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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
OS TRABALHOS DE AMOR E OUTRAS MANDINGAS
A experiência mágico-religiosa em terreiros de umbanda
KELSON GÉRISON OLIVEIRA CHAVES
NATAL – 2010
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KELSON GÉRISON OLIVEIRA CHAVES
OS TRABALHOS DE AMOR E OUTRAS MANDINGAS
A experiência mágico-religiosa em terreiros de umbanda
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Assunção.
NATAL – 2010
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KELSON GÉRISON OLIVEIRA CHAVES
OS TRABALHOS DE AMOR E OUTRAS MANDINGAS
A experiência mágico-religiosa em terreiros de umbanda
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Assunção.
Aprovado em: ____/ ______/ 2010
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Assunção – Orientador
____________________________________________
Prof. Drª. – Patrícia Birman − UERJ/RJ
Examinadora externa
____________________________________________
Prof. Drª. Eliane Tânia Martins de Freitas − UFRN/RN
Examinadora interna
____________________________________________
Profª. Drª. Maria Lúcia Bastos Alves
Suplente – UFRN/RN
4
RESUMO
O texto que se segue aborda a experiência mágico-religiosa que muitos indivíduos vivenciam
quando vão à busca de resolver seus problemas amorosos, financeiros e de saúde através de
trabalhos realizados por pais e mães-de-santo umbandistas. Os trabalhos de amor, os
trabalhos de destranca e os trabalhos de cura o os ritos mágico-religiosos pelos quais essa
busca se manifesta. O conceito de experiência, entendido como a significância do significado,
foi o principal norteador das reflexões aqui contidas. As pessoas que recorrem aos trabalhos
umbandistas para resolver suas aflições cotidianas vivenciam uma rica experiência mágico-
religiosa onde se entrecruzam inúmeras dimensões. Dentre estas, dediquei-me a olhar a
performance, o saber-fazer e a subjetividade. Cada uma delas deu margem para tratar de uma
gama de outros temas, tais como a corporeidade, a gestualidade, a vocalidade, o
conhecimento do mundo, a ciência, o segredo, as emoções e a moral. A pesquisa etnográfica
aconteceu principalmente nos terreiros de Dona Luiza, Pai Gledson, Pai Salviano e Dona
Terezinha, todos situados na cidade de Limoeiro do Norte, no Ceará.
Palavras-Chave: Trabalhos; experiência mágico-religiosa; performance; saber-fazer;
subjetividade.
5
ABSTRACT
The following text addresses the magical-religious experience carried on by many individuals
when they seek to solve their love, financial and health problems by means of white magic
spells done by “pais-de-santo e mães-de-santo” (saint’s father and saint’s mother) from
umbanda. The rites through which this seek can be detected are free love spells, trouble-
solving spells, and healing spell. The concept of experience, here understood as the thing
which gives sense to the sense, has been the main guiding idea of the reflections here
enclosed. People who seek the umbandista spells as a way of solving their daily afflictions
have the opportunity of living a rich magical-religious experience in which several
dimensions intersect. Among these dimensions I decided to study the performance, the know-
how and the subjetivity. Each one gave rise to the opportunity of studying a range of other
themes, such as the corporeity, the gestuality, vocality, the world knowledge, the science, the
secret, the emotions and the moral. The ethnographic research was carried on in the yards
which are named after Dona Luiza, Pai Gledson, Pai Salviano and Dona Terezinha umbanda,
all of them situated in the town of Limoeiro do Norte, Ceará.
Key words: Spells, magical religious experience, performance, know-how, subjectivity.
6
AGRADECIMENTOS
O produto final dessa pesquisa vai somente com minha assinatura. Porém, nela se
encontra a presença de inúmeras pessoas que ajudaram de diversos modos para seu
“fazimento”. Esses agradecimentos não estão, de nenhum modo, em ordem hierárquica,
porque isso significaria cometer muitas injustiças.
Então agradeço, inicialmente, aos pais e mães-de-santo que fizeram parte dessa
pesquisa, por toda a colaboração, receptividade e ajuda para que esse estudo se desse. São
eles: Dona Luiza, Pai Gledson, Pai Salviano, Dona Terezinha, de Telvina e Dona Leuda.
Agradeço também aos demais membros dos seus terreiros, que foram tão solícitos quanto seus
pais e mães-de-santo, chegando a tornarmo-nos amigos.
Agradeço também às entidades malandro, Tapuia e Pomba Gira, por tornar minhas
noites de pesquisa de campo mais divertidas do que o esperado.
Agradeço às duas professoras que participaram da banca de defesa, Eliane Tânia e
Patrícia Birman. À Birman por ter aceito o convite, e pelas interessantes e pertinentes
sugestões no ato da defesa. À Tânia, por ter contribuído diretamente nos encaminhamentos
dados à pesquisa, com as instigantes discussões levantadas na disciplina de Teoria
Antropológica, e, principalmente, com sua participação em minha pré-qualificação e
qualificação propriamente dita, quando teceu críticas que me fizeram pensar e mudar vários
pontos; pelas leituras que sugeriu e vieram a se tornar muito profícuas e por ter indicado
outros pontos da pesquisa que, em sua análise, eu deveria manter e cultivar.
Ao Luíz Assunção, meu orientador, por inúmeras e variadas coisas. Não tenho
palavras certas nem suficientes para defini-las, nem para dizer da minha empatia. Então,
agradeço pela seriedade profissional, pela experiência com que me auxiliava, pela
compreensão e nível de exigência compatível com cada peculiar fase e momento que eu
passava. Enfim, pela “orientação”, e pela amizade.
Agradeço também à turma do mestrado em Antropologia da UFRN, à turma como um
todo, por ter me adotado como um dos seus, chegando a esquecer, em muitos momentos, que
meu programa de pós-graduação era outro. Quero deixar dito que me senti um nativo.
Também agradeço a Elisa (Palme) e ao Jorge (Tiago), um par de amigos inefáveis.
Agradeço pelas conversas, por me levarem em lugares diversos, e, dentre outras coisas, por
traduzirem certas categorias potiguares que me ajudaram a bem caminhar e sobreviver no sub-
mundo natalense. Agradeço a Elisa, ainda, por me ajudar com outra tradução, esta sendo a do
francês.
7
Agradeço a todos os membros do grupo de orientandos do Luiz, que fizeram parte de
toda essa caminhada. Agradeço pelas nossas discussões, desabafos e debates sobre nossas
pesquisas e aflições. Dentre estes, agradeço especialmente a minha “mãe” graça, que em
nossas reuniões de orientação sempre cuidou para que eu não passasse mal (de fome).
Agradeço ainda ao grande desenhista Marcos Queiroz, por transformar em desenho
meus garranchos, enriquecendo a dissertação. Agradeço também pela amizade sempre sincera
e pelos dias em que caminhou errante em Limoeiro do Norte, “princesa” do Vale do
Jaguaribe, ocasião na qual cativou minha avó Ernestina.
À minha família agradeço, dentre outras coisas, por me proporcionar, mesmo diante
das demais dificuldades, fazer o mestrado sem ter de me preocupar com certas coisinhas que
às vezes tomam bastante nosso tempo, como casa, comida e roupa lavada.
Agradeço muito também a minha namorada, Jeane Leda, por cuidar de mim quando as
atividades de pesquisa me esgotavam ao limite, por compreender tantas ausências alternadas,
e por encher meu estômago de borboletas.
Agradeço também ao núcleo limoeirense que hoje me recebe em Natal, Rafaelly, Tiara
e Maria. Especialmente Maria, pelo afetuoso acolhimento, pela nossa amizade antiga, e pelo
suporte que me dá dia-a-dia.
Ao trio dos insones, formado pelo sergipano Franklin, e pelos cearenses Felipe e
Gledson, pelas aventuras e desventuras compartilhadas na “noiva do sol”, e pelas noitadas
cotidianas de conversa sem rumo.
Por fim, agradeço ao amigo, jornalista e fotógrafo Melquíades Jr., que foi comigo aos
terreiros fazer fotos de qualidade. Ao prof. Gerson Júnior, meu orientador na graduação, que
me infectou com o vírus da paixão pela pesquisa; e a Thais de Freitas Morais, a “ser” mineira
que foi sempre uma mão amiga, sendo uma das melhores pessoas que eu já conheci na vida.
O poeta Manoel de Barros disse, certa vez, que as coisas não querem mais ser vistas
por pessoas razoáveis. Por isso é que eu quero estar rodeado pelas pessoas citadas, porque,
com certeza, não são pessoas apenas razoáveis, mas extraordinárias. E meus agradecimentos
se resumem a essas poucas palavras, porque falar muito mais ainda seria pouco.
8
SUMÁRIO
Palavras Iniciais, p.10
CAP.1: A Performance Umbandista: corporeidade, vocalidade e outras modalidades performativas, p.20
1.1. O Primeiro Encontro: uma etnografia das sensações, p.20
1.2. A Arte da Incorporação, p.26
1.3. Quando o Corpo é o Palco, p.41
1.4. A Voz que Ecoa do Terreiro, p.59
1.5. Outras Modalidades Performativas, p.69
CAP. 2: Saber-Fazer: A experiência mágico-religiosa como um conhecimento sobre o mundo, p.85
2.1. Modos de Saber, Modos de Fazer, p.87
2.2. Modos de Aprender, p.97
2.3. A Ciência Umbandista, p.109
2.4. As Energias do Mundo, p.115
2.5. Os Materiais dos Trabalhos, p.121
2.6. Modos de Transmissão, Recriação e Difusão, p.132
CAP. 3: Questões de Subjetividade, p.137
3.1. Sobre Aflições Cotidianas, p.143
3.2. Sobre Moral, p.156
Palavras Finais, p.169
Obras Citadas, p.172
9
Las etnografias de la experiência intentan hoy hacer um uso pleno
del conocimiento que el antropólogo adquiere em el trabajo de
campo, que és mucho más rico y variado que el que sido capaz
de infundir a las monografias analíticas convencionales.
Marcus & Fischer
10
PALAVRAS INICIAIS
A cada dia que amanhece pais e mães-de-santo abrem as portas de suas casas de
umbanda sabendo que algumas, ou muitas, pessoas virão procurá-los. Ouvirão histórias de
amor, de traição, de possessividade. Ouvirão pedidos de auxilio para essas histórias. Também
terão de conversar com aqueles que procuram superar crises financeiras ou mesmo a penúria
material. Poucos não serão os que chegarão simplesmente com uma dor de cabeça, uma ferida
que não sara, um braço inchado. Para reverter sofrimentos dessa origem existem rezas,
milongas, mandingas, enfim, trabalhos. Estes são feitos por pais e mães-de-santo e por um
sem-número de entidades umbandistas dispostas a ajudar qualquer um que sofre. É sobre a
experiência mágico-religiosa envolvida na realização desses trabalhos que essa pesquisa
busca falar. O campo empírico para esta tarefa situa-se principalmente em quatro terreiros
localizados em Limoeiro do Norte, interior do Ceará
1
.
Descrita com freqüência pelo seu aspecto de hibridismo, de uma religião que nasceu a
partir do encontro de religiões diferentes, como a macumba, o espiritismo kardecista,
elementos e símbolos indígenas e o catolicismo popular brasileiro
2
, os pesquisadores que se
detiveram a observá-la não deixaram de notar que a existência de ritos mágico-religiosos para
várias finalidades, os chamados trabalhos, faziam-se presentes como um de seus maiores
atrativos para os mais variados tipos de pessoas.
Para alguns, como Renato Ortiz e Lísias Negrão, diante da diversidade nos modos de
praticar o culto umbandista, alguns terreiros teriam abandonado quase por completo a
realização de atos mágico-religiosos
3
, ou seja, daquilo que em Antropologia se entende por
uma intervenção na “ordem natural das coisas”. Tal abandono, porém, não é fato
generalizado. E não aconteceu em Limoeiro do Norte.
Apesar de ser uma cidade marcada por um proeminente catolicismo, talvez mais
visível e significativo ainda pelo fato de comportar a sede da Diocese na região do Vale do
1
O município de Limoeiro do Norte localizado na região do Vale do Jaguaribe, Ceará, dista cerca de 200 km da
capital do Estado, Fortaleza. Possui uma população, segundo dados de 2009 do IBGE, de aproximadamente
56.098 habitantes. Em termos de religiosidade, em Limoeiro do Norte se encontram a Igreja Católica, inúmeras
igrejas pentecostais e neo-pentecostais, os Testemunhas de Jeová, alguns centros de espiritismo kardecista, além
de onze terreiros de umbanda. A umbanda está presente na cidade desde pelo menos uns cinqüenta anos. Minha
decisão de pesquisar sobre esta religiosidade no município de Limoeiro se deveu ao fato de residir no citado
município.
2
Bastide, 1971; Ortiz, 1999.
3
Ortiz, 1999, p.97; Negrão, 1996.
11
Jaguaribe desde 1940, encontramos nesta cidade onze terreiros de umbanda registrados na
maior federação umbandista do Estado, a União Espírita Cearense de Umbanda
4
. Nos
terreiros de Limoeiro do Norte pode-se observar a prática extensa de ritos mágico-religiosos
realizados por inúmeras entidades, como Exu Tranca-Rua, Pomba Gira Maria Padilha,
Pilintra, Negro Chico Feiticeiro, entre outras.
Dos terreiros limoeirenses apenas quatro realizam semanalmente giras, o culto
umbandista. Os demais se dedicam quase exclusivamente à realização de trabalhos mágico-
religiosos particulares. Nos terreiros onde se realizam giras, a saber, o de Pai Gledson, Pai
Salviano, Dona Terezinha e Dona Luiza
5
, a prática mágico-religiosa não se em menor
escala. Ao contrário, além dos trabalhos particulares, também existentes, temos sua prática de
maneira intensa no momento da gira, onde se destacam, entre tantas outras, as entidades
Pomba Gira, no âmbito dos trabalhos de amor e de destranca, Negro Gerson, no âmbito da
cura, e Pilintra, também no ramo dos trabalhos de cura e de destranca, e às vezes também
de amor.
Se o que se durante uma gira nesses terreiros é a grande procura por trabalhos
mágico-religiosos para todos os fins, aqueles que buscam solucionar problemas de saúde,
financeiros e amorosos são, sem dúvida nenhuma, os mais requisitados dentre todos. Pude
perceber isso tanto quando me fazia presente nas giras, quanto nos tantos dedos de prosa que
tive com pais e mães-de-santo, filhos-de-santo, cambonos e clientes. Conforme começa a se
delinear, a categoria trabalho é de importância primordial no contexto dessa pesquisa, sendo
necessário expor sua peculiaridade. Esta diz respeito à uma inversão de valores em relação à
categoria trabalho que se deu no universo umbandista.
Deixando para trás uma projeção negativista, oriunda da história colonial escravocrata,
onde trabalho e violência tinham a mesma conotação, o trabalho passou a ser representado
positivamente pelos pais e mães-de-santo. Sempre representado positivamente, o termo
trabalho ganhou na umbanda vários significados, sendo atribuído a quase toda atividade
realizada dentro dos terreiros. Mas é quando surge como sinônimo de rito mágico-religioso
que ele carrega maior força e significância
6
. Pois, dentre outros significados, nos terreiros
onde os umbandistas giram e batem o trabalhar é principalmente um fazer ritual que,
4
Há de se considerar que há um pouco mais de onze terreiros em Limoeiro, mas nem sempre fáceis de encontrar.
Alguns são muito novos e se registraram em uma das inúmeras novas federações que surgem. Outros trabalham
sem ter registro, e têm medo de quaisquer pessoas que se apresentem com outros fins que não sejam se consultar,
pois acreditam que podem ser “fiscais das federações”.
5
Terreiro de Umbanda São Jorge Guerreiro (Pai Gledson); Associação Umbandista do Senhor Oxossi (Pai
Salviano); Terreiro de Umbanda Príncipe Gerson (Dona Terezinha); Terreiro de Umbanda Zé Pilintra das Almas
(Dona Luíza).
6
Pordeus Jr., 1993.
12
intervindo no rumo dos acontecimentos, resolve parte dos problemas de nossas vidas. Por
isso, quando cito um trabalho de amor estou falando de um rito mágico-religioso para
resolver um problema amoroso. Um trabalho de cura é um rito mágico-religioso para curar
uma doença, seja esta entendida como “material”, “espiritual” ou ambas ao mesmo tempo. E
quando se fala em um trabalho de destranca, fala-se num rito gico-religioso para resolver
o problema do desemprego e outras questões financeiras. A categoria trabalho tem muitos
significados em umbanda, mas é como sinônimo daquilo que em Antropologia se entende por
ato mágico-religioso que ela importa nesta pesquisa
7
. Portanto, aqui, falar em experiência dos
trabalhos é o mesmo que falar em experiência mágico-religiosa, e vice-versa.
No decorrer do texto se verá que quando pais e mães-de-santo falam em trabalhos
geralmente estão falando de ritos auxiliatórios. Quando falam de magia ou demanda estão se
referindo a algo prejudicial, à magia negra, a ritos que de algum modo prejudicam pessoas. O
trecho de um diálogo com Cecília, cambona do terreiro de Pai Gledson, é demonstrativo sobre
isso:
Quando a Pomba Gira faz um trabalho de amor, e ajuda a alguém a conseguir um
amor, isso é magia?
Não, não é magia. Se ela ajuda a pessoa a conquistar não é magia, é um trabalho
normal. Não é magia. Por que magia é o que? Vamos supor, fazer uma pessoa se acidentar,
é magia negra, puxa mais para o pesado. Mas se ela faz uma pessoa se unir, então é um
trabalho normal. Magia significa ela fazer o mal, é matar alguém… ela têm a capacidade de
fazer isso. que na coroa dele [de Pai Gledson] ele não permite. Ela tem essa capacidade,
em outros terreiros já tem exemplo que ela tirou vida de gente.
− Então não existe magia sem ser “negra”?
− Na umbanda, que eu saiba, pelo tempo que eu estou, não.
8
Em suma, vistos antropologicamente, tanto os trabalhos quanto as demandas são ritos
mágico-religiosos. Só que uma diferença os divide: os primeiros auxiliam, os segundos
derrubam. O interesse desta pesquisa ficou restrito aos primeiros.
É preciso constatar que vários estudos, antigos ou recentes, e em campos empíricos
diversos, apontam a existência dos trabalhos no culto umbandista, mas suas afirmações,
7
Segundo Ivonne Maggie, 1992, que realizou pesquisa documental, a categoria trabalho, com o sentido ligado à
prática mágico-religiosa, é usada no Brasil pelo menos desde o século XVIII.
8
Diálogo realizado em junho de 2005.
13
analises, descrições, estão às vezes dotados de um “preconceito teológico”
9
que desqualifica a
magia e a como menor em relação à religião. Essa abordagem acaba separando com mão
de ferro a magia da religião e a colocando abaixo na hierarquia. A religião seria o objeto
nobre por excelência. Isso talvez explique o abandono dos trabalhos como tema de estudo,
tratados quase sempre de forma secundária em parágrafos passageiros sobre outros temas
relativos à umbanda, como se fossem socialmente menos relevantes.
Ora, o próprio fato de os trabalhos particulares ocuparem grande espaço na vida dos
terreiros, e de aqueles que os solicitam serem chamados pelos pais e mães-de-santo de
clientes, não torna o dado menos importante, nem o desculturaliza, ao contrário: continua a
ser um dado do mundo sócio-cultural, que atinge um considerável contingente de pessoas, e
que engloba uma experiência única que transcende essa aparente pragmaticidade e
superficialidade.
Em suma, a tradição de relegar os trabalhos como temas centrais de estudo se traduz
em dois fenômenos contraditórios: o primeiro é a recorrência, mesmo diante da diversidade
no universo umbandista, aos trabalhos de amor, de cura e de destranca, apontados por
diferentes estudiosos que pesquisaram em diferentes períodos e regiões do Brasil. O segundo
é que, apesar de muitos estudos sobre umbanda citarem a existência desses três tipos de
trabalhos, são poucos os que se detém no universo desses rituais e, quando surgem, são quase
sempre dedicados ao âmbito da cura. Nenhum se detém especificamente no universo de uma
experiência mágico-religiosa na umbanda, a experiência dos trabalhos. Talvez justamente
porque, amparados numa dicotomia que a magia como inferior à religião, não considerem
que há nos trabalhos uma experiência rica e importante de ser olhada.
Nos encaminhamentos dados a essa pesquisa quero deixar claro que considero o
pressuposto de que não “existe religião sem magia, nem magia que não contenha pelo menos
um grão de religião”
10
. Entretanto, muitos estudos sobre umbanda a que recorro ancoram-se
nesta separação estanque, até mesmo os de Roger Bastide. Conforme argumenta Lísias
Negrão, alguns problemas significativos nos estudos do mestre francês Roger Bastide
quando este aborda a umbanda, pois “sua posição metodológica diante da realidade
observada, fortemente ancorada na distinção magia/religião de Durkheim e em suas
afinidades pessoais com o candomblé, fez com que este fosse tomado (…) como paradigma
da religião autêntica frente a outras formas descaracterizadas magicamente (a macumba) ou
9
Gurvitch, 1968.
10
Lévi-Strauss, 1989, p.247.
14
ideologicamente (a umbanda).”
11
Assim, não se nega os dados a que esses pesquisadores
chegaram através de incansáveis pesquisas de campo e outros olhares teóricos. No entanto o
recurso a eles acontece com certa cautela.
No transcorrer de toda a pesquisa, e nas linhas de texto que se seguem, tomei o
conceito de experiência como fundamentação teórica mais geral. Como lembrou Geertz, a
questão da experiência anda meio despercebida nos estudos sobre religião, em detrimento das
discussões que envolvem disputas político-religiosas e relações de poder institucional.
12
É
preciso enfatizar que essa categoria, experiência, supera algumas dificuldades em relação ao
conceito de representação e coloca de lado a velha noção de crença. Como diz Paul Veyne,
“acreditar” quer dizer muitas coisas. “Foi preciso reconhecer que, em vez de falar de crenças,
devíamos, afinal, falar de verdades.”
13
Como mostra Pouillon, o verbo crer muitas vezes demarca um distanciamento.
14
O
termo muitas vezes pode servir então como uma maneira de o antropólogo falar do que os
outros vivenciam mantendo uma clara distância e a devida separação. Dependendo da
situação, serventia semelhante pode ter o conceito de imaginário. “Que quer dizer imaginário?
O imaginário é a realidade dos outros, da mesma maneira que, segundo uma frase de
Reymond Aron, as ideologias são as ideias dos outros.”
15
Em outras palavras, aquilo que para os “nativos” é uma experiência real, a
Antropologia por mais das vezes abordou como uma crença, sendo este um modo de
distanciamento, de reserva, ou mesmo de recusa. Com a adoção do conceito de experiência, o
pesquisador tem a possibilidade de se referir às religiões, magias e mitos como uma realidade
que as pessoas vivem, experimentam, e não como alguma coisa menos real em que os
“fulanos acreditam” mas, no fundo, talvez não exista.
Nessa direção, considerar o mito, por exemplo, como uma simples “crença” seria
empobrecê-lo significativamente, porque o mito, como o sonho, é de fato um contato e uma
revelação
16
. É dessa forma que encaro os ritos mágico-religiosos da umbanda, considerando-
os não somente uma “crença”, mas uma experiência, a experiência dos trabalhos de amor, de
cura e de destranca, contendo suas singularidades. Assim, não existem, por exemplo, pessoas
que “acreditam” que Pilintra possa lhe garantir um emprego, existem pessoas que
11
Negrão, 1996-b, p.80.
12
Geertz, 2001.
13
Veyne, 1983, p.11.
14
Pouillon, 1979.
15
Veyne, 1983, p.108.
16
Goldman, 1994, p.291-292.
15
vivenciam isso, que o sentem, que ouvem o que Zé Pilintra tem a dizer. É uma verdade que se
vive, uma realidade que se sente, e toda verdade contém uma experiência própria.
Em resumo, entendo a experiência mágico religiosa dos trabalhos como a vivência de
uma realidade que compreende campos cognitivos, sensoriais, emocionais, reflexivos, entre
outros, estreitamente intrincados. Tal vivência é ainda, naturalmente, feita por múltiplas
dimensões de significados culturais, onde indivíduo e sociedade, pensamento e afeto,
experiência ordinária e mística, não estão separados.
Dentre as múltiplas dimensões que envolvem a experiência mágico-religiosa dos
trabalhos, precisamente três delas que considero mais significativas em meu campo de
estudo. A primeira é a performance, que se compõe principalmente de uma vocalidade e
corporeidade, mas que engloba também uma série de outras atividades e sensações corporais,
auditivas, visuais, olfativas, etc. A segunda é o saber-fazer, principalmente por parte dos pais
e mães-de-santo, que envolve aprendizado e transmissão de um saber mágico-religioso
considerado poderoso, além de um conhecimento especializado sobre as forças e energias que
permeiam o mundo. A terceira dimensão é a da subjetividade, dimensão que abarca o
universo das aflições cotidianas, do mundo íntimo individual em constante diálogo com o
mundo social, e que comporta tanto o afeto, isto é, as emoções, os sentimentos, como também
o pensamento, as idéias, as discórdias, ou os valores e conflitos ético-morais que alguns
trabalhos suscitam. Seguindo esse caminho, a dissertação se compõe de três capítulos onde
em cada um exploro uma a uma essas três dimensões, há pouco citadas, da experiência
mágico-religiosa dos trabalhos umbandistas.
Minha pretensão não é descortinar, apreender e explicar essa experiência mágico-
religiosa; é senão interrogá-la. Até porque, como diz Thomas J. Csordas, o desafio
antropológico não é o de capturar a experiência, mas o de dar acesso à experiência como a
significância do significado.”
17
A experiência, diz ele, é “imediata tanto no sentido de sua
concretude, sua abertura subjuntiva, sua desobstrução da realidade sensorial, emocional e
intersubjetiva do momento presente como também no momento de ser a rica ascensão não-
mediada, impremeditada, espontânea ou não-ensaiada da existência primeira”
18
.
Antes de encerrar essas palavras iniciais, cabem ainda algumas notas sobre como se
deu minha pesquisa de campo.
Convencionalmente tal pesquisa de campo, em um mestrado, deveria durar em torno
de dois anos. Acontece que esta é uma pesquisa que iniciei no ano de 2004, quando ainda
17
Csordas, 2008, p.16.
18
Csordas, 2008, p.16.
16
estava em minha graduação em História. Nesta época, visitei o terreiro de Dona Terezinha e o
de Pai Salviano, mas acabei concentrando meu foco no terreiro de Pai Gledson. A empreitada
resultou em minha monografia de conclusão de curso e em um arquivo empírico, de
observações, gravações, conversas e anotações, bem razoável. Logo em seguida, quando
comecei a tecer um projeto para o mestrado, ampliei meu campo e meu olhar. Se no terreiro
de Pai Gledson havia me preocupado unicamente com os trabalhos de amor, agora eu visitava
também os terreiros de Pai Salviano, Dona Luiza, Dona Terezinha, de Telvina e Dona
Leuda e, além dos trabalhos de amor, buscava os trabalhos de cura e de destranca. Por fim,
após entrar no mestrado e retomar com todo fôlego a tarefa campal, passei a me concentrar
nos terreiros que realizavam giras, deixando quase inteiramente de lado os de de Telvina e
de Dona Leuda. Muito do que se conversou e pesquisou nesse período anterior ao mestrado
ainda me foi de grande importância nesta nova pesquisa. Havia inúmeras passagens dos
diálogos gravados que tratavam exatamente dos mesmos temas que venho tratando agora, e na
época foram simplesmente ignorados ou vistos sob uma outra ótica. Isso porque nesta nova
fase de pesquisa de campo, durante o mestrado, meu olhar metodológico e teórico mudou.
A esse respeito quero registrar que uma parte do tempo em que estava inserido no
campo eu considerava que os diálogos gravados, as entrevistas, a despeito de considerar a
importância de estar nas giras, eram o único recurso que me possibilitaria chegar a resultados
mais táteis e profundos. Mas o problema era que nem sempre eu conseguia chegar às pessoas
ao ponto de elas me concederem essa entrevista. Foi a partir de um procedimento usado por
Márcio Goldman, considerando que a pesquisa de campo não tem muita coisa a ver com
entrevistas, que comecei a repensar minha postura
19
. O ponto culminante foi quando pela
primeira vez tentei me aproximar de um rapaz chamado Francisco
20
, ao fim de uma gira em
Pai Salviano, que havia conversado em particular com Zé Pilintra e Pomba Gira. Até então eu
havia conversado (e até entrevistado) com outras pessoas que tinham feito trabalhos de
amor sim. Mas isso no terreiro de Pai Gledson, onde eu era conhecido tempos, e através
de sua mediação bastante prestativa.
Agora eu estava no terreiro de Pai Salviano e, ao final de uma gira, abordava sozinho
uma pessoa que nem me conhecia. Contei-lhe o que desejava, sempre com muito respeito.
Esclareci qual o uso que seria feito de sua entrevista e tudo o mais. Ao cabo da insistência,
mesmo com toda a garantia que lhe prometi de manter sua privacidade, de que eu era uma
19
Goldman, 2003.
20
Por questão de privacidade foi posto o nome Francisco, que é fictício.
17
pessoa e um pesquisador sério, e que seu nome não apareceria no texto, que eu colocaria um
nome fictício, ele não aceitou fazer a entrevista.
Fui para casa e passei uns três dias ensimesmado, repensando e mastigando a situação
daquele dia. Foi então que comecei a ter certeza que havia feito um tipo de invasão que não
tinha o direito, nem se devia: abordar, ao fim de uma gira, uma pessoa que estava num terreiro
onde se resolve problemas, para resolver seu problema, e de repente chega um estranho
querendo saber mais do que devia. Com certeza, não estava nos planos dele encontrar no
terreiro alguém carregando o adjetivo de “pesquisador”.
Fiquei pensando sobre o modelo da observação participante e o modelo da
participação mesmo, em detrimento da observação, proposto por Jeanne Favret-Saada
21
.
Muito atraído eu me sentia por suas idéias, mas achava impossível colocá-las em minha
prática pois, do modo como eu entendia sua proposta, tomando como exemplo o que ela
experimentou no Boccage, participar de verdade, no meu caso, implicaria se deixar afetar
pelos trabalhos de cura, trabalhos de amor e trabalhos de destranca. Eu achava que para
obter tal participação em campo teria de solicitá-los. Mas como tal fato, se acontecesse, seria
invasivamente intencional, entrando portanto em contradição com a idéia de imersão
participativa não-intencional, deixei simplesmente estar.
Se nas giras eu costumava dançar, cantar, beber a bebida que as entidades me
ofertavam, conversar um pouco com alguma entidade, às vezes, no entanto, eu apenas
observava. Muitas das giras de exu, no terreiro de Pai Salviano, eu praticamente não me
mostrava. Sentado num canto escurinho, pois as luzes ficam apagadas nas giras de exu, eu
escrevia ininterruptamente, quase sem enxergar, meus garranchos numa cadernetinha. Eram
reflexões, idéias, dúvidas, anotações, registros, compreensões que nasciam na penumbra ao
som dos tambores, dos pontos cantados aos gritos e palmas, e dos exus e pomba giras
trabalhando.
Um dia, enfim, me veio à cabeça que a participação autêntica, feita de comunicação
indireta, linguagem não-verbal, diálogos sem intencionalidade, poderiam coincidir
perfeitamente com uma relação de diálogo, podendo o gravador ser abandonado na maior
parte dos instantes.
Eis que na gira seguinte, antes dela começar, encontrava-me sentado num batente,
ao lado de Francisco e um amigo seu, deixando-me levar por uma conversa em tom meio
confidencial. E eu fazia questão de me esquecer das perguntas formuladas, emitia minha
21
Favret-Saada, 2005.
18
opinião, discordava em alguns pontos. Francisco buscava no terreiro resolver um problema
amoroso. Amava uma moça há três anos, tinha certeza disso. Mas, novelescamente, o pai dela
a prendia ao máximo em casa, e não permitia o namoro por achar ele muito pobre para ela,
apesar de ela não ser mais rica do que ele. havia dois anos que Francisco freqüentava o
terreiro tentando resolver seu problema, mas, segundo ele mesmo, tinha “dado um tempo”
durante um período.
Na conversa descontraída, sentados ao ar livre, as estrelas sobre nós, recebendo um
vento fresco no rosto e tomando café feito na hora por Vera, mulher de Pai Salviano e
cambona do terreiro, Francisco dizia que havia perguntado a Salviano se não era melhor
fazer logo uma amarração, mas Salviano teria se posicionado contra, devido à moça ser
menor de idade. Nessa hora Francisco olha para mim e pergunta, colocando dúvidas a respeito
da umbanda: O que você acha? Já viu alguém vencer com a umbanda?
E eu devolvi lhe dizendo que sim, já havia visto, e que ele é que devia saber, pois
havia sido ele que obtivera uma cura através da umbanda. Ele riu.
Naquele momento eu sabia que a primeira coisa que trouxera Francisco ao terreiro
não foi seu caso de amor, e sim um “caroço” que nasceu numa perna e foi sendo curado por
seu Pilintra a cada gira até ele ficar bom, sem precisar ir ao médico. Dele me dizer que
gostava, dentre as entidades, principalmente de seu e de Pomba Gira. Esta última devido
ao seu poder de fazer amarração.
Essa conversa com Francisco, que considerei riquíssima, foi a primeira de muitas onde
eu começava a acessar uma parte da experiência e da sensibilidade humana que talvez não
fosse possível unicamente através do recurso da entrevista formal. Sutilezas que se capta a
partir da linguagem espontânea, deixando-se levar pela curiosidade interna dos temas que
surgem, e no terreiro sempre surgem. A partir desse dia mudei minha metodologia e passei a
considerar tão ou mais importante para minha pesquisa essas conversas de terreiro. Acabei
descobrindo que outras dimensões dos trabalhos, que não significavam propriamente ter eu
que realizá-los, me afetaram sem que eu fosse me dando conta de imediato.
Mas nem por isso abandonei os diálogos gravados, porque não queria falar da
experiência dos trabalhos de cura, de amor e de destranca através de um texto construído
todo em discurso indireto livre. Esses diálogos permeiam toda a dissertação. Além disso, nas
fases intermediária e final de criação deste texto etnográfico fui aos terreiros com os papéis
em mãos mostrar aos pais e mães-de-santo como organizei o texto, como eles apareceram
neles, quais suas falas selecionadas. Mostrei também minhas conclusões, descrições e
dúvidas. Algumas vezes houve discórdia ou acréscimos, o que fez aprimorar a versão final.
19
Na apresentação escrita desta pesquisa, as palavras do vocabulário cotidiano que no
linguajar umbandista assumem um significado próprio, como cliente, trabalho e linha, assim
como trechos de falas dos umbandistas e clientes citadas dentro do corpo do meu texto, optei
por colocar em itálico. as palavras que pertencem unicamente ao universo umbandista, não
possuindo nenhum outro significado que não seja o empregado no terreiro, como gira, congá,
cambona e ogã, optei por deixar em fonte comum.
Espero, com esta produção, ter contribuído um pouco mais para a compreensão de um
tema relativamente relegado nos estudos sobre umbanda, os trabalhos, bem como para a
abordagem de algumas dimensões que marcam a experiência dos sujeitos na cultura e na
vivência mágico-religiosa, como a da performance, dos saberes e da subjetividade.
20
CAPÍTULO 1:
A PERFORMANCE UMBANDISTA
Corporeidade, vocalidade e outras modalidades performativas
1.1. O PRIMEIRO ENCONTRO: uma etnografia das sensações
O modo como se a prática gico-religiosa na umbanda, isto é, a realização dos
trabalhos, possui uma dimensão performativa indiscutível, e por isso foi dito que
“macumba além de ajudar é boa de assistir”
22
. No uso mais geral, o conceito de performance
se refere de modo imediato a um acontecimento geralmente oral e gestual, mas não se resume
a isso.
23
Relativo tanto às condições de expressão quanto de percepção, a performance diz
respeito a um momento tomado em seu presente, significando a presença concreta de
participantes implicados nesse ato
24
, implicando a existência de outros elementos
performativos, como acontece nas realizações de trabalhos de amor, de cura e de destranca.
A dimensão performativa da experiência mágico-religiosa na umbanda se apresenta
como a mais explícita dentre as três que abordarei aqui, e não se restringe apenas à realização
dos trabalhos, abarcando todas as instâncias da vida religiosa umbandista. A Antropologia do
corpo e os estudos sobre performance, bem como algumas reflexões da Antropologia das
emoções, trazem grandes contribuições para seu estudo, pois a própria idéia de performance
“designa o objeto de nossa apreensão sensível inicial e totalizante do real, subjacente a toda
diferenciação sensorial, a toda tomada de posse cognitiva de nossa parte.”
25
Ora, a
performance que se nos terreiros não somente salta do corpo aos olhos como também
incide sobre todos os sentidos de quem quer que se faça presente. Ela gera uma percepção, e
a percepção é, em suma, a instância primeira e máxima de nossa relação com o mundo, e não
a abstração, porque o “mundo está sempre aí antes da reflexão”
26
; por isso Merleau-Ponty nos
sugere romper com a atitude crítica e focar o olho onde começa a percepção
27
, isto é, no
22
Birman, 1995, p.10.
23
Zumthor, 2000.
24
Zumthor, 2000, p.59.
25
Zumthor, 2000, p.50.
26
Merleau-Ponty, 1971, p.5.
27
Merleau-Ponty, 1971.
21
corpo. Neste estudo, ela começa no ato da performance, que é quase sempre uma experiência
pré-objetiva, o que não quer dizer pré-cultural, e sim pré-abstrata. Foi ela quem de início
mexeu comigo, provocando minha curiosidade investigativa, quando do meu primeiro
encontro com um terreiro de umbanda. Como pensa Merleau-Ponty, é “este domínio pré-
objetivo que temos de explorar em nós mesmos se queremos compreender o sentir”
28
. É
explorando esse sentir que começo a dissertar acerca das implicações da performance
umbandista.
Aconteceu justamente em um dos terreiros que hoje fazem parte desta pesquisa, o
terreiro de Dona Terezinha, situado no bairro Antônio Holanda, popularmente chamado de
Cidade Alta
29
. Por ter o costume de visitar constantemente este bairro ouvi falar sobre a
existência de um terreiro e por curiosidade decidi ir conhecê-lo de perto. Mas para fazer a
visita não bastou saber onde era o local de funcionamento deste e ir até lá, eu não estava tão
seguro para realizar essa tarefa. Primeiramente, busquei informações com um ex-freqüentador
sobre se havia alguma restrição à visitantes, bem como sobre o dia e a hora exatas em que
aconteciam os rituais. No dia e hora certa caminhei para lá um tanto ansioso. Chegando à área
da casa de Dona Terezinha, onde se encontravam algumas pessoas que eu não conhecia,
perguntei se era ali que funcionava um terreiro de umbanda. Levando-se em conta que no dia-
a-dia ouvia o termo “macumba”, usei o termo “umbanda” meio duvidoso de sua validade,
mas algo me dizia que ele era mais apropriado, pois macumba sempre soava de forma
pejorativa e era mote de pilhéria onde quer que eu estivesse.
30
Após receber a resposta positiva, precipitei-me logo a explicar que era um estudante e
pretendia fazer uma pesquisa, desejando a permissão para assistir ao ritual daquela noite. Em
verdade, desde esse momento eu era um sujeito culturalmente deslocado, pois não era
necessário pedir permissão para assistir a uma gira. Ao invés de haver restrições, a presença
de novos freqüentadores era desejada, pois são eles que asseguram a existência do terreiro,
fato que só fui descobrir bem mais tarde.
28
Merleau-Ponty, 1971, p.30.
29
O bairro Antônio Holanda, mais conhecido como Cidade Alta, é o mais populoso de Limoeiro, tendo em torno
de sete mil habitantes, num município com uma população de cinquenta e cinco mil quatrocentas e setenta e
quatro pessoas, segundo dados de 2005 do IBGE. O referido bairro fica à quatro quilômetros de distância do
centro da cidade e possuía, na época dessa minha primeira visita ao terreiro de D. Terezinha, em 2004, três
terreiros de umbanda.
30
O termo macumba é usado no cotidiano de uma maneira genérica, para designar pejorativamente todas as
formas de culto afro-brasileiro. Mas dentro do universo dos terreiros o termo é empregado sem essa conotação
negativista. No entanto, não será usado em qualquer situação que fuja ao controle deles. Os umbandistas têm
plena consciência da negatividade do termo, por isso ponderam seu uso. Para uma maior discussão sobre o
assunto, ver: Birman, 1995, p.7; e Negrão, 1996-b, p.79.
22
Em instantes me convidaram a entrar e foram me guiando por dentro da casa até a
porta do terreiro: passamos pela área, pela sala onde a televisão ligada apresentava uma
novela, pela cozinha bem arrumada, até chegarmos aos fundos da casa, à porta de um quarto
vizinho à cozinha. Este quarto era o terreiro, e as pessoas presentes já começavam a se
preparar para entrar. Vi todos tirarem os calçados. Eu não sabia o porquê daquela medida,
mas intui que devia fazer o mesmo. Vi também que todas as mulheres presentes soltavam os
cabelos e vestiam roupas longas sobre as curtas que usavam. Fiquei apenas olhando e
pensando do que se tratavam aqueles detalhes. Mas antes que eu pudesse pensar muito, era o
momento de entrar.
Ao colocar meus olhos na parte de dentro fiquei bestificado: centenas de bandeirinhas
coloridas avivavam o teto do terreiro; no congá, o altar umbandista, velas brancas e vermelhas
ardiam chamas quase hipnóticas, despertando minha imaginação. Em meio às velas, inúmeras
imagens davam forma a um sincretismo extraordinário: Jesus Cristo de braços abertos
encontrava-se ao lado de Tranca-Ruas. Fazendo companhia aos dois estava Negro Gerson.
São Jorge, e vários outros que eu não conhecia, também se impunham à minha frente. Pomba
Gira mostrava seu belo corpo ao lado da não menos bela Iemanjá, deusa das águas salgadas.
Na parede lateral esquerda havia também uma pintura da Pomba Gira. Na da lateral direita
uma de Tranca-Ruas. E eu apenas acabava de os conhecer.
Dona Terezinha, a mãe-de-santo, usava um vestido preto que descia quase ao
tornozelo. Chiquinho, filho biológico de Dona Terezinha e presidente do terreiro, usava calça
e blusa de um vermelho brilhoso, talvez de cetim. As outras pessoas também usavam roupas
especiais para a ocasião: as mulheres com saias longas e folgadas que tinham vestido havia
pouco tempo; os homens com calça e blusa de mangas compridas que levava estampada nas
costas um símbolo. Não recordo sequer o vulto de quais eram estes símbolos, tamanho era a
quantidade dos detalhes e novidades para meus olhos aflitos dar conta. Naquela noite meus
olhos estavam sendo apresentados à um universo do qual ainda não haviam se sujado pelo
hábito
31
. Estavam sim, atônitos, mas também infantilizados, para ver o espetáculo da cultura.
Por isso não lhes faltava o que olhar. E foi ali que, pela primeira vez, uma das tarefas da
Antropologia, de pensar a unidade biológica e a diversidade cultural
32
, incidiu sobre mim com
enorme voracidade.
O ritual começou com a reza de um pai-nosso. Depois veio muita música cantada
acompanhada apenas ao som de palmas. Havia um atabaque encostado na parede às nossas
31
Resende, 1992.
32
Geertz, 1989.
23
costas, mas nesse dia não fora utilizado. Em pouco tempo que se cantava Dona Terezinha
incorporou a Pomba Gira que, segundo me informaram, chamava-se Maria Padilha. Todos
aplaudiram, eu acompanhei. A todo o momento Maria Padilha cantava, dançava, conversava,
bebia cerveja e fumava cigarro. De quando em vez ia a cada um, pegava numa das mãos, e
fazia o indivíduo girar sobre seu próprio corpo. Notei que todos conheciam o modo de
proceder. Eu observava e fazia igual. Etnocêntrico que ainda estava, sentia-me ridículo
executando aquela ão e reprimia desesperadamente a vontade de rir. Os sentidos daquela
gestualidade não faziam parte de minha vivência cultural.
De instante em instante eu via, muito mais do que intrigado, uma pessoa “transformar-
se” em outra. Sempre que uma entidade saía e outra chegava as pessoas batiam palmas, eu
novamente acompanhava. Certas vezes, quando a entidade que vinha era do sexo masculino,
era acrescentado ao figurino da mãe-de-santo algumas peças de vestuário como uma capa
preta e um chapéu da mesma cor. O som de sua voz ficava mais grave e, dessa forma,
ganhava um ar realmente mais masculino.
Admirado, perguntava-me como aquilo podia existir tão próximo de mim e eu
desconhecer completamente, pois mesmo me entregando a um esforço mental hercúleo, não
conseguia entender quase nada. Havia somente uma pequena bóia para me agarrar: uma
senhora loira muito simpática de nome Dilza, que me dava bastante atenção, explicando-me
algumas coisas e me dizendo como proceder. Aprender era preciso, porque naquele momento
eu não sabia nem mesmo o nome das entidades, não sabia quem eram, nem a importância que
tinham para as pessoas ali presentes. Não entendia as letras das músicas e menos ainda os
significados dos gestos. Não entendia, muitas vezes, sequer o que essas entidades diziam,
apesar de a toda hora Dilza me explicar pacientemente. Eu tentava me situar, exercício que,
em suma, é a essência da pesquisa etnográfica
33
. Mas se nesse empreendimento eu não estava
sendo inteiramente bem sucedido, e nunca se é, era porque fazer etnografia é mesmo como
tentar ler “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas
com exemplos transitórios de comportamento modelado”
34
. Sem falar que aquela era minha
primeira leitura, meu primeiro encontro, complicado como grande parte dos primeiros
encontros.
Lembro-me que o antropólogo Roque de Barros Laraia, em um de seus livros, falou
sobre estudos envolvendo pessoas cegas de nascença que haviam sido curadas através de
33
Geertz, 1989.
34
Geertz, 1989, p. 20.
24
cirurgia. Ele dizia que tais pessoas, nos primeiros momentos em que passavam a enxergar,
não conseguiam entender o que viam, sentiam-se demasiadamente aflitas porque tudo parecia
embaralhado, todas as cores e formas, sendo a realidade visual um verdadeiro caos
35
. Posso
assegurar que este caos me habitava naquela noite do dia 20 de agosto de 2004, quando eu me
sentia por inteiro culturalmente cego. Eu estava diante de uma rede de significados culturais
36
,
mas não sabia como adentrá-la, e conhecia quase nada dos fios que a compunham.
O que presenciei e experimentei ali foi algo totalmente diferente na minha vida até
aquele dia. Eu estava simplesmente fascinado diante do fenômeno da possessão, inebriado
com a mistura de cores. As imagens me extasiavam e a junção de tudo isso me deixara
atordoado acerca das tradicionais fronteiras entre mundo físico e espiritual. Definitivamente,
nunca me esquecerei daquela noite. Apesar de, como tentei demonstrar, ter entendido muito
pouco do que se passava.
O ritual começara às 19h e terminaria às 22h. Mas eu precisei sair antes. Para isso foi
preciso pedir permissão à entidade que trabalhava naquele momento. Não fui eu, tímido que
estava, quem pediu a permissão. Uma das freqüentadoras, na verdade Dilza, foi quem pediu
para mim. Depois de a permissão ser concedida houve o cumprimento umbandista
característico: Dona Terezinha, na verdade uma entidade incorporada nela, pegou com a mão
direita na minha direita, enquanto que as esquerdas ficaram fechadas encostadas ao peito.
Depois bateu os ombros dela nos meus, um de cada vez: primeiro o esquerdo, depois o
direito. Semanas depois foi que descobri se tratar de um típico cumprimento umbandista e
que, para alguns, a entidade está saravando a pessoa, passando para ela energias positivas.
Após isso, Chiquinho, o presidente do terreiro, derramou em minhas mãos uma loção que
tinha cheiro de raízes, e então pude sair. Saí, mas saí com dois sentimentos diferentes: um
de impacto sensorial, uma avalanche de sensações jorrando de mim. O outro de certeza.
Certeza de que era sobre aquela manifestação religiosa, a umbanda, que eu queria desenvolver
uma pesquisa.
***
35
Laraia fala desses estudos fazendo referência ao antropólogo inglês Rodney Needham, que foi quem fez uma
analogia entre os estudos sobre indivíduos cegos de nascença que ganharam a visão, e o trabalho do etnólogo:
“Apenas vagarosamente e com um intenso esforço pode apreender que esta confusão manifesta uma ordem, e
somente com uma aplicação resoluta é capaz de distinguir e classificar objetos e adquirir o significado de termos
tais como ‘espaço’ e ‘forma’. Quando um etnólogo inicia o seu estudo de um povo estranho ele está numa
situação análoga, e no caso de uma sociedade desconhecida ele pode exatamente ser descrito como culturalmente
cego” (Rodney Needham, 1963, p.vii. Apud: Laraia, 2001, p. 92).
36
Geertz, 1989.
25
A experiência pessoal agora narrada traz à tona, principalmente, dois aspectos de igual
importância: o primeiro é a forte presença da dimensão do saber-fazer na vida religiosa
umbandista, o que implica “desconseguir de entender” quase tudo quando não se tem um
mínimo de iniciação nesse universo; e este era meu caso que, posso assegurar, tinha tido uma
formação cultural muito distinta. O segundo aspecto a ser destacado é a intensidade da
dimensão performativa sobre nossa percepção sensorial. Se meu entendimento cognitivo não
tinha sucesso, nem por isso minha visão, meu corpo, meus ouvidos, enfim, o meu conjunto
sensorial deixava de sofrer um impacto e sentir intensamente a presença daquela
manifestação, dando-se assim também uma percepção. A performance fala alto, e é ouvida
primeiro, mesmo que não codificada.
Ao deter um olhar sobre a performance na experiência dos trabalhos, e em torno
deles, tenho, entre os principais objetivos, compreender a natureza e o papel que a voz e o
corpo exercem nesta experiência. Este assunto é relevante na medida em que a tradição oral e
os gestos rituais, como por exemplo a dança, têm lugar predominante, em detrimento da
tradição escrita, nos terreiros de umbanda.
Marcel Mauss falava que a magia contém ritos manuais e orais
37
. Porém, superando
a idéia abstrata de “oralidade”, que comumente se refere a uma ausência de escritura,
interessa aqui a vocalidade, pois só a voz é concreta
38
, assim como a corporeidade, noção que,
na concepção de Csordas, pode ser tomada “como uma base para compreender a natureza da
experiência humana na cultura”
39
. E o fazer mágico-religioso a que me atenho se
principalmente pela ação da voz e do corpo. Olhar para esta vocalidade e corporeidade é
procurar sua historicidade, seu uso
40
. E aqui basta dizer, de início, que se trata de um uso
mágico-religioso.
de se considerar que a dimensão performativa é experienciada de uma maneira
muito distinta dos pais-de-santo para os combones
41
e também filhos-de-santo, estes também
a experieciando de uma maneira distinta daqueles “expectadores” ou clientes que vão à uma
ou poucas giras. Nessas maneiras distintas de experienciar se encontra presente, de formas
diversas, a ativação dos sentidos. Por isso, é preciso incluir nessa abordagem sobre a
performance, além da vocalidade e da corporeidade, os sentidos, como o tato, a visão, o
37
Mauss, 2003.
38
Zumthor, 1993.
39
Csordas, 2008, p.16.
40
Zumthor, 1993.
41
Cambone, na umbanda, refere-se ao auxiliar do sacerdote ou das entidades quando incorporadas no médium.
26
olfato, que englobam outras modalidades performativas. É latente a ativação dos sentidos no
instante da performance do campo empírico ao qual me dedico, tanto para quem é tomado
pelo transe de possessão como, talvez principalmente, para quem participa deles como cliente.
Paul Zumthor já afirmava que a noção de performance deve englobar também o conjunto de
fatos que compreendem a recepção, entendendo com isso o momento em que se uma
percepção sensorial. Esta determina um “engajamento do corpo”, de todo o corpo. E é ele que
reage ao contato saboroso com o som dos tambores, a inflexão dos pontos cantados, ou a voz
de Maria Padilha. Neste estudo essa percepção sensorial acontece em rituais particulares ou
nas giras, rituais públicos, onde se celebra as entidades e elas realizam muitos trabalhos
mágico-religiosos.
Em síntese, não se pode falar de performance de maneira perfeitamente unívoca, pois
lugar para defini-la em diferentes graus ou modalidades
42
. Por isso, diante de toda a
riqueza performativa e diversificada da umbanda, é que abordarei um pouco também outras
modalidades de performance, que incluem por exemplo o espaço performancial, as
impressões imagéticas, os efeitos olfativos… enfim, uma gama de elementos que começam a
delinear uma poética da performance mágico-religiosa específica, a dos trabalhos
umbandistas.
1.2. A ARTE DA INCORPORAÇÃO
O locus do sagrado é o corpo,
pois o corpo é a base existencial da cultura
T. J. Csordas
Qualquer “que seja a maneira pela qual somos levados a remanejar (ou a espremer
para extrair a substância) a noção de performance, encontraremos sempre um elemento
irredutível, a idéia da presença de um corpo.”
43
A amplitude dos estudos antropológicos e
teatrais sobre o corpo, para não citar outras disciplinas, vêm nos falar sobre os deslimites das
experiências corporais possíveis ao ser humano. As inúmeras modalidades de se expressar
corporalmente impõem-nos reconhecer as múltiplas corporeidades existentes na experiência
cultural. Uma dessas modalidades de expressão corporal pode ser pensada como a
corporeidade umbandista, que tem seus usos específicos e sua própria retórica.
42
Zumthor, 2000, p.79.
43
Zumthor, 2000, p.45.
27
A exuberância da corporeidade umbandista pode ser observada em vários momentos
da vida religiosa desses terreiros. Mas para que ela seja exercida em sua plenitude é preciso
haver, antes de tudo, a incorporação das entidades pelos médiuns, o que caracteriza o marco
mais significativo da religião umbandista
44
. A busca por trabalhos que venham resolver ou
amenizar as aflições cotidianas quase sempre só se faz possível a partir da incorporação.
Se existem certos trabalhos que os pais e mães-de-santo podem fazer sem estar
incorporados, a maior parte deles, no entanto, e os mais importantes, só podem ser realizados
pelas mãos e vozes das entidades. Por isso, o transe de possessão, a incorporação, vem para
fundar a interação entre os homens e os seres espirituais. O médium que entrega seu corpo, o
pai ou mãe-de-santo, é assim, na forma de receptor, o grande intermediário “entre os homens
e os espíritos, orixás ou guias, sem cuja interferência, auxílio, conselho, louvação, o ritual e a
própria existência da religião perderiam todo o significado”
45
. Os trabalhos de cura, de amor
ou de destrancar caminhos não seriam os mesmos, ou talvez nem existissem, não fosse o
marco do transe de possessão.
O fenômeno da possessão faz parte do cotidiano e se insere de forma indelével no
mundo daqueles que o cultivam, tendo uma conotação sagrada, e exigindo uma cuidadosa
preparação para seu acontecimento, seja somente para realizar um trabalho particular ou
mesmo para uma gira inteira.
Variável de um terreiro a outro, existem determinados traços dessa preparação que são
comuns entre os terreiros, como os pontos cantados. Se não são exatamente os mesmos em
todos os terreiros, porém, sempre pontos cantados. Se as proibições rituais, como não
entrar na gira portando chave, usando cinto ou calçando sandálias, entre outras, flexibilizam-
se de um terreiro a outro, porém, há sempre algumas dessas proibições. Tudo é feito visando o
momento da incorporação, o desenrolar da gira e os bons resultados nos trabalhos, como no
terreiro de Dona Terezinha, onde o primeiro ponto que é entoado no início da gira, preparando
para a incorporação, já anuncia os objetivos do culto, os trabalhos:
Quem vem… quem vem lá de tão longe? De tão longe…
São os nossos guias que vêm trabalhar…
Ai dai-me força pelo amor de Deus meu Pai!
Ai dai-me força nos trabalhos meus…
44
Concone, 1987.
45
Concone, 1987, p.150.
28
No terreiro de Salviano, nas giras de segundas-feiras, é comum ele gritar no início da
preparação: para vencer na saúde e no amor e abrir as portas do emprego, na força e na gira
de exu! São palavras que, ditas logo na abertura, traduzem os assuntos mais importantes a ser
tratados na realização da gira. No terreiro de Dona Luiza, a preparação é incrementada por
uma limpeza energética do ambiente onde vão acontecer esses trabalhos. A limpeza é feita
com uma defumação que passa por todos os quatro cantos do terreiro e ao redor de todas as
pessoas, enquanto se explicita o caráter de preparação através do canto:
Dá licença pai Ogum
Filho quer se defumar
Umbanda tem fundamento
É preciso preparar
Com incenso e benjoim
Alecrim e alfazema
Defumar filho de fé
Com as ervas da Jurema
Para entender melhor a dinâmica dos instantes que antecedem o fenômeno da
incorporação, detenhamo-nos um pouco mais, a título de exemplo, como isto se nas giras
realizados por Pai Gledson. Em seu terreiro as giras começam normalmente sete horas da
noite. Pouco antes de começar, aqueles que irão participar ficam conversando distraidamente
na sala ou então na frente da casa. As pessoas se cotizam para comprar o material necessário
para a sessão: o fumo, o cigarro, a cerveja, a cachaça, as velas. As entidades consomem esse
material durante a gira. Enquanto isso Cecília, a cambona, encontra-se no quarto vestindo
uma roupa branca. Pai Gledson está com um traje especial, cetim amarelo e vermelho, ou
totalmente branco, concentrado, à pitar seu cachimbo. Num determinado momento, ele vai ao
terreiro, situado nos fundos de sua própria casa, e começa a acender as velas que iluminarão
todo o ritual. Cada vela acendida é acompanhada de um pedido de entrega de trabalho, ou
mesmo proteção no dia-a-dia.
Após isso, as pessoas cumprimentam a casa do exu, situado junto à entrada, tiram as
sandálias, entram no terreiro e posicionam-se em duas filas, homens de um lado e mulheres de
outro. A cambona fica na ponta da fila das mulheres, estando ao lado de Pai Gledson que fica
no centro, em frente ao congá. Reza-se o pai-nosso, a ave-maria e o credo. Depois, este
29
procedimento inicial dá lugar aos pontos cantados, as músicas próprias da umbanda. Os
pontos cantados começam a ser entoados para que a primeira entidade desça. Enquanto se
canta, a cambona vem com um perfume, corriqueiramente chamado de limpeza, e derrama um
pouco na mão direita de cada um. Os participantes o esfregam por todo o corpo, pois ele
funciona como um elemento purificador, que tira os carregos, as sujeiras espirituais, as
energias negativas
46
, como explica Pai Gledson:
− É o mesmo que você, digamos assim, você está com uma roupa branca, toda branca,
aí encosta num muro e suja, então você… espiritualmente quando você vem para um trabalho
é colocado aquela limpeza para que você não assista ao trabalho sujo
47
.
Entre os primeiros pontos cantados e esse instante, quando se faz a limpeza espiritual,
para que os trabalhos se dêem num ambiente de pureza, Pai Gledson vai até a porta do
terreiro e convoca exu, mas não para ser incorporado, e sim para proteger a entrada, fechando
a passagem para qualquer coisa indesejável que possa vir de fora interferir na incorporação,
na gira, nos trabalhos, como um egum (nome que os umbandistas dão aos espíritos
desencarnados que sofrem e vagam entre nós) ou uma demanda, que visa derrubar alguém.
O exu ele é chamado, na minha gira ele é chamado como defesa. Então sempre tem
que ter a presença de um… de um exu para ficar de proteção, na guarnição. Sempre tem que
toda gira… todos os trabalhos tem que ter o exu. Contra qualquer tipo de outra coisa. Vamos
supor: invasão de um egum, entendeu. Então ele fica na proteção, é como se fosse um
segurança de um banco… Se no ato da gira for preparada uma demanda, então o exu, como
ele fica tipo escudo, então ali ele rebate, ele devolve. Ou rebola para cima, dependendo
da natureza do pai-de-santo no começo da gira, ou então ele rebate, e às vezes assim…
despacha, no invisível ele despacha na encruzilhada
48
.
Depois os pontos de exus são sucedidos por outros, o atabaque continua ritmando o
ambiente, e é no meio de um dos pontos cantados que o corpo de Pai Gledson começa a se
contorcer e a primeira entidade é incorporada. Esses momentos que antecedem a incorporação
46
Não é de hoje que o perfume é utilizado em rituais de purificação. Segundo Chevalier (1999), vários povos,
como os egípcios, os hebreus, os gregos, os romanos, e, posteriormente, a própria Igreja Católica, utilizaram o
perfume em cerimônias religiosas, predominantemente servindo como elemento purificador.
47
Diálogo realizado em julho de 2005.
48
Diálogo realizado em agosto de 2005.
30
guardam uma experiência sensorial que quem incorpora sabe. Sente-se intuição, energias,
entre outras coisas, como mostram as palavras de Pai Gledson:
Vamos dizer, eu estou normal. Então vêm aquelas intuições: o que eu tenho que
fazer… tudo bem… Então na batida do atabaque, então ali a gente vai recebendo aqueles
fluidos. Então através dos fluidos é que a gente vai se manifestando, vai descontraindo, (…)
você vai começando a descontrair, a… é como se fosse assim: seu corpo é duro, então você se
torn… o seu corpo vai ficando flexível, entendeu. É como se o tambor, nas batidas, nas
pancadas, então aquele tambor dá uma influência, dá um ritmo. É como se você fosse assim…
você vai numa festa, voestá numa festa, então tem uma música que você gosta (…). Então
tem delas que voestá nem aí, então aquela que você gosta você fica assanhado… está
entendendo o que eu quero dizer, né. (…) Os pontos cantados dão aquela intuição, então na
medida que a gente canta e a gente se alegra espiritualmente vai tipo assim… se entregando,
se entregando entre aspas, se entregando para que haja uma incorporação.
Então, por exemplo: quando vai iniciar uma gira, eu noto que em certo momento,
antes de incorporar, você já começa a cantar diferente. Por exemplo: gritando mais…
Isso. Quer dizer, ali é como se a energia daquela determinada entidade, daquela
linha, daquele caboclo, vem se aproximando. Então, quer dizer, começa com tom leve,
como sua observação aí, então na medida que eu estou baixo, significa dizer que eu estou
normal, sem uma energia. Então a partir do momento que muda, que já muda, que aumenta o
tom, então ali já começa a absorver, a contrair uma energia dele para poder dar continuidade
ao trabalho, incorporação…
49
Como foi sugerido, todo esse processo de preparação tem um direcionamento que
visa a finalidade dos trabalhos. Isto fica ainda mais evidente nas palavras de Pai Salviano ao
falar sobre esses preciosos instantes em que se prepara para incorporar:
− Para começar a gira você sempre fica cantando… dançando… não é?
É a preparação da concentração para a incorporação, entendeu? A gente bate o
tambor, chama o ogã, para bater o tambor, para entrar em sintonia com o orixá, com a
entidade, canta-se os pontos, rufla-se o tambor e o pai de santo vai entrar em comunicação
com o orixá, para vir a energia da incorporação.
49
Diálogo realizado em setembro de 2009.
31
− E durante esse momento de concentração… em quê você pensa?
Eu penso na incorporação, naquela entidade, naquele orixá, naquela linha a qual
vou chamar. Não posso pensar noutra coisa… se eu mudar o pensamento eu saio de
concentração. A concentração é o seguinte: você está precisando de uma linha, naquela linha
você vai precisar de uma entidade ou de um orixá daquela linha, você vai entrar em sintonia
com aquela linha, com aquele orixá, para ir buscar ele, para ele vir e socorrer você da maneira
que você quiser, ele atender seu pedido dentro do seu trabalho.
− E durante essa concentração você canta bastante, não é isso?
É cantado… quer dizer, no próprio instante que eu começar a cantar, é uma
maneira de saudar eles, de saudar eles, de entrar em comunicação com eles, na hora que eu
canto. Geralmente todo ponto fala o nome do orixá ou da entidade de acordo com o ponto. Se
eu cantar o ponto para Ogum, e eu preciso falar com o orixá Ogum, é claro que eu tenho que
cantar para Ogum, então ele vai me ouvir e vai entrar em sintonia comigo até a incorporação.
(…) O ponto cantado é o seguinte: você quer falar comigo, você vai e liga, né? Você tem que
digitar os números, você liga para poder falar comigo. Assim somos nós com os orixás. Nós
não ligamos porque orixá não usa telefone, mas a maneira de se ligar com eles e eles se
ligarem com a gente é cantando o ponto, dançando, defumando, tocando, para ele entrar em
radiação com a gente.
50
Quando a primeira entidade chega começa a trabalhar. Daí em diante elas vão se
sucedendo. Depois de trabalhar, de fazer a sua parte, a entidade incorporada, seja qual for,
vai embora, dando imediatamente lugar à outra. As contínuas saídas e chegadas de entidades
durante a gira sempre exigem um movimento corporal, por mínimo que seja, que explicita a
transição e a chegada de uma entidade diferente da anterior, demarcando uma outra
corporeidade. Trata-se de uma transição dentro do estado de possessão instalado. Não
uma quebra ou ruptura com o estado de “transe de possessão”. E a gira continua assim até que
venha a última entidade a ser recebida e aconteça a desincorporação, que é muito parecida
com a incorporação, só que com movimentos que indicam a saída de algo do corpo.
É verdade que incorporação é um termo mais usado do que possessão nos terreiros
onde realizei pesquisa de campo. Aqui, alterno entre o uso do termo incorporação, categoria
nativa dos umbandistas, e o termo transe de possessão, este último definido por Maria Helena
Villas Boas Concone. O transe de possessão é estudado por Concone sob dois prismas: como
50
Diálogo realizado em setembro de 2009.
32
fenômeno geral, não necessariamente ligado à umbanda, mas também como fenômeno
específico da umbanda, segundo a perspectiva dos umbandistas, como estes a explicam, como
avaliam a mediunidade e as qualidades do médium. Segundo ela, o uso da expressão transe de
possessão responde à uma necessidade de articular dois universos de explicação distintos.
Enquanto o transe, termo psiquiátrico que se refere a estados dissociativos, aplica-se a
situações de alteração somática e descontinuidade das “funções da personalidade” e dos
“padrões comportamentais”, o termo possessão denota, por sua vez, “uma crença de que tal
dissociação, quando ocorre, se explica pela presença em determinado indivíduo, de seres ou
forças sobrenaturais”
51
. Assim, a autora mostra que existem vários tipos de transe, e induzidos
de variadas formas por agentes físicos, bioquímicos, psíquicos, etc., como o jejum, a auto-
flagelação, uso do tabaco, efeitos hipnóticos, a música, a dança, ou mesmo, com muita
freqüência, mais de um desses agentes ao mesmo tempo. A possessão pelas entidades é,
portanto, uma das possibilidades de transe existentes.
Como se viu, existem elementos que auxiliam o médium umbandista a se concentrar e
conseguir o transe de possessão, isto é, a incorporar, como as batidas do tambor e os pontos
cantados. A música é quase sempre o chamado da entidade, daí o nome ponto de chamada. A
concentração, que mira toda a energia do corpo pensante numa entidade específica é requisito
básico para se concretizar a descida da primeira entidade. Porém, tudo isso não é regra. Dona
Terezinha me diz que ela consegue incorporar a Pomba Gira em qualquer momento ou lugar,
basta querer. E que o fez, por exemplo, em plena mesa de um bar. Mas devido sua maneira
“discreta” de incorporar, somente as pessoas da mesa notaram o que se deu.
A concentração, até mesmo em detrimento da música e outros chamados, é um dos
requisitos mais exaltados. Uma vez Chiquinho, presidente do terreiro de Dona Terezinha,
comentava que um dos problemas de fazer gira fora do terreiro, nas águas, encruzilhadas,
matas, era quando apareciam curiosos para ficar olhando de longe, pois tirava a
concentração, fator indispensável ao fazer mágico-religioso umbandista. É significativo que
no início das giras em Dona Terezinha seja entoado o seguinte ponto:
Peço força a Iemanjá!
Peço força a Sereia!
Para trazer nossas correntes
Que é para nós se concentrar!
51
Concone, 1987, p.100.
33
Ao invés de buscar quaisquer prováveis causas somato-sensoriais da possessão, mais
interessante é pôr o olho sobre as sensações que ela suscita, bem como conduzir a atenção
para sua construção e seu uso nesses contextos interativos, observando os significados e
finalidades dessa possessão
52
. O que sentem os umbandistas quando estão prestes a
incorporar? Sensações variadas, com certeza. Dona Terezinha, com seus 73 anos de idade,
segundo me relatou, sente uma juventude invadindo o seu corpo, como se ficasse bem mais
forte e saudável. Ela diz que quando começa a cantar e orar, no início da gira, logo sente sua
força ir aumentando e, aos poucos, vai deixando de sentir o chão. Daí em diante fica
inconsciente e não sente nem lembra mais de nada. Essa alteração mnemônica é relatado por
todos os pais e mães-de-santo. Pai Gledson é um dos exemplos:
− E quando a entidade se aproxima ao ponto de você começar a incorporar, o que você
sente?
− Ali a gente perde, na medida em que eles vão se aproximando a gente vai perdendo a
consciência. Então é como se fosse… você apaga! Você apagou. (…) Na aproximação deles
você vai sair de si, perde a consciência. É como se você fosse dormir. Pronto. Você vai, você
dorme, você não sabe o que você está fazendo. Você pegou no sono, pronto, ali você não
sabe. Então ali é onde a passagem: a entidade entra, o anjo de guarda fica próximo, porque
ele não pode se afastar da gente, então a entidade fica regendo. Então assim, é até perigoso,
52
Rabelo, 2008.
Gira no Terreiro de Dona Terezinha. FOTO: Melquíades Jr. – 2010.
34
digamos assim, da grossura de um fio de cabelo da entidade pro anjo de guarda. Nesse
espaço… ou numa incorporação ou para desincorporar, pode entrar uma entidade negativa e
baldear
53
tudo, entendeu. Quer dizer, no espaço de um fio de cabelo pode entrar um
perturbador, digamos assim, uma entidade ruim e complicar toda a situação.
54
Pai Salviano fala dessa inconsciência fazendo uma relação direta com a eficácia dos
trabalhos:
Vai chegando, vai chegando, cada vez mais, ele vai vindo. A energia dele vai se
aproximando, que ele começa de longe, ele não vem duma vez, vem de longe a energia dele,
você vai sabendo que ele vai chegando. Até chegar a vibração do orixá, que é a
incorporação, a energia vai chegando e vai vibrando, vai vibrando, vibrando até ele
incorporar. Quando ele incorpora não sei mais o que acontece, fica por conta do orixá.
− Mas existe o médium consciente, não é? Você não consegue [ficar consciente
enquanto incorporado]?
Não, não consigo, muitos anos que eu perdi a consciência, eu com uns quatro
anos, vamos botar de uns quatro a cinco anos, eu até que tinha consciência, fui perdendo…
fui perdendo… chegou num nível de eu não…
− Mas isso é vantagem ou desvantagem?
Olhe, existe uma pergunta dentro da umbanda, baseado nisso aí: vai um avião cheio
de passageiros, vai o piloto ali, o piloto vai e liga o piloto automático, não é isso? E o piloto
vai dormir. O avião está mais seguro na mão do piloto ou do piloto automático? Onde é que
ele está mais seguro?
(pausa)
− Eu acho que nas mãos do piloto.
− Do piloto automático não está muito seguro não, né? Assim é o médium consciente e
o médium inconsciente, para si próprio, você entendeu? Para si próprio, por causa de que o
médium inconsciente se chegar uma pessoa, você estando incorporado, sendo médium
inconsciente e quiser fazer o mal a si próprio, faz… porque você está inconsciente, se pedir a
uma entidade para fazer uma coisa para si próprio, ele estando consciente ele não faz, mas ele
estando inconsciente ele faz para si próprio, se o orixá mandar, se a pessoa mandar aquela
53
Baldear, neste momento, refere-se a possibilidade de bagunçar algo que deve acontecer com muito cuidado, a
saber, a desincorporação.
54
Diálogo realizado em setembro de 2009.
35
entidade castigar você, em você mesmo castiga, por quê? Porque você é um médium
inconsciente, você está entregue completamente aquela entidade.
− Mas, por esse ponto de vista aí parece uma desvantagem… não?
− Mas para efeito de trabalho o inconsciente é cem por cento entidade, entendeu? Para
efeito de trabalho… o consciente é cinqüenta por cento!
55
As palavras de Pai Salviano descrevem um movimento onde quanto mais ausente a
consciência, mais potencializado o corpo. Mas aqui se entenda o corpo em sentido pleno: não
são somente os gestos da entidade que irão ali ganhar movimento. É toda sua personalidade,
sua história de vida, seus traços culturais, seus valores, seu caráter. Potencialização significa
portanto o aumento daquilo de que deriva essa palavra: potência. Quanto mais a entidade
toma o corpo do pai ou mãe-se-santo para si, quanto maior sua presença, maior a pujança e
eficácia nos trabalhos.
Quem assiste as entidades trabalharem percebe um aumento significativo na força e
resistência física no corpo de quem incorporou. vi Dona Terezinha incorporada, com seus
mais de setenta anos, estatura baixa e corpo franzino, pôr nas costas um sujeito alto e pesado.
Garanto que jamais ela conseguiria se estivesse em terra, como se diz quando se está sem a
entidade. O aumento da força e resistência é algo que se pode dizer comum ao transe
umbandista. E isso não depende de qual entidade está sendo incorporada. Pode ser até um
preto-velho, como nos diz Salviano.
Na hora que a energia chega você se sente, vamos dizer assim… no meu caso: eu
sou um Salviano, na hora que a incorporação chega eu me sinto uma meia dúzia, sinto
bastante energia, bastante disposição. Na hora que vem chegando, se fosse para pegar um
touro brabo naquela hora eu estava disposto.
− Mesmo que seja um preto-velho?
− Seja a entidade que for! A energia daquele orixá traz essa força
Mais do que os sacolejos, tremores e contorções que parecem destroçar o corpo do
médium em pedaços no instante exato da incorporação, o ato de entregar o corpo à uma
entidade envolve uma experiência corporal singular. Há uma gama de sensações que invadem
o corpo do médium e que não nos é possível enxergar. Uma conversa com Pai Salviano sobre
o que ele sente um pouco antes de incorporar foi muito rica a esse respeito, onde inúmeras
55
Diálogo realizado em setembro de 2009.
36
sensações diretamente relacionadas com as características de algumas entidades foram
descritas:
− A energia dos preto-velhos, a energia de preto-velho, ela começa a chegar no
médium dando um redemoinho no espinhaço, do cangote até o final da coluna, rodando…
− Rodando como se fosse o quê?
− Como se fosse assim um… redemoinho. Um furacão.
− Um vento, então?
Um vento. Vai correndo nas suas costas, na sua coluna vai correndo, vai correndo,
vai correndo até chegar na parte dos quadris aqui. Quando chega nos quadris o médium já está
em posição de velho. (…) Sua voz começa a engrossar, ficar rouca…
− Isso você ainda lembra?
Lembro. Na aproximação dele sua língua vai engrossando, você vai sentindo assim,
um aperto na garganta, que é o motivo dos preto-velhos falarem daquele jeito na
incorporação, grosso, né? Uma voz arrastada e… uma voz de velho mesmo! a do erê, da
linha de Ibeji Beijada, a incorporação dos Ibeijada, você por mais adulto que seja, por mais
velho que seja, começa a querer achar graça, querer ficar traquino, malino, querendo brincar,
pinotar, rodar, essa é a incorporação do erê. (…) Aquela alegria dentro de você, se for, isso
bem entendido, se vofor fazer cada um essa chamada assim. Agora, se você tiver feito a
primeira chamada, já tiver incorporado, vai passando linha por linha você não sabe de nada
não, isso é no caso se for abrir a linha.
− E a incorporação dos exus, o que você sente…?
− A preparação do exu é aquela que é fogo, é aquela quentura forte com a sensação de
povo de encruzilhada mesmo, que só o médium sabe, né? Uma sensação de povo de
encruzilhada mesmo: cheiro de marafa, cheiro de pimenta, ardendo no nariz, cheiro da marafa
com cheiro da pimenta, o cheiro do dendê vem muito, o cheiro do charuto… na hora da
incorporação pode não ter ninguém fumando, ninguém estar usando charuto naquela hora,
pode não estar usando a marafa, pode não estar usando o dendê. A incorporação perfeita do
exu chega tudo isso no seu nariz e vai tomando conta de você, até a incorporação de exu.
− E a temperatura?
− A temperatura quente que você jura que está com uma febre de quarenta graus. Você
sente aquela quentura dos pés, vindo até a cintura e as orelhas esquentam que parece que tem
passado pimenta.
(…)
37
− Dos caboclos, dos índios…?
− A aproximação deles?
− Sim.
− É como você se sente, se sente… você vai se sentindo que você está no meio de uma
aldeia, na mata, rodeado de caboclo, tocando tambor, dançando, gritando, naquela
manifestação deles, como que seja uma realidade. Está passando um filme na sua cabeça ali,
você está vendo tudo aquilo, sem ser evidente, a mente faz com que você se sinta daquele
jeito para poder vim a incorporação.
− Mas você sente ou você vê… como é?
− O vidente vê…
− Você?
Eu, minha pessoa… sinto, sinto de uma maneira que serei capaz até de desenhar a
maneira que eles estão, sem ver…
− Me descreva, como se fosse um desenho…
Eles feito círculo, dançando, ao redor de uma fogueira ou de uma caça, assando,
uma caça. Na frente de uma oca, que chama, de índio. Uma casinha de palha daquele modelo
deles, eu me sinto assim… na beira de um rio, de um lago, ou então dentro de uma floresta
muito verde, muito alta a mata, fechada, correndo dentro em cavalo ou a pé.
− Escuta alguma coisa?
Escuto. A concentração sendo bem feita, mesmo sem você ser vidente nem ouvinte,
mas a concentração bem feita, naquele momento você está ouvindo e vendo, sem ser vidente,
de acordo com a sua concentração.
− Você escuta o que?
Se for em terra, assim, eles tocando… os pontos, é… em ioruba, em tupi guarani…
Terá pontos em que eu sei até quais são os pontos, mas têm vezes que eles falam em tupi
guarani que não dá para mim descrever como é, porque eu não estudei tupi guarani.
− Escuta os gritos…?
Os gritos de guerra deles, deles guerrearem, entendeu? Como que seja um filme,
como que seja um filme sem ser história de quadrinho.
A descrição de Pai Salviano mostra que no instante efêmero que marca a aproximação
da entidade e antecede a passagem para a incorporação o médium ainda experimenta um
pouco dessa nova corporeidade que se exercerá em seu próprio corpo. Quem não experiencia
isto, ou seja, os cambonos, auxiliares dos médiuns incorporados, os clientes, os curiosos, entre
38
outros, tem como vivenciar de forma visual os movimentos corporais que anunciam a
chegada da primeira entidade da noite. Esta, logo que chega, começa a trabalhar. Daí em
diante elas vão se sucedendo. Depois de trabalhar, de fazer a sua parte, a entidade
incorporada, seja qual for, vai embora, dando imediatamente lugar à outra. As contínuas
saídas e entradas de entidades durante a gira sempre provocam um movimento corporal que
explicita a transição e a chegada de uma entidade diferente da anterior, demarcando uma outra
corporeidade. Trata-se de uma transição dentro do estado de possessão instalado. Não
uma quebra ou ruptura com o estado de “transe de possessão”. A gira continua assim até que
aconteça a desincorporação, que é muito parecida com a incorporação, que com
movimentos que indicam a saída de algo do corpo.
Pode-se falar na existência de modalidades de incorporação, visto que as pessoas se
diferenciam na maneira de fazê-lo. A de algumas é mais calma, de outras é mais tremida, de
outras é marcada por violentos sacolejos, etc. Abordei o assunto com Pai Salviano. De início,
ele atribuiu as diferentes modalidades ao tipo de entidade que está sendo incorporada:
Isso é porque cada linha, cada orixá, tem uma manifestação diferente. A
manifestação do exu muito violenta, porque a energia dele é muito forte, entendeu? Ele é uma
entidade, por si, da terra, o exu. (…) Ele é uma entidade violenta assim, a incorporação dele,
porque ele é muito agitado… ele é quente… e eles são um pessoal que precisa ser muito
doutrinado, porque quase todos eles são selvagens, pela primeira vez num médium. Com a
doutrina é que ele vai sendo doutrinado e vai fazendo as incorporações com mais calma. Mas
eles são meio violentos, a manifestação deles. o um pessoal muito, vamos dizer assim, não
vou dizer grosseiro, mas de uma energia muito forte.
− Mas como é essa doutrinação?
Doutrinação é que nem o professor: você vai doutrinar um aluno, dar os
ensinamentos a ele. Não é ensinar ele [o exu] a trabalhar e sim a se comportar. Você vai
desenvolver um médium, você não vai ensinar ele a trabalhar , porque a entidade sabe
trabalhar, e sim como chegar, como se dar entidade e o aparelho.
Mas, por exemplo, Pilintra, quando ele incorpora a primeira vez num médium,
então ele vai ser meio violento assim?
Vai. Uma entidade, um encantado, um mestre, um orixá, quando vai baixar pela
primeira vez num médium, ele duas arriações: ou ele fica um pouco violento, ou parado
demais, sem querer falar, você vai doutrinar ele pra que ele solte a voz, que no caso é o
39
ponto, né, cantando, pra ele se identificar quem é ele, vai doutrinando ele, até ele tornar-se
familiar com o próprio aparelho.
− Mas, porque que precisa disso, se em outro aparelho ele chega já sabendo de tudo?
Porque cada coroa tem sua sentença. Se ele é acostumado na minha coroa, no meu
trabalho, na minha matéria, na sua não é. (…) Ele, para você, vai nascer. Para mim, para mim
ele nasceu, mas para você vai nascer. Vai ter que se acostumar aquela energia, daquela
entidade com a sua energia. Porque são duas energia, a da matéria que vai receber e a entidade
que vem. (…) Entre os dois, tem que haver sintonia, tipo um diálogo entre o guia e entre
aquele aparelho que vai receber ele. Se você nunca tomou um choque, quando você toma um
choque pela primeira vez você acha que o mundo vai se acabar, né? É um impacto grande em
você. Mas se você treinar todo dia a levar, meter o dedo na tomada, chega ao ponto que você
leva aquele choque, você se acostumou, pronto, não sendo um choque grande, que lhe mate,
sendo uma voltagem que o seu coração agüente, chega ao ponto de você se acostumar. Mas se
nunca levou um choque, quando leva o primeiro você leva um impacto grande. Assim é a
energia da entidade: se você é acostumada com ela, ela é acostumada a fazer passagem
na sua matéria, então para você é mais fácil, você doutrinado. Mas se não foi ainda, você
vai sofrer, vai se debater com aquela energia.
56
Como se vê, a presença de outro ser, com uma nova corporeidade, não acontece
automaticamente. Um profundo grau de acomodação e identificação é necessário para
construir essa simbiose. Nós, que quase só assistimos, vemos o tronco de Salviano ficar
curvado, mas se contorcendo, como fosse se quebrar. Sons guturais de difícil codificação são
emitidos durante os movimentos. Seus filhos-de-santo, que tiveram e têm seu
desenvolvimento mediúnico dirigido por ele, passam pelo processo de incorporação de modo
muito semelhante, o que sugere o aprendizado desta modalidade. O mesmo se pode dizer de
Dona Luiza: sua incorporação se através de tremores quase convulsivos misturados a uma
respiração difícil, como se ela estivesse sufocada. E do mesmo modo fazem seus três filhos-
de-santo. Os dois casos, Pai Salviano e Dona Luiza, apesar de diferentes entre si, é como se a
entidade causasse inicialmente um caos no corpo do médium para poder entrar.
Ao contrário dessa modalidade, Dona Terezinha tem uma incorporação calminha, sem
tremores, contorções ou ruídos vocais. Apenas um leve movimento com os braços abertos,
como quem se defende de um vento forte que bateu de súbito pela frente. É como se a
56
Diálogo realizado em setembro de 2009.
40
entidade entrasse macia e com delicadeza. Ao fim da gira, ela se sente fisicamente bem, a não
ser que a corrente formada pelos filhos-de-santo tenha ficado muito desconcentrada e
conversando constantemente. Quando isso acontece, ela sente um peso e um incômodo no
corpo. A incorporação de Dona Luiza, ao contrário, implica de qualquer modo um esforço tão
grande que faz com que ela necessite de ajuda quando desincorpora. Fica sem fôlego,
cansada, recebendo abanadas que tentam refrescar o calor que toma seu corpo por inteiro.
Enquanto isso, Pai Gledson pode ser situado como estando entre os dois pólos. Não tem uma
incorporação de causar espanto aos desavisados, mas também não se de forma tão calma
como o de Dona Terezinha. Na entrada da primeira entidade seu corpo vai para trás e para
frente, ao mesmo tempo que o pé fica batendo forte no chão e o braço direito passando na
altura do pescoço. É como se ele fosse recebendo a entidade aos poucos, moderadamente.
Mas, afinal, seja qual for o estilo de incorporação, esses movimentos desorganizam o
corpo do indivíduo para, na reorganização, romper as barreiras de sua corporeidade. Como
diz Rodrigues, na “passagem do perder e do ganhar, o corpo apresenta uma comoção e em
seguida se reorganiza, se reequilibra para transformar-se em nova configuração o da
Contorções corporais no momento da primeira incorporação de Pai Gledson.
FOTO: Melquíades Jr – 2010.
41
entidade que recebeu”
57
. Somente a partir dessa passagem o contato com aqueles que virão
para ajudar, as entidades, é possível. Portanto, a possibilidade de desfazer sofrimentos através
de um trabalho passa inevitavelmente pela possessão. Assim, “o transe de possessão é parte
de um ritual que só pode ser interpretado no conjunto do seu universo”
58
. Esse transe sintetiza
o instante onde uma fusão, e um rompimento das fronteiras, entre o “eu”, isto é, o pai ou
mãe-de-santo, e o “outro”, as entidades
59
. São elas que vêm consultar, levantar, limpar,
ensinar, aconselhar e realizar os trabalhos. A partir desse momento-chave a pessoa do chefe
de culto sai de cena, seu corpo passa a ser o palco das entidades, e o terreiro transforma-se
num teatro.
1.3. QUANDO O CORPO É O PALCO
A inter-relação entre homens e espíritos é o pão de cada dia
dos médiuns e do cotidiano das casas religiosas.
Patrícia Birman
Segundo Patrícia Birman, dentre as dificuldades que têm acompanhado com muita
freqüência os estudos sobre os cultos de possessão no Brasil, uma das mais importantes “diz
respeito à relação dos pesquisadores com a própria noção de possessão”, muitas vezes
encarada por estes de maneira distinta dos religiosos, visto que os primeiros costumam
considerar “ireal” os efeitos e produtos da possessão, real para seus paraticantes.
60
Muitos antropólogos, aliás, já nos contaram em seus livros e artigos as
dúvidas vividas por seus informantes sobre a veracidade do transe e, em
conseqüência, da identidade do sujeito com o qual estavam em relação. Mas
a dúvida, quando manifesta pelos religiosos, não exclui a possibilidade do
evento; somente questiona a sua ocorrência naquele momento preciso.
61
Unir uma abordagem antropológica da atuação das entidades à perspectiva
umbandista, isto é, à perspectiva que reconhece a agência das entidades, talvez permita uma
57
Rodrigues, 2005, p.31.
58
Concone, 1987, p.126.
59
Morini, 2007.
60
Birman, 2005, p.403.
61
Birman, 2005, p.407.
42
compreensão mais sensível do fenômeno. E a noção de experiência vai nesse sentido, dizendo
respeito tanto sente na pele a incorporação quanto a quem interage com os seres incorporados.
Se desde que a gira se inicia, com seus cantos, palmas, dança, defumação, orações e
saudações o corpo começa a trabalhar, é, no entanto, a incorporação que marca, através de
seus movimentos, a ruptura e a passagem para novas corporeidades: das entidades. A partir
da primeira incorporação o corpo do pai ou mãe-de-santo passará a ser vários, irá se
transformar continuamente e viver diversos padrões de corporeidade: da criança ao velho, do
malandro ao boiadeiro ou vaqueiro, do índio ao preto-velho, ao cigano, do exu à pomba gira,
à mulher de sexualidade desinibida. A partir da possessão o espetáculo do corpo se expande e
todos os gestos rituais, assim como as diversas maneiras de andar, parar, dançar, olhar, etc.,
das inúmeras entidades, virão à tona no espaço de um único corpo. Os significados da
possessão permitem, aos olhos dos filhos-de-santo e dos clientes, que um corpo socialmente
construído ganhe plasticidade e possa se desconstruir e reconstruir em séries intermináveis.
Nos instantes que marcam a passagem para a incorporação o médium ainda
experimenta um pouco dessa nova corporeidade que se exercerá em seu próprio corpo, como
sugere uma fala de Pai Gledson:
Agora, a partir do momento que você recebe a influência daquela entidade, e que
você vai perdendo sua consciência, quer dizer vai tipo assim… monitorando, vai dominando,
vai incorporando… você pode ir tomando a atitude daquela entidade, “baiar”, dançar, o
timbre de voz, porque cada entidade tem um tom de voz. Cada entidade tem um gesto, uma
forma de andar, uma forma de ser e… timbre de voz… até forma também de agir, assim, de
agir… de atitude, de falar, (…) vamos supor: uma atitude eu ajo de um jeito, a mesma atitude
você age de outra forma. Está entendendo o que eu quero dizer, né? Os caminhos são os
mesmos mas… é como se fosse uma palavra, mas tem vários significados.
62
Conforme o pensamento de Mauss, a “posição dos braços e das mãos enquanto se
anda é uma idiossincrasia social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e
mecanismos puramente individuais”
63
. Assim, pode-se pensar no andar específico de cada
entidade, nos movimentos de seus braços e os, como andares de grupos sociais, ou de
identidades sociais em relação com os ritos mágico-religiosos, pois performances também
62
Diálogo realizado em setembro de 2009.
63
Mauss, 2003, p.404.
43
afirmam identidades
64
. A esse respeito, é interessante notar que quando o médium está
incorporado mas não está trabalhando, esperando outra entidade terminar para enfim ter a
“permissão”, fica andando vagarosamente, pernas arqueadas, braços um pouco abertos e
cabeça baixa, como se estivesse sem identidade, amorfo.
Grande parte da literatura clássica e recente sobre a umbanda é afeita a descrever a
atuação e o comportamento das entidades durante as giras. Mas corriqueiramente esta
descrição é descrição, como que para encher de dados o texto etnográfico. Isto se
porque ao mesmo instante que muito se estuda a umbanda, sua linguagem corporal é
geralmente negligenciada enquanto fator para se deter
65
. Mas sempre aparece de passagem, e
virou quase tradição descrever as entidades, alguns de seus gestos e a possessão. Aqui nesta
pesquisa um foco primeiro: a corporeidade, e a relação desta com os trabalhos. Por isso,
não irei aqui me deter em descrever o enorme novelo de linhas e entidades específicas que
descem nos quatro terreiros em que pesquiso. Falarei um pouco somente daquelas entidades
mais cultuadas, as que realizam mais trabalhos, nos terreiros que estudo e, desde já,
assumindo que qualquer descrição desse movimento dramático, por mais pormenorizado que
seja, não é capaz de transmiti-lo em sua plenitude, como bem lembra a bailarina, pesquisadora
e intérprete Graziela Rodrigues.
66
Começo pelos exus, que são sempre tidos como sérios. No terreiro de Pai Gledson, os
exus mantém o rosto sempre endurecido e não conversam com ninguém, a não ser uma coisa
ou outra com a cambona. Pai Gledson os descreve:
O exu é mais severo. Ele é mais, como é que se dizele não brinca. Não tem
conversa com ele. A conversa dele é curta. Ele não brinca, a conversa dele é curta, ele é
severo. Pronto. Fala pouco.
Ainda neste terreiro, quando da gira específica para exus, o posicionamento de
todos os presentes é invertido: os homens ficam nos lugares das mulheres, e as mulheres nos
lugares dos homens. As entidades exus, ao invés de ficarem próximas ao congá, ficam do lado
oposto. Os tocadores passam para frente do congá. Essa inversão se dá devido a posição
64
Schechner, 2003.
65
exceções sobre esse assunto. O livro Bailarino, Pesquisador Intérprete, de Graziela Rodrigues é uma
delas, assim como o artigo Análise do Movimento em Rituais Umbandistas, de Barbosa e Bairrão. Este último
olha a linguagem corporal umbandista que se nas giras utilizando o método laban, que analisa, a partir de
elementos corporais de “esforço”, a movimentação corporal em relação aos conceitos de peso, tempo, espaço e
fluência. Já a respeito do candomblé, um maior número de estudos sobre este assunto, como a recente a tese
de Rosamaria Barbara, A Dança das Aiabás.
66
Rodrigues, 2005.
44
peculiar que os exus ocupam no panteão umbandista, entidades que retiram o ambiente da
direita e instalam a esquerda. No dia em que essa gira para exu poucas pessoas aparecem
no terreiro. Muitas têm medo, outras acham que não agüentam a carga pesada de energia que,
considera-se, eles comportam. Mas volta e meia é preciso recorrer a eles, por isso sempre
quem se identifique. Dona Francisca, a pessoa de idade mais avançada que freqüenta o
terreiro de Pai Gledson, comenta:
As meninas têm muito medo quando é gira de exu, aí quase todo mundo, no dia que
diz assim: “hoje é”, quase não vai ninguém, porque tem medo. Mas eu não sei porque eu…
não sei se é porque uma vez ele me avisou uma coisa comigo que estava se passando aqui em
casa e eu não estava sabendo, e ele me chamou e fez eu me abaixar encostado a ele e me
contou o que estava se passando, que eu não sabia do problema que estava se passando na
minha casa. Mas não tenho medo. Sei que é pesado, mas eu o tenho medo. No dia que é
gira de exu não tenho medo não. Mas muita gente não vai com medo, porque é pesado. Eu sei
que ali… o negócio ali é sério. Vaval
67
umas poucas de vezes caiu ciscando, na hora do
exu, não sei que tipo de coisa ele estava pensando. Às vezes é o pensamento da pessoa que
não está igual com o dos outros, ele [o exu] “Tome!” derruba. Eu num sei o que ele
estava pensando, sei que uma vez ele rolou lá…
68
Tido, além de sério, como pesado, o exu é uma categoria de entidade considerada de
esquerda, e nos terreiros limoeirenses é valorizada por conta disso, sendo esclarecedora a
constante repetição de que “Uma banda com exu, é tudo! Uma banda sem exu, não é nada!”,
dito várias vezes em todas as giras de exu no terreiro de Pai Salviano. Uma declaração de Pai
Gledson, sobre a importância dos exus, é esclarecedora:
Porque é o mesmo caso: para você ligar uma mpada tem que ter o fio positivo e o
fio negativo. Então o exu por ele ser negativo, e a umbanda vamos dizer assim… os caboclos
sejam da linha branca, então é como se fosse o positivo e o exu o negativo, entendeu. Certo
que existem duas palavras mais sentido de falar, mas eu vou falar assim mais rasteiro
69
.
67
Vaval é o apelido de um dos ogãs que já passaram pelo terreiro São Jorge Guerreiro, de Pai Gledson.
68
Diálogo realizado em julho de 2005.
69
Diálogo realizado em agosto de 2005.
45
João Caveira, Ventania, Sete Encruzilhada, são alguns de seus nomes. Alguns andam
arrastando os pés, o tronco curvado, os braços para trás com as mãos em forma de garras. Não
gostam muito de falar, e quando o fazem exibem uma vocalidade quase que completamente
gutural. Outros, como Tranca-Rua, um dos mais cultuados, apesar do temperamento sisudo,
caminha em postura ereta e conversa normalmente, porque seria “mais evoluído”.
Essa corporeidade pertence a uma categoria de espírito que lida com trabalhos
pesados, como a desmancha de todo os tipos de demanda. Enfrentar a carga negativa de uma
demanda não combinaria com uma corporeidade frágil, brincalhona ou delicada. Trata-se de
“magia negra”, na concepção dos umbandistas. Às vezes as demandas provocam doenças,
separam casais, levam à falência econômica, de forma que desmanchá-la significa repor o que
se perdeu. Destruir uma demanda pode significar então uma cura, um emprego recuperado ou
o amor de volta à porta de casa. Mas a carga de energia negativa a ser tirada é tão grande que
não cabe, por exemplo, a um preto-velho, e sim a um exu, que suporta toda negatividade.
Quando se passa para o gênero feminino da categoria exu encontramos as pombas
giras: mulheres poderosas, sensuais, às vezes desbocadas, algumas viveram em cabarés.
Contudo, nos terreiros das senhoras, Dona Luiza e Dona Terezinha, a corporeidade das
pombas giras não está tão ligada à expressão deste mundo da sexualidade explícita. Patrícia
Birman, que bem discorreu sobre as relações de gênero nos terreiros de umbanda e
candomblé, destacou que quando um homem incorpora uma pomba gira a atuação dela se
completamente diferente de quando isto se numa mulher, pois, numa sociedade como a
nossa, não ficaria bem para uma senhora se comportar aos moldes da sexualidade desinibida
das lebaras, as pombas giras
70
. Assim, será nos homens que elas irão liberar toda sua vontade
de existência corporal.
No terreiro de Pai Salviano, Maria Mulambo, Sete Saias, Cigana, entre outras, são
cultuadas a cada gira de exu, e sempre que vêm mostram postura imperiosa, ostentando poder.
Quando dão uma gargalhada, esta é estridente, debochada, e a acompanha o tronco e a cabeça
esticadas para trás em vibração. Na descrição de uma especialista em dança, as pombas giras
gostam de “portar-se sob os metatarsos (meia-ponta), atributos de sua vaidade. São
possuidoras de grande elasticidade e seus pés não apresentam limites de elaboração no
movimento”
71
.
Dançam sinuosamente, com prazer demonstrado no rosto e na desenvoltura do corpo.
Levantam uma parte da saia e mostram a perna, tudo num clima de gozo e desregramento.
70
Birman, 1995.
71
Rodrigues, 2005, p.47.
46
Fumam o cigarro “de maneira a deixar, algumas vezes, a mão que segura o cigarro com o
pulso virado, a mão ‘caída’, dando a impressão de uma mulher sensual, extrovertida e
desinibida”
72
. O andar de todas elas carrega o jogo de quadris da sedução feminina, o
rebolado. E quando param, “param ‘molinho’. O quadril se ajeita sobre uma perna, os braços
no quadril, o ombro de acordo com os braços e, assim, o corpo todo se acomoda, parecendo
obedecer à lei de mínimo esforço”
73
. Em Pai Gledson não se diferente. A mais cultuada
intitula-se somente de Pomba Gira, e segue todo esse perfil. As demais diferenciam-se dela
por pequenos detalhes. Essas pequenas diferenciações podem ser tratadas na verdade como
corporalidades, reservando-se o termo corporeidade para a modalidade coletiva, e usando a
corporalidade para designar a variabilidade das formas existentes dentro de uma dada
corporeidade.
74
Aqui procura-se a corporeidade, e não a corporalidade.
Uma mulher com estes requisitos tem, para os umbandistas, íntimas relações e
conhecimentos acerca dos sentimentos amorosos. Assim revela-se na justificativa que Pai
Gledson me deu para que Pomba Gira seja a responsável pelos trabalhos de amor:
Tem uma energia nela, por ela dominar os homens, então digamos, quando chega
homem querendo uma mulher, como tem uma mulher que queira um homem, então
credenciava-se, no meu ponto de vista, mais à ela, no sentido de fazer esse tipo de coisa, em
termo de trabalho de amor, ou seja, para união… amarração… para dominação.
75
A energia de dominar os homens citada por Pai Gledson é fundada na identidade
dessa personagem, construída a partir de uma narrativa mítica que diz que, em vida, ela
“dominou” sete homens e nenhum “usou ela”. Por esse motivo, ela sabe dominar os
sentimentos alheios, ou melhor, o amor alheio. Paulinho, um membro do terreiro de Pai
Gledson, assim se expressa a respeito de Pomba Gira:
Se eu estou com um problema aqui com minha esposa, briga por cima de briga, eu
chego e no pensamento peço “Ah sinhá [Pomba Gira], faça que na minha casa as coisas
fiquem em paz, que a minha mulher tenha mais amor por mim e eu mais por ela, que nós
72
Barbosa e Bairrão, 2008, p.228.
73
Barbosa e Bairrão, 2008, p.228.
74
Fougeray, 1998, p.295.
75
Diálogo realizado em janeiro de 2005.
47
tenhamos uma noite maravilhosa, no camarim, que chama cama…”, eu peço muito isso a
ela.
76
Assim, vê-se que a corporeidade posta em cena pelas pombas giras expressa uma
identidade e embasa o porquê delas serem as tutoras dos trabalhos de amor
. Tal relação pode
ser elucidada no ponto cantado:
Tem… tem, tem… lá no Egito tem… uma Pomba Gira boiadeira
Lá no Egito tem uma Pomba Gira boiadeira…
Ela veio do oriente, uma estrela clareou
Na passagem da magia quem arrasta ele é a cigana do amor
Quem domina ele é a cigana do amor.
Este ponto cantado reflete da forma mais explícita possível a ligação das pombas giras
com os trabalhos de amor. A referência à “cigana” diz respeito a uma delas em específico, a
Pomba Gira Cigana, uma mulher capaz de saber o presente, o passado e o futuro de qualquer
um, tendo poder sobre a vida do indivíduo por ter o conhecimento do seu destino. Ademais,
como sugere Queiroz, há no meio umbandista uma representação da personagem cigana como
mulher esperta e que, no jogo do amor, sempre se sai bem
77
. As implicações trazidas por este
ponto cantado ainda vão além. Pode parecer estranho ouvir que no Egito há uma pomba gira,
e que ainda por cima é boiadeira. Entretanto, esquecendo-se o Egito, que representa aqui um
lugar revestido de mistérios e maravilhas, lugar comumente relacionado no imaginário com a
origem dos ciganos, a frase Pomba Gira boiadeira, que surge de forma tão curiosa neste
ponto cantado, remete-nos à falar sobre as entidades da chamada linha de légua, e o caráter
simbólico expresso em sua gestualidade
78
. Vejamos Pai Gledson comentando sobre as
entidades da linha de légua que o assunto se tornará mais preciso:
− Como aqui, digamos assim, eu trabalho com o povo de légua. Mas aí o que
acontece? Quando eu quero arrastar alguém, arrastar alguma coisa, fazer uma amarração, eu
convoco eles para auxiliar a entidade que vai fazer o trabalho de amor. […] Léguas são as
76
Diálogo realizado em julho de 2005
77
Queiroz, 2008.
78
O conceito de gestualidade, na concepção de Le Breton (2006, p.44), refere-se às ações e movimentos do
corpo na interação, ou seja, quando os atores se encontram; entram aí, entre outros elementos, saudações,
movimentos da face e do corpo que acompanham as palavras, direcionamento do olhar, etc.
pessoas boiadeiras, a
ssim, como se
vaqueiro, de laçar o boi, laçar o boi e dominar
carroça. […
dono quer.
79
Os chamados
boiadeiros
Bugi Buá, Seu Boiadeiro,
são logo identificados pelo chapéu de
couro, pelos pontos que falam sobre ele
movimento de laçar com um dos braços
O uso do laço é o gesto
mais marcante
detalhado por Barbosa e Bairrão, seguindo criterioso método de
análise do movimento, este foi caracterizado como um
movimento circular com a
porém em tempos
diferentes. A mão que faz o movimento geralmente o faz
enquanto o outro braço pode manter
dedos”
80
.
Esse movimento com os braços é um gesto simbólico qu
mágico-religioso.
Eles não vêm para ajudar nenhum
que querem a todo custo um parceiro amoroso.
de Paulinho,
membro do terreiro de Pai Gledson,
Buá:
− É um caboclo o qu
entendendo. Por exemplo,
dela, quer que ela venha
para
Légua, arraste para
mim essa menina, amarre
no do mourão e tal.”
Porq
fosse…
tivesse pegando um boi brabo, no
antigamente faziam isso, traziam na força. Eles usam mais a força deles, da magia,
arrastar o que você quer, um emprego
arrasta.
81
79
Diálogo realizado em feve
reiro 2005.
80
Barbosa e Bairrão, 2008, p.229.
81
Diálogo realizado em julho de 2005.
ssim, como se
fossem vaqueiros, entendeu. É semelhante à atitude de
vaqueiro, de laçar o boi, laçar o boi e dominar
, botar o boi para a
] Ajeitar o boi do jeito que ele quer, entendeu, que o
boiadeiros
, como Antonio Vaqueiro, Légua
são logo identificados pelo chapéu de
couro, pelos pontos que falam sobre ele
s, bem como pelo
movimento de laçar com um dos braços
, como quem laça um boi.
mais marcante
de sua corporeidade. Bem
detalhado por Barbosa e Bairrão, seguindo criterioso método de
análise do movimento, este foi caracterizado como um
movimento circular com a
mão e com o cotovelo na mesma direção,
diferentes. A mão que faz o movimento geralmente o faz
enquanto o outro braço pode manter
-se
apoiado na cintura ou solto, enquanto a mão estala os
Esse movimento com os braços é um gesto simbólico qu
e o define
Eles não vêm para ajudar nenhum
fazendeiro
criador de gado, e sim aqueles
que querem a todo custo um parceiro amoroso.
Como é possível se
perceber também na fala
membro do terreiro de Pai Gledson,
ao comentar sobre a e
− É um caboclo o qu
ê? Caboclo boiadeiro, que é mais assim
para
entendendo. Por exemplo,
você tem uma menina, vo
gosta muito dela, quer
para
você. Ele [Seu Légua] chegou, vo
faz o pensamento: “Ô Seu
mim essa menina, amarre
para
mim ela, me entregue nas minhas mão
Porq
ue eles [as entidades da linha de légua
] faz
tivesse pegando um boi brabo, no
laço, e arrastasse para
o dono. Que os vaqueiro
antigamente faziam isso, traziam na força. Eles usam mais a força deles, da magia,
arrastar o que você quer, um emprego
ou namorada… (…) vo
pede ali que ele vem e
reiro 2005.
Barbosa e Bairrão, 2008, p.229.
Diálogo realizado em julho de 2005.
Antônio Vaqueiro, incorporado
em Pai Salviano.
Melquíades Jr.
48
fossem vaqueiros, entendeu. É semelhante à atitude de
diferentes. A mão que faz o movimento geralmente o faz
acima da cabeça,
apoiado na cintura ou solto, enquanto a mão estala os
e o define
enquanto agente
criador de gado, e sim aqueles
perceber também na fala
ao comentar sobre a e
ntidade Légua Bugi
para
fazer amarração está
gosta muito dela, quer
estar ao lado
faz o pensamento: “Ô Seu
mim ela, me entregue nas minhas mão
s…
] faz
em assim… como se
o dono. Que os vaqueiro
s
antigamente faziam isso, traziam na força. Eles usam mais a força deles, da magia,
para
pede ali que ele vem e
Antônio Vaqueiro, incorporado
em Pai Salviano.
FOTO:
Melquíades Jr.
– 2010.
49
A relação entre o gesto do boiadeiro que laça o boi, e que na umbanda possui a
habilidade também de laçar o coração de alguém, fazendo uma amarração, fica muito latente.
A sua gestualidade justificando ou estando de acordo com suas funções mágico-religiosas.
Quando a Pomba Gira recebe a qualificação de boiadeira, como no ponto cantado
suparacitado, ela tem reforçada sua ligação com os trabalhos de amor, priorizando as
amarrações. E qualquer entidade que acabe descendo nessa linha, a linha de légua, te
transferida para ela essa característica, até uma preta-velha como a Tia Maria. Segundo Pai
Gledson, a preta-velha Tia Maria freqüentemente ajuda Pomba Gira em seus trabalhos de
amor. Mas isso acontece quando ela desce na linha de légua, como está representado no
trecho de um ponto cantado:
Ô Tia Maria que vida é a sua?
É beber cachaça e cair na rua
Ô Tia Maria que vida é a sua?
É beber cachaça e cair na rua
Auêêê… Auááá… Ela é Tia Maria que vem trabalhar
Auêêê… Auááá… Ela é Tia Maria que vem trabalhar
Tia Maria na linha de légua
Tia Maria faz amarração
Tia Maria na linha de légua
Tia Maria resolve a questão
Mas os preto-velhos, afora esses casos de descer em outra linha, não têm muito a ver
com os trabalhos de amor. O caso acima citado foi apenas para reforçar que a corporeidade
dos boiadeiros está centrada em determinados gestos que indicam sua atuação mágico-
religiosa.
E da mesma forma se com eles, os preto-velhos, que fazem jus ao próprio nome:
trejeitos de corpo envelhecido, movimentos alquebrados. Andam curvados, devagar, pernas
trementes. Dão a entender a cada mínimo esforço que têm o corpo cansado. O “temperamento
bondoso”, manso, sua voz baixa, rouca e afável, coincide com os gestos vagarosos. Sentados
em um banquinho de madeira, uma mão deixada sobre a bengala e a outra ajeitando o
50
cachimbo Esses atributos de corporeidade pertencem a uma categoria espiritual que se dedica
a dar conselhos e realizar trabalhos de cura.
Já os caboclos, os índios, quando são incorporados anunciam-se logo através de
brados e gestos enérgicos. Costumam apoiar um dos joelhos no chão, dobrando esta perna e
deixando a outra esticada. Batem com os braços cruzados no peito. Sua expressão facial tem a
boca torcida para baixo, o fazendo parecer truculento. E fazem o gesto com os braços de
quem vai atirar uma flecha e está esticando a corda do arco. Este movimento representa tanto
a luta quanto a caça. Pai Salviano esclarece bem isso:
Por exemplo, o caboclo chega… o Oxossi, ele chega e bate as duas os aqui em
cima, é a maneira dele jogar uma flecha, ele está atirando a flecha… “eu atirei, eu atirei
ninguém viu, só boiadeiro é quem sabe, aonde a flecha caiu” (cantado), entendeu? É um gesto
de jogar a flecha, para atirar, atirando a flecha, ele está atirando, a função do caboclo não é
atirar flecha? Atirar, atirar da demanda, afastando a demanda, entendeu? Afastando aquela
energia negativa, afastando a demanda.
82
Quanto ao segundo aspecto, o da caça, os caboclos são associados a provedores, e
sempre lhes são ofertados presentes buscando resolver problemas materiais. uma ligação
das entidades da linha de Oxossi com os trabalhos de destranca, relativos ao lado financeiro.
Essas entidades são vistas como seres que trazem a fartura. Se alguma vez você não tiver o
que comer, coloque uma vela para Oxossi que ele vai lhe socorrer, assim ensina um ponto
cantado, e aponta a declaração de Paulinho:
Sobre os índios, os caboclos índios, eu sou muito assim… chegado a eles também.
Principalmente a Tupinambá, esses índios assim mais de força, de magia, de poder, certo. Sou
muito chegado a eles porque eles vêm para dar alevante a gente, para abrir os caminhos, para
parte assim de fartura. Fartura que a gente fala assim no nosso linguajar é o quê? É o comer…
o pão de cada dia que entra na nossa casa, que apareça mais, sempre mais, que nunca falte.
(…) Às vezes você está ali preocupado se vai ter o almoço ou a janta… basta você ter o
pensamento bom neles que eles chegam para você e ajudam. (…) Porque como eles são
caboclos índios, no tempo deles, os índios eles tinham fartura. Podia faltar tudo, menos
comida para eles. eles se sentem assim… com pena da gente, por ver a gente em
82
Diálogo realizado em setembro de 2009.
51
situações… de financeira, parte de comida, situações precárias, eles vêm e ajudam. Que
você vê, como conta as histórias, chegava na barraca deles tinha de tudo, de comer do bom e
do melhor, tudo da terra. Aí por isso que eles preferem ajudar nós mais nessa parte assim…
83
A respeito dos mestres, Chico Feiticeiro,
Sibamba, Raimundão da Jurema, entre outros, estes
se diferenciam bastante entre si, e é difícil encontrar
traços gestuais muito marcantes: uns alegres e
brincalhões, como Zé Pilintra em Dona Terezinha,
outros paternais e sérios, como Negro Gerson em Pai
Gledson e Pai Salviano, mas em geral predomina o
fato de serem quase todos bêbados e de andarem de
forma cambaleante. Apesar disso, possuem grande
aptidão para a cura, o que faz essa linha ser vista
como própria para defender e tirar todo o azar, todo
caé, toda perturbação que estiver em cima de uma
pessoa
84
. Sendo espíritos considerados
intermediários, que trabalham na direita e na esquerda, caracterizam-se pelo conhecimento e
poder mágico-religioso
85
. E este poder é um demarcador de sua corporeidade, no instante em
que apenas com um gesto no cachimbo, seu principal instrumento, podem gerar uma cura. Em
Pai Gledson, Negro Gerson é quem realiza quase todas as curas:
Da saúde é assim, digamos, têm pessoas que traz crianças, têm pessoas, até pessoas
adultas, pessoas que têm dor, dor de cabeça, dor na espinha e chega e vai até o Seu Gerson,
conversa com Seu Gerson, Seu Gerson faz a cura. Então graças a Deus até hoje as coisas que
Seu Gerson fez, no outro dia a pessoa não sente mais aquele sintoma que sentia quando
chegou, entendeu. Quer dizer, é assim, você vai dormir então a entidade faz a cura invisível.
86
Numa gira em Pai Salviano o mestre Chico Feiticeiro curou um homem com o
inchado. O inchaço lhe causava muita dor, de modo que ele nem colocava o no chão.
83
Diálogo realizado em julho de 2005.
84
“Caé” significa algo que atrasa a pessoa, que não a deixa melhorar na vida.
85
Luiz Assunção, 2006.
86
Diálogo realizado em outubro de 2004.
Mestre Zé Pilintra, incorporado em Pai
Gledson. Foto: Melquíades Jr. – 2010.
52
Chico Feiticeiro mexeu no e soprou muita fumaça, soprou pelo lado contrário do
cachimbo. Em cinco minutos o homem estava andando quase normal. É bom lembrar que este
gesto ritual, soprar o cachimbo pelo lado contrário, relaciona-se com a tradição mágico-
religiosa da jurema, de raízes indígenas, e que tem grande influência sobre a umbanda
praticada no nordeste brasileiro, como bem mostra Luiz Assunção (2006). Portanto, não é um
gesto feito ao acaso. Trata-se daquele conjunto chamado de “atos tradicionais eficazes”
(Mauss, 2003), e está impresso de forma indelével na gestualidade dos mestres juremeiros da
umbanda.
Pilintra também é considerado um grande curador nos terreiros de Dona Luiza e
Dona Terezinha, e neste último sempre se canta: mas ele é reis, mas ele é reis, mas ele é reis,
lá na Jurema ele é rei Zé Curador. No entanto, nos terreiros de Pai Salviano e Pai Gledson Zé
Pilintra também é mestre no amor e no destrancamento de caminhos emperrados no que
concerne à sobrevivência material, como nos diz Paulinho, membro do terreiro de Pai
Gledson:
Eu sonhava um dia em ir trabalhar na Delmont
87
, tinha muita vontade. pedi uma
vez a Seu Zé Pilintra, pedi, antes da festa da Pomba Gira. Pedi a ele, disse que se eu
conseguisse dava a ele um litro de uísque. Ele disse “Tá feito, eu vou lhe ajudar.” Menos de
sete dias o cara veio foi na minha porta me chamar para trabalhar, não foi preciso nem eu ir lá
pedir emprego, o cara é que veio aqui me chamar.
88
A fala de Paulinho, para além da necessidade de se ter um emprego, denota ainda uma
relação entre a entidade de corporeidade, gestualidade e vocalidade de malandro, Pilintra,
e o seu cliente, que não somente conseguiu o emprego, mas o conseguiu sem esforço, sem
precisar buscar, na facilidade. A concepção de que através dessas entidades e de suas ações
mágico-religiosas se pode conseguir as coisas com maior facilidade está muito presente neste
contexto umbandista. Neste caso, a corporeidade de Pilintra, a performance desta
entidade, sua identidade, direciona as expectativas em relação ao que se pode conseguir
através dos trabalhos que suas mãos elaboram. De tal forma, a atuação das entidades, mesmo
87
A empresa de frutas Delmont é uma multinacional que ocupa terras sobre a Chapada do Apodi, território de
Limoeiro do Norte. De tempo em tempos, seguindo o ritmo das colheitas, a Delmont contrata grandes levas de
trabalhadores temporários. A remuneração costuma ser pouco mais de um salário mínimo. Este esclarecimento
dá uma idéia do perfil econômico do entrevistado.
88
Diálogo realizado em julho de 2005.
53
que baseada em “estereótipos corporais” de extrema sofisticação, como sugerem Brumana e
Martínez
89
, ganha amplitude ainda maior, pois sua significância dilata e acrescenta novos
sentidos às definições simbólicas contidas nos limites de um referencial de estereótipos.
Dentro dessas corporeidades, como se viu, a gestualidade também ocupa lugar
privilegiado. Ela é portadora de tradições gico-religiosas. E assim como em outras
religiões do segmento afro-brasileiro, a gestualidade umbandista se apresenta de um modo
que, “quanto mais expressa, no sentido de arranjos e posturas gestuais marcadas, mais
veracidade, mais fundamento, mais axé
90
. Quando falo em gestualidade, refiro-me tanto a
gestos pontuais bem demarcados, presentes na interação entre homens e espíritos
incorporados, como também a uma gama de outros pequenos gestos presente nesse mundo
performativo. Quase todos, como o cruzar e descruzar os braços ao adentrar o terreiro, bater a
cabeça no congá antes de sair
91
, girar sobre si quando a entidade ordenar, entre outros
incontáveis, requerem conhecer qual o fundamento, o significado. Donde se a necessidade
de se ter um saber-fazer performativo. Não tê-lo, ou melhor, ou não sabê-lo, é perder em
energia e proteção das entidades. Abordei esse assunto em minhas conversas nos terreiros, a
começar por Pai Salviano:
− Mas por que eu não posso ficar com as pernas cruzadas na gira?
Porque isso prende muito aquela entidade que veio. Ou não desembaraça, se você
vier atrás de um… de uma limpeza, de um passe de força e de uma limpeza, aquele símbolo, o
cinto, chave, você cruzado, escora muito a entidade para querer trabalhar.
− E se recostar na parede?
É danado para chamar o egum, aquela entidade ir embora e no lugar de voltar outra
entidade vir o egum, um espírito atrasado.
− Mas por quê?
− Mania deles, que conhecem os segredos que a religião trás, né.
− E estalar os dedos assim? (fiz o gesto)
Uma maneira também de saudar, de chamar, entendeu? Tudo é manha, até mesmo o
próprio caboclo, às vezes faz, são manias mesmo, porque eles movimentam a gente, eles não
ficam parados. De uma forma ou de outra eles movimentam a gente. (…) Quando está
incorporado, eles não ficam parados, porque a função deles é girar, é trabalhar, é andar, é se
89
Brumana e Martínez, 1991.
90
lvora, 1995, p.129. A citação se refere a uma outra religião do segmento afro-brasileiro, o Batuque gaúcho,
mas com certeza é válida também para a umbanda estudada aqui.
91
Ato de respeito e proteção, pois, como bem nota Rodolpho (1995, p.156), a cabeça é o espaço do orixá.
54
movimentar. É uma energia que não pára, circulando direto, então quando está incorporado,
se não tiver o que fazer ela fica nem que seja estalando o dedo, porque ela meche com o
sistema da gente todinho, ela meche.
92
Em conversa sobre esse assunto com Pai Gledson ele também me traduzia o
significado de alguns desses gestos. Um deles era a forte batida de no chão que algumas
entidades dão vez por outra:
− E quando a entidade bate o pé?
− Ali é tipo assim: o pedido que a pessoa fez, em pensamento ou palavra, quando bate
o é confirmando, é para confirmar, é uma confirmação. Digamos, se você conversa com
uma entidade, você fez seu pedido, a entidade ali bateu o pé, quer dizer, ela vai confirmar,
entendeu. E ela, quando ela chega e bate o é confirmando ali… confirmando a gira, o
pedido, o alevanta. É tipo assim uma confirmação duma dureza que ela vai lhe mostrar. É uma
demonstração que ela está ali e vai lhe mostrar o efeito.
93
No cotidiano dos terreiros sempre vejo curas serem realizadas pelas entidades através,
dentre outros procedimentos, de “ritos manuais”, para usar uma expressão de Mauss.
Indaguei, então, Pai Salviano:
Quando uma entidade está fazendo uma cura numa pessoa, ou então uma batida de
ebó, que ela fica passando a mão na pessoa e mexendo, o que é aquilo…?
− É… são os rituais da cura, os rituais da limpeza.
− Mas se ela não fizer aquilo…?
Não! não está sendo feito o ritual, porque o ritual traz esse processo, né. Se não
fizer aquilo não está sendo feito o ritual, está só de pé olhando!
Em alguns atendimentos pessoais durante a gira a linguagem gestual é freqüentemente
a única mediadora. Vi, por exemplo, numa gira em Dona Luiza uma mulher tomada por um
encosto de repente cair sentada chorando aos pés de Tranca Rua. Ele apenas segurou a mão
dela e ficou pensando e batendo o pé. Em um minuto, sem nada dizer, ele soltou a mão dela e
ela se levantou sem choro e retomou seu lugar com um semblante mais tranqüilo. Houve ali
92
Diálogo realizado em setembro de 2009.
93
Diálogo realizado em setembro de 2009.
55
uma interação de uma sutileza difícil de apreender. Há um entendimento, uma energia, noção
fundamental para a compreensão do universo mágico-religioso umbandista, uma simbiose
entre o consulente e a entidade que não pode ser negligenciada.
A gestualidade umbandista se expressa tanto através das próprias entidades quanto das
pessoas em resposta e interação com elas. O pai ou mãe-de-santo e seus filhos-de-santo,
mesmo quando não incorporados, também fazem viver uma gama de gestos próprios do
contexto umbandista. O valor semântico e eficácia dos mesmos no uso ritual, em
performance, ou no dia-a-dia, chegam ao ponto que torna viável pensar de maneira
aproximativa não em uma gramática do gesto”, visto que gramática tende ao fechamento e
fixidez, mas a uma “retórica dos gesto”
94
, que impõe aos sentidos toda sua eloqüência,
chegando a superar a da palavra, ou ajudando a manter esta.
Objeto de percepção sensorial interpessoal, o gesto coloca em obra, em seu
autor, elementos cinéticos (comportando quase sempre um ruído, mesmo
fraco, na ausência de acompanhamento vocal), processos térmicos e
químicos, traços formais como dimensão e desenho, caracteres dinâmicos,
definíveis em imagens de consistência e de peso, um ambiente, enfim,
constituído pela realidade psicofisiológica do corpo de que provém… e do
entorno desse corpo. Naquela que observa o gesto, a decodificação implica
fundamentalmente a visão, mas também, em medida variável, o ouvido, o
olfato, o tato, e uma percepção cenestésica.
95
Um dos gestos de maior eloqüência mágico-religiosa umbandista observado em
campo, e por isso um dos mais conhecidos, é o que a entidade coloca alguém sobre suas
costas. Pude presenciá-lo inúmeras vezes. Numa das giras em Pai Gledson o mestre Negro
Gerson realizava uma cura numa moça que sentia dores no ombro. Negro Gerson remexia em
seu ombro fazendo uma massagem em forma de pequenas cruzes. Depois disso ele soprou a
fumaça de seu cachimbo sobre o local da dor. Por fim, e em meio a pontos cantados, segurou
a moça pelo ombro que doía e, levantando-a, -la sobre suas costas. Noutro dia perguntei a
Pai Gledson o que significava aquele ato, inúmeras vezes visto por mim em cada um dos
terreiros que andava. Pai Gledson esclareceu:
94
Ambas as expressões, “gramática do gesto” e “retórica do gesto” são sugeridas por Zumthor, 1993.
95
Zumthor, 1993, p.243.
56
Olhe, uma entidade, quando ela bota uma determinada pessoa nas costas, então ali
ela está fazendo uma coisa com aquela pessoa, está fazendo um bem. Ela pode estar te
limpando. Existem vários caminhos: ou limpando ou curando…
96
Noutra oportunidade estava eu na casa de Salviano a conversar com ele e chegou um
homem trazendo uma mulher para ser curada. Ela sentia dores na região peitoral e escapular.
Salviano a olhou e perguntou se ela tinha ido ao médico. Ela disse que sim, mas que não
tinha ficado boa. Ele então mediu com um pano a extensão que ia do cotovelo ao final do
dedo mindinho da mão direita da mulher. Depois comparou essa medida com a distância entre
um ombro e outro dela. E logo anunciou animado: não tem médico que jeito! Aqui é as
arca caída. É caso para reza.
Para curá-la, Salviano começou a mexer no lugar da dor de modo singular, em forma
de cruz. Enquanto fazia isso murmurava algumas palavras, mas que não dava para entender.
Ao final, ele colocou a mulher sobre suas costas, o que sugere o aprendizado, por parte de
Salviano, da eficácia de um gesto das entidades, que tem uma tradição, e a adoção, mesmo em
suas curas cotidianas, desta técnica do corpo
97
.
Outra importante característica da gestualidade umbandista é a dança.
Indubitavelmente, a dança também é gesto. O ritmo dos tambores e outros instrumentos têm
um efeito coesivo sobre o corpo dos presentes, os fazendo repetir os mesmos passos, o mesmo
balanço, as mesmas batidas de palmas para acompanhar. Em parte, a dança umbandista é uma
dança cantada, gesto e voz se unindo num abraço insano, apontando com o dedo, esticando o
pescoço para trás ao cabo de um verso. Muito se gesticula o conteúdo daquilo que se está
cantando. “O elo que liga então a voz e o gesto é de ordem funcional, resultando de uma
finalidade comum. Não é menos forte nem sem dúvida menos eficaz.”
98
Os rituais
umbandistas exigem esse gesto humano. A dança vem colocar em obra o corpo vivo. Dança
que acompanha tanto o momento anterior à possessão, quanto as entidades e os filhos-de-
santo, por vezes também a assistência. A voz das entidades comumente requerem o gesto, a
dança. Assim, música e dança conjugam uma união que compõe uma das faces poéticas da
performance mágico-religiosa. Sua presença é tão marcante que costumeiramente serve para
descrever o ato de fazer uma gira, vamos fazer uma báia, ou seja, vamos fazer uma baila,
vamos bailar. Pai Salviano nos diz:
96
Diálogo realizado em setembro de 2009.
97
Mauss, 2003.
98
Zumthor, 1993, p.248.
57
A dança de certa forma é uma ajuda, porque é um ritual, a dança faz parte do ritual,
faz parte da vida espiritual deles, a dança, porque eles vivem de dança também, é a tradição
deles, todo caboclo dança, todo orixá dança, todo guia dança, a dança é um dos rituais mais
fortes na linha deles, porque eles vivem da dança.
99
A amplitude de tal gestualidade, incluindo gestos de cura, de saudação, de proteção,
entre outras finalidades, vão tecendo um enorme repertório que não se esgota. E nesse
repertório um dos gestos principais, também de fundamento mágico-religioso, é aquele que
remete ao próprio nome do ritual da gira: o gesto de girar o corpo. Pai Gledson discorreu um
pouco sobre este tema:
− Qual o significado daquelas giradas que a gente dá durante a gira?
− Ali é como se fosse uma limpeza. Então ali, vamos supor, o caboclo diz assim: “Mal
de porteira afora!” Então ele faz aquele movimento com o braço de você dar um giro de
trezentos e oitenta, então ali é você se limpando. Então ali você pode imaginar que sua
doença, seu caé de porteira afora, ser levado pelo vento, entendeu? Porque ali é uma
limpeza que ele está fazendo em você. (…) Pelo gesto ele manda que todos virem, assim,
dêem uma girada. Então ali eles estão te limpando, entendeu?
− Espiritualmente?
Espiritualmente, isso. cabe a você pensar. Vamos supor: se você está com uma
dor de cabeça, imagina que aquela dor de cabeça vai embora, certo, pra bem longe, pro
além. Se você está com sono, com preguiça, qualquer coisa, você pensa naquela girada que
ele manda. Então você pega… faz o sentido de limpeza. você pode pedir: “Ô meu Pai, me
levante mais, espiritualmente”. Ou então você pode pedir: “Me levante mais,
financeiramente”. Ou: “Me levante no colégio, no seu caso, na faculdade, né”. Varia de
acordo com a sua… naquilo que você está necessitando, está precisando naquele momento.
Porque eles vêm para ajudar a gente, ajudar nas nossas fraquezas, assim, o que falta na vida
da gente, está entendendo? Vamos supor: você está aqui, você precisa de uma coisa, está lhe
faltando alguma coisa, então eles tão trabalhando no sentido de que aquele pedaço que
falta, vamos supor, o pedaço do quebra-cabeça, pra inteirar e você ficar completo,
entendeu?
100
99
Diálogo realizado em setembro de 2009.
100
Diálogo realizado em julho de 2005.
58
Pai Salviano também deu explicações acerca dos usos e benefícios da freqüentes
giradas:
Quando você gira da direita para a esquerda, é puxando aquelas energias para você,
o que você deseja para você. Se gira da esquerda para a direita é tirando aquilo de cima de
você e botando para fora, está entendendo? Você girar da direita para a esquerda é puxando
influencias boas que você deseja que aconteça com você. Você pode girar pelo bem da sua
saúde, pela saúde de um parente seu, do pai, de uma mãe, de um irmão. Você gira puxando
aquela energia positiva para você.Você tem uma pessoa na sua família com problema de
saúde que precisa se afastar, porque não tem quem viva com doença, né? o que você vai
fazer? Cangira ao contrario para aquilo se afastar de você.
101
Todo esse repertório gestual acontece tão repetidamente que é interiorizado pelo
indivíduo ao ponto de se querer se tornar permanente. Sempre que for o momento, por
respeito, necessidade, obrigação, tradição, o gesto simplesmente sai ou se impõe, como eu
quando, de tanto ter sido repreendido para não cruzar as pernas, gesto proibido durante a gira,
acabo cumprindo tal restrição mesmo após estar distante do terreiro, e depois de horas que a
gira teve fim. Fato que só vim perceber no dia em que senti um incômodo corporal
resolvido depois que descobri sua origem: havia saído de uma gira e ido a um lugar de público
de socialização, horas estava sentado e não cruzava as pernas de modo algum. Dessa
forma, a “retórica do gesto” leva a considerar a idéia de uma “memória do corpo”, que
implica “a existência de uma lembrança orgânica das sensações, dos movimentos internos do
corpo, ritmo do sangue, das vísceras, toda essa vida impressa de uma maneira indelével”
102
.
Assim, no que se refere à noção de uma corporeidade umbandista, é possível
caracterizá-la a partir de dois pontos: primeiramente, atendo-se ao instante da incorporação e
às entidades em cena, temos a imagem de um corpo metamórfico, capaz de vivenciar nos
limites de um único corpo múltiplas corporeidades, dando expressão a diversos padrões
corporais não deixando de instalar também, por esse viés de interpretação, uma crítica ao
modelo de corporeidade unívoca hegemônica que configura a identidade dos sujeitos. De
outro lado, é latente a existência de uma gestualidade ritual extremada, incessante,
atravessando as entidades, o pai-de-santo, os filhos-de-santo, e respingando ou mesmo caindo
101
Diálogo realizado em março de 2009.
102
Zumthor, 2000, p.92. Quanto à “memória do corpo”, Zumthor remete à Harald Weinrich e Valéry.
59
de cheio na assistência. Esses gestos freqüentemente tendem a ter fins mágico-religiosos bem
definidos e se configuram como uma parcela do que caracteriza a corporeidade umbandista.
Por fim, concluiria trazendo ainda um terceiro aspecto, que diz respeito à ligação dessa
corporeidade com os trabalhos: é que as múltiplas corporeidades performatizadas, e sua
gestualidade intrínseca, estão íntima e permanentemente relacionadas aos diversos tipos de
trabalhos mágico-religiosos que esses seres, espirituais e materiais, realizam nos terreiros de
sua religião.
1.4. A VOZ QUE ECOA DO TERREIRO
Haverá uma antropologia da palavra humana ou nada.
Paul Zumthor
Uma pessoa que à noite caminha e, por um acaso ou não, passar ao lado de um terreiro
de umbanda no instante em que ocorre uma gira, pode ter a oportunidade de ouvir, pela
primeira vez, a voz de uma entidade à cantar em alto volume. Se as entradas de ar do terreiro
permitirem ainda boas saídas de som, esta pessoa pode até escutar algo da fala de alguma
entidade. É sobre a força dessa voz e a importância dessa fala que se escreverá a seguir. É
para ouvi-las, e às vezes para isso, que grandes contingentes de pessoas se dirigem aos
templos umbandistas. Brumana e Martínez perceberam essa peculiaridade e assinalaram a
maravilha que representou a fala das entidades quando do surgimento da umbanda:
Um dos saltos mais significativos na passagem do Espiritismo para a
Umbanda é a assunção do que se costuma chamar mediunidade ostensiva e
fenomênica”, quer dizer, a manifestação das entidades não mais por sua
irradiação na mente de um médium que permanece pelo menos parcialmente
consciente mas pela possessão total de seu corpo e pelo deslocamento de sua
personalidade.
Que o espírito invocado se fizesse presente na terra materialmente, ainda que
mudo, era algo que o Candomblé já estava acostumado. A novidade que se
produziu nas macumbas e candomblés de caboclos, que certamente fascinou
aqueles que romperam com o espiritismo para fundar o novo culto, foi que o
espírito não estivesse fisicamente na cerimônia mas que também falasse.
Este é o modelo com o qual se alinha a Umbanda.
103
103
Brumana e Martínez, 1991, p.88.
60
Quando digo que uma voz ecoa do terreiro não porque é possível escutá-la do lado
de fora. Sua força reconhecida ressoa na tradição. Seus poderes repercutem na cotidianidade
das pessoas que a buscam, nos atos que elas tomam, nos novos comportamentos ou estados
emocionais adotados.
Numa gira em Salviano, seu Pilintra chamou um homem ao centro do terreiro.
Começou então a preparar uma água com uma porção líquida de cor azul, para dar um banho
de descarrego neste mesmo homem. Quando o líquido ficou pronto, seu Zé começou a banhá-
lo. Enquanto ia banhando, rito gestual, recitava ao mesmo tempo uma oração contida num
livro, rito vocal. O desfecho se deu com um ponto cantado, rito vocal, que dizia:
A marola do mar, vai levando…
A marola do mar, vai levando…
A marola do mar, vai levando…
Iemanjá é quem vai navegando…
O ponto era acompanhado de uma dança que simulava expulsar alguma coisa para fora
do corpo, e todos no terreiro tiveram de fazer o mesmo gesto: seu Pilintra, os filhos-de-
santo, nós que estávamos na assistência e o próprio homem. Como se vê, os ritos vocais e
gestuais, assim como todas as demais modalidades, se misturam interminavelmente. Como
me disse depois Pai Salviano:
O ponto cantado vem atrás da dança. Toda música tem a dança, então o ponto
também tem a dança. Não existe musica é… não existe dança sem música, e não existe
musica sem dança. Uma coisa acopla a outra.
104
A experiência daquele canto e daquela dança coletiva era uma experiência coletiva de
uma vivência mágico-religiosa. Juntos, o ponto cantado e a dança buscavam colocar os males
que afligiam aquele indivíduo para bem longe, levadas pela marola do mar até se perder de
vista. A frase e o gesto, que levaram a cabo essa benfeitoria, certamente ajudaram de imediato
a recompor o ânimo daquele homem de semblante desbotado.
104
Diálogo realizado em setembro de 2009.
61
Se a gestualidade impressa na realização dos trabalhos umbandistas está quase sempre
acompanhada de uma equivalente ação da voz, é porque esses dois domínios vivem numa
simbiose que dão forma, conteúdo e sentido aos trabalhos.
Um laço funcional liga de fato à voz o gesto: como a voz, ele projeta o
corpo no espaço da performance e visa a conquistá-lo, saturá-lo de seu
movimento. A palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita)
num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um
processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de
algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes.
105
A voz é um dos fenômenos centrais de toda cultura humana, de modo que se deter em
sua significância e textura é encarar a “fonte de energia que as anima”
106
. A vocalidade
preenche enorme espaço nos trabalhos de amor, de cura, e de destranca, para não falar em
toda a vivência cotidiana do terreiro. Por isso é preciso se concentrar no uso mágico-religioso
da voz na umbanda.
Qual é a voz que realiza os rituais mágico-religiosos umbandistas? É, ao mesmo
instante, a dos encantados, dos guias, das entidades, e a do pai ou mãe-de-santo. Mas, quando
incorporado, a voz do pai ou mãe-de-santo deixa de existir. Para quem escuta, aquelas falas
são das entidades, e aquele resíduo do timbre de voz do médium é esquecido durante os
instantes que duram a performance. Assim, os pais e mães-de-santo, quando incorporados,
carregavam uma voz que emitem, mas que literalmente os possui.
Essa vocalidade, assim como sua subjacente corporeidade, é também múltipla. E essas
múltiplas vocalidades têm uma ancestralidade reconhecida, ligada no imaginário da sociedade
ao “tempo da escravidão”. Mas não pretendo tornar atual uma voz do passado, nem ir em
“busca de uma África reinventada”
107
. A voz que ecoava nos calundus da colônia brasileira
não é a do pai ou mãe-de-santo de hoje. Aquele mundo que lhe dava sentido sem dúvida
desintegrou-se
108
, mas seus traços mágico-religiosos foram re-significados para dar
continuidade à práticas de uma tradição viva, logo dinâmica. Assim, a voz da entidade que
intervém em um trabalho diz respeito tanto à situação performativa, imediata, dada aos
sentidos, como remete à sua legitimidade conferida pela tradição.
105
Zumthor, 1993, p. 243-244.
106
Zumthor, 2000, p.13.
107
Capone, 2004, p.30.
108
Alguns aspectos deste universo mágico-religioso colonial são brilhantemente descritos por Laura de Mello e
Souza, 1986.
62
Com efeito, na realização dos trabalhos não existe o silêncio. Fazer um trabalho
significa agir com os potenciais mágico-religiosos da voz a todo instante, como explicam as
palavras de Pai Salviano:
Uma entidade calada, sem palavras, é sem fundamento também, entendeu? Ele tem
de estar falando, ele tem de estar explorando o serviço dele, o trabalho dele. Ele mesmo
explora o próprio trabalho dele, porque é dentro do trabalho dele que tem o ritual, que tem o
fundamento e o efeito das palavras.
− Você aprende alguns efeitos dessas palavras?
Aprendo, para aprender, porque é uma coisa que vai se passando, vai se
passando, vai se passando, vai se conversando, de médium para médium. Eu estou
incorporado com uma entidade de exu, ele pronunciou umas palavras dentro do ritual, tem um
horror de médium ali, filho meu assistindo ouve, depois vamos discutir o que foi o significado
daquilo que ele falou.
109
De fato, muitas palavras e expressões são proferidas pelas entidades a todo instante. É
pra vencer! E a resposta da assistência: Vamos vencer! Ou discursos maiores: Destruídos
sejam todos os contrários! E a resposta: Assim seja! Em outros casos pode acontecer da
entidade falar sozinha, mas com uma interação implícita de cada um que a olha e a escuta.
Deste modo, os trabalhos, a obra performatizada, são sempre um diálogo, ainda que uma
pessoa tenha a palavra, pois a comunicação oral requer um interlocutor, mesmo que
silencioso
110
. Ela não pode ser monólogo puro, de forma que este ouvinte-expectador acaba
sendo, também, co-autor da obra, co-autor do trabalho.
Aliada a esta intermitente vocalidade de interação, temos uma abundância sonora que
emana dos pontos cantados. As afirmações contidas em ambas, nas frases de interação e nos
pontos cantados, no contexto mágico-religioso em que elas estão, não servem para informar
ou descrever nada, pelo menos não para isso. Como pensa J. L. Austin, elas servem para
realizar ações
111
. Jeanne Favret-Saada pensou um pouco sobre isso quando estudou a bruxaria
no Bocage. Ela diz que as palavras faladas, em bruxaria, são mais que informações, elas são
109
Diálogo realizado em setembro de 2009.
110
Zumthor, 1993.
111
Austin, 1975.
63
poder. E desfecha dizendo que o ato é a palavra e a palavra é o ato, sendo os rituais
confirmados sempre através da palavra e da pessoa que as pronuncia.
112
É preciso observar que na umbanda os pontos cantados, suas músicas próprias, agem
em diversas direções: ajuda no processo de incorporação, traz narrativas sobre as entidades,
difundi valores umbandistas, causa excitabilidade nos organismos dos presentes e mantém
quente a atmosfera das giras. Mas ela é também potência vocal mágico-religiosa na realização
dos trabalhos. Não há um trabalho sequer, em particular ou numa gira, para qualquer fim que
seja, complicado ou fácil de resolver, que não tenha como acompanhamento algum ponto
cantado. Nesses momentos eles são mais do que palavras ordinárias, são palavras-força, e
fecundam o ato que melodiam.
É Paul Zumthor quem demonstra que toda “palavra” não possui a mesma
significância, ou, em seus termos, que “toda palavra não é Palavra”. Ele estabelece, assim,
uma importante diferenciação entre a “palavra ordinária”, banal, superficialmente
demonstradora, da palavra-força, mais fixada e rica, que tem portadores e lugares
privilegiados para a sua reverberação. Como afirma Todorov, o rito mágico-religioso “não é
um enunciado, mas uma enunciação; ora, esta se compõe: do enunciado dos interlocutores;
das circunstâncias espaço-temporais da alocução; como também das relações que podem
estabelecer-se entre esses diversos elementos”
113
. E os pontos cantados em si não m
nenhuma força gico-religiosa se não forem cantados por aqueles que têm o direito e a
legitimidade de fazê-lo: as entidades. Os guias e, em boa medida, os pais e mães-de-santo são
os detentores da palavra-força na umbanda, os portadores da voz mágico-religiosa, e o lugar
privilegiado para reverberá-la é o terreiro.
Em síntese, a voz que ecoa do terreiro de umbanda nem sempre é louvação. Na
“relação dramatizada que confronta com o sagrado o homo religiosus, a voz intervém sempre,
ao mesmo tempo como poder e como verdade”
114
. No terreiro o que persiste é o poder da
palavra-força, o poder do ponto cantado. Vejamos alguns exemplos:
Seu Zé Pilintra quando vem,
Ele vem trazendo sua magia
Para levantar todos os filhos
E retirar feitiçaria.
112
Jeanne Favret-Saada, 1980.
113
Todorov, 1980, p.244.
114
Zumthor, 1993, p.76.
64
E outro, de mestre, colhido no terreiro de Dona Terezinha:
Desenleando eu vim, desenleando eu vou.
Ai desenleia Negro Gerson Feiticeiro!
Desenleia, desenleia Negro Gerson Feiticeiro!
Desenleia aqui na terra,
Desenleia lá no mar.
Ora, nos dois casos não se está dando uma informação, uma descrição, está-se fazendo
algo, está-se precisamente retirando feitiçaria e desenleando os problemas, desamarrando
complicações. A voz e as palavras emitidas não são simplesmente, ou não somente, uma
representação simbólica de um fato do mundo. São atos de fala com capacidade de
transfigurar as energias e propriedades das pessoas e das coisas.
Numa das giras em Pai Salviano, da Virada ensinava um ponto cantado à
assistência. Segundo ele, o ponto deveria ser usado quando a gente fosse desrespeitado por
alguém e quisesse reverter a situação:
Zé da Virada na cidade da Jurema
Vai virar seus inimigos
No tronco do juremal.
Ele virou… ele vai virar…
Ele virou para aprender a lhe respeitar!
Segundo Salviano, em todo ponto cantado a entidade diz o que está fazendo e o que
cada um deve pensar (porque o pensamento também tem importância capital). Os três pontos
acima citados podem ser vistos sob essa ótica. Este último, de Zé da Virada, deve ser aplicado
inclusive durante a gira: à medida que ele canta, quem se interessar, deve firmar seu
pensamento no sentido de virar os inimigos. As palavras dele criam, então, o que elas dizem:
A idéia do poder real da palavra (…) gera um quadro moral do universo.
Todo discurso é ação, física e psiquicamente efetiva. Donde a riqueza das
tradições orais, contrárias ao que quebra o ritmo da voz. O Verbo se
expande no mundo, que por seu meio foi criado e ao qual vida. Na
palavra se origina o poder do chefe e da política, do camponês e da
65
semente. O artesão que modela um objeto pronuncia as palavras que
fecundam seu ato. (…) a palavra proferida pela Voz cria o que ela diz.
115
Todorov, de um ponto de vista da lingüística, o discurso mágico-religioso como
uma subespécie do discurso narrativo, ou uma micronarrativa. Esta narrativa teria uma
característica específica que a distinguiria das demais: o fato dela designar uma ação que
ainda não foi realizada, mas que logo deverá ser
116
. Neste viés, os três pontos citados acima
podem ser lidos como micronarrativas que intentam provocar o que narram, ou melhor, que
provocam: a retirada da feitiçaria por Pilintra, o desenlear por Negro Gerson, livrando das
dificuldades e embaraços, e a virada, derrubada, ou mudança de pensamento dos inimigos no
tronco do juremal. Quem estiver precisando, acompanhe a performance delas, cante, faça o
pensamento.
Nunca as músicas, os pontos cantados, servem de puro enfeite, de modo que quando se
fala aqui em caráter performativo da voz, a vocalidade, está-se falando propriamente de fazer
mágico-religioso, e não de uma pura exibição. Quando realizava um determinado trabalho
particular que tive a oportunidade de assistir, Pomba Gira, uma vez presente, conversava com
o consulente acerca do caso em questão. Conversava um instante, mas logo depois cantava.
Conversava outro instante, voltava a cantar. E, como se deve esperar, os pontos cantados
entoados durante esse ritual não foram escolhidos ao acaso. Eles tinham o propósito profícuo
de ajudar no trabalho. Veja-se as palavras de Cecília, cambona do terreiro de Pai Gledson:
− Eu gostaria de ver você cantar uns pontos de Pomba Gira?
Mas assim de quê sentido? Por exemplo, geralmente quando ela vai assim [fazer]
trabalho para fazer duas pessoas se unirem, geralmente ela canta aquele ponto, (…) esse ponto
ela canta sempre, e principalmente quando ela faz particular: Tem… tem, tem… no Egito
tem… uma Pomba Gira boiadeira, Lá no Egito tem uma Pomba Gira boiadeira… Ela veio do
oriente, uma estrela clareou, Na passagem da magia quem arrasta ele é a cigana do amor,
Quem domina ele é a cigana do amor. Sempre, geralmente, ela canta esse ponto. Ele fala em
magia, mas não a magia negra, é uma mágica, a pessoa querer uma coisa assim,
principalmente espiritualmente. É tipo uma mágica. Ela sempre canta esse ponto.
− Tem mais algum que fale de amor?
Tem outro também que é muito bonito: Amor… com amor se paga, Por isso eu não
temo a ninguém, Mas o amor que eu tenho é meu, Não dou para ninguém. Ela canta muito
115
Zumthor, 1993, p.75.
116
Todorov, 1980, p.248.
66
esse. então, é mais assim: às vezes a pessoa quer tomar o seu namorado, a sua namorada,
no caso, aí ela geralmente canta esse ponto.
117
Por esta fala vê-se que os pontos devem ser interpretados de acordo com a necessidade
da pessoa, havendo um repertório para cada caso, por assim dizer. Então, conseguir
compreender a adequação semântica desses atos é mais importante que a tradução de cada
palavra ou de cada expressão
118
. Apesar da inegável importância do conteúdo do ponto
cantado, às vezes o mais importante não é o que é dito, não é o texto, e sim como este é
vocalizado no instante da performance, como sugerem novamente as palavras de Cecília:
Às vezes aquele ponto, quem presta atenção diz “esse ponto aí”, pelo tom do ponto,
“esse ponto é ponto bom, esse ponto aí é ruim, significa derriba”. Mas pelo tom a pessoa
sabe.
− Pelo tom da entidade cantar?
Exatamente. Pelo tom da entidade cantar a pessoa sabe que é de derriba ou de
alevante, se prestar, for bem assim, estiver firme em seu pensamento, pelo tom, pelo jeito de
cantar para saber. Não é nem a letra, assim, entendeu. Não é nem a letra em si, mas sim…
a maneira. Não é nem a letra, mas só o jeito, assim… o tom.
119
Cada entidade, tanto nas giras quanto nos trabalhos particulares, entoam vários pontos
cantados. A musicalidade envolvente, acompanhada de frases positivas, como Salve a gira!
Salve a força!, contagia, deixando o ambiente caloroso e passando sensação de confiança para
quem dele participa. Se os ogãns batem um pouco mais leve nos tambores, e os filhos-de-
santo junto com a assistência amenizam no tom das respostas às entidades, elas costumam
cobrar mais energia, prometem colocar calor na gira e, então, começam um novo ponto
cantado.
Como já se disse, há uma intensa interação entre as entidades e as pessoas durante toda
a gira. Além das conversas pessoais, as consultas, também frases ditas pelas entidades as
quais todos os participantes devem responder imediatamente, como por exemplo: É para
vencer!, e os participantes respondem: Vamos vencer! As entidades cobram que essas
respostas sejam dadas energicamente, para demonstrar que ninguém está na gira de corpo
117
Diálogo realizado em junho de 2005.
118
Castro, 1976.
119
Diálogo realizado em junho de 2005.
67
presente. É necessário engajamento. O conteúdo dessas falas, bem como a tonalidade, e de
tudo que se enuncia nas giras e nos trabalhos, é quase totalmente voltado para se conseguir
vitórias, para vencer os inimigos, as demandas e as dificuldades da vida, o desemprego, a
doença e o sofrimento amoroso, como no ponto seguinte:
Ô Bugi amarre o boi.
Amarre o boi Légua Bugi
Amarre o boi Buá…
É de Légua Bugi.
E é de Bugi Buá…
Mas eu só saio das costas dele
Só depois que eu dominar.
Operando através de uma metáfora, este ponto não se refere, não somente, ao animal
boi, mas também a uma pessoa que deve ter o coração amarrado ao de outra, como a
abordagem feita no item anterior, acerca do gesto de laçar das entidades da linha de légua,
pode ter deixado sugerido. São palavras-força de um trabalho de amor. É parte compositora
do rito.
Numa das giras de exu em Pai Salviano, Tranca Rua disse que estava ali para ajudar as
pessoas que amavam. Estava para mexer com as almas que queriam ser amadas e não
sabiam retribuir. Várias pessoas, enquanto ouviam isso, balançavam positivamente a cabeça,
concordando com a existência daquele fato. Então Tranca Rua disse para as pessoas que
fizessem o pensamento que ele estava ali para destrancar. E cantou:
Oh! Como é triste a gente amar alguém!
E esse alguém não amar ninguém.
Eu adoro o sol.
Eu adoro a lua.
Na encruzilhada eu adoro é Tranca Rua…
Depois de cantar Tranca Rua cedeu lugar a Exu Malandro. Este chegou logo dizendo
que quem desejasse um amor era pedir a ele na encruzilhada. E cantou, apontando
sorridente para um moço próximo a mim, que estava ali por motivo de amor:
68
Foi ele quem cortou o pau…
Foi ele quem cortou o pau…
Foi ele quem roubou a moça
E casou na encruzilhada.
Neste ponto cantado, um fato que deveria acontecer foi conjugado com o verbo no
passado, porque se tratava de algo que se tinha a intenção de fazer acontecer ali. Austin
chama de enunciações performativas
120
aquelas que têm a propriedade de, através de sua
emissão, realizar uma ação. Por esse caminho, classificaria uma enormidade de pontos
cantados como enunciados performativos, que não afirmam nem negam propriamente algo,
que também não são verdadeiros nem falsos, e que por isso podem ser analisados a partir
de uma perspectiva: se foram bem sucedidos ou não, se resultam ou não resultam.
121
Quando
olho para os pontos cantados sob o prisma dos enunciados performativos os vendo no sentido
de um momento dado, deixando momentaneamente de lado outras faculdades, que não se
limitam ao desejo de realizar algo, como as histórias que contam, os valores que disseminam,
os ensinamentos que desencadeiam. Entre tudo isso, a função performativa é uma das mais
vigorosas.
Destaque-se que muitos dos enunciados performativos usam o verbo no imperativo
afirmativo, como: amarre o boi Légua Bugi. Além disso, no conjunto da obra se presencia um
performance musical
122
que tem, entre outras características, uma forma conhecida, que é ser
regida pelo melodia da rima antes de tudo. O efeito da rima faz, inclusive, com que sua
memorização seja mais rápida e fique latejando na memória, como me narraram alguns
freqüentadores dos terreiros pesquisados, de modo que, na instante de resolver problemas que
trazem sofrimento a filhos-de-santo e clientes, tal musicalidade não perde sua qualidade de
proporcionar prazer aos ouvidos e outros sentidos. Essas músicas, os pontos cantados, por
representarem palavras de poder de transformação, são talvez o ponto mais significativo da
vocalidade umbandista. Elas ainda permitem o trocadilho bem apropriado de que, em
umbanda, cantar é encantar.
120
Ou “performative utterances”, no original.
121
Austin, 1975.
122
Csordas, 2008.
69
1.5. OUTRAS MODALIDADES PERFORMATIVAS
Trabalhos no terreiro de Dona Terezinha. FOTO: Melquíades Jr. – 2010.
Marcel Mauss já dizia que os atos mágicos, para se realizarem, requerem certas
condições especiais de tempo, lugar, materiais e instrumentos. É um mapa etnográfico
interessante, pois quando se observa a dimensão performativa dos trabalhos da umbanda não
se pode negligenciar que o espaço (lugar), os materiais, instrumentos e tudo o que rodeia o pai
ou mãe-de-santo fazem parte e ajudam a compor inevitavelmente o cenário performativo de
sua atividade mágico-religiosa.
Como afirma Zumthor, o “lugar da performance é o espaço aberto ao desenrolar da
obra: um espaço, enquanto realidade topográfica, é sempre uma construção sociocultural”
123
.
Assim, é possível dizer que quando alguém entra no terreiro, mesmo nos dias e horários em
que não haverá gira, ainda assim este alguém dá de frente com uma performance, pois uma
semiotização do espaço está presente, com a cor das paredes, a presença do congá, as
inúmeras imagens de santos, orixás, e entidades, as velas sempre acesas, os instrumentos
rituais, enfim, a maneira como está organizado.
Definitivamente, o corpo do médium não é o elemento único e absoluto onde se
produz a performance. Alguns outros elementos e, entre eles, primordialmente o espaço
performancial
124
, neste caso, o terreiro, também são fundamentais. A presença do médium no
terreiro não é necessária para provar que ali está um terreiro. Mesmo estando ausente um
123
Zumthor, 1993, p.254.
124
Ver Zumthor, 2000.
70
corpo performativo, vê-se que é no terreiro onde se pode construir a situação performancial
por excelência dos trabalhos. As relações simbólicas são feitas logo quando se adentra este
recinto e, portanto, sua teatralização já está consumada.
Isto me lembra o fato de que em alguns dos terreiros pesquisados se é permitido
entrar descalço. Ora, o espaço para o homem religioso não é homogêneo. Ele não se apresenta
neutro ou amorfo. Ao contrário, possui porções qualitativamente diferenciadas de outras,
repartindo os espaços em sagrados e não sagrados. O templo, aqui, o terreiro, constitui por
excelência essa ruptura. Trata-se de uma hierofania, isto é, uma manifestação do sagrado,
sendo considerado um espaço diferente dos demais, dos profanos
125
. Por isso, tirar os calçados
para adentrá-lo torna-se uma lei. E essa lei estende-se para toda a casa de Pai Gledson, pois,
segundo ele diz, foi um pedido da própria Pomba Gira que qualquer um que fosse à sua casa
entrasse com os pés descalços.
Ademais, o espaço sagrado guarda significados que quem o experimenta
intimamente pode falar, como Pai Gledson revela:
Porque você estando de sapato, de sapato ou chinelo, por ter borracha, pela borracha
que tem no sapato, na chinela, quer dizer, isola a energia. Porque quando a entidade está,
existe uma energia. Então, é como se a energia fluísse… entrasse pelos pés, vamos dizer
assim, na forma grosseira de falar. [...] entrasse pelos pés para você reagir da forma daquilo
que você quer.
126
No terreiro de Dona Terezinha participei de uma gira na mata, isto é, uma gira
realizada no matagal mais próximo e reservado. A disposição dos utensílios, das velas e a da
gente formava a geografia de uma encruzilhada. E não era à toa. Perguntei a Chiquinho, o
presidente do terreiro, o porquê da gira ser ali. Ele disse que ali a gente estava trabalhando
numa encruzilhada, a força da encruzilhada é diferente, os trabalhos ali têm mais força. Esta
performance espacial acabara de ser construída, mas baseada em um fundamento da religião:
a encruzilhada, além de outras atribuições, é a morada dos exus, entidades de grande poder.
São nestes espaços performanciais que se a recepção dos clientes e filhos-de-santo
quando da realização de giras e trabalhos. A visão é um dos sentidos mais acionados no corpo
destes, ao ponto de podermos falar numa modalidade imagética de performance. São trajes,
símbolos, imagens, fumaça, desenhos, pontos riscados, explosão de pólvora, velas coloridas e
125
Eliade, 1992.
126
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
71
suas respectivas chamas amarelas. Não foi à toa que Gaston Bachelard se dedicou a escrever
uma obra inteira sobre este último elemento, intitulando-a de A Chama de uma Vela: “A
chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores operadores de
imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe não é
nada, comparado com o que se imagina. […] Um livro volumoso não seria suficiente para
estudar a chama, seguindo, em literatura, todas as metáforas que sugere”.
127
A importância e dimensão da performance imagética pode ser vista quando se
compara os terreiros entre si. Veja-se o terreiro de Dona Terezinha: ela não tem uma
incorporação violenta, não usa tambores, os pontos são cantados em voz baixa, pouca
dança e, no entanto, os trabalhos que ela faz durante as giras, com velas coloridas de vários
tipos e tamanhos, desenhos de blusas, de calção, de pessoas inteiras, pólvora para descarrego
e muitas chamas a arderem em nossos olhos e imaginação, entre outros elementos, causam um
efeito visual considerável, uma percepção sensorial inegável. Logo, estou diante de uma outra
modalidade performativa, a performance imagética.
Durante meses, os membros do terreiro de Dona Terezinha se dedicaram a curar um
homem que fora atingido por uma demanda, enviada pela ex-esposa do homem, que o fizera
cair na cachaça e se afastar da família. Segundo me informaram, a intenção da ex-esposa era
se apossar de todos os bens do ex-marido. Sobre esse caso, Dona Terezinha explicou:
Ela quer destruir [o marido]. Ela mandou fazer muito trabalho, em Choró por
afora, mandou fazer muito trabalho para esse homem. ele ficou assim: ele desligou-se da
família todinha, da família dele mesmo. […] ele fica dentro de casa, sai pouco, fica
bebendo… bem complicado assim. É um trabalho muito complicado o dele.
E Chiquinho, o presidente do terreiro, interveio:
É, e a própria defesa dela [da mulher que encomendou a demanda] é na alta magia
negra.
128
Um dos trabalhos para curar este homem foi sendo composto aos poucos, e com a
participação de todos os filhos-de-santo. Primeiramente pegou-se um chinelo que pertenceu
ao atingido pela demanda e desenhou-se com giz seu contorno no chão. Após isso, cada
127
Bachelard, 2002, p.9, 22.
128
Diálogo realizado em agosto de 2009.
72
pessoa, na seqüência das filas, ia e marcava com um traço a extensão do seu sobre esse
desenho, no calcanhar e nas pontas dos dedos. Em seguida ia ao atabaque e dava um certo
número de pancadas. Enquanto dava as pancadas, a pessoa pronunciava o nome da “vítima”
da demanda, por exemplo: Lairton Inácio Lima Silveira.
O número de batidas era determinado pela seqüência: a primeira pessoa deu somente
uma batida e pronunciou apenas o primeiro nome, a segunda deu duas batidas e pronunciou os
dois primeiros nomes. À medida que as batidas aumentavam o nome acompanhava. Assim,
quando a sétima pessoa foi, demarcou seu pé e deu sete pancadas no tambor, junto ela
pronunciou: Lairton Inácio Lima Silveira.
Abaixo, uma reprodução deste trabalho. Mas, evidentemente, a gestualidade,
vocalidade, olfatividade, visualidade imediata e todos os pontos cantados, que também
acompanharam sua realização, e a natureza pungente do instante da performance plena não
têm como ser exibidos no desenho. O trabalho imagético ficou assim
129
:
Desenho 1: Marcos Queiroz - 2010.
Na vela de sétimo dia, posta ao centro, as iniciais do homem foram escritas com uma
caneta de uma ponta à outra. A chinela havia pertencido ao homem demandado. Outra vela,
em formato de chave, foi colocada ao lado da de sétimo dia para destrancar todos os
129
A mãe-de-santo, Dona Terezinha, e o presidente do terreiro, Chiquinho, autorizaram-me a exibir os desenhos
nesta dissertação. Por motivos de privacidade, os nomes dos clientes e suas respectivas iniciais postas no
desenho foram alterados, sendo portanto fictícios.
73
caminhos. Cada pessoa se dirigiu, na mesma seqüência anterior, até a vela de sétimo dia para
acendê-la e apagá-la três vezes, deixando-a, por fim, acesa. Tanto nesse momento quanto no
primeiro eu fui excluído da participação. Nem risquei a delimitação de meu pé, nem bati no
tambor, nem acendi e apaguei a vela. Acho que a corrente energética formada para aquela
cura pedia o engajamento de pessoas realmente umbandistas, que conhecem bem essas
energias. “Visitantes” como eu, mesmo que conhecido de oito meses, provavelmente não
ajudariam. Segundo Chiquinho me explicou depois, a participação de todos os filhos-de-santo
ajuda a dividir o peso, e fica mais forte, porque reúne as energias de várias pessoas.
A caixa de fósforos, situada no desenho em substituição da pólvora em pó, foi
consumida de uma queimada, resplandecendo fogo sentido pelos olhos, e a fumaça veio
esgueirando-se e nos envolvendo. Deixando apenas uma parte aberta do círculo, como uma
porta, pegadas, chamadas de rastros por Pomba Gira, foram desenhadas como se
caminhassem em direção a essa abertura, como que conduzindo à saída o vitimado daquela
demanda. Esta porta ficava de frente para Pomba Gira e para o conga. Quando fui conversar
com Dona Terezinha após a gira, e perguntar o significado das cores de cada vela, e de suas
disposições, ela me disse que não sabia dizer nada, porque quem fez foi a entidade e por isso
não tinha como ela saber. Disse ainda que para o médium saber, ou ele está meio consciente
ou não está trabalhando incorporado. O evento coloca as entidades como as detentoras do
saber-fazer mágico-religioso. Mas pode também representar um mecanismo de manter este
conhecimento hermético, reservado a poucos. O que lhe confere mais importância.
Ao fim do trabalho acima narrado, elaborou-se outro para o mesmo homem. Desta vez
se desenhou, baseando-se numa foto, o próprio corpo dele, entrando novamente na
composição velas vermelhas, pretas e verdes, cachaça, cigarro, fósforo (substituindo a pólvora
em pó), pegadas desenhadas saindo de seu interior, acender e apagar de chamas, entre outros
detalhes. Veja-se abaixo:
74
Desenho 2: Marcos Queiroz - 2010.
A iconografia não apenas coloca o trabalho dentro do homem. Ele está personificado
e sua figura faz parte da própria composição do trabalho. Segundo Chiquinho, é preciso ter
sempre alguma coisa para atingir a pessoa. Tendo algo, como o nome, a pessoa pode estar até
em São Paulo que o trabalho certo. No desenho acima, a cachaça posta serve como
elemento a ser expulso. O homem virou alcoólatra. Então, coloca-se ali um copo de cachaça
dentro dele e, ao lado, faz-se uma explosão de pólvora (a caixa de fósforo) para descarregar
aquela energia negativa.
Como se vê, assim como a coerência da corporieidade das entidades, dos fundamentos
da gestualidade e dos encantos da vocalidade, o imagético também busca produzir a
transformação que representa. O desenho, com os demais apetrechos que compõem o rito
imagético, tomam para si o problema real do indivíduo e o recria. Ele reproduz uma situação
para logo depois modificá-la. É sua representação que permite a reapresentação” do
problema sob uma nova perspectiva, de acerto, de cura.
Outros quatro trabalhos realizados com procedimentos e analogias simbólicas
parecidas, todos em Dona Terezinha, explicitam ainda mais o quanto ritos mágico-religiosos
agem sobre as pessoas a partir de sinais, da reprodução de sua imagem, de uma parte de seu
corpo ou de algo que lhes pertenceu. No trabalho abaixo, o desenho da camisa foi feito se
contornando com giz uma camisa da própria criança a qual se pretendia curar. Veja-se que, ao
invés de cachaça, temos vinho no copo, a bebida dos preto-velhos curadores.
75
Desenho 3: Marcos Queiroz - 2010.
Em todos esses casos, temos imagens criadas no rito do trabalho que não são
figurativas ou ilustrativas, mas geradoras de novas realidades a serem vistas que surgem
através de construções simbólicas que fazem alusões e buscam transferir estados, qualidades e
propriedades. Para isso, alguns trabalhos agem sobre iconografias acabadas.
Predominantemente sobre fotografias representando o ser que deve ser atingido. Noutros,
como este logo abaixo, apenas as iniciais do nome trazem a pessoa ao centro da
transformação.
Desenho 4: Marcos Queiroz - 2010.
76
Segundo Chiquinho, quando uma parte específica do organismo de uma pessoa está
muito atingida, concentra-se o trabalho nessa parte, como no exemplo abaixo, onde se fez o
contorno do quadril até os pés:
Desenho 5: Marcos Queiroz - 2010.
Assim, os trabalhos imagéticos são também, ao mesmo tempo visuais e mnemônicos,
porque suscitam e mexem de imediato com a lembrança do que representam. Tais processos
se dão de forma diferente para grupos diferentes de pessoas. Para a família que solicitou o
trabalho que vem a seguir, a lembrança é a própria pessoa, sua roupa está ali, sua melhora é
possível, seu estado é rememorado. Para os membros do terreiro, alguns objetos remetem,
através de uma ampla rede de semiotização, às características de entidades e orixás. Sobre
isso, observe-se o próximo trabalho:
77
Desenho 6: Marcos Queiroz - 2010.
A pequenas canoas escoradas sobre as pedras se ligam à natureza e aos índios, pois,
segundo Chiquinho, este foi um trabalho de aldeia. As pedras evocavam, ainda segundo
Chiquinho, a justiça de Xangô. Sobre este trabalho, Dona Terezinha comentou:
Às vezes a gente tem que tirar um encosto, […] como aquele trabalho com aquelas
canoinhas. Então faz aquilo ali, mas se o espírito não se render, não se entregar com aquilo
ali, tem que chamar ele em terra, para saber o porquê que ele está fazendo aquela pessoa
sofrer.
130
A imagética desses trabalhos provoca, inclusive, a imaginação. Num trabalho de
alevante realizado no terreiro de Pai Gledson pela entidade Pilintra, secretamente
destinado apenas aos filhos-de-santo, sem presença de assistência, a não ser a minha, isto
pode ser elucidado.
Nele, foram usados certos materiais, e numa certa ordem de composição, que o
próprio Zé Pilintra sabia dizer o porquê. Nas palavras de Pai Gledson, as moedas, por
exemplo, que estavam ao redor das maçãs, servem para chamar dinheiro, donde se percebe
mais uma relação de contiguidade. Mas Pai Gledson não sabia dizer mais porque ali era uma
ciência de mesmo. Não estava ao alcance dele. Assim, a única informação era a de que o
trabalho servia para ajudar cada um a se levantar na vida, a crescer e melhorar em tudo.
130
Diálogo realizado em agosto de 2009.
78
Diante do não-saber, então, a significação dos elementos ficaram a cargo da percepção
sensorial e da imaginação de cada um que estava presente.
Foto: Melquíades Júnior - 2010.
A beleza do trabalho, principalmente no momento desta foto, quando Pomba Gira
havia chegado e exigido as luzes apagadas, é inegável. Destaque-se que durante a realização
dele, e de todos os demais citados neste tópico, a visão não foi o único órgão sensorial a ser
ativado. Múltiplos sentidos são acionados ao mesmo instante.
É possível exemplificar melhor essa múltipla percepção narrando ainda outro, dentre
tantos, trabalhos de cura que presenciei no terreiro de Dona Terezinha. Este, em específico,
foi realizado numa moça por Pilintra. Havia a cada instante a execução de gestos manuais.
E a voz, quando dizia limpado seja seu corpo, fabricava um acontecimento. A erva-da-angola,
com seu cheiro e textura, e as baforadas de cachimbo nas pernas da moça, tomadas pelas
feridas, atingiam os olhos e os narizes de todos dentro do terreiro, além da sensível pele da
pobre moça. As velas coloridas que foram ascendidas intensificavam a provocação visual. A
toalha esfregada pela entidade nas pernas da moça me fez lembrar o tato, o sentir a entidade a
lhe tocar, assim como no momento em que se esfregou a erva-da-angola. Aí temos certamente
algo do que Csordas chama de imagético multissensorial, que fala da integração dos sentidos
em processos de imagem
131
. O jogo entre modalidades sensoriais” e o imagético
131
Csordas, 2008.
79
multissensorial, que gera na mente imagens complexas envolvendo mais de uma modalidade
sensorial ao mesmo tempo, e que de fato são sentidas no corpo, estão encarnadas em diversos
momentos da performance umbandista para a realização dos trabalhos de cura, de amor e de
destranca.
***
Quando um passe é dado pelo pai-de-santo numa pessoa que se encontra presente na
gira, se tiver um fim curativo, por menor que seja ele, pode ser chamado de trabalho de
cura. Nesta mesma gira, uma oração feita noutra pessoa que se posiciona bem no centro do
terreiro, pelo pai-de-santo incorporado com Zé Pilintra que mantém a mão na cabeça da
pessoa enquanto vocaliza suas palavras, por exemplo, é um trabalho de cura que possui um
atividade performativa, vocal e corporal, maior que o passe dado anteriormente. O ponto
culminante de todo trabalho de cura, de amor ou de destranca, em se tratando da dimensão
performativa é, desse modo, aquele que leva à uma atividade vocal e corporal, e das demais
modalidades performativas, cada vez mais intensa.
Numa gira de exu Pai Salviano recebeu a Pomba Gira Leviana e, de chegada, ela
entoou o seguinte ponto:
Eu estava no cabaré
Quando a garrafa se quebrou em mim.
Se quebra é assim! Se quebra é assim!
Uma garrafa se quebra é assim!
Logo, ela disse que queria sete garrafas de vidro, mas a cambona lhe negou. Então ela
pediu duas e ameaçou: abandonaria o cavalo quando tivesse as duas garrafas. Então foi
preciso fazer seu desejo. Quando recebeu as garrafas, ela cantou o mesmo ponto de sua
chegada e, ainda cantando, espocou as duas garrafas uma contra a outra. Depois quebrou os
últimos cacos maiores que estavam pelo chão com os pés descalços e cantando: uma garrafa
se quebra é assim! E ainda disse: quebrada seja a força dos inimigos de vocês! Para finalizar,
derramou álcool sobre os cacos de vidro e ateou fogo, concluindo com as seguintes palavras:
o teu inimigo se quebra é assim!
80
Esse ritual mexeu muito com as pessoas presentes na assistência. Elas tanto gostaram
de presenciar a cena quanto penso que entenderam aquele recado: ali, quem quisesse,
pensasse em seus inimigos, porque eles seriam quebrados daquele jeito pela quimbandeira
Leviana.
A performance umbandista na realização dos trabalhos é particularmente influenciada
pela participação das pessoas presentes. Por esse motivo, o conceito de performance pode ser
estendido até abranger o conjunto de fatos que é resguardado sob o nome de recepção,
entendido como o “momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para
uma percepção sensorial − um engajamento do corpo”.
132
Patrícia Birman bem percebeu o valor da recepção no desenvolvimento do enredo da
possessão. Ela diz:
A natureza dos ritos católicos, por exemplo, independe da participação de
seus fiéis. Uma missa será sempre uma missa ainda que ninguém a assista.
a possessão, ao ocorrer, não será a mesma, independente de sua
assistência.
Com efeito, a possessão para se realizar possui uma estreita dependência
daqueles que vão assisti-la, dialogar com os seres incorporados, cantar para
eles, cumprimentá-los, conversar com eles. A sua legitimidade em alguma
medida depende do reconhecimento de seus fiéis. É um ato público nesse
sentido específico; como num teatro, a platéia, mesmo quieta e no escuro,
reage e condiciona a performance de seus atores.
133
Assim, a performance é ao mesmo tempo transmissão e recebimento, atuação e
interação. As palavras curtas que as entidades gritam, e os gestos enérgicos, exigem respostas
à essa altura. Mas o que me pareceu mais interessante nesse fato foi a relação dessas respostas
interativas com os trabalhos que estão sendo realizados.
Houve uma gira em Pai Salviano onde foi realizada uma batida de ebó, ritual para
afastar um encosto de uma moça, que é considerado um trabalho de cura. A moça ficou de pé
sobre um pano branco enquanto seu Tranca Rua colocava em exercício os procedimentos para
o afastamento do encosto. Tudo se dava em meio a uma gestualidade latente, ao som de
ensurdecedores atabaques, música, palmas e outros ingredientes.
No primeiro momento seu Tranca Rua trabalhou com ekurus, espécies de bolas de
farinha que têm um preparo ritual. Ele as passava em torno da moça. Esse primeiro ato era
para afastar qualquer espírito atordoado e obsessor. Em seguida foram usados quatro ovos. Os
ovos também foram passados em torno dela para, depois, ser jogados para fora e quebrados ao
132
Zumthor, 2000, p.22.
133
Birman, 1995, p.43-44.
81
caírem no chão, quebrando assim toda a quimbanda e magia que pudesse estar sobre ela.
Enquanto Tranca Rua trabalhava usando esses materiais, e executando ritos gestuais, os
tambores não pararam de ruflar, muito menos os pontos cantados, as palmas e as danças
levados pelos filhos-de-santo e acompanhados reciprocamente pela assistência.
Depois dos ovos veio o fundango, a pólvora. Com ela desenhou-se ao redor da moça
um tridente de exu e um de pomba gira. Nesse instante, enquanto o tambor e os pontos
cantados acompanhados de dança preenchiam o ambiente audível, Tranca Rua acrescentava a
isso gestos rituais que desciam e subiam e rodeavam o corpo da moça. Segundo Pai Salviano,
em conversa posterior, esses gestos que a entidade fez significa que ela está soltando sua
milonga, sua ciência, limpando espiritualmente a moça. Nunca são à toa, tratam-se
precisamente de “atos tradicionais eficazes”
134
.
Após isso, a pólvora foi queimada para despachar as coisas ruins em geral que ainda
pudessem restar: o fogo queimando o mal, e a fumaça, saindo pelo espaço, levando embora os
últimos carregos, desfazendo-os no ar, entrando pela porta de olhos, provocava nossas
sensações
Por fim, veio o banho com as pipocas do velho Omolu, para limpar, trazer o axé e abrir
os caminhos da cura e de tudo que o consulente pensasse. O ritual foi encerrado com a
varredura das pipocas, que estavam caídas ao chão, acompanhada das palavras de Seu Tranca
Rua, que dizia estar mandando embora com aquela varredura não a Omolu, e sim os espíritos
zombeteiros. A voz dele, à medida que ia criando o que dizia, recriava um estado emocional
de uma pessoa.
O ritual da batida de ebó aconteceu logo no início da gira, e foi um grande dado
etnográfico acerca da recepção dos freqüentadores. Durante a cena do afastamento do encosto
todas as pessoas do terreiro ficaram de assistindo. Disputavam brechas para olhar. Todos
cantavam, dançavam, aplaudiam, giravam em torno de si. Os gestos de Tranca Rua eram
acompanhados atentamente. E na hora em que se colocou fogo na pólvora a assistência foi
quase ao êxtase. O fogo brilhando em nossos olhos ascendia o corpo inteiro. A fumaça que da
pólvora saiu veio burilar nossos olfatos. Com sua brancura espessa e obscurecedora, burilou
também nossos olhos. Mas não era fumaça, não era uma fumaça profana, ordinária. Era
uma fumaça dotada de um algo mais, fumaça que descarrega, que tem uma energia para nos
limpar espiritualmente.
134
Mauss, 2003.
82
Essa foi a gira mais extasiante que presenciei. Mesmo após o trabalho terminar várias
pessoas continuaram de pé, os corpos e sentidos atiçados. Houve quem não se sentasse até que
a gira tivesse fim, às vinte e duas horas e quarenta e seis minutos, quase uma hora além do
previsto. Nessa gira, os pontos foram cantados em volume muito maior e todos aplaudiam
muito. Tentavam também decorar os pontos desconhecidos para poder cantar juntos. Mas
quando os pontos entoados tinham letras conhecidas, a assistência cantava com força e
empolgação, como este de Maria Padilha:
Naquela rua ia passando uma mulher…
Essa mulher se chama Padilha
Maria Padilha tem um perfume de rosas
Maria Padilha é uma serpente venenosa!
Cantava-se aos gritos, ou gritava-se aos cantos! Esse frenesi ia e voltava, das entidades
para os filhos-de-santo e a assistência, e vice-versa. Em um único breve instante em que a
música parou seu Tranca Rua reclamou da “frieza” do ogã. Essa exigência térmica era
condizente com o momento, pois a gira realmente fervia. E quem estava ali era um exu: uma
entidade quente, que é fogo, nas palavras de Pai Salviano.
Um certo rapaz que se encontrava entre nós, na assistência, exaltou-se demasiadamente
e quis se destacar perante nós mais do que a entidade que trabalhava. Fez isso ao sair
cantando um ponto primeiro do que ela, mais alto do que ela, e com uma letra um pouco
diferente, do jeito que ele considerava certo a partir de suas passagens em outros terreiros. Seu
João Caveira, que trabalhava no momento, enraiveceu-se e perguntou se ele sabia trabalhar.
Ele respondeu que sim. Então João Caveira disse que se ele sabia trabalhar ia fazer um teste
com ele. Mandou então a cambona trazer vidro e álcool, para ver ele dançar em cima do fogo
e dos cacos de vidro. Uma vez mais o público se atiçou ao ápice, ficando de pé para viver o
momento (como acontece nos estádios, quando todos se levantam para ver um lance, mesmo
que fosse perfeitamente possível assisti-lo sentado). Mas os corpos não se acorrentam à
quietude da cadeira quando chega a hora de viver mais um clímax. E agora, naquele instante,
o andamento da gira tirava mais uma vez dos lugares aqueles corpos em ebulição.
O teste aconteceu. Mas como o suposto médium não conseguiu nem sequer lembrar do
ponto de chamada do exu, foi mandado de volta à cadeira por Seu João Caveira aos brados:
Você não sabe é de nada! Se não sabe nadar, não venha morrer afogado! Ou queimado aqui!
83
Ora, performance implica em competência. Neste caso de estudo o que seria essa
competência? Além de um saber-ser
135
, substância da teatralidade, tão importante quanto é o
saber-fazer, dimensão a ser vista no próximo capítulo. É difícil pensar a primeira dimensão,
saber-ser, sem a segunda, o saber-fazer, pois, quanto mais significativa a performance, mais
forte para os clientes a impressão de grandes conhecimentos. Por outro lado, quanto mais
conhecimento, mais elementos e artefatos vão se agregando à performance, tornando-a mais
elaborada e intensa. Assim, deve-se ter sempre em mente que a “performance e o
conhecimento daquilo que se transmite estão ligados, naquilo que a natureza da performance
afeta o que é conhecido. A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento”
136
. Para
entregar-se à incorporação e, ao viver múltiplas corporeidades, passar a ser protagonista da
performance que cura, traz amores e abre as portas do dinheiro é preciso ter esse saber para
fazer. O rapaz não tinha nem o saber-ser nem o saber-fazer. A única coisa que ele tinha no
instante era a vontade do corpo, que não é apenas mais “um objeto entre todos os outros
objetos, um complexo de qualidades sensíveis entre outras, ele é um objeto sensível a todos os
outros, que ressoa em todos os sons, vibra por todas as cores, e que fornece às palavras sua
significação primordial pela forma que lhes acolhe”
137
.
Dessa forma, pode-se concluir que a realização de trabalhos durante as giras
intensifica os efeitos performativos, em conseqüência do impacto sensorial na assistência,
fazendo com que os indivíduos interajam mais, participem mais, e sejam co-autores do ritual,
saindo do terreiro aliviados, descarregados, e tomados por uma sensação catártica.
Em síntese, pensar a experiência vivida na performance mágico-religiosa umbandista é
pensar em um conjunto de pontos que nos levam a uma aproximação das significâncias de
seus significados peculiares. Num plano expressivo, temos a flexibilidade da condição
corpórea e a expansão de suas possibilidades a partir da incorporação, literalmente, de
variadas corporeidades. A vocalidade que emana daí faz jus a essa assertiva e lhe acrescenta
em poder de ação, porque dizer é fazer
138
. Num plano mais específico da gestualidade, das
técnicas do corpo, verifica-se a presença e o cultivo de um sem-número de atos tradicionais
eficazes que podem melhorar a situação emocional, espiritual ou material das pessoas,
contanto que feitos nos momentos certos, pelas pessoas com esta autoridade, e em contextos
propícios. Num plano sensorial, temos uma experiência tão repleta de nuances, mediações e
135
Zumthor, 2000, p.35-36.
136
Zumthor, 2000, p.37.
137
Merleau-Ponty, 1971, p.442.
138
Austin, 1975.
84
sensitividades que nem sempre está acessível ao pesquisador, movediça que se faz. Mas é
através dela que se sente a presença, o resultado e a imanência da energia dos trabalhos.
85
CAPÍTULO 2:
SABER-FAZER
A experiência mágico-religiosa como um conhecimento sobre o mundo
Em correspondência pessoal, dois antropólogos confessavam terem vivido breves, mas
inesperadas, experiências místicas quando faziam pesquisa de campo. Márcio Goldman, que
ouvira os tambores dos mortos num ritual funerário do candomblé, escrevera ao amigo Peter
Gow. Agora, Gow lhe enviava sua resposta:
Mas mais. Acho que é significativo que tenha sido música o que ouvimos
nos dois casos. É possível que, em estados de alta sensibilização, padrões
complexos, mas regulares, de sons do mundo, como rios correndo ou uma
noite tropical, possam evocar formas musicais que não temos consciência de
termos considerado esteticamente problemáticas. Na medida em que estamos
aprendendo esses estilos musicais sem sabê-lo, nós, sob determinadas
circunstâncias, os projetamos de volta ao mundo. Assim, você ouviu
tambores de candomblé, eu, música de flauta. Penso que um processo
semelhante ocorre com as pessoas que estudamos. Porque elas obviamente
também ouvem essas coisas. Mas elas simplesmente aceitam que esse é um
aspecto do mundo, e não se preocupam com isso. Mas continua sendo
impressionante e o mistério não é resolvido por essa explicação. O que
imagino é que devemos repensar radicalmente todo o problema da
crença, ou ao menos deixar de dizer preguiçosamente que “os fulanos
crêem que os mortos tocam tambores” ou que “os beltranos acreditam
que os espíritos do rio tocam flautas”. “Eles não ‘acreditam’: é verdade!
É um saber sobre o mundo.”
139
Após transcrever esse trecho de sua correspondência pessoal, Márcio Goldman nos
alerta que, como lhe escreveu Peter Gow, é mesmo a noção de “crença” que deve ser
questionada. Para isso, lembrou Lévy-Bruhl, crítico radical dessa noção e que propunha
substituí-la simplesmente pela de “experiência”, visto que a tradicional noção de “crença”
quase sempre funcionou como um “termo-abrigo” onde freqüentemente alocamos os modos
de pensamento que não compreendemos muito bem. Crença, como se sabe, é um termo
extremamente ambíguo, significando tanto a certeza mais absoluta quanto a dúvida. A
139
Peter Gow (1998), Apud: Goldman, 2003, grifo meu.
86
filosofia ocidental parece ter privilegiado o segundo sentido da palavra, opondo-a às noções
de certeza e saber”
140
. Nas palavras de Lévy-Bruhl o problema é posto em xeque:
Nós dizemos que eles ‘crêem’ que o mundo mítico foi real, e que o é sempre,
que o urso compreendeu o que o indígena lhe dizia, etc.… (…). De fato, em
todos os casos desse gênero, eles não têm consciência de ‘crer’, mas de
sentir, de experimentar a realidade do objeto, não menos do que quando se
trata dos seres e acontecimentos do mundo que os rodeia
141
.
As palavras acima sugerem a anulação da dicotomia “experiência ordinária” versus
“experiência mística”. De fato, para quem está falando à distância é que os mitos e forças
imponderáveis que permeiam o mundo se encontram num patamar longínquo que passa a ser
chamado de “místico”. Mas para as pessoas que entraram na umbanda por motivos
involuntários, levados por acontecimentos imprevistos de um universo de forças até então
ignoradas, e para os buscadores de trabalhos que reconhecem essas forças, os
acontecimentos do mundo que nos rodeia nem sempre são visíveis a olho nu, por assim dizer,
mas fazem parte da experiência cotidiana. Tais forças, embora invisíveis, podem ser sentidas.
Existe um conjunto de saberes que permite diferenciar os acontecimentos, qualificá-
los e resolvê-los, através de categorias explicativas extremamente elaboradas. A realização
de qualquer mandinga, de qualquer trabalho umbandista, é um fazer eficiente que envolve,
portanto, uma gama de conhecimentos. Trata-se de saberes mágico-religiosos específicos
que, a certo nível, é possível ter acesso com paciente tempo de aprendizado. As formas de
aprendizagem, os conhecimentos acumulados, as qualidades das coisas do mundo e a ciência
mágico-religiosa, que será abordada mais adiante, são alguns dos temas que perpassam a
dimensão do saber-fazer na experiência mágico-religiosa umbandista.
O próprio fato de haver dicionários de umbanda e de cultos afro-brasileiros, sem falar
nos glossários tão comuns ao final das dissertações, teses e livros, antropológicos e
sociológicos, bastaria para indicar a existência de um vocabulário extenso, de uma linguagem
muito específica, representante de um conhecimento também específico.
As próprias entidades são a fonte primordial de todo o conhecimento mágico-religioso
para a realização dos trabalhos, sendo por isso que estes serão realizados, quase sempre,
diretamente por elas quando incorporadas. Porém, setores desse conhecimento que se
atribui ao pai-de-santo a capacidade pessoal de adquirir. No plano terreno, os pais e mães-de-
santo, que anos estão trabalhando, são aqueles que têm maior intimidade com as entidades
140
Goldman, 1994, p.291.
141
Lévy-Bruhl, Apud: Goldman, 1994, p.273.
87
e detém a maior parcela deste saber-fazer, o que garante seu posto na hierarquia interna do
terreiro, como destacou Concone:
Sem dúvida, a chefia e liderança do Pai de Santo em questões religiosas, de
disciplina, etc., está calcada no seu conhecimento diferenciado (ou que se
acredita que seja) e por conseguinte no seu contato mais íntimo com o
sobrenatural. Nesse sentido pode-se dizer que quanto maior o conhecimento
que lhe é atribuído, tanto maior o seu prestígio, tanto mais sólida sua
liderança e inquestionável sua chefia. É evidente que existem (ou podem
existir) internamente ao terreiro áreas de competência distintas, mas a
liderança do Pai de Santo é de tipo carismático baseada na sua competência
religiosa.
142
Competência que costuma ser sempre reafirmada por eles próprios, ao mesmo instante
que consideram os outros pais e mães-de-santo menos conhecedores e, por isso, menos
poderosos. Num campo onde todo o conhecimento existente é movente, sujeito a infinitas
variações e recriações, cada um analisa a partir de seus critérios quem possui maior domínio
sobre esse saber-fazer que, de todo modo, existe através da memória coletiva
143
.
Não está entre minhas intenções dar conta de tudo que envolve este dito saber-fazer
mágico-religioso umbandista, saber-fazer dos trabalhos. até porque essa tarefa seria
impossível. Dedico-me antes a fazer um ensaio sobre alguns temas que se mostraram
relevantes na abordagem desse saber-fazer, temas estes que foram suscitados nas noites de
rituais públicos e privados e nas conversas de terreiro experimentadas em pesquisa de campo.
2.1. MODOS DE SABER, MODOS DE FAZER
As denominações trabalhos de amor, trabalhos de destranca e trabalhos de cura são
nomes que acabam abarcando uma gama de casos mais específicos. Apesar do termo
trabalhos de amor, por exemplo, é necessário atestar que existem diferentes trabalhos que se
encaixam nessa categoria, como a arrasta, a amarração, a união, a capação e a separação,
todos contendo suas idiossincrasias e propósitos bem definidos. Consequentemente, cada um
deles pedirá modos de fazer diferenciados.
A arrasta é um trabalho feito com a intenção de trazer, fisicamente, a pessoa desejada
para perto. É o primeiro passo para a conquista. A amarração adentra no âmbito
142
Concone, 1987, p.143.
143
Halbwachs, 1990.
88
emocional, e se destina a fazer com que a pessoa desejada apaixone-se perdidamente por
quem solicitou o trabalho. A união, como o próprio nome sugere, é feito para que um casal
fique unido, no sentido de estar em harmonia. Este trabalho pode ser solicitado tanto por
membros de casais estabelecidos, como também por um membro do novo casal resultante
da arrasta e da amarração que deseja mais esse acréscimo ao relacionamento. As
possibilidades não se encerram na união. A capação, às vezes chamado também de
dominação, é um trabalho que objetiva fazer com que o(a) parceiro(a) o se sinta atraído(a)
por mais ninguém, estando, dessa forma, literalmente com o seu desejo castrado em relação às
outras pessoas. a separação entra mais fundo na intervenção dos fatos e visa separar um
casal para “tomar” o marido ou a esposa, por exemplo, de alguém. Neste caso, o que é
trabalho de amor para um pode ser encarado como demanda por outro, por quem é atingido.
Assim, o que é trabalho ou demanda nem sempre se define por uma substância, bem pode ser
que o contexto interfira na definição.
Não é preciso esclarecer que em cada caso desse os conhecimentos acionados e os
fazeres postos em prática irão suscitar as mais diferentes situações rituais. Pois cada
subcategoria de trabalhos de amor citada requer artifícios, materiais, orações as mais
diversas, gerando performances mágico-religiosas também distintas.
Com os trabalhos de destranca não se de outro modo. de descobrir o porquê
dos caminhos estarem trancados, descarregar negatividades, preparar defesa contra as invejas,
saber lidar com os mais particulares e inusitados casos e solicitações, como, a tulo de
exemplo, este narrado por Pai Salviano:
Por incrível que pareça até para pedir para sair do emprego apareceu. Gente que
quer sair e o patrão não quer deixar, entendeu, não quer deixar sair, às vezes até para evitar
pagar direitos. Então a pessoa pede que libere, que o patrão chame, chegue ao acordo. Até
para isso já apareceu.
144
A mesma lógica se quando da observação empírica das doenças. muitas
enfermidades repletas de nuances para serem diagnosticadas. Apesar disso, o diagnóstico das
mesmas é feito através de sintomas bem específicos, o que denota também conhecimento e
interpretações diferenciadas sobre o corpo humano e suas alterações, seus estados
representados como saudáveis ou enfermos. Salviano, como pai-de-santo e rezador, é um
144
Diálogo realizado em junho de 2007.
89
hábil conhecer dessas questões. Suas explicações sobre os problemas comumente chamados
pela medicina oficial de “doenças de rezadores”
145
, tais como quebranto, mal-olhado,
espinhela caída, entre tantas, são minuciosos:
Arca é uma coisa e espinhela é outra. As arcas são os finais das costelas. E a
espinhela é o final aqui do peitoral. Quando você o corpo humano você as costelas
juntadas aqui, e o finalzinho aqui é a espinhela chamada. E também tem a campaninha caída,
que é esse pinguelinho que a gente tem pendurado na garganta. Ela cresce e deita, tosse,
entendeu? É espinhela caída, arca caída, arca fechada ou aberta demais. A arca fechada
demais, ou aberta demais, é de peso, da pessoa pegar peso. Aí, com um mau jeito, ela pega
uma posição que deixa a pessoa doída, doente. Ou abre demais ou fecha demais. Ela tem de
estar no canto certo. Um peso de mau jeito pegando ou abre ou fecha.
− E como você descobre que as arcas estão caídas?
− As arcas são medidas do nariz até aqui (até o umbigo). Aí multiplica a dobra e laça o
corpo todinho. Você mede no nariz, a pessoa reta, até o umbigo. Quando acabar multiplica
por dois, que é para dar essa largura todinha aqui. Se não der é porque está aberto ou fechado.
− E a espinhela, como você descobre?
Medindo no antebraço e no ombro. Do cotovelo ao final do dedo mindinho, porque
esse tamanho aqui é essa largura aqui (do ombro). Se estiver passando a medida é porque
fechou. Se não chegar até aqui a faixa é porque saiu do canto. Ou abrindo ou fechando saiu do
canto. Porque tem de ser no canto certo.
− E a campainha, é só olhando?
A campainha a pessoa começa a tossir e ela sente na língua. Ela trisca na língua.
Porque ela não é para encostar na ngua. Ela cresce, encosta na língua, a pessoa fica
tossindo e engulhando. tem que rezar para ela voltar para o lugar dela. Um colega meu
tomou tanta cachaça, tanta cachaça que queimou ela de tanto tomar o álcool e fumar.
queimou. Ela inchou e desceu, ficou quer ver a teta de uma vaca. Ele era engulhando,
provocando, babando direto. Cheguei, mandei ele abrir a boca: estava que parecia a teta de
uma vaca. O badalo do chocalho pendurado. Inchou que inflamou! fui fazer cura, fui tratar
com água de romã, da casca da romã. […] Tem um antibiótico para isso aí. Desinflama, mas
não volta para o lugar. volta com reza. O que acontece às vezes com o antibiótico ao você
145
Loyola, 1984.
90
tomar ele é sarar, mas sara aleijado. É como você com um braço quebrado e engessar ele sem
aprumar, e engessar torto. Sara torto.
146
É interessante notar, nas últimas palavras de Salviano, como o discurso terapêutico
religioso se constrói “tendo como referência a posição dominante da medicina”
147
, tal qual
nos lembrava Paula Montero. Para esta autora, o discurso umbandista, para obter
legitimidade, é obrigado a demarcar um campo distinto de atuação, como o caso do
antibiótico que sara a campainha, mas não a coloca de novo no lugar:
Essa necessidade se torna bastante evidente na distinção formal que os
umbandistas fazem entre “doença material”, que seria relativa à competência
médica, e “doença espiritual”, relativa à competência mágica. Na medida em
que o discurso religioso define para si um âmbito legítimo de competência
terapêutica o domínio do espiritual −, ele inicia na prática um processo de
“desmedicalização da doença”, isto é, de usurpação do fenômeno patológico
ao monopólio de sua definição médica. Nesse processo de redefinição da
doença, o discurso religioso retira o fenômeno mórbido dos estreitos limites
orgânicos
148
.
No que diz respeito à crítica feita por Concone
149
à dicotomia estabelecida por Paula
Montero entre doenças do “corpo” e do “espírito”, por considerar que esta nos afastaria de
uma “explicação” de caráter mais abrangente, que leva em conta a concepção de integração
corpo/espírito/meio ambiente, tenho algo a observar. Sem descuidar dessa advertência, um
tanto enriquecedora, observo apenas que, baseado em meu campo empírico, uma noção não
exclui a outra. Apesar de encontrar essa integração complexa entre corpo, espírito e meio
ambiente nas terapias empreendidas por entidades e chefes de culto, os pais e mães-de-santo
com quem dialogo distinguem sim, em seus discursos, doenças “materiais”, orgânicas, de
doenças que têm origem espiritual. Quando se considera que o problema não é espiritual,
pode-se fazer os ritos de cura, mas o indivíduo é, ao mesmo tempo, aconselhado a procurar
um médico. Daí a idéia de que as práticas gico-religiosas enfrentam os problemas dos
indivíduos sem se opor, necessariamente, às demais lógicas presentes em nossas culturas
150
.
Muitas vezes a doença é considerada espiritual quando atribuída à um mal olhado de
alguém ou à uma demanda solicitada por inimigo à outro chefe de terreiro. No segundo caso,
a cura se torna a anulação da demanda através de outro trabalho que seja tão potente quanto.
146
Diálogo realizado em novembro de 2009.
147
Montero, 1986, p.42.
148
Montero, 1986, p.42.
149
Concone, 1986.
150
Eleta, 2000.
91
Contra-ataques podem ocorrer, fazendo com que as ações, resultados e acontecimentos do
dia-a-dia estejam todos enredados em uma trama de forças e poderes que podem ser
explicadas pelas entidades e pelo pai-de-santo. Daí se que, por vezes, o universo mágico-
religioso se torna a lente por onde pais-de-santo e clientes vêem o mundo, fornecendo a eles
uma teoria por meio da qual explicam para si as relações entre os homens e o infortúnio
151
.
Contudo, saliente-se que a divisão, entre doenças materiais e espirituais, não é o
estanque, pois doenças consideradas “materiais” que também passam pelo trabalho de
cura no terreiro. Logo, a concepção integrativa levantada por Concone também se faz
presente e em alguns momentos ajuda a melhor compreender os movimentos no feitio de
curas. O caso de Kelly, filha-de-santo do terreiro de Pai Salviano, é um exemplo dessas ações
integrativas de cura. Ela me contou que veio parar no terreiro devido uma doença nos rins,
doença provocada por uma demanda. Na primeira gira que se fez presente a erê Tapuia a teria
avisado da doença. Então, Salviano botou o baralho para Kelly e este revelou tudo sobre a
demanda jogada por outra mãe-de-santo que desejava o marido dela. A partir do diagnóstico,
Pilintra começou a fazer a cura, mas como o estágio estava muito avançado, ela foi
também encaminhada ao médico, um tratamento não excluindo outro. Aqui, temos um caso
que não cabe no modelo binário, utilizado pelos próprios pais e mães-de-santo, de doenças
materiais e doenças espirituais. Trata-se de um caso espiritual, provocado pela manipulação
de forças negativas, mas que pelo avanço que obteve se tornou irreversível pela via do
combate espiritual unicamente.
Uma das mães-de-santo de Limoeiro do Norte que não realizam giras é chamada de
Dona Leuda. Ela dedica seus dias a fazer trabalhos particulares, curas através de rezas, e a
cortar baralho para uma vasta clientela. Uma conversa com ela também trouxe elementos
interessantes para essa discussão:
Tem doença que reza cura, mas tem doença que médico mesmo, aí a gente vê.
As que são para rezar a gente reza e no instante fica bom! Agora, as que são para doutor a
gente diz logo, essa aqui só resolve doutor.
− Mas tem gente que lhe procura com problemas de doença grave, tipo coração…
− Não, quando é isso aí a gente faz a cura, pega o nome e pede aos guias. Pergunta aos
guias, mostra o nome da pessoa e se aquela doença que aquela pessoa está afetada é
mesmo para médico ou se tem jeito. Aí, quando é para médico eles dizem, quando é doença
151
Evans-Pritchard, 1978.
92
mesmo, essas coisas, eles dizem “não isso não tem jeito”. Se não tiver jeito também eles
dizem.
− Quais as que não são para médico?
− Mais seria o comportamento da pessoa: uma hora está de um jeito, outra hora está de
outro, está entendendo? Porque a pessoa estando com um espírito, um encosto, é como se a
pessoa estivesse agindo através de outra pessoa. é uma coisa que você nota que a pessoa
não está agindo com o senso, como aquela pessoa era antigamente.
− Mas esses problemas que não são para médico podem levar à morte?
Depende da entidade que aquela matéria está possuída por ela, está entendendo?
Vamos supor: um espírito do bem, claro que vai guiar aquela pessoa para uma coisa boa. Mas
se for um espírito mau, vai tratar de desencaminhar aquela pessoa […]. Tem espírito que leva
a pessoa para o buraco.
152
Dona Leuda, ao se referir a um comportamento incoerente, situa um problema que
geralmente é tratado como doença mental dentro do corpo de significados da religião,
imprimindo um novo significado ao sofrimento
153
. Conseguir diferenciar que aquele sintoma
é causado por um espírito faz toda a diferença. Para Pai Salviano, no entanto, a difusão dos
conhecimentos umbandistas atingiu um grau que praticamente qualquer pessoa pode
identificar matizes como esses:
− No mundo de hoje quase todo mundo tem experiência. Quem procura terreiro já vem
sabendo do que vem se tratando mais ou menos. Pode não saber como se livrar, mas vem
sabendo, porque não existe mais ninguém tão inocente hoje em dia que não saiba definir o que
é uma demanda e o que é uma doença para medicina. Todo mundo hoje em dia sabe, por mais
leigo que seja no assunto, mas já desconfia logo.
− Quais seriam as diferenças, para eu perceber?
Olhe, isso depende da situação de cada um, da maneira que suceder, porque a
pessoa que teve doenças materiais como uma gripe, uma enxaqueca, uma coisa, ela tem
noção do que é uma enxaqueca de uma comidaou por ter problema de estômago… E a
doença de demanda não é a mesma coisa de uma enxaqueca. A pessoa que tem costume de
sentir dá para sentir uma diferença de um tipo para o outro, de um sintoma para outro.
154
152
Diálogo realizado em junho de 2007.
153
Magnani, n.d.; Montero, 1986.
154
Diálogo realizado em março de 2009.
93
Um recurso que se tornou comum para fazer diagnósticos foi a cartomancia, prática
que se encontra, sem resistências, integrada ao cotidiano dos saberes e fazeres da umbanda no
contexto em que pesquiso. Conversei com Pai Salviano sobre este recurso:
− Você trabalha também com cartas?
É, jogo de cartas. As cartas são a consulta. A pessoa me procura, a gente vai fazer a
consulta, porque nas cartas sai mais barato do que abrir uma mesa. […] O que a consulta diz
nas cartas, e os mestres dizem na mesa, são uma coisa só. Então sai mais barato, no custo
financeiro é mais fácil, porque se a pessoa está realmente com trabalho [demanda], vai
pagar uma mesa, depois vai pagar o trabalho. Sai muito dispendioso. Então as cartas
resolvem.
− Mas para você, é mais trabalhoso abrir a mesa ou botar as cartas?
As cartas são mais ceis, é mais prático, mais fácil, mais leve, não me esforça
muito. Não toma muito meu tempo, porque na mesa toma muito tempo.
155
Conforme informado, Dona Leuda também coloca cartas. Na verdade, esta prática
não se separado de seu papel como rezadora e mãe-de-santo umbandista. Alguém que vai
pedir uma reza decide também botar o baralho. Depois de o baralho revelar o diagnóstico a
pessoa continua o caminho e paga para fazer um trabalho com alguma entidade. Assim como
acontece com Pai Salviano, com Dona Leuda as três atividades se integram e passam a
funcionar como uma coisa só. A respeito da cartomancia, Dona Leuda domina o uso de mais
de um tipo de baralho. Mas ela faz uso principalmente do tarô egípcio e do baralho cigano.
Vejamos o que mais Dona Leuda nos diz acerca dessa atividade:
A gente passa o baralho, vai passando as cartas e vai acompanhando a vida da
pessoa. Tudo não porque a vida da gente é infinita, não tem fim. Quando a gente menos
espera acontece uma coisa, né? Mas aquilo que dá nas cartas a pessoa se previne daquilo que
vai acontecer. Vamos supor, a pessoa vai fazer uma viagem, o baralho indica se aquela
viagem vai ser boa, vai ser ruim, se vai ter acidente, se vai haver algum prejuízo, está
entendo? Naturalmente o baralho previne. você fica preparado para aquilo que vai
acontecer. Por exemplo: uma vez eu botei um baralho e deu que o marido da mulher, eu botei
155
Diálogo realizado em junho de 2007.
94
para a esposa, deu que ele evitasse viagem de noite que era perigoso um acidente, acidente
de noite fatal, porque quando é fatal o baralho e quando é acidente também dá. E ele
duvidou, achou que aquilo não ia acontecer, findou morrendo. Ele mesmo disse: “isso é
besteira, não acontece não”. E aconteceu. Hoje ele está debaixo do chão.
− Então a função do baralho seria…
− Prevenir. Prevenir a pessoa, porque a pessoa diz: adivinha. Não! Ele previne daquilo
que a pessoa vai fazer. Se for acontecer uma acidente, vai previne, se você for fazer um
negócio e ver que aquele negócio não vai ser bom para você, vai lhe trazer tormento, o
baralho diz, diz logo que a pessoa vai passar por problemas difíceis, por causa daquilo que
você vai fazer.
156
[…]
− E como é que você escolhe qual baralho vai usar?
Não, é que o povo prefere mais baralho cigano, porque o baralho cigano são os
naipes. Porque o baralho cigano é mais do tempo, assim, mais do tempo dos antepassados,
está entendendo? Cada um tem um significado, cada carta tem um significado, ouro é um
significado, espada é outro, copa é outro, as cartas claras revelam mais coisa boa, as cartas
escuras revelam mais coisa negativa. Isso depende também dos naipes que acompanham as
outras duas cartas, porque para você colocar o baralho você não coloca de um em um, você
junta três para formar uma palavra, você junta três cartas ela forma uma palavra, porque os
naipes vão e vêm. Quer dizer, pode juntar espada, copa e ouro, forma a palavra que você
quer saber, entendeu? […] Se você quer fazer um negócio, quer saber se vai ser bom, mais
ou menos bom, ou se vai ser mais ou menos ruim, o naipe diz se vai ser mais ou menos
positivo ou… depende da carta que seguir em frente
157
É comum se ouvir falar de cartomancia como uma prática geralmente independente da
religião. Todavia, nos terreiros aqui pesquisados, o baralho faz parte da umbanda e é
competência de uma entidade famosa. O baralho pertence a Pomba Gira Cigana. Foi ela,
inclusive, quem ensinou a Dona Leuda como utilizá-lo. E é com ela que Pai Salviano fica
irradiado quando também faz uso dele.
O baralho é competência de uma entidade específica porque, em resumo, cada
entidade tem determinadas competências. Se Pomba Gira Cigana é a responsável pelo
baralho, as rezas para a cura, quando acontecem durante a gira, já são de responsabilidade de
156
Diálogo realizado em junho de 2007.
157
Diálogo realizado em junho de 2007.
95
outras, em especial mestres e preto-velhos. Se é para descarregar as energias negativas,
recorre-se aos exus machos. Para trabalhos de destranca, mestres, caboclos, e às vezes até
Pombas Giras. Em umbanda os saberes gico-religiosos, os saberes dos trabalhos, também
são compartimentados, especializados, dando forma a uma espécie de divisão espiritual do
trabalho.
Nas giras, sempre após trabalhar, após fazer a sua parte, a entidade incorporada, seja
qual for, vai embora, dando imediatamente lugar à outra e fazendo com que muitas entidades
diferentes venham participar. Porque cada linha de entidades é indispensável, como mostra
Pai Salviano:
Bom, para caso de abrir caminhos existe uma entidade muito boa, como é o Quebra
Barreiras. É da linha de Oxossi, Quebra-barreiras. Porque Oxossi é considerado como Deus
da lavoura, né? Problemas difíceis, se a pessoa está passando por necessidades é… familiar,
na alimentação, Oxossi é um orixá que ele é considerado como o deus da caça, da lavoura, da
fartura. […] Para males de saúde,
o velho Omolu, Obaluaiê. É o orixá considerado o médico
dos pobres. Pomba Gira, sempre trabalhos para o lado amoroso… e assim sucessivamente.
− E se você tivesse que escolher só uma linha?
Eu desistia da umbanda. Não posso. Você consegue tocar no violão um repertorio
todo numa corda? É difícil não é? Sem exu, a umbanda é fraca. Imagine com uma
linha. […] Tem que ter outras correntes, outras linhas. Se dissesse assim: “você vai viver
com uma linha”. Eu desistia da umbanda.
158
Pai Gledson também comentou a respeito da divisão de tarefas e trabalhos entre as
linhas e entidades:
− Cada entidade, no ato do trabalho, de uma báia [gira], vem fazendo um tipo de coisa
para dar o complemento. É como se fosse assim: na sua casa têm várias pessoas, um vai varrer
a casa, um vai passar o pano, uma vai lavar os pratos, está entendendo assim a expressão?
Então são assim as entidades. Cada um no ato de um trabalho vem fazendo a sua função. [...]
Um vem para rondar, fazer a ronda. Outro vem para proteger. Outro vem para báiar, outro
vem para conversar com as pessoas que querem orientação, outro vem para fechar, certo. O
158
Diálogo realizado em março de 2009.
96
outro vem para proteger, para deixar todo mundo que veio na paz, eles levam a pessoa até
em casa na paz, entendeu?
159
Dessa maneira, as entidades vão sofrer assédios diferenciados, e a relação entre as
necessidades mais recorrentes e a comentada divisão espiritual dos trabalhos faz com que
umas ganhem mais destaque do que outras. Não é por acaso que Pomba Gira é a entidade
mais procurada e querida do terreiro de Dona Terezinha e de Pai Gledson, tendo grande
destaque também no de Pai Salviano. A fala de Paulinho, filho-de-santo do terreiro de Pai
Gledson, começa a indicar os motivos:
Se eu estou com um problema aqui com minha esposa, briga por cima de briga, eu
chego e no pensamento peço: “Ah Sinhá [Pomba Gira], faça que na minha casa as coisas
fiquem em paz, que a minha mulher tenha mais amor por mim e eu mais por ela, que nós
tenhamos uma noite maravilhosa no camarim, que chama cama, que nós tenhamos assim...
muitos dias de vida e tal”. Eu peço muito isso a ela.
160
Na representação mítica que Pai Gledson e os freqüentadores do seu terreiro fazem da
Pomba Gira, ela é retratada como uma mulher que dominou sete homens e nenhum a usou.
Este mito, ao relatar a atividade em vida de Pomba Gira, apresenta como a atual realidade
veio a existir. As palavras de Pai Gledson nos dizem que a realidade da entidade Pomba Gira
é que ela possui poder para dominar os sentimentos amorosos de outrem:
Tem uma energia nela, por ela dominar os homens. Então digamos: quando chega
homem querendo uma mulher, como tem uma mulher que queira um homem, então
credenciava-se, no meu ponto de vista, mais à ela, no sentido de fazer esse tipo de coisa, em
termo de trabalho de amor, ou seja, para união… amarração… para dominação [capação].
161
Praticamente tudo o que se faz e se diz com Pomba Gira e à respeito dela, tem seu
mito como princípio: o mito de dominar os sentimentos alheios, ou melhor, o amor alheio. E,
apesar desse fato não ser consciente, não é sensato duvidar de sua força, porque o mito, como
também o imaginário, não são tristes ilusões, muito menos componentes de uma simplista
159
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
160
Diálogo realizado em julho de 2005.
161
Diálogo realizado em janeiro de 2005.
97
superestrutura. Antes de qualquer coisa, eles representam “uma profunda realidade
humana”
162
.
Os trabalhos de amor são como que a parte física do mito de Pomba Gira, a
materialização do mesmo. Quem encomenda e participa de um trabalho de amor fecunda em
sua mente essa história. Pomba Gira, feito mito de amor, símbolo atuante, torna-se
fundamental para a procura e a própria existência desses trabalhos.
Ora, os trabalhos de amor estão entre os mais requisitados, e se Pomba Gira é a
entidade mais procurada e querida do São Jorge Guerreiro, terreiro de Pai Gledson, é por ser
ela quem os realiza, sendo os orixás e espíritos adorados de acordo com as necessidades
humanas. Nesse sentido, é interessante recordar os novos quadros sociais das religiões dos
africanos quando trazidos ao Brasil como escravos. Rapidamente essas religiões se tornaram
diferentes das praticadas no seu continente natal, pois pedir aos seus deuses para trazer
fecundidade às mulheres geraria, na terra do cativeiro, bebês escravos. Pedir fartura nas
colheitas, em uma agricultura que não era de subsistência e beneficiava os brancos, se
traduziria em mais trabalho. Por isso, melhor era pedir-lhes a seca e as epidemias que
destroem as plantações. Assim, os africanos cativos no Brasil imprimiram rapidamente uma
mudança de caráter seletivo em sua religiosidade: tal seleção deixou de lado as divindades
responsáveis por proteger a agricultura e a fecundidade e valorizou as divindades da guerra,
da justiça, e da vingança, isto é, Ogum, Xangô e Exu, respectivamente.
163
Desse modo, pode-se compreender como Pomba Gira se tornou a entidade de maior
respaldo no terreiro de Pai Gledson: ela atende a uma demanda existente, a uma necessidade
de muitas pessoas. Não foi ela quem atraiu pessoas para encomendar trabalhos, as pessoas
que necessitavam deles foram quem a atraíram e fizeram ela se sobressair em relação às
demais entidades.
2.2. MODOS DE APRENDER
Como se aprende a curar através de uma reza? E qual as rezas certas? E cortar o
baralho,ou realizar trabalhos em terra, sem estar incorporado? Como se aprende a preparar
um banho de descarrego ou mesmo realizar todo tipo de pequenas mandingas? A iniciação
ritual pode ser uma resposta inicial. Mas ela não conta de todas as facetas do processo de
162
Morin, 2003, p.16.
163
Bastide, 1971, p.96-97.
98
aprendizagem do saber-fazer umbandista. Até porque, é muito comum as narrativas dos pais e
mães-de-santo revelarem aspectos de auto-aprendizagem, bem como de aprendizagem sem
mediação humana, diretamente com os espíritos, havendo uma mãe-de-santo, Dona
Terezinha, que nem mesmo teve desenvolvimento dirigido por outro pai-de-santo, o pai-
criador. O fato não se atém apenas a ela. Outros pais e mães-de-santo com quem mantive
contato trazem relatos de iniciações rarefeitas e auto-desenvolvimento nas práticas espirituais
umbandistas.
Com poucos dias que havia conhecido Dona Luiza tivemos uma conversa formal
gravada, com perguntas previamente planejadas. Quando, buscando me informar sobre quem
tinha sido a mãe-de-santo dela, perguntei-lhe com quem tinha aprendido a trabalhar na
umbanda, ela me saiu com a seguinte resposta:
− É que nem eu lhe disse, eu não tenho saber, sou uma mulher analfabeta, eu aprendo
através da sabedoria dos guias, porque eu trabalho com intuição. Intuição dada por
eles, revelação dada por eles. Eu não trabalho com livro, eu não aprendi nada com livro,
porque eu nem sei ler nem escrever (pausa longa). Nessa parte eu sou totalmente tapada,
para ler e escrever eu sou cega (risos). A única sabedoria que deus me consentiu foi eu ter
esse dom espiritual. Eu fui uma pessoa criada sem meu pai, sem minha mãe. Perdi eles eu
tinha doze anos. Fui criada pelos outros. Me casei bem novinha e meu marido nunca
consentiu que eu estudasse.
164
De imediato este fato não me chamou muita atenção. Somente dois anos depois,
quando começou a me interessar os modos de aprendizagem narrados pelos pais e mães-de-
santo, foi que retomei esta sua declaração. Para aprofundar, tratei novamente do assunto com
ela, sobre como ela aprendeu tudo o que sabia fazer dentro da umbanda:
− Eu aprendi a bem dizer só. Porque a minha mãe de santo era muito rigorosa e eu sou
meia cobrinha mesmo. Eu agora sou cobra velha, mas nesse tempo eu era cobra nova. […] Eu
fui doente, muito doente, para eles tratarem lá. foi ela disse que eu tinha jeito se
trabalhasse. Estava perturbada, perturbada mesmo! Aí eu fui me desenvolver. Com três meses
eu estava trabalhando, com três meses que eu estava lá. […] Ela pegava um monte de material
[…] e dizia: vai trabalhar com caso de doença. eu tinha que trabalhar com guia, porque eu
164
Diálogo realizado em junho de 2007, grifo meu.
99
não estava bem prática. Aí eu tinha que chamar o guia para fazer esse trabalho. […] Para mim
é assim: ele baixa [o guia], o material está ali, não são todos que sabem fazer aquele trabalho,
passa muitos e muitos, vêem o material ali e não pegam para fazer. E aquele certo chega, pega
aquele material, coloca tudo no seu devido lugar e firma tudo. Mas para isso a gente aprende
também a fazer a gente consciente. Chama o próprio como eu estou lhe dizendo, a corrente, e
irradia o corpo. Eu que chamo a irradiação, porque é mesmo que um relâmpago, quando ele
vem é aquela coisa que bate na gente, na frente ou nas costas, não para a gente ficar
incorporado.
Mas então algumas coisas, pelo que eu estou entendendo, a senhora aprendeu a
fazer com sua mãe-de-santo e outras…
− Com ela e sem ela. Porque eu era muito de experimentar. Ela mandava a gente fazer
um trabalho para uma pessoa. Aí quando eu via uma pessoa doente que parecesse com aquela
pessoa acolá, aí era bem pobrezinha, eu comprava o material e fazia para a pessoa, só para ver
se dava certo. Eu aprendi cura sozinha, eu não aprendi a fazer com ela, porque ela não me
dizia nem como era que acendia o fogo.
− E os guias ensinam alguma coisa?
Vem a intuição na gente, se você for filho-de-fé, de mesmo, a intuição vem para
você. É pegar uma vela e ficar vibrando com ela na sua mão, vibrando dizendo as palavras
e chamando aquela entidade, e vibrando para que aquilo que você está passando, ou fulano
está passando, para que aquilo alivie e embora. Então votermina o pedido e coloca a
vela lá.
[…]
− Mas a senhora descobriu isso como?
Por mistério. São as intuições. Isso a minha mãe-de-santo também falava. Ela
sempre dizia para mim: Luiza, você vai aprender muitas coisas com você mesma e com seus
guias. Você vai descobrir muita coisa. Não sou eu porque eu não posso lhe ensinar, porque eu
não faço uma cobra para me picar. Então fui eu que fui descobrindo através de mim mesma, e
das orientações, das revelações…
165
Como se lê, sua fala valoriza bastante o conhecimento experimental, alcançado através
de tentativas, como também valoriza a “compreensão intuitiva”
166
. Este modo de encarar a
aprendizagem acaba pondo em primeiro plano aquilo que vem de dentro, e não de fontes
165
Diálogo realizado em junho de 2009.
166
Castilla, 2008.
100
externas de saber. Seguindo a narração de Dona Luiza, a auto-aprendizagem é algo que as
mães-de-santo há mais tempo na religião estão acostumadas, conforme sua mãe-de-santo dizia
a ela. Além disso, Dona Luiza informa que uma parte desse conhecimento é também
apreendido através de revelações. Como se verá, outros pais-de-santo também incluem,
reservadas suas idiossincrasias, a revelação nestes modos de aprender.
Vejamos a história de Pai Gledson acerca de sua entrada na umbanda e de como
“soube” realizar sua primeira cura:
Olha, eu era uma pessoa que não… se tocasse no assunto de umbanda, falasse sobre
caboclo, sobre entidade, eu era uma pessoa que não queria, assim, que não queria saber. Tanto
é que se os amigos tocassem no assunto eu recuava. uma vez, eu em casa, me aproximei
para entrar no meu quarto, né, para acender a luz, e então eu vi eles [os guias] como se
estivesse o quarto ali lotado de pessoas. Via que não era normal, via todo mundo de roupa e
pelo número de pessoas não cabia dentro do quarto […]. então convoquei minha irmã, que
é crente, para ela orar. Então, o que é que acontece? Quando ela abriu a blia, que foi
procurar um versículo para ler, para poder dar uma mensagem para me dar tranqüilidade,
porque eu estava apavorado, a cama se quebra. Então daí, no susto, eu recebi uma entidade.
Aí passei três dias e três noites ligado com a entidade direto. Meu pai achava até que eu estava
ficando louco, porque eu estudava muito. Eu fazia o segundo ano de contabilidade, eu
estudava muito, me dedicava ao futebol e a estudar. Então daí passei três dias trabalhando,
incorporado, atrapalhando a minha família todinha, em termo de deixar todo mundo
perturbado. Assim, não estavam tranqüilos. Porque você estar dentro de casa e ver alguém
com um espírito ali sem saber o porquê, querer ajudar e não poder ajudar… Não admitiam…
Tem pessoas crentes, oravam e tal e não conseguiam combater. Até que me levaram a uma
pedra [terreiro]. E eu me espertei lá. Voltei para casa. Quando eu cheguei em casa, no batente,
eles [os guias] voltaram de novo. Daí eu fui no segundo terreiro e controlou. Então daí eu
peguei e me afastei. Então, por natureza, uma prima minha chegou falando que a mãe dela
estava doente. Então , pela intuição, eu até disse: eu posso curar sua mãe. Ela disse: como, se
você não é médium, essas coisas? Não, eu rezo. Eu não sabia nem como acender uma vela
jogando ponto. Então daí eu fui naturalmente, eu cheguei, disse: tem duas velas? Cheguei,
acendi as duas velas. Eu não entendia como é que se processava tudo aquilo. Então, por
coincidência, o guia da mulher era o Sibamba. Então quem veio foi o Sibamba, veio e fez a
cura da mulher. Então ela gostou demais, porque tinha feito duas cirurgias, uma atrás da
outra, e não tinha ficado boa, vivia deitada na cama. Então depois que eu fiz aquilo, no outro
101
dia de manhã ela já foi andando sozinha para o banheiro fazer as necessidades dela, naturais,
que todo mundo faz.
167
Nota-se que o modo de inserção na umbanda e apreensão de suas capacidades mágico-
religiosas estabelece uma ruptura abrupta no cotidiano e, de início, imprime um estado
considerado doentio. Segundo Dona Luiza, ela foi ao terreiro porque estava muito doente. Pai
Gledson, por sua vez, estava sendo encarado como louco. um rito de passagem que se
inicia com a ruptura do cotidiano, prossegue com o estágio de liminaridade, período de
transição em que a pessoa não é mais alguém comum e está destituída de status, sendo vista
como muito doente ou louca, e termina com o retorno ao cotidiano
168
. Mas é um retorno onde
o protagonista volta transformado, sua relação com as entidades harmonizada. Ele adquiriu
uma posição e um status diferenciado, está imbuído de um “algo a mais” e agora é capaz de
resolver questões e problemas de várias ordens.
Dona Leuda, mãe-de-santo já citada anteriormente, conta a maneira na qual aprendeu a
botar baralho. Como se verá, sem quebrar o modelo em que uma mudança abrupta no
cotidiano, ela enfatiza mais que outros as dimensões da revelação e da relação com as
entidades no aprendizado de seus saberes.
− Você me contou uma vez sobre como aprendeu a colocar as cartas…
Realmente eu aprendi sozinha, nunca fui num terreiro para acender um ponto. Até
hoje eu não consigo me coisar como é que aconteceu aquilo, que nem eu esperava! Eu mesma
fazia cura, aí quando foi um dia essa moça apareceu e disse que ia me ensinar a botar baralho.
Era a Pomba Gira, toda de vermelho… era muito bonita, a cintura muito bem feita! Me
apareceu em sonho. Eu comecei sonhando e me acordei conversando com ela. O sonho
terminou ela sentada na varanda da minha rede conversando comigo. E disse que ia me
ensinar a botar baralho, que eu não perguntei quando, nem como. toda noite, passou
mais ou menos assim uns vinte dias, todo dia vinham as cartas de uma por uma, como se
estivesse assim uma pessoa soltando as cartas. Aí ela disse que eu tinha que aprender primeiro
os naipes do baralho. Depois dos naipes do baralho ela ia me ensinar as técnicas que eu ia
fazer com baralho. pronto, com nove dias eu sabia os naipes todinhos. ela voltava
167
Diálogo realizado em outubro de 2004, grifo meu.
168
Van Gennep, 1978; Turner, 1974.
102
aqueles naipes todinhos. Ela soltava de um por um, como se ela estivesse sentada num canto
que tinha muito verde. Aí ela ia soltando as cartas, espalhando, sabe?
169
Daí em diante Dona Leuda não parou mais de botar baralho. Teve também de se
desenvolver, porque as correntes não lhe deixavam em paz enquanto não trabalhasse.
Conforme Brumana e Martínez, a religião umbandista “não se constitui num objeto a ser
aprendido de fora para dentro (como ocorre nos seminários e nas universidades), mas num
elemento que surge a partir da própria vivência do mundo e a partir de um estado mais ou
menos axiomático de sofrimento e aflição pessoal […]. Neste sentido, a Umbanda é
profundamente antiacadêmica.”
170
Essa característica, taxada por Brumana e Martínez de
antiacadêmica, prioriza e valoriza modos de aprendizagem completamente marginais na
sociedade. O que importa são as intuições, as descobertas interiores, as revelações e o dom,
como diz Pai Gledson:
A pessoa tem que ter o dom. Não é qualquer pessoa que pode chegar e acender uma
vela. Tudo bem, a gente pode acender uma vela para o santo de devoção da gente, fazer um
pedido, tudo bem. Agora, parte ligada à orixá, às entidades, é bom fazer de acordo com o que
eles [os guias] orientem. Digamos que aí eles [os guias] orientam você a fazer como é que tem
que acender uma vela, como é que faz para aquele sentido que você quer, [...] você tem
uma energia deles.
171
Assim, o dom é apresentado como pedra fundamental do processo de aprendizagem,
estando este ligado a uma relação com as entidades. Pai Salviano também defendeu a noção
de dom, quando comentava sobre como aprendeu a fazer curas através de rezas:
Tudo é um dom. E a cura faz parte de um dom que se faz sem estar incorporado.
Eu estando trabalhando incorporado a entidade faz, e eu estando em terra eu também faço,
tenho a permissão de fazer.
172
O conhecimento, as revelações e orientações tantas vezes indicadas colocam as
entidades como principal fonte de conhecimentos mágico-religiosos. Até para acender uma
169
Diálogo realizado em junho de 2007.
170
Brumana e Martínez, 1991, p.24.
171
Diálogo realizado em outubro de 2004.
172
Diálogo realizado em março de 2009.
vela é preciso aprender o modo correto. Exemplos não faltam.
Pomba Gira fez um
trabalho
onde
sete velas brancas deveriam ser
firmar
as velas, o cambone foi advertido por Pomba Gira que aquele não era o lugar certo
para pôr a vela.
Pomba Gira, incorporada em Dona Terezinha, fazendo um
imagético e firmando
cada vela em seu “lugar certo”. Foto: Melquíades Jr.
A razão de qual seria o lugar certo não foi revelada. Somente ela sabe, e seu
conhecimento, neste caso, é inquestionável. Após o episódio, Pomba Gira olhou par
disse que tudo tinha que ser posto em seu devido lugar. Se ela colocasse uma única vela que
fosse no lugar errado o
trabalho
Terezinha, ela me dizia:
− Muita gente chega aqui e diz assim:
tenho, porque é que eu estou me sentindo mal… Eu digo: eu não sei. Preciso abrir uma
corrente […], que um guia só vem e conta. É mesmo assim como
explicar. Chega um guia para fazer
vela é preciso aprender o modo correto. Exemplos não faltam.
Numa gira em Dona Terezinha
trabalho
para uma pessoa ausente. Suas iniciais foram escritas no chão,
sete velas brancas deveriam ser
firmadas
. Num momento, quando ela pedia auxílio para
as velas, o cambone foi advertido por Pomba Gira que aquele não era o lugar certo
Pomba Gira, incorporada em Dona Terezinha, fazendo um
trabalho
extremamente
cada vela em seu “lugar certo”. Foto: Melquíades Jr.
2010.
A razão de qual seria o lugar certo não foi revelada. Somente ela sabe, e seu
conhecimento, neste caso, é inquestionável. Após o episódio, Pomba Gira olhou par
disse que tudo tinha que ser posto em seu devido lugar. Se ela colocasse uma única vela que
trabalho
perderia sua eficácia. Noutro dia, conversando com Dona
− Muita gente chega aqui e diz assim:
eu vim aqui para a senhora dizer o que é que eu
tenho, porque é que eu estou me sentindo mal… Eu digo: eu não sei. Preciso abrir uma
corrente […], que um guia só vem e conta. É mesmo assim como
explicar. Chega um guia para fazer
aquele trabalho. […] Às vezes acontece de abrir um
103
Numa gira em Dona Terezinha
para uma pessoa ausente. Suas iniciais foram escritas no chão,
. Num momento, quando ela pedia auxílio para
as velas, o cambone foi advertido por Pomba Gira que aquele não era o lugar certo
extremamente
2010.
A razão de qual seria o lugar certo não foi revelada. Somente ela sabe, e seu
conhecimento, neste caso, é inquestionável. Após o episódio, Pomba Gira olhou par
a mim e
disse que tudo tinha que ser posto em seu devido lugar. Se ela colocasse uma única vela que
perderia sua eficácia. Noutro dia, conversando com Dona
eu vim aqui para a senhora dizer o que é que eu
tenho, porque é que eu estou me sentindo mal… Eu digo: eu não sei. Preciso abrir uma
corrente […], que um guia só vem e conta. É mesmo assim como
uma consulta, ele vai
aquele trabalho. […] Às vezes acontece de abrir um
104
ponto e terminar num trabalho, porque às vezes é necessário. Mas é assim: nada é explicado
por mim.
173
Mas existem também, para quem não recebeu todo o conhecimento através de dom,
outros modos de aprender, como, por exemplo, a dedicação, indicada por Rivaldo, pai-
pequeno do terreiro de Pai Salviano:
Eu me considero ainda leigo dentro da umbanda. É um processo lento de
aprendizagem. A gente vai vendo e aprendendo, como se tivesse o aluno na sala de aula e o
professor. Então, banhos, realização de trabalhos, a gente sempre aprende porque a entidade
própria ela conhece seus médiuns. Ela aquele médium que é de casa, aquele médium que
quer, aquele médium que está ali, que se apega a ele, que está firmado ali com ele, pedindo…
a entidade ela ensina milongas. Como se fazer um banho de descarga, de limpeza para afastar
eguns. Ensina a fazer determinados trabalhos… a entidade própria, no ori dele [de Pai
Salviano], ou no meu mesmo. E a cambona, quando está ali, tem o papel de repassar para a
gente quando a gente está em terra. A gente não aprende em aulas, em discussões, em
questionamentos em terra, mas até mesmo na entidade que está trabalhando a gente aprende,
porque a entidade própria repassa para a gente algum ensinamento, e se aprende sendo
também o quê? Atencioso durante as sessões. Estando ali para se entregar de corpo e alma
àquilo que está fazendo no momento da sessão. Até mesmo no ponto cantado de uma
entidade, às vezes ela está nos ensinando. Num ponto que a entidade canta, se a gente estiver
de corpo e alma na gira, você aprende, porque você está entregue ali de corpo e alma àquela
entidade no momento da sessão.
174
Além dos aspectos de atenção, discussão, dedicação às entidades, Rivaldo apontou
para um modo de aprender que é pautado pela experiência diária, tudo ocorrendo na
dinâmica cotidiana dos terreiros. Este é um modo de aprender que faz parte de uma tradição
que é vivida, aprendida e repassada principalmente pela memória e pela oralidade.
175
Não obstante os aspectos de auto-aprendizagem, as intuições, a transmissão pela voz
gira após gira, o contato corpo a corpo com as entidades, sejam predominantes na
173
Diálogo realizado em agosto de 2009.
174
Diálogo realizado em março de 2009.
175
Tradição não está sendo pensada, aqui, como um mecanismo de classificar alguns cultos de “puros” enquanto
outros seriam “degenerados”, instrumento político que legitimou superioridade de alguns segmentos dos cultos
afro-brasileiros sobre outros, conforme atestou Stefania Capone, 2004. A tradição de que falo trata de um
continente de práticas, saberes e significados. Mas estes podem ser transformados, e por mais das vezes o é.
105
aprendizagem do conjunto dos saberes e fazeres umbandistas, temos também numa certa
medida a introdução de livros com uma imensa gama de ensinamentos neste universo
religioso. Negrão comentara acerca da tradição oral na umbanda, e dessa inserção do
mundo dos livros:
Os conhecimentos religiosos são obtidos por meio dos pais-de-santo que os
iniciam ou, ainda mais freqüentemente, dos próprios orixás. Apesar do
grande número de publicações umbandistas, poucos são os pais-de-santo por
elas atingidos. Diversamente dos kardecistas, a tradição religiosa não se
encontra nos livros; como no candomblé, ela é passada de boca a ouvido ou
então revelada pelos orixás
176
.
Aqui, é importante ressaltar que se trata tanto de uma tradição oral, que se situa,
portanto, na duração, quanto de transmissão oral, isto é, no presente da performance
177
. Como
diz Luiz Assunção, ao falar sobre a jurema e a umbanda praticadas no sertão nordestino, “o
conhecimento das ‘coisas’ do santo’ e a ‘ciência’ da ‘jurema’ são adquiridos no cotidiano, nas
experiências diárias da observação, nas comunicações estabelecidas internamente nas casas
religiosas. O recurso principal é a transmissão oral e a memória daquilo que é guardado,
lembrado e também esquecido”
178
.
Essa relação entre a existência, e o uso, de livros e das práticas vocais consagradas traz
algumas questões interessantes, na medida em que algumas vezes se acolhe os livros ao
mesmo instante que se os desvaloriza. Em algumas conversas que tive, bem como nas minhas
participações nas giras, essa questão surgiu inúmeras vezes. De início, é importante dizer que,
mesmo diante de certa rejeição aos livros como portadores de saber dentro do universo dos
terreiros, também não se está falando de um campo de oralidade pura, e sim de uma
oralidade mista, ou seja, que coexiste com a escrita, mas a influência desta sobre a oralidade
continua externa ou parcial, não sendo seu fundamento capital
179
. É isso o que percebi nas
palavras de Pai Salviano, quando lhe perguntei sobre a existência de livros com ensinamentos
umbandistas:
176
Negrão, 1996, p.327.
177
Zumthor, 1993.
178
Assunção, 2006, p.169.
179
O conceito de oralidade mista é oriundo de uma “tipologia abstrata” proposta por Zumthor, 1997, p.37, para
tentar reduzir a extrema diversidade das situações orais possíveis a quatro espécies ideais: 1) uma oralidade
primária, ou pura, sem qualquer contato com a escrita; 2) oralidade mista: quando a oralidade coexiste com a
escrita, mas a influência desta sobre a oralidade continua externa ou parcial; 3) oralidade segunda: aquela que se
recria e recompõe a partir da escrita e “no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz na
prática e no imaginário”; 4) oralidade mediatizada.
106
O livro é também uma maneira de você aprender a se comunicar com os
trabalhos, conviver com as pessoas, conviver com os trabalhos. É um ensinamento que pode
ser revelado. O livro é um ensinamento que pode ser revelado. Já aquilo que você aprende em
camarinha, que é passado para você em camarinha, não pode ser revelado. assunto seu
com o pai-de-santo, com o pai-criador, que não pode ser revelado. É tanto que têm livros que
podem até indicar de como botar numa camarinha. Mas não revelam o que é feito dentro da
camarinha.
180
O que Pai Salviano enfatiza é que muito sobre a umbanda pode ser ensinado nos
livros, mas se restringiriam aos primeiros passos, pois os fundamentos, aquilo que não pode
ser revelado, aquilo realmente de importância, é repassado da boca ao ouvido, dentro da
camarinha, do pai-criador ao médium desenvolvente.
Quando digo da boca ao ouvido é porque, valorizando os sentidos, a oposição
importante a se fazer não é aquela, por demais abstrata, entre oral/escrito, e sim as oposições
concretas ouvido/olho ou ouvir/ler, pois […] o fato de algo ser recebido pela leitura direta ou
pela audição modifica de forma profunda sua significância
181
. A percepção de Pai Salviano
lhe diz que aquilo que ele é um meio de aprender, por exemplo, a se comunicar. Maria
Helena Villas-Boas Concone comentara sobre a oralidade das religiões de matriz africana
como uma das barreiras que dificultam seu conhecimento, sua “apreensão”. Para ela, em parte
essa oralidade ainda permanece, mesmo que um pouco enfraquecida, porque estaria ligada à
idéia de força vital, idéia de grande importância para os membros das religiões afro-
brasileiras.
182
Durante a pesquisa encontrei nos terreiros uma idéia de que a palavra vocalizada seria
mais forte, mais poderosa, e aquilo que se repassa em livro, como se viu acima, seria
superficial. Abordei o tema numa conversa com Dona Luiza, quando ela me falava sobre
como aprendeu o que sabe fazer a respeito dos trabalhos:
− Têm um horror que trabalha só através de livros! Mas você vê uma grande diferença.
Você indo às duas coisas, as pessoas que trabalham com guia, que trabalham com o poder
da mente… porque você já ouviu falar nisso também, né? Porque se a gente não tiver o poder
da mente, nós não usarmos nossa mente para dominar as coisas… o que era da gente, né?
180
Diálogo realizado em março de 2009.
181
Zumthor, 1993.
182
Concone, 1987, p.37.
107
Dentro do espiritismo nós usamos muito a mente. A gente trabalha muito com ela. Bastante.
Eu trabalho muito com ela, porque sou uma pessoa que não sei ler nem escrever. Aí então, eu
não sei o que está ali no papel. Eu tenho que usar o poder da mente para poder formar a
magia. Aí uso a ajuda do guia, trabalho com a mente… aí eu junto as três coisas e realizo.
− Qual é a terceira coisa…?
O poder da mente. O mistério do trabalho… porque eu trabalho muito com vela…
vela, pó…
− O que a senhora chama de mistério?
São os mistérios. Os mistérios da gente. É… eu vejo vonuma dificuldade, então
eu fico com vontade, desejo de lhe ajudar. eu levo meu mistério, junto com o poder da
minha mente… e daquele guia… e vou tentar até realizar aquilo ali, até você se levantar, até
você ficar bem!
− E qual seria a diferença entre aqueles que aprendem as coisas através dos livros?
Sim, é que a maior parte das pessoas que aprendem através dos livros eles fingem,
eles fingem que estão com guia, com caboclo… eu vi muito! Finge que está com caboclo,
com pomba gira, não sei com quem, não sei com quem… você vê logo, se você prestar bem
atenção. Você é muito jovem, você talvez tenha que aprender isso aí. Você preste bem
atenção que você conhece que ele está soltando ponto que ele aprendeu. Porque tem muito
ponto de tudo, de caboclo… de todas as entidades têm nos livros, né? São mil e tantos
pontos… ou é dois mil pontos nos livros. Pontos cantados. […] Se você for experiente você
vai aprender que a pessoa estando com o guia, estando com o guia mesmo, quando você
olha… a vista dele é diferente, a cor dele fica diferente… não é só por aquela faaaala
rasgando a garganta não! Você conhece pelo olhar… pelo ponto quando o guia chega que
canta, sendo o guia mesmo as pessoas sentem seja o que for, sentem que é aquele guia, não é
a pessoa… embora você não tenha mediunidade para desenvolver nem nada.
183
Dona Luiza associa o que seriam casos de charlatanismo” àquelas pessoas que
aprenderam tudo através de livros, não possuindo a ajuda real do guia, nem o mistério. Nesse
sentido, ela tanto deslegitima a autoridade e poder religioso de quem teve sua aprendizagem
pautada pela leitura, como também configura o mistério como uma fonte poderosíssima de
recursos e de eficácia mágico-religiosa. E o mistério não se aprende com livros, mas consigo
mesma.
183
Diálogo realizado em junho de 2009.
108
A saber, no geral, é pelos olhos e pelos ouvidos que a mãe e o pai-de-santo aprendem.
É também pelo corpo, pela intuição, pela revelação em sonhos, como sempre me citam. O que
está escrito pode ser valorizado, mas não tem nenhum estatuto de verdade. O que é vocalizado
pelas entidades o tem, o que é intuído também.
Assim, essa literatura religiosa umbandista, apesar de vasta e variada, é tratada com
certo descaso, sendo criticada e caracterizada como possuindo informações secundárias em
comparação com a iniciação ritual, o auto-aprendizado, a “compreensão intuitiva”, os
ensinamentos dados pelas entidades e as revelações em sonhos. O fato não se traduz como
uma rejeição à escrita enquanto tal, nem numa oposição a qualquer leitura de livros sobre
umbanda. Mas numa compreensão de que o aprendizado através de textos, “divorciado da
experiência, transmite um saber que é parcial, elíptico”.
184
A oposição, portanto, não é aos
livros ou à leitura, mas às formas de aquisição do saber que se dão separadas de processos da
experiência multissensorial.
185
Para além dessa questão temos ainda o problema da preponderância do dom,
considerado elemento primordial, um a priori, para as demais experiências de aprendizagem.
Tal problema parece, às vezes, ter como fundamento a clássica discussão sobre natureza e
cultura. Aqui, a natureza é supervalorizada e considerada mais genuína e autêntica do que
tudo aquilo que é aprendido através de meios externos. de Telvina, um dos pais-de-santo
que se dedicam somente aos trabalhos particulares, até narra sua história genealógica, que é
simiotizada como um verdadeiro mito de origem que justifica sua força. Nesse caminho, ele
naturaliza construções culturais, como a o parentesco e a metáfora do sangue. Sangue este
que, por sua própria descendência, seria genuinamente meio pesado.
− Sempre trabalhei aqui [em Limoeiro do Norte]. Tem trinta e cinco anos que eu moro
aqui, e passei um tempo no Maranhão, para me preparar, depois quando voltei, armei o
barraco aqui. Mas amo meu trabalho, amo a Deus primeiramente que é quem me essa
força, essa energia, altamente positiva, que tem muita gente que diz: “eu trabalho”. Mas
para trabalhar tem que ter essa energia de Deus, se não tiver não faz nada e a Umbanda é
uma religião muito forte.
− Mas o senhor é limoeirense?
Eu sou, mas eu me criei no Maranhão. A minha bisavó era cigana, a minha
era cabocla índia da Amazônia […] e eu tenho um sangue um pouco meio pesado. A
184
Castillo, 2008, p.47.
185
Castillo, 2008.
109
minha bisavó mesmo era cigana, e era mesmo dessa da pesada mesmo, é tanto que eu gosto
muito de enfeite, dente de ouro, essas coisas assim. Minha mãe dizia que eu puxei muito a
minha bisavó.
186
Contudo, essas posições não são fixas, mas relativas.
187
São concepções negociadas a
cada instante, de acordo com o contexto em que o discurso é produzido, como pode ser
pensado na enorme vontade que Pai Salviano demonstrava em aprender a mexer com búzios
e, para isso, o livro serviria. Ele me pediu para procurar na internet um livro que ensinasse
os procedimentos do jogo de búzios. Com ele ao meu lado eu procurei alguns. Depois,
pensando em preços mais acessíveis, procurei num site de sebos e expliquei a ele as
vantagens. Ao fim da busca, após não encontrar nenhum livro nos sebos, foi interessante sua
reação, que simplesmente disparou: eu fiquei calado, não disse nada, mas eu sabia que você
não encontrava. Isso é uma ciência, quem tem não vai vender não!
2.3. A CIÊNCIA UMBANDISTA
Certa noite estava eu no terreiro de Pai Salviano quando a entidade da Virada disse
a um rapaz: eu vou fazer um trabalho para você nunca mais perder o emprego. E mandou a
cambona anotar o que ele iria precisar para isso. A lista incluía onze ervas: manjericão,
arruda, hortelã, entre outras. Era preciso ainda uma terça de mel, o nome completo do rapaz e
seu endereço. Como seria realizado o trabalho, o uso desse material, seu ritual completo?
Ora, não “sabemos aquilo que não temos o direito de procurar saber”
188
, é uma constatação às
vezes desanimadora mas que posto aqui serve para alertar que esse saber-fazer umbandista de
que falo é, numa certa amplitude, inalcançável ao antropólogo curioso, pois nem tudo lhe é
permitido escrutar, e o segredo é algo central para a existência do encanto mágico-religioso.
Vagner Gonçalves da Silva abordou esse tema, e destacou:
Além das dificuldades gerais de transposição da experiência de campo para o
texto, os etnógrafos das religiões afro-brasileiras enfrentam dilemas
específicos, pois, ao observar rituais ou obter informações através de
entrevistas, formais ou informais, inevitavelmente esbarram em parcelas de
um conhecimento considerado, em algum nível, secreto. Entretanto, o
186
Diálogo realizado em junho de 2007, grifo meu.
187
Castillo, 2008.
188
Veyne, 1983, p.87.
110
segredo nessas religiões é menos uma questão de “conteúdo” de informações
específicas e mais de controle do acesso dos religiosos aos fragmentos dos
conhecimentos litúrgicos com os quais se pode sistematizar o corpus
religioso de uma forma mais legítima. Ou seja, o segredo opera como uma
estrutura de termos de significação variável que se definem por oposição e
contraste, em meio às relações de poder e concorrência existentes entre os
membros dos grupos religiosos e destes entre si. Por isso, o conhecimento,
nessas religiões, enfatiza sobretudo os contextos performáticos da fala: quem
fala, para quem se fala, o que, quando e onde se fala etc.
189
Aliado a essas questões há ainda outra, que diz respeito ao dilema de como articular “a
necessidade do conhecimento antropológico com as dimensões morais e éticas que nele atuam
intimamente”
190
. Muitas vezes o tempo de convivência faz com que pais-de-santo e
pesquisador se tornem amigos, o que faz este ter acesso a algumas instâncias privadas que,
por motivos múltipli, não seria interessante para o chefe do terreiro a publicização. Não
obstante, sempre existem segredos.
No dia em que Pai Salviano me levou pela primeira vez à cafua do exu, a casa dos
exus, ele comentou sobre duas moringas que havia. Falou também superficialmente sobre
os dois tombos situados na saída da cafua. Acerca de ambos, afirmou não poder dizer o que
havia dentro porque se o fizesse aquela força seria perdida. Nossas conversas eram sempre
permeadas por uma abundância de segredos que não podiam ser ditos. Esse fato comumente
trazia o significado do segredo como saber resguardado e, ao mesmo tempo, como poder
imanente. A áurea que envolvia esses temas passava a impressão que se tratavam de assuntos
de grande importância.
George Simmel tratara do segredo como uma técnica sociológica de atribuir
importância, valor e profundidade a certos atos e conhecimentos:
Como a exclusão de outros ocorre especialmente quando se trata de coisas
de grande valor, é fácil chegar psicologicamente à conclusão inversa de que
aquilo que se nega a muitos deve ser particularmente valioso. Graças a isto,
as mais variadas espécies de propriedade interior adquirem mediante a
forma do segredo, um valor característico; o conteúdo do que é silenciado
cede em importância ao simples fato de permanecer oculto aos demais.
191
É indubitável que “a dificuldade de acesso ao segredo faz com que o saber secreto
acabe sendo um bem simbólico de alto valor”.
192
Mas, no contexto pesquisado, o segredo não
se tratava apenas de uma estratégia de valoração aos olhos externos. Aos poucos, fui
189
Silva, 2006, p.133-134.
190
Silva, 2006, p.139.
191
Simmel, 2009, p.237.
192
Castillo, 2008, p.32.
111
aprendendo que, nos terreiros, o fato de uma coisa estar em segredo revestia essa mesma coisa
de uma força diferenciada, mágico-religiosa. Esta era apresentada sob a categoria de
ciência.
Mas o que seria essa ciência que está intimamente relacionada aos segredos? É evidente que
se trata de um conhecimento que, pensando com Mauss, pode ser visto como um possuidor de
mana, significando força, qualidade, estado, e potencial mágico-religioso. Seu autor-detentor
seria aquele que consegue transferir seu mana para as coisas ou de uma coisa para a outra.
O mana não é simplesmente uma força, um ser, é também uma ação, uma
qualidade e um estado. Em outros termos, a palavra é ao mesmo tempo um
substantivo, um adjetivo, um verbo. Diz-se de um objeto que ele é mana,
para significar que possui essa qualidade; e, nesse caso, a palavra é uma
espécie de adjetivo (não se pode dizer o mesmo de um homem). Diz-se de
um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem mana, o “mana de fazer
isso ou aquilo”. Emprega-se a palavra mana nas diversas formas das
diversas conjugações, ela significa então ter mana, dar mana etc. Em suma,
a palavra compreende uma quantidade de idéias que designaríamos pelas
palavras: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica,
ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir magicamente; ela nos
apresenta, reunidas num único vocábulo, uma série de noções cujo
parentesco entrevimos, mas que alhures nos eram dadas isoladamente.
193
A alusão a Mauss deve-se ao fato de ter sido ele quem elaborou uma reflexão
conceitual acerca desse nível de categoria presente, com denominações diferentes, em muitos
contextos religiosos. No universo religioso afro-brasileiro, por exemplo, já foi observado que
categoria a se assemelha à de mana em todos seus caracteres
194
. Porém, no contexto
umbandista em estudo, além da noção de axé, também presente, o conceito de ciência muitas
vezes começa a exercer esse papel. Seu uso, como se verá, dá-se em duas direções, uma que
remete ao saber, e outra que remete ao poder mágico-religioso. Para começar, vejamos as
palavras de Pai Gledson, para quem a noção de ciência assemelha-se bastante à noção de um
saber-fazer:
A ciência é uma coisa, é um saber, um entender, é uma orientação, é uma dica que
você tem sobre aquilo. É como se você fosse… mexer numa coisa, vo vai mexer numa
coisa. Digamos, cinco pessoas vão mexer numa coisa e você entenda mais, você tem a
ciência, tem o entendimento.
195
193
Mauss, 2003, p.142-143.
194
Montero, 1986-b.
195
Diálogo realizado em janeiro de 2005, grifo meu.
112
A concepção de ciência apresentada por Pai Gledson não abandona a visão de que ela
é um saber próprio de um especialista, e neste caso a palavra é um substantivo. Mas a palavra
pode também ser usada como um adjetivo, qualificando seres, coisas, e até pessoas, que
possuiriam ciência. Houve uma gira no terreiro de Pai Gledson em que Pomba Gira deu um
ensinamento que envolvia o uso da planta arruda dentro de um vidro de perfume. Perguntei
sobre o porquê da arruda, e não outra planta. Então a cambona interveio, dizendo de outros
benefícios que a arruda traz. Por fim, Pomba Gira, a cambona, e outras pessoas mais antigas
no terreiro concluíram simplesmente afirmando: a arruda é uma ciência. E, neste caso, sem
dúvida a ciência é uma adjetivação.
Com Pai Salviano o tema surgiu numa entrevista. Durante a conversa chegou uma
moça trazendo sua filhinha de colo para ser curada. Ao fim da cura, Salviano recomendou
que ela colocasse uma bolinha de cera de abelha no cabelo da criança, para evitar quebranto.
Quando interroguei sobre o assunto, ele disse:
A cera da abelha é uma ciência medonha. Não tem quem descubra o segredo da
abelha não.
Ainda bem que vofalou isso. A palavra ciência… eu notei que é uma coisa
muito usada dentro da umbanda…
− A umbanda é uma ciência, em si, ela toda.
− E o que é uma ciência?
− Coisas misteriosas. Ciência são coisas que não
podem se revelar. Ciências ocultas. É coisa oculta. É
segredo. É mistério.
Ali naquele de jurema tem uma garrafa…
(apontei para uma garrafa pendurada no de jurema em
frente ao terreiro).
− Ali é uma ciência.
− Significa que você fez alguma coisa…
− Que não pode ser revelada. […] No meu gongá, na
minha gonga, tem ciência, tem magia, tem mistérios que não
podem ser revelados.
[…]
Garrafa (ciência) pendurada no
de jurema preta, em frente ao
terr
eiro de Pai Salviano. Foto:
Melquíades Jr – 2010.
113
Você falou do mistério, que não pode ser revelado… E ontem a gente conversava
sobre essa coisa do segredo. Qual é a importância do segredo?
− A importância do segredo é não quebrar a força da magia e da ciência.
− E se revelar o segredo…?
− Perde a força.
− Se você me disser o que tem dentro, o que foi feito ali naquela garrafa…?
Ela não vai servir mais. É uma ciência, é uma origem, é uma magia. Enquanto for
ciência, enquanto for oculto, enquanto você ver mas não souber o significado, é uma ciência.
No momento que você souber o significado dela… deixou de ser uma ciência… é um objeto.
− Têm livros que revelam?
Não. Terá algumas coisas que podem ser reveladas. Até para parte de
desenvolvimento, dos curiosos… terá algumas coisas que poderão. Mas têm outras que
jamais.
Um livro tipo… Feitiços de Amor? Ali tem algumas coisas que são reveladas… o
que você me diria?
− Se você comprar ele e guardar… ele seria uma ciência sua, que você nunca
revelaria para ninguém, passava a ser uma ciência sua.
− E funcionaria?
Funcionaria. Mas se você comprar e ficar mostrando a um e a outro, vendo tudo o
que tem nele, ele deixa de ser um livro e vira uma revista de sexo. Fica uma coisa… sem
valor.
196
A idéia de ciência também foi encontrada por Luiz Assunção em sua pesquisa. Esta
se referia à representação que os “juremeiros umbandistas” faziam da entidade mestre, vista
“como espírito evoluído ou em processo de evolução, mas sempre em um estágio mais
avançado, o estágio considerado da ‘ciência’”
197
. Refere-se, portanto, a graus de
profundidade de conhecimento, de saber, o que é sinônimo de mais poder.
Em nosso caso, porém, a ciência não se refere somente a graus de conhecimento mais
profundo, que atestariam um maior poder desta entidade ou daquele pai-de-santo. Como foi
apontado, uma outra direção. É aquela que considera alguma coisa ciência enquanto
esta for oculta. E o fato de estar em segredo a reveste de um algo mais, de uma força. E a
importância do segredo é não quebrar a força da magia e da ciência, conforme disse Pai
196
Diálogo realizado em março de 2009.
197
Assunção, 2006, p.243.
114
Salviano. Logo, ciência não é apenas saber, mas saber exclusivo, e dotado de força mágico-
religiosa. Mas Nessa mediação
As palavras de Pai Salviano revelam uma noção de ciência peculiar, bem diferente do
conceito de ciência experimental, na qual o conhecimento poderia ser demonstrável, repetido,
universalizável. Aqui, o centro é o mistério e o esoterismo. A ciência umbandista possui
poderes mágico-religiosos. Mas os possui porque é mantida em segredo. Caso este
conhecimento se torne público, perde sua força, sua eficácia, e deixa de ser uma ciência.
Dona Luiza também me falou sobre determinados recursos que ao serem divulgados,
perdendo seu estado de secreto, na mesma esteira perderiam seu poder mágico-religioso:
− E se a senhora me contar tudo e eu escrevesse tudo em um livro e as pessoas lessem?
talvez o meu se acabava. É como a oração. Olhe, a oração a gente não pode
ensinar porque… tem alguma oração que a mulher pode passar para o homem. Eu posso fazer
uma oração e passar para você. Eu não posso fazer uma oração e passar para uma mulher,
porque senão a oração não vai mais me servir.
− Por quê?
− Não tem mais poder.
198
Pode ser uma oração, um preparo com ervas, um rito com determinados fins, ou outra
coisa qualquer. No instante em que for revelada perde seu poder e deixa de ser uma ciência,
tornando-se mais um objeto profano entre tantos.
Essa noção de ciência é algo que se faz presente em todos os quatro terreiros de
minha pesquisa. Mas é preciso deixar claro que nos terreiros não esforço para estabelecer
comparações e especulações entre a ciência umbandista e aquela ciência praticada nos
laboratórios e universidades, por mais que a palavra, e a idéia de um saber, possam ser
oriundas desse modelo. Tal analogia presente em grande parte da literatura antropológica e
sociológica sobre magia, nos clássicos em especial, é um problema dos antropólogos e dos
sociólogos, e não dos umbandistas. Estes não buscam justificativas lógicas ou racionais para
legitimar sua prática. Apenas vivem a experiência dessa força que se imbrica no cotidiano.
Força de uma ciência que, como se viu, precisa estar em segredo para manter seu encanto.
198
Diálogo realizado em junho de 2009.
115
2.4. AS ENERGIAS DO MUNDO
O saber-fazer inerente a prática dos trabalhos, mantido em segredo ou não, exige o
conhecimento das “propriedades” intrínsecas das coisas do mundo. Foi precisamente Mauss
quem elaborou a noção de “propriedade”, que é a “qualidade” das coisas:
Os ritos mágicos explicam-se muito menos facilmente pela aplicação de leis
abstratas do que como transferências de propriedades cujas ações e reações
são previamente conhecidas. Os ritos de contigüidade são, por definição,
simples transmissões de propriedades; à criança que não fala, transmite-se a
loquacidade do papagaio; a quem sofre de dor de dentes, a dureza do
camundongo (…)
199
.
Entendo que o conhecimento dessas qualidades é o ponto primordial quando da
escolha dos elementos que compõem, materialmente, os trabalhos umbandistas. Esses
materiais nunca são escolhidos por acaso, e até mesmo as cores das velas utilizadas têm o seu
motivo bem determinado.
O terreiro, a exemplo de qualquer templo religioso, constitui uma “hierofania”,
representando uma porção espacial qualitativamente diferente das outras
200
, sendo assim
proibido adentrá-lo de outra maneira que não seja obedecendo a uma série de ritos como, por
exemplo, tirar os calçados antes. Porém, ao que parece, a discussão acerca deste rito
umbandista pode proporcionar a verticalização de outras questões, como sugere a explicação
dada por Pai Gledson, já citada aqui antes:
Porque você estando de sapato, de sapato ou chinelo, por ter borracha, pela borracha
que tem no sapato, na chinela, quer dizer, isola a energia. Porque quando a entidade está,
existe uma energia. Então, é como se a energia fluísse… entrasse pelos pés, vamos dizer
assim, na forma grosseira de falar. [...] entrasse pelos pés para você reagir da forma daquilo
que você quer.
201
A idéia de energia dentro do terreiro, a certa altura da minha pesquisa de campo,
começou a me inquietar, conduzindo-me inevitavelmente para uma investigação a esse
respeito. Observei então, atentamente, uma fala de Pai Gledson que diferenciava uns
trabalhos de outros, e percebi o nexo entre esta diferenciação e a idéia de energia.
199
Mauss, 2003, p.110-111.
200
Eliade, 1992.
201
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
116
Trabalho pesado é quando a gente vai fazer um horror de desmancha, é aquele que
entra a linha de exu. É trabalho pesado. Quando é trabalho fino, quer dizer, trabalho leve, são
aqueles trabalhos assim… digamos, para levantar, para curar, são trabalhos leves
202
.
A divisão entre trabalho leve e trabalho pesado está revestida pela concepção que se
tem das energias. Para guerrear com outro terreiro, o que implica se defender e fazer
demandas, as energias utilizadas serão de um tipo:
− Primeiramente é usada energia para defesa, certo? Aí se outra pedra [terreiro]
guerreia, demanda contra minha pedra, então a gente vai usar energia pesada. A gente não vai
com energia leve, porque não adianta. Uma hipótese: é o mesmo que você for brigar com um
cara mais forte que você: […] Você tem que ir preparado, você não pode bater devagar, você
tem que bater com força, então a gente manda logo coisa pesada. […] A gente não manda,
digamos assim, uma criança falar assunto de homem. A gente manda outro homem
203
.
São usadas, portanto, energias pesadas para vencer as rivalidades. Já em se tratando
de uma cura, ou um trabalho de amor, as energias, obviamente, serão de outro tipo:
é usado energia mais leve, porque não pode, digamos, fazer uma união, não
pode fazer uma união na porrada. […] Você não pode fazer um trabalho de amor na
ignorância. Tem que ir no… sutil certo. Então é usada energia leve. a energia, de acordo
com o efeito a gente vai pisando mais fundo, vai botando um pouco de tempero pesado para
que eles se agarrem e se amem
204
.
Desenha-se um quadro onde as demandas são pesadas, as curas são leves, e os
trabalhos de amor também leves, mas com uma pitada de tempero pesado, reunindo os dois
pólos, guerra e paz, ambos imprescindíveis. Uma metáfora elétrica, elaborada por Pai
Gledson, denota isso:
202
Diálogo realizado em janeiro de 2005-b.
203
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
204
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
117
Porque é o mesmo caso: para você ligar uma mpada tem que ter o fio positivo e o
fio negativo. Então o exu, por ele ser negativo, e a umbanda vamos dizer assim… os caboclos
sejam da linha branca, então é como se fosse o positivo e o exu o negativo, entendeu. Certo
que existe duas palavras mais sentido de falar, mas eu vou falar assim mais rasteiro.
205
Apesar de expressar que existe outro modo de falar, e que iria falar mais rasteiro, ou
seja, que iria poupar informações, Pai Gledson nos revela um modo de organização de seu
pensamento gico-religioso. Ao falar que os caboclos são da linha branca, ele se refere a
todas as outras entidades que não são exus, considerados da linha negra, o lado negativo. Mas
como se lê, o lado negativo é considerado indispensável, é uma parte do todo. A metáfora de
que para ligar uma lâmpada necessita-se dos dois pólos diz respeito às energias utilizadas nos
trabalhos. Para que funcionem, segue-se esse princípio de unidade, lado positivo e negativo,
como indispensável.
A etimologia da palavra energia, de origem grega, diz que en significa ‘‘dentro’’, e
ergon significa ‘‘atuação’’
206
. Assim, de acordo com sua etimologia, energia poderia
significar algo que atua dentro dos indivíduos. Seja a energia de uma demanda, uma cura, ou
um trabalho de amor, ela atua dentro, no íntimo, podendo deixar um adoentado com saúde,
oferecer bem-estar ao angustiado, e fazer se apaixonar quem antes era desinteressado.
No terreiro, as energias circulam por todos os lados, e até o ogã, segundo Pai Gledson,
seria responsável por uma parte delas:
Porque se o tambor for batido bem… vamos supor assim: se o ogã bate bem, a
batida agrada, então atrai mais energias positivas. Então ali… o ogã ele fica cheio de energia,
certo? Cheio de energia. E essa energia cabe a ele transmitir para os filhos [filho da casa]
naquele sentido que foi começada a gira. Ou seja, hoje é uma gira para levantar, então como o
ogã está circulado de energias, então ele tem que na batida soltar os fluidos para a corrente,
para as pessoas que estão participando
207
.
Pai Salviano também comentou sobre o papel do ogã, explicando-me, inclusive, como
essa circulação de energias funcionava a partir de um desenho, que ele fez numa lousa, onde
ele dá aulas para seus filhos-de-santo. O desenho era o seguinte:
205
Diálogo realizado em agosto de 2005.
206
Ribeiro Júnior, 1985.
207
Diálogo realizado em julho de 2005.
118
Na ponta de cima do triângulo, em azul, estaria o congá. Este transmitiria energia para
Salviano, em verde, na extremidade esquerda da figura, que por sua vez transmitiria para o
ogã, em marrom, na extremidade direita. O dever do ogã era, através da batida certa, devolver
a energia para o congá, formando a corrente e fazendo a energia circular e transbordar por
todos os cantos do terreiro. Depois, quando retornei com o texto para mostrar a Pai Salviano
ele fez acréscimos ao desenho, incluindo outra corrente paralela, entre a cambona, em cinza, o
presidente do terreiro, em róseo, e o pai-de-santo, novamente em verde. Unida à primeira
corrente de energias esta segunda formava, em suas palavras, a clavícula do Rei Salomão, e
completava de forma satisfatória a circulação e distribuição das energias.
Assim, o terreiro se configura para os umbandistas num universo transbordante, por
todos os lados, de energias necessárias aos trabalhos. Entretanto, essas energias não são
irrefreáveis. Para que haja o seu transbordar, saindo do chão, do tambor, do ogã, ou de
119
qualquer outro lugar, e se faça presente nos trabalhos, é imprescindível a observância de
alguns ritos, como não entrar na gira portando chave, conforme diz Pai Gledson:
Já a chave… porque a chave é usada para trancar. Então, se numa báia [gira] você
estiver com uma chave prejudica o trabalho. Quer dizer, você está trancando o trabalho. […]
As pessoas que vêm para o trabalho, que vêm com essa intenção, com esse intuito de entrar
com a chave, entrar de propósito no ato de uma báia [gira], de um trabalho, quer dizer, a gente
leva na maldade, assim, que a pessoa está na maldade. A não ser que a pessoa tenha
esquecimento ou então falta de orientação. Assim, falta de uma dica, para poder aquela
pessoa… “é, não, não pode e tal”, entendeu.
208
A chave não é considerada, portanto, um objeto comum, profano, que sirva única e
exclusivamente para movimentar a lingüeta das fechaduras. Ela irá servir para abrir e fechar a
passagem de energias, ou deixá-las fluir livremente. O significado de tal concepção será ainda
melhor entendido se discutirmos sobre o caso do cinto, fato de reveladora densidade
etnográfica.
Em uma conversa com Pai Gledson ele observava que para fazer uma amarração
Pomba Gira às vezes utilizava, entre outros elementos, um cinto, segundo ele, para poder
amarrar. Logo após afirmou que, por esse motivo, é bom dar cinto de presente para a pessoa
que se gosta. Seu comentário revela o peso que o valor dos mbolos assume sobre sua
concepção de como as coisas são na realidade.
Pode-se dizer, então, que o significado simbólico “armazenado” no cinto confere a
este objeto o poder de funcionar para amarrar não apenas no trabalho em específico. No dia-
a-dia ele carregará essa função, e em atos sutis, como dar um presente, tal função, que está
atrelada ao significado simbólico do cinto, será levada em conta por Pai Gledson, deixando-
nos conhecer o quanto a religião intervém no processo de construção e ordenação do mundo
empregado pelo ser humano
209
, fazendo com que ele tenha um sentido e este seja conhecido.
Isto se em vista deque “as pessoas não experimentam sua própria experiência como idéias,
no âmbito do pensamento e de seus procedimentos (…). Elas também experimentam sua
experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura”.
210
É assim que as
energias são experimentadas, menos em idéia do que em sensitividade.
208
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
209
Berger, 1985.
210
Thompson, 1981, p.189.
120
M. H. Villas-Bôas Concone, ensaia uma instigante abordagem sobre uma possível
“visão de mundo umbandista”, tomada no singular e priorizando, portanto, seus aspectos mais
comuns às diferentes umbandas que se pratica pelo Brasil. Resumirei alguns pontos
abordados por ela e que se fazem importantes nessa discussão. Ela diz sobre a visão de mundo
umbandista:
Tudo aquilo que existe no mundo está profundamente relacionado; por outro
lado, o mundo o se limita às coisas visíveis: um universo de coisas
invisíveis, de poderes, que o habitam. um mundo terreno e outro mundo
não terreno, que não o indiferentes um ao outro. As forças e poderes
comandam a vida em geral e a vida dos homens em particular.
(…) estas forças podem ser manipuladas pelos homens em benefício próprio
ou malefício do outro. (…)
Como conseqüência dessa visão de mundo, pode-se sugerir que num
universo como este, de forças em comunicação, não espaço para o
milagre, se por milagre entendemos uma intervenção extraordinária na
ordem natural do mundo. Só num quadro de aceitação de leis naturais
impessoais é que o milagre pode se instaurar como ruptura extraordinária
(exatamente porque é ruptura). O milagre, de certo modo, articula fé e
merecimento. Aqui estamos no campo do conhecimento e do poder.
211
Trazendo para a proximidade de meu campo empírico, posso afirmar que nesta visão
de mundo específica, mágico-religiosa, umbandista, os objetos têm energia, sendo que tal
energia é, na verdade, sua propriedade, que coincide com o símbolo que o objeto representa.
Assim, o cinto não é somente um objeto que prende, ele é um objeto que possui uma energia
para prender, para amarrar. De fato, a linguagem simbólica não se atém ao nome que
identifica algo, ela manifesta um sentido mais amplo e profundo não expresso diretamente e
que nos direciona no caminho de novos significados
212
.
Não surpreende, portanto, a revelação de que não é permitido entrar numa gira
fazendo uso de cinto, mesmo que seja para prender a vestimenta, pois uma gira no terreiro é o
momento no qual as fronteiras entre o universo terreno e espiritual se abrem, e a presença da
energia de um cinto poderia provocar um fechamento dessas fronteiras abertas, poderia
prender o desprendido, deixar trancado os caminhos que se quer destrancar. Da mesma forma
a chave, que serve para trancar e que possui, no saber-fazer mágico-religioso uma energia
para trancar, causaria um efeito prejudicial à gira e aos trabalhos.
Tudo isso serve para demonstrar a importância que os elementos presentes num
trabalho de amarração, num trabalho de amor, como também em trabalhos de cura e
211
Concone, 2008, p.231-232.
212
Nasser, 2003.
121
destranca, assumem nos ritos umbandistas, bem como na conduta diária de seus adeptos. Se a
chave e o cinto significam tanto, pela força de sua energia, que se por uma mediação
simbólica, mas que para os umbandistas é táctil, ou seja, é sua propriedade, assim também
será com todos os demais elementos presentes em qualquer trabalho. Estes elementos, os
materiais, têm seus poderes, suas energias, conhecidos, e esse conhecimento pertence a uma
tradição que, apesar de sua diversidade e movência, é consolidada e difundida por vastas
regiões do Brasil.
Valeria dizer que os pais e es-de-santo trabalham com materiais oriundos de um
grande mosaico de tradições gico-religiosas que se fundem nos trabalhos realizados nos
terreiros. Mas tais materiais estão disponíveis na cultura material, não precisam ser
inventados, e sim re-significados. Ao que parece, nesta tarefa de re-significação a noção de
axé, de força vital, vai perdendo terreno para a de energia.
Como diz Paul Zumthor, nossas culturas se mantêm na medida em que rejeitam
uma parte do que acumularam de experiência diária, de tal forma que quando se trata da
memória coletiva o esquecimento tem um papel crucial, que é drenar essa experiência
cotidiana, renovando-a sempre:
Conquista progressiva, árdua, daquilo que a comunidade considera sua
herança, a memória coletiva luta contra a inércia do cotidiano, captura os
fragmentos que sente significantes ou úteis, e trabalha por dinamizá-los
transformando-os em elementos de tradição. Assim isolados, centrados,
funcionalizados, estes fragmentos mudam de natureza, e esta mutação é o
próprio resultado da seleção, a conseqüência de uma vontade do
esquecimento.
213
O papel seletivo da memória, neste momento, vai deixando um pouco de lado os
valores do aem troca de outra noção aparentemente mais prática, logo, melhor adaptada as
exigências dos dias atuais.
2.5. OS MATERIAIS DOS TRABALHOS
Num espaço delimitado por uma cerca em frente ao terreiro de Pai Salviano muitas
plantas e árvores. Entre elas, laranjeira, erva-da-angola, lança-de-ogum, manjericão, arruda,
comigo-ninguém-pode, rosa prata, erva cidreira, croa-de-frade e um pinhão roxo. A um
213
Zumthor, 1997-b, p.27.
transeunte qualquer, ou mesmo um cliente, essas plantas podem passar imperceptíveis, como
se fossem plantas. Mas cada uma tem um motivo para estar ali. Como me disse Pai
Salviano
, cada uma tem um fundamento
Antes de ouvir
suas explicações a
tentação primeira era
perceber os usos
medicinais dessas
plantas. Mas o que era
preciso perceber é que
elas não eram
importantes por seus
princípios ativos, em
termos de substâncias
química
s, ou ao menos não
unicamente. E sim por atribuição de significados simbólicos, suas propriedades intrínsecas,
suas energias
. Muitas dessas plantas são utilizadas em um sem
energias e ciências
elas guardam?
Ora, os materiais do
los, nem sempre são contados a quem se interessa. Em alguns casos as entidades ocultam
essas informações até mesmo ao pai
Pai Salviano me disse que algumas coisas, alguns
terra.
Algumas ele não sabe, mas as entidade dão a orientação e ele faz. outras, entretanto,
que ele não sabe e a entidade não ensina. ela pode fazer. Por isso alguns
para fazer se incorporar.
O trabalho aba
ixo foi feito no terreiro de Pai Gledson de modo reservado, para
levantar os filhos-de-
santo, destrancar seus caminhos para o dinheiro
levei esta mesma foto par
a Pai Gledson e perguntei
resp
ondeu que esta era uma
explicar. Somente seu dominava. Por um lado,
conhecimento. Por outro, tal fato pode também ser um mecanismo de controle de liberaç
conhecimento aos “outros”, como os antropólogos.
transeunte qualquer, ou mesmo um cliente, essas plantas podem passar imperceptíveis, como
se fossem plantas. Mas cada uma tem um motivo para estar ali. Como me disse Pai
, cada uma tem um fundamento
.
s, ou ao menos não
unicamente. E sim por atribuição de significados simbólicos, suas propriedades intrínsecas,
. Muitas dessas plantas são utilizadas em um sem
-
número de
elas guardam?
Ora, os materiais do
tados de poder mágico-
religioso, e os procedimentos para utilizá
los, nem sempre são contados a quem se interessa. Em alguns casos as entidades ocultam
essas informações até mesmo ao pai
-de-santo.
Pai Salviano me disse que algumas coisas, alguns
trabalhos,
ele mesmo sabe fazer
Algumas ele não sabe, mas as entidade dão a orientação e ele faz. outras, entretanto,
que ele não sabe e a entidade não ensina. ela pode fazer. Por isso alguns
ixo foi feito no terreiro de Pai Gledson de modo reservado, para
santo, destrancar seus caminhos para o dinheiro
e outras coisas. Quando
a Pai Gledson e perguntei
-
lhe sobre os materiais utilizados, ele me
ondeu que esta era uma
ciência
de Pilintra que não estava ao alcance dele saber
explicar. Somente seu dominava. Por um lado,
-
se o fato da entidade ser a fonte do
conhecimento. Por outro, tal fato pode também ser um mecanismo de controle de liberaç
conhecimento aos “outros”, como os antropólogos.
Frente do terreiro de Pai Salv
iano. Foto: Melquíades Jr. 2010.
122
transeunte qualquer, ou mesmo um cliente, essas plantas podem passar imperceptíveis, como
se fossem plantas. Mas cada uma tem um motivo para estar ali. Como me disse Pai
unicamente. E sim por atribuição de significados simbólicos, suas propriedades intrínsecas,
número de
trabalhos. Mas que
religioso, e os procedimentos para utilizá
-
los, nem sempre são contados a quem se interessa. Em alguns casos as entidades ocultam
ele mesmo sabe fazer
em
Algumas ele não sabe, mas as entidade dão a orientação e ele faz. outras, entretanto,
que ele não sabe e a entidade não ensina. ela pode fazer. Por isso alguns
trabalhos dão
ixo foi feito no terreiro de Pai Gledson de modo reservado, para
e outras coisas. Quando
lhe sobre os materiais utilizados, ele me
de Pilintra que não estava ao alcance dele saber
se o fato da entidade ser a fonte do
conhecimento. Por outro, tal fato pode também ser um mecanismo de controle de liberaç
ão do
iano. Foto: Melquíades Jr. 2010.
123
Zé Pilintra esticando a mão para pegar o mel,
um dos materiais utilizados no trabalho de
alevante que estava sendo realizado por ele.
Neste trabalho utilizaram-se maçãs, moedas, mel, farinha, azeite de dendê e velas
brancas. Mas poderiam ser outros tantos, porque os materiais utilizados em trabalhos são os
mais diversos. Alguns podem causar estranheza aos mais puritanos, como o sangue menstrual
que pode ser empregado para certos trabalhos de amarração, segundo me relatou com ar de
reprovação Chiquinho, presidente do terreiro de Dona Terezinha:
− Aí o sujeito vai ter que beber, é isso?
Isso a mulher faz e ingere aquilo ali numa bebida, porque ele não vai saber, né? O
mais apropriado são essas bebidas vermelhas ou pretas. E o cara já estando bebido… É
perigoso isso aí. […] E é difícil desfazer. Depois que atinge a sua mente. Desfaz, sabe, mas
sempre fica atingindo por muito tempo.
214
Pensando em transferência de propriedades, este exemplo é interessante, pois, através
do sangue menstrual, transfere-se simbolicamente toda uma pessoa para dentro de outra. Uma
vez lá dentro, após atingir a mente, de acordo com advertência de Chiquinho, o efeito se torna
quase irreversível.
Interroguei também Dona Luiza a respeito dos materiais dos trabalhos:
214
Diálogo realizado em junho de 2007.
124
O quê determina em um trabalho a senhora botar cachaça e no outro as velas?
É quando eu vejo que o caso é mais sério, como por exemplo: a pessoa é junta e
por qualquer motivo eles se separaram, por um motivo banal. eles, ou um ou outro, estão
difícil de se encontrarem, eu mais Zé, quando a gente vê, não é tão difícil. […] então
digo: tem coisa que é bem facinho de ser realizado. Tem uns que são difíceis, quando a
pessoa não está querendo mesmo, já partiu para outra, aí fica difícil. chega ao ponto de ser
preciso chamar, trazer, entregar e amarrar para que ele não volte mais. a gente tem que
fazer uma amarração.
− Mas então a cachaça é usada nesses casos mais difíceis?
− É nos mais difíceis.
− Mas por quê? O que tem a cachaça?
A cachaça ela representa um bocado de sentido. As pessoas acham que a cachaça
é para beber. Mas não é. A cachaça traz aquele negócio da descarga. Para abrir caminho
também… para a pessoa ganhar dinheiro… Para vários sentidos. A cachaça não ficou para
ser bebida, principalmente dentro da umbanda, da umbanda ou da quimbanda, porque ela é
usada nas duas coisas.
[…] Não é porque o guia gosta não. É porque a cachaça representa
muitas coisas. Muitas coisas que a gente trabalha precisa da cachaça. Na coisa do amor tudo é
anjo, uma anja e um anjo, os dois unidos representam o casal. Então tem deles que pedem e a
gente bota para que eles passem a ter aquela união.
[…]
− E as cores das velas?
− Tem também significado. Por que cada uma é para uma coisa. Se você vai pedir para
você mesmo, para que seus caminhos sejam clareados. Para que venha a fortuna em busca de
você, emprego, você não vai acender uma vela preta, nem uma roxa. Muita gente acha que o
amarelo também significa ouro. Já eu não gosto, eu sou mais o verde… o verde e o branco.
Para mim são as duas cores que para eles [os guias] tem significado.
− Mas esse significado seria o poder, uma energia, ou o quê?
Tudo misturado, faz a mistura. A mistura do meu pedido, a mistura da cor da vela
[…]. Então você vai a um mato para fazer mesmo os pontos porque tem muito mais coisa
lá, debaixo de uma árvore representa muito mais poder, força […]. Porque ali você está no
125
tempo, debaixo da natureza. Ali é como eu disse, tem tanto mistério… porque nós somos
mistério…
215
É importante observar que cada elemento utilizado em um trabalho, cada material,
possui sua qualidade, conforme tratada no item anterior. Mas como não me é possível detalhar
os poderes e energias fecundas de cada um, atenho-me a esboçar alguns diálogos e
interpretações acerca de alguns deles, procurando assim chegar a uma compreensão mínima
que seja sobre os valores culturais contidos nesses trabalhos despachados em matas, portas e
encruzilhadas.
É instigante perceber como cada trabalho é único, não existindo, em umbanda,
fórmulas acabadas e infalíveis para resolver todos os problemas referentes à saúde, ao
dinheiro e ao amor. As composições dos trabalhos umbandistas são, assim, sempre baseadas
em leituras de contexto e algumas regularidades para certos tipos de casos. Pai Gledson nos
fala sobre isso:
Dependendo de cada tipo de pessoa, é como se fosse assim: cada doença tem um
tipo de remédio para curar, então para cada tipo de pessoa muda a cor da vela, o tipo de
material, mesmo que seja o mesmo sentido de trabalho, o mesmo caso, a mesma coisa. [...]
Se, digamos, vier dez pessoas, são dez trabalhos diferentes, porque é como eu acabei de falar,
para cada doença existe vários tipos de remédio. […] Mesmo que durante um dia eu
trabalhasse dez vezes com a mesma entidade, cada vez que eu fosse trabalhar a entidade viria
diferente, ela nunca vem do mesmo jeito. Então no caso, o trabalho que eu vou executar,
arreio hoje, daqui a meia hora faço o mesmo tipo de trabalho, é outro tipo de trabalho
diferente.
216
Se o material pedido pela entidade muda de um trabalho para o outro, mesmo assim,
preciso dizer que ainda é possível captar regularidades significativas nos elementos que os
compõem. No que toca aos trabalhos de amor, Pai Gledson nos diz:
No amor, assim pelo menos por cima, [...] a entidade pede perfume, velas, é… mel,
a xérox do retrato da pessoa, se não tiver um retrato [...] pode ser usado o nome completo da
pessoa, do homem ou da mulher, e pratos, jarros, rosas, rosas naturais e também pode ser rosa
215
Diálogo realizado em junho de 2009.
216
Diálogo realizado em outubro de 2004.
126
artificial, o que vai embelezar mais o trabalho, principalmente de Pomba Gira. [É] utilizado
basicamente rosa, perfume, champanhe, às vezes até o champanhe para unir mais eles dois, o
casal.
217
Todos os elementos destacados constituem-se, efetivamente, como elementos repletos
de significados simbólicos e funções relevantes dentro dos trabalhos de amor. É uma
condição comum a rituais mágico-religiosos que eles sejam executados com a ajuda de
símbolos
218
. Aqui, espero deixar reiterado, que tais símbolos podem significar forças,
energias.
A sentença assim pelo menos por cima, aparentemente dispersiva, ao contrario de
representar uma perda, traz à superfície o fato de que os elementos citados são os mais
regulares dentro dos trabalhos, ou seja, pertencem à um conjunto que praticamente jamais
estará ausente. Nos trabalhos de amor que presenciei como observador, os elementos citados
se apresentaram com grande recorrência, com exceção da rosa e do champanhe. Em relação
ao champanhe, sua irregularidade é revelada até pela maneira como Pai Gledson alude a esse
elemento: às vezes até o champanhe... Isto não os torna menos importantes, e o uso dos
mesmos pode até denotar casos bem específicos de amores por resolver.
Nesta tarefa, de interpretação do simbolismo dos trabalhos, começarei pelo mel, que
por se opor ao amargor do fel, é antes de tudo um símbolo de doçura
219
. Esta analogia é
sugerida por Pai Gledson:
− É usado o mel para fazer a união, porque o mel serve para adoçar. Então é para fazer
com que as duas pessoas passem a se gostar mais. As entidades no subconsciente ativam a
pessoa, o coração, dão aquela injeção de ânimo para que […] eles passem a sentir amor um
pelo outro.
220
No trabalho de amor, o mel é derramado sobre as fotografias das duas pessoas, para
embeber e inundar de doçura a relação que se pretende levar a efeito. Logo se torna eminente
uma transferência de propriedade. No caso aqui específico, transfere-se para um casal com
rudeza ou desentendimento a doçura do mel. o consigo fugir de associar este elemento à
idéia que se faz do “amor romântico”, “doce como o mel”. Donde se vê que, por coincidência
217
Diálogo realizado em outubro de 2004.
218
Lévi-Strauss, 1989-b.
219
Chevalier, 1999.
220
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
127
ou não, o simbolismo umbandista entra em diálogo com representações sociais exteriores ao
universo da religião.
Assim, a interpretação dessa teia de significados deve estar atenta para o meio cultural
a que este pertence. Nesse sentido, a maçã, numa sociedade fortemente influenciada pela
mitologia bíblica como a nossa, pode ter origem nesse meio, simbolizando o ato de ceder aos
desejos terrestres, e a predominância desses desejos
221
. A maçã é comumente retratada como
o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, sendo algo que, apesar da indução da
serpente, foi consumido devido ao desejo. Por conseguinte, sua presença no trabalho ajudaria
a fazer ceder aos desejos terrenos de paixão a pessoa a quem se destina.
Função diferente possui o champanhe, conforme explica, mais uma vez, Pai Gledson:
Porque o champanhe, você sabe que o champanhe é uma bebida fina, é uma bebida
basicamente fina, assim, mais fina que a cerveja. Então ele é usado. A entidade toma a
metade, a outra metade é jogado banhando ali os dois, digamos, o retrato dos dois ou o nome
dos dois junto com as velas. Ainda acompanha o perfume para poder ter mais força.
222
Pai Gledson, ao dizer que o champanhe é uma bebida fina e colocá-la em oposição às
bebidas que seriam rudes ou grosseiras, atribui a esta bebida qualidades de suavidade. Esta
suavidade seria uma qualidade importante para o bom êxito do trabalho, afinal, não se
imagina um amor que seja grosseiro, e sim com a suavidade de um carinho. Aqui surge a
intensa atividade de bricolage
223
. O champanhe, material inicialmente profano, fato
culturalmente acabado, é ressignificado e passa a servir à construção de novas realidades
devido sua fineza e suavidade, que se quer embutir no amor, de modo que as origens do fato
contam menos que as significações atribuídas no atual momento
224
. O champanhe será posto
aliado ao perfume, para poder ter mais força. O perfume, que no trabalho é borrifado sobre
os demais elementos, possui incrivelmente o poder de fazer evocar lembranças, conduzindo-
nos numa viagem interior a reviver e “mergulhar nas águas correntes do rio da memória
225
”:
A sutileza inapreensível e, apesar disso, real, do perfume, o assemelha
simbolicamente a uma presença espiritual e à natureza da alma. A
persistência do perfume de uma pessoa, depois da partida dela, evoca
221
Chevalier, 1999.
222
Diálogo realizado em outubro de 2004.
223
Lévi-Staruss, 1989.
224
Capone, 2004.
225
Poema O Mais Distante Passado, de Gerson Augusto de Oliveira Júnior, 2002.
128
uma idéia de duração e de lembrança. O perfume simbolizaria assim a
memória.
226
O nome de uma pessoa, talvez não pareça para muitos, também é um símbolo. Ele é
tão forte que chegou a fazer Paulinho, membro do terreiro de Pai Gledson, passar por um
constrangimento pelo fato de ser umbandista. Esta situação de constrangimento, como se verá
adiante, está diretamente ligada à utilização de recursos mágico-religiosos pela umbanda, e à
enorme força simbólica que o nome possui:
Tinha um colega meu que tinha uma namorada. Nós éramos muito amigos, os três,
eu com ele e eu com ela. uma vez [...] eu perguntei o nome dela completo. Aí ele achou, e
ela, que eu queria o nome dela completo para botar em macumba, porque eles sabiam que um
irmão meu era pai-de-santo. ficou me criticando: “Ah, seu irmão é macumbeiro, você vai
botar meu nome na macumba.” começou com uma brincadeirinha, da brincadeirinha foi
passando para coisa séria, da coisa séria foi passando para coisa mais séria ainda [...]. que
eu tinha perguntado aquele nome dela completo sem maldade, sem querer um dia sequer usar,
ou pensar, ela lá na gira.
227
Como transparece na situação descrita por Paulinho, conhecer o nome completo de
uma pessoa permite que se exerça poder sobre ela. O nome, portanto, simboliza a própria
pessoa a quem ele pertence. É a presença dele que permitirá que as propriedades dos outros
materiais sejam transferidas para a pessoa. O nome de alguém ser levado para o terreiro é caso
e assunto famoso comentado em qualquer parte do Brasil, por isso Paulinho teve tantos
problemas com sua pergunta. E não é por acaso a música Santo Forte, de Cláudio Fontana:
Ah, não mexe comigo
Que eu ponho seu nome
Lá no meu terreiro
Eu sou macumbeiro, lelê [...]
Pode-se considerar que o nome, quanto à “presença espiritual”, seja mais eficaz ainda
do que o perfume. Tanto o nome quanto o retrato, pois é agindo sobre o nome ou a imagem
que o trabalho terá efeito. O nome sempre está presente. O retrato, quando não se tem, pode
226
Chevalier, 1999, p.709.
227
Diálogo realizado em julho de 2005.
129
ser substituído pelo desenho, o contorno de uma blusa ou de um calçado, como se viu nos
trabalhos realizados em Dona Terezinha. A imagem faz também com que a própria pessoa
esteja ali, de alguma forma sua presença se personifica. Acompanhada do nome o resultado
pode ser perfeito.
228
Ao falar sobre a rosa, Pai Gledson levantou a questão da beleza como sendo um fator
de importância, o que vai embelezar mais o trabalho, fazendo emergir o princípio da estética
se sobrepondo ao utilitarismo. Se a umbanda, no trabalho de amor, sobrepõe a estética ao
utilitarismo, pode-se dizer que, apesar do trabalho ser pago, obedecendo à lógica da sociedade
capitalista, o universo simbólico que o envolve e lhe dá legitimação acaba não se enquadrando
nesse sistema secularizado.
229
Famosa por sua beleza, a rosa, esse “vegetal de sangue”, é a flor simbólica que mais se
faz uso no Ocidente. Ela pode simbolizar um conjunto grandioso, como a vida, a alma, o
coração e o amor
230
. Mas, predominantemente, “a rosa sempre foi considerada a flor do
amor”
231
. Portanto, não poderia estar de fora dos assim chamados trabalhos de amor.
Não se deve esquecer a vela. Segundo Chevalier
232
, uma vela apagada está
funcionando enquanto símbolo se for para representar algo que morreu, que se acabou,
demonstrando que o simbolismo da vela não é separável do simbolismo da chama que é um
“ser sem massa e, no entanto, é um ser forte”.
233
A chama é o símbolo de um poder secreto,
imprimindo em nossos olhos uma sensação de estar diante de algo que leva-nos para além
daquele corpo amarelo e calmamente fugidio. Recordemos uma música de Zeca Pagodinho:
Pra ganhar teu amor fiz mandinga
Fui às gingas de um bom capoeira
Dei rasteira na sua emoção
Com o seu coração, fiz zoeira!
Fui à beira de um rio e você
Um presente com vinho e flor
Uma luz pra guiar sua estrada
228
Oliveira, 2008.
229
Oliveira, 2008.
230
Chevalier, 1999.
231
Pickles, 1994, p.111.
232
Chevalier, 1999.
233
Bachelard, 2002, p.26.
130
A entrega perfeita, do amor!
234
Como representa a música, ganhar um amor através de mandinga, de um trabalho, é o
mesmo que passar uma rasteira na afetividade do outro, porque a manipula. Essa “luz” para
guiar a estrada obviamente é uma vela. Durante a arriação do trabalho, dentre todos os
procedimentos, o passo final para fazer “a entrega perfeita do amor” sesempre acender as
velas, dar vida às chamas que o cliente, em silêncio, contempla por alguns instantes.
A chama, que ao fim de tudo é uma espécie de “alma do fogo”, não pode, de maneira
alguma, fugir de também ser fogo. E o fogo pode ser usado para simbolizar tanto a vida e a
ressurreição, como também a morte e a destruição, pois, como todos os símbolos, ele é
bipolar
235
. Por isso, ao analisar um símbolo, uma das tarefas deve ser identificar em qual pólo
ele está representado dentro do contexto em análise. Indubitavelmente, no caso do trabalho de
amor, seu sentido não será a destruição. Micea Eliade já chamava a atenção para a grande
recorrência do fogo significando, em culturas e religiões as mais diversas, a energia criadora e
sustentadora
236
. O fogo é a força motriz da mudança. “Se tudo o que muda lentamente se
explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. O fogo é ultravivo”.
237
E
quando se vai à busca de um trabalho de amor deseja-se com avidez mudanças velozes.
Um dos poderes de significação do fogo está ligado à paixão. Na literatura poética, um
dos espaços onde mais se utilizam os mbolos, o fogo é constantemente associado a essa
idéia, o fogo da paixão que arrebata e consome. É associado também ao amor, “o amor é o
fogo que arde sem se ver”, disse Camões mais de quinhentos anos atrás em um de seus
sonetos mais famosos.
Da vela, então, que abriga as potências da chama e do fogo, é desprendida grande
força simbólica. Acesa, ela é um combustível que movimenta os efeitos dentro do trabalho.
Para além disso, elas ainda carregam outras propriedades referentes a suas cores. Algumas
regularidades são notáveis, como as velas vermelhas para trabalhos de amor, as brancas para
trabalhos de cura, e verdes ou amarelas para trabalhos de destranca.
Conversei sobre as propriedades das cores das velas com todos os pais e mães-de-
santo. Conversei também com outros membros dos terreiros. Ás vezes recebia respostas
fugidias. Outras vezes alguns exemplos que sugeriam tais propriedades. Rivaldo, pai-pequeno
do terreiro de Salviano, foi umas dessas pessoas.
234
Grifo meu.
235
Nasser, 2003.
236
Eliade, 1990.
237
Bachelard, 1999, p.11.
131
Geralmente para determinado fim, para determinado objetivo, e para determinada
entidade, a gente vai analisar a cor, a respectiva cor que se deve acender para aquela entidade
que a gente vai pedir por aquela pessoa. A gente pede uma cor adequada para aquela entidade.
Por exemplo: nós não vamos firmar uma vela preta para Iemanjá, rainha das águas, a mãe dos
orixás. A gente geralmente pede o quê? Uma vela de cor azul. O povo de minas, por exemplo,
para destrancar bandeira [dinheiro]? Uma vela amarela. Então para determinada linha existe
determinada cor.
Mas no caso de uma relação amorosa, na linha das lebaras, pode-se usar uma vela
preta?
− Pode. Isso se for mulher pedindo perna de calça, o homem. Se for para uma lebara a
gente pede o quê? Preta e vermelha. Por quê? Porque preto representa o homem, exu homem,
no caso o homem daquela mulher. A vermelha representa o quê? A lebara, que no caso é a
mulher. […] Então a gente usa dependendo da entidade e da linha que aquela entidade
trabalhe.
238
Acerca de todos esses símbolos comentados, que estão constantemente presentes nos
trabalhos de amor, pode-se pensar no estabelecimento de um centro de relações onde os
elementos, à primeira vista casuais e fragmentados, são interdependentes e necessários,
fazendo parte de uma mesma categoria: eles simbolizam lembrança, presença, suavidade,
doçura, beleza, desejo, coração, paixão, amor... Encontra-se aqui, precisamente, uma
entrelaçada rede de significados simbólicos e energéticos. Cada elemento converge e colabora
para que o trabalho obtenha êxito, que é trazer o amor. Em outros casos, de curas e de
destranca, outras redes de significados, envolvendo outros materiais, vão ser construídos com
os mesmos fins. São mediações e relações simbólicas deste nível que dão significado à
escolha de certos materiais e a exclusão de outros na realização dos trabalhos. Mas para
escolhê-los preciso mesmo é conhecer suas propriedades, a qualidade das energias, feito que
nem sempre está ao alcance do comum dos mortais. As entidades conhecem as propriedades
invisíveis das coisas do mundo. Elas portam esse saber. Com ele, elas sabem o que fazer.
238
Diálogo realizado em março de 2009.
132
2.6. MODOS DE TRANSMISSÃO, RECRIAÇÃO E DIFUSÃO
Os cambonos e cambonas, o pai-pequeno ou mãe-pequena, juntamente com os filhos-
de-santo são as pessoas mais próximas das atividades do chefe de culto, o que faz com que
eles tenham constantemente uma dose de transmissão de conhecimento mágico-religioso para
alimentar-lhes. No entanto, é preciso notar que mesmo os clientes acabam tocando numa
parcela desse saber-fazer.
Lembro-me de uma gira no terreiro de Pai Gledson que, como sempre, transcorria
impregnada de pedidos: uma mulher havia trazido sua criança para que Seu Gerson fizesse
uma cura. Na chegada de Pomba Gira um homem e um rapaz se dirigiram a ela,
separadamente, desejando resolver problemas de ordem financeira: o primeiro queria um
dinheiro que não lhe pagavam, o segundo um emprego. Foi quando outro homem veio depois
dizer a Pomba Gira que havia sido abandonado pela mulher e a queria de volta. Após
conversar com ele, uma mulher disparou também estar com problemas amorosos. Depois de
ouvi-la com atenção, Pomba Gira deu uma risada estridente e disse às mulheres que elas
tinham de aprender a ser mais mandingueiras. E ensinou-as a pegar uma maçã, enchê-la de
furinhos e colocá-la em algum lugar de frente para a porta de entrada que, dessa forma, um
cheiro positivo iria se espalhar por toda a casa e evitaria problemas advindos de bobagem.
Esta cena é um bom exemplo de como a transmissão do conhecimento mágico-
religioso das entidades, o qual quem recebe a maior parcela é o pai ou mãe-de-santo, acaba
chegando, mesmo que em parcela nima, em pequenas mandingas, aos clientes. Na noite
dessa gira, algumas pessoas foram para casa carregando um artifício mágico-religioso que
provavelmente Pai Gledson, e mesmo seus filhos-de-santo, já detinham, mas que para elas
era novo e lhes ajudaria a evitar pequenas briguinhas conjugais.
Este episódio revela um dos canais de transmissão e difusão do saber-fazer mágico-
religioso umbandista. Pessoas que podem não ter um mínimo de domínio sobre os
fundamentos da religião, pessoas que podem ter ido ao terreiro quase somente essa vez, de
volta para casa levam consigo um saber a mais e, na manhã seguinte, uma maçã já pode estar
cheia de furinhos em sua sala. É possível imaginar que alguma das pessoas presentes tenha,
depois, ensinado a uma amiga esta mandinga e, dessa maneira, uma parcela do saber-fazer
mágico-religioso umbandista chega à uma camada da sociedade que não freqüentou o terreiro
uma vez sequer, e que possivelmente pode vir a praticar essa mandinga umbandista, sem nem
mesmo saber de onde veio, utilizando-a talvez com o nome de “simpatia”. Assim, o saber-
fazer umbandista pode chegar a influenciar amplos setores da população através de, como se
133
expressou Camargo
239
, uma “penetração difusa” mas, diga-se de passagem, significativa. É
mais um fator que corrobora com a tese de que “a importância cultural da umbanda […] tem
sido sempre maior que seu alcance demográfico em termos da efetiva filiação de
seguidores”.
240
Ensinamentos como citados acima acontecem com bastante freqüência, pois o
repertório das entidades parece ser infinito. Em outra gira, desta vez no terreiro de Pai
Salviano, o exu Sete Encruzilhadas disse que ia ensinar uma milonga a todos nós, porque essa
ele podia ensinar. E nos ensinou a todos os dias, ao acordarmos e sairmos de casa, dizer na
primeira encruzilhada que cruzássemos: saravá Ogum, patrono dos exus, saravá Seu Sete
Encruzilhadas. Fazendo isso, nos livraríamos do fardo nas costas e das demandas. Ao fim,
ainda complementou: Eu ensino porque eu sei a força que tem! Eu não ia ser besta de ficar
falando de encruzilhada se não soubesse de nada! Era mais uma pitada desse saber-fazer
umbandista que estava sendo repassado e atentamente aprendido pelos presentes, tanto que
um rapaz ao meu lado, ao me ver anotando na minha cadernetinha de campo, não sabendo que
se tratava de um estudo, pediu para eu anotar “bem direitinho” para ele também, porque não
queria esquecer.
Outra vez, no terreiro de Dona Terezinha, Zé Pilintra nos ensinou a pegar uma imagem
de São Jorge, a ser cruzada por Pomba Gira, e colocá-la acima da porta de entrada das nossas
casas. Isto nos protegeria das demandas, mal-olhados, invejas e congêneres.
Para Zumthor, a memória possui um caráter duplo: coletivamente, é uma fonte de
saber. Para o indivíduo, uma fonte para ser esgotada ou enriquecida. Dentro da idéia de
movência, Zumthor pensa que todo ato de lembrar é um ato de relembrar, isto é, recriar. Daí
ele falar em “rememoração”. Para ele, a reprodução é sempre uma recriação.
Numa gira em Pai Gledson uma senhora, que por sinal é rezadeira, disse a Pilintra
que um dia desses ela chegou em casa e sua calçada estava cheia de água. Ela, achando que
podia ser água de sal, derramou açúcar para cortar o efeito retardatário que possui esse tipo de
água. Zé Pilintra disse que ela agiu corretamente. A dita senhora já conhecia as propriedades e
a ciência da água de sal, e do açúcar. Mas quem atesta que esse conhecimento permanecerá
restrito a este uso? Quem atesta que ela não o reelaborou? O dinamismo movente do
conhecimento umbandista sobre o mundo e suas coisas pode estar sendo incrementado e
renovado a cada vez que se faz uso dele em performance, rememorando uma tradição que
pode, com tudo o que isso acarreta, ser adjetivada de dinâmica. Como dizia Luiz Assunção,
239
Camargo, 1961.
240
Prandi, 2007, p.21.
134
esse “dinamismo é um elemento que não a caracteriza como finalizada, mas, ao contrário, -
la renovar-se, como processo que a cada dia gera um elemento novo, cria uma entidade,
nova direção aos rituais”.
241
Roger Bastide, mesmo com seu preconceito purista, ao considerar a magia da
macumba e da umbanda a degeneração da religião africana, nos legou um sinal do quanto as
trocas e recriações de saberes mágico-religiosos se fazia presentes nos terreiros da antiga
macumba paulista. Assim ele fala da inserção de imigrantes nesse universo, dizendo que “o
sincretismo já começado prossegue com a introdução na macumba de todos os elementos
mágicos que esses imigrantes trouxeram de seus países de origem”.
242
E continua:
Não se trata de magia erudita, mas de magia popular, de acordo com o nível
intelectual e economicamente baixo da plebe das grandes cidades. O material
empregado é uma mistura de todas as magias do mundo, que o imigrante
enriquece com novos processos acrescentados aos dos índios, dos africanos e
dos luso-brasileiros; um rio utiliza talismãs, livros de astrologia e orações
em árabe; um francês, as estrelas de Salomão e sinais cabalísticos. Apesar
disso, os processos do cerimonial permanecem muito pobres, e as raízes, as
ervas, os punhais, dominam quase em toda parte.
243
É uma pena que o mestre Bastide não tenha percebido a riqueza existente nos rituais
mágico-religiosos da macumba. Esse mundo aberto às influências, diversificado, com uma
dimensão afetiva que ocupa grande espaço, e a profundidade dos conhecimentos implicados,
como hoje se faz presente nos trabalhos da umbanda, por si bastariam para demonstrar a
riqueza cultural de tais rituais.
Numa citação um pouco longa, mas que vale a pena por sua beleza, Luiz Assunção
nos fala acerca do saber-fazer umbandista trazendo ao lume essa riqueza de que falo:
Aqueles que fazem parte do mundo acadêmico, ‘‘científico’’, procuram
transpor as paredes físicas, simbólicas e imaginárias desses mundos, embora
de forma abrupta, sem a sistemática do conhecer, marcada pelos ritos de
passagem, mas por intermédio do estranho que observa e furta os
significados de práticas culturais vividas por ‘‘outros’’ grupos sociais.
Quando andávamos pelos corredores do terreiro de Dona Chica de
Petronilha, em Picos-PI, ficávamos imaginando os mistérios dos deuses
soltos nas noites a soprar o vento frio sertanejo sobre aquele morro a
descortinar a cidade. Ou quando ouvíamos as narrativas vasculhando as
lembranças vividas para falar de tantos conhecimentos guardados,
escondidos por esse ‘‘mundão’ afora. Aí, ficávamos imaginando nossa
iniciação em uma dessas tantas casas que conhecemos. O conhecimento não
241
Assunção, 2006, p.267.
242
Bastide, 1971, p. 412.
243
Bastide, 1971, p.413.
135
se exaure nessas relações estabelecidas, ao contrário, elas são o princípio.
Entre ‘‘eles’’ e ‘‘nós’’ existe o falar e o olhar possível, existem os silêncios
da cultura e a certeza de que, para ambos, a experiência e a aprendizagem
são contínuas, reelaboradas, dinâmicas. É esse dinamismo contido na
umbanda, que propicia a elaboração de uma variedade de crenças e práticas
rituais.
244
Assim, a riqueza cultural do saber-fazer mágico-religioso umbandista seria resultante,
entre outras coisas, de seu dinamismo movente. E o que origem a este dinamismo senão as
recriações e as incessantes trocas e compõem essa religião desde seu início. Hoje, essas
trocas ainda acontecem através de inúmeras maneiras, como o encontro com outras idéias
religiosas, a bi-religiosidade, a intervocalidade
245
ou mesmo da leitura de livros que têm
origem noutras matrizes religiosas, havendo trocas desses conhecimentos mágico-religiosos
se dando dentro de um mesmo tipo de umbanda ou então entre universos mais distintos. Um
bom exemplo de trocas que se deu a partir da intervocalidade em meu campo de estudo
aconteceu no terreiro de Pai Salviano.
Foi quando eu trouxe de Natal-RN, cidade onde a tradição da jurema se faz fortemente
presente na umbanda, um álbum fonográfico de “pontos de jurema”.
246
No álbum, havia vinte
e nove pontos escolhidos e cantados pelos juremeiros mais antigos ou expressivos de Natal.
Presenteei cada chefe dos terreiros em que pesquiso com um volume. Especialmente
Salviano, que demonstra grande interesse na prática da jurema, expressou ter gostado muito
do presente. Houve um dia em que até conversamos sobre o assunto. Na ocasião lhe falei um
pouco do que conheci sobre a jurema em Natal, e disse a ele ter achado muito bonito um
ponto de Zé Pilintra, presente no álbum fonográfico, que dizia:
Pendurado na boca
Seu charutão
Chapéu de couro
Bengala na mão
Quem nunca viu
Venha ver esse bom mestre
Seu Zé Pilintra mandingueiro do sertão
244
Assunção, 2006, p.168-169.
245
Zumthor, 1993. Assim como se fala em intertextualidade, Zumthor argumenta que pode-se falar no mesmo
sentido em intervocalidade.
246
O projeto do CD foi realizado pela prefeitura de Natal no ano de 2008 e teve como coordenador o professor
Luiz Assunção.
136
Um mês depois, numa gira de exu, Seu Pilintra desceu e, ao invés de sua cartola,
sapato e paletó brancos, pediu apenas um chapéu de couro. Depois anunciou estar ali numa
linha diferente do que todos estavam acostumados. A indumentária, como se via, ao
abandonar um referencial de Pilintra oriundo do sudeste e adotar um propriamente do
nordeste
247
, anunciava a mudança. Logo em seguida começou a entoar um ponto, e era o
ponto acima citado. Até então, eu nunca o vira antes cantar esse ponto. Como o corpo de
médiuns e as cambonas não acompanhavam o canto, Seu Zé ficou bravo e deu uma bronca em
todos. Defendendo-se, eles responderam que não estavam cantando porque não conheciam o
ponto, e não dava para pegar de primeira. Então, Seu retomou a paciência e começou a
ensiná-los. Em instantes, ele já cantava e dançava acompanhado por mais de vinte vozes e
corpos dançantes.
Em resumo, esse ponto, através de um artefato digital, de uma oralidade
mediatizada
248
, saiu de uma terra de juremeiros, foi de ônibus até Mossoró, caminhou mais
um pouco para descer a Chapada do Apodi e chegar aos terreiros limoeirenses, onde agora o
cantam com gosto (daqui se também um exemplo de interferência do antropólogo no meio
em que estuda).
E como em grande parte do tempo os pontos não são pontos, mas palavras-força,
verdadeiros ritos vocais, utilizados com fins e meios mágico-religiosos, essa intervocalidade
que se registrou através de um meio digital transformou-se numa difusão de palavras-força
vindas de outro contexto. Ademais, os pontos cantados são também uma forma coletiva de
expressão que estão carregadas de valores e narrativas míticas sobre as entidades, revelando
saberes próprios dos contextos umbandistas onde lhe põem em execução
249
. Assim, podemos
falar que no caso narrado houve, mesmo que em escala mínima, a migração de um saber.
Saber este que, há bastante tempo, pertence a uma tradição nômade
250
.
Em situações de oralidade como esta, a transmissão e recepção e, principalmente, a
conservação desses conteúdos, estão entregues à memória. Mas a memória implica, na
reiteração, em incessantes variações re-criadoras. Casos de intervocalidade, que envolvem
conhecimentos mágico-religiosos, como o pouco comentado, representarão sempre
mudanças e re-criações. Assim, a jurema potiguar não estará em Limoeiro do Norte como está
em Natal. Mas de algum modo fez um acréscimo e se fará um pouco mais presente, sendo
adaptada às condições e necessidades locais.
247
Assunção, 2010.
248
Zumthor, 1997.
249
Queiroz, 2008.
250
Zumthor, 1993.
137
CAPÍTULO 3:
QUESTÕES DE SUBJETIVIDADE
Já foi destacado a importância de se investigar a subjetividade para o desenvolvimento
de uma antropologia que exerça o papel de crítica cultural
251
. Entretanto, a necessidade de
escrever sobre a experiência dos trabalhos levando em conta o indivíduo e sua subjetividade,
dois dos principais elementos que os paradigmas da ordem, como denomina Roberto Cardoso
de Oliveira, não deixavam espaço ou tentavam domesticar
252
, se deu quando comecei a
tomar contato com histórias, angústias, emoções, conflitos e reflexões de clientes que iam ao
encontro dos pais e mães-de-santo lhes solicitar auxílio mágico-religioso para resolver suas
aflições cotidianas
No que diz respeito ao próprio conceito de subjetividade, ao invés de procurar
enquadrá-lo de maneira muito fechada, considerei prudente adotar uma concepção mais larga
e aberta, tomada de Sherry Ortner quando esta aborda questões referentes à subjetividade e
crítica cultural:
Por subjetividade irei me referir ao conjunto de modos de percepção, afeto,
pensamento, desejo, medo e assim por diante, que animam os sujeitos
atuantes. Mas eu sempre me refiro, da mesma forma, às formações culturais
e sociais que modelam, organizam e provocam aqueles modos de afeto,
pensamento, etc.
253
Durante o correr do texto procuro alternar entre o exame de tais formações culturais e
os estados internos dos sujeitos que me falaram sobre suas questões e problemas. A respeito
de tais problemas, conforme pretendo indicar, são temas comuns da condição humana,
experimentados em muitas sociedades diferentes no tempo e no espaço. Porém, no contexto
religioso afro-brasileiro em que se dão ganham roupagens muito específicas e passam, muitas
vezes, a ser lidos através dos códigos próprios da religião umbandista.
251
Ortner, 2007.
252
Cardoso de Oliveira, 1995.
253
Ortner, 2007, p.376.
138
A recorrência aos trabalhos para resolver esses problemas é um dos fatos mais
visíveis nos terreiros onde realizei pesquisa de campo. Numa das primeiras conversas com a
mãe-de-santo Dona Luíza, perguntei-lhe quais os problemas mais recorrentes que as pessoas
buscavam resolver através da umbanda. De início ela respondeu de forma breve e clara:
− Doença.
Então fez uma pausa, para logo após explicar melhor:
É… problema de encosto, de estar mal assistido pelo espírito do mal e outros
problemas de doença mesmo, até doença mesmo material! É… têm vários casos de amor,
pessoas que se deixaram e querem voltar e um está com medo de falar para o outro [risos]!
Aquele negócio! Eu só trabalho nisso: cura… uma gira… e nesse caso assim de amor.
Depois nossa conversa tomou outros rumos, mas acabou voltando ao mesmo ponto,
quando Dona Luíza me esclareceu mais ainda:
Eu trabalho mais sobre doença, essa área financeira e um caso de amor assim como
eu lhe disse: um casal estar separado, […] os dois querendo voltar e um estar com vergonha
de pedir desculpas ao outro. […] Aqui em Limoeiro eu tenho também trabalhado para muitos
comerciantes. Eu vou na loja com uma pessoa que trabalha comigo. A gente vai à noite para
loja e descarrega, faz todo o descarrego, faz tudo o que tiver de fazer. E tem dado muito
certo
254
.
Quando comecei a frequentar o terreiro de Dona Terezinha, Chiquinho, seu filho
biológico e presidente do terreiro, dizia-me algo parecido:
Mais procurado mesmo é caso de doença. E também […] casos de juntar casal.
Pessoas que mandam separar a gente já não gosta muito de fazer essas coisas
255
.
Indo ao terreiro de Pai Salviano também lhe perguntei, sem muitos rodeios:
254
Diálogo realizado em junho de 2007.
255
Diálogo realizado em junho de 2007.
139
− Salviano… o que é mais procurado em seu terreiro…?
E ele respondeu:
Só trabalho mais aqui em parte de cura, na parte de saúde […], e alguém às vezes
procura… está sendo muito procurada essa parte financeira. Não para jogo, até porque jogo…
eu detesto jogo. É negócio de comercio que esteja atrasado, não está tendo desenvolvimento,
as vendas não estão boas, me procuram muito ajuda. A gente faz uma arriada para um orixá,
um tipo de trabalho de limpeza, entendeu. Porque às vezes a pessoa está super carregada, está
muito ligada no lado material e esquece o espiritual. Tem muita gente, você sabe, que só
pensa na parte material, só pensa no dinheiro, quando der fé cai! O dinheiro não é tudo. Aí me
procura, a gente faz… procura fazer uma arriada para o santo, procura uns banhos de limpeza,
de descarga, a pessoa vai indo e se levanta
256
.
As sumárias declarações citadas acima indicam claramente a grande procura que
pelos três tipos de trabalhos enfocados durante esta pesquisa. Na movimentação diária nos
terreiros, as complicações amorosas, os problemas de saúde e de recursos financeiros o
incontestavelmente os principais motivos que impulsionam as pessoas à ficarem frente à
frente com as entidades. Mais que uma observação empírica estrita a este contexto de
pesquisa, o fato parece ser generalizado em outras regiões do Brasil, como sugere a literatura
antropológica e sociológica sobre as religiões de matriz africana.
Desde os estudos de Roger Bastide a recorrência à ritos mágico-religiosos com
finalidades de cura, amor e dinheiro fora constatada nos terreiros das religiões afro-brasileiras.
Assim Bastide nos fala do Catimbó: “a cura da doença é uma finalidade essencial dessa
religião; os Espíritos não são chamados à Terra para serem adorados, mas para atender às
necessidades da clientela religiosa”
257
. Noutro momento, ainda sobre o catimbó, diz que o
importante “são os desejos ou as necessidades individuais, é a vida cotidiana com suas
doenças, seus romances de amor, seus ganhos, suas tristezas e seus sonhos de um futuro
melhor”
258
.
256
Diálogo realizado em junho de 2007.
257
Apud: Assunção, 2006, p.19.
258
Bastide, 1971, p.255.
140
Como demonstra Luiz Assunção
259
, o catimbó é uma reelaboração da jurema indígena,
tendo sido incorporada ao universo da umbanda, por onde permaneceram muitas de suas
práticas, de maneira mais acentuada ou menos dependendo da região. O próprio Assunção,
falando da umbanda juremizada, ou jurema umbandizada, praticada nos sertões nordestinos,
afirma que uma das imagem do caboclo, entidade de grande importância para esse tipo de
umbanda, “se relaciona com o lado prático da entidade de resolver as mais diferentes questões
do cotidiano dos adeptos dos terreiros umbandistas”
260
. Em artigo posterior, desta vez
situando o campo empírico em Natal, Rio Grande do Norte, ressalta o caráter “eminentemente
terapêutico” da umbanda e afirma que a “maior parte das pessoas que procuram essas casas
religiosas vai inicialmente à busca de alívio para alguma aflição: como doença (física e
espiritual), problemas no trabalho ou falta de emprego, dificuldades no amor ou conflitos
interpessoais no cotidiano, questões com justiça etc.”
261
A cura de doenças também é generalizada no terecô de Codó, e em outras cidades
maranhenses, como atesta Mundicarmo Ferretti
262
. Já para Lísias Negrão, que toma São Paulo
como campo de estudo, a “grande maioria das intervenções dos guias na vida daqueles que
procuram por sua ajuda refere-se a questões de saúde. Tanto assim que não existem guias que
delas não cuidem, todos são curadores.”
263
Também de São Paulo, Maria Helena Villas Boas Concone nos fala da realização de
trabalhos particulares, acreditando ser um duplo referencial, kardecista e africanista, que
permitiria a existência dessas consultas privadas. Ela conclui dizendo que “a função da
Umbanda não é apenas homenagear as entidades, mas também de alguma forma manipulá-
las segundo as necessidades dos homens.”
264
Em outra publicação ela retoma o assunto dos
trabalhos, mas desta vez falando de sua vivência nos rituais públicos dos terreiros, e das
consultas que aconteciam durante esses rituais:
Na casa da Mãe Coranga, que freqüentamos seguidamente cerca de quatro
anos, podia-se ver, antes do início das sessões, as pessoas marcando
consulta no pequeno balcão da secretaria ou anotando num papel os nomes
daqueles ausentes para quem pediam proteção. […] As consultas, dirigidas
às Entidades, devidamene incorporadas em seus filhos/as de santo,
tomavam um tempo grande de cada sessão, e, no burburinho que se
levantava, podia-se entreouvir as falas dos consulentes. Os problemas
259
Assunção, 2006.
260
Assunção, 2006, p.235.
261
Assunção, 2010, n.p.
262
Ferretti, 2001.
263
Negrão, 1996-b, p.87.
264
Concone, 1987, p.129.
141
eram vários, mas grosseiramente pode-se afirmar que diziam respeito a
relações afetivas, envolvendo familiares, trabalho e saúde.
265
Ao que algumas fontes históricas indicam, a busca de resolver problemas amorosos, de
saúde e financeiros através do conhecimento mágico-religioso resguardado nos terreiros vem
desde muito tempo
266
. O próprio Bastide já dizia que a antiga macumba paulista era “a grande
fornecedora de esperança para as pessoas sem trabalho, sem amores e sem dinheiro”.
267
Renato Ortiz, que realizou sua pesquisa empírica no Rio de Janeiro, relata que durante
“as consultas, as pessoas expõem seus problemas particulares aos espíritos, variando os temas
desde os problemas de saúde, finanças, desconsolo, até as desavenças amorosas e familiares”
268
. Da mesma forma, Pordeus Jr., estudando a umbanda em Fortaleza, diz, ao falar de exu,
que sua força é usada “para ‘desmanchar’ certos trabalhos e ao mesmo tempo para
desenvolver todo o tipo de solicitações da vida ‘material’ como dinheiro, trabalho e amor”
269
.
O que se e ouve nos terreiros são sempre relatos de aflições, onde a afetividade, as
emoções, os sentimentos, tomam as rédeas desse campo chamado vida em sociedade.
Delineia-se, assim, um ponto de partida para a experiência mágico-religiosa, que são os
problemas universais da própria condição humana
270
. Como pontua Fry e Howe:
Sofrimento e aflição são genéricos a todas as sociedades e cada sociedade
desenvolve formas intelectuais para seu controle e resolução. Os tipos de
sofrimento, a percepção de “sintomas” e os modos de “tratamento” contudo,
variam de uma sociedade para outra e se relacionam a diferenças observáveis
na estrutura social.
No contexto do Brasil urbano moderno, os tipos de aflição podem ser
agrupados em três áreas: em primeiro lugar vem a saúde; em segundo, o […]
sub-emprego, não pagamento de salários e dívidas, questões com a polícia,
encontro com autoridades burocráticas etc.; em terceiro, a aflição que resulta
de dificuldades em associação interpessoal. Este último incluiria as aflições
decorrentes de problemas de amor, quebra de harmonia familiar e problemas
de relacionamento de parentesco e vizinhança.
271
Como se vê, Fry e Howe, a despeito de universalizarem as aflições e sofrimentos,
indicam a contextualização sócio-cultural dessas duas dimensões. Nessa direção, é de grande
importância perceber todos os tipos de expressões dos sentimentos “não como exclusivamente
265
Concone, 2008, p.225, grifo meu.
266
Ivone Maggie, 1992, mostra através de documentos criminais que no Rio de Janeiro, pelo menos desde o
início da república, essas práticas mágico-religiosas existiam e eram por mais das vezes perseguidas pelos órgãos
oficiais, que as taxavam de “feitiçaria”, e enquadradas no Códico Penal.
267
Bastide, 1971, p.413.
268
Ortiz, 1999, p.108.
269
Pordeus Jr., 1993, p.98.
270
Camargo, 1961, já apontara para este fato.
271
Fry e Howe, 1975, p.75.
142
psicológicos, ou fisiológicos, mas fenômenos sociais”
272
. Qualquer visão dicotômica, que
atribua prioritariamente às emoções uma base biológica, ou ao seu oposto, sócio-cultural,
deve ser abandonada pela noção de que elas são geradas por meio de uma interação complexa
de diversos componentes
273
. Como diz Röttger-Rössler, elas “se constituem nas interfaces de
diversos sistemas biológicos, psíquicos, sociais, culturais e também temporais”
274
. É tarefa da
Antropologia, interessada nesse campo, abordar estes dois últimos componentes.
A afetividade parece, em um primeiro contato e de acordo com o senso
comum, um refúgio da individualidade, um jardim secreto onde se cristaliza
a intimidade de onde brota uma indefectível espontaneidade. Mas, mesmo
quando ela é sincera e genuinamente oferecida, a afetividade permanece uma
emanação característica de certo ambiente humano e de determinado
universo social de valores.
275
No decorrer das discussões os conceitos de emoção e sentimento não estarão
nitidamente distinguidos, “já que ambos se integram e decorrem da mesma impregnação
social”. A expressão dos sentimentos e emoções se numa relação dialógica onde
comportamentos e discursos cultural e socialmente marcados sofrem influência de recursos
interpretativos da sensibilidade individual.
276
As emoções que nos acometem e a maneira como elas repercutem sobre nós
têm origem em normas coletivas implícitas, ou, no mais das vezes, em
orientações de comportamento que cada um exprime de acordo com seu
estilo, de acordo com sua apropriação pessoal da cultura e dos valores
circundantes. São formas organizadas da existência, identificáveis no seio de
um mesmo grupo, porque elas provêm de uma simbólica social, embora elas
se traduzam de acordo com as circunstâncias e com as singularidades
individuais. Sua expressão es ligada à própria interpretação que o
indivíduo faz do acontecimento que o afeta moralmente, modificando sua
relação com o mundo de maneira provisória ou durável, seja por anos, seja
por alguns segundos. As emoções traduzem a ressonância afetiva do
acontecimento de maneira compreensível aos olhos dos outros.
277
De maneira também dialógica, entre modelos, normas, e a sensibilidade individual, se
dá as discussões em torno de questões que dizem respeito à moralidade. Tais questões surgem
quando da realização de certos trabalhos como, por exemplo, fazer alguém apaixonar-se por
outra pessoa. Para abordar tais questões, e para efeito de retórica, deve-se primeiro demarcar a
272
Mauss, 2001, p.325.
273
Röttger-Rössler, 2008.
274
Röttger-Rössler, 2008, p.207.
275
Le Breton, 2009, p.112-113.
276
Le Breton, 2009, p.114.
277
Le Breton, 2009.
143
consideração da categoria moralidade “como uma instância suscetível de investigação
antropológica”
278
, visto que ela é, essencialmente, uma criação histórico-cultural. Em síntese,
a moralidade é “um dos valores mais importantes de uma cultura, pois constitutivo de
qualquer sociedade”
279
, e responsável por definir para seus membros “os valores positivos e
negativos que devem respeitar e desejar ou detestar e desprezar”, constituindo assim também
nossa existência intersubjetiva
280
. Nietzsche, em sua Genealogia da Moral, delineou a origem
dos conceitos de bem e mal, bom e mau, na sociedade ocidental, indicando como os valores
judaico-cristãos se impuseram.
281
Aqui, tenho em mente que os princípios de uma moralidade
judaico-cristã são o paradigma moral hegemônico em nossa sociedade para definir o que é
bom e o que não é.
Ainda que o tema tenha sido majoritariamente tratado pelos filósofos, ele não será
pensado de maneira especulativa, e sim trazido às circunstâncias de manifestações empíricas
envolvendo os ritos mágico-religiosos umbandistas. Em síntese, a problemática básica da
moralidade pode ser formulada na pergunta: como devo agir?, e em seu desencadeamento:
como julgar a minha ação e a dos outros? Com que critério faço esses julgamentos? Quais os
valores que orientam, e devem orientar, minhas ações e as ações dos outros?
282
Essas e outras questões, que levam a pensar nos valores, no bem, na liberdade, entre
outros, são debatidas pelos pais e mães-de-santo, bem como por alguns de seus clientes.
3.1. SOBRE AFLIÇÕES COTIDIANAS
Existem pessoas que nunca teriam se apaixonado
se jamais tivessem ouvido falar do amor
La Rochefoucauld
Debrucemo-nos numa metáfora simples, mas extremamente existencialista, elaborada
por Pai Gledson numa de nossas entrevistas:
278
Cardoso de Oliveira, 1994, n.p.
279
Cardoso de Oliveira, 1994, n.p.
280
Chaui, 2003, p.307.
281
Nietzsche, 2009.
282
Freitag, 1992.
144
Os que vêm aqui todos os dias, todos os trabalhos [todas as giras], falta uma coisa,
certo. Então ali, aquela coisa que falta, aquele pedaço que falta, vamos supor, falta uma fatia
de bolo. Então ali eles [os guias] estão no mundo deles, assim espiritualmente, [para] fazer
com que venha aquele complemento, onde aqui na minha casa vocês encontram esse
complemento que está faltando para você ficar completo, entendeu? Por isso que as pessoas
que vêm, que gostam daqui, assim… falta esse pedaço. Então eles [os guias] estão
trabalhando para complementar esse pedaço. […] Porque eles vêm para ajudar a gente, ajudar
nas nossas fraquezas, no que falta na vida da gente.
283
Na fala de Pai Gledson, ao metaforizar os anseios dos indivíduos como um bolo
incompleto, o que motivaria alguém a procurar um trabalho seria uma necessidade humana de
conseguir aquilo que lhe falta para ser feliz. Seria a busca de respostas para as necessidades
mais imediatas. Seria também uma busca por segurança e amparo, visto que ajudaria a superar
nossas fraquezas, como as doenças mesmo, que devastam tantos corpos. A falta de dinheiro, o
desemprego, que nega à muitos elementos básicos para uma sobrevivência digna. Ou a falta
de alguém ao lado, a solidão amorosa. E pensar na convicção de que as entidades umbandistas
podem resolver esses problemas cotidianos traz uma sensação de amparo e segurança um
pouco maior, ou muito maior, conforme cada um que vai ao encontro delas.
Paula Montero havia notado, a seu modo, que no espaço da cura mágica na
umbanda “trabalha-se cotidianamente a matéria-prima das experiências subjetivas: as
emoções, a crise das relações com o outro, a exclusão.”
284
Também Concone, ainda em sua
vivência na casa de e Coranga, relata que nos cultos públicos haviam constantemente
pedidos de proteção que eram lidos um a um durante quinze ou vinte minutos. Estes se
referiam à busca de saúde e “visavam pessoas doentes em casa ou hospitalizadas, aguardando
cirurgia algumas, outras em Unidades de Terapia Intensiva. Pode-se dizer, então, que a
maioria dos freqüentadores ali acorria movida pelo sofrimento e pela aflição, em busca de
apoio, orientação ou solução.”
285
283
Diálogo realizado em julho de 2005.
284
Montero, 1986, p.47.
285
Concone, 2008, p. 225.
145
Momento de orientação de Zé Pilintra ao dada ao pé do ouvido do cliente. O pai-de-santo
da foto é Salviano. Foto: Melquíades Jr. – 2010.
Em meu campo empírico deparo-me com essas aflições cotidianas a cada gira. Os
problemas são às vezes dos próprios filhos-de-santo, mas quase sempre dos clientes. Em
ambos os casos, mesmo quando uma contrapartida em dinheiro, é comum os pais e mães-
de-santo de que venho falando se envolverem emocionalmente na questão, sentindo
daquelas pessoas e buscando sinceramente ajudá-las pelos meios mágico-religiosos de que
dispõem.
Quando converso com algumas dessas pessoas, é inevitável que eu seja tomado pela
mesma empatia. São seres humanos que às vezes estão sem casa para morar, ou sem
condições de comprar o pão do próximo dia. Pessoas sem esperança de curar uma doença que
traz o sofrimento, a dor, a coceira, o cansaço, as feridas, os desconfortos. Pessoas sozinhas e
tristes porque foram abandonadas pelo parceiro amoroso. Uma dessas pessoas, chamada
Sofia
286
, chegou aos pés de Pomba Gira, incorporada em Pai Gledson, para fazer um trabalho
de amor. Vejamos uma fala sua, comentando sobre os motivos que a fizeram procurar o
trabalho:
286
Visando preservar a identidade da entrevistada, visto que ela solicitou um trabalho de amor, logicamente
dirigido a outra pessoa, foi posto o nome Sofia, que é fictício.
146
Porque o momento que eu estava vivendo… qualquer coisa que me trouxesse a
pessoa de volta valeria a pena. Então eu acreditei que aquilo ali de certa forma pudesse me
trazer a pessoa de volta, pudesse acalmar o que eu estava sentindo, pudesse me dar uma
resposta para o que eu estava vivendo, ou que me fizesse pelo menos entender o que tinha
feito a pessoa ter ido embora de mim inexplicavelmente, se até então era bom,
demonstrava amor, carinho, e de repente ficou tudo estranho, esquisito… por conta talvez,
não sei, de uma outra pessoa que entrou. Eu queria saber porque tudo aquilo tinha
acontecido.
287
Nota-se nas palavras de Sofia que um de seus maiores sofrimentos não era apenas a
ausência de seu amor, mas o fato de não entender como o perdeu. Ela buscava uma explicação
para uma situação que causou desordem
O relato de Pomba Gira, de que outra pessoa colocara-se no seu caminho e interferia
na relação, trazia um leve alento para suas angústias. Isto porque o simples fato de fornecer
uma mínima ordenação e explicação aos caos aumenta a segurança e o conforto. A cura das
aflições passa pela explicação delas, como observou Magnani:
A religião, antes de mais nada, oferece um conjunto de certezas que
constituem pontos de referência diante da imprevisibilidade da vida
cotidiana. Se nem sempre evita o sofrimento, torna-o inteligível, dá-lhe um
novo significado. Princípio integrador de acontecimentos que em sua
incoerência se apresentam como insuportáveis, propicia a introdução de uma
ordem no caos.
288
Quem vivencia o dia-a-dia dos terreiros sabe que os corações dos pais e das mães-de-
santo devem ser enormes, “para neles caber a aflição dos filhos e filhas e de estranhos e
estrangeiros. São arcas de desesperos e rancores, de esperanças e sonhos; são cofres de amor e
ódio”.
289
Quando se trata dos trabalhos, e principalmente dos trabalhos de amor, o que se
dia-a-dia são os pedidos chegarem na forma de relatos de vida, circunstâncias por vezes
carregadas de angústias. Nesse sentido, os pais e mães-de-santo acabam também exercendo
um papel de bom ouvinte, de amigo, de tranqüilizador. É essa a figura que pode ser
visualizada quando Sofia descreveu Pai Gledson:
287
Diálogo realizado em julho de 2005, grifo meu.
288
Magnani, nd., n.p.
289
Paráfrase das palavras de Jorge Amado, 2001, p. 85, no romance Tenda dos Milagres, quando ele fala,
referindo-se ao papel da mãe-de-santo: “Seios de mãe-de-santo devem ser assim, enormes, para neles caber a
aflição dos filhos e filhas e de estranhos e estrangeiros. São arcas de desesperos e rancores, de esperanças e
sonhos; são cofres de amor e ódio”.
147
É uma pessoa [Pai Gledson] muito humana, […] uma pessoa aberta, que está ali
para falar do que acontece, que responde as perguntas da gente, e que tem muita coisa a
ensinar também. Ele é muito descontraído, muito alegre, sempre muito alto-astral, tem sempre
uma palavra boa para dizer a gente. Em outros momentos eu fui para conversar e ele foi
de grande valia, me disse boas coisas, boas palavras, que me ajudaram bastante
290
.
Nota-se que, para além dos recursos mágico-religiosos, pais e mães-de-santo tem de
ser grandes ouvintes e conselheiros. Ambas as funções se fazem imprescindíveis. A
terapêutica umbandista coloca então a relação interpessoal entre quem trata e quem é tratado
como um dos mecanismos que levam ao êxito.
O papel de conselheiro também surgiu na entrevista com Letícia
291
, uma das tantas
pessoas que foram somente uma, ou poucas vezes, a um terreiro, levada por motivo de amor:
A primeira vez que eu fui foi em Maria Pezinho. tinha muita gente na fila
esperando. Ela perguntou o que eu queria fazer, qual era o trabalho. eu falei que queria
fazer uma aproximação da pessoa que eu gosto. Ela pediu o nome dele completo e a data de
nascimento, perguntou se ele era casado, se ele era solteiro, se estava com muito tempo o
caso, porque no caso eu era a outra, né? Porque ele era casado. eu falei que eu era a outra.
Aí ela pediu para eu contar do começo ao fim. Ai eu contei o relacionamento que eu tive com
ele: conheci quando tinha doze anos até os meus dezenove anos, e ele casou e teve família e
eu fui ficando sempre para trás. Ela pegou me deu uns conselhos… que ele nunca deixaria a
mulher para ficar comigo… que um dia ela ia descobrir e ia dar muita confusão… que eu
abrisse meu olho porque eu era muito nova, tinha muita coisa para viver, para conhecer. […]
ela pediu pra eu retornar no outro dia na casa dela, para eu saber se ia dar certo alguma
coisa ou se não podia ter esperança. Fui no outro dia. eu não fiquei no quarto do trabalho,
fiquei na área mesmo normal, como uma pessoa qualquer. ela pegou e disse assim: você é
a menina do casamento? Do o homem casado? eu peguei e disse: sou. ela: você veio
saber do que? Eu: vim saber da resposta que a senhora me mandou retornar. […] ela disse
que a resposta não era boa, era uma coisa muito ruim. E eu, como gostava muito, me tremi
dos pés a cabeça. ela pegou e disse que se eu pudesse me afastar o mais rápido eu me
afastasse, porque ela ia descobrir e não demorava para ela descobrir, ela estava quase
sabendo do caso. disse que tinha outras pessoas que gostavam de mim, que essa minha
290
Diálogo realizado em julho de 2005.
291
Por questões de privacidade foi posto o nome Letícia, que é fictício.
148
paixão cega por ele não me fazia enxergar outras pessoas. eu fiquei calada. Sem dar
resposta a ela, porque eu não tinha resposta, né? Eu gostava dele e de todo jeito queria ficar
com ele. Ou como “outra” ou “qualquer”, mas ficava com ele. ela pegou e pediu para eu
me afastar dele porque ia ter uma confusão, ia acontecer uma confusão e como eu era a outra,
para ele eu não significava nada, nada para ele. que eu achava que ele gostava, porque eu
tinha doze anos quando conheci ele. eu fui seguindo os conselhos dela… fui realmente
prestando atenção nas pessoas que tinha ao meu redor e fui vendo como era que a gente estava
ficando e tudo. a mulher dele realmente descobriu o caso, eles foram embora para o Pará,
ficaram morando lá uns meses. Eu passei quase um ano e sete meses também sem ficar com
ninguém, sem namorar com ninguém, esperando que talvez pudesse mudar, né? A confusão e
tudo, que ele viesse atrás de mim para me dar satisfação… Mas não, ele me acusou dizendo
que eu tinha falado demais até cair nos ouvidos dela, e que desse jeito não tinha condições
não. pronto, quando ela me via nos cantos ficava olhando e procurando saber alguma
coisa de mim...
292
Como se vê, Letícia nem mesmo chegou a realizar um trabalho. O papel de
conselheira da mãe-de-santo foi o suficiente para a consulta. No entanto, este papel se tornava
mais legítimo pelos poderes que a mãe-de-santo possuía, o contato com as entidades, tanto
que, ao final, foi importante para Letícia salientar que tudo o que foi dito aconteceu, como a
profecia que se realiza. Letícia, como inúmeras outras pessoas, foi guiada pela necessidade,
pelo desejo, pois na continuação de nossa conversa ela não demonstrou intimidade ou mesmo
apreço pela religião umbandista:
Tem umas coisas lá, sabe? Tem essas coisas assim meio esquisitinhas, coisa
fumando com cigarro acendido, incenso, um bocado de coisa.
− E ela estava incorporada ou era ela mesmo?
− Ela mesmo, eu conversei com ela mesmo, entendeu? Ela só me dava resposta porque
ela tinha noção das coisas, né?
− Os dois dias?
Os dias que eu fui ela estava a mesma pessoa. Não fez reza, não fez nada assim
muito exagerado não, porque eu disse que não queria macumba, eu queria apenas uma
aproximação, uma conversa que ela me desse as respostas certas, que ela entende dessas
292
Diálogo realizado em fevereiro de 2008.
149
coisas, né? Mas não foi nada assim muito de colocar vela… Dei o nome, as coisas, eu dei,
mas depois eu me arrependi, porque eu tive medo de ela colocar em alguma coisa que fosse
prejudicar até a ele, porque a gente nunca sabe essas coisas.
293
Seu desconhecimento estava atrelado a uma imagem negativa, o que a levou a certo
arrependimento. Porém, mesmo com seu estranhamento diante dos símbolos e instrumentos
rituais, a capacidade de ajudar e o conhecimento, a vidência, foram a pedra fundamental de
justificativa e legitimação.Interessante que depois ela demonstra, sem saber o nome e suas
implicações mais a fundo, que o que desejava mesmo era uma amarração. O que não seria
ruim. Ruim seriam outras ações, não bem esclarecidas, feitas por pura maldade.
− Quando você fala que queria uma aproximação, o que era?
Era dele se aproximar de mim, entendeu? Porque ele vinha atrás de mim, mas não
era como eu queria, porque eu gostava muito dele e queria que ele chegasse para mim, me
chamasse para sair, a gente fosse para os cantos, igual como um casal solteiro, que nunca
aconteceu.
− E você acha que ela ia fazer isso acontecer como?
Bem, como eu era muito inocente na época, porque eu era muito nova, eu imaginei
que com a reza dela, as velas, ela fizesse alguma coisa com o santo dela e caísse assim na
mente dele e ele viesse atrás de mim, era isso que eu entendia, entendeu?
− Mas isso aí você chama de que?
Eu chamo de loucura. Isso não é coisa de gente não, fazer uma coisa dessa não. Eu,
hoje, hoje eu não vou mais não.
Mas eu digo assim: ela pegar o nome dele e com as velas e os santos dela, como
você falou… você chama isso de macumba?
− Não, não chamo de macumba, porque eu acho que a macumba é aquela que vai para
o terreiro, participa da roda, das conversas, dos textos, né? Que reza e acontece aquela
batida de lata. Eu acho que macumba realmente é isso, espírito entrar na gente e a gente
conversar com outras pessoas e sei lá, para mim eu acho que é isso, porque o que eu tive foi
realmente uma conversa, o nome que ela me pediu, a data de nascimento, acho que não serviu
para nada não, porque quando ela conversou comigo, ela pediu para me dar a resposta no
outro dia, mas ela me deu a resposta normal, quando eu entrei no quarto ela conversou
293
Diálogo realizado em fevereiro de 2008.
150
comigo normal, como se fosse uma amiga conversando comigo, não foi aquela coisa de rezar,
aquela reza para ele: vamos pegar aqui o nome dele e colocar aqui na boca de tal, tal, não foi
essas coisas assim, por isso que eu não considero macumba.
[…]
E se Maria Pezinho dissesse que tinha como fazer um trabalho, para poder ele ficar
com você, lhe assumir e ficar só com você?
É, no caso era diferente, porque como eu gostava muito dele eu ia acreditar do
mesmo jeito que ela me deu os conselhos para eu seguir, para não ficar com ele. Se ela tivesse
dito desse outro lado eu ia acreditar porque eu estava cega de amor, né? Aí eu… vixe! Ia fazer
o que? Ia dar pulinhos de alegria, porque realmente ia dar certo!
− Ia querer..?
− Ia querer, com certeza, porque eu gostava demais, demais! Olhe, eu realmente
gostava tanto que eu não namorava com ninguém, eu era a outra, sabia que eu era a outra. Eu
não saía de casa, eu não ficava com ninguém, eu esperava a boa vontade dele, quando ele ia
embora passava muito tempo viajando, eu passava muito tempo só, levei até nome de lésbica
por causa disso, mas era só esperando por ele.
294
Apesar de dizer que não é coisa de gente, Letícia afirma que iria querer o trabalho
para juntar seu amado a ela. Em sua fala, então, o sentimento forte é justificativa para fazer
algo que ela mesmo desaprova hoje. A emoção é pronunciada como algo que desestabiliza as
opiniões formadas. Sua afirmação de que hoje não iria mais, então, pode ser provisória, até
onde seu sentimento se imponha.
Numa conversa com Ívna
295
, outra pessoa que adentrou o terreiro umbandista em
busca de destruir suas angústias amorosas, a relação pessoal com o pai-de-santo, e os
sentimentos que invadem os sujeitos, são muito perceptíveis:
− Como você chegou, primeiramente, ao terreiro de Gledson?
Eu cheguei através do irmão dele. A gente trabalhava na campanha [eleitoral] e eu
peguei amizade com ele e comecei a contar as coisas da minha vida. De princípio eu já estava
sofrendo por causa dessa pessoa, certo? Paulinho [irmão de Pai Gledson] viu assim meu
jeito… de princípio ele não queria me dizer aonde ele freqüentava pelo fato assim… de eu
criticar ou alguma coisa do tipo, mas ele não sabia que eu já freqüentava outros… outros
294
Diálogo realizado em fevereiro de 2008.
295
Por motivo de privacidade foi posto o nome Ívna, que também é fictício.
151
lugares. foi aonde ele me falou: Ívina, quero te levar num lugar… não sei o quê… pronto.
foi através dele que eu vim para cá. A princípio eu vim conversar com Gledson, antes de
freqüentar a gira. Conversei com ele e tudo mais, e gostei. na conversa ele me colocou
para cima. A conversa foi muito boa, cheguei aqui muito pesada, muito negativa mesmo,
estava sofrendo mesmo! na conversa Gledson me colocou para cima, foi aonde eu
senti firmeza, foi aonde eu vim. No outro dia eu vim para a gira. Eu fui muito bem
recebida, gostei muito, inclusive achei até um pouco diferente dos outros lugares que eu
freqüentei, os caboclos e tudo mais. E gostei e até hoje estou. Graças a Deus.
296
Como se percebe, para descrever seu bem ou mal estar Ívna usa, em sua narrativa, os
códigos umbandistas para ler o mundo. Ela diz que estava pesada e negativa, categorias
explicativas encontradas nos terreiros para descrever certos estados emocionais. Como
destacou Le Breton, “a afetividade dos membros da mesma sociedade se inscreve num
sistema aberto de significados, de valores, de ritualismos, num vocabulário, etc. Cada emoção
sentida emana do interior desta trama, oferecendo possibilidades de interpretação aos atores a
respeito daquilo que eles sentem e percebem na atitude dos outros.”
297
Em nosso caso, Ívna
começa a deixar para trás algumas formas de ler e expressar o sofrimento e passa a usar o
vocabulário e as categorias fornecidas no terreiro de Pai Gledson.
Na continuação de nossa conversa a emotividade de sua narração aumentou de grau:
E quando você veio conversar com Gledson, antes de vir para a gira, era sobre o
quê?
Era sobre o que eu estava sofrendo. Era um problema amoroso. Eu gostava… eu
gosto muito e não queria desistir dele, estava assim é… estava uma coisa difícil de lidar, eu
não estava conseguindo fazer nada! As coisas da minha vida eu estava deixando em último
lugar. ele! Estava me atrapalhando em tudo! E não estava conseguindo me alimentar
direito, aquela coisa toda. Aí quando eu cheguei aqui, Gledson me deu uma luz…
E você teve conforto por conta das conversas, ou de alguma forma, através da
umbanda, você tentou “ajeitar” os problemas que você tinha?
Ótimo! A conversa me ajudou muito, muito mesmo, como eu falei, né? A princípio
eu conversei primeiro com ele para poder assistir uma gira. quando eu comecei a assistir a
gira, lógico que de princípio a gente acha tudo esquisito. Mas depois eu fui conhecendo. Aí,
296
Diálogo realizado em janeiro de 2009, grifo meu.
297
Le Breton, 2009, p.126.
152
às vezes quando eu vinha para gira, assim, eu vinha muito negativa, muito pesada, mas
quando eu saía parecia assim que não tinha acontecido nada! Sabe assim: parecia que não
tinha acontecido nada comigo, nada negativo tinha acontecido… sabe? Eu chegava pesada,
ave Maria, saía flutuando… Tudo bem, depende muito da positividade da gente. Depois que a
gente chega, cada caboclo vai passando, e depende do que cada caboclo venha fazer, cada
problema, cada propósito da pessoa. E eu saía… flutuando… Sempre que eu vinha para a
gira, o meu objetivo era esse problema… amoroso. Eu gostava… gosto duma pessoa, não
quero perder ele por nada nesse mundo, o que eu sinto por ele é maior do que eu… do que
tudo! Minha cabeça pedia uma coisa, mas meu coração queria outra… e a gente não
pode ir contra o coração não. Quando o coração quer, manda e manda mesmo! Pelo
menos assim, eu não consegui controlar, entendeu? É tanto que até hoje eu estou brigando por
isso, estou lutando… e muita coisa eu consegui… porque se não fosse através daqui [do
terreiro], eu acho que eu não estava mais com ele. Se eu não estivesse freqüentando aqui
pode ter certeza que eu não estava mais com ele.
298
Ao dizer essas palavras ela caracteriza uma “paixão amorosa” acompanhada de
sofrimento, em termos de modelos culturais, como um sentimento incontrolável, que nos tira
o apetite, a atenção, e traz o esquecimento de si mesmo, ocupando-se somente do ser amado.
A idéia de posse desse ser, a qualquer esforço, é permanente. Mas a existência coletiva de tais
realidades não funciona como uma máscara de ferro onde todas as maneiras de se expressar
ficam iguais.
De certa maneira, a emoção é indicada pelo grupo, que certo grau de
importância a alguns fatos. Sua emergência, intensidade, duração, suas
modalidades de aplicação, seu grau de incidência sobre os outros, respondem
a incitações coletivas variáveis de acordo com o público e a personalidade
dos atores solicitados. A emoção é a definição sensível do acontecimento tal
como o vive o indivíduo, a tradução existencial imediata e íntima de um
valor confrontado com o mundo.
299
Noutro momento Ívna nos remete à metáfora do lugar onde se instala esse sentimento,
o coração: Minha cabeça pedia uma coisa, mas meu coração queria outra… e a gente não
pode ir contra o coração não, quando o coração quer, manda e manda mesmo! Como
demonstra Le Breton, a simbologia dos órgãos como portadores das emoções podem variar de
uma cultura para outra. Em algumas, a felicidade, por exemplo, aloja-se e emana do gado.
298
Diálogo realizado em janeiro de 2009, grifo meu.
299
Le Breton, 2009, p.118.
153
Em nossa própria sociedade, influenciada pela ciência neurológica, se costuma apontar
mesmo a cabeça, onde se localiza o cérebro, como o lugar onde se aloja o sentimento da
paixão amorosa. Mas é indubitável que o coração é o órgão que carrega uma imagem
simbólica consagrada na associação com o amor. O sofrimento oriundo da ausência de amor
só pode então se debater nele. Por esse viés, Ívna nos apresenta também uma dualidade onde a
razão pertence à cabeça, ao cérebro, e a emoção ao coração, sendo que, em suas palavras, o
coração é apresentado como dominador, como aquele que sobrepuja a razão.
Por que você acha que se não estivesse aqui no terreiro não estaria mais com a
pessoa que você ama?
Assim, porque no começo estava aqueles atritos, eu acho até que provavelmente
ele estivesse se envolvendo com outra pessoa. Não sei. Nunca tive certeza e nem quero ter,
porque isso vai me doer muito. o que acontece? Eu vim lutar. Brigar, aqui, para não
deixar que ele me deixasse. E foi aqui que eu consegui manter ele comigo.
− Qual a forma, que através “daqui”, você consegue “manter”?
Ah, a forma… tudo que eu peço assim, por exemplo, sinhá, Pomba Gira, […] ela
luta por essas coisas assim de amor. eu fui indicada para conversar com ela. E ela disse!
Ela me prometeu que eu não ia perder ele! E é tanto que eu estou com um ano e dois meses
aqui, três meses eu acho, e eu não perdi… apesar assim dos altos e baixos, das confusões,
porque também não tem esse casal que não tenha confusão. Mas eu ainda estou com ele.
− E… eram sempre as conversas na gira, ou alguma vez você veio fazer particular?
− Eu vim fazer um particular uma vez, já foi agora, recentemente, precisei…
− Não foi no começo não?
Não, não foi no começo não, porque não tinha necessidade. Mas eu fiz um
particular, foi muito bom, é muito bom particular com ela. E sempre que eu preciso dela, às
vezes, mesmo assim, quando eu tenho um problema, lógico que antes de eu conversar com
eles aqui, os caboclos, eu converso com Gledson. Adianto para Gledson, eu digo Gledson:
olhe está acontecendo isso e isso. Ele me dá atenção. Fala “vamos dar um jeitinho”, e graças a
Deus sempre tem esse jeitinho. Um tempo desse eu estava… um tempo desse não,
recentemente, estava pensando que eu ia perder ele. Ah, menino! Cheguei aqui desesperada!
Gledson pelo amor de Deus, eu não posso perder ele, gosto muito dele, aquela coisa toda!
Houve uns fuxico por aí, aí mexeu e… mas está aí, não perdi.
− Como foi o particular que você fez?
154
Assim, a gente paga, né? Porque você sabe que sinhá não faz nada de graça, assim
como relógio não trabalha de graça, ela também não trabalha de graça. Ela é muito boa, você
pagou, você o efeito na mesma hora. ela conversa, dá muita atenção para a gente, muita
atenção mesmo, e o meu propósito, que é ele, eu disse para ela: não quero perder ele e eu
quero que a senhora me ele! E pronto. E ela me prometeu que ia dar. […] Porque ele não
queria nem olhar para minha cara, estava com muita raiva de mim, eu ligava para o telefone
dele, ele desligava, e agora ele não está mais fazendo isso, graças a ela. Eu tenho muito que
agradecer a ela! Eu devo muito a ela, muito mesmo, porque se não fosse por causa dela eu não
estava mais com ele. E o que eu sinto por ele é muito grande! Eu acho que eu nunca senti
nada por ninguém parecido, entendeu? Por que vai fazer cinco anos que eu gosto dele, que
eu estou com ele, cinco anos. E assim eu não consigo ficar com outra pessoa, a não ser ele. E
olhe que ele já disse na minha cara que não gostava de mim, aquela coisa toda, antes, certo?
Antes, assim que eu cheguei aqui. E hoje não, graças a sinhá, e… primeiramente a Deus, né?
Abaixo de Deus a ela, e aos outros caboclos também.
300
Penso que reconhecer a parcela culturalmente construída dos estados afetivos não é, ao
menos nesse contexto, negar a espontaneidade do que as pessoas sentem, mas afirmar que a o
próprio sentir, e a maneira de expressar o sentimento e de explicá-lo, por mais intenso que se
apresente, foi em parte aprendido no mundo da cultura e interiorizado, sendo agora
exteriorizado com toda carga sentinte que pode conter. Ívna diz que estava muito difícil de
lidar com o sentimento de amor não correspondido, o que a impedia de levar o cotidiano
normalmente, pois a mesmo o apetite havia perdido. Termina por enfatizar o lado
incontrolável de tal sentimento, trazendo a idéia de submissão a ele. Para Edgar Morin, a
maioria de nós foi, e temos sido sempre, sujeitos submissos ao amor, porque carregaríamos
conosco uma enorme necessidade dele.
301
O que ele não argumenta é sobre o caráter de construção dessa necessidade, e suas
diferenciações no tempo e no espaço. Devemos verificar que em nos tempos em que vamos
vivendo a emoção de amor correspondido, especialmente de “amor romântico”, impõe-se
como algo que é imprescindível para se ter uma vida feliz. Ele se impôs como um sentimento
universal, sendo instituído como algo impossível de controlar pela força da vontade
302
.
300
Diálogo realizado em janeiro de 2009.
301
Morin, 2003.
302
Costa, 1998.
155
Ívna se esforçava em demonstrar, ao ponto de se emocionar, o quanto necessitava
“ter” seu amado. Sofia, a outra cliente que solicitou um trabalho de amor, também diz algo
que pode ser relacionado a essa argumentação do amor como uma “necessidade”:
Acho que todo mundo tem essa coisa de busca… todo mundo tem as questões
espirituais, que você acaba se influenciando e achando que Deus ou qualquer outro espírito ou
qualquer outra coisa do mundo que a gente não conhece possa resolver os problemas da
gente. Aquilo que não podemos resolver materialmente, então essa procura, essa busca
de que um outro plano possa resolver o que a gente está vivendo no momento, as
dificuldades, os problemas, principalmente em relação ao amor.
303
Como se claramente, sua fala comporta uma complexidade considerável. Sofia não
universaliza à toda a espécie humana a busca e as questões espirituais, como também
termina por enfatizar que essa busca é motivada principalmente em relação ao amor. O amor
configura-se assim como o porto seguro aonde vai se a qualquer custo Para Morin, o amor é
uma das maneiras que o ser humano ser humano amenizar seus sofrimentos, colocando-o ao
lado da religião e da magia no cumprimento desse papel
304
. Em nosso caso, temos um
casamento dessas duas esferas. Os recursos gico-religiosos amenizam os sofrimentos no
instante em que trazem um amor para aquele que sofre com sua ausência.
Se os sentimentos, como o que é denominado de amor, podem ter algum componente
biológico universal, isso não interessa. Uma parcela das maneiras como damos vida a eles, ou
seja, as expressões emotivas, não são de forma alguma naturais, inatas ou hereditárias, e
variam bastante entre as culturas. Com certeza, no momento da interação, certos modos de
se comportar, reagir e se alegrar ou sofrer, que são interiorizados a tal ponto que passam a ser
sentidos e sofridos como naturais e incontroláveis. Ou, dizendo de outra forma, passam
culturalmente a ser naturais. Falar do sofrimento da ausência de amor, por exemplo, é também
um ato marcado por formas aprendidas. O condicionamento cultural, no entanto, não anula a
sensibilidade pessoal por onde passam as construções, como indicou Le Brton:
A cultura afetiva oferece os principais esquemas de experimentação e de
ação sobre os quais o indivíduo tece sua conduta de acordo com sua história
303
Diálogo realizado em julho de 2005, grifo meu.
304
Morin, 2001.
156
pessoal, seu estilo e, notadamente, sua avaliação da situação. A emoção
experimentada traduz a significação conferida pelo indivíduo às
circunstâncias que nele ressoam. É uma atividade de conhecimento, uma
construção social e cultural, a qual se torna um fato pessoal mediante o estilo
particular do indivíduo.
305
Alguns desses fatos, como se viu, são levados aos terreiros de umbanda. Os trabalhos
são solução para mais de uma aflição cotidiana. Isso acontece porque, entre outras coisas, eles
dão sentido aos caos, fornecem novos códigos para a leitura das circunstâncias, novas
categorias explicativas e, com seus prometidos efeitos mágico-religiosos, alimentam o
combustível humano da esperança.
3.2. SOBRE MORAL
A umbanda está inserida e faz parte de uma sociedade onde uma moral de fundamento
judaico-cristã orienta de maneira hegemônica as ações, valores e julgamentos dos indivíduos.
Apesar disso, alguns aspectos dessa moral são transgredidos, flexibilizados, transformados ou
substituídos pelos agentes no momento em que tentam resolver certas aflições através do
recurso mágico-religioso. Por isso, as intervenções na realidade que podem ser feitas pelos
trabalhos colocam em discussão inúmeros temas relativos à moral, como, por exemplo, o
livre arbítrio, o bem, e o amor como um dom.
Com o exemplo abaixo essa discussão pode ser iniciada, quando Sofia, numa de suas
falas, justifica sua decisão de realizar um trabalho de amor:
Porque muitas vezes, talvez não seja nem correto, mas a gente quer tanto uma
pessoa que por isso as pessoas recorrem a esses meios na tentativa de trazer a pessoa para
perto da gente. Não sei nem se isso é bom. Não sei se seria bom influenciar as pessoas usando
outros meios, que a pessoa não ama por que a gente usaria métodos, outros métodos, para
trazê-la e para fazer com que essa pessoa fique do meu lado?
306
Vemos que na fala de Sofia ela levanta algumas questões de ordem ética e moral para
si própria, questões do tipo “bom e mau”, quando diz Não sei nem se isso é bom, e “certo ou
errado”, ao dizer que talvez não seja nem correto. Estas questões lhe colocaram dúvidas que
305
Le Breton, 2009, p.12.
306
Diálogo realizado em julho de 2005.
157
podem ser traduzidas na pergunta: tolher ou não a liberdade de escolha do outro? Tenho esse
direito? É certo fazer isso? Em que valores posso me basear? Essas dúvidas, ressalte-se, não a
impediram de realizar o trabalho, talvez porque ela via nessa realização uma possibilidade de
dar fim ao seu infortúnio individual.
Há, numa vasta literatura sociológica e antropológica de embasamento durkheimiano,
um “preconceito teológico” que liga os atos mágico-religiosos à amoralidade e à imoralidade.
Conforme pensa Gurvitch, a magia não é avessa à moralidade, é antes uma afirmação do
desejo e do diverso frente à moralidade tradicional estabelecida. Não se tratando da clássica
oposição do individual frente ao social, representaria sim um princípio distinto, uma
moralidade de autonomia diante da moral hegemônica nesse mundo social.
307
Talvez a idéia de uma “moral de autonomia”, diante de uma moral tradicional, peque
por excesso de pureza, pois na própria fala de Sofia, citada mais acima, vê-se o quanto a
cliente não estava convicta de se sua ação era ou não correta. A hesitação de Sofia no uso da
primeira ou terceira pessoa também revela o conflito, que ora assume sua atitude, ora busca se
esquivar através de um discurso distanciado. Mas, de qualquer modo, a afirmação de Georges
Gurvitch serve para nos lembrar do trânsito entre modelos de moral presentes na sociedade. É
entre eles que Sofia fica hesitando. Como se vê, alguns trabalhos da umbanda acabam
colocando frente à frente modelos de moral diferentes para discutir, repelir-se ou adaptar-se.
Mesmo existindo diversos programas de moral, na medida em que se aciona aquele que não é
o hegemônico se entra no campo da transgressão, como é o caso de Sofia.
Ás vezes, algumas concepções muito pessoais confrontam as normas sociais mais
hegemônicas. A conversa com Ívna, por exemplo, posta no item anterior, demonstra veemente
rejeição de uma moral que, nas palavras de Nietzsche, é chamada de “moral dos ressentidos”,
moral racionalista, avessa às paixões, aos desejos e às vontades fortes que fazem os corpos
explodirem de força vital e que pode ser vista como pelo viés que lhe é contrário ou,
para retomar Nietzsche, que lhe teme.
308
A moral judaico-cristã, em sua valorização da
“sobriedade” e da “castidade”, designadas como “virtudes morais”, e da “temperança” e
“prudência”, alçadas ao patamar das “virtudes cardeais”, das quais as anteriores dependeriam,
rejeita essa maneira passional e intervencionista de conduta.
Se as normas falam de como se deve agir, é porque, ao menos teoricamente, existe a
possibilidade de não agir deste modo.
309
Assim, na busca pela felicidade e bem-estar, Sofia
307
Gurvitch, 1968.
308
Nietzsche, 2009.
309
Valss, 2006.
158
transgride seus próprios preceitos. O desejo a fez pensar e repensar suas concepções pré-
estabelecidas e seus próprios preconceitos aprendidos, como se pode ler mais adiante:
− Eu conhecia como macumba e a visão que eu tinha era que lá se praticava o mal, que
ia para fazer determinados trabalhos para prejudicar as pessoas, e que não havia rituais
mais, digamos assim, mais sagrados.
− Rituais sagrados? Como assim?
Tipo para cultuar entidades… E eu não sabia também que dentro daquele ambiente,
daquele contexto, havia também as questões culturais. Então a visão que eu tinha era mais
dessa prática do mal.
− Como assim questões culturais?
Não as misturas dos elementos afros, da dança, das entidades, dos preto-velhos
que são vindos dos escravos, herdados dos escravos?
− Se você achava que lá se praticava o mal, o que lhe levou até lá?
− Primeiro eu tive medo, muito medo, como a visão que eu tinha era do mal então isso
me dava medo. Mas também me dava curiosidade e me desfiava a ver na realidade como eram
as práticas.
− Foi isso?
− A princípio sim. Mas como eu estava buscando algo que me desse respostas, que me
desse motivações, que me norteasse para o que eu estava vivendo, então eu achei que seria
bom também ir lá e de repente eu pudesse descobrir ali as respostas que eu estava
buscando.
310
Assim como Sofia, muitas das pessoas que vão ao terreiro sob a mesma condição, ou
seja, não se considerando umbandistas, desejando apenas uma solução imediata para uma
situação de desespero, são tomadas por um ecletismo religioso que, às vezes, gera um
conflito interno relativo à concepção ético-moral da própria pertença religiosa ou da moral
socialmente aprendida.
Na fala de Sofia, por exemplo, as dúvidas relativas à moralidade perpassam
essencialmente no ponto onde se sabe que fazer o trabalho é interferir no curso natural das
coisas, manipulando o sentimento alheio. Isto é muito perceptível quando ela diz: Não sei se
seria bom influenciar as pessoas usando outros meios, que a pessoa não ama por que a
310
Diálogo realizado em julho de 2005.
159
gente usaria métodos []? O ideal de amor gratuito e o dom do livre arbítrio pesam no
momento da autocrítica.
Ívina, que também fez um trabalho de amor com Pai Gledson, elaborou respostas
diferentes para o tema da intervenção, do livre arbítrio, referente à liberdade dos sentimentos
alheios. O tema surgiu por acaso. Durante nossa entrevista ela a todo o momento falava de seu
problema amoroso e da tentativa de resolvê-lo no terreiro, através da ajuda de Pomba Gira.
Porém, em nenhum instante eu a ouvia pronunciar o termo trabalho de amor, que a esta altura
eu sabia ser uma categoria consagrada entre os pais e mães-de-santo com quem convivia.
Então decidi lhe indagar:
− Alguma hora você chama isso [que ela vinha me contando] de trabalho de amor?
− De trabalho…?
− Sim, fazer um trabalho de amor…?
Foi então que ela ficou indignada comigo:
Trabalho? Não digo bem trabaaalho… porque assim olhe: muita gente chegou
para mim, algumas pessoas assim próximas, chegou para mim e disse assim: “eu não seria
capaz de estar querendo conseguir alguma coisa através disso!” Mas eu acho, sinceramente, a
minha opinião, quando se gosta e quer uma pessoa de verdade, quando é um sentimento puro,
eu não acho que seja errado, eu não estou matando, não estou roubando, né? Eu não
estou prejudicando ninguém, o que eu quero é a pessoa que eu gosto do meu lado, e eu
não vou maltratar, não vou fazer ele sofrer, pelo contrário, se eu gosto dele vou fazer ele
feliz, entendeu? Eu não acho que seja assim, trabaaalho, simplesmente trabalho! Porque eu
estou aqui por amor, porque eu gosto muito, através do meu coração, meu coração está
pedindo, certo? E se eu sei que isso aqui pode me dar… por quê eu… não é?
311
Ora, errado é matar ou roubar, valores dados. Nas palavras de Ívna errado é, ainda,
maltratar. Dar amor só pode ser certo. Isto porque agir de acordo com a moral e a ética “é agir
de acordo com o bem. A maneira como se definirá o que seja este bem, é um segundo
problema”
312
.
311
Diálogo realizado em janeiro de 2009, grifo meu.
312
Valls, 2006, p.67.
160
É indiscutível que as estruturas internalizadas de um habitus inclinam os atores a agir
e pensar dentro de alguns limites.
313
Ninguém toma decisões a partir do nada, mas a partir de
normas ou orientações socialmente aprendidas. Apesar de não termos a toda hora consciência
de quais valores estão nos guiando no instante das decisões, o habitus regula nossas decisões
mais do que gostaríamos. Porém, dentro mesmo do habitus existem inumeráveis opções de
ação que acabam sendo escolhidas de acordo com a história individual de cada indivíduo, sua
sensibilidade, sua subjetividade.
Perceba-se que a fala de Ivina não vai contra o discurso dominante de que o amor é o
bem maior. Mas, ao mesmo tempo, revela uma concepção onde o fim, isto é, seu amor, é mais
significativo que o meio utilizado para alcançá-lo, o que normalmente vai contra o discurso
dominante. A vida moral acaba sendo imensamente flexível e de uma mobilidade
desconcertante para quem idealiza que uma única moralidade possa ou deva ser aplicada a
todas as situações. Além disso, como afirma Gurvitch, enquanto a experiência jurídica e suas
leis são inteiramente coletivas, “a realidade e a experiência morais podem ser tanto
individuais como coletivas”, sendo por mais das vezes comum que o vetor individual seja
mais fortemente acentuado.
314
O ato gico-religioso buscado por Ivna carrega consigo o desejo de dominar um
sentimento de outrem, de dominar seu cotidiano, o que desestabiliza a moral hegemônica
como única forma de enxergar o mundo das ações. A leitura do problema vivido é feita
através de seus valores adquiridos na cultura, mas está em diálogo com seu sentimento
pessoal, tristezas, carências, entre outras instâncias. Quando ela me falava, falava bastante
emocionada, demonstrando que seu amor e intenção de fazer o amado feliz tornavam, do
ponto de vista de sua moral, a intervenção mágico-religiosa na realidade um ato
absolutamente correto, pois, segundo sua consideração, seria para o bem do outro também.
Nessa situação, Ívna revisa os valores tradicionais e, numa relação dialógica com o discurso
sobre o amor presente na cultura, cria os seus próprios, que lhe sirvam sem sentimento de
culpa no atual contexto de vida. Desse modo, o caráter coletivo e comumente coercitivo da
moral não se impôs como algo asfixiante à sua individualidade.
Diante desse acontecimento, o termo trabalho lhe pareceu, como pude sentir, e ficar
constrangido, muito ofensivo, conforme sua tonalidade de voz e sua argumentação,
reafirmando com veemência: Eu acho, eu acho isso, não é simplesmente um trabalho!
315
313
Bourdieu, 1994.
314
Gurvitch, 1968, p.222.
315
Diálogo realizado em janeiro de 2009, grifo meu.
161
Acredito que o termo trabalho lhe causou tanta indignação porque possa ter lhe
parecido um termo muito técnico que acabava deixando ausente toda a carga amorosa e
emocional que implica, toda a realidade que sente individualmente. Para ela, não se tratava de
executar algo, e sim de conquistar um amor, um amor que com certeza, no coração dela, é
lindo, mas que precisará de uma ajuda de Pomba Gira.
Sofia e Ívna não serão as únicas a discorrer sobre questões desse gênero. Além dos
clientes, todos os pais e mães-de-santo também fizeram comentários que envolvem o assunto.
Vejamos, por exemplo, o de Pai Salviano, quando explica porque não gosta muito de
determinados tipos de trabalhos de amor:
Quando é um amor que acaba… porque assim como começou também tem um fim.
eu não gosto de lutar por isso não. Eu desanimo logo, porque todo mundo tem o direito
de começar e de acabar a hora que quiser. Começar a hora que quiser e acabar a hora que
quiser. Agora quando é um amor, uma união de um casal que foi através de demanda aquela
separação, uma demanda para destruir, eu trabalho com gosto, procuro ajeitar e resolver
aquele casal, porque a gente pensa nas crianças, na família, numa luta de muitos anos do
casal.
316
Fica evidente que, entre outras questões, Pai Salviano valoriza em seu julgamento o
livre-arbítrio como fundamental na decisão de fazer ou não certos trabalhos. O único caso de
exceção é quando terceiros tentam prejudicar um casal, destruí-lo com uma demanda. Se Pai
Salviano tem essa concepção a respeito dos trabalhos de amor, Dona Luiza tem concepções
parecidas, mas levanta outros problemas e questionamentos, como se em um de nossos
diálogos, transcrito logo abaixo:
A senhora me disse uma vez que não recomenda muito os trabalhos de amor, no
sentido de que acha que é um amor forçado…
É! O amor forçado eu acho que não dá… não serve, né?! Então é assim, você,
vamos supor: você tem sua mulher. Então vocês por um motivo ás vezes até muito bobo
vocês dois brigam e se afastam, não é? estão os dois naquele negócio: não, não vou pedir
desculpas a fulano porque foi fulano o culpado. a mulher diz: não, foi ele quem foi o
culpado. E fica naquela dúvida medonha! Nesse caso, se a pessoa chegar a mim e falar:
“Dona Luisa eu quero que a senhora… [longa pausa] por intermédio dos guias faça alguma
316
Diálogo realizado em junho de 2007.
162
coisa para fulano ter coragem de se chegar a mim.” sim, eu faço. Mas negócio assim:
porque você quer a dona ali! E a dona não lhe quer! Para mim isso não… eu acho muito
errado, assim cada um faça do seu jeito, não tenho nada contra. Mas para eu fazer… acho
muito esquisito…
− E os que a senhora já fez… não fez de todo gosto, então?
De jeito nenhum! Têm pessoas que chega choram! Porque você sabe que as pessoas
ás vezes aprendem tanto a conviver com o outro que fica difícil de conviver distante. Tem um
caso de uma mulher, que tem treze anos de casada, e agora estão… o marido arrumou outra
pessoa. Ou se arrumou ele e ela, ele e a criatura. E essa mulher está sofrendo muito. […]
ela tem insistido muito para eu fazer alguma coisa para que voltem as pazes, fazerem as pazes
e viverem felizes. essa parte assim eu acho que… logo que ela quer porque ela gosta
daquele outro ainda muito, não sabe viver sem aquele, não aprendeu a viver sem aquele outro,
né? Assim, nesses casos eu tento ajudar aos dois se reaproximar novamente. Mas em outros
casos de casal… vamos dizer uma mulher, uma mulher da vida livre, e quer o marido
daquela, de outra mulher acolá… por dinheiro nenhum eu trabalho para essa pessoa!
De jeito nenhum! Porque eu tenho marido e não quero que ninguém faça isso comigo.
Minhas filhas são casadas e eu não gostaria que ninguém fizesse isso com uma filha
minha também, e eu já tenho várias coisas assim para pensar…
317
Nas palavras acima se percebe que o livre-arbítrio não é visto como um valor
universal e irrevogável, pois não é em toda e qualquer situação que ele merece a mesma
intocabilidade. Se se faz certos tipos de trabalho de amor para trazer de volta um marido que
se debandou, porque certos valores consideram o matrimônio importante, então, neste caso, a
relevância própria do livre-arbítrio como um valor em si deixa de importar. É outro valor
moral, o matrimônio, e o sofrimento da mulher abandonada, que passam a ser mais
imperativos. Aliás, a categoria sofrimento se mostra como grande responsável por
flexibilizações morais, donde vai se vendo o quanto as duas esferas, da emoção e da moral,
andam em diálogo.
Ao mesmo tempo em que transgride valores tradicionais, as palavras de Dona Luiza
revelam uma moral também ortodoxa, de modo que os trabalhos de amor que ela concebe
fazer são somente para salvar o sagrado matrimônio. Quem deseja os casados não merece
ajuda, mesmo que esteja sofrendo. Quem era casado e está sofrendo merece. Portanto, o
317
Diálogo realizado em junho de 2007, grifo meu.
163
próprio sofrimento também é avaliado segundo critérios específicos, ele por si só não justifica
qualquer trabalho. Não há contradição alguma. O que temos aqui é uma constante negociação
entre programas de moralidade diferentes.
Num outro ponto vemos a decisão de não fazer trabalhos de separação porque não
gostaria que ela e suas filhas casadas fossem alvo do mesmo veneno. Neste momento, sua
consciência moral não parece pensar a partir de conceitos pré-estabelecidos do que seria certo
ou errado, e sim dentro do caso, partindo de uma reflexão comparativa: pondo-se no lugar do
outro, e tomando para si seus sentimentos. Mas constata-se que pôr-se no lugar do outro antes
de tomar qualquer atitude é um preceito moral imperativo em nossa sociedade, de modo que
podemos ter também esse dever normativo aliado à uma visão estritamente pessoal, de
quem conhece os efeitos de um trabalho de modo diferenciado, se comparado aos clientes, e
tem demasiado amor pelos filhos e pela marido.
Assim, conforme sugere José Jorge de Carvalho, talvez seja mais importante pensar as
identificações individuais, ou as identificações de secções, ou de subgrupos dentro da mesma
comunidade, do que a questão da estabilidade. A idéia é abandonar denominações que
pressupõem que todos os membros desses grupos ou comunidades se identificariam
individualmente, mas de um modo comum.
318
Em suma, quando nos deparamos com um
conjunto de questões relativas aos atos mágico-religiosos, é preciso ressaltar que se trata de
um conjunto de questões para conjuntos diferenciados de pessoas. “Há que introduzir agora
uma ruptura nessa idéia de que todas as pessoas sonham juntas”
319
. Por isso, a representação
do diálogo e a inserção extensa de vozes no texto etnográfico tornam-se importante, na
medida em que possibilita também expor a multiplicidade de significados e escolhas que
envolvem a experiência de pessoas diversas com os trabalhos da umbanda.
Seguindo essa trilha, pode-se citar o pai-de-santo de Telvina, que também não
realiza amarrações, mas por motivos diversos daqueles apresentados aqui até então,
introduzindo uma nova problemática:
− A pessoa chega aqui querendo amarrar fulano com fulano. Eu digo: não, não adianta
que quando desata fica pior. Tem que ter o nível certo, voltar se tiver amor, sem amarração!
Porque amarração pode fazer, mas em um ano ou dois se desmantela. Eu sou muito realista
318
Carvalho, 2000.
319
Carvalho, 2000, p.4.
164
com as minhas coisas. Funciona, mas com um tempo se acaba tudo, os dois vão ficar com
ódio um do outro, porque coisa amarrada… nada a força presta.
320
Perceba-se que de Telvina não considera errado fazer a amarração, ele somente
não aposta num final exitoso. Esclarece sobre a existência de um prazo de validade para o
efeito do trabalho e aponta, ao fim do efeito, a emergência de um movimento reverso ao do
amor, o ódio.
Pai-de-santo Zé de Telvina. Foto: Melquíades Jr. – 2007.
Os trabalhos de amor são os que suscitam mais divergências entre clientes e pais-e-
mães-de-santo a respeito das questões morais. Os trabalhos de destranca quase nunca são
discutidos sob tais temáticas, e os de cura são apresentados com certa unanimidade como um
ato de caridade. Dona Luiza nos dá um exemplo da recorrência desse discurso:
Na umbanda mesmo diz: a umbanda é paz e amor e caridade. Se eu não pratico a
caridade, como é que eu vou receber uma graça dos meus espíritos? Porque eu, para mim, eles
vêm aqui com essa missão de ajudar, de curar. Você está desempregado… quer um emprego,
um trabalho, uma coisa, você vai pedir aquilo… então dali a gente ajuda. Tanto eu da minha
320
Diálogo realizado em junho de 2007.
165
parte, eu mesmo da minha parte sem estar manifestada, ajudo as pessoas, faço, ascendo ponto
para a pessoa arrumar um emprego, para que seu caminho seja limpo… sua vida tenha
prosperidade. Para mim o que importa é voconseguir aquilo ali que você veio atrás: seu
emprego, viver em paz, ter felicidade na sua vida. O dinheiro para mim não importa, porque
eu tenho casa, eu tenho comida, eu tenho um marido que tem um emprego bom. A gente não
vive à custa de espírito. Jamais eu invoco um espírito meu para eu ter que ganhar o dinheiro
através da minha entidade.
321
Segundo Negrão, que desenvolveu pesquisas em São Paulo, foi através da influência
kardecista que a umbanda, em sua formação, impregnou-se do ideal do amor cristão
desinteressado, caridoso, tendo a realização de curas se tornado o ponto central do valor da
caridade umbandista. Mas, para o mesmo autor, essa prática choca-se profundamente com a
realização de demandas, que visam causar danos a outrem, ou com a cobrança por outros
serviços mágico-religiosos dentro da religião
322
. A demanda, consideradas “magia negra”, é
uma das categorias de explicação dos males e aflições que afetam os indivíduos. Qualquer
doença pode ter sido uma vingança de um inimigo que encomendou uma demanda a outro pai
ou mãe-de-santo. A perda do emprego pode também ter sido uma coisa-feita, como às vezes
as demandas são chamadas, por alguém que sente inveja de sua pessoa e quis trancar seus
caminhos. O sumiço do amor e da paixão do ser amado pode ter sido obra de outra pessoa que
também o deseja.
Nenhuma dos pais e mães-de-santo que fizeram parte desta pesquisa diz realizar
demandas, todos se colocam contra. Entretanto, vários dos problemas que resolvem são
diagnosticadas como causadas por elas. Como pontuou Ferreti, a chamada “magia negra” é
sempre uma categoria de acusação, e não de autodefinição.
323
Ninguém, entre os sujeitos
pesquisados, quer associar à sua identidade moral tal ato, porque este é associado ao mal.
Entretanto, nesses termos, surge outra encruzilhada moral, que é a da agência das
entidades em detrimento do pai ou mãe-de-santo. Elas têm moralidade autônoma e, conforme
revela a fala da cambona de Pai Gledson, Cecília, a moralidade delas, das entidades, pode
estar em desacordo com a do próprio pai-de-santo:
321
Diálogo realizado em junho de 2007, grifo meu.
322
Negrão, 1996.
323
Ferretti, 2001.
166
A Pomba Gira, chega uma pessoa aqui: “eu quero fulano”. Ela não quer nem saber
se é casado, o que é, o que não é. […] Pomba Gira não está nem não. Ela quer saber se está
ganhando o dela!
324
.
Para as Pombas Giras, em relação ao amor, tudo é permitido. Por isso é que todos
acabam chegando até ela. Se for para destruir um casamento, o pai ou mãe-de-santo é quem se
opõe, porque no que depender delas, tudo é permitido. Reginaldo Prandi faz interessante
observação acerca desse radical caráter libertário das Pombas Giras:
Para a pombagira e seus companheiros exus, qualquer desejo pode ser
atendido. Por meio dos pedidos feitos às pombagiras, podemos entender algo
das aspirações e frustrações de parcelas da população que estão de certo
modo distantes de um código de ética e moralidade embasado em valores da
tradição ocidental cristã. O culto acesso às dimensões mais próximas do
mundo da natureza, dos instintos, das pulsões sexuais, das aspirações e
desejos inconfessos. Revela esse lado "menos nobre" da concepção de
mundo e de agir no mundo. Umbanda e candomblé são religiões que aceitam
o mundo como ele é e ensinam que cada um deve lutar para realizar seus
desejos.
Por isso, com freqüência são vistas como liberadoras. Não se crê no pecado
nem em premiação ou punição após a morte. A vida é boa e deve ser levada
com prazer e alegria. Nessa busca da realização dos anseios humanos mais
íntimos, exus e pombagiras reforçam sem vida uma importante
valorização da intimidade, às vezes obscura, de cada um de nós, pois para os
exus e pombagiras não desejo ilegítimo nem aspiração inalcançável nem
fantasia reprovável.
325
Não obstante terem moralidade
própria, as entidades não têm liberdade para
tudo. Sua moral estará em constante diálogo e
conflito com a do médium. O que é o exu
batizado”, senão um exu um pouco mais
condicionado aos preceitos do médium?
Um problema que se coloca é a da
perda de consciência durante a
incorporação, o que daria total liberdade de
ação à entidade ocupante do corpo. Para
324
Diálogo realizado em junho de 2005.
325
Prandi, 2008, n.p.
167
resolver esse impasse é que a cambona ou o cambono têm de estar sempre presente no
instante da consulta, fiscalizando se o cliente não irá pedir alguma coisa que o pai ou mãe-de-
santo não permita à entidade fazer.
A esse respeito Pai Salviano me contou que recentemente um cliente chegou com um
material já todo comprado. Segundo o cliente, o material foi designado por Pomba Gira Maria
Padilha. Mas esta consulta, por algum motivo, a cambona deixou escapar. Achando o material
comprado meio suspeito, Pai Salviano me disse que avisaria ao tal cliente que só iria
incorporar quando ele dissesse para o que era o material, evitando, assim, a realização de
qualquer trabalho que ele fosse contra.
Várias entidades transgridem os valores morais dominantes na nossa sociedade, o que
não as torna menos poderosas. O caso da entidade Malandro, muito querida no terreiro de
Pai Gledson, é exemplar. Esta entidade, como o valor semântico de seu nome sugere, não
possui uma postura aprovada pelos padrões sociais e morais de nossa sociedade, sendo um
sujeito “deslocado das regras formais”
326
. Falando arrastado e se utilizando de gírias, anda de
forma sinuosa e não se limita a pedir cachaça ou cerveja, mas também drogas ilícitas, como o
próprio Pai Gledson narra:
Esse Malandro é o seguinte: têm pedras [terreiros] por aí, não vou dizer aqui,
mas têm pedras [terreiros] que ele usa realmente o negócio, está entendendo? Quer dizer, ele é
mais esse tipo de coisa assimMas têm terreiros que preservam. Ele chega e pedi, é não
dar. Porque fica ruim, digamos, numa gira uma pessoa consumir drogas, essas coisas. Quer
dizer, está dando influência. que ele vem pedindo, mas é assim… a forma dele, o jeito
dele pedir droga, pedir cocaína, pedir, vamos dizer, maconha, essas coisas todas. [...] Ele é
malandro, assim, ele é malandro mesmo [...], no sentido assim de malandragem. [...] Agora é
o seguinte: de trabalho, ele é pesado no trabalho.
327
Fica evidente que o próprio Pai Gledson, apesar de incorporar esta entidade, não
concorda com seu comportamento, o que o faz negar seus pedidos, que seriam uma
influência. Entretanto, veja-se que a entidade Malandro apenas é chamada de malandro
devido ao seu jeito de ser. Pois, aparentemente contraditório, Zé Malandro é um malandro que
trabalha, e que é pesado no trabalho. Ou seja: em se tratando das forças invisíveis que
permeiam o mundo, Malandro é poderoso. Para os umbandistas não importa o fato de ele
326
Damatta, 1997, p.263.
327
Diálogo realizado em fevereiro de 2005.
168
pedir drogas ilícitas. O que conta mais, e é mais importante, é o poder mágico-religioso, o
trabalho. Como bem colocou Patrícia Birman, moral e poder, na umbanda, são duas coisas
que funcionam de forma separada
328
, ao contrário da concepção católica, onde aqueles que
têm poderes, de “obrar milagres”, os têm por serem considerados moralmente virtuosos, de
acordo com o que esta doutrina considera virtude.
Chegando ao fim, é possível sintetizar dizendo que alguns trabalhos levantam
problemáticas que levam à transgressão de valores tradicionais, à transição entre diferentes
modelos de moralidade, ou à negociação entre tais modelos. A pluralidade de modos de
pensar as mesmas questões, expostas nas reflexões dos sujeitos pesquisados, fala-nos dessa
igual pluralidade de moralidades presentes na cultura. É entre conflitos, certezas, dúvidas e
reflexões sobre os valores morais que estes sujeitos tentam superar suas aflições cotidianas
quando se entregam a viver a experiência dos trabalhos.
328
Birman, 1985.
169
PALAVRAS FINAIS
No início da pesquisa de campo que veio resultar neste texto não estava planejado, de
maneira nenhuma, fazer um trabalho sobre os trabalhos. Mas logo as giras iniciavam eles
sempre surgiam. E a cada vez que acontecia me chamava à atenção mais do que na vez
anterior, até o dia que decidi finalmente direcionar meu olhar para esta matéria. Ao invés de
me concentrar na prática ou observar as representações, acabei me encontrando com a
experiência. Mas não uma experiência de transcendência. E sim uma experiência mágico-
religiosa que se fazia cotidiana nos terreiros e na realidade daqueles que procuravam os
trabalhos.
Falar em cotidiano não significa falar de algo simplista ou desimportante. As várias
dimensões envolvendo essa experiência mágico-religiosa, e suas sutis nuances, dão seu
testemunho. Por isso, o pragmatismo que aparenta o uso do termo cliente, para assim chamar
os buscadores de trabalhos, não vinga. A regra é ser afetado por eles. E isso se
predominantemente através da performance, do saber-fazer e da subjetividade. As
provocações sensoriais, os mistérios, o segredos mágico-religiosos, os conflitos éticos, são
temas onde a questão quase nunca é de crer, mas de sentir. Trata-se, em síntese, de assunto
complexo que remete a vários pontos que podem ser posteriormente aprofundados.
Com isso em mente, contento-me se minha tarefa de explanar e transitar entre certos
pontos-chave de uma dada e peculiar experiência mágico-religiosa tiver sido consistente o
bastante para demonstrar a significância deles nesse campo de estudo: a dimensão
performativa, com sua latente corporeidade, vocalidade, imagética, entre outras modalidades
performativas; a dimensão do saber-fazer, que comporta a tradição, que resguarda o poder,
que fundamenta e modifica a performance; e, por fim, a dimensão da subjetividade, que
engloba as inevitáveis aflições cotidianas que assolam sujeitos e onde se debatem conceitos e
questões ético-morais.
Ao destacar as dimensões da performance, do saber-fazer e da subjetividade não quero
afirmar, em nenhuma hipótese, que a experiência mágico-religiosa dos trabalhos se resumam
a elas em todas as suas manifestações. Entretanto, dei ênfase às dimensões que se mostraram
mais salientes nos terreiros onde realizei minha pesquisa empírica. Mas nesses mesmos
terreiros há, certamente, outras dimensões da experiência dos trabalhos ainda por receber
atenção. E em outras formas da umbanda se manifestar pelo Brasil, em sua diversidade tanta e
170
sabida por todos aqueles que a pesquisam, com certeza outras dimensões não tão evidentes no
meu campo empírico podem ser apontadas com grande profusão e relevância.
As cosmologias, as explicações fundamentadas, a existência das entidades são
abstrações enquanto situadas no campo da explicação formal. A experiência é quem faz tudo
isso ser concreto e palpável. Os significados de um gesto performativo de Maria Padilha
durante um ritual possuem grande vigor porque o interlocutor sente a experiência profunda de
ouvi-la, de tocá-la, de beber em seu copo. Uma enorme aflição emocional pode fazer o cético
solicitar um trabalho que, inclusive, o leve a acolher atitudes ético-morais que geralmente não
aceitaria.
Além disso, os significados dos elementos que compõem um trabalho podem ser
recebidos enquanto se sente o impacto dos atos performativos, e a própria realidade
performativa, para além do contato íntimo e sensorial que estabelece, é também vista sob o
óculo incomensurável da tradição latejando ao do ouvido. Isso significa que a experiência
possui dimensões significantes que estão infinitamente amalgamadas e entrecruzadas. Sentir e
compreender esse fato quando se vai ao terreiro é fácil. Fazer vivê-lo nas linhas e entrelinhas
do texto etnográfico é outra história.
Sempre motivadas pela dor das aflições cotidianas, a cada dia inúmeras pessoas
reconhecem o saber e o fazer mágico-religioso resguardado nos terreiros e se atiram em busca
da solução através dos trabalhos. Neste caminho, algumas vivenciam interações
performativas, entram em conflito e discutem interna ou externamente questões próprias da
subjetividade em diálogo com o mundo e, ao final, com a dor e as penúrias aliviadas por
completo ou parcialmente saem desses templos do acolhimento carregando um pouquinho
mais de conhecimento mágico-religioso para mover e transubstanciar as diferentes energias
que os envolvem sol após sol.
As respostas às aflições cotidianas, tais como o incômodo e o abatimento causados
pela doença, o desespero fruto da miséria ou do endividamento financeiro, a consternação
trazida pelo sentimento de abandono amoroso, entre outros pequenos problemas que
desbotam o semblante dos indivíduos, são a principal bússola que os encaminha para os
terreiros de umbanda. Sem esquecer a alegria de se viver uma religião feita de sons e cores em
movimento, nos terreiros pesquisados o bem estar físico, espiritual e afetivo se mostrou como
o sentido da presença das pessoas e da vinda das entidades aos terreiros, porque elas vêm,
principalmente, para ajudar.
Imaginar os terreiros aqui pesquisados sem a realização de trabalhos é imaginá-los
esvaziados de gente. O contrário não é verdade: terreiros que abdicaram de qualquer rito
171
público, como as giras, ou manutenção de grupo religioso, os filhos-de-santo, e nem por isso
fecharam as portas, vivendo somente da realização de trabalhos feitos sempre em âmbito
privado. Para além de todo o rico e movediço saber mágico-religioso, e da beleza entusiástica
de sua performance, e do capital histórico e cultural que resguarda à sociedade brasileira, a
contribuição essencial desses terreiros é mesmo abrandar as angústias de cada um que os
procura, de filhas e filhos, de estranhos e de estrangeiros.
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