também, na criança. Talvez possa se inferir isso na sua idéia de participação
conjunta em um espírito, como explicita o nome que foi dado ao rebento prometido.
Segundo a autora, após uma semana, Senna morreu e a mulher engravidou. Quando o
menino dava as suas primeiras derrapadas em seu triciclo, o pai contou a um empresário
alemão, adepto do espiritismo, os alegados episódios espirituais que cercaram o nascimento
do seu filho. Tocado, o germânico pediu para ser o padrinho do menino e patrocinar-lhe a
carreira. Seria seu futuro empresário? O que realmente nos interessa é o desfecho dessa
inusitada narrativa. Ausente do acampamento por algum tempo, ao voltar, a autora soube da
expulsão do pai do filho prometido. Teria ficado louco. Assumiu, diante do acampamento,
que era uma encarnação de Jesus Cristo e, na qualidade de Messias, saberia conduzir
todos os integrantes às terras destinadas a cada um. Percebendo-se ameaçada pelo
repentino surto messiânico, a liderança aplicou-lhe a pena máxima para o acampado: a
exclusão sumária (TURATTI, 2005, pp. 48-50). Chama-nos a atenção a celeridade da
atitude dos deres. Seria isso uma indicação do poder que a religiosidade ainda tem sobre o
homem simples do sertão, arrebatando-lhe a atenção, a simpatia e a submissão? De
qualquer forma, o que se percebe é que a saída para a causa deixou de ser principalmente
religiosa, assumindo o viés político. Pelo que parece, a religião poderá ocupar lugar
secundário no movimento, como serva da política, nunca o contrário.
Outro episódio narrado pela autora mostra como a política tende a superar a
esperança religiosa. Um grupo de insatisfeitos com a liderança do acampamento de Iaras
resolveu articular-se politicamente com um candidato à prefeitura da cidade, que prometeu
beneficiar-lhes, acelerando os assentamentos. Assim, planejaram uma invasão,
independente do MST, a uma das fazendas mais cobiçadas da região. O candidato já havia,
até mesmo, conseguido a transferência de vários títulos de eleitor dos integrantes para
aquela regional. É interessante notar que o motivo do levante não foi, apenas, a reprovação
da liderança do MST. Isso não era suficiente. tiveram coragem de enfrentar a situação
porque o grupo dispunha de gente que acreditava ser politicamente poderosa a apoiá-lo
(TURATTI, 2005, pp. 50-52). Situação muito semelhante se percebeu no Contestado, tanto
“intra-muros”, na deposição de líderes espirituais, como “extra-muros”, no enfrentamento
dos coronéis e do próprio governo. Na religião encontravam base segura para substituir
videntes e desafiar os de fora. Assim, embora a insatisfação com a situação fosse mais do
que reconhecida, foi apenas quando sentiram que teriam “poder” para levar adiante a causa
é que ousaram o enfrentamento. A grande diferença é que não se apoiavam no mover
político, como é o caso dos sem-terra em nossos dias. A stica utilizada pelo MST possui
estrutura antitética. Manipula-se o adepto estigmatizando um adversário, forçando nele um
200
significado oposto àquilo que se quer causar no movimento. Assim, por exemplo, se a
intenção é constituir novos quadros impingi-se no inimigo o capitalismo, a fim de gerar o
socialismo no sem-terra. Se o objetivo é enfatizar o direito à terra, fala-se do fazendeiro
latifundiário, proprietário de muitas terras, e assim por diante (TURATTI, 2005, pp. 104,
105).
O MST é um movimento sem as amarras do catolicismo. Embora sua gênese
remonte às Comunidades Eclesiais de Base e ainda disponha do apoio e simpatia da
Pastoral da Terra, sua liderança é completamente autônoma e distinta. Nos acampamentos
geralmente se encontram dois “barracos igreja”: um católico e outro evangélico. Os
primeiros contam com o apoio de padres mais afeitos à Teologia da Libertação. As missas
celebradas são fortemente secularizadas, através da abordagem social de temas bíblicos.
Geralmente, destaca-se o direito da terra. Aqueles que freqüentam a barraca-igreja católica,
geralmente rezam e discutem temas sociais. Os católicos se mostram mais indiferentes ao
exercício espiritual, mais aberto ao sincretismo, especialmente com as religiões de origem
africana. Já os evangélicos são mais dedicados à sua religiosidade, mostrando maior
seriedade e devoção. Maria Cecília Turatti faz uma interessante comparação entre a
expectativa messiânica do Contestado e o anseio pela terra do MST. Enquanto os caboclos
catarinenses ansiavam pela chegada do exército encantado de São Sebastião na
escaramuça final contra os “peludos”, segunda ela, os sem-terra aguardavam a vinda do
“monge José Rainha”, o único que os guiará ao trabalho em terra de posse própria. O
enviado “divino” que anseiam, nada tem de sobrenatural. Comenta o episódio do “messias”,
pai do Senna mal-encarnado, mostrando que ao se proclamar Cristo, logo granjeou alguns
seguidores. Todavia, não suportou a ação do messias majoritário para o campesino: o
próprio MST (TURATTI, 2005, p. 101-103). A organização política dos acampamentos sem-
terra assemelha-se ao dos redutos. Enquanto nestes se viu a coerção garantida pela
ordenação espiritual de líderes, naqueles o mesmo ocorria, mas lastreada nas alianças com
partidos. O MST promove e pratica saques, supondo que aquilo que está na terra pretendida
lhes pertence, mesmo que o bem alheio, exatamente a crença e prática Contestada.
Chegamos ao final de nossa análise da Santa Religião. O desvio do viés religioso
centralizando o movimento na pessoa do comandante geral, descaracterizou a causa de sua
peculiar iminência espiritual. Embora o religioso jamais deixasse de ser importante para o
adepto, fato confirmado pela continuidade e intensificação dos exercícios religiosos grupais
diários, foi nitidamente secundado, preterido em favor da habilidade militar. A destituição de
Maria Rosa é evidência da mudança de rumo que a causa estava sofrendo. O banditismo
praticado por alguns também serviu para desanimar muitos que pretendiam uma experiência
religiosa sincera. A assunção de Adeodato foi o “golpe de misericórdia” para a Santa
201
Religião. Sua violência e crueldade fizeram secar a “árvore da vida”, isto é, a esperança
religiosa do campesino Contestado. Ao sertanejo foram negados a terra e o seu produto.
Para ele era um fruto proibido. Como legado atual, vemos nos três estados sulistas a
continuidade da fé em João Maria, inclusive, entre os Kaingang. Substituindo o viés religioso
da causa Contestada pelo político, temos o MST. Conquanto haja católicos e evangélicos
praticantes nos acampamentos, a religiosidade se tornou mero acessório. A seguir,
ponderaremos os pontos principais que tratamos até aqui, produzindo algumas reflexões.
202
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Guerra do Contestado, analisada em seu aspecto cultural, tem muito a nos
ensinar. A dramaticidade que envolve a luta acentuadamente assimétrica destaca o poder
da religião para potenciar aqueles que carecem de recursos bélicos. Quando as crenças
religiosas fazem com que o combatente acredite que a morte também é vitória, os próprios
corpos se transformam em armas letais e temidas. É por isso que vimos soldados bem
armados do Exército temerem e tremerem, ante a arremetida de homens que empunhavam
facões de madeira. Em ambiente onde uma das partes é movida pela religião, certamente
se evita o combate corporal. Talvez o melhor exemplo disso em nossa época tenha sido as
duas guerras contra o Iraque. Na primeira, formou-se uma coalizão de potências para
enfrentar um único país, que, embora bem armado, talvez pudesse fazer frente, no máximo,
a uma das européias. A motivação que levou a tão expressiva e invencível força de combate
não foi, tão-somente, a divisão de bilhões de dólares em gastos militares, mas evitar o alto
custo de vidas. Temia-se o combate terrestre, a “guerra clássica”, estratégia pretendida por
Sadan Hussein. Mesmo forças militares acostumadas aos combates não queriam enfrentar
gente motivada espiritualmente, que poderia fazer do combate suicídio em devoção”. Não
está preocupado em viver, mas, apenas, em matar o inimigo. Para o soldado empolgado
pela religião, a própria morte em combate é vista como privilégio, garantia do favor da
divindade, mais que isso, merecedora de prêmios no além. Quando a religião se torna
motivação, dá-se a impressão que o combate se torna injusto, pois um não abre mão da
vida, mas o outro mesmo na morte a vitória. Desse jeito, não importando o resultado,
este sempre ganha. O receio do combate direto modelou a estratégia aliada, levando a
implementação da maior campanha de bombardeio vista na história. Despejaram
incontáveis toneladas de bombas sobre o Iraque por dias seguidos. Quando tinham certeza
que não restava quase nada das forças defensoras, os soldados “invadiram corajosamente”
o país, recolhendo os soldados inimigos que imploravam por comida e remédio. O medo do
religioso costumeiramente leva a excessos militares, como aconteceu no massacre de
Taquaruçú.
A esperança da sociedade primitiva composta pelos seguidores de José Maria foi a
última a morrer para os adeptos do movimento. Esperança obstruída e evaporada, ou ainda,
esvaziada da real satisfação, foi substituída por aquela formulada para a solução do
problema pungente de posse da terra. Para os que tombaram na Guerra, a morte se deu na
esperança. Todavia, de forma geral, talvez também possamos dizer que a esperança os
conduziu para a morte. Nos depoimentos colhidos dos sertanejos sobreviventes dos
203
combates, era nítida a frustração da expectativa original, o que explica a continuidade e o
revigoramento da fé no pacífico João Maria e o quase esquecimento do belicoso José Maria.
Paradoxalmente, a esperança concedida pela religião Contestada só se mostrou eficaz para
os que morreram, pois deu-lhes alento no momento fatídico e a capacidade de olhar para
além do fim iminente. Para os sobreviventes, tornou-se frustração, possivelmente o sentido
mais literal do termo “desilusão”.
Analisando o “solo Contestado”, percebemos que se tratava de terra rica em
nutrientes culturais, que fariam eclodir praticamente qualquer tipo de semente religiosa que
nele fosse lançada, garantindo-lhe crescimento, florescimento e frutificação. A cultura
ameríndia natural, aberta sincreticamente, concedeu ao caboclo da região capacidade de
absorção e assimilação de crenças e ritos, realimentando a religiosidade popular pela via da
adaptação e da re-interpretação, segundo a necessidade que tinham. O rico solo cultural
brasileiro, fornido de nutrientes ameríndios, foi ainda “adubado” de conceitos e práticas
africanas, pela transferência forçada de milhões de africanos para o nosso país, desde
quando ainda era jovem colônia. A junção dessas duas culturas talvez tenha, na verdade,
tão-somente, trazido ao solo cultural brasileiro a sua composição original. Achados
arqueológicos recentes e os estudos realizados por Walter Neves e os pesquisadores do
Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biologia da USP, muito
difundidos em nossos dias, sugerem a possibilidade de uma população negróide
concomitante, ou, mesmo, anterior, à chegada de asiáticos pelo Estreito de Bering, teoria
esta, até então, praticamente inquestionável. Um crânio apresentando características
peculiares e distintas, a saber, arredondado e curto, com o rosto achatado, datado de época
anterior ao povoamento ameríndio, difere daqueles chamados paleoíndios, associados aos
“mongolóides”, com neurocrânio estreito e longo, lateral alongada, face destacada, nariz
baixo e largo, e órbitas igualmente baixas. Se admitirmos aquilo que tal suposição favorece,
a cultura ameríndia teria se desenvolvido como irmã gêmea (não univitelina) ou mais nova
de uma negróide desconhecida. Assim sendo, a introdução de africanos no advento da
escravatura seria uma “pangéia cultural” Brasil-África, devolvendo ao país boa parte de sua
cultura perdida.
Curiosamente, na opinião de Roger Bastide, esposada em nosso trabalho, foi
exatamente a cultura negra que serviu de ponte entre o branco e o índio, fazendo transitar
conceitos em mão dupla, todavia, sempre impregnados de africanismos. A inserção de
negros em tribos indígenas brasileiras faz-nos refletir se tal não é uma espécie de
recomposição original de um habitat que estava sendo reformulado e remodelado pelos
europeus. Ainda admitindo a plausibilidade da hipótese acima, mesmo que a população
negróide original tenha sido competidora da colonização mongolóide ameríndia posterior, a
“ameaça branca” pode ter produzido uma reação cultural, como se a própria natureza
204
reagisse em defesa de seu equilíbrio, aglutinando ainda que povos inimigos, habitantes de
uma mesma terra, contra um adversário invasor comum. Também, por esse raciocínio,
possa se explicar por que o africano, embora mostrando desejo latente de voltar “para o
lado de lá do Atlântico” logo que chegou, depois se sentiu tão “em casa” em terras
brasileiras. Talvez não tenha sido, apenas, a impossibilidade de regresso que provocou sua
“climatização” em nosso país. Se a teoria da população negróide anterior se mostrar
acertada, certamente permaneceram “ganchos culturais” na cultura da terra que
favoreceram sua adaptação. Embora contenham pontos peculiares, é inegável que as
religiosidades ameríndia e africana, falando-se genericamente, são bastante semelhantes.
Tratando mais especificamente da introdução dos escravos no Brasil colônia, acreditamos
ter ficado patente a interferência da cultura deles como elemento formador do messianismo
Contestado. A presença de negros nas tribos Xokleng da região mostra que crenças
africanas fizeram parte do cabedal de conceitos que os sertanejos, acaboclados, possuíam.
Do Batuque do Sul, percebe-se a empréstimo da cerimônia de iniciação, com mudança de
nome e raspagem da cabeça, elementos não encontrados na cultura ameríndia ou católica.
Esta pode fornecer base, apenas, na junção de elementos nunca antes associados, como a
raspagem do cabelo na ocasião de se assumir o voto de Nazireu, a mudança de nome
ocasionada pelo encontro com a Divindade, como foram os casos de Abrão para Abraão,
Jacó para Israel, Saulo para Paulo, e o batismo, a real cerimônia de iniciação do
cristianismo. Acreditamos que dificilmente o campesino Contestado, eminentemente
analfabeto e “dependente da audição”, teria condições de conhecer e harmonizar diferentes
ritos da tradição judaico-cristã para a composição de sua cerimônia de iniciação. É mais fácil
admitir que tal foi influência “recebida pronta” de negros que transitavam pela região. Do
Nordeste percebemos empréstimo islâmico dos negros maometanos, que sincretizaram sua
original, criando os patuás que continham rezas ou extratos do Alcorão escritos.
Acreditavam que esse objeto continha poderes gicos, fechando o corpo contra qualquer
ameaça ou ferimento. Nos jagunços Contestados foram encontrados inúmeros patuás com
rezas tidas do monge, cuja utilização estava fundamentada na mesma crença: fechavam o
corpo contra ferimentos nas batalhas.
Apontamos como fato de grande relevância para o robustecimento das crenças
Contestadas, a transferência de cerca de oito mil trabalhadores vindos do Nordeste e
Sudeste, para trabalharem na EFSPRG Estrada de Ferro São Paulo/Rio Grande. Época
quando a abolição ainda era recente, trabalho braçal era “coisa de negro”. O branco de
tradição católica dificilmente se submeteria a isso, fato social que foi mudado com a
chegada de imigrantes de tradição protestante. A óbvia conclusão é que a maioria
esmagadora dos operários da ferrovia era composta de negros e mulatos, herdeiros das
crenças e tradições africanas. Tal população transferida pode ter sido ainda maior, quando
205
lembramos que vários vieram com suas famílias. Acreditamos que a influência negra no Sul,
se inferiorizada pelo número menor de escravos na região por não se tratar de terras de
cultivo, foi beneficiada pela menor rejeição do negro, fato observado no tratamento menos
rude dado ao escravo e por certa tendência abolicionista que predominava. Falando-se do
“homem do Contestado”, a chegada de grupos de escravos, socialmente excluídos, a uma
sociedade de “nunca incluídos”, como era aquela do campesino do Oeste Catarinense,
tendia à aceitação na grande massa desfavorecida. Assim, se tiveram maior abertura,
também exerceram influência mais determinante e direta. O relacionamento inter-racial na
região Contestada beirava o paradoxo. Se, por um lado, brancos (descendentes de
portugueses e imigrantes), índios e negros tinham os seus atritos, por outro, percebe-se que
eram causados por interesses conflitantes, não pela cor da pele. Se não fosse inimigo, não
importa a etnia que pertencesse ou que lhe fosse predominante, poderia ser aceito e tornar-
se irmão na causa.
A derrocada do movimento, embora tenha sido ocasionada diretamente pela guerra
assimétrica contra o Exército Brasileiro, associado a maragatos e vaqueanos contratados,
teve outros elementos que foram determinantes para o fim da Guerra Santa. É provável que
o esfacelamento da causa tenha se iniciado com a mudança de ênfase. Originalmente,
quando se fortaleceu ao redor do monge José Maria, a religião estava em alta, sendo o
militarismo um servo das aspirações sociais de fundo religioso. Todavia, após a morte do
Monge na batalha de Irani, começou-se a valorizar mais a guerra do que a religião. A
coerção começa a se tornar a expressão do poder. Por causa disso, o virgenato” e os
“menino-deus” perderam espaço. Com o passar do tempo e o movimento se encaminhando
para o final, o religioso cede, definitivamente, espaço para o militar. Os comandantes
assumem a chefia máxima, absoluta e inquestionável da causa. O último deles, Adeodato,
foi o maior exemplo disso. Nesse processo, algo que fortaleceu o militarismo em detrimento
do religioso, foi o crescimento da causa e a fundação de outros redutos. Parece que os
comandantes começaram a vislumbrar algo muito maior do que pretendiam originalmente. A
causa começa a assimilar os contornos de uma cruzada contra todos os que não eram
adeptos. As dimensões da conquista ameaçaram se projetar para fora da área Contestada,
chegando ao alto Vale do Itajaí. Tendo na religião o grande “motor” da luta, uma vez
secundada a crença, o ideal original também foi inferiorizado. A liderança calcada no
prestígio deu lugar à imposição pela força. Outro fator que podemos apontar como causador
da derrota foi a desintegração conseqüente da quebra da “moral” sertaneja. O fortalecimento
do poder militar levou a alguns excessos, especialmente porque atraiu para a causa
marginais e bandidos oportunistas. Percebendo a necessidade de homens “valentes”, o
movimento se abriu para todo meliante que confessasse a fé Contestada. Como não poderia
deixar de ser, em muitos casos, os piquetes passaram de meio de abastecimento dos
206
redutos para a pilhagem e os saques, expressões máximas de banditismo. De novo, o ápice
se deu com Adeodato. Líder cruel e inescrupuloso, chegou a matar famílias inteiras durante
as “formas”, simplesmente por desconfiar que pretendiam abandonar o reduto. Assim como
na narrativa bíblica que conta o oferecimento da desobediência a Eva como meio de se
tornar “como Deus” (Gn 3.5 blia), aparentemente tal comandante assumiu prerrogativas
divinas, o que custou a negação do “fruto da árvore da vida”, isto é, o fracasso dos anseios
buscados pelo adepto da fé Contestada. Talvez o seu ato mais cruel tenha sido motivado
por sua imoralidade. Depois da morte de Chico Alonso, possivelmente, seu padrinho,
assumiu um relacionamento adulterino com a viúva. Temos dois fatores de completa
incongruência com os princípios religiosos do sertanejo: a quebra do compadrio e a aberta
imoralidade. Ao se “amancebar” com a mulher de seu padrinho, na mente do campesino tal
era “lido” como uma espécie de incesto. Além disso, o fato de Adeodato ser casado
intensificou ainda mais a reprovação, tornando-se verdadeira abominação. Para “resolver”
isso, desconfiou publicamente de sua esposa Maria Firmina, metendo-lhe uma bala
diretamente no coração à vista de todos. Esse comportamento do comandante, ao invés de
“incentivar” a permanência para poupar a vida, como acreditava Adeodato, encorajava cada
vez mais a fuga dos adeptos.
Destacamos, ainda, a incongruência das promessas esperadas com a fome e a
penúria que passaram a experimentar. Estrategicamente, o Exército foi minando a
resistência dos revoltosos, estabelecendo um cerco que foi, paulatinamente, estrangulando
os redutos. Com cada vez menos território para arrebanhar comida, todo dia fazia aumentar
os problemas de abastecimento dos redutos. Famintas, as crianças chegavam a lamber o
chão onde as poucas reses eram abatidas. Comia-se até os intestinos do animal. Muitas
famílias começaram a abandonar a causa, acelerando seu fim. É verdade que a pesada
artilharia do exército teve papel determinante, impondo o fim ao movimento. Contudo,
acreditamos que a história seria outra, se não houvesse causas internas que
enfraquecessem a coesão que havia no início. Provavelmente a Santa Religião seria extinta,
mas com muitos maiores esforços. Finalmente, evidenciam-se efeitos da Guerra do
Contestado para os nossos dias. A adoração do “seu” João Maria se eternizou nos três
estados da região Sul. Estatuetas são comercializadas, seus lugares santos recebem fiéis
de todo Brasil, e, até mesmo, o catolicismo oficial, a exemplo da tolerância interesseira
quanto ao Padre cero no Nordeste, também promove serviços religiosos relacionados ao
antigo monge Contestado. O MST é visto como uma espécie de “Santa Religião”
secularizada. Fascinante é essa antropologia, que encontra ligação entre o atual MST e os
índios e negros, chegando a tocar, até mesmo, a pré-história da própria colonização.
207
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