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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE LETRAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
ANTONIO NÓBREGA:
A EXPRESSÃO LINGÜÍSTICO-POÉTICO-MUSICAL
DE UM BRINCANTE PERNAMBUCANO
por
JORGE MOUTINHO
Rio de Janeiro
2006
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Antonio Nóbrega:
a expressão lingüístico-poético-musical
de um brincante pernambucano
por
Jorge Luís Moutinho Lima
Tese submetida à Coordenação de
Pós-Graduação do Instituto de Letras
Centro de Educação e Humanidades
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutor, sob a
orientação do Professor Doutor André
Crim Valente
Rio de Janeiro, 2006
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ANTONIO NÓBREGA:
A EXPRESSÃO LINGÜÍSTICO-POÉTICO-MUSICAL
DE UM BRINCANTE PERNAMBUCANO
por
JORGE MOUTINHO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Professor Doutor André Crim Valente (Orientador) (UERJ)
_________________________________________________
Professor Doutor José Carlos Santos de Azeredo (UERJ)
_________________________________________________
Professor Doutor Júlio César Valladão Diniz (PUC-Rio)
_________________________________________________
Professora Doutora Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)
_________________________________________________
Professor Doutor Mário Eduardo Toscano Martelotta (UFRJ)
RESUMO
Esta tese tem por objetivo abordar o universo lingüístico-poético-musical
em que se expressa o cantor, compositor, ator, dançarino, violinista e
rabequeiro pernambucano Antonio Nóbrega, tomando como base três campos
da ngua portuguesa: estilística, semântica e dialetologia. O estudo tem como
ponto de partida o repertório dos cinco CDs gravados por ele no período de
1996 a 2002 (Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco
falando para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo), discos que
resultam de espetáculos homônimos.
Com base no corpus aqui analisado, serão feitas aproximações entre os
pressupostos teóricos referentes aos campos de estudo indicados e o que se
verifica nas letras que fazem parte desse universo lingüístico, realçando-se a
presença dos parceiros Bráulio Tavares e Wilson Freire e levando-se em conta
aspectos relativos à importância da cultura popular brasileira na formação
desse brincante nordestino que tem como referenciais preponderantes em
seu trabalho o escritor Ariano Suassuna e o Movimento Armorial.
As reflexões sobre o trabalho de Antonio Nóbrega são contribuições
desta tese no sentido de mostrar como se pode analisar uma obra literário-
musical utilizando elementos teóricos da ngua portuguesa, estabelecendo
diálogos entre mais de um campo de estudo.
ABSTRACT
This doctorate dissertation has as its aim to deal with the musical-poetic-
linguistic universe in which Antonio Nóbrega, an artist from the state of
Pernambuco, Brazil, expresses himself as singer, composer, actor, dancer,
violinist, and rebec player, taking as its basis three fields of the Portuguese
language: stylistics, semantics and dialectology. The study has as its starting
point the repertoire of the five CDs recorded by him in the period from 1996 to
2002 (Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco falando
para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo), records which result
from the homonymous spectacles.
Having as basis the corpus which was analyzed here, approximations will
be accomplished among the theoretical presuppositions related to the fields of
study mentioned before, and the one which is verified in the lyrics which are
part of this linguistic universe, giving prominence to the presence of his partners
Bráulio Tavares and Wilson Freire, and taking into consideration aspects
concerning the importance of Brazilian popular culture in the formation of this
northeastern artist who has the writer Ariano Suassuna and the cultural
movement known as Movimento Armorial as prominent referentials in his work.
The reflections on the work of Antonio Nóbrega are the contributions of
this doctorate dissertation in the sense of showing how it is possible to analyze
a musical-literary work by using theoretical elements of the Portuguese
language, establishing dialogues among more than one field of study.
RÉSUMÉ
Cette thèse envisage l’univers linguistique-poétique-musical dans lequel
s’exprime le chanteur, compositeur, acteur, danseur, violoniste et joueur de
rabeca Antonio Nóbrega, ayant pour base trois domaines de la langue
portugaise: la stylistique, la sémantique et la dialectologie. Le point de départ
de cette étude est le répertoire des cinq CD enregistrés par l’artiste pendant la
période de 1996 à 2002 (Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói,
Pernambuco falando para o mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo),
des disques qui résultent de spectacles homonymes.
D’après le corpus analisé, on fera ici des rapprochements entre les
suppositions théoriques concernant les domaines indiqués et ce qui se vérifie
dans les paroles qui font partie de cet univers linguistique, tout en soulignant la
présence des partenaires Bráulio Tavares et Wilson Freire et tenant compte
des aspects concernant l’importance de la culture populaire brésilienne dans la
formation de ce brincante [joueur] du nord-est brésilien dont les références
prépondérantes sont l’écrivain Ariano Suassuna et le Mouvement Armorial.
Les réflexions sur le travail de Antonio Nóbrega sont des contributions de
cette thèse dans le sens de montrer comment on peut analyser une œuvre
littéraire-musicale en employant des éléments téoriques de la langue portugaise
et établissant des dialogues entre plus d’un champ d’étude.
FICHA CATALOGRÁFICA
Moutinho, Jorge.
Antonio Nóbrega: a expressão lingüístico-poético-musical de um brincante
pernambucano. / Jorge Moutinho. - Rio de Janeiro, 2006.
x, 243 p.
Orientador: André Crim Valente.
Tese (Doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação
de Pós-Graduação em Letras.
Bibliografia: p. 165-173.
1. Língua portuguesa. 2. Estilística. 3. Semântica. 4. Dialetologia. 5. Cultura
popular brasileira. 6. Música popular brasileira. I. Valente, André Crim. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenação de Pós-Graduação
em Letras. III. Título.
v
A todo artista popular brasileiro que se esforça dignamente
para mostrar a cada dia que a linguagem com que
se expressa é madeira de lei que cupim não rói.
vi
AGRADECIMENTOS
A todos os professores e colegas da primeira turma assim como aos
funcionários da secretaria do curso de Doutorado em Língua Portuguesa
(Coordenação de Pós-Graduação em Letras) da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, no período de 2002 a 2005.
Ao professor orientador e amigo André Crim Valente pela calorosa
acolhida desde o início do doutorado, entreabrindo-me as portas para as
leituras teóricas referentes à estilística, à semântica e à dialetologia,
fascinantes campos de estudo da língua portuguesa. Por trás dele, eu não
poderia deixar de agradecer a Leila Valente, sua esposa e também professora
de português, pela constante simpatia ao me atender nas freqüentes vezes em
que precisei ligar para a residência do casal, em busca de meu preclaro
orientador. Também sou muito grato a André pelo decisivo apoio durante os
diversos eventos acadêmicos em que estivemos juntos ao longo desses quatro
anos, incluindo o VII e o VIII Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, na
UERJ; nossa viagem a João Pessoa (Paraíba) para participar do II Encontro
Nacional de Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (Eclae), promovido
pelo Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste (Gelne), onde dividimos uma
sessão com Lucia Helena Lopes de Matos, a quem também agradeço o
estímulo; e minha ida a Minas Gerais para participar do X Simpósio Nacional
de Letras e Lingüística na Universidade Federal de Uberlândia.
Aos professores Maria Teresa Gonçalves Pereira e Júlio Cesar Valladão
Diniz pelas pertinentes observações que fizeram durante o Exame de
vii
Qualificação, as quais foram de grande valia na elaboração do texto final e
incorporadas na medida do possível.
À professora Nelly Carvalho pelas proveitosas indicações de leituras e
pela atenção dispensada em minha ida ao Departamento de Letras da
Universidade Federal de Pernambuco.
À professora Maria Helena Duarte Marques pelas oportunas sugestões
dadas ao trabalho que apresentei (Madeira que cupim não i: introdução ao
universo de referência da obra de Antonio Nóbrega) como encerramento de
disciplina ministrada por ela (Descrição do Português Contemporâneo) no
curso de Doutorado em Língua Portuguesa na UERJ.
A Bráulio Tavares, pela disposição com que me acolheu em sua casa,
no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, para uma boa conversa sobre sua
obra, sua ligação com Antonio Nóbrega e a poesia popular brasileira. E pela
sua influência decisiva para que eu conseguisse conversar pessoalmente com
o próprio Nóbrega, em São Paulo.
A Wilson Freire, pela prosa amistosa que mantivemos por telefone e via
internet, eu no Rio de Janeiro e ele no Recife. A ele e a Bráulio, aproveito para
agradecer as rápidas, porém consistentes, lições sobre poesia popular
brasileira.
À amiga e irmã Tereza Marques de Oliveira Lima, também professora
universitária (literatura americana), pelo Abstract, pela troca de idéias sobre a
vida acadêmica e pelas constantes conversas reflexivas que tanto nos
estimulam em nossas caminhadas nesse mundão de meu Deus. Aproveito e
viii
agradeço a Eduardo Golodne pela costumeira boa vontade em sua consultoria
nos assuntos referentes à informática.
A Denise Gusmão, pelo estímulo constante de outros carnavais no
trabalho com a nossa memória e com a nossa cultura popular.
A Mônica Dourado, pelo permanente incentivo cearense-paraibano e
pelas consultas referentes à língua inglesa sempre que precisei utilizar esse
idioma ao longo do doutorado – afinal, penso em português.
A Irene Ernest Dias, pela colaboração desde o preparo do anteprojeto
com que ingressei no Doutorado até a presteza na elaboração do Résumé.
A Stella Caymmi, pelo apoio na “busca bibliográfica”.
A Anna Paula de O. Mattos Silva pela atenção e pelo envio, via internet,
de sua dissertação de mestrado sobre Ariano Suassuna e Chico Science.
A Carmem Lélis, do Centro de Estudos e Pesquisa em Cultura Popular
Casa do Carnaval (Recife PE), pela atenção e pelos livros presenteados
sobre a cultura pernambucana, quando ali estive recolhendo material para
minha pesquisa.
Ao jornalista Luiz Freitas, com quem trabalhei como jornalista em
determinada empresa ao longo desse período, por ter compreendido que eu
poderia conciliar perfeitamente minhas atividades profissionais de redator e
revisor com as aulas do doutorado e os eventos relacionados ao curso.
A Denílson Botelho, pelo estímulo decisivo na “arrancada” final para a
defesa da tese.
ix
A Lucia Niquet, que está em alguma página do meu Lunário perpétuo.
Que ela possa crescer cada vez mais ao descobrir a beleza guardada no
aroma dos jasmins e na luminosidade dos vaga-lumes.
A Antonio Moutinho, apoio fraternal em muitas horas H, entre elas a da
defesa.
A Dorival e Lisette, meus Pais, pela semeadura, pelo plantio, pelos
sólidos alicerces e pela farta, proveitosa e perene colheita. Que assim seja!
Aos “Heróis do Maravilhoso” (aproveitando expressão da canção Lunário
perpétuo), companheiros que povoam o meu cotidiano e o meu Ideário (assim
como Nóbrega tem o dele), ensinando-me a ser melhor a cada dia. Eles
saberão a quem me refiro.
E ao próprio Antonio Nóbrega, que me recebeu no escritório da
Brincante Produções, em São Paulo, a princípio meio desconfiado, mas aos
poucos abrindo-se para uma fluente e amistosa prosa sobre sua vida e obra.
Como se ele fosse, literalmente, Pernambuco falando para o mundo.
x
Sumário
Introdução........................................................................................................................1
1 – Considerações sobre a cultura popular nordestina.................................................11
2 – Diálogos e parcerias................................................................................................25
2.1 – Ecos do Movimento Armorial - A influência de Ariano Suassuna.............26
2.2 – Os parceiros fiéis......................................................................................35
2.2.1 – Wilson Freire..............................................................................36
2.2.2 – Bráulio Tavares..........................................................................41
3 – Pressupostos teóricos.............................................................................................58
3.1 – Aspectos estilísticos..................................................................................58
3.2 – Aspectos semânticos................................................................................68
3.3 – Aspectos dialetológicos............................................................................82
4 – Corpus.....................................................................................................................89
4.1 – Apresentação............................................................................................89
4.2 – Análise do corpus.....................................................................................98
4.2.1 – Na pancada do ganzá................................................................99
4.2.2 – Madeira que cupim não rói.......................................................118
4.2.3 – Pernambuco falando para o mundo.........................................132
4.2.4 – O marco do meio-dia................................................................136
4.2.5 – Lunário perpétuo......................................................................148
5 – Conclusão..............................................................................................................158
Referências Bibliográficas...........................................................................................165
Bibliografia de Apoio....................................................................................................172
Referências Discográficas (CDs e DVD).....................................................................174
Anexos.........................................................................................................................175
Anexo 1 – Letras.........................................................................................................175
Anexo 1.1 – Na pancada do ganzá..................................................................175
Anexo 1.2 – Madeira que cupim não rói..........................................................183
Anexo 1.3 – Pernambuco falando para o mundo............................................192
Anexo 1.4 – O marco do meio-dia...................................................................199
Anexo 1.5 – Lunário perpétuo..........................................................................207
Anexo 2 – Entrevista com Antonio Nóbrega................................................................215
Anexo 3 – Glossário....................................................................................................238
Anexo 4 – Imagens (reproduções de capas de CDs e DVD)......................................240
1
Introdução
(em que o autor desta tese conta como tomou conhecimento da existência do
artista Antonio Nóbrega e apresenta sua carta de intenções)
Senhores desta sala,
licença, eu vou chegando, eu vou.
A voz e a rabeca,
o coração cantando, eu vou.
(Loa de abertura – Na pancada do ganzá)
Corria o ano de 1993 e eu dava prosseguimento ao meu curso de
educação artística, habilitação em sica, na Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNI-RIO). Certo dia, fui informado de que haveria uma aula-
espetáculo com um artista pernambucano, cujo nome eu não conhecia.
Enquanto aguardava, chamou a minha atenção um sujeito franzino, de baixa
estatura, que observava os livros expostos no saguão da referida instituição de
ensino, atento aos títulos especialmente da área de música e cultura popular,
hábito que também me é comum. Quando me sentei para assistir à
apresentação, qual não foi a minha surpresa ao constatar que aquele cidadão é
que daria a tal aula-espetáculo. Ao subir no palco, ganhou um fôlego especial e
transformou-se num ser grandioso. Cantou, dançou, contou histórias, jogou
capoeira com pessoas da platéia. Manteve o domínio absoluto do público o
tempo todo. A partir de então, não pude mais ouvir o seu nome ou referências
a seu trabalho e ficar indiferente.
2
Antonio Carlos Nóbrega de Almeida
1
nasceu no dia 2 de maio do ano da
graça de 1952, no Recife, em Pernambuco. Compositor, cantor, violinista,
rabequeiro, violeiro, violonista, tocador de ganzá, pandeiro, alfaia
2
etc.
músico de amplo espectro, portanto. Ator, dançarino, pesquisador de cultura
popular brasileira, sobre a qual muito aprendeu com o escritor Ariano Suassuna
quando integrou o Quinteto Armorial, no início dos anos 70.
3
Em linhas gerais,
esta é a forma mais sucinta de apresentar o nosso personagem principal. Falar
sobre sua obra, no entanto, não é algo tão fácil assim, uma vez que tal
empreendimento pode ser feito segundo vários enfoques, conforme o ponto de
vista e a área de interesse do observador.
Como sempre tive grande interesse pela cultura popular brasileira em
suas mais diversas manifestações, o trabalho desse artista popular nordestino,
ou brincante, como é habitualmente chamado naquela região, passou a fazer
parte do meu foco de atenção tanto em termos musicais como,
conseqüentemente, no que diz respeito aos textos que se relacionam com as
canções, em sua maior parte criados em conjunto com seus constantes
parceiros Wilson Freire e Bráulio Tavares. Mas por que a escolha da obra de
Antonio Nóbrega como tema de uma tese de doutorado em língua portuguesa,
uma vez que ele é um artista essencialmente ligado à música e à dança? Pela
oportunidade de reunir no mesmo objeto de estudo aspectos que dizem
respeito tanto à linguagem escrita quanto à linguagem oral, unindo a palavra no
1
Apesar de a norma culta da língua portuguesa recomendar a acentuação do nome Antonio,
optou-se aqui por registrá-lo sem acento, conforme o próprio artista assina e segundo aparece
em capas e encartes de seus CDs.
2
Ver Glossário.
3
A influência de Ariano Suassuna e a importância do Quinteto Armorial no trabalho de Antonio
Nóbrega serão estudadas no capítulo 2.
3
papel (verso) ao jeito de falar (canto), destacando aspectos que possam
contribuir para caracterizar o trabalho do artista em questão, por meio de
elementos teóricos de determinados campos de estudo da língua portuguesa.
E o que se pretende estudar aqui? Vamos por partes, de modo a apresentar os
principais elementos que levaram o autor desta tese a escolher como tema a
obra desse brincante pernambucano.
Nesta tese, será estudada a expressão lingüístico-poético-musical de
Nóbrega levando-se em conta aspectos da língua portuguesa como semântica,
dialetologia e principalmente estilística, analisados sob um viés cultural em que
se destaca a importância da cultura popular nordestina na formação do artista
em questão.
4
Afinal, o fato estilístico é tanto de ordem lingüística como
psicológica e social, lembrando conceito de Marcel Cressot (1980).
Inicialmente, explique-se o que se entende por brincante: “participante de
folguedo popular” (Ferreira, 1985: 286); “aquele que brinca; brincador;
participante de folguedo folclórico ou auto popular, ou de qualquer folia, como o
carnaval” (Houaiss & Villar, 2001: 513). Em resumo, trata-se dos artistas
populares ou folgazões, como o próprio Antonio Nóbrega conta durante as
apresentações de seus espetáculos. São aqueles que participam dos
brinquedos, como explica Mário de Andrade (1989: 71):
[Brinquedo] No Nordeste é sinônimo de canto e de dança.
Empregado especialmente como nome genérico das danças dramáticas
(Pastoris, Cheganças, Bois, Congos, Caboclinhos, etc.). Também se
usa no mesmo sentido brincadeira, brincar.
4
Estudar a expressão corporal e a dança, elementos indissociáveis do trabalho de Nóbrega,
está além dos limites desta tese, que tem como objetivo central a análise de aspectos
referentes aos citados campos teóricos da língua portuguesa.
4
Existe até uma definição francesa para o termo, conforme consta no
dicionário português-francês das manifestações folclóricas de Pernambuco
(Coimet, 2002: 33): “[Néo. Comp. de brincar (jouer, danser, s’amuser) et du
suff. -ante (qui indique une action, un agent)]. (..) manif. pop. Participant d’un
groupe folklorique qui s’amuse, tout en divertissant le public.” É um termo muito
usado no Nordeste brasileiro. Devido à importância da figura do brincante na
cultura popular nordestina e ao fato de o próprio Nóbrega se definir
prazerosamente como um deles (inclusive o selo pelo qual grava seus CDs tem
o nome de Brincante, assim como um teatro que mantém no bairro de Vila
Madalena, na cidade de São Paulo, onde mora),
5
esse conceito será
devidamente aproveitado ao longo desta tese.
Sobre o despertar do meu interesse para a obra do brincante nordestino
Antonio Nóbrega, o que acarretou a motivação para este estudo, se falou
pouco. Tal identificação, por sinal, provocou esse tom um tanto confessional na
narrativa em primeira pessoa nesta introdução, o qual será deixado de lado nos
capítulos teóricos, dando vez à objetividade típica do texto acadêmico. Devo
acrescentar que, como profissional também da área de letras, percebi no
trabalho apresentado pelo artista uma boa oportunidade para estudar as inter-
5
A proposta do Teatro Escola Brincante é servir como local de valorização e promoção da
cultura brasileira. Criado em 1992, desde então oferece, além da apresentação de espetáculos,
cursos e oficinas de dança, capoeira, teatro, percussão e formação de educadores brincantes,
por exemplo, todos ministrados por diversos profissionais dessas áreas. O letrista Bráulio
Tavares, um dos parceiros mais importantes de Nóbrega, ministrou no local um curso sobre
poética popular do Nordeste. Nóbrega ali estreou os espetáculos Brincante, Segundas
histórias, Na pancada do ganzá e Madeira que cupim não rói. Também ali já apresentou muitas
vezes sua aula-espetáculo. Com a notoriedade que conquistou, o seu teatro ficou pequeno
para suas apresentações e não comporta o grande público que o artista atrai hoje. Devido à
excelente receptividade da iniciativa, Nóbrega criou o Instituto Brincante, que por sua vez gerou
o Centro Brasileiro de Estudos e Folganças, o qual por meio de patrocínio e parcerias
oferece aulas gratuitas para comunidades, instituições sociais e jovens de baixa renda. A
repercussão chegou a além-mar: em 1993, a Oficina Municipal de Teatro, em Coimbra
(Portugal), homenageou Nóbrega com a abertura do Espaço Brincante.
5
relações linguagem poética–música–cultura popular brasileira, de modo a
responder à pergunta básica que servirá de mote em nosso trajeto ao longo
desta tese: como estabelecer elementos estilísticos que possam caracterizar a
expressão lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega?
Dessa forma, serão abordados aspectos lingüísticos constantes do
repertório dos cinco discos de Nóbrega lançados no período de 1996 a 2002
(Na pancada do ganzá, Madeira que cupim não rói, Pernambuco falando para o
mundo, O marco do meio-dia e Lunário perpétuo)
6
como se fossem cinco
roteiros que seguem a mesma seqüência ou gica e que, na verdade, formam
um único e longo roteiro de proporções muito maiores, pode-se dizer, que é a
própria trajetória artística desse pernambucano radicado em São Paulo. Deve-
se informar que, antes dos espetáculos e CDs homônimos mencionados,
Nóbrega criara e apresentara outros no início de sua trajetória solo pós-
Quinteto Armorial. São eles: Bandeira do Divino (1976), A arte da cantoria
(1981), O maracatu misterioso (1982), Mateus presepeiro (1985), O Reino do
Meio-Dia (1989), Figural (1990), Brincante (1992) e Segundas histórias (1994).
Depois viriam Pernambouc (1999)
7
e Antonio Nóbrega e banda (2005).
ainda a aula-espetáculo Sol a pino, encenada com freqüência nos mais
diversos locais, na qual brega conta eventualmente com a participação de
Rosane Almeida, sua esposa, dançarina e acrobata, e seu filho Gabriel,
percussionista.
6
As letras de todos os CDs estão relacionadas no Anexo 1, incluindo as de outros autores que
não Nóbrega e seus parceiros. No final de 2005, ele lançou o CD Nove de frevereiro, o qual
não é analisado aqui, devido ao fato de este texto já estar em fase de conclusão na época.
7
Versão apresentada pelo artista, na França, do espetáculo Pernambuco falando para o
mundo.
6
Nosso percurso está dividido nos seguintes temas: considerações gerais
acerca da cultura popular nordestina; a influência do escritor Ariano Suassuna
e do Movimento Armorial no trabalho de Nóbrega, assim como a forte presença
de seus fiéis parceiros Wilson Freire e Bráulio Tavares; pressupostos teóricos
(aspectos estilísticos, semânticos e dialetológicos); apresentação e análise do
corpus; e conclusão reunindo as principais características do que se chama
aqui de expressão lingüístico-poético-musical de nosso brincante nordestino.
8
Cada capítulo tem como epígrafe um trecho de uma das letras contidas nos
discos de Nóbrega, de canções de sua autoria, com a respectiva indicação do
nome do CD em que se encontra.
9
Como referenciais teóricos, serão utilizados conceitos de autores ligados
à estilística (assim como à semântica e à dialetologia), de modo a se construir
um arcabouço consistente para o estudo da obra desse artista, em busca das
características principais de sua linguagem. Afinal, compete à estilística
investigar a expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e a ação dos
fatos de linguagem sobre a sensibilidade (Bally, 1951). Uma vez que se falará
de estilo, entre tantas definições citem-se aqui a de John Middleton Murry
(1968), para quem estilo é uma qualidade de linguagem peculiar ao escritor,
que comunica emoções ou pensamentos, e a de Joaquim Mattoso Câmara
Júnior (1978), que diz ser a definição de uma personalidade em termos
lingüísticos. Nilce Sant’Anna Martins (2000: 2) relaciona diversas outras,
incluindo a de Jules Marouzeau: “Estilo é a qualidade do enunciado, resultante
8
Ao longo da análise de elementos lingüísticos empreendida nesta tese, propõe-se também
uma interpretação dos textos contidos nas letras do corpus em questão.
9
A indicação dos respectivos parceiros dos versos (fragmentos de letras de música) citados
nas epígrafes pode ser encontrada no Anexo 1.
7
de uma escolha que faz, entre os elementos constitutivos de uma dada língua,
aquele que a emprega em uma circunstância determinada.” Para completar,
outro especialista no assunto, Pierre Guiraud (1978: 9), ressalta que a
estilística “não é mais que o estudo da expressão lingüística; e a palavra estilo,
reduzida à sua definição básica, nada mais é que uma maneira de exprimir o
pensamento por intermédio da linguagem.” O capítulo 3.1 desta tese vai
explorar detidamente diversos aspectos estilísticos que podem ser apreciados
na obra de Antonio Nóbrega.
Para situar termos e expressões que aparecem nas letras em questão, a
semântica estará ao nosso lado, levando-se em conta que
o ponto de partida de um ato lingüístico é o significado em sentido
estrito, determinado pela gramática. (...) [e o] significado em sentido
estrito é colocado em uso com a ajuda da totalidade de nossas
capacidades cognitivas (percepção, estratégias inferenciais não
estritamente lingüísticas etc.) (Chierchia, 2003: 235).
Assim, serão analisados determinados elementos das teias de
significados estabelecidas nos campos semântico e lexical em questão.
Estudos sobre dialetologia servirão para dar base ao caráter regionalista
do trabalho de Nóbrega, incluindo aspectos do seu jeito de falar e cantar, uma
vez que, ao falar, cada indivíduo transmite, além da mensagem contida em seu
discurso, “uma rie de dados que permite a um interlocutor atento não
depreender seu estilo pessoal – seu idioleto –, mas também filiá-lo a um
determinado grupo” (Brandão, 1991: 6). Serão aproveitadas noções dadas por
Ferreira e Cardoso (1994) para a interpretação de dados lingüísticos no que
toca à dialetologia.
Conceitos retirados de estudos fonológicos (como os de Leite & Callou,
2002) aparecerão eventualmente, quando forem necessários para reforçarem
8
determinados aspectos de nosso estudo, como a pronúncia de Nóbrega
caracteristicamente nordestina. Mário Marroquim (1996: 21), por exemplo,
afirmou que “a pronúncia do nordestino é a que caracteriza em geral o falar
brasileiro: é demorada, igual, digamos mesmo arrastada, em contraste com a
prosódia lusitana, áspera e enérgica”. E de modo a estabelecer referenciais
com relação a um solo o rico de marcos culturais, onde surgiu a arte desse
brincante, teóricos da cultura popular não ficarão de fora, sendo aproveitadas
idéias de Bakhtin (1999) em seu célebre estudo sobre a cultura popular na
Idade dia e no Renascimento, aqui transplantadas para o universo
nordestino brasileiro. Ressalte-se que ao longo desta tese aparecerão
conceitos de diversos outros autores relacionados aos campos de estudo em
questão – que não são citados nesta introdução.
Como o referencial teórico privilegiará a estilística, voltemos a Marcel
Cressot (1980: 16):
Podemos estudar os meios de expressão de um indivíduo, de
um grupo ou de uma época. O indivíduo, ao fazer uma escolha dentro
do material fornecido pela língua, é influenciado pela sensibilidade
lingüística do grupo e da época a que pertence; na medida em que
reflete essa sensibilidade, contribui para consolidar as fórmulas
estilísticas que lhe são próprias. A sua sensibilidade pessoal pode, no
entanto, desempenhar também um papel afetivo. Pode, neste sentido,
influenciar o seu grupo, que, por sua vez, influenciará zonas mais
vastas (...). É esta sensibilidade que tentaremos destacar, partindo da
escolha do vocabulário, do material gramatical, da ordem das palavras,
do movimento e da música da frase (destaque do autor desta tese).
Esta última frase de Cressot reúne importantes elementos que servirão
para “compor” a linguagem de Nóbrega no plano estilístico: escolha do
vocabulário, material gramatical, ordem das palavras, movimento e “música da
frase”. Este é um aspecto fundamental que será levado em conta, uma vez que
a obra estudada é a de um músico que traduz nas letras que canta um caráter
9
eminentemente regional, devido à sua dicção e à utilização de termos
específicos de sua região: o Nordeste brasileiro, especialmente o estado de
Pernambuco. E para a investigação sobre a “dicção” artística de Antonio
Nóbrega será válida a lembrança de conceitos do lingüista Luiz Tatit, também
cantor e compositor, que estuda o que chama de dicção do “cancionista”
brasileiro, com suas específicas maneiras de dizer, cantar, musicar, gravar e
compor, incluindo aspectos como a gestualidade oral.
O cancionista mais parece um malabarista. Tem um controle de
atividade que permite equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia,
distraidamente, como se para isso não despendesse qualquer esforço.
(...) Cantar é uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua,
articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os
elementos melódicos, lingüísticos, os parâmetros musicais e a entoação
coloquial. O cancionista é um gesticulador sinuoso com uma perícia
intuitiva muitas vezes metaforizada com a figura do malandro, do
apaixonado, do gozador, do oportunista, do lírico, mas sempre um
gesticulador que manobra sua oralidade, e cativa, melodicamente, a
confiança do ouvinte (1996: 9).
Os personagens sugeridos por Tatit são “encarnados” pelo artista
pernambucano na interpretação de suas canções, que podem ganhar um
caráter lírico, apaixonado ou gozador como faz o personagem Tonheta, que
será apresentado aos leitores no próximo capítulo. E Nóbrega não deixa de ser
um malabarista das canções, no sentido de que também é um exímio
dançarino e tem grande domínio de palco, costumando conquistar as platéias
por onde se apresenta.
Antes de prosseguir, lembre-se uma vez mais que os aspectos de língua
portuguesa como estilística, semântica e dialetologia no trabalho do
“cancionista” Antonio Nóbrega serão analisados aqui sob um viés cultural, de
modo a integrar diversos fragmentos que se reúnem para compor esse
caleidoscópio lingüístico-poético-musical formado por sua arte, traduzindo uma
10
“expressão lingüística da vida”, para aproveitar aqui um conceito de Charles
Bally (1957).
Comecemos por situar o universo artístico e poético em que surgiram
Antonio Nóbrega e sua arte popular.
11
1 – Considerações sobre a cultura popular nordestina
(em que se fala sobre o universo regional onde surgiu e fermentou-se a arte de
Antonio Nóbrega)
Meu povo, meus senhores,
aqui estou no meu destino,
estou no meu desatino,
vim brincar neste lugar.
(Mateus Embaixador – Na pancada do ganzá)
Este capítulo pretende traçar um breve panorama do universo em que
nasceram a arte e o artista aqui estudados, uma região cuja cultura popular
traz marcas peculiares que a diferenciam do que se verifica em outras partes
do Brasil.
10
O ponto de partida é a figura do brincante, já apresentada na
Introdução. Na definição mais simples, costuma-se dizer que é um artista
popular, um participante de folguedo popular. De forma mais ampla, esta tese
procurará mostrar que uma das melhores definições de brincante atende pelo
nome de Antonio Nóbrega.
É na cultura popular nordestina que ele se inspira para desenvolver o
seu trabalho, buscando elaborar as manifestações artísticas a que assiste
10
A intenção aqui é apresentar um panorama geral, como já dito, uma vez que não é o objetivo
deste trabalho se aprofundar em questões como a definição de cultura ou de cultura popular,
muito menos fazer um histórico ou uma análise em profundidade das diversas manifestações
da cultura popular pernambucana, especialmente da música, já que tal tarefa foi ou vem sendo
feita com o devido esmero, anos, por especialistas no assunto, como Alvarenga (1960),
Andrade (1982, 1983, 1984, 1987, 1989), Araújo (1973), Ayala & Ayala (2000), Cravo Albin
(2003), Marcondes (1999), Mota (1962), Tinhorão (1988, 1991) e Valente (1979), por exemplo.
Consulte-se também o Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira
(www.dicionariompb.com.br). Especificamente sobre gêneros musicais pernambucanos, no
final de 2005 começou a ser editado o Batuque book, de Climério de Oliveira Santos e Tarcísio
Resende (Recife: Governo de Pernambuco; Prefeitura do Recife; Chesf, 2005), que tem 15
volumes planejados, incluindo temas como o coco e o cavalo-marinho. O primeiro volume
registra notações melódicas e rítmicas e letras de toadas de maracatu. O prefácio é assinado
pelo etnomusicólogo Carlos Sandroni. Ressalte-se que a proposta deste capítulo é reunir
12
desde a infância, dando-lhes um tratamento mais sofisticado sofisticado no
sentido de que as transpõe para o palco e para gravações em CD e mesmo em
DVD,
11
o que exige os conseqüentes cuidados de produção referentes a tais
empreitadas. No entanto, ele tem a preocupação de sempre preservar as
características essenciais dessas manifestações, tanto na música quanto na
dança ou na encenação.
As fontes populares são inspiração inesgotável para Nóbrega, assim
como o foram para o escritor francês François Rabelais, conforme esmiúça o
clássico estudo de Mikhail Bakhtin (1999) sobre a cultura popular na Idade
Média e no Renascimento, em que são estudados, sempre em relação à obra
de Rabelais, aspectos como o vocabulário da praça pública, formas e imagens
da festa popular, o banquete, a imagem grotesca do corpo, o “baixo” material e
corporal, as imagens e a realidade do tempo em questão. Essas fontes
determinaram não apenas o conjunto do seu sistema de imagens como
também a sua concepção artística, no que se permite aqui fazer um paralelo
com o nosso brincante nordestino, guardadas as devidas proporções,
naturalmente.
Rabelais foi procurar a sabedoria na voz popular de antigos dialetos,
refrões, provérbios, farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos.
É na fonte desses dialetos,
12
refrões, provérbios e farsas, naquilo que disseram
as bocas nordestinas dos simples e “loucos”, que bebeu Nóbrega para criar e
elementos importantes que relacionem a cultura popular nordestina e o trabalho de brega,
os quais poderão servir como parâmetros para o estudo empreendido ao longo desta tese.
11
No período de elaboração deste texto, o único DVD lançado por Nóbrega refere-se ao
espetáculo Lunário perpétuo (v. Referências Discográficas).
12
Segundo Joaquim Mattoso Câmara Júnior (2001: 95), “do ponto de vista puramente
lingüístico, os dialetos são falares regionais que apresentam entre si coincidência de traços
13
desenvolver o seu trabalho artístico. Pode-se comparar aqui a realidade social
brasileira ao universo rabelaisiano. Afinal, segundo Bakhtin (1999), são duas as
concepções do mundo que se entrecruzam no realismo renascentista:
enquanto a primeira deriva da cultura cômica popular, a outra, tipicamente
burguesa, expressa um modo de existência preestabelecido e fragmentário.
Dessa forma, o trabalho de Nóbrega une a erudição de sua formação como
violinista
13
à simplicidade e aparente rusticidade do “macrocosmo” cultural que
sempre o envolveu.
Os folguedos populares que apresentam elementos recriados por
Nóbrega, como a nau-catarineta e o cavalo-marinho, por exemplo, são prenhes
de figuras emblemáticas da cultura popular pernambucana, como o Doutor, o
Bastião, o Mateus e tantos outros.
14
Para afirmar que tudo isso não deixa de
estar relacionado ao mundo da commedia dell’arte,
15
lembre-se aqui o que
disse Justus Möser em estudo publicado em 1761, citado por Bakthin (1999:
31):
Arlequim é uma parcela isolada de um microcosmos ao qual pertencem
Colombina, o Capitão, o Doutor, etc., isto é, o mundo da commedia
dell’arte. Esse mundo possui uma integridade e leis estéticas especiais,
um critério próprio de perfeição não subordinado à estética clássica da
beleza e do sublime.
lingüísticos fundamentais”. Esta definição de dialeto mostra-se suficiente para o trabalho a ser
desenvolvido aqui.
13
No próximo capítulo serão feitas considerações sobre o Quinteto Armorial, do qual Nóbrega
foi integrante, como violinista, nos anos 70.
14
Para uma visão aprofundada dos folguedos populares nordestinos e de seus personagens,
cf. Alvarenga (1960), Andrade (1982, 1984, 1987, 1989), Araújo (1973), Câmara Cascudo
(s.d.), Carvalho, Mota & Paes Barreto (2000), Mota (1962), Pinto (1997), Tavares (s.d.), Valente
(1979) e o endereço eletrônico http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes.
15
“Gênero teatral espirituoso e nitidamente popular, de origem italiana, que floresceu na
Europa durante o séc. XVII e cuja ação, de gestos estereotipados, é sempre improvisada,
embora os enredos e as personagens sejam fixos; algumas destas (o Arlequim, a Colombina, o
Pantaleão, o Doutor, etc.) usavam máscaras, e permanecem até hoje como tipos
14
O mundo regional recriado por Nóbrega tem mesmo sua estética própria
de beleza e do sublime, contrastando com o mundo globalizado dos tempos
atuais, em que os meios de comunicação dificilmente veiculam manifestações
culturais brasileiras alheias a interesses comerciais. Como discutir estética e
indústria cultural o é propósito deste trabalho, então eis-nos de volta aos
personagens dos folguedos nordestinos e sua importância mítica.
Pode-se dizer que a reunião de tantos “alter egos” levou à criação do
emblemático personagem Tonheta, o qual é sucesso garantido nas
apresentações de brega e cuja gênese foi desenvolvida por ele juntamente
com seu parceiro Bráulio Tavares. Folgazão, Tonheta conta “causos”, canta,
dança, toca rabeca, implica com os músicos que o acompanham, enfim, “agita”
a platéia. Nele ouvimos com a maior clareza as vozes da praça pública, para
aproveitar uma idéia de Bahktin (1999). Este autor, por sinal, ao falar sobre o
também emblemático personagem Gargântua (que poderia ser um
antepassado francês de Tonheta), costuma carregar nos elogios, valorizando o
superlativo. “Mas não se trata de maneira alguma de um superlativo retórico;
ele é exagerado, inflado, não sem ironia ou aleivosia; é o superlativo do
realismo grotesco”, diz Bakhtin (1999: 139). Segundo ele, “é o avesso (ou
melhor, o direito) das grosserias” (id. ibid.). Assim é o vocabulário de Tonheta:
gozador, sem ser grosseiro, como se observa nas músicas interpretadas por
ele, a exemplo de Minervina e Meu foguete brasileiro (v. letras no Anexo 1).
Apesar de distantes temporal e geograficamente, mais uma vez os
mundos de Gargântua e de Tonheta se aproximam nas referências: enquanto
característicos do carnaval. [Sin.: comédia de improviso, comédia-de-arte e comédia italiana.]
(Ferreira, 1995: 438.)
15
Bakhtin (1999: 176) fala do jogo do “boi violado na época de Rabelais,
Nóbrega tem a seu dispor o boi do cavalo-marinho, uma das dezenas de
figuras presentes neste folguedo.
Outra comparação: em Viagem fantástica (Nóbrega, Wilson Freire e
Bráulio Tavares), a comilança descrita na composição que inclui dobradinha,
marisco, feijoada, baião-de-dois, arroz de polvo, galinha de cabidela etc.
16
lembra as imagens dos banquetes que são narradas detalhadamente por
Rabelais. “As imagens do banquete associam-se organicamente a todas as
outras imagens da festa popular. O banquete é uma peça necessária a todo
regozijo popular. Nenhum ato cômico essencial pode dispensá-lo” (Bakhtin,
1999: 243).
Quanto ao poder das palavras para traduzir corretamente as idéias
pretendidas pelos falantes, cite-se uma vez mais esse teórico russo:
Os aspectos elogiosos e injuriosos são evidentemente próprios de toda
linguagem, de toda língua viva. Não existem palavras neutras,
indiferentes, não pode haver, na realidade, senão palavras
artificialmente neutralizadas. O que caracteriza os fenômenos mais
antigos da linguagem é aparentemente a fusão do elogio e da injúria, a
dupla tonalidade da palavra. Em seguida, essa dupla tonalidade
mantém-se, mas adquire um sentido novo nas esferas não oficiais,
familiares e cômicas onde observamos esse fenômeno (1999: 379).
Tanto Rabelais quanto Nóbrega (este na companhia de seus parceiros)
retratam de forma bastante cuidadosa seus respectivos universos, explorando
significativamente o léxico e a sonoridade das palavras que utilizaram/utilizam.
Afinal, a intenção na escolha das palavras é que a “temperatura da frase”,
aproveitando aqui uma imagem de Cressot (1980: 55). E antecipando um
16
Ver a letra completa no Anexo 1.4.
16
pouco mais os pressupostos estilísticos que serão vistos no capítulo 3.1,
lembre-se o que disse Bakhtin ao abordar o que chama de “vida estilística” na
obra de Rabelais:
Ele tomou de fontes orais um número considerável dos
elementos da sua linguagem: trata-se de palavras virgens que, saídas
pela primeira vez das profundezas da vida popular, da ngua falada,
entraram para o sistema da linguagem escrita e impressa. Os léxicos de
quase todos os ramos da ciência saíram, na sua maior parte, da
linguagem oral e pela primeira vez participaram de um contexto livresco,
de um pensamento livresco sistemático, de uma entoação escrita
livresca, de uma construção sintática escrita e livresca. Na época de
Rabelais, a ciência mal começava a conquistar, às custas de um
grandioso esforço, o direito de falar e de escrever na língua nacional,
dita vulgar. Nem a Igreja, nem as universidades, nem o ensino a
reconheciam. Ao lado de Calvino, Rabelais foi o criador da prosa
literária francesa. Ele mesmo devia apoiar-se, em todas as esferas do
conhecimento e da prática (mais numas que noutras), sobre o elemento
oral da língua, daí retirando as riquezas verbais. As palavras vindas
dessa fonte eram perfeitamente novas, não polidas ainda pelo contexto
escrito e livresco (1999: 402-403; destaques no original).
Muitos anos depois que o francês Rabelais explorou/elaborou uma
linguagem específica com foco na cultura popular da Idade Média e do
Renascimento, um pernambucano faria o mesmo por aqui, que reunindo à
linguagem oral a linguagem musical, criando um trabalho cheio de
características próprias que são estudadas ao longo desta tese. Como
inspiração maior, a cultura popular nordestina.
*******
Dizer que a cultura popular nordestina é rica não é novidade; não o
fosse, não teria atraído o interesse de tantos estudiosos, entre os quais
destaca-se Mário de Andrade, que escreveu importantes obras sobre o
17
assunto, como Ensaio sobre a música brasileira, Danças dramáticas do Brasil,
O turista aprendiz, Os cocos, As melodias do boi e outras peças e o Dicionário
musical brasileiro (Andrade, 1972, 1982, 1983, 1984, 1987, 1989). Uma figura
que se tornou emblemática para Mário e que anos depois também se tornaria
para Nóbrega é a do coquista ou coqueiro
17
Chico Antônio (Francisco Antônio
Moreira). Exímio cantor e tocador de coco, sempre acompanhado por seu
ganzá,
18
este artista filho, por sua vez, de Antônio Chico mereceu de Mário
os mais rasgados e emocionados elogios, conforme escreveu o nosso “turista
aprendiz”:
Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável.
A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico
Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz
com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único
acompanhamento instrumental que aprecia, se movem
interminavelmente no compasso unário, na pancada do ganzá”, Chico
Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável (...).
Porque Chico Antônio não é a voz maravilhosa e a arte esplêndida
de cantar: é um coqueiro muito original na gesticulação e no processo
de tirar um coco (Andrade, 1983: 277-278).
Mesmo com tanta reverência, rio acabou não escrevendo o livro em
que reuniria o material de suas pesquisas musicais no Nordeste e faria uma
homenagem especial a Chico Antônio, obra que teria o título de Na pancada do
ganzá. Admirador de ambos Mário e Chico , outro Antonio (o Nóbrega)
resolveu prestar uma homenagem a ambos ao escolher esse nome para seu
primeiro trabalho solo em CD (e conseqüente espetáculo musical), resultado de
suas pesquisas e recriações artísticas inspiradas na cultura popular nordestina.
17
Ver Glossário.
18
Mais informações sobre o instrumento conhecido como ganzá estão no capítulo Análise do
corpus, no trecho em que se aborda a letra da música Na pancada do ganzá (4.2.1). Ver
também Glossário.
18
O próprio brega afirma no texto do encarte do CD (selo Brincante, BR 0001,
1996): “Disco e espetáculo são dedicados à memória de rio de Andrade e
Chico Antônio, cujo encontro revela e celebra um Brasil com o qual continuo
sonhando.”
Os documentos que formariam o livro Na pancada do ganzá foram
recolhidos na viagem etnográfica realizada por Mário ao Nordeste no período
de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Nos 245 cocos reunidos no livro
intitulado Os cocos, a expressão “na pancada do ganzá”, como diria Oneyda
Alvarenga (Andrade, 1984: 10),
definidora da função do instrumento como apoio não do ritmo, mas
da invenção músico-poética em seu conjunto, aparece exclusivamente,
e sempre heptassílabo completo, nos Cocos de Chico Antônio, que, se
não for o dono dela, é sem dúvida a fonte do nome escolhido.
Ao partir do Rio Grande do Norte, naquela ocasião, Mário levaria consigo,
para São Paulo, um ganzá presenteado por seu amigo Chico Antônio.
19
Numa de suas cartas a Manuel Bandeira, datada de 22-4-1933
(Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, 2001: 557), o autor de
Macunaíma contava:
Na verdade não estou atualmente trabalhando senão em dois
livros, a Pancada do ganzá, que é técnico, e o Café, que é lirismo.
Deste pretendo acabar este ano, se Deus quiser, a segunda parte (são
cinco), e ao mesmo tempo terminar os estudos pra escrever no ano que
vem o Pancada, que fica delicioso assim rabicó, Pancada, loucura,
tolice, divinização.
A maior parte das melodias reunidas na obra Os cocos é que iria formar o
emblemático e, como livro, inexistente Na pancada do ganzá, destinado ao
19
No curta-metragem Chico Antônio, o herói com caráter, dirigido por Eduardo Escorel e
lançado em 1983, o cineasta conversa com Chico Antônio no Rio Grande do Norte e o deixa
emocionado ao lhe mostrar o mesmo ganzá que Mário de Andrade levara de presente para
19
folclore musical nordestino, como bem explicou Manuel Bandeira, assim
sistematicamente anunciado em todas as listas de obras em preparo incluídas
nos livros publicados de 1929 a 1935, e assim referido em vários documentos,
segundo escreveu Oneyda Alvarenga nas explicações introdutórias em
Andrade (1984). Os seis apêndices de Os cocos (1984: 345-495) trazem as
fichas e notas de Mário relacionadas à organização e ao prefácio de Na
pancada do ganzá.
É nesse universo com figuras humanas tão proeminentes como Chico
Antônio que também se destacam figuras fantásticas que gozam de grande
aceitação popular, como as personagens do cavalo-marinho de onde fazem
parte, entre dezenas de outras figuras, o Capitão, o Mestre Ambrósio, a Ema, o
Bastião e o Mateus (este, por sinal, nome original do personagem Tonheta, de
acordo com Bráulio Tavares
20
) – e de tantos outros folguedos.
Com relação à literatura específica sobre as danças dramáticas
brasileiras e os textos e melodias a elas relacionados, Andrade (1982), em três
tomos, continua sendo referência certeira pela forma minuciosa como estuda
os temas abordados, incluindo partituras. Sebastião Nunes Batista (1982)
relaciona aspectos formais da cantoria e da literatura de cordel, do “ABC”
(forma utilizada na Excelência, toada popular com recriação literária de Ariano
Suassuna e interpretada por Nóbrega em Lunário perpétuo) ao “Vai-e-vem” (ou
“Quadrão de meia quadra”). Tais formas poéticas de cantoria ou recitação
seguem numerosas regras; explicar todas elas aqui estaria além dos limites da
São Paulo. Chico Antônio o oposto de Macunaíma, herói sem caráter criado por Mário
faleceu em 1993.
20
Ver capítulo 2.2.2, em que o letrista Bráulio Tavares presta diversas informações sobre a
gênese do personagem Tonheta.
20
proposta em questão. Assim, privilegiar-se-ão naturalmente as que aparecem
no trabalho de Nóbrega, como se verá no capítulo 4.
No final desta tese, indicações bibliográficas voltadas para o estudo
da cultura popular brasileira, na Bibliografia de Apoio. Cite-se desde a
referência explícita de um parceiro de Nóbrega que é especialista no assunto:
Cantoria, regras e estilos (Bráulio Tavares, s.d.). Bráulio é citado na relação de
“poetas eruditos que escreveram cordéis” na obra Cantadores, repentistas e
poetas populares, do cantador paraibano José Alves Sobrinho (2003: 102).
A cultura popular nordestina conta cada vez mais com títulos (tanto
acadêmicos quanto destinados ao público em geral) que buscam estudar suas
diversas manifestações. No caso de Pernambuco, desde análises teóricas
profundas a obras pontuais como Getúlio Cavalcanti: o menestrel do frevo-de-
bloco (Paes Barreto, 2000), Quadrilha junina, história e atualidade (Almeida,
2001), Festejos juninos: uma tradição nordestina (Paes Barreto & Pereira,
2002), Carnaval: cortejos e improvisos (Amorim & Benjamin, 2002) e o
Itinerário lírico do carnaval de Pernambuco (Santos & Paes Barreto, 2003).
Para aprofundar conhecimentos históricos sobre a terra natal de Antonio
Nóbrega, O Recife: histórias de uma cidade (Rezende, 2002) é uma indicação
bibliográfica recente. O Dicionário do frevo (Carvalho, Mota & Paes Barreto,
2000), Dito e feito! (Santuzza Silva, 2004) sobre expressões regionais e o
Dicionário do Nordeste: 5.000 palavras e expressões (Navarro, 2004) não
podem ficar de fora dessa lista de indicações bibliográficas para se conhecer
mais a fundo aspectos da cultura popular nordestina. Destaque-se ainda o
21
Pequeno dicionário do Natal, sobre termos natalinos, de Roberto Benjamin
(1999).
Uma obra que propõe reflexões sobre a importância do coco para as
comunidades onde este ritmo é praticado é Cocos: alegria e devoção,
organizada por Ayala & Ayala (2000), do Laboratório de Estudos da Oralidade
(LEO) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Os textos abordam não
o gênero poético-musical em si como também o perfil dos coquistas, a
instrumentação, a dança, o seu papel dentro de uma tradição regional.
Com enfoque sociológico, uma pesquisa sobre cantoria foi desenvolvida
por Ramalho (2000a), Cantoria nordestina: música e palavra. Esta mesma
autora publicou Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão (2000b),
em que estuda a relação música-poesia na obra do Rei do Baião. Cultura e
tradição nordestina: ensaios de história cultural e intelectual (Andrade, 2000) se
aprofunda na interpretação da cultura nordestina com foco antropológico.
Na área de literatura popular nordestina, um legítimo representante dela
mereceu um estudo sociológico de fôlego feito por Feitosa (2003): o poeta
cearense Patativa do Assaré. E um bom conjunto de elementos ligados à
cultura popular brasileira, com mais de cinqüenta itens como romances,
abecês, adivinhas, quadras e desafios, preces, orações e “benzeções”, está
compilado em Weitzel (1995).
A pesquisadora Márcia Abreu é voz contrária à tendência de se
estabelecer na Península Ibérica a origem da literatura popular brasileira, ou
literatura de folhetos. Em seu livro Histórias de cordéis e folhetos, ela procura
mostrar detidamente a desvinculação entre a literatura de cordel lusitana e a
22
nordestina. “A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser
empregada pelos estudiosos a partir da década de 1970, importando o termo
português que, sim, é empregado popularmente” (Abreu, 1999: 17). Desta
forma, contestando a visão de diversos historiadores e especialistas em cultura
popular, ela afirma ao longo de sua obra que a “literatura de folhetos” (como
prefere chamar as composições nordestinas) brasileira e a “literatura de cordel”
portuguesa são completamente diferentes. A intenção aqui o é polemizar,
mas destacar uma visão diferente em relação à apontada pelos demais
estudos sobre o assunto. A autora diz, por exemplo, que o termo “literatura de
cordel portuguesa” engloba textos em verso e prosa, de diversos gêneros,
provenientes de várias tradições culturais, produzidos e consumidos por
amplas camadas da população. Em sua pesquisa, ela sinaliza para a
uniformidade da literatura de folhetos produzida no Nordeste do Brasil, a qual é
codificada, ao contrário da variedade da literatura de cordel portuguesa. As
diferenças são estabelecidas da seguinte forma:
entre o final do século XIX e os anos 20, a literatura de folhetos
consolida-se: definem-se as características gficas, o processo de
composição, edição e comercialização e constitui-se um público para
essa literatura. Nada nesse processo parece lembrar a literatura de
cordel portuguesa. Aqui, haviam [sic] autores que viviam de compor e
vender versos; lá, existiam adaptadores de textos de sucesso. Aqui, os
autores e parcela significativa do público pertenciam às camadas
populares; lá, os textos dirigiam-se ao conjunto da sociedade. Aqui, os
folhetos guardavam fortes vínculos com a tradição oral, no interior da
qual criaram sua maneira de fazer versos; lá, as matrizes das quais se
extraíam os cordéis pertenciam, de longa data, à cultura escrita. Aqui,
boa parte dos folhetos tematizavam o cotidiano nordestino; lá,
interessavam mais as vidas de nobres e cavaleiros. Aqui, os poetas
eram proprietários de sua obra, podendo vendê-la a editores, que por
sua vez também eram autores de folhetos; lá, os editores trabalhavam
fundamentalmente com obras de domínio público (Abreu, 1999: 104-
105).
23
Segundo a pesquisadora, pode-se entender a literatura de folhetos
nordestina como mediadora entre o oral e o escrito, uma vez que as exigências
pertinentes às composições orais permanecem, mesmo quando se trate de um
texto escrito – mediação essa, entre o oral e o escrito, também feita por
Nóbrega em seu trabalho como cantor e compositor. Entre as histórias mais
famosas da literatura de folhetos que Márcia Abreu registra está a do boi Mão
de Pau, que serviu de inspiração para poema de Ariano Suassuna musicado
posteriormente por Nóbrega (A morte do touro Mão de Pau, que consta do
repertório de Lunário perpétuo).
Ao se falar em oralidade, lembre-se Paul Zumthor (1983, 1993),
associando-se a suas palavras o papel desempenhado por Nóbrega com sua
arte:
No caleidoscópio do discurso que faz o intérprete de poesia na
praça do mercado, na corte senhorial, no adro da igreja, o que se revela
àqueles que o escutam é a unidade do mundo. Os ouvintes precisam de
tal percepção para... sobreviver. Apenas ela, pela dádiva de uma
palavra estranha, faz sentido, isto é, torna interpretável o que se vive.
Mas o homem vive também a linguagem da qual ele provém, e é no
dizer poético que a linguagem se torna verdadeiramente signo das
coisas e, ao mesmo tempo, significante dela mesma (1993: 74).
Dessa forma, torna-se imprescindível a relação palavra escrita-palavra
cantada para que se realize a expressão lingüístico-poético-musical do criador
de Tonheta, constituindo o caleidoscópio bem particular de seu discurso, em
que se fundem regionalismos, fortes referências à cultura popular brasileira e
um universo literário povoado por personalidades como Aleijadinho, Garrincha
e Arthur Bispo do Rosário, sem falar em Antônio Conselheiro, Riobaldo e
Diadorim. Tais referências serão vistas mais detidamente adiante.
24
Ao encerrar este capítulo, diga-se uma vez mais que, por não se tratar
aqui da elaboração de um trabalho específico sobre a cultura popular
nordestina, mas sim sobre a obra de um artista específico e com foco em
aspectos relacionados ao estudo da língua portuguesa , não serão
aprofundadas as considerações referentes às diversas manifestações culturais
nordestinas; comentários serão feitos, entretanto, à medida que elas
aparecerem durante a análise das letras, no capítulo 4.
Dentro desse universo cultural tão amplo onde germinou a obra de
Antonio Nóbrega, uma figura ainda não foi citada mas merece destaque
absoluto, tamanha influência exerceu sobre a formação de seu pupilo. Trata-se
de Ariano Suassuna, idealizador do Movimento Armorial. É tanta a sua
importância na gênese da obra do brincante pernambucano aqui estudado que
ele merece um capítulo à parte, no qual também se destacam os dois parceiros
mais constantes de Nóbrega: Wilson Freire e Bráulio Tavares.
25
2 – Diálogos e parcerias
(em que se estabelecem as bases indispensáveis à gênese da expressão
lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega)
Ariano Suassuna pode ser considerado uma espécie de mandarim
milagroso na formação cultural e pessoal de Antonio Nóbrega, para aproveitar
uma imagem cunhada por Travassos (1997) em seu trabalho sobre as obras de
Mário de Andrade e Béla Bartók, duas personalidades fortemente envolvidas
com a pesquisa e o estudo da música popular (brasileira e húngara,
respectivamente). É o próprio Nóbrega quem diz: “Ariano é o mestre maior. Da
arte e do mundo.”
21
Num plano um pouco abaixo, pode-se dizer, do “mestre maior” situam-se
os poetas Bráulio Tavares e Wilson Freire, parceiros diletos e contemporâneos
de Nóbrega, que os considera indispensáveis ao seu trabalho:
Tanto Wilson como Bráulio são pessoas sem as quais não
existiria o meu cancioneiro. O meu cancioneiro só existe porque eu
encontrei esses dois parceiros. A minha música instrumental, a minha
dança existiriam. Mas o meu cancioneiro, não. Eles são figuras
absolutamente fundamentais e vitais.
22
Este capítulo procurará mostrar por que Ariano, Wilson e Bráulio
assumem esse caráter proeminente no trabalho de Nóbrega.
21
Ver entrevista no Anexo 2.
22
Idem.
26
2.1 Ecos do Movimento Armorial A influência de Ariano
Suassuna
(em que se fala sobre o criador de João Grilo, Chicó, do Auto da compadecida
e de tantas coisas mais)
A bandeira do sol estrala ao vento
e soa a minha voz de cantador,
num protesto do sonho contra a dor,
a pobreza do povo e o sofrimento.
(Martelo d’o marco do meio-dia – O marco do meio-dia)
Ele é o criador de personagens que devem figurar em qualquer antologia
que se preze sobre a literatura ou a dramaturgia brasileiras, como Quaderna
(do Romance d’a Pedra do Reino) ou João Grilo e Chicó (da peça Auto da
compadecida). Nascido em 16 de junho de 1927 no Palácio da Redenção, na
cidade da Paraíba, como era então chamada a capital do estado de mesmo
nome e que é a atual João Pessoa, Ariano Villar Suassuna é o oitavo dos nove
filhos de João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia
Dantas Villar. Quando ele nasceu, seu pai era o presidente (ou governador) da
Paraíba. Em função de fortes desavenças na política paraibana, João
Suassuna foi assassinado por um pistoleiro no Centro do Rio de Janeiro, em
1930, e tal episódio marcaria para sempre a trajetória artístico-pessoal de seu
filho Ariano.
Inpirado nesse trágico acontecimento, o poema A morte do touro Mão de
Pau, que seria musicado por Antonio Nóbrega (faz parte do repertório de
Lunário perpétuo), é uma homenagem pungente que Ariano presta a seu pai:
“Corre a Serra Joana Gomes / galope desesperado: / um Touro se defendendo,
27
/ homens querendo humilhá-lo, / um Touro com sua vida, / os homens em seus
Cavalos”.
23
No início e próximo ao final da canção, Nóbrega entoa um aboio,
melodia de tom melancólico, repetitiva, interpretada pelos boiadeiros ou
vaqueiros enquanto conduzem a boiada ou chamam os bois dispersos. Na letra
contida no encarte do CD, esses momentos são indicados pela palavra aboio
entre parênteses. Dessa forma, o compositor busca tornar mais plangente
ainda o drama relatado na letra, em seus versos de sete pés (ou sílabas).
24
Datam de 1946 a 1948 os primeiros poemas de Ariano ligados ao
romanceiro popular nordestino, como A morte do touro Mão de Pau.
A rima toante, às vezes usada nesses poemas, é influência do
romanceiro ibérico; por outro lado, em vez da quadra ibérica (quatro
versos de sete sílabas, rimadas em ABCB), Ariano preferência à
sextilha, ou repente, a estrofe mais usada pelos cantadores do sertão
nordestino, formada por seis versos de sete sílabas, rimadas em
ABCBDB (Cadernos de Literatura Brasileira Ariano Suassuna, 2000:
132).
Suassuna, “apelido familiar adotado como nome pelo bisavô de Ariano, é
uma palavra tupi, que significa cervo negro(Newton nior, 1999: 132), daí o
codinome Albano Cervonegro utilizado por ele e que dá nome a sua obra
Sonetos de Albano Cervonegro, edição manuscrita e iluminogravada pelo autor
lançada no Recife, em 1985. Iluminogravuras são as ilustrações que o próprio
Ariano cria para os seus poemas, porque resultam da fusão da iluminura
medieval com os processos modernos de gravação em papel.
23
Ver letra completa no Anexo 1.5.
24
A rigor, em versificação, significa “unidade rítmica e melódica do verso, constituída de
duas ou mais sílabas, sendo uma forte e outra(s), fraca(s), característica da versificação em
línguas onde acento de intensidade, como o português; pé métrico”; “cada uma das
unidades de duas ou mais sílabas, que, articuladas e ordenadas, compõem os versos nas
línguas com acento de quantidade, como o latim, o grego antigo e as línguas orientais;
compasso” (Houaiss & Villar, 2001: 2159). No entanto, utiliza-se aqui um como equivalente
a uma sílaba poética, tal como fazem os cantadores e poetas populares.
28
Sobre o Movimento Armorial, em linhas gerais trata-se de uma iniciativa
liderada por Ariano, nos anos 70, no sentido de criar uma arte erudita brasileira
inspirada na cultura popular, englobando música, literatura, pintura, escultura,
dança as artes da forma mais ampla possível. É motivo de diversos estudos
acadêmicos, como os empreendidos por Newton Júnior (1999), Santos (1999),
Moraes (2000) e Nogueira (2002). “O substantivo ‘armorial’ designa, em
português, a coletânea de brasões da nobreza de uma nação ou de uma
província. Sua utilização como adjetivo constitui um neologismo” (Santos, 1999:
25). Esta autora conta que o próprio Ariano diz ter descoberto que o nome
armorial servia ainda para qualificar os cantares do romanceiro, os toques de
viola e rabeca dos cantadores, toques que ele denominava de ásperos,
arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta. Dessa inspiração veio o
título dado por Ariano a Ponteio acutilado, primeiro tema instrumental composto
por Nóbrega para o Quinteto Armorial e que ele regravou em Lunário perpétuo.
É a sica que abre e encerra o espetáculo, apresentando uma sonoridade
característica do movimento (com o uso do marimbau),
25
que buscava fundir o
antigo e o novo nesse campo das artes.
O estilo armorial caracterizou-se pela investigação e
recuperação de melodias barrocas preservadas pelo romanceiro
popular, dos sons de viola, dos aboios e das rabecas dos cantadores.
Baseando-se nesses elementos musicais, o movimento armorial
realizava a sua “recriação”. Procurava articular elementos de um
passado preservado com uma linguagem musical que nomeava de
nova, autêntica e representativa da cultura brasileira (Moraes, 2000:
102-103).
Pode-se dividir o Movimento Armorial em duas partes: a fase de 1970 a
1975, considerada por Ariano Suassuna como experimental, e a fase
25
Ver Glossário.
29
denominada por ele de romançal, que teve início em 1975 com a estréia, no
Teatro Santa Isabel (no Recife), da Orquestra Romançal Brasileira. Esta fase
seria a mais criativa, segundo Newton Júnior (1999: 92-93), por pelo menos
três motivos: “O trabalho da Orquestra Romançal, o lançamento do Balé
Armorial (origem do atual Balé Popular do Recife) e a estréia de Antonio Carlos
Nóbrega de Almeida como teatrólogo, com o espetáculo A bandeira do Divino”,
conferindo ao criador de Tonheta, por meio do uso da palavra teatrólogo, o
status de dramaturgo, autor de peças teatrais, qualquer indivíduo que se ocupa
de teatro (Ferreira, 1995).
Como a meta do Movimento Armorial era realizar uma arte brasileira
erudita com base nas raízes populares da cultura brasileira, um dos
fundamentos da sua estética era a preocupação de ligar a criação artística a
um alicerce nacional-popular (Newton Júnior, 1999). O Movimento Armorial
preconizava, ao mesmo tempo, não apenas a retomada de uma herança
cultural assinalada por sua perenidade como também a reafirmação da
originalidade regional, incluindo a renovação dos modelos formais por meio de
uma temática nova, o recurso a formas populares em obra não popular e a
passagem do oral ao escrito, ou seja, a reelaboração erudita com base em um
modelo popular (Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna, 2000).
Como escreve Idelette Muzart Fonseca dos Santos, especialista na obra
do criador do Auto da compadecida:
Eis, talvez, a mais profunda originalidade de Ariano Suassuna e
de alguns artistas do Movimento Armorial: tomaram emprestada da
literatura popular, além dos seus temas e dos seus modelos poéticos,
uma estética nova, herdeira da voz, do instante, do improviso, do
provisório, uma estética em movimento que não imobiliza a obra,
convertendo-a em obra-prima” imutável, uma estética que se alimenta
de suas próprias obras tanto quanto das obras alheias, num ciclo infinito
30
de retomadas e empréstimos (Cadernos de Literatura Brasileira
Ariano Suassuna, 2000: 101).
A estética armorial refletir-se-ia no trabalho-solo de Nóbrega após o
encerramento das atividades do quinteto, no qual atuou como violinista por
cerca de dez anos. Aliando à música instrumental o trabalho com a palavra
escrita e o canto, esse malabarista da canção
26
passou a desenvolver seu
próprio estilo, exprimindo assim seu gênio individual, como diria Guiraud
(1978). Vale destacar a idéia de complemento e ao mesmo tempo de
renovação que a voz (o canto) oferece ao texto escrito:
a escritura (do folheto) não exclui a voz (da cantoria, do romance, do
conto): completa-a e renova-a, desempenhando o papel de arquivo da
improvisação e do fugitivo. Tal escritura não marginaliza a dimensão
oral; tornou-se objeto preferencial de estudo por ser relativamente
estável, embora o texto do folheto esteja também submetido à variação,
reescritura e atualização. Em compensação, a cantoria, poesia do
instante e, por essência, fugitiva, institucionalizou-se com um conjunto
de regras e códigos poéticos, genéricos e teatrais, permitindo assim ao
cantador improvisar livremente, sem prejuízo da coerência e
inteligibilidade da mensagem. É a esta ambivalência oral-escrita que
recorre o poeta armorial para estabelecer os fundamentos de uma nova
arte poética (Santos, 1999: 19-20).
Ao realizar essa ambivalência oral-escrita, Nóbrega tem como seu
mentor Ariano Suassuna, o principal articulador do Movimento Armorial, que
aglutinou interesses comuns a uma geração de artistas nordestinos, identificou
tendências e promoveu um encontro de criação em torno dos signos da
literatura de cordel, como relaciona Anna Paula de O. Mattos Silva em sua
dissertação de mestrado intitulada “O encontro do Velho do Pastoril com
Mateus na Manguetown ou as tradições populares revisitadas por Ariano
Suassuna e Chico Science” (2004). Ao abordar questões referentes à cultura
popular e à intelectualidade, ela afirma:
26
Expressão inspirada em Tatit (1996).
31
Pode-se reconhecer, assim, no interesse pelas manifestações da
chamada cultura popular, uma atitude própria aos intelectuais da
modernidade, que, movidos por um ideal romântico de identidade,
atribuem valor às expressões originais da cultura nacional de acordo
com critérios de antigüidade, conservação e espontaneidade, em
contraste com a efemeridade, ruptura e artificialidade da cultura
moderna (cap. 1: 24).
Tal afirmação vai ao encontro da idéia já citada de “mandarim milagroso”
(Travassos, 1997), que também pode ser atribuída a Ariano. Nóbrega chega a
considerar Ariano como o pai espiritual de um povo, o pai do Brasil, conforme
afirmou em mesa-redonda que homenageou o criador do Auto da compadecida
no Teatro Sesc-Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 6 de maio de 2004.
Declaração semelhante ele deu ao jornalista Beto Freitas na TV Senado, em
entrevista exibida no dia 10 de junho de 2005: “Ariano é a representação mais
altissonante do povo brasileiro.” Exageros à parte, é inegável a simbiose entre
Nóbrega e Ariano, servindo este de referência cultural inconteste para aquele.
*******
Antes de se chegar aos outros parceiros fundamentais de Nóbrega,
abordar-se-á rapidamente a questão “popular versus erudito” contida na obra
desse artista, questão que não deixa de ser a mesma enfrentada por Ariano.
Aproveitando-se uma expressão de Peter Burke (1989), o criador de Tonheta
pode ser analisado como um artista “bicultural”, ou seja, participa da cultura
popular e ao mesmo tempo mantém fortes contatos com o mundo da erudição.
Ele próprio não se considera um artista popular.
27
Como ao se penetrar o
campo dos estudos culturais uma rie de fatores entra em jogo, e não é
pretensão deste trabalho aprofundar essas questões, ressalte-se que a
27
Ver entrevista no Anexo 2.
32
intenção é apenas sinalizar tópicos que contribuam para o estudo aqui
desenvolvido.
Stuart Hall, especialista no assunto, afirma em seu ensaio “As culturas
nacionais como comunidades imaginadas”:
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições
culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura
nacional é um discurso um modo de construir sentidos que influencia
e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de s
mesmos. (...) As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a
nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com
seu passado e imagens que dela são construídas (2005: 50-51).
Em sua interpretação, a identidade nacional é muitas vezes
simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folk puro, original, mas nas
realidades do desenvolvimento nacional esse povo (folk) primordial raramente
persiste ou exercita o poder. Segundo ele, a tradição funciona, em geral,
menos como doutrina do que como “repertórios de significados”. Cada vez
mais os indivíduos recorrem a vínculos e estruturas nos quais se inscrevem
para dar sentido ao mundo, mas sem ser rigorosamente atados a eles em cada
detalhe de sua existência. Dessa forma, fazem parte de uma relação dialógica
mais ampla com “o outro”.
No ensaio “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”, Hall afirma que
não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do
campo de força das relações de poder e de dominação culturais.
Creio que uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual,
por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e
reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar
suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de
formas dominantes. pontos de resistência e também momentos de
superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é
contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação,
da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em
33
uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm
vitórias definitivas, mas onde sempre posições estratégicas a serem
conquistadas ou perdidas (2003: 255).
Um termo que tem sido utilizado para caracterizar as culturas cada vez
mais mistas e diaspóricas, como as chama Hall, é “hibridismo”, tema também
estudado por Canclini (1998). Como dito, no entanto, não é preocupação
aqui desenvolver tais questões, nem aspectos concernentes à autenticidade ou
não de manifestações culturais populares.
28
É preciso atentar para o fato de que se tende a pensar as formas
culturais como algo inteiro e coerente, ou inteiramente corrompidas ou
inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias,
jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do
“popular”, como afirma Hall (2003). Para ele, o essencial em uma definição de
cultura popular são as relações que a colocam numa tensão contínua (de
relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante.
Ainda no entender de Stuart Hall (2003), cultura popular constitui-se de
tradições e práticas culturais populares e da forma como estas se processam
em tensão permanente com a cultura hegemônica. Assim, ela não se resume à
tradição e ao “folclore”, nem ao que mais se consome ou vende; não se define
por seu conteúdo, nem por qualquer espécie de “programa político popular”
preexistente. Sua importância reside em ser um terreno de luta pelo poder, de
consentimento e resistência populares, abarcando, assim, elementos da cultura
de massa, da cultura tradicional e das práticas contemporâneas de produção e
consumo culturais.
28
Para aprofundar esses temas, ver Andrade (1972) e Sapir (1970).
34
Excluindo elementos da cultura de massa, acredita-se ser esse o terreno
(cultura tradicional aliada a práticas contemporâneas de produção e consumo
culturais) em que atuam não Antonio brega como também seu grande
mentor, Ariano Suassuna. Por também transitam dois outros diletos
parceiros, que serão vistos a seguir.
35
2.2 – Os parceiros fiéis
(em que são apresentados dois diletos “escudeiros” de nosso “Quixote”
nordestino)
Aí, um dia,
eu sentado na cadeira,
um estalo-de-Vieira
clareou a minha mente.
Eu percebi
que tinha de procurar,
descobrir e encarar
minha terra e minha gente.
(Viagem maravilhosa – O marco do meio-dia)
Se a figura de Dom Quixote é tão emblemática como inspiração para
Ariano Suassuna, tome-se aqui a liberdade de associá-la a seu dileto discípulo,
ainda que as semelhanças físicas não sejam tantas.
29
E esse “Quixote”
nordestino não poderia deixar de ter ao seu lado fiéis escudeiros como
parceiros. Entre eles destacam-se Wilson Freire, poeta e médico
pernambucano, e Bráulio Tavares, paraibano, também poeta, letrista de música
popular brasileira, cronista, roteirista e especialista em ficção científica. Ambos
são profundos conhecedores da cultura popular nordestina. Ao analisar as
parcerias de cada um deles com Nóbrega, buscar-se-á reunir elementos que
contribuam para o estudo da expressão lingüístico-poético-musical desse
brincante pernambucano.
Viagem maravilhosa teve um de seus trechos escolhido como epígrafe
deste capítulo justamente por representar a parceria a seis mãos de nosso
“Quixote” com seus dois “Sanchos”. A longa letra (a maior da obra de Nóbrega)
29
Ressalte-se que em 2005, ano de elaboração deste texto, comemoraram-se quatrocentos
anos do lançamento de Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes, romance considerado
36
traz 176 versos, mais cinco do refrão que é apresentado quatro vezes, e pode
ser lida na íntegra no Anexo 1.4.
Entre os seus parceiros, são esses dois que aparecem com mais
freqüência (há parcerias esporádicas com outros autores, como Dimas Batista
Patriota, Marcelo Varella e Zezinho Pitoco). Como a ligação de ambos com
Nóbrega é bastante estreita, eles contribuem decisivamente para o
estabelecimento dos traços estilísticos da obra do artista, vista sob um amplo
prisma pelo qual passam não a citada variedade de influências culturais
como também elementos que caracterizam a linguagem de uma região.
2.2.1 – Wilson Freire
30
”Médico ‘xistossomista’ consumado, poeta, escritor, amigo e pau pra
toda obra.” Assim Nóbrega apresenta seu parceiro, cujo ganha-pão vem de
suas atividades como gastroenterologista.
31
No repertório dos cinco discos
estudados, há 17 canções originais dos dois e quatro canções de domínio
público que ambos adaptaram, além de duas parcerias a seis mãos (incluindo
Bráulio Tavares).
um dos maiores clássicos da literatura universal e inspiração fundamental para Ariano
Suassuna.
30
O texto a seguir reúne informações e comentários com base em entrevista dada por Wilson
Freire ao pesquisador por telefone, do Recife, no dia 22 de novembro de 2005.
31
Ver endereço eletrônico www.antonionobrega.com.br, texto de Nóbrega referente ao
espetáculo Madeira que cupim não rói.
37
Nascido em 1959 em São José do Egito (PE), Wilson Freire diz que
escreve desde que se entende por gente. Sua sobrevivência financeira, no
entanto, vem de sua atividade profissional como médico, especializado em
endoscopia digestiva, trabalhando em hospitais públicos do Estado de
Pernambuco e da Prefeitura de Olinda. Fez seu doutorado nessa área na
Alemanha.
Seu aprendizado de poesia popular começou com a atenta observação
de numerosos cantadores, como os irmãos Batista (Dimas, Lourival e Otacílio).
“Certa vez, aos 14 anos, assisti a uma cantoria de Pinto de Monteiro versus
Lourival Batista, em Sertânia (PE). Foi uma enxurrada tão violenta de versos
que fiquei sem dormir”, ressalta. “Os cantadores são uns verdadeiros heróis,
guardam tudo na memória”, acrescenta.
Pinto de Monteiro foi o maior cantador, em sua opinião. Não é à toa que
ele é homenageado na Sambada dos Mestres, que faz parte do repertório de
Madeira que cupim não rói (“No improviso da viola / de todos sou o primeiro, /
porque sou cobra criada / pelo Pinto de Monteiro”).
Wilson conheceu Nóbrega (Toinho, como ele chama, da mesma forma
que Bráulio) nos anos 80, na época do festival Frevança, em que o criador de
Tonheta interpretou a música Maracatu Misterioso. Ao passar por ele na praia
de Casa Caiada, em Olinda, dias após a apresentação, Wilson parou para
cumprimentá-lo e trocar idéias. Ali começou a fermentar-se a parceria, cujo
primeiro resultado seria a composição Na pancada do ganzá, que conquistou
na época o Prêmio Sharp de melhor música e também o de melhor disco
regional.
38
Entre os escritores que cita como fundamentais para a sua formação
literária, ao lado dos cantadores populares, Wilson destaca Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos; na
área musical, Arnaldo Antunes e Caetano Veloso, por exemplo. Ele diz que, na
adolescência, sua “Bíblia” foi Maiakovsky. Também acompanha com interesse
o trabalho de novos autores, como Marçal Aquino e Marcelino Freire.
Os dois parceiros discutem com bastante vagar o tema de cada
composição. muita conversa e troca de idéias: Nóbrega em São Paulo,
Wilson no Recife. Eventualmente, quando necessidade de uma
concentração especial para a conclusão de algum trabalho, Wilson “se interna”
durante pequenas temporadas de duas ou três semanas intensas na casa de
Nóbrega, no bairro Alto de Pinheiros, na capital paulista. É a “Sibéria”, como
chama, por apresentar temperaturas bem inferiores à média verificada em
Pernambuco.
A linguagem literária e musical de ambos goza de boa afinação. Wilson
raramente mexe em algum detalhe da melodia. Com relação à forma final da
letra, ele costuma dizer a Nóbrega: “A palavra final é sua, porque é você que
vai cantar.” É Toinho quem bate o martelo, como destaca.
“Nóbrega é um batalhador, um idealista no que acredita, fortalecendo-se
cada vez mais em sua meta de mostrar um Brasil que o próprio Brasil pouco
conhece, que passa por fora da comunicação de massa”, salienta, reforçando
conceito citado no final do capítulo anterior, baseado em Stuart Hall (2003).
Assim como brega tem seu Ideário, ou seja, o seu baú de idéias, as
sobras e sugestões de versos desse trabalho em parceria, que poderão ser
39
aproveitadas, constituem o Refugo de Wilson. Mas ao contrário de seu
parceiro, que toca vários instrumentos, ele diz que toca, no máximo, “sino de
igreja”.
Uma das parcerias com Nóbrega que mais comoveram Wilson foi
Canudos: “Eu, viandante, de um chão poento. / Dias queimosos, vida sem
idílio. / Preces voltadas para sóis ardentes, / luares claros a buscar o Auxílio. /
Para os meus olhos, confusão pasmosa, / batalha surda, secular martírio.” Ele
conta: “Tínhamos lido Os sertões, de Euclides da Cunha, para retratar na letra
aquela realidade. veio forte a lembrança da minha infância, a aridez e as
dificuldades do interior de Pernambuco.”
Dedicada ao índio Galdino Jesus dos Santos, outra letra que ele destaca
é Chegança, devido às imagens que retrata com relação à descoberta do Brasil
sob o ponto de vista do índio. Wilson tinha um avô que era índio fulniô. Lembra
que Galdino foi queimado vivo no mesmo dia em que ele e Nóbrega
terminaram de compor Flecha fulniô, em homenagem a Garrincha, para o
repertório do espetáculo O marco d’o meio-dia. Ainda sobre Chegança, informa
que essa letra ganhou o status de objeto de estudo em livro didático de língua
portuguesa, já tendo sido aproveitada inclusive em exame de vestibular.
O romance de Riobaldo e Diadorim foi outra parceria marcante. “A
poética veio rápida, violenta e intensa. Buscamos recriar o clima de Guimarães
Rosa, aproveitar palavras que ele usou.”
Ao falar sobre O marco do meio-dia, fortaleza poética imaginária,
seguindo a idéia original de marco, como será visto na análise do corpus
referente a esse CD, Wilson acentua a presença de dois marcos na literatura
40
brasileira, em seu entender: Euclides da Cunha e Guimarães Rosa daí terem
sido a inspiração para canções como Canudos e O romance de Riobaldo e
Diadorim. “Ambos fizeram seus marcos, suas fortalezas literárias, assim como
o Aleijadinho [cantado em O romance do Aleijadinho] fez de sua obra um
marco”, assinala. Note-se que Euclides também é uma personalidade
constantemente exaltada por Ariano Suassuna, mentor do Movimento Armorial,
no qual começou a brotar a arte de Antonio Nóbrega. As referências, portanto,
se fortalecem e se expandem há mais de uma geração.
Assim como para Nóbrega e Bráulio Tavares, o universo do Lunário
perpétuo é comum a Wilson, que o conhecia desde garoto, tal como a sua
mística. Dessa forma, povoar com versos mais essa vertente do universo
musical de Nóbrega não foi uma tarefa difícil, devido à sintonia que se torna
cada vez mais fina com o passar dos anos. De Na pancada do ganzá ao
Lunário, cada vez mais a parceria se fortalece, a ponto de Wilson ser
considerado indispensável por Nóbrega para a constituição do seu cancioneiro.
E como fonte de inspiração de ambos estarão sempre os mestres cantadores e
os poetas de bancada (aqueles que não cantam, mas recitam e editam os seus
versos). São os Mestres com letra maiúscula, devidamente homenageados na
Sambada dos Mestres de Madeira que cupim não rói, que exalta
personalidades como Chico Antônio, Mestre Salustiano, Alfaiate, Leandro
de Barros e o aqui decantado Pinto de Monteiro. Para Wilson, o verdadeiro
“Mestre” tem de ser com letra maiúscula. “Tem-se de respeitá-los na sua
grandeza. É algo divino, que está acima do humano”, afirma.
41
2.2.2 – Bráulio Tavares
32
Natural de Campina Grande (PB), Bráulio Tavares, nascido em 1950,
conheceu Antonio Nóbrega por volta de 1972, quando estudava ciências
sociais na Universidade Federal da Paraíba e o Quinteto Armorial
33
foi
contratado pelo então reitor da UFPB, Linaldo Cavalcanti de Albuquerque, para
se sediar em Campina Grande. Nóbrega, no entanto, continuou morando no
Recife. Na época, Bráulio lia o Romance d’a Pedra do Reino, de Ariano
Suassuna, e havia escrito a peça O casamento de Trupizupe com a filha do rei.
Trupizupe é uma espécie de João Grilo meu”, explica ele, fazendo menção ao
célebre personagem de Ariano que protagoniza o Auto da compadecida. A
peça também foi montada com o nome de Trupizupe, o raio da silibrina. No
início do espetáculo, era apresentado O coco do nascimento, que contava
como a mãe de Trupizupe engravidara e as peripécias em decorrência da
gestação e do parto.
O texto chegou às mãos de Nóbrega e atraiu a sua atenção, no que
seria o germe da futura parceria. “Viemos para o Sudeste na mesma época:
1982. Ele para São Paulo e eu para o Rio de Janeiro”, conta Bráulio. “Em 1989
ele me chamou oficialmente para começarmos a trabalhar juntos.”
Como Nóbrega já cantava, dançava, representava, tocava rabeca, violão
etc., disse a Bráulio que não poderia além disso tudo escrever o texto. “Ele até
32
O texto a seguir reúne informações e comentários com base em entrevista concedida por
Bráulio Tavares ao autor desta tese no dia 15 de agosto de 2005, no Rio de Janeiro.
33
Era formado por Antônio José Madureira (viola sertaneja, tambor e zabumba), Edílson Eulálio
Cabral (violão, ganzá e matraca), Fernando Torres Barbosa (marimbau, flauta e tambor), Egildo
Vieira do Nascimeno (flauta), substituído por Antônio Fernandes de Farias, e Antonio Carlos
Nóbrega (violino e caixa).
42
poderia, porque Nóbrega é muito bom de texto. Escreve muito bem. Tem
versos muito bons e uma fluência verbal muito grande”, elogia o parceiro.
Desassombrado, por exemplo, é uma música lindíssima, tem
uma letra que eu gostaria de ter feito. Mas Nóbrega não gosta de
escrever sozinho. Ele “corrige” muito os versos, dizendo: “Vamos trocar
aquela palavra por essa, aquele verso por esse”...
Os dois trabalharam em várias versões do espetáculo Brincante,
primeiro resultado concreto da parceria, até chegar na de 1992, que finalmente
foi levada ao palco. Bráulio escreveu o texto do espetáculo. Ele conta:
A gente se afina bem. Para você trabalhar em parceria, é preciso
ter um universo cultural semelhante e uma linguagem semelhante. Por
exemplo: essa cena aqui está muito séria, vamos fazer um negócio um
pouco mais... Rabelais. Pronto! Falou-se em Rabelais... Eu sou louco
por Rabelais e ele também, então sabemos como é: uma coisa séria,
mas dita de maneira caricatural, exagerada. São certas unanimidades
que nós temos: Rabelais, Cervantes, cordel, o próprio Ariano.
34
Brincante traz como personagem principal Tonheta inicialmente
chamado Mateus, inspirado nesta figura do cavalo-marinho e conta a sua
gênese. Com o sucesso inicialmente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro,
os dois deram prosseguimento às aventuras de Tonheta com um novo
espetáculo em 1994: Segundas histórias.
Nóbrega sempre fez um tipo de espetáculo em que mistura
dança e música. Houve um momento em que ele, conscientemente ou
não, isso é uma inferência minha, disse a si mesmo: “Olha, eu faço
teatro musical e coloco quinhentas pessoas na platéia. Se eu fizer uma
música teatralizada, eu posso botar duas mil pessoas no Canecão.” E
foi exatamente o que ele fez com Na pancada do ganzá, o segundo
espetáculo fundador da carreira dele (o primeiro foi Brincante), o que
marcou um novo começo. Brincante foi o espetáculo fundador do ponto
de vista teatral.
34
Essas afirmações de Bráulio comprovam a influência de Rabelais e da praça pública no
universo cultural de Nóbrega, vista no capítulo 1, tomando como base Bakhtin (1999).
43
Assim como Wilson, Bráulio chama seu parceiro de Toinho, apelido
comumente dado em Pernambuco a quem se chama Antonio. “Ele pesquisa
muito e tira verdadeiros tesouros do fundo do baú”, conta.
De 1989 a 1991 a parceria deles foi muito intensa. Quando Nóbrega
começou a fazer os shows de música, passou a conviver mais intensamente
com Wilson Freire. Wilson escreve desde pequeno, é um excelente poeta, um
poeta maravilhoso. Aliás, todo nordestino é poeta desde a infância”, destaca
Bráulio.
Na carreira discográfica de Antonio Nóbrega, as letras de Bráulio
aparecem a partir de O marco do meio-dia, uma vez que nos três primeiros
discos ele gravou canções populares, de domínio público ou parcerias suas
com Wilson.
“Na nossa parceria, uma coisa interessante: praticamente todas as
músicas utilizam formas fixas dos cantadores de viola, como a décima, a
sextilha, o martelo, o galope-à-beira-mar e assim por diante”, diz Bráulio. Essas
formas são fixas porque têm estrofes fechadas, com número determinado de
versos, número certo de sílabas por verso, rimas em posição determinada,
como se fosse um soneto. Bráulio diz que seu grande interesse é o verso, a
questão técnica do verso: metrificação, rima.
Às vezes Toinho diz assim: “Eu com uma melodia de décima
aqui. Faça uma letra.” Quando ele pede uma melodia para cima, eu
faço a letra sem precisar ouvir a melodia, porque eu sei o que é uma
décima. O máximo que pergunto é se é uma melodia alegre,
movimentada, dolente. ele responde: “É uma coisa bem nostálgica.”
Basta dizer: vamos fazer um martelo agalopado? Pronto! sei do que
se trata sem ele precisar me mostrar a melodia. A melodia dele não vai
ser a tradicional do martelo agalopado, mas tem que ser uma melodia
que se encaixe: larari, larari, lararirá; é o verso que se chama de três,
três, quatro. É como digo aos alunos para memorizarem, quando dou
oficinas: maracá, maracá, maracatu. Qualquer martelo agalopado tem
44
que ter essa cadência: são dez linhas de dez pés, agrupadas em
quatro, quatro e dois versos.
Com relação à extensa letra de Meu foguete brasileiro, do repertório do
Lunário perpétuo, ele diz que é baseada num poema chamado O navio
brasileiro, cuja autoria não sabe ao certo, sobre uma pessoa contando que vai
construir um navio fantástico, com banheiro de ouro maciço, quinhentos
marinheiros tomando conta, motor com mil toneladas etc., “essas gabolices que
são típicas do poeta popular”, como ressalta. Nóbrega disse a ele que queria
fazer uma coisa parecida com O navio brasileiro.
A minha primeira idéia foi fazer no formato de galope à beira-
mar, aquele verso de 11 sílabas que termina com o verso “cantando
galope na beira do mar”. É uma estrofe parecida com o martelo, que
em vez de 3-3-4 (tá-tá-ti, tá-tá-ti, tá-tá-tá-tá), é 2-3-3-3 (tá-ti, tá-tá-tá, tá-
tá-tá, tá-tá-tá). Por exemplo: “Eu fiz um foguete de andar pelo espaço /
Igual um que eu vi pela televisão / Não sei se era coisa da China ou
Japão / Mas basta ver gringo fazer eu faço”. Qualquer melodia você
encaixa aí, nessa forma fixa, com o seguinte esquema de rimas:
ABBAACCDDC. Mesmo quando você está improvisando, quando vo
diz o primeiro verso sabe que o quarto e o quinto versos vão ter que
rimar com aquele, então você diz o primeiro verso terminando em ão ou
ar, por exemplo.
Uma curiosidade dessa letra é que tanto a palavra oxigênio como
tungstênio ganham uma sílaba a mais para caber na métrica, como se verá no
capítulo 4.2.5.
35
Isso é um jogo que você tem que fazer. Você cria hiatos quando
eles não existem, manipula os ditongos e as coisas todas. Muitas vezes,
você distorce a pronúncia de uma palavra para seguir a cadência,
porque as notas musicais seguem aquela cadência, e para cada nota
tem que ter uma sílaba. Isso é uma lei da música.
Sobre o deslocamento da sílaba nica, nas ocasiões em que ela não
coincide com o tempo forte da melodia como galope e cavalo, por exemplo,
35
Tal expediente de liberdade na utilização de rimas aparece na poesia brasileira desde o
século XIX em autores como Gonçalves Dias, citado por Souza da Silveira (1934) em Lições de
português, ao registrar que o escritor maranhense, na poesia Como eu te amo, rima jamais”
com “voraz”, por exemplo.
45
que se transformam em *gálope e *cávalo na letra de Viagem maravilhosa –,
Bráulio conta que isso é feito constantemente:
um cantador que termina um verso assim: “Ainda guardo as
saudades do sabor dos beijos (pronuncia-se ‘beijus’) dela.” O outro
responde: “Cantador o sabe o verso que produz / O ouvido é quem
comanda / A toada é quem conduz / Quando vai falar em beijos / Finda
dizendo beijus.” Porque muitas vezes, para se referir aos beijos, de
acordo com a melodia, você acaba dizendo beijus. É que você quer
dizer uma coisa e a melodia não se encaixa. entra o chamado jogo
da prosódia. Na hora em que está cantando, você tem que ficar numa
região limítrofe entre a pronúncia gramatical e a pronúncia melódica.
Você tem que fazer o deslocamento, quando está cantando, de modo a
acentuar ambas as sílabas. Em vez de acentuar a primeira ou a
segunda, eu acentuo a que vem primeiro e a seguinte também. Você
acende uma vela a Deus e outra ao Diabo. O caso mais famoso na
música popular brasileira é de Adelino Moreira quando fez A volta do
boêmio: “Boemia, aqui me tens de regresso...” Por causa desse verso
com um deslocamento da sílaba tônica, reforçou-se o uso da palavra
boemia no lugar da clássica forma “boêmia”.
No caso de Viagem maravilhosa, nos versos “Nesse momento mais um
galope (“*gálope”) se ouviu / outro cavalo (“*cávalo”) surgiu passando perto da
gente”, ele diz que canta o “cacom a acentuação normal da melodia e abre a
vogal da sílaba tônica da palavra para mostrar que ela também tem um peso ali
dentro. Então fica: “mais um *gálópe se ouviu, / outro *cáválo surgiu”.
É como o contratempo no ritmo: é um aparente erro, mas se
você volta para o lugar certo, mostra que não errou. Você sabe o que
está acontecendo. E depois que você canta tudo certinho, diz: “Vou
flutuar um pouco em cima disso, não preciso ser tão exato assim! Vou
dançar um pouco em cima disso.” É o swing. Então quando você
domina a cadência básica, fica fácil. É o que o músico de jazz faz o
tempo todo.
Para quem considera isso um erro, ele diz que pode aser uma visão
correta, mas muito limitada.
Se você seguir essa visão, vai ser contra o enjambement num
poema, quando você começa uma frase na primeira linha e termina na
segunda; faz um ponto e no meio da segunda linha começa uma outra
frase. A arte do sonetista, no caso do enjambement, é fazer com que
orações gramaticais não coincidam exatamente com os versos. As
orações gramaticais vão se distribuindo no interior do poema
independentemente da cesura, aquele corte ou pausa aparente, no final
46
de cada verso. Terminou a linha, mas a frase continua. Inclusive as
regras para leitura de poesia dizem assim: “Não faça pausa no fim de
cada linha.” A pausa você faz quando tiver uma vírgula ou um ponto.
Profundo conhecedor de poesia, Bráulio recita de duas maneiras os
versos iniciais de Via Láctea, de Olavo Bilac, para exemplificar a possibilidade
de mais de uma leitura para o poema:
“Ora, direis, ouvir estrelas? Certo / perdeste o senso e eu vos
direi no entanto”; “Ora, direis, ouvir estrelas? / Certo perdeste o senso e
eu vos direi no entanto.” Você tem duas opções. gente que prefere
ler fazendo uma pausa no final de cada verso para marcar a rima,
destacando as unidades gráficas dos versos. Outras pessoas preferem
a leitura gramatical, seguindo o fluxo da oração que está sendo dita,
como se fosse um texto em prosa. É a mesma coisa que seguir a
acentuação natural da palavra ou a acentuação imposta pela melodia e
pelo ritmo da canção.
Com relação à letra de Viagem maravilhosa, Nóbrega queria fazer uma
viagem que fosse um superespetáculo, com coisas engraçadas. “Wilson deu a
partida, fez uns 30% da letra. Eu fiz os 70% finais”, conta Bráulio.
Destaquem-se os versos “Aí, um dia, / eu sentado na cadeira, / um
estalo-de-Vieira / clareou a minha mente. / Eu percebi / que tinha de procurar /
descobrir e encarar / minha terra e minha gente”. Os hifens na expressão
“estalo-de-Vieira” a qual se refere ao Padre Antônio Vieira e é citada por
Antenor Nascentes no Tesouro da fraseologia brasileira
36
foram
acrescentados por Bráulio. “Eu uso o hífen toda vez que crio uma expressão
que, como se diz tecnicamente, é um sintagma inteiro.” Ele chama de “hífen
evidenciador de sintagma”, para dizer que “estalo-de-Vieira” é uma palavra só,
como guarda-chuva.
36
Sentir o estalo de Vieira. Ficar inteligente de uma hora para outra. Conta João Francisco
Lisboa na Vida do Padre Antônio Vieira que o grande orador fez grandes progressos
intelectuais depois que sentiu na cabeça um estalo em ocasião em que pedia à Virgem em
oração que o iluminasse” (Nascentes, 1966: 119).
47
que se falou no uso do hífen, a pontuação é algo primordial para
Bráulio:
Eu pontuo muito as coisas que escrevo. Letra minha é sempre
muito pontuada, os encartes dos discos é que são descuidados. Não é
um excesso de purismo. É que às vezes as frases ficam ininteligíveis
por falta de pontuação, e eu não gosto de frases escritas em caixa-alta
nos encartes. a impressão de que a pessoa está gritando. Uma
coisa de que eu gosto, e isso tem muito a ver com Nóbrega e o Barroco,
são as “maiúsculas simbólicas”. Ao escrever “O meu Lunário perpétuo /
é meu Livro precioso”, com a palavra Livro em letra maiúscula você está
dando um peso especial àquilo, é algo bem barroco, esse uso das
maiúsculas, porque eu não estou me referindo a um simples livro, mas é
“O Livro”. Eu uso muito isso nas coisas que escrevo, incluindo as letras
de música.
Voltando a Meu foguete brasileiro, Bráulio conta que Nóbrega sugeriu
que os dois fizessem um outro navio brasileiro em forma de galope-à-beira-
mar. ele disse: Toinho, vamos fazer o seguinte. Em vez de outro navio,
vamos fazer uma coisa diferente, um avião ou um foguete, porque eu coloco o
meu lado de ficção científica, que eu gosto muito.” a criatividade entrou em
jogo: “Eu disse a ele: vamos fazer um galope-à-beira-mar de ficção científica!
Em vez de dizer ‘cantando galope na beira do mar’, a gente diz: ‘cantando
galope e voando no ar’. Você vai mais longe do que todos os outros.”
A letra tem oitenta versos e sua realização foi muito simples, segundo
Bráulio, porque existe um repositório de imagens em sua cabeça. E como ela
foi criada para Tonheta interpretar, os versos têm um jeito galhofeiro,
exagerado, brincalhão. À medida que ele apresentava os versos, brega ia
fazendo as “correções de rumo”. “Eu fazia duas estrofes num dia e mandava
para ele. No outro dia ele me dizia: “Está ótimo. Mas vamos dizer que ele está
levando coisas para vender.” Muitos versos ficaram de fora. A letra final de Meu
foguete brasileiro tem 70% do que foi feito. “Fiz uma estrofe dizendo que
48
Tonheta não está viajando sozinho, que encheu o foguete de mulheres de
todas as raças para povoar os outros planetas, mas essa estrofe não ficou na
versão final”, conta Bráulio.
Assim como Wilson Freire relata que Nóbrega mexe alguma coisa em
seus versos, com Bráulio não é diferente. “Às vezes ele me diz: ‘Olha, não
gostei de tal palavra.’ eu digo: ‘Mas Toinho, que besteira!’ E ele responde:
‘Não, eu não gosto!’ Aí troca.
Um bom exemplo está em Meu foguete brasileiro, nos versos “mas eu
que não minto não quero falar, / e o resto eu conto aqui pra você / no
próximo espetáculo ou em outro CD, / cantando galope e voando no ar”. O
verso original era “no próximo show ou em outro CD”, mas Nóbrega não gosta
da palavra show, como Ariano também não, porque é uma palavra
americanizada, então para eles lembra Broadway – no caso de Nóbrega,
também por considerar que a palavra show está atrelada mais a apresentações
musicais, e o que ele apresenta vai além de um simples show musical. “Eles
dizem: ‘O que eu faço não é um show, é um espetáculo”, conta Bráulio.
“Eu respeito, mas não tenho esse tipo de coisa; pelo contrário, também tenho
bastante influência da cultura americana. Esse lado mais pop, por exemplo,
uso em minhas parcerias com Lenine,
37
que gosta muito disso.
Toinho tem, assim como Ariano, não vou dizer que uma rejeição
cega, mas um certo afastamento de coisas americanas em geral. Não é
um preconceito cego, radical, mas uma falta de afinidade. Você conta
nos dedos as coisas do cinema americano de que Nóbrega gosta:
Chaplin, por exemplo. Nóbrega é louco por Chaplin, tem todos os seus
filmes e os estuda.
37
Cantor, compositor e violonista pernambucano, um dos outros parceiros poético-musicais de
Bráulio Tavares.
49
Bráulio não se acha tão “nacionalista” porque tem forte influência da
cultura americana, gosta de rock, blues, jazz, do cinema de Hollywood. Escreve
ficção científica, se acha mais cosmopolita, muito mais voltado para as coisas
de fora do que Nóbrega e Ariano, principalmente as norte-americanas.
“Nóbrega não gosta de palavras inglesas; tudo bem. Quando estou escrevendo
para ele, procuro evitar palavras que remetam à cultura de massas norte-
americana, porque sei que ele o simpatiza com elas”, esclarece. “É que nem
a dança: você procura se adaptar à parceira ou ao parceiro.”
Voltando ao encarte do CD, ficou a palavra “show” (apesar de Nóbrega
ter gravado “espetáculo”) porque não foi feita a correção da letra impressa que
Bráulio enviara a ele. No verso, o polissílabo “espetáculo” faz as vezes do
monossílabo “showe encaixa-se na métrica. “O engraçado é que no meio de
um verso que tem uma contagem exata de sílabas você tira um monossílabo e
bota uma palavra de cinco sílabas e o verso não quebra”, acentua Bráulio.
“Você tem que dizer: ‘no próxim’espetáclouem outro CD’. Utilizar as elisões é
uma das artes que você tem ao alcance e que não é todo cantador ou cantor
que faz com espontaneidade.”
*******
Ao longo dos anos da bem-sucedida parceria, Bráulio diz ter observado
que Nóbrega tem um modo mais “civilizado” de falar do que ele.
Eu sou do interior (Campina Grande-Paraíba), minha mãe é do
Cariri. Falo de maneira muito indisciplinada. me acostumei a botar
“os plurais das palavra” (enfatiza o “palavra” no singular) depois de
adulto, quando vim morar no Rio de Janeiro. Porque eu era analfabeto,
ignorante? Não, porque era um modo totalmente informal de falar na
rua.
50
O resultado de tal prática reflete-se na fluência das letras que escreve
para Nóbrega.
Quanto mais a fala é informal, mais elisão de sílabas, criação
de hiatos, fusão de ditongos. E quanto mais a fala vai se formalizando
na direção da gramática, do dicionário, da academia, mais as sílabas
vão ficando duras. Você distingue uma pessoa bem-educada pela
nitidez das sílabas que ela emite. São diferenças de falar. De acordo
com a necessidade do canto, você pode utilizar uma técnica de escandir
as labas com mais nitidez ou misturar tudo e falar de modo quase
incompreensível.
Sobre os temas das canções, às vezes Nóbrega sugere o mote. O rei e
o palhaço, por exemplo, foi uma sugestão dele, que disse querer aquele tipo de
verso que diz ‘você é isso, eu sou aquilo’”, conta Bráulio, “com cada verso
respondendo ao anterior: ‘Você é glorioso, poderoso, forte; eu sou
pequenininho, descontraído, brincalhão’”. A inspiração veio da dicotomia entre
o rei e o palhaço feita por Ariano Suassuna.
38
É a décima dos cantadores,
que em cada estrofe do samba de maracatu rural (ou de baque solto) o
cantador apresenta seis versos, o povo repete os dois últimos, e depois ele
canta os quatro versos finais. Tal é a estrutura de O rei e o palhaço, também
chamada de samba em dez. O esquema de sílabas é sempre o mesmo:
ABBAACCDDC.
Sobre o uso tão comum do verso de sete pés, a redondilha maior,
Bráulio lembra a influência de Portugal e diz ser um tamanho bom em
versificação analisando-se do ponto de vista técnico, porque nem é muito
pequeno, de modo a comprimir demais as idéias, nem é muito longo, de
maneira a se ter de inventar coisas demais. “Parece que o verso de sete
38
Ver Newton Júnior (1999), Santos (1999), Moraes (2000) e Nogueira (2002), especialistas na
obra de Ariano Suassuna.
51
sílabas se incorporou de tal maneira na música e na poesia brasileiras que a
fala brasileira de certa forma se metrifica inconscientemente nesse formato”,
afirma. “A redondilha já está dentro do ritmo natural da fala do brasileiro.”
Bráulio é tão envolvido com o trabalho que realiza como criador de
versos em formas fixas que está sempre atento a motes que possam ser
glosados, ou seja, desenvolvidos.
Outro dia fui a um restaurante e li no cardápio: fetuttine;
embaixo, “com tomate, ricota e camarão”. Pronto! “Com tomate, ricota e
camarão” é um verso de martelo, conforme o número e a acentuação
das sílabas! Então eu disse: Eu prefiro comer um fetuttine / com
tomate, ricota e camarão” (dois versos de martelo). Os amigos até
brincam comigo. Você acha motes se tiver o ouvido ligado naquilo. Por
que um cantador de viola improvisa tanto? Porque ele fica com o ouvido
ligado. Um fotógrafo também faz isso. Opa! aqui uma coisa que
obedece àquela configuração. Você fica com o filtro ligado enquanto as
coisas vão passando, é o filtro do pensamento. você percebe: isso
aqui é um mote, isso aqui é um verso.
*******
Outra canção criada por Nóbrega e Bráulio, incluindo a parceria de
Zezinho Pitoco (na melodia), é Estrela-d’alva.
É uma cadência que eu chamo de 4-4-4: “Caixa-de-guerra,
maracá, porta-bandeira, / rainha negra batendo palma de mão”. Todas
as linhas têm essa cadência, menos a última, que é 4-4-2: “bombo
profundo ressoou trovão”, por exemplo. Aí não tem uma forma fixa
necessariamente, foi algo sugerido pela música. Esse formato é livre,
“nosso”, arranjado para essa canção especificamente.
A letra inicial era sobre carnaval, descrevendo os maracatus do Recife,
mas Nóbrega disse a ele que era um assunto muito explorado, era lugar-
comum. Pediu a Bráulio para aproveitar o segundo verso (“rainha negra
batendo palma de mão”) e puxar para o lado das cerimônias religiosas: mouros
e cristãos, andor, procissão, romaria. “É isso que brega faz. É como você
52
empurrar um carrinho de supermercado: às vezes dá um toquezinho e o
desvia para outra direção”, afirma.
O formato da canção Lunário perpétuo (parceria a seis mãos: Nóbrega,
Bráulio e Wilson Freire) foi inventado por Nóbrega. Ele quis fazer um formato
diferente, como se fosse uma septilha com quatro versos de sete pés, dois
versos de galope (11 sílabas, divididas em 2-3-3-3, acentuação na segunda, na
quinta, na oitava e na décima primeira) e mais um verso de sete sílabas. “Eu só
ouvi essa música quando estava pronta”, conta Bráulio, referindo-se ao fato de
que não conhecia a melodia, mas fez a letra com base na forma proposta por
Nóbrega.
A se observar o “jeitinho” poético do seguinte verso (de galope): “De
Norte a Sul, de Pai para Filho”; não elisão em “Norte a Sul” e, a rigor,
deveria ser “De Norte a Sul e de Pai para Filho”, para completar 11 sílabas. No
entanto, como Bráulio explica, por ser uma música muito difícil de ser cantada,
o “e” fica subentendido pela vírgula como espaço para a respiração do cantor,
não deixando de transmitir assim a intenção de um verso de 11 sílabas. Bráulio
diz que, nas primeiras apresentações do espetáculo Lunário perpétuo, Nóbrega
recitava a letra antes de cantá-la porque a sica ficou veloz demais e
acabava-se não distinguindo as palavras.
Assim como brega criou uma relação poético-afetiva com o Lunário
perpétuo, Bráulio diz ter uma relação afetiva e vontade de fazer um disco, um
livro ou alguma outra coisa com o Almanaque do pensamento, o Lunário da
sua geração, que seu pai colecionava. Vendido nas bancas, era um almanaque
53
astrológico cheio de charadas, piadas, palavras cruzadas. Tratava-se de um
sucedâneo do Lunário perpétuo tradicional, lançado pela Editora Pensamento.
Quanto à gênese da canção Lunário perpétuo, Nóbrega mandou a
melodia tanto para Bráulio quanto para Wilson escreverem simultaneamente os
versos, cada um fazendo a sua parte em sua cidade, independentemente.
Quando um fazia uma estrofe mandava para o outro.
Isso é bom porque espicaça você a dizer assim: “Vou superar o
outro.” É um desafio entre dois caras que se gostam, que se admiram.
Porque você gosta muito do que o outro escreve e vai querer fazer algo
melhor do que ele. É um desafio sem agressividade, sem antagonismo.
Dessa forma, o compositor propôs um desafio, no bom sentido, entre
seus dois fiéis letristas. Ao falar sobre como seria a letra, Nóbrega disse que
deveria elogiar o Lunário, falar sobre sua importância, seu trajeto histórico para
as comunidades “séculos a fio”.
*******
Assim como Nóbrega trocou a palavra show por espetáculo na letra de
Meu foguete brasileiro, ele também mexeu em outra letra de Bráulio, Carrossel
do destino. Originalmente, era: “Enquanto eu puder sentir / o mundo com a
minha mente / o tempo estará presente / passando sem resistir.” Segundo
Bráulio, Nóbrega disse que não gostava do segundo verso porque a palavra
“mente” dá impressão de uma coisa muito intelectual, e ele queria falar da
emoção, do coração... “Mas Toinho! O coração é um mero músculo propulsor
do sangue. Ele não sente nada”, disse Bráulio na época ao seu parceiro.
“Quando o cérebro sente alguma coisa, o coração se acelera ou não. Mas
quem sente tudo, a sede da emoção, é o rebro. O coração é o eco de uma
emoção sentida pelo cérebro.
54
Apesar do argumento de Bráulio, o verso teve de ser mudado e ficou:
“Enquanto eu puder viver / tudo o que o coração sente, / o tempo estará
presente / passando sem resistir.”
A canção tem para mote um verso do poeta popular Limeira: “Adeus
que eu vou rodar / no carrossel do destino”. Uma das estrofes ficou de fora,
por ser datada com relação à guerra do Afeganistão, daí a referência a
Kandahar:
Quero deixar de ser eu / porque ser eu é ser muitos / eu sou
tantos outros juntos / que nenhum prevaleceu / Eu tenho um lado judeu,
/ tenho outro palestino / um lado nova-iorquino / e outro de Kandahar /
Licença, que eu vou rodar / no carrossel do destino.
*******
Bráulio e Wilson se encontram praticamente uma vez por ano; mesmo
assim, sentem ter grande afinidade poética. O primeiro nunca trabalhou com o
segundo sem ter Nóbrega no meio; este é o catalisador dos dois poetas.
Na condição de co-criador de Tonheta, Bráulio ressalta que Nóbrega tem
algo que chama de “Universo Tonhetânico”, um Ideário no qual cabem algumas
coisas referentes ao personagem e outras não. “É quando muitas vezes a
gente entra em choque. Às vezes eu penso em alguma coisa que acho a mais
genial do mundo, mas ele diz: “Não pertence ao ‘Universo Tonhetânico’”,
afirma. “E ele é o dono do personagem. Eu estou servindo ao personagem.”
Sobre o trabalho de Nóbrega, o que Bráulio acha mais interessante é a
proposta de brasilidade total.
Essa proposta de brasilidade é muito importante porque são
poucos artistas na música brasileira que têm alguma proposta estética
de pensar o Brasil, que tem uma “genealogia” estética para o Brasil.
Caetano Veloso e Gilberto Gil têm a deles, Chico Buarque também, pois
existe uma coerência temática poética, cultural, antropológica. A maioria
dos artistas da música popular brasileira dança conforme o ritmo, nada
55
para onde a onda leva, vai surfando nas ondas. Nóbrega é um cara que
cria a sua própria onda, vai surfando na onda criada por ele. Ele fez o
seu próprio estilo. Caetano, Gil e os tropicalistas de modo geral surfam
até hoje na onda criada por eles nos anos 60. Chico Buarque surfa
numa onda própria. Os outros surfam em ondas coletivas, ondas feitas
pelo inconsciente coletivo, pelo mercado e pelo talento.
O letrista chega a fazer uma comparação entre a homeopatia unicista e
pluralista
39
e a linguagem de Nóbrega. “O unicista olha para você e lhe
um remédio em diferentes dosagens ao longo da sua vida”, diz. “O outro lhe
uma série de coisas: ‘três gotas disso, quatro daquilo, dois papeizinhos disso’ e
assim por diante.” Daí vem uma definição que ele dá ao trabalho de seu
parceiro:
Nóbrega é unicista porque entende de cultura de uma forma
geral, se propõe a dar uma visão unificada e intensamente nacionalista;
e é pluralista na forma, porque captura elementos da música popular e
da erudita, da dança, da cultura popular como um todo. Nesse ponto ele
é multimídia.
De acordo com Bráulio, o trabalho de Nóbrega tem grande importância
para a cultura brasileira, em primeiro lugar, porque ele é um artista que pensa o
Brasil, tem uma teoria própria da cultura e da estética brasileiras.
Não são todos os artistas que têm isso. Muita gente a
impressão de ter porque o seu trabalho sugere as idéias de uma
interpretação de Brasil, mas são artistas intuitivos. Se você for discutir
com eles, não se mostram teóricos, são artistas. São pessoas que não
têm leitura, não têm base teórica, não se interessam em teorizar. Não é
o caso de Nóbrega, que é um erudito, uma pessoa que muito, tem
uma biblioteca maravilhosa em casa. É uma pessoa que passou muitos
anos se preparando para fazer o que hoje faz, lendo Câmara Cascudo,
Sílvio Romero, Euclides da Cunha. Nóbrega é, num certo sentido, uma
cria de Ariano.
O criador da letra de Meu foguete brasileiro lembra uma frase do
jornalista e escritor paraibano José Nêumanne Pinto, radicado em São Paulo,
que diz que um dos grandes triunfos de Ariano é Nóbrega: “Ele afirma que
39
Não cabe aqui detalhar esses conceitos. O que merece atenção é a comparação feita por Bráulio.
56
Ariano tem três grandes obras, três grandes contribuições para a cultura
brasileira: o Auto da compadecida, o Romance d’a Pedra do Reino e Antonio
Nóbrega.” E Bráulio acrescenta:
O próprio Nóbrega não diz “Tudo que eu sou devo a Ariano”,
mas sim: “Foi Ariano que me jogou nesse universo onde estou até hoje.”
E de fato foi, porque ele tinha 17 anos quando conheceu Ariano.
tocava violino muito bem na Escola de Música da Universidade Federal
de Pernambuco. Era uma pessoa de classe média, e foi Ariano quem o
apresentou à cultura popular. Nóbrega tem uma relação emotiva filial
com Ariano.
Para concluir este capítulo, destaque-se também a forte influência de
Ariano na trajetória artística de Bráulio, sem deixar de lado cantadores e poetas
que ele faz questão de citar, como Ivanildo Villa-Nova com quem compôs
Nordeste independente e de quem diz ter aprendido as “manhas” da poesia
popular , Geraldo Amâncio, Gonçalves e Jo Alves Sobrinho. Quando
Bráulio estudava cinema em Belo Horizonte (MG), na década de 70, passou a
receber do pai recortes de jornal sobre o Movimento Armorial e ficou fascinado.
Começou a pesquisar sobre cantoria de viola e poetas populares nas
bibliotecas mineiras, aprofundando-se em Câmara Cascudo. Ao retornar a
Campina Grande, leu o Romance d’a Pedra do Reino, de 1972 para 1973.
Foi uma revelação. A figura de Ariano sempre foi muito
importante para mim. Ele é um mestre. Comecei a escrever meus
martelos agalopados após ouvir Ariano recitando e sendo acompanhado
pelo Quinteto Armorial. Mas ao mesmo tempo tenho influências do
Tropicalismo. Então tenho uma visão mais híbrida das coisas.
40
Devidamente apresentados os parceiros de Nóbrega e ouvidos os “ecos”
do Movimento Armorial na sua obra, serão introduzidos a seguir os
pressupostos teóricos estilísticos, semânticos e dialetológicos que servirão
40
O que lembra o conceito de hibridismo de Stuart Hall (2003), citado em capítulo anterior.
57
como ponto de partida para o estudo da expressão lingüístico-poético-musical
desse brincante pernambucano, com base na análise do repertório de seus
cinco CDs lançados no período de 1996 a 2002.
58
3 – Pressupostos teóricos
Este capítulo reúne os principais elementos teóricos relacionados à
estilística, à semântica e à dialetologia que servirão de base para o estudo da
expressão lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega sob um viés cultural,
como salientado na Introdução.
3.1 – Aspectos estilísticos
(em que se apresentam as ferramentas ou os princípios teóricos que ajudarão
a traduzir o estilo ou os principais traços estilísticos de nosso brincante)
Quem nunca viu amor assim tão roxo...
Vai fazer fuxico quando “ver” Minervina.
“Desvergonhada”, não conhece alvoroço,
na hora H é minha estrela matutina.
(Minervina – Na pancada do ganzá / Pernambuco falando para o mundo)
Aqui são apresentados os principais parâmetros levados em conta para
uma abordagem teórica de aspectos estilísticos na obra de Antonio Nóbrega.
Como ponto de partida, leve-se em conta a idéia de que o sentido de um termo,
dentro de um enunciado, mantém estreita relação com o contexto (relação
sintagmática) e com as classes morfológica e semântica a que pertence
(relação paradigmática). Ao mesmo tempo internas e externas ao enunciado, a
rede dessas relações é extremamente complexa e passível de uma infinidade
de variações. São esses caracteres que dão a qualquer mensagem organizada
e a qualquer texto literário a sua qualidade única (Cressot, 1980).
59
O texto musical de Nóbrega – chamemos desta forma o texto das
canções interpretadas por ele, ainda que sejam versos não somente de sua
autoria, mas criados também por seus parceiros – conserva uma unidade
estilística em função dos elementos que o inspiram e lhe servem de base,
tendo no caráter regional um aspecto indissociável. É a relação entre o que
podemos nomear de elementos teóricos estilísticos e sua aplicação no texto
artístico desse brincante pernambucano que é investigada neste trabalho.
Antes de prosseguir, no entanto, destaquem-se aqui as principais idéias do que
disseram importantes teóricos sobre estilo e estilística.
Charles Bally (1951), em seu Traité de stylistique française, cuja primeira
edição é de 1902, definia o objeto da estilística da expressão, que é o
conteúdo afetivo da linguagem. Segundo ele, o que caracteriza o estilo não é a
oposição entre o individual e o coletivo, mas o contraste entre o emocional e o
intelectivo (Bechara, 2001). Quanto a exemplos de afetividade, eles não faltam
na linguagem poético-musical de Nóbrega, caracterizando seu modo de se
exprimir artisticamente. São referências que o músico e dançarino traz de toda
a sua formação cultural – fortemente caracterizada por manifestações regionais
ligadas à dança, ao canto, à poesia, ao teatro de rua que se reúnem num
expressivo caleidoscópio no qual têm vez a ciranda, o frevo, a cantoria, o
martelo agalopado, o maracatu rural, a moda de viola, a nau-catarineta e tantas
outras formas características com que se expressa a criatividade popular,
conforme salientado no capítulo Considerações sobre a cultura popular
nordestina.
60
Como nos ensina Joaquim Mattoso Câmara Júnior (1978: 13), “O estilo é
a definição de uma personalidade em termos lingüísticos”. Assim, uma
abordagem estilística deve ter como ponto de partida um traço lingüístico
peculiar do autor, o que pode se chamar de desvio estilístico que se aparta do
uso normal da língua, como escreve Luiz Toledo Machado, o prefaciador da
edição brasileira de A estilística (Guiraud, 1978). Segundo ele, enquanto o
estilo é uma linguagem autárquica, a qual mergulha suas raízes
exclusivamente na mitologia pessoal e secreta de um autor, a escrita
pressupõe um compromisso interpessoal que é definido nos seus limites de
classes, grupos sociais ou ideológicos. José Lemos Monteiro (1991: 12)
completa: “O estilo, em última instância, seria uma forma peculiar de encarar a
linguagem com uma finalidade expressiva.” Trata-se de um “conjunto objetivo
de características formais oferecidas por um texto” Lemos cita Herculano de
Carvalho “como resultado da adequação do instrumento lingüístico aos
propósitos específicos do ato em que foi produzido” (id. ibid.).
Mattoso Câmara, ao definir estilo, toma duas premissas como base: a
clássica dicotomia saussuriana langue que é a língua, o lado social da
linguagem e parole que é a fala ou o discurso, o lado individual. Para ele,
estilo é um conjunto de processos que tornam a língua representativa um meio
de exteriorização psíquica e apelo, no sentido de Bühler. Por sinal, a respeito
das três funções primordiais da linguagem, foram elas depreendidas pelo
alemão Karl Bühler da seguinte forma: representação, expressão e apelo, que
correspondem, respectivamente, às faculdades de inteligência, sensibilidade e
desejo ou vontade. Como escreve Carvalho (2004: 87),
61
A representação é a linguagem referencial e denotativa,
operando linearmente no eixo sintagmático. A expressão é a
exteriorização psíquica de nossos anseios e sentimentos, e o apelo é o
meio pelo qual exercemos influência sobre nossos interlocutores ou
leitores, no caso da língua literária.
Na obra Contribuição à estilística portuguesa, Mattoso Câmara (1978)
estabelece então sua concepção de estilística com base nas três funções da
linguagem propostas por Karl Bühler – correspondendo a representação à
linguagem intelectiva, e a expressão (ou manifestação psíquica) e o apelo (ou
atuação sobre o outro) à linguagem afetiva de Bally (Martins, 2000). Assim,
segundo Mattoso Câmara, a estilística estuda a língua como um meio de
exprimir estados psíquicos (função de expressão) ou então de atuar sobre o
interlocutor (função de apelo).
Castelar de Carvalho (2004), em artigo sobre o lado estilicista de
Mattoso mara, sintetiza a divisão básica de Guiraud para a disciplina que é
foco deste capítulo: estilística da língua ou da expressão (na linha estruturalista
de Charles Bally, que dá ênfase à expressividade latente no sistema) e a
estilística genética ou do autor (que é a corrente idealista de Vossler e Leo
Spitzer, a qual enfatiza a criação expressiva individual). Esta trabalha com
categorias básicas como funções da linguagem, estilo, escolha, desvio,
enunciação/enunciado. A estilística individual ou genética (new stylistics), de
Leo Spitzer (1968), procura anular a divisão entre o estudo da língua e o da
literatura. Destina-se basicamente à análise do estilo individual, expressão do
espírito do autor. E nessa corrente, também chamada de estilística literária,
merecem destaque aqui algumas idéias do poeta, filólogo e lingüista espanhol
Dámaso Alonso, o qual atribui a significado e significante conceitos diferentes
dos estabelecidos por Ferdinand de Saussure. Para Alonso, o significante,
62
além da imagem acústica, é o som físico; e o significado não é apenas um
simples conceito, mas “uma complexa carga psíquica que pode incluir emoção,
afetividade, volição, intencionalidade, imaginação” (Martins, 2000: 9). Assim,
como “significantes totais” têm-se a obra, o poema, a estrofe, o verso, o
vocábulo; e como significantes parciais aparecem o ritmo, a entoação, a sílaba,
o acento. “O significado total é a representação da realidade e os significados
parciais são os múltiplos elementos sensoriais, afetivos e conceptuais que essa
representação comporta” (Martins, 2000: 9).
De acordo com Amado Alonso, estilo é o uso especial do idioma pelo
autor, mestria ou virtuosismo idiomático como parte da construção. É toda a
revelação do artista, é o homem – “le style c’est l’homme même”, como afirmou
Georges Buffon (apud Martins, 2000). E ainda segundo Amado Alonso, a
expressividade emocional não é obtida apenas pela seleção dos vocábulos,
mas também por sua colocação na frase (Monteiro, 1991).
Na escolha está a alma do estilo, conforme salienta Gladstone Chaves
de Melo (1976), em seu clássico Ensaio de estilística da língua portuguesa.
Como a língua oferece possibilidades, o sujeito elege uma e rejeita outra. Para
este autor, estilo “exige conhecimento, gosto, requinte, senso de proporção e
adequação, musicalidade, ritmo, novidade, poder de surpresa, constante
reinvenção” (Melo, 1976: 24). Ele prossegue: “Acho que conseguiu caracterizar
bem ‘estilo’ Sílvio Elia, quando diz: ‘Estilo significa o máximo de efeito
expressivo que se consegue obter dentro das possibilidades da língua’” (id.
ibid.), reproduzindo trecho de Orientações da lingüística moderna, do filólogo
citado (Elia, 1955). Pode-se dizer, assim, que o efeito estilístico também resulta
63
de uma escolha diante das virtualidades oferecidas pelo sistema lingüístico, em
face dos aspectos apresentados até aqui.
Uma vez que as normas obrigatórias pertencem à gramática e as
facultativas à estilística, justificam-se as liberdades no uso da língua
portuguesa encontradas numa obra regional tão rica como a de Antonio
Nóbrega. Afinal, “falar bem ou escrever bem não é ater-se às normas da
gramática: é escolher com justeza as palavras, as construções, o ritmo” (Melo,
1976: 25). E é também Melo (1976: 29) quem diz que cabe à estilística estudar
“as funções ou valores expressivos e impressivos, ligados a esta ou àquela
forma, a esta ou àquela combinação, a este ou àquele sintagma, a esta ou
àquela seqüência sonora, a este ou àquele ritmo”.
Ao lembrar que, para Mattoso Câmara, estilo é um conjunto de
processos que fazem da língua representativa um meio de exteriorização
psíquica e apelo, Carvalho (2004) destaca que este autor chamava a atenção
para o fato de que o desvio é tolerável quando a serviço de uma finalidade
estética. José Lemos Monteiro (1991), ao estudar o desvio estilístico, salienta o
papel desempenhado por metaplasmos (alterações ou desvios que incidem na
forma das palavras, em sua constituição sonora; ex.: aférese, síncope,
apócope, prótese, epêntese e paragoge), metataxes (desvios que afetam a
estrutura sintática), metassememas (figuras que substituem um semema por
outro, ou seja, que modificam os conjuntos de semas do grau zero; ex.:
sinédoque, metáfora, oximoro), metalogismos (figuras de pensamento que
rompem com os aspectos lógicos do discurso; ex.: hipérbole, antítese,
64
eufemismo, ironia, paradoxo). Algumas dessas figuras serão vistas no capítulo
4, na análise das letras do repertório de Nóbrega.
tem-se, portanto, o aval de especialistas no assunto para se
compreender (ou aceitar) os desvios que vierem a ser encontrados nos textos
musicais de Antonio Nóbrega. Só que,
para que o desvio produza efeito estilístico, é necessário que esteja
impregnado de uma carga afetiva partida do autor (lado individual) e
partilhada com o leitor (lado social), o qual, por sua vez, precisa ter um
mínimo de sensibilidade e percepção estético-lingüística para poder fruir
o achado estilístico que ele tem em mãos (Carvalho, 2004: 90).
Os admiradores do trabalho de Nóbrega, tanto ouvintes quanto
espectadores, costumam preencher esses pré-requisitos; mesmo para os que
não conhecem sua obra, não é difícil adquiri-los ao assistirem pela primeira vez
a um espetáculo do artista.
Ainda falando sobre estilo, numerosas outras definições podem ser
encontradas em obra exemplar de Nilce Sant’Anna Martins (2000), assim como
um consistente apanhado dos principais estudiosos da estilística e de suas
diversas correntes de análise. Uma vez que não se trata aqui da elaboração de
um tratado de estilística, recomenda-se a obra em questão para um estudo
pormenorizado dessa disciplina.
Como o objeto de estudo deste trabalho é uma obra musical, vale
destacar a importância da estilística do som ou fônica, também chamada
fonoestilística, que
trata dos valores expressivos de natureza sonora observáveis nas
palavras e nos enunciados. Fonemas e prosodemas (acento, entoação,
altura e ritmo) constituem um complexo sonoro de extraordinária
importância na função emotiva e poética (Martins, 2000: 26).
65
Também as tonalidades emotivas das palavras são levadas em conta
para uma análise estilística: seu significado afetivo, o julgamento que
exprimem, as palavras evocativas (estrangeirismos, arcaísmos, regionalismos
e gírias, ainda de acordo com Martins, 2000). Aqui, naturalmente, para o
estudo empreendido interessam mais os regionalismos, que
permitem a evocação de certos aspectos de determinada parte do País,
produzindo efeitos diferentes conforme o ouvinte ou leitor seja ou não
dessa região. Se for, o regionalismo, por comum e natural, pode passar
despercebido; caso ele esteja distante do seu torrão, ouvindo a
expressão aprendida na infância, poderá ela despertar-lhe várias
reminiscências. Se o ouvinte-leitor não for da região, ouvindo a
expressão que não lhe é habitual, sentirá o sabor de algo pitoresco ou
exótico (Martins, 2000: 87-88).
Esta mesma autora lembra que nos textos de escritores classificados
como regionalistas encontram-se formas populares que têm a função de evocar
o nível cultural das personagens ou marcar a língua arcaica das zonas rurais
ou do sertão. Ela cita, naturalmente, o exemplo de Guimarães Rosa na
literatura, com seu estilo inconfundível de tratar as suas Minas Gerais. Pode-se
acrescentar: também o Nordeste, especialmente Pernambuco, é traduzido de
forma bastante sugestiva na expressão lingüístico-poético-musical de Antonio
Nóbrega.
Para a análise aqui empreendida, um aspecto que também se torna útil
é a harmonia imitativa: combinações peculiares de fonemas, repetições de
fonemas, palavras, sintagmas ou frases, do ritmo do verso ou da frase (Melo,
1976; Martins, 2000). Gladstone Chaves de Melo assinala que o valor
expressivo de um som ou conjunto de sons depende do contexto, está ligado
ao sentido da frase e ao significado da palavra. E o vocábulo pode ainda ser
66
tratado na condição de massa sonora, segundo um capítulo deste autor (1976:
79-87) dedicado ao assunto.
No entender de Cressot (1980), a estilística não tem por função elaborar
um inventário, mas destacar razões e conseqüências quanto à criação de
palavras, os neologismos. Ele diz que é conveniente “tomar em consideração a
psicologia do neologismo, o desejo que o utente tem desse neologismo” (id.
ibid.: 79). Ao mesmo tempo, acrescenta: “A renovação das expressões é talvez
mais importante do que a construção de palavras novas” (id. ibid.: 80).
que se está no plano da criação de palavras, Joaquim Mattoso
Câmara Júnior (1978: 52) diz ter chegado a uma conclusão inicial sobre
estilística léxica: a de que existe uma tonalidade afetiva para as palavras,
decorrente de uma natureza mais ou menos convencional atribuída às coisas
designadas: “A função informativa as evita ou procura empregá-las de maneira
a reduzi-las ao seu significado neutro. A expressividade, ao contrário, faz delas
instintivamente cabos elétricos da mais alta tensão.”
Estilisticamente falando, nenhum termo escolhido para expressar
determinada coisa ou situação é melhor que outro. “Tudo depende das
circunstâncias e da temperatura da frase. Quando a palavra satisfaz todas
estas condições, pode dizer-se que é exata” (Cressot, 1980: 55). Ele cita La
Bruyère, lembrando que dentre todas as diferentes expressões que podem
traduzir um pensamento somente uma adequada, mas nem sempre a
encontramos, seja na fala, seja na escrita; no entanto, “não deixa de ser
verdade que ela existe, que tudo o que não é ela é fraco e não satisfaz um
homem de espírito que quer fazer-se entender” (Cressot, 1980: 55). Ao abordar
67
o que chama de estética do termo próprio, este autor enfatiza: para qualquer
coisa que pretendamos dizer, apenas uma palavra para exprimi-la, aquela
que traduz o pensamento com uma exatidão a um tempo qualitativa e
quantitativa.
Ressalte-se, como acréscimo às idéias apresentadas, que a frase não
tem ritmo como também volume. A frase periódica e a frase curta
apresentam características próprias, segundo Cressot (1980). É o sentido da
palavra que leva à procura de um efeito musical num grupo de sons.
Para encerrar este capítulo, lembre-se o filósofo Theodor Adorno (1983:
194): “só entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz
da humanidade”. A obra de Nóbrega tem as características próprias do artista,
é certo; mas também traz referências inequívocas do universo cultural à sua
volta. A “solidão” do artista ganha, assim, contornos da “humanidade” que ele
representa. E são os efeitos prismáticos de sua obra, para usar uma expressão
de Joaquim Mattoso Câmara Júnior (1978: 3), que se tornarão motivo de
estudo no capítulo 4, segundo o ângulo de observação aqui escolhido: um viés
cultural que tem como um de seus principais objetivos reunir os traços
estilísticos do autor.
68
3.2 – Aspectos semânticos
(em que se reúnem elementos que possam servir de “chão” para estudar
significados da obra do criador de Tonheta)
Eu, viandante, de um chão poento.
Dias queimosos, vida sem idílio.
Preces voltadas para sóis ardentes,
luares claros a buscar o Auxílio.
Para os meus olhos, confusão pasmosa,
batalha surda, secular martírio.
Ai, desatino!
Ai, meu penar!
Ai, velho medo!
Sombra e malpassar!
(Canudos – Madeira que cupim não rói)
Uma vez que à gramática cabe especificar e determinar os mecanismos
utilizados pelos indivíduos para criarem um número infinito de seqüências
sonoras que tenham algum sentido, com base num mesmo repertório
lingüístico, a semântica tem como papel justamente explicitar os mecanismos
que tornam possível produzir e interpretar, intuitivamente, o sentido dessas
seqüências sonoras. Qual o sentido das seqüências sonoras encadeadas por
Nóbrega, contando com o auxílio de seus parceiros? Difícil responder “qual”,
mas pode-se arriscar a sugerir “quais” sentidos e significados estão implícitos
em sua obra, em que letra e música e por que não dizer também a dança?
se amalgamam e se complementam. Na busca dos sentidos da obra desse
brincante pernambucano, tome-se como ponto de partida o estudo do
significado.
No plano lingüístico estrito, os estudos do significado costumam
distribuir-se em três domínios básicos: o da semântica lexical, o da semântica
69
da sentença (independentemente de condicionamentos contextuais ou
situacionais) e o da semântica do texto (relativo ao uso concreto da língua em
textos falados ou escritos, contextual e/ou situacionalmente condicionados)
(Marques, 2001). É a semântica do texto de Nóbrega que interessa aqui,
relativa ao uso concreto da linguagem do artista em seu texto poético-musical,
contextual e/ou situacionalmente condicionado.
Aristóteles definia as palavras como as menores unidades significativas
da fala; na lingüística contemporânea, tais unidades o chamadas de
morfemas.
41
Uma palavra é definida pela associação de um determinado
sentido a um determinado conjunto de sons, susceptível de um emprego
gramatical determinado. Para Leonard Bloomfield, a palavra é a “forma livre
mínima”; e uma frase pode ser definida como uma forma livre, inteiramente
formada por duas ou mais formas livres menores (Ullmann, 1970).
Na epígrafe de seu Tratado de semântica brasileira, Silveira Bueno
(1965) cita o Frei Pedro de Poyares (Dicionário lusitano-latino, Lisboa, 1657):
“Nada digo de minha cabeça e sempre sigo bom autor ou autores e se errar
seguindo-os, errare honestum.” Os bons autores seguidos por Nóbrega, assim
como por Wilson Freire e Bráulio Tavares, são os incontáveis artistas populares
que povoam suas vidas desde a infância, fermentando seu trabalho até o ponto
em que se hoje nos palcos e se ouve nos CDs, no caso do intérprete de
41
O termo morfema tem mais de um uso. Em Morfologia portuguesa, Monteiro (2002: 13-14)
reúne cinco definições para morfema: “Os morfemas são os elementos mínimos das emissões
lingüísticas que contêm um significado individual” (Charles Hockett); “Um morfema é a unidade
mínima no sistema de expressão que pode ser correlacionada diretamente com alguma parte
do sistema do conteúdo (H. A. Gleason Jr.); “Um morfema pode ser definido como ‘unidade
gramatical mínima distintiva’, uma subunidade da palavra, que não pode ser significativamente
subdividida em termos gramaticais” (Mervyn F. Lang); “Os morfemas são as menores unidades
significativas que podem constituir palavras ou partes de palavras” (Eugene A. Nida); “Morfema
70
Tonheta. que, adaptando-se a afirmação de Frei Pedro de Poyares,
Nóbrega muito diz de “sua cabeça”, uma vez que é por meio da forma como ele
pensa e entende a cultura popular nordestina, traduzindo a linguagem popular
através de sua própria linguagem, que unidade e individualidade ao seu
trabalho, reelaborando artisticamente o universo cultural no qual nasceu e foi
criado.
Ao abordar a relação entre língua e fala, pode-se dizer que a língua é
um veículo de comunicação, enquanto a fala é o uso desse veículo por um
dado indivíduo numa determinada ocasião (Ullmann, 1970). Segundo este
autor, a língua é potencial, ao passo que a fala é atualizada.
A fala é o uso que uma pessoa faz da língua numa situação
específica; é um ato individual. Por seu lado, a língua transcende o
individual: é propriedade da sociedade em geral. pode servir como
meio de comunicação se for substancialmente a mesma para todos os
que a falam; é, nas palavras de Saussure, uma instituição social” (...).
Por outras palavras, a língua é a súmula total dos sistemas lingüísticos
que os membros individuais da comunidade têm na memória (1970: 44-
45).
O seguinte quadro traçado por Ullmann (1970) destaca as diferenças
entre língua e fala:
Língua Fala
Código Codificação de uma mensagem
Potencial Atualizada
Social Individual
Fixa Livre
Move-se lentamente Efêmera
Psicológica Psicofísica
A divisão anterior estabelece o contraste entre o atual e o potencial,
entre o individual e o social. Entra aí o que se poderia chamar de língua
é a menor parte indivisível da palavra que, por sua vez, tem uma relação direta ou indireta com
a significação” (Milos Dokulil).
71
individual ou idioleto, conforme designação de lingüistas como Charles F.
Hockett e Robert A. Hall Jr., em destaque na obra de Ullmann:
Este novo termo fica a meio caminho entre os dois pólos de
Saussure: é individual como a fala, em oposição à ngua, que tem um
caráter social; ao mesmo tempo, é potencial como a língua, em
oposição à fala, que é, por definição, actual. Também de outro ponto de
vista ele representa um termo médio: o sistema lingüístico, tal como
existe na memória de um indivíduo, é menos concreto, menos
diretamente acessível ao observador que os atos particulares da fala,
mas é mais concreto e de mais fácil acesso que a língua de uma
comunidade inteira (1970: 48).
Em Saussure (1972), langue e parole são dois aspectos
complementares de uma entidade mais ampla, le langage. E é de uma
linguagem comum a todos (no caso, o povo brasileiro, para não ampliar a idéia
aos povos falantes de língua portuguesa, uma vez que Nóbrega usa termos
caracteristicamente regionais do Nordeste do Brasil) que o criador de Tonheta
se serve para estabelecer uma forma bastante individual de utilizar a língua em
seu trabalho artístico, como se verá em diversos exemplos ao longo do capítulo
4.2 (Análise do corpus). Essa atitude do indivíduo falante em relação à fala e à
língua é acentuada por Ullmann (1970), para quem ele, indivíduo, é o senhor
absoluto da sua fala e é apenas dele que depende o que quer dizer, da mesma
forma como o dirá e até mesmo quando o dirá. O indivíduo pode, se assim o
desejar, desviar-se do uso vulgar e criar uma língua especial para si. Segundo
Barthes (1977), constituem a fala as combinações graças às quais o falante
pode usar o código da língua visando exprimir o pensamento pessoal.
Também pode-se dizer que a fala tem dois aspectos diferentes: um físico,
outro psicológico. “Os sons efetivos são acontecimentos físicos, enquanto que
os significados por eles expressos são fenômenos psicológicos” (Ullmann,
72
1970: 47). Há, portanto, uma relação definida entre a língua e a personalidade.
Assim, ao se abordar o universo lingüístico de Nóbrega, deve-se lembrar que
A língua é um produto social, um conjunto de convenções,
sistema de signos (código) potencial, que permite aos indivíduos o
exercício da faculdade da linguagem. A fala é o uso individual,
momentâneo, concreto da língua. Enquanto a língua é relativamente
estável e se situa no plano psicológico, a fala é variada,
circunstancialmente condicionada, de natureza psicofísica e motora
(Marques, 2001: 44).
Ao historiar a semântica e suas tendências, Maria Helena Duarte
Marques (2001: 23) ressalta, com base em estudos desenvolvidos
recentemente, “o interesse pelas características semânticas dos atos concretos
de fala, no nível da parole e do desempenho ou performance’, em textos
inerentemente condicionados contextual e circunstancialmente”. É necessário
que se levem em conta os contextos lingüísticos e os extralingüísticos, os
intervenientes no discurso, seus conhecimentos e sua experiência, porque são
as condições históricas, culturais e sociais que tornam pertinentes
determinados segmentos lingüísticos. É por isso que as palavras, muitas
vezes, se esvaziam de significado descritivo e ganham apenas valor
sociocomunicativo. É a justaposição de condições culturais, sociais, históricas
e mesmo afetivas que dará significado, por exemplo, a textos como o refrão de
Na pancada do ganzá (“Meu ganzá, meu ganzarino, / meu ganzarino real, / gira
o mundo, treme a terra, / e eu na pancada do ganzá”), como se verá na análise
constante no capítulo 4.2.1.
*******
Ao abordar a diferença entre língua (langue) e fala (parole) feita por
Ferdinand de Saussure, Palmer (1979) acrescenta que essa distinção
reaparece nos trabalhos de Noam Chomsky e seus adeptos em termos de
73
competence (competência) e performance (atualização). Ele lembra a distinção
entre enunciados (utterances) e frases (sentences):
...o que é importante é que um enunciado é um acontecimento no
tempo é produzido por uma pessoa qualquer num momento qualquer,
ao passo que a frase é uma entidade abstrata, sem existência no
tempo, mas fazendo parte do sistema lingüístico de uma língua (Palmer,
1979: 19).
Este autor destaca a importância da entoação para a tradução de fato
do que se está querendo dizer, pois muitas vezes a intenção é transmitir a idéia
oposta das palavras pronunciadas. Tanto Palmer (1979) quanto Ullmann (1970)
citam uma passagem de Alice através do espelho, de Lewis Carroll, que
ressalta a importância de se manejar bem as palavras. É quando o
personagem Humpty Dumpty diz, com ar de troça, que quando usa uma
palavra ela significa exatamente aquilo que ele quer que ela signifique, nem
mais nem menos. E não é exatamente isto o que faz Tonheta ao interpretar
canções como Minervina e Meu foguete brasileiro? Na primeira, ao referir-se à
personagem-título, ele canta: “É minzinguenta quando vai pra brincadeira, / não
bandeira na hora da cavilação.” “Minzinguenta” quer dizer implicante, que
faz pirraça; e “cavilação” é falsidade, fingimento, hipocrisia (Navarro, 2004). A
picardia desse personagem não fica mais bem traduzida pela escolha dessas
duas palavras do que pelo uso dos sinônimos indicados? Certamente que
sim.
No caso de Meu foguete brasileiro, há versos como estes: “Fiz logo uma
escala no chão marciano, / vendi rapadura, comprei tungstênio, / enchi os
meus tanques de oxigênio, / parti outra vez no começo do ano.” Cada verso
tem 11 sílabas e respeita uma determinada seqüência de rimas. Para caber na
métrica, tanto tungstênio quanto oxigênio ganham uma sílaba a mais do que
74
sua divisão normal”: “tun-guis-tê-(nio)” e “o-qui-si-gê-(nio)”. É a liberdade da
palavra falada apropriando-se da palavra escrita para chegar a um objetivo
poético, como diz o autor da letra, Bráulio Tavares.
42
*******
O mundo humano parece definir-se essencialmente como o mundo da
significação. E o mundo somente pode ser chamado “humano” na medida em
que significa algo, como diria Greimas (1971). Na busca de sentidos para o que
se deseja expressar, ninguém deve negar a importância crucial do contexto na
determinação do significado das palavras. Além do contexto verbal, deve-se
prestar atenção ao “contexto de situação”, conceito introduzido por Bronislaw
Malinowski que “significa, em primeiro lugar, a situação efetiva em que uma
expressão ocorre, mas leva a uma visão ainda mais ampla do contexto que
abrange todo o fundo cultural contra o qual é colocado um ato de fala”
(Ullmann, 1970: 106). Para este autor, a concepção de contexto deve
ultrapassar os limites da mera lingüística e transportar-se para a análise das
condições gerais em que uma língua é falada. Dessa forma, o estudo de
qualquer língua deve ser conduzido simultaneamente com o estudo da sua
cultura e do seu meio ambiente.
Outro fator que depende largamente do contexto é o aspecto
emotivo do significado da palavra. Em princípio, praticamente qualquer
termo pode adquirir tonalidades emotivas num contexto apropriado;
inversamente, palavras com uma forte carga emotiva podem
ocasionalmente ser empregadas de um modo puramente objetivo
(Ullmann, 1970: 110).
A linguagem escrita pode, em grande parte e sem perdas, ser convertida
em discurso. No entanto, o inverso não é verdadeiro, porque se costuma
42
Ver capítulo 2.2.2.
75
perder algo sempre que se escreve alguma coisa que foi dita, uma vez que a
linguagem falada tem características marcantes que não podem ser facilmente
representadas na linguagem escrita. Em particular, possui o que se chama de
elementos prosódicos e paralingüísticos. “Os elementos prosódicos incluem,
em primeiro lugar, tudo o que diz geralmente respeito à entoação e à
acentuação” (Palmer, 1979: 20). A entoação, assim, está inteiramente a serviço
do falante; sabemos quanto Tonheta “carrega” no seu deboche por meio da
forma como entoa determinadas palavras.
Também o significado é transmitido por elementos paralingüísticos como
o ritmo, o tempo, a altura do som (gritar ou falar em surdina, por exemplo, é
muito significativo).
Cumulativamente, quando falamos, usamos muitos sinais
extralingüísticos (por vezes usa-se também, para os referir, o termo
paralingüísticos) um sorriso ou um piscar de olho podem ser uma
indicação tão exata de que o que dissemos não deve ser tomado em
sentido literal, como a entoação ‘sarcástica’” (Palmer, 1979: 21).
É o mesmo Palmer (1979) quem estabelece diferença entre sentido e
referência, destacando que a referência trata da relação entre os elementos
lingüísticos, palavras, frases etc. e o mundo da experiência, extralingüístico.
o sentido esrelacionado ao complexo sistema de relações que os próprios
elementos lingüísticos (sobretudo as palavras) estabelecem entre si. Refere-se
apenas às relações internas da língua. Assim, a referência diz respeito às
relações entre a língua e o mundo extralingüístico da experiência; o sentido
ocupa-se das relações internas da língua.
Introduzir-se-ão agora três conceitos que se mostrarão úteis no capítulo
4: trata-se de palavras transparentes e opacas e frases idiomáticas. Costuma-
se classificar as palavras em transparentes e opacas, sendo transparentes
76
aquelas cujo significado pode ser determinado a partir do significado das partes
que as compõem, e opacas aquelas que não permitem a utilização dessa
técnica (Ullmann, 1970). E frase idiomática é uma seqüência de palavras cujo
significado global não pode ser determinado a partir do significado das palavras
que a constituem. Trata-se de expressões como “fazer das tripas coração”.
Saussure (1972) dividiu as línguas em dois grupos: línguas “lexicológicas”, que
têm preferência por palavras opacas, e “gramaticais”, nas quais predomina o
tipo transparente.
Todos os idiomas contêm certas palavras arbitrárias e opacas,
sem qualquer conexão entre o som e o sentido, e outras que, pelo
menos em certo grau, são motivadas e transparentes. Há três aspectos
principais da motivação que agora podemos ver mais claramente: como
funciona numa língua particular; como pode variar no decurso do tempo;
finalmente, como varia o seu âmbito de uma ngua para outra (Ullmann,
1970: 169).
Ressalte-se ainda que a etimologia popular pode fornecer motivação
semântica a um termo opaco:
A etimologia popular não difere essencialmente da sua irmã
culta, a etimologia dos filólogos. Mais viva, mais “operante” que esta
última, faz instintivamente, intuitivamente e logo à primeira vista o que a
outra faz intencionalmente, com grande reforço de livros e de verbetes
(J. Orr, apud Ullmann, 1970: 217).
A Análise do corpus destacará exemplos de palavras transparentes e
opacas e de frase idiomática no repertório de Nóbrega, levando-se em conta
que em semântica não é possível considerar a existência de capacidade
lingüística desligada do conhecimento do mundo (Palmer, 1979).
*******
77
O significado dos elementos lingüísticos pode ser considerado como
totalmente explicável em termos da situação em que é usado. Analisando
elocuções específicas, podemos identificar as unidades que formam a língua.
Em face da natureza mista, psicofísica, da fala, dois caminhos se
nos abrem: podemos analisar um pedaço de discurso ligado, do ponto
de vista físico, como uma cadeia de sons, e do ponto de vista
psicológico, como um veículo de significado. Uma vez que a maioria das
elocuções são formadas por mais que um elemento significativo,
necessitaremos também de um terceiro critério: teremos que estudar as
relações que existem entre as diversas unidades (Ullmann, 1970: 51).
Leve-se em conta que as alterações semânticas podem ser devidas a
três causas gerais (lingüísticas, históricas e sociais) provenientes de fatores
relacionados à imprecisão intrínseca do sentido das palavras, assim como à
perda progressiva das suas origens etimológicas e também à descontinuidade
do processo de transmissão da linguagem.
Assim, toda mudança de sentido é uma inovação semântica, que
deve ser interpretada como um acontecimento histórico particular, que
tem causas lingüísticas próprias, ocorre num momento histórico e num
dado meio social, condicionada por um conjunto de circunstâncias que
não só lhe dão origem, mas propiciam a sua difusão e generalização no
uso da comunidade (Marques, 2001: 35).
A expressão lingüístico-poético-musical de Nóbrega também pode ser
analisada tendo como base um dos quatro tipos básicos
43
de mudanças de
significados propostos por Léonce Roudet: alterações semânticas decorrentes
de semelhanças formais entre palavras (etimologia popular, homonímia,
paronímia) (Marques, 2001).
É preciso ainda levar em conta aspectos psicológicos ligados à
afetividade que podem explicar as alterações de sentido e a criação vocabular.
43
Os outros três tipos básicos de mudanças de significados apresentados por este autor são:
alterações semânticas decorrentes de semelhança entre duas noções (metáforas); alterações
semânticas decorrentes de contigüidade entre duas noções (metonímias); e as alterações
semânticas decorrentes de contigüidade entre palavras (elipses) (Marques, 2001: 36).
78
Assim, de modo a dar vazão à afetividade e à emoção centradas num dado
tema, é possível tomá-lo como núcleo de expansão semântica para a criação
de novos significados por meio de comparações mentais, referências indiretas
e processos metafóricos em geral. Em razão dos mesmos motivos de
afetividade e emoção centradas num dado tema, é possível tomá-lo como
núcleo de atração semântica, através de meios diversos de nomeá-lo ou a ele
fazer referência, em processos sinonímicos, metonímicos e designações
figuradas indiretas, por exemplo.
Numa dada comunidade, circunstâncias históricas individuais ou
coletivas se tornam, em determinado momento, os focos de atração de
expansão afetiva, dos quais se originam motivações psíquicas que, de
um lado, produzem inovações e criações vocabulares que caracterizam
as alterações semânticas e, de outro lado, permitem apreender os
centros de interesse afetivo, intelectual e moral daquela comunidade,
num dado momento de sua história. Adquirem particular importância,
nesse duplo movimento de expansão e atração, os fenômenos ligados à
origem de tabus, eufemismos, disfemismos, evoluções pejorativas e
valorativas de palavras e criações lexicais, locucionais etc. (Marques,
2001: 36).
Ao longo das letras que formam o repertório de Nóbrega, as inovações
lingüísticas e as alterações de significado podem ser interpretadas como
resultado de um permanente esforço de ajuste entre a expressão, o
pensamento e o sentimento, com base em associações entre a forma e o
sentido das palavras. É nessa incessante busca por uma expressão adequada
de idéias e emoções por meio da linguagem que atuam fatores internos e
externos, os quais desencadeiam mudanças de significados das palavras em
relação aos conceitos básicos ou aos referentes que evocam para os falantes e
os ouvintes (Marques, 2001).
Edward Sapir (1961) não via a linguagem como fenômeno independente
de condicionamentos históricos, culturais, sociais e aspectos psicológicos dos
79
indivíduos que a falam. Para ele, estudar o significado é estudar a própria
linguagem, que a língua serve não para exprimir idéias como também
para veicular uma representação e uma determinada interpretação da
realidade. A linguagem torna-se, no entender de Sapir, um fenômeno simbólico
inseparável da cultura, da filosofia e da psicologia; é um inventário complexo de
idéias, interesses e ocupações que mobilizam a atenção da comunidade.
Outro estudioso do assunto, John Rupert Firth, acentuou essa visão
contextual dos fenômenos lingüísticos, destacando a função social como o
traço mais importante da linguagem. Ao desenvolver o pensamento deste
teórico, Marques (2001: 42) assinala:
Cada enunciado numa língua ocorre num contexto de situação
culturalmente condicionado, e o significado dos enunciados é a
totalidade de traços que deles participam, para indicar os padrões
culturais da sociedade em que o falante vive, o papel social e as
características de personalidade desse falante, no seio da sociedade.
O universo regional de Antonio Nóbrega é aspecto indissociável de sua
obra, assim como o é de seus parceiros, os quais também são nordestinos.
*******
Para a Análise do corpus, também valerá a idéia da distinção feita por
Henry Sweet entre palavras-plenas e palavras-forma.
Palavras-plenas são essencialmente aquelas que podem ser
tratadas com uma certa propriedade pelo dicionário, ao passo que as
palavras-forma (apesar de virem sempre referidas no dicionário) têm de
ser tratadas pela gramática da língua (apud Palmer, 1979: 131).
As palavras-plenas têm algum significado mesmo quando aparecem
isoladas, enquanto as palavras-forma não têm significado próprio
independente, sendo elementos gramaticais que contribuirão para o significado
da frase ou da oração, quando usados em conjunção com outras palavras.
80
Segundo Ullmann (1970), as palavras plenas são “auto-semânticas”,
significativas por si próprias, enquanto que os artigos, preposições, conjunções,
pronomes, advérbios e outros são “sinsemânticos”, isto é, significativos apenas
quando aparecem acompanhados por outras palavras.
Ludwig Wittgenstein afirmou que o significado de uma palavra pode ser
definido como o seu uso na língua (apud Ullmann, 1970). Em sua
interpretação, a língua é um instrumento, assim como os seus conceitos são
instrumentos. Ele faz um paralelo com uma caixa de ferramentas, na qual
utensílios como martelo, alicate, serrote, chave de parafusos etc. As funções
das palavras tornam-se diversas como as funções desses objetos. Pode-se
associar as ferramentas contidas nessa caixa à quantidade de utensílios que
Tonheta leva em sua nave, como relata a letra de Meu foguete brasileiro:
“Mandei buscar logo cem chapas de aço, / latão, alumínio, ferro de soldar, / dez
mil arrebites para reforçar / a parte de fora da infra-estrutura”, por exemplo; ou
então: “tem saca de açúcar, tonel de carvão, / baú de café, tora de madeira”;
“barraca de praia, caixa de bebida, / ganzá, cavaquinho, tantã, realejo...” Cada
palavra é uma ferramenta que compõe o universo fantástico desse
personagem. Nessa letra, parceria de Nóbrega com Bráulio Tavares, a escolha
de cada palavra deve-se não à sua sonoridade, mas especialmente ao seu
significado, com a função de estabelecer o caráter rabelaisiano e multifacetado
desse “foguete brasileiro”. Assim, o verdadeiro significado de uma palavra deve
ser buscado na observação do que um homem faz com ela, não no que diz
acerca dela; e exemplifica-se claramente como a expressividade de certas
81
combinações sonoras influencia um autor na escolha das palavras que utiliza
em sua obra.
Para encerrar esses pressupostos teóricos referentes à semântica,
deve-se dizer que qualquer palavra, mesmo a mais vulgar e prosaica, pode ser
rodeada de uma aura emotiva, conforme o contexto. Como diz H. Delacroix,
Toda a linguagem tem um certo valor emotivo: se o que eu digo
me fosse indiferente, não o diria. Ao mesmo tempo, toda a linguagem
aspira a comunicar qualquer coisa. Se não se tivesse absolutamente
nada para dizer, não se diria nada (Ullmann, 1970: 265).
Nóbrega tem muito a dizer, com sua obra, de seu universo cultural. A
seus mestres, ele presta constante tributo, como esclarece Sambada dos
Mestres: “As sete chaves das artes / eu trago todas comigo. / Com elas na
minha mão / enfrento qualquer perigo. / As tenho como presentes / dos
Mestres, grandes amigos.” As palavras apresentam uma independência
relativa, mas o contexto é de fundamental importância na determinação do seu
significado (Ullmann, 1970). Os mestres que Nóbrega louva não são simples
mestres, mas Mestres, com inicial maiúscula. A eles muito deve sua inspiração
de brincante. E foi a arte desse nobre discípulo de tantos “Mestres” que deu o
mote para que se glosasse aqui essa série de considerações sobre o
significado de tão numerosos versos escritos e cantados, que serão estudados
canção a canção no capítulo Análise do corpus.
82
3.3 – Aspectos dialetológicos
(em que se mostram elementos teóricos relacionados à influência da gênese
regional na obra de um artista popular brasileiro)
Me casei com uma mestiça,
eu mestiço por inteiro.
Tivemos muitos mestiços
cada vez mais verdadeiros,
cada vez mais misturados,
cada vez mais brasileiros.
(Mestiçagem – O marco do meio-dia)
No subtítulo deste capítulo, pensou-se em chamar brega de “artista
popular nordestino”, o que seria uma forma simplista de “classificá-lo”, uma vez
que o alcance de seu trabalho vai muito além de seu estado e sua região de
origem, extrapolando as linhas isoglóssicas
44
e até os limites territoriais em
que foi gerado e ultrapassando mesmo as fronteiras do Brasil (em julho de
2005, por exemplo, o espetáculo Lunário perpétuo foi apresentado na França e
na Rússia; em 2003, havia chegado a Portugal). Dessa forma, pretende-se
mostrar que o regionalismo pode influir decisivamente na formação de um
artista, mas de modo algum circunscrevê-lo à sua área de nascimento e
formação. É o que se verá neste capítulo, com base na reunião de elementos
teóricos com base em estudos dialetológicos.
Segundo Mattoso Câmara Júnior (2001: 94), a dialetologia é “o estudo
do arrolamento, sistematização e interpretação dos traços lingüísticos dos
dialetos”. Este autor apresenta duas técnicas para o desenvolvimento da
dialetologia: a da geografia lingüística, que busca a distribuição geográfica de
44
De acordo com Joaquim Mattoso Câmara Júnior (2001: 160), dá-se o nome de linha
isoglóssica “a uma linha convencional que se traça no mapa de um território lingüístico para
assinalar os pontos onde vigora um dado traço lingüístico”.
83
cada traço lingüístico dialetal, consolidado nos atlas lingüísticos; e a da
descrição dos falares por meio de monografias dedicadas a uma dada região,
compondo gramáticas e glossários regionais. Assim, a dialetologia estuda as
variações lingüísticas delimitadas no espaço geográfico e nos agrupamentos
sociais dos diferentes sistemas lingüísticos ou dialetos que caracterizam as
diversificações de uma língua, restritas ao espaço geográfico que ocupa.
Conseqüentemente, tem como campo de estudos os falares regionais com
suas delimitações geográficas, caracterizadas por diferenças próprias na
fonética, no léxico e na gramática.
Jean Dubois (1978) reforça os dois aspectos enfocados na dialetologia:
a descrição dos diferentes sistemas ou dialetos em que se diversifica uma
língua e o estabelecimento dos limites de um espaço geográfico de uma fala
que pode ser tomada isoladamente, sem se preocupar com os falares vizinhos
ou com os que pertençam à mesma família lingüística.
A condição de mutabilidade da língua é abordada por Eugênio Coseriu
(1979), quando diz que ela é uma característica essencial e necessária, uma
vez que a língua não está feita, mas faz-se continuamente pela atividade
lingüística. No seu entender, a língua muda porque é falada; como o falar é
uma atividade criadora e livre, é sempre novo. Ressalte-se ainda que Coseriu
faz uma distinção entre a língua abstrata, aquela que não muda, e a língua
real, que muda. A primeira existe no interior de cada falante, onde se
encontram todas as possibilidades oferecidas pela estrutura interna da língua
que os falantes usam individualmente, provocando alterações e mudanças na
língua real em seu existir concreto. Tais alterações são lentas e progressivas e
84
refletem uma tendência geral dos falantes, a de buscar se expressar
individualmente e de maneira clara. Dessa forma, qualquer alteração na língua
existe quando parte dos seus usuários “impõe”, ainda que
inconscientemente, mudanças a que ela está sujeita. Essa criatividade e essa
liberdade no uso da língua aparecem nas letras de Nóbrega, Bráulio Tavares e
Wilson Freire, como será visto no próximo capítulo.
A geografia lingüística, ao mesmo tempo que revela variados
mecanismos de diferenças entre as línguas, por meio de dados fonéticos,
morfológicos, vocabulares e semânticos, permite a interpretação de valores
evocativos e afetivos no plano semântico-lexical (Marques, 2001). Muitas vezes
os dialetologistas ou os geógrafos lingüistas partem em busca de palavras que
possam designar objetos ou processos particulares em determinada área.
É na linguagem que se refletem a identificação e a diferenciação
de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes
agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de
escolaridade. A fala, assim, tem um caráter emblemático, que indica se
o falante é brasileiro ou português (...) e, mais ainda, sendo brasileiro,
se é nordestino, sulista ou carioca (Leite & Callou, 2002: 7).
Na vasta extensão do território brasileiro uma unidade lingüística, a
língua portuguesa, o que é de conhecimento geral; no entanto, deve-se
destacar que dentro dessa unidade uma grande diversidade, que são os
falares brasileiros. Apesar de se notarem grandes variações no léxico e na
pronúncia de uma região para outra do país, tal fato não prejudica a unidade
mais ampla de compreensão e comunicação entre os falantes brasileiros.
A grande variação lingüística brasileira é explicada, no entender do
filólogo Antônio Houaiss, pelo processo de colonização do país: “dialetação
horizontal por influxo indígena e diferenciação vertical entre a fala do luso e a
85
fala do nascido e criado na terra” (Leite & Callou, 2002: 9). Da reunião dessa
variedade de componentes vem a máxima de que o português do Brasil
caracteriza-se, ao mesmo tempo, pela unidade na diversidade e pela
diversidade na unidade.
Como disse Sílvio Elia, o que se verifica na linguagem das diferentes
áreas em que se subdivide o português do Brasil é uma oposição entre o
campo e a cidade, entre as áreas rurais e as urbanas, as quais se
interinfluenciam continuamente. A seleção vocabular, a norma gramatical e o
“polimento do bem-dizer” são dados pelas cidades, ao passo que os campos
contribuem com o que o autor chama de força viva da linguagem, com as
grandes tendências coletivas e com o material intenso, no entanto genuíno e
despreocupado (Elia, 1976).
Os estudos dialetológicos no Brasil vêm se ampliando cada vez mais.
45
De modo a filtrar, entre tantas informações constantes nas indicações dadas na
nota anterior, aquelas consideradas mais adequadas para a realização do
trabalho empreendido nesta tese, tome-se como ponto de partida o fato de que
numa língua histórica, como é o caso do português, três tipos fundamentais
de diferenças internas: as de espaço geográfico (diferenças diatópicas);
aquelas entre os distintos estratos socioculturais de uma mesma comunidade
45
A intenção aqui é reunir elementos teóricos que sirvam para embasar o estudo dialetológico
da obra de Antonio Nóbrega. Para um estudo mais profundo sobre a geografia lingüística no
Brasil, ver, entre outros, os seguintes títulos: Brandão (1991), Ferreira & Cardoso (1994),
Ferreira et al. (1994), Aguilera (1998), Castro (2001), Razky (2003). Leite & Callou (2002)
traçam um sintético porém consistente panorama sobre o jeito de falar dos brasileiros. Com
relação aos primórdios dos estudos dialetológicos em âmbito internacional, cite-se La
géographie linguistique (Dauzat, 1922), obra que tem como foco a elaboração de um atlas
lingüístico para a França, abordando fenômenos internos e externos à linguagem. Acresçam-se
a esses títulos os clássicos estudos O dialeto caipira, de Amadeu Amaral (1920); O linguajar
carioca e O idioma nacional, de Antenor Nascentes (1953, 1960); e o Guia para estudos
dialectológicos, de Serafim da Silva Neto (1957), além de Dubois (1978) e Coseriu (1979).
86
idiomática (diferenças diastráticas); e aquelas entre os tipos de modalidade
expressiva, de estilos distintos, de acordo com as circunstâncias em que se
realizam os atos de fala (diferenças diafásicas). Acrescentem-se a esses tipos
as diferenças de idades e de gerações (Ferreira & Cardoso, 1994).
Deve-se observar, no entanto, que dentro dessa variedade existe a
unidade em função de relativa homogeneidade garantida pela soma dos traços
lingüísticos comuns, o que nos leva à elaboração do seguinte quadro, com
base em Ferreira & Cardoso (1994):
Diferenças diatópicas
Diferenças diastráticas Diferenças diafásicas
Unidades sintópicas
(dialetos: dialeto
nordestino, dialeto de
Pernambuco etc.)
46
Unidades sinstráticas
(linguagem culta,
linguagem popular, de
classe média etc.)
Unidades sinfásicas
(estilo de língua:
linguagem formal,
familiar, literária etc.)
Em cada uma dessas unidades pode haver diferenças, como indicado a
seguir:
Unidade sintópica (dialeto de determinada região) diferenças diastráticas
(socioculturais) ou diafásicas (de estilo).
Unidade sinstrática (como a linguagem popular) diferenças diatópicas (regionais) e
diafásicas (de estilo).
Unidade sinfásica (como a linguagem familiar, literária, formal etc.) diferenças
diatópicas (regionais) e diastráticas (socioculturais).
Retomando a idéia de isoglossas (linhas virtuais que marcam limites de
formas e expressões lingüísticas): elas o podem delinear contrastes e
semelhanças em espaços geográficos (isoglossas diatópicas) como também
46
Aprofundar a questão teórica referente a dialeto não é objetivo desta tese.
87
mostrar contrastes e semelhanças lingüísticas socioculturais (isoglossas
diastráticas), podendo ainda configurar diferenças de estilos (isoglossas
diafásicas) (Ferreira & Cardoso, 1994). Estas autoras também destacam que
uma isoglossa pode ser lexical (isoléxica), nica (isófona), morfológica
(isomorfa) e sintática.
Veja-se agora o “caso” Antonio Nóbrega:
Unidade sintópica
Unidade sinstrática
Unidade sinfásica
“Dialeto” nordestino,
especificamente o de
Pernambuco.
Linguagem popular, sem
descuidar da linguagem
culta.
Estilo informal, familiar,
simultâneo à utilização
de um estilo literário,
poético.
Tanto a entonação quanto a pronúncia, a escolha vocabular e a
preferência por determinadas construções frasais, assim como os mecanismos
morfológicos que lhes são peculiares, podem servir de índices que
identifiquem:
a) o país ou a região de que se origina [o falante];
b) o grupo social de que faz parte (seu grau de instrução, sua
faixa etária, seu nível socioeconômico, sua atividade
profissional);
c) a situação (formal ou informal) em que se encontra (Brandão,
1991: 6).
Sem dúvida alguma, os aspectos históricos, sociais e culturais
subjacentes à região de onde se origina cada falante são fundamentais para
definir a sua forma de se exprimir lingüisticamente e Antonio Nóbrega é um
grande exemplo dessas premissas. Exemplifique-se com um trecho da letra de
Nascimento do Passo: “No frevedouro / fiz um grande rebuliço, / preto, branco
88
e mestiço, / eu chamei pro bafafá. / Azuretada, / a corriola destrambelha, /
sacoleja, se destelha, / no maior calunguejar.” Mais um exemplo, agora de
Pernambuco falando para o mundo: “Pitomba, preaca, pife e pandeiro / Esse é
o encontro, é essa emoção / (...) / Ascenso, arrecifes, angolas arteiros /
Maraca, mascates e maracatu.” Um leitor do Sul, do Sudeste ou do Centro-
Oeste do Brasil poderá ter dificuldade para compreender imediatamente
algumas das palavras usadas, o que um leitor ou ouvinte do Nordeste ou do
Norte do país fará com muito mais facilidade.
Os diversos termos regionais que formam o repertório lingüístico de
Nóbrega como os apresentados nos versos reproduzidos pouco serão
destacados ao longo do próximo capítulo, de modo a se esmiuçar da melhor
maneira possível a forma como esse brincante nordestino se comunica com
seu vasto público, traduzindo perfeitamente a linguagem de sua região de
origem.
89
4 – Corpus
(em que se tecem comentários sobre uma rede de versos que, casados com
determinadas melodias e aliados a um modo bastante particular de interpretá-
los, traduzem a expressão lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega)
Dando início à jornada
de toques, loas e canções,
celebrando a alegria
com o fervor das orações,
licença peço pra entrar
em vossos bons corações.
(Apresentação dos músicos – O marco do meio-dia)
4.1 – Apresentação
Tanto os espetáculos quanto os CDs de Antonio Nóbrega seguem uma
estrutura semelhante em seu roteiro, desde a saudação ao público até a
despedida, passando por gêneros musicais como romance, frevo, coco,
maracatu rural e ciranda (caracterizando o momento de bis dos espetáculos),
entre outros, além de números instrumentais. Tal é a estrutura dos espetáculos
populares nos quais ele se inspira, os reisados. No final de suas
apresentações, é comum praticamente toda a platéia se dar as mãos para
participar de uma ciranda, dançando um frevo em seguida. Nas palavras de
Walter Carvalho, cineasta e fotógrafo que dirigiu a gravação do DVD Lunário
perpétuo,
47
Nóbrega tece, em seu trabalho, “uma renda a partir do romance
oral e do encontro das raízes mouras com o folclore do Nordeste”.
48
47
Ver Referências Discográficas.
48
Jornal O Globo, 30/10/2003 (www.oglobo.com.br).
90
A canção de abertura, seguindo a tradição de cantadores do Nordeste,
costuma trazer um pedido de licença para que o artista possa se apresentar
(Loa
49
de abertura, Abrição de portas, Apresentação dos músicos), ou então
um convite ao público para assistir à cantoria e ao espetáculo (Vinde, vinde,
moços e velhos). Temas populares são recriados por Nóbrega, aproveitando a
diversidade de manifestações artísticas regionais como o cavalo-marinho e a
nau-catarineta.
Ele interpreta não suas próprias canções, feitas com os parceiros
Wilson Freire, Bráulio Tavares (os dois mais freqüentes, conforme visto no
capítulo 2), Ariano Suassuna, Marcelo Varella, Zezinho Pitoco e Dimas Batista
Patriota, como também adaptações de temas de domínio público e obras de
outros autores. O artista ainda dedica momentos de seus discos e espetáculos
à apresentação de temas instrumentais, de sua autoria (Rasga do Nordeste,
Ponteio acutilado) ou de outros compositores, com a intenção de mostrar a
diversidade da música brasileira (Pagão, choro de Pixinguinha; Risada da
Chiquinha, polca de Jair Pimentel; os frevos Lágrimas de um folião, de Levino
Ferreira; Cocada, Corisco e Canjiquinha, de Lourival Oliveira; Formigão, de
Felinho; e Luzia no frevo, de Antonio Sapateiro). Também o movimento do
concerto de Bach em menor para rabeca e flauta faz parte do repertório de
Na pancada do ganzá, assim como a guarânia Serenata suburbana, gênero
normalmente associado ao Centro-Oeste brasileiro, mas aqui uma composição
(letra e música) do pernambucano Lourenço Fonseca Barbosa, o popular
Capiba. O frevo Vassourinhas, de Matias da Rocha e Joana Batista, uma
49
“Discurso laudatório; elogio, apologia” (Ferreira, 1995: 1042); “discurso elogioso em que se
enaltece o mérito de alguém, de algum feito, ou de algo” (Houaiss & Villar, 2001: 1775).
91
espécie de hino do carnaval pernambucano, aparece em Pernambuco falando
para o mundo em ritmo de valsa, em arranjo do violonista Edmilson Capeluppi,
demonstrando o virtuosismo dos músicos que costumam acompanhar Nóbrega
nos espetáculos: além de Edmilson (violões de seis e de sete cordas, viola,
cavaquinho e bandolim), Zezinho Pitoco (clarinete, saxofone, percussão),
Antonio Bombarda (acordeom), Eugênia Nóbrega (flautas), Daniel Alain
(saxofone e flauta), Edson Alves (violão e viola), Gabriel Almeida (percussão),
Mário Gaiotto (percussão, incluindo o marimbau). Eugênia é irmã de Nóbrega e
Gabriel é filho dele. Uma presença mostra-se indispensável nas apresentações
e na carreira do artista: sua mulher, Rosane Almeida que, além de dançar,
apresenta números de acrobacia. A filha dos dois, Maria Eugênia, faz
participações esporádicas como dançarina.
O roteiro dos espetáculos vai “esquentando” aos poucos: se no início
Nóbrega fica sentado em um banco (já ensaiando os primeiros passos de
dança) ou então diante do microfone, com o violão, a viola, a rabeca ou o
pandeiro, aos poucos ele passa a tomar conta de todo o palco e chega a dar
verdadeiras aulas de como dançar frevo – ritmo ágil por excelência – e coco.
espetáculos em que ele cede a vez para um entremez de seu “alter
ego” Tonheta, garantia de boas risadas da platéia. Em seguida, é a vez de um
número musical mais lírico que prepara o encerramento do espetáculo, com a
canção temática, espécie de fio condutor (Na pancada do ganzá, Madeira que
cupim não rói, Pernambuco falando para o mundo, O marco do meio-dia ou
Lunário perpétuo). No final, um tema de despedida, agradecendo a atenção do
92
público e desejando um breve reencontro. No bis, é hora de todos dançarem
ciranda, coco e frevo.
A seguir, estão relacionadas as músicas de todos os CDs, cujas letras
aparecem completas no Anexo 1. Será feita uma análise, à luz dos elementos
teóricos apresentados no capítulo anterior, apenas das obras que levam a
assinatura de Nóbrega, incluindo suas parcerias e as adaptações que ele fez
de temas de domínio público. Eis a lista de músicas, cuja seqüência
normalmente é seguida à risca nos espetáculos:
Na pancada do ganzá
1 – Loa de abertura (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega).
2 – Vinde, vinde, moços e velhos (Domínio público – Recriação musical de Antonio
Nóbrega).
3 – Truléu da Marieta (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega).
4 – A vida do marinheiro (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega).
5 – Truléu, léu, léu, léu, léu (Domínio público – Recriação musical de Antonio
Nóbrega).
6 – Serenata suburbana (Capiba).
7 – Marcha da folia (Raul Moraes).
8 – Boi Castanho (Getúlio Cavalcanti).
9 – O romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar (Domínio público –
Recriação musical de Antonio Nóbrega).
10 – 1º movimento do concerto de Bach em ré menor para rabeca e flauta (Johann
Sebastian Bach – Transcrição de Toninho Ferragutti e Edmilson Capeluppi)
(Instrumental).
11 – Desassombrado (Antonio Nóbrega).
12 – Mexe com tudo (Levino Ferreira) (Instrumental).
13 – Minervina (Antonio Nóbrega e Marcelo Varella).
14 – Mateus Embaixador (Antonio Nóbrega).
15 – Na pancada do ganzá (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
16 – Despedida (Domínio público – Recriação musical de Antonio Nóbrega).
Madeira que cupim não rói
1 – Abrição de portas (Domínio público – Adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson
Freire).
2 – Canudos (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
93
3 – Chegança (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
4 – Quinto império (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
5 – Olodumaré (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
6 – Nascimento do Passo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
7 – Andarilho (Dalton Vogeler e Orlando Silveira).
8 – O vaqueiro e o pescador (Antonio Nóbrega e Dimas Batista Patriota).
9 – Quando as glórias que gozei... (Domínio público).
10 – Madeira que cupim não rói (Capiba).
11 – Corisco (Lourival Oliveira) (Instrumental).
12 – Monga (Domínio público – Adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
13 – Coco da lagartixa (Domínio público – Adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson
Freire).
14 – Maracatu Misterioso (Antonio José Madureira e Marcelo Varella).
15 – Rasga do Nordeste (Antonio Nóbrega) (Instrumental).
16 – Lição de namoro (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
17 – Sambada dos Mestres (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
18 – Vou-me embora (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
Pernambuco falando para o mundo
1 – Vinde, vinde, moços e velhos (Domínio público – Recriação musical de Antonio
Nóbrega).
2 – Festa da padroeira (Capiba).
3 – Chegança (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
4 – Olodumaré (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
5 – Cantigas de roda (Getúlio Cavalcanti).
6 – A dor de uma saudade (Edgard Moraes).
7 – Cocada (Lourival Oliveira) (Instrumental).
8 – Pau-de-arara (Luiz Gonzaga e Guio de Moraes).
9 – Mulher-peixão (Luiz de França).
10 – Minervina (Antonio Nóbrega e Marcelo Varella).
11 – Seleção Capiba (De chapéu-de-sol aberto, Oh! Bela, Cala a boca, menino, Frevo
e ciranda, Trombone de prata).
12 – Vassourinhas (Matias da Rocha e Joana Batista).
13 – Formigão (Felinho) (Instrumental).
14 – Pernambuco falando para o mundo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
15 – Despedida (Domínio público – Adaptação de Wilson Freire).
O marco do meio-dia
1 – Apresentação dos músicos (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
2 – Dança do mergulhão (Domínio público) (Toque instrumental de banda cabaçal).
50
3 – Mestiçagem (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
4 – Viagem maravilhosa (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Wilson Freire).
50
Ver Glossário.
94
5 – Zumbi (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
6 – Risada da Chiquinha (Jair Pimentel) (Instrumental).
7 – Coco da bicharada (Recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio
Nóbrega e Wilson Freire).
8 – Nau (Antonio José Madureira) (Instrumental).
9 – Estrela-d’alva (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho Pitoco).
10 – Flecha fulniô (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
11 – Romance do Aleijadinho (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
12 – Galope beira-mar para Bispo do Rosário (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
13 – Dança dos arcos (Domínio público – Adaptação de Manuel Salustiano) (Tema de
São Gonçalo e da “Pata piou”).
14 – Martelo d’o marco do meio-dia (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna).
Lunário perpétuo
1 – O rei e o palhaço (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares).
2 – Ponteio acutilado (Antonio Nóbrega) (Instrumental).
3 – Romance da filha do imperador do Brasil (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna).
4 – Carrossel do destino (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares).
5 – Romance da nau-catarineta (Romance tradicional recriado por Ariano Suassuna
com base em toadas populares).
6 – Canjiquinha (Lourival Oliveira) (Instrumental).
7 – A morte do touro Mão de Pau (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna).
8 – Pagão (Pixinguinha) (Instrumental).
9 – Excelência (Recriação literária de Ariano Suassuna com base em toadas
populares).
10 – Meu foguete brasileiro (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares).
11 – Luzia no frevo (Antonio Sapateiro) (Instrumental).
12 – Delírio (Antonio José Madureira e Marcelo Varella).
13 – Lágrimas de um folião (Levino Ferreira) (Instrumental).
14 – O romance de Riobaldo e Diadorim (Antonio Nóbrega e Wilson Freire).
15 – Lunário perpétuo (Antonio Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares).
Agora veja-se esta mesma relação de músicas dividida conforme os
parceiros, incluindo as obras adaptadas ou feitas só por Nóbrega:
Na pancada do ganzá
Canções de domínio público com recriação musical de Antonio Nóbrega:
Loa de abertura
Vinde, vinde, moços e velhos
Truléu da Marieta
A vida do marinheiro
Truléu, léu, léu, léu, léu
O romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar
Despedida
95
Letra e música só de Nóbrega:
Desassombrado
Mateus Embaixador
Nóbrega e Marcelo Varella:
Minervina
Nóbrega e Wilson Freire:
Na pancada do ganzá
Madeira que cupim não rói
Canções de domínio público adaptadas por Nóbrega e Wilson Freire:
Abrição de portas
Monga
Coco da lagartixa
Nóbrega e Wilson Freire:
Canudos
Chegança
Quinto império
Olodumaré
Nascimento do Passo
Lição de namoro
Sambada dos Mestres
Vou-me embora
Poema de Dimas Batista Patriota musicado por Nóbrega:
O vaqueiro e o pescador
Canção indicada apenas como de domínio público no encarte do CD:
Quando as glórias que gozei...
Tema instrumental de Nóbrega, original do Quinteto Armorial:
Rasga do Nordeste
Pernambuco falando para o mundo
Indicada apenas como de domínio público no encarte do CD:
Vinde, vinde, moços e velhos
Nóbrega e Wilson Freire:
Chegança
Olodumaré
Pernambuco falando para o mundo
Nóbrega e Marcelo Varella:
Minervina
96
Domínio público com adaptação de Wilson Freire:
Despedida
O marco do meio-dia
Nóbrega e Wilson Freire:
Apresentação dos músicos
Mestiçagem
Zumbi
Flecha fulniô
O romance do Aleijadinho
Galope beira-mar para Bispo do Rosário
"Recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio Nóbrega e Wilson Freire":
Coco da bicharada
Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares:
Viagem maravilhosa
Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho Pitoco:
Estrela-d'alva
Nóbrega e Ariano Suassuna:
Martelo d'o marco do meio-dia
Lunário perpétuo
Nóbrega e Bráulio Tavares:
O rei e o palhaço
Carrossel do destino
Meu foguete brasileiro
Nóbrega e Wilson Freire:
O romance de Riobaldo e Diadorim
Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares:
Lunário perpétuo
Tema instrumental de Antonio Nóbrega, original do Quinteto Armorial:
Ponteio acutilado
Nóbrega e Ariano Suassuna:
Romance da filha do imperador do Brasil
A morte do touro Mão de Pau (aboio)
Romance tradicional recriado por Ariano Suassuna com base em toadas populares:
Romance da nau-catarineta
Recriação literária de Ariano Suassuna com base em toadas populares:
Excelência
97
Quatro canções aparecem em dois CDs: Vinde, vinde, moços e velhos,
Chegança, Olodumaré e Minervina. Nóbrega também aproveita temas
instrumentais que compôs no período em que integrou o Quinteto Armorial,
como Rasga do Nordeste (chamada então apenas de Rasga) e Ponteio
acutilado. O romance do Aleijadinho, que recebeu letra de Wilson Freire,
também é daquela época (aparece no disco Sete Flechas, do grupo citado,
com a autoria de Antonio José Madureira, inspirado em tema popular), assim
como a Excelência (tema nordestino de canto fúnebre), interpretada pelo
quinteto em adaptação de Antonio José Madureira e que depois passou a ser
cantada por Nóbrega, em adaptação de Ariano Suassuna. Composições de
outros autores da época armorial também são aproveitadas, como Cocada e
Marcha da folia.
Vamos agora às considerações sobre os textos poéticos criados por
Nóbrega, sozinho ou com seus parceiros. Neste capítulo são citados
fragmentos de letras (eventualmente, letras integrais). Apesar de a análise se
deter nas composições de Nóbrega (estudar as dos outros autores estaria além
dos limites deste trabalho), no Anexo 1 aparecem as letras integrais de todas
as músicas dos cinco CDs, como já dito, incluindo as que não foram compostas
por ele.
98
4.2 – Análise do corpus
Com base nos pressupostos teóricos apresentados até aqui, será feito
um estudo das letras das músicas à luz de elementos da estilística, da
semântica e da dialetologia, sem deixar de lado comentários sobre o léxico,
com o propósito de caracterizar o universo em que se situa a arte de Antonio
Nóbrega para que se determinem traços estilísticos que identifiquem a
expressão lingüístico-poético-musical desse brincante pernambucano. Este
item subdivide-se conforme os roteiros dos CDs-espetáculos.
Lembre-se inicialmente que, nos estudos estilísticos, como diz Ullmann
(1970), um dos métodos mais freqüentes é a investigação do emprego de
palavras de determinado escritor de modo a averiguar o que é único e
idiossincrático no seu manejo da língua. Ele cita Schopenhauer, que, fazendo
eco da famosa fórmula de Buffon, “Le style, c’est l’homme même”, definiu estilo
como “a fisionomia da mente”, e tal fisionomia pode ser captada melhor
examinando-se o “idioleto” do autor conservado nos seus escritos de forma
mais ou menos estilizada.
Como os constituintes sonoros ou gráficos das formas lingüísticas
“adquirem valores simbólicos por associação de seu significado e de seus sons
a outras formas ou pela sua reiteração, total ou parcial, em novas seqüências
discursivas” (Marques, 2001: 154), procurar-se-á mostrar como se verificam
essa associação e essa análise tendo como ponto de partida o trabalho de um
artista popular do Nordeste brasileiro.
99
4.2.1 – Na pancada do ganzá
Com a Loa de abertura (domínio público recriação musical de Antonio
Nóbrega), o artista pede licença para entrar na “casa” dos
ouvintes/espectadores
51
e dar início à cantoria. É uma prática bastante comum
entre os cantadores nordestinos: saudar seu público e, por meio dessa
louvação, conquistar sua simpatia logo no início da apresentação, para a qual é
pedida a devida licença.
Senhores desta sala
licença eu vou chegando, eu vou.
A voz e a rabeca,
o coração cantando, eu vou.
Nóbrega apresenta duas de suas ferramentas básicas como artista: a
rabeca e a voz. Sem falar no caráter metafórico contido no verso “o coração
cantando, eu vou”, coração visto aqui como uma espécie de instrumento que o
músico também apresenta a quem o ouve ou a quem assiste a seu espetáculo,
na intenção de demonstrar a autenticidade dos sentimentos que impregnam o
seu trabalho artístico, instigando desde então, por meio da simplicidade e da
singeleza, a cumplicidade de todos que estão diante dele.
Ao ouvi-lo, com seu jeito característico de cantar, com a melodia ou
musicalidade peculiar de seu sotaque, não é difícil para um falante de língua
portuguesa familiarizado com os diferentes jeitos brasileiros de falar,
52
conforme as diferentes regiões desse país de dimensões continentais,
51
Ao se utilizar a expressão ouvintes/espectadores, pensa-se tanto em quem escuta o CD, em
sua própria casa, quanto em quem assiste ao espetáculo.
52
Para aprofundar a questão sobre como falam os brasileiros, ver Leite & Callou (2002) e
Ferreira & Cardoso (1994).
100
perceber de imediato a presença de um artista nordestino, por meio de traços
característicos de sua fala. “Em geral a entonação do falar nordestino, no
interior, principalmente, segue uma orientação descendente. As vogais são
marcadas e abertas. Daí a fama de falarmos cantando”, acentua Mário
Marroquim (1996: 25).
Ao cantar os versos, pode-se dizer que Nóbrega decompõe a melodia
com o texto, mas recompõe o texto com a entoação, de acordo com a idéia de
cancionista elaborada por Luiz Tatit (1996) e apresentada aqui na Introdução.
Com sua dicção própria (também aproveitando conceito deste teórico), ou seja,
com seu modo particular de compor/interpretar canções, Nóbrega insinua na
Loa de abertura os primeiros elementos que servirão como tentativa de definir
o seu estilo ao longo desta tese.
O próximo tema é Vinde, vinde, moços e velhos (domínio público
recriação musical de Antonio Nóbrega), que também serve para abrir
Pernambuco falando para o mundo. De forma imperativa, o artista faz um
convite irresistível a toda a platéia para apreciar o espetáculo a ser
apresentado: “Como isso é bom, como isso é belo. / Como isso é bom, é bom
demais. / Olhai, olhai, admirai, / como isso é bom, é bom demais.” É tema
bastante conhecido no Nordeste por fazer parte das apresentações do pastoril,
dança dramática de origem européia e ainda hoje comum naquela região
brasileira durante os festejos de Natal (Andrade, 1982, 1989; Câmara Cascudo,
s.d.). Apesar do caráter eminentemente popular da composição, note-se o uso
da segunda pessoa do plural: não se diz “venham, venham, moços e velhos”,
“olhem, olhem, admirem”, mas sim “vinde, vinde, moços e velhos”, “olhai, olhai,
101
admirai”, buscando desse modo enfatizar o convite à platéia por meio do
rebuscamento da linguagem na escolha da forma verbal. “É curiosa a
persistência, entre o povo, do tratamento familiar na segunda pessoa do plural”,
dizia Mário Marroquim na década de 40 em estudo clássico sobre a língua
do Nordeste (Marroquim, 1996). Ao recriar esse tema em seu espetáculo,
conservando a forma original de expressão lingüística, Nóbrega preserva a
essência da comunicação entre o brincante do pastoril e o seu público.
Seguindo o roteiro, Truléu da Marieta, A vida do marinheiro e Truléu, léu,
léu, léu, léu (todas de domínio público com recriação musical de Antonio
Nóbrega) compõem uma trilogia inspirada na manifestação cultural de origem
portuguesa chamada nau-catarineta, que narra uma travessia no Atlântico em
circunstâncias trágicas.
53
Participam figuras como o gajeiro (que será visto no
capítulo 3.2.5, na análise do Romance da nau-catarineta, que faz parte do
repertório de Lunário perpétuo) e a saloia (camponesa portuguesa, em geral
rude).
Um elemento caracteriza de imediato a busca por uma definição do
estilo da linguagem de Antonio Nóbrega aqui empreendida: a unidade temática.
O Nordeste é sua inspiração, as manifestações culturais locais o estimulam a
recriá-las, gravá-las e levá-las para o palco. É por meio da unidade constituída
por essas letras que ele vai contando a seu modo a história de seu povo, de
sua gente, dos brincantes que contribuíram sobremaneira para a sua formação
cultural.
53
Frise-se que não é intenção esmiuçar aspectos referentes à nau-catarineta. Para aprofundar
o assunto, ver Andrade (1982), Câmara Cascudo (s.d.) e Romero (1977). Aspectos referentes à
linguagem contida nas letras é que serão aqui privilegiados.
102
Paralelamente a essa unidade temática tem-se a unidade sintópica, o
“dialeto” nordestino, especificamente o de Pernambuco, como visto no capítulo
3.3 (Aspectos dialetológicos); a unidade sinstrática, que é o uso da linguagem
popular; e a unidade sinfásica, que é o estilo informal ou familiar da linguagem
de Nóbrega, sem se descuidar do caráter literário e poético na forma de se
expressar. Pode-se dizer que todos esses aspectos estão presentes em toda
letra aqui analisada, cada qual sendo parte de um mosaico poético-lírico-
musical característico do artista estudado.
Sobre as figuras de linguagem utilizadas nas letras dos cinco CDs em
questão, nessa trilogia referente à nau-catarineta aparece a aliteração:
“Quando o mar balança a barca”; “no porto de Portugal”; “Ó, marujo, do
leme”; “eu tenho recordação / do meu bem que es em terra” (Truléu da
Marieta); “e a minha nau naufragar” (A vida do marinheiro). Os versos em geral
têm sete sílabas, ou pés, típicos da lírica popular nordestina, o que caracteriza
ainda mais a unidade temática (já referida pouco) em função da sua forma
poética.
Quanto ao universo lingüístico utilizado, diante dos versos “Em risco de
uma tormenta, ô ipá / e a minha nau naufragar, / as feras do oceano / vão o
meu corpo estragar” (A vida do marinheiro), não parecem próximos os riscos
enfrentados pelos marinheiros da nau-catarineta aos narrados por Luís de
Camões (1970) nas apaixonadas navegações dos Lusíadas, devido ao seu
caráter épico, assim como à melancolia que perpassa as aventuras marítimas
contidas em Mensagem, de Fernando Pessoa (1995)? As “feras do oceano”
são os antagonistas dos nossos “heróis” marinheiros, ameaçando estragar
103
seus corpos, como assinala a letra em questão. Dessa forma, além do contexto
verbal, leva-se em conta o contexto de situação (Ullmann, 1970) ao se
analisarem os termos e as expressões constantes no repertório lingüístico que
é objeto desta tese.
Como esclarecido na Introdução, estudam-se aqui as canções
compostas por Nóbrega, sozinho ou em parceria, mas ao longo da análise é
indicada a entrada das composições de outros autores, de modo a se ter em
mente a ordem em que constam no roteiro, tanto de cada espetáculo como de
cada CD. Assim, agora vêm Serenata suburbana, de Capiba; Marcha da folia,
de Raul Moraes; e Boi Castanho, de Getúlio Cavalcanti.
54
A próxima canção, O romance de Clara menina com Dom Carlos de
Alencar, foi recriada por Nóbrega com base em tema de domínio público e
apresenta a estrutura básica do romance cantado de inspiração ibérica. O
romance é um poema em versos octossílabos pela versificação castelhana e
setissílabos ou heptassílabos pela nossa, de acordo com Câmara Cascudo
(s.d.: 788-790),
refundidos e recriados nos sécs. XV e XVI, com rimas assonantes nos
pares, e os ímpares livres, vindos dos sécs. X, XI, XII, como as canções
de gesta, registrando as façanhas guerreiras de espanhóis e franceses.
Foram poemas feitos para o canto nas cortes e saraus aristocráticos, e
não a poesia democrática e vulgar, feita para o povo. (...). O séc. XVI foi
a época do romance em Portugal e justamente a fase do povoamento
do Brasil. Os romances vieram, cantados, e resistiram até,
possivelmente, o séc. XVIII, quando foram esquecidos no uso, mas não
nas memórias coloniais.
Também são classificadas como romances as publicações de poemas
narrativos com 24, 32, 48 ou 64 páginas, extrapolando os limites dos folhetos.
54
Ver letras completas no Anexo 1.1.
104
Los romances son, además, piezas de inestimable valor literario:
poesía pura, sin artificios, en la que late el alma de la raza y la gracia y
el misterio que viven en la verdadera poesía (Fermín Estrella Gutiérrez,
História de la literatura española; apud Weitzel, 1995: 85).
Por ser uma típica narrativa em verso, cantada ao som de algum
instrumento, o romance é bastante aproveitado por Nóbrega em seu repertório,
especialmente pelo caráter teatral que oferece. Esta forma lítero-musical data
do século XIV e remonta às canções de gesta, poemas que narravam feitos
valorosos de heróis nacionais. Seu apogeu foi nos séculos XV e XVI, na
Espanha, na época dos reis católicos, quando se difundiu por toda a Península
Ibérica. Chegou à América com as grandes navegações, tendo gozado aqui de
grande prestígio (Weitzel, 1995). O seu texto pode ser narrativo ou dialogado,
caso este do Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar, em que
Nóbrega, ao som da sua viola de dez cordas, instrumento típico do
acompanhamento da cantoria nordestina, interpreta (por meio da variação de
sua voz) cinco personagens: o narrador, Clara menina, Dom Carlos de Alencar,
o rei e o caçador.
Sílvio Romero (1977) relaciona variantes sergipanas deste romance,
intituladas Dom Carlos de Montealbar e Dona Branca (versões do município de
Lagarto), com destaque para a semelhança da estrutura de versos entre a
primeira versão citada e o texto aqui estudado. São histórias de procedência
européia que falam de reis, príncipes, princesas, cavalheiros e donzelas. O
Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar também aparece no
entremez O homem da vaca e o poder da fortuna, que Ariano Suassuna
escreveu, baseado num folheto popular, para sua peça Farsa da boa preguiça.
105
Nesse romance cantado por Nóbrega, há 14 estrofes totalizando 103
versos de sete sílabas cada, sem refrão. A aliteração reaparece como recurso
estilístico: e isto que estou vendo aqui”; isto que tu viste”; “porque o que eu vi
aqui”; me mandaram me calar”. A sonoridade das palavras é bastante
explorada, reforçada pela variedade de vozes emitida pelo intérprete conforme
o personagem que está “em cena”. Por meio da acentuação de determinadas
palavras no momento em que as pronuncia, valendo-se do ritmo, do tempo e
da altura do som, que funcionam como elementos paralingüísticos (Palmer,
1979), Nóbrega reforça o ponto de vista do personagem que está com a
palavra, dando “cores” particulares aos diversos momentos da história
contada/cantada. A entoação, assim, torna-se decisiva para determinar o
significado mais do que isso, a intenção das palavras da canção; é um
“comentário perpétuo” da palavra, segundo Charles Bally (1957). Para este
autor, os movimentos da entoação constituem fenômeno de extrema
delicadeza e complexidade, correspondendo assim às mais variadas emoções.
Veja-se agora o caso de um vocábulo específico que aparece nessa
letra. No verso “estava nua pra enjambrar”, o uso do termo enjambrar
caracteriza o regionalismo da linguagem, pois essa palavra é de uso comum
em Pernambuco e significa envergonhar, embaraçar, acanhar (Navarro, 2004).
Este autor, por sinal, na obra indicada (Dicionário do Nordeste), ilustra o
verbete justamente com essa passagem do Romance de Clara menina com
Dom Carlos de Alencar, assim como exemplifica diversos verbetes com outras
passagens do repertório de Nóbrega. Ferreira (1995) também aponta
Pernambuco como a região de uso da palavra enjambrar. Na letra em questão,
106
seu duplo sentido permite uma interpretação de cunho nitidamente sexual,
devido ao contexto em que aparece. Vale ressaltar aqui parte da definição dos
verbetes “brinquedo, brincadeira” do Dicionário do folclore brasileiro, de
Câmara Cascudo (s.d.: 188), que destaca uma variante da letra interpretada
por Nóbrega, citando o Folclore pernambucano, de Pereira da Costa:
Nos velhos romances, brincar é a junção carnal: “Apanhei a
Claralinda / com D. Carlos a brincar, / De braços e boquinhas, / Não
podiam desgarrar, / Da cintura para baixo, / Não tenho que lhe contar”.
Com relação à fusão da preposição de com o pronome pessoal ela antes
do infinitivo falar (“depois dela assim falar”), trata-se de uma prática
perfeitamente comum na linguagem coloquial tanto falada quanto escrita. Basta
imaginar como soaria antinatural o rei, pai de Clara menina, dizer “depois de
ela assim falar” por meio de seu intérprete Antonio Nóbrega.
Após o instrumental movimento do concerto de Bach para rabeca e
flauta (Johann Sebastian Bach), transcrição de Toninho Ferragutti e Edmilson
Capeluppi, Desassombrado (letra e música de Nóbrega) dá seqüência ao
roteiro. A canção é permeada por termos que caracterizam bem a região de
seu autor/intérprete: “azouguei”, “farofa de embuá” (azougado significa irritado
e embuá é o mesmo que lesma),
55
“Bruzacã” (a “coisa ruim”, uma das formas
do Demônio segundo Quaderna, personagem mítico de Ariano Suassuna em
seu Romance da Pedra do Reino [2004b]; pode-se interpretar também como
uma variação de “bruaca”, mulher feia e velha, como consta em Bernardino
1996), “bacamarte”, “fui ponteando a rabeca”, “e galopando / no chitão de
55
As definições para “azougado” e “embuá” são de Bernardino (1996).
107
minha burra”, “no trote de Caluzinha” (Caluzinha é a burra ou burrinha
56
usada
por Tonheta, que interpreta a canção). Logo no começo, a palavra “odisséia” dá
bem a idéia do caráter épico das narrativas e das aventuras desse personagem
de inspiração rabelaisiana,
57
como se verá novamente em Meu foguete
brasileiro (4.2.5).
Nessa letra aparece uma figura de estilo ainda não explorada no
repertório em questão: a onomatopéia. “Eu vi os jatos / pelos céus fazendo
zum! / Ouvi as bombas, tebedum! / Os fuzis, taratatá!” Três onomatopéias em
seguida: zum, tebedum e taratatá, ilustrando o desassombro do personagem
diante do panorama de guerra encontrado em “Saravejo”. Aqui a ordem dos
fonemas da palavra original (“Sarajevo”) é invertida propositalmente numa
espécie de metátese
58
para atingir o efeito estilístico “ver em Saravejo“ nos
seguintes versos: “nas ruas de Saravejo / vi o mundo se acabar.” Mais um
exemplo de onomatopéia aparecera no trecho “eu carrego um bacamarte, /
quando quero atiro: pá!”. O “pá rima com “desanuviar” em “me lembrei de
minha terra / pra eu me desanuviar”, demonstrando a criatividade do autor na
formação de rimas inspiradas na poesia popular nordestina.
59
Nessa como em outras narrativas do repertório analisado, observe-se
que, após as situações dramáticas presenciadas por Tonheta, ele passa ileso
por elas e prossegue seu caminhar, retornando a sua terra e reencontrando a
56
“Figura do bumba-meu-boi: armação de madeira, semelhante a uma alimária, que o
brincante põe em volta da cintura, de modo que parece montado nela” (Ferreira, 1995).
Ressalte-se que Calu é o nome típico da burra no cavalo-marinho (Andrade, 1989).
57
Ver capítulo 1, quando se fala sobre a relação entre Rabelais e o trabalho de Nóbrega, com
base em Bakhtin (1999).
58
Metátese é a mudança fonética que consiste na transposição de um fonema dentro de um
vocábulo (Câmara Júnior, 2001).
59
Grande número de exemplos de versos criados especialmente para cantorias pode ser visto
em Sobrinho (2003).
108
manga-espada, a manga-rosa e a manga-roxa. Essa é a sua “trouxa”, isto é,
sua sina: ir por desassombrar, ou seja, clarear as coisas, serenar,
desanuviar. É um “herói” bufão mas essencialmente lírico, na linha mesma de
Gargântua e Pantagruel (Bakhtin, 1999). A letra de Desassombrado,
inteiramente de Nóbrega, é motivo de elogios de seu parceiro Bráulio Tavares,
como visto no capítulo 2.2.2.
A seguir vêm o frevo instrumental Mexe com tudo (Levino Ferreira) e
Minervina (Antonio Nóbrega e Marcelo Varella), que é o nome da
“companheira” de Tonheta (na verdade, uma boneca com quem ele dança e
contracena). A letra é uma das menores do repertório (apenas dez versos),
mas contém bons exemplos de regionalismos, como “desvergonhada”,
“minzinguenta”, “cavilação”. Sem falar na “provocação” de rimas que soa
perfeitamente natural na poesia falada ou cantada, como acontece aqui com o
par “roxo/alvoroço”. E é Tonheta quem está cantando, ressalte-se; portanto, a
liberdade no uso das palavras e das rimas é maior ainda, configurando-se
assim a sua peculiar dicção como “cancionista” (Tatit, 1996).
“Desvergonhada”, por meio de uma síncope,
60
perdeu o a original e
conseqüentemente uma sílaba, para adequar-se à métrica do verso. Note-se
que o verbete “desvergonhado” consta em Houaiss & Villar (2001), porém seu
uso não é comum no Brasil fora da Região Nordeste.
“Minzinguenta” é a pessoa implicante, que faz pirraça, de acordo com o
pernambucano Navarro (2004), que ilustra o verbete justamente com essa
passagem da letra de Minervina, caracterizando assim o regionalismo do
60
Perda do fonema medial de um vocábulo, como ensina Joaquim Mattoso Câmara Júnior
(2001).
109
termo. “Cavilação” quer dizer falsidade, fingimento, hipocrisia, como visto no
capítulo 3.2 (Aspectos semânticos). Por extensão, “caviloso” “no Nordeste é
pessoa fingida, falsa, cocório, que agrada com a intenção de conseguir algo em
troca. A acepção nacional é fraudulento, capcioso, desonesto” (Navarro, 2004:
105). Segundo a mesma fonte, “cocório” significa hipócrita, fingido ou sonso,
em Pernambuco.
Note-se ainda, no segundo verso, a conjugação errada do verbo ver no
futuro do subjuntivo: “vai fazer fuxico quando ‘ver’ Minervina”. O vir”, forma
correta segundo a norma culta da língua portuguesa,
61
lugar ao popular
“ver” nesse tipo de situação, forma mais utilizada na linguagem coloquial.
Portanto, como a letra é de cunho eminentemente popular, em função mesmo
do personagem que a interpreta, o uso do “ver” pelo “vir” fortalece a unidade
sinfásica que caracteriza a linguagem utilizada no repertório de Antonio
Nóbrega.
Mateus Embaixador (Antonio Nóbrega) é uma figura típica do cavalo-
marinho, como é chamado o bumba-meu-boi em Pernambuco. Em ritmo de
maracatu,
62
o personagem se apresenta como um brincante que chega não
para brincar, mas também para “invocar” ou impressionar a platéia com sua
dança. Ao mesmo tempo que sua roupa de chita (representando a
simplicidade) é seu lírio (traduz a poesia, a paz), ela é também seu gibão (no
sentido de que ele está pronto para a guerra). Portanto, não o provoquem, não
mexam com ele, pois o próprio personagem diz ser ainda uma “onça-tigre”.
61
Aprofundar os conceitos de padrão culto e padrão coloquial da língua portuguesa não é
objetivo desta tese.
62
Para mais informações sobre o maracatu, ver Andrade (1989), Câmara Cascudo (s.d.),
Santos & Resende (2005) e o sítio http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes.
110
Ao contrário do que a rabeca representava para o cantador que, na Loa
de abertura, pedira licença para entrar com ela na casa dos ouvintes ou
espectadores, de forma suave e poética, a rabeca para Mateus é um azougue,
um punhal, reforçando o caráter brincante/brigão do personagem. Note-se a
marca regional na escolha do termo azougue; em Desassombrado,
aparecera “azougado”.
Presepeiro, Mateus identifica-se com figuras míticas do universo literário
popular nordestino, como Cancão de Fogo, João Grilo, Benedito, Tira-Teima e
Tiridá, algumas delas mencionadas no capítulo 1. No cavalo-marinho, Mateus
faz par com Sebastião ou Bastião, duas espécies de palhaços que se vestem
com roupas e chapéus extravagantes, pintam os rostos de preto e carregam
duas bexigas de ar que batem seguidamente no chão e às vezes nos
espectadores, demonstrando como os dois são azougados, inquietos. Em meio
ao grande número de figuras que participam de uma apresentação do cavalo-
marinho, são os dois que ficam em cena o tempo todo, buscando garantir a
animação do espetáculo e da platéia. Ao encerrar o canto de Mateus
Embaixador, Nóbrega solta o grito agudo de seu personagem, assim como
acontece nas apresentações de rua desse folguedo popular.
Com relação à letra, observe-se o termo “pedra-lispe”, cuja forma oficial
nos dicionários Aurélio e Houaiss é “pedra-lipes”, que quer dizer vitríolo azul,
sulfato de cobre (Ferreira, 1995; Houaiss & Villar, 2001). A transformação de
“lipes” em “lispe” por meio da metátese, fenômeno comum no linguajar popular
do Nordeste brasileiro, demonstra a força no jeito de falar do povo e consta
111
do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Academia Brasileira de
Letras, 2004).
Após Mateus Embaixador, o disco e o espetáculo chegam ao seu clímax
com a música que dá título a ambos, homenagem a Chico Antônio e a Mário de
Andrade, a qual traz um diálogo entre o cantador e seu instrumento de fé. Para
frisar a importância simbólica do ganzá, o próprio instrumento servia como
programa das músicas a serem apresentadas no espetáculo, podendo ser
adquirido pelos espectadores. Tal fórmula se repetiria nas apresentações de
Madeira que cupim não rói.
Por se tratar da composição que sintetiza o tributo que Nóbrega presta a
seus dois mestres, a quem dedica tanto o espetáculo quanto o CD, aqui serão
tecidas considerações mais extensas sobre o universo lingüístico abordado.
No coco intitulado Na pancada do ganzá, primeira parceria de Antonio
Nóbrega e Wilson Freire, depara-se com uma valiosa amostra da linguagem
com que o cantor, compositor e dançarino trabalha em seus discos e
espetáculos musicais e teatrais, tendo sempre como base a cultura popular
brasileira. Sobre a escolha do nome, foi explicado no capítulo 1. Acrescente-
se um trecho das “Explicações” iniciais do livro Os cocos (Andrade, 1984: 9),
em que Oneyda Alvarenga diz que
parece ter havido um momento, talvez ainda em meio às pesquisas, em
que a intenção de Mário foi dedicar um livro à música folclórica do Rio
Grande do Norte, exclusivamente. No verso de uma carta (...) datada do
Recife em 5-1-1929 e guardada entre “Cantos de Trabalho”, achei
quatro desenhos parecendo rabiscados por Mário, dos quais dois,
francamente capas de livros, registram: “Mário de Andrade / Populário
Musical Potiguar / 1929”; “Populário Musical Potiguar / Mário.” O
segundo foi cancelado; e em ambos se vê um ganzá.
112
Verifica-se como o instrumento tão difundido no Nordeste passou de
símbolo gráfico a símbolo verbal do conteúdo do livro. Na escolha de ambos,
ganzá desenhado e ganzá título, Oneyda supunha que estivesse implícita a
admiração de Mário pelos cantadores de cocos e em especial uma
homenagem, consciente ou não, ao coqueiro potiguar Chico Antônio, alvo da
sua mais calorosa admiração, a quem ainda em viagem lhe dedicou três
crônicas de O turista aprendiz (Andrade, 1983), datadas de 10, 11 e 12 de
janeiro de 1929, e um artigo publicado em A República (Natal, 27-1-1929); em
1944 faria dele o motivo de 12 rodapés do “Mundo Musical” da Folha da
Manhã, de São Paulo. “Tudo que o deliciava no nome escolhido era o que para
ele constituía também o encanto da arte de Chico Antônio, ‘loucura, tolice,
divinização’” (Andrade, 1984: 9). Ressalte-se que a vida e a obra desse
coquista são o tema de dois recentes lançamentos literários: O canto sedutor
de Chico Antônio, de Gilmara Benevides Costa (2005), e Usina brasileira:
centenário de Chico Antônio, de João Natal (2005).
No estudo da letra de Na pancada do ganzá,
63
de imediato vejam-se
algumas acepções dadas por Ferreira (1995) e Houaiss & Villar (2001) para o
substantivo feminino “pancada”: embate, batida, baque, bordoada, pulsação,
choque que um corpo e recebe no instante em que se encontra com outro;
batimento. Com base em tantas acepções, pode-se dizer que a “pancada” da
letra não deixa de representar um somatório de todas elas, pensando-se de
uma forma poética. Essa palavra data do século XIII, segundo Houaiss & Villar
(2001).
63
Ver a letra completa no Anexo 1.1.
113
Completando o título da sica, a próxima palavra a ser estudada é
ganzá: espécie de chocalho de folha-de-flandres e formas diversas, tendo por
variação a forma canzá e por sinônimos amelê (Bahia), pau-de-semente,
xeque, xeque-xeque, xaque-xaque, xique-xique, reco-reco (Ferreira, 1995;
Houaiss & Villar, 2001). Alguns destes termos resultam de onomatopéias em
função do som produzido pelo instrumento (xaque-xaque, xeque-xeque e
xique-xique, por exemplo). Com relação a essa motivação fonética, ou
onomatopéia, é condição sine qua non que exista qualquer semelhança ou
harmonia entre o nome e o sentido, no entender de Ullmann (1970). Para ele,
os sons não são expressivos por si mesmos; quando se ajustam ao
significado é que as suas potencialidades onomatopaicas se destacam.
Antônio Geraldo da Cunha (1986) esclarece a etimologia deste
substantivo masculino: vem do quimbundo nã’za ‘cabaça’, século XX. Houaiss
& Villar (2001) dão 1938 como o ano do registro histórico da palavra, tomando
como fonte o Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, editado
naquele ano no Rio de Janeiro. Esses dois autores também registram ganza
como variante de ganzá e, na etimologia, dão “origem obscura” para aquele
termo.
Ainda sobre a palavra ganzá, escreveu Mário de Andrade (1989: 239):
Instrumento de percussão de origem africana muito difundido no
Brasil em duas formas de construção bastante distintas, também
conhecidas como anzá, canzá, gazá e pau de semente. O termo é sem
dúvida de origem africana.
com referência à forma variante “ganzarino”, que aparece na letra de
Na pancada do ganzá, o Dicionário musical brasileiro (Andrade, 1989: 240)
esclarece:
114
Mário de Andrade no diário do Turista Aprendiz (11 de janeiro de
1929) estuda a palavra. O curioso é de ganzá terem os do povo feito
ganzarino. Isso prova bem que nos verbos e palavras em ar ditas
popularmente casá, amá, má, etc., subsiste virtualmente a noção do r
final. Essa noção ou lhes fez confundir, imaginando que a palavra era
ganzar e formarem por isso ganzarino; ou de fato inicialmente o ganzá
se chamava ganzar.
Abrindo-se o leque para o sentido das letras compostas para o gênero
musical coco, no Turista aprendiz está registrado:
No geral as emboladas são mesmo assim. As mais das vezes
não têm sentido (...). (...) Isto é: não é que não tenham sentido
propriamente. Não se trata do verso “nonsense” feito pra dar habilidade
rítmica. É um painel de sonho que passa, feito de frases estratificadas,
curiosas como psicologia: “Bela mandou me chamar” ou “Porto de
Minas Gerais” ou “Meu ganzá, meu ganzarino”, etc., etc., às quais se
juntam verbalismos, frases tiradas do trabalho quotidiano, do amor;
referências aos presentes e aos acontecimentos do dia; desejos,
ânsias... Todos os coqueiros são assim (Andrade, 1983: 278).
Dessa forma justifica-se a utilização de vários termos nas letras dos
cocos que muitas vezes não fazem sentido para o observador, mas cuja razão
de ser está na sonoridade da palavra, que se torna mais importante do que o
seu próprio significado. Esse poético jogo de palavras é que atrai o interesse
dos ouvintes para o diálogo entre o coquista e o seu ganzarino. O próprio verso
“Meu ganzá, meu ganzarino”, lido há pouco no texto de Mário, encabeça o
refrão e aparece como fio condutor da letra de Na pancada do ganzá.
Dando prosseguimento ao estudo das palavras-chave que compõem o
microcosmo lingüístico de Na pancada do ganzá, fale-se agora sobre o coco.
“No Nordeste o coco de ganzá, cantado pelo coqueiro, quase sempre meio
improvisação, meio memoriado, no ritmo de um ou dois ganzás, balançados
nas mãos”, ensina Câmara Cascudo (s.d.: 424). “Coqueiro”, aqui, ou coquista,
como aparece na letra da música, nada mais é que o cantador de coco.
Houaiss & Villar (2001) trazem dois verbetes referentes ao assunto que não
115
constam de Ferreira (1985): tirador-de-coco e cantador-de-ganzá (ambos
regionalismos do Nordeste do Brasil), indicando a datação do século XX para
esta última expressão. Desse modo, constata-se como o léxico vai se
ampliando e pelo menos um dicionário registra os termos que, a princípio,
ficariam circunscritos a determinados segmentos da população brasileira no
caso, os praticantes e admiradores do coco.
Ressalte-se que a letra em questão inclui diálogos entre o coquista e o
ganzá; o instrumento é personificado. O coquista dirige-se ora ao ouvinte, ora
ao ganzá. Conversa até mesmo com uma estrela cadente que o apresenta a
“um instrumento real / que ela chamava ganzá”. A linguagem utilizada é
sempre coloquial, com grande aproveitamento de termos regionais,
fortalecendo a unidade sinfásica já abordada neste capítulo. No trecho
Sou um instrumento / Pequeno, feio, chinfrim, / que trago dentro de
mim / basculho pra ‘saculejar’, / garrafa velha, / qualquer coisa
reciclada / dou beleza ritmada / quando vem me balançar,
o instrumento diz “basculho pra ‘saculejar’”, em que sobressai a forma variante
“basculho”, menos comum que a tradicional “vasculho”. A idéia de vasculhar
(varrer com vasculho, espécie de vassoura), com a conseqüente sonoridade
associada ao ato, é bem aplicada aqui em comparação ao movimento realizado
pelo tocador de ganzá. E “saculejar”, devidamente entre aspas no encarte do
disco, destaca a pronúncia habitual dos falantes em detrimento do vernáculo
sacolejar, segundo o padrão culto da língua portuguesa. Assim, a ação de
sacudir ou agitar o ganzá é perfeitamente representada pela escolha do verbo
“saculejar” (por sacolejar), o qual parece lhe conferir ainda mais musicalidade.
116
Mais algumas referências à cultura popular nordestina que aparecem na
conversa entre o coquista e o seu instrumento merecem destaque:
Fomos cantando / o país do futebol, / da Amazônia, praia e sol / do
Babau, do boi-bumbá, / do carnaval, do São João, da cavalhada, / do
repente, da congada, / da catira, do guará.
Babau (personagem do cavalo-marinho), boi-bumbá, carnaval, festa de
São João, cavalhada, repente, congada, catira... Mais uma vez a cultura
popular impregna a inspiração de Nóbrega e Wilson Freire na construção de
suas composições, caracterizando o seu universo regional lingüístico.
Observe-se agora um trecho da letra que confere importância histórica
ao contexto regional da conversa entre o coqueiro e o ganzá:
E disse mais: / “Meu cantor, meu menestrel, / eu conheço esses céus
/ antes de Cabral chegar; / pode ir me ver / onde eu fui desenhado:
/ pelo homem pré-datado / lá na Pedra do Ingá.
A Pedra do Ingá fica a aproximadamente oitenta quilômetros de João
Pessoa, capital paraibana, e contém grande número de inscrições rupestres
que remontam à pré-história. Essas inscrições são também chamadas de
Itaquatiaras do Ingá. Trata-se de um dos monumentos arqueológicos mais
representativos da Região Nordeste e conseqüentemente de todo o Brasil. Tais
inscrições teriam sido feitas mais de 6 mil anos e representam répteis,
pássaros, frutas tropicais, figuras humanas, constelações e até a Via Láctea.
Assim, a referência à Pedra do Ingá realça a importância do ganzá não para
o tirador-de-coco como também para a própria cultura popular nordestina,
fortalecendo poeticamente o vínculo do instrumento com seus tocadores e
ouvintes. Mais do que elemento-chave para se compreender o alcance da letra
da canção analisada, o ganzá simboliza aqui um ícone de toda uma cultura
regional.
117
A onomatopéia, figura de estilo bem aproveitada em Desassombrado,
volta a aparecer na letra dessa composição, quando o cantador expressa o que
sentiu ao apertar o ganzá em sua mão: “Fazia assim / tum, tum, tum, tum, tum,
tum, tum, / como no peito o baticum / que pronto para amar.” E que se
falou em baticum, destaque-se uma das definições desse termo, que sintetiza
bem a natureza da atividade do coquista: pulsação forte do coração e das
artérias. É essa pulsação que deve percorrer não a leitura como também a
audição de Na pancada do ganzá, um microcosmo lingüístico que reúne
referências regionais e apaixonadas dos autores Antonio Nóbrega e Wilson
Freire à nossa cultura popular, aliadas à arte e aos ensinamentos que nos
deixaram Câmara Cascudo, Mário de Andrade e o admirável Chico Antônio,
cujo nome é louvado pelo próprio Nóbrega no final da gravação de Na pancada
do ganzá.
Despedida (domínio público com recriação musical de Antonio Nóbrega)
é a canção que encerra tanto o espetáculo quanto o CD. O cantador deseja
boa sorte aos ouvintes e espera um reencontro em ocasião oportuna: “Tenho
saudades dessa noite tão bonita / o meu coração palpita / que eu não posso
tolerar.” A seqüência de versos iniciais (“Até para o ano / Se eu vivo for”),
presente na primeira estrofe, é muito usada nas danças dramáticas
nordestinas, de acordo com Mário de Andrade (1982, I: 42), que registrou a
variante “Até para o ano / Si nós vivo fô...” nos reisados a que assistiu. Da
mesma forma como saudou o público na entrada, delicadamente o artista
popular anuncia sua saída, completando um ciclo de canções cujo roteiro se
assemelha ao dos próximos trabalhos de Nóbrega, como se verá em seguida.
118
4.2.2 – Madeira que cupim não rói
Assim como Na pancada do ganzá começou com a Loa de abertura, o
segundo espetáculo-CD estudado inicia-se com Abrição de portas (domínio
público adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson Freire): “Salve esta casa, /
nobre morada. / Nova jornada / vamos começar.” Trata-se de uma transcrição
musical e uma adaptação literária de uma Cantiga de Santa Maria, grupo de
cantigas compiladas pelo rei Afonso X, o Sábio, de Castela, antiga Espanha.
O termo abrição, ausente de Ferreira (1995), já consta em Houaiss
(2001: 27): “ato ou efeito de abrir; abrimento”. É o momento em que o cantador
pede licença ao dono da casa para começar a cantoria. São apresentados
termos comuns ao universo musical nordestino, como instrumentos (rabecas,
bombos e violas) e um tipo de manifestação folclórica: o reisado (que é uma
"dança dramática popular com que se festeja a véspera e o Dia de Reis", de
acordo com Ferreira (1995: 1477); "tipo de auto natalino surgido no final do
s.XIX, difundindo-se no Norte e Nordeste, constituído de um figurante
acompanhado por um coro cantando peças em seqüência", segundo Houaiss &
Villar (2001: 2420).
Ressalte-se que na capa desse CD Nóbrega aparece tocando um
instrumento chamado urucungo, espécie de ancestral do berimbau.
64
Esse
instrumento, nada comum, havia sido aproveitado literariamente no Martim
Cererê, de Cassiano Ricardo: “E o urucungo que é um resmungo ... / E o
cabelo enrediço ... do feitiço”, conforme aparece num dos numerosos exemplos
64
Ver Glossário.
119
utilizados por Nilce Sant’Anna Martins (2000: 67) em seu aprofundado estudo
sobre a estilística.
Na Abrição de portas, canta-se: “Nossa festa vai principiar / Com
rabecas, bombos e violas. / Hoje, aqui, viemos festejar, / render graças à vida
nessa hora”, tomando-se o “viemos” pela forma verbal “vimos” (conjugação
correta do verbo vir na primeira pessoa do plural do presente do indicativo),
prática bastante usual entre os falantes brasileiros. A coloquialidade aqui ocupa
o lugar da forma culta, em prol da comunicação imediata com os
ouvintes/espectadores, caracterizando a unidade sinfásica verificada no jeito de
o artista se expressar, como visto no capítulo 3.3 (Aspectos dialetológicos).
Segue-se Canudos (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), música dedicada
a “Mestre Ariano” [Suassuna], conforme consta no encarte, na qual é
apresentado o árido universo do sertão norte baiano onde aconteceu a revolta
liderada por Antônio Conselheiro, líder messiânico do Arraial de Canudos. A
cantiga (excluindo-se o refrão) é tema de um guerreiro alagoano,
65
espécie de
guerreiro do maracatu rural de Pernambuco, que do estado vizinho, como o
próprio nome indica. Na busca de traduzir a expectativa de um mundo melhor
prometido por Antônio Conselheiro, as dificuldades do sertanejo e o drama da
batalha são narrados por esse viandante, sem deixar de apontar a esperança
em dias melhores. Retirando-se os quatro versos centrais que compõem o
refrão, as duas estrofes apresentam seis versos com dez sílabas, rimando
ABCBDB, esquema rítmico da sextilha ou do repente.
Eu, viandante, de um chão poento.
Dias queimosos, vida sem idílio.
Preces voltadas para sóis ardentes,
65
Ver Glossário.
120
luares claros a buscar o Auxílio.
Para os meus olhos, confusão pasmosa,
batalha surda, secular martírio.
Ai, desatino!
Ai, o meu penar!
Ai, velho medo!
Sombra e malpassar!
Vi mamelucos, pardos, vi cafuzos.
Rostos marcados, um Santo Sudário.
Em Bom Conselho, Bendegó, Pontal,
vi Conselheiro rezar solitário.
E anunciando o inverno benfazejo,
em Monte Santo subiu pro calvário.
O próprio título da canção, Canudos, topônimo do Estado da Bahia, pode
ter seu alcance ampliado para designar a região conhecida por “sertão de
Canudos”. Encontra-se em seguida “viandante”, o que caminha, anda, segue
por caminhos diversos. Através do viandante, surgem elementos que vão
povoando o universo cantado pelo artista, por meio de unidades léxicas que
caracterizam:
Tempo/espaço: (chão) poento; (dias) “queimosos”, os “teimosos dias
quentes”; (sóis) ardentes; (luares) claros.
Intenção: (buscar o) Auxílio.
Condições objetivas e subjetivas: confusão, pasmosa (uma confusão
que deixa todos pasmos ao redor), batalha, surda, martírio, secular,
desatino, penar, medo, sombra, malpassar.
Habitantes da região: mameluco, pardo, cafuzo.
Sofrimento: (rosto) marcado, Santo Sudário, calvário.
Topônimos da região: Bom Conselho, Bendegó, Pontal, Monte Santo.
Antropônimo: Conselheiro.
121
– Redenção: anúncio, inverno, benfazejo.
Com sua sofrida mas ao mesmo tempo esperançosa caminhada, esse
viandante de Canudos povoa o universo dos personagens criados pelo
imaginário de Nóbrega aqui juntamente com Wilson Freire, para quem essa
letra é uma das mais significativas na parceria da dupla, conforme visto no
capítulo 2.2.1 – ao longo da trajetória de Madeira que cupim não rói.
As três canções a seguir (Chegança, Quinto império e Olodumaré)
pertencem ao grupo que Nóbrega chama de “Cantigas do descobrimento do
Brasil”. Toadas de reisados do Cariri e cantos dos emboladores do Recife são
as fontes de inspiração.
Chegança (Antonio Nóbrega e Wilson Freire) é uma composição inspirada
nos caboclinhos,
66
criada na época em que se comemoravam os quinhentos
anos do descobrimento do Brasil (2000), e retrata essa “descoberta” do ponto
de vista de um índio. Os autores mencionam os nomes de várias tribos e
entendem que, para o índio, o fato de que "o Brasil vai começar" significa a
perda da própria terra para os portugueses. Essa sica também consta do
repertório de Pernambuco falando para o mundo. Ela é dedicada a Alfaiate,
do Caboclinho Sete Flechas, tradicional manifestação cultural pernambucana, e
em memória de Galdino Jesus dos Santos, índio que morreu queimado vivo em
função de um ato selvagem de cinco adolescentes irresponsáveis de classe
média em Brasília, em 1997, os quais atearam fogo no corpo dele, enquanto
dormia num ponto de ônibus. A letra cita diversas tribos indígenas brasileiras e
66
Ver Glossário.
122
fala sobre a “surpresa” trazida pelos “brancos de barba escura” que aqui
chegaram em 1500.
No plano léxico e estilístico da letra dessa canção,
67
deve-se levar em
conta:
a) Povos indígenas citados: pataxó, xavante, cariri, ianomâmi, tupi,
guarani, carajá, pancararu, carijó, tupinajé, potiguar, caeté, fulniô, tupinambá.
b) Espaço: mar, continente, terra (diferente), mundo (novo), horizonte.
c) Intento ou modo de vida: rede (balançante), espreguiçar-se, porto
(seguro), céu (azul), paz, ar (puro), pernas (pro ar), paraíso, sonhar.
d) Novos elementos: esquadra (portuguesa), nau, branco (de barba
escura), barba (escura), escuro, armadura, apontar, pegar.
e) Novo estado ou modo de vida: assustado, pulo (da rede), forma, sede,
acabar (no sentido de morrer), levantar, borduna.
f) Conclusão: Brasil, começar.
Pode-se interpretar que o Brasil estava começando não para os índios,
mas para os portugueses, ansiosos por novas conquistas no período das
grandes navegações, como conta a letra da próxima sica, Quinto império
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire). Agora são os portugueses rumo aos
descobrimentos que inspiram os compositores. A travessia do Atlântico, o
destino de navegar, a missão de descobrir o imaginário sebastianista
português deixando sempre para trás um mundo velho e seguindo em busca
de um novo mundo: “Iaiá, me teu remo, / Teu remo pra eu remar. / Meu
67
Ver letra completa no Anexo 1.2.
123
remo caiu, quebrou-se, iaiá, / Lá no alto-mar.” O tema é inspirado em canções
populares como Me dá teu remo, registrada por Mário de Andrade (1984).
Termos como “mouros”, “lusitanos”, “dunas”, “pedras”, “oceanos”,
“Netuno” e “leme”, palavras-plenas (Palmer, 1979) que aparecem na letra,
preparam o ambiente para a pergunta-chave da canção: “O que será que além
daquelas águas agitadas, turvas, calmas, eu irei encontrar?” É o mundo
velho descobrindo um mundo novo.
Olodumaré (Antonio brega e Wilson Freire) encerra a trilogia sobre o
descobrimento. Desta vez é o negro quem sua versão, falando sobre a dor
de deixar a África e chegar numa terra desconhecida onde, mesmo assim,
nova raça fez brotar. Essa música completa, assim, o trinômio racial
característico formador do povo brasileiro. Olodumaré, ou Olodumarê, é o
“título atribuído a Ifá, orixá da adivinhação e do destino” (Houaiss & Villar, 2001:
2061), o “deus supremo, entre os iorubas, que mora no Orum, o Além, o Infinito
(Ferreira, 1985), “Deus, Divino Espírito Santo; etimo. [em iorubá]: Oló (Senhor)
Odú [sic] (Destino) Maré (Supremo): Senhor do Destino Supremo”
(Fonseca Júnior, 1995: 487-488).
68
O negro traz, desde então, a religião africana como forte elemento
identificador, marcando assim a singularidade de sua presença na terra recém-
descoberta. O Nação Pernambuco, a quem a canção é dedicada como consta
no encarte do disco, é um grupo de maracatu nação, ou maracatu de baque
68
Informações mais aprofundadas sobre Olodumaré podem ser obtidas na célebre obra Orixás,
de Pierre Fatumbi Verger (1997, especialmente p. 21-22).
124
virado,
69
do Recife. A música também consta do repertório de Pernambuco
falando para o mundo.
Nascimento do Passo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), a próxima
canção, homenageia o famoso dançarino e professor de frevo no Recife (PE).
O amazonense Francisco do Nascimento Filho (Nascimento do
Passo) é um mestre passista famoso, atualmente professor e vice-
diretor de uma escola de frevos para formar passistas, mantida pela
prefeitura da cidade do Recife no bairro da Encruzilhada (Navarro,
2004: 89, grifos no original; informações contidas no verbete
“calunguejar”)
.
Os compositores aproveitam para citar nomes de passos desse gênero
musical pernambucano, muitos deles sistematizados por Nascimento.
70
Foi ele
quem introduziu o uso da sombrinha (que deve ter oitenta centímetros de
diâmetro) no frevo, em substituição aos pesados guarda-chuvas que eram
utilizados. Pela importância que tem na divulgação e na sistematização do
frevo como dança, o nome Nascimento do Passo associa-se à própria idéia de
que com ele os passos do frevo nasceram de fato e também por ele foram
batizados. No entender de Antonio Nóbrega,
71
foi Nascimento quem codificou
os passos do frevo.
Na letra aparece o regionalismo “despranaviado”, vocábulo ausente em
Aurélio (1995) e Houaiss (2001), mas que consta como “agitado” em
Bernardino (1994).
Nesse passou eu vou,
despranaviado.
Eu sou o abre-alas,
vou no meu gingado.
(...)
69
Ver Glossário.
70
Ver Dicionário do frevo (Carvalho, Mota & Paes Barreto, 2000), que traz numerosas
definições de passos e diversas informações sobre esse gênero musical.
71
Ver entrevista no Anexo 2.
125
Entrei no passo
do morcego e do saci,
tramelei no do siri,
cruzei tesoura no ar.
Na dobradiça,
eu peguei minha sombrinha,
passeando na pracinha,
chutando de calcanhar.
No frevedouro,
fiz um grande rebuliço,
preto, branco e mestiço,
eu chamei pro bafafá.
Azuretada,
a corriola destrambelha,
sacoleja, se destelha,
no maior calunguejar.
Vejam-se os termos regionais que aparecem: “despranaviado”,
“frevedouro”, “azuretada”, “calunguejar” e os nomes de diversos passos de
frevo, em geral sugeridos por algum movimento que lembra o substantivo em
questão: morcego, siri, tesoura, dobradiça. “Frevedouro” junta à palavra frevo o
sufixo -douro com a função de indicar o local em que se passa a noção
expressa pelo primeiro termo, ou seja, o local onde se dança o frevo; também
pode ser analisado como uma metátese de fervedouro, ou seja, efervescência,
traduzindo a idéia de movimento similar ao da ebulição de um líquido.
“Azuretar” traduz-se por provocar ira, deixar bravo, enraivecer (Bernardino,
1994). “Calunguejar” é “balançar que nem um calunga”, ou seja, que nem um
ajudante que anda em cima de caminhão (Navarro, 2004). “Calungas” também
se chamam as bonecas do maracatu nação, que têm origem religiosa e são
carregadas no desfile por mulheres de destaque na agremiação. Ressalte-se
ainda que, no final da letra, “destrambelha” ganha o e aberto para rimar com
“destelha”.
No roteiro de Madeira que cupim não rói vêm então Andarilho (Dalton
Vogeler e Orlando Silveira) e O vaqueiro e o pescador, poema de Dimas
126
Batista Patriota um dos “três irmãos cantadores do Pajeú” (PE), ao lado de
Otacílio e Lourival, segundo Carlos Newton Júnior (1999)
72
sobre o qual
Nóbrega colocou melodia. Trata-se de um galope com versos de 11 sílabas,
em três estrofes. Tanto o vaqueiro quanto o pescador, figuras simbólicas do
universo do trabalho nordestino, são aqui vistos de forma lírica, sem a angústia
de Canudos.
O tema de domínio público Quando as glórias que gozei...
continuidade ao roteiro para em seguida vir a canção-tema do espetáculo,
dedicada no encarte à lembrança de Chico Science.
73
Madeira que cupim não
rói é o nome de um dos mais famosos frevos de Capiba, feito em homenagem
à agremiação carnavalesca pernambucana Madeira do Rosarinho. Representa
os anseios de todo bloco de carnaval: ser o campeão do desfile a todo custo,
por considerar de antemão o seu desfile o mais belo. E mesmo que
oficialmente não seja o campeão, moralmente assim se considera afinal, é
mesmo “madeira de lei que cupim não rói”, expressão que se interpreta aqui
como uma frase idiomática (Ullmann, 1970).
Apesar de não ser uma composição de Nóbrega, Madeira que cupim
não rói merece essas considerações porque esse lema é igualmente
apropriado por Ariano Suassuna em sua trajetória de “paladino” da cultura
popular nordestina,
74
num sentido que a preserve de qualquer influência
estrangeira que a descaracterize, e também por que não fazer a associação?
72
Esses três irmãos influenciaram fortemente Wilson Freire, conforme visto no capítulo 2.2.1.
73
Para mais informações sobre a obra de Chico Science e a polêmica estabelecida com Ariano
Suassuna, ver a dissertação de mestrado “O encontro do Velho do Pastoril com Mateus na
Manguetown ou as tradições populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Science”, de
Anna Paula de O. Mattos Silva (2004).
74
Ver capítulo 2.1.
127
pelo próprio criador de Tonheta, pois não foi à toa que escolheu o famoso
frevo de Capiba como elemento-síntese de seu disco e espetáculo, cujo
subtítulo é Na pancada do ganzá II:
Queiram ou não queiram os juízes
O nosso bloco é de fato o campeão.
E se aqui estamos cantando esta canção
Viemos defender a nossa tradição.
E dizer bem alto que a injustiça dói,
Nós somos madeira de lei que cupim não rói.
75
Pela segunda vez no repertório do artista aparece a forma verbal
“viemos” por “vimos”, como na Abrição de portas, caracterizando o uso popular
consagrado, para o verbo vir, da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito
do indicativo fazendo as vezes do presente.
Monga (domínio público adaptação de Antonio Nóbrega e Wilson
Freire) representa um momento do espetáculo em que é valorizada a arte
circense aqui, com a simplicidade dos circos do interior do Brasil. Monga é
uma mulher vestida de macaca, que usa de todos os artifícios ao seu alcance
para agradar a platéia. Rosane Almeida, mulher de Nóbrega, é quem a
interpreta em cena, fazendo malabarismos e divertindo o público. Ressalte-se
que a cantiga que anima a chegada de Monga é a mesma cantada para
apresentar o Velho Faceta, artista popular que inspirou Nóbrega inclusive na
criação do nome de seu personagem Tonheta.
Em seguida, o Coco da lagartixa (domínio blico adaptação de
Antonio Nóbrega e Wilson Freire) apresenta um típico gênero musical
nordestino que favorece o improviso. Aqui aparece traduzido em 11 estrofes,
75
Ver letra completa no Anexo 1.2.
128
com o coro repetindo a mesma frase (“redondo, sinhá!”) constantemente, numa
espécie de resposta ao cantador. A inspiração vem de temas populares como
Lagartixa Redondo, sinhá, conforme Mário de Andrade (1984: 156-159)
registrou em sua viagem à Paraíba em 1928-1929.
Na última estrofe (“Quem ver uma lagartixa / ‘redondo, sinhá!’ / no
sertão, mata ou no mar”), note-se outra vez o uso da forma verbal “ver” pelo
futuro do subjuntivo, “vir”, que seria o correto. A forma de uso corrente, ainda
que errada gramaticalmente, é sempre a preferida, por uma questão de
fidelidade de Nóbrega e Wilson Freire ao tema popular. Assim também
ocorrera com Minervina, de Na pancada do ganzá.
Segue-se o Maracatu Misterioso, de Antonio José Madureira
(companheiro dos tempos do Quinteto Armorial) e Marcelo Varella (parceiro em
Minervina), homenageando figuras importantes de manifestações culturais
pernambucanas, como Mateus, Catirina, Capitão Pereira e o boi (no caso, o
Boi Misterioso de Afogados). O intérprete canta “Sou Mateus, sou Catirina, / na
bexiga eu sou o tal” porque a bexiga é o objeto portado por Mateus ao longo
das apresentações do cavalo-marinho. Quem interpreta Mateus fica batendo
uma bexiga no chão durante a apresentação de todas as personagens do
folguedo. A se observar ainda a forma verbal amostrar (“Ê boi, ê boi, ê Boi
Maravilhoso / Ê boi, ê boi, venha logo se amostrar”), variante muito utilizada
pelas camadas populares para o infinitivo do verbo mostrar.
Vem então o tema instrumental Rasga do Nordeste, que apresenta um
caráter musical hindu na primeira parte, lembrando um pouco os ragas
129
indianos,
76
e segue-se Lição de namoro (Antonio Nóbrega e Wilson Freire), que
os compositores dedicam a suas mulheres, respectivamente Rosane e Lúcia.
Em sua preocupação de valorizar os ritmos nordestinos, Nóbrega e Freire
apresentam uma ciranda bastante lírica, convidando a platéia a fazer uma roda
para dançá-la, de mãos dadas: “Menina, vou te ensinar / como é que se
namora: / põe a alma no sorriso, / e o sorriso põe pra fora.”
Figuras emblemáticas do universo musical nordestino são
homenageadas na Sambada dos Mestres, também de Nóbrega com Wilson.
“Sambada” é a apresentação do maracatu rural, gênero em que o mestre (que
se apresenta portando uma espécie de cetro) canta determinado mero de
versos e é seguido pelo coro. Referências primordiais para a formação cultural
e pessoal de Nóbrega se fazem presentes na letra de Wilson: Dona Santa,
Pinto de Monteiro, Cego Aderaldo, Capitão Antônio Pereira, Leandro de
Barros,
77
Pastinha, Alfaiate. Os autores agradecem a seus antecessores e
inspiradores. Nóbrega afirma aqui sua condição de brincante, ou seja, um
artista popular nordestino. A música é dedicada a Mestre Salustiano,
rabequeiro e ícone do maracatu rural pernambucano, da região de Nazaré da
Mata.
Na louvação aos mestres, a letra conta que foi com Faceta, do pastoril,
que Nóbrega aprendeu a ser “mungangueiro”, regionalismo o qual designa
aquele que faz “muganga” ou “munganga”, isto é, careta, trejeito, palhaçada
76
Ver entrevista no Anexo 2.
77
A obra desse cordelista pode ser apreciada no tomo V da Antologia Literatura Popular em
Verso, dedicado a ele (Barros, 1980), com estudo introdutório do professor José Maria Barbosa
Gomes, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da
Paraíba, que confronta duas edições do folheto A força do amor. A vida e a obra desse
folheteiro também são contadas em versos por Antônio Klévisson Viana (2005) em Leandro
Gomes de Barros – 140 anos.
130
(Navarro, 2004). Na arte de embolar com um ganzá, o mestre foi Chico
Antônio; com Leandro de Barros, doutorou-se folheteiro; com o Capitão
Pereira, do Boi Misterioso de Afogados, diplomou-se menestrel. Diante de
tantas referências, a conclusão surge como uma homenagem a todos os
Mestres no último verso: assim como eles, a sina de Nóbrega também é ser
brincante.
Depois de sua viagem musical por diversos gêneros e situações,
prestadas as devidas reverências na Sambada dos Mestres, é a hora de
anunciar a despedida, fechando um ciclo de histórias e aventuras contadas em
Madeira que cupim não rói. Com Vou-me embora (Antonio Nóbrega e Wilson
Freire), o brincante adeus pelo menos até a próxima “abrição de portas”.
O verso vou-me embora, vou-me embora” é um “verso-feito luso brasileiro”
apresentado em dezenas de variantes, segundo Mário de Andrade (1982, I:
23). O plano de referência léxico abrange os seguintes termos ou idéias: ir
embora (quatro vezes); adeus (nove vezes) com os vocativos mana, palco,
platéia, calor, vento, sombra, claridade, cidade; rabeca; ganzá; pandeiro; viola;
bandolim; companheiros; ir (para outro terreiro); partir; (levar) lembrança;
saudade. É mais um ciclo que se fecha para o brincante, da Abrição de portas
até a partida, levando lembrança e muita saudade. Como consta no encarte do
CD, brega espera que os ouvintes naveguem no rio das alegrias que ele
teve ao criá-lo, “madeiramente” neologismo criado pelo próprio artista,
inspirado não no título do frevo-de-bloco de Capiba como também em outra
de suas grandes influências: Guimarães Rosa, cujas imagens servem de mote
131
para o Romance de Riobaldo e Diadorim, que sevisto na análise de Lunário
perpétuo.
132
4.2.3 – Pernambuco falando para o mundo
A primeira música é Vinde, vinde, moços e velhos, vista em Na pancada
do ganzá. Nesse disco, são composições de Nóbrega apenas Chegança,
Olodumaré, Minervina (as três abordadas) e Pernambuco falando para o
mundo (Antonio Nóbrega e Wilson Freire). As demais são obras de outros
compositores. Portanto, analisar-se-á aqui a última canção citada.
Pernambuco falando para o mundo
Tenho um gogó de ouro, meu cantar é meu tesouro (BIS)
Pitomba, preaca, pife e pandeiro
Esse é o encontro, é essa emoção
Rainhas e reis, reisado e rojão
Negros nagôs, navios negreiros
Ascenso, arrecifes, angolas arteiros
Maraca, mascates e maracatu
Baião, berimbau, batuque, bantu
Usina, umbigada, umburana, umbuzal
Capiba, calunga, calor, carnaval
Oxóssi, Obá, Oxum, Olodu
(Refrão)
Sou braço de mar, um rio caudaloso
No sertão sou seco, na mata estourado
Eu, nos arrecifes, sou um mar furado
A cova dos rios, salgado e formoso
E nesse meu céu azul luminoso
ao sul de estrelas Cruzeiro avistei
Por ele à noite no mar me guiei
Eu sou Paranã, sou Paranabuco
Falando pro mundo eu sou Pernambuco
a ler meu Brasil aqui comecei.
78
(Refrão)
Se alguém me escutar tinindo a garganta
verá que meu canto desvenda segredos.
Acaba mistérios, destrói todos medos
Herdeiro da voz sou de Dona Santa
Meu canto é sangue, é pedra que encanta
78
No encarte do CD Pernambuco falando para o mundo, consta a informação de que esta
estrofe é inspirada em poema do livro Romançal de Pernambuco [sic], na verdade o Romançal
Paranambuco, de Marcos Cordeiro (1995).
133
desterra o tesouro no chão mais profundo
Eu sou um brincante, eu sou vira-mundo
Se estou azougado, ninguém me segura
Acima de mim, só Deus nas alturas
Eu sou Pernambuco falando pro mundo.
(Refrão)
Vêem-se na letra anterior diversos elementos associados à cultura
popular pernambucana: pitomba (fruta), preaca, pife, pandeiro, maraca,
berimbau (instrumentos musicais), rainhas, reis, Dona Santa (figuras do
maracatu e uma de suas principais incentivadoras), baião, batuque (gêneros
musicais), Oxóssi, Obá, Oxum, Olodu (entidades da Umbanda e do
Candomblé), Ascenso [Ferreira] e Capiba o primeiro, poeta, e o segundo,
compositor, ícones da criatividade artística de Pernambuco que conquistaram
reconhecimento nacional. Note-se o uso do termo “bantu” em vez da forma
dicionarizada “banto”, de forma a rimar com Olodu, redução de Olodumaré ou
Olodumarê.
O tulo da música faz referência a um antigo bordão da Rádio Jornal do
Commercio do Recife, a qual, inaugurada em 3 de julho de 1948, durante muito
tempo foi a emissora brasileira de radiodifusão de maior alcance.
Com modernos transmissores e operando em cinco faixas de
onda, as suas transmissões eram captadas na Europa, na América do
Norte e em grande parte da América do Sul, fazendo jus ao seu slogan:
“Pernambuco falando para o Mundo” (trecho inicial do texto do
pesquisador, historiador e carnavalesco recifense Leonardo Dantas
Silva escrito especialmente para o encarte do CD Pernambuco falando
para o mundo [BR 0003], de Antonio Nóbrega).
Além da citação a elementos que caracterizam fortemente a cultura
pernambucana, a homenagem dos autores a seu estado natal é reforçada pela
utilização, na primeira estrofe, do acróstico, “composição poética na qual o
134
conjunto das letras iniciais (e por vezes as mediais ou finais) dos versos
compõe verticalmente uma palavra ou frase” (Ferreira, 1995: 40). O ritmo,
característico do “léxico musical” do artista, é o coco, tendo como referências
inspiradoras primordiais a arte do coquista ou coqueiro Chico Antônio e um
vasto trabalho desenvolvido por Mário de Andrade nas obras O turista aprendiz
e Os cocos (respectivamente, Andrade, 1983, 1984). Em seu Dicionário
musical brasileiro (Andrade, 1989), Mário desenvolve amplas considerações a
respeito do coco.
A riqueza lingüística com que trabalha brega (no caso de Pernambuco
falando para mundo ao lado de seu parceiro Wilson Freire) é associada à sua
expressividade sonora, a qual tem como influência decisiva o Movimento
Armorial, fundamental em sua formação artística. Como visto no capítulo 2.1,
esse movimento foi estudado recentemente por Newton Júnior (1999), Santos
(1999), Moraes (2000) e Nogueira (2002). Santos ressalta a importância da
“poética da voz” no trabalho dos músicos armoriais, respeitando rigorosamente
estruturas preconizadas pelos cantadores populares nordestinos.
Na letra que título ao CD e ao espetáculo, observem-se termos
regionais como “preaca” (no Nordeste, é o conjunto de arco-e-flecha usado
pelos caboclinhos, grupos de pessoas que se vestem de índios e desfilam no
carnaval, tendo inspiração religiosa africana), “pife” (instrumento musical: pífaro
ou pífano) e “azougado” (inquieto, irritadiço), caracterizando as variantes
diatópicas utilizadas pelos compositores.
A se registrar ainda a série de aliterações em cada verso da primeira
estrofe, aproveitando as iniciais da palavra Pernambuco: pitomba, preaca, pife,
135
pandeiro; esse, encontro, essa, emoção; rainhas, reis, reisado, rojão; negros
nagôs, navios negreiros; Ascenso, arrecifes, angolas arteiros; maraca,
mascates, maracatu; baião, berimbau, batuque, bantu; usina, umbigada,
umburana, umbuzal; Capiba, calunga, calor, carnaval; Oxóssi, Obá, Oxum,
Olodu. Nesse conjunto de palavras transparentes (Ullmann, 1970) reaparece a
figura de estilo verificada, por exemplo, em Truléu da Marieta e no Romance
de Clara menina com Dom Carlos de Alencar, do repertório de Na pancada do
ganzá. Com o canto e o ritmo que embala a música, o efeito poético e sonoro
torna-se ainda mais proeminente, demonstrando novamente como a estilística
fônica é uma característica primordial no trabalho de Nóbrega. É que
“a matéria fônica desempenha uma função expressiva que se deve a
particularidades da articulação dos fonemas, às suas qualidades de timbre,
altura, duração, intensidade”, como diz Martins (2000: 26).
Assim como na Sambada dos Mestres de Madeira que cupim não rói, na
canção-síntese de Pernambuco falando para o mundo o brincante assevera a
sua condição de artista popular, de vira-mundo. Se ele estiver azougado,
regionalismo para irritado, ninguém o segura; afinal, acima dele Deus nas
alturas, e sua voz assume o papel de representante do próprio estado de
Pernambuco falando para o mundo.
Despedida (Domínio público – adaptação de Wilson Freire) encerra o
roteiro do espetáculo e do CD, reforçando a estrutura apresentada em Na
pancada do ganzá e Madeira que cupim não rói.
136
4.2.4 – O marco do meio-dia
Câmara Cascudo ensina:
[Marco] É uma construção imaginária, que os cantadores do
Nordeste dizem ter mandado erguer, cheia de armas invencíveis,
espécie de fortaleza inexpugnável, com segredos defensivos e forças
mágicas, a que ninguém poderá resistir. Os velhos cantadores de
outrora, no embate do desafio, descreviam os assombros do marco,
cabendo ao adversário, no ímpeto da improvisação, desarmar o arsenal,
num combate de viva imaginação (s.d.: 556).
O cantador e poeta popular José Alves Sobrinho (2003: 109) acrescenta:
são “fortalezas imaginárias com que os poetas marcavam os limites do seu
domínio na ribeira de seu nascimento ou onde residiam”. É o universo
particular do poeta, com suas idiossincrasias e com a intenção de ser
inconquistável, o que estimula o poeta “adversário” a tentar derrubá-lo, de
acordo com Wilson Freire.
79
Tal qual uma sessão de cantoria, Nóbrega aqui canta histórias, fatos,
mitos e peculiaridades que fazem parte da historiografia do Brasil e do seu
fabulário coletivo. Como o próprio artista acentua no encarte do CD,
esse Marco é a semente de um povo em formação, ele é um canto de
graças, um louvor à Criação. No centro aqui deste palco, o Marco fica
plantado; o sonho e a alegria humana foram aqui celebrados.
Trata-se de um Marco com letra maiúscula, traduzindo a sua importância
como peça de resistência da cultura brasileira para quem o ostenta. Essa é a
idéia central que move o espetáculo e o disco, em que são homenageadas
figuras emblemáticas da cultura popular brasileira: o jogador de futebol
Garrincha (em Flecha fulniô), o mestre entalhador mineiro Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho (Romance do Aleijadinho), e o artista plástico Arthur Bispo
79
Ver 2.2.1.
137
do Rosário (Galope beira-mar para Bispo do Rosário), que foi interno em
manicômios e teve o despertar de sua arte incentivado pela psiquiatra Nise da
Silveira. Esses três homenageados são ícones de uma homenagem ainda
maior: aos quinhentos anos de “descobrimento” do Brasil.
O roteiro começa com a Apresentação dos músicos (Antonio brega e
Wilson Freire), quando o artista saúda um a um os companheiros
instrumentistas com quem divide o palco e as gravações. Ressalte-se que pela
primeira vez Nóbrega trabalha com uma letra recitada, sem melodia, porém
respeitando a métrica (em seis estrofes) de seis versos com sete sílabas, com
o seguinte esquema de rimas: ABCBDB. São apresentados os percussionistas,
os músicos das cordas, dos sopros, do fole (acordeom), constituindo uma
espécie de família musical. No final, o cantador avisa: “Dando início à jornada /
de toques, loas e canções, / celebrando a alegria / com o fervor das orações, /
licença peço pra entrar / em vossos bons corações”. Estabelece-se novamente
a estrutura dos espetáculos populares em que Nóbrega se inspira, que aqui
ele festeja os músicos em vez do público, mantendo no entanto a tradição de
pedir licença para se apresentar e para entrar “em vossos bons corações”.
Imediatamente após Nóbrega encerrar a recitação da letra de
Apresentação dos músicos segue-se a Dança do mergulhão (domínio público),
que é um toque instrumental de banda cabaçal. Depois é a vez de Mestiçagem
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire), exaltando a mistura de raças na
homenagem explícita aos quinhentos anos de descobrimento do Brasil.
Aparecem os elementos negro, branco e índio que procriaram entre si,
resultando mulatos, mamelucos, cafuzos, crioulos, mazombos (filhos de pais
138
estrangeiros, sobretudo portugueses, nascidos no Brasil). Também são citados
o japonês, o sírio-libanês e a “alemoa” como componentes dessa mistura
racial. Assim como na Apresentação dos músicos, são seis estrofes, cada uma
com seis versos de sete sílabas no esquema de rimas ABCBDB. O início da
última estrofe com o verso “Me casei com uma mestiça”, em vez do rigoroso
“casei-me” da língua padrão, caracteriza uma vez mais a unidade sinfásica que
permeia o estilo da linguagem utilizada por Nóbrega.
Viagem maravilhosa (Antonio brega, Bráulio Tavares e Wilson Freire)
é a mais longa letra apresentada nos cinco CDs: 176 versos, como anunciado
no capítulo 2.2. A comilança narrada tem nítida inspiração rabelaisiana:
80
Fiz um almoço
lá no Buraco da Jia,
começou ao meio-dia,
terminou pela manhã:
cuscuz com fava,
bode assado, dobradinha,
macaxeira com farinha,
codorniz e ribaçã.
Bolo de milho,
marisco no vinagrete,
feijoada com croquete,
quitute e baião-de-dois.
Comi de tudo
sem pressa, sem me cansar,
só para me preparar
para o que vinha depois...
Arroz de polvo,
risoto de camarão,
maionese e macarrão,
salpicão, frutos do mar,
feijão-macassa,
galinha de cabidela
e um bife de panela
bem leve, pra descansar.
80
Bakhtin (1999) fala especialmente num capítulo sobre o banquete (a comilança) em Rabelais
e na comédia popular.
139
Um ensopado
de carne com batatinha,
feijão-verde e farofinha,
sanduíche de peru.
Pra terminar
um conhaque, um cafezinho,
mais um cálice de vinho
e três doses de Pitu.
O exagero é tanto que parte desses versos é recitada, como se o cantor
estivesse de fato empanturrado após a ingestão de tanta comida, ainda mais
com as exóticas combinações de alimentos indicadas, com base na cozinha
nordestina. E tudo isso no Buraco da Jia, um restaurante muito conhecido na
cidade de Goiana, em Pernambuco, pela fartura com que serve a comida
regional.
Esta letra apresenta uma particularidade de Bráulio Tavares que aqui se
ajusta ao estilo lingüístico-poético de Antonio Nóbrega. No verso “Aí, um dia, /
eu sentado na cadeira, um estalo-de-Vieira clareou a minha mente”, a
expressão estalo-de-Vieira com hífen (referindo-se ao padre e escritor Antônio
Vieira) representa o que Bráulio chama de “hífen evidenciador de sintagma”. “É
para dizer que estalo-de-Vieira é uma palavra só, como guarda-chuva”, ressalta
o letrista.
81
O esquema poético de Viagem maravilhosa inova em relação ao
repertório mostrado até então. Suas 22 estrofes têm oito versos cada, no
seguinte esquema métrico: quatro sílabas, sete, sete, sete; quatro sílabas,
sete, sete, sete. Eis a estrutura de rimas: ABBCDEEC. O refrão “Cavalgar,
cavalgar, / eu cavalguei. / No país dos brasileiros / conheci o mundo inteiro / e
81
Ver capítulo 2.2.2.
140
por ele eu passeei” assume uma forma livre nos dois primeiros versos, com os
três últimos apresentando a tradicional medida de sete sílabas cada.
Destaque-se a associação poética de idéias entre o trote da burrinha do
personagem-cantador com a melodia do tradicional chorinho Brasileirinho, de
Waldir Azevedo: “E mesmo antes / do sol, do cantar do galo, / do sino bater
badalo, / eu saí pelo caminho... / Os cascos dela / velozes matraqueavam, /
pareciam que estavam / tocando Brasileirinho”. Na homenagem aos quinhentos
anos do Brasil, o subtexto de Viagem maravilhosa louva um gênero musical
essencialmente brasileiro por meio do maior sucesso de um de seus mais
importantes instrumentistas.
Em seu encerramento, essa canção prepara a entrada da próxima
música, Zumbi (Antonio brega e Wilson Freire), que fala sobre um mito da
negritude brasileira e de sua resistência, “primeiro sonho / brasileiro de
igualdade, / fraterno, de liberdade”. Segundo o próprio Nóbrega,
82
a estrutura
utilizada aqui é a da carretilha, uma estrofe em que o primeiro verso tem quatro
sílabas e os três restantes tem sete, rimando o segundo com o terceiro e o
último sempre em -ar, que fará par com a palavra que encerra a próxima
seqüência de quatro versos: “Zumbi, um negro, / respirando rebeldia, / foge pra
mata um dia / à procura do Lugar. / Era um quilombo, / a terra dos ex-escravos,
/ todos livres, sem os travos, / sem ter dono pra ferrar”. Note-se a palavra
“Lugar” em letra maiúscula, reforçando a idéia de paraíso do local procurado
por Zumbi e pelos quilombolas. Lembre-se de que o uso das maiúsculas
acentua o peso de determinadas palavras para o letrista Wilson Freire.
83
82
Ver entrevista no Anexo 2.
83
Como em Sambada dos Mestres, de Madeira que cupim não rói. Ver 2.2.1.
141
A polca instrumental Risada da Chiquinha e o Coco da bicharada
(recriação de cantiga e versalhada popular por Antonio Nóbrega e Wilson
Freire) dão seqüência ao roteiro. Nesta última, os autores humanizam os
bichos citados na letra, imaginando-os em situações inusitadas:
Vi mosca de camisola,
vi cavalo num debate,
vi uma traça alfaiate,
guaxinim tocar viola,
um siri jogando bola,
vi um pica-pau ferreiro,
um veado arruaceiro,
vi um mosquito tossindo,
vi uma gata parindo
e o cachorro era o parteiro.
É uma décima de sete sílabas, com o esquema rítmico ABBAACCDDC.
Vem então Estrela-d’alva (Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho
Pitoco). O letrista Bráulio Tavares fala sobre essa toada:
84
“É uma cadência
que eu chamo de 4-4-4: ‘Caixa-de-guerra, maracá, porta-bandeira, / rainha
negra batendo palma de mão’.” Todas as linhas têm essa cadência, menos a
última, que é 4-4-2: “bombo profundo ressoou trovão”, por exemplo. “Aí não
tem uma forma fixa necessariamente, foi uma coisa sugerida pela música.” A
letra inicial era sobre carnaval, descrevendo os maracatus do Recife, mas
Nóbrega disse a ele que era um assunto bastante explorado, como visto no
capítulo 2.2.2. Pediu-lhe então para aproveitar o segundo verso (“rainha negra
batendo palma de mão”) e levar para o lado das cerimônias religiosas, com
mouros e cristãos, andor, procissão, romaria. Quanto ao formato, ele é livre,
“nosso” – como diz Bráulio –, arranjado para essa canção especificamente.
84
Ver 2.2.2.
142
No verso “Anjos-meninos, de olhos pretos e asas brancas”, em “anjos-
meninos” note-se o “hífen evidenciador de sintagma” tão característico do estilo
de Bráulio, assim como visto no “estalo-de-Vieira” de Viagem maravilhosa.
Flecha fulniô (Antonio brega e Wilson Freire) homenageia Garrincha,
como dito pouco. O jogador não é caro somente a Nóbrega e Freire: Ariano
Suassuna anunciou em agosto de 2005 que pretende incluir o atleta na
primeira parte do livro que escreverá sobre os povos que originaram a nação
brasileira. O famoso craque do Botafogo e da Seleção Brasileira deverá figurar
na primeira parte, dedicada aos índios. "Garrincha representou o que o Brasil
tem de mais verdadeiro. E por meio dele quero homenagear a presença
indígena no Brasil, antes até da chegada dos portugueses", afirmou o
entusiasmado Ariano com relação a seu personagem.
85
O criador do Auto da
compadecida, dessa forma, dá continuidade à homenagem que Nóbrega e
Freire haviam prestado a Garrincha, como um dos ícones do jeito brasileiro
de ser, um “anjo torto” com as “pernas mágicas”.
Sumaúma grande
brotou curumim.
Ave miúda
nasceu passarim.
Sangue fulniô,
pegadas toré,
um arco no corpo,
a flecha Mané.
Fogo na galera
delira a aplaudir,
um anjo torto
barroco a sorrir.
Garrincha no nome,
nas pernas garruchas,
85
O Estado de S.Paulo, 27/8/2005.
143
no chute um morteiro,
um canhão de buchas.
Um deus nos estádios
abrindo as retrancas,
um desengonçado
que as redes balança
Mandinga, catimba,
a lógica, a tática,
de nada valiam
para as pernas mágicas.
Mais um gol de letra,
de placa, um golaço,
a bola lhe adora,
e corre pro abraço.
Malasartes do jogo,
driblando zagueiros,
um bobo pra corte,
um herói brasileiro.
Sem Maracanã,
sem drible na área,
na noite sem grito,
estrela solitária.
Partiu, foi morar
na constelação,
deixou pátria órfã,
sem circo a nação.
Garrincha é comparado à subaúma, árvore frondosa, de grande estatura
e raízes fortes, que funciona aqui como a própria imagem do povo brasileiro
que Nóbrega e Wilson homenageiam por meio do craque das pernas tortas,
contando a seu modo a sua história, do nascimento aa morte. Suas pernas
eram garruchas (uma espécie de pistola) e ele era um malasartes
86
do jogo,
uma espécie de trapalhão, no bom sentido, apresentando ao mesmo tempo o
caráter de um anjo torto barroco a sorrir, com sua ingenuidade. Era um perfeito
86
A grafia constante do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Academia Brasileira de
Letras, 2004), assim como em Ferreira (1995) e Houaiss & Villar (2001), é malas-artes.
144
artista de circo que fazia do campo de futebol o seu picadeiro até partir,
estrela solitária, para ir morar na constelação.
O Romance do Aleijadinho (Antonio Nóbrega e Wilson Freire) aproveita
o tema instrumental Cantiga, de Antonio José Madureira, presente no disco
Sete Flechas, do Quinteto Armorial. A idéia de alçar o artista plástico Antônio
Francisco Lisboa à condição de um dos ícones do povo brasileiro aparece clara
nos versos a seguir, com sete sílabas e encadeados no esquema ABCBDB:
Do seu talhe então surgia
uma nova identidade
da nação que se formava,
mestiça, sim, de verdade.
Riscou na pedra e madeira
carminhos da liberdade.
À medida que seu corpo
ia se desfigurando,
e com as chagas crescentes
ia se despedaçando,
o que caía no chão
nova terra ia formando.
Talhando gente e frontões,
nas Minas ele vagava,
visionário, itinerante,
uma nação, inventava.
Era um mestiço, meu Deus,
que um Brasil profetizava.
Em seguida vem Galope beira-mar para Bispo do Rosário (Antonio
Nóbrega e Wilson Freire):
Então, meia-noite, anjos emissários,
em conta de sete, de aura azulada,
falaram pra ele, “punhando” as espadas:
“És tu O escolhido, Bispo do Rosário.
Terás de fazer o teu inventário
e reconstruir o Universo sem par,
pra diante de Deus tu te apresentar
vestido em teu manto vermelho-centelha.
Entrou no hospício da Praia Vermelha
cantando galope na beira do mar.
145
Obedece-se à estrutura do galope: dez versos com onze sílabas, no
esquema rítmico ABBAACCDDC. Note-se o verso “Terás de fazer o teu
inventário”, em que uma respiração (após “Terás de fazer”) vale por uma sílaba
para inteirar o total desejado de 11 sílabas. Mais um exemplo da liberdade
autoral na hora de adaptar a linguagem oral à forma fixa da poesia popular.
Após o número instrumental Dança dos arcos (domínio público
adaptação de Manuel Salustiano – tema de São Gonçalo e da Pata piou), muito
conhecido em Pernambuco por estar associado ao cavalo-marinho, segue-se a
canção-síntese Martelo d’o marco do meio-dia (Ariano Suassuna e Antonio
Nóbrega), que encerra o CD e o espetáculo. A letra segue fielmente a estrutura
de rimas ABBAACCDDC. Os versos são decassílabos, característicos do
gênero martelo:
A bandeira do sol estrala ao vento [A]
e ressoa a minha voz de cantador, [B]
num protesto do sonho contra a dor, [B]
a pobreza do povo e o sofrimento. [A]
Nas estrelas do canto, o pensamento [A]
ergue um marco que é só anunciado. [C]
Nossa sorte de povo injustiçado [C]
é vencida por nós ao som da luta, [D]
e no meio do palco o que se escuta [D]
é o sol da justiça do sonhado. [C]
Ao final desta dança bela e forte [A]
eu que sou o cantador, dono da casa, [B]
e com versos de sangue, fogo e brasa, [B]
forjo o marco e celebro a minha sorte. [A]
Na viola, eu vou batendo a morte [A}
e assumindo a coroa do guerreiro. [C]
Ao cantar meu país, sou o lanceiro, [C]
olho o sangue ferido do meu povo [D]
e sonho, ao meio-dia, um canto novo, [D]
levantando este marco brasileiro. [C]
No arranjo da sica Martelo do marco do meio-dia, surge uma
sonoridade típica em pelo menos uma de cada faixa dos CDs de Nóbrega: a do
146
maracatu rural, também chamado de baque solto, de orquestra ou, ainda, de
trombone.
87
Entre as duas estrofes e no final da música, os sons dos metais e
da percussão evocam essa referência musical tão característica no trabalho
desse brincante.
Aliada à sonoridade própria do maracatu de baque solto, deve-se
observar na letra dessa música a potencialidade expressiva dos fonemas,
seguindo-se as idéias registradas por Monteiro (1991: 99-100):
Cada ordem de sensações é sugerida por fonemas específicos,
em virtude de correspondências articulatórias ou impressões acústicas.
(...) Fixemos de imediato que os efeitos expressivos se distinguem
segundo a divisão dos fonemas em vocálicos e consonantais. Enquanto
aqueles se prestam basicamente a intensificar as sensações visuais
(forma, cor etc.) e os traços afetivos que delas decorrem, os
consonantais se relacionam às demais espécies (auditivas, cinéticas,
tácteis etc.). Ressalte-se, porém, que as vogais servem de apoio às
consoantes e, por isso, prolongam ou acentuam o que estas são
capazes de conotar.
Assim, note-se a expressividade sonora alcançada pelos versos do
Martelo do marco d’o meio-dia, especialmente dos que compõem as rimas:
vento-sofrimento-pensamento [A]; cantador-dor [B]; anunciado-injustiçado-
sonhado [C]; luta-escuta [D] (primeira estrofe); forte-sorte-morte [A]; casa-brasa
[B]; guerreiro-lanceiro-brasileiro [C]; povo-novo [D] (segunda estrofe). Essas
palavras acentuam a idéia de uma “pequena epopéia” se é que se pode
chamar assim contida nesse martelo, que resume em duas estrofes uma
situação bastante comum ao povo nordestino, especialmente no sertão:
pobreza, dor, sofrimento, falta de perspectivas. No entanto, por meio de uma
série de ações heróicas anunciadas pelo protagonista desse Marco, novas
esperanças anunciam-se para alterar o dramático panorama apresentado. O
87
Ver Glossário.
147
povo injustiçado terá sua sorte mudada por meio de uma luta em que o sol,
mais do que visto, é ouvido (sinestesia); afinal, trata-se do sol da justiça do
sonhado, o próprio reino de Deus.
Com o pensamento na “construção imaginária” que é esse Marco, a luta
do cantador contra a difícil situação de seu povo cantada/contada no Martelo
do marco d’o meio-dia ganha novo vigor; as palavras revestem-se de uma
carga emocional mais profunda; o sofrimento que compõe o pano de fundo da
situação narrada recebe o alento, logo no primeiro verso, do vento. E com
versos de sangue, fogo e brasa, o protagonista-narrador-autor assume sua
viola, sua lança e sua coroa de guerreiro para tornar-se o paladino de seu
povo.
Assim, o sofrimento da primeira estrofe cede definitivamente a vez à
esperança apregoada no final da letra. Afinal, como diz M. Rodrigues Lapa
(1988: 47), “o homem com tudo brinca, nas suas horas de desenfado; até com
as palavras, que dão forma ao seu pensamento”. No canto e nas ações de
nosso protagonista, mesmo se estas não forem bem sucedidas, está a
esperança de um canto e de um mundo novos, em pleno sol do meio-dia, no
qual é forjado esse Marco, “a que ninguém poderá resistir”, lembrando a
citação de Câmara Cascudo.
Por meio da reunião de gêneros musicais e textuais apresentados em O
marco do meio-dia, Nóbrega busca mostrar que, no caso do Brasil,
especialmente no ano das comemorações dos quinhentos anos de seu
descobrimento, a diversidade talvez seja a maneira mais vigorosa de afirmar a
sua unidade como nação.
148
4.2.5 – Lunário perpétuo
O poeta popular, cantador e pesquisador paraibano José Alves
Sobrinho, em sua obra Cantadores, repentistas e poetas populares, classifica
os folhetos de cordel em 19 categorias
88
e faz menção ao Lunário perpétuo na
categoria que intitula “Conselhos”. Segundo ele, dois tipos de conselhos: o
moralizante e o de gracejo; é neste caso que cita o seguinte exemplo, tirado de
Conselho aos solteiros, de autoria atribuída a Manoel Camilo dos Santos:
Em um Lunário perpétuo,
Depois de muito estudar
O sistema planetário
Posso agora aconselhar
Com o meu conhecimento
Aos jovens no casamento
Para nenhum se enrascar (Sobrinho, 2003: 114).
Rabelais, com seu estilo desabrido de retratar sua época, além dos
clássicos Gargântua (As grandes crônicas de Gargântua, 1532) e Pantagruel
(escrito no mesmo ano), chegou a escrever o Prognóstico pantagruelino,
referindo-se a seu irreverente personagem, e um Almanaque. O Prognóstico
pantagruelino “é uma alegre paródia dos livros de predições do ano-novo,
muito em voga na época. Essa breve obra, que só compreendia algumas
páginas, teve várias reedições” (Bakhtin, 1999: 135). o Almanaque foi um
calendário popular que circulou, em mais de uma versão, em meados do
século XVI. “Esses dois tipos de obra, o Prognóstico e os almanaques, estão
88
Sobre a literatura de cordel, Sobrinho (2003: 109) diz que os folhetos têm 8, 12 ou 16
páginas; se têm 24, 32, 48 ou 64, são romances ou histórias, conforme o conteúdo e o assunto.
Eis as 19 categorias propostas por ele: 1 peleja, debate, discussão e encontro; 2 marcos e
vantagens; 3 – história de inspiração popular; 4 – história de inspiração não-popular; 5 –
fabulação; 6 gracejos e espertezas; 7 religião e beatismo; 8 profecias; 9 avisos; 10
castigos e exemplos; 11– política, sociedade e ciência; 12 reportagens; 13 heroísmo; 14
149
ligados muito diretamente ao tempo, ao ano-novo, e afinal ao chão da feira”,
afirma Bakhtin (1999: 136), que acrescenta em sugestiva nota na mesma
página: “O fato de que uma única e mesma personagem fosse ao mesmo
tempo um sábio erudito e um autor popular é típico da época.”
O texto desta nota remete imediatamente ao caráter multifacetado do
personagem Tonheta; e a que nos remetem o teor do Prognóstico
pantagruelino e o dos almanaques senão ao conteúdo do Lunário perpétuo?
Esta espécie de cartilha popular nordestina reúne orações, informações sobre
a Lua, épocas para plantio etc. e inspirou Nóbrega na criação de um
espetáculo que, além do respectivo CD, daria origem a seu primeiro DVD.
De acordo com Câmara Cascudo, o Lunário perpétuo foi
durante dois séculos o livro mais lido nos sertões do Nordeste,
informador de ciências complicadas de astrologia, dando informações
sobre horóscopos, rudimentos de física, remédios estupefacientes e
velhíssimos. (...) Foi um dos livros mestres para os cantadores
populares, na parte que eles denominavam “ciência” ou “cantar teoria”,
gramática, história, doutrina cristã, países da Europa, capitais, mitologia.
Decoravam letra por letra. É o volume responsável por muita frase
curiosa, dita pelo sertanejo, e que provém de clássicos dos sécs. XVI,
ou XVIII. A primeira edição é de Lisboa, em 1703, na casa de Miguel
Menescal. O título inteiro, depois amputado nos volumes editados na
última década do séc. XIX, denuncia o plano da “ciência popular”: O
Non Plus Ultra do Lunário e Prognóstico Perpétuo, Geral e Particular
para Todos os Reinos e Províncias, Composto por Jerônimo Cortez,
valenciano, emendado conforme o Expurgatório da Santa Inquisição, e
traduzido em português (s.d.: 524).
Nenhum trecho do Lunário propriamente dito é musicado por Nóbrega,
mas a publicação serve de inspiração para um novo mergulho do artista na
alma do povo brasileiro, no que ele chama de “pedras do seu céu e estrelas do
seu chão”, como afirma no espetáculo e está registrado no DVD.
89
proezas; 15 – miscelânea; 16 – profanação; 17– depravação; 18 – conselhos; 19 – escândalo e
corrupção.
89
Cf. Referências Discográficas.
150
Composição baseada na estrutura do maracatu rural (décimas de sete
sílabas), em que alguns versos do cantador são repetidos pela audiência, O rei
e o palhaço (Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares) abre o CD e fala sobre a
dicotomia entre o lado “rei” e o lado “palhaço” de todo ser humano, a partir de
inspiração de Ariano Suassuna. Uma das estrofes acentua:
Você vem com a arma erguida,
eu vou abaixando a guarda.
Você vem vestindo a farda,
eu de roupa colorida.
Você disputa corrida, (BIS)
eu corro pra relaxar.
Sua marcha é militar,
a minha é de carnaval.
Seu traje é de general,
eu visto pena e cocar.
Essa rie de oposições permeia toda a canção, em imagens que
pontificam claramente a polaridade entre o cantador e o seu “adversário”, na
estrutura ABBAACCDDC.
Ponteio acutilado (tema instrumental de Nóbrega, gravado pelo
Quinteto Armorial), segunda música do CD, abre o espetáculo e o encerra,
após fundir-se com os acordes finais de Lunário perpétuo. Dos cinco CDs, o
único que tem a ordem alterada das canções no palco é este (O rei e o
palhaço, por exemplo, é a penúltima música apresentada no espetáculo). Esse
ponteio foi o primeiro tema que o artista compôs para o quinteto, inspirado em
um toque de banda cabaçal (conjunto musical também conhecido por ternos-
de-pífaros ou pífanos) dos Irmãos Aniceto, o qual ele ouviu no Crato (Ceará),
conforme consta no programa do CD Lunário perpétuo.
A canção a seguir é o Romance da filha do imperador do Brasil (Antonio
Nóbrega e Ariano Suassuna), tema de origem ibérica, recriado literariamente
151
por Ariano e musicado por Nóbrega. Está no Romance da Pedra do Reino
(Suassuna, 2004b). Apresenta um tom brincalhão, também de certa forma
rabelaisiano, com insinuações de fundo sexual, no final da história, mas sem
cair jamais num caráter chulo. “A linguagem familiar converteu-se, de uma
certa forma, em um reservatório onde se acumularam as expressões verbais
proibidas e eliminadas da comunicação oficial”, disse Bakhtin, acrescentando:
“pode-se afirmar que as grosserias são um gênero verbal particular da
linguagem familiar” (1999: 15).
Carrossel do destino é uma lírica ciranda composta por Antonio Nóbrega
inspirada em versos de Bráulio Tavares. São décimas de sete sílabas, que
terminam com os dois versos: “Licença que eu vou rodar / no carrossel do
destino”.
Romances e epopéias
me pedindo pra brotar
e eu tangendo devagar
a boiada das idéias.
Sempre em busca das colméias
onde brota o mel mais fino,
e um só verso, pequenino,
mas que mereça ficar...
Licença que eu vou rodar
no carrossel do destino.
O Romance da nau-catarineta (romance tradicional recriado por Ariano
Suassuna com base em toadas populares) está presente no folheto XXXIV do
Romance d’a Pedra do Reino (Suassuna, 2004b). As melodias cantadas por
Nóbrega são as mesmas utilizadas por Antônio José Madureira na versão
instrumental dos tempos do Quinteto Armorial. Entre as personagens citadas
na letra, destaca-se o gajeiro, marinheiro que, nos navios a vela, tem a seu
cargo um dos mastros, zela por ele e dirige os trabalhos que nele se executam,
152
e a quem outrora competia, ainda, subir ao cesto da gávea, nas proximidades
de terra, a fim de procurar avistá-la antes dos demais elementos da tripulação
(Ferreira, 1995).
Seguem-se o frevo Canjiquinha, de Lourival Oliveira, e A morte do touro
Mão de Pau (Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna), que é um dos primeiros
poemas publicados do criador do Auto da compadecida e data do final dos
anos 40. O poema foi escrito em memória do pai do escritor, assassinado em
1930 por motivos políticos, episódio bastante traumático na vida de Ariano,
conforme visto no capítulo 2.1. Como Nóbrega escreve no encarte do CD, o
poema, por sua vez, foi inspirado no folheto O boi Mão de Pau, do poeta e
rabequeiro rio-grandense-do-norte Fabião das Queimadas.
O roteiro prossegue com mais um número instrumental, o choro Pagão,
de Pixinguinha. Chega a vez de Excelência (recriação literária de Ariano
Suassuna com base em toadas populares), canto de recomendação de almas,
ainda muito cantado no meio rural nordestino. Na composição interpretada por
Nóbrega há duas partes: a primeira em forma de lamento e a segunda em
forma de abecê, que é uma composição poética popular (às vezes de cunho
satírico) em que se celebram vidas de santos, cangaceiros, feitos heróicos e
personagens famosos, na qual as estrofes começam sucessivamente pelas
letras do alfabeto em sua ordem natural, inclusive o til. Os versos costumam
ser quadras (os mais antigos eram sextilhas ou hendecassílabos), com rimas
simples (Câmara Cascudo, s.d.; Houaiss, 2001).
O esquema rítmico é ABCB. Na primeira quadra (“Diz o A... Ave-Maria /
Diz o B... Brandosa e bela / Diz o C... Cofrim da Graça / Diz o D... Divina
153
Estrela”), a rima “bela” com “estrela” demonstra novamente a liberdade que o
cantador popular encontra na hora de ajustar os seus versos. Observe-se o uso
de termos como “brandosa”, reforçando o caráter de branda para Nossa
Senhora, e “cofrim”, diminutivo que ressalta uma intimidade com a santa.
A se destacar ainda o que dizem o K (“Coro dos Anjos”) em que o k
vale como fonema, e não como letra; o P (“Por vossos filhos”) em que a
preposição por é valorizada no abee início a um verso; e o Z (“Zelai o
mundo”) forma em que o verbo zelar aparece como transitivo direto e não é
tão usual quanto seria “zelai pelo mundo”.
Vem em seguida o “tonhetânico” Meu foguete brasileiro (Antonio
Nóbrega e Bráulio Tavares), cujos detalhes sobre sua criação são dados pelo
próprio autor da letra.
90
O roteiro prossegue com o instrumental Luzia no frevo (Antonio
Sapateiro), o frevo-canção Delírio (de Antônio José Madureira e Marcelo
Varella, mesma dupla que compôs o Maracatu Misterioso, constante do
repertório de Madeira que cupim não rói) e outro frevo instrumental, Lágrimas
de um folião (Levino Ferreira). Segundo Nóbrega assinala no encarte do CD, o
pernambucano Levino “foi provavelmente o maior compositor de frevos de
todos os tempos”.
Chega então O romance de Riobaldo e Diadorim (Antonio Nóbrega e
Wilson Freire), de franca inspiração rosiana.
91
Conta o episódio em que
Riobaldo descobre a verdadeira identidade de Diadorim na “Noite-grande-fatal”
de Grande sertão: veredas (Rosa, 1994).
90
Ver capítulo 2.2.2.
91
Ver entrevista no Anexo 2.
154
Sob as roupas de jagunço,
corpo de mulher eu via.
A Deus já dada, sem vida,
o vau da minha alegria.
Diadorim, Diadorim...
Minha incontida sangria.
Na freqüente alteração na sílaba tônica das palavras no canto e na
poesia popular nordestinos, “incontida” vira proparoxítona e soa aqui como
“*incôntida”, deslocamento que é muito comum, como visto no capítulo 2.2.2.
Inspirados pelo mineiro Guimarães Rosa, os compositores aproveitam inclusive
a palavra “vau” baixio, local raso de um rio, mar, lagoa, por onde se pode
passar a pé ou a cavalo (Houaiss & Villar, 2001) –, comum no universo
lingüístico do autor de Grande sertão: veredas.
Lunário perpétuo (Antonio Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares)
encerra tanto o CD quanto o espetáculo neste caso, emendando com a
retomada do tema instrumental Ponteio acutilado, que servira de abertura.
Meu Lunário tem antigas
alquimias de almanaques.
Já enfrentou intempéries,
roubos, incêndios e saques:
dos homens, das traças, das garras, das eras,
carrega segredos, decifra quimeras.
Venceu todos os ataques.
O meu Lunário perpétuo
sob o sol é luzidio.
Meu Lunário foi forjado
num fogo de desafio
que vibra, esquenta, atiça, aperreia,
faísca, enlouquece, que pega na veia.
Pelos séculos a fio.
O meu Lunário perpétuo
guarda as vozes seculares
do Profeta de Canudos
e do Mártir dos Palmares.
Sonhando com o Reino do Espírito Santo
na terra, no céu, em todo recanto.
Nos terreiros e altares.
155
O meu Lunário perpétuo
é meu Livro precioso,
minha Cartilha primeira,
minha Bíblia de Trancoso.
João Grilo, Chicó, Malasartes, Mateus,
os órfãos da terra, os filhos de Deus!
Heróis do Maravilhoso!
Meu Lunário é a memória
de um país que vai passando
diante dos nossos olhos,
rindo, mexendo, cantando.
Mestiço, latino, caboclo, nativo,
é velho, é criança, morreu e tá vivo...
Presente, mas até quando?
Meu Lunário é conselheiro.
é meu folheto, é meu missal,
atravessando os milênios,
cada ponto cardeal.
De Norte a Sul, de Pai para Filho,
92
de lá para cá, meu livrinho andarilho.
Fabuloso Romançal!
A estrutura do Lunário foi abordada no capítulo 2.2.2 (septilha com
quatro versos de sete s, dois versos de galope 11 sílabas, divididas em 2-
3-3-3, acentuação na segunda, na quinta, na oitava e na décima primeira e
mais um verso de sete sílabas).
Concluindo aqui o corpus analisado, cabe salientar a riqueza de imagens
descritas na letra que, aliada à sonoridade da melodia, reúne elementos que
povoam e caracterizam o universo lingüístico-poético-musical de Antonio
Nóbrega: referências a “heróis” regionais, como o rtir dos Palmares (Zumbi)
e o Profeta de Canudos (Antônio Conselheiro). O próprio Lunário perpétuo
funciona como uma metáfora de brasilidade para o que Nóbrega escudado
por Wilson Freire e Bráulio Tavares – entende por sua própria nação, definindo-
a por meio de expressões que remetem a outras canções, ressaltando a
92
Sobre a possível “falta” de uma sílaba neste verso, ver análise na página 50.
156
variedade racial (Mestiçagem), as dificuldades ou intempéries (também
enfrentadas pelo viandante de Canudos), o caráter de andarilho (há uma
canção com este nome, de autoria de Dalton Vogeler e Orlando Silveira, no
repertório de Madeira que cupim não rói), o sonho com o Reino do Espírito
Santo (o “sol da justiça do sonhado”, do Martelo d’o marco do meio-dia), Zumbi,
também tema de uma canção em O marco do meio-dia. São imagens, portanto,
recorrentes ao longo dos cinco CDs. A título de explicação, ressalte-se que a
expressão Bíblia de Trancoso, como explica o letrista Bráulo Tavares, refere-se
às histórias de Trancoso, contos de fadas e histórias populares que no século
XIX foram escritas pelo português Gonçalo Fernandes de Trancoso, intituladas
Histórias de proveito e exemplo, que são contos morais populares colhidos em
Portugal. Essas histórias se tornaram assunto para o Lunário perpétuo
propriamente dito, um livro lido por gerações e gerações sucessivas. “Eu cresci
ouvindo muito essa expressão no Nordeste: ‘Vamos contar histórias de
Trancoso!’ Equivalem às histórias da Carochinha.”
93
Ressalte-se ainda que o Lunário perpétuo é não somente um livro
precioso, uma cartilha, mas também os órfãos da terra, os filhos de Deus, não
importa se os “Heróis do Maravilhoso” são reais ou imaginários, como Mateus,
Malasartes, João Grilo e Chicó. O Lunário vem sendo transmitido de “Norte a
Sul, de Pai para Filho” desde os tempos do valenciano Jerônimo Cortez por
gerações a fio, até chegar a Ariano, que metaforicamente o passou ao
Movimento Armorial, a Nóbrega e por extensão a Wilson Freire e Bráulio
93
Informação dada por Bráulio Tavares ao autor desta tese em entrevista realizada no dia 15
de agosto de 2005, no Rio de Janeiro.
157
Tavares, de modo que seu conteúdo, sua ideologia, continue atravessando
milênios, cada ponto cardeal.
Encerre-se este capítulo com palavras do próprio Antonio Nóbrega no
encarte de Lunário perpétuo, definindo a importância dos artistas populares
para ele, no CD e no espetáculo em que comemorou trinta anos de carreira:
Ao longo desses últimos trinta anos, aprendi loas, toadas e
cantigas de cirandeiros, aboiadores e cantadeiras; aprendi choros,
música de Banda Cabaçal e ponteados de violeiros, pifeiros e chorões;
passos, gingados e mugangas de sambadores, dançarinos e brincantes.
Esses cantos, toques e danças são as pedras do meu Céu e as estrelas
do meu Chão. Com eles soletro, penso e esperanço meu sonho
humano. Através deles aprendi a amar o meu país e o seu povo. Eles
são o meu Lunário perpétuo.
Que esse Lunário continue guardando tantas vozes seculares e
importante parte da memória de um país que vai passando “diante dos nossos
olhos, rindo, mexendo, cantando”.
158
5 – Conclusão
(em que se pede licença para a despedida e se faz um balanço da expressão
lingüístico-poético-musical de Antonio Nóbrega após uma longa visita a parte
de sua obra)
Meu Lunário é a memória
de um país que vai passando
diante dos nossos olhos,
rindo, mexendo, cantando.
Mestiço, latino, caboclo, nativo,
é velho, é criança, morreu e tá vivo...
Presente, mas até quando?
(Lunário perpétuo – Lunário perpétuo)
A língua dispõe de toda uma gama de variantes fonoestilísticas, entre as
quais se distinguem efeitos como onomotopéia e aliteração, além dos efeitos
por evocação: acentos de classe, província, pronúncia etc. Como diz Pierre
Guiraud (1978: 83), “há palavras foneticamente motivadas, nas quais existe um
vínculo entre o som e o sentido. (...) Os efeitos de evocação constituem o
domínio por excelência da semântica do estilo”.
De acordo com Spitzer (1968), toda obra constitui um todo, em cujo
centro se encontra o espírito de seu criador, que é o princípio de coesão
interna da obra. O espírito do autor é uma espécie de Sistema Solar para cuja
órbita são atraídas todas as coisas. A linguagem e o enredo, ou seja, as
histórias contadas por meio dos signos que compõem essa linguagem, nada
mais são do que satélites dessa entidade que é o espírito do autor.
O centro de tudo que se viu até aqui chama-se Antonio Carlos Nóbrega
de Almeida, rabequeiro, cantador, dançarino, ator, brincante o qual, por sua
vez, recebeu forte influência de um “Sistema Solar” (para aproveitar a
159
expressão de Spitzer) mais amplo ainda, pode-se dizer assim, chamado Ariano
Suassuna, uma vez que é inegável a referência deste para o trabalho daquele.
Como inspiração de ambos os sistemas, o universo infinito da cultura popular
brasileira, pelo qual perpassam Chico Antônio, Capitão Pereira, Pinto de
Monteiro, Leandro Gomes de Barros, Alfaiate, Mestre Salustiano,
Nascimento do Passo e tantos outros. E ao redor do criador de Tonheta
circulam “astros” fundamentais para a constituição do seu próprio universo,
como Wilson Freire e Bráulio Tavares. Sem falar na importância singular de
Rosane Almeida, Gabriel e Maria Eugênia para a perfeita realização de seu
trabalho.
94
Nóbrega pode ser visto como um tradutor de tradições, uma vez que
aproveita o universo popular tão decantado por Ariano e amplia a sua
dimensão na posição de verdadeiro astro da música brasileira que é hoje,
lotando casas de espetáculos, apesar de o se considerar um artista popular,
uma vez que recria as manifestações musicais que o inspiram e lhes um
toque sofisticado. Devido ao numeroso público que atrai atualmente, a ponto de
o reduzido espaço na platéia do Teatro Brincante o comportá-lo mais, pode-
se dizer que Nóbrega conquistou o status de artista pop, com sua extensa
legião de admiradores. Até mesmo chegar a ele por meio de sua produção é
tarefa difícil, o que o autor desta tese conseguiu por influência de seu parceiro
Bráulio Tavares, entrevistado primeiramente.
Hoje, informações sobre o passo a passo de sua carreira podem ser
obtidas no endereço eletrônico http://www.antonionobrega.com.br (bilíngüe:
português e inglês). ainda o sítio (forma que se preferiu aqui a site, por
94
Ver entrevista no Anexo 2.
160
inspiração de Ariano Suassuna) http://www.teatrobrincante.com.br, sobre as
atividades do espaço cultural mantido pelo artista em São Paulo.
Em Nóbrega, o erudito e o popular aparecem como híbridos,
aproveitando um conceito estudado por Stuart Hall. A cultura popular, como
afirma este autor, é uma arena profundamente mítica.
É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias
populares. É onde descobrimos e brincamos com as identificações de
nós mesmos, onde somos imaginados, representados, não somente
para o público lá fora, que não entende a mensagem, mas também para
nós mesmos pela primeira vez (2003: 348).
Em uma cultura oral, que serve como fonte de inspiração para o trabalho
de brega, o público costuma ser resistente a novidades, uma vez que a
conservação de produções intelectuais depende exclusivamente da memória,
criando uma propensão ao conservadorismo, ao tradicionalismo. “Novidade e
repetição, individualidade e tradição constituem o espaço no qual o poeta se
move” (Abreu, 1999: 117). Com base na série de repetições que fazem parte
de sua formação cultural e pessoal, Nóbrega vai criando suas próprias
novidades, com o apoio decisivo de seus parceiros Bráulio Tavares e Wilson
Freire. o as raras variações que adquirem um destaque excepcional e um
estatuto poético novo numa estrutura imutável (Santos, 1999), partindo das
regras da cantoria que são complexas e incluem, além da definição estrófica e
rítmica, modos de construção por variação de um mesmo verso ou de uma
mesma estrofe.
Se Ariano tem seu romanceiro, Nóbrega tem seu cancioneiro. A base
dos dois, independentemente de definições, é a cultura popular brasileira,
como se afirmou pouco. E o que ambos obtêm como resultado de suas
161
formas de se expressar artisticamente está próximo da seguinte reflexão de
Paul Zumthor (1993: 216).
Nossa velha poesia em maior ou menor grau segundo suas
partes, mas sempre fundamentalmente é rito: sua função primordial é
operar um feitiço, capaz de tornar presente aquilo que não o é, inserir
essa ausência num simbolismo não apenas evocador mas também
criador de outra coisa.
As palavras são “multimoduladas”, disse Stuart Hall (2005). Sempre
carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento, apesar
de nossos melhores esforços para cerrar o significado. Tudo que dizemos tem
um “antes” e um “depois”, espécie de “margem” na qual outras pessoas podem
escrever. É o sentido da palavra que leva à procura de um efeito musical num
grupo de sons. Trata-se da busca e do encontro das palavras com a
temperatura exata (Cressot, 1980). A expressividade faz das palavras,
instintivamente, cabos elétricos da mais alta tensão, conforme lembra Joaquim
Mattoso Câmara Júnior (1978). Esse uso expressivo leva a linguagem a tornar-
se um fenômeno simbólico inseparável da cultura, configurando um complexo
de idéias com significados próprios que traduzem realidades inseridas nessa
cultura. Ao interpretar seu cancioneiro, alicerçado na poética popular
nordestina, Nóbrega reveste as palavras que canta com uma temperatura
peculiar, de modo a fortalecer o aspecto emotivo do significado dessas
palavras (Ullmann, 1970).
De Na pancada do ganzá ao Lunário perpétuo, passando por Madeira
que cupim não rói, Pernambuco falando para o mundo e O marco do meio-dia,
procurou-se mostrar como o repertório dos CDs e dos espetáculos de Antonio
162
Nóbrega segue uma mesma trajetória que tem como refencial a estrutura dos
espetáculos populares – os reisados, como ele chama.
95
Numa das imagens finais do DVD Lunário perpétuo, na parte referente
ao espetáculo (e não show), há uma significativa tomada de Ariano Sussuana,
como se estivesse conferindo a sua “cria” e aprovando com um sorriso discreto
o que ela faz. “Tem um significado simbólico essa coisa do mestre e do
aprendiz. É algo medieval, renascentista e popular. É aquela história: ‘Eu sou o
mestre, e não quero morrer sem passar adiante o que eu sei’”, diz Bráulio
Tavares. “E morre mais tranqüilo quando vê que o aprendiz o superou. O
sonho de cada mestre é ser superado pelo seu aprendiz.”
96
Para o letrista, Ariano se realiza muito em seu “aprendiz” não pela
visão de Brasil, pela visão de cultura nacionalista, mas também pela fusão de
artes, pelo lado multimídia de Antonio Nóbrega. “É isso o que Ariano gostaria
de ver os artistas brasileiros fazendo”, afirma.
Como escreveu Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira,
é com a observação inteligente do populário e aproveitamento dele que
a música artística se desenvolverá. Mas o artista que se mete num
trabalho desses carece alargar as idéias estéticas senão a obra dele
será ineficaz ou até prejudicial. Nada pior que um preconceito. Nada
melhor que um preconceito. Tudo depende da eficácia do preconceito
(Andrade, 1972: 27).
Preconceito Nóbrega não demonstra em seu trabalho, muito pelo
contrário; mas por meio desse trabalho ele busca “alargar as idéias estéticas”,
de modo que sua obra não é ineficaz (citando Mário), como se buscou mostrar
aqui. Identificando-se com as idéias do autor de Macunaíma, não é à toa que
95
Ver entrevista no Anexo 2.
96
Informação dada por Bráulio Tavares ao autor desta tese em entrevista realizada no dia 15
de agosto de 2005, no Rio de Janeiro.
163
lhe dedica o CD e o espetáculo Na pancada do ganzá, assim como ao coquista
Chico Antônio.
Na unidade sintópica que é o “dialeto” nordestino, especificamente o de
Pernambuco, mostrou-se que a unidade sinstrática de Nóbrega é a linguagem
popular, mas sem se descuidar da linguagem culta; e a unidade sinfásica é o
estilo informal, familiar, simultâneo à utilização de um estilo literário, poético.
Por meio dos diversos elementos relacionados ao longo da Análise do corpus,
identificaram-se esses traços, que contribuíram para a caracterização da
expressão lingüístico-poético-musical do artista.
Entre todas as atividades que Nóbrega exerce no palco, inclui-se a de
contador de histórias por meio do texto de suas canções e,
conseqüentemente, guardião delas. “A vida de um guardião de histórias é uma
combinação de pesquisador, curandeiro, especialista em linguagem simbólica,
narrador de histórias, inspirador, interlocutor de Deus e viajante do tempo”
(Estés, 1998: 9-10). Nosso brincante não deixa de ser isso tudo. Essas
histórias compõem a sua linguagem, formam sua expressão lingüístico-poético-
musical.
No final do texto que escreveu para o encarte do DVD Lunário perpétuo,
Nóbrega afirma: “é dentro da unidade de nossa diversidade que habita o
coração do povo que somos”. Assim também ocorre no campo lingüístico: na
vasta extensão do território brasileiro uma unidade, a língua portuguesa,
dentro da qual há uma grande diversidade, que são os falares brasileiros, como
exemplificado neste trabalho com o estudo da obra desse artista.
164
Encerram-se aqui as considerações sobre a expressão lingüístico-
poético-musical do brincante pernambucano Antonio Nóbrega – pelo menos até
o Lunário perpétuo, uma vez que tal tarefa continua em função do dinamismo
do trabalho que o artista realiza, pois está sempre no preparo de novos
reisados. Afinal, como conclui a letra de Sambada dos Mestres (parceria com
Wilson Freire), ele vive e brinca com seu povo, é um cavaleiro andante; nesse
nosso mundaréu, sua sina é ser brincante. Nos terreiros e altares. Pelos
séculos a fio.
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ANTONIO NÓBREGA. CD Madeira que cupim não rói. Selo Brincante. Brasil, BR
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ANTONIO NÓBREGA. CD Pernambuco falando para o mundo. Selo Brincante. Brasil,
BR 0003, 1998.
ANTONIO NÓBREGA. CD O marco do meio-dia. Selo Brincante. Brasil, BR 0004,
2000.
ANTONIO NÓBREGA. CD Lunário perpétuo. Selo Brincante. Brasil, BR 0005, 2002.
ANTONIO NÓBREGA. DVD Lunário perpétuo. Direção de Walter Carvalho e direção
musical de Antonio Nóbrega. Filmado em película cinematográfica no Teatro da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, em fevereiro de 2003
(além do espetáculo, inclui cenas extras). Brincante Produções Artísticas (São
Paulo) e Central do Brasil Cultura e Meio Ambiente (Brasília). Brasil, BR 0006-5, AA
5000, 2003.
175
Anexos
Anexo 1 – Letras
Aqui estão transcritas todas as letras constantes dos cinco CDs de
Antonio Nóbrega lançados no período de 1996 a 2002, incluindo as
composições de outros autores. Neste anexo, as letras aparecem da forma
como Nóbrega as canta nos discos, podendo ser verificadas diferenças entre
os versos aqui registrados e o que se encontra reproduzido nos encartes dos
CDs.
Anexo 1.1 – Na pancada do ganzá
Loa de abertura
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
Senhores desta sala
licença eu vou chegando, eu vou
A voz e a rabeca,
o coração cantando, eu vou
Vinde, vinde, moços e velhos
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
Vinde, vinde,
moços e velhos, (BIS)
vinde todos apreciar!
Como isso é bom,
como isso é belo!
Como isso é bom,
é bom demais!
Olhai, olhai,
admirai! (BIS)
Como isso é bom,
é bom demais!
Truléu da Marieta
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
Truléu, léu, léu,
truléu da Marieta,
que nós somos marinheiros
desta nau-catarineta,
que nós somos marinheiros
desta nau-catarineta.
“Ó marujo, lá do leme”,
grita o piloto na proa,
“orça a barca para o norte
que temos na frente ‘croa’”.
Nós saímos de Espanha
com destino a Portugal,
oh, que alegria teremos
quando Lisboa avistar.
Quando o mar balança a barca
eu tenho recordação
do meu bem que está em terra,
chave do meu coração.
Nossa Senhora da Guia,
ela nos queira guiar,
que chegamos todos vivos
no porto de Portugal.
A vida do marinheiro
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
A vida do marinheiro, ô ipá,
é uma vida de labor,
quando pensa que é descanso, ô ipá,
é quando chega o vapor.
Ô ipá, ô ipá...
Olha as ondas do mar vão quebrar (BIS)
Em risco de uma tormenta, ô ipá,
e a minha nau naufragar,
as feras do oceano
vão o meu corpo estragar.
Vou terminar o meu canto, ô ipá,
a maré está a preamar.
Ouço o choro da toninha,
ouço a baleia roncar.
Truléu, léu, léu, léu, léu
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
Truléu, léu, léu,
Truléu, léu, léu, léu, léu,
Truléu, léu, léu,
Tira o pau do mastaréu.
Truléu, léu, léu,
Alevanta e vira o léu.
Na saída de Lisboa
quase que morro de sede. (BIS)
A Saloia me deu água
na folha da sarça verde.
Rua acima, rua abaixo,
com o meu chapéu na mão,
pra avisar o meu benzinho,
chave do meu coração...
Marinheiros, não embarquem
que o mar é traidor.
O mar levou a minha amada,
nunca mais ela voltou...
Serenata suburbana
(Capiba)
Levo a vida em serenatas,
somente a cantar.
Quem não me conhece
tem a impressão
de que eu sou tão feliz.
Mas não é isso não.
Se eu canto em serenatas
é para não chorar.
Ninguém sabe a dor que eu sinto dentro de
[mim.
Ninguém sabe por que eu vivo tão triste
[assim.
Seu eu fosse realmente muito feliz
não chorava quando canto
não cantava para abafar meu pranto.
177
Marcha da folia
(Raul Moraes)
Bloco das Flores, por onde passa,
semeia com tal graça
ao som de lindas canções.
E os esplendores desta alegria
que as almas extasia
e apaixona os corações.
Viva a folia do carnaval (BIS)
intensa alegria sem outra igual.
Que olvidar faz a dor ferina
que nos ensina a sorrir e amar.
Temos na vida só dissabores,
tristezas e amargores
e a desilusão final.
Mas de vencida o mal levemos
esqueçamos que sofremos
divertindo o carnaval.
Viva a folia do carnaval (BIS)
intensa alegria sem outra igual.
Que olvidar faz a dor ferina
que nos ensina a sorrir e amar.
Boi Castanho
(Getúlio Cavalcanti)
Eu sou da Estrada Real do Poço,
da Casa Forte, sou Boi Castanho,
sou do Reino do Meio-Dia,
trazendo alegria, coração desse tamanho...
Vejam vocês:
Burra Calu, o Bastião e o Mateus
Cavalo-marinho e o Capitão
Mané Pequenino e o Sacristão.
Ê figural!
É a Dona da Ema,
o Padre e o Fiscal,
o Doutor Penico Branco
e o Rabequeiro, Mané Batateiro,
vão brincar o carnaval.
178
O romance de Clara menina
com Dom Carlos de Alencar
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
Estava Clara menina
com Dom Carlos a brincar,
nua da cintura pra cima,
nua da cintura pra baixo,
namoro pra se casar!
Mas passou um caçador
que não devia passar...
Esta é Clara menina
com Dom Carlos a brincar
porque o que eu vejo aqui
a meu Rei eu vou contar!
A meu Rei eu vou contar
e um bom posto eu vou ganhar!
Isto que tu viste aqui
a meu Rei não vais contar!
Que eu te dou léguas de terra
que não possas caminhar
e a minha prima carnal
para contigo casar!
Não quero léguas de terra
que eu não possa caminhar,
nem tua prima carnal
para comigo casar,
porque o que eu vi aqui
a meu Rei eu vou contar,
a teu Pai eu vou contar
e um bom posto eu vou ganhar!
Isto que tu viste aqui
a meu Rei não vais contar!
Que eu te dou o meu cavalo,
arreado como está:
com trezentos cascavéis
ao redor do peitoral,
cem de ouro, cem de prata,
cem do mais fino metal!
Não quero o teu cavalo
arreado como está:
com trezentos cascavéis
ao redor do peitoral,
cem de ouro, cem de prata,
cem do mais fino metal,
porque o que eu vi aqui
a meu Rei eu vou contar!
Ao Pai dela eu vou contar
e um bom posto eu vou ganhar!
Ó meu Rei, meu alto Rei,
vim aqui pra vos contar
que encontrei Clara menina
com Dom Carlos a brincar,
nua da cintura pra cima,
nua da cintura pra baixo,
namoro pra se casar!
Por que tu não falas logo
como tens que me falar?
Se ela estava como dizes,
com Dom Carlos de Alencar,
nua da cintura pra cima,
nua da cintura pra baixo,
estava nua pra enjambrar!
Eu seria um atrevido
se assim fosse começar!
Mas aqui vai a verdade:
ela quis me subornar.
Ela quis me dar as terras
que ainda vai herdar
e a sua prima carnal
para comigo casar!
O que foi que respondeste
quando ela assim falou?
Disse: “O que eu vi aqui
a meu Rei eu vou contar!
Ao teu Pai eu vou contar
e um bom posto eu vou ganhar!
Tu fizeste muito mal
em isso aqui contar,
na frente de todo mundo,
para todo mundo escutar!
Devia ter me chamado
para um particular!
Eu estava só brincando
quando disso vim falar!
Não era Clara menina
nem Dom Carlos de Alencar!
Ela estava bem vestida,
lá na igreja, a rezar!
179
Tu terias ganho o posto
falando em particular,
mas na frente deste povo,
o que mereces ganhar
é o cepo do carrasco
que está a te esperar
pra essa tua cabeça
de um só golpe degolar!
E comigo e com Dom Carlos
que ação vais praticar?
Menina desmiolada,
eu devia te matar!
Mas morrias difamada
e assim, é melhor casar!
Vou te casar com Dom Carlos,
com Dom Carlos de Alencar!
Desassombrado
(Antonio Nóbrega)
Desassombrado,
eu desassombrei.
Eu pensei que o mal-assombro
fosse maior do que eu.
Ói, meus senhores,
vou contar minha odisséia:
viajei no pé da idéia
pra tecer este cantar.
E galopando
no chitão de minha burra
fiquei preso numa furna
sem poder mais cavalgar.
Eu tive medo,
vi tudo da cor da noite,
um ente com uma foice
querendo me degolar.
Eu me azouguei
e disse pra ele se tremer:
mando pro Diabo comer
com farofa de embuá.
No outro dia,
a Bruzacã apareceu,
minha alma estremeceu,
eu fiquei pra me acabar.
Aí pensei:
me valei, Nossa Senhora,
não me leve nessa hora,
ainda quero vadiar.
Devagarinho,
fui ponteando a rabeca,
me lembrei de minha terra
pra eu me desanuviar.
E descansei!
Mas não pense que sou covarde,
eu carrego um bacamarte,
quando quero atiro, pá!
Corri as terras
no trote de Caluzinha,
não pensei que o mundo tinha
tanta coisa pra ajeitar.
Fui à Chechênia,
dei um pulo lá na China,
estava na Conchinchina
tentaram me despachar.
Mais viajando
vi branco matando negro,
nas ruas de Saravejo
vi o mundo se acabar.
Eu vi os jatos
pelos céus fazendo zum...!
Vi as bombas, tebedum!
Os fuzis ta-ra-ta-tá!
E refreando
a pisada do meu trote
vou findar o meu galope
com os olhos na beira-mar.
Eu vi um anjo
no cordão das bonitezas
me dizendo miudezas
que era para eu sossegar.
Limpei a vista,
sacudi o meu calvário,
nas contas do meu rosário
prossegui meu caminhar.
É manga-espada,
é manga-rosa, é manga-roxa,
essa é a minha trouxa,
vou por aí desassombrar.
180
Minervina
(Antonio Nóbrega e Marcelo Varella)
Quem nunca viu amor assim tão roxo
vai fazer fuxico quando “ver” Minervina.
“Desvergonhada”, não conhece alvoroço,
na hora H é minha estrela matutina.
É minzinguenta quando vai pra brincadeira,
não dá bandeira na hora da cavilação.
É majestosa, topa tudo a noite inteira,
Quando me arrocha faz das tripas coração.
Oi, Minervina! Oi, Minervina! (BIS)
“Rebola-bola” no consolo das meninas.
Mateus Embaixador
(Antonio Nóbrega)
Mateus Embaixador,
estrela alva do dia,
que sonho é esse?
Que sina é essa?
Meu povo, meus senhores,
aqui estou no meu destino,
tô no meu desatino,
vim brincar neste lugar.
Sou Mateus presepeiro,
sou Cancão, sou o João Grilo,
eu sou o Benedito,
Tira-Teima e o Tiridá.
Minha volta é essa,
sou ligeiro, pedra-lispe,
também sou Onça-Tigre,
minha dança é de invocar.
Minha roupa de chita
é meu lírio, é meu gibão.
E a rabeca na mão
é o azougue, é o meu punhal.
181
Na pancada do ganzá
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Eu estava em casa
mastigando o pensamento,
olhando pro firmamento,
que era noite de luar.
E de repente
uma estrela cadente,
piscando na minha frente,
parou pra me falar.
Ela me disse:
meu poeta camarada,
tome aqui quero lhe dar
um presente magistral.
E foi tirando
do seu peito colossal
um instrumento real
que ela chamava ganzá.
Meu ganzá, meu ganzarino,
meu ganzarino real,
gira o mundo, treme a terra,
e eu na pancada do ganzá. (Refrão)
Quando eu peguei
meu ganzá pra cantar coco
eu pensei que estava louco,
eu não pude acreditar,
pois na primeira
batida da minha mão
meu ganzá caiu no chão
e deitou logo a falar:
“Salve o coquista
que chegou de longe agora
você veio bem na hora
de poder me resgatar
da solidão
onde eu tenho vivido,
onde eu tenho me escondido
pra poder me me revelar.”
“Sou um instrumento
Pequeno, feio, chinfrim,
que trago dentro de mim
basculho pra saculejar,
garrafa velha,
qualquer coisa reciclada
dou beleza ritmada
quando vêm me balançar.”
“Dou marcação
pro samba, pro foxtrote,
pro baião, forró e xote
e o que mais venham a inventar.
O que vier,
até som do outro mundo,
sou primeiro, sem segundo
na arte de ritmar.”
E o ganzá
se colou na minha mão,
apertei ele bem forte e
senti forte um balançar.
Fazia assim:
tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum,
como no peito o baticum
que está pronto para amar.
E fui cantando,
fui dizendo ao ganzarino:
“Te conheço de menino
mas hoje fui te encontrar.”
Ele falou:
“Te conheço há bem mais tempo
mas não vai ter contratempo
que possa nos separar.”
E disse mais:
“meu cantor, meu menestrel,
eu conheço esses céus
antes de Cabral chegar;
pode ir me ver
onde eu fui desenhado:
pelo pré-homem datado
lá na Pedra do Ingá.”
Eu aprendi
sobre ele e ele de mim,
e tem sido sempre assim
e assim sempre será,
pois nessa vida
quem ensina sempre aprende
e a gente mais entende
o que foi e o que virá.
Fomos cantando
o país do futebol,
da Amazônia, praia e sol
do Babau, do Boi-Bumbá,
do carnaval, do São João, da Cavalhada,
do Repente, da Congada,
da Catira, do Guará.
182
Esse país,
feio, rico, pobre, lindo,
que eu não sei pra onde tá indo
mas eu sei que chega lá.
Fomos ouvir
a floresta tropical,
o sertão e o litoral,
ver a seca, a preamar.
Por isso eu digo,
meu amigo, camarada,
se não está fazendo nada
por que cê não vem pra cá?
Tire a gravata
do pescoço, solte o nó,
abra o peito e o gogó,
eu, você e meu ganzá.
Despedida
(Domínio público –
Recriação musical de Antonio Nóbrega)
Eu já estou de retirada
é madrugada,
dou lembranças aos senhores.
Sinto uma dor,
dono da casa,
até para o ano se eu vivo for.
Adeus, boa sorte para todos,
eu já me vou,
já vou me retirar.
Tenho saudades desta noite tão bonita,
o meu coração palpita
que eu não posso tolerar.
183
Anexo 1.2 – Madeira que cupim não rói
Abrição de portas
(Domínio Público
Adaptação: Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Péo,
para Lydia
97
Salve esta casa,
nobre morada.
Nova jornada
vamos começar.
Nossa festa vai principiar
Com rabecas, bombos e violas.
Hoje, aqui, viemos festejar,
render graças à vida nessa hora.
Abram as portas
pro meu Reisado,
cantos e loas
vamos entoar.
Canudos
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Mestre Ariano
Eu, viandante, de um chão poento.
Dias queimosos, vida sem idílio.
Preces voltadas para sóis ardentes,
luares claros a buscar o Auxílio.
Para os meus olhos, confusão pasmosa,
batalha surda, secular martírio.
Ai, desatino!
Ai, o meu penar!
Ai, velho medo!
Sombra e malpassar!
Vi mamelucos, pardos, vi cafuzos.
Rostos marcados, um Santo Sudário.
Em Bom Conselho, Bendegó, Pontal,
vi Conselheiro rezar solitário.
E anunciando o inverno benfazejo,
em Monte Santo subiu pro calvário.
97
Aparecem aqui as dedicatórias de cada música
conforme constam no encarte do CD.
Chegança
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Zé Alfaiate, do Caboclinho Sete Flechas.
Em memória de Galdino Jesus dos Santos.
Sou pataxó,
sou xavante e cariri,
ianomâmi, sou tupi,
guarani, sou carajá.
Sou pancaruru,
carijó, tupinajé,
potiguar, sou caeté,
fulniô, tupinambá.
Depois que os mares
dividiram os continentes,
quis ver terras diferentes,
eu pensei: "Vou procurar
um mundo novo,
lá depois do horizonte,
levo a rede balançante
pra no sol me espreguiçar."
Eu atraquei
num porto muito seguro,
céu azul, paz e ar puro,
botei as pernas pro ar.
Logo sonhei
que estava no paraíso,
onde nem era preciso
dormir para se sonhar.
Mas de repente,
me acordei com a surpresa,
uma esquadra portuguesa
veio na praia atracar.
Da grande nau,
um branco de barba escura,
vestindo uma armadura
me apontou pra me pegar.
E assustado,
dei um pulo lá da rede,
pressenti a fome e a sede,
eu pensei: "Vão me acabar!"
Me levantei,
de borduna já na mão,
ai, senti no coração,
o Brasil vai começar.
184
Quinto império
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Iaiá, me dá teu remo,
teu remo pra eu remar.
Meu remo caiu, quebrou-se, iaiá,
lá no alto-mar.
Meu sangue é trilha
dos mouros, dos lusitanos,
dunas, pedras, oceanos
rastreiam meu caminhar.
E sendo eu,
que a Netuno dei meu leme,
com a voz que nunca treme
fiquei a me perguntar:
"O que será
que além daquelas águas
agitadas, turvas, calmas,
eu irei lá encontrar?"
Ai, mundo velho,
novo mundo hei de achar!
Eu decifrei
astros e constelações,
conduzi embarcações,
destinei-me a navegar.
Atravessei
a Tormenta, a Esperança,
até onde o sonho alcança
minha fé pude cravar.
Rasguei as lendas
do oceano tenebroso
para el-rei, o Glorioso,
não há mais trevas no mar.
Olodumaré
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para o pessoal do Nação Pernambuco
Vou-me embora dessa terra,
Olodumaré,
para outra terra eu vou,
Olodumaré.
Sei que aqui eu sou querido,
Olodumaré,
mas não sei se lá eu sou,
Olodumaré.
O que eu tenho pra levar,
Olodumaré,
é a saudade desse chão,
Olodumaré.
Minha força, meu batuque,
Olodumaré,
heranças da minha nação,
Olodumaré.
Ainda me lembro
do terror, da agonia,
como um louco eu corria,
para poder escapar.
E num porão
de um navio, dia e noite,
fome, sede e o açoite
conheci, posso contar.
Que o destino
quase sempre foi a morte,
muitos só tiveram a sorte,
da mortalha ser o mar.
Na nova terra,
novos povos, novas línguas,
pelourinho, dor, à míngua,
nunca mais pude voltar.
E mesmo escravo,
nas caldeiras das usinas,
nas senzalas e nas minas,
nova raça fiz brotar.
Hoje, essa terra
tem meu cheiro, minha cor,
o meu sangue, meu tambor,
minha saga pra lembrar.
185
Nascimento do Passo
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Nesse passou eu vou,
despranaviado.
Eu sou o abre-alas,
vou no meu gingado.
Eu vou,
eu vou,
eu vou.
Na crista dessa onda,
vou puxando o arrastão.
A marcha buliçosa
sacudindo a multidão.
Esquentando a multidão.
Balançando a multidão.
Agitando a multidão.
Entrei no passo
do morcego e do saci,
tramelei no do siri,
cruzei tesoura no ar.
Na dobradiça,
eu peguei minha sombrinha,
passeando na pracinha,
chutando de calcanhar.
No frevedouro,
fiz um grande rebuliço,
preto, branco e mestiço,
eu chamei pro bafafá.
Azuretada,
a corriola destrambelha,
sacoleja, se destelha,
no maior calunguejar.
Andarilho
(Dalton Vogeler e Orlando Silveira)
Caí do céu por descuido.
Se tenho pai, não sei, não.
Venho de longe, seu moço,
lugar chamado sertão.
Vivo sozinho no mundo,
zombei da sede, zombei.
Cortei com minha peixeira
todo o mal que encontrei.
Fui caminhando, enfrentando
as terras que o sol secou,
até chegar à cidade
dos homens que Deus olhou.
Que o santo padre perdoe
a triste comparação,
melhor viver no cangaço
que a tal civilização.
Brinquei com o mal, brinquei,
sorri quando matei.
Eu vim pra ser melhor,
cheguei aqui, chorei.
186
O vaqueiro e o pescador
(Antonio Nóbrega e Dimas Batista Patriota)
Para Suzy e Marcos Magalhães
Nasci no sertão desfrutando as virtudes
dos tempos de inverno, fartura e bonança.
Depois veio a seca, fugiu-me a esperança
diante de cenas cruéis e tão rudes.
Vi secos os rios, as fontes e açudes,
e eu que gostava tanto de pescar,
saí pelo mundo tristonho a vagar.
Fui ter numa praia de areias branquinhas,
e olhando a beleza das águas marinhas,
cantei meu galope na beira do mar.
Ali na cabana de alguns pescadores,
olhando a beleza do mar e do arrebol,
bonitas morenas, queimadas de sol,
alegres me ouviam cantar seus amores.
A brisa soprava com leves rumores,
o pinho a gemer e depois a chorar.
Aquelas morenas, à luz do luar,
me davam a impressão de que fossem sereias,
risonhas, sentadas nas alvas areias,
ouvindo os meus versos na beira do mar.
Eu sempre que via, lá no meu sertão,
caboclo vaqueiro de grande bravura,
num simples cavalo, na mata mais dura,
com roupa de couro pegar o barbatão,
dizia, abismado, com aquela impressão:
"Não há quem o possa em bravura igualar."
Mas depois que eu vi um praiano pescar,
numa frágil jangada ou barco veleiro,
achei-o tão bravo tal qual o vaqueiro,
merece uma estátua na beira do mar.
Quando as glórias que gozei...
(Domínio Público)
Quando as glórias que gozei,
vou na idéia revolver,
vou na idéia revolver.
Sinto a força da saudade, (BIS)
meu triste pranto correr.
Os que já tive doces momentos (BIS)
são hoje a causa dos meus tormentos.
187
Madeira que cupim não rói
(Capiba)
Na lembrança de Chico Science
Madeira do Rosarinho
vem à cidade, sua fama mostrar.
E traz, com seu pessoal,
seu estandarte tão original.
Não vem pra fazer barulho,
vem só dizer, e com satisfação:
"Queiram ou não queiram os juízes,
o nosso bloco é de fato o campeão!"
E se aqui estamos, cantando esta canção,
Viemos defender a nossa tradição
e dizer bem alto que a injustiça dói,
nós somos madeira de lei que cupim não rói.
Monga
(Domínio Público
Adaptação: Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
O palco é da grande vedete,
a maior estrela da companhia.
Aplausos e luzes pra ela,
que a grande beldade é só simpatia.
Quando ela aparece,
o mundo estremece,
balança todo o coreto.
Rainha e valete,
é a dama-curinga,
seu trunfo é a sua ginga.
Olhem, ela está chegando,
já roubou a cena,
mostrando toda a classe
de grande ciclista.
Trapézios, malabares,
rebolados ela faz.
É a saltimbanco, é a grande artista.
Olhem só como ela baila!
Que coisa mais fina...
Que graça e que leveza...
Ai, que bailarina!
Quando ela se balança,
a macacada se agita,
assovia, geme e grita.
188
Coco da lagartixa
(Domínio Público
Adaptação: Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Joaquim, Léo, Dolores, Jaime e Terezinha, lagartixando...
Eu vi uma lagartixa
"Redondo, sinhá!"
E ela era comportada.
"Redondo, sinhá!"
Saia à boca da noite,
chegava de madrugada,
com a saia na cabeça,
soluçando embriagada.
Com a saia na cabeça
"Redondo, sinhá!"
e soluçando embriagada.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa
"Redondo, sinhá!"
num coco de embolada.
"Redondo, sinhá!"
Negava ser mulher-dama,
mas depois de três bicadas,
me pegou assim de um jeito,
me matou de umbigada.
Me pegou assim de um jeito
"Redondo, sinhá!"
e me matou de umbigada.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa,
"Redondo, sinhá!"
ai, tava numa janela.
"Redondo, sinhá!"
Ai, dizendo que era honrada,
que era moça donzela.
Vi quatro calangos verdes,
todos eram filhos dela.
Vi quatro calangos verdes,
"Redondo, sinhá!"
e todos eram filhos dela.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa,
"Redondo, sinhá!"
essa era uma senhora.
"Redondo, sinhá!"
Passava a noite no samba,
cachimbava a toda hora,
dizia pro seu marido:
"É duro trabalhar fora!"
Dizia pro seu marido:
"Redondo, sinhá!"
"É duro trabalhar fora!"
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa
"Redondo, sinhá!"
que na lagoa morou,
"Redondo, sinhá!"
Que sonhava ser princesa,
por um sapo apaixonou-se,
beijou ele a vida inteira,
ele não desencantou.
Beijou ele a vida inteira,
"Redondo, sinhá!"
e ele não desencantou.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa
"Redondo, sinhá!"
tomando banho de açude.
"Redondo, sinhá!"
O açude estava cheio,
fui banhar-me, mas não pude.
Ela sujou toda a água,
ainda ficou cheia de grude.
Ela sujou toda a água,
"Redondo, sinhá!"
ainda ficou cheia de grude.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa
"Redondo, sinhá!"
enganar pato e guiné.
"Redondo, sinhá!"
Teve um filho de uma pulga,
outro de um bicho-de-pé,
doze de uma cobra-d'água,
vinte e três de um jacaré.
Doze de uma cobra-d'água,
"Redondo, sinhá!"
e vinte e três de um jacaré.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa
"Redondo, sinhá!"
que queria se casar.
"Redondo, sinhá!"
Me pediu em casamento,
mas mamãe jurou não dar,
ela fugiu com papai,
suas filhas fui criar.
"Redondo, sinhá!"
Ela fugiu com painho,
"Redondo, sinhá!"
E suas filhas fui criar.
"Redondo, sinhá!"
189
Eu vi uma lagartixa,
"Redondo, sinhá!"
Ai, tava no meio da feira.
"Redondo, sinhá!"
Tinha pra mais de cem netos,
jurava que era solteira.
Perguntei a sua idade,
me negou a vida inteira.
E perguntei a sua idade,
"Redondo, sinhá!"
me negou a vida inteira.
"Redondo, sinhá!"
Eu vi outra lagartixa
"Redondo, sinhá!"
na varanda de um sobrado.
"Redondo, sinhá!"
Ela tava namorando,
junto com seu namorado,
assentada na cadeira
e o rabão dependurado.
Assentada na cadeira
"Redondo, sinhá!"
e o rabão dependurado.
"Redondo, sinhá!"
Quem “ver” uma lagartixa
"Redondo, sinhá!"
no sertão, mata ou no mar,
"Redondo, sinhá!"
entregue logo pra ela
um pandeiro ou um ganzá,
que ela canta esse coco
do jeito que eu ouvi lá...
"Redondo, sinhá!"...
Maracatu Misterioso
(Antonio José Madureira e Marcelo Varella)
Quem, quem vem, quem vem lá?
Quem, quem vem, quem vem lá?
Que cortejo é aquele, senhor? (REFRÃO)
Vindo aqui vou perguntar, quem vem lá?
Sou de casa, vim do Norte.
Sou bonito, original.
Sou de paz, não sou de guerra,
vim brincar o carnaval.
Quem, quem vem, quem vem lá?... (REFRÃO)
Eu sou Misterioso
como és Imperial.
Sou Mateus, sou Catirina,
na bexiga eu sou o tal.
Quem, quem vem, quem vem lá?... (REFRÃO)
Sou o Capitão Pereira,
sou madeira, sou fiel.
Esse boi que chega agora
vem de lá dançar no céu.
Quem, quem vem, quem vem lá?... (REFRÃO)
Ê boi, ê boi, ê Boi Maravilhoso.
Ê boi, ê boi, venha logo se “amostrar”.
Ê boi, ê boi, ê Boi Misterioso.
Ê boi, ê boi, chegue logo pra dançar.
190
Lição de namoro
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Lúcia,
para Rosane
Menina, vou te ensinar
como é que se namora: (BIS)
põe a alma no sorriso,
e o sorriso põe pra fora.
Olhe nos olhos,
olhe dentro da pupila,
veja bem se ela brilha
ou se quer se apagar.
Pois o olhar
é ele quem denuncia
se está quente ou se está fria (BIS)
a paixão, o bem-amar
Pegue na mão,
sinta dela seu calor,
veja dela seu rubor,
sua força, seu pulsar.
Porque a mão
é ela quem anuncia
se o namoro nasce e cria (BIS)
ou se nasce e vai murchar.
Menina, vou te ensinar
como é que se namora: (BIS)
põe a alma no sorriso,
e o sorriso põe pra fora.
Quanto ao beijo,
tem que ser bem de mansinho,
permitido com carinho,
pra poder não machucar.
Porque o beijo
é ele quem amacia,
quem dá paz e é o guia (BIS)
para o novo amor chegar.
E num abraço,
apertado, mas com jeito,
sinta como bate o peito,
se é forte ou quer falhar.
Pois coração
é fonte de alegria,
é ele quem prenuncia (BIS)
se o amor há de jorrar.
Menina, vou te ensinar
como é que se namora: (BIS)
põe a alma no sorriso,
e o sorriso põe pra fora.
191
Sambada dos Mestres Vou-me embora
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire) (Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Salustiano, Na lembrança do
o Mestre Salu falado Capitão Pereira e de Guariba
Para Leda Alves
As sete chaves das artes Vou-me embora, (BIS)
eu trago todas comigo. Vou-me embora,
Com elas na minha mão, adeus, mana!
enfrento qualquer perigo. Senhores, não canto mais.
As tenho como presentes (BIS) Lê-lê-ô!
dos mestres grandes amigos.
Meu mestre Salustiano Adeus, mana!
me deu lá na Mata Sul
uma garganta de ouro Vamos embora, rabeca,
pra eu cantar maracatu. meu ganzá e meu pandeiro,
minha viola de prata,
Embolar com um ganzá bandolim, meus companheiros!
aprendi com Chico Antônio. Adeus, palco! Adeus, platéia!
Tocar tudo com a rabeca, Eu vou para outro terreiro.
Cego Aderaldo e Sinfrônio.
Com esses dois instrumentos (BIS) Adeus, calor! Adeus, vento!
faço o maior pandemônio. Adeus, sombra e claridade!
No improviso da viola A quem ficou, dou adeus!
de todos sou o primeiro Adeus também à cidade!
porque sou cobra criada Eu vou partir, mas eu levo
pelo Pinto de Monteiro. lembrança e muita saudade!
Faceta no pastoril
me ensinou ser mungangueiro.
Com Dona Santa aprendi
a batucar num terreiro
e com Leandro de Barros (BIS)
me doutorei folheteiro.
Com o Capitão Pereira
me diplomei menestrel,
bumba-meu-boi ressuscito
igual a Cristo no céu.
Eu louvo os mestres das danças,
lhes dou todo o meu carinho,
Pastinha e Zé Alfaiate,
capoeira e caboclinho.
Eu louvo Mateus Guariba (BIS)
do meu cavalo-marinho.
Vivo e brinco com meu povo,
sou um cavaleiro andante,
nesse nosso mundaréu
minha sina é ser brincante.
Anexo 1.3 – Pernambuco falando para o mundo
Vinde, vinde, moços e velhos
98
(Domínio público –
recriação musical de Antonio Nóbrega)
Vinde, vinde,
moços e velhos,
vinde todos apreciar!
Vinde, vinde,
moços e velhos,
vinde todos admirar!
Como isso é bom,
como isso é belo!
Como isso é bom,
é bom demais!
Olhai, olhai,
admirai! (BIS)
Como isso é bom,
é bom demais!
Festa da padroeira
(Capiba)
Quando a passarada
passa em revoada
e a charanga vai tocando
e sem querer eu vou cantando.
É dia de festa,
dia de bandeira.
Bandeira de novena,
novena da padroeira.
Quando estou sozinho
e ouço esse dobrado
que recordações
das moças do sobrado...
Vejo a meninada
pulando e gritando,
e o fogueteiro
os seus foguetes espoucando.
Era chique ver
todo mundo na rua a vibrar
e a passear, a charrete
e o fordeco, a mulher,
o coronel e o seu chofer
em direção à igreja,
onde o povo cantava
em louvor à santa
quando a festa começava.
98
Repetem-se aqui as letras das canções gravadas mais de uma vez além de Vinde, vinde, moços e
velhos, aparecerão Chegança, Olodumaré e Minervina – para registrar a importância que elas apresentam e
o papel que desempenham, por meio de seus respectivos textos, no roteiro formado por cada CD ou
espetáculo, como indicado na Introdução.
193
Chegança
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para Zé Alfaiate, do Caboclinho Sete Flechas.
Em memória de Galdino Jesus dos Santos.
Sou pataxó,
sou xavante e cariri,
ianomâmi, sou tupi,
guarani, sou carajá.
Sou pancararu,
carijó, tupinajé,
potiguar, sou caeté,
fulniô, tupinambá.
Depois que os mares
dividiram os continentes,
quis ver terras diferentes,
eu pensei: "Vou procurar
um mundo novo,
lá depois do horizonte,
levo a rede balançante
pra no sol me espreguiçar."
Eu atraquei
num porto muito seguro,
céu azul, paz e ar puro,
botei as pernas pro ar.
Logo sonhei
que estava no paraíso,
onde nem era preciso
dormir para se sonhar.
Mas de repente,
me acordei com a surpresa,
uma esquadra portuguesa
veio na praia atracar.
Da grande nau,
um branco de barba escura,
vestindo uma armadura
me apontou pra me pegar.
Assustado,
dei um pulo lá da rede,
pressenti a fome e a sede,
eu pensei: "Vão me acabar!"
Me levantei,
de borduna já na mão,
ai, senti no coração,
o Brasil vai começar.
Olodumaré
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Para o pessoal do Nação Pernambuco
Vou-me embora dessa terra,
Olodumaré,
para outra terra eu vou,
Olodumaré.
Sei que aqui eu sou querido,
Olodumaré,
mas não sei se lá eu sou,
Olodumaré.
O que eu tenho pra levar,
Olodumaré,
é a saudade desse chão,
Olodumaré.
Minha força, meu batuque,
Olodumaré,
heranças da minha nação,
Olodumaré.
Ainda me lembro
do terror, da agonia,
como um louco eu corria,
para poder escapar.
E num porão
de um navio, dia e noite,
fome, sede e o açoite
conheci, posso contar.
Que o destino
quase sempre foi a morte,
muitos só tiveram a sorte,
da mortalha ser o mar.
Na nova terra,
novos povos, novas línguas,
pelourinho, dor, à míngua,
nunca mais pude voltar.
E mesmo escravo,
nas caldeiras das usinas,
nas senzalas e nas minas,
nova raça fiz brotar.
Hoje, essa terra
tem meu cheiro, minha cor,
o meu sangue, meu tambor,
minha saga pra lembrar.
194
Cantigas de roda
(Getúlio Cavalcanti)
99
Quantas cantigas eu recordo ainda
da meninada onde me criei...
A cirandinha dando meia volta
e o pau no gato que eu atirei.
Ainda escuto a ponte da aliança
que todos passam e eu nunca passei.
O Pai Francisco quando entrou na roda
e a rica-rica-de-marré-descer.
Sabem que o cravo só brigou com a rosa
por ser mais formosa
a bela do buquê.
E a Terezinha de Jesus caiu
com a machadinha que vai ser seu par.
E hoje eu fico a relembrar encantos
de delírios tantos
que não vão voltar.
A dor de uma saudade
(Edgard Moraes)
100
A dor de uma saudade
vive sempre no meu coração
ao relembrar alguém que partiu
deixando a recordação, nunca mais...
Hão de voltar os tempos
felizes que passei em outros carnavais.
Cantar! Oh! Cantar!
É um bem que dos céus nos vem.
Se algumas vezes nos faz chorar
ante os reveses nos faz rir também.
Cantar! Oh! Cantar!
Com expressão de uma emoção
que nasce d’alma e vem dizer ao coração
que a vida é uma canção.
99
A obra poético-musical de Getúlio Cavalcanti, um dos mais férteis e respeitados compositores
pernambucanos carnavalescos dos últimos tempos, está compilada em Paes Barreto (2000): Getúlio
Cavalcanti: o menestrel do frevo-de-bloco. A letra de Cantigas de roda está na página 84 desta obra.
100
Também importante compositor pernambucano carnavalesco (1904-1973).
195
Pau-de-arara
(Guio de Moraes e Luiz Gonzaga)
Quando eu vim do sertão,
seu moço, do meu Bodocó,
a maleta era um saco
e o cadeado era um nó.
Eu trazia a coragem e a cara,
viajando num pau-de-arara.
Eu penei,
mas aqui cheguei.
Eu penei,
mas aqui cheguei.
Trouxe o triângulo
(no matolão)
Trouxe o gong
(no matolão)
Trouxe o zabumba
dentro do matolão.
Xote, maracatu e baião,
tudo isso eu trouxe
no meu matolão.
Mulher-peixão
(Luiz de França)
Ele gosta dela
e não maltrata ela,
não desfaz dela,
trata-a muito bem. (BIS)
Foi à capela
e casou com ela,
não repara nela
os defeitos que tem.
O que mata ela
é uma perna torta,
e a outra morta
de uma congestão.
Tem um braço seco
que furou no prego,
tem um olho cego
e só tem uma mão.
Já foi operada
de apendicite
e de sinusite,
foi até feliz.
No pé do cabelo
nasceu uma espinha
e a coitadinha
perdeu o nariz.
Só tem uma orelha
mas não é defeito,
já perdeu um peito
numa operação.
Quebrou a espinha
e ficou marreca,
ela é careca
e só tem um pulmão.
Ela tem na cara
uma queimadura,
sofre de loucura
e do coração.
O vento passou,
entortou-lhe a boca,
é fanhosa e mouca
mas é um peixão.
196
Minervina
(Antonio Nóbrega e Marcelo Varella)
Quem nunca viu amor assim tão roxo
vai fazer fuxico quando “ver” Minervina.
“Desvergonhada”, não conhece alvoroço,
na hora H é minha estrela matutina.
É minzinguenta quando vai pra brincadeira,
não dá bandeira na hora da cavilação.
É majestosa, topa tudo a noite inteira,
quando me arrocha faz das tripas coração.
Oi, Minervina! Oi, Minervina! (BIS)
“Rebola-bola” no consolo das meninas.
Seleção Capiba
De chapéu-de-sol aberto
De chapéu-de-sol aberto pelas ruas eu vou.
A multidão me acompanha, eu vou.
101
Eu vou e venho pra onde não sei.
Só sei que carrego alegria pra dar e vender.
Espero o ano inteiro
até ver chegar fevereiro
para ouvir o clarim clarinar
e a alegria chegar.
Essa alegria em mim
parece que não terá fim,
mas se um dia o frevo acabar
juro que vou chorar.
Oh! Bela
Você diz que ela é bela,
ela é bela, sim, senhor!
Porém poderia ser mais bela
se ela me desse o seu amor.
101
Falta este verso da música no texto do encarte
que acompanha o CD Pernambuco falando para
o mundo.
Bela é toda a natureza (Oh! Bela!)
Belo é tudo o que é belo (Oh! Bela!)
O perfume de uma rosa,
o sorriso da criança,
o que fica na lembrança.
Belo é ver o passarinho (Oh! Bela!)
Indo em busca do seu ninho (Oh! Bela!)
Todo mundo se amando
com amor e com carinho
uns chorando e outros sorrindo de amor.
Cala a boca, menino!
Ouvi dizer que numa mulher
não se bate nem com uma flor.
Loura ou morena, não importa a cor,
não se bate nem com uma flor.
Já se acabou o tempo
que a mulher só dizia então:
“Xô, galinha!
Cala a boca, menino!
Ai, ai, não me dê mais não!”
197
Frevo e ciranda
Eu fui à Praia do Janga
pra ver a ciranda no seu cirandar.
O mar estava tão belo
e um peixe amarelo eu vi navegar.
Não era peixe, não era,
era Iemanjá, Rainha,
dançando a ciranda, ciranda,
no meio do mar.
Trombone de prata
Ouvi dizer que o mundo vai se acabar,
que tudo vai pra cucuia,
o sol não mais brilhará.
Mas se me derem
um bombo e uma mulata,
e um trombone de prata,
o frevo bom viverá.
Pode acabar o petróleo,
pode acabar a vergonha,
pode acabar tudo, enfim,
mas deixem o frevo pra mim!
Vassourinhas
(Matias da Rocha e Joana Batista)
102
Se essa rua fosse minha
eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas de brilhantes (BIS)
pra Vassourinhas passar.
Somos nós, os Vassourinhas,
todos juntos em borbotão.
Vamos varrer nossa cidade
com cuidado e precisão.
102
Esta composição é um dos frevos de maior sucesso do carnaval pernambucano de todos os tempos,
original do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife. Nóbrega a interpreta em ritmo de valsa, num
arranjo do violonista Edmilson Capelupi, que integra o grupo de músicos que o acompanha.
198
Pernambuco falando para o mundo Despedida
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire) (Domínio público –
Adaptação de Wilson Freire)
Pernambuco falando para o mundo Às cinco horas da manhã,
Tenho um gogó de ouro, (REFRÃO) quando vem rompendo a aurora,
meu cantar é meu tesouro. os anjos cantam no céu
e as pastorinhas vão embora.
Pitomba, preaca, pife e pandeiro
Esse é o encontro, é essa emoção Com saudades eu me retiro,
Rainhas e reis, reisado e rojão que eu não vim para ficar.
Negros nagôs, navios negreiros As moças são deliciosas,
Ascenso, arrecifes, angolas arteiros belas e formosas,
Maraca, mascates e maracatu lindas como as rosas.
Baião, berimbau, batuque, bantu
Usina, umbigada, umburana, umbuzal Já falta pouco para o Sol
Capiba, calunga, calor, carnaval vir nos braços da aurora,
Oxóssi, Obá, Oxum, Olodu. vem pra ficar com vocês
(REFRÃO) para levar-nos embora.
Sou braço de mar, um rio caudaloso Vivendo de palco em palco,
No sertão sou seco, na mata estourado entre chegadas e partidas,
Eu, nos arrecifes, sou um mar furado estamos nós, outra vez,
A cova dos rios, salgado e formoso na hora da despedida.
E nesse meu céu azul luminoso
ao sul de estrelas Cruzeiro avistei Nós, brincantes, nos retiramos,
Por ele à noite no mar me guiei não viemos pra ficar.
Eu sou Paranã, sou Paranabuco A vida de um menestrel
Falando pro mundo eu sou Pernambuco é sem porto e ao léu,
a ler meu Brasil aqui comecei. sempre a caminhar.
(REFRÃO)
Se alguém me escutar tinindo a garganta
verá que meu canto desvenda segredos.
Acaba mistérios, destrói todos medos
Herdeiro da voz sou de Dona Santa
Meu canto é sangue, é pedra que encanta
desterra o tesouro no chão mais profundo
Eu sou um brincante, eu sou vira-mundo
Se estou azougado, ninguém me segura
Acima de mim, só Deus nas alturas
Eu sou Pernambuco falando pro mundo.
(REFRÃO)
Anexo 1.4 – O marco do meio-dia
Apresentação dos músicos
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Conduzindo a minha voz
nesta cadência pulsante,
pra quem escuta meu canto,
aqui, em casa ou distante,
chamo pra me acompanhar
os músicos, nesse instante.
Viva os percussionistas,
pandeirista e batuqueiro,
bombo, tarol e ganzá
vão tocar neste terreiro.
Eu não sei se eles ou o som
qual dos dois nasceu primeiro.
Os homens que tocam cordas
esticadas, leves, finas,
que harmonizam o meu canto,
voz que não desafina,
com dedos debulham notas
do bordão à corda prima.
Viva as flautas e flautistas,
os sopristas, os pifeiros,
quem tira som de canudos,
de metais e bambuzeiros,
quem é pai e mãe do vento,
de Pã, o deus dos gaiteiros.
Viva o homem do fole,
nosso mestre sanfoneiro,
animador de festejos
por esse Brasil inteiro.
Em palcos, bares, metrôs,
forrós, sambadas e terreiros.
Abrindo aqui a jornada
de toques, loas, canções,
celebrando a alegria
com o fervor das orações,
licença peço pra entrar
em vossos bons corações.
Mestiçagem
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Uma negra com um branco
vi casar na camarinha,
um branco com uma índia
vi casar lá na matinha,
um negro com uma índia
vi casar na capelinha.
Um negro com uma negra
vi casar atrás do muro,
um branco com uma branca
vi casar lá no escuro,
um índio com outra índia
casaram em Porto Seguro.
Eu vi nascer um mulato
do casal da camarinha,
vi nascer um mameluco
do casal lá da matinha,
eu vi nascer um cafuzo
do casal da capelinha.
Eu vi nascer um crioulo
do casal de atrás do muro,
eu vi nascer um mazombo
do casal lá do escuro,
eu vi nascer outro índio
do casal Porto Seguro.
Uma mulata moleca
vi casar com um japonês,
uma catita cafuza
com um sírio-libanês,
crioulo com alemoa
vejo casar todo mês.
Me casei com uma mestiça,
eu mestiço por inteiro,
tivemos muitos mestiços
cada vez mais verdadeiros,
cada vez mais misturados,
cada vez mais brasileiros.
200
Viagem maravilhosa
(Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Wilson Freire)
Nosso Brasil,
acompanhe a minha idéia,
foi Atlântida e Pangéia,
um sertão que já foi mar.
Já foi Rodínia,
foi Panótia e Gonduana,
era belo e bacana
antes de Cabral chegar.
Tamm foi Ilha
do Brasil, de São Brandão,
Vera Cruz, nome cristão
trazido de além-mar.
Foi Pindorama,
foi Terra de Santa Cruz,
Papagalis, meu Jesus,
depois de Cabral chegar.
Nosso país
tem tesouros, tem arcanos,
tem mais de trinta mil anos
de histórias pra contar.
São trinta mil
em que o índio teve vez,
quinhentos que o português
e o negro chegaram cá.
Aí, um dia,
eu sentado na cadeira,
um estalo-de-Vieira
clareou a minha mente.
Eu percebi
que tinha de procurar
descobrir e encarar
minha terra e minha gente.
E sem demora
minha burra eu selei,
pus um cabresto e montei,
pus espelho e um radar.
Pus uma bússola,
astrolábio e luneta,
diário, mapa e caneta,
e falei: “Vou viajar!”
E mesmo antes
do sol, do cantar do galo,
do sino bater badalo,
eu saí pelo caminho...
Os cascos dela
velozes matraqueavam,
pareciam que estavam
tocando Brasileirinho.
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros (REFRÃO)
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
No meu galope,
mais veloz que um corisco,
eu cruzei o São Francisco,
mergulhei no Iguaçu.
Fui despertar
no sol da Zona da Mata,
vestido de ouro e prata,
sambando maracatu.
Passei por todas
as ladeiras de Olinda,
e muita morena linda
ainda se lembra de mim...
Cantei seresta,
tirei versos da ciranda,
toquei tuba numa banda,
na outra toquei flautim.
No meu caminho
enchi o Brasil de pernas,
até chegar nas cavernas
das Grutas de Maquiné.
Voltei de lá
com um papiro na mão,
trazendo a decifração
dos segredos de Sumé.
Eu vi xamãs
dominando tempestades,
cavando Sete Cidades,
separando Marajó...
Vi o profeta
puxando com sua cruz
cada órfão de Jesus
que cruzou Cocorobó.
201
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros (REFRÃO)
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
Fiz um almoço
lá no Buraco da Jia,
começou ao meio-dia,
terminou pela manhã:
cuscuz com fava,
bode assado, dobradinha,
macaxeira com farinha,
codorniz e ribaçã.
Bolo de milho,
marisco no vinagrete,
feijoada com croquete,
quitute e baião-de-dois.
Comi de tudo
sem pressa, sem me cansar,
só para me preparar
para o que vinha depois...
Arroz de polvo,
risoto de camarão,
maionese e macarrão,
salpicão, frutos do mar,
feijão-macassa,
galinha de cabidela
e um bife de panela
bem leve, pra descansar.
Um ensopado
de carne com batatinha,
feijão-verde e farofinha,
sanduíche de peru.
Pra terminar
um conhaque, um cafezinho,
mais um cálice de vinho
e três doses de Pitu.
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros (REFRÃO)
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
Porém, um dia
eu cruzei em meu caminho
com um cavalo-marinho
que era gêmeo como o meu.
Puxei a rédea,
fiquei olhando pra ele,
ele achou que eu era ele,
eu achei que ele era eu.
Nesse momento
mais um galope se ouviu,
outro cavalo surgiu
passando perto da gente.
Uma figura
semelhante e parecida,
mas como tudo na vida
tinha algo diferente.
E mais dois outros
chegaram no mesmo instante,
e logo mais adiante
outro ainda apareceu.
E eu que pensava
que era único no mundo,
encontrei num só segundo
muitos outros como eu.
Saí puxando
a Cavalhada-Marinha,
parecia idéia minha,
parecia carnaval.
Fomos dançando
na ponte do arco-íris,
e quando rodei o pires
apurei quase um real.
Eu virei noite
galopando esse país,
de metrópoles febris
e esquecida imensidão.
Vi a coragem
de quem enfrentou a morte,
vi um vento lá do norte,
vi a vela em minha mão.
Vi uma luz
branca, azul, aparecida,
e uma mulher parecida
com aquela lá do céu.
Vi tantas luzes
que lembrá-las é revê-las,
tantas luas e estrelas
entre as rendas do seu véu.
E da mão dela
uma luz se projetava,
e essa luz me apontava
uma Tróia no sertão.
Uma muralha,
dentro dela uma cidade,
202
fora dela a crueldade,
a morte e a escravidão.
Era o Quilombo
lá da Serra dos Palmares,
erguendo alto nos ares
a bandeira de Zumbi.
Saltei da burra,
devagar fui caminhando,
me cheguei, fui escutando
o que acontecia ali.
Cavalgar, cavalgar,
eu cavalguei.
No país dos brasileiros (REFRÃO)
conheci o mundo inteiro
e por ele eu passeei.
Zumbi
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Zumbi, um negro,
respirando rebeldia,
foge pra mata um dia
à procura do Lugar.
Era um Quilombo,
a terra dos ex-escravos,
todos livres, sem os travos,
sem ter dono pra ferrar.
Vinham mestiços,
índios chegavam do eito,
todos lá tinham direito,
preto, branco, sarará.
Uma nação
de iguais sem oprimidos,
de homens livres nascidos,
crescidos sem apanhar.
O sol,
o sol lá vem. (REFRÃO)
Eu namoro uma morena,
que sou moreno também.
Chegaram ali
brancos pobres, mamelucos,
com pau, pedra e trabuco
pra liberdade ganhar.
Todos queriam
ser é mais um quilombola
não viver pedindo esmola
a quem não queria dar.
Uma cruzada
contra os povos livres, bravos,
para mantê-los escravos,
correram então a formar.
E a batalha
derradeira aconteceu,
jamais dela se esqueceu
quem nasceu nesse lugar.
O sol,
o sol lá vem. (REFRÃO)
Eu namoro uma morena,
que sou moreno também.
Vi preto livre
lá na Serra da Barriga
enfrentar bala e urtiga
para não se escravizar.
Como uma praga,
saída dos Evangelhos,
vi Domingos Jorge Velho
Palmares incendiar.
Eu vi foi tiro,
eu vi corte de peixeira,
pernada de capoeira,
vi corpo no chão rolar.
Eu vi Zumbi
ser preso, ser torturado,
violado e humilhado
por querer se libertar.
O sol,
o sol lá vem. (REFRÃO)
Eu namoro uma morena,
que sou moreno também.
Eu vi seu corpo
ser à faca esquartejado,
203
como um bicho ser sangrado,
eu vi o seu degolar.
Vi a cabeça
enfiada numa vara,
eu vi toda a sua cara
no sol quente descarnar.
Primeiro sonho
brasileiro de igualdade,
fraterno, de liberdade,
ali veio se acabar.
Mas foi semente
e deixou ensinamento
que ainda está em tempo
de viver pra se sonhar.
O sol,
o sol lá vem. (REFRÃO)
Eu namoro uma morena,
que sou moreno também.
Coco da bicharada
(Recriação de cantiga e versalhada popular
por Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Vou contar, que eu conheço,
e você nem acredita:
uma cidade esquisita
onde tudo é pelo avesso.
Se quiser dou o endereço
para visitá-la um dia,
gente lá não tem valia,
como bicho é tratada,
lá o homem não é nada
só que manda é a bicharia.
Avoa, meu caboré,
peneira, meu gavião.
Palmatória quebra dedo, (REFRÃO)
palmatória faz vergão.
Quebra tudo, quebra pedra,
só não quebra opinião.
Vi mosca de camisola,
vi cavalo num debate,
vi uma traça alfaiate,
guaxinim tocar viola,
um siri jogando bola,
vi um pica-pau ferreiro,
um veado arruaceiro,
vi um mosquito tossindo,
vi uma gata parindo
e o cachorro era o parteiro.
(REFRÃO)
Vi um peixe de chocalho,
Uma perua discreta,
jabuti que era atleta,
mais veloz que um atalho,
calando jogar baralho,
formiga tapando furo,
a lagartixa no muro
dando uma de alpinista,
e um preá capitalista
emprestar dinheiro a juro.
(REFRÃO)
Eu vi um jumento escrevendo,
vi preguiça trabalhando,
vi a besta reclamando,
eu vi um morcego lendo,
caranguejeira tecendo,
porca em água-de-cheiro,
vi um cururu faceiro,
coruja no oculista,
vi tatu ser maquinista
lá no metrô de Pinheiros.
(REFRÃO)
Vi a pulga se coçando,
avestruz tirar encosto
vi barata ter bom gosto,
um bode se barbeando,
um gambá se perfumando,
seriema ser modelo,
vi minhoca de cabelo,
vi cobra de suspensório,
macaco no escritório
organizando desmantelo.
(REFRÃO)
204
Vi onça vegetariana,
piolho coçar cabeça,
vi um burro prestar queixa,
leão comendo banana,
vi uma zebra de pijama,
eu vi um peba engenheiro,
guariba tocar pandeiro,
tanajura usando tanga,
vi o cão chupando manga,
batendo bombo em terreiro.
(REFRÃO)
Estrela-d’alva
(Antonio Nóbrega, Bráulio Tavares e Zezinho Pitoco)
Ó estrela-d’alva,
olha a luz do dia.
Ó estrela-d’alva,
olha a luz do sol. (REFRÃO)
Ó estrela-d’alva,
não me deixe sem meu guia.
Ó estrela-d’alva,
não me deixe só.
Caixa de guerra, maracá, porta-bandeira,
rainha negra batendo palma de mão.
Baque virado fez tremer o chão do mundo,
bombo profundo ressoou trovão.
Ladeira acima os cortejos vão seguindo,
Brasil afora vai cantando a procissão...
Nos estandartes os emblemas do Divino,
olhos na altura e os pés no chão.
(REFRÃO)
Num mar de gente os andores navegando,
santos de barro e resplendores de papel,
ramos e palmas verdejando a rua inteira,
e a padroeira a flutuar no céu.
Anjos-meninos de olhos pretos e asas
[brancas,
e a banda toca um hino triste e triunfal,
cristãos e mouros cruzam lanças na avenida
e se ajoelham frente à catedral.
(REFRÃO)
Cacos de vidro são rubis e diamantes,
e cada crente nesse instante é um Jesus,
cada promessa conta o drama de uma vida,
e cada vida se transforma em luz.
Blocos desfilam seus calungas e brincantes,
bichos gigantes, jaraguá, cobra-coral.
Reis maltrapilhos vão cantando Ave-Maria,
e a romaria puxa o carnaval.
(REFRÃO)
205
Flecha fulniô
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Sumaúma grande
brotou curumim.
Ave miúda
nasceu passarim.
Sangue fulniô,
pegadas toré,
um arco no corpo,
a flecha Mané.
Fogo na galera
delira a aplaudir,
um anjo torto
barroco a sorrir.
Garrincha no nome,
nas pernas garruchas,
no chute um morteiro,
um canhão de buchas.
Um deus nos estádios
abrindo retrancas,
um desengonçado
que as redes balança
Mandinga, catimba,
a lógica, a tática,
de nada valiam
para as pernas mágicas.
Mais um gol de letra,
de placa, um golaço,
a bola lhe adora,
e corre pro abraço.
Malasartes do jogo,
driblando zagueiros,
um bobo pra corte,
um herói brasileiro.
Sem Maracanã,
sem drible na área,
na noite sem grito,
estrela solitária.
Partiu, foi morar
na constelação,
deixou pátria órfã,
sem circo a nação.
O romance do Aleijadinho
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
No tempo Brasil Colônia,
terra de brancos barões,
surgia um povo mestiço
já filhos desses torrões.
Desejos de pátria livre
tomavam seus corações.
Dentre esses brasileiros,
chamados de desraçados,
um filho de escrava negra,
mulato, pobre e bastardo,
virou mestre-entalhador,
ofício o mais respeitado.
Mas um dia uma doença
com o destino combina,
destrói-lhe as mãos e os pés,
todo o seu corpo em surdina.
Cheio de chagas e dor
passa a cumprir sua sina.
Tinha a missão de fazer,
com dois formões afiados,
bem amarrados aos punhos,
homens, santos, lapidados,
da pedra e da madeira
tal um filho livre gerado.
Eram os santos que esculpia
mineiros inconfidentes.
Num apóstolo se via
as feições de Tiradentes,
um sonhador luminoso
com a terra independente.
206
Do seu talhe então surgia
uma nova identidade
da nação que se formava,
mestiça, sim, de verdade.
Riscou na pedra e madeira
os carminhos da liberdade.
À medida que seu corpo
ia se desfigurando,
e com as chagas crescentes
ia se despedaçando,
o que caía no chão
nova terra ia formando.
Talhando gente e frontões,
nas Minas ele vagava,
visionário, itinerante,
uma nação, inventava.
Era um mestiço, meu Deus,
que um Brasil profetizava.
Galope beira-mar para Bispo do Rosário
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Então, meia-noite, anjos emissários, De enorme tarefa e tudo à mão,
em conta de sete, de aura azulada, só tinha sucata para começar.
falaram pra ele, “punhando” as espadas: Sem barro de Adão para ele soprar,
“És tu o escolhido, Bispo do Rosário. só cacos de vidro e tacos de telha,
Terás que fazer o teu Inventário ali no hospício da Praia Vermelha
e reconstruir o Universo sem par, cantando galope na beira do mar.
pra diante de Deus tu te apresentar
vestido em teu manto vermelho-centelha.” Juntando pedaços de pano, caixotes,
Entrou no hospício da Praia Vermelha com pregos, botões, colheres, canecos,
cantando galope na beira do mar. flanelas, lençóis, agulhas, chinelos,
brinquedos, moedas, um velho holofote,
Aí agarrou-se àquela missão, lutou contra todos, virou Dom Quixote,
mas todos diziam que era loucura. com lixo a empreitada pôde terminar,
Sozinho a sentir a dor, a agrura, até que um anjo o veio buscar.
de ter que fazer a reconstrução. E aí, com meu Deus fizeram parelha,
saiu do hospício da Praia Vermelha
cantando galope na beira do mar.
Martelo do marco d’o meio-dia
(Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna)
A Bandeira do Sol estrala ao vento Ao final desta Dança bela e forte
e ressoa a minha voz de Cantador, eu que sou o Cantador, dono da Casa,
num protesto do Sonho contra a Dor, e com versos de sangue, fogo e brasa,
a pobreza do povo e o sofrimento. forjo o Marco e celebro a minha sorte.
Nas estrelas do Canto, o pensamento Na viola, eu vou batendo a Morte
ergue um Marco que é só anunciado. e assumindo a coroa de Guerreiro.
Nossa sorte de Povo injustiçado Ao cantar meu país, sou o Lanceiro,
é vencida por nós ao som da luta, olho o sangue ferido do meu povo
e no meio do palco o que se escuta e sonho ao meio-dia um canto novo,
é o sol da justiça do Sonhado. levantando este Marco brasileiro.
Anexo 1.5 – Lunário perpétuo
O rei e o palhaço
(Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares)
Sua coroa é de ouro,
o meu chapéu é de palha.
A sua cota é de malha,
o meu gibão é de couro.
Sua justiça é no foro, (BIS)
minha lei é o consenso.
O seu reinado é imenso,
minha casa é o meu país.
Você é preso ao que diz,
eu digo tudo o que eu penso.
Você vem com a arma erguida,
eu vou abaixando a guarda.
Você vem vestindo farda,
eu de roupa colorida.
Você disputa corrida, (BIS)
eu corro pra relaxar.
Sua marcha é militar,
a minha é de carnaval.
Seu traje é de general,
eu visto pena e cocar.
Você liga a motosserra,
eu planto flor no cerrado.
Você só anda calçado,
eu piso com o pé na terra.
Você quer vencer a guerra, (BIS)
eu quero ganhar a paz.
Você busca sempre mais,
eu quero só o que é meu.
Você se acha europeu,
eu sou dos canaviais.
Você vem com a força bruta,
eu vou com a ginga mansa.
Você vem erguendo a lança,
e eu erguendo a batuta.
Você me traz a cicuta, (BIS)
eu lhe dou chá de limão.
Você diz que é capitão,
eu sou só um mensageiro.
Você é um brigadeiro,
eu sou só um folgazão.
208
Romance da filha do imperador do Brasil
(Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna)
O Imperador Dom Pedro
tem uma filha bastarda,
a quem quer tanto do bem
que ela ficou malcriada!
Queriam casar com ela
barões de capa e espada.
Ela, porém, orgulhosa,
a todos que recusava:
– Este é menino! Esse é velho!
Aquele lá não tem barba!
O de cá não tem bom pulso
pra manejar uma espada!
Dom Pedro falou, se rindo:
– Ainda serás castigada!
Não vás tu de algum Vaqueiro
terminar apaixonada!
E na fazenda de seu Pai,
já no fim da madrugada,
um dia, numa janela,
a Infanta se debruçava.
Viu passar três moradores
que trabalhavam de enxada.
O mais garboso dos três
era o que mais trabalhava.
Tanto plantava algodão
como do gado cuidava.
Vestia gibão de couro,
fortes sapatos calçava,
na aba do chapéu de couro
fina prata se estrelava.
Pois logo desse Vaqueiro
a Infanta se apaixonava.
E o Vaqueiro só cavando:
ele sabe o que cavava!
A Princesa chama a Velha
em que mais se confiava:
– Estás vendo aquele Vaqueiro
trabalhando ali, de enxada?
Condes, Duques, Cavaleiros,
por nenhum eu o trocava!
Vai chamá-lo aqui, depressa,
e ninguém saiba de nada!
A Velha vai ao Vaqueiro
que na terra trabalhava:
– Vem comigo, meu Vaqueiro!
Aí, deixa dessa vista baixa...
Levanta os olhos, que vês
a Estrela da Madrugada!
Entraram pelo portão,
que a porta estava fechada,
na camarinha da Moça
o Vaqueiro já chegava:
– Senhora, o que é que me manda?
Eu vim por vossa chamada!
– Quero saber se te atreves
a queimar minha coivara!
– Atrever, me atrevo a tudo,
Que um homem não se acovarda!
Dizei-me, porém, Senhora,
onde está vossa coivara!
– É abaixo dos dois montes,
na fonte das minhas águas,
abaixo do tabuleiro
e da furna da Pintada,
na linha da perseguida,
no corte da desejada!
Passavam o dia folgando,
o mais da noite passavam,
e o Vaqueiro socavando,
ele sabe o que cavava!
À meia-noite a Princesa
pediu tréguas, por cansada:
– Basta, basta, meu Vaqueiro!
Queimaste mesmo a coivara!
Não sei se por varas morro
ou com ela incendiada!
E assim a filha do Rei
do orgulho foi castigada!
209
Carrossel do destino
(Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares)
Deixo os versos que escrevi,
as cantigas que cantei,
cinco ou seis coisas que eu sei
e um milhão que eu esqueci.
Deixo este mundo daqui,
selva com lei de cassino,
vou renascer num menino,
num país além do mar...
Licença, que eu vou rodar (BIS)
no carrossel do destino.
Enquanto eu puder viver
tudo o que o coração sente,
o tempo estará presente
passando sem resistir.
Na hora em que eu for partir
para as nuvens do Divino,
que a viola seja o sino
tocando pra me guiar...
Licença, que eu vou rodar (BIS)
no carrossel do destino.
Romances e epopéias
me pedindo pra brotar,
e eu tangendo devagar
a boiada das idéias.
Sempre em busca das colméias
onde brota o mel mais fino,
e um só verso, pequenino,
mas que mereça ficar...
Licença, que eu vou rodar (BIS)
no carrossel do destino.
Romance da nau-catarineta
(Romance tradicional recriado por Ariano Suassuna –
as toadas são populares)
Ouçam, meus Senhores todos,
uma história de espantar!
Lá vem a nau-catarineta
que tem muito que contar.
Há mais de um ano e um dia
que vagavam pelo Mar.
Já não tinham o que comer,
já não tinham o que manjar!
Deitam sortes à ventura,
a quem se havia de matar:
logo foi cair a sorte
no Capitão-General!
– Tenham mão, meus Marinheiros!
Prefiro ao Mar me jogar!
Antes quero que me comam
ferozes peixes do mar
do que ver gente comendo
carne do meu natural!
Esperemos um momento,
talvez possamos chegar.
“Assobe”, “assobe”, Gajeiro,
naquele Mastro real!
Vê se vês terra de Espanha
e areias de Portugal!
– Não vejo terras de Espanha
e areias de Portugal!
Vejo sete Espadas nuas
que vêm para vos matar!
– Vai mais acima, Gajeiro,
sobe no Tope real!
Vê se vês terra de Espanha, Gajeiro,
Areias de Portugal!
– Alvíssaras, Capitão,
meu Capitão-General!
Já vejo terras de Espanha,
areias de Portugal!
Enxergo mais três Donzelas,
debaixo de um Laranjal!
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar.
A mais chiquitita de todas
210
está no meio a chorar!
– Todas três são minhas filhas,
ah, quem me dera as beijar!
A mais chiquitita de todas, Gajeiro,
contigo a hei de casar!
– Eu não quero a vossa Filha,
que vos custou a criar!
– Dou-te o meu Cavalo branco,
que nunca teve outro igual!
– Não quero o vosso Cavalo,
meu Capitão-General!
– Dou-te a nau-catarineta
tão boa em seu navegar!
– Não quero a Catarineta,
que Naus não sei manobrar!
– Que queres, então, Gajeiro?
Que alvíssaras hei de dar?
– Capitão, eu sou o Diabo
e aqui vim foi vos tentar!
O que eu quero é vossa Alma,
para comigo a levar!
Só assim chegais a porto,
só assim eu vou vos salvar!
– Renego de ti, Demônio,
que estavas a me tentar!
A minha Alma eu dou a Deus,
e o meu corpo eu dou ao Mar!
E logo salta nas águas
o Capitão-General!
Um Anjo o tomou nos braços,
não o deixou se afogar!
Dá um estouro o Demônio,
acalmam-se o Vento e o Mar,
e à noite a Catarineta
chegava ao Porto do Mar!
A morte do touro Mão de Pau
(Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna)
Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um Touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo.
Um Touro com sua vida,
os homens em seus Cavalos.
Cortava o gume das Pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas Catingas
um Galope surdo e pardo,
e os Cascos pretos soavam
nas pedras de Fogo alado,
enquanto o clarim da Morte,
ao Vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos Cardos.
Rasgavam a Serra bruta
aboios mal arquejados
e nas trilhas já cobertas
pelo Pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:
– Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O Touro só tem a vida:
os homens têm seus Cavalos!
O galopar recrescia:
brilhavam Ferrões farpados
e Algemas de baraúna
para o Touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
– Ele há de vir amarrado!
Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus Cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E logo à frente, corria
um grande Touro marcado,
manquejando Sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por Ferrões ensangüentados.
A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos,
211
e a respiração fogosa
dos dois fogosos Cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do Manco macho
quando ele, vendo a Desonra
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num Rochedo pardo.
Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre ao rebanho espanta
que um Touro do nosso Gado
às teias da Fama-negra
prefira o gume do Fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos
viram o Manco selvagem
saltar do Rochedo pardo:
– Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do Gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o Touro manco,
morto mas não desonrado!
(Aboio)
Silêncio. A Serra calou-se
no Poente ensangüentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos Cascos.
E agora, só, no silêncio
deste Sertão assombrado,
o Touro sem sua vida,
os homens em seus Cavalos.
Excelência
(Recriação literária de Ariano Suassuna –
as toadas são populares)
Uma excelência da Virgem,
oh, Mãe de Deus, rogai por ele, Mãe de Deus!
Uma excelência da Virgem,
oh, Mãe de Deus, rogai a Deus por ele.
Mãe de Deus, Mãe de Deus,
oh, Mãe de Deus, rogai a Deus por ele!
Mãe de Deus, Mãe de Deus,
oh, Mãe de Deus, rogai a Deus por ele!
Diz o A... Ave-Maria
Diz o B... Brandosa e Bela
Diz o C... Cofrim da Graça
Diz o D... Divina Estrela
Diz o E... Esperança Nossa
Diz o F... Fonte de Amor
Diz o G... Guia do Povo
Diz o H... Honesta Flor
Diz o I... Incenso d’Alma
Diz o J... Jóia Mimosa
Diz o K... Coro dos Anjos
Diz o L... Luz Formosa
Diz o M... Mãe dos Mortais
Diz o N... Nuvem de Brilho
Diz o O... Orai por Nós
Diz o P... Por Vossos Filhos
Diz o Q... Querida Mãe
Diz o R... Rainha da Paz
Diz o S... Socorrei Sempre
Diz o T... Todos Mortais
Diz o U... Uma Esperança
Diz o V... Vale Profundo
Diz o X... Xis dos Mistérios
Diz o Z... Zelai o Mundo.
212
Meu foguete brasileiro
(Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares)
Eu fiz um foguete de andar pelo espaço,
igual um que eu vi pela televisão:
não sei se era coisa da França ou Japão,
mas basta ver gringo fazer, eu já faço!
Mandei buscar logo cem chapas de aço,
latão, alumínio, ferro de soldar,
dez mil arrebites para reforçar
a parte de fora da infra-estrutura:
cem metros de longo, trinta de largura,
e dez de galope voando no ar.
Botei no foguete diversas antenas
para captar raios infravermelhos.
Na parte de cima, um sistema de espelhos
que amplia as imagens de estrelas pequenas.
Motores na popa que servem apenas
pra tudo aquecer e pra refrigerar.
Movidos a pura energia solar,
tem computadores, TVs virtuais:
mil inteligências artificiais
que cantam galope voando no ar!
Maior do que tudo é a parte cargueira
que leva produtos de exportação:
tem saca de açúcar, tonel de carvão,
baú de café, tora de madeira.
Tem pano de lenço, tem palha de esteira,
xampu, querosene, bebida de bar,
rede de dormir, colchão de deitar,
cueca de seda, calcinha de renda...
Achando quem compre, não tem quem não venda,
cantando galope e voando no ar!
Merece destaque o setor de varejo,
com mercadorias de boa saída:
barraca de praia, caixa de bebida,
ganzá, cavaquinho, tantã, realejo...
Lagosta, siri, corda de caranguejo,
tem carne-de-sol e tem frutos do mar,
cordão de ceroula, produtos do lar,
catálogo novo, preço de primeira.
Daqui do país só não vendo a bandeira
que vai hasteada, voando no ar...
Criei no foguete diversos setores:
indústria, comércio, serviços, lazer,
fazendas de soja pra dar de comer
aos meus tripulantes e navegadores,
conjuntos de vilas pros trabalhadores
e até “piscinão” com água de mar.
Meu grande foguete é obra sem-par,
maior do que a China, melhor que o Japão,
tão belo de ver que parece o Sertão
cantando galope e voando no ar...
Depois de sentado no meu tamborete,
puxei a alavanca, pisei no pedal,
subi pro espaço com força total,
fazendo tremer o motor do foguete.
Passei bem por cima do Empire State,
da Torre Eiffel e do Palomar,
e vi pela tela se distanciar
a mancha azulada do nosso planeta...
Pensei: “Minha nossa! Aqui vai Tonheta,
cantando galope e voando no ar!”
Fiz logo uma escala no chão marciano,
vendi rapadura, comprei tungstênio,
enchi os meus tanques de oxigênio,
parti outra vez no começo do ano.
Passei por Saturno, passei por Urano,
cheguei lá no fim do Sistema Solar.
Desci em Plutão, tomei banho de mar,
botei gasolina comum e azul,
segui com destino ao Cruzeiro do Sul,
cantando galope e voando no ar!
Foi tanta Viagem, foi tanta Aventura,
foi tanta Demanda, foi tanta Odisséia...
Eu posso jurar à distinta platéia
que tudo isso foi a verdade mais pura.
Tamm teve um pouco de literatura,
história inventada para relaxar.
Mas eu que não minto não quero falar,
e o resto eu só conto aqui pra você,
no próximo espetáculo ou em outro CD,
cantando galope e voando no ar...
213
Delírio
(Antonio José Madureira e Marcelo Varella)
Adormeci na pracinha do Diário Madeira do Rosarinho
e despertei num disco voador. a Marcha da Folia entoou.
Até pensei que eu estava louco.
Louco, qual nada, o sonho começou. Rebeldes com Dona Moça,
usando anéis de Saturno,
Em Marte, encontrei Batutas, desfilava com grande nobreza
em Vênus, Banhistas na rua. cruzando aquele espaço noturno.
Inocentes, cheio de estrelas,
Lira da Noite vindo em bando da Lua. O disco foi regressando,
e com saudades chorei.
O disco deu outra volta Um raio da luz do Sol
e o Universo parou. desfez o sonho, acordei.
O romance de Riobaldo e Diadorim
(Antonio Nóbrega e Wilson Freire)
Quando eu vi aqueles olhos,
verdes como nenhum pasto,
cortantes palhas de cana,
de lembrá-los não me gasto.
Desejei não fossem embora,
e deles nunca me afasto.
Vivemos a desventura
de um mal de amor oculto,
que cresceu dentro de nós
como sombra, feito um vulto.
Que não conheceu afago,
só guerra, fogo e insulto.
Na Noite-grande-fatal,
o meu amor encantou-se,
desnudo o corpo inteiro
desencantado mostrou-se.
E o que era um segredo
sem mais nada revelou-se.
Sob as roupas de jagunço,
corpo de mulher eu via.
A Deus já dada, sem vida,
o vau da minha alegria.
Diadorim, Diadorim...
Minha incontida sangria.
Lunário perpétuo
(Antonio Nóbrega, Wilson Freire e Bráulio Tavares)
Meu Lunário tem antigas
alquimias de almanaques.
Já enfrentou intempéries,
roubos, incêndios e saques:
dos homens, das traças, das garras, das eras,
carrega segredos, decifra quimeras.
Venceu todos os ataques.
O meu Lunário perpétuo
sob o sol é luzidio.
Meu Lunário foi forjado
num fogo de desafio
que vibra, esquenta, atiça, aperreia,
faísca, enlouquece, que pega na veia.
Pelos séculos a fio.
O meu Lunário perpétuo
guarda as vozes seculares
do Profeta de Canudos
e do Mártir dos Palmares.
Sonhando com o Reino do Espírito Santo
na terra, no céu, em todo recanto.
Nos terreiros e altares.
O meu Lunário perpétuo
é meu Livro precioso,
minha Cartilha primeira,
minha Bíblia de Trancoso.
João Grilo, Chicó, Malasartes, Mateus,
os órfãos da terra, os filhos de Deus!
Heróis do Maravilhoso!
Meu Lunário é a memória
de um país que vai passando
diante dos nossos olhos,
rindo, mexendo, cantando.
Mestiço, latino, caboclo, nativo,
é velho, é criança, morreu e tá vivo...
Presente, mas até quando?
Meu Lunário é conselheiro,
é meu folheto, é meu missal,
atravessando os milênios,
cada ponto cardeal.
De Norte a Sul, de Pai para Filho,
de lá para cá, meu livrinho andarilho.
Fabuloso Romançal!
215
Anexo 2 – Entrevista com Antonio Nóbrega
103
O universo literário, especificamente o da palavra, é aquele em que
Antonio Nóbrega diz não se sentir autonomamente um criador, um autor,
apesar da afirmação contrária de seu parceiro Bráulio Tavares.
104
A maioria
das canções e dos textos dos seus espetáculos
105
é criada e elaborada por
meio de parceria seja com Bráulio Tavares, seja com Wilson Freire, além de
outros parceiros menos regulares, como Ariano Suassuna, Marcelo Varella,
Zezinho Pitoco e até falecidos, como Dimas Batista Patriota.
No caso de Ariano, com exceção do Martelo do marco do meio-
dia, todos os demais textos dele que musiquei já estavam presentes em
suas obras, como A morte do touro Mão de Pau, o Romance da filha do
imperador do Brasil, o Romance de Clara menina com Dom Carlos de
Alencar, o Romance da nau-catarineta. Estes três últimos aparecem no
Romance d’a Pedra do Reino (Suassuna, 2004b). São histórias de que
me apropriei sem ter solicitado a ele uma parceria. As letras estavam
escritas. o martelo, não; ele escreveu especificamente para o meu
espetáculo. ainda o Martelo agalopado que gravei nos tempos do
Quinteto Armorial.
106
É a música com que abro o meu espetáculo
Figural.
107
Eu entro pela platéia cantando esse poema.
103
O texto a seguir reúne informações e comentários com base em entrevista concedida por
Antonio Nóbrega ao autor desta tese no dia 19 de outubro de 2005, no escritório da Brincante
Produções, no bairro de Vila Madalena, na cidade de São Paulo.
104
Ver capítulo 2.2.2.
105
Merece destaque o uso recorrente da palavra “espetáculo” por Nóbrega ao longo da
entrevista. Ele nunca diz “show”, assim como Ariano Suassuna. Tal opção deve-se a dois
motivos: em seu entender, o tipo de apresentação que ele faz é mais bem definido pelo termo
“espetáculo”, que engloba música, dança, teatro e texto, do que pelo termo “show”,
comumente mais associado a uma apresentação musical apenas, como afirma. O segundo
motivo é de nítida inspiração suassuniana: o brasileirismo de “espetáculo” condiz muito mais
com o seu trabalho do que o americanismo de “show”.
106
Está no último disco do quinteto, Sete Flechas, produzido por Marcus Pereira e gravado em
1980, pela EMI. Foi relançado em 1999 pela Copacabana Records na série Dois em um (Dois
LPs em um CD), que reúne os discos Quinteto Armorial Do romance ao galope nordestino e
Quinteto Armorial – Sete Flechas.
107
Espetáculo-solo que Nóbrega estreou no início dos anos 90 e continua apresentando até
hoje, em função de sua praticidade em termos de produção. O artista entra em cena cantando
o Martelo agalopado pouco citado e ao longo do espetáculo “encarna” diversos
personagens, retirando roupas e adereços de um baú colocado no palco. Um desses
personagens é Tonheta. No encerramento, ele deixa o palco cantando Patativa, de Vicente
Celestino.
216
Paralelamente a sua atividade artística, Nóbrega deu alguns passos
acadêmicos na área de letras:
Eu cheguei a cursar o primeiro ano de letras na Universidade
Católica do Recife. Meu périplo universitário começou com o curso de
direito, na Universidade Federal de Pernambuco, mas vi que seria uma
carga muito pesada para mim ter que me submeter aos quatro ou cinco
anos do curso. O primeiro ano foi suficiente para eu dizer que teria de
procurar outro curso universitário. Também me recusei a fazer o curso
superior de música, que talvez tivesse sido melhor. É que com o meu
ingresso no Quinteto Armorial eu comecei a inclinar o meu fazer
musical noutra direção e senti que os créditos do curso tradicional de
música não iam muito ao encontro do que eu buscava como músico.
O curso superior de música não fez falta a ele:
Quando você estuda um instrumento, o resultado depende muito
do seu desempenho pessoal. De modo que às vezes você cumpre uma
jornada de execução além daquilo que é proposto no seu período oficial
de estudo. No Recife, eu estudei com um professor muito bom de
violino, Luís Soler, um catalão. Eu me devotava muito àquilo, para ser
um virtuose solista de violino. Mas me encontrei com Ariano
Suassuna, isso quer dizer com o Quinteto Armorial, e então...
Nóbrega começou a estudar violino por volta dos 15 anos.
Paralelamente ao seu grande interesse pela música clássica, na adolescência
ele participou de um conjunto em família. Eram os Irmãos Almeida, que
tocavam sucessos da música popular brasileira da época, como os da Jovem
Guarda, com destaque para Roberto Carlos. Pouco depois alguns primos se
chegaram, e o nome do conjunto ampliou-se para Irmãos Almeida e Paterson.
Sua irmã Eugênia, flautista, é sua parceira profissional até hoje, pois participa
do grupo que acompanha o artista em suas apresentações.
Ele entrou para a universidade aos 18 anos, em 1970. No final daquele
ano, entregou a prova da disciplina introdução à ciência do direito sem
responder às questões. E disse ao fiscal que ali abandonava o curso. No ano
217
seguinte, fez vestibular para letras. Segundo conta, a especialização (se em
língua portuguesa ou literatura brasileira ou portuguesa, por exemplo) seria a
partir do segundo ano. “Comecei a fazer o curso de letras porque sempre
gostei muito de literatura. E continuo gostando”, afirma. “Eu tive a sorte de ter
um avô que gostava de escrever e era dono de uma biblioteca muito boa, a
qual eu gostava muito de visitar.”
Entre seus escritores favoritos, ele cita sobretudo os regionalistas, como
José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jo Américo de
Almeida. “Guimarães Rosa foi o que eu cheguei por derradeiro. Comecei por
Primeiras estórias, depois Sagarana”, salienta. “Também li muito Herman
Hesse, não o de O lobo das estepes e Sidharta como o de O jogo das
contas de vidro, o livro que mais me marcou.” Ele conta que também lia poesia
e um pouco de Dostoiewski.
Escrever é outra atividade que sempre atraiu Nóbrega.
Confesso que até os 23 anos eu não sabia por onde a minha
energia criadora se canalizaria melhor, se como músico, como escritor
ou pesquisador. A dança viria depois. Mas eu gostava muito do curso
de letras, apesar de ter deixado logo após acabar o primeiro ano. Eu
gostava muito de lingüística, de Saussure...
Como a música o solicitava cada vez mais, ele conta que resolveu parar
o curso de letras, na verdade, para “dar um tempo”, viajar. Diz que não parou
em definitivo, mas esse “não em definitivo” foi semelhante a sua ida para São
Paulo. A idéia era passar um período, não era ficar.
Eu acho que são subterfúgios psicológicos que a gente cria para
não-aceitação de uma medida, uma atitude, que já foi tomada e a gente
não quer assumir. Talvez quando eu tenha assumido deixar a faculdade
de letras, tenha assumido inconscientemente que não daria para eu
cursar uma universidade. Ela não daria o conhecimento que eu
buscava, porque ao mesmo tempo eu me encontrava com a rua, com
os espetáculos populares, os dançarinos. Eu ficava dividido. Por mais
218
que eu gostasse do curso de letras, eu gostava mais de ficar fazendo
as minhas pesquisas sobre reisados e cantadores, e aquilo a
universidade não poderia me dar. Quer dizer: eu adiava
psicologicamente aquela decisão, mas acho que inconscientemente eu
já sabia o que queria.
Por que ele deixou Recife rumo a São Paulo e não ao Rio de Janeiro?
“Porque eu já me encontrara
108
com São Paulo através das minhas vindas aqui
para me apresentar com o Quinteto Armorial. É uma cidade que tinha me
acobertado de alguma maneira”, esclarece. “Acho que o meu espírito, em
termos de Sudeste, é mais paulistano do que carioca. Eu ia passar no máximo
um mês e acabei ficando.
Em sua opinião, o Rio está para São Paulo assim como a Bahia está
para Pernambuco. Ele considera a Bahia como uma espécie de “hipertrofia” de
Pernambuco:
É a festa em sua exuberância quase no desregramento, em sua
exorbitância maior, enquanto que em Pernambuco ela é um pouco mais
contida. Traduzindo para os elementos da arte: os elementos
classicizantes da arte ainda são mais apreensíveis em Recife. Se a
gente tivesse de fazer uma dicotomia entre os elementos românticos ou
clássicos da arte, os elementos masculinos ou femininos, eu diria que
em Recife esse equilíbrio é mais bem realizado, enquanto que na Bahia
o feminino, quase o desregramento, é maior, o que eu acho que é uma
coisa que o Rio também tem, em menor escala. O Rio tem um excesso
que para mim não é tão bom quanto São Paulo.
Qual é o ponto de partida do artista para criar? A melodia de uma
canção ou uma história a ser contada por meio de uma letra?
Eu acho que valem as duas ou mais hipóteses. Trabalho tanto
com idéias de letras quanto de melodias. Tenho um caderno de
anotações, que é o Ideário. Agora estou dividindo os cadernos por
assunto. Abri até umas gavetas, para não haver confusão entre as
idéias de músicas e de dança. Anoto idéias de bailados, faixas de
discos. Estou escutando, por exemplo, um quarteto de cordas de Villa-
Lobos. Num dos movimentos aparece a indicação “Saltando como um
saci”, o que serve como idéia para desenvolver uma coreografia. Não
sei se vou fazer, mas está lá, arquivado. Como estava dando muita
108
Registre-se o uso do pretérito-mais-que-perfeito na fala de brega, demonstrando sua
forma culta de se expressar.
219
confusão anotar tudo num caderno só, resolvi colocar um caderno
para dança, um para isso, um para aquilo etc. vou anotando motes,
idéias de canções, de versos. Esse é um dos caminhos. Eu tenho
também um Ideário musical, que é um gravador no qual registro idéias
musicais, cantigas, solfas que me acometem. Dizem que não existe
inspiração, mas sou ligado a ela.
Nóbrega diz que entra em fase de maior escuta musical durante o
preparo de um novo espetáculo. “Isso é natural para qualquer artista. A
memória fica mais ágil, as sinapses ocorrem com mais bonomia”, acentua.
Sobre seu Ideário musical, ele conta que tem vários registros.
Anoto também toques para violino, futuras peças para violino.
Ocorre que às vezes consigo casar uma melodia dessas com uma idéia
de canção para um espetáculo. eu digo: “Wilson, estou com uma
idéia aqui.” Então ele trabalha essa idéia literária. Depois tento colocar
aquela canção numa melodia que eu acho que se case com aquela
letra. Quando não cabe, parto para compor outra melodia sobre aquela
letra. Um exemplo é Canudos. É o desenvolvimento de uma toada de
um guerreiro alagoano, num tempo mais lento: “Eu viandante de um
chão poento...” É uma temática comum lá, de domínio público. Eu fiz
uma letra para aquela canção muito tempo. Cantei num espetáculo
chamado A arte da cantoria. Foi o segundo espetáculo que idealizei e
foi criado em Recife, antes do Maracatu Misterioso. Eu cantava essa
canção, mas a letra depois começou a não mais me dizer... Era menor
do que a cantiga, a parte musical. Quando eu e Wilson estávamos
fazendo Madeira que cupim não rói, achei que aquela melodia pedia
uma letra que tratasse de Canudos. ele fez uma letra que eu acho
absolutamente inspirada. Era uma coisa sobre a qual a gente
conversava muito, que era a utilização do léxico de Euclides da Cunha.
Esse procedimento nós também utilizamos para a canção dedicada a
Riobaldo e Diadorim, como no trecho “Na Noite-grande-fatal,
109
o meu
amor encantou-se...” São palavras caras a Guimarães Rosa.
Criador de reisados
O artista diz que raramente escreve canções fora da perspectiva de
criação de um espetáculo. Em função das fortes influências que recebeu,
sente-se um criador de reisados.
109
Forma grafada no encarte do CD Lunário perpétuo.
220
Penso que sou um criador de reisados.
110
O que quero dizer com
isso? Acho que a forma do meu espetáculo se identifica com aquilo que
eu chamo, para dar um nome genérico, de forma dos espetáculos
populares brasileiros. O bumba-meu-boi, o guerreiro, o cavalo-
marinho... As danças dramáticas, como Mário de Andrade
111
chamou,
são espetáculos que na verdade são suítes de peças cantadas, de
danças, peças instrumentais, textos recitados. O que eu procuro fazer
nos meus espetáculos, de certa maneira, é recriar um pouco essa
mesma estrutura. Ou seja: eu reúno nos meus espetáculos canto,
dança, pantomima, texto, tribuna – quando no final do Lunário perpétuo
falo de forma poética, até dissimulada, e postulo a necessidade de o
Brasil se olhar um pouco mais, de os coreógrafos e dançarinos
brasileiros tomarem atenção naquilo que Mário de Andrade escreveu
sobre as danças dramáticas. Como é possível que uma dança como o
frevo esteja ausente da perspectiva de criação dos coreógrafos e
bailarinos brasileiros?
Em cada espetáculo, portanto, ele procura fazer uma síntese de sua
música, sua dança, sua pantomima, espelhando-se na forma dos espetáculos
populares brasileiros.
Para mim, o boi-bumbá do Maranhão, o boi-de-mamão de Santa
Catarina, o cavalo-marinho recifense, o boi-de-reis do Rio Grande do
Norte, todos eles são grandes reisados. A estrutura de um espetáculo
desses é o quê? Um grupo de músicos tocando, figuras dramáticas que
entram míticas, fantásticas ou humanas, regionais ou não –, que são
apresentadas através de máscaras, danças, cantigas, peças
instrumentais... Esse é o conjunto de fatores que cria, realiza, mostra,
apresenta o boi-bumbá do Maranhão, o cavalo-marinho pernambucano,
o boi-de-mamão de Santa Catarina. É claro que, em cada região
dessas, elementos particulares se sobrepõem a outros que são mais
valorizados em outras regiões. Mas em todos eles você vai encontrar:
música cantada, dançarinos, máscaras. Todos esses elementos estão
ali. É a mesma espinha dorsal. Aqueles elementos presentes são o
alicerce, a base, o chão coletivo. Em alguns deles, como no cavalo-
marinho pernambucano, a dança desenvolveu-se extraordinariamente,
mais do que em qualquer outro. Em contrapartida, no bumba-meu-boi
maranhense o universo plástico, visual, das máscaras cresceu muito
mais do que no cavalo-marinho, por exemplo. seria uma questão de
se estudar um misto de antropologia com arqueologia para se entender
por que isso se passou. Então essas são as bases do meu trabalho. É
uma espécie de suíte de cantos e danças, na qual diferentemente do
reisado, onde um corpo de integrantes, com músicos, dançarinos e
atores – eu faço um pouco a síntese dos brincantes que não são
músicos.
110
Ver Glossário.
111
Ver Andrade (1982), 3v.
221
Nesses espetáculos, que podem reunir de dez a quarenta participantes,
também aqueles que “botam as figuras”, salienta Nóbrega, explicando que
“botar a figura” é representá-la. Há os palhaços, que são os Mateus; os que
vêm para dançar. “Nos meus espetáculos, quando não estou sozinho
fazendo um pouco de cada um desses papéis, conto com a minha pequena
equipe, que inclui Rosane
112
e os músicos”, ressalta. “Com exceção do Marco
do meio-dia, em que havia mais quatro jovens dançarinos e também músicos.”
Sobre as influências, ele diz que muito aprendeu tanto com Sílvio
Romero, Câmara Cascudo e Pereira da Costa, entre outros autores, quanto
com Mestre Olímpio Boneca, do Crato (CE), Mestre Kenura, de São Paulo,
com o Capitão Pereira e com Mateus Guariba, do Recife, artistas populares
que povoam o seu imaginário pessoal e que certamente continuam
inspirando o seu Ideário, por meio de idéias para novos espetáculos e CDs,
com os quais ele procura traduzir a “alma coletiva” do Brasil, como ressalta.
Nóbrega lembra que viveu um grande conflito entre ser músico ou
dançarino. “A minha exigência comigo mesmo é muito grande. Eu tentei
resolver meu problema de ser ou sico ou dançarino, mas vi que não
conseguia. É um conflito que se resolve lentamente, mas se resolve”, salienta,
apontando a sua completa inaptidão para se dedicar somente a uma dessas
duas formas de manifestação artística. “Se eu me dedicasse somente à dança,
provavelmente chegaria mais longe de onde estou em relação a minha dança.
Como ela é um dos componentes de meus espetáculos...”
Ele exercita-se na dança diariamente, das 18h30min às 20h, em sua
própria casa; de manhã, pratica violino e canto. Ressalta que poderia ser
112
Rosane Almeida, sua esposa.
222
melhor dançarino ou melhor violinista se dedicasse mais tempo a qualquer uma
dessas atividades artísticas.
Se eu praticasse dança também pela manhã, ao lado do que
pratico à noite, provavelmente minha dança iria se desenvolver mais
rapidamente. A mesma coisa em relação ao violino. Se estudasse
violino também à noite, somando ao trabalho realizado na manhã, me
sentiria um violinista melhor. Eu poderia fazer essa opção: ou ser
apenas um cantor ou um compositor, sem nenhum demérito nesse
“apenas”. Mas sinto que isso não me deixaria quieto, nem feliz, e eu
perderia talvez a minha função como artista. Então o que preciso fazer
é otimizar, tentar ter uma consciência o mais possível rica e
contundente para buscar no pouco – mas não tão pouco – que tenho da
dança o que tenho de resolver dentro de mim. Qual é a dança que
tenho de fazer, qual é a síntese que tenho de fazer... O violino é um
instrumento maravilhoso, que requer técnica. Se eu tivesse tempo
estudaria as partitas de Bach, um concerto de Mozart...
O fato de tocar rabeca permite que ele amplie o seu repertório com base
nos gêneros musicais populares.
Com a rabeca posso tocar frevos, choros, baiões, ou seja,
música que é compatível com a minha visão artística, com o meu
universo de trabalho. Cada espetáculo é uma nova síntese que faço de
tudo isso. Eu poderia dizer que é uma síntese que talvez tenha uma
coisa comum em todos os espetáculos: uma pessoa que busca através
de sua arte uma identidade criadora, que eu identifico nesse momento
como a identidade brasileira. Meus espetáculos procuram traduzir um
certo espírito brasileiro, em que eu possa afirmar e ao mesmo tempo
negar a idéia de nacionalismo. Quer dizer: quando eu afirmo que está
implícita a idéia de nacionalismo, também uma busca de transgredir
os limites do nacionalismo. O fim do meu trabalho não é uma idéia
nacional de arte. Calha de coincidir, passa por isso. Mas acho que
estão em jogo elementos que ainda acho superiores. Não sei se
consigo responder à altura a esses elementos, mas não me satisfaz
aprisionar o meu trabalho dentro de uma camisa-de-força de que é uma
obra brasileira que procura afirmar o Brasil... Procura também, mas não
é só isso.
Tonheta
Nóbrega conta que em 1976, paralelamente a seu trabalho com o
Quinteto Armorial, estreou um espetáculo em que já se expressava como
223
dançarino, cantor e músico, que foi a Bandeira do Divino, no Recife. A figura de
Tonheta era o epicentro sobre o qual ele aglutinava o canto, a dança, a música,
a farsa etc. Nessa perspectiva foi criando A arte da cantoria, o Maracatu
Misterioso e depois outro espetáculo que apresentou no Rio de Janeiro,
chamado Mateus presepeiro. Sua perspectiva como criador, conta ele, era
sobretudo Tonheta, espécie de síntese por meio da qual ele reunia essas
diversas manifestações artísticas.
Tonheta é um personagem de temperamento dionisíaco,
farsesco, grotesco. Mas vi que eu tinha também uma natureza que
ficaria de fora da arte, que é minha natureza apolínea, vamos chamar
assim. E se eu me dedicasse só ao Tonheta, essa outra figura, ou seja,
eu mesmo, querendo cantar, dançar ou representar sem ser
farsescamente, ficaria de fora do palco. Você : os grandes cômicos,
todos eles, se dedicam a um único personagem cômico. Por exemplo,
entre brasileiros e estrangeiros: Oscarito, Grande Othelo, Ronald
Golias, “Didi Mocó” (Renato Aragão), Chaves, Totó, Buster Keaton,
Cantinflas, os palhaços... O palhaço raramente é um ator sem ser
palhaço. Ele não divide a sua atividade de artista, como Carequinha.
Isso começou a gerar um conflito em mim porque senti que eu não era
uma figura que pertencia completamente ao universo de Tonheta. Se
eu fosse, provavelmente nem estaria conversando agora, dessa
maneira. Não sei se eu fosse somente um personagem cômico se teria
necessidade de me explorar, refletir, pensar. Alguma coisa que bulia
comigo dizia: não sou o Tonheta. Para meu bem e para meu mal.
Houve um momento em que pensei que eu era só o Tonheta. Foi
quando criamos Brincante e Segundas histórias, que são dois
espetáculos em que se conta, digamos, uma epopéia “bufônica” desse
personagem. Mas eu tinha a pulsação dentro de mim do elemento
não-Tonheta, então criei três outros personagens, que foram o Mestre
Sidurino. Este nome eu tomo de empréstimo de Guimarães Rosa.
Sidurino é um nome muito bonito que encontrei certa vez em Grande
sertão: veredas, quando a certa altura Riobaldo, ao liderar o bando, faz
uma revista dos jagunços que tomavam parte e comenta uma coisinha
de cada um. fala: Sidurino, que alegrava a gente. Achei muito bonito
esse nome e o papel dele no bando. Então criei uma dupla de
contadores de histórias, que são João Sidurino e Rosalina de Jesus,
interpretada por Rosane Almeida, os quais contam as aventuras de
Tonheta. Esse personagem, o Mestre Sidurino, que é um mestre-de-
cerimônias, um homem sério, se contrapõe ao Tonheta. Consegui
assim dar vazão a essa minha necessidade de ir para um lado e para o
outro em meus espetáculos.
224
Ao perceber que já dera sua resposta ao apelo de Tonheta, personagem
que criou com a participação de Bráulio Tavares,
113
brega conta que sentiu
vontade de voltar para a música, independentemente de seu personagem. Foi
quando criou Na pancada do ganzá, seu primeiro CD que registra sua primeira
parceria com Wilson Freire. “Mas sempre encontrei um modo de botar o
Tonheta lá, por meio de um coco-de-embolada ou da interpretação de um
romance, como o Romance de Clara menina com Dom Carlos de Alencar”,
acentua. “Ou seja, nos espetáculos, o ‘espírito tonhetânico’, o espírito farsesco,
está presente, ainda que dissimulado.”
Parcerias
Bráulio Tavares trabalhou com brega nos textos de Brincante e
Segundas histórias. “É um capítulo à parte, porque eu tinha a concepção de um
personagem, o Tonheta, que se chamava Mateus no princípio”, conta Nóbrega.
O novo nome representa a mistura de seu apelido, Toinho, com Faceta,
personagem popular do pastoril. “Foi um trabalho de muito jogo entre mim e
Bráulio. Foram dois espetáculos, com muitos textos, representando três anos
de muita ‘refrega’ criadora no bom sentido.”
Ao longo das últimas apresentações de Segundas histórias, Nóbrega
deu início à parceria com Wilson Freire, a quem conhecia algum tempo.
Como primeiro resultado, a canção Na pancada do ganzá, que deu nome ao
CD e ao espetáculo em que o artista apresentava músicas que “já havia
cantado aqui, acolá”, como conta.
113
Ver capítulo 2.2.2.
225
Nos cinco CDs estudados aqui, apenas duas canções com letras
de Nóbrega (Desassombrado e Mateus Embaixador). Não é que ele precise
necessariamente de alguém para escrever as letras, mas como já tem os
afazeres de dançar, construir o espetáculo e ser o intérprete, seria mais uma
importante tarefa que teria de assumir. “E vi que encontrei parceiros que
poderiam resolver a questão das letras melhor do que eu e com os quais eu
tenho uma identidade muito grande, que são Bráulio e Wilson”, destaca.
Nóbrega fala um pouco sobre a idéia dos outros espetáculos, além de
Na pancada do ganzá, cujos repertórios são aqui estudados:
Em Madeira que cupim não rói, o nome diz a que veio o
espetáculo. Ali eu já criei um pouco do Marco do meio-dia, porque
apresentava o índio, com Chegança, e o negro, com Olodumaré, por
exemplo. Pernambuco falando para o mundo foi um espetáculo que eu
quis criar para mostrar um pouco o universo do carnaval, peguei umas
músicas que eu tinha gravado. Com O marco do meio-dia, criei um
espetáculo em que eu falava dos quinhentos anos do descobrimento do
Brasil. Procurei mostrar figuras do Brasil que eu admiro: Aleijadinho,
Zumbi, Ariano, Arthur Bispo do Rosário, Mané Garrincha. chega o
Lunário perpétuo, que é o nome de um livrinho. No Lunário, eu nem
gloso o livro. Não tenho nenhuma canção de um tema tirado do livro. O
espírito do livro é que está presente, mas não é uma tradução linear,
literal. Não musiquei o livro, mas me inspirei nele, na sua
representação simbólica e metafórica.
Com referência ao último CD e espetáculo analisado aqui, Nóbrega
ressalta que não houve o aprisionamento de um tema como em O marco do
meio-dia. Para ele, uma canção como O rei e o palhaço talvez ficasse
deslocada no Marco.
Neste sentido, o Lunário foi mais fácil porque pôde reunir
canções diversas. O Carrossel do destino, por exemplo, não tem nada a
ver com O rei e o palhaço, nem com o Romance de Riobaldo e
Diadorim. Fazem parte de uma pátria chamada Lunário perpétuo. A
única música que eu quis fazer com maior apuro foi justamente o
Lunário, e foi muito difícil de fazer, construída a três. Comecei com
Wilson. Depois chamei Bráulio. Nesse caso eu não fiquei só como pivô;
trabalhamos os três conjuntamente.
226
Cada espetáculo, portanto, apresenta um tema específico ou glosa um
mote, como Nóbrega ressalta. Em Nove de frevereiro, previsto para estrear no
início de 2006, ele escolheu o frevo.
Nove de fevereiro é o dia do frevo, comemorado em Recife,
apesar de na folhinha estar 14 de setembro. É um trabalho pouco
autoral, no sentido das músicas. Eu me apresento sobretudo como
recriador da dança do frevo, introduzindo o violino traduzindo esse
gênero, dialogando com orquestra de metais, com regional de cordas. É
o frevo em várias modalidades. De cada disco anterior, duas obras
no máximo, para dar vez mesmo aos compositores que criaram esse
monumento nosso. O frevo em relação ao Nordeste tem a mesma
dimensão que o choro em relação ao Brasil. Assim como temos
Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Luís Americano, temos Capiba,
Nelson Ferreira e tantos outros.
Independentemente do tema, todos os espetáculos de Nóbrega têm uma
unidade.
Em todos eles eu sempre canto, danço e toco rabeca, ou seja,
busco me explorar. Provavelmente presto um serviço no sentido de
mostrar: Olha que gênero musical maravilhoso que nós temos e não
conseguimos ver direito!” Estou prestando um serviço ao Brasil. Ao
mesmo tempo, acho que uma coisa no frevo que transcende os
limites do Brasil na dança. Por exemplo: a comunhão de um corpo que
dança com o ritmo, que é uma ausência na dança contemporânea.
certos elementos que fazem uma ponte com a música popular atrás,
que a gente não vê. Às vezes, nessa transliteração, na recriação da
cultura popular, a gente se prende a categorias muito pequenas. Então
cada espetáculo obedece a essa forma, eles são pequenos reisados. A
forma é aquela. Se você observar direito, são também aqueles
elementos que estão na origem do teatro grego, do teatro hindu,
africano, dos teatros mais próximos do que parece ter sido a origem do
teatro, porque o teatro burguês ocidental ficou muito refém da palavra.
E quando ficou muito refém da palavra começou a perder elementos
que faziam parte do caráter de festa do teatro, que era a comunhão
com a dança... Porque se teatro não for assim, vira apenas uma obra
de ficção colocada no palco, representada. E não é isso. O teatro
tem outros elementos que o diferenciam do romance, das obras
literárias. O teatro de Molière, por exemplo, é muito bom você ler, mas
ele era muito mais rico, assim como o de Sófocles. Era música, dança,
aquela pulsação de vida que dialoga com o texto.
A dança é primazia em outro espetáculo que ele vem elaborando. “Há
uma aventura minha com a dança que acho que pode ser mais bem resolvida.
É algo que tenho mostrado na aula-espetáculo e no Figural, especialmente”,
227
conta. “Para esse novo espetáculo pedi ajuda não a Rosane como a
Eugênia, minha filha, e Luciano, que o dois dançarinos que participaram do
Marco do meio-dia e estão levando a dança um pouco mais à frente.”
No entender de Nóbrega, a dança brasileira está num patamar de
realização inferior ao dos criadores no campo da literatura, do cinema e da
música.
Em outras palavras: a gente ainda não tem uma dança com o
mesmo patamar de expressão brasileira que teve, por exemplo, a obra
de Guimarães Rosa na literatura, ou Deus e o Diabo na terra do sol, de
Glauber Rocha, no cinema, ou de Francisco Brennand ou Cândido
Portinari nas artes plásticas. A gente não tem uma dança brasileira que
contenha nela a mesma força que contêm essas obras, que expresse o
Brasil na mesma dimensão. Esse trajeto a gente ainda não fez. A gente
tem uma dança popular rica, de elementos nutrientes maravilhosos, e
uma dança ainda muito subserviente ao modelo europeu da dança
ocidental, que é a dança clássica, a dança contemporânea. Mas ainda
não chegamos no estágio de uma dança mais próxima do nosso
temperamento. Eu não me sinto ainda capaz de coreografar um conto
de Guimarães Rosa, com o léxico, com o conhecimento que tenho e
com o que pressinto que a dança brasileira um dia vai ter de fazer.
Quando tento fazer, sinto que faço uma coisa menor, como se eu
tivesse ainda de percorrer um caminho um pouco menos ousado, mas
ainda para marcar os elementos que acho que fazem parte de uma
dança brasileira. É como se a dança brasileira estivesse um pouco
atrasada. Falta uma história com a dança, uma sedimentação das
coisas. Parece que a dança ficou um pouco para trás. Parece que na
história da arte a dança sempre vem um pouco atrás. A música e a
literatura sempre chegaram na frente.
A dedicação e a preocupação de Nóbrega com relação à dança m
como um de seus resultados a série Danças brasileiras, do Canal Futura (TV a
cabo), em que ele e Rosane apresentam diversas formas de dança no Brasil,
buscando “codificar os passos”, como ele diz, de modo a se elaborar um
repertório coreográfico com base nessas danças populares.
228
Deslocamento da sílaba tônica no canto
Com relação ao deslocamento da sílaba tônica no canto, que é comum
na música nordestina
114
e é verificado no trabalho de Nóbrega, como
exemplificado na Análise do corpus, o artista diz que procura atenuar o acento
musical dando primazia à compreensão da palavra. Isto leva à entonação de
palavras, no canto, com duas acentuações. Por exemplo: “O meu *lúnário
perpétuo”; “Já *enfrêntôu intempéries”; “O meu *chápéu”; “O meu *rêinádo”. É
algo consciente, segundo ele, porque momentos em que não se encontra
outra palavra ideal, então a prosódia real é deslocada. Mais do que a licença
poética, é a licença musical. “Acho que, na minha execução, eu poderia ser um
pouco mais atencioso no sentido de conjugar melodia e letra. É que quando
você grava um CD, esno momento inicial de fixação das letras”, diz o artista.
“Então você está num momento ainda muito imaturo, num primeiro instante de
síntese. letras dos meus discos que hoje eu canto um pouco melhor”,
salienta.
Uma vez que o repertório é caracterizado pela musicalidade nordestina,
Nóbrega e seus parceiros obedecem ao primado da estrofe.
Todas as minhas canções são de base estrófica. Como você
repete uma mesma toada para seis ou sete versos, então é difícil ter um
desempenho ótimo no sentido de casar sílaba tônica das palavras com
acento musical num corpo de seis, sete estrofes. Você vai ter de
encontrar seis ou sete vezes a palavra certa para aquela mesma sílaba
tônica, musicalmente falando. Quando é uma toada que se repete ao
longo de três, quatro ou cinco estrofes, então fica mais fácil.
Nóbrega antecipa que pretende fazer, futuramente, um espetáculo
apresentando a comunhão de formas e gêneros presentes na poética popular
114
Assunto já abordado no capítulo 2.2.2.
229
em seu cancioneiro. Quanto a esses gêneros, ele se utiliza muito da carretilha,
que é uma estrofe em que o primeiro verso tem quatro sílabas e os três
restantes têm sete, rimando o segundo com o terceiro e o último sempre
terminando em -ar. É o caso de Desassombrado (“Ói, meus senhores, / vou
contar minha odisséia / viajei no da idéia / pra tecer este cantar”), Viagem
maravilhosa (“Este país / tem tesouros, tem arcanos, / tem mais de trinta mil
anos / de histórias pra contar”) e Zumbi (“Zumbi, um negro, / respirando
rebeldia, / foge pra mata um dia / à procura do Lugar”). Essas canções têm
essa configuração porque é um gênero muito utilizado pelos emboladores, os
quais o chamam de embolada de carretilha.
Na canção Lunário perpétuo, propomos uma dissolução da
septilha. quatro versos de sete sílabas, dois de onze e mais um de
sete. Rimamos o segundo, o quarto e o sétimo: “Meu Lunário tem
antigas / alquimias de almanaques. / Já enfrentou intempéries, / roubos,
incêndios e saques. / Dos homens, das traças, das garras, das eras, /
carrega segredos, decifra quimeras, / venceu todos os ataques”. Isso é
uma estrofe recriada. Foi uma coisa que eu disse a meus parceiros:
“Agora vamos transgredir a estrofe.” Só que a estrofe é uma coisa muito
bonita pra se trabalhar. Então mantemos a estrutura da estrofe, mas ao
mesmo tempo buscando outras formas, outros ritmos.
O primeiro estágio, conta ele, é criar canções em cima de formas e
gêneros poéticos existentes, mas com temas e assuntos que não aqueles
habitualmente utilizados, até chegar a usar outra ordem harmônica nas toadas,
não só a melodia modal.
Por exemplo: o galope-à-beira-mar e o martelo agalopado são
puramente modais, não saem daquela posição de Mi Maior ou Fá#
Maior. Quando escrevi o Galope beira-mar para Bispo do Rosário ou O
Vaqueiro e o pescador, propus uma organização harmônica um pouco
mais rica. Não muito sofisticada, porque eu não quis entrar em outras
paragens. Porque se eu entro numa sofisticação harmônica muito
grande, termino por neutralizar um pouco, penso, o sentido do texto,
que é uma coisa muito sábia utilizada pelos cantadores. Eles usam, por
exemplo: “Quando as festas do céu vão começando / e o trovão vai
bramindo nos espaços. / As correntes quais longos estilhaços / de metal
em faíscas vão chispando. / Toda a ira do céu vai se acalmando / Todo
230
o ar fica logo iluminado. / E se então eu agarro descansado / na viola
que pouco estava muda / Treme o sol, treme a terra, o tempo muda,
/ e eu cantando martelo agalopado”. Se eu fosse botar aqui uma
harmonia muito complexa, não daria certo. Perderia completamente a
idéia melódica original. Então é a sabedoria dos cantadores que,
conforme a canção que se está fazendo, tem-se que respeitar. O
martelo agalopado (tatatá, tatatá, tatatatá) até se quebra um pouco na
hora em que os poetas fazem a cantoria, mas o galope-à-beira-mar é
mais difícil de quebrar: “Nasci no sertão desfrutando as virtudes / dos
tempos de inverno, fartura e bonança. / Depois veio a seca, fugiu-me a
esperança / diante de cenas cruéis e tão rudes.”
115
Você transgredir
uma forma dessas é complicado.
Apesar de seus longos anos de estudo e observação, Nóbrega diz que
improvisa muito pouco ao versejar, uma sextilha no máximo. É preciso ter
muita prática, como salienta. Outra coisa difícil, no seu entender, é colocar uma
palavra proparoxítona no corpo, no meio da música composta em forma
estrófica. Exemplo disso é a substituição de “show” por “espetáculo” em Meu
foguete brasileiro,
116
que se deve à inspiração de Ariano Suassuna.
Estou muito consciente da influência de Ariano em meu trabalho.
Procuro, dentro dela, respeitar aquilo que acho que tem de ser
respeitado e prescindir daquilo que acho que são os excessos de
Ariano. Na questão da língua, concordo com ele. Acho que a palavra
espetáculo é mais adequada ao que fazemos. Show é associado a
música, em geral. O que eu faço é um espetáculo.
Além da escolha por uma palavra da língua portuguesa, portanto, trata-
se de um conceito estético – tanto de Nóbrega quanto de Ariano.
115
Versos de O vaqueiro e o pescador, do repertório de Madeira que cupim não rói. Ver letra
completa no Anexo 1.2.
116
Como visto nos capítulos 2.2.2 e 4.2.5.
231
Linhagem
Nóbrega diz seguir a linhagem dos grandes artistas populares, a quem
devota profundo respeito e admiração, considerando-se um “franco-
aprendedor” dos seus ensinamentos.
Com relação ao fato de ele próprio ser tachado de artista popular,
discorda desse conceito.
Às vezes as pessoas até dizem, de modo elogioso, que sou o
maior artista popular brasileiro. Eu acho um conceito muito incorreto.
Primeiro porque não me acho um artista popular. E depois não acho
que existiria o “maior” artista popular. A gente tem sempre categorias
para encaixar as pessoas, mas não tem categorias referentes à própria
especificidade do trabalho. Então o meu trabalho fica considerado de
um artista regional ou então não fica categorizado, porque como o meu
trabalho não tem certos elementos que tem a MPB, teria de ser
excluído dela. No campo da música, do texto especificamente musical,
eu uso instrumentos que não batem com aquilo que se chama de
sonoridade da MPB. Eu não uso guitarra, sintetizador, um tipo de
desenvolvimento harmônico vindo um pouco do universo de Tom
Jobim, João Gilberto, passando por essa escola... Então isso não me
referenda como artista da MPB. Ao mesmo tempo, não me acho um
artista regional porque o artista regional, no meu entender, é aquele que
se utiliza da temática regional, das formas regionais e acentua esses
elementos. Então quando proponho, por exemplo, em Chegança: “Sou
pataxó, / sou xavante, cariri, / ianomâmi, sou tupi / guarani, sou carajá”.
Um grupo de caboclinhos não desfilaria ao som de uma música com
uma estrutura um tanto sofisticada como essa. Sem falar na letra
extensa. Onde é que você vai encontrar na música regional aquele
universo com o qual trabalho nessa canção? Onde é que você vai
encontrar em Canudos o elemento que a gente poderia dizer que é de
música regional? Se existe, esse elemento é o mesmo que está no
samba de Paulinho da Viola, ou em alguma canção de Chico Buarque
ou de Caetano Veloso.
O compositor nordestino diz que o samba é uma referência popular para
Paulinho da Viola e para Chico Buarque assim como o maracatu rural é para
ele: “Paulinho utiliza inclusive o instrumental tradicional do samba, nem
transgride. Usa cavaquinho, violão, não usa guitarra. Ele recria aquele
universo. E eu recrio o maracatu rural.” Assim, Nóbrega diz que fica num
232
caminho não categorizado. “Então é muito mais cômodo para as pessoas me
categorizarem como regional, mas se você olhar direitinho, é uma coisa de
uma sofisticação até grande...”
Como exemplo de sofisticação musical, cite-se o tema instrumental
Rasga do Nordeste, gravado inicialmente pelo Quinteto Armorial em Do
romance ao galope nordestino e que depois aparece em Madeira que cupim
não i. Ele apresenta um caráter hindu na primeira parte, que parece um
pouco com os ragas
117
indianos, prosseguindo num andamento bastante
movido e dançante, ao som da rabeca. “E nós usamos muito essa expressão
em Pernambuco: rasga, rasgou, para algo meio contundente.”
Outro exemplo é lembrado pelo próprio Nóbrega, que cita um trecho do
Romance de Riobaldo e Diadorim, parceria sua com Wilson Freire: “Quando eu
vi aqueles olhos, / verdes como nenhum pasto, / cortantes palhas de cana, / de
lembrá-los não me gasto. / Desejei não fossem embora, / e deles nunca me
afasto.”
Veja a sofisticação que está ali. A canção tem o ritmo específico
dos caboclinhos, que é o perré: uma melodia tocada por uma gaita
abastece uma determinada dança. Nem melodia de gaita nem dança eu
uso nessa música. Eu uso uma toada que não é popular; é uma toada
harmonicamente de uma certa complexidade; uso um instrumental com
várias vozes, incluindo saxofone, clarinete. O tema parte de uma
história popular chamada Da donzela guerreira, utilizada por Guimarães
Rosa no Grande sertão: veredas. Ele recria essa história no romance
através da figura de Diadorim. Eu retomo esse tema e recrio uma
canção. Veja o périplo disso. Quem não conhece a história não vai
compreender. Então chamar isso de música regional? É
incompreensível um negócio desses. Se eu me incomodo com isso? Eu
me incomodo. Pelo seguinte: porque me coloca num patamar, num
registro de categorias que é mal compreendido, que é subestimado e
que é apequenado, como a palavra folclore. Se você disser: “Isso é
uma coisa folclórica”, você está diminuindo; e se disser: “Isso é uma
música regional”, está diminuindo também. Mas se a música regional
fosse vista dentro de outra concepção, de outro entendimento, eu não
117
Raga é a fórmula melódica da música hindu.
233
me incomodaria. Então há certas coisas que parecem dar uma nobreza:
“faz parte da MPB”. Parece que nobreza, status. É como se diz:
“Ele faz aula de clown. Na verdade, ele está aprendendo técnica de
palhaço de circo!
Em seu texto musical, ou em sua expressão lingüístico-poético-musical,
termos que serviram de mote para o trabalho aqui empreendido, ou glosado,
Nóbrega procura guardar certos elementos do que chama de uma tradição
popular, mas ao mesmo tempo buscando recriá-los dentro de uma dimensão
que não é apenas tomar de empréstimo esses elementos, plasmando-os pura
e simplesmente naquilo que se recria.
Para eu recriar um martelo agalopado, uma melodia, eu tenho
primeiro que entender as constantes de uma toada que anima o martelo
agalopado. Não basta simplesmente pegar a forma e recriar isso sem
uma compreensão de como aquilo funciona, sem um estudo, digamos,
um pouco vertical para minha recriação. A recriação para mim depende
de uma compreensão muito profunda de como aquilo se processa.
Vamos tomar, por exemplo, o choro. Para você improvisar dentro do
choro, você pode obedecer a uma tradição trazida por aqueles que
criaram o choro, mas você também pode improvisar um pouco em
sintonia com o jazz, que tem outra configuração. Você pode pegar os
standards do jazz e os aproximar da improvisação de uma determinada
melodia brasileira. São dois caminhos diferentes. Não vou valorar. Mas
o choro propõe um desenvolvimento de improvisação que lhe é
peculiar, que tem suas leis, sua compreensão, sua história, enquanto
que o jazz propõe uma improvisação que vai numa outra direção. Eu
optei sempre por ouvir mais o desenvolvimento dessas formas. Quero
ouvir o máximo para explorá-las ao máximo. Não quero tomar nada de
empréstimo sem ter esgotado as possibilidades daquilo, sem exaurir
aquilo. Porque seu eu for até as últimas conseqüências, vão me
encontrar num patamar lá na frente.
Nóbrega diz que tenta descobrir dentro desse universo musical onde é
que pode transgredir, porque é transgredindo que chegará a ampliar os
significados desse universo.
Para mim, transgredir é ampliar os significados. Então, quanto
mais significados eu puder dar à canção que faço, mais longe estarei
indo. Essa transgressão pode chegar um dia até a dissolução da
estrofe. Não sei onde ela pode chegar. Mas quero transgredir e ao
mesmo tempo conservar dentro dela aqueles elementos que eu acho
que são importantes para dignificar uma canção que seja compreendida
234
no momento em que eu estiver cantando. Porque a minha canção é
isso: quero que as pessoas entendam. Às vezes vou a um pouco
mais longe do que deveria ir. Por exemplo: uma canção como o
Romance de Riobaldo e Diadorim. Mesmo a Chegança. São canções
que para você entender melhor tem de ter uma predisposição para a
escuta. Às vezes uma introdução, falada na hora, conta um pouco a
história de Riobaldo. Eu nunca poderia colocar uma canção daquelas
num espetáculo sobre o carnaval, mas em compensação coloco a
Mulher peixão, de Luiz de França. A canção, para mim, tem essa
função: ser compreendida por meio do conjunto da melodia e da
interpretação. Pode ser que eu não transmita a compreensão total de
toda a letra de Riobaldo, mas em alguma instância do cidadão que está
ouvindo eu tenho que tocar, tenho que mostrar para que existe essa
canção.
Juntamente com essa transgressão, ele diz que busca ampliar o seu
campo semântico no sentido das letras e do universo lingüístico com que
trabalha –, a sua consciência musical, os recursos da voz. “É todo um conjunto
de fatores que procuro explorar ao ximo, dentro dos meus limites de talento
e tempo”, destaca. “Em Riobaldo, um agudo que faço, durante um aboio,
que pode ficar muito bonito, mas se eu estiver vindo de quatro ou cinco
espetáculos, não vai ficar tão bom assim.”
A maior exigência que brega tem num espetáculo é a presença do
intérprete inteiro dominando seu instrumento, seu corpo. “Para mim, o
momento do espetáculo é o momento maior do que eu faço. É o momento em
que eu me recrio. Esse é o momento maior da criação”, assegura.
Influências
Propôs-se a Nóbrega que falasse sobre algumas personalidades que
exerceram ou exercem algum tipo de influência em sua trajetória artística e
pessoal.
235
Capitão Antônio Pereira, do Boi Misterioso de Afogados
(homenageado em Sambada dos Mestres, a ele é dedicada a canção
Vou-me embora)
Esse foi o começador de tudo. Foi o primeiro artista popular que
conheci, com quem convivi, e tenho a ele uma gratidão imensa. Era
meu amigo e morreu com 92 anos, no dia do meu aniversário.
Alfaiate (além de ser citado em Sambada dos Mestres, a ele é
dedicada a canção Chegança)
Três artistas populares estiveram muito presentes nos primeiros anos
de meu conhecimento da cultura popular. Foram o Capitão Antônio
Pereira (Capitão Boca Mole), Alfaiate e Nascimento do Passo.
Alfaiate é o fundador do Caboclinhos Sete Flechas. Eu considero esse
pessoal quase que como marcos da fundamentação do Brasil. Muito
dos fundamentos do Brasil está nas vozes desses homens. Ao longo
dos 25 anos que conheço Alfaiate, o visitei em pelo menos 15
lugares. Porque ele morava aqui, acolá, não tinha dinheiro para pagar a
casinha, saía. A casa dele funciona como sede do próprio folguedo.
Ele ensaia na frente de casa. Você chega na casa dele, está escrito na
frente: “Caboclinhos Sete Flechas...” e a data de fundação. É o lugar
onde ele vive com a família, costura os adereços, os cocares dos
caboclinhos. Em geral os caboclinhos ensaiam a partir de setembro nos
domingos à noite. Como costumo ficar no Recife de dezembro até o
carnaval, vou sempre lá nesse período.
Nascimento do Passo (homenageado com um frevo com seu próprio
nome)
Acho que foi o maior codificador da dança popular brasileira através do
frevo. Porque essas danças ainda não foram codificadas. Veja os
caboclinhos e o cavalo-marinho. Raros são os passos que têm nomes.
No frevo uma codificação, uma nomenclatura, uma pequena
pedagogia. E foi Nascimento do Passo quem criou.
Mestre Salustiano (citado em Sambada dos Mestres; a ele é dedicada
esta canção)
Foi dos últimos que vim a conhecer, na década de 80, porque ele era
do meio rural e mudou-se para Recife. Morava em Aliança, na Zona da
Mata. Chegou num momento melhor. Quando comecei com o Quinteto
Armorial, a cultura popular não tinha a credibilidade, a compreensão de
que começa a desfrutar hoje. Se ela ainda é mal ou pouco
compreendida, na época do quinteto era absolutamente ignorada.
Quando Mestre Salustiano apareceu, começou-se a ter uma visão
diferente de cultura popular. O quinteto tinha dez anos, Ariano foi
secretário de cultura do Estado de Pernambuco e o convidou para ser
assessor. Então Salustiano começou a ter um olhar um pouco mais
amplo. Passou a ter um envolvimento não com a cultura popular.
Sobretudo a geração que veio depois dele agregou outros elementos
que vieram a fortalecer aquela tradição que vinha com ele, como é o
caso de Pedrinho Salustiano, seu filho, que conviveu com a gente, com
outras pessoas. Isso veio trazer outros aportes que fizeram com que ele
ampliasse o seu universo.
236
Antônio José Madureira
É o compositor que, para mim, é a referência maior no que eu escrevo.
Como músico, tenho nele uma de minhas grandes referências. Foi um
parceiro durante o quinteto, embora depois não tenhamos feito mais
parceria. Devoto a ele um respeito muito grande e um crédito de mestre
para mim no campo da música.
Bráulio Tavares
É um poeta irmão. Como ele mesmo diz, às vezes também é um
psicografador das minhas idéias. É genial.
Wilson Freire
Tanto ele como Bráulio são pessoas sem as quais não existiria o meu
cancioneiro. O meu cancioneiro existe porque eu encontrei esses
dois parceiros. A minha música instrumental, a minha dança existiriam.
Mas o meu cancioneiro, não. Eles são figuras absolutamente
fundamentais e vitais.
Ariano
É o mestre maior. Da arte e do mundo.
Rosane, Gabriel e Maria Eugênia
Eu tive a graça de ter na minha família pessoas com as quais eu
compartilho não só afetos, mas idéias. Sou uma pessoa de muitos
conhecidos, mas muito poucos amigos. Primeiro porque meu trabalho
exige muito tempo, é um amante muito forte. Então para suprir a
ausência de amigos, eu tenho a sorte de ter em casa pessoas com as
quais um encontro. Eu tenho um encontro com meus filhos e com
minha mulher que não é no campo afetivo. A gente compartilha
idéias.
Para Nóbrega, todos esses são, absolutamente, pedras do seu céu e
estrelas do seu chão, aproveitando a imagem que o próprio artista criou em
texto que apresenta no espetáculo Lunário perpétuo. Como diz, são poetas,
homenageados e homenageadores em tudo o que ele faz.
E como o artista e cidadão Antonio Carlos Nóbrega de Almeida encontra
o equilíbrio entre o rei e o palhaço, nessa dicotomia tão cara a Ariano
Suassuna?
237
A cada momento de minha vida eu procuro equilibrar o rei e o
palhaço dentro de mim. É uma luta que tenho, acho que todos nós
temos. Eu não sei o grau de intensidade que cada um tem. Eu procuro
fazer com que esse grau de intensidade me cada vez menos
ansiedade e um pouco mais de prazer em conviver com os dois, em
saber qual a dimensão de um e de outro, para que a vida seja cada vez
mais uma aventura – como é – agradável, bonita e que valha a pena.
238
Anexo 3 – Glossário
Alfaia: tambor utilizado no maracatu, gênero musical cultivado
especialmente em Pernambuco. Pode apresentar mais de um tamanho, de
modo a explorar regiões mais e menos graves do som.
Banda cabaçal: trata-se de um conjunto instrumental de percussão e
sopro, tocando marchas, galopes, modinhas, rodas e valsas pelos sertões de
Pernambuco, Paraíba e Ceará, segundo Câmara Cascudo. “Constituem um
cabaçal dois zabumbas, espécie de bombos ou tambores, e dois pifes,
soprados verticalmente (gaita) ou horizontalmente” (s.d.: 202).
Brincante: aquele que brinca; brincador; participante de folguedo ou
auto popular, ou de qualquer folia, como o carnaval. São os artistas populares
ou folgazões.
Caboclinhos: ou cabocolinhos, grupos fantasiados de indígenas que, ao
som de pequenas flautas (pífanos ou pífaros), percorrem as ruas durante o
carnaval em cidades do Nordeste do Brasil (Câmara Cascudo, s.d.),
especialmente Pernambuco, também utilizando as preacas, uma espécie de
arco-e-flecha percutido seguidamente pelos brincantes. Os caboclinhos têm
três toques: de perré (lento, cadenciado), baiano (mais movido) e de guerra
(mais rápido, com passos mais difíceis e alguns movimentos no chão).
Cavalo-marinho: como o folguedo do bumba-meu-boi é conhecido em
Pernambuco; personagem do folguedo, representado por um simulacro de
cavalo montado numa armação sobre a qual se movimenta um homem; dança
desse personagem cujos passos imitam movimentos de um cavalo.
Coqueiro (ou coquista): “tirador de coco”, ou seja, intérprete do ritmo
musical chamado de coco, no qual normalmente o cantor verseja
acompanhado por um ganzá (espécie de chocalho de folha-de-flandres em
formato cilíndrico) ou um pandeiro. Esse ritmo é muito conhecido e praticado
especialmente no Nordeste brasileiro.
Ganzá: “Canzá ou caracaxá, espécie de maracá indígena, é um cilindro
de folha-de-flandres, fechado (...). Contém grãos ou seixos, que soam,
agitando-se” (Câmara Cascudo, s.d.: 423).
Guerreiros: “Auto popular no Estado de Alagoas. Pertence ao ciclo do
reisado, aparecendo pela mesma época” (Câmara Cascudo, s.d.: 441) (v.
Reisado).
Maracatu de baque virado: em linhas gerais, “dança em que um bloco
fantasiado, bailando ao som de tambores (alfaias), chocalhos e gonguês,
segue uma mulher, que leva na mão um bastão em cuja extremidade tem uma
239
boneca ricamente enfeitada (a calunga) e executa evoluções coreográficas”
(Houaiss & Villar, 2001). Para mais informações, ver indicações bibliográficas
constantes no capítulo 1.
Maracatu de baque solto: é o maracatu rural, também chamado de
maracatu de trombone. Comum na região da Zona da Mata pernambucana, é
composto pelos guerreiros de lança, que usam fantasias coloridas e fazem
bastante barulho em seus desfiles. Quanto ao gênero musical, foi na
sonoridade do maracatu de baque solto que Nóbrega se inspirou em
composições como Sambada dos Mestres e O rei e o palhaço, em que o coro
repete parte da letra interpretada pelo cantador antes de se ouvir um tema
instrumental bastante movido.
Marimbau: espécie de berimbau de lata tocado com o auxílio de um
pedaço de vidro e uma baqueta. Instrumento característico da sonoridade do
Quinteto Armorial, também pode ser definido como uma espécie de arame
percutido sobre uma base de madeira.
Nau-catarineta: “Xácara [v.] portuguesa de assunto marítimo, narrando
uma travessia no Atlântico em circunstâncias trágicas” (Câmara Cascudo, s.d.:
609).
Reisado: “É denominação erudita para os grupos que cantam na
véspera e dia de Reis (6 de janeiro)” (Câmara Cascudo, s.d.: 774).
Urucungo: “Orucungo, oricungo, uricungo, ricungo, rucungo.
Instrumento de procedência africana, que consiste num arco de madeira, tendo
um arame retesado, passado entre as pontas. Numa das extremidades, ou no
centro do arame, é presa uma pequena cabaça, de forma arredondada, com
uma abertura circular. O som é obtido pela percussão da corda com os dedos
ou com uma vareta ou uma haste de metal; a cabaça funciona como caixa de
ressonância, que o tocador coloca sobre o peito ou a barriga. (...)” (Câmara
Cascudo, s.d.: 895).
Xácara: [v. nau-catarineta] Romance caracteristicamente alegre que se
canta acompanhado por viola.
240
Anexo 4 – Imagens (reproduções de capas de CDs e DVD)
Nas páginas a seguir, as capas de CDs e DVD de Antonio Nóbrega
aparecem reproduzidas conforme a ordem de lançamento:
Na pancada do ganzá (1996);
Madeira que cupim não rói (1997), que traz o subtítulo Na
pancada do ganzá II;
Pernambuco falando para o mundo (1998);
O marco do meio-dia (2000);
Lunário perpétuo (2002) – CD;
Lunário perpétuo (2003) – DVD dirigido por Walter Carvalho.
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